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Indústria cultural e indústrias

culturais: alguns apontamentos


Some notes on cultural industry and cultural industries

Resumo É necessária uma revisão crítica dos usos do conceito


(ou teoria) de indústria cultural, que sofreu enorme desgaste por
causa da falta de articulação dialética entre conceito e objeto,
ou seja, da teoria com as várias indústrias culturais existentes
e seus produtos. Essa revisão toma como ponto de partida os
estudos de Theodor W. Adorno sobre o rádio e a música popular
no rádio durante sua participação no Princeton Radio Research
Project, de 1938 a 1941. Estes estudos podem servir de guias ou
pistas para a rearticulação entre a teoria da indústria cultural e
seus novos objetos: os meios de comunicação de massa atuais e
seus produtos específicos.
Palavras-chave indústria cultural; T. W. Adorno; The Prince-
ton Radio Research Project; música popular.

Abstract Revisiting the uses of the cultural industry theory is ab- Iray Carone
solutely necessary in order to understand its dialectical relation Instituto de Psicologia da
with the media and its products. We must know how Theodor Universidade de
São Paulo (IPUSP)
W. Adorno has studied the radio medium in the 30’s and what
iraycarone@uol.com.br
he had written about its categorical properties through empirical
researches, when participating in The Princeton Radio Research
Project (1938-1941). It is time to further the news media research-
es, following up his studies on radio and radio pop music.
Keywords cultural industry; T. W. Adorno; The Princeton
Radio Research Project; pop music.

P
ara começo de conversa, a expressão “indústria cultural”
é muito mais metafórica que literal. Em um manuscrito
denominado Plugging study (ADORNO; MacDOUGALD,
1941), que serviu de roteiro para uma pesquisa de campo sobre
as canções populares de sucesso (hit songs), T. W. Adorno usou,
pela primeira vez, a expressão “indústria da música popular”:

