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Folclore Vivo

Texto de Tradição Popular

Herberto Sales
Sumário

Apresentação, por Rogério


Andrade Barbosa
O lobisomem
A guerra dos curupiras
Os botos
O caapora
As artes do saci
Glossário
Sobre o autor

"A lenda, porque lenda, é verdadeira." — Thiago de Mello

Apresentação

No Brasil, país marcado pela pluralidade cultural, se mantém o velho


costume de contar e ouvir histórias de diferentes origens. Lendas e mitos da nossa
rica e variada tradição são transmitidos oralmente de geração a geração há muito e
muito tempo,
Ao percorrer as páginas deste livro, recheado de histórias recolhidas e
recriadas por um de nossos maiores autores, você sentirá, com certeza, um frio a lhe
escorrer pela espinha. São contos plenos de encantamento, nos quais imperam o
maravilhoso e o sobrenatural.
Neles, seres fantásticos surgem em noites de lua cheia, saltam da escuridão,
mergulham em rios, correm pelas florestas e cavalgam por campinas sem fim.
Na primeira narrativa, num lugarejo chamado Passagem, acompanhe a luta
de uma mãe, a corajosa Dona Aninha, contra a triste sina de ter um filho — o sétimo
— predestinado a ser um “lobisomem”.
Depois, não se engane com falsas pistas e siga os rastros invertidos dos
protetores dos animais e árvores das florestas brasileiras: os “curupiras”, incríveis
seres de cabelos vermelhos como fogo e que têm os dedos dos pés virados para trás
e os calcanhares para a frente.
Em seguida, mergulhe nas águas profundas e misteriosas dos rios da
Amazônia e se encante com as façanhas dos galantes conquistadores de moças
ríbeírinhas: os saltitantes “botos”, que nos bailes costumam se disfarçar de moços
bonitos, vestidos de terno branco e chapéu pra esconder o furo no alto das cabeças.
Logo adiante, penetre no coração da mata escura e descubra o que o
“Caapora”, que anda montado num porco selvagem, costuma fazer com os
caçadores que, como o coitado do Domíngos, ousam desobedecer às suas ordens.
E, finalmente, vibre com as diabruras e peraltices de um dos personagens
mais populares e fascinantes de nosso folclore. Sempre de barrete vermelho,
pulando numa perna só, fumando cachimbo e aprontando mil e uma confusões. Ele
mesmo, o “saci”.
Enfim, deslumbre-se com os personagens que fazem parte do imaginário
popular. Leia, releia e reconte estas histórias. É essa prática que assegura a
vivacidade e a dinâmica de nosso folclore.

