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PERFORMANCES CULTURAIS

ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Coleção Pesquisa
Pró-Reitoria de Pós-Graduação
Universidade Federal de Goiás

Reitor
Edward Madureira Brasil

Vice-Reitora
Sandramara Matias Chaves

Diretor da Editora UFG


Ancelmo Pessoa Neto

Conselho Editorial da Editora UFG


Antônio Corbacho Quintela (Presidente); Andréa Freire
de Lucena; Cláudio Rodrigues Leles; Eric de Souza Gil;
Heleno Godói de Souza; Iara Toscano Correia; Igor
Kopcak; Marcelina Gorni; Maria Meire de Carvalho
Ferreira; Marta Cristina Colozza Bianchi; Ulysses
Rocha Filho; Vânia Dolores Estevam de Oliveira

Comissão julgadora do Programa de Apoio


à Pesquisa da PRPG/Proap/Capes
Andréa Freire de Lucena
Cláudia Regina de Oliveira Zanini
Cláudio Rodrigues Leles (Presidente)
Revalino Antonio de Freitas
PERFORMANCES CULTURAIS
ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

ROBSON CORRÊA DE CAMARGO


JOANA ABREU
MORGANA BARBOSA GOMES (MORGANA POIESIS)
MURILO BERARDO BUENO

Coleção Pesquisa
Pró-Reitoria de Pós-Graduação

2021
© Editora UFG, 2021
© Robson Corrêa de Camargo, Joana Abreu, Morgana Barbosa
Gomes (Morgana Poiesis), Murilo Berardo Bueno, 2021

Projeto gráfico e capa: Julyana Aleixo Fragoso


Editoração eletrônica: Géssica Marques de Paulo
Revisão: Andressa Moreira Salarini
Imagem da capa:

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


GPT/BC/UFG

C173 Camargo, Robson Corrêa de.


Performances culturais: abordagens interdisciplinares / Robson Corrêa
de Camargo ... [et al.] ; projeto gráfico e capa, Julyana Aleixo Fragoso ;
editoração, Géssica Marques de Paulo ; revisão, Andressa Moreira Salarini.
– Goiânia : Editora UFG, 2021.
380 p. ; il. - (Coleção Pesquisa)

Inclui referências.
ISBN: 978-65-86636-08-6

1. Performance (Arte). 2. Cultura – Estudo e ensino. 3. Arte e


sociedade. I. Título.
CDU: 7.06:378
Bibliotecária responsável: Adriana Pereira de Aguiar / CRB1: 3172
SUMÁRIO

9 Apresentação
13 Consanguinidad(es): Semánticas
del uso de la sangre en la
performance en América Latina
SOFIA FERNÁNDEZ ALVAREZ

31 Performance, Cinema e Recepção:


um estudo sobre a relação entre
a linguagem cinematográfica e
as performances culturais
PABLO MARQUINHO PESSOA PINHEIRO
LISANDRO MAGALHÃES NOGUEIRA
ROBSON CORRÊA DE CAMARGO

57 Pontos de contato entre o cinema


e as performances culturais
WERTEM NUNES FALEIRO
LISANDRO NOGUEIRA

73 Aproximações e diferenças dos


conceitos de performance e processos
rituais nos jogos de videogame
MURILO GABRIEL BERARDO BUENO
ROBSON CORRÊA DE CAMARGO
DANIEL CHRISTINO
93 Ciberespaço em videogames: performance
e narrativa através da imersão
JOSÉ ABRÃO

121 Performance e jogo: um ensaio sobre


a problemática da audiência
RAQUEL DE PAULA RIBEIRO
ROBSON CORRÊA DE CAMARGO
DANIEL CHRISTINO

141 O jogo teatral e a experiência intuitiva:


uma performance educativa
ONIRA DE ÁVILA PINHEIRO TANCREDE
ROBSON CORRÊA DE CAMARGO

167 Performance Sonora Cultural


THAIS OLIVEIRA
SAINY VELOSO

187 Performance cultural: singularidades na


estética do corpo de quem dança o Orixá!
SUZANA MARTINS

209 As performances na rádio Xibé


e a metáfora do espectro
GUILHERME GITAHY DE FIGUEIREDO

235 Ciane Fernandes: um “corpo estranho”


nos territórios e fronteiras da arte
JOSÉ MÁRIO PEIXOTO SANTOS
257 Performances da docência e
orientação em um programa de
pós-graduação interdisciplinar
GIRLENE CHAGAS BULHÕES
LUA BARRETO
THIAGO CAZARIM
VÂNIA DOLORES ESTEVAM DE OLIVEIRA

295 Os banhos políticos da Vênus Caôzeira


RAÍSA INOCÊNCIO

307 Intermedialogias: Grupo de


Interferência Ambiental
MORGANA BARBOSA GOMES (MORGANA POIESIS)

339 Tramas: Arte da Performance; corpo


político; grotesco, monstro e abjeto
ZÉ PEREIRA (JOSÉ ARNALDO PEREIRA)

373 Posfácio: Em Cerrado


ROBSON CORRÊA DE CAMARGO
APRESENTAÇÃO

O livro Performances Culturais: abordagens interdisciplinares tem por objetivo


intensificar o debate sobre as Performances Culturais como conceito,
abordagem metodológica e prática interdisciplinar, acrescentando novas
perspectivas, diálogos e críticas a essa discussão, seja em sua conformação
teórica ou com base em análises concretas.
Performances Culturais pretende o estudo comparativo dos produ-
tos culturais das civilizações em suas múltiplas denominações; visa o
estabelecimento do processo de seus desenvolvimentos e suas possíveis
contaminações; assim como também o entendimento das culturas através
de seus produtos culturais em sua profusa diversidade, ou seja, como
o ser humano as elabora, as experimenta, as percebe e se percebe, sua
gênese, sua estrutura, suas contradições e seu vir-a-ser.
As Performances Culturais, como definiu Milton Singer, são sempre
plurais, pois solicitam o estudo comparativo, seja tomando por base
uma perspectiva macro (os grandes elementos da cultura, as Grandes
Tradições) em contraste com as micro experiências (as variadas formas
não oficializadas e diversas a que temos acesso, as Pequenas Tradições),
ou vice-versa. Trata-se, portanto, de formas simbólicas e concretas que
perpassam distintas manifestações, revelando aquilo não evidenciado pelos
números, entrevistas, dados quantitativos, mas atingidas plenamente pela
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experiência, pela vivência, pela relação humana, pelo simbólico, pelo afeto
na obra e da obra, constituindo-se pela cartografia, identificação, registro
e análise de determinado fenômeno em suas diversas configurações, em
seu processo contraditório de formação, de constituição e de movimento,
em diálogo com estruturas gerais das tradições e pelas transformações
estabelecidas com base em formas culturais contemporâneas.
Este livro é fruto de um empenho por parte de professoras(es) e alu-
nas(os) do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performan-
ces Culturais (PPGIPC) da Faculdade de Ciências Sociais, Universidade
Federal de Goiás. Na organização deste primeiro volume, iniciada como
atividade disciplinar no curso de doutorado (implementado em 2015,
após a consolidação do mestrado desde 2012), reunimos 15 trabalhos
de pesquisadoras(es) brasileiras(os) e latinas(os) que apontam questões
comuns e/ou transversais às Performances Culturais, refletindo a diver-
sidade dos seus temas e perspectivas.
A saber, os assuntos e aspectos tratados nos trabalhos foram: a per-
tinência da performance artística com seus tensionamentos no corpo, no
gênero, na linguagem, na vida, nas relações humanas e não humanas; o
entrecruzamento de experiências e saberes em fluxo desde as mais diver-
sas origens, articulados aos conceitos caros às Performances Culturais,
como liminaridade (Victor Turner), ritos de passagem (Van Gennep)
e performance (Richard Schechner); as narrativas eletrônicas no cinema,
no rádio, no videogame, com suas múltiplas camadas de tempo, espaço,
recepção, imersão, jogo e interatividade, na construção de sentidos e/ou
significados simbólicos; questões metodológicas e epistemológicas do
ensino e pesquisa em artes, com análises de processos criativos em teatro,
música e dança, conectados à memória, à história, ao afeto, ao cotidiano
e às diversas expressões tradicionais das culturas brasileiras e mundiais;
manifestações transculturais e ritualísticas na produção de conhecimentos

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

prático-teóricos contemporâneos, que propõem cosmologias híbridas


tomando por base as novas e velhas tecnologias, na encruzilhada con-
ceitual entre o pós-estruturalismo e sua crítica pós-colonial.
Os trabalhos que compõem este livro dialogam com as seguintes linhas
de pesquisa do PPGIPC: Teorias e Práticas da Performance, na qual as
performances são analisadas em suas complexas e dinâmicas cartografias
teórico-conceituais, desde os estudos de antropologia teatral e cultural,
da história cultural, da performance artística, da semiótica, da estética, da
psicologia, da psicanálise e das artes corporais, bem como as diversas
pesquisas no campo educativo; e Espaços, Materialidades e Teatralida-
des, na qual as performances culturais são estudadas nos aspectos práticos
e das experiências humanas em determinado fenômeno, com base no
conceitual teórico estabelecido, sob o aspecto temporal e espacial, sejam
as materialidades presentes em objetos (edifícios, ruas, cidades, telas,
palcos, terreiros, corpos), ou as teatralidades como linguagem em ato, a
teatralidade espetacular, concisa e múltipla.

Desejamos a todas(os) uma boa leitura!


Robson Corrêa de Camargo
Joana Abreu
Morgana Barbosa (Poiesis)
Murilo Berardo Bueno

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CONSANGUINIDAD(ES): SEMÁNTICAS
DEL USO DE LA SANGRE EN LA
PERFORMANCE EN AMÉRICA LATINA

SOFIA FERNÁNDEZ ALVAREZ

Resumen: El presente texto se propone indagar en el carácter


polisémico de la sangre como materia artística en la performance,
a través de varios casos de estudio realizados en Latinoamérica a
partir de los años ochenta. Se trata de rastrear, en concreto, tres
líneas de significado de la sangre en performance a través de diversos
estudios de caso: la sangre como sacrificio que sirve para redimir,
la sangre menstrual como materia de reivindicación feminista, la
sangre entendida como parentesco en un contexto de migraciones
y la sangre como vida (y como muerte, al derramarse).
Palabras clave: Sangre; Performance artística; Latinoamérica.

El empleo de la sangre es un recurso relativamente habitual en la


performance, cuyo origen se remonta al Accionismo vienés y tiene que ver
con un deseo de vincular la acción artística a los ritos místico-religiosos.
Sin embargo, los usos que se le han dado – y se le dan – son diversos,
sirviendo así un mismo material o sustancia como alusión a una plura-
lidad de posibles significados. El presente texto se propone indagar en
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el carácter polisémico de la sangre como materia artística en la perfor-


mance, a través de varios casos de estudio realizados en Latinoamérica a
partir de los años ochenta. El interés específico en esta área geográfica
responde al hecho de que su sustrato cultural, de sincretismo entre lo
precolombino y lo católico, da lugar a un contexto muy particular en lo
que a simbologías de la sangre se refiere.
El objetivo de este análisis es rastrear varias líneas de significado de
la sangre en performance de América Latina durante los últimos 35 años,
aportando una aproximación a sus posibilidades semánticas y de inter-
pretación. Estas serían: la sangre como alusión a la violencia estatal y
relacionada con el narcotráfico, la sangre como reivindicación feminista –
tanto de visibilización de la menstruación como de la violencia de género
y los feminicidios – desde una corporalidad doblemente subalterna, la
sangre identificada con la familia y el parentesco y, por último, la sangre
como sinónimo de vida (y de muerte, cuando aparece derramada).

Fluido redentor: el uso ritual y


sacrificial de la sangre
Para comenzar este análisis, partiremos de la entrada “sangre” que
recoge el Diccionario de Símbolos de Juan Eduardo Cirlot.1 En ella, el autor
expone que la sangre y el color rojo mantienen un vínculo de significación
bidireccional: el color rojo hace referencia a la sangre al mismo tiempo
que la sangre expresa las cualidades pasionales y vitales del color rojo. Por
otro lado, explica que la sangre y sus representaciones tienen una base
simbólica común en culturas muy remotas, que tiene que ver con el valor
del sacrificio. La sangre ha sido considerada en todas las culturas como
el más valioso de los fluidos corporales y, por tanto, el más eficaz a la

1 CIRLOT, JUAN EDUARDO. Diccionario de símbolos. Barcelona: Labor, 1969,


p. 410-411.

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hora de aplacar la cólera divina mediante una ofrenda. Ya fuese mediante


sacrificios humanos (practicados en la Europa prehistórica y también en
algunas culturas americanas antiguas como la inca, la mochica o la mexica,
entre otras) o de animales (muy habituales en el mundo grecorromano),
se consideraba que el ofrecimiento de tan preciada materia líquida com-
placería a los dioses, evitando en consecuencia posibles castigos deriva-
dos de su cólera. La sangre sería, por tanto, símbolo del mecanismo del
sacrificio, mediante el cual las circunstancias se equilibran y apaciguan;
se devuelve o mantiene la calma en las relaciones con la divinidad, por
el bien de los humanos. El más destacado ejemplo de dicho mecanismo
sería la muerte de Cristo, gracias a la cual la humanidad habría quedado
redimida del Pecado Original.
El sentido sacrificial de la sangre, previamente descrito, se encontraría
presente en la performance de Regina José Galindo ¿Quién pude borrar
las huellas? (Figura 1), realizada en el año 2003. Dejando con sus pies,
untados en sangre, un rastro de huellas rojas que iban desde el Tribunal
Constitucional al Palacio Nacional de Guatemala, la artista pretendía
mantener viva la memoria de las víctimas del régimen del dictador Ríos
Montt. Sobre ellas – y, en general, sobre los violentos años de la dictadura
– se había instaurado en el país un régimen de desmemoria colectiva que
había permitido que el ex-dictador golpista reapareciese como candidato
a la presidencia en el año en que la performance fue realizada, a pesar de
que dicha candidatura fuese anticonstitucional.

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Figura 1 - Regina José Galindo, ¿Quién puede borrar las huellas?, 2003

La sangre aparece aquí, por tanto, como símbolo de la violencia ejercida


desde el poder y como representación de sus víctimas. La relación con el
ancestral significado del sacrificio, mencionado anteriormente, aparece en
el hecho de que se pretende que la sangre de esas personas sirva para evitar
un nuevo ascenso al poder de Ríos Montt. Al igual que ocurría con los
sacrificios antiguos, se trata de que el pueblo guatemalteco pueda obtener
un bienestar (paz y justicia) a cambio de esa sangre que fue derramada. Y
para ello, como hace Galindo con su acción, es necesario evitar que los
crímenes y la memoria de las víctimas de la dictadura queden olvidados. La
sangre es la que evita que esas huellas se puedan borrar y que, por tanto,
una nueva desgracia caiga sobre Guatemala, aún dolorida.
Ese mismo dolor nacional, por así llamarlo, es también el protagonista
de una performance llevada a cabo varios años antes, en 1997, por Lorena
Wolffer: Territorio mexicano (Figura 2). En este trabajo, un goteo de san-
gre cayó del techo, durante horas, sobre el cuerpo yacente de la artista.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Wolffer se encontraba en una sala que evocaba el ambiente aséptico de


un quirófano, aunque su cuerpo desnudo, maniatado y ensangrentado
recordaba más bien a ciertas prácticas sadomasoquistas. Todos los ele-
mentos de esta performance funcionaban como representación o metáfora
de otro: el cuerpo de la artista se identificaría con México, la sangre que
caía sobre él haría referencia a todos los males que aquejaban al país
(la violencia, el imperialismo ejercido desde el norte, la corrupción, el
machismo en la sociedad) y el entorno clínico, el clima de indiferencia
que existía alrededor ante tal situación. El espectador, que podía entrar
y salir de la sala cuando desease, experimentaba por tanto una situa-
ción de paralelismo: la contemplación pasiva e impasible del cuerpo de
Wolffer, atado y salpicado de sangre, equivaldría a la manera en que el
mundo reacciona ante la grave situación de México. La sangre, en este
caso, tendría la acepción de “vida”; una vida que se va perdiendo gota
a gota, de una forma dolorosa y triste.

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Figura 2 - Lorena Wolffer, Territorio mexicano, 1997

Sangre menstrual y performance feminista


Otro de los usos que se le dan a la sangre en performance, como antes
señalaba, es la visibilización de la menstruación. Abundan, en muy
diversos lugares del mundo, los trabajos artísticos realizados con esta
intencionalidad feminista de romper con el tabú, naturalizar la biología
femenina e ir poco a poco resquebrajando la imagen idealizada y artifi-

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cial de la mujer que ha construido y proyectado la mirada del hombre


(blanco y heterosexual) durante siglos.
La sangre menstrual – e incluso las mujeres durante su menstruación
– ha sido tradicionalmente objeto de rechazo por dos motivos: en pri-
mer lugar, porque toda sangre derramada sin sentido ritual o sacrificial
se consideraba impura y, en segundo lugar, porque este sangrado está
directamente vinculado con la sexualidad femenina,2 la cual el patriarcado
siempre se ha tratado de ocultar y anular. Desde Plinio el Viejo, abundan
en la literatura las falsas ideas y mitos difundidos por hombres según los
cuales las mujeres menstruantes son nocivas y se deben aislar; este tipo de
discursos son los que las artistas combaten mediante sus performances en
varios sentidos: rompiendo el tabú, denunciando el machismo implícito
en tales creencias, enfrentando al público a ese miedo o rechazo – que
no es otra cosa que a lo desconocido o lo abyecto, según el concepto
de Kristeva3 – e incluso re-purificando la sangre menstrual a través de
un uso ritual o bien apelando a la naturaleza.
En el caso concreto de América Latina, nos encontramos a priori
ante la confluencia de una cultura de origen europeo-latino-cristiano –
que condena y reprime absolutamente a las mujeres menstruantes y su
sangre – y una serie de culturas precolombinas que presentan ante este
asunto una cierta variedad de enfoques culturales; en su mayoría nega-
tivos, pero en algunos casos también positivos.4 Los escasos ejemplos
de culturas que han contemplado la menstruación como un fenómeno

2 GIRARD, René. La violencia y lo sagrado. Barcelona: Anagrama, 1983, p. 41.


3 KRISTEVA, Julia. Poderes de la perversión. Buenos Aires: Siglo XXI, 1980.
4 VASQUEZ SANTIBÁÑEZ, María Belén; CARRASCO GUTIERREZ, Ana María.
Significados y prácticas culturales de la menstruación en mujeres aymara del
norte de Chile: un aporte desde el género a los estudios antropológicos de
la sangre menstrual. Chungará (Arica), v. 49, nº. 1, p. 99-108, marzo. 2017.
Disponible en: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0717-
73562017000100006&lng=es&nrm=iso.

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positivo (mayas y aymaras son algunos de ellos) se han basado en el hecho


de que la menstruación es sinónimo de fertilidad y procreación, de la
capacidad de formar familias y de asimilación con ciertas diosas lunares/
madre como Ixchel o Tonantzin. En cualquier caso, la sangre menstrual
siempre ha servido como pretexto biológico en el que fundamentar la
división binaria entre hombre y mujer (o masculino/femenino) en la
que radican otros constructos sociales como la división del trabajo, la
distribución del poder o la identidad sexual.
He ahí el punto sobre el que se asienta la crítica feminista al reivindicar
la visibilidad de la sangre menstrual y la normalización del ciclo femenino.
Para continuar con el acercamiento al tema desde una metodología de
análisis lingüístico, se podría decir que, en el caso de la performance femi-
nista que emplea como materia base la sangre menstrual, no se trata ya
de que dicho significante tenga una pluralidad de significados posibles,
sino algo más allá: se trata de asociar con un mismo significante (la sangre
menstrual) una serie de significados opuestos a aquellos que se le han
solido dar. Esta estrategia se puede entender y llevar a cabo únicamen-
te a partir del Giro Lingüístico, según el cual no existiría una relación
sólida entre el significante y el significado, sino que tal vínculo es una
construcción cultural y, a menudo, incluso aleatoria. Basándose en esta
presuposición, las artistas contribuyen a reemplazar las connotaciones
negativas que se le han dado a la sangre menstrual por otras diferentes,
positivas. Este giro de significado deja atrás las implicaciones que tenía
la menstruación en la mentalidad judeocristiana para suplirlas por las
de aquellas otras culturas que celebraban los designios de la naturaleza
y la capacidad creadora femenina como fuente de poder.
Podemos encontrar usos performativos de la sangre menstrual, por
citar dos destacados ejemplos, en el trabajo de María Evelia Marmolejo
(11 de marzo, 1981) y en el de Priscilla Monge (Pantalones para los días de regla,

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1996). 11 de marzo (Figura 3), performance celebrada en la galería San Diego


de Bogotá, consistió en que la artista, con compresas pegadas por todo
su cuerpo salvo en su sexo menstruante, se pasease por todo el espacio
dejando chorrear la sangre sobre el papel que envolvía paredes y suelo.

Figura 3 - María Evelia Marmolejo, 11 de marzo, 1981

Se trataba de una especie de danza que parecía evocar el dripping de


Jackson Pollock, sólo que poniendo en valor la feminidad en lugar de
la masculinidad.5 La artista, por otro lado, explica su acción6 como un
evento de reconciliación con su propio cuerpo y su propia biología,
después de años de menstruaciones muy abundantes y dolorosas que
le producían vergüenza y le traían rechazo por parte de los demás (al

5 Algo parecido a lo que hizo la artista japonesa Shigeko Kubota en su acción Va-
gina painting, de 1965.
6 FAJARDO-HILL, Cecilia. El cuerpo político de María Evelia Marmolejo. Art-
Nexus, nº 85, jun./agosto. 2012. Disponible en: https://www.artnexus.com/No-
tice_View.aspx?DocumentID=24747&lan=es&x=1

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ver su ropa manchada). También señala que, a través de esta performance,


pretendía desvincularse del cristianismo en el que había sido educada – y
que concebía a la mujer como una costilla de Adán- para vincularse con
otras cosmogonías que situaban a la mujer, con su capacidad creadora,
como origen del mundo. En concreto, Marmolejo menciona un mito de
las tribus del Chocó (en la selva colombiana) según el cual fue la mujer
quien creó al primer hombre al mezclar sangre menstrual con barro.
El trabajo de la costarricense Priscilla Monge que observaremos a
continuación es Pantalones para los días de regla (Figura 4), en el cual la
artista se paseó por las calles de San José con un pantalón constituido
por compresas, donde se iba absorbiendo visiblemente su sangre. Con
esta acción, Monge se enfrenta, de una manera radical, en contra de todos
los discursos que a lo largo de la historia han condenado y demonizado
a las mujeres menstruantes, o usando su ciclo menstrual para explicar
una supuesta debilidad física o labilidad de carácter, desde el Levítico
y la Historia natural de Plinio el Viejo hasta la medicina del siglo XIX,
pasando por los tratados de afamados científicos como Ambrosio Paré.7

7 MANDEL, Claudia. La desconstrucción del “deber ser” patriarcal. Cuadernos de


Antropología, nº 17-18, 2007-2008, p. 152-154. Disponible en: http://revistas.
ucr.ac.cr/index.php/antropologia/article/viewFile/7228/6916

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Figura 4 - Priscilla Monge, Pantalones para los días de regla, 1996

Pantalón de compresas con el que Priscilla Monge realizó su acción Pantalones para los días de
regla, 1996.

Resulta llamativo que el resultado de la performance fuese un cúmulo


de reacciones de miedo, asco, vergüenza y rechazo entre la gente que la
presenció. Para entender y analizar estas actitudes, resulta útil recurrir al
concepto de “lo abyecto”, de Julia Kristeva, puesto que es en tal categoría
en la que se inscribiría la sangre menstrual. Lo abyecto sería aquello que

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difumina el límite entre el sujeto y el objeto, de tal modo que se vuelve


inclasificable, indefinido, difícil de clasificar. Las sustancias que proceden
del interior del cuerpo, al visibilizarse en el exterior, se vuelven elementos
abyectos que generan rechazo. El punto clave de la cuestión de géne-
ro se encuentra precisamente aquí: un fluido abyecto entra en directa
confrontación con el canon establecido del cuerpo femenino, según el
cual es algo bello, acabado, completo e impoluto.8 La obra de Priscilla
Monge, por lo tanto, vendría a enfrenar a los transeúntes con sus propios
miedos y rechazos, así como a poner de relieve la imagen tan artificial y
tan al servicio de los intereses del patriarcado que se ha generado de la
mujer – y, por tanto, la urgente necesidad de replantear dicha imagen y
de reconciliar a la sociedad con la realidad de la corporalidad femenina.

La sangre al mar. Consanguinidad y diásporas


La expresión Lazos de sangre da título a una performance del artista
cubano Carlos Martiel (Figura 5) realizada en La Habana en 2010. En
el sentido figurado de la expresión verbal, la sangre hace referencia a un
vínculo familiar: quienes comparten la sangre se consideran parientes,
con todo lo que ello implica. La alusión a la sangre en común a veces
se circunscribe al ámbito de la familia, pero también, en ocasiones, se
extiende a todo un país – o incluso a poblaciones más amplias – como
pretexto para fomentar o apelar a un sentimiento de cohesión social.
Es este segundo sentido el que encontramos presente en la pieza de
Martiel, quien aplica dos catéteres a sus antebrazos y los sumerge en el
mar, dejando que su sangre – entendida de manera sinecdóquica como la
sangre de los cubanos – fluya y se mezcle con el agua. El artista transforma
en esta obra una expresión lingüística en literal, arrojando su sangre al

8 Idem.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

mar como muchos cubanos lo han hecho durante décadas. Manifiesta


aquí su preocupación por un gran flujo de población migrante que la isla
pierde a través del mar;9 una población que a veces llega a otros puertos
y a veces no. En Lazos de sangre vemos de nuevo una sangre que fluye
aludiendo a la idea de un país que se desangra por motivos sociopolíticos,
como ocurría en el trabajo de Wolffer.

Figura 5 - Carlos Martiel, Lazos de sangre, 2010

La sangre como símbolo de vida y muerte


Otra acepción de la sangre, como se avanzaba al principio, es la de vida;
muy estrechamente ligada, al mismo tiempo, con la muerte. Si la sangre

9 Conversación con Carlos Martiel, e-mail, respuesta recibida el 6 de diciembre de


2016.

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derramada se identifica con la muerte (normalmente en condiciones


violentas) es porque la sangre en sí se concibe como vida.
Para este caso, merecería la pena estudiar el proyecto de Regina José
Galindo ¿De qué otra cosa podríamos hablar?, exhibido en el pabellón mexicano
de la Bienal de Venecia en 2009 (Figura 6 e 7). Si bien este trabajo no fue
una performance propiamente dicha – sino un proyecto más amplio que
incluía medios y objetos diversos; la performance entre ellos –, sí merece
la pena mencionarlo aquí por la relevancia que cobra la acción a la hora
de aportar su sentido a las obras expuestas y también debido al carácter
performativo de su producción.
Margolles presentó en el interior del Palazzo Rota Ivancich una serie
de piezas sobre telas rojizas-parduzcas – Bandera, Sangre recuperada y Nar-
comensajes – que no eran otra cosa que sábanas impregnadas en sangre
y otros fluidos corporales procedentes de cadáveres que ella misma,
junto a sus colaboradores, había recogido en escenas de asesinatos por
narcotráfico en México. Todas estas telas habían sido asimismo tratadas
con agua salada del Lido y puestas a secar a la vista de todo el mundo en
la playa veneciana. Los Narcomensajes, además, fueron bordados, sobre
estos tejidos y con hilo dorado, por las calles de la ciudad. A las obras
expuestas en el palazzo les acompañó una acción en la cual performers
mexicanos – o directamente afectados por los crímenes del narcotráfico
– fregaban los suelos en silencio con una mezcla de agua y sangre que
impregnaba el espacio con un olor ácido.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Figuras 6 e 7 - Teresa Margolles, ¿De qué otra cosa podríamos hablar?, 2009

En la imagen superior: vista de la exposición en el Pabellón de México en la 53º Bienal de


Venecia. En la imagen inferior: performer fregando el suelo del palacio con una mezcla de
agua y sangre.

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El uso y expresividad de la sangre en este trabajo de Teresa Margolles


se encuentra bastante cercano a la obra anteriormente mencionada
de Lorena Wolffer –en tanto que alude a la violencia en México y a la
indiferencia en torno a ella- y también a la acción de Carlos Martiel -al
representar metafóricamente las vidas que se pierden-, pero incluye un
matiz que valdría la pena resaltar y que suele caracterizar al trabajo de
esta artista. Se trata de la finalidad de la sangre que emplea en la obra.
En la pieza de Margolles no hay un fin redentor, como sí había en la de
Wolffler o en la de Galindo. No se trata de una sangre que evoca la de
las víctimas y que se derrama con el fin de despertar conciencias y que
esos crímenes dejen de producirse. La de ¿De qué otra cosa podríamos
hablar? es sangre procedente de esas mismas víctimas anónimas de las
que habla, y no es una obra que hable de homenaje ni de redención. No
ofrece metáforas ni soluciones: what you see is what you see.10 Esta sangre
derramada por los crímenes del narcotráfico no es, por tanto, una sangre
sacrificial ofrecida a un bien mayor o a un reequilibrio de fuerzas, sino
un derramamiento en balde – un derramamiento impuro, en términos
antropológicos y, por tanto, sin justificación moral alguna.
El breve recorrido trazado a través de este texto, que conecta varios
trabajos de artistas de distintos puntos de América Latina, demuestra que
el uso de la sangre en performance tiene una serie de significados que se
pueden enumerar y analizar uno a uno y que a menudo aparecen en cada
una de las obras combinados o superpuestos. A partir de esta propuesta
de cartografía sobre ellos, se pueden extraer una serie de claves de inter-

10 El comisario de la exposición, Cuauhtémoc Medina, mencionaba en el texto cómo


Margolles se apropiaba de la estética del minimal para parasitarla a través de un
proceso de contaminación simbólica que la resignifica en un sentido político:
Medina, C., “Espectralidad materialista”. In: MEDINA, Cuauhtémoc. ¿De qué otra
cosa podríamos hablar? Barcelona: M Verlag, 2009, p. 15-30. De igual manera,
citamos aquí el famoso eslogan del minimal para aludir a la literalidad de la
pieza, en la que la artista confronta al espectador a los vestigios reales del asesi-
nato.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

pretación semántica para el uso de la sangre en prácticamente cualquier


otra performance correspondiente al área geográfica y espacio temporal
en el que este estudio se centra. Al mismo tiempo, se ofrecen una serie
de posibilidades para interconectar obras y artistas a priori muy diversos.
Después de haber estudiado con detenimiento cada uno de estos casos,
lo que se puede observar que todos ellos tienen en común – y que, por
tanto, sería el punto de convergencia entre todos aquellos trabajos perfor-
mativos de artistas latinoamericanos que emplean la sangre – es un afán
por mostrar aquello que no es habitualmente visible. La menstruación se
oculta porque es abyecta; la sangre de las víctimas de crímenes, porque
es algo que podría desestabilizar el orden socio-político; la sangre com-
partida por miembros de una misma familia, país o grupo social no está
necesariamente escondida pero la afirmación de ciertos valores requiere
reivindicarla y evidenciarla como factor de unión. Esto lleva a concluir
que el uso de la sangre en performance, tenga los matices de significado
específicos que tenga, de modo general siempre supone una voluntad
de poner de manifiesto ciertas cuestiones que no están normalizadas,
no son obvias o se encuentran convenientemente silenciadas. Porque la
sangre misma es algo que todos sabemos que está ahí y que nos da vida,
pero, al mismo tiempo, nos perturba verla directamente. Un perfecto
paralelismo entre el contenido de la obra de arte y la materia misma que
la constituye.

Bibliografía
A.A.V.V., ¿De qué otra cosa podríamos hablar?, Barcelona, M Verlag, 2009.
CIRLOT, Juan Eduardo. Diccionario de símbolos. Barcelona: Labor, 1969.
GIRARD, René. La violencia y lo sagrado. Barcelona: Anagrama, 1983.

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FAJARDO-HILL, Cecilia. El cuerpo político de María Evelia Marmolejo.


ArtNexus, nº 85, jun./agosto. 2012. Disponible en: https://www.
artnexus.com/Notice_View.aspx?DocumentID=24747&lan=es&x=1
KRISTEVA, Julia. Poderes de la perversión. Buenos Aires: Siglo XXI, 1980.
MANDEL, Claudia. La desconstrucción del “deber ser” patriarcal.
Cuadernos de Antropología, nº 17-18, 2007-2008, p. 152-154. Disponible
en: http://revistas.ucr.ac.cr/index.php/antropologia/article/
viewFile/7228/6916
MEDINA, Cuauhtémoc. Espectralidad materialista, In:______. ¿De
qué otra cosa podríamos hablar? Barcelona: M Verlag, 2009, p. 15-30.
VASQUEZ SANTIBÁÑEZ, María Belén; CARRASCO GUTIERREZ,
Ana María. Significados y prácticas culturales de la menstruación en
mujeres aymara del norte de Chile: un aporte desde el género a los
estudios antropológicos de la sangre menstrual. Chungará (Arica),
v. 49, nº. 1, p. 99-108, marzo. 2017.  Disponible en http://www.scielo.
cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0717-73562017000100006&lng
=es&nrm=iso.

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PERFORMANCE, CINEMA E RECEPÇÃO:
UM ESTUDO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE
A LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA E
AS PERFORMANCES CULTURAIS

PABLO MARQUINHO PESSOA PINHEIRO


LISANDRO MAGALHÃES NOGUEIRA
ROBSON CORRÊA DE CAMARGO

Resumo: Este texto busca refletir sobre o lugar que o cinema e o


espectador podem ocupar nos estudos das performances, propondo uma
análise e o levantamento de possibilidades de olhares e conceitos que
relacionem a linguagem cinematográfica e as performances culturais.
Percebe-se assim que, em uma sessão de cinema, se estabelece uma
relação de comunicação poética, despertando emoções e vivências
que dialogam com diversos sentimentos específicos do público,
os quais levam os espectadores a experienciar individualmente e
coletivamente o cinema como performance cultural.
Palavras-chave: Performance. Cinema. Recepção.

Do mesmo modo que textos só existem na medida em que existem


leitores, os filmes só existem na medida em que existem espectadores.
Dessa forma, seria imprudente ignorar os espectadores em um proces-
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so de estudo do cinema, afinal, o público dedica algumas horas do seu


tempo para acompanhar os desdobramentos das histórias contadas.
Assim, exponho, aqui, relações entre o público e o cinema, com base
em estudos sobre recepção presentes em teorias que tratam da relação
entre espectadores e performances. Não é difícil perceber, nesse abrangente
leque de estudos sobre performances, um lugar próprio para o espectador,
seja ele em rituais (Turner, 1974), em apresentações cênicas (Schechner,
2011), em processos comunicativos (Bauman; Briggs, 2006) ou mesmo
durante a leitura, como propõe Paul Zumthor (2007).

Performances Culturais
O primeiro a estabelecer o conceito de performances culturais foi o
antropólogo, filósofo e psicólogo polonês Milton Singer, no ano de
1955, tomando por base o diálogo com o sociólogo Robert Redfield.
Segundo Robson Camargo (2013), o conceito de performances culturais
proposto por Singer está ligado a uma metodologia interdisciplinar, que
pretende um estudo comparativo das civilizações, de seus processos de
desenvolvimento e contaminações, entendendo a cultura por meio de
seus produtos “culturais”. Nessa metodologia interdisciplinar, Singer
propõe uma abordagem plural, com base na observação, por diferentes
olhares, sobre o mesmo ponto. Nesse contexto, a antropologia e o teatro
engrossam o caldo e se misturam a outras disciplinas, que se alternam
no ponto de observação.
De acordo com Camargo (2013), Singer acreditava que o estudo de uma
civilização não poderia se concentrar em apenas determinada disciplina
acadêmica, mas numa convergência de pensamentos que se estabelecem
entre os saberes de diferentes áreas do conhecimento. “As performan-
ces culturais colocam em foco determinada produção cultural humana
e, comparativamente, a partir dela, em contraste, procura entender as

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

outras culturas com a qual dialoga, afirmativamente ou negativamente”


(Camargo, 2013, p. 2). Esse conceito ajuda a entender determinada mani-
festação ou produto cultural com base no estudo de diversas percepções
de cultura ou sociedade em que estão inseridas, propondo uma forma
complexa e comparativa de análise desses acontecimentos, produtos,
produtores e receptores.
Segundo Camargo (2013, p. 5), Singer sugere a análise das performances
culturais tomando por base dois pontos estruturais: o social e o cultural. O
levantamento dessas estruturas resulta em dados diferentes e necessários
para determinar as derivações estruturais de qualquer tradição cultural.
Dessa forma, as performances culturais não buscam apenas o levantamento
ou o registro de determinada cultura, mas sim o estudo desta como uma
forma em processo de diálogo, considerando suas múltiplas configura-
ções, em seu processo contraditório de formação, de constituição e de
movimento do que foi, do que é e do que pode se tornar.
Para Camargo (2013, p. 11), as performances culturais são

um conceito metodológico que se estabelece no movimento


das contradições das culturas e tem como objetivo analisar
fenômenos concretos em suas distintas manifestações, identi-
ficar os elementos de mudança ou adaptação nestas tradições
contraditórias.

Os estudos das performances culturais se dedicam a uma grande varie-


dade de manifestações e de seus processos simbólicos, desde festas
tradicionais, rituais e celebrações sagradas ou profanas até o estudo de
jogos, cantos, danças diversas e também práticas espetaculares e tea-
trais. Singer destaca que essas manifestações e estruturas culturais estão
constantemente em convivência, diálogo e influência com os meios
de comunicação de massa, o que leva tanto à “modernização” como à

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construção ou reconstrução da própria “tradição”. Esse entendimento


é base para uma categoria de análise desenvolvida por ele, a partir dos
anos de 1970, fundamentando-se principalmente em Charles Peirce e
de Roman Jakobson: a “antropologia semiótica”.
Dentre os estudiosos que ajudaram a conceituar as performances culturais,
podemos destacar o diretor de teatro Richard Schechner e o antropó-
logo Victor Turner. A relação entre eles se deu com base na troca de
saberes que redirecionaram as pesquisas de cada um para novas formas
de olhar; o antropólogo foi afetado pelo teatro e o diretor de teatro
pela antropologia. Turner e Schechner perceberam pontos de diálogos
entre suas teorias e um ponto de partida para uma pesquisa conjunta,
estando Turner envolvido em estudos de rituais de passagem e tendo
criado o modelo de dramas sociais, proveniente de sua vivência com o
povo Ndembu. Assim, ele participou com Schechner da elaboração de
uma teoria da performance, que propõe dar conta de um “conjunto de
gêneros performativos encontrados em todas as sociedades do mundo
globalizado, incluindo ritual, teatro, música, dança, festas, narrativas,
esportes, movimentos sociais e políticos e encenações da vida cotidiana”
(Langdon, 2006, p. 163).
A experiência nas aldeias Ndembu possibilitou a Turner o desenvol-
vimento de sua teoria, que culminou na elaboração do modelo de drama
social, seu principal instrumento de análise e base para seus estudos em
antropologia da performance e antropologia da experiência. Para Dawsey
(2005), o modelo Turner propunha um desvio metodológico da antro-
pologia britânica, buscando detectar os substratos mais profundos do
universo social e simbólico:

Para se entender uma estrutura, é preciso suscitar um desvio.


Busca-se um lugar de onde seja possível detectar elementos

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

não-óbvios das relações sociais. Estruturas sociais revelam-se


com intensidade maior em momentos extraordinários, que se
configuram como manifestações de “anti-estrutura”. (Dawsey,
2005, p. 165).

Dessa forma, o antropólogo, imerso no campo de observação, procura


acompanhar os movimentos surpreendentes da vida social, provocando
possibilidades de comunicação com estratos inferiores, mais fundos e
amplos da vida social.
Para Turner, performance e experiência estão intrinsecamente ligadas. O
conceito de experiência proposto por ele dialoga com o entendimento que
se tem da relação entre performances culturais, cinema e público. Portanto,
percebemos um argumento de que a experiência completa a expressão
do eu e, consequentemente, do mundo. Segundo Turner (2005, p. 184),
“a antropologia da experiência encontra, em certas formas recorrentes
de experiência social – entre elas, os dramas sociais –, fontes de forma
estética, incluindo o drama de palco”. O autor relaciona a experiência com
a expressão artística, sendo essa relação o mote para a produção do perfor-
mer. Dessa forma, a experiência se faz presente, também, na recepção do
público e é responsável pela compreensão e pelo entendimento da obra.
Entendemos, então, a performance como um fenômeno de caráter estético
e com diálogos de experiências entre quem a produz e quem a recebe.
Para Turner (2005), a experiência social é o gatilho que desperta a
produção em diferentes formas estéticas. O autor tece pontos de contato
entre teatro e antropologia, o que aproxima sua teoria de nosso entendi-
mento de que o cinema configura situações características de performances
culturais. Dessa forma, ele é percebido como representante do mundo
e da vida humana, de maneira que seria improvável em outras formas
narrativas. O cinema criou um universo visual com uma nova forma de

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apresentar a “realidade”, que interferiu significativamente na maneira


de representar e conceber o mundo e a vida humana. Roberto Abdala
Júnior e Micheline Madureira Lage (2015, p. 347) argumentam que

a câmera cinematográfica invadiu, por assim dizer, um mundo


que não se permitia apreender, dando a ver e conhecer outros
aspectos do real, como inventou alternativas de observação
do homem em suas práticas e encenações da e na vida, inau-
gurando uma linguagem que “coloca em cena” experiências
humanas de forma, absolutamente, inusitada.

Para Abdala Júnior e Lage (2015), uma sessão de cinema propicia um


momento próprio de fruição estética e performances culturais, no qual o
espectador experimenta um mundo de outro apresentado em cenas. Os
autores lembram que essa relação de comunicação se aproxima dos con-
ceitos de performances propostos por Bauman e Briggs, ressaltando que o
caráter tecnológico do cinema apresenta uma comunicação diferenciada
daquelas descritas por esses autores, mas que os momentos de rompime­nto
no fluxo de comunicação cotidiana sinalizam o cinema como um even­to
performático, em razão de seu caráter estético e apelo à experiência.
Esther Jean Langdon (2006) apresenta a importante participação de
Richard Bauman e Charles Briggs no processo de desenvolvimento da
teoria da performance nos estudos antropológicos nos Estados Unidos,
partindo dos estudos de folclore, sociolinguística e antropologia. Para
Langdon (2006), Bauman definiu o campo de pesquisa em arte verbal
com a publicação do artigo “Verbal art as performance”, em 1975, e o
livro publicado dois anos depois com o mesmo título. Segundo a autora,
é nesses trabalhos que Bauman estabelece a performance como um evento
comunicativo no qual a função poética é dominante. Essa leitura se faz
ao entender que “a experiência invocada pela performance é consequência

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

dos mecanismos poéticos e estéticos produzidos através de vários meios


comunicativos simultâneos” (Langdon, 2006, p. 166).
Bauman e Briggs são estudiosos da sociolinguística e da preocupa-
ção com o papel da linguagem na vida social. Para eles, os estudos das
performances buscam compreender o papel da linguagem e da poética na
vida social e cultural. Para esses autores:

A pesquisa centrada na performance pode gerar uma maior


compreensão de diversas facetas do uso da linguagem e suas
interrelações. Já que as contrastantes teorias da fala, e suas
preposições metafísicas correlatas, abarcam mais do que apenas
o evento de discurso em si, os estudos de performance podem
abrir um campo mais amplo de perspectivas sobre como a
linguagem pode ser estruturada e quais papéis pode exercer
na vida social. (Bauman; Briggs, 2006, p. 189).

Bauman e Briggs (2006) acreditavam que o uso artístico da lingua-


gem na condução da vida social não deveria ser visto apenas de forma
secundária e derivativa, como vinha sendo tratado por antropólogos e
linguistas, que acreditavam que seu uso estético atua de forma periféri-
ca, ou mesmo parasitária, em relação às áreas “centrais” da linguística,
como, por exemplo, a fonologia, a sintaxe e a semântica. Nas palavras
de Bauman e Briggs (2006, p. 215), “o foco no uso artístico da lingua-
gem na condução da vida social abriu caminho para uma compreensão
da performance enquanto constitutiva socialmente e eficaz, não apenas
secundária e derivativa”. Para os autores, o estudo da performance oferece
um enquadramento que convida à reflexão crítica sobre os processos
comunicativos. Embora as pesquisas desses autores tenham como foco
a arte verbal e as tradições orais, suas teorias são aplicáveis a diversas
outras situações de performances, como o cinema.

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Langdon (2006) recorre a Roman Jakobson para apresentar a fun-


ção poética nas performances como um atributo que ressalta o modo de
expressar a mensagem:

A performance é um evento situado num contexto particular,


construído pelos participantes. Há papéis e maneiras de falar
e agir. Performance é um ato de comunicação, mas como
categoria distingue-se dos outros atos de fala principalmente
por sua função expressiva ou “poética”. (Jakobson, 1960 apud
Langdon, 2006, p. 167).

Bauman e Briggs argumentam que os performers e a audiência não devem


ser tratados apenas como fontes de dados, mas como parceiros intelectuais
que podem fazer contribuições teóricas substanciais. Esse pensamento é a
essência da abordagem por eles desenvolvida e trata como as performances
são construídas pelos participantes do evento, examinando o evento e o
ato artístico. “A função poética ressalta o modo de expressar a mensagem e não o
conteúdo da mensagem” (Langdon, 2006, p. 167, grifo nosso).
Abdala Júnior e Lage (2015, p. 349) apresentam ainda os “diálogos
com a cultura histórica” que pode se estabelecer com base em filmes
de temática histórica, propondo “uma interação semiótica com a cultu-
ra histórica do público”, criando-se uma situação performática. Essas
situações apontadas pelos autores ficam evidentes em outros pontos
de diálogos entre os filmes e as experiências do público. Paul Zumthor
aprofunda essa questão.

Performance, recepção e cinema


Em seu livro Performance, recepção, leitura (2007), Zumthor apresenta a
ideia da recepção performancial de uma obra. Para o autor (2007, p. 50),
“a performance é o momento da recepção: momento privilegiado, em

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

que o enunciado é realmente recebido”. Ao destacar Zumthor e sua teo-


ria sobre a “recepção do texto poético” como recepção performancial,
podemos estabelecer um diálogo profundo com a recepção em cinema.
Ao falar que a posição do corpo e as características do espaço são deter-
minantes para a máxima percepção no ato da leitura, Zumthor apresenta
requisitos que também atuam no processo de recepção cinematográfica,
principalmente no que tange às características do espaço, que contribuem
para o envolvimento do espectador em um efeito poético e de prazer
estético popularmente conhecido como “magia do cinema”.
Como espaço de exibição de filmes, o cinema proporciona ao espec-
tador uma intenção semiótica: primeiramente uma abertura para a inter-
pretação de signos que ele poderá ler diretamente, com finalidade de
análise, e intenção semiótica como o desejo de nos introjetar no momento
presente projetado. O espectador rompe com o espaço “real”, a tela se
torna uma fissura pela qual ele se transporta para um mundo imaginá-
rio e ambiguamente real. Para Féral (2003, p. 96, tradução nossa), aqui
se estabelece uma situação performancial que, nas palavras da própria
autora, “aparece, então, como uma operação cognitiva, e eu diria mais
precisamente fantasmática. Ela é um ato performático daquele que con-
templa e daquele que desempenha”. Assim, o espectador imerge nesta
situação de performance com sua individualidade, imaginário e experiência.
Bauman e Briggs (2006) explicam que a performance é uma ação que
convida a uma reflexão crítica em um processo comunicativo. Consideram
que a comunicação é uma ação dialógica, logo nenhum dos envolvidos,
“atores” e “audiência”, atuam de forma passiva. Todos os envolvi­dos neste
processo comunicativo devem ser tratados como parceiros cognitivos
que fazem contribuições substanciais ao processo comunicativo. Para os
autores (2006, p. 207), na performance “a encenação da função poética, é
um modo de comunicação altamente reflexivo”.

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Ao tratar da relação entre performance e leitura, Zumthor (2007) distin-


gue a performance que existe quando o poema está em cena, ao passo que
a leitura está relacionada ao poema atuando no interior de um corpo e
de um espírito. Para ele, o modelo teatral apresenta a complexidade dessa
relação. Zumthor convoca o poeta e diretor teatral Artaud para evidenciar
o entendimento da relação entre performance e leitura para o teatro. Zumthor
(2007, p. 61-62) reconhece o modelo teatral como representante de toda
complexidade da prática poética, pois, “o texto teatral procede de uma
escritura, enquanto sua transição requer a voz, o gesto e o cenário; e sua
percepção, escuta, visão e identificação das circunstâncias”. Nesse sentido,
uma apresentação teatral parte da leitura e da interpretação de um texto
escrito. Continua Zumthor (2007, p. 62): “assistir a uma representação
teatral emblematiza, assim, aquilo ao que tende – o que é potencialmente
– todo ato de leitura”. Em sua raiz, o texto teatral e o texto poético são
semelhantes, emocionam e despertam sensações nos leitores. Entretanto,
o texto teatral se desprende das linhas fixas, passa a apresentar as expe-
riências dos performers, suas interpretações e identidades.
O cinema segue essa necessidade de transformar personagens, cená-
rios e sons em uma narrativa poética. O cinema é, de certa forma, o
teatro na era da reprodutibilidade técnica. A presença dos atores é uma
condensação da cena teatral em certo sentido, o cinema é teatro con-
densado, ou melhor ainda, cena cinematográfica é uma vaporização da
cena teatral. Partindo de um texto, o diretor, os atores e toda a equipe
técnica propõem uma “leitura” que será interpretada/vivenciada pelos
espectadores. O cineasta Bruno Barreto, ao realizar o filme O beijo no
asfalto (1981), fez uma “leitura” para o cinema do texto dramático de
mesmo nome, do dramaturgo Nelson Rodrigues. Para Zumthor (2007,
p. 62), “escrito, o texto é fixado, mas a interpretação entregue à iniciativa
do diretor e, mais ainda, à liberdade controlada dos atores, de sorte que

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

sua variação se manifesta, em última análise, pela maneira que é levado


em conta por um corpo individual”. Ao assistir O beijo no asfalto (1981),
o espectador faz uma leitura com base naquela que o diretor fez sobre
o texto de Nelson Rodrigues. O filme é uma realização poética do dire-
tor, mas se será ou não percebido e vivenciado como poesia dependerá
individualmente de cada espectador.
Os filmes podem ser associados ao texto poético no que tange às
diferenças entre texto literal e poético. A narrativa cinematográfica
diferencia o filme do registro audiovisual e, tanto o texto poético quan-
to o filme, proporciona aos leitores e espectadores um prazer estético
que transcende a necessidade da informação presente no texto literal e
no registro audiovisual. Ao falar da comunicação “poética”, Zumthor
(2007, p. 64) esclarece:

O fato de base, que constitui em poética essa comunicação, é,


lembro-o, sua tendência ou sua aptidão para gerar mais prazer
do que informação: alcance geral que acentua o elemento
hedônico, sem que a informação seja necessariamente negada,
tanto faz; a maior parte dos textos literários são também, em
certa medida, informativa, mas sua função informativa passa
para segundo plano.

No cinema, o espectador faz uma “leitura” da narrativa cinematográ-


fica, interpreta e dá sentido a um conjunto de sensações múltiplas que
estão ligadas ao ato de “ver” um filme. Essa forma de “ver” um filme
difere o cinema de um registro audiovisual.
Para Zumthor (2007), a performance é um ato único de participação,
constituído de transmissão e recepção, que gera prazer. Segundo o autor
(2007, p. 69), “na situação performancial, a presença corporal do ouvinte
e do intérprete é presença plena, carregada de poderes sensoriais, simulta-

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neamente, em vigília”. Assistir a uma sessão de cinema é participar de um


processo de recepção, no qual todos os sentidos do corpo, a intelecção
e a emoção se encontram misturados simultaneamente. Dessa forma,
corroborando a ideia de Zumthor (2007) ao escrever que a presença se
dá quando há a adesão à comunicação poética e esta acontece de forma
tão intensa que compromete as energias corporais, percebemos o cinema
como um tipo de performance, cuja diferença reside apenas na intensidade
ou qualidade da presença.
Ao discutir a leitura de uma poesia como presença, Zumthor (2007,
p. 81) ressalta que “a percepção é profundamente presença. Perceber
lendo poesia é suscitar uma presença em mim, leitor”. Nesse caso,
podemos entender o espectador como um corpo poético que sente a
energia poética carregada de presença. Por sua vez, a performance é uma
comunicação poética em que todos os envolvidos sentem e reproduzem
essa energia de forma prazerosa.
Podemos, assim, dizer que o espectador, em uma performance artística,
dedica-se a ela de “corpo e alma”. No cinema não é diferente: para que
essa dedicação seja o mais eficiente possível, o espectador é preparado
e tem seu corpo suscetível a inúmeras provocações sensoriais provo-
cadas pelas imagens projetadas já que os bancos são confortáveis, o
som é distribuído de forma a propiciar melhor qualidade de efeitos e a
tela iluminada no espaço escuro não permite que sua atenção escape a
estímulos externos. Esses elementos foram organizados e pesquisados
para garantir uma capacidade máxima de recepção, de forma a permitir
ao espectador o arrepio, o coração acelerado, as lágrimas e uma série de
movimentos involuntários próprios do corpo.
O corpo se estabelece, dessa forma, como um aparato sensorial pelo
qual acontece a recepção. O espectador sente a performance do cinema

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

com os poros abertos para absorver a energia poética. No cinema, os


performers atores não estão presentes, apenas condensados, assim o filme
iluminado libera as energias e suas presenças sobre os espectadores. Essa
ideia dialoga com o modelo performancial que Zumthor (2007, p. 69)
propôs para a leitura:

Na leitura, essa presença é, por assim dizer, colocada entre


parênteses; mas subsiste uma presença invisível, que é mani-
festação de um outro, muito forte para que minha adesão
a essa voz, a mim assim dirigida por intermédio do escrito,
comprometa o conjunto de minhas energias corporais.

No cinema, parafraseando Zumthor, podemos dizer que a presença


ausente dos atores é a imagem capturada, visível e invisível, vaporizada
e condensada, manifestação de uma presença que se faz ausente fisica-
mente, mas que se presentifica imaginariamente, para que comprometa
o conjunto de minhas energias corporais. Ao tratar da recepção durante
a leitura, Zumthor (2007) afirma que o corpo absorve a energia poética
e, em nossa individualidade, essa energia se transforma em poesia de
acordo com nossas experiências. É nessa transformação que o sujeito
encontra a obra e, de maneira indivisivelmente pessoal, acontece a per-
formance neste espaço coletivo.
Zumthor (2007) destaca algumas características que ajudam a enten-
der a relação entre recepção e performance. Para o autor, a performance é
imediatista, situada no momento presente, ao passo que a recepção
designa um processo que tem duração imprevisível, podendo ser mais
ou menos longa, se projetando no espaço. Assim, a performance é o ato
prático do performer, ao passo que, a recepção pode ser entendida como
seus desdobramentos. Segundo ele (2007, p. 50), “pode-se hoje falar da
recepção de Virgílio e de Homero; mas nos situamos a uma tal distância

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temporal desses autores que o termo performance não tem mais sentido
em relação a eles”. O próprio Zumthor admite que os meios audiovi-
suais modificaram as condições da performance, destoando um pouco do
esquema esboçado por ele. Entretanto, ressalta que as modificações não
tocaram na natureza da performance. Os meios audiovisuais proporcionaram
às performances o aumento de sua duração em termos reprodutivos, pois
uma performance pode ser repetida indefinidas vezes e, com isso, aumen-
ta, proporcionalmente, a abrangência da recepção, ecoando no tempo.
De acordo com Zumthor (2007), com base na leitura do texto o leitor
cria as imagens e completa as tramas por meio de uma ilusão própria da
arte. Esses elementos de ilusão e performance defendidos pelo autor podem
ser percebidos também em outros espaços de produção artística, como
o teatro e o cinema, pois tanto em um quanto em outro o espectador
é envolvido de forma a construir sua própria ilusão. O cinema é um
eficaz aparato sensorial de comunicação com o público, instaurando-se
com uma competência tecnológica capaz de “criar ilusão” com base em
forças que se expressam e se revelam pelo olhar.
Podemos estabelecer aqui um diálogo com o conceito de teatralidade
proposto por Josette Féral (2003). A autora escreveu inúmeros ensaios
tratando da relação do espectador com a teatralidade que, para ela, não
é um fenômeno estritamente teatral, e sim um processo que cria um
espaço virtual por meio do “olhar”. Esse espaço pertence ao outro, é o
caminho por onde a ficção pode emergir. Ao falar do papel da teatrali-
dade, do lugar na construção da teatralidade da cena, a autora nos ajuda
a entender a relação do espectador com o cinema.
Segundo Féral (2003), o espaço libera para o espectador elementos que
compõem a cena mesmo sem a presença do ator ou o início da repre-
sentação. Isso acontece porque o espectador sabe que naquele espaço

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

acontecerá uma performance e esse saber direciona seu olhar. Assim, o


espaço é fundamental para a teatralidade, porque prepara o espectador
para a performance que será representada. A autora ressalta que o espaço,
por si só, não é determinante para a teatralidade; é necessário que o
espectador reconheça e construa o espaço ficcional.
Nicolas Evreinoff (1927), dramaturgo e pensador russo do início
do século XX, fala da teatralidade e das relações do espectador com o
teatro. Para ele, há o momento da percepção teatral, um acordo silen-
cioso entre o espectador e o ator, no qual o primeiro aceita adotar
determinadas atitudes em respeito ao ator e este, por sua vez, compro-
mete-se a permanecer fiel à atitude concedida até onde seja possível. O
espectador assume essa postura e abre-se para receber a comunicação
poética, sabendo que o céu pintado no pedaço de pano não é real, mas se
esforçando para percebê-lo como autêntico. Quanto mais o espectador
se distancia da realidade do cenário, procurando receber a mensagem
estética que o performer está transmitindo, mais emotivo ele se torna.
“Desde o princípio até o final, o teatro é uma mentira, uma ilusão, uma
mentira premeditada, uma ilusão premeditada. Entretanto, a mentira
é tão encantadora e a ilusão tão fascinante, que sem ela não valeria a
pena viver em nosso mundo” (Evreinoff, 1927, p. 141). Para o autor,
a recepção é o momento em que nos distanciamos de nossa realidade
e embarcamos na ilusão, que se revela um elemento vital. Se o teatro
estabelece uma mentira premeditada, o cinema a projeta.
Considera Féral (2003, p. 34, tradução nossa) que “para que a ilusão
seja perfeita, depende menos da complexidade das técnicas utilizadas que
do acordo profundo entre ator e público”. A ilusão pode acontecer no
mais pobre circo sem lona, a depender apenas do esforço de palhaços,
mágicos e acrobatas em dar o melhor para convencer o público, assim
como o público não levará em conta a precariedade do picadeiro, sen-

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do guiado apenas pela comunicação poética com os artistas. Essa ideia


dialoga com a intenção de alguns cineastas contemporâneos, que julgam
a história contada mais importante do que o aparato cinematográfico
que a capturava, produzindo filmes com tecnologias audiovisuais mais
acessíveis. O consumo desses filmes depende do entendimento e da
aceitação do público quanto à forma com que ele foi produzido.
Ao falar do jogo existente entre quem produz e quem recebe a ima-
gem, Ismail Xavier (2003, p. 35) afirma que

para iludir, convencer, é necessário competência, e faz parte


dessa saber antecipar com precisão a moldura do observador,
as circunstâncias da recepção da imagem, os códigos em jogo.
Embora pareça, a leitura da imagem não é imediata. Ela resulta
de um processo em que intervém não só as mediações que
estão na esfera do olhar que produz a imagem, mas também
aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe. Este não
é inerte, pois, armado, participa do jogo.

A teatralidade presume um acordo entre ator e espectador, no qual este


só vivencia essa ilusão quando assume o estado de receptor e permite que
haja uma troca de sensações poéticas entre o performer e o espaço. Assim
é também a “cinemalidade” que se estabelece no escurinho do cinema:

A teatralidade não está ligada às formas artísticas e, tampouco,


estéticas. O que está funcionado aqui é o consenso, o público
aceita um acordo inicial, e aceita prolongar a situação jogando
o jogo, mantendo certos limites que estão implícitos a situação.
(Féral, 2003, p. 34, tradução nossa).

Dessa maneira, a teatralidade é um fenômeno que depende, em grande


parte, do espectador, que será também responsável por sua construção.
Quando o espectador vai ao cinema, ele inicia um jogo com o filme.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

A diferença em comparação ao teatro é que o filme já está pronto e a pre-


sença do espectador não poderá interferir imediatamente em sua construção
física, pois os fotogramas estão já determinados, mas não a sua recepção.
Além disso, os performers que conceberam a obra não recebem o retorno
dessa comunicação poética. A informação é enviada e o espectador decidirá
se a recebe de forma prazerosa e como as operacionaliza afetivamente.
Souza (2014) fala da recepção fílmica e sobre como nossas experiências
e identidades podem determinar esse processo:

Definitivamente, o cinema participa da construção incessante


do que podemos articular como possível ou impossível, como
real ou irreal, da construção do nosso imaginário, enfim. A
maneira como vemos um filme é sempre ativa e relacionada
com as etapas e circunstâncias históricas que vivemos coleti-
vamente e que, por certo, estão marcadamente relacionadas
com nossas intimidades, ou (ex) timidades, conforme uma
expressão lacaniana. A recepção de um filme é ato dinâmico
e se relaciona com a produção de nossas identidades, das dife-
renças que nos incluem e excluem, com nossa humanidade.
(Souza, 2014, p. 6).

Para Souza (2014), a recepção fílmica é um processo intrínseco, no


qual apenas o espectador exerce influência sobre ele. “Um filme tam-
bém é aquilo que fazemos dele, o que sentimos e como interpretamos
ao que assistimos, seja na sala escura, seja ao abrigo de nossas casas”
(Souza, 2014, p. 5). Dessa forma, a comunicação poética entre performer
e espectador depende de um acordo entre eles, mas a recepção depende
principalmente do espectador. O filme apresenta uma comunicação de
via única, no qual a recepção depende também do espaço no qual ele é
apresentado. Ademais, pode ser recebido de determinada forma quando
assistido no cinema e de outra quando esse contato ocorre em outro

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espaço, como, por exemplo, a sala de casa. Tal observação não opera em
detrimento do filme em relação ao cinema, mas, ao contrário, permite
sublinhar, por meio dessa diferença, a especificidade da sala de cinema
como espaço cênico que potencializa a recepção performancial do filme.
Zumthor (2007) defende o espaço como elemento que permite ao
espectador deslocar-se da realidade para a ilusão na qual acontece a
performance. Ao falar da relação entre performance e teatralidade, o autor
afirma que

a condição necessária à emergência de uma teatralidade per-


formancial é a identificação, pelo espectador-ouvinte, de um
outro espaço; a percepção de uma alteridade espacial marcan-
do o texto. Isso aplica alguma ruptura com o real ambiente,
uma fissura pela qual, justamente, se introduz essa alteridade.
(Zumthor, 2007, p. 41).

A identificação espacial por parte do espectador acontece de forma


equivalente no cinema. O teatro utiliza elementos cênicos para construir
a ilusão estética que será apresentada, assim como o cinema utiliza ele-
mentos próprios que também constroem a teatralidade e a cinemalidade
espacial, guiando o espectador para a ilusão artística que será projetada.
Para ilustrar melhor tal ideia, observemos o que diz a personagem
Lisbela (interpretada por Débora Falabella), do filme Lisbela e o Prisio-
neiro (2003), uma adaptação do romance de Osman Lins. Ao comentar
elementos cênicos que o cinema utiliza para criar uma ilusão e trans-
portar o espectador para outro lugar, a personagem afirma: “Eu adoro
essa parte, a luz vai se apagando devagarzinho, o mundo lá fora vai
se apagando devagarzinho, os olhos da gente vão se abrindo, daqui a
pouco a gente não vai nem mais lembrar que está aqui” (Lisbela, 2003).
Quando a sala de cinema fica totalmente escura, a projeção na tela é

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

o único ponto que interessa ao espectador, funcionando como uma


fissura que o transporta para o filme. “No caso do cinema é necessário
mencionar que quando assistimos a um filme nos transportamos para
outros mundos imaginários, outros locais e outras paisagens” (Souza,
2014, p. 11). Esse transporte acontece quando o espectador se desliga
do mundo real e embarca na ilusão fílmica.
Para Xavier (2003, p. 18), o cinema alterou consideravelmente a relação
entre a performance e o espectador: “a força das emoções, o dinamismo
da imagem e o processo de projeção-identificação criam no espectador
cinematográfico um senso de estar dentro da cena”. Essa sensação é
própria do cinema e dificilmente pode ser percebida com a mesma
intensidade diante de um quadro ou mesmo da representação teatral. De
acordo com o autor (2003, p. 18), “esse salto imaginário para o ‘outro
espaço’ é favorecido pelo cerco que o olho variável do cinema pode
fazer em torno de qualquer situação dramática, em especial através do
campo/contra campo”.
Essa sensação de “estar no filme” ou ser transportado para ele é comum
nas sessões cinematográficas e, também, em muitas outras performances,
estabelecendo uma forma de presença do espectador de cinema na
obra. Podemos perceber uma forte ligação dessa ideia de transporte do
espectador no modelo de performance proposto por Schechner (2011), a
performance transportadora/transformadora. Nele, o autor aborda o salto
do performer para “outro espaço” e afirma que as performances podem ser
divididas em transporte e transformação. A primeira pode ser definida
pela “ida e volta” do performer, um transporte temporário que não afeta
diretamente a vida do indivíduo. Já a performance de “transformação”
busca a mudança de um status ou identidade social para outro. Schechner
ressalta que esses dois modos de performance não são antagonistas, pelo

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contrário, estão sempre em diálogo e, muitas vezes, uma performance de


transporte pode culminar em uma transformação.
O modelo proposto por Schechner aborda, principalmente, o trans-
porte e a transformação tomando por base a figura do performer, mas
não exclui a audiência nesse processo. Para Schechner (2011, p. 70),
“de um ponto de vista do espectador, uma entrada para a experiência
é ‘movida’ ou ‘tocada’ (metáforas apropriadas) e depois deixada onde
aconteceu”. Portanto, o modelo de performances de transporte afirma
que elas acontecem quando o indivíduo é levado a outro lugar e, ao
fim, é trazido de volta ao lugar de origem, no mesmo ponto em que
saiu. Esse autor definiu o transporte para outro lugar como a viagem
para a ilusão da arte. Podemos nos apropriar desse modelo para dizer
que o espectador, em uma sessão de cinema, experimenta uma série de
sensações que lhe permitem viajar no tempo e no espaço, na medida
em que é transportado para o filme. Contudo, quando o filme acaba e
as luzes da sala se acendem, ele retorna para sua vida no mesmo ponto
em que a deixou, transportado/transformado.
O espectador é transportado para o filme e dele participa de forma
privilegiada, pois passa a conhecer os segredos da trama, visita cidade
imaginárias ou épocas distantes, e, ao fim da sessão, volta para sua vida
cotidiana. Ele participa do filme, mas não interfere na história. Como
já mencionado, para que a recepção aconteça plenamente é necessário
um acordo entre espectador e performer. O primeiro deve aceitar que está
diante de uma obra de ficção, de um mundo imaginário, “na condição
de quem aceita o jogo do faz de conta, de quem sabe que está diante
de representações e, portanto, não vê cabimento em discutir questões
de legitimidade ou autenticidade no nível da testemunha no tribunal”
(Xavier, 2003, p. 34). O cinema apresenta uma geografia, ambientes e
corpos que só existem projetados na tela. Esses “corpos imaginários”

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

são criados para guiar o espectador pela ilusão. Não lhe cabe questionar
a veracidade do que assiste, pois a arte não apresenta uma questão de
verdade. Ao fazê-lo, o espectador rompe com o acordo que assinou ao
entrar no cinema e, dessa forma, a recepção, que depende em grande
parte do aceite no jogo de ilusão, só será eficiente apenas na medida em
que o público se dedicar com a plena participação de sua subjetividade
e experiência.
Ao aceitar o jogo, o espectador ocupa uma posição privilegiada de
estar no mundo sem assumir encargos, de estar presente sem participar
do mundo observado. É o que Xavier (2003) chama de “olhar sem
corpo”, pois é puro olhar, invisível, um olhar que ocupa posições sem
comprometer o corpo, permitindo-lhe acesso ilimitado. Nas palavras do
próprio autor (2003, p. 37):

Na ficção cinematográfica, junto com a câmera, estou em


toda parte e em nenhum lugar; em todos os cantos, ao lado
das personagens, mas sem preencher espaço, sem ter presença
reconhecida. Em suma, o olhar do cinema é um olhar sem
corpo. Por isso mesmo ubíquo, onividente. Identificado com
esse olhar, eu espectador tenho o prazer do olhar que não
está situado, não está ancorado – vejo muito mais e melhor.

Segundo Xavier (2003), para que haja a ilusão e, consequentemente, o


transporte do espectador, é necessário que ele se envolva com o aparato
cinematográfico, ou seja, que haja um envolvimento entre o olhar do
espectador e o olhar da câmera. Essa é uma relação de entrega na medi-
da em que o cinema clássico não exige de seus espectadores nenhum
conhecimento especial, apenas receptividade. O autor comenta sobre
a incidência do olhar sem corpo no espectador que vivencia no cinema
a percepção total:

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Na sala escura, identificado com o movimento do olhar da


câmera, eu me represento como sujeito dessa percepção total,
capaz de doar sentido às coisas, sobrevoar as aparências, fazer
a síntese do mundo. Minha emoção está com os “fatos” que
o olhar segue, mas a condição desse envolvimento é eu me
colocar no lugar do aparato, sintonizado com suas operações.
Com isso, incorporo (ilusoriamente) seus poderes e encontro
nessa sintonia – solo do entendimento cinematográfico – o
maior cenário de simulação de uma onipotência imaginaria.
(Xavier, 2003, p. 48).

