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I
I
Michel Foucault
o Poder Psiquiátrico
I
Curso dado no College de France
(1973-1974)

I·l I
I

EdiçãO estabelecida por [acques Lagrange


sob a direção de François Ewald
e Alessandro Fontana

Tradução
EDUARDO HRANDÃO

Revisão técnica
SALMA TANNUS MUCHAIL
MÁRCIO ALVES DA FONSECA

Paul-Michel-Foucáúlt nasceu em Poitiers, França, em 15


de outu'bro de 1926. Em 1946 ingressa na École Normale Su-
périeure, onde conhece e mantém contato com Pierre Bourdieu.
[ean-Paul Sartre, Paul Veyne, entre outros. Em 1949, Foucault
conclui sua Licenciatura em Psicologia e recebe seu Diploma em
Estudos Superiores-de Filosofia, com uma tese sobre Hegel, sob
a orientaçã.o de [ean Hyppolite Morre em 25 de junho de 1984.
Martins Fontes
São Paulo 200ó
I'
,I

íNDICE

Esta obra foi publicado originalmente em francês com o título


LE POUVOIR PSYCHIATRIQUE por Éditions du Seuil, Paris,
Copyright © SeuillGallimard, 2003,
Copyright © 2006, Livraria Martins Fontes Editora Lida"
São Paulo, para a presente edição,

"Ouurage publié ",!ec le Co"cours du Mlnistcr. Françals char,~~


de Ia Cu/ture - Centre Not ional du Livre,"
"Obra publicada com a colaboração do Ministério Francês
da Cultura - Centro Nacional do Livro,"

I' edição 2006

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (ClP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nota , ", , " " , . XI
Foucault, Michel, 1926-1984.
O poder psiquiátrico: curso dado no College de France
(1973-1974) / Michel Foucault ; edição estabelecida por [ac-
ques Lagrànge, sob a direção de François Ewald e Alessandro AULAS, ANO 1973-1974
Fontana; tradução Eduardo Brandão ; revisão técnica Salma
Tannus Muchail, Márcio Alves da Fonseca. - São Paul~ :
Martins Fontes, 2006, - (Tópicos) Aula de 7 de novembro de 1973 . 3
Título original: Le pouvoir psychiatrique : cours nu Cole-
l ( ~.?p.9.Soasilar e ordem discipljnar, - Operação te-
ge de France, 1973-1974, i rapêutica e tratamento moral". - Cenas de cura.
.~i - ..Q.s...deslQ.çamen.tQ~u~.fetuad.m,.
11
, I
Bibliografia,
ISBN 85-336-2276-7
pelo rela-
.cl1.~s.0~_JIl.

I. Doenças mentais - História 2. Psiquiatria - Filosofia I.


i ' ...ção à História da loucura: (1) De uma análisedas
Lagrange, [acques, li, Ewald, François. Ill. Fontana, Alessan- \ \ representações" auma I' au_ªlítiçét do PQQe["i.(2)
/I

dro. IV. Título, V,Série.

06-2871 COO-616.89001
I Da ./::j_':?l:~!.lç,@:~~ª-~~~i~otis~ca,~Q_-P?der".;
~3)_Das.
. ."regúlandades.ms.tituçl01Wl$~.ª?_.:/çll$P'ºgÇQ~.$.~/_~o
Índices para catálogo sistemático; \ poder.
., ..•. .a_
1. Ética eloucura : Psiquiatria iCiências médicas 616,89001
2. Loucura e ética: Psiquiatria: Ciências médicas 616.89001
Aula de 14 de novembro de 1973 _ . 25
Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à Cena de cura: Jorge Ill, Da "macrofísica da sobe-
Livraria Martins Fontes Editora 'us« rania" à "microfísica do poder" disciplinar. - A no-
Rua Conseiheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
. 'rei. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042 vafigura do louco. - Pequena enciclopédia das ce-
c-maii: info@ft;Jartinsfontes.com.br http://www.martinsfontes.com.bl. nas de cura; - Prática da hipnose e histeria. ., A
cena psicanalítica; cena antipsiquiátrica. - Mary

r
Barnes em Kingsley Hall. - Manipulação da lou- nas práticas protopsiquiátricas ao psiquiatra como
cura e estratagema de verdade: Mason Coxo "agente de intensificação" do real. - Poder psi-
quiátrico e discurso de verdade. - O problema da
Aula de 21 de novembro de 1973 49 simulação e da insurreição dos histéricos. - A
Genealogia do "poder de disciplina". O "poder de questãodo nascimento da psicanálise.
soberania". A funç.io-sujeito nos poderes de dis- li

ciplina e de soberania. - Formas do poder de disci- Aula de 19 de dezembro de 1973...................................... 179


plina: exército, polícia, aprendizagem, oficina, es- o. poder psiquiátrico. - Uma terapia de François
cola. - O poder de disciplina como "instância Leuret e seus elementos estratégicos: 1? a dese-
normalizadora". - Tecnologia do poder de discipli- quilibração do poder; 2? a reutilização da lingua-
na e constituição do "indivíduo". - A emergência gem; 3? o arranjo das necessidades; 4? o enun-
das ciências do homem. dado da verdade. - O prazer da doença. - O dis-
positivo asilar.
Aula de 28 de novembro de 1973 . 79
Aula de 9 de janeiro de 1974 . 217
Elementos de uma história dos dispositivos disci-
Poder psiquiátrico e prática da "direção". - O jo-
p~inares: as comunidades religiosas na Idade Mé-
go da "realidade" no asilo. - o. asilo, espaço me-
dia; a colonização pedagógica da juventude; as
dicamente marcado, e a questão da sua direção:
missões jesuíticas no Paraguai; o exército; as ofi-
médica ou administrativa. - As marcas do saber
cinas; as cidades operárias. - A formalização des-
psiquiátrico: (a) a técnica do interrogatório; (b) o
ses dispositivos no modelo do Panopiicon de Jeremy jogo da medicação e da punição: (c) a apresenta-
Bentham. - A instituição familiar e a emergência ~ ção clínica. - "Microfísica do poder" asilar. - A
da função-psi. emergência da função-psi e da neuropatologia.-
O tríplice destino do poder psiquiátrico.
Aula de 5 de dezembro de 1973 . 117
O asilo e a família. Da interdição ao internamen-
to. A ruptura entre o asilo e a família. - O asilo,
,X Aula de
\ '
16 de janeiro de 197~ .,: ; .. 255
Os modos de ~neralg.?-..@.Ç>--S!2.J?g_~s:!.E~!:..q~~~-
uma máquina de curar. - Tipologia dos" apare- trÍç.Q~_ª psiquiatrização_.da.i.llfâucia. - I. A espe-
lhos corporais". - !~~.9 ...~_,sU;;ri.ª'D.~a.
- As ca- cificação teórica da idiotia. o. critério do desen-
sas de saúde. - DispõsHlvõ'saiscll:5finares e po- volvimento. Emergência de um§!-psicopatologia
der familiar. da idiotia e do retardo mental. Edouard Seguin:
,-..,.,1. . o instinto e a anomalia. - 11. A anexação institu-
;/'"Aula de 12 de dezembro de 1973 . 153 cional da idiotia pelo poder psiquiátrico. O "tra-
V I
A.s0~?_~~.~ão da crian~a como al~º.~~~.t~JYen-
ção psiquiátrica. - Uma utopia asilar-familiar: o
tamento moral" dos idiotas: Seguin. O processo
de intemamento e de estigmatízàção.da periculo-
'ã,-silõ"õé-CIermont ..en-Oise. -Do psiquiatra co- sidade dos idiotas. O recurso à noção-de degene-
mo "mestre ambíguo" da realidade e da verdade rescência."-'
Aula de 23 de janeiro de 1974.......................................... 299 Resumo do curso :......................................... 439
O poder psiquiátrico e a questão da verdade: o . Situação do curso .'...... 455
interrogatório e a confissão; o magnetismo e a':
hipnose; a droga. - Elementos para uma história Índices
da verdade: I. A verdade-acontecimento e suas Índice das noções.................................................... 481
formas: práticas judiciária, alquí~ e médica. - Índice de nomes de pessoas 495
11. A passagem a uma tecnologia da verdade de- Índice de nomes de lugar... 509
monstrativa. Seus elementos: (a) os procedimen-
tos da investigação; (b) a instituição de um sujeito
do conhecimento: (c) a exclusão da crise na me-
dicina e na psiquiatria, e seus suportes: o espaço
disciplinar do asilo, o recurso à anatomia patoló-
gica; as relações entre a loucura e o crime. Po- -l
der psiquiátrico, resistência histérica. I
Aula de 30 de janeiro de 1974.......................................... 345
O problema do diagnóstico em medicina e em
psiquiatria. - O lugar do corpo na nosologia psi-
quiátrica: omodelo da paralisia geral. - O desti-
no da noção de crise em medicina e em psiquia-
tria. - A prova de realidade em psiquiatria e suas
formas: L O interrogatório e a confissão. O ritual
da apresentação clínica. Nota sobre a "herança
patológica" e a degenerescência, - 11.A droga. Mo- .i
. reau de Tours e o haxixe. A loucura e o sonho. -
Ill. O magnetismo ea hipnose. A descoberta do
"corpo neurológico".

Aula de 6 de fevereiro de 1974 387


A emergência do corpo neurológico: Broca e Du- I
chenne de Boulogne. - Doenças com diagnósti-
co diferencial e doenças com diagnóstico absoluto.
I
- O modelo da "paralisia. geral" e as neuroses. -
A batalha da histeria: 1.A organização de um "ce-
nário sintomatológíco". - lLA manobra do "ma- I
nequim funcional" e a hipnose. A questão da simu-
lação. - III. Neurose e traumatísmo. A irrupção do
I
corpo sexual.

