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Os emigrantes

Sławomir MroŜek
Tradução de Luís de A. Miranda - 2015

Paredes cinzentas, sujas, cheias de manchas. Uma única lâmpada, sem candeeiro, pende de um teto baixo. A
iluminação é crua. Ao fundo, na parede da direita, uma porta. Não há janelas. Encostadas a cada uma das paredes,
direita e esquerda, duas camas de ferro. Por cima da cama da direita, está pendurado um casaco comprido num
prego, assim como um cabide em madeira. Na parede do fundo, um velho lavatório, apoiado diretamente no cano. O
esmalte do lavatório está estragado, amarelado, e o cano tem manchas de ferrugem. Por cima da torneira, uma
prateleira, com dois estojos de casa de banho, um de melhor qualidade que o outro. Por cima da prateleira, um
espelho de fraca qualidade, pendurada num prego. Dos dois lados do lavatório, duas toalhas, também elas presas a
um prego. Junto à parede de fundo, mais para o lado direito, um biombo em muito mau estado. Além disso, por esta
parede passam vários canos e fios elétricos, que atravessam a divisão de um lado ao outro.
No centro de cena, sob a lâmpada, uma mesa coberta por jornais. Em cima da mesa, dois pratos sujos, duas
colheres, dois copos de plástico, duas latas de conserva abertas, uma garrafa de cerveja vazia, e uma caixa de
saquetas de chá. Beatas. Duas cadeiras, uma de cada lado da mesa. Em cima da cadeira do lado direito, umas
calças cinzentas. Nas costas, um casaco em tweed e um lenço de seda. Debaixo da cadeira, um par de sapatos.
Um homem de cerca de trinta anos, magro, com a barba por fazer, e vestido com um roupão, está esticado em cima
da cama da esquerda. Está de meias, com os pés voltados para o público. Usa óculos com uma armação escura em
plástico. Está a ler um livro.
Em cima da cama da direita, um cão de pelúcia1, bastante grande, e com uma cor muito viva. Um outro homem está
sentado na cadeira da direita. Usa um fato escuro, pouco atual, feito de um tecido algo grosso, à semelhança dos
fatos que usam os homens do campo ao domingo, em determinadas regiões de certos países. Camisa branca e
gravata de cores fortes, e sapatos pontiagudos, perfeitamente engraxados. O homem é corpulento, do tipo lutador, e
mãos grandes. Barba feita. Está sentado de perfil, em relação ao público, e observa o parceiro.
Durante alguns momentos, o primeiro (AA) lê esticado na sua cama; o segundo (XX), permanece sentado a olhar
para ele.

XX – Já cá tou! (AA não reage. Silêncio. XX repete mais alto). Já cá tou!


AA – (sem interromper a leitura). Diz-se “Já cá estou!”.
XX – (coçando a barriga das pernas) Tens um cigarro? (Sem interromper a leitura, AA procura debaixo da sua
almofada e tira um maço de cigarros que estende a XX. Este levanta-se e aproxima-se da cama, coxeando
um pouco. Tira um cigarro. AA continua a ler. XX mete o cigarro no bolso e tira um segundo. Depois de um
breve momento de hesitação, refaz o mesmo gesto, isto é, mete o segundo cigarro no bolso e tira um
terceiro que leva à boca.) Já tá, já me servi.

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O cão Pluto, no original. (N. do T.)
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AA – (continua mergulhado na leitura, e mantém o braço esticado com o maço. Tempo.) Devolve-o… (XX tira
um cigarro do bolso e coloca-o no maço. Vira-se e começa a afastar-se. AA continua com o braço
esticado, sempre a ler.) Devolve-o…
XX – Já o devolvi.
AA – Tiraste três.
XX tira o segundo cigarro do bolso e coloca-o no maço. AA, sempre a ler, volta a esconder o maço debaixo
da almofada. XX vai ao centro e tira uma caixa de fósforos do bolso, abre-a, tira um fósforo que se apresta
a acender, mas, suspende o gesto e lança um olhar na direção de AA. Vendo que este continua
mergulhado na leitura, volta a colocar o fósforo dentro da caixa e enfia-a no bolso direito. Dirige-se à
cadeira nas costas da qual está pendurado o casaco de tweed. Apalpa os bolsos, encontra uma caixa de
fósforos que tira. Acende o cigarro e coloca a caixa de fósforos no bolso esquerdo. XX senta-se na cadeira
que usou no início, e na mesma posição. Começa a fumar, com um prazer evidente. Coça a barriga das
pernas, desaperta o botão do colarinho da camisa, desfaz o nó da gravata e descalça-se. As meias estão
“ornamentadas” por alguns buracos. Sopra sobre os sapatos, que brilham, como se os quisesse limpar de
algum pó invisível, e pousa-os, delicadamente, ao lado da cadeira. Estica as pernas, com ar satisfeito, e
mexe os dedos dos pés. Silêncio.
XX – Fui à estação.
AA – (sem parar de ler). E então?
XX – Nada. Muita gente. (Silêncio). Bebi uma imperial.
AA – (incrédulo). Tu?
XX – Juro. (Tempo.) Duas imperiais. (Pausa.) No bar.
AA – Ah!
XX – Há lá cabines telefónicas.
AA – E então?
XX – Nada. As pessoas telefonam.
AA – Humm…
XX – Mas eu não telefonei. Disse cá pra mim: de que me serve telefonar… Então fiquei ao lado das cabines...
AA – Pois…
Pausa.
XX – Também há quiosques de jornais.
AA – Oh!
XX – De jornais. Mas também têm muitas outras coisas.
AA – E então?
XX – Nada. As pessoas compram jornais.
AA – Aha…
XX – E lêem-nos... Mas eu não os li. Disse cá pra mim: para que me serve ler um jornal…
AA – Claro.
XX – E então, fiquei ao pé dos jornais. (Pausa.) Também há guichés. (Pausa. AA não reage.) Disse que também

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havia guichés.
AA – O quê?
XX – Guichés… para comprar bilhetes.
AA – Bilhetes?
XX – Eles compram os bilhetes nos guichés. (AA deixa escapar um pequeno assobio de admiração.) Mas eu
não comprei. Fiquei ao pé dos guichés.
AA – Fizeste bem.
XX – E depois pensei: vou dar uma volta pela plataforma…
AA – Porquê?
XX – Porque é de graça. Na nossa terra, é preciso comprar bilhetes para ir até à plataforma. Aqui, deixam entrar
as pessoas à vontade. Que estúpidos…
AA – (distraído). Quem?
XX – Eles. E então, fui até à plataforma.
AA – Aha. E então?
XX – Nada. Muitos carris. E soprava muito…
AA – O que é que soprava muito?
XX – O vento. Então, disse cá pra mim: vou voltar pra casa. Ia dar meia-volta quando ouvi um anúncio qualquer
nos altifalantes. E então pensei: vou ficar. E fiquei. O vento… os carris… E depois pensei: vou-me embora.
E ia começar a andar quando, de repente, o que é eu vejo?
AA – Um comboio?
XX – Como é que sabes? (Pausa.) Exatamente. Um comboio. Elétrico. Que chegou sem fazer barulho., por
causa da eletricidade. Na nossa terra, só há locomotivas a vapor… aqui, são elétricas. Eles não se
importam de gastar tanta eletricidade?
AA – Não.
XX – O comboio era internacional. Só carruagens-cama, cheias de emblemas. Um comboio muito bom. Eu nem
me mexi. Apenas acendi um cigarro.
AA – Alguém te ofereceu um?
XX – Era dos meus. Um comboio do caraças. E eu sem me mexer, pensei cá pra mim: aqui, anda cá bichinho,
aqui. Não vais mais longe, o fim da linha é aqui. Aqui. E ele aproximou-se, continuou a aproximar-se até
que…
AA – Até que parou.
XX – Como é que sabes? (pausa.) Parou completamente. E então, disse cá pra mim: vês? Eu tinha-te dito que
não ias mais longe…
AA – (mudando de página). E ele? O comboio?
XX – Nada. Não se mexeu mais.
AA – É tudo?
XX – E logo a seguir, chegaram os carregadores com os seus carrinhos, com lençóis e cobertores. Cobertores
de primeira qualidade, 100% de lã. Consegui apalpar um. Estavam cheios de cobertores, todos eles em

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pura lã. E eu nem me mexia. Continuei a fumar, calmamente, a ver os passageiros a descer do comboio.
Até vi um Japonês, com um casaco comprido. Não devia ser daqui.
AA – Com certeza.
XX – Foi o que pensei logo. Mas, que diferença é que isso me faz? E então continuei parado, a fumar. Estava no
meu direito, não era?
AA – Sem dúvida.
XX – Estava no meu direito. E então pensei: acabo o cigarro e vou-me embora. Já devem ter descido todos. Ia
para apagar a beata quando, mesmo em frente, uma mulher pôs a cabeça de fora pela janela, e gritou:
“Carregador!”
AA – Percebeste o que ela disse?
XX – Eu, não. Mas o carregador percebeu e precipitou-se imediatamente na direção dela. Deus do céu! Tinha
uns cabelos compridos, até aqui, devia ser uma atriz. E então pensei: vou esperar mais um pouco, quero
vê-la a descer do comboio. A beata queimava-me os dedos, porque o tabaco arde mais depressa quando
se está na rua, só se tiver filtro é que não… Mas eu, nada, passava apenas a beata de uma mão para a
outra, e só lamentava não ter trazido uma boquilha. E pensava: ela vai ter que descer.
AA – E depois?
XX – (triunfante). Ela desceu!
AA – Tiveste muita sorte. (Silêncio prolongado.) Já acabou a história? (XX começa a rir.) Estás a rir de quê? (XX
continua a rir.) O que é que te faz rir nessa história?
XX – Bom, é que eu e ela…
Pela primeira vez, AA levanta os olhos do livro e olha para XX.
AA – O quê?
XX – Ah… nós…
Continua a rir.
AA – Para de rir!
XX – Estava com vergonha de te dizer… Mas é verdade!
AA – Como?
XX – Na casa de banho.
AA – Mas… é preciso pagar para entrar.
XX – E depois? Foi ela que pagou. Por mim e por ela. (AA fecha o livro.) E ela queria mais, a mim é que já não
me apetecia.
AA tira os óculos e coloca-os no bolso do roupão. Vira-se de lado, apoiado no cotovelo, e observa XX.
AA – Sim. E depois?
XX – Nada.
AA – Como, nada?
XX – Não aconteceu mais nada. Eu disse-te que já não me apetecia. Mas, ela, sim, ela queria, eu é que não.
AA – Está bem. E depois?
XX – Depois? Fui-me embora.

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AA – E ela?
XX – Ela também se foi embora.
AA – Não ficaste com a morada dela?
XX – Não. Ela queria dar-ma. Mas eu pensei: para que é que me serve... Ia acabar por perdê-la…
AA – Mas ela queria que tu ficasses com a morada dela?
XX – Sim, insistiu. (Pausa.) E depois um general veio buscá-la. Com um carrão.
AA – Aha…
Procura o maço de cigarros que está debaixo da almofada, e tira um. Procura, sem encontrar, os fósforos
nos bolsos do roupão, e levanta-se. Vai até à cadeira onde está pendurado o seu casaco, procura nos
bolsos mas não os encontra.
XX – Queres lume?
AA aproxima-se dele. XX tira os fósforos do bolso esquerdo do seu casaco e acende-lhe o cigarro. AA tira
as calças que estão em cima da cadeira e atira-as para a cama. Senta-se na cadeira e dá uma passa bem
longa.
AA – Queres saber como tudo se passou?
XX – Eu já to disse…
AA – Não, nada disso. Pergunto se queres saber como é que tudo se passou realmente.
XX – Se sabes melhor do que eu…
AA – Claro que sei. Comecemos pelo início. É verdade que foste à estação. Mas não diretamente. Hoje de
manhã, quando te levantaste e te puseste em frente do espelho para fazer a barba, como fazes todos os
dias, não tinhas a mínima intenção de ir lá. Quando vestiste o teu fato e esses sapatos pontiagudos…
Muitas vezes me questionei por que é que usavas esses sapatos, andas como se fosses um aleijadinho.
Pensas realmente que esses sapatos pontiagudos conseguem disfarçar os tamancos de agricultor?
XX – (ofendido). Estes sapatos custaram muito caro.
AA – Seja. E então, onde foste? Até à rua. Todos são livres de ir. Mas os olhares… vê-se logo quem és, a um
quilómetro de distância. Sim, tens o direito de passear, mas, eles também têm o direito de te observar. E
de ver essas fuças de meteco. Porque tu és da nossa raça. Os teus ossos e o teu sangue pertencem-lhe.
E a este respeito, és o orgulho dos nossos ideólogos. És um corpo santo para os nossos patriotas, a hóstia
sagrada da nossa missa nacional...
XX – Não blasfemes!
AA – São apenas metáforas. Mas, tu não sabes o que são metáforas, pobre vítima do clericalismo…
XX – Isso não me interessa, mas, não permito que insultes a religião.
AA – Voltemos ao teu passeio. Ao passar em frente do cinema, pensaste que talvez valesse a pena entrar.
XX – Eu gosto de cinema.
AA – Claro. No cinema ninguém te observa. Estão todos a olhar para o ecrã. E tu também. Vês qualquer coisa a
mexer, umas imagens, e não percebes o que eles dizem. Mas isso também não tem importância. O
essencial é que te sintas em segurança. Mas o cinema tem um problema: é preciso pagar para entrar.
XX – Eu nunca vou ao cinema.

