Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
NOTA INTRODUTóRIA:
Este artigo nasceu de um trabalho anterior no qual me centrei nas diferenças entre
dois espíritos da demonologia tradicional: Lucifuge Rofocale, o "espírito dos
pactos" que figura de forma proeminente no Grand Grimoire, e Focalor, o 41º
espírito da Goetia. À medida que o escrevia foi-se tornando claro que vários outros
assuntos deveriam ser discutidos, e então decidi expandir o trabalho anterior para
outro bem mais completo sobre Lucifuge Rofocale, contendo também algum
material original. A intenção não é apenas partilhar informação, mas também
trazer novas perspectivas que possam ser úteis a certos estudos de demonologia e
simbologia, e fornecer ferramentas novas a quem as saiba usar com prudência,
inteligência e responsabilidade.
É importante salientar, no entanto, que este texto não deve ser encarado como um
estudo puramente académico de uma figura clássica da demonologia ocidental
(embora contenha partes que podem incluídas nesse campo), mas antes uma
análise de Lucifuge Rofocale, incluindo muitas investigações, descobertas e
intuições relacionadas com a mesma entidade, com base na minha própria
experiência e em muita coisa que eu aprendi através de outros. Trata-se portanto
de um estudo pessoal, que pode – e deve – ser aprofundado e ampliado por todos
aqueles que vejam neste texto uma ferramenta de estudo (ou trabalho) válida.
***
ÍNDICE:
• O Início
• Parte I – "O Nome"
• Parte II – "A Imagem"
• Parte III – "O Reflexo"
• Parte IV – Anexos
Anexo 1 – Lucifuge Rofocale noutros grimórios?
Anexo 2 – Tabela dos Espíritos
Anexo 3 – "Bem e Mal": Ou será assim mesmo?
Anexo 4 – Galeria de Lucifuge
• Agradecimentos e Dedicatória
***
O INíCIO:
Há quase duas décadas, eu estava numa livraria a ler partes d'O Livro de Magia
Cerimonial de Arthur E. Waite, quando parei de folhear o livro numa página que
continha uma representação algo tosca de um Espírito que eu nunca tinha visto
antes:
LUCIFUGE ROFOCALE
A minha atenção foi imediatamente dirigida para esta imagem, por pelo menos
duas razões. No instante em que vi esta imagem, eu reparei como o Espírito
parecia combinar partes de outras imagens semelhantes que eu tinha visto antes: o
"Bode Sabático" Baphomet de Eliphas Lévi, o deus grego Pan, o Puck ou "Robin
Goodfellow" do folclore inglês, ou uma conjunção bizarra das duas cartas "O
Louco" e "O Diabo" do Tarot. A outra razão pela qual eu me senti impelido de
estudar melhor isto foi o Nome do Espírito, por razões que serão explicadas de
seguida. No entanto, antes de entrarmos em maiores detalhes, torna-se necessário
antes explicar "quem" ou "o que" é Lucifuge Rofocale, de acordo com as fontes
tradicionais disponíveis, de forma a dar ao leitor um contexto correcto para este
estudo.
***
O PRIMEIRO-MINISTRO DO INFERNO
E mais,
A leitura do Grimório revela que este é o clássico demónio dos pactos, o espírito
com quem um pacto pode ser feito para obter poder ou dinheiro, embora, no
entanto, ele exija a alma do karcista (mago) após vinte ou cinquenta anos(3).
Parte I:
"O NOME"
1) Esta tríade infernal de Lúcifer, Beelzebuth e Astaroth parece derivar de um tratado anterior ao Grand Grimoire
em alguns séculos: o Hygromanteia ou Tratado Mágico de Salomão, no qual os quatro espíritos guardiães dos
pontos cardeais são: Loutzipher (Leste), Beelzeboul (Sul), Astaroth (Oeste) e Asmodai (Norte). Apenas
Asmodai – ou Asmodeus – não faz parte da tríade superior.
2) Outros documentos, como a Clavicula Salomonis De Secretis, referem Lúcifer, Belzebut e Elestor.
3) O mago inteligente pode, no entanto, estabelecer um pacto que favoreça tanto ele próprio como o Espírito. As
instruções dadas no Grand Grimoire – ou qualquer outro Grimório – são por vezes intencionalmente confusas ou
enganadoras, enquanto noutros casos escondem pistas à vista de todos. A análise de diferentes edições dos
grimórios é também muito enriquecedora.
espírito que governa sobre as riquezas e os tesouros! O meu primeiro pensamento
quando percebi isto foi que perseguir o poder mundano e auto-engrandecimento
através de um "pacto infernal" conduziria inevitavelmente à perdição, para longe
da luz da verdade espiritual. Neste caso, Lucifuge Rofocale seria uma máscara para
o próprio Diabo, o aliciador ou tentador do Homem, prometendo-lhe todo o poder
e riquezas em troca da sua própria alma. Isto, pelo menos, é o que o Grand
Grimoire aparenta transmitir numa primeira análise do texto. Este aspecto merece
uma reflexão mais aprofundada, a qual eu deixarei para quando abordarmos a
simbologia de Lucifuge Rofocale.