I
------------------------------------------ - ------

NOTA

Michel Foucault ensinou no College de France de janeiro


de 1971 até a sua morte em junho de 1984 - com exceção de
1977, quando gozou de um ano sabático. O título da sua ca-
deira era: História dos sistemas de pensamento.
Essa cadeira foi criada em 30 de novembro de 1969, por
proposta de Jules Vuillemin, pela assembléia geral dos profes-
sores do College de France em substituição à cadeira de Histó-
ria do pensamento filosófico, que [ean Hyppolite ocupou até a
sua morte. A mesma assembléia elegeu Michel Foucault, no dia
12 ele abril de 1970, titular da nova cadeira'. Ele tinha 43 anos.
Michel Foucault pronunciou a aula inaugural no dia 2 de
dezembro de 197W
O ensino no College de France obedece a regras parti-
culares. Os professores têm a obrigação de dar 26 horas de

1. Michel Foucault encerrou o opúsculo que redigiu para sua can-


didatura com a seguinte fórmula: "Seria necessário empreendera his-
tória dos sistemas de pensamento" ("Titres et travaux", in Dits et Écrits,
1954-1988, ed. por D. Defert e F. Ewald, colab. J. Lagrange, Paris, Calli-
mard, 1994; cf. voI. 4, t. I, p. 846).
2. Publicada pelas Éditions Gallimard em maio de 1971 com o
título: L'Ordre du discoure.
XII o PODER PSIQUIÁTRICO XIII
NOTA

aula: por ano (metade das quais, no máximo, pode ser dada ca concessão ao modernismo de uma sala mal iluminada pela
na forma de seminários'). Eles devem expor cada ano uma pes- luz que se eleva de umas bacias de ,estuque. Há trezentos lu-
quisa original, o que os obriga a sempre renovar 0f.0nteúdo gares e quinhentas pessoas aglutma~as, ocup~ndp ,tod? e
do seu ensino. A freqüência às aulas e aos seminári s é intei- l
qualquer espaço livre [... Nenhum efeito orator:o. E ~mpldo
ramente livre, ~equer inscrição nem diploma. E o profes- e terrivelmente eficaz, t:J~~~.!!l~!~Q~S..9l1ce.~9-(). ~o.~IlJ.I2Jo-
sor também não fornece certificado algum'. No vocabulário viso. Foucault tem doze horas por ano para explicar, num
do College de France, diz-se que os professores não têm alu- ~o público, o sentido da sua pesquis~ durante o ano que
nos, mas ouvintes. J. acaba de passar. Então, compacta o mais ~ue p~de e er:che
O curso de Michel Foucault era dado todas as quartas- fei- I
as margens como esses missivistas que ainda tem mUlt? a
ras' do começo de janeiro até o fim de março [ou do início de dizer quando chegam ao fim da folha. 19h15, ~ou~ault para,
novembro ao início de fevereiro, como este (N. doT.)]. A assis- Os estudantes se precipitam para sua mesa._Nao, e para falar
tência, numerosíssima, composta de estudantes, professores, com ele, mas para desligar os gravadores. Nao ha pergunta~,
pesquisadores, curiosos, muitos deles estrangeiros, mobilizava Na confusão, Foucault está só." E Foucault comenta: "Sena
dois anfiteatros do College de France. Michel Foucault quei- bom poder discutir o que propus. As vezes, quando a au~a
xou-se repetidas vezes da distância que podia haver entre ele e não foi boa, pouca coisa bastaria, uma pergunta, para por
seu" público" e do pouco intercâmbio que a forma do curso tudo no devido lugar, Mas essa pergunta nunca ,:em. ~e fato,
.possibílitava". Ele sonhava com um seminário que servisse de na França, o efeito de grupo torna qualquer discussão real
espaço para um verdadeiro trabalho coletivo. Fez várias tenta- impossíveL E, como não há canal de retor~o, o c~rso se tea-
tivas nesse sentido. Nos últimos anos, no fim da aula, dedicava traliza. Eu tenho com as pessoas que estao aqUl uma rela-
.um bom momento para responder às perguntas dos ouvintes. ção de ator ou de acrobata. E, quando acabo de falar, uma
Eis como, em 1975, um jornalista do Nouvel Obseroateur, sensação de total solidão ..."6, '
Gérard Petitjean, transcrevia a atmosfera reinante:~Quan- ~b . Michel Foucault abordava seu ensino como um pesqUl-
dç FQ!!cault ~!1!Eana aren.~,np.id._.Q,
..d~.· . Ot..Ç9fI:1U..alguéin '-'~( / sador: explorações para um livro por vir, desbravamento tam-
q1te p.uTãJiãJigu,a; Je:m:]~E.B:ssar_porQEl~~~yan_<??..._CQLpOS . Yo

~~==~~ar~~:~~r
bém de campos de problematização, que se ~ormula~am
ara chegar à suacadeira, afasta oS~.§l.~<E:.e.~.J2ar.apous,ar muito mais como um convite lançado a eventums pesqUlsa-
dores. Assim é que os cursos do College de France não re-
I·'
petem os livros publicados. Não são o esboço ,desses livros,
! mesmo que certos temas possam ser comuns a livros e cur~os,
Eles têm seu estatuto próprio. Originam-se de um regime
3. Foi o que Michel Foucault fez até o início dos anos 1980.
dis,cursivo específico no conjunto dos" atos f~losóficos:' efe-
4. No âmbito do Collegede France.
5. Em.l976, na (vã) esperança de reduzir a assistência, Michel Fou- tuados por Michel Foucault. Ele desenvolve ai, em particular,
cault mudou o horário do curso, quepassou de 17h45 para as 9da ma- o programa de uma genealogia das relações saber/po~e: em
nhã. Cf. o início da primeira aula (7de janeiro de 1976) de "Il faut défendre função do qual, a partir do início dos anos 1970, refletirá seu
Ia société". Cours au Collêge de France, 1976,ed. sob a dir. de F. Ewald.e A.
Pontaria por M. Bertani.e A. Fontana, Paris, Gallimard/Seuil, 1997. [Trad.
bras. de Maria Ermantina Galvão, Em defesada sociedade. Curso no Collêge /6);érardPetitjean, "Les Grands Prêlres de l'université française",
de France (1975-1976), São Paulo, Marfins Fontes, 1999.] ~rd':v;l Observa teu r, 7 de abril de 1975.
XN o PODER PSIQUIÁTRICO

t:abal~o - e~ oposição ao de uma arqueologia das forma- Quando parecia indispensável, as repetições foram su-
çoes discursivas que até então dominara? primidas; as frases interrompidas foram restabelecidas e as
Os cursos também tinham uma função na atualidade. construções incorretas, retificadas.
O ouvinte que assist~a a eles não f~cavaapenas ca ivado pelo As reticências assi~alam que a gravaçâo é inaudível.
1
relato que .se constru:a semana apos semana; não ficava ape- Quando a frase é obscura, figura entre chaves uma integra-
nas seduzido pelo ngor da exposição: também encontrava ção conjectural ou um acréscimo.
neles uma luz para a atualidade. A arte de Michel Foucault Um asterisco no rodapé indica as variantes significativas
estava en: diagonalizar a a.tu~lidade pela história. Ele podia ~~s r:otas utilizadas por Michel Foucault em relação ao que
f~lar de Nietzsche ou de Aristóteles, da perícia psiquiátrica no fDI dito.
seculo XIX ou da pastoral cristã, mas o ouvinte sempre tirava As citações foram verificadas e as referências aos textos
do que ele dizia uma luz sobre o presente e sobre os acon- .utilizados, indicadas. O aparato crítico se limita a elucidar
te cimentos contemporâneos seus. A força própria de Michel os pontos obscuros, a explicitar certas alusões e a precisar os
Foucault em seus cursos vinha desse sutil cruzamento de uma pontos críticos.
fina erudição, de um engajamento pessoal e de um trabalho Para facilitar a leitura, cada aula foi precedida por um
sobre o acontecimento. breve resumo que indica suas principais articulações".
O texto do curso é seguido do resumo publicado no
* Annuaire du Collêg« de France. Michel Foucault os redigia ge-
ralmente no mês de junho, pouco tempo depois do fim do
. Os anos 1970 conheceram o desenvolvimento e o aper- curso, portanto. Era, para ele, uma oportunidade para extrair,
feiçoamento dos gravadores de fita cassete - a mesa de Mi- retrospectivamente, sua intenção e seus objetivos do mesmo.
chel Foucault logo foi tornada por eles. Os cursos (e certos E constituem a melhor apresentação das suas aulas.
seminários) foram conservados graças a esses aparelhos. '. Cada volume termina com uma" situação", de responsa-
Esta edição toma como referência a palavra pronuncia- bilidade do editordo curso. Trata-se de dar ao leitor elemen-
da publicamente por Michel Foucault. Ela fornece a trans- tos de contexto de ordem biográfica, ideológica e política,
crição mais literal possível". Gostaríamos de poder publicá- situando o curso na obra publicada e dando indicações rela-
!a tal qua~. Mas a passagem do oral ao escrito impõe uma tivas a seu lugar no âmbito do corpus utilizado, a fim de faci-
intervenção do editor: é necessário, no mínimo, introduzir litar sua compreensão e evitar os contra-sensos que poderiam
uma pontuação e definir parágrafos. O princípio sempre foi se dever ao esquecimento das circunstâncias em que cada
o de ficar o mais próximo possível da aula efetivamente pro- um dos cursos foi elaborado e dado.
nunciada. O poder psiquiátrico, curso ministrado em 1973, é edita-
do p0!lac,9.~~s L.agra.Q~ .•__

, 7. Cf. em particular "Nietzsche, Ia généalogíe.J'histoíre", in Diis *


et Ecrits, II, p. 137.
, 8. Foram mais especialmente utilizadas as gravações realizadas por
Gerard Burlet e Iacques Lagrange, depositadas no Collêge de France e 9. No fim do volume (pp. 455 ss.), o leitor encontrará os critérios
no IMEC. e as soluções adotadas pelos editores para este ano de curso.
XVI o PODER PSIQUIATRlCO

I. Com esta edição dos cursos no College de France, um


;1'
novo aspecto da "obra" de Michel Foucault é dado à luz.
Não se trata, propriamente, de inéditos, já que esta , '
edição reproduz a palavra proferida em público por Michel AULAS,
Foucault, com exceção do suporte escrito que ele utilizava e
que podia ser muito elaborado. Daniel Defert, que possui as ANO 1973-1974
notas de Michel Foucault, permitiu que os editores as con-
sultassem. A ele nossos mais vivos agradecimentos.
Esta edição dos cursos no College de Prance foi auto-
rizada pelos herdeiros de Michel Foucault, que desejaram sa-
tisfazer à forte demanda de que eram objeto, na França como
no exterior. E isso em incontestáveis condições de seriedade.
Os editores procuraram estar à altura da confiança que ne-
I! les foi depositada.

FRANÇOIS EWALD e ALESSANDRO FONTANA

\
AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973

Espaço asilar e ordem disciplinar. - Operação terapêutica


e "tratamento moral". - Cenas de cura. - Os deslocamentos efe-
tuados pelo curso em relação à História da loucura: (1) De
uma análise das "representações" a uma "analítica do podá";
(2) Da "violência" à "microfísica do poder"; (3) Das "regularida-
des instiiucionais" às "disposições" do poder.

o tema que lhes proponho este ano é o poder psiquiá-


trico' um 'pouco em descontinuidade com o que lhes falei
nos dois anos precedentes, mas só um pouco.
Vou começar procurando contar uma espécie de cena
fictícia, cujo cenário é o seguinte, vocês vão reconhecê-lo, é fa-
miliar a todos:
"Eu ~ueria que esses hospícios fossem construídos em
florestas s~gradas, em lugares solitários e escarpados, no meio
das grandes comoções, como na Grande-Chartreuse, etc.
Geralmente, seria bom que o recém-chegado fosse descido
por máquinas, que atravessasse, antes de chegar ao destino,
lugares sempre mais novos e mais surpreendentes, que os
ministros dess.es lugares usassem trajes originais. O român-
I':
tico convém aqui, e muitas vezes eu me disse que se pode-
riam aproveitar aqueles velhos castelos junto de cavernas
.que varam um morro de lado 11 lado, para chegar a um vale sor-
. ridente [...] A fantasmagoria e os outros recursos da física, a
música, as águas, os relâmpagos, os trovões, etc. seriam usa-
dos sucessivamente e, sem dúvida, não sem algum sucesso
sobre os homens comuns."

