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Duas colheres de eufemismo de 8 em 8 horas

Em Portugal, a realidade tem de se esforçar muito para


ser considerada caótica
Ou muito me engano ou o ministro da Saúde descobriu finalmente a
solução para os problemas do SNS. Confrontado com o facto de o tempo
médio de atendimento, nas urgências do Hospital de Santa Maria, superar
as 11 horas, Manuel Pizarro disse que não se verifica um cenário de caos,
mas sim de grande dificuldade. Os utentes que nesse dia tinham entrado
na urgência às oito da manhã e às 19 horas ainda não tinham sido
atendidos devem ter suspirado de alívio. Uma coisa é uma pessoa estar
metida no caos, outra é estar meramente envolvida em grandes
dificuldades. Quaisquer cinco minutos de caos custam mais do que 11
horas de grande dificuldade. O ideal seria que o ministro aplicasse o
mesmo tratamento eufemístico a todo o universo da saúde. Chamar
“urgências” às urgências é capaz de ser demasiado dramático. Na maior
parte das vezes, são apenas casos que requerem relativa pressa. E a ideia
de que quem se dirige ao hospital são doentes também roça o exagero.
Em alguns casos não se trata bem de doenças, são cidadãos que sentem
uma moinha. Mesmo a designação de “hospital” traz à memória imagens
desagradáveis: compressas, agulhas, o cheiro a éter. Porque não a
Estância de Santa Maria? Não existe, evidentemente, uma situação de
caos em que os doentes são obrigados a esperar mais de 11 horas nas
urgências do Hospital de Santa Maria. O que se passa é um cenário de
grandes dificuldades em que apesar disso alguns cidadãos com uma
moinha têm tido a oportunidade de serem atendidos em menos de 12
horas na zona de relativas pressas da Estância de Santa Maria.

Ricardo Araújo Pereira, Expresso, 9 dezembro 2022

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