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O preço do privilégio

O texto postado hoje foi escrito no ano 2000. Foi resultado de uma mistura de
acontecimentos, conspirações e oportunidades que vivi. Embora possa parecer, não há
qualquer rancor ou amargura, apenas um desabafo, quando na faculdade fui solicitado
a produzir um texto baseado numa das gravuras apresentadas pela professora. O que
ocorrera comigo a caminho da faculdade naquele dia, influenciou bastante o texto.

O preço do privilégio é a liberdade

Ao observar as gravuras apresentadas como fonte inspiradora do texto que


deverei desenvolver, talvez pelo estado emotivo em que me encontro, escolhi a de um boi
que não fora disputada por nenhuma outra pessoa. Com certeza, somente eu experimento
um sentimento muito particular. Se o leitor ou leitora não se importa, gostaria de tentar
descrevê-lo. Perdoe-me se for demasiado desinteressante. Confesso que tenho o costume
de falar de sentimentos particulares que nem sempre agradam, mas se me proponho a
escrever não consigo esconder as emoções vividas. Não sou criativo na arte de inventar
histórias.

As circunstâncias me fizeram bastante questionador e trouxe-me muitos


benefícios, como também me ensinou que é preciso pagar um preço por esta atitude.
Embora isso não me envaideça, sempre fui atuante no questionamento das
coisas que dizem respeito ao comportamento da sociedade organizada, seja religiosa ou
sócio-politicamente. Por diversas vezes denunciei publicamente desmandos na minha
igreja, escola, na gestão pública do meu município, estado e país. Até os que me odeiam
reconheciam que muitíssimas vezes falei com bastante propriedade de determinados
comportamentos, sobretudo dos nossos políticos.
Fui ferrenho crítico do grupo que governara a minha cidade por trinta e seis
anos consecutivos. Finalmente, na eleição municipal de 1996, um dissidente deste grupo
interrompeu aquela dinastia.
De certa forma, senti-me um tanto responsável pela mudança, embora
soubesse que não era a adequada.
Fui então convidado a integrar a equipe do novo governo. Aceitei, mesmo
desconfiado de que aquele convite fosse uma tentativa de manter-me calado, caso o novo
governo fosse tentado a manter certos vícios políticos-administrativos já bastante
conhecidos em administrações passadas.
Não deu outra. Muitas vezes, minha consciência me exigira atitudes de
coerência obrigando-me a tomar as mesmas atitudes de antes ante o novo governo.
Mesmo fazendo parte da equipe, fiz a população conhecer diversas arbitrariedades
cometidas pelo novo governo, de modo que de nada valera ao prefeito a minha nomeação.
Aliás, o tiro saiu mesmo pela culatra. Pois fiz todos conhecerem que meu objetivo era
contribuir e zelar para que aquele governo fosse caracterizado pela diferença e não pela
semelhança aos anteriores. Que minha postura baseia-se em critérios e não em afinidades
pessoais, de parentesco, interesses próprios ou de grupos isolados.
No setor onde trabalhei por dezenove meses, tive uma colega que, de forma
mais expressiva, comungava com meus ideais. Só não fiquei triste com a sua saída
daquele setor, porque ela havia sido aprovada no vestibular e fora estudar em outra cidade.
Sempre que possível, conversávamos sobre as dificuldades que ela começava
a enfrentar ao deixar o emprego e mudar-se de Riachão do Jacuípe.
Logo apareceu um “amigo” bastante ligado ao gabinete do prefeito e
intercedeu mantê-la em folha de pagamento sob a alegação de estar oferecendo uma ajuda
de custo para aquela estudante universitária, o que fora facilmente aceito pelo prefeito.
Não vejo nesta atitude nenhuma desonra ou desonestidade. Apenas um
privilégio que os demais estudantes universitários do município jamais tiveram.
A partir de então, comecei a perceber como os privilégios concedidos são
carregados de intenções e forças maléficas. Aquela companheira tão solidária às minhas
atitudes e questionamentos nunca mais fora a mesma. Nunca mais tivera a liberdade de
comentar com quem quer que fosse o que pensa ou do que discorda. Por uma quantia
vergonhosa de dinheiro – um pouco abaixo do valor do salário mínimo – que recebia
mensalmente sem trabalhar, fechou seus olhos para todos os absurdos cometidos por
aquela administração que, em termos de ética, é a mais desastrosa que o município
conhecera.
Também eu, juntamente com mais sete outros jacuipenses, dentre eles minha
esposa, fomos aprovados no último vestibular em Conceição do Coité e enfrentamos
muitas dificuldades para estudarmos. Algumas colegas, cobertas de razões e direitos,
requereram do atual gestor municipal uma ajuda de custo no transporte de nossa cidade
até a faculdade e foram atendidas. No entanto, avisadas por pessoas achegadas ao prefeito,
não puderam pronunciar o meu nome no gabinete, sob grave risco de não receberem o
benefício solicitado.
Apesar do sacrifício a que me submeto, tendo que trabalhar das sete às onze
horas da manhã e novamente das sete às onze da noite, e ao meio dia vir de motocicleta
enfrentando o vento, os tombos, os buracos, o sol e/ou a chuva e ainda, por vezes, a lama
que hoje me foi arremessada ao cruzar com um veículo pesado na estrada, sujando toda a
minha roupa, óculos, cabelo e o rosto. Apesar disto, sinto-me feliz e pago com satisfação
o preço da minha dignidade. Certamente, se tivesse eu o mesmo comportamento da minha
ex-colega não estaria enfrentado os sacrifícios de ordem econômica (já que tenho as
despesas dobradas pois além de mim, também minha esposa faz a mesma faculdade que
eu) e os obstáculos que a natureza e a ação desonrosa dos gestores públicos que dificultam
e fatigam o meu deslocamento até aqui.
Mas volto a falar da gravura.
Aquele boi tão robusto fotografado, certamente, com o orgulho do seu
proprietário por sua exuberante robustez, me fez perceber que ao contrário das vaquinhas
magras e famintas que eu ajudava a cuidar na minha infância ajudando a minha família a
salvá-las das tantas secas, apesar do sofrimento tinham um futuro menos traiçoeiro. Elas
mantinham-nos, e eram por nós mantidas num amável cuidado mútuo. Sofria a fome e a
sede, mas de certa forma parece que percebiam que sofríamos juntos a mesma escassez.
Ao contrário, aquele pobre boi tão robusto, nunca experimentara a fome e a sede, sempre
socorrido antes mesmo que tivesse qualquer necessidade, cheio de tatos privilégios, não
podia imaginar que todo aquele cuidado a ele dispensado tinha a única intenção de
engordá-lo, preparando-o para o abate, o que recompensaria ao seu dono todo o
privilegiado cuidado a ele concedido.
Isto me fez refletir que todo e qualquer privilégio nos fragiliza, nos deixa
impotentes, presos e obrigado a cerrar os olhos, os ouvidos e principalmente a boca.
Torna-nos cúmplices e coniventes das mais vergonhosas situações de injustiça. Os
privilégios, não raramente, nos conduzem ao mesmo destino do boi, cuidadosa e
orgulhosamente preparado para ser conduzido ao matadouro.

Vital Martinho Carneiro de Oliveira.

03/04/2000.

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