Xavier (2003) nomeou esse fenômeno como o “olhar sem corpo”


ao considerar o filme como um ato de ver, um diálogo na esfera do
olhar, entre quem produz a imagem e quem a recebe. Para o autor, o
cinema multiplica os recursos de representação e intensifica a recepção
do espectador. O “olho sem corpo” torna tudo mais claro e expres­
sivo, envolve a plateia com uma força impensável em outras formas de
representação. Conforme explica, isso é possível porque a mediação do
olhar cinematográfico otimiza o efeito da ficção, tornando o mundo um
lugar palpável aos olhos da plateia.
Dessa forma, o espectador que não aceita participar do jogo, não será
transportado para a cena e, assim, não decifrará os códigos ocultos nela.
Não seria arbitrário dizer que a poesia não se dá no texto, ela acontece
no leitor. Palavras escritas em papel serão apenas palavras para uns, ao
passo que, para outros, elas atingirão de forma significativa suas subje-
tividades. Assim, as palavras serão poesia apenas para quem as sentir.
Em seu início, o cinema foi visto pelos irmãos Lumière como um
entretenimento passageiro que logo sairia de moda. Porém, outros cineas-
tas perceberam nele uma possibilidade de narrativa capaz de atingir o
espectador com um conjunto de percepções sensoriais. Já nas primeiras

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

experiências do cinema clássico, os filmes seguiam uma estrutura simples,


pautada pelo antagonismo de personagens de valores opostos, além de
alternar momentos de desolação e desespero com outros de serenidade
e harmonia.
Os espectadores são envolvidos na trama pelas ações que se desdobram
em surpresas e reviravoltas, combinadas a uma primorosa organização
dos efeitos cênicos, como as músicas que antecedem e intensificam os
momentos de tensão. No cinema, essas impressões se ampliam, favore-
cidas, principalmente, pela técnica e pelos efeitos próprios da narrativa
cinematográfica, como o enquadramento de planos. Dessa forma, as fortes
emoções aparecem como recursos centrais para seduzir o espectador.
Diferentemente de em outras mídias, ele deixa a postura testemunhal e
se torna participante.
Zumthor entende a comunicação como ato que não está apenas
na transmissão da informação entre os interlocutores. Para ele (2007,
p. 52), comunicar é tentar mudar aquele a quem se dirige, “receber uma
comunicação é necessariamente sofrer uma transformação”.
Ao tratar da comunicação poética entre o leitor e o texto durante a
recepção performancial, Zumthor (2007) propõe que essa comunicação
pode transcender o transporte e culminar em uma transformação. Estas
são tratadas pelo autor como emoções puras que o texto dotado de carga
poética causa no leitor. Desse modo, a comunicação poética – seja no
texto, teatro ou cinema – transforma completamente a lógica, a con-
tinuidade de nossas emoções, as causas e os efeitos que regem nossos
pensamentos. Isso acontece porque o texto, o teatro e o cinema têm
suas próprias verdades, que nada têm a ver com as verdades cotidianas
de nossa realidade.

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Compreendemos que a sessão de cinema é um espaço que possibili-


ta uma relação de comunicação poética entre filmes e espectador, que
desperta emoções que dialogam com diversos sentimentos específicos,
os quais levam cada espectador a experienciar individualmente suas
próprias reações em um nível de resposta pessoal através do transpor-
te para o mundo imaginário da ilusão fílmica. Entendemos que esse
transporte proporciona uma situação performancial, que acontece por
casa do efeito da comunicação poética. A performance da presença no
cinema estabelece um ator ou uma atriz que está em toda parte, oculto,
mas projetado, como corpo potencial. O olhar do cinema é um olhar
de um corpo presente para outro virtual, ausente, mas presente, ubíquo,
onividente, transparente. Um corpo condensado que evapora, aparente
que transporta e transforma.

Referências
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e performances culturais: quando a história entra em cena. In:
CAMARGO, Robson Corrêa de; PETRONILIO, Paulo; CUNHA,
Fernanda. (org.). Performances da cultura: ensaios e diálogos. Goiânia:
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BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles. Poética e performance como
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Antropologia, Florianópolis, v. 8, n. 1-2, p. 185-229, jan. 2006.
CAMARGO, Robson Corrêa de. Milton Singer e as performances
culturais: um conceito interdisciplinar e uma metodologia de análise.
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DAWSEY, John Cowart. Victor Turner e a antropologia da experiência.
Cadernos de campo, São Paulo, n. 13, 2005.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

EVREINOFF, Nicolas. The theatre in life. New York: Brentano’s, 1927.


FÉRAL, Josette. Acerca de la teatralidad. Buenos Aires: Nueva Generación,
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JAKOBSON, Roman. Closing statement: Lingüístics and poetics.
In: SEBEOK, Thomas A. (org.). Style in Language. Cambridge, Mass.:
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Briggs. Ilha – Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 8, n. 1-2, p. 162-
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LISBELA e o Prisioneiro. Direção de Guel Arraes. Brasil: Paula
Lavigne; Fox Film do Brasil, 2003.
SCHECHNER, Richard. Performers and spectators – transported
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jan./jun. 2011.
SOUZA, Maria Luiza Rodrigues. Modos de ver e viver o cinema:
etnografia da recepção fílmica e seus desafios. Revista Brasileira de
Estudos de Cinema e Audiovisual, ano 3, 5. ed., p.1-16, jan./jun. 2014.
TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis:
Vozes, 1974.
TURNER, Victor. Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em antropologia
da experiência (primeira parte), de Victor Turner. Cadernos de Campo,
São Paulo, n. 13, p. 177-185, 2005.

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XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, cinema


novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção e leitura. São Paulo: Cosac
Naify, 2007.

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PONTOS DE CONTATO ENTRE O CINEMA
E AS PERFORMANCES CULTURAIS

WERTEM NUNES FALEIRO


LISANDRO NOGUEIRA

Resumo: É possível estudar o Cinema Clássico sob o viés interdis-


ciplinar das Performances Culturais? Para responder essa questão,
verificamos maneiras de relacionar os dois campos confrontando
autores e elementos da forma e conteúdo da linguagem cinemato-
gráfica com textos de Schechner, expoente teórico das performances.
Encontramos pontos de contato que contribuem para assentar
pesquisas entre as duas áreas e servir como ponto de partida para
outros estudos.
Palavras-chave: Cinema. Performances Culturais. Melodrama.
Ritual. Drama.

Ao caminhar por um terreno promissor, mesmo um movediço e


sinuoso como o das performances, e na impossibilidade de definir o que
não se quer definível, buscamos compreender melhor como elas podem
iluminar a tela de nossos estudos nessa grande sala escura e atraente
que é o Cinema. Propomos uma maneira de estudá-lo para além da
dicotomia arte/entretenimento, mas como um meio artístico híbrido
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de representação narrativa que, ao que pensamos, possa ser mais bem


compreendido pelo crivo interdisciplinar das Performances Culturais.
Para isso, recorremos a Richard Schechner (2011, 2012) um dos teóricos
fundamentais das performances, que, ao contribuir com Victor Turner
(1974), estreitou as relações entre antropologia e teatro, trazendo para
a arte as abordagens antropológicas do estudo do ritual.
Precisamos, antes de tudo, situar qual conceito de performances estamos
usando como referência. O termo “performance” é um vocábulo que
passou por vários idiomas, chegando ao português, onde tem sido usado
recentemente de forma indiscriminada em situações diversas e muitas
vezes contraditórias. Usado como uma espécie de chave para qualquer
porta, essa polivalência do termo e a amplitude de seu emprego na lin-
guagem cotidiana embaçam seu entendimento como categoria artística
ou metodológica, já que “a performance, como metáfora, [...] tornou-se
uma ferramenta crítica para quase todos os aspectos da atividade humana”
(Camargo, 2016a, p. 2). Desde uma performance cirúrgica à de um artista
ou xamã, o termo “performance” tem sido usado como metáfora em vários
campos, o que dificulta ainda mais sua compreensão.
Diminuindo o escopo para a performance como arte, não é menos difícil
sua delimitação. O termo performance pressupõe movimentos artísticos
que, filiados às vanguardas europeias pós-impressionistas, sempre esti-
veram intrinsecamente vinculados a um caráter fronteiriço, avesso aos
limites que os conceitos muitas vezes pressupunham às especificidades
das artes visuais, dança, circo, teatro:

A arte da performance seria assim o local da articulação das


diferenças formais e de conteúdo, do testar fronteiras da
arte, do que se institui contra o discurso estabelecido ou a
ser estabelecido, um movimento anárquico, multiforme, onde

· 58
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

‘qualquer definição negaria imediatamente qualquer possibi-


lidade da performance em si mesma’. (Goldberg, 2001, p. 9
apud Camargo, 2016b, p. 20).

Nesse bojo, temos o termo performance servindo, ao mesmo tempo e,


de forma não menos ambígua, à denominação das artes da performance,
às artes performáticas e, por fim, às performances culturais. Esta última
referência mais próxima ao escopo deste trabalho.
Para ancorar o contexto no qual se consolidam as performances a que
nos referimos, destacamos a retumbância histórica da década de 1960
como um ponto de inflexão epistemológica, seja nos estudos em História
Cultural, que passou a admitir como fonte de estudos às manifestações da
cultura (Burke, 1992), seja numa virada interdisciplinar em que cientistas
de campos distintos passaram a contribuir entre si para dar conta de novas
empreitadas científicas (Sommerman, 2006). Aliado a isso, houve uma
efervescência cultural nessa época, que resultou na manifestação artística
das performances. Schechner1 abordou esse período histórico em várias áreas
de atuação e defendeu que os chamados anos de 1960 se estenderiam de
uma faixa de tempo que começaria nos anos de 1950 e iria até meados dos
anos de 1980 (Vieira; Salgado, 2012). Se localizarmos esse período não
apenas cronologicamente na linha das décadas históricas, mas também
socioculturalmente, temos mais condições de compreender o ambiente
que propiciou o surgimento de diversos movimentos contestatórios e de
fronteira, que confluíram na mesma direção das performances. Em tempo,
data nesse mesmo período o surgimento do cinema moderno na França,
com a Nouvelle Vague, bem como do Cinema Novo no Brasil, na Alemanha
e outros (Mascarello, 2006). Mais do que datar esse período, sua impor-

1 Essa citação refere-se a uma entrevista concedida por Schechner à Ana Bigotte
Vieira e Ricardo Seifa Salgado, em 2009, publicada como artigo no livro organi-
zado por Zeca Ligiéro, em 2012.

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tância está em se pretender compreender como intensas variáveis sociais,


culturais, políticas, morais, filosóficas e epistemológicas confluíram para
um ambiente propício ao surgimento de diversas manifestações humanas
dessas áreas, de forma a nos desafiar até os dias atuais.
A migração do período pós-Guerra também foi um dos pontos essen-
ciais para o florescimento da arte dos anos de 1960. Nos Estados Unidos
(EUA), artistas, técnicos e intelectuais puderam desenvolver com mais
liberdade suas produções e seus pensamentos. Afirma Schechner: “o
que se passou aqui foi uma continuação das vanguardas europeias e uma
transformação dessas vanguardas” (Vieira; Salgado, 2012, p. 31). Isso nos
remete diretamente a certos aspectos constituintes da consolidação da
narrativa clássica do cinema nos EUA nessa época e que absorveu con-
venientemente profissionais vindos da Europa, juntamente com todo o
seu conhecimento e sua expertise. Exemplo disso é Fritz Lang (que iniciou
sua carreira nos EUA em 1936), Alfred Hitchcock (que mudou-se para
os EUA em 1939) e outros, como Michael Chekhov (vindo da Inglaterra,
em 1939), que emigrou para Hollywood, “onde ensinou e modificou a
maneira de representar no cinema. Em suma, Stanislavsky foi importado
para a América com excelentes resultados” (Vieira; Salgado, 2012, p. 30).
Foram seus alunos Jack Nicholson, Clint Eastwood, Marilyn Monroe e Yul
Brynner. Essas técnicas foram responsáveis pelo modo de representação
naturalista no cinema que se tornou padrão internacional com base em
Hollywood, criando a sensação de que qualquer método de representação
diferente pareceria inadequado a partir de então.2
O termo performance surgiu em lugares e em tempos diferentes, por
pensadores diversos, no entanto, próximos, mas qual seria essa “perfor-
mance” a que Schechner se refere? Empreendendo uma estreita relação

2 Existiram outras técnicas de representação nos EUA, como o actors studio, de


Lee Strasberg.

· 60
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

entre teatro e antropologia, Schechner afirma: “performances são fazer


– crer no jogo, por prazer. Ou como Victor Turner disse, no modo
subjuntivo, o famoso ‘como se’”3 (Vieira; Salgado, 2012, p. 23). Dentre
tantas tentativas de definição do conceito do que seria performance, essa
nos interessa em especial, ao tentar entender o cinema como performance.
Por mais que “o cinema de narrativa clássica sempre tenha primado por
apagar seus vestígios de representação na busca de uma ‘impressão de
realidade’, que tanto empenhou o teatro burguês em seu projeto ilusio-
nista” (Xavier, 2003, p. 16-17), esse projeto só foi levado a cabo pela
predisposição do espectador de cinema em aceitar e crer nesse jogo por
prazer. Retomando o conceito de Schechner e Turner, o espectador aceita
o “contrato” sem o qual a experiência cinematográfica não existiria. Por
inúmeras vezes, ouvimos relatos de espectadores que se deixam envolver
pela performance cinematográfica e se encantam por prazer no jogo do
“como se fosse a própria realidade”.
Talvez parte da credulidade e identificação do espectador venha de uma
crença na objetividade da imagem cinematográfica, como se ela pudesse
apreender o real sem mediações. Destacamos, porém, que o registro foi
sempre feito por alguém que tinha um objetivo de representação; aquele
registro é a sua versão de determinado acontecimento. Quando se esquece
que a imagem cinematográfica não é um documento, mas um recorte,
temos um sujeito totalmente cativo do processo de simulação (Xavier,
2003). Esse recorte, fortemente fundamentado em técnicas de construção
de uma realidade que sem a linguagem própria do cinema não levaria o
espectador a sentir esse prazer estético, é o que propomos estudar como
performance cinematográfica. Ao analisarmos a questão segundo esse prisma,
essas convenções compõem um mecanismo muito mais subjetivo que

3 Lembramos que a palavra “se” era um importante termo para as técnicas de atu-
ação de Stanislavsky.

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objetivo em sua enunciação. Por meio do caráter ilusionista, das normas


clássicas de representação, essa “impressão de realidade” é construída
de forma que se apaguem os vestígios dessa construção. A manipulação
da mise-en-scène (comportamento de pessoas, iluminação, enquadramento,
cenários, figurinos, posição e movimentação da câmera) “cria um evento
pró-fílmico aparentemente independente, que se torna o mundo tangível
da história, enquadrado e registrado a partir do exterior” (Bordwell, 2005,
p. 288). O espectador, assim, tem a sensação de realidade ao deixar de
perceber os mecanismos de construção dela (como a montagem/decu-
pagem, a continuidade, o ritmo), já que, ao longo do desenvolvimento
da linguagem cinematográfica, ele assimilou os paradigmas clássicos de
representação. Mais do que isso, o espectador encara esses modelos clás-
sicos de representação como os únicos modelos possíveis e “certos”, tal
a naturalidade com que já os absorveu.
Em outro texto, Schechner (2011a) enfatizou a intersecção desses dois
campos enumerando os seguintes pontos de contato entre o pensamento
antropológico e o teatral: transformação do ser e/ou consciência; inten-
sidade da performance; interações entre audiência e performer, a sequência
total da performance; a transmissão do conhecimento performático e
como as performances são geradas e avaliadas. Com isso, ele retomou as
contribuições de Turner e sua aproximação paralelística entre ritual e
drama. Nosso empenho aqui está em revisitar essa aproximação feita
por Schechner, mas dessa vez ampliando para o Cinema, já que este,
como forma artística híbrida, deve muito de sua linguagem e estrutura
às mesmas fontes literárias e teatrais que fundaram o Drama.
Acerca do performer e do que ele está performando, bem como de sua
relação limiar entre a realidade e o sensível, só apreensível pela perfor-
mance, podemos identificar que um “performer deixa de ser ela ou ele
mesmo quando ela ou ele se tornam outros – eus múltiplos coexistindo

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

em uma tensão dialética não resolvida” (Schechner, 2011a, p. 215). Ora,


não seria esse um dos encantos do cinema e de seu star-system?! Alguns
atores realizaram tão bem determinados papéis que foram eternamen-
te identificados por eles. Outros atores realizaram com igual esmero
personagens tão diversas que o público os admira por essa capacidade
de performar em diferentes circunstâncias. Esse jogo entre essas duas
realidades é um dos pêndulos sedutores do cinema. Há ocasiões em
que a performance desses atores em um filme é tão bem realizada que
os espectadores chegam a esquecer que certos artistas já fizeram uma
variedade de outros trabalhos. Com exceção dos cinéfilos, poucos são
capazes de reconhecer os atores fora do escalão principal e as várias
outras obras em que eles atuaram. Essa herança ilusionista do teatro
naturalista russo de Stanislavsky não escapou aos olhos de Schechner,
para quem o trabalho do russo “forma a base para o naturalismo que
busca esconder todo o artifício. Este é o estilo dominante nos filmes e
televisão norte americana” (Schechner, 2011a, p. 217).4
Em outro momento de seu texto, Schechner estabelece uma ligação
direta entre a performance teatral e seu público, ressaltando que teatro e
dança são modalidades de performance que dependem mais intensamente
da participação presencial de seu público. Isso não acontece com tanta
dependência numa ópera, por exemplo, caso em que o espectador é um
receptor passivo. O interessante aqui não é tanto a posição passiva ou
ativa do espectador, mas, antes de tudo, o reconhecimento de que ao
assistir a um filme o espectador está diante de uma performance, a despeito
da intensidade maior ou menor em relação à passividade ou atividade do
espectador nessa experiência. Apesar de ser algo ligado ao subjetivo e à
sensibilidade de cada um, parece não haver dúvida de que, em geral, os
4 Ainda que Stanislavsky seja reconhecido pelo “sistema” de interpretação natura-
lista, é preciso notar que ele também encenou peças de teatro simbolistas, por
exemplo.

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espectadores identificam com clareza o momento em que uma performance


se inicia ao perceberem que “uma ‘presença’ se manifesta, algo ‘acon-
teceu’. Os performers tocaram e comoveram a audiência, é algum tipo de
colaboração, de vida teatral especial e coletiva” (Schechner, 2011a, p. 218).
Por esse motivo, dentre outros conceitos que extrapolam o recorte
deste texto, investigamos a hipótese de que, apesar das performances serem
frequentemente vinculadas ao corpo (mais especificamente os concei-
tos relacionados à performance art), o caráter de performance nas narrativas
audiovisuais não seria anulado pelo fato do corpo (performer), seja dos
atores, do diretor ou de qualquer responsável autoral pela obra, não
estar presente no momento da fruição da obra cinematográfica pelos
espectadores. Muito menos estaria restrito unicamente ao dispositivo
clássico de exibição cinematográfica (sala escura e coletiva com projeção
em uma tela grande), pois, atualmente, já extravasa as salas de cinema,
com apresentações em qualquer lugar que permita suportar uma tela,
até mesmo nos cruzamentos de trânsito ou no alto de totens e displays
publicitários e prédios. Dessa forma, a performance cinematográfica não
estaria ligada nem à presença de um corpo performático, nem ao seu
dispositivo de projeção/exibição, mas à comunicação que sua linguagem,
ao ser manipulada pelos responsáveis pelo filme (diretor, operador de
câmera e atores), estabelece com o público. Como exemplo, basta vermos
a diferença que há entre os comerciais, os avisos institucionais e as obras
de propaganda (trailers) e uma obra cinematográfica propriamente dita.
Na presença dessa última, temos ciência de que a performance “decola”,
a presença se manifesta e algo acontece. Fenômeno este que muito pro-
vavelmente não sentiríamos ao vermos um vídeo qualquer como, por
exemplo, um vídeo mostruário de ofertas no supermercado.
Ainda sobre essa questão da intensidade da performance, Schechner
(2011a, p. 218) declara: “eu, pessoalmente, não creio que o mesmo tipo

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

de coisa [intensidade] pode acontecer com filmes ou televisão, cujo forte


é afetar pessoas individualmente mas não gerar energias coletivas”. Jul-
gamos que essa afirmação possa ter sido um tanto precipitada e mereça
mais atenção, primeiramente porque o cinema não se restringe a afetar
as pessoas individualmente; ao contrário, como meio de comunicação
de massas, o seu forte é justamente o alcance coletivo. Não é à toa que,
a despeito da proliferação dos equipamentos de gravação e exibição home
video a partir da década de 1980, o cinema continuou com seu domínio.
Mesmo com o surgimento de novas mídias e aparelhos televisores cada
vez mais nítidos e tecnológicos, o cinema ainda não perdeu seu trono
como evento cultural de massas. Nem as últimas inovações vindas com
a internet e sua disseminação de filmes (que podem ser baixados e
ultimamente até alugados sob demanda), nem a multiplicação de telas
(com os tablets e smartphones) foram capazes tirar o fascínio pelo cinema.
Podemos concluir que isso aponta algo de ritual em ir ao cinema, algo
de único na experiência de assistir a um filme em tela grande, numa sala
escura e na presença de outras pessoas. Essa experiência cinematográfica
foi amplamente abordada por Xavier (2008) de forma que ultrapassa
o escopo deste texto, mas não a pretensão da pesquisa da qual este
trabalho deriva.
Além disso, Schechner (2011a) associa esse elemento de intensidade
ao conceito de fluxo. Na linguagem cinematográfica, também temos
algo muito próximo dessa ideia. Conhecido como “ritmo”, esse conceito
estaria diretamente ligado à duração de cada plano, ou seja, ao tempo
em que cada plano individualmente permanece sendo exibido na tela.
Sendo o plano a menor unidade significante de um filme, seu tamanho
seria determinado pela duração do que é filmado entre dois cortes

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consecutivos, que é o ato de ligar/desligar a câmera.5 Isso esclarecido, é


preciso que cada plano permaneça na tela tempo suficiente para tornar-
-se inteligível. O tamanho e a composição do plano (enquadramento),
portanto, vão ser fundamentais para determinar sua duração. Um plano
geral (de grandes proporções e distâncias, geralmente utilizado para
evidenciar paisagens), por exemplo, deve permanecer por mais tempo
que um primeiro plano por conter muito mais informações a serem
captadas pelo espectador. Já o primeiro plano (enquadramento do busto
dos personagens) é de uma comunicação e inteligibilidade mais direta
e o espectador tem a chance de ver em detalhes o que é necessário à
compreensão da narrativa. A escolha da duração de um plano pode ser
orientada jogando-se com a dicotomia “duração/legibilidade”, ou seja,
os graus de facilidade/dificuldade de leitura (Burch, 1969, p. 75). Alguns
planos, muito curtos para serem lidos confortavelmente, podem causar
frustração no espectador ou podem ser tão longos a ponto de serem
lidos e relidos até a saturação, causando tédio.
Deve-se estar atento, também, ao contraste do andamento geral do
filme. Isso quer dizer que não basta uma constante sucessão rápida de
planos. Pelo contrário, vários realizadores “já chamaram a atenção para
a necessidade de desenvolver a ação tão rapidamente que o público não
tenha tempo de refletir – ou entediar-se” (Bordwell, 2005, p. 288). A
aceleração do ritmo provoca no espectador uma sensação muito maior
de atividade rápida do que um ritmo constantemente acelerado.
As convenções estruturais da narrativa do cinema clássico como rit-
mo são tão contundentes e foram tão bem cristalizadas no imaginário
do público que, para um espectador atento, um ritmo “imperfeito” é
5 Não confundir plano com enquadramento; este estaria diretamente ligado à esca­
la do que se é filmado (objetos, paisagens), tomando como referência a figura
humana. Também não confundir plano com tomada, que é a ação de filmar um
plano, ação essa que pode ser repetida até a obtenção do plano satisfatório.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

facilmente identificado como abrupto e encarado como um “equívo-


co”. Entretanto, um ritmo adequado é imperceptível, ou seja, encarado
como movimento natural e tido pelo público geral como “bem-feito”.
Enquanto isso, filmes que quebram esse espaço/tempo imaculado e
rompem com essas convenções narrativas são muitas vezes rejeitados
pelo espectador comum.
Ao ressaltar que “compreender a ‘intensidade da performance’ é des-
cobrir como uma performance constrói, acumula ou usa a monotonia;
como ela atrai participantes ou intencionalmente os barra”, Schechner
(2011a, p. 219) está trabalhando uma categoria que teria uma função bem
próxima ao que o ritmo, como um elemento constituinte da linguagem
cinematográfica, desempenha no Cinema.
Como o próprio Schechner sugere, devemos procurar uma intercomu-
nicação entre os campos de estudos que possa nos ajudar a dar conta da
complexidade dos assuntos a que submetemos nossas pesquisas nesse
mundo, que nos desafia com questões complexamente diversas. Dessa
maneira, precisamos usar a estética de forma intercultural na medida
em que, por exemplo, “o ‘drama social’ em quatro partes de Turner –
ruptura, crise, ação reparadora, reintegração (ou cisma) – é derivado do
modelo Greco europeu de drama” (Schechner, 2011a, p. 220), mas que
muito serviu para dar conta de questões não tão restritas a essa cultura.
Se traçarmos o caminho que o melodrama percorreu, migrando e
transitando verticalmente entre literatura, teatro e, por fim, no cinema,
podemos perceber essas quatro partes do drama referidas por Turner na
estrutura melodramática dos enredos. Segundo ele, a trama é composta
por um estágio de equilíbrio, sua perturbação e a luta e eliminação do
elemento perturbador. Caso semelhante acontece ao considerarmos que “a
performance envolve uma separação, uma transição, e uma incorporação”

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(Van Gennep [1909]1960 apud Schechner, 2011a, p. 226). Enxergamos,


aqui, outro ponto de aproximação entre o ritual e o cinema clássico,
considerando os apontamentos de Bordwell (2005, p. 279) sobre o modo
narrativo clássico. Este também apresenta uma estrutura tripartida que,
em geral, respeita o padrão canônico [do melodrama] de estabelecimento
de um estado inicial de coisas que é violado e deve ser restabelecido.
A narrativa clássica, conforme ele, começa com uma apresentação do
conflito e de onde ele se desenvolverá e especifica o espaço, o tempo e
as personagens mais relevantes para a trama das ações. No decorrer do
conflito, as personagens agem no intuito de alcançar seus objetivos, e,
ao fazê-lo, revelam suas ideias e caracteres. O desenvolvimento da cena
clássica prossegue concluindo os elementos de causa e efeito deixados
pendentes em cenas anteriores, ao mesmo tempo que abre novas linhas
causais para desenvolvimento futuro.
Como a intenção deste trabalho é tão somente buscar pontos de apro-
ximação e tensão entre alguns conceitos importantes para as performances
colocados por Schechner (2011a, 2011b) e como eles se relacionam com
o Cinema, gostaríamos de apontar algumas questões que não foram
resolvidas aqui, mas que instigam estudos ulteriores.
Voltando a Schechner, ele (2011a, p. 228) explica que “nas iniciações
as pessoas são transformadas permanentemente, enquanto que na maior
parte das performances as transformações são temporárias (transporta-
ções)”. Julgamos que o cinema, ao colocar todas as suas especificidades
de linguagem a serviço da performance, não busca outra coisa senão essa
breve “transformação/transporte” daqueles que entram em contato
com a obra. Buscaremos, em estudos futuros, desenvolver melhor essas
duas categorias de Schechner (2011b) – transformação e transporte – e
verificar de que maneira podemos considerá-las no cinema.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Outras questões ainda permanecem em aberto até mesmo pelo pró-


prio Schechner no trato com a performance, mas são pontos que instigam
investigações no cinema:

Quem são os performers, como eles atingem suas transforma-


ções temporárias ou permanentes, qual o papel da audiência
– estas são as questões chave, não sobre literatura dramática,
mas sobre o evento performático vivo ao ser olhado do pon-
to de vista dos seres humanos envolvidos na performance.
(Schechner, 2011a, p. 234).

Pensamos que, assim como Schechner encontrou vários pontos de


intersecção entre o teatro e a antropologia, podemos buscar as encru­
zilhadas onde esta se encontra com o Cinema, usando a ótica interdis-
ciplinar das Performances Culturais e o estudo comparativo das micro
e macrocivilizações, como queria Singer (1959), para entender o Cinema
como performance que muito tem a nos dizer sobre nossa sociedade e o
mundo contemporâneo.

Referências
BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano. In: RAMOS,
Fernão Pessoa. Teoria contemporânea do Cinema. São Paulo: Editora
Senac, 2005. v. II.
BURCH, Noel. Práxis do cinema. Tradução Marcelle Pithon e Regina
Machado. São Paulo: Editora Perspectiva S. A., 1969. (Coleção Debates).
BURKE, Peter. O mundo como teatro. Lisboa: Editora Difel, 1992.
CAMARGO, Robson Corrêa de. MARVIN CARLSON: Performance:
a Critical Introduction, uma breve crítica da edição em português.
In: PETRONILIO, Paulo; CAMARGO, Robson Corrêa de (org.).

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Corpo, estética e diferença e outras performance nômadas. São Paulo: Edições


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GOLDBERG, Roselee. Performance Art: From Futurism to the Present.
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Moringa, UFPB, v. 7, p. 11-27, 2016b.
MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas,
SP: Papirus, 2006 (Coleção Campo Imagético).
SCHECHNER, Richard. Pontos de contato entre o pensamento
antropológico e teatral. Tradução Ana Letícia de Fiori. Cadernos de
Campo 2: Revista dos Alunos de Pós-Graduação em Antropologia
Social, São Paulo, n. 20, p. 213-236, 2011a.
SCHECHNER, Richard. Performers e espectadores: transportados e
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SINGER, Milton. Traditional India: structure and change. Philadelphia:
American Folklore Society, 1959.
SOMMERMAN, Américo. Inter ou transdisciplinaridade? Da fragmentação
disciplinar ao novo diálogo entre os saberes. São Paulo: Editora Paulus,
2006.
TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Tradução
Nancy Campi de Castro. Petrópolis: Vozes, 1974.
VAN GENNEP, Arnold. The Rites of Passage, University of Chicago
Press, 1960. Original francês pela Editora A. et J. Picard, 1909 apud

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

SCHECHNER, Richard. Pontos de contato entre o pensamento


antropológico e teatral. Tradução Ana Letícia de Fiori. Cadernos de
Campo 2: Revista dos Alunos de Pós-Graduação em Antropologia
Social, São Paulo, n. 20, p. 213-236, 2011a.
VIEIRA, Ana Bigotte; SALGADO, Ricardo Seiça. Uma tarde com
Richard Schechner. 2009. In: LIGIÉRO, Zeca (org.). Performance e
antropologia de Richard Schechner. Rio de Janeiro: Mauad, 2012.
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. São Paulo: Editora Graal, 2008.

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APROXIMAÇÕES E DIFERENÇAS DOS
CONCEITOS DE PERFORMANCE E PROCESSOS
RITUAIS NOS JOGOS DE VIDEOGAME

MURILO GABRIEL BERARDO BUENO


ROBSON CORRÊA DE CAMARGO
DANIEL CHRISTINO

Resumo: O presente trabalho analisa a aplicabilidade do conceito


de Performances Culturais e as etapas do processo ritual nos jogos
de videogame. A relação de tempo, espaço, imersão do jogador e
interação com personagens e avatares permitiu que se investigasse
a ligação interdisciplinar das performances culturais com a experiência
do videogame. Para tanto, foram utilizados os postulados teóricos
dos autores do campo da antropologia e das performances culturais
como Burke (1992), Camargo (2013, 2016), Dawsey (2007, 2015),
Van Gennep (2011), Schechner (1985, 2003, 2011, 2012), Singer
(1955, 1959, 1972) e Langdon (2007). A reflexão, embasada nesses
conceitos, oportunizou uma leitura mais acurada desse campo em
construção a fim de estabelecer pontos de diálogo de suas teorias
com a interatividade tecnológica dos jogos.
Palavras-chave: Performances Culturais. Videogame. Antropologia.
Ritual. Jogo.
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Conceitos de performance e sua


aplicabilidade aos jogos de videogame
Performances Culturais é uma corrente epistemológica em constante
construção situada na fronteira de diversos estudos interdisciplinares.
Ela abriga conhecimentos de antropologia, teatro, cultura, comporta-
mento humano, representação, arte, linguagem e outras áreas. Relacionar
esse campo em formação com estudos de tecnologia, comportamento
e interatividade, como ocorre com os jogos de videogame, torna-se um
desafio uma vez que se descobrem aproximações, diferenças, adaptações
e análises a serem feitas, com base no arcabouço teórico dos trabalhos
das áreas das performances e da antropologia, para que se encontre pon-
tos de interseção bem como contradições e dissidências que permitam
delimitar em que medida esses estudos se aproximam e quais os pontos
de distanciamento com o universo do videogame.
Robson Corrêa de Camargo (2013) faz revisão bibliográfica e inves-
tigação dos conceitos de performance com base nas teorias de Milton
Singer (1972), teórico da Escola de Chicago que se propõe a identificar
fronteiras entre os estudos das performances e outras esferas de investiga-
ção. A definição de Performances Culturais iniciou-se por Singer (1955)
juntamente com Redfield (1897-1958). O conceito abarca uma plurali-
dade de significados e não pode ser analisado apenas por seu objeto em
si ou como um desdobramento de outras áreas, mas como uma teoria
situada na fronteira entre os conceitos e processos, nas contradições e
na experiência humana (Camargo, 2013).
Para Camargo (2013), as performances culturais possuem como objeto a
análise das práticas culturais e suas significações, bem como a forma como
essas manifestações simbólicas surgem, são transmitidas ou modificadas

· 74
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

e em que medida os “produtos culturais” podem trazer informações


acerca da sociedade e da cultura.

As Performances Culturais colocam em foco determinada


produção cultural humana e, comparativamente, a partir dela,
em contraste, procuram entender as outras culturas com a qual
dialoga, afirmativamente ou negativamente. As performances
culturais a serem examinadas devem ser também entendidas
como uma concretização da auto percepção e da auto projeção
dos agentes desta cultura, do entendimento que estes fazem
ou constroem de si mesmos, determinando e sendo por eles
determinados. (Camargo, 2013, p. 3).

Compreender esse jogo intrincado entre culturas hegemônicas e


pequenas práticas e tradições populares, o fluxo dos processos globais
e representações simbólicas, bem como seu meio de expressão com base
em processos rituais, torna oportuno relacionar os jogos de videogame
com as performances da cultura.
A observação e a descrição da constituição e a recriação das tra-
dições sociais e culturais permitem que se observem estágios, fluxos
e interrupção das práticas. No campo da antropologia da performance,
encontram-se estudos que relacionam os rituais tradicionais, o teatro e
as formas de interação social que se apresentam de maneira análoga na
arte e na encenação da vida cotidiana da sociedade globalizada (espor-
tes, danças, música, cerimônias religiosas, processos de iniciação, dentre
outros) (Langdon, 2007). Da mesma forma, os jogos pressupõem, de
maneira geral, a consolidação da socialização, entretenimento, disputas,
delimitação de espaços de poder e posição social. Pode-se observar a

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presença desse tipo de manifestação cultural desde as sociedades gregas,


egípcias e romanas, até a sociedade contemporânea.1
A encenação de papéis, o cumprimento de regras e superação de
obstáculos, a tentativa de obtenção de desempenho melhor que os
adversários e a criação de estratégias marcam a maioria dos jogos. Em
jogos de tabuleiro (dama, dominó, cartas, xadrez), a ênfase é a estratégia
e o conjunto de regras estabelecidas. McGonigal (2011) diz que todo
jogo, independente de sua configuração e à parte do gênero, se constrói
com base em quatro princípios: uma meta, regras, feedback e participação
voluntária. O videogame iniciou-se de forma análoga com ênfase na joga-
bilidade, na qual o jogador, ao executar determinadas tarefas e cumprir
regras pré-estabelecidas, ganha recompensas e feedbacks constantes de
seu desempenho nesse processo.
Tanto os jogos quanto as peças de teatro, danças rituais e jogos de
videogame, principalmente os de estratégia, jogos de tiro (shooter games)
e RPG (role-playing games), podem ser considerados produtos culturais
que se encaixam nas definições de performance por levarem o indivíduo a
um estado de experiência no qual as sensações sinestésicas permitem o
surgimento de múltiplas consciências e estados de espírito.
Langdon (2007) define performance como um evento com formas de
comportamento específicos pré-estabelecidos, no qual a expressão do
performer se dá pela forma com que a mensagem é transmitida e não pela
sua significação ou conteúdo em si. É possível comparar esse proces-
so com o ato de jogar videogame. Existe uma preparação, encenação de
papéis a serem representados como outras consciências ou personagens
escolhidos, regras a serem seguidas e maneiras de se comportar, além da

1 Pesquisado em: http://www.jogos.antigos.nom.br/artigos.asp#historia. Acesso


em: 30 jun. 2016.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

interação entre o jogo e o performer, o jogador que executa os comandos,


repete os comportamentos e escolhe os caminhos para se manter nesse
processo de interação entre o eu e o personagem.
Todos os grupos sociais humanos possuem alguma modalidade de
performance marcadas pela função poética da experiência. Como viés de
análise dos campos da performance, busca-se identificar, além das várias
personalidades que surgem na execução das performances, a sua delimitação
em gêneros, os significados de cada estrutura mítica e formas como se
dá o processo de interatividade (Langdon, 2007).
Nos jogos de videogame, é possível reconhecer as categorias citadas
pela autora, principalmente a questão da identificação que ocorre entre
jogadores e personagens, provocando estados de consciência modificados,
semelhantes ao transe que ocorre nas tradições ritualísticas. Tais estados
alterados da percepção podem ser comparados de forma complementar
com as fases performáticas intituladas por Richard Schechner (2011,
p. 214) como momentos liminares, possíveis com base na “caracteri-
zação, representação, imitação, transportação e transformação”, áreas
liminais. Esses estados ocorrem apenas em seres humanos, pois estes
têm a característica singular de assumir e representar várias identidades,
por vezes de forma simultânea e multifacetada.
Outro ponto de encontro entre videogame e performance, com base nos
estudos de Langdon (2007), é a questão do gênero. Os jogos de videogame
são produtos globais que recriam mitos e narrativas de diversas culturas
como a japonesa, estadunidense, canadense e as tradições europeias.
Reproduzem também gêneros dos jogos tradicionais, os gêneros clássicos
das produções cinematográficas (terror, suspense, comédia, drama) e
elaboram suas próprias modalidades de significação com base nessas
linguagens que os constituem.

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A diferença do videogame com os rituais das culturas correntes é que os


jogos geralmente aglutinam aspectos culturais (multiculturais) e renovam
sistematicamente suas tradições. A maioria dos jogos possui gêneros híbri-
dos e versões de representações reconstruídas, como gueixas japonesas
de olhos azuis ou com vestimentas diferentes dos quimonos habituais,
entidades zumbis com características que modificam o mito proposto
pela cultura vodu haitiana e outros tipos de deslocamento semântico.
Essas mudanças podem indicar não apenas o multiculturalismo e a ten-
tativa de se contemplar vários públicos que receberão esses produtos,
mas uma modificação na percepção dos povos e de suas identidades
culturais individuais e coletivas.
Outro item que pode caracterizar o jogo como performance é a questão
da interação. Nos jogos multiplayer há um diálogo entre os participantes, os
personagens escolhidos para representá-los e o próprio jogo como uma
consciência abstrata ou oráculo que define os modos de agir, permissões e
proibições e que, durante todo o tempo, se comunica com os participantes
ao mostrar seu desempenho, pontuações e recompensas que estimulam
a permanência nessa experiência e a continuidade do ato de jogar.
Nas modalidades em que é permitido apenas um jogador, a interação
ocorre entre o próprio espaço diegético2 do jogo e os personagens virtuais,
que funcionam como entidades metafísicas, expansões da consciência
ou seres de um universo paralelo, com temporalidade e espacialidades
próprias, assim como nos rituais que serão descritos posteriormente.
No processo de interação ocorrido nos jogos, ao relacionar a questão
da audiência pressuposta por Singer (1955) e Langer (1980) com essas
programações de entretenimento, é inevitável que haja uma ressignifica-

2 De acordo com Marcel Martin (2003), diegético corresponde a todo o espaço


fílmico, ou seja, tudo o que é mostrado ao espectador e que compõe a espaciali-
dade ficcional.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

ção, pois a plateia do jogo se torna o próprio jogador ou a programação,


diferentemente do que ocorreria em uma peça de teatro ou iniciação reli-
giosa. Outrossim, é o jogo que avalia o usuário em suas tarefas realizadas.
Desse modo, a interação ocorre entre múltiplos jogadores, consciências e
inteligências artificiais do próprio jogo no caso das estruturas multiplayer,
e na configuração singleplayer o processo se dá entre o participante (eu), os
personagens encenados (não eu e não não-eu) e a consciência abstrata do
próprio jogo. Essa seria a interação da transformação do ser, definida por
Schechner (2011) como uma fase na qual há um estado de suspensão da
consciência em que o indivíduo se afasta de si temporariamente e assume
outra(s) consciência(s): não eu e não não-eu.
A relação simbiótica entre corpos e identidades do jogador constitui
outro elo entre performance e jogo. Essa integração possibilita a interação
em uma espécie de transe característico da imersão que os jogos ele-
trônicos produzem ao lançar estímulos sonoros, visuais, narrativos, táteis
(como quando o controle vibra); uma experiência sinestésica que pode
ser relacionada às intituladas por Langer (1980) em outros processos
culturais de multissensorial.
Segundo a autora, no campo epistemológico das performances culturais
é possível transcender a interpretação da significação desses elementos
estéticos e verificar como essa confluência de sentidos suspende dico-
tomias de razão e emoção, mente e corpo, e interliga percepções que
coexistem e são ampliadas. No caso do jogo, tal ligação se dá principal-
mente entre jogador e avatar, mundo real e virtual.
Para além da relação entre identidade do jogador e as encenações feitas
durante a performance do jogo, há um deslocamento de suas memórias
que se fundem ao conteúdo que está sendo vivenciado e intensificam a
experiência. Com base nos estudos de Camargo (2016) acerca da expe-

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riência da performance, fundamentado nos trabalhos de Carlson (2010),


é possível afirmar que a relação tempo/espaço durante a experiência
intensificada da performance é outro ponto que a aproxima do videogame
na medida em que se dá nos rearranjos de fragmentos comportamentais
que aludem ao passado e à memória, se reajustam no presente de forma
mutante de acordo com os pontos de tensão dessa vivência e determinam
modificações e construções de realidades futuras.
No jogo, de forma semelhante, o usuário precisa executar uma série de
comandos aprendidos e táticas para que consiga superar obstáculos existen-
tes. Em jogos nos quais há maior complexidade da estrutura narrativa, as
possibilidades de modificação das histórias, acontecimentos e reações das
atitudes de outros personagens que interagem com o protagonista virtual
comandado pelo usuário são definidas com base em suas escolhas. Exis-
tem jogos com várias possibilidades de desfecho e, em alguns, as opções
determinam até mudanças de espaço e atmosfera. Há também jogos que
são infinitos e operam com uma intrincada rede de possibilidades mudadas
segundo os comportamentos executados no ato de jogar.
Essas repetições e rearranjos são denominados por Schechner como
comportamento restaurado, que consiste na forma de agir e se comportar
com base em experiências anteriores somadas às interações presentes.
No estado dos indivíduos, ao assumirem papéis e modificarem sua iden-
tidade de acordo com a situação ou com o processo de representação
em que se encontram, há a incorporação de outros “eus” ou identidades,
conforme afirma o autor (2003, p. 34):

Colocando isto em termos pessoais, o comportamento restau-


rado é – eu me comportando como se eu fosse outra pessoa, ou
em me comportando como me mandaram ou eu me compor-
tando como aprendi. Mesmo quando me sinto ser eu mesmo,

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

completamente, e agindo de modo livre e independente, apenas


um pouco mais de investigação revelará que as unidades de
comportamento vividas por mim não foram inventadas por
mim. Ou, opostamente, eu posso experimentar estar ao lado
de mim mesmo, não sendo mim mesmo ou possuído, como
se em transe. O fato de que há mais de um mim mesmo em
cada pessoa não é sinal de loucura, mas o modo como as coisas
são. Os modos pelos quais alguém performa a si mesmo são
conectados aos modos por que as pessoas performam outras
pessoas nos dramas, danças e rituais.

Em um jogo de videogame, a experiência cria uma relação de corpos


e identidades para que a experiência aconteça. A ligação entre o corpo
físico e virtual do personagem se inicia com o caráter imersivo que a
experiência proporciona, com sensações sinestésicas nas quais a projeção
influencia a vida real a tal ponto que qualquer lesão sofrida pelo avatar
pode causar uma angústia no jogador. Da mesma forma, se o indivíduo
não se identificar com a proposta, com o jogo e com os personagens,
isso implicará na forma como executará suas ações e no resultado final.

As etapas e estados do processo ritual


aplicados aos jogos de videogame
O processo de democratização do videogame para uso doméstico iniciou-se
na década de 1980. A partir de 1983, no Japão, surgiram dois consoles – o
Atari e o Nintendo – que marcaram a mudança da estrutura e design dos
jogos com a criação dos blocos de rolagem contínua, que têm como carac-
terística principal os pontos quadriculados e os gráficos baseados em sprites.
A partir da inserção da câmera narrativa no videogame, por volta dos
anos 2000,3 houve uma perspectiva de utilização de diferentes pontos
3 Informação pesquisada em: www.jogos.uol.com.br/reportagens/historia/2000.
jhtm. Acesso em: 24 jul. 2015.

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de vista e de alternância entre esses olhares, o que facilitou o processo


de imersão do jogador no ambiente diegético.
Um dos pontos de interação do jogador com o espaço narrativo é
a inserção da câmera subjetiva que reproduz o olhar do personagem e
amplia o processo de identificação com a trama. “A câmera subjetiva
insere imaginariamente o espectador dentro da cena, permitindo-lhe
vivenciá-la como um sujeito vidente implicado na ação” (Machado,
2007, p. 222). No entanto, percebe-se também o uso de outros tipos de
enquadramento, como a perspectiva em terceira pessoa no jogo Max
Payne 3, visto na figura a seguir:

Figura 1 - Jogo Max Payne 3

Fonte: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2011/04/novas-imagens-de-max-payne-3-
mostra-favela-de-sao-paulo.html. Acesso em: fev. 2015.

Tal estética foi influenciada pelo cinema e segue seus princípios, porém
a estrutura narrativa foi recriada, bem como os elementos de significação

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

que constituem uma linguagem audiovisual dentro do videogame. Embora


sejam produtos comerciais que não vêm de uma tradição ritual particular,
os jogos de videogame possuem traços de uma dinâmica globalizante em
que narrativas e mitos são reconstruídos e experimentados durante um
processo de interação entre jogador e personagem semelhante ao teatro
e ao transe dos rituais religiosos.
No teatro, há outro processo de encenação no qual o ator assume
papéis e estados de consciência distintos de sua personalidade. Assim
como nos palcos, nos jogos de videogame – especialmente os de RPG e
os de estratégia, que possuem personagens ou avatares – o jogador se
insere na narrativa ao assumir um estado de consciência paralelo, ou
“outro eu”, durante esse período liminar entre o eu e o outro.
Nos jogos narrativos em especial, os aspectos tecnológicos (como a
câmera e os recursos estéticos visuais e sonoros) levam o indivíduo
a compartilhar essa proximidade com o outro, o alter ego ou estado de
consciência que se funde ao ser dentro do jogo. A ação de jogar videogame
provoca uma suspensão da compreensão habitual dos fatos cotidianos e,
nessa relação, o tempo é substituído pela demarcação do jogo e o espaço
externo é percebido de outra forma, pois a fixação e o controle de uma
projeção virtual fazem com que o indivíduo esteja em um ambiente de
fronteira entre o real e virtual.
A interação com o jogo ocorre como uma espécie de transe e, nesse
momento, o usuário atua como um performer que se envolve tanto com
a experiência a ponto de não se lembrar que está jogando, como se esse
estado fosse o seu comportamento natural, assim como analisa Schechner
(1985, p. 41) em relação ao transe nos rituais performáticos:

Esse tipo de performance, porque é muito próxima do “com-


portamento natural” (talvez extraordinária externamente mas

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esperada dentro cultura) – quer por entrega a fortes forças


externas, como em uma possessão, ou entregando a estados
de espírito de si mesmo – pode ser muito poderosa. Ela pode
acontecer com qualquer um, de repente, e tal comportamento
performático instantâneo é considerado como evidência da
força de possuir o sujeito. O performer não parece estar atuan-
do. A transformação genuína temporária (uma transportação)
assume o lugar.

Da mesma forma como definido pelo autor no processo ritual, o sujeito


que joga não tem consciência de seu ato e executa ações espontâneas,
temporárias, que o levam a uma transformação da consciência. É pos-
sível relacionar outros conceitos do autor com a ação de jogar, como os
momentos chave da performance, em que Schechner (1985) define etapas
que marcam a preparação, passagem para o estado liminar de alteração
da consciência, sinestesia e retorno ao estado original. Segundo o autor
(2011, p. 225), nas performances existem sete fases, a saber: “treinamento,
oficinas, ensaios, aquecimentos ou preparações imediatamente antes da
performance, a performance propriamente dita, esfriamento e balanço”.
No jogo, é necessário conhecer sua estrutura, regras e comandos
(treinamento); em seguida o jogador necessita experimentar para que
se qualifique e aprenda a passar de cada fase (ensaios, aquecimentos ou
preparações); depois ocorre o ato de jogar, que é a performance em si; e
quando o jogo termina (seja porque o jogador o finalizou ou terminou
alguma fase, seja porque ele perdeu e decidiu parar de jogar), há o processo
de esfriamento e retorno da consciência e percepção de tempo e espaço
habitual. O balanço pode ocorrer tanto na reflexão de sua habilidade
com o jogo quanto nas comunidades virtuais, fóruns e sites de discussão
que dão dicas, trocam experiências e estabelecem relações entre gamers.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Em “O Leque e a Rede”, Schechner (2012) se refere ao processo de


esfriamento após a performance como elemento fundamental do processo,
pois há o desdobramento da experiência liminar vivida anteriormente
e da vida cotidiana dos performers. O autor diz que o aspecto subjuntivo
também é primordial, porque existe a simulação do ato que se assemelha
a experiência real. A vivência virtual do videogame torna-se uma cons-
ciência de um ato real no processo performático. As performances são,
de acordo com esse pensamento, liminares e subjuntivas onde há uma
intensificação das emoções.
Van Gennep (2011) define etapas semelhantes de início, acontecimento
e fim da performance. Uma de suas discussões principais diz respeito às
modalidades de ritual que se dividem em separação, reestruturação e
agregação. Em todos esses tipos de performance existem etapas liminais,
pré-liminais e pós-liminais. Na fase pré-liminal há a preparação e demar-
cação da performance que está por vir, para que tanto os envolvidos quanto
os espectadores experimentem esse momento. O autor faz analogia a
fases rituais que se assemelham à prática do jogo.
As características do ritual constituem outro ponto de contato entre
performance e jogo. Pode-se fazer uma adaptação dos elementos essenciais
da performance definidos por Bauman (1977) e citados por Langdon (2007).
A exibição do comportamento frente aos outros no jogo ocorre de
forma presencial ou à distância para os jogos multiplayer, nos singleplayer
a performance é exibida para o próprio jogo e para si mesmo. Os modos
de ação no jogo são bem delimitados e modificados de acordo com o
tipo de personagem e as regras pré-estabelecidas. A avaliação, nesse
caso, ocorre por meio do feedback que a própria programação apresenta
(pontuação, barras que indicam a quantidade de “vida” restantes etc.)
e posteriormente na própria observação do jogador sobre si mesmo

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e sobre os parceiros. A experiência em relevo é o ponto do jogo que


mais se adequa ao campo da performance, pois a imersão e emotividade
são fundamentais para o desempenho das tarefas estabelecidas. Como
mencionado anteriormente, o keying, ou sinalização, ocorre na suspensão
de tempo e espaço e na substituição por espaços múltiplos em lógicas
temporais distintas.
A relação entre performance e videogame se evidencia tanto nas compara-
ções com os rituais performáticos e suas etapas quanto nos processos de
suspensão da consciência e preparação do sentido. Jogar é um ato por
si só performático e pressupõe preparação por parte do jogador para
executar tal experiência.
É importante mencionar e comparar os conceitos de Erving Goffman
(2002) de forma complementar, pois sua teoria permite relacionar os
desdobramentos de situações cotidianas com os jogos e a maneira como
os indivíduos em sociedade representam papéis e se relacionam perante
as normas estabelecidas e a audiência das interações face a face. O autor
faz um estudo acerca do comportamento humano e sua interação na
vida diária tomando por base uma análise comparativa com a represen-
tação teatral. O modo como os indivíduos se comportam em diversas
situações (como no trabalho e nas relações pessoais), a maneira como se
apresentam para os outros e os artifícios utilizados para controlar essa
audiência a fim de criar uma imagem socialmente aceitável são pontos
relevantes da discussão.
Há uma distinção entre a representação no palco e na vida real pelo
fato de que no palco existe uma separação ou ensaio para a atuação. Na
interação frente a frente do cotidiano, por mais que existam níveis de
interpretação, de criação de fachadas e de máscaras que tornam possível
a interação, o indivíduo não faz um ensaio consciente, como no teatro,

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

mas se apresenta pressupondo de que forma a audiência irá recebê-lo


e como irá formar uma concepção sobre ele ao entrar em contato com
sua forma de expressar.
Para Goffman, (2002, p. 32), “a máscara representa a concepção que
formamos de nós próprios – o papel que nos esforçamos por viver – ela
é o nosso eu mais verdadeiro com que gostaríamos de parecer”. Essa
definição de máscara se encaixa no jogo, pois ao oferecer a possibilidade
de escolher um personagem com características específicas, a programação
confere ao participante maneiras de se expressar de acordo com as
qualidades que mais lhe agradam. Muitas vezes, essas identificações são
fortes e intensificam o processo de viver de acordo com determinada
ideia. O conceito de fachada consiste em: “equipamento expressivo do
tipo padronizado, empregue intencional ou inconscientemente pelo indi-
víduo durante o seu desempenho” (Goffman, 2002, p. 29). Divide-se em
tipos: aparência (cargo, status, posição) e modo (função momentânea:
arrogante, agressivo). Nos jogos, assumem-se fachadas ao incorporar
determinado temperamento dos personagens ou posições hierárquicas
dentro da narrativa.
Goffman (2002, p. 295) diz que a interpretação do “eu” não é bioló-
gica ou organicamente constituída e sim o resultado de múltiplas “cenas
representadas” e o ponto principal desse desempenho é a tentativa dos
indivíduos de serem aceitos e bem compreendidos em sociedade. Da
mesma maneira, nos jogos de videogame, há uma estrutura social com regras
a serem seguidas e comportamentos estabelecidos para que se obtenha
êxito na experiência vivida. Alguns valores se assemelham com os da
vida social da maioria das sociedades ocidentais, porém alguns aspectos
são subvertidos fazendo com que se criem novas regras.

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O jogador utiliza máscaras ao escolher os personagens com quem


irá jogar e encena situações que geram respostas satisfatórias perante a
audiência, que pode ser a própria programação organizada para reconhe­
cer seus comportamentos ou, no caso dos jogos multiplayer, os outros
participantes. A fachada também é recriada nos jogos, que reproduzem
hierarquias sociais e relações de poder, mas em alguns casos é subvertida
de acordo com as regras sociais apresentadas. Existem jogos em que o
processo ocorre de forma inversa: ao invés de se adequar aos ditames
da ordem e bons costumes, a missão do personagem é transgredi-los.
Os quadros sociais, ou frames, definidos por Goffman (2002), consistem
na estruturação de espaços como ambientes destinados a fins específicos.
De maneira geral, há uma especificação para cada ocasião – o escritório
é construído para atender clientes, a casa para habitação e recepção de
amigos, a escola é formatada com salas de aulas, cadeiras, coordenação
etc. –, de modo que seja possível desempenhar as tarefas sociais em
locais configurados para esses fins específicos. Em ocasiões especiais,
esses espaços podem se misturar. O jogo segue configurações de espaço
semelhantes à vida social. Da mesma forma que os desempenhos se
expressam e são encarados como realidade, quando, por exemplo, uma
família realiza uma festa e trata aquele momento como sua realidade,
o ato de jogar também pode ser comparado a uma celebração ou um
evento que, naquele momento, se torna a própria vida do jogador.

Conclusão
Após revisão bibliográfica dos autores do campo da performance cultural
e antropologia da performance foi possível estabelecer diálogos e identi-
ficar performances no ato de jogar e no jogo como um produto cultural.
Essas aproximações foram encontradas primeiramente na definição da
epistemologia das performances da cultura. Embora não exista um conceito

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

finalizado de performance cultural, há especificidades que determinam sua


aplicabilidade, como a questão da interdisciplinaridade e das análises de
processos liminares, rituais e experiências, além dos processos de fluxo
das culturas.
O jogo de videogame como produto multicultural abarca diversas fron-
teiras entre práticas rituais e mitológicas distintas. Essas produções são
recriadas e relançadas de forma constante. A interseção entre culturas é
um dos aspectos marcantes do jogo e dialoga com as estruturas arque-
típicas da psique dos indivíduos.
O videogame por si só é um objeto híbrido em suas linguagens, lógicas,
regras, narrativas e consequentemente na questão da experiência do
usuário. É inerente o seu estado de fronteira e fluxo constante de modos
de produção simbólica e interação, o que propicia essa aproximação com
as performances culturais, que se concentram na análise do que está entre
esses processos e como eles ocorrem.
Estar entre isso e aquilo corresponde tanto às ambivalências do eu e
das personalidades assumidas e diálogos estabelecidos entre essas cons-
ciências quanto à possibilidade de escolhas e alternativas que o próprio
processo oferece. O próprio fato de se imaginar em uma situação que
não é real e poderia existir também configura esse processo de tempo-
ralidade subjuntiva.
No videogame, assim como nos rituais, existem etapas de prepara-
ção, experiência, suspensão do eu, identificação com outros estados de
consciência, ou consciência e relevo, e retorno ao estágio habitual
de consciência. Tais etapas foram definidas por Van Gennep (2011) como
liminais, pré-liminais e pós-liminais e correspondem ao aprendizado do
ato de jogar e observação do jogo, imersão e identificação com a narrativa
e os personagens e término da experiência quando o processo termina.

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A imersão do videogame é semelhante ao transe, pois a hiperestimulação


com base em elementos estéticos, bem como a identificação com os
papéis representados pelos personagens, fazem com que os jogadores
entrem nesse estado onde o tempo e espaço seguem outra lógica.
Assim, todos esses elementos de delimitação da epistemologia da
performance e do processo ritual, tomando por base o arcabouço teórico
de Camargo, Dawsey, Goffman, Van Gennep, Schechner e Langdon,
oportunizaram a inserção do jogo de videogame como objeto de estudo
que pode ser considerado como uma modalidade de performance cultural
e analisado segundo essas proximidades e diferenças.

Referências
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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

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DAWSEY, John Cowart. Sismologia da Performance: Ritual, drama
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Paradigma Analítico: A Contribuição da Abordagem de Bauman
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cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2007.
MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense,
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SCHECHNER, Richard. Between Theatre and Anthropology. Philadelphia:


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VAN GENNEP, Arnold. Os Ritos de Passagem. Petrópolis: Vozes, 2011.

· 92
CIBERESPAÇO EM VIDEOGAMES: PERFORMANCE
E NARRATIVA ATRAVÉS DA IMERSÃO

JOSÉ ABRÃO

Resumo: Este trabalho visa refletir sobre a relação entre performance,


espaço e videogames. Com base em diversos autores de áreas diferentes
(como filosofia, arquitetura, comunicação e artes cênicas), argumen-
tamos o ponto de vista de que o ciberespaço dos videogames não é
meramente observado, mas vivenciado. Refletimos sobre a ideia de
que o espaço é fundante e que é dele que os demais elementos de
um jogo eletrônico, como narrativa e imersão, emergem da relação
dos jogadores com o espaço.
Palavras-chave: Performance. Espaço. Tecnologia. Videogames. Drama.
Agência. Imersão.

Jogador nº 1
Espaço e performance são dois pontos que se unem no ciberespaço dos
videogames. O mundo virtual dos jogos eletrônicos possui uma estrutura
dramática que vai além do imaginário ou do imaginado: é um espaço
vivido, construído com base na e pela experiência do jogador. É o per-
former quem interage e vivencia esse espaço, que interpreta os símbolos
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e imagens e então constrói significados e sentidos. Ao contrário de


outras formas narrativas, o jogo precisa ser jogado: o jogador é peça
central, pois são suas ações e sua exploração e interpretação do espaço
que construirão essa narrativa e que a fará progredir.
Este texto propõe relacionar o espaço digital como elemento funda-
mental e performativo na imersão dos jogadores em jogos eletrônicos.
Embora o videogame traga em si uma convergência de significados, estru-
turas e abordagens de diversas áreas – tecnologia, teatro, comunicação
etc. – é através do espaço construído que o jogador não apenas atribui
significado ao videogame, mas também por onde ele se diverte e desenrola
a ação in game.
Isso acontece porque a exploração e a interação são características
intrínsecas do ciberespaço. Um videogame e seu mundo digital não são
lidos e interpretados como um texto tradicional: ele é explorado intera-
tivamente. Os jogos – e as novas tecnologias – já fazem parte da nossa
cultura. É impossível separar o ser humano do seu ambiente, dos seus
signos, dos elementos pelos quais ele atribui sentido ao seu mundo. Pierre
Lévy (2010) escreveu sobre isso, mas a interpretação do espaço já é bem
antiga. Para nós, é interessante ligar esta ideia inicial de um mundo digital
interativo com Gaston Bachelard (2000). Para este autor, os espaços são
lidos, interpretados, carregam consigo um significado construído com
base na experiência do indivíduo e de seus pares. No ciberespaço dos
games o jogador passa pelo mesmo processo.
Para nossa reflexão, é importante se ater ao espaço estudado como
experiência. Em seu artigo “Dewey, Dilthey e Drama: Um Ensaio em
Antropologia da Experiência” [1986], Victor Turner (2005) explora a
etimologia de “experiência”: per, significando tentar, aventurar-se, correr
riscos, e da derivação grega perao, “passar por”. “O cognato germânico

· 94
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

de per relaciona experiência com ‘passagem’, ‘medo’ e ‘transporte’ (...).


O grego peraō relaciona experiência a ‘passar através’, com implicações
em ritos de passagem” (Turner, 2005, p. 178). Mais tarde ele apresenta
as definições de Dilthey em que uma mera experiência pode ser trans-
formada em uma experiência, algo marcante, fundante e transformador.
Experiência e seu significado dialogam diretamente com o processo
ritual estudado por Turner (2005), com a liminaridade, com o ritual e
com as performances. Para o autor (2005, p. 179), “algumas dessas expe-
riências formativas são altamente pessoais, outras são partilhadas com
grupos aos quais pertencemos por nascimento ou escolha”. Em seu
ensaio “Victor Turner e a antropologia da experiência”, Dawsey (2005)
enumera as definições dadas pelo antropólogo inglês para o que ele
chama de elerbnis (experiência vivida):

1) algo acontece ao nível da percepção (sendo que a dor ou


o prazer podem ser sentidos de forma mais intensa do que
comportamentos repetitivos ou de rotina); 2) imagens de
experiências do passado são evocadas e delineadas – de forma
aguda; 3) emoções associadas aos eventos do passado são
revividas; 4) o passado articula-se ao presente numa “relação
musical” (conforme a analogia de Dilthey), tornando possível
a descoberta e construção de significado; e 5) a experiência
se completa através de uma forma de “expressão”. (Dawsey,
2005, p. 164).

O próprio autor destaca, em seguida, que a performance está no momen-


to da expressão da experiência: “Performance – termo que deriva do
francês antigo parfournir, ‘completar’ ou ‘realizar inteiramente’ – refere-se,
justamente, ao momento da expressão. A performance completa uma
experiência” (Dawsey, 2005, p. 165). Nos jogos eletrônicos, essa perfor-
mance e essa experiência tomam parte no ciberespaço: a espacialidade

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exerce grande influência sobre a interação do jogador nesse meio virtual,


sobre sua imersão e agência no mundo digital especialmente. Estes dois
fatores, imersão e agência, são a chave para a performance do jogador.
Primeiramente, os jogos são, para Huizinga (2000), uma atividade
livre e voluntária; separado, o jogador tem consciência de que ela não
é a “vida real”; o jogo não é lucrativo, não é algo que se fez para obter
lucros, mas por diversão; ele está contido em espaço e tempo definidos
e pré-estabelecidos; os jogadores estão de pleno acordo com aquele
“mundo” que compartilham e quem rompe a imersão ou quebra as regras
é um estraga-prazeres; o jogo agrega pessoas e forma comunidades,
que se reúnem e interagem sobre ele; e possui objetivos e regras. Essa
definição do autor sobre jogos é uma das mais antigas e abertas, o que
facilita o seu diálogo, neste capítulo, com as performances.
As características dadas por Huizinga se aproximam das performances
culturais descritas pela liminaridade de Victor Turner (1974) e ao conceito
de transporte e transformação, de Richard Schechner (2011). Primeiro,
vamos falar um pouco mais sobre o espaço para então conectarmos a
espacialidade com as performances.

Aperte start
Um bom ponto de partida para a nossa discussão seria o conceito de
espaço social e produção do espaço de Henri Lefebvre (2012). O que
nos interessa no pensamento do autor é a afirmação de que, assim como
a cultura, todo o espaço humano é construído. Para além disso, é um
espaço híbrido, um misto entre o mundo físico, o ideal e o simbólico
que vivem juntos, se influenciam e se renovam constantemente. Para
o autor existe uma racionalidade na produção do espaço que cria uma
ordem temporal-espacial material e imaterial, mesclando-o entre prático,
simbólico e imaginário.

· 96
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

O espaço do nosso cotidiano é dialético, uma negociação constante


entre inúmeros fatores da natureza, desde a economia até a esfera polí-
tica e ao sistema capitalista. Qual a importância disso para nós? É que o
espaço é, primeiramente, um produto social, construído com base em
ações simbólicas e práticas individuais e coletivas. Ele é representado,
performatizado e, nas palavras do autor, engloba tudo:

A forma do espaço social é encontro, assembleia, simulta-


neidade. Mas o que se encontra ou o que é encontrado? A
resposta é: tudo que há no espaço, tudo que é produzido pela
natureza ou pela sociedade, seja em cooperação ou pelo con-
flito. Tudo: seres vivos, coisas, objetos, trabalhos, sinais e
símbolos. (Lefebvre, 2012, p. 101).

Isso não escapa ao mundo dos jogos. Embora o ciberespaço tenha


sido criado tomando por base uma intencionalidade por parte dos game
designers, é o jogador quem o habita e que lhe dá sentido. No mundo
concreto, o espaço possui limites objetivos, mas que constantemente
contornamos com nossos furos em paredes, habitações ilegais, ocupações
políticas e culturais etc. O mesmo acontece nos jogos: um game designer
pode atribuir limites ao cibermundo, mas é a experiência do jogador que
vai ditar o que acontece. Um jogador possui como nível mais básico de
interação a exploração do espaço1 e pode, através dela, testar ou tentar
superar as fronteiras impostas ao tentar sair do mapa, acessar áreas apa-
rentemente inalcançáveis ou explorar bugs e glitches. Isto não é novo no
mundo dos games e alguns jogos clássicos, como Tomb Raider e DOOM2,
até recompensam os jogadores que encontram áreas secretas.
1 Desde os primeiros jogos, como Pong e Spacewar, o ponto de partida sempre é
o controle de algo em um espaço dado. No caso de ambos, um ponto, em um
representando uma bola de tênis e em outro um míssil contra alienígenas.
2 As comunidades de jogadores até mesmo mapeiam e disponibilizam guias como
por exemplo para DOOM (http://classicdoom.com/maps/d1secs/d1.htm) e
Tomb Raider (http://tombraiders.net/stella/tomb1.html).

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Esse espaço híbrido e construído simbolicamente pode ser associa-


do à reflexão sobre técnica e tecnologia de Milton Santos (2014). A
técnica acompanha o homem desde o início da humanidade e progride
conosco, gerando um espaço híbrido, afetado, que o autor chama de
meio técnico-científico informacional. “As técnicas são um conjunto
de meios instrumentais e sociais com os quais o homem realiza sua vida,
produz e, ao mesmo tempo, cria espaço” (Santos, 2014, p. 29). Através
da tecnologia, a humanidade pode dar nova forma e sentido ao espaço
ao seu redor. O computador, a internet e os jogos eletrônicos entram aí,
são meios pelos quais nos expressamos e criamos, até mesmo, espaço.
Ele escreve:

Os movimentos da sociedade, atribuindo novas funções às


formas geográficas, transformam a organização do espaço,
criam novas situações de equilíbrio e, ao mesmo tempo, novos
pontos de partida para um novo movimento. (Santos, 2014,
p. 106).
É a sociedade, isto é, o homem, que anima as formas espaciais,
atribuindo-lhes um conteúdo, uma vida. (p. 109)
Em cada momento, em última análise, a sociedade está agindo
sobre ela própria, e jamais sobre a materialidade exclusivamente.
A dialética, pois, não é entre sociedade e paisagem, mas entre
sociedade e espaço. E vice-versa. (p. 110).

O mundo é híbrido: não se sabe onde termina a natureza e onde começa


o que foi feito pelo homem. Da mesma forma, na sociedade, é impossível
separar o que é técnica pura e o que não é. Nossa vida cotidiana molda
e ressignifica constantemente o espaço ao nosso redor, ou o mundo se
preferir, que é, então, reproduzido, refeito por nós. Este espaço é o espaço
da experiência, como ancorado nas performances. Schechner (2006) escreve

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

sobre como as performances são “comportamento restaurado”, ligado aos


nossos rituais e práticas diárias. “Rituais, jogos e peças e os papéis da
vida cotidiana são performance porque a convenção, o contexto, o uso e
a tradição dizem assim” (Schechner, 2006, p. 38). Se atribuímos ininter-
ruptamente novas formas e interpretações ao nosso mundo “real”, isso
afeta diretamente a forma como nós o experimentamos, vivenciamos
e o compreendemos. O mesmo se aplica ao videogame: nós moldamos e
ressignificamos o espaço digital.
Cada performance é única: mesmo que se pegue o ônibus todo o dia, o
ambiente e as pessoas ao redor não serão as mesmas, nem o motorista,
nem o tempo lá fora nem o seu próprio humor e estado de espírito.