4) COLLISSON, Marcus (2010). Michael Psellus on the Operation of Dæmons. Golden Hoard Press.
5) É importante reparar que neste caso, lucífugo ('lucifugus' no texto original em latim) não se refere a
apenas uma entidade – como é o caso de Lucífugo Rofocale – mas a um grupo de espíritos ou dæmons
cuja característica principal é a sua aversão à luz.
É um morcego. Só.(6)
***
O nome "Rofocale" foi sem dúvida o mais desafiante dos dois. O nome não parecia
ser latim, nem eu me lembrava de qualquer nome ou palavra latina remotamente
parecida com "Rofocale". Percorri dicionários de latim, grego e hebraico sem
qualquer sucesso.
Parecia haver uma pista sobre este nome no texto do Grand Grimoire, pois
quando Lucifuge concorda com as condições do pacto e mostra a sua assinatura,
ele diz que a forma de o chamar é pronunciando a palavra "Rofocale". Isto é muito
significativo em termos mágicos, pois implica que a palavra "Rofocale" é um sigilo
sonoro (um mantra) de Lucifuge – ou posto de outra forma, o nome "Rofocale"
representa Lucifuge. Mas como?
Fiz muitas pesquisas sobre esta palavra, até que encontrei uma teoria que, de
tantas vezes repetida como se de um facto comprovado se tratasse, merece ser
aqui mencionada.
***
6) Não é "só" um morcego. Na verdade, 'morcego' em latim é "vespertilio", derivado de "Vesper", Vénus
como Estrela do Anoitecer. O aspecto 'claro' de Vénus é Lúcifer, a Estrela da Manhã. A simbologia é forte.
Na minha procura pelo significado do nome Rofocale, eu tropecei em algumas
fontes que diziam que "Rofocal" (se eliminarmos o 'e' final, que não é
pronunciado) é um anagrama de "Focalor", o nome de um espírito da Ars Goetia,
estabelecendo assim uma possível ligação com base nos seus nomes. Pelo que eu
sei, esta suposição parece advir do livro clássico de Elizabeth M. Butler, "Ritual
Magic", primeiro publicado em 1949, o qual foi extremamente influente até aos
nossos dias(7).
Enquanto é certamente verdade que as letras que compõem o nome "Rofocal" são
as mesmas que compõem o nome "Focalor", explicar o significado de "Lucifuge
Rofocale" associando-o a Focalor parece obscurecer esta questão, em vez de a
iluminar (desculpem).
Esta descrição tem praticamente nada a ver com qualquer descrição de Lucifuge
Rofocale, tanto por aparência como por funções:
7) Por exemplo: GUILEY, Rosemary Ellen (2009). The Encyclopedia of Demons and Demonology. Infobase
Publishing.
8) Ou um corno! É curioso reparar que o "anel" aparece de formas diferentes nas várias representações de Lucifuge.
Em algumas é um anel ou arco, noutras é um corno, enquanto noutras Lucifuge está literalmente a "passar através
do anel", enquanto segura um segundo anel mais pequeno (!!). Estas discrepâncias são curiosas e serão melhor
variações subtis nas representações de Lucifuge Rofocale, mas todas elas seguem
um padrão semelhante.
Aparentemente não existem razões para acreditar que o nome "Rofocal(e)" possa
ser explicado pela sua associação ao espírito Focalor. No entanto, numa edição
francesa do Grand Grimoire existe uma representação de Lucifuge Rofocale como
uma esfinge alada, o que poderia trazer alguma substância a esta conexão(9).
ou isto:
Não há asas, nem esfinges, nem grifos, nem nada. Tal como acontece nas imagens
de Lucifuge, existem algumas variações no carácter e sigilo do espírito, mas todos
eles seguem mais ou menos o mesmo padrão.
***
Foi depois de eu aprender esta teoria "Rofocal=Focalor" que a resposta veio até
mim: de forma completamente inesperada, e mesmo à frente dos meus olhos.
