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Creio que estou perdendo a capacidade de me inspirar.

Não me importo muito, pois


já sei que dificilmente serei um escritor reconhecido, será muito difícil devido a diversos
fatores. Um deles é que não tenho influência nem dinheiro, e outro que poucos se
agradariam de digerir as minhas náuseas. É... o livro do Sartre. Mais um que não acabei de
ler. Deixo tudo pela metade, desde criança. Talvez seja melhor assim, já que, no final das
contas, nunca se “acaba” nada, e nada se acaba. Nós ditamos o fim das coisas... portanto,
que acabe no meio, assim como nossa vida acaba: sempre no meio da vida dos outros.
Mas então, como digo que estou perdendo a capacidade de me inspirar, se ainda
estou escrevendo? Entendam: o fato é que não estou conseguindo mais mentir. Está sendo
difícil ser falso até mesmo pra inventar coisas. A realidade insiste tanto em me esmagar
como um inseto que fui forçado a aceita-la cada vez mais, e ser cada vez mais prático e
mundando. Estou tornando-me só um reles ser humano que se preocupa em sobreviver e
seguir vivo, mais um na linha de montagem – sim, eles venceram... eles quem? Meus
semelhantes... os humanos. Os humanos que me forçam a acabar pela metade tudo que
tentei seguir até o final. Antes mesmo que eu termine de enfeitar, eles maculam cada coisa
que tenho como bela, as transformam em lodo fétido, como o livro do Sartre... Dio Mio, ela
fedeu o Sartre todo.
Pessoas maculam coisas, coisas lembram pessoas.
O Ministério da Saúde adverte: Pessoas machucam..
.

Eu mudaria o título do conto infantil somente em um mínimo acento:


A Bela é a Fera.

Mas eu preciso ser falso pra continuar sobrevivendo, e é exatamente isso que me
causa desgosto na alma. Não posso assumir a aparência que eu gostaria, exatamente por os
humanos nos julgarem pelas aparências! Nem a postura e opiniões que tenho, pois nos
julgam por elas também! Ah, humanos... lembramos tanto do olho que esquecemos de olhar
com o coração! É tão belo e vasto nosso poder de conclusão que ele atira antes mesmo de
perguntar. Sei disso porque eu mesmo faço isso. O que nos faz perder o que amamos?
Simples: nosso próprio medo de perder. Ele causa tamanho temor que acabamos destruindo
o que amamos (ou julgamos amar) antes mesmo que o medo se consolide e se torne em
realidade. Logo em seguida ao cataclisma, bradamos: eu sabia!
Preciso ser falso, preciso engolir minhas opiniões e transbordá-las em papéis pro
infinito, preciso não citar nomes nem me rebelar. Preciso ser são nessa terra de bestas
insanas, de religiosos fanáticos e arrogantes, de freiras putas, de padres pedófilos, de juizes
comprados, de bêbados, de policiais corruptos e de delinqüentes impulsivos. De
Neuróticos. Preciso urgentemente tornar-me um neurótico, pra poder ser considerado
normal. Mas como? Nesse hospício, o melhor seria largar as rédeas.
Artista é quem consegue manter-se de pé, e são, a cada dia que passa... mas
ninguém se interessa mesmo. Acho que nem Deus se interessa pela minha opinião. Eu não
tenho um diploma ou algum PhD pra me darem atenção, nem tampouco fama. Assim como
não tenho facilidade pra ser falso, logicamente essa dificuldade se estende pras relações
sociais também, e, logo, não consigo adentrar na cultura do puxasaquismo. Quem me dera
ter esses estômagos de avestruz pra bajular algum desses poderosos de terno e gravata por
aí! Ah, se eu pelo menos fosse uma fêmea com uma simetria apreciável e seios fartos...
poderia conseguir uma vaga no disputadíssimo mercado de trabalho, onde exigem muitas
“qualificações”... eu poderia cruzar e descruzar as pernas durante a entrevista de emprego, e
empinar os seios, e então o obeso engravatado à minha frente bradaria, com sua braguilha
estourando: está contratada!
Mas enfim... Cristo diz que devemos amar os nossos semelhantes. Mas me
poerdoem: vocês, definitivamente, não são meus semelhantes.
É fácil amar Cristo com dinheiro nos bolsos.
Queria ver vocês amarem deus dentro do Inferno. Isso eu gostaria de ver.
É só no Inferno que Deus aparece de verdade e mostra sua face sem face.
O fato de eu ser da mesma espécie que vocês não me faz de vocês um semelhante.
Eu tenho, no máximo, compaixão e piedade da maioria de vocês, de nós, pois também sou
falho. Tão falho que ainda não aprendi a ser falso... devo me corrigir! Preciso treinar mais.
É urgente que eu seja mais hipócrita, sorrir mais, ser mais agradável, mais mentiroso!
Afinal, a mentira é a alma da política, é a arte de agradar ao próximo. É vender a chave do
céu, ser cortês com as sanguessugas, pra te avaliarem dos pés a cabeça e te deixarem ter um
cadinho do seu próprio sangue. Se eles nadam na luxúria, é devido ao esforço da massa
oprimida. Afinal, todos querem sugar... o maná dos deuses é bom! Vamos possuí-lo.
O baile de máscaras está ai em nossa volta, e precisamos nos adaptar aos que estão
no poder, pra poder sobreviver... precisamos ser agradáveis aos fanfarrões! Mas e nosso eu,
onde fica no meio de tantas adaptações? Adaptações àqueles poderosos que nos podam de
ser plenos e viver em liberdade? É compreensível, uma vez que há dentre nós aqueles que
não sabem dar valor à liberdade que possuem. Esclarecimento, portanto, seria a solução.
Mas aí que entra a origem do poder dos engravatados: eles são falsos com maestria, eles
não se interessam em esclarecer o povo. Os poderosos continuam se escondendo, se
reunindo em portas fechadas, mantendo a verdade em seus porões. E ai de quem queira
esclarecer de fato o povo! Esses acabam sendo silenciados e trancafiados num porão
escuro, ou acabam mortos vítimas de algum “acidente”. Nada mudou, continua tudo igual
abaixo do Sol. A mente humana continua a mesma, com novas muletas e velhas desculpas,
mas ainda assim a mesma. Os humanos não dominam suas mentes: é a mentalidade
dominante é que domina os humanos. Quem melhor se adapta a ela, com mais conforto e
privilégios fica. Aos “rebeldes”, resta o anonimato, o silêncio e a exclusão.
E eu, onde me encaixo nessa bosta toda?
Onde der. Urge ser hipócrita. Um bom ator.
Silenciar meus gritos.
Tampar o nariz,
Esconder o que vejo.
E ser um fantoche...
Ridi, pagliaccio! La vitta e Bella, eh!
.

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