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A RODA DA VIDA

como caminho para a lucidez

Lama Padma Samten


A RODA DA VID
como caminho para a lucidez
Lama Padma Samten
Editora: Renata FarHAT BORGES
Editora adjunta: Luciana TonELLI
Produção editorial: Canta AnBEx E LILIAN ScurTI
Revisão: JONATHAN BUsaTO
Tangkas do templo Caminho do Meio: Trrranr Hortack Crarso & EQUIPE
Ilustrações: FáBio RODRIGUES
Caligrafia: Jean Françõrs BODART
Fotos: GurLmenme EnHarDr & Montque CABRAL
Projeto gráfico e diagramação: MARIANA AURÉLIO

Editado conformenovo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP,Brasil)

Samten, Lama Padma


Aroda da vida: como caminho para à lucidez / Lama Padma Samten.
— São Paulo: Peirópolis, 2010.
1s2x 978-85-7596-182-7
1. Budismo — Doutrinas a, Felicidade —Aspectos religiosos — Budismo 3. Vidareligiosa
= Budismo1. Título,

10-06998 coo-294.3444

Índices para catálogo sistemático: 1. Budismo:Vidaespiritual: Religião 294.3444

1º edição, 2010

corro2 qm
Peirópolis
Editora Peirópolis Ltda.
Rua Girassol, 128 — Vila Madalena
05433-000 — São Paulo - SP
tel.: 511 3816-0699 | fax: 55 11 3816-618
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Sumário 5
APRESENTAÇÃO ga a e

INTRODUÇÃO. -— T

CapíruLo 1
Um jardim chamado dukkha
A primeira Nobre Verdade 19
CapíruLo 11
Os fenômenos dançam
Os iz elos da originação interdependente -. ...... 98
1 AVIDYA a
—— 2 4 SAMSKARA e - — eee me mea 47

38 VIJNANA s1
RRE
—— 5 8 SHADAYATANA ces 57
— 68 SPARSHA mm e Ee = S = Eta ed
74 VEDANA 63
——» 8 4º TRISHNA — — —- = - — — e is meça asi eee case

- 98º UPADANA A E Ei = ss
e 10 4 BHAVA = qem cm mens eaemara me mr pre avi e nor ns |]

Ne JETI - El
—— 12 4 JANA-MARANA — 8

CapíruLoIII
Dissolução da experiência da Roda da Vida
AS rearaO cao aaa a cp 85
— 1º passo: Motivação 86
— 2º passo: Não praticar ações danosas com amente — d6
— 3º passo: Nãopraticar ações danosas comafala ...... a
— 4º passo: Nãopraticar ações danosascomo corpo... 90
— 5º passo: Ação transcendente e compassiva ecoip css
= 680º, 06º PASSOS: Asietipas dá MEdItAÇÃO = uscegas ig cars as
VISÃO, MEDITAÇÃO E AÇÃO 96
—— 0 SENHOR DA RODADAVIDA. 9?
CaríTULO IV
A perfeição da sabedoria — 101
SILÊNCIO E LUCIDEZ 103
CHENREZIG E OS CINCO SKANDAS a 108
— AS QUATRO MONTANHAS: Nascimento, vida, decrepitude e morte RE.)
——— INÍCIO DO DIÁLOGO DO SUTRA DO CORAÇÃO no
—1º exempro: Objeto imaginado aa uz
—— 2º EXEMPLO: Figura gráfica ns
avpananto: Objeto tridimensional... are caraecra
4º EXEMPLO: Uma pessoa ns
QUATRO NÍVEIS DE EXPERIÊNCIA: A conclusão -——ago
PAISAGEM, MANDALA E REALIDADE DO MUNDO
SÍNTESE DA ANÁLISE DO PRAJNAPARAMITA e a encarece ADO:
FACULDADES DOS SENTIDOS E OBSTRUÇÃO

—— O MANTRA INSUPERÁVEL
ENERGIAS — 130

Capíruro v
Emaho!
Conclusão 133

APÊNDICE 1
Os quatro pensamentos que transformam a mente e a mandala da lucidez —ag
—— A LINHAGEM 141

A CONEXÃO COM O LAMA 142


— 1º PENSAMENTO: À vida humana preciosa e os seis reinos recoaeeçesrtae TU
2º PENSAMENTO: Impermanência 144
3º PENSAMENTO: Carma 144
4º PENSAMENTO: Sofrimento 146
REFÚGIO 146
REFÚGIO NA MANDALA DO BUDA 148
UM BUDISMO LIVRE DE SI MESMO 148

APÊNDICE 2
Cultura de Paz " 151
AS DIFICULDADES 152
AS SOLUÇÕES - 153

Índice remissivo de ilustrações - 157


APRESENTAÇÃO

Este livro é um resumodealgunsdos pontos fundamentais


da doutrina budista. O budismo é uma tradição filosóficae religiosa
extremamente maleável e não sectária, que ao longo de 25 séculos
tem se adaptado a diferentes culturas e à evolução da sociedade.
Manifesta um só conteúdo em uma infinidade de formas diferen-
tes: temos, por exemplo, o budismoindiano, chinês, japonês, tibe-
tano, coreano, vietnamita,tailandês; além disso, temos subdivisões
em escolas.
Como sou um lama ordenado dentro da tradição Nyingma
do budismotibetano, este livro apresenta o pensamento budista
basicamente a partir dessa visão. O texto originou-se de ensina-
mentos proferidos para meus alunos em ocasiõese locais variados.
No budismo, temos um enorme apreço pela tradição oral: o Buda
explicou toda a sua doutrina em discursos para seus discípulos; os
ensinamentos só começaram a ser redigidoscerca de trezentos anos
depois. Para os budistas, o estudo dostextos deve ser acompanhado
dos ensinamentosorais ministrados por um professor, o guru (ou
lama natradição tibetana em que meincluo), pois todos os mestres
de todas as escolase linhagens fazem parte de diferentes correntes
de transmissão que sempre remontam ao Buda. Assim, o professor
faza ligaçãodireta com o Buda.
A presença do professor também é importante porqueele
deve representar não só o conhecimento teórico, a doutrina, mas
especialmente a prática. O Buda disse que ninguém deveria aceitar
suas ideias baseado nafé; o praticante deve testar os ensinamen-
tos na prática e ver se são úteis e funcionam. Seus ensinamentos
originais deram origem a umareligião extremamente sofisticada
em termosfilosóficos, que Sua Santidade o Dalai Lama resume ao
seguinte: faça o bem sempre que possível; se não puderfazer o bem,
tente não fazer mal. É isso que todo budista deve fazer em sua prá-
tica em busca da iluminação.
Assim, além de explicar o que pensam osbudistas, abordo
o que um praticante budista pode fazer no cotidiano dentro de uma
visão de responsabilidade universal e cultura de paz. Afinal, hoje
mais do que nunca, todos os humanosprecisam fazer a sua parte para
o bem-estar individual e social, e para a preservação doplaneta.
Na minha experiência em encontrar grupos tenho perce-
bido o grande benefício que a compreensão profundae detalhada
da operação do mundo mental mágico das pessoas, dos outros seres
e também dasorganizações pode trazer a eles mesmos. Parece-me
que estamos vivendo o tempo maravilhoso do encontro de tantas
tradições de conhecimento que se potencializam mutuamente e
permitem uma progressiva harmonia, que espero no futuro surja
como uma genuínaculturadepaz,ludicidade felicidade. É o tem-
po em que a compreensão da magia do mundo interno potencializa
a compreensão da magia do mundoexterno,e vice-versa.
Ainda queesse livro possa ser útil aos budistas, aspiro de
coração que possa ser entendido em âmbitos mais amplos como
umacontribuição não religiosa e não sectária, de mero bom senso,
que venha a ressoar internamente com a sabedoria e a lucidez
natural de cada um.
Agradeço à Sanga dos vários Centros de Estudos Budistas
Bodisatva pelo trabalho de organização e transcrição dos ensi-
namentos que deram origem a esse texto, a Brenda Neves pela
compilação e organização parcial das várias partes que o formaram
e a Lúcia Brito por ter dado forma final ao texto. Agradeço tam-
bém Tiffani Rezende pelo trabalho maravilhoso das pinturas do
Templo do Caminho do Meio em Viamão, Rs, de onde as imagens
que compõem este livro foram retiradas, e a Lucyana Fraga e
Cinthia Sabbado pela participação preciosa no trabalho da Tiffani.
Agradeçoaindaa arte de Mariana, que concebeue executou a parte
gráfica deste livro, e a Guilherme Einhardt e Monica, que foram
capazes de, com suas máquinas fotográficas, extrair habilmente as
imagens das paredes para colocá-las nestas páginas.

Lama PadmaSamten,
março de 2010.
INTRODUÇÃO

A apresentação do budismo neste livro fundamenta-se na


atitude de responsabilidade universal, ou o desenvolvimento cons-
ciente de um bom coração. O tema é enfatizado por Sua Santidade o
Dalai Lama, um defensor do não sectarismoe do diálogo entre todos
os povos, culturase religiões. Sua Santidade sempre ressalta que sua
intenção nãoé converter pessoas de outras religiões ao budismo, mas
proporas ideias budistas para o bem-estar individual e redução das
tensões sociais.
O praticante budista não sai do mundo, ele atua a partir da
perspectiva de ajudar todosos seres. À noção de um bom coração é
a base que sustenta a motivação budista durante todo o processo de
observação e purificação, e que, ao final, faz com que o praticante
volte-se paraa realidade cotidiana com o propósito inabalável de rea-
lizar ações positivas no mundo.
No budismo fazemos um voto de nunca nos afastarmos da
vida, nunca nos afastarmos dointeresse pelos outros, mas, ao contrá-
rio, viver em conexão com todosos seres, buscandotrazer benefício a
eles. O Buda meditou durante seis anos e, após atingir a iluminação,
dedicou-se por 46 anos a cuidar dos seres e dar ensinamentos para
ajudá-los a encontrara felicidadee seliberar do sofrimento.
O Buda teve quinhentos grandes discípulos, e é por essa
razão que o budismo espalhou-se por vários países. Isso ocorreu há
26 séculos. Ele era um príncipe chamado Sidharta Gautama. Seu pai,
rei dos Shakyas, mantinha-o cercado de luxo, pretendendo que o
filho sucedesse-o no trono. Mas o jovem príncipe tinha uma visão
espiritual aguçada, e compreendeu que, independente das condições
de vida, todos os seres estão presos na experiênciacíclica. Ele teve a
intuição de que era possível ultrapassar o samsara,a existência con-
dicionada, mas não conseguia ver como. Então abandonoua vida na
corte e se dedicou a ouvir ensinamentos e a meditar. Apósseis anos,
atingiu a compreensão; sua mente tornou-se inteiramente clara e
desperta, iluminada.
O budismo surge da experiência de Sidharta Gautama,
o Buda Shakyamuni. À essência do budismo é passar sua experiência,
não apenas seu conhecimento e métodos. Porqueela permite que o
conhecimento do Budaaflore — e aflore de forma diferente em cada
cultura, em cada época, com diferentes métodos, sem perder ou alte-
rar sua essência.

A base dos ensinamentos budistas são as 4 Nobres Verdades: OS TRÊS NÍVEIS DE


a verdade do sofrimento, a verdade da origem do sofrimento, a ver- COMPREENSÃO E A
dade da cessação do sofrimento, e a verdade do caminho queleva à
cessação do sofrimento. Ao estudarmos a primeira Nobre Verdade, PRÁTICA DOS
vemosa questão de dukkha,de quefelicidade e sofrimento são inse- ENSINAMENTOS
paráveis na existência cíclica. Na segunda Nobre Verdade, constata-
mosquetodasas situaçõessão construídas, são artificiais. À terceira
Nobre Verdade aponta para a possibilidade de transcendermosessas
situações: podemosultrapassar a existência cíclica de nascimento,
sustentação da vida, decrepitude e morte.
A quarta Nobre Verdade ensina o caminho para a liberação,
o Nobre Caminho de Oito Passos, que começa com a motivação cor-
reta e prossegue com a redução do impacto do sofrimento sobre os
seres. A seguir, ampliamos nossa capacidade de ajudar os seres e
desenvolvemosas habilidades de meditação. Dentro dessas habilida-
des, vamosaté o ponto de compreender a natureza ilimitadade todos
os fenômenos, internose externos.
Toda a explicação teórica está no nível que chamamos de
visão. Precisamos transformar cada um desses itens em uma forma
de meditação, pois existe uma distância entre entender umacoisa e
conseguir transformar essa compreensão em algovivo na nossa expe-
riência de mundo. Essaé a função da meditação. Quando a meditação
estabiliza a compreensão, tornando-a viva como umaprática em nível
de corpo, energia, mente e paisagem (ou mandala), passamos para a
terceira etapa, da ação.
Tendo compreendido e praticado os ensinamentos nostrês
níveis, os conteúdos continuam os mesmos, mas agora, quando pen-
samosna primeira Nobre Verdade (sofrimento), não pensamos mais
de formateórica. Passamos a ter uma experiência imediata, incessan-
te. Não pensamos: “Oh, que pena isso, que pena aquilo!”, para a partir
daí elaborarmos pensamentos até o ponto de podermosentender de
forma mais profunda. Quando estamos no nível de ação, tão logo as
situações surgem, brotam de forma natural a compreensão correta e a
sabedoria de como agir adequadamente.
Lembro de meu mestre, Sua Eminência Chagdud Tulku
Rinpoche, que, por uma natural humildade, dizia: “Sou como um
vaga-lume. Essa luz se acende e se apaga, se acende e se apaga.” Se
ele, que era um mestre com reconhecida sabedoriae prática, se achava
um vaga-lume, o que diremos nós? Somos como velas de natal, que
só se acendem umavez por ano. Masele afirmava: "Existem mestres
que são comofaróis, que têm a luz incessantemente acesa, orientan-
do a todosos seres.” Só ouvirisso já nos conforta e nos deixafelizes,
porqueprova que é possível. Com corpo ou sem corpo, existem faróis
incessantementeligados, servindo de referencial para todos nós.
Esse foi um exame resumido do caminho em seus três
níveis. Tudo que formos aprender no budismo estará em algum
ponto desse roteiro.

Os níveis de visão, meditação e ação não ocorrem um de A AÇÃO COMO INÍCIO


cada vez ao longo da vida, estão sempre emboladosuns nos outros,
sucedendo-se ao mesmo tempo. Quando saímosda sala de medita- E FIM DO CAMINHO
ção, gostaríamos de poder manter a tranquila visão meditativa. Para
isso, precisamos donível de ação.
O nível de ação é curioso. Ele surge a todo momento na vida
cotidana, quando nos deparamoscom desafios. Surge comosefosse o
nível mais sofisticado e, simultaneamente, o mais introdutório. Isso
se deveaofato de termos um processocíclico natural: quando chega-
mosao final de algo, recomeçamos.
Natradição do budismoZen japonês,issoé ilustrado com os
quadros do touro. Os quadros explicam que, inicialmente, a pessoa
vive no mundo de formaaleatória. Depois, vê as pegadas do touro no
chão, mais adiante a ponta do rabo. Ou seja, descobre que existe algo
profundo em algum lugar. Lentamente, ela fica dominada por aquilo
e vai à procura do touro. Maso touro foge. Por fim, há um momento
em que se consegue laçá-lo, montá-lo e seguir com ele para todos
os lugares.
Otouro é a nossa mente. Apessoa descobre, dominae pacifica
amente. Depois, abandona a mente condicionadae repousadiante da
lua, ou seja, contempla a naturezailimitada, queestá além da mente
comum e das coisas comuns. Quando concluia etapa de contemplação
da natureza ilimitada, ela se levanta e entra no mercado da cidade,
para conviver com as pessoas que lá estão. Essa é a última etapa.
A pessoanãovaiviver no mundoda lua,nadadisso. Ela vairetornar ao
mercado, ao mundo.

INTRODUÇÃO 1
Essaé a etapa de ação. Ondea pessoa vivia antes? No mercado.
E onde chegou depoisde todoo processo? Ao mercado! Assim,a últi-
maetapaé o retornoà primeira. Masa pessoa que retorna ao mercado
não é mais uma pessoa comum, não vai mais agir de forma comum.
ego

Se olharmosa etapa de ação budista de modo introdutório, INÍCIO DO CAMINHO


curiosamente veremosque o estabelecimento de umacultura de paz.
Sua Santidade o Dalai Lamatransita portodosos lugaresfalando de
BUDISTA: A CULTURA
cultura de paz: “Sejam boas pessoas, não sejam pessoas más; façam DE PAZ
o que é favorável, não façam o que é desfavorável.” Isso parece muito
simples, masé a etapa de ação no mundo,quesignifica interagir com
as pessoas,falando aquilo queestá ao alcancedelas.
Compreendero ponto onde as pessoasestão é que pode pro-
piciar benefícios. Se elas têm fome,é preciso dar comida. Se estão
com frio, é abrigo que vamos oferecer. Se estiverem doentes, deve-
se proporcionaralgo paratratar a doença. Fazemosessas atividades
específicas sem perderde vista o caminho como um todoe suas diver-
sas etapas. Essa é a abordagem da cultura de paz
O budismo, juntamente com todas as outras tradiçõesreli-
giosas, é chamadoa responderaos desafiossociais no mundo. O que
fazer? Dentro desse âmbito vamos encontrar também a noção de
visão, meditação e ação. A etapa que diz respeito à responsabilida-
de universal corresponderia à “visão”, desenvolver a percepção de
que vivemos integrados com todos os demais humanos, e também
com o meio ambiente do planeta; por isso, cuidar dos outros e do
ambiente é cuidar de si mesmo. Na etapa de “meditação”, a visão
de responsabilidade universal passaria de pensamento teórico a um
sentimento natural, levando à “ação” correspondente em benefício
de tudo e todos.
Sobre a etapada ação, ou dos meios hábeis, a tradição Zendiz
que a realização é completa, mas aumenta sempre, pois os grandes
discípulosvãoalém de seus mestres. Todos os Budas do passado con-
quistaram a iluminação completa, mas pode-sedizer que ela aumenta
com o tempo, porque as complicações do samsara também aumentam
constantemente. Na medida em quea dificuldade aumenta, é neces-
sário aumentar não a profundidade, mas o número ou a forma de
meios hábeis para resgatar os seres do nível de complicação em que
se encontram.

12
é»
Dentro da visão budista, essa etapa de ação em favor da cul- OUVIR OS SONS DO
tura de paz(o benefício de todos os seres) equivale à manifestação de
MUNDO
CGhenrezig (ou Avalokiteshvara), o Buda da Compaixão. Chenrezig é a
deidade básica de Sua Santidade o Dalai Lama,e se diz que ele é uma
emanação de Chenrezig que circula pelo mundo para ajudaros seres.
Existem várias deidades no budismo, que representam as
diferentes formas de ação da mente iluminada dos Budas. À partir
dessas diferenças, pode-sedizer que algumadeidade seja a principal.
Eu tenhoa tendência de pensar que a deidade mais importante seja o
Buda Primordial, Kuntuzangpo ou Samantabhadra, porque represen-
ta a qualidadede iluminação que cada um de nós sem exceção possui,
e quefaz detodosos seres sencientes um Buda em potencial. A natu-
reza de buda é a verdadeira natureza de todos os seres sencientes.
É o absoluto. Nos Budas, a natureza fundamental está plenamente
desperta. Eles fazem coisas diferentes, mas todas as suas ações estão
unificadas pela perspectiva de Kuntuzangpo.
Ainda que o absoluto esteja sempre presente, a imensa
maioria das pessoas não é capaz de reconhecê-lo. As pessoas veem
apenasa sua experiência comum de mundo. Porisso, embora o Buda
Primordial seja muito importante, por ser tão sutil e tão extraordi-
nário é pouco entendido e poucovisto. Ainda que sua capacidade de
gerar benefícios seja vasta e incomensurável, é difícil para nós vermos
Kuntuzangpo em ação e entrar em harmonia com ele. É como se nos-
sos olhos não o alcançassem.
Do extraordinário Kuntuzangpo ou Samantabhadra ema-
nam os cinco Dhiani Budas: Akshobhya, Ratnasambhava, Ami-
thaba, Amoghasiddhie Vairochana. Quando pensamos em Amithaba,
nos alegramos. Ele nos ensina a ficar em silêncio, e através dele
nos conectamosà deidade última. É a porta que nos permite acessar
amnatureza última.
Podemosver o Buda Amithaba por todosos lados. Por exem-
plo, a família Padma (Lótus) que meu mestre Chagdud Rinpoche
trouxe para o Brasil é a família do Buda Amithaba. O nome que me
deu é Padma Samten,o que significa que eu pertençoà família Lótus,
e que vou me manifestar no mundo conectado ao processo pelo qual
Amitabha oferece seus ensinamentos,queé essencialmente a medita-
ção em silêncio. Samten,aliás, é meditação. Ou seja, meu nomepode
ser entendido como Meditação do Lótus. Então, essa é minhafunção.

NTRODUÇÃO | 15
Agora, mesmo Amithaba é muito sutil para a maior parte das
girando,
pessoas. Elas sentam em silêncio, mas suas mentes ficam
Amithaba
fazendo planos, e a meditação não rende muito. Por isso,
ixão já é
emana o Buda da Compaixão, Chenrezig. O Buda da Compa
outros olhem
diferente. Ele não fica sentadinho esperando que os
e interage
para ele. Chenrezig vai ao mundo, ouve os sons do mundo
à etapa
com as aparências do mundo. Isso corresponde exatamente
es, de
de ação que estamos abordando. É o patrono detodasas deidad
todos os
todos Budas, detodos os mestres, de todos os bodisatvas, de
m,
seres que andam no mundo, seja qual for a aparência que tivere
super ar seus sofrim entos.
parainteragir com as pessoas € ajudá-las a
O mestre mais reverenciado no Tibete é Padmasambhava,
Padma-
conhecido como aquele que nasceu sobre um lótus, um Buda.
senta esse
sambhava é inseparável de Chenrezig; ele também repre
ir até os
idealextraordinário de andar pelo mundo de formalúcida,e
serespara ajudá-lose lhestrazer benefícios.
Quando as pessoas entendem a visão e meditam, chegam
aos outros
ao ponto de desenvolver a aspiração de trazer benefícios
, de acord o com
seres. Com essaaspiração, encontrarão meios hábeis
ões de
os obstáculos que surgirem. Os meios hábeis são manifestaç
o dizem os que
Chenrezig e podem se expandir continuamente. Quand
perfeita
“a meditação se completou”, significa que vemos de forma
expan são dos meios
o Buda Amithaba. No entanto, isso não limita a
er e
hábeis; podemoscontinuar encontrando outras formas de socorr
o que dizem os:
beneficiar as pessoas nas suas dificuldades. É poriss
O nível de
aindaque a iluminação seja completa, ela aumenta sempre.
ação pode aumentar incessantemente.
fo
Nos temposatuais, precisamos de meios hábeis para exerc
er REALIDADE VISTA
tas têm uma forma partic ular de ação
ações positivas. Os grupos budis PELA VACUIDADE
ensina-
ouvir
que consiste, por exemplo, emter umlocale horário para
mudanças
mentos, fazer prática meditativa e,a partir disso, promover
r a esse proce-
na vida pessoal. Noentanto, não precisamos nos limita
s, com
sso. Existe um grande número de pessoas, em diferentes lugare
as entre m pela
aflições variadas. Em vez de esperarmos que as pesso
rodelas.
porta danossasala, podemos “ouvir os sons”e ir ao encont
Precisamos olhar os problemasdosindivíduose dasoci edade
dade eco-
de forma ampla, o que envolve tecnologia, educação, ativi
s que pensa r em
nômica,sistema judiciário, todasas esferas. Temo

16 |
termosglobais, o que remete à noção de responsabilidade universal,
comoSua Santidade o Dalai Lama tem enfatizado.
No budismo, a percepção da realidade fundamenta-se na
compreensão da vacuidade. Enquanto todos os demais grupos reli-
giosos consideram o mundosólido na forma comose apresenta, nós
consideramos o mundo inseparável dos olhos do observador. À com-
preensão ainda que parcial da vacuidade é essencial para se enten-
der no queos budistas acreditam e como veem todos os fenômenos.
O texto clássico para o estudo da vacuidade é o Sutra do Coração,
o Prajnaparamita.
UM JARDIM
CHAMADO
DUKKHA

