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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS

FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA

VIRGINIA DA SILVA SANTOS

VOZES E IMAGENSDA MEMÓRIA EM POEMAS, NOVOS POEMAS E POEMAS


ESCOLHIDOS, DE JORGE DE LIMA

Maceió
2015
VIRGINIA DA SILVA SANTOS

VOZES E IMAGENS DA MEMÓRIA EM POEMAS, NOVOS POEMAS E POEMAS


ESCOLHIDOS, DE JORGE DE LIMA

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação de Letras e
Linguística da Universidade Federal de
Alagoas, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Estudos
Literários.

Orientadora: Profa. Dra. Gilda Vilela Brandão

Maceió
Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecário Responsável: Valter dos Santos Andrade

S237v Santos, Virginia da Silva.


Vozes e imagens da memória em Poemas, Novos poemas e Poemas
escolhidos, de Jorge de Lima / Virginia da Silva Santos. – Maceió, 2015.
102 f. : il.

Orientadora: Gilda Vilela Brandão.


Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Federal de
Alagoas. Faculdade de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras e
Linguística. Maceió, 2015.

Bibliografia: f. 96-102.

1. Literatura brasileira. 2. Memória. 3. Lima, Jorge, 1895-1953 - Crítica e


interpretação. I. Título.

CDU: 82.091
A Deus, aos meus pais, a Thiago Luna e a
minha avó Maria Ferreira que me presentou
com as doces lembranças que deixou.
AGRADECIMENTOS

Entre todos aqueles que quero agradecer, o primeiro a quem eu agradeço é Deus, por
sua imensa bondade e amor, por ter me dado uma família maravilhosa e pais ainda mais
maravilhosos. Agradeço aos meus pais, Artur Bispo dos Santos Neto e Maria Ester Ferreira da
Silva, por terem me criado e me amado, por terem me ensinado o amor aos outros e também o
amor aos livros. Agradeço à minha avó Maria Ferreira da Silva pelo cuidado e pela doce
presença durante os anos em que tive a felicidade de estar ao lado dela, mesmo achando que
ela poderia ter demorado um pouco mais para nos deixar. Também agradeço a minha tia
Marilene Ferreira da Silva que além de tia foi uma segunda mãe para mim. Agradeço ao meu
irmão Pedro Bispo dos Santos Neto que está distante apenas fisicamente, pois sei que a sua
maneira ele está sempre por perto. Agradeço a Thiago Luna Amaral pelo que aprendi com ele
nos anos que estamos juntos, agradeço a principalmente por sua paciência e companheirismo.
Agradeço à minha orientadora Profa. Dra. Gilda Vilela Brandão por ter aceitado orientar um
projeto de uma aluna que nem ao menos conhecia e por ter continuado a orientar essa aluna de
maneira tão doce, paciente e delicada. Enquanto estive escrevendo esta dissertação, ouvia
interiormente o que a profa. Gilda poderia pensar sobre determinado trecho, mas a voz que me
vinha nunca tinha um ar de reprovação, pelo contrário, era uma voz doce que procurava da
melhor maneira possível me ensinar o melhor caminho, espero que ela possa continuar a me
orientar dessa maneira por ainda mais alguns anos. Agradeço também aos professores que me
ensinaram durante a graduação e o mestrado: Eliana Kefalás, Roberto Sarmento, José Niraldo
de Farias, Lígia dos Santos Ferreira, Maria Denilda Moura, Núbia Rabelo Bakker Faria,
Gláucia Machado. Agradeço especialmente às professoras que fizeram parte da minha banca
de defesa, Profa. Dra. Vera Romariz e Profa. Dra. Susana Souto, pelas considerações e
sugestões maravilhosas para esta pesquisa. Agradeço aos amigos que fiz durante a jornada
desta pesquisa: Eduarda Rocha, Dorgicleiton da Silva, Diogo Souza, Rosilene Pimentel,
Helenice Fragoso, Priscila Silva, Cibelle Araújo, Everaldo Bezerra. As conversas, eventos e
momentos que partilhamos juntos também teceram esta dissertação. Agradeço, enfim, ao
CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) por ter financiado
minha pesquisa durante esses dois anos.
“Mas tu, memória, condizes
Com o que nunca existiu...”
(Fernando Pessoa)
RESUMO

A presente dissertação tem como objetivo apresentar uma discussão relacional entre literatura
e memória nas obras Poemas (1927), Novos Poemas (1929) e Poemas Escolhidos (1932), do
poeta alagoano Jorge Matheus de Lima (1893-1953). Escolhemos os poemas em que a
memória se faz presente, seja quando está relacionada à infância, seja quando está relacionada
ao espaço coletivo. Para isso, utilizamos um referencial teórico acerca da memória composto
por autores como Paul Ricoeur (2012), Maurice Halbwachs (2006), Henri Bergson (2010),
Gaston Bachelard (1978), Agostinho (2011), Aleida Assmann (2011), dentre outros escritores
que nos permitem entender o funcionamento da memória, assim como de suas manifestações,
tais quais a lembrança, a reminiscência, o esquecimento. Os autores Fábio de Souza Andrade
(1993), José Paulo Paes (1997), Ana Maria Paulino (1995), Leyla Perrone-Moisés (1990),
Julia Kristeva (2012) são alguns dos estudiosos de literatura que também compuseram o
referencial teórico desta pesquisa.

Palavras-chave: Literatura. Jorge de Lima. Memória.


ABSTRACT

The present dissertation has as objective to present a discussion of the relationship between
literature and memory inside the following Jorge de Lima’s books: Poemas (1927), Novos
Poemas (1929) and Poemas Escolhidos (1923). We choose the poems in which the memory is
present. The memory could be present when it is related to the childhood, or when is related
to the collective area. Our theoretical framework is compound of authors as Paul Ricoeur
(2012), Maurice Halbwachs (2006), Henri Bergson (2010), Gaston Bachelard (1978),
Agostinho (2011), Aleida Assmann (2011), and others writers who allow us to understand
how memory works, and as well, the memory’s manifestations like keepsake, reminiscence
and oblivion. The authors Fábio de Souza Andrade (1993), José Paulo Paes (1997), Ana
Maria Paulino (1995), Leyla Perrone-Moisés (1990), Julia Kristeva (2012) are some of the
literature scholars who also composed this dissertation’s theoretical framework.

Keywords: Literature. Jorge de Lima. Memory.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
1. MEMÓRIA E LITERATURA: RE(A)PRESENTAÇÃO DE JORGE DE LIMA ... 14
1.1.Reapresentação de Jorge de Lima ................................................................................... 21
1.2.Representação das lembranças: as memórias literárias de Jorge de Lima ...................... 32
2. “INFÂNCIA”: PALAVRA-CHAVE NA POESIA DE JORGE DE LIMA ............... 42
2.1. A casa: o primeiro universo. O lugar memorável por excelência:................................. 42
2.2. Em busca da Fé perdida ................................................................................................. 54
3. LUGAR DE MEMÓRIA... MEMÓRIAS DE UM LUGAR........................................ 67
3.1. Serra da Barriga: lugar de memória ............................................................................... 67
3.2. Caminhos de Lembranças .............................................................................................. 73
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 93
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 96
11

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a obra poética do alagoano Jorge
Matheus de Lima (1893-1953) a partir de um enfoque memorialístico. Escolhemos como
corpus as obras Poemas (1927), Novos Poemas (1929) e Poemas Escolhidos (1932), as três
primeiras obras do Jorge de Lima considerado modernista, por percebemos nelas uma
presença constante da memória devido, principalmente, à recorrência do tema da infância.
A justificativa para a escolha do título desta dissertação se deu pelos seguintes motivos:
“Vozes” por entendermosque a memória não é constituída apenas da voz de uma só pessoa,
mas de várias, de um coletivo,e que a memória individual é tecida pelas lembranças dos
outros, assim como a memória coletiva é um tecido das lembranças de vários um só;
“Imagens” por percebermos,durante esta pesquisa, que a memória em Jorge de Lima se
apresenta através de imagens, algo que, na realidade, é característico da própria memória,
visto que a representação daquilo que aconteceu só pode se dar através de uma imagem, que
pode ser tanto visual quanto auditiva.
A pesquisa deste trabalho vem sendo desenvolvida desde 2010 com a disciplina
“Projetos Integradores”, sob a orientação da atual orientadora Profa. Dra. Gilda Vilela
Brandão. A disciplina gerou um trabalho, e, em seguida, um PIBIC (Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica) intitulado “Memória e História em Jorge de Lima”, tema
aprofundado no TCC (Trabalho de Conclusão de Curso).
Nosso percurso nesta pesquisa é longo, o que nos permitiu fazer diversas leituras acerca
da memória, procurando entender o seu conceito e funcionamento através de diversos autores.
Paul Ricoeur foi um dos autores que nos acompanharam durante esse trabalho, visto que sua
obra A memória, a história, o esquecimento (2012) foi muito importante para uma
compreensão da memória, entendendo como funciona não só essa faculdade, mas também
outros aspectos a ela relacionados, como a lembrança, a rememoração, o reconhecimento e,
principalmente, o esquecimento. Além de Ricoeur, Maurice Halbwachs com sua obra A
memória coletiva (2006) foi importante para o referencial teórico desta dissertação, visto que
esse autor traz uma concepção da memória como algo que não é puramente individual, mas
que é também é coletiva, formada pelos outros e também lembrada pelos outros. Henri
Bergson (2010), Gaston Bachelard (1978), Agostinho (2011) e Aleida Assmann (2011)
12

também foram importantes para nos apoiar teoricamente, auxiliando-nos a entender a


memória em determinados poemas que analisamos.
O presente trabalho encontra-se, então, dividido em três capítulos: “Memória e
Literatura: re(a)presentação de Jorge de Lima”, “‘Infância’: palavra-chave na poesia de Jorge
de Lima” e “Lugar de memória... memórias de um lugar”. No primeiro capítulo, antes mesmo
de fazer uma apresentação formal da poesia de Jorge de Lima, apresentamos as conexões
existentes entre Literatura e Memória, procurando suas ligações desde suas origens na
Mitologia Grega. Em seguida, re(a)presentamos Jorge de Lima, fazendo uma análise
bi(bli)ográfica do poeta, para, enfim, analisar o texto autobiográfico Minhas memórias.
Contudo, a análise dessa obra não objetiva ser um estudo biográfico, pois não desejamos
justificar a obra através de fatos da vida do autor.
No segundo capítulo, começamos as análises das obras que escolhemos como corpus. O
foco desse capítulo está na análise de poemas como “Poema à irmã”. “Volta à casa paterna”,
“Filho Pródigo”, em que a memória testifica-se através das lembranças da infância,
lembranças que são mais voltadas para a família e para as tradições familiares. É neste
capítulo que analisamos o papel que desempenha a casa frente à memória e como o eu lírico
descreve a casa natal, além de também analisarmos a figura da irmã como fornecedora de
lembranças em alguns poemas de Jorge de Lima. Por fim, analisamos ainda nesse capítulo a
relação existente entre a religiosidade e a memória, observando essa relação não só na
superfície dos poemas, mas também em sua estrutura, como é o caso do poema “Credo” em
que analisamos a questão do esquecimento.
O terceiro e último capítulo tem como foco a análise de poemas em que a memória está
ligada ao espaço externo da casa e do círculo familiar, ou seja, aos lugares públicos,
históricos, geográficos ocupados pela coletividade. Nesse capítulo, procuramos analisar
poemas em que o lugar é o guardião da memória, como é o caso do poema “Serra da Barriga”,
mas também procuramos analisar poemas que em que o lugar age como catalisador de
lembranças, como nos poemas “Mundaú”, “G.W.B.R.” e “Caminhos de minha terra”. Na
análise desses poemas, procuramos fazer como no capítulo anterior, observando a relação da
memória com o lugar não apenas na aparência do poema, mas também na sua essência.
Os três capítulos desta dissertação estão fundamentados em textos de estudiosos da obra
de Jorge de Lima como Fábio de Souza Andrade (1993), José Fernando Carneiro (1958), José
Aderaldo Castello (2004), Povina Cavalcanti (1993), Luciano Cavalcanti (2007), José Paulo
Paes (1997), Aline de Souza Pereira (2011), Ana Maria Paulino (1995) dentre outros
escritores que nos auxiliaram neste estudo. Textos de Mario de Andrade (1974, 1978),
13

Alfredo Bosi (1994, 1997), Massaud Moisés (2003), Leyla Perrone-Moisés (1990) e outros
estudiosos de literatura também foram importantes para a tessitura desta dissertação.
Esperamos que nossa pesquisa possa contribuir para um melhor conhecimento da obra de
Jorge de Lima e que seus leitores possa, eventualmente, encontrar subsídios para os seus
trabalhos.
14

1. MEMÓRIA E LITERATURA: RE(A)PRESENTAÇÃO DE JORGE DE LIMA

Em 1945, o poeta Jorge Matheus de Lima (1893-1953) concedeu uma entrevista a


Homero Sena, jornalista do periódico Revista O Jornal. Nessa entrevista, Jorge de Lima
afirma que os primeiros anos de vida de uma pessoa a marcam de tal maneira que, depois de
adulto, o homem volta a reencontrar a criança que fora1. Essa afirmativa muito diz acerca da
obra literária do poeta, visto que essa volta aos primeiros anos, esse reencontro com a infância
permeia todas as obras de Jorge de Lima. Contudo, antes de darmos início a uma
reapresentação da bi(bli)ografia do poeta e a uma análise de sua obra poética e também
comentar sua obra autobiográfica, Minhas memórias, acreditamos que seja necessário
entender qual a relação que há entre a literatura e a memória.
Será que, frente à literatura, a memória serve apenas como uma fornecedora de matéria?
Será que ela desempenha apenas o papel de levantar questões universais como o amor, a
amizade, a saudade? Que relação há entre a literatura e a memória? Talvez essa não seja uma
inquietação para o leitor, contudo, sinto-me compelida a responder àquela pergunta, como se
o texto, agora fazendo o papel da Esfinge, ameaçasse me devorar, caso não decifrasse esse
enigma.
Em a Odisseia, umas das mais antigas narrativas ocidentais, Ulisses, ao narrar as
dificuldades para regressar a sua terra natal, relata o episódio em que esteve na terra do
lotófagos:

E não ocorreu aos Lotófagos matar os nossos companheiros [homens de


Ulisses]
em vez disso, ofereceram-lhes o lótus, para que comessem.
E quem entre eles comesse o fruto do lótus, doce como o mel,
já não queria voltar para dar notícia, ou regressar para casa;
mas queriam permanecer ali, entre os Lotófagos,
mastigando o lótus, olvidando do seu retorno (HOMERO, 2011, p. 260).

Como podemos ver no trecho acima, a batalha de Ulisses com os lotófagos não se deu
através de uma luta física (“E não nos ocorreu aos Lotófagos matar os nossos companheiros”),
pois a batalha era resistir à tentação de poder esquecer o regresso (“E quem entre eles
comesse o fruto do lótus, doce como o mel, / já não queria voltar para dar notícia, ou regressar
para casa”). Para Regina Zilberman, a Odisseia não narra uma luta de Ulisses contra

1
“É sabido o quanto os primeiros anos de vida marcam o indivíduo. Através, muitas vezes, de mil equívocos, o
homem maduro volta, afinal, a reencontrar o menino que foi. Uns, mais felizes, se encontram logo, não se
perdem por trilhos errados. Para outros, a procura do seu caminho é demorada e penosa. Machado de Assis já
disse, numa frase que se tornou célebre, que o “menino é pai do homem”. (LIMA, 1959, 75).
15

monstros, mas contra o esquecimento, o esquecimento de sua identidade, o esquecimento de


Ítaca e da necessidade de voltar para casa:

[...] Ulisses, para não esquecer de si mesmo, resiste à tentação das sereias,
cujo canto desvia o sujeito de seu rumo, e naquele ponto da trama o herói e
seus marujos procuram retornar à sua terra natal; em outro trecho da
narrativa, em que as personagens chegam ao país dos lotófogos, Odisseu
evita comer a fruta que faz a pessoa olvidar o caminho de regresso à pátria
(ZILBERMAN, 2011, p. 13).

A narrativa de Homero é sobre o regresso de Ulisses à sua terra natal, e ele somente
pode regressar se não houver o esquecimento. A memória aí se apresenta no conteúdo
abordado pela obra, mas também é sua constituinte, visto que essa narrativa da luta de Ulisses
contra o esquecimento é contada com o objetivo de não deixar a própria história de Ulisses ser
olvidada não só pelo protagonista, mas também por sua comunidade. E quando essa narrativa
passa para o registro da escrita é com a finalidade de vencer a morte, o esquecimento2. Nesse
contexto, a narrativa é “[...] a expressão mais completa da ação da memória” (Ibidem, p. 14).
A cultura grega também nos ajuda a entender a relação que há entre a memória e a
literatura se as observarmos pelo prisma da mitologia grega. Os gregos fizeram da memória
uma deusa (Mnemosyne), sendo esta a mãe das nove musas (Calíope, Clio, Erato, Euterpe,
Melpômene, Políminia, Tália, Terspsícore e Urânia), fruto de nove noites passadas com
Zeus3. Mnemosyne é, então, aquela que lembra aos homens os grandes feitos e seus heróis
através da figura do aedo, um adivinho do passado, presidindo, assim, à poesia lírica, como
afirma o mitólogo Jean-Pierre Vernant (1990):

Deusa titã, irmã de Crono e de Okeanós, mãe das Musas cujo coro ela
conduz e com as quais, às vezes, se confunde, Mnmosyne preside, como se
sabe, a função poética. É normal entre os gregos que essa função exija uma
intervenção sobrenatural. A poesia constitui uma das formas típicas da
possessão e do delírio divinos, o estado de “entusiasmo” no sentido
etimológico. Possuído pelas Musas, o poeta é intérprete de Mnemosyne
como o profeta, inspirado pelos deuses, o é de Apolo (VERNANT, 1990, p.
137).
2
Acerca dessa luta do homem contra o esquecimento, Paul Ricoeur, em A memória, a história, o esquecimento,
associa o esquecimento a angústia que sentimos ao nos lembrarmos que nós somos mortais: “A busca da
lembrança comprova uma das finalidades principais do ato de memória, a saber, lutar quanto o esquecimento,
arrancar alguns fragmentos de lembrança à ‘rapacidade’ do tempo (Santo Agostinho dixit), ao ‘sepultamento’ no
esquecimento. Não é somente o caráter penoso do esforço de memória que dá à relação sua coloração inquieta,
mas o temor de ter esquecido, de esquecer de novo, de esquecer amanhã de cumprir esta ou aquela tarefa; porque
amanhã será preciso não esquecer... de se lembrar” (RICOEUR, 2012, p. 48).
3
Acerca dessa relação entre Zeus e Mnemosyne, Jeanne Marie Gagnebin afirma que a escolha de Zeus pela deusa
da Memória se deu porque ele só poderia assegurar o seu poder se tivesse ao seu favor a palavra que
constantemente relembra a sua dominação: “As Musas, que inspiram Hesíodo, reconhecem em Mnemosyne sua
mãe que Zeus, aliás, não escolheu por acaso como sua quinta esposa: o rei dos deuses só pode verdadeiramente
assentar o seu poder ao assegurar-se de uma palavra que rememora a sua dominação” (GAGNEBIN, 2004, p. 3).
16

A poesia é, pois, identificada pelos gregos antigos com a memória, colocando o poeta
como aquele que, diferentemente do adivinho que vê o que ainda não é, vê o que já aconteceu,
associando, assim, os poetas aos “mestres da verdade”, sendo, inclusive, a ação de versejar,
vista por Homero, como a ação de lembrar. A tarefa do poeta era, então, assegurar o passado
do esquecimento, algo que depois seria desempenhado pelo historiador4.
As filhas de Mnemosyne são as fontes de inspiração dos poetas. Podemos, assim,
interpretar como se da memória surgisse a imaginação, o que a faz bastante próxima da
literatura, já que o ficcional da literatura surge pelo uso dessa faculdade imaginativa. O
filósofo italiano Giambattista Vico percebeu essa relação que há entre a memória e a
imaginação (fantasia), mas partindo de um viés etimológico para fazer tal comparação5:

[...] entre os Latinos chama-se “memória” a faculdade que guarda as


percepções recolhidas pelos sentidos, e “reminiscência” a que as dá à luz.
Mas memória significa também a faculdade pela qual nós conformamos as
imagens, e que as dá, e que os Gregos chamaram “fantasia”, e nós
comumente dizemos “imaginar” dizem os Latinos memorare. Será, por
acaso, porque não podemos fingir em nós senão o que pelo sentidos
percebemos? De certo, nenhum pintor pintou jamais qualquer gênero de
planta ou de ser animado que não o retirasse da natureza: porque hipogrifos e
centauros são verdades da natureza ficticiamente combinadas. (VICO apud
BOSI, 1977: 200 [Vico - De Antiqüíssimo, cit. VII, 2]).

E o filósofo italiano ainda afirma acerca da relação que há entre aquelas duas categorias:
“[...] a memória é igual à fantasia [...], memória enquanto relembra as coisas; fantasia,
enquanto altera e contrafaz; engenho, enquanto as contorna, combina e ordena” (Ibidem, p.
207). Partindo, então, dessa aproximação que há entre a memória e a imaginação, podemos
afirmar que a memória reelabora aquilo que relembra, assim como a literatura, através da
imaginação, reelabora o real. Mas a memória e a literatura são reelaborações não só porque
4
Alfredo Bosi também reflete esse pensamento grego quando afirma que o poeta, mesmo quando fala sobre o seu
tempo, fala de modo que ainda o relaciona com o passado, com a memória; como se a função de porta-voz do
passado ainda residisse em sua existência: “Mesmo quando o poeta fala do seu tempo, da sua experiência de
homem de hoje entre homens de hoje, ele o faz quando poeta, de um modo que não é o do senso comum,
fortemente ideologizado; mas de outro, que ficou na memória infinitamente rica da linguagem. O tempo “eterno”
da fala, cíclico, por isso antigo e novo, absorve, no seu código de imagens e recorrências, os dados que lhe
fornece o mundo de hoje, egoísta e abstrato.
Nessa perspectiva, a instância poética parece tirar do passado e da memória o direito à existência; não de um
passado cronológico puro – o dos tempos já mortos -, mas de um passado presente cujas dimensões míticas se
atualizam no modo de ser da infância e do inconsciente. A épica e a lírica são expressões de um tempo forte
(social e individual) que já se adensou o bastante para ser reevocado pela memória da linguagem” (BOSI,
1997, p. 112 – grifo nosso).
5
Jules Michelet também traça uma relação entre a memória e imaginação a partir do mesmo viés: “Os Latinos
designam a memória por memoria quando ela reúne as percepções dos sentidos, e por reminiscentia quando os
restitui. Mas designavam da mesma forma a faculdade pela qual formamos imagens, a que os Gregos chamavam
phantasia, e nós imaginativa, e os Latinos meemorare... Os Gregos contam também na sua mitologia que as
Musas, as virtudes da imaginação, são filhas da memória” (MICHELET apud LE GOFF, 1990, p. 463).
17

utilizam a imaginação, mas também por se servirem da linguagem, das palavras. O produto da
memória é uma lembrança construída de palavras, é um passado que podemos possuir, mas
não podemos agarrar. Agostinho, em Confissões, percebe essa composição linguística das
lembranças:

Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória


relata não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as
palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem
pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios
(AGOSTINHO, 2011, p. 278).

As lembranças, assim como os textos, são tecidas de palavras, e ambos trazem a


presença do ausente, a ausência dos objetos/lembranças na materialidade das palavras.
Contudo, as palavras, em especial, as palavras escritas são as que mais confiamos para
guardar as lembranças e os textos do esquecimento. Porém, é importante frisar que a memória
não é composta apenas de lembranças, mas também de olvidamentos; o mesmo vale para a
literatura, visto que o texto não é capaz de dizer tudo sobre todas as coisas, e por
consequência algo sempre vai escapar. Paul Ricoeur explica bem como o ato de esquecer e o
de lembrar estão mais próximos do que se imagina, ao afirmar que “Ver uma coisa é não ver
outra. Narrar um drama, é esquecer outro” (RICOEUR, 2012, p. 459).
Escrevendo para não esquecer, a palavra escrita guardaria as lembranças do
esquecimento. Mas o advento da escrita não culminaria na necessidade de não mais se
esforçar em lembrar? Harald Weinrich, ao refletir sobre o esquecimento à luz de Kant, diz:

Sobre a relação entre escrita e esquecimento, em vez de escrita e memória,


ele escreveu certa vez sobre Platão: “Um dos antigos disse: A arte de
escrever liquidou com a memória (em parte a tornou dispensável).” Kant
acrescentou como comentário próprio a essa citação de Platão: “Nessa frase
há algo de verdade” (WEINRICH, 2001, p. 112).

A reflexão de Weinrich acerca do papel da escrita pode nos fazer cético a sua
capacidade de ser guardiã de nossa memória, porém não é exagero, já que depositar no
registro escrito a salvação contra o esquecimento não é totalmente seguro, não só porque é
inseguro aprisionar os homens ao papel que pode ser destruído ou perdido, mas também
porque a própria urdidura do texto é atravessada pelo esquecimento como afirma Gagnebin:

[...] o próprio movimento da narração deixa de ser atravessado, de maneira


geralmente subterrânea, pelo refluxo do esquecimento; esquecimento que
seria não só uma falha, um “branco” de memória, mas também uma
atividade que apaga, renuncia, recorta, opõe ao infinito da memória a
18

finitude necessária da morte e a inscreve no âmago da narração


(GAGNEBIN, 2004, p. 3).

Ou seja, o trabalho de narrar/lembrar é como o trabalho de Penélope, dupla trama que é


tecida de manhã e desfeita à noite. É tecido de lembranças e esquecimentos, presenças e
ausências, ditos e não-ditos, tal qual tudo aquilo que é tecido de palavras, onde lidamos com a
presença das palavras, mas com a ausência daquilo que elas dizem6.
Apesar dessa presença do esquecimento na trama do texto, este também é constituído
por lembranças, não só porque pode ter como tema ações que já se passaram, sejam elas
históricas ou fictícias, mas também porque o texto, em especial o literário, é composto por
outros textos, fazendo referências, desconstruções, adições, subtrações a escritos que foram
produzidos anteriormente.
Para Judith Schlanger, em La mémoire des oeuvres, por estarmos rodeados de livros,
livros que lemos, que iremos ler, que nunca leremos ou que nem ao menos sabemos da
existência; faz com que a atividade poética, por mais pessoal que almeje ser, não consiga se
livrar do peso da memória:

A atividade poética é sempre pessoal, e mesmo às vezes loucamente pessoal,


mas para que a criação através das letras possa continuar, a explosão do
indivíduo não é suficiente. É essencial à atividade das letras o acolhimento à
ideia da fecundidade futura. O campo das letras é também uma carreira
poética (no sentido de que a palavra é para entrar na carreira) e é a memória
das letras, plural, diretiva e aberta que além das atividades correntes, torna
possível as atividades que estão por vir (SCHLANGER, 2008, p. 15-16 –
tradução livre – grifo nosso).7

Diante do que disse Schlanger, podemos afirmar que um texto, por mais que fale sobre
uma situação íntima, subjetiva, não deixa de fazer referência a outros textos, pois “a atividade
poética, em seu sentido mais estético do termo, está no coração das letras como sua respiração
indispensável” (Ibidem, p. 15).8
A ideia de Schlanger sobre uma “memória das letras” nos remete à ideia de
intertextualidade, o que nos leva a concepção do texto como um tecido de lembranças de

6
Acerca dessa presença da ausência das palavras, Leyla Perrone-Moisés, em “A criação do texto literário”,
afirma: “[...]dizer as coisas é aceitar perdê-las, distanciá-las e até mesmo anulá-las. A linguagem não pode
substituir o mundo, nem ao menos representa-lo fielmente. Pode apenas evocá-lo, aludir a ele através de pacto
que implica a perda do real concreto” (PERRONE-MOISÉS, 1990. p. 105).
7
« L’activité poétique est toujours personnelle, et même parfois éperdument personnelle, mais pour la création
dans les lettres puisse continuer, le jaillissement individuel ne suffit pas. Il est essentiel à l’entreprise des lettres
d’accueillir l’idée de la fécondité future. Le champ des lettres est aussi une carrière poétique (au sens où prendre
la parole c’est entrer dans la carrière) ; et c’est la mémoire des lettres, plurielle, directive et ouverte, qui, par-delà
les entreprises actuelles, rend possibles les entreprises à venir » (SCHLANGER, 2008, p. 15-16).
8
L’activité poétique, en ce sens actif plutôt qu’esthétique du terme, est au cœur des lettres comme sa respiration
indispensable (SCHALANGER, 2008, p. 15).
19

outros textos, ou como afirma Kristeva, o texto como “um mosaico de citações” (KRISTEVA,
2012, p.142). Então um texto não é tecido apenas das lembranças individuais do autor, das
experiências que ele teve, mas também das lembranças coletivas adquiridas não só pela
oralidade, mas também pela escrita, pela leitura de outros textos, considerando toda a carga
semântica que há no verbo “ler”:

O verbo “ler” tinha para os antigos uma significação que merece ser
lembrada e valorizada, com vistas a uma compreensão da prática literária.
“Ler” era também “recolher”, “colher”, “espiar”, “reconhecer os traços”,
“tomar”, roubar”. “Ler” denota, pois, uma participação agressiva, uma
apropriação ativa do outro. “Escrever” seria o “ler” convertido em produção,
indústria: a escritura-leitura [...] (Ibidem, p. 176).

