Você está na página 1de 304

FERNANDO LUCAS GARCIA DE SOUZA

TATUAGEM: MARCAS DE UMA HISTÓRIA DE (RE)SIGNIFICAÇÕES

Dourados
2021
FERNANDO LUCAS GARCIA DE SOUZA

TATUAGEM: MARCAS DE UMA HISTÓRIA DE (RE)SIGNIFICAÇÕES


Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade
Federal da Grande Dourados, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Doutor em
História.

Área de concentração: História, Região e


Identidades.

Orientador: Prof. Dr. Fabiano Coelho

Dourados
2021
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

S729t Souza, Fernando Lucas Garcia De


TATUAGEM: MARCAS DE UMA HISTÓRIA DE (RE)SIGNIFICAÇÕES
[recurso eletrônico] / Fernando Lucas Garcia De Souza. -- 2021.
Arquivo em formato pdf.

Orientador: FABIANO COELHO.


Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal da Grande
Dourados, 2021. Disponível no Repositório Institucional da UFGD
em: https://portal.ufgd.edu.br/setor/biblioteca/repositorio

1. Tatuagem. 2. História. 3. Ressignificação. 4. Corpo. 5. Poder.


I. Coelho, Fabiano. II. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com


os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
©Direitos reservados. Permitido a reprodução parcial desde que
citada a fonte.
FERNANDO LUCAS GARCIA DE SOUZA

TATUAGEM: MARCAS DE UMA HISTÓRIA DE (RE)SIGNIFICAÇÕES

TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD

Aprovada em ______ de __________________ de _________.

BANCA EXAMINADORA:
Presidente e orientador:
Dr. Fabiano Coelho (UFGD) _______________________________________________
2º Examinador:
Dr. Eudes Fernando Leite (UFGD) ___________________________________________
3º Examinador:
Dr. Leandro Seawright Alonso (UFGD) _______________________________________
4º Examinador:
Dr. Leonardo Brandão (FURB) _____________________________________________
5º Examinador:
Dr. Vítor Sérgio Ferreira (ULISBOA)________________________________________

AGRADECIMENTOS
Construir um conhecimento metodologicamente orientado é, inevitavelmente, um
processo coletivo. Embora o texto a seguir seja uma monografia, a verdade é que se minhas
mãos lhe deram forma, incontáveis mentes foram indispensáveis para que se tornasse possível.
Primeiramente, agradeço ao Prof. Dr. Fabiano Coelho pela impecável orientação. Ser
orientado é ser servido ao menos de duas lições: como se tornar um pesquisador melhor; como
direcionar adequadamente aqueles buscam orientação. Seu zelo pelo conteúdo e seu respeito
pela forma são lições valorosas.
Ao Prof. Dr. Eudes Fernando Leite, que se tornou um amigo e uma figura de minha mais
profunda e sincera admiração. Seu conhecimento, generosidade, sagacidade e capacidade de
leitura do mundo são admiráveis – e olha que como bem sabe, não sou adepto de discursos
laudatórios.
Ao Prof. Dr. Leandro Alonso, meu sincero agradecimento. Sua erudição e seu zelo
teórico, materializados em arguições precisas e generosas, foram imprescindíveis à realização
deste trabalho: dos Seminários de Pesquisa à Banca de Qualificação.
Prof. Dr. Leonardo Brandão, obrigado pelas valiosas contribuições que vêm desde o
Mestrado e se intensificaram no Doutorado, no qual seu pensamento sobre a juventude
brasileira tornou-se referencial teórico fundamental.
Ao Prof. Dr. Vítor Sérgio Ferreira, meu obrigado não apenas pela generosidade de
compor a Banca, mas sobretudo pela inestimável contribuição teórica que seus textos
proporcionaram. Definitivamente, esta tese jamais seria como é sem a sua contribuição.
Aos tatuadores, tatuadoras, tatuados e tatuadas que compõem essa história, ela
simplesmente não existiria sem vocês. Russo, Carlinhos, Alemão, Polaco e tantos outros que
não puderam compor o conjunto de entrevistas, mas que ajudaram a pavimentar o caminho da
tatuagem no país: muitíssimo obrigado! Sou tatuado antes de ser pesquisador e, talvez, não teria
me tornado isto sem aquilo. Para além de meu texto, vocês ajudaram a moldar minha identidade.
Aos meus amigos e comparsas da Capivaras Voadoras por terem sido uma verdadeira
válvula de escape das pressões de um trabalho monográfico. Artur da Távola tem razão: a
música é a sobremesa da vida.
Por fim, agradeço minha família pelo suporte emocional e compreensão de minha
ausência durante o processo. Se elaborar uma tese é um caminho demasiado solitário, os
momentos em que dela pude me desligar foram revitalizantes graças a vocês.
Agradeço ao meu pai, Fernando; a Isabela, minha companheira; a Laís, minha irmã; e
ao Joãozinho, o pequenino farol que, mesmo sem saber, ilumina nossa família. Especial e
destacadamente agradeço a minha mãe, Helena, sem dúvidas a pessoa que mais me apoia, torce
e, malgrado meu ceticismo para com o mundo metafísico, reza diariamente por mim. Muito
obrigado, amo vocês!
Os méritos porventura presentes neste texto devem imperativamente ser divididos com
estas e tantas outras pessoas que, generosamente, contribuíram para que essa história se tornasse
possível. As insuficiências presentes, estas são produto de minhas limitações e as assumo
sozinho.

RESUMO

Estigma, moda, arte, marca dos condenados, status de nobreza. A prática da tatuagem
existe desde considerável parte da trajetória humana, e seu significado oscilou ao longo da
história. No início século XX, o Brasil vivenciou uma intensa transformação social e política,
marcada pela emergência de novas configurações de sociabilidade, especialmente em seus
centros urbanos. Neste contexto, o significado social da tatuagem se associou às classes pobres
e ganhou a condição de estigma. Contudo, a juventude de classe média reivindicou o uso dessas
marcas corporais como um emento de afirmação identitária. A tese que defendo é que o
significado da tatuagem na sociedade brasileira, ao longo do século XX, foi formulado e
reformulado em função da posição que os tatuados ocuparam nas relações de classe. Enquanto
predominou entre as classes pobres, a função atribuída à tatuagem foi a de estigma, de uma
marca que demarcava o indivíduo situado às margens econômicas, sociais e culturais. Conforme
a juventude de classe média adota essa prática corporal, um novo significado foi construído
sobre a tatuagem, associando-a à rebeldia. Contudo, essa ressignificação não excluiu o potencial
estigmatizante das tatuagens inscritas no corpo dos indivíduos oriundos das classes pobres. Para
a manutenção de seu potencial estigmatizante, novas estratégias e discursos são elaborados a
fim de distinguir os tatuados legítimos dos ilegítimos.
PALAVRAS-CHAVE: Tatuagem, História, Ressignificação, Corpo, Poder.

ABSTRACT

Stigma, fashion, art, sign of the damned, nobility status. The tattooing practice has
existed since a considerable part of human existence, and its meanings has fluctuated
throughout the history. In the early 20th century, Brazil experienced an intense social and
political transformation, marked by the emergence of new configurations of sociability,
especially in urban centers. In this context, the social meaning of tattooing was associated with
the working-class and acquired the status of stigma. However, the middle-class youth claimed
the use of these body marks as an element of identity affirmation. I defend the thesis that
meaning of tattooing in Brazilian society, throughout the 20th century, was (re)formulated
according to the position that tattooed people occupied in social class relations. While it
predominated among the working-classes, the role attributed to tattooing was that of stigma, of
a mark that demarcated the individual situated on the economic, social and cultural margins.
Once the middle-class youth adopt this corporal practice, a new meaning was built on tattooing,
associating it with rebelliousness. However, this reframing did not exclude the stigmatizing
potential of tattoos marked on the working-class people’s bodies. To maintain their stigmatizing
potential, new strategies and speeches are developed in order to distinguish the legitimate from
the illegitimate tattooed people.
KEYWORDS: Tattoo, History, Resignification, Body, Power.

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 – Tatuagem polinésia


Imagem 2 – Tatuagem Kalinga – Filipinas
Imagem 3 – Tatuagens de Febrônio destacadas no Jornal do Brasil
Imagem 4 – Fotografia de Febrônio anexada ao laudo médico-psicológico
Imagem 5 – O barbeiro Guilechini
Imagem 6 – Tatuagens de um marinheiro inglês
Imagem 7 – As tatuagens de Waldemar, O Almirante
Imagem 8 – Reportagem A Tatuagem, de Elysio de Carvalho
Imagem 9 – Tatuagem entre os povos nativos
Imagem 10 – O peito tatuado de E. Keilten, vendo-se o crucifixo e outros desenhos
Imagem 11 – Tatuagens atribuídas aos primeiros cristãos
Imagem 12 – Amália e Orlando Moura, o “Bom Menino”, fotografados pelo Última Hora
Imagem 13 – Tatuagens de Antônio, imigrante de origem síria
Imagem 14 – Reportagem ilustrada O romance escrito, publicada na revista O Malho, parte 1
Imagem 15 – Reportagem ilustrada O romance escrito, publicada na revista O Malho, parte 2
Imagem 16 – Gisele e suas tatuagens: preocupação para os pais de classe média
Imagem 17 – Bob Cuspe, a personagem punk de Angeli
Imagem 18 – Petit e o dragão tatuado no braço, cantado por Caetano Veloso.
Imagem 19 – Menino do Rio (Filme), 1982
Imagem 20 – Russo buscando clientes na praia de Ipanema
Imagem 21 – Representação de um motociclista do Abutre’s MC
Imagem 22 – Zé Carlos – Vice-Presidente do Abutre’s Moto Clube
Imagem 23 – Tatuagens masculinas na UH Revista
Imagem 24 – Tatuagens femininas na UH Revista
Imagem 25 – Reportagem UH Revista em 1983
Imagem 26 – A atriz Monica Vitti e sua tatuagem
Imagem 27 – Lançamento de novo tipo de sutiã agita praias do Rio
Imagem 28 – A atriz Irma Alvarez é representada como tatuada
Imagem 29 – Mário Gomes em Guerra dos Sexos, 1983
Imagem 30 – Tatuagem é elemento importante na trama de telenovela
Imagem 31 – Cantora Marina Lima e sua tatuagem de cometa
Imagem 32 – Charge representando o jogador Casagrande
Imagem 33 – Jogador Casagrande e sua tatuagem
Imagem 34 – Anúncio publicitário envolvendo a tatuagem
Imagem 35 – Revista O Cruzeiro retrata tatuagens de jovens cariocas
Imagem 36 – Casal de jovens tatuados na revista O Cruzeiro

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Fases da Tatuagem no Brasil

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................9

PARTE I - Classes perigosas e atrasados morais: significações da tatuagem entre discursos


estigmatizantes e corpos estigmatizados

CAPÍTULO 1: Centros urbanos brasileiros no início do século XX: Entre a moralização


burguesa e a resistência popular.......................................................................................35
1.1 Rio de Janeiro: Matriz da Belle-Époque brasileira......................................................40
1.2 São Paulo: café, indústria e disciplinarização do espaço urbano.................................49

CAPÍTULO 2: A ameaça do corpo tatuado: a tatuagem entre discursos midiáticos e científicos


na primeira metade do século XX...................................................................54
2.1 Entre o hábito e a natureza: a produção do discurso criminalizante sobre o corpo tatuado
.............................................................................................................................54
2.2 Classes pobres, classes perigosas: a tatuagem e a disciplina dos corpos.....................76
2.3 O atraso moral: a tatuagem e a disciplina da alma.....................................................105

CAPÍTULO 3: Resistência e construção de si: usos do corpo tatuado entre as classes


pobres.............................................................................................................................121
3.1 Marinheiros..............................................................................................................124
3.2 Fé, religiosidades, superstições e ressignificações...................................................128
3.3 Turcos: imigração, mascates e tatuagens..................................................................136
3.4 Política na pele.........................................................................................................138
3.5 Tatuagens românticas: a eternidade do instante........................................................141
3.6 Tatuadas: corpo feminino, estigma e regulação social..............................................143

PARTE II - Juventude e rebeldia: ressignificação discursiva e tatuagem entre as classes


médias urbanas

CAPÍTULO 4: A juventude e a reinvenção da cultura....................................................155


4.1 Contracultura, dissidência ética e divergência estética.............................................161
4.2 Punks........................................................................................................................170
4.3 Skinheads.................................................................................................................175
4.4 Hippies.....................................................................................................................181
4.5 Surfistas...................................................................................................................186
4.6 Motociclistas............................................................................................................199
4.7 Menininhas tatuadas: permanências, rupturas e refinamentos na regulação social do corpo
feminino...............................................................................................................208

CAPÍTULO 5: Refinando o discurso: estímulo, restrição e conformação do corpo


tatuado...........................................................................................................................228
5.1 Estímulo: moda, mídia e estética..............................................................................231
5.2 Restrição: psicologização da rebeldia e incorporação profissional da juventude......258
5.3 Conformação: estratégias de refinamento discursivo-coercitivo..............................268

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................285
FONTES........................................................................................................................289
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................293
INTRODUÇÃO

Algo comum ao campo científico é que nossas pesquisas se desdobram em outras, que
por sua vez, podem inspirar novos trabalhos. Alguns estudos, especialmente no movediço e
complexo campo das Ciências Humanas, mais do que apresentar conclusões, provocam o
pesquisador na direção de que há muito mais a ser investigado, que outras abordagens e
problemáticas são possíveis e necessárias. É o caso desta pesquisa.
Ao concluir minha Dissertação de Mestrado em História pela Universidade Federal da
Grande Dourados, no ano de 2018, notei que aquilo que nomeei ressignificação da tatuagem
era um fenômeno complexo, pois envolvia transformações técnicas na prática dos tatuadores,
intervenções de esferas de poder historicamente estranhas ou alheias à tatuagem,
institucionalização de espaços de sua produção e, certamente, os indivíduos tatuados e seus
corpos, responsáveis por carregar essas tatuagens por navios, portos, praias, ruas, bares, bordéis,
consultórios, tribunais, casernas, estádios, palcos e prisões.
Tendo me debruçado naquele momento sobre as transformações técnicas na prática dos
tatuadores – o que chamei de profissionalização do ofício – e no surgimento de espaços
específicos, como os assépticos estúdios modernos – processo por mim nomeado
institucionalização dos espaços de tatuar – restava outra questão fundamental à compreensão
da ressignificação da tatuagem: sua difusão social.
Efeito curioso, a disseminação de uma prática cultural das classes populares
aparentemente diverge daquilo que Pierre Bourdieu teorizou em A Distinção, ao afirmar que “o
gosto classifica aquele que procede à classificação: os sujeitos sociais distinguem-se pelas
distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distintivo e o vulgar; por seu intermédio,
exprime-se ou traduz a posição destes sujeitos nas classificações objetivas”.1
Se isso é verdade, por que razão as classes médias, tradicionalmente imitadoras dos
hábitos das elites econômicas2, teriam tão largamente adotado uma prática corporal
historicamente associada à arraia-miúda? 3 Que processos sociais e culturais teriam produzido
uma transformação tão significativa na tatuagem, a ponto de transmutá-la de signo da infâmia,

1
BOURDIEU, P. A distinção, p. 13.
2
Márcia Raspanti afirma que no Brasil Colônia e Império estar na moda era sintonizar-se com aquilo que era usado
pela alta nobreza, e que se vestir como os poderosos revelava status social, diferenciando-se da grande massa.
RASPANTI, M. Vestindo o corpo, p. 186.
3
O termo arraia-miúda é utilizado para referir-se à plebe, às camadas economicamente desprivilegiadas da
sociedade. Ver: https://dicionario.priberam.org/. Acesso em: 27 de abr. de 2020.
9
cuja associação impregnou-se às classes perigosas 4; em adorno corporal amplamente admitido
e difundido, a ponto de ser possível argumentar, sem grande resistência, que sua utilização
hodierna se tornou comum? 5
De que maneira a adoção da tatuagem por diferentes estratos sociais participa dessa
ressignificação? Dizendo de outro modo: qual é a função política do corpo – dos diferentes
corpos que se tatuaram ao longo do século XX – na significação e na ressignificação da
tatuagem? É da tentativa de compreensão desta problemática que se trata essa tese.
Se na primeira metade do século XX a tatuagem predominou entre a gente pobre dos
grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo, tendo sua imagem associada às
classes perigosas, a partir da década de 1960 é perceptível o investimento na reelaboração de
seu status como prática autorizada e difundida – de maneira tal que, atualmente, quase não há
restrições de classe, gênero, orientação sexual, política ou religiosa – tornando imprecisa
qualquer tentativa de caracterização coletiva do indivíduo tatuado.
Identifico a história da tatuagem brasileira6 como um processo passível de ser
organizado em três fases7, conforme a tabela a seguir:
Tabela 1: Fases da Tatuagem no Brasil
Fase ou Período Status do Espaços de Tatuados Característicos
Tatuador Tatuar
1º Fase (Até 1960) Ambulante Espaços comuns Classes pobres