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AA – Pois é… mas nem tudo está perdido. Ainda te sobra a estação.
XX – Central.
AA – Claro que é central. Já que se tem de escolher, opta-se pelo melhor. Nem por um instante pensei que te
contentarias com uma pequena estação suburbana. Vais direto para a estação central, a mais central de
todas, pois ali só há vantagens! Em primeiro lugar, a entrada é gratuita. Em segundo, ali não és
estrangeiro, porque só há estrangeiros, pois as estações destinam-se precisamente aos estrangeiros. Ou
seja, numa estação, só há indígenas; numa estação, os estrangeiros dão a impressão de serem daqui,
pessoas locais. Numa estação, o teu ar de estrangeiro está perfeitamente integrado. E, para terminar, uma
estação tem sempre muita luz e é aquecida… E tem quiosques de jornais, cabines telefónicas, guichés…
XX – (sonhador). Um bar…
AA – Sim, um bar também. Então, arrastaste-te de um lado para o outro, do quiosque para as cabines, depois
para os guichés…
XX – E bebi uma imperial.
AA – Tenho as minhas dúvidas, porque uma imperial também se paga. Agora, não duvido que foste aos
urinóis…
XX – E na plataforma?
AA – Deixa-me falar, estou quase a chegar lá.
XX – Eu estive primeiro na plataforma.
AA – Correto. Fisicamente, foste primeiro à plataforma, e só depois aos urinóis. Mas, mentalmente, imaginaste o
resto da história, e os urinóis tiveram um papel muito importante, diria mesmo que fértil, pois deram-te
muitas ideias.
XX – Se calhar vais-me dizer que não havia plataforma?
AA – Sim, claro que havia. Havia uma plataforma, houve um comboio que chegou, tu estavas em frente a uma
carruagem-cama, a fumar um cigarro, e os passageiros foram descendo. Tudo isso é verdade. E é
igualmente verdade que uma jovem mulher, bela e elegante, desceu dessa carruagem…
XX – Vês, concordas comigo!
AA – … Sim, tu viste isso tudo. E depois foste mijar… mas é claro que não foste aos “lavabos”, daqueles bem
limpinhos, com flores à entrada, com as paredes forradas a belos azulejos, e que cheiram muito bem, mas
onde é preciso pagar para entrar. Foste aos urinóis, onde qualquer um entra sem pagar, e que estão
sempre entupidos pelas beatas a boiar na urina, e onde em tempos existiu uma toalha para os
frequentadores, mas que agora está tão suja que ninguém ousa tocar-lhe. E onde cheira horrivelmente
mal. São frequentados por homens que passam o tempo a remexer nas calças, num silêncio quase
religioso, mas cada um nas suas, se bem que todos em conjunto, numa espécie de comunhão de
promiscuidade evacuadora. Mas isso não te enoja, bem pelo contrário. A tua indiferença às fragrâncias do
local é total… Mas conheces algum outro lugar onde o teu vizinho se encontra exatamente na mesma
situação que tu? Onde existe uma total igualdade? Em lado nenhum. E assim que acabaste de fazer o que
tinhas a fazer, quando paraste de fingir que continuavas a fazê-lo, e que passaste o pente pelos cabelos –
o que é realmente espantoso em ti, é ver como a urologia está ligada aos cuidados estéticos –, saíste

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daquele sítio, e então foi aí que nasceu em ti a ideia – não deixa de ser surpreendente a que ponto os
cuidados estéticos mexem com o funcionamento do teu cérebro, a ponto de se poder pensar que a ação
do pente a deslizar no teu crânio tem alguma influência nisso – foi então, dizia eu, que nasceu nessa
cabecinha esta pequena mentira, ingénua e estúpida: a tua aventura amorosa com a mulher do comboio.
XX – Mas eu e ela…
AA – Parvoíces! Isso querias tu! Estavas parado em frente da carruagem e a beata queimava-te os dedos.
Aquele cigarro era a única prova da tua independência; tirando isso, eras apenas desejo, ódio, vontade,
admiração, humilhação… É óbvio que sonhavas com ela e não apenas enquanto mulher. Mais: duvido que
saibas o que é realmente uma mulher. A tua sexualidade não deve ir além da função primária do sexo. Ela
era apenas um símbolo, o símbolo de um mundo que te é completamente inacessível. E então, como não
podias ultrapassar este abismo, comeste-a mas em sonhos, na tua imaginação apenas. Reconheço que
fizeste um esforço intelectual impressionante, tendo em conta as tuas reais capacidades. Os urinóis
ajudaram-te muito. São um local propício à reflexão…
XX – Para!
AA – O que foi? Não foi assim que as coisas se passaram?
XX – Não!
AA – Não te preocupes. Voltas à estação na próxima semana. (XX agarra numa garrafa de cerveja vazia, que se
encontra em cima da mesa, parte-a contra o bordo desta, e aponta o gargalo partido na direção de AA.
Levantam-se os dois.) Ok, ok! Tudo bem! Tu comeste-a, tu comeste-a! Ela entregou-se a ti, atirou-se a
teus pés, beijou-te as mãos, beijou-te os pés, beijou os teus sapatos pontiagudos, rastejou à tua frente,
ajoelhou-se para te adorar, a ti e aos teus sapatos. Ela… o general também, e até a limusine do general!
Ele fez-te continência e lançaram fogo-de-artifício em tua honra… e depois, compraram-te um gelado.
Porque tu és muito bonito! Toda a gente te admira!... Estás contente? Está melhor assim? Chega-te? (XX
senta-se e pousa a garrafa em cima da mesa. Pausa.) Queres chá? (Tom conciliador.) Posso fazer-te chá.
XX – Tens sempre de estragar tudo.
AA – Estás chateado?
XX – O que é que queres de mim?
AA – Sentes-te ofendido porque eu disse a verdade.
XX – Estás sempre a chatear-me. Eu não te fiz nada…
AA – O que é que queres, meu caro, apenas te ajudo a tomar consciência da situação.
XX – Qual situação? Eu fui à estação.
AA – Isso apenas comprova a tua situação.
XX – Eu apenas queria sentir-me bem…
AA – Pois é, no nosso país é sempre assim: embelezamos as coisas, tomamos os sonhos por realidade,
enchemo-nos de desejos piedosos… O presente deturpado leva a um futuro doentio. A história acaba por
se vingar…
XX – Qual história?...
AA – A nossa, a do nosso povo.

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XX – Qual história? Estou a marimbar-me para a história… eu fui à estação.
AA – Isso é precisamente um elemento da história. Um pequeno pormenor, mais indiscutível. Tu foste à
estação: pretérito perfeito, passado, logo, história. A história geral é composta pelas histórias dos
diferentes indivíduos. Não existe apenas um conceito abstrato de história, meu caro; só os idealistas é que
pensam assim, e tratam a história como um novo Deus, como uma entidade. (…)
Repentinamente, ouve-se um borbulhar tonitruante num dos canos que atravessam a divisão onde eles se
encontram, barulhe esse que cobre as palavras de AA. Este faz um gesto de frustração com a mão e
senta-se, com ar pensativo, em cima da cama. XX espreguiça-se e boceja.
XX – Tenho fome.
AA – Come, e deixa-me em paz.
XX – Não há nada para comer.
AA – E as conservas?
XX – Já acabaram.
AA – Voltaste a comer tudo?
XX – Tu não tens conservas?
AA – Tenho, mas não te dou mais nenhuma.
XX – Porquê?
AA – Por uma questão de pedagogia…
XX – Hummm…(Pausa.) Isso quer dizer o quê?
AA – Quer dizer que comes sempre as minhas conservas.
XX – Isso não é verdade! Também como as minhas.
AA – As tuas e as minhas. Está na hora de aprenderes um pouco de ordem, de disciplina, e de lealdade…
XX – Ok, mas antes disso comia qualquer coisita…
AA – Não te dou nada.
XX – Nada?
AA – Nada.
XX – Não faz mal... (Pausa.) Não disseste que ias fazer chá?
AA – Fá-lo tu.
XX levanta-se, despe o casaco, e coloca-o nas costas da cadeira depois de lhe sacudir o pó com as mãos.
Sai para trás do biombo e ouvem-se os sons de quem prepara água para ferver. Volta e senta-se. Pausa.
XX – Olha lá, por que é que aqui não há moscas?
AA – (arrancado dos seus sonhos). O quê?
XX – Perguntei-te porque é que, aqui, não há moscas.
AA – Onde?
XX – Aqui, nesta divisão.
AA – (continuando um pouco distraído). Não sei.
XX – No corredor também não há. (Pausa.) Em lado nenhum. (Espantado com a sua própria descoberta.) Olha
lá, tu alguma vez viste moscas aqui?

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AA – Acho que não.
XX – Pois bem, eu digo-te que não há. Nem aqui nem em qualquer outro sítio. Eles não têm moscas. Diz-me,
por que é que eles não têm moscas?
AA – Não sei. Talvez porque conseguiram exterminá-las, por questões de higiene.
XX – É pena.
AA – Mas para que precisas de moscas?
XX – Sinto-me melhor quando as há. Posso apanhá-las. Ou apenas observá-las… O tempo passa mais
depressa. Lá na terra havia sempre moscas. No verão… (Pausa.) Havia moscas. E apanha-moscas.
Lembro-me bem, a gente atava-os às lâmpadas. Até parecia que aquilo estava coberto de mel, mas não
era mel. E depois, elas ficavam coladas, e só se ouvia o zumbido das asas. E quando o apanha-moscas já
lá estava há muito tempo, havia tanta mosca colada que o zumbido era um só, parecia música. Umas
zumbiam mais grave, outras mais agudo, porque, por exemplo, quando havia uma vespa ou um zangão…
Não, os zangões conseguiam descolar-se, são muito fortes.
AA – Lembro-me, lembro-me, lembro-me! Pois eu não me lembro de nada!
XX – (verdadeiramente surpreso). Como assim, não te lembras de nada?
AA – (levanta-se da cama, com um salto, e começa a andar a passos largos de um lado para o outro). Não, não
me lembro de nada, e não quero lembrar-me! É sempre a mesma coisa: “Lembras-te disto? Lembras-te
daquilo?”. Sempre, permanentemente, após estes anos todos! E agora as moscas, tu e as tuas moscas…
XX – O que é que queres? Havia moscas.
AA – Para!
XX – O que é que foi? Não me digas que agora tenho de dizer que não havia quando havia?
AA – Havia, havia… E depois? Isso quer dizer que, até ao fim dos meus dias, tenho de me lembrar de umas
moscas estúpidas? Tenho mais que fazer.
XX – Vês? Agora dizes que havia.
AA – Merda! Mas eu nunca disse que não havia moscas! Vamos acalmarmo-nos, não nos enervemos, isto é
apenas uma discussão idiota. Ouve, não se trata de saber se havia ou não havia. Havia moscas, e depois
deixou de haver… Havia, mas já não há. Ponto final, parágrafo. Acabou. Agora há outras coisas.
XX – O quê, por exemplo?
AA – Tudo… Ahhh… o mundo, os seus problemas…
XX – Mas o quê?
AA – As ideias, os fenómenos, os acontecimentos…
XX – (com desdém). Ehh…
AA – O progresso social, económico, político, as correntes culturais, a crescente evolução de uma civilização em
plena mudança, de uma humanidade numa encruzilhada de caminhos, os problemas universais…
XX – Mas não há moscas…
AA – Felizmente! É mesmo uma alegoria perfeita. As moscas simbolizam a pequenez dos problemas aos quais
estávamos condenados no nosso país. Todos aqueles problemas locais, insignificantes… os pequenos
chauvinismos, reformismos… Pessoas pequenas num pequeno país. Pelo menos, aqui, podemos abrir as

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asas.
XX – Como as moscas… Bzzzzz…
AA – Enfrentar os problemas grandes. A verdadeira grandeza só nasce dos grandes confrontos, que temos de
vencer sem medos… Sim, é preciso ver longe, em grande escala. É verdade, para mim acabaram-se as
moscas. Graças a Deus!
XX – Pois para mim, elas continuam a existir.
AA – Onde? Aqui?!
XX – (triunfante). Não, na nossa terra, no nosso país. Já não te lembras?
AA – Oh não! Voltámos ao início!
Ouve-se um pequeno assobio atrás do biombo.
XX – Já ferve.
Levanta-se e vai para trás do biombo. Regressa com uma chaleira de alumínio. Deita água num copo de
plástico, e depois junta-lhe uma saqueta de chá.
AA – Também podias fazer para mim.
XX – Dás-me açúcar?
AA – Mas fui eu que comprei o chá!
XX – Sim, mas não há açúcar.
AA vai buscar uma mala em couro que está debaixo da sua cama. Tira uma pequena chave do bolso, abre
a mala e tira uma caixa com açúcar. Volta a fechar a mala à chave, guarda a chave no bolso e a mala
debaixo da cama. Pousa o açúcar em cima da mesa e senta-se à mesa. XX inclina a chaleira sobre o copo
de plástico.
XX – Acabou-se a água.
AA – Vai ferver mais.
XX dirige-se à torneira, com um passo arrastado. Abre-a, mas sem qualquer resultado.
XX – Aqui também não há.
AA – Não consegues fazer nada sem mim. (Dirige-se ao lavatório e abre a torneira completamente.) Tens razão.
XX – Não há porque não corre…
AA – Não corre porque não há, imbecil.
XX – E a culpa é minha?
Voltam à mesa e sentam-se nos seus lugares. XX põe açúcar no chá.
AA – Vais beber esse chá? (XX acena com a cabeça.) Sozinho? (XX acena outra vez.) Isso é que é
solidariedade. Eu pensava que, já que o teu amigo não bebe… (XX põe mais açúcar no chá). Isso vai ficar
muito doce.
XX – Gosto dele doce.
Tira um pouco de chá com uma colher, prova-o, junta mais açúcar e mexe.
AA – Assim vai arrefecer.
XX – Não gosto dele muito quente.
AA tira uma moeda do bolso.

