Você está na página 1de 7

MALDIÇÃO HEREDITÁRIA: UMA ANÁLISE TEOLÓGICA

Pr. Luciano Peterlevitz

INTRODUÇÃO

Não são poucos os grupos evangélicos que creem na chamada “maldição hereditária”. A ideia é a
seguinte: os pais têm o poder de amaldiçoar os filhos, sejam através de suas palavras ou de suas atitudes
pecaminosas, e os pecados dos pais são inevitavelmente herdados pelos filhos. Associada a esta ideia,
está a crença na quebra de maldições: é preciso repreender o “espírito da prostituição”, o “espírito do
adultério”, o “espírito homicida”, o “espírito da pobreza material”, etc. Para que as maldições de nossos
ancestrais sejam quebradas, é preciso repreendê-las com palavras de fé.

O objetivo do presente estudo é analisar o conceito de maldição hereditária, tecendo algumas


observações a respeito das passagens bíblicas normalmente utilizadas para fundamentar essa doutrina.
Também observaremos algumas passagens bíblicas que nitidamente contradizem tal conceito. Não
almejamos, com isso, despeitar as igrejas evangélicas que creem na maldição hereditária.
Reconhecemos que nossas diferenças teológicas não podem impedir o respeito mútuo e o amor
fraternal.

1. O CONCEITO DE “MALDIÇÃO HEREDITÁRIA” NO CENÁRIO EVANGÉLICO

No cenário teológico brasileiro, o conceito de maldição hereditária foi amplamente popularizado pelo
livro Bênção e Maldição, de Jorge Linhares[1]. Há outros livros e materiais, mas nos centraremos em
Benção e Maldição, por ter sido escrito por um dos principais expoentes dessa doutrina.

Segundo Jorge Linhares, a maldição “é a autorização dada ao diabo por alguém que exerce autoridade
sobre outrem, para causar dano à vida do amaldiçoado… A maldição é a prova mais contundente do
poder que têm as palavras.”[2]

As palavras tem o poder de determinar o comportamento de outras pessoas. Linhares relata que um
rapaz se tornou homossexual porque seu pai o amaldiçoou; a maldição foi chamar o filho de
“mulherzinha”.[3]

Supostamente existe uma “cadeia de maldição” transmitida hereditariamente, e que precisa ser
quebrada num ritual de libertação.

Todo o argumento de Linhares é construído a partir de experiências, seguindo o método indutivo, mas
elaborado pela perigosa lógica do “depois disso, logo, por causa disso”. Esse tipo de argumentação é
muito comum, no meio popular e religioso.[4] Exemplo: se tomei café, e logo depois sofro uma dor de
cabeça, a causa da dor é o café; se passo diante de um gato preto, e logo depois tropeço, a causa do
tropeço foi a má sorte produzida pelo felino; se passo debaixo de uma escada, e sofro um acidente, a
causa do acidente foi o passar debaixo da escada; se fico doente, e não estou indo à igreja, a causa da
doença é minha ausência aos cultos. Mas, muitos e muitos passam diante de um gato preto e debaixo
de uma escada, e nada lhes acontece; muitos são completamente displicentes em relação às atividades
da igreja, e não ficam doentes. Lembro-me aqui da fábula relatada por Rubens Alves: um agricultor
achava que o sol nasce porque o galo canta, afinal, todos os dias depois do canto do galo, o sol nasce;
mas um dia o galo morreu, e o sol continuou a nascer.

1
É possível que um rapaz se torne homossexual porque seu pai o chamava de “mulherzinha”. É possível
que um adulto seja preguiçoso porque, quando criança, seus pais o chamavam de vagabundo. Mas isso
não tem nada a ver com maldição. É o efeito natural que as palavras podem produzir. Além disto, é
preciso considerar que muitas crianças sofrem de violência verbal quando crianças (e até mesmo
violência física), mas quando adultas, tornam-se pessoas de bom comportamento, trabalhadoras e
honestas.

Jorge Linhares crê que a hereditariedade espiritual é o que determina comportamentos. Por exemplo,
o alcoolismo: “a história do filho repete a do pai; o avô era alcoólatra e o bisavô também.” [5] No
entanto, há muitas pessoas que não são alcoólatras, ainda que seus pais sejam; e há tantos alcoólatras
cujos pais nunca se embriagaram.

