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A RODA DA VIDA 1 - Texto Selecionável
A RODA DA VIDA 1 - Texto Selecionável
10-06998 coo-294.3444
1º edição, 2010
corro2 qm
Peirópolis
Editora Peirópolis Ltda.
Rua Girassol, 128 — Vila Madalena
05433-000 — São Paulo - SP
tel.: 511 3816-0699 | fax: 55 11 3816-618
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Sumário 5
APRESENTAÇÃO ga a e
INTRODUÇÃO. -— T
CapíruLo 1
Um jardim chamado dukkha
A primeira Nobre Verdade 19
CapíruLo 11
Os fenômenos dançam
Os iz elos da originação interdependente -. ...... 98
1 AVIDYA a
—— 2 4 SAMSKARA e - — eee me mea 47
38 VIJNANA s1
RRE
—— 5 8 SHADAYATANA ces 57
— 68 SPARSHA mm e Ee = S = Eta ed
74 VEDANA 63
——» 8 4º TRISHNA — — —- = - — — e is meça asi eee case
- 98º UPADANA A E Ei = ss
e 10 4 BHAVA = qem cm mens eaemara me mr pre avi e nor ns |]
Ne JETI - El
—— 12 4 JANA-MARANA — 8
CapíruLoIII
Dissolução da experiência da Roda da Vida
AS rearaO cao aaa a cp 85
— 1º passo: Motivação 86
— 2º passo: Não praticar ações danosas com amente — d6
— 3º passo: Nãopraticar ações danosas comafala ...... a
— 4º passo: Nãopraticar ações danosascomo corpo... 90
— 5º passo: Ação transcendente e compassiva ecoip css
= 680º, 06º PASSOS: Asietipas dá MEdItAÇÃO = uscegas ig cars as
VISÃO, MEDITAÇÃO E AÇÃO 96
—— 0 SENHOR DA RODADAVIDA. 9?
CaríTULO IV
A perfeição da sabedoria — 101
SILÊNCIO E LUCIDEZ 103
CHENREZIG E OS CINCO SKANDAS a 108
— AS QUATRO MONTANHAS: Nascimento, vida, decrepitude e morte RE.)
——— INÍCIO DO DIÁLOGO DO SUTRA DO CORAÇÃO no
—1º exempro: Objeto imaginado aa uz
—— 2º EXEMPLO: Figura gráfica ns
avpananto: Objeto tridimensional... are caraecra
4º EXEMPLO: Uma pessoa ns
QUATRO NÍVEIS DE EXPERIÊNCIA: A conclusão -——ago
PAISAGEM, MANDALA E REALIDADE DO MUNDO
SÍNTESE DA ANÁLISE DO PRAJNAPARAMITA e a encarece ADO:
FACULDADES DOS SENTIDOS E OBSTRUÇÃO
—— O MANTRA INSUPERÁVEL
ENERGIAS — 130
Capíruro v
Emaho!
Conclusão 133
APÊNDICE 1
Os quatro pensamentos que transformam a mente e a mandala da lucidez —ag
—— A LINHAGEM 141
APÊNDICE 2
Cultura de Paz " 151
AS DIFICULDADES 152
AS SOLUÇÕES - 153
Lama PadmaSamten,
março de 2010.
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO 1
Essaé a etapa de ação. Ondea pessoa vivia antes? No mercado.
E onde chegou depoisde todoo processo? Ao mercado! Assim,a últi-
maetapaé o retornoà primeira. Masa pessoa que retorna ao mercado
não é mais uma pessoa comum, não vai mais agir de forma comum.
ego
12
é»
Dentro da visão budista, essa etapa de ação em favor da cul- OUVIR OS SONS DO
tura de paz(o benefício de todos os seres) equivale à manifestação de
MUNDO
CGhenrezig (ou Avalokiteshvara), o Buda da Compaixão. Chenrezig é a
deidade básica de Sua Santidade o Dalai Lama,e se diz que ele é uma
emanação de Chenrezig que circula pelo mundo para ajudaros seres.
Existem várias deidades no budismo, que representam as
diferentes formas de ação da mente iluminada dos Budas. À partir
dessas diferenças, pode-sedizer que algumadeidade seja a principal.
Eu tenhoa tendência de pensar que a deidade mais importante seja o
Buda Primordial, Kuntuzangpo ou Samantabhadra, porque represen-
ta a qualidadede iluminação que cada um de nós sem exceção possui,
e quefaz detodosos seres sencientes um Buda em potencial. A natu-
reza de buda é a verdadeira natureza de todos os seres sencientes.
É o absoluto. Nos Budas, a natureza fundamental está plenamente
desperta. Eles fazem coisas diferentes, mas todas as suas ações estão
unificadas pela perspectiva de Kuntuzangpo.
Ainda que o absoluto esteja sempre presente, a imensa
maioria das pessoas não é capaz de reconhecê-lo. As pessoas veem
apenasa sua experiência comum de mundo. Porisso, embora o Buda
Primordial seja muito importante, por ser tão sutil e tão extraordi-
nário é pouco entendido e poucovisto. Ainda que sua capacidade de
gerar benefícios seja vasta e incomensurável, é difícil para nós vermos
Kuntuzangpo em ação e entrar em harmonia com ele. É como se nos-
sos olhos não o alcançassem.
Do extraordinário Kuntuzangpo ou Samantabhadra ema-
nam os cinco Dhiani Budas: Akshobhya, Ratnasambhava, Ami-
thaba, Amoghasiddhie Vairochana. Quando pensamos em Amithaba,
nos alegramos. Ele nos ensina a ficar em silêncio, e através dele
nos conectamosà deidade última. É a porta que nos permite acessar
amnatureza última.
Podemosver o Buda Amithaba por todosos lados. Por exem-
plo, a família Padma (Lótus) que meu mestre Chagdud Rinpoche
trouxe para o Brasil é a família do Buda Amithaba. O nome que me
deu é Padma Samten,o que significa que eu pertençoà família Lótus,
e que vou me manifestar no mundo conectado ao processo pelo qual
Amitabha oferece seus ensinamentos,queé essencialmente a medita-
ção em silêncio. Samten,aliás, é meditação. Ou seja, meu nomepode
ser entendido como Meditação do Lótus. Então, essa é minhafunção.
NTRODUÇÃO | 15
Agora, mesmo Amithaba é muito sutil para a maior parte das
girando,
pessoas. Elas sentam em silêncio, mas suas mentes ficam
Amithaba
fazendo planos, e a meditação não rende muito. Por isso,
ixão já é
emana o Buda da Compaixão, Chenrezig. O Buda da Compa
outros olhem
diferente. Ele não fica sentadinho esperando que os
e interage
para ele. Chenrezig vai ao mundo, ouve os sons do mundo
à etapa
com as aparências do mundo. Isso corresponde exatamente
es, de
de ação que estamos abordando. É o patrono detodasas deidad
todos os
todos Budas, detodos os mestres, de todos os bodisatvas, de
m,
seres que andam no mundo, seja qual for a aparência que tivere
super ar seus sofrim entos.
parainteragir com as pessoas € ajudá-las a
O mestre mais reverenciado no Tibete é Padmasambhava,
Padma-
conhecido como aquele que nasceu sobre um lótus, um Buda.
senta esse
sambhava é inseparável de Chenrezig; ele também repre
ir até os
idealextraordinário de andar pelo mundo de formalúcida,e
serespara ajudá-lose lhestrazer benefícios.
Quando as pessoas entendem a visão e meditam, chegam
aos outros
ao ponto de desenvolver a aspiração de trazer benefícios
, de acord o com
seres. Com essaaspiração, encontrarão meios hábeis
ões de
os obstáculos que surgirem. Os meios hábeis são manifestaç
o dizem os que
Chenrezig e podem se expandir continuamente. Quand
perfeita
“a meditação se completou”, significa que vemos de forma
expan são dos meios
o Buda Amithaba. No entanto, isso não limita a
er e
hábeis; podemoscontinuar encontrando outras formas de socorr
o que dizem os:
beneficiar as pessoas nas suas dificuldades. É poriss
O nível de
aindaque a iluminação seja completa, ela aumenta sempre.
ação pode aumentar incessantemente.
fo
Nos temposatuais, precisamos de meios hábeis para exerc
er REALIDADE VISTA
tas têm uma forma partic ular de ação
ações positivas. Os grupos budis PELA VACUIDADE
ensina-
ouvir
que consiste, por exemplo, emter umlocale horário para
mudanças
mentos, fazer prática meditativa e,a partir disso, promover
r a esse proce-
na vida pessoal. Noentanto, não precisamos nos limita
s, com
sso. Existe um grande número de pessoas, em diferentes lugare
as entre m pela
aflições variadas. Em vez de esperarmos que as pesso
rodelas.
porta danossasala, podemos “ouvir os sons”e ir ao encont
Precisamos olhar os problemasdosindivíduose dasoci edade
dade eco-
de forma ampla, o que envolve tecnologia, educação, ativi
s que pensa r em
nômica,sistema judiciário, todasas esferas. Temo
16 |
termosglobais, o que remete à noção de responsabilidade universal,
comoSua Santidade o Dalai Lama tem enfatizado.
No budismo, a percepção da realidade fundamenta-se na
compreensão da vacuidade. Enquanto todos os demais grupos reli-
giosos consideram o mundosólido na forma comose apresenta, nós
consideramos o mundo inseparável dos olhos do observador. À com-
preensão ainda que parcial da vacuidade é essencial para se enten-
der no queos budistas acreditam e como veem todos os fenômenos.
O texto clássico para o estudo da vacuidade é o Sutra do Coração,
o Prajnaparamita.
UM JARDIM
CHAMADO
DUKKHA
3º
AVIDYA 1
Perda de visão
2 Vidya, em sânscrito, significa sabedoria,visão, lucider; avidya significaperdada visão. OS FENÔMENOS DANÇAM| 41
e"
Pelo raciocínio, percebemos que o cubo por criarmos a parcialidade, podemos dizer que a
surge de forma inseparável de nossa mente. Quan- natureza de budaestá presente em nós. Ondea par-
do nossa mente se posiciona, o cubo aparece. cialidade se ancora? Na natureza última, na nossa
Quando se reposiciona, o cubo aparece de outra capacidade de criar as coisas. Por que não vemos
forma. Essa é uma operação verdadeira, mas que isso? Por causa de avidya! Pela capacidadede oculta-
está oculta. É espantoso que um desenho tão sim- ção que a delusão manifesta. Avidya manifesta dois
ples seja capaz de oferecer tal compreensão. Esse é aspectos simultâneos: a capacidade de manifestar,
o segredo secretíssimo deavidya. ou luminosidade, e a capacidade de ocultação.
Quando olhamos um Buda pintado em A manifestação de avidya produz um fe-
tecido, vemos o Buda no pano, masna verdade ele chamento. Quando uma coisa aparece, produz uma
é inseparável de nós. O queexiste é tinta sobre o ocultação, pois deixamos de ver outras, e essa
tecido, mas nós vemos o Buda, do mesmo modo ocultação também passa despercebida —avidya gera
que vemos um cubo onde só existe papel e traços. a ocultação da ocultação. É a estreiteza da visão —
A separatividade é construída. A experiência de uma estreiteza que parece amplidão, pois todo um
separatividade é limitante, porqueela não existe de panorama se descortina, surgem imagens, visões
fato, nãoé real. aparentemente concretas, ao mesmo tempo em
Quando olhamos uns aos outros, também que outras opções de experiências ficam ocultas
nos vemos separados, vemos os outros com qua- pela experiência das imagens surgidas. Avidya nos
lidades que parecem brotar deles mesmos. Essa permite operar no mundo, mas sempre através da
forma de olhar também é avidya. As qualidades que delusão. Quando um objeto surge, surge a delusão e
vemos nosoutrossão inseparáveis da nossa própria o impulso de ação correspondente.
mente. Olhe a foto de alguém. Você vê qualidades O cinema é um bom exemplo para se
nessa pessoa, você desenvolve sentimentos ao entender o processo de avidya. Quando entramos
olhara foto? Mas não há ninguém ali, apenas papel nahistória de um filme,a responsividade começa a
e tinta. Assim, de onde viriam as qualidades que se manifestar. Sentados em nosso sofá, ou na pol-
você está vendo? As qualidades que vemos nasfotos trona do cinema, com um pacote de pipoca em uma
surgem de nossa própria experiência cármica; assim, mão e um refrigerante na outra, sentimos emoções
o conteúdodas fotos pode mudar com o tempo. Nós ligadas às imagens que surgem natela. Isso é avi-
mudamose as fotos então mudam. E não apenas as dya operando, delusão. Ficamos presos ao filme:
fotos. Nossas lembranças mudam,o passado muda. choramos, rimos, nos assustamos. Se a televisão
O passado se estrutura a cada momento como uma e o cinemaexistissem na época do Buda,ele cer-
nova experiência na nossa mente, Também ele é tamente iria apontá-los como um bom método de
a manifestação dessa mente criativa e incessante. prática. O Buda usou os exemplos da época, comoa
A luminosidade não obstruída, livre e criativa pinturae o teatro.
manifestada através da mente é a natureza de buda Estamos vendo um filme, temos vontade
dentro de nós. de chorar e pensamos: “Essa vontade de chorar é
Essa é a razão pela qual podemosdizer que completamente tola.” Ainda assim, evitar o choro
a natureza de budaestá em toda nossa experiência. é uma construção, chorar também é uma construção.
Por manifestarmos avidya, podemos dizer que Às vezes choramos e paramos, achandoa situação
temos uma natureza de buda. Por nos enganarmos, ridícula. Depois voltamos a chorar. Mais uma vez
nos sentimos ridículos e paramos novamente. Se a pessoa diz: “Mas eu tenho o maior carinho,
Assim, vagueamosporvárias paisagens. No entanto, o maior respeito por você”, talvez venhamosa sentir
se tivermoslucidez duranteo processo, poderemos um grandealívio. O peso quetínhamos em cima
optar por chorarou não, tanto faz. de nósse dissolve. Esse peso era irreal, vinha da
Tendo lucidez, podemos pensar: “O choro delusão, de avidya.
