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SOBRE O SACERDÓCIO

São João Crisóstomo


349 - 407 DC

LIVRO PRIMEIRO ....................................................................................................................... 2


LIVRO SEGUNDO ..................................................................................................................... 11
LIVRO TERCEIRO ..................................................................................................................... 22
LIVRO QUARTO ........................................................................................................................ 45
LIVRO QUINTO ......................................................................................................................... 61
LIVRO SEXTO ........................................................................................................................... 67

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LIVRO PRIMEIRO

1. Sempre tive a felicidade de contar com muitos amigos, sinceros e verdadeiros,


que não somente conheciam as leis da amizade, mas também as cumpriam.
Um entre eles, porém, em sua dedicação, superava a todos os outros, esforçando-
se a sobrepujá-los, na medida em que eles sobrepujavam os que não tinham
relações mais íntimas comigo. Desse um pode-se afirmar que, em tempo algum,
se tenha separado de mim. Pois ambos dedicávamos o nosso tempo ao estudo
das mesmas ciências, desfrutando das instruções dos mesmos professores e
demonstrando o mesmo interesse e o mesmo zelo pelo saber; todo o nosso zelo
era um só, nascido das mesmas condições. Pois sempre tivemos perfeita
concordância em nossas inclinações, não só durante o tempo da escola, mas
também logo após, quando enfrentamos o problema da escolha de nosso caminho
de vida.

2. Ainda há outros fatores que tornaram a nossa união indestrutível e firme.


Nenhum de nós tinha motivo para vangloriar-se, perante o outro, da importância
da cidade paterna; e, conquanto eu não dispunha de riqueza exagerada, ele
também não vivia em extrema pobreza, de maneira que até a medida de nossos
patrimônios mais ou menos se igualava. Finalmente também os nossos
ascendentes gozavam de igual estima, contribuindo, desta forma, tudo para a
consonância de nossas mentalidades.

3. Quando, porém, chegou a hora de nos dedicarmos à vida bemaventurada dos


monges e à verdadeira filosofia, desequilibrou-se a balança: o braço de balança
dele - como o mais leve - levantou-se. Eu, ainda algemado às cobiças deste
mundo, baixei o meu braço de balança preso aos prazeres da vida, onerando o
meu prato de balança com as fantasias da juventude. Assim mesmo, a nossa
amizade continuava a mesma; apenas a convivência tinha terminado. Já que não
mais visávamos o mesmo fim, as nossas ocupações não podiam mais ser comuns
e idênticas. No momento em que emergia um pouco das ondas da vida profana,
estendiame ele suas mãos, para, novamente, atrair-me a si; a antiga harmonia,
porém, não mais conseguimos. Pois ele afastouse não só em tempo mas também,
por ter desenvolvido um zelo extraordinário, elevara-se a uma altura bem
considerável.

4. Entretanto, estimando sobremaneira a minha amizade, em sua bondade


extraordinária, abandonou as relações com todos os outros companheiros, a fim
de poder estar sempre comigo. Isto também antes já tinha sido seu desejo, mas a
minha leviandade lho impedira. Pois era impossível que alguém, que costumava
vadiar nas praças e nos teatros, entregando-se apaixonadamente a seus prazeres,
tivesse contato assíduo com quem, enterrado nos livros, nem sequer aparecia em
praça pública. Assim, depois . de termos novamente reatado a antiga comunhão
de amizade, amadurecia de imediato o desejo longamente alimentado, pois não

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conseguia ficar afastado de mim nem por um instante. Insistia sempre comigo
para que, tendo abandonado as nossas casas, morássemos juntos. Conseguira
convencer-me, e faltou pouco para que o plano se realizasse.

5. Somente as contínuas admoestações de minha mãe conseguiram impedir-me de


atender-lhe o desejo, ou melhor, de aceitar este presente de suas mãos. Pois ela,
notando o meu propósito, tomou a minha mão e conduziu-me ao aposento a ela
reservado. Sentou-se ao lado do leito em que, com dores, me dera a vida, verteu
rios de lágrimas, balbuciando palavras que tocaram os meus sentimentos mais
profundamente ainda do que as próprias lágrimas. Entre choros e queixas me
falava o seguinte: Não foi por muito tempo, meu filho, que pude, conforme a
vontade de Deus, gozar da companhia de teu excelente pai. Às dores do parto,
que por ti sofri, seguiu logo sua morte, que muito cedo te deixou órfão e a mim
viúva, submetendo-me a todos os sofrimentos da viuvez, que somente podem
aquilatar aqueles que tiveram que suportá-los. Não existem palavras capazes
descrever as tempestades e as ondas, às quais se vê exposta a mulher jovem, que,
apenas tendo saído da casa paterna, sem experiência das coisas do mundo,
repentinamente se vê presa de indizível dor e de problemas que ultrapassam a
capacidade de sua idade ,e sexo: deve conjurar as negligências da criadagem,
censurar suas maldades, desviar as intrigas maldosas dos parentes e suportar,
com sangue frio, o rigor vexatório dos coletores, na arrecadação dos impostos.
Caso o esposo ao morrer tenha deixado filho, sendo menina, exigirá da mãe
muitos cuidados, mas sem grandes despesas e ansiedades. Um menino, porém,
cotidianamente a enche de angústias e preocupações, sem pensar nas despesas
pecuniárias, que não deve poupar, caso queira educá-lo e dar-lhe sólida
formação. Não obstante tudo isso, nenhum desses problemas me levou o contrair
novas núpcias, introduzindo um novo marido na casa de teu pai; perseverei firme
na tempestade e no ímpeto das ondas não fugindo da crisol da viuvez.
Em primeiro lugar recebi força da Providência divina. Além disto, era grande
consolo, nesta minha triste situação, poder contemplar em teu rosto a imagem
fiel do esposo falecido. Já como criança, antes de falar, na idade, portanto, em
que os filhos costumam ser motivo das maiores alegrias para os pais, tu me eras
causa de muita e profunda consolação. Tampouco poderás acusarme de que, se
bem que tenha suportado corajosamente a viuvez devido às necessidades, tenha
diminuído tua herança paterna, o que costuma acontecer a muitos que
prematuramente se tornam órfãos. Conservei intacto o teu património e, apesar
disso, de maneira nenhuma deixei faltar o necessário para tua boa e sólida
educação. Custeei tudo com o meu próprio patrimônio e com o que tinha trazido
de minha casa paterna. Não creias que estou citando isto para te censurar. Oh
não! Por tudo isto apenas te peço um único favor: não me deixes enviuvar pela
segunda vez, não despertes de novo a dor apenas adormecida, mas espera até o
meu fim! Provavelmente morrerei em breve. Para a mocidade ainda acena a
esperança de chegar a uma idade bem avançada; a nós, idosos, não resta mais
outra esperança senão a morte.

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Tão logo me tiveres entregue à terra, juntando o meu corpo ao de teu pai, estarás
à vontade para empreender longas viagens e singrar os mares; ninguém to
impedirá. Todavia, enquanto estiver viva, não desprezes morar em minha casa;
não peques levianamente e sem motivo contra Deus, entregando-me inocente a
tal desgraça! Se tiveres motivo para censurar-me por te envolver
demasiadamente em coisas mundanas e obrigar-te a assumir a administração de
meus bens, então não consideres a lei da natureza, nem a educação recebida, nem
a longa convivência comigo, nem qualquer outra coisa, mas foge de mim como
de tua inimiga mais traiçoeira! Se, porém, estiveres convencido de que eu sempre
te tenha deixado o tempo mais que suficiente para os teus afazeres, nunca tenha
interferido em teu modo de vida, então, sem qualquer outro motivo, pelo menos
este fato te segure junto a mim. Pois, mesmo que, como dizes, milhares te
recebessem calorosamente em suas casas, ninguém poderia deixar-te liberdade
tão vasta como eu. Pois não pode existir homem nesta terra a quem o teu bem-
estar fosse tão caro como a mim, tua mãe.

6. Isto e mais outros motivos minha mãe me apresentou. Transmitindoo a meu


nobre amigo, este não se deixou convencer. Insistiu ainda mais, repetindo sempre
seu velho pedido. No meio desta ambigüidade, ele continuando a insistir e eu
negando-me obstinadamente, eis que um rumor repentino nos preocupou: a
notícia de que queriam elevar-nos a ambos à dignidade episcopal. Ouvindo esta
notícia, medo e hesitação começaram a tomar conta de mim; principalmente o
medo de ser sagrado bispo contra a minha vontade; hesitação, cada vez que
procurava saber por que os eleitores teriam escolhido justamente a mim. Pois,
considerando o meu comportamento, não achava nada em mim que merecesse
tal dignidade.
Aí veio o meu amigo, impulsionado por sua grande nobreza, para transmitir-me
os tais rumores, pensando, naturalmente, que eu ainda nada soubesse; insistiu
que também nisto procurássemos unanimidade no pensar e no agir. Pois ele, de
boa vontade, me seguiria em qualquer caminho que andasse: no de fuga ou no
de aceitação. Sentindo, desta forma, sua disposição e achando que, para o bem
da Igreja, seria um incalculável prejuízo recusar ao rebanho de Cristo homem tão
predestinado, só devido à minha própria fraqueza, dissimulei-lhe minha
verdadeira opinião, ainda que anteriormente me fosse impossível deixá-lo na
obscuridade sobre o meu modo de pensar. Declarei-lhe que poderíamos deixar a
discussão do problema para mais tarde, já que uma resolução definitiva não
urgia. Consegui convencê-lo de, no momento, não se preocupar
demasiadamente; e, a respeito de minha própria pessoa, dei-lhe segurança de agir
em unanimidade com ele, caso algo semelhante pretendessem conosco.
Quando, pouco depois, se apresentou alguém para nos sagrar, escondi-me. Meu
amigo, porém, assumiu o cargo na certeza de que eu, conforme tinha prometido,
o seguiria; caso já não o tivesse antecedido. Pois, notando sua hesitante tristeza
ao quererem levá-lo à sagração, chegaram a enganá-lo. Em voz alta discutiam
ser estranho que o mais insolente dos dois - pensando em mim - prontamente se
tenha submetido à vontade dos Padres, conquanto ele, considerado de

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mentalidade mais compreensível e acessível, teimosamente tentasse eximir-se
sob pretextos fúteis, procurando outras honrarias bastante duvidosas. Então ele
se entregou. Tão logo, porém, soube da minha fuga, veio ao meu encontro e,
totalmente desanimado, sentou-se ao meu lado. Em sua indignação procurava
dizer algo, mas não conseguiu formular palavra alguma. Tentava abrir a boca,
mas o desânimo cortava-lhe a palavra antes de sair dos lábios. Vendo-o assim,
banhado em lágrimas, vítima do mais profundo abalo espiritual, e lembrando-me
das causas de tudo isso, prorrompi em risos alegres, e, tomando-lhe a destra,
afetuosamente a beijei. Dei graças a Deus por minha astúcia dolosa ter chegado
a um fim tão feliz, bem conforme os meus mais íntimos desejos. Vendo-me assim
tão feliz e alegre, apesar de ter sido enganado justamente por mim, tornou-se
ainda mais triste, amargurado e irritado.

7. Quando, finalmente, conseguiu superar um pouco sua irritação, começou a


falar-me: Apesar de teres desprezado tudo o que me dizia respeito, sem a mínima
consideração da minha pessoa - não sei por que motivo - deverias, no entanto,
ter considerado tua própria fama. Agora abriste a boca de todo mundo e todos
dizem que te eximiste do cargo sacro somente devido à tua ambição por honrarias
profanas. Não há ninguém que te queira absolver de tal acusação. Para mim,
porém, cada comparecimento em público se torna insuportável: diariamente
muitos se me aproximam com censuras amargas. Ao me encontrar em qualquer
canto da cidade, os amigos mais fiéis me lançam no rosto ser eu o maior culpado.
Tu conhecias a opinião dele - assim dizem - pois nenhum de seus pensamentos
te era segredo. Não devias tê-los escondido perante nós; antes teria sido tua
obrigação nos informar, e ele não teria conseguido eximir-se. E eu passo
vergonha quando, enrubescendo, afirmo não me ter sido conhecida tua resolução,
apenas para evitar que cheguem a considerar nossa amizade como mera
aparência. Pois, caso o tiver sido (e realmente depois deste teu comportamento
para comigo não podes negá-lo), torna-se mister esconder este fato tão
desagradável perante todos aqueles que sempre nos consideravam dignos de
louvores. Receio confessar-lhes a verdade e esclarecer a opinião sobre as
relações entre nós dois. Em vez disso, vejo-me obrigado a continuar no silêncio,
a não levantar os olhos e a fugir dos encontros. E mesmo que consiga
momentaneamente escapar à acusação, no futuro, sem dúvida, me taxarão de
mentiroso. Nunca me acreditarão que também Basílio esteve entre os que não
partipavam de teus pensamentos mais íntimos. Mas não quero falar mais disto,
já que assim o quiseste.
Todavia, como suportaremos as restantes censuras? Pois alguns te acusavam de
vaidade exorbitante, outros, de excessiva ambição pelas coisas do mundo, outros
finalmente ainda mais inexoráveis em suas acusações - criticavam a nós ambos
pelas faltas citadas, acusando-nos de comportamento orgulhoso, justamente
perante os homens que nos tinham eleito para aquela dignidade. A estes homens
- assim dizem - foi bem feito. Ainda teriam merecido desprezo maior, já que,
tendo preterido tantos homens mais velhos e experimentados, quiseram elevar à
posição de tão alta dignidade jovens que, ontem e anteontem ainda, estavam

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totalmente presos aos cuidados pelas coisas profanas, não contando com isso
nem em sonho. O que conseguiram foi apenas que, por algum tempo, os eleitores
enrugassem as testas, vestissem roupas escuras e baixassem os olhos. Homens,
porém, que, desde a mocidade até à idade bem avançada, se tinham exercido em
ascese, serão seus súditos. Serão dominados pelos próprios filhos que nem
chegaram a conhecer as normas, pelas quais estes cargos devem ser
administrados.
Com estas e outras acusações me perseguem. Eu, porém, não sei o que responder
em nossa defesa; peço, portanto, que me ajudes. Pois para mim é muita difícil
crer que tenhas fugido sem motivo, como que a brincar, fazendo, desta forma,
homens dignos teus ferrenhos adversários. Acho antes que tenhas dado este
passo, depois de pensar e raciocinar, e que até tenhas preparado um discurso em
tua defesa. Dize-me, pois, qual o motivo razoável que podemos apresentar contra
teus acusadores. Pelo tratamento injusto que eu mesmo recebi de ti, pelos fatos
com que me enganaste, pela traição que cometeste não pedirei contas, apesar de
teres recebido de mim somente compreensão e bondade. Pois tinha colocado até
a minha alma em tuas mãos. Tu, porém, usaste comigo de malícia que só se
costuma usar contra inimigos. Na realidade, caso tenhas reconhecido o salutar
plano, tu mesmo não deverias ter-te eximido; caso, porém, o tenhas achado
prejudicial, também a mim deverias ter preservado deste mal, já que sempre
declaraste ser eu entre todos o teu maior amigo. Todavia, fizeste tudo para que
eu caísse na cilada, usaste até de dolo e fingimento, e tudo isso para com aquele
que sempre estava acostumado a falar contigo abertamente, sem dolo, e com
plena confiança.
Não obstante, como já disse, por tudo isso não te quero censurar, nem culpar-te
da solidão que me causaste, findando, desta forma, a nossa convivência de que
ambos, de maneira extraordinária, haurimos consolo e proveito. Tudo isso deixo
de lado, suportando-o com tranqüilidade e sem amargura; não porque teu
comportamento para comigo tivesse sido sem importância, mas antes porque,
desde o dia em que começou minha amizade íntima contigo, tinha feito o
propósito de nunca chamar-te à responsabilidade, mesmo que chegasses a me
magoar. Que o teu comportamento: nos prejudicou a ambos, tu o sabes: De um
lado basta lembrar o que os nossos comuns conhecidos sempre afirmaram, e, de
outro lado, o que nós mesmos sempre achamos, isto é, que seria de enorme
proveito para nós estarmos sempre unidos de corpo e alma, protegendo-nos
mutuamente com esta amizade. Até era voz comum que esta nossa amizade seria
de apreciável proveito também para outros.
Entretanto, eu de minha parte nunca julguei que a participação de minha pessoa
nesta amizade pudesse ser fonte de bênção. Todavia achei sempre que esta
harmonia, pelo menos para nós, seria de inestimável proveito no sentido de não
termos que temer algo da parte de alguém que mostrasse um espírito hostil contra
nós. Sem cessar lembrei-me de que os tempos são ruins, os adversários
numerosos e verdadeira caridade não mais existe. Inveja funesta ocupoulhe o
lugar. Andamos

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"no meio de armadilhas e sobre as ameias da cidade".

Eclo 9, 20

Quando uma desgraça nos sobrevém muitos até mostram alegria - parece que
estão à espreita, desejando que venha o infortúnio. Ninguém terá compaixão.
Cuida, portanto, que, por esta separação, não nos torne-mos objeto de escárnio
geral ou, o que seria ainda pior do que escárnio, nos sobrevenha real prejuízo.

"Um irmão apoiado pelo irmão


é como uma cidade forte
e um reino bem protegido".

Pr. 18, 19

Por isso, não dissolvas esta nossa harmonia, quebrando-lhe o ferrolho de


segurança.

Estas e semelhantes conversas sempre mantive contigo sem nunca suspeitar que
pudesses chegar a ter tal comportamento. Pelo contrário, sempre era de opinião
que as tuas intenções para comigo fossem leais, e, por conseguinte, procurei
cultivar relações com um homem de saúde sem nunca imaginar, como agora
parece ter acontecido, ter apenas fornecido remédio a um doente. E apesar disso
tudo, lamentavelmente, não tirei nenhum proveito, nem qualquer vantagem desta
minha dedicada solicitude. Pois todas as minhas palavras, tu as entregaste ao
vento e, sem tomá-las em consideração, tu, como a um navio despojado de seu
lastro, me jogaste à imensidão do mar, sem olhar as ondas revoltas, às quais,
inexoravelmente, estaria exposto.
Se pois, alguma vez, de qualquer lado, tiver que enfrentar calúnias ou escárnios
ou quaisquer outros tratamentos vergonhosos - e isto, com toda certeza, muitas
vezes me acontecerá - a quem poderei recorrer? A quem poderei confiar em meu
desânimo? Quem me ajudará? Quem repudiará aos que me perseguem, quem
impedirá outras ofensas? Ou, por outra, quem há de consolar-me, quem me dará
força de suportar as insolências dos outros? Não terei mais ninguém; pois tu
fugiste da luta, de maneira que já não estás em condições de ouvir sequer o meu
brado de socorro. Estás vendo agora a desgraça que provocaste? Agora, pelo
menos, reconheces como este teu golpe me feriu mortalmente? Mas deixemos
tudo isso de lado; pois o que aconteceu não pode ser reparado; não existe porta
que leve ao inacessível. O que, porém, diremos aos que são nossos amigos? O
que responderemos em nosso favor às acusações deles?

8. Consola-te, respondi, pois estou pronto a dar resposta não só às tuas perguntas,
mas também a todas as outras questões; inclusive tentarei prestar contas daquelas
coisas de cuja responsabilidade tu mesmo já me absolveste. E, caso for de teu
agrado, quero iniciar a minha defesa justamente com isso. Porque de minha parte
seria absurdo e egoísta, caso, olhando só o meu prestígio junto aos menos

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chegados, fizesse tudo para silenciar os critiqueiros, enquanto não procurasse
primeiro convencer o meu melhor amigo de não tê-lo injustiçado, sobretudo pelo
fato de ele sempre ter mostrado tanta consideração para comigo que, nem sequer
quis censurar-me pela suposta ofensa, mas até, sem considerar a própria honra,
está cuidando apenas em zelar pela minha. Neste caso, minha indiferença para
com ele seria maior do que sua dedicada preocupação por mim.
De que maneira fui alguma vez injusto contigo? Partindo deste ponto, estou
resolvido a iniciar a viagem pelo mar da responsabilidade. Teria sido injusto por
iludir-te, ocultando a minha verdadeira intenção? Pois foi em favor de ti, o
iludido, e ainda em proveito de todos aqueles a quem dolosamente te entreguei.
Porque, caso a astúcia dolosa for um mal e não for lícito usá-la nunca, nem em
caso de necessidade, estou pronto a submeter-me a qualquer punição que queiras
aplicar-me; ou, antes, já que nunca serias capaz de me punir, eu mesmo quero
impor-me a penitência que os juízes costumam impor aos réus, cuja
culpabilidade tenha sido provada. Se, porém, manipulação dolosa nem sempre
for condenável, assumindo sempre a qualidade de ser boa ou má pela intenção
de quem a aplica, então deixe de me acusar de te ter feito vítima e ter-te
enganado; ,antes, prova que usei de astúcia para uma finalidade má. Enquanto,
porém, faltar tal motivo, todos os que se consideram de bom senso, de maneira
nenhuma deveriam apresentar censuras e acusações, mas, muito antes, aplaudir
tal astúcia inteligentemente aplicada. Pois a astúcia dolosa, aplicada a seu tempo
e em boa intenção, pode ter conseqüências tão benéficas, que muitos já tiveram
que penitenciar-se por não terem recorrido a um procedimento astucioso.
Lembra-te dos generais! Constatarás que desde a antiguidade são os mais
afamados aqueles que conseguiram a maioria de suas vitórias em conseqüência
de dolo e astúcia, e, com justiça, são mais glorificados do que aqueles que
conseguiram suas vitórias em luta aberta. Estes últimos levam a guerra a um bom
fim apenas mediante altos gastos pecuniários e grandes sacrifícios de vidas
humanas, de maneira que não podem tirar proveito especial destas suas vitórias:
Pelo contrário, nestes casos, a situação dos vencedores costuma ser não menos
precária do que a dos vencidos; os exércitos de ambos estão exaustos e os seus
tesouros vazios. Acresce ainda que os vencidos não deixam nem a própria glória
em sua totalidade aos vencedores. Pois também aos que caíram (no campo de
batalha) deve-se uma boa parte de glória. Suas almas participaram da vitória,
conquanto apenas seus corpos tenham sucumbido. Se pois fosse possível não cair
- mesmo mortalmente feridos - e se a morte não os derrubasse e arrastasse, nunca
teriam sido dobrados em sua bravura decidida. Quem, porém, consegue vitória
por meio de astúcia, não só leva o inimigo à derrota, mas também o entrega ao
escárnio. Desta forma, enquanto, de um lado, ambas as partes dividem a glória
em partes iguais, conforme as forças de que dispõem, de outro, não acontece o
mesmo, quando alguém vence por meio da astúcia. Neste caso, o prêmio da
vitória pertence exclusivamente ao vencedor que - e isso não se deve desprezar
- leva a alegria da vitória límpida para a sua pátria. Porque nem as maiores
reservas de dinheiro, nem as massas de soldados terão o valor da astúcia
inteligente.

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Uns (dinheiro e soldados), na guerra, sendo solicitados continuamente, gastam-
se paulatinamente até se perderem por completo; astúcia e dolo, porém, têm a
capacidade de aumentar quanto mais solicitados e treinados. Todavia, não só na
guerra, mas também em tempo de paz, muitas vezes, não se pode dispensar o uso
da astúcia dolosa; e isto tanto na vida pública do Estado como na vida familiar.
0 marido faz uso dela na convivência com sua esposa, a esposa com o marido, o
pai com o filho, o amigo com o amigo, até os próprios filhos em suas relações
com os pais. Assim, por exemplo, a filha de Saul não conseguiu livrar o marido
das mãos de seu pai a não ser enganando-o. O irmão dela, a fim de libertar o
amigo, uma vez salvo, de novo perigo, usou das mesmas armas de astúcia dolosa.
Mas, interrompeu-me Basílio, tudo isso não me diz respeito. Pois não sou teu
adversário, nem particular, nem político. Também não participo do grupo dos
que procuram injuriar-te; pelo contrário, em todas as minhas atitudes orientei-
me por tua opinião, seguindo sempre fielmente o caminho que tu me mandaste
percorrer.

9. Meu admirável e fidelíssimo amigo, respondi, desta acusação já me defendi,


afirmando ser útil servir-se de astúcia dolosa não só na guerra contra os inimigos,
mas também na paz, e, até, contra amigos mais íntimos. E, para convencer-te
agora de que a astúcia não é útil apenas aos que dela fazem uso, mas também
àqueles contra os quais é usada, procura algum médico, pedindo que te informe
de que maneira costuma curar os doentes. E ouvirás que os médicos não só se
servem de sua arte médica, mas, muitas vezes, terão que recorrer a dolo com que
conseguem então realmente restituir a saúde a seus doentes. Quando a teimosia
do doente e a gravidade de seu estado tornam inúteis todos os esforços do médico,
este se vê obrigado a colocar a máscara do dolo a fim de como acontece no palco
poder ocultar o que realmente acontece. Caso quiseres, contarei uma das muitas
manipulações dolosas que os médicos costumam empregar.
Alguém tinha sido acometido por uma febre muito virulenta; a febre elevava-se
continuamente. O doente rejeitava todos os remédios que pudessem apagar este
seu fogo interno, pedindo com grande insistência a todos que o visitavam um
cálice de vinho puro. Manifestamente um desejo prejudicial. Pois se alguém
atendesse ao pedido do doente, isto não só aumentaria o calor da febre, mas até
poderia levar o doente ao delírio. Como neste caso a ciência viu-se em embaraço
sem dispor mais de meios, sendo assim totalmente excluída, a astúcia tomou-lhe
o lugar e mostrou-se tão eficiente, como logo saberás. 0 médico tomou um vaso
de barro, apenas saído do forno, e imergiu-o em vinho puro. Tirando-o depois de
algum tempo, vazio naturalmente, encheu-o de água. Em seguida, mandou
escurecer o aposento em que se encontrava o doente, a- fim de a claridade da luz
não conseguir trair o dolo. Finalmente, o médico entregou o vaso com água ao
doente que o bebeu todo, pensando que fosse vinho puro; deixou-se enganar pelo
aroma de vinho que o vaso exalava, não se lembrando sequer de examinar a
própria bebida. Enganado pelo aroma do vaso e a escuridão do aposento, seu forte
apetite o levou a tomar a bebida, que era água. Apenas satisfeito o apetite, a febre

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começou a baixar, afugentando o perigo iminente. Acreditas agora como o dolo
pode ser de grande proveito? Se alguém quisesse enumerar todas as manipulações
dolosas dos médicos, perder-se-ia no infinito.
É fácil observar como não só os médicos do corpo, mas também os que se ocupam
com doenças espirituais, continuamente se servem deste tipo de remédio. Assim
S. Paulo conseguiu arrebanhar milhares de judeus; nesta mesma intenção
circuncidou a Timóteo, conquanto escrevesse aos Gálatas: se vos circuncidardes,
Cristo de nada vos aproveitará. Por isso, sujeitou-se à lei, apesar de considerá-la
prejudicial, por causa de Cristo.
A astúcia dolosa é pois uma potência considerável; somente não deve ser usada
com má intenção; ou antes, esta atitude nem se deveria chamar de dolo, mas, em
certo sentido, de cálculo, prudência, arte, que é a capacidade de, em situações
difíceis, achar o caminho certo e corrigir erros da alma. Assim não seria capaz de
chamar de assassino a Finéias, apesar de ter morta dois homens com um só golpe.
Tampouco condenaria a Elias por causa daqueles cinqüenta soldados com seu
chefe, ou por causa daquela outra matança que mandou aplicar aos servidores de
Baal. Caso quiséssemos considerar qualquer ação em si, separada da intenção do
agente, então poderíamos acusar também a Abraão como assassino de seu filho
e, ainda, condenar por dolo e manipulação criminosa a seu neto e outros de seus
descendentes. Assim um deles apoderou-se dos direitos de primogênito e outro
tirou as riquezas dos Egípcios entregando-as nas mãos do exército israelita. Mas
não é assim, não! Longe de nós tal julgamento leviano! Não só os isentamos de
qualquer culpa, mas até admiramos seu procedimento. Até o Senhor Deus os
achou dignos de louvor. Pois merece ser chamado de defraudador apenas aquele
que se aproveita de uma situação momentânea com más intenções. Não obstante
isso, muitas vezes torna-se mister fingir para com este manejo especial conseguir
maiores proveitos. Quem, porém, sempre procurou suas finalidades no caminho
reto, com certeza já causou grande prejuízo deixando de usar, a seu tempo, da
astúcia dolosa.