“Ler” seria, então, fazer da experiência do outro, uma experiência sua. Seria fazer da
lembrança do outro, uma lembrança sua. O texto, então, não seria apenas um depósito de
lembranças, ele também suscitaria lembranças. Ao menos é essa a ideia que Silvina Rodrigues
Lopes propõe em seu ensaio “A poesia, memória excessiva”:

A emoção expressa no poema é a memória do poema, a sua faculdade


criadora, a sua capacidade de produzir efeitos. Há uma leitura, não alheia à
interpretação, que corresponde ao efeito mais imediato do poema, mas ele
vai-se actualizando em todas as leituras que dele são feitas, sendo em cada
uma delas a verdade que testemunha, e assim se constituindo sempre em
excesso sobre si próprio, não o fiel depositário de uma memória, pois esta
não é depositável, mas em si próprio memória que a cada leitura apresenta
uma configuração enigmática diferente (LOPES, 2012, p. 58).

A proposta que Lopes estabelece relação entre a memória e a literatura, o que significa
que aquilo que sentimos diante de um poema está ligado às lembranças as quais aquele poema
nos remete, o que amplia a relação literatura-memória para além da discussão fechada no
processo de escrita para atingir também a recepção, visto que para Lopes o texto literário não
é apenas o produto das lembranças do escritor, mas é também produtor de lembranças no
leitor.
Claude Burgelin, em seu ensaio “Comment la littérature reinvente la mémoire”, também
faz aproximações entre a memória e a literatura a partir da ideia de intertextualidade. Para
Burgelin, a memória, assim como a literatura, se apropria das histórias de outros, de fantasias,
de mitos; e assim como a literatura, a memória vive da linguagem9, entendendo a linguagem
não apenas como os grifos, mas como a sonoridade, o ritmo, a imagem acústica:

9
Em A memória coletiva, obra que será bastante comentada no decorrer deste trabalho, Maurice Halbawchs
também relaciona a memória à linguagem, ao afirmar que a memória dita individual não poderia funcionar sem a
participação do coletivo que se materializa na linguagem: “[...] o funcionamento da memória individual não é
20

Freud mostrou que o inconsciente, incrustado em nossos sonhos, fantasmas e


lembranças, construía suas figuras por condensação ou deslocamento,
através da metáfora ou da metonímia. Nossa memória atua da mesma
maneira: ela se apropria das histórias acontecidas a outros, dos fragmentos
de lendas ou de mitos e de imagens de toda espécie. Nutre-se dessas
histórias, dessa lendas, dessas imagens, misturando o verdadeiro e o falso,
sem que, claro, ela saiba. Aparece, assim, como um espaço de criação da
mesma maneira que outros.
A memória viva da língua, a mais arcaica e a mais impregnada em nós, é
ligada a este universo de ritmos e de sonoridades, de imagens acústicas
longinquamente armazenadas como estruturas de formas mais ou menos
fixas cf. em francês, o alexandrino ou o sistema da rima. É essa relação com
a poesia, com a canção de embalar, com o refrão, com a litania, com a
repetição obsessiva ou reconfortante, que constitui o terreno fundamental da
memória, aquele ao qual vêm se agregar conhecimentos abstratos e a
ordenação intelectual do mundo. É este terreno que a literatura vai cultivar.
A arte deste operador de frases, que é o escritor, é saber fazer vibrar o que
está sob as palavras, é trabalhar tudo isso à sua maneira, afim de organizar
um sentido (BURGELIN, 2001, p. 78 – tradução livre).10

Contudo, para Burgelin não é apenas a literatura que necessita da memória, mas a
memória também necessita da literatura, visto que essa tem a capacidade de achar meios para
renovar aquela:

Decerto, por definição, a escritura é memória, conservação de traços, desafio


da morte. O sentido ou a nostalgia da duração a habitam. Porém, em um
tempo dominado pela perempção sempre mais rápida dos signos e das
referências, a literatura renova seu companheirismo com a memória,
passando por novos contratos. Na tradição grega, as nove musas eram filhas
de Mnémosyne, a memória. O mito não perdeu em nada sua atualidade: é
escavando os tesouros sem fundo da memória individual ou coletiva, recente
ou infinitamente arcaica, que a literatura – e com ela, a civilização? –
encontrará meios para sua renovação (Ibidem, p. 78 – tradução livre)11.

possível sem esses instrumentos que são as palavras e as idéias, que o indivíduo não inventou, mas toma
emprestado de seu ambiente” (HALBWACHS, 2006, p. 72).
10
« Freud a montré que l'inconscient à l'oeuvre dans nos rêves, fantasmes et souvenirs construisait ses figures par
condensation ou déplacement, par métaphore ou par métonymie. Notre mémoire fait de même : elle s'approprie
des histoires arrivées à d'autres, des fragments de légendes ou de mythes, des images de toute sorte. Elle en fait
son miel particulier, mêlant incessamment, et bien sûr à son insu, le vrai et le faux, l'exactitude et la fable. Elle
apparaît ainsi comme un espace de création au même titre que d'autres.
La mémoire vive de la langue, la plus archaïque et la mieux imprimée en nous, est liée à cet univers de rythmes
et de sonorités, d'images acoustiques très anciennement engrammées comme de mises en structures aux formes
plus ou moins fixes cf. en français, l'alexandrin ou le système de la rime. C'est ce rapport à la poésie, à la
berceuse, au refrain, à la litanie, à la répétition envoûtante ou apaisante qui donne à la mémoire son terreau
fondamental, celui sur lequel viendront se greffer les connaissances abstraites et la mise en ordre intellectuelle du
monde. Ce terreau est celui que la littérature vient labourer. L'art du manieur de phrases qu'est l'écrivain est de
savoir faire vibrer cet en-deçà des mots, de venir l'inscrire dans sa façon même d'organiser le sens »
(BURGELIN, 2001, p. 78).
11
« Certes, par définition, l'écriture est mémoire, conservation de traces, défi de la mort. Le sens ou la nostalgie
de la durée l'habitent. Mais, dans un temps dominé par la péremption toujours plus rapide des signes et des
références, la littérature renouvelle son compagnonnage avec la mémoire en passant avec elle comme de
nouveaux contrats. Dans la tradition grecque, les neuf muses étaient filles de Mnémosyne, la mémoire. Le mythe
n'a rien perdu de son actualité : c'est en puisant dans les trésors sans fond de la mémoire individuelle ou
21

Como disse Burgelin, não é apenas a memória que nos auxilia no entendimento da
literatura, a literatura também nos ajuda a entender a memória. Um exemplo é o conto de
Jorge Luis Borges, Funes, o Memorioso (2007), em que a personagem Funes não consegue
esquecer, o que gera desconforto e não contentamento, já que por conseguir esquecer, não
consegue aprender: “[Funes] Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o
latim. Suspeito, contudo, que não fosse muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é
generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase
imediatos” (BORGES, 2007, p. 108). Através desse conto de Borges, entende-se a
importânciado esquecimento, sendo uma memória feliz não aquela que tudo lembra, mas sim
aquela que lembra, mas também esquece.
Esperamos que esse breve passeio pelos caminhos em que se cruzam a literatura e a
memória nós auxilie no estudo dos poemas de Jorge de Lima, pois agora que não fomos
(ainda) devorados pela Esfinge, esperamos que os poemas de Lima possam ser decifrados.

1.1. Reapresentação de Jorge de Lima

Jorge Matheus de Lima (1893-1953) nasceu em União dos Palmares (AL), filho de José
Matheus de Lima e de D. Delmina Simões Matheus de Lima. Em frente ao sobrado onde
morou até os 9 anos de idade, avistava a Serra da Barriga, lugar onde Zumbi liderou o célebre
Quilombo dos Palmares e que evocava as lendas que suas tias lhe contavam em meio as noite
de febre e insônia causada pela asma. A vista do sobrado foi um dos temas de seus primeiros
versos, quando ainda tinha 10 anos de idade:

A serra da minha terra


Sabe histórias de trancoso
E histórias da negra guerra.

Quando eu for moço


Irei lá pra ver de cima
O sobrado da família Lima
(LIMA, 1959, p. 186).

Jorge de Lima, desde os seus primeiros versos, já apontava para uma poesia telúrica em
que temas relacionados à sua cidade natal (“serra da minha terra”), ao regionalismo

collective, récente ou infiniment archaïque, que la littérature - et avec elle la civilisation ? - trouvera les moyens
de son renouveau » (BURGELIN, 2001, p. 78).
22

(“trancoso”) e ao fantasioso (“histórias de trancoso”12) povoariam os seus poemas futuros. A


memória também seria sua fonte de inspiração (“histórias da negra guerra”) como foi no
poema acima, já que quando o menino Jorge de Lima tinha 10 anos, ele não mais se
encontrava em União dos Palmares, mas em Maceió, município para onde se mudou em 1902,
com sua mãe e seus irmãos; o pai permaneceu em União por algum tempo.
Jorge começou seus estudos em Maceió no Instituto Alagoano dos Irmãos Aristeu e
Goulart, mas aos dez anos foi transferido para o Colégio Diocesano, dos Irmãos Maristas,
onde ele fundou um jornalzinho, O corifeu, em que publicou alguns de seus primeiros versos,
feitos quando ele ainda tinha 7 anos. Aos trezes anos escreve o soneto “Plantas”, e no ano
seguinte escreve o soneto “O acendedor de lampiões” que lhe conferiu fama, mas que só foi
publicado quando ele tinha 17 anos.
Em 1908, Lima foi para Salvador iniciar seus estudos em Medicina. A antiga capital
exerceu grande influência no poeta, inspirando-lhe motivos regionais e tradicionais, a
exemplo do poema “Bahia de Todos os Santos”, que data deste período em que Jorge de Lima
viveu na capital baiana.13O tempo que Lima passou na Bahia despertou, anos mais tarde, uma
saudade que, segundo o poeta, se materializou em poesia: “[...] a Bahia daquela memória me
marcou de tal maneira que muitos anos depois a saudade se transformava em poema” (LIMA,
1958, 146).
Três anos mais tarde, Jorge transfere-se para o Rio de Janeiro, onde conclui a Faculdade
de Medicina em 1914, com sua tese sobre “O Destino Higiênico do Lixo no Rio de Janeiro”,
que é aprovada com distinção e recebe elogios de Afrânio Peixoto. Nesse mesmo ano, o poeta
publica XIV Alexandrinos, obra que lhe deu o título de “Príncipe dos Poetas Alagoanos”. Essa
obra é composta de sonetos moldados ao estilo parnasiano, caracterizado pela estrutura fixa e
rítmica:

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!


Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

12
O termo “histórias de trancoso” deriva do escritor português Gonçalo Fernandes Trancoso (1520-1596), autor
da obra Contos e histórias de proveito e exemplo (1575), obra de grande sucesso que trazia inúmeros contos.
“Trancoso” evoluiu semanticamente e incluiu contos fantásticos e fábulas, chegando hoje ao sentido de uma
história irreal, fantasiosa, lendária
Cf. RODRIGUES, Fernando Ozorio (Org). Gonçalo Fernandes Trancoso: contos e histórias de proveito e
exemplo. Rio de Janeiro: Editora UFF, 2013.
13
O poema “Bahia de Todos os Santos”, um dos mais longos que Jorge de Lima já escreveu, é composto de 71
versos acerca da religião, culinária, geografia, arquitetura e povo que compõe o estado da Bahia.
23

Um, dois, três lampiões, acende e continua


Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita: -


Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua


Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!
(LIMA, 1959, p. 208).

Mesmo seguindo a forma parnasiana com o seu soneto de versos alexandrinos (12
sílabas poéticas), “O acendedor de lampiões” traz um sentimento de compadecimento.
Criando, aos poucos, uma “sensação visual”. E aqui, as considerações de Bosi (1997) acerca
da imagem são relevantes: “A imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do
olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A imagem é um modo da
presença que tende a suprir o contacto direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a
sua existência em nós” (BOSI, 1997, p. 13). O conceito de imagem é importante para nossa
dissertação devido a sua relação com a memória, como reconhece o próprio Alfredo Bosi: “A
imagem pode ser retida e depois suscitada pela reminiscência ou pelo sonho. Com a retentiva
começa a correr aquele processo de co-existência de tempos que marca a ação da memória: o
agora refaz o passado e convive com ele” (Ibidem, p. 13).
Com o soneto acima, o acendedor de figura opaca transparece aos nossos olhos não
mais como aquele homem que ilumina a cidade enquanto permanece invisível aos demais,
mas sim como o nosso acendedor de lampiões, que é singularizado entre a multidão, que, de
sombra errante, vira ser humano
O trabalho infatigável, o acender imperturbável dos lampiões da rua tem a sua
imagemreforçada através das repetições que compõem todo o soneto. As rimas (ABAB/
ABAB/ CDC/ ADA) e o ritmo constante (a sílaba tônica recai em todas as 6ª e 12ª sílabas
poéticas dos versos) reforçam o esforço e repetição em que consiste o trabalho do acendedor
de lampiões. O último verso do poema, que repete quase que literalmente o primeiro verso, dá
um sentido de circularidade, corroborando a ideia de um trabalho constante como é o do
acendedor, por isso que sua atividade “parodia o sol e associa-se à lua”, corpos celestes que
nascem e morrem todos os dias, cumprindo sua atividade cíclica diária.
24

Esse olhar para o cotidiano do Jorge de Lima parnasiano já apontava para a fase
modernista que estava por vir. No ano em que Jorge abdica do título de “Príncipe dos poetas”,
é o mesmo ano em que ele se casa com D. Ádila Alves de Lima, na cidade de Belém. Os dois
se conheceram após Jorge de Lima ter voltado para Maceió, onde exerceu a profissão de
médico, mas também de deputado estadual e de catedrático da Escola Normal de Alagoas. É,
pois, em 1925 que Jorge de Lima e Ádila Alvescasam-se. No mesmo ano, Jorge publica O
mundo do menino impossível, causando muita surpresa e decepção naqueles que o admiravam
como poeta parnasiano:

O MUNDO DO MENINO IMPOSSÍVEL

Fim da tarde, boquinha da noite


com as primeiras estrelas
e os derradeiros sinos.

Entre as estrelas e lá detrás da igreja,


surge a lua cheia
para chorar com os poetas.

E vão dormir as duas coisas novas desse mundo:


o sol e os meninos.

Mas ainda vela


o menino impossível
aí do lado
enquanto todas as crianças mansas
dormem
acalentadas
por Mãe-negra Noite.
O menino impossível
que destruiu
os brinquedos perfeitos
que os vovós lhe deram:

o urso de Nürnberg,
o velho barbado jugoeslavo,
as poupées de Paris aux
cheveux crêpés,
o carrinho português
feito de folha-de-flandres,
a caixa de música checoslovaca,
o polichinelo italiano
made in England,
o trem de ferro de U. S. A.
e o macaco brasileiro
de Buenos Aires
moviendo la cola y la cabeza.

O menino impossível
que destruiu até
25

os soldados de chumbo de Moscou


e furou os olhos de um Papá Noel,
brinca com sabugos de milho,
caixas vazias,
tacos de pau,
pedrinhas brancas do rio...

“Faz de conta que os sabugos


são bois...”
“Faz de conta...”
“Faz de conta...”

E os sabugos de milho
mugem como bois de verdade...

e os tacos que deveriam ser


soldadinhos de chumbo são
cangaceiros de chapéus de couro...

E as pedrinhas balem!
Coitadinhas das ovelhas mansas
longe das mães
presas nos currais de papelão!

É boquinha da noite
no mundo que o menino impossível
povoou sozinho!

A mamãe cochila.
O papai cabeceia.
O relógio badala.

E vem descendo
uma noite encantada
da lâmpada que expira
lentamente
na parede da sala...

O menino poisa a testa


e sonha dentro da noite quieta
da lâmpada apagada
com o mundo maravilhoso
que ele tirou do nada...

Xô! Xô! Pavão!


Sai de cima do telhado
Deixa o menino dormir
Seu soninho sossegado!
(LIMA, 1959, p. 225-227).

A ambiguidade contida no “impossível” presente no título do poema acima nos permite


ler que tanto o menino é impossível por ser rebelde, travesso, cuja curiosidade o torna
desobediente e atrevido; tanto podemos ler que o menino é impossível porque é fruto da
26

imaginação do eu lírico. Podemos também ler que o mundo é impossível, insuficiente para
que o menino inquieto o habite.
Nesse poema temos um movimento duplo, o menino quebra os brinquedos importados
ganhados dos avós para depois construir com os objetos simples de seu cotidiano os seus
próprios brinquedos. E é no entrelugar, no “fim da tarde boquinha da noite” que age o menino
impossível. Sua existência relativiza até o “nada há de novo debaixo do sol” (Eclesiastes 1:9),
visto que assim como o astro rei que todos os dias se revitaliza, se renova com o seu
(re)nascer, os meninos, com a sua capacidade de renovar o real, fazem com que a infância
tenha a característica da vitalidade (“E vão dormir as duas coisas novas desse mundo:/ o sol e
os meninos”).
Contudo, o que difere o menino impossível dos demais meninos é que, enquanto os
outros se encontram dormindo “acalentados por Mãe-negra Noite”, o menino impossível
ainda vela, e, em sua vigília, ele rebeldemente destrói os brinquedos estrangeiros que não lhe
provocam identificação alguma, já que até mesmo o macaco brasileiro se apresenta em uma
língua estrangeira, tal qual os demais brinquedos:

o urso de Nürnberg,
o velho barbado jugoeslavo,
as poupées de Paris aux
cheveux crêpés,
o carrinho português
feito de folha-de-flandres,
a caixa de música checoslovaca,
o polichinelo italiano
made in England,
o trem de ferro de U. S. A.
e o macaco brasileiro
de Buenos Aires
moviendo la cola y la cabeza

Os brinquedos dados pelos adultos são brinquedos ligados à vida adulta, brinquedos de
imitação que não permitem à criança inventar o seu mundo próprio. É por isso que o menino
impossível os destrói, pois o seu desejo não é brincar os com “brinquedos perfeitos”, mas com
aqueles que são incompletos e que lhe permite completá-los, finalizá-los através de sua
imaginação. O “faz de conta” possibilita que o menino impossível recrie a sua realidade,
realidade em que os elementos do cotidiano da infância, da memória da infância, estejam
presentes:

“Faz de conta que os sabugos


são bois...”
27

“Faz de conta...”
“Faz de conta...”

E os sabugos de milho
mugem como bois de verdade...

e os tacos que deveriam ser


soldadinhos de chumbo são
cangaceiros de chapéus de couro...

E as pedrinhas balem!
Coitadinhas das ovelhas mansas
longe das mães
presas nos currais de papelão!

O menino impossível em sua solidão, visto que os pais estão dormindo (“A mamãe
cochila/ O papai cabeceia/ O relógio badala”), povoa sozinho o seu mundo impossível, tal
qual o poeta que, igualmente em sua solidão, muitas vezes constrói um mundo a partir do real
(elementos do cotidiano), da tradição (os pais) e de sua imaginação (faz de conta).
O poema “O mundo do menino impossível” marca, pois, a oposição aos valores
estéticos parnasianos, ao utilizar versos livres e brancos e por ser construído a partir do olhar
fantasioso de uma criança, onde o mundo dos adultos (representado pelos presentes dos avós)
repleto de tecnologia e de influência dos grandes centros urbanos é confrontado pelo mundo
inocente e virginal da infância. No mundo desse menino impossível, através da fórmula
mágica do “Faz de conta”, os “sabugos de milho” viram “boizinhos”; os “tacos de pau” se
transformam em “cangaceiros com chapéus de couro”; e as “pedrinhas” são “ovelhas
mansas”. É um mundo que surge a partir das lembranças infantis do menino Jorge.
Em 1930, Jorge de Lima, sua mulher e seus dois filhos, Mário Jorge e Maria Teresa, se
mudam para o Rio de Janeiro. A mudança de Jorge de Lima para a então capital do Brasil faz
com que ele encontre um novo horizonte literário que trará mudanças para a sua poesia. Seu
consultório médico localizado na Cinelândia, torna-se um ponto de encontro de intelectuais e
amigos:

Já muito se comentou e se caçoou sem maldade dessa espécie de salão


literário, que é o escritório de médico do poeta. Porque médico é Jorge de
Lima, e digo por minha experiência, médico bom, na medida em que por
enquanto se é possível ser bom médico. No escritório dele há
verdadeiramente duas salas de espera: uma para os clientes de medicina e
outra para os clientes de poesia. E, como é de se esperar, esta última sala é
bem mais espaçosa e higiênica. A qualquer momento das horas de consulta,
há sempre no escritório um doente e um poeta (ANDRADE, 1974, p. 45,
46).
28

A mudança para o Rio de Janeiro também é importante para Jorge, porque é lá que ele
conhece o poeta Murilo Mendes, que será seu companheiro de poesia até a sua lírica final. Em
meados dos anos 30, Jorge de Lima e Murilo Mendes convertem-se ao catolicismo, episódio
importante tanto para a biografia quanto para a poesia de ambos. Motivados, então, por uma
espécie de militância católica pautada no lema “Restauremos a Poesia em Cristo”, eles
publicam o livro Tempo e Eternidade (1935), livro escrito a quatro mãos. Contudo, o encontro
de Jorge com Murilo não gera apenas essa obra, mas também influencia as obras posteriores
de ambos, como afirma Fábio de Souza Andrade:

O primeiro encontro efetivo entre Jorge de Lima e Murilo Mendes teve duas
consequências principais. A mais importante na pode ser delimitada por
marcos temporais pontuais, desdobrando-se ao longo das décadas seguintes,
até desembocar no estilo maduro de As Metamorfoses (1938-1941) ou de
Mundo Enigma (1942) e dos Sonetos Brancos (1946-1948), no caso de
Murilo Mendes, e na fase final da produção de Jorge de Lima, prenunciada
em Anunciação e Encontro de Mira-Celi e definindo-se nos seus dois
últimos livros, Livro de Sonetos (1949) e Invenção de Orfeu (1952). Trata-se
da eleição comum de um material temático e estilístico novo, de novos
procedimentos artísticos, que, como se disse, poderiam ser sintetizados na
perspectiva órfica de Ismael Nery e em sua valorização da imagem
(ANDRADE, 1997, p. 35).

O papel de Ismael Nery é de suma importância para esse encontro de Jorge de Lima
com Murilo Mendes, já que ele serviu de catalisador para convergir o que divergia entre Jorge
e Murilo. Sua figura reunia os dois pontos que seriam centrais nas obras de ambos: o
cristianismo e a visão órfica inspirada no surrealismo. Em Jorge de Lima, a obra A Túnica
Inconsútil (1938) já começa a esboçar a presença desses dois elementos como observou
Alfredo Bosi:

A Túnica Inconsútil, momento alto da poesia mística brasileira, foi


considerada pelo autor “um poema único”; e, de fato, a sua leitura nos dá a
imagem processional dos homens e das idades que, saindo “das profundezas
do pecado original”, caminham para a salvação em Cristo, e reconhecem na
poesia a voz e a lanterna, signos da palavra verdadeira. Figuras aladas de
Chagall, clowns de Rouault, anjos flamejantes de Péguy compõem o quadro
imagético desse livro deliberadamente alegórico como o seu próprio título
[...] (BOSI, 1994, p. 454).

Em Anunciação e Encontro de Mira-Celi, escrito em 1942, Jorge de Lima começa a


desenvolver mais a vertente surrealista que continua a ser explorada em Livro de Sonetos
(1949), livro em que percebemos a retomada dos metros antigos, que foi algo comum na
poesia nos anos 40. Em Invenção de Orfeu (1952), última obra de Jorge de Lima, obra
29

classificada como “epopeia moderna”, é composta por dez cantos de ampla diversidade
formal, caracterizado pela cosmovisão cristã e pelas dicotomias (céu/inferno, bem/mal):

O equilíbrio métrico e estrófico rompe-se na febril “biografia épica” que é


Invenção de Orfeu, poema em dez cantos ainda à espera de uma exegese
capaz de descobrir a unidade subjacente ao vasto arsenal de signos e
símbolos que o poeta organizou em torno de alguns motivos recorrentes: a
viagem, o descobrimento da ilha, o subsolo da vida e do instinto, os círculos
do Inferno e do Paraíso, Orfeu e a Musa de vário nome (Amada, Beatriz,
Inês). As presenças de Camões e de Dante explicam-se pelo próprio desígnio
de Jorge de Lima: construir uma epopeia centrada no roteiro do homem em
busca de uma plenitude sensível e espiritual. E como experiência complexa
de estilo, Invenção de Orfeu, leque de oitavas clássicas, tercetos e até
complicadas sextinas, revela um mestre de linguagem, o último com que
conta a poesia contemporânea em língua portuguesa (Ibidem, p. 456).

A lírica final de Jorge de Lima é produzida através de uma complexa engenharia das
palavras, em que o poeta as explora tanto em versos metrificados e em formas fixas, como em
versos brancos e livres, tudo isso através de uma mistura do épico com o lírico. Essa
“biografia épica, biografia total e não uma simples descrição de viagem ou de aventuras”,
como diz o subtítulo de Invenção..., é uma obra acerca da criação: da criação do Brasil, da
criação poética e da criação do próprio poeta.
Jorge de Lima também escreveu romances, tendo publicado o primeiro em 1927,
Salomão e as Mulheres, obra que, segundo a crítica, revela tensões estéticas que marcaram a
sua conversão ao modernismo. O seu segundo romance, A mulher obscura (1939), pode ser
analisado como uma versão retrabalhada do seu romance de estreia, retirando apenas as
experimentações formais do livro de 1927. Jorge de Lima também escreveu mais três
romances: O anjo (1934), Calunga (1935) e Guerra dentro do beco (escrito nos anos 40, mas
só publicado em 1959). O alagoano também escreveu ensaios, A comédia dos Erros (1923),
Dois Ensaios – Proust e Todos Cantam sua Terra (1929); biografias, Anchieta (1934), Vida
de São Francisco de Assis (1942), D. Vital (1945), Vida de Santo Antônio (1947); e deixou
inédito alguns textos dramáticos, A filha da Mãe-D’água, As mãos, Ulisses; e um argumento
de filme, Os Retirantes. Jorge de Lima também publicou um livro de fotomontagens, A
pintura em pânico (1943); e fez esculturas e quadros, mas para o poeta essas outras
manifestações artísticas estavam subordinadas à poesia, como afirmou em entrevista para
Homero Sena: “Prefiro a poesia. Tudo o mais que tenho tentado, inclusive a pintura, está
subordinado ao sol da poesia, são caminhos para ela, às vezes simples exercícios para
conferir-lhe novas dimensões, novas profundezas” (LIMA, 1959, p. 91).
30

O autor de Invenção de Orfeu experimentou diversas maneiras de expressões artísticas,


como já foi dito anteriormente, e no campo da poesia, experimentou diversas expressões
estéticas, e aqui, pode se dizer, Jorge foi, ao lado de Murilo Mendes, um dos poucos de sua
geração a se dedicar à pintura no Brasil. E no que diz respeito à arte literária, foi também um
dos poucos que passeou por versos parnasianos, regionalistas, cristãos e surrealistas. Carlos
Drummond de Andrade, que apesar de ter convivido pouco com o poeta alagoano, fez um
poema que define a sua vida e a versatilidade de sua poesia:

CONHECIMENTO DE JORGE DE LIMA

Era a Negra Fulô que nos chamava


do seu negro vergel. E eram trombetas,
salmos, carros de fogo, esses murmúrios
de Deus a seus eleitos, eram puras

canções de lavadeiras ao pé da fonte


era a fonte em si mesma, eram nostálgicas
emanações de infância e de futuro,
era um ai português desfeito em cana.