Eu estava a ler o Livro III da Magia Sagrada de Abramelin o Mago, o qual contém
uma série de quadrados com letras, com vários poderes mágicos. Com algumas
poucas excepções, os quadrados neste livro são perfeitos palíndromos, isto é, os
quadrados podem ser lidos da mesma forma tanto do início para o fim como o
inverso.
Bom... porque não? Se Lucifuge é "aquele que foge da luz" e Lúcifer é o "portador
da luz", então faria perfeitamente sentido que o "sombrio" Lucifuge fosse o inverso
do "luminoso" Lúcifer – num sentido bem literal(11). Assim, tornou-se claro para
mim que "Rofocale" foi uma forma de codificar a verdadeira natureza de Lucifuge,
enquanto ao mesmo tempo serviu para manter o segredo escondido à vista de
todos, trocando-se as vogais correctas por outras – até mesmo adicionando o 'e'
final para complicar ainda mais as coisas.
***
Esta inversão de nomes, de "Lúcifer" para "Reficul", é sem dúvida o aspecto mais
interessante de Lucifuge Rofocale e aquele que merece a mais demorada reflexão,
pois é precisamente aí que se esconde a sua verdadeira natureza.
Deixarei esse assunto para um próximo capítulo. Por enquanto, irei debruçar-me
sobre a simbologia presente nas várias representações de Lucifuge Rofocale.
Parte II:
"A IMAGEM"
LUCIFUGE ROFOCALE: fonte primária.
Inicio esta parte com duas coisas que eu adoro. A primeira é aquela que eu
considero ser a imagem mais emblemática de Lucifuge Rofocale – aquela que eu
chamo a "fonte primária" ou "progenitora" de quase todas as outras versões
tradicionais da imagem. Devido à clareza da imagem, é essa que eu vou usar como
modelo de comparação quando explicar os elementos das várias ilustrações de
Rofocale. Eu também tenho uma fotografia de outra imagem de Lucifuge, que vou
partilhar de seguida, que me parece ser um "estágio intermédio" entre esta figura
original e as outras: não tão simbolicamente carregada como a imagem original(12),
nem tão pobre em detalhes como as versões posteriores. Resta saber se a minha
"fonte primária" não terá sido ela própria inspirada noutra gravura mais antiga,
pois a edição francesa acrescenta por baixo da figura: d'après une gravure
ancienne ("segundo uma gravura antiga"). Seja como for, aquilo que importa
destacar nestas duas imagens neste momento é a minúcia do detalhe pois, ao
contrário das restantes, são extremamente claras.
***
13) Quando estudamos certas entidades, nós dirigimos, de forma consciente ou inconscientemente, alguma da
nossa energia para elas. Segundo a lei das correspondências o reverso também acontece, e a própria entidade
também foca alguma da sua atenção em nós – cada um segundo as regras, liberdades e condicionamentos
característicos da dimensão física ou extrafísica a que pertence. "Assim em cima como em baixo". Lembra-se?...
14) É essencial referir que a experiência com qualquer tipo de entidade é sempre individual e única.
Dois arcanos maiores do Tarot de Marselha: "O Louco" e "O Diabo".
Algumas versões da imagem mostram dois cornos em vez de três, como esta:
15) Artigo de Mary K. Greer (em Inglês) – "Tarot e cartas de jogar na Bruxaria":
http://www.marykgreer.com/2008/04/09/tarot-and-playing-cards-in-witchcraft/
Existe ainda outro factor sobre os três cornos que eu gostaria de referir. No
Dictionnaire Infernal de Collin de Plancy, publicado pela primeira vez em 1818(16),
é referido um outro demónio dotado de 3 chifres – o qual, que eu saiba, é o único
além de Lucifuge a ser representado com esta característica peculiar.(17) Trata-se
de Leonard ou Mestre Leonardo, o "Grande Bode Negro" do Sabbat das Bruxas.
16) A versão que inclui as famosas imagens de Louis Breton só foi publicada mais tarde, em 1863.
17) Existiu não um demónio, mas uma figura divina da tradição celta chamada TARUOS TRIGARANOS, um touro com
três cornos, que teria estado associado à fertilidade da terra e aos mistérios do 'outro mundo'.
(Mestre) LEONARDO, Senhor do Sabbat das Bruxas.
Eu não sei se existe alguma ligação entre Leonard e Lucifuge, até porque o Grand
Grimoire data, segundo se acredita, de inícios do século XIX – que é precisamente
a altura em que o Dictionnaire Infernal foi publicado. Se existiu alguma influência
directa ou indirecta eu sinceramente não sei – no entanto, acredito que não se
trata de uma coincidência. Eu explicarei a minha opinião quando falar sobre o
anel, arco ou corno (instrumento musical de sopro) que Lucifuge Rofocale segura
numa das mãos.
