Você está na página 1de 2

Catequese Doméstica

No lar onde fui educado, além das orações diárias rezadas em família, a exemplo da
oração matutina (porque não dizer “madrugadina” às 4:30 h), do Ângelus às 18:00h e da
recitação do terço à noite, nos brevíssimos intervalos que se tinha durante os dias da
semana, era-nos aconselhada a leitura de algum livro, mas, claro que a Bíblia era o mais
indicado.
No Domingo, dia do Senhor, o repouso do corpo não coincidia com o da alma, pois esta
era ainda mais impelida a rezar todas as orações praticadas durante a semana e ainda
tinha que se fazer um esforço concentrado para participar da missa ou culto dominical
em comunidade e em nossa própria casa, claro, tinha uma catequese paterna.
Antes de relatar um fato ocorrido numa dessas sessões catequéticas, devo atentar para
um detalhe: minha família, além do meu pai e minha saudosíssima mãezinha, era
composta pelos treze filhos deste casal. Como se vê, numa família que tem os costumes
descritos nos dois primeiros parágrafos deste texto, não há cabimento para uso de
palavrões, palavras chulas ou de baixo calão. Não havia ninguém “formado”, ou seja,
que tivesse ao menos o ensino médio completo. Entretanto, não éramos tão ignorantes
exceto numa coisa, no nome da genitália feminina. Apesar de não ouvirmos no seio
familiar, nos meios que freqüentávamos inevitavelmente se ouvia vários dos termos
mais chulos e até vulgares com que se chamava aquela parte anatômica da mulher.
Baseados nos acontecimentos cotidianos, quando tantas vezes ouvíamos nossa
mãezinha, com seus repentes e sua enorme espontaneidade ordenar a uma filha mais
velha com expressões do tipo: “Vai ali fulana, veste uma calcinha na tua irmã pequena
que tá com a “beleza” de fora!”
Como somos treze filhos e filhas, os mais velhos eram, de certa forma, um pouco babás
dos mais novos, pois minha mãe não podia sozinha dar conta da tanta lida. Assim,
tarefas fáceis como vestir uma calcinha para cobrir a “beleza” das irmãs mais novas
eram sempre ordenadas às mais velhas, de modo que tantas vezes ouvida aquela ordem,
por osmose, aprendemos que o nome da genitália feminina era mesmo “beleza”. Pois
minha mãe jamais usaria os termos chulos ou vulgares que ouvíamos fora de casa, para
nomear a “beleza” de suas filhas. As “belezas” eram sempre muito bem preservadas da
falação, da exposição, mesmo quando ainda se era bebê. Lá nunca se praticou aquele
costume de se fingir, pondo a mão na genitália dos menininhos e depois se cheirar a
ponta dos dedos dizendo que estão cheirando “o pó”. Se não se fazia isso nem com os
homens, que gozam de maior liberdade e tolerância na moral sexual, imagine se se
podia permitir alguma alusão engraçada às “belezas” das meninas.
Dadas estas informações, volto a falar da catequese dominical. Como dizia antes, numa
dessas sessões, meu pai começou a falar da importância e das recompensas celestiais de
se praticar as virtudes. Pois quem não as pratica, não vai para o céu e sim para o inferno,
onde só existe eternamente, fogo, dor, sofrimento, choro e “ranger de dentes”. Marcou-
me muito esta expressão, “ranger de dentes”, mas não foi dela que saiu o fato
interessante que relato.
O cerne da questão aqui na verdade agora é o céu. Foi exatamente o céu que causou
espanto, acho que posso dizer escândalo no julgamento de uma das filhas catequizandas
quando meu pai tentou enfatizar como seria nossa chegada no céu.
Na sua descrição pedagógica, no céu, somos recebidos com grandes festas, com um
coro de vozes celestiais cantando, dançando, tocando trombetas em torno de Deus que
vive rodeado de anjos que vêm nos receber com o nosso anjo da guarda à frente,
mostrando toda a sua grande “beleza”.
Aí foi demais, como podia anjo mostrar a beleza? Se anjos são santos e nem as meninas
que são da pecadora raça humana pode fazer isso, como que os anjos podem?
Minha irmãzinha na sua inteligência e integridade não pode aceitar aquilo sem um
espanto, que, não fosse a enorme autoridade do nosso pai, não tenho dúvidas que
expressaria energicamente seu protesto. Como não podia fazê-lo desta forma, sem
esconder o espanto e disfarçando a rebeldia do que deveria ser um protesto, ela
pergunta:
– Mas vem cá pai, quer dizer que os anjos ficam sem calcinha no céu?
E meu pai sem entender bem donde ela tirou aquela idéia, porque aquela pergunta
descabida, diz:
– Não! Por quê?
– O sinhor não disse que os anjos vêm receber a gente mostrando a beleza no céu?
– Disse.
– Pois então?!
O velho entendeu a pergunta e passou a explicar:
– Beleza é coisa bonita, é coisa maravilhosa, coisa liiiinda!
Ao que a infante respondeu em sua inocência
– Ah! Pai, eu não acho não.
– Mas é!
Respondeu ele.
Só daí a alguns anos, depois das aulas de ciências biológicas na escola regular, é que
minha irmãzinha veio a partilhar conosco o seu aprendizado de que a “beleza” em
verdade tem outro nome.
Vital Martinho Carneiro de Oliveira.
Fato vivido nos anos 70 e relatado por escrito em
02/04/2008.

Você também pode gostar