Performances são feitas de porções de comportamento res-


taurado, mas cada performance é diferente de qualquer outra.
Primeiro, determinadas porções do comportamento podem ser
recombinadas em um número sem fim de variações. Segundo,
nenhum evento consegue copiar exatamente outro evento.
Não apenas o próprio comportamento – nuances de humor,
tom de voz, linguagem corporal, e daí por diante, mas tam-
bém a ocasião específica e o contexto fazem com que cada
caso seja único. (...) A performance não está ‘em’, mas ‘entre’.
(Schechner, 2006, p. 30).

Nos jogos, isso tende a ser feito através da ideia de presença, do corpo
ativo no espaço, que nos games implica na figura do avatar controlado pelo
jogador. O avatar traz consigo um fator sensorial, de “corporeidade”. É
a manifestação de sua corporeidade no espaço e é a forma pelo qual o
jogador performa e experiência o jogo e o ciberespaço. Em A Dimensão
Oculta, Edward Hall (2005) fala sobre como percebemos o mundo toman-
do por base o nosso corpo, especificamente, os nossos sentidos: visão,
audição, olfato e tato. Ele chama os sentidos de receptores, canais pelos

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quais compreendemos o mundo. Porém, ele ressalta que a informação


que nos é dada pelo mundo não é puramente dada: ela passa por filtros,
especialmente pelo da cultura. Sendo assim, o espaço é trabalhado de
formas diferentes em culturas diversas.
Um dos melhores exemplos dados pelo autor é sobre a sala de uma
residência. Ele argumenta que os estadunidenses gostam de deixar um
espaço mais livre no meio e encostam os móveis nas paredes: sofás,
armários, decoração, gabinetes. Enquanto isso, no Japão, onde as resi-
dências são significativamente menores, uma sala típica japonesa terá
os objetos concentrados no centro e suas arestas livres para que os
moradores possam circular mais livremente pelo espaço apertado. Esta
simples reorganização do espaço se dá, para o autor, pela forma como as
pessoas vivenciam o espaço. A isto ele chama de diferença entre espaço
percebido e espaço real.
Essa sensação do espaço se aplica, da mesma forma ao imaginário.
Para Hall, usamos imagens mentais para interpretar e vivenciar o espaço.
Ele cita as pinturas renascentistas como exemplo: ninguém vê uma obra-
-prima de Rafael apenas como tinta sobre uma tela. Da mesma forma, o
ciberespaço não é apenas código. Há uma ênfase na sensação espacial:
“a ideia de espaço emprega mais movimento e ultrapassa o visual para
atingir um espaço sensorial muito mais profundo” (Hall, 2005, p. 118).
Hall concorda com Bachelard: os espaços estão impregnados de sig-
nificado. Se uma pessoa resolve picar uma cebola na sala, isso gera um
estranhamento, pois já associamos determinadas ações a cada espaço.
“Se, como às vezes ocorre, os artefatos ou as atividades associadas a um
espaço são transferidos para outro espaço, esse fato fica imediatamente
aparente” (Hall, 2005, p. 130), ou seja, nossa forma de vivenciar a cultura
passa pelo corpo e está intimamente ligada à experiência física. É ela, a

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

cultura, a dimensão oculta destacada pelo autor. Portanto, experienciar o


ciberespaço de um videogame vai além de apenas apertar botões e observar
uma imagem na tela; é uma questão de viver, de performar a ação e de
ter essa liberdade de escolha. Novamente, podemos elencar este tipo de
comportamento ritualizado à noção de comportamento restaurado de
Schechner (2006): se rompemos com o hábito, há um estranhamento.
Para compreender melhor essa noção, é necessário entrar no campo
da filosofia. Um dos autores que melhor trabalha a compreensão do
espaço é um dos mais complexos: Heidegger (2011). Os conceitos
do autor sobre o dasein – o “ser-aí” – e de umwelt – o de “mundo circun-
dante” – são fundamentais para compreender a vivência no ciberespaço.
O mundo e seus entes só existem com base no dasein: é o conjunto de
coisas ao meu redor que não sou eu; estar no mundo é o que nos define,
a existência precede a essência. Os entes já estão no mundo e só podemos
compreendê-los com base em nós mesmos e da nossa experiência. Cada
um de nós tem um mundo e lhe atribuímos sentido através da emoção,
é assim que o compreendemos. Compartilhamos o mundo dessa forma,
com outros dasein, segundo suas emoções e interpretações.
Isso significa que o ser humano está sempre engajado no espaço, ele
nunca é apenas um observador. Ele dá sentido aos entes, aos objetos
ao seu redor, por meio do uso deles. Este uso então passa pelo crivo
emocional. Um bom exemplo é o da faca. O objeto faca não nos diz
nada, mas seu uso e nosso sentimento em relação a isso nos diz tudo. É
com base no uso da faca que lhe atribuímos a condição de arma e isso
gera nosso medo de saber que ela pode ser usada como tal. Ao mesmo
tempo, é o uso da faca para cortar legumes que nos leva ao aprendizado
de que ela pode ser usada como ferramenta.

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O mesmo raciocínio pode ser expandido. O fogo, por exemplo, pode


cozinhar, matar ou aquecer, mas foi apenas através da experiência, do
uso, que aprendemos e expandimos nosso conhecimento sobre ele.
Da mesma forma, através da experiência e do uso, compreendemos e
exploramos o ciberespaço. Nós exploramos a interface e o mundo digital
em busca de respostas e o sistema provém o feedback das nossas ações.
Pense em um programa simples, como um gerenciador de e-mail ou
uma rede social: ao entrarmos nestas páginas pela primeira vez, pre-
cisamos explorá-las e compreender seus ícones, símbolos e descobrir
nossos poderes e limites. Do mesmo jeito que tivemos que experimentar
a faca para entender o seu uso, o jogador experimenta o espaço para
compreender suas possibilidades: se pode correr, se pode pular, se pode
interagir com os objetos.
Para Heidegger, esse aprendizado leva à compreensão do umwelt, o
mundo ao redor. O uso constante expande nosso mundo, isto é, nos-
so entendimento dos objetos ao nosso redor, que leva, por sua vez, à
totalidade instrumental. Todos os objetos do mundo se relacionam e a
relação entre suas funcionalidades levam à formação da cultura.
Para Renata Gomes (2011), o jogador é um ator cinestésico no ciberes-
paço e o mundo digital está lá para dar feedbacks para suas ações. O mundo
está lá não apenas para ser imersivo, mas também para ditar as regras. A
autora fala sobre a sensação de presença no mundo digital e relaciona suas
ideias com os conceitos de dasein e umwelt de Heiddeger (2011).
Basicamente, podemos estabelecer uma relação entre o dasein (o “ser-
-aí”) com o “mundo”, o ambiente ao seu redor (umwelt) e a instrumenta-
lidade. Heiddeger (2011, p. 111) escreve: “mundanidade é um conceito
ontológico e significa a estrutura de um momento constitutivo de ser-no-
-mundo. Este, nós o conhecemos como uma determinação existencial

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

da presença [dasein]”. Ou seja, o mundo é um caráter do próprio dasein:


nossa noção de espacialidade, do universo ao nosso redor, é uma carac-
terística fundante da existência.
Existe uma relação com a corporeidade do avatar no ciberespaço que
não é possível em outros meios nem em outros jogos, pois esta relação
oferece a sensação de espaço vivido e cria significados reais:

Em jogos cuja ação física do corpo virtual constitui a matéria­-


-prima da “jogabilidade”, o que se está a fazer é simular, a
favor das potencialidades da linguagem e contornando suas
limitações, umwelts possíveis, mundos possíveis de ficcionalida-
des centradas na corporificação do interator. (...) Se é verdade
que os processos sígnicos mais sofisticados são propriedades
emergentes desse ato físico de habitar um mundo, então com-
preender o espaço-tempo de cada um desses jogos, assim como
o regime de corporalidade que implementam, parece ser o
caminho para pensar motivações narrativas orgânicas, porque
organicamente ligadas a seu ambiente. (Gomes, 2011, p. 415).

A autora encerra sua reflexão contando sobre uma própria experiên-


cia jogando Tomb Raider II. Ela conta que após jogar pela primeira vez,
sonhou com o jogo, mas era ela mesma a protagonista Lara Croft esca-
lando montanhas, resolvendo desafios e enfrentando criaturas. “Estava
estabelecida, na pele, a sensação de presença do jogo” (Gomes, 2011,
p. 416). Vale mencionar que, no texto, ela usa “presença” no sentido
heideggeriano, ou seja, a sensação de “ser-aí”, do dasein, no jogo. Ela
continua falando da sua experiência sobre como, através do uso, apren-
deu o sistema do jogo: quando e porque pular, onde e no que atirar etc.
Até que ela passou por uma situação dramática.

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Ela encontrou monges e, num ato falho, se preparou para atirar. Ela
conta que o personagem do monge então se ajoelhou e juntou as mãos
em piedade.

Sua simples reação de medo despertou em mim um profundo


sentimento de piedade e culpa (...). Meu ambiente se mostrou
autônomo, resistiu a mim e, assim, abriu outros caminhos de
sentido. A sensação de presença numa realidade autônoma,
que insiste e se opõe a mim, é a própria umwelt sendo simula-
da e abrindo espaço para outras percepções possíveis (...). A
percepção, assim, desloca-se da simulação da aparência das
coisas para uma percepção que só pode existir a partir do
momento em que o jogador a constrói. O sentido não está
dado. (Gomes, 2011, p. 416 e 417).

Aí está a agência do jogador. Como escrevemos no início, é pela


agência que o jogador performa no cibermundo. Ela é composta
pela habilidade do jogador de realizar ações significativas no mundo
do jogo (Murray, 2003). É pela agência que o jogador, através da sua
experiência, pode criar a sua própria narrativa, rompendo com a inten-
cionalidade do designer. Pense em um jogo de corrida: a intenção é que o
jogador pilote em uma pista determinada em vença seus competidores.
Agora, se o jogador quiser ignorar a corrida e fazer “zerinhos” na pista,
ele pode, rompendo com a ideia original do jogo. Da mesma forma, o
jogador pode escolher jogar sujo: pode cortar caminho pela grama apesar
das penalidades ou tentar jogar outros corredores para fora da pista.
Para Laurel (2008), a agência no ciberespaço está ligada ao que ela
chama de “experiência em primeira pessoa”, tendo em vista que tudo o
que acontece no sistema possui o usuário como referencial; o que ele faz
em relação ao sistema é imperativo a toda ação. Isso possui um impacto
imersivo, dramático e narrativo. Ao ler um livro ou ver um filme, as

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

ações acontecem com um personagem, mesmo que narrado em primeira


pessoa. Em um jogo, a ação acontece com o usuário: mesmo sendo um
avatar ou personagem, o jogador é quem tem o controle sobre ele e é
convidado a assumir o seu papel.
O jogador interpreta o ciberespaço do jogo e possui um feedback
emocional de seus atos e da ação que se desenvolve na tela. O jogo é
performance: o jogador é efetivamente transportado para outro mundo
onde experimenta estas sensações. Fink (2016) fala sobre ambiência
pelo conceito de worldliness, sobre a existência do ser no mundo pela
experiência do mundo. Chegamos novamente à ligação entre jogos,
como descritos por Huizinga (2000), e as performances. Fink descreve
play como “separada de outras atividades, (...) possui ‘seu próprio reino’
ensimesmado. O ‘cenário’ do play sempre precisa de espaço real e tempo
real para se desenrolar, mas espaço e tempo no playworld nunca coincide
com o espaço-tempo ao seu redor” (Fink, 2016, p. 207).
Worldliness, ou a experiência de “mundanidade” do playworld, nada mais
é que o espaço vivenciado, conceito que dialoga com Heiddeger (2011)
e com o espaço social de Lefebvre (2012). Fink (2016) escreve que play é
um fenômeno existencial básico e primordial, como os da mortalidade,
amor, trabalho e sofrimento. Em play, argumenta o autor, habitamos um
mundo especial, o mundo do jogo (playworld).
Para Laurel (2008), o ciberespaço se aproxima muito do teatro. Em seu
livro Computers as Theatre [1993], ela se refere tanto ao jogador quanto ao
usuário de computador como “ator”. Para a pesquisadora, a performance
se desenrola através do “engajamento direto” do usuário com a interfa-
ce, acompanhada pelo desenrolar em tempo real das ações no mundo
virtual. Ela chega a comparar o trabalho de um game designer ao de um
cenógrafo, criando cenas, objetos, enfim, mundos interativos: “ambos

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são trabalhos voltados a criar mundos que são como o nosso, só que
diferentes” (Laurel, 2008, p. 10). O drama requer performance; as peças
são escritas para serem atuadas. Os jogos são como peças teatrais, mas
os usuários são atores e, ao mesmo tempo, a audiência.
Ao se envolver com a ação, o jogador está imerso:

Para o membro da plateia e do mesmo modo para o ator,


a ‘realidade’ suprema é o que está acontecendo no mundo
imaginário do palco (...). Eu argumento que os usuários de
um sistema são como membros da plateia que marcham sobre
o palco e se tornam vários personagens (...). As pessoas que
estão participando da ação não são mais membros da audiência.
Não é que a plateia se junta aos atores; a plateia se transforma
nos atores – e a noção de observadores passivos desaparece.
Do ponto de vista teatral, a atividade computador-humano
possui um palco no mundo digital. Ele é povoado por agentes,
humanos e gerados por computador e outros elementos do
contexto representacional. (Laurel, 2008, p. 16 e 17).

O pensamento heideggeriano pode ser usado para se relacionar inti-


mamente com o ciberespaço, pois a forma como compreendemos o
mundo do jogo pode ser interpretada de maneira muito parecida com
a compreensão do espaço tomando por base o dasein e a expansão do
conhecimento pelo umwelt. É através da experiência e da exploração
do espaço que o jogador performa. É assim que ele se torna imerso no
jogo, desenvolve a narrativa e, mais importante, se diverte.
É através do espaço que o jogador realiza ações que interferem com
o espaço ao redor e impactam o jogo e a narrativa. Essa é a imersão:

Uma narrativa excitante, em qualquer meio, pode ser experi-


mentada como uma realidade virtual porque nossos cérebros

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

estão programados para sintonizar nas histórias com uma


intensidade que pode obliterar o mundo a nossa volta. (...)
Imersão é um termo metafórico derivado da experiência física
de estar submerso na água. Buscamos de uma experiência
psicologicamente imersiva a mesma impressão que obtemos
num mergulho no oceano ou numa piscina: a sensação de estar-
mos envolvidos por uma realidade completamente estranha
(...). Gostamos de sair do nosso mundo familiar, do sentido
de vigilância que advém de estarmos nesse lugar novo, e do
deleite que é aprendermos a nos movimentar dentro dele. (...)
O trabalho com o computador pode nos proporcionar acesso
irrestrito às emoções. (...) O encantamento do computador
cria para nós um espaço público que também parece bastante
privado e íntimo. (Murray, 2003, p. 101 e 102).

Murray percebe o espaço e a exploração do mesmo como um dos


elementos mais básicos e edificantes de qualquer videogame. “A habilidade
de se locomover por paisagens virtuais pode ser prazerosa em si mesma,
independente do conteúdo dos espaços” (Murray, 2003, p. 128). Para
ela, espaço, narrativa e performance estão amarrados:

Seja simples ou complexo, um labirinto de aventura é espe-


cialmente apropriado para o ambiente digital porque a história
está amarrada à navegação do espaço. Conforme avanço, tenho
uma sensação de grande poder, de agir significativamente,
que está diretamente relacionada ao prazer que sinto com o
desenrolar da história. (Murray, 2003, p. 131).

O fato de o jogador poder atuar neste espaço é o que torna a expe-


riência tão significativa. “Se uma representação da superfície da lua te
permite caminhar sobre ela e olhar ao redor, ela provavelmente será uma
experiência profundamente imersiva. (...) Ela permite atuar dentro da
representação, isso que é importante” (Laurel, 2008, p. 21).

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Laurel argumenta que no teatro e na dramaturgia a ação é movida


por causalidade, ao passo que nos jogos o progresso narrativo virá da
ação do jogador pelo espaço. “Barreiras materiais podem ser colocadas
de forma sutil através de exposição durante a ação. As pessoas desco-
brem aspectos comportamentais e ‘físicos’ do mundo mimético, seus
personagens e eventos dessa forma” (Laurel, 2008, p. 109), ou seja,
explorando seu ambiente.
Laurel descreve os jogos como um meio de fronteira, algo nas margens,
o que é muito interessante, pois nos permite ligar seu pensamento à limi-
naridade de Victor Turner (1974) e ao transporte e a transformação de
Richard Schechner (2011). “As entidades liminares não se situam nem aqui
nem lá; estão no meio” (Turner, 1974, p. 117), como o jogador que passa a
ser ator e deixa de ser plateia. Os jogadores se encontram em uma fronteira,
com tempo, espaço e regras próprias, no qual também compartilham um
status homogêneo de camaradagem conferido por estas condições. Estão
dentro e fora do tempo, dentro e fora da estrutura social.
Schechner (2011) fala sobre a plateia e o ator que são transportados
e transformados por uma performance. Esse transporte/transformação se
dá com base no corpo. Um ator que faz Hamlet sabe que não é Hamlet,
mas também não é ele mesmo: é um não não-eu. O mesmo vale para
a experiência do avatar, como demonstra a experiência de Gomes rela-
tada anteriormente; o jogador se torna um não não-eu. A liminaridade
aparece no texto do autor ao dizer que performances são “uma realidade
para casos especiais (...) um momento de ruptura no ciclo da vida”
(Schechner, 2011, p. 155). A performance suga o espaço ao seu redor,
como um redemoinho. Este é o engajamento, a imersão. Ela requer que
o performer “atue entre duas identidades; neste caso atuar é o paradigma
da liminaridade” (Schechner, 2011, p. 160). Os performers são guiados
para fora do seu mundo comum, vivenciando um mundo performativo,

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

para depois retornarem ao seu status original: “cada performance sepa-


radamente é um transporte, acabando mais ou menos onde começou”
(Schechner, 2011, p. 163). Neste ponto, lembremos de Huizinga (2000)
e de Fink (2016): o mundo do jogo é o mundo performativo, pois está
à parte, com regras próprias e seu próprio espaço-tempo.
O jogador sai do seu mundo habitual e é transportado para o mundo
performativo em que estará em uma temporalidade à parte e experimen-
tará um espaço, uma personalidade e regras diferentes. Faz-se necessário
relacionar os jogos e as concepções de Schechner com o trabalho de
Victor Turner (1974). Sua pesquisa antropológica seguiu os passos de
Arnold Van Gennep e sua obra Os ritos de passagem acerca do significado
de “passagem”. O conceito de liminaridade de Turner expande sobre as
fases do rito, descritas por Van Gennep: separação, transição e incorpo-
ração. O autor chama a transição de limen, latim para “fronteira”.
Em uma situação de liminaridade, os participantes estão nesta fron-
teira, nem cá nem lá, separados, em seu próprio tempo-espaço e des-
providos de seus status anteriores, condições que podem ser ligadas às
características de jogos e ao conceito de transporte e transformação,
colocando os participantes em um estado ambíguo por definição. Após
o período liminar há a reagregação à sociedade, que podemos associar
ao esfriamento ou desaquecimento do transporte de Schechner e à
experiência do jogador no cibermundo. O jogador é levado para este
estado de fronteira e transporte no qual ele abandona o seu status para
assumir um novo papel.
Para Pearce (2009), o avatar também carrega consigo uma intencio-
nalidade do jogador, diferente da dos designers do jogo. Novamente, eu
e não não-eu, um transporte e transformação: “O que isto sugere é que
o avatar não é inteiramente ‘eu’, nem inteiramente ‘não eu’, mas uma

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versão de mim que existe em um contexto particular e mediado” (Pearce,


2009, p. 183). O avatar pode ser uma máscara, mas é uma que foi pinta-
da, decorada e escolhida pelo jogador, mesmo que tenha vindo de um
molde industrial. Em Communities of Play (livro que a autora assina com
seu nome e o nome do seu avatar, Artemísia), Pearce encontrou joga-
dores que reclamaram por não poder criar avatares velhos, por exemplo.
Além disso, a autora percebeu que seus entrevistados tinham uma
tendência a oscilar entre a primeira e a terceira pessoa quando se referiam
aos avatares. “A distinção entre o jogador e seu avatar é um tanto borrada,
e os jogadores vão falar sobre eles em primeira e em terceira pessoa (...).
Isso não quer dizer que a persona da pessoa é incorpórea, mas que ela
é expressada em múltiplas corporeidades” (Pearce, 2009, p. 34). Neste
transporte e transformação da performance abrigado pela liminaridade do
espaço dos jogos, a intencionalidade e a personalidade do jogador irá
vazar para seu personagem, borrando a fronteira entre os dois.
A autora percebeu que muitos entrevistados viam seus avatares como
uma máscara que, na verdade, lhes permitia serem mais eles mesmos.
“A maior parte dos jogadores neste estudo sentiam que seus avatares
eram expressões ‘reais’ de si, equivalente ou mais do que seus ‘ava­tares
da vida real’” (Pearce, 2009, p. 34). No jogo, as ações performatizadas
podem ser libertadoras.
É essa existência fundante e o uso do ambiente ao redor que dá sen-
tido ao mundo digital e que permeia sua narrativa: seu núcleo é a ação
do jogador. O jogo se torna uma narrativa através do espaço e não de
um roteiro. É com bases nessas estratégias de construção espacial que
o performer passa a ter a sensação de presença vicária no mundo do jogo.
Essa sensação de imersão faz o jogo se tornar uma “experiência”.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Para compreender esta liminaridade e a performance dos jogos, podemos


pensar em um jogo popular, como o futebol: ele possui regras próprias
(como a de não jogar com as mãos), que só valem no jogo; ele possui um
espaço próprio, o gramado, pois as regras do jogo não se aplicam fora
das quatro linhas; e possui seu próprio tempo, dividido em 90 minutos.
Outra característica da liminaridade é a perda de papéis e status. De
fato, ao se tornar este não não-eu, o jogador deixa o seu velho status do
lado de fora do jogo para ser transportado e assumir um novo papel no
espaço liminar temporário. Um craque de futebol ao entrar nas quatro
linhas está em igualdade com os demais, pois todos têm seu papel e estão
regidos pelas mesmas regras.
Superficialmente, um jogo pode parecer pouco interativo ou envolvente.
Por exemplo, em jogos de aventura com regras mais simples, como Super
Mario Bros, há um caminho pré-estabelecido, com barreiras e desafios a
serem vencidos. Então o jogador entra em cena. Ele escala, ele pula, ele
enfrenta os inimigos. Ele explora o seu ambiente e essa exploração faz
o jogo – e também a narrativa – andar, ou, como diz Gomes, o jogador
“lugariza-se”. Com base nisso, a criação e expansão da umwelt é possível,
centrada na corporificação do jogador.
Aí também o jogador pode criar sua própria narrativa e interpretação.
Volte ao jogo de Mario Bros: se jogador não se mover, o tempo no reló-
gio se esgota e é game over. Ao se mover, ele não apenas se engaja com a
narrativa estruturada (Mario é o herói que precisa avançar as fases para
salvar a princesa Peach) como pode criar sua própria narrativa. Como?
Um jogador pode decidir finalizar o jogo, por exemplo, sem morrer
nenhuma vez; ou pode decidir fazer todo jogo sem a ajuda de nenhum
item especial como o cogumelo vermelho, que faz o Mario crescer e dá
uma segunda chance quando o jogador comete uma falha. O jogo não

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foi feito, necessariamente, para ser jogado dessa forma, mas o jogador
possui a liberdade de botar o sistema e sua criativa à prova.
Essa liberdade vem da relação entre a performance do jogador e o espaço
que levam ao que Jenkins (2011) chama de “arquitetura narrativa”. Para
ele, o level design, a topografia digital acaba sendo mais importante do
que os personagens, pois é pelo espaço que o jogador entra em contato
com todo o resto. Jenkins (2011, p. 3) diz que a mesma lógica vale para
os RPGs de mesa e aventuras de texto:

Teóricos da performance descrevem o RPG como uma forma


de narrativa colaborativa, mas a atividade do Mestre começa
por desenhar o espaço de jogo – a dungeon – onde a aventura
dos jogadores irá ocorrer. Mesmo muitos dos jogos baseados
em texto, como Zork, nos quais era possível fazer qualquer tipo
de história, eram centrados em permitir ao jogador navegar
por espaços narrativamente instigantes: ‘Você está vendo a
parede norte de uma casa branca. Não há porta e todas as
janelas estão cobertas por tábuas. Ao norte, um caminho
estreito serpenteia entre as árvores’.

Essa arquitetura narrativa é o que diferencia o jogo de outras mídias


narrativas, pois requer a interação performatizada do jogador com o
espaço do jogo para progredir. Pela umwelt e pela agência do jogador, seu
engajamento leva à sensação de presença. Portanto, “jogos permitem
realizar de forma muito mais ampla a espacialidade destas histórias, ofe-
recendo uma representação muito mais imersiva e instigante” (Jenkins,
2011, p. 4).
Um dos exemplos mais interessantes e peculiares de como essa nar­
rativa é construída vem da própria Murray (2003). Em seu livro, ela reflete
brevemente sobre qual seria a narrativa de Tetris. O clássico jogo de blocos

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

é bastante simples e não possui uma história oficial. Seu ciberespaço e


regras são, também, simples: peças de formatos diferentes caem do céu e
o jogador deve reorganizá-las adequadamente para que não se acumulem
e desapareçam. Dessa forma o jogador pontua e as peças começam a
descer mais rapidamente, aumentando o nível de desafio do jogo.
A sua narrativa, porém, é mais complexa segundo Murray, baseando-se
em sua própria interpretação. Para a autora, Tetris é uma metáfora para
a vida; ela associa o jogo ao cotidiano: as peças são nossas atividades
diárias que são jogadas contra nós em ordem aleatória e cada vez mais
rápida. Tudo o que podemos fazer é organizar para que elas se encaixem
direitinho, apenas para, no final do dia, essa lista de tarefas ser zerada
e você recomeçar no dia seguinte. Se a pilha de peças é desajustada e
continuar crescendo, pior fica a sua vida e maior é a sua sensação de ser
esmagado pela modernidade.
A interpretação da autora é profunda e significativa e só por ser com-
preendida ao ser performatizada. Tanto é que ela mesma escreve que se
a mesma fosse reinterpretada como uma dança, por exemplo, muitos
veriam o que ela vê:

Se as mesmas ideias espaciais que estão por trás do movimento


de peças coloridas em Tetris – atividade implacável, encaixes
precisos e mal ajustados, ordem e caos, aglomeração e elimi-
nação – fossem representadas numa dança, automaticamente
faríamos sua associação com a experiência humana do dia a
dia, pois veríamos seres humanos a encená-la. Num jogo de
computador, o interator é o bailarino e o projetista de jogos
é o coreógrafo. Os objetos na tela são como uma linguagem
simbólica para induzir nossa ação. Assim, embora experimen-
temos o jogo como um meio para adquirir habilidades, somos

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atraídos para ele pelo conteúdo expressivo implícito da dança.


(Murray, 2003, p. 142).

A autora foi capaz de vivenciar tudo isso com base na sua ação sim-
bólica em um dos jogos para computadores mais simples. Isso serve de
exemplo para demonstrar o poder expressivo da performance através da
arquitetura narrativa dos videogames.

Conclusões
Neste capítulo, buscamos refletir sobre a relação do espaço e da tec-
nologia com os videogames como performance. A performance do jogador no
ciberespaço está focada na agência, que gera sua imersão no cibermundo
e isso só é possível através de uma experiência espacial do mundo digital
com base nos conceitos de umwelt e do dasein; o jogador é um “ser no
mundo” e explora o uso e a instrumentalidade deste novo mundo. A
diversão, performance e imersão do jogador estão ligados diretamente a
vivência dele naquele espaço. Sato (2009, p. 45) resume bem ao escrever:

Considerando o sistema simbólico encontrado no game, (...)


a imersão ocorre com o processo de subjetivação nos meios
digitais. Essa subjetivação está associada ao processo de inter-
pretação e compreensão do interator com o ambiente digital.
(...) Podemos considerar que a imersão é a propriedade que, a
partir da interação com o ambiente virtual promove, faz com
que o sujeito (interator) se integre a este ambiente. Ou seja,
o interator passa a participar efetivamente deste ambiente.
Esta participação difere de interator para interator, pois cada
um fará sua própria exploração e interpretação do ambiente.

Jogos são naturalmente interativos e nos levam, através da performance,


a experienciar novos mundos, organizações e regras através do nosso

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

engajamento direto com o cibermundo. Pela exploração do espaço, sou


transportado para outro ambiente e transformado em um ator interator
que, baseado na exploração do mundo ao meu redor, posso vivenciar
um grande rol de emoções e de sensações desencadeadas pelo jogo e
sua narrativa.
Essa experiência só é possível através da performance do jogador em
suas ações como avatar, levado para o estado liminar de fronteira do
jogo em que deixa seu velho status para trás, assumindo um novo papel,
um não não-eu, tal qual um ator. Neste estado, ele poderá e irá explorar
o ciberespaço, interagindo e interpretando o ambiente ao seu redor.
Nessa interação, o jogador performa, cria e constrói significados que
dão forma à narrativa que só irá progredir através das suas ações rela-
cionadas ao espaço.
Através da agência, essa performance torna o jogador mais do que uma
audiência passiva do videogame, sendo vital na sua experiência de jogo,
dando-lhe o poder de forjar o seu próprio jogo e sua própria narrativa.
A ação do jogador in game, apesar de simbólica, cria significado através
de sua capacidade de interpretar, tornando a interação com o jogo uma
experiência vivida e não abstrata.
Como escreve Murray (2003), o ambiente autoral e o ambiente parti-
cipativo do jogo se fundem. Para a autora, a região da imersão, encon-
tra-se nessa sobreposição, nessa fronteira borrada entre os dois mundos:
na liminaridade. Porém, a autora chega a acreditar que essa fronteira
borrada pode ser um problema: permeável demais, o “transe” pode ser
desfeito. Percebemos o contrário, que é neste encontro que está o ápice
da experiência de jogo.

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A participação do jogador é vital para a sobrevivência e prosperida-


de dos jogos eletrônicos: é uma mídia que depende tanto de conteúdo
quanto de inovação.

“De uma maneira particular, nossa resposta apaixonada à


realidade virtual é um reflexo da mídia em si: ao convidar nos-
sos corpos e sensações para dançar com nossas ferramentas,
estendemos o horizonte da interação para novas topografias
de prazer, emoção e paixão”. (Laurel, 2008, p. 213).

O ciberespaço, assim como todo espaço, carrega consigo uma vivência


que será construída pelo indivíduo e por seus pares. Este espaço será
carregado de valor simbólico que não pode ser visto a olho nu, e sim
sentido (Bachelard, 2000). O espaço do videogame possui um tempo-espaço
próprio, pois está ligado à imaginação. É um espaço que se diferencia e
que cria novas percepções e leituras em cada jogador, baseando-se na
convivência deles com outros jogadores e com o cibermundo propria-
mente dito.
Da mesma forma que, segundo Bachelard, lê-se um quarto ou uma
casa, lê-se também um mundo digital com base nas experiências vividas
e construídas, conforme argumentamos brevemente ao falarmos sobre
transporte e também sobre o dasein e a umwelt. Enfim, é na experiência dessa
performance que forjamos significado, como escreveu Turner (2005, p. 8):

Meu argumento tem sido que a antropologia da experiência


encontra, em certas formas recorrentes de experiência social
(...), fontes de forma estética, incluindo o drama de palco. Mas
o ritual e sua progênie, com destaque às artes performativas,
derivam do coração subjuntivo, liminar, reflexivo e explo-
ratório do drama social, onde as estruturas de experiência

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

grupal (Erlebnis) são copiadas, desmembradas, rememoradas,


remodeladas, e, de viva voz ou não, tornadas significativas.

Temos a perspectiva de que a liminaridade do ciberespaço é um ca­


minho de mão dupla pelo fato do jogador influenciar o mundo digital
e levar para ele sua bagagem, afetos e experiência que é performativa e
muito tem deste “drama de palco”. O ciberespaço não permanece inerte
frente às ações e interações dos jogadores, sendo capaz de influenciar os
desenvolvedores responsáveis pelo jogo e levar à mudanças e transfor-
mações no espaço tomando por base sua agência como ator, jogador,
interator, enfim, performer.

Referências
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2000.
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JENKINS, Henry. Game Design as Narrative Architecture. 2011.


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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

TURNER, Victor. Dewey, Dilthey e drama: Um Ensaio em


Antropologia da Experiência. Cadernos de Campo, São Paulo, 2005.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/
viewFile/50265/54378. Acesso em: 02 jan. 2018.

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PERFORMANCE E JOGO: UM ENSAIO SOBRE
A PROBLEMÁTICA DA AUDIÊNCIA

RAQUEL DE PAULA RIBEIRO


ROBSON CORRÊA DE CAMARGO
DANIEL CHRISTINO

Resumo: A tecnologia e os jogos eletrônicos há muito se tornaram


itens essenciais na vivência do ser humano e em seu relacionamento.
Com o surgimento de conceitos como performance nos anos 70, as
ciências humanas passaram a analisar um elemento que muito diz
sobre a cultura e a sociedade em todos os seus períodos, fazendo
com que esse conceito multidisciplinar e de alta adaptação abrisse
um campo de estudos fértil em todo o mundo. Estudar a performance
permite compreender como as pessoas se posicionam, enxergam e
simbolizam o mundo ao seu redor. Entretanto há uma dificuldade
evidente nesta análise quando pensamos a tecnologia, especialmente
os jogos eletrônicos. A audiência não se encontra presente fisicamen-
te, destinando à própria máquina ou dispositivo que disponibiliza
o jogo o papel de audiência. É esse aparelho que proporciona ao
performer/jogador o balanço que completa e da qual depende a per-
formance para se estabelecer. A máquina olha e é olhada.
Palavras-chave: Performances Culturais. Videogames. Audiência.
Jogo. Arte.
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Preparar, apontar, fogo!


Talvez um dos conceitos mais abertos e polissêmicos no campo das
ciências humanas e das artes atualmente seja o conceito de performance.
Sua própria característica interdisciplinar permite que ela se associe com
diversas áreas de pensamento (tradicionais ou inovadoras) e, mais do que
promover uma simples associação aos conceitos existentes, permeie-se
entre eles e se faz como algo novo.
A performance, da maneira como seus autores clássicos como Richard
Schechner e Victor Turner a tem estudado, se coloca no patamar de
visão de mundo, uma forma pela qual as pessoas vivem, se posicionam,
se relacionam, se colocam no mundo. Essa questão se adensa se enten-
dermos a performance como estruturadora do processo de cultura e como
processo da cultura, ou seja, como performance da cultura.

Performances Culturais é um conceito que, primeiramente, está


inserido numa proposta metodológica interdisciplinar e que pre-
tende o estudo comparativo das civilizações em suas múltiplas
determinações concretas, visa também o estabelecimento do
processo de desenvolvimento destas e de suas possíveis con-
taminações; assim como do entendimento das culturas através
de seus produtos “culturais” em sua profusa diversidade, ou
seja, como o homem as elabora, as experimenta, as percebe e
se percebe, sua gênese, sua estrutura, suas contradições e seu
vir-a-ser. Neste movimento, as performances são sempre plu-
rais, pois solicitam o estudo comparativo, seja a partir de uma
perspectiva macro (os grandes elementos da cultura, as Grandes
Tradições, assim chamadas por Singer e Redfield) em contraste
com as micro experiências (as variadas formas não oficializadas
e diversas a que temos acesso) ou mesmo entre as pequenas
tradições e vice-versa. (Camargo, 2013, p. 1).

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Colocando-se dessa forma, fica claro que a relação da performance com


a cultura, ou a cultura examinada como performance, e as tradições que
se constroem em cada povo ou comunidade é íntima. Essa conexão
pode abranger uma ampla gama de aspectos da cultura de cada povo,
sejam as tradições e ritos oficiais em suas múltiplas determinações, ou
as pequenas experiências cotidianas vividas entre e pelas pessoas. Além
disso, o estudo das performances culturais pressupõe estudos comparativos
entre sociedades e/ou comportamentos, a fim de compreender melhor a
maneira como as pessoas se colocam e se inserem nelas. Por esse motivo
as performances são apresentadas como elemento plural e, portanto, pas-
sível de múltiplas interpretações, dependendo dos elementos que delas
participam, das variáveis em torno das pessoas nas quais se concentra e
dos cortes epistemológicos a serem realizados.
Esse movimento suspenso da realidade quando se analisa as per-
formances da cultura faz com que o seu campo seja ao mesmo tempo
simples e complexo. Por um lado, estudar as performances deve envolver
as técnicas e pesquisas oriundas da antropologia, psicologia e demais
ciências humanas; por outro, o transitar-se pelo terreno da subjetividade
humana, o que faz com que os estudos em performance funcionem para
casos específicos e, ao mesmo tempo, possam ser aplicados também a
casos gerais ou a diferentes culturas.

A questão objetiva e subjetiva que se coloca ao se procurar


analisar a forma das performances culturais é que ela surge
e acontece como evento em si e como representação, como
comunicação, como ato estético, ato simbólico e, principal-
mente, locus de experiência para quem olha e para quem é
olhado. (Camargo, 2015, p. 20).

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Nessa afirmação, duas importantes características se destacam: as


performances culturais como evento em si e em seu momento de expe-
riência, pressupondo alguém que performa e alguém que vê. O olhar e
o ser olhado.
A primeira afirmativa coloca a performance como evento em si. Isso
quer dizer que ela sempre ocorre como evento único, de acordo com
as características que a cercam e que a constituem. Também pressupõe
que a performance sempre ocorre imersa no tempo presente e se evidencia
como um acontecimento único que se modifica, mesmo que tente ser
copiado. Esse processo faz com que o passado e o futuro dos envolvidos
em uma performance entrem em perspectiva em prol de um presente que
se avoluma sobre e dentro da consciência das pessoas, transformando-se
em um estado de semiconsciência onipresente que, após a finalização
do momento, é passível de interpretação futura.
A segunda afirmativa consiste no ponto chave do trabalho em questão e
diz respeito à audiência, a quem olha. O vocábulo grego θέατρον (théatron)
estabelece o lugar físico do espectador, “lugar onde se vai para ver”, o
que implica alguém que olha e, simultaneamente, onde acontece o que
é visto, algo real e simultaneamente imaginário, o olhar e o olhado. Algo
que existe nos espaços presentes e imaginados, nos tempos coletivos e
individuais que se formam neste espaço.
Tendo o conceito de performances culturais se desenvolvido com base
nos estudos sobre o teatro e este tendo como característica primordial
a existência de alguém que olha, a noção de audiência foi incorporada
ao conceito de performance como condição sine qua non. De forma geral,
a audiência consiste nas pessoas que olham e são impactadas pela perfor-
mance sem serem executoras diretas da ação; ela é geralmente responsável
pela repercussão de determinada performance, que retorna ao performer e

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

faz com que ele tome decisões em performances futuras de acordo com o
feedback recebido dela. A audiência se torna, então, elemento fundante da
performance, oficial ou cotidiana, um elemento de ação indireta e direta.
Os jogos estão presentes no cotidiano social desde a existência da
humanidade, mas muito ainda há de se discutir sobre o seu papel ou lugar
nos dias de hoje. A começar pela palavra “jogo”, o que isso significa e
como ele se relaciona com as pessoas. De acordo com Jane McGonigal
(2011), a palavra “jogo” possui em si (especialmente no inglês, play) uma
conotação múltipla que pode simbolizar desde manipulação, falcatrua,
até diversão e entretenimento. No caso do Brasil, especificamente, ainda
permanece a ideia de que o jogo é voltado apenas ao público infantil,
quando o próprio conceito é mais amplo. Cabe a nós aproximar o
conceito de jogo do conceito de performance na nossa língua e cultura, a
fim de apresentar como o videogame, objeto de análise deste capítulo, se
encaixa nessa concepção e qual o seu papel na compreensão do nosso
cotidiano pelo viés da performance.
A relação jogo-performance, estabelecida em países de língua inglesa,
pode ser compreendida ao se utilizar o mesmo termo play para expressar
jogo ou peça de teatro, atuação ou performance. Play compreende múlti-
plos significados, se adequando aos seus significantes numa abordagem
sintética. No Brasil, onde a língua possui uma tendência descritiva e
analítica, os sentidos atribuídos aos termos “jogar” e “atuar” diferem
bastante dependendo do que se está falando, o que solicita a sua tradu-
ção específica. O termo em português “jogo” pode significar uma ação
prazerosa ou manipuladora por parte de alguém sobre o outro e a peça
de teatro pressupõe uma ação, profissional ou não, de representação de
papéis e situações.

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Um dos conceitos, o atuar, pressupõe a presença do outro que olha sem


estar diretamente envolvido, de uma audiência, ao passo que o jogar não
necessariamente prevê esse olhar. Há o jogo individual e o jogo coletivo,
que pode ser jogado para observadores. Existe um olhar qualificado no
jogo individual, ou no coletivo, mas não necessariamente da plateia: é
um que está nos jogadores apenas, pois o jogo de quem joga é o “lugar
onde se vai para ver”, já que este exige um olhar atento, ou se perde a
partida. O jogar estabelece simultaneamente alguém que olha e vê, o
que é visto, o real e o simultaneamente imaginário, o olhar e o olhado,
dentro do próprio jogo. O jogo se estabelece também como o presente
e o imaginado nos tempos coletivos e individuais que se formam neste
espaço. A presença de quem olha sem jogar é uma das opções do jogo,
mas não se estabelece como sua essência.
McGonigal (2011) diz que todo jogo, independente de sua configura-
ção e à parte do gênero, se constrói com base em quatro princípios: uma
meta, regras, feedback e participação voluntária. Esses princípios orien-
tam o jogador e o mantém jogando e também muito se aproximam dos
princípios básicos de uma performance tais como propostos por autores
como Schechner (2011) e Langdon (1995).
Quando Jane McGonigal trata de metas, ela deixa claro que jogar é
algo objetivado e já nasce na iminência de causar efeito no jogador e
na pessoa com quem ele estabelece contato no momento do jogo. A
meta também pressupõe que se trata de um momento de suspensão da
vida cotidiana, elaborado para determinado fim e que, por isso mesmo,
depois de completado, esse momento cessará, assim como acontece na
performance. Quando se fala em jogo e metas, “há pelo menos dois tipos de
jogos. Um pode ser chamado de finito, outro de infinito. Um jogo finito
é jogado com o propósito de vencer e um jogo infinito pelo propósito
de se continuar jogando” (Carse, 1986, p. 3, tradução nossa). Quando

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

se trata de jogos finitos ou infinitos, o objetivo geralmente é o mesmo


para todos os jogadores que dele participam, na medida em que existe
uma meta compartilhada e que se estabelece uma expectativa semelhante
em todos os participantes, sejam eles jogadores ou espectadores que
possam existir. Caso a meta não seja compartilhada por todos, há o risco
de o jogo não progredir e não ser satisfatório para os envolvidos, uma
característica análoga ao que acontece na performance, na qual o evento
que acontece é orientado para um objetivo, geralmente de comunicar
algo sobre o mundo ou interpretá-lo de alguma forma e é conhecido
previamente em virtude da cultura ou sociedade onde se insere.
As regras são desafios e limites que o jogador deve contornar e se
adequar e que vão ao encontro de alguns dos fundamentos básicos de
uma performance, na qual “uma vez sinalizado, há regras básicas para o tipo
de performance que está sendo realizado – a sequência da ação (na piada,
por exemplo, só se ri no final), modos de falar, movimentar, e interagir
que são específicos da situação”. (Langdon, 1985, p. 11). Isso quer dizer
que as regras seguem para orientar o andamento da performance e permitir
que ela ocorra conforme o programado para atingir a meta, mesmo que
essas regras possam surgir de maneira inconsciente.
O feedback se estabelece principalmente nos períodos pós-performáti-
cos dos quais trata Schechner quando ele nos apresenta as fases de uma
performance, a saber: treinamento, oficinas, ensaios, aquecimentos ou pre-
parações imediatamente antes da performance, a performance propriamente
dita, esfriamento e balanço:

O balanço diz respeito às consequências a longo prazo ou


o seguimento dado a uma performance. O balanço inclui as
mudanças de status ou do ser que resultam de uma performan-
ce iniciática; ou a lenta fusão de um performer com o papel

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que ele interpreta há décadas [...]; ou as resenhas e críticas


que tanto influenciam algumas performances e performers;
ou teorizações e produções acadêmicas – como este livro”.
(Schechner, 2011, p. 225).

A fase de feedback se estabelece no balanço, fase final, que afeta o


performer conforme este repete a sua atuação (ou play). Entretanto, o
balanço é mais ou menos estabelecido também desde o momento de
início de uma performance, na sua preparação, ao se preparar determinado
evento estruturando uma resposta de quem vê, numa comédia ou num
filme de terror, por exemplo. Quanto mais perto a meta tenha ficado de
sua projeção (no caso do jogo, de vencer ou manter o jogo, ou suscitar
determinado tipo de comportamento), mais provável será que o balanço
nesse tipo de performance se aproxime do esperado. O balanço também é
responsável por manter a última característica proposta por McGonigal,
a participação voluntária, funcionando, uma vez que o resultado espe-
rado em determinada performance de maneira geral tende a fazer que as
expectativas tenham sido minimamente atendidas,1 o que faz com que
performer e audiência se tornem mais simpáticos à ideia de repeti-la ou
participar de experiência semelhante no futuro.
Essas características expostas por McGonigal se aplicam a todas
as formas de jogo, com maior ou menor ênfase. No entanto, quando
tratamos de jogos eletrônicos, ou videogames, algumas particularidades
são acrescidas, uma vez que o jogo deixa de acontecer em um espaço
puramente físico para passar a um espaço físico-digital imaginário que
permite ao jogador experimentar o jogo de maneiras muito diferentes.

1 Não podemos descartar a hipótese de que a expectativa criada pela audiência em


relação a uma performance seja negativa, o que faria com que a sua conquista
tivesse efeito reverso e confirmada a predisposição negativa do indivíduo, com-
pelindo-o a não participar mais de algo semelhante no futuro. No entanto, na
maioria das vezes, quando se trata de um evento com participação voluntária, as
pessoas esperam resultados satisfatórios de uma performance.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Nas palavras de Ian Bogost (2006), “videogames são programas de


software complexos. Na condição de programas de software, eles se
aproveitam da componentização da tecnologia dos objetos” (posição 772,
tradução nossa). Os videogames são, em outras palavras, jogos complexos
programados como softwares que se utilizam da tecnologia para permitir
o acesso das pessoas e essa particularidade modifica a experiência da
performance do jogador de videogame quando comparada a do jogador de
jogos de tabuleiro, jogos de grupo, competições ou outros tradicionais.

Videogames são jogos, sim, mas mais importante, eles são


softwares; isso deve sempre ser levado em conta na primeira
etapa de uma análise. Em termos contundentes, o jogo Dope
Wars2 tem mais em comum com o software financeiro Quicken3
do que com jogos tradicionais como xadrez, roletas e sinuca.
(Galloway, 2006, posição 146, tradução nossa).

Qualquer tecnologia impõe às pessoas que desejam fazer uso dela


que se submetam às possibilidades de acesso. Como geralmente as
tecnologias estão relacionadas com inovação, nem sempre é possível
usufruir de determinada tecnologia assim que ela é lançada, seja por
questões geográficas ou financeiras. Isso quer dizer que, na condição de
tecnologia, o difícil acesso aos jogos de videogame pode fazer com que a
expectativa em relação às performances culturais decorrentes do uso desses
dispositivos aumente, modificando as variáveis da performance e exigindo
que a experiência seja positiva para que o balanço daquela performance
seja favorável e possibilite outras semelhantes futuramente.

2 Jogo no qual o personagem principal é desempregado e vende drogas na rua.


O objetivo é pegar empréstimos e gerenciar o dinheiro ganho com a venda das
drogas para pagar o empréstimo com o menor juro possível.
3 Software para gerenciamento de finanças pessoais. Disponível em: http://www.
quicken.com.

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No entanto, ainda que o acesso seja difícil em alguns casos, a mes-


ma tecnologia que impõe constante atualização, também proporciona
acessibilidade até certo ponto, como o uso da internet para aquisição
de jogos em versão online, mais baratos que a mídia física. Nesse caso, a
performance que se espera do jogador se mantém a mesma independente
do formato do jogo. O que possui potencial para modificar a performance
do jogador e que também impacta na acessibilidade das tecnologias são
as muitas formas de empréstimo de jogos, amplamente difundidas no
Brasil. Como os últimos lançamentos geralmente são caros, existe a
possibilidade de compra coletiva de um título físico, aluguel de jogos em
empresas semelhantes às antigas videolocadoras ou mesmo o emprés-
timo de amigos e familiares. Nesses casos, a performance do jogador ante
ao jogo se modifica conforme a sua noção de posse se desfaz com o
empréstimo. A relação com o jogo se modifica conforme novas expec-
tativas se formam à medida que as circunstâncias de manuseio e uso
dele se diferenciam.
Além disso, em geral, os jogos que não são eletrônicos pressupõem uma
disputa entre dois ou mais participantes. Claro que existem jogos tradi-
cionais solitários, mas essa característica se acentua através da experiência
do jogador com os videogames e grande parte das performances atribuídas
a esses jogos passam então a ser individuais. No entanto, essa particu-
laridade abre precedente para um problema iminente sobre quem seria
então a audiência da performance do jogo e de quem decorre o balanço.

Player 1 e Player 2
Quando se muda o paradigma de análise de jogos simples para jogos
eletrônicos que consistem em sistemas complexos, dois pontos impor-
tantes de aproximação entre performance e jogo merecem especial atenção

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

pelos problemas conceituais que podem acarretar: a posição do ser que


joga e a posição de audiência.

Jogos digitais e eletrônicos possuem múltiplas formas e plata-


formas de computador diferentes. Incluem jogos para com-
putadores pessoais ou consoles acoplados à uma TV como o
Sony Playstation ou o Microsoft Xbox; dispositivos portáteis
como o Nintendo Game Boy Advance ou portáteis especiali-
zados que rodam apenas um jogo; jogos para PDA (Personal
Digital Assistant – agendas eletrônicas, também chamadas de
palmtops, hoje em desuso) ou celulares; ou jogos para flipera-
ma e parques de diversões. Jogos digitais e eletrônicos podem
ser programados para um único jogador, para um pequeno
grupo de jogadores, ou para uma grande comunidade. (Salen;
Zimmerman, 2004, p. 86, tradução nossa).

De acordo com os autores, os jogos eletrônicos, ou videogames, podem


ser entendidos como maneiras de interação individual ou coletiva com
uma narrativa existente. Isso faz com que o indivíduo mude o jogo e a si
próprio em cada nova sessão, fazendo com que a performance o conduza
a uma experiência diferente, na qual o seu papel deixa de ser passivo,
para ser ativo como agente formador de identidade, interação e história.
O jogador é aquele que se encontra no estado liminar apresentado
por Schechner e o responsável pela performance na tela e em sua própria
vida cotidiana. O jogador se vê presente em dois espaços ao mesmo
tempo com pesos e experiências semelhantes, mesmo que sensorialmente
diferentes.

Esse tipo de performance, porque é tão próxima do “com-


portamento natural” (talvez extraordinária pelo lado de fora,
mas esperada por integrantes da cultura) – também se ren-
dendo a fortes forças externas, como em uma possessão, ou

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se submetendo a humores internos próprios – pode ser muito


poderoso. Pode acontecer com qualquer um, subitamente, e
tal comportamento performativo súbito é considerado como
evidência da força possuidora do sujeito. O performer não
parece estar “atuando”. Um genuíno “se” temporário, uma
transformação (transporte) que acontece. A maioria das per-
formances 1-2 [do “eu” para alguém] são solos, mesmo se as
individuais acontecerem simultaneamente no mesmo espaço.
(Schechner, 1985, p. 41, tradução nossa).

O autor nesse momento de seu texto se refere aos eventos perfor-


máticos em uma cultura na qual eles acontecem subitamente e não são
tomados como forçados pelo indivíduo ou a audiência. Podem acontecer
como em uma possessão instantânea (de entidades externas como em
rituais) ou mesmo no tomar de posição para assumir determinada pos-
tura condizente com o momento (como um professor que se prepara
para iniciar a aula). Esse tipo de característica da performance se assemelha
muito ao transe, independente de estar em um contexto religioso ou não.
Elas garantem o estado liminar do qual trata Schechner e correspondem
ao transporte ou transformação temporária do ser em performance, na
qual ele passa a não ser mais si mesmo, mas, ao mesmo tempo, não se
desliga totalmente de si.

Todas as performances eficientes têm em comum esta qua-


lidade “não-não-eu”. [...] O foco da técnica de treinamento
do performer não é transformar uma pessoa em outra, mas
em permitir que o performer atue entre as duas identidades;
neste caso atuar é o paradigma da liminaridade. (Schechner,
2011, p. 160).

Esse estado liminar é exatamente o que acontece com o jogador de


jogos eletrônicos com a particularidade de ser mediado por um dispositivo

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

eletrônico. Ele passa a assumir a forma de um personagem qualquer, seja


de um bloco que cai ou um personagem customizado à sua imagem e
semelhança, mas não deixa de lado a sua condição de ser humano que
joga. O jogo funciona como uma extensão do jogador e o personagem,
como extensão do próprio ser, uma vez que todos os seus movimentos
são controlados por ele. “A máscara [...] revela a alegre relatividade e
transformação das coisas. Isso, porém, na medida em que um corpo, que
por detrás ou por baixo lampeja, também revela [...] a impermanência
e transformação das máscaras” (Dawsey, 2007, p. 549). Isso quer dizer
que o estado liminar aplicado à performance do jogo de videogame, apesar
de transformador da realidade, geralmente acontece de maneira rápida
e passageira, sem jamais permitir que a transformação seja completa.
Por baixo da máscara do performer, ainda existe a sua subjetividade para
a qual retornar após o fim.
O estado em que se encontra o jogador durante o jogo se assemelha
a uma suspensão delirante da realidade. Ao jogar, ele se coloca sob a
perspectiva de outra realidade, virtual, onde espaço e tempo são experi-
mentados de maneira distinta do mundo cotidiano a que está acostumado,
em um processo semelhante ao de criação, no qual a suspensão da razão
dá lugar a uma capacidade criativa impossível de atingir apenas no nível
racional. No entanto, a máscara do jogador possui, nesse momento,
características verossímeis, que permitem que ela seja confrontada com
o mundo real,4 o que torna possível um dos processos mais marcantes
do jogo: a imersão.
A imersão é o ponto crucial da tecnologia do jogo e é um processo
facilitado pelo uso da tecnologia. Com o avanço dos dispositivos, tanto
móveis quanto domésticos, os jogos se tornaram praticamente filmes

4 Não entrarei no mérito do conceito de real, aqui simbolizado apenas em oposi-


ção ao que é virtual, suspensão ou delírio.

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interativos nos quais o jogador entra em contato com um simulacro (por


vezes muito fiel) da realidade e da experiência cotidiana, acrescida dos
elementos fantásticos adicionados pela narrativa, na intenção de manter
o jogador interessado. No entanto, “ninguém pode jogar sozinho. Uma
pessoa não pode ser humana por conta própria. Não há individualidade
onde não há comunidade. Nós não nos relacionamos com os outros
como a pessoa que somos, nós somos quem somos nos relacionando
com os outros” (Galloway, 2006, p. 37, tradução nossa).
No que compete à posição da audiência, o jogo eletrônico traz em
si um problema que envolve a atividade solitária que é por vezes jogar
videogame. Se está claro que jogar consiste sempre em uma performance e
se “a audiência é constitutiva do evento performático” (Dawsey, 2011,
p. 209), quem seria a audiência do jogo de videogame? O próprio jogador
ou a máquina com a qual ele joga?

Os espectadores são bastante cientes do momento em que


uma performance decola. Uma “presença” se manifesta, algo
“aconteceu”. Os performers tocaram a audiência, e algum
tipo de colaboração, de vida teatral especial e coletiva, nasce.
Esta intensidade da performance – e eu, pessoalmente, não
creio que o mesmo tipo de coisa pode acontecer com filmes
ou televisão, cujo forte é afetar pessoas individualmente mas
não gerar energias coletivas – foi chamado de fluxo por Mihaly
Csikzentmihaly (1975, p. 35-36). (Schechner, 2011, p. 218).

Anteriormente, o autor nos coloca diante de uma questão que muito


influencia a audiência e a maneira como a performance é percebida quando
há a mediação de um meio de comunicação entre eles. O que ele chama
de intensidade se mostra enfraquecida em elementos relacionados aos
momentos pós-performáticos, nos quais não há participação coletiva nas
fases de esfriamento e balanço dos envolvidos na performance. Talvez a

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

questão do jogo fosse análoga à exposta não fossem dois elementos-­chave:


a imersão que o jogo provoca no performer e a falta de uma audiência
física do outro lado da tela.
O espectador em uma performance é aquele que aceita as regras e se faz
presente, de certa forma, como coautor da performance, modificando-a
em algum momento, tanto para o performer quanto para si mesmo. “O
performer é transportado enquanto cada espectador individualmente
experiencia as suas próprias reações em um nível de respostas pessoais”
(Schechner, 2011, p. 181). Isso não quer dizer, em absoluto, que a audiência
não se transporta também para dentro da performance; pelo contrário, para
se permitir aprofundar na experiência possível de determinado evento,
o espectador precisa se fazer aberto e se deixar levar pelo momento de
suspensão provocado por ele.
Em seu texto, Schechner (2011) introduz uma explicação sobre os
rituais e danças dos yaquis, em que as panelas nas quais são colocados
os tambores dos cantores servos operam como objetos mágicos que saem
da sua posição de simples objetos para se tornarem também parte ativa
da performance. Análoga a esse relato temos a condição do jogador e da
máquina no qual ele joga. Dado que o jogador não pode ser espectador
de si mesmo enquanto performa, a máquina ou dispositivo que hospeda
o jogo eletrônico assume o papel de Player 2 (ou segundo jogador) e de
espectador.
A relação da máquina como espectador da performance fica ainda mais
clara quando pensamos na questão do balanço exposta anteriormente.
O balanço da performance é fornecido ao performer pela audiência e é nessa
etapa do processo que reside o poder de modificar uma futura performan-
ce. Ora, uma vez que o próprio jogo é o responsável pelo feedback que

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possibilita ao jogador, enquanto este estiver sozinho, sentir-se satisfeito


ou não com a sua performance, então ele opera como audiência.
Por outro lado, a máquina ou dispositivo também joga, uma vez que
a meta principal de todo jogador single player5 é ganhar do jogo. Isso faz
do jogo outro jogador, um virtual, e que, inteligência artificial que é,
também performa. No entanto, existe nesse ponto uma questão a ser
ressaltada: apesar de ser ele também um performer, o jogo é programado,
por isso obedece aos limites de seus algoritmos e promove apenas a
performance que dele é esperada, sem grandes mudanças em seu estado
de espírito. Portanto, a performance do jogo é diferente daquela apoiada
culturalmente e elaborada pelos indivíduos que vivem em sociedade,
nem por isso, ela deixa de ser contestada como performance, uma vez que
está claro que uma mente humana está por trás da programação. Por
isso, ainda hoje é possível observar muito jogos cuja performance é con-
testada, por exemplo, por recompensar positivamente comportamentos
condenáveis na sociedade real.
Existem ainda os jogos que são considerados “sérios” e que servem
a propósitos mais nobres que o puro entretenimento, como a função
educacional, gerenciamento de finanças ou administração de empresas.
Esses jogos, apesar de serem levados mais a sério, funcionam na mes-
ma lógica dos demais. Existe aqui o uso da inteligência artificial e da
capacidade de cumprir metas e se engajar voluntariamente, operando
em direção à melhora e aprimoramento social dos indivíduos e das
performances cotidianas que estes evocam. Esses jogos muitas vezes são
infinitos no conceito de Carse (1986) e jamais oferecem ao indivíduo
a completa satisfação de ter vencido o jogo, já que o objetivo está na
jornada e não na linha de chegada. Por possuírem uma estrutura aberta,

5 Tipo de jogo que só permite um jogador físico.

· 136
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

eles podem carregar consigo uma programação que envolva inteligência


artificial dinâmica, mudando a resposta ao jogador conforme as escolhas
que ele faz. Nesses casos, a audiência do jogo continua sendo a máquina,
mas ela passa a impressão de melhor balanço e aproxima mais o jogador
da experiência de performar tendo como audiência outras pessoas, uma
vez que transforma a performance em algo único que acontece apenas no
tempo presente de acordo com determinadas circunstâncias.

Considerações finais
A relação homem/máquina mediada pela performance ainda possui
bibliografia escassa no Brasil. Isso faz que esse campo de estudo deman-
de atenção no que diz respeito a compreender a sociedade do nosso
tempo e a maneira como nos relacionamos uns com os outros. Existe
a necessidade de dar continuidade aos estudos de performance para que
eles possam englobar questões espaço-temporais que não se encontrem
necessariamente no mundo real, mas também no virtual.
Novas tecnologias capazes de modificar o cotidiano e interagir com
ele já começam a surgir nesse início de século XXI. Apesar de terem
despontado ainda no final do passado, é perceptível hoje como surgem
novas formas de ver o mundo pelo viés da tecnologia. Elementos como
a realidade aumentada e nos novos jogos eletrônicos ultrarrealistas fazem
com que a performance do indivíduo e a sua relação com eles se modifi-
que a ponto de não mais retorno. O ser humano está passando por um
período no qual a tecnologia é absorvida e se torna indispensável para
ele em curto espaço de tempo, e isso faz que novos produtos e modelos
de serviço mais avançados sejam necessários no momento que uma
tecnologia se coloca no mercado.

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Diante de um cenário com rotatividade tão alta e tanta dependência


tecnológica, é preciso que se pergunte que lugar toda essa inteligência
artificial ocupa na vida das pessoas. É possível hoje desempenhar ativi-
dades solitárias e se satisfazer com o resultado da performance à maneira
que acontece na vida cotidiana. No entanto, a inteligência artificial ainda
há de evoluir para proporcionar uma experiência plena ao jogador, algo
que possui na imersão um bom efeito paliativo já nos tempos de hoje.
Dado que a performance nos videogames é mediada por um dispositivo
eletrônico e por isso se diferencia da performance corpo a corpo que
se experimenta no cotidiano da vida, torna-se difícil a identificação
dos elementos e fases constituintes da performance como colocados por
Schechner, especialmente no que diz respeito à audiência inerente de
todo evento performático. Tendo concluído, pela pesquisa realizada, que a
máquina faz turnos de audiência e de jogador, influenciando a performance
do jogador-eu e sendo influenciada por ela dentro de sua programação,
novas questões são levantadas com base nisso.
A primeira delas toca questões inerentes ao ser humano e à sua sub-
jetividade: quem é o “eu” dentro do jogo e como ele se configura? Se o
jogador consegue se manter por tanto tempo em estado liminar como
acontece no jogo, seria possível que ele se confundisse com o avatar
e invertesse realidade e virtualidade de maneira irreversível. Por outro
lado, seria possível também que a representação do eu presente no jogo
deixe de obedecer às regras clássicas da performance para se tornar um
elemento híbrido que envolva mundos e regras distintas, mas que possua
um ponto de contato momentâneo que seria o jogador.
A segunda questão diz respeito ao jogo e como ele performa. Aqui,
conclui-se que performa, mas resta buscar o “como”. É necessário que
se analise como o jogo influencia as pessoas e se torna parte da cultura

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

delas, mesmo tendo em sua raiz uma origem multicultural e multinacional.


Certamente que os impactos em cada sociedade na qual o jogo se insere
são diferentes, cabe saber o quão diferentes são e de que maneira ocorrem.
Além disso, se o jogo performa, não poderia ser ele também a expressão
da subjetividade de um artista, como é o caso das obras de arte clássicas
ou do cinema? Poderia o jogo ser a máscara do criador?

Referências
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London: The MIT Press, 2006. E-book.
CAMARGO, Robson. Milton Singer e as performances culturais:
um conceito interdisciplinar e uma metodologia de análise. Karpa 6:
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State University, 2013.
CAMARGO, Robson. Per-formance e Performance Art: superar as velhas
traições. In: CAMARGO, Robson; CUNHA, Fernanda; PETRONILIO
Paulo (org.). Performances da Cultura: ensaios e diálogos. Goiânia: Kelps,
2015.
CARSE, James. Finite And Infinite Games: a vision of life as play and
possibility. New York: The Free Press, 1986. E-book.
DAWSEY, John. Sismologia da performance: ritual, drama e play na
teoria antropológica. Revista de Antropologia. São Paulo: USP, v. 50,
n. 2, 2007.
DAWSEY, John. Schechner, teatro e antropologia. Cadernos de Campo:
revista dos alunos de pós-graduação em antropologia social da USP.
v. 20. n. 20, jan./dez. 2011.

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GALLOWAY, Alexander (org.). Gaming: essays on algorithmic culture.


Minneapolis: University of Minnesota Press, 2006. E-book.
LANGDON, Esther Jean. Performance e sua diversidade como
paradigma analítico: a contribuição da abordagem de Bauman e Briggs.
Antropologia em primeira mão: revista do programa de pós-graduação
em antropologia social da Universidade Federal de Santa Catarina.
Florinópolis: UFSC, n. 1, 1995.
McGONIGAL, Jane. Reality Is Broken: why games make us better and
how they can change the world. Londres: Jonathan Cape, 2011. E-book.
SCHECHNER, Richard. Between Theater & Anthropology. Pennsylvania:
University of Pensylvannia Press, 1985.
SCHECHNER, Richard. Performers e Espectadores: transportados
e transformados. Revista Moringa, Paraíba: UFPB, v. 2, n. 1, p. 155-185,
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SALEN, Katie; ZIMMERMAN, Eric. Rules of Play: Game design
fundamentals. Massachusetts, USA: The MIT Press, 2004.

· 140
O JOGO TEATRAL E A EXPERIÊNCIA INTUITIVA:
UMA PERFORMANCE EDUCATIVA

ONIRA DE ÁVILA PINHEIRO TANCREDE1


ROBSON CORRÊA DE CAMARGO2

Resumo: O objetivo deste estudo é relacionar os aspectos metodo-


lógicos dos jogos teatrais tal qual elaborados pela diretora e autora
norte-americana Viola Spolin (1906-1994), que constituiu uma
metodologia improvisacional para a prática do ensino de teatro para
crianças, jovens e adultos, e as reflexões sobre o jogo simbólico (jeu
symbolique) e o conhecimento intuitivo tal qual apresentados por
Jean Piaget (1896-1980), epistemólogo suíço que se especializou
no desenvolvimento cognitivo da criança. Com base nesta relação,
a pesquisa analisa a função simbólica e os jogos simbólicos [1945]
relacionando o pensamento de Jean Piaget e a prática dos jogos
improvisacionais de Viola Spolin [1963]. Essa perspectiva estabelece

1 Mestra em Performances Culturais pela Universidade Federal de Goiás (UFG).


Graduada em Licenciatura Plena em Artes Cênicas pela Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM). Professora efetiva da Rede Estadual de Educação de Goiás,
atuando no Instituto Tecnológico do Estado de Goiás (ITEGO) em Artes Basileu
França desde 2002, e professora efetiva na Rede Municipal de Educação de Goi-
ânia desde de 2006. E-mail: oniradeavila@gmail.com.
2 Idealizador e fundador do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Perfor-
mances Culturais da UFG (doutorado e mestrado). Encenador e crítico de teatro,
coordena a Rede Goiana de Pesquisa em Performances Culturais. Financiamen-
tos: CNPQ, FAPEG, CAPES e FUNAPE.
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diálogos em seus sentidos lúdicos e pedagógicos e apresenta como


o conhecimento das características simbólicas e de conhecimentos
intuitivo presentes no jogo teatral podem influir na condução de
propostas para o ensino do teatro com crianças na escola pública.
Palavras-chave: Educação. Intuição. Jogo Teatral. Jogo Simbólico.

A criança que joga pode aprender, pelas regras, argumentar, discutir e


comentar, seja no jogo simbólico e/ou teatral, o que lhe permite desen-
volver seu conhecimento de acordo com sua fase cognitiva, estabelecendo
um constante processo de equilibração. Para Piaget ([1964]1989, p. 11),
o “desenvolvimento, portanto, é uma equilibração progressiva, uma
passagem contínua de um estado de menor equilíbrio para um estado
de equilíbrio superior”.
Em outras palavras, de acordo com a reflexão de João Enzio Gomes
Obama (2015), mestre em Educação pela Universidade Estadual Pau-
lista (Unesp) - Marília, Piaget buscou, em seus estudos, explicar como
o processo intelectivo foi pensado como adaptação e organização, uma
vez que ele “expõe as relações entre desenvolvimento cognitivo com a
maturação das características hereditárias e com a estrutura neurológica
do indivíduo” (Obama, 2015, p. 13), apontando ainda que “existe uma
íntima relação entre a capacidade de aprender com o desenvolvimento
do cérebro e do sistema nervoso” (2015, p. 13).
Essa equilibração progressiva estudada por Piaget (1989) vincula um
contínuo progresso da inteligência sensório-motora para a representação
cognitiva, a que podemos denominar de inteligência intuitiva de acordo
com os estudos piagetianos, visto que o indivíduo não está alheio aos
acontecimentos de seu meio. Essa relação entre vida (experiência) e
inteligência (função cognitiva) estrutura o conhecimento do indivíduo.

