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DADOS

DE ODINRIGHT
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mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá
enfim evoluir a um novo nível."

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Converted by ePubtoPDF
Um romance

de

Robert Louis Stevenson

Ilustrações

por

Paula Puiupo

Tradução e notas

de

Samir Machado de Machado


Coordenacao Editorial
Bárbara Prince

Preparacao
Isadora Prospero

Revisao
Ana Luiza Candido
Bruno Alves

Capa e projeto grafico


Giovanna Cianelli

Diagramacao
Leonardo Ortiz

Caligrafia
Antonio Rhoden

Textos de
*
Jim Anotsu
Samir Machado de Machado
Marina Bedran
Paula Puiupo
*

Esta edicao foi desenterrada com rum e cantoria por:


Daniel Lameira
Luciana Fracchetta
Rafael Drummond
&
Sergio Drummond
Para
S. L. O.1,
Um cavalheiro americano,
para quem a seguinte narrativa foi elaborada
de acordo com seu gosto clássico,
e agora, em retribuição a inúmeras horas aprazíveis,
e com os mais sinceros desejos,
é dedicada
por seu amigo afetuoso,
O AUTOR.
Ao comprador hesitante

Se marítimos contos e canções,


Frios e calores, aventuras e trovões,
Se náufragos, ilhas e galeões,
Tesouros enterrados e ladrões
E histórias que os velhos contavam,
No mesmo modo ancestral,
Agradam como a mim agradavam,
À sábia juventude atual:

– Assim seja, vamos lá! Porém,


Se os jovens de hoje não mais leem,
E o velho bom gosto se perdeu,
Por Kingston ou Ballantyne o lhano,
Ou Cooper e seu último moicano:
Assim seja também! E possa eu
Com meus piratas, me juntar
Para junto destes repousar!
Sumário

Apresentação

A ilha do tesouro

Parte I – O VELHO BUCANEIRO

1. O velho lobo do mar na Almirante Benbow


2. Cão Negro aparece e desaparece
3. A mancha negra
4. O baú do marujo
5. A última do cego
6. Os papéis do capitão

Parte II – O COZINHEIRO DE BORDO

7. Vou para Bristol


8. Na tabuleta da Luneta
9. Pólvora e armas
10. A viagem
11. O que escutei no barril de maçãs
12. Conselho de guerra

Parte III – MINHA AVENTURA EM TERRA


13. Como minha aventura em terra começou
14. O primeiro golpe
15. O homem da ilha

Parte IV – A PALIÇADA

16. O doutor continua a narrativa: como o navio foi abandonado


17. O doutor continua a narrativa: a última viagem do bote
18. O doutor continua a narrativa: o primeiro dia de luta chega ao fim
19. Jim Hawkins retoma a narrativa: a guarnição na paliçada
20. A embaixada de Silver
21. O ataque

Parte V – MINHA AVENTURA NO MAR

22. Como minha aventura no mar começou


23. A maré vazante
24. A viagem do coracle
25. Faço baixar a Jolly Roger
26. Israel Hands
27. “Reais de oito”

Parte VI – CAPITÃO SILVER

28. No acampamento inimigo


29. A mancha negra outra vez
30. Palavra de honra
31. A caça ao tesouro: as indicações de Flint
32. A caça ao tesouro: a voz entre as árvores
33. A queda de um cacique
34. E por último

Notas
Os senhores da trapaça
Talvez o último romântico: Robert Louis Stevenson, da Ilha do Tesouro aos
mares do sul
Sobre as ilustrações desta edição
O Hispaniola

1 mastro principal
2 cesto de gávea
3 vela principal
4 vela de estai
5 amurada
6 castelo de proa
7 bujarronas
8 mastro de gurupés
9 quilha
Ilha Esqueleto
Apresentação

Tusitala.
A palavra no idioma samoano que significa “contador de histórias”. Também
é o título honorário que o povo de Samoa deu ao maior escritor de aventuras:
Robert Lewis Balfour Stevenson. Ou Robert Louis Stevenson para o resto do
mundo. Ou RLS para os iniciados. O autor de algumas das obras mais
emocionantes de todos os tempos – A Ilha do Tesouro, O médico e o monstro,
Raptado, O mestre de Ballantrae. Qualquer autor se orgulharia de ter escrito
uma destas obras; RLS escreveu isso e muito mais. Stevenson é um criador de
personagens inesquecíveis e dono de uma prosa elegante e cheia de suspense,
capaz de descrições precisas e cheias de vida.
Pelo amor de Long John Silver, escrever sobre Stevenson é fácil para mim,
muito fácil. Ele é meu melhor amigo e meu autor favorito, a personificação do
que imagino ser um escritor de verdade, que tem a cabeça aberta para a
imaginação e o peito aberto para descobertas. Robert Louis Stevenson começou
a vida como um garoto doente, que ninguém imaginava que sobreviveria muito,
mas a terminou sendo um cidadão do mundo e cruzando oceanos. Stevenson,
assim como seus personagens mais marcantes, viveu grandes aventuras, teve
uma incrível história de amor e foi adorado por muitos.
Ainda que alguns tenham reclamado aqui e ali ao longo dos anos…
O escritor escocês foi ignorado pela crítica durante grande parte do século
XX. Era tido como melodramático, romântico e sem requintes. Era visto apenas
como um escritor de aventuras para meninos, que não merecia muita atenção.
Por sorte, nas últimas décadas, seu valor foi redescoberto e, hoje, quase ninguém
duvida que ele é um dos grandes autores de língua inglesa. Suas descrições
naturalistas, sua caracterização psicológica vigorosa e seu domínio da linguagem
do suspense fazem de Stevenson um nome fundamental da literatura vitoriana.
E não só para a Era Vitoriana, mas para um garoto negro no interior de
Minas Gerais – um estado que nem tem mar, veja só.
Eu me lembro como se fosse hoje da primeira vez em que li A Ilha do
Tesouro. A chuva caía forte, os trovões faziam a casa tremer e os relâmpagos
iluminavam o céu a cada dois segundos. Eu estava com uma cópia surrada do
livro – naquela época eu costumava andar vários quilômetros para ir até a
biblioteca municipal. Minha situação em casa era das mais complicadas, sendo
um garoto negro adotado e órfão aos doze anos. Morando de favor com parentes
que não lidavam bem com a minha presença e tendo que usar roupas doadas e
sapatos furados de segunda mão. Tudo isso ficou para trás quando comecei a ler
aquele livro. Eu senti o cheiro do mar, o toque da areia e o odor de pólvora.
Minha imaginação foi tão capturada pelas palavras que a única coisa que pude
fazer foi me render. Eu estava lá quando o cego Pew apareceu, quando Jim se
escondeu no barril de maçãs, quando tiros voaram contra a paliçada.
Meus olhos sempre se voltam para a escrita de Stevenson em determinados
momentos da minha vida, importantes ou corriqueiros – faço questão de reler A
Ilha do Tesouro uma vez por ano, pois sempre encontro algo novo ali, algum
detalhe que faz toda a diferença. Hoje, leio as obras do autor para o meu filho,
Eliott. Passamos pelos poemas de A Child’s Garden of Verses (uma joia rara e
única no mundo da poesia infantil), pelos relatos de viagens de Nos mares do sul
e por alguns contos assustadores como Janet do pescoço torcido. Em cada
releitura eu reencontro o prazer de ler RLS pela primeira vez, como um abraço
antigo, uma conversa com aquele seu amigo que mora longe, mas que sempre dá
notícias.
O livro que você tem em mãos, traduzido por Samir Machado de Machado
(sobrenome genial) – que também escreve muito bem sobre piratas e outros
aventureiros, conhecedor das histórias do mar e fã de boas piadas –, é um
tesouro!
Acredite em mim, marujo: raras vezes eu vi tanto cuidado numa tradução de
A Ilha do Tesouro – e olha que tenho várias na minha estante para comparar.
Samir capturou o humor de Stevenson (uma das qualidades mais admiráveis do
autor) e todas as expressões náuticas, assim como encontrou soluções para
lances impossíveis. Uma jogada de mestre do início ao fim. Também conseguiu
deixar o texto moderno, mas sem perder aquele tempero antigo de que gostamos
em histórias do mar.
Ah, leitor, você está em ótimas mãos… e nem falo isso só pela tradução. As
ilustrações de Paula Puiupo são fiéis ao mundo de Stevenson e ao mesmo tempo
o passam por um filtro surrealista. Uma feijoada de Salvador Dalí com Elsa
Schiaparelli. Complementam as palavras de um jeito inesperado, criando uma
coisa nova e chocante, ainda que respeitando tudo que A Ilha do Tesouro
representa para milhares e milhares de pessoas.
Se você nunca leu Stevenson, prepare-se: você está a um passo de adentrar
numa embarcação maravilhosa e perigosa. No entanto, se já navegou por esses
mares do sul, se já foi raptado pela pena desse homem de bigode elegante e
mente ardilosa, seja bem-vindo ao lar. Como o próprio RLS escreveu em seu
epitáfio:

Em casa pousa o marinheiro, repousa do mar,


E em casa o caçador, da colina a regressar *

JIM ANOTSU é escritor, roteirista, tradutor, editor e apaixonado por livros. É


autor de A batalha do Acampamonstro e outros trabalhos. Seus romances infantis
estão publicados em mais de treze países e em vários idiomas.

* Home is the sailor, home from the sea, / And the hunter home from the hill. Tradução minha.
Parte I.
O VELHO BUCANEIRO
1

O velho lobo do mar na Almirante Benbow

T endo o fidalgo Trelawney, o dr. Livesey e os demais cavalheiros me


solicitado que escrevesse todos os detalhes sobre a Ilha do Tesouro, do
começo ao fim, sem deixar nada de fora senão a localização da ilha, e isso
apenas porque ainda há tesouros que não foram trazidos, pego da pena neste Ano
da Graça de mil setecentos e…, e volto aos tempos em que meu pai mantinha a
estalagem Almirante Benbow2, e o velho marujo moreno, com a marca de
cutilada no rosto, veio se hospedar sob nosso teto.
Lembro-me dele como se fosse ontem, chegando devagar à porta da
estalagem, seguido por seu baú trazido num carrinho de mão. Era um homem
alto, forte, robusto e bronzeado. Tinha um rabo de cavalo alcatroado caindo por
sobre os ombros da casaca azul e ensebada, as mãos ásperas e calejadas, de
unhas escuras e partidas, e uma cicatriz branca e lívida num lado do rosto.
Lembro-me dele olhando ao longo da enseada enquanto assoviava e irrompendo
naquela velha canção do mar que ele tanto cantaria desde então:

Quinze homens no Peito do Defunto3… Io-ho-ho e uma


garrafa de rum!
… numa voz alta e oscilante que parecia ter sido afinada e quebrada contra
as barras de um cabrestante4. Então ele bateu na porta com o pedaço de pau que
carregava e, quando meu pai apareceu, pediu rudemente um copo de rum. Este,
quando lhe trouxeram, ele bebeu devagar, como um especialista, saboreando aos
poucos, e ainda olhando por sobre o ombro para os penhascos e para nossa
tabuleta.
– Essa baía é bem à mão – disse ele – e a taverna é bem localizada. O
movimento é bom, parceiro?
Meu pai disse-lhe que não, pouco movimento, infelizmente.
– Bem, então esse é o meu cais. Aqui, ‘parsa – ele chamou o rapaz que
puxava o carrinho –, traz isso para dentro e ajuda a levar meu baú para cima.
Vou ficar por aqui um pouco – ele continuou. – Sou um homem simples, rum e
bacon e ovos são o suficiente, e aquela janela lá em cima para olhar os navios.
Como deve me chamar? Você me chamará de capitão. Ah, entendi o que você
quer… aqui. – E atirou três ou quatro moedas de ouro sobre o balcão. – Você me
avisa quando for para pagar mais – disse, parecendo habituado ao comando.
E de fato, por pior que fossem suas roupas, e por mais grosseiro que fosse
seu linguajar, não tinha nada da aparência do homem que é um simples
marinheiro, mas parecia-se com um imediato ou patrão5, acostumado a ser
obedecido e a bater com força. O rapaz que trouxe o carrinho nos contou que a
diligência o deixara em frente à Royal George na manhã anterior; que ele
perguntara quais pousadas havia ao longo da costa e, ouvindo falar bem da
nossa, suponho, e sendo ela descrita como isolada, a escolheu dentre as demais
como seu local de residência. E isso foi tudo o que conseguimos saber de nosso
hóspede.
Era um homem quieto por hábito. Passava o dia todo andando pela enseada,
ou sobre os penhascos, com sua luneta de latão. Todo final de tarde se sentava
num canto da sala perto do fogo e bebia uma mistura forte de rum com água. Na
maioria das vezes não respondia se lhe perguntassem algo, apenas erguia de
súbito o olhar feroz e soprava pelas ventas feito uma sirene de nevoeiro. Tanto
nós como o pessoal que passava pela casa logo aprendemos a deixá-lo em paz.
Todo dia, quando retornava de seu passeio, ele perguntava se algum marinheiro
passara pela estrada. No começo, pensamos que fosse o desejo pela companhia
de sua própria gente que o fizesse perguntar, mas enfim começamos a perceber
que ele desejava evitá-los. Quando um marinheiro de fato aparecia na Almirante
Benbow (como algum fazia uma vez ou outra, seguindo pela estrada costeira até
Bristol), ele o observava pela divisória de cortinas da porta, antes de entrar no
saguão, e sempre se certificava de ficar quieto feito um camundongo quando
gente assim aparecia. Para mim, ao menos, não havia nenhum segredo sobre o
assunto, pois de certo modo eu compartilhava de seus alarmes. Um dia ele me
puxou de canto, prometendo-me uma moedinha de prata no começo de cada mês
se eu ficasse “de olho aberto para um marinheiro de uma perna só” e o avisasse
no momento em que ele aparecesse. Não raro, quando chegava o começo do mês
e eu ia pedir meu pagamento, ele apenas soprava pelo nariz e me olhava de cima
a baixo, mas, antes que a semana chegasse ao fim, pensava melhor, trazia minha
moedinha de prata e repetia as ordens de ficar atento “ao marinheiro de uma
perna só”.
Não preciso dizer quanto esse personagem assombrou meus sonhos. Em
noites de tempestade, quando o vento chacoalhava os quatro cantos da casa e as
ondas estouravam ao longo da baía e nos penhascos, eu o imaginava de uma
centena de modos, com uma centena de expressões diabólicas. Ora a perna era
cortada à altura do joelho, ora na virilha; ora ele era uma criatura monstruosa
que nunca tivera mais que uma perna, bem no meio do corpo. Vê-lo pulando e
correndo e me perseguindo por todo lugar era o pior dos pesadelos. No final das
contas eu paguei caro por minha moedinha de prata mensal, na forma dessas
fantasias abomináveis.
Mas, mesmo que eu estivesse aterrorizado pela ideia do marinheiro de uma
perna só, eu tinha bem menos medo do capitão do que a maioria. Havia noites
em que ele tomava muito mais rum com água do que sua cabeça conseguia
suportar e, então, às vezes sentava e cantava sua velha canção, selvagem e
perversa, sem se importar com ninguém. Porém outras vezes pedia uma rodada
para todos e forçava a aterrorizada companhia a escutar suas histórias ou fazer
coro ao seu canto. Não raro escutei a casa tremer com “Io-ho-ho e uma garrafa
de rum”, todos os que o acompanhavam temendo pela própria vida, e cada um
cantando mais alto que o outro, para evitar ser repreendido. Pois nesses acessos
ele era a mais exigente das companhias; batia com a mão na mesa pedindo
silêncio a todos e se levantava furioso quando lhe faziam uma pergunta, ou então
porque nenhuma lhe era feita e julgava que não estavam acompanhando sua
história. Tampouco permitia que alguém deixasse a estalagem antes que bebesse
até ficar com sono e se arrastar para a cama.
Suas histórias eram o que mais assustava as pessoas. Eram histórias horríveis
sobre enforcamentos, caminhadas na prancha e tempestades no mar; sobre as
Ilhas Tortugas e sobre feitos de bravura e lugares em terras de Espanha. Pelo que
ele mesmo contava, devia ter passado a vida entre alguns dos mais perversos
homens que Deus jamais permitiu sobre o mar, e o linguajar com que contava
essas histórias chocava nossa gente simples do campo quase tanto quanto os
crimes que ele descrevia. Meu pai sempre dizia que a estalagem ficaria
arruinada, pois logo as pessoas cansariam de ser tiranizadas e repreendidas e de
ir para a cama tremendo de medo, mas eu acho mesmo é que a presença do
capitão nos fez bem. As pessoas ficavam assustadas na hora, mas, olhando em
retrospecto, meio que gostavam: era uma boa agitação na quietude da vida
simples da região. E havia até uma turma de jovens que fingia admirá-lo,
chamando-o de “um verdadeiro lobo do mar”, um “velho marujo legítimo” e
outros apelidos assim, e dizendo que ali estava o tipo de homem que tornava a
Inglaterra o terror dos mares.
De certo modo, ele de fato nos arruinou, pois seguiu conosco semana após
semana e mês após mês até que todo o seu dinheiro acabasse, e ainda assim meu
pai nunca encontrou coragem para insistir por mais. Se alguma vez mencionava
a questão, o capitão bufava pelas ventas tão alto que se poderia dizer que rugia, e
encarava meu pai até fazê-lo sair do quarto. Eu via suas mãos tremendo depois
de ser repelido, e tenho certeza de que o incômodo e o terror que vivia em muito
aceleraram sua morte prematura e infeliz.
Durante todo o tempo em que viveu conosco, o capitão não fez nenhuma
mudança em suas roupas, exceto comprar algumas meias de um mascate. Uma
das abas de seu tricorne caíra, mas ele a deixou pendurada daquele dia em
diante, mesmo que fosse um grande incômodo quando ventava. Lembro-me da
aparência de sua casaca, que ele próprio remendava em seu quarto e que, antes
do fim, não era nada além de remendos. Ele nunca escreveu ou recebeu uma
carta e nunca conversou com ninguém além dos outros hóspedes, e com estes, na
maior parte do tempo, apenas quando estava bêbado. Nenhum de nós jamais via
o grande baú aberto.
Ele só foi desafiado uma única vez, e isso perto do fim, quando meu pobre
pai já avançava na doença que o levaria. O dr. Livesey veio no final da tarde para
ver seu paciente, aceitou um pouco do jantar de minha mãe, e foi para o saguão
fumar seu cachimbo até que seu cavalo fosse trazido da aldeia, pois não
possuíamos estábulo na velha Benbow. Eu o segui, e me lembro de observar o
contraste que o doutor, tinindo de tão limpo, com sua peruca branca como a
neve, seus olhos negros brilhantes e seus modos agradáveis, fazia com a
vivacidade do povo do campo e, acima de tudo, com o espantalho imundo,
pesado e sombrio que era o nosso pirata, já tonto de rum, com os braços sobre a
mesa. De repente, ele – o capitão, no caso – começou a cantar sua música de
sempre:

QUINZE HOMENS NO PEITO DO DEFUNTO…


IO-HO-HO E UMA GARRAFA DE RUM!
BEBE QUE O DIABO TAMBÉM TE LEVA JUNTO…
IO-HO-HO E UMA GARRAFA DE RUM!

No começo supus que o tal “peito do defunto”6 fosse idêntico àquele grande
baú lá em cima em seu quarto, e a ideia havia se misturado em meus pesadelos
com a do marinheiro perneta. Mas a essas alturas todos já haviam parado de
prestar qualquer atenção particular à canção. Naquela noite, não era novidade
para ninguém além do dr. Livesey, e nele percebi que não produziu um efeito
agradável, pois encarou o capitão, bastante irritado por um instante, antes de
continuar conversando com o velho Taylor, o jardineiro, sobre uma nova cura
para o reumatismo. Enquanto isso, aos poucos o capitão foi se animando com a
própria canção, até enfim bater com a mão sobre a mesa de um modo que todos
sabíamos o que significava: silêncio. Todos se calaram de uma vez só, exceto o
dr. Livesey, que seguiu conversando de modo claro e gentil, sorvendo seu
cachimbo a cada palavra ou duas. O capitão o encarou um pouco, bateu na mesa
outra vez, o encarou com ainda mais firmeza e por fim o interrompeu com um
brado grave e vilanesco:
– Silêncio aí no convés!
– Está se dirigindo a mim, senhor? – perguntou o doutor, e quando o
valentão disse-lhe praguejando que era isso mesmo, retrucou: – Tenho somente
uma coisa a lhe dizer, senhor: que, se continuar a beber rum, o mundo logo se
verá livre de um patife imundo.
A fúria do velhaco foi terrível. Ele se pôs de pé, sacou e abriu uma navalha
de marinheiro e, equilibrando-a na palma da mão, ameaçou pregar o doutor na
parede.
O doutor nem se mexeu. Falou com ele, como antes, por sobre o ombro, e
com o mesmo tom de voz, um pouco mais alto para que todo o saguão o
escutasse, mas perfeitamente calmo e firme:
– Se não guardar essa faca no bolso neste instante, eu juro, pela minha
honra, que será enforcado na próxima audiência do tribunal.
Seguiu-se então uma batalha de olhares entre os dois, mas o capitão logo se
rendeu, guardou a arma e voltou a se sentar, resmungando como um cão ferido.
– E agora, senhor – continuou o doutor –, uma vez que agora sei haver em
meu distrito um camarada de tal sorte, pode contar que ficarei de olho em você
dia e noite. Eu não sou apenas médico, sou também um magistrado, e se escutar
um suspiro de queixa contra o senhor, mesmo que apenas por uma pequena
grosseria como a desta noite, tomarei as medidas necessárias para que seja
caçado e escoltado para fora daqui. Que isso lhe baste.
Pouco depois disso, o cavalo do dr. Livesey chegou à porta, e ele foi embora.
Mas o capitão se manteve quieto naquela noite e por muitas noites seguintes.
2

Cão Negro aparece e desaparece

N ão foi muito depois disso que ocorreu o primeiro dos eventos misteriosos
que enfim nos livraram do capitão, ainda que, como você verá, não de
seus problemas. Foi um inverno rigoroso, de longas geadas e fortes vendavais; e
estava claro, desde o começo, ser pouco provável que meu pobre pai visse a
primavera. Ele definhava diariamente, de modo que minha mãe e eu cuidávamos
da estalagem e nos mantínhamos bastante ocupados, sem prestar muita atenção
em nosso hóspede desagradável.
Foi bem cedo, numa manhã de janeiro – uma manhã de frio cortante –, com
a baía toda cinza de geada, as ondas batendo suaves contra as rochas, o sol ainda
baixo e apenas tocando as colinas e brilhando ao longe. O capitão tinha se
levantado mais cedo que o habitual, e foi para a praia, com seu alfanje
balançando debaixo das abas largas da velha casaca azul, sua luneta de latão
debaixo do braço e o chapéu dobrado para trás na cabeça. Lembro-me de sua
respiração saindo como fumaça conforme ele se afastava, e o último som que
escutei dele, ao dar a volta pela pedra grande, foi um ronco alto de indignação,
como se sua mente ainda estivesse ruminando sobre o dr. Livesey.
Bem, a mãe estava lá em cima com o pai, e eu estava pondo a mesa do café
da manhã para o retorno do capitão, quando a porta da frente se abriu e entrou
um homem que eu nunca vira antes. Era uma criatura pálida e sebosa, sem dois
dedos na mão esquerda. E, apesar de trazer um alfanje, não parecia muito do tipo
guerreiro. Eu estava sempre com o olho aberto para marinheiros, de uma ou duas
pernas, e lembro que esse me intrigou. Não parecia um marujo, mas tinha ares
marinhos.
Perguntei em que poderia lhe servir, e ele disse que beberia rum; mas quando
eu estava saindo da sala para buscar a bebida, ele sentou-se à mesa e gesticulou
para que eu me aproximasse. Parei onde estava com meu pano na mão.
– Vem aqui, guri – disse ele. – Chega mais perto.
Eu me aproximei um passo.
– Esta mesa aqui é para o meu parceiro Bill? – perguntou, olhando-me de
esguelha.
Eu lhe disse que não conhecia seu parceiro Bill e que era para uma pessoa
hospedada na casa, que chamávamos de capitão.
– Bem – disse ele –, meu parceiro Bill seria chamado de capitão,
provavelmente. Ele tem um corte no rosto e um jeito muito simpático, ainda
mais quando bebe, meu parceiro Bill. Digamos, uma suposição apenas, que seu
capitão tenha um corte no rosto, e digamos, se for assim, que seja deste lado. Ah,
olha só! Eu lhe disse. Agora, o meu parceiro Bill está aqui nesta casa?
Eu disse que ele saíra para caminhar.
– Para onde, guri? Para onde ele foi?
E quando apontei a pedra e falei que o capitão provavelmente voltaria logo,
respondendo a algumas outras questões, ele disse:
– Ah, isso vai ser tão bom quanto uma bebidinha, pro meu parceiro Bill.
A expressão em seu rosto quando disse isso não foi nada agradável, e eu
tinha meus próprios motivos para achar que o estranho estava enganado, mesmo
supondo que falava com sinceridade. Mas não era da minha conta, pensei; além
disso, era difícil saber o que fazer. O estranho ficou rondando a porta da
estalagem, à espreita feito um gato esperando pelo rato. A certa altura eu saí na
direção da estrada, mas ele imediatamente me chamou e, como não lhe obedeci
rápido o bastante para seu gosto, uma mudança horrível acometeu seu rosto
seboso, e ele me mandou entrar com um xingamento que me fez dar um pulo.
Assim que voltei, ele retornou a seus modos anteriores e, meio brincalhão, meio
irônico, me deu um tapinha no ombro, disse que eu era um bom garoto e que ele
havia gostado bastante de mim.
– Eu mesmo tenho um filho – disse ele – bem parecido com você, e ele é
meu orgulho. Mas a maior coisa para os garotos é a disciplina, guri… disciplina.
Agora, se você tivesse navegado com o Bill, não teria sido preciso chamá-lo
duas vezes, não mesmo. Não era esse o jeito do Bill, nem dos que navegavam
com ele. E ali está, com toda certeza, meu parceiro Bill, com a luneta no braço,
abençoado seja. Eu e você vamos voltar para dentro do saguão, guri, e ficar atrás
da porta, e vamos fazer uma surpresinha para o Bill, abençoado seja, eu repito.
Assim dizendo, o estranho voltou comigo para dentro do saguão e me
colocou atrás dele num canto, de modo que ambos ficamos ocultos pela porta
aberta. Era muito desconfortável e alarmante, como pode imaginar, e meu medo
só aumentou quando notei que o estranho estava ele próprio com medo. Ele
pegou o punho do alfanje e afrouxou a lâmina na bainha, e todo o tempo em que
esperamos ali, ele ficava engolindo em seco, como se tivesse o que se chama um
nó na garganta.
Enfim o capitão entrou e bateu a porta atrás de si, sem olhar para esquerda
ou direita, e marchou direto pelo salão até onde seu desjejum o aguardava.
– Bill – chamou o estranho, numa voz que tentou fazer parecer forte e
ousada.
O capitão deu meia-volta e se virou para nós; toda a cor fugiu de seu rosto, e
até seu nariz ficou pálido. Ele tinha o aspecto de quem viu um fantasma, ou o
Tinhoso, ou algo pior, se algo puder ser pior. E, dou minha palavra, senti pena de
vê-lo ficar tão velho e doente de uma hora para outra.
– Vamos, Bill, você me conhece, com certeza conhece um velho colega de
bordo, Bill – disse o estranho.
O capitão soltou uma espécie de suspiro.
– Cão Negro! – disse ele.
– E quem mais? – retrucou o outro, ficando mais à vontade e erguendo a
mão mutilada. – Cão Negro em pessoa, que veio ver seu velho parceiro Billy, na
estalagem Almirante Benbow. Ah, Bill, Bill, passamos por poucas e boas, nós
dois, desde que perdi meus dois dedos.
– Agora, olhe só – disse o capitão –, você me encontrou, aqui estou. Muito
bem, então, fale logo: o que é?
– Típico de você, Bill – retrucou Cão Negro. – Sempre direto ao ponto,
Billy. Eu aceito um copo de rum desta criança aqui, a quem tanto me afeiçoei, e
nós vamos nos sentar, se for do seu agrado, e falar de modo claro, como velhos
colegas.
Quando voltei com o rum, eles já estavam sentados de cada lado na mesa
com o desjejum do capitão. Cão Negro ficara perto da porta, sentado de lado, de
modo a manter um olho em seu velho colega e o outro, imaginei, em sua rota de
fuga.
Ele pediu que eu fosse embora e deixasse a porta escancarada.
– Nada de espiar pela fechadura, guri – disse quando os deixei juntos e me
retirei para o balcão.
Por algum tempo, mesmo que eu tenha feito meu melhor para tentar escutar,
não pude ouvir nada além de um burburinho, mas enfim as vozes foram se
elevando, e consegui pescar uma palavra ou duas, em geral uma praga rogada
pelo capitão.
– Não, não, não, não, isso tem que acabar! – gritou ele. – Senão a forca virá,
e virá para todos, tenho dito!
Então de repente houve uma tremenda explosão de xingamentos e outros
barulhos – a cadeira e a mesa viraram, um choque de metais se seguiu e houve
um grito de dor, e no instante seguinte eu vi Cão Negro sair correndo e o capitão
o perseguindo, ambos com os alfanjes desembainhados, o último com sangue
escorrendo do ombro esquerdo. Bem na porta, o capitão mirou no fugitivo um
último e tremendo golpe, que o teria certamente partido em dois se não tivesse
sido interceptado pela grande tabuleta da Almirante Benbow. É possível ver a
marca na parte de baixo da moldura até hoje.
Aquele golpe foi o último da batalha. Uma vez na estrada, e apesar de sua
ferida, Cão Negro deu no pé maravilhosamente rápido, desaparecendo na
quebrada da colina em meio minuto. O capitão, por sua vez, ficou parado
debaixo da placa, observando com espanto. Então passou a mão no rosto várias
vezes, e por fim voltou para dentro.
– Jim – chamou ele. – Rum. – E, enquanto falava, cambaleou um pouco e
apoiou a mão contra a parede.
– O senhor está ferido? – perguntei.
– Rum – repetiu. – Preciso dar o fora daqui. Rum! Rum!
Corri para buscar, mas estava bastante perturbado por tudo o que ocorrera e
acabei quebrando um copo e sujando o balcão; quando ainda estava me
recompondo, escutei o som alto de uma queda no saguão e corri para lá,
encontrando o capitão estirado no assoalho. No mesmo instante, minha mãe,
alertada pela luta e gritaria, desceu as escadas correndo para me ajudar.
Levantamos a cabeça do capitão. Ele respirava pesado e com dificuldade, mas
seus olhos estavam fechados, e seu rosto tinha uma cor horrível.
– Ai de mim – disse minha mãe. – Que desgraça caiu sobre esta casa! E seu
pobre pai doente!
Nesse meio-tempo, não fazíamos ideia de como ajudar o capitão, nem
pensamos outra coisa senão que ele fora ferido de morte na briga com o
estranho. Peguei o rum, por via das dúvidas, e tentei fazer com que bebesse, mas
seus dentes estavam cerrados e o queixo duro como ferro. Foi um feliz alívio
para nós quando a porta abriu e o dr. Livesey entrou, em sua visita para meu pai.
– Ai, doutor – falei –, o que fazemos? Onde está a ferida?
– Ferida? Um buraco de agulha! – disse o doutor. – Não está mais ferido que
eu e você. O homem teve um ataque cardíaco, como eu o alertei. Agora, sra.
Hawkins, suba lá para ter com seu marido e, se possível, não conte nada do que
ocorreu aqui. De minha parte, farei o meu melhor para salvar a vida inútil deste
camarada. Jim, traga-me uma bacia.
Quando voltei com a bacia, o doutor já havia rasgado a manga do capitão,
expondo seu grande e sinuoso braço. Era tatuado em vários lugares. Boa sorte,
bons ventos e o capricho de Billy Bones estavam muito bem desenhados no
antebraço, e para cima perto do ombro havia o desenho de uma forca com um
homem pendurado nela – feito, na minha opinião, com grande habilidade.
– Profético – disse o doutor, tocando na pintura com os dedos. – E agora,
mestre Billy Bones, se esse for o seu nome, vamos dar uma olhada na cor do seu
sangue. Jim, você tem medo de sangue?
– Não, senhor.
– Pois bem, segure a bacia. – E, com isso, puxou sua lanceta e abriu uma
veia.7
Uma grande quantidade de sangue foi extraída antes de o capitão abrir os
olhos e dar um olhar nebuloso ao redor. Primeiro, reconheceu o doutor, com um
franzir do cenho bem típico seu, depois seus olhos recaíram sobre mim, e ele
pareceu aliviado. Mas, de repente, sua cor mudou, e ele tentou se levantar,
gritando:
– Cadê o Cão Negro?
– Não há nenhum Cão Negro aqui – disse o doutor –, exceto o que você tem
no seu encalço.8 Você vem bebendo rum, e teve um ataque cardíaco exatamente
como eu lhe disse, e eu vim, muito contra minha própria vontade, puxá-lo para
fora da cova. Agora, sr. Bones…
– Esse não é o meu nome – interrompeu ele.
– Pouco me importa – retrucou o doutor. – É o nome de um bucaneiro de
minhas relações, e o chamarei por essenome em prol de atalhar as coisas. O que
tenho a lhe dizer é isto: um copo de rum não irá matá-lo, mas se tomar um,
tomará outro e outro, e aposto minha peruca que, se não parar logo, vai morrer…
está entendendo? Vai morrer e ir para o lugar que lhe é reservado, como o sujeito
na Bíblia. Vamos lá, faça um esforço. Eu o ajudo a chegar até sua cama, desta
vez.
Com bastante trabalho, conseguimos levá-lo escadas acima e o deitamos na
cama, onde sua cabeça caiu sobre o travesseiro, quase como se estivesse
desmaiando.
– Agora, veja bem – falou o doutor. – Minha consciência está limpa: a
palavra “rum” para você significa “morte”.
E com isso ele saiu para ver meu pai, levando-me pelo braço.
– Isso não é nada – disse-me, assim que fechamos a porta. – Eu tirei sangue
o bastante para mantê-lo quieto por um tempo; ele deve repousar onde está por
uma semana. Será o melhor para ele e para você, mas outro ataque acabará com
ele.
3

A mancha negra

P erto do meio-dia, parei em frente à porta do capitão com refrescos e


remédios. Ele estava deitado na mesma posição em que o havíamos
deixado, apenas um pouco mais para cima, e parecia ao mesmo tempo fraco e
agitado.
– Jim – disse ele –, você é o único aqui que vale alguma coisa, e sabe que eu
sempre fui bom com você. Nunca deixei de lhe dar sua moedinha de prata. E
agora veja só, parceiro, eu estou na pior, abandonado por todos; e Jim, você me
traria uma caneca de rum, não traria, ‘parsa?
– O doutor… – comecei.
Mas ele se pôs a xingar o doutor, numa voz fraca porém enérgica.
– Médicos são todos uns imbecis – disse –, e aquele doutor lá, qual é, o que
sabe ele dos homens do mar? Estive em lugares quentes feito betume, os
parceiros tombando ao meu redor de febre amarela, a bendita terra ondulando de
terremotos feito o mar… o que o doutor sabe de terras assim? E lhe digo que eu
vivi de rum. Temos sido como pão e manteiga, marido e mulher; e se eu não
tiver meu rum agora, serei só uma pobre e velha urca soprada pelo vento maral,
e meu sangue estará em suas mãos, Jim, e nas daquele médico imbecil. – E se
pôs a xingar por algum tempo. – Olha, Jim, como meus dedos tremem –
continuou, em tom de súplica. – Não consigo mantê-los firmes, não consigo.
Não bebi uma gota nesse bendito dia. Eu lhe digo, esse doutor é um tolo. Se eu
não ganhar uma dose de rum, Jim, terei alucinações; já estou tendo umas. Eu
vejo o velho Flint naquele canto ali, atrás de você, claro como o dia, eu o vejo; e
se eu alucinar, sou um homem que teve uma vida dura, viro o próprio Caim. Seu
doutor mesmo disse que um copo não me faria mal. Eu lhe dou um guinéu de
ouro pela caneca, Jim.
Ele foi ficando cada vez mais agitado, e isso me deixou preocupado com
meu pai, que estava bem fraco naquele dia e precisava de repouso; além disso,
ouvir novamente as palavras do doutor me tranquilizou, e fiquei um tanto
ofendido pela oferta de suborno.
– Não quero seu dinheiro – falei –, só o que você deve a meu pai. Vou lhe
dar um copo e nada mais.
Quando trouxe o rum, ele o pegou com ânsia e bebeu tudo.
– Sim, sim – disse ele –, assim é melhor, com certeza. E agora, ‘parsa, por
um acaso o doutor disse por quanto tempo eu teria que me deitar aqui neste
velho cais?
– Pelo menos uma semana – respondi.
– Raios! – gritou ele. – Uma semana! Não posso fazer isso, já terão colocado
a mancha negra em mim a essas alturas! Esses labregos já devem estar a
caminho neste momento, labregos que não guardaram o que tinham e querem
pegar o dos outros. Quero saber, isso lá é jeito de um marinheiro se comportar
agora? Mas eu sou de espírito econômico. Nunca desperdicei dinheiro meu,
tampouco o perdi, e vou enganá-los de novo. Não tenho medo deles. Vou
contornar esse recife, ‘parsa, e despistá-los outra vez!
Enquanto falava, foi se levantando da cama com muita dificuldade,
segurando meu ombro com um apertão que quase me fez chorar, e movendo as
pernas como se fossem peso morto. Suas palavras, apesar de animadas em seu
sentido, contrastavam tristemente com a fraqueza da voz com que eram
pronunciadas. Ao se sentar na beira da cama, ele parou.
– Quê que o doutor fez comigo – murmurou. – Meus ouvidos estão
zumbindo. Me deite de novo.
Antes que eu pudesse fazer algo para ajudá-lo, ele caiu de volta à posição
anterior, onde ficou deitado um pouco, em silêncio.
– Jim – disse ele devagar –, você viu aquele marinheiro hoje?
– Cão Negro? – perguntei.
– Ah! Cão Negro – disse ele. – Ele é um dos maus, mas os que mandaram
ele são os piores. Agora, se eu não conseguir escapar, e me passarem a mancha
negra, veja só, é meu velho baú que eles querem; você sobe num cavalo… você
sabe montar, não sabe? Bem, então, sobe num cavalo e vai para… bem, sim, eu
iria… para aquele eterno imbecil, o doutor, e diz para ele chamar todos ao
convés… magistrados e coisa e tal… e trazê-los a bordo da Almirante
Benbow… toda a tripulação do velho Flint, homens e garotos, todos os que
restaram. Eu era o imediato, eu era, o imediato do velho Flint, e sou o único que
sabe o lugar. Ele me contou em Savannah, no leito de morte, como eu estou
agora, perceba. Mas você não dá um pio, a menos que botem a mancha negra em
mim, ou que você veja o velho Cão Negro outra vez, ou um marinheiro de uma
perna só, Jim… ele, mais do que qualquer outro.
– Mas o que é a mancha negra, capitão?
– É um chamado, parceiro. Eu lhe conto se eles mandarem. Mas mantenha
seu olho aberto, Jim, e por minha honra, eu dividirei tudo contigo.
Ele divagou mais um pouco, sua voz ficando mais fraca, mas assim que lhe
dei seu remédio, que ele tomou feito uma criança, com o comentário de que “se
alguma vez um marujo quis tomar remédios, fui eu”, ele enfim caiu num sono
pesado, feito um desmaio, e assim o deixei. O que eu teria feito, se tudo tivesse
corrido bem, não faço ideia. Provavelmente teria contado a história toda para o
doutor, pois estava com um medo mortal de que o capitão se arrependesse de
suas confissões e quisesse sumir comigo. Porém, do modo como as coisas se
deram, meu pobre pai morreu de repente naquela manhã, o que para mim deixou
todos os outros assuntos em suspenso. Nosso pesar, a visita dos vizinhos, os
arranjos para o funeral, e todo o trabalho da pousada a ser tocado enquanto isso,
me mantiveram tão ocupado que mal tive tempo de pensar no capitão, que o diga
ter medo dele.
Ele desceu do quarto na manhã seguinte e fez sua refeição como de costume,
ainda que tenha comido pouco, e temo que tenha bebido mais do que sua dose
habitual de rum, pois ele próprio se serviu no balcão, soprando pelas ventas, e
ninguém ousou cruzar seu caminho. Na noite anterior ao funeral, ele estava
bêbado como sempre, e foi chocante, naquela casa de luto, escutá-lo cantar sua
velha e feia canção marítima. Mas fraco como estava, todos temíamos por sua
morte, e o doutor fora levado de repente a cuidar de um caso a muitas milhas
dali e nunca estava pela casa após a morte de meu pai. Eu disse que o capitão
estava fraco, e de fato parecia se enfraquecer mais do que recuperar as forças.
Ele se arrastava escada acima e abaixo, ia do saguão ao balcão e de volta, e às
vezes colocava o nariz para fora da porta para cheirar o mar, encostando-se nas
paredes em busca de apoio e respirando pesado e rápido como um homem que
escalasse uma montanha. Ele nunca se dirigia especificamente a mim, e sou da
crença de que se esquecera de suas confidências, mas seu temperamento estava
mais volátil e, quando sua condição física permitia, mais violento do que nunca.
Ele desenvolveu um hábito perturbador de, quando estava bêbado, sacar o
alfanje e deixá-lo na mesa à sua frente. Apesar disso, incomodava menos as
pessoas e parecia fechar-se nos próprios pensamentos em vez de divagar. Uma
vez, por acaso, e para nossa extrema surpresa, ele cantou algo diferente, uma
espécie de balada romântica, que devia ter aprendido em sua juventude, antes de
seguir a vida no mar.
Assim as coisas correram até que, no dia seguinte ao funeral, ali pelas três
horas de uma tarde cinzenta, gelada e nebulosa, eu estava parado na porta por
um instante, cheio de pensamentos tristes sobre meu pai, quando vi alguém se
aproximando devagar pela estrada. Era claramente cego, pois tateava à frente
com uma bengala e usava uma venda verde sobre os olhos e o nariz; estava
curvado, por idade ou fraqueza, e vestia uma enorme e esfarrapada casaca velha
de marinheiro com um capuz, que o fazia parecer realmente deformado. Nunca
tinha visto, em toda minha vida, uma figura mais pavorosa. Ele parou perto da
estalagem e, erguendo a voz num tom estranho e monótono, falou com o nada à
sua frente:
– Poderia algum amigo bondoso informar um pobre cego, que perdeu a
preciosa visão de seus olhos na graciosa defesa de sua terra natal, a Inglaterra, e
Deus abençoe o rei George!, onde ou em qual parte desta terra ele pode estar
agora?
– Você está na Estalagem Almirante Benbow, na Baía do Morro Negro, meu
bom homem – falei.
– Escuto uma voz – disse ele –, uma voz jovem. Você me daria sua mão,
meu jovem e gentil amigo, e me levaria para dentro?
Eu lhe estendi minha mão, e aquela criatura horrível de fala mansa a agarrou
no mesmo instante, como um bote. Fiquei tão surpreso que tentei puxá-la de
volta, mas o cego me puxou para perto dele com um único gesto do braço.
– Agora, guri – disse ele –, me leva até o capitão.
– Senhor, por minha palavra, eu não ousaria.
– Ah, é mesmo? – zombou. – Me leva já, ou eu quebro seu braço.
E enquanto falava, torceu meu braço até me fazer gritar.
– Senhor, é por seu próprio bem – eu lhe disse. – O capitão não é mais quem
costumava ser. Ele se senta com um alfanje à mão. Outro cavalheiro…
– Vamos lá, anda – ele me interrompeu, e nunca escutei uma voz tão cruel,
fria e feia como a do cego. Ela me intimidou mais do que a dor, e o obedeci de
imediato, andando direto até a porta e dela até o saguão, onde nosso velho
bucaneiro doente estava sentado, atordoado pelo rum. O cego ficou colado em
mim, me apertando com sua mão de ferro e apoiando quase mais de seu peso em
mim do que eu conseguia sustentar.
– Me leva direto até ele e, quando eu estiver à sua frente, grita “aqui está um
amigo seu, Bill”. Se não, eu faço isto – e me deu um beliscão que quase me fez
desmaiar.
Entre isso e aquilo, eu estava com tanto medo do mendigo cego que quase
esqueci o terror que sentia do capitão e, assim que abri a porta do saguão, falei
alto as palavras que ele mandara falar, com uma voz trêmula.
O pobre capitão ergueu os olhos e todo o rum foi embora dele, deixando-o
sóbrio. A expressão em seu rosto não era tanto de terror, mas de uma doença
mortal. Ele fez um movimento para se levantar, mas não creio que tivesse mais
muita força no corpo.
– Agora, Bill, fica sentadinho onde está – disse o mendigo. – Posso não ver,
mas escuto cada dedo se movendo. Negócios são negócios. Estende sua mão
esquerda. Menino, pega a mão esquerda dele pelo pulso e traz para perto da
minha direita.
Nós dois o obedecemos, e eu o vi passar algo da mão que segurava a bengala
para a palma da mão do capitão, que se fechou no mesmo instante.
– Agora está feito – disse o cego, e com essas palavras de súbito me soltou e,
com segurança e agilidade incríveis, pulou para fora do saguão e pela estrada, de
onde eu, que me mantive imóvel, podia escutar o bate-bate da bengala tateando a
distância.
Levou algum tempo até eu ou o capitão nos recuperarmos da surpresa, mas
aos poucos, e quase ao mesmo tempo, eu soltei seu punho, que ainda segurava, e
ele recolheu a mão, dando uma olhada atenta na sua palma.
– Dez horas! – ele disse. – Temos seis horas. Vamos conseguir. – E se pôs de
pé.
Apesar disso, cambaleou, pôs a mão na garganta, ficou vacilando por um
momento e então, com um som peculiar, caiu de cara no chão.
Fui até ele de imediato, gritando por minha mãe. Mas foi tudo em vão. O
capitão havia caído morto de apoplexia fulminante9. É uma coisa curiosa de
compreender, pois certo que eu nunca gostei do homem, ainda que no fim tenha
começado a sentir pena dele, mas, assim que vi que estava morto, me desfiz em
lágrimas. Era a segunda morte que eu conhecia, e a tristeza da primeira ainda era
recente em meu coração.
4

O baú do marujo

N ão perdi tempo, claro, e contei tudo o que sabia para minha mãe, o que
talvez já devesse ter feito muito antes, e nos vimos então em uma posição
difícil e perigosa. Parte do dinheiro do sujeito, se ele tivesse algum, certamente
nos pertencia, mas não parecia provável que os colegas de nosso capitão, acima
de tudo os dois espécimes que vi, Cão Negro e o mendigo cego, estariam
inclinados a desistir de seu butim como pagamento da dívida do falecido. A
ordem do capitão de montar no cavalo e correr até o dr. Livesey deixaria minha
mãe sozinha e desprotegida, algo que nem passou pela minha cabeça. De fato,
parecia impossível para qualquer um de nós ficar mais tempo na casa. Um
carvão que caísse na grelha da cozinha, até mesmo o bater do relógio, nos
deixava em alerta. A vizinhança, aos nossos ouvidos, parecia assombrada por
passos se aproximando. E diante do corpo sem vida do capitão e da ideia daquele
mendigo cego detestável zanzando ao redor e pronto para voltar, havia
momentos em que, como dizem, ficávamos com os nervos à flor da pele. Algo
deveria ser feito rápido, e enfim nos ocorreu irmos juntos buscar ajuda na aldeia
vizinha. Dito e feito, saímos como estávamos, entrando de uma vez na neblina
gelada do entardecer sem nem cobrir a cabeça.
A aldeia não ficava muito longe, do outro lado da enseada, ainda que não se
pudesse enxergá-la. E o que muito me encorajou foi que ela ficava na direção
oposta daquela onde o cego fizera sua aparição e para a qual presumia-se que
retornara. A estrada não nos tomou muito tempo, ainda que parássemos às vezes
e, abraçados um ao outro, escutássemos em volta. Mas não havia nenhum som
incomum, nada além do marulho das ondas e do grasnar dos habitantes da
floresta.
As velas já haviam sido acesas quando chegamos à aldeia, e nunca
esquecerei minha alegria ao ver aquele brilho amarelo nas portas e janelas; mas
isso, como bem se mostrou, era o máximo de ajuda que conseguiríamos naquela
área. Era de se pensar que os homens teriam vergonha na cara, mas não houve
viva alma que consentisse em voltar conosco à Almirante Benbow. Quanto mais
falávamos de nossos problemas, mais – fosse homem, mulher ou criança – eles
se fechavam em suas casas. O nome do capitão Flint, ainda que desconhecido
por mim, era muito bem conhecido por alguns ali, e carregava uma grande carga
de terror. Alguns dos homens que trabalhavam no campo no lado mais distante
da Almirante Benbow se lembravam, além disso, de terem visto vários estranhos
na estrada e, julgando que fossem contrabandistas, se afastaram deles; e ao
menos uma pessoa vira um pequeno lúgar10 no local que chamávamos Buraco de
Gato. De fato, qualquer um que fosse camarada do capitão os apavorava de
morte. E para encurtar a história, ainda que houvesse muitos que se dispunham a
cavalgar até o dr. Livesey, que ia na outra direção, ninguém nos ajudaria a
defender a estalagem.
Dizem que a covardia é contagiosa, mas, por outro lado, que debater o
assunto cria coragem; e assim que cada um falou o que tinha a falar, minha mãe
deu um discurso. Ela disse que não perderia o dinheiro que pertencia a seu
menino órfão.
– E se nenhum de vocês tem coragem – disse ela –, Jim e eu teremos.
Voltaremos por onde viemos, e muito obrigada a vocês, seus homenzarrões com
coração de galinha. Nós abriremos aquele baú, nem que tenhamos que morrer
por isso. E eu lhe agradeço por aquela bolsa, sra. Crossley, para levar o dinheiro
que é nosso de direito.
É claro que falei que iria com minha mãe, e é claro que todos eles clamaram
contra nossa teimosia. O máximo que fizeram foi me dar uma pistola carregada,
no caso de sermos atacados, e prometer deixar alguns cavalos selados, caso
fôssemos perseguidos na volta, enquanto um menino iria cavalgar atrás do
doutor, em busca de ajuda armada.
Meu coração batia forte quando nós dois seguimos caminho na noite fria, em
nossa perigosa empreitada. A lua cheia começava a se erguer e despontava
avermelhada sobre as bordas superiores da neblina, e isso acelerou nosso passo,
pois logo se tornou evidente que tudo ficaria claro como o dia, e nossa partida
seria exposta às vistas de qualquer um de vigia. Nós nos esgueiramos pelas
sebes, suaves e silenciosos, sem ver ou escutar nada que aumentasse nosso
medo, até fecharmos a porta da Almirante Benbow atrás de nós com alívio.
Passei o ferrolho de uma vez, e paramos e ofegamos na escuridão por um
momento, sozinhos na casa com o cadáver do capitão. Então minha mãe buscou
uma vela no balcão e, segurando as mãos um do outro, avançamos pelo saguão.
Ele jazia onde o havíamos deixado, de costas, com os olhos abertos e um braço
esticado.
– Feche as cortinas, Jim – suspirou minha mãe. – Eles podem chegar e espiar
de fora. – Depois que o fiz, ela disse: – E agora, temos que tirar a chave disso
daí, e quem é que vai tocar nele, eu gostaria de saber! – E ela soltou um leve
soluço.
Eu me ajoelhei no mesmo instante. No piso, perto de sua mão, havia um
pequeno pedaço de papel, escurecido num dos lados. Não tinha dúvidas de que
era a mancha negra11 e, ao pegá-lo, encontrei escrito no outro lado, numa
caligrafia muito boa e clara, esta curta mensagem:

– Ele tinha até as dez, mãe – eu disse e, assim que falei, nosso velho relógio
começou a bater. Esse barulho abrupto nos assustou terrivelmente, mas a notícia
era boa, pois eram apenas seis horas.
– Agora, Jim – disse ela –, aquela chave.
Procurei nos bolsos dele, um atrás do outro. Algumas moedas pequenas, um
dedal, linhas e agulha grossa, um pedaço de rolo de tabaco mordido na ponta,
seu canivete com o cabo desgastado, uma bússola de bolso e uma caixinha de
latão onde tudo isso era guardado. Comecei a me desesperar.
– Talvez esteja pendurada no pescoço – sugeriu minha mãe.
Vencendo um forte asco, eu abri sua camisa no pescoço, e lá, pendurada
numa cordinha suja, que cortei com seu próprio canivete, encontramos a chave.
Esse triunfo nos encheu de esperança, e corremos sem demora escadas acima até
a saleta onde ele dormira por tanto tempo e onde seu baú ficara desde o dia de
sua chegada.
Por fora era como qualquer outro baú de marujo, com a inicial B marcada a
ferro quente em cima e as bordas um tanto lascadas e quebradas pelo uso
prolongado e rude.
– Me dê a chave – disse minha mãe e, ainda que a tranca estivesse bastante
dura, ela a girou e levantou a tampa num instante.
Um cheiro forte de tabaco e betume se ergueu de dentro, mas não havia nada
para ser visto em cima exceto uma muda de roupas muito boas, cuidadosamente
escovadas e dobradas. Elas nunca foram usadas, disse minha mãe. Abaixo,
começava a miscelânea: um quadrante, um caneco de lata, vários rolos de
tabaco, um par de pistolas muito bonitas, uma barra de prata, um velho relógio
espanhol e algumas bugigangas de pouco valor e pela maior parte de manufatura
estrangeira, um par de bússolas feitas de latão, e cinco ou seis conchas curiosas
das Índias Ocidentais. Por vezes ainda me pego pensando por que ele teria
carregado aquelas conchas ao longo de sua vida assombrada, culpada e errante.
Enquanto isso, não encontramos nada de valor além da prata e das
bugigangas, e nada disso era de nosso interesse. Por baixo havia um velho
capote, embranquecido pela maresia de muitos portos. Minha mãe o puxou com
impaciência e então, ali à nossa frente, havia a última coisa no baú, um pacote
enrolado em oleado12, parecendo guardar papéis, além de um saco de lona que,
ao toque, tilintava de ouro.
– Vou mostrar a esses patifes que sou uma mulher honesta – disse minha
mãe. – Tirarei minha parte e nem um centavo a mais. Segure a sacola da sra.
Crossley.
E ela começou a transferir seu montante do tesouro do capitão do saco de
lona para a bolsa que eu estava segurando.
Foi um trabalho longo e difícil, pois as moedas eram de todo tamanho e país
– dobrões, luíses, guinéus, reais de oito13 e sei lá mais o quê, tudo misturado a
esmo. Os guinéus, por sinal, eram os mais escassos, e era só com esses que
minha mãe sabia como fazer suas contas.
Quando estávamos na metade da contagem, de súbito coloquei minha mão
sobre o braço dela, pois havia escutado no ar gelado e silencioso um barulho que
fez meu coração saltar para a boca: o tatear da bengala do cego na estrada
congelada. Foi chegando mais e mais perto, enquanto segurávamos a respiração,
então bateu forte na porta da estalagem e pudemos ouvir a maçaneta sendo
girada e o ferrolho sendo forçado, conforme aquela coisa esfarrapada tentava
entrar. Em seguida, houve um longo período de silêncio tanto dentro como fora.
Por fim, o tatear recomeçou e, para nossa indescritível gratidão e alegria, morreu
aos poucos na distância até deixar de ser ouvido.
– Mãe, pega tudo e vamos embora – falei, pois tinha certeza de que a porta
trancada devia ter parecido suspeita e faria o vespeiro todo cair sobre nós, ainda
que ninguém que tivesse conhecido aquele cego terrível pudesse duvidar de
como fiquei grato por ter trancado a porta.
Mas minha mãe, por mais assustada que estivesse, não consentiria em pegar
uma fração a mais do que lhe era devido e estava determinada a não se contentar
com menos. Não eram sete horas ainda, ela disse. Conhecia seus direitos e os
faria cumprir, e ainda estava discutindo comigo quando um assovio baixo ecoou
a distância, lá pelos lados da colina. Isso foi o bastante, mais do que o bastante,
para nós dois.
– Vou ficar com o que já tenho – disse ela, se pondo de pé.
– E eu fico com isso para arredondar a conta – falei, pegando o embrulho de
oleado.
No momento seguinte estávamos os dois tateando pela escada, deixando a
vela com o baú vazio, e no que abrimos a porta fugimos em disparada. Foi na
hora certa. A névoa estava se dispersando rápido, a lua já brilhava bem clara em
ambos os lados da colina, e só na parte baixa do vale e nos arredores da taverna
seu fino véu ainda se mantinha e escondeu os primeiros passos de nossa fuga. A
menos da metade do caminho para a aldeia, não muito longe da base da colina,
precisaríamos atravessar uma área sob o luar. Além disso, o som de muitos pés
correndo chegava até nossos ouvidos e, quando olhamos na direção deles, uma
luz balançando e avançando rápido mostrava que um dos recém-chegados levava
uma lanterna.
– Querido – minha mãe disse de repente –, pegue o dinheiro e corra. Eu vou
desmaiar.
Certo que seria o fim de nós dois, pensei. Como amaldiçoei a covardia de
nossos vizinhos, como culpei minha mãe, pobrezinha, por sua honestidade e
ganância, por sua tolice no passado e sua fraqueza no presente! Por sorte,
estávamos à altura da ponte pequena, e eu a ajudei, cambaleando como estava,
até a beira da margem, onde ela soltou um suspiro e caiu sobre meu ombro. Não
sei como encontrei forças para o que fiz, e temo que o tenha feito de modo rude,
mas dei um jeito de arrastá-la pela margem e um pouco para baixo da arcada da
ponte. Não consegui levá-la mais longe, pois a ponte era baixa demais para que
fizesse mais do que me agachar embaixo dela. Então ali tivemos que ficar, minha
mãe quase toda exposta, e nós dois perto o bastante da estalagem para escutar o
que acontecia lá.
5

