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Duas mulheres e uma canção (Lucas 1.

42-45)
Assim que Isabel ouviu a saudação de Maria, o bebê agitou-se em seu ventre, e Isabel ficou
plena do Espírito Santo. E, com um forte grito, exclamou:
“Bendita és tu entre todas as mulheres,
e bendito é o fruto de teu ventre!
Mas, qual o motivo desta graça maravilhosa,
que me venha visitar a mãe do meu Senhor?
Pois, no mesmo instante em que a tua voz de saudação
chegou aos meus ouvidos,
o bebê que está em meu ventre agitou-se de alegria.
Bem-aventurada é aquela que acreditou
que o Senhor cumprirá tudo quanto lhe foi revelado!”
(Versão King James)

Dizem que as mulheres não gostam de mulheres. Que “as amiga” são todas invejosas,
desdenham umas das outras, falam mal dos corpos das outras e de suas aptidões, são
desunidas. Isso me incomoda e me perturba por várias razões, incluindo uma dose de verdade.
É que mulheres podem ser dóceis, nós sabemos. Mas, igualmente, podem ser desconstrutoras
umas das outras por meio do menosprezo e da fofoca. Contudo, um passo importante é
necessário para que nós possamos vencer os males que igualmente assediam o “sexo frágil”:
deveríamos começar por fortalecer nossos laços de solidariedade. Bons exemplos não nos
faltam, mesmo no universo bíblico, para isso. Por isso, quando o tema da revista nos evoca a
questão do gênero – estudos que abordem temáticas diretamente relacionadas com as
mulheres – não me veio outro texto à mente senão um salmo fora dos salmos; a canção de
Isabel. É uma canção pequena, mas fenomenal. Seu tema principal é o fato de que Deus usa
mulheres! E que podemos abençoar umas às outras compreendendo nosso papel fundamental
na vida umas das outras!

Uma canção para celebrar


Isabel sofria os revezes de uma velhice sem filhos. A infertilidade é uma dor aguda nas
mulheres bíblicas, porque lhes imputa um grande peso social. No entanto, ela recebe a notícia,
por meio do marido, de uma promessa divina que agora se cumpre. Ela deve ter sentido agora
um misto de alegria, orgulho próprio e vergonha, porque é na velhice que tudo isso lhe
sucede. Ainda hoje conheço mulheres que engravidaram “mais velhas” e recebem certo olhar
de crítica da sociedade, por fazerem isso fora do tempo prescrito socialmente. Não lhes é dado
o direito de celebrar a vida que vem, na hora dela, do jeito dela. Mas em meio às suas próprias
questões, Isabel recebe a visita da jovem Maria. Imatura, solteira, adolescente, trazendo
outros problemas, correndo risco de morte (sim, pois é vista como adúltera perante a lei, não
nos esqueçamos!). Isabel não apenas a acolhe, mas sua casa se torna um refúgio. Não
esqueçamos a sutileza de Lucas ao dizer que Maria “saiu apressadamente”, que é um
eufemismo para “fugiu”. Em meio aos receios de ambas as gravidezes e seus riscos pessoais,
físicos e sociais, as duas celebram a vida e o encontro.
Eu me lembro da citação de alguém: “Meu amigo me chamou pra cuidar da dor dele. Guardei a
minha no bolso e fui”. Não é bem assim com Isabel? Em meio a suas questões, ela guardou-as
no bolso da alma para cuidar da jovem que lhe chega, certamente assustada, em dúvidas,
temerosa e ansiosa. Sim, mulheres sabem e podem cuidar de mulheres. Até guardando seus
silêncios na hora exata. Eu me lembro de quando engravidei pela primeira vez e minha mãe
veio ficar comigo nos últimos dias. Ao chegar da última consulta médica, com a notícia de que
teria de me submeter a uma cesárea por causa da posição da bebê na barriga, ela me disse:
“Bem que eu achei sua barriga meio estranha. Não falei nada para não lhe preocupar.” E eu sei
lá como deve ser uma barriga? Conhecimentos ancestrais que eu perdi na linha genealógica...
mas o silêncio amoroso da minha mãe evitou preocupações que eu não poderia resolver.
Quem vai cuidar de nós assim, apenas nossas mães? Não o creio. Temos de desenvolver redes
relacionais abertas e de confiança, mulheres com mulheres, sem medo de nos ferir no
processo, abrindo mão de pretensas verdades próprias em prol do reino de justiça e igualdade.

