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DE ODINRIGHT
Sobre a obra:
Sobre nós:
eLivros .love
Converted by ePubtoPDF
Um romance
de
Ilustrações
por
Paula Puiupo
Tradução e notas
de
Preparacao
Isadora Prospero
Revisao
Ana Luiza Candido
Bruno Alves
Diagramacao
Leonardo Ortiz
Caligrafia
Antonio Rhoden
Textos de
*
Jim Anotsu
Samir Machado de Machado
Marina Bedran
Paula Puiupo
*
Apresentação
A ilha do tesouro
Parte IV – A PALIÇADA
Notas
Os senhores da trapaça
Talvez o último romântico: Robert Louis Stevenson, da Ilha do Tesouro aos
mares do sul
Sobre as ilustrações desta edição
O Hispaniola
1 mastro principal
2 cesto de gávea
3 vela principal
4 vela de estai
5 amurada
6 castelo de proa
7 bujarronas
8 mastro de gurupés
9 quilha
Ilha Esqueleto
Apresentação
Tusitala.
A palavra no idioma samoano que significa “contador de histórias”. Também
é o título honorário que o povo de Samoa deu ao maior escritor de aventuras:
Robert Lewis Balfour Stevenson. Ou Robert Louis Stevenson para o resto do
mundo. Ou RLS para os iniciados. O autor de algumas das obras mais
emocionantes de todos os tempos – A Ilha do Tesouro, O médico e o monstro,
Raptado, O mestre de Ballantrae. Qualquer autor se orgulharia de ter escrito
uma destas obras; RLS escreveu isso e muito mais. Stevenson é um criador de
personagens inesquecíveis e dono de uma prosa elegante e cheia de suspense,
capaz de descrições precisas e cheias de vida.
Pelo amor de Long John Silver, escrever sobre Stevenson é fácil para mim,
muito fácil. Ele é meu melhor amigo e meu autor favorito, a personificação do
que imagino ser um escritor de verdade, que tem a cabeça aberta para a
imaginação e o peito aberto para descobertas. Robert Louis Stevenson começou
a vida como um garoto doente, que ninguém imaginava que sobreviveria muito,
mas a terminou sendo um cidadão do mundo e cruzando oceanos. Stevenson,
assim como seus personagens mais marcantes, viveu grandes aventuras, teve
uma incrível história de amor e foi adorado por muitos.
Ainda que alguns tenham reclamado aqui e ali ao longo dos anos…
O escritor escocês foi ignorado pela crítica durante grande parte do século
XX. Era tido como melodramático, romântico e sem requintes. Era visto apenas
como um escritor de aventuras para meninos, que não merecia muita atenção.
Por sorte, nas últimas décadas, seu valor foi redescoberto e, hoje, quase ninguém
duvida que ele é um dos grandes autores de língua inglesa. Suas descrições
naturalistas, sua caracterização psicológica vigorosa e seu domínio da linguagem
do suspense fazem de Stevenson um nome fundamental da literatura vitoriana.
E não só para a Era Vitoriana, mas para um garoto negro no interior de
Minas Gerais – um estado que nem tem mar, veja só.
Eu me lembro como se fosse hoje da primeira vez em que li A Ilha do
Tesouro. A chuva caía forte, os trovões faziam a casa tremer e os relâmpagos
iluminavam o céu a cada dois segundos. Eu estava com uma cópia surrada do
livro – naquela época eu costumava andar vários quilômetros para ir até a
biblioteca municipal. Minha situação em casa era das mais complicadas, sendo
um garoto negro adotado e órfão aos doze anos. Morando de favor com parentes
que não lidavam bem com a minha presença e tendo que usar roupas doadas e
sapatos furados de segunda mão. Tudo isso ficou para trás quando comecei a ler
aquele livro. Eu senti o cheiro do mar, o toque da areia e o odor de pólvora.
Minha imaginação foi tão capturada pelas palavras que a única coisa que pude
fazer foi me render. Eu estava lá quando o cego Pew apareceu, quando Jim se
escondeu no barril de maçãs, quando tiros voaram contra a paliçada.
Meus olhos sempre se voltam para a escrita de Stevenson em determinados
momentos da minha vida, importantes ou corriqueiros – faço questão de reler A
Ilha do Tesouro uma vez por ano, pois sempre encontro algo novo ali, algum
detalhe que faz toda a diferença. Hoje, leio as obras do autor para o meu filho,
Eliott. Passamos pelos poemas de A Child’s Garden of Verses (uma joia rara e
única no mundo da poesia infantil), pelos relatos de viagens de Nos mares do sul
e por alguns contos assustadores como Janet do pescoço torcido. Em cada
releitura eu reencontro o prazer de ler RLS pela primeira vez, como um abraço
antigo, uma conversa com aquele seu amigo que mora longe, mas que sempre dá
notícias.
O livro que você tem em mãos, traduzido por Samir Machado de Machado
(sobrenome genial) – que também escreve muito bem sobre piratas e outros
aventureiros, conhecedor das histórias do mar e fã de boas piadas –, é um
tesouro!
Acredite em mim, marujo: raras vezes eu vi tanto cuidado numa tradução de
A Ilha do Tesouro – e olha que tenho várias na minha estante para comparar.
Samir capturou o humor de Stevenson (uma das qualidades mais admiráveis do
autor) e todas as expressões náuticas, assim como encontrou soluções para
lances impossíveis. Uma jogada de mestre do início ao fim. Também conseguiu
deixar o texto moderno, mas sem perder aquele tempero antigo de que gostamos
em histórias do mar.
Ah, leitor, você está em ótimas mãos… e nem falo isso só pela tradução. As
ilustrações de Paula Puiupo são fiéis ao mundo de Stevenson e ao mesmo tempo
o passam por um filtro surrealista. Uma feijoada de Salvador Dalí com Elsa
Schiaparelli. Complementam as palavras de um jeito inesperado, criando uma
coisa nova e chocante, ainda que respeitando tudo que A Ilha do Tesouro
representa para milhares e milhares de pessoas.
Se você nunca leu Stevenson, prepare-se: você está a um passo de adentrar
numa embarcação maravilhosa e perigosa. No entanto, se já navegou por esses
mares do sul, se já foi raptado pela pena desse homem de bigode elegante e
mente ardilosa, seja bem-vindo ao lar. Como o próprio RLS escreveu em seu
epitáfio:
* Home is the sailor, home from the sea, / And the hunter home from the hill. Tradução minha.
Parte I.
O VELHO BUCANEIRO
1
No começo supus que o tal “peito do defunto”6 fosse idêntico àquele grande
baú lá em cima em seu quarto, e a ideia havia se misturado em meus pesadelos
com a do marinheiro perneta. Mas a essas alturas todos já haviam parado de
prestar qualquer atenção particular à canção. Naquela noite, não era novidade
para ninguém além do dr. Livesey, e nele percebi que não produziu um efeito
agradável, pois encarou o capitão, bastante irritado por um instante, antes de
continuar conversando com o velho Taylor, o jardineiro, sobre uma nova cura
para o reumatismo. Enquanto isso, aos poucos o capitão foi se animando com a
própria canção, até enfim bater com a mão sobre a mesa de um modo que todos
sabíamos o que significava: silêncio. Todos se calaram de uma vez só, exceto o
dr. Livesey, que seguiu conversando de modo claro e gentil, sorvendo seu
cachimbo a cada palavra ou duas. O capitão o encarou um pouco, bateu na mesa
outra vez, o encarou com ainda mais firmeza e por fim o interrompeu com um
brado grave e vilanesco:
– Silêncio aí no convés!
– Está se dirigindo a mim, senhor? – perguntou o doutor, e quando o
valentão disse-lhe praguejando que era isso mesmo, retrucou: – Tenho somente
uma coisa a lhe dizer, senhor: que, se continuar a beber rum, o mundo logo se
verá livre de um patife imundo.
A fúria do velhaco foi terrível. Ele se pôs de pé, sacou e abriu uma navalha
de marinheiro e, equilibrando-a na palma da mão, ameaçou pregar o doutor na
parede.
O doutor nem se mexeu. Falou com ele, como antes, por sobre o ombro, e
com o mesmo tom de voz, um pouco mais alto para que todo o saguão o
escutasse, mas perfeitamente calmo e firme:
– Se não guardar essa faca no bolso neste instante, eu juro, pela minha
honra, que será enforcado na próxima audiência do tribunal.
Seguiu-se então uma batalha de olhares entre os dois, mas o capitão logo se
rendeu, guardou a arma e voltou a se sentar, resmungando como um cão ferido.
– E agora, senhor – continuou o doutor –, uma vez que agora sei haver em
meu distrito um camarada de tal sorte, pode contar que ficarei de olho em você
dia e noite. Eu não sou apenas médico, sou também um magistrado, e se escutar
um suspiro de queixa contra o senhor, mesmo que apenas por uma pequena
grosseria como a desta noite, tomarei as medidas necessárias para que seja
caçado e escoltado para fora daqui. Que isso lhe baste.
Pouco depois disso, o cavalo do dr. Livesey chegou à porta, e ele foi embora.
Mas o capitão se manteve quieto naquela noite e por muitas noites seguintes.
2
N ão foi muito depois disso que ocorreu o primeiro dos eventos misteriosos
que enfim nos livraram do capitão, ainda que, como você verá, não de
seus problemas. Foi um inverno rigoroso, de longas geadas e fortes vendavais; e
estava claro, desde o começo, ser pouco provável que meu pobre pai visse a
primavera. Ele definhava diariamente, de modo que minha mãe e eu cuidávamos
da estalagem e nos mantínhamos bastante ocupados, sem prestar muita atenção
em nosso hóspede desagradável.
Foi bem cedo, numa manhã de janeiro – uma manhã de frio cortante –, com
a baía toda cinza de geada, as ondas batendo suaves contra as rochas, o sol ainda
baixo e apenas tocando as colinas e brilhando ao longe. O capitão tinha se
levantado mais cedo que o habitual, e foi para a praia, com seu alfanje
balançando debaixo das abas largas da velha casaca azul, sua luneta de latão
debaixo do braço e o chapéu dobrado para trás na cabeça. Lembro-me de sua
respiração saindo como fumaça conforme ele se afastava, e o último som que
escutei dele, ao dar a volta pela pedra grande, foi um ronco alto de indignação,
como se sua mente ainda estivesse ruminando sobre o dr. Livesey.
Bem, a mãe estava lá em cima com o pai, e eu estava pondo a mesa do café
da manhã para o retorno do capitão, quando a porta da frente se abriu e entrou
um homem que eu nunca vira antes. Era uma criatura pálida e sebosa, sem dois
dedos na mão esquerda. E, apesar de trazer um alfanje, não parecia muito do tipo
guerreiro. Eu estava sempre com o olho aberto para marinheiros, de uma ou duas
pernas, e lembro que esse me intrigou. Não parecia um marujo, mas tinha ares
marinhos.
Perguntei em que poderia lhe servir, e ele disse que beberia rum; mas quando
eu estava saindo da sala para buscar a bebida, ele sentou-se à mesa e gesticulou
para que eu me aproximasse. Parei onde estava com meu pano na mão.
– Vem aqui, guri – disse ele. – Chega mais perto.
Eu me aproximei um passo.
– Esta mesa aqui é para o meu parceiro Bill? – perguntou, olhando-me de
esguelha.
Eu lhe disse que não conhecia seu parceiro Bill e que era para uma pessoa
hospedada na casa, que chamávamos de capitão.
– Bem – disse ele –, meu parceiro Bill seria chamado de capitão,
provavelmente. Ele tem um corte no rosto e um jeito muito simpático, ainda
mais quando bebe, meu parceiro Bill. Digamos, uma suposição apenas, que seu
capitão tenha um corte no rosto, e digamos, se for assim, que seja deste lado. Ah,
olha só! Eu lhe disse. Agora, o meu parceiro Bill está aqui nesta casa?
Eu disse que ele saíra para caminhar.
– Para onde, guri? Para onde ele foi?
E quando apontei a pedra e falei que o capitão provavelmente voltaria logo,
respondendo a algumas outras questões, ele disse:
– Ah, isso vai ser tão bom quanto uma bebidinha, pro meu parceiro Bill.
A expressão em seu rosto quando disse isso não foi nada agradável, e eu
tinha meus próprios motivos para achar que o estranho estava enganado, mesmo
supondo que falava com sinceridade. Mas não era da minha conta, pensei; além
disso, era difícil saber o que fazer. O estranho ficou rondando a porta da
estalagem, à espreita feito um gato esperando pelo rato. A certa altura eu saí na
direção da estrada, mas ele imediatamente me chamou e, como não lhe obedeci
rápido o bastante para seu gosto, uma mudança horrível acometeu seu rosto
seboso, e ele me mandou entrar com um xingamento que me fez dar um pulo.
Assim que voltei, ele retornou a seus modos anteriores e, meio brincalhão, meio
irônico, me deu um tapinha no ombro, disse que eu era um bom garoto e que ele
havia gostado bastante de mim.
– Eu mesmo tenho um filho – disse ele – bem parecido com você, e ele é
meu orgulho. Mas a maior coisa para os garotos é a disciplina, guri… disciplina.
Agora, se você tivesse navegado com o Bill, não teria sido preciso chamá-lo
duas vezes, não mesmo. Não era esse o jeito do Bill, nem dos que navegavam
com ele. E ali está, com toda certeza, meu parceiro Bill, com a luneta no braço,
abençoado seja. Eu e você vamos voltar para dentro do saguão, guri, e ficar atrás
da porta, e vamos fazer uma surpresinha para o Bill, abençoado seja, eu repito.
Assim dizendo, o estranho voltou comigo para dentro do saguão e me
colocou atrás dele num canto, de modo que ambos ficamos ocultos pela porta
aberta. Era muito desconfortável e alarmante, como pode imaginar, e meu medo
só aumentou quando notei que o estranho estava ele próprio com medo. Ele
pegou o punho do alfanje e afrouxou a lâmina na bainha, e todo o tempo em que
esperamos ali, ele ficava engolindo em seco, como se tivesse o que se chama um
nó na garganta.
Enfim o capitão entrou e bateu a porta atrás de si, sem olhar para esquerda
ou direita, e marchou direto pelo salão até onde seu desjejum o aguardava.
– Bill – chamou o estranho, numa voz que tentou fazer parecer forte e
ousada.
O capitão deu meia-volta e se virou para nós; toda a cor fugiu de seu rosto, e
até seu nariz ficou pálido. Ele tinha o aspecto de quem viu um fantasma, ou o
Tinhoso, ou algo pior, se algo puder ser pior. E, dou minha palavra, senti pena de
vê-lo ficar tão velho e doente de uma hora para outra.
– Vamos, Bill, você me conhece, com certeza conhece um velho colega de
bordo, Bill – disse o estranho.
O capitão soltou uma espécie de suspiro.
– Cão Negro! – disse ele.
– E quem mais? – retrucou o outro, ficando mais à vontade e erguendo a
mão mutilada. – Cão Negro em pessoa, que veio ver seu velho parceiro Billy, na
estalagem Almirante Benbow. Ah, Bill, Bill, passamos por poucas e boas, nós
dois, desde que perdi meus dois dedos.
– Agora, olhe só – disse o capitão –, você me encontrou, aqui estou. Muito
bem, então, fale logo: o que é?
– Típico de você, Bill – retrucou Cão Negro. – Sempre direto ao ponto,
Billy. Eu aceito um copo de rum desta criança aqui, a quem tanto me afeiçoei, e
nós vamos nos sentar, se for do seu agrado, e falar de modo claro, como velhos
colegas.
Quando voltei com o rum, eles já estavam sentados de cada lado na mesa
com o desjejum do capitão. Cão Negro ficara perto da porta, sentado de lado, de
modo a manter um olho em seu velho colega e o outro, imaginei, em sua rota de
fuga.
Ele pediu que eu fosse embora e deixasse a porta escancarada.
– Nada de espiar pela fechadura, guri – disse quando os deixei juntos e me
retirei para o balcão.
Por algum tempo, mesmo que eu tenha feito meu melhor para tentar escutar,
não pude ouvir nada além de um burburinho, mas enfim as vozes foram se
elevando, e consegui pescar uma palavra ou duas, em geral uma praga rogada
pelo capitão.
– Não, não, não, não, isso tem que acabar! – gritou ele. – Senão a forca virá,
e virá para todos, tenho dito!
Então de repente houve uma tremenda explosão de xingamentos e outros
barulhos – a cadeira e a mesa viraram, um choque de metais se seguiu e houve
um grito de dor, e no instante seguinte eu vi Cão Negro sair correndo e o capitão
o perseguindo, ambos com os alfanjes desembainhados, o último com sangue
escorrendo do ombro esquerdo. Bem na porta, o capitão mirou no fugitivo um
último e tremendo golpe, que o teria certamente partido em dois se não tivesse
sido interceptado pela grande tabuleta da Almirante Benbow. É possível ver a
marca na parte de baixo da moldura até hoje.
Aquele golpe foi o último da batalha. Uma vez na estrada, e apesar de sua
ferida, Cão Negro deu no pé maravilhosamente rápido, desaparecendo na
quebrada da colina em meio minuto. O capitão, por sua vez, ficou parado
debaixo da placa, observando com espanto. Então passou a mão no rosto várias
vezes, e por fim voltou para dentro.
– Jim – chamou ele. – Rum. – E, enquanto falava, cambaleou um pouco e
apoiou a mão contra a parede.
– O senhor está ferido? – perguntei.
– Rum – repetiu. – Preciso dar o fora daqui. Rum! Rum!
Corri para buscar, mas estava bastante perturbado por tudo o que ocorrera e
acabei quebrando um copo e sujando o balcão; quando ainda estava me
recompondo, escutei o som alto de uma queda no saguão e corri para lá,
encontrando o capitão estirado no assoalho. No mesmo instante, minha mãe,
alertada pela luta e gritaria, desceu as escadas correndo para me ajudar.
Levantamos a cabeça do capitão. Ele respirava pesado e com dificuldade, mas
seus olhos estavam fechados, e seu rosto tinha uma cor horrível.
– Ai de mim – disse minha mãe. – Que desgraça caiu sobre esta casa! E seu
pobre pai doente!
Nesse meio-tempo, não fazíamos ideia de como ajudar o capitão, nem
pensamos outra coisa senão que ele fora ferido de morte na briga com o
estranho. Peguei o rum, por via das dúvidas, e tentei fazer com que bebesse, mas
seus dentes estavam cerrados e o queixo duro como ferro. Foi um feliz alívio
para nós quando a porta abriu e o dr. Livesey entrou, em sua visita para meu pai.
– Ai, doutor – falei –, o que fazemos? Onde está a ferida?
– Ferida? Um buraco de agulha! – disse o doutor. – Não está mais ferido que
eu e você. O homem teve um ataque cardíaco, como eu o alertei. Agora, sra.
Hawkins, suba lá para ter com seu marido e, se possível, não conte nada do que
ocorreu aqui. De minha parte, farei o meu melhor para salvar a vida inútil deste
camarada. Jim, traga-me uma bacia.
Quando voltei com a bacia, o doutor já havia rasgado a manga do capitão,
expondo seu grande e sinuoso braço. Era tatuado em vários lugares. Boa sorte,
bons ventos e o capricho de Billy Bones estavam muito bem desenhados no
antebraço, e para cima perto do ombro havia o desenho de uma forca com um
homem pendurado nela – feito, na minha opinião, com grande habilidade.
– Profético – disse o doutor, tocando na pintura com os dedos. – E agora,
mestre Billy Bones, se esse for o seu nome, vamos dar uma olhada na cor do seu
sangue. Jim, você tem medo de sangue?
– Não, senhor.
– Pois bem, segure a bacia. – E, com isso, puxou sua lanceta e abriu uma
veia.7
Uma grande quantidade de sangue foi extraída antes de o capitão abrir os
olhos e dar um olhar nebuloso ao redor. Primeiro, reconheceu o doutor, com um
franzir do cenho bem típico seu, depois seus olhos recaíram sobre mim, e ele
pareceu aliviado. Mas, de repente, sua cor mudou, e ele tentou se levantar,
gritando:
– Cadê o Cão Negro?
– Não há nenhum Cão Negro aqui – disse o doutor –, exceto o que você tem
no seu encalço.8 Você vem bebendo rum, e teve um ataque cardíaco exatamente
como eu lhe disse, e eu vim, muito contra minha própria vontade, puxá-lo para
fora da cova. Agora, sr. Bones…
– Esse não é o meu nome – interrompeu ele.
– Pouco me importa – retrucou o doutor. – É o nome de um bucaneiro de
minhas relações, e o chamarei por essenome em prol de atalhar as coisas. O que
tenho a lhe dizer é isto: um copo de rum não irá matá-lo, mas se tomar um,
tomará outro e outro, e aposto minha peruca que, se não parar logo, vai morrer…
está entendendo? Vai morrer e ir para o lugar que lhe é reservado, como o sujeito
na Bíblia. Vamos lá, faça um esforço. Eu o ajudo a chegar até sua cama, desta
vez.
Com bastante trabalho, conseguimos levá-lo escadas acima e o deitamos na
cama, onde sua cabeça caiu sobre o travesseiro, quase como se estivesse
desmaiando.
– Agora, veja bem – falou o doutor. – Minha consciência está limpa: a
palavra “rum” para você significa “morte”.
E com isso ele saiu para ver meu pai, levando-me pelo braço.
– Isso não é nada – disse-me, assim que fechamos a porta. – Eu tirei sangue
o bastante para mantê-lo quieto por um tempo; ele deve repousar onde está por
uma semana. Será o melhor para ele e para você, mas outro ataque acabará com
ele.
3
A mancha negra
O baú do marujo
N ão perdi tempo, claro, e contei tudo o que sabia para minha mãe, o que
talvez já devesse ter feito muito antes, e nos vimos então em uma posição
difícil e perigosa. Parte do dinheiro do sujeito, se ele tivesse algum, certamente
nos pertencia, mas não parecia provável que os colegas de nosso capitão, acima
de tudo os dois espécimes que vi, Cão Negro e o mendigo cego, estariam
inclinados a desistir de seu butim como pagamento da dívida do falecido. A
ordem do capitão de montar no cavalo e correr até o dr. Livesey deixaria minha
mãe sozinha e desprotegida, algo que nem passou pela minha cabeça. De fato,
parecia impossível para qualquer um de nós ficar mais tempo na casa. Um
carvão que caísse na grelha da cozinha, até mesmo o bater do relógio, nos
deixava em alerta. A vizinhança, aos nossos ouvidos, parecia assombrada por
passos se aproximando. E diante do corpo sem vida do capitão e da ideia daquele
mendigo cego detestável zanzando ao redor e pronto para voltar, havia
momentos em que, como dizem, ficávamos com os nervos à flor da pele. Algo
deveria ser feito rápido, e enfim nos ocorreu irmos juntos buscar ajuda na aldeia
vizinha. Dito e feito, saímos como estávamos, entrando de uma vez na neblina
gelada do entardecer sem nem cobrir a cabeça.