Rogério Andrade Barbosa


O lobisomem

O lugar chamava-se Passagem, sabe-se lá por quê. Porque — e ainda lá


vive a sua gente mais antiga, que não nos deixa mentir — não era de uso e costume
ninguém passar por ali, por obrigação de viagem ou de caminho.
O lugar era um finzinho-de-mundo, comparativamente falando: esquecido de
Deus, ou por Deus poucas vezes lembrado, com o perdão da heresia que aqui se
comete — não por desrespeito, mas por modo de dizer — contra a memória do
Criador. Pois uma coisa é sabida: na Sua Misericórdia, mesmo tardando, mas não
falhando, Ele nunca se esquece — por descuido ou intenção — dos homens que pôs
na Terra e nela espalhou.
Mas o finzinho-de-mundo, Passagem só no nome, de tão fechado em si
mesmo, e em si mesmo tão abandonado, era de tal forma e jeito, que dele se pode
dizer: foi ali que o Diabo perdeu as botas, a acreditar-se que o dito ente as tenha
perdido em algum lugar, que outro não podia ser senão aquele.
No arruado tinha uma casa, bem na esquina, a última. Morava ali Sebastião
de Aninha, que Aninha era o nome de sua mulher: mulata de cabelo mole, vistosa,
seiúda. Tinha um dente de ouro, que fazia questão de mostrar, sorrindo à toa: com
motivo ou sem motivo. E por via disto ganhou fama de alegre, mas nem só por isto.
Era, mesmo, de verdade, alegre. Por fora e por dentro: no dente de ouro que
mostrava, e nas coisas que guardava no coração.
Mas é o caso de se perguntar: como houvera de ser triste uma mulher que
tudo tinha, a começar pela boniteza, que de si e por si já era um tudo?
Sim: porque por via da boniteza dela viera o marido, Sebastião. E com ele o
resto: a casa, o quintal com mangueiras, murado, o único assim do lugar, e a
satisfação de todos os desejos, do visto e do sonhado. Pois Sebastião era homem de
posses e negar-lhe a ela nada não sabia.
Da união dos dois, na boa forma da lei de Deus e dos homens, nasceram
seis filhas, uma por ano, em seis anos de casados.
E pagãzinhas não ficaram por mais de uma semana. Batizadas logo foram,
como mandava a Santa Madre Igreja, pois dela eram seguidores os pais, de
nascença e tradição.
Mas Aninha não tirava da cabeça a idéia de um filho. Até promessa de missa
ela fez para obter a graça. Pois é isto: Aninha queria ter um filho homem. Aninha,
não; Dona Aninha, que era mulher casada e merecia respeito.
O vigário — tão piedoso quanto idoso — animava a ovelha do seu pequeno
rebanho:
— Reze; peça a Deus. Peça a Deus, minha filha, que Ele há de ouvi-la.
E Dona Aninha rezava e pedia. Queria porque queria um filho homem.
Sebastião empenhava-se no mesmo propósito e fim, não tanto pelo sonhado
menino, pois tudo era filho, ainda que filha sendo, mas só por causa de ver satisfeito
o desejo da mulher: nunca deixara de dar o que ela queria e pedia, isto era sabido. E,
além de sabido, louvado.
Sebastião, que assim se chamava por haver nascido no dia do santo de
igual nome, mártir da Igreja, a ele recorreu com fé, pedindo-lhe que o ajudasse na
empresa. E fez também a sua promessa, em termos de homenagem especial,
apropriada: o menino se chamaria, da mesma forma, Sebastião. E teria por padrinho
o próprio santo, de que já era xará o pai.
Consultado, o vigário concordou; mas fez uma exigência natural, do
protocolo: alguém teria de representar, na cerimônia do batismo, o padrinho celeste,
São Sebastião, levando na mão a imagem dele, ainda que em quadro fosse, no feitio
de estampa, mas benta.
A escolha recaiu na pessoa de Leobino, amigo do casal, antes mesmo de
nascer o menino. E o convite, não de todo fora de tempo, pois Dona Aninha já estava
por sabido grávida, foi formalizado, não no simples, só de boca, mas de boca e mesa.
A saber: com um jantar em casa de Sebastião, onde se comeu a melhor galinha de
cabidela em qualquer tempo preparada por Dona Aninha.
O vigário deixou tudo definido, por dever e entendimento do ofício.
Assim:
— São Sebastião fica sendo o padrinho no Céu; na Terra, Leobino. E que
Sebastião, filho varão, chamado por esse nome desde já, nasça forte de corpo e de
espírito, sob as bênçãos do Criador.
Mas deu-se que, em vez de Sebastião, nasceu outra menina, a sétima.
Por causa da promessa, o pai insistiu no nome, pra não incorrer no
desagrado do santo, o qual havia de saber o que estava fazendo e porque assim o
fizera, na sabedoria dele, de mártir da Igreja.
Então, batizou-se Sebastiana, a sétima filha, nascida no sétimo ano de
casados deles dois: Sebastião e Dona Aninha, agora compadres de Leobino, de
conformidade com o previsto e o combinado.
Mas Dona Aninha, sem força de ânimo pra esconder o desgosto, chorou
tanto, tanto, tanto, que o leite secou. Pela primeira vez ia deixar de amamentar uma
filha nascida dela, a sétima de uma enfiada.
E agora?
Para mal ainda maior da criancinha, que de fome chorava, não havia no
momento, em todo o povoado, nenhuma outra mulher parida, negra ou de qualquer
cor, em trabalho de amamentação, de forma a servir de ama-de-leite, segundo o uso
da terra, nesses casos.
A valença é que havia uma cabra: uma cabra malhada, muito mansa, que
estava de cabritinhos novos. Não seria a primeira vez, aliás, que criança de peito e
cabritinho iam dividir em boa paz o leite dela.
Um empregado de Sebastião, todo dia de manhã, levava a chocolateira para
o chiqueiro. As tetas da cabra eram lavadas com água do pote, na forma do costume,
para a ordenha. Não demorava, e a chocolateira vinha de volta, cheia do leite grosso,
sustento da recém-nascida.
Daí em diante era serviço de mamadeira.
De uma coisa ninguém duvidava, todo mundo e mais a parteira, no lugar:
leite de cabra era mais apropriado que o de vaca para menino novo, fosse menino ou
menina. Só não podia ser comparado ao da mãe, que mãe já era aparelhada por
Deus para dar de mamar aos filhos que ela botasse no mundo com as dores do
parto. Mas Dona Aninha, coitada, secara o leite, pelo motivo já sabido: de tanto
chorar de desgosto.
Mas leite de cabra — e havia uma, a referida — dava sustança de mama.
E por ser em tudo sabedor disto o povo da Passagem, no informado e no
testemunhado, é que ninguém entendeu como a menina, Sebastiana chamada, não
pôde se criar: morreu do mal-de-sete-dias. O que, diga-se: não era de estranhar em
morte de criancinha nova, ali; mas no caso particular dela havia uma coincidência,
que estranha não deixava de ser, sendo ela de sete filhas a sétima.
Do dito dia em diante — da morte da menina — Dona Aninha mudou de jeito
e proceder. Já não era mais a mesma mulher alegre. Ia para o quintal, ficava sentada
debaixo das mangueiras, calada, riscando o chão com um graveto. Ou então subia
numa pedra e ficava um tempão olhando por cima do muro, não se sabe o quê. Era
como se estivesse esperando que alguma coisa, gente ou bicho, vinda do outro lado
do rio, pelo areão, chegasse até o lugar onde ela estava, no muro.
De noite, na cama, quando Sebastião lhe fazia um carinho, ela só fazia dizer:
— Não, não. Me deixe em paz.
E virava para o outro lado e ia dormir.
Disto Sebastião deu ciência ao vigário, com o devido respeito, em serviço de
confissão.
— Calma, calma — aconselhou o vigário. — Deixe a pobre carpir o desgosto
dela. Ainda deve estar sofrendo com a morte da menina. Mas tudo vai passar. É
questão de tempo.
O marido renovou a promessa a São Sebastião, seu santo protetor,
convencido de uma coisa oculta, que não disse ao vigário, por temor da heresia: o
desgosto da mulher não era tanto pela morte da menina, mas por não ter tido um
filho, o filho que ela queria, de conformidade com o desejo dela.
Mas convencido estava, também, de uma coisa, e nisto dava razão ao
vigário: era uma questão de tempo. E pensava assim:
Se a mulher, na firmeza do capricho, continuasse querendo ter um filho, de
outra forma não ia ela ter, abaixo de Deus e de São Sebastião, sem a ajuda pessoal
dele, em trabalho de casal e de cama, como mandava o sacramento do matrimônio:
sem pecado, mas com disposição.
E ficou esperando que a mulher, com o correr do tempo e das noites, se
compenetrasse da obrigação devida, que outra não havia para os dois trazerem ao
mundo o filho que ela queria ter. E que Sebastião se haveria de chamar, no
cumprimento da promessa renovada, só que com outro padrinho na representação.
Leobino não podia mais ser, porque já era, agora, compadre duas vezes, no limite.
Mas se Sebastião não perdera a fé, Dona Aninha perdera a dela, em pecado
de blasfêmia.
— Nem que seja com a ajuda do Diabo eu quero ter um filho.
Foi o que ela disse, um dia, mais possuída de raiva que de desgosto,
enquanto olhava, por cima do muro, o areão deserto.
E com tal espírito, de cabeça virada, já por obra do Maligno, foi consultar
uma negra velha, de nome Honorina, que morava numa encruzilhada e de quem se
dizia ter poderes de adivinha.
— Será que eu vou morrer sem ter um filho homem? — Dona Aninha
perguntou, e ficou esperando a resposta, o coração batendo forte, disparado.
A negra velha fez lá as artes dela, com uns búzios que espalhou no chão,
debaixo de uma gameleira, local do encontro, e na hora estipulada: meio-dia, com o
Sol a pino.
A resposta foi a seguinte, na forma pela qual a velha deu:
— Vai ter um, que os búzios estão me dizendo. O primeiro que nascer, filho
homem será. Mas tem de cumprir um fado, que é o fado de todo filho homem nascido
depois de sete filhas, mesmo tendo morrido a sétima, como morreu e morta está a
falecida.
É preciso que se diga, para tudo contar direito, sem faltar, que a velha
adivinha tinha um cachorro preto, o qual começou a uivar, naquele justo momento,
ali, perto dela. E que ela, levantando-se, botou a mão em cima da cabeça dele e
disse assim para Dona Aninha:
— Vá. Vá ter o filho do seu desejo, e que homem há de nascer. Mas desta
conversa não dê ciência a seu marido. Quando o menino completar um ano, venha
falar comigo, que aqui espero a senhora, nesta mesma hora e lugar.
E o dito foi feito.
Nasceu um menino, que Sebastião se chamou, por via da promessa do pai,
de novo recebido no leito, em serviço de casal, como em antes, porque de outra
forma não podia ser, conforme Dona Aninha sabia, por saber e experimentar.
Só que daquela vez ia nascer homem, e não mulher, como das outras; e que
homem, de fato, nasceu, como dito já ficou.
No justo dia em que ele completou um ano, Dona Aninha foi procurar de
novO a velha, no mesmo lugar e hora, de acordo com o combinado.
A velha foi logo dizendo, com a mão em cima da cabeça do cachorro:
— Homem-bicho, bicho-homem, lobisomem.
E contou qual era o fado, pois já era hora de contar, a começar do primeiro
ano, contando assim as duas coisas: o fado e o tempo.
Quando o menino completasse 13 anos, o fado ia se cumprir. Era um
encanto, que estava nas mãos da mãe quebrar, tirando sangue do encantado, pelo
meio que ela quisesse ou pudesse, na hora. Vigiasse na Quaresma, de sexta para
sábado, depois da meia-noite. Não tivesse medo, e preparada ficasse; ela, a mãe,
melhor que ninguém, embora qualquer pessoa pudesse fazer a mesma coisa. Com
faca, ou pau — lasca, espeto, encontrado por acaso ou feito em especial —, ou
mesmo com um simples alfinete, enfim: com o que pudesse servir para tirar sangue
do encantado, sem risco de morte, na hora do encanto.
Mas o encanto ela não disse qual era.
Disse apenas, depois de tudo, o que já tinha dito antes, no começo:
— Homem-bicho, bicho-homem, lobisomem.
E mandou Dona Aninha de volta.
Por 12 anos a pobre não pensou em outra coisa senão no fado do filho.
Ele crescia, mas perrengue: amarelo, tristinho, se escondendo dos outros
meninos. Aprendeu a ler com o vigário, porque na escola caçoavam dele:

“Amarelo da infância,
Penico da cagância”!