A última do cego

M inha curiosidade, de certo modo, foi mais forte que meu medo. Não
consegui ficar onde estava e engatinhei de volta à margem, onde, me
escondendo detrás de um arbusto, podia controlar a estrada em frente à nossa
porta. Eu mal havia me posicionado quando meus inimigos começaram a chegar,
sete ou oito deles, correndo com pressa, os passos em descompasso pela estrada,
e o homem com a lanterna um pouco à frente. Três homens corriam juntos de
mãos dadas e, apesar da névoa, supus que o do meio naquele trio fosse o
mendigo cego. No momento seguinte, sua voz me mostrou que eu estava certo.
– Ponham a porta abaixo – gritou ele.
– Sim, sim, senhor! – responderam dois ou três e se lançaram contra a
Almirante Benbow, com o lanterneiro logo atrás.
Então vi que paravam e escutei conversarem em voz baixa, como que
surpresos por encontrarem a porta aberta. Mas a pausa foi curta, pois o cego
outra vez deu ordens. Sua voz soou forte e alta, como se estivesse agitado pela
ansiedade e pela fúria.
– Pra dentro, pra dentro – gritou ele, amaldiçoando-os por sua demora.
Quatro ou cinco deles obedeceram de imediato, enquanto dois ficaram na
estrada com o mendigo formidável. Houve uma pausa, então um grito de
surpresa, e então uma voz gritando de dentro da casa:
– O Bill tá morto!
Mas o cego os xingou por seu atraso.
– Vasculhem o corpo, seus mandriões saloios – gritou ele –, e o resto de
vocês, subam e tragam o baú.
Se eu podia escutar seus pés subindo nossas velhas escadas, a casa devia
estar balançando com seu avanço. Em seguida, vieram novos sons de surpresa, a
janela do quarto do capitão foi aberta com um baque e o tilintar de vidro
quebrado, e um homem se inclinou para fora ao luar, cabeça e ombros, e se
dirigiu ao mendigo cego na estrada abaixo de si.
– Pew – gritou –, estiveram aqui antes. Alguém revirou todo o baú.
– Está lá? – rosnou Pew.
– O dinheiro está.
O cego xingou o dinheiro.
– Os papéis de Flint, eu quis dizer – gritou.
– Não encontramos em lugar algum – replicou o homem.
– Ei, vocês aí embaixo, não está no Bill? – gritou o cego outra vez.
No que outro comparsa, provavelmente o que ficara embaixo vasculhando o
corpo do capitão, veio até a porta da estalagem.
– Já fizeram a limpa no Bill – disse ele. – Não sobrou nada.
– É esse povo da estalagem, é aquele guri. Quisera eu ter furado seus olhos!
– gritou o cego, Pew. – Estiveram aqui há pouco tempo… tinham trancado a
porta quando tentei abrir. Espalhem-se, rapaziada, e os encontrem!
– Com certeza, eles deixaram a vela aqui – disse o sujeito na janela.
– Espalhem-se e os encontrem! Revirem a casa! – reiterou Pew, batendo com
sua bengala na estrada.
Então se seguiu uma grande agitação por toda nossa velha estalagem, com
passos pesados batendo por todo lugar, mobília sendo revirada, portas
arrombadas, até fazer eco nas próprias pedras ao redor e os homens saírem outra
vez, um atrás do outro, na estrada, e anunciarem que não estávamos em lugar
algum. E então o mesmo assovio que alarmara minha mãe e eu, quando
contávamos o dinheiro do capitão morto, soou outra vez nitidamente na noite,
mas dessa vez repetido duas vezes. Eu tinha pensado que o sinal fora dado pelo
cego, chamando seus homens para o ataque, mas agora descobria que era um
alerta vindo da colina lá pros lados do vilarejo, e pelo seu efeito sobre os
bucaneiros, devia avisá-los de que algum perigo se aproximava.
– É o Dirk de novo – disse um. – Duas vezes! Temos que dar no pé,
parceiros.
– Dar no pé uma ova, seus trambiqueiros! – gritou Pew. – Dirk sempre foi
um tolo e um covarde… não deem atenção pra ele. Devem estar aqui por perto,
não podem ter ido longe. Estamos quase em cima deles. Espalhem-se e procurem
por eles, cães! Arre, por minha alma – gritou –, se eu tivesse olhos!
Esse apelo pareceu produzir algum efeito, pois dois dos sujeitos começaram
a procurar ali pela lenha, mas me pareceram de má vontade, e com um olho
aberto para o próprio perigo que corriam no momento, enquanto os demais
permaneceram irresolutos na estrada.
– Vocês estão quase com a mão na grana, seus idiotas, e ficam enrolando!
Serão ricos como um rei se encontrarem, e sabem que está aqui e ficam aí
encalhados. Nenhum de vocês ousou desafiar o Bill, mas eu sim… um homem
cego! E vou perder a minha vez por vocês! Vou ser um pobre mendigo rastejante
e cachaceiro, quando poderia estar dando rolé de carruagem! Se vocês tivessem
a coragem de um caruncho de biscoito, já os teriam pegado!
– Calma, Pew, nós temos os dobrões! – grunhiu um.
– Eles podem ter escondido o bendito treco – disse outro. – Pega a grana,
Pew, e não fica fazendo tempestades.
Tempestade era a palavra para aquilo; a raiva de Pew cresceu tanto com
essas respostas que, por fim, a emoção assumiu o controle e, mesmo cego, bateu
neles a torto e a direito, sua bengala ressoando pesada em mais de um.
Estes, por sua vez, amaldiçoaram o patife cego, ameaçando-o com palavrões
horríveis, e tentaram em vão arrancar a bengala de sua mão.
Essa briga foi nossa salvação, pois, enquanto se desenrolava, outro som veio
do topo da colina pelo lado do vilarejo – o som de cavalos galopando. Quase ao
mesmo tempo um tiro de pistola, clarão e ribombo, veio da cerca-viva lateral. E
esse era claramente o último aviso de perigo, pois os bucaneiros pararam de vez
e correram, indo para todo lado, um para o mar ao longo da enseada, outro
subindo pela colina, e assim por diante, de tal modo que em meio minuto não
havia sinal de nenhum deles, senão de Pew. Ele foi abandonado, não sei se por
pânico ou em retaliação por seus xingamentos e golpes; mas ficou para trás,
tateando pela estrada em frenesi, e cutucando e chamando por seus comparsas.
Enfim tomou a curva errada e passou a alguns passos de mim, na direção do
vilarejo.
– Johnny, Cão Negro, Dirk – chamou, entre outros nomes –, vocês não vão
abandonar o velho Pew, parceiros… não o velho Pew!
No mesmo instante, o barulho dos cavalos aumentou e quatro ou cinco
cavaleiros apareceram às vistas do luar, descendo a todo galope colina abaixo.
Nisso Pew percebeu seu erro, virou-se com um grito e correu direto para a
vala, onde caiu rolando. Mas se pôs de pé no mesmo instante e disparou outra
vez, agora completamente apavorado, indo direto para baixo do cavalo mais
próximo.
O cavaleiro tentou salvá-lo, mas foi em vão. E lá se foi Pew com um grito
que ecoou alto na noite, e os quatro cascos o pisotearam e passaram por ele. Ele
caiu de lado, rolou gentilmente até ficar de bruços e não se moveu mais.

Levantei-me com um salto e acenei para os cavaleiros. Eles estavam


parando, de qualquer modo, horrorizados pelo acidente, e logo vi quem eram.
Um, na rabeira detrás do resto, era o garoto que havia partido do vilarejo em
busca do dr. Livesey. Os demais eram fiscais de alfândega que ele encontrara
pelo caminho e os quais chamara para virem de imediato. Notícias do lúgar no
Buraco de Gato tinham chegado até o supervisor Dance e o puseram a caminho
naquela noite em nossa direção, e foi graças a essas circunstâncias que minha
mãe e eu fomos preservados da morte.
Pew estava morto, mortinho da silva. Quanto à minha mãe, quando a
carregamos até o vilarejo, um pouco de água fria e sais logo a trouxeram de
volta, e ela podia não ter melhorado do medo, mas continuava a reclamar da
contagem do dinheiro. No meio-tempo, o supervisor cavalgou, tão rápido quanto
possível, até o Buraco de Gato; mas seus homens tiveram que apear dos cavalos
e descer com cuidado a ravina, conduzindo e às vezes dando apoio aos cavalos, e
em constante medo de emboscadas; então não foi nenhuma surpresa que, quando
desceram até o Buraco, o lúgar já estava partindo, ainda que estivesse perto. Ele
acenou para o barco. Uma voz respondeu, dizendo-lhe para ficar longe do luar
ou levaria chumbo, e ao mesmo tempo uma bala zuniu perto de seu braço. Logo
depois, o lúgar dobrou o pontal e desapareceu. O sr. Dance ficou ali de pé, como
ele mesmo disse, “feito um peixe fora d’água”, e tudo o que pôde fazer foi
despachar um homem até B…, para alertar o cúter14 da alfândega.
– E isso dá no mesmo que nada – disse ele. – Eles saíram ilesos, e fim. Pelo
menos – acrescentou – fico feliz de ter atropelado os cornos de Mestre Pew. –
Pois a essas alturas ele já havia escutado minha história.
Eu voltei com ele até a Almirante Benbow e você não pode imaginar o
estado de quebradeira da casa; o próprio relógio fora derrubado pelos sujeitos em
sua caçada furiosa atrás de mim e de minha mãe. E apesar de não terem levado
nada exceto a bolsa com o dinheiro do capitão e alguma prata no caixa, deu para
ver na hora que estávamos arruinados. O sr. Dance não entendeu nada.
– Eles pegaram o dinheiro, você disse? Bem, então, Hawkins, que outra
fortuna estavam buscando? Mais dinheiro, suponho?
– Não, senhor, não era dinheiro, eu acho – retruquei. – De fato, senhor,
acredito que eu tenho a coisa no bolso do meu colete e, para lhe dizer a verdade,
eu gostaria de colocá-la em segurança.
– Com certeza, garoto, é claro – disse ele. – Eu fico com ela, se preferir.
– Pensei talvez no dr. Livesey… – comecei.
– Perfeitamente correto – interrompeu ele, muito alegre –, perfeitamente
correto… um cavalheiro e magistrado. E agora, parando para pensar, vou eu
mesmo cavalgar até lá e me reportar a ele ou ao fidalgo Trelawney. Mestre Pew
está morto, no final das contas; não que eu lamente isso, mas está morto e, veja
só, se o povo puder ficar contra um oficial da alfândega de sua Majestade, ele
vai ficar. Agora, eu lhe digo, Hawkins: se quiser, eu levo você junto.
Eu o agradeci de coração pela oferta e caminhamos de volta até o vilarejo
onde os cavalos estavam. Quando contei à minha mãe de minha intenção, já
estavam todos selados.
– Dogger – disse o sr. Dance –, você tem um bom cavalo, leve o menino na
garupa.
Assim que montei e me segurei no cinto de Dogger, o supervisor deu a
ordem e o tropel disparou a galope pela estrada até a casa do dr. Livesey.
6

Os papéis do capitão

C avalgamos rápido por todo o caminho, até chegarmos frente à porta do dr.
Livesey. A fachada da casa estava escura.
O sr. Dance me mandou descer e bater, e Dogger me indicou o estribo para
que eu descesse. A porta foi aberta quase na mesma hora pela criada.
– O dr. Livesey está? – perguntei.
– Não – ela disse. – Ele voltou para casa no final da tarde, mas saiu para
jantar e passar a noitinha na mansão do fidalgo.
– Então é para lá que vamos, rapazes – disse o sr. Dance.
Dessa vez, como a distância era curta, não montei, mas corri agarrado ao
estribo de Dogger até os portões do casarão, e subi pela longa e desfolhada
estrada iluminada pela lua até onde a linha branca da mansão vigiava dos dois
lados grandes jardins antigos. Ali o sr. Dance apeou e, me levando consigo, com
uma palavrinha foi introduzido na casa.
O serviçal nos levou por um corredor acarpetado, que dava no final em uma
grande biblioteca, repleta de estantes de livros com bustos no topo, onde o
fidalgo e o dr. Livesey estavam sentados, de cachimbos em mãos, um de cada
lado de uma lareira acesa.
Eu nunca tinha visto o fidalgo tão de perto. Era um homem alto, com mais
de um metro e oitenta, de ombros largos, e tinha cara de ser astuto e meio
bronco, todo curtido e bronzeado de suas longas viagens. Suas sobrancelhas
eram muito escuras e franziam fácil, e isso lhe dava uma aparência meio
temperamental, não digo má, mas impulsiva e feroz.
– Entre, sr. Dance – disse ele, muito formal e condescendente.
– Boa noite, Dance – disse o doutor, com um meneio. – E boa noite para
você, amigo Jim. Que bons ventos os trazem?
O supervisor parou ereto e rígido e contou sua história feito uma aula, e você
tinha que ver como os dois cavalheiros inclinaram-se à frente e olharam um para
o outro, esquecendo-se de fumar de tanta surpresa e interesse. Quando ouviram
sobre como minha mãe voltou à estalagem, o dr. Livesey deu um tapa na perna e
o fidalgo gritou “bravo!” e quebrou seu longo cachimbo contra a grade da
lareira. Antes mesmo de chegar ao fim, o sr. Trelawney (esse, lembre-se, era o
nome do fidalgo) se levantou da poltrona e se pôs a caminhar pela sala, e o
doutor, como que para escutar melhor, tirou sua peruca empoada e ficou sentado
ali, parecendo muito estranho com seu cabelo castanho cortado rente.
Enfim o sr. Dance terminou a história.
– Sr. Dance – disse o fidalgo –, o senhor é um camarada muito nobre. E
quanto a atropelar aquele patife atroz e sombrio, dou conta de ser um ato de
virtude, senhor, como pisar numa barata. Esse menino Hawkins é um trunfo,
percebo. Hawkins, pode tocar aquela sineta? O sr. Dance tem que beber uma
cerveja.
– E então, Jim – disse o doutor –, você está com a coisa que eles
procuravam, não está?
– Aqui está, senhor – eu disse, e lhes entreguei o pacote de oleado.
O doutor o olhou de cima a baixo, como se seus dedos estivessem coçando
para abri-lo, mas, em vez de fazer isso, ele o colocou em silêncio no bolso da
casaca.
– Fidalgo – disse ele –, depois que Dance tiver tomado sua cerveja,
precisará, claro, voltar aos serviços de Sua Majestade, mas quero manter Jim
Hawkins aqui para que durma em minha casa e, com sua permissão, proponho
mandar vir aquela torta fria e deixá-lo jantar.

– Como quiser, Livesey – disse o fidalgo. – Hawkins fez por merecer mais
que torta fria.
Então uma grande torta de pombo foi trazida e colocada na mesinha de
canto, e eu jantei à farta, pois estava faminto feito um gavião, enquanto o sr.
Dance recebeu seus cumprimentos e foi por fim dispensado.
– E agora, senhor – disse o doutor.

– E agora, Livesey – disse o fidalgo no mesmo fôlego.


– Um de cada vez, um de cada vez – riu o dr. Livesey. – Você já ouviu falar
desse Flint, suponho?
– Se ouvi falar! – exclamou o fidalgo. – Se ouvi falar, você me pergunta! Ele
era o bucaneiro mais sanguinário que já velejou. Barba Negra era cria de Flint.
Os espanhóis tinham tanto medo dele que lhe digo, senhor, eu às vezes tinha até
orgulho por ele ser um inglês. Eu vi suas velas de gávea com estes olhos, lá
pelos lados de Trinidad, e o covarde filho duma pipa com quem eu velejava
recuou… recuou, senhor, para Porto de Espanha15.
– Bem, eu mesmo já ouvi falar dele, na Inglaterra – disse o doutor. – Mas o
ponto é, ele tinha dinheiro?
– Dinheiro! – exclamou o fidalgo. – O senhor não ouviu a história? O que
esses vilões queriam senão dinheiro? Com o que mais eles se importavam, senão
dinheiro? Pelo que arriscavam suas carcaças malandras, senão dinheiro?
– Isso logo vamos saber – retrucou o doutor. – Mas o senhor é tão
esquentado e declaratório que eu não consigo entender nada. O que quero saber é
isto: supondo que eu tenha aqui no meu bolso alguma pista de onde Flint
enterrou seu dinheiro, esse tesouro seria de mais ou menos quanto?
– Uma fortuna, senhor – disse o fidalgo. – Vou colocar assim: se nós
tivermos essa pista, eu armo um navio nas docas em Bristol e levo o senhor e
Hawkins, e consigo aquele tesouro mesmo se tiver que procurar por um ano.
– Muito bem – disse o doutor. – Agora, então, se Jim concordar, eu abrirei o
embrulho. – E o colocou à sua frente sobre a mesa.
O pacote estava costurado, e o doutor teve que alcançar sua maleta de
instrumentos e cortar os pontos com suas tesouras médicas. Continha duas
coisas: um livro e um papel selado.
– Antes de tudo, vamos tentar o livro – sugeriu o doutor.
O fidalgo e eu ficamos espiando por cima de seu ombro enquanto o abria,
pois o dr. Livesey havia gentilmente me chamado do outro lado da mesa na qual
eu estivera jantando, para aproveitar o jogo de investigação. Na primeira página
havia somente algumas anotações, do tipo que um homem com a caneta em
mãos pode fazer por tédio ou prática. Uma era a mesma que a tatuagem, o
capricho de Billy Bones, e então havia sr. W. Bones, imediato, chega de rum, em
Palm Key ele levou a sua e outros esboços, na maioria palavras soltas e
ininteligíveis. Não pude deixar de imaginar quem foi que “levou a sua” e o que
era “a sua” que ele levou. Uma facada nas costas, provavelmente.
– Nada muito instrutivo aqui – disse o dr. Livesey, e seguiu adiante.
As dez ou doze páginas seguintes estavam repletas de uma curiosa série de
anotações. Havia uma data na ponta de uma linha e na outra uma soma em
dinheiro, como em livros de contabilidade. Mas, em vez de uma explicação,
apenas uma quantidade variada de cruzes entre as duas. No dia 12 de junho de
1745, por exemplo, a soma de setenta libras era claramente devida a alguém, e
não havia nada além de seis cruzes para explicar a causa. Em alguns casos, ao
menos, o nome de algum lugar era acrescentado, como em perto de Caracas, ou
apenas uma marcação de latitude e longitude, como em 62° 17’ 20”, 19° 2’ 40”.
O registro abrangia cerca de vinte anos, o conjunto de anotações separadas
crescendo com o passar do tempo; e, no final, uma grande soma fora feita após
cinco ou seis somas incorretas, e estas palavras foram acrescentadas: Bones, sua
parte.
– Não dá para juntar lé com cré nisso – disse o dr. Livesey.
– A coisa é clara como o dia – anunciou o fidalgo. – Isso aí é o livro de
contabilidade daquele cachorro sem coração. Essas cruzes marcam os nomes dos
navios ou cidades que eles afundaram ou pilharam. A soma é a parte do patife, e
onde ele receou alguma ambiguidade, veja o senhor que acrescentou algo claro.
Perto de Caracas, vejam só, ali alguma nave infeliz foi abordada perto da costa.
Que Deus tenha ajudado as pobres almas que nela navegaram, tanto tempo atrás.
– É mesmo! – disse o doutor. – Veja só o que é a pessoa ser viajada. É
mesmo! E os montantes aumentam, vejam só, conforme ele sobe de posto.
Havia pouca coisa mais no livro além de algumas indicações de lugares nas
páginas em branco perto do fim, e uma tabela para reduzir dinheiro francês,
inglês e espanhol a um valor comum.
– Sujeito engenhoso – disse o doutor. – Não ia ser ele quem seria enganado.
– E agora – falou o fidalgo –, para o outro.
O papel fora selado em vários pontos com um dedal em vez de um selo16;
talvez o próprio dedal que eu encontrara no bolso do capitão. O doutor abriu os
selos com grande cuidado, e dali caiu o mapa de uma ilha, com latitude e
longitude, sondagens, nomes de colinas e baías e enseadas, e cada detalhe que
seria necessário para levar um navio a ancorar em segurança nas suas margens.
Tinha cerca de quinze quilômetros de comprimento e oito de largura, com a
forma, se pode dizer, de um dragão gordo de pé, dois bons portos cercados de
terra e um morro na parte do centro marcado A Luneta. Havia diversos
acréscimos posteriores, mas, acima de todos, três cruzes em tinta vermelha: duas
na parte norte da ilha, uma no sudoeste. Além disso, com a mesma tinta
vermelha, e numa escrita pequenininha e precisa, bem diferente dos garranchos
do capitão, havia três palavras: grosso do tesouro aqui.
No verso e com a mesma letra fora escrita a seguinte informação:
Isso era tudo, mas, mesmo sendo curto, e para mim incompreensível, encheu
o fidalgo e o dr. Livesey de alegria.
– Livesey – disse o fidalgo –, você vai abandonar essa profissão desgraçada
imediatamente. Amanhã eu vou para Bristol. Em três semanas… três
semanas!… duas semanas… dez dias… nós teremos o melhor navio, senhor, e a
mais bem escolhida tripulação da Inglaterra. Hawkins vai como grumete. Você
será um grumete famoso, Hawkins. Você, Livesey, será o médico de bordo, e eu
serei o almirante. Vamos chamar Redruth, Joyce e Hunter. Teremos vento
favorável, uma travessia rápida e nenhuma dificuldade para encontrar o lugar, e
então teremos dinheiro até para comê-lo, para rolar nele, para nadar nele à
vontade, pelo resto de nossas vidas.
– Trelawney – disse o doutor –, eu vou com você. Pode confiar em mim, e
em Jim também, que traremos glória ao empreendimento. Há somente um
homem que temo.
– E quem é esse? – exclamou o fidalgo. – Dê o nome do cão, senhor!
– O senhor – retrucou o doutor. – Pois não consegue segurar a língua. Nós
não somos os únicos que sabem da existência deste papel. Os sujeitos que
atacaram a estalagem esta noite… tipos ousados, com certeza desesperados… e
os que ficaram a bordo daquele lúgar, e arrisco dizer que outros mais, não muito
longe, estão cada um, para o que der e vier, desejosos de pegar esse dinheiro.
Nenhum de nós deve andar sozinho até partirmos para o mar. Jim e eu vamos
ficar juntos enquanto isso, o senhor levará Joyce e Hunter quando cavalgar para
Bristol e, do primeiro ao último, nenhum de nós deve soltar uma palavra sobre o
que encontramos.
– Livesey – respondeu o fidalgo –, você está sempre correto. Minha boca
será um túmulo.
Parte II
O COZINHEIRO DE BORDO
7

Vou para Bristol

D emorou mais do que o fidalgo esperava para que estivéssemos prontos


para zarpar, e nenhum de nossos planos – nem mesmo o do dr. Livesey
de me manter junto dele – pôde ser mantido como o planejado. O doutor
precisou ir até Londres para achar um médico que ficasse em seu lugar, o fidalgo
trabalhou duro em Bristol, e eu fiquei na mansão aos cuidados do velho Redruth,
o guarda-caça, quase como prisioneiro, mas cheio de sonhos marítimos e das
mais encantadoras expectativas por aventuras e ilhas estranhas. Eu me
inquietava com aquela hora que passamos juntos sobre o mapa, de cujos detalhes
eu bem lembrava. Sentado frente à lareira no quarto do mordomo, na minha
imaginação eu me aproximava daquela ilha por toda direção possível; explorava
cada acre de sua superfície; escalava milhares de vezes aquela colina alta que
chamavam de Luneta, e do topo apreciava as mais maravilhosas e diferentes
possibilidades. Às vezes a ilha estava repleta de selvagens, com os quais
lutávamos; às vezes cheia de animais perigosos que nos caçavam; mas em todas
as minhas conjeturas não me ocorreu nada tão estranho e trágico quanto foram
nossas aventuras reais.
Então se passaram semanas, até que um belo dia veio uma carta endereçada
ao dr. Livesey, com este acréscimo: Para ser aberta, no caso de sua ausência,
por Tom Redruth ou pelo jovem Hawkins. Obedecendo a essa ordem,
descobrimos, ou melhor, eu descobri – pois o guarda-caça tinha dificuldades em
ler qualquer coisa que não fosse impressa – as seguintes e importantes notícias:
– Redruth – eu disse, interrompendo a leitura –, o doutor não vai gostar
disso. O fidalgo está falando demais, no final das contas.
– Bem, quem vai tirar esse direito dele? – grunhiu o guarda-caça. – Seria
uma vergonha o fidalgo deixar de falar por causa do dr. Livesey, acho eu.
Com essa, eu desisti de qualquer tentativa de comentar e segui lendo direto:
Você pode imaginar a agitação em que essa carta me colocou. Eu estava fora
de mim de tanta alegria; e se alguma vez desprezei um homem, foi o velho Tom
Redruth, que não fazia nada além de resmungar e lamentar. Qualquer um dos
assistentes de guarda-caça teria de bom grado trocado de lugar com ele, mas essa
não era a vontade do fidalgo, e a vontade do fidalgo era como lei para todos eles.
Ninguém além do velho Redruth seria ousado a ponto de resmungar.
Na manhã seguinte, eu e ele nos pusemos a caminho da Almirante Benbow,
e lá encontrei minha mãe com boa saúde e bom humor. O capitão, que por tanto
tempo fora a causa de muito desconforto, partira para onde os perversos não
incomodam mais. O fidalgo cuidara para que tudo fosse consertado, as salas
públicas e o letreiro, repintados, e acrescentara alguma mobília – entre a qual se
destacava uma bela poltrona para minha mãe, no balcão. Ele também lhe
conseguira um menino como aprendiz, de modo que ela não precisaria de ajuda
enquanto eu estivesse longe.

Foi ao ver aquele menino que compreendi minha situação pela primeira vez.
Até aquele momento, eu só havia pensado nas aventuras que me esperavam e
nem um pouco na casa que estava deixando. E naquele momento, ao ver aquele
estranho desajeitado que ficaria em meu lugar ao lado da minha mãe, tive minha
primeira crise de choro. Receio que tenha dado àquele garoto uma noite de cão,
porque, sendo ele novo no serviço, tive centenas de oportunidades de corrigi-lo
ou diminuir seu trabalho, e não deixei de aproveitar cada uma.
A noite passou e no dia seguinte, após o jantar, Redruth e eu nos pusemos a
caminho outra vez. Eu disse adeus a minha mãe e ao quarto onde vivera desde
meu nascimento, e à velha e querida Almirante Benbow – não tão querida, desde
que fora pintada de outra cor. Um de meus últimos pensamentos se voltou para o
capitão, que tantas vezes caminhara pela praia com seu chapéu caído, sua
cicatriz no rosto e sua velha luneta de latão. No momento seguinte, dobramos
uma esquina e já não se podia mais ver minha casa.
A diligência dos correios nos buscou ao entardecer na charneca em frente à
Royal George. Eu fiquei espremido entre Redruth e um velho cavalheiro parrudo
e, apesar do movimento suave e do ar frio da noite, devo ter cochilado um
bocado desde o começo e dormido feito um tronco por todas as subidas e
descidas do caminho, pois, quando enfim me acordaram, foi com um cutucão
nas costelas, e logo que abri os olhos descobri que estávamos parados em frente
a um grande prédio na rua de uma cidade e que já havia amanhecido fazia
tempo.
– Onde estamos? – perguntei.
– Bristol – disse Tom. – Desce.
O sr. Trelawney havia tomado residência em uma taverna descendo as docas,
para supervisionar o trabalho na escuna. Tivemos que caminhar até lá e, para
meu grande prazer, passar pelos atracadouros e ao lado de uma multidão de
navios de todos os tamanhos, velames e nações. Num deles, os marinheiros
cantavam enquanto trabalhavam; em outro havia homens no topo, muito acima
da minha cabeça, pendurados por cordas que a mim não pareciam mais grossas
que as teias de uma aranha. Apesar de eu ter vivido no litoral toda minha vida,
parecia que nunca estivera perto do mar antes. O cheiro de betume e sal era uma
sensação nova. Eu vi as mais maravilhosas figuras de proa, que já tinham estado
por todo o oceano. E vi muitos velhos marinheiros, com argolas nas orelhas,
suíças encaracoladas e rabichos alcatroados, com o andar gingado e desajeitado
do mar, e nem se tivesse visto reis e arcebispos eu teria ficado mais
deslumbrado.

E eu mesmo ia para o mar, navegar numa escuna, com um contramestre


apitando e marujos de rabicho cantando; ao mar, rumo a uma ilha desconhecida,
procurar por tesouros enterrados!
Enquanto eu ainda estava nesse sonho delicioso, de súbito chegamos em
frente a uma grande taverna e encontramos o fidalgo Trelawney, todo vestido
feito um oficial naval em pesadas vestes azuis, saindo pela porta com um sorriso
no rosto e imitando o caminhar dos marinheiros.
– Aqui estão vocês – ele bradou. – E o doutor chegou de Londres na noite
passada. Bravo! A tripulação está completa!
– Ah, senhor – eu bradei –, quando zarpamos?
– Zarpar! – disse ele. – Nós zarpamos amanhã!
8

Na tabuleta da Luneta

Q uando terminei o café da manhã, o fidalgo me deu um bilhete endereçado


a John Silver, na Taverna da Luneta, e me disse que eu encontraria o
lugar com facilidade seguindo o caminho das docas e ficando de olhos abertos
para uma pequena taverna com uma grande luneta de latão como tabuleta. Eu
parti, exultante com a oportunidade de ver mais navios e marinheiros, e segui
caminho por entre uma grande multidão de pessoas e carroças e fardos, pois as
docas estavam agora no pico de movimento, até que encontrei a taverna em
questão.
Era um lugarzinho de aspecto decente. O letreiro fora recém-pintado, as
janelas tinham cortinas vermelhas novinhas e o piso acabara de ser lixado. Havia
uma rua de cada lado e uma porta aberta para cada uma, o que deixava o grande
salão de baixo bem visível, apesar das nuvens de fumo de tabaco.
A clientela era de homens do mar na maior parte, e eles falavam tão alto que
eu parei na porta, quase com medo de entrar.
Enquanto eu hesitava, um homem saiu de uma sala lateral e, num olhar, tive
certeza de que devia ser Long John. Sua perna esquerda fora cortada perto do
quadril, e debaixo do braço esquerdo ele carregava uma muleta, que manuseava
com uma habilidade maravilhosa, pulando pelo salão feito um pássaro. Ele era
muito alto e forte, com uma cara grande feito uma peça inteira de presunto – lisa
e pálida, mas inteligente e risonha. De fato, ele parecia estar bem animado,
assoviando enquanto se movia por entre as mesas, com um gracejo ou tapinha no
ombro para seus clientes favoritos.
Agora, para ser sincero com você, na primeira menção a Long John na carta
do fidalgo Trelawney, fiquei com medo de que ele viesse a ser o próprio
marinheiro perneta pelo qual tanto tempo eu ficara de guarda na velha Benbow.
Mas só uma olhada no homem já me bastou. Eu tinha visto o capitão, e Cão
Negro, e o cego Pew, e pensava ser capaz de reconhecer um bucaneiro – uma
criatura muito diferente, pelos meus critérios, daquele dono de taverna asseado e
de tão bom temperamento.
Ganhei coragem, cruzei a porta e caminhei direto até onde o homem estava
apoiado em sua muleta, falando com um cliente.
– Sr. Silver, com licença – chamei, erguendo o bilhete.
– Sim, meu jovem – disse ele –, esse é o meu nome, pode ter certeza. E
quem seria o senhor? – Então, ao ver a carta do fidalgo, ele pareceu ter algo
como um sobressalto.
– Ah! – disse, bem alto, me oferecendo a mão. – Entendi. Você é o nosso
novo grumete, é um prazer conhecê-lo.
E ele segurou minha mão com sua pegada firme.
Na mesma hora, um dos clientes no canto mais afastado se levantou de
súbito e foi em direção à porta. Era um trajeto curto, e ele saiu para a rua num
instante. Mas sua pressa atraiu minha atenção, e o reconheci na hora. Era o
homem de rosto comprido, sem dois dedos, que viera primeiro à Almirante
Benbow.
– Ah! – gritei. – Peguem ele! É o Cão Negro!
– Tô nem aí pra quem seja – bradou Silver –, mas ele não pagou a conta.
Harry, corre e pega ele.
Um dos outros que estava perto da porta saltou e saiu correndo atrás do
homem.
– Mesmo que fosse o almirante Hawke, ele teria que pagar a conta – disse
Silver, e então, soltando minha mão, perguntou: – Quem você disse que ele era?
Cão-o-quê?
– Negro, senhor – eu disse. – O sr. Trelawney não lhe contou dos
bucaneiros? Ele era um deles.
– É mesmo? – bradou Silver. – Na minha casa! Ben, corre e ajuda o Harry.
Um desses vagabundos, então? Não era você que estava bebendo com ele,
Morgan? Vem aqui.
O homem que ele chamou de Morgan, um marinheiro de rosto moreno,
velho e grisalho, se aproximou bem humilde, mascando seu tabaco.
– Agora, Morgan – disse Long John, muito sério –, você nunca tinha visto
antes aquele Cão… Cão Negro, tinha?
– Eu não, senhor – respondeu Morgan, com uma continência.
– E não sabia seu nome, sabia?
– Não, senhor.
– Com mil demônios, Tom Morgan, que bom pra você! – disse o patrão. – Se
tivesse se misturado com gente assim, nunca colocaria os pés de novo na minha
casa, pode apostar nisso. E o que ele estava dizendo a você?
– Não sei ao certo, senhor – respondeu Morgan.
– E você chama isso que tem sobre os ombros de cabeça? – perguntou Long
John. – Não sabe ao certo, você diz? Talvez não saiba agora com quem está
falando, será? Vamos lá, o que ele estava tagarelando? Viagens, capitães, navios?
Me diz! O que era?
– Ele falava sobre passar pela quilha18 – respondeu Morgan.
– Passar pela quilha, é mesmo? Uma coisa muito provável, pode apostar
nisso. Pode voltar para o seu lugar, Tom, seu labrego.
E então, enquanto Morgan voltava para seu banco, Silver falou comigo em
tom de segredo, o que achei muito lisonjeiro:
– Ele é um homem bem honesto, Tom Morgan, mas é meio burro. Agora –
ele voltou a falar alto –, vejamos… Cão Negro? Não, não conheço esse nome, eu
não. Mas acho que… sim, já vi esse vagabundo. Ele costumava vir aqui com um
mendigo cego, costumava sim.
– Pode ter certeza que sim – eu disse. – Eu conheci esse cego também. Seu
nome era Pew.
– É mesmo! – bradou Silver, agora bastante animado. – Pew! Esse era o
nome dele, pode crer. Ah, ele parecia um tubarão, parecia sim. Se pegarmos esse
Cão Negro, ora, teremos novidades para o capitão Trelawney. Ben é bom
corredor, poucos marinheiros correm melhor que Ben. Vai correr atrás dele e vai
pegá-lo, com mil demônios! Ele falava sobre passar pela quilha, não é? Eu vou
fazê-lo passar pela quilha.
O tempo todo enquanto matraqueava essas frases ele coxeava para cima e
para baixo em sua muleta, batendo nas mesas com a mão e dando uma
demonstração tal de animação que teria convencido um juiz do Old Bailey ou
um caça-bandidos de Bow Street19. Minhas suspeitas tinham sido
definitivamente reanimadas ao encontrar Cão Negro na Luneta, e observei o
cozinheiro com atenção. Mas ele era profundo demais, preparado demais e
esperto demais para mim e, quando os dois homens voltaram sem fôlego e
confessaram ter perdido a pista na multidão, sendo xingados como ladrões, eu
teria jurado pela inocência de Long John Silver.
– Agora, veja só, Hawkins – disse ele –, tá aí uma coisa que só acontece
comigo, não é? O que o capitão Trelawney vai pensar? Ali estava aquele maldito
filho duma holandesa sentado na minha própria casa, bebendo do meu próprio
rum! Então você vem e me mostra o sujeito e eu aqui o deixo escapulir bem na
minha frente! Agora, Hawkins, faça-me justiça com o capitão. Você é jovem, é
sim, mas tem pinta de ser esperto. Vi na hora que apareceu. Agora, essa é a real:
o que eu poderia fazer, mancando com esse lenho velho? Se ainda fosse um
contramestre habilitado, eu teria chegado nele, pegado o sujeito com as mãos e o
segurado numa gravata, teria sim, mas agora…
E então, de repente, ele parou e ficou de boca aberta como se tivesse se
lembrado de algo.
– A conta! – anunciou. – Três rodadas de rum! Ora, macacos me mordam, eu
tinha esquecido da conta!
E caindo sobre um banco, riu até lágrimas rolarem por seu rosto. Não pude
evitar me juntar a ele, e nós rimos juntos até que a taverna ressoava de vozes
outra vez.
– Ora, que foquinha que eu sou – disse ele por fim, secando o rosto. – Você e
eu vamos nos dar bem, Hawkins, juro que eu deveria ser nomeado grumete
também. Mas vamos lá, agora já era. Não adianta. Dever é dever, colegas. Vou
pegar minha velha touca de marinheiro, caminhar com você até o capitão
Trelawney e relatar esse negócio. Pois tenha em mente, jovem Hawkins, isso é
sério; e ouso dizer que nem eu nem você saímos dessa com algum crédito. Mas
pelos meus botões! Essa da conta foi uma boa.
E ele começou a rir outra vez, e de modo tão caloroso que, mesmo eu não
vendo qual era a graça, de novo fui obrigado a me juntar a ele nessa alegria.
Em nossa curta caminhada pelas docas, ele se mostrou uma companhia das
mais interessantes, me contando dos diferentes navios pelos quais passávamos,
seus velames, tonelagem e nacionalidade, e explicando o trabalho que era feito –
que um ali estava descarregando, o outro embarcando carga, e um terceiro se
preparando para zarpar; a toda hora me contando alguma pequena anedota sobre
navios e marinheiros ou repetindo um termo náutico até que eu o decorasse
perfeitamente. Comecei a perceber que ali estava um dos melhores
companheiros de bordo possíveis.
Quando chegamos à pousada, o fidalgo e o dr. Livesey estavam sentados
juntos, terminando um quartilho20 de cerveja com uma torrada dentro21, antes de
subir a bordo da escuna numa visita de inspeção.
Long John contou a história do começo ao fim, de modo muito espirituoso e
na mais perfeita verdade.
– E foi assim que aconteceu, não foi, Hawkins? – ele dizia a toda hora, e eu
quase sempre concordava com ele por completo.
Os dois cavalheiros lamentaram que Cão Negro tivesse escapado, mas todos
concordamos que não havia nada que pudesse ser feito e, após ser dispensado,
Long John pegou sua muleta e partiu.
– Todos a bordo às quatro dessa tarde – berrou o fidalgo atrás dele.
– Sim, sim, senhor – bradou o cozinheiro, da porta.
– Bem, fidalgo – disse o dr. Livesey. – Não ponho muita fé em suas
descobertas, de modo geral. Mas uma coisa eu digo, gosto desse John Silver.
– Esse homem é um trunfo perfeito – declarou o fidalgo.
– E agora – acrescentou o doutor –, Jim pode vir a bordo conosco, não pode?
– Claro que pode – disse o fidalgo. – Pegue seu chapéu, Hawkins, e vamos
ver o navio.
9

Pólvora e armas

O Hispaniola estava fundeado um pouco longe do cais, e nós fomos de bote


passando por baixo das figuras de proa e contornando a popa de muitos
outros navios, seus cabos às vezes raspando por baixo da nossa quilha, às vezes
balançando acima de nós. Enfim, chegamos e assim que pisamos a bordo fomos
recebidos e saudados pelo imediato, o sr. Arrow, um velho marinheiro moreno
com argolas nas orelhas e um olho vesgo. Ele e o fidalgo davam-se muito bem,
mas logo percebi que não se podia dizer o mesmo da relação entre o sr.
Trelawney e o capitão.
Este último era um homem de aparência severa que parecia irritado com
tudo a bordo e não perdeu tempo em nos dizer o motivo, pois mal havíamos
entrado na cabine quando um marinheiro veio nos procurar.
– Senhor, o capitão Smollett deseja falar-lhe – disse ele.
– Estou sempre à disposição do capitão – disse o fidalgo. – Mande-o entrar.
O capitão, que estava logo atrás do mensageiro, entrou e fechou a porta atrás
de si.
– Bem, capitão Smollett, o que o senhor tem a dizer? Tudo em ordem e
pronto para zarpar, espero?
– Bem, senhor – disse o capitão –, acredito que é melhor ser franco, mesmo
sob o risco de causar ofensa. Eu não gosto desta viagem, não gosto dos homens e
não gosto do meu oficial. Para ser curto e direto.
– Talvez o senhor não goste do navio? – perguntou o fidalgo, muito irritado,
como pude perceber.
– Quanto a isso não posso falar, senhor, já que não o vi ser testado –
respondeu o capitão. – Me parece um navio engenhoso, mais do que isso não
posso dizer.
– Talvez o senhor não goste de seu empregador, tampouco? – disse o fidalgo.
Aqui o dr. Livesey se intrometeu.
– Calma, senhores – pediu ele –, calma. Perguntas assim não servem para
nada além de produzir mal-entendidos. O capitão ou falou demais ou de menos,
e sou compelido a solicitar uma explicação quanto a suas palavras. Você diz que
não gosta da viagem. Ora, por quê?
– Fui contratado, senhor, nos termos que chamamos “ordens fechadas”, para
navegar neste navio para onde quer que esse cavalheiro pedisse – disse o capitão.
– Até aí, tudo bem. Mas agora descubro que cada homem do convés sabe mais
do que eu. Agora, eu não chamo isso de correto, o senhor não acha?
– Não – disse o dr. Livesey. – Não acho.
– Em seguida – disse o capitão –, descubro que estamos indo atrás de um
tesouro… descobri por conta própria, perceba. Agora, tesouro é um assunto
delicado, não gosto de caças ao tesouro de qualquer tipo e, acima de tudo, não
gosto quando elas são secretas e quando, com seu perdão, sr. Trelawney, até o
papagaio já sabe o segredo.
– O papagaio de Silver? – perguntou o fidalgo.
– É só um modo de falar – disse o capitão. – Muita tagarelice, quis dizer.
Sou da crença de que nenhum dos senhores cavalheiros faz ideia de onde estão
se metendo, mas vou lhes dizer o que acho: é coisa de vida e morte, e uma
corrida apertada.
– Isso ficou bem claro e, ouso dizer, está correto – retrucou o dr. Livesey. –
Nós assumimos o risco, mas não somos tão ignorantes quanto o senhor crê.
Também falou que não gosta da tripulação. Eles não são bons marinheiros?
– Não gosto deles, senhor – respondeu o capitão Smollett. – E já que
tocamos no assunto, acredito que eu é quem deveria tê-los escolhido.
– Talvez devesse – retrucou o doutor. – Talvez meu amigo devesse ter levado
o senhor junto, mas esse escorregão, se é que houve algum, não foi intencional.
E o senhor não gosta do sr. Arrow?
– Não gosto, senhor. Acredito que ele seja um bom marinheiro, mas toma
liberdades demais com a tripulação para ser um bom oficial. Um imediato deve
se resguardar… e não deveria beber com os homens do convés!
– O senhor está dizendo que ele bebe? – bradou o fidalgo.
– Não, senhor – respondeu o capitão. – Apenas que ele dá intimidade
demais.
– Bem, então, e para encurtar a coisa, capitão? – perguntou o doutor. – Diga-
nos o que o senhor quer.
– Bem, cavalheiros, os senhores estão determinados a partir nessa viagem?
– Ferrenhamente – respondeu o fidalgo.
– Muito bem – disse o capitão. – Então, já que os senhores tiveram a
paciência de me escutar enquanto eu falava coisas que não posso provar,
escutem mais algumas palavras. Eles estão colocando a pólvora e as armas no
porão de proa. Ora, os senhores têm um bom lugar debaixo da cabine, por que
não as colocar ali? Essa é a primeira coisa. Em seguida, me foi dito que os
senhores trouxeram quatro de seu próprio pessoal com os senhores, e me
disseram que alguns deles serão alojados na frente. Por que não lhes dão leitos
aqui ao lado da cabine? Essa é a segunda coisa.
– Alguma questão mais? – perguntou o sr. Trelawney.
– Uma só – disse o capitão. – Já houve tagarelice demais.
– Além da conta – concordou o doutor.
– Vou lhes dizer o que eu mesmo já ouvi – continuou o capitão Smollett. –
Que os senhores estão de posse do mapa de uma ilha, que há cruzes nesse mapa
que mostram onde está o tesouro, e que a ilha fica em… – e então disse a exata
latitude e longitude.
– Eu nunca contei isso para uma viva alma! – bradou o fidalgo.
– Até os peixes sabem, senhor – respondeu o capitão.
– Livesey, deve ter sido você ou o Hawkins – disse o fidalgo.
– Não importa muito quem foi – retrucou o doutor. E pude perceber que nem
ele nem o capitão acreditaram muito nos protestos do sr. Trelawney. Nem eu,
pode ter certeza, pois ele era muito tagarela, ainda que nesse caso eu acredite que
ele estivesse mesmo certo e que ninguém houvesse falado da posição da ilha.
– Bem, cavalheiros – continuou o capitão –, não sei quem tem esse mapa,
mas vou deixar isto claro: ele deve ser mantido em segredo, mesmo de mim ou
do sr. Arrow. Do contrário, pedirei aos senhores que aceitem minha renúncia.
– Compreendo – disse o doutor. – O senhor deseja que mantenhamos o
assunto em segredo e que façamos uma barricada na popa do navio, guarnecida
com a própria gente do meu amigo, e abastecida com todas as armas e pólvora a
bordo. Em outras palavras, o senhor teme um motim.
– Senhor – disse o capitão Smollett –, sem nenhuma intenção de ofendê-lo,
eu nego seu direito de colocar palavras em minha boca. Nenhum capitão, senhor,
aceitaria partir ao mar se tivesse base o bastante para dizer isso. Quanto ao sr.
Arrow, eu o tenho por completamente honesto; e digo que alguns dos homens
são iguais, e talvez todos sejam mesmo, por tudo o que sei. Mas eu sou
responsável pela segurança do navio e da vida de qualquer zé-mané a bordo dele.
Vejo coisas se encaminhando que, a meu ver, não estão corretas. E peço aos
senhores para que tomem certas precauções ou permitam que eu renuncie a meu
posto. E isso é tudo.

– Capitão Smollett – o doutor disse com um sorriso –, o senhor já ouviu a


fábula da montanha e do rato? Perdoe a ousadia, mas o senhor me lembrou dessa
fábula. Eu apostaria minha peruca que, quando veio aqui, o senhor queria dizer
mais do que disse.
– Doutor – disse o capitão –, o senhor é esperto. Quando entrei aqui eu
pretendia ser dispensado. Não achei que o sr. Trelawney escutaria uma palavra.
– Não iria mesmo – bradou o fidalgo. – Se Livesey não estivesse aqui eu o
teria mandado às favas! De todo modo, eu o ouvi. Farei como o senhor deseja,
mas penso do senhor o pior.
– Como preferir, senhor – disse o capitão. – O senhor vai descobrir que
cumpro meu dever.
E com essa, ele saiu.
– Trelawney – falou o doutor –, ao contrário do que eu pensava, acredito que
você conseguiu trazer dois homens honestos consigo: esse homem e John Silver.
– O Silver sim, até concordo – disse o fidalgo. – Mas quanto a esse azêmola
intolerável, declaro que considero sua conduta inumana, indigna de um
marinheiro e ainda mais de um inglês.
– Bem, veremos – respondeu o doutor.
Quando chegamos ao convés, os homens já haviam começado a retirar as
armas e a pólvora, cantando durante o trabalho, enquanto o capitão e o sr. Arrow
supervisionavam.
Gostei bastante desse novo arranjo. A escuna toda foi reformulada, seis
cabines foram montadas na popa do que fora o lado externo do porão principal, e
esse conjunto só se ligava à cozinha e ao castelo de proa por uma estreita
passagem a bombordo. Havia sido pensado originalmente que o capitão, o sr.
Arrow, Hunter, Joyce, o doutor e o fidalgo ocupariam essas seis cabines. Agora,
Redruth e eu ficaríamos com duas delas, e o sr. Arrow e o capitão dormiriam no
convés na gaiuta22, que fora alargada de cada lado até que quase se pudesse
chamá-la de tombadilho. Ainda assim era bem baixa, claro, mas havia espaço
para pendurar duas redes, e até mesmo o imediato pareceu contente com o
arranjo. Talvez ele próprio tivesse suas dúvidas quanto à tripulação, mas isso é
só um chute meu, pois, como você verá, não foi por muito tempo que tivemos o
benefício de sua opinião.
Todos trabalhávamos duro, mudando a pólvora e os leitos, quando os
últimos homens, Long John Silver entre eles, chegaram num escaler.
O cozinheiro subiu pelo costado com a agilidade de um macaquinho e, assim
que viu o que estava acontecendo, disse:
– Pera lá, parceiros! Que é isso?
– Estamos mudando a pólvora de lugar, John – respondeu um.
– Para quê, com mil demônios – bradou Long John. – Se for assim, vamos
perder a maré da manhã!
– Ordens minhas – disse o capitão, seco. – Você pode descer, meu caro. O
povo vai querer comer.
– Sim, sim, senhor – respondeu o cozinheiro. E tocando na testa,
desapareceu de vez na direção de sua cozinha.
– Ali está um bom homem, capitão – disse o doutor.
– Provavelmente, senhor – retrucou o capitão Smollett. – Cuidado com isso,
homens… cuidado – ele ralhou com os sujeitos que estavam levando a pólvora e,
quando me pegou observando o canhão giratório, uma comprida peça de calibre
nove23 que se levava à meia nau, gritou: – Ei, grumete, sai daí! Vai procurar o
cozinheiro e arranjar algum trabalho.
E então, enquanto eu saía apressado, o escutei dizer bem alto para o doutor:
– Não vai ter favoritismos no meu navio.
Confesso a você que eu estava concordando com o fidalgo e detestando
profundamente o capitão.
10

A viagem

P assamos a noite toda num grande alvoroço, colocando as coisas em seu


devido lugar, enquanto barcos cheios de amigos do fidalgo, como o sr.
Blandly, vinham desejar-lhe boa viagem e um retorno seguro. Na Almirante
Benbow, nunca vivi uma noite em que eu tivesse metade daquele trabalho, e
estava exausto quando, pouco antes do amanhecer, o contramestre soprou seu
apito e a tripulação começou a rodar as barras do cabrestante. Mas, mesmo que
estivesse com o dobro de cansaço, não teria deixado o convés. Tudo era novo e
interessante para mim – os comandos rápidos, as notas agudas do apito, os
homens assumindo suas posições sob o brilho das lanternas do navio.
– Vamos, Churrasqueiro, dá a deixa – gritou uma voz.
– Aquela antiga – pediu outro.
– Sim, sim, parceiros – disse Long John, que estava por perto, com sua
muleta debaixo do braço, e na hora irrompeu com o ritmo e as palavras que eu
conhecia tão bem:
“Quinze homens no Peito do Defunto…”
E então toda a tripulação disse em coro:
“Io-ho-ho e uma garrafa de rum!”
E no segundo ho! empurraram juntos as barras do cabrestante.
Mesmo naquele momento empolgante a canção me fez voltar num segundo à
velha Almirante Benbow, e eu parecia escutar a voz do capitão se juntando ao
coro. Porém logo a âncora foi erguida e ficou suspensa, pingando na proa; logo
as velas começaram a enfunar, e a terra e os barcos, a ficar para trás. E antes que
eu pudesse me deitar para tirar uma hora de soneca, o Hispaniola começou sua
viagem para a Ilha do Tesouro.
Não vou entrar nos detalhes da viagem. Tudo correu bem. O navio provou
ser um bom navio, a tripulação era de marinheiros hábeis, e o capitão entendia
bem do riscado. Mas, antes que chegássemos à Ilha do Tesouro, aconteceram
duas ou três coisas que necessitam ser relatadas.
Primeiro que o sr. Arrow revelou-se ainda pior do que o capitão temia. Ele
não tinha autoridade entre os homens, que faziam o que bem queriam com ele.
Mas isso não era nem de longe o pior, pois após um dia ou dois no mar ele
começou a aparecer no convés com os olhos inchados, as bochechas vermelhas,
a língua enrolada e outras marcas de bebedeira. Vez atrás de outra, ele foi
mandado para baixo em desgraça. Às vezes caía sozinho e se cortava, às vezes
passava o dia todo deitado em sua redezinha ao lado da escotilha, às vezes por
um dia ou dois ficava quase sóbrio e até cumpria seu trabalho de modo passável.
Entretanto, nunca conseguimos descobrir onde ele conseguia a bebida. Esse
era o mistério do navio. Por mais que o vigiássemos, não encontrávamos a
resposta e, quando perguntávamos na cara, ele apenas ria, se estivesse bêbado,
ou, se estivesse sóbrio, negava solenemente jamais ter bebido nada além de
água.
Ele não era somente inútil como oficial e uma má influência entre os
homens, mas estava claro que nesse ritmo logo acabaria se matando. Então
ninguém ficou muito surpreso, nem lamentou muito, quando numa noite escura,
com o mar agitado, ele desapareceu por completo e nunca mais foi visto.
– Caiu no mar! – disse o capitão. – Bem, cavalheiros, isso nos poupa o
trabalho de pô-lo a ferros.
Porém lá estávamos nós, sem um imediato. E claro, era necessário promover
um dos homens. O contramestre, Job Anderson, era a escolha mais provável a
bordo e, embora mantivesse seu posto anterior, já servia de certo modo como
imediato. O sr. Trelawney era experiente no mar, e isso o fazia bastante útil, pois
volta e meia ele próprio fazia a vigília em tempo bom. E o timoneiro, Israel
Hands, era um velho marinheiro experiente, cuidadoso e habilidoso, no qual se
poderia confiar em quase tudo.
Ele era um grande confidente de Long John Silver, e mencionar seu nome
me leva a falar novamente de nosso cozinheiro de bordo, Churrasqueiro, como
os homens o chamavam.
A bordo do navio ele levava sua muleta pendurada no pescoço por um cabo
de escota24, para manter as duas mãos livres sempre que possível. Era digno de
ver como ele escorava o pé da muleta em um anteparo e, apoiando-se contra ela,
acompanhava cada movimento do navio, seguindo na sua cozinha como alguém
a salvo em terra. Ainda mais estranho era vê-lo cruzar o convés com mau tempo.
Ele fez com que um ou dois cabos fossem esticados para ajudá-lo a atravessar os
espaços mais amplos – os brincos de Long John, era como chamavam. Ele dava
conta de ir de um ponto a outro sozinho, ora usando a muleta, ora deslizando ao
longo com a escota, tão rápido quanto um homem que caminhasse. Ainda assim,
alguns que já haviam navegado com ele antes expressaram seu pesar por vê-lo
tão limitado.
– Ele não é um homem comum, o Churrasqueiro – contou-me o timoneiro. –
Ele teve estudo quando era jovem e sabe falar como nos livros quando tem
vontade; é duma coragem… um leão não é nada perto de Long John! Eu o vi
segurar quatro e bater suas cabeças juntas… ele próprio desarmado!
Toda a tripulação o respeitava e até o obedecia. Ele tinha um jeito de falar
com cada um, e para cada um fazia um pequeno favor. Comigo era de uma
gentileza incansável e ficava sempre feliz de me ver na cozinha, a qual mantinha
limpa feito um broche novo, com os pratos pendurados reluzindo e seu papagaio
numa gaiola no canto.
– Chega mais, Hawkins – ele dizia. – Vem bater um papo aqui com o John.
Ninguém é mais bem-vindo que você, meu filho. Senta aí e escuta as novidades.
Esse aqui é o Capitão Flint… eu chamo meu papagaio de Capitão Flint, em
honra do famoso bucaneiro… ó aqui o Capitão Flint prevendo o sucesso da
nossa viagem. Não é, Capitão?
E o papagaio dizia, bem rápido, “Reais de oito! Reais de oito! Reais de
oito!”25 até você achar que a ave fosse ficar sem fôlego, ou até que John jogasse
seu lenço sobre a gaiola.