Na fonte primária:
Tratam-se claramente de 3 cornos, sem qualquer margem para dúvidas. O corno
do meio, no entanto, tem um formato muito peculiar, diferente dos outros.
Na fonte secundária:
Não é tão claro que se trate de cornos, devido à sua forma estranha. Há a sugestão
de um chapéu de bobo.
***
UM TESOURO E UMA BOLSA DE MOEDAS
Também houve algo que eu não referi quando falei dos dois arcanos do Tarot, o
Louco e o Diabo, e que tem precisamente a ver com a bolsa de Rofocale. O Louco
do Tarot transporta uma pequena bolsa com todos os bens que possui – o que
significa o seu desapego em relação às coisas materiais. Lucifuge, por outro lado,
guarda tesouros na sua bolsa, os quais se transformam em cinzas quando lançados
por terra – mostrando a natureza ilusória e transitória dos tesouros, honrarias ou
riquezas materiais que ele traz.
Existem até outras variações nas quais nem sequer existe uma bolsa de moedas!
Nelas vê-se, apesar de tudo, um tesouro escondido (enterrado?) no chão, estando
Lucifuge a protegê-lo, parado em cima dele. Esta é uma dessas versões:
Na fonte primária:
Não existe qualquer tesouro. A bolsa de moedas segurada por Lucifuge está virada
ao contrário, deixando as moedas cair, que se inflamam quando tocam no chão.
Na fonte secundária:
Lucifuge segura uma bolsa (vazia?), e outra bolsa com moedas visíveis está caída
no chão. A minha suspeita de que a bolsa segurada por Lucifuge está vazia baseia-
se no facto de ela parecer estar a "esvoaçar", não contendo qualquer peso (moedas,
etc) dentro dela. Uma bolsa cheia de moedas não estaria de lado, como que
esvoaçando, mas sim pendurada. É claro que pode apenas ser liberdade artística
por parte de quem desenhou esta imagem... No entanto, pode haver aqui um
trocadilho propositado, baseado na palavra latina follis, "bolsa" ou "fole"
(literalmente uma "bolsa de ar"), sugerindo a mesma natureza ilusória e efémera
do "dinheiro do diabo" que está presente na fonte primária. Curiosamente, a
palavra latin follis é a origem etimológica das palavras inglesas folly (loucura) e
fool (louco). O Louco do Tarot também carrega uma "bolsa com ar"...
Existe aqui uma linguagem altamente simbólica que nos pode levar a interrogar
qual é, na verdade, a verdadeira natureza do Tesouro guardado por Lucifuge
Rofocale.
***
UMA CAUDA
18) Uma das minhas edições preferidas de O Grande Livro de São Cipriano é a edição portuguesa da Nascente,
uma chancela da 20|20 Editora. Aconselho também a tradução inglesa do mesmo livro pelo lusitano José LEITãO:
The Book of St. Cyprian – The Sorcerer's Treasure, publicado em 2014 pela Hadean Press.
Seja qual for a verdadeira origem da cauda do Diabo (isto é, Lucifuge), ela parece
simplesmente representar uma maior ligação à natureza animal/terrena do que
no comum mortal, confirmando assim Lucifuge como o "senhor das coisas
materiais".
***
Este parece ser o elemento que sofreu mais mutações ao longo do tempo, sem
dúvida por descuido nas reproduções e reproduções de reproduções a que a
imagem de Lucifuge Rofocale foi sujeita ao longo do tempo. Para explicar melhor
aquilo que eu quero dizer, passo a mostrar três imagens distintas:
O Rei da Caçada Selvagem sempre foi chamado por muitos nomes: poderia ser o
celta Gwynn ap Nudd ou o germânico Wotan, um deus muito romantizado na era
moderna mas que era originalmente um guerreiro-xamã furioso, sábio e traiçoeiro,
conhecedor dos mistérios da morte e da magia. Por vezes podia ser uma deusa,
como Herodias (Aradia), Hécate, ou Frau Holda, enquanto para os cristãos era o
Diabo que liderava a Caçada Selvagem. De facto, o Rei da Caçada Selvagem está
intimamente associado à figura do Deus Cornudo, chamado ora CERNUNNOS ora
KARNAYNA nas correntes gardneriana e alexandriana do Wicca. Este era o senhor
dos mistérios da vida e da morte, mostrado em certos casos como uma divindade
sentada numa postura que faz lembrar as asanas yôguicas, e rodeado de animais.