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LIVRO SEGUNDO

1. Poderia ainda estender-me mais intensamente sobre a questão, se é lícito usar


da astúcia dolosa para uma finalidade boa; mais ainda, que tais artimanhas nem
deveriam ser chamadas dolo ou logro, mas, muito antes, ser consideradas cálculo
digno de admiração. Mas o que foi dito já deve ser o suficiente para minha
justificação; pois tornarse-ia enfadonho e fastidioso delongar-me
demasiadamente. De resto, agora, deve ser tua vez de provar que a astúcia em
questão não tenha sido usada em tua vantagem.
Basílio respondeu: Sim, concordo; qual, porém, é a vantagem que tirei destas
tuas artimanhas, desta tua prudência, ou como queiras chamar este teu
comportamento? Qual a vantagem, pois, que me possa convencer de não ter sido
iludido?
Porventura, retruquei, poderia haver vantagem maior do que ser posto numa
atividade que o próprio Cristo declarou prova de amor por Ele? Pois são suas as
palavras dirigidas ao príncipe dos apóstolos:

"Pedro, amas-me"?

e depois da afirmação deste, acrescenta:

"Se me amas, apascenta os meus cordeiros".

Jo. 21, 15-17

Aqui o Mestre pergunta ao discípulo "amas-me", não para ser ensinado; pois,
como seria isto possível para quem perscruta todos os corações? Pergunta para
demonstrar quanto o preocupa o pastoreio de seus rebanhos. Se isto é tão
evidente, é claro também que foi preparado um prêmio grandioso e indizível para
quem se ocupa com o que o próprio Cristo tanto estima. Vendo como alguns
dentre nós cuidam de seus criados e até de seus rebanhos de gado, costumamos
taxar este seu zelo de expressão de amor, mesmo que todos estes bens possam
ser comprados a dinheiro. Quanto mais rico prêmio pagará ao pastor de seu
rebanho aquele que adquiriu a sua grei não a dinheiro, ou outro preço material,
mas por sua própria morte, pagando com seu Sangue o preço real pelos seus?
Quando, em seguida, o discípulo respondeu: "Senhor, tu sabes que te amo",
tomando como testemunha o próprio Amado, o Salvador, não se contentando
com isto, acrescentou ainda outra prova de seu amor. Não queria submeter à
prova o amor de Pedro, o que já se tinha evidenciado por uma série de fatos, mas
intencionava mostrar a Pedro e a todos nós quanto ele próprio amava sua Igreja,
a fim de que nós desenvolvêssemos todo o nosso zelo ao entrarmos no seu
serviço. Porque Deus não poupou o próprio Filho, o único, mas entregou-o por
todos nós. Fê-lo a fim de reconciliar os seus inimigos e conseguir para si um

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povo exclusivamente seu. E por que derramou o seu Sangue? Para arrebanhar a
sua grei que Ele confiou a Pedro e seus sucessores. Com toda razão Cristo disse:

"Quem é pois o servidor fiel e prudente


que o patrão encarregou de cuidar de sua casa"?

Mt. 24, 45

Novamente esta pergunta é como a palavra de um homem que se sente


constrangido. Quem, porém, a apresentou, não o fez por constrangimento. Mas,
como na interrogação feita a Pedro - se este o amava -, não pergunta porque
tivesse necessidade de ser instruído sobre o amor do discípulo, mas para mostrar
a nós o excesso de seu amor, assim também agora, ao perguntar "quem é o
servidor fiel", não o faz, como se não conhecesse o servidor fiel e prudente, mas
para demonstrar-nos a raridade desta fidelidade e prudência, a dignidade e a
importância do cargo. Veja também o alto prêmio:

"Ele o estabelecerá sobre todos os seus bens".

Mt. 24, 47

2. Ainda queres discutir comigo, como se não tivesse usado de astúcia em boa
intenção? Pois serás estabelecido sobre todos os bens de Deus, administrando o
mesmo cargo que Pedro, de quem o próprio Senhor afirmou que superaria a todos
os outros apóstolos. A Pedro Ele disse:

"Amas-me mais do que estes outros?


Apascenta o meu rebanho".

Poderia ter dito:

"se me amas,
então exerce-te no jejum, dorme no chão,
faze vigílias rigorosas, cuida dos oprimidos,
sê pai para os órfãos
e sê como um marido para a mãe deles".

Deixando tudo isto de lado, o que diz?

"Apascenta minhas ovelhas".

Todas estas tarefas enumeradas facilmente poderiam ser empreendidas por


súditos não só homens, mas também mulheres. Se, porém, se tratar de ser chefe
de uma Igreja, de assumir a incumbência de cuidar de tantas almas, de tão grande
missão deverão ser excluídas as mulheres todas e não poucos dos homens.

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Devem ser escolhidos somente aqueles que se sobressaem de maneira
excepcional, que, em nobreza espiritual, superam a todos ainda mais do que Saul
superava todo o povo hebraico em altura corporal. Porque aqui não se deve olhar
apenas a altura dos ombros, mas, quanta a diferença entre as criaturas racionais
e irracionais, tanto o pastor deve sobressair do rebanho que lhe for confiado, para
não dizer mais. Pois aqui se trata de bens muito mais preciosos. Quem perdeu
algumas ovelhas - seja que lobos as dilaceraram, ladrões as levaram, uma
epidemia ou um desastre as dizimou - com certeza conseguirá perdão da parte
do dono do rebanho; e, caso lhe for exigida substituição do perdido, esta
exigência poderia ser satisfeita com indenização pecuniária. A quem, porém,
forem confiados homens racionais - o rebanho de Cristo - a este não se impõe
pena pecuniária, caso perder suas ovelhas, mas ele perderá a sua própria alma.
Portanto, a luta que ele tem que enfrentar será mais renhida e difícil. Não precisa
lutar contra lobos, não precisa temer ladrões, também não precisa manter
afastadas epidemias e doenças; - mas: deve fazer guerra! Contra quem? Com
quem deve lutar? - Escuta as palavras de Paulo:

"Não temos que lutar contra carne e sangue,


mas contra as chefias, os poderes,
os dominadores deste mundo das trevas
e os espíritos malignos dos ares".

Ef. 6, 12

Vês a grande multidão dos inimigos e suas terríveis linhas de batalha, não
blindadas com ferro, mas armadas com sua própria natureza? Ainda queres ver
outro exército, rude e indômito, que persegue este rebanho? Poderás vê-lo do
mesmo ponto de observação, pois o mesmo apóstolo que enumerou aqueles
outros adversários, também os descreveu, dizendo mais ou menos o seguinte:

"São bem conhecidas as obras da carne:


prostituição, impureza, libertinagem, idolatria,
feitiçaria, inimizades, brigas, ambições, ira,
cobiça, dissensões, divisões, invejas,
bebedeiras, rancores, intrigas, arrogâncias,
orgias e coisas semelhantes".

Gl. 5, 19-20; II Cor. 12, 20

Não enumerou a todos os inimigos, mas deixou ao nosso critério encontrar


outros, em conseqüência dos citados.
Podemos observar, no caso do pastor de animais irracionais, que os que querem
destruir o rebanho, vendo fugir o pastor, abandonam a perseguição da mesma,
satisfazendose com o roubo dos animais. Aqui, porém, mesmo depois de se terem
apoderado do rebanho total, não deixam o pastor, mas, pelo contrário, investem

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mais furiosos e com mais coragem, não descansando até destruí-lo totalmente,
ou até eles próprios serem derrotados.
Acresce ainda que os sofrimentos dos animais - provenientes de fome ou
epidemia, de ferimento ou de outro mal - são facilmente conhecidos e curados.
Existem muitos meios de curar eis sofrimentos dos animais. Os pastores têm o
poder perfeito de obrigar os animais a aceitar os medicamentos, caso não os
queiram; se necessário, facilmente, podem ser amarrados para aplicar-lhes
queimaduras ou cortes. Ainda, caso a doença o exigir, podem ser fechados no
curral por muito tempo, podese restringir-lhes até a água. E os pastores, com
grande facilidade, podem empregar quaisquer meios, que, conforme sua
experiência, achem vantajosos para a saúde de suas ovelhas.

3. No que, porém, diz respeito às doenças dos homens, em primeiro lugar não é
fácil diagnosticá-las. Pois ninguém

"conhece as coisas do homem,


senão o espírito do homem que nele está".

I Cor. 2, 11

Como então alguém poderá aplicar medicamento contra uma doença de que
desconhece o caráter? Pois, muitas vezes, nem consegue constatar se existe
alguma doença. Quando, porém, a doença é manifesta, surgem dificuldades
maiores ainda. À força não se pode curar um homem doente como o faz o pastor
com suas ovelhas. Às vezes, também nos homens, torna-se mister amarrar, negar
alimentos, queimar e cortar. Todavia, a decisão de aceitar ou não tal tratamento
não é de quem o queira aplicar, mas de quem o tiver que suportar. Isto bem o
expressou aquele homem digno de toda admiração ao escrever aos Coríntios.

"Não que pretendêssemos dominar a vossa fé,


mas contribuir para vossa alegria".

II Cor 1, 24

De maneira alguma pode-se permitir aos cristãos querer corrigir, à força, os erros
dos pecadores. Realmente os juízes profanos usam de todo o seu poder contra os
malfeitores, tão logo os reconheçam réus, e os impedem, pela força., de continuar
no modo de vida, mesmo contra a vontade deles. Entre nós, porém, é uso corrigir
tal homem não pela violência, mas pela persuasão. Pois, de um lado, as leis não
nos cedem tal poder no combate ao pecado; de outro, caso o tivéssemos, não
deveríamos usá-lo, porque Deus dá a coroa a quem de livre vontade se abstém
do pecado e não a quem o evita obrigado. Daí precisa-se de grande habilidade
para convencer os doentes a se submeterem voluntariamente à medicação dos
sacerdotes; e que além disso saibam ser-lhes gratos pela cura. Porque quando
alguém, apesar de amarrado, se levanta num salto - pois a liberdade para isto lhe
assiste - aumenta seu mal; quando não dá ouvido às palavras cortantes como
ferro, com este seu desprezo abrirá novas feridas, e, o que deveria conseguir sua

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cura, será causa de mal ainda pior. Não há ninguém que consiga curar um doente
por coação e contra a vontade dele.

4. O que fazer, pois? Caso se trate benignamente uma ferida que exige um corte
profundo, consegue-se remover só uma parte, deixando outra. Praticando-se,
porém, o corte profundo sem piedade, pode acontecer que as dores causadas
levem o doente ao desespero: rasga as ligaduras, tira o ungüento aplicado e
perder-se-á por completo depois de ter rompido as algemas da coação. Poderia
citar muitos que deixaram arrebatar-se às perversidades extremas, somente
porque tinham sido punidos em desproporção a seus crimes.
Pois não se deve, sem mais nem menos, aplicar castigo na medida dos pecados
cometidos, mas é precisa tomar em conta a intenção dos pecadores; caso
contrário, querendo consertar algo quebrado, aumentarse-ia a fenda aberta, e, em
ver de levantar o caído, seria lançado para dentro de um abismo mais profundo.
Os homens de caráter frágil e superficial, envolvidos nos prazeres mundanos, e,
orgulhosos de sua nobre ascendência e posição influente, somente poderão ser
afastados do costume de pecar, no silêncio e com brandura; e, mesmo que não se
consiga afastá-los totalmente de seus vícios, pelo menos o será em parte, de
modo progressivo. Todavia, usando de rigor e aspereza na aplicação do castigo,
impossibilitar-se-ia qualquer melhora. Pais um homem a quem se obrigou a
perder a vergonha e a não mais enrubescer, torna-se totalmente insensível, não
presta mais ouvido às palavras de outros, não se deixa mais impressionar nem
por ameaças nem por benefícios, sendo, no final, pior do que aquela cidade de
que o profeta falou:

"Assumiste o aspecto de prostituta


e profanaste a terra com teus vícios e devassidões".

Jr. 3, 3

Por tudo isso, o pastor precisa de uma profunda compreensão, necessita de mil
olhos para perscrutar de todos os lados o estado da alma. Assim como muitos,
deslumbrados, desesperam de sua própria salvação, porque não suportam a
amargura do medicamento, assim há outras que, dispensados de penitência
adequada à gravidade de seus pecados, perdem-se na leviandade, tornandose
sempre piores e caindo em pecados sempre mais graves. Por conseguinte, é
mister que o sacerdote não tome nenhuma destas atitudes, sem antes ter
examinado tudo da maneira mais adequada, a fim de que os seus esforços não
sejam frustrados.
Mas não somente isso; também a recondução dos membros separados da Igreja
exigir-lhe-á grandes cuidados como é fácil de compreender. O pastor de ovelhas
tem um rebanho que lhe segue para onde quiser levá-lo. E mesmo que aconteça
que, uma ou outra vez, alguma ovelha se afaste do caminho certo, abandonando
o pasto bom para pastar em barranco magro, basta um chamado pouquinho mais
alto para reconduzi-la ao rebanho. Entretanto, caso um homem se tenha afastado

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da verdadeira fé, o pastor deve empregar grande esforço, persistência e paciência.
Pois pela violência não se consegue reconduzi-lo, nem mesmo o medo o
obrigará; somente a força da persuasão será capaz de reconduzi-lo à verdade
antes abandonada. Daí precisar o sacerdote de uma alma heróica para não
desanimar e desesperar da salvação dos errantes; ele terá que meditar sempre a
palavra do apóstolo:

"que Deus os leve à conversão e ao conhecimento da


verdade
e escapem aos laços do demônio".

II Tm. 2, 25-26

Por isso Cristo também falou aos discípulos:

"Quem é, pois, o servidor fiel e prudente?"

Mt. 24, 25

Pois aqueles cujo cristianismo se restringe à sua própria pessoa, também limita
a utilidade do trabalho apenas a seu proveito próprio; o trabalho eficiente das
funções pastorais, porém, deve estender-se ao bem do povo todo. Realmente
apresenta alguma utilidade aos outros quem distribui dinheiro aos pobres, ajuda
de alguma maneira aos necessitados, mas tanto menos do que o sacerdote, quanto
o corpo é inferior à alma. Com razão, pois, o Senhor declarou que o cuidado
prestado a seu rebanho é medida do amor que alguém tem por Ele.
Tu, porém, interrompeu Basílio, porventura não amas a Cristo? Certamente,
respondi, amo-o e não deixarei de amá-lo; todavia receio causar ira a quem amo.

Como, retrucou ele, pode existir enigma mais obscuro? Cristo mandou que,
quem o ama, apascente suas ovelhas; tu, porém, declaras não querer apascentá-
las justamente porque amas a quem deu este mandamento?
As minhas palavras, respondi, não apresentam nenhum enigma, mas são claras e
simples. Se, por acaso, estivesse apto para administrar o cargo, assim como
Cristo o espera, e me eximisse dele pela fuga, as minhas palavras deveriam
provocar dúvidas. Como, porém, a fraqueza do meu espírito me faz inapto para
um cargo de tanta responsabilidade, onde as minhas palavras apresentam algo
que exigisse algum exame? Receio que assumindo o rebanho de Cristo,
florescente e próspero, com a minha inexperiência o perderia, provocando a ira
de Deus que tanto o amou e que se sacrificou a si mesmo pela salvação dele.
Tu dizes isto gracejando, respondeu Basílio. Pois, falando sério, não vejo outra
maneira como melhor poderias mostrar a justificação de minha dor, do que com
estas mesmas palavras tuas, com que procuraste banir o meu desânimo. Já antes
suspeitava ter sido ludibriado e traído por ti; agora, porém, que procuraste
eximir-te das acusações feitas, vejo bem claro que desgraça me causaste. Se tu
fugiste deste alto cargo eclesiástico porque achavas que tua inteligência não era

16
capaz de assumir responsabilidade tão pesada, deverias antes ter-me impedido a
mim - porque tinha deixado a decisão em tuas mãos - mesmo se tivesse
demonstrado alguma inclinação para o cargo. Só olhaste o teu proveito,
desprezando o meu. Oxalá tivesse sido apenas por negligência! Contentar-meia
com isso. Tu, porém, dolosamente dispuseste tudo de maneira tal que mais
facilmente caísse nas mãos dos que me procuravam. Não podes desculpar-te
dizendo ter sido ludibriado pela opinião dos homens que te tenham convencido
de poder esperar de mim coisas grandes e admiráveis. Pois não sou daqueles que
são admirados e gozam de grande estima; e, mesmo se fosse, tu nunca poderias
ter estimado mais a opinião da multidão do que a verdade. Admito que, caso
nunca te tivesse dado ocasião de ter confidências comigo, de certo modo e com
alguma aparente razão terias encontrado um motivo razoável de orientar a tua
ação pela voz da multidão. Se, porém, ninguém melhor do que tu conhece as
minhas atitudes, como podes tu, que conheces até os meus pensamentos mais
íntimos melhor do que os meus próprios pais e educadores, achar palavras que
merecessem fé para convencer os outros de que esta tua atitude de me pôr em
situação tão perigosa não tenha sido proposital? Mas deixemos isso! Não quero
obrigar-te a defender-te neste particular. Dize-me antes: o que poderemos
responder aos que nos censuram?
Eu, da minha parte, respondi, não atenderei a esta tua pergunta antes de ter
refutado tuas acusações, mesmo que estejas pronto a me absolver das mesmas.
Afirmas que ignorância seria motivo de perdão que me absolveria de qualquer
censura, na hipótese de que eu te tenha levado a esta situação sem conhecer o teu
íntimo. Contudo, se te tivesse traído com pleno conhecimento de tuas condições,
perderia qualquer pretexto razoável para minha justificação sincera. Afirmo
justamente o contrário. Como assim? - Porque para tal é mister' que se faça um
exame rigoroso, e, querendo levar ao sacerdócio um homem apto para o cargo,
não nos podemos contentar com a opinião da multidão, mas devemos examinar
sua personalidade, e, de maneira especial, as qualidades de seu caráter. Pois,
apesar da declaração de Paulo, de que

"é necessário que goze de boa reputação entre os de fora",

I Tm. 3, 7

não se deve excluir, por isso, um exame minucioso e cuidadoso. O próprio Paulo
não quer que tal testemunho seja anteposto ao exame rigoroso dos elegendos.
Pois, somente depois de ter mencionado muitas outras condições, acrescenta
esta, para dar a entender que, numa eleição tão importante, não nos devemos
restringir a ela, além dos outros postulados, ainda devemos procurar o
testemunho (da multidão). Muitas vezes acontece que a voz da grande multidão
engana. Entretanto, se antecedeu um exame cuidadoso, a voz da multidão não
oferece perigo. Por isso, o apóstolo colocou "o testemunho dos de fora" atrás dos
outros postulados. Pois não disse simplesmente: "deve gozar de boa reputação",
mas intercalou a palavra "também", para dar a entender que, antes de considerar
a opinião "dos de fora", a personalidade do elegendo deve ser submetida a um

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exame bem rigoroso. Agora, como eu conhecia a ti e tuas qualidades melhor do
que os teus pais, como tu mesmo afirmas, com toda razão deveria ser absolvido
de qualquer culpa.
Ele replicou: Justamente por isso não te salvarias, caso alguém quisesse levantar
uma acusação formal contra ti. Ou, porventura, não te lembras de ter ouvido
tantas vezes e de ter sido informado por fatos de quão insignificantes são as
minhas qualidades espirituais? Não foi justamente por isso que tantas vezes
zombaste da minha pusilanimidade, vendo que os problemas cotidianos com
tanta facilidade me levavam ao desespero?

5. Retruquei: de fato me lembro de ter ouvido, muitas vezes, palavras semelhantes


de tua boca; não posso negá-lo. Entretanto, se alguma vez zombei de ti, o fiz por
brincadeira, nunca com seriedade. Mas não vamos discutir isso agora! Apenas
peço que aceites com eqüidade se quero enaltecer uma ou outra de tuas boas
qualidades. Pois, se quiseres acusarme de mentiroso, não te pouparei; pelo
contrário, provarei que falas assim mais por modéstia .do que por amor à
verdade; e, para confirmar esta minha argumentação, não precisarei de outros
testemunhos do que as tuas próprias palavras e ações.
Em primeiro lugar apresento-te a pergunta: Acaso conheces o poder do amor? -
Cristo, deixando à parte todos os milagres a serem realizados pelos apóstolos,
declarou:

"Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos:


se vos amardes uns aos outros".

Jo. 13, 35

E Paulo diz:

"O amor é o pleno cumprimento da lei"

Rm. 13, 10

e,

"se não tiver amor, isso nada me aproveita".

I Cor. 13, 3

Este tesouro primoroso, este característico dos discípulos de Cristo, mais


estimável do que os dons da graça, vi-o brotar, qual planta nobre, em teu coração,
dando frutos preciosos. Basílio respondeu: que o amor muito me preocupa
esforçando-me, sobremaneira, por atender ao postulado deste mandamento, não
o nego. Entretanto, caso deixares de querer agradar-me e quiseres honrar a
verdade, deverás concordar comigo que não consegui realizá-lo nem pela
metade.

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Pois bem, respondi, vou começar a apresentar as provas. O que tinha ameaçado,
agora o farei, mostrando que preferes ser modesto a dizer a verdade. Vou contar
um fato que aconteceu há pouco, a fim de que ninguém possa suspeitar de que
queira relembrar coisas antigas para ofuscar a verdade apoiado no grande espaço
de tempo passado; assim nem o esquecimento precisará pesquisar mais
profundamente se estou falando só para lisonjear-te.

6. Quando um dos nossos amigos, caluniosamente acusado de orgulho e de


imprudência, se encontrava numa situação bem aflitiva, tu te precipitaste no meio
dos perigos sem ter sido acusado e sem que o amigo, em sua aflição, to tivesse
pedido. Esse foi um de teus feitos excelentes.
A fim de convencer-te também com tuas próprias palavras, quero lembrar ainda
o que tu mesmo, na ocasião referida, disseste. Pois, quando alguns censuravam
o teu procedimento, e outros o louvavam e admiravam, tu mesmo respondeste
aos que te censuravam: "o que poderia ter feito? Não sei amar de outra maneira,
a não ser até o ponto de arriscar a própria vida quando se trata de salvar um
amigo do perigo em que caiu". Se bem que com palavras diferentes, pronunciaste
o que o próprio Cristo tinha declarado aos discípulos, explicando-lhes o caráter
do amor perfeito:

"Ninguém tem maior amor do que aquele


que entrega a vida por seus amigos".

Jo. 15, 13

Se, por conseguinte, não se pode encontrar amor maior do que este, tu o realizaste
em sua maior medida, alcançando seu auge por palavras e fatos. Por isso te traí,
por isso usei de dolo. Chegaste finalmente a convencer-te de que não agi por
malícia, não na intenção de prejudicar-te, mas com a consciência de levar-te a
um cargo em que poderias distribuir grandes bênçãos?
Porventura acreditas, perguntou ele, que para corrigir os homens bastaria o
amor?
Realmente, retruquei, o amar é capaz de contribuir extraordinariamente para isso.
Se agora desejares também provas de tua prudência, estarei pronto a mostrar que
teu bom senso ainda é maior do que teu amor.
A estas palavras enrubesceu de vergonha e observou: O que diz respeito a minha
pessoa, deixa tudo isso de lado; pois, desde o início, não lhe pedi contas disso.
Entretanto, se tiveres algo a apresentar aos que nos são estranhos, gostaria de
ouvi-lo. Deixa de lado toda essa discussão vã e dize-me o que deveremos fazer
valer em nossa defesa contra as acusações levantadas de fora, tanto pelos que
nos honraram com este cargo, como pelos eleitores que se lamentam terem sido
ludibriados.

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7. Também a mim, respondi, afinal interessa tratar disso. Pois uma vez terminadas
as minhas explicações relativas à tua pessoa, com prazer me dedicarei à segunda
parte da justificação.
Qual é a acusação que levantam? Quais as incriminações? Dizem terem sido
menosprezados por nós, terem sido injustiçados porque não aceitamos a honra
que nos tinham reservado.
Contra isto em primeiro lugar afirmo: não devemos tomar em consideração se,
por acaso, alguém possa sentir-se ofendido por nosso comportamento, no caso
em que esta consideração possa ser desagradável a Deus. Principalmente por que
esta indignação dos que se sentem amargurados até pode ser prejudicial para eles
mesmos. Pois sou da opinião de que aqueles que querem dedicar-se totalmente a
Deus, somente a Ele devem dirigir seus olhares, mostrando uma mentalidade tão
resignada a Deus que, nem de longe, cheguem a considerar ofensa o acontecido.
Que a mim mesmo nem em sonho veio tal pensamento poderás deduzir
facilmente do seguinte.
Caso tivesse agido por orgulho ou ambição de que - conforme afirmas alguns me
acusam, os acusadores, realmente, teriam razão e eu seria um dos maiores
sacrílegos, menosprezando homens tão honrados e meus benfeitores. Se já é
censurável ofender a quem nada nos fez de mal, quanto mais punição merece
quem pagar com menosprezo aos que lhe querem bem e o honram! Pois ninguém
poderá afirmar que eles só queriam retribuir maiores ou menores benefícios
recebidos de .mim. Agora, se nem em pensamento me veio a idéia, mas por
razões bem diferentes fugi do cargo que me quiseram impor, por que não querem
perdoar-me? E mesmo que não quisessem aprovar o meu procedimento, por que
me acusam de ter procurado apenas o meu próprio proveito? Estou tão longe de
menosprezar aqueles homens que, muito pelo contrário, chego até a afirmar tê-
los honrado com esta minha fuga. Não te admires se minhas palavras pareçam
ser contraditórias. Logo dissolverei esta contradição aparente.

8. No caso de ter aceito o cargo, aqueles que gostam de falar mal dos outros teriam
encontrado boa ocasião de espalhar calúnias não só contra mim, o eleito, mas
também contra os eleitores, como por exemplo: que dão preferência aos ricos;
que deixam seduzir-se pelo brilho da origem, ou que minhas adulações os tenham
levado a escolherme para o cargo. Sim, até nem se pode excluir que num ou
noutro tenha surgido a suspeita - não quero nem pronunciá-lo de que os eleitores
teriam sido subornados com dinheiro.
Ainda outra objeção poderia ter sido levantada: Cristo chamou para esta
dignidade pescadores, confeccionadores de tendas e publicanos; estes, porém,
desprezam a todos os que se alimentam com trabalho comum. Entretanto, alguém
que se ocupa com coisas vãs vivendo sem trabalhar seriamente, a este colocam
em evidência e o admiram.
Por que preteriram homens que inúmeras vezes derramaram seu suor pelos
interesses da Igreja? Por que, ao invés desses, escolheram a quem nunca se

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submeteu a tais fadigas, que, pelo contrário, gastou sua juventude em ocupações
fúteis com ciências profanas?
Tais e outras objeções poderiam apresentar, caso tivesse aceito esta tão alta
dignidade. Agora ninguém o pode. Qualquer pretexto para caluniar-me lhes foi
cortado. Não podem acuar nem a mim de adulação, nem a eles de corrupção, a
não ser que alguém queira falar em demência. Pois como alguém gastaria
adulação e dinheiro para conseguir alguma honra e a deixaria para outros
justamente no momento em que lhe seria oferecida? Tal procedimento poderia
compararse com alguém que, tendo preparado seu campo com esforços extremos
para conseguir o máximo na colheita de trigo e de vinho e, depois de muito suor
e altos gastos em dinheiro, chegando a colher os frutos, deixasse tudo para outros.

Vês agora como aqueles que gostam de caluniar - mesmo longe da verdade - neste
meu casa facilmente achariam pretexto para a acusação no sentido de a escolha
não ter sido feita com a devida consideração de todas as exigências? E como eu,
com o meu procedimento, consegui fechar-lhes a boca?
Estas e outras acusações já teriam surgido logo de início. Caso, porém, tivesse
aceito o cargo, no dia-a-dia, não teria sabido como me defender contra os
caluniadores, mesmo cumprindo as obrigações com perfeição, sem mencionar
que, devido a minha inexperiência e mocidade, nunca o teria conseguido sem
erros. Assim consegui tirarlhes qualquer pretexto para tais acusações; no entanto,
em caso contrário, lhes teria fornecido mil motivos para me censurarem. O que
não teriam inventado? Entregaram cargos de suma importância a meninos
imaturos! Prejudicaram o rebanho de Deus! As finalidades cristãs tornaram-nas
motivo de despeito e escárnio para todos! Agora

"toda maldade deve fechar a boca".

