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Carta de Erasmo a um amigo da corte (1501)

A um amigo da corte, saudações.

Sua grande insistência conseguiu com que eu, meu caríssimo irmão em Nosso Senhor,
redigisse para ti algo como um curto método de vida do qual poderias inspirar-te para
alcançar sentimentos dignos do Cristo. Com efeito, diz-me que já faz muito tempo que,
desnorteado pela vida da corte, te perguntas como poderíeis fazer para fugir do Egito, seus
vícios e suas delícias, e preparar-te alegremente para fazer, com Moisés como guia, a viagem
em direção à virtude. É por ser-me caro que me felicito ainda mais pela tua acertada intenção
em relação à tua salvação. Aquilo que a favorecerá e fará ter sucesso, será, mais do que a
minha própria ação, Aquele que dignou-se dar-lhe [à ação] vida. É, contudo, com a maior
alegria que obedeço a um homem que é meu amigo e que me dirige um tão piedoso pedido.
Depende de ti o esforço para que não pareças ter solicitado meus serviços sem ter suficientes
razões, e que eu não pareça ter realizado teu pedido sem alcançar resultados. Que muito pelo
contrário, nossas preces comuns implorem pela misericórdia de Jesus para Ele me dite,
enquanto escrevo, saudáveis conselhos, e que os renda eficazes em ti.
Todos estes conselhos, não duvido que os encontre abundantemente nas santas
escrituras: a caridade fraterna sempre me aconselhou a sustentar e apoiar tua santa intenção
com todas as minhas forças, em todo caso por meio desta pequena obra improvisada.
Apressei-me em compô-la por temer de certo modo vê-lo esbarrar em religiosos daquela raça
supersticiosa que, em parte para servir seus próprios interesses, em parte por um zelo imenso
mas pouco esclarecido, percorrer terra e mar e, a partir do momento em que encontram um
homem que renuncia aos vícios para converter-se a uma vida melhor, imediatamente se
esforçam, por meio das maiores e mais desonestas exortações, ameaças e adulações, de fazê-
lo cair no estado monacal, como se o cristianismo não existisse para além do hábito. Depois
de tê-lo entupido o coração unicamente de escrúpulos e inextricáveis ervas daninhas,
submetem-no a pequenas observâncias puramente humanas, mergulhando o infeliz num
verdadeiro judaísmo, ensinando-o a tremer, e não a amar.
O estado monacal não é piedade; trata-se apenas de um modo de vida, bom ou mal
segundo a constituição do corpo e do espírito de cada um. Deste modo, não o recomendo
como não deixo de o recomendar. Avisto-te apenas que não encontrarás a piedade nem nos
alimentos, nem nas roupas, nem em nada de visível, mas naquilo que te recomendei. Todos
em quem captares uma verdadeira imagem do Cristo, freqüente-os. Nos lugares onde faltam
homens cuja companhia te tornará melhor, retire-te o máximo que puderes da sociedade
humana e convide os santos Profetas, o Cristo e os Apóstolos a conversar contigo.
Sobretudo, familiarize-se com Paulo. Leve-o sempre contigo, folheie-o de dia e de
noite, enfim, aprenda-o de cor. Já há muito tempo que tento explicá-lo, e consagro a isto
todas as minhas forças. Audaciosa empresa, mas, confiante no socorro divino, faço todo o
possível para não parecer haver começado este trabalho sem razão ou proveito, mesmo depois
de Orígenes, Ambrósio e Agostinho. Quero sobretudo mostrar a alguns acusadores, que
apesar de sua mais alta religião, tudo ignoram das boas letras, que tendo-me ligado desde a
mais tenra infância àquilo que os escritos dos antigos têm de mais consumado, tendo
adquirido das duas línguas, tanto a grega quanto a latina, ao preço de muitas vigílias, um
conhecimento mediano, não tinha em vista uma glória vã nem um divertimento pueril, mas
que desde há muito tempo concebera o projeto de levar ao templo do Senhor – templo que
alguns degradaram por demais com sua ignorância e barbárie –, de acordo com as minhas
forças, o ornato de riquezas estrangeiras capazes de iluminar o amor das Escrituras santas
nas almas generosas.
Eis o grande trabalho que interrompi por alguns dias para finalizar esta obra em teu
favor e apontar-te, o caminho mais curto em direção ao Cristo. Deste modo, implorei Jesus,
autor, como espero, do teu projeto, que se digne em sua misericórdia a favorecer o que
utilmente começaste, para que Ele aumente e termine Sua parte na tua transformação para
que rapidamente cresças e te transformes num homem perfeito.
Sempre com a mesma disposição, fica bem, irmão e amigo sempre querido ao meu
coração, e, agora mais que antes, objeto de afeição e de alegria.
Do monastério de Saint-Bertin, perto de Saint-Omer, no ano 1501 depois do
nascimento do Cristo.

Traduzida do francês de: Alois Gerlo e Paulo Foriers (dir.), La correspondance d’Érasme. Bruxelas: Presses
académiques européennes, 1967, vol. 1.

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