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Capítulo III
Conformidade de milagres antigos e novos.
Se os nossos devotos de Cristo dizem que Deus realmente
deu poder a seus santos para realizar todos os milagres
relatados em suas vidas, assim também fizeram os pagãos ao
dizer que as filhas de Anius, sumo sacerdote de Apolo,
receberam do deus Baco o Poder de mudar tudo o que
queriam em trigo, vinho, óleo, etc. Que Júpiter deu às ninfas
que cuidavam de sua educação um chifre de carneiro que lhe
dava leite durante sua infância, e que tinha uma propriedade
especial na medida em que lhes proporcionava tudo o que
desejavam em abundância.
Se os nossos devotos de Cristo dizem que seus santos
tinham o poder de ressuscitar os mortos, que eles tinham
revelações divinas, os pagãos disseram antes deles, que
Athalide, filho de Mercúrio, tinha obtido de seu pai o dom de
viver, morrer e ressuscitar sempre que Ele queria, e que
também sabia de tudo o que acontecia no mundo e na vida
futura. E que Esculápio, filho de Apolo, tinha ressuscitado os
mortos, e que entre outros ele ressuscitou Hipólito, filho de
Teseu a pedido de Diane, e que Hércules ressuscitou Alcestis,
a esposa de Admet, o Rei da Tessália, para devolvê-la ao
marido.
Se os cristãos disseram que seu Cristo nasceu
milagrosamente de uma virgem que nunca conheceu um
homem, os pagãos, antes deles, já haviam dito que Remus e
Rômulo, os fundadores de Roma, nasceram milagrosamente
de uma Virgem Vestal chamada Ilia, ou Sylvia, ou Rea Sylvia;
Eles já haviam dito que Marte, Argus, Vulcano e outros
nasceram da deusa Juno, sem conhecimento de um homem, e
já haviam dito que Minerva, a deusa da ciência, tinha nascido
do cérebro de Júpiter e que dele saiu totalmente armada da
força de um golpe que recebera deste na cabeça.
Se os cristãos dizem que seus santos fizeram fontes de água
sair de rochas, os pagãos dizem a mesma coisa de Minerva
que fez uma fonte de óleo como recompensa por um templo a
ela dedicado.
Se os nossos devotos de Cristo se gabam de terem recebido
milagrosamente imagens do céu, como a de Nossa Senhora de
Loreto e de Liesse e vários outros presentes do céu, como a
chamada ampola sagrada de Reims, como a casula branca que
São Ildefonso recebeu da Virgem Maria e outras semelhantes
coisas, os pagãos se gabaram antes deles, de terem
milagrosamente recebido do céu seu Palladium, que veio para
tomar lugar no templo que fora construído em honra da deusa
Pallas.
Se os devotos de Cristo dizem que o seu Jesus foi visto pelos
seus Apóstolos subindo gloriosamente ao céu, e que várias
almas de seus santos foram vistas sendo transferidas para o lá
por anjos, os pagãos romanos antes deles já haviam dito que
Rômulo fora visto em ascensão gloriosa após a morte; que
Ganímedes, filho de Tros, rei de Tróia, foi transportado por
Júpiter ao céu para servi-lo; que o cabelo de Berenice, tendo
sido consagrado ao templo de Vênus, foi depois transportado
para o céu; Eles dizem a mesma coisa de Cassiopeia e
Andrômeda, e até das nádegas de Sileno.
Se os nossos devotos de Cristo dizem que os corpos de
vários de seus santos foram salvos milagrosamente da
putrefação depois de suas mortes e que eles foram
encontrados por revelações divinas depois há muito estarem
perdidos, os pagãos dizem a mesma coisa sobre o corpo de
Orestes que afirmam ter encontrado com a ajuda do Oracle,
etc
Se os nossos devotos de Cristo dizem que sete irmãos
dormiram milagrosamente durante 177 anos numa caverna a
que foram confinados, os pagãos dizem que o filósofo
Epimênides dormiu 57 anos em uma caverna onde tinha
entrado para pernoitar.
Se os devotos de Cristo dizem que vários de seus santos
milagrosamente ainda falavam depois de terem suas cabeças
ou línguas cortadas, os pagãos dizem que a cabeça de
Gabienus cantou um longo poema após sua decapitação.
