Você está na página 1de 1

resenha

Humor é coisa séria


Vinicius de Figueiredo

U
m meio promissor de apresentar o novo Nessa chave, F. Hutcheson (1694-1747) estende os
livro de Márcio Suzuki é atentar ao sub- prós da mediania para além do social; no âmbito
título: “Jogo, humor e arte de viver na fi- psicológico-cognitivo, a mente que se mantém
losofia do século XVIII”. Como esses temas se em um estado intermediário contorna todo tipo
articulam no século do Esclarecimento? de uneasiness. A mediania traz benefícios não só
Comecemos pela “arte de viver” – uma ideia para o indivíduo, como para o conjunto. Foi ten-
antiga, conforme a qual a filosofia é uma arte pa- do isso em vista que Hutcheson concebeu nossa
ra atingirmos a tranquilidade da alma. Se a filo- felicidade como resultado do cálculo entre bens
sofia representou uma alternativa à religião, foi e malefícios, cujo êxito requer a administração
por nos assegurar contra os males deste mundo. das expectativas e da satisfação individual que
Marco Aurélio dizia que participamos de um todo leve em conta o bem comum. Se a ars vivendi
ordenado, o “cosmos”, cujas razões devemos ter requer autocontrole, é menos a título de usura
A forma e o sentimento em mente para desfrutar da vida com serenida- que de equanimidade.
do mundo – Jogo, humor de, haja o que houver. A “natureza”, vista como Conversação, mediania, acumulação e bem
e arte de viver na filosofia
do século XVIII
organismo, deveria guiar a vida prática. Essa “ar- comum: essas ideias não seriam expressões do
Márcio Suzuki te de viver” irá reaparecer no século XVIII, só capitalismo em formação, especialmente no Reino
Editora 34 / FAPESP que com outra feição. Agora, a filosofia será útil Unido do século XVIII? A reconstrução que Su-
RS 63,00 | 560 páginas aos homens, desde que os distraia de si mesmos. zuki faz dos temas que vão de Shaftesbury (1671-
Com acuidade, Suzuki mostra que o “divertimen- 1713) a A. Smith (1723-1790), passando por Hume,
to”, tematizado por Pascal como fuga de nossa Hutcheson e Kames (1696-1782), levanta pistas
miséria, reaparece de modo atenuado, mas cen- nessa direção. Segui-las nos levaria à órbita em
tral, no pensamento moral britânico setecentista torno do clássico de Weber sobre o espírito do
(o protagonista do livro). O “jogo” do subtítulo capitalismo, com a diferença de que, nos autores
torna-se metáfora da atividade filosófica, conce- examinados aqui, a ascese intramundana já foi
bida como elemento lúdico que a emancipa de atenuada a ponto de incorporar, no ideal do gen-
qualquer intuito salvífico como o da religião. A tleman, humor e crítica. O Deus transcendente
filosofia evita o tédio, é útil socialmente e apraz. dos reformados dá vez ao moral sense que guia
Torna-se entretenimento. nossas atitudes e admite o refinamento.
Embora possamos entreter-nos a sós, é mais O que Kant, cuja presença atravessa todo o
comum fazê-lo em grupo. Pensar, então, solicita livro, tem que ver com isso, logo ele que fomos
o convívio social e dele toma sua medida. Exa- habituados a opor a Hume? Seguindo seus cursos
minando D. Hume (1711-1776), Suzuki explica de antropologia, Suzuki reconstrói a apropriação
por que o pensamento britânico setecentista fez genuína que Kant fez dos britânicos, dos quais foi
tanto ensaísmo. É que o ensaio toma por modelo um leitor arguto e penetrante. E fornece, assim,
a conversação. Já no plano de sua forma exposi- uma tese original e instigante quanto à gênese do
tiva, pensar consiste no diálogo com os outros. juízo estético e do “livre jogo” entre as faculdades
Outra implicação da ancoragem social da fi- da mente que, na Crítica do juízo, caracteriza a
losofia é o elogio à mediania. O diálogo requer eminência da atividade filosófica. Mas logo nis-
que os interlocutores possuam afinidades e in- so Kant teria sido tributário dos “empiristas”?
teresses comuns que vão além da promoção de Quem aprendeu filosofia apoiando-se em oposi-
sua mútua segurança (Hobbes). Imagine alguém ções rígidas, especialmente se for um kantiano,
que, admitido numa mesa de pôquer, perde uma não deve ler este livro. A não ser que saiba rir de
mão após outra, sem que isso o aborreça – ele tem si mesmo. O que não seria pouco; como ensina
dinheiro de sobra. Fácil adivinhar o que sucede: Suzuki, o humor é coisa séria.
a mesa desanda, pois o jogo, assim como o bom
eduardo cesar

convívio, não admite assimetrias excessivas. Sua


Vinicius de Figueiredo é professor do Departamento de Filosofia da
presença inviabilizaria não apenas a conversa- Universidade Federal do Paraná e pesquisador do Conselho Nacional
ção, como também o comércio e o bem comum. de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

PESQUISA FAPESP 230 | 93

Você também pode gostar