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AA – Vamos atirar uma moeda ao ar.
XX – O quê?
AA – Para ver quem bebe o chá.
XX – Porquê?
AA – Porque só há um chá, e nós somos dois.
XX – Mas o chá é meu!
AA – Mas fui eu que o comprei.
XX – E eu preparei-o.
AA – Digamos que temos o mesmo direito de o beber. Deixemos que seja a sorte a decidir. Cara ou coroa?
XX – Cara…
AA atira a moeda ao ar, muito alto.
AA – …Coroa!
A moeda cai ao chão e rola para debaixo da cama à direita. Ambos se deitam no chão para a procurar.
Não interessa onde cai a moeda. Os atores procuram-na como se ele tivesse rolado para debaixo da
cama.
XX – Encontraste-a?
AA – Não vejo nada.
Estica o braço sob a cama.
XX – (afastando-o.) Deixa-me.
AA – Espera. (Retira um lata de conserva de debaixo da cama.) O que é isto?
XX – Isso?... Deixa cá ver… É uma lata de conserva.
AA – Tua? Mas não acabaste de me dizer que já não havia?? (XX não reage.) Bom, nesse caso, se ela não
pertence a ninguém, fico com ela.
XX – Não! (arranca a lata de conserva da mão de AA.)
AA – Devias ter vergonha de mentir dessa forma. (Senta-se na cadeira da direita e estica o braço para o copo
de chá.) Tinhas assim tanto medo de partilhar comigo? A tua avareza é bem mais forte do que a tua
gulodice. Como se eu precisasse das tuas conservas. (XX esconde a lata debaixo da cama.) Não vale a
pena escondê-la, o teu segredo foi descoberto. Agora podes tranquilamente deixar-te levar pelo vício,
saciar o teu apetite selvagem e animalesco. Não, animalesco, não. Os animais não comem mais do que
precisam. Tu, pelo contrário, comes muito para além disso, sem qualquer regra. Tens um apetite
monstruoso, patológico.
XX – Não queres?
AA – Não, obrigado, as tuas guloseimas não me atraem. (Bebe um gole de chá e cospe-o imediatamente.) Que
porcaria… tem demasiado açúcar!
XX – Bem, talvez vá comer um pouco…
AA – Bravo! Venceste a tua avareza. O meu método funciona. Apesar de não ter a certeza se, tendo em conta a
tua avareza, a tua sofreguidão possa ser considerada uma virtude, ou se é o contrário. Admitamos que,
neste combate entre o defeito e o vício, o vencedor é o mal menor, logo, uma qualidade… Relativa, claro

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está.
XX – Vou comer.
AA – Come, come à vontade, acho que não podes ficar pior do que estás.
XX – Onde está o abre-latas?...
Procura o abre-latas, algo agitado.
AA – Diz-me uma coisa, por que razão comes assim tanto?
XX – Não viste o abre-latas?
AA – Vamos tentar pensar um pouco nesta questão. Não há dúvidas de que o hedonismo não tem culpa. Então,
o que é?
XX – Desapareceu.
Sai para trás do biombo.
AA – Trata-se provavelmente do ato de absorver, simplesmente. É preciso ver que a absorção da comida tem
um caráter simbólico, de substituição. Ao absorver a comida, na forma de alimento, absorves também a
realidade que te rodeia. Absorves o mundo…(XX sai de detrás do biombo, com um pequeno machado na
mão. Senta-se à mesa, do lado esquerdo, frente a AA, e tenta abrir a lata com o machado.) Sim, é uma
hipótese tentadora. (…) Para ti, os alimentos não substituem completamente todo o resto da realidade, na
medida em se identificam com ela. Seria interessante comparar os resultados das minhas observações
com alguns dados da antropologia contemporânea, relativos às civilizações primitivas. Mesmo assim, temo
que os resultados de um tal estudo comparativo apenas comprovem um doloroso paralelismo entre o
canibalismo ritual e…
XX bate furiosamente com a lata na mesa, em frente a AA.
XX – Toma!
AA – O que é que tu…
XX – Vá, toma! Come!
AA – Porquê…
XX – Para ver se te calas.
AA – Não me percebeste. Além disso, eu disse-te que não estava interessado. Eu alimento-me de forma
racional, comedida…
XX – Se não queres, então cala-te.
Estica o braço na direção da lata de conserva.
AA – (agarrando a lata.) Espera. É de quê?
XX – Carne picada. Qualidade extra.
AA – Onde é que compraste isto?
XX – Numa loja.
AA – Que loja?
XX – Uma loja normal. Dá-me a lata.
AA – (pondo os óculos.) Isto é comida para cães.
XX – Como assim, para cães?

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AA – (lendo a etiqueta). “Do melhor que há! Alimentação universal destinada aos animais domésticos. Saudável
e apetitosa, é o resultado de extensas pesquisas em laboratório e de testes sob supervisão veterinária.
Uma dieta perfeitamente equilibrada, que inclui uma seleção bastante completa de vitaminas, de proteínas
e de sais minerais. (…) O presente ideal para o seu amigo. Ofereça-lho e verá no seu olhar a expressão do
seu fiel amor. Dê-lhe este prazer… O seu amigo ficará eternamente grato. (…)
XX – Aí está.
AA – Aí está, o quê?
XX – Eles dizem que é muito bom.
AA – Bom… para os cães.
XX – Eles não falam de cães, falam de amigos…
AA – “Os seus amigos de quatro patas”, isto quer dizer que são cães. Quanto muito, gatos.
XX – Impossível.
AA – Porquê?
XX – Porque é carne. E as pessoas iam dar carne aos cães?
AA – Não vejo onde está a contradição… Os cães são, por definição, excelentes carnívoros.
XX – Devem ter-se enganado em qualquer sítio.
AA – Quem é que aqui percebe de línguas estrangeiras? Tu ou eu?
XX – Dizes isso de propósito, só para me chatear.
AA – Então, olha. Vês esta imagem? Um cão sorridente, ao nascer do sol, a pura imagem da felicidade e da
satisfação.
XX – E depois?
AA – Como assim? O cão está a sorrir porque acabou de comer uma lata desta comida. Até um analfabeto
percebe o significado desta limagem.
XX – Uma imagem é uma imagem, e há muita variedade de imagens. Em minha casa também havia uma: era
um veado numa clareira, ao por do sol. E o veado parecia satisfeito. E então? Isso quer dizer que ele tinha
acabado de comer erva?
AA – Talvez.
XX – Não. Uma imagem sozinha não significa nada. Ela só lá está para fazer bonito, para decorar. É isso, e
também quer dizer que é um alimento muito chique. Com uma imagem bonita…
AA – Como queiras. Presumo que tenhas comprado este produto apenas por causa do preço. Compraste a mais
barata de todas as conservas que havia na loja.
XX – É do melhor que há.
AA – Para os cães.
XX – Qualidade extra.
AA – Disso não tenho dúvidas, os cães devem adorá-la.
XX – Não me interessa! Vou comê-la!
AA – Já to proibi, por acaso?
XX – O quê, de comê-la?

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AA – Sim, por que não? Se até agora não te fez mal nenhum… (Pausa.) Então, por que é que não comes?
XX – (atira furiosamente a lata para um canto e amua. Pausa.) Porque eu não sou um cão.
AA – Não?
XX – Não!
AA – (…) (Repentinamente, começa a gritar.) Vai à merda! Come o que te apetecer! O que é que eu tenho a ver
com isso!
XX – Então posso, não é?
Começa a abrir a lata com o machado.
AA – Larga isso.
XX – Mas acabaste de dizer que eu podia comer. (AA tira a mala de debaixo da cama. Abre-a com a chave e tira
uma lata de conserva. Volta a deslizar a mala para debaixo da cama, mas sem a fechar à chave. Pousa a
lata em cima da mesa, à frente de XX.) Para as pessoas?
AA – Para as pessoas.
XX – Então, não é a mesma coisa.
XX começa a abrir a lata. Vindo do suposto andar de cima, ouve-se o som de pessoas a entrar. Vozes de
homens, risos de mulheres. AA aproxima-se de um dos canos que atravessam a divisão de cima para
baixo, e encosta o ouvido.
AA – Estão a subir para o primeiro andar. (Afasta-se do cano.) Não há nada melhor do que viver debaixo de
umas escadas. Aqui ouve-se tudo pelos canos. O mínimo barulho, o mais silencioso, o mais íntimo, até.
Canos de esgoto, canos de água, canos do aquecimento central, para o lixo orgânico, respiradores… Ouço
tudo. Ouço-os a entrar e a sair, a deitar-se e a levantar-se, a tomar banho e a puxar o autoclismo. Ouço-os
a arejar-se, a aliviar-se e a proliferar… Porém, até agora, nunca os ouvi a morrer.
XX – (que entretanto abriu a lata e começou a comer.) Saúde não lhes deve faltar.
AA – Às vezes, tenho a impressão que vivemos dentro deles, como se fossemos pequenos micróbios. Olha bem
para estes canos: não te fazem lembrar os intestinos? Não podíamos dizer que eram intestinos?
XX – Ora bolas, são canos que se parecem com canos.
AA – A mim fazem-me pensar nas tripas. Vivemos aqui como se fossemos duas bactérias no interior de um
organismo, dois corpos estranhos, parasitas. Ou talvez pior. E se fossemos dois micróbios patogénicos?
Dois fatores de decomposição num organismo saudável? Bacilos de Koch, vírus, gonococos? Eu, um
gonococo. Eu, que sempre me considerei como uma célula preciosa, uma célula cerebral altamente
desenvolvida. Em tempos idos, no nosso país… Era um neurónio raro, uma partícula que se encontra no
limiar da matéria, mas que já não é só matéria, é algo superior… E agora, um gonococo, algures nos
intestinos. Um gonococo na companhia de um protozoário.
XX – (desconfiado). Estás a falar de mim?
AA – E ainda por cima, não suporto as caves! Odeio-as! Assim como todos os subterrâneos. Tudo o que está
debaixo da terra mexe-me com os nervos, e com a mente também. Preciso de sol, de ar, de espaço. Sou
um homem-cabeça, e as cabeças devem estar sempre bem altas para funcionarem corretamente. Sempre
vivi nos andares superiores e sempre tive vistas abrangentes das minhas janelas. Aqui nem sequer temos

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uma janela.
XX – Melhor assim. As janelas fazem correntes de ar.
AA – Paredes, só paredes e mais paredes!
XX – Sim, mas pelo menos, aqui está calor, e não há vento nenhum.
AA – O cheiro a mofo das caves.
XX – Ainda ninguém morreu. Mas quando se está ao ar, podemos apanhar frio. O meu pai, que Deus o tenha,
viveu sempre numa cave e durou muitos anos.
AA – E morreu de quê?
XX – Ficou muito tempo na rua. Estava a regressar a casa e morreu de frio pelo caminho.
AA – Então, tu consegues aguentar-te aqui sem problemas?
XX – Por que não? É perfeitamente adequado a um quarto. É quentinho e é barato…
AA – Isso é verdade, visto que quem paga a renda sou eu. A propósito, ontem paguei mais dois meses de
renda, dezembro e novembro. E ainda me deves setembro e outubro. Já são quatro meses no total.
XX – Não tenho um tusto.
AA – Acabaste de receber o salário.
XX – Mas não tenho dinheiro.
Ouve-se tocar à campainha no andar de cima. Os recém-chegados são acolhidos por gritos de alegria. A
porta fecha-se com força.
AA – Não consigo perceber o que fazes ao teu dinheiro. Deves ganhar, no mínimo, aquilo que um trabalhador
estrangeiro ganha, em média, neste país. Ora, tu ganhas uma vez e meia a mais, visto que trabalhas duas
vezes mais. Mesmo se estiveres a ser explorado, ainda te deve sobrar alguma coisa. Além disso, também
deves receber um subsídio por causa do trabalho que fazes, que é bastante perigoso para a saúde. Ainda
que eles te paguem apenas metade desse subsídio, o teu salário deve ser superior ao da média, ou seja,
não é nada mau. Apesar disso, vives no pior casebre que se possa imaginar, e ao partilhar a casa comigo,
só pagas metade da renda, que já de si é mínima. E, mesmo assim, não tens dinheiro.
XX – Em compensação, a ti não te falta.
AA – Desculpa?
XX – Tu tens sempre dinheiro.
AA – (depois de uma pausa. Gélido.) Tens noção do que acabaste de dizer?
XX – O quê? Vais-me dizer que não é verdade?
AA – Não percebes que eu vou acabar por perder a paciência?
XX – Olha lá, se pagas a renda, é porque tens dinheiro, certo?
AA – Não percebes que já perdi toda a paciência?
XX – (preocupado.) Quando?
AA – Agora mesmo.
Veste as calças.
XX – (parando de comer.) Estás a vestir-te? (AA tira o roupão e veste o casaco.) Onde vais?
AA – Vou mudar de casa.

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XX – (aliviado.) Eh, eh…
Recomeça a comer, tranquilizado.
AA – (ata o lenço em frente do espelho). Até agora, tenha pena de ti, mas, desta vez ultrapassaste todos os
limites. Além de uma desonestidade ordinária tens um descaramento incrível. Nem sei como fui capaz de
te aguentar tanto tempo, e aturar a tua grosseria, o teu egoísmo, a tua sujidade. Até quando dormes
consegues irritar-me. O teu ressonar impede-me de dormir e os teus gases carbónicos dão-me dor de
cabeça. A pena que tinha, acabou-se. Estou farto da tua companhia, estou até aqui! Não aguento mais!
Vou-me embora!
XX – A chave fica debaixo do tapete.
AA – O quê?
XX – Disse que a chave ficava debaixo do tapete, se te apetecer chegar tarde.
AA – Não falo mais contigo. (Veste o casaco comprido, para ao lado de XX e vira-se para ele abotoando o
casaco.) Porque tu pensas que eu vou voltar?
XX não responde. Continua a comer tranquilamente e não presta qualquer atenção ao que AA faz ou diz.
Sem obter uma qualquer resposta, AA encolhe os ombros e dirige-se para a porta. Coloca a mão na
maçaneta.
XX – Não pensas sair sem sapatos, pois não?
AA – Não preciso dos teus conselhos. (AA regressa na direção do centro de cena, calça os sapatos, volta para a
porta e coloca outra vez a mão na maçaneta. Pausa.) Mas o que é que te leva a pensar que eu vou
voltar…
XX – A mala.
AA – Como?
XX – Deixaste a mala.
AA – E então?
XX – É óbvio. Se quisesses realmente mudar de casa, tinhas feito a mala.
AA – Admiro a tua inteligência, mas enganas-te. Não levo nada comigo.
XX – Isso mesmo. Quer dizer que não te vais embora.
AA – Ai sim? Mudo de casa, mas sem fazer as mudanças. Não levo nada. Parto, é verdade, mas sem levar
nada. Deixo tudo aqui, mas vou-me embora na mesma. E mesmo que parta, não levo nada. Vou-me
embora. Parto sem levar nada. Agora já percebeste?
XX – E a roupa de cama, os cobertores, as roupas?...
AA – … os livros, os manuscritos, as fotografias… Podes ficar com tudo.
XX – Eras capaz de deixar tudo?
AA – Sabes muito bem que, para mim, os objetos, as roupas e as coisas não têm qualquer valor. Posso viver
bem sem elas. Faço parte de uma sociedade do pós-consumo, enquanto tu ainda estás no estádio do
comércio dos vidrinhos e das pedrinhas. E quanto aos meus papéis… estou-me nas tintas!
XX – Não levas nada? Deixas mesmo tudo?
AA – Ahh… talvez não deixe tudo. Na verdade, sou capaz de levar uma bugiganga qualquer como recordação…

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Não, não deixo tudo. Vou levar uma coisa, uma coisita sem valor. (Finge estar a pensar.) O que é que eu
poderia levar… Espera… Já sei!
Aproxima-se da cama da direita e agarra no boneco em pelúcia.
XX – Nem penses! (atira-se a AA.)
AA – Mas porquê? Este inocente boneco faz-me pensar nos momentos que passámos juntos. Vai atenuar as
minhas saudades…
XX – Devolve-me isso!
AA – És muito ingrato. Deixo-te tudo o que tenho, e apenas peço em troca esta bugiganga, e tu…
XX – Dá-me isso!
AA – Vamo-nos embora daqui, cãozinho. Este senhor é mau. O senhor é maroto. Ele não gosta de nós…
XX – Vais devolver-me isso ou não?
AA – Anda bichinho, vamos deixar o senhor aqui. Vamos para longe, para muito longe deste sítio… (XX tenta
arrancar o boneco, mas AA consegue escapar-lhe e fica do outro lado da mesa. Perseguem-se à volta da
mesa.) Ão! Ão! Olha como o senhor está furioso! Ão! Ão! (Ladra como um cão, enquanto a perseguição
continua.) Não te deixes apanhar! Foge! (No momento em que XX está do lado esquerdo da mesa e AA do
lado direito, XX salta sobre a mesa e agarra AA pelo pescoço, mas só consegue ficar com o lenço nas
mãos. AA dá um salto, mas tropeça na cadeira, e cai com ela. XX atira-se a ele. AA procura desviar o
boneco do alcance de XX e este tenta agarrá-lo. AA muda o boneco de mão e atira-o para longe.
Levantam-se os dois e precipitam-se na direção do boneco, como dois jogadores de râguebi atrás da bola.
Chocam um com o outro por cima do cão. Neste momento, a água começa a correr da torneira que tinha
ficado aberta.) Água! (AA larga XX, que aperta com força o boneco contra si; AA vai até à torneira e fecha-
a.) Finalmente! Agora vamos poder fazer um chá como deve ser. (Pega na chaleira que estava em cima da
mesa, vai enchê-la na torneira, e sai para trás do biombo. XX, que não desvia o olhar dele, continua a
apertar o boneco contra si, numa atitude desconfiada. AA volta a aparecer.) O que é que ainda estás a
fazer aí?... Estás a rezar?... (Despe o casaco comprido e pendura-o no prego.) Vamos, já chega…
Levanta-te lá…
XX – Não te vais embora?
AA – Só por causa do chá. Onde é que se pode beber um bom chá, se não em nossa casa? Ah! A casa, a
casa…
XX levanta-se e esconde o boneco debaixo da sua almofada, na cama da direita. Senta-se na cama. AA
apanha o lenço do chão e coloca-o nas costas da cadeira da esquerda, e depois vai levantar a cadeira da
direita que estava caída.
XX – Eu reembolso-te o dinheiro, assim que tiver.
AA – Ah, agora queres falar da renda?
XX – Juro!
AA – Isso é apenas um detalhe. Nem vale a pena falar disso.
XX – No mês que vem.
AA – Não há pressa.