Não havia mezinha que botasse ele pra frente, nem xarope nem elixir de
botica, por mais que tomasse. Era aquela cor de opilado: amarelão, nome também da
doença.
De lobisomem Dona Aninha só sabia o que ouvira contar nos tempos de
menina, pois ver não vira nenhum, nem ninguém na Passagem tinha visto, pelo
menos até aquela data.
Assim, ela se lembrava do que em outros tempos ouvira, e que era o
seguinte: o encantado corria sete freguesias, e das sete os cemitérios delas, em igual
número, quando encantado estava, de noite. Antes do amanhecer retornava ao ponto
de partida, onde, de novo, virava gente.
E disto se lembrando, Dona Aninha duvidava do triste fado do filho, que não
haveria de se cumprir, pela razão que ela encontrava, e que outra não era senão
esta, fundamental: não havia sete freguesias, nem sete cemitérios havia, em muitas
léguas em volta da Passagem.
E com isto se consolava, calculando distância e tempo, mentalmente,
convencida do impraticável da andança, que era muita para o horário estipulado.
Uma noite, o marido estava na fazenda, Dona Aninha acordou com a livusia
de uns cachorros latindo lá fora, na rua. Deviam estar brigando, os cachorros, ou
perseguindo alguém, ou algum bicho, quem sabe? Talvez algum cavalo, ou burro, ou
jumento; qualquer um deles podia ser, não era de admirar: animal solto, fugido do
pasto, andando pela rua, os cachorros latindo atrás dele.
Mas de repente sentiu um baque no coração, bem dentro do peito dela, de
mãe: o menino tinha completado 13 anos naquele dia. Lembrou-se do presente que
lhe dera a ele, de manhã: uma camisa de tricoline, que ela mesma costurara, com o
bolsinho de um lado, como ele pedira.
Acendeu imediatamente o candeeiro.
E, pé ante pé, para não acordar as filhas, foi espiar o menino no quarto. Aí,
sentiu outro baque no coração, mais forte que o primeiro: a cama do menino estava
vazia, e aberta a janela do quarto dele, que dava para o quintal.
E já ia voltar, ou ficar, não sabia mesmo o que ia fazer, quando viu o menino
entrar pela janela, com um ar afrontado.
— Mãe... — disse ele, baixando a cabeça.
— Onde é que você estava, meu filho?
— Fui no quintal, mãe. Estava com dor de barriga.
E, nada mais dizendo, o menino fechou a janela e deitou-se.
Dona Aninha saiu do quarto, sem nada mais dizer, também. Pegou o terço e
começou a rezar, pedindo forças a Deus, que da blasfêmia já pedira perdão, bem em
antes, por haver invocado a ajuda do Diabo para ter o filho que ela queria, e que ter,
tivera.
No terceiro padre-nosso, os galos já estavam cantando. Era a manhã que
vinha vindo, de sábado, primeiro da Quaresma. Na outra sexta-feira, de noite, ela ia
vigiar, de conformidade com o aviso da adivinha, de que na véspera se esquecera,
não sabia como.
E, até lá, foi como de coisa que não tivesse havido nada: nem livusia de
cachorro latindo, na forma pela qual ela ouvira, nem o filho entrando pela janela, de
ar afrontado, para de novo se deitar, com a desculpa de ter ido no quintal.
Guardou consigo o segredo no coração, bem dentro dele, como devia e
competia. Nada disse ao marido, não por ele estar ausente, na fazenda, mas porque
dizer não ia, nunca, mesmo quando ele voltasse. Nem às filhas disse nada, pois o
segredo era dela, somente dela e do filho.
Na noite da outra sexta-feira, a seguinte, o marido ainda estava na fazenda;
Dona Aninha pegou um espeto de pau, que fez com uma faca, bem fininho, e
escondeu debaixo do xale. Quando as filhas pegaram no sono, ela saiu andando na
ponta dos pés, pelo corredor, passou pela porta do quarto do filho, que lá dentro
estava, e assim andando foi até o quintal, onde se escondeu, conforme tinha
premeditado: atrás de uns barris, bem perto do lugar onde o jumento se espojara de
manhã, depois do serviço de carregamento d'água.
A noite era de lua.
Ali ela ficou, no escondido. Até que ouviu dar as doze badaladas da meia-
noite, no relógio da sala de jantar, que por causa do silêncio podiam ser escutadas no
quintal, como de fato foram, pela pessoa dela, naquela justa hora.
Segurou o espeto de pau e ficou esperando.
Então, na claridade da lua, viu o vulto do filho sair pela janela do quarto e vir
andando, meio agachado, até o lugar onde o jumento se espojara, bem perto dos
barris, atrás dos quais ela estava.
O filho chegou e tirou a roupa; e quando ela pensou que ele ia ficar assim
nu, como tinha nascido, ele vestiu de novo a roupa, pelo avesso. Depois, se deitou no
chão, bem na espojadura do jumento, e começou a se espojar, igualzinho ao dito
animal, sem tirar nem pôr: rolando pra cá e pra lá, na areia.
E aconteceu o seguinte:
De repente, com um frio correndo pela espinha lá dela, o filho ela não mais
viu naquele lugar, mas um bicho, menor que um bezerro e maior que um cachorro, os
dois misturados no feitio, animal esquisito e orelhudo. Um sopro ela ouviu, que nem
de fole, mas sendo de bicho resfolegando, continuado e feroz.
Lembrou-se das palavras da adivinha Honorina:
— Homem-bicho, bicho-homem, lobisomem.
E assim, no assopro, saiu o filho andando, de quatro, em bicho já
transformado. Ia indo no rumo da cerca, que em conserto estava, no lugar onde havia
uns mourões caídos, dando passagem para o areão.
— Sebastião, meu filho! — gritou Dona Aninha, antes que o bicho, na força
do encanto, desaparecesse da sua vista.
Assim chamado, contra ela se voltou a feroz coisa, que filho não era naquele
instante, mas homem-bicho, bicho-homem, lobisomem, cumprindo o fado.
E quando para ela os dentes arreganhou, para atacá-la, Dona Aninha fez o
que lhe cumpria, na forma pela qual estava determinado. Cara a cara com a besta-
fera, na confusão do ataque tirou o corpo de banda e mais que depressa enfiou o
espeto de pau no lugar onde pôde, que outro não alcançou senão aquele, que foi
este: bem na altura da perna direita do bicho, que, assim ferida, sangrou.
Mal o sangue saiu, escorrendo perna abaixo, o dito bicho, com um gemido,
estrebuchou-se, rápido e todo, como para tirar de cima de si uma coisa incômoda, um
peso. E lobisomem já não sendo, por efeito do sangue derramado, tornou a virar
gente, de novo feito em filho, tal e qual como era em antes.
Estava quebrado o encanto.
— Meu filho! Sebastião, meu filho! — dizia Dona Aninha, abraçando ele.
E mais que depressa foram para casa: dois vultos andando pelo quintal, sob
a luz da lua, no silêncio.
O rapaz mudou de roupa: a do encanto, desvestida pelo direito, atirada ao
rio foi, no dia seguinte, sem ninguém ver nem saber.
Nem do sucedido ninguém soube.
Pois Dona Aninha guardou o segredo, que era dela e do filho, com
conhecimento apenas da adivinha Honorina, assim mesmo adivinhado, mas não
contado.
Quando o marido voltou da fazenda, se nada sabia, nada ficou sabendo.
Nem ele nem as filhas.
Estando elas dormindo, na hora, não viram Dona Aninha no quarto de
Sebastião, cuidando do ferimento dele. Ainda bem que foi um ferimento leve, que
com um pouquinho de iodo sarou.
O rapaz foi muito feliz, enquanto vida teve. E não menos feliz foi Dona
Aninha, de novo, a partir daquele dia, com a alegria voltando ao seu coração de mãe.
Sorria como em antes, mostrando o dente de ouro. Era sinal de que o fado fora
esquecido, por terminado.