A PRIMEIRA NOBRE VERDADE


Como PRÁTICA FILOSÓFICA E RELIGIOSA, Comose vê, as pessoas não conseguem se proteger
o budismo elucida as angústias humanas apontan- de si mesmas.
do o engano de tomarmos elementos imperma- Tudose passa comose estivéssemos batendo
nentes como causa de nossa felicidade. A primeira leite para produzir manteiga. Repetimos um movi-
Nobre Verdade diz que, ao esquecermosde nossa mento de forma distraída, por vezes sem conta, até
natureza absoluta, ficamos impossibilitados de que finalmente aquilo que era fluido se torna cre-
conquistar a harmonia. moso, denso. Do mesmo modo, movimentamos nos-
Dukkha pode ser entendido como as sa energia sempre em uma determinadadireção, até
paredes que nos isolam e nos conduzem para uma que acabamosporesquecera liberdade que nos pos-
realidade à parte. O termo em geral é traduzido sibilitou iniciar o processo. Ficamos presos em algum
como “sofrimento”, mas na verdade não há um ponto, somos fisgados. E seguimos distraidamente
correlato específico para essa palavra sânscrita nos recriandoas causase condições de nosso sofrimento.
nossos dicionários. Dukkha é uma formade olhar o Algumas vezes ouvimos uma pessoa rica,
mundo, um estreitamento davisão, ou melhor, são bonita e famosa queixar-se de que sua vida parece
as aflições que sentimos ao perdermosa capacida- vazia, sem sentido. Ela pode inclusive fazer uso de
de natural de reconhecer a dimensão ilimitada do remédios para cuidar daquilo que modernamente
espaço diante dos nossos olhos. nos habituamos a chamar de “depressão”. Um tipo
Quando encostamos o dedo em uma brasa de desordem física e sutil, na qual perdemos o sono
quente, sentimos dor; sem esse aviso originado durante a noite e nos arrastamos durante o dia no labi-
da inteligência natural do nosso corpo, acabaria- rinto de nossos pensamentos e emoções negativas.
mos sem a mão. Do mesmo modo, sem dukkha Esse é apenas um dos aspectos de dukkha.
não nos daríamos conta dos estados confusos de Dentro da roda da existência cíclica, representada
nossa mente. pela figura de Maharaja, até mesmoa experiência de
A aflição intensa nos põe em contato felicidade é entendida como permeada de sofri-
direto com nosso carma. No budismo, carma mento, comoo óleo permeia a semente de gergelim.
querdizer ação — um tipo específico de ação que Por exemplo, mesmo que possua riqueza suficiente
se repete indefinidamente, formando as estrutu- para viver em fartura por várias vidas, uma pessoa
ras aparentemente sólidas daquilo que podemos jamais vai dispor de tal facilidade, pois nenhuma
perceber como as grades de nossas prisões. Por riqueza é capaz de gerar as causas e condiçõespara a
exemplo, volta e meia encontro com alguém que suspensãoda velhice e da morte.
fuma. Às vezes a pessoajá não está bem de saúde, A experiência cíclica é construída e se
e diz: “Não quero nem ir ao médico porqueele vai mantém como uma reprodução incessante de for-
dizer que devo parar de fumar, e eu não vou parar.” mas variadas a partir da mente. Nos ensinamentos,

20 | UM JARDIM CHAMADO DUKKHA


essa sabedoria é apresentada como a segunda Nobre Ficamos por demais distraídos nessas atividades
Verdade. Quandoolhamostais formas ou elementos infindáveis e não mais percebemoso quanto nos-
aparentemente externos, vemos que surgem como sos olhos estão doentes.
experiências inseparáveis de estruturas internas da Dessa forma, chegamos ao ponto de
mente. Ao trocarmosessas estruturas, os objetos entenderque deveríamoscuidar de nós mesmos.
trocam desentido na nossa frente. Nossa experiên- Qual é o obstáculo? O obstáculo somos nós mes-
cia de mundosetransforma completamente. mos. Mas não há um “nós mesmos” que esteja
Loka é o nome que damos a esses mundos contra "nós mesmos.” Se olharmos com cuidado,
aparentemente externos, mas que são experiências veremosestruturas de respostas que manobram a
inseparáveis das estruturas da mente. Não existe energia dentro de nós. Privilegiamos a linguagem
experiência que não tenha umaestrutura de possi- discursiva, mas a linguagem verdadeira é a lingua-
bilidades previamente desenhadas. Não consegui- gem da energia, a linguagem sutil em que o mundo
remos encontrar nenhum elemento independente opera. O mundo não troca palavras, o mundo se
de algumaestrutura interna da mente que produza movimenta pelo sinal das energias, e o carma se
seu significado. manifesta nessa linguagem. Quando o carma se
É na estrutura interna da mente que manifesta, ele nos impulsiona. Temos muita difi-
dukkha se instala e opera, gerando os mais diver- culdade de lidar com isso porque, sempre que uma
sos tipos de aflições. Sofremos incessantemente, energia brota claramente em certa direção, acha-
ora por possuir algo que não queremos, por temer mos que precisamos simplesmente segui-la. E é o
perder aquilo que conquistamos, por não ter aquilo processo pelo qual o carma nos domina: o carma
que aspiramos, por ter perdido o que nos esfor- movimenta energia.
çamospara obter. Sofremos sem nosdar conta de
que, devido à estreiteza de nossas bases internas,
nas quais os pensamentos repousam, qualquer
formaacaba poradquirir qualidades muito sólidas
e pesadas. Não mais vislumbramos nenhuma pos-
sibilidade de abertura ou flexibilidade. Nos senti-
mos sufocar ao nos depararmos com as mudanças
inevitáveis de nossa posição, tanto no espaço como
no tempo.
De uma maneira usual, seguimosatribuindo
aos objetos, percebidos como externose, portanto,
como se fossem independentes das nossas estru-
turas mentais, uma força tremenda no sentido de
nos prejudicar ou agradar. Nossos esforços seguem
sempre em uma única direção, buscando alterar e
controlar as condições externas a fim de noslivrar-
moso mais rapidamente possível do sofrimento em
sua forma usual, sem reconhecê-lo como construí-
do por nossaprópria mente, ou seja, como dukkha.

22 | UM JARDIM CHAMADO DUKKHA


A primeira Nobre Verdade ensina que a embate sem fim, que os budistas designam como
realidade é permeadapelo sofrimento, e a segunda o jogo neurótico e sem saída do samsara. O que a
Nobre Verdade afirma que o sofrimento é cons- matriz ou a luz dos nossos olhos projeta sobre as
truído através de causas e condições. Mas como formas contém uma predisposição inconsciente
isso ocorre? no sentido de controlar os fenômenos, de impor-
Voltando à imagem da Roda da Vida! e -lhes o seu próprio ritmo e dimensões. Nesse
observando seu centro, deparamos com três ani- sentido, dukkha pode ser percebido como uma
mais: umjavali, um galo uma cobra, que represen- sensação pesarosa de perder a batalha, vez após
tam componentes de nossas diversas identidades. vez, pois nenhuma identidade parcial, composta e
São formasdeinteligência que constroem e susten- dependente de causas e condições poderia repou-
tam asidentidades. Também são designados como sar acima da natural transitoriedade de tudo queé
os três venenos da mente: a ignorância, o desejo/ criadoartificialmente.
apego ea raiva.O javali é a formada identidade que
assumimos, o galo é a inteligência que rege a ação
incessante que essejavali promove para se manter,
eacobraéa inteligência de defesa agressiva queestá “Comoprática filosófica e
sempre pronta, aguardando o momento de alguma
necessidade. Essas inteligências operam como
religiosa, o budismo elucida as
aspectos cognitivos, mas atuam especialmente angústias humanas apontando o
como energias em ação. Sua manifestação parece engano de tomarmos elementos
completamente natural e familiar, ainda que seja
construída e artificial. São inteligências que, por
impermanentes como causa
meio daprática budista, reconhecemos comolimi- de nossa felicidade”
tantes e artificiais.
Dukkha pode então ser compreendido
como o sofrimento oriundo do estreitamento da
visão e da frustração oriunda do esforço ineficaz.
Tudo se passa como se um raio tivesse partido
nossa natureza básica, como seela estivesse esfa-
celada, tivesse deixado de existir e de ser vista, e
ficássemos colando pedaços, tentando construir a
realidade verdadeira a partir da artificialidade da
operação da mente.
Essa mesma matriz não só cria uma deter-
minada forma individual para nos manifestarmos
no mundo, o javali, como também gera as mais
diversas “inteligências” (métodos) para conservar
asi mesma,para tentar reunir o que se partiu, para
se manterfora do alcance de Maharaja (o senhorda
Rodada Vida, ou seja, a impermanência). Há um

24 | UM JARDIM CHAMADO DUKKHA a Verpg an.


E de que formanossa energia se movimen- consciência deludida operaa partir de seis padrões
ta? Ainda examinando a gravura da RodadaVida, emocionais básicos, que na Roda da Vida são sim-
vemosque em torno do disco central onde estão os bolizadosporseis reinos.
três animais háumafaixa circular ondeestão repre- Nesse nível de ensinamento, dukkha pode
sentadosseres subindoe caindociclicamente. Eles ser compreendido comoter a consciência fisgada
sobem penosamente ao ponto máximo através de por determinadas sensações ou ventos, comoficar
suas ações positivas. Quando atingem esse ponto, rodando em círculos, em um redemoinho, impo-
a impermanência e o carma os levam a novamen- tente e hipnotizado pelo jogo incessante de nossas
te cair ciclicamente nas regiões de sofrimento e energias. Ficamos à mercê de estados físicos e
desespero. Toda e qualquer identidade revela-se mentais desatisfação e/ou insatisfação, como uma
presa ao movimento cíclico infindável de ascen- rã que permanece distraída dentro de um pequeno
são e queda, a Roda da Vida, também chamada de poço, sem nenhuma chance desair e caminhar o
experiência cíclica. Quando desafiamos Maharaja suficiente para se encontrar com a grandeza dos
buscando fixar o que é impermanente, estamos oceanos. De algum modo, não deixa de ser interes-
desafiando a própria essência que segue produzin- sante perceber que tanto no poço como no oceano
do mundosdiante dos nossos olhos,a essência que o quehá é o infinito, e que a diferença é mais pro-
rege a impermanência e queoriginou nossa forma priamente de dimensões do que de essência.
humana. Podemos visualizar nossas identidades
como bolhas de sabão que, depois de sopradas, “Os budistas explicam que a
serão carregadaspelo vento e, em algum momento, consciência deludida opera a partir de
hão dese desfazer noar, diante de nossos olhos. seis padrões emocionais básicos,
Nessa imagem, dukkha pode ser apontado que na Roda da Vida são
no esforço para subir, no ponto máximo quando simbolizados por seis reinos”
aquilo que estava em franca ascensão começa a
desabar, e ainda no próprio desabar, absolutamen-
te inevitável. É o sofrimento que permeiatudo.
No samsara há semprea sensação de que
somos arrastados pelo movimento aleatório de
subidas e quedas. No interior da visão deludida,
ou samsara, tudo se passa não propriamente atra-
vés de pensamentosclaros e racionalmente estru-
turados, mas de emoções confusas e sustentadas
pelas mais diversas bases internas, funcionando
como lentes coloridas por trás de nossos olhos
físicos e produzindo nossa consciência em relação
aos objetos.
Ainda na figura da Roda da Vida, vamos
encontrar alguns padrões básicos pelos quais a
construção de nossa experiência de mundo (cons-
ciência) vai se estreitar. Os budistas explicam que a

26 | UM JARDIM CHAMADO DUKKHA


O primeiro poço da experiência cíclica, ou satisfação estável ou genuína. Nossos pertences
Rodada Vida, é o reino dos deuses, no qualo senti- se extraviaram, apodreceram, desfizeram-se diante
mento de orgulho se estabelece como base. Os deu- dos nossos olhos. Ou eles se cansaram daquilo que
ses não precisam fazer esforço para serem amados, antes era extremamente precioso. O barco queale-
são sustentadospela energia operativa dosseres de gremente compramosno verão passado já não nos
outros reinos e se tornam inconscientemente vai- traz nenhum prazer; ao contrário, ficamos aborre-
dosos de suas qualidades. Por estarem cercados de cidos por pagar impostos,arcar com despesas de
muito conforto, acabam distraídos e sem nenhuma manutençãoe por precisarverificar suas condições
vontade de sair do poço à procura do mar; afinal, antes de usá-lo algumas vezes no ano. Masdali a
apesar de deludidos, apreciam as boas qualidades pouco nosdistraimos novamente correndoatrás de
ca beleza de seu reino. Certamente, em matéria de outra novidade,e seguimos fazendoesforços.
poço, esse é o mais atraente.
A seguirvem o poço dosseresinvejosos, ou
o reino dos deuses invejosos,os asuras. Apesar de
possuíremum grande arsenal e muito poder, sofrem
por não possuírem tantas facilidades quanto os
deuses. Dominados pela inveja, terminam porata- “adquirimos os mais
car seus poderososvizinhos sem sucesso,o que faz diversos bens de consumo
com quesua sensação de negatividade e impotência
sem nos darmos conta de que
aumente, criando um círculo repetitivo alimentado
pela energia da inveja e da competitividade. abrimos mão de nossa
Na sequência surge o reino humano, fun- tranguilidade correndo
damentado no desejo e no apego. Nós, os seres des -
atrás deles”
se reino, estamos sempre querendo algumacoisa
em termosdefacilidade ou conforto como meio de
atingir a felicidade. Por exemplo, adquirimos os
mais diversos bens de consumo sem nos darmos
conta de que abrimos mão de nossa tranquilidade
correndo atrás deles. Fazemos prestações, peno-
samente trabalhamospara pagar, depois passamos
boa parte do tempo cuidando para que aquilo que
adquirimos não se perca ou estrague. Quando
nos damos conta, estamos não só cuidando de um
bocadode coisas nem tão necessárias assim, como
aspirandopor outras tantas mais.
Por sorte, quando agimos tão distraida-
mente, dukkha, ou a frustração das nossas espe-
ranças e planos, manifesta-se, e, nem que seja por
um breve instante, entendemos que aquilo que
nos esforçamospara atingir não trouxe nenhuma

28 | UM JARDIM CHAMADO DUKKHA


Abaixo dos reinos dos deuses, dos deuses perniciosos, tomando por prazer aquilo que não faz
invejosos e dos humanos, encontram-se os reinos mais do quenostirar a lucideze a saúde, como, por
inferiores. O primeiro desses é o reino dos ani- exemplo, consumirnicotina e álcool. Além de nos
mais, onde as emoções perturbadoras são a pre- intoxicarmos, nunca ficamos saciados com apenas
guiça ou torpor. Há bastante agressividade nesse um copo de bebida ou um cigarro.
reino, boa parte dos animais alimentam-se uns Por fim chega-se aosreinos dos infernos,
dos outros ou disputam territórios. Em termos no qual a duração da vida é muito longa. As emo-
de paisagem mental, esse reino é caracterizado ções negativas dominantes nessereino sãoa raiva e
pela incompreensão do funcionamento causal do o medo. Invariavelmente, os seres nessa paisagem
mundo ao redor, aliada à sensação de impotência, estão atacandoou se defendendo.
de desânimo diante das dificuldades percebidas Se tomarmosa água como exemplo, tería-
como externas e independentes de nossa vontade. moso seguinte:noreino dos deusesela é um néctar
Simplesmente abrimos mãode cultivar o que quer capaz de sustentara vida; no reino dos asuras é um
que seja. Olhamos a impermanência e desistimos instrumento a ser conquistado pelo poder, pela
de levar adiante qualquer projeto, por mais inte- astúcia ou mesmo pela força dos exércitos; para os
ressante que seja. Ou ainda, em meio aumacrise no humanos é apenaságua, sem nada de especial, Para
abastecimento de água, pegamos uma mangueira € os animais a água é um meio de sobreviver apenas.
passamos umatarde tranquila lavando a calçada da Para os fantasmas famintos, a água, comojá vimos,
nossacasa. é desejada ardentemente mas muito escassa, quase
O segundo reino inferior é o reino dos impossível de ser encontrada. Nos infernosé usada
fantasmas famintos. Os seres desse reino possuem como arma paratorturar e matar; quando bebida,
uma barriga enorme e sempre vazia, enquanto sua queima comolava.
boca e pescoço sãotãoestreitos que não permitem
a passagem de quase nenhum alimento. Por não
possuírem força nas pernas e braços, esses seres
arrastam-se à procura de água e comida. Quando
encontram alimento e o ingerem,esse alimento é
tóxico e ardente, queimando suasgargantas.
Em termosde paisagem mental, esse rei-
no pode ser exemplificado poruma mulher ciumen-
ta que, ao ganhar um presente do marido, desconfia
queele a esteja agradandopara disfarçar umafalta.
Também podemosconstatar que na sociedade atual
nos tornamos dependentes ou carentes de muitas
facilidades. Usamos remédios que inibem ossinto-
mas de nossas doenças e nos causam outras desor-
dens além das que já possuímos. Vamos de auto-
móvel comprar pão a duas quadras de nossacasa,
usando combustíveis que poluem o ar e deixando
de exercitar nosso corpo. Alimentamos hábitos
Olhar a Roda da Vida é como debruçar-se
em umajanela com vista para o jardim de dukkha
e observar as mais diversas sementesvicejarem
ou definharem de acordo com as causas e condi-
ções do ambiente.

“Se tomarmos a água como


exemplo, teríamos o seguinte: no
reino dos deuses ela é um néctar
capaz de sustentar a vida;
no reino dos asuras é um
instrumento a ser conquistado
pelo poder, pela astúcia ou mesmo
pela força dos exércitos; para os
humanos é apenas água, sem
nada de especial. Para os animais
a água é um meio de sobreviver
apenas. Para os fantasmas
famintos, a água, como já
vimos, é desejada ardentemente
mas muito escassa, quase
impossível deser encontrada.
Nos infernos é usada como
arma para torturar e matar;
quando bebida, queima
como lava”

32 | UM JARDIM CHAMADO DUKKHA


os
FENÔMENOS
DANÇAM

OS 12 ELOS DA ORIGINAÇÃO INTERDEPENDENTE


A secunDa NoBRE VERDADE, como vimos, nos afastar das desagradáveis. Se obtivermos
ensina que dukkhaé construído, ou seja, os budis- sucesso, estabeleceremos nossa visão de mundo,
tas acreditam que há um estado natural de felici- em decorrência, uma identidade a partir da qual
dade que antecede qualquer construção mental. nossas prioridades serão estabelecidas. Com as
Os estados confusos da mente são apontados nos prioridades, surgem as urgências e a necessida-
ensinamentos como as ondas do mar, constituídas de de sustentá-las; surgem também as defesas,
da mesma matéria do oceano. Outro exemplo clás- e assim manifestamos os três animais represen-
sico seria o de uma garrafa cheia d'água vagando tados no centro da Roda da Vida — o javali, o galo
nas ondas do mar. Tudo se passa como se a água e a cobra. Como a impermanência é inevitável,
dentro da garrafa estivesse com medo de que a em certo momento tudo irá desabar. Quando tudo
garrafa se quebrasse e seu conteúdose diluísse... desabar, manteremos as sementes cármicas, ou
na água mesmo. seja, não importa qual tenha sido o tamanho do
E qual seria o motivo para as ondas? Como estrago, a semente cármica estará preservada. Na
o movimento “isolado” ocorre? ausência da lucidez, essa semente cármica fará com
Aárea mais externa da Rodada Vida repre- que aspiremos um novocorpoe sigamosindefini-
senta os 12 Elos da Originação Interdependente, damente nesse processo.
o modo como a mente deludida constrói todos os Por meio dessa contemplação, o Buda per-
movimentos (nascimento, duração e cessação ou cebeu que o processo que dá nascimento às nossas
passado, presente e futuro) dos fenômenosdiante diversas identidades no mundo e à prisão a esse
dos nossos olhos, como as causas e condições do ciclo cármico pode ser revertido. E enunciou a
sofrimento se estabelecem de modosutil em nossa terceira Nobre Verdade, que afirma que tudo queé
mente e se unem em cadeia. construído, comoo sofrimento, podeser desfeito.
Quando o Budaatingiu a iluminação, ainda Comose faz a dissolução desse ciclo cár-
sentado debaixo da árvore bodhi,foi assaltado por mico? Partindo-se do 12º elo rumo ao primeiro.
umapergunta: “Por queos seres, tendo uma natu- O sofrimento existe por operarmos com
reza ilimitada e perfeita, manifestam-se de forma desejo e apego, buscando obter, sustentar e equi-
limitada? O que acontece com eles?” Percebeu librar o que gostamos,e evitando o que não gosta-
então que os seres ficam encerradosno interior de mos. Nascemos e nos movemosdentro do mundo
um ciclo de transmigração composto de 12 etapas como o reconhecemos. Um mundo inseparável de
e as percorrem ciclicamente por vidas sucessivas. nossas mentes. Esse processo se sustenta porque
Ele compreendeu que, porser livre, a men- temos experiências bem-sucedidas originadas de
te pode gerar ignorância. Por estarmos presos na desejo e apego. O desejo e apego se estruturam na
ignorância, brotam as marcas mentais. Com o sur- dependência de emoções que tivemos em expe-
gimento das marcas mentais, surge naturalmente riências anteriores. Essas experiências provêm
a nossa identidade. Quando surge a identidade, do contato do corpo físico com o meio ao redor.
tentamos perpetuar a experiência de existência. O contato surge na dependência dos órgãosfísicos
Assim, aspiramos um corpo. Surgindo o nosso e de um corpo. O surgimento do corpo ocorre na
corpo, fazemos contato com o mundo. A partir dependência de uma aspiração sutil da mente por
do contato, temos sensações. Quando surgem as operar por meio de um corpo físico. A aspiração
sensações, tentamos sustentar as agradáveis e surge na dependência de uma estrutura mental
cármica. À estrutura mental ocorre na dependência
de marcas mentais cármicas. As marcas mentais
surgem pela ignorância, que é o primeiro elo e o
geradore sustentador da roda como um todo.
Até aqui olhamosrapidamente o ciclo que
vai do nascimento à dissolução e da dissolução
ao nascimento, apenas para sentir o movimento.
Agora, como quem examina uma película de filme,
vamosolharoselos isoladamente, quadro a quadro,
para obter umavisão mais detalhada do processo.

“.. o Buda percebeu que o


processo que dá nascimento
ds nossas diversas identidades
no mundoe à prisão a esse
ciclo cármico pode ser
revertido. Enunciou a terceira
Nobre Verdade, que afirma
que tudo que é construído,
como o sofrimento, pode
ser desfeito.”


AVIDYA 1
Perda de visão

O prIMEIRO DOS 12 ELOS, AvIDYA?, é simboli-


zado na Roda da Vida por um cego tateando o chão
com sua bengala. Para compreenderavidya, vamos
iniciar com o exemplo de um cubo.
Nocubo temosostraços. Se olharmos para
o desenhopor alguns minutos e com bastante aten-
ção, perceberemos que esses traços proporcio-
nam pelo menos duas imagens. A frente do cubo,
repentinamente, torna-se o fundo do que parece
ser um outro cubo, sem que nada sealtere de fato,
a não ser a nossa visão. Logo, podemos conclu-
ir que a experiência que temos a partir dos tra-
ços ultrapassa o que é determinado pelos traços.
A experiência é determinada por uma operação
mental interna. Quandolocalizamosessa operação
mental, vemos que temos liberdade diante dela,
ou seja, podemos conduzi-la para um resultado ou
outro. Podemoscriar um clique interno que nosfaz ele depende de uma operação mental, quandoessa
passar de uma experiência para outra. operação mental se dá, o cubo efetivamente aparece
Temos que segurar com muito cuidado como se estivesse localizado no papel. Então, a
essa capacidade de poderpassar de umavisão para essência da experiência de separatividadeestá na
outra, porqueelaé a essência da liberdade. Quando dependência da operação mental de avidya. Ela
abdicamosdisso, qual liberdade nos sobra? Temos cria a experiência do cubo no papel. A incapacida-
a liberdade de pintar o cubo, de emoldurá-lo. de de reconhecer essa operação complexa é o que
Achamosqueissoé liberdade, mas, nesse momen- chamamosde avidya, ignorância. Surge a cegueira
to, não temos mais liberdade alguma! Ficamos que nos impedede ver as coisas como realmente
com a visão congelada. Temos a percepção de que são. Então, a essência da experiência da aparente
O cubo está no papel. Assim surge a separação separatividade entre o objeto e o observadorestá na
sujeito-objeto, surge o “observador” em um lugar dependência da operação mental de avidya. Ela cria
e o “objeto” em outro lugar, separados. Ainda que a experiência do cubo existindo autonomamente
saibamosque o cubo não podeestar no papel, porque diante de nós.