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XX – Então, na próxima semana.
AA – Não, peço-te, não penses mais nisso…
XX – Ou então depois de amanhã. (…) Ou talvez até já amanhã. É isso, queres que te pague amanhã?
AA – Não vale a pena, acredita. Entre amigos, isso não tem qualquer importância.
XX – Porque agora não posso. Juro!
AA – (suspira.) Ahhh… Que bem que se está no meio das nossas coisas… (Começa a tirar o casaco e XX corre
para ele, ajudando-o.) És mesmo muito simpático.
XX – Penduro-o?
AA – Não vale a pena. Pode ficar na cadeira. (Senta-se na cadeira da esquerda. XX pendura o casaco nas
costas dessa cadeira.) Mas se quisesses ser ainda mais simpático… Esta luz está a incomodar-me. Há já
muito tempo que me incomoda, mas não ousava falar disso contigo, porque parece que a ti não… Na
verdade, esta lâmpada sem proteção é horrível. Não eras capaz de arranjar um abajur qualquer? Podias
fazê-lo com papel ou outra coisa… Eu nunca fui muito bom em trabalhos manuais…
XX – Não te preocupes, eu faço-o.
AA – Perfeito! Tu és mesmo único. Olha, ali, ao pé da minha cama, há algumas revistas, podes usá-las. A não
ser que prefiras papel de jornal.
XX agarra numa das revistas que se encontram junto da cama da esquerda.
XX – Preciso de uma tesoura.
AA – Está na prateleira. (XX vai buscar a tesoura. Sobe para cima da mesa, abre a revista e tenta colocá-la à
volta da lâmpada. AA observa-o, protegendo os olhos com a mão.) Isso não te incomoda?
XX – O quê?
AA – Queria saber se eras capaz de olhar para a lâmpada sem ter a sensação desagradável de ficar cego.
XX – A lâmpada?
AA – Sim, a luz… Não te cega os olhos?
XX – Não.
AA – Não te faz chorar?
XX – Não. (…)
AA – As pálpebras não ficam muito quentes? Não começas a ver uns pontinhos negros a mexer à frente dos
olhos?
Pausa.
XX – Não.
AA sobe para cima da mesa. Levanta uma pálpebra de XX, como se fosse um médico a observar.
AA – O outro. (Observa o outro olho.) Espantoso. (AA desce da mesa, e XX continua o trabalho. AA deambula
pelo espaço.) Já alguma vez foste interrogado?
XX – O quê?
AA – (seco, ríspido). Pela polícia.
XX – Eu não fiz nada!
AA – Não te estou a perguntar se fizeste alguma coisa, quero saber se já foste interrogado. Se alguém alguma

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vez te interrogou.
XX – Não.
AA – (voltando ao tom normal). É pena! Eras a pessoa certa. Não do ponto de vista da polícia, claro. Com essa
insensibilidade eras capaz de aguentar o que os outros não são capazes. Que pena, que pena. Davas um
excelente prisioneiro político.
XX – Sabes que eu, a política…
AA – Eu sei, eu sei, não tens nada a ver com a política. Era isso que me querias dizer, não era? Pode-se
sempre sonhar. (XX interessa-se por um anúncio na revista. Molha o dedo, vira a página, e continua a
olhar.) Que olhos! Não seria nada fácil arrancar-te uma confissão… Isto é, se tivesses alguma coisa a
dizer… E ninguém explora um talento destes! É a vida… Os que não deviam dizer nada, falam. E os que
poderiam não falar, não têm nada a dizer.
XX – Posso recortar isto? (…)
AA – Tenho a impressão de que não me estavas a ouvir.
XX – (mostrando o anúncio a cores). Se pudesse recortar este… só este…
AA – Ó meu Deus! Deus dos meus antepassados! E dos teus… Se bem que, por vezes, duvido que tivessem o
mesmo deus…
XX – Vou recortá-lo.
Desce da mesa e senta-se na cadeira da direita, virado para o público. Recorta a revista. Ouve-se música
vinda do andar de cima.
AA – (tapando ou ouvidos com as mãos). Só faltava mais esta! (Olha para o relógio.) Quatro horas? Impossível.
(Aproxima o relógio do ouvido.) Obviamente, parou. Olha lá, que horas devem ser?
XX – Nove horas, mais ou menos.
AA – Isso quer dizer que estão apenas a começar. Vão fazer a festa pelo menos durante umas boas oito
horas… A festa DELES!
XX – Talvez acabe mais cedo.
AA – Não, hoje eles não vão parar. Vão estar a divertir-se até de madrugada. Hoje é a passagem de ano. (XX
para de recortar o anúncio; levanta os olhos e fica parado, a olhar fixamente para um ponto. Ouve-se um
assobio atrás do biombo.) Ah, a água… (Sai e regressa com a chaleira. Senta-se no seu lugar, põe água
no copo de plástico e mergulha uma saqueta de chá. XX deixa cair os braços; numa mão tem a tesoura, na
outra a revista. AA tira a saqueta do copo, põe açúcar no chá e mexe-o. XX deixa cair a tesoura e a
revista. Levanta-se lentamente e, mecanicamente, dirige-se para a sua cama, a da direita. Deixa-se cair de
costas na cama e fica a olhar para o teto. AA para de mexer o chá e começa a observá-lo.) O que é que se
passa?... Não te sentes bem? (Mexe o chá… e volta a parar de o mexer.) Estás doente? (XX não reage.
AA levanta-se e aproxima-se dele.) Oh! Responde! (Abana o braço de XX, mas este vira-lhe as costas. AA
parece não saber o que fazer. Vai apanhar a tesoura e a revista, e volta para junto de XX.) Olha, ainda não
acabaste… Vá, pega na tesoura e recorta, podes recortar o que quiseres… Não to impeço. Vá lá, corta
tudo o que quiseres, os frigoríficos e os aspiradores, as bicicletas, as motas e os carros, os rádios, os
telemóveis e as televisões… (…) Acredita, podes fazer o que quiseres, tens a minha autorização…. Estás

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a ouvir?... O que é que tens? Estás chateado ou quê? (Senta-se na cama.) Se quiseres, eu posso
recortar… Diz-me. Queres que eu recorte isto? (Acaba de recortar o anúncio e depois pousa a tesoura no
chão.) Já está, acabei!... É bonito, não é? (Estende o braço para tentar mostrar o recorte a XX.) Olha…
Vê!... (Amarrota o que recortou e atira-o para um canto. Por instantes, fica sentado sem se mexer. Através
dos canos ouve-se “Noite feliz, noite feliz”, cantada por um coro infantil. Bruscamente, XX tapa a cabeça
com a almofada.) Ah! Então é isso! (AA levanta-se, olha à sua volta, a pensar em algo. Depois toma uma
decisão. Apanha tudo o que está em cima da mesa, incluindo os jornais que a cobriam, e pousa tudo no
chão, junto à parede. Despeja os copos no lavatório e dirige-se à sua cama. Tira a fronha da almofada,
vira-a do avesso e usa-a para cobrir a mesa, como se fosse uma toalha. Tira da mala uma garrafa de
cognac e coloca-a em cima da mesa. Ao lado da garrafa, põe o maço de cigarros que estava debaixo da
almofada. Lava os copos na torneira e pousa-os junto à garrafa. Veste o casaco. Durante todo este tempo,
a música foi desaparecendo lentamente.) Está pronto!
XX – (tirando a cabeça de debaixo da almofada). O que é?
AA – (solene). O Novo Ano. (XX volta a tapar a cabeça. AA tira-lhe a almofada.) Mas quem é que falou em chá!
Tenha algo muito melhor, para uma ocasião como esta.
XX – (ao ver a garrafa, senta-se na cama). Onde é que arranjaste isso?
AA – Isso agora não interessa, é um presente meu. Vamos, veste o teu casaco.
XX – Para quê?
AA – Porque hoje é dia de festa… Festa! Põe isso na tua cabecinha! Festa, baile, cerimónia, celebração, culto,
ritual! O adeus ao ano que acaba… para acolher um novo ano, uma era nova, uma vida nova, é tudo novo!
Aleluia! Não podes ficar em mangas de camisa numa noite de gala. Rápido! Levanta-te, mexe-te, diverte-
te!... (Obriga XX a levantar-se da cama e leva-o até à mesa. Pega no casaco que estava na cadeira da
direita e entrega-o a XX.) Aperta o nó da gravata! Abotoa-te! Penteia-te! Não queres que o Ano Novo
vomite assim que te vir, pois não?
XX – Tu não tens gravata.
AA – Eu?... Tens razão.
XX – Então por quê eu e não tu?
AA – O meu caso é diferente. Eu nunca uso gravata. Não faz parte do meu estilo. (XX tira o casaco, entrega-o a
AA e dirige-se para a cama.) Espera! (XX volta a deitar-se na cama.) Será que é mesmo necessário? Tens
a certeza? Tenho mesmo?
XX – Quando é festa, é festa…
AA vai até à sua cama; pelo caminho pendura o casaco de XX na cadeira da direita. Tira a mala de
debaixo da cama, abre-a e tira uma gravata e vai fazer o nó em frente do espelho. XX observa-o, depois
levanta-se e vai sentar-se na cadeira da direita. Tira um lenço do bolso e usa-o para limpar os sapatos.
AA – (virando-se para XX, com a gravata posta). Está bem, assim?
XX – (depois de o observar algum tempo). Quando é que fizeste a barba pela última vez?
AA – Não me lembro.
XX – Pois é. Podias fazê-la agora.

20
AA – Ah não! Não me peças agora para fazer a barba! (…) Agora já ninguém faz a barba…
XX – Eu fiz.
AA – Provincianismos! Hoje em dia já ninguém é obrigado a fazer a barba.
XX – Todos os dias, não. Mas em dias de festa, é obrigatório…
AA – Está bem, eu faço. Mas com uma condição.
XX – Qual?
AA – Muda de meias.
XX – (contemplando, espantado, os pés calçados com as meias esburacadas). Porquê? Ainda não estão muito
sujas…
AA – Então nada feito.
XX – Se eu calçar os sapatos, não se vê nada.
AA – É um ultimato.
XX – Está bem, está bem… (Tira uma velha mala de cartão de debaixo da sua cama e de dentro tira um par de
meias. Tira as usadas e coloca-as na mala. Calça o par novo, mas igualmente esburacado. Volta para a
cadeira e calça os sapatos. Durante este tempo, AA tira o casaco e pendura-o na cadeira da esquerda. Vai
até ao espelho e começa a barbear-se. Enquanto espera que AA acabe, XX permanece sentado, sem se
mexer, mas continua a observá-lo. Suspira.) Nunca mais chega a primavera.
AA – Porquê?
XX – Porque ouvi dizer que, na primavera, algumas andam sem cuecas… (…) E agora andamos a abrir valas, e
a colocar condutas.
AA – Não vejo qual é a relação.
XX – Ouve, quando alguma passa perto, na estrada, a gente olha para cima e vê.
AA – Então é assim que a plebe se diverte…
XX – Agora estamos a trabalhar num bairro muito bom. Quando trabalhámos nos subúrbios, não valia a pena.
Havia pouca gente e elas eram muito feias, ou então velhas. Mas aqui, de vez em quando passam
algumas muito elegantes, com casacos de pelo… Há sempre um de nós que está à espreita. Quando vê
chegar uma, faz-nos um sinal. A melhor altura é quando estamos a escavar em frente a uma loja grande,
que venda também roupa interior. Ou então junto a um cabeleireiro de senhoras. Lembro-me que, uma
vez, estávamos a colocar cabos em frente a um restaurante muito chique, a uma profundidade ideal: um
metro e meio. Por cima da vala havia uma pequena passagem de madeira… Oh! Meu Deus!... Pensei que
ia ficar com o pescoço torto. Era o lugar perfeito. Mas agora não é menos mal. Devias vir ver um dia…
AA – Obrigado, mas tenho outras opções.
XX – O pior foi quando estivemos a trabalhar ao pé do quartel. Só vimos soldados durante duas semanas.
AA – E a tua mulher, também vai ao cabeleireiro?
XX – Claro que não!
AA – E ao restaurante?
XX – Isso é que era bom! Lá na terra, come-se em casa.
AA – Então ela vai às compras, certo?