2º Fase (1960-1980) Artesão Ateliês Juventude de classe média

3º Fase (pós-1980) Profissional Estúdios Sujeitos heterogêneos

Fonte: SOUZA, F. História da tatuagem no Brasil

4
Conceito fundamental em minha argumentação, Sidney Chalhoub aponta que para as elites políticas e econômicas
do país no início do século XX, as classes perigosas eram sinônimo das classes pobres, associadas às doenças,
vícios, crimes, ociosidade, e a uma moral inferior. CHALHOUB, S., Trabalho, lar e botequim, p.76.
5
Vide a proliferação dos estúdios de tatuagem e sua diversa e constante clientela, a hiperexposição de corpos
tatuados nas mídias e a facilidade de encontrá-los no cotidiano das cidades brasileiras. BARACUHY. R.; GODOI, E.
Da marginalização ao glamour; SOUZA, F. A questão da ressignificação da tatuagem; ALMEIDA, M. Nada além da
epiderme.
6
É importante ressaltar que embora concentre minha análise em fontes das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo,
não ignoro a existência de particularidades locais e regionais. O que proponho é o diálogo entre essas fontes e os
trabalhos produzidos por autores e autoras que estudaram a tatuagem em outras regiões.
7
Sobre a categorização destes processos de transformação em fases, ressalto as palavras de Paul Ricoeur: “embora
os três mastros sustentem velames entrelaçados, mas distintos, eles pertencem à mesma embarcação, destinada a
uma só e única navegação”. Neste sentido, a fragmentação de processos de reelaboração de signos culturais é
impossível de ser hermeticamente compartimentada. As fases aqui propostas só podem ser entendidas como
estratégias de análise e sistematização de pesquisa, sendo a realidade um entrelaçamento complexo de
permanências e rupturas nas práticas de tatuar e nos corpos tatuados. RICOEUR, P. A memória, a história e o
esquecimento, p. 18.
10
Até o início da década de 1960 prevaleceram tatuadores ambulantes, atuando em
espaços comuns e marcando predominantemente as classes perigosas, ou os corpos dos ditos
moralmente atrasados. Entre as décadas de 1960 e 1980 há uma transformação fundamental: a
tatuagem passa a ser praticada por tatuadores artesãos, em ateliês específicos e a seus clientes
acrescentam-se a juventude de classe média e seus corpos divergentes-dissidentes. Sobretudo
a partir dos anos de 1990, é possível verificar a institucionalização dos espaços de tatuar com o
surgimento dos estúdios modernos, um acirramento da disputa pelo estabelecimento e
delimitação do campo profissional dos tatuadores, e uma maior heterogeneização dos sujeitos
tatuados. 8
Minha pesquisa se dedicará aos sujeitos tatuados e seus corpos, investigando o processo
de construção de um significado social da tatuagem em sua primeira fase, e sua posterior
ressignificação, processo que se dá a partir da segunda fase.
No Brasil, até a primeira metade do século XX, a tatuagem se inscreveu
predominantemente entre as classes pobres. Marinheiros, trabalhadores da região portuária,
prostitutas, operários, soldados, ambulantes, carroceiros, lavradores, ciganos, criminosos e
outros grupos socialmente empurrados para as margens sociais compunham a clientela
majoritária dos primeiros tatuadores, que à época, tatuavam de maneira ambulante em espaços
improvisados. 9 A hipótese seguida em minha pesquisa é a de que, neste período, a tatuagem
funcionou como estigma, no sentido atribuído por Goffman: “uma marca física, material ou
simbólica pela qual se distinguiria o desviante”.10
No início do século XX, um processo de higienização urbana e social foi empreendido
no país, objetivando a fabricação de uma imagem moderna do Brasil. Retomando as palavras
de Zygmunt Bauman, a modernidade pode ser sintetizada na tríade beleza, limpeza e ordem. 11
Neste contexto, as classes pobres foram vistas como empecilho à modernidade, representado,
segundo Luís Ferla, uma tripla ameaça: criminal, sanitária e política. 12
Não coincidentemente, as caraterísticas associadas pela burguesia às classes pobres,
segundo Ferla, colocavam em risco o projeto modernizador descrito por Bauman. Assim, fazia-

8
Não me aprofundarei, neste momento, nas especificidades do processo de heterogeneização da tatuagem pós-
década de 1990 – intensificado no século XXI – por considerar que há uma amplitude de pesquisas, sobretudo nos
campos da Sociologia e Antropologia, que dão conta deste fenômeno.
9
SOUZA, F. A infame arte da tatuagem.
10
GOFFMAN, E. Estigma, p.12.
11
BAUMAN, Z., O mal-estar da pós-modernidade, p. 7.
12
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 35.
11
se necessário limpar a cidade do perigo moral e físico representado pelas camadas pobres. Neste
empreendimento, as práticas associadas às classes pobres foram prontamente percebidas como
criminosas, imorais ou ambas.
Sendo a tatuagem uma dessas práticas, contra ela logo se investiu uma série de
disciplinas. A partir de uma lógica civilizatória, tratou-se de constituir um discurso que a
associava ao crime, à malandragem, à vadiagem e ao atraso moral.
Naquele período, dispositivos de controle do corpo tatuado foram colocados em prática,
amalgamando discursos científicos – como os da Escola Positiva 13 – e midiáticos, a partir da
gradativa difusão de veículo de imprensa, meio pelo qual “as feições do criminoso nato se
tornaram familiares”. 14
É possível afirmar que estes investimentos obtiveram considerável sucesso na
constituição do tatuado como representação do anormal 15, afronta à uniformização e disciplina
que os processos de modernização pretendiam construir, como a industrialização, a constituição
da mão-de-obra assalariada, a política higienista e as reformas urbanas.
A partir da década de 1960 a tatuagem passou por um conjunto de transformações que
envolveram desde seus processos técnicos aos locais de sua produção. Simultânea, intrínseca e
reciprocamente associada a essas transformações, outros grupos sociais passaram a fazer uso
da tatuagem com maior frequência. A partir deste momento, entraram em cena os sujeitos a
quem denomino dissidentes-divergentes, emprestando o termo usado pelo sociólogo português
Vítor Sérgio Ferreira.
Ferreira percebe na tatuagem contemporânea e no body piercing uma estética da
divergência, que em sua perspectiva é caracterizada pela marcação extensiva do corpo. Essa
estética operaria a construção e o (re)conhecimento da identidade pessoal juvenil por meio da
excorporação de uma atitude ética de desassociação frente a ordem sociocultural estabelecida.
Uma ética da dissidência, reelaboradora da moral e viabilizadora da possibilidade de existência
que conjuga um compromisso com o corpo e um estilo de vida que se pretende alternativo. 16

13
Corrente do Direito Penal, difundida a partir do médico e professor italiano Cesare Lombroso, que se
caracterizava por um discurso médico-científico que compreendia o ato antissocial como patologia, vendo no
delinquente, um doente, no crime, um sintoma, e na pena ideal, um tratamento. FERLA, L. Feios, sujos e malvados
sob medida, p. 24.
14
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p.31.
15
Foucault dedica parte de sua obra a demonstrar como, na modernidade, a sociedade burguesa investe em
tecnologias disciplinares que visam constituir corpos dóceis, disciplinados e produtivos. Para tanto, é constante o
investimento na produção e exposição do sujeito anormal, a fim de evidenciar o sujeito normal. FOUCAULT, M. Os
anormais; Vigiar e Punir.
16
FERREIRA, V. Política do corpo e política de vida, p.291.
12
A proposta desta tese é aplicar teoricamente o conceito de Ferreira sob perspectiva
diacrônica, a fim de analisar não os corpos extensivamente marcados da atualidade, mas a
juventude de classe média que se tatuou – ainda que não extensivamente, e até
dissimuladamente – entre as décadas de 1960 e 1980. Proponho que a adoção de uma prática
associada às camadas socialmente estigmatizadas reivindicaria justamente uma atitude ética
dissidente frente a ordem social estabelecida, pretendendo a construção de uma estética
divergente ligada à noção de rebeldia.
A adoção da tatuagem por parte destes grupos juvenis é potencialmente a expressão de
uma estética divergente e uma ética dissidente, diante de um sistema sociocultural impositivo
de modelos e expectativas identitárias. Não é demasiado lembrar que, não bastasse a herança
histórica de uma sociedade conservadora, associada à moral cristã, neste período o país viveu
sob um regime militar ditatorial (1964-1985), o que estrangulava ainda mais as possibilidades
de manifestações identitárias plurais, não convencionais e, sobretudo, afrontadoras de uma
pretensa ordem.
O que discuto em minha tese é que a tatuagem não estaria se ressignificando apenas pelo
“abrandamento de suas preocupações [do sujeito tatuado] em manifestar uma posição
“classicamente transgressora”. 17 Antes, teria sido justamente o enfrentamento produzido pelos
sujeitos em torno da possibilidade da construção de si o que impulsionou a reelaboração do
significado da tatuagem. Durante todo século XX, diferentes sujeitos se tatuaram, a despeito
dos discursos estigmatizantes produzidos. As estratégias de ocultação e dissimulação de suas
marcas corporais foram e são, ainda hoje, parte desta disputa. Trata-se, portanto, não de um
contexto no qual os tatuados unilateralmente se sujeitaram às estratégias de dominação e
domesticaram-se para ser aceitos, mas sim de um processo de lutas e enfrentamentos em torno
da produção de si. Processo este que não se encerrou.
O estigma sobre os tatuados e as tatuadas não seria, portanto, fruto de sua atitude
dissidente, mas construção histórica que se relaciona ao lugar social ocupado pelos tatuados e
tatuadas na primeira metade do século XX. Sua posterior ressignificação, novamente se ligaria
ao lugar social daqueles que passaram a se tatuar a partir dos anos de 1960.
Os discursos médicos e midiáticos produzidos sobre os tatuados e tatuadas de classe
média distanciam-lhes das classes perigosas, se deslocando da ciência criminal, como a
antropometria, tributária do discurso do criminoso nato, do mal intrínseco, reveladora de um

17
ALMEIDA, M. Nada além da epiderme, p.144.
13
sujeito moralmente atrasado e fadado à inferioridade na hierarquia social; para a psicologia,
sedimentando o discurso da tatuagem como desajustamento juvenil, como rebeldia resultante
de imaturidade psicológica que se corrigiria pelo amadurecimento do sujeito e seu retorno à
ordem social.
A adesão desses últimos desestabilizou os discursos então cristalizados sobre as pessoas
tatuadas, provocando uma quebra de expectativa e coerência entre o signo e seu significado,
especialmente à medida que essa juventude envelheceu e foi absorvida pelo mercado de
trabalho, adequando-se às expectativas de comportamento da classe média.
Ou seja, a adoção da tatuagem por grupos de classe média que divergiram das
imposições estéticas vigentes, paradoxalmente produziu discursos de conformação da prática.
Aparente incoerência, tal percepção reforça a proposição foucaultiana de que sujeitos e objetos
históricos emergem das construções discursivas, ao invés de serem pontos de partida para a
explicação das práticas sociais. 18
Ao passo que esse deslocamento objetivou produzir a tatuagem como prática legítima,
sua gradativa normalização passou a operar distinções sutis entre as tatuagens autorizadas e
não autorizadas, resultando as primeiras de um processo institucionalizado, realizado por
profissionais autorizados e sob supervisão biopolítica do Estado.19 Tornando-se uma operação
gradativamente mais onerosa, essas distinções atuaram na manutenção da anormalidade da
tatuagem quando inscrita no corpo dos indivíduos pobres, produzidas às margens dos padrões
estabelecidos. Como resultado, parte do estigma construído no início do século permanece,
doravante operacionalizado de forma refinada.
Até o momento, evidenciei a complexidade do processo de ressignificação da tatuagem.
O faço pois julgo imprescindível escapar às leituras cristalizadas no discurso dos tatuadores e
das tatuadoras, tatuados e tatuadas, da imprensa e mesmo de alguns pesquisadores: a de que a
tatuagem foi uma prática associada à criminalidade, atualmente reduzida a um adereço corporal
socialmente admitido. Se a premissa é parcialmente verdadeira, cuidados devem ser tomados a
fim de compreender as rupturas e as permanências desse processo.
O olhar que orienta minha tese é o de que a ressignificação da tatuagem, ou seja, o
processo de construção do estigma sobre a tatuagem e sua posterior conversão em uma marca

18
RAGO, M.
O efeito Foucault na historiografia brasileira, p. 71.
19
Foucault usa os conceitos de biopolítica e biopoder para referir-se a outra faceta do poder, não aquele
disciplinador do corpo individual, mas manifesto em uma política do Estado, que visava controlar a vida e o corpo
da população. DUARTE, A. Biopolítica e resistência, p. 48.
14
corporal socialmente aceita, está indissociavelmente atrelado ao lugar social ocupado pelos
sujeitos tatuados em cada um dos períodos estudados. Dito de outra forma, enquanto a tatuagem
predominou entre as classes pobres, funcionou como um elemento de estigmatização de seu
portador. A partir do momento em que a tatuagem passou a estampar o corpo dos indivíduos de
classe média, seu significado precisou ser reformulado.
A investigação historiográfica, como é devido ao processo científico, se orienta por
metodologias específicas na análise das diferentes tipologias de fontes. Propor uma
metodologia é esforçar-se em responder o fazer da pesquisa científica. Em história, esse
trabalho diz respeito a pormenorizar a relação entre o historiador e suas fontes, tornando
inteligível o percurso e os desdobramentos dessa relação para a pesquisa.
O encontro entre historiador e fonte não resulta automaticamente em historiografia, a
mediação do método faz-se imprescindível, uma vez que a fonte por si não revela o passado,
antes constitui instrumento fundamental de sua produção.20 Se os documentos são produtos do
passado, preservados deliberada ou acidentalmente e só se tornam fontes históricas a partir da
sua utilização por parte do historiador 21, essa relação precisa ser mediada por um componente
de cientificidade. Este componente é o método.
A história só é capaz de produzir enunciados verossímeis, que produzam um efeito de
verdade, se ancorada no método. Do contrário, qualquer enunciado acerca do passado se
afirmaria como história, mesmo aqueles não lastreados em fontes. E se qualquer coisa for
história, a história se torna uma coisa qualquer. O método permite a verificabilidade das
afirmações do historiador.
Há um pressuposto ético no trabalho do historiador, que implica em evidenciar ao leitor
os procedimentos que deram forma ao texto. Isso significa desvelar fontes, hipóteses e
objetivos, de modo a tornar possível o vislumbre do caminho metodológico da construção da
interpretação historiográfica. A referenciação das fontes, bibliografias e a explanação dos
conceitos aplicados à pesquisa fazem parte desse pressuposto. São rigores como este que
permitem o reconhecimento de uma obra historiográfica pelos pares. 22
Promover um diálogo entre as fontes, os métodos de análise, as hipóteses e os
referencias teóricos escolhidos é o desafio do historiador. Outro ponto fulcral na discussão
metodológica é a centralidade da fonte. Fazer história é, irremediavelmente, voltar-se a um