2 Vidya, em sânscrito, significa sabedoria,visão, lucider; avidya significaperdada visão. OS FENÔMENOS DANÇAM| 41
e"
Pelo raciocínio, percebemos que o cubo por criarmos a parcialidade, podemos dizer que a
surge de forma inseparável de nossa mente. Quan- natureza de budaestá presente em nós. Ondea par-
do nossa mente se posiciona, o cubo aparece. cialidade se ancora? Na natureza última, na nossa
Quando se reposiciona, o cubo aparece de outra capacidade de criar as coisas. Por que não vemos
forma. Essa é uma operação verdadeira, mas que isso? Por causa de avidya! Pela capacidadede oculta-
está oculta. É espantoso que um desenho tão sim- ção que a delusão manifesta. Avidya manifesta dois
ples seja capaz de oferecer tal compreensão. Esse é aspectos simultâneos: a capacidade de manifestar,
o segredo secretíssimo deavidya. ou luminosidade, e a capacidade de ocultação.
Quando olhamos um Buda pintado em A manifestação de avidya produz um fe-
tecido, vemos o Buda no pano, masna verdade ele chamento. Quando uma coisa aparece, produz uma
é inseparável de nós. O queexiste é tinta sobre o ocultação, pois deixamos de ver outras, e essa
tecido, mas nós vemos o Buda, do mesmo modo ocultação também passa despercebida —avidya gera
que vemos um cubo onde só existe papel e traços. a ocultação da ocultação. É a estreiteza da visão —
A separatividade é construída. A experiência de uma estreiteza que parece amplidão, pois todo um
separatividade é limitante, porqueela não existe de panorama se descortina, surgem imagens, visões
fato, nãoé real. aparentemente concretas, ao mesmo tempo em
Quando olhamos uns aos outros, também que outras opções de experiências ficam ocultas
nos vemos separados, vemos os outros com qua- pela experiência das imagens surgidas. Avidya nos
lidades que parecem brotar deles mesmos. Essa permite operar no mundo, mas sempre através da
forma de olhar também é avidya. As qualidades que delusão. Quando um objeto surge, surge a delusão e
vemos nosoutrossão inseparáveis da nossa própria o impulso de ação correspondente.
mente. Olhe a foto de alguém. Você vê qualidades O cinema é um bom exemplo para se
nessa pessoa, você desenvolve sentimentos ao entender o processo de avidya. Quando entramos
olhara foto? Mas não há ninguém ali, apenas papel nahistória de um filme,a responsividade começa a
e tinta. Assim, de onde viriam as qualidades que se manifestar. Sentados em nosso sofá, ou na pol-
você está vendo? As qualidades que vemos nasfotos trona do cinema, com um pacote de pipoca em uma
surgem de nossa própria experiência cármica; assim, mão e um refrigerante na outra, sentimos emoções
o conteúdodas fotos pode mudar com o tempo. Nós ligadas às imagens que surgem natela. Isso é avi-
mudamose as fotos então mudam. E não apenas as dya operando, delusão. Ficamos presos ao filme:
fotos. Nossas lembranças mudam,o passado muda. choramos, rimos, nos assustamos. Se a televisão
O passado se estrutura a cada momento como uma e o cinemaexistissem na época do Buda,ele cer-
nova experiência na nossa mente, Também ele é tamente iria apontá-los como um bom método de
a manifestação dessa mente criativa e incessante. prática. O Buda usou os exemplos da época, comoa
A luminosidade não obstruída, livre e criativa pinturae o teatro.
manifestada através da mente é a natureza de buda Estamos vendo um filme, temos vontade
dentro de nós. de chorar e pensamos: “Essa vontade de chorar é
Essa é a razão pela qual podemosdizer que completamente tola.” Ainda assim, evitar o choro
a natureza de budaestá em toda nossa experiência. é uma construção, chorar também é uma construção.
Por manifestarmos avidya, podemos dizer que Às vezes choramos e paramos, achandoa situação
temos uma natureza de buda. Por nos enganarmos, ridícula. Depois voltamos a chorar. Mais uma vez
nos sentimos ridículos e paramos novamente. Se a pessoa diz: “Mas eu tenho o maior carinho,
Assim, vagueamosporvárias paisagens. No entanto, o maior respeito por você”, talvez venhamosa sentir
se tivermoslucidez duranteo processo, poderemos um grandealívio. O peso quetínhamos em cima
optar por chorarou não, tanto faz. de nósse dissolve. Esse peso era irreal, vinha da
Tendo lucidez, podemos pensar: “O choro delusão, de avidya.
é perfeito dentro desse conjunto de situações, eu
estou nessa paisagem,e nela o choro é completa-
mente natural.” Para elucidar o processo, podemos
avançar por dentro daquela paisagem. Podemos
chorar para perceber a experiência de sofrimento
em que os seres estão imersos. Nesse caso, não
existe a ocultação da ocultação, não estamos presos.
Nós andamos por dentro da paisagem, temos as
experiências, mas com liberdadee lucidez em meio
ao processo.
Quando estamos presos por avidya, a pai-
sagem em que nos encontramos parece ser a única
realidade, e nossa ação ou reação parece plenamente
justificada. As paisagens e nossas ações sempre
correspondem a algum dos seis reinos. À experi-
ência parece completamente sólida, não vemos
outra saída. Se alguém disser que não precisamos
passar por aquilo, que poderíamosagir de outro
modo, reagiremos um poucoirritados. Não vemos
solução, fomos fisgados, engolidos pelo processo
de delusão e pela aparente concretude de tudo ao
“.a essência da
nosso redor, como com o cubo. Temosa sensação
clara de estarmos imersos em um mundoexterno a
experiência de
nóse independente.
A prisão de avidya se manifesta em corpo,
separatividadeestá
fala e mente. Quando choramos, as lágrimas des-
cem pelo nosso rosto, o corpo está atuando. À fala,
na dependência da
que no budismoequivale à emoção, está envolvida
também, sentimos nossa energia consumida por
operação mental de
pensamentos negativos. A mente torna-se refém
desse processo completamente abstrato. À prisão é avidya. Ela cria a
irreal, mas estamos enclausuradosnaexperiência.
Se nos desentendemoscom alguém, pode- experiência do cubo
mosver a pessoa como inimiga. Achamosque ela
quer nos causar mal, e essa sensação nosfaz mal. no papel.”
SAVANA 2
Marcas Mentais

O secunDo ELO corresponde a estruturas A pintura surrealista de Salvador Dalí é


internas sutis chamadas samskara”, surgidas a um exemplo. Seu relógios tortos incomodam,cau-
partir de avidya, da delusão. O símbolo é um oleiro sam um estranhamento. Olhamospara o quadro e
trabalhando com argila. vemos um relógio torto. Por que o incômodo? Na
O oleiro começa seu trabalho com uma verdade não há nenhum relógio ali, é apenas tinta
bolota de argila, que, por mais formas que adquira, sobre uma tela. Como podetinta sobre tela nos
continua sendo argila. A experiência toda, porém, incomodar? Temos marcas mentais nas quais
já não é mais a de uma bolota de argila. Ao final do os relógios têm uma certa aparência. Aquilo
trabalho,o oleiro vê um pote ali. Para descrevera parece um relógio, mas não se encaixa nas nos-
diferença entre a bolota de argila e o pote de argila, sas expectativas de um relógio. Quando fitamos
ele terá de falar sobre a forma do objeto. Esse é o a imagem do relógio torto, as marcas mentais
aspecto sutil. A diferença entre a bolota e o pote de relógio são acionadas, mas não temos como
não pode ser explicada na microestrutura daargila. compatibilizá-las com o relógio torto. A arte é
O oleiro só verá o pote através do processode delu- interessante para percebermos como as marcas
são de suavisão, tendo porbase a bolota de argila. mentais são montadas e como operamosdireta-
Vamos colocar um outro exemplo: uma mente com elas.
pessoa começaa trabalhar com a bolota deargila e Podemos, porém, escolher as marcas.
gera um pote. Mas não gostado resultadoe o desfaz; Mais que isso: podemoscriá-las. Podemos sus-
na sequência, faz outro. Ainda não satisfeita, des- tentar umase não sustentar outras. O que sustenta
mancha o pote novamente e torna a refazê-lo várias samskara? À luminosidade da mente, queestá por
vezes, até surgir a forma queela tinha em mente, trás de todas as experiências. Precisamos apren-
que espelha o que busca ver. Comosurge essa apa- der a reconhecê-la, ela está sempre operando.
rência daargila? Da inseparatividade entre a mente Entendendoisso, compreendemos queas marcas
quevê e o objeto queé visto. Quandoela olha para mentais têm a consistência de avidya, é a lumi-
a argila, vê o pote. Da mesma forma, nós olhamos nosidade da mente produzindo particularidades
para riscos em um papel e vemos um cubo. ou movimentos isolados. Vemos que samskara é
Samskara são marcas internas. O conjun- produto de avidya, é uma construção, surge através
to de marcas, mais seus impulsos, caracterizam da delusão. A luminosidade cria marcas mentais,
uma pessoa. Essas marcas são a base, ostijolos de mas essas não são perenese imutáveis; em verda-
qualquer construção do carma. Estão presentes de, são efêmeras e mutáveis, podemoscriar outras
em tudo. marcas a qualquer momento.

3 Skara, em sânscrito,significa cicatriz. Samskara significa conjunto de cicatrizes, oumareaspor hábito


Primeiro, produzimos a habilidade de
fazer surgir o objeto e o observador. Em seguida,
temos muitos objetos, muitas formas de manifes-
tar a relação objeto-observador. Esse caminho já
preparadoé simbolizadopela chuva que abre sulcos
naterra. Uma vez que os sulcosestejam abertos, é
natural que a água da chuva corra por eles. Com o
tempo, temosrios e vales surgidos desse fluxo de
água. Esse conjunto de marcas é chamado samskara.
No entanto, as marcas não são apenas mar-
cas. Cadavez que temos uma experiência de obser-
vador olhando objetos, este traz energias consigo.
Percebemos que surge um pensamento ou uma
imagem e queessa imagem tem uma energia que nos
conduz a outra imagem ou pensamento, que con-
duz a outro, que conduz a outro, indefinidamente.
Assim nos dispersamos, nos tornamos realmente
distraídos. Não é o surgimento do objeto que causa
dispersão; a dispersão é causada pela energia de
responsividade que o objeto aciona e que faz com
que sejamos conduzidos sucessivamente para
outros objetos mentais.

“Samskara são marcas internas.


O conjunto de marcas, mais seus
impulsos, caracterizam uma
pessoa. Essas marcas são a base,
os tijolos de qualquer construção do
carma. Estão presentes em tudo”
“8 |
E)
VIJNANA
Consciência

O OBSERVADOR GERA UMA AUTOCONSCIÊNCIA, com o tempo começamosa associar os pontose ver
infere sua existência ao observar as sensações e imagens. Vemos figuras onde só há pontos. Esse é
os pensamentos que experimenta. Esse é o ter- vijnana encontrando um modo dese expressar nos
ceiro elo, vijnana, representado na Roda da Vida objetos percebidos comoexternos.
por um macaco. Para estabilizar a mente, buscamosobjetos
Nessa condução de um objeto para outro, que possibilitem um foco. O mundointeiro termina
percebemosa inseparatividade entre aquele que sendoa expressão da nossa mente. É comose pen-
vê e aquilo que é visto, nos damosconta de que o sássemos com o mundo. O mundoé inseparável da
objeto é uma experiência de objeto, e que a ener- nossa mente, é uma extensão do nosso processo
gia é uma coisa que sentimos. Quando dizemos mental. Ele manifesta vijnana e samskara.
“a energia é uma coisa que sentimos”, surge a cons- A pessoalocaliza sua energia e a faz ope-
ciência do observador. O observadorse vê. É como rar. Ela vê e legitima o surgimento da energia que
se ele recuasse e pudesse observar a si mesmo. Ao faz tudo acontecer. Todas as delusões brotam dali.
ver a energia, ele podedizer: “Eu vejo a energia em É o surgimento daidentidade no nível maissutil.
mim.” Quandotal percepção se manifesta se esta- O “eu” aqui não é o corpo físico, mas significa-
beleceo terceiro elo. dos, impulsos, marcas cármicas. Porque o mesmo
Assim como Himalaia significa “depósito de impulso aparece repetidas vezes, dizemos que
neve”, alayavijnana significa “depósito de vijnana”. somosesses impulsos.
É como um conjunto de marcas na formade ener- Essa energia é apenas um brilho da mente.
gia, ou possibilidades de consciência, possibilida- Nesse ponto ainda nem existe a materialidade.
des de posicionamentos do observador. Existe apenas a energia sutil. Se entendemos
Samskara são marcas pelas quais vemos o isso, podemos manifestar liberdade com relação
mundo (estruturas, paradigmas, teorias, visões); à energia, manifestá-la em uma outra direção.
parece estar no mundo, no objeto. Vijnana são as Percebemos que a prisão nãoexiste.
marcaspelas quais o observadorvê a si mesmoe se
constrói; parece estar presente no observador que
vê o mundo. Mas os dois conjuntos — samskara e
alayavijnana — sempre estão juntos, são absoluta-
mente complementares.
Podemos perceber que, meditando de
olhos abertos, de frente para uma parede rugosa,
Nome e forma

JáreEMoS TRÊS MARCASSUTIS OPERANDO: avidya, Por esse motivo, por exemplo, procuramos lugares
samskara e vijnana. Surgimos com uma identida- serenos quando queremosnosacalmar.
de, mas ainda não temos materialidade. Quando Quando presenteamos alguém também é
entramos no quarto elo, inconscientemente des- assim. Damos um presente com a intenção de gerar
cobrimos que certas coisas movimentam energia um estado mental no outro. Em um nível profundo
atraindo e outras não, e que os objetos, movimen- de observação, podemos perceber que oferecemos
tando energia, têm o poder de sustentar estados um estado mental ao outro.
mentais específicos. No quarto elo, nama-rupa*, Nama-rupa produz a experiência de que
ainda não temos o objeto, mas começamos a morreremos quando perdermos algo precioso.
desejá-lo. Por isso é simbolizado por um barqueiro Nós nos identificamos com certos objetos,
vagueando em um rio: há a aspiração de chegar sejam eles concretos ou abstratos, porque eles
a um objeto específico para sustentar um estado fazem brotar em nós uma energia que nos dá a
mental específico. sensação de existirmos. No momento em que
Como sabemos que encontramos o objeto tudo desmorona, surge o pavor da dissolução.
certo? Brota uma energia. Existem abundantes Vamos usar como exemplo alguém que perdeu o
exemplospara esse processo: “gosto mais de lençóis marido ou esposa, ou o filho, o emprego, a casa.
azuis”, ou “prefiro carros grandes”, ou “não gosto A pessoa se pergunta: “O que faço? Quem sou? Eu
de acordar cedo”. Experimentem passear pelos sou alguma coisa?” Para ela tudo fica cinza, nada
shoppings observandoisso, vocês vão perceber que mais tem o valor ou a atração que possuía antes.
cada objeto desperta uma reação. Quando divaga- O mundo morre, desaparece. A pessoa vagueia,
mos em nossos sonhos também surge a energia que flutua. Se tiramos todos os aspectos que estabili-
nosatrai a situações e objetos. zam nossos estados mentais, isso pode realmen-
Com nama-rupa, começamos a operar te acontecer.
com fato de que certos objetos percebidos como É comose nama-rupafosse os mais diversos
externos nos remetem à sustentação de aspec- espaços de possibilidades. Temosos espaçose, den-
tos sutis percebidos como internos. Os aspectos tro deles, há o queé possível e o que não é possível
sutis flutuam, mas, se colocamos objetos que nos encontrar. Estamoslimitados a encontrar aquilo que
evocam esses aspectos sutis, fazemos com que se nos permitimos encontrar, aquilo que reconhece-
tornem mais permanentes. Os aspectos mentais mos. Mas o mais importante é perceber que nama-
abstratos se beneficiam de uma materialidade. -rupa também é luminosidade.

+ Nama, emsânscrito, significa nomerupa significaforma. 53


Podemos eleger um nama-rupa para um de existência, de que existimos. Isso produz uma
local. Por exemplo, podemosimaginar que um espaço dimensão sutil de apego, que não é apego a um
seria uma boa escola para crianças. Se uma profes- objeto, porque ainda não temos objetos. É apego a
sora estivesse conosco e ouvisse nossa aspiração, sonhos, visões. Como temosapego a esses sonhos
suspiraria com ar sonhador. Isso significa fala, e visões, surge a aspiração de termos um meio de
emoção. Nesse momento, nós e a professora come- estabilizar o sonho.
çaríamos a pensar onde seriam as salas de aula, a Todos nós temos aspectos internos — dos
diretoria, a bibliotecaetc. Mas poderia chegaroutra quais às vezes nem nos damos conta — que nos
pessoae ter a ideia, por exemplo, de construir uma fazem maisfelizes ou menosfelizes. Por exemplo,
clínica no mesmo espaço. E os médicos e terapeu- vamos a uma galeria de arte, olhamosdiferentes
tas que porventura ouvissem tal ideia diriam: “Oh, quadros, de repente, vemos um e dizemos: "Oh!
umaclínica, que boaideia!” Que bonito!” Brota um brilho, e pensamos queé o
Apenas trocamos o conteúdo e fica claro quadro que tem esse brilho. Compramoso quadro,
que nama-rupaé uma forma de operação da lumi- levamospara casa e o colocamos na parede. Cada
nosidade da mente. Simplesmente criamos tudo de vez que olhamos o quadro, brota o brilho. Mas com
outro jeito. Puxamos uma grade referencial e tudo o tempo essa sensação se desgasta.
aparece, puxamosoutra e tudo novamente aparece. O ponto importante aqui é o momento
Essas grades são luminosidade. Nama-rupa tam- em que aspiramos algo que estabilize a energia
bém pode ser reconhecido como manifestação da que desejamos manter. No terceiro elo, temos as
luminosidade. experiências de energia. Então, aspiramos que
O terceiro e quarto elos têm que ser expli- elas retornem, apareçam. É quando surge o quarto
cados juntos. No terceiro elo, temos experiências elo — a aspiração de encontrar algo que estabilize
de energia. Você pode se imaginar sonhando. nossa energia. Essa aspiração vai produzir os sen-
Amentelivre dos sentidosfísicos é uma mente que tidos físicos, que são o quinto elo. O quarto elo é
se assemelha ao sonho. Oselos antes dos sentidos uma ponte ligando o mundo abstrato e o mun-
físicos são etapas de sonho, onde temosa possibi- do concreto.
lidade de imaginar objetos. Alguns desses objetos
imaginados podem produzir em nós embriões das
emoções. Ainda não são emoções no sentido de
apego, são embriões que se manifestam com mais
ou menosbrilho. A partir desse ponto nós surgi-
mos, nos sentimos realmente existindo. A falta
“O quarto elo é
disso é muito parecida com aquelas fases de nossa
vida cotidiana quando tudo está muito tranquilo
uma ponte
em casa. É meio sem graça. Achamos queprecisa
acontecer alguma coisa que produza um brilho. ligando o mundo
abstrato e o
Noterceiro e o quartoelos, é comose esti-
véssemos em um sonho meio morno, não tem nada.
Mas,de repente, surgem coisas que produzem brilho.
Quando essas coisas surgem, temos uma sensação mundo concreto.”
54 |
[ss
O quinto ELO trata dos nossosinstrumentos todas as possibilidades. Sua Santidade o Dalai
de medida — nosso corpo, nossa sensorialidade. É Lama costuma brincar, dizendo que os cientistas
representado por uma casa com seis janelas na são pouco céticos, pois sustentam muitos enuncia-
Roda da Vida. Suas aberturas representam a visão, dos comose fossem inerentemente verdadeiros, ou
audição, paladar, olfato, tato e mente abstrata. É seja, como se dessem solidez ao conjunto sempre
como se o macaco do terceiro elo ficasse preso cambiante de ideias nascido do encontro dos nos-
dentro da casa, espiando pelas janelas, um pouco sos olhos com os objetos, percebidos como exter-
acuadodevido à limitação das paredes. Contemplar nose autônomos em sua manifestação.
o quinto elo é observar nossos instrumentos de Podemos contemplar uma conexão direta
medida, nos tornamos observadores do conjunto entre o quese estuda no quinto elo e a física quân-
dos nossossentidos. tica. O físico Niels Bohr, um dos representantes
O quinto elo tem uma grande conexão com dessa escola, usa os termos “ambiguidade” e “não
a ciência, porque os cientistas criam e utilizam ambiguidade” para evidenciar suas proposições.
muitos outros sentidos “eletrônicos”, projetam e Ele diz quea filosofia natural trata de forma ambi-
constroem instrumentos para detectar, identificar gua a questão da medida das coisas, a questão da
e medir os mais diversos fenômenos. Por exem- aferição da realidade. Para superarmos a ambigui-
plo, quando lecionei no Departamento de Física dade, é necessário percebermos que a separação, a
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, distinção entre o objeto e o instrumento de medida,
acompanhei o desenvolvimento de um medidor de é arbitrária. Nósarbitrariamente dizemos: eu corto
radiação solar construído por um aluno. Criamos aqui; essa parte é o objeto, e essa outra é o instru-
uma nova relação com os objetos à nossa volta na mento de medida.
forma de um medidor de radiaçãosolar. Observando a história da ciência, Bohr se
Quanto mais inusitados e precisos os ins- deu conta de que um fenômeno é composto pelo
trumentos de medida criados, mais perspectivas de conjunto interdependente formado pelo objeto e o
observaçãoda realidade surgem, e com elas as mais instrumento usado para conhecê-lo, mais o obser-
diversas análises, aplicaçõese avaliações. Por mais vador (no caso, o cientista) e suas teorias. Quando
sofisticados que sejam,tais instrumentos não têm resolvo dizer que aquilo que vejo é o objeto, estou
condições de oferecer umavisão final da realidade. colocando nele as propriedades do fenômeno. Mas,
Por isso as teorias científicas se sucedem com o na verdade, nunca tenho o objeto comoalgo que eu
passar do tempo. Nenhuma teoria poderia abarcar possa ver separado, porque só posso vê-lo através

u [57
dos fenômenos que surgem conjuntamente com Niels Bohr diz que só conseguimos superar
o instrumento. Então, quando o objeto interage essa ambiguidade se, ao descrevermosa partícula,
com o instrumento, surge um evento cognitivo com também o fizermos em relação ao instrumento
aparência de evento externo e concreto. Esse evento de medida utilizado. Além disso, é indispensável
é completamente inseparável da forma como foi descrevero experimento, as teorias e perguntas do
construído pelo olhar do cientista, ou seja, pelo cientista que compuseram esse processo. Portanto,
modo comoa relação ocorreu. Se eu tirar o instru- para Bohr, aquilo que vemos comopartícula é inse-
mento que propicia o espaço de encontroou inter- parável do equipamento experimental, do experi-
face entre sujeito e objeto, o evento não acontece. mento, das perguntas e paradigmas (teorias) que
Se eu trocar o instrumento, terei outro evento. o cientista utiliza. Muito antes da filosofia de Kant
Na filosofia encontramos essa mesma e dafísica quântica de Bohr, os budistas já haviam
compreensão na obra de Kant. Ele afirmava ser percebidoa inseparatividade entre sujeito e objeto.
impossível conhecer o “objeto em si”, dizia que tal
conhecimento é inatingível para a razão. A mente
funcionaria com base em uma certa percepção
dos fenômenos como um conjunto de asserções
nascidas a partir da intuição transcendental e
a priori de tempo e espaço, ou seja, uma primeira
interface entre os sentidos físicos e a realidade
exterior, um local de encontro. Posteriormente,
e já mediados por categorias transcendentes
do conhecimento ou da razão, os objetos que
aparecem externamente como fenômenos sur-
giriam internamente como conceitos, uma
abstração de fato. Há uma frase clássica no
pensamento de Kant na qual ele afirma que os
conceitos sem objetos são vazios, enquanto que “Quanto mais inusitados e
os objetos sem conceitos são inexistentes, precisos os instrumentos de
ressaltando a interdependência desse duplo grau medida criados, mais
de realidade.
Voltando à física, pensamos que estamos perspectivas de observação
medindo uma partícula de um átomo qualquer da realidade surgem, e com elas
e que a propriedade é da partícula. No entanto, a as mais diversas análises,
propriedade é do experimento como um todo. Se
fizermos outro tipo de experimento com outro aplicações e avaliações. Por
aparelho, teremos outro resultado,algo diferente. mais sofisticados que sejam, tais
Então vamosdizer que aquela partícula tem duas instrumentos não têm
propriedades. Até aí tudo bem, contanto queelas
não sejam contraditórias. Quando encontramos
condições de oferecer uma
propriedades contraditórias, ficamos surpresos. visãofinal da realidade”
Wo .
NEada
SPARSHA
Contato

SparsHA é a utilização das seis faculdades estudoda fisiologia revelou que o olho humano só
dos sentidos, o encontro dos sentidos com os obje- capta umaestreita faixa da radiação eletromagné-
tos. Na sexta etapa dos 12 elos da originação inter- tica presente no ambiente. Por meio de aparelhos,
dependente, estabelecemos o contato e usamos conseguimos detectar outras frequênciasde luz.
a materialidade como se fosse nossa expressão. Diante de uma tela de televisão ou com-
Na figura da Roda da Vida, sparsha é simbolizado putador, nossos olhos identificam as imagens
por um bebê no seio da mãe ou por um casal de produzidas a partir de ondas de rádio convertidas
namorados. Quando surge sparsha, surge o corpo em luz. Telescópios captam imagens do universo,
operandonoseu universo. e vemosplanetas e buracos negros muito distantes
Quando pensamos no contato como um no espaço e no tempo comose estivessem diante de
referencial sólido, inferimos que nossa percepção nossos olhos. Vemoscoisas que antes não veríamos
darealidade é objetiva. Essaé a posição doscientis- naturalmente, e podemos perceber que nossos
tas e dos filósofos que consideram o experimento a olhos não veem tudo que podeservisto.
forma de julgar a realidade daquilo que é experi- Nossos sentidos físicos são limitados,
mentado. Isso significa que o contato que fazemos mas temosa sensação inconsciente de achar que o
possuiria uma objetividade capaz de definir o que universo se resume ao que aparece eles. A maior
é verdadeiro e o que não é. Em termos muito sim- parte dos objetos que conseguimos pensar são
ples, quando dizemos “eu gosto” ou “eu não gosto”, produtos de experiências sensoriais. Nesse ponto
ou “isso é vermelhoe aquilo é azul”, a experiência já é difícil imaginarmos alguma coisa que não
do contato parece ser um parâmetro suficiente para possamos ver, ouvir, cheirar, saborear ou tocar.
validar nossa posição diante do objeto. Nossa mente opera limitadaà restrição natural dos
Nosexto elo passamosa usar os sentidos sentidos físicos.
físicos, mas ficamos muito limitados dentro disso, Quando fazemoscontato, a percepção do
como um macacopreso dentro de umacasa. Amente objeto e o contato com ele parecem a mesma coisa.
é ampla, mas torna-seestreita devido à capacidade Isso é a operação da delusão. Fecheosolhose tente
reduzida de percepçãoatravés dos sentidosfísicos. ver alguma coisa. Abra os olhos. É simples: o que
Porém,o estreitamento nos passa despercebido. temos é o olho que está vendo.
A ciência moderna comprovao pensamento
budista ao oferecer inúmeros exemplos de nossas
limitações sensoriais. Vejamosa luz e o olho. A luz
é uma gama variada de frequências luminosas,e o
Escolhas