é perfeito dentro desse conjunto de situações, eu
estou nessa paisagem,e nela o choro é completa-
mente natural.” Para elucidar o processo, podemos
avançar por dentro daquela paisagem. Podemos
chorar para perceber a experiência de sofrimento
em que os seres estão imersos. Nesse caso, não
existe a ocultação da ocultação, não estamos presos.
Nós andamos por dentro da paisagem, temos as
experiências, mas com liberdadee lucidez em meio
ao processo.
Quando estamos presos por avidya, a pai-
sagem em que nos encontramos parece ser a única
realidade, e nossa ação ou reação parece plenamente
justificada. As paisagens e nossas ações sempre
correspondem a algum dos seis reinos. À experi-
ência parece completamente sólida, não vemos
outra saída. Se alguém disser que não precisamos
passar por aquilo, que poderíamosagir de outro
modo, reagiremos um poucoirritados. Não vemos
solução, fomos fisgados, engolidos pelo processo
de delusão e pela aparente concretude de tudo ao
“.a essência da
nosso redor, como com o cubo. Temosa sensação
clara de estarmos imersos em um mundoexterno a
experiência de
nóse independente.
A prisão de avidya se manifesta em corpo,
separatividadeestá
fala e mente. Quando choramos, as lágrimas des-
cem pelo nosso rosto, o corpo está atuando. À fala,
na dependência da
que no budismoequivale à emoção, está envolvida
também, sentimos nossa energia consumida por
operação mental de
pensamentos negativos. A mente torna-se refém
desse processo completamente abstrato. À prisão é avidya. Ela cria a
irreal, mas estamos enclausuradosnaexperiência.
Se nos desentendemoscom alguém, pode- experiência do cubo
mosver a pessoa como inimiga. Achamosque ela
quer nos causar mal, e essa sensação nosfaz mal. no papel.”
SAVANA 2
Marcas Mentais
O OBSERVADOR GERA UMA AUTOCONSCIÊNCIA, com o tempo começamosa associar os pontose ver
infere sua existência ao observar as sensações e imagens. Vemos figuras onde só há pontos. Esse é
os pensamentos que experimenta. Esse é o ter- vijnana encontrando um modo dese expressar nos
ceiro elo, vijnana, representado na Roda da Vida objetos percebidos comoexternos.
por um macaco. Para estabilizar a mente, buscamosobjetos
Nessa condução de um objeto para outro, que possibilitem um foco. O mundointeiro termina
percebemosa inseparatividade entre aquele que sendoa expressão da nossa mente. É comose pen-
vê e aquilo que é visto, nos damosconta de que o sássemos com o mundo. O mundoé inseparável da
objeto é uma experiência de objeto, e que a ener- nossa mente, é uma extensão do nosso processo
gia é uma coisa que sentimos. Quando dizemos mental. Ele manifesta vijnana e samskara.
“a energia é uma coisa que sentimos”, surge a cons- A pessoalocaliza sua energia e a faz ope-
ciência do observador. O observadorse vê. É como rar. Ela vê e legitima o surgimento da energia que
se ele recuasse e pudesse observar a si mesmo. Ao faz tudo acontecer. Todas as delusões brotam dali.
ver a energia, ele podedizer: “Eu vejo a energia em É o surgimento daidentidade no nível maissutil.
mim.” Quandotal percepção se manifesta se esta- O “eu” aqui não é o corpo físico, mas significa-
beleceo terceiro elo. dos, impulsos, marcas cármicas. Porque o mesmo
Assim como Himalaia significa “depósito de impulso aparece repetidas vezes, dizemos que
neve”, alayavijnana significa “depósito de vijnana”. somosesses impulsos.
É como um conjunto de marcas na formade ener- Essa energia é apenas um brilho da mente.
gia, ou possibilidades de consciência, possibilida- Nesse ponto ainda nem existe a materialidade.
des de posicionamentos do observador. Existe apenas a energia sutil. Se entendemos
Samskara são marcas pelas quais vemos o isso, podemos manifestar liberdade com relação
mundo (estruturas, paradigmas, teorias, visões); à energia, manifestá-la em uma outra direção.
parece estar no mundo, no objeto. Vijnana são as Percebemos que a prisão nãoexiste.
marcaspelas quais o observadorvê a si mesmoe se
constrói; parece estar presente no observador que
vê o mundo. Mas os dois conjuntos — samskara e
alayavijnana — sempre estão juntos, são absoluta-
mente complementares.
Podemos perceber que, meditando de
olhos abertos, de frente para uma parede rugosa,
Nome e forma
JáreEMoS TRÊS MARCASSUTIS OPERANDO: avidya, Por esse motivo, por exemplo, procuramos lugares
samskara e vijnana. Surgimos com uma identida- serenos quando queremosnosacalmar.
de, mas ainda não temos materialidade. Quando Quando presenteamos alguém também é
entramos no quarto elo, inconscientemente des- assim. Damos um presente com a intenção de gerar
cobrimos que certas coisas movimentam energia um estado mental no outro. Em um nível profundo
atraindo e outras não, e que os objetos, movimen- de observação, podemos perceber que oferecemos
tando energia, têm o poder de sustentar estados um estado mental ao outro.
mentais específicos. No quarto elo, nama-rupa*, Nama-rupa produz a experiência de que
ainda não temos o objeto, mas começamos a morreremos quando perdermos algo precioso.
desejá-lo. Por isso é simbolizado por um barqueiro Nós nos identificamos com certos objetos,
vagueando em um rio: há a aspiração de chegar sejam eles concretos ou abstratos, porque eles
a um objeto específico para sustentar um estado fazem brotar em nós uma energia que nos dá a
mental específico. sensação de existirmos. No momento em que
Como sabemos que encontramos o objeto tudo desmorona, surge o pavor da dissolução.
certo? Brota uma energia. Existem abundantes Vamos usar como exemplo alguém que perdeu o
exemplospara esse processo: “gosto mais de lençóis marido ou esposa, ou o filho, o emprego, a casa.
azuis”, ou “prefiro carros grandes”, ou “não gosto A pessoa se pergunta: “O que faço? Quem sou? Eu
de acordar cedo”. Experimentem passear pelos sou alguma coisa?” Para ela tudo fica cinza, nada
shoppings observandoisso, vocês vão perceber que mais tem o valor ou a atração que possuía antes.
cada objeto desperta uma reação. Quando divaga- O mundo morre, desaparece. A pessoa vagueia,
mos em nossos sonhos também surge a energia que flutua. Se tiramos todos os aspectos que estabili-
nosatrai a situações e objetos. zam nossos estados mentais, isso pode realmen-
Com nama-rupa, começamos a operar te acontecer.
com fato de que certos objetos percebidos como É comose nama-rupafosse os mais diversos
externos nos remetem à sustentação de aspec- espaços de possibilidades. Temosos espaçose, den-
tos sutis percebidos como internos. Os aspectos tro deles, há o queé possível e o que não é possível
sutis flutuam, mas, se colocamos objetos que nos encontrar. Estamoslimitados a encontrar aquilo que
evocam esses aspectos sutis, fazemos com que se nos permitimos encontrar, aquilo que reconhece-
tornem mais permanentes. Os aspectos mentais mos. Mas o mais importante é perceber que nama-
abstratos se beneficiam de uma materialidade. -rupa também é luminosidade.
u [57
dos fenômenos que surgem conjuntamente com Niels Bohr diz que só conseguimos superar
o instrumento. Então, quando o objeto interage essa ambiguidade se, ao descrevermosa partícula,
com o instrumento, surge um evento cognitivo com também o fizermos em relação ao instrumento
aparência de evento externo e concreto. Esse evento de medida utilizado. Além disso, é indispensável
é completamente inseparável da forma como foi descrevero experimento, as teorias e perguntas do
construído pelo olhar do cientista, ou seja, pelo cientista que compuseram esse processo. Portanto,
modo comoa relação ocorreu. Se eu tirar o instru- para Bohr, aquilo que vemos comopartícula é inse-
mento que propicia o espaço de encontroou inter- parável do equipamento experimental, do experi-
face entre sujeito e objeto, o evento não acontece. mento, das perguntas e paradigmas (teorias) que
Se eu trocar o instrumento, terei outro evento. o cientista utiliza. Muito antes da filosofia de Kant
Na filosofia encontramos essa mesma e dafísica quântica de Bohr, os budistas já haviam
compreensão na obra de Kant. Ele afirmava ser percebidoa inseparatividade entre sujeito e objeto.
impossível conhecer o “objeto em si”, dizia que tal
conhecimento é inatingível para a razão. A mente
funcionaria com base em uma certa percepção
dos fenômenos como um conjunto de asserções
nascidas a partir da intuição transcendental e
a priori de tempo e espaço, ou seja, uma primeira
interface entre os sentidos físicos e a realidade
exterior, um local de encontro. Posteriormente,
e já mediados por categorias transcendentes
do conhecimento ou da razão, os objetos que
aparecem externamente como fenômenos sur-
giriam internamente como conceitos, uma
abstração de fato. Há uma frase clássica no
pensamento de Kant na qual ele afirma que os
conceitos sem objetos são vazios, enquanto que “Quanto mais inusitados e
os objetos sem conceitos são inexistentes, precisos os instrumentos de
ressaltando a interdependência desse duplo grau medida criados, mais
de realidade.
Voltando à física, pensamos que estamos perspectivas de observação
medindo uma partícula de um átomo qualquer da realidade surgem, e com elas
e que a propriedade é da partícula. No entanto, a as mais diversas análises,
propriedade é do experimento como um todo. Se
fizermos outro tipo de experimento com outro aplicações e avaliações. Por
aparelho, teremos outro resultado,algo diferente. mais sofisticados que sejam, tais
Então vamosdizer que aquela partícula tem duas instrumentos não têm
propriedades. Até aí tudo bem, contanto queelas
não sejam contraditórias. Quando encontramos
condições de oferecer uma
propriedades contraditórias, ficamos surpresos. visãofinal da realidade”
Wo .
NEada
SPARSHA
Contato
SparsHA é a utilização das seis faculdades estudoda fisiologia revelou que o olho humano só
dos sentidos, o encontro dos sentidos com os obje- capta umaestreita faixa da radiação eletromagné-
tos. Na sexta etapa dos 12 elos da originação inter- tica presente no ambiente. Por meio de aparelhos,
dependente, estabelecemos o contato e usamos conseguimos detectar outras frequênciasde luz.
a materialidade como se fosse nossa expressão. Diante de uma tela de televisão ou com-
Na figura da Roda da Vida, sparsha é simbolizado putador, nossos olhos identificam as imagens
por um bebê no seio da mãe ou por um casal de produzidas a partir de ondas de rádio convertidas
namorados. Quando surge sparsha, surge o corpo em luz. Telescópios captam imagens do universo,
operandonoseu universo. e vemosplanetas e buracos negros muito distantes
Quando pensamos no contato como um no espaço e no tempo comose estivessem diante de
referencial sólido, inferimos que nossa percepção nossos olhos. Vemoscoisas que antes não veríamos
darealidade é objetiva. Essaé a posição doscientis- naturalmente, e podemos perceber que nossos
tas e dos filósofos que consideram o experimento a olhos não veem tudo que podeservisto.
forma de julgar a realidade daquilo que é experi- Nossos sentidos físicos são limitados,
mentado. Isso significa que o contato que fazemos mas temosa sensação inconsciente de achar que o
possuiria uma objetividade capaz de definir o que universo se resume ao que aparece eles. A maior
é verdadeiro e o que não é. Em termos muito sim- parte dos objetos que conseguimos pensar são
ples, quando dizemos “eu gosto” ou “eu não gosto”, produtos de experiências sensoriais. Nesse ponto
ou “isso é vermelhoe aquilo é azul”, a experiência já é difícil imaginarmos alguma coisa que não
do contato parece ser um parâmetro suficiente para possamos ver, ouvir, cheirar, saborear ou tocar.
validar nossa posição diante do objeto. Nossa mente opera limitadaà restrição natural dos
Nosexto elo passamosa usar os sentidos sentidos físicos.
físicos, mas ficamos muito limitados dentro disso, Quando fazemoscontato, a percepção do
como um macacopreso dentro de umacasa. Amente objeto e o contato com ele parecem a mesma coisa.
é ampla, mas torna-seestreita devido à capacidade Isso é a operação da delusão. Fecheosolhose tente
reduzida de percepçãoatravés dos sentidosfísicos. ver alguma coisa. Abra os olhos. É simples: o que
Porém,o estreitamento nos passa despercebido. temos é o olho que está vendo.
A ciência moderna comprovao pensamento
budista ao oferecer inúmeros exemplos de nossas
limitações sensoriais. Vejamosa luz e o olho. A luz
é uma gama variada de frequências luminosas,e o
Escolhas
NA FIGURA DA RODA DAVIDA, VEDANA,O sétimo não é liberação. Eles continuam usando o mesmo
elo, é simbolizado por uma pessoa que enfia uma referencial, só que em outra direção.
flecha no próprio olho; surge umacegueira adicio- Osvedanas — as experiências de gostar/não
nal. Aqui simplificamos todas as etapas anteriores gostar, querer/não querer — não surgem do objeto
e baseamostodasas fases seguintes em umasensa- que contemplamos. Já vimos que a experiência de
ção. Ocultamosos seis elos anteriores. Não olha- gostar e não gostar sempre parecesurgir referida a
mos mais a microestrutura. O fato de termos uma algum objeto dos cinco sentidosfísicos ou do sen-
sensação boa justifica tudo. Avidya adquire grande tido abstrato (consciência a partir dos sentidos).
poder nesse momento. O objeto aparece a nós e respondemosa ele com um
Social e culturalmente, quando umacoisa “gosto” ou “não gosto”, “quero” ou “não quero”.