20
SALIBA, E. Aventuras modernas e desventuras pós-modernas, p. 317.
21
KARNAL, L.; TATSCH, F. A memória evanescente, p. 24.
22
DE CERTEAU, M. A escrita da História, p. 55-56.
15
passado somente acessível pela mediação da fonte. É escarafunchando-as que os historiadores
se tornam capazes de inventar o passado, para utilizar o termo de Durval Muniz Albuquerque
Júnior. Em suas palavras, “não podemos fugir do limite imposto pelo nosso arquivo. Só
podemos historicizar aquilo que deixou rastros de sua produção pelo homem, em dado momento
e espaço”.23
São aos vestígios do passado que devemos recorrer quando da tentativa de
compreender uma característica específica daquilo que já não é mais. Saber o que foi, como foi
e porque foi, são processos cognitivos construídos em relação indissociável com a fonte. Isso
se dá pela óbvia problemática de ser o passado irremediavelmente inalcançável, e
consequentemente irreconstituível.
Ou seja, a construção do objeto pelo historiador está diretamente ligada à sua
capacidade de arregimentar, relacionar, analisar e interpretar as fontes. Neste sentido, a teoria
e a metodologia tornam-se suportes fundamentais. O domínio da teoria permite ao historiador
estabelecer o diálogo não só entre diferentes tipologias de fontes, mas também entre as
subjetividades e intencionalidades presentes em cada uma delas. Isso me conduz a outra
problemática fundamental: o diálogo com o passado é inevitavelmente intersubjetivo.
Se o passado é construção da história – e da memória – a realidade passada é
simultaneamente duas coisas: objetividade, entendida como o acontecido situado no passado,
em um tempo irrecuperável; e subjetividade, como construção de sentido acerca do acontecido,
construção essa situada no presente. A fonte não é o próprio passado, mas uma representação
deste.
Desta forma, quando o historiador se depara com a fonte, ele não acessa o passado em
si, mas uma construção subjetiva daquele passado. Afinal, como afirma Albuquerque Júnior,
“mesmo aquele documento ou vestígio do passado que possa ter chegado até nós por puro acaso,
foi produzido no seu tempo obedecendo a intencionalidades, ou seja, as evidências em seu
próprio tempo são fabricadas”. 24 Sendo assim, o conhecimento definitivo do passado é
impossível. O que teremos serão representações – sempre provisórias – deste passado, tanto na
fonte quanto na escrita do historiador.
Significa, portanto, que a subjetividade do historiador, elemento que envolve sua
capacidade de formulação de hipóteses e a indelével marca de seu lugar social25 conecta-se não

23
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. História: a arte de inventar o passado, p. 64.
24
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. História: a arte de inventar o passado, p. 29.
25
DE CERTEAU, M. A escrita da história, p. 65.
16
com o passado real, mas com a subjetividade sobrevivente desse passado, expressa tanto na
produção quanto na conservação da fonte por parte dos sujeitos históricos. Fazer história não é,
assim, um trabalho que põe em contato a subjetividade do historiador com a objetividade do
passado, e sim a subjetividade do historiador com a subjetividade presente na fonte. A
historiografia é um diálogo intersubjetivo mediado por metodologias específicas à tipologia da
fonte em análise.
Quanto às fontes escritas de que disponho, matérias publicadas em jornais e revistas
como Correio Paulistano, Última Hora, Jornal do Brasil, O Paiz, O Careta, O Malho e O
Cruzeiro, integram seu conjunto fundamental. Além destes, revistas especializadas em
tatuagem como a MetalHead Tattoo e Tatuagem, Arte e Comportamento, constituem o escopo
de fontes de minha pesquisa.
Pensar a imprensa como fonte diz respeito a operacionalizar ferramentas e saberes
comuns ao historiador, considerando, contudo, especificidades inerentes à tipologia da fonte.
Como aponta Oliveira:

Ao selecionar o texto jornalístico como sua fonte de pesquisa, o historiador


deve levar em conta que sua fonte não é um documento “puro e cristalino”
que contenha todas as verdades. É importante dialogar com essas fontes, fazer
entrecruzamentos com outras informações e, às vezes, buscar as razões do seu
silêncio ou de sua omissão. 26

Oliveira ressalta ainda que o trabalho de interpretação do discurso midiáticos inclui


“considerar contingências sociais e políticas do momento específico da sua produção e a
interpretação individual de quem escreve”. 27 Como afirmam Cruz e Peixoto, trabalhar a
imprensa como fonte requer a compreensão de que tais impressos não existem para que o
historiador faça sua pesquisa. Pelo contrário, é a sua seleção e seu tratamento teórico e
metodológico que o transformam em fonte. Uma fonte não é fonte em si mesma, é transformada
em fonte pelo olhar do historiador. Quanto à imprensa, instrumentalizá-la como fonte requer
entende-la:

[...] como linguagem constitutiva do social, que detém uma historicidade e


peculiaridades próprias, e requer ser trabalhada e compreendida como tal,
desvendando, a cada momento, as relações imprensa /sociedade, e os
movimentos de constituição e instituição do social que esta relação propõe. 28

26
OLIVEIRA, R. A relação entre a História e a Imprensa, p. 126.
27
OLIVEIRA, R. A relação entre a História e a Imprensa, p. 127.
28
CRUZ, H; PEIXOTO, M. Na oficina do historiador, p. 258.
17
Isso vai além de afirmar que os veículos de imprensa têm um posicionamento
ideológico, considerando “que em sua atuação delimitam espaços, demarcam temas, mobilizam
opiniões, constituem adesões e consensos”. 29 Isso significa, como lembram as autoras, refletir
a historicidade da imprensa, problematizar suas articulações à sociedade, destacando as
especificidades deste longo processo de “constituição, de construção, consolidação e
reinvenção do poder burguês nas sociedades modernas”.30 Trata-se, portanto, não de retomar
de forma enfadonha uma História da Imprensa a cada instrumentalização sua como fonte, mas
de “trazer para cada conjuntura e problemática que se investiga os desdobramentos teóricos e
metodológicos que ela encaminha, articulando a análise de qualquer publicação ou periódico
ao campo de lutas sociais no interior do qual se constitui e atua”. 31
Neste sentido, analisar as fontes impressas, especialmente durante a primeira metade do
século XX, é lidar com uma imprensa que:

[...] se modernizava não somente na utilização de novos expedientes gráficos


e em maquinário moderno como também em sua forma e conteúdo [e que
serviu] ao mesmo tempo, de representante de uma coletividade ansiosa por
novos hábitos e costumes, mas também de símbolo de uma imprensa que se
queria em dia com as novas formas de abordagem da notícia. 32

Portanto, é fundamental na análise dos periódicos a problemática de sua


intencionalidade. Segundo Tânia de Luca, a utilização da imprensa periódica como fonte pelo
historiador exige o reconhecimento de que ela:

[...] seleciona, ordena, estrutura e narra, de uma determinada forma, aquilo


que se elegeu como digno de chegar até o público. O historiador, de sua parte,
dispõe de ferramentas provenientes da análise do discurso que problematizam
a identificação imediata e linear entre a narração do acontecimento e o próprio
acontecimento, questão, aliás, que está longe de ser exclusiva do texto da
imprensa. 33

A notícia é resultado de uma série de variáveis que envolvem as motivações que levaram
à publicação, o destaque a ela conferido e as construções discursivas presentes na publicação.

29
CRUZ, H; PEIXOTO, M. Na oficina do historiador, p. 258.
30
CRUZ, H; PEIXOTO, M. Na oficina do historiador, p. 257.
31
CRUZ, H; PEIXOTO, M. Na oficina do historiador, p. 257.
32
NOGUEIRA, C. A revista Careta, p. 65.
33
NOGUEIRA, C. A revista Careta, p. 139.
18
Afinal, como afirmado por Tânia de Luca, “a ênfase em certos temas, a linguagem e a natureza
do conteúdo tampouco se dissociam do público que o jornal ou revista pretende atingir”. 34
Se o significado social construído sobre a tatuagem está relacionado ao lugar social dos
sujeitos tatuados, compreender a emergência desses discursos, seu local e as condições de sua
produção, torna-se fundamental. A compreensão de que o trabalho jornalístico era
predominantemente exercido pelos “homens de letras”, membros da sociedade burguesa 35, é
fator importante na compreensão da elaboração do significado da prática da tatuagem.
Ignorar o lugar de produção dos discursos, as imbricações entre o saber e o poder na
produção midiática dos períodos analisados, seria ignorar como a imprensa se constituiu, entre
outras coisas, em instrumento de disciplinarização da vida social no cotidiano das cidades
brasileiras. Neste sentido, parte considerável daquilo que é chamado Grande Imprensa,
materializada em jornais e revistas ilustradas, atuou como veículos que:

[...] criavam modas, impunham comportamentos, assumindo a estética


burguesa como a forma fiel do mundo que representavam. [...]. Ao mesmo
tempo, que através de suas crônicas e notas sociais, impunham valores,
normas e criavam realidades, num processo que transformaria a cidade em
cenário e a burguesia em seu principal ator. Sendo assim, foram importante
instrumento, desta classe social, para a naturalização das suas representações
através da imposição de uma determinada forma de ver e reproduzir o mundo
sobre todas as outras possíveis. 36

A imprensa figura neste trabalho, portanto, como fonte fundamental a partir da qual
analiso o discurso (re)produzido, a fim de compreender a dimensão de sua operação enquanto
dispositivo disciplinar na construção dos corpos tatuados.
Para a produção de fontes orais, utilizo o método da história oral. Durante o percurso
que envolveu minha graduação, mestrado e doutorado, realizei entrevistas com tatuadores,
tatuadoras, tatuados e tatuadas. Ainda durante minha graduação em História na Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul, iniciei a produção de entrevistas na cidade de Três Lagoas/MS.
Posteriormente, ao ingressar no mestrado, estendi a pesquisa às cidades de São Paulo/SP e do
Rio de Janeiro/RJ. Alguns dos tatuadores entrevistados compõem a chamada primeira geração
de tatuadores profissionais 37, que participaram do surgimento dos estúdios modernos de

34
NOGUEIRA, C. A revista Careta, p. 140.
35
NOGUEIRA, C. A revista Careta, p. 62.
36
MAUAD, A. Sob o signo da imagem, p. 206.
37
SOUZA, F. História da tatuagem no Brasil.
19
tatuagem e da inserção da prática entre as classes médias urbanas, especialmente em cidades
como o Rio de Janeiro e São Paulo. Outros, iniciaram sua relação com a tatuagem no fim do
século XX e início do século XXI, tornando-se importantes fontes na compreensão de
permanências e rupturas nesta trajetória de ressignificação. Entrevistei ainda tatuados e tatuadas
oriundos de classes sociais distintas, o que possibilitou analisar como o discurso que oscilou
entre a legitimação e a deslegitimação do corpo tatuado produziu seus efeitos em diferentes
sujeitos, interferindo em seu processo de subjetivação.
No que tange à história oral, cumpre evidenciar que opto por instrumentalizá-la como
metodologia 38 de produção de fontes, que “estabelece e ordena procedimentos de trabalho, tais
como os diversos tipos de entrevista e as implicações de cada um deles para a pesquisa”. 39
Em diálogo com Paul Ricoeur, Roger Chartier propõe que “a imediata – e suposta –
fidelidade da memória se opõe a intenção de verdade da história, fundada tanto na análise dos
documentos, que são vestígios do passado, como nos modelos de inteligibilidade que constroem
sua interpretação”.40 Neste sentido, é imprescindível que as entrevistas produzidas sejam
analisadas criticamente, impondo à memória e à narrativa dos sujeitos participantes um rigor
metodológico e analítico, confrontando essas memórias com a análise histórica, questionando
“a função desse passado rememorado”. 41
A fim de proporcionar maior fluidez e coesão às narrativas produzidas pelos
interlocutores, empreendi a textualização das entrevistas anteriormente transcritas. Em diálogo
com Meihy e Ribeiro, Leandro Alonso aponta que:

[...] “a textualização é um estágio mais complexo na elaboração do documento


em história oral, obedecendo a uma lógica exigida pelo texto escrito”. Porque,
na textualização, retira-se as perguntas e funde-as à narrativa inteira, bem
como aproxima os “temas que foram abordados e retomados em diferentes
momentos”. 42

38
Segundo Marieta de Moraes Ferreira, é possível reduzir as proposições teóricas da História Oral à três posturas
principais: os que a afirmam como técnica; os que a postulam como disciplina; e os que a defendem como
metodologia. Para os primeiros, os procedimentos que ceram a produção da fonte são o principal foco de análise:
as gravações, transcrições e conservação das entrevistas, bem como o aparato tecnológico que envolve estes
procedimentos. Para os defensores da História Oral como disciplina, ela teria inaugurado um campo próprio, com
“técnicas específicas, procedimentos metodológicos singulares e um conjunto próprio de conceitos”. FERREIRA M.
História oral: velhas questões, novos desafios, p. 169.
39
FERREIRA M. História oral: velhas questões, novos desafios, p.170.
40
CHARTIER, R. Defesa e ilustração da noção de representação, p. 25.
41
FERREIRA M. História oral: velhas questões, novos desafios, p.183.
42
ALONSO, L. Corpus documental, p. 15.
20
O teórico que servirá de referencial fundamental em minha tese é Michel Foucault. E de
partida, é preciso provocar a impossibilidade – ou mesmo a risibilidade – de uma tese
foucaultiana.
Ao descrever a trajetória da História do Corpo no campo historiográfico, Jean-Jacques
Courtine cita a imprescindível contribuição de Michel Foucault para o estudo das relações que
o envolvem.

O mérito de Foucault, quer se subscreva ou não a sua maneira de conceber os


poderes exercidos sobre a carne, consiste em a ter firmemente inscrito no
horizonte da longa duração. E a emergência do corpo como objeto na história
das mentalidades, a redescoberta da importância do processo de civilização
ontem elucidado por Norbert Elias, a ênfase posta nos gestos, nas maneiras,
nas sensibilidades, na intimidade na investigação histórica atual refletem sem
dúvida um eco disso tudo.43

Se o corpo que pretendo analisar é o que chamarei de corpo político, ou seja, um locus
de investimento constante do poder disciplinar e da resistência, campo de batalha entre a
sociedade e o indivíduo pela sua autonomia ou domínio, Foucault torna-se um teórico
fundamental.
A trajetória intelectual de Michel Foucault é permeada por críticas como “a falta de
método, o menosprezo pelos dados, a obscuridade filosófica, a linguagem singular, as
simplificações excessivas e as abstrações”44, que somadas a sua irreverência ante aos cânones
dos campos pelos quais se aventurou, incluindo a História, que lhe acusou de negligenciar “os
critérios habituais de erudição histórica”45, lhe renderiam uma posição ambígua no interior – às
margens, pra ser mais preciso – da historiografia.
E talvez fosse exatamente assim que Foucault gostaria de ser encarado: um sujeito às
margens, um nômade que não se obriga a fixação no território da História, mas que passando
por ela, revolve sua terra e modifica irremediavelmente sua paisagem. Isso me provoca
profundamente: faz sentido escrever uma tese foucaultiana em História?
No debate entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, presente em Os intelectuais e o
poder, Deleuze formula uma questão fundamental: a de que uma teoria deve servir à
aproximação entre o teórico e a realidade, entre o sujeito e o objeto.