Outro problema é atribuir às palavras certo poder mágico. Concordo com o autor, quando diz que “As
palavras têm o poder de encorajar ou abater as pessoas”[6]. O problema é afirmar que “nossas palavras
podem alimentar ou anular a ação de Satanás”[7]. Linhares diz o seguinte: “Prognósticos negativos são
responsáveis por desvios sensíveis no curso da vida de muitas pessoas, levando-as a viver
completamente fora dos propósitos de Deus.”[8] Por outro lado: “Palavras positivas, amorosas, de fé,
de confiança em Deus, liberam o poder divino para desfazer a opressão, pois Jesus veio para ‘destruir
as obras do diabo (1Jo 3.8).”[9] Encontramos aqui a crença na “confissão positiva”. Mas o próprio autor
cita 1Jo 3.8, onde se diz que Jesus destruiu as “obras do diabo”. Portanto, não são as palavras positivas
que destroem as “obras do diabo”, mas sim o Filho de Deus.

O conceito de “confissão positiva” também pode ser observado nessa experiência narrada por
Linhares: “Na frente de minha casa havia nascido um pé de abóbora entre pedras de construção. Então
declarei com certo desdém: ‘Eu te abençôo, ó pé de abóbora, e vamos ver o que acontece’. Meses
depois havia abóboras em profusão, e de bom tamanho. Conclusão: ‘funciona até com abóboras’.”[10].
Isaltino Gomes responde: “Ora, se assim é, estas pessoas com palavras mágicas podem eliminar a fome
do país.”[11] Bastariam algumas palavras, e todas as crises do nosso país seriam resolvidas.

Jorge Linhares também crê que as maldições precisam ser quebradas. Ele relata que comprou um carro
e atropelou três animais em cada uma das viagens que realizou. Na primeira viagem, atropelou um
cachorro, noutra um coelho e na terceira um pássaro. Então o Espírito Santo lhe disse o seguinte: “Você
já repreendeu as maldições que porventura possam estar sobre esse carro? Não sabe que pessoas
amaldiçoadas e infiéis participaram de seu projeto e fabricação? Não percebeu que em tantos anos,
desde que você aprendeu sobre essa questão de bênção e maldição, você não costumava atropelar
animais; e nem com outro carro? Esse é o primeiro”.[12]

No meu caso, já tive vários carros, não quebrei nenhuma maldição sobre eles, e somente uma vez
acidentalmente atropelei um cachorro. Para evitar acidentes, é bem mais recomendável dirigir com
prudência e periodicamente fazer a manutenção do carro do que quebrar maldições. Se não
procedermos com prudência, os acidentes ocorrerão, com ou sem a quebra de maldições.

Até aqui, analisamos o conceito de maldição hereditária, e já apontamos algumas de suas deficiências.
Não usamos as Escrituras, ainda. A partir de um pouco de raciocínio lógico, pudemos notar as falhas
desse conceito.

Mas, afinal, a doutrina da maldição hereditária pode ser solidamente respaldada nas Escrituras?
Vejamos.

2
2. A MALDIÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO

Gênesis 9.25-26:

disse: “Maldito seja Canaã! Escravo de escravos será para os seus irmãos”.

Disse ainda: “Bendito seja o Senhor, o Deus de Sem! Seja Canaã seu escravo.

Gênesis 9.25-27 narra a maldição de Noé sobre seu filho Cam. Então, surge uma questão: os pais tem
poder para amaldiçoar os filhos?