– Ora, esse pássaro – ele dizia – tem, talvez, uns duzentos anos, Hawkins.
Eles em geral vivem para sempre; e se alguém já viu mais vilanias do que ele,
foi só o próprio diabo. Ele navegou com England, o grande capitão England, o
pirata26. Esteve em Madagascar e em Malabar, e no Suriname, em Providence e
em Portobello, e esteve no resgate dos navios de prata afundados. Foi lá que
aprendeu a dizer “reais de oito”, e não me admira: eram 350 mil deles27,
Hawkins! Ele estava no saque ao vice-rei das Índias perto de Goa28, estava sim;
e olhando pra ele dá para pensar que é um bebezinho. Mas você fede a pólvora,
não é, Capitão?

– Preparar para abordagem – gritava o papagaio.


– Ah, é uma belezinha habilidosa, ele é – dizia o cozinheiro, e lhe dava um
cubo de açúcar de seu bolso, e então o pássaro se botava a bicar a grade e soltar
palavrões sem parar, feito um monstrinho. – Veja só – acrescentava John –, não
dá para mexer com piche achando que não vai se sujar, rapaz. Aqui está este meu
pobre e inocente passarinho xingando feito o demônio, e nem sabe o que diz,
pode apostar. Ele xingaria igual na frente de um padre. – E John tocava a testa de
um jeito solene todo seu, que me fazia pensar nele como o melhor dos homens.
Enquanto isso, o fidalgo e o capitão Smollett ainda mantinham distância um
do outro. O fidalgo não fazia rodeios sobre o assunto: ele desprezava o capitão.
O capitão, de sua parte, nunca lhe falava a não ser quando este se dirigia a ele, e
então respondia curto e grosso, sem desperdiçar uma palavra. Admitia, quando
colocado contra a parede, que parecia estar errado no referente à tripulação, que
alguns ali eram tão bons quanto ele gostaria que fossem e que todos haviam se
comportado muito bem. Quanto ao navio, o capitão havia se afeiçoado bastante a
ele.
– Ele se comporta contra o vento melhor do que um homem tem o direito de
esperar da própria esposa, senhor. Mas – acrescentava – tudo o que posso dizer é
que não voltamos para casa ainda, e não gosto da viagem.
Nesse ponto, o fidalgo lhe dava as costas e voltava para baixo do convés, de
queixo erguido.
– Uma palavra a mais desse homem – dizia – e eu vou explodir.
Nós pegamos algum tempo ruim, o que só mostrou a qualidade do
Hispaniola. Cada homem a bordo parecia bem contente; e eles seriam sujeitos
difíceis de agradar, se fosse o contrário, pois sou da crença de que nunca houve
uma tripulação de navio mais mimada desde que Noé foi ao mar. Doses duplas
de grogue29 eram dadas por qualquer desculpa; havia pudim em dias estranhos,
como, por exemplo, se o fidalgo soubesse que era aniversário de alguém, e
sempre havia um barril de maçãs aberto no convés, para qualquer um, caso desse
vontade.
– Nunca soube de nada de bom vindo disso – o capitão disse ao dr. Livesey.
– Marinheiro mimado, diabo criado. É o que acredito.
Mas algo de bom veio do barril de maçãs, como você logo saberá. Pois, se
não fosse isso, nós não teríamos recebido nenhum alerta e teríamos todos
morrido nas mãos da traição.
Foi assim que aconteceu.
Tínhamos pegado os ventos alísios para nos colocar a favor da ilha que
procurávamos – não posso ser mais específico – e agora corríamos nessa
direção, com vigia constante dia e noite. Foi perto do último dia de nossa viagem
de ida, pelos meus cálculos. Alguma hora naquela noite ou, no mais tardar, antes
do nascer do sol, nós devíamos avistar a Ilha do Tesouro. Estávamos indo em
direção sul-sudoeste e tínhamos uma brisa constante e mar calmo. O Hispaniola
avançava firme, mergulhando seu gurupés de quando em vez com uma pequena
chuveirada. Todas as velas estavam abertas acima e abaixo, e todo mundo se
animara, porque quase acabávamos a primeira parte de nossa aventura.
Então, perto do pôr-do-sol, quando terminei todo meu trabalho e estava a
caminho de meu camarote, me ocorreu que bem poderia comer uma maçã. Subi
para o convés. Os vigias estavam todos na proa, procurando pela ilha. O homem
no leme cuidava da direção da vela, assoviando consigo mesmo. E esse era o
único som, exceto pelo balanço do mar contra a proa e nas laterais do navio.
Entrei no barril de maçãs e descobri que mal havia restado uma. Mas,
sentado lá no escuro, com o som das águas e o balanço do navio, ou eu havia
caído de sono, ou estava prestes a cair, quando um homem pesado se sentou ali
perto com um estrondo. O barril balançou quando ele apoiou o ombro contra sua
lateral, e eu estava prestes a pular fora quando o homem começou a falar. Era a
voz de Silver e, depois de ouvir meia dúzia de palavras, eu não teria me revelado
por nada no mundo, e fiquei ali, tremendo e escutando, nos extremos do medo e
da curiosidade, pois dessa meia dúzia de palavras entendi que a vida de todos os
homens honestos a bordo dependia somente de mim.
11

O que escutei no barril de maçãs

– N ão, eu não – disse Silver. – Flint era o capitão e eu era o contramestre, com
minha perna de pau. Na mesma metralhada em que perdi a perna, o velho Pew
perdeu a visão. Foi um mestre cirurgião, ele que me amputou… estudou na
universidade, sabia latim e tudo o mais… mas foi enforcado feito um cachorro e
posto a secar no sol com os outros, no Castelo do Cabo30. Eram homens do
Roberts31, eram sim, e estavam sempre mudando o nome dos navios, o Royal
Fortune e assim por diante. Ora, se um navio é batizado com um nome, deixe
ficar, acho eu. Foi assim com o Cassandra, que nos trouxe todos sãos e salvos de
Malabar, depois que England roubou o vice-rei das Índias, e assim foi com o
Morsa, o velho navio de Flint, que eu vi banhado de sangue e a ponto de afundar
de tanto ouro.
– Ah! – disse outra voz, a do marujo mais jovem a bordo, evidentemente
cheia de admiração. – Ele era a fina flor da piratagem, esse Flint!
– Davis também era o tal, pelo que dizem – falou Silver. – Nunca naveguei
junto com ele. Primeiro fui com England, depois com Flint, essa é a minha
história, e agora por conta própria aqui, por assim dizer. Com o England fiz
umas novecentas libras, e 2 mil depois com Flint. Isso não é nada mal para um
homem de convés… tudo guardadinho no banco. Não é só o que se ganha que
importa, é o que se guarda, pode apostar. Onde foram parar todos os homens do
England? Sei lá. Onde estão os de Flint? Ora, a maioria está aqui a bordo, bem
felizes comendo pudim… Estavam mendigando antes, alguns deles. O velho
Pew, que perdeu a visão, e deveria ter sido mais esperto, gastava 12 mil libras
por ano, feito um lorde no Parlamento. Onde ele está agora? Bem, agora está
morto e enterrado, mas por dois anos antes disso… raios me partam!, o homem
estava passando fome. Ele mendigava e roubava e cortava gargantas e morria de
fome fazendo isso, com mil demônios!
– Bem, não valeu nada, no fim das contas – disse o jovem marujo.
– Para os idiotas nunca vale, pode apostar, nem isso nem nada – bradou
Silver. – Mas agora, escuta aqui: você é jovem, é sim, mas tem pinta de esperto.
Eu vi isso quando pus os olhos em você, e vou falar contigo de homem pra
homem.
Você pode imaginar como me senti quando escutei esse velho malandro
abominável falando com outro com as mesmas palavras de lisonja que usava
comigo. Acho que, se eu fosse capaz, o teria matado através do barril.
Entretanto, ele continuou, sem imaginar que eu o ouvia.
– Aqui a coisa é para os cavalheiros de fortuna. Eles vivem no duro, no risco
de ser pendurados pelo pescoço, mas comem e bebem feito galos de rinha e,
quando o serviço é feito, ora, são centenas de libras no bolso, em vez de
trocados. Agora, a maioria gasta tudo no rum e na boa vida, e voltam para o mar
com a roupa do corpo. Mas essa não é a rota que eu tracei. Eu guardo tudo, um
pouquinho aqui, um pouquinho acolá, e nunca muito num só lugar, porque sou
desconfiado. Estou com cinquenta, e anota aí: assim que voltar desta viagem, me
aquieto como um cavalheiro honesto. Também já era hora, dirá você. Ah, mas eu
vivi bem enquanto isso, nunca me privei de nada que o coração desejasse,
dormindo no macio e comendo bem todos os dias, exceto quando estou no mar.
E como eu comecei? No convés, como você!
– Bem – disse o outro –, mas agora o resto do dinheiro se foi, não? Você não
vai ter coragem de mostrar a cara em Bristol depois dessa.
– Ora, onde você acha que ele está? – perguntou Silver, irônico.
– Em Bristol, nos bancos e lugares assim – respondeu seu companheiro.
– Estava – disse o cozinheiro – quando levantamos âncora. Mas agora ele tá
todo com a minha velha. E o Luneta foi vendido, com licença, clientela e tudo o
mais, e minha velha garota já partiu para me encontrar. Eu podia te dizer onde,
porque confio em você, mas isso ia provocar inveja nos parceiros.
– E você confia na sua garota? – perguntou o outro.
– Os cavalheiros de fortuna – retrucou o cozinheiro – geralmente confiam
pouco uns nos outros, e com razão, pode crer nisso. Mas eu tenho as manhas,
tenho sim. Quando um parceiro tenta passar outro para trás, ele não fica por
muito tempo no mesmo mundo que o velho John. Havia aqueles que tinham
medo do Pew e aqueles que tinham medo do Flint, mas o próprio Flint tinha
medo de mim. Ele tinha medo, e era corajoso. Era a tripulação mais durona
sobre as águas, a de Flint. O próprio diabo teria medo de ir ao mar com eles.
Agora, bem, lhe digo uma coisa, não sou de me gabar, e você mesmo viu como
faço amigos fácil, mas, quando eu era contramestre, os velhos bucaneiros do
Flint não eram cordeirinhos. Ah, mas você pode ficar tranquilo no navio do
velho John.
– Bem, vou lhe dizer – respondeu o rapaz –, eu não gostava nem um pouco
do trabalho até ter essa conversa com você, John, mas pode contar comigo agora.
– Você é um rapaz valente, e esperto também – respondeu Silver,
cumprimentando-o com tanta força que todo o barril balançou. – E nunca pus os
olhos em uma melhor figura de proa para um cavalheiro de fortuna.
A essa altura eu comecei a entender o significado de suas gírias. Por
“cavalheiro de fortuna” eles queriam dizer simplesmente, nem mais nem menos,
um pirata comum, e a pequena cena que escutei era o ato final da corrupção de
um dos marujos honestos – talvez o último a bordo. Nesse ponto eu logo tive
certeza, pois Silver deu um assovio e um terceiro homem veio se juntar ao
grupo.
– O Dick é de fé – disse Silver.
– Ah, eu sei que o Dick é de fé – retrucou a voz do timoneiro, Israel Hands.
– Ele não é trouxa, o Dick. – Estava mascando tabaco e cuspiu, então continuou:
– Mas olha só, Churrasqueiro, queria saber uma coisa: por quanto tempo vamos
ficar parados aqui feito uma bendita balsa? Eu já não aguento mais o capitão
Smollett, ele me humilhou por tempo demais, com mil trovões! Quero entrar
naquela cabine, quero sim. Quero os picles e o vinho deles, e tudo o mais.
– Israel – disse Silver –, sua cabeça não vale muita coisa, nunca valeu. Mas
você sabe escutar, isso eu reconheço, até porque suas orelhas são bem grandes.
Agora, vou lhe dizer uma coisa: dorme na frente, trabalha duro, fala macio e fica
sóbrio, até que eu dê a ordem, pode crer nisso, meu filho.
– Bem, eu não disse que não iria, disse? – grunhiu o timoneiro. – O que eu
quero saber é: quando? Isso é o que eu quero saber.
– Quando! Com mil demônios! – bradou Silver. – Bem, então, se quer saber,
eu lhe digo quando. Vai ser no último momento que eu conseguir chegar. Temos
um piloto de primeira, o capitão Smollett, levando o navio pra gente. Temos o
fidalgo e o doutor com o mapa e tal… eu não sei onde está, certo? Vocês
tampouco, pelo que dizem. Bem, então, digo que esse fidalgo e o doutor podem
encontrar o tesouro e tudo o mais, e nos ajudar a colocá-lo a bordo, com mil
demônios. E então vamos ver. Se eu pudesse confiar em vocês, seus filhos dum
holandês desonesto, eu faria o capitão Smollett nos levar até metade do caminho
de volta antes de atacar.
– Ora, mas aqui todo mundo é marinheiro, acho eu – disse o rapaz Dick.
– Somos todos da peonada, você quer dizer – disparou Silver. – Sabemos
manter o curso, mas quem é que calcula? É aí que vocês cavalheiros se enganam
todos. Por mim, eu deixo o capitão Smollett nos pôr no rumo dos alísios, para
que não se tenha nenhum bendito erro de cálculo e só reste uma colher de água
por dia. Mas eu conheço gente como vocês. Vão acabar com eles na ilha, assim
que o butim estiver a bordo, e será uma pena. Mas vocês nunca ficam satisfeitos
até estarem bêbados. Raios que me partam, tenho nojo de velejar com gente
como vocês!
– Calma lá, Long John – pediu Israel. – Quem iria te contrariar?
– Ora, quantos navios de carga vocês pensam que eu já vi serem abordados?
E quantos garotos afobados secando ao sol nas Docas de Execução? – disse
Silver. – E tudo por causa dessa mesma pressa e pressa e pressa. Estão me
ouvindo? Eu já vi uma coisa ou outra no mar, vi sim. Quem puder ajustar a rota e
apontar a direção do vento vai andar de carruagem, vai sim. Mas não vocês!
Conheço vocês. Vão encher a boca de rum amanhã e serão enforcados.
– Todo mundo sabe que você é um pouco padre, John, mas tinha outros que
sabiam manobrar tão bem quanto você – disse Israel. – Eles gostavam de um
pouco de diversão, gostavam sim. Não eram tão altivos e frios, nem um pouco,
mas gostavam da vida boa, como bons companheiros, todos eles.
– E daí? – disse Silver. – Bem, onde eles estão agora? Pew era desses, e
morreu como mendigo. Flint também, e morreu de tanto rum em Savannah. Ah,
aquela tripulação era um doce, era sim! Só que… onde estão eles?
– Mas – perguntou Dick –, quando cairmos em cima do pessoal, o que
faremos com eles, afinal?
– Esse é dos meus! – bradou o cozinheiro, admirado. – Isso é o que chamo
de negócios. Bem, o que você acha? Nós os deixamos para trás, náufragos numa
ilha? Era o que England faria. Ou os cortamos feito filé de porco? É o que teriam
feito Flint ou Billy Bones.
– Billy era o cara para isso – disse Israel. – “Morto não morde”, ele dizia.
Bem, agora ele próprio está morto, sabe do assunto melhor que ninguém. Se
alguma vez uma mão pesada aportou, foi o Billy.
– Pode crer – disse Silver. – Mão pesada e sempre alerta. Mas veja bem: eu
sou facinho, sou praticamente um cavalheiro, dirá você, mas desta vez é sério.
Dever é dever, parceiros. Dou meu voto: morte. Quando eu estiver no
Parlamento, andando na minha carruagem, não quero nenhum sabichão
aparecendo no meu gabinete sem ser convidado, feito o diabo nas orações.
Esperar, é o que eu digo; mas, quando a hora chegar, ora, botem pra quebrar.

– John – disse o timoneiro –, você é o cara!


– Diz isso, Israel, quando chegar a hora – falou Silver. – Só peço uma coisa:
o Trelawney é meu. Vou arrancar aquela cabeça de bezerro de seu corpo com
estas mãos, Dick! – E então acrescentou, interrompendo-se: – Só dá um pulo ali,
feito um bom rapaz, e me traz uma maçã, para eu molhar essa boca seca de
cachimbo.
Você pode imaginar o terror que senti! Eu teria pulado fora e saído correndo,
se tivesse encontrado forças, mas meus membros e meu coração me faltaram.
Escutei Dick começar a se levantar e então alguém o deteve e Hand disse:
– Ah, deixa disso! Deixa essa bobagem pra lá, John. Vamos tomar uma dose
de rum.
– Dick – disse Silver –, confio em você. Olha só, ainda tenho uma medida no
barril. Aqui está a chave, pega um caneco e traz para cá.
Aterrorizado como eu estava, não pude evitar de pensar comigo mesmo que
devia ter sido assim que o sr. Arrow conseguia a aguardente que o destruíra.
Dick se foi, e durante sua ausência Israel falou direto no ouvido do
cozinheiro. Só consegui pegar uma palavra ou duas, e mesmo assim juntei
algumas informações importantes, pois, somada a outros pedaços com o mesmo
sentido, esta frase inteira foi audível:
– Mais nenhum outro homem deles vai se juntar a nós.
Então ainda havia homens leais a bordo.
Quando Dick voltou, cada um do trio pegou o caneco e bebeu um após o
outro – um “pela sorte”, outro “para o velho Flint”, e o próprio Silver dizendo,
de um jeito meio cantado: “essa é para nós, para bons ventos, cheios de pudim e
muitos proventos”.
Foi então que uma espécie de brilho recaiu sobre mim no barril e, olhando
para cima, descobri que a lua havia aparecido, iluminando a vela de mezena e
brilhando branca contra o bojo da vela de estai. Quase ao mesmo tempo, a voz
do vigia gritou:
– Terra à vista!
12

Conselho de guerra

H ouve uma grande correria pelo convés. Pude ouvir as pessoas saírem
tropeçando da cabine e da proa e, saindo num instante de dentro do meu
barril, mergulhei para trás da vela do traquete, dei a volta pela popa e apareci no
meio do convés a tempo de me juntar a Hunter e ao dr. Livesey na corrida até a
amurada da proa.
Todos os marujos já haviam se reunido ali. Um cinturão de névoa se ergueu
quase simultaneamente à aparição da lua. Lá longe, a sudoeste de onde
estávamos, vimos dois morros baixos, alguns quilômetros distantes um do outro,
e erguendo-se por trás de um deles um terceiro morro, mais alto, cujo pico ainda
estava coberto de névoa. Os três pareciam cônicos e pontudos.
Muito do que vi pareceu quase um sonho, pois eu ainda não havia me
recuperado do medo terrível que sentira um ou dois minutos antes. E então
escutei a voz do capitão Smollett distribuindo ordens. O Hispaniola orçou dois
pontos na direção do vento e agora velejava numa direção que deixaria a ilha
toda a leste.
– E agora, homens – disse o capitão, quando a manobra foi terminada –,
algum de vocês já viu essa ilha à nossa frente?
– Eu já, senhor – disse Silver. – Eu já fiz aguada lá, num navio mercante em
que fui cozinheiro.
– O ancoradouro fica ao sul, detrás de um recife, suponho? – perguntou o
capitão.
– Sim, senhor. A Ilha Esqueleto, é como chamam. Já foi um importante covil
de piratas, e um marujo que tínhamos a bordo sabia o nome de tudo ali. Aquele
morro ao norte eles chamavam de Morro do Traquete; são três morros alinhados
na direção sul: Traquete, Principal e Mezena, senhor. Mas o principal, aquele
grandão, escondido pela nuvem, eles geralmente chamavam de Luneta, porque
um vigia era deixado ali quando estavam no ancoradouro para limpeza, e era ali
que faziam a limpa nos navios, senhor, com seu perdão.
– Tenho um mapa aqui – disse o capitão Smollett. – Veja se é esse o lugar.
Os olhos de Long John brilharam quando pegou a carta. Porém, pelo aspecto
novo do papel, eu sabia que ele estava condenado à decepção. Aquele não era o
mapa que encontramos no baú de Billy Bones, mas uma cópia fiel, completa em
tudo – nomes, altitudes, sondagens –, exceto pelas cruzes vermelhas e as
anotações. Por mais forte que devesse ter sido sua irritação, Silver teve presença
de espírito para disfarçar.
– Sim, senhor – disse ele. – Esse é o lugar, com certeza, e muito bem
desenhado. Quem teria feito isso, me pergunto? Os piratas eram ignorantes
demais, imagino. Sim, aqui está: “Ancoradouro do capitão Kidd”32. Era bem
assim que meu colega chamava. Há uma correnteza forte ao longo da costa sul,
que então sobe para norte ao longo da costa oeste. O senhor estava certo – disse
ele – em orçar ao vento e pôr a ilha a sotavento. Ao menos, se sua intenção era
entrar para carenar33, e não há local melhor para isso do que nessas águas.
– Obrigado, marujo – disse o capitão Smollett. – Mais tarde, pedirei ao
senhor que nos dê uma ajuda. Pode ir agora.
Fiquei surpreso com a frieza com que John expôs seu conhecimento sobre a
ilha, e admito que fiquei meio assustado quando o vi se aproximando de mim.
Ele não sabia, tenho certeza, que eu havia escutado sua reunião de dentro do
barril de maçãs; ainda assim, a essa altura eu havia tomado um horror tal de sua
crueldade, fingimento e força, que mal consegui esconder minha aversão quando
ele colocou a mão sobre meu ombro.
– Ah – disse ele –, lugarzinho ótimo, essa ilha. Ótimo para um rapaz
desembarcar. Você pode tomar banhos, subir em árvores, caçar cabritos, pode
sim. E dá pra subir nos morros feito um cabrito também. Ora, faz eu me sentir
jovem outra vez. Já estava esquecendo até da minha perna de pau, estava sim.
Ser jovem e ter dez dedos é uma coisa agradável, pode apostar. Quando quiser
sair para explorar um pouco, é só pedir pro velho John, que ele faz uma merenda
para você levar.
E batendo no meu ombro do modo mais amigável possível, ele se afastou
mancando e foi para baixo.
O capitão Smollett, o fidalgo e o dr. Livesey estavam conversando juntos no
tombadilho e, apesar de eu estar ansioso para lhes contar minha história, não me
atrevi a interrompê-los abertamente. Enquanto ainda quebrava a cabeça para
encontrar uma desculpa plausível, o dr. Livesey me chamou para perto de si. Ele
havia deixado seu cachimbo lá embaixo e, sendo escravo do tabaco, queria que
eu fosse buscá-lo. Mas assim que fiquei perto o bastante para falar sem que me
escutassem, disse na mesma hora:
– Doutor, me escute. Desça com o capitão e o fidalgo até a cabine, e então
encontre uma desculpa para me chamar. Trago notícias horríveis. O doutor
mudou um pouco seu semblante, mas no momento seguinte se controlou.
– Obrigado, Jim, isso era tudo o que eu precisava saber – disse ele, de modo
um tanto exagerado, como se tivesse me feito uma pergunta.
E com isso deu meia-volta e juntou-se aos outros dois. Eles conversaram um
pouco e, embora nenhum tenha se sobressaltado ou levantado a voz, nem mesmo
cochichado, ficou claro que o dr. Livesey havia repassado meu pedido, pois a
próxima coisa que escutei foi o capitão dando uma ordem para Job Anderson, e
o apito chamou todos os marujos ao convés.
– Meus rapazes – disse o capitão Smollett –, tenho algo para lhes dizer. Essa
terra que avistamos é o lugar para onde estávamos indo. O sr. Trelawney, sendo
um cavalheiro muito generoso, como todos sabemos, acaba de trocar uma
palavrinha comigo, e eu pude lhe dizer que cada homem a bordo, acima e abaixo
do convés, cumpriu seu dever como nunca pedi melhor. Motivo pelo qual ele, o
doutor e eu vamos descer até a cabine e beber à vossa saúde e boa sorte, e os
senhores serão servidos de grogue para beber à nossa saúde e boa sorte. Eu vos
digo o que acho disso: acho que é uma beleza. E se pensam como eu penso,
darão vivas ao cavalheiro que o merece.
Seguiu-se um coro de vivas – uma resposta natural, mas que soou tão sincera
e calorosa que, confesso, eu mal podia acreditar que aqueles mesmos homens
planejassem nos matar.
– Mais um viva para o capitão Smollett – bradou Long John, quando o
primeiro se encerrou. E esse também foi dado com animação.
Com isso os três cavalheiros desceram e, não muito depois, veio a
mensagem de que Jim Hawkins era requisitado na cabine.
Encontrei os três todos sentados ao redor da mesa, tendo em frente uma
garrafa de vinho espanhol, algumas passas de uva, e o doutor fumando com sua
peruca no colo, o que, eu já sabia, era um sinal de que ele estava agitado. A
janela de popa estava aberta, pois era uma noite quente, e se podia ver a lua
brilhando na esteira do navio.
– Agora, Hawkins – disse o fidalgo –, você tem algo a dizer. Pode falar.
Fiz como solicitado e, do modo mais sucinto que pude, contei todos os
detalhes da conversa de Silver. Ninguém me interrompeu até que eu tivesse
terminado, tampouco nenhum dos três se moveu, mas mantiveram os olhos sobre
meu rosto do começo ao fim.
– Jim – disse o dr. Livesey –, sente-se. E fizeram com que eu me sentasse à
mesa junto deles, serviram-me um copo de vinho, encheram minhas mãos com
passas, e todos os três, um atrás do outro, e cada um fazendo uma mesura,
brindou à minha boa saúde, em seu reconhecimento por minha sorte e coragem.
– Agora, capitão – disse o fidalgo –, o senhor estava certo e eu estava errado.
Reconheço que fui um jumento e aguardo suas ordens.
– O senhor não foi mais jumento do que eu – retrucou o capitão. – Nunca
tinha ouvido de uma tripulação que tentasse um motim sem antes dar sinais que
pudessem ser percebidos por um homem precavido e com olho para malfeitos.
Mas essa tripulação – acrescentou – me passou para trás.
– Capitão – disse o doutor –, com sua permissão, foi o Silver. É um homem
excepcional.
– Ele ficará excepcionalmente bem numa forca, senhor – retrucou o capitão.
– Mas isso é conversa e não leva a nada. Eu vejo três ou quatro pontos e, com a
permissão do sr. Trelawney, os enumerarei.
– O senhor é o capitão. Cabe ao senhor falar – disse o sr. Trelawney,
magnânimo.
– O primeiro ponto – começou o sr. Smollett – é que precisamos continuar,
porque não podemos voltar. Se eu ordenar meia-volta, vão se rebelar na mesma
hora. O segundo ponto: temos algum tempo ainda… ao menos, até que o tesouro
seja encontrado. O terceiro ponto: há marujos leais. Agora, senhor, isso vai
estourar cedo ou tarde, e o que proponho é agarrar o tempo pelos cabelos, como
se diz, e atacá-los num belo dia quando menos esperarem. Podemos contar,
suponho, com seus próprios criados, sr. Trelawney?
– Como eu próprio – declarou o fidalgo.
– Três – contou o capitão –, conosco são sete, contando o Hawkins aqui.
Agora, e quanto aos marujos honestos?
– Provavelmente os homens de Trelawney – disse o doutor –, aqueles que
ele mesmo escolheu, antes que deixasse a incumbência para Silver.
– Não – retrucou o fidalgo. – Hands era um dos meus.
– Eu mesmo teria confiado em Hands – acrescentou o capitão.
– E pensar que são todos ingleses! – soltou o fidalgo. – Senhor, se
dependesse de mim, explodia-se o navio.
– Bem, cavalheiros – disse o capitão –, o melhor que posso dizer não é
muito. Precisamos manter a situação, se concordarem, e ficarmos atentos. É
difícil, eu sei. Seria mais agradável partir para a briga. Mas não há outro jeito,
até sabermos quem são nossos homens. Aguardemos o vento soprar, é o que
acho.
– O Jim aqui – disse o doutor – pode nos ajudar mais do que qualquer um.
Os homens ficam à vontade perto dele, e Jim é um rapaz atento.
– Hawkins, eu coloco imensa fé em você – acrescentou o fidalgo.
Eu comecei a ficar bem desesperado, pois me senti completamente
desamparado; no entanto, por uma estranha série de circunstâncias, foi de fato
graças a mim que a segurança veio. Enquanto isso, por mais que falássemos,
havia somente sete, de vinte e seis, nos quais sabíamos poder confiar, e desses
sete um era um menino, de modo que os adultos no nosso lado eram seis contra
dezenove.
Parte III
MINHA AVENTURA EM TERRA
13

Como minha aventura em terra começou

A aparência da ilha quando subi ao convés na manhã seguinte havia


mudado totalmente. Apesar de a brisa ter cessado por completo,
percorremos um bom pedaço do caminho durante a noite e agora estávamos em
águas paradas cerca de oitocentos metros a sudeste da costa leste. Florestas
acinzentadas cobriam grande parte da superfície. A cor uniforme era quebrada
por faixas de areia nas partes baixas, e por muitas árvores altas da família dos
pinheiros, que sobrepujavam as outras – algumas solitárias, algumas em capões,
mas a cor geral era idêntica e triste. Os morros se elevavam acima da vegetação
em pináculos de pedra nua. Todos tinham formas estranhas, e o Luneta, que era
por uns cem metros o mais alto da ilha, devia ser o mais estranho em sua
configuração, erguendo-se verticalmente por quase todo lado, e então de súbito
reto no topo, feito um pedestal para uma estátua.
O Hispaniola deslizava com os embornais ao sabor das ondas. As polias
rangiam, o leme batia de um lado ao outro, e todo o navio estalava, rangia e
pulava feito uma oficina. Tive que me agarrar com força ao cabo de patarral34, e
o mundo girou vertiginosamente diante de meus olhos, pois, embora eu fosse um
bom marinheiro quando estávamos em movimento, essa calmaria somada a ficar
rolando feito uma garrafa era algo que eu nunca aprendera a aguentar sem ficar
enjoado, ainda mais de manhã, de estômago vazio.
Talvez fosse isso – talvez fosse a aparência da ilha, com suas florestas
cinzentas e melancólicas, penhas rochosas selvagens, e a ressaca que podíamos
tanto ver como escutar espumando e trovejando contra a praia íngreme. O sol
brilhava forte e quente e as aves litorâneas pescavam e gritavam ao nosso redor,
de modo que pareceria que qualquer um ficaria contente em ir para a terra após
estar tanto tempo no mar; apesar disso, fiquei com o coração na boca, como se
diz. Daquela primeira visão em diante, odiei a Ilha do Tesouro só de pensar nela.
Tínhamos uma manhã de trabalho duro à nossa frente, pois não havia sinal
de vento algum, e os barcos precisaram ser baixados e tripulados, e o navio,
rebocado por cinco ou seis quilômetros ao redor do pontal da ilha, então para
dentro da passagem estreita até o abrigo atrás da Ilha Esqueleto. Eu me
voluntariei para um dos barcos, no qual, claro, eu não tinha nada para fazer. O
calor era escaldante, e os homens resmungavam ferozes com o trabalho.
Anderson estava no comando do meu barco e, em vez de manter a tripulação na
linha, resmungava mais alto do que os demais.
– Bem – disse ele, xingando –, não vai ser pra sempre.
Eu achei que isso era um péssimo sinal. Pois, até aquele dia, os homens
haviam trabalhado com vontade e vigor, mas a mera visão da ilha já havia
relaxado as cordas da disciplina.
Durante todo o trajeto, Long John se manteve junto do timoneiro e conduziu
o navio. Ele conhecia a passagem como a palma de sua mão e, ainda que o
homem com a sonda encontrasse sempre águas mais fundas do que se mostrava
no mapa, John jamais hesitava.
– Tem uma correnteza forte na maré vazante – disse ele – e essa passagem
aqui foi cavada com uma enxada, por assim dizer.
Fomos até onde havia uma âncora no mapa, a cerca de quinhentos metros de
cada ilha, com a ilha maior de um lado e a Ilha Esqueleto no outro. O leito era de
areia branca. O mergulho da âncora fez levantar nuvens de pássaros que rodaram
e gorjearam sobre as matas, mas em menos de um minuto eles já haviam baixado
de novo, e tudo ficou quieto outra vez.
O lugar era inteiramente protegido por terra e rodeado de matas, as árvores
descendo até a marca da maré alta, as praias em sua maioria planas, e o topo dos
morros erguendo-se a distância ao nosso redor como uma espécie de anfiteatro,
um aqui, outro acolá. Dois riozinhos, ou talvez dois pântanos, vinham dar em
algo que se poderia chamar de lagoa, e o matagal que circundava essa parte da
costa tinha uma espécie de brilho venenoso. Do navio, não podíamos ver nada da
casa ou da paliçada, pois elas estavam bem escondidas entre as árvores. Se não
fosse pela existência do mapa no camarote, nós bem poderíamos ser os primeiros
a ter ancorado ali desde que a ilha se ergueu dos mares.
Não havia um sopro de ar, nenhum som que não fosse da ressaca quebrando
contra as pedras do lado de fora, a uns oitocentos metros de onde estávamos, ao
longo das praias. Um cheiro peculiar de água parada pairava sobre o
ancoradouro – o cheiro de folhas molhadas e troncos de árvores apodrecidos. Eu
percebi o doutor cheirando e cheirando, como alguém que experimenta um ovo
podre.
– Não sei quanto a tesouro – disse ele –, mas aposto minha peruca que tem
febre aqui.
Se a conduta dos homens vinha sendo alarmante nos barcos, ela se tornou
realmente ameaçadora quando eles voltaram a bordo. Eles rondavam o convés
resmungando juntos em rodinhas. A menor ordem era recebida com um olhar
torto e obedecida com desleixo e contrariedade. Mesmo os marujos honestos
deviam ter pegado aquela infecção, pois não havia um homem a bordo que
corrigisse os modos do outro. Estava claro que um motim pairava sobre nós feito
uma nuvem carregada.
E não fomos só nós da cabine que percebemos o perigo. Long John
trabalhava duro indo de grupo em grupo, esgotando-se em bons conselhos, e
homem algum poderia ter dado melhor exemplo. Ele se sobrepujava em cortesias
e civilidade, era todo sorrisos com cada um. Se uma ordem era dada, John estava
a postos com sua muleta no mesmo instante, com o mais alegre “sim, sim,
senhor!” do mundo e, quando não havia nada para fazer, ele soltava uma canção
atrás da outra, como a disfarçar a insatisfação dos demais.
De todas as características sombrias daquela tarde sombria, essa ansiedade
óbvia da parte de Long John parecia ser a pior.
Fizemos um conselho na cabine.
– Senhor – disse o capitão –, se eu arriscar dar outra ordem, o navio inteiro
cairá sobre nossas cabeças. Veja bem, senhor, é como as coisas estão. Me dão
uma resposta torta, não é? Bem, se eu responder, me passam na faca no mesmo
instante. E se eu não disser nada, Silver verá que há algo por trás disso e o jogo
acabou. Então, só temos um homem em quem confiar.
– E quem seria? – perguntou o fidalgo.
– Silver, senhor – respondeu o capitão. – Ele está tão ansioso quanto nós
para aliviar o clima. Isso é uma indisposição, ele logo falará com os homens e
acabará com isso se tiver a chance, e o que eu estou propondo é dar-lhe a chance.
Vamos liberar os homens para uma tarde em terra. Se todos forem, ora, nós
defenderemos o navio. Se nenhum for, bem, então mantemos a cabine e Deus
defenderá os justos. Se alguns forem, marque minhas palavras, senhor, Silver os
trará de volta a bordo mansos como cordeiros.
Assim ficou decidido. Pistolas carregadas foram entregues a todos os
homens de confiança. Hunter, Joyce e Redruth foram chamados e receberam as
notícias com menos surpresa e mais empolgação do que esperávamos, então o
capitão saiu para o convés e se dirigiu à tripulação.
– Meus rapazes – disse ele –, nós tivemos um dia quente, e estamos todos
cansados e sem paciência. Um turno em terra não fará mal a ninguém. Os barcos
ainda estão na água, vocês podem sair em excursão, e tantos quantos quiserem
podem passar a tarde em terra. Eu dispararei um canhão meia hora antes do pôr-
do-sol.
Imagino que aqueles bocós devam ter pensado que tropeçariam em tesouros
assim que chegassem em terra, pois todos deixaram de birra num instante e
soltaram vivas que ecoaram muito além dos morros, fazendo os pássaros outra
vez saírem voando e grasnando ao redor do ancoradouro.

O capitão era esperto demais para ficar no caminho. Ele saiu das vistas num
instante, deixando Silver a cargo de organizar a equipe, e imagino que foi melhor
assim. Tivesse ele ficado no convés, não poderia mais fingir que não entendia a
situação. Estava clara como o dia. Silver era o capitão, e uma tripulação das mais
rebeldes era o que ele tinha. Os marujos honestos – e eu logo veria a prova de
que havia destes a bordo – deviam ser uns sujeitos bem tapados. Ou, talvez,
suponho que a verdade fosse esta: que todos os marujos estavam insatisfeitos por
exemplo das lideranças – apenas alguns mais, outros menos. E uns poucos,
sendo bons sujeitos naquele meio, não podiam nem ser recrutados nem
conduzidos para além disso. Uma coisa é ser indolente e omisso, outra bem
diferente é tomar um navio e matar uma penca de gente inocente.
Por fim, contudo, o grupo foi organizado. Seis camaradas ficariam a bordo, e
os treze restantes, incluindo Silver, começaram a embarcar.
Foi então que me veio à mente a primeira das ideias doidas que tanto
contribuíram para salvar nossas vidas. Se seis homens seriam deixados por
Silver, estava claro que nosso grupo não poderia tomar o navio e lutar por ele. E
uma vez que apenas seis foram deixados, estava igualmente claro que a turma da
cabine não tinha nenhuma necessidade atual da minha ajuda. Na hora me
ocorreu ir à praia. Num segundo, deslizei pela amurada, me encolhi na vela do
escaler mais próximo, e quase no mesmo instante ele partiu.
Ninguém me percebeu, apenas o remador de trás, dizendo:
– É você, Jim? Fique com a cabeça abaixada.
Mas Silver, do outro barco, olhou com atenção e chamou para saber se era
eu. E naquele momento comecei a me arrepender do que tinha feito.
A tripulação acelerou rumo à praia, mas o escaler onde eu estava, tendo
alguma vantagem, e sendo ao mesmo tempo o mais leve e melhor manejado,
disparou à frente de seu consorte, batendo a proa contra as árvores da margem, e
eu me agarrei num galho e me balancei para fora, pulando para dentro do arbusto
mais próximo, enquanto Silver e os demais ainda estavam uns cem metros atrás.
– Jim, Jim! – eu o ouvi gritando.
Mas pode apostar que não lhe dei atenção. Pulando, me agachando e abrindo
caminho, eu corri sempre reto, até não conseguir mais.
14

O primeiro golpe

F iquei tão feliz por ter deixado Long John para trás que comecei a ficar à
vontade e olhar com algum interesse para aquela estranha terra onde
estava.
Atravessei um mangue cheio de salgueiros, juncos e estranhas e exóticas
árvores pantanosas, então cheguei às margens de um campo aberto de terra
arenosa e ondulante, com mais de um quilômetro, pontuado por alguns pinheiros
e um grande número de árvores contorcidas, não muito diferentes em tamanho
do carvalho, mas de folhas pálidas como as do salgueiro. No lado mais distante
do descampado estava um dos morros, com duas rochas íngremes e rochosas,
brilhando vívidas sob o sol.
Eu sentia pela primeira vez o prazer da exploração. A ilha era inabitada, eu
deixara meus colegas de navio para trás, e nada vivia à minha frente senão
bichos e aves mansos. Andei por entre as árvores. Aqui e ali floresciam plantas
que me eram desconhecidas. Aqui e ali eu via cobras, e uma delas levantou a
cabeça da beira de uma pedra e sibilou para mim fazendo um barulho parecido
com o de um pião girando. Pouco sabia eu que ela era uma inimiga mortal e que
aquele barulho era o famoso chocalho.
Então cheguei a um grande bosque daquelas árvores que são como o
carvalho – mais tarde soube que se chamavam azinheiras –, que cresciam baixas
ao longo da areia feito espinheiros, os ramos torcidos de um modo curioso e as
folhas compactas, formando um túnel. O bosque se alongava descendo do topo
de uma das dunas, espalhando-se e crescendo no caminho, até alcançar a
margem de um brejo largo cheio de juncos, pelo qual o mais próximo dos
riachos abria caminho até o ancoradouro. O brejo fumegava sob o sol forte, e o
contorno do Morro da Luneta tremulava na cerração.
De repente começou uma espécie de agitação entre os juncos. Um pato
selvagem levantou voo com um “quá”, outro foi atrás, e logo por toda a
superfície do brejo uma grande nuvem de aves ergueu-se gritando e circulando
no ar. Na hora julguei que alguns de meus colegas de bordo devia estar se
aproximando das margens do brejo. E não me enganara, pois logo escutei os
sons baixos e bem distantes de uma voz humana, a qual, conforme segui
escutando, foi ficando mais alta e próxima.
Isso me deixou com muito medo. Engatinhei para me esconder detrás do
azinheiro mais próximo e ali me agachei, escutando tão quieto quanto um
camundongo.
Outra voz respondeu, e então a primeira, que agora eu reconhecia ser a de
Silver, retomou a conversa e continuou por muito tempo sem parar, sendo apenas
uma vez ou outra interrompida pelo outro. Pelo barulho, eles deviam estar
conversando com franqueza, quase ferozes, mas não consegui entender nenhuma
palavra.
Enfim os falantes pareciam ter feito uma pausa e talvez tivessem se sentado,
pois não apenas pararam de se aproximar, mas os próprios pássaros começaram a
ficar mais quietos e se acalmaram de novo em seus lugares no pântano.
E agora eu começava a sentir que estava negligenciando meus negócios,
pois, uma vez que viera de modo tão precipitado à praia com aqueles
desesperados, o mínimo que poderia fazer era escutá-los em sua assembleia.
Meu plano e dever óbvio era o de chegar o mais perto que eu pudesse, sob a
tocaia favorável das árvores baixas.
Eu podia dizer com bastante precisão de qual direção vinham as vozes, não
apenas pelo som delas, mas pelo comportamento dos poucos pássaros que ainda
voavam alarmados por sobre a cabeça dos intrusos.
Engatinhando, avancei devagar mas constante na direção deles, até que
enfim, erguendo a cabeça por uma abertura entre as folhas, eu podia ver com
clareza uma pequena clareira verde ao lado do brejo, bem fechada por árvores,
onde Long John Silver e outro membro da tripulação estavam conversando de
frente um para o outro.
O sol batia direto sobre eles. Silver havia jogado o chapéu no chão a seu
lado, e sua cara grande, suave e loira, toda ela rosada de calor, erguia-se para o
outro homem numa espécie de apelo.
– Parceiro – dizia ele –, é que eu acho que você é ouro fino, ouro fino, pode
crer! Se eu não tivesse me afeiçoado a você, acha que estaria aqui lhe avisando?
Está tudo arranjado, não há o que você possa fazer. É para salvar seu pescoço
que eu tô aqui falando, e se um dos mais cascas-grossas souberem, o que vai ser
de mim, Tom… agora, diz, o que vai ser de mim?
– Silver – disse o outro homem, e observei que não somente tinha o rosto
vermelho, como falava rouco feito um corvo, e sua voz também vibrava como
uma corda de violino retesada –, Silver, você é velho e você é honesto, ou tem
fama de ser. E tem dinheiro também, o que muitos marinheiros pobres não têm.
E é corajoso, salvo engano. E vai me dizer que se deixou levar por essa corja de
labregos? Não você! E com Deus por testemunha, antes eu perdesse uma mão do
que faltar em meu dever…
E então de súbito ele foi interrompido por um barulho. Eu havia encontrado
um dos marujos honestos – e então, naquele mesmo momento, chegavam
notícias de outro. Bem longe lá pelo brejo ergueu-se, de repente, um som como
um grito de raiva, e outro na sequência, e então um grito horrível e longo. As
pedras do Morro da Luneta o ecoaram várias vezes, e todo o bando de pássaros
do brejo se ergueu de novo, escurecendo os céus, com um zumbido simultâneo.
Aquele grito de agonia ainda ressoava em meu cérebro quando o silêncio
reestabeleceu seu império, e apenas o farfalhar dos pássaros retornando e a
batida das ondas distantes perturbaram o torpor da tarde.
Com o barulho, Tom havia pulado feito cavalo esporeado, mas Silver sequer
piscou. Ele ficou onde estava, levemente apoiado em sua muleta, observando seu
companheiro como uma cobra pronta para o bote.
– John – disse o marinheiro, estendendo-lhe a mão.
– Tira as mãos! – gritou Silver, saltando para trás, assim me pareceu, com a
velocidade e confiança de um ginasta treinado.
– Tiro se quiser, John Silver – disse o outro. – É uma consciência sombria
que faz você ter medo de mim. Mas, em nome dos céus, me diz, o que foi
aquilo?
– Aquilo? – retrucou Silver, sorrindo dissimulado, mas cauteloso como
nunca, seus olhos meros pontinhos em seu rosto grande, mas brilhando como
contas de vidro. – Aquilo? Ah, acredito que era Alan.
Nesse ponto, Tom se revelou um herói.
– Alan! – ele gritou. – Então que sua alma descanse como a de um
verdadeiro marujo! E quanto a você, John Silver, por muito tempo tem sido meu
parceiro, mas parceiros não somos mais. Se eu morrer feito um cão, morro em
meu dever. Você matou Alan, não foi? Mate-me também, se conseguir. Mas eu o
desafio.
E com isso, esse bravo camarada deu as costas para o cozinheiro e saiu
caminhando em direção à praia. Mas não estava destinado a ir longe. Com um
grito, John apanhou um tronco de árvore, tirou a muleta debaixo de sua axila e
arremessou aquele projétil improvisado cortando o ar. Atingiu o pobre Tom em
cheio, e com violência impressionante, bem entre os ombros no meio das costas.
Suas mãos se ergueram, ele soltou uma espécie de suspiro, e caiu.
Se estava muito ou pouco ferido, ninguém poderia avaliar. A bem dizer,
julgando-se pelo som, suas costas foram quebradas na hora. Mas não lhe foi
dado tempo para se recuperar. Silver, ágil feito macaco mesmo sem uma perna
ou a muleta, estava em cima dele no instante seguinte e já duas vezes enterrara
sua faca naquele corpo indefeso. De meu ponto da tocaia, eu conseguia escutá-lo
ofegando enquanto dava os golpes.
Não sei ao certo o que é desmaiar, mas sei que no instante seguinte o mundo
todo se afastou de mim num rodamoinho nebuloso, Silver e os pássaros e o topo
alto do Morro da Luneta girando e girando e de cabeça para baixo em frente aos
meus olhos, e toda sorte de sinos soando e vozes distantes gritando em meus
ouvidos.
Quando voltei a mim, o monstro havia se recomposto, sua muleta debaixo do
braço, seu chapéu sobre a cabeça. À sua frente, Tom jazia imóvel sobre a relva,
mas o assassino não estava nem aí para ele e limpava sua faca suja de sangue
sobre um tufo de grama. Tudo o mais estava inalterado, o sol ainda brilhava
inclemente sobre o brejo fumegante e o alto pináculo da montanha, e eu mal
podia persuadir a mim mesmo que ocorrera mesmo um assassinato, que uma
vida humana fora cruelmente encurtada pouco antes, frente a meus olhos.
Mas agora John colocava a mão no bolso, tirando dali um apito, e soprou em
diversos silvos modulados que ressoaram no ar quente. Eu não sabia, é claro, o
significado do sinal, mas na hora despertou meus temores. Mais homens viriam.
Eu poderia ser descoberto. Eles já haviam matado dois dos homens honestos;
depois de Tom e Alan, não poderia ser eu o próximo?
No mesmo instante comecei a me desembaraçar dos galhos e rastejei de
volta, com tanto silêncio e velocidade quanto pude empenhar, até a porção mais
aberta do bosque. Enquanto o fazia, podia ouvir salves sendo trocados entre o
velho bucaneiro e seus comparsas, e esse som de perigo me deu asas. Assim que
fiquei livre dos arbustos, corri como nunca antes, mal me importando com a
direção de minha fuga, contanto que me afastasse dos assassinos. E, à medida
que eu corria, o medo crescia mais e mais em mim até que se transformou numa
espécie de frenesi.
De fato, poderia haver alguém mais perdido do que eu? Quando o canhão
disparasse, como eu ousaria descer até os botes entre aqueles demônios, ainda
fumegando de seus crimes? O primeiro deles que me visse não torceria meu
pescoço feito o de uma narceja? Minha ausência não seria ela própria uma
evidência de meu temor e, portanto, de meu conhecimento fatal? Estava tudo
acabado, pensei. Adeus ao Hispaniola, adeus ao fidalgo, ao doutor, ao capitão!
Não me restava nada além de morte por inanição ou pelas mãos dos amotinados.
Ainda assim, como disse, eu continuava correndo e, sem perceber, havia
chegado próximo ao pé da pequena colina com dois picos e me metido numa
parte da ilha onde as azinheiras cresciam mais separadas e se pareciam mais com
as árvores de uma floresta em seu porte e dimensões. Entremeados a essas
árvores havia alguns pinheiros escassos, uns com quinze metros de altura, outros
perto de vinte. O ar também cheirava mais fresco que lá embaixo ao lado do
brejo.
E ali um novo susto me fez ficar imóvel e com o coração na boca.
15

O homem da ilha

N a lateral do morro, que era íngreme e pedregosa, um punhado de cascalho


foi deslocado e caiu tamborilando e quicando por entre as árvores. Meus
olhos se viraram naquela direção por instinto, e vi uma figura pular com grande
agilidade para trás do tronco de um pinheiro. O que era, se urso ou homem ou
macaco, não tinha como dizer. Parecia escuro e desgrenhado, mais do que isso
eu não sabia. Mas o terror dessa nova aparição me pôs de pé.
Agora eu estava, pelo que parecia, bloqueado por ambos os lados. Atrás de
mim os assassinos, à frente essa coisa indistinta de tocaia. E de imediato
comecei a preferir os perigos que conhecia àqueles que desconhecia. O próprio
Silver me pareceu menos terrível em contraste com essa criatura da mata. Dei
meia-volta, olhando aguçado por sobre o ombro, e comecei a refazer meus
passos na direção dos escaleres.
No mesmo instante a figura reapareceu e, num círculo largo, começou a
cortar meu caminho. Eu estava cansado, sem dúvida; mas sabia que, mesmo que
estivesse tão descansado quanto ao acordar, seria em vão tentar competir em
velocidade com tal adversário. De tronco em tronco a criatura saltitava feito um
veado, correndo em duas pernas como um homem, mas diferente de qualquer
homem que eu já tivesse visto, quase se curvando ao meio enquanto corria.
Ainda assim era um homem, eu não tinha mais dúvidas quanto a isso.
Comecei a me lembrar do que havia aprendido sobre canibais e estava a
ponto de gritar por socorro. Mas o mero fato de que ele era um homem, por mais
selvagem que fosse, havia de algum modo me reassegurado, e meu medo de
Silver começou a reviver na mesma medida. Eu fiquei parado, portanto, e olhei
em volta atrás de algum meio de fuga. Enquanto pensava, a lembrança da pistola
voltou à minha mente. Assim que me lembrei de que não estava indefeso, a
coragem brilhou outra vez em meu coração. Fechei a cara resoluto contra o
homem da ilha e caminhei decidido na direção dele.
A essas alturas ele estava escondido atrás de outro tronco de árvore, mas
devia estar me observando de perto, pois assim que comecei a me mover na sua
direção reapareceu e deu um passo para se encontrar comigo. Então hesitou,
recuou, avançou de novo e, por fim, para minha surpresa e confusão, atirou-se de
joelhos e juntou firmemente as mãos em súplica.
E com essa eu parei mais uma vez.
– Quem é você? – perguntei.
– Ben Gunn – respondeu ele, e sua voz soou rouca e esquisita, feito uma
trava enferrujada. – Sou o pobre Ben Gunn, sou sim, e não conversei com um
cristão por todos esses três anos.
Eu podia ver agora que ele era um homem branco como eu e que suas
feições eram até mesmo agradáveis. Sua pele, onde quer que estivesse exposta,
era queimada pelo sol; mesmo seus lábios eram pretos, e seus olhos claros eram
um pouco assustadores em um rosto tão escuro. De todos os mendigos que eu já
vira ou imaginara, ele ganhava em mendicância. Vestia-se com farrapos de velas
de navios e antigas roupas de marujos, e essa extraordinária peça de retalhos era
toda mantida junta por um sistema feito dos mais variados e incongruentes
fechos, botões de latão, pedaços de gravetos e laços de couro alcatroado. Na
cintura, usava um velho cinturão de couro com fivela de latão, que era a única
coisa sólida em toda aquela vestimenta.
– Três anos! – exclamei. – Você é um náufrago?
– Pior, parceiro – disse ele. – Fui abandonado.
Eu já havia escutado a respeito disso e sabia ser um tipo horrível de punição
bastante comum entre bucaneiros, no qual o acusado era desembarcado com um
pouco de pólvora e balas e deixado para trás em alguma ilha distante e desolada.
– Abandonado há três anos – continuou ele – e vivi dos bodes desde então, e
frutinhas e ostras. Onde um homem está, um homem se vira, acho eu. Mas,
parceiro, meu coração anseia por uma comida cristã. Não teria por acaso um
pedaço de queijo aí contigo, teria? Não? Bem, muitas foram as noites em que
sonhei com queijo… tostado, geralmente… e acordei de novo, mas aqui estou.
– Se algum dia eu conseguir subir a bordo outra vez – disse eu –, você terá
queijo aos montes.
Durante todo esse tempo ele estava apalpando o forro de minha jaqueta,
afagando minhas mãos e olhando para minhas botas, e de modo geral, nos
intervalos de suas falas, demonstrando um prazer infantil pela presença de uma
criatura semelhante. Mas com minhas últimas palavras ele se animou numa
espécie de surpresa manhosa.
– Se algum dia subir a bordo outra vez, você diz? – repetiu. – Mas então,
quem está lhe impedindo?
– Você que não é, isso eu sei – foi minha resposta.
– Pode crer – bradou ele. – Agora, olha só… como você se chama, parceiro?
– Jim.
– Jim, Jim – ele falou, aparentemente muito feliz. – Bem, então, Jim, minha
vida tem sido tão dura que você ficaria constrangido de escutar. Por exemplo,
olha só, você pensaria que tive uma mãe muito devota, só de olhar para mim? –
perguntou ele. – Ora, não, não em particular – respondi.