43
COURTINE, J. História do Corpo, p. 10, grifo nosso.
44
O’BRIEN, P. A história da cultura de Michel Foucault, p. 41
45
O’BRIEN, P. A história da cultura de Michel Foucault, p. 40.
21
Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o
significante...É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma.
Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa
então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não
chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; há outras a serem feitas. É
curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que
o tenha dito tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para
fora e, se eles não lhes servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos
seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de combate. A teoria não
totaliza; a teoria se multiplica e multiplica. 46

Há neste trecho um conjunto de afirmações cujas possibilidades reflexivas


extrapolariam o espaço e objetivo desta introdução. Por ora, me atenho a duas delas.
Em primeiro lugar, Deleuze afirma que a teoria é uma caixa de ferramentas. Essa
afirmação simples revela uma função primordial e, por vezes, negligenciada: a teoria é
instrumento. O que é uma caixa de ferramentas, se não o compartimento que aglutina uma série
de objetos passíveis de serem instrumentalizados para a resolução de problemas? Daí a
importância de considerar diligentemente o léxico foucaultiano e o lugar que termos como
instrumentalizar e operacionalizar nele ocupam.
Em outro momento, Michel Foucault aponta que:

Todos os meus livros [...] são se você quiser, caixinhas de ferramentas. Se as


pessoas quiserem abri-las, se servir desta frase, daquela ideia, de uma análise
como de uma chave de fenda ou uma torquês, para provocar um curto-circuito,
desacreditar os sistemas de poder, eventualmente até mesmo os que
inspiraram meus livros [...] pois tanto melhor. 47

A exemplo de Deleuze, Foucault postula sua teoria como uma caixa de ferramentas,
considerando os conceitos como as ferramentas presentes nessa caixa. A instrumentalização
que devo fazer dos conceitos está subordinada à sua qualidade e capacidade na resolução de
meu problema teórico. O que pretendo nesta tese é instrumentalizar de forma correta os
conceitos legados por Foucault e outros autores. Isso me conduz ao segundo ponto enunciado
por Deleuze: a teoria como instrumento para a leitura do mundo.
Deleuze sugere, ao recorrer a Proust e sua afirmação de que seus livros “são óculos
dirigidos para fora” e que eles “podem não servir” 48. Portanto, uma história da ressignificação

46
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder, p. 132.
47
ERIBON, D. Foucault, uma biografia, p. 220, grifo nosso.
48
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder, p. 132.
22
da tatuagem não precisa se subordinar aos conceitos e à teoria de Foucault. Eles é que precisam
ser ferramentas passíveis de serem instrumentalizadas em favor da compreensão da tatuagem,
que se torna objeto quando conscientemente lanço sobre ela olhar analítico.
A afirmação de Deleuze convida, portanto, a evitar a universalização irreflexiva da
teoria. Complementando, é preciso que a caixa de ferramentas teórica seja posta em uso
conforme sua conveniência e capacidade de mediação entre sujeito e objeto do conhecimento,
evitando assim as gambiarras intelectuais, ou seja, o uso forçoso de um conceito onde este não
cabe, ou onde outro conceito funcionaria de maneira mais adequada.
Foucault e Deleuze recusam as grandes totalizações, reconhecem a positividade dos
dados e necessidade de não os submeter aos imperativos da teoria.49 Assim, como aponta
Albuquerque Junior, Foucault nos obriga a repensar nossa relação com os objetos, com as
teorias e com o próprio campo:

Ele partilha com Nietzsche o ponto de vista de que a história deve ser uma
atividade que busca destronar ídolos e deuses, que visa inquietar o pensamento
e o poder, que se destina a libertar-nos do peso do passado, de sua repetição
mecânica e acrítica; ela deve arruinar a familiaridade com as coisas de
antanho, dessacralizar e desnaturalizar aquilo que nos chega do passado como
sendo valores universais e eternos. 50

Como poderíamos, então, submeter uma tese à teoria de Foucault? Se Foucault ri da


ortodoxia, da reverência submissa no interior do campo científico, se ele percebe na produção
de enunciados e regimes de verdade estratégias de exercício de poder, como tal submissão seria
possível? Seria mesmo a traição de seu pensamento, visto que é dedicado ao questionamento
dos regimes de verdade instituídos pelos discursos e ao escrutínio das manifestações de poder
e suas relações com a instituição dos saberes, inclusive os que inspiram seus próprios livros”.51
Ao invés de seguir Foucault, quero usá-lo na compreensão de meu objeto. Nada mais, nada
menos.
Entendo que instrumentalizar conceitos é colocá-los em movimento. Ou seja, é servir-
se deles, colocá-los em operação para produzir uma análise do real, cuidando de evitar o
enclausuramento de nosso objeto em predefinições cristalizadas por análises anteriores. Não se

49
MAIA, A. Deleuze leitor de Foucault, p. 60.
50
ALBUQUERQUE JUNIOR, D. Michel Foucault e a Mona Lisa, p. 98-99.
51
ERIBON, D. Foucault, uma biografia, p. 220, grifo nosso.
23
trata de desvirtuar o conceito ao capricho do pesquisador. De outro modo, trata-se de evitar que
o objeto em análise tenha de se adequar para ser contido na definição conceitual.
Não presumo um real essencialista, que existe em completa independência do ato de
conhecê-lo. Compartilho do entendimento de que os discursos são, também eles, elementos
constitutivos da realidade. Como aponta Albuquerque Júnior:

Nada é evidente antes de ser evidenciado, ressaltado por alguma forma de


nomeação, conceituação ou relato. Os documentos são formas de enunciação
e, portanto, de construção de evidências ou de realidades. A realidade não é
uma pura materialidade que carregaria em si mesma um sentido a ser revelado
ou descoberto, a realidade além de empírica é simbólica, é produto da dotação
de sentido trazida pelas várias formas de representação. A realidade não é um
antes do conceito, é um conceito. 52

Recorrendo aos tropos que dão forma às narrativas historiográficas, cunhados por
Hayden White, Albuquerque Júnior propõe que o historiador irônico é aquele que “não se
coloca fora do acontecimento que enuncia, do tempo que narra, mas que sabe que seu próprio
discurso é mais uma dobra no inabarcável arquivo de enunciações que instituem dados sujeitos
e dados objetos”.53
Esta proposição encontra apoio na Filosofia da História de Frank Ankersmith. Para ele,
há uma indeterminação sistemática ou frouxidão no vínculo entre a linguagem e a realidade na
narrativa histórica, que mais do que ser um problema, é a própria condição de possibilidade de
nosso trabalho. Isso porque, como afirma o autor, “o passado em si mesmo nunca pode ser um
ingrediente no processo de aquisição do conhecimento histórico ou na discussão histórica, uma
vez que o passado por sua natureza não pode ser mais observado”. 54
Isso não significa hierarquizar narrativa e acontecimento. Como aponta Albuquerque
Júnior, o exacerbamento desta divisão entre sujeito e objeto, em favor do sujeito, pode conduzir
ao erro do relativismo que percebe o fato ou acontecimento como mera fabricação discursiva,
condicionando a existência dos sujeitos e objetos à construção textual.55 Não se trata, portanto,
da inexistência da realidade passada, mas da sua impossibilidade de acesso se não via
documento. Este sim, uma fabricação discursiva, uma representação do passado, um

52
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. História: a arte de inventar o passado, p. 25.
53
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. História: a arte de inventar o passado, p. 26.
54
ANKERSMITH, F. A escrita da História, p. 45.
55
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. História: a arte de inventar o passado, p. 26.
24
intermediário entre o objeto – realidade passada – e o sujeito que intenta conhecê-lo – o
historiador.
Aplicando à História a metáfora de um rio, entre a margem da objetividade, lugar do
evento, da matéria e da realidade; e a da subjetividade, morada da representação, da ideia e da
narrativa, Albuquerque Júnior nos convida a escrever a História a partir de uma terceira
margem, a da relação: onde as mediações entre essas duas margens ocorrem, na qual articulam-
se natureza e cultura, realidade e construção discursiva.56
No método exposto por Foucault, o documento não se resume a “essa matéria inerte
através da qual ela [a História] tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é
passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental,
unidades, conjuntos, séries, relações”. 57 É, portanto, o trabalho do historiador que transforma
uma narrativa em fonte, conferindo-lhe sentido histórico para além da memória. A fonte, em si,
não pode ser uma afirmação suficiente do passado. Pelo contrário, a relação entre historiador e
passado é intersubjetiva, visto que a própria fonte já é construção discursiva do passado,
portanto, subjetividade.
Ao defender a não existência de uma ordem objetiva dos acontecimentos que seja
apreensível pela história, Foucault recusa a possibilidade de definição do passado real por
intermédio da fonte. A documentação preservada de uma sociedade produz sua realidade, não
havendo um passado real que possa ser apreendido fora dessa documentação. 58 Essa afirmação
dialoga com o pressuposto de Frank Ankersmith sobre a narrativa historiográfica, de que não
se pode comparar narrativa com o passado, apenas narrativa com narrativa, pelo motivo simples
de que o passado em si é irremediavelmente inacessível. 59 Assim, segundo Albuquerque Júnior:

A sociedade que vemos e dizemos, a partir desta documentação, depende do


regime de visibilidade e de dizibilidade do momento em que o historiador está
inserido, mas também do diálogo desta visibilidade e dizibilidade com aquelas
outras, expressas na documentação. Foucault [...] faz história das técnicas e
categorias da visibilidade e dizibilidade que em cada época instituíram as
coisas a serem vistas e ditas. Ele não faz a história de uma experiência, mas
de como esta foi constituída, como esta foi possível, como ela chegou até nós,
e a partir de que interesses ela foi “documentada”. 60

56
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. História: a arte de inventar o passado, p. 28-29.
57
FOUCAULT, M. Arqueologia do Saber, p. 7.
58
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. História: a arte de inventar o passado, p. 138.
59
ANKERSMITH, F. A escrita da história, p. 45.
60
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. História: a arte de inventar o passado, p. 138
25
O conhecimento do objeto que intento nesta tese é uma construção, somente possível
por meio da agência do sujeito que conhece e sobre o objeto que se quer conhecer. Assim, penso
que seja na imbricação entre o real e o discurso produzido que reside a possibilidade de
compreensão de uma História da Tatuagem.
Portanto, não significa condicionar a existência do passado à narrativa. O passado
aconteceu. Os sujeitos que compõem essa história da tatuagem existiram, viveram, morreram,
amaram, odiaram, sofreram, sorriram, choraram. O fato de estudá-los não mudará suas
experiências em absolutamente nada. É para nós, do presente, que essa história tem valor,
afinal. Somos nós quem podemos, dessa multiplicidade de trajetórias individuais, apreender a
história de uma prática corporal que chega aos nossos dias com status de arte, como mais um
produto disponível no mercado da modificação corporal e no mercado de identidades, mas que
outrora foi signo de ignomínia.
Não escrevo para os tatuados e as tatuadas do passado. Não pretendo recuperar ou
resgatar sua história, ou honrar sua memória, pois isso sequer faz sentido. Suas vidas foram
vividas da maneira que as viveram, e não há o que o historiador possa fazer para mudá-las. Não
há palavra escrita por um historiador que atenue os sofrimentos ou suprima as alegrias dos
sujeitos do passado. A história é escrita para o presente. Os mortos não se importam com minhas
palavras e não podem ser por elas afetados. Os vivos, contudo, podemos por meio dessas linhas
compreender quais processos históricos nos forjaram, nos constituíram enquanto sujeitos e nos
possibilitaram gozar da relativa autonomia que temos sobre nossos corpos.
Talvez, compreender a história da tatuagem e a autonomia relativa atualmente
conquistada pelos tatuados e tatuadas nos permita ir além e nos questionar sobre a posse do
corpo na sociedade contemporânea. A quem pertence o corpo do tatuado? Tem ele o direito de
modificá-lo? Sugiro que estendamos essa reflexão para outros corpos, que na
contemporaneidade vivenciam experiências de repressão semelhantes às que se impuseram
outrora aos tatuados. Assim, reformulo: a quem pertence o corpo da pessoa transexual? Quem
deve regular os usos do corpo da travesti? 61 Se lhe parece óbvio definir que o corpo do tatuado
a ele pertence e não há quem deva restringir sua livre experiência, por qual motivo seria

61
Os termos travesti e transgênero podem ser sintetizados, respectivamente, como indivíduos que vivenciam
papéis de gênero feminino, mas não se reconhecem nem como homens, nem como mulheres; e como o indivíduo
que, nos papéis de gênero, não se identifica com seu sexo biológico.
https://www.bol.uol.com.br/noticias/2018/01/03/transgeneros.htm. Acesso em: 09 fev. 2021.
26
diferente com outros corpos? Reflexões como esta são desdobramentos importantes na História
do Corpo, incluindo as possíveis contribuições de uma História da Tatuagem.
Na primeira parte da tese, discutirei a chamada primeira fase da tatuagem – até a
primeira metade do século XX – na qual ela predominou entre classes pobres, herdeira de uma
cultura portuária, local de reunião de trabalhadores mal remunerados e socialmente
estigmatizados. Ao longo do período, a prática predominou nas camadas pobres, condição
fundamental para a construção de seu valor de estigma. Interessa, portanto, compreender a
adoção da tatuagem, os processos de construção da identidade do tatuado e a maneira como
essa marca corporal pode ter atuado na subjetivação destes sujeitos.
Por outro lado, a análise do discurso sobre os tatuados permitiu compreender sua
objetivação. É possível perceber na imprensa, na primeira metade do século XX, um sistemático
investimento na associação da tatuagem à criminalidade, à prostituição ao primitivismo e à
vadiagem, ligando-a às classes perigosas, sobre as quais se construiu a noção do atraso moral.
Dispositivos como a imprensa e a ciência foram evocados nesse empreendimento.
A análise das fontes concentra-se no contexto social, político e cultural das cidades do
Rio de Janeiro e São Paulo. Para mais do que escolher aleatoriamente as duas cidades, ou supor
que elas pudessem representar um país territorial e culturalmente vasto como o Brasil, procuro
demonstrar como essas duas cidades tornaram-se polos – ou polo, no singular mesmo,
considerando a historicidade do conceito Rio-São Paulo – de irradiação cultural, a partir do
qual um conjunto de normas e restrições, de noções de normalidade e anormalidade ligadas ao
comportamento social, às práticas e representações culturais e aos usos do corpo, foram
propagados pela elite econômica republicana, influenciada por valores burgueses importados
da Europa.
No conjunto dos enunciados que produziram um discurso sobre a tatuagem durante a
primeira metade do século XX, é importante detectar continuidades e descontinuidades
discursivas, estratégias de enunciação e seus efeitos. Entre os jornais cariocas e paulistanos
tornados fontes de minha pesquisa, destaco o Jornal do Brasil e o Correio Paulistano, embora
vários outros constituam fontes em minha análise.62

62
Especificamente por tratar de um tema não recorrente nos jornais, ao menos não como objeto principal das
reportagens, julgo necessário não dispensar as presenças esparsas da tatuagem nos periódicos. Encontradas aqui e
ali, reduzir sua análise a um ou dois periódicos seria deixar escapar o conjunto de enunciados que, embora
produzidos por publicações distintas, parecem convergir. Antes de empobrecer a análise do discurso, defendo que
a percepção dessa convergência a enriquece.
27
O Jornal do Brasil, lançado no Rio de Janeiro, então capital federal, anunciava-se como
“porta voz da sociedade civil e articulador de questões nacionais, atingir uma repercussão em
todo o país”. 63 Segundo Bruno Brasil, no início do século XX o Jornal do Brasil se
caracterizaria mais por uma publicação informativa que de opinião, explorando notícias como
casos de polícia – no qual as tatuagens aparecerão diversas vezes – campanhas populares e
humor crítico ao governo e os costumes. Mesmo tendo ganhado a alcunha de O Popularíssimo
pelos concorrentes, pela atenção dada a questões das classes pobres, como uma série de
reportagens sobre as favelas cariocas, o periódico manteria um posicionamento conservador e
católico, opondo-se no campo político aos movimentos de esquerda – assim como ao
extremismo da direita integralista – apoiando, por exemplo, o golpe do Estado Novo. 64
O Correio Paulistano, por sua vez, atuou como porta-voz da burguesia paulista. Ligado
ao Partido Republicano Paulista, após a República o jornal abandonou “qualquer esboço de
caráter progressista”, defensor que era dos interesses das oligarquias cafeicultoras paulistas.
Embora após 1930 o jornal tenha oscilado entre oposição e apoio ao governo 65, no campo das
práticas culturais sua posição conservadora se manteve, demonstrando que, se do ponto de vista
da História Política alguns historiadores se referem ao período anterior à 1930 como República
Velha, de uma perspectiva cultural – especialmente no que tange à reação às práticas culturais
das classes pobres – a chamada Revolução de 1930 não rejuvenesceu a sociedade.
De modo geral, como se perceberá na leitura da primeira parte da tese, concordo com o
que Ana Maria Mauad afirma acerca das revistas ilustradas – e que é possível estender à boa
parte dos jornais paulistanos e cariocas que comporão a chamada grande imprensa – durante a
primeira metade do século XX: eles constituíram-se em veículos que “através de uma
composição editorial adaptada ao seu próprio tempo e as tendências internacionais, criavam
modas, impunham comportamentos, assumindo a estética burguesa como a forma fiel do
mundo que representavam”.66
Como aponta Mauad:

Através de suas crônicas e notas sociais, impunham valores, normas e criavam


realidades, num processo que transformaria a cidade em cenário e a burguesia

63
CRUZ, H; PEIXOTO, M. Na oficina do historiador, p. 261.
64
BRASIL, B. Jornal do Brasil. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/artigos/jornal-do-brasil/. Acesso em 06
de junho de 2020.
65
BRASIL, B. Correio Paulistano. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/artigos/correio-paulistano/. Acesso em
06 de junho de 2020.
66
MAUAD, A. Sob o signo da imagem, p. 206.
28
em seu principal ator. Sendo assim, foram importante instrumento, desta
classe social, para a naturalização das suas representações através da
imposição de uma determinada forma de ver e reproduzir o mundo sobre todas
as outras possíveis. 67