Sl. 106, 42

Caso tais acusações forem levantadas também contra ti, poderás desfazê-las bem
ligeiro por tua atividade; pois a capacidade de um homem não pode ser julgada
pela idade do mesmo e, como de um lado não se pode considerar experimentado
um homem por causa de seu cabelo branco, de outro lado não se deve excluir do
cargo citado um homem só por causa de sua mocidade, a não ser que seja cristão
novato. Entre ambos, (cristão novato e fisicamente jovem), há uma diferença
muito grande.

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LIVRO TERCEIRO

1. Por conseguinte, sobre o que diz respeito ao meu presumido comportamento


contra os que me tinham reservado esta dignidade, ainda que não me tivesse
esquivado, na intenção de insultá-los, chega o que acabo de dizer.
Em seguida, quero ainda tornar bem claro, enquanto isso me for possível, que o
meu procedimento esteve bem longe de qualquer presunção e soberba. Pois, no
caso de mostrar o mesmo procedimento, quando me fosse apresentada a escolha
entre o posto de general ou rei, com razão poderiam suspeitar disso; mas, nesse
caso, ninguém me acusaria de soberba, mas, muito pelo contrário, de loucura.
Agora, oferecendo-me o sacerdócio - dignidade que supera a realeza muito mais
do que o espírito supera a carne - vão acusar-me de soberba? Porventura não
seria absurdo taxar de loucos os homens que recusam dignidades inferiores,
acusando, ao mesmo tempo, de soberba os que agem da mesma maneira com
relação a dignidades muito mais altas? Isto seria mais ou menos o mesmo, como
se considerássemos não soberbo, mas louco um homem que recusasse ser pastor
de gado, - entretanto, consideraríamos não louco, mas soberbo, quem recusasse
o domínio sobre o mundo e o comando supremo sobre todos os exércitos da terra.
Não é assim, e, os que o afirmam, injuriam menos a mim do que a si próprios.
Só o pensamento de ser possível à natureza humana desprezar tal dignidade j á
condena a todos os que assim opinam. Por isto se não considerassem o sacerdócio
uma coisa bastante comum, nunca lhes teria surgido tal suspeita. Por que - com
relação à dignidade dos anjos - nunca ninguém afirmou que o homem só por
soberba não aspira a essa dignidade?- Temos conceitos bem elevados sobre
aquelas potências, e é justamente isso que nos impede de imaginar que um mortal
possa aspirar a algo tão alto como essa dignidade. Por conseguinte, com muito
mais razão, poderíamos acusar de soberba aqueles que a mim me acusaram. Pois
jamais teriam julgado outros, se antes não tivessem considerado tudo isso de
somenos importância.
Caso, porém, afirmarem que eu tenha agido assim por pura ambição,
contradizem-se a si mesmos. Por isso não posso imaginar que outras razões
pudessem ter aduzido, ao querer libertar-me da culpa de ambição.

2. Pois é claro, se tivesse sido vitima dessa ambição, deveria ter aceito a dignidade,
muito antes de ter fugido dela. Por quê? Por ter-me trazido muitas honras. Pois
o fato de eu - nesta idade tão jovem e tendo saído apenas recentemente das
atividades profanas - lhes parecer tão estimável que preferiram a mim, dando-
me mais votos do que a homens que já tinham dedicado toda uma vida à
comunidade, teria criado para mim uma estima extraordinariamente grande e até
a posição de um homem importante e digno de honra. Agora, porém, - fora
alguns poucos - a grande maioria da Igreja nem me conhece de nome. Portanto,
nem todos sabem que recusei o cargo,; apenas alguns poucos, e, como me parece,
nem todos destes têm conhecimento da realidade. Muito pelo contrário, é
provável que a maioria ache que eu não tenha sido eleito, ou, uma vez eleito,

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tenha sido rejeitado por incapacidade, mas nunca que voluntariamente me tenha
esquivado.

3. Mas, objetou Basílio, causará surpresa àqueles que têm conhecimento da


realidade.
Respondi: Justamente destes afirmaste que me acusariam de ambição e soberba.
De que lado então poderei esperar algum louvor? - Da grande maioria? - Mas
esta não tem conhecimento da realidade. - Da minoria? - Não pode ser, porque
junto a eles tudo se virou ao contrário.
Não tinhas outro motivo de procurar-me senão para saber como nos poderíamos
defender contra esses últimos. Afinal, para que vou entrar em pormenores por
causa deles? Pois ainda que todos conhecessem a realidade, nunca poderiam
acusar-me de ambição e soberba. Tem mais um pouco de paciência e verás, com
toda clareza, que se põem em perigo não só os que acusam os outros - caso os
houver, o que me é difícil de crer - mas também os que apenas suspeitam dos
outros.

4. Sobre o que diz respeito ao sacerdócio, embora seja exercido na terra, possui ele
contudo o caráter de instituição' celeste. E isso com toda razão. Pois nenhum
homem, nenhum anjo, nenhum arcanjo, nenhum outro poder criado, senão o
próprio Paráclito instituiu esta função, encarregando homens de carne e osso a
exercerem o serviço de anjos. Por isso é mister que, quem for sagrado sacerdote,
seja puro como se estivesse no céu e no meio dos anjos. Talvez mesmo as
instituições de antes do tempo da graça já tenham incutido temor e tremor, assim
como as campainhas, as pedrarias e anéis no peitoral e nos ombros, o "efod" e o
Santuário em seu silêncio. Examinando, porém, o que a graça nos trouxe,
constatamos que tudo isso perde de importância verificando-se, também nisso, o
que Paulo dissera sobre a Lei:

"E diante desta glória eminente,


o esplendor do primeiro ministério
já não é mais glória".

II Cor. 3, 10

Pois, vendo o Senhor deitado como vítima e, em frente dele, o sacerdote rezando
e tingindo a todos com este sangue precioso, porventura ainda pensas estar entre
homens e nesta terra? Não te sentes, antes, ser arrebatado para dentro do céu?
Acaso não atiras para longe qualquer pensamento carnal e não contemplas estas
coisas celestiais com o espírito puro e o coração sincero? Oh aspecto admirável!
Oh imenso amor de Deus para com os homens! Quem está sentado ao lado do
Pai nas alturas, naquela hora, é tocado pelas mãos de todos. E Ele mesmo
voluntariamente se entrega a todos os que o queiram receber. Porventura, tudo
isso te parece despeitável de tal modo que achas que alguém possa sentir-se tão
orgulhoso a ponto de fugir disso?

23
Ainda queres ver em outro milagre a incomensurável santidade deste sacrifício?
- Lembra-te de Elias! Em redor dele, grande multidão! A vítima está em cima da
pedra! Todos em grande silêncio! Só o profeta orando! - Repentinamente cai
fogo do céu, consumindo o holocausto. Foi um milagre que despertou o espanto
em todos.
Agora vê o que acontece entre nós! Não verás apenas coisas espantosas, mas algo
que supera de longe todo e qualquer espanto. Pois aqui está o sacerdote,
chamando não um simples fogo, mas o próprio Espírito Santo. Reza a grande
prece, não para chamar fogo do céu que consuma a vítima, mas para que venha
a graça de Deus e, por meio das ofertas do sacrifício, incendeie as almas de todos,
a fim de que cheguem a brilhar mais claras do que prata purificada pelo fogo.
Quem, porventura, ousaria desprezar orgulhosamente tal mistério? Não deveria
estar fora de juízo e totalmente louco?
Ou não sabes que alma humana alguma suportaria o peso deste sacrifício, caso o
próprio Deus com sua graça poderosa não a fortalecesse?

5. Se alguém tomar em consideração a graça extraordinária de que um homem


composto de corpo e sangue pode aproximar-se tão intimamente daquele ser
santo e puro, deverá convencer-se da honrosa e alta dignidade que a graça do
Espírito Santo confere aos sacerdotes. É por intermédio deles que o sacrifício se
realiza e são distribuídas graças para a nossa salvação eterna. São homens que
vivem neste mundo e nele encontram sua ocupação, a quem se confiou a
administração de tesouros celestiais dando-lhes, com isto, poderes que Deus não
conferiu nem a anjos nem a arcanjos. Pois é a estes que foi dito:

"Tudo que ligardes na terra terá sido ligado no céu,


e tudo o que desligardes na terra, terá sido desligado no
céu".

Mt. 18, 18

Também os soberanos desta terra têm poder de ligar, mas apenas no que diz
respeito aos corpos. O vínculo dos sacerdotes, porém, liga também as almas e se
estende até os céus. O que os sacerdotes realizam aqui na terra, Deus o confirma
nos céus, selando o julgamento de seus servidores. Desta forma, que outra coisa
lhes conferiu senão o poder sobre o próprio céu? Pois ainda declarou:

"Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão


perdoados;
àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos".

Jo. 20, 23

Existe poder superior a esse? O juízo o Pai o entregou ao Filho; e este, como vês,
o Filho o entregou aos sacerdotes. Como se j á estivessem no céu, como se já
estivessem despojados da natureza humana, como se j á estivessem livres de

24
nossas paixões, tão alto foram elevados, de tal dignidade foram incumbidos!
Caso um rei cedesse a um dos seus súditos o direito de prender e libertar a quem
quisesse, tal homem seria objeto de admiração e inveja de todos. Agora, quem
de Deus recebeu o poder que deve ser considerado mais alto do que o céu sobre
a terra, a alma sobre o corpo, a este - conforme a opinião de certa gente –
concedeu-se dignidade que possa ser objeto de menosprezo? - Longe de nós
tamanha loucura! Pois manifestamente é loucura despeitar esta dignidade sem a
qual ninguém poderá participar da salvação e das promessas de Cristo.
Por conseguinte, se ninguém entrará no reino de Deus sem nascer da água e do
Espírito, e, se for excluído da vida eterna todo aquele que não comer a Carne do
Senhor e não beber o seu Sangue, e se estas condições não puderem ser
cumpridas a não ser por meio dessas mãos sagradas -refiro-me às mãos do
sacerdote - como é que alguém, sem elas, poderá escapar ao fogo eterno ou
conseguir a coroa que lhe é reservada?

6. São os sacerdotes que sofrem


"as dores de parto"

Gl. 4, 19

e a quem se confiou o poder de gerar nova vida por meio do Batismo; por
intermédio deles nos revestimos do Filho de Deus e, ligando-nos a Ele, nos
tornamos membros de Cristo. Por isto convém que respeitemos os sacerdotes
mais do que os soberanos e reis, e que eles de nós mereçam veneração maior do
que nossos próprios pais. Porque estes nos fizeram nascer de sangue e da vontade
carnal e aqueles nos deram o renascimento de Deus para a verdadeira liberdade
dos filhos de Deus.
Os sacerdotes dos judeus possuíam o poder de curar a lepra corporal, ou, antes,
não de curar, mas apenas de declarar o doente purificado. E sabes como o
sacerdócio, naquele tempo, era ambicionado! Os nossos sacerdotes, por sua vez,
receberam o poder de não apenas declarar purificados, mas de purificar
realmente não corpos, mas até almas acometidas da lepra.
Por isso, todos os que desprezam os sacerdotes têm culpa muito maior do que
Datã e seus cúmplices, merecendo punição mais dura. Eles aspiravam a um cargo
que não lhes competia. Todavia o tinham em alta estima, o que prova o zelo com
que o ambicionavam. E agora, depois de o nosso sacerdócio ter recebido tamanho
enriquecimento e aperfeiçoamento, há quem se atreva a fazer coisa pior do que
Datã. Pois o grau de desprezo não é o mesmo se alguém aspira a uma dignidade
que não lhe compete ou se alguém simplesmente a rejeita. O menosprezo
demonstra um comportamento censurável, pois gera ao mesmo tempo despeito
e admiração. Qual a alma tão miserável que possa despeitar estes bens tão
admiráveis? Quero afirmar que não existe, a não ser que esteja possessa pelo
demônio.

25
Em seguida, quero voltar ao ponto de partida. Não com relação ao poder de punir,
mas também ao de distribuir benefícios. Deus revestiu os sacerdotes de encargos
superiores aos dos próprios pais. Entre ambos existe diferença tão grande como
a existente entre a vida presente e a futura. Estes geram a vida presente, aqueles
a futura. E conquanto estes não consigam preservar seus filhos da morte e de
qualquer doença sequer, aqueles, muitas vezes, já salvaram almas do perigo de
se perderem. E isso, uma vez usando de suave censura, outra vez usando da força
da punição e da oração. Pois não só por ocasião de nos fazerem renascer, mas
também em seguida possuem o poder de perdoar-nos os nossos pecados.

"Há entre vós algum doente?"

assim lemos,

"Que mande chamar os presbíteros da Igreja,


e estes orem sobre ele,
ungindo-o com óleo em nome do Senhor.
E a oração da fé salvará o doente
e o Senhor lhe dará alívio.
E se ele tiver cometido pecados,
ser-lhe-ão perdoados".

Tg. 5, 14-15

Ainda mais. Os pais não conseguem salvar os filhos do castigo, quando os


mesmos ofenderam superiores ou soberanos. Entretanto os sacerdotes, muitas
vezes, apaziguaram a ira, não de reis e soberanos, mas do próprio Deus.
Depois de tudo isso, porventura ainda haverá alguém que ouse acusarme de
soberba? Acho que considerando o exposto, em vez de acusar de soberba e de
temeridade aos que se eximem do cargo, muito antes deveriam censurar aos que
o ambicionam e dele dolosamente se apoderam. Pois, se já aconteceu que homens
a quem se confiara a administração de Estados, não mostrando bom senso e
energia, conseguiram arruiná-los, de que força - própria e divina - não deverá
dispor quem assumiu a incumbência de vigiar e guardar a Esposa de Cristo?

7. Ninguém mostrou mais amor ao Cristo do que Paulo; ninguém teve zelo maior
do que ele; ninguém foi considerado digno de maiores graças do que ele. E,
apesar de tudo isso, ainda hesita e treme diante desta responsabilidade pelas
pessoas que lhe foram confiadas. Diz ele:

"Temo que, como a serpente, com sua astúcia,


seduziu a Eva, também vossa mente seja corrompida
e se desvie da sinceridade para com Cristo".

II Cor. 11, 2

26
E em outro lugar:

"Apresentei-me fraco, tímido e todo trêmulo diante de vós".

I Cor. 2,3

Assim fala o homem que foi arrebatado até o terceiro céu; o homem que foi
arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefáveis, impossíveis a um homem de
pronunciar, que, de convertido, sofreu tantos perigos, até de morte, quantos dias
tinha sua vida, que, para evitar que alguém de seus fiéis se escandalizasse, deixou
até de fazer uso dos direitos que o próprio Cristo lhe outorgara.
Se, portanto, aquele que fez mais do que exigem os mandamentos de Deus, que
nunca buscou o seu próprio interesse, mas só o dos outros, foi tomado de temor
diante da dignidade do cargo, o que diremos nós que tantas vezes procuramos os
nossos próprios interesses, em que não somente negligenciamos os
mandamentos de Deus, mas até os transgredimos?

"Quem",

diz Paulo,

"é fraco, que eu também não seja fraco?


Quem é seduzido, que eu não arda?"

II Cor. 11, 29

Assim deve ser constituído o sacerdote, ou antes, não só assim; pois isto seria
pouco, ou até nada comparado com o que pretende destacar. O que será isto?
Paulo declarou:

"Quisera eu, em pessoa, ser separado da comunhão com


Cristo
em favor de meus irmãos de raça".

Rm. 9, 3

Quem é capaz de falar nesses termos, quem possui uma alma capaz de tais anelos,
com razão mereceria censura, caso quisesse fugir. Quem, porém, estiver longe
de tal magnanimidade - como acontece comigo - merece despeito, não quando
foge do cargo, mas quando o aceita. Da mesma forma, tratando-se de escolha
digna para a chefia militar, e escolhessem para isso um ferreiro ou um sapateiro
ou outro artífice semelhante, na verdade, nunca louvaria tal coitado se não
fugisse e não fizesse tudo para escapar desta sua desgraça certa.
Sim, se for suficiente levar apenas o nome de pastor e administrador o cargo de
qualquer maneira sem correr perigo, neste caso, qualquer um poderia acusar-me
de ambição. Entretanto, se quem assumir tal cargo deve possuir um
extraordinário bom senso, deve receber graças divinas especiais, deve dispor de
caráter sincero, levar vida ilibada, ter competência além da normal, então não

27
poderás negarme teu perdão pelo fato de ter evitado perder-me, assumindo o
cargo. Pois se receber a incumbência de levar um navio gigantesco, com grande
número de remadores, carregado de carga preciosa, através do mar Egeu ou
Tirreno, logo me esconderia e, se alguém perguntasse "por quê", responderia:
para não levar a culpa pela perda do navio.

8. Assim, pois, tratando-se da perda de bens terrestres com o perigo de morte


apenas corporal, ninguém censura a quem usar de prudência e de extraordinários
cuidados; quando, porém, existe a ameaça de afundar-se não no mar terrestre,
mas no abismo daquele fogo, onde não nos espera a morte que separa a alma do
corpo, mas aquela que leva a alma e o corpo à condenação eterna, quereis acusar-
me e desprezar-me?
Não, de maneira alguma; peço e imploro com grande insistência. Conheço a
minha alma, sei como ela é fraca e pusilânime. Conheço a dignidade do
sacerdócio e as dificuldades de exercê-lo. Pois mais numerosos do que os ventos
que revoltam o mar, são as ondas que inquietam a alma do sacerdote.

9. Em primeiro lugar devo mencionar a ambição como o recife mais perigoso entre
todos, mais funesto do que os recifes de que falam os poetas. Muitos já tiveram
a felicidade de conseguir evitar este recife e escapar incólumes; para mim, no
entanto, a ambição representa perigo tão grande que nem agora, livre do cargo,
consigo vencê-la totalmente. Se me entregassem esta alta dignidade, isso
significaria mais ou menos o mesmo como se, com as mãos amarradas nas costas,
me expusessem à voracidade dos animais ferozes que vivem naquele antro.
Quais são estes animais? Ira, desânimo, inveja, rixa, calúnias e outras
incriminações; mentira, fingimento, perseguições insidiosas, maldições contra
homens que nenhum mal nos causaram, satisfação pelo comportamento
inconveniente de outros sacerdotes, tristeza, vendo a felicidade dos outros,
avidez de glória, ambição - e é esta principalmente que faz perder a alma humana
- , doutrinações que só visam prazeres profanos, adulações servis, bajulação
indigna, desprezo dos pobres, lisonja servil aos ricos, homenagens imprudentes
e benevolências nocivas que são perigosas tanto para os que as recebem, quanto
para os que as prestam, temor servil que apenas convém aos escravos mais
miseráveis, supressão da sinceridade, chocante aparência de humildade que na
realidade não existe. Omitem tomar atitude ou censurar quando necessário, e
quando o fazem, fazemno apenas contra o povo simples, ultrapassando ainda a
justa medida. Tratando-se de ricos e poderosos, nem sequer ousam abrir a boca.
Todas estas feras - e outras mais da mesma espécie - naquele esconderijo são
nutridas: caindo-se em suas presas, inexoravelmente tornar-se-á vítima de seus
tentáculos, agindo de tal maneira que agrade todos, inclusive mulheres, fazendo
coisas que nem convém sejam citadas. Embora a Lei Divina tenha excluído do
serviço eclesiástico todas as mulheres, estas procuram infiltrar-se de qualquer
maneira. E o que elas mesmas não conseguem pelas próprias forças, procuram-
no por intermédio de outros. Assim chegam a possuir até o poder de instituir e

28
destituir sacerdotes como bem entendem, de forma a se inverter o superior com
o inferior, realizando-se o que diz o provérbio: os súditos conduzem seus
senhores. Se, pelo menos, ainda se tratasse de homens! Mas são mulheres a quem
nem é permitido ensinar. Que digo? De ensinar? Nem de abrir a boca na
assembléia, Paulo lhes permitiu. Entretanto já ouvi dizer que concederam às
mulheres tal liberdade de falar que estas até chegaram a criticar e censurar os
chefes das Igrejas com mais veemência do que os senhorios costumam censurar
seus escravos.

10. Entretanto, ninguém acredite que queira onerar a todos os sacerdotes com as
referidas acusações. Pois muitos há que conseguiram escapar a estas redes; e
estes até são em número maior do que os que se tornaram presas das mesmas.
Muito menos quero incutir a culpa de todos estes males ao próprio sacerdócio.
Nunca serei tão insensato. Pois todos os homens razoáveis consideram culpados
somente os que abusaram destes dons de Deus e por isso os punem só a eles.
Ninguém de bom senso responsabilizará o ferro pelos assassínios, o vinho pelas
bebedeiras, o poder pelos atos de terror ou a bravura pela temeridade. Ao
contrário, o próprio sacerdócio nos acusará, e isto com toda a razão, se não o
administrarmos corretamente. Pois não é o sacerdócio que leva a culpa pelos
males por mim citados, mas nós de nossa parte o manchamos, entregando-o aos
primeiros que se oferecem. Estes sim o aceitam avidamente porque não se
conhecem a si mesmos, nem o cargo pesado da função. Tão logo tenham que
enfrentar a prática, tateiam na escuridão de sua inexperiência, causando entre os
fiéis a eles confiados males indizíveis.
Tudo isso quase teria acontecido comigo, se Deus, em tempo, não me tivesse
salvo deste perigo, tanto para salvaguardar sua Igreja, quanto para garantir a
salvação de minha alma. Ou dize-me donde, na tua opinião, aparecem tamanhas
desordens nas comunidades da Igreja? Eu, de minha parte, estou convencido de
que a causa não é outra senão a negligência na escolha dos candidatos, deixando-
se a seleção necessária ao acaso. É mister que a cabeça esteja sã e forte para
distribuir e evitar adequadamente todas as atividades do resto dos membros do
corpo. Caso, porém, a cabeça esteja demasiadamente fraca para isso, aos poucos
ela perder-se-á e com ela tudo mais. E, para que isso não aconteça comigo, Deus
providenciou para que eu permanecesse nesta posição que ora ocupo.
Enfim, meu caro Basílio, além das qualidades citadas, o sacerdote carece ainda
de muitas outras que também não possuo. Principalmente as que seguem. Ele
deve excluir por completo qualquer ambição por esse cargo. Caso ele se deixar
prender por um desejo desordenado à dignidade, uma vez na posse dela, atiçará
ainda mais a chama e, por ela arrebatado, somente para fortalecer sua posição,
chegará a submeter-se aos perigos mais variados, quer seja obrigado a lisonjear
e admitir alguma ação indigna e desonrosa, quer seja levado a gastar
significativos recursos financeiros. Não quero mencionar os fatos de que alguns,
só para conseguir o cargo de chefe da Igreja, cometeram até assassínios dentro
das comunidades e devastaram cidades inteiras. Não quero mencioná-los para
não parecer contar coisas incríveis. Na minha opinião todos deveriam ter tal

29
respeito perante posição tão elevada que sua primeira atitude deveria ser procurar
eximir-se dela. Uma vez assumida a função, porém, não deveriam aguardar o
julgamento dos outros no caso de práticas que exigissem deposição, mas, de livre
e espontânea vontade, deveriam abandoná-la. Neste caso, pelo menos da parte
de Deus, poderiam esperar o perdão. Prendendose, porém, inconvenientemente
ao cargo, privam-se de toda a benevolência e provocam a ira de Deus,
acrescentando ao primeiro um segundo erro ainda mais grave.

11. Mas isso ninguém há de querer. Pois, na realidade, é perigoso ambicionar tal
dignidade. Não o afirmo em contradição a S. Paulo, mas em pleno consentimento
com as palavras dele. O que diz ele?

"Se alguém aspira ao episcopado,


deseja excelente trabalho".

I Tm. 3, 1

Eu não afirmei ser perigoso aspirar ao cargo em si, mas ambicioná-lo por causa
de sua reputação e seu poder. E é esta ambição, assim acho, que deveria ser
banida para bem longe de nossa alma; desde o início não se deve permitir que
ela tome conta de nós a fim de não restringir-nos a liberdade de ação. Pois quem
não aspira ao cargo para se colocar em evidência, também não precisa temer ser
destituído do mesmo. E quem não precisa temer isso, poderá sempre e em toda
parte agir livremente como convém ao cristão, filho de Deus.
Entretanto, os que hesitam e tremem perante a possibilidade de serem destituídos
do cargo, cairão numa escravidão amarga, de conseqüências funestas, sendo
obrigados, muitas vezes, a ofender a Deus e aos homens.
Esta não deve ser a intenção de nossa alma; mas ela deve procurar ser como os
bravos soldados na guerra, que aceitam combater ou morrer bravamente. Esta
mesma deve ser a intenção dos que conseguiram este cargo: estarem sempre
prontos tanto para administrá-lo, quanto para entregá-lo assim como convém a
homens cristãos convictos que tal resignação traz uma coroa não menos preciosa
do que o próprio exercício do cargo. Pois caso alguém for destituído do cargo,
sem que o tenha merecido por comportamento inconveniente ou má
administração, essa atitude causará punição aos que injustamente o afastaram,
dando-lhe um prêmio maior. Pois está escrito:

"Felizes sereis quando vos ultrajarem, perseguirem e,


mentindo,disserem todo mal contra vós, por causa de mim.
Alegrai-vos e exultai, porque grande será a vossa
recompensa no Céu".

Mt. 5, 11-12

Tal deve ser o comportamento de quem for afastado do cargo, quer por inveja,
quer para agradar aos poderosos, quer por ódio ou outra razão injusta qualquer.

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No entanto, caso esta injustiça lhe for feita por parte de seus adversários, acho
que não vale a pena nem sequer falar para mostrar o grande lucro que lhe provém
da malícia dos mesmos.
Por conseguinte torna-se mister uma circunspecção e pesquisa rigorosa para
verificar se, em algum recanto de nossa alma, não exista ainda alguma faísca
daquela ambição perniciosa. Porque pelo menos é desejável que também os que
conseguiram manter-se livres daquela paixão no início consigam dela escapar
depois de ter assumido o cargo. No entanto, caso alguém antes de assumir o
honroso cargo já esteja alimentando essa fera perigosa e feroz, não há palavras
para descrever o forno em que ele se precipitará tão logo tenha conseguido seu
fim.
Eu mesmo possuo a referida paixão em alto grau. E não penses que te queira
mentir por pura modéstia. Além de outras razões, também esta, amedrontando-
me, levou-me a fugir. Pois como acontece aos que, amando a beleza corporal,
sofrem por causa de sua inclinação enquanto estiverem perto da pessoa amada,
mas se libertam de sua loucura tão logo consigam afastar-se bem longe do objeto
de seus anseios, acontece também aos que anseiam uma dignidade eclesiástica.
Sentindo-se ao alcance da mesma, seus anseios tornam-se sempre mais ardentes;
perdida a esperança, sufocam junto com esta também a ambição.

12. Esta é uma das minhas razões, e, como vês, não pequena. E mesmo que fosse a
única, já seria suficiente para excluir-me daquela dignidade. No entanto, há uma
segunda razão, não menos importante. Que razão é esta? O sacerdote deve ser
circunspecto e perspicaz. Deve possuir mil olhos, voltados para todos os lados,
porque não vive só para si, mas para uma grande multidão de povo. No entanto,
que eu sou indiferente e negligente, descuidando até mesmo de minha própria
salvação, tu mesmo deves admiti-lo, ainda que tentes cobrir, com o manto de tua
amizade, todas as minhas fraquezas.
Não me fales do jejum, das vigílias, do dormir no chão e de todas as outras
mortificações corporais! Pois sabes muito bem como sempre fugi de tudo isso.
E mesmo que, nessas coisas, tivesse conseguido a perfeição, nem isso poderia
ser-me útil para o cargo devido à minha total inércia espiritual. Admito que os
mencionados exercícios corporais possam ser sumamente proveitosos para
quem, fechando-se em seu cubículo, só cuida de si e de seus afazeres pessoais;
quem, no entanto, deve dividir-se para atender tão grande multidão, assumindo
cuidados especiais para com cada um dos que lhe foram confiados, como é que
ele conseguirá resultados respeitáveis se não tiver uma alma cheia de energia e
extraordinária fortaleza?