– Ah, bem – disse ele –, mas eu tive… notavelmente devota. E eu era um


menino educado, devoto, e podia recitar meu catecismo assim tão rápido que
você não conseguiria separar uma palavra da outra. E foi dar nisso aqui, Jim, e
tudo começou jogando bolinha de gude nas benditas lápides do cemitério! Foi
assim que começou, mas foi além disso, e então minha mãe me alertou e previu
tudo, previu sim, aquela santa mulher! Mas foi a Providência Divina quem me
pôs aqui. Pensei nisso tudo aqui nessa ilha solitária, e voltei à devoção. Você não
vai mais me ver bebendo tanto rum, só um dedalzinho para dar sorte, claro, na
primeira oportunidade que eu tiver. Estou determinado a ser bom e vejo o
caminho para isso. E, Jim – olhando ao redor e baixando a voz para um sussurro
–, eu sou rico.
Agora eu tinha certeza de que o pobre coitado tinha ficado doido em sua
solidão, e suponho que minha cara deixou escapar isso, pois ele repetiu
veementemente a afirmação:
– Rico! Rico, eu digo! E digo mais: você está feito na vida, Jim. Ah, Jim,
você vai agradecer ao seu santo, vai sim, que foi o primeiro que me encontrou!
Com isso, de súbito baixou uma sombra sobre seu rosto, e ele apertou meu
pulso com força e ergueu um dedo ameaçador em frente a meus olhos.
– Jim, olha só, me diz a verdade: aquele não é o navio de Flint?
Nisso eu tive uma inspiração feliz. Comecei a acreditar que havia encontrado
um aliado e lhe respondi na mesma hora.
– Não é o navio de Flint, e Flint está morto; mas lhe digo a verdade, já que
me perguntou: há alguns homens de Flint a bordo, para azar dos demais.
– Não seria um homem.… com… uma perna só? – ele ofegou.
– Silver?
– Ah, Silver! – disse ele. – Esse era seu nome.
– Ele é o cozinheiro, e o líder também.
Ele ainda estava me segurando pelo pulso, e deu uma torcida e tanto.
– Se você foi enviado por Long John – disse ele –, eu estou frito e sei disso.
Mas para onde você acha que estava indo?
Eu me decidi na mesma hora e, como resposta, contei-lhe toda a história de
nossa viagem e da situação na qual nos encontrávamos. Ele me escutou com
muito interesse e, quando terminei, deu um tapinha na minha cabeça.
– Você é um bom garoto, Jim – disse ele. – E está num nó de se amarrar
porco, né não? Bem, você acaba de depositar sua confiança em Ben Gunn… e
Ben Gunn é o cara. Acha que seria possível, olha só, que esse fidalgo aí se
mostrasse uma mente liberal no caso de receber uma ajuda… estando ele num nó
de amarrar porco, como você mesmo disse?
Eu lhe falei que o fidalgo era o mais liberal dos homens.
– Sim, mas olha só – retrucou Ben Gunn –, não digo de me botar pra
trabalhar de porteiro, vestindo uma libré, coisa e tal; essa não é a minha praia,
Jim. O que quero dizer é, ele estaria disposto a me dar algo em torno de,
digamos, mil libras do dinheiro que na prática já seria meu de direito?
– Tenho certeza de que daria – eu disse. – Foi combinado que todos teriam
sua parte.
– E uma passagem para casa? – acrescentou, com um olhar muito astuto.
– Ora – eu disse –, o fidalgo é um cavalheiro. Além disso, se nos livrarmos
dos outros, vamos querer que nos ajude a levar o navio de volta para casa.
– Ah, que assim seja – disse ele, parecendo muito aliviado. – Agora, lhe digo
uma coisa: lhe contarei isto e nada mais. Eu estava no navio de Flint quando ele
enterrou o tesouro. Ele e outros seis… seis marujos fortões. Eles ficaram em
terra por cerca de uma semana, e nós aguardamos lá no velho Morsa. Um belo
dia subiu o sinal, e lá veio Flint sozinho num barquinho, com a cabeça enrolada
numa manta azul. O sol estava se levantando, e acima da água ele parecia pálido
feito a morte. Mas lá estava ele, olha só, e os outros seis todos mortos… mortos
e enterrados. Como ele fez isso, nenhum homem a bordo conseguiu imaginar.
Foi guerra, assassinato e morte súbita, no mínimo… ele contra seis. Billy Bones
era o imediato; Long John era o contramestre, e eles lhe perguntaram onde o
tesouro estava. “Ah”, disse ele, “vocês podem desembarcar, se quiserem, e ficar
por lá”, ele disse, “mas quanto ao navio, ele tem que zarpar, com mil trovões!”
Foi isso o que ele disse. Bem – ele continuou –, eu estava num outro navio três
anos atrás e nós avistamos esta ilha. “Rapazes”, eu disse, “aqui é onde está o
tesouro de Flint, vamos à terra procurá-lo.” O capitão não gostou disso, mas
meus companheiros estavam todos decididos e desembarcaram. Por doze dias
eles procuraram, e todo dia eles me diziam as piores coisas, até que numa manhã
todos os marujos voltaram a bordo. “Quanto a você, Benjamin Gunn”, disseram
eles, “aqui está um mosquete”, disseram eles, “e uma pá e uma picareta. Você
pode ficar aqui e encontrar o dinheiro de Flint por conta própria”, eles disseram.
Bem, Jim, por três anos eu tenho estado aqui, e não dei nem uma mordida numa
refeição cristã daquele dia em diante. Mas agora, olha só, olha para mim. Eu
pareço ser um marinheiro qualquer? Não, dirá você. Tampouco sou, acho eu.

E com isso ele piscou e me beliscou com força.


– Diz isso ao seu fidalgo, Jim – ele continuou –, “nem ele era tampouco”,
essas são as palavras. Por três anos ele foi o dono dessa ilha, dia e noite, sol e
chuva, e às vezes talvez até pensasse numa oração (dirá você), e às vezes talvez
pensasse em sua velha mãe, se ainda estivesse viva (você dirá), mas a maior
parte do tempo de Gunn (é isso que você dirá), a maior parte do seu tempo foi
utilizada em outra questão. E então você lhe dará um beliscão, como eu faço
assim.
E ele me beliscou de novo, como se trocasse um segredo comigo.
– Então – continuou –, então você vai se levantar e dizer isto: Gunn é um
homem bom (você dirá), e ele põe muito mais confiança… muito mais
confiança, escuta só… num cavalheiro de berço do que nesses cavalheiros de
fortuna, tendo ele próprio sido um.
– Certo – eu disse –, não entendi uma palavra do que você falou. Mas tanto
faz, pois como que vou voltar a bordo?
– Ah – disse ele –, esse é o problema, pode crer. Bem, tem o meu barquinho,
que fiz com minhas duas mãos. Eu o guardo embaixo da pedra branca. Na pior
das hipóteses, podemos tentar quando anoitecer. Aê! – Ele se interrompeu. – O
que foi isso?
Pois naquele momento, embora o sol ainda tivesse uma hora ou duas a
percorrer, todos os ecos da ilha despertaram e rugiram com o estrondo de um
canhão.
– Eles começaram a lutar! – gritei. – Me segue.
E comecei a correr na direção do ancoradouro, esquecendo meus medos,
enquanto ao meu lado o homem abandonado pulava com leveza e facilidade em
suas peles de bode.
– Esquerda, esquerda – disse ele. – Fica pela sua mão esquerda, parceiro
Jim! Debaixo das árvores! Foi lá que matei meu primeiro bode. Eles não descem
mais aqui agora, ficam todos empoleirados nos morros por medo de Benjamin
Gunn. Ah, e ali está o cetimério. – Acho que ele quis dizer cemitério. – Vê os
montinhos? Eu vinha aqui e rezava às vezes, quando achava que um domingo
estava por perto. Não é bem uma capela, mas parecia mais solene que uma; e
então, você dirá, Ben Gunn andava mal das pernas… sem capelão, nem nada
como uma Bíblia ou uma bandeira, dirá você.
E ele continuava falando enquanto eu corria, nem esperando nem recebendo
nenhuma resposta.
O tiro de canhão foi seguido, após um intervalo considerável, por uma
saraivada de armas pequenas.
Outra pausa, e então, nem quatrocentos metros à minha frente, eu vi a
bandeira do Reino Unido agitando-se no ar acima da mata.
Parte IV
A PALIÇADA
16

O doutor continua a narrativa: como o navio foi


abandonado

E ra perto da uma e meia da tarde – três badaladas, na gíria do mar35 –


quando os dois botes foram à terra saindo do Hispaniola. O capitão, o
fidalgo e eu conversávamos na cabine. Tivesse havido um sopro de vento,
teríamos caído sobre os seis amotinados que foram deixados a bordo conosco,
soltado nossos cabos e partido para o mar. Mas o vento não veio e, para
completar nosso desamparo, Hunter trouxe a notícia de que Jim Hawkins havia
se esgueirado para um escaler e partido para terra com os demais.
Nunca nos ocorreu duvidar de Jim Hawkins, mas ficamos preocupados com
sua segurança. Com o humor em que estavam os homens, parecia pouco
provável que víssemos o garoto outra vez. Corremos pelo convés. O betume
borbulhava nas fendas do casco e o fedor horrível do lugar me deixou enjoado;
se alguma vez um homem sentiu o cheiro de febre e disenteria, foi naquele
ancoradouro abominável. Os seis patifes estavam sentados resmungando debaixo
de uma vela no castelo de proa; na praia podíamos ver os escaleres amarrados e
um homem sentado em cada um, perto de onde o rio desembocava. Um deles
estava assoviando “Lillibullero”36.
Esperar era cansativo, e ficou decidido que Hunter e eu iríamos à praia com
o bote em busca de informações.
Os escaleres haviam seguido para a direita, mas Hunter e eu remamos reto,
na direção da paliçada indicada no mapa. Os dois que foram deixados guardando
seus escaleres pareceram se assustar com a nossa chegada. O “Lillibullero”
parou de ser cantado, e pude ver a dupla discutindo o que deveriam fazer.
Tivessem eles ido avisar Silver, tudo poderia ter sido diferente. Mas eles tinham
suas ordens, suponho, e decidiram ficar quietinhos onde estavam, voltando a
assoviar o “Lillibullero”.
Havia na costa uma pequena curva, e manobrei de modo a colocá-la entre
nós. Assim, mesmo antes de desembarcarmos já tínhamos perdido os escaleres
de vista. Saltei para fora e fui quase correndo, com um grande lenço de seda
debaixo do chapéu para me refrescar e um par de pistolas carregadas, por
segurança.
Não tinha andado nem cem metros quando alcancei a paliçada.
Ela era assim: uma fonte de água cristalina brotava quase no topo de uma
colina. Então, sobre a colina e cercando a fonte, haviam erguido uma cabana
robusta, capaz de abrigar duas vintenas de gente em caso de aperto, e com
aberturas para mosquetes de ambos os lados. Ao redor disso haviam limpado um
espaço amplo, e então a coisa era completada por uma paliçada com dois metros
de altura, sem porta ou abertura, forte demais para ser derrubada com pouco
tempo ou esforço, e aberta demais para ocultar quem a cercasse. Quem estivesse
na cabana os veria por qualquer lado, podendo ficar quietos no abrigo e atirar
nos demais feito perdizes. Seria preciso apenas uma boa vigília e comida. Pois,
salvo fossem pegos de surpresa, o lugar poderia ser defendido contra um
regimento.
O que chamou minha atenção, em particular, foi a fonte. Pois, embora
tivéssemos uma posição bem boa na cabine do Hispaniola, com muitas armas e
munições, coisas para comer e excelentes vinhos, havia uma coisa que
deixáramos passar – não tínhamos água. Eu estava pensando nisso quando veio
ressoando sobre a ilha o grito de um homem na hora da morte. Eu não era
estranho a mortes violentas – servi sua alteza real o duque de Cumberland, e eu
mesmo estive em Fontenoy37 –, mas senti meu coração disparar. “Jim Hawkins
se foi”, foi meu primeiro pensamento.
Uma coisa é ter sido um velho soldado, outra é ter sido médico. Não há
tempo a perder em nosso trabalho. Então eu me decidi no mesmo instante, e sem
perder tempo voltei para a praia e saltei a bordo do bote.
Por sorte Hunter sabia remar bem. Nós voamos sobre a água, e logo o bote
encostava e eu estava a bordo da escuna.
Eu os encontrei abatidos, como era de esperar. O fidalgo estava sentado
branco feito um lençol – pensando no perigo para o qual nos havia levado, a boa
alma! E um dos seis marujos de proa não estava muito melhor.
– Ali está um homem – disse o capitão Smollett, apontando com o queixo na
direção dele – que é novo nesse trabalho. Ele quase desmaiou, doutor, quando
ouviu o grito. Mais um pouco e o homem se junta a nós.
Contei meu plano ao capitão, e entre nós acertamos os detalhes de como pô-
lo em prática.
Colocamos o velho Redruth no corredor entre a cabine e o castelo de proa,
com três ou quatro mosquetes carregados e um colchão para se proteger. Hunter
trouxe o bote para baixo da janela de popa, e Joyce e eu nos pusemos a carregá-
lo com latas de pólvora, mosquetes, sacos de biscoitos, barris de carne de porco,
uma pipa de conhaque e meu inestimável baú de remédios.
Enquanto isso, o fidalgo e o capitão ficaram no convés, e esse último
chamou o timoneiro, que era o principal homem a bordo.
– Sr. Hands – disse ele –, aqui estamos dois de nós com um par de pistolas
cada. Se algum de vocês seis fizer qualquer movimento, será um homem morto.
Eles foram pegos um bocado de surpresa e, após uma pequena reunião, todos
desceram pela escotilha de proa, sem dúvida pensando em nos pegar pelas
costas. Mas quando viram Redruth os aguardando no corredor estreito, voltaram
na mesma hora e uma cabeça despontou novamente no convés.
– Para baixo, cão! – gritou o capitão.
A cabeça baixou outra vez, e não ouvimos mais falar, por algum tempo,
desses seis marinheiros muito covardes.
A essa hora, amontoando as coisas do jeito que dava, tínhamos o bote
carregado com tanto quanto ousamos. Joyce e eu saímos pela janela de popa e
partimos para a praia tão rápido quanto nossos remos podiam nos levar.
Essa segunda viagem claramente deixou os vigias ao longo da costa em
alerta. O “Lillibullero” foi interrompido outra vez e, pouco antes de os
perdermos de vista ao dobrar o pequeno pontal, um deles saiu correndo e
desapareceu. Quase pensei em mudar meus planos e destruir seus escaleres, mas
temi que Silver e os demais estivessem por perto, e tudo poderia ser perdido por
tentar demais.
Logo alcançamos a terra no mesmo lugar de antes e nos pusemos a abastecer
a cabana. Todos fizemos a primeira jornada, bem carregados, e jogamos nossas
provisões por sobre a paliçada. Então, deixando Joyce para guardá-las – um
homem só, certo, mas com meia dúzia de mosquetes –, Hunter e eu voltamos
para o bote e pegamos mais carga. Assim fizemos, sem pausa para respirar, até
que toda a carga estivesse entregue, quando os dois criados assumiram suas
posições na cabana, e eu, com todas as minhas forças, remei de volta para o
Hispaniola.
Que tenhamos nos arriscado a uma segunda leva no barco pareceu mais
ousado do que realmente foi. Eles tinham a vantagem numérica, claro, mas nós
tínhamos a vantagem das armas. Nenhum dos homens em terra tinha um
mosquete e estávamos confiantes de que seríamos capazes de dar conta de meia
dúzia deles, no mínimo, antes que pudessem chegar ao alcance de um tiro de
pistola.
O fidalgo estava nos esperando na janela de popa e todo o desânimo já o
havia abandonado. Ele segurou a amarra e a puxou rápido, e nos pusemos a
carregar o bote por nossa vida. Porco, pólvora e biscoito eram a carga, com
apenas um mosquete e um alfanje para cada dupla, o fidalgo e eu e Redruth e o
capitão. O resto das armas e da pólvora atiramos por sobre a amurada, para
quatro metros e meio de água, de tal modo que podíamos ver o metal luzindo
muito abaixo de nós sob o sol, no leito limpo e arenoso.
A essas alturas a maré começou a baixar e o navio a girar ao redor de sua
âncora. Podíamos escutar vozes chamando fracas na direção dos dois escaleres e,
embora estivéssemos tranquilos por Joyce e Hunter, bem longe a leste, isso nos
alertou que era hora de partir.
Redruth recuou de sua posição no corredor e saltou para dentro do bote, que
já então havíamos trazido para perto do costado do navio, para ficar mais à mão
do capitão Smollett.
– Agora, homens – chamou ele –, estão me ouvindo?
Não houve resposta do castelo de proa.
– É com você, Abraham Gray, é com você que estou falando.
Ainda nenhuma resposta.
– Gray – continuou o sr. Smollett, falando um pouco mais alto. – Eu estou
deixando este navio, e lhe ordeno que siga seu capitão. Sei que no fundo você é
um bom homem, e ouso dizer que nenhum de vocês é tão mau quanto fazem
parecer. Tenho meu relógio aqui na mão e lhes dou trinta segundos para se
juntarem a mim.
Houve uma pausa.
– Venham, meus bons camaradas – continuou o capitão –, não se demorem.
Estou arriscando minha vida e a vida destes bons cavalheiros a cada segundo.
Houve uma briga súbita, um som de pancadas, e Abraham Gray emergiu
com um corte de faca no rosto, correndo até o capitão feito cão chamado pelo
apito.
– Estou com o senhor, capitão – disse ele.
E no instante seguinte ele e o capitão desceram ao bote conosco e nos
afastamos rápido.
Estávamos fora do navio, mas ainda não em terra na nossa paliçada.
17

O doutor continua a narrativa: a última viagem do bote

E ssa quinta viagem foi bem diferente de todas as outras. Em primeiro lugar,
aquele potinho disfarçado de bote em que estávamos fora severamente
sobrecarregado. Cinco homens adultos, e três deles – Trelawney, Redruth e o
capitão – com mais de um metro e oitenta, já eram mais do que o bote conseguia
levar. Acrescente a isso pólvora, carne de porco e sacos de biscoitos. A água já
estava batendo na borda. Várias vezes tiramos um pouco, e meus calções e as
pontas de meu casaco estavam todos molhados antes que tivéssemos percorrido
cem metros.
O capitão nos mandou equilibrar o bote, e redistribuímos o peso nele de
modo mais uniforme. Mesmo assim, tínhamos medo de respirar.
Em segundo lugar, a maré estava vazando – uma corrente forte repuxava
pelo leito na direção oeste, depois para o sul e levando para o mar direto por
entre os canais por onde entráramos pela manhã. Mesmo as marolas eram uma
ameaça para nossa embarcação sobrecarregada, mas o pior era estarmos sendo
puxados para fora de nosso caminho original e para longe do local apropriado
para atracar. Se deixássemos a correnteza tomar conta, terminaríamos na praia ao
lado dos escaleres, onde os piratas poderiam aparecer a qualquer momento.
– Não consigo manter o bote na direção da paliçada, senhor – falei ao
capitão. Eu estava ao leme, enquanto ele e Redruth, mais descansados, se
ocupavam dos remos. – A maré fica nos empurrando. O senhor consegue remar
mais forte?
– Não sem encher o bote de água – ele disse. – O senhor precisa aguentar, se
puder. Aguente até ver que está vencendo.
Tentei e descobri na prática que a maré continuava nos empurrando para
leste, até que apontei o bote para leste, ou em ângulos retos na direção em que
pretendíamos ir.
– Não vamos chegar na praia nunca nesse ritmo – eu disse.
– É a única direção em que podemos seguir, senhor, então precisamos segui-
la – retrucou o capitão. – Temos que nos manter contra a correnteza. Veja bem,
senhor, se nos deixarmos levar a sotavento do nosso ponto de desembarque, é
difícil dizer onde vamos dar em terra, além da possibilidade de sermos
abordados pelos escaleres; já na direção em que vamos, a correnteza deve
enfraquecer, e então poderemos voltar pela margem.

– A correnteza já diminuiu, senhor – disse o tal Gray, que estava sentado na


proa. – O senhor já pode ir com mais calma.
– Obrigado, homem – disse eu, como se nada tivesse ocorrido, pois
havíamos silenciosamente concordado em tratá-lo como um dos nossos.
De súbito, o capitão falou de novo, e me ocorreu que sua voz estava um
pouco alterada.
– O canhão! – disse ele.
– Eu pensei nisso – falei, pois tinha certeza de que ele estava imaginando um
bombardeio ao forte. – Eles nunca conseguirão levar o canhão para a praia e, se
conseguirem, nunca serão capazes de conduzi-lo pela mata.
– Olhe para trás, doutor – retrucou o capitão.
Tínhamos nos esquecido por completo do calibre nove, e lá, para nosso
horror, estavam os quatro patifes ao redor dele, tirando-lhe a jaqueta, como
chamavam a robusta cobertura de lona sob a qual o canhão navegava. Não
apenas isso, mas me veio à mente no mesmo instante que as balas esféricas e a
pólvora para o canhão haviam sido deixadas para trás, e um golpe de machado
colocaria tudo em posse dos malvados a bordo.
– Israel era o canhoneiro de Flint – disse Gray, rouco.
Assumindo o risco, apontamos o bote direto para nosso ponto de
desembarque. A essa hora já havíamos nos afastado bastante do curso da
correnteza, de modo que, mesmo com nosso ritmo de remada mais brando, pude
nos manter rumo ao nosso objetivo. Mas o problema era que, com a direção que
eu agora mantinha, viramos para o Hispaniola nosso costado em vez da popa e
oferecíamos um alvo do tamanho de uma porta de galpão.
Eu podia ouvir e ver aquele malandro cachaceiro do Israel Hands rolando
uma bala pelo convés.
– Quem é o melhor atirador? – perguntou o capitão.
– O sr. Trelawney, sem dúvida – eu disse.
– Sr. Trelawney, o senhor poderia por gentileza derrubar um daqueles
homens? Hands, se for possível.
Trelawney estava frio feito aço. Ele verificou a carga de sua arma.
– Agora – gritou o capitão –, cuidado com essa arma, senhor, ou irá encher o
bote de água. Todos a bordo fiquem prontos para equilibrar o bote quando ele
mirar.
O fidalgo ergueu sua arma, as remadas cessaram, nós nos inclinamos para o
outro lado para manter o equilíbrio, e tudo foi tão bem conduzido que não entrou
uma gota no bote.
A essas alturas, eles estavam com o canhão posicionado sobre a base
giratória, e Hands, que já estava na boca do canhão com a vareta, era por
consequência o mais exposto. Contudo, não tivemos sorte; assim que Trelawney
disparou, ele se abaixou, a bala zuniu acima dele, e quem caiu foi um dos outros
quatro.
O grito que ele deu foi repetido não apenas por seus companheiros a bordo,
mas por um grande número de vozes na costa, e olhando naquela direção eu vi
os outros piratas se atropelando ao saírem do meio das árvores e se amontoarem
em seus lugares nos barcos.
– Aí vêm os escaleres, senhor – disse eu.
– Vamos com tudo, então – gritou o capitão. – Não vamos nos preocupar
mais em encher o barco de água. Se não conseguirmos chegar à margem, está
acabado.
– Só um dos escaleres está sendo tripulado, senhor – acrescentei. – A
tripulação do outro provavelmente vai dar a volta por terra para cortar nosso
caminho.
– Eles vão ter que correr, senhor – retrucou o capitão. – São um bando de
bêbados, o senhor sabe. Não é com eles que me preocupo, é com o canhão
giratório. É como jogar boliche no carpete! Nem a criada da minha esposa
conseguiria errar. Diga-nos quando os vir mirando, fidalgo, que nós seguramos o
bote.
Enquanto isso, avançávamos num bom ritmo para um bote tão
sobrecarregado, e havíamos deixado pouca água entrar durante o processo.
Agora estávamos perto. Trinta ou quarenta remadas e chegaríamos à praia, pois a
maré já havia quase descoberto um estreito cinturão de areia debaixo das árvores
da costa. O escaler não era mais de se temer; o pequeno pontal nos ocultara de
seus olhos. A maré vazante, que tão cruelmente nos atrasara, agora compensava
ao atrasar nossos atacantes. A única fonte de perigo era o canhão.
– Se eu ousasse – disse o capitão –, parava e derrubava outro homem.
Mas estava claro que eles não deixariam nada atrasar seu disparo. Não
deram sequer uma olhada no comparsa tombado, ainda que não estivesse morto,
e eu podia vê-lo tentando rastejar para longe.
– Preparar! – gritou o fidalgo.
– Firmes! – gritou o capitão, rápido como um eco.
Ele e Redruth se abaixaram com um impulso tal que mandou a popa direto
para baixo da água. O estouro do canhão chegou no mesmo instante. Esse foi o
primeiro que Jim escutou, pois o som do tiro do fidalgo não chegou até ele. Por
onde a bala passou, nenhum de nós soube dizer, mas imagino que deve ter sido
por sobre nossas cabeças e que o vento que criou pode ter contribuído para nosso
desastre.
De qualquer modo, o bote afundou um metro na água, bem de leve, pela
popa, deixando o capitão e eu encarando um ao outro, de pé. Os outros três
mergulharam de cabeça e vieram à tona encharcados e borbulhando.
Até aí não houve grande dano. Nenhuma vida se perdeu e podíamos chegar à
margem em segurança. Mas ali no fundo ficaram todas as nossas provisões e,
para piorar a situação, só duas de cinco armas continuaram prestando. A minha
eu tirei do colo e ergui acima da cabeça, por algum instinto. Quanto ao capitão,
ele carregava a sua por sobre o ombro numa bandola38 e, como um homem
inteligente, com a pederneira para cima. As outras três afundaram junto com o
bote.
Para somar às nossas preocupações, ouvimos vozes já se acercando de nós
pela mata ao longo da costa, e corríamos não somente o risco de termos o
caminho cortado até a paliçada, em nosso estado debilitado, mas também a
dúvida se, caso Hunter e Joyce fossem atacados por meia dúzia, teriam o bom
senso e a conduta para se manterem firmes. Hunter aguentaria, isso nós
sabíamos. Joyce era um caso duvidoso – era agradável e cortês para ser valete e
escovar roupas, mas não totalmente apto a ser um homem de guerra.
Com tudo isso em nossa cabeça, chegamos à margem tão rápido quanto
possível, deixando para trás o pobre bote e uma boa parte de nossa pólvora e de
nossas provisões.
18

O doutor continua a narrativa: o primeiro dia de luta


chega ao fim

C orremos o melhor que podíamos pela faixa de árvores que agora nos
separava da paliçada, e a cada segundo as vozes dos bucaneiros soavam
mais próximas. Logo podíamos escutar seus passos enquanto corriam e o
quebrar de galhos enquanto cruzavam pelo mato fechado.
Comecei a perceber que certamente teríamos um confronto e olhei para meu
armamento.
– Capitão – eu disse –, Trelawney é tiro certo. Dê-lhe sua arma, a dele
próprio está inútil.
Eles trocaram as armas e Trelawney, silencioso e frio como vinha sendo
desde o começo da correria, parou por um instante para verificar se tudo estava
pronto para o serviço. Ao mesmo tempo, percebendo que Gray estava
desarmado, eu lhe dei meu alfanje. Nos fez bem vê-lo cuspir nas mãos, franzir as
sobrancelhas e fazer a lâmina cortar o ar. Estava claro em cada parte de seu
corpo que nosso novo aliado valia o sal que comia.
Quarenta passos adiante, chegamos à margem do bosque e vimos a paliçada
à nossa frente. Alcançamos o cercado pelo meio do lado sul e, quase ao mesmo
tempo, sete amotinados – o timoneiro Job Anderson à frente – apareceram
gritando a plenos pulmões no canto sudoeste.
Eles pararam, como se pegos de surpresa; e antes que se recuperassem, não
apenas o fidalgo e eu, mas Hunter e Joyce na cabana de madeira, tivemos tempo
de disparar. Os quatro disparos vieram numa saraivada um tanto dispersa, mas
deram conta do recado: um dos inimigos caiu de fato, e os demais, sem hesitar,
viraram e se lançaram para as árvores.
Após recarregar, descemos pelo lado de fora da paliçada para ver o inimigo
tombado. Estava mortinho da silva – atingido bem no coração.
Começamos a nos alegrar com nosso sucesso quando bem nessa hora uma
pistola disparou dos arbustos, uma bala passou zunindo por minha orelha, e o
pobre Tom Redruth cambaleou e caiu duro contra o chão. Tanto o fidalgo como
eu respondemos ao disparo, mas como não tínhamos nada no que mirar,
provavelmente só desperdiçamos pólvora. Então recarregamos e voltamos nossa
atenção para o pobre Tom.
O capitão e Gray já o estavam examinando, e só de olhar eu soube que
estava tudo acabado.
Creio que a agilidade de nossa salva de tiros dispersou os amotinados outra
vez, pois sem novos abusos fomos deixados em paz para erguer o pobre e velho
guarda-caça por sobre a paliçada e carregá-lo, grunhindo e sangrando, para
dentro da cabana de madeira.
Pobre camarada, não havia soltado uma palavra de surpresa, queixa, medo
ou mesmo consentimento desde o começo de nossos problemas até agora,
quando o pusemos deitado na cabana para morrer. Ele se mantivera feito um
troiano detrás de seu colchão no corredor do navio, cumprira cada ordem bem,
em silêncio e com fidelidade canina. Era o mais velho de nosso grupo por uma
vintena de anos, e agora seria ele, velho e soturno criado, sempre prestativo,
quem morreria.
O fidalgo caiu de joelhos ao seu lado e beijou-lhe a mão, chorando feito uma
criança.
– Estou partindo, doutor? – perguntou.
– Tom, meu caro – eu disse –, você vai para casa.
– Queria ter dado uma lambada neles primeiro – retrucou ele.
– Tom – disse o fidalgo –, você me perdoa, não?
– Mas não seria isso desrespeitoso da minha parte, fidalgo? – foi a resposta.
– Contudo, que assim seja, amém!
E após um tempinho de silêncio, falou que alguém deveria ler uma oração.
– É o costume, senhor – acrescentou, justificando-se. E não muito após isso,
sem outra palavra, faleceu.
Enquanto isso o capitão, o qual eu percebera estar maravilhosamente
estufado nos bolsos e no peito, foi retirando uma grande variedade de provisões
de sua pessoa – a bandeira britânica, uma Bíblia, um rolo de corda forte, caneta,
tinta, o diário de bordo e um quilo de tabaco. Ele havia encontrado um pinheiro
comprido dentro do cercado, jazendo sem galhos, e com a ajuda de Hunter o
posicionou num canto da cabana onde os troncos se cruzavam e formavam um
ângulo reto. Então, subindo no telhado, com as próprias mãos prendeu e
desfraldou a bandeira.
Isso pareceu aliviá-lo bastante. Ele voltou para a cabana e se pôs a contar os
mantimentos como se nada mais existisse. Mas se manteve de olho na passagem
de Tom e, quando tudo estava encerrado, aproximou-se com outra bandeira e
reverentemente cobriu o corpo com ela.

– Não se preocupe, senhor – disse ele, apertando a mão do fidalgo. – Está


tudo bem com ele, não há o que temer por aquele que foi baleado no dever de
seu capitão e de seu patrão. Pode não ser muito agradável, mas é um fato.
Então ele me puxou para um canto.
– Dr. Livesey – disse ele –, em quantas semanas o senhor e o fidalgo
esperam receber ajuda?
Eu disse-lhe que não era uma questão de semanas, mas de meses; que, se não
estivéssemos de volta em fins de agosto, Blandly seria enviado à nossa procura,
nem antes nem depois disso.
– O senhor pode fazer as contas – eu lhe disse.
– Ora, sim – retrucou o capitão, coçando a cabeça –, e tomando todos os
cuidados, senhor, e contando com a sorte, devo dizer que estamos bem
apertados.
– O que quer dizer? – perguntei.
– É uma pena, senhor, que tenhamos perdido aquela segunda leva. Foi isso o
que eu quis dizer – respondeu o capitão. – Quanto à pólvora e munições, dão
para o gasto. Mas os mantimentos são poucos, muito poucos… tão poucos, dr.
Livesey, que talvez estejamos melhor sem essa boca extra.
E ele apontou para o corpo debaixo da bandeira.
Nessa hora, com um rugido e um assovio, um tiro de canhão passou acima
do telhado da cabana e afundou bem além de nós na mata.
– O-ho! – disse o capitão. – Belo tiro! Vocês já estão com pólvora de menos,
meus rapazes.
Na segunda tentativa, a mira foi melhor e a bala caiu dentro da paliçada,
levantando uma nuvem de areia, mas não provocando nenhum outro dano.
– Capitão – disse o fidalgo –, a casa não fica visível do navio. Deve ser na
bandeira que eles estão mirando. Não seria mais sábio baixá-la?
– Baixar minha bandeira! – bradou o capitão. – Não, senhor, eu não!
E, assim que disse isso, acho que todos concordamos com ele. Pois não era
só uma questão de teimosia, marinharia ou bem-estar, mas de manter uma boa
postura e mostrar a nossos inimigos que desprezávamos suas canhonadas.
Eles continuaram disparando por toda a tarde. Uma atrás da outra, as balas
passavam por cima ou caíam perto ou levantavam areia dentro do cercado, mas
eles precisavam disparar tão alto que o tiro caía direto e se soterrava na areia
macia. Não havia nenhum ricochete com o qual se preocupar e, mesmo que uma
bala tenha entrado pelo telhado e passado pelo piso, logo nos acostumamos com
essa brincadeira e não lhe demos mais atenção que a uma partida de críquete.
– Há um lado bom nisso tudo – percebeu o capitão. – O bosque na nossa
frente provavelmente está limpo. A maré já deve ter recuado bastante e nossas
provisões devem ter ficado expostas. Quero voluntários para ir pegar o porco.
Gray e Hunter foram os primeiros a se oferecer. Bem armados, eles saltaram
para fora da paliçada, mas a missão se mostrou inútil. Os amotinados eram mais
ousados do que pensáramos ou punham mais confiança na artilharia de Israel,
pois quatro ou cinco deles estavam levando embora nossas provisões até um dos
escaleres que estava por perto e usando um remo para mantê-lo firme contra a
correnteza. Silver comandava do banco de popa, e cada um deles estava agora
munido de um mosquete vindo de algum paiol secreto.
O capitão sentou-se com seu diário, e eis aqui o começo do registro:
Na mesma hora, eu me perguntava sobre o destino do pobre Jim Hawkins.
Um grito do lado de fora.
– Alguém está nos chamando – disse Hunter, que estava de guarda.
– Doutor! Fidalgo! Capitão! Oiê, Hunter, é você aí? – vieram os gritos.
E eu corri para a porta a tempo de ver Jim Hawkins, são e salvo, aparecer
pulando por sobre a paliçada.
19

Jim Hawkins retoma a narrativa: a guarnição na


paliçada

A ssim que viu a bandeira, Ben Gunn parou, segurou meu braço e se
sentou.
– Ali estão seus amigos, com certeza – disse ele.
– Mais provável que sejam os amotinados – respondi.
– Sem essa! – falou ele. – Ora, num lugar como esse, onde não aparece
ninguém que não seja um cavalheiro de fortuna, Silver teria levantado a Jolly
Roger39, pode crer. Não, aqueles são seus amigos. Houve algum combate,
também, e creio que seus amigos levaram a melhor e agora estão em terra na
velha paliçada, que foi feita por Flint anos e anos atrás. Ah, ele tinha a cabeça no
lugar, o Flint! Com ele não tinha pra ninguém, exceto o rum. Ele não tinha medo
de ninguém, ele não; só do Silver… Silver tinha essa distinção.
– Bem – eu disse –, pode ser mesmo, e que seja; mais uma razão para eu
correr e me juntar a meus amigos.
– Nah, parceiro – retrucou Ben –, você não. Você é um bom garoto, salvo
engano; mas, verdade seja dita, é só um menino. Agora, Ben Gunn é esperto.
Nem rum me levaria lá para onde você está indo… não, nem o rum, até que você
encontre esses seus cavalheiros e tenha sua palavra de honra. E não se esqueça
de minhas palavras: “é uma coisa bonita de ver (você dirá), a confiança, uma
coisa bonita de ver”, e então belisca ele.
E me beliscou pela terceira vez com o mesmo ar de esperteza.
– E quando precisar de Ben Gunn, você sabe onde encontrá-lo, Jim. Bem
onde o achou hoje. E aquele que vier tem que ter uma coisa branca na mão e vir
sozinho. Ah! E você vai dizer isto: “Ben Gunn”, você vai dizer, “tem seus
motivos”.
– Bem, acho que entendi – eu disse. – Você tem algo a propor, e quer ver o
doutor e o fidalgo, e pode ser encontrado onde eu o encontrei. Isso é tudo?
– E quando, dirá você? – acrescentou ele. – Ora, entre o turno do meio-dia
até as três da tarde.
– Ótimo – eu disse. – E agora, posso ir?
– Não vai esquecer? – perguntou ele, ansioso. – Uma coisa boa de se ver, e
seus próprios motivos, dirá você. Seus próprios motivos, isso é o principal, de
homem para homem. Bem, então – ainda me segurando –, reconheço que você
precisa ir, Jim. E Jim, se você encontrar o Silver, não vai vender Ben Gunn? Não
vai se deixar levar, não é? Não, você diz. E se esses piratas acamparem na praia,
Jim, o que se pode dizer, senão que haverá muitas viúvas ao amanhecer?
Então ele foi interrompido por um estrondo alto e uma bala de canhão veio
cortando pelas árvores e se enterrou na areia, a poucos metros de onde
conversávamos. No instante seguinte, cada um de nós saiu correndo numa
direção diferente.
Estrondos chacoalharam a ilha por uma boa hora depois disso, e bolas
continuaram irrompendo pela mata. Eu fui de esconderijo em esconderijo, sendo
sempre perseguido, ou assim me pareceu, por esses projéteis terríveis. Mas perto
do fim do bombardeio, ainda que eu não ousasse me aventurar em direção à
paliçada, onde as bolas em geral caíam, comecei, de certo modo, a juntar
coragem de novo e, após um longo desvio para leste, me arrastei por baixo das
árvores da orla.
O sol havia acabado de se pôr e a brisa marinha soprava e rolava pela mata,
arrepiando a superfície cinzenta do ancoradouro. A maré também estava bem
baixa e grandes faixas de areia ficaram descobertas. O ar, depois do calor do dia,
me refrescava pelo casaco.
O Hispaniola continuava onde havia baixado âncora, mas, como esperado, lá
estava a Jolly Roger – a bandeira negra da pirataria – revoando no topo.
Enquanto eu olhava, veio outro clarão vermelho de lá, outro estrondo que
mandou ecos ribombando, e mais um tiro de canhão assoviou pelos ares. Foi o
último tiro da canhonada.
Eu me deitei por algum tempo observando o alvoroço que se sucedeu ao
ataque. Homens estavam demolindo algo com machados na praia perto da
paliçada; mais tarde descobri que era o pobre botezinho. Adiante, perto da boca
do rio, um grande fogaréu brilhava por sobre as árvores, e para além daquele
ponto e do navio um dos escaleres continuava indo e vindo, e os homens, que eu
havia conhecido tão sombrios, gritavam feito crianças. Mas havia um tom em
suas vozes que sugeria rum.
Enfim achei que já podia voltar na direção da paliçada. Eu estava bem
afastado, na parte arenosa que circundava o ancoradouro a leste e se ligava na
maré baixa à Ilha Esqueleto. Então, enquanto me punha de pé, vi a certa
distância, descendo pela faixa e se erguendo dentre os arbustos baixos, uma
pedra isolada, bem alta, e de uma cor branca peculiar. Me ocorreu que aquela
poderia ser a pedra branca que Ben Gunn tinha falado e que qualquer dia desses
um bote poderia ser necessário e eu deveria saber onde procurar por um.
Então me esgueirei por entre a mata até que cheguei à paliçada por trás, ou
pelo lado de dentro da ilha, e logo fui calorosamente recebido pela companhia
dos leais.
Contei minha história e comecei a olhar ao redor. A cabana de madeira era
feita de toras irregulares de pinheiros – teto, paredes e piso. Este último se
mantinha em vários lugares a trinta ou quarenta centímetros acima da superfície
da areia. Havia uma varanda na porta, e debaixo dessa varanda a pequena fonte
de água corria sobre um tipo meio estranho de leito artificial – nada menos que
um caldeirão de ferro de navio, com o fundo arrancado e afundado na areia “até
a amurada”, como diria o capitão.
Pouco fora deixado além da estrutura da casa, mas num canto havia uma laje
de pedra deitada para servir de lareira e um cesto de ferro velho e enferrujado
para conter o fogo.
O terreno nos arredores da colina e todo o interior da paliçada fora limpo de
árvores para construir a casa, e podíamos ver pelos tocos que um belo e
grandioso bosque fora destruído. A maior parte do solo fora lavado pela chuva
ou enterrado pelas dunas após a remoção das árvores; apenas onde o córrego
brotava do caldeirão, uma grossa camada de musgo, algumas samambaias e
pequenos arbustos rasteiros ainda verdejavam entre a areia. Bem perto da
paliçada – perto demais para defesa, disseram –, a mata ainda florescia alta e
densa, toda de pinheiros no lado da ilha, mas na direção do mar numa grande
mistura com azinheiros.
A brisa fresca do entardecer, da qual eu havia falado, soprou por cada fresta
daquela construção tosca e salpicou o piso com uma chuva contínua de areia
fina. Havia areia em nossos olhos, areia em nossos dentes, areia em nosso jantar
e areia dançando no fundo do caldeirão da fonte, feito mingau quando começa a
ferver. Nossa chaminé era um buraco quadrado no teto, e só uma parte da
fumaça encontrava a saída, enquanto o resto ficava rodando pela casa e nos
mantinha tossindo e lacrimejando.
Acrescente a isso que Gray, nosso novo homem, tinha o rosto amarrado em
bandagens devido a um corte que ganhara ao fugir dos amotinados; e o pobre
velho Tom Redruth, ainda insepulto, jazia estirado contra a parede, duro e rígido,
debaixo da bandeira.
Se nos fosse permitido ficar à toa, seríamos todos tomados pela melancolia,
mas o capitão Smollett não era desse tipo de homem. Todos foram chamados à
sua frente e ele nos dividiu em turnos de vigília. O doutor, Gray, e eu tomamos o
primeiro; o fidalgo, Hunter e Joyce, o segundo. Cansados como estávamos, dois
de nós foram mandados para buscar lenha para a fogueira, outros dois a cavar
uma cova para Redruth; o doutor foi nomeado cozinheiro, eu fui posto de
sentinela na porta, e o próprio capitão ia de um ao outro, nos animando e dando
uma mão onde quer que fosse preciso.

De tempos em tempos o doutor vinha até a porta para tomar um pouco de ar


e descansar os olhos, que estavam quase sendo defumados, e sempre que o fazia
trocava uma palavrinha comigo.
– Esse sujeito, o Smollett – ele disse uma vez –, é um homem melhor do que
eu. E quando digo isso, significa muito, Jim.
Noutra ocasião ele veio e ficou quieto por algum tempo. Então virou a
cabeça e olhou para mim.
– Esse Ben Gunn é normal? – perguntou ele.
– Não sei, senhor – eu disse. – Não tenho muita certeza se ele é são.
– Se há alguma dúvida quanto à questão, então é – retrucou o doutor. – Um
homem que esteve por três anos mordendo as unhas numa ilha deserta, Jim, não
se pode esperar que pareça são como você e eu. Não é da natureza humana. Era
por queijo que você disse que ele tinha desejo?
– Sim, senhor, queijo – respondi.
– Bem, Jim – disse ele –, veja só como é bom alguém ter bom gosto em
comida. Você já viu minha caixa de rapé, não viu? E nunca me viu dar uma
pitada. A razão disso é que na minha caixa de rapé eu levo um pedaço de queijo
parmesão… é um queijo feito na Itália, muito nutritivo. Bem, fica para o Ben
Gunn!
Antes de comermos o jantar, enterramos o velho Tom na areia e ficamos ao
redor dele por algum tempo, de cabeças descobertas na brisa. Uma boa
quantidade de madeira foi trazida, mas não o bastante na opinião do capitão, e
ele balançou a cabeça e nos disse que “teríamos que retomar a obra de
manhãzinha com mais empenho”. Então, quando comemos nosso porco e cada
um recebeu uma boa dose de grogue com conhaque, os três líderes se puseram
num canto para discutir nossas perspectivas.
Ao que pareceu, eles estavam sem ideias quanto ao que fazer, os
mantimentos estando tão escassos que a fome nos levaria à rendição muito antes
de a ajuda chegar. Nossa melhor esperança, ficou decidido, era matar os
bucaneiros até que capitulassem sua bandeira ou fugissem no Hispaniola. De
dezenove, eles já haviam sido reduzidos para quinze, dois outros estavam
feridos, e um, ao menos – o homem atingido ao lado do canhão – de modo
grave, se já não estivesse morto. Toda vez que déssemos uma coça neles,
teríamos que tomar cuidado, resguardando nossas vidas com o máximo de
precauções. Além disso, tínhamos dois aliados úteis: o rum e o clima.
Quanto ao primeiro, ainda que estivéssemos a mais de dois quilômetros,
podíamos ouvi-los rugindo e cantando até tarde da noite; quanto ao segundo, o
doutor apostava sua peruca que, acampados no pântano e desprovidos de
remédios, metade deles cairia em menos de uma semana.
– Então – acrescentou ele –, se não nos derrubarem a bala antes, eles ficarão
felizes em juntar as tralhas na escuna. Um navio é um navio, e suponho que eles
possam voltar à pirataria.
– É o primeiro navio que perco – disse o capitão Smollett.
Eu estava morto de cansaço, como você pode imaginar, e quando fui dormir,
não sem muito me revirar, dormi feito um tronco de árvore.
Já estavam todos de pé, e tinham tomado seu desjejum e aumentado a pilha
de lenha em mais que o dobro, quando fui acordado por um alvoroço e o som de
vozes.
– Bandeira de trégua! – escutei alguém dizer, e então, imediatamente após
isso, com um grito de surpresa: – O próprio Silver!
Com essa, levantei com um pulo e, esfregando os olhos, corri para uma
fresta na parede.
20

A embaixada de Silver

D e fato, havia dois homens bem ali do lado de fora da paliçada, um deles
balançando um tecido branco e o outro ninguém menos que o próprio
Silver, calmamente ao lado do primeiro.
Era bem cedo ainda, e acho que a manhã mais fria que eu já vira, com um
frio que penetrava nos ossos. O céu estava claro e sem nuvens, e o topo das
árvores despontava róseo ao sol. Mas onde Silver esperava com seu lugar-
tenente tudo ainda estava em sombras, e eles estavam mergulhados até os joelhos
numa névoa baixa e esbranquiçada, que havia rastejado durante a noite para fora
do pântano. O frio e a névoa tomados em conjunto faziam má figura da ilha. Era
puramente um lugar pantanoso, febril e insalubre.
– Fiquem aí dentro, homens – disse o capitão. – Aposto que é um truque.
Então ele saudou o bucaneiro.
– Quem vem lá? Identifique-se ou atiramos.
– Bandeira da paz – bradou Silver.
O capitão estava na porteira da casa, mantendo-se cuidadosamente fora do
caminho de algum tiro traiçoeiro. Ele se virou e nos falou:
– A ronda do doutor a postos! Dr. Livesey, pegue o lado norte, por favor.
Jim, o leste; Gray, o oeste. Os vigias de baixo, todos a postos para recarregar
mosquetes. Rápido, homens, e tomem cuidado.
Então ele se voltou outra vez para os amotinados.
– E o que quer com essa bandeira da paz? – perguntou.
Dessa vez foi o outro homem quem respondeu.
– Senhor, o capitão Silver pede permissão para ir a bordo negociar – gritou.
– Capitão Silver! Não conheço. Quem é ele? – disse o capitão. E pudemos
escutá-lo falando consigo mesmo: – Capitão, então? Minha nossa, e dê-lhe
promoções!
Long John respondeu por si próprio.
– Eu, senhor. Estes pobres coitados me escolheram capitão, após sua
deserção – falou, colocando uma ênfase particular na palavra “deserção”. –
Estamos dispostos a nos submeter, se pudermos chegar a um acordo e não
houver nada contra. Tudo o que peço é sua palavra, capitão Smollett, de que me
deixará sair são e salvo dessa paliçada, e me dê um minuto para sair do alcance
antes que qualquer arma seja disparada.
– Meu caro – disse o capitão Smollett –, eu não tenho o menor desejo de
conversar com você. Se quer falar comigo, pode vir e é só. Se houver alguma
traição, será do seu lado, e que Deus os ajude.
– Isso basta, capitão – gritou Long John, animado. – Uma palavra sua é o
bastante. Sei reconhecer um cavalheiro, pode crer.
Pudemos ver o homem que levava a bandeira de trégua tentar deter Silver.
Não era de admirar, considerando quão cavalheiresca fora a resposta do capitão.
Mas Silver riu alto dele e lhe deu um tapa nas costas como se a ideia de ter medo
fosse absurda. Então seguiu para a paliçada, jogou sua muleta por cima, subiu
uma perna e, com grande vigor e habilidade, conseguir pular a cerca e cair em
segurança no lado de dentro.
Vou confessar que eu estava muito absorvido com o que estava acontecendo
para ser de alguma utilidade como vigia; de fato, eu já havia desertado meu
posto na vigia leste, e me arrastei para trás do capitão, que se sentara sob o
umbral da porta, com os cotovelos sobre os joelhos, a cabeça entre as mãos e os
olhos fixos na água, que borbulhava para fora do velho caldeirão de ferro na
areia. Ele assoviava baixinho “Come, Lasses and Lads”40.
Silver teve uma trabalheira para subir a colina. Com a inclinação do terreno,
os grossos tocos de árvores e a areia macia, ele e sua muleta ficavam tão
desamparados quanto um navio com a vela solta. Mas ele seguiu determinado e
enfim chegou em frente ao capitão, ao qual saudou com muita elegância. Estava
vestido em seu melhor: uma imensa casaca azul, cheia de botões de latão, descia
até os joelhos, e um belo chapéu com laço de fita cobria a parte de trás da
cabeça.
– Aí está você, homem – disse o capitão, erguendo a cabeça. – É melhor se
sentar.
– O senhor não vai me deixar entrar, capitão? – queixou-se Long John. –
Está uma manhã bastante fria, senhor, pode crer, para se sentar na areia.
– Ora, Silver – disse o capitão –, se tivesse se dignado a ser um homem
honesto, você poderia estar sentado em sua cozinha. A culpa é sua. Ou você é
meu cozinheiro de bordo, e então será bem tratado, ou é o capitão Silver, um
amotinado ordinário e um pirata, e nesse caso será enforcado!
– Ora, ora, capitão – retrucou o cozinheiro, sentando-se na areia do jeito que
pôde –, o senhor vai ter que me dar uma mãozinha, é só isso. Uma belezinha de
lugar vocês têm aqui. Ah, ali está o Jim! Uma bela manhã para você, Jim.
Doutor, à sua disposição. Ora, aí estão vocês todos juntos feito uma família feliz,
por assim dizer.
– Se tem algo a dizer, homem, diga logo – falou o capitão.
– O senhor está certo, capitão Smollett – retrucou Silver. – Dever é dever,
pode crer. Bem, então, o senhor veja só, vocês se saíram bem ontem à noite. Não
nego que se saíram bem. Alguns de vocês sabem como girar um cabrestante, por
assim dizer. E tampouco vou negar que alguns dos meus ficaram espantados…
talvez todos tenham ficado espantados, talvez eu mesmo tenha me espantado,
talvez seja por isso que eu esteja aqui para fazer um acordo. Mas marque minhas
palavras, capitão, não farei isso outra vez, com mil trovões! Vamos ficar de olho
e pegar leve no rum. Talvez você pense que somos todos um bando de
cachaceiros. Mas digo-lhe que eu estava sóbrio, estava só morto de cansaço, e
tivesse eu acordado um segundo mais cedo, teria pegado vocês com a boca na
botija, teria sim. Ele não estava morto ainda, quando cheguei perto, não ele.
– Então? – disse o capitão Smollett, tão frio quanto possível.
Tudo o que Silver estava dizendo era uma charada para ele, mas você nunca
perceberia por seu tom de voz. Quanto a mim, comecei a pensar. As últimas
palavras de Ben Gunn me vieram à mente. Comecei a supor que ele havia feito
uma visitinha aos bucaneiros quando estavam todos bêbados juntos ao redor da
fogueira, e concluí com alegria que tínhamos agora somente catorze inimigos
com os quais lidar.
– Então, aqui vai – disse Silver. – Nós queremos aquele tesouro, e nós o
teremos, essa é a nossa questão. Vocês só querem salvar suas vidas, reconheço, e
essa é a questão de vocês. O senhor tem um mapa, não tem?
– Pode ser que sim – respondeu o capitão.
– Ah, certo, você tem, eu sei disso – retrucou Long John. – Não precisa ser
tão duro com um sujeito, isso não vai servir para nada, pode crer. O que quero
dizer é: queremos seu mapa. Agora, eu mesmo nunca lhes quis mal.
– Isso não vai funcionar comigo, homem – interrompeu o capitão. –
Sabemos muito bem o que vocês querem fazer e não nos importamos. Por ora,
veja bem, vocês não têm como.
E o capitão o olhou com calma e se pôs a encher seu cachimbo.
– Se Abe Gray… – irrompeu Silver.
– Alto lá! – gritou o sr. Smollett. – Gray não me contou nada, e eu não lhe
perguntei nada, e quer saber? Por mim ele e você e toda essa ilha podem todos ir
para o raio que os parta. E isso é tudo o que tenho a lhe dizer sobre o assunto,
homem.
Essa pequena explosão pareceu acalmar Silver. Estava ficando irritado antes,
mas então se recompôs.
– Está bem – disse ele. – Não serei eu a dizer o que cavalheiros consideram
ser correto… ou incorreto, como é o caso aqui. E vendo que o senhor está para
fumar seu cachimbo, capitão, tomarei a liberdade de fazer o mesmo.
Encheu um cachimbo e o acendeu, e então os dois homens ficaram fumando
por algum tempo, ora se encarando, ora parando de fumar seu tabaco, ora
inclinando-se para cuspir. Assisti-los era como estar no teatro.
– Agora – retomou Silver –, aqui está. O senhor nos dá o mapa para
buscarmos o tesouro e para de atirar em pobres marinheiros ou arrebentar suas
cabeças enquanto estão dormindo. O senhor faz isso e lhes daremos uma
escolha. Ou vocês vêm conosco a bordo, assim que o tesouro for embarcado, e
então lhes dou minha palavra de honra, juro por escrito, de deixá-los em algum
lugar a salvo em terra. Ou, se isso não for do seu agrado, sendo alguns dos meus
marinheiros brutos e tendo velhas contas a acertar quanto a humilhações, vocês
podem ficar aqui, se quiserem. Dividiremos provisões com vocês, de igual para
igual; e lhes juro por escrito, como antes, de alertar o primeiro navio que avistar
e mandá-lo para cá pegar vocês. Agora é com vocês. Melhor do que está para
vocês não fica, não, senhor. E eu espero – elevou a voz – que todos os marujos
aqui nesta casa tenham escutado minhas palavras, pois o que vale para um, vale
para todos.
O capitão Smollett se ergueu e bateu com o cachimbo na palma da mão
esquerda, tirando as cinzas.
– Isso é tudo? – perguntou.
– Cada palavra, com mil trovões! – respondeu John. – Recuse isso e de mim
o senhor só verá as balas do mosquete.
– Muito bem – falou o capitão. – Agora, você me escuta. Se vierem um por
um, desarmados, eu prometo pô-los a ferros e levá-los para casa para um
julgamento justo na Inglaterra. Caso contrário, meu nome é Alexander Smollett,
eu visto as cores de meu soberano e vou mandá-los todos para Davy Jones41.
Vocês não têm como encontrar o tesouro. Não têm como velejar. Não há um
homem entre vocês capaz de manejar o navio. Vocês não podem lutar conosco;
só o Gray, ali, deu conta de cinco de vocês. Seu navio está contra o vento, mestre
Silver, e atrás só há águas rasas, como perceberá. Eu fico por aqui e lhe digo
isso, e essas são as últimas boas palavras que conseguirá de mim, pois em nome
dos céus, vou meter uma bala nas suas costas na próxima vez que o encontrar.
Vai-te embora, homem. Fora daqui, por favor, e bem rapidinho.
A cara de Silver era uma imagem e tanto; seus olhos brilhavam de ira. Ele
apagou o fogo de seu cachimbo.
– Me dê uma mão para me levantar – pediu.
– Eu não – respondeu o capitão.
– Quem vai me dar uma mão? – rosnou.
Nenhum de nós se moveu. Resmungando os piores xingamentos, ele
engatinhou pela areia até se apoiar na soleira da porta e conseguir se erguer em
sua muleta outra vez. Então cuspiu na fonte.
– Aí está! – bradou. – Isso é o que penso de vocês. Antes de uma hora, eu
vou cair sobre sua velha cabana feito um tonel de rum. Riam, com mil trovões,
riam! Antes de uma hora, estarão rindo do lado de lá. Os que morrerem serão os
sortudos.
E rogando as piores pragas, ele foi embora cambaleando pela areia, sendo
auxiliado na paliçada, após quatro ou cinco tentativas fracassadas, pelo homem
com a bandeira de trégua, e no instante seguinte desapareceu por entre as
árvores.
21

O ataque

A ssim que Silver desapareceu, o capitão, que o estava vigiando de perto,


virou-se para o interior da casa e não encontrou ninguém em seu posto
além de Gray. Foi a primeira vez que o vimos zangado.
– A seus postos! – rugiu. E então, conforme todos retornávamos aos nossos
lugares, falou: – Gray, vou colocar seu nome no diário de bordo, pois o senhor se
manteve em seu posto como um marinheiro. Sr. Trelawney, estou surpreso com o
senhor. Doutor, pensei que o senhor já tivesse vestido o uniforme do rei! Se foi
assim que serviu em Fontenoy, senhor, teria sido melhor ter ficado na cama.
Os do grupo do doutor voltaram todos para seus postos de vigia, os demais
ocuparam-se de recarregar os mosquetes sobressalentes, todos com a cara
vermelha, você pode ter certeza, e com as orelhas quentes, como se diz.
O capitão observou em silêncio por algum tempo, então falou.
– Rapazes – disse ele. – Dei uma bordoada em Silver. Eu o deixei de cabeça
quente de propósito, e antes de uma hora, como ele disse, devemos ser atacados.
Estamos em menor número, não preciso dizer isso, mas lutamos em abrigo e, um
minuto atrás, eu poderia dizer que lutaríamos com disciplina. Não tenho dúvidas
de que podemos dar conta deles, se quiserem.
Depois fez uma ronda e disse que tudo estava em ordem.
Nos dois lados menores da casa, a leste e a oeste, havia somente duas
aberturas; no lado sul onde ficava a varanda havia outras duas, e no lado norte,
cinco. Havia exatos vinte mosquetes para nós sete, a lenha fora montada em
quatro pilhas – mesas, pode-se dizer –, uma no meio de cada lado, e sobre cada
uma dessas mesas um pouco de munição e quatro mosquetes carregados foram
deixados prontos ao alcance dos defensores. No meio, foram dispostas as
espadas.
– Apaguem o fogo – disse o capitão. – O frio já passou, e não devemos ter
fumaça nos olhos.
O cesto de ferro da lareira foi carregado para fora pelo sr. Trelawney, e as
brasas apagadas na areia.
– Hawkins não comeu ainda. Hawkins, sirva-se e volte à sua posição para
comer – continuou o capitão Smollett. – Rápido, rapaz, você vai precisar disso
logo. Hunter, sirva uma rodada de conhaque para todos os marujos.
E enquanto isso era feito, o capitão completou, em sua própria mente, o
plano de defesa.