No universo das revistas ilustradas e almanaques, ganham destaque como fontes de


minha pesquisa as edições de Mundo Ilustrado, Fon-Fon, Careta, O Malho, Leitura Para Todos
em que a tatuagem foi o tema principal ou marginal das publicações.
Descritas em seus editoriais como revistas de linguagem crítica e política, mas
simultaneamente alegres, mantendo um tom cômico em suas publicações68, Fon-Fon, Careta e
O Malho não hesitaram em reproduzir uma visão burguesa sobre a tatuagem, associando-as às
classes pobres, à criminalidade, ao ócio e ao primitivismo, tônica da imprensa do período. Como
aponta Clara Nogueira, as revistas ilustradas atuaram como “plataforma de divulgação de uma
modernidade por muito tempo ansiada”.69
Na Parte II da tese analisarei em especial a chamada segunda fase da tatuagem
brasileira 70, período entre as décadas de 1960 e 1980 marcado pela adesão das classes médias
urbanas à tatuagem. Neste período, ganhará destaque a revista O Cruzeiro, que, embora fundada
em 1928, e desde cedo tenha abordado a tatuagem em suas publicações – especialmente a
tatuagem estadunidense e japonesa – intensificou as publicações sobre o tema a partir dos anos
de 1960, quando a juventude de classe média passou a se tatuar com maior frequência.
A partir de então, a representação da tatuagem como um estigma pertencente às classes
perigosas é colocada em xeque, exigindo uma relativização desse significado, doravante
atribuído à rebeldia juvenil e não mais à delinquência, prostituição e atraso moral. Vale lembrar,
a partir da década de 1960 vivenciou-se uma maior instrumentalização política do corpo,
sobretudo a partir dos movimentos identitários que reivindicaram maior autonomia sobre ele.
À medida que essa juventude envelheceu e ocupou postos privilegiados no mercado de
trabalho – distinguindo-se do proletariado urbano sub-remunerado e constituindo a experiência
complexa que é a classe média brasileira – o deslocamento no significado da tatuagem se tornou

67
MAUAD, A. Sob o signo da imagem, p. 206.
68
MAUAD, A. Sob o signo da imagem, p. 208.
69
NOGUEIRA, C. Revista Careta, p. 63.
70
Quando julgar conveniente, acionarei algumas fontes situadas na chamada terceira fase da tatuagem brasileira,
como entrevistas com tatuadores e tatuados que adentraram esse universo após a década de 1990, além de revistas
de tatuagem lançadas nesta década. Isso, contudo, tem por objetivo apontar continuidades e efeitos do processo de
ressignificação que se inicia a partir da década de 1960 e, certamente, permanece em imprevisível movimento,
promovendo rupturas e cristalizando permanências.
29
evidente: de um estigma das classes perigosas para o atestado da liberdade e rebeldia juvenil.
Concomitantemente, conforme as camadas médias vão aderindo à tatuagem a imprensa passa a
deslocar o seu discurso e o tom de ambiguidade e desconfiança impera. Se a tatuagem não é
mais apontada como sinal de periculosidade – sanitária, política e criminal – também não é um
atributo de um grupo a ser levado a sério. Adentrando a classe média predominantemente a
partir do corpo juvenil, a tatuagem começaria a ser vista como mais uma das aventuras de
jovens inconsequentes.
Neste sentido, em sintonia com o discurso midiático, os saberes científicos também se
deslocam. Não mais uma leitura da medicina criminal, a partir de então entrou em cena o
discurso psicológico, revelador de um desvio temporário – portanto, corrigível – e não mais
como um mal intrínseco, típico das classes perigosas. Contudo, mantendo-se entre as classes
pobres e invadindo as classes médias, a categoria dos tatuados passa a se apresentar como um
grupo cada vez mais heterogêneo, tornando necessário um refinamento das estratégias de
disciplinarização corporal. Neste cenário, a permanência do estigma das tatuagens feitas nos
corpos das classes pobres complexifica a análise dos deslocamentos discursivos produzidos.

30
PARTE I

CLASSES PERIGOSAS E ATRASADOS MORAIS: SIGNIFICAÇÕES DA


TATUAGEM ENTRE DISCURSOS ESTIGMATIZANTES E CORPOS
ESTIGMATIZADOS

Graças à civilização europeia, a tatuagem tende a


desaparecer. À medida que os povos se adiantam, vão
abolindo esse costume bárbaro, velho como o mundo,
de pintar e bordar a pele humana. 71

Tatuagem é o termo utilizado para designar a produção de marcas corporais indeléveis


por meio da inserção de pigmentos na derme, utilizando instrumentos pontiagudos e
perfurantes. Sua origem deriva do termo taitiano tatau, onomatopeia do ato de sua produção,
que utilizava instrumentos com cabo de madeira e ponta de ossos serrados e afiados que eram
martelados por outros instrumentos de madeira de modo a perfurar a pele, inserindo os
pigmentos. 72
Essa técnica não foi exclusividade dos tatuadores taitianos e parece ter se disseminado
e/ou criada em diversos locais, com algumas variações, a exemplo do que é possível ver nas
imagens a seguir, de tatuagens produzidas na Polinésia e nas Filipinas – no segundo exemplo a
tatuadora substitui o instrumento perfurante de ossos por um espinho de limoeiro:

71
LEITURA PARA TODOS. Costumes dos bárbaros: a tatuagem através do mundo, 1913, p. 43
72
MARQUES, T. O Brasil tatuado e outros mundos, p. 42.
31
Imagem 1: Tatuagem polinésia

Fonte: KRUTAK, L. Embodied Symbols of the south seas.

Imagem 2: Tatuagem Kalinga – Filipinas

Fonte: KRUTAK, L. The last Kalinga Tattoo Artist in the Philippines

A introdução do termo no ocidente se deu por meio do capitão inglês James Cook,
responsável pelas navegações que contactaram povos nativos de ilhas do Pacífico na segunda

32
metade do século XVIII. Por meio dele, que grafou em seus diários a palavra tattow, as
derivações do termo moldaram nosso uso corrente: tatuagem. 73
De modo pormenorizado, Andrea Osório define que:

A tatuagem é o procedimento pelo qual um pigmento é inserido abaixo da


camada superficial da pele. Este pigmento tem caráter permanente. A forma
como o pigmento é inserido e sua constituição química variam de cultura para
cultura. De forma geral, pode-se dizer que o pigmento deve ser mais escuro
que a pele marcada, para que seja visível, e deve ser inserido com algum tipo
de objeto pontiagudo, assemelhado a uma agulha. Pode-se esfregar o pigmento
na pele e depois perfurá-la, de modo a introduzi-lo no corpo, mas pode-se
também picar a pele com agulha e depois esfregar o pigmento, ou ainda
molhar a agulha e pigmento e inseri-la na pele. Os pigmentos devem ter
origem vegetal, animal ou mineral. A quantidade de agulhas utilizadas e sua
espessura também variam de cultura para cultura. 74

Essa definição não foi constante. Em 1943, o pediatra e diretor Meton de Alencar Neto
e o psiquiatra José Nava, do Serviço de Assistência ao Menor (SAM) 75 publicariam nos
Arquivos do Serviço de Assistência a Menores o texto Tatuagens e Pseudo-desenhos
cicatriciais em menores, documento base do que mais tarde se tornaria o livro Tatuagens e
Desenhos Cicatriciais. Os autores alertavam para a pluralidade e a confusão que envolviam o
termo e a necessidade de sua delimitação naquele contexto. Segundo eles, “os desenhos, as
colorações e as pinturas executados na superfície cutânea, indeléveis ou não, com substâncias
irritantes ou corantes, por meios mecânicos ou manuais, denominam-se tatuagens”. 76 Também
foi comum a utilização do termo tatuagem para designar as marcas de pólvora resultantes de
ferimentos à bala, marcas resultantes da aplicação de medicamentos, sinais resultantes de
ulcerações e queimaduras77, sugerindo uma utilização ampla do termo.78
Dito isso, minha pesquisa se concentra exclusivamente na tatuagem como a defini no
início deste capítulo, deixando de lado outras modificações corporais como as escarificações,

73
Outros termos como marcação ou marcas também foram utilizados no Brasil. Antes da popularização do termo
tatuadores, os produtores dessas marcas corporais por vezes foram denominados marcadores. RIO, J. A alma
encantadora das ruas, p.18.
74
OSÓRIO A., O gênero da tatuagem, p. 31.
75
O Serviço de Assistência ao Menor foi um órgão de orientação correcional-repressiva criado em 1942, no auge
do período repressivo do Estado Novo. Ligado ao Ministério da Justiça, funcionou como equivalente do sistema
penitenciário, voltado para a população menor de idade. Constantemente foi criticado como sistema desumano,
ineficaz e perverso, pela constante superlotação, falta de higiene e cuidados. BRITO, A.; SILVA K. A trajetória
das protoformas brasileiras de atendimento à infância e adolescência; LORENZI, G. Uma breve história dos
direitos da criança e do adolescente no Brasil.
76
ALENCAR NETO, M; NAVA, J. Tatuagens e desenhos cicatriciais, p. 9.
77
ALENCAR NETO, M; NAVA, J. Tatuagens e desenhos cicatriciais, p. 9.
78
Além destes, encontrei ainda na imprensa certa recorrência do termo para designar a marcação do gado bovino.
33
branding, piercing, implantes sub ou ultradermais, etc. Ademais, se define ainda nas tatuagens
que denomino ocidentalizadas, ou seja, naquelas (re)inseridas na cultura urbana brasileira a
partir da cultura portuária. Este texto não trata da tatuagem dos povos originários brasileiros ou
das tatuagens e escarificações dos escravizados que migraram compulsoriamente do continente
africano. O estudo dessas duas práticas, também fundamentais para compreender a História da
Tatuagem no Brasil, requer referenciais, bibliografia, fontes e conhecimentos dos quais
presentemente não disponho. 79
A tatuagem passou por uma série de transformações técnicas e institucionais em sua
produção, o que contribuiu para modificação de seu significado social. Interessa saber em que
medida o deslocamento da prática entre diferentes grupos sociais contribuiu para essa
ressignificação.
Na primeira parte da tese, seguirei o público majoritário da tatuagem até a primeira
metade do século XX: marinheiros, estivadores, vendedores ambulantes, soldados, prostitutas,
cafetões, criminosos, trabalhadores braçais da cidade e do campo, carroceiros, enfim, a classe
pobre do Brasil República que recém-abolira a escravidão e emprenhava-se em ressignificar o
trabalho. Falo de pessoas de origem africana, americana, europeia e asiática. Sujeitos que
imigraram espontânea ou compulsoriamente de uma diversidade de lugares, trazendo marcas
indeléveis que se encrustariam não apenas em seus corpos, mas em nossa cultura.
Proveniente e majorando entre as classes pobres, a prática foi prontamente associada ao
atraso moral que se atribuiu às classes perigosas. Essas duas noções são a chave de minha
compreensão do significado da tatuagem e do discurso sobre ela produzido durante a primeira
metade do século XX, e serão discutidas adiante. Antes, é preciso compreender o contexto que
as produziu.

79
Vale frisar que a tatuagem não chega ao Brasil a partir da invasão e colonização portuguesa. A tatuagem indígena
é mais antiga do que a colonização, mas, sobretudo nos contextos urbanos aqui estudados, foi minguando à medida
que a população indígena foi sendo exterminada e/ou expulsa para o interior do país. SOUZA, F. História da
Tatuagem no Brasil, p. 22
34
CAPÍTULO 1

CENTROS URBANOS BRASILEIROS NO INÍCIO DO SÉCULO XX: ENTRE A


MORALIZAÇÃO BURGUESA E A RESISTÊNCIA POPULAR

No Brasil, as primeiras décadas do século XX foram marcadas nos planos político,


social e cultural, pela ressonância de dois eventos quase simultâneos: a Abolição da Escravidão
e a Proclamação da República, ocorridos respectivamente em 1888 e 1889. Neste contexto, o
século se iniciava com a dupla necessidade de modernização: reverter a imagem anacrônica
que a escravidão e as velhas monarquias representavam perante as nações democráticas e
industrializadas; e ressignificar o trabalho, que por séculos foi prática malvista e atribuída à
sujeitos destituídos de sua condição humana, os escravizados.
As cidades brasileiras ganharam relevância na segunda metade do século XIX. A
independência revitalizou as capitais das províncias brasileiras, ampliando a importância das
funções políticas e burocráticas, intentando a formação de uma elite capacitada para sua
administração – o que resultou na criação de faculdades e consequentemente, no estímulo para
a urbanização – além do incentivo comercial urbano, trazido pela ruptura do Pacto Colonial.80
Neste contexto destacavam-se as cidades portuárias, “mais movimentadas, mais modernas,
mais europeizadas” além de São Paulo, cujo porto de Santos cumpria função semelhante.81
O plano mais amplo desse fenômeno de modernização não é exclusividade brasileira.
Como apontou Sidney Chalhoub, “nas últimas décadas do século XIX e no início do século
XX, a América Latina, bombardeada por maciços investimentos de capitais europeus, trilha
decididamente o caminho da ocidentalização, na sua forma burguesa e liberal, num processo
de mudança muitas vezes brutal e de elevado custo social”. 82
A tese de Chalhoub acerca da modernização burguesa em curso é fundamental para a
compreensão das representações produzidas sobre os grupos sociais e o status da tatuagem
durante a primeira metade do século XX. De partida, é preciso delimitar estes grupos ou classes
sociais.

80
O Pacto Colonial pode ser sintetizado como o conjunto de leis e normas que as metrópoles impuseram sobre
suas colônias, objetivando a otimização da exploração econômica desses territórios.
81
COSTA, E. Da monarquia à República, p. 243.
82
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 248.
35
Nesta tese, penso classes a partir da análise de Pierre Bourdieu, que as entende como
“coletividades sociais, cujas fronteiras são continuamente desenhadas, contestadas de
reproduzidas na prática social” e que percebe o espaço simbólico ou dos estilos de vida como
uma retradução simbólica das diferenças objetivas – materiais – entre os sujeitos. 83
Partindo dessa concepção, emprego a noção de classes ou grupos sociais ao longo do
texto enquanto o conjunto de posições relativas ocupadas pelos sujeitos, embora objetivamente
estruturadas. Posições essas identificáveis ou diferenciáveis pelo estabelecimento de fronteiras
simbólicas resultantes do habitus. 84 Dito de outra forma, entendo que os indivíduos se
identificam ou se distanciam uns dos outros lançando mão de recursos simbólicos 85 capazes de
promover a distinção ou identificação entre os grupos ou classes.
Portanto, quando trato de classe pretendo ultrapassar definições fixadas pela
propriedade ou não de meios de produção e renda, para adentrar o campo das disputas
simbólicas, por meio das quais os sujeitos se percebem, são percebidos e se fazem perceber
pertencentes à determinada classe – que, neste trabalho, resumo a três grupos ou classes: classes
pobres, classe média e burguesia.
Ao me referir às classes pobres, faço menção aos grupos que ocupam posições de
desprestígio na estrutura social, destituídos ou restringidos que são das condições de
apropriação dos bens material e simbolicamente valorizados pelos outros estratos da sociedade.
Como dito, embora entenda classe a partir das posições relativas ocupadas pelos sujeitos e da
instrumentalização de recursos simbólicos em sua afirmação e distinção, essas posições são
também objetivamente estruturadas, ou seja, intrinsecamente relacionadas à condição
econômica.

83
BERTONCELO, E. O espaço das classes sociais no Brasil, p. 74.
84
Bourdieu define a noção de habitus como “sistema de disposições socialmente construídas que, enquanto
estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das
ideologias características de um grupo de agentes”. BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p.191.
85
Por recursos simbólicos entendo o conjunto de signos instrumentalizado por grupos sociais para identificar-se –
aglutinar sujeitos – e distinguir-se – demarcar fronteiras entre grupos – no campo das relações sociais. São
exemplos de recursos simbólicos os signos patrióticos dos nacionalistas, os moicanos e roupas de couro dos punks,
os coletes dos integrantes de motoclubes, a maquiagem pesada e a vestimenta preta dos autodenominados góticos
contemporâneos, etc. É fundamental salientar, como o faz Manuela Carneiro da Cunha, que “o significado de um
signo não é intrínseco, mas função do discurso em que se encontra inserido e de sua estrutura”, o que faz com que
a utilização destes signos seja também campo de conflito, sendo constantemente incorporados por outsiders,
promovendo disputas que envolvem sua reivindicação. CARNEIRO DA CUNHA, M. Cultura com aspas e outros
ensaios, p. 239.

