Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Herberto Sales
Sumário
Apresentação
“Amarelo da infância,
Penico da cagância”!
Não havia mezinha que botasse ele pra frente, nem xarope nem elixir de
botica, por mais que tomasse. Era aquela cor de opilado: amarelão, nome também da
doença.
De lobisomem Dona Aninha só sabia o que ouvira contar nos tempos de
menina, pois ver não vira nenhum, nem ninguém na Passagem tinha visto, pelo
menos até aquela data.
Assim, ela se lembrava do que em outros tempos ouvira, e que era o
seguinte: o encantado corria sete freguesias, e das sete os cemitérios delas, em igual
número, quando encantado estava, de noite. Antes do amanhecer retornava ao ponto
de partida, onde, de novo, virava gente.
E disto se lembrando, Dona Aninha duvidava do triste fado do filho, que não
haveria de se cumprir, pela razão que ela encontrava, e que outra não era senão
esta, fundamental: não havia sete freguesias, nem sete cemitérios havia, em muitas
léguas em volta da Passagem.
E com isto se consolava, calculando distância e tempo, mentalmente,
convencida do impraticável da andança, que era muita para o horário estipulado.
Uma noite, o marido estava na fazenda, Dona Aninha acordou com a livusia
de uns cachorros latindo lá fora, na rua. Deviam estar brigando, os cachorros, ou
perseguindo alguém, ou algum bicho, quem sabe? Talvez algum cavalo, ou burro, ou
jumento; qualquer um deles podia ser, não era de admirar: animal solto, fugido do
pasto, andando pela rua, os cachorros latindo atrás dele.
Mas de repente sentiu um baque no coração, bem dentro do peito dela, de
mãe: o menino tinha completado 13 anos naquele dia. Lembrou-se do presente que
lhe dera a ele, de manhã: uma camisa de tricoline, que ela mesma costurara, com o
bolsinho de um lado, como ele pedira.
Acendeu imediatamente o candeeiro.
E, pé ante pé, para não acordar as filhas, foi espiar o menino no quarto. Aí,
sentiu outro baque no coração, mais forte que o primeiro: a cama do menino estava
vazia, e aberta a janela do quarto dele, que dava para o quintal.
E já ia voltar, ou ficar, não sabia mesmo o que ia fazer, quando viu o menino
entrar pela janela, com um ar afrontado.
— Mãe... — disse ele, baixando a cabeça.
— Onde é que você estava, meu filho?
— Fui no quintal, mãe. Estava com dor de barriga.
E, nada mais dizendo, o menino fechou a janela e deitou-se.
Dona Aninha saiu do quarto, sem nada mais dizer, também. Pegou o terço e
começou a rezar, pedindo forças a Deus, que da blasfêmia já pedira perdão, bem em
antes, por haver invocado a ajuda do Diabo para ter o filho que ela queria, e que ter,
tivera.
No terceiro padre-nosso, os galos já estavam cantando. Era a manhã que
vinha vindo, de sábado, primeiro da Quaresma. Na outra sexta-feira, de noite, ela ia
vigiar, de conformidade com o aviso da adivinha, de que na véspera se esquecera,
não sabia como.
E, até lá, foi como de coisa que não tivesse havido nada: nem livusia de
cachorro latindo, na forma pela qual ela ouvira, nem o filho entrando pela janela, de
ar afrontado, para de novo se deitar, com a desculpa de ter ido no quintal.
Guardou consigo o segredo no coração, bem dentro dele, como devia e
competia. Nada disse ao marido, não por ele estar ausente, na fazenda, mas porque
dizer não ia, nunca, mesmo quando ele voltasse. Nem às filhas disse nada, pois o
segredo era dela, somente dela e do filho.
Na noite da outra sexta-feira, a seguinte, o marido ainda estava na fazenda;
Dona Aninha pegou um espeto de pau, que fez com uma faca, bem fininho, e
escondeu debaixo do xale. Quando as filhas pegaram no sono, ela saiu andando na
ponta dos pés, pelo corredor, passou pela porta do quarto do filho, que lá dentro
estava, e assim andando foi até o quintal, onde se escondeu, conforme tinha
premeditado: atrás de uns barris, bem perto do lugar onde o jumento se espojara de
manhã, depois do serviço de carregamento d'água.
A noite era de lua.
Ali ela ficou, no escondido. Até que ouviu dar as doze badaladas da meia-
noite, no relógio da sala de jantar, que por causa do silêncio podiam ser escutadas no
quintal, como de fato foram, pela pessoa dela, naquela justa hora.
Segurou o espeto de pau e ficou esperando.
Então, na claridade da lua, viu o vulto do filho sair pela janela do quarto e vir
andando, meio agachado, até o lugar onde o jumento se espojara, bem perto dos
barris, atrás dos quais ela estava.