A aldeia não ficava muito longe, do outro lado da enseada, ainda que não se
pudesse enxergá-la. E o que muito me encorajou foi que ela ficava na direção
oposta daquela onde o cego fizera sua aparição e para a qual presumia-se que
retornara. A estrada não nos tomou muito tempo, ainda que parássemos às vezes
e, abraçados um ao outro, escutássemos em volta. Mas não havia nenhum som
incomum, nada além do marulho das ondas e do grasnar dos habitantes da
floresta.
As velas já haviam sido acesas quando chegamos à aldeia, e nunca
esquecerei minha alegria ao ver aquele brilho amarelo nas portas e janelas; mas
isso, como bem se mostrou, era o máximo de ajuda que conseguiríamos naquela
área. Era de se pensar que os homens teriam vergonha na cara, mas não houve
viva alma que consentisse em voltar conosco à Almirante Benbow. Quanto mais
falávamos de nossos problemas, mais – fosse homem, mulher ou criança – eles
se fechavam em suas casas. O nome do capitão Flint, ainda que desconhecido
por mim, era muito bem conhecido por alguns ali, e carregava uma grande carga
de terror. Alguns dos homens que trabalhavam no campo no lado mais distante
da Almirante Benbow se lembravam, além disso, de terem visto vários estranhos
na estrada e, julgando que fossem contrabandistas, se afastaram deles; e ao
menos uma pessoa vira um pequeno lúgar10 no local que chamávamos Buraco de
Gato. De fato, qualquer um que fosse camarada do capitão os apavorava de
morte. E para encurtar a história, ainda que houvesse muitos que se dispunham a
cavalgar até o dr. Livesey, que ia na outra direção, ninguém nos ajudaria a
defender a estalagem.
Dizem que a covardia é contagiosa, mas, por outro lado, que debater o
assunto cria coragem; e assim que cada um falou o que tinha a falar, minha mãe
deu um discurso. Ela disse que não perderia o dinheiro que pertencia a seu
menino órfão.
– E se nenhum de vocês tem coragem – disse ela –, Jim e eu teremos.
Voltaremos por onde viemos, e muito obrigada a vocês, seus homenzarrões com
coração de galinha. Nós abriremos aquele baú, nem que tenhamos que morrer
por isso. E eu lhe agradeço por aquela bolsa, sra. Crossley, para levar o dinheiro
que é nosso de direito.
É claro que falei que iria com minha mãe, e é claro que todos eles clamaram
contra nossa teimosia. O máximo que fizeram foi me dar uma pistola carregada,
no caso de sermos atacados, e prometer deixar alguns cavalos selados, caso
fôssemos perseguidos na volta, enquanto um menino iria cavalgar atrás do
doutor, em busca de ajuda armada.
Meu coração batia forte quando nós dois seguimos caminho na noite fria, em
nossa perigosa empreitada. A lua cheia começava a se erguer e despontava
avermelhada sobre as bordas superiores da neblina, e isso acelerou nosso passo,
pois logo se tornou evidente que tudo ficaria claro como o dia, e nossa partida
seria exposta às vistas de qualquer um de vigia. Nós nos esgueiramos pelas
sebes, suaves e silenciosos, sem ver ou escutar nada que aumentasse nosso
medo, até fecharmos a porta da Almirante Benbow atrás de nós com alívio.
Passei o ferrolho de uma vez, e paramos e ofegamos na escuridão por um
momento, sozinhos na casa com o cadáver do capitão. Então minha mãe buscou
uma vela no balcão e, segurando as mãos um do outro, avançamos pelo saguão.
Ele jazia onde o havíamos deixado, de costas, com os olhos abertos e um braço
esticado.
– Feche as cortinas, Jim – suspirou minha mãe. – Eles podem chegar e espiar
de fora. – Depois que o fiz, ela disse: – E agora, temos que tirar a chave disso
daí, e quem é que vai tocar nele, eu gostaria de saber! – E ela soltou um leve
soluço.
Eu me ajoelhei no mesmo instante. No piso, perto de sua mão, havia um
pequeno pedaço de papel, escurecido num dos lados. Não tinha dúvidas de que
era a mancha negra11 e, ao pegá-lo, encontrei escrito no outro lado, numa
caligrafia muito boa e clara, esta curta mensagem:
– Ele tinha até as dez, mãe – eu disse e, assim que falei, nosso velho relógio
começou a bater. Esse barulho abrupto nos assustou terrivelmente, mas a notícia
era boa, pois eram apenas seis horas.
– Agora, Jim – disse ela –, aquela chave.
Procurei nos bolsos dele, um atrás do outro. Algumas moedas pequenas, um
dedal, linhas e agulha grossa, um pedaço de rolo de tabaco mordido na ponta,
seu canivete com o cabo desgastado, uma bússola de bolso e uma caixinha de
latão onde tudo isso era guardado. Comecei a me desesperar.
– Talvez esteja pendurada no pescoço – sugeriu minha mãe.
Vencendo um forte asco, eu abri sua camisa no pescoço, e lá, pendurada
numa cordinha suja, que cortei com seu próprio canivete, encontramos a chave.
Esse triunfo nos encheu de esperança, e corremos sem demora escadas acima até
a saleta onde ele dormira por tanto tempo e onde seu baú ficara desde o dia de
sua chegada.
Por fora era como qualquer outro baú de marujo, com a inicial B marcada a
ferro quente em cima e as bordas um tanto lascadas e quebradas pelo uso
prolongado e rude.
– Me dê a chave – disse minha mãe e, ainda que a tranca estivesse bastante
dura, ela a girou e levantou a tampa num instante.
Um cheiro forte de tabaco e betume se ergueu de dentro, mas não havia nada
para ser visto em cima exceto uma muda de roupas muito boas, cuidadosamente
escovadas e dobradas. Elas nunca foram usadas, disse minha mãe. Abaixo,
começava a miscelânea: um quadrante, um caneco de lata, vários rolos de
tabaco, um par de pistolas muito bonitas, uma barra de prata, um velho relógio
espanhol e algumas bugigangas de pouco valor e pela maior parte de manufatura
estrangeira, um par de bússolas feitas de latão, e cinco ou seis conchas curiosas
das Índias Ocidentais. Por vezes ainda me pego pensando por que ele teria
carregado aquelas conchas ao longo de sua vida assombrada, culpada e errante.
Enquanto isso, não encontramos nada de valor além da prata e das
bugigangas, e nada disso era de nosso interesse. Por baixo havia um velho
capote, embranquecido pela maresia de muitos portos. Minha mãe o puxou com
impaciência e então, ali à nossa frente, havia a última coisa no baú, um pacote
enrolado em oleado12, parecendo guardar papéis, além de um saco de lona que,
ao toque, tilintava de ouro.
– Vou mostrar a esses patifes que sou uma mulher honesta – disse minha
mãe. – Tirarei minha parte e nem um centavo a mais. Segure a sacola da sra.
Crossley.
E ela começou a transferir seu montante do tesouro do capitão do saco de
lona para a bolsa que eu estava segurando.
Foi um trabalho longo e difícil, pois as moedas eram de todo tamanho e país
– dobrões, luíses, guinéus, reais de oito13 e sei lá mais o quê, tudo misturado a
esmo. Os guinéus, por sinal, eram os mais escassos, e era só com esses que
minha mãe sabia como fazer suas contas.
Quando estávamos na metade da contagem, de súbito coloquei minha mão
sobre o braço dela, pois havia escutado no ar gelado e silencioso um barulho que
fez meu coração saltar para a boca: o tatear da bengala do cego na estrada
congelada. Foi chegando mais e mais perto, enquanto segurávamos a respiração,
então bateu forte na porta da estalagem e pudemos ouvir a maçaneta sendo
girada e o ferrolho sendo forçado, conforme aquela coisa esfarrapada tentava
entrar. Em seguida, houve um longo período de silêncio tanto dentro como fora.
Por fim, o tatear recomeçou e, para nossa indescritível gratidão e alegria, morreu
aos poucos na distância até deixar de ser ouvido.
– Mãe, pega tudo e vamos embora – falei, pois tinha certeza de que a porta
trancada devia ter parecido suspeita e faria o vespeiro todo cair sobre nós, ainda
que ninguém que tivesse conhecido aquele cego terrível pudesse duvidar de
como fiquei grato por ter trancado a porta.
Mas minha mãe, por mais assustada que estivesse, não consentiria em pegar
uma fração a mais do que lhe era devido e estava determinada a não se contentar
com menos. Não eram sete horas ainda, ela disse. Conhecia seus direitos e os
faria cumprir, e ainda estava discutindo comigo quando um assovio baixo ecoou
a distância, lá pelos lados da colina. Isso foi o bastante, mais do que o bastante,
para nós dois.
– Vou ficar com o que já tenho – disse ela, se pondo de pé.
– E eu fico com isso para arredondar a conta – falei, pegando o embrulho de
oleado.
No momento seguinte estávamos os dois tateando pela escada, deixando a
vela com o baú vazio, e no que abrimos a porta fugimos em disparada. Foi na
hora certa. A névoa estava se dispersando rápido, a lua já brilhava bem clara em
ambos os lados da colina, e só na parte baixa do vale e nos arredores da taverna
seu fino véu ainda se mantinha e escondeu os primeiros passos de nossa fuga. A
menos da metade do caminho para a aldeia, não muito longe da base da colina,
precisaríamos atravessar uma área sob o luar. Além disso, o som de muitos pés
correndo chegava até nossos ouvidos e, quando olhamos na direção deles, uma
luz balançando e avançando rápido mostrava que um dos recém-chegados levava
uma lanterna.
– Querido – minha mãe disse de repente –, pegue o dinheiro e corra. Eu vou
desmaiar.
Certo que seria o fim de nós dois, pensei. Como amaldiçoei a covardia de
nossos vizinhos, como culpei minha mãe, pobrezinha, por sua honestidade e
ganância, por sua tolice no passado e sua fraqueza no presente! Por sorte,
estávamos à altura da ponte pequena, e eu a ajudei, cambaleando como estava,
até a beira da margem, onde ela soltou um suspiro e caiu sobre meu ombro. Não
sei como encontrei forças para o que fiz, e temo que o tenha feito de modo rude,
mas dei um jeito de arrastá-la pela margem e um pouco para baixo da arcada da
ponte. Não consegui levá-la mais longe, pois a ponte era baixa demais para que
fizesse mais do que me agachar embaixo dela. Então ali tivemos que ficar, minha
mãe quase toda exposta, e nós dois perto o bastante da estalagem para escutar o
que acontecia lá.
5
A última do cego
M inha curiosidade, de certo modo, foi mais forte que meu medo. Não
consegui ficar onde estava e engatinhei de volta à margem, onde, me
escondendo detrás de um arbusto, podia controlar a estrada em frente à nossa
porta. Eu mal havia me posicionado quando meus inimigos começaram a chegar,
sete ou oito deles, correndo com pressa, os passos em descompasso pela estrada,
e o homem com a lanterna um pouco à frente. Três homens corriam juntos de
mãos dadas e, apesar da névoa, supus que o do meio naquele trio fosse o
mendigo cego. No momento seguinte, sua voz me mostrou que eu estava certo.
– Ponham a porta abaixo – gritou ele.
– Sim, sim, senhor! – responderam dois ou três e se lançaram contra a
Almirante Benbow, com o lanterneiro logo atrás.
Então vi que paravam e escutei conversarem em voz baixa, como que
surpresos por encontrarem a porta aberta. Mas a pausa foi curta, pois o cego
outra vez deu ordens. Sua voz soou forte e alta, como se estivesse agitado pela
ansiedade e pela fúria.
– Pra dentro, pra dentro – gritou ele, amaldiçoando-os por sua demora.
Quatro ou cinco deles obedeceram de imediato, enquanto dois ficaram na
estrada com o mendigo formidável. Houve uma pausa, então um grito de
surpresa, e então uma voz gritando de dentro da casa:
– O Bill tá morto!
Mas o cego os xingou por seu atraso.
– Vasculhem o corpo, seus mandriões saloios – gritou ele –, e o resto de
vocês, subam e tragam o baú.
Se eu podia escutar seus pés subindo nossas velhas escadas, a casa devia
estar balançando com seu avanço. Em seguida, vieram novos sons de surpresa, a
janela do quarto do capitão foi aberta com um baque e o tilintar de vidro
quebrado, e um homem se inclinou para fora ao luar, cabeça e ombros, e se
dirigiu ao mendigo cego na estrada abaixo de si.
– Pew – gritou –, estiveram aqui antes. Alguém revirou todo o baú.
– Está lá? – rosnou Pew.
– O dinheiro está.
O cego xingou o dinheiro.
– Os papéis de Flint, eu quis dizer – gritou.
– Não encontramos em lugar algum – replicou o homem.
– Ei, vocês aí embaixo, não está no Bill? – gritou o cego outra vez.
No que outro comparsa, provavelmente o que ficara embaixo vasculhando o
corpo do capitão, veio até a porta da estalagem.
– Já fizeram a limpa no Bill – disse ele. – Não sobrou nada.
– É esse povo da estalagem, é aquele guri. Quisera eu ter furado seus olhos!
– gritou o cego, Pew. – Estiveram aqui há pouco tempo… tinham trancado a
porta quando tentei abrir. Espalhem-se, rapaziada, e os encontrem!
– Com certeza, eles deixaram a vela aqui – disse o sujeito na janela.
– Espalhem-se e os encontrem! Revirem a casa! – reiterou Pew, batendo com
sua bengala na estrada.
Então se seguiu uma grande agitação por toda nossa velha estalagem, com
passos pesados batendo por todo lugar, mobília sendo revirada, portas
arrombadas, até fazer eco nas próprias pedras ao redor e os homens saírem outra
vez, um atrás do outro, na estrada, e anunciarem que não estávamos em lugar
algum. E então o mesmo assovio que alarmara minha mãe e eu, quando
contávamos o dinheiro do capitão morto, soou outra vez nitidamente na noite,
mas dessa vez repetido duas vezes. Eu tinha pensado que o sinal fora dado pelo
cego, chamando seus homens para o ataque, mas agora descobria que era um
alerta vindo da colina lá pros lados do vilarejo, e pelo seu efeito sobre os
bucaneiros, devia avisá-los de que algum perigo se aproximava.
– É o Dirk de novo – disse um. – Duas vezes! Temos que dar no pé,
parceiros.
– Dar no pé uma ova, seus trambiqueiros! – gritou Pew. – Dirk sempre foi
um tolo e um covarde… não deem atenção pra ele. Devem estar aqui por perto,
não podem ter ido longe. Estamos quase em cima deles. Espalhem-se e procurem
por eles, cães! Arre, por minha alma – gritou –, se eu tivesse olhos!
Esse apelo pareceu produzir algum efeito, pois dois dos sujeitos começaram
a procurar ali pela lenha, mas me pareceram de má vontade, e com um olho
aberto para o próprio perigo que corriam no momento, enquanto os demais
permaneceram irresolutos na estrada.
– Vocês estão quase com a mão na grana, seus idiotas, e ficam enrolando!
Serão ricos como um rei se encontrarem, e sabem que está aqui e ficam aí
encalhados. Nenhum de vocês ousou desafiar o Bill, mas eu sim… um homem
cego! E vou perder a minha vez por vocês! Vou ser um pobre mendigo rastejante
e cachaceiro, quando poderia estar dando rolé de carruagem! Se vocês tivessem
a coragem de um caruncho de biscoito, já os teriam pegado!
– Calma, Pew, nós temos os dobrões! – grunhiu um.
– Eles podem ter escondido o bendito treco – disse outro. – Pega a grana,
Pew, e não fica fazendo tempestades.
Tempestade era a palavra para aquilo; a raiva de Pew cresceu tanto com
essas respostas que, por fim, a emoção assumiu o controle e, mesmo cego, bateu
neles a torto e a direito, sua bengala ressoando pesada em mais de um.
Estes, por sua vez, amaldiçoaram o patife cego, ameaçando-o com palavrões
horríveis, e tentaram em vão arrancar a bengala de sua mão.
Essa briga foi nossa salvação, pois, enquanto se desenrolava, outro som veio
do topo da colina pelo lado do vilarejo – o som de cavalos galopando. Quase ao
mesmo tempo um tiro de pistola, clarão e ribombo, veio da cerca-viva lateral. E
esse era claramente o último aviso de perigo, pois os bucaneiros pararam de vez
e correram, indo para todo lado, um para o mar ao longo da enseada, outro
subindo pela colina, e assim por diante, de tal modo que em meio minuto não
havia sinal de nenhum deles, senão de Pew. Ele foi abandonado, não sei se por
pânico ou em retaliação por seus xingamentos e golpes; mas ficou para trás,
tateando pela estrada em frenesi, e cutucando e chamando por seus comparsas.
Enfim tomou a curva errada e passou a alguns passos de mim, na direção do
vilarejo.
– Johnny, Cão Negro, Dirk – chamou, entre outros nomes –, vocês não vão
abandonar o velho Pew, parceiros… não o velho Pew!
No mesmo instante, o barulho dos cavalos aumentou e quatro ou cinco
cavaleiros apareceram às vistas do luar, descendo a todo galope colina abaixo.
Nisso Pew percebeu seu erro, virou-se com um grito e correu direto para a
vala, onde caiu rolando. Mas se pôs de pé no mesmo instante e disparou outra
vez, agora completamente apavorado, indo direto para baixo do cavalo mais
próximo.
O cavaleiro tentou salvá-lo, mas foi em vão. E lá se foi Pew com um grito
que ecoou alto na noite, e os quatro cascos o pisotearam e passaram por ele. Ele
caiu de lado, rolou gentilmente até ficar de bruços e não se moveu mais.
Os papéis do capitão
C avalgamos rápido por todo o caminho, até chegarmos frente à porta do dr.
Livesey. A fachada da casa estava escura.
O sr. Dance me mandou descer e bater, e Dogger me indicou o estribo para
que eu descesse. A porta foi aberta quase na mesma hora pela criada.
– O dr. Livesey está? – perguntei.
– Não – ela disse. – Ele voltou para casa no final da tarde, mas saiu para
jantar e passar a noitinha na mansão do fidalgo.
– Então é para lá que vamos, rapazes – disse o sr. Dance.
Dessa vez, como a distância era curta, não montei, mas corri agarrado ao
estribo de Dogger até os portões do casarão, e subi pela longa e desfolhada
estrada iluminada pela lua até onde a linha branca da mansão vigiava dos dois
lados grandes jardins antigos. Ali o sr. Dance apeou e, me levando consigo, com
uma palavrinha foi introduzido na casa.
O serviçal nos levou por um corredor acarpetado, que dava no final em uma
grande biblioteca, repleta de estantes de livros com bustos no topo, onde o
fidalgo e o dr. Livesey estavam sentados, de cachimbos em mãos, um de cada
lado de uma lareira acesa.
Eu nunca tinha visto o fidalgo tão de perto. Era um homem alto, com mais
de um metro e oitenta, de ombros largos, e tinha cara de ser astuto e meio
bronco, todo curtido e bronzeado de suas longas viagens. Suas sobrancelhas
eram muito escuras e franziam fácil, e isso lhe dava uma aparência meio
temperamental, não digo má, mas impulsiva e feroz.
– Entre, sr. Dance – disse ele, muito formal e condescendente.
– Boa noite, Dance – disse o doutor, com um meneio. – E boa noite para
você, amigo Jim. Que bons ventos os trazem?
O supervisor parou ereto e rígido e contou sua história feito uma aula, e você
tinha que ver como os dois cavalheiros inclinaram-se à frente e olharam um para
o outro, esquecendo-se de fumar de tanta surpresa e interesse. Quando ouviram
sobre como minha mãe voltou à estalagem, o dr. Livesey deu um tapa na perna e
o fidalgo gritou “bravo!” e quebrou seu longo cachimbo contra a grade da
lareira. Antes mesmo de chegar ao fim, o sr. Trelawney (esse, lembre-se, era o
nome do fidalgo) se levantou da poltrona e se pôs a caminhar pela sala, e o
doutor, como que para escutar melhor, tirou sua peruca empoada e ficou sentado
ali, parecendo muito estranho com seu cabelo castanho cortado rente.
Enfim o sr. Dance terminou a história.
– Sr. Dance – disse o fidalgo –, o senhor é um camarada muito nobre. E
quanto a atropelar aquele patife atroz e sombrio, dou conta de ser um ato de
virtude, senhor, como pisar numa barata. Esse menino Hawkins é um trunfo,
percebo. Hawkins, pode tocar aquela sineta? O sr. Dance tem que beber uma
cerveja.
– E então, Jim – disse o doutor –, você está com a coisa que eles
procuravam, não está?
– Aqui está, senhor – eu disse, e lhes entreguei o pacote de oleado.
O doutor o olhou de cima a baixo, como se seus dedos estivessem coçando
para abri-lo, mas, em vez de fazer isso, ele o colocou em silêncio no bolso da
casaca.
– Fidalgo – disse ele –, depois que Dance tiver tomado sua cerveja,
precisará, claro, voltar aos serviços de Sua Majestade, mas quero manter Jim
Hawkins aqui para que durma em minha casa e, com sua permissão, proponho
mandar vir aquela torta fria e deixá-lo jantar.
– Como quiser, Livesey – disse o fidalgo. – Hawkins fez por merecer mais
que torta fria.
Então uma grande torta de pombo foi trazida e colocada na mesinha de
canto, e eu jantei à farta, pois estava faminto feito um gavião, enquanto o sr.
Dance recebeu seus cumprimentos e foi por fim dispensado.
– E agora, senhor – disse o doutor.
Foi ao ver aquele menino que compreendi minha situação pela primeira vez.
Até aquele momento, eu só havia pensado nas aventuras que me esperavam e
nem um pouco na casa que estava deixando. E naquele momento, ao ver aquele
estranho desajeitado que ficaria em meu lugar ao lado da minha mãe, tive minha
primeira crise de choro. Receio que tenha dado àquele garoto uma noite de cão,
porque, sendo ele novo no serviço, tive centenas de oportunidades de corrigi-lo
ou diminuir seu trabalho, e não deixei de aproveitar cada uma.