*
4 O PODER PSIQUIÁTRICO AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973 5

Esse castelo não é exatamente aquele em que devem a própria relação de objetividade, constitutiva do saber mé-
se desenrolar os Cento e vinte dias'; é um castelo em que de- dico e critério da sua validade, tem por condição efetiva de (
vem se desenrolar dias muito mais numerosos e quase in- possibilidade certa relação de ordem, certa distribuição do
finitos' é a descrição de um asilo ideal por Fodéré em 1817. tempo, do espaço, dos indivíduos. Para dizer a verdade - aliás,
O que deve acontecer no interior desse cenário? Pois bem, no voltarei a esse ponto =. não se pode nem mesmo dizer" os
interior desse cenário, claro, reina a ordem, reina a lei, rei- indivíduos"; digamos, simplesmente, certa distribuição dos
na opoder ..No interior desse cenário, no castelo protegido corpos, dos gestos, dos comportamentos, dos discursos. Énes-
por esse cenário romântico e alpino, nesse castelo inacessível sa dispersão regrada que se encontra o campo a partir do qual
a não ser usando máquinas complicadas e cujo aspecto deve algo como a relação do olhar médico com seu objeto, a re-
surpreender os homens comuns, dentro desse castelo reina, lação de objetividade, é possível - relação que é apresentada
antes de mais nada, simplesmente uma ordem, no sentido como efeito da dispersão primeira constituída pela ordem
simples de uma regulação perpétua, permanente, dos tem- disciplinarjÊm segundo lugar, essa ordem disciplinar, que apa-
pos, das atividades, dos gestos; uma ordem que envolve os rece nesse texto de Pinel como condição. para uma observa-
corpos, que os penetra, que os trabalha, que se aplica à su- ção exata é, ao mesmo tempo, condiçâo dª.çJ-!ra permllign!e;
perfície deles, mas que também se imprime até mesmo nos ou seja, a própria operação terapêutica, essa transformação a
n'ê!l~~)Ibs
e no que um outro chamava de "fibras moles do cé- partir da qual alguém considerado doente deixa de ser doen-
rebro'". Uma ordem, portanto, pela qual os corpos não são te, só pode ser realizada no interior-dessa.distribuíção re-
mais que superfícies a atravessar e volumes a trabalhar, uma grada do poder. Logo, a condição da relação com o objeto e
ordem que é como uma grande nervura de prescrições, de
da objetividade dó conhecimento médico, e a condição da
sorte que os corpos sejam assim parasitádos e atravessados
operação terapêutica são as mesmas: a ordem disciplinar, Mas
pela ordem.
es~a espécie de ordem imanente, que pesa indiferentemen-
"Não há por que se espantar muito", escreve Pinel, "com
te sobre todo o espaço do asilo, na realidade é perc9,g-j.ª-ªLÍn-
a importância extrema que dou à manutenção da calma e
teiramente animada de ponta a ponta por uma,_~§~!m.etri0,
da ordem num hospício de alienados, e às qualidades físi-
cas e morais que essa vigilância requer, uma vez que essa é que faz que ela seja ligada, e ligada imperiosamente, 'ã:-iliT1á
uma das bases fundamentais do tratamento da mania e que instância única que é, ao mesmo tempo, interior ao asilo e
sem ela não obtemos nem observações exatas, nem uma o ponto a partir do qual se fazem a repartição e a dispersão
curapermanente, não importando quanto se insista, de res- disciplinares dos tempos, dos corpos, dos gestos, dos com-
to, com os medicamentos mais elogiados." portamentos' etc. Essa instância interior ao asilo é ao mes-
Ou seja, como vocês estão vendo, certa ordem, certa dis- \ mo ,tempo dotada de um poder ilimitado, a que nada pode
ciplina, certa_regularid~~e quese apl~ca no pr..óprio interior nem deve resistir. Essa instância, inacessível, sem simetria,
dos corpos sao necessanas a duas COIsas. sem reciprocidade, que funciona assim como fonte de po-
Por um lado, à própria constituição do saber médico, já der, elemento da dissimetria essencial da ordem, que faz com
que, sem essa disciplina, sem essa ordem, sem esse esque- que essa ordem seja uma ordem sempre derivada de uma
ma prescritivo de regularidades não é possível ter uma obser- relação não recíproca de poder, pois bem, é evidentemente
vação exata. A condição do ?lhar médico, sua neutralidade,~ ~Qjca Qu.e.. CQm(Dl.Qcês.yã.Qv,~lA_funç~QnªJ:Qmp
a possibilidade de ele ter acesso ao objeto, em outras palavras, poder muito antes de funcionar como saber.
.' ...
,.'."-"'~"""""""'''''''''''''''''.'''''''-''''''''''''''_!l'"''''''''''''''''''''----''''-~-----'''~-,~--'''''-''''I\
6 o PODER PSIQUIÁTRICO AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973 7

Porque: o que é esse médico? Pois bem, ei-lo que apare- faz com que o asilo não seja, como nos diriam os psicosso-
ce agora, quando o doente foi levado ao asilo pelas espan- ciólogos, uma instituição que funciona de acordo com certas
tosas máquinas de que eu lhes falava há pouco. Sim, tudo regras; é um campona realidade polarizado por uma, dissi-
isso é uma descrição fictícia, no sentido de que eu a cons- metria essencial do poder, que adquire portanto sua forma,
truo a partir de certo número de textos que não são de um só sua figura, sua inscrição física no próprio corpo do médico.
psiquiatra; porque, se fossem de um só psiquiatra, a demons- Mas essepoder domédico, claro; não é o único poder
tração não teria valor. "UtilizeiFodéré: o Tratado do delírio; Pi- que se exerce; porque, no asilo como em toda parte, .0 po-
nel: o Tratado médico-filosófico sobre a mania; Esquirol: ElS ar- der nunca é aquilo que alguém detém, tampouco é o que
tigos reunidos em Das doenças mentais', e Haslam". emana de alguém. O poder não pertence nem a alguém nem,
Então, como se apresenta essa instância do poder dissi- aliás, a um grupo; só há poder porque há dispersão, inter-
métrico e não limitado que atravessa e anima a ordem univer- mediações, redes; apoios recíprocos, diferenças de potencial,
sal do asilo? Eis como ela se apresenta no texto de Fodéré, defasagens, etc. E nesse sistema de diferenças, que será pre-
o Tratado do delírio, que data de 1817, esse grande e fecun- ciso analisar, que o poder pode se pôr em funcionamento.
do momento da preto-história da psiquiatria do século XIX; Vocês têm portanto em torno do médico toda uma sé-
1818: é o grande texto de EsquiroF, é o momento em que o rie de intermediações; os principais são os seguintes:
saber psiquiátrico se inscreve no interior do campo médico e, Os vigilantes, primeiro, aos quais Fodéré reserva a tare-
ao mesmo tempo, adquire sua autonomia como especiali- fa de informar sobre.os.doentes, de ser o olhar não armado,
dade. "Um belo físico,isto é, um físico nobre e másculo, tal- não científico, uma espécie de canalótico através çipquatyai
vez seja, em geral, uma das primeiras condições para ter su- se exercer 6 olhar cíentífico.fsto o-olhar objetivodo prQ.m:!p
é..

cesso na nossa profissão; ele é indispensável em contato com psiquiatra. Esse olhar intermediário, proporcionado pelos
os loucos, para se impor. Cabelos castanhos ou branquea- vigilantes, é igualmente um olhar que deve se voltar para os
dos pela idade, olhos vivos, um porte altivo, membros e um serventes, isto é, para os que detêm o último elo da: autori-
peito que anunciam força e saúde, traços salientes, uma voz dade. O vigilante é,portanto, ao mesmo tempo o mestre dos
forte e expressiva: são essas as formas que produzem em ge- últimos mestres e aquele cujo discurso, cujo olhar, cujas ob-
ral um grande efeito sobre indivíduos que se crêem acima servações e relações devem possibilitar a constituição do sa-
de todos os outros. Sem dúvida, o espírito é o regulador do ,;f ber médico. O que são os vigilantes? Como devem ser? "Há
corpo; mas não se o vê logo de início, ele necessita das for- que exigir num vigilante de insensatos uma estatura de corpo
mas exteriores para arrastar a multidão." bem proporcionada, músculos cheios de força e vigor, uma
Logo, como vocês estão vendo, a própria personagem vai postura altiva e intrépida, se for o caso, uma voz cujo tom
inicialmente funcionar ao primeiro olhar. Mas, nesse primei- seja fulminante, quando necessário; além disso, ele deve ser
ro olhar, que é aquilo a partir do que se estabelece a relação de uma probidade severa, ter costumes puros, uma firmeza
psiquiátrica, o médico é essencialmente um corpo, mais pre- compatível com formas doces e persuasivas [...] e uma do-
cisamente, é um físico, certa caracterização, certa morfologia cilidade absoluta às ordens do médico."?
bem precisa, em que há a amplitude dos músculos, a largura Enfirrr-- eu passo por cima de certo número de interme-
do peito, a cor dos cabelos, etc. E essa presença física, com .. diações -,I a última etapa é constituída pelos serventes, que
essas qualidades, que funciona como a cláusula de dissime- detêm um poder curiosíssimo. De fato, o ser/ente é o últi-
tria absoluta na ordem regular do asilo, é essa presença que mo intermediário dessa rede, dessa diferença de potencial
8 o PODER PSIQUIATRlCO AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973 9

