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02/2 EXT. CONSULTÓRIO INT.

DIA 2 – MANHÃ

AMBIENTE DA 02/01

MÁRIO aponta para o sofá, convidando


ALEXANDRE a sentar-se. Enquanto MÁRIO se
senta na poltrona, ALEXANDRE ainda demora
um pouco de pé, mantendo a pose desconfiada.
Enfim, avança para o sofá enquanto fala em tom
de desafio.
ALEXANDRE
Então, está a reconhecer-me?
MÁRIO olha-o, surpreendido.
MÁRIO
Não…
ALEXANDRE pega numa almofada e bate-a
vigorosamente, voltando a colocá-la no sofá
antes de se sentar neste.
MÁRIO
Desculpe, devia?
ALEXANDRE senta-se e sorri.
ALEXANDRE
Disseram-me que você era o melhor…
Presumi que fosse um homem atento a
tudo o que o rodeia…

MÁRIO
Obrigado. Mas eu acho que nesta
profissão, ser “o melhor” é mais uma
questão de opinião pessoal.

ALEXANDRE
Não. “O melhor” pode ser aferido por factos
e números. Você é o melhor. Eu fiz a minha
pesquisa. Falei com antigos pacientes
seus, com pessoas que o conheciam da
faculdade. (Ri-se) Está a sentir-se
pressionado?

MÁRIO
É importante para si saber se eu sou o
melhor?
ALEXANDRE pega numa pasta que está por ali
e começa a coscuvilhar o seu conteúdo.
ALEXANDRE
Claro… Eu escolho sempre os melhores. O
melhor dentista, o melhor mecânico. Sabe
como é que é… O barato sai caro.
MÁRIO
E o que é que é para si ser paciente do
melhor terapeuta?
ALEXANDRE poisa a pasta.
ALEXANDRE
Está a reconhecer-me ou não?

MÁRIO
Não, não estou a reconhecê-lo.

ALEXANDRE
Deixe-me ajudá-lo. O atirador dos Olivais.
Não lhe diz nada?

MÁRIO
Não…

ALEXANDRE
É impossível não lhe dizer nada…Foi há
um mês...
ALEXANDRE aguarda mais um pouco e depois
prossegue com algum enfado.
ALEXANDRE
Houve um assalto a uma dependência
bancária nos Olivais… com reféns. Dois
funcionários, três clientes e uma criança…
A área foi toda evacuada e cercada pelo
Grupo de Operações Especiais, foram
colocados snipers nos prédios em frente…
e o assaltante acabou abatido por um
deles… Já se lembra?

MÁRIO
Sim, lembro-me disso, sim…

ALEXANDRE
Fui eu. Eu era um dos atiradores, fui eu que
disparei o tiro. (Pausa, solta um esgar
irónico) Sou “o gajo” que matou a criança”.
Silêncio. MÁRIO procura uma nova posição na
poltrona.
MÁRIO
Pois… Eu lembro-me que morreu a criança
que estava refém.

ALEXANDRE
Não foi responsabilidade minha. Eu
disparei um tiro limpo… mas a bala
atravessou o tipo, bateu na parede, fez
ricochete e foi acertar na criança que
estava lá com a avó. A senhora foi
depositar a reforma e levou o miúdo…
Silêncio. ALEXANDRE muda para um registo
perfeitamente casual e aponta para o
computador.
ALEXANDRE
Usa muito a net ou nem por isso?
MÁRIO fica surpreendido com a pergunta e, com
um gesto, indica que “mais ou menos”.
ALEXANDRE
Houve uma fuga de informação…
propositada ou não… e a identificação do
atirador foi tornada pública. O meu nome e
a minha foto estão em todas as redes
sociais. Tornei-me o símbolo do uso de
força desproporcionada pela polícia. Os
parvalhões dos jornalistas, que não fazem
nada na vida, caíram-me todos em cima.
ALEXANDRE tira o telemóvel do bolso e
continua a falar enquanto procura algo naquele.
ALEXANDRE
Não é uma foto recente. É de quando me
formei, era um puto ainda.
ALEXANDRE estende o telemóvel a MÁRIO.
Este pega no telemóvel e vê a fotografia de
ALEXANDRE mais jovem.
ALEXANDRE
Portanto, enquanto eu estou aqui
calmamente a falar consigo, os familiares
do miúdo, os amigos dele, mais aqueles
grupinhos de esquerda e de anarquistas ou
o raio que os parta, que estão sempre
contra a polícia… estão a pedir a minha
cabeça numa bandeja. Imbecis!...

MÁRIO
Foi por isso que veio falar comigo?

ALEXANDRE
(Imperativo) Espere! Já lá chegamos…
MÁRIO assente.
ALEXANDRE
Bom, você provavelmente está a pensar…
“Como é que será? Ele esteve lá no cerco
ao banco, fez o disparo… Depois voltou
ALEXANDRE CONT.
para casa… viu o corpo da criança a ser
retirado do local na televisão… O que é
que se passará na cabeça dele?” Eu
digo-lhe. Depois duma operação destas,
não vejo televisão. Chego a casa e vou
para a cama, estou morto de cansaço...
E agora deve querer saber como é que
consigo dormir à noite.

MÁRIO
Ok… Como é que dorme à noite?
ALEXANDRE olha com dureza para MÁRIO.
MÁRIO esboça um pequeno sorriso e depois
volta a ficar sério.
ALEXANDRE
Muito bem, obrigado. Com a consciência de
que cumpri a minha missão… e com muita
precisão, deixe-me que lhe diga! Eulimitei-
me a cumprir ordens. Tive um tiro seguro
durante não mais que cinco segundos. Pedi
autorização, recebi aordem, disparei e abati
o alvo. Não tive culpa que, por um acaso
infeliz, a bala fosse depois atingir a criança.
Se eu tivesse falhado, se não tivesse
acertado no alvo, teria sido muito pior.
Estava lixado… com os meus superiores,
com a minhaconsciência… e os jornalistas
também não me iam largar. (Pausa) Mas eu
acertei no meu alvo… por isso durmo como
um bebé.

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