13. Não te admires se, em seguida, exigir outra prova de alma viril, além da
fortaleza extraordinária já citada. Porque dispensar comidas e bebidas deliciosas,
desprezar leitos macios, para muitos isso nem é sacrifício, principalmente para
gente de vida campestre que, desde a infância, foi educada nesse modo de vida;

31
nem para os que, devido à robustez corporal, tais mortificações constituem um
hábito.
Mas suportar desprezo e tratamento malicioso, palavras desaforadas e escárnios
por parte de dependentes, quer nos atinjam na vida cotidiana, quer nos levem
perante o juiz, suportar censuras e acusações - em parte gratuitas, em parte
injustas - levantadas contra nós por parte de superiores ou súditos, são muito
poucos os que o conseguem. Pode-se observar até que muitos daqueles que, nas
mortificações corporais, mostram grande fortaleza, nesses últimos casos se
enraivecem tanto que mais parecem feras do que homens.
Tais homens de modo todo especial devem ser afastados do sacerdócio. Pois, se
o bispo não desprezar comidas e bebidas, se não andar descalço, não o será em
prejuízo do bem de sua comunidade. O caráter irascível, porém, é pernicioso, é
uma desgraça para ele próprio e para toda a comunidade. Também não existe
ameaça divina contra os que omitem aqueles exercícios corporais; no entanto,
aos de fácil irascibilidade Deus ameaçou com o fogo eterno. Como aquele que
aspira à vanglória, tão logo a consiga, começa a alimentar esta chama
adicionando-lhe combustível sempre mais abundante, assim aquele que não
consegue dominar sua ira em suas relações com poucos homens, tão logo lhe
seja confiada a chefia de uma comunidade, não mais encontrará tranqüilidade,
mas, como um animal feroz, acossado de todos os lados por milhares de pessoas,
levará sua comunidade inexoravelmente para a desgraça.

14. Não há nada que possa turvar mais a pureza da alma e a clareza do espírito do
que a ira desenfreada que irrompe com grande ímpeto. Como numa batalha
noturna, escurecem-se os olhos da alma. Ela não consegue mais discernir amigos
e inimigos, superiores e súditos, tratando a todos da mesma maneira, , e, mesmo
que tenha que suportar ela mesma sofrimentos e prejuízos, aceita tudo de boa
vontade somente para satisfazer esta espécie de volúpia. Pois a mente excitada
pelo calor da ira é realmente uma espécie de volúpia; a ira até chega a dominar
a alma mais intensamente do que a própria volúpia, porque consegue perturbar
completamente a constituição mais ordenada da alma. Leva facilmente à
imprudência, provocando rixas gratuitas e ódio absurdo. E encontra sempre
motivos para ofender os outros sem razão e injustamente. Finalmente pressiona
o homem para palavras e ações tão insensatas que a pobre alma, sacudida no
delírio da paixão, já não encontra ponto de apoio para resistir a essas pressões.
Agora chega - disse Basílio -, já não suporto mais os teus subterfúgios; pois quem
não o saberia quão longe te encontras dessa doença? ó meu felizardo amigo! -
retruquei - por que queres arrastar-me para tão perto do forno, despertando em
mim aquela fera já domada? Ou, porventura, não sabes que não o consegui por
esforço, mas apenas em conseqüência de minha preferência por uma vida
retirada? Para alguém predisposto desta forma realmente é desejável que fique
só, contentando-se com apenas um ou dois amigos, conseguindo assim evadir-se
facilmente do fogo ameaçador, o que jamais conseguiria, precipitando-se ao
abismo de tantos cuidados e obrigações, acabando por levar consigo muitos

32
outros, tornando-os relaxados no exercício da mansidão. Aqui também vale a
característica das massas observar sempre o comportamento dos superiores como
ideal, procurando imitá-los e tornar-se semelhantes a eles.
Como pois conseguiria abrandar a irritação apaixonada das massas aquele que
estivesse pessoalmente irritado? Quem dentre a multidão se sentiria levado a não
passar da medida, vendo seu superior totalmente tomado pela ira? Sabemos que
é absolutamente impossível esconder alguma falta do sacerdote; até as mínimas
rapidamente se revelam. Um atleta, enquanto ficar escondido em casa,
conseguiria encobrir seus lados fracos; uma vez na arena, porém, facilmente é
desmascarado. Até mesmo os homens que levam uma vida solitária, livres dos
afazeres da vida pública, na solidão encontram esconderijo para seus deslizes;
tão logo entram na vida pública serão obrigados a sair de sua reserva. Por seu
comportamento desvendarão o seu verdadeiro caráter. Da mesma forma como
suas boas ações são úteis para muitos, por se sentirem convidados a imitá-las,
seus deslizes levam a outros a serem negligentes e relaxados no exercício das
virtudes.
Por causa disso, a alma do sacerdote deve irradiar sua beleza para todos os lados,
a fim de que possa edificar e iluminar ao mesmo tempo os corações de todos
quantos a observam. Pois os pecados comuns da gente simples, cometidos na
escuridão, só fazem perecer os que os cometem, ao passo que os erros de um
homem superior e conhecido a todos trazem prejuízo para toda a comunidade.
Aos que já caíram, deixam imprestáveis para a luta pelo bem e seduzem os
vigilantes a ficarem negligentes e perecer. Além disso, os deslizes da gente
simples, mesmo cometidos publicamente, não costumam causar prejuízo
notável. Os outros, porém, no alto da dignidade do cargo que ocupam, estão em
evidência para todos. Assim, mesmo os pequenos erros, aos olhos da multidão,
parecem crimes graves, porque as ações não costumam ser medidas por sua
gravidade, mas pela dignidade de quem as praticou.
Portanto, o sacerdote deve munir-se de armas resistentes como diamante,
mostrando zelo inesgotável, vigilância infatigável, cuidando assiduamente de
suas atitudes, a fim de que ninguém possa encontrar nele qualquer fraqueza,
qualquer negligência por onde o possa ferir mortalmente. Pois todos em redor
dele estão prontos a feri-lo. Não só adversários e inimigos, mas muitos dos que
se dizem amigos.
Por conseguinte, para o sacerdócio devem-se escolher almas semelhantes
àqueles jovens que experimentaram a graça de Deus na fornalha ardente da
Babilônia. Aqui a alimentação do fogo não são gravetos, nem piche, nem estopa,
mas algo muito mais perigoso do que tudo isso. Aqui não se trata de fogo
perceptível aos nossos sentidos, mas da chama devoradora da inveja que ameaça
o sacerdote. Esta levantase de todos os lados e, aproximando-se, atravessa-o,
iluminando sua vida com maior claridade do que o conseguiu a fornalha ardente
em relação aos corpos daqueles jovens da Babilônia. E esta chama, encontrando
o menor graveto, avidamente o devora, envolvendo, além disso, tudo em densa
fumaça, de maneira que, o que parecia mais claro do que o sol, torna-se

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completamente escuro. Só enquanto a vida do sacerdote aparece como um livro
aberto, em todos os sentidos perfeitamente regulamentada, será inatingível por
qualquer ataque; tão logo, porém, se permite a mínima falta o que é bem natural
no homem sujeito aos caminhos enganosos do mar da vida - já não lhe vale seu
comportamento impecável mostrado até então, para escapar das línguas
maliciosas de seus acusadores. Cada qual considera-se juiz sobre o sacerdote,
como se ele já não possuísse natureza humana, mas a dos anjos, livre de qualquer
fragilidade.
Com o sacerdote procede-se da mesma forma como com o tirano. Enquanto o
tirano mantiver o poder, todos o temerão e adularão, por não conseguirem
derrubá-lo. Tão logo verificam que começa a enfraquecer, retiram-se,
abandonando o papel de aduladores; os que até há pouco eram amigos,
repentinamente transformam-se em adversários e inimigos. E notando nele
algum lado fraco, agridem-no até derrubá-lo do poder. O mesmo acontece com
o sacerdote. Os que o honravam, dandolhe toda a espécie de atenções e
gentilezas, de momento em que descobrem a mínima fraqueza empregam todos
os esforços possíveis para afastá-lo do cargo, não como se fosse tirano, mas um
malfeitor muito mais perigoso. E, em seguida, assim como o tirano se enche de
medo até dos próprios guardas, também o sacerdote deve temer mais os que lhe
estão próximos, inclusive os colegas de cargo. Isso porque ninguém aspira com
mais ardor ao seu cargo, ninguém conhece melhor suas condições do que eles.
Como se encontram sempre em redor dele, percebem, muito antes do que
qualquer outro, falhas eventuais, encontrando crédito fácil ao espalhar calúnias,
exagerando pequenas falhas e faltas graves com a única finalidade de
covardemente derrubar o caluniado. É a perfeita inversão daquela palavra
apostólica que diz:

"se um membro sofre, todos os membros se alegram;


e, se um membro é honrado, sofrem todos os outros",

I Cor. 12, 26

a não ser que alguém, devido à sua extraordinária virtude, consiga resistir a todos
os ataques.
Porventura, pretendes jogar-me em tal luta? E, por acaso, achas realmente que
minha alma possa resistir ao emaranhado multiforme destes ataques? E donde é
que sabes isso? Acaso Deus to revelou? Então mostra o mandado divino e eu
obedecerei. Caso, porém, não tiveres nada disso, mas julgares por simples
opinião humana, liberta-te deste erro! Pois é sumamente conveniente que, no que
diz respeito às minhas atitudes, acredites mais em mim do que nos outros, porque

"ninguém conhece as coisas do homem,


senão o espírito do homem que nele habita".

I Cor. 2, 11

34
Que eu, aceitando o cargo, teria levado ao ridículo a mim mesmo e aos meus
eleitores, prejudicando-me gravemente por voltar a este meu modo costumeiro
de viver, disto, creio eu, consegui finalmente convencer-te plenamente. Pois não
só a inveja, mas - o que é ainda pior - ambição por esta dignidade, costuma
fornecer armas a muitos contra quem a ocupa. E assim, como para a cobiça dos
filhos, a idade avançada dos pais se torna um fardo pesado, acontece a muitos
deles. Vendo que alguém ocupa por muito tempo a dignidade sacerdotal - não se
conseguindo removê-lo sem assassinato - empregam todos os meios possíveis
para destituí-lo do cargo. Todos aspiram ocupar-lhe o lugar, esperando cada um
a sua vez.

15. Desejas que te apresente esta luta ainda sob outro aspecto, que também inclui
inúmeros perigos? Então vai assistir a alguma das assembléias em que, conforme
o costume, se procede às eleições para os cargos eclesiásticos e verás. Quanto
maior o número de eleitores tanto mais numerosas as acusações levantadas
contra os sacerdotes. Os autorizados a votar dividem-se em muitos partidos,
podendose observar que não existe unanimidade entre os presbíteros entre si,
nem em relação ao candidato para o episcopado; cada qual persiste em sua
opinião, dando seu voto a candidato diferente. A causa dessa situação é que nem
todos se orientam por aquilo que deve ser o único critério, isto é, a virtude da
alma. Em vez desta qualidade consideram muitos outros fatores que, conforme
eles, deveriam decidir a eleição. Assim, por exemplo, um acha que deveria ser
eleito quem fosse de descendência nobre, outro que se deveria preferir quem
possuísse grandes riquezas, para, em seu sustento, não depender das receitas da
comunidade; um terceiro ainda é de opinião que se deveria eleger alguém que
veio do campo adversário. Ou ainda: um prefere um amigo, outro um parente,
outro um adulador. A pessoa realmente apta, porém, não é nem questionada,
porque todos se omitem a considerar apenas as qualidades da alma.
Assim, eu estou tão longe de aceitar tais motivos que nem ouso votar em alguém
só por causa de seu senso de responsabilidade - mesmo que seja uma das
qualidades essenciais - se, junto com a responsabilidade, não tiver um alto grau
de sabedoria. Conheço muitos homens que durante toda sua vida se afastaram da
sociedade, consumindo-se em jejuns e penitência. Enquanto viviam sós,
cuidando apenas dos próprios afazeres, eram agradáveis a Deus, progredindo dia
a dia na verdadeira sabedoria. Tão logo, porém, entraram na vida pública e
enfrentaram a necessidade de participar da instrução da massa de ignorantes,
imediatamente se mostraram incapazes de tal atividade; alguns até, obrigados a
perseverar no cargo, esmoreceram em seu zelo, chegando a prejudicar a si
mesmos e a comunidade. Outros há que passaram a sua vida no serviço da Igreja,
chegando a idade bem avançada. Também a estes, só por respeito a sua idade,
não gostaria de ver elevados a tão alta dignidade. Pois o que aconteceria, se,
apesar de sua idade e experiência no serviço da Igreja, não tivessem as outras
aptidões exigidas para o cargo? Não digo isso, como se quisesse desprezar os
cabelos brancos, muito menos para estabelecer como regra a exclusão de todos
os eremitas (pois de fato, já por muitas vezes, homens provenientes do estado de

35
eremita se comprovaram brilhantemente), mas para mostrar que, nem
conscienciosidade, nem idade constituem provas de aptidão para o cargo, muito
menos os motivos acima enumerados.
Outros há que apresentam razões ainda mais absurdas. Uns são aceitos entre o
clero a fim de não debandarem para o lado dos adversários, por causa de seu mau
caráter, a fim de não causarem maiores prejuízos, caso fossem preteridos.
Porventura pode existir algo mais absurdo do que tal atitude? Homens infames,
dotados de toda espécie de maldade, são premiados por motivos pelos quais
mereceriam ser punidos, e, por razões que deveriam impedi-los até de passar a
soleira da igreja, chegam até a dignidade do sacerdócio!
Dize-me: Ainda podemos perguntar pelos motivos da ira divina quando
entregamos cargos santos, dignos de respeito e temor, a homens infames que só
os desonram e aniquilam? Entregando cargos de responsabilidade a quem deles
não são dignos ou a outros homens incapazes de administrá-los, consegue-se
colocar a Igreja em situação que não se distingue de um estreito marítimo.
Há algum tempo eu escarnecia dos poderes públicos, dizendo que distribuíam
seus cargos não baseados na capacidade, mas orientando-se pelas posses
materiais, pela idade e por recomendações. Depois de ter verificado que esses
métodos conseguiram infiltrar-se também em nossas atividades, nem mais me
admiro. Porventura, é de se admirar vendo que homens profanos, ambiciosos da
benevolência das massas, fazendo tudo por dinheiro, não procedam de maneira
diferente dos homens que querem parecer perfeitos e livres de todas essas
motivações? Quando se trata de promover coisas celestes procedem da mesma
maneira como quando tratam de uma nesga de terra ou outra coisa semelhante!
Sem mais nem menos tiram homens do meio da grande massa, colocam-nos à
frente de coisas tão respeitáveis, que mereceram que o próprio Filho Unigênito
de Deus, despojando-se de sua glória, por elas se tornasse homem, assumisse a
forma de servo, fosse cuspido, açoitado e finalmente morresse de morte tão
vergonhosa!
E não se contentando com isso, acrescentam ainda coisas mais absurdas. Não só
elegem homens indignos, mas excluem a todos os que seriam capazes. Assim,
como se houvesse necessidade de solapar a segurança da Igreja de dois lados, já
não bastando um único motivo para provocar a ira de Deus, acrescentam um
segundo não menos nefasto! De fato é minha opinião ser igualmente desastroso,
tanto excluir os homens aptos quanto aceitar os ineptos.
Tudo isso acontece de modo que o rebanho de Cristo não pode achar segurança
para respirar tranqüilamente. Porventura tal procedimento não mereceria
inúmeros raios (da ira divina)? Não mereceria um inferno ainda mais terrífico do
que o ameaçado? E mesmo assim, Aquele que não quer a morte do pecador, mas
que se converta e viva, aceita e suporta tamanha monstruosidade! Como é
admirável sua bondade para com os homens! Como é incomensurável sua
misericórdia! Os próprios seguidores de Cristo dilaceram o Corpo de Cristo de
maneira mais cruel do que os inimigos e adversários! E mesmo assim, Deus ainda

36
mostra sua bondade, convidando-nos à penitência. Louvado sejas, Senhor!
Louvado sejas! Como é incomensurável a tua bondade, como é imensa a
plenitude de tua paciência! Homens tirados de sua baixeza, e, em teu nome
elevados à honra e dignidade, abusam delas indo contra quem lhas concedeu, e
ousam violar o santuário, afastando homens dignos e admitindo indignos que
conseguem criar as maiores confusões!
Caso queiras conhecer as causas desta situação desastrosa, verificarás que são
semelhantes às citadas anteriormente. Têm a mesma raiz, e, como se costuma
dizer, a mesma mãe, isto é, a inveja, mesmo que esta não se apresente sempre da
mesma forma. Um, assim dizem, deve ser excluído por ser muito jovem, outro
por não saber adular; este porque ofendeu alguém, aquele outro para que não
aconteça que alguém se sinta ofendido por não ter sido eleito seu favorito; este
por ser muito bondoso e compreensivo; ainda outro porque afugenta os
pecadores, ou por outro motivo semelhante. É muito fácil achar pretextos. Até o
grande número dos que já ocupam um cargo eclesiástico tornase pretexto, caso
não achem outro. Ouve-se afirmar ainda que ninguém deve ser elevado a tal
dignidade de repente, mas com vagar e gradativamente. Assim inventam
inúmeras razões, tantas quantas quiserem.
Agora gostaria de apresentar-te a pergunta: o que deverá fazer o bispo na luta
contra tal anarquia? Como é que poderá ficar firme no meio de vagalhões tão
violentos? Como é que deverá enfrentar todos estes ataques? Caso proceda com
senso justo, por ocasião das eleições, todos se levantarão contra ele e os eleitos
como inimigos e adversários, causando, por suas intrigas, toda espécie de males.
Dia após dia inventam algum motivo para perseguirem os eleitos, entregando-os
ao escárnio, até que consigam afastá-los e colocar em seu lugar os próprios
favoritos. Aqui acontece algo semelhante como ao comandante do navio com
piratas a bordo, que continuamente representam perigo de vida para ele, para a
tripulação e os passageiros. Caso, porém, o bispo tiver mais consideração para
com eles do que pela própria salvação, aceitando (para os cargos eclesiásticos)
homens que de maneira alguma deveriam ser aceitos, tornar-se-á adversário não
deles, mas de Deus.
Pode haver mal maior do que este? E, com relação aos eleitos, perderá sua
autoridade, uma vez que estes, unindose, ganham força contra ele. E assim, como
ventos contrários, unindo-se, revoltam o mar, pondo os navegantes a soçobrar,
assim também a Igreja, tendo muitos homens perigosos unidos, dentro de sua
segurança e tranqüilidade, será sacudida por tempestades, sofrendo inúmeros
naufrágios.

16. Considera em seguida quais devem ser as qualidades de quem se submete a


enfrentar tal tempestade e afastar habilmente todos os impedimentos contrários
ao bem comum. É mister que seja ao mesmo tempo digno e soberano sem ser
presunçoso; que seja respeitável e, ao mesmo tempo, amigável, enérgico e assim
mesmo condescendente, incorruptível e, ao mesmo tempo, solícito, modesto mas
não servil, rigoroso e bondoso a fim de que consiga vencer facilmente todas as

37
dificuldades mencionadas. Deve empregar toda a sua autoridade em colocar nos
cargos só quem for apto, mesmo que todos discordem; deve empregar a mesma
autoridade para afastar com energia a quem não for apto, mesmo que todos
estejam a favor do mesmo. Somente um deve ser o fim de todas as suas
atividades: promover a edificação de sua comunidade não fazendo nada por
inimizade, nada por bajulação.
Ainda não chegas a convencer-te de que tive razão em eximir-me deste cargo? E
ainda não é tudo que tenho a apresentar. Só peço que não canses em escutar um
amigo verdadeiro que pretende provar-te que são injustas as tuas acusações. Pois
estas minhas explanações não são úteis apenas para a minha defesa, mas podem
ser de grande vantagem para tua administração do cargo episcopal. Porque é
absolutamente necessário a quem for chamado para essa dignidade assumir o
cargo só depois de rigoroso exame. E para quê? para que conhecendo bem a
situação não seja surpreendido, se por acaso tiver que enfrentar tais dificuldades.
E agora, desejas que trate primeiramente da direção das viúvas ou dos cuidados
pelas virgens ou dos encargos do poder judicial? Pois cada um desses encargos
exige empenho especial.
Para começar, como de costume, com o que se apresenta, mais fácil, parece que
a vigilância sobre as viúvas oferece menos trabalho, abstração feita da
administração do dinheiro a ser distribuído a elas. Mas apenas parece, pois j á o
simples cadastramento das viúvas exige um exame rigoroso. A inscrição delas
sem mais nem menos já causou uma infinidade de males. Muitas vezes já tem
acontecido que as viúvas destruíram famílias, dissolveram matrimônios, e foram
surpreendidas com furtos e encontradas em tabernas ou em outras práticas e
desordens semelhantes. Manter tais criaturas com o património eclesiástico
provoca, certamente, o castigo de Deus e a desaprovação dos homens, deixando
os que tencionam fazer o bem em situação bem delicada. Pois quem iria assumir
a responsabilidade de gastar o dinheiro que lhe foi confiado em nome de Cristo
em favor de pessoas que desonram esse nome? Por isso deve-se fazer um exame
bem rigoroso e cuidadoso para que não se prejudique a mesa dos pobres por
causa de viúvas quer indignas quer em condições de elas mesmas se manterem.
A estas pesquisas seguem problemas não menores, a saber, que as fontes para a
manutenção das viúvas sejam suficientes e nunca se esgotem. Pois a pobreza
involuntária é um dos maiores males, gerando continuamente descontentamento
e ingratidão.
Precisa-se de prudência e de zelo fora do comum para refrear a língua dessas
viúvas removendo qualquer motivo de queixa.
Há muitos considerados aptos para administrar o cargo somente porque se
mostraram peritos em lidar com dinheiro. Acho, porém, que generosidade não é
suficiente. Mesmo que seja a primeira entre as demais virtudes postuladas porque
sem ela seria antes destruidor do que administrador, lobo antes que pastor - deve-
se investigar se vem acompanhada por outra virtude importante. Refiro-me à

38
paciência, fonte de todos os bens para a humanidade, virtude esta que, por assim
dizer, leva a alma para um porto seguro, onde tranqüila possa ancorar.
As viúvas geralmente costumam usar de uma liberdade desenfreada de falar; em
parte por causa de sua pobreza, em parte por causa da idade e em parte por sua
própria natureza; ou, para expressar-me ainda mais claramente, elas costumam
abrir a boca em tempo inoportuno, acusar sem motivo, lamentar-se 64 quando
deveriam agradecer, queixarse de coisas pelas quais deveriam manifestar
contentamento.
Tudo isso o bispo deve suportar magnanimamente, não se mostrando vexado, e,
muito menos, deixando provocar sua ira pelas acusações injustas. Pois esta pobre
gente, devido à situação infeliz, antes merece compaixão do que maus tratos. Por
conseguinte, seria sinal da maior crueldade querer ainda maltratá-las em sua
desgraça, aumentando seu sofrimento causado pela pobreza, com a dor de ter que
suportar insultos. É por isso que diz o Sábio que conhece a natureza humana em
sua inclinação para a ganância e o egoísmo, vendo os perigos causados pela
pobreza que, muitas vezes, dobra a alma mais nobre, arrebatandoa para um
comportamento vergonhoso:

"Dá ouvidos ao pobre de boa vontade,


dá-lhe com doçura uma resposta apaziguadora".

Eclo. 4, 8

Esta exortação, ele a dá, para que ninguém se deixe dominar pela ira ao ser
solicitado pelos pobres; para que ninguém mostre animosidade ao ser provocado
por suas contínuas insistências. Muito pelo contrário, cada qual deveria sentir-se
obrigado a ajudar e mostrar-se amigo acessível aos indigentes. Pois o Sábio não
se dirige a um pobre insolente e provocador, prostrado em sua desgraça, mas a
um homem que deve mostrar compreensão e benignidade antes mesmo de dar
sua esmola, para com a sua afabilidade levantar o pobre, dandolhe coragem e
confiança. Assim quando alguém - mesmo não se apoderando do dinheiro
destinado às viúvas - começa a censurá-las com mil acusações, as maltrata,
deixandose enfurecer contra elas, não só deixa de ajudá-las a se levantarem de
sua depressão, mas aumenta a desgraça delas com seus insultos. Porque, mesmo
que alguma vez a necessidade sentida em seu estômago as leve a comportar-se
inconvenientemente, são sensíveis a tal tratamento. Portanto, caso se vejam
obrigadas a pedir esmolas para satisfazerem sua fome e, por causa de sua
insistência, sejam obrigadas a suportar vexames, suas almas cairão em completo
desânimo, como em trevas.
Por conseguinte, a quem for entregue o cuidado pelas viúvas, deverá possuir
tamanha paciência que não só evite aumentar o desânimo delas por expressões
de mau humor, mas consiga tranqüilizá-las, demonstrando-lhes sua
benevolência. Assim como quem recebe esmola acompanhada de maus tratos
não chega a ver a vantagem oriunda desse dom, sentir-se-á animado e alegre
quem receber a esmola acompanhada de palavras benevolentes e consoladoras

39
de maneira que, para esta, o valor da esmola até se duplica. Não digo isso por
mim mesmo, mas em conformidade com palavras daquele Sábio de quem mais
acima já citei aquela exortação. Diz ele:

"Meu filho, não mistures a repreensão com o benefício,


não acrescentes nunca palavras duras e más às tuas
dádivas.
Porventura o orvalho não refresca o calor ardente?
Assim, uma palavra doce vale mais do que o presente.
A doçura das palavras não prevalece sobre a própria
dádiva?
Mas uma e outra coisa se encontram no homem justo".

Eclo. 18, 15-17

Entretanto, para quem cuida das viúvas não é suficiente ser compreensivo e
paciente; deverá mostrar também capacidade administrativa. Carecendo desta
qualidade a caixa dos pobres novamente sofrerá prejuízos. Certo homem a quem
se tinha confiado tal administração conseguiu amontoar muito dinheiro. Não só
não o gastou para si mesmo, mas também não o empregou - com pequenas
exceções - em benefício dos indigentes; em vez disso enterrou a maior parte até
que as circunstâncias infelizes o fizeram cair nas mãos dos inimigos. Exige-se,
por conseguinte, grande circunspecção para que o patrimônio eclesiástico não
seja amontoado em demasia, nem seja esbanjado em futilidades. Ao contrário,
seja distribuído entre os indigentes tudo o que for coletado, sendo obrigação dos
membros da comunidade cuidar que sempre entrem novas somas para os pobres.
De quanto dinheiro, achas, deve-se dispor para garantir boa acolhida aos
estranhos e para o cuidado dos doentes? E quanta deve ser a solicitude e a
prudência dos administradores? Os gastos para isto nunca costumam ser menores
do que os empregados no sustento das viúvas; muitas vezes até os superam. E o
responsável por estas despesas, com cuidado e prudência, deve conseguir o
necessário, sabendo levar os abastados a repartir sua riqueza de boa vontade e
sem murmuração. E não é fácil evitar ofender os doadores quando o zelo pelos
indigentes esquece a prudência. Ainda maiores devem ser a prudência e o zelo
no cuidado dos doentes. Pois estes costumam ser uma gente descontente e
exigente. E, caso não receberem todo o cuidado possível, cresce seu
descontentamento.

17. No que diz respeito à direção espiritual das virgens, é minha opinião que a
solicitude deve ser tanto maior quanto mais precioso for o bem a ser cuidado. É
verdade que já aconteceu que, até no coro destas santas, mulheres viciadas com
mil defeitos conseguiram entrar furtivamente. É sumamente lamentável. Como
não é a mesma coisa se quem peca é uma moça livre ou sua escrava, também não
o é se a pecadora é virgem ou viúva. É de menos importância quando as viúvas
mantêm conversas inconvenientes, quando se injuriam mutuamente, bajulam, são
malcriadas, exibem-se em toda parte e perambulam pelas praças públicas; a

40
virgem, porém, sagrou-se para coisas mais altas: dedicou-se a uma sabedoria de
vida mais digna, prometendo levar a vida dos anjos já nesta terra. Assumiu a
missão de, ainda sujeita à carne, imitar com perfeição a vida daqueles seres
incorpóreos.
Não deve procurar saídas desnecessárias; deve evitar também conversas fúteis,
injúrias, bajulações, coisas que nem deveria conhecer pelo nome. É por isso que
carece de maior proteção e assistência. Pois o inimigo de nossa santificação
persegue de preferência as virgens. Fá-lo com especial persistência, sempre
pronto a perdê-las, caso tiverem a infelicidade de deslizar e cair. E mesmo
abstraindo da própria natureza humana com suas paixões, há muitos homens que
procuram insidiá-las com suas intenções inconfessáveis. Assim as virgens devem
estar preparadas para a dupla luta: contra a que as ameaça de fora e contra a da
própria natureza.
A quem, portanto, for confiada a vigilância sobre elas, compete precaver-se
contra inumeráveis perigos. Maior será o perigo e a tristeza, caso uma das virgens
cair. Que o bom Deus nos livre disso! Pois se já

"uma filha é uma preocupação secreta para seu pai


e o cuidado dela lhe tira o sono",

Eclo. 42, 9

pelo medo de ela ficar estéril, perder o brilho da juventude e ser desprezada (por
seu eventual marido), quanto mais terá que suportar quem tiver o cuidado por
coisas muito mais importantes e preciosas? Porque aqui não se trata de um
simples homem, a quem ameaça vergonha, mas do próprio Cristo. E esta
esterilidade não será causa de vergonha apenas, mas da perdição da própria alma.