36
Assim, compõem as classes pobres os operários, os estivadores, os ditos vadios, as
quitandeiras, as prostitutas, os ambulantes, entre outros sujeitos que lutaram pela sobrevivência
no ambiente das grandes cidades brasileiras – notadamente Rio de Janeiro e São Paulo, meus
campos de pesquisa – ao longo do século XX.
Outro conceito importante é o de burguesia. Termo empregado em detrimento de outros
como elites – que alude à falsa noção de superioridade cultural, intelectual ou moral dos
ocupantes dessas posições – e classes dominantes – que desvela a dominação econômica e
política destes grupos, mas que é pouco útil para compreender as transformações empreendidas
no campo das práticas culturais, uma vez que sugerem sua imposição verticalizada86 – opto por
utilizar burguesia ao longo do texto. Apoio-me na definição empregada por Hobsbawm para
descrever tal grupo na Europa do século XIX, e cujo arremedo tupiniquim intentado no
alvorecer da República Velha se explicita no afrancesado termo que descreve a pretensão
cultural da burguesia brasileira no período: Belle-Époque brasileira.
Segundo Hobsbawm, o burguês europeu do século XIX era economicamente capitalista
– detentores de capital ou recebedores de renda derivada de tal fonte – e politicamente liberal
– acreditavam no capitalismo, na empresa privada, na tecnologia, na ciência e na razão.
Socialmente, não formavam um grupo homogêneo, incluindo homens de negócios,
proprietários, profissionais liberais e o alto escalão da administração pública, o que Hobsbawm
chamará de pequena, média e grande burguesia. 87
A importação do projeto burguês da Europa do século XIX para a República brasileira
no início do XX é salientado tanto pela historiografia brasileira quanto internacional. O próprio
Hobsbawm o demonstra ao afirmar que “o burguês vitoriano andava coberto de tecidos,
deixando pouca coisa publicamente visível, exceto a face, mesmo nos trópicos”. 88
José Murilo de Carvalho afirma que, no campo das mentalidades, o início da República
brasileira foi marcado pelo rápido avanço dos valores burgueses, como o liberalismo, embora
isso não tenha resultado efetivamente em democratização, que segundo o autor foi obstruída

86
O que afirmo aqui não é que os estratos economicamente superiores não façam uso de disputas simbólicas pela
prerrogativa de classificação do que é considerado culturalmente superior, esteticamente belo, de bom gosto, etc.
Pelo contrário, essa disputa é constante e intensa, mas sua dinâmica por vezes parece inversa. Ou seja, no que se
refere ao campo cultural, as classes burguesas não estabelecem sua distinção tanto pela imposição de práticas às
classes pobres, mas sim pela exclusão, adotando práticas culturais e de consumo que as distingam das classes
economicamente inferiores. Tanto é, que diante da imitação promovida pelas classes inferiores aos padrões de
comportamento e consumo da burguesia, esta procura redefini-los de modo a manter a distinção de classe.
Curiosamente, a tatuagem possui uma dinâmica peculiar.
87
HOBSMAWN. E, A era do capital, p. 368.
88
HOBSMAWN. E, A era do capital, p. 356, grifo nosso.
37
pelas tradições escravistas e coloniais brasileiras. 89 Segundo Ana Maria Mauad, a primeira
metade do século XX é marcada pela formação “de uma classe dominante urbana, que
gradualmente assume o padrão burguês de comportamento e representação”.90
É a esta classe economicamente privilegiada, que fará uso de recursos simbólicos
europeizados, cujos padrões de comportamento e representação – explícitos nas práticas
corporais, nas noções de moralidade, nos hábitos de consumo, de moradia e mesmo de
idealização e uso do espaço urbano – que chamarei burguesia ao longo do texto.
A escolha do Rio de Janeiro e São Paulo como locus privilegiado de análise leva em
conta questões de ordem prática e de coerência na narrativa. A primeira diz respeito ao fato de
que volume de fontes produzidas nestas cidades é consideravelmente superior, facilitando a
formação de um corpus documental que possibilite a análise e o cruzamento de dados de forma
mais robusta, o que faz diferença sobretudo ao tratarmos de um objeto cuja atenção da
historiografia, do poder público e dos registros midiáticos não podemos considerar prioritária.
A segunda refere-se ao fato de Rio de Janeiro e São Paulo constituírem um importante
polo irradiador das práticas culturais consideradas legítimas pela surgente burguesia nacional e
seu projeto em curso nas primeiras décadas da República. Esse projeto incluiu não apenas a
transformação do espaço urbano, mas também a reelaboração do modo de vida, dos hábitos de
consumo, dos costumes, vestimentas, posturas, enfim, das práticas e representações de
sociabilidade.
Não por acaso, Nicolau Sevcenko refere-se ao Rio de Janeiro pós-República como
capital irradiante, cidade panbrasileira e capital-modelo que se tornaria o eixo difusor e a caixa
de ressonância das transformações mundiais. Em suas palavras, “o Rio passa a ditar não só as
novas modas e comportamentos, mas acima de tudo os sistemas de valores, o modo de vida, a
sensibilidade, o estado de espírito e as disposições pulsionais que articulam a modernidade
como uma experiência existencial e íntima”. 91
São Paulo constitui recorte geográfico não menos importante. Embora seu protagonismo
cultural se acentue a partir da segunda metade do século XX, a cidade é espaço fundamental na
compreensão das transformações culturais que envolveram a chamada Belle-Époque brasileira.
Tão significativo era seu papel na forja das práticas e representações da modernidade burguesa
no país, que Machado de Assis, em fins do século XIX, e João do Rio, no início do XX,

89
CARVALHO, J. Os bestializados, p. 42.
90
MAUAD, A. Sob o signo da imagem, p. 22.
91
SEVCENKO, N. A capital irradiante, p. 522.
38
utilizaram o termo Rio-São Paulo para referir-se ao estreitamento das relações culturais entre
as cidades. Mais do que um eixo que interligava as duas metrópoles como realidades concretas
e distintas, Rio-São Paulo representava “acima de tudo um estado de espírito, um modo peculiar
de anseio pela intensidade e a aceleração. Ele [Rio-São Paulo] é uma simplificação para a
divulgação propagandística e o consumo exaltado de uma ideia”.92
Essa ideia a ser exaltada era a modernização importada da Europa e empreendida aos
moldes burgueses. A exemplo do Rio de Janeiro, a transformação urbana de São Paulo
representaria a adequação da cidade aos interesses das classes privilegiadas, que no caso da
capital paulista enriqueciam principalmente por meio do setor cafeeiro e da nascente indústria.
Neste projeto de modernização, as capitais deveriam ser remodeladas ao gosto e para o
desfrute da burguesia tropical europeizada, não devendo as classes pobres sair na foto da nova
face metropolitana. Contudo, no caminho entre o projeto e a efetivação da dominação há uma
pedra gigantesca chamada resistência. É disso também que se trata essa tese: daqueles que se
recusaram à adequação de suas vidas e sobretudo de seus corpos, e que os instrumentalizaram
na direção da – talvez ilusória, mas certamente relativa – autonomia. São Paulo e Rio de Janeiro
são cidades cosmopolitas, característica que me permite supor a leitura não apenas de
paulistanos e cariocas, mas de espaços que reuniram pessoas oriundas de diversos lugares do
Brasil e do mundo.
Com isso concorda Silvana Jeha, historiadora que compartilha do tema que engatinha
na historiografia brasileira, a História da Tatuagem. Jeha afirma:

Apesar de as fontes estarem centradas principalmente em São Paulo e no Rio


de Janeiro, é preciso lembrar que essas cidades, em diferentes períodos dos
séculos XIX e XX, abrigaram gente de várias partes do mundo e do país:
ambas foram destino de migrantes e imigrantes, e a segunda foi o porto mais
importante do século XIX e continuou proeminente no século XX. 93

Não sugiro com isso que analisar estas duas cidades esgotem ou definam o percurso da
tatuagem no Brasil. Certamente, há múltiplos locais que vivenciaram processos mais ou menos
semelhantes em tempos distintos e com eles tentarei dialogar ao longo do texto, por meio da
pesquisa de sociólogos, antropólogos, jornalistas, médicos e memorialistas. Contudo, para um
tema incipiente na historiografia, julgo que o recorte espacial que tanto eu quanto Jeha fizemos

92
SEVCENKO, N. A capital irradiante, p. 566-567.
93
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p. 16.
39
é suficiente, tanto para compreender a problemática proposta quanto para instigar pesquisas
futuras.

1.1 RIO DE JANEIRO: MATRIZ DA BELLE-ÉPOQUE BRASILEIRA


Os efeitos da modernização, acelerada com a chegada da República, foram
especialmente sentidos no Rio de Janeiro, então capital federal. Como aponta Fernando Gralha
de Souza:

O Rio de Janeiro da Belle Époque, a então capital da recém-fundada república


brasileira, foi uma das cidades latino-americanas onde a elite dirigente melhor
incorporou a urbanização como uma necessidade urgente de uma sociedade
que precisava “civilizar-se”. As reformas, que em poucos anos redefiniram
funções para as áreas centrais da cidade, criaram condições para um novo
ordenamento espacial com o surgimento de novas zonas de elite na parte sul
da cidade. 94

Nesse ímpeto modernizante, é posto em curso no Rio um movimento amplo e difuso,


sintomaticamente denominado regeneração. A necessidade percebida pela burguesia era a da
reorganização da cidade não apenas do ponto de vista de sua arquitetura, mas também por meio
de uma transformação das práticas, hábitos, vestimentas e usos do espaço urbano, sobretudo
pelas classes pobres.
Como aponta Nicolau Sevcenko, o cenário econômico no início do século XX era
promissor ao Rio de Janeiro, uma vez que a cidade era intermediária privilegiada dos recursos
econômicos provenientes do café, tornando-se sede comercial, financeira, bem como do
incipiente setor industrial. Concentrava a maior Bolsa de Valores do país, a BVRJ; boa parte
dos bancos internacionais; e controlava as finanças nacionais, especialmente como sede do
Banco do Brasil. O Rio era também o maior centro populacional do país no período, com quase
1 milhão de habitantes95, o que tornava possível o oferecimento de um vasto contingente de
mão-de-obra. Neste cenário, o progresso se tornara em “obsessão coletiva da nova burguesia”,
cuja imagem de desenvolvimento deveria atrair os investimentos estrangeiros. 96
Para Sevcenko, a materialização deste progresso era idealizada na transformação do Rio
de Janeiro em uma “nova Paris”, o que promoveria a atração de capitais internacionais e
imigrantes europeus, ambos afastados do país pelas sucessivas crises com as quais o início da

94
SOUZA, F. A Belle Époque carioca, p. 69-70.
95
SEVCENKO, N. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso, p. 20.
96
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 27.
40
República se deparou. Para isso, era preciso “findar com a imagem da cidade insalubre e
insegura, com um a enorme população de gente rude plantada bem no seu âmago, vivendo no
maior desconforto, imundície e promiscuidade e pronta para armar em barricadas as vielas
estreitas do centro ao som do primeiro grito de motim”.97
O início do século XX é marcado ainda pela influência do pensamento científico na
elaboração das políticas públicas, destacadamente a medicina higienista. Como aponta Jaime
Benchimol, o início da República aspirava a possibilidade de uma reforma nas cidades
promovida por meio de uma racionalização do espaço urbano, projeto para o qual o Rio de
Janeiro seria o ponto de partida. 98
De acordo com Patrícia Sousa, essa reforma se iniciou com a inauguração da Avenida
Central, ocorrida em 1904, e com a promulgação da Lei da Vacina. Pôs-se em curso a política
de demolição e reconstrução empreendida por Pereira Passos, que ficaria conhecida como bota
abaixo, na qual os velhos casarões coloniais – símbolo da tradição imperial – deveriam ser
demolidos, as ruelas tortuosas substituídas por amplas avenidas inspiradas nos bulevares
parisienses e as praças adornadas com mármore, cristal e estátuas europeias. 99
A burguesia, influenciada pela imprensa correspondente de Paris, passa a se adaptar ao
espaço urbano modificado, substituindo as antigas varandas e salões coloniais pelas largas
avenidas, praças, palácios e jardins. O ritmo da modernidade se fazia sentir na “frenética
agitação de carros, charretes e pedestres, vendo nascer também uma vida noturna burguesa”. 100
Em razão dessas transformações, operou-se outra: a expulsão dos indesejados da região
central. Lograr êxito na reforma urbana significava, portanto, afastar do cenário urbano – ou
pelo menos da região central da cidade – toda aquela gente indesejada, cuja imagem
representava o contraponto do que a nova burguesia aspirava ser.
Amplamente apoiada pela imprensa, se inicia uma perseguição aos “esmoleres,
pedintes, indigentes, ébrios, prostitutas e quaisquer outros grupos marginais das áreas centrais
da cidade”. Além destes grupos, houve a tentativa de exclusão também dos quiosques e barracas
varejistas, das carroças, carroções e carrinhos de mão, além dos freges, como eram chamados
os restaurantes populares. 101

97
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 29.
98
BENCHIMOL, J. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro, p. 234.
99
SOUSA, P. A problemática da narrativa de João do Rio, p. 2.
100
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 37.
101
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 33-34.
41
Conforme Sidney Chalhoub, para as classes pobres a vida na populosa cidade traduzia-
se em “um futuro incerto, longas jornadas de trabalho e árdua competição para conseguirem
uma ocupação como assalariados na indústria ou no comércio”.102 Jaime Benchimol apresenta
um mosaico de sujeitos pobres ocupando as ruas do Rio de Janeiro no início do século XX e ali
se dedicando a variadas atividades:

No começo do século XX, eram negros, mestiços e brancos, brasileiros e


europeus, irmanados na condição de homens juridicamente livres – escravos,
agora, de suas necessidades. [...] meninos vendendo jornais, negro fabricando
cestas na calçada, vendedor de carvão puxando burros carregados, o português
que toca os perus com a vara comprida (Olha ôôô pru uuu da roda vôôô ôôa!),
o vendedor de abacaxi, o italiano do peixe, o turco dos fósforos, o vassoureiro,
o comprador de metais, o garrafeiro, a negra da canjica...Cada qual contribuía
com seus sons para a polifonia das ruas: o funileiro badalava um prato de
cobre, o mascate de panos vibrava sua matraca, os doceiros tocavam gaita-de-
boca; o caldo de cana era espremido em carrocinhas com realejos. Muitos
desses ofícios já existiam no Rio havia tempos. Outros eram criações recentes,
como os compradores de ratos para a repartição de saúde.103

Este cenário multifacetado também não escapa a João do Rio, que descreve um Rio de
Janeiro infestado de “pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às fábricas
importantes, aos adelos, ao baixo comércio”.104 O cronista percebia uma cidade na qual
profissões exóticas emergiam como possibilidade de sobrevivência. Descreve a presença de
vendedores de orações, de livros, pintores de rua, músicos ambulantes, caçadores de gatos que
eram vendidos para serem servidos como coelhos nos restaurantes, além dos urubus 105 e claro:
os tatuadores.
José Murilo de Carvalho também informa a condição dos trabalhadores no período:

Uma terceira consequência do rápido crescimento populacional foi o acúmulo


de pessoas em ocupações mal remuneradas ou sem ocupação fixa.
Domésticos, jornaleiros, trabalhadores em ocupações mal definidas chegavam
a mais de 100 mil pessoas em 1890 e a mais de 200 mil em 1906 e viviam nas
tênues fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade, às vezes participando
simultaneamente de ambas. 106

102
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 111-112.
103
BENCHIMOL, J., Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro, p. 263.
104
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 14.
105
Sujeitos que se apinhavam ao redor dos necrotérios para oferecer aos mais abastados coroas de flores, um luxo
proibitivo à gente pobre.
106
CARVALHO, J. Os bestializados, p. 17.
42
Há, portanto, por detrás da cortina da modernidade, um sem número de pessoas que
precisavam se valer das mais diversas estratégias para sobreviver em uma cidade que, cada dia
mais, demostrava a insatisfação de tê-los em seu meio. É sobretudo na pele destes sujeitos, aos
quais a modernização quis fazer sem rosto, destino ou direitos, que a tatuagem predominará
durante a primeira metade do século.
Daí se compreende o caráter estigmatizante que estas marcas corporais adquiriram na
primeira metade do século. A fim de compreender a produção destas distinções espaciais e
sociais, analiso fragmentos de textos de João do Rio presentes em A Alma Encantadora das
Ruas.
Nascido em 5 de agosto de 1881, João do Rio – um dos pseudônimos de João Paulo
Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto – se tornaria famoso pela riqueza e peculiaridade
com que suas crônicas abordavam a modernização que o Rio de Janeiro processava durante a
chamada Belle-Époque.107
Repórter e cronista da Gazeta de Notícias 108, periódico situado na Rua do Ouvidor,
dedicou-se a narrar – não isento de alguma simpatia progressista e condicionado ao mercado
editorial – o cotidiano da população que fora excluída do projeto modernizador, aqueles a quem
os efeitos das reformas urbanas foram sentidos sob a forma da expulsão para os subúrbios e da
crescente exclusão social. A pertinência dos textos de João do Rio para essa pesquisa vai além
do fato de o autor ter escrito um texto exclusivamente sobre o tema, A Tatuagem no Rio, mas
reside também no fato de ele ter percebido sujeitos outros que não aqueles contemplados pela
modernização burguesa.
Ao apresentar o flaneur, termo francês para descrever o sujeito que perambula pela
cidade, João do Rio afirma: “Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o
vírus da observação ligado ao da vadiagem [...] É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção
de perambular com inteligência.”109

107
A Belle-Époque brasileira pode ser compreendida como as duas primeiras décadas do século XX, período no
qual o país consolida-se como República, e vivencia um crescimento econômico e dos centros urbanos nacionais.
A Capital Federal, à época, foi o epicentro dessa transformação que se manifestará culturalmente por meio da
adoção de hábitos de consumo e sociabilidade identificados com a noção de modernidade, inspirados sobretudo
nas transformações urbanas e no modo de vida da sociedade parisiense.
108
Periódico notório por seu distanciamento do debate político da época, exceto, talvez, por suas publicações
acerca das ações do governo na reconstrução da então Capital Federal, oscilando entre a crítica e o apoio às
reformas. PAULINO, F. A pobre gente, p. 13.
109
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 3.
43
Embora atento à gente comum, o autor não deixa escapar a distinção entre o flaneur e o
vagabundo: a classe social. Como proposto por Bourdieu, a classe aparece como categoria
distintiva na formação dos gostos, das sociabilidades e das legitimidades. 110
Assim, perambular pelas ruas em busca de diversão ou alento seria proibido àqueles que
deveriam se dedicar incansavelmente ao trabalho. Na nova ordem burguesa que se pretendia
estabelecer no Rio de Janeiro, o lugar a ser ocupado pelo pobre é o de trabalhador. As ruas
deveriam – em tese – pertencer à burguesia, especialmente as das regiões centrais. Esta sim,
poderia flanar entre cafés, teatros e exposições, desfrutando do merecido lazer. Aos pobres,
deveria restar o trabalho árduo e o recolhimento ao lar e à família, após o expediente.
Sobre as ruas, que o autor diz terem alma, João do Rio também opera uma distinção que
revela a segregação das classes pobres e a construção do estigma sobre suas práticas.