· 142
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

No jogo teatral, o indivíduo pode viver experiências trazidas de sua


realidade social por sua inteligência intuitiva, como também ter a oportu-
nidade de conhecer outras criadas com seus parceiros de jogo. A relação
entre as artes da percepção e a do fazer teatral é tão importante quanto o
realizar cênico. Para entender mais sobre inteligência intuitiva, é preciso
visitar o campo da experiência e, para contribuir com a pesquisa, conto
com os estudos do filósofo e pedagogo John Dewey, que defendia a
democracia e a liberdade de pensamento das crianças, para quem “a
experiência, na medida em que é experiência, consiste na acentuação da
vitalidade” (Dewey, [1934]2010, p. 83-84). Isso condiz com a possibilidade
do educando de se relacionar com o mundo e com seus acontecimentos
de maneira viva e feliz na realização de suas conquistas.
Nas palavras de Dewey (2010), é possível notar que a carga de expe-
riência trazida pelos indivíduos carrega um rico material de aprendizagem
e conhecimento, por ser parte integrante de uma cultura em constante
mudança e que merece atenção, pois é essa experiência que impulsiona
e estimula o fazer intuitivo a ser ainda mais simbólico e deixa a prática
artística leve e eficaz. A experiência, pode-se dizer, é o berço da inteli-
gência intuitiva, assim como o contrário também é verdadeiro, uma vez
que torna em frações de segundos presente algo ausente, sem nenhuma
explicação prévia, assim também como a inteligência intuitiva pode ser
considerada o berço da experiência.
O subjetivo é, muitas vezes, ignorado pelos educadores e estes, pelo
fato de desconhecerem essa categoria de inteligência intuitiva, preferem
negá-lo a buscar compreender como funciona. Ainda que esta não seja
uma tarefa de fácil compreensão, o estudo sobre essa faculdade do
conhecimento merece mais atenção. Isso porque a inteligência intuitiva
propiciará ao indivíduo ser mais íntegro e capaz de experienciar situa-
ções que a levem a uma função simbólica pelo jogo teatral, embora se

143 ·
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saiba que “o verdadeiro trabalho do artista é construir uma experiência


que seja coerente na percepção ao mesmo tempo em que se mova com
mudanças constantes em seu desenvolvimento” (Dewey, 2010, p. 132).
Os indivíduos são carregados de experiências sobre o que intuem e
demonstram no ato de jogar, suas experiências estéticas e sociais trazidas
do grupo a que pertencem, participando dessas vivências, isso “se acei-
tarmos que a atitude estética é decorrência de uma necessidade básica
do ser humano que é a versão simbólica da experiência”, visto que os
indivíduos extravasam e se permitem viver diversos sentidos propostos
pelos jogos teatrais, em que “o caráter de distanciamento da vida corrente
não significa evasão ou substituição do real por uma esfera fantasiosa,
mas a evocação de uma realidade na ausência de qualquer objetivo usual”
(Koudela, [1984]2002, p. 31).
Os educandos/jogadores conseguem dialogar com todo o processo
de interpretação, criação e aprendizagem de forma lúdica, no contexto
social e no âmbito intelectual a que pertencem, considerando o ato
performático de cada um como uma possibilidade de relação com a arte
na construção do conhecimento. O ato de “pôr a mão no fogo não é,
necessariamente, ter uma experiência”, mas “a ação e sua consequência
devem estar unidas na percepção. Essa relação é o que confere significado,
apreendê-lo é o objetivo de toda compreensão” (Dewey, 2010, p. 122)
e isso sim é experiência. Assim, para que a experiência aconteça e seja
vivida de maneira intensa, é preciso elaborá-la por vivências anteriores.
Isso vai depender muito do mundo a que pertença a criança e de suas
relações com os fatos ocorridos. Cada cultura recebe e transforma suas
experiências de acordo com suas vivências, o que não as faz melhores ou
piores, mas traz significados por vezes aceitos em alguns grupos, outras
vezes questionados e, em outros casos, totalmente negados. Por isso, o

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

fato de poder conhecer determinada experiência e vivenciá-la significa


aprendê-la de maneira mais intensa.
O ato de experienciar ou de se pensar a experiência como uma capaci-
dade intuitiva para realizar alguma atividade, seja profissional, intelectual
ou artística, garantiria certa autoridade sob aqueles que, por algum motivo,
não tenham a experiência desejada e requerida para resolver determinada
situação. Esse momento pertinente à resolução de problemas é muito
recorrente no jogo teatral. Quando vivencia o jogo teatral, a criança traz
para o espaço cênico seus encantos e desencantos dos momentos já
vividos no seu cotidiano com seus amigos e familiares. Ela joga em cena
e expõe todas as suas experiências vividas em outras situações intuitivas,
até mesmo aquelas trazidas da realidade para o grande público. Muitas
vezes, o público também se identifica com certas situações assistidas no
teatro, sejam elas agradáveis ou de extrema repulsa. Toda a experiência
passada elabora algo em nossas atitudes, positivas ou não, contribuindo
com atitudes do presente e que refletirão no futuro próximo, sendo
experiências que reverberam e dialogam com os mais recentes estudos
das Performances Culturais.3 Estas são definidas pelo professor e pes-
quisador Robson Corrêa de Camargo (2013, p. 1):

Performances Culturais é um conceito que, primeiramente,


está inserido numa proposta metodológica interdisciplinar e
que pretende o estudo comparativo das civilizações em suas
múltiplas determinações concretas; visa também o estabele-
cimento do processo de desenvolvimento destas e de suas
possíveis contaminações; assim como do entendimento das
culturas através de seus produtos “culturais” em sua profusa
diversidade, ou seja, como o homem as elabora, as experimenta.

3 O conceito de Performances Culturais pode ser visto em artigo de Camargo


(2013).

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Acredito que a escola pública é foco de produção cultural e social de


todos os indivíduos. Nela, as crianças vivenciam experiências infinitas
que se multiplicam e reverberam em outros espaços para além dos
muros escolares por meio do jogo teatral/simbólico. Também penso
que o jogo está para a performance assim como a performance está para o
jogo, pois acredito que o estudo das Performances pode ser alvo de
entrelaçamento e envolvimento desses campos do saber. O jogo teatral
é uma das possibilidades de performances, por ser uma atividade social
entrelaçada às experiências vividas e intuitivas. Por isso, trago os estudos
sobre as Performances Culturais, conceito sempre plural, para somar-se
a essa vasta área do conhecimento que é a educação, pois acredito que:

As Performances Culturais colocam em foco determinada


produção cultural humana e, comparativamente, a partir delas,
em contraste, procuram entender-se com as outras culturas
com a qual dialogam, afirmativamente ou negativamente. As
performances culturais a serem examinadas devem ser também
entendidas como uma concretização da auto percepção e da
auto projeção dos agentes desta cultura, do entendimento que
estes fazem ou constroem de si mesmo, determinando e sendo
por eles determinados. A grama do “terreno” do vizinho não é
apenas mais verde, mas também manifesta-se de forma diversa
e solicita todos os pontos de vista na observação destes dois
terreiros. (Camargo, 2013, p. 2).

Os estudos das Performances4 e suas implicações na educação são


analisados pelo ator, diretor e pesquisador na área de teatro e professor
no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Gilberto Icle (2010, p. 11):

4 Para melhor compreender a relação entre performance e educação, ver os estu-


dos de Icle (2010) e Schechner (2010).

· 146
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

A ideia de Performance pode, eventualmente, aludir ao espe-


táculo, ao teatro, à dança, aos recitais e aos shows de música,
a eventos artísticos tão distintos quanto a diversidade da arte
produzida no mundo contemporâneo, além, é claro, de ser
sinônimo de desempenho. [...] é, também, apresentar um campo
à Educação muito maior que o campo das Artes, que vai além
das práticas poético-estéticas que encontramos naquilo que
convencionamos chamar de Arte, assim como maior do que
os sentidos que cabem na noção de desempenho. É justamente
nesse problema, o das fronteiras, dos limites, dos territórios e,
sobretudo, no borramento de tais demarcações que a Perfor-
mance tomou forma, desenvolveu-se e estilhaçou uma série
considerável de noções em campos variados de conhecimento.

Os educandos/jogadores usam suas experiências para compor perso-


nagens nos espetáculos e em outras atividades artísticas em performance.
Afinal, não se pode apagar as vivências nem da memória, nem do corpo,
pois essas experiências conscientes ou inconscientes estão presentes na
relação do fazer com o objeto artístico estético e intuitivo, no caso, o
jogo teatral, no qual se percebe que a arte, quando “envolve moldar a
argila, entalhar o mármore, fundir o bronze, aplicar pigmentos, construir
edifícios, cantar canções, tocar instrumentos, desempenhar papéis no
palco, fazer movimentos rítmicos na dança”, possibilita ao educando
fazer “algo com algum material físico, o corpo ou alguma coisa externa
a ele. Com ou sem o uso de instrumentos intervenientes, e com vistas
à produção de algo visível” (Dewey, 2010, p. 126).
A experiência incita a expressão e a comunicação entre os indivíduos,
principalmente pelas artes. É possível que as cenas teatrais consideradas
por grande parte da crítica e dos apreciadores sejam compreendidas e
sentidas como algo surpreendentemente mágico quando são reflexos
das experiências vividas por seres intuitivos, fruto do cotidiano em

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que vivem, em determinada cultura, assim como em uma performance na


educação. Talvez esse seja o motivo por que as crianças contam algumas
de suas experiências por várias e várias vezes, sem perder o entusiasmo,
essa intensidade, essa fascinação, esse jogo entre percepção e ação, assim
como entre realidade e a experiência intuitiva. É também por essa razão
que as crianças jogam os mesmos jogos por várias e várias vezes sem se
cansarem, encontrando no ato de jogar um prazer inexplicável. São as
experiências trazidas pelos artistas educandos/jogadores que garantem
a veracidade da arte e lhe conferem credibilidade, seja para assumir
algo ou para negar. Embora a experiência possa ser vivida em grandes
grupos (como em uma guerra, uma queda de avião, um casamento, um
enterro, uma missa, um carnaval, uma procissão, uma brincadeira), seja
uma situação tensa, trágica e/ou alegre, cada indivíduo envolvido terá
uma experiência singular e intuitiva.
Richard Schechner, teórico norte-americano, professor de Estudos da
Performance e editor da revista The Drama Review, da Universidade de
Nova Iorque, um dos mais renomados veículos de divulgação na área,
na entrevista “O que pode a performance na educação”, aos professores
Gilberto Icle e Marcelo de Andrade Pereira à revista Educação & Realidade
em fevereiro de 2010, no café Le Courlis, Paris, afirma:

Mas por que seria o teatro necessário? Não podiam os indi-


víduos aprenderem diretamente com a vida? A vida está em
torno de nós, nós a vivemos a cada momento. Mas esse é o
problema – a vida vivida demanda ação. Quando alguma coisa
acontece, precisamos tentar arrumar as coisas, tirar alguma
vantagem da nova situação, tentar evitar o perigo, e por aí em
diante. Se eu vejo um acidente na rua eu muito provavelmente
irei de pronto ajudar ou chamar alguém para ajudar. Eu não
posso simplesmente assistir ao sofrimento real e alheio. O

· 148
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

teatro, porém, oferece-me esta oportunidade, este privilégio


de apenas assistir e, não obstante, aprender realmente com
uma variedade de ações. O teatro fornece uma espécie de
meditação ativa. Eis o paradoxo teatral: o que acontece em cena
está realmente acontecendo, ainda que não esteja de fato acontecendo.
(Schechner, 2010, p. 24-25, grifo nosso).

Os jogos teatrais provêm de uma ação do entre-lugar, no qual os joga-


dores experimentam múltiplas tentativas de resolver algum problema
no exercício de transformações de ações, de objetos, de lugares. Para
essa busca não existe um receituário pré-escrito, no qual os jogadores
garantiriam a plena realização sem problemas. Ao contrário, a incerteza
da solução das buscas motiva o ator a continuar pesquisando e buscando
outras possibilidades. Esta é uma das grandezas das atividades teatrais:
enfrentar os problemas que aparecem, assim como na vida real. Encarar
sempre, recuar às vezes e desistir nunca. Posso até arriscar dizer, também,
que o ator é seu próprio desafio inevitável, pois cabe ao jogador pontuar
seus próprios limites, até onde ele consegue avançar e quando deve parar.
Ele terá de equilibrar as situações apresentadas por meio de suas próprias
atitudes através inteligência intuitiva, que surge em uma situação emergente,
principalmente na resolução de problemas, que devem ser resolvidos em
curto prazo de tempo. Isso pode ser observado nas pesquisas de Schechner
(2010, p. 25, grifo nosso), nas quais o autor escreve que:

Parte do meu trabalho, como também do trabalho de alguns


colegas dos Estudos da Performance, segue (em maior ou
menor grau) os passos de Brecht,5 tomando a abordagem
performativa do mundo, compreendendo-o como um lugar
em que reúnem-se ideias e ações. Essa noção de reunião, de

5 Eugen Bertolt Friedrich Brecht (1898-1956) foi um importante dramaturgo, poeta


e encenador alemão do século XX.

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encontro, de interação da performance poderia ser tomada


como um modelo para a Educação. Educação não deve signi-
ficar simplesmente sentar-se e ler um livro ou mesmo escutar
um professor, escrever no caderno o que dita o professor. A
educação precisa ser ativa, envolver num todo mentecorpoemoção
– tomá-los como uma unidade. Os Estudos da Performance são
conscientes dessa dialética entre a ação e a reflexão.

Quando há um grupo no palco, tem-se uma atmosfera harmônica,


não para o equilíbrio, o encaixe ou a perfeição, mas uma atmosfera na
qual todos conseguem, de maneira ímpar, entrar em um território de
experiência, do intuitivo (mente/corpo/emoção), seguindo as palavras
de Schechner (2010). Também pude ver essas qualidades nas apresen-
tações dos educandos/jogadores e atores enquanto jogam em cena,
durante um espetáculo, ao se lançarem à frente da grande plateia ou
mesmo com seus próprios companheiros de cena. Os educandos/joga-
dores demonstram suas melhores características de atuação, mostrando
o que foi devidamente ensaiado, aprendido e, enfim, apresentando de
modo que consigam passar a ideia do espetáculo, seja ela qual for, de
acordo com sua especificidade ou categoria de análise pretendida com
a interpretação. É o estar no jogo e em jogo. Cada educando/jogador
terá uma experiência única e exclusiva, uma vez que a interpretação é
uma arte efêmera de seres efêmeros, múltiplos, intuitivos e simbólicos.
Os indivíduos nunca são os mesmos, pois sempre algo – seja o tempo, o
espaço ou a ação – estará sujeito a alterações, o que lhes possibilita visitar
o novo, o devir. Assim, essas experiências, adquiridas nessas múltiplas
vivências, trazem uma compreensão bem complexa do ser humano como
ser consciente e crítico de sua realidade social.
Assim como Dewey ([1938]1971) acredita que a verdadeira experiência
educativa envolve, acima de tudo, continuidade e interação entre quem

· 150
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

aprende e o que é aprendido, Schechner também enxerga essa possibi-


lidade de envolvimento entre educandos/jogadores e o educador como
prática pedagógica nas relações que se estabelecem quando afirma que:

Ensinar não constitui uma performance artística, mas certa-


mente é uma performance. No ensinar, o professor precisa
definir certas relações com os estudantes. O professor pre­
cisa desempenhar o papel do professor, que pode variar de
circunstância a circunstância. (Schechner, 2010, p. 30).

Acredito que essa experiência educativa pode ocorrer pela experi-


mentação intuitiva tanto na relação que se estabelece entre as crianças
como também na relação entre elas e os educadores. A intuição não tem
o mérito que merece nos espaços escolares formais e nem nos espaços
artísticos. Piaget ([1971]1988) também enxergava um equívoco na edu-
cação quanto à “importância da inteligência intuitiva” dada à experiência,
relatada em seu livro Para onde vai a educação?. Segundo o autor (1988, p. 20,
grifo nosso), “a incrível falha das escolas tradicionais, consiste em haver
negligenciado quase que sistematicamente a formação dos educandos
no tocante à experimentação intuitiva”. Veja que o próprio Piaget (1988),
assim como Spolin ([1963]2008), enxerga a omissão da experimentação
intuitiva como algo devastador e muito prejudicial na construção sim-
bólica dos educandos/jogadores. Desse modo, “tentativas práticas de
desenvolver escolas, baseadas na ideia de educação como experiência,
somente escaparão a contradições e confusões, se forem guiadas por
uma clara conceituação de experiência” (Dewey, 1971, p. 45). A saber, a
experiência intuitiva é uma maneira que propicia a construção do saber.
Para melhor entender o significado da experiência intuitiva, é preciso
que se tenha um melhor entendimento do conceito de “intuição”. Por
isso, apresento algumas definições, começando com as encontradas no

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dicionário da língua portuguesa, como a que define intuição como “dis-


cernimento à primeira vista; percepção clara e pronta sem necessidade da
intervenção do raciocínio” (Amora, [1997]2013, p. 399). Embora essa seja
uma definição de senso comum apresentada no dicionário, que pode ser
acessado por todos os interessados no assunto, a definição apresentada
aqui é também objeto de reflexão. Continuando as definições, intuição,6
para a psicologia, significa: “a percepção da realidade externa ou interna
em seus aspectos ainda não visíveis ou desenvolvidos”. Considerando
essa definição, a intuição é tida como algo sobrenatural, divino, uma
forma quase que paranormal, que transcende o consciente, enfim, uma
atividade inconsciente; já para a filosofia, a intuição7 é entendida como
“o processo de apreensão racional não discursivo de um fenômeno”.
Em seu livro A intuição filosófica ([1911]1994), o filósofo e diplomata
francês Henri Bergson (1859-1941) pontua resumidamente que “toda a
complexidade de sua doutrina [...] é apenas a incomensurabilidade entre
sua intuição simples e os meios que dispunha para exprimi-la” (1994,
p. 176) e conclui que todo filosofar irrompe de uma intuição. Percebo
que, tanto do ponto vista do senso comum como do psicológico e de
cunho filosófico, a intuição adquire uma grande importância na cons-
trução do conhecimento. Entretanto, o conceito a ser aqui usado sobre
intuição – ou seja, inteligência intuitiva – será aquele apresentado pelos
autores Piaget ([1945]1978) e Spolin (2008). Desse modo:

Para evitar que a palavra “intuitivo” torne-se vazia ou que a


usemos para conceitos ultrapassados, utilize-a para denotar
aquela área do conhecimento que está além das restrições de
cultura, raça, educação, psicologia e idade; mais profundo do

6 Definição disponível em: http://www.psicologiadialetica.com/2009/08/intuicao-


o-inexplicavel-no-dia-dia.html. Acesso em: 8 fev. 2017.
7 Definição disponível em: http://filosofia.uol.com.br/filosofia/ideologia-
sabedoria/41/artigo292197-1.asp. Acesso em: 31 maio. 2015.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

que as roupagens e o maneirismo, preconceitos, intelectua-


lismos e adoções de ideias alheias que a maioria de nós usa
para viver o cotidiano. Ao invés disso, abracemo-nos uns aos
outros em nossa pura humanidade e nos esforcemos durante
as sessões de trabalho para liberar essa humanidade dentro
de nós e de nossos alunos. Então, as paredes de nossa jaula
de preconceitos, quadros de referências e o certo-errado pre-
determinado se dissolvem. Então, olhamos com um “olho
interno”. (Spolin, [1975]2012, p. 59).

Assim como o adulto, a criança é dotada de ato intuitivo e afetivo, algo


que está intrínseco em sua vida e em sua cultura. Os indivíduos atuam
todos os dias, em todos os lugares (em casa, na escola, no trabalho) e,
em vista disso, assumem papéis sociais constantes em suas vidas (como
o de pai, mãe, filho, educando, educador, vendedor, cliente, paciente
e outros), de acordo com o ambiente, assumindo personagens sociais
reais. Claro que isso não ocorre porque se transformam em outras
pessoas, mas sim porque são seres capazes de distinguir situações e de
se posicionar de maneira crítica perante os eventos que acontecem em
suas vidas, dando a eles a importância devida. São essas situações que
reverberam intuitivamente nos jogos teatrais.

Uma coisa leva a outra e outra e outra. Não há um lugar de


chegada para onde mesmo um texto simples pode levar – e
frequentemente leva. Quando digo texto eu não me refiro
apenas ao o que foi escrito com palavras. Existem múltiplos
textos, alguns são escritos; outros, dançados; outros são ape-
nas gestos; outros, lugares; alguns textos são processos de
crescimento, de florescimento e decadência. Texto é uma
palavra relacionada com uma outra, têxtil, ou fiar, fabricar
tecido de diferentes fios. Esse é o significado de texto que eu
trago comigo. Múltiplos fios são tramados e destramados em diferentes

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tecidos de ação e significado. Ensinar é um texto-tecer. (Schechner,


2010, p. 30, grifo nosso).

A atuação é o meio pelo qual um indivíduo se relaciona com outro,


ou seja, através do estabelecimento de um jogo de acordo com o seu
tempo, embora busque, pela experiência, situações vivenciadas no pas-
sado. Essas vivências, por sua vez, são significativas na composição de
novas experiências agora, no presente. É preciso ter consciência de que
“vivemos sempre no tempo em que estamos e não em outro tempo, e só
quando extraímos em cada ocasião, de cada presente experiência, todo
o seu sentido, é que nos preparamos para fazer o mesmo no futuro”
(Dewey, 1971, p. 44). Ao deparar-se com signos e situações novas, o
indivíduo joga com esses novos acontecimentos até compreendê-los e
internalizá-los, pois “o jogo está saturado de ritmo e de harmonia, que
são os mais nobres dons de percepção estética de que o homem dispõe”
(Huizinga, [1938]2007, p. 9).
É preciso que se tomem certas atitudes pedagógicas quando o educador
estiver trabalhando o jogo teatral em sala de aula, pois, como escreveu
Piaget em “Educação artística e a psicologia da criança”8 do livro Jean
Piaget: Pedagogia (1998), o importante para a criança é que ela consiga

exteriorizar espontaneamente a sua personalidade e as suas


experiências interindividuais, graças aos diversos meios de
expressão que estão à sua disposição: o desenho e a mode-
lagem, o simbolismo do jogo, a representação teatral (que
procede, de forma imperceptível, do jogo simbólico coletivo),
o canto, etc.; mas sem uma educação artística adequada que
consiga cultivar esses meios de expressão e encorajar estas
primeiras manifestações da criação estética, a ação do adulto

8 Texto original publicado em Art et éducation: recueil d’essais de Edwin Ziegfeld


(1954).

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

e os constrangimentos do meio familiar ou escolar acabam,


geralmente, por travar ou contrariar tais tendências, em lugar
de as enriquecer. (Piaget, 1998, p. 179).

Os indivíduos poderão, pelas experiências, conquistar uma determinada


vivência para ajudá-los na atuação cênica, embora as aquisições de certas
habilidades não garantam um uso efetivo e certo do que foi aprendido
nas aulas de teatro com os jogos teatrais. Cabe ao arte-educador orientar
e não frustrar as perspectivas artísticas desses educandos. Assim, não
se pode garantir que, com essas experiências, os educandos/jogadores
estariam aptos a suprir todas as necessidades teatrais. Ter uma vivência
intuitiva é essencial para o crescimento intelectual, ainda que seja preciso
ter certos cuidados e não se considerar já pronto, pois nunca se está
completamente pronto. Nesse caso, a “perfeição” seria o fim de tudo,
afinal é a busca dessa perfeição9 que nos motiva a sempre continuar e
a nunca desistir; por isso passamos a vida atrás de realizações, sejam
elas sociais ou culturais, bem como de passar em um concurso público,
no vestibular, no mestrado, no doutorado e até mesmo conseguir ser
aprovado no teste para tirar a carteira de motorista. Desse modo, “em
certo sentido, toda experiência deveria contribuir para o preparo da
pessoa em experiências posteriores de qualidade mais ampla e profunda”
(Dewey, 1971, p. 41).
Pode-se entender, portanto, a experiência como ferramenta para a
aprendizagem, e a maneira como ela será utilizada definirá o aprendizado.
Segundo Piaget (1998, p. 181):

9 Perfeito vem do latim perfectus, “completo”, particípio passado de perficere,


“acabar, terminar, completar”, de PER-, “completamente, de todo, sem faltar
nada”. Disponível em: http://www.origemdapalavra.com.br/site/palavras/perfei-
ção. Acesso em: 3 jan. 2015.

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Do ponto de vista intelectual, a escola impõe demasiado fre-


quentemente conhecimentos definitivos, em lugar de encorajar
a pesquisa: o que é muito perceptível, porque nesse caso o
aluno que repete simplesmente o que lhe foi ensinado, parece
produzir um rendimento positivo, sem que se suspeite do que
se reprimiu de atividades espontâneas ou fecundas curiosidades.

Pelo fato de ser biólogo, essa progressão de conhecimento apresentada


pelas estruturas biológicas aparece nos estudos de Piaget como forma
de estruturar sua pesquisa, realizada com crianças de 0 a 16 anos. Essa
é uma questão atual e que permanece em debate com outras áreas do
saber, como nos estudos das Performances apresentados por Schechner
(2010, p. 34, grifo nosso):

Ainda que eu considere que o biológico exerça um grande


papel em nossa vida. Eis o grande paradoxo: de que nós, seres
humanos, antes de sermos construídos, somos biologicamente
selecionados. Isto é, de que nosso largo e flexível cérebro nos
permite nos fabricar. Eu não penso que a questão entre essen-
cialistas e materialistas possa algum dia ser solucionada. Eu não
creio que possamos ir tão longe a ponto de estabelecermos um
distanciamento de nós mesmos que nos permita reconhecer
o que de fato nos faz ser. Nós podemos ter algumas pistas,
podemos argumentar desde o ponto de vista de uma quanto
de outra perspectiva ideológica. Seja como for, não podemos
saber ao certo. Isso é algo que faz a performance se tornar tão
interessante. Performance não trata sobre saber de uma vez por
todas o que é isso tudo. Performance é, por definição e por prática,
provisória, em construção, processual, lúdica: da segunda a enésima vez.

Assim como Schechner (2010) com os estudos das Performances na


educação, Jean Piaget (1978) também pensou como a escola e as crianças
e suas experiências se articulam nesse ambiente escolar, assim como

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

educadores falam da educação, artistas das artes, médicos da medicina, e


assim por diante. De todos os modos, o Piaget da década de 1940 ainda
não havia apresentado nenhuma referência sobre esse assunto tão recente,
atual e ainda em construção por professores/pesquisadores atentos com
o dinamismo desses tempos modernos. Portanto, o que vai determinar
uma experiência eficaz e um aprendizado efetivo é a possibilidade que o
indivíduo tem de articular o conhecimento com outras áreas do saber e
reelaborá-lo. “Assim como homem nenhum vive ou morre para si mesmo,
assim nenhuma experiência vive ou morre para si mesma. Independente
de qualquer desejo ou intento, toda experiência vive e se prolonga em
experiências que se sucedem” (Dewey, 1971, p. 16).
O importante é saber utilizar as experiências adquiridas no passado
para elaborar o futuro com os pés no presente, pois é no presente que se
tem de resolver tudo, afinal, o futuro é muito incerto e conseguir realizar
os objetivos é o desafio de viver. “Dispensável repetir que a experiência
não sucede no vácuo. Há fontes fora do indivíduo que a fazem surgir”
(Dewey, 1971, p. 30). O que importa é a vivência e o percurso, e não só
o lugar a se chegar, o produto.
A experiência educativa terá sempre o potencial de transformar o
indivíduo em algo para além daquilo que um dia ele foi, mesmo que
essa mudança passe despercebida por muitos, até os que vivem junto
com ele, pois a experiência é algo muito subjetivo de cada ser. Contudo,
com base no estudo sobre experiências elaboradas por Dewey (1971),
pude verificar que o educando consegue formular novas experiências
no presente e reelaborá-las no futuro de modo eficiente. É preciso
manter sempre viva a ideia entre os indivíduos, no caso os educandos,
para quem uma “experiência desperta curiosidade, fortalece a iniciativa
e suscita desejos e propósitos suficientemente intensos para conduzir
uma pessoa aonde for preciso no futuro, a continuidade funciona de

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modo bem diverso” (Dewey, 1971, p. 29). Por isso, nada melhor que a
arte para ampliar a formação dos indivíduos, que são partes fundamen-
tais na composição da sociedade, na escola de maneira ampla e decisiva
para todos que possam vivenciá-la. Isso porque a criança “não poderia
adquirir suas estruturas mentais mais essenciais sem uma contribuição
exterior, a exigir um certo meio social de formação, e que em todos os
níveis o fator social ou educativo constitui uma condição do desenvolvimento” (Piaget,
1977, p. 39, grifo nosso). Então, no jogo teatral, que é uma atividade
lúdica e social, também existe um ato educativo de estar em constante
aprendizado com algo que equivale a um momento mágico e intuitivo
no ambiente escolar, como a função simbólica que surge no aqui agora.
Os jogos teatrais e simbólicos possibilitam que as crianças construam
o conhecimento de maneira muito mais eficaz que muitas outras dis­
ciplinas regulares do currículo escolar. Piaget (1998, p. 180) já dizia que:

Ora os jogos simbólicos não são senão esse método de expres-


são, criado quase integralmente por cada sujeito individual,
graças à utilização de objetos representativos e de imagens
mentais que, uns e outras, completam a linguagem; ele tem por
funções essenciais o permitir a realização dos desejos, a com-
pensação em relação ao real, a livre satisfação das necessidades
subjetivas, em suma, a expansão tão total quanto possível do
próprio “eu”, enquanto distinto da realidade material e social.

Piaget já refletia sobre a conduta do educar nos ambientes escolares e


escreveu sobre como pensar a educação de maneira menos castradora:
“O objetivo da educação intelectual não é saber repetir ou conservar
verdades acabadas, pois uma verdade que é reproduzida não passa de
uma semiverdade” (Piaget, 1977, p. 69). Ele verdadeiramente pensou
sobre o ato de educar, que “é aprender por si próprio a conquista do

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

verdadeiro, correndo o risco de despender tempo nisso e de passar por


todos os rodeios que uma atividade real pressupõe” (1977, p. 69). Essa
reflexão, embora seja de um autor suíço e realizada na década de 1970,
é possível de ser relacionada com a educação brasileira nos dias atuais,
pois, nesse pensamento, Piaget constata que é preciso experienciar o
conhecimento por meio da interação com os envolvidos, e não da opo-
sição de um sobre o outro.
Essa é mais uma veemente característica do construtivismo piagetia-
no, visto que, ainda “depois do jogo ter chegado ao fim, ele permanece
como uma criação nova no espírito, um tesouro a ser conservado pela
memória” (Huizinga, 2007, p. 12-13), em uma construção simbólica viven-
ciada pelas experiências das crianças. O jogo teatral tem essa capacidade
de evadir-se da vida real para uma esfera temporária, com orientação
própria, isto é, uma função simbólica que experimenta um ir além da
vida real de maneira consciente. Para exemplificar, cito o seguinte caso,
apresentado por Huizinga (2007, p. 11), no qual “o pai [...] foi encon-
trar seu filhinho de quatro anos que estava brincando ‘de trenzinho’ na
frente de uma fila de cadeiras. Quando o pai foi beijá-lo [...]” a criança,
em um jogo simbólico, disse-lhe: “não dê beijo na máquina papai, senão
os carros não vão acreditar que é de verdade”. Esse exemplo serve para
explicar que a criança sabe quando está “fazendo de conta” ou quando
está “brincando”, no entanto, apesar de saber que é uma brincadeira,
atribui seriedade e entusiasmo àquilo que está fazendo, podendo ficar
horas a fio jogando o jogo de sua escolha.
Piaget (1978), contudo, nos alerta para alguns paradoxos no desen-
volvimento simbólico e artístico infantil. Primeiramente, o fato que é
impossível provar que todos os jogos simbólicos das crianças tendem,
necessariamente, a prepará-las para uma atividade especial ou mesmo
geral. De outra forma, o fato que as crianças mais novas parecem estar

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mais capacitadas no domínio da expressão simbólica (do desenho, dos


papéis em cenas coletivas) que as mais velhas. Se por um lado as crian-
ças conseguem conquistar e de certa forma desenvolver sua individua-
lidade social e cultural com essas atividades, por outro é muito mais
difícil estabelecer estágios regulares de desenvolvimento no domínio da
expressão artística do que no caso das outras funções mentais. Piaget
(1954, p. 22-23, tradução nossa) ressalta ainda que “sem uma educação
artística apropriada com a qual [a criança] possa cultivar seus meios de
expressão e encorajar suas primeiras manifestações de criação estética,
a ação do adulto e as restrições do meio familiar ou escolar podem frear
essas tendências em vez de enriquecê-las”.
A capacidade de ressignificar seria a apropriação do símbolo pelo
jogador/educando, ao internalizá-lo e dar-lhe uma representação signi-
ficativa e cognitiva, que seria a própria função simbólica. Por sua vez,
na perspectiva piagetiana, de acordo com os estudos do professor, psi-
cólogo e autor Hans G. Furth (1920-1999), em seu livro Piaget na sala de
aula ([1972]1997), significa dizer que “a função simbólica é a capacidade
de se construir ou produzir um símbolo para representar aquilo que se
conhece, mas que não está presente” (1997, p. 231). E é justamente essa
capacidade de desenvolver, de ressignificar a realidade, que permite que
a construção simbólica possibilite uma experiência intuitiva às crianças
dentro e fora do ambiente escolar pelo jogo teatral, no ensino de teatro,
em uma intrínseca relação entre performance e educação.
Constato que o conhecimento das características das funções sim-
bólicas do jogo simbólico estudadas por Jean Piaget pode sim influir
sobre a metodologia do jogo teatral estruturada por Viola Spolin como
prática pedagógica dos educandos/jogadores na intrínseca relação entre
significado/significante, elemento dado (cadeiras, bolas, cabo de vassoura
etc.) e o elemento imaginado (portas, pedras, bengalas e outros), com

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

base na inteligência intuitiva. Acredito ser esta uma condução possível


para as novas propostas metodológicas de ensino de teatro para criança/
performer, que não finge ser, mas que é o que é, dentro e fora do jogo
teatral. De forma resumida, ambos autores Piaget e Spolin enxergam
a inteligência intuitiva como um potente conceito para que se possa ir
além do que se vê e “então, olhamos com um ‘olho interno’” (Spolin,
2012, p. 59). O jogo teatral, com base no exercício da função simbólica
no espaço escolar, promove o desenvolvimento do educando/jogador
pela experimentação em um processo intuitivo com a possibilidade
de tornar o ausente presente. Para isso, considera-se, de acordo com
os estudos piagetianos, que a inteligência é a função do pensamento e
que o conhecimento é a maneira como esse pensamento se estrutura
como em forma de espiral. Logo, pode-se concluir que essa função do
pensamento simbólico de tornar o ausente presente de acordo com os
estudos de Piaget é o que pode ser denominado de inteligência intuitiva,
apresentada por Spolin como “área x”, o indefinido.
Os jogos teatrais são um espaço propício para que os educandos/
jogadores possam desvelar seus anseios e mostrar-se verdadeiramente. As
crianças precisam ser mais vistas, ouvidas e menos assistidas. Claro que a
questão que se abre sobre a importância dos jogos teatrais no ambiente
escolar público ainda está longe de ser encerrada, mas a discussão ganha
proporções importantes com a relação das características da função
simbólica, a inteligência intuitiva e como tudo isso influi no jogo teatral.
Tomando por base o diálogo entre Viola Spolin e Jean Piaget, tenho a
compreensão da formação da inteligência intuitiva, que é presença cons-
tante nos jogos teatrais no ambiente escolar público. É preciso pensar um
teatro de qualidade, um teatro para encontrar caminhos, possibilidades
do encantamento do mundo no qual as crianças sejam parte integrante

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desse espetáculo que é a vida, dessa experiência teatral pelo processo


intuitivo com seres humanos mais felizes e íntegros.
O aprendizado é assim percebido por lentes diferentes, como em um
sistema simbólico, não mais só de conceito importante, mas aquilo que
surge do nada, do intuitivo, numa forma de mediação ativa, como em
performances, de uma maneira múltipla de significações e que se encontra
sempre em construção. Por isso, o estudo do jogo teatral é sempre atual
para crianças que atribuem verdade e seriedade à uma atividade que é,
por natureza, lúdica. É a capacidade que a criança tem em assimilar e
acomodar o mundo a sua volta em um processo de equilibração; e cor-
porificar essa captura faz com que a experiência intuitiva com função
simbólica no jogo teatral vá muito além do que se consiga ver e ou ima-
ginar. É a experiência de material novo que impulsiona a continuidade
da prática com jogos teatrais nas escolas públicas.
A educação pelo jogo teatral pode estabelecer a comunicação neces-
sária para a aprendizagem entre seres constituídos de almas, desejos
e sentimentos. Cada qual pode determinar uma maneira exclusiva de
encarar problemas ou achar soluções, mas essas decisões implicarão
no desenvolvimento tanto individual como coletivo, principalmente no
ambiente escolar. Isso se refletirá na relação de cada um com o mundo
em que vive, tornando-o um ser mais crítico, cujas ideias possam dar o
verdadeiro sentido a novas experiências rumo à liberdade. O jogo teatral
no ambiente escolar proporciona essa retomada das experiências vividas
e garante a emancipação dos educandos/jogadores e educadores em
busca de dias melhores. Afinal, todos estão na condição de aprendizes,
sejam crianças ou adultos, nessa arte que é a vida.

· 162
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Referências
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MORGANA BARBOSA GOMES (MORGANA POIESIS) | MURILO BERARDO BUENO

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

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Ingrid Dormien Koudela. São Paulo: Perspectiva, 2012. Original
publicado em 1975.

165 ·
PERFORMANCE SONORA CULTURAL

THAIS OLIVEIRA
SAINY VELOSO

Resumo: O trabalho conceitua e analisa a performance sonora cultu-


ral, objeto de estudo de minha investigação intitulada Performances
sonoras: uma escuta do cotidiano goianiense. O pressuposto que perpassa
o texto diz respeito a uma possível identidade dos habitantes da
cidade de Goiânia, apreendida por meio de seus sons na via pública:
Como os indivíduos dessa cidade produzem e escutam seus sons?
Para tanto, discorremos sobre algumas das definições conceituais já
existentes na interface das performances culturais e da performance art,
distinguindo-as e aproximando-as, para circunscrever o conceito de
performance sonora cultural.
Palavras-chave: Performances Culturais. Sonoridade. Escuta do
cotidiano. Cidade.

Introdução
O Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances
Culturais da Universidade Federal de Goiás (UFG) foi lançado no ano
de 2012 como forma de estabelecer um espaço para o estudo da arte e
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suas relações com o mundo e com as manifestações culturais, inserindo


todos esses elementos em um método específico de pesquisa. Um de seus
idealizadores, o professor Dr. Robson Camargo, afirma que esse programa
interdisciplinar surge como um terreno múltiplo, simbólico, que não diz
uma coisa só, ou seja, um lugar de encontro produtivo para pesquisadores.
Ao ingressar na primeira turma de doutorado desse programa de
pós-graduação, no ano de 2015, vi-me inserida num terreno jovem e
fértil para pesquisa e, ao mesmo tempo, em um ambiente com vastidão
de conceitos novos, como é o próprio conceito de interdisciplinaridade.
Quando falamos a respeito de interdisciplinaridade, estamos lidando
com um campo instável, pois supõe dois ou mais elementos em relação;
um diálogo, uma troca de métodos, análises entre disciplinas distintas,
no qual são possíveis interações entre diversos especialistas. Jean Piaget
(1972), um dos primeiros pesquisadores a fazer referência ao tema, diz
que a interdisciplinaridade é uma forma de pensar e que, com base nela,
há cooperação e intercâmbios. Guy Palmade (1979) define interdiscipli-
naridade como um processo de integração de várias disciplinas e campos
de conhecimento. Ambos os autores acreditam na interdisciplinaridade
como forma de abordagem entre disciplinas distintas para a obtenção
de um conhecimento comum. Robson Camargo (2013) esclarece que
a interdisciplinaridade deve ser vista como uma integração conceitual
que rompe determinada estrutura e aponta para a construção de uma
nova axiomática. É nessa instabilidade que reside o principal sentido da
interdisciplinaridade: construir um conhecimento aberto, franco, múl-
tiplo, no qual é possível respeitar cada um dos territórios particulares
de cada campo de conhecimento e identificar pontos de ligação e de
rejeição entre todas essas áreas do saber, analisando-os com os contextos
históricos e culturais da sociedade.

· 168
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

O conflito inicial a respeito de determinadas terminologias específi-


cas do campo de Performances Culturais é imediato para os estudantes
recém-ingressos no Programa de Pós-Graduação. Autores específicos
desse campo de estudos são apresentados aos estudantes e conceitos
determinantes para os estudos das Performances Culturais são debatidos,
pois esse, mesmo sendo um campo interdisciplinar, necessita de bordas
definidoras para sua existência. Conceitos são ferramentas e trazem novas
reflexões. Assim sendo, este trabalho surge da necessidade de discutir e
partilhar questões norteadoras para o objeto de pesquisa: a sonoridade
do cotidiano goianiense. Com base em comparações entre alguns dos
conceitos próprios das Performances Culturais, circunscrevemos uma
performance sonora cultural.

Performances culturais:
impressão à primeira vista
A palavra performance talvez seja a principal responsável pela confusão em
relação ao entendimento do campo das Performances Culturais. Gostaria
de chamar a atenção para o fato de que, talvez, por ser a primeira palavra
a aparecer nesse conceito (que é plural), imediatamente somos levados
a estruturar o entendimento desse campo de estudos associando-o ao
termo. Definir com exatidão o que é performance seria uma tarefa ousada
e difícil. Muitos são os autores que discutem os conceitos que emanam
com essa palavra, especialmente na língua portuguesa. Nossa intenção
é buscar reflexões com base no termo e conseguir refletir a respeito das
Performances Culturais. A depender das associações utilizadas para a
definição do termo performance, pode ser equivocado o uso da palavra para
definir qualquer prática artística que esteja vinculada ao uso do corpo.
Durante as aulas ministradas na disciplina de Teorias e Práticas da Per-
formance, o professor Robson Camargo afirmou que a palavra performance

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tem mais de duas mil definições. A mais comum e mais utilizada está
relacionada ao desempenho artístico. Falamos na performance do cantor
de ópera, do músico que toca piano, do ator que encena a peça teatral
ou na performance corporal do artista de rua. Há também referência na
língua portuguesa, especialmente a falada no Brasil, ao termo performer
como aquele que realiza um bom desempenho na sua área de atuação. Por
exemplo, existe a alta performance do atleta, a boa performance do jogador
de futebol ou do piloto de corrida; nesse caso, performance no singular.
O uso da palavra performance também está relacionado a um gênero
artístico estabelecido como “performance-arte ou arte da performance”. De
acordo com Renato Cohen1 (2002), foi a partir da década de 1970 que
despontaram artistas plásticos dedicando-se exclusivamente a essa forma
de atuação estética e gênero artístico. Segundo o autor, esse jeito de lidar
com a arte começa a se impor como linguagem, de forma que atrai vários
artistas que buscavam mesclar novas experiências e novas mídias ao seu
modo de fazer artístico. Cohen (2002, p. 28) procura, então, estabelecer
definições para a performance, dizendo que

apesar de sua característica anárquica e de, na sua própria razão


de ser, procurar escapar de rótulos e definições, a performance
é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido
para uma plateia não caracteriza uma performance; alguém pin-
tando esse quadro, ao vivo, já poderia caracterizá-la. A partir
dessa primeira definição, podemos entender a performance como
uma função do espaço e do tempo P = f(s, t); para caracterizar
uma performance, algo precisa estar acontecendo naquele instan-
te, naquele local. Nesse sentido, a exibição pura e simples de
um vídeo, por exemplo, que foi pré-gravado, não caracteriza

1 Pesquisador que aborda a performance no Brasil; autor do livro Performance


como linguagem, cujo objetivo é analisar a chamada “arte da performance” e
estabelecer suas relações com o teatro e outras artes.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

uma performance, a menos que este vídeo esteja contextualizado


dentro de uma sequência maior, funcionando como uma
instalação, ou seja, sendo exibido concomitantemente com
alguma atuação ao vivo.

Portanto, a performance rompe determinadas formas e estéticas em


um caminho contínuo, próprio do seu modo de fazer, que mistura a
separação e acumulação e que tem características específicas durante o
processo de criação, é o que Cohen denomina como “arte da fronteira”.
Arte da fronteira porque esse tipo de movimento se revela com base em
situações e combinações que antes não eram valorizadas como forma
de arte, como, por exemplo, as apresentações em lugares públicos, fora
dos museus. A performance está inserida em um movimento com maior
extensão, uma maneira de se encarar a arte, que o autor apresenta como
live art. Por live art entende-se “uma forma de se ver arte em que se procura
uma aproximação direta com a vida, em que se estimula o espontâneo,
o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado” (Cohen, 2002,
p. 39). Esse movimento pretende tirar a arte de uma posição intangível
e colocá-la ao lado de atos comuns da vida cotidiana. A respeito disso,
Cohen (2002, p. 40) assegura que o ato inerente ao homem de repre-
sentar papéis na sociedade, bem como um ator social, já configura uma
performance e que “isso se dá pela institucionalização do código cultural”.
A performance como gênero artístico se desenvolve no século XX,
mas é a partir da década de 1970 que esse movimento busca formas
mais sofisticadas para suas realizações e suas exibições. Essas experiên-
cias incorporam conceitos e novas tecnologias ao resultado estético e
desse processo nasce o que “os americanos chamam de performance art”
(Cohen, 2002, p. 30). Maria Beatriz Medeiros (2000) afirma que RoseLee

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Goldberg2 debate a performance como uma forma de linguagem artística,


que nasce de várias artes em contato: artes plásticas, artes visuais, de
encontros entre artistas. Medeiros (2000) aponta que essa linguagem
artística transforma o conceito de arte justamente por envolver novos
elementos estéticos (o corpo do artista, a fugacidade da obra, a partici-
pação do público) para a criação. Esse movimento artístico, portanto,
cria um espaço para a tensão entre as diferentes formas de arte na qual
“qualquer definição negaria imediatamente qualquer possibilidade da
performance em si mesma” (Goldberg, 2001, p. 9 apud Camargo, 2015a,
p. 4). Robson Camargo (2015a, p. 5) afirma que justamente por ser rea-
lizada em lugares alternativos, essa forma de arte pertence ao “lugar do
não, ou do não lugar, pois não tem lugar-comum”. Pode ser realizada no
cotidiano, na via pública, fora dos locais sacralizados pela e para a arte.
Mas não podemos confundir os conceitos. Performance, performance
arte (performance art, arte da performance) e Performances Culturais não
são a mesma coisa. O conceito de Performances Culturais é complexo e
variado. Para seu entendimento, é necessário compreender a performance,
não como singular, ou como um tipo de apresentação, acontecimento
artístico ou forma de arte dos anos setenta (Camargo, 2013). Quando
nos referimos à performance da vida, que é cultural, estamos compondo
as Performances Culturais, um conceito que deve ser citado no plural,
como manifestações múltiplas, uma vez que

performances culturais se constituem pela identificação, regis-


tro e análise de determinado fenômeno em suas múltiplas
configurações, em seu processo contraditório de formação,
de constituição e de movimento, de estrutura e de gênese, de
ser e de vir a ser, na percepção deste fenômeno em diálogo

2 Autora do livro A arte da performance: do futurismo ao presente (2012), pioneira


no estudo da arte da performance.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

com estruturas gerais das tradições e pelas transformações


estabelecidas a partir de formas culturais contemporâneas.
Performances Culturais, mais uma vez sempre no plural, são a
busca da determinação do que foi, do que é e do que se pode
tornar, não apenas um levantamento ou registro particular do
“essencial” de determinada cultura, mas como uma forma em
processo de diálogo. (Camargo, 2013, p. 10).

Robson Camargo (2013) indica, segundo uma revisão bibliográfica,


que o termo “Performances Culturais” surgiu em 1955, nos escritos
de Milton Borah Singer (1912-1994) em diálogo com os escritos de
Robert Redfield (1897-1958). Milton Singer defendia as Performances
Culturais como o “nome dado à análise de um acontecimento onde x
atuantes estão em frente a uma determinada plateia, interagindo num
tempo determinado” (Singer, 1959 apud Camargo, 2013, p. 4). Milton
Singer e Robert Redfield propõem uma análise cultural das atividades
sociais humanas que podem ser “cultos, rituais, cerimônias, celebrações
religiosas em templos, festivais, casamentos, recitais, teatro, danças,
concertos musicais, canções, apresentação de música instrumental,
textos verbalizados, poesia, a cena propriamente dita, temas, enredos e
conflitos” (Camargo, 2013, p. 4).
Esse conceito, plural, deu origem ao campo de estudos das Perfor-
mances Culturais, que Sainy Veloso (2014) define como um campo de
estudos configurado pela combinação interdisciplinar de distintas áreas do
conhecimento, tendo como base estudos que entrecruzam três matrizes:
a sociológica, de Erving Goffman; a antropológica, de Victor Turner; e a
teatral, desenvolvida pelo teatrólogo Richard Schechner. Esse campo de
estudos “engloba a experiência vivida, ou seja, os aspectos informais da
vida cotidiana e do comportamento humano, indo muito além das artes
do espetáculo ou da dicotomia entre arte e vida” (Veloso, 2014, p. 195).

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Os estudos das performances culturais estão acomodados, portanto, em uma


proposta metodológica interdisciplinar. Os três pesquisadores percebem
uma estreita relação do teatro com a vida cotidiana e, tomando-o por
base, inferem, com abordagens diferentes, sobre aspectos importantes
para a realização de análises sociais. É nessas análises que o campo das
Performances Culturais se fundamenta.
Richard Schechner (2003), professor do departamento de Performance
Studies da New York University e oriundo da tradição do teatro, começa,
ao deslocar seu olhar para a antropologia, a abordar uma nova forma
de ação humana que ele entende como performance. O autor acredita que
as performances consistem de comportamentos duplamente exercidos,
codificados e transmissíveis, definindo que as “performances marcam
identidades, modificam e redimensionam o tempo, enfeitam e remode-
lam o corpo, contam histórias, permitem que se jogue com condutas
repetidas, que sejam preparadas e ensaiadas, apresentadas e representadas
tais condutas” (Schechener, 2006, p. 13).
Victor Turner, antropólogo, compreende em seus estudos uma tea-
tralidade inseparável das ações do ser humano e canaliza os eventos
rituais e o teatro como suporte para sua análise social. Em seus estudos,
ele percebe uma aproximação entre o teatro e a vida, afirmando que o
presente é vivido como drama social. O autor define, então, a performance
como “uma forma de expressão que completa a experiência, performance
como a realização inteira de alguma coisa, de forma totalizadora” (Turner,
1982 apud Camargo, 2015a, p. 3).
Erving Goffman, sociólogo, segue a linha do interacionismo simbó-
lico.3 Para tal pensamento, é no cotidiano que ocorre a interação social,

3 O interacionismo simbólico caracteriza-se como uma abordagem sociológica


que busca discutir como que, com base nas relações sociais, são construídas as
ações dos indivíduos no cotidiano.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

ou seja, nas relações face a face. Em seu estudo sobre a vida cotidiana
dos indivíduos, o autor realiza apreciações sobre o modo como eles se
apresentam em situações comuns do dia a dia. Goffman (2011) compara
as ações cotidianas dos indivíduos, tomando por base suas expressividades,
com ações desenvolvidas por determinado personagem em um palco
de teatro. Ao desempenhar o papel social na sociedade, ele representa
ações e causa determinada impressão no observador a respeito de seus
atos. Estamos, portanto, segundo o autor, representando papéis sociais
a todo instante: de modo consciente ou inconsciente, formulamos a
impressão que queremos transmitir ao observador (ou para a sociedade
de forma geral) a respeito de nós mesmos.
Sobre a vida cotidiana e sua relação com a performance, Richard Schechner
(2006) revela que para que possamos realizar/praticar um espetáculo
artístico é necessária uma série de treinos e ensaios. No entanto, a vida
cotidiana também possui – em certa medida – uma série de “treinos e
ensaios”, os quais são realizados pelos indivíduos segundo a percepção
e desenvolvimento de práticas sociais em seu grupo cultural.
Nesse sentido, o pensamento de Erving Goffman assemelha-se ao de
Richard Schechner – mais especificamente, a respeito da ideia de ritual –
pois ambos se referem ao comportamento expressivo (os gestos, palavras,
sons ou ações significativas) como característico das performances culturais.
Por vezes, tratam-se de condutas “ritualizadas”, portadoras de um senti-
do que não está nas condutas em si, mas nos códigos culturais que nelas
imprimem significado. São os rituais de interação social (Goffman, 2012).
O estudo das Performances Culturais busca um estudo da performance
da cultura, comparando as múltiplas civilizações e suas representações,
buscando o “entendimento das culturas através de seus produtos ‘cul-

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turais’ em sua profusa diversidade, ou seja, como o homem as elabora,


as experimenta, as percebe e se percebe” (Camargo, 2013, p. 1).

Por uma Performance Sonora Cultural


Somos todos produtores de sonoridades. Para produzir barulho, basta
estar vivo; para recebê-los, também (excetuando-se, nesses casos, pessoas
com deficiência auditiva). Da mesma forma, somos receptores de sono-
ridades. Fisicamente falando, é possível fechar os olhos, mas dificilmente
conseguiremos fechar os ouvidos. José Miguel Wisnik (1989, p. 28) coloca
que o som é um objeto diferenciado entre os objetos concretos que
povoam o nosso imaginário porque, por mais nítido que possa ser, “é
invisível e impalpável”. Escolhemos o que queremos ver pois podemos
abrir e fechar as pálpebras voluntariamente, o que não ocorre com os
ouvidos que estão sempre abertos, com tímpanos a todo funcionamento,
recebendo as vibrações do mundo e convertendo-as em ondas sonoras.
O som que nos habita é o som da nossa memória. Um som que surge
do cotidiano vivido, com base na escuta dos sons a nossa volta e com
os quais somos capazes de pressentir recordações do passado e também
de nos colocar no presente. O cotidiano, assim como define Michael de
Certeau (1994, p. 31), nos ensina o que é partilhado em nossa labuta,
no dia a dia, e “nos prende a partir do interior”. São as maneiras como
consumimos os objetos e situações cotidianas para construirmos nossas
táticas e/ou estratégias do dia a dia, nos escondendo atrás das máscaras
da conformidade. É no cotidiano, portanto, que as sonoridades situam
nossa existência em determinado período histórico.
Apesar da sua efemeridade, os sons são capazes de atingir um grande
número de pessoas e de marcar uma paisagem sonora. Quando estamos
em uma feira, por exemplo, todos os ruídos sonoros dos ambulantes ao

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

venderem seus produtos – “Olha o tomate/ caldo de cana geladinho/


verdura na promoção/ olha o pastel frito na hora” – nos fazem elaborar
na memória uma paisagem específica e própria desse ambiente. A cidade
possui paisagens representativas; esta aqui entendida como um complexo
de cultura e formas. A paisagem para o estudo geográfico é um elemento
multifacetado, que aborda diferentes culturas, significados e valores. No
livro Metamorfoses do espaço habitado, Milton Santos (1988, p. 61) explica
que a paisagem não é composta “apenas de volumes, mas também de
cores, movimentos, odores, sons, etc”. Ela não é apenas visual e estática,
mas ativa e carregada de vozes, ruídos, cheiros, gostos, valores sociais e
culturais que devem ser considerados no estudo. Nesse aspecto, quem
compreende uma paisagem e suas múltiplas facetas consegue perceber
seu valor, entendendo sua importância na vida social. Com base nisso,
interessa-nos a perspectiva sonora.
O termo “paisagem sonora” tem origem no campo da música com
Raymond Murray Schafer e seu conceito procura desvendar os sons do
ambiente acústico como um todo. Para o autor (1977, p. 54), qualquer
ser humano poderia ser regente de uma grande orquestra – a orquestra
do universo sonoro, na qual os músicos seriam “qualquer um e qualquer
coisa que soe”. Schafer (1977, p. 366) define a paisagem sonora como “o
ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro
vista como um campo de estudos”. Uma paisagem sonora é formada
com base no intercâmbio de sons específicos de uma região com os seus
componentes. Na cidade, uma superabundância de novos sons reside no
ambiente acústico, trazendo para nossa audição muitos elementos sonoros
ao mesmo tempo. Desse modo, Schafer (2011, p. 71) sinaliza que “a cidade
abrevia essa habilidade para a audição (e visão) a distância, marcando uma
das mais importantes mudanças na história da percepção”. As paisagens
sonoras, porém, também conferem uma identidade única para a cidade.

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A cidade é uma unidade viva, carregada de indivíduos que transportam


diferentes representações individuais e coletivas, formadoras da identidade
local. Compreendê-las tomando por base a paisagem sonora da cidade
e de seus símbolos, de suas marcas sonoras e das ações dos indivíduos
auxilia na construção da performance sonora cultural específica desse
povo. O ambiente sonoro de uma cidade traz para seus habitantes uma
verdadeira agitação sonora. Em meio a essa acumulação sonora, existem
marcas sonoras, que, para Schafer (1977), são sons das comunidades
e lhes são singulares. As marcas sonoras possuem qualidades que as
tornam significativas para o povo de determinado lugar. São o registro
particular de ambientes através de seus sentidos sonoros.
Martin W. Bauer (2008, p. 386) considera que “os materiais sonoros
são um campo ainda virgem, esperando seu emprego metodológico
nas ciências sociais” e é um recurso geralmente rejeitado em pesquisas
sociais. Portanto, para identificar a performance sonora cultural do cidadão
goianiense, realizamos gravações de sons em quatro regiões da cidade
com frequência maior de habitantes: Feira Hippie, Região da Pecuária de
Goiânia, Estádio de Futebol Serra Dourada e Região Central de Goiânia.
A sonoridade capturada nos revela a cidade de Goiânia segundo outro
referencial, o sonoro. Especificamente, os ruídos sonoros emitidos por
indivíduos que habitam a cidade e produzem sons cotidianos ao falar,
andar, dirigir seus carros, pegar ônibus, fazer compras, comer e todas
as demais atividades que realizam cotidianamente no contexto social.
Esses sons constituem a performance cultural goiana na medida em que
gestos, falas, modos e maneiras de agir e reagir, uso dos objetos e de
máquinas fazem parte do modo de ser e viver culturalmente. Assim, os
sons das cidades as diferenciam e as aproximam, em seus múltiplos e
diversos fazeres.

· 178
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Por esse viés, segue nossa metodologia, atentando-nos aos ensinamen-


tos de Bauer (2008): coletar, registrar, transcrever e associar – ruídos,
sons, silêncios, bem como registrar observações de maneira detalhada
em diário de campo – ao grupo social que a produz. Tais recomendações
coexistem com os ensinamentos da interação social do método etnográ-
fico, no que se refere à produção de conhecimento sobre a “realidade”.
Durante as gravações dos ruídos sonoros, as performances culturais se
materializaram, pois o som passa a ser suporte para o entendimento do
cotidiano e de suas relações sociais.
Consciente ou inconscientemente, apreendemos os hábitos e modos
de nossos parceiros, agimos por imitação, criamos e reconhecemos sons
tradicionais, aprendemos o sotaque de uma língua por transmissão oral
de nossos pais e membros da cultura em que vivemos. Então, quando
nos expressamos sonoramente, estamos produzindo performances que nos
identificam com determinado grupo cultural. Apesar de os indivíduos
perceberem sons de diferentes maneiras e de forma individual, eles
partilham da memória auditiva comum dentro de um mesmo grupo, em
uma mesma cidade. Na cidade de Goiânia, por exemplo, um indivíduo
percebe e vivencia esse espaço citadino e suas sonoridades diferente-
mente dos de outros grupos culturais em cidades brasileiras. É, pois,
no contexto da realidade social que os sons e suas apreensões ocorrem.
Cada cidade tem seus sons específicos. Dessa maneira, os sons de uma
cidade como Goiânia não são como os da cidade do Rio de Janeiro, ainda
que as diferentes experiências, representadas corporalmente, através de
ações cotidianas sejam constitutivas de performances culturais.
Com base na gravação e percepção desses sons, o universo sonoro
de Goiânia foi revisitado. Esse universo sonoro dita o ritmo da cidade e
de seus habitantes: o ônibus que passa pela rua, ambulantes que tentam
vender seus produtos, os imigrantes da América do Sul que tocam suas

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flautas na Praça do Bandeirante, os passos e roçar de roupas dos cida-


dãos que passam pela rua com horários predeterminados para chegar
ao trabalho. Por vezes, essa sonoridade é confusa, por conta das muitas
camadas de informações em sua paisagem sonora.
O som tem uma característica própria, a de ser social, pois pode ser
ouvido por muitas pessoas ao mesmo tempo, em um mesmo ambiente,
mas nem sempre ele está sendo escutado ao mesmo tempo. Roland
Barthes (1990, p. 217) esclarece essa distinção ao afirmar que “ouvir é
um fenômeno físico; escutar é um ato psicológico. Pode-se descrever
as condições físicas da audição [...], recorrendo à acústica e à fisiologia
da audição; a escuta, porém, só se pode definir por seu objeto, ou, se
preferirmos, sua intenção”. Nessa mesma linha de pensamento, Michel
Chion (2008) afirma que existem pelo menos três atitudes de escutas
diferentes: a escuta causal, a escuta semântica e a escuta reduzida. Na
escuta causal, seríamos capazes de definir qual é a causa de algum som
percebido. A escuta semântica está emaranhada a um código ou a uma
linguagem, a fim de interpretar alguma mensagem (elemento de estudo
da linguística). A terceira e última atitude de escuta seria aquela que
trata das qualidades e das formas do som independente de sua causa ou
sentido, considerando-o como objeto de observação.
Optamos pelo entendimento de performance cultural como a forma
que uma determinada coletividade elabora certa apresentação de si, nas
relações face a face. Com base nessas expressividades, Erving Goffman
(2011) compara as ações cotidianas humanas com ações desenvolvidas
por determinado personagem em um palco de teatro. Ao desempenhar
um papel social, o indivíduo representa ações e causa certa impressão
no observador a respeito de seus atos. É nesse sentido que os ruídos
sonoros contam sobre a performance cotidiana do cidadão transeunte da
cidade, pois ele deixa “rastros” de sua sonoridade. De forma consciente

· 180
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

ou não, o cidadão produz diversos sons incorporados à geografia do


ambiente, o que confere a esse espaço uma identidade própria. Escutar
esses sons é um ato em que forçamos a percepção seletiva dos sons
que nos rodeiam. É segundo uma perspectiva cultural que a recepção
sonora – escuta – de determinada mensagem aciona nossa perce­pção
auditiva do mundo, através de filtros produzidos pelas nossas trajetórias
subjetivas, pessoais. Dessa forma, a dimensão simbólica da sonoridade
em nosso cotidiano está ligada aos contextos simbólicos que são evo-
cados com base no som.
Os ruídos sonoros identificam uma performance cultural cotidiana e cita-
dina: o vendedor de pamonha que sai com sua bicicleta pela cidade anun-
ciando o produto com uma simples caixinha de som acoplada à bicicleta;
o ambulante que vende ouro nas avenidas da cidade; os ônibus pesados da
região central; os vários galos que, contrariando a lei normal da natureza,
emitem o cocoricar às 16 horas pela cidade. Sons próprios e simbólicos
que caracterizam uma performance sonora cultural pertencente à paisagem
da cidade; e cada cidade tem sua paisagem própria. Assim, performance
sonora cultural é a manifestação – conversas, buzinas, sons de ambulantes,
músicas, entre outros – de uma ação sonora, expressiva, do indivíduo no
ambiente em que está inserido, voluntária ou involuntariamente.

Algumas Considerações
Os estudos em Performances Culturais abrem um leque de opções de
estudos ao pesquisador na realização de suas investigações. A possibilida-
de de entrecruzamentos entre áreas distintas para análise de fenômenos
da cultura possibilita um campo rico para debates e diálogos sobre a
expressão humana na sociedade. Isso é o que torna o programa inter-
disciplinar um espaço único, capaz de reunir diversas áreas em busca de
algo comum. A associação entre antropologia, sociologia e teatro (entre

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COLEÇÃO PESQUISA | ROBSON CORRÊA DE CAMARGO | JOANA ABREU |
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outras propostas pelos estudos das performances culturais) compõe um


arcabouço teórico-conceitual basilar para abordar as performances auditivas
citadinas do e no cotidiano.
O som do presente é o som do ambiente social em que vivemos,
pertencente e constitutivo de nossa identidade. Nessa vastidão de sons,
não se pode dizer que esse ambiente “ruidoso” é neutro de sentidos.
Como produtos de ambientes sonoros culturais, os sons são também
percebidos e entendidos por uma audiência que recebe informações
audíveis e as interpreta, dando a elas um caráter sígnico ou simbólico,
segundo sua experiência cultural audível.
A maneira como as pessoas conduzem seus cotidianos reflete direta-
mente na sonoridade do ambiente. O som traz marcas das manifestações
criadas pelas pessoas com base nas realidades que habitam e configuram,
tanto no passado quanto no presente. Ao relacionar as sonoridades
cotidianas com o grupo cultural que as produzem e escutam, estamos
constituindo uma performance sonora cultural. Marcos sonoros cultivados
na e pela sociedade; uma nova forma de escutar e perceber o cotidiano.

Referências
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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

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COLEÇÃO PESQUISA | ROBSON CORRÊA DE CAMARGO | JOANA ABREU |
MORGANA BARBOSA GOMES (MORGANA POIESIS) | MURILO BERARDO BUENO

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

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185 ·
PERFORMANCE CULTURAL: SINGULARIDADES NA
ESTÉTICA DO CORPO DE QUEM DANÇA O ORIXÁ!

SUZANA MARTINS

Resumo: Tomando por base as observações in loco, durante a pes-


quisa de campo e embasadas na literatura, este trabalho aponta três
elementos estéticos que compõem a performance do corpo de quem
dança o Orixá. Observa-se que, além da ancestralidade divina, a
performance do corpo do religioso corporificado com os Orixás –
divindades da cosmologia africana – demonstra três componentes
singulares essenciais para que o objetivo seja alçando, e que juntos
funcionam como pilares fundamentais e estruturais da performance: o
holismo, a polirritmia ou múltiplos metros e o policentrismo. Estes
três componentes foram estudados, principalmente, com funda-
mento em dois autores norte-americanos, o antropólogo Robert
Faris Thompson (1974) e a pesquisadora, coreógrafa e professora
africano-americana Kariamu Welsh (1985). Assim sendo, este tra­
balho debruça-se em analisar e descrever o holismo, a polirritmia ou
múltiplos metros e o policentrismo através da leitura do corporal e
dados teóricos. Conclui-se que o corpo na performance cultural dos
candomblés da Bahia apresenta singularidades de interpretação e
execução de movimentos, gestos e ritmos diferenciadas de outras
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performances culturais, uma vez que sua função é a união com o Orixá
através do ritual sagrado.
Palavras-chave: Corpo. Estética. Orixás.

Palavras introdutórias
Laroiê! Saudação a Exu, pedindo licença a esse Orixá da comunicação
para que este capítulo seja produtivo e proveitoso para aqueles leitores
que desejam conhecer a cultura e a estética da performance do corpo do
filho de santo corporificado com o Orixá.
Desde a década de 1960 nos Estados Unidos da América, o termo
“performance” vem sendo usado de muitas maneiras e com diversas interpre-
tações, seja no âmbito artístico, seja no cotidiano das pessoas. Schechner
(2002), autor considerado como referência principal sobre esse assunto,
aponta, em seu livro Performance Studies, que o campo da performance se
tornou amplo e vasto, com singularidades particulares e pluralidade de
interpretações, abrangendo várias categorias e ações. Entre elas estão os
esportes, artes, vida cotidiana, rituais e outras. Com base nessa definição,
trago a performance do corpo do religioso corporificado com o Orixá, o
qual apresenta sutilezas na estética dos movimentos e ritmos, que se
tornaram, assim, uma assinatura emblemática dos candomblés da Bahia.
A performance está no corpo e com o corpo unido aos toques dos atabaques,
xequerês e outros instrumentos de percussão, o que se realiza através
de rituais cerimoniosos em festas públicas do candomblé. Na cidade de
Salvador, Bahia, as casas do candomblé e seus religiosos cuidam com
muito esmero dessas cerimônias. Através desses rituais, o corpo tem
como função celebrar, homenagear e referenciar a força invisível e vital
do axé do Orixá. Lima (2014, p. 20) traz uma definição sobre o axé:

· 188
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

O axé é entendido como força transcendente e imanente,


que está contida na natureza, nos Orixás e nos indivíduos, e
que mantém relações de reciprocidade entre si. É o princípio
vital da existência. É um entrelaçamento de representações
e objetos concretos; animais, folhas, escamas, penas, tecidos,
grãos. Desse modo, a leitura do corpo deve atentar para uma
orquestração ritualizada, que é a melodia vivenciada nos ter-
reiros, tanto nos eventos extraordinários, as festas, como no
dia a dia, com suas relações míticas e humanas, nas alianças e
intrigas, tanto das divindades entre si, do mesmo modo que
nas relações entre as divindades e os homens.

Através dessa leitura corporal, pode-se afirmar que a corpo reúne um


conjunto de elementos simbólicos estruturados para um determinado
fim, ou seja, a busca da união espiritual decorrente da intervenção pri-
mordial das divindades. Assim, nesse contexto sócio-religioso-cultural, o
corpo em movimento – o jeito de dançar – ostenta vestimenta litúrgica,
atributos e adereços simbólicos embalados pela qualidade específica das
músicas, que identificam os Orixás. Esta performance inclui gestos, movi-
mentos e ritmos, os quais funcionam como sinais de desejo, da intenção,
da expectativa de sentimento com relação à união com os Orixás. Para
Martins (2002, p. 72), a performance do corpo não é um simples meio de
comunicação não verbal, e assim, ela diz:

Minha hipótese é que o corpo, na performance ritual, é local


de inscrição de um conhecimento que se grafa no gesto, no
movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como
nos ritmos e timbres da vocalidade. O que no corpo e na voz
se repete é uma episteme. Nas performances da oralidade, o
gesto não é apenas uma representação mimética de um aparto
simbólico, veiculado pela performance, mas institui e instaura
a própria performance. Ou ainda, o gesto não e apenas nar-
rativo ou descritivo, mas, fundamentalmente, performativo.