Três observações importantes a respeito dessa passagem bíblica:

1. Encontramos aqui o conceito fortemente presente no Antigo Testamento: a solidariedade


corporativa.[13] Todos aqueles que se originaram de um ancestral comum recebiam os méritos
(bênção) e os deméritos (maldição) desse ancestral comum. Cam não honrou seu pai (veja Êx
20.12), por isso seus descendentes (canaanitas) foram amaldiçoados.
2. Para a interpretação desse texto e de todos os demais textos do Antigo Testamento que falam
sobre maldição, é preciso considerá-los como parte de um estágio específico da revelação de
Deus no contexto da história da salvação. A história da salvação e o processo da revelação
divina atingiram o seu ápice com Cristo (Hb 1.1). Portanto, não é o Antigo Testamento que
interpreta o Novo Testamento, mas é o Novo Testamento que interpreta o Antigo Testamento.
Além disto, não temos nenhuma passagem do Novo Testamento (nem do Antigo Testamento!)
que autoriza os pais a amaldiçoarem os filhos. Ao que parece, a maldição de Noé sobre Cam é
um caso único na Bíblia. De acordo com uma das regras fundamentais da hermenêutica
(interpretação bíblica), não podemos elaborar uma doutrina sob um único texto bíblico.
3. Mesmo na antiga aliança, os canaanitas amaldiçoados por Noé poderiam ser livres da maldição.
Lembremos que Raabe era canaanita! Através dela, Deus trouxe o Salvador ao mundo (Mt 1.5).
Raabe não precisou passar por um ritual de libertação para ser salva. Ela simplesmente creu no
Deus de Israel, e sua fé foi suficiente para que ela fosse completamente livre da maldição de
Noé.

Êxodo 20.5-6:

Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso,
que castigo os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles que me
desprezam, mas trato com bondade até mil gerações aos que me amam e guardam os meus
mandamentos.

Esse é um texto corriqueiramente usado para fundamentar a maldição hereditária. No entanto, é preciso
compreendê-lo adequadamente. O v.5 precisa ser compreendido à luz do v.6. No v.5, o texto bíblico
afirma que Deus castiga “os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração”. Mas é
preciso considerar também o v.6: “trato com bondade até mil gerações aos que me amam e guardam
os meus mandamentos”. Os proponentes da maldição hereditária creem que Deus pode abençoar os
filhos dos pais crentes por mil gerações? Certamente não. É claro que não estou dizendo que Deus não
abençoa os filhos daqueles que temem ao Senhor. Mas ninguém ousaria dizer que, pelo fato de eu ser
crente fiel, as próximas mil gerações de minha família serão abençoadas.

É preciso observar que o texto apresenta uma linguagem figurada. No v.6, lemos uma hipérbole, uma
figura que expressa exagero. O sentido do v.6 é esse: Deus tem grande alegria em abençoar. O v.5

3
afirma que Deus castiga os pecados dos pais até a “terceira geração”. Comentando a expressão do v.5
(“até a terceira geração”), Isaltino Gomes afirma: “É um idiomatismo hebraico para designar algo
intenso e longo e não algo que se perpetua, de pai para filho”. [14] Em linguagem figurada, os v.5-6
dizem o seguinte: Deus pune até a “terceira geração”, mas manifesta seu amor até “mil gerações”. O
sentido é esse: o prazer de Deus não é punir, mas sim manifestar sua bondade. Portanto, o texto nada
fala de maldição hereditária.

Deuteronômio 11.26-28:

Prestem atenção! Hoje estou pondo diante de vocês a bênção e a maldição. Vocês terão bênção, se
obedecerem aos mandamentos do Senhor, o seu Deus, que hoje lhes estou dando; mas terão maldição,
se desobedecerem aos mandamentos do Senhor, o seu Deus, e se afastarem do caminho que hoje lhes
ordeno, para seguir deuses desconhecidos. (NVI)

O Senhor colocou diante de Israel a bênção e a maldição. Bênção, se Israel obedece à lei; maldição,
caso desobedece.

Um ponto importante é que as bênçãos e maldições no livro de Deuteronômio estão no contexto da


aliança mosaica, que pronunciava diretrizes voltadas especificamente para o Israel que habitaria na
Terra Prometida. É o que lemos em Dt 11.31-32:

Vocês estão a ponto de atravessar o Jordão e de tomar posse da terra que o Senhor, o seu Deus, lhes
está dando. Quando vocês a tiverem conquistado e estiverem vivendo ali, tenham o cuidado de
obedecer a todos os decretos e ordenanças que hoje estou dando a vocês. (NVI)

Outro trecho de Deuteronômio, o capítulo 28, declara que a maldição viria sobre Israel na forma de
exílios (v.36, 49-57, 64-65), escravidão (v.32), pestes e enfermidades (v.21-22), secas (v.23-24),
carestia (v.38). A razão da maldição é muito bem explicada no v.45: “Todas essas maldições cairão
sobre vocês. Elas o perseguirão e o alcançarão até que sejam destruídos, porque não obedeceram ao
Senhor, ao seu Deus, nem guardaram os mandamentos e decretos que ele lhes deu.” (NVI).