A guerra dos curupiras

Ia haver uma guerra no mato: mato geral, intocado, ainda fresquinho e


orvalhado do mistério da Criação, tal como Deus o fez, em segredo.
Mas antes da guerra era preciso haver um plano de defesa e um plano de
ataque, segundo o entender e o parecer dos bons guerreiros, em qualquer tempo, no
mato, no mundo.
O curupira mais velho, por ser o mais velho, sabia muito bem disto. Marcou a
reunião na clareira, com todos os parentes e aderentes, e foi o primeiro a chegar lá:
anão de cabelos vermelhos, rastro às avessas, pés para trás, calcanhares para a
frente.
Índio ou pessoa que se aventurasse por aquelas brenhas, perdido estava se
fosse atrás do rastro dele: ia pensar que ele ia indo, quando ele vinha vindo.
Só se o índio fosse Matuiú: ente indígena fantástico, cruzado no
sobrenatural, também de pés invertidos e igual rastro mentiroso. Mas o curupira mais
velho não o convocou: não acreditava que houvesse índio com pés de curupira (mas
que os havia, havia). Matuiú ficou de fora, por decisão e prevenção do chefe
guerreiro: a guerra era só da gente curupira, muito ciosa do privilégio dos seus pés às
avessas, fazendo parecer que iam para um lado, e indo para outro. Assim como uma
verdade que era mentira, no rastro deixado na areia dos caminhos.
O segundo a chegar à clareira foi o Curupira Solimões: orelhudo, com os
dentes verdes e azuis.
— Vim de longe, mas cheguei na hora — disse.
— Ainda que mal pergunte... — respondeu o anão de cabelos vermelhos,
curupira mais velho.
E, respondendo, perguntou:
— Viu algum índio?
— Não vi índio nenhum.
— Esquisito! Então estavam escondidos.
— Só se estavam — admitiu o orelhudo.
E sorrindo com os seus dentes verdes e azuis:
— Os índios têm pavor de mim.
Aí, chegou o Curupira Santarém: tinha só quatro palmos de altura. Anão
como o mais velho. Foi perguntado se vira índio no caminho.
— Não — respondeu. — Vim pelos carreiros das pacas. índio não vi. Só
bicho: paca e outros.
Depois chegou o Curupira Rio Negro: calvo, o corpo cabeludo.
— Viu índio?
— Não. Nem índio nem pessoa de caçador. Só bicho e mato.
— Ah, ah, ah! — gargalhou miudinho e zombeteiro o anão de cabelos
vermelhos. — Estão com medo de nós.
Veio em seguida o Curupira Pará. Indivíduo com uma particularidade: não
tinha orifício para as secreções.
A mesma pergunta.
E a mesma resposta: não vira ninguém.
— Só uma cobra. Enroscada, dormindo.
De repente, rumor de mato se quebrando; e surgiu, do meio da folhagem
entre quebrada, o ente Kilaino, parente dos curupiras bem chegado.
— Por onde você veio? — perguntou o curupira orelhudo.
— Vim por onde não tinha água. Por onde tem água eu não passo. Não é do
meu feitio passar por onde tem água.
— Viu gente no caminho? Índio, caçador? — quis saber o anão de cabelos
vermelhos, logo, de pronto.
O Kilaino respondeu:
— Só vi o que comi: passarinho e rato.
— Curupira comilão! — zombou o orelhudo. — Comendo, comendo, e nós
esperando por você aqui, de barriga vazia.
Aí, o curupira mais velho começou o discurso:
— Vamos tratar do nosso assunto, de conformidade com o que vem
acontecendo. Os índios estão se aventurando demais no mato. Como se isto não
bastasse, ainda deu pra aparecer caçador, cada vez mais. O mato é nosso. Ou
defendemos o nosso mato, ou eles tomam o nosso mato de nós.
O curupira cabeludo, de quatro palmos de altura, deu dois passos para a
frente, com os pés para trás:
— Guerra aos índios! Guerra aos caçadores!
— Guerra! Guerra! Guerra! — responderam os outros, em coro.
— Chamei todos aqui para isto — continuou o anão de cabelos vermelhos.
— Sou o mais velho. A idade me dá direito à palavra de ordem. Vou distribuir as
missões. Cada qual fará a sua parte, de si para todos, com os poderes que todos
temos.
Os outros responderam:
— Tudo que mandar, faremos todos. Então, ali na clareira, foram distribuídas
as missões, dados os encargos: lei para a grei. A gente curupira ia defender o seu
mato, atacando.
Começaram às avessas, como os seus pés: pelo último que chegou. E que
outro não era senão o Kilaino, parente dito. Tudo de conformidade com as
especialidades dele. Ficou encarregado de esconder a caça morta e as flechas
atiradas; e o mais e mais: todas as coisas que caíssem das mãos da gente índia ou
da gente caçadora, por esquecida ou distraída. E a incumbência final: responder aos
gritos da pessoa que andasse pelo mato, gritando também, para desviá-la e transviá-
la, até ela se perder de todo, inteira.
Depois foram os outros, sempre de trás pra diante: o daquela
particularidade, indivíduo sem orifício para as secreções; o calvo, de corpo cabeludo;
o anão, como o mais velho, de quatro palmos de altura; o orelhudo, de dentes verdes
e azuis; e, por derradeiro, o próprio chefe, anão de cabelos vermelhos. Todos ficaram
encarregados do resto, missão geral, resumida em uma: dar de açoite nos índios, até
matá-los, se preciso fosse. E quando não o pudessem fazer, por difícil ou
desoportuno, recorrer a outros meios de castigo, que tinham muitos, contra índio e
caçador: ruídos misteriosos, esquecimento de caminho, insuflação de medo súbito,
pavor inventado e espalhado, no mato, por toda a parte.
— Guerra! Guerra! Guerra! — gritaram mais uma vez os curupiras.
E cada qual tomou o seu rumo, mato adentro, na disposição de proteger as
árvores, a caça; tudo aquilo que era deles, agora ameaçado.
Desde então, muito caçador desapareceu, perdido; muito índio foi surrado,
ou morreu bem morrido, quando não ficou mal matado. A guerra durou, e dura ainda.
Tréguas? Bem que houve e ainda há, como em toda guerra: para
entendimentos só tentados. Às vezes, por força e gosto de presentes: no escondido
de alguma brenha, os índios deixam coisas do agrado dos curupiras: flechas;
abanadores de penas de aves. E pedem, em troca, que os curupiras não lhes façam
mal: nem de surra exemplada nem de morte matada.
E há os pactos com os caçadores, ainda nas tréguas: a troco de comida,
contanto que sem pimenta ou alho, que abominam, os curupiras não só permitem
que os caçadores cacem, como lhes dão para tal fim armas infalíveis: pá, casco. Mas
exigem segredo rigoroso. Se o caçador descumpre o pacto, na comida ou no
segredo, é punido com a morte.
E por via de tudo isto dura a guerra, até o dia de hoje; e durar ainda vai,
enquanto houver restos do mundo de Deus, como Deus o fez, no princípio: florestas,
bichos; e, com encargos e poderes, para proteger o que por Deus foi criado, os
curupiras.

