Você está na página 1de 4

Da Amazônia profunda ao sucesso explosivo

no TikTok
A indígena Cunhaporanga Tatuyo, de 22 anos, alcançou mais
de seis milhões de seguidores na rede social mostrando seu
cotidiano

Jóvenes indígenas de Brasil


utilizan sus redes sociales para promover sus culturas.RR. SS.

NAIARA GALARRAGA GORTÁZAR


São Paulo - 21 SEPT 2021 - 03:19 CEST

Às vezes, a globalização se cristaliza em fenômenos que até


recentemente eram inimagináveis. Como, por exemplo, o interesse
dos iranianos em tirar foto com os turistas ocidentais para publicar
como um troféu no Instagram; como astronautas que tuitam uma
foto enquanto estão em órbita; ou que a mais nova sensação
brasileira do TikTok viva em um dos lugares mais remotos do país.
Cunhaporanga Tatuyo é uma indígena de 22 anos e seis milhões de
seguidores na rede dos vídeos curtíssimos que faz furor entre
adolescentes de todo o planeta. Sua fórmula? Contar seu cotidiano
numa aldeia das profundezas da Amazônia. O relato diário inclui
insetos, pinturas no rosto e colares de pena, além de um celular que
se conecta à internet no meio da floresta.
Boa parte do atrativo da jovem é combinar a imagem que o mundo
tem dos indígenas amazônicos com a cultura popular de gente da
sua idade —seja esse público de Bagdá, Estocolmo, Pequim ou da
aldeia da comunidade indígena Tatuyo. Com camiseta ou saia de
palha, às vezes com elaborados desenhos no rosto para se proteger
dos espíritos, seus vídeos são bastante lúdicos. A jovem alegra as
telas com todo tipo de filtros enquanto canta hits famosos.

E ela não está sozinha. Também surgem no Brasil outros indígenas,


como Karibuxi e Alice Pataxó, que encontraram nas redes sociais o
ecossistema perfeito para mostrar e defender sua causa. Os dois
também contam com dezenas de milhares de seguidores.

O vídeo publicado por Cunhaporanga no TikTok na quinta-feira


(16) começa com uma enorme panela repleta de insetos vivos —
com aspecto de formigas— de um tamanho que chama a atenção do
público. Depois de assá-los, um garoto sorri para a câmera com um
dos bichos sobre a língua e vários outros na palma da mão. E deu
resultado: na tarde do dia seguinte, o vídeo já tinha mais de 92.000
de visualizações. Também fazem sucesso os clipes em que a jovem
ensina, em português, as palavras na sua língua nativa.

A jovem, registrada como Maira Gomez Godinho, abriu uma janela


para um mundo ao mesmo tempo longínquo e desconhecido, que
desperta uma enorme curiosidade, o que rendeu a ela um a conta
com sete vezes mais seguidores que a cifra oficial de indígenas
brasileiros. Chegar do Rio ou São Paulo até a casa
da tiktokeira exige pegar dois ou três aviões e navegar por uma hora
rio Negro acima a partir de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do
Amazonas.

Cunhaporanga contou ao The Washington Post —em uma visita à


sua aldeia— que ela era apenas uma entre milhões de usuário
anônimos do TikTok, até que gravou um clipe comendo um tipo de
larva que é parte habitual da dieta do seu povo. Uma larva viva,
amarelada, do tamanho de um dedo mindinho. O vídeo acabou
replicando, em escala global, a reação de alguns viajantes quando
chegam a lugares onde as pessoas se alimentam de grilos e enguias:
aquela cra de repugnância e curiosidade. Tudo, claro,
supervalorizado como tudo no TikTok. A partir daí, o fenômeno
começou. Na reportagem do Post, ela relata que da larva se come
apenas o corpo, não a cabeça, e que deve ser acompanhada por um
punhado de farinha de mandioca. Dizem que tem gosto de coco!
Nenhum outro país é tão ligado à internet quanto o Brasil —do
presidente Jair Bolsonaro ao mais anônimo dos cidadãos. O prefeito
do Rio, Eduardo Paes, por exemplo, tuitou recentemente a seguinte
estatística internacional da OCDE: brasileiros passam, em média,
9,3 horas por dia na internet, sendo metade delas navegando nas
redes sociais.
Já faz tempo que os indígenas do Brasil chegaram à conclusão de
que as redes são um lugar em que precisam marcar presença; um
espaço ideal para lutar. Durante o mês, por exemplo, dedicaram-se a
protestar pessoalmente em Brasília, mas não deixaram de fazer o
mesmo no Facebook, Instagram, Twitter e TikTok contra
uma tentativa judicial de reduzir seu direito a reivindicar terras
habitadas por seus antepassados. Entre os mobilizados está Karibuxi
(54.000 seguidores no Twitter), uma ativista indígena de 27 anos.
“As pessoas têm uma visão muito racista dos indígenas, como se
não pudéssemos usar a tecnologia”, diz por telefone essa jornalista
que nasceu e vive em São Paulo, mas pertencente ao povo Kariri de
Alagoas.
A internet nas aldeias remotas é crucial, por exemplo, para avisar às
autoridades quando ocorre alguma das frequentes invasões em seus
imensos territórios. Mas, também, é usada como passatempo.

Karibuxi acrescenta que é um instrumento decisivo para


denunciar agressões, para colocar suas urgências no debate público
e como ferramenta na busca de apoio econômico. Além disso, claro,
para divulgar a diversidade e desmontar clichês. Em tom bastante
irônico, um deles recordava um juiz do Supremo Tribunal Federal
de que “até a tomar banho vocês aprenderam com os ‘primitivos’”.
Alice Pataxó (92.000 seguidores no Instagram) faz threads do
Twitter para esclarecer os conceitos mais básicos de sua vida. Um
deles é sobre as pinturas: não são decorativas; indicam se alguém é
solteiro ou casado, se está de luto, em guerra ou em festa. Outro
ponto explicado no ambiente digital: que entre eles se rejeita a
palavra índio. E mais: evite tribo; preferem aldeia ou etnia. E, por
fim: você sabia que o primeiro caso de homofobia no Brasil foi
contra um indígena Tupinambá em 1614?
A radical mudança de vida nas aldeias e o êxodo para as cidades
abalaram a autossuficiência que os indígenas mantiveram durante
milênios na Amazônia e em outros ecossistemas. Entre mais de 300
etnias —incluindo as isoladas, que têm contatos eventuais com
quem é de fora, mas não querem saber dos não-indígenas— ainda
há grupos que vivem da caça, pesca e extrativismo.
Muitos indígenas também buscam a vida vendendo artesanato nas
redes sociais. São peças únicas, anuncia uma indígena no Instagram.
Enviam a todo o país e —como tudo no Brasil— aceitam
pagamento parcelado. Como insiste Karibuxi, eles não vivem
ancorados no passado.
A indígena Cunhaporanga Tatuyo, que chegou a seis milhões de seguidores no TikTok: Da Amazônia
profunda ao sucesso explosivo no TikTok | Atualidade | EL PAÍS Brasil (elpais.com)

Você também pode gostar