21
XX – Vai. (Pausa.) Mas na nossa terra, na nossa cidade, não há esgotos, nem condutas de água.
AA – (…) Já acabei. (Lava a cara e seca-se com a toalha.) Pra mesa!
XX levanta-se. Vestem os casacos ao mesmo tempo, em frente um do outro. AA à esquerda, XX à direita
da mesa. Depois sentam-se em simultâneo. AA tira a rolha da garrafa e enche os copos.
XX – Já alguma vez foste casado?
AA – Duas vezes.
XX – Como assim?
AA – Divorciei-me. À nossa…
XX – Tens filhos?
AA – Filhos? Não, não tenho.
XX – Então por que é que te casaste?
AA – Como assim, porquê? Por amor… para que as nossas almas pudessem unir-se,… sabes muito bem
porquê… Vamos… bebe!
XX – À tua! (Bebem. AA pega num cigarro e oferece o maço a XX, que tira igualmente um cigarro. AA procura
os fósforos nos bolsos. XX tira uma caixa de fósforos do seu bolso direito, mas, depois de acender o
cigarro, volta a pô-la no bolso esquerdo. Fumam. Pausa.) Por que é que fugiste?
AA – (como que arrancado de um sonho). O quê?
XX – Por que razão fugiste do país? Não te sentias bem lá? Tinhas duas mulheres, uma casa na capital…
Ganhavas bem, davas-te com pessoas de bem, pessoas famosas… E aqui?
AA – Não se foge para um sítio… foge-se de alguma coisa…
XX – Justamente. Mas não estavas melhor lá do que aqui?
AA – Um dia fui passear ao parque. Havia uns miúdos a brincar numa alameda. Depois, apercebi-me de um
rapaz, um pouco mais velho que os outros, escondido atrás de um arbusto. Apanhava pedras e atirava-as
aos outros miúdos, e depois escondia-se imediatamente, atrás do arbusto. Parecia que estava a gozar
com eles, muito divertido, sempre a rir. Era um rapaz forte, bem constituído… Atirava as pedras e
escondia-se, atirava e escondia-se…
Pausa.
XX – Que idade tinha?
AA – Devia ter uns dez ou doze…
XX – (enternecido). Da idade do meu… (…)
AA – Sim, podia ser o teu filho.
Pausa.
XX – E depois?
AA – Nada. Foi só isto. (…)
XX – Não me vais dizer que se foge para o estrangeiro porque um parvalhão atirou pedras num parque. E, ainda
por cima, não foi a ti. Anda lá, podes confiar em mim como num irmão…
AA – Está bem. Digamos que… Digamos que eu sempre tive problemas de dicção. Por exemplo, a palavra
“generalíssimo” era muito difícil de pronunciar… Nunca consegui dizê-la corretamente.

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XX – Tu? Mas tu andaste na escola!
AA – Isto é, não era bem um problema de dicção, mas mais de entoação, de dizê-la com o tom correto… Nunca
fui muito bom a acertar nos tons corretos…
XX – (em voz baixa, confidencial). És… um político?
AA – Acho que podemos chamar-lhe isso. (XX levanta-se da mesa.) O que foi, nunca desconfiaste?
XX dirige-se à porta e para, virando as costas a AA.
XX – E é agora que mo dizes?
AA – Pensei que sabias desde o início.
XX entreabre a porta com extrema precaução, lança um olhar furtivo para fora, fecha-a e regressa à mesa.
XX – Estás na lista?
AA – Provavelmente. (XX permanece de pé, indeciso.) Por que é que continuas de pé?
XX – (sentando-se). Sou mesmo estúpido. (Bate com o punho ca testa.) Mas, desde o início, havia qualquer
coisa que não batia certo. Ele não faz nada, não trabalha, passa o tempo a ler, deitado na cama. Tem as
mãos muito cuidadas… Um intelectual.
AA – Como é que sabes que não faço nada? Achas que só quem cava buracos é que trabalha?
XX – Então fazes o quê, nessa cama?
AA – Penso.
XX – (irritado e desdenhoso). Ai sim… Em quê?
AA – Em ti, por exemplo. Penso se serias capaz de te transformar num delator…
XX – … Num quê?
AA – Se serias capaz de me denunciar. Não agora, obviamente, e não aqui. Mas lá, no país…
XX – A gente não se conhecia lá…
AA – Porque pensas que só se denuncia quem conhecemos? Não. Escuta: imagina que estás preso e que eu
venho propor-te uma fuga. Ou melhor, proponho-te um plano para fazer explodir a prisão. Neste caso, o
que é que fazes? Chamas os guardas e entregas-me?
XX – Em que prisão?
AA – Numa prisão em que até nem estejas muito mal. Talvez melhor do que em liberdade. Onde podes comer,
onde nunca passas frio…
XX – Nunca ouvi falar numa prisão dessas.
AA – Numa prisão onde apenas uma coisa é proibida: utilizar palavras que comecem pela letra P. Todas as
palavras começadas por P não podem ser usadas, tanto na linguagem oral como na escrita.
XX – Porquê?
AA – Para que nunca se possa escrever nem dizer a palavra “prisão”. Podes usar sinónimos, metáforas, mas
nunca a palavra em si. É proibido dizer, escrever ou até pensar na palavra.
XX – Isso não é uma prisão.
AA – E então se eu te propusesse…
XX – (levantando-se de um salto). Mas que raio é que tu me queres?!
AA – Eu não quero nada! Estava apenas a tentar perceber qual seria a tua atitude se eu te tivesse proposto…

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XX – Eu tenho mulher e filhos!
AA – E eu tenho… tenho… Na verdade, o que é que eu tenho? Tenho palavras, as minhas queridas palavras,
que começam por todas as letras do alfabeto, incluindo o P. Descansa, eu não te quero propor nada, não
estou a sugerir nada. No máximo, propunha-me a mim, e, mesmo assim, nem sei… Achas que eu sou um
herói ou quê?
XX – Tudo é possível nesta vida.
AA – Obrigado pelo elogio, mas posso garantir-te que não sou nenhum herói. Senta-te e bebe um copo. Não
corres qualquer risco comigo. (XX senta-se. AA serve a bebida.) Vamos! À saúde do bom senso dos
espíritos sãos, se assim podemos dizer. Se bem que a saúde nunca é de mais. Cheers! Prosit! À tua!
Tchin, tchin! E não tenhas medo, sou um verdadeiro papa-açorda, um cobarde. Ou talvez mesmo, e
simplesmente, humanamente,… um canalha. Vamos, bebe, aqui estamos entre amigos, entre iguais. (XX
pousa o copo.) Por que é que não bebes? (XX permanece calado.) Já percebi. Agora deves estar a pensar
que eu não passo de um provocador.
XX – Ahh… não!
AA – Confessa. Eu disse-te que era um canalha, e tu pensaste imediatamente que eu estava a provocar-te, não
foi? (XX não diz nada. AA levanta o copo.) Bebemos? (XX não reage.) Olha… tem cuidado… porque se
um fiel servidor do teu governo não te agrada… isso pode levantar sérias dúvidas sobre a tua lealdade ao
regime. Um cidadão leal não pode beber com um funcionário em serviço, mesmo que seja um agente dos
serviços secretos?
XX não responde. Pausa.
XX – Não quero beber contigo.
AA – Cuidado! Eu represento o Estado… o governo… o regime… o poder…
XX – Não é por causa disso…
AA – Então é por quê?
XX – Disseste que eras um canalha.
AA – Pois disse, e então?
XX – É por isso.
AA – Ah… E não queres beber com um canalha?
XX – Nada disso, eu sou capaz de beber com qualquer um. Não é isso que está em causa. Mas tu disseste que
aqui estávamos “entre iguais”. Isso quer dizer que eu também sou um canalha…
AA – E então, não és?
XX – Não.
AA – Isso quer dizer que te sentes superior a mim?
XX – Não, não é isso. Só gostava de saber por que é que eu também tenho de ser um canalha. O que é que eu
te fiz para me tratares assim? Por que é que me tratas de canalha, hã?!? (AA cala-se.) Aqui estamos
“entre iguais”, não é? E mais o quê?? (AA continua calado.) Se não sabes, cala-te, e não me insultes. Não
se insulta alguém sem uma razão. Não se devem insultar as pessoas.
Silêncio.

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AA – Ok, se calhar exagerei um pouco. Talvez não seja assim tão canalha como isso…
XX – Nesse caso, a coisa muda de figura. Queres dizer que, então, não estamos “entre iguais”…
AA – Na verdade, não.
XX – (bastante alegre). Isso muda tudo! Já podemos beber um copo à vontade!
AA – Não vejo qualquer inconveniente nisso.
XX – (aliviado). Bebamos, então.
AA – E fazemos as pazes.
XX – Ok. (Brindam e bebem.) Ainda falta muito pra meia-noite?
AA – Não sei, o meu relógio parou.
XX – Se calhar, podíamos ir lá acima perguntar…
AA – Eles estão a beber champanhe. Quando for meia-noite, vamos ouvir as rolhas a saltar. Não nos vamos
preocupar com isso.
XX – Ok… Lá em casa estão à espera que eu chegue, como fazem sempre. As crianças, sobretudo. Esperam
que eu chegue e, mais uma vez, eu não apareço… Ai, ai… que vida esta…
AA – Mas então por que é que não foste visitá-los? Podias fazê-lo, sem problemas, não tens qualquer ligação à
política… Podes ir a casa durante as férias.
XX – Férias? Eu nunca tenho férias!
AA – Mas podias pedir.
XX – Deus me livre! Então eu estou aqui para gozar férias?!? Estou aqui para ganhar dinheiro. Tiro férias
quando voltar para casa. Uma semana inteirinha. Pego num cobertor e vou dormir no pomar, por debaixo
das árvores. E não levanto um dedo! De vez em quando, abro um olho só para confirmar que o céu
continua no mesmo lugar, e volto a adormecer. E a mulher leva-me a comida. E depois…
AA – Depois, o quê?
XX – Depois levanto-me e visto-me, muito chique, só com roupas do estrangeiro.
AA – Porquê?
XX – Como assim, porquê? Porque é o meu aniversário, ora pois.
AA – O teu aniversário?
XX – Claro, é em maio. Vou convidar a aldeia toda. Quero dizer, toda, toda, não. Há lá alguns de quem eu não
gosto, e esses, não os convido, só para eles se roerem de inveja. Mata-se um porco ou uma vaca, compra-
se uma bela aguardente… É preciso é que haja para todos, e que ainda sobre… Toda a gente tem de
aproveitar bem a festa, de se divertir muito, e que vejam bem que este senhor voltou do estrangeiro. E
pomos tudo à porta de casa, para que toda a gente possa ver bem, mas ninguém pode tocar! É só para
ver! E vou pedir ao meu cunhado que fique a vigiar… Ou talvez não, ele também não é muito certo… (…)E
depois, fazemos a festa durante três dias! (…) E sabes o que é que eu vou fazer quando a festa acabar?
AA – A limpeza…
XX – Isso é a minha sogra que faz. Não, eu vou começar a construir uma casa.
AA – A sério?
XX – Sim, uma bela duma casa! Toda em pedra, rés-do-chão e primeiro andar, com aquecimento central.

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AA – Isso é uma piada, certo?
XX – A casa mais bonita da aldeia toda. E vou fazê-la com o meu dinheiro.
AA – E vais demorar muito tempo?
XX – Sei lá… alguns anos, talvez. Mas quando a tiver acabado, saio da casa dos sogros e vamos viver nela, na
nossa casa. E então, o que é que achas?
AA – É um projeto interessante… (Levanta-se e ergue o copo.) À saúde da casa!
XX – À saúde da casa!
Brindam. Subitamente, a mão de XX que segura o copo começa a tremer.
AA – Cuidado, vais entornar o copo! Ó meu Deus, segura-o bem, vais entornar essa merda toda! O que é que
se passa contigo?
Incapaz de segurar o copo, XX pousa-o em cima da mesa. Senta-se, virado para o público, e de perfil para
AA. Este pousa igualmente o seu e aproxima-se de XX.
AA – Deixa-me ver as tuas mãos. (XX mete as mãos nos bolsos.) Deixa-me ver as mãos! (Reticente, XX tira-as
dos bolsos.) Mostra! (XX estica os braços, de punhos fechados.) Assim não, abre as mãos!
AA força-o a abrir as mãos. XX vira a cabeça para o lado mas mantém os braços esticados. As mãos
tremem bastante. AA afasta-se, sem olhar para XX, que volta a pôr as mãos nos bolsos.
AA – Há muito tempo que tens isso?
XX – Há um ano.
AA – E é muito frequente?
XX – Não, só de vez em quando.
AA – Mas é cada vez mais frequente? (XX não responde.) Pergunto se isso te acontece com cada vez mais
frequência!
XX não responde. AA agarra no seu copo, coloca-se atrás de XX e, com a mão, força-o a virar a cabeça
para trás. Aproxima-lhe o copo da boca e XX é obrigado a bebê-lo. AA pousa o copo vazio na mesa, pega
no outro e bebe-o de uma só vez, e pousa-o na mesa.
XX – (tossindo e cuspindo). Obrigadinho…
AA – Por que é que não aprendes a língua? (XX continua a tossir, mas, desta vez, deliberadamente, para
ganhar tempo). Isso já passa.
XX – Que língua?
AA – A língua daqui.
XX – (tirando as mãos dos bolsos e olhando para elas, que ainda tremem). Isto já vai passar…
Volta a esconder as mãos nos bolsos.
AA – Não me respondes?
XX – Queres saber por que é que eu não falo a língua deles?
AA – Já me estás a enervar. Sabes muito bem o que é que eu estou a perguntar. Neste país és um analfabeto…
Ou pior, um surdo-mudo. Quando é que vais deixar de ser um inválido?
XX – Eu não quero falar a língua deles…
AA – Porquê? Vives aqui, neste país, comes e bebes, andas na rua como as pessoas daqui. Então por que não

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falas como elas? Podias arranjar um trabalho melhor… Valia a pena tentar.
XX – Eles não são pessoas…
AA – O quê?
XX – Não, não são humanos. Neste país não há pessoas.
AA – E então onde é que há?
XX – Lá na nossa terra.
AA – Ah, claro…
XX – (tira as mãos dos bolsos e observa-as). Já está a passar.
Volta a pô-las nos bolsos.
AA – Nesse caso, sabes o que é que acontece às pessoas que trabalham muito tempo com compactadores de
solo?
XX – Envelhecem…
AA – Mas não é só.
XX – Ficam um pouco surdas. (Tira uma mão do bolso e enfia um dedo no ouvido). Há já algum tempo que ouço
um apito no ouvido. E já não consigo ouvir muito bem.
AA – É normal. Mas há mais uma coisa.
XX tira o dedo do ouvido e a outra mão do bolso.
XX – Olha, já passou!
AA – O apito?
XX – Não, as mãos.
AA – Isso não é nada, e no ouvido também não. Há algo pior. Quando se passam oito horas por dia a sentir
vibrações, surgem algumas modificações no tecido conjuntivo, isto é, no tecido que liga os músculos aos
ossos. Há quanto tempo é que estás cá?
XX – (olhando para os braços esticados). Já não tremem nada.
AA – Perguntei-te há quanto tempo trabalhas com essa máquina.
XX – Três anos.
AA – Essas alterações são, na verdade, um definhamento do próprio tecido. Ou seja, a carne começa a separar-
se dos ossos…
XX – Acho mesmo que já são três anos e meio…
AA – Com o tempo, isso leva a uma total incapacidade para trabalhar.
XX – Estás a falar a sério?
AA – É uma doença e uma incapacidade. Há já mesmo institutos especializados na higiene e segurança no
trabalho que levam isto muito a sério. É considerada uma verdadeira doença profissional.
Silêncio.
XX – Ohh… Isso é tudo parvoíces… Só para me assustar…
AA – (agarrando XX pelas lapelas do casaco). Consideras-te um homem, tu? Não passas de um animal, não és
um ser humano. Nem mesmo um canalha! Não és nem homem, nem cão, isso é certo… És um boi. Pior,
um boi tacanho, estúpido… Uma besta de carga. Só serves para puxar a carroça até caíres redondo no