189 ·
COLEÇÃO PESQUISA | ROBSON CORRÊA DE CAMARGO | JOANA ABREU |
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Enfim, o corpo em trânsito da ação física ao transcendental desper-


ta algo incomum e muito sutil na subjetividade dos seus gestos, seus
movimentos e ritmos durante toda a performance. Esse corpo vivido – e
convivendo num ambiente que lhe proporciona condições efetivas
para ampliar a cumplicidade e reciprocidade entre o humano e o ser
religioso – alcança o êxtase, com a intenção de encontrar o equilíbrio e
de se harmonizar com esse universo mítico, purificando o corpo, almejando
paz e se socializando com a comunidade. Comumente, a memória dos gestos
se inscreve no corpo, mediante a tradicional comunicação oral transmi-
tida nas práticas dos rituais ao longo dos anos, gerando imagens com
base em estímulos que são dados pelos mais velhos sobre os sentidos,
história, lenda dos Orixás, através da observação cotidiana e do treino
performático. Como ressalta Martins (2002, p. 88), “o conteúdo imbrica-­
‑se na forma, a memória grafa-se no corpo, que a registra, transmite e
modifica dinamicamente”.
Há mais de 30 anos, dedico meu olhar, minha mente, meu corpo e
minha observação prática à temas relacionados com a nossa cultura
e arte negro-baiana de herança africana, tanto como dançarina quanto
como professora e pesquisadora. A relevância desse tema é o que me
impulsiona a continuar desenvolvendo estudos e pesquisa justamente
pela sua diversidade e pluralidade. Com meu olhar de dançarina, tive a
oportunidade de afirmar a importância da nossa cultura negro­-brasileira
através do desenvolvimento da pesquisa, durante no meu curso de
doutorado, o qual foi realizado na Temple University, na cidade da Fila-
délfia, Pensilvânia, Estados Unidos. Lá, tive a oportunidade de cursar
uma disciplina intitulada Black performance from Africa to the new world, o
que me fez entender formalmente, pela primeira vez, a importância da
herança negro-africana na composição cultural da sociedade brasileira.
Sempre tive muito orgulho em estar inserida nas manifestações populares

· 190
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

da cultura negro-baiana e da minha posição de dançarina profissional


engajada em grupos folclóricos e de capoeira, como o Olodumaré, desde
1970. Como fruto do curso do doutorado, desenvolvi a tese intitulada
A Study of the dance of Yemanjá in the ritual ceremonies of the candomblé of
Bahia. Mais tarde, consegui traduzir minha tese e adaptá-la, publicando
meu primeiro livro A Dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética do
corpo, em 2008, com o apoio financeiro do Programa Faz Cultura, do
Estado da Bahia. Ao retornar dos Estados Unidos, o professor de Teatro
Armindo Bião (falecido em 2013) convidou-me para participar de uma
equipe de professores doutores com o objetivo de criarmos o Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), na Universidade Federal
da Bahia (UFBA), em 1997. Desde dessa data, estou inserida na linha
de pesquisa intitulada Matrizes Estéticas na Cena Contemporânea do
PPGAC/UFBA.
Não sou filha de santo e nem equede.1 Sou uma apaixonada e encantada
pela cultura do candomblé. Ao me aproximar da casa de mãe Nini (axé
mãe!), o Ilê Axé Jagun, durante o desenvolvimento da minha pesquisa
de campo, me tornei uma pessoa bem melhor e bem mais educada. Falar
de candomblé é, automaticamente, falar do contexto pelo qual os rituais
do candomblé estão inseridos e, consequentemente, é falar do corpo
em movimento, uma vez que todo ritual, tenha ele qualquer natureza ou
função, exige do indivíduo determinada ação e performance. Na prática dos
rituais do candomblé, fica claro que esse corpo não poderá ser analisa-
do e tampouco descrito sob a observação do corpo de outras culturas,
principalmente da cultura eurocêntrica, como foi minha formação básica
dos meus cursos de graduação na Escola Dança da UFBA. Esse foi o

1 Equede é um cargo dirigido, principalmente, às mulheres que cuidam de todo


processo do ritual de preparação e execução da performance do filho de santo,
desde da vestimenta até a prática do ritual. Algumas vezes a grafia dessa palavra
muda para ekede.

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primeiro ponto crucial que confrontei durante minha observação parti-


cipativa nos rituais de candomblé, na fase empírica da pesquisa. Assim,
busquei autores que pudessem embasar minha observação e encontrei
teóricos da antropologia da dança, autores norte-americanos, como, por
exemplo, Judith Lynne Hanna e seus estudos sobre dança étnica em seu
livro The Ethnic Dance Research Guide (1984) e Kariamu Welsh e seu texto
intitulado Commonalities in African Dance; an aesthetc foundation (1985). Com
base nessas referências, busquei na minha memória corporal de dançarina
profissional e passei a observar e analisar a performance desse corpo em
movimento nos rituais do candomblé, principalmente, apurando o meu
olhar sobre a dança de Yemanjá.

Singularidades Estéticas no corpo


de quem dança o Orixá
Visivelmente, a dança do Orixá difere da dança contemporânea ou
acadêmica justamente pela função do corpo em movimento quando se
dá a performance, durante o fenômeno da corporificação (embodiment) com
o Orixá. Ao passo que a dança contemporânea prepara o corpo através
de um treinamento técnico/expressivo, escolhendo determinadas músicas
para criar a coreografia, o corpo do filho de santo se prepara através de
ritos de observação, pela imitação e, ainda, através de um treinamento
cotidiano, durante a sua presença nos afazeres domésticos na casa do
candomblé. Outro dado significativo é a ancestralidade. Os mortos são
referenciados e homenageados através de rituais, nos quais a música e
dança são parte integrante. A ancestralidade está relacionada, do ponto
de vista dos religiosos do candomblé, com aqueles que foram pessoas
importantes na sociedade e se tornaram figuras arquetípicas, pes­soas
que foram nobres e tiveram suas histórias significativas na terra, e que
devem ser referenciados para dar continuidade ao destino e à vida dos

· 192
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

homens no presente. Para Martins (2008, p. 117), a ancestralidade no


candomblé “cultua a devoção às divindades que significam o elo entre
o passado e o presente, celebrando os ancestrais divinizados para dar
continuidade à tradição religiosa”.
Na mitologia africana dos povos ioruba, uma das etnias que predomina
nos candomblés da Bahia, a ancestralidade está no corpo de quem dança
e corporifica o Orixá. A função desse corpo é homenagear, referenciar
e celebrar as características que compõem o arquétipo dos Orixás e que
são cultuados nas cerimônias dos candomblés. Fica claro que a performance
do corpo religioso se transforma quando o Orixá está corporificado
nos filhos de santo, tanto em nível físico, como o alinhamento postu-
ral, quanto em nível emocional, como a atitude e o comportamento, se
modificam ao longo do desenvolvimento da performance. Como explica
Martins (2008, p. 82):

A corporalidade, nesse contexto sócio-cultural-religioso merece


destaque ao ser comparado a outras formas de corporalidade,
devido a sua forma singular: o corpo em trânsito entre a ação
física e a dimensão transcendental do invisível. Os gestos
funcionam como sinais ou sintomas do desejo, da intenção,
da expectativa de sentimentos com relação à união com os
Orixás. Em verdade, essa manifestação – a da força invisível
no corpo físico do (a) de santo – somente é possível através
da prática e da convivência, que ocorrem naturalmente den-
tro do ambiente da casa de Candomblé, que é socialmente
estruturada para esse fim, sendo vital tanto para o corpo do
(a) filho (a) de santo quanto para a comunidade.

Além da ancestralidade, observei que na performance desse corpo divi-


nizado estão inseridos três elementos expressivos da dança e da música
do Orixá, a saber: o holismo, a polirritmia ou múltiplos ritmos e o

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policentrismo. Com base nos estudos de Thompson (1974) e de Welsh


(1985), pude concluir que a composição da performance inclui esses três
referidos elementos, que são pilares fundamentais e estruturais, os quais
sustentam o corpo de quem dança o Orixá.

Holismo
Segundo Thompson (1974), os povos africanos veem a criação do
mundo como um jogo de peças que se encaixam umas nas outras, sem,
contudo, se fragmentarem ou se separem do todo. Esse pensamento
está também inserido em suas atividades práticas cotidianas, tanto no
contexto sócio/cultural quanto no religioso, ou seja, cada ação, cada
movimento, cada ritmo estão intrinsecamente entrelaçados ao homem
e à natureza como um todo. Trata-se de um sistema cósmico de cren-
ças e rituais que inclui atividades e atitudes que não se opõem, muito
pelo contrário, completam-se e se harmonizam dentro de uma mesma
“moldura” (framework), como diz Thompson (1974). Esse sistema de
crenças acredita que a morte é tão fundamental para o homem quanto
a sua própria vida. Nesse sentido, o dançarino, coreógrafo e Ogã2 da
casa de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá, Clyde W. Morgan (1995 apud
Martins, 2008, p. 58) reforça esse pensamento holístico quando se refere
aos negros africanos do povo ioruba. Assim, ele afirma que:

O sistema ioruba possui uma completa cosmogonia; teologia;


uma completa rede de informações (...) não somente do lugar
que viemos; o que fazemos aqui e o que vamos construir aqui e
para aonde vamos. Este sistema reconhece a morte, um sistema
de trabalho com a morte, o mais importante (...) o sistema
ioruba trabalha com isso através do ritual, através de desig-

2 Ogã ou Ogan é um título dado aos homens que possuem relações afetivas, so-
ciais e espirituais com os religiosos do candomblé.

· 194
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

nações de forças e energias, designação de responsabilidades


para diferentes Orixás e para o povo, o qual são seus devotos.

Através dessa rede de informações, que é compartilhada por todos


religiosos do candomblé, o corpo aprende a dançar, a tocar, a cozinhar,
a limpar a casa etc., assim como assimila os fundamentos religiosos do
candomblé, realizados de forma muito natural, sem constrangimentos
culturais ou sociais. De fato, há um processo de transmissão de saberes
sobre os elementos estéticos da performance, sobre mandamentos de
compostura étnica/social e desenvolvimento global do indivíduo neste
contexto cultural/religioso. É surpreendente observar que todas as
pessoas envolvidas nesse processo comum de compartilhamento são
bem-vindas, qualquer gênero, idade ou etnia, e são tratados de forma
igual e democraticamente pelas lideranças das casas de candomblé. Nesse
sentido, os movimentos e gestos do corpo são tão importantes quanto a
música e as canções. As histórias dos Orixás se desenvolvem de forma
holística. Não se trata de uma relação separada dos procedimentos de
preparação do filho de santo, que antecedem os rituais nas cerimônias
públicas do candomblé. Todo o processo religioso envolve o físico, a
mente, o desejo e a emoção em direção a um determinado fim, ou seja,
a corporificação com o Orixá.
Os movimentos e os ritmos são conectados uns aos outros, se entre-
laçam e interagem entre si. Apesar de alguns movimentos e gestos
serem enfatizados através dos acentos dos toques dos atabaques, como
alguns dos movimentos do Orixá Ogum por exemplo, eles não são des-
vinculados da moldura do todo coreográfico. Mesmo com a mudança
do ritmo, do fluxo e das direções no espaço do corpo em movimento,
toda a performance responde ao todo coreográfico de maneira contínua e
encaixada. Tanto o silêncio (a pausa do movimento) quanto os acentos
rítmicos são bem-vindos e integrados à composição coreográfica, sem

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COLEÇÃO PESQUISA | ROBSON CORRÊA DE CAMARGO | JOANA ABREU |
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sofrerem o impacto da fragmentação, como pode ser visto em muitas


coreografias contemporâneas nos dias atuais.
Visualmente, o holismo talvez não seja tão explícito a ser observado
para muitos espectadores, mas pude observar que a performance do corpo
religioso assimila esses elementos estéticos, étnicos e simbólicos por um
longo e intenso processo de aprendizagem, que é integrado à sua vida
espiritual nessa união com a divindade. Todo esse ritual no trânsito do
corpo físico ao corpo divinizado evolui de maneira muito natural, sem
nenhum constrangimento de qualquer natureza, principalmente através
do fator tempo. A expressividade corporal e musical unidas pelo desejo
da corporificação é de forma tão intensa que, aparentemente, a perfor-
mance do corpo do filho de santo não demonstra nenhum sentimento
de cansaço e este pode ficar em cena por muitas horas seguidas, duran-
te um ritual ou cerimônia do candomblé. Aliado ao holismo, o corpo
apresenta também outra singularidade estética muito comum em nossas
manifestações negro-brasileiras, como o maracatu, o samba, o capoeira
e outras. Trata-se da polirritmia das músicas e canções.

Polirritmia ou múltiplos ritmos


Quando se observa a dança e a música dos Orixás, fica evidente que
a performance do corpo reage de maneira nada comum aos padrões da
dança contemporânea, justamente por ser uma performance étnica/cultural,
que tem por função a união com a divindade. Assim, ela se torna uma
performance singular, mostrando que a forma de dançar integrada aos
ritmos, que são executados principalmente através dos toques dos três
atabaques – rum (o maior), rupi (médio) e lê (o menor) −, se diferencia de
forma visível de outras performances de dança e de música. Sob a forma
sobreposta na fusão dos ritmos percussivos, as canções se desenvolvem

· 196
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

de acordo com a atmosfera criada no barracão3 (arrumação das cadeiras


principais, decoração de figuras simbólicas nas paredes, de laços, enfei-
tando os atabaques e outras), e também com a preparação dos religio-
sos em rituais sagrados que antecedem a festa pública. Dentro de uma
mesma estrutura sonora, incluindo contratempos e acentos, os ritmos na
música do candomblé são percussivos e o seu aprendizado não segue os
padrões da música erudita, muito pelo contrário, a percussão “trabalha
principalmente com a exploração do som e com a improvisação” (Goli,
2000, p. 271).
A expressividade da música também se harmoniza com as qualidades
personificadas dos Orixás, as quais o filho de santo corporifica para
homenageá-los e referenciá-los durante a festa pública. As letras das
canções se configuram como meio de comunicação com os Orixás,
como diz o Alabé4 Alfredinho (Alfredo Filho, 1992 apud Martins, 2008,
p. 98), “as canções são cantadas em ioruba arcaico, são relacionadas com
a história, as crenças, qualidades, virtudes e os erros cometidos pelos
Orixás no passado. O meio de comunicação são os toques. É como se
os atabaques estivessem conversando com os Orixás”.
Na polirritmia da música, o número de canções e toques dos atabaques
varia de acordo com o arquétipo dos Orixás e a disposição física do filho
de santo. Porém, há uma “ordem temporal”, como diz a etnomusicóloga
Lühning (1990 apud Martins, 2008, p. 99):

As cantigas que são cantadas no xirê5 e dançadas pelos filhos


de santo (enquanto não há manifestação dos Orixás);

3 Barracão é a sala principal da casa de candomblé, onde são realizados rituais


sagrados e a festa pública.
4 Alabés é o título dado aos religiosos que lideram a orquestra dos instrumentos.
5 Xirê é o momento inicial do ritual sagrado na festa pública quando todos os
religiosos se agrupam em círculo no barracão para dar início ao ritual de corpo-
rificação com os Orixás, conhecida como “a dança da roda”.

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As cantigas para chamar o santo, que o obrigam a vir (trata-se


de um tipo de cantiga de fundamento especial);
A “primeira de dar rum” para o Orixá se apresentar e ser
saudado;
A cantiga para a entrada dos Orixás vestidos, em conjunto
com a sequência de três cantigas de saudação;
Cantigas de fundamento, que têm o poder de fazer com que
os outros Orixás se apresentem;
“Cantigas de maló”, para despedida dos Orixás.

Nessa performance, a música percussiva da dança dos Orixás enfatiza os


diferentes ritmos para diferentes movimentos e gestos do corpo através
dessa forma de sobreposição, ou seja, a polirritmia promove meios de
articular o corpo de forma mais complexa do que seria possível numa
expressão ordinária comum. “São vários músculos do corpo que reagem
diferentemente aos ritmos dos instrumentos”, como explica Thompson
(1974 apud Martins, 2008, p. 118). Um bom exemplo ilustrativo obser-
vado por mim foi o movimento do corpo quando referencia o Orixá,
conhecido como jiká ou giká dos ombros: numa dinâmica de sucessivos
movimentos sobrepostos, o corpo todo se estremece, locomovendo-se
mediante aos giros rápidos, aparentemente, sem muito senso de direção e
com movimentos incontroláveis dos braços e da cabeça. Então, quando
o corpo para, assume uma posição invariável, na qual os pés, em posição
paralela, ficam firmes planados e em contato direto com o chão; enquanto
isso, os joelhos estão semiflexionados e daí o corpo todo balança de um
lado para o outro, como se fosse um pêndulo. As mãos são colocadas para
trás e em cima dos quadris com o pescoço relaxado, o que faz com que a
cabeça fique pendulada para frente e para um dos lados do tronco, e, ao
mesmo tempo, ambos os ombros vibram em determinados toques dos

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

atabaques. Este movimento sutilmente vibratório vindo da articulação


dos ombros é identificado pelo filho de santo como um sinal de que o
Orixá está contente: “quanto mais rápido for esse movimento, mais
o Orixá está alegre e feliz”, pronunciou Janail Peixoto, filha de Yemanjá
Ogunté, da casa de Mãe Nini, em entrevista (1995).
Por fim, o terceiro pilar – o policentrismo vem se juntar à polirritmia;
ambos estão integrados ao todo coreográfico da performance, compondo,
assim, o universo mítico do comportamento social/cultural e religioso
do filho de santo.

Policentrismo
Com relação ao policentrismo, observa-se que a performance do corpo
em movimento se expande no tempo e no espaço, isto é, o corpo não se
locomove de um ponto fixo “A” para o ponto fixo “B”, como podemos
observar em muitas coreografias de dança contemporânea ou do balé
clássico. Em todos os rituais de dança e música que antecedem a corpori-
ficação com o Orixá, ou seja, no ritual do xirê, o corpo estará sempre em
movimento, executando gestos e se locomovendo em círculo, no sentido
anti-horário, o que significa o retorno aos antepassados ancestrais. No
xirê, os religiosos seguem a sequência hierárquica de apresentação de
cada Orixá que pertence ao panteão mitológico negro-africano. Através
da repetição, os gestos e movimentos são assimilados de forma sutil
por meio de introjeção de imagens sobre o arquétipo do Orixá numa
aprendizagem longa e silenciosa.
Aliado à polirritmia, o policentrismo se caracteriza também pela
sobreposição de centros de força dos movimentos do corpo, que se
expandem no espaço seguindo determinados ritmos, os quais, por sua
vez, são fixados por um determinado período de tempo na execução.

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Não há uma regra racional rígida, o que acontece é que esses movimen-
tos são produzidos de acordo com o desejo, a disposição emocional e a
resistência física do filho de santo, a qual pode se prolongar por minutos
ou horas seguidas para alcançar o seu objetivo principal: a corporificação
com o Orixá. Nesse processo de aprendizagem, a improvisação auxilia
de forma fundamental para que o aprendiz, ou melhor, o iniciado na
religião, desenvolva a sua própria corporalidade, com base em estímulos
dados pelos mais velhos desde história até os ritmos e movimentos para
quem dança o Orixá.
Assim, baseado no estímulo dos toques dos atabaques, o corpo se
locomove, simultaneamente, pelo barracão, e, ao mesmo tempo, emol-
dura o desenho espacial através dos ritmos percussivos dos atabaques,
sem, contudo, fixar códigos de movimento. Segundo Thompson (1974
apud Martins, 1995, p. 139, tradução nossa), “para os povos africanos,
a dança é definida como intrínseca e especial, construída por sobrepo-
sições de padrões”. Estes padrões se agrupam um por cima do outro e
se entrelaçam em uma só “unidade dinâmica”.
Além disso, o policentrismo está relacionado também com o impulso
que pode ser iniciado de várias partes do corpo como um centro de força
e energia. Estes centros, então, se dilatam, se expandem, fazendo com
que o corpo se locomova em várias direções no espaço, sem, todavia, se
preocupar em fixar determinadas linhas na sua interpretação. O movi-
mento é livre de padrões pré-determinados, embora cada coreografia de
cada Orixá tenha a sua própria composição de movimentos e de ritmos,
de acordo com o arquétipo dele. Para o espectador, é muito interessante
observar este corpo em movimento no espaço do barracão, numa casa
de candomblé, quando o objetivo é alcançado, porque é um momento
de muita excitação, alegria e concentração. Aparentemente, o filho de
santo está com seus olhos meio fechados quando está corporificado

· 200
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

com o Orixá, mas ele (o corpo) não se esbarra em nenhum objeto ou


pessoa, e nem perde a noção de equilíbrio no espaço percorrido pelo
filho de santo. O corpo em movimento e a sua concentração ganham
determinada dimensionalidade tão exuberante, que se intensifica ao
longo da duração do tempo do ritual.
Observa-se que o vocabulário de movimentos dialoga com as par-
tes do corpo de forma democrática e igualitária, alicerçado na coluna
vertebral. Esta está sempre a mover-se e é o centro gerador de pos­
sibilidades de movimentos diferentes, em coordenação com o mover-se
de outras partes do corpo de forma sobreposta e simultânea, ou como
diz Gottschild (2014, tradução nossa), “uma parte do corpo é acionada
contra outra e os movimentos podem originar-se simultaneamente de
mais de um ponto focal (por exemplo, da cabeça e da pélvis)”. Enfim,
Welsh (apud Martins, 1995) revela que a polirritmia e o policentrismo
se combinam no momento da performance do corpo para quem dança o
Orixá, “de fato, o ritmo executa determinados toques e o corpo realiza
o movimento total, enquanto as outras partes do corpo podem executar
qualidades diferentes de movimento” (Martins, 1995, p. 139, tradução
nossa). Ela continua, exemplificando que “a cabeça e as mãos podem
executar movimentos vibratórios e, ao mesmo tempo, circulares, enquanto
a pélvis contrai-se, desdobrando o ritmo e os pés marcando o metro
do tempo” (1995, p. 139, tradução nossa). Já Thompson (1974, p. 16,
tradução nossa) diz que “em termos de ideais, a polirritmia na dança
promove meios de articular o corpo humano de forma mais complexa
do que seria possível numa expressão ordinária”.
Ressalto que a combinação complexa desses três pilares estruturais e
fundamentais que compõem a performance do corpo de quem dança o Orixá
exige dele um desenvolvimento de habilidades físicas como, por exemplo,
agilidade na coordenação motora, flexibilidade dos próprios músculos,

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resistência óssea aliada à resistência física, que por sua vez, está em pleno
desenvolvimento cognitivo sobre os conhecimentos e fundamentos reli-
giosos sobre os Orixás. Através da improvisação, ao longo desse processo,
o corpo assimila também sonoridades diferentes dos instrumentos da
música percussiva através da observação in loco e da repetição, ou seja,
na performance do filho de santo nesse processo de corporificação com a
divindade, o seu corpo executa movimentos nada ordinários ao seu coti-
diano, desenvolvendo habilidades nada comum aos padrões estéticos de
outras performances. É como diz Thompson (1974, p. 42, tradução nossa),
“parece que os negros africanos não possuem ossos”.
De fato, a expressividade do corpo se altera de tal forma que provoca
grande efeito visual e impressiona pelo volume de elementos que compõe
essa manifestação espetacular. Aliás, é interessante registrar que o corpo
reage independentemente de faixa etária ou gênero. Em uma das minhas
observações, na casa de Candomblé Ilê Axé Opô Afonjá de Mãe Stella
de Oxossi, tive a oportunidade de apreciar uma senhora com cerca de 80
anos de idade corporificada em Yemanjá Ogunté dançando com tanta
vitalidade que parecia aparentar uma jovem mulher! Nessa mesma casa,
observei também um rapaz jovem corporificado em Oxum, dançando
com tanta graciosidade na sua expressão corporal que parecia ser uma
jovem moça!
Para o candomblé, portanto, todos são bem vindos, independente
de gênero, deficiência, faixa etária e posição social, e ele se distingue de
outras religiões justamente por essa atitude diferenciada em respeito à
Natureza e seus elementos terra, ar, fogo e água e aos seres humanos.

· 202
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Palavras conclusivas
O candomblé emergiu da confluência de várias etnias africanas e é
resultado da mistura e fusão de elementos interculturais, oriundos de
matrizes ibéricas, africanas e indígenas. O que começou como resistência
à perversa situação escravagista que sofreram os negros africanos no
Brasil se tornou uma das manifestações espirituais das mais significativas
na formação da sociedade brasileira.
Porém, a matriz negro-africana predomina nos rituais do candomblé
em que o corpo do filho de santo, neste trânsito entre a ação física e o
desejo de corporificar-se com a divindade ancestral, se modifica de acordo
com os fundamentos religiosos e o arquétipo do Orixá. O corpo se altera
visivelmente quando está em cena. Atraída e encantada com a performance
do filho de santo nesse processo de corporificação com o Orixá, apurei
meu olhar de dançarina e pesquisadora em dança. Realmente, o fascínio
em observar este corpo em ação, executando movimentos e ritmos de
maneira tranquila, serena, mas ao mesmo tempo tão vital, levou-me a
mergulhar nesse universo complexo de pesquisa. Na diversidade cultu-
ral baiana, o candomblé é uma das manifestações espirituais das mais
significativas da cultura brasileira, uma vez que o candomblé se tornou a
principal matriz estética, cultural e religiosa, que favoreceu o surgimento
de outras manifestações, como o samba, o maculelê e a capoeira, entre
outras, e como diz Bião (2000, p. 15), essas manifestações são “filhas da
mesma mãe”. Pode-se dizer que esses três pilares estão também inseridos
em outras manifestações brasileiras de herança negro-africanas, como a
capoeira, o samba de roda, o maculelê e outras.
Justamente por esse motivo de confrontos étnicos entre os negros
africanos, os colonialistas europeus e as etnias indígenas, é que o can-
domblé sobreviveu e sobrevive até os dias atuais, resistindo contra a

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discriminação étnica e as ações da intolerância religiosa. Assim se deu, de


modo geral, o processo intercultural através dessa dinâmica. A tradicional
comunicação oral foi responsável para a instauração do processo inter-
cultural do candomblé na cultura baiana, do ponto de vista comunitário.
Como disse anteriormente, ao me aproximar da casa de Mãe Nini,
tornei-me uma pessoa mais educada, controlando a minha ansiedade
através do tempo – fator imensurável no candomblé. Tempo, além de
ser uma divindade, é fator que não pode ser medido pelo pensamento
cartesiano e de forma ordinária do relógio. Tudo leva a crer que o tempo
é o fator primordial para a realização dos eventos de acordo com os
fundamentos da religião. O tempo está relacionado com a ancestralidade
divina, respeitando os desejos dos Orixás e as orientações da líder da
comunidade, a Mãe de santo, conhecida também por Iyalorixá, ou do Pai de
santo, conhecido também por Babalorixá. Durante o desenvolvimento da
pesquisa de campo, um dos meus aprendizados foi que passei a valorizar
o passado, entender o presente e aspirar ao futuro, como mencionou o
escritor africano Ngugi wa Thiong’o, “desse modo, o passado torna-se
nossa fonte de inspiração, o presente, uma arena de respiração; e o futuro,
a nossa aspiração coletiva” (Martins, 1997, p. 139).
Autores norte-americanos facilitaram minha compreensão sobre a
natureza dessa performance, a qual traz elementos simbólicos e culturais
de grupos étnicos negro-africanos, como os estudos sobre dança étnica
de Hanna (1970 apud Martins, 2008, p. 110), quem afirma que

a dança é um comportamento humano composta de padrões


não-verbais de movimentos e gestos, propositalmente, ritmi-
camente e culturalmente elaborados na sociedade na qual ela
está envolvida: são atividades motoras ordinárias. Inspiradas
por estímulos selecionados vindos do ambiente social e do

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

interno psicológico das pessoas, a dança traduz essas atividades


em expressão significativa através da manipulação artística do
movimento.

Hanna, então, explica que “essas expressões em que a dança é criada


por valores, atitudes e crenças das pessoas que a atribuem como ‘anfitriã’
da sociedade” (Hanna, 1970 apud Martins 2008, p. 110). Estas reflexões
de Hanna corroboraram com minhas observações de que tanto a música
quanto a dança nos rituais do candomblé estão intrinsecamente unidas e
diretamente integradas ao fenômeno religioso propriamente dito. Uma
vez que essas expressões artísticas são essenciais para evocar os Orixás
nesse processo de corporificação, consequentemente, a performance do
corpo se modifica de acordo com a história, lendas e o arquétipo
do Orixá. A compreensão dos três pilares que estruturam esta performance
do corpo – o holismo, a polirritmia e o policentrismo – apresentados
por Thompson (1974) e Welsh (1985) foram fundamentais para esta
análise e descrição do fenômeno de corporificação.

Referências
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Jagun ou casa de Mãe Nini no bairro Alto de Coutos, Salvador, Bahia,
1992 apud MARTINS, Suzana. A dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva
estética do corpo. Salvador: EGBA, 2008.
BIÃO, Armindo. Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade. In:
BIÃO, Armindo et al. (org.). Temas em Contemporaneidade, Imaginário e
Teatralidade. São Paulo: Annablume, 2000.
GOLI, Guerreiro. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador.
São Paulo: Ed. 34, 2000.

205 ·
COLEÇÃO PESQUISA | ROBSON CORRÊA DE CAMARGO | JOANA ABREU |
MORGANA BARBOSA GOMES (MORGANA POIESIS) | MURILO BERARDO BUENO

GOTTSCHILD, Dixon Brenda. Researching Performance: The Black dancing


body as a measure of culture. Palestra realizada na abertura do Colóquio
Internacional de Matrizes Negro-Africanas Brasileiras e Educação no
Teatro Martim Gonçalves, Escola de Teatro da Universidade Federal
da Bahia, Salvador, Bahia. 13 de out. 2014.
HANNA, Judith Lynne. Anthropology and dance. CORD Research
Annual VI. n. 15. Tucson: Ed. Tamara Comstock, University of
Arizona, 1970 apud MARTINS, Suzana. A dança de Yemanjá Ogunté
sob a perspectiva estética do corpo. Salvador: EGBA, 2008.
LIMA, Fabio. O corpo e ancestralidade. Repertório Teatro & Dança:
revista do programa de pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA.
Salvador, n. 24, ano 18, 2014.
LÜHNING, Ângela. Música: coração do candomblé. Revista USP, n. 7,
set./nov. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1990 apud MARTINS,
Suzana. A dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética do corpo. Salvador:
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MARTINS, Leda. Afrografias da memória: o reinado do Rosário no
Jotobá. São Paulo: Perspectiva, 1997.
MARTINS, Leda. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI,
Graciela; ARBEX, Márcia (org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias
territoriais e textuais. Belo Horizonte: Departamento de Letras
Românticas Faculdade de Letras, UFMG, 2002.
MARTINS, Suzana. A Study of the dance of Yemanjá in the ritual ceremonies
of the Candomblé of Bahia. Thesis (Doctoral) – Temple University,
Philadelphia, Pennsylvania, 1995.
MARTINS, Suzana. A dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética
do corpo. Salvador: EGBA, 2008.

· 206
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

MORGAN, Clyde W. Entrevista concedida na Universidade de


Brockport, Nova York, EUA, 1995 apud MARTINS, Suzana. A dança
de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética do corpo. Salvador: EGBA, 2008.
PEIXOTO, Janail. Entrevista concedida na casa Ilê Axé Jagun, no
bairro Alto de Coutos, Salvador, Bahia, 1995.
SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. London:
Routledge, 2002.
THOMPSON, Robert. African Art in Motion: Icon and Act and Motion.
Los Angeles: University of California, 1974 apud MARTINS, Suzana.
A dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética do corpo. Salvador:
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WELSH, Kariamu. Commonalities in African dance: an aesthetics
foundation. In: ASANTE, Molefi Kete; ASANTE, Kariamu Welsh.
African cultures: rhythms of unity. New Haven, CT: Greenwood, 1985
apud MARTINS, Suzana. A Study of the dance of Yemanjá in the ritual
ceremonies of the Candomblé of Bahia. Thesis (Doctoral) – Temple
University, Philadelphia, Pennsylvania, 1995.

207 ·
AS PERFORMANCES NA RÁDIO XIBÉ E
A METÁFORA DO ESPECTRO1

GUILHERME GITAHY DE FIGUEIREDO

Resumo: Este trabalho é um resumo crítico sobre a tese de dou-


torado do autor, que traz uma etnografia dialógica da rádio Xibé,
rádio livre que atua na Amazônia desde 2006. O texto aborda a
trajetória das performances do pesquisador; a formulação de uma
antropologia dialógica da mídia inspirada nas teorias pós-coloniais e
na antropologia do colonialismo; a elaboração de um conceito de per-
formance que ajuda a pensar a resistência nas práticas e narrativas dos
participantes da rádio Xibé; a tecedura de uma narrativa polifônica da
história da Xibé que permitiu a invenção do conceito de “espectro”
para se pensar a combinação das performances de diferentes sujeitos; a
etnografia virtual das relações e percepções sobre a rádio por parte
de militantes que interagiram com ela à distância pela internet; e,
à luz de todos esses resultados, trata, por fim, da revisão crítica da
história do rádio e da importância dessa tecnologia nas lutas con-
temporâneas por autonomia.
Palavras-chave: Amazônia. Rádio livre. Autonomia. Performance.

1 Nova versão do texto publicado na Revista Somanlu, v. 17, n. 2, 2017. Agradeço


a colaboração de Suellen Freire, Joseani Reinheimer e dos organizadores do livro
na revisão.
COLEÇÃO PESQUISA | ROBSON CORRÊA DE CAMARGO | JOANA ABREU |
MORGANA BARBOSA GOMES (MORGANA POIESIS) | MURILO BERARDO BUENO

Este trabalho é um resumo crítico2 da tese de doutorado3 do autor,


defendida em 2015, que traz uma etnografia dialógica com participantes
da rádio Xibé de Tefé, Amazonas. O estudo cobre o período que começa
em 2004, quando surgiu coletivo Curupira de rádio livre na cidade; passa
por 2006, quando teve início o Centro de Mídia Independente de Tefé
(CMI-Tefé) que levou ao ar a rádio Xibé no campus da Universidade
do Estado do Amazonas e em oficinas realizadas em bairros, escolas,
comunidades e aldeias; e segue até 2007, quando a rádio perdeu o espa-
ço que tinha na universidade, mas acentuou o seu envolvimento com
movimentos sociais para a realização de oficinas. Foi feita, além disso, a
etnografia virtual dos movimentos em rede nos quais a Xibé se conec-
tava usando a internet. O maior desafio foi tecer uma história polifônica
com base nas narrativas dos participantes da rádio e de integrantes das
redes a que ela esteve conectada. Os conceitos de “performance” e “estilo”
foram lapidados para historicizar as perspectivas dos protagonistas e, ao
mesmo tempo, sublinhar a criatividade que os constitui como sujeitos
na história, ao passo que o conceito de “espectro” foi elaborado para
se pensar a combinação entre as diferentes performances. Como também
sou participante da rádio, o exame de minhas performances não só como
pesquisador e ativista foi necessário para a explicitação das condições
de realização da pesquisa.

Trajetória do pesquisador
De 1996 a 2006 pesquisei o Exército Zapatista de Libertação Nacional
(EZLN), do México, através de iniciação científica, mestrado e depois já

2 Não é uma síntese, mas uma reflexão sobre a tese que transcende as conclusões
originais.
3 A tese Inventando autonomias no Médio Solimões: uma etnografia dialógica da
rádio Xibé e suas redes foi desenvolvida no Museu Nacional da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro, com orientação de João Pacheco de Oliveira.

· 210
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

como professor universitário (Figueiredo, 2006). O interesse no EZLN


começou por sua promoção da participação popular em processos de
autonomia comunitária, municipal e regional, nos movimentos da sociedade
civil em escala nacional e nas redes ativistas horizontais do movimento
global anticapitalista. A pesquisa sobre a estratégia do EZLN me levou
a concluir que, para pensar caminhos de radicalização da democracia, a
ideia de “participação”, que tem o indivíduo como referência, não é tão
fecunda quanto a de “comunicação” como forma de tecer a vida coletiva
e enlaçar sujeitos diversos na história, construindo “um mundo onde cai-
bam muitos mundos”. Inspirado neste aprendizado, entrei no movimento
brasileiro de rádios livres em 1999. Comecei na rádio Muda de Campinas
(SP), realizando programas experimentais de arte e política. Também
aprendi na pesquisa que o Ocidente não inventou a democracia, pois os
povos indígenas possuem experiências e saberes democráticos milenares,
e que a liberdade não é ruptura, e sim reinvenção com base na memória.
Como minha família por parte de pai é da Amazônia, foi natural que esses
aprendizados aumentassem o meu interesse por esta região.
Em 2004 surgiu a oportunidade de trabalhar em Tefé, então migrei
com a intenção de me estabelecer e logo me apaixonei pela cidade. No
começo, projetei4 (Todorov, 1999) no meu novo lar a visão romântica
de que seria um lugar recuado no tempo, com uma presença menos
intensa da exploração e dominação capitalistas e com um potencial
de resistência semelhante ao zapatista. Além de trabalhar no Instituto

4 Ao analisar as representações de Colombo e seus homens na conquista da Amé-


rica, Tzvetan Todorov ([1982]1999) elabora os conceitos de “egocentrismo” e
“projeção”. Egocentrismo é a ilusão de que os valores e representações europeias
seriam universais, de modo que, ao chegar na América, europeus como Colombo
projetam a sua visão de mundo ao construir narrativas da natureza e dos indí-
genas. Tal análise tem como contraponto a figura de Cortez, que é o relativista
capaz de se valer de tradutores para compreender o ponto de vista indígena,
usando isso a seu favor nas estratégias militares que lhe garantiram a vitória na
conquista.

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de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), uma organização


ambientalista, e depois na Universidade do Estado do Amazonas, ajudei
a começar o coletivo Curupira de rádio livre (que depois se tornaria a
rádio Xibé), em uma situação na qual já haviam outras experiências de
comunicação alternativa sendo facilitadas pela Igreja Católica, o IDSM
e a juventude skatista e roqueira. Dessas experiências anteriores vieram
sujeitos importantes para a formação e história da rádio Xibé. Como
veremos a seguir, a pesquisa me ajudou a superar a fase romântica e
seguir a caminhada com os “pés no chão”.5

Partindo de categorias ao mesmo


tempo teóricas e nativas
O movimento de rádios livres sempre contou com a participação de
intelectuais; entre eles, Félix Guattari (1930-1992), que ajudou a divulgá-lo
em vários países. Entre 1979 e 1992, pouco antes de falecer, ele esteve
no Brasil sete vezes e, particularmente em 1986, escreveu o prefácio para
a obra Rádios livres: reforma agrária no ar, de Arlindo Machado, Caio Magri
e Marcelo Masagão. Os autores eram militantes da rádio livre Xilik da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pioneiros do
movimento de rádios livres no Brasil. Gilles Deleuze e Guattari, em Mil
platôs: capitalismo e esquizofrenia ([1980]1995), e o movimento autonomista
dos anos 1970 e 1980 na Europa deixaram conceitos importantes para

5 A expressão “pés no chão” aponta para uma noção popular de “realismo”, mas
também remete à ideia da Teologia da Libertação, de se trabalhar junto e em
diálogo com grupos populares, um dos elementos formadores do movimento
zapatista.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

o atual movimento de rádios livres,6 tais como “desejo” e “rizoma”. A


ideia de comunicação dialógica defendida por Guattari era mais antiga,
remetendo ao trabalho dos marxistas Bertolt Brecht de A teoria do rádio
([1927-1932]1981); Walter Benjamin, que escreveu O autor como produtor
([1934]1994); e Hans Magnus Enzensberguer, com Elementos para uma
teoria dos meios de comunicação ([1970]1979).
Como participante e pesquisador do movimento de rádios livres, era
inevitável que eu partisse dessas categorias ao mesmo tempo nativas e
teóricas. Isso trouxe um duplo obstáculo: se já é difícil para um pesqui-
sador nativo se distanciar das categorias que utiliza em sua vida cotidiana
para refletir sobre elas, o desafio pode ser ainda maior quando as teorias
acadêmicas que usa também remetem àquele mesmo cotidiano. Por outro
lado, o curso de doutorado me facilitou o estudo de teorias pós-coloniais
e da antropologia do colonialismo. Ao explorar as tensões existentes
entre esses campos teóricos heterogêneos, foi possível desenhar duas
estratégias para a desnaturalização do meu ponto de vista inicial.
A primeira foi a proposta de uma antropologia dialógica da mídia. O
campo da antropologia da mídia começou a se consolidar internacio-
nalmente no começo dos anos 2000, quando foram publicadas diversas
coletâneas. No Brasil, tivemos o lançamento de Antropologia e Comunicação
de Isabel Travancas e Patrícia Farias (2003). Apesar disso, o campo tem

6 Nos anos 1980 não era comum no Brasil o nome “rádio comunitária”, e as várias
correntes de luta pela democratização do rádio usavam a expressão “rádio livre”.
Como ela passou a incluir inúmeras rádios clandestinas comerciais e de prose-
litismo partidário ou religioso, o conceito de “comunitária” foi introduzido por
grupos que pretendiam uma distinção mais clara das experiências com compro-
misso democrático e popular e que lutavam por sua legalização. Foi criada a lei
nº 9.612/1998 das rádios comunitárias e, com o tempo, essa expressão também
se banalizou. Nunca deixou de existir, porém, um movimento de rádios livres
que se manteve fiel às ideias e práticas libertárias inspiradas na experiência da
rádio Alice, da Itália dos anos de 1970, e que foram internacionalmente divulga-
das por Guattari. Após o levante zapatista de 1994, esse movimento iniciou uma
nova fase de expansão em vários países, inclusive no Brasil.

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encontrado dificuldade para se consolidar na antropologia brasileira


porque os mecanismos da carreira acadêmica levam os seus pesquisa-
dores a migrar para outros campos já estabelecidos (Isabel Travancas.
Entrevista, 16 out. 2014). Uma das riquezas da antropologia da mídia é
que ela está sendo formada com base em diferentes tradições teóricas
da antropologia e de áreas afins. A ideia de propor uma antropologia
dialógica da mídia consiste em levar, para ela, a contribuição da antro-
pologia do colonialismo e demais teorias pós-coloniais.
Gayatri Spivak, de Pode o subalterno falar? ([1985]2012), ajudou a trazer
para a pesquisa a primeira tensão importante em relação ao pensamento
de Deleuze e Guattari. A autora argumenta que o pensamento desses
filósofos impede a utilização de conceitos de origem marxista como
“ideologia” e “interesse”, pois formula uma teoria do desejo imanente
na qual parece que os sujeitos sempre podem se expressar. Ela afirma
que, nas relações de dominação, a ideologia dominante fornece molduras
com as quais o subalterno precisa lidar para conseguir se fazer ouvir.
Um exemplo cruel é a situação das mulheres indianas que encontram-se
no fogo cruzado entre a tradição patriarcal e um colonialismo que usa
ideias feministas para atestar a superioridade moral do Ocidente: se elas
criticam o machismo em sua sociedade, acabam por se tornar úteis aos
“homens brancos salvando mulheres de pele escura de homens de pele
escura” (Spivak, 2012, p. 122), se atacam o colonialismo, suas ideias
podem ser capturadas para reforçar o machismo das tradições.
Como escapar a este impasse? Spivak (2012) traz a solução de Derrida:
para permitir a expressão do outro, é preciso fazer delirar o outro que
existe dentro de nós. Quanto ao sujeito que procura se expressar, a tática
mais bem sucedida é a expressão que joga com as ambiguidades, operando
deslocamentos de sentido e dificultando o enquadramento por moldu-
ras dominantes. A autora dá o exemplo de Bhuvaneswari Bhaduri, uma

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

adolescente com 16 ou 17 anos que enforcou-se em 1926 em Calcutá.


Ela fazia parte da luta armada pela independência e recebeu a missão de
cometer um assassinato político. Como não foi capaz de realizar a tarefa,
mas não queria trair a confiança nela depositada, se matou. Na época,
os suicídios femininos eram entendidos como casos de gravidez ilícita,
então a jovem esperou chegar a sua menstruação para consumar o ato.
Ela conseguiu, assim, produzir efeitos de perplexidade, que tornaram
possíveis as interpretações do seu ato para além da ideologia dominante.
Na tese, esta tensão entre expressão e ideologia foi trabalhada através
dos conceitos de performance e estilo, que detalharemos mais adiante.
O conceito de “escola do povo” de Frantz Fanon, presente em Os
condenados da terra ([1961]2005), foi importante para a análise de minha
trajetória como militante, pesquisador e educador. O autor afirma que
a burguesia das colônias africanas se desenvolveu não por esforço pró-
prio, mas servindo às metrópoles e por isso imita o seu pensamento e
instituições. No começo da luta de libertação nacional, essa burguesia
apoiou o diálogo com os colonizadores. Quando a independência foi
conquistada, formou regimes autoritários, policiais, apoiando-se em líde-
res populistas e partidos sem participação popular. Os seus intelectuais,
formados na cultura metropolitana, eram incapazes de dialogar com o
povo e faziam da erudição um instrumento de poder e a prova de que
as massas deviam ser dirigidas. Porém, durante a guerra de libertação
nacional, uma parte desses intelectuais precisou fugir da repressão e se
refugiar nas comunidades camponesas. Ali, aprendeu a dialogar com o
povo ao participar das suas lutas e perdeu o interesse na cultura ocidental,
que pouco tinha a contribuir com “o combate concreto no qual o povo
se engajou” (Fanon, 2005, p. 64). Surgiu assim a “escola do povo”: nas
assembleias do movimento de libertação, os intelectuais aprendiam a
cultura popular e ensinavam os seus saberes eruditos, e era o diálogo

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voltado à ação que se encarregava de filtrar e ressignificar esses saberes


na produção da “cultura nacional”.

A cultura para a qual se inclina o intelectual é, muitas vezes,


apenas um estoque de particularismos. Querendo colar-se ao
povo, cola-se ao revestimento visível. Ora, esse revestimento
é somente um reflexo de uma vida subterrânea, densa, em
perpétua renovação. Essa objetividade que entra pelos olhos
e que parece caracterizar o povo, é apenas, na verdade, o resul-
tado inerte e já negado de adaptações múltiplas e nem sempre
coerentes de uma substância mais fundamental que, esta sim,
está em plena renovação. (Fanon, 2005, p. 257).

A analogia da escola do povo com a minha trajetória deve-se ao fato


de que a mudança para Tefé em 2004 ocorreu inspirada no exemplo
do EZLN, que foi formado inicialmente por jovens urbanos que se
mudaram para a Selva Lacandona para formar um foco guerrilheiro. As
narrativas da guerrilha afirmam que a intenção era recrutar camponeses
para a luta armada, mas aconteceu o contrário: foram os povos indígenas
que converteram os intelectuais militantes da cidade para a sua cultura
e as suas lutas. De modo análogo, vim a Tefé para fazer dela um novo
lar, me engajar na luta por comunicação livre na região e aprender as
memórias, saberes e formas de resistência da região.
A construção de uma etnografia dialógica se inspirou, principalmente,
na obra de Johannes Fabian, sobretudo o clássico The time and the other:
how anthropology makes its object (1983). Em um texto escrito originalmente
em 1971, Fabian (1996) defende a ideia de que o que fundamenta a pro-
dução do conhecimento não é a teoria ou a coleta consistente de dados,
mas o diálogo intersubjetivo. O autor (1983) afirma que a temporalidade
presente nas ciências humanas ocidentais é marcada pela reprodução da
ideia bíblica do tempo como sequência de eventos que acontecem com o

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

“povo escolhido”. Daí surgiram as teorias históricas lineares e divididas


em fases, nas quais os povos ocidentais figuram como os mais evoluídos.
Embora a antropologia tenha nascido da crítica de algumas formas do
pensamento evolucionista e se empenhado em metodologias de pesquisa
sincrônicas, ela reproduz a temporalidade bíblica quando transforma as
fases superiores e inferiores da história linear em uma distribuição espacial
aparentemente sincrônica, mas que mantém a noção de superioridade e
inferioridade entre culturas. A dicotomia entre a temporalidade do pes-
quisador, que se considera membro de uma cultura mais complexa, e a
dos seus interlocutores, a quem atribui um caráter primitivo ou menos
evoluído, limita perigosamente a capacidade de diálogo e a objetividade
na produção antropológica. Segundo Fabian (1983, 2001), as viagens
etnográficas propiciam diálogos fecundos, mas estes acabam sendo
subordinados ao debate entre pesquisadores ocidentais, que acontece
na análise e na produção teórica. É necessário, portanto, desconstruir
a defasagem temporal entre o pesquisador e seus interlocutores, bem
como criar técnicas para que estes participem da análise e da produção
teórica. Além disso, é necessário que as condições concretas em que
acontece o diálogo sejam objeto de descrições e análise crítica (Fabian,
2008). O resultado foi a construção da proposta de realização de uma
etnografia dialógica da rádio Xibé.
A segunda estratégia para desnaturalizar a minha perspectiva inicial
como pesquisador foi desenvolver os conceitos de performance e estilo.
Essa abordagem teve início em 2004, quando comecei a utilizar a obra
A invenção do cotidiano ([1980]2003) de Michel de Certeau. O interesse
no livro foi despertado quando soube que o Festival Mídia Tática7 tirou
parte do seu nome do conceito de “tática” do autor. “Tática” é uma das

7 O Mídia Tática foi um festival que reunia inúmeras experiências de arte e ativis-
mo midiático. Teve a sua edição brasileira realizada em 2003.

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inúmeras expressões usadas por ele para se referir às “artes de fazer”,


“invenção”, “bricolagem”, “apropriação”, “resistência”, “cultura popular”
etc., práticas pelas quais os subalternos da sociedade industrial inventam
novos usos para as tecnologias produzidas pela sociedade dominante,
com base em seus interesses e regras próprias. Esse conceito foi muito
útil nas primeiras pesquisas sobre Tefé8 pois, além de valorizar a criati-
vidade como forma de resistência (algo também enfatizado por zapatis-
tas), ajudava a pensar a transformação social em uma região onde não
há movimentos sociais fortes. Assim, surgiu o interesse por formas de
resistência existentes na vida cotidiana, ponto de partida necessário para
a invenção de maneiras mais elaboradas de luta. Um amadurecimento
importante dessa abordagem se deu com base na leitura do artigo “The
romance of resistance: tracing transformation of power through Bedouin women”, de
Lila Abu-Lughod (1990) que, de modo análogo à Spivak (2012), critica o
romantismo dos estudos sobre resistência por acabarem silenciando as
relações de poder nas quais as resistências se colocam. Lendo Foucault,
a autora afirma que há uma relação estreita entre as formas de resistência
e de dominação, por isso uma ajuda a revelar a outra.
Essa forma de análise da resistência tomou uma nova dimensão com
base no estudo de James Ferguson (1999), Judith Butler ([1990]2012),
Richard Bauman e Charles Briggs (1990) e João Pacheco de Oliveira

8 Entre 2004 e 2005, já trabalhando em Tefé, escrevi o meu último artigo impor-
tante sobre o zapatismo e o primeiro com o conceito de performance. O ponto de
partida foi o conceito artístico de performance de Renato Cohen ([1989]2004),
que se refere à redução das fronteiras entre os campos artísticos e entre a arte e
a vida, à criação improvisada e ao vivo, à quebra das convenções artísticas e so-
ciais e ao enfrentamento das mídias hegemônicas através de colagens que abrem
caminhos de linguagens para a reinvenção da existência. Após colocar essa teo-
ria em diálogo com os conceitos de “ação” de Hanna Arendt ([1958]2002), “ação”
de Clifford Geertz ([1973]1989), “bricolagem” de Michel de Certeau ([1980]1994)
e “palavra verdadeira” do EZLN, o artigo formula um conceito de performance
que corresponde a ações que são, ao mesmo tempo, a criação de novas formas
de sociabilidade, expressão singular e comunicação dialógica, em contraposição
à comunicação de massa e à imposição de padrões sociais.

· 218
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

(2008, 2016). Com eles elaborei o conceito de performance como invenção


singular atravessada por estilos. Como afirma Butler (2012), as performances
são feitas de repetição e criação, sendo através dessa última que os esti-
los impostos pela sociedade são desnaturalizados, abrindo-se caminhos
para transformações nas relações de gênero. Ferguson (1999) reelabora
esses conceitos e demonstra que o estilo serve de elo para se analisar
a conexão entre os comportamentos individuais e as ideologias domi-
nantes que estão ligadas às diversas formas de dominação na sociedade.
Bauman e Briggs (1990) postulam, por sua vez, que o contexto com
base no qual devemos interpretar a performance deve ser buscado em sua
própria estética, que fornece o enquadramento ou pressupostos de sua
própria expressão. Nesse sentido, podemos interpretar que a repetição
e a criação presentes em cada performance formam um conjunto que cor­
responde à sua singularidade. A repetição reproduz pressupostos ligados
às ideologias, ao passo que a criação transforma esses pres­supostos.
Além disso, as performances ocorrem nas situações históricas em que
os sujeitos desenvolvem suas estratégias. Pacheco de Oliveira (2016)
afirma que as imagens que circulam na sociedade trazem pressupostos
que orientam as perguntas, ações, expectativas e emoções dos sujeitos.
Ao analisar a gênese e reinvenção das imagens sobre povos indígenas,
demonstra que elas estão associadas às ações, relações e estratégias dos
sujeitos que produzem as imagens em cada “situação histórica”. A análise
das performances dos participantes da rádio Xibé foi feita distinguindo-se
nelas os estilos mobilizados, bem como as formas criativas com que seus
pressupostos são reinventados em uma situação histórica. Essa técnica
foi chave para diferenciar as perspectivas dos sujeitos entre si (inclusive
a minha) e situá-las na história.

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As histórias de vida dos


participantes da rádio Xibé
Na análise das performances, optou-se pela técnica de buscar nas his-
tórias de vida os pressupostos segundo os quais interpretar as demais
performances de cada sujeito. Embora as performances sejam singulares,
elas mobilizam estilos que podem ser comparados, já que estes são
coletivos e muitas vezes ligados às ideologias dominantes. Não só cada
sujeito pode inventar inúmeras performances, como cada performance pode
combinar ilimitados estilos. Por outro lado, não há como o sujeito se
inserir no mundo social sem utilizar e ressignificar os estilos. Gravei um
conjunto de histórias de vida que permitiu, através da análise formal e da
comparação, a indução de alguns desses estilos. Os estilos que aparecem
nessas histórias foram tomados como pressupostos para a interpretação
das perspectivas e criatividade dos sujeitos.
Dei o nome de “trabalho enquanto sacrifício e superação”9 para o
estilo que apareceu com mais frequência. Foi surpreendente detectar a
analogia entre esse estilo e a imagem do trabalho presente no conceito
de alienação de O Capital de Karl Marx ([1867]1987): quando usam esse
estilo, os sujeitos narram uma vida voltada ao trabalho, mas muito pouco
ou nada dizem sobre os seus processos e frutos. O trabalho é apenas o
meio para a sobrevivência e a ascensão social do narrador e sua família.
Um outro estilo que apareceu foi o “consumista”, que desloca o foco
da narrativa para a aquisição de bens industrializados. No entanto, esse
estilo foi usado apenas de forma marginal em alguns relatos, ao lado de
outros estilos que tinham uma presença mais marcante. Também surgiu

9 Na tese, esse estilo tinha o título de “luta por estabilidade e ascensão social”,
mas mudei o nome após desenvolver mais a sua análise no artigo “A rádio Xibé
entre o colonialismo tecnológico e a tecedura de relações de escuta”, de 2018. O
paralelo com a teoria da alienação do trabalho foi feito apenas no artigo.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

o estilo “especialista”, em que as narrativas expressam uma fruição e


identificação maior com o processo e os frutos do trabalho, mas isso
ocorre dentro dos limites da especialidade. O estilo “ativista”, muito
presente na minha própria narrativa de história de vida, coloca a luta
social organizando a narrativa. Ele se aproxima do especialista, pois ten-
de a tratar a luta social como uma espécie de especialidade profissional
com seus jargões e conhecimentos especializados. Outra variação é o
estilo da “liderança comunitária”: se aproxima do especialista por dar
atenção à profissões especializadas e cargos de liderança, mas se difere
por subordinar essas atividades ao serviço às comunidades ou povos de
origem dos narradores.
Finalmente, apareceu com bastante frequência o estilo da “produção
lúdica da vida”, no qual o foco da narrativa são os processos de produção,
experimentação e criação de coisas e relações na vida dos narradores.
Encontramos uma analogia entre as características desse estilo e a ima-
gem do “desejo” apresentada por Guattari em Micropolítica: cartografias
do desejo ([1986]2011). O filósofo recusa a ideia de desejo como “mundo
bruto”, energia ou pulsão indiferenciada, caos que estaria em oposição
à ordem social. Em contraposição a essas concepções, Guattari (2011,
p. 259) afirma que a maior contribuição de Freud foi a revelação da
riqueza simbólica, os “meios de semiotização altamente elaborados”
que correspondem ao mundo do inconsciente manifestado nos sonhos,
loucura, infância ou nas sociedades ditas primitivas. Desejo é produção
e, diante dele, a sociedade não precisa necessariamente impor normas,
ordenar, dirigir e empobrecer a sua criatividade e potência produtiva,
embora seja isto o que acontece na sociedade capitalista.
Outra analogia possível para se pensar esse estilo é com o conceito
de “criação” do livro A instituição imaginária da sociedade de Cornelius
Castoriadis ([1975]1982), que tem origem na “imaginação radical”: a

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produção incessante de fantasias com base na qual o sujeito participa da


invenção de sua individualidade e do mundo social. Esse fluxo criativo
se choca com os demais sujeitos, e é da frustração resultante que nascem
as noções de “outro” e de “sujeito”. A inserção social do sujeito ocorre
através da mediação desses outros sujeitos, por isso o “mundo públi-
co” é o único que pode limitar a imaginação radical. Se originalmente o
prazer está ligado ao absoluto que constitui o sujeito em sua origem, a
socialização o leva a uma nova forma de desejo, que passa a ser “intenção
de modificação no real” (Castoriadis, 1982, p. 358). É, portanto, com a
mediação do “mundo público”, também chamado de “sociedade insti-
tuída”, que o sujeito produz as “sociedades instituintes” e transforma as
coisas e as relações. Se os estilos são coletivos, há entre eles aqueles que
reproduzem mais claramente a sociedade instituída e outros em que a
transformação dela pela imaginação radical produz sociedades instituintes.
Este é o caso do estilo da produção lúdica da vida, que apareceu com
frequência nas narrativas de eventos e fases da vida relacionados com
a participação na rádio e suas atividades. As experiências de rádio livre
facilitam a “imaginação radical” e a “intenção de modificação do real”.

Uma história polifônica da rádio Xibé


Além das histórias de vida, foram produzidas narrativas sobre a expe-
riência dos sujeitos na rádio Xibé. Com elas teci uma narrativa polifônica,
entrelaçando a minha perspectiva com a deles. O resultado não foi uma
bola de cristal para se olhar o passado, já que as narrativas são parte do
processo de invenção de ações e relações que os sujeitos estão vivendo
no presente, mas um diálogo, revelador das formas pelas quais as perfor-
mances da memória fecundam o presente e abrem novas possibilidades
para a ação e a imaginação. A metáfora do “rizoma” influenciou o
planejamento e o processo de redação desta parte do trabalho, o que já

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

seria suficiente para afastar a história da rádio de concepções que natu-


ralizam a comunicação como transmissão linear de mensagens. Porém,
o avanço da redação e da análise levaram à explosão da metáfora do
rizoma, que foi incapaz de dar conta de toda multiplicidade encontrada
nas experiências da Xibé.
A metáfora do rizoma me ajudou a narrar a diversidade de origens e
desdobramentos, bem como a complexidade das conexões e as rupturas.
Porém, mostrou-se limitada nas situações em que a narrativa tece as
perspectivas dos sujeitos sobre experiências comuns. A comparação dos
relatos mostrou que os sujeitos que viveram uma mesma fase da rádio
descrevem-na como se houvesse simultaneamente diferentes hierar-
quias e concepções de liderança ou autoridade, assim como percepções
diversas sobre a composição, tamanho e fronteira que delimita o grupo
de pessoas que formavam o coletivo da rádio (com alguns narradores
excluindo as mulheres ou os professores e às vezes até listando nomes
quase totalmente diferentes de outros narradores). Como é possível
que, na vivência de um mesmo episódio, a hierarquia de uma rádio livre
tenha sido experimentada ao mesmo tempo como horizontal para um
participante e vertical para outro?
Geralmente os pesquisadores conciliam essas discrepâncias estabele-
cendo arbitrariamente a sua versão da história como a objetiva e as demais
como interpretações subjetivas, como se a diversidade de perspectivas
não fosse parte constitutiva da realidade objetiva e dos seus processos
de transformação. Quando se toma a metáfora do rizoma como refe-
rência, sente-se como mais real a perspectiva que corresponde melhor
à horizontalidade complexa que sugere esta raiz. Já mencionamos ante-
riormente que, segundo Spivak (2012), o conceito de desejo de Deleuze
e Guattari leva a uma teoria da imanência da subjetividade que inviabiliza
a análise dos interesses e das ideologias. A obra de Castoriadis (1982),

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por outro lado, permite conciliar o conceito de desejo com os interesses


e as ideologias quando propõem os conceitos de “mundo privado” e
“mundo público”. É com base no mundo privado que o sujeito produz a
sua imaginação radical e a sociedade instituinte, mas somente pode fazer
isso participando do mundo público, a sociedade instituída. Para inventar
novos processos, o sujeito precisa manejar os imaginários estabelecidos,
e é por isso que as performances não podem ser apenas elaborações dese-
jantes. Por mais libertadora que seja a experiência em uma rádio livre,
ela terá necessariamente que integrar estilos da sociedade instituída, ou
jamais produzirá a sociedade instituinte.
A respeito das experiências com a rádio Xibé, praticamente todos os
entrevistados mencionaram que havia abertura para a fala e a iniciativa
de todos nas reuniões e no dia a dia da rádio, por mais discrepantes que
fossem os relatos em relação às hierarquias mais horizontais ou verticais,
às fronteiras e à composição da rádio. Paradoxalmente, foi justamente
o cultivo da comunicação dialógica que permitiu a diversificação das
perspectivas em cada evento compartilhado. Ela fez proliferar na rádio
e no seu entorno a apropriação criativa de estilos ligados à sociedade
instituída, o que introduziu nela a reprodução de relações de poder,
mas, justamente por isso, contribuiu para subverter essas relações. Este
processo de reinvenção dos estilos em um espaço dialógico se parece
com o conceito de “coletivização” de Bifo10 (Colectivo, 1981, p. 56, tra-
dução nossa), quando afirma que “a coletivização rompe o domínio do
isolamento, e o desejo transforma a cotidianidade”. A diferença é que,
para Bifo, o desejo se afirma na recusa da institucionalização, ao passo
que na história polifônica da Xibé a imaginação radical prolifera através
da sociedade instituída, transformando-a. Bifo elaborou o conceito de

10 Franco Berardi, nascido em 1949, é um reconhecido filósofo italiano. Mantive o


apelido Bifo no texto, pois é assim que aparece no livro Alicia es el diablo (1980).

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

coletivização ao refletir sobre a Alice, rádio livre italiana da década de


1970 da qual participava. Na Alice, segundo o Coletivo da rádio, a cria-
tividade era o “diabo”:

O diabo voltou à terra com muitas caras. O diabo é Alice que é


o assalto total ao estado de opressão; é o nosso sorriso, nosso
sorriso, a nossa mente pensante, o diabo é o nosso corpo que
está cada vez mais belo e livre e capaz de amar. Hoje o diabo,
a quem é inútil cortejar, tem milhares de rostos, muda cons-
tantemente de expressão, desliza pela cidade, pelos bairros,
pelas fábricas e pelas escolas como um gato selvagem [Rádio
Alice] (Colectivo, 1981, p. 57-58, tradução nossa).

Com a insuficiência da metáfora do rizoma, elaborei a metáfora


“espectro”: cada evento é como um ponto atravessado simultaneamen-
te por diferentes frequências e amplitudes de ondas eletromagnéticas.
Se colocarmos um receptor neste ponto, será possível sintonizar dife-
rentes estações. A busca da clareza nos levará a sintonizar uma de cada
vez, mas nem por isso deixarão de ocorrer interferências e sintonias. A
sintonia de um sujeito com uma perspectiva não impede que ocorram
conflitos, diálogos e até a mudança para sintonizar outra perspectiva.
Achile Mbembe, em África insubmissa (2013) nos oferece um exemplo de
como operacionalizar essa metáfora em análises históricas. Ao estudar a
invenção das formas múltiplas de religiosidade nas sociedades africanas
pós-coloniais, destaca o manejo simultâneo de diferentes registros diante
de situações históricas que vão da escala internacional e da longa dura-
ção histórica, passando por relações econômicas e de poder nacionais
e regionais, chegando até as operações mais triviais da sobrevivência
ou dos pequenos interesses da vida cotidiana. Contrapondo-se à teoria
de que o cristianismo foi imposto no período colonial e que precisou
ser reinventado com base na tradições ancestrais para se consolidar na

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África, Mbembe (2013) traça um quadro muito mais complexo em que


os mesmos sujeitos se apropriam de vários registros existentes (estilos)
para as finalidades mais diversas (em suas performances).

A Xibé e suas redes


Além das relações locais da rádio Xibé, também foram etnografadas
as suas conexões em rede e à distância através de movimentos como
o Rizoma de Rádios Livres,11 a rede Indymedia,12 a Flor da Palavra13 e
as redes acadêmicas. Entre os militantes conectados à rádio Xibé e que
nutriam simpatia – somente estes aceitaram dar entrevistas –, foi possível
distinguir duas categorias: aqueles que mantiveram relações tênues com a
rádio, mediadas quase que exclusivamente por internet, e os que puderam
desenvolver relações mais elaboradas, graças a viagens que propiciaram
encontros face a face e a realização de ações conjuntas.
A primeira categoria de militantes tende a projetar (Todorov, 1999)
os seus valores e experiências ao selecionar as informações obtidas na
internet para construir as suas percepções da rádio, bem como a repro-

11 O Rizoma de Rádios Livres (www.radiolivre.org) surgiu em 2002 e utiliza servi-


dores livres para manter uma lista de e-mail, um site de publicação aberta, sites
específicos e serviço de streaming para as rádios livres tecerem a comunicação
horizontal.
12 A rede Indymedia (ou Centro de Mídia Independente) nasceu durante os pro-
testos em Seatle (EUA), em 1999 contra a reunião da Organização Mundial do
Comércio (OMC). Foi criado um site de publicação aberta de textos, áudios e
vídeos por parte dos leitores que estavam participando dos protestos ao redor
do mundo; rapidamente formaram-se centenas de coletivos Indymedia com seus
respectivos sites locais e uma rede horizontal unindo os coletivos. O CMI-Brasil
(www.midiaindependente.org) começou a ser formado em 2000 unindo coletivos
de várias cidades brasileiras, entre eles o CMI-Tefé (http://xibe.radiolivre.org)
que começou 2006.
13 A Flor da Palavra (http://flordapalavra.noblogs.org/) foi uma rede de inspiração
zapatista que começou em 2006 realizando eventos locais colaborativos para
colocar em contato ativistas, grupos populares, pesquisadores e artistas, utili-
zando tecnologias de comunicação. Em 2009 ela tentou criar um “Caracol” em
um bairro popular de Belém (PA): uma casa voltada a atividades culturais e de
organização popular que também poderia hospedar ativistas viajantes.

· 226
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

duzir clichês das ideologias dominantes ao imaginar o seu contexto


histórico ou natural. Para esses militantes, a Xibé é um espelho que
serve para reforçar suas utopias, pois representa a sua expansão para
um contexto exótico (é mais uma rádio livre, mais um CMI, localizado
na selva Amazônica). Nesse espelho, o militante distante vê a si mesmo
e não encontra um outro sujeito com o qual dialogar, o que revela que
a existência de mecanismos de interatividade na internet não é garantia
de comunicação.
Por outro lado, há situações em que a atração exercida pelo espelho
é suficientemente forte para que ele se torne uma janela. É o caso dos
militantes que conheceram a Xibé através de viagens e na realização de
ações conjuntas. Mary Pratt (1999) demonstra que o olhar dos viajantes
é influenciado por aqueles que o recebem e guiam, tanto na sua trajetória
quanto nas percepções. Os encontros face a face e a partilha de ações
propiciaram formas mais consistentes de diálogo, que puderam continuar
a se desenvolver mesmo à distância, e percepções mais elaboradas sobre
a rádio. As redes também são espectros, cuja multiplicidade se intensifica
quando as projeções se tornam mais elaboradas através de viagens e da
colaboração em ações, quando espelhos se tornam janelas.

Uma situação histórica com ênfase na tecnologia


Tendo como referência o conceito de situação histórica de Pacheco
de Oliveira (2016), a pesquisa procurou repensar a história do rádio
para então relacioná-la à história da Xibé e suas redes. Escolhi tratar
dos primeiros anos de invenção do rádio e da internet na sociedade
capitalista, cujas afinidades levaram Tim Wu (2012) a formular uma
teoria cíclica da história das tecnologias de comunicação. Tanto o rádio
como a internet passaram por processos iniciais de invenção popular,
sendo transformados em instrumentos para a formação de redes de

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comunicação dialógica e a organização de movimentos sociais em rede.


Depois, foram reinventados por estados e corporações, passando a
servir como dispositivos de controle político e exploração econômica,
com a mercantilização dos seus usuários. Longe de confirmar a teoria
cíclica, essa analogia mostra que a internet não foi a primeira a servir para
experimentos de comunicação autônoma e em rede, e nem há garantias
de que continuará propiciando isto.
É necessário superar a concepção do “evolucionismo tecnológico”
(Figueiredo, 2018) presente na ideia de que a internet é uma tecnologia
essencialmente mais avançada e democrática. Em As tecnologias da inteli-
gência (1993), Pierre Lévy afirma que a informática traz novas possibi-
lidades para a inteligência humana, mas a oralidade, a escrita, o áudio e
o visual permanecem vitais. A crítica social e a elaboração de táticas de
emancipação precisam levar em conta tanto as novas tecnologias quan-
to as mais antigas, pois estas também são cotidianamente reinventadas
como poderosos dispositivos de dominação e resistência. Além disso, a
experiência da rádio Xibé reafirma o que também pode ser verificado na
história dos pioneiros do rádio e da internet: a popularização da ciência
e o controle popular sobre a invenção tecnológica favorecem a criação
de ferramentas voltadas à criatividade democrática.