"Toda a árvore",

diz o Senhor,

"que não der bons frutos será cortada e lançada ao fogo".

Mt. 3, 10

Ainda: se aqui a noiva for desprezada pelo noivo, não basta ela pedir a carta de
separação e procurar seu caminho, mas ela própria terá que expiar o desprezo
sendo condenada ao fogo eterno. O pai corporal dispõe de muitos meios que lhe
facilitam a vigilância sobre a filha virgem: a mãe, a ama, grande número de
escravas, assim como a própria segurança da casa ajudam nessa vigilância.
Também não lhe é permitido abandonar a casa com freqüência, perambular pelas
ruas e praças, e, no caso em que tiver que sair, querendo, facilmente poderá evitar
de mostrar-se aos homens, aproveitando o lusco-fusco da noite e dos muros.
Desta forma nunca será obrigada a encontrar-se com homens sem que a proteção

41
de seu pai esteja a seu lado. O único cuidado que tem é não fazer nada, nem falar
nada de indigno que possa ofender o pudor.
Entre nós, porém, há muitas coisas que dificultam a vigilância do pai espiritual,
tornando-se, até muitas vezes, impossível. Não pode mantêla em sua casa; isso
seria inconveniente e perigoso. Mesmo que ambos conservarem sua santidade
imaculada, terão que prestar contas pelas almas que com isso se escandalizarem.
E' isto com não menos rigor, como se tivessem pecado. Já que não podem viver
na mesma casa, surgem grandes dificuldades ao pai espiritual em conhecer as
virgens em suas manifestações de alma, a fim de impedir as desordenadas e
favorecer as ordenadas e boas, regulando-as, pelos exercícios, até a perfeição.
Também seria fácil vigiar as saídas. Pois a circunstância de tratar-se de moças
pobres e não vigiadas torna impossível ao bispo informar-se sempre sobre a
guarda do necessário decoro. Além disso, elas mesmas serão obrigadas a cuidar
de sua manutenção. Por isso, caso o queira, facilmente encontra pretextos para
sair. E quem quiser obrigá-la a ficar em casa, primeiro deverá remover tais
pretextos, cuidando ele mesmo das necessidades delas, colocando-lhes à
disposição uma pessoa para os serviços respectivos. Até deveria cuidar que não
saíssem nem para enterros e nem para o culto divino noturno. Pois a serpente
astuciosa sabe realmente inocular seu veneno até por ocasião do exercício de
obras louváveis. Assim a virgem deve ser protegida de todos os lados como por
uma muralha, da qual poderá sair raríssimas vezes, e só por motivos gravíssimos.
Se contudo alguém quiser afirmar que tudo isso não deveria ser da competência
do bispo, deverá saber que é justamente ao bispo que costumam atribuir tais
cuidados e responsabilidades. Por isso é preferível cuidar ele pessoalmente destas
coisas, evitando ser censurado, a sofrer acusações por causa de erros alheios.
Negligenciando seus deveres episcopais teria que tremer em sua responsabilidade
por causa das ações de estranhos. Além disso, quem pessoalmente trata de tudo,
fá-lo-á com a consciência mais livre. Quem para o mesmo serviço primeiro tiver
que convencer homens de opiniões diferentes, descobrirá logo que não se liberou
do trabalho. Pelo contrário, em vez de alívio encontrará embaraços e confusões
da parte daqueles que possam ter opiniões diferentes.
Não posso, finalmente, mencionar o explicar todos os cuidados que exige a
vigilância sobre as virgens. Os citados já bastam para mostrar o que exigem de
quem receber tal incumbência.
Finalmente, com respeito ao poder judicial, ele inclui inúmeros encargos que
exigem muito trabalho e têm por conseqüência tantas e tamanhas dificuldades
como nem os juízes profanos têm a enfrentar. Porque de um lado não é fácil achar
o que é justo, e, de outro, tendo-o encontrado, é igualmente difícil não ofendê-lo.
Mas não traz somente trabalho e dificuldades; acarreta também perigos
apreciáveis. Quantos, entre os mais fracos, já perderam sua fé quando, envolvidos
em rixas, não encontraram a proteção da justiça? E muitos daqueles que forem
assim injustiçados odiarão os que lhes negaram proteção, da mesma forma como
os que lhes causaram a própria injustiça. Nestes casos não respeitam as

42
complicações da questão, nem gravidades circunstanciais, nem a precariedade do
poder judicial dos sacerdotes, nem outras circunstâncias quaisquer. Arvoramse
em Juízes inexoráveis, admitindo uma só defesa a libertação do mal que os
oprime. E quem não lhes conseguir esta libertação não escapará de sua
condenação, mesmo que tenha mil razões para sua justificação.
Tendo mencionado esta proteção judicial, deixa-me apresentar ainda outro
pretexto de queixas contra o bispo. Caso ele não der diariamente sua volta de casa
em casa, terá que enfrentar muitas coisas indizivelmente desagradáveis. Não só
os doentes querem ser visitados. Também os que gozam de boa saúde, e, muitas
vezes, não motivados pelo respeito, mas simplesmente pelo desejo de serem
distinguidos e honrados. Caso acontecer que tenha necessidade de visitar com
mais freqüência alguém mais rico e mais honrado para o bem da Igreja
necessitada, imediatamente cairá na suspeita de ser bajulador.
Entretanto, por que falo tanto em proteção judicial? E em visitas? Quantas
censuras e quantas acusações os bispos têm que suportar por causa de suas
pregações? A carga dos acusadores, às vezes, é tão pesada que os bispos se
sentem humilhados e sem coragem. Até de seus olhares exige-se prestação de
contas! A grande massa examina com rigor qualquer apresentação do bispo:
observa o timbre de sua voz, a expressão de seu olhar, a intensidade de seu riso.
A este ou àquele - assim dizem - presenteou com um riso mais afável, mostrou
um rosto mais alegre, falou com voz mais amigável; a mim, no entanto, quase
não viu. Caso durante a pregação não olhar para todos os lados, acusam-no de
falsa modéstia e de soberba.
Quem será suficientemente forte para não deixar afetarse por tantas acusadores?
Como poderá sentir-se justificado no meio de tantas críticas? - Propriamente, o
bispo nunca deveria estar sujeito a críticas; já que isto não é possível, deverá
procurar livrar-se delas. Como não é fácil, principalmente porque muitos até
sentem alegria em levantar críticas impensadas e infundadas, não deve
desesperar, mas, apesar de tudo, mostrar sempre fortaleza. Quem receber críticas
justificadas consegue mais facilmente enfrentar a quem o acusa.
Não existe acusador mais amargo do que a própria consciência. Por isso, caso
tivermos que enfrentar primeiro a este acusador, aqueles outros críticos externos
pouco nos afetam. Aquele, porém, cuja consciência estiver totalmente tranqüila,
ouvindo críticas sem fundamento, facilmente se deixa arrebatar pela ira até o
desânimo, a não ser que antes já se tenha exercitado em suportar quaisquer males
provenientes da grande massa popular. Não existe a menor dúvida de que é
extremamente difícil que alguém, sendo injustamente caluniado e inocentemente
condenado, não perca a serenidade e não se sinta humilhado por tal malícia
diabólica.
Em seguida, como achar palavras para descrever a tristeza do bispo quando se
tornar necessário excluir alguém da comunidade eclesiástica? Oxalá tal desgraça
termine nesta tristeza! Ainda está iminente outra desgraça não menos grave. É de

43
temer que, caso alguém tiver sido punido além da medida, aconteça aquilo de que
fala S. Paulo:

"que o tal venha a ser consumido por uma excessiva


tristeza".

II Cor. 2, 7

Também neste caso torna-se mister usar de extrema prudência a fim de que não
aconteça que aquilo que deveria ser um bem se torne causa de maior mal. Pois
também o médico, não tendo acertado no corte, é objeto da ira divina causada por
todo e qualquer pecado cometido por quem recebeu punição tão excessiva. Que
castigo pesado não o aguarda se tiver que prestar contas não só das próprias
falhas, mas também das dos outros?
Se já nos causa tremor o pensamento de termos que prestar contas por nossos
próprios pecados, temendo não conseguir escapar daquele fogo, quanto mais não
deve tremer e temer quem for responsável por tantos? E que isto corresponde à
pura verdade, poderás deduzir das palavras de Paulo, ou, antes, do próprio Cristo
que fala pela boca de seu santo:

"Obedecei a vossos guias e sede-lhes submissos,


porque eles velam por vossas almas,
cônscios de dever prestar contas a Deus".

Hb. 13, 17

Depois de tal ameaça, pode ser pequeno o temor de semelhante responsabilidade?


Pelo contrário, deve ser indizivelmente grande.
Finalmente tudo isto, na verdade, deve ser suficiente para convencer os homens
mais teimosos e mais obstinados de que não me eximi do peso desse cargo nem
por soberba, nem por ambição, mas unicamente pelo temor da imensa
responsabilidade.

44
LIVRO QUARTO

1. Depois destas minhas palavras, Basílio meditou um pouco e disse em seguida:


Realmente se tivesses ambicionado esta alta dignidade, com toda razão deverias
estar com esse temor. Pois quem com ambição pelo cargo confessa considerar-
se apto, uma vez nele instalado, jamais poderá desculpar seus erros alegando
inexperiência. Pelo fato de ter corrido ao seu encalço, cortou qualquer defesa
para si mesmo, e, tendo-o usurpado premeditada e voluntariamente, jamais
poderá apresentar desculpa dizendo: foi sem a minha vontade que causei a perda
deste ou daquele. O Juiz a quem tiver que prestar contas, responder-lhe-á: Por
que então, conhecendo tua inexperiência e incapacidade para exercer o cargo,
correste tão avidamente ao seu encalço? Por que tiveste a ousadia de aceitar um
cargo que supera todas as tuas capacidades? Quem te obrigou a isto? Quem te
forçou, quando quiseste eximir-te?
Tu, porém, jamais ouvirás tais palavras. Porque disso ninguém poderá acusar-te.
Todos sabem que nunca procuraste essa dignidade; foram outros que quiseram
incumbir-te da mesma, e com toda a razão. Aquilo que para os primeiros será
impedimento na procura de perdão, para ti será fundamento em tua defesa.
Depois dessas palavras de Basílio, sorrindo, sacudi a cabeça. Admirando tua
ingenuidade, falei, desejaria realmente que fosse como acabas de afirmar, meu
amigo muito amado, embora não tencionando nem agora aceitar o cargo do qual
acabo de eximir-me. Pois mesmo que nenhuma punição me aguardasse ao
aceitar, nesta minha insânia e inexperiência, o cuidado pelo rebanho de Cristo, o
fato de parecer ação injusta contra quem me outorgasse a dignidade, seria para
mim mais insuportável do que qualquer punição.
Mas por que, apesar disso, desejaria sinceramente que tua opinião fosse
justificada? - A fim de que todos aqueles homens miseráveis e desgraçados (pois
é este o nome que merecem os incapazes de administrar esse cargo, mesmo que,
conforme tua opinião, fossem forçados a aceitá-lo e por isso fracassassem por
ignorância) - possam salvar-se daquele fogo inextinguível, daquelas trevas
extremas, daquele verme indestrutível, da perdição e condenação eternas junto
com todos os hipócritas.
O que direi, a seguir, sobre esta tua opinião? De maneira alguma é assim como
dizes. E caso permitires, primeiro provarei o acerto de minha afirmação,
argumentando com a realeza que perante Deus vale menos do que o sacerdócio.
Saul, filho de Cis, tornou-se rei sem ter a isso aspirado; saíra para procurar as
jumentas do pai e, ao indagar por elas, chegou até o profeta. Este falou-lhe da
realeza. E Saul, embora fosse chamado pela boca do profeta, ainda não aspirava
à dignidade; pelo contrário, até procurou rejeitá-la ou evadir-se dela.

"Quem sou eu",

45
disse

"e demasiadamente modesta é a casa de meu pai".

I Rs. 9, 21

E agora? Depois de ter abusado da honra que Deus lhe conferira, porventura,
essas palavras conseguiram libertá-lo da ira daquele que o constituíra rei? E ainda
assim, quando Samuel o acusava, poderia ter-lhe respondido: acaso fui eu quem
aspirou a ser rei? Fui eu quem insistiu, com veemência, em alcançar esse poder?
Queria levar a minha vida simples e tranqüila, livre de qualquer atividade
pública, quando tu, contra minha vontade, me impuseste a realeza. Se tivesse
continuado na minha posição modesta, facilmente teria evitado essas faltas. Pois,
pertencendo à grande massa, anônimo, não teria sido enviado a realizar tal obra;
Deus não teria colocado em minhas mãos esta guerra contra os amalecitas e, se
não fosse isso, jamais teria cometido este pecado.
Entretanto, tais desculpas, além de muito fracas para servir de justificação,
seriam perigosas, provocando ainda mais a ira de Deus. Quem conseguiu posição
honrosa tal que supera seus méritos, jamais deverá defender seus erros a pretexto
de sua dignidade; pelo contrário, essa extraordinária benevolência de Deus
deveria ser-lhe estímulo para um comportamento ético mais apurado. Quem
achar lhe seja permitido pecar por causa de sua alta posição, não faz outra coisa
senão declarar a bondade de Deus como causa de seus deslizes. É exatamente
isso mesmo que os ateus e homens levianos costumam dizer. Nós, entretanto,
não podemos seguir esta opinião, entregando-nos a tal loucura; ao contrário,
devemos esforçar-nos por contribuir, na medida de nossas forças, para conservar
feliz e imaculado o nosso coração.
Passando agora da realeza para o sacerdócio, de que aqui se trata, constatamos
que também Heli não aspirou a seu cargo. No entanto, de que lhe adiantou tal
fato, quando caiu em pecado? Mas para que estou mencionando que ele não
aspirou ao sacerdócio? - Mesmo querendo eximir-se do cargo, não lhe teria sido
possível, porque a Lei lho impôs. Sendo da tribo de Levi, em que o sacerdócio
se transmitia de geração em geração, era obrigado a aceitá-lo. Mesmo assim foi
punido pelo comportamento leviano de seus filhos.
E finalmente, o que aconteceu até mesmo àquele primeiro sacerdote dos judeus,
sobre quem o próprio Deus tanto falava com Moisés? Não aconteceu que quase
teria perecido se, ao não conseguir resistir sozinho à multidão revoltada, seu
irmão não tivesse intercedido por ele para aplacar a ira de Deus? Já que estamos
mencionando Moisés, também será importante lembrar o que ele teve que
suportar; também isso servirá de argumento para confirmar minhas palavras.
Moisés estava tão longe de aspirar à chefia dos judeus que se negou a aceitá-la
apesar da ordem expressa de Deus, chegando mesmo a provocar a ira divina com
sua resistência. E, mais tarde, exercendo já a chefia do povo, chegou a manifestar
a vontade de morrer, somente para livrar-se dela de novo.

46
"Em lugar de tratar-me assim",

disse ele,

"rogo-vos que antes me façais morrer".

Nm. 11, 15

Por acaso, estas recusas contínuas conseguiram desculpar seu comportamento ao


fazer brotar água do rochedo? Sabemos que foi por isso que Deus lhe vedou a
entrada na terra prometida. Por sua desconfiança este homem admirável perdeu
o direito ao que foi concedido a todos os seus súditos. Depois de tantas fadigas
e peripécias, depois das aventuras indescritíveis, depois de tantas lutas e vitórias,
não pôde entrar na terra pela qual se submetera a tudo isso!
É como navegador, que tendo suportado todas as peripécias do mar aberto, não
consegue gozar da paz e da tranqüilidade do porto.
Vês agora que ninguém consegue desculpar suas falhas, nem os que usurpam o
cargo, nem aqueles a quem ele foi imposto por outros? Se até homens escolhidos
pelo próprio Deus e querendo eximir-se do cargo sofreram punições tão pesadas,
nada conseguindo preservá-los desses castigos, homens como Arão, Heli e
aquele outro escolhido por Deus, o santo, o profeta admirável que conversava
com Deus como com um amigo, então a consciência de não termos aspirado a
esse cargo muito menos poderá ser motivo de desculpa para nós. Principalmente
porque muitas das eleições entre nós não se fundamentam na graça de Deus, mas
na atividade e na diligência de homens.
Até mesmo Judas, Deus o tinha escolhido; recebera-o naquela comunidade santa,
outorgando-lhe, junto com os outros, a dignidade do apostolado; chegou a
confiar-lhe mais do que aos outros, entregando-lhe a administração da caixa. E
então? Porventura livrou-se ele da punição, depois de ter abusado do cargo,
traindo a quem deveria anunciar e gastando em coisas injustas o dinheiro que lhe
tinha sido confiado? Eis por que incorreu numa penalidade maior, e com toda a
razão-! Pois nunca se deve usar de um cargo recebido de Deus para ofendê-lo,
mas para servi-lo.
Quem portanto, incumbido de alguma dignidade importante, achar que deve
estar isento de castigo, mesmo que o mereça, procederia de maneira semelhante
aos judeus infiéis. Cristo falou:

"Se eu não tivesse vindo,


e não lhes houvesse falado,
não teriam pecado",

Jo. 15, 22

47
"se não tivesse feito entre eles obras,
que nenhum outro fez,
não teriam pecado".

Jo. 15, 24

Admitamos que os judeus, depois de terem ouvido essas palavras, levantassem


acusações contra Cristo:

"Por que então vieste e falaste?


Porventura só para castigar-nos mais duramente?"

Na verdade, tal procedimento seria de um estulto e totalmente louco. Pois Cristo,


o médico, não veio para condenar-te, mas para salvar-te e curar-te totalmente de
tuas doenças. Tu, porém, voluntariamente fugiste de suas mãos; toma, pois, o
castigo mais duro! Assim como entregando-te ao tratamento do médico terias
sido curado de teus males, fugindo dele, não conseguirás mais livrar-te da
doença, e não só deverás continuar a suportá-la, mas, além disso, terás que
penitenciar-te por teres evitado os cuidados do médico! 'É por isso que o castigo
que nos ameaça não é o mesmo de antes de termos recebido alguma incumbência
de Deus; será mais rigoroso e mais duro. Pois quem não se deixa corrigir
recebendo benefícios, com razão merece castigo maior.
Sendo que este caminho de defesa também se mostrou insuficiente, não só pelo
fato de não salvar os que a ele recorrem, mas até de prejudicá-los, deveremos
procurar outro mais seguro.
Que caminho será este? - perguntou Basílio. Com tuas palavras me incutiste tanto
medo e tremor que já não me sinto seguro de mim mesmo!
Insistentemente te imploro - retruquei -: não te deixes desanimar a tal ponto! Pois
existe realmente um caminho bem seguro. Para nós, os fracos, consiste em nunca
aceitarmos tal cargo, e, para vós, os fortes, em fazer depender a vossa esperança
pela salvação unicamente da graça divina, cujo auxílio vos guardará de nunca
praticar ação alguma que seja indigna desta graça e de seu divino doador.
Merecem punição mais dura aqueles que pelo empenho pessoal conseguiram o
cargo e o administram mal, quer por leviandade, quer por malícia, quer mesmo
por inexperiência. Todavia também os que não ambicionaram o cargo estarão
sujeitos à punição.
Acho que não se deveria ceder às insistências de outros antes de ter examinado
a própria alma com toda a sinceridade e máximo rigor. Ninguém, pois, ousará
assumir a incumbência de construir uma casa se não for construtor, assim como
também ninguém terá coragem de tratar o doente se nada entender da arte
médica. Mesmo que muitos o pressionem a fazê-lo a todos eles rejeitará sem
sentir-se envergonhado de sua ignorância. Ora, aquele a quem se quer confiar o
cuidado por tantas almas não deverá examinarse primeiro, mas, mesmo sendo o
mais inexperiente, deverá ele aceitar simplesmente o cargo, somente porque este

48
ou aquele o quer, somente porque este ou aquele o pressionou, ou porque não
quer ofender a este ou àquele? Como é possível? Porventura não se precipitará
na maior desgraça. junto com todos os que lhe foram confiados? Em vez de
salvar a sua própria pessoa ainda leva a muitos outros consigo para a condenação.
Donde espera ele que lhe venha salvação? De quem espera perdão? Quem
intercederá por ele? Porventura aqueles que ora nos pressionam? Quem então
salvará a estes? Pois também eles carecerão do auxílio de outros para escapar do
fogo. Não penses que estou dizendo tudo isso para atemorizar-te; para
convencer-te que se trata da pura verdade, escuta o que Paulo escreve a seu dileto
filho Timóteo:

"A ninguém imponhas as mãos precipitadamente,


tornando-te cúmplice dos pecados alheios".

I Tm. 5, 22

Vês agora qual não é somente a censura, mas a punição das quais preservei a
todos os que me quiseram impor esse cargo?

2. Como aos eleitos não será desculpa suficiente dizer não ambicionei o cargo,
também não fugi dele por não conhecê-lo, assim aos eleitores não adiantará
declarar não terem conhecido o eleito. Pelo contrário, até aumentarão a sua culpa
porque elegeram a quem nem sequer conheciam. Sua desculpa aparente
aumentará ainda a matéria de acusação. Que absurdo! Quem quer comprar um
escravo, apresenta-o primeiro aos médicos, exige avalista, informa-se junto aos
vizinhos e, com tudo isso não se contentando ainda, exige um prazo longo de
experiência. E querendo incumbir alguém de tão alta dignidade eclesiástica
procede-se superficialmente e ao acaso, sem outro exame das personalidades do
que o testemunho de um ou outro, muitas vezes apresentado por favor ou
desfavor. Quem haverá de interceder por nós se aqueles que deveriam estar do
nosso lado também necessitarão da intercessão de outros?
Quem pois quiser impor as mãos a alguém, antes deverá proceder a um exame
rigoroso do mesmo; um auto-exame, porém, muito mais rigoroso deverá fazer
aquele a quem se quer impor as mãos. Pois, mesmo que todos os eleitores sejam
co-responsáveis, isto não libertará o eleito do castigo; ao contrário, ele sofrerá
punição ainda mais grave, a não ser que os eleitores tenham agido de manifesta
má fé. Se os eleitores forem apanhados por terem escolhido conscientemente o
mais indigno, ambos cairão em punição igual. Porque quem levar ao poder a
quem manifestamente pretende prejudicar a Igreja, tornar-se-á culpado de tudo
quanto este empreender. Se, porém, não for responsável, podendo afirmar ter
sido ludibriado pela opinião da massa, nem por isso estará livre de censura;
somente o seu castigo será mais leve do que o do eleito.
Por que assim? Porque - como parece - os eleitores foram levados a dar esse
passo ludibriados por informações falsas, ao passo que o eleito não poderá alegar
a mesma desculpa dizendo: eu mesmo não me conhecia como os outros também

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não me conheciam. Ora, tendo que contar com castigo mais grave do que seus
eleitores, logicamente deverá submeter-se a um auto-exame mais rigoroso. E
caso haja quem queira elegê-lo sem o conhecer, deverá procurá-lo e apresentar-
lhe todas as razões para superar seu erro. Provando a ele ser indigno até de um
exame preventivo, facilmente conseguirá escapar da responsabilidade do cargo.
Numa reunião em que se trata do serviço militar, do comércio marítimo, da
agricultura ou de outros negócios profanos, por que, nela, o agricultor não trata
da navegação, o militar da agricultura e o navegador do serviço militar? Mesmo
sob ameaça de morte? - Manifestamente porque cada um prevê os perigos
oriundos de sua inexperiência. Portanto em coisas de menos importância usamos
de todos os cuidados, não cedendo nem às maiores pressões exteriores; sob a
ameaça do castigo eterno, porém, com que deverão contar todos os que, apesar
de sua ignorância, ousam aceitar o sacerdócio sem mais nem menos, nos
expomos levianamente ao perigo, pretextando termos sido pressionados? O
nosso Juiz não o aceitará. Pois era nossa obrigação tomar providências mais
seguras no trato com os bens espirituais do que as que tomamos ao tratar dos
bens profanos; e agora manifesta-se que não empregamos nem os mesmos
cuidados. Dize-me, caso encarregássemos alguém de construir um edifício,
presumindo-o perito em construções sem que ele o fosse realmente, e, ele, depois
de ter aceito a incumbência, estragasse material, erigindo a casa de tal maneira
que desabaria, porventura aceitaríamos sua desculpa, alegando ter sido
pressionado por nós? Jamais! E com toda razão! Pois deveria ter-se negado a
aceitar a incumbência. Por conseguinte, se quem estragar madeira e tijolos não
consegue libertar-se de culpa, como poderá escapar quem perder almas imortais
achando ser suficiente alegar como desculpa ter sido pressionado por outros? -
Não seria isso o cúmulo do absurdo?
Não quero afirmar que ninguém seja capaz de obrigar alguém contra sua vontade.
Suponhamos, porém, que alguém, submetido a opressões extraordinárias e aos
mais variados estratagemas, tenha cedido e aceito o cargo. Estas circunstâncias
porventura o salvarão do castigo? Jamais! E peço-te: não nos iludamos a nós
mesmos, não nos comportemos como se ignorássemos coisas que até às crianças
pequenas já são conhecidas! Pois ao termos que prestar contas não nos adiantará
fingirmos ignorância. Consciente de tua fraqueza não aspiraste a esta alta
dignidade: certo e louvável! Com a mesma energia também deverias tê-la
recusado, quando outros ta ofereceram. Ou acaso só te sentiste fraco e incapaz
enquanto ninguém te chamou, tornando-te forte repentinamente, ao aparecer
quem te quisesse entregar o cargo? Isto seria ridículo, seria uma farsa que
mereceria o maior castigo. É por isso que o Senhor exorta:

"Quem de vós, querendo construir uma torre,


não começa por sentar-se para calcular a despesa,
e ver se possui com que acabar?
Para não suceder que, tendo lançado os alicerces

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e não podendo terminar,
todos que o virem comecem a zombar dele".

Lc. 14, 28-30

Nesse caso, o castigo será apenas zombaria e escárnio. No outro caso, porém, a
punição será fogo inextinguível, será um verme que nunca morre, será ranger de
dentes, extrema escuridão e aniquilação.
Aqueles que me acusam, não querem saber nada disso; caso contrário, deixariam
de censurar a quem não quer perder-se levianamente. O exame de que aqui se
trata não visa constatar se alguém sabe lidar com trigo e cevada, ou com terneiros
e carneiros ou outras coisas semelhantes, mas gira em torno do próprio Corpo de
Cristo. Pois a Igreja, conforme as palavras de S. Paulo, é o Corpo de Cristo. E a
quem for confiado este Corpo, deverá cuidar dele, a fim de que possa crescer,
desenvolver-se e florescer em toda a sua formosura, e deverá fazer com que

"compareça resplandecente,
sem ruga nem mancha
ou algo semelhante".

Ef. 5, 27

Pois que outra finalidade pode ter senão empregar todas as suas forças a fim de
que esse Corpo se torne digno de sua Cabeça santa e imaculada? Se os médicos
e ginastas na educação dos atletas já necessitam de um modo de vida bem
regulamentado, de exercícios constantes para conseguir sua finalidade, quanto
mais deverão esforçar-se no cuidado daquele Corpo, cuja luta não é contra carne
e sangue, mas contra os poderes e dominadores invisíveis? Como é que alguém
poderá manter este Corpo puro e imaculado se não entender extraordinariamente
e, além do normal, do tratamento adequado das almas?

