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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

DOCENTE: Ana Karenina de Arraes

DISCENTE: Wanessa Beatriz da Costa Mendonça

Nos caminhos dos personagens de mim mesma troco de roupa na busca do outfit perfeito,
entre o atual e o que necessário for a minha sobrevivência aprendo a me camuflar: às
maquiagens e a mulheridade dos cabelos, me agarro às mínimas oportunidades de ascensão,
quero desesperadamente apagar o alvo que sinto em minha testa, sustento o sorriso amarelo,
às pérolas e a doçura quase virginal, me perco tanto nesse labirinto que agora me convidam
para a mesa dos algozes. Sinto o rachar da pele, a roupa de renda que prende na quina do
móvel da sala e desmancha a caminho da sala de jantar, quando já a mesa sinto algo pingar,
não sei se suor ou o sangue do Dorian Gray que fiz de mim enquanto embolo nas palavras.
Respiro fundo. Pensamento acelerado, maquino a mil por hora, neuroticamente em espiral
tento decidir: abandono agora às máscaras craqueladas e roupas desfiadas? Abdico do lugar a
mesa? Antes mesmo da conclusão percebo que é tarde demais, todos enxergam além da roupa
mal cabida. Sinto que me pegam e me arrastam a caminho da porta de entrada, deixo cair a
segunda pele que cobria meu rosto e os sapatos, me cortam os cabelos enquanto me gritam
“puta! sujando o nome da família!” Olho pros lados na esperança de defesa, nenhuma ajuda,
nem dos meus amigos, nem dos meus irmãos. Continuo a ser arrastada até que tudo que
sobrou ser lançado a calçada. Trancam a porta atrás de mim. Me encontro novamente na rua,
no escuro caminho em direção ao cruzamento onde me permito desabar, o que sobrou de mim
procura então fazer ninho no concreto. Me junto a outros bichos voantes que ali estavam na
missão de preservar as nossas asas, nos amalocamos.

Nesse devaneio escrito por mim após a peça “Reino dos bichos e dos animais esse é o meu
nome” escrevo sobre a minha paisagem subjetiva, o plano de segmentaridade que forma meu
corpo muito me lembra de Fanon em “Pele negra, máscaras brancas” não por me identificar
como uma pessoa negra mas por me ver no meio de um processo de desalienação de raça,
classe e gênero. Passamos a vida hipnotizados pelo que é humano, nos moldamos e
flagelamos na tentativa de alcançar isso que é inalcançável a nós corpos dissidentes: a
humanidade, a normalidade. Penso que perceber isso em nível macro é importante mas que
não esqueçamos da sutileza das máquinas que nos acorrentam e limitam nossos vetores
existenciais, nos aprisionando nas linhas conformadas, o inimigo-capital se pulveriza
tornando-se algo dissolvido na água que bebemos, nos enlatados que comemos e nos nossos
desejos, sonhos e lugares mais profundos. Nos acompanha como uma sombra, um fantasma
da existência ideal deixando sempre nítido o deslocamento do corpo em relação a esse Deus
Supremo. Nos vendem imagens congeladas de nós mesmos, identidades em embalagens
coloridas de um salgadinho industrial.
Poderia passar horas falando da importância de enxergar e questionar o micro, de fazer uma
outra clínica operando por uma lógica de singularidade, do papel e lugar do conhecimento
esquizoanalítico nisso, mas não vejo como ser guardiã de um saber europeu afirmaria a mim.
Nessa tentativa de dar outro nome às coisas para rasgar outro mundo em meio a esse
enquanto fazemos a manutenção desses saberes de pais europeus a quais chamamos de vilões
a tentativa de explicar o que não é imagem nem representação me chega desalinhada, mas,
potente, me junto aos meus na afirmação da potência da experiência rizomática, não
afirmamos isso pela leitura de fulano ou ciclano (por mais que considere muito caro às
leituras nessa matéria, por mais que europeia demais), afirmamos isso pois reside em nossos
corpos os intercessores, às linhas de fuga dessa Gotham tropical mora nos becos, vielas, nos
pixos, nas mulheres que parecem homens, nos homens que não são homens porra nenhuma,
nos corpos alienigenas, nas putas, nas crianças desonronsas a suas familias, nos sacis,
lobisomens, ratas de bueiro, criaturas misticas que insistem no desvio e no contrario.
Esquizoanalítico é o que acontece nos corredores, nas aulas que faltamos pra fumar um, no
por do sol do coliseu no setor 2, nas depredações públicas que operamos quando inventamos
nas paredes outras linguagens, no questionamento das autoridades liberais, no que se tenciona
quando existo e se faz ver que existo em meio a tanta merda. A vida mora fora, na rua .

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