Linhas de fuga
Fabian (1983) atribui à matriz bíblica a visão europeia que pensa a
história como uma linha evolutiva, em que o Ocidente apresenta-se
como desbravador do futuro, atribuindo aos demais povos diferentes
estágios mais ou menos primitivos. Deriva daí o imaginário analisado
por Pacheco de Oliveira (2016) sobre a Amazônia como última fronteira
da natureza primal e dos povos primitivos. Outro fruto é evolucionismo
tecnológico, que associa o nível de “avanço” de uma sociedade às suas

· 228
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

mais recentes invenções técnicas e ajuda a explicar a desvalorização do


rádio como tecnologia relevante na atualidade. A análise dessas duas
formas de silenciamento ajuda a visibilizar a performance da rádio Xibé
no Médio Solimões, bem como os saberes que ela nos oferece.
Lemos em Spivak (2012) que as ideologias calam os subalternos, a
menos que se apropriem criativamente delas em suas performances. A
única possibilidade de controle sobre a própria expressão é operando
recombinações e deslocamentos de sentido que, ao gerar perplexidade
no público, permitem a emergência de significados que não estavam
prescritos. De fato, a maioria dos simpatizantes à distância da rádio Xibé
relataram alguma surpresa ao tomar conhecimento de uma rádio livre ou
centro de mídia independente no interior do Amazonas. A combinação
entre a tecnologia vista como libertária e um lugar tido como selvagem
ajudou a abrir brechas para interações que, no caso de alguns simpati-
zantes, tornou possível as viagens e ações conjuntas, percepções mais
elaboradas e um diálogo efetivo.
Talvez isso também tenha acontecido comigo em 1996. Vi no zapa-
tismo a mesma combinação do exótico com o tecnológico e construí
uma percepção mais elaborada depois das viagens de pesquisa de campo
e das ações conjuntas em que passei a colaborar, como, por exemplo,
a organização de eventos e a tecedura de redes de inspiração zapatista.
Ao migrar para a Amazônia, acreditei que aqui também poderiam ser
vividos processos de apropriação tecnológica, comunicação dialógica e
descolonização. A performance da Xibé se alimentou desta e muitas outras
experiências dos demais sujeitos e deixou como um de seus frutos a
proposta de uma antropologia dialógica da mídia.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

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233 ·
CIANE FERNANDES: UM “CORPO ESTRANHO”
NOS TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS DA ARTE

JOSÉ MÁRIO PEIXOTO SANTOS

Resumo: O presente texto trata da produção da artista perfor-


mática Ciane Fernandes, coordenadora do Coletivo A-FETO de
Dança-Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e apresenta
algumas performances ao longo de sua carreira através da descrição,
análise e crítica de tais ações, nos períodos entre 1996 e 2005, apro-
ximadamente.
Palavras-chave: Ciane Fernandes. Dança-teatro. Performance art.

Até hoje não sabia que se pode não dançar. Gradualmente,


gradualmente, até que de repente a descoberta muito tímida:
quem sabe, também eu poderia não dançar. Como é infinita-
mente mais ambicioso. É quase inalcançável.1

Ciane Fernandes nasceu em Anápolis (GO) e tem formação multidis-


ciplinar: é performer, coreógrafa e professora. Na adolescência, estudou
canto na Escola de Música de Brasília. É graduada em Enfermagem e
Obstetrícia (1986), licenciada em Artes Plásticas (1990) com especializa-

1 Livre adaptação de poema de Clarice Lispector, retirado do programa do espetá-


culo “Corpo Estranho”, de Ciane Fernandes.
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ção em arte terapia pela Universidade de Brasília (UnB). Fez Mestrado


(1992) e Doutorado (1995) em “Artes e humanidades para intérpretes
das Artes Cênicas” na New York University – curso centrado nas artes
cênicas, mas aberto às possibilidades de estudos em música e artes visuais
–, além de ter cursado disciplinas no departamento Performance Studies
dessa universidade. Suas produções desse período são caracterizadas
pela integração das artes e intercâmbio cultural entre artistas de diversas
nacionalidades e formações.2 Também possui certificado de Analista de
Movimento pelo Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies (1994), em
Nova York, de onde é pesquisadora associada. Publicou Pina Bausch e o
Wuppertal Dança-Teatro: Repetição e Transformação3 e O Corpo em Movimento:
O Sistema Laban/Bartenieff na Formação e Pesquisa em Artes Cênicas. Estudou
a dança dos Orixás com Joselito Santos, em Salvador, e Dança Clássica
Indiana (uma de suas grandes paixões) na Rajvashree Ramesh Academy for
Performing Arts, em Berlim, estabelecendo relações entre essas duas expres-
sões artísticas. Entre os diversos prêmios e bolsas de estudos, recebeu a
Bolsa Virtuose do Ministério da Cultura do Brasil em 2003. Desde 1997,
Fernandes é professora do Departamento de Fundamentos do Teatro e
uma das fundadoras do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
(PPGAC), da Escola de Teatro, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Ainda aluna do curso de artes plásticas, durante as aulas de modela-
gem e mostras de conclusão das disciplinas, Ciane Fernandes costumava
apresentar performances artísticas, utilizando gesso e outros materiais sobre

2 Eurydice - N.Y.U. Dance December Concert (1992); Editing Eurydice - Synergic


Theater Company (1993); For Your Safety - Washington Square Repertory Dance
Company Concert (1993); One and Another - Women’s History Month (1993); No
Loss of Memory - Faculty & Doctoral Student Dance Concert (1994); White Density
- Nancy Zendora Dance Company (1995); Bodies Interrupted - Limbs and Words
Performance Group (1995); Cittá Submersa, Five Village Scenes, Three Medita-
tions on the Word, Vazio - N.Y.U. New Music Esemble (1995).
3 Pina Bausch, coreógrafa e dançarina alemã, criava seus espetáculos com base em
situações do cotidiano e da vida de seus dançarinos. Ver Fernandes (2000).

· 236
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

o próprio corpo. Como sentia necessidade de um preparo corporal para


a realização de tais ações, a artista buscou na dança e no teatro elementos
multidisciplinares para a sua formação artística.
Entre o final da década de 1960 e início da década de 1970, a performance
surgiu como gênero explorado pelos literatos, músicos, artistas visuais e
cênicos. O termo performance, associado ao universo das artes, “foi usado
inicialmente nos Estados Unidos no final dos anos sessenta, referindo-se
a ações em geral, e acrescentando-se o termo arte – (performance art) – para
referir-se a uma forma espetacular específica” (Fernandes, 2001a, p. 3). Esse
tipo de expressão aparece na cena artística como uma forma de negação
do mercado de arte, contestação do discurso sacralizador e valorização
da criatividade e da liberdade artística em detrimento da técnica e do vir-
tuosismo. Absorvidos pelo sistema, os resquícios dessas experimentações
com o corpo (vídeos, fotografias, projetos, objetos, rastros corporais etc.)
compõem acervos de museus e galerias ao redor do mundo, inclusive no
Brasil – mais um paradoxo na história da arte contemporânea.

A performance, num sentido estritamente ontológico, é não


reprodutiva. E é essa qualidade que faz da performance o
parente pobre das artes contemporâneas. A performance
estorva os maquinismos suaves da representação reprodutiva
necessários à circulação do capital. (Phelan, 1997, p. 173).

Do vasto grupo de artistas internacionais que adotaram o gênero


performance como expressão, citaremos alguns deles aqui. Artistas que
têm realizado, em diversos momentos e lugares, ações e performances
com características diversas: narcisísticas e autobiográficas, intrigantes,
ritualísticas, militantes, escatológicas, de puro entretenimento, dentre
outras. Performers em produções voltadas para a exploração dos limites
do corpo físico, psicológico e social – Marina Abramovic & Ulay, Ana

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Mendieta, Joseph Beuys, Chris Burden, Guillermo Gómez-Peña, Coco


Fusco, Tania Brugera, dentre outros – ao lado daqueles que já estreita-
ram as fronteiras entre a arte e a vida a tal ponto que o ato de respirar
também expressa uma ação performática e espetacular, a exemplo de
John Cage, Allan Kaprow, Gilbert & George, Orlan, outros (ícones do
happening, da live art e performance).
As primeiras ações artísticas da performer Ciane Fernandes foram
apresentadas na UnB, onde os cursos da área de artes funcionavam de
maneira integrada. Enquanto trabalhava no hospital, a artista também
desenvolvia ações performáticas atuando como clown (vestida de branco
com um nariz de palhaço) para os pacientes pediátricos.
A partir de 1996, anos após ter saído do estado de Goiás e viajado
por São Paulo, Alemanha, Itália, Nova York, Ciane Fernandes passou
a viver e a dançar na cidade de Salvador, Bahia, onde criou o então
A-FETO Grupo de Dança-Teatro da UFBA.4 Nesse mesmo ano, apre-
sentou Hibridus Co(r)pus no Instituto Cultural Brasil-Alemanha (ICBA).
No espaço escolhido para a apresentação, onde havia uma “cortina”
d’água que separava performer e público, a artista cantou e dançou duran-
te, aproximadamente, vinte minutos. Em 1997, apresentou o solo Sem
perda de memória e o espetáculo Poesia Prematura no Cabaré dos Novos
do Teatro Vila Velha. Também criou e dançou em CorPoesis Prematurus
(1999) no Teatro do Movimento da Escola de Dança da UFBA, com a
participação de alunos e outros dançarinos. Os conteúdos explorados
remetiam à imagem de um corpo líquido, prematuro, composto de
diversos fluidos, em processo de formação, ainda por vir. As imagens
dos corpos dos dançarinos foram associadas às imagens da natureza, do
planeta água, a Terra, em projeções sobre telões, durante as performances:

4 Homepage da artista. Disponível em: www.cianefernandes.pro.br. Acesso em: 27


mar. 2007.

· 238
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

golfinhos, baleias, calotas polares em degelo constante, do sólido e frio


ao líquido e morno; interior e exterior do corpo prematuro.
Entre outras produções, Ciane Fernades apresentou com o grupo
A-FETO o espetáculo Sem-Tidos (2000) (Figuras 1 e 2) no evento “Ação:
Performance art”, no ICBA. A peça foi descrita e analisada pela própria
artista na Revista Repertório Teatro & Dança (2002, p. 84-90). Nessa publi-
cação, também, foram divulgados alguns registros da performance Odon-
to-I-lógica (2000), apresentada no Cabaré dos Novos, Teatro Vila Velha,
com a imagem em close da boca da artista projetada sobre telão de 5 m x
5 m, uma de suas experiências com as imagens de seu corpo associadas
aos seus poemas sonoros. A ação de declamar o poema foi registrada
em vídeo pela própria artista no “aqui e agora” e, sem edições, tal regis-
tro foi utilizado como um “vídeo-coreógrafo” durante a apresentação.
Durante doze minutos, Ciane Fernandes dançou sentada numa cadeira
giratória, com vestes brancas e sumárias, ao mesmo tempo que seus
lábios ampliados no telão proferiam palavras de teor erótico, explorando
o vocabulário próprio dos consultórios odontológicos e “pervertendo
a noção de ciência isolada do envolvimento pessoal”.

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Figuras 1 e 2 - Ciane Fernandes com o grupo A-FETO

Espetáculo Sem-Tidos (2000). Fotos: Márcio Lima. Fonte: Acervo pessoal da artista.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Segundo Ciane Fernandes (2001b, p. 12), suas performances denunciam


a “desatenção” e a insensibilidade do ser humano no cotidiano, logo,
“para o performer tudo tem vida, opinião, história, sabedoria. O interno é
exposto e o externo é incorporado”. Nas apresentações, a artista apontou
para o entendimento da arte da performance como evento, transformação,
acontecimento; uma ação transgressora e de denúncia do automatismo
presente no nosso cotidiano. Abordou, também, a efemeridade de nossa
existência, o processo de mudança corporal, o corpo que envelhece, o
tempo que imprime marcas:

Trocas de identidade, posições imprevistas, programas camu-


flados de tipo gestual, forçosamente têm que atuar sobre a
fantasmática do sujeito receptor, reorganizando ou distorcen-
do o repertório legalizado de suas imagens corporais. Esta
ruptura se dá em vários sentidos e a performance funciona
como operadora de transformações: desde os condiciona-
mentos generalizados até a colocação destes em crise, e desde
as imagens corporais cristalizadas até sua quebra especular.
(Glusberg, 1987, p. 66).

Nos espetáculos de dança-teatro e performances, Ciane Fernandes busca


explorar o inusitado dos diversos locais. A artista costuma eleger espaços
não convencionais para as suas apresentações, locais “mais vivos”, ao
ar livre, mais próximos do cotidiano, ao contrário dos palcos de teatro
e dança que são preparados para a cena com iluminação e cenários
específicos. Prefere locais distintos (o saguão do teatro, as escadarias, as
cadeiras da plateia), onde a presença corporal e a arquitetura possam ser
exploradas de forma incomum. Sua predileção por espaços não conven-
cionais, a exemplo das galerias de arte (locais destinados à exibição de
objetos artísticos), deve-se à proximidade entre performer e público. Assim,
ela estabelece um maior grau de abertura à participação do público em

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suas propostas. Em geral, o palco não possibilita a presença efetiva do


público. Já nos espaços não convencionais, principalmente nas ruas, a
participação do transeunte pode ser mais ativa devido à exposição aos
imprevistos e à abertura ao acaso. Nessas situações, o público costuma
participar quando interpelado ou por iniciativa própria.
Na cidade de Salvador, Bahia (BA), as pessoas estão mais disponíveis
para a participação nos eventos artísticos. Talvez seja essa uma das carac-
terísticas mais marcantes dessa cidade litorânea, que tem a praia como
principal local de convivência e lazer; as festividades relacionadas aos
santos/orixás e o Carnaval como festas populares em que as relações
entre o sagrado e o profano são fortemente notadas. No espetáculo
Übergang P.S. (2003) (Figuras 3 e 4), apresentado no Mercado Modelo,
observamos a imagem de Ciane Fernandes dançando ao lado do perfor-
mer Emanoel Nogueira, numa escada. No decorrer da exibição, o som
do berimbau tocado pelos vendedores do mercado serviu como trilha
sonora para as improvisações dos performers, assim como a presença dos
transeuntes, incorporada ao espetáculo performático.
Este tipo de intervenção a que a artista se refere como “Imersão Cor-
po Ambiente” (Fernandes, 2013) pode ser vista em obras mais recentes,
como as performances ecológicas realizadas pelo A-FETO juntamente
com a atividade Laboratório de Performance do PPGAC/UFBA, em
Lençóis (BA), Chapada Diamantina (Fernandes, 2012). Outra amostra
é a performance na I Setti Savi, realizada no aeroporto de Malpensa, em
Milão, Itália, instalação que situa um conjunto de sete estátuas de pedra
da autoria de Fausto Melotti (1901-1986), na “La Porta di Milano”, pro-
jetada pelos arquitetos Pierluigi Nicolin, Sonia Calzoni (curadores da
instalação), Giuseppe Marinoni e Giuliana De Gregorio.5

5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dvefzCmrpxU. Para maiores


informações sobre esta performance, vide Fernandes (2014a).

· 242
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Figuras 3 e 4 - Ciane Fernandes e Emanoel Nogueira em Übergang P.S. (2003)

Fotos: Marcos M. C. Fonte: Acervo pessoal da artista.

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Outro exemplo de mostra na qual Ciane Fernandes performou inse-


rida numa instalação de artes plásticas foi a exposição coletiva Passagem
(1998) (Figura 5) de Wagner Lacerda e Sonia Witte, realizada na Galeria
Cañizares da Escola de Belas Artes da UFBA. Naquela época, tivemos
a oportunidade de acompanhar os movimentos da performer junto com
o público presente. Numa das salas, intitulada Caos, o artista Wagner
Lacerda criou uma instalação com uma rede de pescar que partia de um
dos quadros em direção ao teto e às paredes da galeria. Em determinado
momento, Ciane Fernandes surgiu com o corpo completamente pintado
de branco, trajando apenas uma tanga. Durante quinze minutos, com
um som minimalista como fundo musical, a artista passou a dançar
lentamente e, logo em seguida, numa movimentação mais acelerada,
explorando os princípios dos movimentos propostos por Rudolf Laban.
Da pausa à ação, Ciane Fernandes envolvia e se deixava envolver pelo
artefato de pesca, construindo imagens geométricas e abstratas com seu
próprio corpo, um corpo estendido como rede, a rede como extensão
do próprio corpo da artista. Observávamos um corpo já “mimetizado”,
transformado. Essa é a capacidade que a artista tem de transformar sua
imagem corporal a cada apresentação, de desconstruir a noção comum
do corpo. Nas mais diversas produções, Ciane Fernandes demonstra sua
tendência natural à abertura, espontaneidade e flexibilidade – aprendi-
zados tão necessários à formação e à atuação do performer.

· 244
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Figura 5 - Performance na exposição Passagem (1998)

Galeria Cañizares. Escola de Belas Artes da UFBA. 1998. Foto: J. S. Vídeo. Fonte: Acervo
pessoal da artista.

A artista dançou também em outros espaços destinados às artes visuais


como na instalação fotográfica Hillu-Photos (1998) da artista plástica
Nathalie Petsiré Barends, realizada no Museu da Imagem e do Som
(MIS) e na exposição Semente do objeto (2001) de Miriam Korolkovas, na
Escola de Comunicação e Artes (ECA) na USP, ambas em São Paulo.
Nesta última, Ciane Fernandes dançou ao redor e dentro das obras de
arte. Notamos nos registros que o corpo da artista foi inserido numa
escultura geométrica em metal com grandes vazados; seus braços e pernas
distendidos enfatizavam as linhas verticais e horizontais da obra e, por
outro lado, atribuía à estrutura/escultura características mais orgânicas. Já
naquela mostra fotográfica no MIS, a artista dançou, usando uma tanga
preta, entre fotografias reveladas em transparências, criando diálogos
imagéticos entre os motivos fotografados (figuras humanas em tamanho

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real) e a sua própria imagem. Numa outra ação performática, realizada


no dia do lançamento da obra Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro:
Repetição e Transformação durante o Festival Internacional de Teatro, na
cidade de Belo Horizonte (MG) em 2000, Ciane Fernandes se apresentou
sob livros. A performer construiu uma estrutura com livros, explorando
os espaços de uma escada, de onde seu corpo surgia lentamente e de
forma fragmentada – inicialmente uma perna, depois um braço, e logo
o corpo inteiro numa dança inusitada. Apresentações como essas apro-
ximam as performances de Ciane Fernandes das ações artísticas em que a
desprogramação do cotidiano, o estranhamento e o deslocamento são
explorados como elementos da própria obra.
Alguns espetáculos apresentados por Ciane Fernandes podem ser
remontados e as cenas adaptadas a cada novo contexto espaço-temporal.
A imprevisibilidade e a flexibilidade são características dessas produções
uma vez que a performance nunca será repetida, as cenas aparecerão de
maneira desordenada e o público será outro e, assim, as reações serão
diversas a cada exibição. Essa possibilidade de reordenar as cenas em
espaços diversos é também uma característica do espetáculo Übergang –
Una Latina en Berlin. A palavra Übergang possui diversas significações
em alemão como transição, encruzilhada, entroncamento, transformação
e transmutação. Nesse espetáculo, já apresentado em várias regiões do
Brasil e no exterior, a artista realizou um estudo comparativo entre a
dança-teatro contemporânea e a dança clássica indiana.

O solo transforma fragmentos da carreira da coreógrafa/


intérprete adicionando-os a coreografias inéditas num con-
texto interdisciplinar, relacionando arte, cultura e ciência.
A obra questiona definições a priori de um “corpo latino”,
desconstruindo e expondo-o como uma constante transição/
ÜBERGANG entre mutantes mapeamentos simbólicos, gené-

· 246
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

ticos e geográficos. Revertendo o conceito de uma “Alemanha


acima de tudo” (“Deutschland ÜBER alles”, trecho retirado do
hino alemão após o período nazista), ÜBERGANG mostra a
sobreposição das experiências interculturais de uma latina em
Berlin: fazendo aulas de dança clássica indiana, freqüentando
ambientes latinos, turcos, do leste europeu, ravy, techno, goa
(indiano eletrônico), comemorando o pentacampeonato em
um carnaval de rua.6

Com base na análise dos registros dessa produção, realizados em vídeo


por Francisco Serafim, no Teatro do Instituto Goethe/ICBA, Salvador,
em 2002, notamos como características as referências às diversas cultu-
ras, principalmente às culturas afro-baiana e indiana, assim como temas
relacionados ao gênero, à etnia e à transitoriedade da vida. No espetáculo,
o corpo foi apresentado em pleno movimento e também em movimen-
tação mínima, com a utilização de diversos figurinos e acessórios. Essa
produção nos fez recordar de Norte: Sur, roteiro de performance para rádio,7
trabalho elaborado por Guillermo Gómez-Peña e Coco Fusco, artistas
que também exploram, em suas respectivas produções, questões rela-
cionadas à identidade mestiça e ao poder exercido pelos países centrais,
principalmente pelos Estados Unidos, sobre as demais culturas. Durante
a transmissão radiofônica, quando questionada sobre a utilização da
palavra “hispânico” para determinar tal ou qual pessoa, a performer Coco
Fusco respondeu apontando para as suas características étnicas:

As pessoas ainda se confundiam, não sabiam dizer se eu era


ou não era negra. No final do colegial, três funcionários da
administração – um negro, um chicano e um judeu – precisavam

6 Texto disponível em: http://www.cianefernandes.pro.br/homeport.htm. Acesso


em: 27 mar. 2007.
7 O projeto para rádio foi encomendado aos artistas pelo Festival 2000 de São
Francisco, em 1990, e produzido pela Toucan Productions. A transmissão foi
feita pela Rádio Pública Nacional (NPR) dos Estados Unidos.

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decidir se eu atendia aos critérios para me candidatar a uma


bolsa de estudos para minorias étnicas; o negro disse não, o
chicano disse sim e o judeu disse que eu deveria perguntar à
minha mãe se nós tínhamos antepassados africanos. O meu
cabelinho afro não os convenceu. Você já pensou sobre os seus
antepassados? (Associação Cultural Videobrasil, 2005, p. 70).

No espetáculo Übergang,8 observávamos uma Ciane Fernandes diferente


a cada momento – a imagem de um “corpo deslocado” é mais uma vez
explorada em performance. Na abertura do espetáculo, a artista utilizou um
texto em alemão sobre uma tabla, instrumento da cultura indiana. Logo
após, usando biquíni e óculos escuros, apresentou as ações demonstradas
por aeromoças – os procedimentos que devem ser realizados em caso
de emergência nas viagens aéreas –, em uma coreografia que incluía
movimentos da dança clássica indiana, em especial, os gestos das mãos.
Mais adiante, vestida como uma Iansã (orixá/figura feminina da mitologia
iorubana), a artista sobrepôs essa divindade a movimentos inspirados
nas ciganas do Rajastão e nas escalas do Icosaedro de Rudolf Laban,
precursor da dança-teatro alemã, e prosseguiu em outras sobreposições
e desconstruções de personagens.
Em outro instante, a perfomer surgiu como Shiva, deus cultuado pelos
hindus. Essa imagem também nos sugeria uma representação de Ogum
(orixá da guerra) em vestes que lembravam roupas utilizadas em terreiros
de Candomblé ao mesmo tempo que remetiam à indumentária indiana.
Tendo como trilha sonora toques de atabaques mixados com instrumen-
tos orientais, a artista mesclou alguns movimentos da dança dos orixás
com a dança clássica indiana. Enquanto uma música francesa tradicional
era tocada, a artista prosseguia em seu bailado de identidades diversas.
Entre outras imagens apresentadas nessa performance, Ciane Fernandes

8 Ver Fernandes (2004).

· 248
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

fez referências aos espetáculos de Pina Bausch e também apresentou


um número de clown, utilizando um nariz de palhaço como um terceiro
olho na fronte. Em outro momento, a artista cantou ópera, declamou
poemas em inglês, italiano e alemão, enfatizando o trânsito de culturas
entre oriente e ocidente, integrando sagrado e profano, religião, esporte,
corpo, cotidiano, entre outros elementos em constante transmutação.
O solo “Corpo estranho” (Figuras 6 e 7) também integra o espetá-
culo Übergang, que foi apresentado diversas vezes: em Salvador (BA), em
Porto Alegre (RS), no VII Festival de Dança do Recife em 2002, no IV
Simpósio Internacional de Dança em Cadeira de Rodas9 da Universida-
de de Juiz de Fora (MG) em 2005, entre outros locais. De acordo com
o local e o tempo, a artista ajustou as apresentações para oito, quinze
ou vinte minutos. Os movimentos de “Corpo estranho” surgiram das
pesquisas teóricas e corporais que Ciane Fernandes empreendeu pau-
tadas no Sistema Laban/Bartenieff ou Análise Laban/Bartenieff em
Movimento (denominação da artista sobre a Análise Laban/Bartenieff
de Movimento). Ciane Fernandes nos declarou que toda a coreografia de
“Corpo estranho” foi criada com os olhos fechados, em uma busca dos
movimentos interiores do corpo, e ocorre, curiosamente, toda de costas
para o público. A artista apenas se virou e olhou para a plateia no início
e no final do espetáculo. Durante a apresentação, a performer explorou as
formas geométricas do corpo, criando, assim, imagens corporais diversas
do cotidiano, inusitadas, deformadas, grotescas, fragmentadas. A artista
declarou que essa performance “questiona definições a priori de um ‘corpo
latino’, desconstruindo e expondo um Corpo Estranho enquanto abismo
existencial, biológico e cultural, em constante re-mapeamento simbólico,
genético e geográfico” (Fernandes, depoimento, 2006).

9 Ver Fernandes (2005b).

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Figuras 6 e 7 - Corpo estranho

Foto: Márcio Lima. Fonte: Acervo pessoal da artista.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Com base na análise dos registros videográficos, notamos um corpo


explorando o espaço em diversas movimentações, apresentando formas
estranhas à habitual estrutura corporal humana. A imagem é de uma
escultura geométrica viva. “Nesta relação, não somente o corpo está no
espaço, mas o espaço está no corpo, enquanto um irradia e interage com o
outro” (Fernandes, 2005a, p. 63). A artista nos revelou que, em propostas
como essa, pretendia “puxar o tapete” sobre as certezas e seguranças
que temos em relação à imagem já construída do corpo. Buscava a des-
coberta de outras realidades, objetivava apresentar a imagem do corpo
como elemento transgressor de normas impostas, além de “brincar”
com as expectativas das pessoas. De um movimento lento a um outro
mais acelerado, a performer desconstruía, em “Corpo estranho”, a postura
de animal bípede assumida pelo homem em determinado momento de
sua trajetória evolutiva. Em relação à espécie humana, viver na posição
vertical determinou uma acentuada “resistência nas descargas da região
inferior. Dessa forma, impulsos vitais obscuros se viram repentinamente
transferidos para o rosto, que assumiu parte das funções de excreção
reservadas à extremidade oposta” (Moraes, 2002, p. 206). Como con-
sequências, o homem – mais do que qualquer outro animal – passou a
tossir, chorar, bocejar, espirrar, gargalhar exageradamente.
Tendo como trilha sonora vozes e músicas gravadas de programas
de rádio (Fulanitos, shows ao vivo de La Índia e Tito Nieves, em Miami,
La Mega FM – rádio hispânica de New York), Ciane Fernandes, utili-
zando apenas uma tanga, cabelos soltos e uma maquiagem destacando
os olhos, bem como as unhas pintadas de azul escuro, realizou a série
de movimentos proposta para “Corpo estranho”. O que vimos foi, uni-
camente, o corpo da artista em movimento, porém, um corpo/imagem
com suas pulsações, respirações e transpirações. Esse corpo poderia

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ser de um animal, de um mineral, de um homem/mulher, de um objeto


qualquer, pois:

Não somos indivíduos separados uns dos outros e do espaço


a nosso redor. Existimos em coletividades rítmicas de células,
moléculas, corpos, planetas, galáxias; determinadas por afinida-
des energéticas onde ocorre a constante troca de informação
que altera a todos. (Fernandes, 2005a, p. 66).

Esse corpo é tudo isso e ainda mais: é uma estrutura, um composto


de ossos, carne e vísceras, um corpo energético. Por vezes, apresentado
em sua integridade, outras vezes, em sua fragmentação e deformações.
Após as duas grandes guerras, a representação do corpo na arte foi redi-
mensionada, o corpo foi totalmente desarticulado, fragmentado “as mãos
separam-se dos braços, os pés desligaram-se das pernas, o ventre adqui-
riu autonomia, os olhos e as orelhas destacaram-se do rosto, os órgãos
internos desagregaram-se uns dos outros” (Moraes, 2002, p. 89). Ainda
assim, esse corpo apresenta uma linguagem passível de decodificação
com base nas noções que temos de nosso próprio corpo; do aprendi-
zado e do exercício de seus movimentos, comportamentos e gestos; da
identificação de suas partes e das partes de tantos outros corpos.

O corpo nu, o corpo vestido, as transformações que podem


operar-se nele, são exemplos das inúmeras possibilidades que
se oferecem a partir do simples, do imprevisto trabalho com
o corpo. Porém, as performances e a body art particularizam o
corpo, da mesma forma que o arquiteto particulariza o espaço
natural e o transforma em espaço humano. Desta forma, a
cabeça, os pés, as mãos ou um braço podem se apresentar
como elementos distintos do corpo que se oferecem contendo
uma proposta artística. Os gestos fisionômicos, os movimentos
gestuais com os braços e as pernas adquirem em cada caso uma

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

importância particular e o observador vai tender a valorizar


as diversas possibilidades de articulação entre os membros, e
os movimentos gerados. (Glusberg, 1987, p. 56).

Ao passo que observávamos os diversos registros fotográficos e video-


gráficos disponibilizados pela artista sobre sua produção, verificamos a
reincidência da imagem de um corpo em interação com o espaço e os
objetos artísticos, estes, outros corpos. Ciane Fernandes teve, desde o
início de sua carreira artística, o cuidado de registrar da melhor maneira
suas performances, e estes registros têm servido como material para as suas
análises e publicações científicas. Em ambientes abertos ou galerias de
arte, evidenciamos como o corpo extremamente humano da performer
pode ser transformado em uma “quase” escultura, uma escultura “quase”
corpo humano. Uma vez que esse corpo pode interagir com esculturas,
fotografias, instalações etc., ele é, também, um corpo plástico, fronteiriço,
elemento integrante e inerente às estruturas visuais, o “corpo licencioso”
apresentado por Sally Banes (1999).
Ciane Fernandes destacou que a atuação do artista em performance deve
ser a de um corpo consciente de tudo que está acontecendo no momento
da ação, “durante o ato, cada movimento, por mais espontâneo, inusitado
ou imprevisto que seja, não é realizado ao acaso” (Fernandes, depoi-
mento, 2006). Dessa maneira, a artista procura conjugar prática e teoria
em suas produções, no que vem denominando de Pesquisa Somático-­
‑Performativa (Fernandes, 2014b), modo que se integra à tendências
recentes como a Prática Artística como Pesquisa, a Performance como
Pesquisa e a Pesquisa Performativa (Barrett; Bolt, 2007). Ao mesmo
tempo que cria, Ciane Fernandes faz a crítica das produções, produz
conhecimento, constituindo esse pensar/fazer num ato político. Para a
artista, escrever, ler, ver vídeos, pesquisar outras áreas do conhecimento

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são ferramentas para a prática da performance como uma ação transfor-


madora e transgressora, muito além do puro entretenimento.

Referências
ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL. Caderno VideoBrasil
01: Performance. São Paulo: SESC SP, 2005.
BANES, Sally. Greenwich Village 1963: avant-garde, performance e o
corpo efervescente. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
BARRETT, Estelle; BOLT, Barbara (org.). Practice as research: approaches
to creative arts inquiry. London: I.B. Tauris, 2007.
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro: repetição
e transformação. São Paulo: Editora Hucitec, 2000.
FERNANDES, Ciane. Em algum lugar do presente: performance,
performance art, ou prática espetacular? Repertório Teatro e Dança: revista
do programa de pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA, Salvador,
n. 5, p. 3, 2001a.
FERNANDES, Ciane. O futuro da performance: multiplicidades
sensíveis e (in)visíveis. Repertório Teatro e Dança: revista do programa de
pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA, Salvador, n. 5, p. 10-13,
2001b.
FERNANDES, Ciane. SEM-TIDOS. Repertório Teatro e Dança: revista
do programa de pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA, ano 4,
n. 5, p. 84-90, 2002.
FERNANDES, Ciane. Corpos Co-Moventes. Lições de Dança, Rio de
Janeiro. n. 4, p. 35-80, mai. 2004.

· 254
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

FERNANDES, Ciane. Corpo-Imagem-Espaço: transformando padrões


através de relações geométricas dinâmicas. Cadernos do GIPE-CIT:
programa de pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA, Salvador,
n. 13, p. 63-76, jun. 2005a.
FERNANDES, Ciane. Mexendo as cadeiras: em que o Sistema Laban/
Bartenieff pode ser bom para tudo? In: FERREIRA, Eliana Lúcia (org.).
Dança Artística e Esportiva para Pessoas com Deficiência: multiplicidade,
complexidade, maleabilidade corporal. Confederação Brasileira de
Dança em Cadeira de Rodas, Juiz de Fora, p. 203-235, 2005b. v.1.
FERNANDES, Ciane. Ciane Fernandes: depoimento [jun. 2006].
Entrevista concedida ao autor. Salvador: Barra, 2006. Gravação em
formato digital (45 min 76 s).
FERNANDES, Ciane. Sintonia somática e meio ambiente: pesquisas
de campo do laboratório de performance do PPGAC/UFBA. Repertório
Teatro e Dança: revista do programa de pós-graduação em Artes Cênicas
da UFBA, Salvador, ano 15, n. 18, p. 175-183, 2012.
FERNANDES, Ciane. Im(v)ersões Corpo Ambiente e a Criação Coreo-
Videográfica. Cena. Porto Alegre, v. 13, p. 1-14, 2013. Disponível em:
https://goo.gl/duxNwR. Acesso em: 20 set. 2016.
FERNANDES, Ciane. O avesso da travessia: o espaçotempo somático-
performativo. Performatus. [s. l.], v. 2, p. 1-15, 2014a. Disponível em:
https://goo.gl/6QQ38i. Acesso em: 20 set. 2016.
FERNANDES, Ciane. Pesquisa somático-performativa: sintonia,
sensibilidade, integração. Revista de Pesquisa em Arte, Natal, v. 1, p. 76-85,
2014b. Publicação da ABRACE, ANPAP, ANPPOM em parceria
com a UFRN.

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GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Editora Perspectiva,


1987.
MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível: a decomposição da figura
humana: de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2002.
PHELAN, Peggy. A ontologia da performance: representação sem
reprodução. Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa: Edição Cosmos,
n. 24, p. 171-191, 1997.

· 256
PERFORMANCES DA DOCÊNCIA E
ORIENTAÇÃO EM UM PROGRAMA DE PÓS-
GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR

GIRLENE CHAGAS BULHÕES


LUA BARRETO
THIAGO CAZARIM
VÂNIA DOLORES ESTEVAM DE OLIVEIRA

Resumo: O Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Per-


formances Culturais (PPGIPC), tendo já iniciado a segunda turma
de doutorado, considera possível apresentar e analisar alguns dados
que interessam aos que pretendem criar ou cursar um programa de
natureza interdisciplinar. Sendo a interdisciplinaridade um conceito
tão complexo no seu entendimento quanto no seu exercício prático,
orientandos de trabalhos díspares vêm compartilhar suas experiências,
suas afetações e os desafios que o tema apresenta. Os comentários
das orientandas e orientando comprovam que, como preconiza a
pedagogia, é preciso repensar e reavaliar constantemente a dinâ-
mica das aulas e os instrumentos de avaliação, bem como sugerir
medidas de equilíbrio entre as exigências de produção intelectual
e a necessária e salutar reflexão sobre o fazer científico. Este texto
escrito de forma colaborativa é uma tentativa de atender às deman-
das de produtividade científica, respeitando o tempo de elaboração
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mental e de produção da escrita de cada um dos orientandos, sem


sobrecarga de esforço e trabalho.
Palavras-chave: Performances culturais. Interdisciplinaridade. Perfor-
mances docentes. Orientação.

Introdução
O Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances
Culturais (PPGIPC) acaba de completar quatro anos, tendo já iniciado
a segunda turma de doutorado. Nesse tempo já é possível apresentar e
analisar alguns dados que interessam aos que pretendem criar ou cur-
sar um programa de natureza interdisciplinar. 
A interdisciplinaridade é um conceito tão complexo no seu enten-
dimento quanto no seu exercício prático. Segundo Jô Gondar (2005,
p. 14), “na interdisciplinaridade, tem-se igualmente um mesmo tema
sendo trabalhado por disciplinas distintas, porém os discursos acerca
desse tema são postos em diálogo”. Isso é o que será visto nos textos
produzidos pelas orientandas e orientando, coautores desta reflexão.
Nessas orientações de trabalhos tão díspares, os alunos compartilham suas
temáticas, sobretudo ao cursarem as mesmas disciplinas no programa.
Nesses compartilhamentos, “a ideia central é a de que o universo dos
saberes deve ser democrático: busca-se o diálogo, admite-se a paridade
dos participantes e procura-se dar ao debate o horizonte do consenso”
(Gondar, 2005, p. 14). Com pesquisas tão particulares, certamente não
houve consenso, mas sim afetação mútua de linguagens e pensares. Nes-
sa afetação, “evidentemente, o leque se abre, mas a divisão disciplinar
permanece, ainda que cada disciplina seja capaz de ouvir o que a outra
tem a dizer” (Gondar, 2005, p. 14), e aí as performances culturais docentes
e discentes acontecem.

· 258
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Assim, inúmeros são os desafios postos, tanto para o professor


quanto para os alunos de uma pós-graduação na área interdisciplinar.
A Capes já começa por definir parâmetros mínimos de produtividade
que servirão para avaliar os cursos da área, elevando-os ou rebaixando-
‑os, conforme a produção de cada integrante: artigos publicados em
periódicos, em parceria interpares ou entre docentes e seus orientandos,
bancas, revistas, inserção na graduação e no ensino médio, o que acarreta
acúmulo de afazeres e preocupações. Dentre os desafios, destaca-se o da
orientação, que precisa se debruçar sobre campos de saber tão variados
quanto os participantes do curso, sejam professores ou alunos. O cor-
po docente é oriundo da Museologia, História, Música, Artes Cênicas,
Filosofia, Letras, Comunicação, Artes Visuais etc. Maior variedade ainda
encontra-se entre discentes.
Com graduação em Museologia e mestrado e doutorado em Memória
Social, em 2011 ingressei como docente no bacharelado em Museologia da
Universidade Federal de Goiás (UFG), colaborando nas diversas atividades
dos museus da Universidade, notadamente do Museu Antropológico.
No âmbito da atuação no bacharelado em Museologia, engajei-me nas
atividades da Rede de Educadores em Museus de Goiás (REM-Goiás),
tendo ocupado a coordenação geral no período 2012-2013 e realizado
o IV Seminário da REM-Goiás sobre o tema “Educação, Museus e
Cidades”, que despertou o interesse pelos problemas urbanos em suas
interseções com os museus.
Essas experiências motivaram a busca por atuar em um programa de
pós-graduação que trouxesse propostas inovadoras e que, ao mesmo
tempo, pudesse acolher os diversificados interesses pessoais de pesqui-
sa: documentação museológica, cultura popular e questões urbanas em
interação com as atividades museológicas. Tais aspirações foram atendi-
das pela proposta do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em

259 ·
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Performances Culturais, que integra o corpo docente permanente desde


2013. Em sua grade curricular, houve imediata identificação com a emen-
ta da disciplina Performances Urbanas, que contempla os estudos sobre

a cidade e o espaço rural vistos como contextos de perfor-


mances culturais, lidas na perspectiva da teoria e história da
arte, teoria e história da arquitetura e do urbanismo, socio-
logia urbana, antropologia e história cultural, considerando
as relações entre: paisagem, práticas espaciais, significado,
simbolismo, identidade, conflitos sócio-espaciais e memória.
(Universidade Federal de Goiás, 2016).

Já como fruto da atuação no PPGIPC, em interação com as atividades


na graduação em Museologia da UFG e com os interesses pessoais de
pesquisa, foi realizado, durante o período de março de 2016 a março
de 2017, o pós-doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Artes
(PPGARTES) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Este texto, construído a oito mãos, tem como propósito relatar a
experiência de docência e de orientação dos que convivem nessa reali-
dade – tanto do ponto de vista da orientadora, quanto de orientandos e
orientandas. Assim, cada um abordará a situação do seu ponto de vista,
em tópicos autorais independentes.1

O olhar da orientadora
A primeira experiência de orientação no PPGIPC foi a dissertação
de mestrado de Dayana Gomes Pereira, intitulada Memória, Corpo e Per-
formances – a dança negra de Mercedes Baptista, em que a discente se propôs
a trazer “reflexões, análises e discussões referentes ao corpo negro
feminino na dança, tendo como estudo a trajetória e as performances

1 Os textos estão na ordem de autoria mencionada anteriormente.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

da bailarina Mercedes Baptista (1921-2014)” (Pereira, 2016, p. 9). Daya,


como prefere ser chamada, é uma mulher negra, mãe de menina em
idade pré-escolar, professora do ensino fundamental e médio, que se
definiu assim em sua Introdução:

Eu, que escrevo este trabalho sugestivamente em primei-


ra pessoa, sou Daya Gomes. Atuo profissionalmente como
professora de dança da rede pública de Educação do Estado
de Goiás. Como professora, pesquisadora e dançarina nunca
aceitei o termo de bailarina, por sempre ter acreditado que
este se destinava às pessoas com formação em balé clássico.
(Pereira, 2016, p. 14).

Algumas páginas à frente, Daya se coloca mais assertivamente, como


“mulher negra, artista, professora”, e suas preocupações sobre o “corpo
negro dançante”, dela e das meninas negras, suas alunas, que findaram por
motivá-la para seu tema de pesquisa no mestrado (Pereira, 2016, p. 15).
No exercício dessa orientação, imagine-se com que se depara uma mulher
branca, museóloga e cuja experiência nesse campo restringia­-se às aulas de
dança de salão. Foi um aprendizado dos mais difíceis e sofridos. Apren-
dizado das dores de ser diferente do padrão estabelecido como social e
esteticamente bem sucedido, das dores de ser mulher negra, pobre, de
ser mãe às voltas com a pós-graduação e suas cobranças.
Aprendizado certamente mais difícil do que tomar pé em um campo de
conhecimento pouco familiar; contudo, uma experiência compensadora
quando se percebe que, para além do ensino-aprendizagem da pesquisa
acadêmica, logrou-se a transformação interna e o empoderamento de
outro ser humano, como se depreende de outro trecho de Daya, agora
de sua denominada (In)conclusão:

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Me satisfaço enquanto professora e me vejo representada por


Mercedes Baptista. Não pude fazer o balé clássico, mas me
dispus a algumas tentativas. Não cabia em meu corpo. Negro
e grande. Mas as histórias de Mercedes couberam na minha
vida, como fundamentação metodológica de ensino da dança
para as meninas negras que atravessam minha trajetória. Fica
pra mim que a maior obra de arte criada pela bailarina negra,
foi sua “performance de vida dançante”. (Pereira, 2016, p. 174).

As demais orientações – algumas já concluídas, outras interrompidas


ou em andamento – vão desde uma pesquisa sobre Museologia Social;
sobre o teatro goiano; sobre as festas juninas; passando pelos artistas
circenses que atuam nas ruas; e por uma vertente do movimento hip hop.
Temas variados, pessoas e profissionais diferentes, histórias e escritas
muito pessoais e diversas. O primeiro desafio que é imposto à orientação
é a exigência de humildade e coragem para admitir o desconhecimento de
alguns assuntos, somado à falta de intimidade com a literatura sobre áreas
tão distintas.  Por outro lado, o maior distanciamento dos temas permite
avaliar o nível de clareza da escrita do trabalho, pois o olhar da orientação
quase se assemelha ao olhar de um leitor leigo no assunto. Entretanto,
esse olhar, ao mesmo tempo de descoberta e estranhamento, acontece
sem prejuízo da função da orientação, a fim de apontar caminhos pos­
síveis, lacunas e necessidades de aprofundamentos de conceitos e termos.
A diversidade de campos também quase que obriga a busca pela
coorientação, sempre uma dificuldade para o território acadêmico, e
exige a superação dos limites pessoais e interesses de pesquisa muito
fechados em seus focos. Essa dificuldade nos põe frente a frente com
nossas idiossincrasias, em todos os aspectos  positivos e negativos. Nos
seus aspectos mais positivos, a coorientação aproxima integrantes do

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

corpo docente, estimulando a soma de ideias e o surgimento de novas


e instigantes parcerias intelectuais.
Contudo, no meu entendimento, o maior contributo da interdisciplina-
ridade na orientação é a possibilidade de novos aprendizados no trabalho
com toda essa variedade de campos. Além do aprendizado pessoal, ao
nos defrontarmos com realidades e conflitos particulares não vivenciados
em nosso cotidiano como seres humanos e profissionais. Certamente,
não há como passar incólumes por essa experiência transformadora.
Assim, é no exercício da orientação que acontecem as performances.
Se é possível considerar como performance toda e qualquer atividade ou
produção cultural humana, como afirma Schechner (2006a), também
podemos olhar para as atividades pertinentes à orientação como per-
formances. Como disse também o mesmo Schechner (2011a), nas perfor-
mances somos transportados e transformados. Na atividade docente e,
especialmente, de orientação, somos transportados para outro universo
subjetivo e humano, para outro campo de saber e outra realidade social.
Ao final, saímos todos transformados como pessoas e com as disserta-
ções e teses defendidas dentro do cronograma, se forem bem sucedidas
as múltiplas performances.
No processo que envolve orientadora, orientandas e orientandos,
vivenciam-se também dramas sociais e rituais, como descritos por Victor
Turner (1974). Há momentos de crises de ambos os lados. É possível olhar
os mestrandos e doutorandos como pessoas em situação de liminaridade
e que, durante algum tempo, constituem uma communitas. Cumpridas as
provas de isolamento e sacrifícios – de atividades de lazer e de convívio
mais frequente com amigos e familiares – próprios da situação liminar dos
pós-graduandos, todas as etapas e tarefas “iniciáticas” sendo cumpridas
a contento e superadas todas as crises, acontece o ritual de passagem

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da defesa da tese ou dissertação e, já alçados à condição de mestres ou


doutores, são novamente integrados ao convívio social. Entretanto,
trata-se até aqui do ponto de vista da orientadora.
Para apresentar o outro ângulo dessa relação, as orientandas e o
orientando que se dispuseram a esta discussão-exposição expressam suas
percepções sobre o curso e sobre a experiência com a orientação. Seus
textos, respeitados em suas diferenças formais (muitas vezes informais) e
estilísticas vem a seguir, na ordem alfabética dos nomes de seus autores.

Tem museus e museologia nas performances


culturais? Tem sim, senhor! Tem sim, senhora!
Uma das “orientandas e [...] orientando que se dispuseram a esta
discussão-exposição”, nasci em Salvador e atualmente moro em Goiás.
Sou museóloga formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA);
mestranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Perfor-
mances Culturais da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), Universidade
Federal de Goiás (UFG); Especialista em Patrimônio, Direitos Culturais
e Cidadania pelo Núcleo de Direitos Humanos (NDH), UFG; bolsista
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG);
integrante do Museu Sociofratrimonial dos Gostos Afetivos (MUSGO),
uma performance museal afetiva fratrimonial rizomática, criada dos meus
devaneios como aluna do Mestrado.
Mulher, assim como Daya, grande e negra só que de pele clara, pobre,
nordestina, migrante, contestadora e às vezes atrevida, faço parte de
algumas minorias. Sou e vivo pelas beiras.2 Por identificação, me afetam
em cheio as práticas de resistência e liberdade engendradas com base

2 Referência à música Pela Beira, de Daniela Firpo, gravada no CD de mesmo nome


(2006).

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

nas dificuldades e empecilhos impostos às periferias; as performances


culturais que não se enquadram nos padrões convencionais, que não
seguem os cânones ditatorialmente impostos.
Me interesso em conhecer e dar a conhecer iniciativas de materialização
do desejo de memória inerente às humanas e humanos, construídas com
base em e como sonhos: livres, libertas e libertárias; experimentações
museais feitas sem pedido de permissão às tradições consagradas pelo
patrimônio e pelo patronato, com inteiro respeito às afetividades das suas
construtoras e construtores; erguidas e sustentadas pelo fratrimônio: a
herança feita aqui e agora, conjuntamente por “gente que se olha olho
no olho, que se abraça quando é igual, que se abraça quando é diferente”
(Bulhões, 2016, p. 2).
Me emocionam experimentos que não têm medo da ousadia e fazem
da camaradagem o seu principal guia; que são uma declaração de amor
às lembranças fraternas dos pobres, dos pretos, das pretas, dos índios,
das índias, das cis, das trans, das travas, das bi, das monas, das manas,
das minas, das gays, das sapas, dos postos pra fora das suas terras, dos
exilados em suas próprias terras, dos que nunca tiveram terras.
Me afetam, emocionam e interessam experiências museais afetivas
fratrimoniais rizomáticas: processos museológicos cozidos no calor de
corpos diferentes que se encontram nas esquinas dos “Entrelugares”
(Bhabha, 1998); que não se fecham em si mesmos, em seus temas e per-
sonagens de sempre, em seus assuntos amenos e agradáveis; que pulam
com o bloco da pipoca, de um platô a outro, de um afeto a outro, de
uma agonia a outra, de uma alegria a outra.
No apagar das luzes de 2014 estava quase à toa na vida3 quando os
estudos das Performances Culturais me chamaram. Finalizava a Espe-
3 Referência à música A Banda (1966), de Chico Buarque de Hollanda.

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cialização em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania oferecida pelo


NDH/UFG na modalidade Ensino a Distância (EaD), quando soube
da existência de um mestrado interdisciplinar na área dos estudos das
Performances Culturais, na ocasião vinculado à Escola de Música e
Artes Cênicas (EMAC) também na UFG. Empolgada e apressada ante
a urgência do prazo de inscrição e demais datas de realização das etapas
do processo seletivo ao mesmo tempo que mergulhava numa bibliografia
inteiramente nova para mim, tentava entender o que eram as Performan-
ces Culturais e como elas se encaixavam com a minha área de formação
acadêmica e atuação profissional.
No decorrer do curso, compreendi que, como quase tudo que há, com
todas as suas tensões e múltiplos significados, o fenômeno museu pode
ser incluso na ampla relação de produções e manifestações humanas
passíveis de análise à luz transformadora dos estudos das Performances
Culturais. Neles, de forma semelhante, podemos encontrar as suas eta-
pas essenciais, estabelecidas pelo antropólogo norte-americano Richard
Bauman em 1977, conforme tradução feita pela socióloga e antropóloga,
também norte-americana, professora do Departamento de Antropologia
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Dra. Esther Jean
Langdon (2006):

1. Display (Langdon, 2006, p. 168): também nos espaços museais, a


mágica da performance somente se dá quando está à mostra, quando
museus e visitantes se exibem uns diante dos outros. Guardar e
não expor ao menos uma vez que seja ou expor e não ter ninguém
para ver é como não ter museu;
2. Responsabilidade de competência: o museu, valendo-se das compe-
tências de uma polivox (profissionais, técnicos, gestores, visitantes,
vizinhos, comunidades envolvidas com ele), assume a obrigação de

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

“exibir o talento e a técnica de falar e agir em maneiras apropriadas”


(Langdon, 2006, p. 168). Exibição feita por meio de suas posturas
políticas, pronunciamentos públicos, atividades artísticas, educativas
e culturais realizadas e discursos expográficos (ou expografia); o
jeito como são organizadas e montadas as exposições, a forma de
comunicação mais associada às instituições museais, a “maneira
mais apropriada” de fala e ação que elas têm;
3. Avaliação: ainda que em muitos casos não existam instrumentos
formais para tal, o museu está sempre sendo avaliado. Devorar
e ser devorado é a lei da selva. Definir e ser definido, a lei dos
homens. E quem define, avalia: isso é bom, isso não é. Volto
aqui, não volto ali. Libero a verba, não libero a verba. Patrocino,
não patrocino. O sucesso ou insucesso de um museu é também
medido por essas medidas;
4. Experiência em relevo: o discurso museal também é capaz de pro-
vocar nos visitantes “uma intensidade especial, onde as emoções
e os prazeres suscitados pela performance são essenciais para a
experiência” (Langdon, 2006, p. 168). Todos nós temos pratos e
cadeiras em casa, mas um prato e uma cadeira encontrados num
museu são uma outra coisa, como uma cachoeira, de repente,
no meio de um rio calmo. Ao entrar no acervo de um museu, o
objeto, por mais banal que seja, ganha uma aura de poder, um
relevo, que em outro lugar talvez não tivesse;
5. Keying: atos performáticos, como visitar um museu, “são momen-
tos de ruptura do fluxo normal de comunicação, são momentos
sinalizados (ou keyed) para estabelecer o evento da performance,
para chamar atenção dos participantes à performance” (Langdon,
2006, p. 169). Mesmo sem uma indicação explícita, grande parte

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dos que visitam um museu assim que adentram em seus espaços


assumem uma postura sagrada, comportando-se de forma silencio-
sa e obsequiosa, com as mãos postas para trás, como se estivessem
numa catedral ou num mausoléu. Afinal, considera-se comumente
que museus são lugares reverentes, seja uma reverência contida,
como nos museus tradicionais, seja uma reverência mais descon-
traída, como nos museus interativos4 e periféricos,5 por exemplo.
Além dessas cinco etapas essenciais apontadas por Bauman, as quali-
dades inter-relacionadas das Performances Culturais também são encon-
tradas nas performances museais:

1. Experiência em relevo: nos museus chegamos ao lago, plácido ou


agitado, da “experiência realçada, pública, momentânea e espon-
tânea” (Langdon, 2006, p. 175). A moldura que emoldura as suas
peças também emoldura as nossas vidas, dando-lhes um relevo
especial;
2. Participação expectante: um museu é como uma pororoca: só
existe no encontro, não acontece sem um público. Mesmo que seja
passiva, para que se complete a experiência museal é necessária a
participação dele, física ou virtualmente. A expectação num museu
e do museu é que nele seremos lembrados. Todas, todos e tudo
devem remar nesse barco. Quanto tal não acontece, há frustra-
ção, mesmo que indelével. “Por favor, não toque”, “mantenha
distância”, “não ultrapasse a faixa amarela”, “não faça barulho”,

4 Conforme as palavras da museóloga paulista Marilia Xavier Cury (2005), aqueles


cujas exposições são “comprometidas com a inteligibilidade e com a participação
cognitiva do público” (Cury, 2005, p. 368).
5 Considero neste estudo que os museus “periféricos” são aqueles destinados às
memórias dos “centros colocados à margem”, grupos costumeiramente distan-
ciados das instâncias de decisão dos poderes hegemônicos e silenciados nos
espaços museais “centrais”.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

“proibido alimentos, bebidas e fotografias”, “não interaja de forma


diferente ao manual de interação”: normalmente, é essa a expec-
tativa do museu tradicional quanto à participação dos visitantes
em suas performances públicas;
3. Experiência multissensorial: com todos os seus elementos, pre-
senças e ausências, uma visita a espaços museais contempla uma
miríade de experiências sensórias. Ainda que, em muitos casos, as
suas exposições contenham poucos elementos, neles, encontramos
palavras e imagens, luzes e sombras, sons e silêncios, cheiros e,
por vezes, até sabores. Se não em suas atividades-fim (pesquisa,
preservação e comunicação), em seus diversos recantos (restau-
rantes, auditórios, lojas de souvenirs);
4. Engajamento corporal, sensorial e emocional: corpo, mente, alma,
tudo ao mesmo tempo, agora. Creio ser esse o lema dos museus
pois quase nada valem, se neles não nos sentimos pulsantes, vivos.
Se neles não somos transportados, nem transformados;
5. Significado emergente: assim como em qualquer uma das produ-
ções e manifestações humanas em que se aplique o conceito das
Performances Culturais, uma visita a museus “implica na expe-
riência imediata, emergente e estética” (Langdon, 2006, p. 176).
É um mergulho, mesmo quando raso, marcado “pelo afeto na
obra e da obra como o queriam Langer/Geertz.” (Camargo, 2013,
p. 4, grifo nosso).
A contemplação nas performances museais de todas as etapas essenciais
e qualidades inter-relacionadas das Performances Culturais, formuladas
por duas importantes referências acadêmicas dessa área de estudos, atesta
que uma visita ao museu é um momento performático: instantes em que
as realidades cotidianas estão destacadas, “em relevo”, como se estivessem

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emolduradas; situações que têm a capacidade de nos transportar para


um outro lugar e um outro tempo, e de nos transformar.
Transporte e Transformação. Segundo o diretor teatral e professor
norte-americano Richard Schechner (2011a), um dos iniciadores do
programa de Estudos da Performance da Universidade de Nova Iorque,
essas duas ações são os desejados efeitos característicos possíveis das
Performances Culturais, que para ele são

eventos em que os performers são “transformações” modificadas


e aqueles em que os performers são levados de volta aos seus
lugares de origem, “transportes” – “transporte” – porque
durante a performance os performers são “levados a algum
lugar”, mas ao final, geralmente ajudados por outros, eles são
desaquecidos” e reentram na vida cotidiana no mesmo ponto
em que saíram. (Schechner, 2011a, p. 162-163).

Partindo do princípio de que performances são uma via de mão dupla,


necessitando que haja uma plateia que interaja com os proponentes
do ato performático, como indicado pelo primeiro item (“Display”)
da relação de etapas essenciais das Performances Culturais (Langdon,
2006, p. 168); e segundo o item “participação expectante”, da lista de
suas qualidades inter-relacionadas (Langdon, 2006), tanto os museus
quanto os que o visitam podem ser tomados como performers. O museu
está lá, apresentando as suas performances, e cada visitante, a cada visita,
faz a sua própria performance.
Acreditando nisso, considero que as instituições museais são um
privilegiado espaço para a consumação dos efeitos de transporte e trans-
formação apontados por Schechner (2011a), tanto para elas próprias
quanto para os públicos que a visitam. Sendo duas das suas funções
básicas a preservação e comunicação de memórias de culturas diferentes

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

da nossa, seja no tempo ou no espaço, os museus e nos museus, em suas


diversas atividades mas especialmente nas exposições, são lugares onde
facilmente “o performer vai do ‘mundo habitual’ ao ‘mundo performativo’,
de uma referência de tempo/espaço à outra” (Schechner, 2011a, p. 163).
Ainda de acordo com o autor (2011a, p. 164), “uma série dessas per-
formances de transporte podem alcançar uma transformação”. No caso
da experiência museal, a transformação pode ser considerada interna,
ou “sutil” como citado por Schechner (2011a, p. 166), acontecendo no
âmago de cada pessoa, por meio do contato feito com referências de
tempo-espaço diversas da sua. Nas performances museais, tanto o museu
quanto seus visitantes estão sendo a todo tempo levados a estar em contato
com outras referências de tempo e de espaço. Ambos são constantemente
transportados, assim como ambos estão sendo a todo tempo convidados,
pelo contato uns com outros, a serem mutuamente transformados.
Neste contexto, a “responsabilidade de competência”, relacionada por
Bauman como o segundo item das qualidades essenciais da Performance
(Langdon, 2006, p. 168), é maior para o museu, uma vez que “o prazer
que a audiência ganha em uma performance transformadora depende muito
da competência dos mais velhos e/ou dos profissionais que treinam,
guiam, desempenham e muitas vezes atuam com os transformados”
(Schechner, 2011a, p. 168).
Em que pese a imprevisibilidade da receptividade que o performer-­
‑público terá ante o desempenho do performer-museu, cabe a este último
colocar as “experiências em relevo”, item quarto das etapas essenciais das
Performances Culturais formulada por Bauman (Langdon, 2006, p. 168)
e primeiro das qualidades inter-relacionadas apontadas por Langdon
(2006, p. 175). Cabe ao museu apresentá-las de forma o mais competente
possível, utilizando para isso variadas “experiências multissensoriais”

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(item terceiro da mesma listagem de Langdon) capazes de levar o público


visitante a um “engajamento corporal, sensorial e emocional” (quarto
item dessa mesma lista) que lhe propicie encontrar o “significado emer-
gente” (quinto item) da performance.
Embasada nessa compreensão da inter-relação existente entre os
museus, a Museologia e as Performances Culturais – partindo do princípio
que, conceitualmente, museus são instituições que preservam, pesquisam
e comunicam memórias, no entanto, alguns deles, contraditoriamente,
provocam o esquecimento de algumas delas –, desenvolvo uma pesqui-
sa sobre museus criados para fazer esquecer memórias consideradas
indigestas. Ao mesmo tempo, busco colocar em evidência memórias
daqueles que permanecem ausentes da maioria das instituições museais
tradicionais patrimonialistas, apesar da permanência dos seus registros
e da exortação da Mesa Redonda de Santiago do Chile (1972) para que
tragamos os “povos tumultuados” (Junior; Trampe; Santos, 2012) para
dentro dos museus.
O fato de a orientadora ser museóloga como eu apenas facilitou a
nossa interação. Falarmos o idioma “museologuês” instalou uma imediata
comunicação entre nós duas. Ter interesses, conhecidas e conhecidos
em comum nessa área nos aproximou ainda mais. Tanto, que, como no
primeiro semestre do Mestrado eu estava finalizando a Especialização na
qual ela também é professora, tive-a como orientadora por duas vezes,
ao mesmo tempo. Tanto, que juntas realizamos atividades extracurricu-
lares, como a primeira edição do “Pergunte ao Autor”: uma atividade
que inverte a lógica da maioria dos eventos acadêmicos, pois ao invés
da convidada ou convidado ser interpelada após a sua explanação, é
a assistência quem primeiro se manifesta, questionando a autora ou
autor tomando por base a leitura dos seus textos. Tanto, que contribui
na pesquisa do pós-doutorado dela em visitas a museus em Salvador.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Meus principais objetivos com esta pesquisa são:


• Contribuição com os estudos das Performances Culturais em suas
relações com os museus e a Museologia e vice-versa;
• Apresentação do que estou chamando de Pacto Museal: o acordo
implícito, firmado entre a instituição museal contemporânea e a
sociedade, estabelecido por meio de normas jurídicas e infralegais
que regulam o campo da Museologia;
• Discussão sobre o que considero ser uma contradição existente
entre a teoria museológica e a prática museal: o rompimento do
Pacto Museal causado pelo silenciamento de memórias de pessoas
e grupos sociais subalternizados e/ou discriminados;
• Promoção de um debate sobre a função social dos museus, espe-
cialmente no que diz respeito aos grupos sociais que são alvo de
discriminação e preconceito;
• Apresentação de possiblidades de inclusão sociocultural nos
museus por meio da discussão dos conceitos de museus e per-
formances museais rizomáticas, desenvolvido tomando por base
a livre apropriação dos conceitos de Árvore e Rizoma (Deleuze;
Guattari, 1995); Afeto (Espinosa, 2014; Deleuze, 1997) e Fratri-
mônio (Chagas, 2005).
Desde a minha entrada no curso em março de 2015 e hoje ainda,
estou caminhando como o caminhante do poeta espanhol Antônio
Machado (1952), que faz o caminho ao caminhar, pretendendo ser como
o capoeira que aprende a ler pra ensinar seus camaradas6 e o “alguém”
de Bhabha (1998, p. 22), que vai além de si para voltar ao presente,
revisado e reconstruído.

6 Referência ao refrão da cantiga de capoeira.

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Dentre as coisas mais desafiadoras que vivi até aqui estão os prazos
de leitura. Ah, os prazos de leitura... A parte mais difícil desse Progra-
ma, aqui mencionada não apenas por mim. Dá pra imaginar o que é ter
que ler centenas de páginas, digeri-las num texto a ser apresentado ao
professor da disciplina em uma semana e na semana seguinte ter que
reelaborá-lo com base nas discussões feitas em sala de aula para ser
novamente entregue ao professor da disciplina, juntamente com o novo
texto da semana? Agora multipliquem por duas disciplinas, como a quase
maioria dos meus colegas fizeram, ou por quatro, como foi o meu caso
no primeiro semestre de curso. Toda essa correria é compensada pelo
tanto de pistas de conhecimento que a gente adquire.
Essa caminhada tem sido feita de mãos dadas a várias e variadas
mãos, o que me leva a afirmar que há de fato, interdisciplinaridade nes-
se Programa, haja vista o que acontece neste texto escrito a oito mãos,
como pontuado por nossa orientadora na introdução: pensem o que é
uma museóloga num curso ofertado por uma escola de artes cênicas,
tendo aulas com professoras, professores, alunas e alunos teatrólogas,
museólogas, filósofas, antropólogas, pedagogas, musicistas, educadores
físicos, físicos, historiadores, atores, atrizes... Isso me permitiu, além de
poder dele participar, encontrar diferentes pistas para me conduzir nessa
jornada incerta que é a vida na Academia e também fora dela, em meio
“a dor e a delícia de ser interdisciplinar”.