NA FIGURA DA RODA DAVIDA, VEDANA,O sétimo não é liberação. Eles continuam usando o mesmo
elo, é simbolizado por uma pessoa que enfia uma referencial, só que em outra direção.
flecha no próprio olho; surge umacegueira adicio- Osvedanas — as experiências de gostar/não
nal. Aqui simplificamos todas as etapas anteriores gostar, querer/não querer — não surgem do objeto
e baseamostodasas fases seguintes em umasensa- que contemplamos. Já vimos que a experiência de
ção. Ocultamosos seis elos anteriores. Não olha- gostar e não gostar sempre parecesurgir referida a
mos mais a microestrutura. O fato de termos uma algum objeto dos cinco sentidosfísicos ou do sen-
sensação boa justifica tudo. Avidya adquire grande tido abstrato (consciência a partir dos sentidos).
poder nesse momento. O objeto aparece a nós e respondemosa ele com um
Social e culturalmente, quando umacoisa “gosto” ou “não gosto”, “quero” ou “não quero”.
é boa, agradável,já está justificada por si mesma. Noentanto, percebemosqueo “gosto/não
Isso significa a flecha no olho. As pessoas que gosto” é uma experiência de gostar ou nãogostar. Os
se drogam dizem que a droga é muito boa. Até praticantes budistas olham para essa experiência e
querem sair daquilo, mas o problemada droga é dizem: “É manifestação da delusão da mente”. Eles
queela é realmente muito boa. Existe um meca- percebem o aspectocriativo, luminoso, mágico, que
nismo de fixação. O fato de alguma coisa ser boa existe nas características que vemos nos objetos.
nostira toda a defesa. Quandoalgo parece bom, Tendo por base essa visão deludida, mani-
ficamos apenas com esse referencial, aprisiona- festamosatração ou aversão diante de objetos con-
dos no processode vedana. É muitodifícil gerar- cretos. Podemosagir da mesma forma com objetos
mos liberdade em relação a esse elo porque não abstratos. Existe uma perspectiva, uma paisagem
queremos nos desvencilhar dele. Tudo vai bem, mental atuando em cada objeto que vemos. Essa
gostamos, estamos realmente satisfeitos. O que paisagem mentaldá significado, serve de base para
queremosé garantir vedana. as características que surgem através da delusão.
Se fosse necessário abandonar vedana As características são experiências, nós as vemos
para seguir um caminho espiritual, a maioria das sustentadas por uma energia de ativação. Enquanto
pessoas desistiria. Entramos em um caminhoespi- contemplamos nossa mente operando, podemos
ritual porque queremos nos sentir bem. Esse é um espreitar essa energia surgindo ou não surgindo.
ponto delicado. Uma questão com a qual os santos Podemos contemplar vedana por meio de
se defrontam. Eles dizem que não importa sentir- umabarrade chocolate. Ao olhá-la, podemos comê-
-se bem ou não. Na verdade, até preferem não se -la ou não. No entanto, não podemos evitar que
sentir bem. Mas não é uma boa solução, porque surjaa atração pelo chocolate. Avidya opera produ-

S FENÔMENOS DANÇAM
zindo a atração pelo chocolate, mas não vemos o estar certos sempre! Esse é um trabalho importante
fato do surgimento, apenas reagimosa ele, temos para nos recompormos, nos estruturarmos para
desejo ou aversão pelo chocolate. Nem percebe- operar no mundo de uma forma melhor.
mos que existem liberdadese prisões surgidas da No entanto, na psicologia budista fazemos
aparência do chocolate.A prisão está em vermos de umaoutra coisa. Dinamitamos esses processos um
modo completamente natural o chocolate surgindo por um. Ou seja, reconhecemos queessa estrutura
com toda suaatração. Ela não está em comê-lo ou de gostar, não gostar ou ser indiferente não é uma
rejeitá-lo, essa opção já é o chocolate nos enga- boa conselheira. Expressar claramente do que
nando. Existe uma ocultação desse fato. Quando gostamos, não gostamose somosindiferentes per-
o chocolate aparece, ele oculta o fato de que está mite-nostransitar no mundo de forma autêntica,
aparecendo. Toda a nossa experiência sensorial é mas não resolve nosso problema. Por quê? Porque
legitimadapelofato de queele aparece. continuamos com contradições internas. Há coisas
A maior parte das pessoas têm sua expe- de que gostamos; perseguimos essascoisas e vemos
riência de observação mais íntima, mais sutil, no que isso produz sofrimento em outras pessoas, o
aspecto de gostar e não gostar. À coisa mais pro- que termina nosatrapalhando. Podemos também
fundaque conseguem ver dentro desi é se gostam olhar profundamente dentro de nós e perceber que
ou não gostam de um objeto, situação, pessoa ou aquilo de que pensamosgostarparece desagradável
lugar. Às vezes temosa sensação de que somos mais sob outra perspectiva. Vemos então que o referen-
nós mesmos quandofazemos o que gostamos e não cial de gostar e não gostar nãoé sólido o suficiente.
fazemoso que nãogostamos. Percebemos que o gostar ou não gostar
Criamos complicações internas quando é produzido pela qualidade de luminosidade da
ocultamos o gostar ou não gostar de algo. Somos mentee é impermanente. Às vezesgostamosdealgo
ensinados a conter nossos impulsos através de que, após um tempo, deixamos de gostar. Como o
disciplina e construímosidentidadesa partir des- gostar é impermanente, vemos que foi sustentado
sas características adquiridas e escolhas de nosso durante um tempo pela luminosidade, quea seguir
entorno cultural. Isso é o processo civilizatório. passou a sustentar o não gostar. Todos nós temos
Essencialmente, não vamos fazer tudo de que gos- essas experiências em relação aocarro, ao trabalho
tamos, nem evitar tudo de que não gostamos; tam- e às pessoas com quem convivemos.
pouco ficaremosindiferentesa tudo quedesejaría- Vemos pessoas que têm tudo o que que-
mos ficar. Seremos educadospara ficar atentos a riam, mas já não querem mais nada daquilo. Se lhes
coisas que não veríamos, aprenderemos como pas- perguntam: “Mas o que é que você quer agora?”, a
sar pelo que não gostamose comoficar bem quietos resposta é: "Nãosei”. Essaé a tragédia da nossa vida.
frente ao que gostamos. Seremos domesticados. Tudoé impermanente porquefoi produzido carmi-
Mais adiante necessitaremos dos psicólo- camente pela luminosidade, mas parece real, con-
gos paranosajudar a revelar essasestruturas escon- creto, vivo, permanente. Sentimos que temos que
didas, liberar as couraças e sofrimentos, para que viver aquilo. Vivemos e depois perceberemos que o
possamos nosexpressar de forma maislivre, para conteúdo produzido pelo carmase esgota. Como uma
que possamos conviver com nossas fragilidades e vela que se consomeaté o fim e se apaga, os conteú-
nossoserros. Para que possamos nos expressar de dos cessam. Ou seja, o impulso, toda estrutura que
uma forma maisnítida, maisclara. Não precisamos não sabemosde ondeveio, cessa completamente.
Portanto, essa estrutura de gostar ou não
gostar não serve. Masé o referencial que usamos.
Então, é natural que tenhamos muitos problemas.
Essa é a origem de dukkha, do sofrimento, explicada
pelo Buda na primeira e segunda Nobres Verdades.

“Os vedanas - as experiências


de gostar/não gostar, querer/não
querer - não surgem do objeto
que contemplamos. Já vimos que a
experiência de gostar e não
gostar sempre parece surgir
referida a algum objeto dos
cinco sentidos físicos ou do
sentido abstrato (consciência
a partir dos sentidos). O objeto
aparece a nós e respondemos a ele
com um “gosto” ou “não
gosto”, “quero” ou “não quero”.
Com BASE EM VEDANA, O QUE FAZEMOS? Se Nooitavo elo nós plantamosa árvore, por
achamos que uma coisa é boa, tentamossustentar meio disso aspiramos colher todos os frutos que
e reproduzir a sensação. Quando não gostamos de desejamos, um apóso outro. Se alguém tenta mos-
algo, tentamos sustentar uma proteção frente ao trar que tudo isso não é necessário, contestamos:
quenos parece desagradável. O oitavoelo, trishna, “Não, você não entende porque você não provou
é representado na Roda da Vida por uma pessoa chocolate. Se tivesse provado, saberia por que eu
tomando chá. Também poderia ser representado tenho uma fábrica agora.” Vamos, então, encontrar
por amigos conversando na mesa de bar, plane- pessoas aprisionadas fazendo coisas que um dia
jando,plantando, construindo. Podemosdizer que gostaram de fazer. Talvez já não gostem mais, mas
trishna é a aspiração da expansão daquilo que se durante um período aquilo as mobilizou.
provou. Nesse caso, podemosincluir a ação também
— comoa ação de plantar uma árvore para se obter
muitosfrutos.
Tentamos sempre construir, elaborar uma
situação: “Para tal coisa funcionar, nada melhor
do que...” Temos propósitos que dependem das
circunstâncias. Vejamos o exemplo de uma pes-
soa que tem um trailer de cachorro-quente. No
momento em que percebe que tudo vai bem, ela
planeja ter dez traileres. Quando faz a conta no
final do mêse percebe queestá ganhando dinheiro,
ela quer multiplicar.
Quando chegamosao oitavo elo, podemos
perceber: “Sim, claro, planejei isso. Da mesma
forma, poderia ter planejado outras coisas. Eu
construí isso, mas não precisava ter sido assim.”
Outra vez, existem abundantes exemplos de que
isso é uma liberdade que exercemos, e que não
precisamos ficar presos. Vemosque, enquanto pla-
nejávamos alguma coisa, estreitamos nossa visão;
avidya estava junto operando.
UPADANA
Ação Contaminada

PorquE PLANEJAMOS E PLANTAMOS, vamos No entanto, quando estamos montados


com certeza colher. Na Roda da Vida, o nono elo, em um cavalo com uma lança na mão, sabemos o
upadana, é simbolizado por uma pessoa colhendo que podemosfazer. Temos sucesso naquilo, faze-
frutos em uma árvore. Ela colheu os frutos muitas mos demonstrações, participamosde competições,
vezes, tornou-se capaz de fazer algumacoisa, como tudo está legitimado. Estamos colhendoos frutos
um médico quefoi treinado, primeiro dissecando de uma árvore, masa árvore está prestes a morrer.
cadáveres, até aprender a lidar com o ser vivo. Aquele universo está se tornando insustentável e
Através de um processo lento, gradual e sistemá- vai desaparecer. No entanto, continua produzindo
tico, ele gerou a aptidão que um dia lhe permitiu frutos. Tudo aquilo é um universo, podemoscriar
dizer: “Sou médico, tenho um diploma”. Esse um ranking: “Eu tenho sucesso,sei fazerisso, sei
conjunto de experiências anteriores ao surgimento fazer mais rápido do que todos”. No entanto, aquele
representa a nossa origem. Fizemos muitas vezes universo inteiro que está produzindo frutos não
alguma coisa, portanto, dizemos com um grau ra- irá além de um certo limite. Mas, quando estamos
zoável de convicção: “Eu sou aquele que sabe fazer presos aos frutos que estamos colhendo, nem nos
tal coisa”. damosconta disso, tudo parece perfeito.
Porque colhemos com sucessoosfrutos de Podemosolharessa experiência de sucesso
umaárvore, essa árvore é o nosso mundo. Dizemos: aparente como uma ação em um universo no qual
“Eu sei merelacionar com o mundo! Obtenho dele avidya está oculto. Quando reconhecemosas liber-
o que preciso. O mundo é assim, e eu sou assim.” dades, constatamos que podemos escolhera árvore
Nossa experiência de mundo tem por base a expe- a qual estamosnosvinculando, ou umaoutra. Se não
riência de upadana. Existem vários exemplos que temos a experiência de escolher a árvore, seguimos
podem caracterizar esses universos operando. Um colhendo os frutos da mesmaárvore de sempre e
deles é a soberba dacavalaria polonesa na Segunda tudo parece perfeito. O problema é quando nossa
Guerra Mundial. Todos os cavalos gordinhos, tudo vida fica presa ao tipo de árvore que estamosfocan-
funcionando muito bem. aí chegaram os tanques do. Não há como afirmar que aquela experiência
e motocicletas alemãs invadindo e dominando que estamos repetindo vá funcionar sempre. Êo
tudo. Foi uma guerra rápida, os poloneses não caso de nossa sociedade globalizada, fundamentada
tiveram a menor chance. O mesmoaconteceu com em referenciais econômicos. Tudo parece natural,
ostibetanos, eles não tiveram nenhuma chance. Os lógico,sofisticado, ao mesmotempo surge a ameaça
chineses construíram primeiroasestradas, depois da insustentabilidade. Ficamosatônitos, surpresos.
entraram com osexércitos. Pareceinjusto. Parecedifícil ver alternativas viáveis.
Mas no nono elo tudo ainda funciona.
Estamos fixados em umaárvore, produzindo um
“Estamos colhendo
movimento específico, os frutos vão surgindo e
temosa satisfação correspondente.
osfrutos de uma árvore,
Se percebemos a liberdade, tudo está
resolvido, podemos redirecionar nossa ação, esco-
mas a árvore está
lheroutras árvores. Caso contrário, vamosjustificar:
“Mecustou muito montar tudo isso. Planejei com
prestes a morrer.
muito cuidado, isso não caiu do céu. Nunca vou Aquele universo está
abrir mão disso...” Assim seguia a cavalaria polo-
nesa. As locomotivas a vapor também funcionaram se tornando insusten-
bem um dia,e osveleiros e os bondes. Os compu-
tadores de dez anosatrás continuam funcionando, tável e vai desaparecer.
só que ninguém precisa mais deles, aquilo passou.
Tudo passa, não percebemos porque estamosfixa- No entanto, continua
dos. A limitadavisão de realidade produzida pelos
elos anteriores e a decorrente montagem de todo produzindofrutos.
um aparato complexo e de difícil manutenção é a
razão pela qual não abrimos mão da árvore que está
Tudo aquilo é um
produzindo frutos, ainda que esteja morrendo ou
nos matando.
universo, podemos
criar um ranking:
“Eu tenho sucesso,
sei fazer isso, sei fazer
mais rápido do
que todos”. No entanto,
aquele universo inteiro
que está produzindo
frutos não alcança
mais do que um
certo limite”
71
BHAVA 10
O mundoé assim

Na Rona DA VIDA, O DÉCIMO ELO, BHAVA, verdadeiros microcosmos, desapareceram. Os deu-


é representado por um casal fazendo amor. Po- ses pagãos desapareceram,a teoriaclássicada física
deria também ser representado por uma mulher também.Visões cosmológicas desapareceram,tudo
grávida. Nessa etapa, surgimos dentro de um desaparece, uma coisa após a outra. Tínhamosa
universo. Solidificamos nosso universo. Em certo cosmologia grega, a cosmologia geocêntrica, a cos-
sentido, trata-se de um nascimento. Entretanto, mologia de Descartes, e tudo isso desapareceu.
o nascimento não precisa necessariamente ser Avisãobíblica de mundo também não é maisaceita
representado por um casal quevai tornarisso rea- na íntegra como um relato histórico.
lidade. O melhorsentido é de renascimento, que Toda mudança,nesse sentido,diz respei-
ocorre quando uma pessoa se descobre dentro de to à bhava. Quando, por exemplo, os ex-oficiais
um universo próprio. Alguém que fita o céu sem nazistas foram julgados, isso ocorreu fora do
perceber que seus olhos e o universo percebido contexto que havia quando executaram suas ações.
são inseparáveis. Quando cometeram aqueles crimes, seu universo
Há também umasoberba. Dizemos: “Co- era completamente diferente, eles estavam den-
nheço o mundo, sei como as coisas funcionam, tro de uma construção totalmente diferente da
tenho experiência. Vou lhe explicar, o mundo é construção na qual foram julgados. Isso é bhava,
assim. Se quiser ter sucesso, faça como eu.” Temos o Reich desabou, morreu. O mundo de significa-
essa sensação de soberba muitas vezes. Quando dose justificativas desapareceu.
descrevemos o mundo, descrevemos a nós mesmos. No décimoelo a pessoase identifica com
Vamosencontrar muitas pessoas de sucesso, e todas estruturas de resposta e ação, com escolhas, e
descreverão o mundo, cada uma de um jeito, por- estabelece sua rigidez. Nesse sentido, é o ponto
gue são mundos particulares. Explicamos por que onde constrói as causas de suas futuras tragédias.
determinada coisa pareceinteligente. Temos não só Referida a essas estruturas, bhava, a pessoa come-
a compreensão, mas também a emoção correspon- te ações. Quando olhamosnossasações a partir de
dente. Não percebemosaslimitaçõese confusões,e outros referenciais e identidades, outras formas
podemos mesmo nossentir integrados,realizados de bhava, o que fizemos em outro contexto parece
na vida. Surge energia associada a cada umadessas trágico. Se olhamos nossa infância à luz dos dias
visões. Ainda assim,todos esses mundossão artif- de hoje, também temos visões completamen-
ciais, particulares,frustrantes e perecíveis. te diferentes. A própria visão do que tenha sido
Qualquer experiência que possamos ter é nossa vida muda. Essaé a razão pela qual mudao
perecível. Basta ver o passado. Nações poderosas, próprio passado!
Bhava é um conceito muito importante — é
identidade e mundo ao mesmo tempo. Os dois são
inseparáveis. O processo pessoal de delusão se
transforma agora em uma delusão cósmica.
Adelusão se oferece emváriosníveis desde
avidya. Ela se manifesta em camadase vai selando
cada nível. Agora, no nível de bhava, tudo brota
comovisão de mundo e reconhecimento de uma
identidade pessoal. O gostar e não gostar já quase
desaparece porque automatizamoso processo, nós
sabemos “comoas coisas são”, como elas funcio -
nam. Achamostudo muito natural, são as “evidên-
cias da vida”. Estamos usando a causalidade: “Eu
tenhoa experiência; portanto, o mundoé assim”.
Agora, se percebemos o décimo elo como
liberdade, vemos a limitação de nossa visão co-
mo avidya, a ocultação que avidya proporciona,
e a ocultação da ocultação. Aí temos liberdade,
podemos transitar de uma paisagem para outra,
e o sofrimento do décimoelo torna-se opcional.
Podemos seguir com o sofrimento ou não, porque
temosliberdade frente à paisagem. Quando temos “Bhava é um conceito muito
liberdade, extinguimoso décimoelo pelo reconhe- importante -éidentidade e
cimento da atuação deavidya. Saltamos do décimo
para o primeiroelo. Se não percebemosisso, se não mundo ao mesmo tempo.
reconhecemosa liberdade da construção de paisa- Os dois são inseparáveis.
gens e identidades, o processo de prisão segue com O processo pessoal de
a arrogância rígida da forma causal usual: “Eu sei delusão se transforma agora
comoé quea coisa toda funciona,e as coisas sem-
pre funcionaram assim...” em uma delusão cósmica.”

74 |
RSA 14
Circunstâncias da vida

Jerr srenrFICA “CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA”, é a nossa vida, não pensamos como poderia ser
e na Roda da Vida é simbolizado por umacriança de outra forma. Nem temos tempo para avaliar
nascendo, ou seja,o ser vai passar por nascimen- seja lá o que for. Sentimos claramente que temos
to, crescimento, envelhecimento, decrepitude e mais exigências práticas do que somoscapazes de
morte. Mas o ponto importante das circunstâncias atender. Temos urgências, temos prioridades que
da vida é que estamos sempre ocupados tentando tocamos para frente de uma forma incompleta,
equilibrar alguma coisa. Enquanto crescemos, bus- e temos coisas que deixamos para um futuro que
camosestabilizar algumacoisa. O mesmo acontece talvez não surja.
quando amadurecemose envelhecemos. Os aspec- A experiência da vida se traduz como a
tos de crescimento, envelhecimento e decrepitude experiência de um equilibrista. Pensamos que
são somente o aspecto externo do processo. O que a vida é simplesmente a ação do equilibrista. Mas
movimenta tudo isso? Nosso esforço para manter a vida está ligada à motivação do equilibrista em
um universo em equilíbrio. equilibrar. Por exemplo, no cotidiano nos vemos
Esse elo poderia ser simbolizado por um trabalhando. Temos que fazer muitas coisas. Não
equilibrista girando pratos. Ao longo da vida, temos sequer tempo de perguntar quem inventou
a pessoa aumenta o número de pratos até um a necessidade de termos que fazer muitas coisas,
determinado ponto. Depois, no envelhecimento e pois estamos sempre fazendo muitas coisas. Não
decrepitude, o número de pratos começa a dimi- temos noção de como isso começou, mas sentimos
nuir. Chega um momento em que só gira um prato que temos que fazer a nossaparte.
= corpo; a pessoa come e dorme, é tudo. Mais Consideramos todas essas exigências
tarde, eventualmente, ela ainda precisa de um naturais, normais, corretas, legítimas. E nosjusti-
apoio mecânico para ajudar o prato a girar. Mais ficamos: “Eu sei comoa vida é, eu sou um profes-
adiante, nem assim dá. E, finalmente, ela morre. sor; tenho responsabilidades que não são poucas
O envelhecimento é caracterizado pela perda de e das quais não posso fugir”. Nossa ação prática e
habilidade, pela redução das facilidades de se nosso impulso de movimento estão totalmente jus-
movimentar em meio a bhava, tudo em volta começa tificados por umavisão de mundoe por nossa iden-
anão funcionardireito. tidade. Se nossa visão de mundofor, por exemplo,
Nodécimo-primeiroelo, vemosa situação preguiça, também será justificada. Diremos: “Olha,
da seguinte maneira: “Tenho urgências: tenho que não vou nem me mexer, nãovale a pena”.
levar as crianças para o colégio, trabalhar, pagar No décimo-primeiro elo surgea atividade
as contas...” Todas essas exigências são sólidas, que consideramos incessante. Dizemos: “Preciso

AM | 77
fazer isso!” No entanto, nunca surge o complemento: de tentativa de manutenção de equilíbrio. Após o
“Ou não!” Se acrescentamos o “ou não”, surge uma nascimento, vamos adicionando outras coisas,
dimensão de liberdade que, quem sabe, vamos expandindo nossa atividade. Mas tudo que incor-
usar. Em vez de dizer: “Eu tenho tais urgências”, poramos opera por um tempo e depois para, e no
podemos dizer: “Eu tenho a experiência de ter final paramosderespirar.
tais urgências”. E então podemos concluir: “Essa A vida está inevitavelmente ligada a um
experiência de urgência é uma delusão, é um pro- processode equilíbrio. É comoa respiração, inspi-
cesso inseparável da minha estrutura, da paisagem ramos e depois temosqueexpirar. Estamos sempre
mental na qual estou operando. Devo obedecê-la, tentando equilibrar algumacoisa que está se dese-
ou não!” quilibrando, uma posição produz a necessidade da
Muitas vezes não nos damos conta de outra. Não há um momento em que possamosparar
que ninguém é insubstituível. Pensamos que, se efetivamente defazerisso. Assim,é natural que sur-
nós faltarmos, o universo desabará. No entanto, ja sofrimento quando não conseguimosequilibrar.
enquanto ocupamos uma posição, estamos impe-
dindo que outra pessoa a ocupe. É necessário per-
cebermoso outro lado da moeda: pode ser que não
sejamos a melhor pessoa naquela posição. Quem
sabe uma outra pessoa vai desempenhara função
melhor que nós. Estamos ocupando aquele espaço
até por necessidade de uma identidade, precisamos
de umaface.
Às vezes as pessoas têm uma surpresa.
Por exemplo, uma mãe quesai de casa para fazer
um retiro budista surpreende-se quando volta e
encontra tudo em ordem.Ela pensa: “Como? Não
sou indispensável? Como eles ousam imaginar
que podem se equilibrar sem mim?” Ouos filhos
podem dizer: “Sim, sim, mamãe, vá para o retiro. “O processo do décimo-
Deixe que aqui nós tomamos conta!” Vamos nos -primeiro elo começa quando
dando conta de que não somos indispensáveis
como pensávamos. Mesmo assim, voltamos e nos
nascemos. A primeira respiração
sentimos indispensáveis de novo, e continuamos será seguida por outras, pelo
trabalhando, disparando ordens, colocando tudo resto de nossa vida. A última
nos devidoslugares, sem o que tudo desapareceria,
éclaro!
coisa que faremos também será
O processo do décimo-primeiro elo co- respirar. Estaremos presos a um
meça quando nascemos. A primeira respiração processo incessante, cíclico, de
será seguida por outras, pelo resto de nossa vida.
tentativa de manutenção
A última coisa que faremos também será respirar.
Estaremospresos a um processo incessante, cíclico, de equilíbrio.”
ENT
Envelhecimento e morte