A noite passou e no dia seguinte, após o jantar, Redruth e eu nos pusemos a
caminho outra vez. Eu disse adeus a minha mãe e ao quarto onde vivera desde
meu nascimento, e à velha e querida Almirante Benbow – não tão querida, desde
que fora pintada de outra cor. Um de meus últimos pensamentos se voltou para o
capitão, que tantas vezes caminhara pela praia com seu chapéu caído, sua
cicatriz no rosto e sua velha luneta de latão. No momento seguinte, dobramos
uma esquina e já não se podia mais ver minha casa.
A diligência dos correios nos buscou ao entardecer na charneca em frente à
Royal George. Eu fiquei espremido entre Redruth e um velho cavalheiro parrudo
e, apesar do movimento suave e do ar frio da noite, devo ter cochilado um
bocado desde o começo e dormido feito um tronco por todas as subidas e
descidas do caminho, pois, quando enfim me acordaram, foi com um cutucão
nas costelas, e logo que abri os olhos descobri que estávamos parados em frente
a um grande prédio na rua de uma cidade e que já havia amanhecido fazia
tempo.
– Onde estamos? – perguntei.
– Bristol – disse Tom. – Desce.
O sr. Trelawney havia tomado residência em uma taverna descendo as docas,
para supervisionar o trabalho na escuna. Tivemos que caminhar até lá e, para
meu grande prazer, passar pelos atracadouros e ao lado de uma multidão de
navios de todos os tamanhos, velames e nações. Num deles, os marinheiros
cantavam enquanto trabalhavam; em outro havia homens no topo, muito acima
da minha cabeça, pendurados por cordas que a mim não pareciam mais grossas
que as teias de uma aranha. Apesar de eu ter vivido no litoral toda minha vida,
parecia que nunca estivera perto do mar antes. O cheiro de betume e sal era uma
sensação nova. Eu vi as mais maravilhosas figuras de proa, que já tinham estado
por todo o oceano. E vi muitos velhos marinheiros, com argolas nas orelhas,
suíças encaracoladas e rabichos alcatroados, com o andar gingado e desajeitado
do mar, e nem se tivesse visto reis e arcebispos eu teria ficado mais
deslumbrado.
Na tabuleta da Luneta
Pólvora e armas
A viagem
– Ora, esse pássaro – ele dizia – tem, talvez, uns duzentos anos, Hawkins.
Eles em geral vivem para sempre; e se alguém já viu mais vilanias do que ele,
foi só o próprio diabo. Ele navegou com England, o grande capitão England, o
pirata26. Esteve em Madagascar e em Malabar, e no Suriname, em Providence e
em Portobello, e esteve no resgate dos navios de prata afundados. Foi lá que
aprendeu a dizer “reais de oito”, e não me admira: eram 350 mil deles27,
Hawkins! Ele estava no saque ao vice-rei das Índias perto de Goa28, estava sim;
e olhando pra ele dá para pensar que é um bebezinho. Mas você fede a pólvora,
não é, Capitão?
– N ão, eu não – disse Silver. – Flint era o capitão e eu era o contramestre, com
minha perna de pau. Na mesma metralhada em que perdi a perna, o velho Pew
perdeu a visão. Foi um mestre cirurgião, ele que me amputou… estudou na
universidade, sabia latim e tudo o mais… mas foi enforcado feito um cachorro e
posto a secar no sol com os outros, no Castelo do Cabo30. Eram homens do
Roberts31, eram sim, e estavam sempre mudando o nome dos navios, o Royal
Fortune e assim por diante. Ora, se um navio é batizado com um nome, deixe
ficar, acho eu. Foi assim com o Cassandra, que nos trouxe todos sãos e salvos de
Malabar, depois que England roubou o vice-rei das Índias, e assim foi com o
Morsa, o velho navio de Flint, que eu vi banhado de sangue e a ponto de afundar
de tanto ouro.
– Ah! – disse outra voz, a do marujo mais jovem a bordo, evidentemente
cheia de admiração. – Ele era a fina flor da piratagem, esse Flint!
– Davis também era o tal, pelo que dizem – falou Silver. – Nunca naveguei
junto com ele. Primeiro fui com England, depois com Flint, essa é a minha
história, e agora por conta própria aqui, por assim dizer. Com o England fiz
umas novecentas libras, e 2 mil depois com Flint. Isso não é nada mal para um
homem de convés… tudo guardadinho no banco. Não é só o que se ganha que
importa, é o que se guarda, pode apostar. Onde foram parar todos os homens do
England? Sei lá. Onde estão os de Flint? Ora, a maioria está aqui a bordo, bem
felizes comendo pudim… Estavam mendigando antes, alguns deles. O velho
Pew, que perdeu a visão, e deveria ter sido mais esperto, gastava 12 mil libras
por ano, feito um lorde no Parlamento. Onde ele está agora? Bem, agora está
morto e enterrado, mas por dois anos antes disso… raios me partam!, o homem
estava passando fome. Ele mendigava e roubava e cortava gargantas e morria de
fome fazendo isso, com mil demônios!
– Bem, não valeu nada, no fim das contas – disse o jovem marujo.
– Para os idiotas nunca vale, pode apostar, nem isso nem nada – bradou
Silver. – Mas agora, escuta aqui: você é jovem, é sim, mas tem pinta de esperto.
Eu vi isso quando pus os olhos em você, e vou falar contigo de homem pra
homem.
Você pode imaginar como me senti quando escutei esse velho malandro
abominável falando com outro com as mesmas palavras de lisonja que usava
comigo. Acho que, se eu fosse capaz, o teria matado através do barril.
Entretanto, ele continuou, sem imaginar que eu o ouvia.
– Aqui a coisa é para os cavalheiros de fortuna. Eles vivem no duro, no risco
de ser pendurados pelo pescoço, mas comem e bebem feito galos de rinha e,
quando o serviço é feito, ora, são centenas de libras no bolso, em vez de
trocados. Agora, a maioria gasta tudo no rum e na boa vida, e voltam para o mar
com a roupa do corpo. Mas essa não é a rota que eu tracei. Eu guardo tudo, um
pouquinho aqui, um pouquinho acolá, e nunca muito num só lugar, porque sou
desconfiado. Estou com cinquenta, e anota aí: assim que voltar desta viagem, me
aquieto como um cavalheiro honesto. Também já era hora, dirá você. Ah, mas eu
vivi bem enquanto isso, nunca me privei de nada que o coração desejasse,
dormindo no macio e comendo bem todos os dias, exceto quando estou no mar.
E como eu comecei? No convés, como você!
– Bem – disse o outro –, mas agora o resto do dinheiro se foi, não? Você não
vai ter coragem de mostrar a cara em Bristol depois dessa.
– Ora, onde você acha que ele está? – perguntou Silver, irônico.
– Em Bristol, nos bancos e lugares assim – respondeu seu companheiro.
– Estava – disse o cozinheiro – quando levantamos âncora. Mas agora ele tá
todo com a minha velha. E o Luneta foi vendido, com licença, clientela e tudo o
mais, e minha velha garota já partiu para me encontrar. Eu podia te dizer onde,
porque confio em você, mas isso ia provocar inveja nos parceiros.
– E você confia na sua garota? – perguntou o outro.
– Os cavalheiros de fortuna – retrucou o cozinheiro – geralmente confiam
pouco uns nos outros, e com razão, pode crer nisso. Mas eu tenho as manhas,
tenho sim. Quando um parceiro tenta passar outro para trás, ele não fica por
muito tempo no mesmo mundo que o velho John. Havia aqueles que tinham
medo do Pew e aqueles que tinham medo do Flint, mas o próprio Flint tinha
medo de mim. Ele tinha medo, e era corajoso. Era a tripulação mais durona
sobre as águas, a de Flint. O próprio diabo teria medo de ir ao mar com eles.
Agora, bem, lhe digo uma coisa, não sou de me gabar, e você mesmo viu como
faço amigos fácil, mas, quando eu era contramestre, os velhos bucaneiros do
Flint não eram cordeirinhos. Ah, mas você pode ficar tranquilo no navio do
velho John.
– Bem, vou lhe dizer – respondeu o rapaz –, eu não gostava nem um pouco
do trabalho até ter essa conversa com você, John, mas pode contar comigo agora.
– Você é um rapaz valente, e esperto também – respondeu Silver,
cumprimentando-o com tanta força que todo o barril balançou. – E nunca pus os
olhos em uma melhor figura de proa para um cavalheiro de fortuna.
A essa altura eu comecei a entender o significado de suas gírias. Por
“cavalheiro de fortuna” eles queriam dizer simplesmente, nem mais nem menos,
um pirata comum, e a pequena cena que escutei era o ato final da corrupção de
um dos marujos honestos – talvez o último a bordo. Nesse ponto eu logo tive
certeza, pois Silver deu um assovio e um terceiro homem veio se juntar ao
grupo.
– O Dick é de fé – disse Silver.
– Ah, eu sei que o Dick é de fé – retrucou a voz do timoneiro, Israel Hands.
– Ele não é trouxa, o Dick. – Estava mascando tabaco e cuspiu, então continuou:
– Mas olha só, Churrasqueiro, queria saber uma coisa: por quanto tempo vamos
ficar parados aqui feito uma bendita balsa? Eu já não aguento mais o capitão
Smollett, ele me humilhou por tempo demais, com mil trovões! Quero entrar
naquela cabine, quero sim. Quero os picles e o vinho deles, e tudo o mais.
– Israel – disse Silver –, sua cabeça não vale muita coisa, nunca valeu. Mas
você sabe escutar, isso eu reconheço, até porque suas orelhas são bem grandes.
Agora, vou lhe dizer uma coisa: dorme na frente, trabalha duro, fala macio e fica
sóbrio, até que eu dê a ordem, pode crer nisso, meu filho.
– Bem, eu não disse que não iria, disse? – grunhiu o timoneiro. – O que eu
quero saber é: quando? Isso é o que eu quero saber.
– Quando! Com mil demônios! – bradou Silver. – Bem, então, se quer saber,
eu lhe digo quando. Vai ser no último momento que eu conseguir chegar. Temos
um piloto de primeira, o capitão Smollett, levando o navio pra gente. Temos o
fidalgo e o doutor com o mapa e tal… eu não sei onde está, certo? Vocês
tampouco, pelo que dizem. Bem, então, digo que esse fidalgo e o doutor podem
encontrar o tesouro e tudo o mais, e nos ajudar a colocá-lo a bordo, com mil
demônios. E então vamos ver. Se eu pudesse confiar em vocês, seus filhos dum
holandês desonesto, eu faria o capitão Smollett nos levar até metade do caminho
de volta antes de atacar.
– Ora, mas aqui todo mundo é marinheiro, acho eu – disse o rapaz Dick.
– Somos todos da peonada, você quer dizer – disparou Silver. – Sabemos
manter o curso, mas quem é que calcula? É aí que vocês cavalheiros se enganam
todos. Por mim, eu deixo o capitão Smollett nos pôr no rumo dos alísios, para
que não se tenha nenhum bendito erro de cálculo e só reste uma colher de água
por dia. Mas eu conheço gente como vocês. Vão acabar com eles na ilha, assim
que o butim estiver a bordo, e será uma pena. Mas vocês nunca ficam satisfeitos
até estarem bêbados. Raios que me partam, tenho nojo de velejar com gente
como vocês!
– Calma lá, Long John – pediu Israel. – Quem iria te contrariar?
– Ora, quantos navios de carga vocês pensam que eu já vi serem abordados?
E quantos garotos afobados secando ao sol nas Docas de Execução? – disse
Silver. – E tudo por causa dessa mesma pressa e pressa e pressa. Estão me
ouvindo? Eu já vi uma coisa ou outra no mar, vi sim. Quem puder ajustar a rota e
apontar a direção do vento vai andar de carruagem, vai sim. Mas não vocês!
Conheço vocês. Vão encher a boca de rum amanhã e serão enforcados.
– Todo mundo sabe que você é um pouco padre, John, mas tinha outros que
sabiam manobrar tão bem quanto você – disse Israel. – Eles gostavam de um
pouco de diversão, gostavam sim. Não eram tão altivos e frios, nem um pouco,
mas gostavam da vida boa, como bons companheiros, todos eles.
– E daí? – disse Silver. – Bem, onde eles estão agora? Pew era desses, e
morreu como mendigo. Flint também, e morreu de tanto rum em Savannah. Ah,
aquela tripulação era um doce, era sim! Só que… onde estão eles?
– Mas – perguntou Dick –, quando cairmos em cima do pessoal, o que
faremos com eles, afinal?
– Esse é dos meus! – bradou o cozinheiro, admirado. – Isso é o que chamo
de negócios. Bem, o que você acha? Nós os deixamos para trás, náufragos numa
ilha? Era o que England faria. Ou os cortamos feito filé de porco? É o que teriam
feito Flint ou Billy Bones.
– Billy era o cara para isso – disse Israel. – “Morto não morde”, ele dizia.
Bem, agora ele próprio está morto, sabe do assunto melhor que ninguém. Se
alguma vez uma mão pesada aportou, foi o Billy.
– Pode crer – disse Silver. – Mão pesada e sempre alerta. Mas veja bem: eu
sou facinho, sou praticamente um cavalheiro, dirá você, mas desta vez é sério.
Dever é dever, parceiros. Dou meu voto: morte. Quando eu estiver no
Parlamento, andando na minha carruagem, não quero nenhum sabichão
aparecendo no meu gabinete sem ser convidado, feito o diabo nas orações.
Esperar, é o que eu digo; mas, quando a hora chegar, ora, botem pra quebrar.
Conselho de guerra
H ouve uma grande correria pelo convés. Pude ouvir as pessoas saírem
tropeçando da cabine e da proa e, saindo num instante de dentro do meu
barril, mergulhei para trás da vela do traquete, dei a volta pela popa e apareci no
meio do convés a tempo de me juntar a Hunter e ao dr. Livesey na corrida até a
amurada da proa.
Todos os marujos já haviam se reunido ali. Um cinturão de névoa se ergueu
quase simultaneamente à aparição da lua. Lá longe, a sudoeste de onde
estávamos, vimos dois morros baixos, alguns quilômetros distantes um do outro,
e erguendo-se por trás de um deles um terceiro morro, mais alto, cujo pico ainda
estava coberto de névoa. Os três pareciam cônicos e pontudos.
Muito do que vi pareceu quase um sonho, pois eu ainda não havia me
recuperado do medo terrível que sentira um ou dois minutos antes. E então
escutei a voz do capitão Smollett distribuindo ordens. O Hispaniola orçou dois
pontos na direção do vento e agora velejava numa direção que deixaria a ilha
toda a leste.
– E agora, homens – disse o capitão, quando a manobra foi terminada –,
algum de vocês já viu essa ilha à nossa frente?
– Eu já, senhor – disse Silver. – Eu já fiz aguada lá, num navio mercante em
que fui cozinheiro.
– O ancoradouro fica ao sul, detrás de um recife, suponho? – perguntou o
capitão.
– Sim, senhor. A Ilha Esqueleto, é como chamam. Já foi um importante covil
de piratas, e um marujo que tínhamos a bordo sabia o nome de tudo ali. Aquele
morro ao norte eles chamavam de Morro do Traquete; são três morros alinhados
na direção sul: Traquete, Principal e Mezena, senhor. Mas o principal, aquele
grandão, escondido pela nuvem, eles geralmente chamavam de Luneta, porque
um vigia era deixado ali quando estavam no ancoradouro para limpeza, e era ali
que faziam a limpa nos navios, senhor, com seu perdão.
– Tenho um mapa aqui – disse o capitão Smollett. – Veja se é esse o lugar.
Os olhos de Long John brilharam quando pegou a carta. Porém, pelo aspecto
novo do papel, eu sabia que ele estava condenado à decepção. Aquele não era o
mapa que encontramos no baú de Billy Bones, mas uma cópia fiel, completa em
tudo – nomes, altitudes, sondagens –, exceto pelas cruzes vermelhas e as
anotações. Por mais forte que devesse ter sido sua irritação, Silver teve presença
de espírito para disfarçar.
– Sim, senhor – disse ele. – Esse é o lugar, com certeza, e muito bem
desenhado. Quem teria feito isso, me pergunto? Os piratas eram ignorantes
demais, imagino. Sim, aqui está: “Ancoradouro do capitão Kidd”32. Era bem
assim que meu colega chamava. Há uma correnteza forte ao longo da costa sul,
que então sobe para norte ao longo da costa oeste. O senhor estava certo – disse
ele – em orçar ao vento e pôr a ilha a sotavento. Ao menos, se sua intenção era
entrar para carenar33, e não há local melhor para isso do que nessas águas.
– Obrigado, marujo – disse o capitão Smollett. – Mais tarde, pedirei ao
senhor que nos dê uma ajuda. Pode ir agora.
Fiquei surpreso com a frieza com que John expôs seu conhecimento sobre a
ilha, e admito que fiquei meio assustado quando o vi se aproximando de mim.
Ele não sabia, tenho certeza, que eu havia escutado sua reunião de dentro do
barril de maçãs; ainda assim, a essa altura eu havia tomado um horror tal de sua
crueldade, fingimento e força, que mal consegui esconder minha aversão quando
ele colocou a mão sobre meu ombro.
– Ah – disse ele –, lugarzinho ótimo, essa ilha. Ótimo para um rapaz
desembarcar. Você pode tomar banhos, subir em árvores, caçar cabritos, pode
sim. E dá pra subir nos morros feito um cabrito também. Ora, faz eu me sentir
jovem outra vez. Já estava esquecendo até da minha perna de pau, estava sim.
Ser jovem e ter dez dedos é uma coisa agradável, pode apostar. Quando quiser
sair para explorar um pouco, é só pedir pro velho John, que ele faz uma merenda
para você levar.
E batendo no meu ombro do modo mais amigável possível, ele se afastou
mancando e foi para baixo.
O capitão Smollett, o fidalgo e o dr. Livesey estavam conversando juntos no
tombadilho e, apesar de eu estar ansioso para lhes contar minha história, não me
atrevi a interrompê-los abertamente. Enquanto ainda quebrava a cabeça para
encontrar uma desculpa plausível, o dr. Livesey me chamou para perto de si. Ele
havia deixado seu cachimbo lá embaixo e, sendo escravo do tabaco, queria que
eu fosse buscá-lo. Mas assim que fiquei perto o bastante para falar sem que me
escutassem, disse na mesma hora:
– Doutor, me escute. Desça com o capitão e o fidalgo até a cabine, e então
encontre uma desculpa para me chamar. Trago notícias horríveis. O doutor
mudou um pouco seu semblante, mas no momento seguinte se controlou.
– Obrigado, Jim, isso era tudo o que eu precisava saber – disse ele, de modo
um tanto exagerado, como se tivesse me feito uma pergunta.
E com isso deu meia-volta e juntou-se aos outros dois. Eles conversaram um
pouco e, embora nenhum tenha se sobressaltado ou levantado a voz, nem mesmo
cochichado, ficou claro que o dr. Livesey havia repassado meu pedido, pois a
próxima coisa que escutei foi o capitão dando uma ordem para Job Anderson, e
o apito chamou todos os marujos ao convés.
– Meus rapazes – disse o capitão Smollett –, tenho algo para lhes dizer. Essa
terra que avistamos é o lugar para onde estávamos indo. O sr. Trelawney, sendo
um cavalheiro muito generoso, como todos sabemos, acaba de trocar uma
palavrinha comigo, e eu pude lhe dizer que cada homem a bordo, acima e abaixo
do convés, cumpriu seu dever como nunca pedi melhor. Motivo pelo qual ele, o
doutor e eu vamos descer até a cabine e beber à vossa saúde e boa sorte, e os
senhores serão servidos de grogue para beber à nossa saúde e boa sorte. Eu vos
digo o que acho disso: acho que é uma beleza. E se pensam como eu penso,
darão vivas ao cavalheiro que o merece.
Seguiu-se um coro de vivas – uma resposta natural, mas que soou tão sincera
e calorosa que, confesso, eu mal podia acreditar que aqueles mesmos homens
planejassem nos matar.
– Mais um viva para o capitão Smollett – bradou Long John, quando o
primeiro se encerrou. E esse também foi dado com animação.
Com isso os três cavalheiros desceram e, não muito depois, veio a
mensagem de que Jim Hawkins era requisitado na cabine.
Encontrei os três todos sentados ao redor da mesa, tendo em frente uma
garrafa de vinho espanhol, algumas passas de uva, e o doutor fumando com sua
peruca no colo, o que, eu já sabia, era um sinal de que ele estava agitado. A
janela de popa estava aberta, pois era uma noite quente, e se podia ver a lua
brilhando na esteira do navio.
– Agora, Hawkins – disse o fidalgo –, você tem algo a dizer. Pode falar.
Fiz como solicitado e, do modo mais sucinto que pude, contei todos os
detalhes da conversa de Silver. Ninguém me interrompeu até que eu tivesse
terminado, tampouco nenhum dos três se moveu, mas mantiveram os olhos sobre
meu rosto do começo ao fim.
– Jim – disse o dr. Livesey –, sente-se. E fizeram com que eu me sentasse à
mesa junto deles, serviram-me um copo de vinho, encheram minhas mãos com
passas, e todos os três, um atrás do outro, e cada um fazendo uma mesura,
brindou à minha boa saúde, em seu reconhecimento por minha sorte e coragem.
– Agora, capitão – disse o fidalgo –, o senhor estava certo e eu estava errado.
Reconheço que fui um jumento e aguardo suas ordens.
– O senhor não foi mais jumento do que eu – retrucou o capitão. – Nunca
tinha ouvido de uma tripulação que tentasse um motim sem antes dar sinais que
pudessem ser percebidos por um homem precavido e com olho para malfeitos.
Mas essa tripulação – acrescentou – me passou para trás.
– Capitão – disse o doutor –, com sua permissão, foi o Silver. É um homem
excepcional.
– Ele ficará excepcionalmente bem numa forca, senhor – retrucou o capitão.
– Mas isso é conversa e não leva a nada. Eu vejo três ou quatro pontos e, com a
permissão do sr. Trelawney, os enumerarei.
– O senhor é o capitão. Cabe ao senhor falar – disse o sr. Trelawney,
magnânimo.
– O primeiro ponto – começou o sr. Smollett – é que precisamos continuar,
porque não podemos voltar. Se eu ordenar meia-volta, vão se rebelar na mesma
hora. O segundo ponto: temos algum tempo ainda… ao menos, até que o tesouro
seja encontrado. O terceiro ponto: há marujos leais. Agora, senhor, isso vai
estourar cedo ou tarde, e o que proponho é agarrar o tempo pelos cabelos, como
se diz, e atacá-los num belo dia quando menos esperarem. Podemos contar,
suponho, com seus próprios criados, sr. Trelawney?