O filho chegou e tirou a roupa; e quando ela pensou que ele ia ficar assim
nu, como tinha nascido, ele vestiu de novo a roupa, pelo avesso. Depois, se deitou no
chão, bem na espojadura do jumento, e começou a se espojar, igualzinho ao dito
animal, sem tirar nem pôr: rolando pra cá e pra lá, na areia.
E aconteceu o seguinte:
De repente, com um frio correndo pela espinha lá dela, o filho ela não mais
viu naquele lugar, mas um bicho, menor que um bezerro e maior que um cachorro, os
dois misturados no feitio, animal esquisito e orelhudo. Um sopro ela ouviu, que nem
de fole, mas sendo de bicho resfolegando, continuado e feroz.
Lembrou-se das palavras da adivinha Honorina:
— Homem-bicho, bicho-homem, lobisomem.
E assim, no assopro, saiu o filho andando, de quatro, em bicho já
transformado. Ia indo no rumo da cerca, que em conserto estava, no lugar onde havia
uns mourões caídos, dando passagem para o areão.
— Sebastião, meu filho! — gritou Dona Aninha, antes que o bicho, na força
do encanto, desaparecesse da sua vista.
Assim chamado, contra ela se voltou a feroz coisa, que filho não era naquele
instante, mas homem-bicho, bicho-homem, lobisomem, cumprindo o fado.
E quando para ela os dentes arreganhou, para atacá-la, Dona Aninha fez o
que lhe cumpria, na forma pela qual estava determinado. Cara a cara com a besta-
fera, na confusão do ataque tirou o corpo de banda e mais que depressa enfiou o
espeto de pau no lugar onde pôde, que outro não alcançou senão aquele, que foi
este: bem na altura da perna direita do bicho, que, assim ferida, sangrou.
Mal o sangue saiu, escorrendo perna abaixo, o dito bicho, com um gemido,
estrebuchou-se, rápido e todo, como para tirar de cima de si uma coisa incômoda, um
peso. E lobisomem já não sendo, por efeito do sangue derramado, tornou a virar
gente, de novo feito em filho, tal e qual como era em antes.
Estava quebrado o encanto.
— Meu filho! Sebastião, meu filho! — dizia Dona Aninha, abraçando ele.
E mais que depressa foram para casa: dois vultos andando pelo quintal, sob
a luz da lua, no silêncio.
O rapaz mudou de roupa: a do encanto, desvestida pelo direito, atirada ao
rio foi, no dia seguinte, sem ninguém ver nem saber.
Nem do sucedido ninguém soube.
Pois Dona Aninha guardou o segredo, que era dela e do filho, com
conhecimento apenas da adivinha Honorina, assim mesmo adivinhado, mas não
contado.
Quando o marido voltou da fazenda, se nada sabia, nada ficou sabendo.
Nem ele nem as filhas.
Estando elas dormindo, na hora, não viram Dona Aninha no quarto de
Sebastião, cuidando do ferimento dele. Ainda bem que foi um ferimento leve, que
com um pouquinho de iodo sarou.
O rapaz foi muito feliz, enquanto vida teve. E não menos feliz foi Dona
Aninha, de novo, a partir daquele dia, com a alegria voltando ao seu coração de mãe.
Sorria como em antes, mostrando o dente de ouro. Era sinal de que o fado fora
esquecido, por terminado.
Os botos
O Caapora
As artes do Saci
Glossário
—A
aderente — acompanhante
amuleto — talismã, objeto com poderes mágicos
areão — grande extensão de areia
arruado — pequena povoação de casas à beira de uma estrada
—B
blasfêmia — palavra ofensiva à religião
bozeguim — bota de cano alto, fechada por meio de cordões
botica — farmácia
brenha — mata espessa
—C
carpir — chorar, lamentar
cavalhada — cavalgada
charanga — banda de música
chouto — trote miúdo
—D
dilatar — retardar
—E
elixir — bebida que possui virtudes mágicas
ente — ser
espermacete — substância cristalina extraída do óleo de cachalotes
espojar-se — deitar-se no chão, agitando-se e rolando sobre o lombo
—F
fado — destino
freguesia — paróquia
—G
grei — nação, povo
—H
harmônica — instrumento musical, acordeão, sanfona
heresia — ofensa à religião
—L
lampeira — espevitada
livusia — impressão
lordeza — magnificência, posição de lorde
—M
mezinha — remédio caseiro
—P
perrengue — fraco, adoentado
petrechos — instrumentos, munições e utensílios de guerra
piabinha — peixe de água doce
polca — dança animada
—R
relho — arado
rojão — som de viola, arrastado ou rasgado