Se os nossos devotos de Cristo se glorificam no fato de que
seus templos e igrejas estão decorados com pinturas e ricos
recursos que mostram as curas milagrosas realizadas pela
intercessão de seus santos, então também se pode ver no
Templo de Esculápio, inúmeras pinturas das curas milagrosas
que ele realizou.
Se os nossos devotos de Cristo dizem que vários santos
foram milagrosamente preservados em chamas ardentes sem
sofrer nenhum dano em seus corpos ou em suas vestes, os
pagãos disseram antes deles que as sacerdotisas do templo de
Diana caminharam descalças em brasas sem queimar ou ferir
seus pés, e que os sacerdotes da deusa Feronius e Hyrpicus
também andaram em brasas durante a queima de fogos de
artifício em honra de Apolo.
Se os anjos construíram uma capela a São Clemente no
fundo do mar, a pequena casa de Baucis e Philemon foi
milagrosamente transformada em um soberbo templo como
recompensa por sua piedade.
Se vários de seus santos, como São Tiago, São Maurício, etc,
apareceram várias vezes diante de seus exércitos, montados e
equipados para lutar em seu favor, Castor e Pollux várias
vezes apareceram em batalhas para a lutarem pelos romanos.
Se um carneiro foi milagrosamente encontrado para ser
oferecido em sacrifício no lugar de Isaque quando seu pai
Abraão o queria sacrificar, a deusa Vesta igualmente enviou
uma novilha para ser sacrificada a ela em lugar de Metella, a
filha de Metelo. A deusa Diana também enviou uma corça no
lugar de Iphigenia quando ela estava na estaca a ponto de ser
sacrificada.
Se São José fugiu para o Egito sob a advertência de um
anjo, o poeta Simonides em várias ocasiões evitou o perigo
graças aos avisos milagrosos que recebeu
Se Moisés fez brotar água de uma rocha quando a golpeou
com sua vara, o cavalo Pegasus fez o mesmo golpeando uma
pedra com seu casco.
Se São Vicente Ferrer ressuscitou um cadáver cozido e
esquartejado, Pelops, filho de Tântalo, rei da Frígia, tendo
sido retalhado por seu pai para alimentar os deuses, foi
ressuscitado com seus membros reunidos e remontados.
Se vários crucifixos e outras imagens milagrosamente
falaram e responderam aos cristãos, os pagãos dizem que seus
oráculos falavam divinamente e respondiam àqueles que os
consultavam, e que as cabeças de Orfeu e de Polícrates foram
oráculos depois de suas mortes.
Se, como se diz nos Evangelhos, Deus fez saber que Jesus
Cristo era seu filho por uma voz do céu, Vulcano deixou claro,
pelo aparecimento de uma chama miraculosa, que Coeculus
realmente era seu filho.
Se Deus milagrosamente alimentou alguns de seus santos,
os poetas pagãos dizem que Triptoleme foi alimentado com
leite divino por Ceres, que também lhe deu uma carruagem
liderada por dois dragões, e Phineas, filho de Marte, foi
nutrido com o leite de sua mãe, embora ela tivesse morrido ao
lhe dar à luz.
Se vários santos milagrosamente acalmaram a crueldade e a
ferocidade dos animais mais cruéis, diz-se que Orfeu atraiu
leões, ursos e tigres para si mesmo e acalmou a ferocidade de
suas naturezas pela doçura de suas canções e da harmonia de
seus instrumentos; Que ele atraiu pedras e árvores, e que
mesmo os rios pararam de fluir para que pudessem ouvi-lo
cantar.
E, finalmente, para concluir, muitas outras histórias podem
ser relatadas. Se os nossos devotos de Cristo dizem que as
muralhas de Jericó caíram ao som de trombetas, os pagãos
dizem que as muralhas de Tebas foram construídas pelo som
dos instrumentos musicais de Amfio; As pedras, segundo os
poetas, se colocam graças à doçura da música, que é mais
milagrosa e admirável do que ver as paredes cairem à terra.
Tudo isto certamente mostra uma conformidade nos
milagres de um e de outro lado. Seria tolice acreditar que os
fictícios milagres do paganismo sejam menos verossímeis do
que os do cristianismo, já que todos eles vêm do mesmo
princípio errôneo. É por esta razão que os maniqueus e os
arianos, que existiam nos primeiros dias do cristianismo, não
aceitavam os supostos milagres realizados pela invocação de
santos, e zombavam daqueles que os invocavam depois de
suas mortes e que honravam suas relíquias.