– Como eu próprio – declarou o fidalgo.
– Três – contou o capitão –, conosco são sete, contando o Hawkins aqui.
Agora, e quanto aos marujos honestos?
– Provavelmente os homens de Trelawney – disse o doutor –, aqueles que
ele mesmo escolheu, antes que deixasse a incumbência para Silver.
– Não – retrucou o fidalgo. – Hands era um dos meus.
– Eu mesmo teria confiado em Hands – acrescentou o capitão.
– E pensar que são todos ingleses! – soltou o fidalgo. – Senhor, se
dependesse de mim, explodia-se o navio.
– Bem, cavalheiros – disse o capitão –, o melhor que posso dizer não é
muito. Precisamos manter a situação, se concordarem, e ficarmos atentos. É
difícil, eu sei. Seria mais agradável partir para a briga. Mas não há outro jeito,
até sabermos quem são nossos homens. Aguardemos o vento soprar, é o que
acho.
– O Jim aqui – disse o doutor – pode nos ajudar mais do que qualquer um.
Os homens ficam à vontade perto dele, e Jim é um rapaz atento.
– Hawkins, eu coloco imensa fé em você – acrescentou o fidalgo.
Eu comecei a ficar bem desesperado, pois me senti completamente
desamparado; no entanto, por uma estranha série de circunstâncias, foi de fato
graças a mim que a segurança veio. Enquanto isso, por mais que falássemos,
havia somente sete, de vinte e seis, nos quais sabíamos poder confiar, e desses
sete um era um menino, de modo que os adultos no nosso lado eram seis contra
dezenove.
Parte III
MINHA AVENTURA EM TERRA
13
O capitão era esperto demais para ficar no caminho. Ele saiu das vistas num
instante, deixando Silver a cargo de organizar a equipe, e imagino que foi melhor
assim. Tivesse ele ficado no convés, não poderia mais fingir que não entendia a
situação. Estava clara como o dia. Silver era o capitão, e uma tripulação das mais
rebeldes era o que ele tinha. Os marujos honestos – e eu logo veria a prova de
que havia destes a bordo – deviam ser uns sujeitos bem tapados. Ou, talvez,
suponho que a verdade fosse esta: que todos os marujos estavam insatisfeitos por
exemplo das lideranças – apenas alguns mais, outros menos. E uns poucos,
sendo bons sujeitos naquele meio, não podiam nem ser recrutados nem
conduzidos para além disso. Uma coisa é ser indolente e omisso, outra bem
diferente é tomar um navio e matar uma penca de gente inocente.
Por fim, contudo, o grupo foi organizado. Seis camaradas ficariam a bordo, e
os treze restantes, incluindo Silver, começaram a embarcar.
Foi então que me veio à mente a primeira das ideias doidas que tanto
contribuíram para salvar nossas vidas. Se seis homens seriam deixados por
Silver, estava claro que nosso grupo não poderia tomar o navio e lutar por ele. E
uma vez que apenas seis foram deixados, estava igualmente claro que a turma da
cabine não tinha nenhuma necessidade atual da minha ajuda. Na hora me
ocorreu ir à praia. Num segundo, deslizei pela amurada, me encolhi na vela do
escaler mais próximo, e quase no mesmo instante ele partiu.
Ninguém me percebeu, apenas o remador de trás, dizendo:
– É você, Jim? Fique com a cabeça abaixada.
Mas Silver, do outro barco, olhou com atenção e chamou para saber se era
eu. E naquele momento comecei a me arrepender do que tinha feito.
A tripulação acelerou rumo à praia, mas o escaler onde eu estava, tendo
alguma vantagem, e sendo ao mesmo tempo o mais leve e melhor manejado,
disparou à frente de seu consorte, batendo a proa contra as árvores da margem, e
eu me agarrei num galho e me balancei para fora, pulando para dentro do arbusto
mais próximo, enquanto Silver e os demais ainda estavam uns cem metros atrás.
– Jim, Jim! – eu o ouvi gritando.
Mas pode apostar que não lhe dei atenção. Pulando, me agachando e abrindo
caminho, eu corri sempre reto, até não conseguir mais.
14
O primeiro golpe
F iquei tão feliz por ter deixado Long John para trás que comecei a ficar à
vontade e olhar com algum interesse para aquela estranha terra onde
estava.
Atravessei um mangue cheio de salgueiros, juncos e estranhas e exóticas
árvores pantanosas, então cheguei às margens de um campo aberto de terra
arenosa e ondulante, com mais de um quilômetro, pontuado por alguns pinheiros
e um grande número de árvores contorcidas, não muito diferentes em tamanho
do carvalho, mas de folhas pálidas como as do salgueiro. No lado mais distante
do descampado estava um dos morros, com duas rochas íngremes e rochosas,
brilhando vívidas sob o sol.
Eu sentia pela primeira vez o prazer da exploração. A ilha era inabitada, eu
deixara meus colegas de navio para trás, e nada vivia à minha frente senão
bichos e aves mansos. Andei por entre as árvores. Aqui e ali floresciam plantas
que me eram desconhecidas. Aqui e ali eu via cobras, e uma delas levantou a
cabeça da beira de uma pedra e sibilou para mim fazendo um barulho parecido
com o de um pião girando. Pouco sabia eu que ela era uma inimiga mortal e que
aquele barulho era o famoso chocalho.
Então cheguei a um grande bosque daquelas árvores que são como o
carvalho – mais tarde soube que se chamavam azinheiras –, que cresciam baixas
ao longo da areia feito espinheiros, os ramos torcidos de um modo curioso e as
folhas compactas, formando um túnel. O bosque se alongava descendo do topo
de uma das dunas, espalhando-se e crescendo no caminho, até alcançar a
margem de um brejo largo cheio de juncos, pelo qual o mais próximo dos
riachos abria caminho até o ancoradouro. O brejo fumegava sob o sol forte, e o
contorno do Morro da Luneta tremulava na cerração.
De repente começou uma espécie de agitação entre os juncos. Um pato
selvagem levantou voo com um “quá”, outro foi atrás, e logo por toda a
superfície do brejo uma grande nuvem de aves ergueu-se gritando e circulando
no ar. Na hora julguei que alguns de meus colegas de bordo devia estar se
aproximando das margens do brejo. E não me enganara, pois logo escutei os
sons baixos e bem distantes de uma voz humana, a qual, conforme segui
escutando, foi ficando mais alta e próxima.
Isso me deixou com muito medo. Engatinhei para me esconder detrás do
azinheiro mais próximo e ali me agachei, escutando tão quieto quanto um
camundongo.
Outra voz respondeu, e então a primeira, que agora eu reconhecia ser a de
Silver, retomou a conversa e continuou por muito tempo sem parar, sendo apenas
uma vez ou outra interrompida pelo outro. Pelo barulho, eles deviam estar
conversando com franqueza, quase ferozes, mas não consegui entender nenhuma
palavra.
Enfim os falantes pareciam ter feito uma pausa e talvez tivessem se sentado,
pois não apenas pararam de se aproximar, mas os próprios pássaros começaram a
ficar mais quietos e se acalmaram de novo em seus lugares no pântano.
E agora eu começava a sentir que estava negligenciando meus negócios,
pois, uma vez que viera de modo tão precipitado à praia com aqueles
desesperados, o mínimo que poderia fazer era escutá-los em sua assembleia.
Meu plano e dever óbvio era o de chegar o mais perto que eu pudesse, sob a
tocaia favorável das árvores baixas.
Eu podia dizer com bastante precisão de qual direção vinham as vozes, não
apenas pelo som delas, mas pelo comportamento dos poucos pássaros que ainda
voavam alarmados por sobre a cabeça dos intrusos.
Engatinhando, avancei devagar mas constante na direção deles, até que
enfim, erguendo a cabeça por uma abertura entre as folhas, eu podia ver com
clareza uma pequena clareira verde ao lado do brejo, bem fechada por árvores,
onde Long John Silver e outro membro da tripulação estavam conversando de
frente um para o outro.
O sol batia direto sobre eles. Silver havia jogado o chapéu no chão a seu
lado, e sua cara grande, suave e loira, toda ela rosada de calor, erguia-se para o
outro homem numa espécie de apelo.
– Parceiro – dizia ele –, é que eu acho que você é ouro fino, ouro fino, pode
crer! Se eu não tivesse me afeiçoado a você, acha que estaria aqui lhe avisando?
Está tudo arranjado, não há o que você possa fazer. É para salvar seu pescoço
que eu tô aqui falando, e se um dos mais cascas-grossas souberem, o que vai ser
de mim, Tom… agora, diz, o que vai ser de mim?
– Silver – disse o outro homem, e observei que não somente tinha o rosto
vermelho, como falava rouco feito um corvo, e sua voz também vibrava como
uma corda de violino retesada –, Silver, você é velho e você é honesto, ou tem
fama de ser. E tem dinheiro também, o que muitos marinheiros pobres não têm.
E é corajoso, salvo engano. E vai me dizer que se deixou levar por essa corja de
labregos? Não você! E com Deus por testemunha, antes eu perdesse uma mão do
que faltar em meu dever…
E então de súbito ele foi interrompido por um barulho. Eu havia encontrado
um dos marujos honestos – e então, naquele mesmo momento, chegavam
notícias de outro. Bem longe lá pelo brejo ergueu-se, de repente, um som como
um grito de raiva, e outro na sequência, e então um grito horrível e longo. As
pedras do Morro da Luneta o ecoaram várias vezes, e todo o bando de pássaros
do brejo se ergueu de novo, escurecendo os céus, com um zumbido simultâneo.
Aquele grito de agonia ainda ressoava em meu cérebro quando o silêncio
reestabeleceu seu império, e apenas o farfalhar dos pássaros retornando e a
batida das ondas distantes perturbaram o torpor da tarde.
Com o barulho, Tom havia pulado feito cavalo esporeado, mas Silver sequer
piscou. Ele ficou onde estava, levemente apoiado em sua muleta, observando seu
companheiro como uma cobra pronta para o bote.
– John – disse o marinheiro, estendendo-lhe a mão.
– Tira as mãos! – gritou Silver, saltando para trás, assim me pareceu, com a
velocidade e confiança de um ginasta treinado.
– Tiro se quiser, John Silver – disse o outro. – É uma consciência sombria
que faz você ter medo de mim. Mas, em nome dos céus, me diz, o que foi
aquilo?
– Aquilo? – retrucou Silver, sorrindo dissimulado, mas cauteloso como
nunca, seus olhos meros pontinhos em seu rosto grande, mas brilhando como
contas de vidro. – Aquilo? Ah, acredito que era Alan.
Nesse ponto, Tom se revelou um herói.
– Alan! – ele gritou. – Então que sua alma descanse como a de um
verdadeiro marujo! E quanto a você, John Silver, por muito tempo tem sido meu
parceiro, mas parceiros não somos mais. Se eu morrer feito um cão, morro em
meu dever. Você matou Alan, não foi? Mate-me também, se conseguir. Mas eu o
desafio.
E com isso, esse bravo camarada deu as costas para o cozinheiro e saiu
caminhando em direção à praia. Mas não estava destinado a ir longe. Com um
grito, John apanhou um tronco de árvore, tirou a muleta debaixo de sua axila e
arremessou aquele projétil improvisado cortando o ar. Atingiu o pobre Tom em
cheio, e com violência impressionante, bem entre os ombros no meio das costas.
Suas mãos se ergueram, ele soltou uma espécie de suspiro, e caiu.
Se estava muito ou pouco ferido, ninguém poderia avaliar. A bem dizer,
julgando-se pelo som, suas costas foram quebradas na hora. Mas não lhe foi
dado tempo para se recuperar. Silver, ágil feito macaco mesmo sem uma perna
ou a muleta, estava em cima dele no instante seguinte e já duas vezes enterrara
sua faca naquele corpo indefeso. De meu ponto da tocaia, eu conseguia escutá-lo
ofegando enquanto dava os golpes.
Não sei ao certo o que é desmaiar, mas sei que no instante seguinte o mundo
todo se afastou de mim num rodamoinho nebuloso, Silver e os pássaros e o topo
alto do Morro da Luneta girando e girando e de cabeça para baixo em frente aos
meus olhos, e toda sorte de sinos soando e vozes distantes gritando em meus
ouvidos.
Quando voltei a mim, o monstro havia se recomposto, sua muleta debaixo do
braço, seu chapéu sobre a cabeça. À sua frente, Tom jazia imóvel sobre a relva,
mas o assassino não estava nem aí para ele e limpava sua faca suja de sangue
sobre um tufo de grama. Tudo o mais estava inalterado, o sol ainda brilhava
inclemente sobre o brejo fumegante e o alto pináculo da montanha, e eu mal
podia persuadir a mim mesmo que ocorrera mesmo um assassinato, que uma
vida humana fora cruelmente encurtada pouco antes, frente a meus olhos.
Mas agora John colocava a mão no bolso, tirando dali um apito, e soprou em
diversos silvos modulados que ressoaram no ar quente. Eu não sabia, é claro, o
significado do sinal, mas na hora despertou meus temores. Mais homens viriam.
Eu poderia ser descoberto. Eles já haviam matado dois dos homens honestos;
depois de Tom e Alan, não poderia ser eu o próximo?
No mesmo instante comecei a me desembaraçar dos galhos e rastejei de
volta, com tanto silêncio e velocidade quanto pude empenhar, até a porção mais
aberta do bosque. Enquanto o fazia, podia ouvir salves sendo trocados entre o
velho bucaneiro e seus comparsas, e esse som de perigo me deu asas. Assim que
fiquei livre dos arbustos, corri como nunca antes, mal me importando com a
direção de minha fuga, contanto que me afastasse dos assassinos. E, à medida
que eu corria, o medo crescia mais e mais em mim até que se transformou numa
espécie de frenesi.
De fato, poderia haver alguém mais perdido do que eu? Quando o canhão
disparasse, como eu ousaria descer até os botes entre aqueles demônios, ainda
fumegando de seus crimes? O primeiro deles que me visse não torceria meu
pescoço feito o de uma narceja? Minha ausência não seria ela própria uma
evidência de meu temor e, portanto, de meu conhecimento fatal? Estava tudo
acabado, pensei. Adeus ao Hispaniola, adeus ao fidalgo, ao doutor, ao capitão!
Não me restava nada além de morte por inanição ou pelas mãos dos amotinados.
Ainda assim, como disse, eu continuava correndo e, sem perceber, havia
chegado próximo ao pé da pequena colina com dois picos e me metido numa
parte da ilha onde as azinheiras cresciam mais separadas e se pareciam mais com
as árvores de uma floresta em seu porte e dimensões. Entremeados a essas
árvores havia alguns pinheiros escassos, uns com quinze metros de altura, outros
perto de vinte. O ar também cheirava mais fresco que lá embaixo ao lado do
brejo.
E ali um novo susto me fez ficar imóvel e com o coração na boca.
15
O homem da ilha
E ssa quinta viagem foi bem diferente de todas as outras. Em primeiro lugar,
aquele potinho disfarçado de bote em que estávamos fora severamente
sobrecarregado. Cinco homens adultos, e três deles – Trelawney, Redruth e o
capitão – com mais de um metro e oitenta, já eram mais do que o bote conseguia
levar. Acrescente a isso pólvora, carne de porco e sacos de biscoitos. A água já
estava batendo na borda. Várias vezes tiramos um pouco, e meus calções e as
pontas de meu casaco estavam todos molhados antes que tivéssemos percorrido
cem metros.
O capitão nos mandou equilibrar o bote, e redistribuímos o peso nele de
modo mais uniforme. Mesmo assim, tínhamos medo de respirar.
Em segundo lugar, a maré estava vazando – uma corrente forte repuxava
pelo leito na direção oeste, depois para o sul e levando para o mar direto por
entre os canais por onde entráramos pela manhã. Mesmo as marolas eram uma
ameaça para nossa embarcação sobrecarregada, mas o pior era estarmos sendo
puxados para fora de nosso caminho original e para longe do local apropriado
para atracar. Se deixássemos a correnteza tomar conta, terminaríamos na praia ao
lado dos escaleres, onde os piratas poderiam aparecer a qualquer momento.
– Não consigo manter o bote na direção da paliçada, senhor – falei ao
capitão. Eu estava ao leme, enquanto ele e Redruth, mais descansados, se
ocupavam dos remos. – A maré fica nos empurrando. O senhor consegue remar
mais forte?
– Não sem encher o bote de água – ele disse. – O senhor precisa aguentar, se
puder. Aguente até ver que está vencendo.
Tentei e descobri na prática que a maré continuava nos empurrando para
leste, até que apontei o bote para leste, ou em ângulos retos na direção em que
pretendíamos ir.
– Não vamos chegar na praia nunca nesse ritmo – eu disse.
– É a única direção em que podemos seguir, senhor, então precisamos segui-
la – retrucou o capitão. – Temos que nos manter contra a correnteza. Veja bem,
senhor, se nos deixarmos levar a sotavento do nosso ponto de desembarque, é
difícil dizer onde vamos dar em terra, além da possibilidade de sermos
abordados pelos escaleres; já na direção em que vamos, a correnteza deve
enfraquecer, e então poderemos voltar pela margem.
C orremos o melhor que podíamos pela faixa de árvores que agora nos
separava da paliçada, e a cada segundo as vozes dos bucaneiros soavam
mais próximas. Logo podíamos escutar seus passos enquanto corriam e o
quebrar de galhos enquanto cruzavam pelo mato fechado.
Comecei a perceber que certamente teríamos um confronto e olhei para meu
armamento.
– Capitão – eu disse –, Trelawney é tiro certo. Dê-lhe sua arma, a dele
próprio está inútil.
Eles trocaram as armas e Trelawney, silencioso e frio como vinha sendo
desde o começo da correria, parou por um instante para verificar se tudo estava
pronto para o serviço. Ao mesmo tempo, percebendo que Gray estava
desarmado, eu lhe dei meu alfanje. Nos fez bem vê-lo cuspir nas mãos, franzir as
sobrancelhas e fazer a lâmina cortar o ar. Estava claro em cada parte de seu
corpo que nosso novo aliado valia o sal que comia.
Quarenta passos adiante, chegamos à margem do bosque e vimos a paliçada
à nossa frente. Alcançamos o cercado pelo meio do lado sul e, quase ao mesmo
tempo, sete amotinados – o timoneiro Job Anderson à frente – apareceram
gritando a plenos pulmões no canto sudoeste.
Eles pararam, como se pegos de surpresa; e antes que se recuperassem, não
apenas o fidalgo e eu, mas Hunter e Joyce na cabana de madeira, tivemos tempo
de disparar. Os quatro disparos vieram numa saraivada um tanto dispersa, mas
deram conta do recado: um dos inimigos caiu de fato, e os demais, sem hesitar,
viraram e se lançaram para as árvores.
Após recarregar, descemos pelo lado de fora da paliçada para ver o inimigo
tombado. Estava mortinho da silva – atingido bem no coração.
Começamos a nos alegrar com nosso sucesso quando bem nessa hora uma
pistola disparou dos arbustos, uma bala passou zunindo por minha orelha, e o
pobre Tom Redruth cambaleou e caiu duro contra o chão. Tanto o fidalgo como
eu respondemos ao disparo, mas como não tínhamos nada no que mirar,
provavelmente só desperdiçamos pólvora. Então recarregamos e voltamos nossa
atenção para o pobre Tom.
O capitão e Gray já o estavam examinando, e só de olhar eu soube que
estava tudo acabado.
Creio que a agilidade de nossa salva de tiros dispersou os amotinados outra
vez, pois sem novos abusos fomos deixados em paz para erguer o pobre e velho
guarda-caça por sobre a paliçada e carregá-lo, grunhindo e sangrando, para
dentro da cabana de madeira.
Pobre camarada, não havia soltado uma palavra de surpresa, queixa, medo
ou mesmo consentimento desde o começo de nossos problemas até agora,
quando o pusemos deitado na cabana para morrer. Ele se mantivera feito um
troiano detrás de seu colchão no corredor do navio, cumprira cada ordem bem,
em silêncio e com fidelidade canina. Era o mais velho de nosso grupo por uma
vintena de anos, e agora seria ele, velho e soturno criado, sempre prestativo,
quem morreria.
O fidalgo caiu de joelhos ao seu lado e beijou-lhe a mão, chorando feito uma
criança.
– Estou partindo, doutor? – perguntou.
– Tom, meu caro – eu disse –, você vai para casa.
– Queria ter dado uma lambada neles primeiro – retrucou ele.
– Tom – disse o fidalgo –, você me perdoa, não?
– Mas não seria isso desrespeitoso da minha parte, fidalgo? – foi a resposta.
– Contudo, que assim seja, amém!
E após um tempinho de silêncio, falou que alguém deveria ler uma oração.
– É o costume, senhor – acrescentou, justificando-se. E não muito após isso,
sem outra palavra, faleceu.
Enquanto isso o capitão, o qual eu percebera estar maravilhosamente
estufado nos bolsos e no peito, foi retirando uma grande variedade de provisões
de sua pessoa – a bandeira britânica, uma Bíblia, um rolo de corda forte, caneta,
tinta, o diário de bordo e um quilo de tabaco. Ele havia encontrado um pinheiro
comprido dentro do cercado, jazendo sem galhos, e com a ajuda de Hunter o
posicionou num canto da cabana onde os troncos se cruzavam e formavam um
ângulo reto. Então, subindo no telhado, com as próprias mãos prendeu e
desfraldou a bandeira.
Isso pareceu aliviá-lo bastante. Ele voltou para a cabana e se pôs a contar os
mantimentos como se nada mais existisse. Mas se manteve de olho na passagem
de Tom e, quando tudo estava encerrado, aproximou-se com outra bandeira e
reverentemente cobriu o corpo com ela.
A ssim que viu a bandeira, Ben Gunn parou, segurou meu braço e se
sentou.
– Ali estão seus amigos, com certeza – disse ele.
– Mais provável que sejam os amotinados – respondi.
– Sem essa! – falou ele. – Ora, num lugar como esse, onde não aparece
ninguém que não seja um cavalheiro de fortuna, Silver teria levantado a Jolly
Roger39, pode crer. Não, aqueles são seus amigos. Houve algum combate,
também, e creio que seus amigos levaram a melhor e agora estão em terra na
velha paliçada, que foi feita por Flint anos e anos atrás. Ah, ele tinha a cabeça no
lugar, o Flint! Com ele não tinha pra ninguém, exceto o rum. Ele não tinha medo
de ninguém, ele não; só do Silver… Silver tinha essa distinção.