Pela sua íntima associação à Natureza, o Deus Cornudo está também associado a
plantas e árvores, por vezes assumindo até certas formas que são um misto de
humano e árvore. Não é, assim, coincidência que muitos destes animais e símbolos
correspondam precisamente a algumas das formas assumidas pelo demónio
Leonardo quando preside ao Sabbat das Bruxas.
Haverá quem pense que estabelecer uma conexão entre Lucifuge e o Deus
Cornudo é um passo de gigante, tendo-me eu baseado apenas em semelhanças
fortuitas – e é bem possível que o seja, e que as semelhanças sejam apenas
coincidências. No entanto, as "coincidências" não acabam aqui: na verdade, isto é
apenas o início.
Nesta imagem, por exemplo, vemos Cernunnos segurando uma bolsa de onde
jorram moedas, como a corrente de um rio, o que simboliza o poder de Cernunnos
sobre as riquezas do submundo – como Plutão, o deus do submundo e das
riquezas subterrâneas. Um motivo semelhante é encontrado nas imagens de
Lucifuge, que nós já estudámos, que o mostra vertendo para o chão as moedas de
uma bolsa.
Existe ainda outra imagem (bem mais conhecida) de Cernunnos, que deve também
ser aqui referida:
Repare-se no "anel" (aliás, torque) segurado por Cernunnos – e no outro que ele
usa no pescoço. Parece familiar?
Esta imagem de Lucifuge também é curiosa, pois mostra Lucifuge a passar através
do anel maior, como se se tratasse de um portal, ou um rito de iniciação. Na
verdade, existem alguns círculos megalíticos que contêm pedras com buracos
naturais, que fazem parte de uma antiga tradição de "passar através do anel".
Segundo se acreditava, essas "passagens" na pedra eram guardadas por espíritos
ou fadas, e o acto de passar através da pedra teria efeitos milagrosos – nalguns
casos, a cura de uma doença, ou o advento de uma gravidez desejada. Uma dessas
pedras situa-se em Mên-an-Tol, na Cornualha, Reino Unido:
***
Até agora eu explorei diversas gravuras de Lucifuge Rofocale, em que tentei expor
a minha interpretação de alguns detalhes que diferem entre elas. Alguns desses
detalhes terão sido surpreendentes para algumas pessoas, enquanto outros não
foram assim tão surpreendentes. Eu não esperava outra coisa: na verdade, "trata-
se apenas de mais uma representação do Diabo", em que muito já foi escrito
sobre esse assunto e já há poucas investigações novas que nos consigam
surpreender. Certo.
Há aqui, no entanto, um aspecto que não pode ser ignorado: ambos são aspectos
de uma mesma realidade! E é precisamente no Grand Grimoire que se encontra
esta pista.
***
LúCIFER é LUCIFUGE!
Para quem ler certas partes do Grand Grimoire sem ideias pré-formadas, é bem
claro que Lúcifer é Lucifuge. Na realidade, isso torna-se óbvio logo na Primeira
Conjuração, "dirigida ao Imperador Lúcifer", quando Lucifuge é conjurado a
primeira vez:
22) A palavra "pânico" deriva do nome do deus grego Pan, com cornos, pernas e cascos de bode, e cauda!
Pai, Filho e Espírito Santo, a aparecer sem barulhos e qualquer
cheiro maldito, a responder com voz clara e inteligível, ponto por
ponto, a tudo o que te perguntar, sem o que serás certamente forçado
à obediência pelo poder dos divinos ADONAI, ELOHIM, ARIEL, JEHOVAH,
TAGLA, MATHON, e por toda a hierarquia das inteligências superiores,
que te forçarão contra a tua vontade. Venité! venité! Submiritillor
LUCIFUGE, ou o tormento eterno te dominará pelo grande poder
deste Bastão Explosivo. In subito.
***
Parte III:
"O REFLEXO"
O título desta Terceira Parte é sugestivo, na medida em que da mesma forma que
"Reficul" (Rofocale) é o 'espelho' de "Lucifer", assim também os sigilos de Lucifuge
correspondem aos mesmos sigilos de Lúcifer, mas espelhados. Esta é a hipótese
que eu proponho aqui, em primeira mão.
Algo que se pode destacar logo de início é que dos sigilos de Lúcifer que incluem
triângulos (como é este caso), esses triângulos são sempre descendentes – isto é,
dois vértices para cima, e um para baixo. O sigilo presente no Grimório de
Armadel é especialmente interessante, pois não só aparece gravado a verde (a cor
de Vénus) no documento original, como também inclui um símbolo que faz
lembrar um Ankh egípcio, ou o símbolo astrológico de Vénus.