Voltemos agora ao fim principal proposto por Deus ao
enviar seu filho feito homem à terra. Isto foi feito, como se diz,
para remover os pecados do mundo e destruir completamente
as obras do chamado diabo, etc. É isto é o que nossos devotos
de Cristo propõem, assim como que Jesus morreu por amor
de acordo com as intenções de Deus, seu Pai, o que é
claramente declarado em todos os chamados livros sagrados.
Ora! Um Deus onipotente que quis se tornar um mortal e
por amor aos Homens derramar seu sangue para salvá-los não
limitaria seu poder de cura a apenas algumas doenças e a uns
poucos enfermos. Ele empregaria sua divina bondade para
curar todas as enfermidades de nossas almas, isto é, curar
todos os homens de seus vícios e dissoluções, que são piores
do que as doenças do corpo. Um Deus tão bom teria
preservado os cadáveres da decomposição, e santificado com
sua graça as almas das inúmeras pessoas resgatadas ao preço
do seu sangue, protegendo-as do vício e do pecado. Que
contradição lamentável!
Capítulo IV
Terceira prova da falsidade da religião, tirada das chamadas
visões e revelações divinas
Agora chegamos às chamadas visões e revelações divinas,
sobre as quais os nossos devotos de Cristo encontraram e
estabeleceram a verdade e a certeza de sua religião. A fim de
dar uma ideia mais justa deste fato, eu penso que não se possa
fazer nada melhor do que dizer que eles cristãos são tais que, se
alguém se atrever a se gabar de ser semelhante a eles será
considerado um louco e um fanático.
Aqui estão as assim chamadas visões e revelações divinas:
Deus, dizem os chamados livros sagrados, tendo aparecido pela
primeira vez a Abraão, disse-lhe: “Sai da tua terra (ele estava
então na Caldeia), sai da casa de teu pai e vai para a terra que
eu te mostrarei”. Este Abraão, tendo lá chegado, Deus, diz a
história (Gn 12,1) apareceu-lhe uma segunda vez e lhe disse:
“Eu vou dar toda esta terra para a sua posteridade.” Em
reconhecimento desta promessa graciosa Abraão construiu um
altar para ele.
Após a morte de Isaque, seu filho Jacob, indo um dia para a
Mesopotâmia para encontrar uma esposa, tendo andado o dia
todo e se sentindo cansado de sua caminhada, quis descansar à
noite. Deitado no chão com a cabeça apoiada em algumas
pedras adormeceu. Durante seu sono, viu em sonho uma
escada que ia da terra até os confins do céu, e ele pensou ter
visto anjos subindo e descendo essa escada. Ele viu o próprio
Deus no degrau mais alto, dizendo-lhe: "Eu sou o Deus e
Senhor de Abraão e de Isaque, teu pai. Eu darei a ti e a tua
posteridade toda a terra em que dormes. Alcançará do leste ao
oeste e do norte ao sul. Eu serei teu protetor onde quer que
estiveres. Eu te tirarei são e salvo daquela terra e nunca te
abandonarei enquanto não se cumprir tudo que te prometi“.
Jacob, tendo despertado, foi tomado de medo e pensou: Deus
estava aqui e eu não sabia de nada! Como é assustador este
lugar, uma vez que não é senão a casa de Deus e a Portas do
Céu". E, levantando-se, preparou uma pedra, na qual espalhou
óleo em memória do que acabara de acontecer, e ao mesmo
tempo fez um voto a Deus que, se ele voltasse são e salvo,
ofereceria a ele dez por cento de tudo o que tinha.
Aqui está uma outra visão. Guardando o rebanho de seu
sogro Laban, que lhe havia prometido que todos os cordeiros
de várias cores que as ovelhas parissem seria a sua
recompensa, ele sonhou uma noite que viu os machos cobrirem
as fêmeas que pariram cordeiros de várias cores.
Nesse belo sonho, Deus apareceu a ele e disse (Gn 31,12):
"Olhem e vejam como os machos montam as fêmeas e como
elas são de várias cores, pois vi o engano e a injustiça que seu
pai, Laban fez com você. Levanta-te agora, deixa esta terra e
volta para a tua própria”.