– Bem – eu disse –, pode ser mesmo, e que seja; mais uma razão para eu
correr e me juntar a meus amigos.
– Nah, parceiro – retrucou Ben –, você não. Você é um bom garoto, salvo
engano; mas, verdade seja dita, é só um menino. Agora, Ben Gunn é esperto.
Nem rum me levaria lá para onde você está indo… não, nem o rum, até que você
encontre esses seus cavalheiros e tenha sua palavra de honra. E não se esqueça
de minhas palavras: “é uma coisa bonita de ver (você dirá), a confiança, uma
coisa bonita de ver”, e então belisca ele.
E me beliscou pela terceira vez com o mesmo ar de esperteza.
– E quando precisar de Ben Gunn, você sabe onde encontrá-lo, Jim. Bem
onde o achou hoje. E aquele que vier tem que ter uma coisa branca na mão e vir
sozinho. Ah! E você vai dizer isto: “Ben Gunn”, você vai dizer, “tem seus
motivos”.
– Bem, acho que entendi – eu disse. – Você tem algo a propor, e quer ver o
doutor e o fidalgo, e pode ser encontrado onde eu o encontrei. Isso é tudo?
– E quando, dirá você? – acrescentou ele. – Ora, entre o turno do meio-dia
até as três da tarde.
– Ótimo – eu disse. – E agora, posso ir?
– Não vai esquecer? – perguntou ele, ansioso. – Uma coisa boa de se ver, e
seus próprios motivos, dirá você. Seus próprios motivos, isso é o principal, de
homem para homem. Bem, então – ainda me segurando –, reconheço que você
precisa ir, Jim. E Jim, se você encontrar o Silver, não vai vender Ben Gunn? Não
vai se deixar levar, não é? Não, você diz. E se esses piratas acamparem na praia,
Jim, o que se pode dizer, senão que haverá muitas viúvas ao amanhecer?
Então ele foi interrompido por um estrondo alto e uma bala de canhão veio
cortando pelas árvores e se enterrou na areia, a poucos metros de onde
conversávamos. No instante seguinte, cada um de nós saiu correndo numa
direção diferente.
Estrondos chacoalharam a ilha por uma boa hora depois disso, e bolas
continuaram irrompendo pela mata. Eu fui de esconderijo em esconderijo, sendo
sempre perseguido, ou assim me pareceu, por esses projéteis terríveis. Mas perto
do fim do bombardeio, ainda que eu não ousasse me aventurar em direção à
paliçada, onde as bolas em geral caíam, comecei, de certo modo, a juntar
coragem de novo e, após um longo desvio para leste, me arrastei por baixo das
árvores da orla.
O sol havia acabado de se pôr e a brisa marinha soprava e rolava pela mata,
arrepiando a superfície cinzenta do ancoradouro. A maré também estava bem
baixa e grandes faixas de areia ficaram descobertas. O ar, depois do calor do dia,
me refrescava pelo casaco.
O Hispaniola continuava onde havia baixado âncora, mas, como esperado, lá
estava a Jolly Roger – a bandeira negra da pirataria – revoando no topo.
Enquanto eu olhava, veio outro clarão vermelho de lá, outro estrondo que
mandou ecos ribombando, e mais um tiro de canhão assoviou pelos ares. Foi o
último tiro da canhonada.
Eu me deitei por algum tempo observando o alvoroço que se sucedeu ao
ataque. Homens estavam demolindo algo com machados na praia perto da
paliçada; mais tarde descobri que era o pobre botezinho. Adiante, perto da boca
do rio, um grande fogaréu brilhava por sobre as árvores, e para além daquele
ponto e do navio um dos escaleres continuava indo e vindo, e os homens, que eu
havia conhecido tão sombrios, gritavam feito crianças. Mas havia um tom em
suas vozes que sugeria rum.
Enfim achei que já podia voltar na direção da paliçada. Eu estava bem
afastado, na parte arenosa que circundava o ancoradouro a leste e se ligava na
maré baixa à Ilha Esqueleto. Então, enquanto me punha de pé, vi a certa
distância, descendo pela faixa e se erguendo dentre os arbustos baixos, uma
pedra isolada, bem alta, e de uma cor branca peculiar. Me ocorreu que aquela
poderia ser a pedra branca que Ben Gunn tinha falado e que qualquer dia desses
um bote poderia ser necessário e eu deveria saber onde procurar por um.
Então me esgueirei por entre a mata até que cheguei à paliçada por trás, ou
pelo lado de dentro da ilha, e logo fui calorosamente recebido pela companhia
dos leais.
Contei minha história e comecei a olhar ao redor. A cabana de madeira era
feita de toras irregulares de pinheiros – teto, paredes e piso. Este último se
mantinha em vários lugares a trinta ou quarenta centímetros acima da superfície
da areia. Havia uma varanda na porta, e debaixo dessa varanda a pequena fonte
de água corria sobre um tipo meio estranho de leito artificial – nada menos que
um caldeirão de ferro de navio, com o fundo arrancado e afundado na areia “até
a amurada”, como diria o capitão.
Pouco fora deixado além da estrutura da casa, mas num canto havia uma laje
de pedra deitada para servir de lareira e um cesto de ferro velho e enferrujado
para conter o fogo.
O terreno nos arredores da colina e todo o interior da paliçada fora limpo de
árvores para construir a casa, e podíamos ver pelos tocos que um belo e
grandioso bosque fora destruído. A maior parte do solo fora lavado pela chuva
ou enterrado pelas dunas após a remoção das árvores; apenas onde o córrego
brotava do caldeirão, uma grossa camada de musgo, algumas samambaias e
pequenos arbustos rasteiros ainda verdejavam entre a areia. Bem perto da
paliçada – perto demais para defesa, disseram –, a mata ainda florescia alta e
densa, toda de pinheiros no lado da ilha, mas na direção do mar numa grande
mistura com azinheiros.
A brisa fresca do entardecer, da qual eu havia falado, soprou por cada fresta
daquela construção tosca e salpicou o piso com uma chuva contínua de areia
fina. Havia areia em nossos olhos, areia em nossos dentes, areia em nosso jantar
e areia dançando no fundo do caldeirão da fonte, feito mingau quando começa a
ferver. Nossa chaminé era um buraco quadrado no teto, e só uma parte da
fumaça encontrava a saída, enquanto o resto ficava rodando pela casa e nos
mantinha tossindo e lacrimejando.
Acrescente a isso que Gray, nosso novo homem, tinha o rosto amarrado em
bandagens devido a um corte que ganhara ao fugir dos amotinados; e o pobre
velho Tom Redruth, ainda insepulto, jazia estirado contra a parede, duro e rígido,
debaixo da bandeira.
Se nos fosse permitido ficar à toa, seríamos todos tomados pela melancolia,
mas o capitão Smollett não era desse tipo de homem. Todos foram chamados à
sua frente e ele nos dividiu em turnos de vigília. O doutor, Gray, e eu tomamos o
primeiro; o fidalgo, Hunter e Joyce, o segundo. Cansados como estávamos, dois
de nós foram mandados para buscar lenha para a fogueira, outros dois a cavar
uma cova para Redruth; o doutor foi nomeado cozinheiro, eu fui posto de
sentinela na porta, e o próprio capitão ia de um ao outro, nos animando e dando
uma mão onde quer que fosse preciso.
A embaixada de Silver
D e fato, havia dois homens bem ali do lado de fora da paliçada, um deles
balançando um tecido branco e o outro ninguém menos que o próprio
Silver, calmamente ao lado do primeiro.
Era bem cedo ainda, e acho que a manhã mais fria que eu já vira, com um
frio que penetrava nos ossos. O céu estava claro e sem nuvens, e o topo das
árvores despontava róseo ao sol. Mas onde Silver esperava com seu lugar-
tenente tudo ainda estava em sombras, e eles estavam mergulhados até os joelhos
numa névoa baixa e esbranquiçada, que havia rastejado durante a noite para fora
do pântano. O frio e a névoa tomados em conjunto faziam má figura da ilha. Era
puramente um lugar pantanoso, febril e insalubre.
– Fiquem aí dentro, homens – disse o capitão. – Aposto que é um truque.
Então ele saudou o bucaneiro.
– Quem vem lá? Identifique-se ou atiramos.
– Bandeira da paz – bradou Silver.
O capitão estava na porteira da casa, mantendo-se cuidadosamente fora do
caminho de algum tiro traiçoeiro. Ele se virou e nos falou:
– A ronda do doutor a postos! Dr. Livesey, pegue o lado norte, por favor.
Jim, o leste; Gray, o oeste. Os vigias de baixo, todos a postos para recarregar
mosquetes. Rápido, homens, e tomem cuidado.
Então ele se voltou outra vez para os amotinados.
– E o que quer com essa bandeira da paz? – perguntou.
Dessa vez foi o outro homem quem respondeu.
– Senhor, o capitão Silver pede permissão para ir a bordo negociar – gritou.
– Capitão Silver! Não conheço. Quem é ele? – disse o capitão. E pudemos
escutá-lo falando consigo mesmo: – Capitão, então? Minha nossa, e dê-lhe
promoções!
Long John respondeu por si próprio.
– Eu, senhor. Estes pobres coitados me escolheram capitão, após sua
deserção – falou, colocando uma ênfase particular na palavra “deserção”. –
Estamos dispostos a nos submeter, se pudermos chegar a um acordo e não
houver nada contra. Tudo o que peço é sua palavra, capitão Smollett, de que me
deixará sair são e salvo dessa paliçada, e me dê um minuto para sair do alcance
antes que qualquer arma seja disparada.
– Meu caro – disse o capitão Smollett –, eu não tenho o menor desejo de
conversar com você. Se quer falar comigo, pode vir e é só. Se houver alguma
traição, será do seu lado, e que Deus os ajude.
– Isso basta, capitão – gritou Long John, animado. – Uma palavra sua é o
bastante. Sei reconhecer um cavalheiro, pode crer.
Pudemos ver o homem que levava a bandeira de trégua tentar deter Silver.
Não era de admirar, considerando quão cavalheiresca fora a resposta do capitão.
Mas Silver riu alto dele e lhe deu um tapa nas costas como se a ideia de ter medo
fosse absurda. Então seguiu para a paliçada, jogou sua muleta por cima, subiu
uma perna e, com grande vigor e habilidade, conseguir pular a cerca e cair em
segurança no lado de dentro.
Vou confessar que eu estava muito absorvido com o que estava acontecendo
para ser de alguma utilidade como vigia; de fato, eu já havia desertado meu
posto na vigia leste, e me arrastei para trás do capitão, que se sentara sob o
umbral da porta, com os cotovelos sobre os joelhos, a cabeça entre as mãos e os
olhos fixos na água, que borbulhava para fora do velho caldeirão de ferro na
areia. Ele assoviava baixinho “Come, Lasses and Lads”40.
Silver teve uma trabalheira para subir a colina. Com a inclinação do terreno,
os grossos tocos de árvores e a areia macia, ele e sua muleta ficavam tão
desamparados quanto um navio com a vela solta. Mas ele seguiu determinado e
enfim chegou em frente ao capitão, ao qual saudou com muita elegância. Estava
vestido em seu melhor: uma imensa casaca azul, cheia de botões de latão, descia
até os joelhos, e um belo chapéu com laço de fita cobria a parte de trás da
cabeça.
– Aí está você, homem – disse o capitão, erguendo a cabeça. – É melhor se
sentar.
– O senhor não vai me deixar entrar, capitão? – queixou-se Long John. –
Está uma manhã bastante fria, senhor, pode crer, para se sentar na areia.
– Ora, Silver – disse o capitão –, se tivesse se dignado a ser um homem
honesto, você poderia estar sentado em sua cozinha. A culpa é sua. Ou você é
meu cozinheiro de bordo, e então será bem tratado, ou é o capitão Silver, um
amotinado ordinário e um pirata, e nesse caso será enforcado!
– Ora, ora, capitão – retrucou o cozinheiro, sentando-se na areia do jeito que
pôde –, o senhor vai ter que me dar uma mãozinha, é só isso. Uma belezinha de
lugar vocês têm aqui. Ah, ali está o Jim! Uma bela manhã para você, Jim.
Doutor, à sua disposição. Ora, aí estão vocês todos juntos feito uma família feliz,
por assim dizer.
– Se tem algo a dizer, homem, diga logo – falou o capitão.
– O senhor está certo, capitão Smollett – retrucou Silver. – Dever é dever,
pode crer. Bem, então, o senhor veja só, vocês se saíram bem ontem à noite. Não
nego que se saíram bem. Alguns de vocês sabem como girar um cabrestante, por
assim dizer. E tampouco vou negar que alguns dos meus ficaram espantados…
talvez todos tenham ficado espantados, talvez eu mesmo tenha me espantado,
talvez seja por isso que eu esteja aqui para fazer um acordo. Mas marque minhas
palavras, capitão, não farei isso outra vez, com mil trovões! Vamos ficar de olho
e pegar leve no rum. Talvez você pense que somos todos um bando de
cachaceiros. Mas digo-lhe que eu estava sóbrio, estava só morto de cansaço, e
tivesse eu acordado um segundo mais cedo, teria pegado vocês com a boca na
botija, teria sim. Ele não estava morto ainda, quando cheguei perto, não ele.
– Então? – disse o capitão Smollett, tão frio quanto possível.
Tudo o que Silver estava dizendo era uma charada para ele, mas você nunca
perceberia por seu tom de voz. Quanto a mim, comecei a pensar. As últimas
palavras de Ben Gunn me vieram à mente. Comecei a supor que ele havia feito
uma visitinha aos bucaneiros quando estavam todos bêbados juntos ao redor da
fogueira, e concluí com alegria que tínhamos agora somente catorze inimigos
com os quais lidar.
– Então, aqui vai – disse Silver. – Nós queremos aquele tesouro, e nós o
teremos, essa é a nossa questão. Vocês só querem salvar suas vidas, reconheço, e
essa é a questão de vocês. O senhor tem um mapa, não tem?
– Pode ser que sim – respondeu o capitão.
– Ah, certo, você tem, eu sei disso – retrucou Long John. – Não precisa ser
tão duro com um sujeito, isso não vai servir para nada, pode crer. O que quero
dizer é: queremos seu mapa. Agora, eu mesmo nunca lhes quis mal.
– Isso não vai funcionar comigo, homem – interrompeu o capitão. –
Sabemos muito bem o que vocês querem fazer e não nos importamos. Por ora,
veja bem, vocês não têm como.
E o capitão o olhou com calma e se pôs a encher seu cachimbo.
– Se Abe Gray… – irrompeu Silver.
– Alto lá! – gritou o sr. Smollett. – Gray não me contou nada, e eu não lhe
perguntei nada, e quer saber? Por mim ele e você e toda essa ilha podem todos ir
para o raio que os parta. E isso é tudo o que tenho a lhe dizer sobre o assunto,
homem.
Essa pequena explosão pareceu acalmar Silver. Estava ficando irritado antes,
mas então se recompôs.
– Está bem – disse ele. – Não serei eu a dizer o que cavalheiros consideram
ser correto… ou incorreto, como é o caso aqui. E vendo que o senhor está para
fumar seu cachimbo, capitão, tomarei a liberdade de fazer o mesmo.
Encheu um cachimbo e o acendeu, e então os dois homens ficaram fumando
por algum tempo, ora se encarando, ora parando de fumar seu tabaco, ora
inclinando-se para cuspir. Assisti-los era como estar no teatro.
– Agora – retomou Silver –, aqui está. O senhor nos dá o mapa para
buscarmos o tesouro e para de atirar em pobres marinheiros ou arrebentar suas
cabeças enquanto estão dormindo. O senhor faz isso e lhes daremos uma
escolha. Ou vocês vêm conosco a bordo, assim que o tesouro for embarcado, e
então lhes dou minha palavra de honra, juro por escrito, de deixá-los em algum
lugar a salvo em terra. Ou, se isso não for do seu agrado, sendo alguns dos meus
marinheiros brutos e tendo velhas contas a acertar quanto a humilhações, vocês
podem ficar aqui, se quiserem. Dividiremos provisões com vocês, de igual para
igual; e lhes juro por escrito, como antes, de alertar o primeiro navio que avistar
e mandá-lo para cá pegar vocês. Agora é com vocês. Melhor do que está para
vocês não fica, não, senhor. E eu espero – elevou a voz – que todos os marujos
aqui nesta casa tenham escutado minhas palavras, pois o que vale para um, vale
para todos.
O capitão Smollett se ergueu e bateu com o cachimbo na palma da mão
esquerda, tirando as cinzas.
– Isso é tudo? – perguntou.
– Cada palavra, com mil trovões! – respondeu John. – Recuse isso e de mim
o senhor só verá as balas do mosquete.
– Muito bem – falou o capitão. – Agora, você me escuta. Se vierem um por
um, desarmados, eu prometo pô-los a ferros e levá-los para casa para um
julgamento justo na Inglaterra. Caso contrário, meu nome é Alexander Smollett,
eu visto as cores de meu soberano e vou mandá-los todos para Davy Jones41.
Vocês não têm como encontrar o tesouro. Não têm como velejar. Não há um
homem entre vocês capaz de manejar o navio. Vocês não podem lutar conosco;
só o Gray, ali, deu conta de cinco de vocês. Seu navio está contra o vento, mestre
Silver, e atrás só há águas rasas, como perceberá. Eu fico por aqui e lhe digo
isso, e essas são as últimas boas palavras que conseguirá de mim, pois em nome
dos céus, vou meter uma bala nas suas costas na próxima vez que o encontrar.
Vai-te embora, homem. Fora daqui, por favor, e bem rapidinho.
A cara de Silver era uma imagem e tanto; seus olhos brilhavam de ira. Ele
apagou o fogo de seu cachimbo.
– Me dê uma mão para me levantar – pediu.
– Eu não – respondeu o capitão.
– Quem vai me dar uma mão? – rosnou.
Nenhum de nós se moveu. Resmungando os piores xingamentos, ele
engatinhou pela areia até se apoiar na soleira da porta e conseguir se erguer em
sua muleta outra vez. Então cuspiu na fonte.
– Aí está! – bradou. – Isso é o que penso de vocês. Antes de uma hora, eu
vou cair sobre sua velha cabana feito um tonel de rum. Riam, com mil trovões,
riam! Antes de uma hora, estarão rindo do lado de lá. Os que morrerem serão os
sortudos.
E rogando as piores pragas, ele foi embora cambaleando pela areia, sendo
auxiliado na paliçada, após quatro ou cinco tentativas fracassadas, pelo homem
com a bandeira de trégua, e no instante seguinte desapareceu por entre as
árvores.
21
O ataque
Eu estava certo, como se revelou depois; mas enquanto isso, com a casa
pelando de quente e a trilha de areia no lado interno da paliçada tinindo sob o sol
do meio-dia, comecei a pôr outra ideia na cabeça, que não era boa de modo
algum. O que eu comecei a fazer foi sentir inveja do doutor, caminhando na
sombra fresca das árvores, com os passarinhos ao redor e o aroma agradável dos
pinheiros, enquanto eu ficava sentado torrando, com minhas roupas grudadas na
resina quente, e tanto sangue e tantos mortos ao meu redor que tomei um nojo do
lugar quase tão forte quanto o medo.
O tempo todo enquanto eu lavava a cabana, e depois lavando as coisas do
jantar, esse nojo e inveja foram crescendo mais e mais, até que por fim, estando
perto de um saco de biscoitos, e sem ninguém me vendo, dei o primeiro passo na
direção de minha fuga e enchi os dois bolsos da casaca com biscoitos.
Fui um tolo, você pode pensar, e certamente eu estava por fazer uma tolice,
mais do que um ato de bravura. Mas eu estava determinado a fazê-la com todo o
cuidado possível. Caso algo acontecesse comigo, os biscoitos evitariam, ao
menos, que eu passasse fome até no mínimo o dia seguinte.
A maré vazante
Com isso, me decidi, peguei o canivete, o abri com os dentes e fui cortando
uma fibra atrás da outra, até que o navio estivesse preso por só duas. Então
fiquei em silêncio, esperando para cortar essas últimas quando a correnteza fosse
outra vez aliviada por um sopro de vento.
A essas alturas escutei vozes altas vindas da cabine, mas, para dizer a
verdade, minha cabeça estava tão tomada por outros pensamentos que mal dei
ouvidos. Porém, agora que não tinha mais nada para fazer, comecei a prestar
mais atenção.
Uma voz eu reconheci como sendo a do timoneiro, Israel Hands, que fora
canhoneiro de Flint no passado. A outra era, claro, meu amigo do gorro
vermelho. Os dois homens estavam claramente para lá de bêbados, e bebiam
ainda mais enquanto eu escutava. Um deles, com um grito ébrio, abriu a janela
de popa e atirou algo para fora, que eu deduzi ser uma garrafa vazia. Mas não
estavam só de pileque; ficou aparente que ambos se sentiam furiosos. Palavrões
voavam feito pedras, e a toda hora estouravam gritos de raiva que pensei que
terminariam em briga. Só que a briga sempre passava e as vozes baixavam por
um tempo, até que viesse a crise seguinte, que, por sua vez, também passava sem
resultado.
Na praia, eu podia ver o clarão da grande fogueira do acampamento ardendo
por entre as árvores do litoral. Alguém cantava uma velha canção de marinheiro,
triste e sem graça, com um floreio choroso no final de cada verso e que parecia
não ter fim senão pela paciência do cantor. Eu a havia escutado mais de uma vez
na viagem e lembrava dessas palavras:
A viagem do coracle
E ra dia claro quando acordei e dei por mim largado na ponta sudoeste da
Ilha do Tesouro. O sol havia se levantado, mas ainda se escondia de mim
por trás do grande maciço do Morro da Luneta, que deste lado descia quase ao
nível do mar em penhascos formidáveis.
O Pontal da Bolina e o Morro da Mezena estavam bem perto – o morro
escuro e limpo de vegetação e o pontal tomado de penhascos com uns vinte
metros de altura, e margeado por grandes porções de rochas que haviam caído no
mar. Eu estava a pouco mais que quatrocentos metros do litoral, e a primeira
coisa que pensei foi em remar para a terra.
Essa ideia foi logo abandonada. As ondas grandes estouravam e rugiam
contra as rochas caídas. Altos revérberos, jorros pesados soprando e caindo,
seguiam um atrás do outro a cada segundo. Se me aventurasse mais perto,
poderia me ver jogado até a morte contra aqueles rochedos, ou gastando em vão
minhas forças na tentativa de escalar o penhasco batido pelas ondas.