que percorre o asilo a partir do poder do médico; é portan- como também não devem obedecer aos loucos e como mui-
to o poder de baixo. Mas ele não está embaixo simplesmente tas vezes são inclusive forçados a reprimi-Ios, para conciliar
porque está no último. nível dessa hierarquia; ele está em- a idéia de doméstico com a desobediência e para afastar
baixo também porque deve estar abaixo do doente. Deve estar todo e qualquer desentendimento, será tarefa do vigilante
não apenas a serviço dos vigilantes que estão acima dele, insinuar habilmente aos doentes que aqueles que os ser-
mas a serviço dos próprios doentes; e, nessa posição de ser- vem receberam certas instruções e certas ordens do médi-
viço aos doentes, eles não devem ser, na verdade, mais que co, que não podem desconsiderar sem receber a permissão
o simulacro do serviço aos doentes. Aparentemente obede- imediata deste.'?"
cem às ordens destes, assistem-Ihes materialmente, mas de Vocês têm portanto esse sistema de poder que funcio-
tal modo que, por um lado, o comportamento dos doentes na no interior do asilo e que distorce o sistema regulamentar
possa ser observado por trás, por baixo, no nível das ordens geral, sistema de poder que é assegurado por uma multipli-
que podem dar, emvez de ser visto de cima, como pelos vigi- .cidade, por uma dispersão, por um sistema de diferenças e
lantes e pelo médico. Portanto os doentes vão ser de certo de hierarquias e, mais precisamente, pelo que poderíamos
modo manipulados pelos serventes, que vão olhá-los no ní- chamar de uma disposição tática na qual os diferentes indi-
vel da cotidianidade e na face de certo modo interna da von- víduos ocupam um lugar determinado e cumprem certo nú-
tade que exercem, dos desejos que têm; e o servente vai re- mero de funções precisas. Vocês têm aí, portanto.ium fun-
latar o que é digno de ser relatado ao vigilante, que relatará cionamento tático do poder ou, melhor dizendo, é essa dis-
ao médico. É ele, ao mesmo tempo, que, quando o doente posição tática que permite que o poder se exerça.
dá ordens que não devem ser executadas, terá como tarefa E, se vocês retomarem o que o próprio Pinel dizia sobre
., fingindo estar a serviço do doente, fingindo obedecer-lhe, a possibilidade de obter uma observação num asilo, verão
por conseguinte fingindo não ter vontade autônoma - não que essa observação, que proporciona ao discurso psiquiá-
fazer o que o doente pede, referindo-se à grande autoridade ,r..
trico sua objetividade e sua verdade, só é possível por uma
anônima do regulamento ou à vontade singular do médico. distribuição tática que é relativamente complexa - digo "re-
Com isso, o doente, que é manipulado pela observação do lativamente complexa" porque o que acabo de dizer ainda
servente, vai ser manipulado pela vontade do médico, com é muito esquemático. Mas, na realidade, se há efetivamente
quem ele vaiter no mesmo momento em que dá ao servln- esse aparato tático, se é preciso tornar tantas precauções paJ;a
te certo número de ordens, e, nesse simulacro de serviçê, o chegar, no fim das contas, a algo tão simples como a obser-
envolvimento do doente pela vontade do médico ou pelo re- vação, é verossimilmente porque, fl~s~.~~~R..Q regulamentar
gulamento geral do asilo vai ser assegurado. do asilo, há algo que é um perigo, algo que é uma força. Para
Eis a descrição desses serventes nessa posição de ma- que o poqler se exiba assim com tanta astúcia, ou melhor, pa-
nipulação: ra que o universo regulamentar seja povoado por essas espé-
I/§ 398. Os serventes ou guardas devem ser grandes, for- cies de intermediações de poder que o'falseiam e o distorcem,
tes, probos, inteligentes, limpos em sua pessoa e em sua pois bem, é provavelmente porque existe, no próprio cerne
roupa. Para não melindrar a extrema sensibilidade de alguns desse espaço, um poder ameaçador que 'se trata de dominar
alienados, principalmente quanto ao ponto de honra, con- ou de vencer.
viria quase sempre que os serventes parecessem ser muito Em outras palavras, se se chega a tal disposição tática
mais seus domésticos do que seus guardas (...] No entanto, é que o problema, antes de ser, ou melhor, para poder ser o
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I
10 o PODER PSIQUIÁTRICO AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973 11

problema da conhecimento, da verdade da doença e da sua sentidas, nenhuma falsa crença, nenhuma alucinação, a que
f
cura, deve antes de mais nada ser um problema de vitória. chamamos de mania sem delírio.
Logo. é um campa de batalha que está efetivamente arga- Em terceira lugar, vocês' têm uma espécie de loucura
nizado nesse asila. que se aplica às idéias mesmas, que as abala, as torna incoe-
Pais bem, a que há que dominar é, evidentemente, a rentes, que as choca umas cantra as outras, e é isso. que se
louco. Citei há pauco. a curiosa definição. da louco dada por . ( chama mania .
Fodéré, que dizia que a louco é aquele que se crê acima de
fi
Enfim, vocês têm a força da loucura quando. ela se apli-
todos as outros"!'. De fato, é assim que a louco aparece na ca' não. mais ao. domínio geral das idéias assim abaladas e
interior da discurso e da prática psiquiátricas da início. da entrechacadas, m~a uma idéia particular que se encontra
século. XIX, e é aí que se encontra essa grande reviravolta, irjdefíaídameate.reíorçada.e que vai se inscrevérooStInada-
essa grande cIivagem de que já se falou, que é a desapare- mente na comportamento, na discursa, na espírita da doen-
cimento. da critério. da erro para a definição. para a assina- . te; o. que se chama seja melancolia, seja monomania .. ~
lação da loucura. E a primeira grande distribuição dessa prática asilar na
Até a fim da século. XVIII, grosso modo - inclusive na início. da século. XIX transcreve muita exatamente a que acon-
casa das relatórios policiais, mandadas de prisão, interroga- tece dentro da asila, isto. é, a fato. de que se trata, não. mais
tórios, etc., que se referiam a indivíduos em hospícios cama
de reconhecer a erro da louco, mas de situar muita exata-
Bicêtre, cama Charenton -, dizer que alguém era louco, as-
mente a ponto em que a força desencadeada da loucura de-
sinalar sua loucura, era sempre dizer que ele se enganava,
flagra sua ·insurreiçãa: qual é a ponto, qual é a domínio, a
em que, sobre que ponto, de que maneira, até que limite ele
propósito. da qual a força vai se desencadear e aparecer, aba-
se enganava. E era, na funda, a sistema de crença que ca-
lando inteiramente a comportamento da indivíduo,
racterizava a loucura. Ora, a gente vê surgir bruscamente na
Por conseguinte, a tática da asila, em geral, e, mais par-
início. da século. XIX um critério. de reconhecimento e de as-
sinalação da loucura que é totalmente diferente e que é - eu
ticularmente, a tática individual que vai ser aplicada pela mé-
ia dizendo. a vontade". o. que não. é carreta; na verdade, a
fi
dica a este ou aquele doente na âmbito. geral deste sistema
que caracteriza a Iouco, aquilo. por que se assinala a loucura de poder vai ser e deve ser ajustada à caracterização.}dQC;g-
liz.,ê-.s..ã
a .-ª.o-dQmíniG".Qe
I . -ap'1ie:a~oo~à-;sttt-e*f71GsãG"da.JOIçª,e
da louco a partir da início da século XIX, digamos que é a in-
surreição. da força, ou seja, na louco, uma certa força se desen- do. seu desencadearp.>llto~De ma da que, se é mesma esseo
cadeia, força não. dominada, força talvez não. dominável. que ab'fétiVõ cfá"Tálléã''';silar, se é mesma esse o. adversário. des-
assume quatro, formas principais conforme a domínio em sa tática -I~ande fo.rçadesencadeada da 100l,lÇl!I'a, -, pais bem,
que se aplica e a campa em que faz suas devastações. que pode ser a cura, senão. a~~a? É as-
Vacês têm a forçapura da indivíduo. que é, segunda a sim que encontramos em Pínel essa definição. muita sim-
caracterização. tradicional, chamada de "furioso". ples mas, creia, fundamental da terapêutica psiquiátrica, de-
Vacês têm a força na-medida em que ela se aplica aos finição. que vocês não. vão. encontrar antes dessa época, apesar
instintos e às paixões, a força desses instintos desencadeá- do. caráter rústica e bárbaro que ela pode apresentar. A te-
das, a força dessas paixões sem limite; e é isso. que vai carac- rapêutica da loucura é" a arte de subjugar e de domar, par
terizar justamente uma loucura que não. é uma loucura de assim dizer, a alienada, pondo-o na estreita dependência de
erro, uma loucura que não. comparta nenhyma ilusão. das um homem que, par suas qualidades físicas e morais, seja

. ;
!

12 o PODER PSIQUIATRICO AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973 13

capaz de exercer sobre ele um império irresistível e de mu- Eis um exemplo desse primeiro esboço da grande cena
dar a corrente viciosa das suas idéias?". dado por Pinel no Tratado médico-filosófico.
Nessa definição da operação terapêutica por Pinel, te- Diante de um alienado furioso, o vigilante" avança com
nho a impressão de que tornamos a cruzar um pouco em um ar intrépido, mas lenta e gradativamente na direção do
alienada, e, para evitar exasperá-lo, não leva nenhuma arma;
diagonal com tudo o que eu disse a vocês. Primeiro, o prin-
fala com ele enquanto avança, com o tom mais firme e mais
cípio de estreita dependência do doente em relação a certo
ameaçador e, com intimações calculadas, continua a fixar
poder; esse poder tem de estar encarnado num homem, e
toda a atenção dele, para furtar-lhe a visão do que aconte-
somente num homem, o qual exerce esse poder não tanto em
ce em volta. Ordens precisas e imperiosas de obedecer e de
função e a partir de um saber, quanto em função de quali-
se render; o alienado, um tanto desconcertado com essa pos-
dades físicas e morais que lhe permitem exercer um impé-
tura altiva do vigilante, perde qualquer outro objeto de vis-
rio que não pode ter limites, um império irresistível. E é a ta e, a certo sinal, é de repente atacado pelos funcionários
partir daí que se torna possível a mudança da corrente vicio- de serviço, que avançavam a passos lentos e como sem ele
sa das idéias, essa ortopedia moral, digamos assim, a partir saber; cada um deles agarra um membro do furioso, um o
da qual a cura é possível. E é por isso que, finalmente, en- braço, outro uma coxa ou uma perna?". '
contramos como ata terapêutica fundamental, nessa preto- Ele dá em complemento a conselho de utilizar certo nú-
i
J, prática psiquiátrica, algumas cenas e uma batalha. ,11 mero de instrumentos, por exemplo "um semicírculo de ferro"
,r Na psiquiatria dessa época, vocês vêem distinguirecllse na ponta de uma vara comprida, de maneira que, no momen-
nitidamente dóis tipos de intervenção. Um, que é regular e to em que o alienado está fascinado pela altivez do vigilante,
continuamente desqualificado no primeiro terço da século só preste atenção no vigilante e não veja que se aproximam
XIX: a prática propriamente médica ou medicamentosa, De- dele, nefse momento, que avançam em sua direção essa es-
pois vocês vêem, ao contrário, desenvolver-se uma prática pécie de lança terminada por um semicírculo e imprensam-no
que se chama "tratamento moral", que foi inicialmente de- contra .a parede de tal maneira que por fim o dominam. É
finida pelos ingleses, essencialmente por Haslam, e rapida- essa, digamos, a cena imperfeita, a que é reservada ao vigi - .
mente adotada na França". lante,a que consiste em quebrar a força descontrolada do
E esse tratamento moral não é, absolutamente, como alienado por essa espécie de violência astuciosa e súbita.
se poderia imaginar, uma espécie de processa de longa pra- Mas é óbvio que não é essa a grande cena da cura. A cena
zo que teria essencialmente como função primeira e termi- da cura é uma cena complexa. Eis um exemplo famoso no
nal fazer surgir a verdade da loucura, poder observá-Ia, des- Tratado médico-filosófico de Pinel. Era um rapaz que era" do-
crevê-Ia, diagnosticá-Ia e, a partir daí, definir a terapêutica. minado por preconceitos religiosos" e que pensava que para
A operação terapêutica que se formula desde esses anos .de alcançar sua salvação devia "imitar as abstinências e as ma-
1810-1830 é uma cena, e é uma cena de enfrentamento. Essa cerações dos antigos anacoretas", isto é, rejeitar não ape-
cena de enfrentamento pode ádqumr ãOlS aspectõ's. Um, , nas, é claro, todos os prazeres da carne, mas também qual-
1 digamos, incompleto, que é coma que a' operação de des- quer alimentação. Um belo dia ele recusa com mais dureza
í
gaste, de teste, que é exercida, não pela médico - porque o que de costume uma sopa que lhe servem. "O cidadão Pussin
médico, evidentemente, deve ser soberano -, mas que é exer- se apresenta de noite à porta da sua cela com um aparato
1
!. cida pelo vigilante. ["aparato" no sentido do teatro clássico, é claro; M.F.] próprio
I
i
14 o PODER PS!QUlÁTRICO AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973 15