– Doutor, o senhor cuida da porta – prosseguiu. – Observe e não se exponha;


mantenha-se no lado de dentro e atire da varanda. Hunter, cuide do lado leste,
ali. Joyce, você fica no lado oeste, homem. Sr. Trelawney, o senhor é o melhor
atirador; o senhor e Gray tomam conta desse lado norte maior, com as cinco
aberturas. É ali que está o perigo. Se eles conseguirem chegar até ali e atirarem
em nós por sobre nossas próprias defesas, a coisa vai ficar feia. Hawkins, você e
eu não valemos muita coisa como atiradores, ficaremos ao redor para recarregar
e ajudar no que for preciso.
Como o capitão disse, o frio tinha passado. Assim que o sol se ergueu sobre
nosso cinturão de árvores, caiu com todas as suas forças sobre a clareira e secou
a névoa toda de um gole só. Logo a areia estava escaldante e a resina derretia
nos troncos da cabana de madeira. Jaquetas e casacas foram postas de lado,
camisas abertas no pescoço e mangas arregaçadas até os ombros. E ali ficamos,
cada um em seu posto, num calor e numa ansiedade febris.
Uma hora se passou.
– Malditos sejam! – disse o capitão. – Isso é tão chato quanto uma calmaria.
Gray, assovie para chamar o vento.
E bem naquele momento vieram os primeiros sinais do ataque.
– Com sua licença, senhor – disse Joyce –, se eu vir um deles, devo atirar?
– Já disse que sim – bradou o capitão.
– Obrigado, senhor – respondeu Joyce, com a mesma educação tranquila.
Não aconteceu nada por algum tempo, mas a observação nos deixou todos
em alerta, aguçando olhos e ouvidos – os mosqueteiros com as armas em mãos e
o capitão andando pela cabana, apertando os lábios e franzindo a testa.
Assim alguns segundos se passaram, quando de súbito Joyce ergueu seu
mosquete e disparou. O estampido mal havia morrido quando foi repetido e
repetido de fora numa saraivada dispersa. Várias balas atingiram a cabana, mas
nenhuma entrou e, conforme a fumaça se dispersou e sumiu, a paliçada e a mata
ao redor dela pareceram tão quietas e vazias quanto antes. Nenhum arbusto se
moveu, nenhuma faísca do cano de um mosquete denunciou a presença de
nossos adversários.
– Você acertou seu homem? – perguntou o capitão.
– Não, senhor – respondeu Joyce. – Creio que não.
– Sempre bom dizer a verdade – murmurou o capitão Smollett. – Recarregue
a arma dele, Hawkins. Quantos o senhor diria que havia no seu lado, doutor?
– Sei exatamente – disse o dr. Livesey. – Três tiros foram disparados deste
lado. Eu vi as três faíscas, duas bem perto uma da outra e a outra mais longe a
oeste.
– Três! – repetiu o capitão. – E quantos no seu lado, sr. Trelawney?
Mas essa resposta não veio fácil. Muitos disparos tinham vindo do norte –
sete, pelas contas do fidalgo, oito ou nove de acordo com Gray. De leste e oeste
apenas um único tiro fora disparado. Estava claro, portanto, que o ataque viria do
norte, e que nos outros três lados seríamos apenas incomodados por
demonstrações de hostilidade. Mas o capitão Smollett não fez nenhuma mudança
em seus arranjos. Se os amotinados tivessem sucesso em cruzar a paliçada,
argumentou, assumiriam o controle das aberturas desprotegidas e atirariam em
nós feito ratos em nossa própria fortaleza.
Tampouco sobrara muito tempo para pensar. De súbito, com um longa hurra,
um pequeno enxame de piratas pulou da mata no lado norte e correu direto para
a paliçada. No mesmo instante, abriu-se fogo outra vez das matas, e uma bala
cruzou pela porta e fez o mosquete do doutor em pedaços.
Os atacantes pularam sobre a cerca feito macacos. O fidalgo e Gray atiraram
de novo e de novo, e três homens caíram, um para dentro do cercado, dois para o
lado de fora. Mas destes, um estava evidentemente mais assustado do que ferido,
pois se pôs de pé outra vez num pulo e no mesmo instante desapareceu entre as
árvores.
Dois foram comer capim por baixo, um fugiu, quatro conseguiram colocar
os pés dentro de nossas defesas. Do abrigo das matas, sete ou oito homens, cada
um evidentemente guarnecido de vários mosquetes, mantinham contra a cabana
um tiroteio contínuo, ainda que inútil.
Os quatro que entraram foram direto para a cabana, gritando enquanto
corriam, e os homens entre as árvores gritaram em retorno para encorajá-los.
Vários tiros foram disparados, mas tal era a afobação dos atiradores que nem um
único pareceu surtir efeito. Num instante, os quatro piratas subiram o terreno e
estavam sobre nós.
A cabeça de Job Anderson, o timoneiro, apareceu na abertura do meio.
– Pra cima deles, pessoal! – rugiu com voz de trovão.
No mesmo instante, outro pirata agarrou o mosquete de Hunter pelo cano, o
arrancou de suas mãos, o puxou pela abertura e, com um golpe atordoante,
derrubou o pobre coitado ao chão, inconsciente. Enquanto isso um terceiro,
correndo desarmado ao redor da casa, apareceu de repente na porta e saltou
sobre o doutor com seu alfanje.
Nossa posição estava totalmente invertida. Num instante estávamos atirando,
protegidos, contra um inimigo exposto. Agora, éramos nós que estávamos a
descoberto e incapazes de rebater um golpe.
A cabana estava cheia de fumaça, à qual devíamos nossa relativa segurança.
Gritos e confusão, faíscas e estampidos de tiros de pistolas, e um grunhido alto
ecoou em meus ouvidos.
– Para fora, rapazes, para fora, lutem com eles no aberto! Às espadas! –
gritou o capitão.
Catei uma espada da pilha, e alguém, pegando outra na mesma hora, me fez
um corte nas juntas dos dedos que eu mal senti. Corri para a porta até o dia claro.
Alguém estava logo atrás de mim, não sabia quem. Logo à frente o doutor
perseguia seu atacante colina abaixo e, assim que pus os olhos nele, o derrotou e
o derrubou de costas com um grande corte no rosto.
– Ao redor da casa, rapazes! Ao redor da casa! – gritou o capitão e, mesmo
naquele corre-corre, notei uma mudança em sua voz.
Obedeci de modo mecânico, virei a leste e, com meu sabre erguido, corri ao
redor da casa. No momento seguinte, eu estava cara a cara com Anderson. Ele
rugiu alto e ergueu o cutelo acima da cabeça, brilhando ao sol. Não tive tempo
de sentir medo, mas, com o golpe pendendo iminente, na mesma hora saltei de
lado, perdi o equilíbrio na areia macia e rolei colina abaixo.
Quando eu havia saído da cabana, os outros amotinados já começavam a
escalar a paliçada para dar um fim em todos nós. Um homem, com um gorro
vermelho e o alfanje na boca, já até chegara ao topo e colocara uma perna para
dentro. Bem, tudo fora tão rápido que, quando me pus de pé de novo, a cena
estava na mesma posição, o camarada do gorro vermelho ainda no meio do
caminho e outro pondo a cabeça por cima da paliçada. E ainda assim, nesse
respiro de tempo, a luta havia acabado e a vitória era nossa.
Gray, me seguindo de perto, havia passado na espada o contramestre
grandalhão antes que este tivesse tempo de se recuperar. Outro fora baleado pela
abertura, pego no ato de atirar para dentro da casa, e agora jazia em agonia, a
pistola ainda fumegando na mão. Um terceiro, eu mesmo vi, o doutor eliminou
de um golpe só. Dos quatro que haviam escalado a paliçada, apenas um passou
despercebido, e este, deixando seu alfanje no campo, estava agora pulando para
fora outra vez, com medo de morrer.
– Fogo! Abram fogo da casa! – gritou o doutor. – E vocês, rapazes, de volta
pra dentro!
Mas suas palavras foram ignoradas, nenhum disparo foi feito, e o último dos
atacantes deu no pé e desapareceu com os demais pela mata. Em três segundos
não sobrou nada do grupo de ataque além dos cinco que haviam tombado, quatro
do lado de dentro e um do lado de fora da paliçada.
O doutor, Gray e eu corremos a toda buscando abrigo. Os sobreviventes logo
estariam de volta para recuperar seus mosquetes e a qualquer momento o tiroteio
poderia recomeçar.
A essas alturas a casa estava livre de fumaça, e numa olhada vimos o preço
que havíamos pagado por nossa vitória. Hunter estava caído ao lado de sua
abertura, desacordado; assim como Joyce na sua, atingido na cabeça, para nunca
mais se levantar; enquanto, bem no centro, o fidalgo segurava o capitão, um
mais pálido que o outro.
– O capitão está ferido – disse o sr. Trelawney.
– Eles fugiram? – perguntou o capitão Smollett.
– Os que podiam, pode ter certeza – respondeu o doutor. – Mas há cinco
deles que nunca vão fugir outra vez.
– Cinco! – bradou o capitão. – Vamos, assim é melhor. Cinco contra três nos
deixa em quatro contra nove. São chances melhores do que as que tínhamos no
começo. Éramos sete contra dezenove deles, ou assim pensávamos… o que era
bem pior.*
* Os amotinados logo ficaram em apenas oito, pois o homem atingido pelo sr. Trelawney a bordo da
escuna morreu na mesma manhã em que fora ferido. Mas isso, claro, nosso grupo só ficou sabendo
mais tarde.
Parte V
MINHA AVENTURA NO MAR
22

Como minha aventura no mar começou

N ão houve resposta dos amotinados – não mais do que um disparo vindo


da mata. Eles já tinham “levado sua cota do dia”, como disse o capitão, e
o lugar era todo nosso, com tempo de calmaria para cuidar dos feridos e preparar
o jantar. O fidalgo e eu cozinhamos no lado de fora, apesar do perigo, e mesmo
assim era difícil se concentrar, por causa dos horríveis gritos de dor que
chegavam dos pacientes do doutor.
Dos oito homens que haviam tombado em ação, apenas três ainda
respiravam – aquele pirata que fora acertado pela abertura, Hunter e o capitão
Smollett; destes, os dois primeiros não tinham chance alguma; o amotinado, na
realidade, morreu nas mãos do doutor, e Hunter, não importasse o que se fizesse,
nunca recobrou a consciência neste mundo. Ele agonizou o dia todo, respirando
pesado feito o velho bucaneiro lá em casa em seu ataque apoplético. Mas os
ossos de seu peito haviam sido quebrados pelo golpe e seu crânio havia fraturado
na queda e, a certa altura da noite seguinte, sem soltar um pio, ele foi ao
encontro de seu Criador.
Quanto ao capitão, suas feridas eram de fato graves, mas não perigosas.
Nenhum órgão fora atingido de modo fatal. A bala de Anderson – fora Job a
atirar nele primeiro – quebrara sua omoplata e tocara o pulmão, sem gravidade; o
segundo tiro havia apenas roçado os músculos da panturrilha. Ele se recuperaria,
disse o doutor, mas no meio-tempo, e pelas semanas seguintes, não deveria andar
nem mexer o braço, tampouco falar se pudesse evitar.
Meu próprio corte nas juntas dos dedos não era nada demais. O dr. Livesey
fez uma atadura e de quebra ainda me deu um puxão de orelha.
Após o jantar, o fidalgo e o doutor sentaram-se junto ao capitão para
confabular por algum tempo e, após dizer tudo o que tinham para dizer, e já
passando do meio-dia42, o doutor pegou seu chapéu e pistolas, embainhou o
sabre, pôs o mapa no bolso e, com o mosquete por sobre o ombro, cruzou a
paliçada pelo lado norte, partindo apressado por entre as árvores.
Gray e eu estávamos sentados no canto mais afastado da cabana, para não
escutarmos as deliberações de nossos oficiais. Gray tirou o cachimbo da boca e
quase se esqueceu de colocá-lo de volta, tão chocado ficou com o que viu.
– Ora, pelas barbas de Davy Jones – disse ele. – O dr. Livesey pirou?
– Claro que não – respondi. – Ele seria o último de nós ao qual isso poderia
ocorrer, acredito.
– Bem, companheiro – disse Gray –, pirado ele pode não ser, mas se ele não
está, grave minhas palavras, eu estou.
– Eu confio – retruquei – que o doutor sabe o que está fazendo. Se eu estiver
correto, ele está indo ver Ben Gunn.

Eu estava certo, como se revelou depois; mas enquanto isso, com a casa
pelando de quente e a trilha de areia no lado interno da paliçada tinindo sob o sol
do meio-dia, comecei a pôr outra ideia na cabeça, que não era boa de modo
algum. O que eu comecei a fazer foi sentir inveja do doutor, caminhando na
sombra fresca das árvores, com os passarinhos ao redor e o aroma agradável dos
pinheiros, enquanto eu ficava sentado torrando, com minhas roupas grudadas na
resina quente, e tanto sangue e tantos mortos ao meu redor que tomei um nojo do
lugar quase tão forte quanto o medo.
O tempo todo enquanto eu lavava a cabana, e depois lavando as coisas do
jantar, esse nojo e inveja foram crescendo mais e mais, até que por fim, estando
perto de um saco de biscoitos, e sem ninguém me vendo, dei o primeiro passo na
direção de minha fuga e enchi os dois bolsos da casaca com biscoitos.
Fui um tolo, você pode pensar, e certamente eu estava por fazer uma tolice,
mais do que um ato de bravura. Mas eu estava determinado a fazê-la com todo o
cuidado possível. Caso algo acontecesse comigo, os biscoitos evitariam, ao
menos, que eu passasse fome até no mínimo o dia seguinte.

Em seguida, peguei um par de pistolas e, como já tinha comigo um


polvorinho43 e balas, senti que estava bem suprido de armamentos.
Quanto ao plano que eu tinha em mente, não era de todo ruim. Eu desceria
até o pontal de areia a leste que dividia o ancoradouro do mar aberto, encontraria
a pedra branca que havia observado na tarde anterior e me certificaria se era ou
não era lá que Ben Gunn havia escondido seu bote. Algo digno do esforço, como
ainda acredito. No entanto, como eu tinha certeza de que não me seria permitido
deixar o abrigo, meu único plano era “sair à francesa”44 quando ninguém
estivesse olhando, e isso era um jeito tão ruim de lidar com a situação que fazia a
ideia parecer errada. Mas eu era apenas um menino e estava decidido.
Bem, do modo como as coisas se desenrolaram, encontrei uma oportunidade
admirável. O fidalgo e Gray estavam ocupados com as bandagens do capitão e o
caminho estava livre, então saí correndo, pulei por sobre a paliçada e para o
meio das árvores e, antes que minha ausência fosse percebida, já havia me
afastado de meus companheiros.
Essa foi minha segunda doidice, muito pior que a primeira, pois eu havia
deixado só dois homens em condições de cuidar da casa. Mas, assim como na
primeira vez, ajudou a nos salvar.
Segui direto para a costa leste da ilha, pois estava determinado a descer até o
lado do pontal virado para o mar, para evitar qualquer chance de ser visto do
ancoradouro. Já era final de tarde, ainda que continuasse quente e ensolarado.
Conforme eu seguia por entre as árvores altas, podia escutar mais à frente não
apenas o rugido contínuo das ondas, mas certo farfalhar de folhas e chacoalhar
de arbustos me mostrando que a brisa marinha estava mais forte que o normal.
Logo, correntes de vento frio me atingiram e, mais alguns passos adiante, eu saí
do meio do bosque e vi o mar se estendendo azul e ensolarado no horizonte, as
ondas batendo e revirando sua espuma ao longo da praia.
Eu nunca tinha visto o mar tranquilo na Ilha do Tesouro. O sol podia estar a
pino, com o ar parado e a superfície lisa e azul, mas ainda assim aquelas grandes
ondas estariam correndo ao longo de toda a costa, rugindo dia e noite, e duvido
muito que houvesse algum ponto da ilha em que não se pudesse escutar seu
barulho.
Caminhei ao longo da costa com grande alegria, até que, achando que já
havia me afastado bastante do sul, me ocultei nos arbustos densos e me
aproximei cauteloso dos recifes do pontal.
Atrás de mim estava o mar, à frente o ancoradouro. A brisa marinha, como
se a violência incomum com que soprara mais cedo a tivesse esgotado, já
chegava ao fim. Foi sucedida por ares variados mais leves, vindos do sul e
sudeste, carregando grandes bancos de névoa. E o ancoradouro, a sotavento da
Ilha Esqueleto, permanecia tão imóvel e calmo quanto na primeira vez que
entramos nele. Sobre aquele espelho intacto, o Hispaniola era reproduzido com
exatidão do mastro à linha-d’água, com a Jolly Roger pendurada no topo.
A seu lado estava um dos escaleres, com Silver no banco de popa – ele eu
sempre reconhecia –, enquanto um par de homens se debruçava sobre a amurada
de popa, um deles com um gorro vermelho – o mesmo malandro que eu tinha
visto algumas horas antes colocando a perna por cima da paliçada.
Aparentemente eles estavam conversando e rindo, ainda que daquela distância –
mais de um quilômetro e meio – eu não pudesse, claro, escutar nenhuma palavra
do que diziam. De repente, começaram os gritos mais horríveis e assombrosos,
que a princípio me deixaram bem perturbado, ainda que tenha lembrado logo da
voz do Capitão Flint, e acho que até mesmo distingui a ave por sua plumagem
brilhante, empoleirada no pulso de seu mestre.
Logo depois disso, o escaler se afastou e se dirigiu para a costa, e o homem
com o gorro vermelho e seu comparsa desceram para a cabine.
Quase na mesma hora, o sol começou a afundar detrás do Morro da Luneta
e, como a neblina estava crescendo rápido, começou a escurecer. Eu vi que não
podia perder tempo se pretendia encontrar o bote naquela tarde.
A pedra branca, bem visível acima dos arbustos, estava ainda a uns cem
metros de distância descendo pela enseada, e levei um bom tempo para alcançá-
la, esgueirando-me, às vezes de quatro, por entre os arbustos. A noite estava
quase chegando quando pus as mãos sobre sua superfície áspera. Logo abaixo e
à frente dela, havia uma depressão pequenininha cheia de grama verde,
escondida pelas dunas e por capim alto na altura dos joelhos, que crescia ali em
quantidade. E no meio dela, de fato, havia uma barraquinha de pele de bode,
como a que os ciganos levam consigo na Inglaterra.
Pulei no buraco, levantei um lado da barraca, e ali estava o barquinho de Ben
Gunn – tão improvisado quanto possível: uma moldura tosca e recurvada de
madeira dura, e esticada sobre ela uma pele de bode, com o pelo no lado de
dentro. A coisa era bem pequena, mesmo para mim, e mal consigo imaginar que
poderia flutuar com o peso de um homem adulto. Havia um assento colocado o
mais baixo possível, meio que esticando as laterais, e um remo duplo para
propulsão.
Eu nunca tinha visto um coracle45 tal como os que os antigos bretões
faziam, mas vi um depois disso, e não consigo passar imagem melhor do barco
de Ben Gunn do que dizer que parecia o primeiro e o pior coracle já feito. Mas
certamente possuía a grande vantagem de um coracle, que é a de ser muito leve
e portátil.
Bem, agora que eu havia encontrado o barco, você deve estar pensando que
já gazeteara demais por um dia. Só que, no meio-tempo, tive outra ideia e gostei
dela com tanta obstinação que a teria mantido, acho eu, mesmo sob o nariz do
próprio capitão Smollett. E era a de sair de fininho à noite, colocar o Hispaniola
à deriva e deixar que ele fosse dar na praia onde bem quisesse. Eu tinha botado
na cabeça que os amotinados, após serem repelidos pela manhã, não tinham nada
mais em mente senão levantar âncora e ir embora. Isso, pensei eu, seria uma
coisa boa de ser evitada, e agora que eu tinha visto como eles deixavam seus
vigias desprovidos de um bote, achei que isso podia ser feito com poucos riscos.

Fiquei abaixado esperando pela escuridão e fiz um bom lanche de biscoitos.


Para o que eu queria fazer, a noite estava perfeita. A neblina agora cobria todo o
céu. Conforme os últimos raios de sol mirravam e desapareciam, uma escuridão
absoluta recaiu sobre a Ilha do Tesouro. E quando, por fim, coloquei o coracle
nos ombros e tateei tropeçando para fora do buraco onde havia lanchado, só
havia dois pontos visíveis em toda a enseada.
Um era a grande fogueira na praia, junto ao pântano, onde os piratas
derrotados faziam farra. O outro, um mero borrão de luz nas trevas, indicava a
posição do navio ancorado. Ele havia girado com a maré – a proa agora estava
voltada para mim – e as únicas luzes a bordo eram na cabine; o que eu via era só
o reflexo na neblina dos fortes raios de luz vindos da janela de popa.
A maré já estava baixa havia algum tempo, e tive que passar por um longo
cinturão de areia pantanosa, onde várias vezes afundei até os tornozelos, antes de
conseguir chegar à beira da água vazante e, entrando um pouquinho nela, com
um pouco de força e habilidade, dispor meu coracle sobre a superfície com a
quilha para baixo.
23

A maré vazante

O coracle – como bem descobri antes de terminar de usá-lo – era um barco


bem seguro para uma pessoa com minha altura e peso, flutuável e
inteligente para o alto-mar, mas também uma embarcação temperamental e
difícil de controlar. Não importava o que eu fizesse, ele sempre ia para o lado
errado, e ficar girando sem parar era a manobra que mais sabia fazer. O próprio
Ben Gunn admitiria mais tarde que era “esquisito de lidar até pegar o jeito”.
Eu certamente não pegara o jeito. Ele virava para todo lado exceto o que eu
queria. Na maior parte do tempo ficávamos de lado, e tenho bastante certeza de
que eu nunca teria chegado ao navio se não fosse pela maré. Por sorte, por mais
que eu remasse, ela ainda me arrastava na direção certa, e lá estava o Hispaniola
bem no caminho, difícil de perder de vista.
Primeiro ele apareceu à minha frente como um borrão feito de algo mais
negro que a escuridão, então seus mastros e casco começaram a tomar forma e,
no momento seguinte (pois, quanto mais longe eu ia, mais aumentava a força da
correnteza), eu já estava ao lado do cabo de amarração e me agarrei nele.
A amarra estava esticada feito a corda de um arco, e a correnteza era tão
forte que o navio puxava pela âncora. Ao redor do casco, na escuridão, a
correnteza espumava e encrespava como um riacho descendo a montanha. Um
corte com meu canivete, e o Hispaniola seria levado pela maré.
Até aí tudo bem, mas em seguida me ocorreu que uma amarra esticada, se
cortada de repente, era uma coisa tão perigosa quanto um coice de cavalo. E eu
apostava que, se fizesse a idiotice de cortar a âncora do Hispaniola, eu e o
coracle seríamos arremessados no ar.
Isso me levou a parar e, se a sorte não tivesse outra vez me favorecido, eu
precisaria ter abandonado minha intenção. Mas perto da meia-noite, a brisa leve
que começara a soprar de sul e sudeste havia mudado para sudoeste. E bem
enquanto eu estava reconsiderando, veio um sopro que pegou o Hispaniola e o
empurrou contra a correnteza. Para minha grande alegria, senti a amarra
afrouxar, e a mão com que a segurava afundou por um segundo debaixo da água.

Com isso, me decidi, peguei o canivete, o abri com os dentes e fui cortando
uma fibra atrás da outra, até que o navio estivesse preso por só duas. Então
fiquei em silêncio, esperando para cortar essas últimas quando a correnteza fosse
outra vez aliviada por um sopro de vento.
A essas alturas escutei vozes altas vindas da cabine, mas, para dizer a
verdade, minha cabeça estava tão tomada por outros pensamentos que mal dei
ouvidos. Porém, agora que não tinha mais nada para fazer, comecei a prestar
mais atenção.
Uma voz eu reconheci como sendo a do timoneiro, Israel Hands, que fora
canhoneiro de Flint no passado. A outra era, claro, meu amigo do gorro
vermelho. Os dois homens estavam claramente para lá de bêbados, e bebiam
ainda mais enquanto eu escutava. Um deles, com um grito ébrio, abriu a janela
de popa e atirou algo para fora, que eu deduzi ser uma garrafa vazia. Mas não
estavam só de pileque; ficou aparente que ambos se sentiam furiosos. Palavrões
voavam feito pedras, e a toda hora estouravam gritos de raiva que pensei que
terminariam em briga. Só que a briga sempre passava e as vozes baixavam por
um tempo, até que viesse a crise seguinte, que, por sua vez, também passava sem
resultado.
Na praia, eu podia ver o clarão da grande fogueira do acampamento ardendo
por entre as árvores do litoral. Alguém cantava uma velha canção de marinheiro,
triste e sem graça, com um floreio choroso no final de cada verso e que parecia
não ter fim senão pela paciência do cantor. Eu a havia escutado mais de uma vez
na viagem e lembrava dessas palavras:

UM HOMEM DO NAVIO ESCAPOU,


MAS SETENTA E CINCO O MAR LEVOU.

E me ocorreu que era um refrão dolorosamente apropriado para uma


companhia que havia sofrido perdas cruéis pela manhã. Mas de fato, pelo que vi,
todos aqueles bucaneiros eram tão cruéis quanto o mar em que navegavam.
Enfim a brisa veio, a escuna deu uma guinada e foi chegando pertinho na
escuridão. Eu senti a amarra afrouxar outra vez e, com um gesto firme, cortei as
últimas fibras.
A brisa pouco afetava o coracle, e fui quase no mesmo instante jogado
contra o casco do Hispaniola. Na mesma hora, a escuna começou a girar em
torno de si mesma, ficando à deriva aos pouquinhos, levada pela correnteza.
Remei feito um demônio, pois esperava a qualquer momento ser afundado e,
assim que percebi que não podia empurrar o coracle direto para longe, comecei a
empurrá-lo na direção da popa. Por fim me afastei daquela vizinhança perigosa
e, bem na hora em que dei meu último impulso, minhas mãos encontraram uma
corda leve que estava pendurada ao longo da amurada da popa. Me agarrei nela
no mesmo instante.
Por que fiz isso nem eu sei dizer. A princípio foi mero instinto, mas uma vez
que a tinha nas mãos e a senti firme, a curiosidade começou a tomar conta de
mim, e fiquei determinado a dar uma olhada pela janela da cabine.
Fui puxando a corda aos poucos e, quando julguei estar perto o suficiente,
arrisquei tudo e subi cerca de metade da minha altura, tendo assim a visão do
chão e de uma parte do interior da cabine.
A essas alturas a escuna e seu pequeno companheiro estavam deslizando
suavemente pela água. Na realidade, já estávamos quase na altura do
acampamento. O navio estava “falando”, como dizem os marinheiros, bem alto,
passando pelas inúmeras ondinhas com borrifos de água incessantes, e até que eu
conseguisse colocar o olho no peitoril da janela, não conseguia entender como os
vigias não tinham dado o alerta. Um olhar, porém, foi o suficiente. E foi só uma
olhada que ousei dar naquele esquife instável. Ele me mostrou que Hands e seu
companheiro estavam abraçados numa briga mortal, um com as mãos na
garganta do outro.
Desci de volta ao barquinho, e bem a tempo, pois eu havia subido quase até
a amurada. Por um momento não conseguia ver nada além daquelas duas caras
furiosas, avermelhadas, balançando juntas sob a lâmpada enfumaçada; e fechei
os olhos para que se acostumassem outra vez à escuridão.
Aquela balada interminável havia chegado ao fim, e toda a pequena
companhia ao redor da fogueira rebentou a cantar o refrão que eu conhecia bem:

QUINZE HOMENS NO PEITO DO DEFUNTO…


IO-HO-HO E UMA GARRAFA DE RUM!
BEBE QUE O DIABO TAMBÉM TE LEVA JUNTO…
IO-HO-HO E UMA GARRAFA DE RUM!

Comecei a pensar em quão ocupados estavam o diabo e a bebida naquele


exato instante na cabine do Hispaniola quando fui surpreendido por um balanço
súbito do coracle. Na mesma hora, ele deu uma guinada aguda e pareceu mudar
de direção. A velocidade, enquanto isso, havia aumentado estranhamente.
Abri os olhos. Ao meu redor havia pequenas marolas, levemente
fosforescentes, encrespando com um som agudo. O próprio Hispaniola, por cuja
esteira eu ainda estava, rodopiou por alguns metros, pareceu cambalear em seu
caminho, e vi seus mastros balançarem um pouco contra o negrume da noite.
Sem dúvida, quanto mais eu olhava, mais tinha certeza de que ele estava indo em
direção sul.
Olhei por cima do ombro e meu coração quase saiu pela boca. Ali, bem atrás
de mim, estava o brilho da fogueira do acampamento. A correnteza virava em
ziguezague, levando consigo a grande escuna e o pequeno coracle dançando; ora
mais rápida, ora espumando, ora murmurando alto, ia girando e puxando pelo
estreito até o mar aberto.
De repente a escuna na minha frente deu uma guinada brusca, virando,
talvez, uns vinte graus, e quase no mesmo instante um grito seguiu outro a bordo
e pude escutar pés pisando na escada; e soube então que os dois pinguços
haviam enfim interrompido sua briga e acordado para a realidade de seu
desastre.
Eu me deitei inteiro contra o fundo daquele esquife desgraçado e
devotamente encomendei meu espírito ao meu Criador. No fim daquele estreito,
eu tinha certeza de que seríamos jogados furiosamente contra alguma rocha,
onde todos os meus problemas seriam encerrados com rapidez; e embora eu
pudesse, talvez, suportar a morte, não suportava olhar para meu destino enquanto
se aproximava.
Assim devo ter ficado deitado por horas, sendo continuamente batido de um
lado ao outro pelas ondas, uma vez ou outra sendo molhado por borrifos de água,
e nunca deixando de aguardar a morte na próxima onda. Aos poucos foi
crescendo em mim um cansaço. Uma lerdeza e ocasional estupor recaíram sobre
minha mente em meio aos meus medos, até que o sono enfim se sobrepôs, e no
meu maltratado coracle eu me deitei e sonhei com minha casa e a velha
Almirante Benbow.
24

A viagem do coracle

E ra dia claro quando acordei e dei por mim largado na ponta sudoeste da
Ilha do Tesouro. O sol havia se levantado, mas ainda se escondia de mim
por trás do grande maciço do Morro da Luneta, que deste lado descia quase ao
nível do mar em penhascos formidáveis.
O Pontal da Bolina e o Morro da Mezena estavam bem perto – o morro
escuro e limpo de vegetação e o pontal tomado de penhascos com uns vinte
metros de altura, e margeado por grandes porções de rochas que haviam caído no
mar. Eu estava a pouco mais que quatrocentos metros do litoral, e a primeira
coisa que pensei foi em remar para a terra.
Essa ideia foi logo abandonada. As ondas grandes estouravam e rugiam
contra as rochas caídas. Altos revérberos, jorros pesados soprando e caindo,
seguiam um atrás do outro a cada segundo. Se me aventurasse mais perto,
poderia me ver jogado até a morte contra aqueles rochedos, ou gastando em vão
minhas forças na tentativa de escalar o penhasco batido pelas ondas.
Não bastasse isso, rastejando juntos sobre rochas chatas ou se deixando cair
no mar com grande estrépito, eu vi uns monstrões escorregadios parecidos com
lesmas incrivelmente grandes – quarenta ou sessenta deles, fazendo ecos nas
rochas com seus latidos.
Eu soube mais tarde que eram leões marinhos, completamente inofensivos.
Mas a aparência deles, somada à dificuldade da costa e à altura das ondas, foi
mais do que o bastante para me dar nojo daquele local. Eu estava mais disposto a
morrer de fome no mar do que enfrentar esses perigos.
Enquanto isso, suponho que havia uma oportunidade melhor à minha frente.
A norte do Pontal da Bolina, a terra corria por um longo caminho, deixando, na
maré baixa, uma longa faixa de areia amarela. Ao norte disso, de novo, havia
outro pontal – o Cabo das Matas, como estava anotado no mapa –, forrado de
pinheiros verdes, que desciam até a beira-mar.
Lembrei-me do que Silver dissera sobre a correnteza que seguia para norte
ao longo de toda a costa oeste da Ilha do Tesouro, e vendo da minha posição que
eu já estava sob efeito dela, preferi deixar o Pontal da Bolina para trás e
empregar minha força na tentativa de desembarcar no aparentemente mais gentil
Cabo das Matas.
Havia uma suave ondulação no mar. O vento soprava constante e brando do
sul, não havia conflito entre ele e a correnteza e as ondas cresciam e baixavam
sem quebrar.
Tivesse sido de outro modo, eu já teria morrido muito antes. Mas do modo
como estava, era de surpreender quão fácil e em segurança meu barquinho
seguia. Não raro, já que eu me mantinha deitado no fundo, sem dar mais que
uma espiada por cima da amurada, eu via um grande pico azulado erguendo-se
perto de mim, e então o coracle se sacudia um pouco, dançando como se
estivesse sobre molas, e descia do outro lado por entre as ondas tão leve quanto
um passarinho.
Depois de um tempo comecei a criar coragem e me sentei para testar minhas
habilidades no remo. Porém mesmo uma pequena mudança na distribuição do
peso produz alterações no comportamento de um coracle; mal movi o barco, ele
perdeu seu movimento calmo de dança, descendo direto por uma onda tão
grande que me deu vertigem, e com um borrifo de água afundou a ponta na
lateral da onda seguinte.
Eu estava encharcado e aterrorizado, e voltei na mesma hora para minha
posição anterior, no que o coracle pareceu encontrar seu caminho de novo e me
levou suave entre as ondas como antes. Ficou claro que ele não aceitaria
interferências e, nesse passo, uma vez que eu não podia interferir em seu
caminho, que esperanças teria de alcançar a terra?
Comecei a ficar apavorado, mas ao menos mantive a cabeça no lugar.
Primeiro, movendo-me com cuidado, gradualmente fui tirando a água do coracle
com meu boné; depois, ficando outra vez de olho por cima da amurada, pus-me a
estudar como ele fazia para se conduzir tão quieto por entre as ondas.
Descobri que as ondas, em vez das montanhas brilhantes e macias que
pareciam ser quando vistas da praia ou do convés de um navio, eram como
qualquer conjunto de colinas em terra firme, cheias de picos e vales e planícies.
Se deixado quieto, o coracle ia virando de um lado ao outro e costurava seu
caminho, por assim dizer, por entre as partes baixas, evitando assim as colinas
íngremes e os picos altos das ondas.
“Bem, então”, pensei comigo mesmo, “está claro que devo ficar deitado
como estou e não perturbar o equilíbrio. Mas também está claro que posso
colocar o remo de um lado e, de tempos em tempos, dar uma ou duas remadas na
direção da terra.” Foi pensar nisso e começar a fazer. Ali fiquei apoiado nos
cotovelos, numa posição bem desconfortável, e de vez em quando dava uma ou
duas remadas de leve para virar a proa na direção da costa.
Foi um trabalho lento e muito cansativo, mas eu visivelmente ganhava
terreno e, conforme fomos chegando perto do Cabo das Matas, ainda que eu
visse que ia irremediavelmente perder aquele ponto, ainda assim tinha percorrido
quase uns cem metros para leste. E, de fato, estava chegando perto. Podia ver as
copas das árvores balançando juntas ao vento, verdes e suaves, e tive certeza de
que alcançaria o próximo promontório sem falta.
Já era hora, pois agora eu começava a ser torturado pela sede. O brilho do
sol acima, sua miríade de reflexos sobre as ondas e a água do mar que havia
caído em mim e secado, cozinhando meus lábios com sal, se juntaram para fazer
minha garganta queimar e minha cabeça doer. A visão das árvores tão perto
quase me deixou doente de ansiedade; mas a correnteza logo me fez passar
daquele ponto e, conforme o próximo trecho de mar se abria, fui confrontado por
uma visão que mudou a natureza de meus pensamentos.
Bem à minha frente, a mais de meio quilômetro, vi o Hispaniola velejando.
Eu tinha certeza, claro, de que iríamos colidir, mas estava tão perturbado pela
necessidade de água que mal sabia se deveria ficar contente ou lamentar a ideia
e, muito antes de chegar a uma conclusão, a surpresa tomou conta inteiramente
da minha cabeça e não pude fazer nada além de olhar impressionado.
O Hispaniola estava com a vela principal e duas bujarronas abertas, e as
lindas lonas brancas brilhavam ao sol feito neve ou prata. Quando o vi pela
primeira vez, todas as velas estavam enfunadas e o navio rumando para noroeste,
e presumi que os homens a bordo estavam dando a volta pela ilha em direção ao
ancoradouro. Mas agora o navio começava a virar mais e mais para oeste, de
modo que pensei terem me avistado e que iriam me perseguir. Contudo, enfim,
ele se pôs contra o vento, foi puxado para trás e ficou ali à deriva, com as velas
balançando.
– Bando de patetas – disse eu. – Devem estar bêbados feito gambás. – E
pensei em como o capitão Smollett iria gostar de dar uma lição neles.
Entretanto a escuna foi aos poucos cortando a linha do vento, e acabou
mudando de bordo, velejando suave por um minuto ou mais até ficar outra vez
contra o vento. De novo e de novo isso se repetiu. Para a frente e para trás, para
cima e para baixo, norte, sul, leste e oeste, o Hispaniola navegava aos trancos e
barrancos, e cada repetição terminava como começava, com as velas balançando
soltas. Foi ficando claro para mim que ninguém o estava conduzindo. E se era
assim, onde estariam os homens? Ou estariam podres de bêbados ou o haviam
abandonado, pensei. Talvez, se eu conseguisse subir a bordo, poderia devolver o
navio para o capitão.
A correnteza estava trazendo o coracle e a escuna para o sul numa
velocidade igual. Quanto a esta última, se movia de modo tão selvagem e
intermitente e ficava tanto tempo parada que certamente não ganhava terreno,
talvez até perdesse. Se eu ousasse me sentar e remar, tinha certeza de que
poderia alcançá-la. O plano tinha ares de aventura que me inspiraram, e pensar
no barril de água que havia na gaiuta de proa redobrou minha coragem crescente.
Assim que me levantei, fui recebido por outro borrifo de água, mas dessa
vez mantive meu propósito, e me pus, com todas as forças e precauções, a remar
atrás do Hispaniola. A certa altura cruzei uma onda tão pesada que tive que parar
e tirar água, com o coração pulando feito passarinho. Mas aos poucos consegui
dar conta da coisa, e guiei meu coracle por entre as ondas, apenas de vez em
quando recebendo um golpe das ondas e um jorro de espuma na cara.
Agora estava me aproximando rápido da escuna. Podia ver brilhar o latão da
cana do leme, virando de um lado a outro, e ainda assim nenhuma alma apareceu
no convés. Não podia supor outra coisa que não ter sido desertada. Caso
contrário, os homens deviam estar caídos bêbados nos andares inferiores, onde
talvez eu pudesse derrubá-los e fazer o que eu quisesse com o navio.
Por algum tempo, ele fez o pior possível para mim: ficou parado. Claro que,
o tempo todo, ele apontava cada vez mais para o sul. Toda vez que pegava o
vento, as velas enfunavam, e isso lhe dava impulso por algum tempo. Eu disse
que isso era o pior possível para mim, pois nessa situação em que parecia
abandonado, com as lonas ressoando feito canhões e as polias balançando e se
batendo pelo convés, ele continuava a se afastar de mim, não somente pela
velocidade da correnteza, mas por todo seu movimento à deriva, que era
naturalmente grande.
Porém, enfim tive minha oportunidade. A brisa diminuiu por alguns
segundos, ficando muito baixa, e a correnteza aos poucos o virou, fazendo o
Hispaniola girar devagar em torno de si mesmo e enfim mostrar sua popa, com a
janela da cabine ainda aberta e o lampião sobre a mesa ainda aceso durante o dia.
A vela principal pendia inerte feito uma bandeira. Ele estava imóvel, senão pela
correnteza.
Nos últimos momentos eu havia perdido terreno, mas então redobrei meus
esforços e comecei outra vez a ganhar a corrida.
Eu ainda estava a mais de cem metros dele quando o vento veio outra vez de
supetão, o navio embicou na direção da ilha e lá se foi de novo, corcoveando e
deslizando feito uma andorinha.
Meu primeiro impulso foi de entrar em desespero, mas o segundo foi de
alegria. O navio virou até que seu costado estivesse voltado para mim – e
continuou girando até cobrir metade e então dois terços e então três quartos da
distância que nos separava. Eu podia ver as ondas espumando brancas sob a
linha-d’água. Ele me parecia imensamente alto, visto de minha posição no
coracle.
E então, de repente, comecei a entender. Mal tive tempo de pensar – mal tive
tempo de agir e me salvar. Eu estava no pico de uma onda quando a escuna veio
deslizando na seguinte. O mastro de gurupés estava sobre minha cabeça. Eu me
pus de pé e saltei, empurrando o coracle para debaixo d’água. Com uma mão
agarrei a retranca da bujarrona, enquanto meu pé se posicionou entre o cabo de
estai e seu suporte; e eu ainda estava pendurado lá, ofegando, quando um estouro
surdo me disse que a escuna havia passado por cima e afundado o coracle, e que
eu fora deixado sem saída do Hispaniola.
25

Faço baixar a Jolly Roger

E u mal tinha assegurado uma posição no gurupés quando a bujarrona


panejou e se enfunou para o outro lado, com um estrondo de canhão. A
escuna tremeu até a quilha com a inversão, mas no momento seguinte, com as
outras velas ainda enfunando, a bujarrona panejou de volta e parou.
Isso quase me arremessou no mar, então não perdi tempo em escalar o
gurupés e me jogar de cabeça no convés.
Eu estava no lado leste do castelo de popa, e a vela principal, que continuava
aberta, escondia de mim uma boa parte da coberta traseira. Não havia uma alma
à vista. O piso, que não era esfregado desde o motim, trazia as marcas de muitos
pés, e uma garrafa vazia, quebrada no gargalo, rolava para lá e para cá feito um
gato no saco.
De repente, o Hispaniola se virou contra o vento. A vela da bujarrona atrás
de mim bateu com força, o leme girou, o navio inteiro pareceu suspirar e se
arrepiar e, no mesmo instante, a verga do mastro principal girou por cima do
convés, fazendo a lona ranger nas escotas e abrindo minha visão para a coberta
traseira.
Ali estavam os dois vigias, claramente: o do gorro vermelho de costas, duro
feito um pau, com os braços abertos como num crucifixo e os dentes à mostra
entre os lábios; e Israel Hands tombado contra a amurada, com o queixo no
peito, as mãos caídas e abertas à frente no convés, e o rosto tão pálido por baixo
do bronzeado quanto cera de vela.
Por algum tempo o navio ficou saltando e deslizando feito um cavalo xucro,
as velas enfunando ora para um lado, ora para o outro, e a verga balançando para
cá e para lá até que o mastro rangesse alto sob a pressão. Uma ou outra vez,
também vinha uma nuvem de borrifos de água por sobre a amurada, e um baque
pesado da proa contra as ondas: o vendaval afetava mais um navio grande como
esse do que meu pequeno coracle caseiro, agora já no fundo do mar.
A cada pulo da escuna, Gorro Vermelho deslizava de um lado ao outro, mas
– o que era pavoroso de ver – nem sua postura nem o sorriso mostrando os
dentes eram de alguma forma perturbados por essa movimentação brusca. A
cada pulo, também, Hands parecia afundar mais em si mesmo e se deitar no
convés, os pés escorregando para a frente e o corpo se inclinando na direção da
proa, de tal modo que seu rosto, aos pouquinhos, se escondeu de mim, e por fim
eu não podia ver nada além de sua orelha e da ponta encaracolada das suíças.
Ao mesmo tempo observei, ao redor dos dois, manchas de sangue escuro
sobre as tábuas, e comecei a achar que eles tivessem matado um ao outro em sua
ira bêbada.
Enquanto eu estava assim olhando e pensando, num momento calmo
enquanto o navio estava parado, Israel Hands virou-se parcialmente de lado e,
com um grunhido baixo, voltou à posição original em que eu o tinha visto
primeiro. O grunhido, que denotava dor e fraqueza mortais, e o modo como sua
mandíbula se abriu, me deixaram com pena. Mas quando lembrei da conversa
que escutara no barril de maçãs, toda pena foi embora.
Caminhei até alcançar o mastro principal.
– Suba a bordo, sr. Hands – eu disse, irônico.
Ele revirou os olhos devagar, mas estava alterado demais para expressar
surpresa. Tudo o que conseguiu fazer foi murmurar uma palavra.
– Conhaque…
Nesse momento me ocorreu que não havia tempo a perder e, me esquivando
da verga quando ela passou outra vez por sobre o convés, deslizei por baixo dela
e desci a escada da gaiuta até a cabine.
Era uma cena de confusão que você mal pode imaginar. Todos os lugares
chaveados foram arrebentados na busca pelo mapa. O chão estava sujo de lama,
onde os rufiões haviam se sentado para beber ou conversar após vaguear pelos
pântanos ao redor do campo. Os tabiques, todos pintados de branco e com
enfeites dourados, exibiam marcas de mãos sujas. Dúzias de garrafas vazias
batiam umas contra as outras nos cantos com o balanço do navio. Um dos livros
de medicina do doutor estava aberto sobre a mesa, com metade das folhas
arrancadas – suponho, para acender cachimbos. No meio disso tudo, o lampião
ainda lançava um brilho fosco, esfumaçado e ocre como terra.
Entrei na adega. Todos os barris tinham sido levados, e um número
surpreendente das garrafas foram bebidas e jogadas fora. Certamente, desde que
o motim começara, nem um único homem dentre eles devia ter ficado sóbrio.
Buscando ao redor, encontrei uma garrafa com algum conhaque ainda, para
Hands. Para mim mesmo peguei alguns biscoitos, frutas em conservas, uma
grande porção de passas e um pedaço de queijo. Com isso voltei para o convés,
guardei minhas provisões atrás da cana do leme e, bem longe do alcance do
timoneiro, fui até o barril de água na proa e bebi uma boa quantidade de água.
Então, só depois disso, dei o conhaque para Hands.
Ele bebeu tudo de um gole só antes de afastar a garrafa da boca.
– Sim – disse ele –, com mil trovões, como eu queria isso!
Eu já havia me sentado no meu próprio canto e começado a comer.
– Muito ferido? – perguntei a ele.
Ele grunhiu, ou talvez deva dizer, ele latiu.
– Se aquele médico estivesse a bordo – disse ele –, eu logo ficava bem; mas
não tenho sorte, olha só, e esse é o problema comigo. Quanto a esse paspalho aí,
ele tá bem morto, já era – acrescentou, indicando o homem do gorro vermelho. –
Ele não prestava para marinheiro, de qualquer modo. E de onde diabos você
saiu?
– Bem – eu disse –, vim a bordo para tomar posse deste navio, sr. Hands. E o
senhor por favor se dirija a mim como seu capitão até aviso contrário.
Ele me deu um olhar azedo, mas não disse nada. Alguma cor voltou às suas
bochechas, embora ainda parecesse bastante adoentado, e continuava a
escorregar e se acomodar conforme o navio balançava.
– A propósito – continuei –, não posso suportar essa bandeira, sr. Hands,
então, com sua licença, vou baixá-la. Melhor não ter nenhuma do que essa.
E outra vez desviando da verga, fui até os cordões, baixei a maldita bandeira
negra e a joguei pela amurada.
– Deus salve o rei! – eu disse, balançando meu boné. – E que se ponha um
fim no capitão Silver!
Ele ficou me olhando, esperto e dissimulado, com o queixo o tempo todo no
peito.
– Reconheço… – falou enfim –, reconheço, capitão Hawkins, que você deve
querer ir para a costa agora. Vamos conversar.
– Ora, sim – eu disse –, e com todas as minhas forças, sr. Hands. Fale. – E
voltei para meu lanche com um bom apetite.
– Esse homem – ele começou, apontando debilmente o cadáver –, seu nome
era O’Brien… um irlandês qualquer… esse homem e eu levantamos as velas,
pensando em fazer o navio voltar. Bem, ele está morto agora, está sim…
mortinho da silva. E quem vai navegar esse navio, não sei dizer. Mas só te digo
isso, não será você, até onde sei. Agora, olhe só, você me dá comida e bebida e
um cachecol velho ou lenço com que eu possa atar minha ferida, você faz isso, e
eu lhe digo como navegar o navio e, se estiver bom para os dois, eu topo.
– Vou lhe dizer uma coisa – falei. – Não vou voltar para o ancoradouro do
capitão Kidd. Minha ideia é ir até a Baía Norte e deixar o Hispaniola ancorado
quietinho lá.
– É claro que vai – bradou ele. – Ora, não sou idiota assim. Eu entendi, não
entendi? Tentei minha sorte, tentei sim, e perdi, e você se saiu melhor. Baía
Norte? Ora, não tenho escolha, não eu! Eu o ajudaria a levar o navio até a Doca
de Execuções46, com mil trovões! Então aceito.
Bem, para mim isso parecia fazer certo sentido. Fechamos nosso acordo na
hora. Em três minutos, pus o Hispaniola a velejar com facilidade de vento em
popa ao longo da costa da Ilha do Tesouro, com boas esperanças de contornar o
ponto mais ao norte perto do meio-dia e depois seguir adiante até a Baía Norte
antes da maré alta, quando poderíamos chegar à praia em segurança e aguardar a
maré subir para desembarcar.
Então amarrei a cana do leme e desci até meu próprio baú, onde eu tinha um
lenço de seda macio que era de minha mãe. Com ele, e com minha ajuda, Hands
atou a ferida sangrenta da facada que levara na coxa e, depois de ter comido um
pouco e bebido um gole ou dois de conhaque, começou a se recompor
visivelmente, endireitou-se, falou de modo claro e alto, e parecia em tudo um
outro homem.
A brisa nos favoreceu admiravelmente. Com ela, deslizamos feito um
passarinho, a costa da ilha passando rápido e a paisagem mudando a cada
minuto. Logo havíamos passado as terras altas e corremos ao lado de uma terra
baixa e arenosa, salpicada de pinheiros anões esparsos, então a deixamos para
trás e dobramos a ponta da colina rochosa que encerrava a ilha ao norte.
Eu estava eufórico com meu novo comando, contente com o clima
ensolarado e brilhante e todas aquelas visões diferentes da costa. Tinha agora
muita água e coisas boas para comer, e minha consciência, que havia me batido
forte por minha deserção, foi tranquilizada pela grande conquista que eu havia
feito. Eu não devia ter nada mais com que me preocupar, pensei, senão os olhos
do timoneiro que me seguiam ironicamente pelo convés e o sorriso esquisito que
aparecia continuamente em seu rosto. Era um sorriso que continha em si algo
tanto de dor como de fraqueza – o olhar de um velho cansado. Mas, além disso,
havia em sua expressão uma pitada de zombaria, uma sombra de traição,
enquanto ele me olhava e olhava e olhava conforme eu fazia meu trabalho.
26

Israel Hands

O vento, como se atendendo a nossos desejos, soprava agora para oeste.