Não bastasse isso, rastejando juntos sobre rochas chatas ou se deixando cair
no mar com grande estrépito, eu vi uns monstrões escorregadios parecidos com
lesmas incrivelmente grandes – quarenta ou sessenta deles, fazendo ecos nas
rochas com seus latidos.
Eu soube mais tarde que eram leões marinhos, completamente inofensivos.
Mas a aparência deles, somada à dificuldade da costa e à altura das ondas, foi
mais do que o bastante para me dar nojo daquele local. Eu estava mais disposto a
morrer de fome no mar do que enfrentar esses perigos.
Enquanto isso, suponho que havia uma oportunidade melhor à minha frente.
A norte do Pontal da Bolina, a terra corria por um longo caminho, deixando, na
maré baixa, uma longa faixa de areia amarela. Ao norte disso, de novo, havia
outro pontal – o Cabo das Matas, como estava anotado no mapa –, forrado de
pinheiros verdes, que desciam até a beira-mar.
Lembrei-me do que Silver dissera sobre a correnteza que seguia para norte
ao longo de toda a costa oeste da Ilha do Tesouro, e vendo da minha posição que
eu já estava sob efeito dela, preferi deixar o Pontal da Bolina para trás e
empregar minha força na tentativa de desembarcar no aparentemente mais gentil
Cabo das Matas.
Havia uma suave ondulação no mar. O vento soprava constante e brando do
sul, não havia conflito entre ele e a correnteza e as ondas cresciam e baixavam
sem quebrar.
Tivesse sido de outro modo, eu já teria morrido muito antes. Mas do modo
como estava, era de surpreender quão fácil e em segurança meu barquinho
seguia. Não raro, já que eu me mantinha deitado no fundo, sem dar mais que
uma espiada por cima da amurada, eu via um grande pico azulado erguendo-se
perto de mim, e então o coracle se sacudia um pouco, dançando como se
estivesse sobre molas, e descia do outro lado por entre as ondas tão leve quanto
um passarinho.
Depois de um tempo comecei a criar coragem e me sentei para testar minhas
habilidades no remo. Porém mesmo uma pequena mudança na distribuição do
peso produz alterações no comportamento de um coracle; mal movi o barco, ele
perdeu seu movimento calmo de dança, descendo direto por uma onda tão
grande que me deu vertigem, e com um borrifo de água afundou a ponta na
lateral da onda seguinte.
Eu estava encharcado e aterrorizado, e voltei na mesma hora para minha
posição anterior, no que o coracle pareceu encontrar seu caminho de novo e me
levou suave entre as ondas como antes. Ficou claro que ele não aceitaria
interferências e, nesse passo, uma vez que eu não podia interferir em seu
caminho, que esperanças teria de alcançar a terra?
Comecei a ficar apavorado, mas ao menos mantive a cabeça no lugar.
Primeiro, movendo-me com cuidado, gradualmente fui tirando a água do coracle
com meu boné; depois, ficando outra vez de olho por cima da amurada, pus-me a
estudar como ele fazia para se conduzir tão quieto por entre as ondas.
Descobri que as ondas, em vez das montanhas brilhantes e macias que
pareciam ser quando vistas da praia ou do convés de um navio, eram como
qualquer conjunto de colinas em terra firme, cheias de picos e vales e planícies.
Se deixado quieto, o coracle ia virando de um lado ao outro e costurava seu
caminho, por assim dizer, por entre as partes baixas, evitando assim as colinas
íngremes e os picos altos das ondas.
“Bem, então”, pensei comigo mesmo, “está claro que devo ficar deitado
como estou e não perturbar o equilíbrio. Mas também está claro que posso
colocar o remo de um lado e, de tempos em tempos, dar uma ou duas remadas na
direção da terra.” Foi pensar nisso e começar a fazer. Ali fiquei apoiado nos
cotovelos, numa posição bem desconfortável, e de vez em quando dava uma ou
duas remadas de leve para virar a proa na direção da costa.
Foi um trabalho lento e muito cansativo, mas eu visivelmente ganhava
terreno e, conforme fomos chegando perto do Cabo das Matas, ainda que eu
visse que ia irremediavelmente perder aquele ponto, ainda assim tinha percorrido
quase uns cem metros para leste. E, de fato, estava chegando perto. Podia ver as
copas das árvores balançando juntas ao vento, verdes e suaves, e tive certeza de
que alcançaria o próximo promontório sem falta.
Já era hora, pois agora eu começava a ser torturado pela sede. O brilho do
sol acima, sua miríade de reflexos sobre as ondas e a água do mar que havia
caído em mim e secado, cozinhando meus lábios com sal, se juntaram para fazer
minha garganta queimar e minha cabeça doer. A visão das árvores tão perto
quase me deixou doente de ansiedade; mas a correnteza logo me fez passar
daquele ponto e, conforme o próximo trecho de mar se abria, fui confrontado por
uma visão que mudou a natureza de meus pensamentos.
Bem à minha frente, a mais de meio quilômetro, vi o Hispaniola velejando.
Eu tinha certeza, claro, de que iríamos colidir, mas estava tão perturbado pela
necessidade de água que mal sabia se deveria ficar contente ou lamentar a ideia
e, muito antes de chegar a uma conclusão, a surpresa tomou conta inteiramente
da minha cabeça e não pude fazer nada além de olhar impressionado.
O Hispaniola estava com a vela principal e duas bujarronas abertas, e as
lindas lonas brancas brilhavam ao sol feito neve ou prata. Quando o vi pela
primeira vez, todas as velas estavam enfunadas e o navio rumando para noroeste,
e presumi que os homens a bordo estavam dando a volta pela ilha em direção ao
ancoradouro. Mas agora o navio começava a virar mais e mais para oeste, de
modo que pensei terem me avistado e que iriam me perseguir. Contudo, enfim,
ele se pôs contra o vento, foi puxado para trás e ficou ali à deriva, com as velas
balançando.
– Bando de patetas – disse eu. – Devem estar bêbados feito gambás. – E
pensei em como o capitão Smollett iria gostar de dar uma lição neles.
Entretanto a escuna foi aos poucos cortando a linha do vento, e acabou
mudando de bordo, velejando suave por um minuto ou mais até ficar outra vez
contra o vento. De novo e de novo isso se repetiu. Para a frente e para trás, para
cima e para baixo, norte, sul, leste e oeste, o Hispaniola navegava aos trancos e
barrancos, e cada repetição terminava como começava, com as velas balançando
soltas. Foi ficando claro para mim que ninguém o estava conduzindo. E se era
assim, onde estariam os homens? Ou estariam podres de bêbados ou o haviam
abandonado, pensei. Talvez, se eu conseguisse subir a bordo, poderia devolver o
navio para o capitão.
A correnteza estava trazendo o coracle e a escuna para o sul numa
velocidade igual. Quanto a esta última, se movia de modo tão selvagem e
intermitente e ficava tanto tempo parada que certamente não ganhava terreno,
talvez até perdesse. Se eu ousasse me sentar e remar, tinha certeza de que
poderia alcançá-la. O plano tinha ares de aventura que me inspiraram, e pensar
no barril de água que havia na gaiuta de proa redobrou minha coragem crescente.
Assim que me levantei, fui recebido por outro borrifo de água, mas dessa
vez mantive meu propósito, e me pus, com todas as forças e precauções, a remar
atrás do Hispaniola. A certa altura cruzei uma onda tão pesada que tive que parar
e tirar água, com o coração pulando feito passarinho. Mas aos poucos consegui
dar conta da coisa, e guiei meu coracle por entre as ondas, apenas de vez em
quando recebendo um golpe das ondas e um jorro de espuma na cara.
Agora estava me aproximando rápido da escuna. Podia ver brilhar o latão da
cana do leme, virando de um lado a outro, e ainda assim nenhuma alma apareceu
no convés. Não podia supor outra coisa que não ter sido desertada. Caso
contrário, os homens deviam estar caídos bêbados nos andares inferiores, onde
talvez eu pudesse derrubá-los e fazer o que eu quisesse com o navio.
Por algum tempo, ele fez o pior possível para mim: ficou parado. Claro que,
o tempo todo, ele apontava cada vez mais para o sul. Toda vez que pegava o
vento, as velas enfunavam, e isso lhe dava impulso por algum tempo. Eu disse
que isso era o pior possível para mim, pois nessa situação em que parecia
abandonado, com as lonas ressoando feito canhões e as polias balançando e se
batendo pelo convés, ele continuava a se afastar de mim, não somente pela
velocidade da correnteza, mas por todo seu movimento à deriva, que era
naturalmente grande.
Porém, enfim tive minha oportunidade. A brisa diminuiu por alguns
segundos, ficando muito baixa, e a correnteza aos poucos o virou, fazendo o
Hispaniola girar devagar em torno de si mesmo e enfim mostrar sua popa, com a
janela da cabine ainda aberta e o lampião sobre a mesa ainda aceso durante o dia.
A vela principal pendia inerte feito uma bandeira. Ele estava imóvel, senão pela
correnteza.
Nos últimos momentos eu havia perdido terreno, mas então redobrei meus
esforços e comecei outra vez a ganhar a corrida.
Eu ainda estava a mais de cem metros dele quando o vento veio outra vez de
supetão, o navio embicou na direção da ilha e lá se foi de novo, corcoveando e
deslizando feito uma andorinha.
Meu primeiro impulso foi de entrar em desespero, mas o segundo foi de
alegria. O navio virou até que seu costado estivesse voltado para mim – e
continuou girando até cobrir metade e então dois terços e então três quartos da
distância que nos separava. Eu podia ver as ondas espumando brancas sob a
linha-d’água. Ele me parecia imensamente alto, visto de minha posição no
coracle.
E então, de repente, comecei a entender. Mal tive tempo de pensar – mal tive
tempo de agir e me salvar. Eu estava no pico de uma onda quando a escuna veio
deslizando na seguinte. O mastro de gurupés estava sobre minha cabeça. Eu me
pus de pé e saltei, empurrando o coracle para debaixo d’água. Com uma mão
agarrei a retranca da bujarrona, enquanto meu pé se posicionou entre o cabo de
estai e seu suporte; e eu ainda estava pendurado lá, ofegando, quando um estouro
surdo me disse que a escuna havia passado por cima e afundado o coracle, e que
eu fora deixado sem saída do Hispaniola.
25
Israel Hands
Nós dois emborcamos de lado num segundo, e ambos rolamos, quase juntos,
até os embornais. O corpo de Gorro Vermelho, com os braços ainda abertos,
passou suave entre nós. Estávamos de fato tão perto que minha cabeça bateu no
pé do timoneiro, com um baque que fez meus dentes trincarem. Apesar de tudo,
fui o primeiro a me pôr de pé, pois Hands ficou envolvido com o cadáver. A
inclinação súbita do navio não fez do convés um lugar onde era possível correr.
Eu precisava encontrar um novo modo de fugir, e logo, pois meu inimigo estava
quase me tocando. Rápido como um raio, pulei para as enxárcias47 do mastro de
mezena, fui colocando uma mão na frente da outra e não parei para respirar até
que estivesse sentado no cesto de gávea.
Fui salvo por ser rápido – o punhal cravou-se nem quinze centímetros abaixo
de mim enquanto eu fugia para cima, e ali ficou Israel Hands de boca aberta e o
rosto erguido para o meu, uma perfeita escultura de surpresa e decepção.
Agora que eu tinha tempo para pensar, não perdi tempo em preparar minha
pistola, e então, tendo uma pronta para uso, e para ter uma garantia, me pus a
tirar a carga da outra e recarregá-la desde o começo.
Essa nova operação deixou Hands arrepiado. Ele começou a ver os dados
jogando contra ele; após uma hesitação óbvia, também se agarrou pesadamente
às enxárcias e, com o punhal entre os dentes, se pôs a subir devagar e
dolorosamente. Custou-lhe um bocado de tempo e gemidos para subir com a
perna ferida, e eu já tinha calmamente terminado meus arranjos antes que ele
chegasse a um terço da subida. Então, com uma pistola em cada mão, eu me
dirigi a ele:
– Mais um passo, sr. Hands – eu disse –, e arrebento seus miolos! Homem
morto não morde, você sabe – acrescentei com uma risadinha.
Ele parou na mesma hora. Pude ver por sua expressão que ele tentava pensar,
e o processo era tão lento e trabalhoso que, em minha recém-encontrada
segurança, gargalhei alto. Por fim, engolindo em seco, ele falou, com o rosto
ainda mantendo a expressão de extrema perplexidade. Para conseguir falar,
precisou tirar a adaga da boca, mas em tudo o mais permaneceu imóvel.
– Jim, reconheço que estamos enrolados aqui, eu e você, e temos que fazer
um acordo. Eu teria dado conta de você não fosse aquela virada, mas eu não
tenho sorte, não eu. E reconheço que vou ter que baixar as velas, o que é dureza,
veja só, de um mestre marinheiro como eu para um moleque de navio como
você, Jim.
Eu estava degustando suas palavras e sorrindo, tão vaidoso quando um galo
empoleirado no muro, quando, num suspiro, sua mão direita foi para trás por
sobre o ombro. Algo cortou o ar feito uma flecha, senti um golpe e então uma
dor aguda, e ali fui pregado ao mastro pelo ombro. Na dor horrível e na surpresa
do momento – mal posso dizer que foi por vontade própria, e tenho certeza que
foi sem fazer mira –, minhas duas pistolas dispararam, e ambas caíram de
minhas mãos. Elas não caíram sozinhas. Com um grito engasgado, o timoneiro
soltou as enxárcias e caiu de cabeça na água.
27
“Reais de oito”
No acampamento inimigo
Palavra de honra
F ui acordado – na realidade, todos nós fomos, pois pelo que pude ver até a
sentinela se sacudiu de onde havia caído contra o umbral da porta – por
uma voz clara e calorosa nos chamando da margem da mata:
– Ó da cabana, à vista! – gritou. – Aqui é o doutor.
E era mesmo. Embora eu estivesse feliz de ouvir o som, minha felicidade
não era sem reservas. Eu lembrava confuso de minha insubordinação e conduta
furtiva, e quando vi aonde ela havia me levado – entre que tipo de companhias e
cercado por perigos –, me senti envergonhado de olhá-lo nos olhos.
Ele devia ter se levantado quando ainda estava escuro, pois o dia mal havia
começado. E quando corri para uma abertura e olhei para fora, o vi de pé, como
Silver antes estivera, coberto até os joelhos pela neblina rastejante.
– O senhor, doutor! Um bom dia para o senhor! – bradou Silver, bem
acordado e brilhando de bom humor na mesma hora. – Madrugador e bem-
disposto, pode crer. E é o pássaro madrugador, como se diz, que abocanha a
minhoca. George, sacode esse casco, meu filho, e ajude o dr. Livesey a pular a
amurada. Tudo está indo bem, e seus pacientes estão… todos bem e felizes.
Ele ficou tagarelando assim, de pé no topo da colina com sua muleta sob o
braço e uma mão contra a lateral da cabana – bem como o velho John em voz,
modos e expressão.
– Temos uma boa surpresa para o senhor, também – ele continuou. – Temos
um estranhozinho aqui… rá-rá! Um novo inquilino a bordo, senhor, em boa
forma e mais tenso que corda de violino. Dormiu feito uma balsa de carga, foi
sim, bem ao lado do John… cara a cara ficamos, a noite toda.
A essas alturas o dr. Livesey já havia cruzado a paliçada e estava bem perto
do cozinheiro, e pude ouvir a alteração em sua voz ao dizer:
– Não o Jim?
– O mesmo Jim de sempre – disse Silver.
O doutor parou no mesmo instante, ainda que não tivesse dito nada, e levou
alguns segundos até parecer capaz de se mover adiante.
– Bem, bem – disse enfim –, primeiro o dever, depois o prazer, como você
mesmo diria, Silver. Vamos dar uma olhada nesses seus pacientes.
No momento seguinte, ele entrou na cabana de madeira e, com um aceno
sombrio para mim, prosseguiu em seu trabalho com os doentes. Ele não parecia
estar apreensivo, ainda que devesse saber que sua vida, entre aqueles demônios
traiçoeiros, estivesse por um fio. Ralhou com seus pacientes como se estivesse
fazendo uma visita profissional corriqueira a uma tranquila família inglesa. Seus
modos, suponho, tiveram efeito sobre os homens, pois se comportaram como se
nada tivesse acontecido – como se ele ainda fosse o médico de bordo e eles
ainda fossem marujos leais sobre o convés.
– Você está indo bem, meu amigo – disse ele ao camarada com a atadura na
cabeça –, e se alguém alguma vez viu a morte de perto, foi você. Sua cabeça
deve ser mais dura que ferro. Bom, George, como está indo? Você está bem
colorido, com certeza. Ora, homem, seu fígado está do avesso. Você tomou
aquele remédio? Ele tomou aquele remédio, homens?
– Sim, sim, senhor, ele tomou sim, pode crer – respondeu Morgan.
– Porque, vejam só, uma vez que eu sou um médico de amotinados, ou um
médico de prisão como prefiro chamar – disse o doutor Livesey com seus modos
agradáveis –, para mim é uma questão de honra não perder nenhum homem que
pertença ao rei George (Deus o abençoe!) ou à forca.
Os malandros olharam uns para os outros, mas engoliram o golpe em
silêncio.
– Dick não se sente bem, senhor – disse um.
– É mesmo? – retrucou o doutor. – Bem, se aproxime, Dick, e deixe-me ver
sua língua. Não, eu ficaria surpreso se ele estivesse bem! A língua do homem
está boa de assustar um francês. Outro com febre.
– Ah, isso – disse Morgan – é o que dá rasgar Bíblias.
– Isso é o que dá, como vocês mesmos dizem, ser um completo jumento –
redarguiu o doutor – e não ter bom senso para diferenciar o ar bom do venenoso,
terra seca de um lamaçal pestilento e vil. Creio que seja muito provável…
embora, claro, seja apenas uma opinião… que todos vocês vão ter que penar
bastante até tirarem essa malária do corpo. Acamparam num pântano, não foi?
Silver, estou surpreso com você. É menos tolo que a maioria, isso reconheço,
mas não me parece ter as noções mais rudimentares das regras de saúde.
Após ele ter medicado todos e eles terem aceitado suas prescrições com uma
humildade cômica, mais parecendo crianças de escola de caridade do que
amotinados criminosos e piratas, ele acrescentou:
– Bem, por hoje é isso. E agora, eu gostaria de ter uma conversa com aquele
menino, por favor.
E ele acenou descuidado com a cabeça em minha direção.
George Merry estava na porta, cuspindo e salivando com o gosto ruim de um
remédio, mas à primeira palavra da proposta do doutor, saltou vermelho de raiva:
– Não! – gritou, e então praguejou.
Silver bateu no barril com a mão aberta.
– Si-lên-cio! – ele rugiu, olhando ao redor como um leão. – Doutor – ele
continuou, em seu tom usual –, eu estava pensando nisso, sabendo o quanto o
senhor gosta do menino. Nós todos somos humildemente gratos por sua
gentileza e, como pode ver, confiamos no senhor e engolimos os remédios como
se fosse grogue. E creio que encontrei um modo que agrade a todos. Hawkins,
você me dá sua palavra de honra como um jovem cavalheiro… pois você é um
jovem cavalheiro, ainda que nascido pobre… sua palavra de honra de não soltar
sua corda?
Na mesma hora eu fiz a jura solicitada.
– Então, doutor – disse Silver – o senhor apenas vá para o lado de fora
daquela paliçada e, assim que estiver lá, eu desço com o menino pelo lado de
dentro, e creio que vocês possam conversar pelas frestas. Um bom dia para o
senhor, e nossas lembranças ao fidalgo e ao capitão Smollett.
A explosão de descontento, que nada além da aparência sombria de Silver
conseguiu conter, estourou de imediato após o doutor ter saído da casa. Silver foi
acusado abertamente de fazer jogo duplo – de tentar fazer um tratado de paz em
separado para si – ao sacrificar os interesses de seus cúmplices e vítimas. E na
realidade era isso mesmo o que estava fazendo. Pareceu-me tão óbvio, neste
caso, que eu não podia imaginar como ele contornaria a raiva deles. Mas ele era
duas vezes mais homem que os demais, e sua vitória na noite anterior lhe dera
uma grande dominância sobre suas mentes. Chamou-os de todos os adjetivos que
puder imaginar, disse que era necessário que eu conversasse com o doutor,
exibiu o mapa na cara deles e perguntou se eles tinham condições de romper o
tratado no mesmo dia em que pretendiam sair à caça do tesouro.
– Não, com mil trovões! – bradou ele. – Só vamos romper o tratado quando
chegar a hora, e até então vou engambelar aquele médico, nem que eu tenha que
engraxar as botas dele com conhaque.
E então os mandou acender o fogo e saiu apoiando-se em sua muleta, com a
mão no meu ombro, deixando-os atrapalhados e silenciados mais por sua
volubilidade do que por estarem convencidos.
– Devagar, rapaz, devagar – me disse ele. – Eles podem nos cercar num
piscar de olhos, se nos virem apressados.
Muito deliberadamente, então, nós avançamos ao longo da areia até onde o
doutor nos aguardava do outro lado da paliçada e, assim que ficamos a uma
distância audível, Silver parou.
– O senhor tome nota disto, doutor – disse ele –, o menino vai lhe contar
como eu salvei sua vida e inclusive fui deposto por isso, pode crer. Doutor,
quando um homem está velejando contra o vento como eu… como se estivesse
jogando bolita com o último sopro de seu corpo… não ocorreria ao senhor,
talvez, lhe dar algum crédito? O senhor por favor tenha em mente que não é só a
minha vida agora… este menino está na barganha, então seja sincero, doutor, e
me dê um pouco de corda para seguir em frente, pelo amor de Deus.
Silver era outra pessoa uma vez do lado de fora, de costas para seus amigos e
a cabana. Suas bochechas pareciam mais caídas, sua voz tremia e, sinceramente,
nunca houve espírito mais morto.
– Ora, John, você não estaria com medo? – perguntou o dr. Livesey.
– Doutor, não sou nenhum covarde. Não, eu não… nem um pouquinho
assim! – Ele estalou os dedos. – E se eu fosse, não diria. Mas vou ser sincero
com o senhor, tremo de medo da forca. O senhor é um homem bom e verdadeiro,
que eu nunca vi homem melhor! E o senhor não irá esquecer o que eu fiz de
bom, não mais do que esquecer o que fiz de ruim, eu sei. E eu vou me afastar,
olha só, e deixar o senhor e o Jim sozinhos. E o senhor vai levar isso em conta
também, que não é pouca coisa!