Tais maldições precisam ser compreendidas no contexto da antiga aliança mosaica. Israel era a nação
com quem Deus havia feito uma aliança, e, através dessa nação eleita, Javé iria trazer ao mundo o
Messias salvador. No contexto da história da salvação, Deus deu a terra de Canaã como herança para
Israel, pois seria ali naquela terra que o Messias haveria de nascer. E, enquanto usufruísse da terra
prometida, e como nação teocrática (dirigida pelas leis de Deus), Israel deveria obedecer todas as
cláusulas apresentadas na aliança mosaica (incluindo as leis cerimoniais, como os sacrifícios e as festas
religiosas).

Entretanto, Cristo estabeleceu a nova aliança, e iniciou um novo estágio dentro da história da salvação.
Agora, Deus não tem mais uma aliança com o Israel étnico, mas sim, com a igreja, o novo Israel de
Deus. Assim sendo, as maldições de Deuteronômio 28 não são aplicadas à igreja, já que não moramos
na terra de Israel, e a terra prometida do Antigo Testamento anunciava tipologicamente os novos céus
e a nova terra, conforme lemos em Hebreus 3 – 4. Na nova aliança, Deus não traz secas ou fomes sobre
nações, na forma de maldição. Imagine se, nos dias de hoje, Deus amaldiçoasse as nações rebeldes
(incluindo as grandes potências europeias que hoje são pós-cristãs) com exílios, secas ou pestes!

Portanto, as maldições de Deuteronômio 28 foram dirigidas especificamente para o Israel teocrático,


e, na nova aliança, não se aplicam às nações ou a indivíduos.

4
O ponto importante a ser notado é que, em caso de desobediência, as maldições viriam sobre Israel,
fossem ou não pronunciadas. É verdade que elas seriam pronunciadas (Dt 11.29), mas viriam sobre
Israel, mesmo se não fossem ditas. Quer dizer, em última instância, a maldição não era resultado de
palavras mágicas proferidas, mas sim da desobediência à torah (“lei).

A responsabilidade individual em Ezequiel 18

Ezequiel 18.1-4 apresenta uma afirmação, feita pelo próprio Deus, que frontalmente desafia o conceito
de maldição hereditária:

Esta palavra do Senhor veio a mim: “Que é que vocês querem dizer quando citam este provérbio sobre
Israel: ” ‘Os pais comem uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotam’? “Juro pela minha vida,
palavra do Soberano Senhor, que vocês não citarão mais esse provérbio em Israel. Pois todos me
pertencem. Tanto o pai como o filho me pertencem. Aquele que pecar é que morrerá. (NVI)

O v.2 apresenta um provérbio: “’Os pais comem uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotam’?”.
Deus está perguntando se esse provérbio é verdadeiro. A questão é: os filhos pagam pelos pecados dos
pais? Nos v.3 e 4, Deus responde com um veemente não. O Senhor ordena para que esse provérbio
não fosse mais citado, pois cada um precisa assumir a responsabilidade pelo pecado: “Aquele que
pecar é que morrerá”. (v.4).

Nos versos seguintes, o texto diz que a justiça do pai e a bênção que viria sobre ele não seriam
transmitidas aos filhos (v.10-13), nem a injustiça do pai e o juízo que viriam sobre ele seriam
transmitidos aos filhos (v.14-18). No v.20, o Senhor declara: “Aquele que pecar é que morrerá. O filho
não levará a culpa do pai, nem o pai levará a culpa do filho. A justiça do justo lhe será creditada, e
a impiedade do ímpio lhe será cobrada.” (NVI – ênfase acrescentada).