Primeiro de tudo, é necessário explicar o que se enten-


de pelo termo “indústria”. Pois é evidente que não se
pode falar sobre indústria da música popular num senti-
do literal. Canções não são nem produzidas em fábricas
com a ajuda máquinas, nem por operários de fábricas.
Assim, o termo tem necessariamente um significado
mais ou menos metafórico. (ADORNO; MacDOUGALD,
1941, p. 1, tradução nossa).
A indústria da música popular, tal como antigo jingle: “Melhoral, Melhoral, é melhor e
se apresentava em 1939, era mais manufatu- não faz mal!”
reira que industrial.1 Embora jogando muitos Um dos recursos atuais dos novos com-
produtos musicais na circulação de mercado- positores é o de colocar suas músicas em ví-
rias, e inserida no modo capitalista de produ- deos do YouTube – a invenção tecnológica do
ção econômica, seus métodos de produção broadcast yourself – a fim de testar seu poten-
não poderiam ser considerados estritamente cial de sucesso comercial pelo número de pes-
industriais. No entanto, Adorno observou que soas que o acessam e o comentam e, deste
os meios de reprodução técnica afetavam modo, suscitar o interesse de alguma grava-
tanto a produção musical quanto sua recep- dora.2 Um disco é um investimento comercial
ção pelos ouvintes. As determinações da re- que implica custos, e o potencial de sucesso é
produção técnica, responsáveis pelas cópias um elemento essencial para a tomada de de-
do produto que entrarão na circulação de cisão sobre sua gravação.
mercadorias, estão internalizadas na forma da Mas voltemos ao estudo da indústria da
produção de seus artefatos – as composições música popular nos tempos em que Adorno
musicais precisavam ser feitas como produtos começou a investigar o cenário musical norte-
vendáveis e com potencial de sucesso comer- -americano, em plena era do rádio, do cinema
cial. O que é verdade ainda hoje. falado, das big bands e seus arranjos jazzísti-
Na cabeça de um compositor de música cos, das editoras de Tin Pan Alley e do apogeu
popular, por exemplo, já há o imperativo de da música popular por meio do radio plugging.
pensar no aspecto comercial de sua compo- O manuscrito Plugging study,3 (ADORNO;
sição antes mesmo de sonhar com sua gra- MacDOUGALD, 1941) que ainda se encontra
vação em disco. Ou seja, de pensar em sua nos arquivos da Universidade de Colúmbia, é
composição como uma mercadoria antes de parte do chamado The Princeton Radio Rese-
ela se tornar um produto posto à venda pe- arch Project, de cuja seção musical Adorno foi
las gravadoras. Elton John, quando começou diretor, de 1938 a 1941, nos Estados Unidos.
a compor músicas populares – após uma for- Quem realizou a pesquisa de campo junto às
mação musical anterior em música séria – foi editoras musicais, revistas musicais da época,
instruído pelos produtores comerciais para pessoal do rádio e de orquestras, pluggers etc.
nelas acrescentar refrães ou repetições regu- para fazer um levantamento completo sobre
lares de acordes e letras para deles, não só o negócio da música popular nos EUA foi Dun-
derivar o título das canções, como provocar can MacDougald Jr. A orientação do projeto
sua memorização pelos ouvintes. Em outras foi de Adorno, do começo ao fim da pesquisa,
palavras, a composição da música popular atestada pelos inúmeros memorandos acres-
inclui seu próprio anúncio comercial ao usar 2
Ao que tudo indica, o disco gravado está caindo em
uma técnica muito semelhante àquela da pu-
uma relativa obsolescência, porque o artista pode ser
blicidade de mercadorias – os jingles! Até um beneficiado pelo número de acessos à sua música pelo
ouvinte incapaz de memorizar uma canção in- YouTube, sem precisar de gravadoras; os shows musicais
teira poderá lembrar-se muito bem de seu re- para o grande público parecem estar substituindo o
rádio e os discos na produção de sucessos.
frão, da mesma maneira que se lembra de um 3
O termo plugging era utilizado para designar o
mecanismo da propaganda da música pelo rádio, que
1 Em 1963, em uma conferência radiofônica, Adorno consistia em rodá-la várias vezes por dia e semanas nos
reiterou que a expressão é metafórica quanto aos programas musicais, de costa a costa do país, para sua
métodos de produção, inclusive nas realizações altamente rápida popularização; hoje, o plugging é chamado de
organizadas de filmes cinematográficos. A expressão está rotation, que é medido por spins per week. O plugging,
referida, deste modo, à padronização dos produtos da entretanto, não deve ser confundido com a prática da
indústria cultural. A conferência foi traduzida para o inglês payola (no Brasil, jabaculê), que é o suborno de uma
sob o título Culture industry reconsidered e publicada na gravadora para uma música de determinado artista
New German Critique em 1975. rodar mais vezes nas emissoras.