Assim dizendo, ele se afastou um pouco pelo caminho, até estar fora do
alcance da conversa, e ali se sentou sobre um toco de árvore e começou a
assoviar, virando-se uma vez por outra sobre seu assento para melhor vigiar os
arredores, às vezes eu e o doutor, e às vezes aqueles rufiões descontrolados que
iam e vinham pela área, entre a fogueira, que estavam ocupados reacendendo, e a
casa, de onde trouxeram porco e pão para fazer o desjejum.
– Então, Jim – o doutor falou com tristeza –, aqui está você. O que você
plantou, você colheu, menino. Deus sabe o quanto não posso culpá-lo em meu
coração, mas escute o que vou lhe dizer, para o bem ou para o mal: quando o
capitão Smollett estava bem, você não ousava sair. Mas quando ele ficou doente
e não podia evitar, meu São Jorge, foi pura covardia!
Devo dizer que aqui eu comecei a chorar.
– Doutor – falei –, não precisa dizer. Eu mesmo tenho me culpado desde
então. Minha vida está perdida de qualquer modo, e eu até já estaria morto a
essas alturas se o Silver não tivesse me protegido. E doutor, acredite, eu posso
morrer… e digo até que mereço isso… mas o que tenho medo é da tortura. Se
eles me torturarem, eu…
– Jim – interrompeu o doutor, com a voz bastante alterada –, Jim, eu não
aguento isso. Pula para cá e saímos correndo.
– Doutor – eu disse –, eu dei minha palavra.
– Eu sei, eu sei – ele disse. – Mas agora não há o que se fazer, Jim. Eu
assumo a responsabilidade de tudo, meu garoto. Mas não posso deixar que você
fique aqui. Pule! Um pulo e você estará livre, e nós vamos correr feito antílopes.
– Não – eu retruquei –, o senhor sabe muito bem que não faria o mesmo.
Nem o senhor, nem o fidalgo, nem o capitão, e tampouco eu. Silver confia em
mim, eu dei minha palavra e vou voltar. Mas, doutor, o senhor não me deixou
terminar. Se vierem a me torturar, posso deixar escapar onde o navio está, pois
eu peguei o navio, um pouco por sorte e um pouco sob risco, e ele está na Baía
Norte, na praia mais ao sul, pouco acima da linha-d’água na maré cheia. Quando
a maré chegar à metade, já deve estar no seco.
– O navio! – exclamou o doutor.
Rapidamente lhe descrevi minhas aventuras e ele me escutou em silêncio.
– Há um pouco de destino nisso – ele observou, quando eu terminei. – A
cada passo, é você quem salva nossa vida, e pensou por algum instante que
deixaríamos você perder a sua? Seria uma má recompensa, meu garoto. Você
descobriu o plano. Você encontrou Ben Gunn, a melhor coisa que já fez, ou terá
feito, mesmo que viva até os noventa anos. Ah, por Júpiter, e falando em Ben
Gunn! Ora, esse é pura malandragem. Silver! – gritou ele. – Silver! Eu lhe dou
um conselho – continuou, enquanto o cozinheiro chegava mais perto. – Não
tenha muita pressa em procurar aquele tesouro.
– Ora, senhor, farei o que for possível, o que não é muito – disse Silver. – Só
posso, com seu perdão, salvar minha vida e a do menino procurando por aquele
tesouro, e o senhor pode crer nisso.
– Bem, Silver – respondeu o doutor –, se for assim, direi mais: tome cuidado
com tempestades quando o encontrar.
– Senhor – disse Silver –, cá entre nós, de homem para homem, isso é dizer
tudo e não dizer nada. De que o senhor está atrás, por que deixou a cabana, por
que me deu aquele mapa, eu não sei, não é? E ainda assim aceitei sua barganha
de olhos fechados e nenhuma palavra de esperança! Mas não, isso já é demais.
Se o senhor não vai me dizer com clareza o que pretende, então deixemos assim
e eu vou-me embora.
– Não – disse o doutor, pensativo –, não tenho direito de dizer mais. Veja
bem, Silver, o segredo não é meu ou eu contaria tudo, juro. Vou com você até
onde posso, e nem um passo a mais, pois o capitão vai me arrancar a peruca se
souber! Mas primeiro, eu lhe darei um pouco de esperança. Silver, se nós dois
sairmos vivos desta armadilha de lobo, farei o que puder para salvá-lo, exceto da
acusação de perjúrio.
Silver ficou radiante.
– Não precisa nem dizer mais, senhor, nem se fosse minha mãe – bradou.
– Bem, essa foi minha primeira concessão – acrescentou o doutor. – Minha
segunda é um alerta: mantenha o menino consigo e, quando precisar de ajuda,
me chame. Eu virei em auxílio, e isso por si só lhe dirá se falo a esmo. Até logo,
Jim.
O dr. Livesey me cumprimentou pela paliçada, acenou para Silver e saiu a
passos acelerados para a mata.
31
Uma árvore alta era, portanto, a principal marca. Agora, bem à nossa frente,
o ancoradouro era cercado por um platô que tinha entre sessenta e noventa
metros de altura, juntando-se ao norte com o íngreme flanco sul do Morro da
Luneta e erguendo-se novamente em direção ao sul para a eminência
montanhosa e acidentada chamada de Morro da Mezena. O topo do platô era
pontuado densamente de pinheiros de alturas variadas. Por todo canto, alguns de
uma espécie diferente elevavam-se uns doze ou quinze metros acima de seus
vizinhos, e qual desses era a “árvore alta” do capitão Flint só poderia ser
decidido no local e pela leitura da bússola.
Porém, mesmo sendo assim, cada homem a bordo dos barcos já havia
escolhido sua própria favorita quando estávamos a meio caminho. Apenas Long
John encolhia os ombros e dizia-lhes para esperar até chegarmos lá.
Seguindo as orientações de Silver, remamos com cuidado, para não gastar as
mãos prematuramente. Após uma travessia bem demorada, desembarcamos na
boca do segundo rio – aquele que descia por uma fenda arborizada do Morro da
Luneta. Assim, inclinando-se à nossa esquerda, começamos a subir o barranco
na direção do platô.
Num primeiro momento, um terreno difícil e embarrado e uma vegetação
espessa e brejenta em muito retardaram nosso avanço. Mas pouco a pouco o
morro começou a ficar íngreme e pedregoso sob nossos pés, e a mata começou a
mudar de características e a crescer de um modo mais espaçado. Era, de fato,
uma fatia muito agradável da ilha essa da qual nós agora nos aproximávamos.
Umas giestas perfumadas e muitos arbustos em flor haviam quase tomado o
lugar do capim. Bosques de nogueiras-moscadas verdejantes eram pontuados
aqui e ali com as colunas vermelhas e a sombra larga dos pinheiros, e o cheiro
forte das primeiras se misturava ao aroma dos segundos. O ar, além disso, era
fresco e leve, o que, sob os raios de sol, era um refresco maravilhoso para nossos
sentidos.
O grupo se espalhou em forma de leque, gritando e pulando para todo lado.
No centro, e bem atrás dos demais, seguíamos eu e Silver – eu indo pelo
cabresto, ele caminhando, muito ofegante, ao longo do cascalho escorregadio.
De fato, de tempos em tempos eu tive que lhe dar uma mão, ou ele teria pisado
em falso e caído de costas morro abaixo.
Assim seguimos por cerca de oitocentos metros, e estávamos nos
aproximando do topo do platô, quando o homem na ponta mais distante
começou a gritar alto, apavorado. Soltou um grito atrás do outro, e os demais
começaram a correr em sua direção.
– Ele não tem como ter encontrado o tesouro – disse o velho Morgan,
passando apressado à nossa direita. – Isto aqui é uma clareira.
De fato, como descobrimos quando também chegamos ao local, era algo
muito diferente. Aos pés de um pinheiro enorme e envolto numa trepadeira, que
havia parcialmente separado alguns dos ossos menores, havia no chão um
esqueleto humano, com alguns trapos de roupas. Acho que, por um instante, um
calafrio passou no coração de todos.
– Era um marinheiro – disse George Merry que, mais corajoso que os
demais, havia chegado perto e examinado os trapos. – Ao menos, veste uma boa
roupa de marinheiro.
– Sim, sim – disse Silver –, provavelmente. Você não esperaria encontrar um
bispo aqui, suponho. Mas que jeito é esse de os ossos ficarem? Não é natural.
De fato, numa segunda olhada, parecia impossível conceber que o corpo
estivesse numa posição natural. Porém por algum desarranjo (talvez o trabalho
dos pássaros que se alimentaram dele, ou o lento crescer da trepadeira que aos
poucos envolveu seus restos) o homem jazia perfeitamente reto – seus pés
apontando numa direção e, suas mãos, erguidas acima da cabeça feito um
mergulhador, na direção oposta.
– Meti uma ideia nesta minha velha cabeça oca – observou Silver. – Olhem
aqui a bússola, aqui está a seta indicando a Ilha Esqueleto, se destacando feito
um dente. Deem só uma olhada, vocês, ao longo da linha dos ossos.
Dito e feito. O corpo apontava na direção da ilha e a bússola indicava
claramente ese para e.
– Foi o que pensei – bradou o cozinheiro –, isso aqui é um indicador. Bem
ali em cima está nossa linha para a Estrela Polar e os lindos dólares. Mas
macacos me mordam se não me dá calafrios pensar no Flint. Isso aqui é uma das
piadas dele, não se enganem. Ele e esses outros seis estavam aqui sozinhos, ele
os matou, cada um deles, e esse daqui ele botou aqui e fez de bússola, raios me
partam! São ossos compridos, e o cabelo era loiro. Sim, esse devia ser o
Allardyce. Lembra do Allardyce, Tom Morgan?
– Sim, sim – respondeu Morgan –, lembro dele, ele me devia dinheiro, devia
sim, e levou minha faca com ele.
– Falando em facas – disse outro –, por que não damos uma procurada ao
redor? Flint não era de mexer nos bolsos de um marinheiro, e os pássaros,
suponho, a deixariam para trás.
– Com mil demônios, é verdade! – bradou Silver.
– Não foi deixado nada aqui – disse Merry, ainda examinando os ossos –,
nem uma moedinha de cobre ou caixinha de tabaco. Não me parece natural.
– Não, diacho, não é mesmo – concordou Silver. – Não é natural e não é
legal, vocês dizem. Pelas barbas do profeta! Meus amigos, se Flint estivesse
vivo, a coisa ia esquentar para vocês e eu. Eles eram seis, e nós somos seis, e
ossos foi tudo o que sobrou deles.
– Eu vi ele morto com estes olhos – disse Morgan. – Billy me levou. E lá ele
estava, com moedinhas nos olhos.
– Morto… sim, pode crer, ele tá morto e foi lá pra baixo – disse o camarada
com as ataduras –, mas se alguma vez um espírito andar, será o de Flint. Ah, meu
pai, mas ele morreu na pior, o Flint!
– Sim, foi mesmo – observou outro –, ora ele surtava, noutra gritava por
rum, ora ele cantava. “Quinze homens” era a única música, parceiros. E falo
sério, não gosto de escutar ela desde então. Estava muito quente, e a janela
estava aberta, e eu escutava aquela canção antiga vindo cada vez mais alta… e o
homem já nas mãos da morte.
– Vamos, vamos – disse Silver –, chega desse papo. Ele morreu e não
caminha, isso eu sei. Ao menos, não de dia, nisso podem crer. Quem morre de
véspera é peru. Vamos em frente, aos dobrões.
Nós continuamos, claro; no entanto, apesar do sol quente e da luz do dia, os
piratas não mais andavam separados e gritando pela mata, mas mantinham-se
lado a lado e falavam de dentes cerrados. O medo do bucaneiro morto havia
recaído sobre seus espíritos.
32
Eu nunca vi homens mais assustados que os piratas. A cor fugiu de seus seis
rostos feito mágica; alguns pularam de susto, uns se agarraram nos outros,
Morgan se encolheu no chão.
– É o Flint, meu Deus! – gritou Merry.
A canção parou tão subitamente como começou – interrompida, poderia se
dizer, no meio de uma nota, como se alguém tivesse colocado a mão sobre a
boca do cantor. Vinda daquela atmosfera clara e ensolarada por entre a copa das
árvores, achei até que havia soado leve e meiga, e o efeito em meus
companheiros foi dos mais estranhos.
– Qual é – disse Silver, lutando com os lábios secos para pronunciar as
palavras –, essa não cola. De pé e em frente. Foi só um susto, e eu não posso
definir de quem é essa voz, mas é só alguém de brincadeira… alguém de carne e
osso, podem crer.
Sua coragem tinha voltado enquanto falava, e um pouco da cor de seu rosto
voltou junto. Os outros já estavam começando a dar ouvidos para esse
encorajamento, voltando a si aos pouquinhos, quando a mesma voz irrompeu
outra vez – dessa vez não cantando, mas num fraco grito distante que ecoou
ainda mais fraco por entre as ravinas do Morro da Luneta.
– Darby M’Graw – choramingou, pois essa é a melhor palavra para
descrever aquele som. – Darby M’Graw! Darby M’Graw! – de novo e de novo, e
então elevando-se um pouquinho, com um palavrão que não escrevo aqui, disse:
– Traz o rum, Darby!
Os bucaneiros ficaram com os pés plantados no chão e os olhos arregalados.
Muito depois de a voz ter sumido, eles ainda se entreolhavam em silêncio,
apavorados.
– Já chega – suspirou um. – Vamos embora.
– Foram suas últimas palavras – gemeu Morgan –, suas últimas palavras
nesta vida.
Dick estava com sua Bíblia na mão, rezando sem parar. Havia recebido uma
boa criação, o Dick, antes de ir para o mar e se meter com más companhias.
Mesmo assim, Silver não estava convencido. Eu conseguia escutar seus
dentes rangendo, mas ele ainda não havia se rendido.
– Ninguém aqui nesta ilha já ouviu falar de Darby – murmurou ele –,
ninguém além de nós aqui. – E então, fazendo um grande esforço, ele bradou: –
Camaradas, eu vim aqui para pegar aquela coisa e não vou ser derrotado por
homem ou demônio. Nunca tive medo do Flint quando estava vivo e, com mil
demônios, ele eu encaro mesmo morto. Tem 700 mil libras escondidas a menos
de quatrocentos metros daqui. Quando foi que um cavalheiro de fortuna deu as
costas para tanto dinheiro por causa de um velho marujo bêbado e pálido, ainda
por cima morto?
Mas não havia jeito de reacender a coragem de seus seguidores. Pelo
contrário, eles ficaram com ainda mais medo pela irreverência de suas palavras.
– Calma lá, John! – disse Merry. – Não provoque os espíritos.
E os outros estavam apavorados demais para retrucar. Eles teriam corrido
com todas as forças se tivessem coragem, mas o medo os mantinha juntos e os
mantinha perto de John, como se sua ousadia os ajudasse. Ele, de sua parte, já
vencera seus medos.
– Espírito? Bem, talvez – disse ele. – Mas tem uma coisa que não ficou clara
para mim. Havia eco. Ora, nenhum homem jamais viu um espírito com sombra,
pois eu gostaria de saber como ele estava fazendo eco. Isso não é natural, com
certeza.
Esse argumento me pareceu bastante fraco. Mas não se pode dizer o que irá
fazer efeito com os supersticiosos e, para minha surpresa, George Merry ficou
muito aliviado.
– Bem, isso é – disse ele. – Você tem a cabeça no lugar, John, com certeza.
Todos a bordo, parceiros! Esta tripulação tá no curso errado, acho eu. E parando
para pensar, era como a voz de Flint, eu garanto, mas não tão clara como a dele,
afinal. Era como a voz de outra pessoa… era mais como…
– Com mil demônios, Ben Gunn! – rugiu Silver.
– Sim, era isso mesmo – bradou Morgan, ficando de joelhos. – Ben Gunn
está aqui!
– Olha só, não faz muita diferença, faz? – perguntou Dick. – Ben Gunn não
está aqui de corpo, não mais do que Flint.
Mas os marujos mais velhos receberam essa observação com desdém.
– Ora, ninguém se importa com Ben Gunn – disse Merry. – Vivo ou morto,
ninguém se importa com ele.
Era extraordinário como seus ânimos haviam retornado e como a cor natural
revivera em seus rostos. Logo eles estavam conversando, com intervalos para
escutar, e não muito depois, não tendo escutado mais nada, colocaram o
equipamento nos ombros e seguiram adiante de novo, Merry caminhando à
frente com a bússola de Silver para mantê-lo na linha certa com a Ilha Esqueleto.
Ele havia dito uma verdade: vivo ou morto, ninguém se importava com Ben
Gunn.
Só Dick ainda segurava a Bíblia e olhava ao redor enquanto andava, com
uma cara assustada, mas não encontrou solidariedade alguma, e mesmo Silver
fez piada com ele e com suas precauções.
– Eu te falei – disse ele –, eu te falei, você estragou sua Bíblia. Se não serve
para se jurar nela, o que supõe que um espírito daria por ela? Não por essa daí! –
E estalou seus dedos grandes, parando por um momento sobre sua muleta.
Mas nada iria confortar Dick. De fato, logo ficou claro para mim que o rapaz
estava passando mal. Pressionado pelo calor, pela exaustão e pelo susto, era
evidente que a febre diagnosticada pelo dr. Livesey estava aumentando rápido.
Era uma bela caminhada a céu aberto ali, no topo do promontório; nosso
caminho descia um pouco, pois, como eu disse, o platô inclinava-se para oeste.
Os pinheiros, grandes e pequenos, cresciam bem separados e, mesmo entre os
ajuntamentos de azaleias e nogueiras-moscadas, os espaços abertos cozinhavam
sob o calor do sol. Atravessando, como fizemos, bem perto de noroeste ao longo
da ilha, por um lado íamos ficando cada vez mais perto das encostas do Morro
da Luneta e, pelo outro, víamos cada vez mais aquela baía oeste onde eu me
sacudira no coracle.
A primeira das árvores altas foi alcançada e pelos arredores provou ser a
errada. Foi assim também com a segunda. A terceira erguia-se no ar a quase
sessenta metros de altura, acima das demais. Era um gigante dos vegetais, com
um tronco vermelho tão grande quanto uma cabana e uma sombra larga na qual
era possível manobrar um pelotão. Dava para vê-la do mar tanto a leste como a
oeste, e poderia ter sido anotada como ponto de referência no mapa.
Mas não era seu tamanho que agora impressionava meus companheiros, mas
saber que 700 mil libras em ouro estavam ali enterradas em algum lugar abaixo
do espraiar de sua sombra. A ideia do dinheiro, conforme chegavam perto,
engoliu seus temores prévios. Seus olhos cintilavam nas faces, seus pés ficavam
mais rápidos e leves, toda sua alma estava direcionada para aquela fortuna e toda
a vida de prazeres e extravagâncias que aguardava ali por cada um deles.
Silver coxeava, resmungando, apoiado na muleta. Suas narinas dilatavam-se
e tremiam, e ele xingava feito um louco quando as moscas pousavam em seu
rosto quente e brilhante. Ele me puxava furioso pela corda que nos unia e, de
tempos em tempos, virava-se para mim com um olhar mortal. Certamente não se
deu ao trabalho de ocultar seus pensamentos, e certamente eu conseguia lê-los
como se estivessem impressos. Na proximidade imediata com o ouro, tudo o
mais fora esquecido – sua promessa e os alertas do doutor eram ambas coisas do
passado, e eu não tinha dúvidas de que ele esperava pegar o tesouro, encontrar e
subir a bordo do Hispaniola encoberto pela noite, cortar cada garganta honesta
naquela ilha e navegar de volta, como era sua intenção original, carregado de
crimes e riquezas.
Abalado como eu estava por esses temores, era difícil manter o passo rápido
dos caçadores de tesouro. De vez em quando eu tropeçava, e foi numa dessas
que Silver puxou forte a corda e me lançou um de seus olhares assassinos. Dick,
que ficara para trás e agora compunha a retaguarda, tanto balbuciava orações
como blasfêmias para si mesmo, conforme sua febre continuava crescendo. Isso
também se somou à minha desgraça e, para coroar tudo, eu era assombrado pela
imagem da tragédia que fora uma vez encenada naquele platô, quando aquele
bucaneiro ímpio de cara pálida – o que morrera em Savannah, cantando e
pedindo mais bebida – passara seus seis comparsas na faca ali mesmo, com as
próprias mãos. Esse arvoredo agora tão calmo deveria ter então ressoado de
gritos, imaginei. E só de pensar nisso eu podia acreditar que ainda os escutava
ressoando.
Chegávamos então à orla da mata.
– Vam’bora, parceiros, todos juntos! – gritou Merry, e os mais à frente
saíram correndo.
De repente, nem dez metros adiante, os vimos parar. Um grito baixo se
ergueu. Silver acelerou o passo, pontuando o solo com o pé de sua muleta feito
um homem possesso, e no momento seguinte ele e eu também paramos.
Diante de nós estava uma grande escavação, não muito recente, pois as
laterais haviam caído para dentro e o mato já crescia no fundo. Ali havia o cabo
de uma picareta quebrada ao meio e as tábuas de inúmeros caixotes espalhadas.
Numa dessas tábuas eu vi, marcado a ferro quente, o nome Morsa – o nome do
navio de Flint.
Não havia sombra de dúvida. O esconderijo fora encontrado e pilhado. As
700 mil libras não estavam ali!
33
A queda de um cacique
N unca houve na face da Terra reviravolta como aquela. Cada um dos seis
homens ficou como se atingido por um raio. Mas com Silver o golpe
passou quase no mesmo instante. Feito um corredor visando à chegada, cada
pensamento de sua alma estivera afixado naquele dinheiro e, num único
segundo, isso desmoronara. Ele manteve a cabeça no lugar, encontrou seu
sangue-frio e mudou os planos antes que os demais tivessem tempo de assimilar
a decepção.
– Jim – sussurrou ele –, pega isso aqui e se prepara para ter problemas.
E me passou uma pistola de dois canos.
Ao mesmo tempo, começou a se mover para norte, e em poucos passos havia
posto o buraco entre nós dois e os outros cinco. Então olhou para mim e
assentiu, como quem diz “estamos encurralados” e, de fato, era mesmo. Sua
aparência era agora bastante amigável, e eu estava tão revoltado com essas
mudanças constantes que não pude evitar murmurar:
– Então mudou de lado outra vez.
Ele não teve tempo de responder. Os bucaneiros, com palavrões e gritos,
começaram a pular um atrás do outro para dentro do buraco e a cavar com os
dedos, jogando as tábuas para fora. Morgan encontrou uma moeda de ouro. Ele a
ergueu com um perfeito jorro de palavrões. Era uma moeda de dois guinéus, e
passou de mão em mão entre eles por um quarto de minuto.