Concordo com Isaltino Gomes: “Colocar a culpa de nossos atos errados e de nossas escolhas mal feitas
em palavras ditas por alguém é cair na irresponsabilidade moral. Tomamos decisões, somos
responsáveis pelo que fazemos. A culpa é nossa. Quando acertamos, o mérito é nosso.”[15]

3. A MALDIÇÃO NO NOVO TESTAMENTO

Antes de lermos os textos do Novo Testamento que se referem à maldição, precisamos entender que a
obra de Cristo decretou o fim do poder de Satanás. É o que lemos em Mateus 12.29: “Ou como alguém
pode entrar na casa do homem forte e levar dali seus bens, sem antes amarrá-lo? Só então poderá
roubar a casa dele.” (NVI)

Jesus estava sendo acusado pelos fariseus de expulsar os demônios pelo poder de Belzebu (chefe dos
demônios). Respondendo a essa acusação, ele afirma que, na verdade, expulsava os demônios pelo
poder do Espírito de Deus (v.28). Então o contexto de Mateus 12.29 nos permite afirmar que o diabo
é o “homem forte” (“valente”) que foi amarrado por Cristo, e os “bens” saqueados por Cristo são as
vidas resgatadas por Ele. Ou seja, não precisamos amarrar o diabo. Ele já está amarrado por Cristo.

Mas o conceito de maldição hereditária crê que os crentes tem o poder de amarrar o diabo. Marilyn
Hickey, ao dizer que as maldições precisam ser quebradas, afirma:

“O diabo é o valente. O que temos de fazer a ele? Amarrá-lo. E depois? Nós lhe tomamos a casa – ou
aquela geração! Nós dizemos: Ei, diabo, espere um minuto! A minha geração não pertence a você

5
porque eu o amarrei em Nome de Jesus, e você não vai fazer isso! É isso que fazemos: Rompemos a
maldição em Nome de Jesus.”

Vamos amarrar o diabo, se Jesus já o amarrou? A obra de Cristo não foi suficiente?

Na verdade, a obra de Cristo destruiu as obras do diabo (1Jo 3.8), e não é necessária nenhuma quebra
de maldição. Vejamos alguns textos do Novo Testamento que fundamentam essa afirmação.

Evangelho de João 8.32:

e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. (RA).

No v.31, Jesus disse: “Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sois meus discípulos”.
Quer dizer, a “verdade” mencionada no v.32 é a “minha palavra” mencionada no v.31. A verdade é a
Palavra de Deus. Além disto, no Evangelho de João, a “verdade” é o próprio Cristo (Jo 14.6). Cristo é
a própria “Palavra” encarnada, o “Verbo” de Deus (João 1.1, 14). Ele é a expressão máxima da
revelação de Deus. Então, o que Jesus está afirmando em João 8.32 é que aqueles que conhecem a
Palavra de Deus (Cristo e Sua Palavra) serão libertos: “e conhecereis a verdade…”. O verbo
“conhecer” é mais do que um conhecimento intelectual (embora inclua isto); trata-se de um
conhecimento resultado de uma relação pessoal com Deus (Jo 17.3). Conhecer a Deus significa se
relacionar pessoalmente com Ele. Então, o que liberta? Um ritual de libertação? Não! É preciso
observar as duas frases. A primeira é: “e conhecereis a verdade”. A segunda é: “e a verdade vos
libertará.” Quer dizer, para ser liberto, é preciso conhecer a Cristo e Sua Palavra (primeira frase), e é
o próprio Cristo e Sua palavra que trarão libertação (segunda frase).

Gálatas 3.13:

Cristo nos redimiu da maldição da lei quando se tornou maldição em nosso lugar, pois está escrito:
“Maldito todo aquele que for pendurado num madeiro”. (NVI).

Paulo diz que aqueles que tentam se salvar pela prática da lei (mandamentos) “estão debaixo de
maldição” (v.10). Na verdade, ninguém consegue observar todos os preceitos da lei, e, sendo assim,
todos são amaldiçoados por ela. Pois a lei revela o pecado (Rm 7.7). A lei declara que todos nós somos
pecadores e merecedores do juízo eterno. Não pode haver pior maldição do que a maldição da lei! No
entanto, Cristo se fez maldição em nosso lugar. Ele assumiu o pecado julgado pela lei. E agora somos
abençoados por Deus “em Jesus Cristo” (v.14; veja Ef 1.3). Portanto, a libertação da maldição é obra
exclusiva de Cristo.