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centados aos relatórios de pesquisas de Ma- Em seus estudos sobre a música no rá-
cDougald. Exemplos de memorandos assina- dio, não só da música popular, mas também
dos por “TWA” são aqueles em que diz para da música séria, Adorno ateve-se, em primeiro
MacD “checar” números e tabelas fornecidos lugar, a dois veículos de sua reprodução técni-
pelos editores, revistas ou emissoras de rádio; ca: as editoras musicais e o rádio. Os veículos
ou, então, observações pontuais para dar mais de reprodução técnica afetavam diretamen-
precisão ao texto, do tipo: te, não só a produção musical, mas também
os receptores – os usuários das partituras im-
Por favor, insira algumas sentenças pressas (em geral, com arranjos para piano e
contendo informação precisa so- letras), e os ouvintes do rádio.
bre os dois tipos de arranjos: stock Poder-se-ia pensar que a música séria,
arrangements4 e arranjos especiais composta e produzida bem antes do adven-
para bandas, não apenas com refe- to do rádio e da indústria cultural da músi-
rência às diferenças de estilo entre ca, não seria afetada quando reproduzida
esses dois tipos de arranjos, mas pelo rádio. Ledo engano. Será que a Quinta
também com referência às implica- Sinfonia de Beethoven não é convertida em
ções financeiras – por exemplo, se uma música de câmara de baixa qualidade
realmente os stock arrangements quando transmitida pelo rádio? Música de
são pagos pelos editores e os câmara, porque perde, pela engenharia de
arranjos para os conjuntos musicais som dos estúdios do rádio e do uso de mi-
por eles mesmos, ou se os últimos crofones, sua enorme dimensão acústica,
são pagos também pelos editores, semelhante ao que acontece com a catedral
etc. Eu gostaria também de ter aqui de Milão quando miniaturizada em um en-
alguma informação sobre se os feite de bolo ou em uma réplica horrorosa
arranjadores tem alguma conexão de algum monumento de cemitério. De bai-
com os conjuntos musicais, como se xa qualidade, porque a música de câmara é
afirma freqüentemente, ou se eles polifônica e a sinfonia, não (ADORNO, 1941,
são, de fato, meros funcionários dos p. 110-149); além do efeito sobre os sons dos
editores. (ADORNO; MacDOUGALD, instrumentos da orquestra, que são trans-
1941, p. 24, tradução nossa). formados tecnicamente em imagens sono-
ras em virtude da passagem da corrente das
Dessa pesquisa de campo derivaram ondas hertzianas, próprias a esse veículo.
dois artigos: The popular music industry, de Essas transformações (assim como outras)
Duncan MacDougald Jr., e On popular music, foram impostas pelo veículo, a tal ponto que
de T. W. Adorno (com a assistência de George a maior perda foi a da própria estrutura sin-
Simpson). Ambos foram publicados em 1941; fônica! Ouvir uma sinfonia no rádio não cons-
o primeiro, na coletânea de Paul Felix Lazars- titui uma verdadeira experiência estética de
feld e Frank Norton Stanton – Radio Research contato com ela: é outro produto que, na
1941.–; o segundo, na Revista do Instituto de verdade, converteu a sinfonia de Beethoven
Pesquisa Social publicada em inglês sob o tí- em um sucedâneo redutor sem qualidade.
tulo Studies on Philosophy and Social Science. Interessante anotar que Adorno considerava
4
Stock arrangements eram feitos pelo departamento que se poderia fazer do rádio um instrumen-
de arranjos das editoras após a aprovação de uma to musical e produtor de música, à maneira
determinada música ou canção e do acerto das do Theremin, do violino Miessner, do órgão
formalidades de direitos de reprodução; as cópias
“black and white” eram tiradas da cópia padronizada
Hammond e do instrumento Mager (ADOR-
para piano da editora para circular por toda a indústria NO, 1938, p. 151-156), embora o criticasse na
e entre os artistas do setor musical (ADORNO; reprodução elétrica dos sons naturais de ins-
MacDOUGALD, 1941, p. 23). trumentos não elétricos. Ou seja, usar suas