Ao voltar com sua família e tudo o que tinha ganho de seu
sogro, a história conta que durante a noite ele conheceu um
homem que com ele lutou até o amanhecer, e que o homem,
não tendo sido capaz de derrotá-lo, perguntou quem ele era.
Jacó disse-lhe o seu nome: “Já não te chamarás Jacó, mas
Israel, porque, sendo tu poderoso ao lutar contra Deus, tanto
mais serás poderoso quando combater o homem” (Gênesis 32:
25,28).
Estas foram, em parte, a primeira dessas chamadas visões e
revelações divinas. As outras não devem ser julgados de forma
diferente destas.
Que aparência de divindade há nesses sonhos grosseiros
que vieram nos contar? Quem acreditaria que tais histórias
tolas fossem mesmo revelações divinas? Se, por exemplo,
alguns estrangeiros, alguns alemães, viessem à nossa França
e, vendo todas as belas províncias do reino, dissessem que
Deus lhes tinha aparecido em seu país e lhes tinha dito para ir
para a França, e que ele lhes daria todas as belas terras, seções
e províncias deste reino, que vão do Reno e do Ródano ao
Atlântico, que ele faria uma aliança eterna com eles, que
multiplicaria sua raça, tornando sua posteridade tão
numerosa quanto as estrelas no céu e os grãos de areia no
mar, etc., quem não riria de tais tolices e não consideraria
esses estrangeiros loucos? Não há ninguém que não os veja
como tal não zombe de todas essas belas visões e revelações
divinas. Não há razão para julgar diferentemente tudo o que
os grandes patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, disseram sobre
estas supostas revelações divinas
Os livros sagrados atribuem a Deus à instituição dos
sacrifícios sangrentos. Como seria muito cansativo expor os
detalhes repugnantes desses sacrifícios, envio o leitor a Êxodo
25: 1-27: 1 e 21-28: 3-29: 1, ibid. V. 2,4,5,6,7,8,9,10,11. Não
estariam os homens loucos e cegos para pensar que estavam
fazendo honra a Deus rasgando, matando e queimando suas
próprias criaturas sob o pretexto de fazer sacrifícios a Ele? E
ainda atualmente, como podem nossos devotos de Cristo estar
tão loucos a ponto de acreditar que estão agradando seu Deus,
o pai, oferecendo eternamente em sacrifício seu filho divino
em memória de ter sido vergonhosamente e miseravelmente
pendurado em uma cruz onde teria expirado? Isso certamente
só pode ser o resultado de uma obstinada cegueira de espírito.
Quanto aos detalhes dos sacrifícios de animais, eles só
consistem em roupas coloridas, sangue, tripas, fígados, rins,
unhas, pele, fardos, fumaça, bolos, algumas medidas de óleo e
vinho, tudo oferecido e contaminado por cerimônias tão
imundas e lamentáveis como as mais extravagantes das
operações mágicas. O que é pior ainda é que esta lei do povo
judeu, detestável e ordinário, também ordenava o sacrifício
humano. Estes bárbaros (pois tais são eles) que escreveram
aquela lei atroz que ordenou (Levítico 27,28-29) que se
matasse sem misericórdia todos aqueles que fossem
consagrados ao Deus dos judeus, a quem chamavam Adonai.
E foi seguindo este execrável preceito que Jafé imolou sua
filha e Saul sacrificou seu filho.
Eis mais uma prova da falsidade dessas revelações de que
temos falado: o fracasso o cumprimento das grandes e
magníficas promessas que os acompanhavam, pois é fato que
essas promessas nunca foram cumpridas. A prova disto
consiste em três coisas principais; 1- Tornar a sua posteridade
mais numerosa do que todos os outros povos da Terra. 2-
Tornar o povo da sua raça o mais feliz, o mais santo e
triunfante de todos os povos da Terra. 3- Tornar sua aliança
eterna e que eles teriam para sempre o país que ele lhes daria.
Estas promessas nunca se concretizaram.
Em primeiro lugar, é certo que o povo judeu, ou o povo de
Israel, que é o único que podemos considerar como
descendentes dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, e o único
para quem as promessas foram feitas, nunca foi tão numeroso
para ser comparável a todos os outros povos da Terra, e é
muito menos numeroso do que os grãos da areia. Pode-se ver
ainda claramente que, no momento em que era mais
numeroso e próspero, nunca ocupou nada além das pequenas
províncias estéreis da Palestina e seus arredores, que são
quase nada em comparação com a vasta extensão da multidão
de nações bem-sucedidas que existem na Terra.