Os botos

No arruado de casas de palha, só algumas de telha, numa destas poucas


havia, naquela noite, uma festa muito animada, com todas as moças do lugar
presentes. A música era de harmônica, conforme o costume. E lá estava o melhor
tocador dela, por nome Izidro, com o seu fole de respeito.
As moças todas assim vestidas, na regra de pobre, mas direitinhas:
sapatinha de salto baixo, e de meias; vestidinho só de chita, mas novo em folha, no
estreado, e variando de cor e de estampado, de acordo com o gosto de quem estava
dentro de cada um deles: tinha os de bolinhas, os de florzinhas, e os que misturavam
flor e bola, pra não descontentar nenhum desses enfeites.
Porém, tinha também os lisos: em azul de toda a espécie dessa cor, alguns
puxando para o arroxeado; e em vermelho de tudo quanto era tom, do menos vivo ao
bonina. Era cor demais, na variação, mas, olhadas do sereno, confundiam-se umas
com as outras, no ajuntamento das moças. As quais, todas elas, tinham um laço de
fita nos cabelos. Era assim o uso.
A festa era a do último dia da trezena de Santo Antônio; e, assim sendo, era
como costumava ser: começava no apropriado da reza, cantada em coro; e acabava
em baile, que até de madrugada ia, justamente por ser aquele o dia santo, e não um
qualquer. Os demais eram só de preparação para o último, que era aquele, o mais
importante de todos: o da fogueira.
E era o que mais saudades deixava, por ter — afora a reza — tudo que de
bom e especial tinha, e ser o de encerramento:
— Agora, meu bem, só no ano que vem.
E sendo Santo Antônio, por sua justa fama, o santo casamenteiro, o baile
tinha uma finalidade de acordo, no completado da reza: promover o encontro das
devotas dele, todas elas moças solteiras, com os rapazes do lugar, em trabalho de
dança e de cochicho. Pois, se queriam casamento, tinham de começar pelo namoro,
que assim daquele jeito era melhor começado.
E ali, na sala da dita casa, também estavam os rapazes. De roupa nova,
mas tudo no simples. Terno de brim: caqui, pardo, listrado, de tudo quanto era cor,
menos branco, que terno branco era luxo de rico e de caixeiro-viajante. E
incomodando o pescoço e os pés deles, por falta de constância no uso, a gravata e
os borzeguins; a uns menos, a outros mais.
Mas o que mais incomodava eles era mesmo a presença das moças, por
causa do acanhamento que tinham delas; mas só no começo. Porque depois de duas
pingas, e da primeira tirada de perna, o acanhamento acabava e a coisa corria fácil.
Aí, já nada mais incomodava: nem a gravata, nem os borzeguins, nem a presença
das moças. E quanto mais ao copo compareciam, mais desincomodados iam ficando.
E por obra e graça de Izidro — dele e da sua harmônica — os rapazes
caíam nos braços das moças, e vice-versa, no arrasta-pé. E ninguém — o pai ou a
mãe das moças, ou alguém por elas responsável, parente ou aderente delas — podia
reclamar, porque o abraçado era de dança, na forma do costume.
E Santo Antônio, no altarzinho armado na sala, ali presente mas ao mesmo
tempo no céu, ia formando assim os futuros casais, por gosto e desencargo da tarefa.
A fogueira já ardera toda. E os últimos foguetes tinham sido completamente
soltados — em girândola pelo menos uma hora antes: logo depois do Louvado Seja.
Agora, era só o baile, que ia a todo vapor.
Foi quando entraram na sala dois rapazes desconhecidos.
O que chamou a atenção, logo, primeiro, no destoado, foi a roupa deles:
estavam de terno branco. Ternos bem talhados, além do mais. E bem passados, num
reluzido de espermacete e parafina. Brilhavam que nem espelho.
Quem-eram-quem-não-eram.
Ninguém sabia quem eram.
Deviam ser de fora, os dois; gente chegada, de passagem. Talvez caixeiros-
viajantes, que só eles — para as moças — eram tão bonitos assim. O porte; o
desembaraço; as camisas de seda; os cabelos repartidos e na cabeça colados,
cheirando a brilhantina: em tudo diferentes — eles dois — dos rapazes do lugar.
As moças se assanharam, mas disfarçadamente: só olhares e risinhos. Os
rapazes ficaram de pé atrás, mas por pouco. Porque os desconhecidos, amigos de
boa pinga, logo a eles se misturaram, na camaradagem do copo. E foi aquilo que se
viu: pinga entrando e conversa saindo, na melhor forma do conversado. Dali a pouco,
porque não demorou muito, era como se todos conhecessem os dois, e os dois
conhecessem todos os outros, os demais rapazes. O baile até ficou mais animado.
Que bom terem chegado ali aqueles dois desconhecidos!
Começaram — os rapazes do lugar — a dançar como viam os dois
dançarem.
Imitavam a pegada de mão deles, com a da dama por cima, os braços indo e
vindo, num movimento de nado; e a pegada da cintura, como nunca tinham visto
antes, com a mão repuxada em leque, no ar, num jeito de barbatana, e só o polegar
se apoiando.
A tirada de perna era que nem se a pessoa estivesse cortando água.
Devia ser a última moda.
Se eram bons de copo, de dança eram ainda melhores, os dois
desconhecidos. Só paravam de dançar nos intervalos. E mal Izidro puxava o fole já
estavam eles chamando as damas. E o mais engraçado era a forma pela qual eles as
chamavam. Bastava um deles olhar para a moça, a escolhida, e ela vinha logo, toda
lampeira, feito uma piabinha gulosa correndo atrás da isca.
Mas na festa havia uma velha, que tudo observava, do lugar onde estava, no
retirado do corredor. Tinha dois apelidos, pelos quais era mais conhecida, tanto fazia
por um quanto pelo outro. Assim, sendo Dona Puduzinha, era também Dona Pudu.
Dependia do modo como a quisessem chamar. Vamos chamá-la de Dona Pudu, por
uma questão de respeito; Puduzinha era o seu apelido do tempo de moça, e na
ocasião da festa ela já era uma velha. Por sinal, a velha mais velha do lugar.
Mas ainda tinha boa cabeça. E porque a tinha lembrava-se de tudo que vira,
ela mesma, com os olhos dela, ali no lugar, e do que nele ouvira contar por outros,
nas suas recordações mais antigas: aos 5 ou 6 anos, ou 7, ou os que em verdade
eram na época, e ela de idade tinha. E de tanta coisa se lembrando, em tanto tempo
passado, acumulou um conhecimento que igual a ela ninguém podia ter. E por ser
assim de tudo sabedora, do sabido e do ignorado, tinha de ser o que era: uma mulher
de sabedoria.
E estando como estava, ali do corredor, observando desde o começo os dois
desconhecidos e o jeito de dançar deles e o de tirar as moças, só com os olhos,
chamou Dona Pudu o neto, para lhe dizer um particular:
— Venha cá, Jessé. Quero lhe falar um instantinho.
O neto já era homem feito: rapagão forte, pescador de pescado grande,
especialista em trabalho de arpão. Ia tirar, naquele mesmo instante do chamado, uma
moça pra dançar; mas dilatou o propósito da dança e foi ver o que a avó queria.
E ela a ele perguntou:
— Aqueles dois moços, você já viu eles em antes?
— Em antes, não senhora; estou vendo hoje. Por quê?
— Olha aqui, meu filho: ou muito me engano, ou eles não são gente de
verdade. Uma coisa me diz que os dois são botos.
Aí o neto sorriu de banda:
— Que idéia, vó! Boto só vai em festa de beira-rio.
— Meu filho, meu filho: você acaso já viu boto virado em gente?
— Não senhora. Ver, nunca vi; sei que ele vira, mas só de ouvir falar.
— Ah, meu filho, então você não viu nada!
— Mas vó, boto não sai do encostado d'água. A senhora mesmo já me disse
isto uma vez, não se alembra?
— E como não houvera de me alembrar? O que eu lhe disse repito agora,
porque verdade é: quando boto, virado em gente, vai a alguma festa, antes da
madrugada ele tem de novo de voltar pra dentro d'água.
— Pois então?
— Então o quê, meu filho?
— Ora, vó, daqui lá pra beira do rio tem mais de meia légua. E qual é o boto
que ia ficar dançando aqui no descansado, com o compromisso de chegar no rio
antes da madrugada?
— Meu filho, meu filho: ninguém deve se fiar em boto virado gente. É o que
eu lhe digo.
Aí Izidro tocou outra parte na harmônica, e Jessé, o neto de Dona Pudu, dali
saiu e foi dançar.
Todo mundo, no lugar, uns mais, outros menos, sabia das artes daquele dito
peixe. Golfinho maior do Amazonas: boto vermelho, boto branco; também por outros
nomes chamado, no mais indígena da tradição: piraia-guará ou pira-iguara; e na
forma menos apropriada para um encantado de tanto prodígio que nem ele, assim no
vulgo: peixe-cachorro. O qual, pelo encanto que tinha, de virar homem e seduzir
mulher, era pai de tudo quanto era filho sem paternidade que nascesse no lugar.
Mulher, aliás, ele não podia ver, que logo não induzisse a desprevenida a
receber a fecundação dele. E bem apessoado sendo, quando em gente
transformado, na hora que era sempre a do encanto, de noite, mulher não havia que
lhe negasse o favor de um encontro, ao qual ele comparecia pontualmente, fosse em
que lugar fosse no fora d'água, mas contanto que ficasse perto do rio. Porque ao rio
ele tinha de voltar antes da madrugada, para de novo virar o que era de nascença:
peixe boto.
Disto sabia Dona Pudu, melhor que ninguém, pois sabia de tudo ali. Tinha
tino e observação da vida, que vivendo estava no aproximado dos 75 anos, pelos