é boa, agradável,já está justificada por si mesma. Noentanto, percebemosqueo “gosto/não
Isso significa a flecha no olho. As pessoas que gosto” é uma experiência de gostar ou nãogostar. Os
se drogam dizem que a droga é muito boa. Até praticantes budistas olham para essa experiência e
querem sair daquilo, mas o problemada droga é dizem: “É manifestação da delusão da mente”. Eles
queela é realmente muito boa. Existe um meca- percebem o aspectocriativo, luminoso, mágico, que
nismo de fixação. O fato de alguma coisa ser boa existe nas características que vemos nos objetos.
nostira toda a defesa. Quandoalgo parece bom, Tendo por base essa visão deludida, mani-
ficamos apenas com esse referencial, aprisiona- festamosatração ou aversão diante de objetos con-
dos no processode vedana. É muitodifícil gerar- cretos. Podemosagir da mesma forma com objetos
mos liberdade em relação a esse elo porque não abstratos. Existe uma perspectiva, uma paisagem
queremos nos desvencilhar dele. Tudo vai bem, mental atuando em cada objeto que vemos. Essa
gostamos, estamos realmente satisfeitos. O que paisagem mentaldá significado, serve de base para
queremosé garantir vedana. as características que surgem através da delusão.
Se fosse necessário abandonar vedana As características são experiências, nós as vemos
para seguir um caminho espiritual, a maioria das sustentadas por uma energia de ativação. Enquanto
pessoas desistiria. Entramos em um caminhoespi- contemplamos nossa mente operando, podemos
ritual porque queremos nos sentir bem. Esse é um espreitar essa energia surgindo ou não surgindo.
ponto delicado. Uma questão com a qual os santos Podemos contemplar vedana por meio de
se defrontam. Eles dizem que não importa sentir- umabarrade chocolate. Ao olhá-la, podemos comê-
-se bem ou não. Na verdade, até preferem não se -la ou não. No entanto, não podemos evitar que
sentir bem. Mas não é uma boa solução, porque surjaa atração pelo chocolate. Avidya opera produ-
S FENÔMENOS DANÇAM
zindo a atração pelo chocolate, mas não vemos o estar certos sempre! Esse é um trabalho importante
fato do surgimento, apenas reagimosa ele, temos para nos recompormos, nos estruturarmos para
desejo ou aversão pelo chocolate. Nem percebe- operar no mundo de uma forma melhor.
mos que existem liberdadese prisões surgidas da No entanto, na psicologia budista fazemos
aparência do chocolate.A prisão está em vermos de umaoutra coisa. Dinamitamos esses processos um
modo completamente natural o chocolate surgindo por um. Ou seja, reconhecemos queessa estrutura
com toda suaatração. Ela não está em comê-lo ou de gostar, não gostar ou ser indiferente não é uma
rejeitá-lo, essa opção já é o chocolate nos enga- boa conselheira. Expressar claramente do que
nando. Existe uma ocultação desse fato. Quando gostamos, não gostamose somosindiferentes per-
o chocolate aparece, ele oculta o fato de que está mite-nostransitar no mundo de forma autêntica,
aparecendo. Toda a nossa experiência sensorial é mas não resolve nosso problema. Por quê? Porque
legitimadapelofato de queele aparece. continuamos com contradições internas. Há coisas
A maior parte das pessoas têm sua expe- de que gostamos; perseguimos essascoisas e vemos
riência de observação mais íntima, mais sutil, no que isso produz sofrimento em outras pessoas, o
aspecto de gostar e não gostar. À coisa mais pro- que termina nosatrapalhando. Podemos também
fundaque conseguem ver dentro desi é se gostam olhar profundamente dentro de nós e perceber que
ou não gostam de um objeto, situação, pessoa ou aquilo de que pensamosgostarparece desagradável
lugar. Às vezes temosa sensação de que somos mais sob outra perspectiva. Vemos então que o referen-
nós mesmos quandofazemos o que gostamos e não cial de gostar e não gostar nãoé sólido o suficiente.
fazemoso que nãogostamos. Percebemos que o gostar ou não gostar
Criamos complicações internas quando é produzido pela qualidade de luminosidade da
ocultamos o gostar ou não gostar de algo. Somos mentee é impermanente. Às vezesgostamosdealgo
ensinados a conter nossos impulsos através de que, após um tempo, deixamos de gostar. Como o
disciplina e construímosidentidadesa partir des- gostar é impermanente, vemos que foi sustentado
sas características adquiridas e escolhas de nosso durante um tempo pela luminosidade, quea seguir
entorno cultural. Isso é o processo civilizatório. passou a sustentar o não gostar. Todos nós temos
Essencialmente, não vamos fazer tudo de que gos- essas experiências em relação aocarro, ao trabalho
tamos, nem evitar tudo de que não gostamos; tam- e às pessoas com quem convivemos.
pouco ficaremosindiferentesa tudo quedesejaría- Vemos pessoas que têm tudo o que que-
mos ficar. Seremos educadospara ficar atentos a riam, mas já não querem mais nada daquilo. Se lhes
coisas que não veríamos, aprenderemos como pas- perguntam: “Mas o que é que você quer agora?”, a
sar pelo que não gostamose comoficar bem quietos resposta é: "Nãosei”. Essaé a tragédia da nossa vida.
frente ao que gostamos. Seremos domesticados. Tudoé impermanente porquefoi produzido carmi-
Mais adiante necessitaremos dos psicólo- camente pela luminosidade, mas parece real, con-
gos paranosajudar a revelar essasestruturas escon- creto, vivo, permanente. Sentimos que temos que
didas, liberar as couraças e sofrimentos, para que viver aquilo. Vivemos e depois perceberemos que o
possamos nosexpressar de forma maislivre, para conteúdo produzido pelo carmase esgota. Como uma
que possamos conviver com nossas fragilidades e vela que se consomeaté o fim e se apaga, os conteú-
nossoserros. Para que possamos nos expressar de dos cessam. Ou seja, o impulso, toda estrutura que
uma forma maisnítida, maisclara. Não precisamos não sabemosde ondeveio, cessa completamente.
Portanto, essa estrutura de gostar ou não
gostar não serve. Masé o referencial que usamos.
Então, é natural que tenhamos muitos problemas.
Essa é a origem de dukkha, do sofrimento, explicada
pelo Buda na primeira e segunda Nobres Verdades.
74 |
RSA 14
Circunstâncias da vida
Jerr srenrFICA “CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA”, é a nossa vida, não pensamos como poderia ser
e na Roda da Vida é simbolizado por umacriança de outra forma. Nem temos tempo para avaliar
nascendo, ou seja,o ser vai passar por nascimen- seja lá o que for. Sentimos claramente que temos
to, crescimento, envelhecimento, decrepitude e mais exigências práticas do que somoscapazes de
morte. Mas o ponto importante das circunstâncias atender. Temos urgências, temos prioridades que
da vida é que estamos sempre ocupados tentando tocamos para frente de uma forma incompleta,
equilibrar alguma coisa. Enquanto crescemos, bus- e temos coisas que deixamos para um futuro que
camosestabilizar algumacoisa. O mesmo acontece talvez não surja.
quando amadurecemose envelhecemos. Os aspec- A experiência da vida se traduz como a
tos de crescimento, envelhecimento e decrepitude experiência de um equilibrista. Pensamos que
são somente o aspecto externo do processo. O que a vida é simplesmente a ação do equilibrista. Mas
movimenta tudo isso? Nosso esforço para manter a vida está ligada à motivação do equilibrista em
um universo em equilíbrio. equilibrar. Por exemplo, no cotidiano nos vemos
Esse elo poderia ser simbolizado por um trabalhando. Temos que fazer muitas coisas. Não
equilibrista girando pratos. Ao longo da vida, temos sequer tempo de perguntar quem inventou
a pessoa aumenta o número de pratos até um a necessidade de termos que fazer muitas coisas,
determinado ponto. Depois, no envelhecimento e pois estamos sempre fazendo muitas coisas. Não
decrepitude, o número de pratos começa a dimi- temos noção de como isso começou, mas sentimos
nuir. Chega um momento em que só gira um prato que temos que fazer a nossaparte.
= corpo; a pessoa come e dorme, é tudo. Mais Consideramos todas essas exigências
tarde, eventualmente, ela ainda precisa de um naturais, normais, corretas, legítimas. E nosjusti-
apoio mecânico para ajudar o prato a girar. Mais ficamos: “Eu sei comoa vida é, eu sou um profes-
adiante, nem assim dá. E, finalmente, ela morre. sor; tenho responsabilidades que não são poucas
O envelhecimento é caracterizado pela perda de e das quais não posso fugir”. Nossa ação prática e
habilidade, pela redução das facilidades de se nosso impulso de movimento estão totalmente jus-
movimentar em meio a bhava, tudo em volta começa tificados por umavisão de mundoe por nossa iden-
anão funcionardireito. tidade. Se nossa visão de mundofor, por exemplo,
Nodécimo-primeiroelo, vemosa situação preguiça, também será justificada. Diremos: “Olha,
da seguinte maneira: “Tenho urgências: tenho que não vou nem me mexer, nãovale a pena”.
levar as crianças para o colégio, trabalhar, pagar No décimo-primeiro elo surgea atividade
as contas...” Todas essas exigências são sólidas, que consideramos incessante. Dizemos: “Preciso
AM | 77
fazer isso!” No entanto, nunca surge o complemento: de tentativa de manutenção de equilíbrio. Após o
“Ou não!” Se acrescentamos o “ou não”, surge uma nascimento, vamos adicionando outras coisas,
dimensão de liberdade que, quem sabe, vamos expandindo nossa atividade. Mas tudo que incor-
usar. Em vez de dizer: “Eu tenho tais urgências”, poramos opera por um tempo e depois para, e no
podemos dizer: “Eu tenho a experiência de ter final paramosderespirar.
tais urgências”. E então podemos concluir: “Essa A vida está inevitavelmente ligada a um
experiência de urgência é uma delusão, é um pro- processode equilíbrio. É comoa respiração, inspi-
cesso inseparável da minha estrutura, da paisagem ramos e depois temosqueexpirar. Estamos sempre
mental na qual estou operando. Devo obedecê-la, tentando equilibrar algumacoisa que está se dese-
ou não!” quilibrando, uma posição produz a necessidade da
Muitas vezes não nos damos conta de outra. Não há um momento em que possamosparar
que ninguém é insubstituível. Pensamos que, se efetivamente defazerisso. Assim,é natural que sur-
nós faltarmos, o universo desabará. No entanto, ja sofrimento quando não conseguimosequilibrar.
enquanto ocupamos uma posição, estamos impe-
dindo que outra pessoa a ocupe. É necessário per-
cebermoso outro lado da moeda: pode ser que não
sejamos a melhor pessoa naquela posição. Quem
sabe uma outra pessoa vai desempenhara função
melhor que nós. Estamos ocupando aquele espaço
até por necessidade de uma identidade, precisamos
de umaface.
Às vezes as pessoas têm uma surpresa.
Por exemplo, uma mãe quesai de casa para fazer
um retiro budista surpreende-se quando volta e
encontra tudo em ordem.Ela pensa: “Como? Não
sou indispensável? Como eles ousam imaginar
que podem se equilibrar sem mim?” Ouos filhos
podem dizer: “Sim, sim, mamãe, vá para o retiro. “O processo do décimo-
Deixe que aqui nós tomamos conta!” Vamos nos -primeiro elo começa quando
dando conta de que não somos indispensáveis
como pensávamos. Mesmo assim, voltamos e nos
nascemos. A primeira respiração
sentimos indispensáveis de novo, e continuamos será seguida por outras, pelo
trabalhando, disparando ordens, colocando tudo resto de nossa vida. A última
nos devidoslugares, sem o que tudo desapareceria,
éclaro!
coisa que faremos também será
O processo do décimo-primeiro elo co- respirar. Estaremos presos a um
meça quando nascemos. A primeira respiração processo incessante, cíclico, de
será seguida por outras, pelo resto de nossa vida.
tentativa de manutenção
A última coisa que faremos também será respirar.
Estaremospresos a um processo incessante, cíclico, de equilíbrio.”
ENT
Envelhecimento e morte
QUANDO COMEÇAMOSA TER DIFICULDADES com relutam e sofrem muito; vemos outras que não
o equilíbrio da existência, entramos no décimo- lutam nos momentosfinais e, com isso, têm uma
segundoelo, ou seja, começa o sofrimento ligado morte mais tranquila. Lutar é o décimo-primeiro
a isso. Por exemplo, se estamos com insuficiência elo. E, quando estamos no décimo-primeiro, é
respiratória, ainda não morremos, mas respiramos certo que virá o décimo-segundo. Porisso é certo
mal. Quando o desequilíbrio passa de um ponto, o que cada um de nós irá morrer; estamos todos com
sistema que produz o equilíbrio se desfaz, se frag- o décimo-segundoelo garantido.
menta. Assim é a morte. Guru Rinpoche, o mestre que levou o
Podemos compreender que também budismo para o Tibete, ensinou que o décimo-
passamos por uma experiência de morte quando -segundo elo é um bardo. Essa palavra é muito
perdemos o emprego, por exemplo. O trabalhando importante, pois significa “experiência construí-
sustenta nossa identidade profissional, que morre da”, “não verdadeira”. Não é umarealidadesólida,
com a perda do emprego. mas uma “experiência de”. Bardo equivale a dizer
Isso também se verifica nos relaciona- “issoé vazio”, “isso também é impermanente”. Por
mentos. Em todas as relações — casamento, famí- que a morte é um bardo? Porque é uma “experi-
lia, amizades, escola, trabalho etc. — percebemos ência de morte”. Está na dependência da tentativa
movimentos. Tem dias em que tudo está bem; de sustentação. Quando estamos condicionados a
noutros, nada está bem. Quando as coisas vão mal, sustentar, inevitavelmente vamos encontrara dis-
tentamos o reequilíbrio, buscando uma harmonia solução, a morte.
com os demais envolvidos no relacionamento. Vamos supor que estejamos perto da
Agora, quando as pessoas não olham umas para as demissão ou de uma derrota. Isso também é um
outras e não sustentam um equilíbrio, afastam-se bardo, pois seguimosvivos, há uma natureza ili-
rapidamente. As relações necessitam de cuida- mitada que segue intacta. A experiência de morte
dos; elas têm dias melhores, dias piores, dias em é isso: criamosalgo e, ao passar pela experiência
queestão em coma, mas depois, milagrosamente, da dissolução da artificialidade que construímose
recuperam-se. Às vezes morrem e ressuscitam. sustentamos, temosa sensação de morte.
