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LETTER TO READERS
Caras leitoras,
Nesta carta, faremos uma leitura das nossas performances artísticas Poemas &
Sussurros e Epístolas Profanas, que realizamos em algumas cidades brasileiras, nos estados
da Bahia e de Goiás, entre os anos de 2012 a 2017. Traçaremos um diálogo prático-teórico
entre as vocalizações que experimentamos nessas performances artísticas com os estudos
interdisciplinares da voz realizados pelo crítico literário suíço Paul Zumthor e pelos
pesquisadores brasileiros Alfredo Bosi, Goiandira Ortiz de Camargo & Olliver Mariano Rosa,
Gonzalo Aguilar & Mario Cámara.
A performance artística Poemas & Sussurros consiste em sussurrar poesias nossas e
de outras poet(is)as aos ouvidos de testemunhas 3. A ruptura com a representação poética não
se refere apenas a sua estrutura linguística, mas, também, à escolha de meios através dos quais
os versos (des)aparecem. Se a inscrição poética expressa o desejo de eternidade do ser
1 Publicada em (ARTE)FATOS LITERÁRIOS: entre textos, mídias e artes. Org. Alessandra Matias
Querido e Juliana Estanislau de Atraíde Mantovani. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.
2 Morgana Barbosa Gomes é doutora em Performances Culturais, pelo Programa de Pós Graduação
Interdisciplinar em Performances Culturais, Universidade Federal de Goiás, mestra em Artes Cênicas
pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, especialista em
Comunicação e Política e graduada em Comunicação Social pela Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia.
3 Richard Schechner (2011) define dois tipos de performances que ocorrem ao mesmo tempo: a
transportadora, na qual o performer especializado vai do mundo real ao mundo performativo, de uma
referência de tempo/espaço à outra, de uma personalidade à outra ou às outras, seja de forma
voluntária, como na interpretação, ou de forma involuntária, como no transe; a transformadora,
evidentes em ritos de iniciação, que transformam pessoas de um status ou identidade a outra, com a
presença de pessoas próximas ao transformado, qualquer que seja a sua habilidade. Enquanto na
performance transportadora, o espectador individualmente experienciaria as suas próprias reações em
um nível de respostas pessoais, na performance transformadora ele seria como um testemunha que
mantém níveis de proximidade com o transformado. Schechner observa uma mudança no estatuto do
espectador, desde o teatro experimental, nas décadas de 60 e 70, que envolvia a sua participação, o
palco ambiental e a criatividade coletiva, tal como podemos observar na arte contemporânea de forma
geral. Em nossa tese, aplicamos o termo “testemunhas” de Schechner, para nos referirmos às pessoas
que acompanham ou participam das nossas performances artísticas. Este termo também é utilizado no
método somático do Movimento Autêntico (Mary Whitehouse), desenvolvido no Brasil por Ciane
Fernandes (Bahia) e Soraya Jorge (Rio de Janeiro), no qual uma movedora dança de olhos fechados, a
partir dos seus impulsos internos, na presença de uma testemunha. “O nome ‘testemunha’ em vez de
‘observador’ (…) implica uma sintonia somática com o colega, sem julgamentos ou críticas”
(FERNANDES, 2018, p. 39).
humano através da obra de arte, os versos sussurrados produzem afetos efêmeros,
intensificados pela presença da meia voz e do quase contato corporal. Embora na literatura
escrita preexista um corpo que se manifesta como presente-ausente, com intensidades
variáveis, em Poemas & Sussurros, o investimento do corpo na palavra requer a presença ao
vivo do próprio corpo, tanto o nosso quanto os de nossas testemunhas. As imagens produzidas
pelos poemas se dissolvem no espaço-tempo logo assim que sussurrados, cabendo um
processo de produção das ouvintes, seja para a sua memória, esquecimento ou invenção de
sentidos. Apresentamos essa performance na Feirinha de Artes, Maravilhas e Esquizitices
(Salvador-BA, 2012), na Mostra Conquista Literária (Vitória da Conqusita-BA, 2015), no
Roçadeira: encontros performáticos em lugares improváveis (Goiânia-GO, 2015), na La
Herida pocket: mostra de viodeoarte e performance de mulheres artistas (Goiânia-GO, 2017)
e na Off Fli Piri (Pirenópolis-GO, 2017).
Enquanto em Poemas & Sussurros, estabelecemos um contato corporal direto com as
testemunhas, sussurrando poesias em seus ouvidos, nas performances artísticas Epístolas
Profanas gravamos cartas sussurradas, destinadas a leitoras, artistas, professoras, alunas,
pesquisadoras, testemunhas, colegas e amigas interessadas, entre outras destinatárias reais e
fictícias, como cidades e entidades personificadas, personagens artísticas e conceituais.
Partindo de uma performance literária para uma performance cênica, sentamos em uma
cadeira, vestidas com máscaras de bocas e convidamos as transeuntes dos lugares em que
atuamos a testemunharem os nossos sussurros, de modo que, frente a frente, performers e
testemunhas, estabelecemos um contato visual e sonoro, mediado pelo áudio dessas cartas
sussurradas. Apresentamos essa performance na 11ª Mostra Cinema Conquista (Vitória da
Conquista-BA, 2015), I Conquista Ruas: festival de artes performativas (Vitória da
Conquista-BA, 2016), I Confluências: festival de artes integradas (Goiânia-GO, 2016) e no
Poiética: XIV Festival de Artes de Goiás (Itumbiara-GO, 2017).
Como escritoras, atrizes-dançarinas e performers, buscamos um investimento cada vez
maior do corpo na palavra, não apenas na produção e na intensidade das escrituras, mas,
também na aproximação entre quem escreve e para quem o faz, como um exercício de
atualização da nossa presença, em tempos de culturas digitais. Além disso, reconhecemos que
há uma série de restrições às leituras e escrituras tanto da literatura artística quanto acadêmica,
no Brasil, dadas as suas condições não raramente elitizadas de produções e consumos, dentre
outras questões econômicas e sociais determinantes de nossas educações e culturas.
As escolhas das poesias e cartas variam conforme os contextos e as testemunhas,
sendo a poesia Infinitas Auroras a mais frequentemente sussurrada.
infinitas auroras4
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. Frase, música e silêncio. Revista de Letras, v. 46, n.1, São Paulo, jan./jun.
2006, p.63-110.
CÁMARA, Mario; AGUILAR Gonzalo. A máquina performática: a literatura no campo
experimental. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
CAMARGO, Goiandira O. de; ROSA, Olliver M. A performance da voz e a subjetividade na
poesia contemporânea. Outra Travessia, n. 15, Santa Catarina, 1º semestre de 2013, pgs 205-
225.
FERNANDES, Ciane. Em busca da escrita com dança: algumas abordagens
metodológicas de pesquisa com prática artística. Salvador: EDUFBA, 2013.
SCHECHNER, Richard. Performers e espectadores: transportados e transformados. Revista
Moringa, v. 2, n. 1, João Pessoa, 2011, pgs 155-185.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção e leitura. São Paulo: Cosacnaif, 2007.