Apesar do segundo ter sido aquele que eu achei mais interessante num aspecto
simbólico, foi o primeiro que me despertou mais a atenção. Na realidade, sempre
que olho para este sigilo não consigo ver outra coisa senão os braços e cornos de
Lucifuge Rofocale!
Já o segundo sigilo invertido é muito interessante pois aquilo que antes era um
Ankh ou um símbolo de Vénus, torna-se agora um dos símbolos astrológicos da
Terra, ou o símbolo alquímico do Antimónio. Esta equivalência é interessante na
24) O Rei Salomão era crente no deus de Israel mas prestava homenagem aos deuses estrangeiros. O seu nome em
hebraico, Shlomo, poderá estar relacionado com Shalim, uma figura divina da mitologia ugarítica que encarnava
Vénus como Estrela do Anoitecer. Cipriano, por sua vez, era sacerdote e feiticeiro, e o seu nome deriva de Chipre
(Cyprianus = "homem de Chipre" em Latim), que era a ilha sagrada da deusa Afrodite (Vénus). Em Latim, "Cypris"
era também um nome de Vénus.
medida em que demonstra a estreita relação de Lucifuge com o plano material,
através da sua associação ao símbolo da Terra. Já na Alquimia, o Antimónio era
também chamado o "Lobo Cinzento", pois quando derretido ele "devora" os outros
metais, como o cobre, o estanho e o chumbo, formando ligas metálicas(25).
Finalmente, na próxima secção irei explorar o último e mais interessante dos três
sigilos de Lúcifer, pois trata-se de uma descoberta fundamental na minha
investigação:
***
***
A esta altura deve ser claro para o meu leitor que a minha abordagem aos
grimórios parte de uma interdependência entre os vários grimórios, havendo
certas cifras e códigos que só conseguem ser decifrados quando se comparam os
vários livros e textos. Não sei se é a forma "correcta", mas é assim que eu trabalho.
No capítulo anterior vimos como o sigilo de Clauneck está relacionado com o
mistério da "inversão de Lucifer" presente em Lucifuge Rofocale. Agora, veremos
de que forma a Assinatura de Lucifuge confirma esta descoberta:
Enquanto no Chi-Rho o "P" (letra grega "Rho") se encontra acima do "X" (letra
grega "Chi"), na assinatura de Lucifuge a posição relativa de ambos é inversa – o
que faz todo o sentido, já que na Bíblia a expressão "Estrela da Manhã" (Lúcifer) é
usada como sinónimo de Jesus Cristo. O inverso de Lúcifer/Cristo seria, assim,
representado por um sinal semelhante ao Chi-Rho, mas em que as letras que o
compõem ocupassem lugares inversos.
Além disso – e aqui está aquilo que eu acho realmente interessante – a parte
essencial da assinatura de Lucifuge (o tal "Chi-Rho" invertido) faz-me lembrar
algo que nós já vimos antes.
Já as duas letras "N" levaram-me a concluir que poderiam ser iniciais de palavras
– como acontece no texto do Grand Grimoire, em casos em que em vez de se
escrever o nome de alguém, escreve-se "N.N.". Tratando-se da assinatura de
"Lucifuge Rofocale", essas letras seriam "L" e "R". Algo muito semelhante existe no
Grimorium Verum, assim como nos Segredos de Salomão e nas Clavicules du Roi
Salomon par Armadel, em que certas invocações exigem que adicionemos as
iniciais de um primeiro e de um último nome ao sigilo de um Espírito.
Acrescentando as letras certas, teríamos a autêntica Assinatura de Lucifuge
Rofocale:
L R
L.R. ... ou "Lucifuge Rofocale"... ou a primeira e última letras de "Lucifer".
***
Com este último capítulo eu tenciono deixar uma última provocação aos meus
leitores para, no caso de verem nas minhas palavras algo de valor que possa ser
aproveitado, fazerem eles mesmos a sua própria busca em torno destes mistérios,
enigmas e códigos. É verdade que muito fica por dizer e por mostrar – no entanto,
acredito que este texto despertará o interesse de algumas pessoas que, como eu,
sentiram uma chamada para explorarem os dois caminhos, o luminoso e o
tenebroso, apenas para descobrirem que, no final, os dois são apenas um. Deus e o
Diabo andam de mãos dadas. A ilusão da separação só existe na nossa mente, e no
medo irracional que ainda nutrimos por tudo aquilo que ainda não
compreendemos, ou que achamos que vai perigosamente contra as regras do
"politicamente correcto" do mundo moderno. No entanto, o mundo moderno é
apenas uma máscara que nos transmite a falsa segurança de que tudo conhecemos
e tudo controlamos. É uma armadilha do Ego, que tudo deseja controlar, conhecer,
qualificar e quantificar. A realidade, no entanto, não é assim tão simples. A
verdade só pode ser descoberta no limítrofe, no extremo, n'Aquilo que não é nem
deixa de ser ao mesmo tempo. Em tempos, houve quem tenha dado um Nome a
este Mistério Supremo: ABRAXAS. Para nós, isto não é mais do que as Duas Faces
de Janus/Jaun, ou os dois aspectos de Vénus: LUCIFER e REFICUL.