QUANDO COMEÇAMOSA TER DIFICULDADES com relutam e sofrem muito; vemos outras que não
o equilíbrio da existência, entramos no décimo- lutam nos momentosfinais e, com isso, têm uma
segundoelo, ou seja, começa o sofrimento ligado morte mais tranquila. Lutar é o décimo-primeiro
a isso. Por exemplo, se estamos com insuficiência elo. E, quando estamos no décimo-primeiro, é
respiratória, ainda não morremos, mas respiramos certo que virá o décimo-segundo. Porisso é certo
mal. Quando o desequilíbrio passa de um ponto, o que cada um de nós irá morrer; estamos todos com
sistema que produz o equilíbrio se desfaz, se frag- o décimo-segundoelo garantido.
menta. Assim é a morte. Guru Rinpoche, o mestre que levou o
Podemos compreender que também budismo para o Tibete, ensinou que o décimo-
passamos por uma experiência de morte quando -segundo elo é um bardo. Essa palavra é muito
perdemos o emprego, por exemplo. O trabalhando importante, pois significa “experiência construí-
sustenta nossa identidade profissional, que morre da”, “não verdadeira”. Não é umarealidadesólida,
com a perda do emprego. mas uma “experiência de”. Bardo equivale a dizer
Isso também se verifica nos relaciona- “issoé vazio”, “isso também é impermanente”. Por
mentos. Em todas as relações — casamento, famí- que a morte é um bardo? Porque é uma “experi-
lia, amizades, escola, trabalho etc. — percebemos ência de morte”. Está na dependência da tentativa
movimentos. Tem dias em que tudo está bem; de sustentação. Quando estamos condicionados a
noutros, nada está bem. Quando as coisas vão mal, sustentar, inevitavelmente vamos encontrara dis-
tentamos o reequilíbrio, buscando uma harmonia solução, a morte.
com os demais envolvidos no relacionamento. Vamos supor que estejamos perto da
Agora, quando as pessoas não olham umas para as demissão ou de uma derrota. Isso também é um
outras e não sustentam um equilíbrio, afastam-se bardo, pois seguimosvivos, há uma natureza ili-
rapidamente. As relações necessitam de cuida- mitada que segue intacta. A experiência de morte
dos; elas têm dias melhores, dias piores, dias em é isso: criamosalgo e, ao passar pela experiência
queestão em coma, mas depois, milagrosamente, da dissolução da artificialidade que construímose
recuperam-se. Às vezes morrem e ressuscitam. sustentamos, temosa sensação de morte.
Nossasrelações operam desse modo. A experiência de abandono pelo namorado,
Se tentamos sustentar o insustentável, por exemplo, é uma experiência de morte. Mas,
entramos em agonia. Temos uma sensação de grande depois de um período muito longo de sofrimento,
desgaste. Vemos pessoas que, na hora da morte, o impossível acontece, e a pessoa encontra um
outro ser maravilhoso. E então entende por que o emoções, pois na verdade somos nós que estamos
anterior tinha mesmo que ter ido embora.Isso é sendo derrotados. Temos uma noção de dissolu-
uma experiência cíclica, um bardo. Nossa respi- ção, de fim. Nos jogos olímpicos também vemos
ração é uma experiência cíclica, bem como todas isso. Quando um atleta é derrotado, a olimpíada
as demais coisas que movemos: os pensamentos, para ele acaba.E a pessoa tem um pouco a sensação
nossas energias (fome, frio etc.), nossas conexões, de morte.
nossas identidades. Ainda assim, o budismo ensina que o
“Nãochore porque a novela vai terminar; a décimo-segundo elo não é verdadeiro. Ou seja,
central de produçãoestá intacta!” A central de pro- a morte não é verdadeira. Esse é um bom início,
dução é o aspecto mais profundo de nós mesmos. não é? Na verdade, a morte é uma experiência. Por
Quando olhamos profundamente, podemos per- isso, vamos começar por esse ponto, reconhecendo
guntar: “Mase a morte?” A resposta é: “A central de que temos experiências como expressões de nossa
produção está intacta, não se preocupe!” Ou seja, natural e incessante e luminosa liberdade.
existe um processo luminoso, que vamos chamar
de presença, que se mantém incessante.
No momento da morte, temos duas aspi-
rações cármicas: nunca reencontrar as condições
negativas que tivemosde passar emvida, e nos fixar-
mos de maneira lúcida, nítida e decidida nos aspec-
tos positivos. Com essas duas aspirações, entramos
no sonho do bardo. Estávamos no sonhodo bardo da
vida, e agora estamosno sonho do bardo da morte.
Nossa mente vagueia, de volta a uma circunstância
onde a materialidade nãoestabiliza os estados men-
tais. É como o sonho à noite, nossa mente vagueia
semestabilidade. Mas temos duas aspirações, uma
derejeição e outra de aproximação. Com base nisso,
definimoso próximo renascimento.
Após a morte, saltamos diretamente para
nama-rupa, porque essas duas aspirações repre-
sentam a estrutura de avidya, samskara e vijnana,
que se preservam. Desejamosestabilizaras estru-
turas que nos garantam a felicidadee o afastamento “A experiência de morte é
do sofrimento. Assim, saltamos para um dos seis
reinos que seja visto como a melhorsolução.E rei-
isso: criamos algo e, ao passar
niciamos a Roda da Vida, tudose repete. pela experiência da dissolução da
Mesmo em um jogo de xadrez podemos artificialidade que construímos e
chegar ao décimo-segundoelo, que é quando não
há mais solução para o nosso rei: xeque-mate!
sustentamos, temos a sensação
Temosa clareza de queo rei está derrotado, e temos de morte”

82|
DISSOLUÇÃO DA
EXPERIÊNCIA DA
RODA DA VIDA

A QUARTA NOBRE VERDADE


Ho DE Orro Passos, ou seja, traça umarota abso-
A quarta NoBRE VERDADE ESTABELECE O Nogre Camin
para além das,flutuações da Rodada Vida.
lutamente eficaz e concretapara encontrarmos uma,felicidadeestável,
O início desse caminho marca a revisão de nossas
O Nobre Caminho Óctuplo está conectado à cultura de paz.
relações com o mundo.

Primeiro passo
ufgo—

Quando percebemos que estamos dentro de uma experiência


cíclica, ou seja, que as vitórias de hoje estarão perdidas amanh
ã, que MOTIVAÇÃO
os apesar
caminhamos e não saímos do lugar, que andamos em círcul
fazer? Quem sou?
de nossos esforços, nos perguntamos: “O que devo
estamos
Para onde vou?” Quando nos damos conta disso, vemos que
Preci samos de
perdendo tempo e que precisamos de outra motivação.
e perda
uma motivação correta, que não produza aflições, sofrimento
à experi ência
de tempo. Devemosevitar as causas que nos prendem
ante
cíclica e ao sofrimento. Entre essas,a crença de que o mais import
é promover nossa identidade.
s?
Qual é a causa de nosso desperdício de tempo é frustraçõe
credi tando que
O fato de nos prendermos a identidades específicas,a
rapassar essa
isso é tudo que temos a fazer durantea vida. Devemosult
idades
ilusão e chegar àquilo que verdadeiramente somos. Nossas ident
não são o que verdadeiramente somos.
Aoolhar em volta, percebemosvasto número de seres tam-
Com a
bém sem compreender suas vidas e frustrações, sem rumo.
que nos-
aspiração de não perder tempo na Rodada Vida, entendendo
passar
sos filhos, nossos pais, nossos amigos também precisam ultra
a avanç ar
essas dificuldades, decidimos nos dedicar completamente
impos-
no caminhoda lucidez e a encontrara superação doslimites
sabemos
tos pela Roda da Vida. Nesse primeiro momento, ainda não
É essa
quem ou o que realmente somos. Mas queremos descobrir.
nossa motivação.
87
Segundo passo

NÃO PRATICAR
=
As três ações não virtuosas de mentesão: cobiça; pensamen-
tos mal-intencionados, querer causar mal, desejar o mal ou alegrar-
se com o mal;e visão errônea, achar que o bom é mau e vice-versa.
Trazemos sofrimento aos outros seres por descuido, porque
AÇÕES DANOSAS
estamos autocentrados em nossa identidade ou por acreditarmos que, COM A MENTE
fazendoalgumacoisa agressiva contra outro, tenhamos algum tipo de
vantagem. Acontece que essa suposta vantagem beneficiaria apenas
nossaidentidade, que artificial, construída e impermanente. Então
estamos perdendo tempo se pretendemosbuscartrazer sofrimento
aos outros seres para ganhar alguma vantagem.
Nãosó estamos perdendo tempo comoestamoscriando con-
dições negativas para nós, porque as pessoas prejudicadas vão nos
perseguir. Então, estamos fazendo tudo errado. Aquilo que podería-
mos ganhar comumaaçãonegativa será perdido mais adiante por cau-
sa da impermanência. Mas o fato de termos praticado ações negativas
perdura por tempo suficiente para que experienciemosa perseguição.
Praticar ações negativas é como segurar gelo roubado com
a mão. O gelo derrete e desaparece. Maso fato de termos roubado o
gelo não desaparece. Pessoas vão nos perseguir por causa do roubo.
Podemos argumentar: "Mas o quefoi que eu roubei? Mostre.” Pode-
mosnãoter mais o gelo, mas a pessoa sabe que roubamos.A ação é real.
Praticar ações negativas produz uma matemática terrível.
Acumulamoscarmase não obtemos nenhum resultado positivo.

LUÇÃODA EXPE RODADA VIDA


Terceiro passo
go
As quatro ações não virtuosas de fala são: mentir, caluniar,
agredir verbalmentee tagarelar. NÃO PRATICAR
Não devemos falar coisas negativas, isso só alimenta nega-
tividades; nada de bom acontece. Pior ainda é agredir verbalmente. AÇÕES DANOSAS
Depois de praticada, uma agressão não pode ser desfeita. Não tem
volta. Podemoster a sensação de que aparentemente ganhamosalgo
COM A FALA
agredindo com palavras, mas acabaremosvendoqueaquiloé péssimo.
Para recompor umarelação depois de agredirmos alguém, depende-
mos do perdão da outra pessoa. É muito difícil.
Aotagarelar, levamosas outras pessoas para paisagens men-
tais não virtuosas, para mundos mentais e emocionais negativos. Isso
também solidifica essas estruturas em nós, o que nosleva a legitimar
futuramente ações nãovirtuosasde outrostipos.
Por vezes caluniar e mentir parecem formas de autodefesa,
mas, se observarmos bem, tão pronto fazemos isso, surge grande
intranquilidade em nós, pois criamos imediatamente situações peri-
gosas que temos que equilibrar constantemente.

| 89
Quarto passo
ao
Astrês açõesnão virtuosas de corpo são matar, roubar e manter N Ã0 p R AT | cA R
conduta sexual imprópria.
O Buda não quis complicar a vida das pessoas dizendo: "Não
façamisso, não façam aquilo”. Ele apenas deu sugestões para sermos AÇ õ E s DA N 0 SAS
felizes e noslivrarmos do sofrimento. Devemos cuidar das nossas COM OC ORPO
ações, pois aquilo que achamosquevai trazerfelicidade pode produ-
zir devastação. Umavezpraticada, a ação não está mais sob poder do
agente. Fazer ou nãofazer dependedo agente, mas as consequências
saem de seu controle.
As negatividades impedem nosso avanço espiritual, pois
geram intranguilidade. No caso do budismo, mesmoque o praticante
recebainstruções detalhadas sobre como meditar, não estará em con-
dições de fazê-lo. É por essarazão que o Buda ensinou esses passos
iniciais antes de entrar na meditação. Ele primeiro orienta para que
tenhamos umavida virtuosa, pois de nadaadianta jogarmos baldes de
água num incêndio,se, por outro lado, continuamos jogando baldes
de gasolina!
No caso do nosso incêndio, primeiro vamosretirar tudo que
seja material inflamável. Depois, com a meditação, vamos extinguir
os focos de fogo do sofrimento. É inútil tentar apagar os focos de
incêndio se continuamos com atitudes que alimentam as chamas em
grandes proporções.
Existem praticantes que meditam décadas, mas não mudam
nada. Não mudam porque não têm moralidade, não cuidam do seu
comportamento. Com suas ações, continuam produzindoas causas do
sofrimento, e pensam que com a meditação vão conseguir eliminar
o sofrimento. Isso não é possível! Precisamos removeras causas de
sofrimento. Só depois pode ocorrer a meditação.
As pessoas não são nem demônios, nem santos. São apenas
pessoas. E não são apenas seres humanos; são seres complexos, com

90 | DISSOLUÇÃO DA EXPERIÊNCIA DARODADA VIDA


estruturas cármicas. À questão é saber como administrar isso.
O que precisamos é de umacultura de paz, na qual naturalmente
fazemos mais coisas positivas do que negativas.

s1
Quinto passo
se
No quinto passo do Nobre Caminho Óctuplo, o Buda diz:
“Traga benefício aos seres”. É um momento crucial, pois pela primeira AÇÃO
-

vez somosconvidados, de modo prático,a ultrapassar nossas fixações T RA N s Cc E N D ENTE


ereconhecera situação dos outros seres no contexto deles mesmos.
Esse é o início do aspecto transcendente do budismo. Acom- E COMPASSIVA
paixão é a manifestação prática da transcendência, pois, para trazer
benefício aos outros, a pessoa é convidadaa transcendera fixação em
sua identidade e mundo, ir além do autocentramento.
Compaixão não é um comportamento piedoso, é umainteli-
gência lúcida. Através da inteligência compassiva que manifestamos
para com os outros, exercemosliberdade natural em relação à nossa
identidade. A prática da compaixão resulta do entendimento de que
nossaidentidade é virtual e de que não precisamosviver presosa ela,
de que podemosconstruir uma forma de açãolivre dela.
Ao exercermosa liberdade básica de ultrapassar fixações de
identidade e mundo, surgimos como bodisatvas. O bodisatva é aquele
que produz benefícios, que ajuda. Comobodisatvas, podemos cuidar
de nós mesmose dessa nossa nova identidade, porqueé através dela
que vamostrazer benefício aos seres. Passamos também a cuidar da
relação com os outros seres humanos, com a biosferae a natureza.
Quando fazemos isso, descobrimos que nossa vida se re-
solve. Ultrapassamos a causalidade, o velho padrão de fazer uma
coisa com o objetivo de obter outra em troca. Descobrimos um ou-
tro funcionamento, completamente diferente daquele a que estáva-
mos acostumados.
Vejamos como isso funciona. Primeiro, temos a motivação
de trazer benefício aos seres. Por trazermos benefício aos seres,
o mundointeiro nos favorece e ajuda. Passamosa trabalhar em har-
monia com o mundo. Nossa inteligência deixa de ser local e predadora;
conectamo-nos a uma dimensão maior que abrange todos os seres.

s2|0 LUÇÃO DA EXP


Surge umaproteção global, não precisamosentender de onde vem,ela
simplesmente existe.
Esse é o segredo de todosos bodisatvas, não importa de qual
tradição religiosa. Os verdadeiros bodisatvas andam de formal
ivre,
sustentados porsua natural compaixão. Na medida em que nos conec-
tamosa esse âmbito de compaixão,ele também se conectaa nóse
pro-
duz resultados. O quinto passo do Nobre Caminho também é chama
do
de modode vida correto, o que significa que não devemos pratica
r
ações negativas e que devemosprocurarviver de formacorreta.
Dentro dessa visão budista, compaixão é o ponto. Se cruzar-
mos a fronteira, se passarmos a atuar de modo compassivo,
nossa
escolha produzirá umadiferença.
Emnível mais profundo e detalhado, descrevemos o quinto
passo comoa prática das quatro qualidades incomensuráveise
das seis
perfeições. Começamos com a prática de compaixão, uma das
quali-
dades incomensuráveis. A essência éa capacidade de compreender
os
outros seres em seu próprio contexto de vida e de mundo. Noscol
oca-
mosno mundo mental e emocional de quem queremos beneficiar
e de
lá vemos como nós ultrapassaríamosas dificuldades experimentad
as
poreles. Surge em nós um impulso natural e intenso de produz
ir a
saída da situação em queo outrovive. Surge uma energia poderosa
de ação compassiva. Sentimos também a clara necessidade
de termos
habilidades paraultrapassaras dificuldades que se apresentam.
A energia compassiva manifesta-se quer as pessoas sejam
boas ou estejam repletas de negatividades, pois queremos
que
todos, sem exceção, ultrapassem suas aflições e visões negativ
as.
Surge a equanimidade — outra das quatro qualidades income
nsu-
ráveis —, a disposição estável de ânimo que se mantém
positiva e
elevada seja diante de pessoas positivas ou diante de pessoas
com
muitas negatividades.

| 93
Praticamos também o amor, no sentido de ver as qualida-
des positivas do outro. Todas as pessoas, mesmo aquelas imersas
em negatividades, em algum ponto têm qualidades positivas. Ver
essas qualidades como um jardineiro que vê flores, frutos, troncos
frondosose galhosfortes aofitar a pequena semente de uma futura
árvore é um exemplo dessa qualidade de amor. É também como o
professor que vê qualidades em seus pequenos alunos dosprimeiros
anos escolares. Quem pratica esse amorvê surgir em si uma energia
maravilhosa de beneficiar, cuidar, proteger e promover a vida e o
crescimento dosseres. Não importa a aparência da semente, temos a
energia sustentada.
Praticando compaixão, equanimidade e amor, surgealegria,
surgem propósitoe sentido na vida. Sem compaixão, equanimidade
e amor, mesmo que tenhamosêxitos, não há alegria, nem sentido na
vida. Os tempos de degenerescência são justamente definidos pelo
esquecimento de que a fonte de alegria e felicidade é a compaixão,
o amore a equanimidade.
Assim sãoas quatro qualidades incomensuráveis — compaixão,
amor,alegria e equanimidade.Elas dão sentido à nossavida.
Praticando essas qualidades, a generosidade torna-se natu-
ral, e também a moralidade. Havendo compaixão, amor, alegria,
equanimidade, generosidade e moralidade, surge a paz. Surgindo a
paz, há energia constante, concentração e sabedoria.
Temosentão o surgimentoclaro do bodisatva,o feliz benfei-
tor dos seres que o vejam, toquem, ouçam ou pensem nele. Sua prá-
tica é autossustentada, natural e simples: compaixão, amor, alegria,
equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante,
concentraçãoe sabedoria. Ou seja, as quatro qualidades incomensu-
ráveis e as seis perfeições.

94 | DISSOLUÇÃO DA EXPERIÊNCIA DA RODA DA VIDA


Sexto, sétimoe
oitavo passos
vg>—
A meditação aparece no sexto, sétimo e oitavo passos do
Nobre Caminho. Esses três últimos passos ensinam: acalme a sua AS ETAPAS DA
mente c desenvolvaa inteligência de reconhecer o mundo interno.
Com isso seremos capazes deliberar os processos automáticos que MEDITAÇÃO
atribuem sentidos e produzem energias dentro de nós.
A primeira etapa de meditação é o silêncio (sexto passo).
A segunda é a lucidez, onde aprendemos a reconhecer a vacuidade
e luminosidade presente em todas as experiências (sétimo passo).
O terceiro aspecto é quandolocalizamosaquilo que verdadeiramente
está presente e não envelhece (oitavo passo). Presenciamos aquilo
queestá vivo, além de espaço e tempo, nomee forma,vida e morte. No
oitavo passo, aprendemosa contemplar isso em todas as experiências.

| 95
Tudo que foi descrito até agora opera em três níveis: visão,
VIsÃo,
e e

meditação e ação. A apresentação dos ensinamentos, sua explicação,


corresponde ao primeiro nível — visão —, quese refere a entendimen-
to, compreensão. É a base de tudo. É o conhecimento por meio do
MEDITAÇÃO
raciocínio, do intelecto, e vai ao nível de transformar diretamente a
experiência do que vemos.
E AÇÃO
Para estabilizar a visão, utilizamos o segundonível — medita-
ção. Por meio da meditação, aquilo que foi compreendido pela visão
será integrado à nossa identidade, deixará de ser apenas um conhe-
cimento teórico e intelectual para se tornar parte natural de nós.
O resumo sobre a prática meditativa apresentado no tópico anterior
foi feito na perspectiva discursiva — explicações — da visão; a prática da
meditação em si corresponde ao segundonível,estabilização da visão.
Depois de integrarmos o conhecimento a nós mesmos, pas-
samosa agir de acordo,e esse é o terceiro nível — ação. Nossa atuação
no mundo passa a manifestar o que compreendemos por meio da
visão e integramos com a meditação.
É possível olhar os três níveis apenas como visão.
Desenvolvemosa visão, estabilizamosa visão e praticamos visão.
É tudo visão, lucidez. Essa lucidez deve nos acompanhar nasseis
formasde estados intermediários, os seis bardos: na vida, na medi-
tação, no sonhoà noite, na proximidade da morte, no pós-morte e no
ressurgir em um corpo. Em um sentido último da prática, a essência
da moralidade é sustentarmosa visão. A quebra da moralidade é per-
demosa visão lúcida.

OLUÇÃO DA EXPERIÊNC! DA RODA DA VIDA


go ai
Nailustração da Rodada Vida, vemos queela é sustentada por
O S E N H o R DA
um serde aparência temível.Trata-se de Maharaja, o grande senho
r que
Tege a experiência cíclica da roda. Quando estamospresos à experi
ência R ODA DA V IDA
cíclica, geralmente não assumimos qualquer responsabilidade
perante
O sofrimento inevitável. Buscamos culpados, identificamos sempr
e um
agente externo responsável pela situação. Simbolicamente esse
agente
é Maharaja, o Grande Senhor. Nosentido convencional, nós
o vemos
comoa personificação das desgraças,o agente datragédia, o grande
ini-
migo, que destrói todasas nossas construções mais queridas.
No outro
extremo, podemos olhá-lo como o Buda incansável, quenão
esmorece
atéapontar e romper todas as nossasáreas de fixação, porque a experi
ên-
cia de sofrimento está diretamente ligada à fixação. Não há sofrim
ento
sem quea identidadeesteja atuando.
Em nossa cultura temosa exigência de não sermos derrotados,
nem sofrermos. E sofremospelo fato de sofrer. Quando sofremos,
temos
deexplicar não só as circunstâncias em queestamosenvolvidos,
mas de
gue modo falhamosparaestar sofrendo. Existe um sofrimento duplo.
Por exemplo,se somos demitidos, sofremos por não ter como
pagar as contas no final do mês e sofremos Porque as outras
pessoas vão
achar que fomos derrotados porque fomos demitidos. Mas
poderíamos
pensar: “Tenho ou não tenho qualidades que podem trazer benefí
cio aos
outros seres?”Isso nos alegraria imediatamente. A resposta
é sempre
positiva. Todos nós podemos ser úteis, podemos trazer
benefícios,
podemosalegrar alguém. Temos a energia vital, temos o brilho
, temos
alucidez.
Sealguém não nos ama mais ou se o chefe não nos quer mais,
talvez isso seja uma perda para a outra pessoa. O que vamos
fazer então?
Vamos olhar para osserese ver como podemosser úteis.
Sempre pode-
mosserúteis de alguma forma. Com esse pensamento, nosrei
ntrodu-
zimos no mundo.
Existem vários exemplos disso. Conheço uma pessoa que
teve câncer,que sofreu cirurgias de extirpaçãoe tem sequelas graves.
Aindaassim,ela diz que isso foi a melhorcoisa quelhe aconteceu, pois
a doençaa fez acordar. Maharaja bateu forte; se não tivesse batido,
a pessoa nuncateria se dado conta da fixação queiria acabar com
sua vida.
Temos condições de lidar com Maharaja. Depois quea tra-
gédia passa, tudo começa a tomar um outro rumo se usamos nossa
lucidez. É extraordinário! E é emocionante porque nos mobiliza, nos
entristece e nosalegra ao mesmo tempo. E é irrevogável, pois a vida
segue. As pedras das construções demolidas serão utilizadas como
elemento principal das novas construções. Precisamos ter coragem
paracruzar porisso.A vidaé assim, tudo morre, mas nós não morre-
mos — nós nos erguemosdos escombros.
Os 12 Elos da Originação Interdependente identificam uma
forma de pensamento que nos mantém dentro de um processo ilusório
onde nenhuma construção produz felicidade estável, nem qualquer
coisa permanente, mas apenas frustrações cíclicase inevitáveis. Toda
essa construção se dá a partir da responsividade de nossa mente, de
nossa imaginação e emoções, que dásolidez para nossas experiências,
a ponto de acharmos quetudo é completamentesólido.
Para combater essa noção desolidez, precisamos de antídotos
—um deles é o pensamento sobrea impermanência. Podemosver que
não há nada sólido nos12 elos, porque a impermanência pega tudo.
Essaé a bênção de Maharaja. Ainda que Maharajadefato não exista,
sua ação, a impermanência,existe.
Localizamos o problema básico em avidya, ondeo observador
surge separado do objeto. Os budistas tibetanos chamam avidya de
marigpa, que é a negação de rigpa. Paraeles, apenas ouvir a palavra
rigpajá é algo extraordinário, pois ela representa a possibilidade de
lucidez, de liberação, de iluminação. Ao longo de inúmeras vidas,

98 | DISSOLUÇÃO DA EXPERIÊNCIA DA RODA DA VIDA


nem nos damos conta de que estamos presos no samsara; porém,
quandoa palavra rigpa surge em nosso caminho, é certo que em uma
vidafutura atingiremosa liberação. Funcionaassim: ouvimos o termo
rigpa e, mesmo sem ter entendido, ele passaa fazer parte do nosso
conjunto de marcas (samskara). Vamoscarregarrigpa em nossa baga-
gem pelo tempo quefor,até que um dia tropeçaremosnela de novo.
Tropeçaremos em rigpa por várias vidas, até o dia em que existam
condições favoráveis para compreendermos. Então vamosiniciar a
prática rumo à liberação.
CAPÍTULO IV