cálculos.
Chamou de novo o neto, quando ele acabou de dançar:
— Meu filho, meu filho: aqueles dois moços desconhecidos são botos. Todos
dois.
— Ora, vó; largue-se dessa idéia!
— Estou lhe dizendo.
— Mas vó, a senhora mesmo não me disse uma vez que boto tem um furo
no cocuruto da cabeça? E que por causa desse dito furo ele só anda de chapéu?
— Eu lhe disse e confirmo, porque é verdade. E agora lhe pergunto: você já
matou alguma vez um boto?
— Não senhora. Isso é a coisa mais difícil pra um pescador. E a senhora
sabe disso tanto quanto eu.
— Difícil é, não nego. Mas, quando você matar um boto, vai ver que o que
eu lhe disse é verdade.
— Verdade o quê?
— Que ele tem um furo na cabeça.
— Ora, vó, não vai ser preciso eu matar um boto pra acreditar nisso. Basta o
dizer da senhora, que dito está. Eu estou falando é do chapéu. O qual a senhora
disse que o boto não tira da cabeça, mode esconder o furo que tem nela, quando
está transformado em gente. E esses dois moços, desde que entraram no baile, não
vieram com chapéu nenhum.
— Ah, meu filho! Boto tem artes que Deus duvida. Repare no cabelo deles,
repare: está coladinho na cabeça, feito uma casca no pau. Por debaixo daquela
casca tem coisa.
Aí, de novo, Izidro puxou o fole, e na arrancada da polca, pra não perder
aquela, Jessé saiu de junto da avó e foi dançar com Almira, uma mulata de
qualidade, tirada a branca, por quem tinha paixão. Paixão que era grande, mas
infelizmente não correspondida.
E se não tem andado depressa, de junto da avó saindo, ia ficar sem dançar
com a moça, porque no rumo dela já estava indo um dos dois rapazes
desconhecidos. Os quais dançavam mais que os outros todos, os demais rapazes, e
mais do que eles tomavam pinga: ninguém era capaz de acompanhar o rojão de
perna e de copo deles.
E mal acabou a polca, e na sala os pares se separaram, Almira cochichou no
ouvido de outras moças, companheiras dela, e do cochichado saiu o combinado: a
brincadeira da flor no candeeiro.
E no candeeiro aquele, que suspenso estava no meio da sala numa arandela
que pendia do teto, as próprias moças — duas ou três delas, com a mais alta subindo
numa cadeira — deram um jeito de colocar um raminho de margaridas tiradas de um
jarro.
E pela regra da brincadeira, dali por diante, enquanto no candeeiro
estivessem as flores, as moças é que tinham de tirar os rapazes pra dançar.
Formaram-se os dois grupos: as moças de um lado, e do outro os rapazes.
E assim que Izidro correu os dedos na harmônica, a primeira moça que saiu
do grupo foi Almira, que no dos rapazes foi tirar, não Jessé, mas um dos dois
desconhecidos. O segundo. deles foi tirado em seguida, por outra moça. Depois é
que os outros, os demais, foram sendo tirados. Menos Jessé, que, logo na
despreferência de Almira por ele, no começo da brincadeira, saiu da sala e voltou
para de junto da avó, no lugar onde ela estava, no corredor.
E a ela disse ele assim:
— Vó, será mesmo que esses dois desconhecidos são botos em forma de
gente?
E a velha respondeu:
— Uma coisa me diz que eles são. Todos dois.
— Mas será mesmo que boto entra em baile de gente, vó?
— Entra, meu filho. Entra, bebe, dança, conversa e namora.
— E a gente nem desconfia?
— Bem, meu filho; desconfiar, desconfia. Uma vez mesmo, quando eu
morava no Brejo Grande, havia lá duas moças órfãs. Uma noite, no sereno de um
baile, apareceu um rapaz desconhecido. E começou a namorar uma das ditas moças.
Ficaram os dois conversando na janela, porque o rapaz não queria entrar. Serviram
bebida, e ele bebeu. Mas entrar não queria. Aí, maldaram do chapéu dele. Se ele não
queria entrar, havia de ser mode não tirar o chapéu. E, em sendo assim, só podia ser
um boto. Aí, três rapazes saíram e foram se esconder do lado de fora, atrás de uma
moita. Já era quase de madrugada. De com pouco, o tal desconhecido largou a moça
na janela e saiu correndo. Então, um dos três rapazes — um que era pescador —
pegou um arpão de inajá e correu em perseguição dele. Os outros foram atrás. Pois
bem. Quando viu que o desconhecido ia alcançar o rio, o rapaz, aquele, o primeiro,
que era pescador, atirou o arpão nas costas dele. Mas ele ainda teve tempo de pular
dentro d'água, tão perto do rio já estava. Ah, meu filho! No dia seguinte, apareceu
morto, boiando no rio, um boto enorme, de tamanho nunca visto, com o dito arpão de
inajá fincado nas costas.
— Espere aí, vó; espere aí — disse de repente Jessé, cortando a conversa.
E Dona Pudu, olhando para ele:
— Que foi, meu filho, que foi? Que foi, que você ficou assim com esse ar tão
espantado?
— Olhe, vó; olhe: os dois desconhecidos sumiram. Não estão mais na sala.
Eu me distraí, no ouvir da história que a senhora estava contando, e não vi quando
eles saíram. Espere aí que eu já volto.
— Venha cá, meu filho; venha cá!
— Não, vó. Eu vou ver o que é que houve.
No mesmo momento um galo cantou no quintal. Era sinal de que a
madrugada vinha vindo, e tardar não ia. Jessé saiu indagando, mas nenhum rapaz,
na sala, sabia informar o que fora feito dos dois desconhecidos. Todos estavam muito
bebidos, e a resposta, além de engrolada, era vaga:
— Saíram por aí... sumiram... Jessé olhou para Almira: ela não escondia a
tristeza, que era também a de todas as demais moças. E tão tristes estavam elas
com o sumiço dos dois desconhecidos, que o baile perdeu a animação e pouco
depois acabou.
E enquanto Izidro tocava a última parte, que era a polca de encerramento,
Jessé disfarçou e saiu da sala sem ninguém ver. Passou em casa, pegou três arpões,
os que encontrou na hora, e meteu o pé na estrada. Por ali deviam ter ido os dois
desconhecidos, pois outra estrada não havia senão aquela. E, cheios de pinga como
estavam eles, muito longe não haveriam de ir, nem ao rio chegariam, antes de
romper o dia: era mais de meia légua de distância.
E, andando pela estrada, Jessé viu amanhecer o dia, sem sinal encontrar
dos dois. Pensou então em voltar.
E voltando já ia, quando viu, num poço que ficava na beira da estrada, a
água se mexer. E tão raso era o poço, que o que havia dentro d'água ele logo
descobriu o que era: dois botos se entrebatendo no lodo.
Ainda teve uma dúvida: seriam eles, os dois desconhecidos, que não
podendo alcançar o rio tinham entrado ali mesmo, no raso daquele poço, pra de novo
se transformarem em botos antes de romper o dia?
E dentro de Jessé falou, naquele justo instante, não tanto o ciúme que tinha
de Almira, mas o instinto de pescador. Arpoou os dois botos, um depois do outro, e
pra fora d'água os puxou, quando mortos já estavam.
Pegou o facão e abriu a cabeça dos dois, bem no rumo do furo que em cada
uma delas havia, o qual, ele, Jessé, pela primeira vez estava vendo, no confirmado
da palavra de Dona Pudu.
E, quando a cabeça dos botos ele abriu, saiu de dentro dela, das duas, um
cheiro forte de pinga.
Aí, dúvida ele não teve mais: os botos eram os dois rapazes desconhecidos
que tinham estado na festa.
E os botos tendo ele matado, ali naquele poço, era como se matado tivesse
dois homens.
Deu um pavor nele, e ali deixando os botos, na sangueira em que estavam,
voltou correndo pra casa.
Tudo contou à avó, num desabafar de culpa, como se um crime houvesse
cometido.
Então a avó perguntou, depois do contado:
— E os olhos deles, você trouxe?
— Os olhos deles?
— Sim, meu filho. Você não trouxe pelo menos um dos olhos deles, de um
dos dois?
— Não senhora.
— Ah, meu filho!
E assim suspirando, falou-lhe então a avó, Dona Pudu, do extraordinário
poder do olho de boto em coisas de amor. Era um amuleto como não existia outro
igual. Mulher não havia, nenhuma, que resistisse, se olhada através dele. Mas para
tal fim tinha ele de ser preparado, no encargo de feiticeiro de competência, em
especial algum pajé, por obra da pajelança apropriada.
Isto ouvindo, Jessé logo pensou em Almira. E no apavorado em que estava,
criou ânimo novo, por força daquela revelação.
Saiu mais que depressa, pois tempo não havia a perder; e ao lugar do poço
retornou, pra tirar, não somente um, mas todos os olhos dos dois botos. Olhando
Almira através de um deles, só queria ver se ela agora não ia corresponder ao seu
amor.
E lembrando-se de que a moça, em particular, gostara mais de um boto que
do outro, conforme no demonstrado da flor no candeeiro, quando ela toda alegre o
tirara pra dançar, uma coisa Jessé resolveu, enquanto ia a caminho do poço:
experimentar os quatro olhos até acertar com um dos dois do boto aquele, o justo da
preferência dela.
Mas quando ao poço chegou, se lá ainda estavam, no mesmo lugar onde os
deixara, os dois botos mortos, os olhos deles alguém já havia tirado.
Pelo resto da vida, Jessé não soube quem ali chegara antes dele, na
antecipação do seu propósito. Porque Almira morreu de velha, sem casar com
ninguém, e muito menos com ele. Pois a verdade é que ele também não casou. O
motivo era só um, que ele não ocultava da avó, a ela dizendo: ou casava com Almira,
ou morria solteiro. Como, aliás, morreu.