Nossasrelações operam desse modo. A experiência de abandono pelo namorado,
Se tentamos sustentar o insustentável, por exemplo, é uma experiência de morte. Mas,
entramos em agonia. Temos uma sensação de grande depois de um período muito longo de sofrimento,
desgaste. Vemos pessoas que, na hora da morte, o impossível acontece, e a pessoa encontra um
outro ser maravilhoso. E então entende por que o emoções, pois na verdade somos nós que estamos
anterior tinha mesmo que ter ido embora.Isso é sendo derrotados. Temos uma noção de dissolu-
uma experiência cíclica, um bardo. Nossa respi- ção, de fim. Nos jogos olímpicos também vemos
ração é uma experiência cíclica, bem como todas isso. Quando um atleta é derrotado, a olimpíada
as demais coisas que movemos: os pensamentos, para ele acaba.E a pessoa tem um pouco a sensação
nossas energias (fome, frio etc.), nossas conexões, de morte.
nossas identidades. Ainda assim, o budismo ensina que o
“Nãochore porque a novela vai terminar; a décimo-segundo elo não é verdadeiro. Ou seja,
central de produçãoestá intacta!” A central de pro- a morte não é verdadeira. Esse é um bom início,
dução é o aspecto mais profundo de nós mesmos. não é? Na verdade, a morte é uma experiência. Por
Quando olhamos profundamente, podemos per- isso, vamos começar por esse ponto, reconhecendo
guntar: “Mase a morte?” A resposta é: “A central de que temos experiências como expressões de nossa
produção está intacta, não se preocupe!” Ou seja, natural e incessante e luminosa liberdade.
existe um processo luminoso, que vamos chamar
de presença, que se mantém incessante.
No momento da morte, temos duas aspi-
rações cármicas: nunca reencontrar as condições
negativas que tivemosde passar emvida, e nos fixar-
mos de maneira lúcida, nítida e decidida nos aspec-
tos positivos. Com essas duas aspirações, entramos
no sonho do bardo. Estávamos no sonhodo bardo da
vida, e agora estamosno sonho do bardo da morte.
Nossa mente vagueia, de volta a uma circunstância
onde a materialidade nãoestabiliza os estados men-
tais. É como o sonho à noite, nossa mente vagueia
semestabilidade. Mas temos duas aspirações, uma
derejeição e outra de aproximação. Com base nisso,
definimoso próximo renascimento.
Após a morte, saltamos diretamente para
nama-rupa, porque essas duas aspirações repre-
sentam a estrutura de avidya, samskara e vijnana,
que se preservam. Desejamosestabilizaras estru-
turas que nos garantam a felicidadee o afastamento “A experiência de morte é
do sofrimento. Assim, saltamos para um dos seis
reinos que seja visto como a melhorsolução.E rei-
isso: criamos algo e, ao passar
niciamos a Roda da Vida, tudose repete. pela experiência da dissolução da
Mesmo em um jogo de xadrez podemos artificialidade que construímos e
chegar ao décimo-segundoelo, que é quando não
há mais solução para o nosso rei: xeque-mate!
sustentamos, temos a sensação
Temosa clareza de queo rei está derrotado, e temos de morte”
82|
DISSOLUÇÃO DA
EXPERIÊNCIA DA
RODA DA VIDA
Primeiro passo
ufgo—
NÃO PRATICAR
=
As três ações não virtuosas de mentesão: cobiça; pensamen-
tos mal-intencionados, querer causar mal, desejar o mal ou alegrar-
se com o mal;e visão errônea, achar que o bom é mau e vice-versa.
Trazemos sofrimento aos outros seres por descuido, porque
AÇÕES DANOSAS
estamos autocentrados em nossa identidade ou por acreditarmos que, COM A MENTE
fazendoalgumacoisa agressiva contra outro, tenhamos algum tipo de
vantagem. Acontece que essa suposta vantagem beneficiaria apenas
nossaidentidade, que artificial, construída e impermanente. Então
estamos perdendo tempo se pretendemosbuscartrazer sofrimento
aos outros seres para ganhar alguma vantagem.
Nãosó estamos perdendo tempo comoestamoscriando con-
dições negativas para nós, porque as pessoas prejudicadas vão nos
perseguir. Então, estamos fazendo tudo errado. Aquilo que podería-
mos ganhar comumaaçãonegativa será perdido mais adiante por cau-
sa da impermanência. Mas o fato de termos praticado ações negativas
perdura por tempo suficiente para que experienciemosa perseguição.
Praticar ações negativas é como segurar gelo roubado com
a mão. O gelo derrete e desaparece. Maso fato de termos roubado o
gelo não desaparece. Pessoas vão nos perseguir por causa do roubo.
Podemos argumentar: "Mas o quefoi que eu roubei? Mostre.” Pode-
mosnãoter mais o gelo, mas a pessoa sabe que roubamos.A ação é real.
Praticar ações negativas produz uma matemática terrível.
Acumulamoscarmase não obtemos nenhum resultado positivo.
| 89
Quarto passo
ao
Astrês açõesnão virtuosas de corpo são matar, roubar e manter N Ã0 p R AT | cA R
conduta sexual imprópria.
O Buda não quis complicar a vida das pessoas dizendo: "Não
façamisso, não façam aquilo”. Ele apenas deu sugestões para sermos AÇ õ E s DA N 0 SAS
felizes e noslivrarmos do sofrimento. Devemos cuidar das nossas COM OC ORPO
ações, pois aquilo que achamosquevai trazerfelicidade pode produ-
zir devastação. Umavezpraticada, a ação não está mais sob poder do
agente. Fazer ou nãofazer dependedo agente, mas as consequências
saem de seu controle.
As negatividades impedem nosso avanço espiritual, pois
geram intranguilidade. No caso do budismo, mesmoque o praticante
recebainstruções detalhadas sobre como meditar, não estará em con-
dições de fazê-lo. É por essarazão que o Buda ensinou esses passos
iniciais antes de entrar na meditação. Ele primeiro orienta para que
tenhamos umavida virtuosa, pois de nadaadianta jogarmos baldes de
água num incêndio,se, por outro lado, continuamos jogando baldes
de gasolina!
No caso do nosso incêndio, primeiro vamosretirar tudo que
seja material inflamável. Depois, com a meditação, vamos extinguir
os focos de fogo do sofrimento. É inútil tentar apagar os focos de
incêndio se continuamos com atitudes que alimentam as chamas em
grandes proporções.
Existem praticantes que meditam décadas, mas não mudam
nada. Não mudam porque não têm moralidade, não cuidam do seu
comportamento. Com suas ações, continuam produzindoas causas do
sofrimento, e pensam que com a meditação vão conseguir eliminar
o sofrimento. Isso não é possível! Precisamos removeras causas de
sofrimento. Só depois pode ocorrer a meditação.
As pessoas não são nem demônios, nem santos. São apenas
pessoas. E não são apenas seres humanos; são seres complexos, com
s1
Quinto passo
se
No quinto passo do Nobre Caminho Óctuplo, o Buda diz:
“Traga benefício aos seres”. É um momento crucial, pois pela primeira AÇÃO
-
| 93
Praticamos também o amor, no sentido de ver as qualida-
des positivas do outro. Todas as pessoas, mesmo aquelas imersas
em negatividades, em algum ponto têm qualidades positivas. Ver
essas qualidades como um jardineiro que vê flores, frutos, troncos
frondosose galhosfortes aofitar a pequena semente de uma futura
árvore é um exemplo dessa qualidade de amor. É também como o
professor que vê qualidades em seus pequenos alunos dosprimeiros
anos escolares. Quem pratica esse amorvê surgir em si uma energia
maravilhosa de beneficiar, cuidar, proteger e promover a vida e o
crescimento dosseres. Não importa a aparência da semente, temos a
energia sustentada.
Praticando compaixão, equanimidade e amor, surgealegria,
surgem propósitoe sentido na vida. Sem compaixão, equanimidade
e amor, mesmo que tenhamosêxitos, não há alegria, nem sentido na
vida. Os tempos de degenerescência são justamente definidos pelo
esquecimento de que a fonte de alegria e felicidade é a compaixão,
o amore a equanimidade.
Assim sãoas quatro qualidades incomensuráveis — compaixão,
amor,alegria e equanimidade.Elas dão sentido à nossavida.
Praticando essas qualidades, a generosidade torna-se natu-
ral, e também a moralidade. Havendo compaixão, amor, alegria,
equanimidade, generosidade e moralidade, surge a paz. Surgindo a
paz, há energia constante, concentração e sabedoria.
Temosentão o surgimentoclaro do bodisatva,o feliz benfei-
tor dos seres que o vejam, toquem, ouçam ou pensem nele. Sua prá-
tica é autossustentada, natural e simples: compaixão, amor, alegria,
equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante,
concentraçãoe sabedoria. Ou seja, as quatro qualidades incomensu-
ráveis e as seis perfeições.
| 95
Tudo que foi descrito até agora opera em três níveis: visão,
VIsÃo,
e e
A PERFEIÇÃO
DA SABEDORIA
|
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|
|
DxpoIS DE CONTEMPLARMOS OS ENSINAMENTOSsobreas 4 Nobres
Verdades e começarmos a operar com as qualidades capazes de paci-
ficar nossas relações no mundo, a meditação poderá progredir até o
ponto da chamada sabedoria transcendente, quando nos tornamos
capazes de atribuir um duplo grau à realidade,atravessando do plano
relativo para o absoluto, como quem olha para o desenho de um cuboe
desloca a visão de umafigura para outra. Como esse desdobramento se
tornapossível? Comoflexibilizar nossa ação, contemplara insepara-
tividade e transformare estabilizar nossas relações em uma paisagem
de amplitudee lucidez?
Háum ensinamento budista chamado O Coração da Sabedoria
(Sutra do Prajnaparamita — A Perfeição da Sabedoria), um veículo
hábil para nos conduzir nessa travessia. Há também outros ensina-
mentos, como o Sutra do Diamante, que combinam perfeição das
virtudes com a perfeição da sabedoria e indicam essa rota como o
caminho mais curto para a liberação.
Vamosagora tomar o barco do Prajnaparamita. O Sutra do
Coração pode ser compreendido como um princípio ativo pelo qual
vamos da margem da confusão para a margem da visão de sabedoria,
aquilo que nós budistas chamamos de "visão da vacuidade”. Ainda
queessa visão esteja sempre disponível, não vemos assim. Dentro
do Prajnaparamita teremos essa introdução, começaremosa rever
nossos conteúdos internos e percepções externas de modo mais
profundo, e seguiremosaté esgotar essa abordagem. O momento da
transição é chamado de “travessia para a outra margem”.
No momento, temos a visão do samsara, mas passaremos
para umaoutra visão, vamosdeslocaro olhar,alterar o foco. Ao alcan-
çarmosa visão de sabedoria, sujeito e objeto se fundem e revelam a
ausência de existência inerente nos fenômenos.
Kuntuzangpo ou Samantabhadra é o Buda Primordial, repre-
SILÊNCIO E
E a
A RFEIÇÃO DA SA
fo
Presente no mundo condicionado dos seres humanos, C H EN R EZI G
Chenrezig conversa com Shariputra. O Prajnaparamita começa nesse
encontro. O Buda Shakyamuni está sentado, praticando a grande E O s C IN Cc 0
iluminação. Chenrezig, ou Avalokiteshvara, está ouvindo o que as
pessoas falam. Em certo momento, se dá conta: "É isso! Não importa Ss KA NDH AS
o que falem,as pessoas referem-se sempre aos cinco skandhas. Elas
dãorealidade e solidez aos cinco skandhas, e com isso dão solidez a
suas experiências e sonhos comose fossem reais!”
Chenrezig vê que tomamos como sólidas as experiências de
formas, sensações, percepções, estruturas internase identidades — os
cinco skandhas. Tudo gira em torno de ações de corpo, fala e mente
baseadas nessescinco elementos de consciência.
Olhando para todas as construções a partir da perspectiva de
lucidez, de rigpa, Chenrezig diz: “Forma não é sólida, formaé vacui-
dade. Todas as formas são expressões da vacuidade original, surgem
dela e retornam ela, brotam da luminosidade presente navacuidade.
Do mesmo modo, todas as sensações são manifestações da luminosi-
dade e vacuidade. E também asestruturas internas e as percepções são
manifestações disso. E todas as consciências e identidades também
são manifestações dessa fonte inesgotável. Sendo manifestações da
vacuidade, não são grades de prisão, não são paredes, não têm rigidez,
não exercem limites. São expressões daliberdade original, mas não a
limitam. São ornamentosda natureza última. Sendo todaselas produ-
tos da luminosidade, em verdade não há prisão.” A prisão vem de ver-
mosessas manifestações da vacuidade comosólidas, e respondermos
a essa aparência. A prisão vem de não enxergarmos o movimento livre
das formas no espaço, a sua naturezasutil. Vem de aspirarmosa rigi-
dez das formas, sensações etc. Vem de nos construirmos e lutarmos
para sustentar nossas identidades,e as visões derealidadessólidas e
externas inseparáveis delas.