Oh! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras,
ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história,
ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas
guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas
amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue [...] O Largo do
Capim que assim foi sempre, o Largo de S. Francisco; ruas de calma alegria
burguesa, que parecem sorrir com honestidade.” 111

A narrativa de João do Rio revela uma questão cara à minha análise: a transformação da
cidade do Rio de Janeiro construiu muros simbólicos entre guetos, favelas, bulevares e cafés.
O espaço central da cidade deveria ser reservado à burguesia emergente, que poderia por ele
flanar livremente, desfrutando da sociabilidade em uma cidade nova, física e moralmente
higienizada. A missão higienizadora da Primeira República dedicou-se a expulsar da região
central as classes perigosas e os riscos – físicos e morais – que estas representavam, criando
guetos que seriam rapidamente estigmatizados, como as ruas sinistras, trágicas, depravadas e
infames de que fala João do Rio. Nelas foram acantonadas – melhor dizendo, tentaram ser – as
práticas culturais das classes pobres.
Assim, a tatuagem se desenvolveria nos mais variados espaços, mas seria mais
frequentemente encontrada nos meios de becos e facadas de que fala João do Rio. Diferente do
que se enraizou no senso comum, a tatuagem não foi historicamente estigmatizada por ser uma
prática dos indivíduos criminosos. Ao contrário, ela parece ter se estabelecido nas prisões muito

110
BOURDIEU, P. A distinção, p. 9;13.
111
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 4-5, grifo nosso.
44
mais por uma política de encarceramento das classes pobres. Política especialmente
materializada na criminalização da vadiagem e nas consequentes prisões dos indivíduos das
classes populares.
A exemplo disso, tomemos a descrição de Madruga, tatuador e empresário da tatuagem
com quem João do Rio aprendeu sobre a prática. Ao descrevê-lo, João do Rio faz emergir um
sujeito que é “exemplo da versatilidade miriônima [inumerável] da tatuagem”. Madruga,
segundo João do Rio “tem estado na cadeia diversas vezes por questões e barulhos”. A
composição da frase de João do Rio, hábil escritor, não parece fruto de displicência. “Tem
estado na cadeia” sugere um trânsito constante, um ir-e-vir entre o estado de liberdade e o
cárcere, possivelmente intermediado pela Lei de criminalização da vadiagem, projeto que
tentou inibir as sociabilidades e a livre circulação – as prováveis “questões e barulhos” – das
classes pobres. 112
Ainda sobre as ruas, João do Rio afirma:

Deixai esse largo, ide às ruelas da Misericórdia, trechos da cidade que


lembram a Amsterdã sombrio de Rembrandt. Há homens em esteiras,
dormindo na rua como se estivessem em casa. Não nos admiremos. Somos
reflexos. O Beco da Música ou o Beco da Fidalga reproduzem a alma das ruas
de Nápoles, de Florença, das ruas de Portugal, das ruas da África, e até, se
acreditarmos na fantasia de Heródoto, das ruas do antigo Egito. E por quê?
Porque são ruas da proximidade do mar, ruas viajadas, com a visão de outros
horizontes. Abri uma dessas pocilgas que são a parte do seu organismo. Haveis
de ver chineses bêbados de ópio, marinheiros embrutecidos pelo álcool,
feiticeiras ululando canções sinistras, toda a estranha vida dos portos de mar.
E esses becos, essas betesgas têm a perfídia dos oceanos, a miséria das
imigrações, e o vício, o grande vício do mar e das colônias... 113

É justamente nessas ruas e becos onde a tatuagem parece ter se estabelecido com maior
frequência. Na crônica Os Tatuadores, é para a região portuária que João do Rio se dirige em
busca da tatuagem: “Arregaçou a manga da camisa de meia, pondo em relevo a musculatura do
braço. O petiz tirou do bolso três agulhas amarradas, um pé de cálix com fuligem e começou o
trabalho. Era na Rua Clapp, perto do cais, no século XX...” 114 O autor narra ainda que se
deparou com cerca de 30 tatuadores ambulantes na região da Rua Barão de S. Felix e nas ruelas
da saúde 115, região portuária da cidade onde certamente devia ser possível presenciar “chineses

112
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 19.
113
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p.6.
114
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 17.
115
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 18.
45
bêbados de ópio, marinheiros embrutecidos pelo álcool, feiticeiras ululando canções sinistras,
toda a estranha vida dos portos de mar”. 116
Da mesma forma, observa Silvana Jeha:

A rua Fresca, uma travessa da praça XV, no Rio de Janeiro, foi engolida por
uma das inúmeras reformas urbanas do centro da cidade. A região entre essa
praça e a rua da Misericórdia era um dos lugares de boemia no início do século
XX. João do Rio descreveu suas ruas como viajadas, posto que ficavam na
beira do mar e eram frequentadas por marujos. A Praça XV ficava afinal o
cais Pharoux, local secular de desembarque de estrangeiros e marinheiros e de
estalagens de marujos, além dos bordéis, que também ocupavam o vizinho
Morro do Castelo, removido numa reforma urbana. Se os marinheiros se
tatuavam nos navios, nas regiões portuárias de muitas cidades ocidentais a
cultura marítima se espraiava em outros trabalhadores e frequentadores dessa
região intensa de cultura e economia. 117

Silvana Jeha é autora de uma minuciosa pesquisa acerca da tatuagem e, sobretudo, dos
tatuados no Brasil, entre o século XIX e a primeira metade do XX. Suas percepções dialogam
de maneira fundamental com minha pesquisa, e serão importantes na compreensão da tatuagem
em sua primeira fase. Jeha, portanto, será interlocutora constante na primeira parte do texto.
De forma mais romântica que historiográfica, o jornalista Toni Marques – outro
importante autor da História da Tatuagem – imagina a difusão da tatuagem no Brasil
intermediada pela relação entre marinheiros e prostitutas, “propaganda feita na surdina, no
corpo-a-corpo” e entre marinheiros e colegas de cela. “O fascínio deve ter se deslocado mais
ou menos nos seguintes percursos: do marinheiro estrangeiro para a prostituta, e da prostituta
para o freguês brasileiro; do marinheiro estrangeiro que se mete em confusão e vai preso para
os brasileiros colegas de cadeia”.118
Embora mais ancorada na imaginação do autor do que em fontes, dado o caráter
especulativo de suas afirmações, sua pressuposição em nada parece infundada. Como aponta
Jeha, “os marinheiros foram o vento mais forte que espalharam a tatuagem ocidental pelo
globo”. 119 É possível que em algum ponto do século XIX a tatuagem ocidentalizada tenha
passado a figurar com certa frequência nos portos brasileiros, especialmente após a assinatura
do Tratado de Abertura dos Portos às Nações Amigas, produto do acordo entre Portugal e

116
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p.6
117
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p. 35.
118
MARQUES, T. O Brasil tatuado e outros mundos, p. 140.
119
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p. 21.
46
Inglaterra para a escolta da Família Real Portuguesa para o Brasil em sua fuga das tropas
napoleônicas em 1808.120
Silvana Jeha afirma que:

as milhares de embarcações que frequentavam o porto anualmente, das canoas


às fragatas, estrangeiras ou nacionais, eram tripuladas por gente de muitos
lugares do mundo que não necessariamente haviam nascido nos mesmos
países das bandeiras dos mastros. Tradicionalmente as tripulações dos navios
eram multinacionais. 121

Seja qual for a mediação feita entre os marítimos e a população das cidades litorâneas
brasileiras, a tatuagem foi sistematicamente associada aos homens do mar. Segundo Jeha, “a
maior parte dos tatuadores profissionais registrados na história da tatuagem ocidental eram
marujos ou atendiam em áreas portuárias”. 122 Isso explica a atenção dada à mais importante e
populosa cidade portuária do Brasil, o Rio de Janeiro, na primeira parte desta tese.
Foi no cais do Pharoux que os repórteres do jornal O Paiz encontraram os sujeitos que
deram origem à matéria As Tatuagens dos Marítimos, publicada em 10 de abril de 1923.
Deparando-se com navios que “não traziam passageiros nem assuntos dignos de monta”, sua
atenção foi direcionada aos marinheiros que “debruçados sobre a balaustrada, tinham pendidos
os braços marchetados de tatuagens que eram capazes de seduzir os seres humanos mais
desprendidos da vida”. 123
A reportagem é permeada por uma ambiguidade que ora manifesta a curiosidade pela
prática dos marujos, ora recorre ao pensamento lombrosiano de que associa a tatuagem ao
instinto primitivo e à criminalidade. A reação de um dos marinheiros corrobora a ideia de
estigma que se formava sobre a tatuagem. O capitão sueco, que alugava barcos e lanchas na
Baía de Guanabara, ao ser interpelado responde “com certo espanto perguntando em inglês se
a pessoa que ali estava era da polícia ou um patrício”. Sabendo serem jornalistas, o tom de seu
discurso muda e ele afirma: “Se é isto, vou levantar a manga do paletó e mostrar a tatuagem de
um homem que nasceu nas proximidades da terra do sol da meia noite”. 124
Segue a descrição de desenhos, histórias de amor, bravura e saudade, que se encerram
com o tom de uma imprensa que escrevia para a burguesia carioca: “Por ter se originado esta

120
Ver RICUPERO, R; OLIVEIRA, L. A abertura dos Portos.
121
JEHA, S. A cidade-encruzilhada, p. 79.
122
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p.31.
123
O PAIZ. As tatuagens dos marítimos, 10 de abril de 1923.
124
O PAIZ. As tatuagens dos marítimos, 10 de abril de 1923.
47
prática entre os selvagens e criminosos, parece que não é para recomendar-se a gente de bem.
[...] É sempre o sentimento de vaidade que os leva”.125
Como se evidencia, no Rio de Janeiro em transformação, as práticas associadas aos
trabalhadores pobres foram sistematicamente reprimidas e estigmatizadas. Algumas delas,
como a tatuagem, foram associadas ao terrível vício do ócio e da vadiagem, pecados
imperdoáveis para uma sociedade que se aburguesava.
Nas horas de lazer, assim como nas horas de reclusão das prisões, quartéis e navios,
afrouxam-se os códigos impositivos. Mais que isso, encontram-se aí as brechas para as
resistências ao poder normativo que procura disciplinar os corpos e torna-los dóceis:
economicamente produtivos e politicamente submissos. 126 Não por acaso, são o lazer das
classes pobres e suas práticas culturais alvos tão persistentes da política higienizadora da moral
imposta pela República pós-abolição. Se o controle do corpo não se faz mais pela posse jurídica
do trabalhador, pela destituição de sua cidadania e pela aplicação dos castigos físicos – embora
estes persistissem em alguns casos, como na Revolta da Chibata 127 – fez-se necessária a criação
de novos mecanismos de exercício de poder.
Em uma cidade em metamorfose, tomada por uma multidão heterogênea, uma série de
medidas foram instrumentalizadas, para além das reformas arquitetônicas e infraestruturais. A
exemplo disso, uma campanha encampada pela mídia culminou na criação de uma lei que
obrigava o uso do paletó e sapatos no Município Neutro 128, a fim de combater a “imundície
injustificável” das camisas sem paletó e os pés descalços dos desprovidos. O projeto não
passaria na segunda discussão do Conselho Municipal, mas um cidadão chegaria a ser preso
pelo “crime de andar sem colarinho”. 129
Outras práticas que figuravam entre os pecados a serem extirpados pela regeneração
foram a seresta e a boemia. Conforme Nicolau Sevcenko, os relacionamentos sociais no Rio de

125
O PAIZ. As tatuagens dos marítimos, 10 de abril de 1923.
126
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 135.
127
Revolta que eclodiu na Bahia da Guanabara no ano de 1910, organizada por soldados da Marinha do Brasil e
que contestou, entre outras coisas, a prática de castigos físicos contra os marinheiros por parte de seus superiores
hierárquicos. ALMEIDA, S. Vidas de marinheiros no Brasil republicano, p. 92.
128
Município Neutro é a denominação utilizada no Ato Adicional de 1834, durante o Período Regencial, para
designar a criação de uma área livre do raio de ação do governo provincial, o equivalente ao atual governo estadual
e cuja capital seria Niterói. A área do Município Neutro abrangia a cidade do Rio de Janeiro e seus termos – limites
– e foi constituída de modo a garantir a independência administrativa da capital do Império. Mais tarde, em 1891,
a Constituição Federal da República definiria a região como Distrito Federal.
http://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/estude/historia-do-brasil/rio-de-janeiro/65-o-rio-de-janeiro-novamente-
corte-o-imperio/2880-rio-de-janeiro-municipio-neutro. Acesso em 30 de abril de 2020.
129
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 33.
48
Janeiro da Belle-Époque passaram a ser dimensionados a partir do utilitarismo, resultando na
condenação de comportamentos que se afastavam desse ideal. Neste sentido, a seresta e a
boemia foram repudiadas, e o violão se tornaria um elemento de estigmatização, visto como
signo da vadiagem.130 Ainda segundo Sevcenko, o fim das pensões, restaurantes e confeitarias
baratos e uma certa gentrificação do centro carioca também funcionaram como elemento de
inibição da boemia.131
A construção de estigmas sobre as práticas, representações, corporalidades, hábitos e
costumes das classes pobres não foi acidental, e sim fruto de um projeto. E esse projeto não foi
exclusividade do Rio de Janeiro.