A PERFEIÇÃO
DA SABEDORIA
|

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DxpoIS DE CONTEMPLARMOS OS ENSINAMENTOSsobreas 4 Nobres
Verdades e começarmos a operar com as qualidades capazes de paci-
ficar nossas relações no mundo, a meditação poderá progredir até o
ponto da chamada sabedoria transcendente, quando nos tornamos
capazes de atribuir um duplo grau à realidade,atravessando do plano
relativo para o absoluto, como quem olha para o desenho de um cuboe
desloca a visão de umafigura para outra. Como esse desdobramento se
tornapossível? Comoflexibilizar nossa ação, contemplara insepara-
tividade e transformare estabilizar nossas relações em uma paisagem
de amplitudee lucidez?
Háum ensinamento budista chamado O Coração da Sabedoria
(Sutra do Prajnaparamita — A Perfeição da Sabedoria), um veículo
hábil para nos conduzir nessa travessia. Há também outros ensina-
mentos, como o Sutra do Diamante, que combinam perfeição das
virtudes com a perfeição da sabedoria e indicam essa rota como o
caminho mais curto para a liberação.
Vamosagora tomar o barco do Prajnaparamita. O Sutra do
Coração pode ser compreendido como um princípio ativo pelo qual
vamos da margem da confusão para a margem da visão de sabedoria,
aquilo que nós budistas chamamos de "visão da vacuidade”. Ainda
queessa visão esteja sempre disponível, não vemos assim. Dentro
do Prajnaparamita teremos essa introdução, começaremosa rever
nossos conteúdos internos e percepções externas de modo mais
profundo, e seguiremosaté esgotar essa abordagem. O momento da
transição é chamado de “travessia para a outra margem”.
No momento, temos a visão do samsara, mas passaremos
para umaoutra visão, vamosdeslocaro olhar,alterar o foco. Ao alcan-
çarmosa visão de sabedoria, sujeito e objeto se fundem e revelam a
ausência de existência inerente nos fenômenos.
Kuntuzangpo ou Samantabhadra é o Buda Primordial, repre-
SILÊNCIO E
E a

sentando a lucidez, a sabedoria incessantemente disponível e pre-


sente, Pelo estudo dos 12 Elos da Originação Interdependente, vemos
que a liberdade natural da mente é capaz de produzir a experiência LUCIDEZ
de divisão da mente em objeto a ser contemplado e observador que
contempla. Desse modo desce umacortina deilusão. Surge a mente
dual, que passa a operar presa aos objetos surgidos com ela. O movi-
mento da mente estimulado pelos objetos produz a experiência do
sonhovivo da Roda da Vida; a lucidez é ocultada pela ignorância, ou
avidya, o primeiro dos 12 elos. Kuntuzangpo é anterior a qualquer
conteúdo de mundo ou de ignorância. Precedendo todas as formas,
apenas serve como uma base incessante ou umafonte inesgotável de
todasas aparências. O solo onde tudo podeser plantado ou o elemento
básico sutil, aberto, não flutuante, não obstruído e luminosodo qual a
realidade que percebemosbrota incessantemente.
No início do Sutra do Prajnaparamita, o Buda medita em
silêncio, essa é a sua forma deação naquele momento. Então,do espaço
que tudo permeia,anteriora qualquer linguagem, surge a lucidez que
se manifesta no interior do silêncio da meditação do Buda.
Quando iniciamos o caminho da meditação através da prá-
tica de shamatha (meditação silenciosa) estamos nos engajando no
processo deretirar de forma gradativa o que é artificial em nossa
experiência de mente. Ao final desse caminho, que pode ser longo,
não mais existem observadore objeto, mas há umanatureza viva e
pulsante. Não encontramos um ser ou uma identidade, mas uma
lucidez, uma presença luminosa e livre. Quando tiramos o que não
é natural, as artificialidades, ficamos com a experiência da base não
construída. Essa experiência é simbolizada por Kuntuzangpo. É a base

A PERFEIÇÃO DA SABEDORIA | 103


incessante, não construída,livre e luminosa, o princípio ativo onde
toda a experiência de mundo convencional é produzida, começando
com o primeiro elo da originação interdependente, a separatividade
entre objeto e observador. Podemos perder consciência da presença
dessa base, mas não perdemosa própria base. Ela se manifesta tanto
comoa lucidez da cognição dos Budas quanto comoa ludicidade que
manifesta o mundo através da dualidade e resulta na Roda da Vida.
É incessantemente presente além dos próprios conceitos de tempo e
espaço,vida e morte.
Há um princípio ativo nointeriordosilêncio. Nessa classe de
ensinamentos, tal princípio pode ser chamado de luz infinita. Uma
luz indissociável da vacuidade. Podemos olhar a vacuidade como se
fosse um buraco, um nada, comoosni stas fazem. Mas não fazemos
isso; no Prajnaparamita, a vacuidade é apresentada inseparável da luz
infinita, que atribui significado a tudo, dá origem a todas as formas.
Forma é vazio, e vazio é forma,diz o sutra. Portanto, a vacuidade é uma
abertura onde a luminosidade se manifesta incessantementeativa.
Essa percepção nosleva a descobrir que não existe nenhuma
prisão nos significados e formas produzidos pela luminosidade pri-
mordial. Somos essencialmentelivres. A experiência de liberdade e
lucidez frente ao que é construído é possível.
Se eu criar umasérie de números como 3, 6, 9 12, 15, 18...
Quais seriam os númerosseguintes? Temosa tendência a pensar em
um fator comum, que no caso seria o número 3, e perpetuara série
com os números 21, 24, 27 etc. Mais difícil é entender que o fator
comum não representa uma lei. A liberdade existe! Posso colocar
qualquer número, cada número em verdadeé umaexpressão de liber-
dadee se explica por si mesmo. Temosa liberdadede seguira série e
a previsibilidade, mas temos a liberdade de colocar qualquer número
ou mesmo de nãocolocar mais números. De modo geral nos apegamos
à previsibilidade, criamos umajustificativa, “somos” assim, essaé
nossa “identidade” e nos valemos da disciplina para defender essa
continuidade. Se perdemosessa identidade, nos sentimos sem refe-
renciais, soltos. A liberdade em meio às formasé difícil de ver,difícil
deviver.
A liberdade presente dentro do silêncio e da ausência de
formas também é sutil demais para a maioria das pessoas. Os Budas
manifestam a liberdade da cognição tanto em meio aosilêncio como
em meio às formas. Paraeles não há diferença. Então, dessesilêncio
potencializadore construtor emana Avalokiteshvara ou Chenrezig,
expressão da compaixão, um Buda dotado de energia, lucidez.
Cherenzig por sua vez emana manifestações de sua inteligência
como seres presentes em corpofísico. Com um corpo semelhante ao
dos seres a serem beneficiados, Chenrezig podeservisto e reconhe-
cido pelas pessoas na forma dos mestres e também na forma deseres
aparentemente comuns e se comunicar com elas. Ele surge com um
método específico: ouvir os sons do mundo. Chenrezig entende o
mundodosseres e, sem impor condições, ajuda-os para que, par-
tindo de ondeestão, ultrapassem os limites dos sonhos onde vivem
e recuperem a capacidade natural da lucidez.
NoSutra do Coração, a comunicação entre o Buda e Chenrezig
é muito sutil. Chenrezig sente o silêncio do Buda e, através disso,
acessa a mandala e a inteligência de Kuntuzangpo. Então, porseu voto
de compaixão por todosos seres, e porver claramentea inseparativi-
dade entre os mundosinternose externos da experiência dos seres da
Roda da Vida, tem a capacidadede ajudá-los a ultrapassarseus sonhos
eilusões.

A RFEIÇÃO DA SA
fo
Presente no mundo condicionado dos seres humanos, C H EN R EZI G
Chenrezig conversa com Shariputra. O Prajnaparamita começa nesse
encontro. O Buda Shakyamuni está sentado, praticando a grande E O s C IN Cc 0
iluminação. Chenrezig, ou Avalokiteshvara, está ouvindo o que as
pessoas falam. Em certo momento, se dá conta: "É isso! Não importa Ss KA NDH AS
o que falem,as pessoas referem-se sempre aos cinco skandhas. Elas
dãorealidade e solidez aos cinco skandhas, e com isso dão solidez a
suas experiências e sonhos comose fossem reais!”
Chenrezig vê que tomamos como sólidas as experiências de
formas, sensações, percepções, estruturas internase identidades — os
cinco skandhas. Tudo gira em torno de ações de corpo, fala e mente
baseadas nessescinco elementos de consciência.
Olhando para todas as construções a partir da perspectiva de
lucidez, de rigpa, Chenrezig diz: “Forma não é sólida, formaé vacui-
dade. Todas as formas são expressões da vacuidade original, surgem
dela e retornam ela, brotam da luminosidade presente navacuidade.
Do mesmo modo, todas as sensações são manifestações da luminosi-
dade e vacuidade. E também asestruturas internas e as percepções são
manifestações disso. E todas as consciências e identidades também
são manifestações dessa fonte inesgotável. Sendo manifestações da
vacuidade, não são grades de prisão, não são paredes, não têm rigidez,
não exercem limites. São expressões daliberdade original, mas não a
limitam. São ornamentosda natureza última. Sendo todaselas produ-
tos da luminosidade, em verdade não há prisão.” A prisão vem de ver-
mosessas manifestações da vacuidade comosólidas, e respondermos
a essa aparência. A prisão vem de não enxergarmos o movimento livre
das formas no espaço, a sua naturezasutil. Vem de aspirarmosa rigi-
dez das formas, sensações etc. Vem de nos construirmos e lutarmos
para sustentar nossas identidades,e as visões derealidadessólidas e
externas inseparáveis delas.

108
As quatro montanhas
Então Chenrezig diz: os cinco skandhas são vacuidade; por-
=
tanto, o sofrimento pode cessar. O sofrimento surge quando ope- NAs CIME N To,
ramos com a rigidez adquirida pelo hábito. Quando dizemos que os Vi DA
cinco skandhassão sólidos, subentendemos que estamos submetidos 2
ao ciclo de nascimento, vida, decrepitude e morte. Ou seja, nalin- D ECREPITUDE
guagem tradicional budista, todos os seres vivem entre essas quatro
montanhas. Ninguém escapa, exceto pela vacuidade. E M O RT E
As montanhas do nascimento, vida, decrepitude e morte são
construídas por forma, sensação, percepção, formação mental e cons-
ciência, diz Chenrezig. Não há nada no nascimento, vida, decrepitude
e morte que não seja constituído pelos cinco skandhas. Se os cinco
skandhas são vacuidade, podemosatravessar livremente as quatro
montanhas, pois elas são manifestações dos cinco skandhas, elas
não têm solidez. A natureza ilimitada nãoestá presa nem pelos cinco
skandhas, nem pelas quatro montanhas. Por isso, o sofrimento pode
ser eliminado.

EDORIA 109
"Ê>
O Sutra do Coração é o diálogo entre um monge chamado I N To I o D o
Shariputra e Chenrezig, que por compaixão pelos seres assumiu uma
forma humana. Movidopela presença do Buda Shakyamuni em medi- D I Á L o G OD o
tação, Shariputra pergunta a Chenrezig: “Como homens e mulheres
bons e piedosos, que tenham desenvolvido qualidades elevadas, Ss UTRA DO
podempraticar a Perfeição da Sabedoria?” pr
Antes de seguir, convém observar que há dois termos pare- Co RAÇÃO
cidos — Perfeição da Sabedoria e Grande Perfeição. A perfeição da
sabedoria, ou prajna, é o caminho que conduzà grandeperfeição, que
está sempre naturalmente disponível. O Prajnaparamita descreve a
perfeição da sabedoria. Os ensinamentos dessa classe são como um
remédio para doença dos olhos(avidya, a ignorância). Quando che-
gamos à margem da sabedoria, vemos tudo com perfeição, com luci-
dez. Vemos que nunca houverio a ser atravessado, nunca houve duas
margens. Mas, enquanto estamosdolado decá, com visão limitada,
vemoso rio do sofrimentoe as duas margens.
Retornando ao sutra, Chenrezig responde: “Homens e
mulheres bons e piedosos que desejem praticar a Perfeição da
Sabedoria devem apenas fazer o que eu ensinar agora. Eles devem
compreenderque...” Essa é a parte central do texto. A primeiraparte,
onde Chenrezig diz que “oscinco skandhassão vacuidadee, portanto,
o sofrimento podecessar”, é a súmula.Ele agoravai explicar a afirma-
ção em detalhes: “Formaé vazio,vazio é forma; forma nada maisé do
que vazio, vazio nada mais é do que forma”.
Podemos olhar isso como palavras ou como umaexperiên-
cia. É melhor olharmos como uma experiência. Se olharmos como
palavras que discorrem sobre um tema,não será tão profundo quanto
olharmos como uma introdução a uma experiência.
Temosqueolhar nossas experiênciasdiárias a partir dessa pers-
pectiva. Quanto tempo conseguimos sustentaro olhar que compreende

210 |
que formaé vazio? Por menorque seja tal instante, quando começamos
a praticar essa visão, somosintroduzidos ao elemento que diferencia
um conhecimento teórico daquilo que, no budismo, chamamos de
prática da perfeição da sabedoria. Noinstante em que o ensinamento
penetra em nossa experiência de mundo, começamosa transformar
nossa compreensão da realidade, a desfazer a solidez das formas.
Essa é a alquimia que transforma uma descrição em uma prática.
O ensinamento formal torna-se um roteiro vivo de meditação, pois
dali em diante se realiza no âmbito da ação. Para realizar a transfor-
mação, podemos seguir o método de pensar, contemplar e repousar
parte a parte ao longo do texto todo, sustentando a experiência de
lucidez da perfeição da sabedoria. Começamos com a contemplação
da vacuidade luminosa e coemergente das formas.

“No instante em que o ensinamento


penetra em nossa experiência de
mundo, começamosa transformar nossa
compreensão da realidade, a desfazer
a solidez das formas.Essa é a alquimia
que transforma uma descrição em
uma prática.”
|
Primeiro exemplo

Podemos iniciar pela observação de um objeto imaginário “o BJ E TO |


qualquer. Não importa qual o objeto imaginado, temos que nos dar
conta de que, por ser imaginado, é em nossa mente que ele está. | MAG I NADO
Podemosproduzir umaesfera, um cubo, o rosto de um amigo, a nossa :
casa, a porta da geladeira. Importa perceber quem produz a imagem. h
Se produzimos, vemos. Se vemos, vemos com a mente. Com o que mais |
veríamos senão com a mente? Então a mente vê a mente. O objeto é a
mentee é visto pela mente. Logo, a mente se dividiu em duas: a mente
quevê e a mente que é vista. Por quê? Porque a substancialidade do
objeto é a própria mente.
No Sutra Surangama, o Budadiz: “A mente vê a mente”. Mas, |
quando a mente vê a mente, não nos damos conta disso. Portanto,
temos a noção convencional de que existe um observador neutro
olhando um objeto que existe por si mesmo. Ainda que a mente veja a
mente, ficamos com a sensação de que há uma separação entre objeto
e observador. Esse é o cerne do nosso problemaligadoà ilusão do
samsara. Temos a sensação de que o objeto é separado de nós, e de
que nós somosneutrosao olhar um objeto que evoluie faz tudo porsi
mesmo. Essa é a definição básica de ignorância. A ignorância começa
comisso. E depois cresce. Não só ficamospresosa essa noção, como
não vemos que ficamos presos.
É a partir dessa paisagem que todo o raciocínio posterior se
desenvolve. Não vemosa possibilidade de interação com o objeto, de
transformação do objeto, ou qualqueralternativa quanto ao fato de que
o objeto é inseparável de nós mesmos. Não percebemosmais a abertura,
fomos fisgadospela forma. E pensamos: “Se eu tenho uma esfera,e essa
esfera é colorida,essa é a cor da esfera!” Não nosocorre, por exemplo,
produzir conscientemente várias experiências: “Agoraa esfera é azul,
agora a esfera é vermelha,agoraa esfera é amarela.” Podemosfazer isso
como um exercício de liberdade, de criação, mas não nos damosconta.

132 |
Depois de pensar sobre isso, seguimos para a etapa da con-
templação. Fazemos a esfera mudarde cor. Ou a transformamos em
um cubo, e depois transformamos o cubo em qualquer outra coisa.
Podemos transformar o queestá diante de nós. Nesse exemplo abs-
trato, isso é fácil de ver. Encerramosa etapa de contemplação e sim-
plesmente repousamosnesse conhecimento.

“Ainda que a mente


veja a mente, ficamos
com a sensação de
que há uma
separação entre
objeto e observador.
Esse é o cerne do
nosso problema
ligado à ilusão
do samsara.”

113
Segundo exemplo l
Podemos olhar uma figura como a Roda da Vida. Vemos
>
Fi G U RA
todososseus elementos; porém, é apenasarte gráfica. Naturalmente
Maharajanãoestá ali, nem osseis reinos, só temos papel etinta diante G RÁ F I cA
dos olhos. Se colocarmos um dedo noinferno quenteda RodadaVida,
não acontecerá nada, o dedo não queimará.
Mesmo assim, a coisa fica um pouco mais complexa, porque
não é, mas é! Nenhum budista, por exemplo, se sentiria à vontade
para sentar em cima de uma imagem do Buda. Por que, se é apenas
papele tinta? É que, simultaneamente, já nãose trata mais de papel e
tinta apenas. Estamos diante do que chamamos de aspecto luminoso
darealidade. Aindaqueseja papel e tinta, não pensamos no papelena
tinta, não reconhecemospapele tinta, mas vemos o Buda.
Osseres produzem luminosidadesespecíficas nas suasdiversas
conexões com realidade. Não vemos o objeto, mas o queele passa a
ser diante de nossos olhos. Essa é a característica da luminosidade.
Precisamos entender a vacuidade e avidya, e também a ação luminosa
damente.
Podemos usar o exemplo de uma foto. Quando estamos
imersos em avidya, não reconhecemosa luminosidade que constrói a
realidade ao contemplarmosa foto. Acreditamos que o conteúdo que
vemosestá na foto. Entretanto, podemos perceber que os conteúdos ,
da foto mudam com o tempo, ou seja, a forma comoreagimosdiante
dela muda. O conteúdo é inseparável do observador. A mente vê a
mente. Na imagem completamente abstrata criada na mente ou na
imagem em papel, o observador é que produz a experiência do objeto.

124 |
“O conteúdo é
inseparável do
observador.
Amente vê a mente.
Na imagem
completamente
abstrata criada na
mente ouna
imagem em papel,
o observador é que
produz a experiência
do objeto.”
Terceiro exemplo
Vamos olhar agora uma imagem tridimensional, como uma “o BJ ETO
escultura, que representa simbolicamente um outro objeto. De novo
podemos reconhecer que esseobjeto produz em nósa manifestação da T RI DIME NSI O NAL
luminosidade que atribui qualidades que não estão ali. Olhamos uma
imagem humana esculpida em pedra e encontramos características
humanas na pedra. Mas onde há características humanas na pedra?
Não há, mas nós vemos. Por vermos muito mais do quea realidade
da pedra, podemospagar umafortuna por umaescultura, ou vamosa
museuse galeriasde arte para contemplá-las. Não poderíamos com-
prar umaescultura pagando em pedra,trocando o blocoesculpido por
outro do mesmopeso, mas de pedra bruta. Há umadiferença. À
Quando olhamos umaescultura, não vemosa pedra. Usamos
a pedrapara sustentar uma experiência de luminosidade correspon-
dente ao que vemos na pedra.
Então, do mesmo modo que nosobjetos imaginários e gráficos,
também no objeto tridimensional a forma não está na forma. Pela
terceira vez, vemos que o observador detém a experiência da forma.

116 |
“Quando olhamos uma escultura, não vemos
a pedra. Usamos a pedra para sustentar uma
experiência de luminosidade correspondente
do que vemos na pedra.”

117
Quarto exemplo
wo
No quarto tipo de experiência teremos uma pessoa diante de
nós. Mesmo com uma pessoa, acho interessante usar o exemplo da UMA PESSOA
foto. Tiramos umafotografia da pessoa. Olhamos paraa pessoae para
a foto, e parecem iguais, porquea experiência que temosao olhar a
foto e a experiência que temos aoolhar a pessoaindicam a mesmacoi-
sa. Temos experiências internas. Quando nossarelação com a pessoa
muda,o que vemosna foto mudatambém.
Diante da própria pessoa, olhamos paraela e lhe atribuímos
qualidades, comose pertencessem somente ela e não fossem um pro-
duto coemergente de nossa observação. O mesmo acontece com a foto.

aas|
Quatro níveis de experiência
ng
A experiência do que vemosé inseparável de nossas estru-
turas internas. Sempre que temos uma experiência de objetos, nosso
papel de observadorestá presente. A mente vê a mente, ou seja, nossa
A CONCLUSÃO
mente vê os objetos conforme suas noçõesinternas, e é a partir disso
que nos relacionamoscom o mundo, atribuindo significadose funções
a tudo, inclusive sensações de gostar, não gostar, ou serindiferente.
Mudanças naestrutura interna provocam mudanças nos objetos que
vemos e nas sensações agradáveis, desagradáveis ou de indiferença
queeles provocam.
O conhecimento humano segue o mesmo padrão. As teorias
da física, química, matemática, biologia, história, psicologia estão
sempre mudando. Na medida em que as teorias mudam, as pessoas
olham as mesmas experiências e dizem outrascoisas.
A capacidadede atribuirmosdiferentes significadosàs coisas
pode ser observada em exemplos bem práticos. Lixo, por exemplo.
Plástico, metal, vidroe papel podem apenasser elementos de polui-
ção do ambiente, ou podem ser reciclados. O elemento é o mesmo,
mas mudam o olhare a ação. Em vez de deixarmos esses materiais no
depósito delixo, podemosreaproveitá-los.
Uma das conclusões da contemplação do Sutra da Perfeição
da Sabedoria é que, do ponto devista da inseparatividade, mesmo as
deidades budistas são desdobramentos da mente do observador. São
formas de inteligência que ele pode manifestar.

“A mente vê a mente”
- go.
Paisagem é uma forma complexade explicarmos asestruturas PA I SAG E M
internasassociadasàs inteligências que o observador pode manifestar. ,
O observador constrói e experimenta seu mundo de acordo com a MAN DALA E
inteligência queestiver utilizando. Estruturainternaé a base que per-
mite descrever o que vemos. O que vemos a paisagem, mas paisagem R EALIDADE DO
também se refere à estrutura interna, porque elassão inseparáveis.
Aquilo que vemos e a nossa estrutura são a mesmacoisa. Quando M U N DO

220|
usamos essa linguagem, dizemos: “Todos nós estamos dentro de
alguma paisagem”.
Existe uma paisagem ondejogamos lixo dentro do rio e acha-
mosqueestá bem. Existe outra paisagem ondecatamos todoo lixo,
e achamosque assim é melhor. Cada paisagem legitima um tipo de
ação. O mundoparece concreto, mas é definidopelo olhar,pela paisa-
gem. O mundo é uma expressão de luminosidade e vacuidade.
No caso dolixo, poderíamos pensar: “As pessoas deveriam
ser automatizadas a recolhero lixo, deveriam ser punidasse fizessem
9 contrário, porque todas têm o impulso de jogarfora o que quer que
seja em qualquerlugar”. Mas também poderíamos ver assim:"Não, se
as pessoasse deslocarem para uma outra paisagem, terão outrotipo de
comportamento naturalmente e sem punição”.
Dentro de certas paisagens, as pessoas cometem ações não
virtuosas. Deslocadas para outra paisagem,elas praticam ações posi-
tivas. Se tomamosas pessoas como boas ou más, e o mundo como bom
ou mau, e não entendemoso processodecriação, deatribuição desig-
nificados, tendemos a aprovaras pessoas boase a condenaras pessoas
más, e acabamostendo surpresas em ambosos casos. Com essavisão,
queremosencarcerar todos os maus, e deixar os bonssoltos. Aí nos
surpreendemos quando aquele que considerávamos mau mostra-se
bom,e aquele queeravisto como bom revela-se mau.
Em certas épocas, comoa atual, parece haver uma epidemia
de maldade,de ações negativas. Não nos damos conta de que estamos
todos sob o efeito sutil de paisagens internase externasinseparáveis
que nosconvidam a ações negativas, e que eventualmente estimulam
e constroem ambientes nos quais as ações negativas ocorrem como se
fossem algo apropriado.
“Aquilo que
vemoseda
nossa estrutura
são a mesma
coisa.”

122 |
>
“Forma vazio, vazio é forma; forma nada maisé do quevazio,
vazio nada mais é do que forma; do mesmo modo,sensação, percep- SÍNTESE DA
ção, formação mental e consciênciasão vacuidade; assim, Shariputra,
todos os darmassão vacuidade.” ANÁLISE DO
Quando Chenrezig faz essa afirmação, ele aponta para o fato
de que todosos objetos são vacuidade; não apenasos objetos sólidos, PRAJNA-
mas todas as experiências. A palavra utilizada para se referir ao
conjunto de objetos concretos e abstratos é “darma”, com inicial
PARAMITA
minúscula — no budismo, Darma com inicial maiúscula refere-se aos
ensinamentos do Buda. Tudo que pode ser visto pela mente é vacui-
dade. Temos a experiência de que há um observador contemplando
algo. Tudo que pode ser contemplado poresse observadorestá sub-
metido à avidya, à ignorância, e surge pelo poder da luminosidade.
Expressa a vacuidade diretamente. Está submetido à impermanência
& se situa no espaço cercadopelas quatro montanhas do nascimento,
vida, decrepitude e morte. Todos os darmas são vacuidade. Portanto,
podemos ultrapassá-los.
Háuma natureza luminosa quenão é afetada por suas próprias
construções. Há um controlador tentando manipular suas constru-
ções — e queacaba se tornando refém delas — , mas simultaneamente
há a percepção de que essa natureza não está submetida à limitação.

ERFEIÇÃO À 123
Nesse ponto podemos entender o significado da expressão
Natureza Vajra como extensão da noção de vacuidadee luminosidade.
A realidade é móvel, viva, mágica diante de nós. Essa compreensão
substitui o amargor de vermoso quehá diante de nós como um engano,
como uma incapacidade de ver o que seja “real”. Com a noção de natu-
reza vajra, vemos o aspecto lúdico vivo e mágico do “real”. Assim, a
própria perspectiva do viver a causalidadee a realidade ao redor surge
comoalgo muito brilhante, lúdico, encantador além de espaço e tem-
po, e traz a possibilidade de nos manifestarmos de formalúcida e ao
mesmo tempo mágica dentro de um mundo também mágico e móvel
— desaparece o amargore o peso, surge Guru Rinpoche.
A linguagem do peso pertence ao reino dos humanos,a lin-
guagem da natureza vajra pertenceao reino dos deuses, as possibili-
dades de manipulação surgidas da natureza vajra pertencem ao reino
dos semideuses.

124
Essa compreensão torna útil a contemplação dosversos:

Abra os olhos devagare veja O deslocar-se causal


Arealidade Vajra inteira diante de você Éo deslocar-se Vajra
Respire devagar, sem esforço Não há comoperder-se
Nadaa ser sustentado, Ainda assim surge um mundo
Nadaa sercriado ouvisto, Com significado causal;
Naturalmente presente Fixadoa isso
Apenas veja, suavemente. Operamosa realidade Vajra
Enão vemosseus atributos completos,
Quandoseperder, Eperdemosa capacidadedever Vajra.
Énarealidade Vajra que estará
Nãohá dois lugares, Nemum, nem outro
Apenas esse. Nem entre ou meio
Sem esforço, Natureza Primordial — Guru Absoluto
Mandala natural. Veja! Mãe do Samsara Vajra
Mãe do Nirvana Vajra
Corpo, energia, mente Nadaa fazer...
Paisagem, Mandala,céu Nãopercao espetáculo!
Natureza Vajra tudo abarca
Semesforço
Sem tempo
Nãoé necessário obter algo,
Nemfixar-se. Veja!