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características tecnológicas para fazer músi- do pelo meio de reprodução técnica. Exemplo
ca em seu próprio estilo. notável é a transformação do livro A guerra
A análise de Adorno deteve-se, pois, dos mundos, de H. G. Wells em uma peça ra-
nas propriedades imanentes da reprodução diofônica do Mercury Theatre on the air de Or-
técnica, ou seja, sobre como o veículo atra- son Welles – que produziu um memorável pâ-
vessa e modifica o conteúdo veiculado, con- nico coletivo nos EUA em 1938, e, mais tarde,
vertendo-o em outra coisa e, além do mais, no Equador, em 1949 –, ou transformado em
afetando o receptor. filmes de Hollywood ou na gravação da peça
Quais eram, portanto, essas proprie- radiofônica em um disco. O romance impresso
dades do veículo “rádio”, as alterações qua- jamais poderia provocar um comportamento
litativas da música por ele transmitida e os de pânico em seus leitores; tampouco os fil-
efeitos sobre o receptor? Adorno desvendou mes sobre A guerra dos mundos conseguiram
cinco propriedades, às quais chamou de cate- ou conseguiriam levar o público a enlouque-
gorias do rádio: a simultaneidade temporal, cer diante da encenação da invasão marciana
a ubiquidade, a ubiquidade-padronização, o na Terra. A mesma peça radiofônica gravada
caráter de imagens sonoras de seu “som” e em um disco nem em sonho conseguiria indu-
a escuta atomística. Sem dúvida, essa investi- zir o ouvinte a correr para as ruas em busca
gação permitiu-lhe ver como cada uma dessas de socorro diante de uma ameaça iminente…
propriedades afetava a música por ele trans- O poder do rádio, de onde vem?
mitida, não só durante a reprodução, mas Adorno responde com sua análise das
também na produção e nos efeitos sobre as categorias do rádio: a coincidência temporal
audiências (ADORNO, 2006, p. 75-199; CARO- ou simultaneidade temporal induz a ilusão
NE, 2011, p. 148-178) de imediaticidade (ADORNO, 2006, p. 81-82).
Estendendo as questões sobre as pro- Essa ilusão de imediaticidade significa que a
priedades imanentes do rádio aos outros mediação técnica do rádio não é percebida
veículos, será que os conteúdos não estarão pelo receptor, como se o rádio fosse uma
sempre alterados de forma peculiar pelos de- voz falando diretamente em seus ouvidos. A
mais veículos que conhecemos, embora não mediação do livro impresso, a mediação do
saibamos como? disco e a mediação do filme estão congeladas
Sendo eles os principais responsáveis e materializadas no livro, no disco e no filme
pela disseminação da cultura e da indústria – são claramente perceptíveis ao receptor. A
cultural, podemos dispensar a análise de suas imediaticidade também atrapalha o discerni-
propriedades e nos concentrar apenas em seus mento entre o que é fato e o que é ficção, en-
conteúdos e efeitos sociais e/ou psicossociais, tre o que está acontecendo em tempo real e o
como se os conteúdos e os receptores não esti- que já aconteceu. A televisão pode, também,
vessem pré-condicionados pelos meios? causar a ilusão da imediaticidade, razão pela
Não me parece que Adorno tenha negli- qual se torna necessário, por vezes, acrescen-
genciado essa análise; ao contrário, dispôs-se tar mensagens às imagens transmitidas: “ao
a enfrentar a dificuldade de criar hipóteses vivo”, “imagens gravadas”, ou mesmo, “si-
sobre o veículo do rádio e sobre os efeitos da mulação com atores”.
transmissão radiofônica no receptor – a au- Ora, se o rádio distingue-se dos meios
dição regredida, desatenta e atomística. Não de reprodução anteriores é porque foi o pri-
me parece também que o conteúdo possa ser meiro veículo a usar ondas eletromagnéticas.
dissociado do veículo, ou melhor, que ambos Exatamente por causa dessa propriedade é
possam ser tratados como coisas separadas. que ele suplantou os noticiários da imprensa
Abstrair um do outro é o mesmo que dissociar jornalística – o rádio anuncia bem antes da im-
a forma do conteúdo sem apanhar a maneira prensa escrita o que está acontecendo em um
peculiar pela qual o conteúdo foi transforma- determinado momento. E mais, se a diferença