para assustar, olhos em fogo, um tom de voz fulminante, ao mesmo tempo a vitória da vontade do médico sobre a do
umgrupo de serventes à sua volta, armados com fortes cor- <1oente. '
rentes, que agitam ruidosamente: põem uma sopa junto do <A} 'I~! Em quarto lugar, o que é importante nessa c.ena ,é.que
alienado e dão-lhe a ordem mais clara de tomá-Ia durante acaba se dando um momento em que a verdade se manifes-
a noite, se não quiser sofrer os mais cruéis tratamentos; re- ta; é o momento em que o doente reconhece que sua cren-
tiram-se e deixam-no no mais penoso estado de flutuação, ça na necessidade de jejuar para alcançar sua salvação era
entre a idéia da punição que o ameaça e a perspectiva apa- errada e delirante, em que ele reconhece o que aconteceu,
vorante dos tormentos da outra vida. Após um combate in- em que confessa que passou por certo número ,de fl~tu~-
terior de várias horas, a primeira idéia prevalece e ele se de- ções, de hesitações, de tormentos, etc. Em suma, e op:opno
termina a ingerir sua alimentação. Submetem-no depois dis- relato do doente que constitui, nessa cena em que ate ago-
so a um regime destinado a restaurá-Io; o sono e as forças ra a verdade nunca interveio, o momento em que a verdade
retomam gradativamente, assim como o uso da razão, e ele \ se manifesta.
escapa desse modo a uma morte certa. Foi durante a sua I ) E, último ponto, é quando essa verdade é assim adqui-
convalescença que ele me confessou suas agitações cruéis e ':! rida, mas por intermédio da confissão e por int~rmédio de .
suas perplexidades durante aquela noite da sua provação."'5 um saber médico reconstituído, é no momento efetivo da con-
Temos aí uma cena importantíssima, creio eu, em sua mor- fissão que se efetua, consuma e sela: o processo da cura.
fologia geral. Vocês têm aí portanto toda uma distribuição da força,
Em primeiro lugar, como vocês vêem, a operação tera- do poder, do acontecimento, da verdade, que não é de ma-
I! pêutica não passou pelo reconhecimento, operado pelo mé- neira nenhuma o que se pode encontrar num modelo que . J
dico, das causas da doença. Nenhum trabalho diagnóstico se poderia dizer médico e que estava se constituindo na mes- /IlLV" ~
ou nosográfico, nenhum discurso de verdade são requeridos ma época na medicina clímca. Na me&cma CHmcada epoca,
pelo médico para que sua operação tenha êxito. podemos dIzer que se constituía ce:to mod~lo .e?istemoló~-
Em segundo lugar, é uma operação que é importante co da verdade médica, da observaçao, da objetividade, que Ia
porque, como vocês vêem, não se trata de modo algum, num permitir que a medicina se inscrevesse efetivamente n~ in-
caso como esse e em todos os casos semelhantes, de apli- terior de um domínio de discurso científico em que ela 18 se
car a algo que seria considerado como processo ou compor- juntar, com suas modalidades pr~prias, à fisiologia, ~ biol?-
tamento patológico uma receita técnica médica; trata-se do gia. etc. O que acontece nesse penodo de 1800-1830 e, creio, ~ 7-r;').
choque de duas vontades: a do médico e daquele que o re- algo bem diferente do que se tem o costume de crer. Perece- I
presenta, de um lado, e a do doente. É portanto uma batalha, me que, de ordinário, interpreta-se o que ~co~te~eunesses IJPtJ~
certa relação de força que se estabelece. trinta anos como o momento em que a pSIQ,matna vem en-
Em terceiro lugar, essa relação de força tem por primei- . inscrever-se no interior de uma rática e de um saber mé- f
I
ro efeito suscitar uma segunda relação de força dentro, de "dicosél.911e-ela tinha sido até então r~ a~iva~ente estran a./
certo modo, do próprio doente, já que se trata de suscitar Tem -se o hábito de pensar que a pSlqmatna aparece nesse
um conflito entre a idéia fixa a que o doente se agarrou e o momento, pela primeira vez, como uma especIalIdade den-
medo da punição - um combate que provoca outro. E todos tro do domínio médico. .'
os dois, quando a cena é bem -sucedida, devem remeter a Parece-me - sem colocar ainda o problema de saber por
uma vitória, a vitória de urna idéia sobre outra, que deve ser que uma pratica como essa pôde efetivamente ser conside-
16 o PODER PSIQwATRICO AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973 17

rada prática médica, por que foi necessário que pessoas que
-,~~
tudar sobretudo a.. i~ag~m: gue se tinha da loucura nos
faziam essas operações fossem médicos =, sem encarar esse séculos XVII e XvfifomeêIõ'que ela suscitava, o saber a seu
: problema, dizia eu, parece-me que, entre os que podemos respeito que se formava, seja tradicionalmente, seja a partir
I "
considerar como fundadores da psiguiatria, a operação mé- de modelos botânicos, naturalistas, médicos, =. ?_~~_.~sse
dica que efetuamtq.uando curam não tem em sua mo~lo- (,!:úc1eo de re2r~~~Q!qçge~ ...skl!!:~1ens tE~~i~n~s ,ou não,
gia, em sua disposlção geral, praticamente nada a ver:om ae~?~~gL~~er, etc., era essa especle ~~l}.1fr-2,ge
o q)]e está se tornando a experiência, a observação, a ativi- rep'r~vS~Qt~Ç,.ª-~'§"'Q.JJ~
..gyJ!.!)h.a..,s.ºLQ.c.ad.o.
"~~P}Q .PQDtQ.....L12ar-
dade diagnóstica, O processo terapêutico da medlcma. Esse tic;!af.ÇQl1!C?l~~J?;,~~.~~.q~e_~;,,?rigi}1~~
?s..J2r~t!~a~<Jue puderam
acontecimento, essa cena, esse procedimento são, creio, nes- ser concnefizadas a propósito da loucura nos seculos XVII e
se nível, desde esse momento, absolutamente irredutíveis XVIII. Em suma, eu havia concedido um privilégio ao que
ao que acontece na mesma época na medicina. ' poderíamos chamar de percepção da loucura 17.
É portanto essa heterogeneidade que vai marcar a his- Ora, agora eu queria tentar ver, neste segundo volume,
tória da psiquiatria no momento mesmo em que ela se fun- se é possível fazer uma análise radicalmente diferente, no
da no interior de um sistema de instituições que a vincula, sentido de que eu queria ver se não se pode colocar no pon ~
entretanto, à medicina. Pois tudo isso, essa encenação, a or- to de partida da análise, não mais essa espécie de ~ú::l~o re-
ganização do espaço asilar, o desencadeamento e o desen- presentativo que remete necessariamente a.uma.~lstona das
rolar dessas cenas, só é possível, só é aceito e só é institucio- mentalidâdes, do pensamento, ~l~':.~_~lSp'O~,~t,~:,.? _de po-
nalizado no interior de estabelecimentos que recebem nes-
sa época o estatuto médico, e da parte de pessoas que têm
a qualificação médica. '
sei"produtor de c~rto ~úl11~~~",~e ~.~'!.;:,~~~ª<Z'?~
e~-p~~-;ã:e.~2:~s
,ª~..
der. Ou seja: em que medida um dispositivo de p.?.a.erpnue
~~os
as124Il'l?.?.~.ª-.~."I~p.I~sE;maçoes

*
quê'"p'OtlempõSfenormente r. *] daí decorrer?
O'aisposinvô-õêpõêier como instância produtora da prá-

, Temos aí, por assim dizer, um primeiro pacote de pro- tica discursivas que ayn~~~~~1~~~~9,~.P29';L~~~-
ria,...~m-.J4ª,Ç.~Q..
eeao,..q, ~.:ê~B:~~"éllqu..~2"~,&:~.L.~~T:'~':;~,,".:-:-,,,a
blemas. É o ponto departídado que eu queria estudar um tf(~rã.Vra "fundamental" não me agrad? ~Ult?·~, âi~amosn.um
pouco este ano; Grosso modo, é à ponto de chegada ou, em nível que permitiria apreender a pratica discursiva preC1s~-
\'
todo caso, de interrupção 10 trabalho que eu ha~.·a feito antes
mente no pçmto em que ela se forma. ~~Y~ll},S~~~~~~nr,
l

na História da loucura", E nesse ponto de che ada que eu


gostaria de retomar as coisas; só que com cert número de 911à~~X:~~~~C!;:'~~r~~~~,~~;;~~~&~~~~~~~?_
diferenças. Parece-me que, nesse trabalho, de que me sirvo s,entação, o sujeito, ete., e portanto apelar para urna psicolo-
como. referência porque é, para mim, uma espécie de back-
gia e para uma filosofia já constituídas, se se buscar a ~ela- A

ground para o trabalho que faço agora, havia certo núme-


ção entre prática discursiva e, digamos, estrutur~s ec~norrncas,
ro de coisas que eram perfeitamente criticáveis, sobretudo
relações de produção, etc. O problema que esta e~ Jogo. ~ara
no último capítulo em que eu chegava precisamente ao po-
mim é este: no fundo, não são precisamente os dispositivos
der asilar.
Em primeiro lugar, creio que eu havia ficado numaaná-
lise das fe.p.resentaçõe's. Parece-me que eu ~inha tentado es-
'I
•.Gravação: "se formar a partir daí e...".
" AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 19703
18 o PODER PSIQUIÁTRICO