O deslocar-se causal
Pordentro da presença Vajra
Torna existente
Oque é apenas Vajra
Contemple isso.

125
ng
Quando andamos pelo mundo, o que vemosparece comple-
tamente natural aos olhos, ouvidos,nariz, língua, tato e mente. Não FACULDADES
parece haverlimitação. Sentimo-nos dentro de um mundo completo,
perfeitamente coerente, masas alternativas de ação dentro desse DOS SENTIDOS
mundosão apenasas que pertencem a nosso universo cognitivo limi-
tado. À mente livre torna-se limitada quandopassa a operaratravés
E OBSTRUÇÃO
dossentidos. A natureza da mente não é obstruída, masse torna obs-
truída pelo tipo de uso que damosa ela.
Nãoé a mente cognitiva que pensaerrado; a mente dos.olhos,
por exemplo, ao operar, já produz a imagem equivocada queestá presa
ao loka correspondente ou à paisagem. A visão, ela mesma,ao operar,
é veículo da prisão. Isso está associado à responsividade também.
Avisão surge e a responsividade aparece, na sequência a causalidade
fecha a prisão por nos manter ocupados em imaginarações causais
ligadas ao carmae ao loka.
Nesse ponto surge outro tipo de argumentação no Prajna-
paramita. Chenrezig diz: “Portanto, Shariputra, na vacuidade não
há olhos, ouvidos, nariz,língua,tato e mente”. A vacuidade não tem
uma estrutura básica. Não há seres humanos, não há órgãos. Não há
objetos correspondentes a olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente
condicionada. Não existem mentes associadas a olhos, ouvidos,
nariz, língua, corpo e mente; não existe uma mente dividida desse
modo. Não há sofrimento, nem causa do sofrimento, nem cessação
do sofrimento, nem liberação, nem não liberação, nem sabedoria,
nem não sabedoria. Não há ignorância, nem extinção da ignorância,
nem todos os demaiselosda originação interdependente. A vacuida-
de é anterior a tudo. Chenrezig olha todasasclasses de existência e
diz: “Nadadisso existe dentro da vacuidade”.
Esse é um ponto de grande importância. Os cientistas, por
exemplo, acreditam que o mundo é constituído tendo por baseleis

126
fundamentais. Na perspectiva budista, tudo surge da vacui
dade e
luminosidade, e a liberdade original está incessantemente
preservada,
não há leis causais fundamentais. Na base de tudo está
à liberdade
original e incessante, além de espaço e tempo, além de
vida e morte.
Nesse sentido a posição budista entende muito bem todas
as trocas
de paradigmas e o abandono de antigas visões e teoria
s por novas
abordagens, como observamos na ciência. Os cientistas,
por outro
lado, buscam sempre uma formulação básica original
de onde todas
as manifestações surjam. Albert Einstein chegou a afirma
rque a exis-
tência dessa forma original é uma fé que não podefaltar
ao cientista.
Em vista disso, Sua Santidade o Dalai Lamadiz que
os cientistas são
crentes, e os budistas são céticos.

“A vacuidade não
tem uma estrutura
básica. Não há
seres humanos,
não há órgãos.
Não há objetos
correspondentes a
othos, ouvidos, nariz,
língua, tato e mente
condicionada”

127
Noo Sutra Sutra do do €. Coração, Ch Chenrezig di diz que os bodi
bodisatvas maha-
satvas confiam e repousam no Prajnaparamita. Bodisatva mahasatva 0 MA N T RA
é aquele que tem a realização completa do Prajnaparamita e repousa A
na manifestação natural da perfeição da sabedoria, tem a capacidade I NSU PE RAV EL
de olhar para todas as experiências e ultrapassar a prisão que elas
propõem. Naperfeição da sabedoria não há nenhuma construção,
nenhum referencial transitório. Não existe a dualidade de sujeito e
objeto. Por isso se diz queessa sabedoria torna igual o que é desigual.
O mantra do Prajnaparamita é o grande mantra, o mantra
insuperável, o mantra queliberatodo o sofrimento. Todos os Budas,
por seguirem esse mesmo caminho, atingem a liberação completa e
insuperável. Por isso, recita-se o mantra:

TADYATA
OM GATE GATE
PARAGATE PARASAMGATE
BODHI SVAHA

128|
O manira é o som da perfeição da sabedoria. Do mantra
decorre a visão da perfeição da sabedoria. Da visão decorre a experiên-
cia da paisagem, ou mandala, da perfeição da sabedoria.
De início não temosestabilidade na visão, ela vem em lampe-
jos. Para recuperara visão voltamosao texto, até o mantra readquirir
novamente seu poder. Quandoisso acontece, podemosusar o mantra
comoveículo de lucidez para superar dificuldades arraigadas.

o A HER
py Pay op neionao |

DA SABEDORIA 129
a
Em nossa análise da realidade, devemos incluir, além do EN E RG IAS
aspecto cognitivo, a observação da energia que se manifesta nas expe-
Tiências. Mesmo que não tenhamossido introduzidos à meditação de
gotas, chakras, ventos c canais, podemosveressas energias e perce-
ber que certos pensamentos estimulam a energia em uma posição e
não em outra.
Quando sentimos raiva, sentimos a presença dessa energia
fisicamente. Ela se manifesta de modo inseparável de uma paisa-
gem cognitiva que a sustenta. Para dissiparmos a raiva, basta mudar
a paisagem, pois, quando trocamos de paisagem, deslocamos todos
Os nossos referenciais. Não precisamos fazer a transição gradual da
energia através da disciplina, as paisagens têm muito mais força.
A energia basicamente não pertence a nenhum dos chakras
ou canais, nem precisa ser classificada como gotas ou ventos, é tão
somente um princípio ativo inseparável da natureza última. Quando
começamosa estabelecercategorias — por exemplo, energia do chakra
básico, energia positiva, energia negativa —, criamos objetos e, com
isso, uma situação mais complexa. Não é necessário entrar nessa
fisiologia, podemosolhar de forma maiselevada, ultrapassar o pro-
cesso de aprisionamento de avidya.
Se não ultrapassarmosa separatividade, ficaremos um longo
tempo estudandotodaessa fisiologia sutil comosefosse sólida, loca-
lizandotudo. Aí teremosa sensação de queexiste um corposutil por
trás de tudo, e vamosdar solidez a ele. Aindaque essecorpo sutil exis-
ta-—comotodosnósexistimos,e comotodasas ruas, e praças, igrejas e
estrelas — , ele pertence ao samsara. Então, toda essa fisiologia muito
sutil, ainda quereal, existe em nível convencional.
Pesquisartodoo nível convencional não vai levar à liberação,
apenas nos tornaremos especialistas no nível convencional. É melhor

a30|
que o caminho venha de cima para baixo. O caminho de baixo para
cimaé infinito, um labirinto impossívelde cruzar. O Prajnaparamita
nos permite dar um salto por cima de muitas complicações.
Podemos usar os problemas do cotidiano como tema de
meditação do Prajnaparamita. Começamosa trabalhar com os nossos
problemas, vendo queeles existem, mas que não têm a solidez que
atribuímosa eles, e tudo vai melhorando. Aí começamosa ajudar
as outras pessoas, pegando os problemas delas também, e tudo vai
melhorando. Nuncafaltam problemas, e com isso vamos praticando
eliberando.
Não poderemosevitar a morte, por exemplo, mas poderemos
utilizá-la como forma de meditação, lucidez e liberação. É importante
entender quea prática do Prajnaparamita não tem por objetivo mani-
pular a realidade convencional, e sim atingir a liberação. Algum grau
de manipulação pode surgir, mas será apenasparcial, e terminaremos
por superaresses enganos também.

“Ainda que esse


corpo sutil exista -
como todos nós
existimos, e como
todas as ruas,
e praças, igrejas
e estrelas -,
ele pertence ao
samsara.”

A PERFEIÇÃO DA SABEDORIA | 134


E MA HO!
QUANDO ANDAMOS PELO MUNDO, operamos com responsividade
aos estímulosdos sentidosfísicos. Usando estruturas cármicas como
apoio, construímosrealidades com os sentidosfísicos e com a mente.
Ao olharmosa imagem da RodadaVidae iniciarmos um processode
imputação ou reificação, vemos um ser terrível, pois atribuímos qua-
lidades e realidadeà figura de Maharaja. Isso significa que vemos mais
do quedefato há ali. De modogeral não percebemosa imputação, que
surgea partir da separação de sujeito e objeto.
Olhamos para manchas de tinta no papel, mas vemos
Maharaja. A figura é como que um espelho de nossasestruturas inter-
nas. As representações que surgem externamente emergem simul-
taneamente com nossas estruturas internas; isso é a coemergência
desujeito e objeto. É o aspecto de surgimento da experiência como
uma manifestação da luminosidade em conjunto com a vacuidade,
a liberdade natural.
Se olhássemos o borrão de tinta no papel que representa
Maharaja e disséssemos que se trata do Buda Shakyamuni, seria um
engano. A figura no papel é uma delusão, mas tem um significado
específico que precisamosidentificar de modo correto.
Nossa mente olha a figura de Maharaja, a delusão se mani-
festa e a mente seguea responsividade: as emoções surgem. Também
podemosfalare ter reações na forma de energia, de acordo com o
objeto produzido por reificação ou delusão. Cada pensamento tem
uma conexão com um nível de energia correspondente.
É um nível sutil, não cognitivo. Como se fosse uma forma |
universal de comunicação, quese estabelece através das modificações
dosníveis sutis de energia em nóse nos outros seres. O som queestá
além do som. Se vocês não compreenderem o quefalo, não haverá de
fato nenhumafala. Se vocês não sentirem o quefalo, se não moverem
energia nesse processo, não haverá nenhuma comunicação. Essa é a
verdadeira fala, inseparável da energia. A “fala” do sol movimenta a
natureza, provoca reações em todoo planeta.
Há ainda um nível mais sutil, que é a paisagem. Podemos
olhar Maharaja e pensar: esse ser é do bem ou do mal? Diferentes
paisagens vão gerar diferentes ações de mente, que produzirão dife- E
rentes energias, que, por suavez,vão causar diferentes condições de
corpo. Podemos reconhecer essa operação ou não, mas nos manifes-
tamos desse modo o tempotodo.
Podemos observar um aspecto ainda maissutil: a possibilidade
de termos muitas experiências em corpo, fala, mente e paisagem,

134 | EMA HO!


de podermostransitar livremente de uma paisagem para outra. Um
dicionário tem muitas palavras; porém, paraqueelas sejam impres-
sas, deve haver uma folha em branco,o substrato que acolhee susten-
ta todas as combinaçõesdeletras. Da mesma forma, podemosatentar
para o fato de que, no fenômeno ilusório da nossa mente, o mais
interessante não é o conteúdo, mas o contínuo que não se movee que
acolhe a multiplicidade das aparênciase das experiências.
Há a mentee a essência da mente. O espelho e as imagens
no espelho. Quando olhamosa folha de papel do dicionário, vemoso
que está impresso. Ligamo-nos apenas às aparências desenhadasali,
esquecendo deolhar a liberdade não obstruída que originou a cons-
trução e que a sustenta. Não nos damosconta de que há uma presença
independente das manifestações. Isso é o que os budistas chamam
de grande vacuidade, grande pureza. Sempre que um mestre budista
referir-se a uma experiência chamadade “última”, estará convergindo
seus ensinamentosparaesse continuum incessantementepresente que
possibilita todas as experiências.

“Sempre que um
mestre budista referir-
se a uma experiência
chamada de “última”,
estará convergindo
seus ensinamentos
para esse continuum
incessantemente
presente que possibilita
todas as experiências.”

[135
No Sutra Surangama, o Buda bate no sino e pergunta a um
discípulo: "Ananda, você ouve?” Este responde que sim. Quando o
sino para de tocar, o Buda pergunta: “E agora... ouve?” Anandadiz
que não. E o Budareplica: “Comovocê podedizer coisas sem sentido,
Ananda?” O Budarepete as batidas desino e as perguntasvárias vezes.
Anandaquestiona: “Com som, ouvimos; sem som, não ouvimos... não
seria assim? Como poderia ouvir se não há som?” No final, o Buda
explica quea capacidade de ouvir está semprepresente, independente
de haver som ou não. Quando não há som, a capacidade auditivadiz
que não há som; quando há som, a mesmacapacidade auditiva diz que
há som.
O Buda usa a capacidade auditiva para exemplificara natureza
incessante da mente. Se há pensamentos, ideias, imagens, temos a
sensação de haver a mente; na ausência deideias, imagens e pensa-
mentos, a mente como que desaparece. Mas na verdade sua presença
é incessante e independente das formas que possam surgir ou deixar
de surgir; é comoo espaço, que independe da existência dos objetos
que o povoam. Isso é lindo e profundo.
Havendo ou não algo manifesto, existe uma natureza funda-
mental e silenciosa incessantemente presente em nós. É como um
lago completamente sereno, onde podemos provocar o surgimento
de uma onda com o movimento de nossa mão na água. Mas 0 fato de
surgir essa onda nãoaltera em nadaa natureza dolago.
As experiências, as aparências, são as ondas. Masa base, ou
lago, independedas formas queirão surgir na superfície, é incessante.
Esse ponto crucial está ligado à prática da lucidez, à capacidade de
testemunhar a experiência que vivemos sem ficarmospresos a uma
sequência de pensamentos, apenas testemunhar. É fazer surgir um
observadorque se dá conta da experiência deperceber as experiências.
Podemostransformar qualquer experiência em um objeto de
foco desse observador que fazemos surgir. Podemos simplesmente
comer, outestemunhar o que estamosfazendoe sentindo. Apenas por
meio desse observador construído artificialmente poderemostermi-
nar por percebera natureza sempre presente. Mais adiante, supera-
mosa necessidade desse observador, ultrapassando toda a dualidade t
e toda a meditação fabricada.
O importante é perceber a estabilidade por trás do movi-
mento incessante das formas no mundo. O lago estável é como uma
essência completamente receptiva, aberta. Por ser uma forçaviva,
enérgica, pode produzir ondas. A natureza da mente é igual-estável,
j

136 | Em
com a capacidade de produzir objetos. Os budistas chamam essa capa-
cidade de luminosidade da mente. É ela também que dota de quali-
dades e energia as formas que brotam em sua superfície. É dela que
surge naturalmente a sabedoria que nos permite operar no mundo
condicionado e, ao mesmo tempo, no mesmo fenômeno condicionado,
termosa lucidez de nãoo solidificarmose de não ficarmos presos.
Os objetos reconhecidos pelo observador não existem
externamente ou por si mesmos. Há uma natureza e uma essência
produzindo as aparências. Esseprincípioativo é inseparável da liber-
dade natural e não obstruída que permite a tudo surgir; essa liber-
dade naturalé a vacuidade. A observação darealidade aparente e da
realidade última no mesmo fenômeno é chamadade dupla realidade
(tathata em sânscrito).

“As experiências, as
aparências, são as
ondas. Mas a base,
ou lago, independe
das formas que irão
surgir na superfície,
é incessante.”

137
Podemosolharas coisas comoexternas fixas, podemos não
reconhecer sua natureza original e sua presença incessante. Isso é a
mente comum do mundo. Essa mente convencional classifica todas
as experiências como positivas ou negativas. O que é positivo produz
felicidade. O que é negativo produz dificuldadese infelicidade.
Mas fora do samsara, da visão convencional, existe o que os
tibetanos chamam de kadag, ou grande pureza, onde tudo quesurge é
compreendido dentro da perspectiva da duplarealidade. A aparência
convencional surge, mas surge também o reconhecimento de que a
realidade convencional é mutável, incapaz de causar danosà natureza
última, do mesmo modo que, não importando quão intensassejam as
ondas, nuncaafetarão o próprio mar.
Nessa classe de ensinamentos budistas, considerada a mais
elevada, não se busca mais distinguir positivo de negativo. O ponto
central é reconhecer que não há uma prisão efetiva nos níveis condi-
cionadosde operação da mente. Aproveitamosa aparência convencio- j
nal da experiência condicionada do mundopara reconhecera natureza
última incessantemente presente. Assim nosliberamosdevida, enve-
lhecimento, morte e renascimento.
O ponto essencial é localizarmos essa compreensão. Não
somosos conteúdos, os mundos que enxergamos condicionadamente.
Somos naturalmentelivres, mesmo quandonão vemosa liberdade.
Emaho! Alegria!

aas | EMAHO!
139
A 5 d
OS QUATRO PENSAMENTOS QUE TRANSFORMAM A MENTE

E A MANDALA DA LUCIDEZ

À PRÁTICA DO BUDISMO TIBETANO COMEÇA com os Quatro Pen-


samentos que Transformam a Mente, um conjunto de ensinamentos que
constrói a atitude correta para percorrermos o caminho. Esses pensamen-
tos nos retiram de umacondição de inconsciência e inércia e nos permitem,
entender o potencial positivo de que dispomos, e nos levam a entender
a necessidade do caminho e a fonte da lucidez que pode nos ajudar
nesse caminho.
Entre ascoisaspositivas de que dispomos em nosso caminhoestá
a linhagem de transmissão dos ensinamentos como uma inteligência viva
que se apresentadiante de nós como o lama. Alinhagem se apresenta ainda
comoformasdeinteligência que se manifestam comonossaprópria lucidez.

Todos nós temos compaixão em alguma medida, nem e A LINHAGEM


seja apenas pelos seres mais próximos — pelo marido ou esposa, pelos
filhos ou por um animal de estimação. Entendemos que esses seres
dependem de nós e que podemos fazer coisas positivas para eles.
Sentimo-nosfelizes em estabeleceressasrelações.
Os seres de sabedoria de qualquer religião naturalmente
manifestam compaixão muito maior em termos de intensidade e
estabilidade. Eles amam todosos seres humanos. Todas as tradições
consideram a compaixão umaqualidade disponível em todososseres,
não propriedade de apenas alguns. Podemos ou não nosligar a ela,
mas a compaixão está presente em nós.
Natradição budista, dizemos que há uma linhagem, ou seja,
os seres de sabedoria não só manifestam compaixão, como instruem
seusalunos sobre como manifestá-la. Assim,a compaixão é transmi-
tida de uma geração para outra.
Quando somos alcançados por uma linhagem compassiva,
descobrimos quejá temosisso em nós. Não é como um ensinamento

2/2141
de geografia ou matemática, por exemplo. Bondade, amor e compaixão
tocam nosso coração naturalmente porque fazem parte do que somos.
Esse é primeiro ponto: as linhagens existem, estamos pro-
tegidos, e há um processo incessante que transmite a informação.
Naformatradicional do budismotibetano, dizemos: "Homenagem
ao lama: a você que conhece”. Simples assim! Existe uma linhagem,
existe um lama, a pessoa quetrará o ensinamento.

O aparecimento de um mestre em nossavidaé algo extraor- A CONEXÃO COM
dinário. Podemoster contato com várias linhagens, várias tradições O LAMA
religiosas, e um dia ouvimos alguém e sentimos: "É isso! É exatamen-
te o que sempre pensei.” Aquela pessoa traduz o que temosdentro de
nós, ela nos conecta à linhagem de compaixão com quenosidentih-
camos. Quando encontramos um mestre externo, issosignifica que
o nosso mestre interior já estava se manifestando. O que não temos
dentro de nós não aparece do ladode fora.
Depois de encontrarmos nosso mestre e nos conectarmos
a umalinhagem, é aconselhável nos mantermos dentro dela, sem
misturar outros métodos. Porém, jamais devemosser sectários; não
devemosachar quea nossa linhagem é melhorque as outras, que nós
estamoscertose os outros errados.
No budismo, tomamos nosso lama comofonte de refúgio. Isso
porqueé ele que abre para nós a mandala de sabedoria, revela o mun-
do como um ambiente de perfeição onde podemospraticar. Dentro da
paisagem de sabedoria descortinada pelo lama, as coisas fazem sen-
tido, e a prática espiritual também. O lama nos introduz nessa man-
dala e nos conduzpor dentro dela — esseé o fato mais importante de
nossavida. Porissoexiste a tradição de profundorespeito e dedicação
ao lama.
ago
O primeiro pensamento que transforma a mente refere-se PRIM EIRO
à preciosidade da vida humana. No budismo,os seres sencientes são PENSAMENTO
divididos em seis reinos: deuses, deuses invejosos, humanos, animais,
fantasmasfamintose seres dosinfernos. Renascer como serhumanoé * E .
algo extremamente raro — e somente na forma humanatemos interesse Avida humana preciosge
pelo Darma,pelos ensinamentos do Buda que levam iluminação. os seis reinos
Os deuses não se interessam pelo Darma porque têm uma
vida muitofeliz, estão por demais distraídos com seus prazerespara se
preocupar com a impermanência, com o dia em quesuas vidas vão
chegar ao fim e eles terão que renascer em outro reino. Os deuses

142
invejosos querem apenas conquistar o que os deuses possuem e supe-
rar uns aos outros,estão sempre envolvidos em guerrase disputas. Os
animais são obtusos, não têm capacidade para ouvir os ensinamentos,
sua únicaatividade são os esforços pela sobrevivência. Os fantasmas
famintos ocupam-se unicamente em tentar suprir suas imensas
carências. E os seres dos infernos vivem em completo sofrimento e
tortura e não veem por ondesair dessasituação, ou nem estão interes-
sados em fazê-lo, se sentem prazer em torturaros outros.
Os humanos têm condições de ouvir os ensinamentos por-
que têm inteligência e estão sempre em busca da felicidade. Como
a impermanência manifesta-se em nossa vidaa intervalos relativa-
mente curtos, estamos semprealternando felicidade e sofrimento,
9 que aumentaas chancesde ficarmos receptivos ao Darma.
Para que isso aconteça, precisamos de várias condições.
A primeira delasé viver em umaera em que haja ensinamentos. Não
devemos pensar que o Darma exista sempre e em quaisquer condi-
ções. Nossaera é considerada muito afortunada porque houve o apa-
recimento de um Buda,e ele não só deu ensinamentos, como esses
ensinamentos perduraram. O Buda poderia não ter vindo, masveio.
Poderia não ter dado ensinamentos, mas deu. Os ensinamentos pode-
riam não ter perdurado, mas perduraram.
Além disso, precisamoster acesso aos ensinamentos, ou seja,
nascer em um local onde eles estão disponíveis. Precisamoster as
faculdades físicas, mentais, sociais e ambientais que nos permitam
aprender e praticar, e precisamosestar interessadosnisso, precisa-
mosestabelecer umaconexão.
Éinteressante observar que no reino humano podemos mani-
festar as características dosseres de outrosreinos, o que inviabiliza a
conexão com os ensinamentos budistas. Aqueles bem-sucedidos em
-o
seus esforços de sedução, manipulação dos destinos dos outros seres “Renascer como ser humano
e capazes de atingir seus objetivos mundanos autocentrados com é algo extremamente raro -
facilidade vivem como deuses, inebriados pela felicidade transitória. e somente na forma humana
Aqueles extremamente dedicados a esforços competitivos e movidos temosinteresse pelo Darma,
pela ganância, incessantemente ocupados com objetivos autocentra- pelos ensinamentos do Buda
dos, que invejam os deuses e querem derrubá-los, vivem como deuses que levam à iluminação”
invejosos, sendo poderosos, mas intranguilos e infelizes. Aqueles
cuja vida é comer, dormire procriar, com umavisão muito limitada
em termos de tempo e espaço, espelham a condição dos animais.
Aqueles dominadospela experiência de necessidades urgentes muito
superiores aos seus méritos vivem comofantasmas famintos, imersos

APÊNDICE 1 | 143
em sensações de sofrimento, incapacidade e desamparo. Aqueles cuja
felicidade parece surgir do sofrimento alheio e aqueles dominados
pelo medo e por abusosvivem a experiência dos seres dos infernos.
Avida humananaturalmente valiosa torna-se preciosa quando
aproveitamos as condições favoráveis de nosso renascimento com a
motivação de atingirmosa liberação e beneficiarmostodos osseres.
+
O segundodosquatro pensamentos que transformam a mente SEGUNDO
diz respeito à impermanência. A vida humanaé preciosa, mas transi- PENSAMENTO
tória. Mesmosendo extraordinária, ela cessa. E as condições favorá-
veis de nossavida também podem cessar: o Darma pode desaparecer ai
naregião onde vivemos, podemosperder a saúde, ser arrastados por Impermanência
outras prioridades, ficar sob o poderde pessoas hostis ao Darma, e de
uma horapara outra perder a conexão com os ensinamentos — todas
essas coisas podem acontecer devido ao nosso carma. À impermanência
nos ronda. Até mesmo monges e mestres podem perder a conexão,
cometer ações não virtuosase ser arrastados por negatividades.
Osseres humanosexistem há cerca de 20 mil anos, o queé
quase nada em relação aos cinco bilhões de anos do sistema solar e
da Terra, ou aos 15 bilhões de anos quese atribui ao universo. Nesses
20 mil anos, temos uma história registrada de 5 mil anos de civili-
zação. Nos últimos cem anos, houvetransformações dramáticas na
humanidade.
A nós tudo parece muito sólido, mas a história que existia
até cem anosatrás praticamente já cessou. Estamos vivendo outros
tempos, e tudo se passa com enorme rapidez. À impermanência está
aí, por isso ouvimos a recomendação depraticar agora, imediatamen-
te, pois não temos controle sobre esse processo. A impermanência
reforça a importância de nossa vida preciosa, de refletirmos sobre o
que fazemose de não perdermos tempo.
— -&
O terceiro pensamentotrata do carma. Temos carmas primá- TERCEIRO
rios e secundários.
Os carmas primários são estruturas internas de resposta PENSA
MENTO
automatizada e condicionada queinevitavelmente dão origem a sofri- “e
mento. Os pesadelos revelam nossos carmas primários. Podemos Carma
sonhar que estamos caindo, nos afogando, trancados dentro de uma
caixa, que alguém nos persegue ou ameaça. Essas situações aflitivas
nos assustam; acordamossobressaltadose relaxamosao ver que era um
pesadelo; contudo,ao pensar no pesadelo vamossentir o desconforto

144 |
de novo, e novamente nos tranquilizar ao nos darmos conta de que
aquilo não está acontecendo.
Podemosusar o cinemaparafazer uma varredura nos carmas
primários — filmes de terrore suspense nos causam calafrios. Aquilo
não está acontecendo, mas o carma primário é acionado, e as cenas
nos deixam de cabelo em pé.
Os carmas primários tornam-se vivos quando surgem as
condições secundárias. Nos filhos isso é visível quando a mãe diz:
“Arrume sua cama! Tome banho!”É horrível.
Há pessoas em quem trânsito faz brotar o carma secundário.
Uma sequência de sinais fechados, um engarrafamento ou motoboys
causam um enorme mal-estar.
Estamoscheios de carmas primários, que, ao encontrar as
causas secundárias, levam-nosa eventuais ações não virtuosas. Por
exemplo,brigar com a mãe pordeixaro quarto em desordem,ou cru-
zar o sinal vermelho, ou dar uma fechada no motoboy. Acontece por
impulso e gera uma grande complicação.
Existem situações gravíssimas, como o abuso de crianças
dentro de casa, na maior parte dos casos por pessoas da família.
Não podemospensarqueessas pessoas sejam negativas, elas são da
família, há relações positivas. No entanto,existem carmas primários
que, de acordo com as condições secundárias, podem dar origem a
ações terríveis.
Todos nós temos carmas primários e podemos exercer ações
negativas se surgirem condições secundárias. Uma vez que a ação
negativafoi feita, é de difícil desmontagem.A ação negativa dá origem
ao quarto pensamento quetransforma a mente.