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chão… E isto faz-te feliz! E ainda queres mais! Mais um pouquinho de trabalho, por favor… E mais um
pouco de comida também! Ficas muito contente, feliz, satisfeito… Tens tudo o que desejas. Estás
contente, não estás? Diz-me, estás contente ou não?
XX – Para de me abanar…
AA – Vou abanar-te e vou gritar até que consiga fazer de ti um homem! E não vou parar até o conseguir. Porque
enquanto tu fores uma besta… eu continuarei a ser um canalha. Uma coisa depende da outra. A besta e o
canalha.
XX – (num tom ameaçador). Já te disse para não me abanares…
AA – Porquê, vais defender-te? Não me importo. Há de chegar o dia em que tu próprio vais perceber… E então
vais agradecer-me. Porque não basta que apenas um de nós seja um homem. Ou bem que somos os dois,
ou então nenhum…
AA dá início a um discurso lírico, em parte sob a influência do álcool já consumido, e continua a agarrar XX
pela lapela.
AA – E quando nós os dois nos conseguirmos aguentar de pé, vamos levantar-nos, vamos erguer-nos. Vamos
erguer a cabeça bem alto. E então, por cima das nossas cabeças, vamos ver um ramo, que se agita
levemente ao vento. Um ramo com um fruto. O fruto proibido! E o vento continua a agitar o ramo, é o vento
da história… E então damos as mãos e…
XX bate-lhe nas mãos. AA larga o casaco e afasta-se a cambalear.
XX – (levanta-se da cadeira). Mas olha lá, a quem é que estás a levantar a mão, hã?!? Diz-me, a quem…
AA – Não vês nada?
XX – O quê? Estás a levantar-me a mão? A mim? (Furioso, dirige-se a AA.) Piolho do caraças, parvalhão, não
passas de um merdas… Já vais ver o que te acontece…
No momento em que levanta a mão e se apresta a bater em AA, a luz apaga-se. Escuridão total. No andar
de cima, ouvem-se as pessoas a soltar um “ahhh” de surpresa em uníssono, como é habitual quando a luz
se apaga. Depois ouve-se um trompete a tocar, alguns apitos. Ao mesmo tempo, um relógio dá as doze
badaladas. Ao longe também se ouvem sinos a tocar. O diálogo continua na escuridão total.
AA – É meia-noite.
XX – Por que é que não há luz?
AA – É normal apagar-se a luz à meia-noite, na passagem de ano. É tradição. (Pausa.) Não tens fósforos? (XX
acende um. AA vai atrás do biombo e regressa com um candelabro. Acende a vela com o fósforo de XX.
Pousa o candelabro na mesa e volta-se para XX.) Bom…
XX – (aclarando a garganta, algo constrangido). Pois…
AA – Então podíamos…
XX – Como quiseres…
AA – Nesse caso…
XX – Sim… ahh…
AA – Claro…
XX – Por que não…

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AA – Certamente…
XX – Naturalmente…
AA – Bebamos, então… (Enche os copos.) Ao novo ano.
XX – (erguendo o copo). Ao novo ano!
Brindam e esvaziam os copos. Permanecem algo constrangidos, sem se mexer muito, algo incomodados.
AA senta-se na cadeira da esquerda e XX na da direita.
XX – Os sinos estão a tocar.
AA – Nas igrejas.
Pausa.
XX – Então, peço-te…
AA – Eu também…
XX – O passado é passado
AA – Esqueçamos isto tudo…
Estica a mão na direção de XX.
XX – Então… que consigamos…
AA – As maiores felicidades…
XX – Bom ano! (XX cede e apertam as mãos através da mesa. Acendem os cigarros, da mesma forma que o
fizeram da última vez, com uma única diferença: XX não faz o mesmo jogo com as caixas de fósforos.
Sentam-se nas cadeiras do costume. A partir deste momento, estarão gradualmente sob o efeito do álcool,
sobretudo XX.) Ahh… o novo ano… As coisas andam tão depressa… tudo muda. Lembro-me que, ainda
não há muito tempo, eu era um rapazito que guardava vacas, e que ia aos ninhos roubar os ovos, ia à
escola, descalço… Mas só ia durante o outono. Na primavera havia muito trabalho para fazer nos campos,
e no inverno estava sempre muito frio… E depois o pai desse miúdo foi para a cidade, mas os avós
ficaram. Havia miséria por todo o lado, mas eles ficaram. É curioso, mas os velhotes preferiam ficar… Até
parece que gostavam da miséria…
AA – Quem sou para os julgar!
XX – Pois eu não gosto. (Bate no peito com a mão.) Nunca vão conseguir obrigar-me a dizer que gosto da
miséria.
AA – Mas quem é que gosta?!
XX – O meu pai também não gostava. E gostava tão pouco que bebia tudo o que ganhava. E depois gostava
ainda menos, e bebia cada vez mais!... Mas eu não bebo.
AA – Tens razão.
XX – Porque eu não gosto. Eu gosto de ter coisas. E quando tenho uma coisa na mão… ela é minha. E quando
a largo… deixa de ser minha… É assim, não é?
AA – Sim, tens toda a razão.
XX – Trabalho no duro, mas pagam-me. E quando tiver sido bem pago… vou ser rico… E tudo terá valido a
pena… Não é?
AA – Logicamente.

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XX – O problema é que, às vezes, começo a pensar se tudo isto vale a pena…
AA – Tudo isto, o quê?
XX – Tudo aquilo que eu tenho… Quando morrer, não vou poder levá-lo comigo, não me deixam entrar com as
minhas coisas no paraíso… e no inferno não têm valor nenhum… Então de que me serve andar a trabalhar
assim?
AA – Mas tu é que quiseste…
XX – É verdade, mas o que é que eu ganho com isso? Perco a minha saúde, não tenho qualquer prazer… não
bebo… não fumo. Exceto quando tu me ofereces um cigarro…
AA – (com o maço de cigarros na mão). Anda, serve-te, peço-te.
XX – Deus te pague. (Tira um cigarro mas atira-o imediatamente para cima da mesa.) Diz-me… para quem é
isto tudo? Hã? Porquê…
AA – E os teus filhos? Vais construir uma casa. Vais deixá-la a eles… É para os teus filhos…
XX – E eles, a quem é que a vão deixar?
AA – Aos filhos deles.
XX – Ah… (Pausa.) E como é que isto vai acabar?
AA – Não acaba. E queres que isto acabe por quê?
XX – Então, sendo assim… Não tem fim? Nunca acaba?
AA – Não, nunca.
XX – Humm… Não tem fim, dizes tu… Então por que é que tudo começou?
AA – Só me fazes perguntas difíceis… (…)
XX – Não gosto nada disto… Se há um início, tem de haver um fim. Se não, o início também não… não há fim…
Um início tão difícil, trabalho, trabalho,… E sem qualquer prazer… Nunca vou ao cinema… Nunca vou às
meninas… Pensas que isto é fácil?
AA – Nunca pensei que fosse.
XX – Gritar é fácil. Mas se tivesses tentado viver como eu vivo… (Cada vez mais condoído com a sua vida.)
Sabes como é que eu vivo, sabes? Como um animal! Como um cão!
AA – Acho que estás a exagerar um pouco…
XX – (dando um murro em cima da mesa). Não me digas que não é verdade! Sim, sou um cão. Tu mesmo o
disseste!
AA – Se bem te lembras, não foi bem isso que eu disse…
XX – (curvando-se na direção de AA, em tom confidencial). Aproxima-te, quero contar-te uma coisa.
AA – Estou a ouvir.
XX – Mais perto… (Com uma mão puxa pelo braço de AA ao ponto das duas testas parecerem tocar-se.
Murmura algo, com paixão mas de forma discreta.) E… tu tinhas razão.
Voltam às posições anteriores.
AA – (num tom exageradamente civilizado, mundano). Não é verdade…
XX – (pondo o indicador sobre os lábios). Chiu… (Grita.) Como um cão! Os cães vivem melhor do que eu! Pelo
menos, não têm de trabalhar tanto! E isto é vida? Diz-me, isto é viver?

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AA – Do ponto de vista puramente biológico…
XX – Sim ou não, chama-se a isto viver?
AA – Depende.
XX – (cortando a resposta de AA). Não! Não é vida pra ninguém! Enche o copo.
AA – Acho que, por agora, já chega.
XX – Não, não chega! É a primeira vez que estou a beber desde que cheguei cá. Acho que já o merecia, ou
não?
AA – Sem dúvida.
Enche os copos e bebem.
AA – Mas o que é que se passa com a luz?
Pausa. XX levanta-se e, cambaleando, vai até ao lavatório.
XX – Acende.
AA – Já está.
XX – Ahh… (Pausa. XX procura o lavatório na penumbra.) O que é que está aceso?
AA – A luz.
XX – Pois… Então, se está acesa, por que é que está escuro?
AA – Porque se apagou. (XX acaba por encontrar o lavatório. Mete a cabeça debaixo da torneira com a água a
correr.) … Gostava de saber por que é que se apagou. Devia voltar a acender-se.
XX – (continuando debaixo da torneira). É o ano novo! É o ano novo!
AA – Sim, eu sei, mas já dura há muito tempo.
XX – Talvez seja da lâmpada…
Com a vela na mão, AA sobe para cima da cadeira. Observa a lâmpada com a ajuda da vela.
AA – Não, a lâmpada está boa. (Desce da cadeira e vai até à porta, que abre. Olha para o corredor.) Está
escuro em todo o lado… Talvez seja um curto-circuito, ou uma avaria… (Fecha a porta e pousa o
candelabro na mesa.) Vai ser o fim da velinha…
XX – (tentando imitá-lo). Vai ser o fim da velinha… pilinha!
AA – (chateado). Engraçadinho…
XX fecha a torneira e limpa a cara com as mãos, resfolegando.
XX – Não gostaste?
AA – Não.
XX – Se calhar também não gostas de mim…
AA – Não.
XX – Então por que é que estás aqui comigo?
Silêncio.
AA – Aí está uma questão fundamental.
XX – Eu não te convidei.
AA – É verdade.
XX – Fizeste-te de convidado. (Pausa. XX senta-se numa cadeira, desta vez na da esquerda. Olha para AA que

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está junto à sua cama.) Ei! Diz-me a verdade, verdadinha, o que é que estás aqui a fazer comigo? ... (AA
senta-se na cadeira da direita.) Quero saber o que é que fazes aqui, neste pardieiro.
AA – Sei lá…
XX – Responde!
AA – Faço o mesmo que tu.
XX – Isso não é verdade. Eu sou obrigado a estar aqui. Sou uma besta de carga, um analfabeto, um animal…
Mas tu, tu falas línguas estrangeiras, és um intelectual… Ninguém te obriga a ficar aqui.
AA – Exato.
XX – Conseguias desenrascar-te em qualquer sítio, safavas-te bem em qualquer lado, até “spicas inglish” e mais
não sei o quê… Então estás aqui, porquê? O que é que procuras?
AA – Nada.
XX – Isso não é verdade. Acho que esperas alguma coisa de mim. Às vezes pergunto-me: eu não lhe sou nada,
não passo de um estrangeiro… E tu dás-me comida, emprestas-me dinheiro… Refilas muito, mas
emprestas. Incomodo-te, mas não te vais embora. Por que é que não te vais embora, por que é que não
desapareces, simplesmente, já que és assim tão delicado? Hã? Porque tu és muito delicado, não és? Eu
obrigo-te a ficar? Se não estás contente, vai-te embora. Não sou eu que te impeço. O que é que queres de
mim?
AA – Nada.
XX – Não julgues que sou parvo. Posso ser um pouco abrutalhado, mas não sou nenhum estúpido. Podes
contar-me tudo, já que estamos a beber um copo juntos. Ei! Por que é que bebes comigo?
AA – Para me redimir.
XX – Para te redimires do quê?
AA – Dos pecados dos meus antepassados. Os nossos antepassados nunca beberam juntos…
XX – E isso é pecado?
AA – Sim, é. É um pecado nacional.
XX – Tretas.
AA – Não acreditas?
XX – Não.
AA – Tens razão. Esse é que é o verdadeiro instinto do nosso povo. Nesse caso, aqui vai: os antepassados que
vão pró diabo! Hoje estou sozinho… Eu… e vou para junto do povo, para confraternizar com o povo,
percebes? Sou (…) um populista. (…)
XX – Parvoíces.
AA – Ora aí está o ceticismo natural do povo. Vocês têm tantas qualidades: um instinto sólido, o sentido da
verdade, a capacidade de autocrítica… Então… será que eu sou um socialista?
XX – Mais parvoíces.
AA – Esqueçamos estes sonhos populisto-nacionalistas. E se eu fosse simplesmente um cientista? Racionalista
e progressista. Tu és a locomotiva da história, a vanguarda da humanidade. Então porque é que é assim
tão estranho que eu queira beber com uma locomotiva? O que há assim de tão surpreendente em que eu

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prepare uns ovos estrelados com a vanguarda da humanidade, que ande de cuecas com ela, no mesmo
quarto, e que limpe as fuças na mesma toalha? Nunca pensaste nisso?
XX – Não, não é isso…
AA – Por que não?
XX – Porque eu conheço-os. Houve um que veio falar com a gente, lá no estaleiro, muito bem-educado. Nunca
se zanga connosco, pelo contrário. Sempre a sorrir, a passar-nos graxa, dá-nos uns panfletos e explica-
nos…
AA – Eu não sou assim.
XX – Não.
AA – Eu grito contigo.
XX – Se gritas! Nunca estás contente. Isto não está bem, aquilo não é assim que se faz… Isso é verdade, estás
sempre a chatear-me. Vê-se logo que és um Senhor, e não um socialista.
AA – Já vi que a ti, ninguém te engana.
XX – Oh! Oh! Eu sou muito esperto, percebo tudo à primeira! Consigo reconhecer um socialista à distância.
Mas, tu, ainda não consegui perceber muito bem o que tu és…
AA – Achas que posso ser um simples provocador?
XX – Eh! Eh! A mim não me provocas. Eu sou muito insignificante para isso, não tenho qualquer interesse no
poder. Seja aqui, seja lá na terra, o que me interessa é trabalhar forte e feio. Se fosses um provocador, um
agitador, não ficavas aqui comigo, ias ter com outros mais importantes do que eu… professores… ou os da
política… aqueles que pensam.
AA – Tu nunca pensas?
XX – O que eu penso não interessa… Eu penso em quê? Em ganhar dinheiro, nos meus filhos… na minha
querida mulher. E também nas meninas… É normal. Toda a gente pensa nisso, e não é nisso que o poder
está interessado. Desde que não me arme em esperto e que fique tranquilamente no meu cantinho, o
poder quer lá saber em que é que penso! Eu não mereço um agitador…
AA – Nunca pensaste na liberdade?
XX – Isso quer dizer o quê?
AA – Hã... em ser livre.
XX – E como?
AA – Por exemplo, poderes dizer o que pensas.
XX – Mas eu já te disse em que é que penso. E posso repeti-lo. Posso dizer-te o mesmo de manhã à noite, e da
noite à manhã. Não é a mim que o poder vai impedir de dizer o que penso. Era bom, era… Os meus
pensamentos…
AA – Mas nunca pensaste em pensar mais?
XX – Pensar em pensar?
AA – Sim, podemos chamar-lhe assim…
XX – Isso, nunca. Não sou assim tão parvo…
AA – O pensamento não é nenhuma parvoíce. (…)