3. Ou, por acaso, não sabes que este Corpo (Místico de Cristo) está exposto a maior
número de doenças e perigos do que a nossa carne mortal; que ele mais fácil e
rapidamente se corrompe e mais lentamente sara? Para o nosso corpo carnal os
médicos já inventaram vários remédios, confeccionaram diversos instrumentos
e prepararam alimentos salutares para os doentes. Muitas vezes até basta
mudança de ar para recuperar a saúde. Acontece até que só um sono profundo
dispensa maiores cuidados do médico. Aqui, porém, não se pode empregar nada
disso; aqui, fora o bom exemplo, existe um único meio e um único caminho, isto
é o aconselhamento pela palavra.
Este é o instrumento adequado, é o alimento certo, o ar salutar; é a palavra que
representa remédio, fogo e ferro. É dela que se deve fazer uso quando se tornar
necessário cortar e queimar. E onde a palavra nada conseguir, todas as outras
coisas também não têm valor. Com a palavra levantamos a alma caída,
tranqüilizamos a irritada. Pela palavra removemos eventuais excrescências da

51
alma, acrescentamos o que falta, providenciando, desta maneira, tudo o que
possa ser proveitoso para o seu bem-estar.
Encontrando alguém com vida perfeita, o exemplo dele poderá conseguir
despertar o zelo e a vontade de imitá-lo; se, porém, encontrarmos alguma alma
adoentada por falsas doutrinas de fé, tornar-se-á necessário o emprego intensivo
da palavra, não só para a segurança da própria fé, mas também para a defesa da
mesma contra os ataques inimigos de fora. Pois se alguém estivesse armado com
a espada da inteligência e o escudo da fé de tal maneira que conseguisse praticar
milagres, tapando com eles a boca dos insolentes e atrevidos, não necessitaria do
auxílio da palavra. Ainda assim o poder da palavra de maneira alguma seria
inútil, mas antes de grande proveito. O próprio Paulo serviu-se dela, apesar de
provocar admiração geral com seus milagres. Ainda outro apóstolo nos
recomenda o emprego da palavra dizendo:

"Estai sempre prontos a defender-vos


contra quantos exigirem justificativas
da esperança que há em vós".

I Pd. 3, 15

Pelo mesmo motivo os apóstolos entregaram o cuidado das viúvas a Estêvão e


seus colegas, para poderem dedicar-se eles mesmos, mais assiduamente, ao
ministério da palavra. Entretanto, não precisaríamos dedicar tanto esforço ao
ministério da palavra se ainda possuíssemos o dom de praticar milagres. Já que
deste dom não nos restou nem vestígio, ao passo que os inimigos nos atacam
continuamente e de todos os lados, vemo-nos na necessidade de armar-nos com
a palavra, quer para defender-nos dos ataques dos inimigos, quer para nós
atacarmos a eles.

4. É por isso que devemos cuidar que a palavra de Cristo habite abundantemente
em nós. Devemos estar preparados não só para uma única luta; temos que
enfrentar uma guerra muito variada que nos será imposta pelos mais diversos
inimigos. Ainda mais. Nem todos vêm com as mesmas armas, nem nos atacam
com a mesma estratégia. Quem, portanto, tiver que enfrentar a todos, de todos
deverá conhecer as artimanhas. Deverá ser, ao mesmo tempo, arqueiro e atirador,
guia, e guiado, soldado e general, infante e cavaleiro; deverá ser perito na terra e
no mar. Nas batalhas comuns é costume que a cada um dos participantes seja
confiada uma tarefa especial em que deverá ajudar a rechaçar o inimigo que
ataca. Em nosso caso, porém, é diferente se quiser vencer, sem ser perito em
todas as facetas da arte bélica. O demonio conhece o lado fraco - mesmo se for
único - e saberá dirigir seus auxiliares justamente para lá, a fim de roubar as
ovelhas. Não tentará fazê-lo verificando que o pastor possui conhecimentos
suficientes para descobrir-lhe as artimanhas.
Por isso é mister armar-se em todas as direções. Enquanto uma cidade estiver
bem fortificada em redor de suas muralhas, poderá rir-se de seus sitiantes porque

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estará segura. Logo, porém, que conseguirem abrir uma brecha na muralha,
mesmo que seja apenas do tamanho de uma porta, toda a fortificação restante
não adiantará mais nada.
O mesmo se dá com a Cidade de Deus. Enquanto a vigilância e a prudência do
pastor a protegerem, todos os ataques dos inimigos só trarão para ele risos e
zombarias, conservando os habitantes em plena segurança. Contudo, assim que
alguém conseguir entrar por um dos lados, mesmo sem conquistar a cidade toda,
perdê-la-á de parte em parte.
O que há de fazer no caso em que, enquanto estiver combatendo valorisamente
os gregos, os judeus saquearem a cidade? - ou, enquanto domina a ambos, os
maniqueus conseguirem saqueá-la? - ou, depois de ter vencido também a esses,
os fatalistas entrarem na cidade dilacerando as ovelhas?
Mas para que irei enumerar todas essas heresias do demônio? Basta apenas uma
única para estragar o rebanho, caso o pastor não estiver em condições de rejeitá-
la. Na guerra comum a vitória ou a derrota estão nas mãos dos que combatem no
campo de batalha. Aqui, porém, dá-se justamente o contrário. Muitas vezes
acontece que uns combatem ao passo que a vitória é de outros que nem
participaram na luta e nem por ela se interessaram. Quem não tiver muita
experiência, será perfurado pela própria espada, tornando-se o escárnio de seus
inimigos.
Quero esclarecer a minha afirmação à mão de um exemplo. Os seguidores da
doutrina insana de Valentim e Marcião excluem do índice das Sagradas
Escrituras a Lei que Deus deu a Moisés. Os judeus, porém, a veneram de tal
maneira que, apesar de algumas a partir de Cristo serem ab-rogadas,
teimosamente e contra a vontade de Deus continuam a observá-las em todos os
seus pormenores. A Igreja de Deus evitou os exageros de ambos, seguindo o
caminho médio. Não se deixa subjugar à Lei, nem permite que esta seja
difamada; pelo contrário, estima-a, mesmo ab-rogada, porque em seu tempo foi
de utilidade inestimável.
Esta é a medida certa que deve orientar a quem quiser discutir com ambos os
lados. Caso quisesse convencer os judeus não ser conveniente continuar com a
Lei e começasse a censurá-la impiedosamente, ajudaria sem dúvida aqueles
heréticos que a difamam e caluniara. Caso, porém, no zelo de querer tapar a boca
desses, a louvasse e admirasse sobremaneira, como se ainda fosse necessária para
o nosso tempo, certamente encorajaria os judeus a dela se gabarem ainda mais.
Foi desta maneira que os seguidores da doutrina absurda de Sabélio e os
partidários tolos de Ario apostataram da verdadeira fé. Ambos continuam a
chamar-se "cristãos"; no entanto, ao examinarmos suas doutrinas, constatamos
que uns não são nada melhores do que os judeus, distinguindo-se apenas deles
pelo nome, e os outros se aproximam da heresia de paulo de Samósata,
encontrando-se ambos fora da verdade.

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É portanto deste lado que podem surgir grandes perigos. O caminho é estreito e
pesado, ameaçado por precipícios em ambos os lados, oferecendo o perigo de,
procurando escapar de um, cair no outro. Assim, afirmando-se que existe um só
Deus, Sabélio de imediato relaciona essa expressão com sua doutrina absurda.
Distinguindo-se, porém, e dizendo-se que um é o Pai, outro é o Filho e outro o
Espírito Santo, Ario levanta-se relacionando essa diferença das pessoas com a
diferença da natureza. Devemos evitar tanto a ligação de um quanto a separação
do outro, confessando uma só divindade no Pai, no Filho e no Espírito Santo,
acrescentando, porém, a diferença das três pessoas. Só assim poderemos refutar
os ataques de ambos. Poderia enumerar outras discussões complicadas, cuja
refutação, não sendo cuidadosa e prudente, facilmente poderá vulnerar-nos a nós
mesmos.

5. O que vou dizer, finalmente, sobre as questões absurdas de nossos partidários?


Estas não são de menos importância do que os ataques de fora, até chegam a
exigir maiores cuidados da parte dos instrutores espirituais. Uns, movidos apenas
pela curiosidade, sem outro motivo ou razão, querem ocupar-se com questões,
cujo conhecimento não traz proveito, escapando até à nossa restrita inteligência.
Outros procuram esclarecimento a respeito da justiça divina, querendo medir a
profundidade do abismo do qual diz o salmista:

"Vossos juízos são profundos como o mar".

Sl. 35, 7

E, conquanto sejam poucos os que cuidam da verdadeira fé e de uma vida reta,


há muitos mais que, apenas por curiosidade, se ocupam de questões inúteis,
querendo penetrar no inescrutável, provocando com isso a ira divina.
Pois nunca chegaremos a saber as coisas cujo conhecimento Deus nos quer
esconder. O resultado dessas pesquisas só pode trazer-nos perigos.
Mesmo assim e não obstante tudo isso, se alguém quiser silenciá-los baseado
apenas em sua autoridade, contrai a fama de prepotente ou ignorante. Por
conseguinte, o bispo também nisso deverá usar de extraordinária prudência para,
de um lado, evitar que tais questões sejam levantadas e, de outro, livrar-se das
acusações citadas.
Para vencer todas estas dificuldades não temos outro meio além do poder da
palavra. E se o bispo carece desse poder, as almas dos que lhe são confiados -
isto é, os fracos e curiosos - encontram-se na mesma situação dos navios que têm
que enfrentar continuamente as tempestades do mar: É por isso que o sacerdote
deverá empregar todos os esforços ao alcance do poder da eloqüência.
Por que então Paulo - interrompeu-me Basílio - não empregou esforço algum
para aperfeiçoar-se nisso? Ele não só não esconde ser inexperiente na eloqüência,
mas até o confessa expressamente. Escreve-o expressamente aos Coríntios que
se distinguiam pela eloqüência e até dela se orgulhavam.

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6. Foi justamente isso - retruquei - que levou muitos a se perderem, tornando-se
indiferentes à doutrina verdadeira. Uma vez que não conseguiram compreender
a profundidade do pensamento do apóstolo nem penetrar no sentido de suas
palavras, passaram o seu tempo em anuir com a cabeça e escancarar a boca,
defendendo a doutrina que não é aquela de que o apóstolo se gloria, mas da qual
ele se encontra tão distante como nenhum outro debaixo do céu.
Mas deixemos esta questão para mais tarde. Por enquanto apenas quero dizer
isto: suponhamos que Paulo realmente tivesse sido inexperiente na eloqüência.
O que significaria isso para o tempo de hoje? Paulo tinha um poder muito mais
valioso do que o da palavra com que conseguiu realizar muito mais. Bastava
mostrar-se em público, sem falar palavra alguma, para afugentar os demônios.
Todos os que vivem hoje, mesmo unindo-se em orações e lágrimas, não
conseguiriam o que, naquele tempo, o cinto de Paulo conseguiu.

Paulo, com sua oração, ressuscitou mortos e praticou tantos outros milagres que
os pagãos chegaram até a considerá-lo um deus. E mais ainda, antes de morrer,
foi considerado digno de ser arrebatado até o terceiro céu, ouvindo palavras
inefáveis e impossíveis de serem pronunciadas por um homem. Por isso, com
relação aos que vivem hoje, só posso manifestar o meu espanto pelo fato de eles
não recearem compararse com tal homem, sem com isso querer ofendê-los ou
amargurá-los. Porque mesmo abstraindo dos milagres e considerando apenas a
vida e a conduta angelical de Paulo, verás que este soldado de Cristo conseguiu
mais vitórias por sua vida do que por seus milagres.
Como poderíamos descrever seu zelo, sua prudência, seus contínuos perigos
suportados, seus cuidados incessantes, seu medo e sua solicitude pelas Igrejas,
sua compaixão para com os fracos, seus múltiplos tormentos, as repetidas
perseguições e, finalmente, seu morrer diário? Qual o lugar deste mundo, qual o
país, qual o mar que não tenha conhecido as lutas deste justo? Até o deserto
inabitado o conheceu, dando-lhe acolhida por diversas vezes. Sofreu
perseguições de toda a espécie e alcançou triunfos em todos os lados. Jamais lhe
faltaram lutas nem coroas.
Mas não sei como chego à ousadia de apoucar tal homem! Pois seus feitos
admiráveis superam qualquer tentativa de descrevê-los com palavras,
principalmente com as minhas palavras tão carentes de eloqüência. Mesmo assim
não posso dispensar-me de dizer ainda tudo o que segue e que supera tudo quanto
foi dito até agora, na mesma medida em que a pessoa de Paulo supera todos os
outros homens, esperando que o Santo não me julgue pelas fracas palavras, mas
unicamente pela boa intenção.
O que tenho a dizer? Depois de ter conseguido tamanhos resultados, depois de
ter alcançado tantas vitórias, manifestou o desejo de ser banido para o inferno e
entregue ao castigo eterno, se, com isso, conseguisse salvar os judeus e levá-los
a Cristo; justamente aqueles mesmos judeus que repetidas vezes o tinham
apedrejado e até tentado matá-lo. Quem jamais amou tanto a Cristo? Se é que

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isso ainda possa ser chamado de amor e não mereça nome que signifique mais
do que amor. Porventura ainda poderemos tentar compararnos com ele que
recebeu tantas graças do alto e tamanha virtude tem mostrado? Acaso existiria
algo mais temerário do que isso?
Agora, no que segue, procurarei provar que Paulo também não era ignorante no
sentido dos homens anteriormente mencionados. Eles chamam
de "ignorantes" não apenas os que não são versados nas ilusões das ciências
pagãs, mas também os que se mostram incapazes de lutar pelas doutrinas da
verdade. E com toda razão? Paulo, porém, não confessou ser inexperiente em
ambos os sentidos, mas em um só. E ao afirmar isso, distinguiu bem, dizendo:

"inexperiente que eu seja na eloqüência,


não o sou contudo quanto à ciência".

II Cor. 11, 6

Caso exigíssemos (do sacerdote) a lisura de um Sócrates, a pujança de um


Demóstenes, a dignidade de um Tucídides e o espírito profundo de um Platão,
contra isso valeria esse testemunho de Paulo. Agora deixo tudo isso de lado,
todos esses ornamentos dos escritores pagãos e não me importo com estilo e
expressão. Pois o modo de falar pode ser pobre, a composição das frases pode
ser simples e sem arte, somente, quanto à clareza e segurança nas verdades da fé,
ninguém se pode mostrar inexperiente e ignorante, sobretudo quando se quiser
invocar o testemunho do apóstolo para encobrir a própria ignorância.

7. De que maneira - dize-me - refutou ele os judeus que moravam em Damasco,


mesmo no tempo em que ainda não tinha começado a operar milagres? Como
conseguiu superar os helenistas? Por que foi mandado para Tarso? Acaso não foi
unicamente porque os vencera a todos com o poder de suas palavras, apertando-
os de tal maneira que, irritados, o procuraram matar? No entanto, naquele tempo
ainda não tinha começado a operar milagres. Assim também não se pode afirmar
que a multidão do povo o tenha venerado por causa de seus milagres, nem que
seus adversários tenham temido essa estima que gozara junto ao povo. Pois até
aí mostrara seu poder apenas em suas palavras. Como lutou contra os que em
Antioquia tentaram judaizar a todos? E aquele Areopagita daquela cidade
supersticiosa, - não foi pela palavra do apóstolo, proferida perante o povo que
ele, junto com aquela mulher Dâmaris, aderiram a ele? Como foi que aconteceu
que Eutíquio caiu da janela? Não foi por que ficara noite adentro para ouvir as
palavras do apóstolo? E, finalmente, o que Paulo fez em Tessalonica, em Corinto,
em Éfeso e mesmo em Roma? Não passava dias e noites explicando as
escrituras? E o que vamos dizer ainda sobre suas discussões com os epicureus e
estóicos? Se quisesse enumerar tudo, prolongar-me-ia demais. Ora, se consta que
Paulo serviu-se sobremaneira da palavra - tanto antes da prática de milagres
quanto durante a mesma - como é que alguém pode ousar taxálo de inexperiente
justamente naquilo em que mereceu a admiração do povo? Por que os Licaônios

56
o julgavam ser Hermes? Que Paulo e Barnabé foram considerados deuses não
era conseqüência de seus milagres, mas de sua eloqüência.
Em que este santo se distinguiu ainda de todos os outros apóstolos? Donde vem
que seu nome é conhecido pelo mundo inteiro e está na boca de todos? Donde
vem que é o mais admirado dos apóstolos não só entre nós, mas também entre
os judeus e gregos? Acaso não será por suas cartas tão brilhantes? Por elas
distribuiu bênçãos não somente aos fiéis de sua época, mas também aos que
abraçaram a fé no decorrer dos tempos até hoje. Por elas ainda serão abençoados
todos, até a vinda de Cristo, e enquanto durar o gênero humano, não perderão
seu efeito. Como uma fortaleza construída de aço, suas cartas protegem todas as
Igrejas do mundo, e, como vencedor entre os soldados mais bravos, ele também
está no meio de nós,

"subjugando todo o pensamento à obediência de Cristo,


e destruindo os sofismas bem como a altivez
que se arvora contra o conhecimento de Deus".

II Cor. 10, 5

Tudo isso o apóstolo o conseguiu por meio das suas cartas admiráveis que nos
deixou e que estão repletas de sabedoria divina. E estes escritos nos são
sobremaneira úteis não só para refutar doutrinas falsas e defender as retas, mas
também para ensinar-nos o verdadeiro modo de vida. Ainda hoje os superiores
das Igrejas servem-se destas cartas para fazer crescer a virgem imaculada - a
Igreja - que (por Paulo) foi "desposada" a Cristo, instruindo-a e conduzindo-a à
formosura espiritual. Por meio destas cartas eles também preservam esta virgem
das doenças que a ameaçam, conservando-lhe a saúde constante. São estes os
remédios que nos deixou o "tal ignorante", remédios de um efeito extraordinário,
conhecido por todos que deles se servem.

8. Escuta agora os conselhos que Paulo dá a seu discípulo:


"Aplica-te à leitura, à exortação e ao ensino"!

I Tm. 4, 13

Ainda acrescenta qual o fruto que disto lhe resultará:

"Perseverando nestas disposições,


salvarás a ti e aos que te escutam".

I Tm. 4, 16

E ainda:

57
"Um servidor do Senhor não deve entregar-se a discussões,
mas ser manso para com todos,
pronto para instruir e paciente".

II Tm. 2, 24

E, continuando diz ainda

"Tu, porém, permanece firme naquilo que aprendeste


e de que tens convicção.
Sabes de que mestres o aprendeste.
E desde a infância conheces as sagradas letras
que te podem dar a sabedoria que conduz à salvação".

II Tm. 3,14-15

E ainda:

"Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar,


convencer, corrigir e educar na justiça,
a fim de que o homem de Deus seja completo,
equipado para toda a boa obra".

II Tm. 3-16-17

Em seguida, escuta o que ele impõe a Tito, falando-lhe sobre a instalação dos
bispos:

"O bispo seja firmemente apegado à palavra autêntica,


conforme o ensinamento recebido,
para que seja capaz de exortar segundo a sã doutrina
e refutar os que a contradizem".

Tt. 1, 9

Como é que um "ignorante", como os homens mencionados o chamam, poderá


refutar e silenciar os que contradizem? Para que seria útil ocupar-se com a leitura
das Escrituras, se devêssemos aceitar a propalada "ignorância"? O que eles
apresentam não é senão preconceito e pretexto para encobrir sua leviandade e
indolência.
Entretanto - interrompeu Basílio - é isto que se impõe aos sacerdotes. Realmente
- retruquei - falamos dos sacerdotes. Que Paulo, porém, também visava os
súditos, conclui de outra carta dele:

"Que a palavra de Cristo habite abundantemente em vós".

Cl. 3, 16

E ainda:

58
"A vossa conversação seja sempre amável,
condimentada com sal,
respondendo a cada um como convém".

Cl. 4, 6

É pois para todos que vale a palavra

"prontos sempre a defender-vos".

I Pd. 3, 15

Aos tessalonicenses Paulo escreve:

"Por isso, confortai-vos mutuamente


e edificai-vos uns aos outros,
como já o fazeis".

I Ts. 5, 11

Falando dos sacerdotes, no entanto, ele expressa-se da seguinte forma:

"Os presbíteros que presidem corretamente,


sejam remunerados com duplas honras,
principalmente os que se entregam aos pesados labores
da pregação e do ensino".

I Tm. 5, 17

É esta a finalidade mais nobre dos ensinamentos: que os que ensinam, conduzem
para a vida feliz junto com Cristo pelo exemplo não só do que fazem, mas
também pelo que dizem. O agir apenas não basta na instrução verdadeira.
Esta não é opinião minha, mas do próprio Salvador:

"Quem cumprir e ensinar (os mandamentos),


este será tido como grande no reino dos céus".

Mt. 5, 19

Se o cumprimento já incluísse ensinamentos, não precisaria do segundo verbo;


pois teria sido suficiente dizer apenas "quem cumprir". Assim, porém, mostrou
que distingue os dois conceitos, relacionando um às obras e outro às palavras e,
para a edificação certa, ambas são necessárias. Ou não te lembras do que Paulo
disse aos presbíteros de Éfeso?

"Vigiai, lembrando-vos de que durante três anos, dia e


noite,
não cessei de exortar entre lágrimas a cada um de vós"?

59
At. 20, 31

Para que lágrimas, para que exortações por meio de palavras, quando a própria
vida do apóstolo já era um exemplo tão claro? A vida exemplar, por sua vez,
pode ser capaz de ajudar bastante na obediência aos mandamentos. Apesar disso,
jamais ousaria afirmar que o exemplo só seja suficiente.

9. Um exemplo. No caso de surgirem diferenças de opinião a respeito de uma


doutrina de fé e todos basearem sua opinião no mesmo texto da Escritura, de que
adianta em tal caso o modo de vida dos disputantes? Qual a utilidade para quem
na vida prática consegue grandes resultados, se depois de todos os seus esforços,
devido à ignorância, cair em heresia separando-se do Corpo de Cristo? E isso, eu
bem o sei, já aconteceu a muitos. O que então lhe adianta sua resignação, seu
autodomínio? Nada, ou tanto quanto adiantaria a verdadeira fé a um homem de
má conduta. É por isso que quem for chamado para ensinar os outros deve dispor
de experiência extraordinária nessas discussões. Mesmo que esteja
absolutamente firme no que diz respeito à sua própria pessoa e seja duro sofrer
prejuízo da parte dos adversários, jamais vale o mesmo para a grande multidão
dos ingênuos confiada a ele. Pois esta, vendo ser derrotado seu superior sem
poder enfrentar os adversários, atribui a culpa desta derrota não à imperícia do
superior, mas à falta de segurança na respectiva doutrina da fé.

E assim acontece que uma grande multidão se perca pela ignorância de um único
homem. Mesmo que não debandem por completo para o lado dos adversários,
sempre sentir-se-ão tentados a duvidar de doutrinas que deveriam ser objeto
constante de sua fé, e assim nunca mais conseguirão continuar firmes nas
verdades que, até então, afirmavam com fé absoluta e inabalável. Ao contrário,
em conseqüência da derrota de seu pastor sua alma será sacudida por tais
tempestades cujo fim só pode ser o naufrágio. Qual a culpa, quão ingente o fogo
que se acumulam por cima da cabeça do causador de tal desgraça, não precisas
ouvir de mim, tu mesmo o sabes perfeitamente.

Ora, como podem chamar de soberba e ambição de eu me ter eximido de tal culpa
e de tal castigo? Quem ainda poderá afirmar tal disparate? Ninguém, a não ser
quem costumar censurar sem motivo ou gozar da desgraça alheia.

60
LIVRO QUINTO

1. Esclareci suficientemente a vasta experiência de que necessita educador em suas


lutas pela verdade. Conseqüentemente deverei falar ainda de outra questão que
também é fonte de inumeráveis perigos. Melhor, não é bem a ela que se deve dar
a culpa, mas aos que não sabem servir-se dela. Em si ela traz muitas bênçãos e
benefícios quando os homens, que dela fazem uso, forem diligentes e estudiosos.
Mas, finalmente, de que se trata?
Trata-se do grande esforço a ser empregado nas pregações públicas ao povo.
Logo de início surge um problema: a maioria dos súditos não quer reconhecer o
pregador como mestre, mas, desprezando os ensinamentos, comporta-se como
espectadores nos jogos profanos. Como lá, a multidão se divide: uns torcendo
por este, outros por aquele. O mesmo acontece por ocasião dessas pregações.
Uns preferem a este, outros àquele, ouvindo as pregações com simpatia ou com
antipatia.
Esse não é o único problema. Acrescem outros não menos importantes.
Acontecendo que o pregador intercale em suas palavras algum trecho de outro
escritor, expõe-se a insultos maiores do que os próprios ladrões. Muitas vezes,
na realidade, não citou coisa nenhuma; apenas caiu na suspeita, tendo que sofrer
como se fosse um plagiário. Afinal, por que ocupar-me com citações de trabalhos
alheios? Nem sempre o pregador consegue apresentar uma elaboração própria
com a devida eficiência. Pois a maioria dos ouvintes não costuma escutá-lo para
tirar algum proveito, mas como passatempo, como se estivesse julgando autores
de tragédias ou tocadores de citaras. Desta forma, o desejo da multidão espera
justamente aquela espécie de eloqüência por mim condenada, apegando-se a ela
mais do que os sofistas em suas discussões públicas.

2. Portanto, torna-se necessário mostrar extraordinária coragem que supere minha


insignificância, a fim de conseguir as vontades desordenadas e perniciosas da
massa, impelindo-a a escutar as pregações em seu proveito. O povo é que deve
seguir o pregador, e não este, os desejos da grande massa. Ele somente o
conseguirá por meio de duas qualidades, a saber: o desprezo de quaisquer elogios
e a força da própria eloqüência.
Se faltar um desses postulados, também o outro cairá por terra. Mesmo que o
pregador despreze elogios e encômios, se não apresentar uma pregação
condimentada com graça e sal, facilmente será menosprezado pela massa, que
não há de tirar proveito algum de seus esforços empregados. Caso souber
apresentar um discurso excelente quanto à forma e ao conteúdo, mas se mostrar
suscetível a aplausos, novamente seu esforço será prejudicial, tanto para ele
como para os ouvintes, pois na avidez por aplausos procura mais agradar do que
ser útil. Assim como quem despreza aplausos, sem saber falar, não conseguirá
resultado pelo fato de contrariar os desejos da multidão; quem se deixa levar pelo
desejo de aplausos, mesmo dispondo de qualidades de bom orador, não procurará

61
o bem do povo, mas apresenta o que possa agradá-lo e servir-lhe de passatempo
com a única finalidade de alcançar aplausos mais estrondosos.

3. Um superior perfeito deve, portanto, ser competente em ambos os sentidos, a


fim de que não aconteça que uma das qualidades se torne ineficiente pela falta
da outra. Se ao apresentar-se em público para pronunciar algo capaz de sacudir
os indiferentes titubear e gaguejar, não pode esperar resultado. Os censurados,
irritados com suas palavras, começam por escarnecê-lo devido à falta de
habilidade, acreditando poder assim encobrir a própria vergonha.
Por isso, a exemplo de um corredor na arena, ele deverá esforçar-se por adquirir
a perfeição nos dois postulados, para que possa movimentarse em ambos sempre
de acordo com as exigências do momento. Somente, não oferecendo motivo de
censura, ele poderá fazer uso de seu direito de censurar e castigar, de impor
penitência e de perdoar. Não sendo assim, ser-lhe-á muito difícil esta atividade.
O bom senso exige, portanto, que não se restrinja ao desprezo de quaisquer
aplausos, mas procure aperfeiçoar-se na eloqüência, a fim de que tenha
resultados bons e eficientes.

4. Que mais deverá ser objeto de seu desprezo? As críticas e os apoucamentos da


parte da multidão. Tratando-se de críticas injustificadas - os superiores não
escaparão a censuras injustas - será conveniente não deixar-se amedrontar e
irritar por elas, nem desprezálas simplesmente. Deve procurar suprimi-Ias o mais
depressa possível, mesmo as levantadas por gente simples. Pois não existe nada
tão capaz de aumentar ou diminuir uma boa fama como a loquacidade da massa.
Ela costuma escutar sem critério e propalar o que ouviu; gosta de tagarelar sobre
tudo sem preocupar-se com a verdade. Contudo, por causa disso não deverá
desprezar a multidão, mas convencer os acusadores, e remover, logo de início,
qualquer suspeita que possa surgir. Se, porém, apesar de todos os esforços, os
acusadores não se deixarem convencer, ainda haverá tempo e motivo para
entregá-los ao desprezo geral. Caso um superior desanimar em tais
circunstâncias, acho que também não seria capaz de produzir algo de prestável e
excelente. Desânimo e preocupações debilitam a força da alma, deixando-a em
extrema fraqueza.
Portanto, o sacerdote deve mostrar o mesmo comportamento para com seus
súditos como um pai para com seus filhos menores. Como o pai se mostra
indiferente se fazem travessuras, brigam ou choram, não fica vaidoso se riem ou
se mostram satisfeitos de alguma outra forma, não devemos orgulhar-nos dos
encômios da grande massa, nem desanimar por causa de suas criticas. Isso é
difícil caro amigo, e chego a achá-lo quase impossível! Não ficar satisfeito ao
ser louvado, não sei se algum homem já o conseguiu. É claro que, sentindo
satisfação nisso, também procure consegui-la. E procurá-la sem a conseguir é
natural que leve ao desânimo e à tristeza. Tal como com aqueles que procuram
toda sua felicidade na riqueza se sentem oprimidos ao caírem em pobreza e os
que estão acostumados a uma vida opulenta já não suportam a vida simples,

62
acontece com os que ambicionam louvores e aplausos. Sucumbem
espiritualmente como quem sofre fome, não só ao serem censurados sem motivo,
mas principalmente quando, acostumados a receber aplausos, não os recebem,
ou ouvem que outros são louvados. E o que achas? Quantas dificuldades, quantas
derrotas deverá enfrentar quem ousa querer ensinar incumbido de tal ambição?
Jamais encontrarás o mar sem ondas; tampouco tua alma estará sem problemas
e cuidados.