Era um fruir de essências e eram formas


além da cor terrestre e em volta ao homem,
era a invenção do amor no tempo atômico,

o consultório mítico e lunas


(poesia antes da luz e depois dela),
era Jorge de Lima e eram seus anjos
(DRUMMOND apud LIMA, 1959, p. 56).

José Paulo Paes, em “Revisitação de Jorge de Lima”, propõe uma divisão da obra do
poeta alagoano que, diferentemente das demais, se baseia na forma e não na temática
abordada em suas obras. Paes propõe, então, duas fases para a produção de Jorge de Lima, a
fase “consubstancialista” e a fase “formalista”:

Eu as reduziria [as fases] a duas apenas, a fase consubstancialista e a fase


formalista, deixando de fora os primeiros sonetos esparsos e os XIV
alexandrinos como meros tentames de versejador, mais que de poeta.
Este só vai nascer de fato com os Poemas de 1927, quando passa a se
exprimir no verso livre dos modernistas de 22. Nele é que nos irá falar
consubstancialmente de si e do seu mundo nordestino, num momento
universalista da “poesia em Cristo”. Consubstancialidade é a palavra que
mais bem define, estilisticamente, esses dois momentos da primeira fase de
Jorge de Lima. Em ambos vige uma consubstancial adequação entre o dito e
o modo de dizer: este nasce imediatamente daquele que, por sua vez, só por
ele pode ser adequadamente expresso. Não há demasias nem carências de
31

um em relação ao outro; o desequilíbrio só se fará sentir mais tarde, na fase


formalista.
[...] A fase a que chamo de formalista começa, na obra poética de Jorge de
Lima, pelo Livro de Sonetos, de 1949, onde o verso livre cede seu lugar no
verso metrificado e rimado. Amiúde, a coerção de rima passa a governar o
agenciamento das palavras, comprometendo a fluência do discurso e, pior
que isso, a consubstancialidade do modo de dizer com o que é dito. Como se
o relevo formal do significante se fizesse às expensas de um
empobrecimento do significado. A essa volta a uma forma fixa como o
soneto não são estranhas as preocupações de certa vertente da geração de 45
com o “enobrecimento” da linguagem poética, em oposição ao que
considerava “vulgar” e “prosaico” na tradição modernista.
Em Invenção de Orfeu, o último e mais ambicioso livro de poesia de Jorge
de Lima, a retomada de formas fixas “nobres” vai além do soneto, até a
oitava rima, a sextina e o verso branco (PAES, 1997, p. 109, 111 e 112).

A proposta de Paes mais voltada para a forma da poesia limiana traz um novo olhar da
obra de Jorge de Lima, visto que classificá-la de acordo com os temas em que passaram à sua
poesia é dificultoso, contudo acreditamos que desconsiderar outras obras do poema como XIV
Alexandrinos traz perdas por talvez comprometer a proposta de José Paulo Paes, visto que a
fase formalista de Jorge de Lima não reside apenas em sua lírica final, pois é inclusive pela
“fase formalística” que Jorge de Lima inicia sua poesia.
Além de José Paulo Paes, Jorge de Lima teve sua obra analisada por um grande número
de críticos literários, mencionados neste trabalho, como também por escritores como José
Lins do Rêgo, Mário de Andrade, Murilo Mendes; porém, ainda assim, mesmo diante de tão
vasta, diversificada e talentosa produção artística, esse poeta não teve, de acordo com José
Fernando Carneiro, o merecido reconhecimento: “Outros poetas que admiramos já receberam
o aplauso merecido e a posteridade nada terá a acrescentar. Mas, no caso de Jorge de Lima, há
ainda muita coisa a ser descoberta, enigmas a decifrar, belezas que os contemporâneos apenas
pressentiram” (CARNEIRO, 1958, p. 13, 14). Jorge parecia já pressentir o esquecimento que
viria após a sua morte quando escreveu os seguintes versos deInvenção de Orfeu:

Nem as boninas e outras flores nem


a mais humilde relva, nem os ventos,
nada participava da quietude
absoluta, absoluta, eternamente

absoluta daquela pedra de


tumba, compacta, lisa, desprezada.
Nem ninguém se lembrava da criatura
e de seus sofrimentos e de sua

atormentada vida ali deixada.


Nem tristeza talvez nem alegria
não mais perpassam sobre a sua face
32

parada, indiferente mesmo à morte


que ela encerrou em treva e esquecimento,
e o próprio esquecimento abandonou
(LIMA, 1959, p. 779).

Contudo, hoje podemos ter a esperança de ver ressurgindo novos estudos sobre Jorge de
Lima, pois nas últimas décadas as teses e dissertações14 acerca da obra do autor de “Negra
Fulô” foram produzidas e a reedição de Invenção de Orfeu pela Cosac Naify (2013) nos dão a
esperança de não ver Jorge de Lima “em treva e esquecimento”.

1.2. Representação das lembranças: as memórias literárias de Jorge de Lima


O Menino é pai do Homem
(William Wordsworth)

Já afirmamos em momentos anteriores, mas desejamos reforçar, o papel importante que


o rememorado tem na poética limiana. Valdemar Cavalcanti em Tradição e Futurismo (1978),
ao citar Jorge de Lima, percebe que o poeta valoriza o passado, mas não deixar de procurar se
renovar, expressando através de novas formas:

Como o complexo sr. Jorge de Lima, tão incompreendido pelas massas, acho
que devemos procurar a beleza no passado. Devemos reconstruir tudo o que
o passado tem de belo em sua feição estética, em sua feição moral, em sua
feição intelectual. Mas sob formas novas, adaptáveis de certo modo ao nosso
tempo, em que seria grotesco usar-se o lenço de rapé de um poeta de lá da
Bahia. O negócio está em não retrogradar mentalmente (CAVALCANTI,
1978, p. 86).

Jorge de Lima aglutina o passado, mas não mantém tudo estático. Ele procura novas
formas de expressar, mantendo o seu aspecto memorialista, mas sem para isso deixar de ser
inovador. Ele mesmo reconhecera essa capacidade do poeta de ser duo, ao afirmar que: “O
poeta de ontem, de hoje e de amanhã é sempre revolucionário; o que não lhe impede de ser
memorialista e transcender a própria memória” (LIMA, 1959, p. 74). A memória foi uma
tônica presente nas obras de Jorge de Lima, apesar de sua multiplicidade estética, e não foi

14
Exemplo dessa produção acadêmica sobre a obra de Jorge de Lima são os trabalhos de Fábio de Souza
Andrade, O Engenheiro Noturno: a lírica final de Jorge de Lima (1993); William Roberto Cereja, O Anjo
Caído: fisionomia da ficção de Jorge de Lima (1994); José Niraldo de Farias, O legado surrealista na poesia de
Jorge de Lima(1996); Luciano M. D. Cavalcanti, Invenção de Orfeu: a “utopia” poética na lírica final de Jorge
de Lima (2007); Simone Cavalcante, Cartografias de um lugar imaginário: uma travessia pelo romance
Calunga, de Jorge de Lima (2008); Rogério Costa de Oliveira, Modernidade, Política e Religiosidade em Jorge
de Lima (2009); Aline Pereira, A escrita memorialística de Jorge de Lima (2011), entre outros.
33

diferente em Poemas (1927), Novos Poemas (1929)e Poemas Escolhidos (1932). José
Aderaldo Castello (2004) já havia notado esse aspecto mnemônico limiano ao afirmar:

Insiste [Jorge de Lima] na dependência da infância, origens e antecedentes


da primeira fase, também fundamentos da criação poética em geral. Aponta-
os como pré-revelação. Ressalta reações parapsicológicas entremeando
rotina, imprevistos, circunstancias e fatos do universo doméstico e ou
convívio extrafamiliares, até mesmo em nível popular, fenômenos diversos
do cotidiano ao sobrenatural (CASTELLO, 2004, p. 211).

A poesia da tida “fase inicial” modernista de Jorge de Lima é um exemplo desse


memorialístico que destaca Castello. É uma poética ligada à infância, mas também
transcendente ao individual devido à presença do popular. O mundo do menino impossível
(1925), já mencionado obra marco da adesão de Jorge de Lima ao Modernismo, é um
exemplo do que afirmou Castello, visto que o poema traz a rejeição ao importado e a
aproximação com o popular, mas sempre através das evocações da infância do eu lírico.
Em Minhas memórias, texto publicado, pela primeira vez, em capítulos, no Jornal de
Letras do Rio de Janeiro, de outubro de 1952 a junho de 1953; é uma obra em que Jorge de
Lima não descreve sua vida como ela de fato foi, mas sim como foi lembrada por ele.
Contudo, essa obra se distingue daquilo que se espera do texto autobiográfico15, visto que a
sua vida não é narrada de maneira linear, começando pelo nascimento do autor, sua formação,
situações marcantes. São narrados momentos que o influenciaram como artista, situações de
sua infância que o transformaram em Jorge de Lima múltiplo que conhecemos.
Como veremos no capítulo seguinte, a infância é uma marca da poética de Jorge de
Lima, e em Minhas memórias esta marca não poderia deixar de estar presente. A descrição da
infância nesse texto faz com que o reencontro com o passado não tenha apenas o objetivo de
relembrar o vivido, mas também o imaginado. Quando Jorge de Lima narra as lembranças
quiméricas é que ele revela a origem de sua poesia, as experiências com o poético, os temas
que povoam as suas obras... As fantasias do menino Jorge de Lima dão a Minhas memórias
um caráter ficcional, contudo, a ficção é reveladora por se aproximar do sonho, como afirma
Dante Moreira Leite:

[...] a ficção parece mais completa que a biografia puramente narrativa,


assim como a caricatura parece mais reveladora do que o retrato.

15
Philippe Lejeune em Le pacte autobiographique (1996), propõe a seguinte definição para o gênero
autobiografia: “DÉFINITION : Récit rétrospectif en prose qu’une personne réelle fait de sa propre existence,
lorsqu’elle met l’accent sur sa vie individuelle, en particulier sur l’histoire de sa personnalité” [DEFINIÇÃO :
História retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando ela se concentra em
sua vida individual, em particular na história de sua personalidade] (LEJEUNE, 1996, p. 14 – tradução livre).
34

Essa aparente contradição poderia ser explicada pela psicanálise; a ficção é


reveladora porque se aproxima do sonho, dessa região intermediária entre o
dizer e o esconder. [...] Ao disfarçar, no sonho, é que o sonhador se revela
integralmente, pois não dá apenas o desejo, rasteiro e comum a todos, mas
também um universo desconcertante e maravilhoso, criação individual e
intransferível (LEITE, 2007, p. 44).

Sabemos mais sobre Jorge de Lima e sobre a sua poesia naqueles trechos dominados
mais pela ficção do que pelo desejo de ser fiel a sua biografia. As lembranças de Jorge de
Lima não são o único material de Minhas memórias, pois o autor quando reconstrói o vivido,
interpreta e reinterpreta o que aconteceu por ser fruto de sua imaginação criadora:

Toda biografia é trabalho de interpretação e, portanto, de imaginação


criadora. Por isso, nenhuma biografia é definitiva, e sempre será possível
refazê-la, com base em dados basicamente iguais, pois todo biógrafo faz
viver o biografado, mais ou menos, como o ficcionista faz viver as
personagens de sua imaginação. No caso da autobiografia, o processo não
parece muito diverso, apesar da ilusão de maior verdade: ninguém diz tudo a
respeito de si mesmo, e a verossimilhança e o sentido de uma vida depende
de critérios que não são dados, diretamente, pela ação (Ibidem, p. 43).

A ficcionalidade desta obra autobiográfica do poeta alagoano se apresenta não só pelo


fato de “toda biografia ser trabalho de interpretação e, portanto, de imaginação criadora”; mas
também pela própria estrutura singular desse texto, visto que Minhas memórias é composta
por oito capítulos nomeados, como se mimetizasse a fragmentação da memória16, além de ser
permeada por diálogos em todos os capítulos, conferindo uma aparência romanceada a essa
autobiografia. No capítulo V, “Tempo de mágica e contemplação”, Jorge de Lima, ao
relembrar o dia em que mostrou seus versos infantis ao professor Moreno Brandão, insere o
diálogo que os dois tiveram:

[...] [Moreno Brandão] perguntou-me:


─ De quem são?
─ Meus.
─ Quem lhe ensinou isso?
─ Aprendi por mim.
─ Menino da sua idade não deve pensar nessas coisas. O tempo não chega
para o estudo. Esse negócio de verso atrasa um bocado. Tome lá! (Passou-
me o caderninho). Mesmo isso não é verso. Tudo pé quebrado, errado. Pra
fazer verso é preciso estudar métrica (LIMA, 1959, p. 127, 128).

16
Aline Pereira em sua dissertação A escrita memorialística de Jorge de Lima observa a relação que existe entre
a fragmentação de Minhas memórias e a própria fragmentação da memória: “Minhas Memórias são compostas,
portanto, por meio de um estilo inovador. Em primeiro lugar, podemos ressaltar a estrutura singular do texto
(dividido em oito capítulos nomeados) como a assinalar uma espécie de mimeses da fragmentação da memória.
Destaca-se também o rompimento do foco narrativo a partir da introdução de diálogos, com nítida intenção criar
um efeito de verossimilhança dando à realidade uma aparência romanceada” (PEREIRA, 2011, p. 48).
35

A presença de diálogos em Minhas memórias, como no exemplo acima, torna a


narrativa mais próxima da vida, já que oralmente nós tendemos a inserir diálogos, quando
narramos um fato. Contudo, assim como a presença dos diálogos aproxima Minhas memórias
do real, ela também a aproxima da ficção. Aline de Souza Pereira, em sua dissertação A
escrita memorialística de Jorge de Lima (2011), ao comentar a presença de diálogos em
Minhas memórias, afirma:

Essas e outras passagens que Jorge retoma o diálogo é uma espécie de


presente que atualiza o passado, ou seja, as falas inseridas no texto provocam
uma complexa ponte entre o vivido e o imaginado, entre a vida e a ficção.
Ao inserir diálogos pode nos parecer algo comum, porém tal aspecto no
texto memorialístico é algo característico do texto limiano que afasta essa
obra do convencional (PEREIRA, 2011, p. 48)

A presença de diálogos deixa mais evidente o caráter também ficcional que reside em
toda lembrança, já que aquilo que acreditamos lembrar do que já passou nada mais é do que
uma representação do ocorrido. Outro aspecto de Minhas memórias que joga com o paradoxo
que reside na lembrança, essa dupla característica de ser real e fictícia ao mesmo tempo,
também é manifestada na divisão dessa obra autobiográfica, visto que Minhas memórias se
divide em 8 capítulos, que apontam ao mesmo tempo tanto para a fragmentação da memória,
como para seu o caráter romanceado. Essa fragmentação também está presente na narrativa
dessa obra, não só pela inserção de diálogos que rompem o foco narrativo, mas também pela
inserção de outras lembranças ou explicações que o autor dá sobre determinadas situações.
No capítulo III, denominado “Cambembe”, Jorge de Lima narra as situações que
vivenciou ao lado de uns meninos chamados de “cambembes”. Porém, interrompe o relato
para explicar o que é “cambembe”:

Todavia não posso e declaro-me cambembe. Sabeis o que é cambembe? [...]


Dir-vos-ei o que é cambembe.
Eis a história: primeiro bispo do Brasil – D. Pero Fernandes Sardinha gastou
todo o seu tempo de Bahia arengando com o governador Duarte da Costa.
De viagem para a Europa, esse bispo naufragou; e de repente virou de
arenguento em mártir – sorte que não logrou Duarte, morrendo sofrivelmente
venial, taqualmente veio ao mundo. O caso do naufrágio: D. Sardinha com
umas cem pessoas ia para Portugal. Tinha viajado quatorze dias quando uma
tempestade de ventos de travessia “envoltos em escuridão, trovões, coriscos
assaltou a nau. O piloto mandou ferrar pano, mas o mar deu bem na popa do
barco tamanho baque que não se pode lançar ferro, âncoras e amarras lá se
foram pras profundas. Isso se deu nas costas das Alagoas, entre os rios
Coruripe e o de São Francisco. Mulheres, crianças, homens válidos, que
puderam se salvar chagaram à mansa praia dos baixios de D. Rodrigo.
Caetés os acolheram para em seguida mata-los a flechadas e a tacape. O
36

bispo não escapou: deram com uma maça nesse prelado, abriram-lhe a
cabeça pelo meio, para pasto de seus ventres” (LIMA, 1959, p. 114, 115).

A origem do termo começa a ser explicada a partir de um viés histórico, tendo a origem
da palavra relação com o episódio da deglutição do bispo Sardinha pelos índios Caetés.
Contudo, Jorge de Lima insere na narração desse episódio o uso de palavras coloquiais
(“arengando”, “arenguento”) que aproxima o caso de Sardinha ao seu dia-a-dia, ao mesmo
tempo que afasta, com o uso das aspas, que provavelmente foram utilizadas por se tratar da
citação de algum texto sobre o caso do bispo. A narração desse episódio procurou ser a mais
precisa e próxima da realidade não só porque recorreu a um outro texto sobre o caso, mas
também pela preocupação do narrador em dizer o nome de figuras histórias (“D. Pero
Fernandes Sardinha”, “Duarte da Costa”) e de especificar o local em que o fato aconteceu
(“Isso se deu nas costas das Alagoas, entre os rios Coruripe e o de São Francisco”).
Contudo, a continuação da explicação da palavra “cambembe” já não procura ficar
preso ao documental, abrindo espaços para a imaginação do narrador:

Aí o massacre foi vingado com tremenda perseguição pelos brancos contra a


guerreiríssima nação Caeté. Raça de Caeté não se sujeita à escravidão: morre
lutando pela liberdade. Caetés eram os mais valentes guerreiros de todo esse
enorme litoral nossa. Dizei-me: combatiam por alguma ambição
imperialista? Dizei-me: por monopólios de tacape arranjados pelos
morubixabas negocistas de armas de guerra? Qual nada! ─ Combatiam por
combater. Parte dos caetés perseguidos pela vingativa dureza dos perós
assentou pouso às margens das alagoas Manguaba e Mundaú. Nas águas das
alagoas encontraram sururu – molusco saboroso, fácil de apanhar no fundo
raso. Encontraram pão tão ali pertinho, Caeté pensou: adeus guerra! Quem
tem pão tão facilzinho, tão gordo que nem sururu, para que guerrear?
Ficaram ali, ficaram pescadores de mariscos, ficaram moles. Ficaram líricos,
tocando gaitas de bambu, comendo goiamun, bagre, aratu, curimã, comendo
sururu. Poetas. Em pouco tempo as margens das lagoas, as redondezas dos
sedentários, fecundos procriadores, exímios tocadores de pífanos. Mas, os
homens fortes da nação indígena os chamou, por irisão, de cambembes (de
caa ─ mato e mebi ─ gaita). Já não eram homens do tacape, mas os homens
das gaitas. Possivelmente algum pajé precursor de Marx observou e
comentou ser muitas complicações o fenômeno simplista e por certo não o
achou lógico e decente porque para um Caeté a suprema degradação do
homem era deixar de comer os miolos do inimigo abatido em luta para
comer sururu e tocar pífanos (Ibidem, p.116).

No trecho acima, o termo “cambembe” não é mais explicado apenas através de aspectos
históricos, mas também com elementos que não podemos comprovar e que muito se
aproximam do fictício, como é o caso da explicação dada por Jorge do motivo dos caetés não
mais quererem guerrear, preferindo ficar às margens da lagoa Mundaú. A maneira pela qual o
autor explica essa mudança do caeté é feita como se tratasse de um conto, em que Jorge de
37

Lima age como narrador onisciente e revela ao leitor os pensamentos que tivera o caeté diante
da fartura do sururu: “[...] Caeté pensou: adeus guerra! Quem tem pão tão facilzinho, tão
gordo, que nem sururu, para que guerrear?”. Mesmo explicando a etimologia de “cambembe”
(“de caa – mato e mebi – gaita”), o literário durante a explicação do termo torna o trecho
fragmentário. A pausa que o narrador dá para fazer explicações como essa gera a combinação
do vivido com o ilusório, utilizando dados verídicos ao imaginado e idealizado.
A presença de diálogos e a fragmentação do discurso não são os únicos elementos que
conferem uma certa ficcionalidade a Minhas memórias, o que acaba por aproximá-la do
literário. Outro elemento presente em toda aquela narrativa é o procedimento de
singularização, categoria proposta por Victor Chlóvski em “A arte como procedimento”
(2013). Um exemplo do uso desse procedimento por Jorge de Lima é quando o autor, ao
narrar dia em que decide se aventurar à noite perto de uma lagoa, descreve o encontro que
teve com uma saparia habitante de um brejo e o testemunho da captura de um sapo por uma
cobra:

Daí com pouco o barreiro ficou sonoro quem nem convento de frades. Vozes
roucas, foi-não-foi, tantãs, bumbus, choros, esgoelamentos, finos de rãs,
acompanhamento profundos de sapos respondiam-se. Os bichos apareciam,
mergulhavam, pulavam nas margens, abriam grandes círculos na flor d’água.
Em verdade aquilo era um mundo que nunca avistara durante o dia. E eis que
da bruta escuridão surgiram dois olhos luminosos, fosforescentes, como dois
vagalumes. Um sapo-cururu grelou-os e ficou deslumbrado, com os olhos
bugalhados, presos naquela boniteza luminosa. Os dois olhos fosforescentes
se aproximavam mais e mais, como dois holofotes na cabeça da serpente. O
sapo não se movia fascinado. Sem dúvida queria fugir; previa o perigo,
porque emudecera; mas já não podia andar, imobilizado; os dois olhos
feíssimos agarrados aos olhos luminosos e bonitos como um pecado. Num
bote a cabeça cruel abocanhou a boca imunda do batráquio. Ele não podia
fugir àquele beijo. A boca fina do réptil arreganhou-se desmesuradamente,
envolveu o sapo até os olhos. Ele se abaixava dócil, entregando-se à morte
tentadora, apenas agitando docemente as patas sem provocar nenhuma
reação ao sacrifício. A barriga desforme e negra desapareceu na goela
dilatada da cobra. E num minuto as perninhas do cururu lá se foram, ainda
vivas, para as entranhas famélicas (LIMA, 1959, p. 123-124).

No trecho acima, Jorge de Lima não chama o coaxar dos sapos pelo nome, mas sim de
“convento de frades”, “vozes roucas, foi-não-foi, tantãs, bumbus, choros, esgoelamentos”. O
mesmo acontece quando surge a cobra para abocanhar o sapo-cururu. O narrador não a chama
de serpente assim que ela surge, mas de “dois olhos luminosos, fosforescentes, como dois
vagalumes”, em que o se aproximava não era a cobra, mas metonimicamente os seus olhos, os
“dois holofontes na cabeça da serpente”. Até mesmo no momento do bote não é tratado dessa
maneira, mas como um “beijo”, enquanto a cobra é referida como “cabeça cruel” e o sapo
38

como “boca imunda”. Ao optar por uma descrição que não chama os seres por seu nome, mas
sim por partes que os constituem, acaba por remeter ao procedimento de singularização
proposto por Cholóvski:

O procedimento de singularização [...] consiste em não chamar o objeto pelo


nome, mas descrevê-lo como se o visse pela primeira vez, e tratar cada
incidente como se acontecesse pela primeira vez; ademais, ele se vale na
descrição do objeto não dos nomes geralmente dados a suas partes, mas de
outros nomes tomados da descrição das partes correspondentes em outros
objetos (CHLÓVSKI, 2013, p. 92).

Ao utilizar esse procedimento, Jorge de Lima intensifica ainda mais a sua afirmativa de
que aquele era “um mundo que nunca avistara”, pois ao não chamar as coisas pelo nome,
descrevendo-as a partir de suas partes, temos a impressão de que aquilo foi visto pela primeira
vez pelo narrador e devido a essa novidade em que ele se vê diante, sua única maneira de
descrever aquilo que ainda não sabe o nome é a partir daquilo que o difere dos demais.
Durante toda a narrativa, percebemos a presença de situações fantasiosa. Zagury
comenta acerca dessas situações em que o ocorrido se mistura ao imaginado o seguinte: “[...]
o memorialista, mesmo nos momentos mais desreprimidos, sente a necessidade de fincar
marcos externos onde segurar-se – boias flutuantes a fazer de pique, no seu a braços com o
inconstante mar da lembrança, sob o império ora da tormenta, ora da calmaria” (ZAGURY,
1982, p. 32, 33). Em Minhas Memórias há momentos como esse em que Jorge de Lima
preenche as lacunas da memória com dados de sua imaginação, como é o caso do “voo de
Lis”.

Tínhamos livros de lições de coisas, com “experiências de mágicas


familiares”. Vinham meninos da vizinhança atraídos pelo que se passava à
luz do candeeiro. O círculo iluminado dourava as faces pendidas para As Mil
e Uma Noites, inventamos artes ocultas, fizemos experiências recreativas.
Eram assíduos Antoninho Gustavo, João Moreira, Zé Pelúsio, Dagoberto e
sua irmã Lis. Com meu irmão fazíamos sete em torno da mesa, candeeiro
nos abrigando as coisas pressentidas. Ao canto do salão minha mãe lia os
Estranguladores de Bengala – livro extraordinário com história se passando
na Índia no meio de ingleses malvados. Examinávamos uma esfera armilar
em que havia no centro uma bola de vidro contendo mariposas que havíamos
retirado da treva. E ninguém sabendo o que houve pôs-se Antoninho
Gustavo a gritar alucinado:
─ Lis está voando. Lis está voando.
E olhamos Lis e com efeito Lis estava esvoaçando como uma mariposa, em
torno da esfera que encerrava a mesa; e corremos em torno da esfera e
seguramos Lis pelo vestido de borboleta, e tudo parou, e mãe acudiu, e tudo
voltou ao que era. Porém Lis não sabendo o que havia acontecido começou a
chorar, e seu pranto desfez em nós a grande alucinação.
─ Não brinquem de mágicas, desse minha mãe. Amanhã contarei histórias
(LIMA, 1959, p. 130, 131).
39

O fantasioso que residia nas histórias contadas pela mãe do menino Jorge (“As Mil e
Uma Noites”, “Estranguladores de Bengala”) transborda das páginas dos livros para se
misturar às recordações do autor, trazendo à tona a lembrança do voo de Lis, recordação que
faz com que o leitor suspeite de seu real acontecimento, sendo uma lembrança que mais se
aproxima do sonho do que da realidade. Mais tarde, o episódio do voo de Lis desloca-se do
imaginário do menino Jorge de Lima para transformar-se em uma das musas de Invenção de
Orfeu, sendo Lis agora grafada com “y”17. Aline de Souza Pereira propõe que o episódio do
“voo de Lis” também é referido na fotomontagem “Povoadores do ar”:

(LIMA, 2010, p. 87).