108
As quatro montanhas
Então Chenrezig diz: os cinco skandhas são vacuidade; por-
=
tanto, o sofrimento pode cessar. O sofrimento surge quando ope- NAs CIME N To,
ramos com a rigidez adquirida pelo hábito. Quando dizemos que os Vi DA
cinco skandhassão sólidos, subentendemos que estamos submetidos 2
ao ciclo de nascimento, vida, decrepitude e morte. Ou seja, nalin- D ECREPITUDE
guagem tradicional budista, todos os seres vivem entre essas quatro
montanhas. Ninguém escapa, exceto pela vacuidade. E M O RT E
As montanhas do nascimento, vida, decrepitude e morte são
construídas por forma, sensação, percepção, formação mental e cons-
ciência, diz Chenrezig. Não há nada no nascimento, vida, decrepitude
e morte que não seja constituído pelos cinco skandhas. Se os cinco
skandhas são vacuidade, podemosatravessar livremente as quatro
montanhas, pois elas são manifestações dos cinco skandhas, elas
não têm solidez. A natureza ilimitada nãoestá presa nem pelos cinco
skandhas, nem pelas quatro montanhas. Por isso, o sofrimento pode
ser eliminado.
EDORIA 109
"Ê>
O Sutra do Coração é o diálogo entre um monge chamado I N To I o D o
Shariputra e Chenrezig, que por compaixão pelos seres assumiu uma
forma humana. Movidopela presença do Buda Shakyamuni em medi- D I Á L o G OD o
tação, Shariputra pergunta a Chenrezig: “Como homens e mulheres
bons e piedosos, que tenham desenvolvido qualidades elevadas, Ss UTRA DO
podempraticar a Perfeição da Sabedoria?” pr
Antes de seguir, convém observar que há dois termos pare- Co RAÇÃO
cidos — Perfeição da Sabedoria e Grande Perfeição. A perfeição da
sabedoria, ou prajna, é o caminho que conduzà grandeperfeição, que
está sempre naturalmente disponível. O Prajnaparamita descreve a
perfeição da sabedoria. Os ensinamentos dessa classe são como um
remédio para doença dos olhos(avidya, a ignorância). Quando che-
gamos à margem da sabedoria, vemos tudo com perfeição, com luci-
dez. Vemos que nunca houverio a ser atravessado, nunca houve duas
margens. Mas, enquanto estamosdolado decá, com visão limitada,
vemoso rio do sofrimentoe as duas margens.
Retornando ao sutra, Chenrezig responde: “Homens e
mulheres bons e piedosos que desejem praticar a Perfeição da
Sabedoria devem apenas fazer o que eu ensinar agora. Eles devem
compreenderque...” Essa é a parte central do texto. A primeiraparte,
onde Chenrezig diz que “oscinco skandhassão vacuidadee, portanto,
o sofrimento podecessar”, é a súmula.Ele agoravai explicar a afirma-
ção em detalhes: “Formaé vazio,vazio é forma; forma nada maisé do
que vazio, vazio nada mais é do que forma”.
Podemos olhar isso como palavras ou como umaexperiên-
cia. É melhor olharmos como uma experiência. Se olharmos como
palavras que discorrem sobre um tema,não será tão profundo quanto
olharmos como uma introdução a uma experiência.
Temosqueolhar nossas experiênciasdiárias a partir dessa pers-
pectiva. Quanto tempo conseguimos sustentaro olhar que compreende
210 |
que formaé vazio? Por menorque seja tal instante, quando começamos
a praticar essa visão, somosintroduzidos ao elemento que diferencia
um conhecimento teórico daquilo que, no budismo, chamamos de
prática da perfeição da sabedoria. Noinstante em que o ensinamento
penetra em nossa experiência de mundo, começamosa transformar
nossa compreensão da realidade, a desfazer a solidez das formas.
Essa é a alquimia que transforma uma descrição em uma prática.
O ensinamento formal torna-se um roteiro vivo de meditação, pois
dali em diante se realiza no âmbito da ação. Para realizar a transfor-
mação, podemos seguir o método de pensar, contemplar e repousar
parte a parte ao longo do texto todo, sustentando a experiência de
lucidez da perfeição da sabedoria. Começamos com a contemplação
da vacuidade luminosa e coemergente das formas.
132 |
Depois de pensar sobre isso, seguimos para a etapa da con-
templação. Fazemos a esfera mudarde cor. Ou a transformamos em
um cubo, e depois transformamos o cubo em qualquer outra coisa.
Podemos transformar o queestá diante de nós. Nesse exemplo abs-
trato, isso é fácil de ver. Encerramosa etapa de contemplação e sim-
plesmente repousamosnesse conhecimento.
113
Segundo exemplo l
Podemos olhar uma figura como a Roda da Vida. Vemos
>
Fi G U RA
todososseus elementos; porém, é apenasarte gráfica. Naturalmente
Maharajanãoestá ali, nem osseis reinos, só temos papel etinta diante G RÁ F I cA
dos olhos. Se colocarmos um dedo noinferno quenteda RodadaVida,
não acontecerá nada, o dedo não queimará.
Mesmo assim, a coisa fica um pouco mais complexa, porque
não é, mas é! Nenhum budista, por exemplo, se sentiria à vontade
para sentar em cima de uma imagem do Buda. Por que, se é apenas
papele tinta? É que, simultaneamente, já nãose trata mais de papel e
tinta apenas. Estamos diante do que chamamos de aspecto luminoso
darealidade. Aindaqueseja papel e tinta, não pensamos no papelena
tinta, não reconhecemospapele tinta, mas vemos o Buda.
Osseres produzem luminosidadesespecíficas nas suasdiversas
conexões com realidade. Não vemos o objeto, mas o queele passa a
ser diante de nossos olhos. Essa é a característica da luminosidade.
Precisamos entender a vacuidade e avidya, e também a ação luminosa
damente.
Podemos usar o exemplo de uma foto. Quando estamos
imersos em avidya, não reconhecemosa luminosidade que constrói a
realidade ao contemplarmosa foto. Acreditamos que o conteúdo que
vemosestá na foto. Entretanto, podemos perceber que os conteúdos ,
da foto mudam com o tempo, ou seja, a forma comoreagimosdiante
dela muda. O conteúdo é inseparável do observador. A mente vê a
mente. Na imagem completamente abstrata criada na mente ou na
imagem em papel, o observador é que produz a experiência do objeto.
124 |
“O conteúdo é
inseparável do
observador.
Amente vê a mente.
Na imagem
completamente
abstrata criada na
mente ouna
imagem em papel,
o observador é que
produz a experiência
do objeto.”
Terceiro exemplo
Vamos olhar agora uma imagem tridimensional, como uma “o BJ ETO
escultura, que representa simbolicamente um outro objeto. De novo
podemos reconhecer que esseobjeto produz em nósa manifestação da T RI DIME NSI O NAL
luminosidade que atribui qualidades que não estão ali. Olhamos uma
imagem humana esculpida em pedra e encontramos características
humanas na pedra. Mas onde há características humanas na pedra?
Não há, mas nós vemos. Por vermos muito mais do quea realidade
da pedra, podemospagar umafortuna por umaescultura, ou vamosa
museuse galeriasde arte para contemplá-las. Não poderíamos com-
prar umaescultura pagando em pedra,trocando o blocoesculpido por
outro do mesmopeso, mas de pedra bruta. Há umadiferença. À
Quando olhamos umaescultura, não vemosa pedra. Usamos
a pedrapara sustentar uma experiência de luminosidade correspon-
dente ao que vemos na pedra.
Então, do mesmo modo que nosobjetos imaginários e gráficos,
também no objeto tridimensional a forma não está na forma. Pela
terceira vez, vemos que o observador detém a experiência da forma.
116 |
“Quando olhamos uma escultura, não vemos
a pedra. Usamos a pedra para sustentar uma
experiência de luminosidade correspondente
do que vemos na pedra.”
117
Quarto exemplo
wo
No quarto tipo de experiência teremos uma pessoa diante de
nós. Mesmo com uma pessoa, acho interessante usar o exemplo da UMA PESSOA
foto. Tiramos umafotografia da pessoa. Olhamos paraa pessoae para
a foto, e parecem iguais, porquea experiência que temosao olhar a
foto e a experiência que temos aoolhar a pessoaindicam a mesmacoi-
sa. Temos experiências internas. Quando nossarelação com a pessoa
muda,o que vemosna foto mudatambém.
Diante da própria pessoa, olhamos paraela e lhe atribuímos
qualidades, comose pertencessem somente ela e não fossem um pro-
duto coemergente de nossa observação. O mesmo acontece com a foto.
aas|
Quatro níveis de experiência
ng
A experiência do que vemosé inseparável de nossas estru-
turas internas. Sempre que temos uma experiência de objetos, nosso
papel de observadorestá presente. A mente vê a mente, ou seja, nossa
A CONCLUSÃO
mente vê os objetos conforme suas noçõesinternas, e é a partir disso
que nos relacionamoscom o mundo, atribuindo significadose funções
a tudo, inclusive sensações de gostar, não gostar, ou serindiferente.
Mudanças naestrutura interna provocam mudanças nos objetos que
vemos e nas sensações agradáveis, desagradáveis ou de indiferença
queeles provocam.
O conhecimento humano segue o mesmo padrão. As teorias
da física, química, matemática, biologia, história, psicologia estão
sempre mudando. Na medida em que as teorias mudam, as pessoas
olham as mesmas experiências e dizem outrascoisas.
A capacidadede atribuirmosdiferentes significadosàs coisas
pode ser observada em exemplos bem práticos. Lixo, por exemplo.
Plástico, metal, vidroe papel podem apenasser elementos de polui-
ção do ambiente, ou podem ser reciclados. O elemento é o mesmo,
mas mudam o olhare a ação. Em vez de deixarmos esses materiais no
depósito delixo, podemosreaproveitá-los.
Uma das conclusões da contemplação do Sutra da Perfeição
da Sabedoria é que, do ponto devista da inseparatividade, mesmo as
deidades budistas são desdobramentos da mente do observador. São
formas de inteligência que ele pode manifestar.
“A mente vê a mente”
- go.
Paisagem é uma forma complexade explicarmos asestruturas PA I SAG E M
internasassociadasàs inteligências que o observador pode manifestar. ,
O observador constrói e experimenta seu mundo de acordo com a MAN DALA E
inteligência queestiver utilizando. Estruturainternaé a base que per-
mite descrever o que vemos. O que vemos a paisagem, mas paisagem R EALIDADE DO
também se refere à estrutura interna, porque elassão inseparáveis.
Aquilo que vemos e a nossa estrutura são a mesmacoisa. Quando M U N DO
220|
usamos essa linguagem, dizemos: “Todos nós estamos dentro de
alguma paisagem”.
Existe uma paisagem ondejogamos lixo dentro do rio e acha-
mosqueestá bem. Existe outra paisagem ondecatamos todoo lixo,
e achamosque assim é melhor. Cada paisagem legitima um tipo de
ação. O mundoparece concreto, mas é definidopelo olhar,pela paisa-
gem. O mundo é uma expressão de luminosidade e vacuidade.
No caso dolixo, poderíamos pensar: “As pessoas deveriam
ser automatizadas a recolhero lixo, deveriam ser punidasse fizessem
9 contrário, porque todas têm o impulso de jogarfora o que quer que
seja em qualquerlugar”. Mas também poderíamos ver assim:"Não, se
as pessoasse deslocarem para uma outra paisagem, terão outrotipo de
comportamento naturalmente e sem punição”.
Dentro de certas paisagens, as pessoas cometem ações não
virtuosas. Deslocadas para outra paisagem,elas praticam ações posi-
tivas. Se tomamosas pessoas como boas ou más, e o mundo como bom
ou mau, e não entendemoso processodecriação, deatribuição desig-
nificados, tendemos a aprovaras pessoas boase a condenaras pessoas
más, e acabamostendo surpresas em ambosos casos. Com essavisão,
queremosencarcerar todos os maus, e deixar os bonssoltos. Aí nos
surpreendemos quando aquele que considerávamos mau mostra-se
bom,e aquele queeravisto como bom revela-se mau.
Em certas épocas, comoa atual, parece haver uma epidemia
de maldade,de ações negativas. Não nos damos conta de que estamos
todos sob o efeito sutil de paisagens internase externasinseparáveis
que nosconvidam a ações negativas, e que eventualmente estimulam
e constroem ambientes nos quais as ações negativas ocorrem como se
fossem algo apropriado.
“Aquilo que
vemoseda
nossa estrutura
são a mesma
coisa.”
122 |
>
“Forma vazio, vazio é forma; forma nada maisé do quevazio,
vazio nada mais é do que forma; do mesmo modo,sensação, percep- SÍNTESE DA
ção, formação mental e consciênciasão vacuidade; assim, Shariputra,
todos os darmassão vacuidade.” ANÁLISE DO
Quando Chenrezig faz essa afirmação, ele aponta para o fato
de que todosos objetos são vacuidade; não apenasos objetos sólidos, PRAJNA-
mas todas as experiências. A palavra utilizada para se referir ao
conjunto de objetos concretos e abstratos é “darma”, com inicial
PARAMITA
minúscula — no budismo, Darma com inicial maiúscula refere-se aos
ensinamentos do Buda. Tudo que pode ser visto pela mente é vacui-
dade. Temos a experiência de que há um observador contemplando
algo. Tudo que pode ser contemplado poresse observadorestá sub-
metido à avidya, à ignorância, e surge pelo poder da luminosidade.
Expressa a vacuidade diretamente. Está submetido à impermanência
& se situa no espaço cercadopelas quatro montanhas do nascimento,
vida, decrepitude e morte. Todos os darmas são vacuidade. Portanto,
podemos ultrapassá-los.