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XX – Já percebi! És um padre.
AA – Eu? Isso é pra rir?
XX – Sim, és um pregador da liberdade. Tinha ficado com algumas dúvidas quando me agarraste pela lapela do
casaco. Um padre catequista. Alguém que chega e diz: estão a ver este poder? É o diabo em pessoa. Não
sirvam o diabo, sirvam Cristo. Mas quem é esse Cristo? Onde é que ele está? Mostra-mo! Liberdade? Que
liberdade têm vocês? O que é que ela significa? Eu só conheço uma liberdade: a de não ser obrigado a ir
trabalhar. Eu sou livre ao domingo. Dá-me sete domingos por semana e eu beijo-te os pés, como se fosses
o Cristo em pessoa. Sete domingos, mas pagos!
AA – E se eu te tirasse esse único domingo?
XX – Tu? E que poder tens tu par isso? Nenhum! Não podes dar-me nada nem tirar-me seja o que for. Tudo o
que podes fazer é ficar deitado num sofá e dar-me um sermão… Um verdadeiro apóstolo do sofá…
AA – É verdade, eu não posso, mas, o poder, sim.
XX – Isso só quer dizer que temos de estar de bem com o poder. Porque se o poder nos pode tirar alguma
coisa, isso também significa que ele nos pode dar alguma. E tu gostas do poder?
AA – Não posso dizer que seja um apaixonado…
XX – É por isso que ele não gosta de ti. E sabes por que é que não gostas?
AA – Tenho alguma curiosidade nisso.
XX – Porque, para o poder, tu não és mais importante do que eu. Mesmo com as tuas escolas e os teus livros…
não és mais esperto do que eu. Quando só há um poder, um único, toda a gente mete o rabinho entre as
pernas da mesma maneira, e por isso são todos iguais. Somos todos iguais.
AA – Como nos urinóis…
XX – E por que não? Eu cá não sou muito delicado.
AA – Bravo! Anda cá, dá-me um abraço!
XX – Porquê?
AA – Porque não me desiludiste! Contava contigo e tinha razão. Precisava mesmo de alguém como tu, és o
escravo ideal!
XX – Então não és um padre?
AA – Não. Devo reconhecer, no entanto, que tive algumas veleidades evangelizadoras. Antes de perceber…
Mas não tenhas medo, não volta a acontecer, não vou tentar converter-te. Foi apenas uma fraqueza
passageira.
XX – És a favor do poder?
AA – Também não. O meu caso é muito particular: preciso de um escravo, mas não num sentido utilitário.
Preciso de ti como modelo… És-me indispensável enquanto referência, sobretudo aqui.
XX – Mais uma vez, só estás a dizer tretas…
AA – Nada disso. Querias saber quem eu era na verdade, e o que fazia aqui contigo. E agora vou dizer-to: sou o
cavaleiro da última oportunidade, e sabes quem é a minha última oportunidade? Tu.
XX – Sou o quê?!
AA – A minha única e última oportunidade, a minha musa, a minha inspiração…

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XX – Olha lá… tu não és um bocadinho maricas?
AA – Ouve. Tudo já começou lá na terra, no nosso país. E tens razão, somos todos iguais face à ditadura. A
igualdade no medo. Eu precisei de muito tempo para chegar a esta verdade. Mas tu, com que facilidade
fizeste esta descoberta, com que simplicidade constataste esta questão fundamental!... Tenho inveja de ti.
A humildade, por vezes, vale mais do que a inteligência.
XX – Eu bem te disse que não era assim tão estúpido.
AA – É espantoso ver a que ponto um homem como eu, que por acaso é inteligente, se recusa a ver a mais pura
das verdades à frente dos olhos! Precisei de muito tempo para perder as ilusões que tinha, até chegar a
uma conclusão extremamente simples: não passo de um macaco numa jaula.
XX – Os macacos são engraçados. Já vi alguns no jardim zoológico.
AA – Tens razão. Os macacos nas jaulas podem ser muito engraçados. Quando eu próprio constatei que era um
macaco, comecei a rir de mim mesmo, e não consegui parar… Até que o riso ficou preso na garganta, e
comecei a soluçar, e chorei ao ponto de encher de lágrimas estas fuças de macaco. E foi então que
percebi que, para um macaco, não havia outra solução – primeiro, admitir que era um macaco…
XX – Sim, sim, claro.
AA – E depois, tendo constatado a condição de macaco e de escravo, conseguir retirar disso algum orgulho, ou
pelo menos alguma sabedoria e força.
XX – De um macaco?
AA – Sim, meu caro, de um macaco, de um macaco… Os homens não descendem dos macacos?
XX – Não.
AA – É em mim, neste macaco humilhado e encarcerado, nesta minha condição de prisioneiro, que reside todo
o conhecimento do homem. Um conhecimento em estado puro, inalterado pelos perigos da evolução e
pelos acasos da liberdade. Um conhecimento primário. E então decidi explorar esta hipótese, ou seja, eu,
macaco enjaulado, decidi escrever um livro sobre a humanidade.
XX – Os macacos não sabem escrever.
AA – Decidi escrever um livro sobre o homem em estado puro, isto é, sobre o escravo, sobre mim mesmo, a
obra da minha vida, única no género e a primeira a nível mundial. Pensei: nós não temos nada, mas temos
a escravatura, é o nosso tesouro. O que é que os outros percebem disso? Os daqui, por exemplo? Aqui já
escreveram sobre tudo, já leram tudo, mas não sabem nada sobre o essencial. Toda a literatura que existe
sobre a escravatura é falsa. É a obra de missionários, de libertadores ou, na melhor das hipóteses, de
escravos libertados ou dos que sonham com a liberdade. Escravos que já não o são, na verdade. Que
sabem eles da escravatura pura, fechado sobre si mesma, sem qualquer tentação transcendental? Da
escravatura que se alimenta de si própria? Que sabem eles das alegrias e das tristezas de um escravo,
dos mistérios dos escravos, das suas crenças, dos seus costumes? Da filosofia do escravo, da sua
cosmogonia, da sua matemática? … Eles não sabem nada. Mas eu sei tudo. E então decidi registá-lo.
XX – E já o fizeste?
AA – Não.
XX – Porquê?

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AA – Porque tinha medo. (Pausa.) E não queres saber do que é que eu tinha medo? (Pausa.) Tens razão. Estou
a falar com um compatriota… Com um irmão siamês… A verdade é que eu tinha medo, e para se
escrever, era preciso que não tivesse. E então, para deixar de ter medo, fugi.
XX – E já começaste a escrever?
AA – Ainda não.
XX – Porquê?
AA – Porque já não tenho medo…
XX – Nunca estás contente!
AA – É um círculo vicioso. Para conseguir explorar a minha única oportunidade, perdi-a. Ao fugir, deixei de ser
escravo. Dispersei-me, diluí-me na liberdade. Perdi o argumento e, o que é ainda pior, perdi a necessidade
dele… Teoricamente continuava a saber o que queria, mas já não tinha nem a vontade, nem a
necessidade. E depois, felizmente, tu apareceste.
XX – Qual é o meu papel nisto tudo?
AA – Tu… tu és exatamente o que eu era antes de deixar de o ser. És como um meteorito que caiu na Terra e
que se enterrou completamente nela.
XX – Também não posso deixar que me tratem de tudo e mais alguma coisa!
AA – Tu caíste do céu, és um modelo, uma inspiração. Através de ti consigo voltar a sentir o que é ser escravo.
Graças a ti, vou finalmente conseguir escrever a minha grande obra. Agora já sabes por que é que preciso
de ti.
XX – Não acredito que seja para isso.
AA – Pensas que eu ficaria aqui, voluntariamente, a viver neste pardieiro, como tu lhe chamas, se não fosse
animado por esta grande ideia, por esta missão?
XX – E eu volto a dizer que não é por isso.
AA – Nesse caso, é por quê? Qual é a tua justificação? Anda, diz, se não for pedir-te muito.
XX – É porque queres conversar.
AA – Desculpa, o quê?
XX – Sim, exatamente. Queres conversar comigo.
AA – E do que é que poderíamos falar os dois?
XX – Das moscas, por exemplo… Das moscas e dos apanha-moscas… da vida lá no nosso país… do
passado… Falar, recordar os bons velhos tempos… É normal, certo, é humano não é? E com quem
queres falar disso, se não for comigo? (Apontando para o teto.) Com eles?
AA – Não!
XX – Claro que não. O que é que eles sabem? Mas um país compreende sempre um país. Pra que é que me
vens com essas histórias de escravos? Tu só queres falar, conversar, discutir… normalmente… Do
inverno, do verão, do que comemos lá na terra, do que bebemos… Conversas normais, banais… entre
amigos.
AA – É falso! Eu tenho uma excelente ideia… um conceito… uma grande obra…
XX – Blá, blá, blá… Qual obra, qual carapuça! Porque achas que eu não te vejo a contorcer-te todo quando eu

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recebo uma carta da minha família? Vais para um canto e começas a ler um livro… ao contrário… Nessas
alturas fico com pena de ti… porque tu nunca recebes cartas.
AA – Porque não preciso delas…
XX – É isso, é… Não recebes porque ninguém te escreve. Não tens a quem escrever e ninguém te escreve. E
agora ias escrever um livro!... Tu nunca vais escrever um livro, mesmo sabendo escrever… em várias
línguas, até. Mas talvez seja melhor assim, ias escrever sobre o quê, pobre coitado…
AA – Sobre ti.
XX – Nada disso. Ias escrever sobre uma porcaria qualquer. E ia servir para quê?
AA – Para as pessoas lerem…
XX – As pessoas já têm as suas próprias porcarias, não precisam das tuas.
AA – As pessoas precisam sempre de saber a verdade.
XX – Sim, mas uma que não seja tão nojenta como a tua…
AA – Tens medo que eu escreva mal de ti?
XX – Não vais escrever nada.
AA – Porquê?
XX – Porque passas muito tempo deitado na cama.
AA – Por enquanto estou só a organizar as minhas ideias, a estudar as hipóteses, a pesar os prós e os
contras…
XX – É isso mesmo, continua a pesar…
AA – Mas vou começar em breve. Talvez já amanhã.
XX – Nem amanhã, nem depois de amanhã. Conheço-te bem…
AA – Então daqui a um ano ou dois… Isso agora não importa! O essencial é deixar amadurecer as ideias, para
depois darem os frutos.
XX – Não vão ter tempo para isso.
AA – Nós temos todo o tempo do mundo. Vou ficar contigo o tempo que for preciso.
XX – Tu, talvez, mas eu não.
AA – Não consegues sair desta casa… quem é que te pagava a renda?
XX – Não vou mudar de casa… Vou regressar.
AA – Regressar a onde?
XX – Mas a onde é que queres que eu regesse? A casa, pois claro. Pelo menos, eu tenho um sítio para
regressar. Eu vou mas tu ficas aqui, sozinho. Porque tu não podes regressar, nunca mais. (Pausa.) E
então? Acabou-se a esperteza, foi? Hã?
Silêncio.
AA – Quando?
XX – Quando me apetecer. Ainda vou ficar por aqui mais algum tempo, quero continuar a pôr algum dinheiro de
lado. E depois, pernas para que te quero! Adeusinho, nunca mais me voltam a ver… Posso ir-me embora
quando quiser.
AA – Não é verdade, tu também não vais regressar.

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XX – E porquê? Ora essa… E mais o quê… Eu não tenho nada a ver com a política.
AA – Por enquanto.
XX – Não tenho medo. A mim não me podem acusar de nada.
AA – Tens a certeza?
XX – E teria medo do quê? Tu, sim, tens razões para isso. A minha consciência está limpa.
AA – Dizes que eu nunca escrevo cartas. É verdade. E dizes também que nunca vou escrever um livro. Talvez.
Mas posso sempre escrever outra coisa qualquer…
XX – O quê?
AA – Uma denúncia.
Silêncio.
XX – Eu nunca fiz nada contra o poder.
AA – Ai é? Então quem é que convive com um traidor, um renegado, um depravado, um inimigo do regime, ou
seja, eu?! Hã? Não serás tu, por acaso?
XX – Não!
AA – Como, não? Vives comigo, na mesma casa…
XX – Porquê?
AA – Ainda me perguntas porquê? Fartaste-te de conversar comigo, até bebeste comigo… Quem é que pode
saber do que falámos… Não há testemunhas. Se te deixaram ir para o estrangeiro, achas que foi para
conviver com um anarquista?
XX – Não eras capaz de me fazer isso…
AA – E por que não?
XX – Eu tenho mulher e filhos…
AA – Sim, é verdade, e é por isso que nunca mais vais vê-los. Queres arriscar pô-los em perigo? Por isso, vais
ficar aqui comigo. (Silêncio.) Vais ficar aqui, certo? Vamos viver juntos. Podes continuar a enviar prendas
para os teus filhos pelo Natal, eles vão gostar. Quanto à tua mulher… Tens a certeza de que ela precisa
mesmo de ti?
XX – Não…
AA – Estás a ver? Até calha bem… (…)
AA – (dirige-se para o boneco de peluche de XX) Pluto! Aqui… É mesmo teimoso, este animal!
XX – (levantando-se). Larga isso…
AA – Descansa, não vou mordê-lo… Estás a ver, meu maroto? O Senhor está ciumento. O teu dono tem ciúmes
de ti. Nem me deixa brincar contigo… Este apego a um simples cão não é normal… Ainda por cima, a um
cão falso…
XX – Pousa-o!
AA – Porquê? Não tenho o direito de lhe fazer festas? Mas por que é que tens tantos ciúmes do cão? É
estranho… curioso…, diria mesmo que suspeito…
XX – Não tenho ciúmes nenhuns.
Volta a sentar-se.