A dor e a delícia de ser interdisciplinar 


A escolha por um programa interdisciplinar é coerente com a minha
formação artística. Sempre me recusei a escolher uma vertente única dentro
da arte. Comecei na dança, desde a infância. Na graduação, optei pelas
Artes Cênicas, que cursei até o sexto período na Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), e Interpretação Teatral, cursado na

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Universidade Estácio de Sá. Paralelamente me formei em circo na Escola


Nacional de Circo, tendo como modalidade principal os aparelhos aéreos.
A especialização foi feita na Educação em Docência Universitária pela
antiga Universidade Católica de Goiás, atualmente Pontifícia Universidade
Católica de Goiás (PUC-GO). Optar pela interdisciplinaridade no mestrado
é, portanto, natural dentro de minha formação.
Sabemos que projetos de pesquisa nada mais são que projetos, sujeitos
às intempéries de campo e mudanças de direção causadas pelo contato
com outros estudos, principalmente em uma área de conhecimento tão
nova e abrangente. Entrei no Programa de Performances Culturais dis-
posta a estudar as artes como um todo, em suas inter-relações. Afinal,
esta é a abordagem desde o primeiro espetáculo da minha companhia
(Companhia Corpo na Contramão), realizado em 1991, chamado Furreca,
a Estória de um Palhaço que Era Triste, que reunia teatro, circo, fantoches e
marionetes (Borges, 2015). A diferença entre fazer uma pesquisa artística
no espaço de vinte anos e um mestrado no período de dois anos não
me pareceu um problema no momento de escrever o projeto. Ainda no
processo seletivo, fui avisada: prepare-se, porque vai mudar! E ainda
bem que mudou. Não foi sem dor, mas foi absolutamente necessário.
O projeto original se chamava A Evolução do Pensamento Científico e sua
Influência na Relação Ator/Espectador no Teatro e pretendia avaliar como as
mudanças determinadas pelas diferentes perspectivas trazidas à tona pelas
descobertas científicas estariam influenciando a forma com que o ator
se relaciona com seu público. A pretensão seria fazer um levantamento
sobre a evolução, ao longo da história, da forma como as diferentes lin-
guagens teatrais e os dramaturgos lidam com a relação ator/espectador,
analisando as linguagens cênicas através de um olhar que tire “o foco
exclusivo no elemento” e inclua “o foco nas relações” (Vasconcellos,

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2002, p. 112), apontando as conexões existentes entre o pensamento


científico e o desenvolvimento de linguagens teatrais.
Após inúmeros recortes e modificações, o projeto hoje finalizado
denominou-se As Performances do Circo na Rua: escolhas, expectativas e apren-
dizado do saltimbanco contemporâneo, título que ainda sofreu modificações
ao ser editado e tornou-se: Saltimbancos Contemporâneos: seu aprendizado,
suas escolhas e expectativas (Barreto, 2018). Teve por objetivo geral analisar
a performance do circense de rua na cidade de Goiânia e como objetivos
específicos estudar as relações entre as artes circenses e a área das Per-
formances Culturais; realizar um levantamento dos artistas circenses de
rua em atuação na cidade de Goiânia no período da pesquisa; verificar
as relações de ensino e aprendizagem entre eles; avaliar suas expectativas
em relação ao circo e ao trabalho na rua; contextualizar suas escolhas e
expectativas; pesquisar a que se deve o aumento de artistas de circo nas
ruas da cidade; verificar se são itinerantes ou se vivem na cidade; saber
se sua escolha pela rua é ideológica ou um sintoma de exclusão social.
Lendo, hoje, os objetivos em meu projeto de pesquisa, penso que
todos os recortes feitos ainda não foram suficientes. Ajudar-nos, como
pesquisadores, a confrontar o idealismo inicial com a realidade da pes-
quisa é, certamente, uma das árduas tarefas da orientação. No caso do
meu projeto, a interdisciplinaridade foi determinante para a escolha do
recorte, como irei esclarecer adiante, mas antes gostaria de falar um
pouco mais sobre minha relação com a interdisciplinaridade.
Entre os anos de 2007 e 2011 fui professora, juntamente com o pro-
fessor Marcelo Marques, da disciplina de núcleo livre Pronto Sorriso,
na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás (UFG),
graduação; e entre 2009 e 2011, da disciplina Humor no Cuidar, nas
Ciências da Saúde e de Educação em Saúde, pós-graduação. Como

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

disciplina de núcleo livre, o acesso não estava restrito aos alunos da


medicina, o que estimulou uma interlocução entre os cursos, através
da relação de troca entre os alunos dos mais diversos cursos, apesar da
absoluta predominância das faculdades da área de ciências biológicas.
Por serem disciplinas que tinham foco nas relações humanas, tinham
um caráter transdisciplinar, o que resultou na pesquisa de mestrado de
meu colega, denominada Transdisciplinaridade, Percepção e o Humor como
Forma de Cuidar: possibilidades de trans-formação na paisagem da educação em
saúde (Marques, 2014). Vem daí meu interesse pela interdisciplinaridade,
bem como pela transdisciplinaridade.
A interdisciplinaridade tem sido proclamada como uma aborda-
gem que apresenta a interação e a integração entre as diferentes áreas
de conhecimentos (Marques, 2014). O Programa Interdisciplinar em
Performances Culturais reúne duas abordagens ainda pouco exploradas:
a interdis­ciplinaridade e a área de performances culturais, estabelecida
como campo de conhecimento. Como todo tipo de abordagem, tem
suas vantagens e desvantagens. Como todo processo, está em constante
desenvolvimento, exigindo permanente avaliação e adaptação. Uma clara
vantagem da interdisciplinaridade é a troca de conhecimento em outras
áreas, fora da “caixinha” de uma área de conhecimento determinada.
É aqui que quero voltar ao meu projeto, especificamente. Determinar
um recorte talvez seja uma das mais difíceis ações dentro de tantas dificul-
dades com que nos deparamos no mestrado. Abrir mão de determinados
aspectos, escolher outros, fechar o foco do trabalho exige desapego, exige
que tenhamos uma abertura de visão que só a interdisciplinaridade é capaz
de oferecer. O contato com profissionais e disciplinas de áreas diversas
pode trazer um outro enfoque ao objeto de pesquisa. Este novo olhar
foi trazido, primeiramente, pela abordagem específica das Performances
Culturais. Uma grande quantidade de conceitos têm se abrigado sob o

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termo performance, mas as Performances Culturais firmam-se, sobretudo,


nos conceitos lançados por Victor Turner (1974, 2005a, 2005b, 2008a,
2008b) e Schechner (1985, 2006, 2011a, 2011b).
Meu trabalho tomou outro rumo ao longo do curso da disciplina Per-
formances Urbanas. Foi com base no referencial teórico oferecido que
decidi pelo recorte da minha pesquisa: a arte de rua. “Nada se conhece
em si próprio, mas em relação ao seu meio ambiente, à cadeia preceden-
te de acontecimentos, à recordação de experiências passadas” (Lynch,
1988, p. 11) e a imagem que o cidadão tem de sua cidade está repleta de
significações. Apesar de minha relação pessoal com a arte de rua, esse
olhar para a rua como objeto de estudo foi trazido pela disciplina e pela
orientação. O artista circense de rua vive a experiência urbana de um
ponto de vista bastante próprio e é visível o aumento da presença de
artistas de rua nas praças e nos sinais de Goiânia. Saber quem são eles,
de onde vêm, o que esperam e como aprendem a arte do circo pode
delinear um retrato do circo de rua na cidade de Goiânia.
É lógico que há dificuldades trazidas pela interdisciplinaridade, como a
falta de informação mais aprofundada em relação à área de atuação caso
ela seja diferente da área do orientador. No caso da minha pesquisa seria
uma situação quase que inevitável, uma vez que não havia pesquisadores
de circo no estado de Goiás que pudessem orientá-la. Assim, mais uma
vez, a interdisciplinaridade abriu possibilidades, trazendo para o trabalho
a visão das performances urbanas. A desvantagem existe, mas pode ser
sanada com coorientações, consultas a profissionais e pesquisadores da
área, participações em debates e congressos e na escolha da banca de
qualificação, convidando especialistas no tema, sem temer a inevitável
exposição e críticas. Assim, Ermínia Silva, Marco Antonio Bortoleto e
Márcio Corte Real deixaram de ser apenas meus referenciais teóricos
para serem companheiros nessa jornada tão árdua que é o mestrado.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Performances dos saberes: a criação de


expectativa como estratégia metodológica
Precisar minha aproximação dos Estudos da Performance é algo que
ainda guarda certo mistério, uma esfinge que não cessa de me devorar e
interrogar. Tendo partido de uma formação acadêmica e uma trajetória
profissional sempre ligadas à performance pianística – basicamente em
torno do que se convencionou chamar no Brasil de música erudita –,
em meu mestrado em Filosofia fui levado a um distanciamento siste-
mático e voluntário da performance como objeto de estudo que, então, se
afigurava como caminho natural de minha trajetória acadêmica ulterior.
Considerando ainda que após o término do mestrado minha atividade
profissional passou cada vez mais a se vincular ao mundo da teoria e
da cultura de modo amplo, como explicaria essa espécie de peripécia (no
sentido que Aristóteles confere ao termo em sua Poética) que trouxe de
novo ao centro de minhas preocupações intelectuais as práticas perfor-
máticas, sobretudo aquelas ligadas ao rap, gênero musical com o qual
raramente tinha tido contato ao longo de minha vida?
Talvez a primeira justificativa encontre respalda justamente no momen-
to em que o rap veio a se tornar um objeto de inquietação para mim.
No ano de 2014, acompanhei um breve movimento de ocupação de um
prédio abandonado localizado em Goiânia no Setor Oeste, na Avenida
Anhanguera, na altura do Teatro Inacabado. Este prédio abrigou por
diversos anos a realização de atividades do Festival Goiânia Em Cena,
além de outros eventos ligados às artes e à cultura, mas acabou sendo
posto em desuso nos últimos anos. O processo de ocupação foi rápido
– durou cerca de duas semanas –, mas suficiente para que congregasse
voluntários preocupados com questões de cunho social e cultural dispos-
tos a trabalhar para o fortalecimento daquele movimento. Dentre eles,

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encontrei alguns ligados à cultura hip hop; e com base nesse contato é
que percebi, concretamente, como a prática musical (o rap, no caso) se
vinculava a uma rede maior de práticas e questões, sobretudo àquelas
ligadas à realidade da vida nas cidades contemporâneas que, em grande
parte, têm suas dinâmicas recortadas e desenhadas por projetos econô-
micos que não cuidam de uma grande quantidade de questões subjetivas
e interpessoais de seus habitantes.
Formou-se, no contato com aquele movimento político tão rápido,
um problema que considerei levar adiante como objeto de estudo siste-
mático no curso de doutorado: as relações entre rap e a vida na cidade,
especialmente em suas dimensões éticas e políticas. No entanto, logo
percebi que os estudos em Filosofia (tal como em meu mestrado) não
seriam suficientes para cobrir todos os aspectos do tema que vinha (me)
perseguindo há algum tempo. Ao deparar com a perspectiva inter/trans/
multidisciplinar do curso de Performances Culturais, tive a expectativa
de retomar meu interesse pela performance musical de um ponto de vista
mais abrangente do que eu já tinha experimentado ao longo de minha
vida acadêmica. Já com a proximidade do meu exame de qualificação,
continua sendo pertinente perguntar até que ponto essa expectativa foi
suprida – pergunta esta que gostaria de responder retomando conceitos
dos Estudos das Performances Culturais.
Ao tentar trazer elementos para uma crítica da aula como instância
performática, Heloisa Capel (2011, p. 136-137) destaca tanto o aspecto
de jogo entre os sujeitos presentes no espaço-tempo em questão, como
ainda recupera o aspecto ritual da performance – tão caro à antropologia de
Victor Turner, por exemplo – e o fato de ela ser uma realização dotada
de teatralidade, simbolismo e que só encontra sua plenitude na forma e
na materialidade de sua realização. Essa autora dedica a maior parte de
seu artigo para problematizar a relação do corpo com a (per)forma(nce)

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

da aprendizagem para concluir que o corpo do estudante, numa aula


pensada como cena dominada pelo intelectual abstrato e pela burocracia
educativa, figura como um corpo inerte, apassivado, simples espectador
da performance docente. A este respeito, valeria mencionar duas passagens
em que a autora melhor explicita sua posição, dizendo que

as aulas-conferência, as conhecidas aulas expositivas em que


se pressupõe que o aluno é um mero receptáculo do conheci-
mento, é comum encontrar um corpo alerta, rígido, um corpo
autoritário e peripatético. As aulas-conferência se contrapõem
às aulas-colóquio e às aulas-oficina, experiências de conhe-
cimento partilhado mais dinâmico entre professor e aluno.
(Capel, 2011, p. 138).
O corpo autoritário é um corpo rítmico, disciplinado [...]
Estudar o corpo como objeto cênico, bem como o próprio
corpo como um equilíbrio entre o que está dentro e fora de
sua materialidade, parece-nos importante para compreender
a ação performativa do professor em cena. (p. 139).

Afirmo aqui que não se trata de imputar a docentes do Programa de


Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da Universida-
de Federal de Goiás o papel de corpo (docente) autoritário ou de conferir
aos estudantes do curso a imagem de sujeitos meramente passivos. Ao
trazer o texto em questão, busquei apenas ilustrar uma situação-limite,
contra a qual, aliás, a prática da pós-graduação tende a aplicar como
solução recorrente a prática do que a autora chama de aula-colóquio.
Trata-se da dinâmica de realização de seminários, bastante comum nas
aulas das pós-graduações e que, conforme desloca os estudantes para
o proscênio da aula, intenta torná-los protagonistas da performance educativa
de que são parte. Porém, alguns aspectos de nossas aulas merecem
considerações mais atentas.

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Em primeiro lugar, subvertendo um pouco a lógica da divisão que


Richard Schechner faz da performance em estágios, poderíamos indicar
que algumas práticas que legitimam o produtivismo como parâmetro
de julgamento da excelência acadêmica mitigam ou mesmo anulam os
ganhos que a colocação do protagonismo discente tenderia a acumular.
Nesse sentido, alguns desafios comuns ao nosso curso de pós-graduação
parecem compartilhados com a grande maioria dos demais, particular-
mente a sobrevalorização da escrita rápida em detrimento da leitura alongada;
a opção panorâmica e quantitativa de boa parte dos planos de curso em vez
da escolha estratégica e afunilada de referências bibliográficas; a ênfase na
avaliação exacerbada de um conjunto considerável de pequenas e grandes
produções em curto espaço de tempo em vez da opção pela extensão
do adiamento do juízo (como a crítica teatral durante bom tempo fazia
quando a crítica era fruto de um processo longo de convivência com a
mesma performance e, portanto, voltada a um histórico, e não a um presente
constantemente escrutinado). Essas práticas – repito: comuns a diversos
cursos, e cuja tendência é transformar a aprendizagem numa constante
e ininterrupta cena de exposição de produtos – pouco rompem com a
lógica das aulas-conferência.
Nesse ponto, não caberia defender um curso de pós-graduação sim-
plesmente “frouxo”, absolutamente sem tensões – afinal, mesmo o corpo
em repouso permanece ativo e esforça-se para não sucumbir à força da
gravidade. Verdadeiramente, é preciso assumir que o seminário/colóquio
como forma de aula requer um protagonismo necessário dos estudantes
e sem o qual nenhum processo de aprendizagem ocorreria com pro-
priedade. Trata-se somente – e isso não é pouca coisa, se bem pensado
– de reconhecer que a atuação em público, a avaliação do produto de uma
performance (mesmo que parcial, como toda performance é), a exposição de
um forma resultante de um processo, pressupõem bastidores e estágios

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

pregressos. Simplesmente, trata-se de evidenciar que o que se dá a ver


exige um campo considerável de não visto; que o dito (que constitui toda
escrita) e o lido (que requer uma cadeia de aprofundamento em diversos
outros lidos que lhe reverberem diretamente), quando inflacionados de
forma sistemática, transformam o estágio processual de avaliação em
ocasião de superaquecimento de toda a performance educativa.
Aqui, precisamente, o modelo de Schechner poderia, dentro de alguns
limites, nos instruir a respeito de como docentes e estudantes poderiam
fugir das relações hierárquicas de certas performances focadas excessiva-
mente nos atores (como nas aulas expositivas) ou nos diretores (como no
cenário de uma aula-performance sem pausa e silêncio). Além da proposta
de Capel (2011) de adotar aulas de imersão ou que utilizem a teatralidade
como recurso estruturante, penso que um dos desafios dos programas
interdisciplinares seria justamente reencontrar o equilíbrio entre o pros-
cênio e o background, entre o produto e o fundo de reserva que torna
sustentável sua emergência (e que, em boa parte, deve manter-se fora
da vista do público). Metodologicamente, seria importante encontrar o
equilíbrio entre o protagonismo e a ação, de um lado, e, de outro, aquilo
que Alvarez e Passos (2015) chamam de perspectiva de cócoras – posição
que congrega a atenção e o descanso do capoeirista como ampliação
das possibilidades.
Uma proposta como essa, aliás, não seria propriamente uma novidade,
mas parte de uma vertente dos próprios estudos da performance. Não é
exagerado relembrar que, contemporaneamente em certa fase de sua
produção, Victor Turner buscou uma renovação das metodologias de
pesquisa em performance pela própria renovação da aula como espaço de
experimentação, aplicando técnicas de encenação teatral como modo
de aprofundar a experiência intelectual dos antropólogos em formação
com base na vivência teatral. Há mais de uma década, o professor João

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Gabriel Teixeira (2006) já propunha algo semelhante ao que Turner


realizou nos Estados Unidos em seu artigo sobre estudos da performance
e metodologias experimentais no campo da sociologia da arte. Teixeira
retomará o conceito de artificação da socióloga Roberta Saphiro para
defender que a ruptura de barreiras entre as metodologias de pesquisa
e os processos de criação artística pode ser extremamente benéfica para
a renovação do campo de atuação da sociologia da arte – e, defendo eu
por extensão, também dos estudos da performance.
Comentando sobre o trabalho de Saphiro e o seu próprio, Teixeira
(2006) afirma que

a citada socióloga procurava demonstrar que ele não se refe-


re apenas aos objetos, às pessoas e às ações, mas também à
reclassificação das mesmas, ao enobrecimento das pessoas
envolvidas e à edificação de novas fronteiras. Segundo Shapiro,
a artificação implica também modificações no conteúdo, nas
formas de atividades e nas qualidades psíquicas das pessoas,
permitindo a reconstrução dos objetos, a criação de novos e,
mesmo, o rearranjo dos dispositivos organizacionais. [...] A
unificação desses processos, dos quais a nominação e a insti-
tucionalização são partes dependentes, conduz não somente
a um deslocamento da fronteira entre arte e não-arte, mas
também à construção de novos ambientes sociais, povoados
de identidades até então inéditas e em número crescente. [...]
Embora colocado sob a forma de hipóteses a serem discutidas
naquela ocasião, o experimento desenvolvido na Universidade
de Brasília demonstrou o seu caráter alternativo e seminal,
pelo menos do ponto de vista da experimentação artística.
[...] Existem diversas variantes, nuances e componentes desse
conceito-neologismo. Para o Núcleo, ele significou, mesmo
inadvertidamente, nesse momento, as experimentações pos­
síveis em sociologia da arte, durante um semestre, no, já cita-

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

do, curso optativo sobre “Arte e Sociedade”. O pressuposto


básico era mostrar mais uma vez como os estudos sobre a
performance podem se constituir numa possibilidade de utili-
zação das metodologias experimentais em sociologia da arte.
Insistentemente, obcecadamente, imperiosamente. (Teixeira,
2006, p. 44-45).
Sem medo de ser feliz, um alunado de quase trinta alunos
de graduação em ciências sociais se jogou na experiência,
sobretudo pela vontade de sair da rotina e experienciar os
processos comunicativos das emoções e dos sentidos subjetivos
dos textos acadêmicos. Nada de seminários ou aulas exposi-
tivas, mas a tentativa despudorada de expor o que Evreinoff
[sic], Geertz, Barroso, Freud e Minois, Goffman suscitaram
reflexivamente. A promessa era apenas a da confiança mútua
e da vontade de aprender ludicamente, se divertindo muito.
O trabalho ora apresentado certamente ficará entranhado no
espírito de cada um, “artificadamente”, “artimanhosamente”,
astuciosamente. (p. 45).

Se é como parte fundamental do próprio histórico dos estudos da


performance que as ciências sociais devem podem repensar suas metodolo-
gias com base nos processos artísticos, arriscaria retomar o pensamento
teórico-musical de Hans-Joachim Koellreutter, compositor que fez sua
carreira no Brasil – tendo sido influente em nomes importantes da música
de concerto e popular, como Tom Jobim e Tom Zé. Criador da técnica
composicional por ele denominada de planimetria, profundamente
influenciada pelas filosofias do Extremo Oriente, a estética musical
proposta por Koellreutter impactou em minha prática performática e
de pesquisa pela forma como entendia as relações entre som e silêncio –
metaforicamente, entre instantes de performance e de background ou ensaio

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–, nas quais o primeiro elemento (som, instante de performance) nada mais


é que um prolongamento do segundo (silêncio, background/ensaio).
Para uma pesquisa sobre performance musical amplamente ancorada na
filosofia como é a minha, o delay não é apenas uma resistência micro-
política contra a sanha produtivista de nossa academia; antes, é uma
necessidade metodológica que visa, dentre outras coisas, tornar concreta
hoje a proposta dos Estudos da Performance de romper com a rigidez da
disciplinaridade e do disciplinamento. O desafio de incorporar o silêncio
à nossa prática de aula, aliás, é resumido pelo próprio Koellreutter na
definição que faz desse termo:

Silêncio
1. Meio de expressão. Recurso que tende a causar tensão, em
consequência de expectativa. Não se restringe exclusiva-
mente à ausência de som. A Estética moderna abandona
a distinção tradicional entre som e silêncio, sendo que o
som não pode ser separado do espaço “vazio” do silêncio
em que ocorre (ver pausa).
2. Sensação causada por monotonia, índice alto de redundân-
cia, reverberação, simplicidade, austeridade, delineamento,
etc. (Koellreutter, 1990, p. 119).
Pausa
3. Ausência de som. Elemento de articulação que separa,
com distinção e clareza, as diversas partes da forma, de
um trecho ou de uma frase. (p. 103).

Nas performances dos momentos de aula, arrisco dizer, talvez ainda falte
buscar no teatro sua aura de mistério e de expectativa do protagonista
silente, que se retira do foco de luz e mesmo do palco por um instante.
A magia tática da espera causada pelo silêncio e pela ausência provisória

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

é que nos lança hoje o maior desafio de como sobreviver à deriva das
performances culturais (das quais a intelectual sem dúvida é parte) no mar
de exigências da vida acadêmica.
 No que concerne este último aspecto, o processo de orientação de
minha pesquisa de doutorado tem fornecido elementos para pensar o
processo de aprendizagem como construção de saberes para além dos
modelos da conferência e do colóquio. Por um lado, elas se aproximam
daquilo que Capel (2011) chama de aula-oficina, especialmente se
considerarmos o sentido mais comum de oficina como lugar de fazer,
manusear, inventar, consertar e concertar objetos fragmentados, dispersos,
sem forma definida. Por outro lado, penso que o momento da orienta-
ção tem se constituído como um espaço aberto, não só no sentido da
abertura intelectual da relação orientadora/orientando, mas também
a fim de ser um espaço que equilibra o ainda invisível da pesquisa em
gestação e o dar-se a ver paulatino da tese, do pesquisador-autor e – o
que é fundamental em minha pesquisa – dos sujeitos que têm colaborado
com suas histórias, performances, ideias e expectativas.
A orientação, para falar mais uma vez com os autores dos Estudos
das Performances, tem sido esse espaço que aceita circular em torno
do limen necessário que se forma entre o dito e o visto, de um lado, e a
paciência metodológica tática sem a qual nem a minha pesquisa poderia
surgir. Paciência, significando não apenas parcimônia; paciência como
estratégia de lidar com o afetar-se (pathos, de onde vem paciência, tem esse
sentido) do pesquisador que se deixa envolver pelo que estuda. Ainda
que não disponhamos de tempo infinito – e mesmo que dispuséssemos,
isso não garantiria a emergência de saberes –, no entanto algum tempo,
mais do que a aula exige, é necessário para firmar posição autoral sobre
o que se propõe estudar. Paciência, então, remete ao ato, mas sobretudo
ao tempo e à qualidade com que se experimenta a expectativa. É preciso

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deixar-se afetar por ela, evitar provisoriamente que ceda, que dê lugar
ao conceito e ao tema em sua forma derradeira no texto. Afetar-por e
aprender a suportar e incorporar o limen na prática da pesquisa: eis o
desafio lançado por quem se arrisca entre e propõe a criação de saberes
ainda desconhecidos.

Impressões finais
Os comentários das orientandas e orientando feitos anteriormente
comprovam que, como preconiza a pedagogia, é preciso repensar e
reavaliar constantemente a dinâmica das aulas e os instrumentos de
avaliação, bem como sugerir medidas de equilíbrio entre as exigências
de produção intelectual e a necessária e salutar reflexão sobre o fazer
científico.
Há que atender às exigências mínimas de nossas agências financiado-
ras – Capes e CNPq –, sem as quais pouco poderíamos fazer. Alguns de
nossos alunos não poderiam concluir o curso se não fossem as bolsas
concedidas. Nosso doutorado não estaria acontecendo sem o parecer
criterioso e aprovador da Capes, com o qual pudemos iniciar o doutorado
com apenas três anos de funcionamento do curso de mestrado. Contudo,
o que todos e todas queremos é a produtividade sem adoecimento de
docentes e discentes, fato que vem ocorrendo com frequência, como
as pesquisas já vem atestando, como as de Ávila Assunção e Andrade
Oliveira (2009) e Bones Rocha e Sarriera (2006), por exemplo. Este texto
escrito de forma colaborativa é uma tentativa de atender às demandas
de produtividade científica, respeitando o tempo de elaboração mental
e de produção da escrita de cada um dos orientandos, sem sobrecarga
de esforço e trabalho.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Pelos depoimentos anteriores e pela observação dos demais discentes


nas atividades em sala de aula, vê-se que é preciso reconsiderar constan-
temente as práticas docentes. Saber oferecer o que cada turma precisa,
em seu tempo especial, refazer as rotas e os instrumentos de avaliação
a cada novo grupo de alunos ou acontecimento, respeitar e até mesmo
estimular seus silêncios plenos de significado – como todos os silêncios
aliás –, é tarefa difícil e que põe à prova as convicções e posturas pessoais
e acadêmicas.
Voltando às palavras de Daya, que arrisco afirmar que não se referem
apenas ao trabalho de pesquisa e redação da dissertação, mas certamente
à relação orientadora e orientanda:

Certamente não é uma tarefa fácil. Categoricamente chegar


até aqui também não foi. Seguramente eu não sou a mesma
professora que começou este trabalho. Retorno para a sala
de aula (espaço de dança [e de teatro, como sugere Thiago
Cazarim algumas linhas acima]), com histórias pra contar e
muitas ainda para resolver interna e gestualmente. (Pereira,
2016, p. 182).

Faço minhas as palavras de Dayana, encerrando assim este relato.

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MORGANA BARBOSA GOMES (MORGANA POIESIS) | MURILO BERARDO BUENO

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LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Tradução Maria Cristina Tavares
Afonso. Lisboa: Edições 70; São Paulo: Martins Fontes, 1988.

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COLEÇÃO PESQUISA | ROBSON CORRÊA DE CAMARGO | JOANA ABREU |
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MACHADO, Antônio. Campos de Castilla. Sevilla: Rincon Castellano,


1952. Disponível em: http://www.espacioebook.com/sigloxx_98/
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MARQUES, Marcelo dos Santos. Transdisciplinaridade, Percepção e o Humor
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PEREIRA, Dayana Gomes. Memória, Corpo e Performance: A Dança
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· 292
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

TURNER, Victor. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Tradução


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Communitas. In:______. Dramas, Campos e Metáforas. Eduff, 2008a.
TURNER, Victor. Dramas, Campos e Metáforas: ação simbólica na
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Disponível em https://performancesculturais.emac.ufg.br/up/378/o/
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VASCONCELLOS, Maria José. Pensamento sistêmico: o novo paradigma
da ciência. Campinas: Papirus, 2002. 

293 ·
OS BANHOS POLÍTICOS DA VÊNUS CAÔZEIRA

RAÍSA INOCÊNCIO

Resumo: Pretendo, neste trabalho, traçar um panorama esquemático


sobre a performance “Vênus Caôzeira”, com base na fundamentação
teórica em Gilles Deleuze, Felix Guattari e Suely Rolnik, e na meto-
dologia de cartografia sentimental e análise do desejo. Como parte
do processo criativo e engajada em promover a descolonização do
pensamento, também pretendo apresentar a referência às práticas
populares, indígenas e afrocentradas no banho como prática de cura,
cuidado de si e proteção.
Palavras-chave: Ativismo. Filosofia contemporânea. Descoloni-
zação do pensamento.

A filosofia se reterritorializa, então, sobre o conceito. O con-


ceito não é objeto, mas território.
Deleuze e Guattari, 1991, p. 91, tradução nossa

Pretendo traçar neste texto uma introdução ao projeto de pesquisa


em Filosofia que se intitula “Vênus Caôzeira: uma cartografia estética”
com base na metodologia de cartografia sentimental de personagens
conceituais e paisagens psicossociais proposta pela psicanalista Suely
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Rolnik através do qual podemos compreender a formação da imagem


e subjetividade feminina brasileira. Aliada à parte teórica, realizo uma
performance1 como atualização contemporânea da temática, através da ação
que consiste em “banhos”, oriundos da tradição popular das rezadeiras,
assim como de outras influências afrocentradas e indígenas. Tomarei
como figura principal que revela o artivismo nos banhos os quais prati-
co e que tratarei neste texto em conjunto a metodologia de cartografia
sentimental proposta por Suely Rolnik.
De início, é importante dizer que o projeto de pesquisa se apresenta
como “descolonial”, em uma dialética estética entre a política de subjeti-
vação de origem colonizadora e a proposição de novas estéticas engajadas
como performances culturais, produtoras de real social e agenciamento do
desejo coletivo. Aqui se encaixa com a proposta temática da publicação
de performances culturais como parte de intervenções no espaço público,
com base em referências no ativismo estético político com a formação
de novos olhares e práticas artísticas.
Para dissertar sobre o tema, convém mostrar como referência metodo-
lógica o livro Cartografias sentimentais: transformações contemporâneas do desejo
(2006), no qual Suely Rolnik faz um estudo sobre a análise do desejo,
criando uma cartografia pela qual o objeto de estudo, a mulher que ama,
possa deixar de ser “simplesmente um objeto de imagens pré-estabelecidas
e que ela possa se mostrar como uma presença viva” (Rolnik, 2006, p.
45). No texto, a autora se baseia na filosofia de Deleuze e Guattari (1980)
sobre os conceitos de agenciamento dos acontecimentos produtores de
real social e, também, tanto na ideia de criação de personagens conceituais
presentes na obra Qu’est que c’est la philosophie (Deleuze; Guattari, 1991)
quanto na divisão do desejo em três movimentos ou três linhas da vida:

1 Mais informações no portfólio disponível em: https://cargocollective.com/


inocencioraisa/Banhos-Bath-s-Les-Bains.

· 296
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

linhas de territorialização, linhas de simulação e linhas de desterritoria-


lização (Rolnik, 2007).
A primeira linha de territorialização é a linha da “verdade”: a repre-
sentação estática, o território fixo, o consciente, o trabalho, o futuro, a
carreira, a história. O que, em diversos textos, Deleuze e Guattari chamam
de “macropolítica” em sua ampla extensão, que vai desde os mecanismos
de controle social (tais como, a escola, o hospital e a prisão), às práticas do
quotidiano familiar e, mais especificamente, à cristalização existencial na
subjetividade. O segundo movimento do desejo é a produção cognitiva:
os agenciamentos das matérias de expressão, a simulação do inconsciente,
o “finito ilimitado” (Rolnik, 2006, p. 55), fundado sobre a utilização de
máscaras e produção de sentidos. Enfim, o terceiro movimento do desejo
é a produção de intensidades, ou seja, a desterritorialização, o que pode-
mos chamar de partículas soltas de afeto, pequenas chamas de devires da
loucura, o inconsciente, o “energético”, a linha de fuga. Pode-se dizer de
outra maneira que esses três movimentos são apenas dois: o inconsciente
vibrátil e o consciente territorializado (Rolnik, 2006, p. 53).
Essas três linhas da vida ou três movimentos do desejo são desenvol-
vidos para entender como a noção de cartografia subjetiva e os persona-
gens conceituais “cartografados” nos auxiliam a dar corpo e presença às
práticas performativas nos espaços públicos, os quais provocam a ativação
de matérias de expressão e a produção do desejo sobre o real social.
Com base nessa breve explanação, volto ao livro Cartografia Sentimental,
no qual Rolnik nos mostra a criação de vinte e quatro personagens con-
ceituais. Para a conceituação da performance de banhos políticos, apoio-me
em dois destes personagens, “o coronel-em-nós” e a “noivinha antropó-
faga tropicalista”, para introduzir o método e os exemplos estéticos que
se ligam à pesquisa cartográfica. Os dois personagens encarnam as linhas

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de desejo segundo seus modos de vida e suas políticas de subjetivação: o


coronel-em-nós e seu complexo de esposa-e-amante, casa grande e senza-
la, no qual seu ego domina e comporta um caráter de dominação cultural,
política e econômica. Aqui entra a primeira palavra do título: Vênus. Por
que Vênus? Para mostrar a representação feminina nessa personagem
conceitual, na qual a figura estética da deusa Vênus simboliza, desde Platão,
o olhar masculino dominante que transforma a imagem clássica de uma
arte erótica numa “macropolítica” do desejo. A palavra “Vênus” porta
em si mesma uma tradição histórico-científica que representa a tradição
clássica em torno da conceituação da beleza, do amor e do feminino, mas,
igualmente, a influência ocidental que foi diluída e aglomerada na cultura
dos países colonizados dos quais o Brasil faz parte.
A segunda personagem apresentada por Rolnik é a noivinha antropófaga
tropicalista, personagem conceitual que a autora descreve como capaz de
transpassar os medos operados pelo coronel-em-nós que, para dominar a
subjetividade em uma cultura do medo e da violência, utiliza três tipos de
medo no chamado inconsciente colonial: o medo da morte, o medo do fra-
casso e o medo da loucura. Aqui, para o projeto, acrescento ao nome Vênus
o adjetivo “caôzeira” a fim de, com os termos antropofágico e tropicalista,
atualizar a relação de resistência à política de subjetivação dominante.
Por que caôzeira? A palavra é uma gíria aplicada, principalmente no
Rio de Janeiro, para definir uma pessoa que desenvolve um discurso
charmoso, sedutor e poético com o fim de convencer o outro de seu
modo de vida (caô também tem o sentido de causar qualquer coisa, um
evento, uma situação etc). A mulher que é caôzeira o é frente ao homem
“dominante”, como uma resposta à cultura do medo e da violência
imposta e assujeitada como um modo de vida submisso.
Aqui me concentrarei em apresentar a segunda parte da dialética
entre o coronel-em-nós e a noivinha-antropófoga-tropicalista reunidos

· 298
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

na personagem Vênus Caôzeira, introduzindo a prática performática


como parte de um engajamento coletivo e de gênero. Para tanto, antes
de falar sobre o trabalho dos banhos que realizo em paralelo, gostaria
de dissertar um pouco sobre os critérios para a cartografia do desejo e
sobre algumas artistas que me influenciaram.
O primeiro critério toma o desejo como fabricação incessante de mundos com
um pensamento nômade desterritorializado “imanente a um plano de
consistência, dado que os objetos e os sujeitos são criados no mesmo
tempo que o plano” (Rolnik, 2006, p. 45). Segundo a autora (2006), o
plano de consistência não é intrínseco ao ego e também não vem de
um ego exterior nem de um não ego. O plano de consistência é o efeito
singular que se passa quando o corpo vibrátil reage aos encontros alea-
tórios e forma assim um território existencial. Esse critério é importante
para a conceituação das práticas performáticas dos “banhos políticos”.
O segundo critério é a produção de real social como o processo de uma
“reterritorialização”. Para compreender esse critério, Rolnik (2006) cita
Oswald de Andrade e seu Manifesto Antropófago, no qual ela apresenta a ética
como extra-moral, ilustrada com a criação do matriarcado de Pindorama
e de exemplos como o pensamento nômade ou a noção de festa ou do
carnaval. A antropofagia que nos interessa tem como intuito efetivar a
“saída do inconsciente colonial”. Visto que a resistência subjetiva começa
por essa saída, que nos reduz a uma exploração doméstica no sentido
operado pela filósofa Silvia Federici no livro Caliban e as Bruxas (2004),
os banhos realizados operam uma atenção singular para a ativação do
corpo vibrátil, a produção do desejo e do real social. Rituais estes que
apresentam o universo do feminino no seu contato íntimo, doméstico
e, por isso, ligados ao desejo e ao real social.
Com base nessa pequena explanação conceitual, tomo como exemplo
algumas artistas que me influenciaram sobre as práticas de banho, que

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comentarei em seguida: Grada Kilomba (2016) e Fabianne Borges (2010).


Grada Kilomba estudou filosofia e psicanálise, é bisneta de escravos,
portuguesa de origem de Angola e das Ilhas de São Tomé e Príncipe.
Trabalha com a plataforma da performance, na qual seus principais tra­
balhos são sobre os reflexos entre o inconsciente colonial e uma prática
política terapêutica que envolve a estética como um método de reflexão,
não somente na arte contemporânea como também no teatro e no
cinema. Fabianne Borges é artista, psicanalista e pesquisadora, realizou
seu doutorado em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP) com a orientação de Suely Rolnik e Peter Pàl Pelbart.
Através da rede chamada “Tecnoxamanismo”, entrei em contato com
o seu trabalho. Fabianne propõe um trabalho esquizoanalítico tempo-
rariamente intitulado “Sequestro e anti-sequestro dos sonhos”. Em seus
textos e práticas rituais, Borges pensa o tecnoxamanismo como uma
“clínica social do futuro”, criando rituais que orquestram o encontro
entre o “faça-você-mesmo” (do-it-yourself) e as novas tecnologias com e
para a defesa das tradições indígenas e afro-brasileiras.
Nos processos de imersão com o tecnoxamanismo, comecei e passei
a exercer como trabalho performático os banhos (Figura 1), a princípio
inspirados no mito do nascimento da Afrodite, depois aprofundados
com a pesquisa sobre as rezadeiras nordestinas e as práticas brasileiras no
Candomblé e na Umbanda. Apoio-me num repertório de gestos e obje-
tos que formulam uma cena, os quais Renato Cohen chamou elementos
míticos (Cohen, 2002). Por isso, o ditado popular “tens que tomar um
banho de sal grosso!”, por exemplo, me inspira a fazer os banhos com
elementos tais como o sal grosso, a arruda, rosas e ervas aromáticas
(Figura 2). Cada evento toma um resultado diferente, dialogando com
o público; o performer e o espectador se mesclam em seus diferentes
papéis, provocando um banho também naquele que assiste a performance.

· 300
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Figura 1 - Banho em Caraiva. Bahia. 2014

Foto: Pierre-Emmanuel Urcun.

Figura 2 - Ervas e elementos para o Banho

Vênus em Xanadona. Galeria Gentil Carioca. Rio de Janeiro. 2014. Foto: Raisa Inocêncio.

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Banhos nasceu do desejo de incluir na pesquisa em filosofia descolo-


nial o artivismo, tanto homenageando as rezadeiras nordestinas quanto
com o intuito de provocar uma discussão sobre política e memória do
corpo e do desejo.
Vale frisar que, antes da pandemia, os banhos ritualísticos não eram
públicos e as performances-banhos em mostras, festivais e na rua tinham
como única reza a desmilitarização da polícia militar brasileira, especialmente
a do Rio de Janeiro. Por isso, trata-se de uma performance estético-política
que aos poucos foi se emancipando da sua própria raiz acadêmica e
tornando-se o que se é: uma prática de reza e de cura da ferida colonial.
A performance já foi realizada em exposições com a temática feminista
como em 2017, no II Festival de Arte Feminista Chouftouhonna de Tunis
(Tunísia); em 2016, na exposição Xanadona, na Galeria Gentil Carioca;
e em 2015, na III Mostra de Arte Pós-porno na Galeria POPA (Buenos
Aires, Argentina). Também em eventos como o II Encontro Desfazendo
o Gênero (UFBA, Bahia, 2016); no Sarau Tropicaos; no projeto Hotel
da Loucura (Figura 3) (Hospital Nise da Silveira, Rio de Janeiro, 2013-
2015) e no programa de web TV Zona Eleitoral (Vila Mimosa, Rio de
Janeiro, 2014), entre outros.

· 302
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Figura 3 - Vênus no Hotel da Loucura

Sarau Tropicaos. 2013. Rio de Janeiro. Foto: Thiago Diniz, Norte Comum.

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Para concluir, o desejo dessa intervenção foi de mostrar uma dialética


para a saída da cultura dominante que impõe ao inconsciente um viés
colonial em uma estética feminina através de uma era “farmacoporno-
grafica” (Preciado, 2008, p. 25), atualizando assim uma economia erótica.
Apoia-se também na cartografia estética, no estudo arqueológico da
tradição iconográfica feminina encarnada no conceito esquemático do
mito do nascimento de Afrodite (Didi-Huberman, 1999).
Através da conceituação das paisagens psicossociais e da análise do
desejo das personagens conceituais propostas por Suely Rolnik (2006)
– no caso, o coronel-em-nós e a noivinha-antropófaga-tropicalista – e
os critérios para a realização de uma cartografia sentimental, tais como a
produção do real social e o desejo como fabricação de mundos, o texto
teve como intuito tanto revelar os universos descolonizadores nas práticas
performáticas cujo leitmotiv são os estudos de gênero, da psicanálise
e da desconstrução da subjetividade colonial como também mostrar,
na cartografia, casos de manifestação artística contemporânea como
performance cultural, por exemplo, o tecnoxamanismo, especificamente,
a prática dos banhos e o ativismo de gênero.

Referências
BORGES, Fabianne. Domínios do Demasiado. São Paulo: Hucitec
Editora, 2010. Disponível em: https://catahistorias.files.wordpress.
com/2011/01/dominios-do-demasiado_ultima-prova.pdf. Acesso
em: 01 mar. 2014.
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2002.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille plateaux. Paris: Éditions
de Minuit, 1980.

· 304
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est que c’est la philosophie.


Paris: Éditions de Minuit, Paris, 1991.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ouvrir Vénus: Nudité, rêve, cruauté.
Paris: Éditions Gallimard, 1999.
FEDERICI, Silvia. Caliban and the Witch. Brooklyn, NY: Autonomedia.
2004. Disponível em: https://libcom.org/files/Caliban%20and%20
the%20Witch.pdf. Acesso em 01 ago. 2020.
KILOMBA, Grada. Plantation memories: Episodes of Everyday Racism.
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10 jul. 2017.
PRECIADO, Paul Beatriz. Testo Yonqui. Madri: Espasa, 2008. Disponível
em: https://antropologiadeoutraforma.files.wordpress.com/2013/04/
preciado-testo-yonqui.pdf. Acesso em 01 jul. 2020.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas
do desejo. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006.

305 ·
INTERMEDIALOGIAS: GRUPO DE
INTERFERÊNCIA AMBIENTAL

MORGANA BARBOSA GOMES (MORGANA POIESIS)1

Resumo: Neste texto, efetuamos uma leitura das performances artísticas


do Grupo de Interferência Ambiental (GIA), a saber, Samba GIA,
Cerveja GIA, Caramujo, Quartel General, Carrinho, Pic Nic, Cabine DR,
Judas e Flutuador, com base no programa ambiental de Hélio Oiticica
e na estética relacional de Nicolas Bourriaud.
Palavras-chave: Performance artística. Interferência ambiental. Esté-
tica relacional.

Grupo de Interferência Ambiental


O Grupo de Interferência Ambiental (GIA) é um coletivo artístico
composto por artistas visuais, designers, arte-educadores e músicos,
criado em Salvador (BA), e atuante desde 1996.

1 Doutora em Performances Culturais pela Universidade Federal de Goiás (UFG),


mestra em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), especialis-
ta em Comunicação e Política pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB, graduada em Comunicação Social).
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Aleatoriedade, humor e reflexões a respeito da vida cotidiana e


suas singularidades: talvez esses sejam pontos chaves do GIA,
coletivo artístico que foge a qualquer tentativa de definição. O
grupo é formado por artistas […] que têm em comum, além
da amizade, uma admiração pelas linguagens artísticas con-
temporâneas e sua pluralidade, mais especificamente àquelas
relacionadas à arte e ao espaço público. Pode-se dizer que as
práticas do GIA beberam na fonte da arte conceitual, em que
o estatuto da obra de arte é negado, em favor do processo e,
muitas vezes, da ação efêmera, buscando uma reconfigura-
ção da relação entre o artista e o público. Um dos principais
objetivos do grupo é a utilização de meios que possibilitem
atingir uma margem cada vez maior de pessoas, tomando de
assalto o espaço público. Assim, as ações do GIA procuram
interrogar as condições em que os indivíduos atuam com os
elementos do seu entorno, produzindo, assim, significados
sociais. E esses significados, são também, processuais, pois
segundo John Cage “o mundo, na realidade, não é um objeto,
é um processo”. O GIA, portanto, está disposto a questionar
as convenções sociais sempre que possível, através de práticas
concretas infiltradas em pequenas transgressões. A estética
GIA, baseada na simplicidade e ao mesmo tempo irônica,
procura mostrar, portanto, que a arte está indissoluvelmente
ligada à vida. (GIA, 2008, p. 3).

Com um discurso que se pauta nos conceitos da antiarte, o GIA


acumula em sua história performances artísticas feitas e rarefeitas em diver-
sos momentos e lugares: Quartel General (QG), Quanto, Balões, Carrinho,
Caramujo, Pipoca, Baba na Ladeira, Arrumadinho, Flutuador, Departamento de
Interferência Ambiental (DIA), Fila, Régua, Cama, Pic Nic, Sorriso Amarelo,
Não Propaganda, Manual do Gato, Sapato de Papelão, Rabo do Tamanduá,
Salão de Maio, Curtir e Não Curtir, O GIA cozinha pra você, entre outras.

· 308
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Essas interferências aconteceram com maior frequência na Bahia, mas


também em outros estados (Pernambuco, São Paulo, Espírito Santo, Rio
de Janeiro, Ceará, Minas Gerais) e países (Alemanha, França, Espanha,
Holanda e Bélgica).
O processo criativo do GIA dá-se com base nos encontros dos inte-
grantes do grupo entre si ou com os seus amigos. As reuniões acon-
tecem em suas sedes provisórias ou na casa das gias e são a condição
primeira para o surgimento das performances, como consequência de um
movimento espontâneo entre o prazer do encontro, as amizades, as
questões da cidade e de um processo criativo que aproxima a arte e a
vida, tal como propuseram as vanguardas artísticas na década de 1960.
Sobre essa concepção, Canton (2011, p. 9) diz

hoje a arte faz por si só essa aproximação, misturando cada vez


mais questões artísticas, estéticas e conceituais aos meandros
do cotidiano, em todas as instâncias: o corpo, a política, a
ecologia, a ética, as imagens geradas pela mídia, etc.

Nas reuniões do GIA, a culinária revela-se como experimentação, tor-


nando-se símbolo frequente na divulgação dos trabalhos do grupo, que já
chegou a se denominar como “um grupo de arte-culinária”. O compar-
tilhamento virtual desses encontros produz não apenas a multiplicação
das suas experiências, mas também uma demonstração, característica da
performance artística, daquilo que se faz. “Mostrar-se fazendo é performar:
apontar, sublinhar e demonstrar a ação” (Schechner, 2003, p. 26).

Pauta da reunião GIA – 7 de Junho de 2012:2

dinâmica da informação

2 Textos retirados do blog do GIA. Disponível em: http://giabahia.blogspot.com.


br/. Acesso em: 05 ago. 2017.

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saruê, sariguê, marsupial


chuva
aa
mestrado
Vitória da Conquista
cabine DR
correio elegante
residência Água no Feijão
festa no Santo Antônio
necessidade de cálcio
qualidade das mostardas
choro de cebola
propriedades do cacau
boa vizinhança
os inesquecíveis aniversários de Tiaguinho
ninhadas de cachorro
técnicas de adestramento
criações selvagens
campanha de risada
etc.

Arroz à moda paulista – por Michele Mattiuzi

Ingredientes: 300g de carne de charque; 1 linguiça calabresa; 200g


de bacon; 2 cebolas médias; 1 cabeça de alho; 2 copos e meio de
arroz; um pouco de tempero verde (salsinha ou coentro); cominho,
pimenta do reino à gosto; 1 cenoura cortada em cubinhos; 1 colher
de óleo de coco; 2 limões espremidos; Modos de preparo: Misture
tudo; Líquidos: Cerveja GIA, licor de jenipapo e licor de cacau.

A performance artística como forma heterogênea produz expressões


que correspondem às proposições conceituais dos sistemas filosóficos
abertos. Seu hibridismo característico associa livremente linguagens
múltiplas – como as artes visuais, o teatro, a dança, a música, a poesia,

· 310
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

a culinária, entre outras –, deslocando, ainda, o termo “performativo”


do campo estético para outros campos do conhecimento, de modo a
compor o vocabulário de análises críticas das mais diversas áreas.

Do ponto de vista teórico, o estudo da performance desloca-se


do campo estético para o da fenomenologia e dos aspectos cul-
turais, antropológicos e sociais envolvidos nessas ações. […] Na
investigação do corpo, os inúmeros trabalhos de escarificação e
body-modification apontam o renascimento da body art e importantes
confluências entre moda e arte da performance. Na pesquisa do
corpo estendido nas redes, na interface com novas tecnologias
telemáticas, artistas […] transitam no território nos sistemas
performativos, construindo avatares, campos de telepresença
e teleimersão e reiterando a estética de eventos. No contexto
do multiculturalismo, a discussão da performance contemporâ-
nea aponta também para a questão de gênero, propondo uma
série de ações que expressam posições políticas em relação à
identidade feminina e homossexual. […] No contexto midiático
contemporâneo, a arte da performance tem sido apropriada
pela indústria cultural. […] Como resistência a essa apropriação,
surgem contextos de ações na rede, em experiências de mídia-
-ativismo e rádios-livres, com novíssimos grupos colaborativos.
(Guinsburg, 2009, p. 268 e 269).

A história da performance artística, bem como a recente inserção desse


termo em diversos campos do conhecimento, demonstra a complexidade
da sua definição como linguagem. Embora já fixadas na história da arte
e no mercado cultural, as expressões performativas seguem em suas
provocações aos limites impostos sobre a expressão e o pensamento.
Se a complexidade na elaboração da performance artística lhe conferiu
historicamente um lugar de difícil alcance conceitual, tampouco simples
seria determinar a sua função, bem como da arte em geral, o que estaria

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condicionado a circunstâncias culturais específicas (Schechner, 2006). No


entanto, as performances artísticas do GIA atuam mais para potencializar
características singulares da nossa cultura do que na produção de um
estranhamento característico dessa linguagem.

Museu é o Santo Antônio


Se para Hélio Oiticia o museu era o mundo, para o GIA, o museu é o
Santo Antônio, bairro histórico da cidade de Salvador-BA, onde os seus
integrantes residem e se encontram, bem como a maior parte das suas
performances artísticas acontecem. O Santo Antônio acolhe um eferves-
cente movimento cultural, no qual o GIA está implicado, produzindo
coletivamente um cotidiano criativo que resiste ao mercado mobiliário
da cidade. Compreendemos a ocupação desse bairro como o que Nicolas
Bourriaud denomina de estética relacional, segundo a qual as obras fun-
cionam como dispositivo para produzir encontros casuais, individuais e
coletivos, tendo em vista as relações de vizinhança cultivadas pelos seus
moradores, nas quais se inscrevem as composições artísticas. Segundo
Bourriaud (2009, p. 40),

além do caráter relacional intrínseco da obra de arte, as figu-


ras de referência das esferas das relações humanas agora se
tornaram formas integralmente artísticas: assim, as reuniões,
os encontros, as manifestações, os diferentes tipos de cola-
boração entre as pessoas, os jogos, as festas, os locais de
convívio, em suma, todos os modos de contato e de invenção
de relações representam hoje objetos estéticos passíveis de
análise enquanto tais.

O desejo de comunidade vivenciado no Santo Antônio sugere se­­


melhanças com a Greenwich Village norte-americana, que viria a com-

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

por a história da performance artística na década de 1960, guardadas as


diferenças espaço-temporais. “As cidades, percebia-se, precisavam de
uma injeção do espírito de comunidade, para a cura de seus males”
(Banes, 1999, p. 48). Com base nessas produções culturais coletivas e,
consequentemente, no domínio público da arte, sugerimos uma leitura
do Santo Antônio como museu expandido do GIA.

Samba GIA

Figura 1 - Samba GIA

Cachoeira, BA. Fonte: Arquivo do GIA.

O samba como gênero musical característico da cultura brasileira, com


forte expressão na Bahia, é apropriado pelo GIA, não apenas como forma
de popularização da arte contemporânea, como o foi também para Oiticica
(2011, p. 75), para quem “o samba [...] veio como uma necessidade vital de
desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão”, mas, ainda,
como uma espécie de registro expandido das suas performances. As letras
do Samba GIA (Figura 1) remetem às performances artísticas do grupo, em

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uma ampliação do entendimento de registro como imagem e de imagem


como vídeo e fotografia (recursos também utilizados pelo GIA), para a
composição sonora como produtora de imagens (Caesar, 2017).
Para Peggy Phelan (1997), o caráter não representativo da performan-
ce, quer gestual, escrita ou sonora, a desloca da hierarquia reprodutiva
dos valores verticalizados pela metáfora para o eixo aditivo, associativo
e horizontal de contiguidades da metonímia, pois sua condição não
documental implica que dela se trate com a mesma intensidade do seu
objeto, uma vez que não poderia imitar uma arte que é não reprodutiva,
quer em termos econômicos, tecnológicos ou linguísticos. Nessa pers-
pectiva, busca-se expandir os modos de registro da performance artística,
quer através de fotos, vídeos, textos, música ou oralidade, de modo que
tais formas tragam em si uma nova criação, uma produção subjetiva que
componha com a anterior e não a reproduza ou represente.
Para Phelan, a ontologia da performance dá-se por meio da presença
absoluta e da desaparição:

A prova documental de uma performance funciona assim


como uma espora cravada na memória, um incitamento à
memória para ela se tornar presente. (Phelan, 1997, p. 171).
O Presente é aquilo que não tolera nem a morte nem o renas-
cimento, mas aquilo que pode existir apenas por causa destas
duas condições originárias. Os dois são necessários ao Pre-
sente para que este seja/esteja presente, para que ele exista
na animação suspensa entre o Passado e o Futuro. (p. 181).

Para além da melancolia presença-ausência de Phelan, na qual a perfor-


mance aparece para desaparecer, bem como da perspectiva ontológica na
qual essa ambiguidade é colocada, Lepecki (2006) sugere uma leitura da
dança contemporânea com base em múltiplas temporalidades, nas quais

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

o presente não estaria restrito ao aqui e agora, mas também aos afetos
por ele produzidos. Podemos tomar por base essa perspectiva múltipla,
em que passado, presente e futuro se fundem, para ler o Samba GIA
como performance que opera como presentificação das interferências do
grupo, pois faz parte dos afetos por elas produzidos, ao mesmo tempo
que os produz, atualizando a presença das interferências cantadas, por
sua vez desaparecidas posto sua qualidade efêmera, produzindo uma
outra performance, feita de música e dança. O Samba GIA como imagem
sonora de um registro expandido conduz o público a um outro lugar
que não é mais aquele das interferências realizadas, expandindo o seu
alcance no tempo-espaço das ondas sonoras.

Cerveja GIA

Figura 2 - Cartaz Cerveja GIA

Fonte: Arquivo do GIA.

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A Cerveja GIA (Figura 2) é produzida através da sobreposição de um


rótulo com a identidade do GIA sobre os rótulos originais. Essa des-
construção semiótica produz uma interferência sutil que se assemelha
às proposições poético-políticas de Cildo Meireles, como em Inserções
em Circuitos Ideológicos, nas quais mensagens críticas eram inseridas em
determinados produtos comerciais, depois devolvidos à circulação, e da
qual fizeram parte o projeto “Coca Cola” (que consistia em escrever, em
uma garrafa de Coca Cola, mensagens críticas ao imperialismo norte-­
‑americano), o “Zero Cruzeiro” e o “Zero Dólar” (nos quais imagens
oficiais de réplicas das notas do cruzeiro e do dólar eram substituídas
pelas imagens de índios, psicóticos, ou Tio Sam) e o “Cédula” (em
que indagações como Quem matou Herzog? eram gravadas em notas de
dinheiro). Tal como os projetos de Meireles, a singularidade da Cerveja
GIA consiste em “funcionar no interior de circuitos de controle de
informação não centralizada, onde o indivíduo pode se fazer ouvir
numa escala muito grande, desproporcional à sua condição individual”
(Meireles, 2011, p. 56).
O processo de singularização da Cerveja GIA, através da apropriação
de um meio hegemônico para a construção de um outro discurso, sugere
também a ressignificação do estatuto de consumidores desse produto
para um outro tipo qualificado de consumo, do qual fala Michel de
Certeau. Em seu estudo sobre as práticas cotidianas dos consumidores,
Certeau (2007, p. 95) aborda experiências através das quais é possível
subverter o uso dos produtos impostos pela ordem social e econômica
dominante, através de uma maneira criativa de usá-los, ou das artes de
fazer, “suas piratarias, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável,
em suma, sua quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por
produtos próprios (onde seria o seu lugar?)”.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Além dessa desconstrução semiótica, a alteração nos estados da per-


cepção e da consciência provocada pela Cerveja GIA também faz parte
do fenômeno artístico, tal como as experiências de Charles Baudelaire
(2007) e Artaud (2017) com substâncias alucinatórias e delírios poéti-
cos. Há vestígios de outras substâncias psicoativas na poética do GIA,
a propósito da sua publicação “Cosmoconhas”,3 em que imagens de
personalidades como Che Guevara e Batatinha aparecem preenchidas
com folhas da Cannabis. A “Cosmoconha” se assemelha ao “Cosmococa:
programa in progress”, de Oiticica e Neville d’Almeida, que inclui nove
blocos-experimentos, cada um deles compostos de slides fotografados
no ato de espalhar carreiras de cocaína nas capas de discos e livros,
projetados em ambientes imersivos.

Caramujo

Figura 3 - Caramujo, Espanha

Fonte: Arquivo do GIA.

3 Mais informações disponíveis em: http://www.medemotivosopagia.blogspot.


com.br/2012/03/motivo-cosmoconha-1.html.

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O Caramujo (2002) (Figura 3) é uma cobertura feita com lona ou tecido


amarelo, fixa ou móvel, a depender da ocasião, produzida na boemia
criativa do bairro Santo Antônio. Sua estrutura funciona como espaço
imersivo para encontros, frequentemente acompanhado do Samba GIA
e da Cerveja GIA, aberto para participação livre do público e amigos. O
Caramujo é experimentado em espaços públicos de forma geral, pontos
de ônibus, praças, galerias de arte, às vezes em eventos específicos dentro
do circuito artístico oficial e noutras, diluído nas festas tradicionais da
cidade, como o Carnaval e a Lavagem do Bonfim.
Em busca de um mito, Oiticica encontrou a dança e criou o Parangolé,
estrutura maleável feita para ser vestida por um corpo que lhe atribua vida,
significado, movimento. “O próprio ‘ato de vestir’ a obra já implica uma
transmutação expressivo-corporal do espectador, característica primordial
da dança, sua primeira condição” (Oiticica, 2011, p. 73). O artista teria
encontrado no Parangolé a formulação definitiva de uma arte ambiental.

Daí para o estabelecimento perceptivo de relações entre a


estrutura Parangolé, vivenciada pelo participador, e outras
estruturas características do mundo ambiental, surge o que
chamo de ‘vivência-total Parangolé’, que é sempre acionada
pela participação do sujeito nas obras e lançada no mundo
ambiental como que querendo decifrar a sua verdadeira cons-
tituição universal transformando-o em ‘percepção criativa’.
[...] seria isto uma iniciação às estruturas perceptivo-criativas
do mundo ambiental? (Oiticica, 2011, p. 74).

O GIA reconhece no Parangolé a inspiração para o Caramujo, seja


como tenda, espaço-tempo provisório a ser habitado aos batuques do
samba e, portanto, da música e da dança, como “gesto da imanência do
ato corporal expressivo” (Oiticica, 2011, p. 78 ), seja como estandarte,
cujo ato de carregar configura-se, também, como um tipo de dança.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

A apropriação perceptiva do público ativo como parte da concepção


da obra encerra a criação do sistema ambiental ao mesmo tempo que
sugere a sua abertura. Essa participação é bastante livre, “incluindo a
não-participação nas suas inúmeras possibilidades também” (Oiticica,
2011, p. 79), de outro modo teríamos uma nova moral coletiva.

Quartel General

Figura 4 - Cartaz de abertura do QG

Fonte: Arquivo do GIA.

O Quartel General, ou QG, (Figura 4) consiste em um “espaço híbrido de


funções heterogêneas” (GIA, 2017, p. 7), ambiente para livre ocupação,
no qual o GIA propõe uma imersão alegre e criativa:

Através de propostas criativas que estimulem uso de suportes


e meios não convencionais de expressão, o grupo transforma
e define o espaço a partir das funções que lhe são atribuídas
oportunamente como o próprio ato de habitá-lo (GIA, 2017,
p. 7).

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Em 2011, quando imergimos nas experiências com o GIA, seu QG


era a casa 7 da Rua dos Adobes, no Santo Antônio, onde acontece-
ram a “Reunião Aberta” e o “Cazação”, que se acomodaram em um
ambiente aconchegante, feito com colagens de objetos diversos que
faziam parte do acervo do GIA, além de uma cozinha improvisada. Na
contemporaneidade, a colagem diz respeito não apenas a uma técnica
de montagem, tornando-se, também, um princípio de pensamento, que
perpassa o processo criativo do GIA. “A colagem é uma sintaxe de síntese
que relaciona coisas fragmentárias e conflitantes – simultaneamente”
(Pignatari, 2004, p. 251).
Para Renato Cohen (2009), a performance como linguagem utiliza-se da
colagem como estrutura, um processo entrópico e lúdico, caracterizado
pela justaposição e colagem de imagens não originalmente próximas,
liberadas de suas funções ordinárias e associadas livremente. Isso gera-
ria a composição de uma linguagem mais gerativa que normativa, um
discurso da mise en scène, proporcionando a possibilidade de ressignifica-
ções, através das quais cria-se uma obra aberta, labiríntica e passível de
leituras diversas. Também para Umberto Eco (2003), os novos sentidos
possibilitados pelas livres associações caracterizam a abertura da obra,
instaurando-se uma nova dialética entre objeto e o intérprete, por sua
vez colocado no centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis, entre
as quais ele instaura a sua própria forma.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Carrinho

Figura 5 - Carrinho, Salvador (BA)

Fonte: Arquivo do GIA

O Carrinho do GIA (Figura 5) se assemelha aos carrinhos utiliza-


dos pelos vendedores ambulantes da cidade (cujos principais produtos
comercializados são o cafezinho e as guloseimas), intermediando uma
relação social entre o público e os artistas. O GIA se apropria do car-
rinho popular, como elemento do cotidiano local, e o incorpora à sua
estética. O Carrinho possui uma bateria analógica que alimenta a sua
energia, seja para a propagação de sons ou a exibição de imagens. Por
isso, além de um objeto artístico, ele pode ser compreendido também
como uma mídia livre, uma vez produzida pelo sujeito do discurso que
tem autonomia na forma e conteúdo da sua expressão. O Carrinho é
utilizado pelo GIA em suas performances artísticas pelas cidades, sendo
muitas vezes acompanhado pelo Caramujo, tocando o Samba GIA ou
projetando vídeos.

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Pic Nic

Figura 6 - Pic Nic, Salvador (BA)

Fonte: Arquivo do GIA

O Pic Nic do GIA (Figura 6) não foge ao padrão de um piquenique


comum, sendo compartilhado com os passantes dos lugares onde acontece,
como moradores de rua e funcionários da limpeza pública. O Pic Nic ao
qual nos referimos neste texto aconteceu na Rótula do Abacaxi, em Salva-
dor (BA), uma das performances produzidas na residência artística do GIA
com o Opavivará, em 2012, e contou com a participação de um público
diferente dos consumidores habituais da arte contemporânea, habitantes
daquela região inabitável: “Quem passa por ali instaura um cantinho de
prazer, um lugar de produção de subjetividades para um pedaço morto
da cidade”.4 Com o Pic Nic na Rótula do Abacaxi, o GIA e o Opavivará
produziam uma descontrução espaço-temporal, em um “intercâmbio
humano diferente das ‘zonas de comunicação’ que nos são impostas”
(Bourriaud, 2009, p. 23).

4 Texto disponível em: https://medemotivosopagia.blogspot.com/2012/03/mais-


um-motivo-descascando-o-abacaxi.html.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Para Katia Canton (2011), o deslocamento dos lugares, como ter­


ritórios fixos, para “não lugares” é a expressão artística de um sintoma
global. “Lugares fixos, conhecidos ou confortáveis, são trocados por não
lugares, lugares de passagem, lugares virtuais, lugares que nos impõem
outros tipos de troca” (Canton, 2011, p. 58). Através do Pic Nic, o GIA
instaurava camadas perceptivas sobre uma determinada realidade colocada
em questão, através de uma desterritorialização provocada pelo des­
colamento de um evento comum, o piquenique, para um espaço-tempo
atipicamente escolhido para tal.

Judas
Segundo Ático Mota (1981), a Malhação do Judas é a transfiguração
folclórica de uma tradição introduzida na América Latina pelos portu-
gueses e espanhóis e tem, portanto, raízes na Europa e, mais precisa-
mente, na Penísula Ibérica. Para o autor, a Malhação do Judas – ritual
legitimado pelo binômio Igreja-Estado, contra as ameaças à estabilidade
das instituições europeias, no século XII – se refere à perseguição ao
complexo religioso judaico pelo cristianismo, bem como à caçada aos
hereges, bruxos e feiticeiros pela Inquisição na Idade Média.
A malhação do Judas consiste em um boneco do tamanho de uma pes-
soa média, feito de serragem, pano ou papel, para ser surrado e queimado
no meio da rua, à leitura de um testamento em cordel, frequentemente
no Sábado de Aleluia, da Semana Santa, simbolizando a morte de Judas
Iscariotes. No Brasil, o nome Judas é substituído por nomes de políti-
cos ou pessoas públicas malquistas em uma determinada comunidade;
o boneco representando, em qualquer dessas interpretações, um bode
expiatório. Não raro a Malhação do Judas termina com interferência
policial devido à agitação social que provoca (Mota, 1981).

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Figura 7 - Judas, Salvador (BA)

Fonte: Arquivo do GIA.

Em oposição aos valores cristãos fundamentados no ressentimento,


culpa, pecado e punição, o GIA propõe o perdão a Judas (2010) (Figura
7), produzindo uma desconstrução semiótica e cultural, que opera como
guerrilha artística:

Nada mais parecido com uma constelação do que a guerrilha


artística, que exige, por sua dinâmica, uma estrutura aberta
de informação plena, onde tudo parece reger-se por coorde-
nação (a própria consciência totalizante em ação) e nada por
subordinação. Em relação à guerra clássica, a linear, a guerrilha
é uma estrutura móvel operando dentro de uma estrutura
rígida, hierarquizada. Nas guerrilhas, a guerra se inventa a cada
passo e a cada combate, num total descaso pelas categorias e
valores estratégicos […] já estabelecidos. Sua força reside na
simultaneidade das ações: abrem-se e fecham-se as frontes
de uma hora para outra. É a informação (surpresa) contra
a redundância (expectativa). Nas guerrilhas, as tropas, se de
tropas se pode falar, não tomam posição para o combate; elas

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

estão sempre em posição, onde quer que estejam. E faíscam


nas surpresas dos ataques simultâneos, num cálculo de pro-
babilidades permanente que eluda a expectativa do inimigo.
Estruturalmente, a guerrilha já é projeto e prospecto, já é design
por desígnio de uma nova sociedade. (Pignatari, 2004, p. 168).

O caráter guerrilheiro de Judas dá-se pela reversão de um sentido padrão,


através da apropriação de códigos impostos por forças hegemônicas e o
simultâneo questionamento dos seus valores. Com o perdão a Judas,
o GIA burla um significado cultural dominante e expõe, ao mesmo
tempo, os paradoxos desse novo sentido, por se remeter ainda àquilo
que pretende desconstruir, nesse caso, a Malhação do Judas, seja como
catarse social ou violência simbólica.

Cabine DR
Figura 8 - Cabine DR, Salvador (BA)

Fonte: Arquivo do GIA.

325 ·
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A Cabine DR (Figura 8) é uma estrutura em forma de tenda, feita com


tecidos vermelhos e amarelos esticados por arames e cordas em árvores
e outros suportes, mas pode também ser móvel, sempre decorada com
motivos românticos. Fez parte da performance na qual o GIA propôs ao
Museu de Arte Moderna um diálogo criativo com a mostra Cuide de
você, de Sophie Calle, realizada no MAM, em Salvador, 2009. A Cabine
DR passou a ser instalada na Festa do Santo Antônio, quando o GIA
convida o público a discutir suas relações amorosas na Cabine DR, em
um “momento de intimidade pública”. A manifestação pública de uma
expressão intimista consiste em um ato antirrepresentativo do ponto de
vista social e, nesse caso, também estético, tal como nas experiências da
body art, da tatuagem, da maquiagem, do ato de fazer amor, entre outras,
que expõem o paradoxo das duas faces (Jeudy, 2002), externo e interno.
Na perspectiva da filosofia política, Hannah Arendt observa uma
aproximação gradual entre as esferas pública e privada, compreendidas do
ponto de vista dos seus objetos, seja a ação e o discurso como exercício
da liberdade, as necessidades afetivas e biológicas, as questões comuns
e o patrimônio ou, ainda, aquilo que deve ser exibido e ocultado, res-
pectivamente (Arendt, 2008). Essa intersecção geraria uma nova esfera,
a esfera social, cujo maior símbolo da modernidade teria sido o estado
nacional e a burocracia, a forma mais social de governo. Na esfera social,
o processo da vida outrora restrito à esfera privada teria estabelecido o
seu próprio domínio público, passando-se do estímulo às ações para
o estímulo ao comportamento. Talvez por isso o GIA denomina ações
às suas performances artísticas, pois pretende, através delas, questionar
comportamentos sociais padronizados.

Ao invés da ação, a sociedade espera de cada um dos seus


membros um certo tipo de comportamento impondo inúmeras

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

e variadas regras, todas elas tendentes a normalizar os seus


membros, a fazê-los comportarem-se, a abolir a ação espon-
tânea ou a reação inusitada. (Arendt, 2008, p. 50).
Estatisticamente, isto resulta num declínio da flutuação. (p. 53).

Arendt observa que, apesar dos valores individualistas postulados


pelas diversas correntes do pensamento moderno, existe uma ascensão
da sociedade nos diversos estágios da própria modernidade, quando a
família passa a ser absorvida por grupos sociais. Para ela, essa ascensão
social teria coincidido com o deslocamento das preocupações indivi-
duais com a propriedade privada para a esfera pública, uma vez que
essa teria sido a única preocupação comum sobrevivente na vida em
sociedade. Nos tempos contemporâneos, observa-se uma diluição cada
vez maior das fronteiras público-privado que expõe uma crise do Esta-
do e da democracia representativa correspondente. A Cabine DR, como
um “momento de intimidade pública”, propõe a experiência poética
do paradoxo público-privado característico da contemporaneidade. A
diluição das fronteiras público-privado, dentro-fora, interno-externo
sugere a necessidade de uma nova “est-ética” social, dada a desvaloração
moral que provoca. Habitar a Cabine DR, implica, eventualmente, em
assumir um comportamento de flutuação ou desvio, que se aproximava
das ações de liberdade na esfera pública tradicional.

327 ·
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Flutuador

Figura 9 - Flutuador, Cachoeira (BA)

Fonte: Arquivo do GIA.

O Flutuador (Figura 9) é um objeto colocado sobre a superfície da


água, tornando-se palco para uma dança improvisada, cujos movimentos
são determinados, sobretudo, pelas condições do ambiente. Em 2012,
tratava-se de um objeto produzido por quatro tonéis azuis e um madeirite
amarelo, nos desafiando a subir e a permanecer nele.
Lançado na água do rio ou do mar, torna-se um espaço-tempo fora dos
espaços convencionais da arte e do cotidiano. Naquele ano, o Flutuador
foi performado no Festival de Intervenções Artísticas do Recôncavo
(FIAR), onde estavam presentes artistas dos coletivos Opavivará (RJ), O
Poro (MG) e o Frente 3 de fevereiro (SP). A experiência com o Flutua-
dor remete à improvisação na dança contemporânea, com a exploração
plena do corpo no espaço, e a um conhecimento tátil do mundo, que se
revela na medida em que é experimentado.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

A procura por formas artísticas que penetrassem e agissem


sobre o cotidiano vinha alavancar o interesse na presença e
no movimento imediatos e, por conseguinte, na improvi-
sação e na fenomenologia da percepção que permitia um
apuramento dos sentidos para responder a esta necessidade
de estar constantemente preparado para dar um salto para o
desconhecido, e também ao desejo de pertinência deste mesmo
salto. (Coelho, 2012, p. 3).

Na experiência com o Flutuador, a espacialização do objeto produz uma


ruptura na reprodução representativa da forma em si, para as relações
ambientais que ela provoca. “A representação funciona como uma força
isoladora e centrípeta que define constantemente o seu espaço como
espaço de pura interioridade” (Lepecki, 2006, p. 94, tradução nossa). Nas
artes visuais, o deslocamento do objeto para o espaço faz parte de uma
crítica à representação, com base na qual os artistas contemporâneos
propõem uma abertura dessas linguagens como desafio estético.

Interferência Ambiental
No livro Museu é o mundo (2011), Oiticica descreve o seu processo de
desintegração do espaço representativo da obra de arte na busca por
um não objeto, expandindo a expressão plástica das superfícies originais
da pintura para o ambiente, através de uma síntese espaço-temporal na
gênese da obra, de uma fusão dessa síntese com os seus elementos pri-
mordiais, a cor e a estrutura: “A forma não é mais o plano delimitado, e
sim, a relação entre estrutura e cor nesse organismo espaço-temporal”
(Oiticica, 2011, p. 22). O artista buscava, na criação de obras como
Núcleos, Bólides, Penetráveis e Parangolé, uma arte não representativa e não
objetiva, na qual o tempo seria o principal fator, a cor alcançaria uma
independência relativa, adquirindo propriedades corporais, na medida em

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que se tornava cor-luz, cor-tempo, cor-ação, ou cor-som: “Aqui a cor e


a estrutura são inseparáveis assim como o espaço e o tempo” (Oiticica,
2011, p. 47). Dessa maneira, a cor seria também um meio para construir
microterritórios singulares, pois “as estruturas coloridas funcionam
organicamente numa fusão de elementos e são um organismo separado
do mundo físico, do espaço-mundo circundante” (2011, p. 48).
É possível que a escolha do amarelo como cor predominante nos
objetos do GIA tenha sido influenciada pela capacidade que Oiticica
atribuíra a essa cor: de desprendimento das estruturas que lhe sustentam,
de incorporação no tempo e no espaço, condições elementares para a
abertura da obra.