em ~ltima instância, o corpo. Todo poder é físico, e há entre o


de poder; com o que essa palavra - "poder" - ainda tem de
corpo e o poder político uma ~ga5ãc~dir:ta. ,
enigmático e que vai ser preciso explorar, o ponto a partir do
Depois, essa noção, de violência nao me p,a:ec:~Ulto
qual deve-se poder assinalar a formação das práticas dis-
satisfatória, porque ela deixa supor que o exer~lcIO fIS1.CO de
cursivas?Como esse arranjo do poder, essas táticas e estra-
uma força desequilibrada não faz parte de um Jogo racional.
tégias do poder podem dar lugar a afirmações, negações,
calculado, administrado, do exercício do poder. Ora, os exem-
experiências, teorias, em suma, a todo um jogo da verdade?
plos que eu lhes citei há pouco pr?vam clarament~ que o
Dispositivo de poder e jogo de verdade, dispositivo de po-
poder tal como s~ .exerce no a~il.o e ~m pod~r metIculos?,
der e discurso de verdade, é um pouco isso qué eu gostaria calculado, cujas táticas e estratégias sao p~r~eItan;ente de.fi-
de examinar este ano, retomando no ponto de que falei: o nidas: e no interior mesmo dessas estrategias, ve-se muito
psiquiatra e a loucura. exatamente quais são a posição e o papel da violênc~a, s~ se
Segunda critica que faço a este último capítulo é que ape- Ihamar de violência o exercício físico de uma.f?rça_mte!r~-
lei - mas, afinal de contas, não posso dizer que tenha feito, mente desequilibrada. Tomado em suas ra:mf~c~ço~s, últi-
isso muito conscientemente, porque eu era muito ignoran ., mas, em seu nível capilar, onde ele toca o propno ~ndlVlduo,
te acerca da antipsiquiatria e, principalmente, da psicosso- o poder é físico e, por isso me~mo, viol~~t<?,no sentid? de que
ciologia da época -, apelei, implícita ou explicitamente, para i-perfeitamente irregular, r:ao no sentido de que e desen-
três noções que me parecem fechaduras enferrujadas com fÍeadO.L,mas,ao contrano, no sentido de que obedece a to~~
as quais não dá para ir muito longe. ãS disposições de uma espécie de n:icrofí~ica dos corpgs. _
Primeiro, a noção de violência". O que de fato me im- ~ Segunda noção a que me refen e, creio, de man~Ira nao
pressionou quando li, naquele momento, Pinel, Esquirol, etc., muito satisfatória, é a de instituição 19. Tinha me parecido que
é que, ao contrário do que contavam os hagiógrafos, Pinel, se podia dizer que, a partir do início do sécul? XIX,:: saber
Esquirol e os outros apelavam muito para a força física; e, psiquiátrico havia adquirido as formas e ~s dimensões que
por conseguinte, pareceu-me que não se podia creditar a re- conhecemos em ligação com o que .poderia ser chama~o de
forma de Pinel a um hurnanismo, porque toda a sua prática institucionalização da psiquiatria; mais precisamente ainda,
ainda era atravessada por algo como a violência. com certo número de instituições de que o asilo era a forma
Ora, se é verdade que de fato não se pode creditar a,re- mais importante. Ora, não creio tampouco que a noçãode
forma de Pinel ao humanismo. não creio que seja porque ele instituição seja muito satisfatória. Parece-.me que ela encerra
\. recorre à violência\ ~<llD-!Jll!an~9~~ fala d~-.YioIÇrl_çtª,_~.~,ªí certo número de perigos porque, a partír do momento em
\ .m!e essa noção me incom~~,::_~~~t;2P.E::_~~_!~~,E~e..~.~12!~H~~e~- que se fala de~i~uições, fa~a~se,no fu,nd?, ~º
mesmo te.n:-
pírTIoumã€"Spécteâe-conotaçao que se refere a um poaer fJ- po de ir:'-ji~.9.uos ~ de COletlVl~~~, .?- mdlVlduo,t ~()!etlVl-
sico, a um poder irregular, passionaI, a um poder desenfrea- d'ãCIeeas regras,que as regem Ja estao dados, e, por c,or:se-
_ do, se ouso dizer. Ora, essa noção me parece perigosa porque, gúinte, pode-se precipitar aí t~dQS os discursos pSlcolo@;!cos
de um lado, ela deixa supor, esboçando assim um poder físi- ôuSociofógicC2.s*.
fIIIt" -
co, irregular, etc. que o bom poder ou o poder pura e simples-
mente, aquele que não é atravessado pela violência, não é um
* O manuscrito acrescenta: A instituição neutraliza as relações de
poder físico. Ora, parece-me ao contrário que o que há de es- /I

força ou só as faz atuar no espaço que ela define."


sencial em todo poder é que seu ponto de a:rlicação é sempre,
1

I'
i .
'IJil
i' 20 O PODER PSIQUIÁll~R1CO AULA DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973 21
I I
; o que se deveria mostrar, na verdade; é que o essen- outra coisa senão reproduzir a família em benefício de ou a
,i, ,• cial não é a instituição com sua regularidade, com suas re-
í' pedido de certo controle estatal, organizado por um apare-
"
gras, mas sim, precisamente, esses desequilíbrios de poder, lho de Estado". Não é nem o aparelho de Estado que pode
, !! sobre os quais tentei lhes mostrar como falseavam e, ao mes- servir de fundamento". nem a farru1ia que pode servir de mo-
i
mo tempo, faziam funcionar a regularidade do asilo. O im- delo [", **] nessas relações de poder que podemos detectar'
portante, portanto, não são as regularidades institucionais, no interior da prática psiquiátrica,
, !
I mas muito mais as disposições de poder, as redes, as cor- Creio que o problema que se coloca é - prescindindo-
. i rentes, as intermediações, os pontos de apoio, as diferenças se dessas noções e desses modelos, isto é, prescindindo-se
de potencial que caracterizam uma forma de poder e que, do 11,1ºq~Jgefamiliar, da norma, se preferirem, do aparelho de
creio, são precisamente constitutivos ao mesmo tempo do Estado, da noção de instituição, da noção de violência - fa-
indivíduo e da coletividade. . zer a análisedessas relações rj.~~.P9.,g~.~p[ópri?-sd~p.r~a
O indivíduo, parece-me, não é mais que o efeito do.po- pslqUlatnca..name-diiia.emqüe.. - e será esse o objeto do cur-
der, na medida em que o poder é um procedimento de in- so - são prodytQLE2de...f~!toE.~rrH~E2-~~~r:~ci.ad~?g\l~.se
dividualização. E é sobre o fundo dessa rede de poder, que apresentam ..como._enunciadosJegítimo.s" ..Logo, em vez de
funciona em suas diferenças de potencial, em seus desvios, falar de .Y.iolênçip, eu preferiria falar de 1J}i8:ofí..~iç(l
d~.po2er;
que algo como o indivíduo, o grupo, a coletividade, a institui- em vez de falar deiP~tituição, preferiria procurar ver quais
ção aparece. Em outras palavras, aquilo com que se tem de s~o as tátiça.?, que são postas em ação nessas forças que se
lidar, antes de lidar com as instituições, são as relações de for- enfrentam; em vez de falar de modelo familiar ou de apare- /I

ça nessas disposições táticas que perpassam as instituições. lho de Estado", o que eu gostaria de procurar ver a estra- é

Enfim, a terceira noção a que me referi p~~t~xplicar esse


funcionamento do asilo no início dó século Af' é a família,
I tégia. dessas. relações de poder e .desses ~rfrentam~D.~o~,ql1t:;

e eu havia gr.osso modo procurado mostrar que a violência de se d~6~;~~ dI~~r.~~~~·l~~IT~t~~Úo substituir violência
Pinel [ou] a de Esquirol tinha sido a de introduzir QJ!lC2ge- por microfísica do poder, instituição por tática, modelo fa-
loLélJ.lliliqr,,!,~a
inStitu~ asilif-°. Ora, creio que "violênciafnão miliar por estratégia; avancei alguma coisa com isso? Evitei
"'éap'âIãV'ra a~ .~fu:e""mstituição" também não é o ní- termos que permitiam a introdução, em todas essas análises,
vel de análise em que devemos nos colocar, e não creio que dó vocabulário psicossociológico, e agora me vejo diante de
seja tampouco de família que se deva falar. Em todo caso, um vocabulário pseudomilitar, que não deve ser muito me-
. *** .
lhor. Mas vamos tentar ver o que po demos f azer com ISSO
.relendo Pinel, Esquirol, Fodéré, etc., afinal 'encontrei muito
pouco a utilização desse modelo familiar. E não é verdade
que é a imagem ou o personagem do pai que o médico pro- * O manuscrito 'precisa: "Não se pode utilizar a noção de apare-
cura reativar no interior do espaço asilar; isso vai se produzir ,lho de Estado, porque ela é ampla demais, abstrata demais para desig- .
muito mais tarde, no fim mesmo, creio, do que poderiamos nar esses poderes imediatos, minúsculos, capilares, que se exercem sobre
o corpo, o comportamento, os gestos, o tempo dos indivíduos. O apare-
chamar de episódio psiquiátrico na história da medicina,
lho de Estado não dá conta dessa microfísica do poder."
isto é, somente no século XX.
** Gravação: "o que acontece".
Não é a família, não é tampouco o aparelho de Estado; *** O manuscrito (ff. 11-23) prosseguia sobre a questão de definir
, e, creio, seria igualmente equivocado dizer, como tantas ve- o que é o problema da psiquiatria atualmente e propunha uma análise
zesse diz, que a prática .asilar, o poder psiquiátrico não fazem da antipsiquiatria. I