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temporal entre emissão e recepção é despre- logia de comunicação. Outro fato que decorre
zível, pode-se dizer também que, com o uso da velocidade é a dificuldade do receptor em
de ondas hertzianas, o rádio conquistou a ubi- reter pela memória o que foi dito e visto, pre-
quidade – fenômeno nunca antes registrado e cisando gravar ou rever as imagens e as falas
impossível de acontecer pelos meios impres- para guardar sua lembrança. Comparando a
sos tradicionais. televisão com o livro impresso, é como se este
É interessante observar outra diferença último estivesse parado e obedecendo ao rit-
entre o rádio e o jornal. O controle do tempo mo de leitura imprimido pelo receptor. Por
no rádio equivale ao controle do espaço no essa razão, diz-se que a leitura é uma atividade
jornal. Neste, as matérias tem seu “volume” do leitor na mesma medida em que há falta de
medido em caracteres escritos e espaços em atividade ou passividade do telespectador (a
branco; no rádio, os minutos e segundos são não ser quando muda de canal ou desliga seu
rigorosamente contados na transmissão. No aparelho). O rádio, por sua vez, pode ser ouvi-
jornal, isso incide diretamente na compressão do apenas como um fundo que não interfere
da linguagem, na padronização dos escritos, nas outras atividades do ouvinte, cuja audição
nas manchetes quase telegráficas e no encur- é regredida, atomística e desconcentrada. É o
tamento (concisão) das mensagens. Menos é non-listening listening do rádio.
mais – bons jornalistas sabem disso. No rádio, No cinema, o olho da câmera em movi-
a voz sofre o impacto da exigência de uma mento lento ou ralenti, apanha e registra mo-
dicção bem modulada e de a mensagem ser vimentos imperceptíveis aos nossos sentidos,
controlada pelos minutos e segundos de sua como aqueles do nascimento e desenvolvi-
emissão, e a se dirigir simultaneamente para mento de uma plantinha até o desabrochar de
milhares de ouvintes de locais geográficos uma flor, ou então quando flagra em imagens
diferentes, ou seja, destinada ao ouvinte- os lapsos dos movimentos e falas ocorridos
-padrão. Há uma espécie de compressão e em uma conversação – antes apenas captura-
padronização da linguagem – quer no espaço, dos pela atenção flutuante do psicanalista –,
quer no tempo – para sua adequação ao meio facultando, assim, “a análise de realidades até
utilizado e para atingir distintos receptores na então inadvertidamente perdidas no vasto flu-
outra ponta do processo da comunicação. xo das coisas percebidas” (BENJAMIN, 1980,
Os programas de música séria veiculados p. 22-23). Outro ponto a destacar da repro-
pela televisão, por exemplo, são pouco atrati- dução cinematográfica é a espacialização do
vos até para aqueles que apreciam esse tipo movimento, ou seja, o cinema é apenas e tão
de música e têm a oportunidade de uma visão somente uma réplica tecnológica que reduz
mediada dos instrumentos, dos músicos e do os movimentos a um conjunto de imagens pa-
regente da orquestra. A televisão é um meio radas – os fotogramas. Quando os fotogramas
em que as imagens sucedem-se em grande ve- são projetados na tela, com a velocidade de
locidade, o que determina a imobilidade do te- 40 quadros por segundo, o cérebro bloqueia
lespectador diante de sua tela. Se as imagens a percepção da espacialização do movimento.
forem estáticas e focalizarem o mesmo cená- Ou seja, o movimento temporal no cinema é
rio por muito tempo, o condicionamento do uma ilusão determinada tecnicamente.O ci-
meio interfere em seu comportamento, que nema não causa a ilusão de imediaticidade do
se torna inquieto como se quisesse impor mais rádio, mas a ilusão do movimento.
movimento na máquina para voltar a imobili- De qualquer maneira, o que temos que
zar a si mesmo. Para se perceber a velocidade levar em consideração é que os distintos meios
de sucessão de imagens da TV, basta desligar de reprodução técnica são diferentes entre si e
o áudio do aparelho. A imagem conectada nos afetam, como receptores, de maneira dis-
com o áudio forma, de fato, uma unidade que tinta. Saber como afetam a produção cultural
torna imperceptível a velocidade dessa tecno- e como nos afetam social e psicologicamente é