Nota-se, portanto, que a maldição nada tem a ver com palavras que foram proferidas pelos pais aos
filhos. Para o apóstolo Paulo, a maldição é a vida escravizada pelo jugo da lei. A pessoa maldita é
aquela que tenta se salvar pela obediência à lei. Como ela jamais conseguirá obedecer todos os
regulamentos da lei, inevitavelmente ela está condenada.

1João 4.4:

Filhinhos, vocês são de Deus e os venceram, porque aquele que está em vocês é maior do que aquele
que está no mundo. (NVI)

O diabo é “aquele que está no mundo”, e Cristo é aquele “que está em vocês” (os salvos). Pelo poder
de Cristo, os crentes já venceram o maligno. Somos “guardados em Cristo Jesus” (Jd 1).

6
Portanto, Satanás não tem poder para causar dano nenhum aos salvos (veja Cl 2.15; Hb 2.14; 1Jo 5.18).
Realmente não pode haver nenhuma maldição para aqueles que estão em Cristo Jesus.

4. AVALIAÇÃO DO CONCEITO DE MALDIÇÃO HEREDITÁRIA

Transcrevemos uma recomendação de Isaltino Gomes: “Utilizar as passagens do Antigo Testamento


onde Deus amaldiçoa Israel por quebrar o pacto e transportá-las para nossos dias, é ignorar o ensino
neotestamentário.”[16] Não encontramos uma única passagem do Novo Testamento que ensina a
maldição hereditária. E mesmo as passagens do Antigo Testamento, quando interpretadas
corretamente, não fundamentam essa doutrina.

Em uma avalição final, o que podemos dizer a respeito da maldição hereditária?

• O conceito de maldição hereditária condiciona, erroneamente, a ação do diabo às palavras

A ação de Satanás não precisa ser autorizada pelas palavras. O diabo age, independente de nossas
palavras. O mundo jaz no maligno. (1Jo 5.19; Ef 4.27).

• O conceito de maldição hereditária diminui o poder da obra de Cristo

De acordo com o Novo Testamento, toda a humanidade está debaixo da maldição do pecado. Não é
necessário receber uma maldição dos ancestrais para estar amaldiçoado. Todos estão amaldiçoados,
indistintamente. Uma pessoa não se torna maldita porque recebeu palavras de maldição dos pais. Toda
pessoa já é maldita, por natureza. Teologicamente a maldição é resultado do pecado (Gn 3).
Considerando que todos são pecadores (Sl 51.5; Rm 3.23), segue-se logicamente que todo ser humano
nasce amaldiçoado. Então, existe sim maldição hereditária, mas só aquela que herdamos de Adão (veja
Rm 5.12).

Por outro lado, a maldição foi totalmente vencida pela obra consumada de Cristo.

A maldição atingiu a raça humana a partir da Queda (Gn 3), e ainda é uma triste realidade no mundo
atual. No entanto, chegará o dia em que a maldição será completamente vencida: “Já não haverá
maldição nenhuma” (Ap 22.3).

Conclusão

Não existe nenhuma passagem bíblica que evidencia a maldição hereditária. A maldição que existe é
aquela de Gênesis 3, resultante do pecado de Adão e Eva, que afetou drasticamente toda a humanidade.
Mas a obra de Cristo é suficientemente poderosa para nos livrar de toda maldição. Não é necessária
nenhuma quebra de maldição. Basta crer em Cristo.

Fonte:

Bacharel em Teologia (FTBC e FATEO/UMESP); Mestre e Doutor em Ciências da Religião, na área


de Literatura e Religião no Mundo Bíblico, pela Universidade Metodista de São Paulo. Professor da
Teológica Batista de Campinas, onde leciona Hebraico, Antigo Testamento, Exegese do Antigo
Testamento e Hermenêutica Bíblica. Pastor na Igreja Batista Bela Vista, em Nova Odessa/SP.

Você também pode gostar