(Reconstrução de uma imagem tradicional de Lucifuge por Tiago "Nerve"
Gonçalves)
Parte IV:
Anexos
Os seis espíritos
inferiores, segundo:
Grimorium Grand Grimoire:
Verum:
1. Put Satanakia Lucifugé Rofocale
2. Agalierap Satanachia
3. Tarchimache Agaliarept
4. Fleruty Fleurèty
5. Sagatana Sargatanas
6. Nesbiros Nebiros
Algo em que reparamos imediatamente é que cada lista tem uma entidade
aparentemente sem correspondente na outra lista. Por exemplo, Lucifuge Rofocale
não figura no Grimorium Verum, enquanto Tarchimache não tem lugar no Grand
Grimoire. A primeira tentação seria considerar que um é o outro, apenas com
nomes diferentes.
Quem já estudou o Grimorium Verum poderá pensar que eu estou louco se disser
que Tarchimache e Agalierap, duas entidades aparentemente bem distintas no
referido texto, são exactamente o mesmo. Na verdade, não só são exactamente o
mesmo, como os seus nomes são duas partes do mesmo nome original. E
isso eu só entendi quando estudei os Segredos de Salomão.
Para ilustrar melhor aquilo que estou a dizer, passarei a mostrar-vos uma tabela
de comparação dos seis espíritos inferiores nos Segredos de Salomão, no
Grimorium Verum, e no Grand Grimoire:
Os seis espíritos
inferiores, segundo:
Segredos de Grimorium Grand Grimoire:
Salomão: Verum:
1. Syrach Put Satanakia Lucifuge Rofocale
2. Satanachi Agalierap Satanachia
3. Agateraptar- Tarchimache Agaliarept
kymath
4. Fteruthy Fleruty Fleurety
5. Serphagathana Sagatana Sargatanas
6. Resbiroth Nesbiros Nebiros
Sabendo que estas listas seguem uma ordem cronológica, desde a mais antiga
(Segredos de Salomão) até à mais moderna (Grand Grimoire), compreenderemos
que:
28) Ver a este respeito: PETERSON, Joseph H. (2018), Secrets of Solomon, Twilit Grotto Press. Ver
também: Grimorium Verum (2007), do mesmo autor.
– Nos Segredos de Salomão, o primeiro dos 6 espíritos inferiores chama-se
Syrach. Por contraste, no Grimorium Verum Syrach não é um dos seis espíritos
inferiores, mas sim um Duque que governa sobre outros 18 espíritos
subordinados;
Com este raciocínio fica assim desmonstrado que Tarchimache não é igual a
Lucifuge Rofocale, mas na verdade é o mesmo que Agalierap, ou Agaliarept.
Tirando isto não há muito mais a dizer, pois nenhuma descrição de Syrach é
fornecida, nem nos Segredos de Salomão nem nas Clavicules du Roi Salomon par
Armadel, excepto que ele está sob as ordens de Lúcifer e tem dois sigilos: um
correspondente a Syrach na Europa, e outro correspondente a Syrach na Ásia (os
dois continentes de Lúcifer):
29) Nas Clavicules du Roi Salomon, par Armadel, Livro Terceiro, também anteriores ao Grimorium
Verum, é quando uma divisão nítida parece ter sido feita. Neste caso temos dois espíritos, Agateraptor
e Himacth, com selos diferentes.
ANEXO 2 – TABELA DOS ESPíRITOS
Clavicules du
Clavicula
Roi Grimorium Grand
Salomonis
Salomon, par Verum Grimoire
De Secretis
Armadel
3 Espíritos Lucifer Lucifer Lucifer Lucifer
Superiore Belzebuth Belzebut Beelzebuth Beelzebuth
s Elestor Elestor Astaroth Astaroth
Syrach Sirachi – Lucifuge R.