5. O fato de o pregador possuir grande poder de eloqüência - parece-me que são


muito poucos - não o dispensa de um trabalho contínuo e sério. Visto a
eloqüência não ser dom natural, mas resultado de contínua aplicação e estudo,
ela abandona até mesmo a quem conseguiu a maior perfeição, se não se aplicar
em constantes exercícios. Por isso, o mais eloqüente deve empregar maiores
esforços do que o menos dotado. Caso ambos se mostrarem negligentes, o
prejuízo causado não será o mesmo. Para o primeiro será tanto maior, quanto for
a diferença entre ambos. Ao menos eloqüente dificilmente alguém criticará, caso
não consiga apresentar algo de notável. O perito em eloqüência, porém, se não
apresentar algo cada vez melhor do que se espera, estará sujeito às críticas mais
amargas provindas de todos os lados.
Os menos eloqüentes costumam ser louvados pelo pouco que apresentam,
enquanto as pregações dos mais eloqüentes serão objeto de desprezo e escárnio,
se não apresentarem algo de especial e digno de admiração. Os ouvintes, como
bem sabes, não julgam apenas conteúdo e forma da pregação, mas, sobretudo, a
pessoa do pregador. Quem portanto se distingue dos demais por sua eloqüência,
deverá também empregar esforços que se distingam dos de todos os outros. Nem
a circunstância de a natureza humana ser frágil e imperfeita servir-lhe-á de
eventual desculpa. Caso a pregação não for condizente com a fama de que goza,
sua apresentação será motivo de censura e escárnio da parte da multidão. E
ninguém toma em consideração que eventualmente desânimo e medo lhe possam
ter turvado a clareza do raciocínio, que uma excitação provocada por algum
problema lhe possa ter impedido o perfeito desenvolvimento dos pensamentos,
ou, finalmente, que a um homem mortal é simplesmente impossível apresentar-
se sempre o mesmo, acertando constantemente em cheio quando, pelo contrário,
é perfeitamente natural enganar-se alguma vez e produzir menos do que se
poderia esperar de sua capacidade. Não querem admitir nada de tudo isto; ao
contrário, como se tivessem um anjo para ser julgado, acumulam as mais
desencontradas acusações. Aliás, por natureza o homem costuma não enxergar
as boas qualidades do próximo, mesmo que sejam as mais extraordinárias; tão
logo apareça um erro, mesmo o mais insignificante e muito raro, é imediatamente
anotado, criticado acerbamente e jamais esquecido. Assim já aconteceu muitas
vezes que uma coisa insignificante e desprezível diminuísse a fama e a honra de
homens dignos e estimados.

6. Vês, caro amigo, que é justamente o orador mais eloqüente que mais esforços
deve empregar. Além de grande diligência deverá dispor ainda de longanimidade

63
que todos os outros podem dispensar. Pois haverá quem continuamente o ataque,
mesmo injustamente e sem razão; ainda que não achem outra acusação a não ser
o fato de estar gozando de grande estima, com ódio o perseguem. É mister que
suporte essa inveja amarga com nobre indiferença. Como os acusadores não
conseguem esconder esse seu ódio condenável, injustificadamente acumulado,
falam mal dele, caluniam-no maliciosamente e praticam outras injúrias. Uma
alma sensível a isso sofreria e pereceria amargurada. Estes homens ainda vão
mais longe. Não procuram vingar-se apenas por si mesmos. Tentam consegui-lo
também através de outros. Não raro cumulam qualquer pregador insignificante
com as maiores honrarias e encômios. Há os que agem dessa forma por
ignorância; outros, por ignorância combinada com inveja. Por conseguinte nunca
o fazem para encorajar um orador imperito, mas, ostensivamente, para humilhar
o bom orador.
O orador eloqüente tem que enfrentar não só um por um esses adversários, mas,
muitas vezes, também a malícia de todo o povo. É impossível que os
participantes de uma ação litúrgica sejam todos formados; pelo contrário, a
maioria costuma compor-se de nãoformados. É verdade que também entre estes
existem alguns mais competentes. Mas distam dos realmente capazes de julgar
uma pregação tanto quanto eles mesmos do resto da multidão. Por conseguinte,
como entre os ouvintes em geral se encontra apenas um ou outro capaz de julgar,
acontece que justamente o melhor orador receba menos aplausos, ficando, muitas
vezes, até sem qualquer louvor. Para tais situações deverá possuir extraordinária
generosidade, perdoando os ignorantes e compadecendo-se dos infelizes que
assim se comportam por pura inveja. Nunca deverá chegar à conclusão de que
seu talento de orador tenha sido diminuído. Assim também um mestre de pintura
não deverá desanimar e considerar má sua pintura, somente porque imperitos na
arte zombem dela e a ridicularizem. O contrário também não deverá acontecer.
Uma pintura que realmente nada vale não lhe deverá ser sobremaneira cara só
porque alguns imperitos a tenham admirado!

7. Um artista talentoso deve também olhar as suas obras de arte com crítica. Pode
achá-las boas ou medianas conforme o julgar sua razão mais ou menos
esclarecida. Nunca, porém, tomará em conta a opinião de imperitos que de arte
nada entendem. Da mesma forma, quem se apresentar perante o público como
pregador, deverá ficar insensível aos encômios dos outros e jamais desanimar
devido às suas críticas; em suas pregações procure apenas agradar a Deus. Só
Deus deverá servir-lhe de orientador e fim ao preparar suas práticas; jamais os
louvores e aplausos da multidão. Caso receba aplausos, não os rejeite; caso não
os receba, não os procure e jamais se deixe desanimar! Grande consolo lhe será
sempre a consciência de ter procurado apenas a benevolência de Deus.

8. Caso o pregador se deixar levar pela ambição de aplausos baratos, nem seus
esforços, nem sua eloqüência lhe serão vantajosos. Quem não puder suportar
crítica, mesmo injustificada, da parte da multidão, automaticamente relaxa em
seus esforços, deixando de aplicar-se na preparação das práticas. Por isso é

64
necessário que um bom pregador, antes de tudo, saiba desprezar os aplausos da
massa. Toda a sua eloqüência de nada vale, se apenas procurar aplausos. Num
exame mais profundo chega-se à conclusão de que também o menos perito em
eloqüência deverá desprezar os aplausos da multidão, não menos do que o bom
orador. Procurando a admiração da massa, estará sujeito a muitos erros. Não
sendo capaz de igualar-se aos bons oradores, distinguindose na eloqüência,
procurará persegui-los insidiosamente com inveja e críticas ridículas, para não
mencionar coisas piores. Esforçar-se-á até, pelo preço de sua vida, por diminuir
a glória deles, colocando-a abaixo de sua própria insignificância. Além de tudo
sentirá, por ocasião de suas pregações, uma espécie de paralisia espiritual que não
o deixa nem raciocinar com lógica.
E o resultado? Sempre menos aplausos! Assim, para quem não consegue
desprezar encômios e louvores, já o fato de os aplausos diminuírem é suficiente
para desencorajá-lo e tirar-lhe toda a vontade de trabalhar.
Também o agricultor, obrigado a lavrar a terra pedregosa sem resultado
compensador, perderá a vontade de trabalhar, se não estiver sob a ameaça da fome
iminente.
Ora, se quem dispuser do poder da palavra já necessita de contínuos exercícios
para conservar suas qualidades retóricas, o que direi de quem só a custo consegue
juntar algo de aproveitável? Caso alguém dos súditos conseguir superá-lo na arte
de falar, ele necessitará de uma alma quase divina para não ser comida totalmente
pela inveja e para não perder-se inexoravelmente. Para que alguém de dignidade
mais elevada seja superado por alguém de dignidade inferior de tal modo que este
o tolere generosamente, não basta, na verdade, uma alma comum como a minha.
Para isso se precisa de uma alma diamantina. Se aquele que o superar em glória
for compreensivo e modesto, a desgraça não será de todo insuportável. Se ele,
porém, se apresentar orgulhoso, presunçoso e cheio de ambição, levá-lo-á ao
ponto de desejar todos os dias a morte. Há de amargurar a sua vida insultando-o
em público, ridicularizando-o às escondidas, usurpando grande parte de sua
autoridade, e apresentando-se como chefe. Em tudo isso ele se apresenta com a
máxima segurança, pois considera-se dono da palavra e, com isso, da estima da
multidão.
Ou porventura não sabes como, nos dias de hoje, a arte de falar é superestimada
e como rapidamente se torna ídolo da multidão quem dela souber fazer uso? Isso
não vale só entre os pagãos. Também dentro das nossas comunidades de fé.
Então pergunto: Como é que alguém suportará a vergonha de ver, enquanto ele
mesmo estiver falando, como todos se recolhem num silêncio sepulcral, como se
mostram vexados e ansiosos que termine a prática como pelo término de um
trabalho insano? Ao mesmo tempo que ele observa como todos se mantêm
atentos às palavras do outro; mesmo depois de longo discurso não se mostram
entediados, ficando até descontentes ao notarem o orador finalizar e irritados caso
não queira falar! Talvez em tua experiência aches tratarse de coisas ridículas e
desprezíveis; no entanto, creias, são suficientes para paralisar a força espiritual

65
de quem não conseguiu desprender-se totalmente das paixões humanas,
revestindo-se da espiritualidade daqueles seres incorpóreos que não conhecem
inveja, nem ambição, nem outra paixão qualquer.
Se existir um homem capaz de vencer esta fera, tão difícil de ser caçada, isto é, a
opinião da multidão, se conseguir desprezá-la, cortar-lhe as numerosas cabeças,
ou antes, nem sequer deixar que elas cresçam, esse sim com toda facilidade
rejeitará também qualquer outra crítica, podendo repousar no porto seguro. No
entanto, não tendo conseguido desprender-se dela, terá que enfrentar as lutas mais
diversas, como inquietação contínua, insegurança e todo esse exército de coisas
desagradáveis que lhe invadirão a alma. Para que, enfim, enumerar ainda todos
os outros aborrecimentos, que não poderá descrever nem compreender quem já
não tiver ocupado tal cargo?

66
LIVRO SEXTO

1. Assim estão as coisas neste mundo; exatamente como acabas de ouvir. Como,
porém, suportaremos o que nos espera no além, quando tivermos que prestar
contas de cada qual que nos fora confiado? Lá, a nossa desgraça não será apenas
a vergonha, mas castigo eterno. Devo repetir aqui a palavra de São Paulo já citada
mais acima:

"Obedecei a vossos guias e sede-lhes submissos,


porque eles velam por vossas almas,
cônscios de deverem prestar contas a Deus".

Hb. 13, 17

É o temor desta responsabilidade que continua sacudindo minha alma. Pois, se


para quem der escândalo - seja a um único e ao menor - melhor seria que lhe
amarrassem ao pescoço a pedra de moinho e o precipitassem no mais profundo
do mar e, se todos que ferem a consciência dos irmãos pecam contra Cristo, o
que não deverão sofrer, que punição não aguardarão aqueles que não levaram à
perdição apenas um, dois ou três, mas verdadeiras massas?! Então inexperiência
não será desculpa; nem ignorância, compulsão ou coação servirão de pretexto.
Antes um súdito, se for o caso, poderia apresentar tais desculpas pelos próprios
erros, do que um superior pelos erros alheios. E por quê? - Porque quem for
chamado a prestar auxílio a outros para vencerem a ignorância e a protegê-los
contra os ataques do demônio não poderá, ele mesmo, pretextando ignorância,
dizer: Não escutei a trombeta! Não pude prever a luta! Pois, conforme as palavras
do profeta Ezequiel, é sua obrigação fazer soar a trombeta para dar alarme à
população. É por isso que não escapará ao castigo, se perder um só dos seus. Pois
diz ainda Ezequiel:

"Suposto que a sentinela veja vir a espada,


não faça soar a trombeta,
de sorte que o alarme não seja dado às gentes
e que a espada venha tirar a vida de alguém;
este, é certo, perecerá devido à sua iniqüidade,
mas eu pedirei conta de seu sangue à sentinela".

Ez. 33, 6

Portanto, deixa de lançar-me num julgamento tão rigoroso, já que aqui não se
trata do cargo de um general de exército, nem do governo de um rei, mas de um
cargo que exige a perfeição de um anjo!

2. A alma do sacerdote deve ser mais pura do que os raios do sol, a fim de que o
Espírito Santo não o abandone e ele possa dizer realmente:

67
"Eu já não vivo: é Cristo que vive em mim".

Gl. 2, 20

Se os habitantes do deserto, depois de fugirem da cidade com seu burburinho


gozando da tranqüilidade e da segurança daquela vida, ainda se cercam de todos
os lados com mil cuidados para poderem viver ainda mais tranqüilos e satisfeitos;
se eles planejam diligentemente todo o seu falar e agir a fim de que possam com
a pureza e segurança possíveis a seres humanos aproximar-se mais de Deus,
quanto esforço, quanta diligência não deverá empregar o sacerdote, para
conservar imaculadas a pureza de sua alma e a formosura de seu espírito? Pois
sua pureza deve ser maior . do que a dos eremitas; e quem necessitar de maior
pureza, também estará mais exposto aos perigos que ameaçam maculá-la, se não
conseguir fechar a elas sua alma através de contínua vigilância e extraordinária
diligência. Pois um rosto formoso, movimentos delicados, um andar afetivo,'
uma voz suave, olhos enegrecidos, faces pintadas, penteados artísticos, cabelos
tingidos, indumentária preciosa, jóias brilhantes de ouro, pedras cintilantes,
ungüentos aromáticos e todas as outras falsas aparências com que o sexo
feminino gosta de fascinar conseguem inquietar a alma de quem não estiver
preparado por contínuos exercícios de autodisciplina.
Que essas coisas consigam atribular a alma humana, não é de admirar; o fato de
acontecer, porém, que o demônio consiga penetrar na alma humana também
através do contrário de tudo isso, causa realmente admiração e até estupefação.
Muitos, tendo escapado das redes antes mencionadas, ficam presos em
armadilhas completamente contrárias um rosto descuidado, cabeleira revolta,
vestidos sujos, movimentos sem graça, comportamento rude, linguagem baixa,
andar relaxado, voz rude, uma vida em miséria e desprezo, solitária e
desprotegida, tudo isso já levou a quem o viu, primeiro à compaixão e, em
seguida, à perdição.

3. Realmente muitos, depois de terem conseguido escapar das redes mencionadas


primeiramente, como sejam, jóias; perfumes, vestimentas e dos outros meios de
sedução acima enumerados, deixaram prender-se levianamente pelos laços
contrários e se perderam. Ora, se tanto pela pobreza quanto pela riqueza, tanto
pelo cuidado no embelezamento do corpo quanto pelo seu relaxamento, tanto
pelo comportamento fino quanto pelo rude, enfim, se por tudo quanto enumerei,
a alma de quem assiste a tudo isso será ameaçada de todos os lados, como é que,
no meio desse emaranhado de laços e perigos, conseguirá respirar livremente?
Onde encontrará refúgio? - Não se trata de refúgio para escapar à imposição e à
força, pois isso não será o mais difícil, mas para conservar sua alma também livre
de pensamentos prejudiciais. Não vou mencionar de modo especial as
homenagens prestadas que também são causa de muitos males. As promovidas
por mulheres costumam prejudicar a autodisciplina, fazendo perder-se quem não
estiver vigilante. As promovidas por homens, caso não encontrem extraordinária
magnanimidade, expõem facilmente a duas paixões contrárias, isto é, à adulação
servil ou à fanfarronice tola. A conseqüência será, de um lado, inclinar-se e

68
sujeitar-se aos aduladores e, de outro, sentir-se o maior, desprezando a todos os
outros.
De minha parte quero dizer apenas isto: o tamanho do perigo e do prejuízo só
pode medir quem tiver experiência própria. Não só os perigos enumerados, mas
muitos outros, ainda maiores, não poderão ser evitados por quem vive no mundo.
Quem todavia gostar da solidão poderá sentir-se seguro de todos esses perigos.
Caso alguma vez surja algum pensamento inconveniente, a imagem apresentada
será fraca e poderá ser banida facilmente, porque a chama não recebe
alimentação de fora pela contemplação de imagens reais. E, finalmente, o
eremita terá que cuidar apenas de si mesmo. Caso alguma vez tiver outros sob o
seu cuidado, serão poucos e nunca chegarão ao número de uma comunidade
eclesiástica. Seus cuidados ainda são poucos e fáceis, não só devido ao pequeno
número, também porque estão afastados dos afazeres profanos. Não tem mulher,
nem filhos para cuidar. Devido a esta circunstância também costumam ser
obedientes aos guias espirituais, o que facilita a vida em comum de tal maneira
que qualquer deslize será notado e facilmente corrigido. Esta contínua vigilância
da parte de um mestre é a garantia para o progresso na virtude.

4. Ao contrário, a maioria das pessoas confiadas aos sacerdotes costuma ser


inquietada por preocupações profanas que as tornam tão inertes para qualquer
ocupação com coisas espirituais. Por isso, o sacerdote deve, por assim dizer
diariamente e sempre de novo, espalhar sua semente, a fim de que a palavra de
sua doutrina, pela contínua repetição, chegue a penetrar até a alma dos ouvintes.
Pois grandes riquezas, posição de alto poder, leviandades em conseqüência de
uma vida sensual, com muita facilidade sufocam a semente espalhada e, muitas
vezes, até formam espinheiros tão densos que nem deixam a semente chegar a
tocar a terra. Não é verdade que, mais do que tudo isso, a tristeza proveniente de
uma extrema pobreza e um tratamento muito injusto conseguem desviar a mente
de tudo o que é santo e divino? - Se houver crimes entre eles, o seu conhecimento
nem sequer chegará aos sacerdotes, pois a grande maioria da massa não lhes é
conhecida nem pelo simples aspecto.
Inquirindo, em seguida, a respeito de suas relações com Deus, constatar-se-á que
tudo o que já foi dito nada representa. Sua diligência neste ponto deverá ser muito
maior e de extraordinária responsabilidade. Pois quem se apresentar como
intercessor de uma cidade inteira - o que digo, cidade? -, muito mais, de todo o
orbe terrestre, pedindo a Deus misericórdia pelos pecadores, não só dos vivos,
mas também dos que já morreram, que personalidade, que responsabilidade não
se exigirá para isso?!
Eu, de minha parte sou da opinião que nem a sinceridade e a grandeza de Moisés
e de Elias poderiam apresentar tais pedidos. Como se lhe fosse confiado o mundo
inteiro, como se fosse o pai de todos os homens, o sacerdote se apresenta perante
o trono de Deus com os pedidos: que em toda parte se extinga o facho da guerra,
que se acabem as revoluções, que se faça paz e chegue para todos o bemestar e
a libertação de todos os males, tanto dos males particulares, quanto dos públicos

69
e comuns. Mas parece-me ser mister também que ele supere a todos pelos quais
pede, pelo menos tanto quanto esta diferença costuma ser normal nas relações
entre superior e súditos.
E, no momento em que ele, invocando o Espírito Santo, realiza o sacrifício mais
santo, tocando com suas mãos o Senhor de todas as criaturas, diga-me qual o
grau de dignidade que lhe possamos atribuir? Que pureza, que conscienciosidade
não devemos dele exigir? Já pensaste como devem ser as mãos que manipulam
tal atividade, como deve ser a língua que pronuncia tais palavras, como deve ser
a alma para poder receber tal Espírito? Naquele momento os próprios anjos estão
em redor do sacerdote; o Santuário, o espaço em redor do altar, estão repletos de
coros celestes para adorar a vítima sobre o altar. Tudo isso, considerando o que
está acontecendo sobre o altar, será suficiente para merecer nosso crédito. Além
disso, ouvi alguém contar que um ancião, homem santo e estimado, agraciado
com freqüentes visões, certo dia descreveu uma dessas visões: De repente viu
um semnúmero de anjos, vestidos com vestimentas claras e brilhantes
inclinando-se em redor do altar como geralmente os soldados estão em torno de
seu rei. - Eu também acredito nisso! - Outra pessoa que não o escutou de terceiro,
mas ela mesma o experimentou, contou-me que homens prontos para passar
desta vida para a outra, tendo recebido este mistério com a consciência pura,
devido a este dom recebido no momento em que sua alma se separa do corpo,
são recebidos e acompanhados por anjos como por um corpo de guarda.
E tu ainda não recuas, tremendo, ao querer empurrar para um serviço tão santo
uma alma como a minha, um homem vestido com vestimentas tão indignas que
o próprio Cristo o excluiu do banquete? Como a luz que ilumina o mundo deve
brilhar a alma do sacerdote. A minha, porém, por causa da má consciência,
encontra-se envolvida numa escuridão que não permite levantar os olhos para o
Senhor. Os sacerdotes são o sal da terra. Minha imprudência e inexperiência em
todas as coisas, quem além de ti a suportará? Quem for achado digno de ocupar
tão alto cargo, de verá apresentar-se não só puro, mas com elevado grau de
inteligência e vasta experiência de vida; de um lado deve saber movimentar-se
em todas as coisas profanas - como se vivesse no meio delas - e de outro, deve
mostrar-se desapegado de tudo isso mais do que os próprios eremitas que se
retiraram para o deserto. Pois é mister que mantenham relações com pessoas:
com casados com problemas na educação dos filhos; com homens que dispõem
de criadagem, que gozam de grandes riquezas, que ocupam altos cargos públicos
e posições de grande influência. Deve ser versado em muitas coisas; digo
versado, não ardiloso; nenhum adulador ou fingido, mas um homem de caráter
aberto e sincero que, caso as circunstâncias o exigirem, também saberá ser
condescendente, suave e rigoroso ao mesmo tempo. Pois não é possível tratar da
mesma maneira a todos os súditos, assim como seria tolo o médico querer tratar
com o mesmo remédio todos os doentes, ou o timoneiro, na tempestade, conhecer
apenas uma única maneira de conduzir o navio. Também esta nau (a Igreja)
encontra-se, muitas vezes, no meio de tempestades provenientes não apenas de
fora, mas também de dentro. Daí a necessidade tanto de condescendência

70
compreensiva quanto de absoluto rigor, conforme cada caso o exigir. Todas essas
exigências mencionadas visam um único fim: a glória de Deus e o bem da Igreja.

5. Grande é a luta dos eremitas, muitas são as preocupações que eles enfrentam.
Entretanto, comparando seus esforços com a administração conscienciosa do
sacerdócio, encontraremos uma diferença maior do que a existente entre um
simples cidadão e um rei.
Mesmo na vida do eremita a luta cotidiana exige grandes esforços, participando
deles o corpo e a alma; ao corpo cabe a maior participação. Se este não se mostrar
suficientemente forte, fica apenas a boa intenção que não consegue transformar-
se em ações concretas. Jejuar, dormir no chão, vigílias noturnas, dispensa de
banhos, muito suor e todos os outros meios com os quais os eremitas costumam
disciplinar seu corpo, de nada valem, se o corpo a ser disciplinado não se mostrar
suficientemente forte. No sacerdócio, porém, trata-se exclusivamente das
atividades da alma. Esta, para provar seu valor, não necessita de um corpo de
constituição forte. A força do corpo em nada contribui para evitar que fiquemos
vaidosos ou irritados, que nos comportemos inconvenientemente, como também
em nada contribui para que sejamos sóbrios, irrepreensíveis, equilibrados,
possuindo, enfim, todas as qualidades que S. Paulo, o exemplo de um sacerdote
perfeito, enumerou.
O eremita, para sua perfeição, não carece dessa atividade da alma. Como os
prestidigitadores se servem de muitos instrumentos, de rodas, cordas, facas e
outros - o sábio, porém, leva todo o seu saber dentro da alma sem precisar de
instrumentos materiais, - assim acontece com as coisas no campo- de que
estamos falando. O eremita precisa de maneira toda especial do bem-estar
corporal e de lugares para residir que não estejam sobremaneira afastados das
cidades, garantindo-lhe apenas o silêncio, a solidão e um clima adequado. Pois
não existe nada mais insuportável para um corpo enfraquecido pelo jejum, do
que um clima desequilibrado. É fácil compreender que os eremitas têm de
enfrentar dificuldades somente para abastecer-se dos mantimentos necessários e
as vestimentas adequadas.

6. O sacerdote - ao contrário dos eremitas - não precisa preocupar-se com suas


necessidades materiais; vive em comunidade com outros homens, usando de
todas as coisas que não são nocivas, podendo desta forma guardar no fundo de
sua alma toda a sua capacidade e atividade. Se alguém quiser expressar sua
admiração pelos eremitas em sua vida solitária, longe da comunidade com os
outros homens, confesso que também eu acho que a sua vida seja prova de grande
autodisciplina, porém de maneira alguma um testemunho de alma perfeita. Pois
quem estiver com o leme do navio dentro do porto, não dará prova de sua
capacidade; contudo, quem em alto-mar, em meio à tempestade, souber dirigir e
salvar o navio, este sim, será considerado timoneiro apto e seguro.

71
7. Portanto, o eremita que na solidão consegue o equilíbrio -de sua alma,
mantendo-se livre de graves pecados, não merece grande admiração e louvores
especiais. A ele faltam por completo todas as ocasiões que costumam aliciar e
seduzir a alma. Quem, todavia, se dedicar às massas populares, obrigado a ver e
suportar os delitos de tantos e, não obstante, continuar firme, dirigindo sua alma
através daquelas tempestades como se fossem calmarias, com toda razão merece
nossos aplausos e admiração, pois apresentou provas de sua capacidade.
Portanto, também tu não deves admirarte, sobremaneira, que são poucos os que
me acusam; é porque eu também evito as praças públicas e fujo da convivência
com a grande massa popular. Não te deves admirar disso mais do que do fato de
que não pecava enquanto dormia, não sofria derrota poque não me apresentava
à luta, não era ferido porque não participava do combate.
Dize-o tu mesmo: quem estará em condições de denunciar as minhas faltas?
Talvez este telhado, ou esta casa? Mas eles não sabem falar. Quem poderia falar
é minha mãe que me conhece mais profundamente. Entretanto, nem com ela
tenho relações além daquelas que são comuns entre filhos e suas mães, e jamais
discuti ou briguei com ela. Mesmo que tivesse brigado com ela, não existe mãe
que tenha tão pouco amor e tanta inimizade para com aquele que pôs no mundo
com tantas dores, que sem motivo algum iria falar mal dele.
Caso alguém quisesse examinar a minha alma, com certeza, nela encontraria
muitos defeitos; tu mesmo o sabes muito bem, justamente tu que costumas
louvar-me perante todo mundo. Não digo isso por falsa modéstia. Lembra-te,
quantas vezes, em nossos diálogos sobre isso, declarei expressamente caso
tivesse que escolher entre o cargo de superior eclesiástico e o de eremita, mil
vezes escolheria o primeiro. E' nunca perdi ocasião de louvar a todos os que
sabem administrar com eficiência tal cargo. Assim ninguém poderá contradizer-
me se afirmo que nunca me teria eximido dessa dignidade, caso me tivesse
considerado apto a administrá-la. Mas o que deverei fazer agora? Para esse cargo
eclesiástico nada é tão prejudicial e pernicioso como a minha inércia e
passividade. Pode ser que alguém veja nisso alguma autodisciplina; eu, porém,
vejo apenas uma espécie de pretexto para esconder a minha falta de aptidão e
todas as demais faltas que não gostaria fossem reveladas perante todos. Porque
quem estiver acostumado a tal inatividade, levando sua vida em plena
ociosidade, mesmo tendo um caráter forte, uma vez no cargo, com muita
facilidade perderá a calma e irritar-se-á por lhe faltar a experiência; esta
inexperiência prejudica grandemente sua qualidade inata de chefe. Contudo, caso
alguém, além de tal inexperiência, for ainda de raciocínio lerdo - o que acontece
comigo - então, ao ter assumido o cargo, não se distinguirá de uma estátua feita
de pedra.
Por isso acontece que muitos dos que provêm das escolas de eremitagem,
entrando nesse campo de luta, não conseguem destacarse; a maioria chega até a
passar vergonha, emaranhando-se em briguinhas desagradáveis e rixas
prejudiciais. É perfeitamente natural. Pois tanto os exercícios como as próprias
lutas deverão perseguir a mesma finalidade, caso contrário na luta o exercitado

72
não vale nada mais do que o inexperiente. Quem assumir tal cargo deverá de
maneira toda especial desprezar honras, dominar a ira e ser de um bom senso
bem fundamentado.
Tudo isso faltará ao eremita por não ter ocasião de exercitar-se nessas virtudes.
Não encontra quem possa provocar-lhe a ira, nem quem lhe dê aplausos e lhe
preste honrarias para poder exercitar-se em não perder sua equanimidade; e no
que diz respeito à administração das Igrejas, é manifesto que o eremita não terá
ocasião de aprendê-la. Então, no momento em que tiverem que enfrentar lutas,
para as quais não se prepararam, cairão no redemoinho da confusão e do
desamparo; até, muitas vezes, tem acontecido que, em vez de progredirem em
virtude e experiência, perderam o que nisso tinham adquirido.