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procurar entender as indústrias culturais, cada crítico da cultura não seja gloriosamente en-
uma em sua especificidade, sem cair na visão terrado. Há muito a investigar no mundo de-
universal e abstrata de “a indústria cultural”. pois de Adorno.
Esta expressão gasta e banalizada, no entanto, Frisamos que se trata de uma relação
poderá ganhar contornos novos se levarmos a dialética ou de contradição entre conceito e
sério as pistas abertas por Adorno ao estudar objeto que não se resume apenas à articula-
a música veiculada pela reprodução técnica do ção entre o conceito de indústria cultural e as
rádio. As investigações sobre as indústrias cul- várias indústrias culturais. É preciso ir além e
turais devem prosseguir, sobretudo por causa examinar a articulação entre o conceito e os
do forte impacto da revolução elétrica e eletrô- produtos vários das indústrias culturais. De
nica em curso que, a partir do rádio, tem alte- algum modo, tais articulações foram postas
rado o cenário da produção cultural no mundo
pela obra de Adorno; no entanto, nem sem-
contemporâneo.
pre foram percebidas por seus leitores, como
O conceito de indústria cultural está,
se bastasse “pinçar” o conceito de indústria
pois, em relação dialética com seu objeto: as
indústrias culturais. Se o conceito (ou teoria) cultural em sua obra escrita com Horkheimer
desvela-nos criticamente a função social de en- e publicada pela primeira vez em 1947, Dialéti-
tretenimento e entorpecimento das massas, ca do esclarecimento. Vale a pena lembrar que
o objeto multiplicou-se e desdobrou-se em o conceito foi elaborado depois do estudo do
uma pluralidade de imagens dos produtos, dos rádio (1938-1941) e talvez tenha derivado sua
meios e dos receptores das indústrias culturais. força crítica exatamente da imersão adornia-
O conceito de indústria cultural, contu- na no objeto.
do, ao ser abstraído das indústrias culturais, Quais são as implicações da apropriação
perde seu poder crítico e degrada-se como incompleta do conceito, sem a relação dialéti-
mero conceito formal; as indústrias culturais, ca deste com o não conceitual por ele deter-
por seu turno, sem o poder crítico do concei- minado, ou seja, ao se pensar que o conceito
to, não são relevantes para uma teoria crítica coincide com o objeto, o universal com as suas
da sociedade. Os media studies, grosso modo, concretizações? E as diferenças de menos e de
são um exemplo da falta de um enfoque críti- mais entre conceito e objeto, onde ficam?
co das indústrias culturais.5 Em suma, o con- Se mantivermos o conceito separado
ceito de indústria cultural tem de ser urgen- do objeto, por certo ficaremos presos a uma
temente confrontado com seu objeto6 para asserção simples que equivale a uma conde-
que aquilo que foi criado como instrumento nação em bloco da indústria cultural como o
5
Hoje se fala em critical media studies quando os grande mal da cultura, sem maiores cogita-
estudos dos meios de reprodução técnica têm base
ções sobre os objetos produzidos. No entan-
na teoria crítica.
6
Adorno (2008, p.7) diz que a relação do conceito to, não raro, deparamo-nos com filmes – da
(teoria) com o objeto (não conceitual) é dialética. “O indústria cultural do cinema – que têm conte-
que se entende por isso é que o conceito entra em údo de verdade. São filmes de arte que conse-
contradição com a coisa à qual se refere”; “(O fato é
guiram transcender, por meio de sua técnica
que não estou falando sobre “conceito” no sentido
ordinário, mas sobre o conceito que já é teoria)”; interna, os limites impostos pela dominância
“O conceito é sempre menos que aquilo que é da reprodução técnica sobre a produção; ou
subsumido a ele. Quando B é definido como um A, ele então, músicas populares não padronizadas
é sempre diferente de e mais que A, o conceito sob
na melodia, letra, harmonia e ritmo, como
o qual está subsumido por meio de um julgamento
predicativo. Por outro lado, entretanto, num certo a peça para piano Deep purple, de Peter De
sentido, o conceito é ao mesmo tempo, mais que as Rose, ou The bells of San Raquel, de Barcelata,
características que estão a ele subsumidas. Se, por grandes sucessos da era do rádio, avaliadas
exemplo, eu penso e falo de ‘liberdade’, este conceito
em sua estrutura musical por Adorno como
não é simplesmente a unidade das características de
todos os indivíduos que podem ser definidos como composições comparativamente superiores
livres, com base em uma liberdade formal enunciada ao grosso da produção da música popular
numa dada constituição”.(tradução nossa)