Háuma natureza luminosa quenão é afetada por suas próprias
construções. Há um controlador tentando manipular suas constru-
ções — e queacaba se tornando refém delas — , mas simultaneamente
há a percepção de que essa natureza não está submetida à limitação.
ERFEIÇÃO À 123
Nesse ponto podemos entender o significado da expressão
Natureza Vajra como extensão da noção de vacuidadee luminosidade.
A realidade é móvel, viva, mágica diante de nós. Essa compreensão
substitui o amargor de vermoso quehá diante de nós como um engano,
como uma incapacidade de ver o que seja “real”. Com a noção de natu-
reza vajra, vemos o aspecto lúdico vivo e mágico do “real”. Assim, a
própria perspectiva do viver a causalidadee a realidade ao redor surge
comoalgo muito brilhante, lúdico, encantador além de espaço e tem-
po, e traz a possibilidade de nos manifestarmos de formalúcida e ao
mesmo tempo mágica dentro de um mundo também mágico e móvel
— desaparece o amargore o peso, surge Guru Rinpoche.
A linguagem do peso pertence ao reino dos humanos,a lin-
guagem da natureza vajra pertenceao reino dos deuses, as possibili-
dades de manipulação surgidas da natureza vajra pertencem ao reino
dos semideuses.
124
Essa compreensão torna útil a contemplação dosversos:
O deslocar-se causal
Pordentro da presença Vajra
Torna existente
Oque é apenas Vajra
Contemple isso.
125
ng
Quando andamos pelo mundo, o que vemosparece comple-
tamente natural aos olhos, ouvidos,nariz, língua, tato e mente. Não FACULDADES
parece haverlimitação. Sentimo-nos dentro de um mundo completo,
perfeitamente coerente, masas alternativas de ação dentro desse DOS SENTIDOS
mundosão apenasas que pertencem a nosso universo cognitivo limi-
tado. À mente livre torna-se limitada quandopassa a operaratravés
E OBSTRUÇÃO
dossentidos. A natureza da mente não é obstruída, masse torna obs-
truída pelo tipo de uso que damosa ela.
Nãoé a mente cognitiva que pensaerrado; a mente dos.olhos,
por exemplo, ao operar, já produz a imagem equivocada queestá presa
ao loka correspondente ou à paisagem. A visão, ela mesma,ao operar,
é veículo da prisão. Isso está associado à responsividade também.
Avisão surge e a responsividade aparece, na sequência a causalidade
fecha a prisão por nos manter ocupados em imaginarações causais
ligadas ao carmae ao loka.
Nesse ponto surge outro tipo de argumentação no Prajna-
paramita. Chenrezig diz: “Portanto, Shariputra, na vacuidade não
há olhos, ouvidos, nariz,língua,tato e mente”. A vacuidade não tem
uma estrutura básica. Não há seres humanos, não há órgãos. Não há
objetos correspondentes a olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente
condicionada. Não existem mentes associadas a olhos, ouvidos,
nariz, língua, corpo e mente; não existe uma mente dividida desse
modo. Não há sofrimento, nem causa do sofrimento, nem cessação
do sofrimento, nem liberação, nem não liberação, nem sabedoria,
nem não sabedoria. Não há ignorância, nem extinção da ignorância,
nem todos os demaiselosda originação interdependente. A vacuida-
de é anterior a tudo. Chenrezig olha todasasclasses de existência e
diz: “Nadadisso existe dentro da vacuidade”.
Esse é um ponto de grande importância. Os cientistas, por
exemplo, acreditam que o mundo é constituído tendo por baseleis
126
fundamentais. Na perspectiva budista, tudo surge da vacui
dade e
luminosidade, e a liberdade original está incessantemente
preservada,
não há leis causais fundamentais. Na base de tudo está
à liberdade
original e incessante, além de espaço e tempo, além de
vida e morte.
Nesse sentido a posição budista entende muito bem todas
as trocas
de paradigmas e o abandono de antigas visões e teoria
s por novas
abordagens, como observamos na ciência. Os cientistas,
por outro
lado, buscam sempre uma formulação básica original
de onde todas
as manifestações surjam. Albert Einstein chegou a afirma
rque a exis-
tência dessa forma original é uma fé que não podefaltar
ao cientista.
Em vista disso, Sua Santidade o Dalai Lamadiz que
os cientistas são
crentes, e os budistas são céticos.
“A vacuidade não
tem uma estrutura
básica. Não há
seres humanos,
não há órgãos.
Não há objetos
correspondentes a
othos, ouvidos, nariz,
língua, tato e mente
condicionada”
127
Noo Sutra Sutra do do €. Coração, Ch Chenrezig di diz que os bodi
bodisatvas maha-
satvas confiam e repousam no Prajnaparamita. Bodisatva mahasatva 0 MA N T RA
é aquele que tem a realização completa do Prajnaparamita e repousa A
na manifestação natural da perfeição da sabedoria, tem a capacidade I NSU PE RAV EL
de olhar para todas as experiências e ultrapassar a prisão que elas
propõem. Naperfeição da sabedoria não há nenhuma construção,
nenhum referencial transitório. Não existe a dualidade de sujeito e
objeto. Por isso se diz queessa sabedoria torna igual o que é desigual.
O mantra do Prajnaparamita é o grande mantra, o mantra
insuperável, o mantra queliberatodo o sofrimento. Todos os Budas,
por seguirem esse mesmo caminho, atingem a liberação completa e
insuperável. Por isso, recita-se o mantra:
TADYATA
OM GATE GATE
PARAGATE PARASAMGATE
BODHI SVAHA
128|
O manira é o som da perfeição da sabedoria. Do mantra
decorre a visão da perfeição da sabedoria. Da visão decorre a experiên-
cia da paisagem, ou mandala, da perfeição da sabedoria.
De início não temosestabilidade na visão, ela vem em lampe-
jos. Para recuperara visão voltamosao texto, até o mantra readquirir
novamente seu poder. Quandoisso acontece, podemosusar o mantra
comoveículo de lucidez para superar dificuldades arraigadas.
o A HER
py Pay op neionao |
DA SABEDORIA 129
a
Em nossa análise da realidade, devemos incluir, além do EN E RG IAS
aspecto cognitivo, a observação da energia que se manifesta nas expe-
Tiências. Mesmo que não tenhamossido introduzidos à meditação de
gotas, chakras, ventos c canais, podemosveressas energias e perce-
ber que certos pensamentos estimulam a energia em uma posição e
não em outra.
Quando sentimos raiva, sentimos a presença dessa energia
fisicamente. Ela se manifesta de modo inseparável de uma paisa-
gem cognitiva que a sustenta. Para dissiparmos a raiva, basta mudar
a paisagem, pois, quando trocamos de paisagem, deslocamos todos
Os nossos referenciais. Não precisamos fazer a transição gradual da
energia através da disciplina, as paisagens têm muito mais força.
A energia basicamente não pertence a nenhum dos chakras
ou canais, nem precisa ser classificada como gotas ou ventos, é tão
somente um princípio ativo inseparável da natureza última. Quando
começamosa estabelecercategorias — por exemplo, energia do chakra
básico, energia positiva, energia negativa —, criamos objetos e, com
isso, uma situação mais complexa. Não é necessário entrar nessa
fisiologia, podemosolhar de forma maiselevada, ultrapassar o pro-
cesso de aprisionamento de avidya.
Se não ultrapassarmosa separatividade, ficaremos um longo
tempo estudandotodaessa fisiologia sutil comosefosse sólida, loca-
lizandotudo. Aí teremosa sensação de queexiste um corposutil por
trás de tudo, e vamosdar solidez a ele. Aindaque essecorpo sutil exis-
ta-—comotodosnósexistimos,e comotodasas ruas, e praças, igrejas e
estrelas — , ele pertence ao samsara. Então, toda essa fisiologia muito
sutil, ainda quereal, existe em nível convencional.
Pesquisartodoo nível convencional não vai levar à liberação,
apenas nos tornaremos especialistas no nível convencional. É melhor
a30|
que o caminho venha de cima para baixo. O caminho de baixo para
cimaé infinito, um labirinto impossívelde cruzar. O Prajnaparamita
nos permite dar um salto por cima de muitas complicações.
Podemos usar os problemas do cotidiano como tema de
meditação do Prajnaparamita. Começamosa trabalhar com os nossos
problemas, vendo queeles existem, mas que não têm a solidez que
atribuímosa eles, e tudo vai melhorando. Aí começamosa ajudar
as outras pessoas, pegando os problemas delas também, e tudo vai
melhorando. Nuncafaltam problemas, e com isso vamos praticando
eliberando.
Não poderemosevitar a morte, por exemplo, mas poderemos
utilizá-la como forma de meditação, lucidez e liberação. É importante
entender quea prática do Prajnaparamita não tem por objetivo mani-
pular a realidade convencional, e sim atingir a liberação. Algum grau
de manipulação pode surgir, mas será apenasparcial, e terminaremos
por superaresses enganos também.
“Sempre que um
mestre budista referir-
se a uma experiência
chamada de “última”,
estará convergindo
seus ensinamentos
para esse continuum
incessantemente
presente que possibilita
todas as experiências.”
[135
No Sutra Surangama, o Buda bate no sino e pergunta a um
discípulo: "Ananda, você ouve?” Este responde que sim. Quando o
sino para de tocar, o Buda pergunta: “E agora... ouve?” Anandadiz
que não. E o Budareplica: “Comovocê podedizer coisas sem sentido,
Ananda?” O Budarepete as batidas desino e as perguntasvárias vezes.
Anandaquestiona: “Com som, ouvimos; sem som, não ouvimos... não
seria assim? Como poderia ouvir se não há som?” No final, o Buda
explica quea capacidade de ouvir está semprepresente, independente
de haver som ou não. Quando não há som, a capacidade auditivadiz
que não há som; quando há som, a mesmacapacidade auditiva diz que
há som.
O Buda usa a capacidade auditiva para exemplificara natureza
incessante da mente. Se há pensamentos, ideias, imagens, temos a
sensação de haver a mente; na ausência deideias, imagens e pensa-
mentos, a mente como que desaparece. Mas na verdade sua presença
é incessante e independente das formas que possam surgir ou deixar
de surgir; é comoo espaço, que independe da existência dos objetos
que o povoam. Isso é lindo e profundo.
Havendo ou não algo manifesto, existe uma natureza funda-
mental e silenciosa incessantemente presente em nós. É como um
lago completamente sereno, onde podemos provocar o surgimento
de uma onda com o movimento de nossa mão na água. Mas 0 fato de
surgir essa onda nãoaltera em nadaa natureza dolago.
As experiências, as aparências, são as ondas. Masa base, ou
lago, independedas formas queirão surgir na superfície, é incessante.
Esse ponto crucial está ligado à prática da lucidez, à capacidade de
testemunhar a experiência que vivemos sem ficarmospresos a uma
sequência de pensamentos, apenas testemunhar. É fazer surgir um
observadorque se dá conta da experiência deperceber as experiências.
Podemostransformar qualquer experiência em um objeto de
foco desse observador que fazemos surgir. Podemos simplesmente
comer, outestemunhar o que estamosfazendoe sentindo. Apenas por
meio desse observador construído artificialmente poderemostermi-
nar por percebera natureza sempre presente. Mais adiante, supera-
mosa necessidade desse observador, ultrapassando toda a dualidade t
e toda a meditação fabricada.
O importante é perceber a estabilidade por trás do movi-
mento incessante das formas no mundo. O lago estável é como uma
essência completamente receptiva, aberta. Por ser uma forçaviva,
enérgica, pode produzir ondas. A natureza da mente é igual-estável,
j
136 | Em
com a capacidade de produzir objetos. Os budistas chamam essa capa-
cidade de luminosidade da mente. É ela também que dota de quali-
dades e energia as formas que brotam em sua superfície. É dela que
surge naturalmente a sabedoria que nos permite operar no mundo
condicionado e, ao mesmo tempo, no mesmo fenômeno condicionado,
termosa lucidez de nãoo solidificarmose de não ficarmos presos.
Os objetos reconhecidos pelo observador não existem
externamente ou por si mesmos. Há uma natureza e uma essência
produzindo as aparências. Esseprincípioativo é inseparável da liber-
dade natural e não obstruída que permite a tudo surgir; essa liber-
dade naturalé a vacuidade. A observação darealidade aparente e da
realidade última no mesmo fenômeno é chamadade dupla realidade
(tathata em sânscrito).
“As experiências, as
aparências, são as
ondas. Mas a base,
ou lago, independe
das formas que irão
surgir na superfície,
é incessante.”
137
Podemosolharas coisas comoexternas fixas, podemos não
reconhecer sua natureza original e sua presença incessante. Isso é a
mente comum do mundo. Essa mente convencional classifica todas
as experiências como positivas ou negativas. O que é positivo produz
felicidade. O que é negativo produz dificuldadese infelicidade.
Mas fora do samsara, da visão convencional, existe o que os
tibetanos chamam de kadag, ou grande pureza, onde tudo quesurge é
compreendido dentro da perspectiva da duplarealidade. A aparência
convencional surge, mas surge também o reconhecimento de que a
realidade convencional é mutável, incapaz de causar danosà natureza
última, do mesmo modo que, não importando quão intensassejam as
ondas, nuncaafetarão o próprio mar.
Nessa classe de ensinamentos budistas, considerada a mais
elevada, não se busca mais distinguir positivo de negativo. O ponto
central é reconhecer que não há uma prisão efetiva nos níveis condi-
cionadosde operação da mente. Aproveitamosa aparência convencio- j
nal da experiência condicionada do mundopara reconhecera natureza
última incessantemente presente. Assim nosliberamosdevida, enve-
lhecimento, morte e renascimento.
O ponto essencial é localizarmos essa compreensão. Não
somosos conteúdos, os mundos que enxergamos condicionadamente.
Somos naturalmentelivres, mesmo quandonão vemosa liberdade.
Emaho! Alegria!
aas | EMAHO!