ND
“A impermanência reforça a
importância de nossavida
preciosa, de refletirmos sobre
o que fazemos e de não
perdermos tempo.”

APÊNDICE 1 | 145
O quarto pensamento que transforma a mente é o SeO UARTO
to. O carma primário não é visto, só se torna visível ao surgirem as
causas secundárias, e aí nos surpreendemos com o que somoscapazes PENSAMENTO
de fazer. Vemos presos quedizem: “Eu não sou assim!” A pessoa sofre "
pelo que fez, tem vergonha, arrepende-se, aquilo foi um impulso Sofrimento
do momento.
Navisão budista, por mais grave queseja a ação não virtuosa,
não diremos que a pessoa é um monstro, veremos que seu ato é a
manifestação de um carma. Mas, seja como for, o carma se manifes-
ta, e surge o sofrimento derivado da ação cármica. Esta, tendo sido
feita, vai conduzir ao sofrimento. Não queremosesse sofrimento; por
isso, devemos estar atentos às nossas ações de corpo, fala e mente.
Podemos controlar nossas ações, mas não o resultado delas.
“Ê>
No budismo, tomamos refúgio para dispor de um referen- REFÚGIO
cial interno seguro que nos mantenhaestáveis e a salvo, para que
não percamos os ensinamentos quando as condições negativas se
manifestarem. Embora tenhamos a condição humana preciosa e a
conexão com uma linhagem de transmissão dos ensinamentos, nossa
posiçãoé frágil, pois somos ameaçados pela impermanência e temos
a estrutura de carmas primários que podem se manifestar sob certas
condições.
Naausência da possibilidade de tomar refúgio, oscilamos.
Tomarrefúgio significa a capacidadede direcionar nossa ação dentro
da existência condicionada. Significa que somoslivres do carma e das
identidades, que podemos exercer nossa liberdade. Tomar refúgio
em quê? Na natureza tal como ela é. Não é tomar refúgio em alguém,
mas na natureza ilimitada.
Porém, tradicionalmente, tomamos refúgio em um lama.
Acontece que o conceito de natureza ilimitada é por demais abstrato
para a maioria das pessoas. Assim, o lama é um representante da
natureza ilimitada. Por isso dizemos: “Tomo refúgio no lama, que é |
as Três Joias”. Quando o lama desaparecer, estaremos refugiados nas |
Três Joias. Não há diferença. Essa é a forma adequada de entendi- |
mento. Não tomamos refúgio na pessoa do lama, mas nas Três Joias,
que tentamosveratravés daquele ser à nossa frente. Se não conse- |
guirmosver, não há como tomar refúgio nelas. Podemosaté criaruma
relação pessoal com o lama, masisso não é refúgio. Refúgio é quando |
o Buda interno, nossa natureza de sabedoria, começaa aflorar, e por

146 |
isso somos capazes de ver as Três Joias no lama. Se não conseguimos
vernele essas qualidades, vemos um ser comum.
Um lama em carnee osso ajuda porque ele fala, tem maior
proximidade. Como temosdificuldade de localizar o lamainterno,é
necessário o surgimento de um lamaexterno, que entra em ressonân-
cia com a nossa natureza interna. O refúgio no lama externoé o cami-
nho que nosleva ao ponto último da naturezailimitada; esse caminho
se chama Guru Yoga. Não se trata de um caminhode aprisionamento a
alguém, mas um caminho que usa a liberdadeparaatingir a liberdade
final. No ponto final de Guru Yoga, encontramos o Budainterno como
nossa natureza incessante e sempre presente.
Olhamos as Três Joias, e tomamos refúgio no Buda como
expressão da nossa natureza, daquilo que não nasce, não morre, que
está além de espaço e tempo, nome e forma. Quando, nos ensina-
mentos mais profundos, contemplamosisso, vemos esse Buda como ao
a nossa natureza incessante, sempre presente. Como percebemos “Tomar refúgio em quê?
queela é incessante? Podemoster sonhos,aflições, podemos dormir Na natureza tal comoela
e ter várias situações no cotidiano. Estamos sempre vivendo alguma é. Não é tomar refúgio em
coisa. Essa é a explicação mais fácil de natureza incessante; o sonho alguém, mas na natureza
é incessante; o conteúdo do sonhonão é importante, o que importa é ilimitada. Olhamosas Três
ver o processo luminoso, o processo de atribuição de significados, de Jóias, e tomamosrefúgio no
identidades, operando sem cessar. Isso é a continuidade. A palavra Buda como expressão da
nossa natureza, daquilo que
tantra é traduzida às vezes como continuum. Há uma continuidade, é
quase fácil de perceber. É claro que precisamosassociaressa conti- não nasce, não morre, que
está além de espaço e tempo,
nuidade à noção de vacuidade, porque é uma continuidade de sonho.
nome e forma. Quando, nos
O que experimentamos pode ser pensado de diferentes maneiras, ensinamentos mais profun-
mas estamos sempre experimentando umaversão, um aspecto quase dos, contemplamosisso,
onírico. Estamos sempre no meio de um sonho. vemosesse Buda como a
Porisso dizemos que toda a realidade é luminosa, no sentido nossa natureza incessante,
de que está ligada inexoravelmente a uma interpretação que brota sempre presente”
inseparável de nossaestrutura interna. O mundo externo brota inse-
parável de nossas estruturas de carma. Aquilo que brota dentro de
nós, vemos brotando fora, por meio da coemergência. Desse modo
percebemosquehá algo incessante.
No budismo, dizemos que as experiências não cessam
com a morte; outras tradições religiosas dizem o mesmo: uns vão a
julgamento, outros para mundos celestiais, outros para o inferno.
O importante é que, qualquer que seja o ambiente, há uma continui-
dade de consciência. É a noção de tantra, há um ho que vai nos levando
enão é interrompido.

APÊNDICE 1 | 247
Dizemos queessa natureza é incessante. Estamos falando do
Buda em um sentido muito amplo. Essa natureza incessante é lumi-
nosa, apresenta sempre diferentes aparênciase versões da realidade.
Incessante e luminosa, ela é não obstruídae autoliberta; as obstruções
surgem e cessam sucessivamente. Ela é naturalmente desobstruída,
nenhuma obstrução altera sua qualidade básica de liberdade. Ela é
não dual, portanto.
é
Nesse ponto da prática tomamos refúgio no Buda, como REFÚGIO NA
natureza incessante e luminosa. Tomamos refúgio no Darma, comoos
ensinamentos do Buda. Tomamos refúgio na Sanga, como uma ener- MANDALA DO BUDA
gia que emana dopróprio Buda.
Quando meditamos juntos, a mandala se abre e começamos
a ver diferente. Manter o refúgio é manter essa visão da mandala
ondequer que estejamos. Perdero refúgio significa sair da mandala e
entrar em umapaisagem deaflição. Não se trata de umapaisagem física,
é umavisão lúcida da natureza incessante, luminosae inseparável do
conteúdo dos fenômenos condicionados. Podemosir a cemitérios,
prontos-socorros, a qualquerlugar, e levar a mandala.
Olhando do ponto de vista da mandala, é mais fácil vermos o
lama como o Buda, o Darmae a Sanga, comoas Três Joias, pois o papel
do lama é chegar onde ninguém tem experiência de mandala e abri-
la. Seu papel é não só abrir a mandala, como expandi-la e ajudar a pre-
servá-la. Essa mandala não é criada pelo lama. É a mandala do Buda.
A diferença da mandala do Buda em relação a outras pai-
sagens é que, quando a encontramos, percebemos que ela sem-
pre existiu. Não é fabricada. As outras paisagens são fabricadas.
A mandala do Buda é totalmente abrangente, não há fenômeno que
ela não inclua. As outras paisagenstratam dealgumascoisas, mas não
tratam de outras. É por isso que os mestresdizem que precisamosver
com lucidez, ver a realidade comoela é. Assim veremos a mandala
comoelaé, não fabricada.

O budismo é liberdade. O grande caminho budista é como


o[JM BUDISMO LIVRE
um rio que faz um longo trajeto e se dissolve no oceano da natureza DE SI MESMO
última. Nesse oceano não há sofrimento, nem extinção do sofrimento,
não há causas do sofrimento, não há caminhopara a extinção do so-
frimento, não há realização nem não realização, não há sabedoria
nem não sabedoria. Há a natureza ilimitada, o oceano que sempre
esteve presente.

148 |
APÊNDICE 1 | 149
Apêndice 2
CULTURA DEPAZ

Dentro DO BUDISMO, à responsabilidade univ


ersal e a cultura
de paz surgem como meios hábeis extraord
inários para o benefício
de todos os seres — a começar por nós mesmos.
Para nós budistas, a
melhor forma de relacionamento com todos
Os seres é a prática da
bondade, amor e compaixão. Cuidar dos outr
os é a única forma de
garantir o nosso próprio bem-estar, poistodos
estamosinterligados,
dependemosunsdos outros.
Todos os seres buscam felicidade e tentam
evitar o sofri-
mento. Nãose trata de uma característica exclu
siva dos humanos, ela
é identificada também nos animais e Plantas.
Todos osseres buscam
sempre o que possa garantir sua sobrevivênci
a da melhor maneira
possível e tentam evitar as ameaças. Naexistê
ncia condicionada, tudo
tem início, meio e fim, tudo é impermanente.
Como tudo está sempre
mudando, surge o conceito de positivo e negat
ivo. Vemoscertascoisas
como benéficas para nossa busca pela felicidade
,e outras como preju-
diciais, capazes de gerar sofrimento. E muitas
vezes o que era positivo
torna-se negativo depois de um tempo,e vice-
versa.
Do ponto devista convencional, o budismoaceit
a a noção de
positivo e negativo. Mas, do ponto devista absol
uto, existe a compre-
ensão de que nossa natureza não pode ser afet
ada pelas circunstân-
cias que afetam nossas identidades e nosso
corpo. Portanto, do ponto
devista da naturezaúltima, não há nada que
nos derrube, nosafete,
nos destrua.
Também não consideramos que as pessoas poss
am ser divi-
didas entre boas e más, nem trabalhamos com
o conceito de culpa, de

AR ÊNDICE2 | 151
queas pessoas devam ser responsabilizadas diretamente porsuas ações
negativas. Trabalhamos com o conceito de que, se andarmosde maneira
apropriada, colheremoso que desejamos: felicidade e segurança.
Essa é a perspectiva geral dos ensinamentos. Vamoster ensi-
mamentos provisórios e outros definitivos. Os ensinamentos relati-
vos e direcionadosà cultura de paz serão, pelo menos no início, pro-
visórios. Dizem respeito ao mundo condicionado, onde, esquecidos
do que somos verdadeiramente, nos ligamos a um corpo e dizemos:
“Eu sou este corpo”. Ainda que nosso corpo mude, continuamos
a dizer: “Eu sou este corpo”. Também dizemos: “Eu sou a minha
identidade”. Apresentamo-nos com nossocartão de visitas: “Eu sou
isso”. Ainda que tenhamos muitos diferentes cartões, e tenhamos
nos apresentado de formas diferentes no passado, dizemos: “Agora
sou isso”. E talvez não tenhamos nenhumadesconfiança de que não
somos realmente aquilo.
Desse modo, se nossa identidade vai mal, nos sentimos
muito aflitos; se nosso corpo está mal, nos sentimos muito aflitos, e
nos guiamos poressasaflições. Acreditamos que, se seguirmoso que
parece favorável e escaparmosdo que parece desfavorável, atingire-
mosa felicidade. Vocês devem ter percebido que, dentro dessa pers-
pectiva, ninguém obteve sucesso até hoje. Certas pessoas podem ter
obtido muitos resultados, mas nunca o pleno sucesso.
Isso porque giramos dentro do que chamamos de experiência
cíclica, sem solução. Buscamosa felicidade em coisas impermanen-
tes, que inevitavelmente chegam ao fim e, quandoisso acontece, vem
o sofrimento. O budismo ensina que não adianta procurara felicidade
permanente no samsara, na existência condicionada. Precisamosir
além, procurar em outro lugar.
fo
Nesse momento, estamos imersos em umaversão de cultura AS DIFICULDADES
de paz que apresenta problemas. Temosgraves dificuldades na questão
ambiental, tanto na exploração dos recursos naturais como na polui-
ção. Temos também graves falhas em termosde indivíduose socieda-
de. Estamos em umacultura que permite e eventualmente estimula
várias coisas negativas, desde hábitos alimentares nocivos e consumo
de substânciastóxicasaté questões como corrupçãoe violência.
Assim, o nosso grande barco da cultura de paz tem furos no
casco e está fazendo água. Algumas pessoas acreditam que os furos
estão permitindo a entrada de um tal volumede água que as bombas
não estão dando conta, e o barco está afundando. Paraelas, esse pro-

as2 |
cesso não tem comosercontido, ou seja, a sustentabilidadeda vida
noplaneta não tem solução. Outras pessoas vão dizer: há soluções.
Outras ainda dizem: havendo ou não solução, farei a minha parte.
Eu meincluo entre essas. Se houver solução, espero contribuir de
alguma forma, e se não, já estamossalvos: é apenas um barco, há o
grande oceano, nossa natureza não será efetivamente afetada, seja
pelo que for.
Nossacultura de paz precisa de alguns ajustes. Precisamos
fechar os furos do casco do barco. Para fazer isso, já temostudo de
que precisamos: uma natureza ilimitada e luminosa, capaz de cons- =
truir e de mudar as coisas, e a motivação de alcançara felicidade e “No budismo, não
nos livrarmos do sofrimento. Precisamos entender que o barco é um trabalhamos com a
só, e que vamos flutuar ou afundar com ele, todos juntos. Quando
noção de que exista um
percebemos queas coisas que estamos fazendo parater felicidade e
evitar o sofrimento não funcionam, ficamosdispostos a mudar. Mas
centro do mal, ou um
mudar como? complô para afundar
Dentro da visão limitada, de certo e errado, temos o hábito o navio, ou seres que
dejulgare culpar.E aí brigamosuns com os outros. No caso dos furos desejem infelicidade e
no casco de nosso navio, as pessoas podem se dividir em grupose sofrimento. Por isso,
trocar acusações mútuas: "Foram vocês que fizeram o furo!”, “Aquele não vamos querer
grupo deveria ser jogado da amurada!” A noção de exclusão está muito excluir ninguém”
arraigada dentro de nós, temosa tendência de ver todos que não são
iguais a nós comoinimigos. A história dascivilizaçõesestá repleta de
exemplos de nações que consideravam os outros povos bárbaros. Até
hoje é assim.
No budismo, não trabalhamos com a noção de que exista
um centro do mal, ou um complô para afundar o navio, ou seres
que desejem infelicidade e sofrimento. Por isso, não vamos querer
excluir ninguém. Os comportamentosnãosão perfeitos, mas podem
mudar. Todos temosa natureza ilimitada, temosreceitas que funcio-
nam e outras que não funcionam, e então temos que aprimorar os
nossos processos.
£
Dentro da noção de responsabilidade universal, o que AS SOLUÇÕES
vamos fazer? Vamos cuidar para que nossas ações sejam menos
agressivas e mais positivas. Quando agimos assim, ficamos mais
felizes. Se pensamosquetrazer benefício aos outros é um proble-
ma, e que arrancar as coisas dos outros ou jogá-los pela amurada é
melhor, o casco do barco começaa se romper. A sustentabilidade
fica afetada.

NDICE | 153
As pessoas autocentradas e que tentam arrancar coisas dos
outros ficam aflitas, pois sentem-se cercadas de inimigos. Elas defato
cultivam inimizades e negatividade,e isso vai gerando isolamento,
dificuldade para conviver com os outrose consigo mesmo. À agressi-
vidadetorna-se um hábito. Os amigose parentes tentam ajudar, mas
é muito difícil. Vocês provavelmente já devem ter procurado ajudar
adj
pessoas queestão afundando no meio das aflições. É complicado porque,
para nós, não há razão nenhuma para aquela aflição, maso ser aflito “.. devemos estabelecer
está povoado de condições negativas e não vê solução. relações positivas conosco,
Por outro lado, se desenvolvermos relações positivas com os com os outros seres,
outros, nos sentiremos maisfelizes. Teremos identidades melhores, com o ambiente social
desenvolveremos pensamentos atitudes positivas, vamos nos ali- ecomo ambiente natural.
mentar melhor, ter melhor saúde, tudo melhora. Desenvolver rela- Aqualidade básica por
ções positivas não significa que vamos concordar com tudo. Em certos trás dessa recomendação
casos, precisamos desenvolver umaposição firme contra negativida- éa estabilidade inseparável
des. Um bom exemplo é a educação de nossos filhos: deixar que façam do conceito deliberdade.
tudo que quiserem jamais seria uma relação positiva. Nesse caso, liberdade
Essa compreensão é a compreensão da cultura de paz, e ela significa não ser arrastado
tem uma recomendação específica e prática: devemos estabelecer pelas situações, mas poder
relações positivas conosco, com os outros seres, com o ambiente dirigir a própria ação com :
social e com o ambiente natural. A qualidade básica portrás dessa lucidez”
recomendaçãoé a estabilidade inseparável do conceito de liberdade.
Nessecaso, liberdadesignifica não ser arrastado pelas situações, mas
poderdirigir a própria ação com lucidez.
Se umasituação negativa nosaflige e perturba, perdemos a
lucidez, não conseguimosdirigir nossa ação, somoslevados pela res-
ponsividade. Quando mantemosa estabilidade, não somos afetados,
mantemosnossa liberdade e lucidez, não adotamos atitudes de exclu-
são erevide.
Algumas pessoas conseguem mover-se em meio à negativi-
dade sem atitudes de exclusão e de revide por terem umafé profunda,
& outras por terem uma lucidez muito grande. O melhoré juntarfé e
lucidez. Nessecaso,temos a certezaintuitiva da fé associada ao racio-
cínio lúcido.
Esseé o conceito deculturade paz. Poderíamosensiná-lo aos
nossos filhos nasescolas, mas a melhor formade fazê-lo viveresse
princípio. Nosso objetivo é queas pessoas possam refletir sobreisso. Que
elas percebam que podem se recriar como pessoas melhores adotando
outra maneira de se relacionar consigo mesmas, com os demais seres,
com a sociedade e com o ambiente. Vivendo na cultura depaz, vemos

154 |
todosos seres comoaliados: comonós,eles queremfel
icidade e não
querem sofrimento. Não excluímosos seres imersos em
negativida-
de, nem sentimos aversão por eles.

PÊNDICE 2 | 155
Indice remissivo
de ilustrações
Bupa,6, 84, 139, 150 ——— detalhe, 49
detalhe: 13 3 VIJNANA, 50

CaminHo nO MEDITANTE, 87 — 4 NAMA-RUPA, 52


—— detalhe: 91, 92, 95, 96 detalhe, 55
Cwacnup Turku RinpocHE, 11 5 & SHADAYATANA, 56
Cuenngzic (Avalokiteshvara) —— detalhe, 59
detalhe: 2, 14, 105, 106, 107, 6 SPARSHA, 60
Cuzo,41,45 —— Te VEDANA, 62
Dazar Lama,S.S., 149 —— detalhe,65
— detalhe, 142 8 TRISHNA, 66
Diant Bupas, Crnco —. detalhe, 67
Amogasiddhi, 139 9 ss UPADANA, 68
— Akshobia, 6,139 —. detalhe, 71
— Amythaba,84,139 — 10 & BHAVA, 2
— Ratnasambhava,139 ——— detalhe, 75
Vairochana, 139 — e JEI, T6
Dracão,155 — detalhe, 79
Guru RinrocHE —— 12 + JANA-MARANA, 80
—— detalhe, 130 ——— detalhe, 83
MANJUSHRI, 140 Os três reinos superiores:
PraJNAPARAMITA, 100 REINO DOS DEUSES
——— detalhe, 43 — detalhe, 26, 27, 28, 36
— mantra,alfabeto U-me, 17, 129 — REINO DOS SEMIDEUSES
KUTUNSANGPO COM CONSORTE, 138 — detalhe,27
Rona DAVIDA, 21 REINO DOS HUMANOS
—. detalhe: 13, 24, 34, 39, 84, 99, 150 — detalhe, 9,10, 29, 37, 38, 89, 148, 144, 145, 151
Os 12 Elos da Originação Interdependente: Os três reinosinferiores:
18 AVIDYA, 40 REINO DOS ANIMAIS
———— 2 & SAMSKARA,46 —— detalhe, 30

157
YBODISATVA $
www.cebb.org.br

CEBB Caminho do Meio


Estrada Caminho do Meio, 2600
Cep 94515-000, Viamão,RS.
Tel; 51. 3485.5159 |51. 8129.0889
viamaoQcebb.org.br

CEBB Darmata
Fazenda Nossa Senhora, Km 7
Cep 55870-000
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Tel: 81.9201.9336
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Outros livrosdo autor:
MeprraNDo AVIDA, ed. Peirópolis, 2001.
Joia os Deszyos, ed. Peirópolis, 2001
O Lama zo Economista,ed. Rima, 2004.
Rerações » Conrrrros, ed. Mandala do Lótus, 2006.
Mannata DoLórus, ed. Peirópolis, 2006.
“Acesse nossa loja e confira cds e dvds sobre a Roda da Vida,
Psicologia Budista, os 12 Elos da Originação Interdependente,
além deoutros temas e produtos: < www.LOJA.CEBB.ORC.BR >.

O mestre budista Padma Samten tem auxiliado inú-


meras pessoas em suas vidas e relações cotidianas,
com ensinamentos que dialogam com as mais di-
versas áreas do conhecimento. Graduado em física,
Alfredo Aveline, comofoi batizado, fez mestrado em
física quântica e ensinou na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (urres) entre os anos de 1969 a
1994. No início dos anos 1980, intensificou seu in-
teresse pelo budismo e em 1996 foi ordenado lama
— título que significa líder, sacerdote e professor —
por seu mestre, o tibetano Chagdud Tulku Rinpoche.

Em Viamão (xs), ondereside, está situada a sede do


Centro de Estudos Budistas Bodisatva (cesr), fundado
em 1986 e dirigido porele. Seu trabalho está voltado
à orientação das atividades de seus alunosatravés do
estudo, da prática de meditação, de retirose, sobre-
tudo, pelo auxílio na compreensão da espiritualida-
de e da cultura de paz como caminho para o desen-
volvimento de boas relações com o meio ambiente.

O Lama Samten ensina o budismo com uma lin-


guagem acessível e alegre, baseada nas experiên-
cias do cotidiano. Suas atividades são pautadas
pelos princípios do não sectarismo, da responsabi-
lidade universal e da cultura de paz. Também atua
no estabelecimento do diálogo inter-religioso e
na união com movimentos sociais e ecológicos.
Contatos:
Trrrant HoLtack GYaTsO & EQUIPE www. tiffanihr.com
Fário RopRIGUES «e iodrisOgmail.com
Jean Françõis Bonarr«jean. francois. bodartQgmail.com
GurLaeame ERHARDT «flickr. com/photos/guilherme. rgs
Monrque CaBraL «e www.trilharte. com.br
MARIANA AURÉLIO + mariana. aurelioOgmail. com

Este livro foi composto utilizandoas fonts Filosofia de Suzana Licko, Vista Sans
de Xavier Dupré,Dalliance
Flourishes de Frank Heinee Vendetta Light de John Downere impresso em papel
couchéfosco 120g/m: pela
editora Peirópolis em 2010.
Em A Roda da Vida como caminho paraa lucidez, o Lama Padma Samten oferece aos
leitores de língua portuguesa um resumo de alguns dos pontos fundamentais do
budismo. Com uma linguagem simples e bem-humorada, descreve os doze passos
da construção dosofrimento humano— representados na imagem da Rodada Vida —,
assim como o método paraalcançar a lucidez, ou seja, a liberaçãodo sofrimento. sy%

YBODISATVA y

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