8. E agora, perguntou Basílio? Porventura deveremos entregar a administração das


Igrejas a pessoas que se encontram bem no meio da vida mundana, cujas
preocupações apenas giram em torno de riquezas materiais, que estão
acostumados a enfrentar rixas e críticas, que, finalmente, se destacam por sua
astúcia e sua vida opulenta?
Deus nos livre, meu caro amigo, retruquei! Desta gente nem sequer devemos
lembrar-nos, quando se trata de escolher candidatos para o sacerdócio;
deveremos procurar saber se o candidato, em suas relações com os homens,
conservou a pureza de sua alma, a tranqüilidade, a santidade, a autodisciplina, a
sobriedade e todas as outras virtudes próprias dos eremitas. Não só se as
conservou incólumes e imaculadas, mas se nelas não conseguiu até superar os
eremitas. Entretanto, quem tiver muitas faltas e procura escondê-las por uma vida
solitária, conseguindo assim torná-las ineficientes, fugindo das relações com
outros homens, tão logo voltar para o mundo, terá como único lucro tornar-se
ridículo perante a multidão e cair em perigos dificilmente evitáveis.
Por pouco também eu me teria exposto a tudo isso, não fosse a proteção divina
que desviou este fogo de minha cabeça. Quem se encontrar em tal situação, não
conseguirá ficar despercebido quando aparecer em público. Tudo nele será
submetido a exame rigoroso da parte da multidão. Como a substância dos metais
se prova pelo fogo, o próprio cargo espiritual será a prova no julgamento das
almas humanas. Se alguém for irascível, mesquinho, ambicioso, presunçoso ou
qualquer outra coisa, essa prova o manifestará. Também outras faltas serão
rapidamente descobertas. Esse cargo não só as descobre, mas aumenta-as até ao
extremo. Como as feridas do corpo custam a sarar quando são tocadas muitas
vezes, assim também as paixões da alma mais se inflamam quando forem
provocadas e alimentadas; e quem estiver dominado por elas será levado a
deslizes mais freqüentes. Quem não for vigilante facilmente será levado à
ambição, à presunção, à avidez; será lançado numa vida de passividade, de
leviandade e moleza, o que será causa de outros males ainda maiores.

73
Na realidade, neste mundo existem milhares de ocasiões que conseguem
afrouxar a consciência e desviar a alma do caminho reto. Em primeiro lugar devo
mencionar as relações com as mulheres.
O superior a quem cabe o cuidado de todo o rebanho, ocupado totalmente com
as providências relativas ao sexo masculino, não deve esquecer-se do sexo
feminino. Justamente este - devido a sua inclinação fácil para o pecado -
necessita de cuidados especiais.
Portanto, quem receber o cargo de bispo, deverá exercer suas obrigações
pastorais, em medidas iguais, também em favor do bem-estar das mulheres. É
sua obrigação visitá-las quando doentes, consolá-las quando tristes, censurá-las
quando levianas e ajudá-las quando sofrem necessidades. Nessas ocasiões o
demônio encontrará muitos caminhos pelos quais conseguirá entrar na alma, se
esta não estiver bem protegida por uma rigorosa vigilância. Pois os olhares da
mulher tocam e inquietam a nossa alma; não só os olhares da mulher leviana,
mas também os da mulher honesta; adulações amolecem, homenagens
escravizam. E assim, o amor exuberante, fonte de toda a felicidade, torna-se a
causa de males inumeráveis para os que dele não sabem fazer uso correto.
Preocupações contínuas já reduzem a clareza de nosso raciocínio, tornando a
nossa atividade espiritual lerda, parecendo carregada de chumbo. Se a isso ainda
se acrescentar a excitação apaixonada, a alma se apresenta como que repleta de
fumaça. Como seria possível mencionar todas as humilhações e ofensas que
enchem a alma do bispo com tristeza? 23 Como enumerar os tratamentos
presunçosos e maliciosos a que estará exposto, bem como as críticas
provenientes das camadas altas e baixas da sociedade, de inteligentes e de
ignorantes?

9. Justamente as pessoas incapazes de julgar qualquer ação ou qualquer pessoa


costumam mostrar-se os mais criticantes, e dificilmente se mostram acessíveis a
argumentos de justificação. Um bom superior não deve desprezar nem a estes,
mas procurará remover as acusações levantadas, com calma, compreensão e
humildade, preferindo perdoar uma censura imerecida a irritar-se e vingar-se
dela. Se o próprio S. Paulo, temendo tornar-se suspeito de furto junto a seus
discípulos, chamou outros homens para ajudar na administração dos bens

"a fim de evitar",

como diz ele,

"que alguém nos censure por causa desta soma importante


que passa por nossas mãos".

II Cor. 8, 20

O que não deveremos fazer nós para evitar suspeitas maliciosas e conservar nossa
reputação? Nenhum de nós está tão distante de qualquer pecado como S. Paulo

74
esteve do furto. Mesmo que estivesse longe de praticar qualquer ação má, ele
contou com a possibilidade de alguma suspeita da parte da multidão por mais
irrisória e tola que pudesse parecer. Teria sido loucura manifestar qualquer
dúvida em relação a essa alma santa e digna de toda a admiração; mesmo assim
preocupou-se por remover de antemão os motivos mais remotos que pudessem
servir para levantar uma sombra de suspeita, mesmo que fosse insana e tola.
Também não desprezou uma eventual insensatez da multidão, declarando
simplesmente: quem por acaso poderá pensar em levantar alguma suspeita sobre
minha pessoa, a quem todos conhecem e admiram por causa de seus feitos
milagrosos e sua vida ilibada? Não, pelo contrário. Prevendo tal suspeita, cortou-
lhe a raiz, de maneira que nem mais poderia levantar-se. E por quê? - Ele mesmo
o diz:

"Porque cuidamos da boa reputação,


não só diante do Senhor,
mas também diante dos homens".

II Cor. 8, 21

Cuidado igual - ou ainda maior - também nós devemos ter em relação a boatos e
rumores: prever seu aparecimento e remover as causas; e caso surgirem, abrandá-
las e desviá-las antes de se tornarem objeto da loquacidade do povo. Porque então
será muito difícil - senão impossível acabar com elas. Na verdade merece castigo
quem começar a preocupar-se com os boatos só depois de estes já terem causado
grandes prejuízos.
Até quando, porém, deverei preocupar-me em procurar o inacessível? Por que
vou querer enumerar todas as conseqüências e vicissitudes? Seria o mesmo que
pretender medir a imensidade do mar. Mesmo se alguém tiver conseguido
manter-se livre de qualquer paixão - o que, convenhamos, é impossível ao ser
humano - terá que submeter-se a mil contrariedades, procurando corrigir os erros
dos outros. Se a tudo isso acrescerem as falhas próprias, podes imaginar a
exorbitância de preocupações e as fadigas que aguardam aquele que quer
dominar as paixões dos outros juntamente com as próprias.

10. Basílio pergunta. E tu agora, enquanto vives só e solitário, não tens que enfrentar
dificuldades? E estás isento de preocupações?
Realmente - retruquei - também as tenho agora. Como seria possível que um
homem, enquanto vive neste vale de lágrimas, esteja livre de cuidados e lutas?
Entretanto, não é a mesma coisa encontrar-se abandonado no meio do mar ou no
meio de um rio. Tão grande é a diferença entre ambos os tipos de preocupações.
Também agora desejaria - e isto com toda a sinceridade - ser útil a outros o
quanto possível; caso, porém, não puder ajudar a nenhum dos meus próximos,
estarei satisfeito em poder salvar-me pelo menos a mim dessas ondas e
tempestades.

75
Basílio interrompeu. Por acaso consideras isso grandioso? E, finalmente,
acreditas poder salvar-te sem ter sido útil a teu próximo?
Esta tua observação é boa e muito oportuna, respondi. É minha convicção não
poder salvar-se quem nunca se incomodou com o bem do próximo. Nada ajudou
àquele coitado cuidar de não diminuir o seu talento; somente porque não o
aumentou, perdeu-o totalmente. Mesmo assim é minha opinião ter que suportar
punição mais leve, sendo acusado apenas de não ter salvo outros do que
merecendo a acusação de me ter perdido a mim mesmo junto com muitos outros
que me tinham sido confiados. Acho agora que meu castigo seja proporcional
apenas a meus próprios pecados; caso, porém, tivesse aceito a dignidade de
superior, por certo, não deveria esperar apenas um castigo duplo ou triplo, mas
múltiplo, porque além de ter escandalizado a muitos, teria ofendido a Deus
depois de ter recebido dele tal dignidade acompanhada de tantas graças.

11. Por isso o próprio Deus levanta acusações mais graves contra os israelitas,
mostrando dessa forma que merecem punição mais grave porque pecaram apesar
dos múltiplos benefícios recebidos. Assim diz Ele:

"Dentre todas as raças da terra só a vós conheci;


por isso vos castigarei por todas as vossas iniqüidades".

Am. 3, 2

E em outro lugar:

"Suscitei profetas dentre os vossos filhos


e nazarenos dentre os vossos jovens".

Am. 2, 11

Já antes do tempo dos profetas, Deus mostrou que os pecados cometidos por
sacerdotes merecem castigo maior do que os cometidos por leigos. Por isso
mandou que fosse oferecido igual sacrifício pelo sacerdote como pelo povo
inteiro. Com isso quer dar a entender que as feridas do sacerdote precisam de
auxílio maior, até tão grande como todas as feridas do povo em conjunto.
Naturalmente não necessitaria de auxílio maior se não fossem maiores as feridas.
Não são maiores por sua natureza, mas tornam-se mais graves unicamente
devido à dignidade do sacerdócio. Afinal, o que estou falando dos homens
chamados ao santo serviço? Até as filhas dos sacerdotes estão sujeitas a castigos
mais graves pelos mesmos pecados, apenas devido à dignidade de seus pais. O
delito das filhas dos leigos é o mesmo das filhas dos sacerdotes. Em ambos os
casos, tratase de prostituição; o castigo, porém, é bem diferente.

12. Vês como o próprio Deus procura provar-te, da maneira mais clara, que a
punição reservada aos superiores é sensivelmente maior do que a reservada aos
súditos? Pois, se até a filha de um sacerdote é punida mais severamente do que

76
os outros - somente por ser filha de sacerdote -, então, por certo, exigir-se-á
satisfação ainda muito mais rigorosa do pai. Com toda razão! Pois as
conseqüências do pecado do sacerdote atingem não somente a ele mesmo. Fazem
cair também as almas dos mais fracos e de muitos outros que olham para o
sacerdote como para seu ideal. É isto que o profeta Ezequiel quer insinuar,
separando, no julgamento, as ovelhas e os carneiros.
Consegui, finalmente, convencer-te que meu medo tinha fundamento? Na minha
situação atual, mesmo que tenha que esforçar-me para minha alma não ser
derrotada pelas paixões, consigo resistir e não fujo da luta. De fato, também
agora a ambição me humilha; muitas vezes levantome de novo, verificando que
fui prisioneiro; às vezes acontece também que lá me encontre acumulando uma
infinidade de autocensuras sobre minha alma humilhada. Desejos inconvenientes
me perseguem; a chama acesa por eles, porém, é tanto menos eficiente quanto
menos alimentação encontra através de meus olhos. Estou livre da vontade de
caluniar ou ouvir calúnias, porque não tenho ninguém com quem dialogar; com
estas paredes não se pode dialogar, pois elas não têm ouvidos, nem voz.
Entretanto, ainda não me é possível evitar a ira, apesar de não haver ninguém
que possa provocá-la. Isso acontece porque muitas vezes me vem a recordação
de homens desprezíveis e de suas atitudes, que sempre de novo me revoltam. No
entanto, não chego ao extremo. Consigo abafar a revolta rapidamente e
tranqüilizo minha alma, considerando ser sumamente desastroso 1s e
extremamente miserável esquecer os próprios pecados para ocupar-se com os do
próximo.
O que, entretanto, diz respeito ao movimento da multidão, sendo jogado de uma
preocupação para outra, não me será mais possível dedicar-me a tais observações
e considerações. Como podem prever a própria perdição os que, caindo numa
forte correnteza ou num redemoinho, se sentem puxados para o fundo sem
esperança de salvar-se, assim também acontecerá comigo ao cair no turbilhão
das paixões. Poderei observar com absoluta segurança como o perigo aumenta
de dia para dia, sem poder retirar-me, nem, como agora, afugentar por uma
autoobservação e autodisciplina, os perigos da alma que me sobrevêm de todos
os lados. Minha alma é fraca e pouco resistente. Facilmente se deixa superar
pelas paixões mencionadas, bem como somente pela mais abjeta delas, a inveja.
Esta não consegue suportar, com equanimidade, tratamento arrogante, nem
honrarias. Enquanto essas a levantam sobremaneira, o outro a deprime. Como
animais selvagens robustos e exuberantes com facilidade vencem a quem os
ataca - são vencidos, porém, com a mesma facilidade caso se conseguir quebrar
sua força pela fome - assim acontece com as paixões da alma humana. Quem
lhes tira a força facilmente as subjuga ao bom senso e à razão; quem, ao
contrário, as alimenta e as acalenta, robustecendo-as, terá que enfrentá-las
durante toda a sua vida, tornando-se seu impotente escravo.
O que é o alimento para essas feras? Para a ambição, honrarias e louvores; para
a soberba, grandes riquezas, posição de poder e influência; para a inveja, o nome
honrado do próximo; para a ganância, a ambição dos doadores; para a vida

77
desenfreada, a moleza e encontros freqüentes com mulheres; com uma palavra,
para esta fera serve este alimento, para aquela, aquele outro. Todas essas feras
enumeradas, tão logo eu entrar na vida pública, atacar-me-ão com veemência,
dilacerando-me a alma. Incutir-me-ão medo, tornando a luta contra elas mais
difícil e mais perigosa. Entretanto, continuando aqui meio escondido, também
terei que enfrentá-las, mas conseguirei vencê-las com a graça divina, de maneira
que a elas não resta outra coisa senão bufar contra mim. Por isso guardo esta
casinha, não saindo, nem procurando contatos; acusam-me disso, mas suporto
estas acusações com toda a calma. Não quero dizer que não me afetem; às vezes
até fico triste, não tendo contato com amigos; convenço-me, porém, de ser-me
impossível querer continuar na atual tranqüilidade e segurança e procurar, ao
mesmo tempo, contato com outros homens. Por isso, meu caro amigo, eu te
imploro, queiras ter compaixão comigo antes de me censurar.
Por acaso, tudo isso ainda não consegue convencer-te? Então chegou a hora de
eu revelar-te o último segredo que guardei em meu coração. Talvez pareça
incrível; mesmo assim não me envergonho de confessá-lo publicamente. E
mesmo que essa minha confissão possa ser interpretada como prova de má
consciência ou de muitos pecados, de que me adiantaria deixar os homens na
ignorância, uma vez que o Deus onisciente sobre isto me vai julgar? Mas, afinal,
qual é este segredo? Desde o dia em que tu me transmitiste aquela notícia, meu
corpo esteve por diversas vezes em perigo de dissolver-se. Tão grande era meu
medo, tamanho desespero apoderou-se de minha alma. Ao considerar a
formosura ilibada da Esposa de Cristo, sua santidade, sua perfeição espiritual,
sua sabedoria, sua excelente organização, colocandolhe ao lado a minha pobreza
e pequenez, não podia deixar de me entristecer, de me lamentar e de me deplorar
a mim mesmo. Entre soluços desesperados e dúvidas cruciantes eu me
perguntava: Quem poderá ter aconselhado isso? Porventura, a Igreja de Deus se
desviou tanto provocando a ira do Senhor, a ponto de Ele permitir que ela me
seja entregue a mim, o mais indigno? Enquanto tais considerações me passavam
pela cabeça, senti-me incapaz de suportar, nem sequer em pensamento, tal
absurdo. Prostrado, semiparalisado e com a boca aberta como um louco, não
conseguia ver nem ouvir. Nos momentos em que me libertava dessa prostração
- pois de vez em quando por breves momentos ela me deixava - prorrompia em
prantos de desespero. Com as lágrimas se revezava o medo que inquietava,
confundia e sacudia minha pobre alma. Envolto nessas tempestades passei estes
últimos tempos; tu não o sabias, pensando que me tivesse retirado para passar a
minha vida na maior tranqüilidade.
Quero, em seguida, tentar descrever-te estas tempestades que me sacudiram a
alma. Deixarás talvez de me censurar e me perdoarás. Como, porém, conseguirei
descrever realmente este vendaval de paixões? Para dar-te uma fraca idéia, não
terei outro meio senão abrir-te o meu coração desnudando-o por completo. Como
isso não é possível, tentarei mostrar-te, pelo menos, a fumaça deixada por esse
meu desespero; quero fazê-lo por uma parábola, mesmo bem fraca. Por ela mais
facilmente poderás imaginar a situação de minha alma. Mas vamos à parábola!

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A filha de um rei poderosíssimo é noiva; esta virgem é de uma beleza singular,
superando a própria natureza humana e deixando longe todas as outras belezas
do sexo feminino; além disso, possui uma alma tão perfeita que, nisto, supera o
próprio sexo masculino; a perfeição de seu caráter supera qualquer ideal
filosófico; qualquer beleza é sombra comparada com o brilho de sua graça.
Suponhamos que seu noivo esteja apaixonado não só por essas qualidades, mas
chegue a um fogo de amor tão forte que superasse todas as paixões humanas já
havidas nesta terra. Ora, no meio desse amor ardoroso chega a seus ouvidos que
um homem indigno e miserável, corporalmente defeituoso e de péssimo caráter
persegue a sua noiva adorada para casar com ela.
Será que com isso consegui colocar em frente de teus olhos uma pequena parcela
de minha dor? ou, por acaso, não é suficiente trazer a parábola até esse ponto?
Acho bem suficiente para demonstrar o meu desespero. Pois é para isso que a
contei.
Para mostrar-te também, mais claramente, o tamanho de meu medo e minha
consternação, quero apresentar-te uma imagem fantástica. Imagina um exército
composto de infantaria, cavalaria e marinha. As naus com os marinheiros ao
lado, numa baía do mar; em frente os largos campos, as colinas e as encostas
ocupados por infantaria e cavalaria em linhas de combate. O metal das armas
reluz ao brilho do sol, cujos raios se refletem nos capacetes e escudos. O quebrar
dos dardos, o relinchar dos cavalos se elevam até o céu. De tanto bronze e aço
não se consegue enxergar o chão da terra, nem a água do mar. Contra este
exército vêm marchando os inimigos. Homens rudes e fortes. O momento do
combate é iminente. Eis que de repente apoderam-se de um moço de origem
campestre que não conhece outros instrumentos senão bastão e flauta de pastor.
Põem-lhe uma armadura de aço e, conduzindo-o através de todo o acampamento
bélico, mostram-lhe os diversos contingentes junto com seus respectivos chefes:
os arqueiros, os atiradores, os capitães, os generais, as falanges, os cavaleiros, os
lanceiros. Em seguida, lhe mostram as galeras com seus comandantes, os
marinheiros equipados nos próprios navios e o grande número de máquinas
bélicas; depois chamam-lhe a atenção para a linha de combate inimiga, e, nela,
gigantes de provocar medo, suas armas inusitadas, seu número imenso, as
profundas fossas, as encostas íngremes e todo o terreno irregular e difícil; e, por
fim, mostram como, do lado inimigo, como que por forças mágicas, vêm voando
pelos ares cavalos e cavaleiros fortemente armados. Depois de terem mostrado
tudo, começam a descrever-lhe o ardor da luta e suas conseqüências : as nuvens
de dardos, as massas compactas de flechas, a escuridão que não permite ver mais
nada, a noite totalmente escura que segue, provocada pela massa das flechas que
são tão densas que os raios do sol não conseguem mais penetrálas; as nuvens de
poeira que aumentam ainda mais a escuridão; depois, os rios de sangue, os gritos
dos feridos, o berreiro dos combatentes, os montões dos que tombaram, os carros
de combate respingados de sangue, os cavalos e cavaleiros caindo por cima dos
cadáveres. E, finalmente, depois da batalha, o próprio campo de batalha o chão
cheio de poças de sangue e, nelas, arcos e flechas, pernas de cavalos, cabeças de
homens, umas ao lado das outras, braços de homens ao lado de rodas de carros,

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pedaços de armaduras, partes de corpos humanos perfuradas, espadas com restos
de sangue e massa cerebral e ainda uma ponta de lança quebrada com um olho
humano espetado. Descrevemlhe ainda os horrores da luta marítima,: os navios
ardendo e soçobrando com toda a tripulação; como bramem as águas, berram os
marinheiros, como ondas de espuma e sangue se jogam contra os navios, os
montes de cadáveres no convés que em parte afundam junto com o navio e em
parte vão boiando até à praia. Depois de ter mostrado tudo isso ao jovem,
descrevem ainda a dureza da prisão de guerra e a escravatura, piores do que a
própria morte na batalha. Acabada a descrição mandem-no montar e assumir o
comando supremo sobre o conjunto do exército. Achas, por acaso, que aquele
moço, depois do que lhe foi mostrado em imagens, ainda vai aceitar?

13. Não penses que, nesta minha descrição, esteja exagerando o estado das coisas.
Da mesma forma não julgues que as dificuldades descritas sejam tão
extraordinárias somente porque nós, encerrados neste corpo como numa prisão,
não possamos perceber nada das coisas invisíveis! Verias luta mais pesada e
terrível do que a descrita, se tivesses ocasião de lançar um olhar sobre a terrível
linha de combate do demônio e seus ataques furiosos. Ele não tem aço nem ferro,
nem cavalos, nem carros de combate, nem fogo, nem flechas, nem dardos nem
quaisquer outros instrumentos materiais; as armas desses adversários são outras,
muito mais perigosas. Eles não necessitam de armadura, nem de escudo, nem de
espada, nem de lança. Basta o seu simples aspecto para derrubar a alma, a não ser
que esta esteja preparada e exercitada na virtude e, além disso, goze de graça
divina mais forte do que a própria virtude. E, se fosse possível desfazerte deste
corpo ou, mesmo com o corpo, mas sem impedimentos e sem medo, e ver com
teus olhos abertos essa linha de combate do demônio e sua luta contra nós,
perceberias, não rios de sangue, nem cadáveres, mas tantas almas feridas e caídas,
que, comparada a isso, acharias a imagem bélica que te pintei uma simples
brincadeira. Tamanho é o número dos que diariamente são derrotados (pelo
demônio). As feridas recebidas nessa luta não levam à mesma morte; tanta a
diferença entre corpo e alma, quanta a diferença entre as duas mortes. A alma, ao
receber o golpe mortal, não se torna insensível como o corpo, mas sentirá a
punição. Já nesta terra a má consciência lhe causará vexames e, uma vez passada
desta para a outra vida, será submetida ao juízo que a condenará ao castigo eterno.
No caso, contudo, em que alguém se mostrar insensível aos golpes do demônio,
esta insensibilidade é sinal de perigo maior, pois quem não sentir o primeiro
golpe, receberá um segundo e um terceiro. O infame não cessará com seus
ataques até o último suspiro da alma que não soube defender-se já contra os
primeiros golpes.
Caso ainda queiras conhecer de perto a maneira de atacar do demônio, verificarás
que é, além de intensa, muito variada. Como aquele infame, ninguém conhece as
múltiplas intrigas, tramóias, astúcias e artimanhas. É isto que lhe dá tanta força.
Também não há ninguém que seja capaz de manter um ódio tão implacável como
aquele malicioso contra todo o gênero humano. Em seguida, considerando ainda
o zelo e o afinco com que ele luta, qualquer comparação com os homens e suas

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atitudes tornar-se-ia ridícula. Até os animais mais ferozes e mais sanguinolentos,
comparados com ele, tornar-se-iam mansos e dóceis. Com tanta raiva ele
esbraveja contra as nossas almas.
Ainda outras diferenças entre as lutas desta terra e as das almas poderão ser
mencionadas: o tempo do combate aqui é breve e, ainda assim, interrompido por
armistícios. A noite, a fadiga, a fome e muitas outras circunstâncias são motivos
para os soldados descansarem. Aí podem depor as armaduras, refazer as forças,
refrigerar-se com comidas e bebidas e, por estes e outros meios, recuperar as
forças perdidas. Na luta com aquele maligno, porém, nunca haverá pausa; nunca
poderás despojar-te das arenas, nunca poderás entregar-te ao descanso, caso
quiseres ficar ileso. Necessariamente acontecerá uma das duas: perecer depois de
ter perdido as armas ou continuar firme, armado e vigilante. Aquele adversário
infame mantém sempre sua linha de combate perto de nós, pronta para nos perder
tão logo note algum relaxamento em nossa vigilância. Podes estar certo: mais
zelo emprega ele para a nossa perdição do que nós para a nossa salvação!
Finalmente, a circunstância de ele ser invisível para nós é prova de que esta luta
é muito mais perigosa do que aquela que descrevi: pois assim pode encontrar-nos
despercebidos a não ser que nossa vigilância seja constante.
É pois nesse campo de batalha que, conforme teu desejo, eu deveria assumir o
comando dos soldados de Cristo? Isso seria servir ao próprio demônio! Pois, se
aquele que deve comandar os outros for o mais inexperiente e o mais fraco, trairá,
devido à sua incapacidade, os que lhe foram confiados, ajudando assim mais ao
demônio do que a Cristo.
Mas por que soluças? Por que choras? Sobre esta minha situação atual não
deverias mostrar lamentos, mas antes satisfação e alegria! Mas não sobre a minha
situação, interrompeu Basílio, pois esta merece ser lamentada amargamente. Até
aqui era difícil compreender toda a desgraça que tu me causaste! Procurei-te com
a intenção de pedir-te conselhos sobre o que poderia responder, em tua defesa,
aos teus acusadores. Tu, porém, agora me despedes, depois de me ter onerado
com um novo e pesado problema. Não pode ser mais o meu primeiro cuidado, a
minha primeira preocupação defender-te a ti perante os homens, mas ver como
me justificar a mim e meus erros perante Deus. Portanto, peço-te, com toda
insistência, se conheceres um consolo em Cristo, um conforto de amor, uma
compassiva ternura, pois sabes que fostes tu quem me colocou nesta situação,
então dá-me a tua mão, fazendo tudo que possa fortalecer-me; não me deixes só
mais um momento sequer, mas renovemos a nossa antiga amizade ainda mais
íntima e forte!
Sorrindo respondi: Como poderei ser útil nessa tua ingente carga de obrigações?
Porém, já que mo pedes, consola-te, caro amigo! Em cada momento em que
puderes respirar no meio de teus afazeres, quero estar a teu lado, quero
encorajarte em tudo que me for possível.
Depois destas palavras, Basílio, levantando-se, começou a chorar mais
intensamente. Abracei-o e beijei sua fronte; em seguida, acompanhando-o,

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procurei encorajá-lo para aceitar sua sorte com coragem e esperança. Pois,
acrescentei, confio em Cristo que te chamou, colocando-te à frente de seu
rebanho, que Ele te dará, neste teu cargo, tranqüilidade e tanta segurança, que
naquele dia do juízo levarás também a mim para a pátria eterna.

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