139
A 5 d
OS QUATRO PENSAMENTOS QUE TRANSFORMAM A MENTE
E A MANDALA DA LUCIDEZ
2/2141
de geografia ou matemática, por exemplo. Bondade, amor e compaixão
tocam nosso coração naturalmente porque fazem parte do que somos.
Esse é primeiro ponto: as linhagens existem, estamos pro-
tegidos, e há um processo incessante que transmite a informação.
Naformatradicional do budismotibetano, dizemos: "Homenagem
ao lama: a você que conhece”. Simples assim! Existe uma linhagem,
existe um lama, a pessoa quetrará o ensinamento.
cá
O aparecimento de um mestre em nossavidaé algo extraor- A CONEXÃO COM
dinário. Podemoster contato com várias linhagens, várias tradições O LAMA
religiosas, e um dia ouvimos alguém e sentimos: "É isso! É exatamen-
te o que sempre pensei.” Aquela pessoa traduz o que temosdentro de
nós, ela nos conecta à linhagem de compaixão com quenosidentih-
camos. Quando encontramos um mestre externo, issosignifica que
o nosso mestre interior já estava se manifestando. O que não temos
dentro de nós não aparece do ladode fora.
Depois de encontrarmos nosso mestre e nos conectarmos
a umalinhagem, é aconselhável nos mantermos dentro dela, sem
misturar outros métodos. Porém, jamais devemosser sectários; não
devemosachar quea nossa linhagem é melhorque as outras, que nós
estamoscertose os outros errados.
No budismo, tomamos nosso lama comofonte de refúgio. Isso
porqueé ele que abre para nós a mandala de sabedoria, revela o mun-
do como um ambiente de perfeição onde podemospraticar. Dentro da
paisagem de sabedoria descortinada pelo lama, as coisas fazem sen-
tido, e a prática espiritual também. O lama nos introduz nessa man-
dala e nos conduzpor dentro dela — esseé o fato mais importante de
nossavida. Porissoexiste a tradição de profundorespeito e dedicação
ao lama.
ago
O primeiro pensamento que transforma a mente refere-se PRIM EIRO
à preciosidade da vida humana. No budismo,os seres sencientes são PENSAMENTO
divididos em seis reinos: deuses, deuses invejosos, humanos, animais,
fantasmasfamintose seres dosinfernos. Renascer como serhumanoé * E .
algo extremamente raro — e somente na forma humanatemos interesse Avida humana preciosge
pelo Darma,pelos ensinamentos do Buda que levam iluminação. os seis reinos
Os deuses não se interessam pelo Darma porque têm uma
vida muitofeliz, estão por demais distraídos com seus prazerespara se
preocupar com a impermanência, com o dia em quesuas vidas vão
chegar ao fim e eles terão que renascer em outro reino. Os deuses
142
invejosos querem apenas conquistar o que os deuses possuem e supe-
rar uns aos outros,estão sempre envolvidos em guerrase disputas. Os
animais são obtusos, não têm capacidade para ouvir os ensinamentos,
sua únicaatividade são os esforços pela sobrevivência. Os fantasmas
famintos ocupam-se unicamente em tentar suprir suas imensas
carências. E os seres dos infernos vivem em completo sofrimento e
tortura e não veem por ondesair dessasituação, ou nem estão interes-
sados em fazê-lo, se sentem prazer em torturaros outros.
Os humanos têm condições de ouvir os ensinamentos por-
que têm inteligência e estão sempre em busca da felicidade. Como
a impermanência manifesta-se em nossa vidaa intervalos relativa-
mente curtos, estamos semprealternando felicidade e sofrimento,
9 que aumentaas chancesde ficarmos receptivos ao Darma.
Para que isso aconteça, precisamos de várias condições.
A primeira delasé viver em umaera em que haja ensinamentos. Não
devemos pensar que o Darma exista sempre e em quaisquer condi-
ções. Nossaera é considerada muito afortunada porque houve o apa-
recimento de um Buda,e ele não só deu ensinamentos, como esses
ensinamentos perduraram. O Buda poderia não ter vindo, masveio.
Poderia não ter dado ensinamentos, mas deu. Os ensinamentos pode-
riam não ter perdurado, mas perduraram.
Além disso, precisamoster acesso aos ensinamentos, ou seja,
nascer em um local onde eles estão disponíveis. Precisamoster as
faculdades físicas, mentais, sociais e ambientais que nos permitam
aprender e praticar, e precisamosestar interessadosnisso, precisa-
mosestabelecer umaconexão.
Éinteressante observar que no reino humano podemos mani-
festar as características dosseres de outrosreinos, o que inviabiliza a
conexão com os ensinamentos budistas. Aqueles bem-sucedidos em
-o
seus esforços de sedução, manipulação dos destinos dos outros seres “Renascer como ser humano
e capazes de atingir seus objetivos mundanos autocentrados com é algo extremamente raro -
facilidade vivem como deuses, inebriados pela felicidade transitória. e somente na forma humana
Aqueles extremamente dedicados a esforços competitivos e movidos temosinteresse pelo Darma,
pela ganância, incessantemente ocupados com objetivos autocentra- pelos ensinamentos do Buda
dos, que invejam os deuses e querem derrubá-los, vivem como deuses que levam à iluminação”
invejosos, sendo poderosos, mas intranguilos e infelizes. Aqueles
cuja vida é comer, dormire procriar, com umavisão muito limitada
em termos de tempo e espaço, espelham a condição dos animais.
Aqueles dominadospela experiência de necessidades urgentes muito
superiores aos seus méritos vivem comofantasmas famintos, imersos
APÊNDICE 1 | 143
em sensações de sofrimento, incapacidade e desamparo. Aqueles cuja
felicidade parece surgir do sofrimento alheio e aqueles dominados
pelo medo e por abusosvivem a experiência dos seres dos infernos.
Avida humananaturalmente valiosa torna-se preciosa quando
aproveitamos as condições favoráveis de nosso renascimento com a
motivação de atingirmosa liberação e beneficiarmostodos osseres.
+
O segundodosquatro pensamentos que transformam a mente SEGUNDO
diz respeito à impermanência. A vida humanaé preciosa, mas transi- PENSAMENTO
tória. Mesmosendo extraordinária, ela cessa. E as condições favorá-
veis de nossavida também podem cessar: o Darma pode desaparecer ai
naregião onde vivemos, podemosperder a saúde, ser arrastados por Impermanência
outras prioridades, ficar sob o poderde pessoas hostis ao Darma, e de
uma horapara outra perder a conexão com os ensinamentos — todas
essas coisas podem acontecer devido ao nosso carma. À impermanência
nos ronda. Até mesmo monges e mestres podem perder a conexão,
cometer ações não virtuosase ser arrastados por negatividades.
Osseres humanosexistem há cerca de 20 mil anos, o queé
quase nada em relação aos cinco bilhões de anos do sistema solar e
da Terra, ou aos 15 bilhões de anos quese atribui ao universo. Nesses
20 mil anos, temos uma história registrada de 5 mil anos de civili-
zação. Nos últimos cem anos, houvetransformações dramáticas na
humanidade.
A nós tudo parece muito sólido, mas a história que existia
até cem anosatrás praticamente já cessou. Estamos vivendo outros
tempos, e tudo se passa com enorme rapidez. À impermanência está
aí, por isso ouvimos a recomendação depraticar agora, imediatamen-
te, pois não temos controle sobre esse processo. A impermanência
reforça a importância de nossa vida preciosa, de refletirmos sobre o
que fazemose de não perdermos tempo.
— -&
O terceiro pensamentotrata do carma. Temos carmas primá- TERCEIRO
rios e secundários.
Os carmas primários são estruturas internas de resposta PENSA
MENTO
automatizada e condicionada queinevitavelmente dão origem a sofri- “e
mento. Os pesadelos revelam nossos carmas primários. Podemos Carma
sonhar que estamos caindo, nos afogando, trancados dentro de uma
caixa, que alguém nos persegue ou ameaça. Essas situações aflitivas
nos assustam; acordamossobressaltadose relaxamosao ver que era um
pesadelo; contudo,ao pensar no pesadelo vamossentir o desconforto
144 |
de novo, e novamente nos tranquilizar ao nos darmos conta de que
aquilo não está acontecendo.
Podemosusar o cinemaparafazer uma varredura nos carmas
primários — filmes de terrore suspense nos causam calafrios. Aquilo
não está acontecendo, mas o carma primário é acionado, e as cenas
nos deixam de cabelo em pé.
Os carmas primários tornam-se vivos quando surgem as
condições secundárias. Nos filhos isso é visível quando a mãe diz:
“Arrume sua cama! Tome banho!”É horrível.
Há pessoas em quem trânsito faz brotar o carma secundário.
Uma sequência de sinais fechados, um engarrafamento ou motoboys
causam um enorme mal-estar.
Estamoscheios de carmas primários, que, ao encontrar as
causas secundárias, levam-nosa eventuais ações não virtuosas. Por
exemplo,brigar com a mãe pordeixaro quarto em desordem,ou cru-
zar o sinal vermelho, ou dar uma fechada no motoboy. Acontece por
impulso e gera uma grande complicação.
Existem situações gravíssimas, como o abuso de crianças
dentro de casa, na maior parte dos casos por pessoas da família.
Não podemospensarqueessas pessoas sejam negativas, elas são da
família, há relações positivas. No entanto,existem carmas primários
que, de acordo com as condições secundárias, podem dar origem a
ações terríveis.
Todos nós temos carmas primários e podemos exercer ações
negativas se surgirem condições secundárias. Uma vez que a ação
negativafoi feita, é de difícil desmontagem.A ação negativa dá origem
ao quarto pensamento quetransforma a mente.
ND
“A impermanência reforça a
importância de nossavida
preciosa, de refletirmos sobre
o que fazemos e de não
perdermos tempo.”
APÊNDICE 1 | 145
O quarto pensamento que transforma a mente é o SeO UARTO
to. O carma primário não é visto, só se torna visível ao surgirem as
causas secundárias, e aí nos surpreendemos com o que somoscapazes PENSAMENTO
de fazer. Vemos presos quedizem: “Eu não sou assim!” A pessoa sofre "
pelo que fez, tem vergonha, arrepende-se, aquilo foi um impulso Sofrimento
do momento.
Navisão budista, por mais grave queseja a ação não virtuosa,
não diremos que a pessoa é um monstro, veremos que seu ato é a
manifestação de um carma. Mas, seja como for, o carma se manifes-
ta, e surge o sofrimento derivado da ação cármica. Esta, tendo sido
feita, vai conduzir ao sofrimento. Não queremosesse sofrimento; por
isso, devemos estar atentos às nossas ações de corpo, fala e mente.
Podemos controlar nossas ações, mas não o resultado delas.
“Ê>
No budismo, tomamos refúgio para dispor de um referen- REFÚGIO
cial interno seguro que nos mantenhaestáveis e a salvo, para que
não percamos os ensinamentos quando as condições negativas se
manifestarem. Embora tenhamos a condição humana preciosa e a
conexão com uma linhagem de transmissão dos ensinamentos, nossa
posiçãoé frágil, pois somos ameaçados pela impermanência e temos
a estrutura de carmas primários que podem se manifestar sob certas
condições.
Naausência da possibilidade de tomar refúgio, oscilamos.
Tomarrefúgio significa a capacidadede direcionar nossa ação dentro
da existência condicionada. Significa que somoslivres do carma e das
identidades, que podemos exercer nossa liberdade. Tomar refúgio
em quê? Na natureza tal como ela é. Não é tomar refúgio em alguém,
mas na natureza ilimitada.
Porém, tradicionalmente, tomamos refúgio em um lama.
Acontece que o conceito de natureza ilimitada é por demais abstrato
para a maioria das pessoas. Assim, o lama é um representante da
natureza ilimitada. Por isso dizemos: “Tomo refúgio no lama, que é |
as Três Joias”. Quando o lama desaparecer, estaremos refugiados nas |
Três Joias. Não há diferença. Essa é a forma adequada de entendi- |
mento. Não tomamos refúgio na pessoa do lama, mas nas Três Joias,
que tentamosveratravés daquele ser à nossa frente. Se não conse- |
guirmosver, não há como tomar refúgio nelas. Podemosaté criaruma
relação pessoal com o lama, masisso não é refúgio. Refúgio é quando |
o Buda interno, nossa natureza de sabedoria, começaa aflorar, e por
146 |
isso somos capazes de ver as Três Joias no lama. Se não conseguimos
vernele essas qualidades, vemos um ser comum.
Um lama em carnee osso ajuda porque ele fala, tem maior
proximidade. Como temosdificuldade de localizar o lamainterno,é
necessário o surgimento de um lamaexterno, que entra em ressonân-
cia com a nossa natureza interna. O refúgio no lama externoé o cami-
nho que nosleva ao ponto último da naturezailimitada; esse caminho
se chama Guru Yoga. Não se trata de um caminhode aprisionamento a
alguém, mas um caminho que usa a liberdadeparaatingir a liberdade
final. No ponto final de Guru Yoga, encontramos o Budainterno como
nossa natureza incessante e sempre presente.