Em segundo lugar, as promessas nunca foram cumpridas
no tocante às grandes bênçãos com que deveriam ter sido
favorecidos. Embora levando em conta algumas pequenas
vitórias sobre os povos pobres que pilharam, isso não os
impediu de serem na maioria dos casos derrotados e
reduzidos à servidão. Seu reino, bem como sua nação foi
destruída pelo exército romano. E até agora vemos que os
restos daquela infeliz nação são vistos como os mais vil e
desprezível da Terra, não tendo sobre nenhum lugar o
domínio ou autoridade.
Em terceiro lugar: essas promessas não foram cumpridas
com relação à aliança eterna que Deus deveria ter feito com
eles, já que não vemos e nunca vimos qualquer sinal dessa
aliança. Ao contrário, durante vários séculos eles foram
excluídos da posse do pequeno país que alegam ter sido
prometidos por Deus para seu uso eterno. Assim, nenhuma
dessas chamadas promessas, tendo tido qualquer efeito, é
uma certa marca de sua falsidade. O que mais uma vez
demonstra claramente que os chamados livros santos e
sagrados que os contêm não foram escritos por inspiração
divina. É, portanto, em vão que nossos cristãos afirmam que
podem usá-los como evidência infalível que comprove a
verdade de sua religião.
Capítulo V
PRIMEIRA SECÇÃO – No Velho Testamento
Nossos devotos de Cristo também colocam as profecias
como razão para a crença, e como prova certa da verdade de
sua religião. Estes são, afirmam, evidência da verdade das
revelações ou inspirações de Deus, somente Deus sendo capaz
de entrever coisas para um futuro tão remoto, como as que
foram previstas pelos profetas. Vejamos agora o que há para
essas chamadas profecias, e se devemos acreditar no que os
devotos de Cristo afirmam. Esses homens não eram mais que
visionários fanáticos, que agiam e falavam de acordo com os
impulsos ou transportes de suas paixões, e imaginavam que
era através do espírito de Deus que agiam e falavam. Ou então
eram impostores que fingiam ser profetas e, para enganar
mais facilmente os ignorantes e os simples, se gabavam de
agir e falar através do espírito de Deus.
E gostaria muito de saber como um Ezequiel seria recebido
hoje dizendo que Deus o mandou que comesse um livro de
pergaminho, que se amarrasse como um louco, que se deitasse
390 dias em seu lado direito e outros 40 do lado esquerdo,
que comesse merda no seu pão e, em seguida, como um
compromisso, dejetos de boi. Como tal lunático seria recebido
entre os mais imbecis dos nossos provincianos?
Que maior prova da falsidade dessas chamadas predições
do que as violentas censuras que esses profetas fizeram uns
contra os outros, acusando-se mutuamente de falar
falsamente em nome de Deus, e as ofensas que fizeram e
disseram em favor de Deus. Veja Ezech 13: 1, Sophon. 3,4 7,
Jer. 2: 4.
Todos dizem: Guardai-vos de falsos profetas, como dizem
os vendedores de mitrídio (teriaga), para vos guardarem
contra pílulas falsas. Esses infelizes fazem Deus falar de um
modo que até um louco não ousaria fazer. Deus diz em cap. 23
de Ezequiel que a jovem Oolla só ama aqueles que têm um
membro de burro e o esperma de um cavalo. Como esses
mentirosos insanos poderiam saber o futuro? Nenhuma
predição em favor de sua nação judaica foi cumprida.
O número de profecias que predizem a felicidade e a
grandeza de Jerusalém é quase incontável. Pode-se dizer que é
natural que um povo derrotado e cativo se consolasse de seus
males reais com esperanças imaginárias, assim como não se
passou um único ano desde a destituição do rei James que os
irlandeses de seu partido não tenham falsas profecias a seu
favor.
Mas se essas promessas feitas aos judeus fossem
verdadeiras, então a nação judaica já seria a mais numerosa, a
mais poderosa, a mais feliz e a mais triunfante de todos os
povos.
SEGUNDA SECÇÃO – No Novo Testamento
Devemos agora examinar as chamadas profecias contidas no
Novo Testamento.