Contudo, Lis não é a única musa de Invenção de Orfeu que tem uma relação com o
imaginário infantil de Jorge de Lima. Inês de Castro é descoberta pelo autor quando ele ainda
criança mexia nas anotações de seu pai:

[...] e antes de maio findar li Inês copiada por meu pai. Ele amava aqueles
versos de Camões e os guardava com anotações de fatos familiares dentro de
uma gaveta. Aí havia umas palavras: “Nasceu meu filho Jorge às 10 horas da

17
No Canto II, soneto V, encontramos o seguinte soneto acerca de Lys: “Tudo é lícito aqui nessa Sumatra./ Lícito
desmontar-te, Lys, teus seios/ e neles por teus olhos renegados,/ desacertando a glória que Deus fez;// e depois
desconstruir-te, Lys, inata,/ carne subterfugida e doces veias,/ restituindo-te à noite desgarrada,/ nos baixos
submersos do teu leito.// E adorar-te anjo meu reproduzido,/ biografado dos anjos parricidas,/ sem sentido de
lógicas estrofes,// pois meu grito danado é o mesmo grito/ encerrado no ventre dos ouvidos,/ repercutido pelos
céus que sofres” (LIMA, 1959, p. 681-682).
40

manhã, domingo, 23 de abril, dia de S. Jorge... Esse menino...” Surpreendeu-


me mexendo e lendo seus segredos. Tive um susto incontido. No dia
seguinte suas mãos queridas haviam metido Inês entre as páginas de meu
caderno de versos, Celina virou Inês florida em maio, e mágica inventou-se
para mim; e não tinha sossego Inês; e mudava o mundo para mim. Trocava-
me e trocava as coisas. O piano era todo de marfim, as cadeiras não nítidas,
os quadros de sala fábulas falantes. Inês unida a mim, ouvindo comigo,
descortina a vida e me dá os signos foragidos, ledices de cantigas luandas,
Inês invisível entre as neblinas em que tornava o ar das tardes, os sinos da
Igreja dos Martírios e do Rosário, batidos para mim, antevistas caras
enverdecidas hastes em cravinas, e então nascia a avoada fila, a teoria das
aves cruzando céus privados (LIMA, 1959, p. 129).

A presença de Inês em sua infância tem uma relação íntima com a biografia de Jorge de
Lima, pois ele descobre Inês ao mesmo tempo que descobre uma anotação sobre o seu
nascimento. A Inês desassossegada de Invenção de Orfeu é, assim como a Inês da lembrança
infantil de Jorge de Lima, múltipla, construída a partir de várias imagens, às vezes até
inconciliáveis: é negra e branca, brilhante e acinzentada, arcanjo e andarilha, é aquela que “dá
os signos foragidos” e é “temas em temas”18. Ambas as musas Lis/Lys e Inês têm uma relação
intrínseca com o imaginário biográfico de Jorge de Lima, ou seja, com a memória, assim
como as Musas da mitologia grega tinham uma relação íntima com a deusa da Memória
(Mnemosyne). Jorge de Lima, através da memória, amplia o mundo imaginado, recriando as
musas e as lembranças de sua infância que permeiam toda a sua obra.
Em Minhas Memórias, Jorge de Lima não narra apenas situações verossímeis, mas
também situações fantasiosas, como já dissemos anteriormente, contudo é quando ele narra
suas lembranças fantasiosas que podemos fazer aproximações com a sua obra e assim
ressignificá-la. Luciano M. Dias Cavalcanti, em Invenção de Orfeu: a utópica poética na
lírica de Jorge de Lima (2007) propõe que o elemento biográfico permite entender certas
referências na obra desse poeta alagoano:

18
Em Invenção de Orfeu, o Canto IX é dedicado à Inês. As primeiras estrofes desse canto são as mais
significativas quando relacionamos a Minhas Memórias, visto que nelas percebemos essa presença do
autobiográfico: “Estavas linda Inês, nunca em sossego/ e por isso voltaste neste poema,/ louca, virgem Inês,
engano cego,/ ó multípara Inês, sutil e extrema,/ ilha e mareta funda raso pego,/ Inês descontruída, mas eurema,/
chamada Inês de muitos nomes, antes,/ depois, como de agora, hoje distantes.// Porém penumbra vaga ou talvez
acha/ Celeste consumindo-se, também/ a própria conceição parindo baixa/ a real prole; de súbito ninguém/ nessa
longínquas órbitas que enfaixa/ com seus cabelos, ela-a-mais-de-cem,/ a mais de mil, Inês amorfa e aresta,/ Inês
a só, mas logo a sempre festa.// Inês que fulge quando o dia brilha/ ou se acinzenta quando o ocaso avança,/
rainha negra, mãe e branca filha,/ entre arcanjos do céu etérea dança,/ e nos dias dos mundos andarilha,/ andar
incandescente que não cansa,/ poema aparentemente muitos poemas,/ mas infância perene, tema em temas.// Ela
fechada virgem, via-a em rio;/ eu era os meus sete anos, vendo-a vejo/ a própria poesia que surgiu/ intemporal,
poesia que antevejo,/ poesia que me vê, verá, me viu,/ ó mar sempre passando em que velejo/ eu próprio outro
marujo e outro oceano/ em redor do marujo transmontano.// Meu pai te lia, ó página de insânia!/ E eu o
escutava, como se findasses./ Findasses? Se tu eras espontânea,/ a musa aparecida de cem faces,/ a além de mim
e além da Lusitânia,/ como se além da página acenasses/ aos que postos em teus desassossegos,/ cegam seus
olhos por teus olhos cegos (LIMA, 1959, p. 871, 872 – grifo nosso).
41

O elemento biográfico presente no poema revela-se de grande importância


para a compreensão da obra de Jorge de Lima, pois é a partir dele que
conseguimos apreender as inúmeras referências apresentadas em seus
poemas e suas possíveis significações. Além de representar o ambiente
emotivo e social que formou a personalidade do poeta e que, como
demonstra toda a sua obra, o marcou profundamente, fornece mais dois
fundamentais elementos constituintes de sua poesia: a memória e a
religiosidade (CAVALCANTI, 2007, p. 164).

Em Minhas memórias podemos traçar outras relações com a obra de Jorge de Lima,
contudo, nosso objetivo não é analisar essa obra até a exaustão, mas sim demonstrar como a
memória está presente na poética limiana, inclusive em sua lírica final. Esperamos que o leitor
não veja esse nosso objetivo como um retorno à crítica biográfica, pois nós entendemos
Minhas memórias não só como um texto biográfico, mas sobretudo como um texto literário,
perceptível graças a elementos de sua estrutura como a presença de diálogos, rimas19,
construções plásticas20 e outros aspectos que testificam21 todo um cuidado com a tessitura
desse texto. A literariedade de Minhas Memórias é, inclusive, afirmada pelo próprio autor:
“Como vos disse, e se não disse, faço-o agora que estas são minhas memórias literárias.
Grudadas como fotomontagens à vida de cada dia” (LIMA, 1959, p. 105).
Após essa apresentação de Jorge de Lima e de seu texto autobiográfico, além da
discussão acerca das relações entre memória e literatura, pretendemos, a partir da poética de
Jorge de Lima, melhor perceber nos próximos capítulos, como os atos mnemônicos no campo
literário não se constituem apenas de fornecedores de matéria, mas também como
constituintes da esteticidade da obra; e como a literatura não é mera dependente da memória,
mas é também possuidora de um papel importante ao encontrar outros meios de renovar, de
entender essa memória.

19
Quando Jorge de Lima explica o que são “cambembes” narrando a mudança dos índios Caetés, que de bravos
guerreiros, se tornaram “líricos” quando encontraram o sururu. Esse lirismo, Jorge expressa através da rima do
seguinte trecho: “Ficaram ali, ficaram pescadores de mariscos, ficaram moles. Ficaram líricos, tocando gaitas de
bambu, comendo goiamun, bagre, aratu, curimã, comendo sururu” (LIMA, 1959, p. 116).
20
Ao narrar a vez que recitou alguns versos de Casimiro de Abreu, Jorge de Lima o faz como se fosse uma
superposição de imagens, uma fotomontagem: “Proferia os versos, trêmulo, com medo não sei de que, porém
Casimiro no ar, me rodeando, vestido de sobrecasaca e colete de veludo, um jardim que eu conhecia da capa de
uma edição enchia a sala em fotomontagem com a classe, bancas, quadro-negro, cadeiras, mapas. E atrás da face
pálida de Casimiro, eu via a minha própria face aflita e literária” (LIMA, 1959, p. 130).
21
Minhas memórias é tecida por figuras de estilos como no seguinte trecho: “A lagoa madornava quietíssima,
embaciou com seu bafo morno como hálito de gente os vidros da lanterna” (LIMA, 1959, p. 123).
42

2. “INFÂNCIA”: PALAVRA-CHAVE NA POESIA DE JORGE DE LIMA

Reservamos este segundo capítulo para estudarmos aqueles poemas em que a memória
se testifica através das lembranças da infância, sendo uma memória mais voltada para o
círculo familiar e suas tradições, representada principalmente pela religião católica. O tema da
infância acompanha-o desde de seus primeiros versos, sendo inclusive o tema de sua obra
modernista inaugural, O mundo do menino impossível (1925). Contudo, diferentemente da
maioria dos escritores modernistas que após ter passado a euforia do primeiro momento do
movimento, abandonaram ou ao menos não exploraram tanto o tema da infância22, a poética
limiana manteve o motivo infantil sempre presente, como afirma Luiz Santa Cruz (1997):
“[...] tanto na obra poética de Jorge de Lima como em toda a sua criação literária, a palavra-
chave que nos permite com ela devassar o segredo e o elo misterioso de sua cadeia criadora é
a mesma da obra de Georges Bernanos: a palavra ‘Infância’” (CRUZ, 1997, p. 19).
O objetivo, pois, deste capítulo é analisar poemas em que a memória individual,
representada por imagens da infância, faz-se presente, porém tendo em mente que a memória
não é feita apenas de recordações, mas também de esquecimentos.

2.1. A casa: o primeiro universo. O lugar memorável por excelência.


Casa, aba da pradaria, ó luz da tarde,
De súbito adquires uma face quase humana.
Estás perto de nós, abraçando, abraçados.
(Rilke)

“Os lugares habitáveis são, por excelência, memoráveis”, afirma Paul Ricoeur em A
memória, a história e o esquecimento23. Os lugares habitados têm a mesma potencialidade das
inscrições, dos monumentos, por terem a capacidade de permanecer, por durarem mais do que

22
Eliane Zagury afirma que o tema da infância já era explorado pelos românticos, contudo foi no Modernismo
que o motivo infantil atingiu grau de tema: “Como tema, a infância parece ter sido descoberta pelos românticos,
em contrafação ao tema da educação examinado pelos enciclopedistas. Entretanto, ainda que o motivo infantil
tenha aparecido aqui e ali no século XIX brasileiro, só vai adquirir grau de tema em pleno século XX. O
primeiro momento modernista, embora eivando de características que o poderiam aproximar de uma
adolescentada – como, aliás, boa parte de nosso romantismo – impostou uma imagem infantilizada. Na verdade,
o susto do mundo que se revelou a partir da Primeira Guerra Mundial refugiou-se na criança mimada e manhosa
da falta de amor, como emblema do século e da vida, nas vanguardas estéticas europeias. Para a nossa variante
brasileira, era ela também emblema do Brasil e da América, ampliando-se o motivo infantil em tema básico da
literatura. O poeta ou ficcionista se identificava com a criança, que vinha à tona a qualquer propósito, e o
sentimento do novo, mais que da renovação, reforma ou revolução, ganhou foros de princípio básico do
programa do movimento: o homem novo brasileiro ensaiando os primeiros vagidos e o primeiro engatinhar”
(ZAGURY, 1982, p. 13).
23
RICOEUR, 2012, p. 59.
43

aquilo que é transmitido apenas pela voz. Assim, a casa habitada na infância funciona como
um documento, um testemunho material daquilo que temos guardado em nossa memória.
No poema “Volta à casa paterna”, temos um eu lírico que anseia por retornar à casa de
seu pai, casa onde passou a infância e que lhe desperta várias lembranças. Eis o poema:

VOLTA À CASA PATERNA

É tarde e eu quero entrar em casa,


que a noite vem aí, cheia dos seus espantos.
A luz foi intensa, o dia foi cálido,
o ritmo das horas é monótono e irreal.
As danças do pátio, as paisagens de fora,
os caminhantes são falsos.
Os caminhos são errados.
Os ritmos são errados.
Os poemas são outros.
A noite aí vem cheia dos seus espantos.
Há uma rede aqui dentro que me embalou.
Há na parede uma estampa sagrada
que por mim chorou.
Há um raio de lua no corredor.
Será a alma do meu pai que Deus mandou?

Casa, doce casa sem elevador,


cadê o Ford que me levou?

Há sombras que passam, fantasmas que vão,


que vêm, que choram, que riem, que me beijam...
Há um livro aberto
na minha mesa:

Padre Nosso que está nos céu, santificado,


vem a nós... assim na terra...
(LIMA, 1959, p. 338)

O título do poema “Volta à casa paterna” nos sugere duas possibilidades para o retorno
àquela casa: a volta pode se dar no espaço, no tempo ou em ambos. Ao lermos o poema, a
ideia que temos é que essa volta à casa paterna acontece através das lembranças do eu lírico,
já que os objetos que ele descreve na casa não são suas paredes ou cômodos, mas sim, aqueles
objetos que materialmente não resistem à passagem do tempo (a rede que o embalou, a
estampa sagrada, o livro aberto), mas ainda assim foram perenizados em sua memória.
Nesse poema podemos identificar dois espaços: a casa do pai do eu lírico e o mundo
exterior a essa casa. A descrição que o eu do poema faz desses dois ambientes sugere sua
predileção pelo interior da casa. O mundo exterior é repleto de falsidade, todos os caminhos
conduzem ao erro e até mesmo as manifestações artísticas não agradam ao eu lírico. Se o
mundo exterior era, antes, repleto de luminosidade, agora o que vem é a escuridão da noite
44

suscitando o medo, o assombro. Já a casa paterna é o ambiente das boas lembranças de sua
infância, é um refúgio onde até mesmo os fantasmas que aparecem não causam assombro,
pelo contrário, trazem o aconchego. Na casa paterna há o acalanto de embalos evocados pela
rede, há a imagem que o ajudou nos momentos difíceis e a figura do pai no raio de Lua. A
predileção do eu lírico pela casa paterna se dá também na sintaxe dos versos. A descrição do
mundo exterior é toda feita através de orações coordenadas, conferindo uma secura para a
descrição do ambiente. Já quando se passa para a morada da infância, o eu lírico utiliza
orações subordinadas adjetivas, sendo uma descrição mais demorada, detalhada do espaço.
Podemos notar também outra diferença entre a morada da infância do eu lírico e mundo
exterior: o lado de fora, o mundo que o eu lírico encontrou fora do ambiente de sua infância é
o mundo das certezas, das afirmativas, mundo onde tudo acaba com um ponto final. Já o
ambiente de sua infância é o espaço das dúvidas, das suposições (“Será a alma do meu pai que
Deus levou?”), das perguntas (“Casa, doce casa sem elevador, cadê o Ford que me levou?”),
das incompletudes marcadas pela presença das reticências (“quem vêm, que choram, que
riem, que me beijam...”/ “vem a nós... assim na terra...”), do espiritual (“Há sombras que
passam, fantasmas que vão”/ “Padre Nosso que está no céu, santificado,”).
Em “Volta à casa paterna”, temos um eu lírico que procura fugir do mundo, do presente,
escolhendo como refúgio a morada da infância, lugar percorrido tantas vezes que acaba
auxiliando na recordação de fatos que ali ocorreram, descritos com uma familiaridade única,
como se o eu lírico jamais tivesse deixado o local. Paul Ricoeur, que citamos no começo do
texto, explica a ligação que há entre o homem e o espaço habitado no campo da memória:

O ato de habitar [...] constitui, a esse respeito, a mais forte ligação humana
entre a data e o lugar. Os lugares habitados são, por excelência, memoráveis.
Por estar a lembrança tão ligada a eles, a memória declarativa se compraz
em evocá-los e descrevê-los. Quanto a nossos deslocamentos, os lugares
sucessivamente percorridos servem de reminders aos episódios que aí
ocorreram. São eles que, a posteriori, nos parecem hospitaleiros ou não, num
palavra, habitáveis (RICOEUR, 2007, p. 59).

O eu do poema em questão se compraz em evocar e descrever o lugar habitado em sua


infância. Sua descrição do ambiente é expressa de uma forma que não permite deixar dúvidas
de que realmente aquela rede estava lá, que a estampa sagrada estava naquele outro local. É
como se o eu lírico tivesse se tornado por um momento um Simônides24 e fosse capaz de se

24
“Durante um banquete oferecido por um nobre da Tessália, Scopa, Simônides cantou um poema em honra de
Castor e Pólux. Scopa disse ao poeta que não lhe pagaria senão metade do preço estabelecido e que os próprios
Dióscuros lhe pagassem a outra metade. Pouco depois vieram buscar Simônides dizendo-lhe que dois jovens o
chamavam. Ele saiu e não viu ninguém. Mas enquanto estava lá fora o teto da casa afundou-se sobre Scopa e
45

lembrar de todos os lugares de sua casa, mesmo se ela fosse demolida, exercendo uma vitória
sobre o esquecimento.
Diante desse poema limiano é impossível não deixar de mencionar Gaston Bachelard,
quando em A poética do espaço (1978), trata sobre a relação simbólica da casa com a
memória e o sonho. Bachelard afirma que a casa é o nosso primeiro universo, abrigo do
devaneio e abrigo do homem frente às dificuldades da natureza e da própria vida:

[...] a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as


lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio que faz a
ligação é o devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa
dinamismos diferentes, dinamismos que frequentemente intervém, às vezes
se opondo, às vezes estimulando-se um ao outro. A casa, na vida do homem,
afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o
homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades
do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo
do ser humano. Antes de ser "atirado ao mundo", como o professam os
metafísicos apressados, o homem é colocado no berço da casa. E sempre, em
nossos devaneios, a casa é um grande berço. Uma metafísica concreta não
pode deixar de lado esse fato, esse simples fato, na medida em que esse fato
é um valor, um grande valor ao qual voltamos em nossos devaneios. O ser é
imediatamente um valor. A vida começa bem; começa fechada, protegida,
agasalhada no seio da casa (BACHELARD, 1978, p. 201).

A casa de “Volta à casa paterna” é tal e qual a casa natal descrita por Bachelard, casa
em que se encontra o devaneio quando o eu lírico vê pessoas que já se foram, que abriga o eu
lírico das dificuldades da natureza, já que é nela que ele se refugia para fugir da noite cheia de
seus espantos, que também o abriga das dificuldades de um mundo hostil em que nada o
agrada:

As danças do pátio, as paisagens de fora,


os caminhantes são falsos.
Os caminhos são errados.
Os ritmos são errados.
Os poemas são outros.

Bachelard afirma que aquilo que lembramos do mundo exterior, aquilo que fica do lado
de fora da porta, tem um tom diferente se comparado com as lembranças da morada natal: “As
lembranças do mundo exterior nunca terão a mesma tonalidade das lembranças da casa.
Evocando as lembranças da casa, acrescentamos valores de sonho [...]” (Ibidem p. 201).
Quando o autor de A poética do espaço afirma que a primeira morada “é sempre, em
nossos devaneios, um grande berço” (Ibidem, p. 201), a imagem da casa nesse poema limiano

seus convidados, cujos cadáveres esmagados ficaram irreconhecíveis. Simônides, lembrando-se da ordem em
que estavam sentados, identificou-os e puderam ser remetidos aos seus respectivos parentes [cf. Yates, 1966, pp.
3 e 27]” (LE GOFF, 1990, p. 440).
46

assume uma função parecida. A presença do berço representada pela rede (“Há uma rede aqui
dentro que me embalou”) tem sua imagem reforçada através das repetições que compõem
todo o poema. Essas repetições associadas à imagem da rede (ou do berço), lembram o
movimento de vai-e-vem que a rede/berço faz para adormecer a criança.
Ao observarmos aquilo que deveria ser notado desde o princípio, ou seja, o título,
podemos esperar que o poema tenha repetições, afinal, o que é a repetição se não uma
“volta”? Ao voltarmos para a primeira morada, voltamos para as nossas recordações.
Recordar, é repetir, segundo Paul Ricoeur: “[...] o ana [re] de anamnēsis [recordação]
significa volta, retomada, recobramento do que anteriormente foi visto, experimentado ou
aprendido, portanto, de alguma forma, significa repetição” (RICOEUR, 2007, p. 46).Quando
voltamos à casa natal, lembramos de fatos, de sons que habitam o mundo da Infância, mundo
que segundo Bachelard, é um mundo intocável, que permanece sempre o mesmo em nossa
memória. Talvez seja por isso que neste poema o eu lírico tenha optado pelo verbo “haver” no
presente do indicativo para descrever o que existe na casa natal de sua memória. Ao usar o
verbo no presente do indicativo, temos a impressão de que se trata de um presente eterno que
o tempo jamais devorará.
A casa de “Volta à casa paterna” não tem paredes, telhado, portas ou janelas. É uma
casa feita das lembranças do eu lírico, lembranças de coisas e situações que o marcaram tão
profundamente que é deles que o eu lírico se recorda ao entrar no espaço da casa, no cofre
forte de nossas lembranças em que guardamos aquilo que queremos salvar do esquecimento,
que queremos ter sempre a mão como um livro aberto sobre a mesa sobre o qual podemos
nos debruçar a qualquer momento para lê-lo.
O tema da casa aliado à memória volta em outros poemas de Jorge de Lima, como é o
caso do poema “Meninice” que compõe a obra Poemas (1927):

MENINICE

Lembras-te minha irmã,


da velha casa colonial em que nascemos
e onde havia o retrato do vovô Simões Lima?

Do relógio de pesos, dos móveis


de jacarandá do quarto da vovó?

Da mamãe, do papai,
suaves mas austeros e que liam à noite
o Rocambole de Ponson du Terrail?

Da mesa de jantar em que garatujávamos


a lápis de cor, quanta coisa havia?
47

Lembras-te da maior emoção


que já tivemos? tão forte
que ficamos parados
olhando-nos mutuamente:
Aquela tarde em que chegou
“O grande Circo Internacional de Vigo”?

... O palhaço Serafin...


... O anão que engolia espada...
... O cachorro que sabia números...
... O homem que sabia mágicas...
.... O cavalo ensinado...
.... O burrico que mordia o palhaço...
.... O palhaço que levava tombos...

A charanga do circo!
Que beleza a charanga!
De repente vem a mocinha do trapézio...
Cumprimentos, reverências, um sorriso
para o respeitabilíssimo público da cidade!
Tu não podias ver...
Se a mocinha caísse!
Meu Jesus!

Eu olhei – ela subiu,


deu duas voltas imortais!
A charanga parou.
A emoção da cidade badalou!
Tu não podias ver!
Se a mocinha caísse, meu Jesus!
Eu olhei: ela deu outra
volta sensacional e, zás!
as calcinhas da moça se romperam!
Ela desceu...
A charanga bateu forte.
Meu coração bateu também!

Um dia o circo foi-se embora...


Foi-se embora a moça das calcinhas...

Tu eras uma inocência silenciosa


que choravas por tudo.
Eu era um menino de olhos extasiados
que tinham saudade
mas não choravam nunca!

Lembras-te do meu gorro de marujo


De minha blusa de gola azul-marinho?
Do seu saguim que morreu enforcado
na grade do jardim?
Tu choraste tanto!
À noite tiveste medo da alma do saguim.
Tu eras uma inocência supersticiosa
que chorava por tudo...
48

Eu era um menino de olhos extasiados


que tinham saudades
mas que não choravam nunca!
(LIMA, 1959, p. 238-240)

Em “Meninice”, a casa mais uma vez é a guardiã das lembranças da infância. O título
do poema já nos prepara para algo que está relacionado ao período de crescimento da criança,
como também para ações próprias de um comportamento infantil. É a partir da “velha casa
colonial” que se iniciam as lembranças do eu lírico, e a casa de “Meninice”, da mesma
maneira que o poema “Volta à casa paterna”, é abrigo do eu lírico, local que habita a
lembrança de seus avôs e de seus pais, é um lugar de proteção. Bachelard, ainda tratando
sobre o espaço da casa, afirma que na casa natal habitam seres que nos passam a sensação de
segurança: “Quando se sonha com a casa natal, na profundidade extrema do devaneio,
participa-se desse calor primeiro, dessa matéria bem temperada do paraíso material. É nesse
ambiente que vivem os seres protetores” (BACHELARD, 1978, p. 202).
Ao se lembrar da casa natal, o eu lírico age como se nela entrasse, puxasse uma cadeira
e depois de degustar uma madeleine molhada no chá (como fizera Proust em À la recherche
du temps perdu), recebesse as lembranças da infância que vão surgindo diante dele. Cada
passo que o eu do poema dá, ele esbarra em objetos que lhe despertam lembranças: o retrato
do avô, o relógio de pesos, os móveis de jacarandá da avó, o livro que os pais liam, a mesa de
jantar... A descrição, porém, da casa natal habitada pelo eu lírico e por sua irmã não é bastante
detalhada, apresentando ao leitor apenas alguns objetos que mobilizavam o espaço. Bachelard
afirma que a casa da lembrança guarda sua penumbra, pois somente assim que ela pode nos
levar ao sonho:

As verdadeiras casas da lembrança, as casas onde os nossos sonhos nos


levam, as casas ricas de um onirismo fiel, são avessas a qualquer descrição.
Descrevê-las seria fazê-la visitar. Do presente, pode-se talvez dizer tudo,
mas do passado! A casa primeira e oniricamente definitiva deve guardar sua
penumbra. Ela surge da literatura em profundidade, isto é, da poesia, e não
da literatura eloquente que tem necessidade do romanceados outros para
analisar a intimidade. Tudo o que devo dizer da casa da minha infância é
justamente o que me é necessário para me colocar numa situação de
onirismo, para me colocar no bojo de um devaneio em que vou repousar no
meu passado (Ibidem, p. 205).

Aquilo que o eu do poema descreve é o necessário para colocá-lo em uma situação de


onirismo, para que a partir dessa descrição, outras lembranças lhe surjam, que nesse caso é a
lembrança da vinda do “Grande Circo Internacional de Vigo”. A vinda do circo foi, para o eu
lírico e sua irmã, a maior emoção que já tiveram, emoção que se apresenta graficamente
49

através da presença constante das reticências em todas as estrofes em que ele se refere ao
circo. As reticências podem ser utilizadas para “[...] marcar uma pausa no enunciado, podendo
indicar omissão de alguma coisa que não se quer revelar, emoção demasiada, insinuação etc.”
(HOUAISS, 2009, p. 1657– grifo nosso).
Outra presença constante em todo o poema é a pergunta que o eu lírico faz em quase
todas as estrofes (“Lembras-te...?”). Ao perguntar se a irmã se lembra de como era a casa em
que viviam, se ela se lembrava dos objetos que lá existiam ou de situações comuns no dia a
dia dos dois, é como se junto com todas essas lembranças surgisse também a dúvida de que
tudo aquilo tivesse realmente acontecido. Em “Meninice”, temos um eu lírico que se
apresenta como a testemunha dos fatos que ele narra, contudo, é uma testemunha que parece
duvidar de si mesma, pois recorre à irmã para que ela lhe dê crédito. Paul Ricoeur, ao abordar
o testemunho, fala sobre a necessidade que a testemunha tem de ter o seu discurso
autenticado:

[...] a testemunha pede que lhe deem crédito. Ela não se limita a dizer: “Eu
estava lá”, ela acrescenta: “Acreditem em mim”. A autenticação do
testemunho só será então completa após a resposta em eco daquele que
recebe o testemunho e o aceita; o testemunho, a partir desse instante, está
não apenas autenticado, ele está acreditado. É o credenciamento, enquanto
processo em curso, que abre a alternativa da qual partimos entre a confiança
e a suspeita (RICOEUR, 2007, p. 173).