Assim podíamos navegar com muito mais facilidade da ponta nordeste da
ilha até a boca da Baía Norte. No entanto, como não tínhamos capacidade de
ancorar, e eu não ousaria encalhar na praia antes que a maré tivesse subido bem
mais, o tempo escorria por nossas mãos. O timoneiro me disse como manter o
navio parado, após várias tentativas eu consegui, e nós dois nos sentamos em
silêncio para outra refeição.
– Capitão – disse enfim, com aquele mesmo sorriso desconfortável –, o meu
velho comparsa aqui, O’Brien, suponho que o senhor terá que jogá-lo pela
amurada. Não que seja uma regra, e não me culpo por ter dado cabo dele, mas
não acho ele um bom enfeite, o senhor não concorda?
– Eu não sou forte o bastante, e não gosto do trabalho. Por mim ele fica ali –
disse eu.
– Este Hispaniola é um navio azarado, Jim – continuou, piscando. – Há uma
boa quantidade de homens morrendo neste Hispaniola… um bom número de
pobres marujos mortos desde que você e eu subimos a bordo em Bristol. Nunca
vi tanto azar, não eu. Aqui está O’Brien agora… ele está morto, não é? Bem,
então, não sou nenhum erudito, e você é um rapaz que sabe ler e contar… para
deixar bem claro, acha que um homem morto está morto de vez ou que ele volta
à vida de novo?
– Você pode matar o corpo, sr. Hands, mas não o espírito, já deveria saber
disso – retruquei. – O O’Brien ali já está em outro mundo, talvez nos
observando.
– Ah – disse ele. – Bem, isso é uma pena… faz parecer que matar o pessoal
é perda de tempo. Contudo, espíritos não valem grande coisa, pelo que já vi. Vou
me arriscar com os espíritos, Jim. E agora, já que estamos sendo sinceros, seria
uma gentileza sua se descesse lá naquela cabine e me trouxesse uma… bem,
uma… raios me partam! Não consigo lembrar o nome. Bem, me traga uma
garrafa de vinho, Jim… esse conhaque aqui é muito forte para a minha cabeça.
A hesitação do timoneiro parecia ser fingida e, quanto à noção de que ele
preferisse vinho a conhaque, não acredito nem um pouco. A história toda era um
pretexto. Ele queria que eu deixasse o convés – isso estava claro. Mas com que
propósito, eu não conseguia imaginar. Seus olhos nunca encontravam os meus;
ficavam indo para lá e para cá, para cima e para baixo, ora olhando para o céu,
ora dando um olhar de esguelha para o corpo de O’Brien. O tempo todo ele
sorria, e colocava a língua para fora de um jeito constrangido e culposo, de tal
modo que até uma criança veria que se direcionava para algum ardil. Contudo,
dei uma resposta positiva, pois vi onde residia minha vantagem, e que com um
camarada tão densamente burro eu poderia facilmente esconder minhas suspeitas
até o fim.
– Um vinho? – eu disse. – Bem melhor. Você prefere branco ou tinto?
– Bem, devo dizer que para mim é tudo a mesma coisa, parceiro – respondeu
ele. – Contanto que seja forte, e seja muito, qual a diferença?
– Tudo bem – respondi. – Eu lhe trarei um vinho do Porto, sr. Hands. Mas
vou ter que procurar por um.
Com isso, desci a escada da gaiuta fazendo todo o barulho que podia, tirei os
sapatos, corri em silêncio ao longo do corredor estreito, subi a escada do castelo
de proa e botei a cabeça para fora da escotilha. Eu sabia que ele não esperaria me
ver ali. Ainda assim tomei toda precaução possível, e certamente a pior de
minhas suspeitas se mostrou verdadeira.
Ele havia se erguido de sua posição sobre mãos e joelhos e, mesmo que sua
perna obviamente doesse bastante quando ele se movia – pois eu podia escutá-lo
abafar um gemido –, ainda assim foi num bom ritmo que ele se arrastou ao longo
do convés. Em meio minuto ele alcançou os embornais de bombordo e pegou, de
dentro de um rolo de corda, uma faca comprida, ou talvez um punhal curto, sujo
até o cabo com sangue. Ele o observou por um momento, movendo o queixo
para a frente, testou a ponta na mão, e então, rapidamente o escondendo por
baixo do casaco, voltou para o lugar onde estava, contra a amurada.
Isso era tudo o que eu precisava saber. Israel conseguia andar e agora estava
armado. E, se tinha se dado ao trabalho de se livrar de mim, estava claro que eu
seria a vítima. O que ele faria depois – tentar se arrastar da Baía Norte ao longo
da ilha até o acampamento nos pântanos ou disparar o Tom Grandão, confiando
que seus próprios comparsas chegariam primeiro para vir ajudá-lo – era, claro,
mais do que eu poderia dizer.
Mesmo assim eu tinha certeza de que podia confiar nele num ponto, uma vez
que nisso nossos interesses se uniam, e era a disposição da escuna. Ambos
desejávamos encalhá-la em segurança, num lugar abrigado, de modo que,
quando chegasse a hora, ela pudesse ser desencalhada com o mínimo de trabalho
e perigo possível, e até que isso fosse feito eu considerava que minha vida seria
certamente poupada.
Enquanto eu ficava revirando o assunto na cabeça, não fiquei ocioso com
meu corpo. Corri de volta à cabine, calcei outra vez os sapatos, peguei a esmo
uma garrafa de vinho, e agora, tendo isso como desculpa, fiz minha reentrada no
convés.
Hands estava como eu o havia deixado, todo amontoado no convés, com as
pálpebras caídas como se estivesse fraco demais para suportar a luz. Contudo,
ele ergueu o rosto à minha entrada, agarrou o gargalo da garrafa feito alguém
que já fizera aquilo muitas vezes, e tomou um bom gole, com seu brinde favorito
de “à boa sorte!”. Então ficou quieto por um tempo, e depois, puxando um rolo
de tabaco, pediu que eu lhe cortasse uma libra.
– Corta um pedaço disso pra mim – disse ele – que eu tô sem faca e mal
tenho força, do jeito que estou. Ah, Jim, Jim. Reconheço que estou nas últimas!
Corta um pedaço, provavelmente vai ser o último, rapaz, que já estou de partida,
pode crer.
– Bem – eu disse –, eu corto para você algum tabaco, mas se fosse você e
achasse que estivesse tão mal, eu iria querer fazer minhas preces, como um
cristão.
– Por quê? – perguntou ele. – Vamos, me diz o porquê.
– Por quê? – bradei. – Agora mesmo você estava me perguntando sobre os
mortos. Vocês traíram sua palavra, viveram em pecado e mentiras e violência, ali
mesmo está a seus pés um homem que você matou, e me pergunta o porquê!
Pela piedade de Deus, sr. Hands, é esse o motivo.
Falei de modo um pouco acalorado, pensando no punhal sangrento que ele
tinha escondido no bolso, destinado, em sua má intenção, a dar cabo de mim.
Ele, da sua parte, tomou um gole grande do vinho e falou com uma solenidade
muito incomum.
– Por trinta anos – disse ele – eu naveguei os mares, e vi coisas boas e ruins,
melhores ou piores, tempo bom e vendaval, provisões acabando, facas voando, e
sei lá mais o quê. Bem, lhe digo isso agora, ainda não vi nada de bom vir da
bondade. Atirar primeiro é o meu lema, que homem morto não morde. É como
eu vejo… e que assim seja, amém. E agora, olha só aqui – acrescentou, mudando
seu tom de súbito –, já chega dessa bobagem. A maré já está boa o bastante
agora. O senhor apenas segue minhas ordens, capitão Hawkins, e vamos navegar
direto para lá e acabar com isso.
Tínhamos ainda três quilômetros a percorrer, mas a navegação era delicada.
A entrada no ancoradouro ao norte não era só estreita e rasa, mas ondulava a
leste e oeste, de tal modo que a escuna deveria ser muito bem conduzida para
entrar. Acho que eu era um subalterno bom e apto, e tenho certeza de que Hands
era um excelente piloto, pois nós fomos de um lado ao outro, desviando dos
bancos de areia, com uma confiança e precisão que dava gosto de ver.
Mal havíamos passado das pontas quando a terra se fechou ao nosso redor. A
costa da Baía Norte era tão densa de árvores quanto as do ancoradouro sul. Mas
o espaço era mais comprido e estreito e mais parecido com o estuário de um rio,
o que de fato era. Bem à nossa frente, na ponta sul, vimos o esqueleto de um
navio nos últimos estágios de dilapidação. Havia sido uma grande nau de três
mastros, mas ficara por tanto tempo exposta às intempéries do tempo que algas
marinhas pendiam dela em grandes teias, e no convés alguns arbustos haviam se
enraizado e agora floresciam. Era uma visão triste, mas nos mostrava que o
ancoradouro era tranquilo.
– Agora – disse Hands –, olha só, ali tem um lugarzinho ótimo para encalhar
um navio. Areia fina da boa, sem nenhuma onda, com árvores ao redor, e flores
se abrindo feito um jardim naquele navio velho.
– E uma vez encalhado – perguntei –, como faremos para tirá-lo daqui?
– Ora, bem – respondeu ele –, você leva uma corda para a praia ali do outro
lado na maré baixa, dá uma volta em algum pinheiro grande, traz de volta, dá
uma girada nela no cabrestante, e espera vir a maré. Quando ela subir, todos a
bordo dão um puxão na corda e o navio sai bem feliz da vida. E agora, menino,
firme no leme. Estamos quase no ponto agora, e ele está indo rápido demais. Um
pouco para estibordo… assim… firme… estibordo… um pouco a bombordo…
firme… firme!
Assim ele ordenou, e eu obedeci sem fôlego, até que, de repente, ele gritou:
– Agora, meu guri, orce!
Puxei o leme com força, e o Hispaniola deu uma volta rápida e foi direto
para a margem baixa e cheia de árvores.
De certo modo, a agitação dessa última manobra atrapalhou a vigilância que
eu mantinha, até então bem constante, sobre o timoneiro. Eu estava tão
concentrado, esperando o navio tocar a areia, que havia quase esquecido do
perigo que pairava sobre minha cabeça, e fiquei inclinado sobre a amurada
observando a água se agitar debaixo da quilha. Eu teria morrido sem lutar, se não
fosse a súbita inquietação que me tomou e me fez virar a cabeça. Talvez eu tenha
escutado um ranger, visto sua sombra mover-se pelo canto dos olhos, ou talvez
fosse um instinto como o dos gatos, mas, quando olhei ao redor, ali estava
Hands, já a meio caminho na minha direção, com o punhal na mão direita.
Acho que nós dois gritamos quando nossos olhos se encontraram, mas
enquanto o meu foi um grito agudo de terror, o dele foi um rugido de fúria como
o de um touro avançando. No mesmo instante, ele se atirou para a frente e eu
pulei de lado na direção da proa. Ao fazer isso, larguei a cana do leme, que virou
rápido para bombordo. E acho que foi o que salvou minha vida, pois ela atingiu
Hands bem no peito e o deteve por um instante.
Antes que ele pudesse se recuperar, eu já havia escapado do canto onde ele
me encurralara, tendo todo o convés para fugir. Parei bem à frente do mastro
principal, puxei a pistola do bolso, fiz mira com calma – ainda que ele já tivesse
se virado e mais uma vez viesse direto atrás de mim – e apertei o gatilho. O cão
da arma bateu na caçoleta, mas não houve nem faísca nem estouro, pois a
pólvora fora inutilizada pela água do mar. Eu me amaldiçoei por minha
negligência. Por que eu não havia, muito antes, limpado e recarregado minhas
únicas armas? Tivesse feito isso, não estaria assim naquele instante, uma mera
ovelha na frente daquele açougueiro.
Ferido como ele estava, era espantoso quão rápido podia se mover, com seu
cabelo grisalho caindo sobre a face e o próprio rosto vermelho como uma
bandeira de tanta fúria e agitação. Eu não tinha tempo de tentar minha outra
pistola, nem, tampouco, muita intenção, pois tinha certeza de que seria inútil.
Uma coisa eu sabia: eu não deveria só fugir dele, ou ele rapidamente iria me
encurralar na proa, assim como pouco antes havia me encurralado na popa. Se
me pegasse, vinte centímetros daquele punhal ensanguentado seriam minha
última experiência neste lado da eternidade. Apoiei as mãos contra o mastro
principal, que era bem grande, e esperei, com cada nervo no limite.
Vendo que eu pretendia me esquivar, ele também parou, e um momento ou
dois se passaram com ele fazendo menção de atacar e movimentos
correspondentes da minha parte. Era um jogo como eu muito já havia jogado
entre as pedras lá da Baía do Morro Negro. Porém nunca antes, pode ter certeza,
com o coração batendo tão rápido quanto agora. Mesmo assim, como eu disse,
era um jogo de meninos, e achei que podia dar conta dele, contra um marinheiro
velho com uma perna machucada. De fato, minha coragem começara a crescer
tanto que me permiti alguns pensamentos ousados sobre como se daria o fim da
questão. E ainda que eu tivesse certeza de que poderia desviar dele por algum
tempo, não vi nenhuma esperança de uma fuga definitiva.
Bem, enquanto as coisas estavam assim, de repente o Hispaniola bateu em
algo e tremeu, arrastou-se por um instante na areia e então, suave feito um sopro,
inclinou-se para bombordo, até que o convés ficasse num ângulo de 45 graus e
uma boa porção de água entrasse pelos embornais, ficando feito um laguinho
entre o convés e a amurada.

Nós dois emborcamos de lado num segundo, e ambos rolamos, quase juntos,
até os embornais. O corpo de Gorro Vermelho, com os braços ainda abertos,
passou suave entre nós. Estávamos de fato tão perto que minha cabeça bateu no
pé do timoneiro, com um baque que fez meus dentes trincarem. Apesar de tudo,
fui o primeiro a me pôr de pé, pois Hands ficou envolvido com o cadáver. A
inclinação súbita do navio não fez do convés um lugar onde era possível correr.
Eu precisava encontrar um novo modo de fugir, e logo, pois meu inimigo estava
quase me tocando. Rápido como um raio, pulei para as enxárcias47 do mastro de
mezena, fui colocando uma mão na frente da outra e não parei para respirar até
que estivesse sentado no cesto de gávea.
Fui salvo por ser rápido – o punhal cravou-se nem quinze centímetros abaixo
de mim enquanto eu fugia para cima, e ali ficou Israel Hands de boca aberta e o
rosto erguido para o meu, uma perfeita escultura de surpresa e decepção.
Agora que eu tinha tempo para pensar, não perdi tempo em preparar minha
pistola, e então, tendo uma pronta para uso, e para ter uma garantia, me pus a
tirar a carga da outra e recarregá-la desde o começo.
Essa nova operação deixou Hands arrepiado. Ele começou a ver os dados
jogando contra ele; após uma hesitação óbvia, também se agarrou pesadamente
às enxárcias e, com o punhal entre os dentes, se pôs a subir devagar e
dolorosamente. Custou-lhe um bocado de tempo e gemidos para subir com a
perna ferida, e eu já tinha calmamente terminado meus arranjos antes que ele
chegasse a um terço da subida. Então, com uma pistola em cada mão, eu me
dirigi a ele:
– Mais um passo, sr. Hands – eu disse –, e arrebento seus miolos! Homem
morto não morde, você sabe – acrescentei com uma risadinha.

Ele parou na mesma hora. Pude ver por sua expressão que ele tentava pensar,
e o processo era tão lento e trabalhoso que, em minha recém-encontrada
segurança, gargalhei alto. Por fim, engolindo em seco, ele falou, com o rosto
ainda mantendo a expressão de extrema perplexidade. Para conseguir falar,
precisou tirar a adaga da boca, mas em tudo o mais permaneceu imóvel.
– Jim, reconheço que estamos enrolados aqui, eu e você, e temos que fazer
um acordo. Eu teria dado conta de você não fosse aquela virada, mas eu não
tenho sorte, não eu. E reconheço que vou ter que baixar as velas, o que é dureza,
veja só, de um mestre marinheiro como eu para um moleque de navio como
você, Jim.
Eu estava degustando suas palavras e sorrindo, tão vaidoso quando um galo
empoleirado no muro, quando, num suspiro, sua mão direita foi para trás por
sobre o ombro. Algo cortou o ar feito uma flecha, senti um golpe e então uma
dor aguda, e ali fui pregado ao mastro pelo ombro. Na dor horrível e na surpresa
do momento – mal posso dizer que foi por vontade própria, e tenho certeza que
foi sem fazer mira –, minhas duas pistolas dispararam, e ambas caíram de
minhas mãos. Elas não caíram sozinhas. Com um grito engasgado, o timoneiro
soltou as enxárcias e caiu de cabeça na água.
27

“Reais de oito”

D evido à inclinação do navio, os mastros quase tocavam na água, e de meu


ponto no cesto de gávea eu não tinha nada debaixo de mim senão a
superfície da baía. Hands, que não chegara muito no alto, estava, por
consequência, mais perto do navio, e caiu no espaço entre mim e a amurada. Ele
veio à tona num borbulhar de espuma e sangue, então afundou de vez. Quando
as águas se acalmaram, pude vê-lo encolhido no fundo da areia limpa e
brilhante, à sombra da lateral do navio. Um ou dois peixes passaram por seu
corpo. Às vezes, por causa da ondulação da água, ele parecia se mover um
pouco, como se tentasse se levantar. Mas estava bem morto, afinal de contas,
tendo sido alvejado e afogado, e virou comida de peixe no mesmo lugar em que
havia planejado minha morte.
Assim que tive certeza disso comecei a me sentir enjoado, fraco e assustado.
Sangue quente escorria por minhas costas e meu peito. O punhal, que havia
pregado meu ombro no mastro, parecia queimar feito ferro quente; ainda assim,
não eram tanto esses sofrimentos reais que me perturbavam, pois estes, me
pareceu, eu conseguia suportar sem um gemido, mas sim o medo que eu tinha de
despencar do cesto de gávea naquela água verde parada, ao lado do corpo do
timoneiro.
Eu me agarrei com as duas mãos até minhas unhas doerem, e fechei os olhos
como se pudesse me esconder do perigo. Aos poucos recobrei a cabeça, meu
pulso baixou para um ritmo mais natural, e eu voltei a mim.
A primeira coisa em que pensei foi arrancar o punhal, mas ou estava preso
com muita força ou não tive coragem, e desisti num estremecer violento.
Estranhamente, esse estremecer deu conta do trabalho. A faca, na realidade,
passou perto de me errar por completo, me prendendo apenas por um dedinho de
pele, e isso o meu estremecimento fez rasgar. O sangue escorreu rápido, isso é
certo, mas eu era mestre de mim mesmo outra vez e preso ao mastro apenas pelo
meu casaco e camisa.
Destes dois me livrei com um puxão súbito, então voltei para o convés pelas
enxárcias de estibordo. Por nada no mundo eu teria me aventurado, abalado
daquele jeito, a descer dependurado nas enxárcias de bombordo das quais Israel
havia caído.
Eu desci e fiz o que pude por minha ferida. Doeu um bocado, e ainda
sangrava bastante, mas não era nem profunda nem perigosa, nem me
incomodava muito quando usava o braço. Então olhei ao meu redor e, como
agora o navio de certo modo era meu, comecei a pensar em livrá-lo de seu
último passageiro – O’Brien, o morto.
Ele havia caído, como eu disse, contra a amurada, onde ficou como algum
tipo horrível de marionete – em tamanho natural, sim, mas quão diferente das
cores e aparência de algo vivo! Naquela posição eu conseguia facilmente chegar
até ele e, como o hábito das aventuras trágicas já espantara quase todo meu
medo dos mortos, eu o peguei pela cintura como se ele fosse um saco de farelo e,
com um bom impulso, o joguei pela amurada. Ele caiu num mergulho
barulhento, o gorro vermelho escapou e ficou flutuando na superfície e, assim
que a água se acalmou, pude ver ele e Israel caídos lado a lado, ambos
ondulando com o trêmulo movimento da água. O’Brien era careca, ainda que
fosse bastante jovem. E ali ficou, com aquela cabeça careca aos joelhos do
homem que o havia matado, e os peixinhos indo e vindo rápidos sobre ambos.
Agora eu estava sozinho no navio, e a maré acabara de virar. O sol estava tão
perto de se pôr que a sombra dos pinheiros sobre a costa oeste já começara a se
esticar ao longo do ancoradouro e cair em padrões sobre o convés. A brisa
vespertina se levantou e, apesar de estar bem resguardado pela colina com os
dois picos a oeste, o cordame começou a cantar baixinho consigo mesmo, e as
velas ociosas, a bater para a frente e para trás.
Comecei a ver o perigo para o navio. Rapidamente soltei as escotas da
bujarrona e a trouxe para o convés, mas a vela principal foi uma questão mais
difícil. É claro, quando a escuna se inclinou, a retranca girou para fora, deixando
a ponta e meio metro de vela debaixo d’água. Achei que isso tornava a coisa
ainda mais perigosa; ainda assim, a tensão na vela era tão forte que temi mexer
nela. Por fim, peguei minha faca e cortei as adriças48. A ponta se soltou no
mesmo instante, e uma grande bolsa de lona flutuou larga sobre a água; e então,
por mais que eu puxasse, não conseguia mexer a base da vela. Isso foi tudo que
consegui fazer. Quanto ao resto, o Hispaniola teria que confiar na sorte, como eu
mesmo.
A essas alturas todo o ancoradouro havia caído nas sombras – os últimos
raios, eu lembro, caíam sobre uma clareira na mata e brilhavam vivos como joias
no manto florido dos destroços do naufrágio. Comecei a sentir frio; a maré
estava fugindo rapidamente na direção do mar, e a escuna, se acomodando mais
e mais em seu costado.
Rastejei até a proa e olhei ao redor. Pareceu raso o bastante e, segurando a
amarra cortada com as duas mãos como última segurança, me deixei cair
suavemente para fora. A água mal chegava à minha cintura, a areia era firme e
coberta de marcas onduladas, e caminhei até a costa bem animado, deixando o
Hispaniola de lado, com sua vela principal espalhando-se larga por sobre a
superfície da baía. Na mesma hora, o sol se pôs e a brisa soprou baixa no
crepúsculo entre os pinheiros agitados.
Ao menos, e até que enfim, eu havia saído do mar, e tampouco voltaria de
mãos vazias. Ali estava a escuna, livre enfim dos bucaneiros e pronta para que
nossos próprios homens subissem a bordo e partissem para o mar outra vez. Não
tinha coisa que eu desejasse mais do que voltar para a paliçada e me gabar de
meus feitos. Provavelmente eu levaria um puxão de orelhas por minha
molecagem, mas a recaptura do Hispaniola era uma resposta de peso, e eu
esperava que mesmo o capitão Smollett concordasse que eu não havia
desperdiçado meu tempo.
Assim pensativo, e bem animado, comecei a me pôr na direção familiar da
cabana de madeira e de meus companheiros. Eu lembrava que o rio mais a leste
dos que desaguavam no ancoradouro do capitão Kidd partia da colina de dois
picos à minha esquerda. Voltei naquela direção a fim de cruzar o curso d’água
quando este ainda estivesse pequeno. A mata era bem aberta e, me mantendo ao
longo dos contrafortes baixos, logo dobrei a ponta daquela colina e, não muito
depois, atravessei o riacho com água pelos joelhos.
Isso me trouxe para perto de onde eu havia encontrado Ben Gunn, o ilhado.
Caminhei com mais discrição, ficando de olho em cada canto. A noite já havia
caído e, assim que cruzei a garganta entre os dois picos, tomei nota de um brilho
ondulando contra o céu, onde, julgava eu, o homem da ilha estava cozinhando
seu jantar frente a uma fogueira. Cheguei até a me perguntar se ele devia se
deixar ver assim de modo tão descuidado. Pois, se eu podia ver essa
luminescência, não poderia chegar aos olhos do próprio Silver, lá onde ele havia
acampado na costa entre os pântanos?
Aos poucos a noite foi ficando mais escura, e eu fiz o que podia para me
guiar rumo a meu destino. A colina dupla atrás de mim e o Morro da Luneta à
minha direita iam se distanciando aos poucos. As estrelas eram poucas e pálidas
e, no terreno baixo por onde passava, fiquei tropeçando em arbustos e rolando
por bancos de areia.
De repente, um tipo de claridade recaiu sobre mim. Olhei para cima: um
pálido lume de luar havia se acendido no topo do Morro da Luneta, e logo em
seguida vi algo largo e prateado movendo-se devagar por entre as árvores, e
soube que a lua se erguera.
Com a luz para me ajudar, cruzei rápido pelo que restava de minha jornada,
às vezes caminhando, às vezes correndo, e me aproximando impaciente da
paliçada. Contudo, quando comecei a penetrar o arvoredo que ficava logo antes
dela, não fui tão descuidado; diminuí o passo e fui andando com cautela. Teria
sido um fim bem pobre para minhas aventuras levar um tiro de minha própria
turma por engano.
A lua estava subindo cada vez mais alto. Sua luz começou a recair aqui e ali
em blocos sobre as áreas mais abertas da mata, e bem na minha frente um brilho
de uma cor diferente apareceu entre as árvores. Era vermelho e quente, e uma
vez ou outra um pouco escurecido – como as brasas de uma fogueira
esmorecendo.
Por tudo quanto era mais sagrado, eu não conseguia imaginar o que podia
ser.
Afinal, cheguei bem nas bordas da clareira. A parte oeste já estava banhada
de luar. O resto, e a própria cabana, ainda jaziam sob uma sombra escura
pontuada por longos riscos prateados de luz. Do outro lado da casa uma imensa
fogueira havia queimado até só sobrarem brasas e lançava uma reverberação
contínua e vermelha, contrastando fortemente com a palidez suave da lua. Não
havia indício de vivalma, nem um som além do barulho da brisa.
Parei, com muita curiosidade e talvez um pouco de medo. Não era nosso
hábito fazer grandes fogueiras. Na realidade, por ordens do capitão, éramos de
certo modo avarentos com a lenha, e comecei a temer que algo tivesse dado
errado enquanto eu estivera ausente.
Dei a volta pelo lado oeste, me mantendo nas sombras; num ponto
conveniente onde a escuridão era mais forte, cruzei a paliçada.
Para ter mais segurança, fiquei sobre mãos e joelhos e engatinhei, sem fazer
barulho, na direção do canto da casa. Quando cheguei perto, meu coração de
súbito ficou mais leve. Não é por si só um barulho agradável, e eu tinha com
frequência reclamado dele em outras ocasiões, mas agora era como música
escutar meus amigos roncando juntos tão alto e com tanta paz em seu sono. O
grito dos vigias em alto-mar, aquele lindo “tudo está bem”, nunca foi tão
reconfortante em meus ouvidos quanto isto.
Ao mesmo tempo, não havia dúvida quanto a uma coisa: eles mantinham
vigília terrivelmente mal. Se fossem Silver e seus rapazes rastejando agora na
direção deles, nenhuma alma teria visto a luz do dia. Era o que dava, pensei eu,
ter o capitão ferido. E outra vez me culpei fortemente por tê-los deixado naquele
perigo com tão poucos para montar guarda.
A essas alturas eu havia chegado até a porta e parado. Tudo estava escuro lá
dentro, de modo que não conseguia distinguir nada só de olhar. Quanto ao
barulho, havia o zumbido regular dos roncadores e um barulhinho ocasional, um
farfalhar ritmado, que eu não conseguia identificar.
Com os braços à frente caminhei direto para dentro. Eu deveria me deitar no
meu próprio canto (pensei eu, com uma risadinha silenciosa) e apreciar suas
caras quando me encontrassem pela manhã.
Meu pé bateu em algo mole – era a perna de um dorminhoco – e ele se virou
e grunhiu, mas não acordou.
Então, de repente, uma voz aguda irrompeu pela escuridão:
– Reais de oito! Reais de oito! Reais de oito! Reais de oito! Reais de oito! –
e assim por diante, sem pausa ou mudança, como o girar de um pequeno
moinho.
Capitão Flint, o papagaio verde de Silver! Era ele que eu escutava bicando
num pedaço de casca. Foi ele quem, mantendo uma vigília melhor que qualquer
ser humano, anunciou minha chegada com seu refrão cansativo.
Não tive tempo para me recuperar. Com o tom agudo e cortante do papagaio,
os dorminhocos acordaram e se levantaram e, com seu vozeirão, Silver bradou:
– Quem vem lá?
Eu me virei para correr, bati com força em alguém, recuei, e corri direto para
os braços de um segundo, que, por sua vez, se fecharam e me seguraram com
força.
– Traz uma tocha, Dick – disse Silver, quando minha captura foi assegurada.
E um dos homens saiu da cabana, retornando com um galho aceso.
Parte VI
CAPITÃO SILVER
28

No acampamento inimigo

O brilho vermelho da tocha, iluminando o interior da cabana, mostrou as


minhas piores apreensões realizadas. Os piratas estavam em posse da
casa e dos mantimentos: ali estava o barril de conhaque, ali estavam o pão e a
carne de porco, como antes. E, o que aumentou ainda mais meu horror, nenhum
sinal de qualquer prisioneiro. Só podia conceber que haviam todos perecido, e
meu coração quebrou-se dolorosamente por não estar ali para perecer com eles.
Havia seis bucaneiros no total. Nenhum outro homem fora deixado vivo.
Cinco deles estavam de pé, vermelhos e inchados, acordados de súbito de seu
sono de bebedeira. O sexto havia apenas se erguido nos cotovelos: estava
mortalmente pálido, a atadura manchada de sangue ao redor da cabeça dando
conta de que fora ferido recentemente e que ainda mais recente era o curativo.
Lembrei-me do homem que fora atingido e correra de volta para a mata no
grande ataque, e não duvidei que fosse ele.
O papagaio estava sentado, bicando suas penas, no ombro de Long John. Ele
próprio, me ocorreu, parecia de certo modo mais pálido e austero do que
costumava ser. Ainda vestia aquela excelente casaca de casimira com que nos
visitara na paliçada, mas que ficara em mau estado, suja de lama e rasgada pelos
espinhos da mata.
– Então – disse ele –, aqui está Jim Hawkins, com mil trovões! Fazendo uma
visita, hein? Bem, vamos lá, vou levar isso na boa.
Então ele se sentou sobre o barril de conhaque e começou a encher o
cachimbo.
– Me empresta a tocha, Dick – falou, e então, quando tinha uma boa luz,
continuou. – Está bom assim, rapaz, mete essa tocha na pilha de lenha. E vocês,
cavalheiros, fiquem à vontade! Não precisam ficar de pé para o sr. Hawkins, ele
vai desculpar vocês, podem crer. E então, Jim – parou de fumar –, aqui está
você, e uma surpresa bem agradável para o pobre e velho John. Eu vi que você
era esperto quando pus os olhos em você, mas isso agora me pegou de surpresa,
pegou sim.
A tudo isso, como se pode bem supor, não respondi. Eles me colocaram de
costas contra a parede, e fiquei ali, olhando Silver no rosto – corajoso o bastante,
esperava, na aparência externa, mas com um desespero sombrio no coração.
Silver deu uma ou duas tragadas em seu cachimbo com muita compostura, e
então continuou.
– Agora, olha só, Jim, já que você está aqui – disse ele –, vou trocar uma
ideia contigo. Sempre gostei de você, acho eu, por ser um garoto inteligente, e
por ser a minha cara quando eu era jovem e bonitão. Sempre quis que você
entrasse no esquema e pegasse sua parte e vivesse como cavalheiro, e agora,
meu garnisé, você conseguiu. O capitão Smollett é um bom marujo, isso
reconheço, mas muito rígido na disciplina. “Dever é dever”, ele diz, e está certo.
Você se livrou do capitão. O doutor mesmo foi duro com você… “fedelho
ingrato”, foi o que ele disse. E para encurtar a história toda, digo isto: você não
pode voltar pra sua gente, que eles não te querem mais. E a não ser que comece
sozinho um terceiro time, o que pode ser solitário, você vai ter que entrar no
esquema do capitão Silver.
Até então tudo bem. Meus amigos estavam vivos e, ainda que eu acreditasse
em parte nas afirmações de Silver – que a turma da cabine me dera as costas por
minha deserção –, o que escutei me deixou mais aliviado do que perturbado.
– Não vou nem falar nada quanto a você estar em nossas mãos – continuou
Silver –, mesmo que você esteja, pode crer. Eu vou sempre pela negociação,
nunca vi nada de bom vir de ameaças. Se gosta do trabalho, então está dentro. E
se não gosta, Jim, ora, é livre para dizer não… livre e bem-vindo, parceiro. E
melhor esquema não há marujo que ofereça, pelas barbas do profeta!
– Tenho que responder, então? – perguntei, com uma voz muito trêmula. No
meio de toda essa conversa mole, tive a sensação de que a ameaça da morte
pairava sobre mim, e minhas bochechas queimavam e meu coração batia
doloroso no peito.
– Rapaz – disse Silver –, ninguém tá pressionando você. Toma o seu tempo.
Nenhum de nós vai apressar você, parceiro. O tempo passa tão agradável na sua
companhia, veja só.
– Bem – eu disse, minha ousadia aumentando –, se posso escolher, então
declaro que tenho o direito de saber o que foi que aconteceu, por que vocês estão
aqui e onde estão meus amigos.
– O quê que aconteceu? – repetiu um dos bucaneiros, num grunhido rouco. –
Ah, sorte de quem souber dizer!
– Talvez seja melhor você ficar na sua escotilha até ser chamado, meu amigo
– Silver falou ao marujo de modo truculento. Então, em seu tom educado inicial,
ele me respondeu: – Ontem de manhã, sr. Hawkins – disse ele –, o doutor
Livesey veio com a bandeira da paz. Ele disse: “capitão Silver, você foi traído. O
navio se foi”. Bem, talvez estivéssemos tomando uma bebidinha e cantando para
ajudar a descer. Não vou dizer que não. De qualquer modo, nenhum de nós
percebeu. Olhamos ao redor, com mil trovões! O velho navio se foi. Nunca vi
um bando de abobados ficar mais boquiaberto, e se digo isso, pode crer,
estávamos boquiabertos. “Bem”, disse o doutor, “vamos negociar”. Nós
negociamos, eu e ele, e aqui estamos nós: mantimentos, conhaque, cabana, a
lenha que você teve a esperteza de cortar, o navio completo, da gávea à
sobrequilha49, como se diz. Quanto a eles, sumiram. Não sei onde estão.
Ele outra vez tragou em silêncio do cachimbo.
– E antes que você ponha nessa sua cabeça – continuou – que você foi
incluído no tratado, estas foram as palavras que eles disseram: “quantos de
vocês”, perguntei eu, “vão embora?”. “Quatro”, disseram eles, “e um de nós
ferido. Quanto ao garoto, não sei onde ele está, maldito seja ele”, disse ele, “mas
tampouco me importo muito. Estamos cansados dele”. Essas foram suas
palavras.
– Isso é tudo? – perguntei.
– Bem, é tudo o que você vai escutar, meu filho – retrucou Silver.
– E agora eu tenho que escolher?
– E agora você tem que escolher, pode crer – disse Silver.
– Bem – eu disse –, não sou nenhum idiota e sei muito bem o que esperar.
Que venha o pior, pouco me importo. Já vi muitos morrerem desde que fui parar
no meio de vocês. Mas tem uma coisa ou duas que preciso dizer – falei, e a essas
alturas estava bem exaltado. – E a primeira é: aqui estão vocês, na pior: sem
navio, sem tesouro, sem homens. Seu esquema todo naufragou. E se querem
saber quem foi… fui eu! Eu estava no barril de maçãs na noite em que avistamos
terra, e escutei você, John, e você, Dick Johnson, e Hands, que agora está no
fundo do mar, e contei cada palavra que você falou antes da hora. E quanto à
escuna, fui eu quem cortou a âncora dela, e fui eu que matei o homem que estava
a bordo dela, e fui eu quem a levou para onde vocês nunca mais a verão, nenhum
de vocês. Sou eu que vou rir por último, eu levei a melhor nesta história desde o
começo. Não tenho mais medo de vocês do que tenho de uma mosca. Matem-
me, se preferirem, ou me poupem. Mas uma coisa eu digo, e nada mais: se me
pouparem, o que passou, passou. E quando vocês camaradas forem julgados por
pirataria, eu testemunho a favor de vocês. A escolha é sua. Matem mais um e não
ganhem nada com isso, ou me poupem e terão uma testemunha para salvá-los da
forca.
Vou lhes contar, só parei porque fiquei sem fôlego. Para minha surpresa,
nenhum deles se moveu, todos só ficaram me encarando feito ovelhas. E
enquanto eles ainda encaravam, eu me botei a falar outra vez:
– E agora, sr. Silver – disse eu –, creio que o senhor seja o melhor aqui. Se as
coisas ficarem feias, agradecerei a gentileza de contar ao doutor como encarei
tudo.
– Vou me lembrar disso – falou Silver, com um tom tão curioso que eu não
podia, lhes juro, identificar se ele estava rindo de meu pedido ou se fora afetado
favoravelmente por minha coragem.
– E digo mais – bradou o velho marujo com cara de mogno, Morgan era seu
nome, que eu tinha visto na taverna de Long John nas docas de Bristol. – Foi ele
quem reconheceu Cão Negro.
– Ora, vejam só – acrescentou o cozinheiro. – E digo mais ainda, com mil
trovões! Foi este mesmo menino quem roubou o mapa de Billy Bones. Do
começo ao fim, foi Jim Hawkins quem nós enfrentamos!
– Então lá vai! – disse Morgan, praguejando.
E se levantou, sacando sua faca como se ele sozinho fosse vinte.
– Pode parar! – gritou Silver. – Quem é você, Tom Morgan? Talvez tenha
pensado que é o capitão aqui. Com mil trovões, vou te ensinar uma! Me desafia,
que eu te mando para onde muitos bons homens já foram, nesses últimos trinta
anos… raios me partam! Alguns pendurados na verga, outros pela prancha, e
todos comida de peixe. Nunca houve quem tenha me olhado nos olhos e visto
um dia bom depois, Tom Morgan, pode crer.
Morgan parou, mas um burburinho surgiu entre os outros.
– Tom está certo – disse um.
– Aguentei tempo demais sendo esculachado – acrescentou outro. – Podem
me enforcar, mas não serei esculachado por você, John Silver.
– Será que algum de vocês cavalheiros quer me enfrentar? – rugiu Silver,
inclinando-se à frente no barril, com seu cachimbo ainda aceso na mão direita. –
Digam logo o que querem, vocês não são idiotas, isso eu sei. Quem quiser levar,
vai ter. Será que vivi esses anos todos para um pudim de cachaça qualquer vir
aqui cantar de galo para cima de mim? Vocês sabem como funciona, são todos
cavalheiros de fortuna, segundo vocês mesmo dizem. Bem, estou pronto. Pegue
o alfanje, quem ousar, que de muleta e tudo eu verei as cores de suas tripas antes
de esse cachimbo chegar ao fim.
Nenhum homem se moveu, nenhum homem respondeu.
– É o tipinho de vocês, não é? – acrescentou ele, recolocando o cachimbo na
boca. – Bem, são um grupo alegre de se olhar, de todo modo. Não valem grande
coisa numa luta, vocês. Talvez consigam entender o inglês do rei George. Sou
capitão aqui por eleição. Sou o capitão aqui porque sou o melhor homem em
uma milha náutica de distância. Se não vão lutar, como cavalheiros de fortuna
deveriam, então, com mil trovões, vão obedecer, podem crer! Agora, eu gosto
desse menino; nunca vi menino melhor que esse. Ele é mais homem que
qualquer par de ratos como vocês aqui nesta casa, e o que digo é isto: quem
encostar nele vai se ver comigo… é o que digo, podem crer!
Houve uma longa pausa depois disso. Eu fiquei de pé contra a parede, meu
coração batendo feito uma marreta, mas com um raio de esperança agora
brilhando no peito. Silver reclinou-se contra a parede, com os braços cruzados e
o cachimbo no canto da boca, calmo como se estivesse numa igreja. Mas seus
olhos estavam furtivos, e ele ficou cuidando de esguelha de seus seguidores
rebeldes. Eles, de sua parte, foram aos poucos se juntando na outra ponta da
cabana, e o silvo baixo de seus sussurros ressoava em meus ouvidos
continuamente, feito um córrego. Um após o outro, eles olhavam para cima, e a
luz vermelha da tocha recaía por um segundo sobre suas caras nervosas; mas não
era para mim que voltavam seus olhos, e sim para Silver.
– Vocês parecem ter muito a dizer – observou Silver, cuspindo alto no ar. –
Botem pra fora e me deixem ouvir, ou deixem para lá.
– Com seu perdão, senhor – respondeu um dos homens –, o senhor é muito
liberal com algumas das regras. Talvez possa fazer a mercê de ficar de olho nas
demais. Esta tripulação está insatisfeita. Esta tripulação não aguenta mais ser
intimidada, esta tripulação terá seus direitos respeitados como outras tripulações,
tomo a liberdade de dizer isso. E por suas próprias regras, creio que podemos
conversar uns com os outros. Com seu perdão, senhor, reconhecendo que o
senhor é o capitão neste momento, mas clamo meu direito e irei lá para fora
formar um conselho.
E com uma elaborada saudação marinha, esse camarada, um homem de 35
anos, alto, mal-encarado e de olhos amarelados, caminhou calmamente pela
porta e desapareceu fora da casa. Os demais seguiram seu exemplo um após o
outro, cada um fazendo uma saudação ao passar, cada um acrescentando uma
desculpa.
– Conforme as regras – falou um.
– Conselho de proa – disse Morgan.
E assim, com uma observação ou outra, todos saíram, deixando Silver e eu
sozinhos com a tocha.
O cozinheiro tirou o cachimbo da boca na mesma hora.
– Agora, olha aqui, Jim Hawkins – disse ele, num sussurro quase inaudível.
– Você está a meia prancha de ser morto e, o que é pior ainda, torturado. Eles
vão me jogar fora. Mas, pode anotar, eu fico contigo pro que der e vier. Não era
minha intenção. Não, não até você falar. Eu estava ficando desesperado por ter
perdido tanto e ser enforcado na barganha. Mas logo vi que você é de fé. Eu
disse para mim mesmo: defende o Hawkins, John, que o Hawkins vai te
defender. Você é a última cartada dele e, pelas barbas do profeta, John, ele é a
sua! Costas contra costas, eu digo. Você salva sua testemunha, e ele salva seu
pescoço!
Eu comecei vagamente a entender.
– Quer dizer que tudo está perdido? – perguntei.
– Sim, diacho, sim! – respondeu ele. – Sem navio, sem pescoço, como se
diz. Assim que olhei para aquela enseada, Jim Hawkins, e não vi escuna
nenhuma… bem, sou duro, mas larguei de mão. Quanto àquela turma e seu
conselho, pode anotar, são todos idiotas e covardes. Eu salvo sua vida das mãos
deles, no que me for possível. Mas, olha aqui, Jim, uma mão lava a outra, e você
salva Long John de balançar.
Eu estava assombrado. O que ele pedia parecia algo tão sem esperança…
ele, o velho bucaneiro, sempre o líder.
– O que eu puder fazer, farei – eu disse.
– Uma barganha! – bradou Long John. – Você fala com coragem e, com mil
trovões, eu tenho uma chance!
Ele buscou a tocha, que estava encostada contra a lenha, e acendeu seu
cachimbo.
– Me entende, Jim – ele disse, retomando. – Tenho a cabeça no lugar, tenho
sim. Estou do lado do fidalgo agora. Sei que você deixou aquele navio seguro
em algum lugar. Como você fez, eu não sei, mas seguro ele está. Suponho que
Hands e O’Brien deram mole. Nunca acreditei muito em nenhum deles. Agora,
pode anotar. Não faço perguntas, nem deixo que outros façam. Eu sei quando o
jogo começa, sei sim. E sei quando um rapaz é teimoso. Ah, você é tão novo…
você e eu poderíamos ter sido uma força e tanto juntos!
Ele verteu um pouco de conhaque do barril numa caneca.
– Quer provar, parceiro? – perguntou. E quando recusei: – Bem, vou tomar
um gole, Jim – disse ele. – Preciso de uma calafetagem, que tem problemas a
caminho. E falando em problemas, por que aquele doutor me deu o mapa, Jim?
Eu fiz uma cara de surpresa tão natural que ele não viu necessidade de mais
perguntas.
– Ah, bem, ele fez isso, contudo – disse ele. – E tem coisa nisso, sem
dúvida… tem coisa, com certeza, debaixo disso, Jim… boa ou má.
E tomou outro gole do conhaque, sacudindo sua cabeçona loira como um
homem que olha adiante esperando o pior.
29

A mancha negra outra vez

O conselho dos bucaneiros se desenrolava havia algum tempo quando um


deles voltou para dentro da casa e, repetindo a mesma saudação, que a
meus olhos tinha um ar irônico, pediu a tocha emprestada. Silver rapidamente
concordou, e o emissário se retirou de novo, deixando nós dois na escuridão.
– Tá vindo uma brisa, Jim – disse Silver, que a essas alturas havia adotado
um tom bastante amigável e familiar.
Eu me voltei para a abertura mais próxima e olhei para fora. As brasas da
grande fogueira já haviam queimado o que tinham para queimar, e agora
brilhavam tão fracas e sombrias que compreendi por que os conspiradores
queriam a tocha. Descendo a colina a cerca de meio caminho da paliçada, eles
estavam reunidos. Um segurava a tocha, outro estava de joelhos na névoa, e eu
vi a lâmina de um canivete aberto brilhar em sua mão com cores variadas, sob a
lua e a tocha. Os demais estavam de algum modo inclinados, como que olhando
as manobras deste último. Pude ver que, além do canivete, ele tinha um livro em
mãos, e estava me perguntando como algo tão incongruente fora parar com eles
quando a figura agachada se pôs de pé mais uma vez e toda a turma começou a
se mover na direção da casa.
– Lá vêm eles – falei, e voltei para minha posição anterior, pois me pareceu
indigno de minha parte que me encontrassem os espiando.
– Bem, eles que venham, rapaz… eles que venham – disse Silver, animado.
– Eu ainda tenho carta na manga.
A porta se abriu e os cinco homens, aglomerando-se ao entrar, empurraram
um dos seus à frente. Em qualquer outra circunstância teria sido cômico ver seu
avanço lento, hesitando a cada passo, mas mantendo a mão direita fechada à
frente.
– Pode se aproximar, rapaz – bradou Silver. – Não vou morder. Pode me
entregar, labrego. Eu conheço as regras, conheço sim. Não vou ferir um
mensageiro.
Assim encorajado, o bucaneiro avançou mais bruscamente e, tendo passado
algo para Silver, deslizou ainda mais rápido de volta para seus companheiros.
O cozinheiro olhou para o que haviam lhe entregado.
– A mancha negra! Foi o que pensei – observou. – Onde conseguiram o
papel? Mas ora, ora, ora, veja só, isso é mau agouro! Vocês foram lá e cortaram
isso de uma Bíblia. Que idiota corta uma Bíblia?
– Ah, olha só! – disse Morgan. – Olha só, o que foi que eu falei? Nada de
bom viria disso, eu falei.
– Bem, vocês estão com a corda no pescoço, agora – continuou Silver. – Vão
todos balançar agora, vão sim. Quem foi o labrego de miolo mole que tinha a
Bíblia?
– Foi Dick – disse um.
– Dick, foi? Então Dick pode começar a rezar – disse Silver. – Ele já teve
seu quinhão de sorte, o Dick, podem crer.
Mas aqui o homem comprido de olhos amarelos se intrometeu.
– Chega de conversa, John Silver – disse ele. – Essa tripulação já lhe
entregou a mancha negra em conselho completo, como manda o dever. Apenas
vire o verso, como manda o dever, e veja o que está escrito lá. Então
conversamos.
– ‘Brigado, George – retrucou o cozinheiro. – Você sempre foi duro nos
negócios e conhece as regras de cor, George, como tenho o prazer de ver. Bem, o
que é, afinal? Ah! “Deposto”… é isso, não é? Muito bem escrito, com certeza.
Parece impresso, juro. A escrita é sua, George? Ora, você está me saindo uma
liderança e tanto nesta tripulação aqui. Vai ser capitão em seguida, não duvido.
Só me alcança aquela tocha de novo, faz favor? O cachimbo já se apagou.
– Deixa disso – falou George. – Esta tripulação você não engana mais. Você
se acha um engraçadinho, mas agora já era, e talvez queira sair de cima desse
barril e seguir o voto.
– Achei que você conhecesse as regras – respondeu Silver, com desprezo. –
Mas caso não conheça, eu conheço. Eu espero aqui… ainda sou seu capitão, veja
bem… até que vocês digam suas queixas e eu responda. Enquanto isso, sua
mancha negra não vale um biscoito. Depois, a gente vê.
– Ah – retrucou George –, pode ficar tranquilo, nós estamos fechados,
estamos sim. Em primeiro lugar, você estragou tudo nesta viagem… seria muita
ousadia negar isso. Segundo, você deixou o inimigo sair desta armadilha a troco
de nada. Por que eles queriam sair? Sei lá, mas está na cara que queriam.
Terceiro, você não nos deixou ir atrás deles. Ah, a gente entendeu qual é a sua,
John Silver, você quer jogar nos dois lados, esse é o seu problema. E então, em
quarto lugar, tem esse menino aí.
– Isso é tudo? – perguntou Silver, calmamente.
– É o suficiente – retorquiu George. – Nós vamos todos balançar e secar ao
sol pela sua incompetência.
– Agora, olha aqui, vou responder cada ponto, responder um atrás do outro.
Eu estraguei tudo nesta viagem, foi? Olha só, vocês todos sabem o que eu quero,
e vocês todos sabem que se tivéssemos conseguido estaríamos a bordo do
Hispaniola esta noite, como deveria ter sido, cada um de nós vivo e apto, com a
barriga cheia de pudim e o tesouro no porão, com mil trovões! Bem, quem
passou à minha frente? Quem forçou minha jogada, enquanto eu era o capitão de
direito? Quem me entregou a mancha negra no dia em que chegamos e começou
esta dança? Ah, é uma boa dança… estou com vocês nessa… e parece tão boa
quanto sapatear na ponta duma corda nas Docas de Execuções em Londres,
parece sim. Mas quem foi? Ora, foi Anderson, foi Hands, e foi você, George
Merry! E você é o último a bordo daquela mesma turma intrometida. E você me
vem com essa insolência de Davy Jones de querer ser capitão pra cima de
mim… você, que foi quem nos afundou! Com mil demônios! Essa é a maior
lorota que já ouvi.
Silver fez uma pausa, e pude ver pela cara de George e de seus comparsas
que essas palavras não foram ditas em vão.
– Isso quanto ao primeiro ponto – bradou o acusado, limpando o suor da
testa, pois estivera falando com uma veemência que abalou a casa. – Ora, dou
palavra, tenho nojo de falar com vocês. Não têm nem sensatez nem memória, e
só posso imaginar onde estavam suas mães que os deixaram ir ao mar. Mar!
Cavalheiros de fortuna! Acho que alfaiataria é o seu negócio.
– Continue, John – disse Morgan. – Fale do resto.
– Ah, o resto! – respondeu John. – É uma boa leva, não é? Vocês dizem que
a viagem foi malfeita. Ah, meu pai, se pudessem entender o quanto foi malfeita,
vocês veriam! Eu estou tão por aqui que meu pescoço dói só de pensar nisso.
Talvez vocês já os tenham visto, pendurados em correntes, com as aves ao redor,
os marujos apontando enquanto eles são levados pela maré. “Quem é aquele?”,
dirá um. “Aquele! Ora, é John Silver. Eu o conheci bem”, dirá outro. E chegando
perto vocês poderão ouvir as correntes rangendo enquanto vão até a outra boia.
Agora, é nela que vocês estarão, cada filho da mãe de vocês, graças a ele, e a
Hands e Anderson, e outros idiotas arrombados feito vocês. E se querem saber
quanto ao número quatro e este menino, ora, raios que me partam, ele não é um
refém? E vamos nós desperdiçar um refém? Não, nós não. Ele bem pode ser
nossa última oportunidade, eu não duvidaria. Matar o menino? Eu não,
parceiros! E número três? Ah, bom, tem um bocado a ser dito sobre o número
três. Vocês talvez não deem valor quanto a ter um médico formado de verdade
para cuidar de vocês todo dia… você, John, com sua cabeça quebrada… ou
você, George Merry, que estava tremendo de febre nem seis horas atrás e tem os
olhos da cor de uma casca de limão siciliano neste exato instante. E talvez, por
acaso, vocês não saibam que há um resgate a caminho? Pois há, e não levará
muito tempo. Então vamos ver quem ficará feliz por termos um refém quando
chegar a hora. E quanto ao número dois e por que eu fiz uma barganha… bem,
vocês vieram me pedir de joelhos que fizesse… de joelhos vocês vieram, vocês
que estão aí decepcionados… e teriam morrido de fome se eu não tivesse feito…
mas pelo visto isso não conta! Olhem só, aí está a razão!
E ele colocou no chão um papel que eu imediatamente reconheci – nada
menos que o mapa de papel amarelo, com as três cruzes vermelhas, que eu havia
encontrado no rolo de lona no fundo do baú do capitão. Por que o doutor o havia
entregado, eu não podia imaginar.
Mas, se para mim era inexplicável, a aparição do mapa era incrível para os
amotinados sobreviventes, que pularam sobre ele feito gatos sobre um rato. Foi
de mão em mão, um tirando do outro, e pelos palavrões e gritinhos e risadas
infantis que acompanhavam a inspeção, você teria pensado que não apenas
estavam tocando no ouro em si, mas que já estavam no mar com ele, em
segurança.
– Sim – disse um. – É do Flint, pode crer. J.F., com um traço embaixo, e um
ponto no meio, com ele sempre fazia.
– Muito bonito – disse George. – Mas como vamos sair com isso, sem
navio?
Silver se levantou de repente, apoiando a mão contra a parede.
– Estou te avisando agora, George – bradou. – Mais uma palavra dessa sua
matraca e eu te chamo pra briga. Como? Ora, como vou saber? Você que tem
que me dizer isso… você e os outros, que perderam minha escuna, com sua
interferência, malditos sejam! Só que não, vocês não sabem, vocês não têm a
criatividade de uma barata. Mas falar com educação vocês sabem, e assim farão,
George Merry, pode crer.
– É justo – disse o velho Morgan.
– Justo! Claro que é – disse o cozinheiro. – Vocês perderam o navio, eu
encontrei o tesouro. Quem é o melhor nisso? E agora eu renuncio, raios! Elejam
quem quiserem para ser seu capitão agora, eu já cansei disso.
– Silver! – gritaram eles. – Churrasqueiro sempre! Churrasqueiro para
capitão!
– Foi o que deu a pesagem, então? – bradou o cozinheiro. – George, me
parece que você terá que aguardar outro turno, amigo. E sorte sua que não sou
do tipo vingativo. Mas esse nunca foi meu jeito. E agora, parceiros, essa mancha
negra? Não serve para muita coisa, não é? Dick ferrou com sua sorte e estragou
sua Bíblia, só isso.
– Mas serve se eu beijar o livro ainda, não serve? – grunhiu Dick, que estava
evidentemente perturbado com a maldição que trouxera para si mesmo.
– Uma Bíblia com uma parte arrancada! – respondeu Silver, definitivo. –
Serve não. Vale tanto quanto um folhetinho de cordel.
– É mesmo, não é? – falou Dick, com certa alegria. – Bem, aí está uma coisa
que vale a pena ter também.
– Aqui, Jim… uma curiosidade para você – disse Silver, e me entregou o
papel.
Era do tamanho de uma moeda de uma coroa. Um lado estava em branco,
pois era a última folha, o outro continha um versículo ou dois do Livro do
Apocalipse – e essas palavras no meio de tudo ficaram marcadas na minha
cabeça: “mas ficarão de fora os cães e os homicidas”50. O lado impresso fora
escurecido com cinza de lenha, que já começara a sair e sujar meus dedos; no
lado em branco fora escrito com o mesmo material uma única palavra:
“deposto”. Tenho essa curiosidade ao meu lado neste instante, mas nenhum traço
da escrita se mantém senão uma única marca, tal qual um homem faria com a
unha.
Esse foi o fim dos assuntos da noite. Logo depois, com uma rodada de
bebida, nos deitamos para dormir, e a vingança de Silver foi colocar George
Merry de sentinela e ameaçá-lo de morte caso ele se mostrasse desleal.
Levou muito tempo até que eu conseguisse fechar um olho, e Deus sabe que
eu tinha bastante no que pensar – naquele homem que eu havia matado à tarde,
na minha posição muito arriscada e, acima de tudo, no notável jogo que vira
Silver começar, mantendo os amotinados juntos numa mão e com a outra
agarrando qualquer meio possível e impossível para buscar sua paz e salvar sua
vida miserável. Ele mesmo dormia sossegado, roncando alto. Ainda assim meu
coração simpatizava com ele, maligno como era, ao pensar nos perigos sombrios
que o circundavam e na vergonha do enforcamento que o aguardava.
30