Olhamos as Três Joias, e tomamos refúgio no Buda como
expressão da nossa natureza, daquilo que não nasce, não morre, que
está além de espaço e tempo, nome e forma. Quando, nos ensina-
mentos mais profundos, contemplamosisso, vemos esse Buda como ao
a nossa natureza incessante, sempre presente. Como percebemos “Tomar refúgio em quê?
queela é incessante? Podemoster sonhos,aflições, podemos dormir Na natureza tal comoela
e ter várias situações no cotidiano. Estamos sempre vivendo alguma é. Não é tomar refúgio em
coisa. Essa é a explicação mais fácil de natureza incessante; o sonho alguém, mas na natureza
é incessante; o conteúdo do sonhonão é importante, o que importa é ilimitada. Olhamosas Três
ver o processo luminoso, o processo de atribuição de significados, de Jóias, e tomamosrefúgio no
identidades, operando sem cessar. Isso é a continuidade. A palavra Buda como expressão da
nossa natureza, daquilo que
tantra é traduzida às vezes como continuum. Há uma continuidade, é
quase fácil de perceber. É claro que precisamosassociaressa conti- não nasce, não morre, que
está além de espaço e tempo,
nuidade à noção de vacuidade, porque é uma continuidade de sonho.
nome e forma. Quando, nos
O que experimentamos pode ser pensado de diferentes maneiras, ensinamentos mais profun-
mas estamos sempre experimentando umaversão, um aspecto quase dos, contemplamosisso,
onírico. Estamos sempre no meio de um sonho. vemosesse Buda como a
Porisso dizemos que toda a realidade é luminosa, no sentido nossa natureza incessante,
de que está ligada inexoravelmente a uma interpretação que brota sempre presente”
inseparável de nossaestrutura interna. O mundo externo brota inse-
parável de nossas estruturas de carma. Aquilo que brota dentro de
nós, vemos brotando fora, por meio da coemergência. Desse modo
percebemosquehá algo incessante.
No budismo, dizemos que as experiências não cessam
com a morte; outras tradições religiosas dizem o mesmo: uns vão a
julgamento, outros para mundos celestiais, outros para o inferno.
O importante é que, qualquer que seja o ambiente, há uma continui-
dade de consciência. É a noção de tantra, há um ho que vai nos levando
enão é interrompido.
APÊNDICE 1 | 247
Dizemos queessa natureza é incessante. Estamos falando do
Buda em um sentido muito amplo. Essa natureza incessante é lumi-
nosa, apresenta sempre diferentes aparênciase versões da realidade.
Incessante e luminosa, ela é não obstruídae autoliberta; as obstruções
surgem e cessam sucessivamente. Ela é naturalmente desobstruída,
nenhuma obstrução altera sua qualidade básica de liberdade. Ela é
não dual, portanto.
é
Nesse ponto da prática tomamos refúgio no Buda, como REFÚGIO NA
natureza incessante e luminosa. Tomamos refúgio no Darma, comoos
ensinamentos do Buda. Tomamos refúgio na Sanga, como uma ener- MANDALA DO BUDA
gia que emana dopróprio Buda.
Quando meditamos juntos, a mandala se abre e começamos
a ver diferente. Manter o refúgio é manter essa visão da mandala
ondequer que estejamos. Perdero refúgio significa sair da mandala e
entrar em umapaisagem deaflição. Não se trata de umapaisagem física,
é umavisão lúcida da natureza incessante, luminosae inseparável do
conteúdo dos fenômenos condicionados. Podemosir a cemitérios,
prontos-socorros, a qualquerlugar, e levar a mandala.
Olhando do ponto de vista da mandala, é mais fácil vermos o
lama como o Buda, o Darmae a Sanga, comoas Três Joias, pois o papel
do lama é chegar onde ninguém tem experiência de mandala e abri-
la. Seu papel é não só abrir a mandala, como expandi-la e ajudar a pre-
servá-la. Essa mandala não é criada pelo lama. É a mandala do Buda.
A diferença da mandala do Buda em relação a outras pai-
sagens é que, quando a encontramos, percebemos que ela sem-
pre existiu. Não é fabricada. As outras paisagens são fabricadas.
A mandala do Buda é totalmente abrangente, não há fenômeno que
ela não inclua. As outras paisagenstratam dealgumascoisas, mas não
tratam de outras. É por isso que os mestresdizem que precisamosver
com lucidez, ver a realidade comoela é. Assim veremos a mandala
comoelaé, não fabricada.
148 |
APÊNDICE 1 | 149
Apêndice 2
CULTURA DEPAZ
AR ÊNDICE2 | 151
queas pessoas devam ser responsabilizadas diretamente porsuas ações
negativas. Trabalhamos com o conceito de que, se andarmosde maneira
apropriada, colheremoso que desejamos: felicidade e segurança.
Essa é a perspectiva geral dos ensinamentos. Vamoster ensi-
mamentos provisórios e outros definitivos. Os ensinamentos relati-
vos e direcionadosà cultura de paz serão, pelo menos no início, pro-
visórios. Dizem respeito ao mundo condicionado, onde, esquecidos
do que somos verdadeiramente, nos ligamos a um corpo e dizemos:
“Eu sou este corpo”. Ainda que nosso corpo mude, continuamos
a dizer: “Eu sou este corpo”. Também dizemos: “Eu sou a minha
identidade”. Apresentamo-nos com nossocartão de visitas: “Eu sou
isso”. Ainda que tenhamos muitos diferentes cartões, e tenhamos
nos apresentado de formas diferentes no passado, dizemos: “Agora
sou isso”. E talvez não tenhamos nenhumadesconfiança de que não
somos realmente aquilo.
Desse modo, se nossa identidade vai mal, nos sentimos
muito aflitos; se nosso corpo está mal, nos sentimos muito aflitos, e
nos guiamos poressasaflições. Acreditamos que, se seguirmoso que
parece favorável e escaparmosdo que parece desfavorável, atingire-
mosa felicidade. Vocês devem ter percebido que, dentro dessa pers-
pectiva, ninguém obteve sucesso até hoje. Certas pessoas podem ter
obtido muitos resultados, mas nunca o pleno sucesso.
Isso porque giramos dentro do que chamamos de experiência
cíclica, sem solução. Buscamosa felicidade em coisas impermanen-
tes, que inevitavelmente chegam ao fim e, quandoisso acontece, vem
o sofrimento. O budismo ensina que não adianta procurara felicidade
permanente no samsara, na existência condicionada. Precisamosir
além, procurar em outro lugar.
fo
Nesse momento, estamos imersos em umaversão de cultura AS DIFICULDADES
de paz que apresenta problemas. Temosgraves dificuldades na questão
ambiental, tanto na exploração dos recursos naturais como na polui-
ção. Temos também graves falhas em termosde indivíduose socieda-
de. Estamos em umacultura que permite e eventualmente estimula
várias coisas negativas, desde hábitos alimentares nocivos e consumo
de substânciastóxicasaté questões como corrupçãoe violência.
Assim, o nosso grande barco da cultura de paz tem furos no
casco e está fazendo água. Algumas pessoas acreditam que os furos
estão permitindo a entrada de um tal volumede água que as bombas
não estão dando conta, e o barco está afundando. Paraelas, esse pro-
as2 |
cesso não tem comosercontido, ou seja, a sustentabilidadeda vida
noplaneta não tem solução. Outras pessoas vão dizer: há soluções.
Outras ainda dizem: havendo ou não solução, farei a minha parte.
Eu meincluo entre essas. Se houver solução, espero contribuir de
alguma forma, e se não, já estamossalvos: é apenas um barco, há o
grande oceano, nossa natureza não será efetivamente afetada, seja
pelo que for.
Nossacultura de paz precisa de alguns ajustes. Precisamos
fechar os furos do casco do barco. Para fazer isso, já temostudo de
que precisamos: uma natureza ilimitada e luminosa, capaz de cons- =
truir e de mudar as coisas, e a motivação de alcançara felicidade e “No budismo, não
nos livrarmos do sofrimento. Precisamos entender que o barco é um trabalhamos com a
só, e que vamos flutuar ou afundar com ele, todos juntos. Quando
noção de que exista um
percebemos queas coisas que estamos fazendo parater felicidade e
evitar o sofrimento não funcionam, ficamosdispostos a mudar. Mas
centro do mal, ou um
mudar como? complô para afundar
Dentro da visão limitada, de certo e errado, temos o hábito o navio, ou seres que
dejulgare culpar.E aí brigamosuns com os outros. No caso dos furos desejem infelicidade e
no casco de nosso navio, as pessoas podem se dividir em grupose sofrimento. Por isso,
trocar acusações mútuas: "Foram vocês que fizeram o furo!”, “Aquele não vamos querer
grupo deveria ser jogado da amurada!” A noção de exclusão está muito excluir ninguém”
arraigada dentro de nós, temosa tendência de ver todos que não são
iguais a nós comoinimigos. A história dascivilizaçõesestá repleta de
exemplos de nações que consideravam os outros povos bárbaros. Até
hoje é assim.
No budismo, não trabalhamos com a noção de que exista
um centro do mal, ou um complô para afundar o navio, ou seres
que desejem infelicidade e sofrimento. Por isso, não vamos querer
excluir ninguém. Os comportamentosnãosão perfeitos, mas podem
mudar. Todos temosa natureza ilimitada, temosreceitas que funcio-
nam e outras que não funcionam, e então temos que aprimorar os
nossos processos.
£
Dentro da noção de responsabilidade universal, o que AS SOLUÇÕES
vamos fazer? Vamos cuidar para que nossas ações sejam menos
agressivas e mais positivas. Quando agimos assim, ficamos mais
felizes. Se pensamosquetrazer benefício aos outros é um proble-
ma, e que arrancar as coisas dos outros ou jogá-los pela amurada é
melhor, o casco do barco começaa se romper. A sustentabilidade
fica afetada.
NDICE | 153
As pessoas autocentradas e que tentam arrancar coisas dos
outros ficam aflitas, pois sentem-se cercadas de inimigos. Elas defato
cultivam inimizades e negatividade,e isso vai gerando isolamento,
dificuldade para conviver com os outrose consigo mesmo. À agressi-
vidadetorna-se um hábito. Os amigose parentes tentam ajudar, mas
é muito difícil. Vocês provavelmente já devem ter procurado ajudar
adj
pessoas queestão afundando no meio das aflições. É complicado porque,
para nós, não há razão nenhuma para aquela aflição, maso ser aflito “.. devemos estabelecer
está povoado de condições negativas e não vê solução. relações positivas conosco,
Por outro lado, se desenvolvermos relações positivas com os com os outros seres,
outros, nos sentiremos maisfelizes. Teremos identidades melhores, com o ambiente social
desenvolveremos pensamentos atitudes positivas, vamos nos ali- ecomo ambiente natural.
mentar melhor, ter melhor saúde, tudo melhora. Desenvolver rela- Aqualidade básica por
ções positivas não significa que vamos concordar com tudo. Em certos trás dessa recomendação
casos, precisamos desenvolver umaposição firme contra negativida- éa estabilidade inseparável
des. Um bom exemplo é a educação de nossos filhos: deixar que façam do conceito deliberdade.
tudo que quiserem jamais seria uma relação positiva. Nesse caso, liberdade
Essa compreensão é a compreensão da cultura de paz, e ela significa não ser arrastado
tem uma recomendação específica e prática: devemos estabelecer pelas situações, mas poder
relações positivas conosco, com os outros seres, com o ambiente dirigir a própria ação com :
social e com o ambiente natural. A qualidade básica portrás dessa lucidez”
recomendaçãoé a estabilidade inseparável do conceito de liberdade.
Nessecaso, liberdadesignifica não ser arrastado pelas situações, mas
poderdirigir a própria ação com lucidez.
Se umasituação negativa nosaflige e perturba, perdemos a
lucidez, não conseguimosdirigir nossa ação, somoslevados pela res-
ponsividade. Quando mantemosa estabilidade, não somos afetados,
mantemosnossa liberdade e lucidez, não adotamos atitudes de exclu-
são erevide.
Algumas pessoas conseguem mover-se em meio à negativi-
dade sem atitudes de exclusão e de revide por terem umafé profunda,
& outras por terem uma lucidez muito grande. O melhoré juntarfé e
lucidez. Nessecaso,temos a certezaintuitiva da fé associada ao racio-
cínio lúcido.
Esseé o conceito deculturade paz. Poderíamosensiná-lo aos
nossos filhos nasescolas, mas a melhor formade fazê-lo viveresse
princípio. Nosso objetivo é queas pessoas possam refletir sobreisso. Que
elas percebam que podem se recriar como pessoas melhores adotando
outra maneira de se relacionar consigo mesmas, com os demais seres,
com a sociedade e com o ambiente. Vivendo na cultura depaz, vemos
154 |
todosos seres comoaliados: comonós,eles queremfel
icidade e não
querem sofrimento. Não excluímosos seres imersos em
negativida-
de, nem sentimos aversão por eles.
PÊNDICE 2 | 155
Indice remissivo
de ilustrações
Bupa,6, 84, 139, 150 ——— detalhe, 49
detalhe: 13 3 VIJNANA, 50
157
YBODISATVA $
www.cebb.org.br
CEBB Darmata
Fazenda Nossa Senhora, Km 7
Cep 55870-000
Caixa Postal 82
Timbaúba,PE.
Tel: 81.9201.9336
darmataQcebb.org.br
Outros livrosdo autor:
MeprraNDo AVIDA, ed. Peirópolis, 2001.
Joia os Deszyos, ed. Peirópolis, 2001
O Lama zo Economista,ed. Rima, 2004.
Rerações » Conrrrros, ed. Mandala do Lótus, 2006.
Mannata DoLórus, ed. Peirópolis, 2006.
“Acesse nossa loja e confira cds e dvds sobre a Roda da Vida,
Psicologia Budista, os 12 Elos da Originação Interdependente,
além deoutros temas e produtos: < www.LOJA.CEBB.ORC.BR >.
Este livro foi composto utilizandoas fonts Filosofia de Suzana Licko, Vista Sans
de Xavier Dupré,Dalliance
Flourishes de Frank Heinee Vendetta Light de John Downere impresso em papel
couchéfosco 120g/m: pela
editora Peirópolis em 2010.
Em A Roda da Vida como caminho paraa lucidez, o Lama Padma Samten oferece aos
leitores de língua portuguesa um resumo de alguns dos pontos fundamentais do
budismo. Com uma linguagem simples e bem-humorada, descreve os doze passos
da construção dosofrimento humano— representados na imagem da Rodada Vida —,
assim como o método paraalcançar a lucidez, ou seja, a liberaçãodo sofrimento. sy%
YBODISATVA y