Contudo, ao direcionar as perguntas a sua irmã, podemos interpretar não só como uma
necessidade de autenticação de seu testemunho, mas também como um chamamento para a
participação do outro, do leitor, para que ele também lembre-se das situações que vivenciou
em sua infância.
As lembranças da infância fazem também com que o eu lírico se lembre de como eram
ele e sua irmã quando crianças. Se observamos todo o poema, o caminho que as lembranças
fazem é de fora para dentro do eu lírico. Suas lembranças começam no espaço da casa,
passam pelas figuras dos avós e dos pais, avançam para lembranças de situações que lhe
tocaram subjetivamente (“Lembras-te da maior emoção/ que já tivemos? [...]”), até chegar às
lembranças de como era a irmã (“Tu eras uma inocência silenciosa/ que choravas por tudo”)
e, por fim, de como era ele próprio (“Eu era um menino de olhos extasiados/ que tinham
saudade/ mas não choravam nunca!”), sendo, inclusive, com a lembrança de si que ele termina
o poema. Essa lembrança que vai do outro para depois chegar a uma lembrança de si, remete
àquilo que disse Paul Ricoeur sobre o vínculo que há entre a memória e o indivíduo, vínculo
que se apresenta na própria linguagem:
50

A defesa do caráter originário e primordial da memória individual tem


vínculos nos usos da linguagem comum e na psicologia sumária que avaliza
esses usos. Em nenhum registro de experiência viva, quer se trate do campo
cognitivo, prático ou afetivo, a aderência do auto de autodesignação do
sujeito à intenção objetal de sua experiência é tão total. Nesse aspecto, o
emprego em francês e em outras línguas do pronome reflexivo “si” não
parece furtuito. Ao se lembrar de algo, alguém se lembre de si (Ibidem, p.
107 – grifo nosso).

Há ainda outros poemas de Jorge de Lima em que encontramos a figura da casa, como é
o caso de “Poema Relativo” que compõe a obra Poemas Escolhidos (1932). Neste poema,
contudo, a casa não é a casa natal da infância, e sim a casa da fase adulta. Vejamos o poema:

POEMA RELATIVO

Vem, ó bem-amada
Junto à minha casa
tem um regato (até quieto o regato).

Não tem pássaros, que pena!


Mas os coqueiros fazem,
quando o vento passa,
um barulho que às vezes parece
bate-bate de asas.

Supõe, ó bem-amada,
se o vento não sopra,
podem vir borboletas
à procura das minhas jarras
onde há flores debruçadas,
tão debruçadas que parecem escutar.

Todos os homens têm seus crentes,


ó bem-amada:
− os que pregam o amor ao próximo
e os que pregam a morte dele.

Mas tudo é pequeno,


e ligeiro no mundo, ó bem-amada.
Só o clamor dos desgraçados
é cada vez mais imenso!

Vem, ó bem-amada.
Junto à minha casa
tem um regato até manso.
E os teus passos podem ir devagar
pelos caminhos:
aqui não há a inquietação
de se atravessar o asfalto.

Vem, ó bem-amada,
porque, como te disse,
51

se não há pássaros no meu parque,


pode ser, se o vento
não soprar forte,
que venham borboletas.
Tudo é relativo
e incerto no mundo.
Também tuas sobrancelhas
parecem asas abertas.
(LIMA, 1959, p. 332-333)

No poema acima, a casa descrita não se parece com a casa natal descrita nos poemas
anteriores. Enquanto em “Volta à casa paterna” e “Meninice”, a casa é um lugar acolhedor;
em “Poema relativo” temos uma casa que não é assim tãoagradável, visto que não há pássaros
no local, tampouco borboletas, pois as flores que lá se encontram estão murchas. Enquanto a
casa natal suscita boas lembranças ao eu lírico, a casa da vida adulta leva-o a lembrar das
desgraças que existem no mundo, enquanto a casa natal serve de refúgio contra “a noite cheia
de espantos”, a casa da vida adulta não consegue fazer com que ele se esqueça das
dificuldades que existem lá fora.
Diante, pois, dos poemas “Volta à casa paterna” e “Meninice” podemos reiterar aquilo
que afirma Bachelard em A poética do espaço: “Assim, além de todos os valores positivos de
proteção, na casa natal se estabelecem valores de sonho, últimos valores que permanecem
quando a casa já não existe mais” (BACHELARD, 1978, p. 208). É isso que percebemos
diante desses poemas em que a casa natal abriga as lembranças da infância, carregando
consigo as figuras protetoras dos parentes próximos, e que depois de suscitar as diversas
lembranças, lembranças que trazem de volta fantasmas que nos beijam e charangas de circo,
leva-nos à lembrança de nós mesmos.
Além de “Meninice”, Jorge de Lima escreveu outros poemas em que identificamos a
presença de sua irmã. Um deles é “Poema à irmã” em que ela não desempenha apenas o papel
de filha do mesmo pai e da mesma mãe, mas como amiga íntima, companheira que lhe serve
de socorro no momento de desespero que se encontra o eu lírico. Vejamos o poema:

POEMA À IRMÃ

Ó irmã
agora que as noites vêm cedo
e paira por tudo uma tristeza enorme
e o silêncio é tão longo
que os cães enlouquecem nas ruas,
irmã, vem me relembrar
que crescemos juntos
quando os dias eram compridos e diferentes.
Irmã, se tu sabes signos
52

para mudar o tempo, vem.


Vem, que eu quero fugir
para outras paragens
onde as gaivotas sejam menos inúteis
e haja um coração em cada porto;
e os pássaros do mar
tão lavados e tão alvos
e tão lentos e tão sabedores de viagens
venham esvoaçar
sobre o meu cachimbo
em que os cometas do céu se apagaram.
Irmã, nos meus ritmos
há colegas que gritam:
Daubler, Ehrenstein, Stramm, suicidas,
vagabundos, crianças,
operários, leprosos e prostitutas que
se lembram ainda de suas orações familiares.
Há não sei onde outros ares e outras serras,
outros limites adeus irmã.
Ó que noite longa,
Ó que noite tão longa!
Que é que chora lá fora?
- A humanidade ou qualquer outra fonte?
(LIMA, 2007, p. 77)

“Ó irmã”. É com uma expressão de lamento que se inicia o poema acima. Neste verso,
lemos/sentimos um eu lírico angustiado, e essa angústia ocupa o início deste poema (“Ó
irmã”), expressa de uma forma tão breve, mas que sozinha naquele verso se prolonga como o
gemido fraco de alguém que diante da dor, só consegue dizer poucas palavras para expressar
o que sente. Diante desse sofrimento, a solução que o eu lírico encontra para acabar com sua
angústia é fugir: seja para o passado, seja para a morte. Ele parece estar cercado por uma
atmosfera tanto quanto sombria, pesada, percebida não só pela escolha das palavras (noite,
tristeza, silêncio, enlouquecem, gritam, vagabundos, leprosos, prostitutas, chora...), como
também pela repetição do vocativo “ó irmã” que faz com que a angústia, o desespero, a
desesperança do eu lírico aumente a cada nova repetição, a cada novo apelo. A ausência de
musicalidade, de ritmo, elementos tão presentes em sua poesia, visto que é conhecido por sua
musicalidade, é mais um traço que intensifica essa atmosfera pesada que sentimos diante
desse poema, pois ficamos apenas com o peso seco das palavras. Um poema sem ritmo, sendo
o ritmo parte da vida humana (o pulsar do coração tem um ritmo)25 pode nos levar a
interpretar que há uma ausência de vida em volta do eu lírico.

25
Norma Goldstein em Versos, sons e ritmos (2005) afirma o seguinte acerca do ritmo: “Toda vida humana se
desenvolve dentro de certo ritmo. Nosso coração pulsa alternando batidas e pausas; nossas respiração, nossa
gesticulação, nossos movimentos são ritmados. Há trabalhos coletivos – no campo como na indústria – que têm
rendimento maior, em função do ritmo conjunto de todos os participantes. Certas provas esportivas em equipe
dependem do ritmo conjunto para o bom resultado final” (GOLDSTEIN, 2005, p. 7).
53

Todo aquele sofrimento do eu lírico é causado pelo presente em que ele vive. Se
observamos o contexto literário em que aquele poema foi escrito, seria de se estranhar que um
poeta modernista escrevesse algo que não fosse louvação ao novo, louvação ao futuro, mas
não é isso que vemos em “Poema à irmã”. Neste caso, é relevante considerar que, embora
Jorge de Lima fosse considerado por parte da crítica literário como “futurista”, ele não se
assumia como tal, pelo contrário, mostrava-se avesso a esse movimento, como ele mesmo
afirmou em “Futurismo e tradição”, publicado no jornal O Semeador em 1928: “Se o
futurismo existisse eu o combateria”. (LIMA, 1978, p. 83).
Jorge de Lima, nesse mesmo ensaio, afirma ser apegado à tradição, contudo sua tradição
não se aproxima da tradição romântica, em que havia uma ideia de tradição/passado ligada à
figura idealizada do índio. Lima se diz apegado a uma tradição brasileira:

[...] me parece que sou mesmo apegado à tradição. Que tradição? Tupi? O
Brasil-Tupi correu pra o mato há muitos anos. O atual é apenas ibero-celto-
fenício-troiano-hebraico-grego-cartagino-romano-suave-alemão-visigodo-
arábico. Mais afro. Mais tupi. Mais alguma coisa. Mais a tradição que o
brasileiro sente dentro dele, balançando o coração dele como uma rede de
tucum é a tradição portuguesa. Uma campanha de pilhérias procura (faz um
pedaço de tempo) sujar essa tradição. Há mesmo muita gente ignorante que
se envergonha dos avós pés de chumbo colonizadores. Eu estou com o atraso
(de mentira) desses pés de chumbo, com a religião que eles nos trouxeram,
calçados de caravelas boiando sobre todos os mares com os tamancos
gigantescos que a raça inventou (Ibidem, p. 83-84).

Vemos esse “apego à tradição” no poema que agora analisado. O eu lírico pede à irmã é
que o faça se lembrar de sua infância, e somente a possibilidade de trazer de volta, por meio
das lembranças, os tempos em que eram crianças, já traz uma atmosfera diferente ao poema,
como podemos ver no trecho que vai do verso “irmã, vem me relembrar” até “em que os
cometas dos céus se apagaram”. A lembrança do que são as imagens do passado trazem uma
sensação de irrealidade ao poema, por serem as imagens da lembrança, imagens de sonho,
como afirma Henri Bergson em Matéria e memória: “As imagens passadas, reproduzidas tais
e quais com todos os seus detalhes, e inclusive com sua coloração afetiva, são as imagens do
devaneio ou do sonho [...]” (BERGSON, 2010, p. 121).
O eu lírico deseja fortemente que a irmã lhe traga as lembranças de sua infância, tanto
que ele pede isso duas vezes (“irmã vem me relembrar”, “Irmã, se tu sabes signos/ para mudar
o tempo, vem.”). Sua irmã é a sua esperança, pois se ela souber signos para mudar o tempo,
ele poderá fugir para outro lugar, onde exista um amor e pássaros do mar alvos e sábios que
sobrevoam sobre o seu cachimbo. Esse desejo de fuga que o eu do poema nutre se tornou uma
54

caraterística do espírito modernista da época, como afirmou Mário de Andrade em A poesia


em 1930 (1978):

Nos poetas românticos o tema do exílio e do desejo de voltar é frequente.


Com o neo-romantismo dos nossos parnasianos, o tema das barcas, das velas
que partem e “não-voltam mais” foi substituindo a ave que voltava ou queria
voltar ao ninho antigo. No... néo-néo-romantismo dos contemporâneos, o
desprendimento voluptuosamente machucador, a libertação da vida presente,
que se resume na noção de partir, agarrou frequentando com insistência
significativa a poesia nova (ANDRADE, 1978, p. 31).

Contudo, o desejo do eu de “Poema à irmã” não é fugir para longe do país, pois seu
descontentamento não se restringe apenas ao espaço e à sociedade brasileira. Seu desejo é de
fugir para os dias compridos e diferentes que emergem através das lembranças, que são
ossignos que mudam o tempo.
Uma noite sem fim, uma “noite longa”. É situado, pois, em um mundo sem esperanças
que o eu lírico de “Poema à irmã” se vê. Ele já inicia o poema com uma expressão de lamento
(“Ó irmã”), como se estivesse doente, como se algo dentro dele doesse. À medida que o
poema avança, vemos quais são os motivos de suas dores: a velhice que chega (“agora que as
noites vêm cedo”), a dificuldade para lembrar (“vem me relembrar”), a confusão que há no
mundo (“há colegas que gritam/ Daubler, Ehrenstein, Stramm, suicidas/ vagabundos,
crianças/ operários, leprosos e prostitutas [...]”) e a escuridão que o cerca (“ô que noite
longa”). Em “Poema à irmã”, temos um eu lírico que não quer fazer parte daquele mundo em
que ele se encontra (“Vem, que eu quero fugir”), mas que já está vencido (“adeus irmã”), que
não tem mais forças para lutar contra. Percebemos um raio de esperança quando, diante da
possibilidade da irmã relembrar como eram os dias de sua infância, uma aura de sonho toma
conta desse trecho do poema; contudo, essa aura se desfaz quando o eu lírico volta os seus
olhos para os seus “ritmos”, para o seu presente. A irmã desempenha o mesmo papel que a
casa frente a memória, pois ambas servem como abrigo do eu lírico, guardiãs do sonho, do
onírico, elas são o seu refúgio.

2.2. Em busca da Fé perdida


Quem crer e for batizado será
salvo; mas quem não crer
será condenado (Marcos
16:16)
55

Entre as décadas de 20 e 30, grande parte da intelectualidade brasileira foi afetada por
uma renovação católica, tendo inclusive esse avivamento católico atingido o campo da
literatura e de sua crítica. Antonio Candido em seu texto “A revolução de 1930 e a cultura” ao
abordar sobre as mudanças sociais e culturais que tiveram como marco histórico o outubro de
1930, diz que assim como houve um convívio íntimo entre a literatura e as ideologias
políticas de esquerda, houve também um engajamento espiritual pelos literatos da época:
“Com decorrência do movimento revolucionário e das suas causas, mas também do que
acontecia mais ou menos no mesmo sentindo na Europa e nos Estados Unidos, houve nos
anos 30 uma espécie de convívio íntimo entre literatura e as ideologias políticas e religiosas”
(CANDIDO, 1989, p. 188).
Candido, ao desenvolver mais sobre essa catolicidade da literatura da época, cita
exemplos tanto de romancistas quanto de poetas, citando como exemplo para o campo da
poesia Frederico Schmidt, Murilo Mendes e Jorge de Lima. Antonio Candido, porém, ressalta
que o espiritualismo foi adotado até por autores que não se consideravam católicos, como é o
caso do poeta Jorge de Lima, tendo esse se convertido ao catolicismo apenas em 1935, mas
que em seu primeiro livro de modernista (Poemas) publicado em 1927, já escrevia poesia de
tonalidade espiritualista. Esses poemas católicos retornam em Novos Poemas, publicado em
1929, em que a religiosidade não mais se encontra tão relacionada ao regional como em sua
obra anterior, tal como podemos ver no poema “Credo”:

CREDO

Padre nosso que estás no Céu,


perdi meu Credo que tu me deste...
Eu era menino: Creio em Deus Padre...
Que força me dava a tua oração!
Santa Maria, mãe de Jesus,
perdi as armas que Deus me deu!
“Padre Nosso que estás no Céu,”
santificado seja teu nome,
seja feita - a tua vontade,
e faze com que eu ache o meu credo de novo!
Eu era menino: Creio em Deus Padre...
Que força me dava a tua oração!
Santa Maria, mãe de Jesus,
procura pra mim, meu Creio em Deus Padre,
Santa Maria, mãe de Jesus!
(LIMA, 2007, p. 52).

Em “Credo” nos deparamos com um eu lírico que sofre diante da impossibilidade de se


recordar a oração do Credo Apostólico. O primeiro verso do poema sugere que houve um
56

esquecimento daquela oração, já que ao invés termos o começo do Credo Apostólico, temos o
começo da oração do Pai Nosso. O esquecimento é reconhecido e reforçado pelo próprio eu
lírico no verso seguinte, que o admite de maneira ressentida. Esse ressentimento se apresenta
também na estrutura do verso, quando pela predominância de vogais fechadas (I e U) e
semifechadas (Ê e Ô) em todo o verso (“pÊrdI mÊU CredÔ quÊ tU mÊ dÊstÊ”), mimetizando
a boca que ao dizer o que não quer, o diz quase sem abri-la. 26
O eu do poema ainda clama pela figura da mãe de Jesus, dizendo uma parte da oração
“Ave Maria”, porém ao dizer só uma parte, aparenta também tê-la esquecido. Já nos versos
seguintes, o eu-lírico demonstra não só ter esquecido o “Credo” e a “Ave Maria”, mas
também o próprio “Pai Nosso, pois ao dizer um outro trecho desta oração, ele esquece o
“Venha a nós o vosso reino” que há entre “Santificado seja o teu nome” e “Seja feita a tua
vontade”. Há, inclusive, nesse trecho, um travessão separando o “seja” de “feita a tua
vontade”, sugerindo uma pausa, talvez para se recordar do restante da oração.
Esses trechos das orações podem ser interpretados, à luz de Paul Ricoeur (2007), como
sendo os rastros daquilo que aconteceu:

Como foi dito, a noção de rastro não se reduz nem ao rastro documentário,
nem ao rastro cortical; ambos consistem em marcas “exteriores”, embora em
sentidos diferentes: o da instituição social para o arquivo, o da organização
biológica para o cérebro; resta o terceiro tipo de inscrição, o mais
problemático, embora o mais significativo para a sequência de nossa
investigação, ele consiste a persistência das impressões primeiras enquanto
passividades: um acontecimento nos marcou, tocou, afetou e a marca afetiva
permanece em nosso espírito (RICOEUR, 2007, p. 436, grifo nosso).

Os rastros que essas orações representam para o eu do poema são rastros que marcaram,
tocaram, afetaram, que deram força (“Que força me dava a tua oração!”). É interessante notar
que o fato de o eu lírico ainda reter esses rastros demonstra que ele ainda não esqueceu por
completo, até mesmo o fato de reconhecer ter esquecido é um ato mnemônico, pois, como
afirmou Ricoeur: “[...] o reconhecimento é o ato mnemônico por excelência” (Ibidem, p. 438).
Essa busca pela fé perdida lembra passagem bíblica da mulher que procura a dracma
perdida (Lc. 15:8-9). A partir dessa parábola, Santo Agostinho tece algumas considerações
sobre a memória, em especial sobre o ato de esquecer e de lembrar: “A mulher que perdera a
dracma e a procurou com a lanterna não a teria encontrado se dela não se lembrasse. Tendo-a

26
José Guilherme Merquior, em “Natureza da lírica” chama atenção para a capacidade da linguagem imitar a
realidade: “[...] se não se pode conceber entre a língua e as coisas, uma correspondência mimética de termo a
termo, isso não significa que, em seu aspecto formal, a linguagem não espelhe, já não o conteúdo, mas sim a
estrutura do mundo externo. Algumas relações linguísticas imitam certas relações naturais” (MERQUIOR, 1997,
p. 21).
57

depois achado, como saberia se era aquela, se dela não se recordasse já?” (AGOSTINHO,
2011. p. 233). Para Agostinho, quando nos lembramos que esquecemos de alguma coisa,
significa que na verdade não esquecemos tal coisa por completo. É o caso do eu-lírico de
“Credo” e sua relação com sua fé. Ele sabe o que esqueceu, porém não recorda mais como
achá-lo.
O eu do poema utiliza a infância (“Eu era menino”) para representar sua memória. É lá
que ele procura primeiro a fé esquecida. É exatamente isso que Agostinho afirma ao descrever
o ato de lembrar: “Quando a própria memória perde qualquer lembrança, como sucede
quando nos esquecemos e procuramos lembrar-nos, onde é que, afinal, a procuramos, senão
na própria memória?” (Ibidem, p. 233).
À medida que o poema avança, o eu-lírico sugere que não foram apenas as orações que
foram sendo esquecidas no caminho, a própria fé, na imagem do “Credo”, vai sendo
esquecida, já que no início do poema, o Credo se apresenta em letra maiúscula (“perdi o
Credo que tu me deste...”), mais para o meio do poema, esse já aparece em letra minúscula (“e
faze que eu ache o meu credo de novo!”) e no final do poema, esse credo se tornou uma frase,
como um significado sem significante (“procura pra mim, meu Creio em Deus Padre...”).
No poema, há uma série de repetições que podem ser associadas às próprias repetições
comuns às orações, como também podemos compreendê-las, à luz de Alfredo Bosi (1997),
como uma operação progressiva-regressivo, regressivo-progressiva, que no caso do poema
em questão, poderíamos dizer que se trata de uma operação lembrar-esquecer, esquecer-
lembrar: “Re-iterar um som, um prefixo, uma função sintática, uma frase inteira, significa
realizar uma operação dupla e ondeante: progressiva-regressivo, regressivo-progressiva”
(BOSI, 1997. p. 32).
Essas repetições acabam também por gerar uma expectativa no leitor, sugerindo que o
eu do poema tenha talvez achado, por fim, a fé que perdera, mas com o seu desfecho,
percebemos que tudo ficou apenas na mera expectativa. Alfredo Bosi reflete sobre essa
relação do ato de repetir e seu efeito sobre o leitor:

A repetição poética não pode fazer o milagre de me dar o todo, agora agora.
Ao contrário da visão fulmínea, ao contrário da posse, ela me dá o
sentimento da expectativa. Linguagem, agonia. A repetição me preme
conhecer o signo que não volta: as diferenças, as partes móveis, a surpresa
do discurso (Ibidem, p. 33).

Essa expectativa, essa agonia gerada no leitor, é a que sente o eu lírico a cada tentativa
de recordação frustrada representada pelo excesso de repetições. A cada vez que repete, o
58

verso mais adiante não é terminado por um ponto final (como foi no segundo verso), mas sim
por uma exclamação (“Que força me dava a tua oração!”, “perdi as armas que Deus me deu!”,
“e faze com que eu ache o meu credo de novo!”, “Que força me dava a tua oração!”, “Santa
Maria, mãe de Jesus!”)
O ato de recordar é um ato de busca que só é validado com o reconhecimento27.
Enquanto o reconhecimento não é atingido, a recordação não chega ao seu fim (ao menos não
chega ao fim desejado), não proporcionando, assim, a chamada “memória feliz”, pois é pelo
reconhecimento que temos a certeza de que aquilo que buscávamos recordar foi atingido,
chegando ao fim de nossa busca. O eu lírico de “Credo” não atingiu o reconhecimento, como
é perceptível pela repetição que permeia todo o poema, sendo, inclusive, a repetição de um
verso (“Santa Maria, mãe de Jesus”) que o finaliza. É pela repetição, pela volta ao dito, que o
eu lírico apela para lembrar daquilo que esqueceu, assim como se volta a determinado lugar
para se lembrar daquilo que disse que seria feito quando saísse dali.
A religião judaico-cristã se baseia na necessidade de um (re)lembrar constante, presente
na Bíblia, não só Antigo Testamento, como também no Novo Testamento. Jacques Le Goff
(1990) reconheceu isso em História e Memória, ao interpretar o judaísmo e o cristianismo
como “religiões da recordação”:

[...] porque os atos divinos de salvação situados no passado formam o


conteúdo da fé e o objeto do culto, mas também porque o livro sagrado, por
um lado, a tradição histórica, por outro, insistem, em alguns aspectos
essenciais, na necessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental
(LE GOFF, 1990, p. 443).

Há, pois, no judaísmo e no cristianismo essa necessidade de estar sempre recordando


aquilo que Deus fez por seu povo, pois caso haja o esquecimento, há como resultado a
ausência das bênçãos divinas, os castigos e, por fim, a morte eterna: “Portanto, assim diz o
Senhor DEUS: Como te esqueceste de mim, e me lançastes para trás das tuas costas, também
carregarás com a tua perversidade e as tuas devassidões” (Ezequiel 23:35). Essa relação
memória = vida X esquecimento = morte, vem desde a Grécia Antiga, já que segundo a
mitologia grega, era nas águas do rio Lete (esquecimento) que os mortos bebiam quando
chegavam ao inferno. Já as águas do rio Mnemosine (memória) permitiam que a tudo se
recordasse e se alcançasse a onisciência.

27
Comentando o pensamento de Edward Casey sobre a memória, Paul Ricoeur afirma: “O reconhecimento
aparece primeiro como um complemento importante da recordação; poderíamos dizer que é sua sanção”
(RICOEUR, 2007, p. 56).
59

Paul Ricoeur, ao refletir sobre o esquecimento, reflete também sobre a angústia que há
atrelada a esse. Para o autor, a incapacidade de, deparado com o esquecimento, não sabermos
se esquecemos aquilo temporariamente ou se eternamente, dá um colorido inquieto a essa
busca da lembrança perdida:

Assim, o esquecimento é designado obliquamente como aquilo contra o que


é dirigido o esforço de recordação. É a contracorrente do rio Lēthē que a
anamnésia opera. Buscamos aquilo que tememos ter esquecido,
provisoriamente ou para sempre, com base na experiência ordinária da
recordação, sem que possamos decidir entre duas hipóteses a respeito da
origem do esquecimento: trata-se de um apagamento definitivo dos rastros
do que foi apreendido anteriormente, ou de um impedimento provisório, este
mesmo superável, oposto à sua reanimação? Essa incerteza quanto à
natureza profunda do esquecimento dá à busca o seu colorido inquieto.
Quem busca não encontra necessariamente (RICOEUR, 2012, p. 46).

O eu lírico de “Credo” se encontra diante dessas duas hipóteses: não sabe se esqueceu
eternamente ou temporariamente. Sua angústia se torna ainda maior por ter esquecido sua fé,
seu credo, e por saber que esquecer revela sua mortalidade, mas esquecer sua fé revela sua
morta eterna. O drama do esquecimento não é exclusivo apenas ao eu de “Credo”, assim
como também não exclusivo ao eu lírico desse poema a realidade de que um dia iremos
morrer. José Guilherme Merquior, ao refletir sobre a natureza do gênero lírico, e formular
possíveis definições para esse gênero, reflete também sobre a capacidade da poesia
representar a realidade, porém, a realidade representada pela poesia não é a mesma da prosa,
já que essa representa estados de ânimo:

Poema é uma espécie de mensagem verbal fortemente regida, quanto ao


funcionamento da linguagem, pela projeção do princípio de equivalência do
plano da seleção das palavras para o plano de sua sequência na frase. Esta
mensagem consiste na imitação de estados de ânimo (statis), e tem por
finalidade a transmissão indireta, por meio de estímulos não puramente
intelectuais, de um conhecimento especial acerca de aspectos da existência
considerados de interesse permanente para a humanidade (MERQUIOR,
1997, p. 27).

“Credo” representa o estado de ânimo do contexto cultural em que se encontrava,


contexto de reavivamento do catolicismo; e representa também aspectos da existência
considerados de interesse permanente para a humanidade: a religião e a morte; tudo isto
representado através de uma mensagem em que o significante é tão importante quanto seu
significado, ou seja, “em que a carne das palavras é tão importante quanto o seu sentido”
(Ibidem, p. 17).
60

Não só no poema “Credo” que encontramos a temática cristã no Jorge de Lima anterior
a conversão de 1935. Em Poemas (1927), também encontramos poemas em que há referência
ao catolicismo, como é o caso de “Oração”. Neste poema, assim como em “Credo”, a
religiosidade está relacionada à memória. Eis o poema:

ORAÇÃO

─ “Ave Mariacheia de graça...”


A tarde era tão bela, a vida era tão pura,
as mãos de minha mãe eram tão doces,
havia, lá no azul, um crepúsculo de ouro... lá longe...
─ “Cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita!
Bendita!”
Os outros meninos, minha irmã, meus irmãos menores, meus brinquedos, a
[ casaria branca de minha terra, a burrinha do vigário pastando junto à
[capela... lá longe...
Ave cheia de graça
─ “bendita sois entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre...”

E as mãos do sono sobre os meus olhos,


e as mãos de minha mãe sobre o meu sonho,
e as estampas de meu catecismo
para o meu sonho de ave!
E isso tudo tão longe... tão longe...
(LIMA, 1959, p. 238, 239).