Palavra de honra

F ui acordado – na realidade, todos nós fomos, pois pelo que pude ver até a
sentinela se sacudiu de onde havia caído contra o umbral da porta – por
uma voz clara e calorosa nos chamando da margem da mata:
– Ó da cabana, à vista! – gritou. – Aqui é o doutor.
E era mesmo. Embora eu estivesse feliz de ouvir o som, minha felicidade
não era sem reservas. Eu lembrava confuso de minha insubordinação e conduta
furtiva, e quando vi aonde ela havia me levado – entre que tipo de companhias e
cercado por perigos –, me senti envergonhado de olhá-lo nos olhos.
Ele devia ter se levantado quando ainda estava escuro, pois o dia mal havia
começado. E quando corri para uma abertura e olhei para fora, o vi de pé, como
Silver antes estivera, coberto até os joelhos pela neblina rastejante.
– O senhor, doutor! Um bom dia para o senhor! – bradou Silver, bem
acordado e brilhando de bom humor na mesma hora. – Madrugador e bem-
disposto, pode crer. E é o pássaro madrugador, como se diz, que abocanha a
minhoca. George, sacode esse casco, meu filho, e ajude o dr. Livesey a pular a
amurada. Tudo está indo bem, e seus pacientes estão… todos bem e felizes.
Ele ficou tagarelando assim, de pé no topo da colina com sua muleta sob o
braço e uma mão contra a lateral da cabana – bem como o velho John em voz,
modos e expressão.
– Temos uma boa surpresa para o senhor, também – ele continuou. – Temos
um estranhozinho aqui… rá-rá! Um novo inquilino a bordo, senhor, em boa
forma e mais tenso que corda de violino. Dormiu feito uma balsa de carga, foi
sim, bem ao lado do John… cara a cara ficamos, a noite toda.
A essas alturas o dr. Livesey já havia cruzado a paliçada e estava bem perto
do cozinheiro, e pude ouvir a alteração em sua voz ao dizer:
– Não o Jim?
– O mesmo Jim de sempre – disse Silver.
O doutor parou no mesmo instante, ainda que não tivesse dito nada, e levou
alguns segundos até parecer capaz de se mover adiante.
– Bem, bem – disse enfim –, primeiro o dever, depois o prazer, como você
mesmo diria, Silver. Vamos dar uma olhada nesses seus pacientes.
No momento seguinte, ele entrou na cabana de madeira e, com um aceno
sombrio para mim, prosseguiu em seu trabalho com os doentes. Ele não parecia
estar apreensivo, ainda que devesse saber que sua vida, entre aqueles demônios
traiçoeiros, estivesse por um fio. Ralhou com seus pacientes como se estivesse
fazendo uma visita profissional corriqueira a uma tranquila família inglesa. Seus
modos, suponho, tiveram efeito sobre os homens, pois se comportaram como se
nada tivesse acontecido – como se ele ainda fosse o médico de bordo e eles
ainda fossem marujos leais sobre o convés.
– Você está indo bem, meu amigo – disse ele ao camarada com a atadura na
cabeça –, e se alguém alguma vez viu a morte de perto, foi você. Sua cabeça
deve ser mais dura que ferro. Bom, George, como está indo? Você está bem
colorido, com certeza. Ora, homem, seu fígado está do avesso. Você tomou
aquele remédio? Ele tomou aquele remédio, homens?
– Sim, sim, senhor, ele tomou sim, pode crer – respondeu Morgan.
– Porque, vejam só, uma vez que eu sou um médico de amotinados, ou um
médico de prisão como prefiro chamar – disse o doutor Livesey com seus modos
agradáveis –, para mim é uma questão de honra não perder nenhum homem que
pertença ao rei George (Deus o abençoe!) ou à forca.
Os malandros olharam uns para os outros, mas engoliram o golpe em
silêncio.
– Dick não se sente bem, senhor – disse um.
– É mesmo? – retrucou o doutor. – Bem, se aproxime, Dick, e deixe-me ver
sua língua. Não, eu ficaria surpreso se ele estivesse bem! A língua do homem
está boa de assustar um francês. Outro com febre.
– Ah, isso – disse Morgan – é o que dá rasgar Bíblias.
– Isso é o que dá, como vocês mesmos dizem, ser um completo jumento –
redarguiu o doutor – e não ter bom senso para diferenciar o ar bom do venenoso,
terra seca de um lamaçal pestilento e vil. Creio que seja muito provável…
embora, claro, seja apenas uma opinião… que todos vocês vão ter que penar
bastante até tirarem essa malária do corpo. Acamparam num pântano, não foi?
Silver, estou surpreso com você. É menos tolo que a maioria, isso reconheço,
mas não me parece ter as noções mais rudimentares das regras de saúde.
Após ele ter medicado todos e eles terem aceitado suas prescrições com uma
humildade cômica, mais parecendo crianças de escola de caridade do que
amotinados criminosos e piratas, ele acrescentou:
– Bem, por hoje é isso. E agora, eu gostaria de ter uma conversa com aquele
menino, por favor.
E ele acenou descuidado com a cabeça em minha direção.
George Merry estava na porta, cuspindo e salivando com o gosto ruim de um
remédio, mas à primeira palavra da proposta do doutor, saltou vermelho de raiva:
– Não! – gritou, e então praguejou.
Silver bateu no barril com a mão aberta.
– Si-lên-cio! – ele rugiu, olhando ao redor como um leão. – Doutor – ele
continuou, em seu tom usual –, eu estava pensando nisso, sabendo o quanto o
senhor gosta do menino. Nós todos somos humildemente gratos por sua
gentileza e, como pode ver, confiamos no senhor e engolimos os remédios como
se fosse grogue. E creio que encontrei um modo que agrade a todos. Hawkins,
você me dá sua palavra de honra como um jovem cavalheiro… pois você é um
jovem cavalheiro, ainda que nascido pobre… sua palavra de honra de não soltar
sua corda?
Na mesma hora eu fiz a jura solicitada.
– Então, doutor – disse Silver – o senhor apenas vá para o lado de fora
daquela paliçada e, assim que estiver lá, eu desço com o menino pelo lado de
dentro, e creio que vocês possam conversar pelas frestas. Um bom dia para o
senhor, e nossas lembranças ao fidalgo e ao capitão Smollett.
A explosão de descontento, que nada além da aparência sombria de Silver
conseguiu conter, estourou de imediato após o doutor ter saído da casa. Silver foi
acusado abertamente de fazer jogo duplo – de tentar fazer um tratado de paz em
separado para si – ao sacrificar os interesses de seus cúmplices e vítimas. E na
realidade era isso mesmo o que estava fazendo. Pareceu-me tão óbvio, neste
caso, que eu não podia imaginar como ele contornaria a raiva deles. Mas ele era
duas vezes mais homem que os demais, e sua vitória na noite anterior lhe dera
uma grande dominância sobre suas mentes. Chamou-os de todos os adjetivos que
puder imaginar, disse que era necessário que eu conversasse com o doutor,
exibiu o mapa na cara deles e perguntou se eles tinham condições de romper o
tratado no mesmo dia em que pretendiam sair à caça do tesouro.
– Não, com mil trovões! – bradou ele. – Só vamos romper o tratado quando
chegar a hora, e até então vou engambelar aquele médico, nem que eu tenha que
engraxar as botas dele com conhaque.
E então os mandou acender o fogo e saiu apoiando-se em sua muleta, com a
mão no meu ombro, deixando-os atrapalhados e silenciados mais por sua
volubilidade do que por estarem convencidos.
– Devagar, rapaz, devagar – me disse ele. – Eles podem nos cercar num
piscar de olhos, se nos virem apressados.
Muito deliberadamente, então, nós avançamos ao longo da areia até onde o
doutor nos aguardava do outro lado da paliçada e, assim que ficamos a uma
distância audível, Silver parou.
– O senhor tome nota disto, doutor – disse ele –, o menino vai lhe contar
como eu salvei sua vida e inclusive fui deposto por isso, pode crer. Doutor,
quando um homem está velejando contra o vento como eu… como se estivesse
jogando bolita com o último sopro de seu corpo… não ocorreria ao senhor,
talvez, lhe dar algum crédito? O senhor por favor tenha em mente que não é só a
minha vida agora… este menino está na barganha, então seja sincero, doutor, e
me dê um pouco de corda para seguir em frente, pelo amor de Deus.
Silver era outra pessoa uma vez do lado de fora, de costas para seus amigos e
a cabana. Suas bochechas pareciam mais caídas, sua voz tremia e, sinceramente,
nunca houve espírito mais morto.
– Ora, John, você não estaria com medo? – perguntou o dr. Livesey.
– Doutor, não sou nenhum covarde. Não, eu não… nem um pouquinho
assim! – Ele estalou os dedos. – E se eu fosse, não diria. Mas vou ser sincero
com o senhor, tremo de medo da forca. O senhor é um homem bom e verdadeiro,
que eu nunca vi homem melhor! E o senhor não irá esquecer o que eu fiz de
bom, não mais do que esquecer o que fiz de ruim, eu sei. E eu vou me afastar,
olha só, e deixar o senhor e o Jim sozinhos. E o senhor vai levar isso em conta
também, que não é pouca coisa!
Assim dizendo, ele se afastou um pouco pelo caminho, até estar fora do
alcance da conversa, e ali se sentou sobre um toco de árvore e começou a
assoviar, virando-se uma vez por outra sobre seu assento para melhor vigiar os
arredores, às vezes eu e o doutor, e às vezes aqueles rufiões descontrolados que
iam e vinham pela área, entre a fogueira, que estavam ocupados reacendendo, e a
casa, de onde trouxeram porco e pão para fazer o desjejum.
– Então, Jim – o doutor falou com tristeza –, aqui está você. O que você
plantou, você colheu, menino. Deus sabe o quanto não posso culpá-lo em meu
coração, mas escute o que vou lhe dizer, para o bem ou para o mal: quando o
capitão Smollett estava bem, você não ousava sair. Mas quando ele ficou doente
e não podia evitar, meu São Jorge, foi pura covardia!
Devo dizer que aqui eu comecei a chorar.
– Doutor – falei –, não precisa dizer. Eu mesmo tenho me culpado desde
então. Minha vida está perdida de qualquer modo, e eu até já estaria morto a
essas alturas se o Silver não tivesse me protegido. E doutor, acredite, eu posso
morrer… e digo até que mereço isso… mas o que tenho medo é da tortura. Se
eles me torturarem, eu…
– Jim – interrompeu o doutor, com a voz bastante alterada –, Jim, eu não
aguento isso. Pula para cá e saímos correndo.
– Doutor – eu disse –, eu dei minha palavra.
– Eu sei, eu sei – ele disse. – Mas agora não há o que se fazer, Jim. Eu
assumo a responsabilidade de tudo, meu garoto. Mas não posso deixar que você
fique aqui. Pule! Um pulo e você estará livre, e nós vamos correr feito antílopes.
– Não – eu retruquei –, o senhor sabe muito bem que não faria o mesmo.
Nem o senhor, nem o fidalgo, nem o capitão, e tampouco eu. Silver confia em
mim, eu dei minha palavra e vou voltar. Mas, doutor, o senhor não me deixou
terminar. Se vierem a me torturar, posso deixar escapar onde o navio está, pois
eu peguei o navio, um pouco por sorte e um pouco sob risco, e ele está na Baía
Norte, na praia mais ao sul, pouco acima da linha-d’água na maré cheia. Quando
a maré chegar à metade, já deve estar no seco.
– O navio! – exclamou o doutor.
Rapidamente lhe descrevi minhas aventuras e ele me escutou em silêncio.
– Há um pouco de destino nisso – ele observou, quando eu terminei. – A
cada passo, é você quem salva nossa vida, e pensou por algum instante que
deixaríamos você perder a sua? Seria uma má recompensa, meu garoto. Você
descobriu o plano. Você encontrou Ben Gunn, a melhor coisa que já fez, ou terá
feito, mesmo que viva até os noventa anos. Ah, por Júpiter, e falando em Ben
Gunn! Ora, esse é pura malandragem. Silver! – gritou ele. – Silver! Eu lhe dou
um conselho – continuou, enquanto o cozinheiro chegava mais perto. – Não
tenha muita pressa em procurar aquele tesouro.
– Ora, senhor, farei o que for possível, o que não é muito – disse Silver. – Só
posso, com seu perdão, salvar minha vida e a do menino procurando por aquele
tesouro, e o senhor pode crer nisso.
– Bem, Silver – respondeu o doutor –, se for assim, direi mais: tome cuidado
com tempestades quando o encontrar.
– Senhor – disse Silver –, cá entre nós, de homem para homem, isso é dizer
tudo e não dizer nada. De que o senhor está atrás, por que deixou a cabana, por
que me deu aquele mapa, eu não sei, não é? E ainda assim aceitei sua barganha
de olhos fechados e nenhuma palavra de esperança! Mas não, isso já é demais.
Se o senhor não vai me dizer com clareza o que pretende, então deixemos assim
e eu vou-me embora.
– Não – disse o doutor, pensativo –, não tenho direito de dizer mais. Veja
bem, Silver, o segredo não é meu ou eu contaria tudo, juro. Vou com você até
onde posso, e nem um passo a mais, pois o capitão vai me arrancar a peruca se
souber! Mas primeiro, eu lhe darei um pouco de esperança. Silver, se nós dois
sairmos vivos desta armadilha de lobo, farei o que puder para salvá-lo, exceto da
acusação de perjúrio.
Silver ficou radiante.
– Não precisa nem dizer mais, senhor, nem se fosse minha mãe – bradou.
– Bem, essa foi minha primeira concessão – acrescentou o doutor. – Minha
segunda é um alerta: mantenha o menino consigo e, quando precisar de ajuda,
me chame. Eu virei em auxílio, e isso por si só lhe dirá se falo a esmo. Até logo,
Jim.
O dr. Livesey me cumprimentou pela paliçada, acenou para Silver e saiu a
passos acelerados para a mata.
31

A caça ao tesouro: as indicações de Flint

– J im – chamou Silver, quando ficamos a sós –, se eu salvei sua vida, você


salva a minha. E eu não vou esquecer. Eu vi o doutor acenando para que você
fugisse correndo com ele… de canto de olho, vi sim. E vi você dizer não, tão
claro como se eu estivesse escutando. Ponto para você, Jim. Essa é a primeira
fagulha de esperança que tenho desde que o ataque fracassou, e a devo a você. E
agora, Jim, nós vamos partir para essa caça ao tesouro, com ordens seladas,
também, e eu não gosto disso. Eu e você temos que ficar juntos, costas contra
costas, e vamos salvar nossas peles apesar do destino e da sorte.
Bem na hora, uma mão nos acenou da fogueira dando conta de que o
desjejum estava pronto, e logo estávamos sentados aqui e ali pela areia com
biscoitos e carne seca. Eles haviam acendido um fogo que poderia assar um boi,
e agora ficava tão quente que só conseguiam se aproximar na direção do vento, e
mesmo assim não sem precauções. No mesmo espírito de desperdício, haviam
assado, suponho, três vezes mais do que podíamos comer, e um deles, com uma
risada frouxa, jogou as sobras no fogo, que brilhou e se ergueu outra vez com
esse combustível inusitado. Nunca na minha vida tinha visto gente tão
descuidada com o dia de amanhã. Gente que só pensa no dia de hoje, é a única
forma que encontro para descrevê-los. E da comida desperdiçada às sentinelas
dormindo, ainda que eles fossem ousados o bastante para um ataque rápido e
pronto, eu podia ver sua completa inaptidão para qualquer coisa parecida com
uma campanha prolongada.
Mesmo Silver, comendo afastado, com Capitão Flint no ombro, não tinha
uma palavra de censura para lhes dar. E isso mais do que me surpreendeu, pois
ele nunca se mostrara tão esperto como agora.
– Sim, parceiros – disse ele –, vocês têm sorte de ter o Churrasqueiro para
pensar por vocês com esta cabeça aqui. Consegui o que queria, foi sim. Eles
estão com o navio, com certeza. Onde o colocaram, eu não sei ainda, mas, assim
que pegarmos o tesouro, vamos ter que dar uma volta e encontrar. E então,
parceiros, como temos os escaleres, a vantagem será nossa.
Ele continuou falando, com a boca cheia de bacon quente, assim
recuperando a esperança e a confiança dos demais, e, suspeito eu, restaurando a
sua ao mesmo tempo.
– Quanto ao refém – continuou –, creio ter sido sua última conversa com
aqueles que ele tanto ama. Já sei o que precisava saber e agradeço a ele por isso.
Mas agora acabou. Vou mantê-lo amarrado comigo enquanto estivermos caçando
tesouros, pois temos que guardá-lo como se fosse de ouro, podem anotar, no
caso de haver acidentes enquanto isso. Uma vez que tivermos tanto o navio
como o tesouro e formos ao mar felizes da vida, então vamos ver o que fazer
com o sr. Hawkins, vamos sim, e lhe daremos o troco, podem crer, por todas as
suas gentilezas.
Não era de espantar que os homens estivessem de bom humor agora. Da
minha parte, eu estava terrivelmente abatido. Se o esquema que ele esboçava se
mostrasse certo, Silver, já sendo duplamente traidor, não hesitaria em adotá-lo.
Ele ainda estava com um pé em cada lado, e sem dúvida iria preferir riquezas e
liberdade com os piratas do que escapar por pouco da forca, que era o melhor
que poderia conseguir do nosso lado.
E mesmo que as coisas dessem tão errado que se visse forçado a manter sua
fé no dr. Livesey, mesmo assim, que perigos nos aguardavam! Que momento
seria quando as suspeitas de seus seguidores virassem certezas, e ele e eu
precisássemos lutar por nossa vida – ele, um aleijado, e eu, um menino – contra
cinco marinheiros fortes e ativos!
Acrescente a essa dupla apreensão o mistério que ainda pairava sobre o
comportamento de meus amigos, sua deserção inexplicável da paliçada, sua
entrega inexplicável do mapa e, ainda mais difícil de entender, o último aviso do
doutor para Silver – “cuidado com tempestades quando o encontrar” – e será
fácil acreditar no pouco apetite que eu tinha em desjejum e em como meu
coração estava inquieto quando me pus a seguir meus captores em sua jornada
pelo tesouro.
Seríamos uma imagem e tanto, caso houvesse alguém para nos ver lá, todos
em roupas surradas de marinheiros e todos, exceto eu, armados até os dentes.
Silver levava duas armas penduradas nele – uma na frente e uma atrás –, além do
grande alfanje na cintura e uma pistola em cada bolso de seu casaco quadradão.
Para completar essa estranha aparência, Capitão Flint empoleirava-se sobre seu
ombro soltando ditos navais sem pé nem cabeça. Eu tinha uma corda na cintura e
seguia obediente atrás do cozinheiro, que segurava a ponta da corda, ora na mão,
ora entre seus dentes poderosos. A verdade é que eu era levado feito um urso de
circo.
Os demais carregavam diferentes fardos. Alguns levavam picaretas e pás – e
isso de fato fora a primeira necessidade que trouxeram do Hispaniola –, outros
carregavam carne de porco, pão ou conhaque para o lanche do meio-dia. Todas
as provisões, eu notei, vieram de nossas reservas, e pude ver a verdade das
palavras de Silver na noite anterior. Se ele não tivesse feito uma barganha com o
doutor, ele e seus amotinados, abandonados pelo navio, teriam sido levados a
sobreviver de água pura e o que conseguissem caçar. A água não teria sido muito
de seu gosto, um marinheiro em geral não é bom de mira e, além disso, estando
eles tão desprovidos de comestíveis, não era improvável que estivessem sem
pólvora.
Então, assim equipados, nós nos pusemos todos a caminho – mesmo o
camarada com a cabeça rachada, que certamente deveria ter sido mantido na
sombra – e avançamos, um atrás do outro, para a praia onde os dois escaleres
nos aguardavam. Até mesmo os barcos levavam marcas da bebedeira dos piratas,
um por ter o banco quebrado e ambos pelo estado enlameado e cheio de água. Os
dois seriam levados conosco, por segurança, e assim, divididos em dois grupos,
nos pusemos a caminho ao fundo do ancoradouro.
Enquanto remávamos, houve uma discussão a respeito do mapa. A cruz
vermelha era, óbvio, muito grande para servir de guia, e a anotação no verso,
como você perceberá, admitia certa ambiguidade. O leitor irá lembrar, ela era
assim:

Uma árvore alta era, portanto, a principal marca. Agora, bem à nossa frente,
o ancoradouro era cercado por um platô que tinha entre sessenta e noventa
metros de altura, juntando-se ao norte com o íngreme flanco sul do Morro da
Luneta e erguendo-se novamente em direção ao sul para a eminência
montanhosa e acidentada chamada de Morro da Mezena. O topo do platô era
pontuado densamente de pinheiros de alturas variadas. Por todo canto, alguns de
uma espécie diferente elevavam-se uns doze ou quinze metros acima de seus
vizinhos, e qual desses era a “árvore alta” do capitão Flint só poderia ser
decidido no local e pela leitura da bússola.
Porém, mesmo sendo assim, cada homem a bordo dos barcos já havia
escolhido sua própria favorita quando estávamos a meio caminho. Apenas Long
John encolhia os ombros e dizia-lhes para esperar até chegarmos lá.
Seguindo as orientações de Silver, remamos com cuidado, para não gastar as
mãos prematuramente. Após uma travessia bem demorada, desembarcamos na
boca do segundo rio – aquele que descia por uma fenda arborizada do Morro da
Luneta. Assim, inclinando-se à nossa esquerda, começamos a subir o barranco
na direção do platô.
Num primeiro momento, um terreno difícil e embarrado e uma vegetação
espessa e brejenta em muito retardaram nosso avanço. Mas pouco a pouco o
morro começou a ficar íngreme e pedregoso sob nossos pés, e a mata começou a
mudar de características e a crescer de um modo mais espaçado. Era, de fato,
uma fatia muito agradável da ilha essa da qual nós agora nos aproximávamos.
Umas giestas perfumadas e muitos arbustos em flor haviam quase tomado o
lugar do capim. Bosques de nogueiras-moscadas verdejantes eram pontuados
aqui e ali com as colunas vermelhas e a sombra larga dos pinheiros, e o cheiro
forte das primeiras se misturava ao aroma dos segundos. O ar, além disso, era
fresco e leve, o que, sob os raios de sol, era um refresco maravilhoso para nossos
sentidos.
O grupo se espalhou em forma de leque, gritando e pulando para todo lado.
No centro, e bem atrás dos demais, seguíamos eu e Silver – eu indo pelo
cabresto, ele caminhando, muito ofegante, ao longo do cascalho escorregadio.
De fato, de tempos em tempos eu tive que lhe dar uma mão, ou ele teria pisado
em falso e caído de costas morro abaixo.
Assim seguimos por cerca de oitocentos metros, e estávamos nos
aproximando do topo do platô, quando o homem na ponta mais distante
começou a gritar alto, apavorado. Soltou um grito atrás do outro, e os demais
começaram a correr em sua direção.
– Ele não tem como ter encontrado o tesouro – disse o velho Morgan,
passando apressado à nossa direita. – Isto aqui é uma clareira.
De fato, como descobrimos quando também chegamos ao local, era algo
muito diferente. Aos pés de um pinheiro enorme e envolto numa trepadeira, que
havia parcialmente separado alguns dos ossos menores, havia no chão um
esqueleto humano, com alguns trapos de roupas. Acho que, por um instante, um
calafrio passou no coração de todos.
– Era um marinheiro – disse George Merry que, mais corajoso que os
demais, havia chegado perto e examinado os trapos. – Ao menos, veste uma boa
roupa de marinheiro.
– Sim, sim – disse Silver –, provavelmente. Você não esperaria encontrar um
bispo aqui, suponho. Mas que jeito é esse de os ossos ficarem? Não é natural.
De fato, numa segunda olhada, parecia impossível conceber que o corpo
estivesse numa posição natural. Porém por algum desarranjo (talvez o trabalho
dos pássaros que se alimentaram dele, ou o lento crescer da trepadeira que aos
poucos envolveu seus restos) o homem jazia perfeitamente reto – seus pés
apontando numa direção e, suas mãos, erguidas acima da cabeça feito um
mergulhador, na direção oposta.
– Meti uma ideia nesta minha velha cabeça oca – observou Silver. – Olhem
aqui a bússola, aqui está a seta indicando a Ilha Esqueleto, se destacando feito
um dente. Deem só uma olhada, vocês, ao longo da linha dos ossos.
Dito e feito. O corpo apontava na direção da ilha e a bússola indicava
claramente ese para e.
– Foi o que pensei – bradou o cozinheiro –, isso aqui é um indicador. Bem
ali em cima está nossa linha para a Estrela Polar e os lindos dólares. Mas
macacos me mordam se não me dá calafrios pensar no Flint. Isso aqui é uma das
piadas dele, não se enganem. Ele e esses outros seis estavam aqui sozinhos, ele
os matou, cada um deles, e esse daqui ele botou aqui e fez de bússola, raios me
partam! São ossos compridos, e o cabelo era loiro. Sim, esse devia ser o
Allardyce. Lembra do Allardyce, Tom Morgan?
– Sim, sim – respondeu Morgan –, lembro dele, ele me devia dinheiro, devia
sim, e levou minha faca com ele.
– Falando em facas – disse outro –, por que não damos uma procurada ao
redor? Flint não era de mexer nos bolsos de um marinheiro, e os pássaros,
suponho, a deixariam para trás.
– Com mil demônios, é verdade! – bradou Silver.
– Não foi deixado nada aqui – disse Merry, ainda examinando os ossos –,
nem uma moedinha de cobre ou caixinha de tabaco. Não me parece natural.
– Não, diacho, não é mesmo – concordou Silver. – Não é natural e não é
legal, vocês dizem. Pelas barbas do profeta! Meus amigos, se Flint estivesse
vivo, a coisa ia esquentar para vocês e eu. Eles eram seis, e nós somos seis, e
ossos foi tudo o que sobrou deles.
– Eu vi ele morto com estes olhos – disse Morgan. – Billy me levou. E lá ele
estava, com moedinhas nos olhos.
– Morto… sim, pode crer, ele tá morto e foi lá pra baixo – disse o camarada
com as ataduras –, mas se alguma vez um espírito andar, será o de Flint. Ah, meu
pai, mas ele morreu na pior, o Flint!
– Sim, foi mesmo – observou outro –, ora ele surtava, noutra gritava por
rum, ora ele cantava. “Quinze homens” era a única música, parceiros. E falo
sério, não gosto de escutar ela desde então. Estava muito quente, e a janela
estava aberta, e eu escutava aquela canção antiga vindo cada vez mais alta… e o
homem já nas mãos da morte.
– Vamos, vamos – disse Silver –, chega desse papo. Ele morreu e não
caminha, isso eu sei. Ao menos, não de dia, nisso podem crer. Quem morre de
véspera é peru. Vamos em frente, aos dobrões.
Nós continuamos, claro; no entanto, apesar do sol quente e da luz do dia, os
piratas não mais andavam separados e gritando pela mata, mas mantinham-se
lado a lado e falavam de dentes cerrados. O medo do bucaneiro morto havia
recaído sobre seus espíritos.
32

A caça ao tesouro: a voz entre as árvores

E m parte devido à influência desanimadora daquele alerta, em parte para


Silver e os doentes descansarem, o grupo todo sentou-se assim que
chegou ao topo da subida.
Com o platô inclinando-se um pouco na direção oeste, esse ponto onde
havíamos parado entregava uma visão ampla de cada lado. Debaixo de nós,
sobre a copa das árvores, avistávamos o Cabo das Matas franjado pelas ondas;
atrás, não apenas tínhamos abaixo o ancoradouro e a Ilha Esqueleto, mas víamos
– direto além do penhasco e das planícies orientais – um grande campo de mar
aberto a leste. Bem acima de nós erguia-se o Morro da Luneta, ora pontuado de
pinheiros solitários, ora escurecido de precipícios. Não havia som senão da
rebentação distante, vindo de todo lado, e o chiado de inúmeros insetos nos
arbustos. Não havia homem ou vela no mar; a própria amplitude da vista
aumentava a sensação de solidão.
Ao se sentar, Silver buscou algumas orientações com sua bússola.
– Ali estão três “árvores altas” – disse ele –, bem na linha da Ilha Esqueleto,
e “beira do Luneta”, eu creio, significa aquele ponto baixo ali. É brincadeira de
criança encontrar a coisa agora. Mas acho que prefiro jantar primeiro.
– Não tô com fome – grunhiu Morgan. – Acho que pensar no Flint me fez
mal.
– Ah, bom, meu filho, agradece aos céus que ele está morto – disse Silver.
– Ele era feio como o demônio – disse o terceiro pirata, dando de ombros –,
com aquela cara pálida, também!
– Foi como o rum deixou ele – acrescentou Merry. – Pálido! Bem, eu achava
ele pálido. É a verdade.
Desde que haviam encontrado o esqueleto e enviesado por essa linha de
pensamento, vinham falando cada vez mais baixo, e estavam quase sussurrando
agora, de modo que o som de suas vozes mal interrompia o silêncio da mata. De
súbito, vindo do meio das árvores na nossa frente, uma voz aguda, alta e
oscilante irrompeu aquelas bem conhecidas palavras:

QUINZE HOMENS NO PEITO DO DEFUNTO…


IO-HO-HO E UMA GARRAFA DE RUM!

Eu nunca vi homens mais assustados que os piratas. A cor fugiu de seus seis
rostos feito mágica; alguns pularam de susto, uns se agarraram nos outros,
Morgan se encolheu no chão.
– É o Flint, meu Deus! – gritou Merry.
A canção parou tão subitamente como começou – interrompida, poderia se
dizer, no meio de uma nota, como se alguém tivesse colocado a mão sobre a
boca do cantor. Vinda daquela atmosfera clara e ensolarada por entre a copa das
árvores, achei até que havia soado leve e meiga, e o efeito em meus
companheiros foi dos mais estranhos.
– Qual é – disse Silver, lutando com os lábios secos para pronunciar as
palavras –, essa não cola. De pé e em frente. Foi só um susto, e eu não posso
definir de quem é essa voz, mas é só alguém de brincadeira… alguém de carne e
osso, podem crer.
Sua coragem tinha voltado enquanto falava, e um pouco da cor de seu rosto
voltou junto. Os outros já estavam começando a dar ouvidos para esse
encorajamento, voltando a si aos pouquinhos, quando a mesma voz irrompeu
outra vez – dessa vez não cantando, mas num fraco grito distante que ecoou
ainda mais fraco por entre as ravinas do Morro da Luneta.
– Darby M’Graw – choramingou, pois essa é a melhor palavra para
descrever aquele som. – Darby M’Graw! Darby M’Graw! – de novo e de novo, e
então elevando-se um pouquinho, com um palavrão que não escrevo aqui, disse:
– Traz o rum, Darby!
Os bucaneiros ficaram com os pés plantados no chão e os olhos arregalados.
Muito depois de a voz ter sumido, eles ainda se entreolhavam em silêncio,
apavorados.
– Já chega – suspirou um. – Vamos embora.
– Foram suas últimas palavras – gemeu Morgan –, suas últimas palavras
nesta vida.
Dick estava com sua Bíblia na mão, rezando sem parar. Havia recebido uma
boa criação, o Dick, antes de ir para o mar e se meter com más companhias.
Mesmo assim, Silver não estava convencido. Eu conseguia escutar seus
dentes rangendo, mas ele ainda não havia se rendido.
– Ninguém aqui nesta ilha já ouviu falar de Darby – murmurou ele –,
ninguém além de nós aqui. – E então, fazendo um grande esforço, ele bradou: –
Camaradas, eu vim aqui para pegar aquela coisa e não vou ser derrotado por
homem ou demônio. Nunca tive medo do Flint quando estava vivo e, com mil
demônios, ele eu encaro mesmo morto. Tem 700 mil libras escondidas a menos
de quatrocentos metros daqui. Quando foi que um cavalheiro de fortuna deu as
costas para tanto dinheiro por causa de um velho marujo bêbado e pálido, ainda
por cima morto?
Mas não havia jeito de reacender a coragem de seus seguidores. Pelo
contrário, eles ficaram com ainda mais medo pela irreverência de suas palavras.
– Calma lá, John! – disse Merry. – Não provoque os espíritos.
E os outros estavam apavorados demais para retrucar. Eles teriam corrido
com todas as forças se tivessem coragem, mas o medo os mantinha juntos e os
mantinha perto de John, como se sua ousadia os ajudasse. Ele, de sua parte, já
vencera seus medos.
– Espírito? Bem, talvez – disse ele. – Mas tem uma coisa que não ficou clara
para mim. Havia eco. Ora, nenhum homem jamais viu um espírito com sombra,
pois eu gostaria de saber como ele estava fazendo eco. Isso não é natural, com
certeza.
Esse argumento me pareceu bastante fraco. Mas não se pode dizer o que irá
fazer efeito com os supersticiosos e, para minha surpresa, George Merry ficou
muito aliviado.
– Bem, isso é – disse ele. – Você tem a cabeça no lugar, John, com certeza.
Todos a bordo, parceiros! Esta tripulação tá no curso errado, acho eu. E parando
para pensar, era como a voz de Flint, eu garanto, mas não tão clara como a dele,
afinal. Era como a voz de outra pessoa… era mais como…
– Com mil demônios, Ben Gunn! – rugiu Silver.
– Sim, era isso mesmo – bradou Morgan, ficando de joelhos. – Ben Gunn
está aqui!
– Olha só, não faz muita diferença, faz? – perguntou Dick. – Ben Gunn não
está aqui de corpo, não mais do que Flint.
Mas os marujos mais velhos receberam essa observação com desdém.
– Ora, ninguém se importa com Ben Gunn – disse Merry. – Vivo ou morto,
ninguém se importa com ele.
Era extraordinário como seus ânimos haviam retornado e como a cor natural
revivera em seus rostos. Logo eles estavam conversando, com intervalos para
escutar, e não muito depois, não tendo escutado mais nada, colocaram o
equipamento nos ombros e seguiram adiante de novo, Merry caminhando à
frente com a bússola de Silver para mantê-lo na linha certa com a Ilha Esqueleto.
Ele havia dito uma verdade: vivo ou morto, ninguém se importava com Ben
Gunn.
Só Dick ainda segurava a Bíblia e olhava ao redor enquanto andava, com
uma cara assustada, mas não encontrou solidariedade alguma, e mesmo Silver
fez piada com ele e com suas precauções.
– Eu te falei – disse ele –, eu te falei, você estragou sua Bíblia. Se não serve
para se jurar nela, o que supõe que um espírito daria por ela? Não por essa daí! –
E estalou seus dedos grandes, parando por um momento sobre sua muleta.
Mas nada iria confortar Dick. De fato, logo ficou claro para mim que o rapaz
estava passando mal. Pressionado pelo calor, pela exaustão e pelo susto, era
evidente que a febre diagnosticada pelo dr. Livesey estava aumentando rápido.
Era uma bela caminhada a céu aberto ali, no topo do promontório; nosso
caminho descia um pouco, pois, como eu disse, o platô inclinava-se para oeste.
Os pinheiros, grandes e pequenos, cresciam bem separados e, mesmo entre os
ajuntamentos de azaleias e nogueiras-moscadas, os espaços abertos cozinhavam
sob o calor do sol. Atravessando, como fizemos, bem perto de noroeste ao longo
da ilha, por um lado íamos ficando cada vez mais perto das encostas do Morro
da Luneta e, pelo outro, víamos cada vez mais aquela baía oeste onde eu me
sacudira no coracle.
A primeira das árvores altas foi alcançada e pelos arredores provou ser a
errada. Foi assim também com a segunda. A terceira erguia-se no ar a quase
sessenta metros de altura, acima das demais. Era um gigante dos vegetais, com
um tronco vermelho tão grande quanto uma cabana e uma sombra larga na qual
era possível manobrar um pelotão. Dava para vê-la do mar tanto a leste como a
oeste, e poderia ter sido anotada como ponto de referência no mapa.
Mas não era seu tamanho que agora impressionava meus companheiros, mas
saber que 700 mil libras em ouro estavam ali enterradas em algum lugar abaixo
do espraiar de sua sombra. A ideia do dinheiro, conforme chegavam perto,
engoliu seus temores prévios. Seus olhos cintilavam nas faces, seus pés ficavam
mais rápidos e leves, toda sua alma estava direcionada para aquela fortuna e toda
a vida de prazeres e extravagâncias que aguardava ali por cada um deles.
Silver coxeava, resmungando, apoiado na muleta. Suas narinas dilatavam-se
e tremiam, e ele xingava feito um louco quando as moscas pousavam em seu
rosto quente e brilhante. Ele me puxava furioso pela corda que nos unia e, de
tempos em tempos, virava-se para mim com um olhar mortal. Certamente não se
deu ao trabalho de ocultar seus pensamentos, e certamente eu conseguia lê-los
como se estivessem impressos. Na proximidade imediata com o ouro, tudo o
mais fora esquecido – sua promessa e os alertas do doutor eram ambas coisas do
passado, e eu não tinha dúvidas de que ele esperava pegar o tesouro, encontrar e
subir a bordo do Hispaniola encoberto pela noite, cortar cada garganta honesta
naquela ilha e navegar de volta, como era sua intenção original, carregado de
crimes e riquezas.
Abalado como eu estava por esses temores, era difícil manter o passo rápido
dos caçadores de tesouro. De vez em quando eu tropeçava, e foi numa dessas
que Silver puxou forte a corda e me lançou um de seus olhares assassinos. Dick,
que ficara para trás e agora compunha a retaguarda, tanto balbuciava orações
como blasfêmias para si mesmo, conforme sua febre continuava crescendo. Isso
também se somou à minha desgraça e, para coroar tudo, eu era assombrado pela
imagem da tragédia que fora uma vez encenada naquele platô, quando aquele
bucaneiro ímpio de cara pálida – o que morrera em Savannah, cantando e
pedindo mais bebida – passara seus seis comparsas na faca ali mesmo, com as
próprias mãos. Esse arvoredo agora tão calmo deveria ter então ressoado de
gritos, imaginei. E só de pensar nisso eu podia acreditar que ainda os escutava
ressoando.
Chegávamos então à orla da mata.
– Vam’bora, parceiros, todos juntos! – gritou Merry, e os mais à frente
saíram correndo.
De repente, nem dez metros adiante, os vimos parar. Um grito baixo se
ergueu. Silver acelerou o passo, pontuando o solo com o pé de sua muleta feito
um homem possesso, e no momento seguinte ele e eu também paramos.
Diante de nós estava uma grande escavação, não muito recente, pois as
laterais haviam caído para dentro e o mato já crescia no fundo. Ali havia o cabo
de uma picareta quebrada ao meio e as tábuas de inúmeros caixotes espalhadas.
Numa dessas tábuas eu vi, marcado a ferro quente, o nome Morsa – o nome do
navio de Flint.
Não havia sombra de dúvida. O esconderijo fora encontrado e pilhado. As
700 mil libras não estavam ali!
33

A queda de um cacique

N unca houve na face da Terra reviravolta como aquela. Cada um dos seis
homens ficou como se atingido por um raio. Mas com Silver o golpe
passou quase no mesmo instante. Feito um corredor visando à chegada, cada
pensamento de sua alma estivera afixado naquele dinheiro e, num único
segundo, isso desmoronara. Ele manteve a cabeça no lugar, encontrou seu
sangue-frio e mudou os planos antes que os demais tivessem tempo de assimilar
a decepção.
– Jim – sussurrou ele –, pega isso aqui e se prepara para ter problemas.
E me passou uma pistola de dois canos.
Ao mesmo tempo, começou a se mover para norte, e em poucos passos havia
posto o buraco entre nós dois e os outros cinco. Então olhou para mim e
assentiu, como quem diz “estamos encurralados” e, de fato, era mesmo. Sua
aparência era agora bastante amigável, e eu estava tão revoltado com essas
mudanças constantes que não pude evitar murmurar:
– Então mudou de lado outra vez.
Ele não teve tempo de responder. Os bucaneiros, com palavrões e gritos,
começaram a pular um atrás do outro para dentro do buraco e a cavar com os
dedos, jogando as tábuas para fora. Morgan encontrou uma moeda de ouro. Ele a
ergueu com um perfeito jorro de palavrões. Era uma moeda de dois guinéus, e
passou de mão em mão entre eles por um quarto de minuto.
– Dois guinéus! – rugiu Merry, atirando-a em Silver. – São essas as suas 700
mil libras, não é? Você é o homem das barganhas, não é? Você é aquele que
nunca se dá mal em nada, seu panaca cabeça-oca!
– Cavem mais, rapazes – disse Silver, com fria insolência. – Não ficaria
surpreso se encontrassem umas batatas.
– Batatas! – repetiu Merry, com um grito. – Parceiros, vocês ouviram isso?
Eu digo a vocês, agora, aquele homem ali sabia tudo desde o começo. Olhem pra
cara dele e vão ver que está escrito nela.
– Ah, Merry – observou Silver –, vai se candidatar a capitão de novo? Você
está forçando a barra, pode crer.
Mas dessa vez estavam todos a favor de Merry. Eles começaram a sair da
escavação, lançando olhares furiosos contra ele. Uma coisa eu observei, que nos
veio a calhar: todos subiram pelo lado oposto a Silver.
Bem, ali estávamos nós, dois de um lado, cinco do outro, o buraco entre nós,
e ninguém furioso o bastante para dar o primeiro golpe. Silver nunca se moveu,
apenas os observou, muito ereto em sua muleta, parecendo mais tranquilo do que
jamais o vira. Ele era corajoso, com certeza.
Por fim, Merry pareceu pensar que um discurso poderia ajudar a questão.
– Parceiros – disse ele –, tem dois deles sozinhos ali. Um é um velho
aleijado que nos trouxe até aqui e nos fez cair nessa situação, o outro é aquele
filhote cujo coração eu pretendo arrancar fora. Agora, parceiros…
Ele estava erguendo o braço e a voz, claramente intencionando liderar um
ataque. Só que bem na hora – pam! pam! pam! – três mosquetes dispararam dos
arbustos. Merry caiu de cabeça na escavação. O homem com as ataduras girou
feito um pião e tombou direto a seu lado, onde caiu morto, mas ainda
estrebuchando, e os outros três se viraram e saíram correndo com todas as suas
forças.
Antes que eu pudesse piscar, Long John havia disparado os dois canos de
uma pistola num Merry que ainda se debatia e, enquanto o homem virava os
olhos para ele em sua última agonia, disse:
– Acho que te acalmei, George.
No mesmo instante, o doutor, Gray e Ben Gunn se juntaram a nós, com
mosquetes fumegantes, vindo das nogueiras-moscadas.
– Avante! – gritou o doutor. – Mais rápido, meus rapazes. Temos que chegar
primeiro nos botes.
E saímos correndo a toda velocidade, às vezes nos metendo nos arbustos até
o peito.
Vou lhe dizer, Silver estava ansioso para nos acompanhar. O trabalho que o
homem se deu, pulando com sua muleta até que os músculos do peito estivessem
a ponto de estourar, foi esforço que nenhum homem sadio jamais igualou, e o
doutor também pensa assim. Ele já estava uns trinta metros atrás de nós, e à
beira da exaustão, quando alcançamos o topo do barranco.
– Doutor – ele chamou –, olha lá! Sem pressa!
Com certeza não havia necessidade de pressa. Numa parte mais aberta do
platô, podíamos ver os três sobreviventes ainda correndo na mesma direção em
que haviam começado, direto para o Morro da Mezena. Nós já estávamos entre
eles e os botes, então nós quatro nos sentamos para respirar, enquanto Long
John, secando o rosto, veio devagar até nós.
– Obrigado por vossa gentileza, doutor – disse ele. – O senhor veio bem na
hora, creio, para mim e para Hawkins. E você também, Ben Gunn! –
acrescentou. – Ora, você se saiu bem, pode crer.
– Sou Ben Gunn, sou sim – retrucou o abandonado, chacoalhando-se feito
uma enguia em seu constrangimento. Após uma longa pausa, ele acrescentou: –
E como vai o senhor, senhor Silver? Muito bem, obrigado, diz você.
– Ben, Ben – murmurou Silver –, e pensar que você me pegou nessa!
O doutor mandou Gray voltar para buscar uma das picaretas que, na corrida,
foram largadas pelos amotinados, e então à medida que descíamos
tranquilamente a colina até onde os escaleres foram deixados, contaram em
poucas palavras o que havia acontecido. Era uma história que interessava
profundamente a Silver, e na qual Ben Gunn, o doido abandonado, fora o herói
do começo ao fim.
Ben, em suas longas e solitárias andanças pela ilha, havia encontrado o
esqueleto – fora ele quem o despojara, quem encontrara o tesouro e o cavara da
terra (era seu o pedaço de picareta que jazia quebrado na escavação), e ele quem
o carregara nas costas, em muitas jornadas cansativas, do pé do pinheiro alto até
a caverna que ele tinha na colina de dois picos no ângulo nordeste da ilha, onde
estava guardado em segurança dois meses antes da chegada do Hispaniola.
Quando o doutor arrancou-lhe esse segredo na tarde do ataque e, na manhã
seguinte, viu o ancoradouro vazio, foi até Silver e deu-lhe o mapa, agora inútil, e
os suprimentos, pois a caverna de Ben Gunn era bem suprida com carne de bode
salgada por ele próprio – tudo e mais um pouco pela chance de saírem com
segurança da paliçada até a colina dos dois picos, para lá se manterem livres da
malária e montarem guarda sobre o dinheiro.
– Quanto a você, Jim – disse ele –, fui contra meu coração, mas fiz o que
achei melhor por aqueles que haviam cumprido seu dever e, se você não era um
desses, de quem seria a culpa?
Naquela manhã, ao saber que eu estaria envolvido na horrível decepção que
ele preparara para os amotinados, o doutor correu até a caverna e, deixando o
fidalgo para proteger o capitão, levou Gray e o abandonado e partiu, cruzando a
ilha na diagonal para estar pronto ao lado do pinheiro. Logo, porém, viu que
nossa turma tomara a dianteira, e Ben Gunn, sendo mais rápido, foi despachado
à frente para fazer o melhor que pudesse sozinho. Então lhe ocorrera fazer uso
das superstições de seus antigos colegas de bordo, e teve tanto sucesso que Gray
e o doutor já estavam de tocaia antes da chegada dos caçadores de tesouro.
– Ah – disse Silver –, foi sorte minha ter o Hawkins aqui. Você teria deixado
o velho John ser feito em pedacinhos e não teria pensado duas vezes, doutor.
– Não teria mesmo – retrucou o dr. Livesey, animado.
E a essas alturas alcançamos os escaleres. O doutor, com a picareta, demoliu
um deles, e então todos subimos a bordo do outro e fomos a caminho da Baía
Norte por mar.
Isso foi questão de uns doze ou quinze quilômetros. Silver, ainda que já
estivesse quase morto de fadiga, foi colocado num remo, como o resto de nós, e
remamos suavemente sobre o mar calmo. Logo ultrapassamos os estreitos e
dobramos a ponta sudeste da ilha, ao largo da qual, quatro dias antes, havíamos
ancorado o Hispaniola.
Quando passamos a colina de picos duplos, pudemos ver a boca negra da
caverna de Ben Gunn e uma figura esperando de pé nela, apoiada num
mosquete. Era o fidalgo, e acenamos com um lenço e demos três vivas, aos quais
a voz de Silver se juntou tão empolgada quanto a de qualquer um.
Cinco quilômetros adiante, bem dentro da boca da Baía Norte, o que
encontramos senão o Hispaniola, navegando por conta própria? A última maré
cheia o havia levantado e, se tivesse havido muito vento ou um repuxo forte na
maré, como no ancoradouro sul, não o teríamos encontrado mais, ou o
encontraríamos encalhado sem salvação. Do modo como estava, havia pouco
dano além da destruição da vela principal. Outra âncora foi providenciada e
largada em uma braça e meia de água. Todos remamos de volta para a Enseada
do Rum, o ponto mais próximo da casa do tesouro de Ben Gunn. E então Gray,
sozinho, voltou com o escaler para o Hispaniola, onde passaria a noite de
guarda.
Uma subida suave corria da praia até a entrada da caverna. No topo, o
fidalgo nos encontrou. Comigo ele foi cordial e gentil, não falando nada sobre
minha escapada, nem no sentido de reprimenda nem de louvor. Com a saudação
educada de Silver, ele corou um pouco.
– John Silver – disse ele. – O senhor é um prodigioso vilão e um impostor…
um impostor monstruoso, senhor. Foi-me dito que não devo processá-lo. Bem,
então, não irei. Já os mortos, senhor, penderão para sempre em seu pescoço feito
pedras.
– Obrigado por sua gentileza, senhor – retrucou Long John, ainda o
saudando.
– Não ouse me agradecer! – bradou o fidalgo. – É um desvio grosseiro de
meu dever. Fique longe de mim.
E assim todos entramos na caverna. Era um lugar grande e arejado, com uma
pequena fonte e um lago de água pura, ladeado de samambaias. O chão era de
areia. Em frente a uma grande fogueira estava o capitão Smollett e, num canto
distante, apenas vagamente rebrilhando com o lume do fogo, contemplei grandes
pilhas de moedas e quadriláteros feitos de barras de ouro. Aquele era o tesouro
de Flint, que viemos de tão longe à procura e que já havia custado a vida de
dezessete homens do Hispaniola. Quantas mais custara na coleta – quanto
sangue e sofrimento, quantos bons navios haviam afundado nas profundezas,
quantos homens bravios caminharam na prancha de olhos vendados, quantos
tiros de canhão, quanta vergonha e mentiras e crueldade –, talvez nenhum
homem vivo pudesse contar. Ainda assim havia três naquela ilha – Silver, o
velho Morgan e Ben Gunn – que tinham tomado parte nesses crimes e que
desejaram em vão dividir a recompensa.
– Venha cá, Jim – disse o capitão. – Você é um bom garoto a seu modo, Jim,
mas não acho que navegaremos juntos outra vez. Você tem mais sorte que juízo
para o meu gosto. É você, John Silver? O que o traz aqui, homem?
– De volta ao meu dever, senhor – respondeu Silver.
– Ah! – foi tudo o que o capitão disse.
Que ceia eu tive naquela noite, com todos os amigos ao meu redor, e que
refeição foi, com o bode salgado de Ben Gunn, algumas guloseimas e uma
garrafa de vinho envelhecido do Hispaniola. Nunca, tenho certeza, houve
pessoas tão alegres ou felizes. E lá estava Silver, sentado no fundo, quase longe
da luz, mas comendo com gosto, pronto para se pôr à frente sempre que se
pedisse algo e até mesmo se juntando em silêncio a nossas risadas – o mesmo
marinheiro calmo, educado e prestativo da viagem de vinda.
34

E por último

N a manhã seguinte nos pusemos cedo ao trabalho, pois transportar aquela


grande quantidade de ouro por mais de um quilômetro de terra até a
praia, e de lá por cinco quilômetros de barco até o Hispaniola, era uma tarefa
considerável para um número pequeno de trabalhadores. Os três camaradas que
ainda estavam em algum lugar da ilha não nos deram muito trabalho – uma única
sentinela no flanco da colina era o suficiente para nos proteger contra qualquer
ataque súbito e, além disso, eles provavelmente já tinham lutado o bastante.
O trabalho, portanto, foi apressado. Gray e Ben Gunn iam e vinham com o
escaler, enquanto em sua ausência os demais empilhavam o tesouro na praia.
Duas barras, penduradas numa corda, eram uma boa carga para um homem
adulto – com a qual ele ficaria feliz de andar devagar. Quanto a mim, uma vez
que não era de grande serventia como carregador, fui mantido ocupado o dia
todo na caverna embalando as moedas em sacos de pão.
Era uma coleção estranha, parecida com a de Billy Bones pela diversidade
de cunhagem, mas tão maior e mais variada que acho que nunca me diverti mais
do que ao separar aquelas moedas. Eram inglesas, francesas, espanholas,
portuguesas, jorges e luíses, dobrões e guinéus, moidores e cequins51, o rosto de
todos os reis da Europa nos últimos cem anos, estranhas peças orientais
estampadas com o que pareciam ser fiapos de barbante ou pedaços de teia de
aranha52, peças redondas e peças quadradas e peças furadas no meio, como que
para ser usadas ao redor do pescoço53 – quase toda variedade de dinheiro no
mundo, acho eu, havia encontrado lugar naquela coleção. E pela quantidade,
eram como folhas no outono, de tal que minhas costas doíam de tanto me curvar
e meus dedos doíam de tanto separá-las.
O trabalho prosseguiu dia após dia. A cada entardecer uma fortuna fora
guardada a bordo, mas havia outra fortuna aguardando pela manhã, e todo esse
tempo não ouvimos nada dos três amotinados sobreviventes.
Enfim – acho que foi na terceira noite – o doutor e eu estávamos andando
pela encosta do morro que dava vista para as planícies da ilha, quando, saindo da
densa escuridão abaixo, o vento nos trouxe um barulho entre gritos e canções.
Foi só um pedaço que chegou a nossos ouvidos, seguido pelo silêncio.
– Que Deus os perdoe – disse o doutor. – São os amotinados!
– Todos bêbados, senhor – disse a voz de Silver atrás de nós.
Devo dizer que Silver teve garantida total liberdade e, apesar de ser
diariamente rejeitado, parecia considerar a si mesmo mais uma vez como um
dependente amigável e até privilegiado. De fato, era notável como ele lidava
bem com esse desprezo e com que educação incansável seguia tentando cair nas
graças de todos. Mesmo assim, acho eu, ninguém o tratou melhor do que a um
cão, exceto por Ben Gunn, que ainda morria de medo de seu antigo
contramestre, ou eu próprio, que realmente tinha algum motivo para lhe
agradecer. Ainda que, nesse quesito, suponho, eu teria motivos para detestá-lo
ainda mais que os outros, já que o tinha visto cogitar uma nova traição lá no
platô. Assim sendo, foi de um modo bem rabugento que o doutor lhe respondeu.
– Bêbados ou delirantes – disse ele.
– Tem razão, senhor – retrucou Silver –, mas tanto faz, para o senhor ou para
mim.
– Suponho que você não ousaria me pedir para considerá-lo um homem de
humanidade – comentou o doutor, com desdém – e assim, talvez meus
sentimentos o surpreendam, mestre Silver. Mas se eu tiver a certeza de que estão
delirando… e tenho a convicção moral de que ao menos um deles está com
febre… devo deixar este acampamento e, sob qualquer risco para com minha
própria carcaça, dar-lhes a assistência de minha habilidade.
– Com seu perdão, senhor, mas o senhor estaria muito errado – disse Silver.
– O senhor perderia sua vida preciosa, pode crer. Eu estou do seu lado agora,
feito mão e luva, e não é meu desejo ver nossa turma enfraquecida, muito menos
o senhor, considerando quanto lhe devo. Já aqueles homens lá embaixo, eles não
conseguiriam manter a palavra… não, nem supondo que quisessem. E o que é
pior, eles não acreditariam que o senhor manteria a sua.
– Não – disse o doutor. – Você é o que mantém a palavra, sabemos disso.
Bem, essas foram as últimas notícias que tivemos dos três piratas. Só uma
vez ouvimos um tiro a grande distância e supomos que estivessem caçando. Um
conselho foi feito e ficou decidido que nós os abandonaríamos na ilha – para
grande alegria, devo dizer, de Ben Gunn, e com forte aprovação de Gray. Nós
deixamos um bom estoque de pólvora e balas, a maior parte do bode salgado, um
pouco de remédios e outras ferramentas necessárias – roupas, uma vela
sobressalente, uma ou duas braças de corda e, por vontade particular do doutor,
uma bela quantidade de tabaco.
Essa foi a última coisa que fizemos na ilha. Antes disso, armazenamos o
tesouro e embarcamos o suficiente de água e o resto da carne de bode, em caso
de necessidade. Então por último, numa bela manhã, levantamos âncora, que era
quase só o que ainda funcionava, e saímos da Baía Norte, exibindo a mesma
bandeira que o capitão erguera e debaixo da qual havia lutado na paliçada.
Os três camaradas deviam estar nos vigiando mais de perto do que
pensávamos, como logo se mostrou. Ao sairmos dos canais, tivemos que costear
bem de perto a ponta sul, e lá vimos os três ajoelhados juntos numa faixa de
areia, com os braços erguidos em súplica. Partiu nossos corações, creio eu,
deixá-los naquele estado esfarrapado, mas não podíamos arriscar outro motim. E
levá-los para casa para serem enforcados teria sido um tipo cruel de gentileza. O
doutor acenou para eles e falou-lhes das reservas que deixamos para trás e onde
poderiam encontrá-las. Mas eles continuaram nos chamando pelo nome e
implorando, pelo amor de Deus, para termos misericórdia e não os deixarmos
para morrer num lugar como aquele.
Por último, vendo que o navio mantinha seu curso e que agora se afastava
lentamente do alcance, um deles – não sei dizer qual – se pôs de pé num grito
rouco, tirou o mosquete do ombro, e mandou um tiro que passou zunindo por
sobre a cabeça de Silver e através da vela principal.
Após isso, nos mantivemos sob abrigo da amurada e, quando olhei de novo
para fora, eles haviam desaparecido da faixa de areia, e a própria areia já estava
quase fora de vista com a distância crescente. Esse foi o fim de tudo. Antes de o
sol se pôr, para minha inexprimível alegria, a rocha mais alta da Ilha do Tesouro
havia afundado na imensidão azul do mar.
Estávamos tão desfalcados de homens que todos a bordo tiveram que dar
uma mão – só o capitão ficou deitado num colchão na popa, de onde dava suas
ordens, pois, mesmo que estivesse bastante recuperado, ainda tinha necessidade
de repouso. Ajustamos caminho para o porto mais próximo na América
espanhola, pois não podíamos arriscar uma viagem para casa sem novos
marujos. E do modo como o tempo estava, com ventos fortes e um par de novos
temporais, ficamos todos exaustos antes mesmo de alcançá-lo.
Foi bem quando o sol se punha que baixamos âncora em um golfo muito
bonito cercado por terra e fomos imediatamente cercados por barcos costeiros
cheios de negros e índios mexicanos e mestiços vendendo frutas e vegetais e
oferecendo-se para mergulhar em troca de dinheiro. A visão de tantos rostos
sorridentes (especialmente os negros), o gosto das frutas tropicais e, acima de
tudo, as luzes que começavam a brilhar na cidade fizeram um contraste muito
charmoso com nossa estadia sombria e sangrenta na ilha. O doutor e o fidalgo,
levando-me junto com eles, foram à terra passar a primeira parte da noite. Ali
eles encontraram o capitão de um navio de guerra inglês, se puseram a conversar
com ele, subiram a bordo de seu navio e, para resumir, passaram um tempo tão
agradável que o dia já estava nascendo quando voltamos para o Hispaniola.
Ben Gunn estava sozinho no convés e, assim que nós subimos a bordo,
começou a nos fazer uma confissão, com as mais maravilhosas contorções.
Silver se fora. O ilhado fora conivente com sua fuga em um barco costeiro
algumas horas antes, e ele agora nos garantia que fizera isso somente para
preservar nossas vidas, que certamente estariam perdidas se “aquele homem de
uma perna só tivesse ficado a bordo”. Mas isso não fora tudo. O cozinheiro não
se fora de mãos vazias. Ele havia arrombado uma antepara sem ser percebido e
removera um dos sacos de moedas que valia, talvez, trezentos ou quatrocentos
guinéus, para ajudá-lo em suas viagens futuras.
Acho que todos ficamos felizes de ter saído tão barato nos livrarmos dele.
Bem, para encurtar uma longa história, nós trouxemos alguns marujos a
bordo, fizemos uma boa viagem para casa e o Hispaniola alcançou Bristol bem
quando o sr. Blandly pensava em preparar um resgate. Apenas cinco homens da
tripulação original voltaram com o navio. “Bebe que o diabo também te leva
junto”, de fato; ainda que, com certeza, não estivéssemos em tão mau estado
quanto aquele outro navio de que se cantava:

UM HOMEM DO NAVIO ESCAPOU,


MAS SETENTA E CINCO O MAR LEVOU

Todos ficamos com uma grande fatia do tesouro e a usamos com sabedoria
ou com tolice, de acordo com nossas naturezas. O capitão Smollett está agora
aposentado dos mares. Gray não apenas guardou seu dinheiro, mas, sendo
subitamente atingido pelo desejo de subir na vida, também estudou sua
profissão. É agora imediato e dono de parte de um belo navio plenamente
equipado. Também se casou e é pai de família. Quanto a Ben Gunn, ele levou
mil libras, que gastou ou perdeu em três semanas, ou, para ser exato, em
dezenove dias, pois já voltara a mendigar no vigésimo. Então lhe deram um
trabalho de caseiro, exatamente o que ele temia na ilha. Está vivo ainda, é muito
benquisto pelos meninos da região, ainda que às vezes debochem dele, e se
tornou um cantor notável na igreja aos domingos e nos dias de santos.
De Silver nunca mais ouvimos falar. Aquele marinheiro formidável de uma
perna só havia afinal desaparecido de minha vida. Mas ouso dizer que ele
encontrou sua negra velha e talvez ainda viva em conforto com ela e Capitão
Flint. É o que se espera, suponho, já que suas chances de conforto no outro
mundo são muito pequenas.
As barras de prata e as armas ainda estão, pelo que sei, onde Flint as
enterrou, e por mim elas certamente ficarão por lá. Nada neste mundo me fará
voltar àquela ilha amaldiçoada, e os piores sonhos que tenho são quando escuto
as ondas batendo na costa ou acordo sobressaltado na cama, com a voz aguda de
Capitão Flint ainda ressoando em meus ouvidos: “Reais de oito! Reais de oito!”.
Notas

Dedicatória
1 Samuel Lloys Osbourne, enteado de Stevenson, que desenhou com seu
padrasto o mapa de uma ilha imaginária que viria a inspirar Ilha do
Tesouro.