O Caapora

Morava Domingos não-sei-de-quê (o sobrenome não importa) perto de boas


matas e boa caça.
Domingos gostava de caçar, e as matas começavam, a bem dizer, no fundo
do quintal dele. Era só dar uma voltinha e entrar nelas: matas fechadas, sombrias,
com árvores se embaraçando umas nas outras. Verde folhoso, enramado, copado. E
a estradinha — carreiro de caça e de caçador. Lá adiante ficava a lagoa: o brejo
espetado de garças pardas.
Deus ajuda a quem cedo madruga.
Domingos ia andando com os seus petrechos de caça: a espingarda num
ombro, pendendo da alça; no outro ombro a capanga de munição, pendurada.
Quando deu fé, eis que viu, no meio da clareira, uma coisa que nunca vira
em antes nem de que nunca ouvira falar.
Estava diante dele um veado branco.
Todo branco.
De outra cor só os chifres: coroa cinza-chumbo esgalhada, mais parecendo
uma arvorezinha plantada na cabeça. Só que sem folhas.
Enquanto o Diabo esfrega o olho, Domingos fez pontaria e atirou: Pum!
O veado branco pulou de banda e falou assim:
— Domingos, Domingos: se esse tiro me pega, que seria de nós dois aqui
agora?
Veado branco já não era de espantar. O pior era que o bicho falava: como
gente, na língua de gente.
Domingos saiu correndo, mas tropeçou e caiu. Olhou para trás: no lugar
onde estava o veado só havia agora uma arvorezinha seca.
Que teria acontecido?
Era claro: o veado desaparecera no chão e só deixara de fora os chifres. Isto
foi o que Domingos pensou. Mas antes que pensasse outra coisa, outra coisa ele viu.
E eis o que foi: um diabinho cabeçudo, disfarçado em gente. De roupa de
vestir, só e só uma tanga. O olho em brasa. Saltou de cima de uma árvore e veio
andando, pitando cachimbo.
Era o Caapora.
Diabinho encantado das matas, de que tudo quanto era gente falava, e muito
caçador jurava — por Deus, Nosso Senhor — já ter visto.
Agora chegara a vez de Domingos ver.
E o veado branco?
Não era preciso perguntar. Fora arte do Caapora: arte do diabinho arteiro.
— Domingos, Domingos: hoje é dia de caçar? — perguntou o Caapora.
A voz era a mesma do veado branco. Tal e qual: era!
Domingos respondeu:
— Por que sou perguntado?
— Porque hoje é sexta-feira.
— Oi, que cabeça a minha! Me esqueci do dia grande!
Aí o Caapora tornou a perguntar:
— Você não tem almanaque em casa?
— Tenho — respondeu Domingos. — Quer dizer: minha mulher tem um.
— E o almanaque de sua mulher não tem calendário?
— Tem. Com os dias do ano e as fases da Lua. Mas eu não sei ler.
— Não aceito a desculpa — disse o Caapora. — Ontem não foi quinta?
— Foi. Foi quinta.
— Então, hoje é sexta. E sexta, Domingos, não é dia de caçar. Você sabe
disto.
— Sei, sim. Disto eu sei.
O Caapora deu uma pitada de cachimbo:
— Então, Domingos, não é preciso dizer mais nada: você desrespeitou a Lei
da Caça. E vai ser castigado por causa disto.
— Não desrespeitei por querer.
— Se não foi por querer, foi por não querer. Dá no mesmo: desrespeitou. E
vai ser castigado: o veado branco vai vazar o seu olho esquerdo com o chifre.
— Mas o veado branco sumiu...
O Caapora deu uma risadinha:
— Basta eu assobiar que ele aparece de novo. Um assobio só. Quer ver?
— Espere um pouco, espere um pouco — disse Domingos.
Ora, Domingos não tinha nada de tolo. Se era a primeira vez que via o
Caapora, estava farto de saber, por ouvir dizer e contar, como é que se lida com ele.
Correr, não adiantava: o Caapora está sempre na frente da gente, saindo de onde
menos se espera. Conhece palmo a palmo a mata: cada galho, cada tronco, cada
moita. Mas tem os seus fracos. E Domingos, como bom caçador, sabia deles.
Tirou da capanga a garrafa de cachaça:
— Quer tomar um gole?
O Caapora deu dois pulinhos de contentamento:
— Passe a garrafa! Passe a garrafa!
— Vamos primeiro fazer um trato — disse Domingos. — Você fica com a
garrafa, mas me deixa ir embora em paz. Combinado?
O Caapora vacilou:
— E fumo pro meu cachimbo?
Domingos tirou da capanga um pedaço de fumo: fumo de rolo, do bom.
— Dou o fumo e a cachaça — disse. — Combinado?
O Caapora deu mais dois pulinhos:
— Combinado. Mas não cace mais na sexta-feira, ouviu?
— Ouvi.
Acordo feito, palavra empenhada, o Caapora ficou com o fumo e a cachaça;
e Domingos voltou em paz para casa.
O Caapora não foi para a dele, porque nela já estava: casa de caapora é a
mata. Tomou a cachaça todinha, mas ficou firme: diabinho bom de pinga! Encheu de
fumo o cachimbo, tirou um galhinho de japecanga, pra servir de chicote, montou num
porco-do-mato e sumiu atrás de uma moita: bebido, montado, pitando.