Em “Oração”, temos um eu lírico que, diferentemente daquele de “Credo”, consegue se


lembrar de sua oração. Assim como o poema anterior, ele é composto por trechos de uma
oração; contudo, enquanto que em “Credo” temos a certeza de que é o eu lírico quem os
profere, em “Oração” o uso das aspas e do travessão em todos os versos em que esses trechos
aparecem, sugerem que eles são ditos por outra pessoa. Antoine Compagnon em O Trabalho
da citação (2007) discorre sobre o uso das aspas e o que elas sugerem quando estão presentes
em um texto:

Existe um sinal tipográfico da citação, um indicador que equivale a “Eu


cito”: as aspas, que o impressor Guillaume teria inventado no século XVII
para enquadrar, isolar um discurso apresentado em estilo direto ou uma
citação. [...] As aspas, quando não remetem mais a um sujeito preciso,
tornam-se uma espécie de piscar de olhos, de dissimulação ou de fenda
enganado pelo enunciado que ele mesmo reproduz, mas sem ter que dizer de
onde o toma. As aspas ainda sugerem: “Não sou eu quem o diz”. Mas
também não dizem quem o diz ou o disse, um outro, diz-se a opinião, o
próprio autor, talvez um leitor: o que alguém teria podido dizer
(COMPAGNON, 2007, p. 52, 53).
61

Neste poema que analisamos, temos o uso das aspas e do travessão sinalizando que
aquilo se trata do discurso de outro, porém, não sabemos quem o diz. Há, contudo, mais um
ponto a ser observado naqueles versos em que há o trecho de Ave Maria: todos eles estão em
itálico. Compagnon também fala sobre o uso do itálico em detrimento do uso das aspas: “O
itálico equivaleria a ‘Eu sublinho’ ou ‘Sou eu mesmo quem diz’. [...] Assim, estou mais
presente no itálico que em qualquer outro lugar [...]” (Ibidem, p. 53). Temos, então, um
paradoxo: os versos entre aspas e precedidos por um travessão são e não são ditos pelo eu
lírico por eles estarem em itálico e entre aspas. O discurso é do outro, contudo, o eu lírico o
absorve, o sublinha, o destaca, porque esse discurso lhe traz lembranças de sua mãe, de sua
família, de sua infância, por fim, de si mesmo.
A oração da Ave Maria é a madeleine molhada no chá que traz consigo as lembranças
involuntárias de sua infância. É interessante notar que mais uma vez temos presente a relação
entre a religião e a memória, assim como nos poemas “Credo” e “Volta à casa paterna” (a
última estrofe tem um trecho do Pai Nosso), o que nos remete àquilo que disse Jacques Le
Goff em História e Memória (1990):

Se a memória antiga foi fortemente penetrada pela religião, o judaico-


cristianismo acrescenta algo de diverso à relação entre memória e religião,
entre o homem e Deus [cf. Meier, 1975]. Pode-se descrever o judaísmo e o
cristianismo, religiões radicadas histórica e teologicamente na história, como
“religiões de recordação” [cf. Oexle, 1976, p. 80]. E isto em diferentes
aspectos: porque atos divinos de salvação situados no passado formam o
conteúdo da fé e o objeto do culto, mas também porque o livro sagrado, por
um lado, a tradição histórica, por outro, insistem, em alguns aspectos
essenciais, na necessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental
(LE GOFF, 1990, p. 443).

Enquanto em “Credo” a oração ajudaria o eu lírico a se lembrar de sua fé, neste poema a
oração da Ave Maria suscita nele lembranças que não estão ligadas à religiosidade. São
lembranças que se entrelaçam à oração, imagens que montam o mosaico daquilo que fora a
infância do eu lírico. Este mosaico montado com verbos no pretérito imperfeito (“A tarde era
tão bela, a vida era tão pura, / as mãos de minha mãe eram tão doces,/ havia, lá no azul, um
crepúsculo de ouro... lá longe...”) dão a ideia de continuidade, de um tempo não determinado,
reforçado pelo verbo no gerúndio (“Os outros meninos, minha irmã, meus irmãos menores,
meus brinquedos, a casaria branca de minha terra, a burrinha do vigário pastando junto à
capela... lá longe...”) que não apresenta flexão de tempo, e pelos versos da última estrofe que
não possuem verbo. Somado a isso tudo, temos ainda o uso das reticências e as repetições que
atravessam todo o poema (“... cheia de graça.../...tão...tão.../ ... tão.../ .... lá longe..../ Cheia de
62

graça... bendita/ Bendita!/ ... lá longe.../ e as mãos.... sobre os meus / e as mãos... sobre o
meu... / e as.../ tão longe... tão longe...”), o que lhe confere um rimo lento, como se o eu lírico
quisesse, através de todos esses mecanismos, retardar o tempo. Contudo, o eu do poema tem
consciência de que isso é impossível, pois, ao fim de cada lembrança, ele lamenta: “lá longe”,
“tão longe”.
Quando dissemos que as lembranças suscitadas pela oração não estão ligadas à
religiosidade, isto não significa que elas não tenham ligação com a oração da Ave Maria, ao
contrário, pois percebemos na figura da mãe doce e protetora e das cores azul e dourado uma
referência à Maria, mãe de Jesus (“As mãos de minha mãe eram tão doces, / havia, lá no azul,
um crepúsculo de ouro... tão longe...”). Contudo, à medida que o poema avança, é como se o
eu lírico passasse do estado de vigília para o estado de sono, e assim as lembranças o vão
levando para outras direções. Na última estrofe, percebemos mais explicitamente essa
transição, pois as mãos do sono pousam sobre os seus olhos (“e as mãos do sono sobre os
meus olhos”), insinuando a chegada do sono leve que progride para o sono profundo quando
as mãos de sua mãe pousam sobre o seu sonho (“e as mãos de minha mãe sobre o meu
sonho”). Henri Bergson, em uma conferência feita no Instituto Geral Psicológico, traça alguns
comentários sobre o papel da memória na experiência onírica:

As lembranças que evocamos durante a vigília, por mais estranhas que


frequentemente pareçam às nossas preocupações do momento, sempre se
ligam a elas por algum aspecto. [...] as lembranças que minha memória
conserva em suas mais obscuras profundezas nela estão no estado de
fantasmas invisíveis. Elas talvez aspirem à luz; todavia não tentam voltar à
tona; elas sabem que é impossível, e que eu, ser vivente e agente, tenho mais
o que fazer do que me ocupar com elas. Mas suponham que em um dado
momento eu me desinteresse da situação presente, da ação urgente, enfim,
do que concentrava sobre um único ponto todas as atividades da memória.
Suponham, em outros termos, que eu adormeça. Então, essas lembranças
imóveis, sentindo que acabo de afastar o obstáculo, de abrir o alçapão que as
mantinha no subsolo da consciência, colocam-se em movimento. Elas se
levantam, agem, executam na noite do inconsciente uma imensa dança
macabra. E, todas em conjunto, correm para a porta que acaba de se
entreabrir. Todas elas querem passar. Elas não podem, elas são muitas. Desta
multidão de chamadas, quais serão as escolhidas? Vocês adivinharão sem
dificuldade. Há pouco, em vigília, as lembranças admitidas eram as que
podiam invocar relações de parentesco com a situação presente, com as
minhas percepções atuais. Agora, são as formas mais vagas que se desenham
a meus olhos, os sons mais indecisos que impressionam meus ouvidos, é um
toque mais indistinto que está espalhado pela superfície de meu corpo; mas
são também as sensações mais numerosas que me vêm do interior de meus
órgãos (BERGSON, 2004, p. 100, 101).
63

Bergson já havia apontado para a relação que há entre a lembrança e o sonho28, assim
como Freud e Jung observaram a presença de “restos de dia” nos sonhos, e a ciência também
passou a reconhecer o papel que tem o sono na consolidação da memória29.Ana Maria Paulino
em Jorge de Lima (1995) observa que o sono/sonho é um tema constante na poesia do autor
alagoano. Paulino inclusive usa como um exemplo, dentre outros exemplos, o poema
“Oração” e destaca a última estrofe em que “a fuga no tempo, motivada pelo sono/sonho” é
“bem expressiva” (PAULINO, 1995, p. 24). Em Jorge de Lima, as lembranças
constantemente têm essa relação com o sonho, com o fantástico, e elas se misturam de tal
maneira que já não nos é mais possível reconhecer facilmente os espaços destinados a cada
um.
Em Poemas Escolhidos (1932), temos um poema em que a religião cristã se manifesta
mais evidentemente no título, e não tanto no decorrer do poema. Em “Filho Pródigo”, temos
um eu lírico que é pessimista frente à industrialização e ao seu presente, e que procura o
refúgio no passado. Vejamos o poema:

O FILHO PRÓDIGO

Nas engrenagens das fábricas


bolem como vermes – dedos decepados de operários.
Há intestinos rotos de crianças
nos vaivéns do correame das oficinas.
A cor e a alegria das moças empregadas
dissolvem-se na algazarra monótona dos teares.
O avião comeu a saudade das mães
que a distância separou dos filhos vagabundos.
Há máquinas que cegam os adolescentes
ansiosos de ver o progresso do mundo.
Um homem teve medo de enlouquecer
perseguido pela força e pelo orgulho
das máquinas assassinas.

Cadê a luz trêmula de vela


pra alumiar o meu poema antigo?
O lirismo perdeu sua liturgia.

As lâmpadas Osram velam funebremente a poesia.


Ah! que existe uma tristeza na terra
que nem lágrimas produz
de sua esterilidade tão seca.

Eu sou um corpo distraído.

28
“As imagens passadas, reproduzidas tais e quais com todos os seus detalhes, e inclusive com sua coloração
afetiva, são as imagens do devaneio ou do sonho [...]” (BERGSON, 2010, p. 121).
29
Cf. “Sonho, memória e o reencontro de Freud com o cérebro” de Sidarta Ribeiro.
64

Bóiam os meus olhos pelas superfícies.


Mas os meus olhos correm mais perigo
do que se andassem em acrobacias contemplativas
pulando no alto céu, perto das estrelas.

Vovozinha, venho de longe,


ando há muitos séculos a pé.

Ensina-me de novo a ficar de joelhos


que já é tarde e eu quero me deitar
(LIMA, 1959, p. 331)

Comecemos nossa análise pelo título. “Filho Pródigo” faz referência à parábola bíblica
encontrada em Lucas 15: 11-32.30 Nestes versículos, Jesus conta uma parábola sobre certo
homem que tinha dois filhos; o mais jovem pediu que o pai lhe desse parte dos bens que lhe
cabia. Tendo seu pedido aceito, o filho mais jovem partiu em uma viagem para terras
distantes. Lá, gastou tudo o que possuía, se vendo obrigado a trabalhar como cuidador de
porcos. Por fim, caiu em si e decidiu voltar para a casa de seu pai, com o intuito de pedir para
ser aceito como um de seus trabalhadores. Chegando à casa paterna, o pai o recebe com
grande felicidade, fazendo uma grande festa para celebrar a volta de seu filho.
No poema em questão, podemos interpretar o eu lírico como sendo o filho mais novo da
parábola bíblica, sendo o chiqueiro a fábrica. Ele inicia o poema descrevendo a situação dos
trabalhadores nas indústrias. É uma descrição minuciosa, mas feita de uma forma pesada,
como percebemos pela escolha das palavras: “bolem como vermes”, “intestinos rotos”, “filhos
vagabundos”. Notamos nesta descrição referências à indústria (“nas engrenagens das

30
Assim vos digo que há alegria diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende.E disse: Um certo
homem tinha dois filhos; e o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte dos bens que me pertence. E ele
repartiu por eles a fazenda.E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando tudo, partiu para uma terra
longínqua, e ali desperdiçou os seus bens, vivendo dissolutamente.E, havendo ele gastado tudo, houve naquela
terra uma grande fome, e começou a padecer necessidades.E foi, e chegou-se a um dos cidadãos daquela terra, o
qual o mandou para os seus campos, a apascentar porcos.E desejava encher o seu estômago com as bolotas que
os porcos comiam, e ninguém lhe dava nada.E, tornando em si, disse: Quantos jornaleiros de meu pai têm
abundância de pão, e eu aqui pereço de fome!Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei
contra o céu e perante ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me como um dos teus jornaleiros.E,
levantando-se, foi para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima compaixão e,
correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou.E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e perante ti, e já não
sou digno de ser chamado teu filho.Mas o pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa; e vesti-lho,
e ponde-lhe um anel na mão, e alparcas nos pés; e trazei o bezerro cevado, e matai-o; e comamos, e alegremo-
nos;
Porque este meu filho estava morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado. E começaram a alegrar-se.E o seu
filho mais velho estava no campo; e quando veio, e chegou perto de casa, ouviu a música e as danças.E,
chamando um dos servos, perguntou-lhe que era aquilo.E ele lhe disse: Veio teu irmão; e teu pai matou o bezerro
cevado, porque o recebeu são e salvo.Mas ele se indignou, e não queria entrar.E saindo o pai, instava com ele.
Mas, respondendo ele, disse ao pai: Eis que te sirvo há tantos anos, sem nunca transgredir o teu mandamento, e
nunca me deste um cabrito para alegrar-me com os meus amigos; vindo, porém, este teu filho, que desperdiçou
os teus bens com as meretrizes, mataste-lhe o bezerro cevado.E ele lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e
todas as minhas coisas são tuas; mas era justo alegrarmo-nos e folgarmos, porque este teu irmão estava morto, e
reviveu; e tinha-se perdido, e achou-se (Lc. 15:11-32).
65

fábricas”, “nos vaivéns do correame das oficinas”), à guerra (“O avião comeu a saudade das
mães”) e à máquina (“Há máquinas que cegam os adolescentes”, “perseguido pela força e
pelo orgulho/ das máquinas assassinas”), porém com um olhar de quem está insatisfeito.
Em “Filho Pródigo”, temos o sentimento de decepção frente ao progresso latente em
toda a primeira estrofe. O progresso, ideia tão amplamente difundida desde o século XIX até o
início do século XX, enfrenta o seu descredito depois da 1ª Grande Guerra e é intensificado
com a crise da Bolsa em 1929, a disseminação de regimes fascista e a ocorrência de outras
guerras (guerra civil na Espanha, guerra Sino-Japonesa...):

Depois de 1929 vem o afundamento, o fim da prosperidade, e crise industrial


segue depressa a crise financeira. Donde a manifestação de perigosas
reações: a desvalorização da razão e da ciência, a ressurreição do
espiritualismo, as utopias tecnológicas (prelúdio à tecnocracia), as utopias
artesanais (prelúdio ao poujadismo e ao qualunquismo) o pessimismo
antiprogressista dos biólogos como Charles Nicolle e Alexis Carrel. Para
Nicolle, por exemplo, o progresso, aquilo a que chamamos progresso, é um
rio que arrasta as suas margens: o homem não progride (LE GOFF, 1990, p.
268, 269).

Em “Filho Pródigo”, diante de um progresso que em nada fez o homem progredir,


gerando apenas o pessimismo e a morte, o eu lírico recorre ao espiritualismo, a sua avozinha
para poder enfim descansar. Nesse poema, o que o progresso traz nas engrenagens das
fábricas não é a euforia e a algazarra do novo, mas sim os dedos dos operários, os intestinos
de crianças, a juventude das moças, a morte dos jovens e o medo. O progresso não matou
somente o homem, mas também a poesia, que agora, velada pela luz artificial das lâmpadas,
não possui mais nada de belo para falar. A poesia está morta por causa daquilo que cerca os
homens. Não há mais no mundo emoções, há somente a secura, a tristeza (“Ah! que existe
uma tristeza na terra/ que nem lágrimas produz/ de sua esterilidade tão seca”). É por isso que
o eu do poema procura o passado, porque o presente nada tem de poético a lhe oferecer.
Diante desse contexto, o eu lírico se vê como “um corpo distraído”, que não procura se
aprofundar em nada que o envolve, porém mesmo tendo esta postura diante daquilo que o
cerca, o eu do poema afirma que “seus olhos correm mais perigo do que se andasse em
acrobacias contemplativas pulando no alto céu”, em que aqueles que andavam entre “estrelas”
e o “céu” podem nos remeter aos sonhadores, aos que andam distraídos, sem cuidados e
suscetíveis aos infortúnios da vida.
O eu lírico procura pelo passado, contudo, a sua busca pelo passado, como vimos, não
faz com ele se esqueça do acontece em seu presente. Isto nos lembra o que Jean-Pierre
Vernant (1990) afirma em Mito e pensamento entre os gregos: “Em nenhum momento, a
66

volta ao longo do tempo nos faz omitir as realidades atuais” (VERNANT, 1990, p. 143).
Porém, quando eu lírico deseja o passado, é porque o presente já não lhe fascina, como afirma
Bergson:

Para evocar o passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da


ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar.
Talvez apenas o homem seja capaz de um esforço desse tipo. Também o
passado que remontamos deste modo é escorregadio, sempre a ponto de nos
escapar, como se essa memória regressiva fosse contrariada pela outra
memória, mais natural, cujo movimento para diante nos leva a agir e a viver
(BERGSON, 2010, p. 90).

É isso que o eu lírico de “Filho Pródigo” deseja, ele quer sonhar. No momento em que
ele, aos poucos, vai deixando de ter seus olhos tão colados ao presente, o poema vai tomando
uma outra forma, a escolha das palavras já não é tão dura, e a mesma aura de sonho que
sentimos em “Oração”, sentimos nesse poema:

Bóiam os meus olhos pelas superfícies.


Mas os meus olhos correm mais perigo
do que se andassem em acrobacias contemplativas
pulando no alto céu, perto das estrelas.

Em “Filho Pródigo”, assim como em “Oração”, as lembranças vêm do outro, e são


sempre o refúgio que o eu lírico procura para fugir das dificuldades do presente. Apesar de
fazer referência ao cristianismo apenas em seu título, o poema “Filho Pródigo” também nos
permite uma reflexão acerca do papel da religião frente à memória, já que a parábola do filho
pródigo é uma parábola sobre o regresso, sobre a volta à casa paterna, o que nos remete ao
poema que analisamos no início desse capítulo. A religião cristã nesses poemas de Jorge de
Lima sempre aponta para o passado, para a família e principalmente para a infância.
67

3. LUGAR DE MEMÓRIA... MEMÓRIAS DE UM LUGAR


Grande é a força da
memória que reside no
interior dos locais
(Cícero)

No capítulo anterior, vimos poemas em que as lembranças encontram-se associadas à


casa e à família do eu lírico, contudo a memória nas obras Poemas, Novos Poemas e Poemas
Escolhidos não se encontram apenas ligadas ao ambiente da casa ou à família, há também
poemas em que percebemos que as lembranças do eu lírico ocorrem do lado de fora da casa e
que são vivenciadas por ele e por estranhos, por pessoas que não fazem parte do seu círculo
consanguíneo.
Este capítulo pretende, então, analisar os poemas em que as lembranças estão
localizadas do lado de fora da casa, observando qual a diferença existente entre as lembranças
da casa e de seu interior, daquelas que surgem fora dela, em outros espaços. Como
pretendemos observar os recursos estilísticos utilizados pelo escritor também se diferenciam
daqueles utilizados nos poemas em que a memória é mais voltada para o ambiente familiar.

3.1. Serra da Barriga: lugar de memória

Sede da “República dos Palmares”, a Serra da Barriga foi o local escolhido por escravos
fugidos para construir e habitar diversos povoamentos (mocambos), sendo esse tipo de
organização social conhecida como “quilombo”. O Quilombo dos Palmares conheceu o seu
auge na metade do século XVII, ainda no período do Brasil Colônia, e teve como último líder
Zumbi que foi morto pela ação de Domingos Jorge Velho em uma investida contra Palmares,
ordenada pelo então governador e Capitão-general Caetano de Melo e Castro. O sociólogo
Gilberto Freyre descreve o Quilombo dos Palmares da seguinte maneira:

Entre os negros dos Palmares o capitão holandês Blaer encontrou tanta “roça
abundante”, tanto milho, tanta touceira de banana – além da cana-de-açúcar,
do feijão, da mandioca e das muitas palmeiras –, que a paisagem contrastava
com a dos engenhos: só canavial e resto de mata. A dos Palmares tinha outra
variedade e outra alegria (FREYRE, 1951, p. 230).

O Quilombo dos Palmares se destacava na paisagem que o circundava, não só por se


localizar geograficamente em um ponto mais alto, mas também por seu tipo de cultivo e por
68

sua organização social. Manuel Querino assinala, brevemente, este episódio crucial na
historiografia brasileira:

De quantos martírios aqui acabrunharam o coração da raça africana, teve


esta, no entanto, um momento de expansivo desafogo, quando desertando os
engenhos e fazendas, os escravos constituíram a confederação de Palmares,
em defesa de sua liberdade. A Roma antiga, que tantos povos escravizou, viu
um dia, estupefata e aterrada, um Spártaco à testa de um exército de
escravos. No Brasil a escravidão também impeliu o africano a suas revoltas e
ao seu desforço. Lá foi a guerra servil com todos os seus horrores; em
Palmares, os elementos aqui congregados não tiveram por alvo a vingança;
bem ao contrário, o seu objetivo foi escapar à tirania e viver em liberdade,
nas mais legítimas aspirações do homem [...].( QUERINO, 1938, p. 149).

Esse destaque fez com que mesmo tendo passado mais de duzentos anos entre o
Quilombo dos Palmares e a vida e a obra de Jorge Matheus de Lima, o que aconteceu na Serra
da Barriga fosse matéria para muitos poemas limianos31, como é o caso do poema abaixo,
presente na obra Novos Poemas, cuja principal característica é a imaginação :

SERRA DA BARRIGA

Serra da Barriga!
Barriga de negra-mina!
As outras montanhas se cobrem de neve,
de noiva, de nuvem, de verde!
E tu, de Loanda, de panos-da-costa,
de argolas, de contas, de quilombos!
Serra da Barriga!
Te vejo da casa em que nasci.
Que medo danado de negro fujão!

Serra da Barriga, buchuda, redonda,


do jeito de mama, de anca, de ventre de negra!

31
Em entrevista a Homero Sena, Jorge de Lima chega inclusive a afirmar que foi após uma visita à Serra da
Barriga que ele sentiu ser tocado pela primeira vez pela poesia: “Sem qualquer exagero, posso dizer que naquele
instante pela primeira vez fui tocado pela poesia. Todo o imenso panorama que descortinei então – o Rio
Mundaú, que segundo a lenda nascera das lágrimas da Jurema, de um lado a Serra dos Macacos, do outro a
planície do Jatobá, os campos verdes da Terra-lavada, o Fundão, a Tobiba, os banguês, a Great-Western, as
olarias, e lá longe a igreja da minha padroeira e o sobrado em que eu nascera, tudo aquilo entrou pelos meus
olhos deslumbrados de menino e nunca mais saiu de dentro de mim. Tanto assim que muitos anos depois, já
homem feito, foram esses os temas que fui buscar para alguns de meus poemas da fase que poderia chamar
‘nordestina’ da minha poesia” (LIMA, 1959, p. 169-170).
Povina Cavalcanti em Vida e obra de Jorge de Lima também fala sobre a influência do Quilombo dos Palmares
no imaginário poético do autor: “Essa noites de União, que Jorge prefere sempre chamar de Madalena, fizeram o
seu aprendizado poético. Essas noites da festa da padroeira, com a riqueza folclórica do seu leilão das prendas,
os Quilombos
‘Folga negro
Branco não vem cá!
Si vinhé,
Pau há de leva!’
tudo isso virou poesia em Jorge, numa transfiguração de palavras e ritmos, de grandeza e mistério”
(CAVALCANTI, 1993, p. 18).
69

Mundaú te lambeu! Mundaú te lambeu!


Cadê teus bumbuns, teus sambas, teus jongos?
Serra da Barriga,
Serra da Barriga, as tuas noites de mandinga,
cheirando a maconha, cheirando a liamba?
Os teus meios-dias: tibum nos peraus!
Tibum nas lagoas!

Pixains que saem secos, cobrindo


sovacos de sucupira,
barrigas de baraúna!
Mundaú te lambeu! Mundaú te lambeu!
De noite: tantãs, curros-curros
e bumbas, batuques e baques!
E bumbas!
E cucas: ô ô!

E bantos: ê ê!
Aqui não há cangas, nem troncos, nem banzos!
Aqui é Zumbi!
Barriga da África! Serra da minha terra!
Te vejo bulindo, mexendo, gozando Zumbi!
Depois, minha serra, tu desabando, caindo,
levando nos braços Zumbi!
(LIMA, 1959, p.294)

O poema acima tem,como núcleo, a Serra Barriga como o seu núcleo, o eu lírico parece
perde-se na sua contemplação. O poema é sobre e as lembranças que a Serra traz, não só as
lembranças da infância do eu lírico, mas também lembranças ligadas a elementos da cultura
africana, como, por exemplo, o próprio vestuário das mulheres africanas (“E tu, de Loanda, de
panos-da-costa,/ de argolas, de contas, de quilombos!”), e também a história que está ligada à
Serra (“Aqui não há cangas, nem troncos, nem banzos!/ Aqui é Zumbi!”), contudo, em
momento algum o eu lírico cita o Quilombo dos Palmares. A presença dessa quilombo
aparece de maneira mais precisa quando o eu do poema fala sobre Zumbi, um dos líderes de
Palmares, como já tínhamos dito anteriormente.
A história de Palmares se mistura à história do eu lírico logo em sua primeira estrofe
(“Serra da Barriga!/ Te vejo da casa em que nasci./ Que medo danado de negro fujão!”). O
“medo danado de negro fujão” mostra como a distância temporal entre o Quilombo dos
Palmares e o eu lírico não foi o suficiente para fazer morrer a presença do quilombo naquele
local. Como evidentemente, o acontecimento do Quilombo dos Palmares (séculos XVI-XVII)
não é contemporâneo do poeta alagoano, o “medo danado de negro fujão” é um sentimento
herdado certamente de histórias contadas por familiares, é uma lembrança herdada. Michael
Pollak (1992) afirma que a memória é constituída primeiramente por acontecimentos vividos
70

pessoalmente pela pessoa, e em segundo lugar estariam os acontecimentos “vividos por


tabela” ou “herdados”:

Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por


tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à
qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem
sempre participou mas que, no imaginário, tomaram também relevo que, no
fim das contas é quase impossível que ela consiga saber se participou ou
não. [...] É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou
da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de
identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa
memória quase que herdada (POLLAK, 1992, p. 2).

Diante de “Serra da Barriga”, temos a impressão de que se trata de uma memória quase
que herdada, mas que foi herdada de forma impactante, pois que o que aconteceu na Serra da
Barriga teve tamanha identificação com o eu lírico a ponto de mesmo em sua infância ele ter
medo daquilo que não existia há anos (“Que medo danado de negro fujão!”) e depois, já
adulto, é o Quilombo dos Palmares que ele vê naquela serra, e não a sua vegetação, mas sim a
sua história:

Serra da Barriga, buchuda, redonda,


do jeito de mama, de anca, de ventre de negra!
Mundaú te lambeu! Mundaú te lambeu!
Cadê teus bumbuns, teus sambas, teus jongos?
Serra da Barriga,
Serra da Barriga, as tuas noites de mandinga,
cheirando a maconha, cheirando a liamba?
Os teus meios-dias: tibum nos peraus!
Tibum nas lagoas!