• I
AUUi DE 7 DE NOVEMBRO DE 1973 23

NOTAS
Londres, J.ICallow, 1809; [2] Considerations on the Moral Manage-
ment of lnsane Persons, Londres, R. Hunter, 1817., ., ,
7. J. E. D. Esquirol, D~s établissements con~acres az:x alzene~ ~n
France, et des moyens d'améliorcr le sort de ces infortunés (Memo~la
apresentada ao ministro do Interior em setembro de.1818), Pans,
impr. de Mme Huzard. 1819; republicado in Des maladies mentales ...,
op. cit., t. II, pp. 399-431. ._
8. F. E. Fodéré, Traité du ilélire, op. cii., t. II, seçao VI, capo 3,
"Du choix des administrateurs, des médecins, des employés et des
, servants", pp. 230-1.
9.. Ibid., p. 237.
)0. Ibid., pp. 241-2.
'11. Ibid., p. 230. .. _
12. Ph. PineI, Traité médico-phiioeophique. op. cii., seçao n. § VI,
"Avantages de l' art de diriger les alíériés pour seconder les effets
des médicaments", p. 58. .
1. François Emmanuel Fodéré (1764-1835), Traité du délire, ap- 13. O "tratamento moral" que se desenvolve no fim do século
pliqué à Ia médecine, à Ia morale et à Ia législation, t. II, seção VI, capo 2, XVIII reúne todos os meios de intervenção sobre o psiquismo dos
"Plan et distribution d'un hospice pour Ia guérison des aliénés". Pa- doentes, em oposição ao "tratamento f-ísico", que ag~ sobre o cor-
ris, Croullebois,1817, p. 215. \ po através de remédios, meios de contenção. Poi a'p~s a mort~ da
2. Donatien Alphonse François de Sade (1740- ~814), Les Cent mulher de um quaker, ocorrida em 1791, em cortdiçóes suspeltaAs,
vingt lournéee de Sodome, ou l'École du libertinage (1785), in Oeuvres no asilo do condado de York, que William Tuke (1732-1822) propos
Completes, t. XXVI, Paris, Jean-Jacques Pauvert, 1967. a criação de um estabelecimento destinado.a ~co~her os me~bros ~a
3. Joseph MichelAntoine Servan (1737-1807): "Nas fibras mo- "Sociedade dos Amigos" acometidos de distúrbios mentais, No dia
les do cérebro está fundada a inabalável base dos mais sólidos impé .. 11~1de maio de 1796, a Retreat abre as suas portas (cf .. injra, p. 149,
rios" (Discours sur l'admini;;tration de Ia justice criminelle, proferido por 'nota 18). [ohn Haslam, boticário do Bethlehem Hospital, == .de
M. Servan, Genebra, 1767,p. 35; reed. inC. Beccaria, Traité des délits se tornar doutor em medicina em 1816, desenvolve os pnnCl~lOs
et des peines, trad. fr. P. J. Dufey, Paris, Dulibon, 1821). do tratamento em suas obras (cf. supra, nota 6). Na França, Pinel
4. PhilippePinel (1745-1826), Traité médico-philoeophique sur adota o princípio em "Observations sur le ré~me :nor~l qui est le
l'alinénation mentale, ou Ia Maníe, seção TI, "Traitement moral des alié- plus propre à rétablir, dans certains cas, Ia raison egaree des ~~-
nés". § XXIII, "Nécessité d' entretenir un ordre constant dans les niaques", Gazette de santé, 1789, n? 4, pp. 13-5; e em sua M~?,~r:~
hospices des aliénés", Paris, Richard, Caille et Ravier, ano IX/1800, "Recherches et observations sur le traitement moral des aliénés ,
pp.95-6. . Mémoire de Ia Société médicale d'émulation. Section Médecine, 179~,
5.Jean Étienne Dominique Esquirol (1772-1840), Des maladies h~2, pp. 215-55; republicado com var~a~tes no Traité médico-phi-
mentales consídérées sous !es rapporis médical, hygienique et médico- losophique, op. cit., seção II, pp. 46-105. Etienne [ean Georget.C1795-
légal, Paris, J.-B. Bailliere, 1838, 2 vol. . 1828) sistematiza os princípios desse tratamento em De Iafolze. Con-
6. [ohnHaslam (1764-1844), [1] Observatíons on Insanity, with sidérations sur cette maladie: son siege et ses symptômes, Ia nature et le
mode d'action de ses causes; sa marche et ses terminaisons; les différen-.
Practical Remarks on ihe Disease, and an Account of the Morbid Ap-
pearances of Dissection, Londres, Rivington, 1798; obra reeditada e ces qui Ia distinguent du délire aigu; Ies n;zoyens du =r=
comnennent; suivies de recherches cadaoériques, Paris. Crevot, 1820.
qUI IUI
aumentada com o título de Obseroatione on Madness and Melanc~oly,
24 o PODER PSIQUIÁTRICO

François Leuret porá a ênfase na relação médico-doente; ceOu AULA DE 14 DE NOVEMBRO DE 1973
traitement moral de ia folie, Pari", J.-B. Bailliere, 1840. Ver as páginas
que lhe consagra a Histoire de ia folieà l'âge classique, parte III, capo4,
"Naissance de l'asile", Paris, Callimard, ed. de 1972, pp. 484-7;
492-6,501-11,523-7. Cf. também R. Castel, "Le traitement moral. Cena de cura: Jorge II1. Da "macrofísica da soberania" à
Thérapeutique mentale et contrôle social au XIXe siecle", Topique, "microfísica do poder" disciplinar. - A nova figura do louco. -
1970, n? 2, fevereiro, pp. 109-29. "Pequena enciclopédia das cenas de cura. - Prática da hipnose e
14. Ph. Pinel, Traité médico-philoeophique, op. cit., seção II, § XXI, histeria. - A cena psicanalítica; cena antipsiquiátrica. - Mary

à prendre pour les réprimer", pp. 90-1.


.
1
"Caractere des aliénés les plus violents et dangereux, et expédiens

15. Ibid., seção II, §VIII, "Avantage d'ébranler f rtement l'ima-


Barnes em Kingsley Hall. - Manipulação da loucura e estrata-
gema de verdade: Mason Coxo

gination d'un aliéné dans certains cas", pp. 60-1. "


16. M. Foucault, Folie et Déraison. Histoire de Ia folie à i'âge
classique, Paris, Plon, 1961.
v:
17. Por exemplo, na Histoire de la folie, parte 1,capo "Les in-
sensés", ed. de 1972, pp. 169 e 174; parte II, capo1,"Le fou au jardin
Todos vocês certamente conhecem a cena tida como a
des especes", p. 223; parte III, capoII, ';Le nouveau partage", pp. 407
e 415. O ponto de partida dessa crítica da noção de "percepção" grande fundadora da psiquiatria mode~na - enfim, d~ ~s~-
ou de "experiência" se encontra em L'Archéoiogie du savoir, Paris, quiatria pura e simplesmente - que se maugur?u no mICIO
Gallimard ("Bibliotheque des sciences humaines"), 1969, capo III, do século XIX. Essa cena é a famosa cena de Pinel que, no
"La formation des objets" e capo Iv: "La formation des modalités que não era exatamente um hospita~, em Bicêtre, tirou as
énonciatives", pp. 55-74. ". correntes que prendiam os loucos funosos no ~ndo da sua
18. A noção de violência subjaz às análises dos modos de tra- masmorra; e esses loucos furiosos que eram retidos porque
tamento empreendidos na parte II da Histoire de ia folie, capo IV, temia-se que, se fossem deixados soltos, eles dariam livre cur-
"Médecins et malades", ed. de 1972,pp. 327-8 e 358, e na parte III,
so ao seu furor,esses furiosos, mal são soltos das suas cor-
sapo IV, ~'Naissance de l'asile", pp: 497,502-3, 508, 520. (Cf.infra,
Situação do curso", pp. 464 ss.)..· . . rentes, exprimem seu reconhecimento a ~inel. e entram, por
19. E o caso das análises consagradas ao nascimento do asilo, esse fato mesmo, no caminho da cura. EIS pOIS o que acon-
ibid., pp. 483~530. tece na cena inicial, fundadora, da psiquiatria'. .
20. Sobre o papel do modelo familiar na reorganização das Ora, na verdade, há outra cena que não teve a sorte des-
relações entre loucura e razão e a constituição do asilo, cf. ibid., pp. sa, se bem que, por motivos que é fácil compreender, teve
509-11. grande repercussão na época. U ma ~:na 9ue não ocorreu na
21. Alusão às análises de Louis Althusser, que introduz o con-
.França. mas na Inglaterra - e que aliás fOI relatada com cer- .
~e~tode. apare~ho de Estado" em seu artigo "ldéologie et appareils
11

idéologiques d État, Notes pour une recherche", La Pensée. Revue to detalhe por Finei no Tratado médico-filosófico do ano IX
du rationalisme moderne, n? 151, junho de 1970, pp. 3-38; republicado (1800) -, e que, como vocês já vão ver, não deixou de ter u~a
em Positions "(1964-1975), Paris, Éditions Sociales, 1976, pp. 65 -125. espécie de força, de postura plástica, na medida em que, nao
na época em que se produziu - ela se situa em 1788. -, mas na
época em que foi conhecida na França e em que fin~lmente
foi conhecida em toda a Europa, tinha se tornado, digamos.
26
o PODER PSIQUlATRICO AULA DE 14 DE NOVEMBRO DE 1973 27

como que um hábito dos reis perder a cabeça. É uma cena dico de Jorge IIP. A meu ver o que aparece em primeiro lugar
que .tem importância I:0rque põe em cena exatamente o que é, no fundo, urna cerimônia, urna cerimônia de destituição,
podl~ ser, ~esde essaepoca, a prática psiquiátrica enquanto uma espécie de ~gração ao revés em que se indIca ~ui~o
mampulaçao regra~a e conc7rtada das relações de poder. dependência
claramente que se trata de Rór.Q rei sob .!:!....ma
EIs o texto de Pmel, que e o que circulou na França e tor- total; vocês se lembram das palavras: "todo o aparelho da
na conhecido esse caso:
rêaléza se desvanece", e o médico! que é de certo modo Q...QEe-
"Ul~ monarca' Uorge III, rei da Inglaterra; M.F.] entra rador dessa descoroação,d~ssa dessagração, lhe declara ex-
el,!lmama e, para tornar sua cura mais pronta e mais sólida,
pIícítãm nte ~ue "ele não S mais sob~r~n~"... .
nao se faz ner:~uma restrição às medidas de prudência da- Por conseguinte, decreto de destituição: o rer reduzido
quele q~e o dmge [notem a palavra: é o médico; M.F.]; por
à impot ncia. Parece-me que até os "colchões" que o cercar:n
consegumte, todo o aparelho da realeza se desvanece, o alie-
e que têm um papel tão grande, ao mesmo t~mpo no cena-
nado, afasta?? ~a família e de tudo o que o rodeia, é relega- rio e na cena final, são importantes. O colchao e ao mesmo
do_a um palácio lsolado_e encerrado sozinho num quarto cujo tempo o que isola o rei do mundo exter~or, o que o impede
~hao .e cUjas.p.~redes sao forradas de colchões para que ele tanto de ouvir e de ver como de cornurucar suas ordens ao
fique ImpossIbIlItado de se ferir. Aquele que dirige o tratarnen- exterior; isto-é, por meio dos colchões, toda.s as funções es-
t~ lhe declar~ 9ue ele n~o é mais soberano, que deve dali em senciais da monarquia são, no sentido estrito, postas entre
diante ser dOClIe sU~lmsso. Dois dos seus antigos pajens, de parênteses. E no lugar daquele cetro, d~quela coroa, daquela
uma estatu~a de Hercules, são encarregados de atender às .espada que deviam tornar visível e sensível a todos os es~ec-
suas ~l~cessl.dades e prestar-lhe todos os bons ofícios que sua tadoreso poder universal do rei que reina sobre seu remo,
condl~ao ~xlge, mast~mbém deconvencê-Io de que ele está no.lugar desses símbolos, não há mais qu~ os "colchões:' 9-ue
sob a inteira dependencia deles e que doravante deve obe .. o encerram e o reduzem, lá onde ele esta, ao que ele e, ISto
decer-lhss. Eles observarn com ele um tranqüilo silêncio, mas é, ao seu corpo. _
em to.das as ocasiões fazem que sinta o quanto eles lhe são Destituição, queda do rei portanto; mas nao tenho a
sypenores em força. Um dia, o alienado, em seu fogoso de- impressão de que seja do mesmo tipo que. poderí~m?s en-
Imo, recebe duramente seu ex-médico que o vem visitar, e contrar, digamos, num drama shakespeanano: nao e nem
o. cobre de dejetos e imundices. Um dos pajens' entra ime .. Ricardo III ameaçado de cair sob o poder de outro sobera-
dIa~amente no quarto ~;er:ndizer nada, agarra pela cintura o no'. nem o rei Lear despojado da sua soberania e errando
delirante, tambem reduzido a um estado de sJjeira repug- pelo mundo na solidão, na miséria e ~~ loucura'. ~a verdade,
nante, derruba-? numa pilha de colchões, despe-o, limpa-o a loucura do rei [Jorge IIl], ao contrano da do rei Lear, que
com urna esponja, troca suas roupas e, olhando para ele com o fazia errar pelo mundo, fixa-o num ponto preciso e, sobre-
al.tl,,::,ez,af~sta-se lo.go em. seguida e volta para o seu lugar.
Lições aSSIm, repetIdas a mteLValos durante alguns meses e
secun~a?as por outros :neios de tratamento, produziram uma
./
I ~ berano; ela o faz cair sob um poder que é =
i tudo, o faz cair sob um poder que não é um outro poder sO-,

um tip,? total-'
cura sólida e sem recaída.:? . I mente diferente do da soberania e que, creio, se opoe a ela ~. _.•..
Eu gostaria de analisar um pouco os elementos dessa I termo a termo. É.J.!.mpoder~nimo, sem-Il0me, sem r?sto, ~(""J /~
é um poder que é repartido entre difer~ltes pessoas; e um -,
cena. Háprimeiro, parece-me, algo que salta aos olhos no
texto de Pinel, que tornou emprestado de Wi.llis,que era o mé-
li
p~obretllilP,
t',y
que se manitesta pela implacabilidade de ' /) /
um regulamento qu,"-nem sequer se formula, Ja que, no fun -