Uma canção para abençoar


Isabel diz: “Você é abençoada, Maria!” Quantas mulheres você já abençoou em suas carreiras,
trabalho, tarefas com filhos? Quantas você animou com palavras de incentivo e amparo?
Agora, comigo: quantas você desdenhou? Com quantas foi cruel? Veja a história de Sara e
Agar. Ambas sofrendo os revezes de uma sociedade injusta. Mas Sara acrescenta dor à vida
dura de Agar, expulsando-a com um filho na barriga. Veja a dor de Penina e Ana. Uma tem
filhos mas não tem amor; outra tem amor mas não tem filhos. E ao invés de serem solidárias,
elas se ferem mutuamente! O mesmo se pode dizer de Raquel e Lia. Rute, por sua vez, se
recusa a deixar Noemi na amargura. Ela a acompanha, assume os riscos da amizade e se faz
família. Que coisa linda é poder abençoar! Mas, ao mesmo tempo, é muito difícil. A
competitividade nos assola, o receio do desprezo nos faz desprezar primeiro. E retomamos o
ciclo da violência que alimenta-se da dor das nossas filhas, sobrinhas, amigas, netas... sem fim.
Isabel acolheu Maria e abençoou sua gravidez. Inclusive porque sua alegria abriu as portas à
plenitude do Espírito Santo, que a tomou de tal forma que o bebê João se mexeu na sua
barriga, sentindo as endorfinas percorrerem o corpo da mãe, tal o prazer da chegada de Maria.
Certamente as palavras da experiente Isabel deram fôlego à menina – sim, porque ela deveria
ter por volta de 14 anos de idade. E agora, quando pensamos nas mulheres todas que
passaram pela vida de Jesus, vemos sua força, seu potencial, sua unidade. Isso deve inspirar as
mulheres do século XXI a reverem seus conceitos.
A acolhida de Isabel a Maria certamente preservou também sua vida e garantiu um princípio
de gravidez seguro. Imagino os meses ali passados como um tempo de troca e de refrigério. A
bênção não foi apenas a fala de Isabel, mas sua atitude de acolhida.
Não apenas Isabel abençoou Maria pela gravidez, “o fruto do ventre”, mas a abençoou por ser
quem era. Não podemos abençoar umas às outras apenas quando nossas expectativas de
amizade ou de algum benefício forem atendidas, mas devemos agir para reconhecer os valores
umas das outras e exaltá-los na convivência fraterna do Reino de Deus.

Uma canção para reconhecer


Acho especialmente importante quando Maria é reconhecida por Isabel como bem-
aventurada por ter ousado acreditar nas promessas divinas. Muitas mulheres são
desestimuladas por outras no cumprimento de seu ministério ou em escolhas profissionais.
Muitas mães, tias e avós, às vezes em genuínas preocupações, mas marcadas pelos
preconceitos sociais, imputam sobre suas filhas e outras mulheres muitas dores, negando a
elas o pleno desenvolvimento de seu ser enquanto mulheres. Eu mesma já caí nessa
armadilha. Precisei de muita clareza para entender que não posso exigir das minhas filhas o
que elas não são, mas posso estimulá-las a ser o que anseiam e o que são. Eu orei e as
consagrei a Deus desde que estavam na minha barriga e preciso crer que Deus irá responder.
Então, com essas lições, tenho buscado, aos trancos e barrancos, reconhecer o que Deus tem
feito na vida delas e de outras mulheres. Elogio em público sempre que possível. Claro que o
simples fato de ser do gênero feminino não é critério de valor. Mas deve ser levado em conta
porque é usado socialmente como critério de “desvalor”. Veja só... quando alguém faz uma
coisa errada, ele é sempre “filho da”... Outro dia, conversando com a Revda. Joana D’arc
Meirelles, na sede nacional da Igreja, ela me falava sobre a expressão “cabra macho”, muito
usada no nordeste. Se o “cabra” – palavra feminina – é bom, temos de associá-lo ao “macho”,
pois de si mesma a palavra feminina acaba desvalorizada. E não o é?
Se por essas reflexões nos taxam de feministas, bem está. Para mim, antes de ser uma
bandeira, essas questões são realidades postas, com as quais muitas de nós lidamos todos os
dias e, quando sofremos alguma delas, sempre ouvimos que tem algo a ver com o que
falamos, com a roupa que usamos e com os lugares em que queremos estar.
Deus, porém, reconhece em Isabel e Maria que o plano de salvação não pode ser feito apenas
pelos homens. Ao colocar seus profetas e seu próprio filho num útero de mulher, Ele nos
convida a exercer nossa parceria e, em muitos momentos, protagonismo, na implantação de
um Reino igualitário, no qual homens, mulheres, crianças, brancas, negras, pardas, amarelas,
asiáticas e quantas mais houver, tenham igual espaço, valor e reconhecimento.

Uma canção
Por fim, não poderia deixar de ressaltar o fato de que Isabel se expressa num poema-canção.
Dias esses aprendi que, em alemão, poema é gedicht, uma palavra que literalmente significa
dizer muito com poucas palavras, atravessar algo denso, profundo... O poema de Isabel é
pequeno, passa até despercebido. Não me consta ter ouvido muitos sermões sobre ele. Mas
ele é o resultado de um encontro verdadeiro entre duas mulheres na missão de Deus. E
quando a vida transborda desse jeito, de sonhos, tristezas, ansiedades, desejos, tudo junto e
misturado, tudo ao mesmo tempo, o jeito é cantar. Coisa que o povo brasileiro bem sabe e
conhece. A canção inspira a luta da vida, consola a dor da gente, conforta para novas batalhas.
Canção que embala não apenas dois bebês em duas barrigas, mas dois corações de mães, duas
mentes de mulheres pensando em como servir a Deus melhor, em meio a tantas adversidades.
Isabel cantou para Maria. Alguma mulher precisa ouvir de você uma canção hoje? Já imaginou
o que seriam as mulheres irmanadas por canções de perdão, valorização, honestidade,
santidade no serviço de Deus? Mulheres irrepreensíveis porque aprendem umas com as
outras? Mulheres que não sofrem violência porque estão de mãos dadas e, pelo mesmo
motivo, não as praticam?
Essa imagem me anima, me inspira e me faz entender porque havia várias delas, depois, aos
pés da cruz, sozinhas, e no dia da ressurreição, do lado de fora do túmulo. Não lhes importava
se não houvesse ninguém, de antemão, para tirar a pedra. Era preciso estar lá, de prontidão,
perfumes nas mãos. Bem-aventuradas elas, bem-aventuras, nós. Apenas pela graça de Deus
que se revela como quer e quando quer e por isso pode ser como mãe que amamenta filhos e
como galinha que abriga pintainhos. Abramos nossos olhos para ver, nossos braços para
abraçar e nosso coração para cantar.

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