Em “Serra da Barriga”, o que aconteceu ainda no século XVII está tão ligado ao eu
lírico que não há nada no poema que nos permita negar que ele não foi contemporâneo a
Zumbi, pois se não soubéssemos anteriormente que Jorge de Lima nasceu quase dois séculos
depois do último líder de Palmares, não veríamos evidências nenhuma disso no poema, pois
mesmo os verbos em “Serra da Barriga” estão, em sua maioria, no presente do indicativo e no
gerúndio, o que não nos permite sentir que se trata de algo que aconteceu há tantos anos atrás.
A lembrança herdada do episódio histórico do Quilombo dos Palmares é sentida em
todo o poema, mesmo não tendo o seu nome citado nenhuma vez. O silenciamento em relação
ao Quilombo dos Palmares pode ser explicado se interpretarmos que, para o eu lírico, não
existe a necessidade de citar o nome “Quilombo dos Palmares”, pelo fato da presença desse
quilombo estar enraizada na própria Serra da Barriga, visto que enquanto as outras montanhas
se cobrem de elementos da natureza (“de neve, de noiva, de nuvem, de verde!”), a Serra da
71

Barriga se cobre de história, de “Loanda, de panos-da-costa, de argolas, de contas, de


quilombos!”, elementos que não existem mais fisicamente na Serra da Barriga, mas que
sobreviveram ao tempo e se mantém presentes através da memória.
Em “Serra da Barriga” o que suscita as memórias não são os artefatos que restaram do
Quilombo dos Palmares, mas o lugar, a própria Serra da Barriga. Na obra Espaços da
Recordação (2011), a autora Aleida Assmann dedica um capítulo à memória dos lugares, e
nesse capítulo, ela discute o pensamento de Goethe acerca do “capital simbólico” que residiria
no solo, e não nas construções:

Tal como o capital financeiro, também o capital simbólico não reside no


edifício, mas no solo. Para descobrir esse capital no solo necessita-se de um
exercício especial. Goethe descreve como ele, passo a passo e
sistematicamente, tenta aguçar sua suscetibilidade a locais simbólicos. Ele
inicia com os locais com que estabeleceu uma relação estreita, ou seja, os
locais que lhe suscitam uma “recordação repleta de amor”. Pouco a pouco
ele pretende passar do “notável” para o “significativo”, de modo que
diminua a parcela de lembranças pessoais e se fortaleça a aura própria do
local (ASSMANN, 2011, p. 319).

A citação acima se encaixa naquilo que encontramos em “Serra da Barriga”, visto que o
eu lírico não tem mais o “edifício” (neste caso, o Quilombo dos Palmares), restando apenas o
“solo” (a Serra da Barriga), e é o solo que guarda o capital simbólico de tudo o que aconteceu
lá. Em “Serra da Barriga”, o eu lírico passa do “notável” para o “significativo”, quando
diminui as suas lembranças pessoais que estão apenas, ao menos explicitamente, na primeira
estrofe do poema (“Te vejo da casa em que nasci.”) para fortalecer a aura própria do local
através de uma descrição personificada da serra (“Serra da Barriga, buchuda, redonda/ do jeito
de mama, de anca, de ventre de negra!/ [...] Pixains que saem secos, cobrindo/ sovacos de
sucupira/ barrigas de baraúna!”), repleta de movimentos (“Cadê teus bumbuns, teus sambas,
teus jongos?”) e sonoridades32, em que a aura própria do local é o Quilombo dos Palmares e é
Zumbi.
Ainda, em sua obra, Assmann fala de uma possível memória dos locais, memória que
seria capaz de ultrapassar a memória humana:

Quem fala da “memória dos locais” serve-se de uma formulação que é tão
confortável quanto sugestiva. A expressão é confortável porque deixa em

32
A sonoridade de “Serra da Barriga” encontra-se nas repetições que povoam todo o poema, seja a repetição de
palavras (“Serra da Barriga”; “Mundaú te lambeu”; “As outras montanhas se cobrem de neve / de noiva, de
nuvem, de verde! / E tu, de Loanda, de panos-da-costa, / de argolas, de contas, de quilombos!”; “Cadê teus
bumbuns, teus sambas, teus jongos?”; “e bumbas, batuques e baques! / E bumbas! / E cucas: ô ô! // E bantos: ê
ê!”) ou pela recorrência de um mesmo som (“Te vejo bulindo, mexendo, gozando Zumbi! / Depois, minha serra,
tu desabando, caindo, / levando nos braços Zumbi!”).
72

aberto tratar-se de um genetivus objectivus, uma memória que se recorda dos


locais, ou de um genetivus subjectivus, isto é, uma memória que está por si
só situada nos locais. E a expressão é sugestiva porque aponta para a
possibilidade de que os locais possam tornar-se sujeitos, portadores da
recordação e possivelmente dotados de uma memória que ultrapassa
amplamente a memória dos seres humanos (ASSMANN, 2011, p. 317).

Essa memória dos locais é sentida em “Serra da Barriga”, visto que diante desse poema,
temos a impressão de que a Serra da Barriga é a guardiã de sua própria memória, sendo as
lembranças do Quilombo e de Zumbi suscitadas pela própria Serra e não pelo eu lírico, visto
que em momento algum o eu lírico diz “eu me lembro”, “eu me recordo”. É como se diante da
Serra estivesse sempre passando um “vídeo” em que tudo o que aconteceu naquele local é
exibido infinitamente, impressão que é sentida mais intensamente na última estrofe do poema,
estrofe que parece resumir toda a história e importância da Serra da Barriga, mostrando a sua
proposta de liberdade (“Aqui não há cangas, nem troncos, nem banzos! / Aqui é Zumbi!”),
sua origem (“Barriga da África! Serra da minha terra!”), seu auge (“Te vejo bulindo,
mexendo, gozando Zumbi!”) e seu fim (“Depois, minha serra, tu desabando, caindo, / levando
nos braços Zumbi!”).
Ainda citando Assmann, a autora propõe que a memória dos locais parece ter a
capacidade de prolongar a duração de uma recordação, como podemos ver na citação abaixo:

Mesmo quando os locais não têm em si uma memória imanente, ainda assim
fazem parte da construção de espaços culturais da recordação muito
significativos. E não apenas porque solidificam e validam a recordação, na
medida em que a ancoram no chão, mas também por corporificarem uma
continuidade da duração que supera a recordação relativamente breve dos
indivíduos, época e também culturas, que está concretizada em artefatos
(ASSMANN, 2011, p. 318 – grifo nosso).

A “Serra da Barriga” ancora no chão a recordação de Zumbi e do Quilombo dos


Palmares, dando continuidade à história que está ligada aos dois. Os verbos no gerúndio
sugerem essa continuidade, já que o gerúndio é uma forma nominal em que não existe a
marcação de tempo, levando-nos a pensar que se trata de uma ação realizada eternamente no
presente. Nesse poema, a presença do passado é marcada através de verbos que não possuem
marcação de tempo, permitindo que eles ajam tal qual as lembranças: um passado que retorna
como se fosse o presente.
73

3.2. Caminhos de Lembranças

O poema “G.W.B.R.” trata sobre a visão do eu lírico em uma viagem de trem pela
Great Western of Brazil Railway (G.W.B.R.), companhia férrea que foi responsável pelo
transporte de viajantes dos estados da Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagoas
no período de 1903 à 1930. Durante sua viagem, o eu lírico relata não só a paisagem que ele
vê através da janela do trem, mas também as pessoas que viajam com ele ou que compõem a
paisagem do percurso. “G.W.B.R.” é uma viagem pelo Nordeste, suas paisagens e sua gente.
Leiamos primeiro o poema:

G.W.B.R.

Vejo através da janela do meu trem


os domingos das cidadezinhas,
com meninos e moças,
e caixeiros engomados que vêm olhar
os passageiros empoeirados dos vagons.
Esta estrada de ferro Great Western
feita de encomenda pra o Nordeste
é a mais pitoresca do universo,
com suas balduínas sonolentas
e seus carrinhos de caixa de fósforos marca olho.
Houve um tempo em que os rebanhos se assustavam aos apitos
desses trens;
hoje os passarinhos olham das linhas ribeirinhas do telégrafo,
o pitoresco que ela tem,
aos vaivéns, aos arreganhos,
rangendo e ringindo interminavelmente.

Devo fazer um poema em louvor dessa estrada,


com todos os bemóis de minha alma lírica,
porque ela, na minha inocência de menino,
foi a minha primeira mestra de paisagem.
Ah ! a paisagem da linha : ─
uma casinha branca,
uma cabocla à janela,
um pedaço de mata,
as montanhas,
o rio,
e as manhãs,
e os crepúsculos...
e o meu trenzinho romântico indo devagarinho
para que o poeta provinciano
visse o cair da tarde,
e visse a paisagem passando. . .
Nas gares há meninas bonitas,
mocinhas amarelas,
matutos, caixeiros fumadores de cigarros da Caxias.
E à languidez quente da hora,
74

noivam cães pelas ruas,


potros perseguem éguas nos campos,
e a mulher proibida, que não é pura como os animais,
vem à soleira da choupana
ar um adeus ao maquinista que ela nunca há de beijar.
O conferente é zangadíssimo,
mas o condutor, de bigodes parnasianos
e olhos caídos,
que cultiva a metáfora intuitiva e os adjetivos rubicundos
é bonzinho:
não é preciso comprar bilhetes,
basta qualquer pelega, amabilidades,
conversas, uma pitada de torrado,
e a gente pode ir a Natal,
ver o Luís da Câmara Cascudo,
ou à Paraíba conversar com Ademar Vidal.
Quando o trem para,
o condutor vai conversar com as professoras
dos grupos escolares,
e os aleijados vêm aos vagons mendigar;
entram homens sem nariz dos cartazes de Elixir,
mulheres sem manga,
meninos sem pai.
Pobrezinhos!
Uns vêm vestidos de feridas,
outros expõem ventres inchados,
colunas vertebradas de clown,
beiços de boxeadores vencidos no último round . . .
─ Louvado N. S. Jesus Cristo;
─ Louvado seja!
─ Perdoe irmão!
─ Perdão de Deus!
As moscas fazem uma manifestação de apreço aos pobrezinhos.
O condutor quer dar uma esmola:
não tem troco;
e uma menina do Recife não vai almoçar
porque olhou o homem sem nariz.
Coitado!

Glicério!
Meia hora para o almoço.
─ É a dezena do macaco !
─ 100 contos!
─ Loteria de Minas Gerá.
Pretas oferecem tabuleiros de comidas boas :
manuês,
sequilhos,
alfenins,
midobim,
caldo de cana,
broas.

Há um calor que até parece febre de maleita.


Passageiros vão ao restaurante
tomar cerveja gelada
75

e o trenzinho toma água


pra poder vencer a serra do Cadeado.

Passam os últimos quintais,


as últimas meninas,
os últimos vendedores de pão doce,
os últimos mulungus dos cercados,
e agora é um trecho de mato,
imbaúbas,
canafístulas,
gravatás,
ouricuris,
e aqui e acolá canaviais,
canaviais,
canaviais,
a doçura do Brasil,
a embriaguez do Brasil.
E lá vêm usinas,
engenhos,
engenhocas,
bolandeiras,
plantações de mandioca e fumo,
e aqui e acolá,
algodoais,
algodoais,
que parecem velhinhas de cabelos brancos
tecendo o tecido barato
para o pobre vestir.

Vem da 2ª classe um repinicado de violas.


A 2ª classe é divertida:
cantigas,
choros,
pés descalços,
mãos calosas.
A segunda classe compra breves,
orações, de S. Sebastião
e S. Pulquério contra a esipra,
Sonhos de Nossa Senhora,
anunciações pra defumar a casa,
Meninos-Deus contra o sol e o mal salgado;
bentinhos,
a História Conselheira de Padrinhos Padre Cícero . . .
A 2ª classe vai em peso
embarcar no Lóide pras lavouras de S. Paulo.
Laje do Canhoto:
(belo nome !)
Aqui há um massapê para balas de bodoque
e que é bom de se comer.
Canaviais,
algodoais,
casas de palha,
carrapateiras,
ninhos de xexéu,
velhas fazendo renda,
76

caboclinhas.
Olhos que seguem o trem . . .
Despedidas . . .
─ Deus te leve !
─ Nosso Senhor te acompanhe.
─ Meu filho !
─ Minha mãe !
Na 1ª coronéis discutem tarifas e direitos.
Negociantes queixam-se dos impostos,
Caixeiros-viajantes contam aventuras da Rua das Flores e
dos sete pecados mortais;
e as meninas namoram
com os estudantes de Direito
que vão passar as férias com os papais.
Sítios,
fazendas,
cercados,
terreiros,
moleques,
pinhões,
vales,
serranias,
queimadas,
canaviais,
banguês.
Estações,
cidades
e cidades
todas iguaizinhas com
barbearias,
feiras,
padarias,
intendências municipais,
todas elas tão iguais,
com os mesmos telegrafistas avariados,
os mesmos chefes fleumáticos,
os mesmos moleques que agridem à procura de
carrego.
Hotéis familiares,
bilhares falidos,
igrejinhas pobres,
cemitérios cheios de mato,
tudo igual,
tamancos,
chinelos,
gaforinhas,
trocadores de cavalo,
cangaceiros,
clarinetos,
panelas de barro. ─
Basta de nomes que o conferente está zangado.
“ ─ Vamos olhar um pedaço de paisagem.”
“ ─ O trem vai atrasado.”
“─ Como sempre toda a viagem.”
Mais adiante apita.
77

“─ É um cavalo na linha !”
“─ Não é ! ─ diz o condutor,”
“é uma curva fechada.”
A gente olha:
não é nada !
Foi o maquinista que chamou uma menina da margem.
Ela ainda conhece o apito.
Cinco horas da tarde.
Arde nos céus o crepúsculo.
Há em tudo um sossego bonito,
e o rio encontrou o trem.
O rio é mais ligeiro do que ele.
Parece uma cobra
que quisesse devorar um mochozinho.
O mocó foge da cobra,
entra no mato,
sobe ofegando nas rampas,
corre nos planos;
o rio desce as encostas,
pula nas rochas,
geme nas grotas,
e quando o trem cai em si
lá vai o rio na frente.
De repente passa debaixo dos carros,
entra debaixo das pontes,
contorna serras e montes,
e lá vai à frente da máquina.
O trem olha,
e escorrega,
vai devagar, com medo.

Vamos dar uma caninha ao maquinista !


O conferente é contra a velocidade.
O trem arranca
O maquinista baixou a lavanca a 4 pontos.
Desce um luar em Utinga, Satuba, Fernão Velho.
A cobra espelha o luar.
E o trem foge,
pula nas pontes,
apita,
escorrega nos trilhos.

Lagoa do Norte !

A cobra vai beber água.


Fernão Velho !
Bebedouro !
Maceió !
Great Western of Brazil Railway
feita de encomenda pra o Nordeste,
minha primeira viagem deslumbrada !
Ferrugem. Fumaça. Meus brinquedos. Pó.
(LIMA, 1959, p. 242-248)
78

“G.W.B.R.” é um poema que mimetiza tamanho da viagem de trem em que se é


possível conhecer não só a paisagem e a vegetação do Nordeste:

e agora um trecho de mato,


imbaúbas,
canafístulas,
gravatás,
ouricuris,
e aqui e acolá canaviais,
canaviais,
canaviais

Mas também a população nordestina, sejam os pobres:

e os aleijados vêm aos vagons mendigar,


entram homens sem nariz dos cartazes de Elixir,
mulheres sem manga,
meninos sem pai.
Pobrezinhos!
Uns vêm vestidos de feridas,
outros expõem ventres inchados,
colunas vertebradas de clow,
beiços de boxeadores vencidos no último round..

Ou sejam os ricos:

Na 1ª coronéis discutem tarifas e direitos.


Negociantes queixam-se dos impostos,
Caixeiros-viajantes contam aventuras da Rua das Flores e
dos sete pecados mortais;
e as meninas namoram
com os estudantes de Direito
que vão passar as férias com os papais

Assim como religiosidade desse povo:

A segunda classe compra breves,


orações, de S. Sebastião
e S. Pulquério contra a esipra,
Sonhos de Nossa Senhora,
anunciações pra defumar a casa,
Meninos-Deus contra o sol e o mal salgado;
bentinhos,
a História Conselheira de Padrinho Padre Cícero...

As cidades tão iguais em eles que habitam:

cidades
e cidades
todas iguaizinhas com
barbearias
79

feiras,
padarias,
intendências municipais,
todas elas tão iguais,
com os mesmos telegrafistas avariados,
os mesmo chefes fleumáticos,
os mesmos moleques que agridem à procura de carrego

E a sua língua: “aos vaivéns, aos arreganhos”, “ – Loteria de Minas Gerá”, “Há um
calor que até parece febre de maleita”. É, enfim, uma viagem toda ela cheia de elementos
pertencentes à cultura nordestina.
Nesse poema, temos a visão do eu lírico sobre um percurso feito pela companhia férrea
inglesa, Great Western of Brazil Railway, G.W.B.R., instalada em 1872, cujas iniciais dão
título ao poema. Essa ideia de que se trata da visão do eu do poema já está marcada no
primeiro verso: “Vejo através da janela no meu trem”, e a partir daí temos a impressão de que
também vemos toda aquela viagem, mas através das lentes do eu lírico. O visual também é
marcado durante todo o poema pela sua disposição gráfica, visto que os versos não alinhados
parecem simular a sinuosidade da viagem de trem, repleto de curvas e movimentos.
Outro aspecto formal que reforça o recurso visual que há nesse poema é a forte
recorrência de frases nominais, pouco comum nos poemas que estudamos no capítulo
anterior, como podemos ver nos trechos abaixo:

[...]

Ah ! a paisagem da linha : ─
uma casinha branca,
uma cabocla à janela,
um pedaço de mata,
as montanhas,
o rio,
e as manhãs,
e os crepúsculos...
[...]

Meia hora para o almoço.


[...]

Sítios,
fazendas,
cercados,
terreiros,
moleques,
pinhões,
vales,
serranias,
queimadas,
canaviais,
80

banguês.
[...]
Hotéis familiares,
bilhares falidos,
igrejinhas pobres,
cemitérios cheios de mato,
tudo igual,
tamancos,
chinelos,
gaforinhas,
trocadores de cavalo,
cangaceiros,
clarinetos,
panelas de barro. –
[...]

Lagoa do Norte!

[...]
Fernão Velho!
Bebedouro!
Maceió!
[...]
Ferrugem. Fumaça. Meus brinquedos. Pó.

Nos trechos acima, devido à ausência de verbos, o que temos é apenas uma sucessão de
substantivos (alguns vezes de adjetivos), e geralmente os substantivos estão separados,
estando cada um em um verso. É certo que não existe uma frase totalmente nominal, já que
alguns gramáticos propõem que em frases nominais o verbo está subentendido, contudo, nesse
poema em que há uma opção pela frase nominal, percebemos que é porque talvez houve o
desejo de se valorizar o substantivo (no caso, a imagem) em detrimento do verbo (ou seja, da
ação). A imagem estática, ao invés do movimento, uma sucessão de quadros.
Há também um trecho do poema, que já citamos anteriormente, em que percebemos o
recuso imagético através de outro recurso:

Ah! A paisagem da linha: –


uma casinha branca,
uma cabloca à janela,
um pedaço de mata,
as montanhas,
o rio,
e as manhãs,
e os crepúsculos...

No trecho acima, a “paisagem da linha” é marcada pelo sinal gráfico de travessão ( – ) e


em seguida essa paisagem se transforma na sucessão de cenas que se encontram isoladas em
cada verso, como se fossem frames de um filme que passa na janela (que nesse caso
81

poderíamos chamar de “tela” que “recorta” a cena) do eu lírico. Esses frames estão presentes
em todo o poema.
A ideia de que a janela pela qual eu lírico vê a sua viagem de trem se assemelha à tela
do cinema se dá porque durante todo o poema podemos perceber o uso do recurso da
montagem, recurso comum à sétima arte. Os frames que comentamos anteriormente seriam
exatamente a presença de trechos que se sobrepõem uns aos outros, tal como as cenas de um
filme. Contudo, seria possível afirmar que um poema utiliza o recurso da montagem, já que
este recurso é típico do cinema? Para o teórico Modesto Carone Netto (1974) é possível
pensar a técnica da montagem na literatura, como podemos ler na citação abaixo:

O que valia exclusivamente para o cinema, contudo, passou a ser aplicado no


estudo da literatura, mormente quando se tentou descrever uma técnica
emergente nas modalidades contemporâneas de representação, onde o
fragmento passou a inesperado primeiro plano nas formas de elaboração
literária. Nesse caso, o dicionário especializado informa que a designação foi
transposta para o romance, a poesia e à peça de teatro com o objetivo de se
dar um nome à justaposição inusitada (“estranhante”) não só de níveis de
realidade, como também de palavras, pensamentos e frases de procedências
diferentes (NETTO, 1974, p. 102).

Carone Netto propõe, então, que a montagem é uma técnica utilizada por todos os
artistas, tanto os cineastas quanto os poetas, romancistas, teatrólogos, pintores... desde que
eles visem sobrepor, justapor as palavras, pensamentos, frases, imagens de uma maneira
inusitada. Inclusive, Modesto Carone afirma que a montagem é anterior ao cinema, pois ela
abarca as tentativas do artista em dominar a realidade: “A montagem (este ‘Abre-te, Sésamo’
da estética) resume e define todos os esforços realizados durante séculos pelos artistas para
dominar a realidade, para apropriar-se dela na totalidade de suas manifestações” (Ibidem,
1974, p. 106).
Mas, como funciona o método da montagem? Para Carone Netto, a montagem consiste
em uma sequência de imagens e cenas individuais em situações espaciotemporais diferentes,
não estando vinculadas por relações objetivas de ação ou pensamento (NETTO, p. 102).
Porém, essa definição de montagem mais parece se aplicar ao cinema do que à literatura.
Carone, então, explica da seguinte maneira, a partir de seu estudo sobre a poesia de Georg
Trakl (1887-1914), como funcionaria a montagem na poesia:

[...] o conceito de montagem como uma modalidade específica de articulação


de signos é tão válido para o cinema como para a poesia. Acresce o fato de
que as representações verbais, ou melhor, as metáforas de Trakl, são
essencialmente visuais – “fanopéia”, segundo Erza Pound – e, como tal,
dispensam armações silogísticas. À justaposição dessas representações de
82

nítida remessa visual, no corpo do poema, presta-se, a nosso ver


adequadamente, a [sic] noção aqui proposta de montagem, principalmente
quando se recorda que este processo pode ser pensado como a “ideia” que
nasce da junção de fragmentos (NETTO, 1974, p. 108).

Ressalvadas as diferenças estilísticas, as considerações de Carone sobre a montagem na


poesia de Trakl podem, de certo modo, ser aplicadas ao poema “G.W.B.R.”, pois nesse poema
temos também a proposta de montagem já que o eu lírico justapõe fragmentos ao juntar as
lembranças de sua viagem de trem. As lembranças do eu lírico não são apenas fragmentos
pelo fato de o eu lírico não se prolongar demasiadamente na descrição das imagens, passando
de uma “cena” a outra de maneira rápida; mas também porque esses fragmentos de memória
se dispõem graficamente em versos curtos, tendo grande recorrência ao enjambement, o que
torna a leitura truncada, fragmentada.
A montagem caracteriza-se, pois, por sua fragmentação, por ser uma “ideia de que nasce
da junção de fragmentos” (Ibidem, p. 108), assim como é o poema “G.W.B.R.” uma junção
de fragmentos, junção de imagens, junção de lembranças; e da mesma maneira é a memória.
O discurso memorialístico utiliza o procedimento de montagem, pois como afirma Riobaldo
no romance Grande Sertão: Veredas (1976): “A lembrança da vida da gente se guarda em
trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não
se misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância”
(ROSA, 1976, p. 98). Ou seja, as lembranças importantes são trazidas à tona de maneira
descontínua, unindo-se os pedaços daquilo que se conseguiu lembrar.
Anteriormente demonstramos a visualidade que existe em “G.W.B.R.”. A presença
marcante do visual nesse poema é importante, quando relacionamos o visual com a memória,
visto que para Paul Ricoeur (2007), a representação do passado só é possível se for através de
uma imagem: “Deve haver, na experiência viva da memória, um rastro irredutível que
explique a existência da confusão comprovada pela imagem-lembrança. Parece, mesmo, que a
volta da lembrança pode fazer-se somente no modo do tornar-se-imagem” (RICOEUR, 2007,
p. 26)
A afirmativa de Paul Ricoeur acerca da necessidade da imagem para a volta da
lembrança nos auxilia a melhor entender o último verso de “G.W.B.R.”: “Ferrugem. Fumaça.
Meus brinquedos. Pó”. Nesse verso fica evidente de que todo o poema aconteceu no passado,
pois o eu lírico utiliza palavras que são sinônimos daquilo que foi corroído, deteriorado
(Ferrugem, Fumaça, Pó) e em meio disso está a sua infância (Meus brinquedos). E nesse
verso em que o leitor se dá conta de que tudo está no passado e que lá vai ficar, pois virou
83

“pó”, não há verbos, não há ação, há apenas substantivos (exceto o pronome possessivo
“meus”), há apenas imagens, ou seja, lembranças.
Os verbos de “G.W.B.R.”, como já dissemos anteriormente, estão em sua maioria no
presente do indicativo, sugerindo que todo ele se passa no presente, contudo quando nos
deparamos com o último verso vemos que tudo está no presente apenas para o eu lírico. No
último verso sem verbos temos a impressão de que o que restou de toda a viagem foi aquilo
que não é possível ser materializado, que não é possível ser tocado: as lembranças, as
recordações. Por isso suas lembranças, seus brinquedos, estão ao lado daquilo que já foi
corroído pelo tempo, pela ferrugem, pela fumaça, pelo pó.
Em “G.W.B.R.” temos a presença do rio que sendo mais rápido que máquina, ultrapassa
o trem sempre, por maior que seja o seu esforço (“e o rio encontrou o trem./ O rio é mais
ligeiro do que ele.”). Em outros poemas de Jorge de Lima também presenciamos a imagem do
rio, em especial do rio Mundaú33, visto que este rio possui uma relação com a biografia do
autor, já que é um rio que corta União dos Palmares, a cidade natal do poeta. Vejamos o
poema:

MUNDAÚ

1584. Os primeiros engenhos de Alagoas.


Anadia.
Coruripe.
Porto Calvo.
Minha terra natal:
“Cerca rial de macacos,” depois
Vila da Imperatriz
onde o destino quis
que nascesse três séculos mais tarde
o macaco mais triste dos macacos brasileiros.

O rio de minha terra é o A B C


de minha meninice, o meu passado
a correr para o mar
com todas as pedrinhas com que eu criança
brincava a fingir que eram bois.
Em junho o rio enchia, em agosto secava
e refletia o rio nágua um verde esperança
com a cabeça virada paro baixo,
Os meninos banhavam-se de pé
e as mocinhas de cócoras, nuinhas,
agachadas no rio...

33
Povina Cavalcanti também comenta acerca do papel do rio Mundaú na poesia de Jorge de Lima: “Mesmo na
fase acadêmica de sua literatura Jorge não esqueceu Madalena (era assim que ele gostava de chamar o seu burgo
natal), nem o seu rio Mundaú. Pena é que os tivesse recordado então num estilo trabalhado em bigorna, mas nem
por isso destituído de valor” (CAVALCANTI, 1993, p. 21-22).
84

no banho nunca ninguém pode ver


as mocinhas
de pé... com frio...

De repente Sinhá Rita chegava.


─ “Que é?”
─ “Sinhá Dona manda chamar
pra ler”

─ Que nome recebeu


a nova terra que Cabral descobriu?
─ Que quer dizer Caramuru?
Caeté?