\
29
28 o PODERipSIQUlÁTRICO AULA DE 14 DE NOVEMBRO DE 1973

~to, t.,está bem~cljto no texto queJodos os agen- hipótese, mas posso estar equivocado, direi que ~ relação des-
tes do poder ficam c~os..::E-o-rnutismo do regulamento q'Je ses pajens hercúleos com, o rei louco e despojado dev,e ~er
Vem de certo modo ocupar o lugar deixado vazio pela des- comparada a temas iconográficos. Penso que a for~a plástica
coroação do rei, dessa história se deve, em parte, ao fato de. que, J~~tamen-
- Não se trata, por conseguinte, da queda de um poder te, temos nela elementos [...*] da iconografia t.radlclonal r:a
soberano sob outro poder soberano, mas da passagem de um qual os soberanos são representados. Ora, o rei e seus servi-
poder soberano, que foi decapitado pelaloucura que se apos- dores são tradicionalmente representados, parece-me, sob
sou da cabeça do rei e foi descoroado por essa espécie de ce- duas formas. .
rimônia que indica ao rei que ele não é mais soberano, para Ou a representação do rei guerreiro, de cou~aça; d~ ar-
outro poder. Pois bem, l121.ugardesse pod~r decapitado e des- mas, do rei que ostenta e torna se.nsível a sua orupotencl~, o
coroado se instala um poder anônimo múltiplo, pálido.sem rei Hércules, se assim podemos dizer; e, ao lado dele, abaixo
cor, que é no fundo o poder que chamarei da disciplina. Um, dele, submetidos a essa espécie de poder ~s~agador, per-
poder de tipo soberaníagsubstituído por um poder que po- sonagens que são a rep.re:entação da submlssao, da fraque-
deríamos dizer de disciplina, e cujo efeito não é em absoluto a derrota da escravIdao, eventualmente da beleza. E essa,
za" d .1 - tra
consagrar o poder de alguém, concentrar o poder num in- podemos dizer, ur:na das primeiras oposiçoes que encon -
divíduo visível e nomeado, mas produzir efeito apenas em mos na iconografla do poder real. . .
seu alvo, no corpo e na pessoa do rei descoroado, que deve Vocês têm outra possibilidade, c0I'0 um.J0~.a de O~OSl-
ser tornado dócil e submisso:" por esse novo poder.
/I ções mas que se dá de outra maneira. E o rei, nao herculeo,
Enquanto o poder soberano se manifesta essencialmente mas' o rei de estatura humana, que é despojado, d,e todos, os
pelos símbolos da força fulgurante do indivíduo que o detém, signo~ visíveis e imediatos da força física, que so e1eve.stldo
o poder disciplinar é um poder discreto, repartido; é um po- dos símbolos do seu poder; o rei em seu manto de arminho.
der que funciona em rede e cuja visibilidade encontra-se tão- rum seu cetro seu globo e, abaixo dele ou acompanhand~-o,
somente na docilidade e na submissão daqueles sobre quem, a re resenta~ão visível de um~ força que l~e é submetida:
em silêncio, ele se exerce. E é isso, creio, o essencial dessa cena: ~ados,-os pajens, os seruidores. que ~ao a represe~~a
o enfrentamento, a submissão, a articulação de um poder so- Çããd~a força, mas de uma f?rça gU,e~' de certo mo o~
berano a um poder disciplinar. cOmana~ silenciosamente por mtermedlO desses ele~e~
Quem são os agentes desse poder disciplinar?Vocês es- tos simbólicos do poder: cetro, manto, coroa, etc. Parece. me
tão vendo que, curiosamente, o próprio médico, aquele que que é assim, grosso moílo, que se vêer::' representadas na lCO-
organizou tudo, aquele que é, na verdade, até certo ponto, o nografia as relações do rei com os servidores: semp!,"e_nomodo
f\ elemento focal, o núcleo desse sistema disciplinar, não apa-
rece: Willis nunca está presente. E, quando, um pouco depois,
da oposição, mas sob a forma dessas duas Oposl~oes. ,
I Ora, aqui, nessa cena contada por Pinel a p~ ?e Wl1hs,
encontramos a cena do médico, é um ex-rnédico, precisa- vocês encontram os mesmos elementos, mas :nte;ramente
mente, e não o próprio Willis. Quais são então os agentes deslocados e transformados, Por um lado, voces tem a. for-
do poder? Está dito que são dois antigos pajens de estatura ça selvagem do rei, que voltou a ser a besta humana, o rei que
hercúlea.
Aqui, creio que devemos nos deter um pouco, porque
na cena eles também têm grande importância. A título de * Gravação: "que fazem parte".

- I
31
AULA DE 14 DE NOVEMBRO DE 1973
30 o PODER PSIQUIATRlCO

terminam o que deve ser o serviço do servidor. Descon~ão,


est~ exatamente na posição desses escravos submetidos e por conseguinte, entre a vontade e a necessidade, o esta o
agnl~o.ados q1,leencontrávamos na primeira das versões ico- e a con lÇa9. o servidor só intervirá como força de repres-
r:ogra~lc~s ~e que eu Ines falava; e, diant disso, a força con- ~o, só deixará o servI o. . o
tida, dI~clplmada, serena, dos servidores. essa o osição en- rei, quan o esta vier a se ex rimir acima das suas si-
t:.e o reI, ue volta a ser. selva em, e os servi ore~ dãdes, acima da sua condição.
s~ ~ r.epresent~çãovisíveIA de uma orça, mas de umafo!:.Ça is, grosso modo, digamos ssim, o cenário da cena. E
dIscIplInada, CreIOque.v0ces têm O ponto em que se prende agora gostaria de passarao que é o próprio episódio, impor- .
:. passage~ ?e uma so~ em vias de desaparecer a um tante, dessa cena assim situada, o episódio doenfrentamen-~
B.ôder.dlsclplinar que es§.se constituindo e gueencontra nes- to com o médico: "Um dia, o alienado, em s~,::_.f,?~c::~,?delírio, -'~::.\'
ses ~Jens mud~s mu s suntuosos, ao mesmo tempo recebe duramente seu ex-mea:Ko ue o vem visitar, e o cODre .' \
o e entes e onIpotentes, parece-me, sua 'sionomia mesma.1 de: deJetos elmundices. m dos pajensentrmeilla1:amente ~
_ ,?ra, ~omo e~ses se~dores hercúleos exercem suas fun- no quarto sem dIzer nada, a arra ela cintura o aehrante ..."~
çoes. AqUltarr:be,m, creio que o texto deva ser visto com cer- . is, vamos izer, a cena da ecadencía, da descaroa
to detalh~. Esta d.lt~ q~e esse~ servidores hercúleos estão ali ção, é a vez da cena do dejeto. do excremento, da imundi-
para se~r ao :-el; e dito muito exatamente, inclusive, que ce. Não é mais simplesmente o rei que está descoroado, não é
~les est~o destma?os a prestar os serviços relativos às suas simplesmente o desapossamento dos atributos da soberania, é
necessld~des" e a sua" condição". Ora, parece-me que, no . a inversão total da soberania. Esse rei não tem mais outra for-
que podenam?s chamar de poder de soberania, o servidor está, ça alérp do seu corpo reduzido ao estado selvagem, e não tem
~e fato, ~ serviço das necessidades do soberano; ele deve sa- outrastarmas além das dejeções do seu corpo, e são precisa-
tlsfaz~r as exigências e às necessidades da sua condição: de mente essas armas que ele vai utilizar contra seu médico/~,
fat?, e ele que veste e despe o rei, que presta os serviços re- creio que, fazendo isso, o rei inverte efetivamente sua sobe -
latlvo~ ao se~ corpo, à su~ limpeza, etc. Mas, cada vez que ~ .pêii.5 porque sllbstituiu.eu cetro e sua eSEada Eor
I o.servIdor,se mc,-:r~:beassim dos serviços relativos às neces- suas lmundlces, mas porque. mUIto preClsamente. ele reto-
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~Idades e a condição do soberano, é essencialmente porque "IDa. com iss,oum gesto gUI2 tem sua significação históri~. Esse
e essa.a vontade do soberano; ou seja, a vontade do sobe- gesto, que consiste em atirar lama e irm!!ldices em alguém,
r~no vincula ose~dor, e o vincula, individualmente, na me- , n:JfeSto secul~ da insurreição co.n!:a os poderosos)
dida .em que ele e este ou a~uele servidor, a essa função que ". Agora, existe toda uma tradição que quer que falemos
consI.st~ em prestar os serviços relativos às necessidades e ~I do dejeto, da imundice apenas como símbolos do dinheiro;
I ,
condl~ao. ~ vontade do ~ei, seu e~tatuto de rei é o que fixa enfim. haveria uma história política do dejeto e da imundi-
o servidor as suas necessidades e a sua condição. ce a fazer, uma história ao mesmo tempo política e médica
C?ra,na_relaç~o de disciplina que logo vemos aparecer, da maneira como o dejeto e a imundice puderam ser um pro-
o ~ervId<:rn~o esta de modo algum a serviço da vontade do blema em si e sem nenhuma simbolização de nenhuma or-
rei, ,ou na~ e porque tal :,ontade é a vontade do rei que ele dem: podem ter sido um problema econômico, um proble-
esta a ~ervIço das neces~l~ades do rei; ele está a serviço das ma médico, claro, mas também podem ter sido o móvel de
necessidades e da condição do rei sem que nem a vontade uma luta política, que é muito nítida no século XVII, e prin-
n~m ? estatuto do soberano intervenham; são somente as.exí- cipalmente no século XVIII. E esse gesto profanador que con-
•. -..[enclas de certo modo mecânicas do corpo que fixam e de-
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