– Dois guinéus! – rugiu Merry, atirando-a em Silver. – São essas as suas 700
mil libras, não é? Você é o homem das barganhas, não é? Você é aquele que
nunca se dá mal em nada, seu panaca cabeça-oca!
– Cavem mais, rapazes – disse Silver, com fria insolência. – Não ficaria
surpreso se encontrassem umas batatas.
– Batatas! – repetiu Merry, com um grito. – Parceiros, vocês ouviram isso?
Eu digo a vocês, agora, aquele homem ali sabia tudo desde o começo. Olhem pra
cara dele e vão ver que está escrito nela.
– Ah, Merry – observou Silver –, vai se candidatar a capitão de novo? Você
está forçando a barra, pode crer.
Mas dessa vez estavam todos a favor de Merry. Eles começaram a sair da
escavação, lançando olhares furiosos contra ele. Uma coisa eu observei, que nos
veio a calhar: todos subiram pelo lado oposto a Silver.
Bem, ali estávamos nós, dois de um lado, cinco do outro, o buraco entre nós,
e ninguém furioso o bastante para dar o primeiro golpe. Silver nunca se moveu,
apenas os observou, muito ereto em sua muleta, parecendo mais tranquilo do que
jamais o vira. Ele era corajoso, com certeza.
Por fim, Merry pareceu pensar que um discurso poderia ajudar a questão.
– Parceiros – disse ele –, tem dois deles sozinhos ali. Um é um velho
aleijado que nos trouxe até aqui e nos fez cair nessa situação, o outro é aquele
filhote cujo coração eu pretendo arrancar fora. Agora, parceiros…
Ele estava erguendo o braço e a voz, claramente intencionando liderar um
ataque. Só que bem na hora – pam! pam! pam! – três mosquetes dispararam dos
arbustos. Merry caiu de cabeça na escavação. O homem com as ataduras girou
feito um pião e tombou direto a seu lado, onde caiu morto, mas ainda
estrebuchando, e os outros três se viraram e saíram correndo com todas as suas
forças.
Antes que eu pudesse piscar, Long John havia disparado os dois canos de
uma pistola num Merry que ainda se debatia e, enquanto o homem virava os
olhos para ele em sua última agonia, disse:
– Acho que te acalmei, George.
No mesmo instante, o doutor, Gray e Ben Gunn se juntaram a nós, com
mosquetes fumegantes, vindo das nogueiras-moscadas.
– Avante! – gritou o doutor. – Mais rápido, meus rapazes. Temos que chegar
primeiro nos botes.
E saímos correndo a toda velocidade, às vezes nos metendo nos arbustos até
o peito.
Vou lhe dizer, Silver estava ansioso para nos acompanhar. O trabalho que o
homem se deu, pulando com sua muleta até que os músculos do peito estivessem
a ponto de estourar, foi esforço que nenhum homem sadio jamais igualou, e o
doutor também pensa assim. Ele já estava uns trinta metros atrás de nós, e à
beira da exaustão, quando alcançamos o topo do barranco.
– Doutor – ele chamou –, olha lá! Sem pressa!
Com certeza não havia necessidade de pressa. Numa parte mais aberta do
platô, podíamos ver os três sobreviventes ainda correndo na mesma direção em
que haviam começado, direto para o Morro da Mezena. Nós já estávamos entre
eles e os botes, então nós quatro nos sentamos para respirar, enquanto Long
John, secando o rosto, veio devagar até nós.
– Obrigado por vossa gentileza, doutor – disse ele. – O senhor veio bem na
hora, creio, para mim e para Hawkins. E você também, Ben Gunn! –
acrescentou. – Ora, você se saiu bem, pode crer.
– Sou Ben Gunn, sou sim – retrucou o abandonado, chacoalhando-se feito
uma enguia em seu constrangimento. Após uma longa pausa, ele acrescentou: –
E como vai o senhor, senhor Silver? Muito bem, obrigado, diz você.
– Ben, Ben – murmurou Silver –, e pensar que você me pegou nessa!
O doutor mandou Gray voltar para buscar uma das picaretas que, na corrida,
foram largadas pelos amotinados, e então à medida que descíamos
tranquilamente a colina até onde os escaleres foram deixados, contaram em
poucas palavras o que havia acontecido. Era uma história que interessava
profundamente a Silver, e na qual Ben Gunn, o doido abandonado, fora o herói
do começo ao fim.
Ben, em suas longas e solitárias andanças pela ilha, havia encontrado o
esqueleto – fora ele quem o despojara, quem encontrara o tesouro e o cavara da
terra (era seu o pedaço de picareta que jazia quebrado na escavação), e ele quem
o carregara nas costas, em muitas jornadas cansativas, do pé do pinheiro alto até
a caverna que ele tinha na colina de dois picos no ângulo nordeste da ilha, onde
estava guardado em segurança dois meses antes da chegada do Hispaniola.
Quando o doutor arrancou-lhe esse segredo na tarde do ataque e, na manhã
seguinte, viu o ancoradouro vazio, foi até Silver e deu-lhe o mapa, agora inútil, e
os suprimentos, pois a caverna de Ben Gunn era bem suprida com carne de bode
salgada por ele próprio – tudo e mais um pouco pela chance de saírem com
segurança da paliçada até a colina dos dois picos, para lá se manterem livres da
malária e montarem guarda sobre o dinheiro.
– Quanto a você, Jim – disse ele –, fui contra meu coração, mas fiz o que
achei melhor por aqueles que haviam cumprido seu dever e, se você não era um
desses, de quem seria a culpa?
Naquela manhã, ao saber que eu estaria envolvido na horrível decepção que
ele preparara para os amotinados, o doutor correu até a caverna e, deixando o
fidalgo para proteger o capitão, levou Gray e o abandonado e partiu, cruzando a
ilha na diagonal para estar pronto ao lado do pinheiro. Logo, porém, viu que
nossa turma tomara a dianteira, e Ben Gunn, sendo mais rápido, foi despachado
à frente para fazer o melhor que pudesse sozinho. Então lhe ocorrera fazer uso
das superstições de seus antigos colegas de bordo, e teve tanto sucesso que Gray
e o doutor já estavam de tocaia antes da chegada dos caçadores de tesouro.
– Ah – disse Silver –, foi sorte minha ter o Hawkins aqui. Você teria deixado
o velho John ser feito em pedacinhos e não teria pensado duas vezes, doutor.
– Não teria mesmo – retrucou o dr. Livesey, animado.
E a essas alturas alcançamos os escaleres. O doutor, com a picareta, demoliu
um deles, e então todos subimos a bordo do outro e fomos a caminho da Baía
Norte por mar.
Isso foi questão de uns doze ou quinze quilômetros. Silver, ainda que já
estivesse quase morto de fadiga, foi colocado num remo, como o resto de nós, e
remamos suavemente sobre o mar calmo. Logo ultrapassamos os estreitos e
dobramos a ponta sudeste da ilha, ao largo da qual, quatro dias antes, havíamos
ancorado o Hispaniola.
Quando passamos a colina de picos duplos, pudemos ver a boca negra da
caverna de Ben Gunn e uma figura esperando de pé nela, apoiada num
mosquete. Era o fidalgo, e acenamos com um lenço e demos três vivas, aos quais
a voz de Silver se juntou tão empolgada quanto a de qualquer um.
Cinco quilômetros adiante, bem dentro da boca da Baía Norte, o que
encontramos senão o Hispaniola, navegando por conta própria? A última maré
cheia o havia levantado e, se tivesse havido muito vento ou um repuxo forte na
maré, como no ancoradouro sul, não o teríamos encontrado mais, ou o
encontraríamos encalhado sem salvação. Do modo como estava, havia pouco
dano além da destruição da vela principal. Outra âncora foi providenciada e
largada em uma braça e meia de água. Todos remamos de volta para a Enseada
do Rum, o ponto mais próximo da casa do tesouro de Ben Gunn. E então Gray,
sozinho, voltou com o escaler para o Hispaniola, onde passaria a noite de
guarda.
Uma subida suave corria da praia até a entrada da caverna. No topo, o
fidalgo nos encontrou. Comigo ele foi cordial e gentil, não falando nada sobre
minha escapada, nem no sentido de reprimenda nem de louvor. Com a saudação
educada de Silver, ele corou um pouco.
– John Silver – disse ele. – O senhor é um prodigioso vilão e um impostor…
um impostor monstruoso, senhor. Foi-me dito que não devo processá-lo. Bem,
então, não irei. Já os mortos, senhor, penderão para sempre em seu pescoço feito
pedras.
– Obrigado por sua gentileza, senhor – retrucou Long John, ainda o
saudando.
– Não ouse me agradecer! – bradou o fidalgo. – É um desvio grosseiro de
meu dever. Fique longe de mim.
E assim todos entramos na caverna. Era um lugar grande e arejado, com uma
pequena fonte e um lago de água pura, ladeado de samambaias. O chão era de
areia. Em frente a uma grande fogueira estava o capitão Smollett e, num canto
distante, apenas vagamente rebrilhando com o lume do fogo, contemplei grandes
pilhas de moedas e quadriláteros feitos de barras de ouro. Aquele era o tesouro
de Flint, que viemos de tão longe à procura e que já havia custado a vida de
dezessete homens do Hispaniola. Quantas mais custara na coleta – quanto
sangue e sofrimento, quantos bons navios haviam afundado nas profundezas,
quantos homens bravios caminharam na prancha de olhos vendados, quantos
tiros de canhão, quanta vergonha e mentiras e crueldade –, talvez nenhum
homem vivo pudesse contar. Ainda assim havia três naquela ilha – Silver, o
velho Morgan e Ben Gunn – que tinham tomado parte nesses crimes e que
desejaram em vão dividir a recompensa.
– Venha cá, Jim – disse o capitão. – Você é um bom garoto a seu modo, Jim,
mas não acho que navegaremos juntos outra vez. Você tem mais sorte que juízo
para o meu gosto. É você, John Silver? O que o traz aqui, homem?
– De volta ao meu dever, senhor – respondeu Silver.
– Ah! – foi tudo o que o capitão disse.
Que ceia eu tive naquela noite, com todos os amigos ao meu redor, e que
refeição foi, com o bode salgado de Ben Gunn, algumas guloseimas e uma
garrafa de vinho envelhecido do Hispaniola. Nunca, tenho certeza, houve
pessoas tão alegres ou felizes. E lá estava Silver, sentado no fundo, quase longe
da luz, mas comendo com gosto, pronto para se pôr à frente sempre que se
pedisse algo e até mesmo se juntando em silêncio a nossas risadas – o mesmo
marinheiro calmo, educado e prestativo da viagem de vinda.
34
E por último
Todos ficamos com uma grande fatia do tesouro e a usamos com sabedoria
ou com tolice, de acordo com nossas naturezas. O capitão Smollett está agora
aposentado dos mares. Gray não apenas guardou seu dinheiro, mas, sendo
subitamente atingido pelo desejo de subir na vida, também estudou sua
profissão. É agora imediato e dono de parte de um belo navio plenamente
equipado. Também se casou e é pai de família. Quanto a Ben Gunn, ele levou
mil libras, que gastou ou perdeu em três semanas, ou, para ser exato, em
dezenove dias, pois já voltara a mendigar no vigésimo. Então lhe deram um
trabalho de caseiro, exatamente o que ele temia na ilha. Está vivo ainda, é muito
benquisto pelos meninos da região, ainda que às vezes debochem dele, e se
tornou um cantor notável na igreja aos domingos e nos dias de santos.
De Silver nunca mais ouvimos falar. Aquele marinheiro formidável de uma
perna só havia afinal desaparecido de minha vida. Mas ouso dizer que ele
encontrou sua negra velha e talvez ainda viva em conforto com ela e Capitão
Flint. É o que se espera, suponho, já que suas chances de conforto no outro
mundo são muito pequenas.
As barras de prata e as armas ainda estão, pelo que sei, onde Flint as
enterrou, e por mim elas certamente ficarão por lá. Nada neste mundo me fará
voltar àquela ilha amaldiçoada, e os piores sonhos que tenho são quando escuto
as ondas batendo na costa ou acordo sobressaltado na cama, com a voz aguda de
Capitão Flint ainda ressoando em meus ouvidos: “Reais de oito! Reais de oito!”.
Notas
Dedicatória
1 Samuel Lloys Osbourne, enteado de Stevenson, que desenhou com seu
padrasto o mapa de uma ilha imaginária que viria a inspirar Ilha do
Tesouro.
Não haveria ecos de Stevenson em Dylan? Borges afirmou, com astúcia, que
cada escritor cria seus precursores e, ao fazê-lo, transforma não apenas nossa
noção do passado, mas também do futuro.8 Cada vez mais, a crítica literária vê
na obra de Stevenson o prenúncio de algum aspecto da modernidade. Jekyll e
Hyde, que se transformou numa expressão na língua inglesa, antecipou
descobertas importantes da psicanálise: a novela traz à luz o que a consciência e
a moral reprimem, e foi interpretada como alegoria da sexualidade proibida
durante o período vitoriano (Freud era o primeiro a reconhecer a própria dívida
com a literatura); seus relatos de viagens são considerados hoje menos guias para
outros aventureiros do que viagens internas e reflexivas; seus escritos sobre o
Pacífico revelam, tal qual os livros de Conrad, os horrores do imperialismo no
fim do século XIX, o que há de vazio na caça ao tesouro e o despertar da loucura.9
Mas nem todos os precursores de Stevenson tiveram a mesma sorte. Muitos
deixaram de ser lidos, como é o caso do escocês Walter Scott, a quem Stevenson
homenageia em algumas ocasiões. Vejamos o que faz sua ilha ser diferente de
tantas outras.
O tesouro da Ilha
Em um perfil de Stevenson publicado na Century Magazine em 1888, Henry
James arriscou: “A Ilha do Tesouro, sem dúvida, se converterá – se já não é, e
assim permanecerá – um clássico a seu modo, graças a essa mistura indescritível
do prodigioso e do humano, de coincidências surpreendentes e de sentimentos
familiares”.10 Numa época de afirmação do romance realista, comprometido
com a representação da vida cotidiana, Stevenson defende as formas arcaicas e o
maravilhoso, associados à ficção romanesca11 – vide o gracejo dirigido ao
“comprador hesitante” que abre o livro. Seu romance, no entanto, vai além,
como sugeriu James, adicionando à fábula uma “densidade de observação”
incomum em obras do gênero. Para Stevenson, o romanesco não era
necessariamente oposto ao realismo; em seus ensaios sobre a arte da ficção, o
termo é usado como sinônimo de aventuras, e estas são, desde Aristóteles, uma
categoria importante para a reflexão sobre a arte da narrativa.12 É preciso dizer
que a produção ensaística de Stevenson, hoje geralmente desconhecida pelos
leitores de suas histórias de aventura, teve papel importante no pensamento sobre
a literatura, às vésperas das transformações que ela sofreria com as vanguardas
do início do século XX. No universo de língua inglesa, o romance não era
considerado uma arte e não havia um campo de discussão sólida como na
França. Sobretudo no pós-guerra, os estudos da ficção ganharam corpo e forma a
partir dos prefácios que James escreveu para uma edição de suas obras
completas.13 Mas pouca gente sabe que James foi profundamente afetado pelo
diálogo com Stevenson.
Henry James também foi um dos mais finos críticos do escritor escocês. Vale
a pena citar um trecho mais longo do ensaio mencionado acima, que é capaz de,
com concisão e sagacidade, jogar luz sobre a singularidade do romance:
1 O título original da novela publicada em 1886 era Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde.
Stevenson suprimiu deliberadamente o artigo the para ressaltar a estranheza da história, mas
algumas edições posteriores o acrescentaram. No Brasil, foi traduzida diversas vezes, geralmente
como O médico e o monstro.
2 A primeira das biografias, The Life of Robert Louis Stevenson, de 1901, foi publicada por um primo
seu, Graham Balfour, apenas alguns anos após a morte de Stevenson.
3 Stevenson, “ My first book – Treasure Island”. The Courier. v. 21, n. 2 (1982): 77–88. O ensaio foi
publicado pela primeira vez em agosto de 1894.
4 Stevenson, “My first book”, cit., p. 84.
5 Ibidem, p. 84.
6 Daniel Balderston, El precursor velado: R. L. Stevenson en la obra de Borges. Trad. Eduardo Paz
Leston. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1982.
7 Palestra proferida em 2017, em tradução minha. Acessível em
<www.nobelprize.org/prizes/literature/2016/dylan/lecture>.
8 Jorge Luis Borges, “Kafka e seus precursores” (1951), Outras inquisições. Trad. Davi Arrigucci Jr.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
9 Ver Penny Fielding, Introdução a The Edinburgh Companion to Robert Louis Stevenson. Org. Penny
Fielding. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2010.
10 Henry James, “Robert Louis Stevenson”, A aventura do estilo: ensaios e correspondência de Henry
James e Robert Louis Stevenson. Org. Marina Bedran. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. p. 238.
11 Stevenson usa o termo romance, traduzido geralmente como “romanesco”. Romance remete a um tipo
de narrativa associada ao maravilhoso, ao inverossímil e ao mundo aristocrático e idealizado, vinda
da tradição francesa e muito popular no século xvii. Já novel é o termo que passou a ser usado na
Inglaterra a partir do século xviii para designar o romance moderno, gênero que surgia ali. Para uma
discussão mais aprofundada sobre o gênero romance, ver o livro de Sandra Vasconcelos Dez lições
sobre o romance. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
12 Alex Thomson, “Stevenson’s Afterlives”, The Edinburgh Companion to Robert Louis Stevenson, cit.,
p. 154.
13 Para uma tradução comentada dos prefácios, ver A arte do romance: antologia de prefácios. Org.
Marcelo Pen. São Paulo: Globo, 2003.
14 Henry James, “Robert Louis Stevenson”, cit., p. 237-8.
15 Alex Thomson, “Stevenson’s Afterlives”, cit., p. 156.
16 Robert P. Irvine, “Romance and Social Class”, The Edinburgh Companion to Robert Louis Stevenson,
cit., p. 30.
17 As leis de reforma de 1832, 1867 e 1884.
18 Robert Louis Stevenson, “A Gossip on Romance”, tradução minha. Publicado pela primeira vez em
1882 na Longman’s Magazine e depois no volume Memories and Portraits (1887). Disponível em:
<https://ebooks.adelaide.edu.au/s/stevenson/robert_louis/s848mp/chapter15.html>.
19 Balderston, El precursor velado, cit., p. 46. Ver também Bertold Brecht, “L’oeil cinématographique de
Stevenson”, Robert Louis Stevenson. Org. Michel Le Bris. Paris: Éditions de L’Herne, 1995.
20 Stevenson, “My first book”, cit., p. 81.
21 Ibidem, p. 81. O mapa original foi enviado juntamente com o manuscrito de A Ilha do Tesouro à
editora inglesa Cassel & Co, que publicou a primeira edição do livro. Para desespero de Stevenson,
o mapa acabou se perdendo. Com a ajuda de seu pai, ele o refez, acrescentando alguns detalhes e
ornamentos. Stevenson, porém, sempre lamentou a perda do mapa original, que havia desenhado
com liberdade e imaginação, enquanto a segunda versão lhe custou muito trabalho, pois precisava
corresponder aos mínimos detalhes da narrativa. Este novo mapa foi impresso na primeira edição do
livro e nas subsequentes.
22 Roslyn Jolly, “Stevenson and the Pacific”, The Edinburgh Companion to Robert Louis Stevenson, cit.,
p. 119.
23 Ibidem, p. 120.
24 Ibidem, p. 123.
25 Para um relato sobre a confusão de Stevenson em relação à vegetação do Caribe, ver a introdução de
John Seelye à edição da Penguin Books de 1999 do romance.
26 Henry James, “Robert Louis Stevenson”, cit., p. 221.
27 “Ce splendide et tragique fragmente: Herminston, le juge pendeur”, Une amitié littéraire: Henry
James – Robert Louis Stevenson. Org. Michel Le Bris. Paris: Éditions Payot & Rivages, 1994. p.
371.
Sobre as ilustrações desta edição
Quando recebi o convite para ilustrar A Ilha do Tesouro, senti uma mescla de
fascínio com inquietação. Talvez também algum desespero, pois nunca tinha
ilustrado dentro de uma temática infantojuvenil. Mas a ideia de fazer algo fora
da minha zona de conforto, como faz Jim Hawkins tantas vezes, me agradou.
Assim que comecei a ler a obra para ilustrá-la, vieram-me memórias
distantes. Compreendi que as narrativas geradas dentro da Ilha Esqueleto se
espalharam pela cultura pop, e por consequência pelo meu imaginário das
histórias de pirata.
A maneira como Jim reage às situações que encontra durante sua jornada me
parece bastante real, um garoto que se mostra emotivo. O mesmo teria que
acontecer com meu trabalho, pois este era um projeto com liberdade expressiva.
Demorei um tanto para entender que tipo de abordagem eu queria para as
ilustrações, para ter esse efeito mais livre. Comecei ilustrando digitalmente, mas
depois percebi que o processo não estava sendo prazeroso como deveria ser.
Depois de um tempo, acabei optando pela técnica de pintura e mídia tradicional,
pelas possibilidades de experimentação plástica que o material me permitiria.
Ao pensar as imagens, tentei ao máximo fugir do literal e ir para um
caminho mais independente e aventuresco, que buscasse uma camada a mais de
interpretação. No fim, o que me agrada no desenho é chegar em novos resultados
imagéticos, um imaginário mais concreto, como o que criei aqui.
PAULA PUIUPO é animadora, quadrinista, ilustradora e tatuadora. Sua
produção pessoal tem foco no surreal e experimentalismo; em sentimentos de
não pertencimento.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
ISBN 978-65-80210-06-0
Antofágica
prefeitura@antofagica.com.br
facebook.com/antofagica
instagram.com/antofagica
Rio de Janeiro – RJ
* Ahoy! Os tipógrafos de Antofágica agradecem a Raphaël Bastide e a Velvetyne Type Foundry pela fonte
Avara, usada com sabedoria nas aberturas de capítulo deste livro.
EI, MARUJO, TEM CORAGEM PARA MAIS UMA AVENTURA?
RUMO A ANTOFÁGICA!
Li este livro inteiro, até a última linha, e tudo o que eu ganhei foi este colofón estúpido dizendo
que o livro foi composto em Walbaum e Avara* e impresso em papel Pólen 80g pela Ipsis
Gráfica em outubro de 2019.