Um dia é o que me lembra, eu desci o meu rio,


Perguntaram-me: aonde vais?
─ Vou descer! respondi
Desci!
e não subi nunca mais!
(LIMA, 1959, p. 254-255)

Em “Mundaú”, o eu lírico inicia o poema como se estivesse a narrar um fato histórico. É


uma data, “1584, que abre o poema. Em seguida, ainda no mesmo verso, temos a impressão
de que o eu do poema falará acerca do início da cultura da cana-de-açúcar no estado de
Alagoas (“Os primeiros engenhos de Alagoas”), impressão que é reforçada pelos versos
seguintes, que trazem apenas o nome de cidades conhecidas pela monocultura da cana
(“Anadia./ Coruripe./ Porto Calvo.”). Contudo, o eu lírico quebra nossas expectativas quando
ao invés de falar o nome de outra cidade plantadora de cana-de-açúcar, ele diz “Minha terra
natal”. É a partir desse verso que a impessoalidade do relato histórico deixa o poema e abre
espaço para a pessoalidade de um relato memorialístico, pessoalidade marcada não só pelas
lembranças da infância do eu lírico relatadas nos versos seguintes, mas também pela marca do
pronome possessivo da 1ª pessoa do singular (“Minha terra natal”). O nome da cidade não é o
mais importante, tanto que só sabemos o nome dela dois versos depois, o que importa é o fato
do eu do poema ter nascido nela, o que importa é o fato dela ser sua terra natal.
Após aquele verso, ainda há fatos históricos permeados nos versos seguintes, pois o eu
lírico apresenta outro nome que a sua terra natal teve antes de se chamar Vila da Imperatriz
(atualmente União dos Palmares): Cerca Real do Macaco (“Cerca rial de macacos”). A
citação do nome anterior a Vila da Imperatriz não é em vão, visto que a cidade recebeu esse
nome durante a época do Quilombo dos Palmares, sendo inclusive esse um dos nomes da
principal aldeia dos Palmares34. Diante desse fato, percebemos em “Mundáu” como o

34
Sobre essa mudança de nomes que sofreu a cidade de União dos Palmares, Povina Cavalcanti diz:
“Presentemente, é a União dos Palmares. A crônica aponta a motivação de tais nomes com razoável aceitação.
85

Quilombo dos Palmares não marcou apenas o nome da cidade, mas também o próprio eu do
poema, visto que ele, mesmo “três séculos mais tarde”, mesmo tendo a cidade outro nome,
denomina-se como “o macaco mais triste dos macacos brasileiros”. Quando o eu lírico
denomina-se como “macaco”, é como se ouvíssemos o eco de uma quadrinha do folclore de
União dos Palmares:

Macacos era o meu nome,


Santa Maria adotei.
Imperatriz nunca fui,
União nunca serei.
(CAVALCANTI, 1993, p. 15).

É então na 2ª estrofe que entendemos o porquê do título do poema ser “Mundaú”, pois
para o eu lírico, a sua terra natal não se destaca pela plantação da cana, como é o caso de
Anadia, Coruripe, Porto Calvo; mas sim pelo rio Mundaú que corta a cidade. O rio Mundaú,
diferentemente do rio Léthe, é um rio que traz lembranças e não o esquecimento. Mundaú é a
nascente da memória da infância do eu lírico (“O rio de minha terra é o A B C/ de minha
meninice, o meu passado/ a correr para o mar”), e é a partir desse verso que começam a correr
as lembranças do eu lírico, lembranças do cotidiano, situações corriqueiras, nenhuma delas
que marque uma situação importante: “Em junho o rio enchia, em agosto secava/ [...] Os
meninos banhavam-se de pé/ e as mocinhas de cócoras, nuinhas,”. Contudo, nessa aparente
banalidade daquilo que o eu lírico se recorda traz consigo ocasiões importantes para a vida de
qualquer criança, como a descoberta da sexualidade (“no banho nunca ninguém pode ver/ as
mocinhas/ de pé... com frio...”), a iniciação na escola (“– Que nome recebeu/ a nova terra que
Cabral descobriu?/ – Que quer dizer Caramuru? / Caeté?”) e enfim o abandono da infância
com a chegada da vida adulta (“– Vou descer! respondi/ Desci!/ e não subi nunca mais!”).
A última estrofe de “Mundaú” pode tanto ser interpretada como o fim da infância com a
chegada da vida adulta, mas também pode ser vista a partir de uma perspectiva biográfica,
uma vez que Jorge de Lima deixou União dos Palmares ainda criança e nunca mais regressou
a sua terra natal. Outra proposta de interpretação é como os modernistas tratavam o tema do
exílio. Enquanto os românticos falavam do exílio carregados pelo desejo do retorno, os
modernistas abordavam o exílio através do desejo de não mais regressar a terra natal. Em

Cêrca-Rial remonta os idos históricos e lendários da famosa República Negra. Era uma trincheira do arraial de
Macacos; a defesa dos negros foragidos, que dominavam a Serra da Barriga, o vale do Mundaú, o ciclópico
anfiteatro da valente peleja libertária. Ficava-lhe bem o nome estranho com um sabor típico de aldeia. Quando
chegou ao fim a aventura troiana dos negros, o batismo que acudiu para o vilarejo em formação foi o de um
nome patronímico cristão: Santa Maria. A Mãe de Deus era uma presença indispensável em todos os
agrupamentos humanos. E os cristãos surgentes dos escombros da Cêrca-Rial-de-Macacos escolheram aquela
que ainda hoje é padroeira da cidade: Santa Maria Madalena” (CAVALCANTI, 1993, p. 14).
86

“Mundaú” não percebemos o desejo do eu lírico em voltar para a cidade em que nasceu,
contudo também não percebemos o seu contrário, já que não há um sentimento de repulsa em
relação a sua cidade natal. Como não pretendemos fechar nossa leitura com apenas uma
interpretação, admitimos que as três leituras da última estrofe são possíveis.
Em “Mundaú” a memória encontra-se em todo poema, não só nos versos em que o eu
lírico fala de a sua infância, ou até mesmo quando marca a questão da lembrança em um
desses versos: “Um dia é o que me lembra, eu desci o meu rio,”. A memória encontra-se
desde o começo até o fim de “Mundaú”, visto que mesmo nos primeiros versos que parecem
mais voltados para a História, a memória encontra-se presente, pois naqueles primeiros versos
(“1584. Os primeiros engenhos de Alagoas. Anadia. Coruripe. Porto Calvo.”) estamos diante
de uma memória que diferentemente da que presenciamos da segunda estrofe em diante, é
uma memória compartilhada, é uma memória que faz parte de um grupo, e não só de uma
pessoa.
Temos a impressão de que “Mundaú” parte da memória coletiva de um grupo mais
amplo, daqueles que são alagoanos (“1584. Os primeiros engenhos de Alagoas.”), para, em
seguida,abranger a memória coletiva de uma cidade, sua cidade natal, União dos Palmares
(“Minha terra natal:/ ‘Cerca rial de macacos’, depois/ Vila da Imperatriz”) e por fim passa
para uma memória individual (“onde o destino quis/ que nascesse três séculos mais tarde/ o
macaco mais triste dos macacos brasileiros.”). Essa passagem de uma memória coletiva para
uma memória individual expõe como a memória coletiva incide sobre a memória do eu lírico,
pois é partir da memória do grupo que ele encontrava a chave para as suas lembranças da
infância. Mesmo o rio Mundaú que está tão intimamente ligado às lembranças do eu do
poema traz consigo o coletivo, visto que o rio Mundaú é um lugar de todos, um espaço
compartilhado, diferentemente da casa, espaço privado, particular.
Maurice Halbwachs na obra A memória coletiva (2006) afirma que a memória do grupo
pode ser alcançada pelo indivíduo mesmo que este esteja distante do grupo, pois mesmo
longe, o grupo continua a influenciá-lo:

Quando dizemos que um indivíduo recorre à memória do grupo, devemos


entender que esta ajuda não implica na presença real de um ou mais de seus
membros. De fato, continuo a sofrer a influência de uma sociedade mesmo
que dela tenha me afastado – basta que eu carregue comigo em meu espírito
tudo o que me permite estar à altura de me postar no ponto de vista de seus
membros, de me envolver em seu ambiente e em seu próprio tempo, e me
sentir no coração do grupo (HALBWACHS, 2006, p. 146).
87

O eu do poema “Mundaú”, assim como propõe Halbwachs, sofre a influência do grupo


que fazia parte, mesmo depois de afastado, mesmo depois de ter descido o seu rio e nunca
mais ter subido. O eu lírico ainda se sente capaz de se envolver com seus membros quando
denomina-se “o macaco mais triste dos macacos brasileiros”, e também quando se envolve
com o ambiente do grupo, que neste caso é o rio Mundaú. As lembranças do grupo continuam
a ser carregadas pelo eu lírico, fazendo parte do que ele foi no passado e do que ele é no
presente.
Outro poema de Jorge de Lima que faz referência ao rio Mundaú em que também
sentimos a presença de uma memória coletiva dentro da memória individual de sua infância é
em “Caminhos de minha terra”, presente na obra Poemas:

CAMINHOS DE MINHA TERRA

Caminhos inventados por quem não tem pressa


de ir-se embora.
Pelos que vão à escola.
Pelos que vão à vila trabalhar.
Pelos que vão ao eito.
Pelos que deixam a terra como eu deixei um dia...
Pelos que levam quem se despede da vida que é tão bela...

À minha terra ninguém chega: ela é tão pobre...


Dizem que tem bons ares para os tísicos –
mas os tísicos não vão lá: é tão difícil de ir-se lá...

Caminhos de minha terra onde perdi


os olhos e os passos da meditação...
Caminhos em que ceguinhos e aleijados podem
ir sem olhos e sem pernas: eles não atropelam
os pobrezinhos.
Alguém quer partir e eles dizem:
– “não vás: toma lá uma goiaba madura,
uma pitanga, uma ingá e dão como
as mãos dos missionários que dão tudo,
cajus, pitombas, araçás a todos os meninos do lugar.”
Caminhos que ainda têm orvalhos e sonâmbulos bacuraus,
e têm ninhos suspensos nas ramadas.

Ali perto, na Curva do Encantado


onde mataram de emboscada um cangaceiro,
há uma cruz de pitombeira...
Quem passa joga uma pedra,
reza baixinho: “Padre nosso que estais no céu
santificado seja o vosso nome
venha a nós...”
Aquela cruz do cangaceiro é milagrosa,
já me curou dum puxado que
eu peguei na escola da professora –
88

minha tia Bárbara de Olivedo Cunha Lima –

Mundaú! – soube depois


que quer dizer rio torto.
Quem te inventou Mundaú, das minhas lavadeiras
seminuas,
dos meus pescadores de traíras? –
Mundaú! – rio torto – caminhos de curvas,
por onde eu vim para a cidade
onde ninguém sabe o que é caminho.
(LIMA, 1959, p. 236-237)

Em “Caminhos de minha terra”, o eu lírico nos fala poeticamente da paisagem e das


pessoas que tiveram importância na sua formação. Temos, então, a impressão de que, junto
com ele, passeamos com ele pela cidade. A disposição gráfica do poema, com versos de
metros variados, ora alinhado à esquerda, ora dispostos no meio, parece “reproduzir” os
caminhos tortuosos típicos das cidades interioranas brasileiras. A ideia de que passeamos
junto com o eu lírico pela sua cidade também se dá pelo fato de que sua descrição parece ser a
de alguém que está distante, seja no tempo, seja geograficamente, o eu lírico até chega a agir
como um guia que aponta os pontos turísticos (“Ali perto, na Curva do Encantado”).
Diante de “Caminhos de minha terra” não há, assim como em “Mundaú”, nenhum
momento em que o eu lírico diga “Eu me lembro” ou “Eu me recordo”, contudo, um detalhe
sutil nos permite perceber que se trata de um poema tecido das lembranças do eu lírico, não só
pela referência à escola em que estudou (“eu peguei na escola da professora ─”), mas
especialmente porque todos os versos em que o eu lírico fala de si contém verbos no pretérito
perfeito35, enquanto os demais versos, aqueles que falam sobre a cidade e as pessoas que nela
habitam possuem a maioria de seus verbos no presente do indicativo. Os versos sobre a cidade
que têm os verbos no pretérito perfeito são aqueles que contam algo sobre a história ou a
geografia da cidade natal do eu lírico: “Ali perto, na Curva do Encantado/ onde mataram de
emboscada um cangaceiro, / [...]/ Quem te inventou Mundaú, das minhas lavadeiras/ [...]”. Os
demais versos que fala sobre o cotidiano da cidade têm os verbos no presente porque era o
que fazia parte do dia a dia do eu lírico.
Essa diferença de tempos verbais bem marcada por verbos que tratam especificamente
do eu lírico e outros que tratam da terra natal, também nos permite o funcionamento da
memória. É como se a diferença desses tempos verbais marcasse a distância entre o passado e

35
“[...]Pelos que deixam a terra como eu deixei um dia.../ [...]/ Caminhos de minha terra onde perdi/ [...]/ já me
curou dum puxado que/ eu peguei na escola da professora ─/ [...]/ Mundaú! ─ soube depois/ [...] por onde eu
vim para a cidade/ [...].”
89

o presente que persiste mesmo em nossas lembranças. Sobre isso, diz Georges Poulet em O
espaço proustiano (1992):

E o mesmo acontece com nossas lembranças. Se a imagem sensível que nos


trazem parece transferir-se para nós de imediato, “devorando” a distância, é
um passado irremediavelmente transcorrido que dizem respeito, passado que
não deixa de estar separado de nós pela mesma distância, de modo que,
longe de ser suprimida, ao contrário, essa distância fica ainda mais nítida,
cruelmente distinta, pelo movimento do pensamento mnemônico que,
percorrendo todo o trajeto, ainda melhor revela o seu tamanho (POULET,
1992, p. 49)

A distância entre o passado e o presente em “Caminhos de minha terra” está marcada


nitidamente por esse contraste dos tempos verbais. Os versos que falam sobre a cidade estão
com os verbos empregados no presente do indicativo, porque quando nos recordamos de algo
é como se tornássemos a vivenciar aquilo que lembramos, aquilo que lembramos acontece no
presente em nossa mente. Mas versos que falam sobre o eu lírico estão com o verbos no
passado, porque mesmo quando tornamos a vivenciar nossas lembranças, não conseguimos
nos desvencilhar totalmente da marca do tempo, pois temos consciência de que é algo que
aconteceu no passado, e quando nos vemos nessas lembranças, vemos também o tempo que
passou, deixando nítido a distância que há entre a lembrança e o presente. É como afirma
Poulet: “O ser que se recorda de uma imagem de si mesmo visível no fundo do passado,
recorda-se também, num certo sentindo, do intervalo que o separa dela” (Ibidem, p. 49).
A obra de Poulet, mesmo quando comenta aspectos de Em busca do tempo perdido de
Proust, também nos ajuda a entender outros aspectos de “Caminhos de minha terra” através da
perspectiva memorialística. Para Poulet, certo local que está ligado a uma lembrança difere
dos outros:

Seja graças à lembrança, por um ato de imaginação, ou simplesmente em


razão da fé com que nos ligamos a certos locais, eles começam a diferir de
todos os outros, e permanecem à parte nos espaços de nosso espírito.
Lugares reencontrados no fundo de nossa memória, criados por nossos
sonhos ou pela participação nos sonhos dos outros – que é um efeito da arte
–, ou ainda, e mais raramente, lugares diretamente percebidos por nós em
sua beleza particular, e realçados pela presença de um ser que lhes confere
algo de sua própria individualidade: há, em Proust, toda uma série de
lugares inconfundíveis, que parecem existir no interior de suas fronteiras de
um modo absolutamente independente (Ibidem, p.23 – grifo nosso).

No poema, o poeta põe em destaque o contraste entre os velhos caminhos de sua terra e
o lugar em que agora vive, ou deve viver, lugar em que “ninguém sabe o que é caminho”. Os
caminhos da terra do eu lírico é um lugar criado pelos sonhos do eu lírico ou pela
90

participação no sonho dos outros, ou seja, é um lugar/caminhos inventado(s) pelos que que
“não tem pressa ir-se embora”, “pelos que vão à escola”, “pelos que vão à vila trabalhar”. É
um lugar que mesmo sendo “tão pobre” e “tão difícil de ir-se lá” tem caminhos com “orvalhos
e sonâmbulos bacuraus”, ou seja, é um lugar diretamente percebido pelo eu lírico por sua
beleza particular, pois é nesse lugar que estão algumas de suas lembranças.
O eu lírico de “Caminhos de minha terra” reconhece as mazelas que acometem a sua
terra natal, contudo ele não deixa de perceber a beleza que existe no lugar e nas pessoas que a
habitam. O eu lírico faz, inclusive, uma sutil comparação entre sua terra natal e a cidade para
onde ele foi. Em sua terra natal existe a tranquilidade, as ruas são calmas sem a presença de
automóveis (“Caminhos em que ceguinhos e aleijados podem/ ir sem olhos e sem pernas: eles
não atropelam/ os pobrezinhos”), lugar também onde o eu lírico pode, em silêncio, meditar,
um lugar tranquilo (“Caminhos de minha terra onde perdi/ os olhos e os passos da
meditação...”). A cidade para onde o eu do poema seguiu é tão diferente de sua terra natal que
as pessoas que lá habitam nem ao menos sabem o que é caminho (“por onde eu vim para a
cidade/ onde ninguém sabe o que é caminho.”). A terra natal do eu lírico tornou-se um
universo à parte, é um lugar “[...] que contrasta com todos os outros aparece para além deles,
não para continuá-los, certamente, mas, ao contrário, para marcar com mais nitidez ainda a
qualidade que o torna um universo à parte” (POULET, 1992, p. 25).
Retomando aquela questão das diferenças dos tempos verbais, podemos perceber que
essa diferença de conjugação dos verbos é como uma diferença também entre a memória
coletiva e a memória individual. Nos versos em que os verbos estão no presente, o eu lírico
fala de algo compartilhado, vivenciado por ele e principalmente pelos outros. Os caminhos de
sua terra contam não apenas a sua história, mas a história dos outros, do dia a dia dos
moradores do lugar36, da personalidade generosa deles37, da religiosidade que eles tinham38,
mas contam sobre a pobreza do lugar.39
É interessante perceber que essas lembranças compartilhadas estão ligadas aos
caminhos da terra do eu lírico, ou seja, ao solo. Maurice Halbwachs diz o seguinte acerca da
relação existente entre a memória coletiva e o solo: “Se as lembranças se conservam no
pensamento do grupo, é porque ele permanece estabelecido no solo, é porque a imagem do
36
“Pelos que vão à escola. / Pelos que vão à vila trabalhar. / Pelos que vão ao eito. / Pelos que deixam a terra
como eu deixei um dia... / Pelos que levam que se despede da vida que é tão bela...”
37
“Alguém quer partir e eles dizem:/ - não vás: toma lá uma goiaba madura,/ uma pitanga, uma ingá e dão como/
as mãos dos missionários que dão tudo,/ cajus, pitombas, araçás a todos os meninos do lugar.”
38
“Quem passa joga uma pedra,/ reza baixinho: ‘Padre nosso que estais no céus/ santificado seja o vosso nome/
venha a nós...’”
39
“À minha terra ninguém chega: ela é tão pobre.../ Dizem que tem bons áreas para os tísicos ─/ mas os tísicos
não vão lá: é tão difícil de ir-se lá...”
91

solo perdura materialmente fora dele e ele pode retomá-la a qualquer instante”
(HALBWACHS, 2006, p. 167). Naquele poema de Jorge de Lima, podemos perceber a
ligação que há entre a memória do grupo e a do solo, pois os caminhos da terra do eu lírico
foram “inventados” pelo grupo, e é a imagem dos caminhos que perdura na lembrança do eu
lírico, que não fala apenas das lembranças relacionadas a si mesmo, mas também a dos outros.
Ainda sobre essa relação entre o solo e a memória, Halbwachs nos esclarece:

[...] não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial.


Ora, o espaço é uma realidade dura: nossas impressões se sucedem umas às
outras, nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja
possível retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente
material que nos circunda. É ao espaço, ao nosso espaço – o espaço que
ocupamos por onde passamos muitas vezes, a que sempre temos acesso e
que, de qualquer maneira, nossa imaginação ou nosso pensamento a cada
instante é capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção, é nele
que nosso pensamento tem de se fixar para que essa ou aquela categoria de
lembrança reapareça (HALBWACHS, 2006, p. 170 – grifo nosso).

Ou seja, não há memória de um grupo que não seja especializada, é necessário que a
memória do grupo esteja ligada a um lugar, e é esse o caso de “Caminhos de minha terra”, em
que a memória coletiva está ligada aos caminhos da terra do eu lírico, e é nesses caminhos
que conhecemos as pessoas que por eles passam (“Caminhos inventados por pessoas...),
conhecemos como é a terra do eu lírico (“ela é tão pobre”), os fatos históricos que se
passaram no lugar ("onde mataram de emboscada um cangaceiro”), e esses caminhos foram
“um espaço ocupado por onde o eu lírico passou muitas vezes” (as repetições de “pelos que
vão” corroboram para essa ideia de um lugar passado várias vezes), por isso o eu lírico é
capaz de reconstruí-lo em sua memória e também no poema.
Antes de iniciar a análise de “Caminhos de minha terra”, tínhamos observado a presença
do rio Mundaú, ocupando o núcleo do poema, tal qual a poema que analisamos anteriormente.
É interessante notar que assim como em “Mundaú”, o rio em “Caminhos de minha terra”
também é o meio por onde o eu lírico deixa a sua terra natal (“Mundaú! – rio torto – caminhos
de curvas,/ por onde eu vim para a cidade/ onde ninguém sabe o que é caminho”). Enquanto
que em “Mundaú”, o rio é o responsável não só por levar embora o eu lírico, mas também por
trazer algo, naquele caso as lembranças da infância do eu do poema; em “Caminhos de minha
terra”, o rio é somente responsável por levar embora o eu lírico, tal qual em uma enchente que
leva para longe as coisas do lugar. É interessante também notar que nesses dois poemas, o rio
Mundaú é o único local que é capaz de ser localizado geograficamente fora do poema, e esse
92

local é também o responsável por marcar a distância entre o eu lírico e o seu passado. Ainda
em O espaço proustiano, Georges Poulet diz o seguinte:

Subitamente, compreende-se que o espaço não é um meio comunicante,


terreno de união, ou região privilegiada onde os seres se encontram juntos.
Subitamente, descobre-se que o espaço é exatamente o contrário: é o que faz
com que os seres sejam obrigados a viver distantes uns dos outros
(POULET, 1992, p. 45).

O espaço não é, pois, o lugar de união, de encontro, mas sim de distância. O rio Mundaú
é a marca geográfica da distância temporal que existe entre o eu lírico e as suas lembranças,
talvez por isso ele seja o local por onde, tanto em “Caminhos de minha terra” quanto em
“Mundaú”, que eu lírico deixa sua terra natal.
Os poemas que analisamos nesse capítulo nos permite perceber como a memória não
está apenas ligada ao que é individual, mesmo quando sua espacialização pode se dar em
ambiente fora do ambiente familiar, como foram os casos dos poemas que aqui analisamos.
Contudo, o mais importante que a análise desses poemas nos proporcionou foi como a arte,
nesse caso a poesia, é capaz de separar o lugar lembrado, tornando-o mais belo que o resto do
mundo, tornando-o único, seja este lugar um local histórico (“Serra da Barriga”), uma
paisagem de uma viagem (“G.W.B.R.”) ou uma cidade pobre no interior nordestino
(“Mundaú”, “Caminhos de minha terra”).
93

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi nosso propósito pesquisar a presença da memória nos poemas de Jorge de Lima,
aspecto, a nosso ver, saliente em sua obra. Procuramos, em três capítulos, demonstrar, a partir
de detalhadas análises textuais, que a infância é a fonte que alimenta Poemas, Novos poemas e
Poemas escolhidos.
Antes de iniciarmos nossa pesquisa, tivemos o cuidado de consultar parte da
bibliografia crítica sobre o autor. Observamos, então, que a maioria dos estudos concentra-se
em Invenção de Orfeu, considerada, por muitos estudiosos, sua obra mestra. Percebemos,
então, que poderíamos abordar, a partir da seleção de dez (10) poemas destacados como
essenciais, o viés memorialístico, visto que este aspecto tem sido assinalado, de passagem,
pelos pesquisadores. Foram os seguintes poemas: “Volta à casa paterna”, “Meninice”,
“Poema à irmã”, “Credo”, “Oração”, “O Filho Pródigo”, “Serra da Barriga”, “G.W.B.R.”,
“Mundaú”, “Caminhos de minha terra”.
Para enfrentar o desafio de interpretá-los, foi preciso inicialmente buscar uma
bibliografia específica sobre o conceito de memória e seu significado na história e na
literatura. Evidentemente, as leituras de Jean-Pierre Vernant (1990), Paul Ricoeur (2012) e
Harald Weinrich (2001) foram fundamentais para nosso trabalho, uma vez que estudam e
discutem a memória desde suas origens na Grécia Antiga (Vernant e Weinrich) até a
atualidade e suas relações com a literatura (Ricoeur).
Optamos por iniciar nosso trabalho apresentando ao leitor qual a relação entre a
memória e a literatura. Consideramos que essa relação remonta desde a Grécia Antiga, em
que a poesia tinha a função de relembrar ao povo os grandes feitos de seus heróis. Contudo, a
poesia não se constitui apenas de lembranças, mas também de esquecimentos, visto que,
narrar um fato é esquecer outro. A poesia/literatura é, pois, constituída de uma dupla trama:
lembrar-esquecer, pois essa mesma trama que constitui a memória, visto que, lembrar um fato
é esquecer outro.
Ao discutirmos a relação entre memória e literatura, nós recorremos a estudos como os
de Burgelin (2014). Para esse autor, a memória ajuda a repensar a literatura e vice-versa.
Acreditamos que essa afirmativa se aplica à poesia de Jorge de Lima, em especial, na sua obra
autobiográfica Minhas Memórias, pois nela Jorge de Lima não narra apenas situações que
poderiam até acontecido, mas também situações fantasiosas. Essas lembranças, que são uma
94

mistura de fantasia e realidade, nos permitiu fazer aproximações não com a vida do autor, mas
sim com sua obra, podendo, a partir daí, ressignificá-la.
Como em Jorge de Lima, a memória não é apenas individual, pois guarda uma
dimensão histórica, optamos por uma metodologia que desse conta desses dois aspectos. De
fato, nas obras aqui estudadas, as lembranças da infância apresentam-se sempre ligadas a
outros elementos, como a casa, os entes familiares, a religiosidade... A casa e os entes
familiares, especialmente a figura da irmã, agem como guardiões das lembranças infantis do
eu lírico, enquanto que a religiosidade, representada pelas orações católicas, além de servirem
como refúgio, também podem ser fonte de angústia, quando a oração serve para lembrar o
esquecimento.
Porém, partindo da observação de que os lugares fixados e retidos pelo eu lírico ora se
situam no interior da casa, ora se lançam para o espaço exterior, examinamos os poemas
acima mencionados de acordo com essa localização. E aqui, vale relembrar, que para melhor
entender o universo poético de Jorge de Lima, sentimos a necessidade de colher alguns dados
biográficos, não com a finalidade de reproduzi-los cronologicamente, e sim com o objetivo de
conhecer o mundo em que viveu o poeta. Surpreendemos, então, com o fato de Jorge de Lima
ser um poeta obstinado pelo passado, pela sua infância, o que, certamente, o distanciou,
literariamente falando, dos modernistas de São Paulo. Nessa busca, pode-se dizer que ele
pode ser considerado como um dos poucos, senão o único, a se voltar para um tempo
longínquo e marcante na história de nosso país: a escravidão. Daí porque, em muitos
momentos de sua poesia, há uma fusão entre memória individual, memória coletiva (Maurice
Halbwachs) e História. E aí surgiram perguntas diversas: como o poeta trabalha
estilisticamente a memória? Por meio de que imagens o passado se apresenta? Quais imagens
se apresentam? Como o eu poético, ao projetar um determinado momento do passado, recria-o
poeticamente?
Com o fim desta dissertação podemos supor que a relação entre memória e literatura
perdura ainda hoje, não só na poesia de Jorge de Lima, talvez porque ambas, no final das
contas, buscam reviver o passado.Ambas, também, são tecidas de palavras, textos compostos
por outros textos, contudo são tecidas em uma dupla trama: escrever-apagar, lembrar-
esquecer. As relações entre memória e literatura ampliaram nossos conhecimentos,
permitindo, a partir daí, aprofundá-los cada vez mais, enriquecê-los com vistas a uma
pesquisa de maior fôlego, que possa abranger outras obras do poeta alagoano.
95

Esperamos, enfim, que a conclusão desta pesquisa não traga a conclusão dessa
discussão acerca da memória na poesia de Jorge de Lima. O fim de um texto não é o fim da
discussão, mas sim o começo de um novo diálogo.
96

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