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AA – E que bem que o tratas… Até parece que vai rebentar de tão gordo que está… O que é que lhe dás de
comer?
XX – Nada. É um boneco estofado.
AA – Sim, claro. Mas estofado com quê? O que é que há no interior?
XX – Não há nada.
AA – É segredo?
XX – (levantando-se). Vais largar o boneco, ou quê?
AA – Vamos tirar as dúvidas. (Pega na tesoura que estava no chão e, antes que XX pudesse impedi-lo, abre a
barriga do boneco e tira lá de dentro alguns maços de notas.) Ahh… Agora percebo…
XX – Isso é meu! Dá-me isso!
Tira-lhe as notas da mão.
AA – Agora percebo tudo. Por isso é que nunca tinhas dinheiro.
XX – Dá cá isso, ladrão!
AA – Cuidado com o que dizes. Se eu quisesse roubar-te, já o teria feito há muito tempo. Achas que nunca te
via a guardar o dinheiro?
XX – Andavas a espiar-me, não era?
AA – Primeiro tive apenas algumas suspeitas. As pessoas como tu não guardam o dinheiro nos bancos. E
depois, admito, houve uma noite…
XX – Viste-me?
AA – Sim, vi quando estavas a enfiar o dinheiro dentro do boneco. Mas foi por mero acaso, juro. Nós, os
intelectuais, temos o sono muito leve.
XX – Ladrão.
Senta-se à mesa, na cadeira da direita, e começa a contar o dinheiro.
AA – Podes verificar… Não te tirei um cêntimo. E olha que podia… Tinha até o direito de o fazer…
XX – Direito? O dinheiro é meu!
AA – Deves-me bastante dinheiro, não te esqueças…
XX – Não é para mim…
AA – Eu sei, eu sei. É para a tua mulher e os teus filhos. Mas o que é que me importa que ponhas dinheiro de
parte? O mais importante, aqui, é tu seres um avarento. Isso, para mim, é a melhor garantia de que nunca
me vais deixar. Não serias capaz de abandonar o teu dinheirinho, pois não?
XX – E achas que eu vou deixar-te o dinheiro? Podes esperar sentado…
AA – Nunca pensei isso. Nem te peço que me pagues o que deves.
XX – É meu! É meu! Não o dou a ninguém!
AA – Se soubesses a que ponto gosto de te ouvir dizer “é meu”, “o meu”, “os meus”… Enches a boca quando
pronuncias essas palavras, e com que paixão as dizes! Mas pensa um pouco: quando regressares, vais ter
de o gastar, esse teu dinheiro que acumulaste com tantas dificuldades. Lá, não podes nem ganhar nem
pôr dinheiro de parte…
XX – Eu sei, por isso é que o faço aqui.

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AA – Pois é, “aqui”. Aqui e não lá. Aqui, cada dia que passa, tens mais dinheiro. Adormeces a pensar que vais
ter mais no dia seguinte, e depois mais um pouco, e daqui a um ano ainda mais. Tens um objetivo na vida
que é tanto mais sedutor quanto mais longe está de ser atingido. Já conseguiste pôr de parte dinheiro
suficiente para construir uma casa com um jardim? Então por que não poupar ainda mais para construir
uma casa maior, com um jardim maior… Basta adiar o objetivo por mais um ou dois meses… e, já agora,
por que não aumentar a casa e o jardim mais um pouco? E voltas a adiar… E os anos vão passando, e
continuas a adiar a hora do regresso, e a trabalhar mais e a poupar mais… Para mais tarde… Então,
paraste por quê? É tão agradável ver-te a contar o dinheiro…
XX – Por que é que me dizes essas coisas?
AA – Para que percebas que não sou eu quem te mantém aqui.
XX – Não vou regressar?
AA – Não, nunca.
XX – Nunca?
AA – Mas por que te preocupas? Vais poder ter uma vida cheira de esperança, de nostalgia e de ilusões. Não
são muitos os que se podem dar ao luxo…
XX – Mas porquê “nunca”?
AA – Já to expliquei. Nunca, porque tu és um escravo. Lá és escravo do Estado, e aqui és escravo da tua
própria avareza. Em qualquer das situações, serás sempre um escravo. E não há escapatória possível. A
liberdade é a capacidade que temos de dispor de nós mesmos. No teu caso, há sempre alguma coisa ou
alguém a impedir-te de o fazeres. Quando não são os homens, são as coisas…
XX – Que coisas?
AA – As coisas que desejas, que gostarias de ter – e que podes comprar com o teu dinheiro. Ser escravo dos
objetos é uma escravatura mais perfeita do que a melhor das prisões. Uma escravatura ideal porque não
existe nenhum constrangimento exterior, nenhuma obrigação. E tu tens uma alma de escravo, daí o meu
interesse em ti, tendo em conta a obra que pretendo escrever…
XX – Sabes onde é que podes enfiar essa tua obra, não sabes? …
AA – Aquilo que pensas das minhas pesquisas não me interessa nem um pouco. O verdadeiro investigador
está-se nas tintas para aquilo que o inseto pensa do microscópio. Eu observo-te e descrevo-te, mais nada.
XX – Eu vou regressar.
AA – Não podes, porque não consegues deixar de ser um imbecil, assim como não consegues abdicar dos teus
sonhos de regressar ao país, simplesmente porque não o podes fazer.
XX – Eu vou regressar!
AA – Não vais, não.
XX – Sim, vou!
AA – (apontando para os maços das notas). E isso?
XX – Vou regressar! Vou regressar! Vou regressar!
Bate com o punho na mesa de cada vez que pronuncia a expressão. Subitamente, começa a rasgar as
notas.

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AA – Mas o que é que estás a fazer?! É o teu dinheiro!
XX – Eu sou um escravo… Sou um inseto…
AA tenta impedi-lo, mas XX afasta-o. Rasga as notas em pedaços que vai espalhando à sua volta.
AA – É o teu dinheiro!
XX – É o meu dinheiro… as minhas poupanças… é meu… é meu!
Continua a rasgar o dinheiro. AA tenta controlá-lo mas XX afasta-o com tanta violência que acaba por cair
no chão. XX termina de rasgar tudo.
AA – (andando de gatas, vai apanhando os pedaços das notas). Talvez seja possível colá-las…
XX – Achas?
AA – Não.
Atira os papéis para o chão e levanta-se.
XX – E agora, o que é que eu vou fazer? …
AA – E eu sei? … Podes fazer o que quiseres, agora és um homem livre.
XX – O que é que eu fui fazer! O que é que me passou pela cabeça?!?
AA – Do que é que te queixas? Conseguiste libertar-te da tua condição de escravo, revoltaste-te contra a tirania
do dinheiro. Provaste que podias dar-te ao luxo de ser livre. Devias estar feliz…
XX – Mas agora não vou poder regressar!
AA – Mas também já não podias, onde é que está a diferença?
XX – A culpa é tua.
AA – E eu pedi-te para rasgares o dinheiro? Eu apenas estive a especular teoricamente, mas tu tinhas logo de
te armar em Spartacus…
XX – Eu não queria nada! Eu só queria regressar! Mais nada!
AA – Tarde de mais.
Tira a mala de debaixo da cama e retira de dentro várias folhas manuscritas. Senta-se à mesa, na cadeira
da esquerda, e começa a rasgar as folhas, metodicamente.
XX – O que é isso?
AA – Projetos, esboços, apontamentos, rascunhos…
XX – E estás a rasgá-los, porquê?
AA – Porque não tenho mais nada a dizer. Acabei de perceber que o escravo ideal não existe, porque até um
pobre condenado como tu consegue ter um momento de liberdade… Tu eras um modelo para mim, uma
inspiração, uma certeza. E destruíste tudo num instante. Não passas de um vândalo, de um bandido…
XX – Já estás a disparatar…
AA – Claro, estás-te nas tintas. Mas por causa do teu gesto, de um único gesto impensado, a humanidade toda
sofreu uma perda irreparável, e tu nem ligas! Ia ser uma contribuição para a cultura universal… Já te
apercebeste realmente do impacto da tua atitude?
XX – (levanta-se, tira o casaco e coloca-o nas costas da cadeira. Sobre para a cadeira e depois para a mesa).
Afasta-te.
AA – Destruíste tudo. Só pensas em ti. (XX tira a gravata, dá-lhe um nó de correr e ata-a ao fio elétrico da

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lâmpada.) Vais enforcar-te?
XX – E então, não posso?
AA – Claro que podes, estás no teu direito… O suicídio é o direito supremo do homem livre, a afirmação
absoluta da sua liberdade.
XX – Então afasta-te.
AA – (afastando os papéis para a borda da mesa). Seria mesmo a consequência lógica do teu gesto. Já que
começaste a ser livre, não podemos negar-te seja o que for. Se bem que, e pensando melhor, talvez não
devesses ultrapassar alguns limites…
XX – (puxando a gravata para testar a sua resistência). Deve aguentar…
AA – O excesso e o exagero são sempre de mau gosto. Não achas que devias esquecer isso?
XX – (enfiando a gravata no pescoço). Sai daí!
AA – Porquê?
XX – Porque eu vou derrubar a mesa.
AA – E insistes… A avidez dos arrivistas leva a isso…
XX – Já te disse para saíres daí!
AA – Teimoso e mal-educado…
XX – Merda! Sais ou não?
AA – Precisas mesmo de ser assim tão vulgar?
XX – A bem ou a mal, a porcaria da mesa vai sair daqui.
AA – Espera! Qual é a tua última palavra?
XX – Vai-te f…
AA – Não acabes a frase! Deixa-me ficar com a recordação de um homem comum, mas com uma alma grande.
Eu sei o que me querias dizer. Mas já pensaste na tua família?
XX – Na minha família?
AA – Já esqueceste que tens uma família? Quais seriam as tuas últimas palavras para eles?
Silêncio.
XX – Eles não conseguem ouvir-me.
AA – Podes escrever-lhes.
XX – Agora?
AA – Claro, agora. Se te vais enforcar, não voltas a ter outra oportunidade.
XX – Mas eu já enfiei a gravata…
AA – Então eu escrevo por ti, só tens que me ditar. (Agarra na única folha não rasgada, e vira-a do lado não
usado. Tira uma caneta do bolso.) Bom, como é que começamos?
XX – Minha querida esposa, meus queridos filhos…
AA – (escreve silabando as palavras). Mi-nha que-ri-da es-po-sa…
XX – Escrevo esta carta para vos dizer que estou de boa saúde…
AA – De boa saúde… Hmmm… Bom, adiante… (Escreve.) E depois?
XX – Espero que estejam tão bem como eu…

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AA – Talvez fosse melhor não escrever isso, não achas?
XX – Porquê?
AA – (passa o dedo indicador pela garganta e põe a língua de fora). É melhor não… (Relendo). “vos dizer que
estou de boa saúde”. Ponto. E agora?
XX – E que a vida me corre bem.
AA – (escrevendo). No céu…
XX – (continua maquinalmente a ditar). Como na terra… (Reparando no que acabou de dizer.) Mas porquê no
céu?
AA – Então, não vais para o céu?
XX – Isso não te diz respeito. Risca.
AA – Já risquei. Como é que continua?
XX – Não sei.
AA – Posso ser eu a escrever?
XX – Sim, escreve…
AA – (escrevendo). Pen-so-sem-pre-em-ti-e-nas-cri-an-ças…
XX – Certo…
AA – E é por isso que decidi enforcar-me.
XX – O quê?
AA – Enforcar-me.
XX – Não, isso não! Não escrevas isso…
AA – Mas é a verdade…
XX – Mas não é por causa disso.
AA – Ok. (Escreve.) … Enforco-me porque já não penso em vocês…
XX – Não!
AA – Então, também não gostas assim?
XX – Assim não! Parece que estás a falar de um intelectual que nem sabe escrever uma carta…
AA – Então diz tu… Como é que escrevias?
XX – Não sei… com menos palavras…
AA – Vou enforcar-me. Do vosso pai e marido que vos ama. Assina. (Estende a folha e a caneta a XX. Este
percorre o texto com o olhar, e depois amarrota a folha e atira-a ao chão. Tira a gravata do pescoço e
desce da mesa.) Então, não continuamos a escrever? (XX vira-lhe as costas e dirige-se para o lado direito
de cena.) Ei! A minha caneta! (XX devolve-lhe a caneta e vai deitar-se na sua cama, à direita, virado para a
parede.) Como queiras. (Sobre para cima da mesa e tira a gravata do fio elétrico, atirando-a para cima da
cadeira da direita.) Tens razão, nem tudo está perdido. E não estou a falar de mim, mas de ti. Podes
recomeçar do zero. (Ouve-se, no andar de cima, a porta a bater e pessoas a descer as escadas, risos,
sons de vozes.) Vais ver como a tua mulher ficará satisfeita. E as crianças, então? Elas estão à tua
espera… e a tua mulher também… Tem saudades tuas… Imagina só a explosão de alegria que vai ser.
Toda a gente virá receber-te, a aldeia inteira, e até talvez haja uma fanfarra a tocar. (Ouve-se um último

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riso nas escadas. Silêncio.) O que achas? (XX não responde.) E as prendas? Pensa nas prendas. Oh meu
Deus, só coisas bonitas, uma prenda para cada um. Esta é para aquele, aquela é para este… E o que é
que eu percebo disso! Sabes muito melhor do que eu o que é preciso comprar. Compras o que quiseres,
tudo aquilo que te apetecer. Malas inteirinhas cheias de coisas. As invejas que vais criar, já estou mesmo a
ver! (XX continua sem responder.) Sim, vão ter inveja de ti, vais ver. (Dirige-se para a direita, para onde XX
deixou as suas coisas, pega no cobertor e tapa XX. Vai até à sua própria cama, e deita-se, com as mãos
debaixo da cabeça.) E depois, vais construir uma casa. Uma casa bonita, grande, toda feita em pedra. Vai
ser uma casa especial. E também haverá moscas… (Pausa.) Vais mandar as crianças para a escola,
porque eles têm de estudar para ir longe… E vai ser uma boa escola, uma escola mesmo a sério… E tudo
vai ser bom e verdadeiro… O trabalho dará o pão, e a lei, a liberdade, porque a liberdade será a lei e vice-
versa. E não é disso que andamos à procura há tanto tempo? Não é esse o objetivo que todos
partilhamos? E se temos um objetivo comum, se queremos a mesma coisa, o que é que nos impede de
criar uma comunidade, uma boa comunidade… Vais regressar e nunca mais serás escravo. Nem tu, nem
os teus filhos…
XX começa a ressonar, bastante forte. AA vira-se de lado, virado para a parede. Passados alguns
momentos, um outro som começa a misturar-se ao do ressonar: um som que começa suave, mas que vai
aumentando de intensidade, o som de choros, de soluçares pungentes, lancinantes…

FIM

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