Satanachi Satanachi Satanakia Satanachia
Agateraptar Agateraptor Agalierap Agaliarept
6 Espíritos
Kymath Himacth Tarchimache –
Inferiores
Fteruthy – Fleruty Fleurety
Serphagathana Stephanata Sagatana Sargatanas
Resbiroth – Nesbiros Nebiros
Claunth Elantiel/Chaunta Clauneck Bael
Reschin Resochin Musisin Agares
Beschard Bechar Bechard Marbas
Frimodth Frimoth Frimost Pruslas
Klepoth Klepoth Klepoth Aamon
Klio Klic/Kleim Khil Barbatos
18 Mertiel Mertiel Merfilde Buer
Espíritos Glithret Sirumel/Selytarel Clistheret Gusoyn
Subordina Sirchael Sirechael Sirchade Botis
dos Hepath Hepoth Hicpacth Bathim
a Syrach Segol Fegot Humots Pursan
(excepto Humeth Humet Segal Eligor
GG) Frulthiel Frulhel Frucissière Loray
Galand Galant Guland Valefar
Surgath Surgatha Surgat Foraii
Menail Menail Morail Ayperus
Fruthmel – Frutimière Naberus
Glasya
Hurchetmigaroth Glitia Huictiigaras
Labolas
Tabela de comparação dos vários Espíritos nos 4 Grimórios.
***
Mas e se... um demónio não fosse realmente demoníaco? Eu evitarei usar a palavra
"demónio" ao longo de todo este texto precisamente por causa desses
condicionamentos culturais de que muitos acabam por ser vítimas. Depois, como
pensam que estão a lidar com "demónios" que são "maus", convém, quando se
decidem a invocar o Diabo, que se protejam com os nomes potentíssimos de Deus:
Adonay, Elohim, Ariel e Jehovah – tudo exactamente como está escrito nos
grimórios, pois é assim que tem de ser. Se algo falhar, será a danação eterna para o
mágico. Disparates.
Enfim. Isto daria para várias páginas de texto, mas a minha intenção não é
explicar como fazer um pacto com o diabo. Aquilo que eu considero importante
reter com esta mensagem pode ser resumido em três pontos:
30) Por outras palavras, os filhos da puta existem tanto "cá em baixo" como "lá em cima"! Assim como os
bonzinhos!
"Bem" e "Mal" são classificações morais e/ou religiosas criadas pelo ser
humano, para que ele possa ter a ilusão de que conhece tudo o que o rodeia,
incluindo as realidades superiores – ou inferiores – ao mundo físico;
No círculo mágico, por vezes o maior inimigo do mágico é ele próprio. Assim
como o seu maior amigo.
***
"Cronologia sem datas" não deixa de ser uma expressão curiosa, e irónica. A
questão – e por isso é que tem mesmo de ser "sem datas" – é que grande parte das
imagens de Lucifuge que eu consegui reunir até hoje foram retiradas de cópias em
PDF de diferentes edições do Grand Grimoire, as quais, como é óbvio, não contêm
elementos suficientes para que se possa identificar os anos das referidas edições.
Assim, esta tentativa de uma "cronologia sem datas" resulta apenas num primeiro
estudo comparativo das diferentes representações de Lucifuge Rofocale, em que
me baseei nas semelhanças e diferenças das várias imagens de forma a poder
estabelecer, de um modo mais ou menos seguro, quais são as imagens originais e
quais são as imagens derivadas dessas originais.
***
***
***
***
TIPO 4:
Entre estas imagens e outras semelhantes, não consegui descobrir uma que
pudesse ser a imagem-fonte. Todas elas mostram Lucifuge com características
similares: 2 cornos em vez de três, sem roupa, e segurando um anel enquanto
passa através de um anel maior, como se se tratasse de um "portal".
***
***
AGRADECIMENTOS E DEDICATóRIA:
Este texto nunca teria sido possível sem a ajuda de algumas pessoas cujo apoio,
consciente ou inconscientemente, foi essencial ao longo de todo este processo.
Falo em "processo" porque para mim foi realmente um processo – por vezes
doloroso e outras vezes recompensador, em que muitas vezes pensei que iria
caminhar para a minha própria auto-destruição e só quis desistir, e noutras vezes
senti que a minha mão era guiada por Algo que eu não sei bem descrever. Só sei
que este foi o artigo mais difícil e mais recompensador que eu escrevi até hoje.
Descobri muitas coisas sobre mim próprio ao longo deste processo, e percebo
agora que eu tinha de o escrever. Porquê? Não sei nem consigo adivinhar. E se o
leitor quiser que eu seja sincero, ainda hoje não sei se fui só eu que escrevi isto...
* E finalmente:
A São Cipriano:
AMEN!
Luís Gonçalves