Primeiro. Um anjo apareceu em sonho a um certo José, o
pelo menos suposto pai de Jesus, filho de Maria, e lhe disse:
"José, filho de Davi, não temas levar a tua casa Maria, tua
mulher, É o trabalho do Espírito Santo (Quantas histórias
semelhantes existem, diz Montaigne, de pobres humanos
corneados pelos deuses). Ela dará à luz um filho que chamarás
Jesus, porque ele livrará o seu povo dos seus pecados. Aquele
anjo também disse a Maria: "Não temas, porque alcançastes
graça aos olhos de Deus. Eu declaro que tu conceberás em teu
ventre e dará à luz um menino que se chamará Jesus. Ele será
grande e será chamado filho do Altíssimo. O senhor Deus lhe
dará o trono de Davi, seu pai. Ele reinará para sempre na casa
de Jacó, e seu reinado não terá fim. "(Mateus 1:20 e Lucas 1: 3)
Jesus começou a pregar e a dizer: “Arrependei-vos, porque o
reino dos céus está próximo.” (Mateus 4: 17) Não temais e não
digam o que vamos comer ou o que vamos beber? Ou como
seremos vestidos? Pois o vosso Pai celestial sabe que todas
estas coisas são necessárias. Buscai primeiro o reino de Deus e
a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas em
abundância. "(Mt 6: 30,31,32
E agora, qualquer homem que não tenha perdido os
sentidos, pergunte-se se este Jesus foi sempre rei, ou se seus
discípulos tiveram tudo em abundância. Esse Jesus muitas
vezes promete que livrará o mundo do pecado. Existe uma
profecia mais falsa? Nosso século não é prova eloquente disso?
Diz-se que Jesus veio para salvar o seu povo. De maneira? É
a maior parte que denomina uma coisa: Uma dúzia ou dois
espanhóis ou franceses não são o povo francês ou o povo
espanhol. Se um exército de 120.000 homens é aprisionado por
um outro mais poderoso, e se o comando desse exército cativo
salvou apenas alguns oficiais, pagando seu resgate, não se pode
dizer que tenha salvo o seu exército. O que dizer então um Deus
que se crucificou e morreu para salvar o mundo, mas deixou
tantas outras nações desamparadas?
Que pena e que horror.
Jesus diz que só temos de pedir e receber, buscar e
encontrar. Ele nos assegura que tudo o que pedimos a Deus
em seu nome será obtido e se tivéssemos fé tão pequena
quanto uma semente de mostarda, poderíamos mover
montanhas com apenas uma palavra. Se essa promessa fosse
verdadeira, nada pareceria impossível aos nossos devotos de
Cristo, que têm fé em seu Cristo.
No entanto, ocorre bem o contrário.
Se Maomé tivesse prometido a seus seguidores como Jesus
fez aos seus, nós gritaríamos: "Mentiroso! Impostor! E vocês
são loucos, se acreditam em tal farsante!" Mas aqui estão os
próprios cristãos no mesmo caso e por um longo tempo sem
se convencer de sua cegueira. Ao contrário, são tão
engenhosos em enganar a si e aos outros que afirmam que
todas essas promessas foram cumpridas desde o início do
cristianismo. É o caso, dizem eles, de que os milagres
ocorreram para convencer os incrédulos da verdade de sua
religião, mas agora estando ela suficientemente consolidada,
os milagres já não são mais necessários. Onde está a certeza
dessa proposição?
Em todo o caso, aquele que fez essas promessas não as
restringiu a um determinado tempo ou lugar, nem a
determinadas pessoas em particular: ele as fez de um modo
geral para todo o mundo. “A fé daqueles que crerem”, diz ele,
“será seguida por estes milagres: eles perseguirão demônios
em meu nome, eles falarão diversas línguas, tocarão
serpentes, etc.”
Quanto ao movimento das montanhas, ele afirma
positivamente que aquele que diz a uma montanha: “Saia daí
ou te atiro no mar”, enquanto ele não hesitar em seu coração,
mas crêr, tudo o que ele ordenar será feito. Não são essas
promessas que são completamente gerais, sem restrições
quanto ao tempo, lugar ou pessoa?