Capítulo 1. O velho lobo do mar na Almirante Benbow


2 O nome é uma referência a John Benbow (1653–1702), oficial de marinha
britânico famoso em sua época pelo combate a piratas mouros no
Mediterrâneo, o que o levou a ser promovido a almirante.
3 A canção do livro é invenção do próprio Stevenson, que encontrou o nome
Dead Man’s Chest em um livro de viagens de 1871 do escritor Charles
Kingsley, no qual se listavam ilhas britânicas no Caribe. Atualmente, a ilha
Dead Chest fica no território das Ilhas Virgens Britânicas. Uma lenda local
alega que o pirata Barba Negra teria deixado quinze amotinados para trás
na ilha. Quando vista do mar, a ilha se assemelha ao peito e ao rosto de um
homem deitado.
4 Cabrestante era o mecanismo utilizado para içar âncoras.
5 Em termos náuticos, “patrão” é o encarregado de comandar um navio ou
barco, quando o proprietário não é um marinheiro profissional.
6 Stevenson faz um trocadilho com a palavra chest, que em inglês tanto pode
ser “peito” quanto “baú”.

Capítulo 2. Cão Negro aparece e desaparece


7 Sangrias foram um tratamento médico comum por séculos até o século XIX,
com base na Teoria Humoral que creditava a saúde do corpo ao equilíbrio
de quatro fluidos, ou humores – bílis negra, bílis amarela, fleuma e sangue
– e de acordo com a qual a quantidade desses fluidos aumentava ou
diminuía conforme a alimentação e os exercícios, podendo ser ajustada por
meio da sangria. Acreditava-se nessa técnica como tratamento para ataques
cardíacos também por diminuir a pressão sanguínea.
8 Um “cão negro” era uma das formas do diabo, na crendice popular.

Capítulo 3. A mancha negra


9 O que hoje chamamos de derrame.

Capítulo 4. O baú do marujo


10 Os lúgares eram pequenos veleiros de até três mastros, usados
principalmente para pesca. Por serem pequenos e de fácil manejo, eram os
mais usados pelos piratas.
11 Uma invenção de Stevenson, provavelmente inspirada pela lenda de que,
quando um pirata acusava outro de traição, entregava-lhe a carta do às de
espadas.
12 Tecido impermeabilizado com algum tipo de óleo. Naquele tempo, óleo de
linhaça.
13 Dobrões foram moedas portuguesas cunhadas no tempo de d. João v, luíses
eram as moedas francesas a partir dos tempos de Luís XIII, o guinéu era
uma moeda inglesa, e o real de oito era o nome popular do dólar espanhol
durante a colonização das Américas.

Capítulo 5. A última do cego


14 Embarcação leve de um mastro só, muito manobrável.

Capítulo 6. Os papéis do capitão


15 Atual capital da República de Trinidad e Tobago, no Caribe.
16 No século XVIII, a correspondência era fechada com um lacre de cera
derretida, ao qual se pressionava um sinete de metal com a marca do
remetente.

Capítulo 7. Vou para Bristol


17 Edward, primeiro barão Hawke (1705-1781), famoso por derrotar os
franceses em batalhas navais durante a Guerra da Sucessão Austríaca
(1740-1748) e na Batalha de Quiberon Bay, de 1759, durante a Guerra dos
Sete Anos, e que teria inspirado o canto marítimo “Heart of Oak”.

Capítulo 8. Na tabuleta da Luneta


18 “Passar pela quilha” era uma forma de punição aplicada em navios piratas,
na qual o prisioneiro era amarrado a uma corda, jogado de um lado do
navio e puxado pelo outro – precisando ao mesmo tempo segurar a
respiração para não se afogar e sobreviver ao passar pelo casco coberto de
cracas afiadas e crustáceos.
19 O Old Bailey é o Tribunal Central Criminal da Inglaterra. Já os Bow Street
Runners, criados pelo juiz e escritor Henry Fielding, foram a primeira
força policial profissional de Londres.
20 Antiga unidade de medida de líquidos, equivalente a cerca de 600 mL.
21 Os ingleses costumavam colocar um pedaço de pão torrado temperado para
melhorar o sabor do vinho ou da cerveja. Por isso, em inglês, até hoje, um
brinde é chamado de toast (“torrada”).

Capítulo 9. Pólvora e armas


22 Armação de madeira, geralmente com vidraças, que protege a entrada de
uma escotilha contra intempéries, ao mesmo tempo que fornece iluminação
natural e circulação de ar.
23 Um canhão giratório ou canhão de rodízio é uma peça de artilharia apoiada
sobre um suporte, que permite um ângulo de tiro de 360˚, e que, no caso,
dispara balas de calibre nove (quatro quilos).

Capítulo 10. A viagem


24 Cabo usado para segurar uma vela quando enfunada.
25 A moeda de oito reais espanhola, também chamada de dólar espanhol, peso
de ocho, peso duro, real de a ocho ou, em inglês, pieces of eight, era uma
moeda de prata de 3,8 cm de diâmetro. Devido a seu amplo uso no século
XVIII, era aceita no mundo todo e, às vezes, cortada em oito partes.
26 Edward England (1685-1721) foi um pirata irlandês, comandante do Pérola,
conhecido por sua gentileza e compaixão como líder. Em 1720, ao selar a
paz com seu inimigo, o governador das Ilhas Comores, na África, England
foi abandonado por sua própria tripulação e deixado para morrer nas Ilhas
Maurício, junto do único marinheiro que lhe foi fiel. Após quatro meses, os
dois montaram uma jangada e se salvaram, fugindo para Madagascar, onde
morreu pobre no mesmo ano.
27 Segundo A General History of Pyrates, de Charles Johnson, uma frota de
galeões espanhóis carregada de prata teria naufragado no Golfo da Flórida.
Os espanhóis recuperaram a prata, mas deixaram 35 mil moedas num
depósito, que acabou sendo saqueado em janeiro de 1716 pela frota do
capitão Henry Jennings, líder da República dos Piratas estabelecida na Ilha
de Nova Providência, nas Bahamas.
28 Em abril de 1721, os galeões portugueses Nossa Senhora do Cabo e Pedro
de Alcântara foram atacados na costa de Malabar pelo pirata francês
Olivier “O Urubu” Levasseur (c. 1688-1730). A bordo estavam o arcebispo
e o vice-rei de Goa, com um enorme carregamento de ouro, diamantes e
joias que ia para Lisboa. Levasseur seria capturado depois pelos franceses,
perto da costa de Madagascar. Segundo a lenda, ao ser enforcado, trazia no
pescoço um colar com um criptograma de 17 linhas, e antes de morrer teria
gritado à multidão: “Encontre meu tesouro, aquele que conseguir
entender”.
29 Bebida quente feita de rum, água e açúcar.

Capítulo 11. O que escutei no barril de maçãs


30 Cape Cost Castle, na antiga Costa do Ouro britânica na África (atual Gana).
31 Capitão John “Bartholomew” Roberts (1682-1722), dito Black Bart, pirata
galês considerado o mais bem-sucedido de sua época, com mais de
quatrocentos navios apresados, e que teria sido o autor das onze leis do
Código dos Piratas.

Capítulo 12. Conselho de guerra


32 William Kidd (1654-1701), capitão inglês que virou pirata e que,
supostamente, teria enterrado um tesouro onde hoje seria Long Island, em
Nova York.
33 Carenar era a prática de virar uma embarcação para fazer a manutenção e
limpeza do casco.

Capítulo 13. Como minha aventura em terra começou


34 Cabo de patarral é um cabo que liga o topo do mastro à popa.

Capítulo 16. O doutor continua a narrativa: como o navio foi abandonado


35 Diferente dos relógios comuns, as badaladas do sino nos navios antigos não
correspondiam ao número de horas, mas sim a turnos de quatro horas, que
eram divididos em oito meias horas. Assim, o início de cada turno (às 4h,
8h e 12h) era marcado por oito badaladas, a primeira meia hora (às 4h30,
8h30 e 12h30) por uma badalada, a segunda meia hora (às 5h, 9h e 1h) por
duas badaladas, e assim por diante, crescendo a cada meia até chegar ao
turno seguinte.
36 Canção cantada por apoiadores de Guilherme de Orange durante a
Revolução Gloriosa de 1688, quando o rei Jaime ii da Inglaterra foi
deposto.
37 Batalha de Fontenoy, em 1745, na qual William Augustus, duque de
Cumberland e filho mais novo do rei George ii, foi derrotado em batalha
contra os franceses, durante a Guerra da Sucessão Austríaca. Um ano
depois, o duque derrotaria os rebeldes escoceses durante a Revolta Jacobita
de 1746, na qual ganharia o apelido de Açougueiro Cumberland, por suas
ações contra soldados e civis. Curiosamente, Stevenson era escocês, e sua
escolha por um general antiescocês é apontada por críticos como indicativo
de sua natureza rebelde.

Capítulo 17. O doutor continua a narrativa: a última viagem do bote


38 Cinta de couro usada para carregar cartucheiras de pólvora, daí o termo
“bandoleiro”.

Capítulo 19. Jim Hawkins retoma a narrativa: a guarnição na paliçada


39 Nome genérico das bandeiras piratas, em geral pretas ou vermelhas, com o
desenho de esqueletos, crânios ou ossos cruzados.
Capítulo 20. A embaixada de Silver
40 Música inglesa tradicional.
41 Para os marinheiros ingleses, o equivalente ao diabo. Em As aventuras de
Peregrine Pickle (1751), do escritor escocês Tobias Smollett, Davy Jones é
descrito como “o oponente que preside sobre todos os espíritos malignos
das profundezas”, aparecendo na véspera de furacões, naufrágios e outras
catástrofes a que a vida marinha está sujeita. Da mesma forma, “o baú de
Davy Jones” é um eufemismo para o fundo do mar.

Capítulo 22. Como minha aventura no mar começou


42 No século XVIII, especialmente no mundo inglês, jantava-se ao meio-dia e a
refeição noturna era chamada “ceia”.
43 Frasco usado para levar pólvora na caça, às vezes em formato de chifre.
44 No século XVIII, os franceses tinham fama de ir embora sem se despedir do
dono da casa.
45 O coracle é um barco arcaico feito de pele animal e madeira, usado por
diferentes povos.

Capítulo 25. Faço baixar a Jolly Roger


46 Local a leste de Londres, na beira do rio Tâmisa, onde os condenados por
crimes em alto-mar foram executados por quatrocentos anos, até 1830. Ali
o pirata capitão Kidd foi executado em 1701 e seu corpo deixado
pendurado à beira do rio por três anos.

Capítulo 26. Israel Hands


47 Enxárcias são um conjunto de cabos e degraus feitos de cordas, madeira ou
ferro que sustentam os mastros dos navios à vela.

Capítulo 27. “Reais de oito”


48 Corda ou cabo que se usa para içar velas, bandeiras etc.

Capítulo 28. No acampamento inimigo


49 Sobrequilhas são peças protetoras que atravessam o navio de popa a proa.

Capítulo 29. A mancha negra outra vez


50 Stevenson cita um trecho do versículo 22:15 do Livro do Apocalipse.
Conforme a Bíblia de Jerusalém, a versão completa é a seguinte: “ficarão
de fora os cães, os mágicos, os impudicos, os homicidas, os idólatras e
todos os que amam e praticam a mentira”.

Capítulo 34. E por último


51 As moedas inglesas conhecidas como “soberanos” tinham no verso a
imagem de São Jorge, daí o nome. Já moidores é um termo arcaico da
língua inglesa para o português “moeda d’ouro”, uma moeda portuguesa
cunhada no Brasil com valor de face de 800 réis, enquanto o cequim era
uma moeda italiana cunhada na República de Veneza durante o
Renascimento.
52 Provavelmente, moedas do império turco-otomano, que traziam inscrições
em árabe no verso.
53 As antigas moedas chinesas eram furadas no meio.
Os senhores da trapaça

A pirataria é tão antiga quanto a Humanidade, assolando os mares desde o


império romano até os dias atuais, e se espalha pelos livros num leque de
gêneros que abraçam desde a literatura histórica até a ficção científica. Porém,
há um elemento que será sempre uma constante em qualquer história de piratas
digna do nome: a trapaça. Pois a trapaça e o logro são a base da existência
daqueles que vivem à margem das leis e da sociedade, infiltrando-se nos ricos
navios de carga, enganando autoridades, escapando da lei ou levando a melhor
uns contra os outros. Os piratas são o que o psicólogo Carl Jung, ao classificar os
padrões narrativos e imagens do inconsciente coletivo, chamou de arquétipo do
trickster.
Ou, para simplificar, um bando de malandros.
Piratas teriam sequestrado o jovem Júlio César – que segundo a lenda,
negociou um resgate maior para si mesmo, ofendido com o baixo valor pedido –,
atacado os peregrinos rumo à Terra Santa na Idade Média e assolado os mares da
China imperial. Mas foi no período entre a segunda metade do século XVII e a
primeira do século XVIII que ocorreu aquilo que ficou conhecido como a “Era de
Ouro da Pirataria”. Historicamente, foi um momento em que a Europa,
encerrando mais uma de suas infinitas guerras, voltou-se novamente à
colonização da América e do Caribe, e aqueles que chegaram mais tarde na
corrida colonial – em especial ingleses e franceses – passaram a atacar os navios
carregados de ouro das colônias de Espanha e Portugal. Mas a imagem moderna
que temos do pirata começou a se consolidar em 1724, com a publicação de A
General History of the Pyrates, escrito pelo capitão Charles Johnson –
pseudônimo de um autor desconhecido, que alguns já atribuíram a Daniel Defoe.
O livro reúne perfis reais de piratas notórios como Barba Negra, Calico Jack
e Anne Bonny e estabelece os elementos comuns de sua vivência, como o código
pirata e a bandeira negra de ossos cruzados. E foi tendo esse livro como base
que, 130 anos depois, numa noite chuvosa da Escócia, Robert Louis Stevenson e
seu enteado de então quinze anos, Lloyd Osborne, conceberam o mapa da ilha
que daria título ao livro que você tem em mãos.
Claro, Stevenson não escreveu a primeira história de piratas. Outros autores
já haviam se aventurado no gênero antes, muitos deles homenageados por
Stevenson no poema que abre seu livro ou ao longo da obra. O escocês Tobias
Smollett narrou as aventuras navais picarescas de um jovem num navio corsário
em Roderick Random (1748). O pai do romance histórico, Walter Scott, publicou
O corsário (1822), mesmo título de um poema de Lord Byron de 1914 que
inspiraria a ópera homônima de Giuseppe Verdi. James Fenimore Cooper
publicou O corsário vermelho (1827), e Gilbert e Sullivan criaram o popular
musical Os piratas de Penzance (1880). Mas Stevenson, propondo-se a escrever
dentro da tradição vitoriana das “aventuras para garotos”, não apenas elevou o
gênero com seu estilo elegante, mas acrescentou os detalhes que se tornariam
marcas essenciais para qualquer história de piratas.
Stevenson estabeleceu as regras e os padrões pelos quais todas as histórias
de piratas seriam medidas desde então, desde o X marcando o local do tesouro
até a Marca Negra e a própria figura do personagem Long John Silver, com sua
perna de pau e papagaio no ombro. “Não é uma criação da ficção, mas uma
realidade viva e orgânica com a qual entramos em contato, tal é o efeito das
sugestivas pinceladas com que [o personagem] é desenhado”, disse um
impressionado Arthur Conan Doyle. De fato, Silver enquanto imagem de um
pirata é mais real para nós do que muitos piratas históricos jamais foram. E se
pensarmos que, quando o aventureiro inglês H. Rider Haggard foi desafiado por
seu irmão a escrever “algo tão bom quanto A Ilha do Tesouro”, este produziu As
minas do rei Salomão, podemos facilmente posicionar Stevenson como o pai da
moderna literatura de aventura.
Já a popularidade das histórias de pirata teria continuidade no século XX
graças ao trabalho do italiano Emilio Salgari, que se tornou famoso no mundo
todo escrevendo as aventuras do pirata Sandokan, o “Tigre de Mompracem”. O
protagonista dessa série de onze livros, um príncipe de Bornéu traído pelos
ingleses e tornado líder dos piratas da Malásia, combatia a colonização inglesa e
holandesa no Sudeste Asiático. Em seguida, Salgari repetiu o feito concebendo
outro pirata igualmente popular, através das cinco aventuras da série “O Corsário
Negro”, desta vez na ambientação mais tradicional do Caribe durante a Era de
Ouro da Pirataria. Ainda que os livros de Salgari sejam escritos com mais
empolgação do que técnica literária, sua obra inspirou de Fellini a Umberto Eco,
e já houve quem tenha creditado a Salgari a responsabilidade de ter criado o
senso de unidade cultural de uma Itália recém-unificada, ao tornar-se a leitura
comum de norte a sul do país.
Contudo, seria do teatro que viria o pirata mais famoso da literatura
infantojuvenil, e talvez de toda a literatura. O capitão James Gancho, criado pelo
dramaturgo inglês James Matthew Barrie, surgiu em 1904 como o arqui-inimigo
de Peter Pan na peça Peter e Wendy e, posteriormente, no livro em prosa de
1911. Elegante no falar e no vestir, porém cheio de impulsos assassinos, o
capitão Gancho estabeleceu o padrão de personalidade do “vilão pirata” da
maioria das histórias infantis. Barrie, que admirava A Ilha do Tesouro de
Stevenson, inclui até uma rápida referência: de que o Capitão Gancho era o
único homem que Long John Silver temia. A popularidade de Gancho foi
reforçada com o sucesso da adaptação de Walt Disney para um longa-metragem
animado (1953), bem como de inúmeras versões para o cinema com atores, das
quais a mais conhecida talvez seja a de Dustin Hoffman em Hook: a volta do
capitão Gancho (1990), filme de Steven Spielberg que se propõe como
continuação da peça original.
O cinema, por sinal, foi essencial para popularizar os piratas no imaginário
do século XX como vilões trapaceiros e malandros, mas também como símbolos
românticos de liberdade e luta contra o sistema. Isso se deu, em grande parte,
graças a outro italiano, o escritor Rafael Sabatini. Filho de mãe inglesa, decidiu
escrever na língua dela sob a crença de que “todas as melhores histórias eram
escritas em inglês”. Dele veio a série de livros contando as aventuras do capitão
Blood, começando com Captain Blood: His Odyssey (1922), que contava as
aventuras do esperto médico inglês Peter Blood. Injustamente levado à prisão em
degredo, o personagem escapa para se tornar líder de uma frota pirata, defende a
Jamaica contra invasores franceses e termina sendo perdoado pelo rei. Quando
adaptado ao cinema falado em 1935, pelo mesmo Michael Curtiz que depois
dirigiria Casablanca, o filme transformou o desconhecido ator Errol Flynn em
astro da noite para o dia, coroando-o novo rei dos filmes de capa e espada.
Indicado a cinco Oscars, incluindo melhor filme, o longa deu início à “Era de
Ouro” das aventuras hollywoodianas de piratas. Mas sua popularidade, claro,
não vinha do nada: as histórias de piratas eram um alívio para as plateias norte-
americanas em tempos da Grande Depressão. Se a principal característica de um
herói de ação é sua habilidade para escapar de perigos constantes ou sobreviver a
ambientes hostis, nada poderia ser mais adequado ao público da época.
O próprio A Ilha do Tesouro foi tantas vezes adaptado para o cinema e a
televisão, que o pirata Long John Silver ganhou uma série respeitável de
intérpretes. A começar por Robert Newton, popular ator de produções juvenis
das décadas de 1940–1950, em A Ilha do Tesouro (1950), primeiro longa-
metragem live-action da Disney. Depois vieram Orson Welles numa adaptação
de 1972; Charlton Heston numa produção para a tv de 1990 (que contava com
um jovem Christian Bale interpretando Jim Hawkins e Christopher Lee como o
cego Pew); e Tim Curry cantando em Os Muppets na Ilha do Tesouro em 1996.
Em 2002, a Disney retornaria a Stevenson, levando a história para o espaço na
animação Planeta do Tesouro.
Contudo, depois da fase áurea das aventuras de capa e espada, por muito
tempo os filmes de piratas passaram a ser considerados “apostas de risco” no
cinema norte-americano, devido a uma série de fracassos de bilheteria. Peter
Benchley, autor consagrado por Tubarão, adaptou seu próprio livro A Ilha
(1979), sobre pai e filho velejadores que encontram uma ilha habitada por
descendentes de piratas, numa fracassada produção estrelada por Michael Caine.
Roman Polanski também não teve muito sucesso com seu Piratas de 1986. Mas
nada se compara, claro, a A Ilha da Garganta Cortada, superprodução estrelada
por Geena Davis em 1996. Orçamento alto, problemas de filmagens e roteiro
reescrito em cima da hora foram a receita para que o filme – que custou então
quase 100 milhões de dólares e fez apenas 10 milhões de bilheteria – entrasse
para o Livro dos Recordes como maior fracasso da história do cinema até então,
forçando o fechamento de seu estúdio, Carolco Pictures.
Se você quisesse piratas nos anos 90, a solução era recorrer aos jogos de
computador da série A Ilha dos Macacos, com seus duelos de insultos e humor
anárquico. Ou visitar certa atração na Disneyland chamada Piratas do Caribe,
cujos bonecos animatrônicos encenavam, em elaborados dioramas, os cenários
da Era de Ouro da Pirataria.
Até, claro, a própria Disney se arriscar na ideia de adaptar um brinquedo de
parque de diversões para o cinema, quando lançou em 2003 o filme Piratas do
Caribe: a maldição do Pérola Negra. Os filmes dessa franquia renovaram o
interesse do público por piratas, e as novas histórias parecem agora retornar a
suas origens. A obra de Stevenson ganhou uma prequel na série televisiva Black
Sails, com quatro temporadas exibidas entre 2014 e 2017, contando as aventuras
do temido capitão Flint e de um jovem Long John Silver. Já A General History
of Pyrates serviu como base para o popular jogo de videogame Assassin’s Creed
IV: Black Flag, em que o jogador encontra piratas históricos e navega pelos
mares do Caribe.
Terminada a leitura deste A Ilha do Tesouro, o leitor poderá perceber o
quanto todas essas histórias de piratas da cultura pop devem a Stevenson. Não
apenas em referências a canções, superstições, personagens, gírias e estruturas
da trama, mas também no modo inteligente como Stevenson quebra a visão de
mundo essencialmente autoritária do maniqueísmo simplista que divide o mundo
entre “Bem” e “Mal”. Para isso, o autor nos mostra, democraticamente, a
ambiguidade de cada personagem: a tragédia pessoal do pirata caído em
desgraça, a ambição irresponsável do senhorio, a honorabilidade por trás da
severidade do capitão, e mais do que tudo, a malandragem inclassificável de
Long John Silver, que num piscar de olhos vai do gentil ao cruel, do caloroso ao
frio, do amigável ao traiçoeiro, sem nunca deixar de perder a aura de perigo que
o cerca.
Como, aliás, toda boa aventura deveria ser.
SAMIR MACHADO DE MACHADO é escritor, tradutor e mestrando em
Escrita Criativa pela PUC-RS, autor de Homens elegantes, Tupinilândia e do
infantojuvenil Piratas à vista!.
Talvez o último romântico: Robert Louis Stevenson, da
Ilha do Tesouro aos mares do sul

Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do


século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de
Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um
modo vaidoso que as converte em atributos de um ator.
Jorge Luis Borges, “Borges e eu”, O fazedor.

As peripécias do garoto Jim Hawkins e do pirata Long John Silver há tempo


saltaram das páginas de A Ilha do Tesouro para ganhar os palcos e as telas, com
inúmeras adaptações para cinema, TV e até videogame. A história será familiar
mesmo para quem nunca leu o livro, assim como acontece com a novela O
médico e o monstro1, com a horripilante história do bom médico que se vê
transformado num monstro. Essas obras ganharam vida própria, e sua fama
ultrapassa a de seu autor, o escocês Robert Louis Stevenson. Isso não é pouca
coisa: da juventude boêmia à vida de aventuras nas ilhas do Pacífico, Stevenson
construiu uma imagem romântica e foi admirado como um herói em seu tempo.
Seus livros eram um sucesso nos dois lados do Atlântico. Desde sua morte
precoce em 1894, aos 44 anos, o escritor é tema de muitas biografias que
prometem – em vão – explicar o mistério de uma vida tão cheia de peripécias,
como seu mais famoso romance, e de uma obra multifacetada que angariou
incontáveis admiradores e não poucos detratores.2
Stevenson conta que A Ilha do Tesouro foi escrito para entreter seu enteado
Lloyd Osbourne.3 Seus capítulos foram publicados em série na revista infantil
Young Folks entre 1881 e 1882, sendo reunidos em livro no ano de 1883. Apesar
de escrever desde muito jovem e de já ter publicado contos, ensaios e relatos de
viagem que lhe deram certa reputação, foi apenas aos 31 anos que conseguiu
terminar este seu primeiro romance. A Ilha do Tesouro foi um grande sucesso
entre os jovens leitores da época, mas não apenas. Escritores como o americano
Henry James, conhecido por sua obra refinada e hermética, o polonês Joseph
Conrad, que transformou a prosa em língua inglesa com suas histórias sombrias,
e o simbolista francês Marcel Schwob, para ficar apenas entre os
contemporâneos de estilo muito diverso do seu – e entre si –, todos elogiaram a
técnica literária do hoje clássico romance de aventuras de Stevenson. Por outro
lado, os críticos F. R. Leavis, Harold Bloom e William Gass, em diferentes
momentos, viam sua obra com certa reserva, considerando-a imatura ou
derivativa
O próprio Stevenson reconhece ter encontrado o famigerado personagem
Billy Bones, seu baú e muitos outros detalhes materiais dos primeiros capítulos
nos relatos do escritor americano Washington Irving. O papagaio chamado
Capitão Flint, sem dúvida nenhuma,

uma vez pertenceu a Robinson Crusoé. O esqueleto certamente foi


transposto de Poe. Não me importa, são ninharias e detalhes, e homem
nenhum pode querer ter o monopólio de esqueletos ou exclusividade nas
aves falantes. A paliçada, me disseram, vem de Masterman Ready. Pode ser,
não poderia me importar menos com isso […] Parecia original como o
pecado; parecia pertencer a mim como meu olho direito.4

Para compor seu romance, Stevenson lançou mão de um vasto acervo de


histórias sobre piratas que circulavam em sua época, quando a memória dos
enforcamentos espetaculares ainda estava fresca e a pilhéria colonial seguia a
todo vapor. Também já existiam biografias e histórias detalhadas sobre pirataria,
que lhe serviram de fonte. Além de admitir, não sem ironia, que poucos
escritores plagiaram mais do que ele,5 a própria forma do romance faz uso de
modos ancestrais e altamente convencionais de narrar. Ainda assim, A Ilha do
Tesouro é considerado original e inventivo; muitas de suas anedotas são hoje
parte do imaginário, sem vinculação necessária à autoria, um caso em que a
cópia torna-se o original. Há também na blague de Stevenson algo da
irreverência moderna de Jorge Luis Borges, em cuja obra a reflexão sobre cópia
e original adquire uma dimensão labiríntica. Não por acaso, o escritor argentino
esteve entre os maiores admiradores de Stevenson, e a influência deste na obra
de Borges é maior do que ele declarou, como sugere o crítico americano Daniel
Balderston.6 O uso de citações e a reflexão a respeito dessa prática são também
típicos do pensamento pós-moderno, da alta cultura e até da cultura de massa.
Pensemos na desconstrução de Jacques Derrida ou no cantor e compositor norte-
americano Bob Dylan, considerado um dos nomes mais originais do cancioneiro
mundial. Dylan é ora reverenciado como um mestre da apropriação/citação, ora
acusado de contumaz plagiário. Quando recebeu o prêmio Nobel de literatura,
em 2016, declarou:

Escutando todos os antigos artistas folk e cantando suas canções, você


aprende o vernáculo. Você o internaliza. Você o canta no ragtime, nas
canções de trabalho, nas canções de marujo da Georgia, nas baladas dos
Apalaches e nas músicas de cowboy. Você ouve todas as sutilezas e aprende
os detalhes […] Quando comecei a escrever minhas próprias canções, o folk
era a única língua que conhecia, e eu a utilizei.7

Não haveria ecos de Stevenson em Dylan? Borges afirmou, com astúcia, que
cada escritor cria seus precursores e, ao fazê-lo, transforma não apenas nossa
noção do passado, mas também do futuro.8 Cada vez mais, a crítica literária vê
na obra de Stevenson o prenúncio de algum aspecto da modernidade. Jekyll e
Hyde, que se transformou numa expressão na língua inglesa, antecipou
descobertas importantes da psicanálise: a novela traz à luz o que a consciência e
a moral reprimem, e foi interpretada como alegoria da sexualidade proibida
durante o período vitoriano (Freud era o primeiro a reconhecer a própria dívida
com a literatura); seus relatos de viagens são considerados hoje menos guias para
outros aventureiros do que viagens internas e reflexivas; seus escritos sobre o
Pacífico revelam, tal qual os livros de Conrad, os horrores do imperialismo no
fim do século XIX, o que há de vazio na caça ao tesouro e o despertar da loucura.9
Mas nem todos os precursores de Stevenson tiveram a mesma sorte. Muitos
deixaram de ser lidos, como é o caso do escocês Walter Scott, a quem Stevenson
homenageia em algumas ocasiões. Vejamos o que faz sua ilha ser diferente de
tantas outras.

O tesouro da Ilha
Em um perfil de Stevenson publicado na Century Magazine em 1888, Henry
James arriscou: “A Ilha do Tesouro, sem dúvida, se converterá – se já não é, e
assim permanecerá – um clássico a seu modo, graças a essa mistura indescritível
do prodigioso e do humano, de coincidências surpreendentes e de sentimentos
familiares”.10 Numa época de afirmação do romance realista, comprometido
com a representação da vida cotidiana, Stevenson defende as formas arcaicas e o
maravilhoso, associados à ficção romanesca11 – vide o gracejo dirigido ao
“comprador hesitante” que abre o livro. Seu romance, no entanto, vai além,
como sugeriu James, adicionando à fábula uma “densidade de observação”
incomum em obras do gênero. Para Stevenson, o romanesco não era
necessariamente oposto ao realismo; em seus ensaios sobre a arte da ficção, o
termo é usado como sinônimo de aventuras, e estas são, desde Aristóteles, uma
categoria importante para a reflexão sobre a arte da narrativa.12 É preciso dizer
que a produção ensaística de Stevenson, hoje geralmente desconhecida pelos
leitores de suas histórias de aventura, teve papel importante no pensamento sobre
a literatura, às vésperas das transformações que ela sofreria com as vanguardas
do início do século XX. No universo de língua inglesa, o romance não era
considerado uma arte e não havia um campo de discussão sólida como na
França. Sobretudo no pós-guerra, os estudos da ficção ganharam corpo e forma a
partir dos prefácios que James escreveu para uma edição de suas obras
completas.13 Mas pouca gente sabe que James foi profundamente afetado pelo
diálogo com Stevenson.
Henry James também foi um dos mais finos críticos do escritor escocês. Vale
a pena citar um trecho mais longo do ensaio mencionado acima, que é capaz de,
com concisão e sagacidade, jogar luz sobre a singularidade do romance:

A Ilha do Tesouro é um “livro de menino” no sentido que dá corpo à


percepção que um menino tem do extraordinário; mas é único, e calculado
para fascinar a mente cansada da experiência, pois o que vemos nele não é
apenas a fábula ideal, mas, como parte integrante da obra, o jovem leitor ele
mesmo e seu estado de espírito: parece que o lemos por cima de seus
ombros, com o braço em torno de seu pescoço. É tudo tão perfeito como um
jogo de menino bem jogado, e nada se compara a ele em termos de espírito e
técnica, no humor e na sensação de estar ao ar livre, com os quais as coisas
se mantêm sempre num ponto crítico. Não é apenas um registro de acasos
bizarro, mas um estudo dos sentimentos juvenis; há um lado moral nele, e as
figuras não são marionetes de rostos vagos. Se Jim Hawkins ilustra a ousadia
exitosa, ele o faz com uma candura deliciosa e otimista e uma tendência ao
erro consciente e modesta. Sua sorte é tremenda, mas não faz dele um
orgulhoso; seus modos são refrescantemente provincianos e humanos.
Acontece o mesmo, em maior grau até, com o admirável John Silver, um dos
vilões mais pitorescos e, em todos os sentidos, apresentado com mais gênio
em toda a literatura romanesca. Ele tem uma face singularmente distinta e
expressiva, que, é claro, descobrimos ser uma máscara horripilante.14

James destaca nessa passagem não apenas o estilo de Stevenson, mas


também seu trabalho com o ponto de vista. Ele mesmo ficou conhecido por levar
o perspectivismo ao limite em suas obras finais, abrindo caminho para os
experimentos radicais do modernismo realista de Virginia Woolf e de James
Joyce. Stevenson adota com coerência e profundidade o ponto de vista do garoto
Jim e, quando é preciso, faz um adendo com três breves capítulos narrados pelo
dr. Livesey (Conrad e Schwob admiravam o narrador duplo de A Ilha do
Tesouro). Ainda, o autor é capaz de fazer os adultos experimentarem o prazer da
leitura e o apelo à imaginação que são fundamentais à experiência infantil.
Até o século XIX, as histórias “para meninos” eram marcadas por certo
didatismo moral e religioso. Apesar de defender que as aventuras deveriam estar
insufladas de “significado e grandeza moral”, Stevenson não estava nem um
pouco interessado em dar lições de moral. Jim se recusa a obedecer ao fidalgo
Trelawney e ao dr. Livesey, aprende com o pirata de caráter duvidoso Long John
Silver e, apesar de desobedecer as ordens dos adultos – ou justamente por isso –,
salva a vida de sua trupe mais de uma vez. A desobediência é uma chave
importante do enredo e da formação de Jim, mas também da formação do
próprio Stevenson. O escritor se interessava pelo individualismo radical de
Henry David Thoreau e de Walt Whitman e pelo protestantismo dissidente dos
presbiterianos escoceses, que, misturados com sua própria vivência da boemia
artística, funcionaram como uma espécie de antídoto ao calvinismo de sua
infância em Edimburgo.15
A autoridade é questionada ainda em outro nível, quando os marujos (a
classe trabalhadora do romance) se amotinam contra as forças da lei e da ordem
representadas pelo capitão Smollett, pelo dr. Livesey e pelo fidalgo Trelawney. A
crítica literária mostrou como o relato de aventuras, altamente convencional na
forma, também costuma ter um caráter conservador, sendo muitas vezes
cúmplice na reprodução da estrutura social: situadas em lugares remotos no
tempo e no espaço, essas histórias acabam por naturalizar a hierarquia social.16
Numa época em que uma série de reformas ampliaram o direito ao voto a partes
da classe trabalhadora no Reino Unido,17 Stevenson põe os privilégios herdados
da nobreza sob suspeição, sem nunca tocar diretamente no assunto; afinal, sua
história se passa no século anterior, no indeterminado “Ano da Graça de mil
setecentos e…”. É verdade que as ações de Jim acabam por restaurar a
autoridade, porém não sem antes dar corda para Silver. O pirata é capaz de
mimetizar os modos dos cavalheiros e encantar a todos, chegando a revelar certa
ambição ao parlamento. No final, ele escapa da forca, o que, para um vilão da
época, era não apenas improvável, mas condenável (e por isso Stevenson foi
eventualmente acusado de ser amoral). O próprio Jim, apesar de sua postura
nobre, não pertence à classe dos herdeiros. Assim, a obra de Stevenson é mais
ambígua do que pode parecer a princípio. Sua complexidade moral a afasta do
didatismo comum ao gênero.
Outra questão central à prosa de Stevenson é o que ele chama de “aspecto
plástico da literatura”, definido no ensaio “A Gossip on Romance”, de 1882,
como aquilo que “dá corpo ao caráter, ao pensamento ou à emoção em um ato ou
em uma atitude marcante para o olho da mente”.18 Não são poucas as cenas
memoráveis de A Ilha do Tesouro. James, por exemplo, cita o episódio de
abertura do romance, quando o marujo Billy Bones, com a cicatriz de um talho
de sabre no rosto, chega à estalagem Almirante Benbow, seguido, pouco depois,
pela figura assustadora do cego Pew, que vem tateando sua bengala estrada
abaixo. A força da imaginação visual de Stevenson foi notada por Borges, Bioy
Casares e Alfredo Reyes, assim como, provavelmente, por todos os roteiristas e
diretores que adaptaram seus livros para as telas. Reyes observou como as
imagens que pontuam suas histórias interrompem o fluxo narrativo, fazendo-o
fluir com mais rapidez, porque eliminam as descrições características de boa
parte da ficção realista do século xix. Para ele (e sua opinião é compartilhada por
Brecht), a primazia de elementos pictóricos assim dispostos – os fios de uma
história unidos em uma imagem, imagens que se ligam umas às outras numa
trama visual – faz da literatura de Stevenson uma arte cinematográfica antes
mesmo que o cinema fosse inventado.19
Não é de espantar que a composição do romance tenha origem com uma
imagem: o mapa de uma ilha, desenhado e colorido até os mínimos detalhes por
Stevenson para conseguir a atenção do enteado, à época mais afeito à “arte de
Rafael” do que às letras.20 É do mapa que surgem os rostos dos personagens, que
então passam a desfilar com suas armas, “lutando e buscando tesouro nessas
poucas polegadas de uma projeção plana”21. A própria linguagem de Stevenson
aqui traz à mente uma tela cinematográfica. Não à toa, os personagens passam
tanto tempo debruçados sobre um mapa, memorizando seus detalhes e
projetando ali suas aventuras futuras. Antes mesmo de pisar na Ilha do Tesouro,
a imaginação de Jim o “aproximava daquela ilha por toda direção possível;
explorava cada acre de sua superfície; escalava milhares de vezes aquela colina
alta que chamavam de Luneta, e do topo apreciava as mais maravilhosas e
diferentes possibilidades.” [p. 84] Stevenson empresta a Jim sua paixão pelos
mapas e faz o garoto viver as aventuras marítimas pelas quais ele mesmo tanto
ansiava.

A vida que imita a arte e a amplia!

No final de agosto de 1887, Stevenson embarcou com a família para os


Estados Unidos, onde tornara-se praticamente uma celebridade com a publicação
de O médico e o monstro em 1886. Após uma temporada em Nova York e no
lago Saranac, o escritor alugou um iate – o Casco – para tentar a sorte em alto-
mar. Seu roteiro incluiria paradas no Havaí e na Polinésia. Em julho de 1888,
aportou no arquipélago das Marquesas, seu primeiro destino no Pacífico Sul.
Cinco anos depois da publicação de A Ilha do Tesouro, era a vez de Stevenson
viver suas aventuras marítimas e conhecer a vida nas ilhas, o que lhe
proporcionou uma alegria tremenda. Ali entrou em contato com uma diversidade
de culturas indígenas e com um ambiente natural diferente de tudo o que
conhecera até então. O clima tropical também fez bem à saúde frágil que
acometia o escritor desde a infância, e ele acabou por se estabelecer em Samoa.
No Pacífico, Stevenson pôde testemunhar ainda a vivacidade do comércio e
a violência dos governos imperiais, que dividiam e desmantelavam os povos
nativos com a imposição da propriedade privada, do cristianismo e do trabalho
forçado. Stevenson sempre nutrira certa antipatia pela vida moderna e, desde
seus primeiros escritos de viagem, buscava fugir da “Bastilha da civilização”.22
No Pacífico, encontrou uma âncora para suas especulações teóricas e abraçou a
dicotomia civilização/selvageria. Nisso, fazia coro a viajantes e filósofos
franceses que, desde o século XVIII, tomaram o Pacífico e sobretudo o Taiti para
criticar a Europa. Com o tempo, o primitivismo deu lugar a uma investigação
mais atenta daquelas sociedades. Os nativos lhe pareceram então ser do mesmo
material “bárbaro” que seus ancestrais das terras altas escocesas, ambos
intocados pela influência da civilização romana. Finalmente, após estudar
melhor seus modos de vida, Stevenson começou a conceber a região como uma
“forma alternativa de organização civil”.23
O contato com o Pacífico transformou profundamente a ficção de Stevenson,
a qual se tornou surpreendentemente mais realista. O meio-ambiente – a
paisagem das ilhas, a vida marinha, a vegetação tropical – não era apenas
cenário ou pano de fundo de seus enredos, mas cobrava certa agência.24 As ilhas
descritas em A praia de Falesá (1892) e The Ebb-Tide (1894) são tão inventadas
quanto a Ilha do Tesouro, porém, enquanto esta última, supostamente situada no
Caribe, é coberta por fauna e flora típicas do Pacífico, as descrições em sua
ficção tardia foram de fato baseadas no conhecimento recolhido por ele em
Samoa e em outras ilhas da região.25 Também seus escritos de não ficção foram
afetados pelo encontro com o Pacífico. Os relatos de viagem publicados em
1896 com o título de Nos mares do Sul são eivados de críticas ao imperialismo
europeu e se assemelham mais a um estudo antropológico. Stevenson também
passou a se envolver com a política e o jornalismo, antes por ele desprezados, e
escreveu uma série de cartas abertas para jornais sobre a situação política de
Samoa, à época governada por Grã-Bretanha, Alemanha e Estados Unidos.
Quase todos os seus amigos censuraram sua decisão de se fixar em Samoa.
Sua vida na ilha envolvia trabalho (da construção da casa ao estabelecimento de
uma plantação de cacau) e o convívio com nativos, aos quais o escritor não
poupava elogios em suas cartas. Apesar de sua estadia nos trópicos ter lhe
proporcionado os anos mais saudáveis de sua vida madura, os homens de letras
na Europa estavam certos de que a distância da “civilização” acabaria por
deteriorar sua escrita. No entanto, escreveu muitos livros de qualidade e sua
última obra, Weir of Herminston (que ficou inacabada) é considerada, mesmo
por aqueles que não apreciavam sua ficção, um sinal de que algo novo e genial
estaria por vir e de que Stevenson se tornaria enfim um escritor maduro. No dia
em que morreu, menos de um mês após completar 44 anos, ele estava
trabalhando nesse romance.

Para todos e todas

No ensaio que Stevenson escreveu sobre a gênese de A Ilha do Tesouro, ele


anuncia: “seria uma história para meninos; sem necessidade de psicologia ou
escrita refinada; eu tinha um menino à mão como critério. As mulheres estavam
excluídas”. Não é de espantar que não haja nenhuma personagem feminina neste
romance – como aliás em quase todos os outros do autor –, a não ser pela breve
aparição da mãe de Jim. Segundo James, criador de personagens femininas
memoráveis, as mulheres são para Stevenson, em geral, como “garotas
supérfluas em um jogo de um menino”, já que “não gostam de navios, pistolas e
lutas; elas sobrecarregam o convés e exigem apartamentos exclusivos; e, pior de
tudo, não têm o padrão literário mais elevado”.26 Ele especula que tal postura de
Stevenson tem a ver com a aversão que o escritor nutria pelo casamento e pela
vida doméstica, que ambos julgavam incompatíveis com a dedicação às letras.
Mas Stevenson deu um jeito de viver suas aventuras no mar e também as
literárias tendo sempre a família por perto. Ainda que possamos contextualizar o
que hoje explicita uma inegável misoginia – justificando-a pela situação
histórica das mulheres durante o período vitoriano, em grande parte relegadas ao
lar e excluídas das letras –, fica difícil relevá-la. Até porque, caso a imaginação
do ficcionista falhasse, havia registros históricos notáveis de piratas mulheres e
ao menos um par delas navegou pelos mares do Caribe no século XVIII. Essas
piratas ficaram conhecidas por suas vidas e eventualmente mortes espetaculares.
No que parece um ponto de inflexão digno de nota, as mulheres começam a
aparecer nas obras finais de Stevenson. James, aliás, considerava que as duas
personagens femininas de Weir of Herminston estavam entre as melhores que o
escocês já inventara.27 Talvez a mudança para Samoa tenha lhe permitido
redimensionar não apenas a percepção das ilhas tropicais e de seus povos
nativos, mas também a força imaginativa das/nas mulheres.
Em sua época, Stevenson reinventou o universo da pirataria e da ficção
romanesca ao se apropriar das obras de outros, deixando-nos um legado de
desobediência. A Ilha do Tesouro é uma ode à ousadia. Nos dias de hoje,
associamos a pirataria sobretudo com a internet, que, pelo menos em sua fase
utópica, prometia acesso universal ao conhecimento e aos bens culturais. Espero
que as meninas de hoje, versadas no universo da pirataria digital, possam se
apropriar da prosa de Stevenson e dar a ela novos sentidos.
MARINA BEDRAN é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela
USP e doutoranda no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de
Princeton. Organizou e traduziu A aventura do estilo: ensaios e correspondência
de Henry James e Robert Louis Stevenson.

1 O título original da novela publicada em 1886 era Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde.
Stevenson suprimiu deliberadamente o artigo the para ressaltar a estranheza da história, mas
algumas edições posteriores o acrescentaram. No Brasil, foi traduzida diversas vezes, geralmente
como O médico e o monstro.
2 A primeira das biografias, The Life of Robert Louis Stevenson, de 1901, foi publicada por um primo
seu, Graham Balfour, apenas alguns anos após a morte de Stevenson.
3 Stevenson, “ My first book – Treasure Island”. The Courier. v. 21, n. 2 (1982): 77–88. O ensaio foi
publicado pela primeira vez em agosto de 1894.
4 Stevenson, “My first book”, cit., p. 84.
5 Ibidem, p. 84.
6 Daniel Balderston, El precursor velado: R. L. Stevenson en la obra de Borges. Trad. Eduardo Paz
Leston. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1982.
7 Palestra proferida em 2017, em tradução minha. Acessível em
<www.nobelprize.org/prizes/literature/2016/dylan/lecture>.
8 Jorge Luis Borges, “Kafka e seus precursores” (1951), Outras inquisições. Trad. Davi Arrigucci Jr.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
9 Ver Penny Fielding, Introdução a The Edinburgh Companion to Robert Louis Stevenson. Org. Penny
Fielding. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2010.
10 Henry James, “Robert Louis Stevenson”, A aventura do estilo: ensaios e correspondência de Henry
James e Robert Louis Stevenson. Org. Marina Bedran. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. p. 238.
11 Stevenson usa o termo romance, traduzido geralmente como “romanesco”. Romance remete a um tipo
de narrativa associada ao maravilhoso, ao inverossímil e ao mundo aristocrático e idealizado, vinda
da tradição francesa e muito popular no século xvii. Já novel é o termo que passou a ser usado na
Inglaterra a partir do século xviii para designar o romance moderno, gênero que surgia ali. Para uma
discussão mais aprofundada sobre o gênero romance, ver o livro de Sandra Vasconcelos Dez lições
sobre o romance. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
12 Alex Thomson, “Stevenson’s Afterlives”, The Edinburgh Companion to Robert Louis Stevenson, cit.,
p. 154.
13 Para uma tradução comentada dos prefácios, ver A arte do romance: antologia de prefácios. Org.
Marcelo Pen. São Paulo: Globo, 2003.
14 Henry James, “Robert Louis Stevenson”, cit., p. 237-8.
15 Alex Thomson, “Stevenson’s Afterlives”, cit., p. 156.
16 Robert P. Irvine, “Romance and Social Class”, The Edinburgh Companion to Robert Louis Stevenson,
cit., p. 30.
17 As leis de reforma de 1832, 1867 e 1884.
18 Robert Louis Stevenson, “A Gossip on Romance”, tradução minha. Publicado pela primeira vez em
1882 na Longman’s Magazine e depois no volume Memories and Portraits (1887). Disponível em:
<https://ebooks.adelaide.edu.au/s/stevenson/robert_louis/s848mp/chapter15.html>.
19 Balderston, El precursor velado, cit., p. 46. Ver também Bertold Brecht, “L’oeil cinématographique de
Stevenson”, Robert Louis Stevenson. Org. Michel Le Bris. Paris: Éditions de L’Herne, 1995.
20 Stevenson, “My first book”, cit., p. 81.
21 Ibidem, p. 81. O mapa original foi enviado juntamente com o manuscrito de A Ilha do Tesouro à
editora inglesa Cassel & Co, que publicou a primeira edição do livro. Para desespero de Stevenson,
o mapa acabou se perdendo. Com a ajuda de seu pai, ele o refez, acrescentando alguns detalhes e
ornamentos. Stevenson, porém, sempre lamentou a perda do mapa original, que havia desenhado
com liberdade e imaginação, enquanto a segunda versão lhe custou muito trabalho, pois precisava
corresponder aos mínimos detalhes da narrativa. Este novo mapa foi impresso na primeira edição do
livro e nas subsequentes.
22 Roslyn Jolly, “Stevenson and the Pacific”, The Edinburgh Companion to Robert Louis Stevenson, cit.,
p. 119.
23 Ibidem, p. 120.
24 Ibidem, p. 123.
25 Para um relato sobre a confusão de Stevenson em relação à vegetação do Caribe, ver a introdução de
John Seelye à edição da Penguin Books de 1999 do romance.
26 Henry James, “Robert Louis Stevenson”, cit., p. 221.
27 “Ce splendide et tragique fragmente: Herminston, le juge pendeur”, Une amitié littéraire: Henry
James – Robert Louis Stevenson. Org. Michel Le Bris. Paris: Éditions Payot & Rivages, 1994. p.
371.
Sobre as ilustrações desta edição

Quando recebi o convite para ilustrar A Ilha do Tesouro, senti uma mescla de
fascínio com inquietação. Talvez também algum desespero, pois nunca tinha
ilustrado dentro de uma temática infantojuvenil. Mas a ideia de fazer algo fora
da minha zona de conforto, como faz Jim Hawkins tantas vezes, me agradou.
Assim que comecei a ler a obra para ilustrá-la, vieram-me memórias
distantes. Compreendi que as narrativas geradas dentro da Ilha Esqueleto se
espalharam pela cultura pop, e por consequência pelo meu imaginário das
histórias de pirata.
A maneira como Jim reage às situações que encontra durante sua jornada me
parece bastante real, um garoto que se mostra emotivo. O mesmo teria que
acontecer com meu trabalho, pois este era um projeto com liberdade expressiva.
Demorei um tanto para entender que tipo de abordagem eu queria para as
ilustrações, para ter esse efeito mais livre. Comecei ilustrando digitalmente, mas
depois percebi que o processo não estava sendo prazeroso como deveria ser.
Depois de um tempo, acabei optando pela técnica de pintura e mídia tradicional,
pelas possibilidades de experimentação plástica que o material me permitiria.
Ao pensar as imagens, tentei ao máximo fugir do literal e ir para um
caminho mais independente e aventuresco, que buscasse uma camada a mais de
interpretação. No fim, o que me agrada no desenho é chegar em novos resultados
imagéticos, um imaginário mais concreto, como o que criei aqui.
PAULA PUIUPO é animadora, quadrinista, ilustradora e tatuadora. Sua
produção pessoal tem foco no surreal e experimentalismo; em sentimentos de
não pertencimento.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Stevenson, Robert Louis


A ilha do tesouro / Robert Louis Stevenson;
ilustrações de Paula Puiupo; tradução de Samir Machado de Machado
Rio de Janeiro: Editora Antofágica, 2019.

ISBN 978-65-80210-06-0

CDD 821.111(411) CDU


821.111(411)

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura escocesa 2. Literatura juvenil
I. Puiupo,Paula II. Machado, Samir Machado de III. Título
André Queiroz – CRB 4/2242

Todos os direitos desta edição reservados à

Antofágica
prefeitura@antofagica.com.br
facebook.com/antofagica
instagram.com/antofagica
Rio de Janeiro – RJ

* Ahoy! Os tipógrafos de Antofágica agradecem a Raphaël Bastide e a Velvetyne Type Foundry pela fonte
Avara, usada com sabedoria nas aberturas de capítulo deste livro.
EI, MARUJO, TEM CORAGEM PARA MAIS UMA AVENTURA?
RUMO A ANTOFÁGICA!
Li este livro inteiro, até a última linha, e tudo o que eu ganhei foi este colofón estúpido dizendo
que o livro foi composto em Walbaum e Avara* e impresso em papel Pólen 80g pela Ipsis
Gráfica em outubro de 2019.

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