As artes do Saci

O cavalo pampa, malhado de castanho e branco, como o do circo, mal


comparando o feitio e porte. Mas bicho geral de cavalhada, alimária de tropa de
fazenda, dessabedor dos seus possuídos de graça e cor: não admirado nem
distinguido em especial, cavalo a mais no meio dos outros, no campo, em serviço de
carga e relho. Faltava-lhe o ensinamento, que o menino vira no outro, deslumbrado,
debaixo do toldo do circo: a pisada diferente, ritmada, no picadeiro em luzes, com a
bandinha formada, tocando. E o trote, no compasso da música: dança de cavalo, que
nem de gente em baile, sem perder a tirada de perna, no rojão da charanga.
Do circo — novidade vista em cinco anos na cidadezinha do interior — o
menino voltou de jipe com o pai para a fazenda. Mas o circo veio com ele, na cabeça
e no coração: o cavalinho ensinado cavalgando dentro do peito dele, tropel que era
também o do motor do jipe, patas no lugar das rodas, andadura encantatória, na
estrada, de noite. E a bandinha tocando no vento, folhas sopradas nas árvores do
caminho.
Depois o circo ficou sendo o pasto. O menino trepava nos paus da porteira,
para ver, que para ver não tinha mesmo ele outra coisa, no lá e no acolá, ali. Lá
estava o cavalo pampa, que só nas malhas lembrava o do circo: castanho e branco,
de cambulhada com os outros. A saber, citados de cor e salteado, de tão vistos: o
baio, de crinas cor de mel; o alazão, assim chamado e sendo; o branco, de ventas
entrerrosadas; o ruço, grisalho como um velho; o preto; o castanho: quinze ou vinte
ao todo, manchas coloridas no verde do capim, confundidas no congregado do
rebanho escasso. Mas o pampa se destacava: único como o do circo. Mas com um
porém: animal de cangalha, carregando sacos de farinha, costais de abóboras, para
a feira. Os demais, também. Iam uns atrás dos outros, pegados semanalmente para
o obscuro mister de roça e transporte: em chouto, no resignado desencargo.
— Ei, cavalo! — gritava o tropeiro.
Voltavam de cangalhas vazias, sem outro proveito e fama que o do
transporte no alongado da estrada: cansados, suados, pacientes. E pela porteira de
novo entravam, para o pasto: sem aplauso, nem nada. O capim com cercas em volta.
Só o menino em cima da porteira, olhando, sonhando com o circo: espectador
solitário.
Via as crinas compridas, ralas, de bichos sem graça e trato; e os rabos, mais
compridos ainda, cheios de carrapicho, erva daninha agarrada nos fios grossos,
misturando cavalo e mato: trastes semoventes, andando nos cascos de coscorão de
barro, patas sem ferraduras, descalços.
E vinha o entardecer, com os marrecos grasnando na lagoa. E de com
pouco, tudo escurecendo, a noite: silêncio e solidão na fazenda, tristeza no pasto,
com os cavalos que o menino já não via. Mas no sonho eles ficavam diferentes: eram
todos cavalinhos ensinados, galopando no compasso da bandinha do circo, o pampa
na frente. Escovados, crinas e rabos aparados, rédeas coloridas, mantas estendidas
nos lombos luzidios, umas vermelhas e outras azuis: lordeza de cavalo.
Mas eis que, numa noite de lua, o menino acordou com um rumor de correria
no pasto. Alguém espantava os cavalos, ou eles se espantavam com alguma coisa:
bicho ou assombração, pois tropeiro não era, naquela hora morta, de descanso.
Levantou-se, pé ante pé. Todos em casa dormiam. Fez o nome-do-padre e saiu,
entreabrindo a banda da porta, só na conta de passar a pessoinha dele.
A noite estava feito o dia.
Quando subiu na porteira, viu os cavalos todos juntos, ali perto: o pampa e
os outros. A correria terminara. Mas alguma coisa estava se passando, começada e
continuada, em silêncio, no pasto. Ficou assuntando.
E ora, ora, que dúvida ele não tinha do encantado, por ouvir de boca e
testemunho, desde que por gente se entendia, ali estava, bem à vista, no meio dos
cavalos, o negrinho de uma perna só, com o seu barrete vermelho, molecote
artimanhoso, amigo de pitar cachimbo: o Saci em pessoa.
Suas malasartes sabidas: por lhe terem negado a ele fogo para o cachimbo,
apagara o lume de uns tropeiros que pernoitaram na encruzilhada do Vai-Quero-
Quer, e deixou tudo escuro como breu; de outra feita: queimara a panela de comida
da velha Ermelinda, que morava só e conversava sozinha, lá com os santos da
devoção dela; e tinha mais: o molecote era especialista em espantar gado, e
espavoria viajante que viajasse sozinho, em estrada deserta.
Um capeta.
E divertia-se com o que fazia.
O menino ficou esperando pra ver se o que ele ia fazer com os cavalos era a
diversão de costume: dar nós nas crinas e nos rabos deles, prendendo-os uns aos
outros, diabinho malévolo. Aí, bem: que ia poder fazer o menino? Sem nada poder
fazer contra o negrinho encantado e pensando no cavalo pampa e nos outros, o
menino sentiu no coração uma tristeza tão grande, tão grande, que o Saci, adivinho
de pensamento, resolveu brincar de outra forma: com artes más, não; mas com boas,
que para isto também não lhe faltava engenho, pelo menos por uma vez na vida,
aquela.
Saiu correndo na perninha só, e vai e volta, de um canto para o outro,
escovou todos os cavalos com uma casca de coco; e ia jogando neles cuias d'água,
trazidas da lagoa.
Depois, sabe-se lá como, parece que com a folha de um cacto, de corte de
faca, deu um jeito de aparar as crinas e os rabos deles, tirando as maçarocas de
carrapicho.
E eis que, de repente, como por encanto, os cavalos estavam tão bonitos
como o do circo, no mesmo trato e porte. E começaram a galopar um atrás do outro,
em círculo, num ritmo que o molecote ia marcando com um assobio: era como um
carrossel vivo, rodando sem parar. E no tropel iam repetindo o sobrenome dele, do
Saci: pererê, pererê, pererê, pererê.
O menino não acreditava no que via: mas estava vendo. E tão contente ficou
que não deu pelo tempo, nem pensou em voltar para casa; até que houve um pé-de-
vento no pasto, redemoinho forte, e o Saci desapareceu dentro dele, com um assobio
que já ninguém podia saber de onde vinha, no escutado.
De manhã, o Sol já alto, o pai saiu de casa muito aflito, com um empregado,
pra ver onde o menino estava. Encontraram o pobrezinho ferrado no sono, no meio
do tempo, junto da porteira aberta. Os cavalos haviam desaparecido.

Glossário

—A
aderente — acompanhante
amuleto — talismã, objeto com poderes mágicos
areão — grande extensão de areia
arruado — pequena povoação de casas à beira de uma estrada

—B
blasfêmia — palavra ofensiva à religião
bozeguim — bota de cano alto, fechada por meio de cordões
botica — farmácia
brenha — mata espessa

—C
carpir — chorar, lamentar
cavalhada — cavalgada
charanga — banda de música
chouto — trote miúdo

—D
dilatar — retardar

—E
elixir — bebida que possui virtudes mágicas
ente — ser
espermacete — substância cristalina extraída do óleo de cachalotes
espojar-se — deitar-se no chão, agitando-se e rolando sobre o lombo

—F
fado — destino
freguesia — paróquia

—G
grei — nação, povo

—H
harmônica — instrumento musical, acordeão, sanfona
heresia — ofensa à religião

—L
lampeira — espevitada
livusia — impressão
lordeza — magnificência, posição de lorde

—M
mezinha — remédio caseiro
—P
perrengue — fraco, adoentado
petrechos — instrumentos, munições e utensílios de guerra
piabinha — peixe de água doce
polca — dança animada

—R
relho — arado
rojão — som de viola, arrastado ou rasgado

Herberto Sales, jornalista, contista e romancista, nasceu em Andaraí, na


Bahia, em 1917. Após terminar o primário, foi estudar em Salvador, onde um
professor descobriu sua vocação literária. Em 1944, publicou “Cascalho”, seu
romance de estréia, projetando-se nos meios literários do país. A partir daí, morou no
Rio de Janeiro até 1974, onde trabalhou como jornalista nos “Diários Associados” e
na revista “O Cruzeiro”. Exerceu, por 10 anos, o cargo de diretor do Instituto Nacional
do Livro e, em 1971, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Além de seus
romances e contos, publicados em diversos países, Herberto Sales escreveu também
para O público infantil, tendo sido laureado com o Diploma de Mérito, concedido pelo
Prêmio Hans Christian Andersen, em 1970, por seu livro “O sobradinho dos pardais”.
Morava em São Pedro da Aldeia, no Rio de Janeiro, numa bela casa
rodeada de árvores frutíferas e plantas, quando morreu em 1999, aos 82 anos.

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