Diz-se que todas as seitas erradas e falsas chegarão a um
fim vergonhoso. Mas se Jesus Cristo fundou e estabeleceu
uma sociedade de seguidores que não cairiam em vício ou
erro, essas palavras são absolutamente falsas, uma vez que no
cristianismo não há seita, sociedade ou igreja que não esteja
cheia de erros e vícios, principalmente a seita ou sociedade da
igreja romana, embora se diga que ela é a mais pura e santa de
todas. Há muito tempo que ela caiu em erro. Jesus foi
engendrado e formado em Roma. E agora a igreja comete
erros que são contrários às intenções, aos sentimentos e à
doutrina de seu suposto fundador, pois, contra sua concepção,
aboliu as leis dos judeus, que ele aprovava e que ele mesmo
dizia ter vindo para cumprir e não para destruir, e caiu nos
erros da idolatria do paganismo, como é visto pelo culto
idólatra que dá ao seu Deus de barro, aos seus santos, às suas
imagens e relíquias.
Sei que os nossos devotos de Cristo consideram como uma
vulgaridade do espírito querer tomar literalmente as
promessas e profecias como foram expressas. Abandonam o
significado literal e natural das palavras para lhes dar um
significado que chamam de místico e espiritual, e que
denominam alegórico e tropológico. Dizendo, por exemplo,
que pelo povo de Israel e Judá, quem essas promessas foram
feitas não se deve entender os israelitas da carne, mas os
israelitas do espírito, que são os cristãos, que são o Israel de
Deus, o verdadeiro povo escolhido. Que pela promessa feita a
este povo escravizado se deve entender não uma libertação
corpórea de um povo cativo solitário, mas a libertação
espiritual da servidão ao diabo de todos os homens, que deve
ser feito pelo seu salvador divino. Que pela abundância de
riquezas e toda a felicidade temporal prometida a este povo
deve ser entendida a abundância da graça espiritual. E que,
finalmente, pela cidade de Jerusalém deve ser entendida não a
Jerusalém terrena, mas a Jerusalém espiritual, que é a igreja
cristã.
Mas é fácil ver que estes significados espirituais e
alegóricos, que não são senão significados estranhos,
imaginários, subterfúgios dos intérpretes, não podem, pelo
menos, servir para mostrar a verdade ou a falsidade de
qualquer proposição ou promessa. É ridículo, portanto, forjar
significados alegóricos, pois é somente em relação ao
significado natural e verdadeiro que podemos julgar a verdade
ou a falsidade. Por exemplo, uma proposição, uma promessa
que se verifica como verdadeira no sentido próprio e natural
dos termos em que foram concebidos, não se torna falsa em si,
sob o pretexto de que queremos lhe dar um significado
diferente do que têm. Da mesma forma, os que se acham
manifestamente falsos em seu sentido próprio e natural não
se tornam verdadeiros em si mesmos sob o pretexto de que se
quer dar a eles um significado estranho que eles não têm.
Pode-se dizer que as profecias do Antigo Testamento,
acrescentadas ao Novo, são coisas bastante absurdas e pueris.
Por exemplo, Abraão teve duas esposas, uma das quais era
apenas uma serva de acordo com a sinagoga, e a outra era
uma esposa de acordo com a igreja cristã. E com base no
pretexto de que Abraão teve dois filhos, um da serva, que
prefigurou o Antigo Testamento, e outro de sua esposa, que
prefigurou o Novo Testamento. Quem poderia não rir de uma
doutrina tão ridícula? ( Spectatum admissi risum teneatis
amici - Arte poética Horat. 5 verso)
Não é divertido que um pedaço de pano vermelho, exposto
por uma prostituta para servir de sinal aos espiões no Velho
Testamento, sirva como o sangue de Cristo derramado no
Novo? De acordo com essa maneira de interpretar
alegoricamente tudo o que é dito, feito e praticado naquela
antiga lei dos judeus, então assim deveríamos interpretar
todos os discursos, ações e aventuras de Dom Quixote, que ali
certamente encontraríamos muitos mistérios e significados.
No entanto, é nessa base ridícula que repousa toda a religião
cristã. É por isso que não há quase nada naquela lei antiga que
os médicos amorosos de Cristo não tentam explicar
misticamente.
A profecia mais falsa e ridícula jamais feita foi a de Jesus
em Lucas 22. Está previsto que haverá sinais no sol e na lua, e
que o Filho do Homem virá numa nuvem para julgar os
homens, e ele prediz isso para a presente geração. Isso
aconteceu? O Filho do Homem veio numa nuvem?
Capítulo VI