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(ADORNO, 2006, p. 479-496). Mas não só calmente moralizadora”, porque há boas can-
elas, evidentemente. ções que são mal harmonizadas no sentido
Isso nos leva a pensar que voltar a aten- acadêmico e vice-versa (ADORNO, 2006, p.
ção para os objetos é a única maneira de 479) Ora, parece que é isso que está aconte-
restituir à crítica o poder da crítica – sem o que cendo com a crítica dos produtos da indústria
ela é genérica e homogeneizante; em outras cultural – ela tornou-se moralizadora ou mora-
palavras, uma bobagem com ares de sabedoria. lista. É o inverso do que deveria ser.
Mesmo as obras de arte, consagradas ou não Podemos dizer, então, que conhecer as
por algum cânone literário, não podem ser vicissitudes das indústrias culturais, sujeitas
simplesmente idealizadas como o contrário diretamente às pressões do comércio, e cada
determinado pela crítica em bloco da indústria uma de um modo particular, permite-nos
cultural: o reino da verdade e do bem. Manter avançar no processo da crítica da qualidade
a tensão dialética entre conceito e objeto, de seus produtos. Embora alguns produtos
tanto no que diz respeito à arte como à possam ser considerados meras exceções à
indústria cultural, é a saída legítima para se regra geral, eles também confirmam que o
evitar a canonização da arte pela excomunhão investigador não pode contentar-se com o
da indústria cultural. conceito de indústria cultural sem articulá-lo
A lógica do mercado, sem dúvida algu- com o objeto, ou seja, desconhecendo como
ma, nivela a produção cultural por meio da o universal nele está concretizado. Às vezes,
dominância da reprodução técnica sobre a de modo contraditório ao conceito.
produção e sua recepção pelo consumidor;
no entanto, podemos dizer que nem sempre Pois na música popular a fórmula
os produtos ou objetos produzidos subordi- padronizada, que é onipresente,
nam-se inteiramente a essa pressão. Há dife- permite ao compositor a realização
renças qualitativas entre eles. A própria dia- de suas intenções essenciais apenas
na forma dos desvios mais discre-
lética conceito-objeto permite-nos aumentar
tos, enquanto que o compositor da
o foco para discriminar essas diferenças sem música séria não está limitado por
jogar todos os produtos da indústria cultural qualquer padrão fora de sua pró-
no inferno. Disse Adorno sobre como avaliar a pria imaginação e pode, por con-
qualidade de músicas populares: seguinte, fazer de suas intenções
originais o principal evento. (ADOR-
O único meio para se avaliar canções NO, 2006, p. 479, tradução nossa).
de sucesso de maneira correta é
analisá-las tão concretamente quan- Voirol diz que os trabalhos de Adorno
to possível com base na sua própria sobre os meios de comunicação e a cultura no
linguagem e sem importar critérios período do pós-guerra tomaram um rumo di-
de fora de sua própria esfera.
ferente com suas intervenções no sistema mi-
[…]
Qualquer avaliação que queira sim-
diático ao estar muito presente – como inte-
plesmente medir a música popular lectual público num momento tão importante
por padrões da ‘música séria’ não da Alemanha – na imprensa, no rádio e na te-
será apenas irrealista, mas também levisão. “Pode-se perguntar se esta presença
esteticamente superficial por apli- na mídia não é uma contradição prática de sua
car critérios alheios àqueles ineren- proposta sobre a indústria cultural” (VOIROL,
tes à própria composição. (ADOR- 2011, p. 150).
NO, 2006, p. 479, tradução nossa) Mas, diz o autor,

Em outras palavras, a avaliação crítica Um leitor avisado de Adorno per-


das músicas populares não pode ser “musi- cebe as inflexões que ele opera em

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suas diferentes intervenções. Com -se em um instrumento de “deciframento do
efeito, pode-se ter a impressão de mundo”, capaz de trazer à tona as experiên-
que Adorno considerava implicita- cias escondidas ou recalcadas, da mesma ma-
mente que os meios de comunicação neira que a pintura pela visão e a música pela
não estavam unilateralmente sub- experiência acústica (VOIROL, 2011, p. 151).
metidos aos mecanismos alienantes Para concluir, é interessante observar
da indústria cultural, que subsistiam que Adorno é considerado elitista e até pre-
margens de autonomia. (VOIROL, conceituoso ou ignorante com respeito à
2011, p. 150 -151, tradução nossa). música popular e aos meios de comunicação
de massas que chegou a conhecer: rádio, im-
Até considerou a possibilidade de um ci- prensa, cinema e televisão. No entanto, seus
nema “emancipado”, cuja finalidade seria, de estudos sobre a música no rádio e desse meio
um lado, romper com as representações cole- de comunicação revelam-nos uma faceta di-
tivas inconscientes e irracionais ao se colocar a ferente, se entendermos corretamente suas
serviço do esclarecimento e, de outro, proble- análises e críticas. Elas atestam sua proximi-
matizar sua relação com os dispositivos técni- dade reflexiva com as indústrias culturais,
cos – a prática da montagem e do arranjo das a pertinência de suas observações sobre os
sequências permite interromper a cadeia de objetos produzidos e até sua participação no
identificações do expectador com a realidade sistema midiático. Talvez tenhamos perdido o
factual. O cinema pode, assim, transformar- mapa por ele traçado em algum lugar.

Referências
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Impulso, Piracicaba • 23(57), 9-17, maio.set. 2013 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
16 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n57p9-17
Dados da Autora:

Iray Carone
Doutora em Filosofia pela PUCSP e docente aposentada do
Departamento de Psicologia da Aprendizagem do IPUSP,
na condição atual de professora colaboradora; fez estágios
de Pós-Doutoramento na Universidade da Califórnia (Berkeley),
New School University (Nova York), Columbia University (Nova York) e Universidad Na-
cional de Educación a Distancia (Madrid).

Recebido: 07/05/2013
Aprovado: 03/06/2013

Impulso, Piracicaba • 23(57), 9-17, maio.set. 2013 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v23n57p9-17 17

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