O amarelo, ao contrário do branco, é a menos estática, pos-


suindo forte pulsação ótica e tendendo ao espaço real, a se
desprender da estrutura e a se expandir. […] O amarelo tam-
bém se assemelha, ao contrário do branco, a uma luz mais
física, mais aparentada à luz terrestre. O importante aqui é o
sentido luz temporal da cor, de outra maneira seria ainda uma
representação da luz. (Oiticica, 2011, p. 11).

Oiticica (2011) aponta a nova objetividade como estado típico da


vanguarda brasileira, dotada de algumas características principais: Vontade
construtiva geral, caracterizada por uma falta da unidade no pensamento
e, consequentemente, múltiplas tendências artísticas, das quais fariam
parte a arquitetura brasileira, bem como os movimentos concretista e
neoconcretista no país, frutos da assimilação antropofágica de diversas
influências em nossa cultura; tendência para a negação do objeto, o que significa
que a incorporação do espaço e do tempo na estrutura da obra levaria ao
desaparecimento do quadro e do cavalete como superfícies tradicionais
da pintura, trazendo-a ao espaço tridimensional, e transformando-a em

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

um não-objeto, ou seja, a superação do objeto como fim da expressão


estética; participação do espectador, em que a apropriação ou ressignifica-
ção perceptiva por parte do espectador, seja corporal, tátil, visual ou
semântica, provocaria uma ruptura com a contemplação transcendental
da obra, levando, também, à sua abertura; abordagem e posicionamento frente
aos problemas políticos, sociais e éticos, isto é, não bastaria ao artista ater-se,
apenas, às questões estéticas de sua obra, como a descoberta das estru-
turas primordiais, nem às questões existenciais da sua vida, mas pensar
o mundo, o ambiente e os problemas humanos em contextos coletivos,
através de uma crescente consciência político-social e ético-individual;
tendência para proposições coletivas, ou seja, essas proposições, como conse-
quência das questões trazidas pela característica anterior, poderiam ser
efetuadas jogando produções individuais em contato com o público das
ruas e propondo atividades criativas a esse público, na própria criação
da obra; ressurgimento e novas formulações do conceito de antiarte, em outras
palavras, a antiarte seria uma ligação despersonalizada entre a manifes-
tação criativa e a coletividade, de modo que as questões conceituais da
obra de arte cederiam lugar à criação de condições experimentais, nas
quais os artistas propõem situações de ampla participação do público,
através de suas obras, ou seja, de uma arte ambiental.
O GIA apresenta algumas das características da nova objetividade
sugerida por Oiticica, produzindo uma estética singular com performances
que se diluem na cultura da cidade, afirmando manifestações tradicio-
nais da nossa cultura, como o samba. Essas performances sugerem um
deslocamento do objeto como finalidade estética, posto sua qualidade
ambiental, de modo que não há primazia de um produto a ser exposto,
priorizando-se o processo de criação e os encontros provocados, o que
pode ser verificado pelo “caráter efêmero e precário” (GIA, 2017) da
sua poética, que convoca a participação criativa do público, e não raro

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se refere a um contexto social-político-econômico local. Em virtude


dessa despersonalização, podemos considerar a contribuição do GIA
para o novo conceito de antiarte proposto por Oiticica, tendo em vista
a proposta de experimentações criativas de um novo habitar e conviver
no mundo, por intermédio das suas performances como mediadoras de
encontros e composições coletivas.
A proposta de uma arte ambiental em Oiticica, através do que ele
apresenta como uma nova objetividade, não consistiria na diluição das
estruturas, mas em lhe atribuir um sentido total, de modo que se instaure
um outro tipo de comportamento ético-social à alienação do indivíduo.
Seria necessário, para isso, o dilatamento da consciência e percepção (o
que poderia ser estimulado por experiências sensoriais trazidas pelos
mitos, pela dança, pelo corpo, por substâncias alucinógenas, etc.), bem
como pela apropriação dos elementos do cotidiano para a composição
desses ambientes, por sua vez, flexíveis às condições estruturais em que
são produzidos, concorrendo para o entendimento da vanguarda como
o próprio dia a dia, o mundo, a experiência cotidiana, em oposição aos
conceitos tradicionais de arte, museu, galeria e exposição.
Para a produção de um processo criativo ou estrutura aberta, “porque
já predisposta a que o espírito a capte” (Oiticica, 2011, p. 65), denominada
interferência ambiental, cria-se, através de uma “vontade experimental de
liberdade” (Oiticica, 2011), um campo onde esses exercícios são es­tranhos
ou aparecem ao acaso, sem intenção predeterminada, de modo que a
participação individual torna-se a própria criação. Um “recinto-obra,
indeslocável pela sua natureza, ou seja, o lugar-recinto-contexto-obra,
aberto à participação, cujos significados são acrescidos pela participação
individual nesse coletivo” (Oiticica, 2011, p. 139). Para tanto, Oiticica
propõe um contato grupal coletivo, a experiência de um grupo aberto em
contato coletivo direto: “Um grupo em que participem pessoas ‘afins’,

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

isto é, cujo tipo de experiências sejam da mesma natureza; […] o ponto


comum seria a predisposição em que os participantes admitiriam a direta
interferência do imponderável” (Oiticica, 2011, p. 111).
Isso implicaria em um processo anárquico de desintegração das estru-
turas e do bom senso estético para dar espaço à invenções criativas que
lidem com questões políticas e sociais de nosso tempo, sem pretender
solucioná-las. Essas estruturas e processos tenderiam a diluir-se em
proposições coletivas ou manifestações populares espontâneas, como
nas performances artísticas do GIA.

Estética Relacional
Estética relacional refere-se às obras cujo sentido parte e ultrapassa
os limites da forma em si, como “uma unidade coerente, uma estru-
tura (entidade autônoma de dependências internas) que apresenta as
características de um mundo” (Bourriaud, 2009, p. 26), constituindo-se
como um estado de encontro, com base na dinâmica artística entre o
objeto e o ambiente, um campo fértil de experimentações sociais. Para
Bourriaud (2009), embora a intersubjetividade seja essencial à prática
artística e essa, por sua vez, se constitua como objeto e sujeito de uma
ética, o enaltecimento do caráter relacional como parte da arte con-
temporânea teria sido fruto de um apelo a esse tipo de estética frente à
redução dos espaços de convívio pela mecanização das funções sociais,
à decadência dos valores idealistas e teleológicos da modernidade, bem
como da concepção aristocrática da arte, que teria dado lugar às formas
aparentemente inapreensíveis e fragmentárias, através das quais busca-se
expressar nossa atual melancolia consequente.

A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma


como horizonte teórico a esfera das relações humanas e seu

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contexto social mais do que a afirmação de um espaço sim-


bólico autônomo e privado) atesta uma versão radical dos
objetivos estéticos, culturais e políticos postulados pela arte
moderna. (Bourriaud, 2009, p. 20).

Bourriaud lança um olhar sobre a arte francesa da década de 1990,


que teria deslocado a questão dos limites das linguagens experimentadas
nas décadas de 1960 e 1970, bem como das suas questões conceituais,
para os limites da resistência artística no âmbito das experiências sociais,
questionando as possíveis relações entre a arte, a sociedade, a história
e a cultura, reconsiderando o lugar dessas obras no sistema econômico
e simbólico, assim como o estatuto dos espaços produzidos por sua
estética, nas cidades globais. Colocar a esfera das relações no cerne da
sua questão estética, através de um príncípio de aglutinação dinâmica, seria
o projeto político da estética relacional, na arte contemporânea. “Cada
obra de arte particular seria a proposta de habitar um mundo em comum,
como o trabalho de cada artista comporia um feixe de relações com o
mundo, que geraria outras relações, e assim por diante, até o infinito”
(Bourriaud, 2009, p. 29). As performances do GIA, como espaços abertos
para estarmos juntos, buscando a diversão e a alegria através da arte
como mediadora de processos coletivos, nos quais experimentamos
diferentes possibilidades de vida social, podem ser lidas sob a ótica da
estética relacional proposta por Bourriaud.
As performances relacionais do GIA constituem-se, pois, como um
tipo de interstício social esteticamente produzido pelo grupo, no qual
abandonamos a postura de meros consumidores dos espaços-tempos
produzidos pelo mercado cultural, criamos espaços-tempos singulares
e comuns, logo, uma realidade concreta, diluída na cultura da cidade.
“O interstício é um espaço de relações humanas que, mesmo inserido
de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no sistema global,

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

sugere outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema”


(Bourriaud, 2009, p. 23).
Partindo da paródia Museu é o Santo Antônio, esse foi o bairro escolhido
pelo GIA para uma habitação criativa na cidade, mas “qual a posição a
adotar diante de uma obra que distribui seus componentes e ao mesmo
tempo quer salvaguardar sua estrutura?” (Bourriaud, 2009, p. 55). Esse
paradoxo está presente o tempo inteiro, pois na medida que imergimos
nas ações culturais do Santo Antônio – das quais o GIA faz parte –, nos
aproximamos das suas práticas, ao mesmo tempo que nos distanciamos
do seu território identitário para o ambiente no qual o grupo se dilui. Se
“a função crítica e subversiva da arte contemporânea agora se cumpre
na invenção de linhas de fuga individuais e coletivas, nessas construções
provisórias e nômades com que o artista modela e difunde situações per-
tubadoras” (Bourriaud, 2009, p. 44), essas fugas não implicam, contudo,
em uma negação da realidade objetiva, mas em uma singularização das
nossas experiências sociais, sugeridas pelo GIA, através da apropriação
criativa dos elementos cotidianos, da incorporação desses elementos em
sua estética relacional.
Podemos compreender que o grupo produz uma poética que, segundo
a estética relacional de Bourriaud, não transcende as preocupações do
cotidiano, sendo, por natureza, imanente ao nos colocar diante da reali-
dade através de uma relação singular e fictícia com o mundo, na qual a
inscrição da dinâmica da forma no tempo e/ou no espaço opera-se por
um novo tipo de tratamento dado às noções de espaço-temporalidades.

Aprender a habitar o mundo, em vez de tentar construí-lo a


partir de uma idéia preconcebida de evolução histórica. Em
outros termos, as obras já não perseguem a meta de formar
realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram constituir

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modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade


já existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista.
(Bourriaud, 2009, p. 18).

Em sua estética relacional, o GIA produz espaços-tempos criativos


que estimulam a atuação do público, quer através da dança convocada
pelo Samba GIA, quer pela produção coletiva de sentidos com a Cerveja
GIA, quer pela ressignificação de determinados espaço-tempos, como
um fim de tarde com Pic Nic. A participação efetiva do público nas
performances artísticas do GIA corresponde a uma proposta da estética
relacional, de produzir a “co-presença dos espectadores diante da obra,
seja efetiva ou simbólica” (Bourriaud, 2009, p. 80). Articulando elemen-
tos espaço-temporais na estrutura de cada um dos seus objetos, o GIA
produz encontros e trocas que apresentam um elevado grau de comple-
xidade dos intercâmbios culturais em sua estética relacional, devido ao
fluxo imprevisível de elementos no espaço que vêm a compor as suas
performances artísticas, sobretudo quando realizadas em espaços públicos
de abertura inesgotável, como praças e ruas.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

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COLEÇÃO PESQUISA | ROBSON CORRÊA DE CAMARGO | JOANA ABREU |
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· 338
TRAMAS: ARTE DA PERFORMANCE; CORPO
POLÍTICO; GROTESCO, MONSTRO E ABJETO1

ZÉ PEREIRA (JOSÉ ARNALDO PEREIRA)

RESUMO: Proponho, neste texto, tramar relações entre a Arte da


Performance, o corpo político e as noções do grotesco, monstro e
abjeto. Por meio de uma análise qualitativa de artigos, dissertações,
teses e livros, busquei compreender os posicionamentos, os senti-
dos, as noções empregadas, os procedimentos, as especificidades, as
pessoalidades, as sociabilidades, percebendo, ainda, o que há de con-
sensual e, ao mesmo instante, de contraditório, no empreendimento
da trama proposta. Com intuito de elaborar esta trama, atravesso
alguns tópicos que emergem desta análise compreensiva, a saber: a

1 Este texto é extensão de ações e experiências de meu corpo, em que me dediquei a


escrever sobre performances artísticas. Textualidade dialógica entre diversas vozes
que me fizeram (re)pensar e ficar em dúvida, que me a(r)maram e desa(r)maram.
Que me provocaram e, provocado, chego a algo escrito/inscrito, que penso cons-
tantemente em apagar, alterar, mudar e transformar, entretanto, que no aqui-agora
me satisfaz, e em seguida insatisfeito me encontro. Dessas vozes, trago à tona: Ana
Paula Silva Oliveira, Silvia Patrícia, Cynthia Borges, Maria Rita Davida, Elisa Abraão,
Ana Reis, Cássia Nunes, Lina Reston, Lenise Santana, Júlia Andrès, Netho Schultz,
Iago Araújo, Venâncio Cruz, Márcio Pizarro, Brunna (Curupira), Sarah Menezes, Ca-
milaS (Oliveira, Carvalho e Ribeiro), Lidiane Oliveira, Marilia Ribeiro, Luis Cláudio, por
suas contribuições ativas diretas ou indiretas nessa trama. Essas pes­soas não foram
as únicas a se tramarem; entretanto, reolhando essa textualidade, ajudaram-me a
deixá-la com uma tessitura densa. Agradeço a textos/corpos escritos/inscritos e
compartilhados, que dialogicamente tramam-se aqui.
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polissemia atribuída ao termo performance, uma breve historiografia da


Arte da Performance, seus saberes e práticas; desdobramentos com
relação ao corpo e possíveis vinculações às dimensões de política;
compreensões de versões sobre o corpo político relacionando as
noções do grotesco, monstro e abjeto. Apresento ainda três ações
que ilustram o debate, sobre as quais elevo considerações, com base
na trama construída.
Palavras-chave: Arte da Performance. Corpo político. Grotesco.
Monstro. Abjeto.

Neste capítulo, proponho tramar2 relações entre a Arte da Performan-


ce,3 o corpo político e as noções4 do grotesco, monstro e abjeto. Tais
tramas serão estabelecidas, tomando por base uma análise de literaturas,
a saber: artigos, dissertações, teses e livros. Alerto que um dos objetivos
aqui não é saturar o debate, revisando toda a literatura existente sobre
essas temáticas; pelo contrário, é dar início a um debate e/ou visibilizar
posicionamentos5 com suas respectivas tensões, dentre os múltiplos
discursos que analisei nestas produções discursivas.
A análise dessas literaturas se dá de forma qualitativa, buscando os
sentidos e as noções empregadas, os procedimentos, as especificidades,
as pessoalidades, as sociabilidades, percebendo ainda, o que há de con-

2 “Tramar” é um termo com diversos sentidos, porém aqui aproprio como o ato
de passar a trama por entre (os fios/linhas da urdidura), tecer e/ou urdir. Neste
sentido, a trama é o conjunto de fios passados transversalmente no tear (Ferreira,
1988). Tramar como um atravessar por linhas-aspectos diferentes, que não neces-
sariamente estavam tramados, e uni-los, aqui é proposto como estratégia termino-
lógica e metodológica.
3 Arte da Performance, ou Performance Arte, ou originalmente Performance Art, são
expressões sinônimas (Camargo, 2015).
4 “Noções”, ou “sentidos”, ou “termos” são empreendimentos coletivos, sócio histó-
rico cultural construídos (Spink, 2000, 2010).
5 “Posicionamento” é uma posição assumida por pessoalidades e sociabilidades, nas
produções discursivas. Absolutamente intencional (mesmo que inconsciente), flui-
do e contextual (Spink, 2010).

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

sensual, contraditório e destoante. Adianto que, nas escolhas estabele-


cidas no percurso metodológico de como analisar essas literaturas e por
consequência tramá-las, para a construção desta possível relação, optei
por escrever em primeira pessoa6 (eu e/ou nós). Escolha que pode ser
uma estratégia que desestabiliza e desfamiliariza posicionamentos esta-
belecidos como verdade hegemônica (Gergen, 2009; Spink, 2000, 2010),
acionados na escrita em terceira pessoa (ele/ela ou eles/elas), recurso
de escrita assumido pela ciência e modos tradicionais positivistas, que
colocam-se como distanciados, impessoais e neutros.
Essa estratégia de escrita em primeira pessoa, se alinha aos saberes
e práticas da Arte da Performance, momento que, quando emerge no
século XX, é resultante de um processo histórico de apropriação e res-
significação das artes vigentes na sociedade (Cohen, 1989; Fagundes et
al., 2009; Glusberg, 1987) colocando-se também como uma produção
discursiva, isto é, textual e imagética; e produção discursiva, sendo posi-
cionamentos (Santana, 2008; Spink, 2000, 2010). A Arte da Performance,
nesse contexto, questiona os sistemas naturalizados, rígidos, estáveis,
fixos, padronizados e tratados como verdade inquestionável, criando e
visibilizando a circulação de outras versões de realidade. Desse modo, as
performances artísticas e suas textualidades são um exercício, construção
e posições diversas: culturais, históricas, epistêmicas, políticas, éticas,
estéticas, filosóficas, ontológicas e metodológicas.
Para melhor compreensão dessa trama complexa, acredito ser impor-
tante debater a polissemia atribuída ao termo performance, apresentando

6 Escrever em primeira pessoa é um dos elementos que contribui para denotar uma
postura em que os discursos/saberes são considerados: práticas, com efeitos/
impactos, situados, parciais, ativos, interessados, escolhidos, com circulação em
diversas versões e sócio construídos. Bem como traz a tona uma posição política
e ética. Postura apresentada pelo Construcionismo Social (Gergen, 2009; Haraway,
1995; Méllo et al., 2007; Rasera; Japur, 2005; Spink, 2000, 2010, 2011), uma das
perspectivas da Psicologia Social.

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uma breve historiografia, seus saberes e práticas bem como seus desdo-
bramentos com relação ao corpo e possíveis vinculações às dimensões
de política. Ainda, compreender as noções do grotesco, monstro e
abjeto. Por continuidade, em um último tópico, tentarei ilustrar como
se trama, ou pode ser tramada, possíveis considerações sobre a Arte da
Performance, o corpo político e as noções: grotesco, monstro e abjeto.

O termo performance e sua polissemia


Sobre o termo performance há uma quantidade de sentidos circunscri-
tos e construídos por especialistas provenientes de uma grande gama
de saberes e práticas, que atravessam as artes, a literatura, as ciências
sociais (Carlson, 2011), a psicologia, a história cultural, a linguística, a
antropologia cultural, a semiologia, a semiótica (Camargo, 2015), e os
estudos do performativo da fala-linguagem de J. L. Austin e seus con-
temporâneos (Pinto, 2015). Gera-se assim uma complexa trama, pois
tais sentidos atravessam-se, mesclam-se, confundem-se, auto excluem-se,
colocam-se opostamente, dentre uma infinidade de possibilidades, o que
colabora para ser inscrita uma rede de outros termos, sentidos, saberes e
práticas, críticos especializados, desenvolvidos em razão de tais relações.
Glusberg (1987, p. 72) sublinha que ao termo performance podem ser
atribuídos os seguintes sentidos: “execução, desempenho, preenchimento,
realização, atuação, acompanhamento, ação, ato, explosão, capacidade ou
habilidade, uma cerimônia, um rito, um espetáculo, a execução de uma
peça de música, uma representação teatral ou um efeito acrobático”.
Carlson (2011) complementa que ao mesmo termo pode ser atribuída
a realização de determinado tipo de evento, ou performance social, sexual-
-gênero e/ou acadêmica. Em sua revisão de sentidos, Camargo (2015)
agrega o de apresentação pública, forma de se apresentar, performance
dos deveres, uma conquista, performance no teatro, comportamento cho-

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

cante, cumprimento, funcionamento, proeza e espetacularidade. Dessa


revisão, algumas considerações podem ser tramadas. O termo performance
é carregado de sentidos, por outro lado, essa multiplicidade de sentidos
circulantes é exposta de forma, muitas vezes, misturada e confusa.
Sobre a origem histórico-linguística do termo performance, este vincu-
lou-se à língua inglesa, advindo do francês antigo, parformance, no século
XVI, derivação do latim, per-formare (Glusberg, 1987). Concordando,
Camargo (2015) também argumenta da origem do termo no francês
antigo, entretanto de escrita diferente, parfournir, ajunção do latim per
(através) e fournir (prover, fornecer). Há registros da ocorrência da pala-
vra em 1440, como resultante de perform, como per + formare. Camargo
(2015) complementa que, para facilitar as análises sobre as performances,
uma distinção deve ser feita entre as performances culturais e artísticas.
Por este viés, na construção da trama deste capítulo enfoco as noções
de Arte da Performance.

Arte da Performance: algumas considerações


A Arte da Performance está ligada a um contexto histórico e a um
conjunto de saberes e práticas contestadoras no âmbito das artes. Em uma
dimensão internacional, tais ações contestatórias demarcavam o início
do século XX na Europa e também nos Estados Unidos do pós-guerra.
No contexto histórico brasileiro e em grande parte da América Latina,
havia uma diversidade de eventos ocorrendo, tais quais os movimentos
da contracultura e dos hippies; processos de industrialização e capitalis-
mo, que ganharam contorno de resistência militar (Gonçalves, 2004;
Nascimento, 2011; Paludo, 2006).
A emergência da Arte da Performance se dá em um momento histórico
de instabilidade, contestação e discussão, o que evoca desestabilizações

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de noções tradicionais das artes e permite repensar discursos, normas,


procedimentos e especificidades. Desse modo, as performances artísticas
são construídas em um ambiente no qual geram mais perguntas do que
respostas, mais dúvidas do que certezas (Cohen, 1989; Nascimento, 2011;
Paludo, 2006), atravessando temáticas, modos de agir, transversalidades entre
áreas de conhecimentos que até o momento nunca haviam sido pensadas.
Diferentemente das outras artes que almejavam a cisão com estilos
anteriores, a Arte da Performance pondera entre o rompimento e a
aglutinação, o que leva a percorrer a história de diversos países, eviden-
ciando os rituais tribais, a Idade Média, o Renascimento, atravessando o
futurismo, o dadaísmo, o surrealismo, a escola de Bauhaus, os happenings
e a action painting de Pollock (Camargo, 2015; Cohen, 1989; Fagundes et
al., 2009; Gonçalves, 2004; Glusberg, 1987; Lima, 2010; Paludo, 2006;
Santos, 2008). O emergir da performance como arte independente ocorre
oficialmente após os anos de 1960 e início da década de 1970, fenômeno
estadunidense, mais especificamente nova iorquino, que proliferou pelo
mundo (Camargo, 2015; Glusberg, 1987; Goldberg, 2006; Gonçalves,
2004; Nascimento, 2011).
Segundo Glusberg (1987), a Arte da Performance tem sua erupção
movida por dois acontecimentos significativos, o primeiro sendo uma
série de atividades que suscitavam criações que rompiam fronteiras entre
a dança e mesclavam-se aos elementos do happening. O segundo foi a
fundação do movimento “Fluxus”, idealizado por George Maciunas,
cujas práticas eram realizadas em “concertos”, que mesclavam happening,
música experimental, poesia e performances individuais. Nesse contexto, o
imprevisto, a aleatoriedade e o improviso foram elementos importantes a
se considerar nessas mesclas e que ressoam nas produções performáticas
da contemporaneidade.

· 344
PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

A constituição de Arte da Performance se daria ainda tangenciada pela


arte e tecnologia e também pela arte conceitual, que enfatiza a elimina-
ção do objeto e o interesse pelo/no processo7 de criação. Tais mesclas
despontariam na body art, que juntamente à live art, se diluiria na Arte da
Performance (Cohen, 1989; Glusberg, 1987; Gonçalves, 2004; Lima,
2010). Essa última seria, então, a busca intensa de uma arte integrativa,
que escape das limitações disciplinares, bem como se utilize de um fazer
de soma, interdisciplinar e de mesclas. O processo de composição das
linguagens se dá por justaposição e colagem, o que constrói um saber e
prática híbridos (Cohen, 1989; Glusberg, 1987; Gonçalves, 2004). Híbrida,
justaposta, interdisciplinar, mesclada, frequentadora e “promíscua” em
seus saberes e práticas, a Arte da Performance traz à tona uma postura
indisciplinada e contestatória, sendo difícil defini-la, conceituá-la e/ou
classificá-la, não fundando conceitos, pelo contrário, em busca constante
de testar e experimentar possibilidades de práticas discursivas (Cohen,
1989; Glusberg, 1987; Gonçalves, 2004; Medeiros, 2009; Nascimento,
2011; Paludo, 2006; Santos, 2008) subversivas.
Com essas características fluídicas, desde sua emergência como lingua-
gem artística autonomizada (Agra, 2015; Cohen, 1989) até a atualidade,
algumas perguntas recorrentes podem ser observadas, tais quais: esta
ação8 é teatro ou dança? Artes visuais ou teatro? Dança ou circo? Isto

7 “Processo” assume-se em uma perspectiva performática, como saber e prática que


se calca no percurso, no desenvolver, no ciclo de progressão e reversão, um pro-
cesso que não se fecha na condição de produto acabado. Sendo assim, inacaba-
do, móvel, iterativo, permeável, instável, flexível, construído e/ou desconstruído
(Cohen, 2006).
8 O termo ação é apropriado por mim, compreendendo “a performance como arte­-
‑ação, o ato tornado arte, a arte tornada ação” (Medeiros, 2009, p. 24), que denota
uma arte verbo, que faz e é feita, que acontece mediante (re)ação, que mobiliza
e é mobilizada, que ocorre e é ocorrência. As duas dimensões em interação, ou
isoladas, assumidas como arte. Compreender a performance, como performAÇÃO,
pode ser um importante registro para entendermos as fronteiras entre a arte-vida
contemporânea, suas corporificações e seus efeitos.

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é arte?,9 dentre outras. Se é difícil defini-la justamente por sua postura


de soma (epistemológica, ontológica, filosófica e metodológica) que
aglutinaria diversos saberes e práticas de zonas vistas como distintas e
idiossincráticas, a performance então mesclaria, artes visuais, dança, teatro,
audiovisual, tecnologia, literatura/poesia etc., constituindo um processo
híbrido e peculiar (Cohen, 1989; Darriba, 2005; Glusberg, 1987; Gon-
çalves, 2004; Nascimento, 2011; Santos, 2008), de difícil ou até mesmo
de impossível integração em um regimento artístico.
Por outro lado, Hanns (2005) argumenta que RoseLee Goldberg
(1979) confere à Performance Arte certo “estatuto de formalização”,
ao momento que ela situa a inserção da performance como forma de arte
e linguagem autônoma. Vale então tensionar que os sentidos atribuídos
ao termo “estatuto” são instáveis, o que gera certo estranhamento ter-
minológico, uma vez que esta noção trama-se aos saberes e práticas da
Arte da Performance. Assim sendo, a noção de estatuto, quando pensada
em interface às performances artísticas, apresenta certa problemática, pois
com o termo “estatuto”, pode haver uma tentativa de agrupar todas as
ações performáticas em um mesmo regimento. Nesse sentido, não seria
melhor a utilização desse termo no plural, para contemplar a diversidade
dos fazeres? Ainda assim, atentemos que mesmo desse modo, os sentidos
circulantes do termo sugerem certa estabilidade e leis, ao passo que as
performances artísticas parecem apresentar um percurso contrário.
Não fechando a reflexão anterior e me apropriando dela, é nessa ten-
são que se enfatiza a dificuldade em realizar categorizações e afirmações
precisas sobre a Arte da Performance. Isso gera posicionamentos diver-
sos de autores em uma tentativa de caracterizar as performances artísticas,
tais como: movimento (Camargo, 2015; Glusberg, 1987), linguagem

9 Um debate interessante e aprofundado sobre essa questão é apresentado por


Duve (1998).

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

(Cohen, 1989), teoria (Carlson, 2011), gênero (Santos, 2008), linhagem


(Nascimento, 2011), postura, perspectiva ou saber e prática... Parece
que essa complexidade de classificá-la se alinha à diversidade de noções
propagadas, a um próprio “querer de alguns” de ficar neste lugar de
indefinição, além da polissemia do termo já mencionada.
Para uma análise ampliada, vejo como utópico ocupar o lugar de
indefinição, pois por si só, estar e/ou ser indefinido também é definir-se.
Acrescentaria uma indefinição quanto aos modelos postos, tradicionais,
que zelam por certa “pureza”, clareza, ordem, respeito a certas concepções
rígidas, que não se misturam, não se confundem, não se contaminam,
não se infiltram. Penso que a indefinição, para ser mais bem entendida,
estaria vinculada à outro termo, a indisciplina, isto é, a não disciplina, já
que a dança, o teatro, as artes visuais-plásticas teriam cada qual, saberes e
práticas definidos dentro de uma estrutura convencionada. A performance
artística, então, devoraria a todos, ressignificando, somando a outras
noções, saberes e práticas. Indisciplinada como desobediente à norma-
tividade, saída do modo disciplinar, negação ao padronizado e contrária
a um modo correto de se fazer algo, constantemente em movimento e
em reflexividade.10
Reconhecer o panorama e historiografia (Agra, 2015; Darriba, 2005;
Santos, 2008) da performance artística no Brasil, bem como conhecer as
peculiaridades dos produtores de tais ações, seus interesses, caminhos
metodológicos, escolhas e uma infinidade de elementos presentes em
suas produções, perpassaria a noção de reflexividade. Por outro lado,

10 Ulrick Beck (1993 apud Spink, 2010) argumenta sobre a Modernidade Tardia,
que gera uma série de desmitificações, dentre elas: da ciência e dos modos de
existir. Assim, a reflexividade se dá considerando um movimento interno e outro
externo de revisão crônica. Neste caso, as performances artísticas são autoques-
tionadas pelos seus próprios fazedores (internamente) e pela sociedade (exter-
namente).

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defrontarmo-nos com tais elementos, possibilita-nos aprofundarmo-nos


um pouco mais na complexidade da produção performática, em seus des-
dobramentos contextuais e locais, avançando na compreensão da mesma.
Parece que os estudiosos da Arte da Performance concordam que
o primeiro performer com destaque nacional no Brasil foi o arquiteto,
artista plástico e agitador cultural, Flávio Carvalho (1899-1973), com
sua “Experiência nº 2”, em 1931. Com um chapéu em sua cabeça, ele
avançou contrariamente a uma procissão de Corpus Christi, evento da
“Semana Santa”. As pessoas tentaram matá-lo, todavia foi salvo pela
polícia e, posteriormente, reuniu suas impressões em um livro (Agra,
2015; Darriba, 2005; Negrisolli, 2012; Paludo, 2006; Santos, 2008). No
Brasil, outros nomes se destacam, sejam de grupos ou pessoas: Hélio
Oiticica, Lígia Clark, Teatro Oficina, Wesley Duke Lee, Paulo Brusky,
Antônio Manuel, Artur Barrio, Cildo Meireles, Ivald Granato, Aguilar,
Gabriel Borba, Genilson Soares, Marcello Nitsche, José Eduardo Garcia
de Moraes, Grupo 8 Pés, Tadeu Jungle, Guto Lacaz, Otávio Donasci,
Renato Cohen, Eduardo Kac, Diana Domingues, Ivani Santana, Corpos
Informáticos, Michel Groisman, Franklin Cassaro, Rodrigo Cabelo,
Laura Lima, Marcia Pinheiro, Tunga, Alex Hamburguer, Marcia X, o
Grupo Estudos para Concerto de Corpo e Alma, Ayrson Heráclito,
Ciane Fernandes, Cintia Tosta, Coletivo OSSO, Marcos Paulo Rolla,
Thiago Judas, Grupo EmpreZa (Agra, 2015; Darriba, 2005; Santos,
2008, 2011), dentre outros. Este destaque de pessoas e grupos se dá
mediante uma quantidade de critérios, relações/vínculos institucionais
e articulações políticas, territoriais, participação de eventos, galerias,
mostras, interesses, destaques midiáticos, dentre tantos outros aspectos,
o que leva à seleção, escolha e legitimação de certas(os) ações, pessoas,
grupos em detrimento de outras(os).

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Tais pessoas e grupos são destacados na Arte da Performance mediante


uma ressignificação criativa, expressa por meio de uma infinidade de
elementos que a caracterizam. Características concordantes e por vezes
contraditórias, entretanto, comuns e recorrentes a todas essas pessoas e
grupos, em que eleva-se o corpo como principal materialidade perfor-
mática e performativa (Carlson, 2011; Glusberg, 1987; Goldberg, 2006;
Noronha, 2005). Compreendendo a significância dada ao corpo na Arte
da Performance, o próximo tópico apresenta-se como um aprofunda-
mento nessa temática.

Arte da Performance: o corpo e a política


O enfoque na Arte da Performance recai no modo como o corpo, ou
o “eu”, se articula; o corpo ou “eu” que fala e age em seu próprio nome,
na condição de artista e pessoa. Está em cena si mesmo, “autobiográfico”
(Goldberg, 2006), não faz papel do outro em um sentido representativo,
não é personagem, pois é presença.11 Isto é, na configuração de uma
performance artística, as questões estruturais e ideológicas atravessam e
são o corpo do próprio performer: em sua carne-pele-tecido epitelial, em
suas vivências, histórias, anseios e concepções de mundo. Em meu caso,
(des)guardo a experiência de meu corpo, vivenciando-o e responsabili-
zando-me pelo drama que flui por-entre-através de mim, fundindo-me
com ele (Carlson, 2011; Cohen, 1989; Glusberg, 1987; Gonçalves, 2004;
Noronha, 2005; Paludo, 2006; Pereira, 2015; Schulz; Hatmann, 2009).

11 Presença é um saber/prática importante de sentidos difusos e complexos, para


se entender a dinâmica da Arte da Performance. Assim, para que exista perfor-
mance, é necessária a presença de corporificações – atentas e disponíveis –, rea-
lizadas no tempo presente, ao vivo. Devido à quantidade elementos envolvidos,
à idiossincrasia de cada performance/performer e à mobilidade de sentidos,
temos a presença e sua definição como uma problemática constante na cons-
tituição da performance na atualidade (Goldberg, 2006; Medeiros, 2009, 2014;
Nascimento, 2011; Paludo, 2006).

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Partindo dessa concepção, o corpo (suas experiências particulares e


coletivas), na Arte da Performance, institui-se como a obra em si – “cor-
pobra” – sua própria obra. É, ao mesmo instante, sujeito e objeto da
arte-vida,12 integrando uma rede de fluxos simbólicos complexos, extre-
mamente abertos, difusos, voláteis, discursivos e produtores de sentidos.
O corpo, então, é o lugar que conduz, ritualiza, orquestra, opera, aciona e
ativa inúmeros códigos móveis (Glusberg, 1987; Cohen, 1989; Medeiros,
2009; Gonçalves, 2004; Darriba, 2005; Noronha, 2005; Santos, 2008).
Ao performer, isto é, ao seu corpo resta rearranjar estes inúmeros códigos
simbólicos táteis, motores, acústicos, olfativos, cinestésicos, gustativos
e visuais, a favor de seu roteiro-objetivo, coconstruindo13 um tempo­-
‑espaço de experimentação performática (Cohen, 1989; Glusberg, 1987).
O corpo que se apropriou de suas vivências particulares e coletivas, pro-
dutor e afetado por diversos sentidos, está mobilizado e mobiliza diversos
códigos a favor de seu roteiro-objetivo, junção e mobilização, em que ine-
vitavelmente se trama a política. Isto ocorre, segundo Nascimento (2011),
mediante o reconhecimento desse corpo performático, que é assumido
como uma possibilidade de engajamento político. Se assim, a pessoalidade
é política e o corpo é o lugar onde o público e o privado tensiona a esfera
da intimidade, havendo uma negociação da dimensão social.

12 A Arte da Performance é um lugar fronteiriço (Cohen, 1989; Glusberg, 1987).


Assim, desde as primeiras performances, busca-se eliminar a separação entre
arte e vida (Goldberg, 2006).
13 “Coconstrução”, uma vez que a experimentação performática se dá consideran-
do uma diversidade de elementos coletivos, multidirecionais e simultâneos que
interagem/participam no aqui-agora entre si: espaço-tempo, performers, artistas
e interatores. O termo interator é utilizado para denominar “espectadores” con-
vidados a participarem ativamente do processo (Medeiros, 2009, 2017), o que
desvia o conceito de autoria e ação unilateral. Assim constituindo um espaço
conjunto-coletivo de participações, desnaturalizando o saber/prática de “espec-
tador” na condição de passivo, reativo, observador/contemplativo, distante e ofe-
recendo um lugar de atividade, agente, potencial para a experimentação (Hanns,
2005; Nascimento, 2011). Deste modo, propiciar autonomia é uma articulação
complexa política, que emerge das interatuações performáticas.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

É com base no corpo nesse processo de interação público-íntimo que


buscamos definir nossa identidade, nos diferenciamos, discriminamos e
hierarquizamos relações humanas. Temos, portanto, a noção de corpo
como uma materialidade móvel, relacional e discursiva, suporte de um
conjunto variável de atributos, que o estrutura e o constrói, em um sen-
tido performativo que o inscreve (Díaz, 2013). Nessa concepção, o corpo
é histórico e é construído ligado às inscrições da cultura, entretanto, por
um olhar além, devemos considerar sua dimensão biológica, que também
lhe atribuiu marcas. Convencionou-se que as marcas biológicas geram
expectativas sobre os modos de agir, restrições, dentre outras derivações.
Do atrito entre a cultura e a biologia, uma série de inscrições no corpo
são ocasionadas.
Assim, a imagem do corpo é constituída em um espaço social e pes-
soal, na medida que suas evidentes marcas visuais, biológicas ou não, são
expostas e, por vezes, cria certas características do próprio sujeito, o grupo
do qual participa e ao qual quer pertencer, como também, pode gerar
uma diversidade de efeitos, desde naturalizações enganosas (Gonçalves,
2004), discriminações, preconceitos, quereres, lugares e posicionamen-
tos. Esse corpo político, biológico-social-histórico-cultural, em conflito
pelo que é ou está e o que almeja, com inscrições repercutidas de suas
marcas biológicas e culturais, evoca um corpo-agente de uma polis, esta
sendo um lugar integrador que não separa estado e sociedade. Portanto,
o corpo político é aqui admitido como um elemento simultaneamente
constitutivo, constituído e modificador, de uma sociedade/estado, que
porta poderes, legalidades, oficialidades, estruturas organizacionais,
economias, leis, negociações, legitimações, espacialidades, bem como
outros corpos com múltiplas cidadanias. Assim Santana (2008) argumenta
sobre estes corpos situados, que ao mesmo instante ocupam localidades,

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regionalidades, nacionalidades e globalidades, que se (des)integram à


polis, transformando-a.
O corpo político, portanto, realiza transformação social (Santana,
2008), colocando-se como materialidade relacional (Díaz, 2013) expres-
siva, performativa, máxima e singular (Lima, 2010). Com possibilidades
infinitas de inventar, recriar, mobilizar, resistir, negar, denunciar, visibi-
lizar, criticar, libertar, gritar, ocupar, opor, fluir, transgredir, protestar,
disputar, desviar, questionar, desestabilizar, desvelar pudores e inibições.
Examinando seus mecanismos internos, externos, sua perversidade e
seus gestos (Medeiros, 2009, 2014; Nascimento, 2011; Paludo, 2006;
Santos, 2011), por meio de sua arte-vida, contra as questões de injustiça,
padronizações governadas por normas rígidas, globais e hegemônicas,
nem sempre corretas, mas socialmente aceitas (Santos, 2011). Este corpo
performático terá uma dimensão política toda vez que propiciar transfor-
mação e reflexão sobre contexto, parâmetros, modos de organização e
posicionamentos (Nascimento, 2011; Paludo, 2006), operando por meio
de discursos corporificados, afetuosos e sensoriais.
O corpo na Arte da Performance configura as questões da corporeidade
e do próprio humano, podendo, se almejar, alinhar-se aos movimentos
sociais (Goldberg, 2006), o que evidencia como importante munição as
minorias sociais (mulheres, negros, homossexuais, colonizados, imigrantes,
indígenas, dentre outros). Tem suas corporificações atravessando as temá-
ticas, o mais amplamente possível, tais como corpo, sexo e gênero; corpo
e psicossomática; corpo e estados violentos; corpos e marcas culturais;
corpo, erotismo e pornografia; corpo, cotidianidade e intimidade; o corpo,
o real e o virtual (Darriba, 2005; Nascimento, 2011; Noronha, 2005; Santos,
2008); e o corpo, cidade e urbanidade. Tais corporificações reverberam
a tentativa e busca de uma construção de posicionamentos pluralizados,
flexibilizados (Schulz; Hatmann, 2009), maximizados e singularizados.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

É esse corpo pluralizado, diferente e licencioso, que possui seus limites


permeáveis, abertos e flexíveis, que estão misturados aos comportamentos
de animais, objetos e aos outros corpos (Banes, 1999), em contrariedade
ao hegemônico. Corpo que é denominado por Banes (1999) como corpo
grotesco (e/ou efervescente), que aciona um corpo performático político
em que a cultura não oficial, isto é, marginalizada, tem aberto fissuras no
decoro, nas padronizações, na hegemonia, nas naturalizações da cultura
oficial que normatiza as interações humanas. Tendo essa perspectiva, o
próximo tópico tenta demarcar e aprofundar, o que viria a ser este corpo
grotesco como também possíveis vinculações com a política.

Corpo Político: grotesco, monstro e abjeto


Inicialmente, argumento que a tentativa deste tópico é aprofundar
em literaturas que, de alguma forma, versam sobre o corpo grotesco,14
recortando noções que acredito serem importantes para tramar o deba-
te sobre corpo político. Neste aprofundamento, deparei-me e reconheci
uma vasta circulação de versões sobre o grotesco que o caracterizaram
como um termo polissêmico e com tramas já alinhavadas com outras
terminologias, a saber: monstro15 e abjeto.16 Esses três termos são vistos
como de matrizes distintas de construção, isto é, existem teóricos e
materialidades diversas implicadas, estabelecendo debates, contextos
e zonas de alcances, específicas e por vezes complementares a cada termo.
Dessas posições que compactuam e destoam, tento aqui tramar algumas
relações e considerações, iniciando pela noção do grotesco.

14 As variedades de versões de sentidos sobre o termo “grotesco” emergem, me-


diantes os seguintes teóricos e obras: Bakhtin (2010); Hugo (2002); Kayser
(2003), dentre outros.
15 Monstro/anomalia”: termo(s) vinculado(s) às obras do filósofo Foucault (2001).
16 Termo presente na obra de Kristeva (1988) e recorrente nos estudos feministas
contemporâneos, teoria queer, filosofia política e ética.

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Pontuo, inicialmente, que o teórico recorrentemente utilizado na


literatura analisada para versar sobre o grotesco é Bakhtin, sendo que
grande parte da historiografia e efeitos do termo, emerge(m) do mesmo.
Os estudiosos contemporâneos a ele, citando-o, delimitam que a origem
do termo “grotesco”, deriva de grotta, la grottesca e grottesco, estando datado
no século XV. O termo foi utilizado para denominar objetos, gravuras e
pinturas, com formas inacabadas, abertas e fantásticas metamorfoses de
figuras humanas com animais, plantas e espaços, fugindo da represen-
tação real do mundo, encontradas(os) nas escavações dos subterrâneos
das Termas do Tito e em outras regiões próximas da Itália, em Roma
(Gonçalves, 2002; Sant’anna; Segantini, 2011).
Outra consideração que se trama juntamente ao grotesco é da “cos-
movisão carnavalesca”. O carnaval na Idade Média era visto como uma
mistura festiva do mundo e do corpo, que gerava uma faceta de humor.
O riso como uma aresta do humor, portanto, oferecia liberdade aos ritos
e às festas populares, sendo visto como transgressivo, infernal e perigo-
so. Nesse contexto, o clero controlava e manipulava essa manifestação
(Almeida, 2007; Esquivel, 2009; Ferreira, 2002), já que ela integrava as
classes sociais, desestabilizando a ordem e deformando a organização
estabelecida, o que invertia e fustigava as hierarquias (Gonçalves, 2002).
Por este viés, a noção do grotesco, alicerçada pela conceituação da
cosmovisão carnavalesca, gera manifestos de desordem, desregramento,
caos e subversão de uma forma; configuração que tensionava o poder
vigente na Idade Média e a garantia de seu controle, já que para este era
interessante e importante, manter a assimetria entre as relações e classes
sociais. Essa assimetria pode ser refletida em uma distinção entre o “alto
e baixo corporal”, outra conceituação que em rede alinha-se ao grotesco
e à cosmovisão carnavalesca. O alto e o baixo corporal apresentam uma
relação extremamente simbólica, e popularmente corrente, em que o alto

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tem relação com o elevado, o transcendente, e seu inverso, o baixo, está


relacionado aos órgãos genitais, ao traseiro, ao ventre, ao excremento,
ao resto (Almeida, 2007; Esquivel, 2009; Ferreira, 2002). A distinção e
a assimetria estabelecidas entre o alto e o baixo corporal assumem exa-
tamente a função de reafirmar o distanciamento social e de modos de
existir entre uma classe e outra, afirmando lugares de atuação, domínio
e de poder polarizado.
Dessa maneira, o alto corporal seria representado na figura dos nobres
e do clero, que estariam vinculados a uma cultura oficial, rígida, estável,
religiosa, controladora e equilibrada. O corpo e o discurso destes, conse-
quentemente, são elevados, acabados, sérios, refinados, puros, homogê-
neos, fechados, completos, proporcionados, simétricos, dignos, decorosos,
contidos, eternos, perfeitos, perpétuos, absolutos, detentores da verdade
dominante e legitimado pelo regime vigente (Almeida, 2007; Esquivel,
2009; Gonçalves, 2002; Sant’anna; Segantini, 2011). É justamente nesta
matriz regulamentada, hegemônica, normativa, natural, validada e cor­
respondente à verdade que os sujeitos foram formados obrigatoriamente
e que se produz o polo contrário, que é o “excluído” (Díaz, 2013; Pereira;
Carvalho, 2015): o domínio do “baixo corporal”, o corpo grotesco.
O baixo corporal nessa distinção relaciona-se a uma cultura popular
não oficial, às mudanças sociais, oposto ao sério e ao controle, subversivo
ao metamorfosear as formas, os objetos, os elementos da natureza e as
partes dos corpos, sedimentando-se em um sistema de imagens grotescas,
exageradas e desmensuradas. Desobediente, festivo e “sorridente”, con-
sequentemente, gerando temor a oficialidade (Almeida, 2007; Esquivel,
2009; Ferreira, 2002).
O corpo grotesco é então dialético, sempre em um processo de vir-a-ser,
abrangendo estados duais e/ou múltiplos, interiormente e/ou exterior-

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mente, que desafia a representação clássica elitista. Torna-se símbolo


profundamente político, ao inverter e virar, o baixo pelo alto, o dentro
para fora, desorganizando as categorias biológicas e as classificações
sociobiológicas (raciais e sexuais) (Banes, 1999). Por este viés, o corpo e
o discurso grotesco seriam constante movimento, heterogêneos, hiper-
bólicos, exorbitantes, alegóricos, agigantados, excedentes, palpitantes,
efervescentes, doentes, incompletos, mutilados, fragmentados, disformes,
deformados, desordenados, confusos, imundos, abertos, protuberantes,
irregulares, secretantes, múltiplos, inumanos, em trânsito e em recom-
posição, impuros, obscenos, vulgares, indecentes, estranhos, perigosos,
assustadores, monstruosos e diabólicos (Almeida, 2007; Esquivel, 2009;
Ferreira, 2002; Gonçalves, 2002; Sant’anna; Segantini, 2011).
Até o momento, tentei trazer como o termo “grotesco” pode ser
entendido e inserido em um movimento histórico, bem como a com-
preensão da construção social deste termo e as nuances agregadas. Isso
nos possibilita compreender a dinâmica contemporânea em nossos
modos de agir, isto é, como nossos corpos e discursos são construídos e
alocados em matrizes regulamentadas e legitimadas, ou excluídas. Assim,
um confronto entre uma matriz legitimada e a excluída, gera polarida-
des, dualismos e dicotomias. O grotesco, então, era visto ocupando e
ocupado pela(o) mentira, múltiplo, impuro, indecente e o disforme; tais
características salientam a noção de corpo monstro. O corpo monstro
(Almeida, 2007; Esquivel, 2009; Gonçalves, 2002; Sant’anna; Segantini,
2011) se assemelha à noção do grotesco, já que esse é um cruzamento
disforme, contempla características de humanos e de outros seres. Se
assim, Pereira e Carvalho (2015) complementam, é um híbrido entre ani-
malidade e humanidade, tendo contemplado a mistura de duas espécies,
de dois indivíduos, de dois discursos, de dois comportamentos, de duas,
ou mais partes iguais e/ou diferentes em um só corpo.

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Segundo Courtine (2004), o corpo monstro ou monstruoso em uma


historiografia apresenta dois momentos. O primeiro em que este corpo
seria assíduo nas festas populares do século XIX, como entretenimento,
distração e a serviço da classe dominante. Uma espécie de espetáculo
dos monstros, que era extremamente lucrativo, em que os olhos pas-
seavam tranquilamente pelas “bizarrices”, “deformidades humanas”,
“animais extraordinários”, “excentricidades”, “fenômenos vivos”, “erros
da natureza” – assim chamados. O segundo momento, reservado ao
século XX, em que esse corpo é arrancado da espetacularidade, torna-se
legitimamente sujeito à observação médica e objeto da opinião pública.
As autoridades públicas passam a se preocupar com os perigos que a
exibição desse corpo monstro pode gerar à ordem e à moral. Assim, os
efeitos e impactos são outros: olhos atônitos, indiferença, desvio, esconder,
pânico, silêncio, afastamento, esquiva e objeto de constrangimento social.
O corpo grotesco, ou monstro, se encontra em um lugar de frontei-
ra, em que os limites se aproximam e interpenetram-se. Carregado de
aspectos da dita normalidade, mas que ao mesmo instante se desvia dela.
Na contemporaneidade, o monstro é aquilo que não poderia ser e está
atrelado à infração de uma lei “natural”. Trata-se de normalidades defor-
madas, intencionalmente ou não (Gonçalves, 2002; Zoboli et al., 2014).
Assim, o corpo e as corporificações estão diretamente ligados ao gro-
tesco e ao monstro, na medida em que não seguem as normalidades e as
naturalizações que deveriam abarcar, gerando muitas indefinições, dúvidas
e incertezas. Este corpo grotesco e monstro é justamente considerado
pela cultura oficial, “o que não deveria existir” e que “deveria desapare-
cer”, pois, segundo Esquivel (2009), destrói as ordenações e abre crateras
onde acreditávamos caminhar com segurança e reconhecimento, o que
ocasiona, muitas vezes, sentimentos ambíguos e simultâneos, tais quais:

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a admiração e o temor (Zoboli et al., 2014), a atração e a ameaça (Villaça,


2006), a curiosidade e o estranhamento, ou repulsa (Courtine, 2004).
Dessa forma, o corpo grotesco e monstro surgiria como um desvio
da norma, simultaneidade, um movimento, um espaço de risco, que-
bra da unidade, dessemelhança, não identidade, diferença e abjeção
(Sant’anna; Segantini, 2011; Villaça, 2006); abjeção que pulveriza o
sujeito não nomeando-o, ou imaginando-o, deslocando-o das regras
do jogo de relações sociais, que este corpo parece não reconhecer. O
corpo colocado como abjeto questiona a sua solidez, bem como ao em
vez de perguntar-se sobre seu “ser”, inquere sobre seu “lugar”. Torna-
-se contingencialmente perturbador ao sistema, à ordem, às regras, aos
limites, à lei e à moral (Kristeva, 1988). São corpos e vidas abjetas, cujas
materialidades não importam, assim sendo não protagonistas, excluídos,
rechaçados, ignorados, desmaterializados, marginalizados, apagados pelos
discursos e ininteligível culturalmente. Como também, necessários e a
sombra, para que o sujeito normativo seja marcado (Díaz, 2013; Mejer;
Prins, 2002; Pereira; Carvalho, 2015).
Este tópico, portanto, nos auxilia a entender que corpo e discurso gro-
tesco, por consequência, é monstro, uma vez que esses termos partilham
seus sentidos. Corpos e discursos disformes ao que a normatividade, a
naturalização e a hegemonia estabelecem. Estes corpos e discursos, que
estão abjetos, são mobilizados a não serem vistos, “não objetos”, não
sujeitos, considerados como menos ou de nenhuma valia, pelo regime
vigente. Penso que nesta zona deva emergir com veemência a noção de
um corpo político monstro/grotesco para se posicionar e requerer seus
direitos como cidadão. A Arte da Performance, portanto, pode ser uma
importante aliada nesse processo de conquista, posição, busca, luta e
reflexão crítica.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Ilustrações17 Inconclusivas
Ora negro, careca, classe baixa, sul americano, emocional, realizei
estudos em ensino público, sorridente, performer, (in)definido quanto a
sexo, gênero e religião, pop, passivo/contemplativo/reagente. Ora (não)
branco, barbudo, não efeminado, sério-sisudo, racional, psicólogo, realizei
estudo em instituição privada (e, por consequente, ecoa sobre mim, o
status de classe média, ou classe baixa em ascensão), cristão, indepen-
dente, operístico, “legitimado e com propriedade para opinar”, ativo/
agente... como é difícil se posicionar! (Pereira, 2015). Aqui esbocei duas
posições em que posso oscilar, ou ocupar, dentre tantas. Logo, estou
grotesco-monstruoso-abjeto, pois meu corpo (des)porta em si performa-
tividades, simultaneidades, inscrições, mutilações e hibridismos, o que
evoca um corpo não sujeito à norma.
Meu corpo político performático não normativo impacta de forma
incerta, duvidosa e questionável, produzindo, tanto a mim, quanto aos
outros, contágios, contaminações e infiltrações de instabilidades. Corpo
que negocia entre a segurança (do objetivo estabelecido da performance
artística e de meu corpo) e o desconhecido (da coconstrução em um
espaço-tempo, no aqui-agora). Reconhecendo estas posições (algumas
mais estáveis do que outras) as quais ocupo e desocupo, em confronto/
processo desta textualidade, considerei três experiências interessantes para
ilustrar e permitir visualizarmos as tramas da(o): Arte da Performance;
corpo político; grotesco, monstro e abjeto.

17 Ilustração é um termo usado na perspectiva no Construcionismo Social, para de-


signar exemplo. Parece-me mais amplo do que somente exemplificar, pois tam-
bém sugere contextualização e imagem descritiva.

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A fome:18 Homem negro, cabelo black power-loiro, sexualidade não


normativa, efeminado – técnico em Artes Cênicas e Fotógrafo, e uma
mulher branca, loira e acima do peso padrão – Graduanda em Artes
Cênicas. Trajam respectivamente (ele) uma bermuda e camisa, (ela)
calcinha e sutiã – cor da pele (de alguma forma tentando apresentar
certa neutralidade). Estão próximos ao Restaurante Universitário (RU)
da Universidade Federal de Goiás (UFG). Ela deita-se. Ele começa a
depositar sobre ela alimentos: arroz, feijão e verduras. Ele começa a
olhá-la, cheirá-la, mexê-la, comê-la, isto é, comer os alimentos sobre
ela. Pessoas se aproximam. Olham. Viram rostos. Finaliza quando ele
começa a mostrar ânsia de vômito. Essa ação foi realizada na Semana
de Arte Popular (SAPO), promovida pela UFG.
Experimento sem nome:19 Homem alto, pardo, forte/acima do peso
padronizado, sexualidade não normativa – ator e empresário; homem,
branco, loiro, magro – graduando em Direito; mulher, parda, hétero –
graduanda em Comunicação Social; e mulher, parda, hétero, casada – atriz.
Em um auditório, em uma parte superior escura com foco de luz, cada
um sentado em uma cadeira e com alimentos variados – balas, pães de
queijo, refrigerantes coloridos, granulado de chocolate etc. – ao entorno.
Começam a comer em um ritmo crescente, enquanto alguns soltam gases,
arrotos. Comida que começa a se revirar nas bocas, misturar-se, escorrer
pelos corpos, demarcar o chão. A comida ao virar dejeto-resto-residual,
tornava-se novamente alimento, ao ser reingerida. Recomida e retomada!
De repente, alguns levantam-se de suas cadeiras e começam a tentar

18 Informações gentilmente passadas por Ana C. Leal e Venâncio Cruz, após diá-
logos descontraídos. A síntese da ação obtida também considerando fotos que
visualizei, comentários em rede sociais e reflexões.
19 Informações obtidas com base em minha experiência, já que estava presente,
juntamente a colaboração de Netho Schultz. Os demais integrantes desta ação
foram: Carlos Henrique, Jaqueline Taylor e Kamila Nunes. Ação que teve provoca-
ções de Lina Reston, artista-educadora.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

“roubar” os alimentos-restos uns dos outros, mediante olhos gulosos,


renúncias, pouco a pouco, a ação finaliza-se. Ação realizada no Instituto
Tecnológico do Estado de Goiás Basileu França (ITEGO).
Ações caÓticas para corpos acalmados:20 Eu mesmo. Trajando uma cami-
sa verde de malha, considerada traje feminino; com uma calça escura;
tênis; por cima da roupa, diversas amarrações com ferraduras, car­
retilha, parafusos, chave de fenda, peças de lego, flores de plástico, fios
de nylon e cetim; com uma estrutura feita de capim que cobre toda a
minha cabeça; carregando um pacote de farinha de trigo. Ando pela
rua, contornando uma praça, durante 60 minutos. Danço, grito e me
esfrego pelo chão/paredes, freneticamente. Movimentação, gestualidade
repetitiva e exaustiva. Enquanto isso, deixo um saco de farinha de trigo,
que carregava comigo, cair ao chão, até ele estourar e vazar pelas ruas
e calçadas. Pessoas param olham, contemplam, gritam, me empurram,
falam que é o “diabo”, oram, gravam, tiram fotos, se assustam. Ação
realizada na Praça Bandeirante, Setor Central, Goiânia, Goiás.
Essas três ações foram realizadas no ano de 2015. As duas primeiras
não possuem como pretensão afirmarem-se como performance. Entre-
tanto pelo caráter, repercussão e interesses desta textualidade, acreditei
ser interessante trazê-las. As três ações resguardam uma dimensão do
grotesco, monstro e abjeto, ao momento que os alimentos são ressigni-
ficados, readequados ao corpo, subvertidas suas funções e os discursos
de “elevação e pureza”. Ao mesmo instante que os corpos interagem
com o resto-dejeto, arroto, vômito, sujeira, que se tornam processo-
-obra-processo, reaproveitados (Villaça, 2006), saem da obscenidade e

20 Esta performance artística foi realizada por mim, Zé Pereira, o que constitui um
autorrelato de experiência, baseado em minha vivência e em registro visual de
Camila Oliveira.

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sobem à cena os corpos imundos, desordenados, secretantes, estranhos,


diabólicos, em constante movimento, heterogêneos, diversos e diferentes.
Esses corpos diferentes, com suas experiências particulares e por
vezes comungadas: negras, pardas, mulher/homens, sexualidades não
normativas, entre outros, tentam emergir de suas abjeções e ganhar vozes,
visibilidades e cores, ao saírem das margens/sombras. Ao propagar
discursos e questionamentos políticos, por meio de vidaS-corpoS-arteS,
lutando por interesses e questões, que podem ser particulares, entretanto,
podem simultaneamente contemplar as minorias sociais.
Houve questionamentos e discursos políticos, reconhecidos no momen-
to em que visualizei, em posts em redes sociais e pessoalmente, sobre se
as ações A fome e Ações caÓticas para corpos acalmados eram arte; ou quem
eram as pessoas envolvidas; ou qual eram os objetivos. Houve embates
em tentativas de explicações sobre a arte contemporânea e sua forma
peculiar de produzir manifestos; ou questionamentos-discursos sobre o
biótipo dos corpos. Houve questionamento-discurso sobre se a Semana
de Arte Popular era um lugar adequado para realização de performance.
Perguntas e discursos atravessados e materializados como ação política,
que abrem espaços a repensar espacialidades-temporalidades-contextos,
interesses, oficialidades, hegemonias, o que foi naturalizado, estéticas,
posicionamentos, parâmetros, modos de organização.
Cada qual a seu modo, os/as performers orquestraram o simbólico a
favor de seu objetivo, estruturando grandes categorias, tais quais: pensar
o desperdício de alimentos, ou uma fome existencial, ou “o que queremos
comer e como queremos ser comidos”, ou propagar a desorganização
como elemento organizador. E os interatores coconstróem um espaço
de experimentação potencial, do qual são retirados fragmentos de pen-
samentos, reflexões, discursos, indagações, imagens, e, como Schulz &

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Hatmann (2009) argumentam, isso possibilita criar e visibilizar outros


modos de existir plurais, flexíveis e abertos.
Desse modo, a Arte da Performance é construída como um saber
e prática, monstro e grotesco, ao nascer da impureza, simultaneidade,
hibridez e mistura. Sendo favorável à bricolagem epistêmica, como pode
ser observado para estabelecer a trama proposta neste capítulo, que se
apropriou de diferentes produções discursivas: artes visuais, linguagens,
aspectos do Construcionismo Social, história, textos feministas, dentre
outros. Em suas ações, a performance pode gerar sentimentos simultâneos,
ambíguos e confusos (Villaça, 2006; Zoboli et al., 2014), tais quais podem
ser observados nestas ilustrações. Vale-se de e aceita práticas de autofla-
gelação, mutilação (Negrisolli, 2012), lida com dejetos, transformações,
desregramentos, desmensuramentos, desordenamentos, mutualismos,
sendo e/ou transformando-os em processos artísticos políticos.
Nessa trama, a Arte da Performance se legitima como importante arca-
bouço teórico/prático, estratégia e zona de ação política acolhedora para
corpos grotescos, monstros e abjetos. Na medida que não se perpetua como
verdade, porém contribui para a circulação de múltiplas versões e auto-
questionamentos em movimento, gerando processualidades inconclusivas,
potencialmente abertas a serem revisitadas e refletidas. Sendo embasada em
uma política da diferença ao ser indisciplinada e questionadora, eclodindo
matrizes excludentes, culturas oficiais, hegemonias e normatividades. A
trama aqui foi um importante recurso metodológico, para amarrar o que
aparentemente estava separado (e simultaneamente separar o que estava
alinhavado) gerando esta produção discursiva reflexiva.

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POSFÁCIO: EM CERRADO

ROBSON CORRÊA DE CAMARGO

Cerrado.
Os dicionários registram pelo menos oito sentidos para a palavra
cerrado.
O que está fechado, enCERRADO, vedado.
Cerrado é também o que está bem unido, comprimido, compactado; o
que está tapado por algo, protegido, coberto; o que é espesso, compacto,
condensado, maciço.
O seco cerrado em que vivemos pode estar muitas vezes carregado
de nuvens, anuviado, ventado e escuro, frio e sombrio, nublado.
Cerrado pode ser ainda o que é secreto, inacessível, ou mesmo um
tipo de vegetação retorcida que envolve os que vivem no cerrado, nos
envolve; é também a cerca, o cerco, o que cerca e o condensado.
No cerrado não encontramos apenas a vegetação do cerrado, a seca,
tem-se ao contrário, no subsolo, muita água, restos de mata atlântica,
que ainda deixa seus traços. O cerrado é diverso, recusa sínteses. Serão
assim as Performances Culturais?
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MORGANA BARBOSA GOMES (MORGANA POIESIS) | MURILO BERARDO BUENO

Uma das primeiras operações necessárias para a análise de algo, de um


fato que se manifesta, se presenta, é o desmonte de seu sentido aparente
e do aparentar dos sentidos não aparentes, duplos, triplos, contraditórios.
Analisar é contraditar, desmontar, embora não se analise ao sair de
cima de um cavalo.
Procurar o cerrado, se há de se, nas muitas camadas históricas, camadas
de sentidos, sentidos, em seus mundos, em outros mundos, desmundos.
Uma palavra que dizemos, no cerrado pode ser A Palavra, que se
introduz e nos introduz na realidade, molda o que vemos, o que deixamos
de ver, o que pretendemos ver, e o que não queremos ver, o que deve
ser visto e não visto, o que nos vê, como nos vê. Palavra-lente, palavra
coisa, determina e ecoa o que vemos e como somos olhados.
A Palavra, um deus, como um deus, cria a luz, determina a escuridão,
e as suas zonas sombrias. Para haver luz é necessária a escuridão, plena.
Fiat Lux.
A Palavra fala a boca que a emite, constrói o olhar e também o não
olhar, o gesto e o silêncio, o gesto e os seus espaços, sons silentes.
A PALAVRA, no cerrado, encerrada, cerrada, serrada, pode não ser dita.
A palavra silencia e se apresenta no gesto que fala. Gesto que evi-
dencia, ou contradiz, a Palavra. Assim é, são as performances culturais no
cerrado, são as performances no/do cerrado, culturas que apontam, aqui
se desmontam, nos mundinhos fundos dos Goiaz.
Performances da cultura, das culturas, que encerradas, no centro cons-
troem múltiplos discursos dos deuses das sombras. Fez-se e fazem
sombras, sombras que determinam luzes, imagens, projeções.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Performances Culturais no cerrado, procuram o encerrado, o unido,


o comprimido, o desunido. Desvelam, desunem, explodem, reúnem.
Se escuro, iluminam, se nublado, mostram luzes, trovões. Se é secreto,
revela-se, se há cerca, descerca-se.
Na luz se vê por contraste. Para dormir e abrir outros mundos, neces-
sitamos das sombras, aí as luzes da escuridão revelam-se. O que não se
vê determina o visto. Por isso muitos buscam as palavras. Entretanto
nas performances culturais, o contraste do gesto, do silêncio, do silêncio no
gesto, também determina o silêncio que contradita a palavra. A palavra
então é dita, escondida, recôndita. Gesto em diálogo.
No cerrado, no centro, surge assim o primeiro programa de pós-­
‑graduação interdisciplinar em performances culturais, sem similar nas
Américas Latinas. Iniciado aos fins de 2012 lança aqui seu próximo
livro. Um rebento que se reescreve, imberbe. Nosso jovem e vitorioso
programa, em seus três anos de vida, conquistou também seu douto-
rado, recém-iniciado (outubro de 2015), com quatorze alunos, alguns
aqui escreventes.
Ao mesmo tempo finaliza a formação de sua primeira turma de vinte
mestrandos. Como vocês poderão ler neste livro, são muitas as nossas
conquistas neste longo cerrado, por serem constituídas em tão breve
tempo, nesta jovem terra do planalto central do país.
Nosso jovem programa, da área interdisciplinar da CAPES, aproxima
professores e alunos de distintas áreas de formação: antropologia, socio-
logia, comunicações, filosofia, história, pedagogia, artes, letras, linguística,
literatura, memória social, pedagogia e, neste local de encruzilhadas
procura analisar a cultura em suas manifestações várias, sob diversos
recortes e pontos de vista de análise. O ser e o outro.


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COLEÇÃO PESQUISA | ROBSON CORRÊA DE CAMARGO | JOANA ABREU |
MORGANA BARBOSA GOMES (MORGANA POIESIS) | MURILO BERARDO BUENO

Este programa inovador é o primeiro que se estabelece em língua


portuguesa, não existindo ainda nenhum que se assemelhe mesmo em
língua espanhola. Outro idioma então somos, invade agora a cultura das
performances anglo-saxônicas. No sertão do centro oeste goiano, olhar
de dentro, estamos caminhando à frente de nosso país, bandeirantes ao
revés, retomamos palavras das lavras por ouro já levadas.
O primeiro programa de Performances Culturais da Ibero América
inicia novos falares e novos pontos de vista à reflexão sobre as performances
que costumava falar apenas o inglês, um determinado inglês. Introduz-se
agora uma aberta tropicalidade aos cerrados, os estudos das performances
culturais. Em idade antropofágica. Entretanto, quem acerta, erra e navega.
Navegamos na “simbologia comparativa” de Turner, nos ritos de
passagem de Van Gennep, na teoria do jogo de John Huizinga e, prin-
cipalmente nas performances culturais de Milton Singer, no instinto teatral
de Evreinov, nas elaborações dos formalistas russos, na semiótica, nos
signos de Peirce, no simbólico da psicanálise.
Existem também outros navegantes que vão se introduzindo nesses
mares, como poderão ver, piratas que aportam nossas embarcações, de
assalto.
As Performances Culturais, em nosso recorte, se constituem pri-
meiramente no lugar de encontro interdisciplinar e multidisciplinar de
produção de conhecimento científico e artístico, que visa compreen-
der, através de diferentes abordagens, a diversidade da expressividade
humana, as performances da cultura, numa visão transcultural, transversal
e transdisciplinar.
As Performances Culturais não procuram se estabelecer como campo
específico de conhecimento, mas como lugar de encontro, encruzilhada,
local de diálogos e fricção interdisciplinar e transdisciplinar.

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PERFORMANCES CULTURAIS: ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES

Como a luz e o fogo, as Performances Culturais se constroem pela


fricção e fusão, e não pelo confortável exame de um conhecimento
anteriormente estabelecido. Imersos, submergimos.
Essas diversidades expressivas, performances da cultura reescrita, cultu-
ras em performances, abarcam rituais, cerimônias, jogos, festas, carnavais,
teatro, poesia, literatura, brincadeiras de rua, atos da vida cotidiana, que
se apresentam na forma de oralidade, na escrita, na sonoridade ou em
registros midiáticos, na vitrola ou no rádio, na memória ou na arte, seja
em forma institucionalizada ou espontânea, religiosa ou laica.
Vive-se, identifica-se um permanente e contraditório jogo simbólico
de presentações e representações, manifestações culturais que solici-
tam nossa compreensão. Performances culturais são os exames dos atos
simbólicos da vida humana, que em si explicam a própria vida e são a
própria vida, e que necessitam ser experienciados, vividos, registrados
e construídos em processo múltiplo de análise, em sua história, em sua
pedagogia, comparativamente insertados na sociedade que as contém.
As performances culturais são, principalmente e em última instância, o pró-
prio ato social da experiência humana submetidos à análise e à vivência.

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SOBRE O LIVRO
Tipografia: Garamond
Papel: Supremo 250g (capa)
Off-set 75g (miolo)
Impressão e acabamento: Cegraf UFG
Câmpus Samambaia, Goiânia-
Goiás. Brasil. CEP 74690-900
Fone: (62) 3521-1358
https:cegraf.ufg.br

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