1.2 SÃO PAULO: CAFÉ, INDÚSTRIA E DISCIPLINARIZAÇÃO DO ESPAÇO


URBANO
A expansão cafeeira e o decorrente aumento das receitas a partir da segunda metade do
século XIX, legaram à província de São Paulo os recursos necessários para transformação do
espaço urbano de sua capital, de modo a melhorar as condições de vida dos moradores da
cidade, notadamente das áreas ocupadas pelos estratos mais favorecidos, resultando no
crescimento dos serviços públicos e no recrutamento de mão-de-obra para essas atividades. 132
São Paulo passaria a congregar a distribuição de produtos importados, a ligação entre a
produção cafeeira e o porto de Santos e um crescente setor bancário e burocrático.133 A
inauguração da Avenida Paulista, em 1891, é marca importante da modernização burguesa,
visto que ali se assentariam “imigrantes enriquecidos ou famílias ligadas a atividade financeiras
e imobiliárias que construiriam amplas residências para rivalizar com os suntuosos palacetes
das famílias do barões do café – ou de suas poderosas viúvas ou filhas – instalados solidamente
em Higienópolis e nos bairros mais centrais”. 134

130
Exemplo disso pode ser percebido na crônica Lição de Violão. Nela, Lima Barreto apresenta Policarpo
Quaresma, um major sisudo e metódico que passara a tomar aulas de violão, para espanto da vizinhança que se
ouriçava em comentários como: “Mas que coisa? Um homem tão sério metido nessas malandragens!” e que
diminuiriam o prestígio de que gozava o velho major com sua vizinhança. BARRETO, L. Lição de Violão.
131
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 32.
132
ASSUNÇÃO, P. As condições urbanas da cidade de São Paulo no século XIX, p.4
133
LIMA, N. A Belle-Époque e seus efeitos no Brasil, p.8
134
MARINS, P. Habitação e vizinhança, p. 176.
49
No início do século XX, São Paulo ascende de quinta para segunda maior cidade do
país, atrás apenas do Rio de Janeiro e estabelecendo com este um intenso trânsito cultural.135 À
medida que o setor cafeeiro e o industrial geravam lucros crescentes, a burguesia paulistana
reivindicaria a cidade para si, com a finalidade de desfrutar das possibilidades que a
modernidade oferecia.

A estética burguesa será objeto de apreciação das camadas sociais variadas,


os costumes parisienses serão difundidos pelas camadas privilegiadas como
sinal de grandiosidade e bom gosto, em especial nas vestimentas e nas
edificações. Um padrão de moralidade burguesa predomina, se aproxima
mais do modo de vida europeu e renega o nacional como “atrasado
socialmente”. Será preciso manter a mente dos pobres distante dos vícios e
pensamentos que degeneram o homem e educar as crianças pobres para o
trabalho. 136

A burguesia paulistana moldaria suas práticas culturais no gabarito europeu, sobretudo


parisiense. Analisando os diários de Altino Arantes Marques, governador de São Paulo entre
1916 e 1920, Robson Pereira desvela algumas das práticas culturais da burguesia paulistana,
que se estabelecem e se modificam no compasso das transformações urbanas:

Peças teatrais, concertos musicais, companhias de ballets, exposições de


pintura, inaugurações de obras públicas, partidas de football entre outros,
constam no rol de eventos listados, sem deixar de mencionar a ida aos
improvisados cinematógrafos para ver fitas com títulos curiosos. Enfim, o
circuito cultural paulistano começava a se diversificar na medida em que a
cidade crescia pela absorção de imigrantes europeus, pela intensificação da
industrialização e do setor de serviços. No entanto, as intervenções
fragmentárias no espaço urbano, principalmente na área central, efetuadas na
gestão do conselheiro Antônio Prado (1899-1911), mantiveram certo ar
provinciano em termos do conjunto de edifícios e da própria organização
viária. Propunha-se um delineamento europeizado à capital: remodelações,
embelezamentos e grandes obras viárias pontuais do tipo haussmanniano ao
gosto da elite paulistana enriquecida que usufruía das vantagens materiais,
intelectuais e artísticas proporcionadas pelo coffee business. 137

Como aponta o autor, essa modernização é paradoxal, uma vez que o acesso quase
exclusivo aos bens culturais e tecnológicos importados reafirmava os valores tradicionais da

135
Somente entre as décadas de 1890 e 1900, a cidade de São Paulo salta de 65.000 para 240.000 habitantes. Na
década de 1950 a população da cidade já ultrapassava 3,5 milhões de habitantes. Ver
http://smul.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1900.php. Acesso em: 24 jan. 2021.
136
OLIVEIRA SOBRINHO, A. São Paulo e a ideologia higienista entre os séculos XIX e XX, p. 216, grifo nosso.
137
PEREIRA, R. Cultura e sociabilidade na Belle-Époque paulista através de um diário íntimo, p. 5
50
dita elite paulistana, oriunda da plutocracia cafeeira. 138 Gradativamente, São Paulo consolida-
se como centro capitalista e integrador regional, sobretudo por causa do setor cafeeiro. A
política cafeicultora estimulava e promovia a imigração intensa, que superava a oferta de
empregos no campo. Disso decorreu que parte desses imigrantes provocaram o inchaço na
população urbana que, em momentos de queda da atividade cafeeira, aumentava ainda mais
pela evasão dos colonos do campo, inflando a quantidade de despossuídos na cidade e gerando
um novo perfil populacional, mais empobrecido.139
No plano da urbanização, São Paulo repetiu o projeto carioca e “negando a pobreza
como parte da construção da cidade” empurrou os pobres “para as bordas do perímetro
urbano”. 140 Segundo Maria Izilda Matos, a urbanização paulistana é marcada pela coexistência
de permanências, demolições e construções, processo no qual simultaneamente cresciam as
obras públicas, espaços passavam a ser destinados às áreas comerciais e financeiras e
mantinham-se as zonas do meretrício. Gradativamente, segundo a autora, a paisagem urbana
desenhava-se, diferenciando quarteirões e bairros conforme as atividades que predominavam;
aglutinando operários – em sua maioria imigrantes – em ruas, vilas e cortiços nas quais
“ocorriam trocas permanentes, estabelecendo relações dinâmicas e criando laços de
solidariedade”. 141
Como afirma Paulo César Marins, ainda em fins do século XIX São Paulo investiu em
uma urbanização que “afinava-se com os mesmos princípios que norteariam as reformas e os
processos de exclusão habitacional das grandes cidades brasileiras”. Na capital paulista
constatou-se “o surgimento de uma fisionomia e uma fisiologia ao gosto do excludente
sanitarismo social em voga nas mentes das elites republicanas, que buscava livrar as cidades de
suas patologias coloniais e imperiais”.142 Segundo Oliveira Sobrinho:

Esse processo [de negação da realidade social] se verifica na organização


espacial da cidade, haja vista procurar-se, pelas construções, deixar os rios
longe do alcance da visão, canalizando-os e encobrindo-os junto com o esgoto;
além disso, aterram-se as áreas de várzea e alteram-se os contornos dos rios
na região central. 143

138
PEREIRA, R. Cultura e sociabilidade na Belle-Époque paulista através de um diário íntimo, p.10
139
MATOS, M. Na trama urbana, p. 132.
140
OLIVEIRA SOBRINHO, A. São Paulo e a ideologia higienista entre os séculos XIX e XX, p. 226.
141
MATOS, M. Na trama urbana, p. 132.
142
MARINS, P. Habitação e vizinhança, p. 171.
143
OLIVEIRA SOBRINHO, A. São Paulo e a ideologia higienista entre os séculos XIX e XX, p. 216.
51
A tentativa de destinar o centro da cidade aos prazeres da burguesia gerou a expulsão
dos moradores pobres dessa região:

A área central, considerada não “civilizada”, também foi atingida pelas


demolições excludentes, da mesma forma que no Rio de Janeiro. As reformas
implementadas ao longo da primeira década do século XX [...] promoveram a
construção de grandes edifícios oficiais, consolidando-se a pontuação dos
espaços públicos por edifícios monumentais iniciada já na primeira década
republicana. [...] Os resultados das reformas de Antônio Prado acabaram
assemelhando-se aos obtidos na mesma década no Rio de Janeiro. Os
moradores expulsos pelas obras migraram para as construções que ainda
restavam nas proximidades, acentuando o contraste entre os quarteirões novos
e aqueles antigos que escaparam às demolições, também povoados de casas
térreas e sobrados envelhecidos. 144

Mas, assim como no Rio de Janeiro, uma coisa é desejar o domínio exclusivo da cidade,
outra é exercê-lo. O crescimento urbano e a concentração populacional obrigaram “autoridades
e a própria elite” a “discutir a questão urbana com maior intensidade, definindo projetos que
dessem soluções para o crescimento desenfreado”. Neste sentido, além das obras de contenção
de ameaças à saúde pública, “era fundamental alterar o comportamento e os hábitos da
população”. 145
Para tanto, o discurso do progresso foi igualmente empregado na intenção de
“disciplinar os espaços e corpos”. Nicolau Sevcenko afirmou sobre o Rio de Janeiro:

Assistia-se à transformação do espaço público, do modo de vida e da


mentalidade carioca, segundo padrões totalmente originais; e não havia quem
se lhe pudesse opor. Quatro princípios fundamentais regeram o transcurso
dessa metamorfose, conforme veremos adiante: a condenação dos hábitos e
costumes ligados pela memória à sociedade tradicional: a negação de todo e
qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem
civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos
grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para
o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo
agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense: 146

Como no Rio, em São Paulo repete-se a associação entre a pobreza, a falta de higiene e
a doença. 147 E como no Rio, confundem-se ações de disciplinarização dos espaços, dos
comportamentos, dos hábitos e dos corpos: “Os cortiços representam, portanto, uma ameaça à

144
MARINS, P. Habitação e vizinhança, p. 179-180.
145
ASSUNÇÃO, P. As condições urbanas da cidade de São Paulo no século XIX, p.9.
146
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 30, grifo nosso.
147
OLIVEIRA SOBRINHO, A. São Paulo e a ideologia higienista entre os séculos XIX e XX, p. 213.
52
noção de civilidade; as greves, uma ameaça à ordem burguesa de cidade limpa, disciplinada e
livre das imundícies e de manifestações turbulentas dos operários; a rua será objeto da disciplina
devido à ameaça à própria ordem que mantém desigualdades”.148 A noção amalgamada de
progresso e civilização que a burguesia brasileira quis instaurar associou-se intrinsecamente à
condenação e negação dos hábitos, costumes e práticas tradicionais e populares “que pudessem
macular a imagem civilizada da sociedade dominante”.149
Até o momento contextualizei a urbanização das metrópoles brasileiras,
especificamente do Rio de Janeiro e São Paulo, durante a primeira metade do século XX.
Analisar o aburguesamento do espaço urbano no período é imprescindível se quisermos
compreender as disputas em torno da significação e ressignificação dos recursos simbólicos
instrumentalizados na construção das identidades, como é o caso da tatuagem.
Neste cenário, como o discurso burguês de modernização investiu na disciplinarização
dos corpos e das mentes das classes pobres, objetivando-as enquanto classes perigosas e
instrumentalizou a tatuagem para reforçar tal identidade?

148
OLIVEIRA SOBRINHO, A. São Paulo e a ideologia higienista entre os séculos XIX e XX, p. 214.
149
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 30.
53
CAPÍTULO 2

A AMEAÇA DO CORPO TATUADO: A TATUAGEM ENTRE DISCURSOS


MIDIÁTICOS E CIENTÍFICOS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

Sem mais razão de ser [a tatuagem] continua nos


primitivos, nos inferiores, nos degenerados, nos
ociosos, traduzindo as ideias, os sentimentos, os
impulsos, a inércia, senão simplesmente, a imitação
d’esses simples. 150

Ao longo do século XX, a imprensa e a ciência se apresentam como instrumentos de


produção e reprodução do saber-poder de que fala Michel Foucault. Foucault aponta que as
sociedades humanas são marcadas por relações de poder múltiplas que atravessam,
caracterizam e constituem o corpo social. Para ele, essas relações não se estabelecem sem a
produção, acumulação e circulação do discurso. Não há, segundo Foucault, possibilidade de
exercício de poder sem o que ele chama de economia dos discursos de verdade. Discurso e
poder estão indissociavelmente atrelados e funcionam um a partir do outro. 151
A (re)construção do significado da tatuagem ao longo do século XX passa
imperativamente pela análise dos discursos – tanto os científicos quanto os midiáticos, e mais
precisamente as imbricações entre eles – (re)produzidos sobre os sujeitos tatuados.
Ao analisar o discurso sobre os tatuados, pretendo compreender sua objetivação. É
possível perceber na imprensa da primeira metade do século XX um sistemático investimento
na associação da tatuagem à criminalidade, à prostituição, ao primitivismo e à vadiagem,
ligando-a às classes perigosas, sobre as quais se construiu a noção de atraso moral.

2.1 ENTRE O HÁBITO E A NATUREZA: A PRODUÇÃO DO DISCURSO


CRIMINALIZANTE SOBRE O CORPO TATUADO
Assim como outras práticas das classes pobres, fazia-se necessário extirpar a tatuagem
da cultura urbana brasileira – ou pelo menos acantoná-la nos guetos e corpos dos socialmente
excluídos. A ciência disso nos ajuda a desmistificar uma velha noção arraigada ao senso
comum: a de que a tatuagem era coisa de bandido. 152 Ainda que as prisões tenham sido, de fato,

150
CARVALHO, E. A tatuagem. O MALHO, 25 de janeiro de 1936.
151
FOUCAULT, M. Microfísica do poder, p. 278.
152
Embora essa associação seja constante na imprensa do período, quero ir além e demonstrar com a produção
deste discurso atende ao exercício de dominação e docilização dos corpos das camadas pobres, vistas como
constante ameaça sanitária, política e criminal.
54
um dos espaços de produção e disseminação da tatuagem – assim como foram outros ambientes
de disciplina e reclusão como os navios e quartéis – é historicamente impreciso afirmar que ela
tenha surgido ou mesmo preponderado entre indivíduos criminosos. Se quisermos compreender
o percurso de sua estigmatização, ao invés da relação tatuagem-criminalidade, a associação
tatuagem-pobreza é significativamente mais precisa.
Antes de ligar-se à criminalidade – embora a tatuagem carcerária exista como um
universo dotado especificidades e códigos próprios – foi no corpo das classes pobres que ela
majorou. Em um país no qual classes pobres eram sinônimo de classes perigosas, não tardou
para que a tatuagem adquirisse um significado de marca a ser evitada pela gente de bem. 153
Ainda que a tatuagem tenha se estabelecido independente da criminalidade, isso não
significa que o discurso midiático e científico não investiu nessa associação. 154 De modo geral,
é possível afirmar que o discurso que associou a tatuagem à criminalidade oscilou entre a noção
de criminoso nato, difundida pela Escola Positiva, cujo membro mais notório é o médico
italiano Cesare Lombroso; e a noção sociológica de produto do meio.
Em reportagem do Correio Paulistano, publicada em 1909, o periódico afirma que “a
tatuagem é ordinariamente registrada na idade adulta; ela é comumente observada nos
marinheiros, nas prostitutas e especialmente nos indivíduos predispostos ao crime”, e finaliza
relatando os experimentos de remoção da tatuagem, “livrando indivíduos de marcas ignóbeis,
as quais, muitas vezes, os inutilizam para o convívio social”. 155
Torna-se evidente o interesse do Correio Paulistano – impresso ligado ao Partido
Republicano Paulista e, portanto, à oligarquia paulista – em construir uma imagem da tatuagem
no compasso das noções lombrosianas. Compreendamos, resumidamente, a teoria lombrosiana
e sua reverberação no Brasil.
Cesare Lombroso nasceu em Verona, Itália, em 1835. Tornou-se médico aos vinte e três
anos de idade e dedicou-se à psiquiatria, sobretudo ao crime e ao criminoso, defendendo uma
ideia determinista da tendência atávica para o que ele chamará de delinquência.156

153
O PAIZ.
As tatuagens dos marítimos, 10 de abril de 1923.
154
Como propõe Ferla, no início do século XX, as teses da Escola Positiva encontraram considerável repercussão
social, sendo mesmo consideradas científicas naquele contexto histórico. Teorias hoje cientificamente obsoletas e
eticamente condenáveis, como o biodeterminismo e o racismo científico, encontraram lugar teórico e mesmo
utilização para estabilização social, no início do século. FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 45-50.
155
CORREIO PAULISTANO: 04 de janeiro de 1909, grifo nosso.
156
LOMBROSO, C. O homem delinquente, p. 7
55
Lombroso será precursor da chamada Escola Positiva de direito penal, caracterizada
pelo discurso médico-científico que tratava o ato antissocial como patologia, o delinquente
como doente, o crime como sintoma e a pena ideal como tratamento.157 A escola lombrosiana
defendia a identificação do criminoso antes do crime, atestando por meio de recursos médico-
científicos que o crime estaria presente no criminoso antes mesmo de ser cometido, como uma
característica inerente.158
Sua ideia biodeterminista de delinquente-nato – para o qual “não há muitos remédios; é
necessário isolá-los para sempre, nos casos incorrigíveis, e suprimi-los quando a
incorrigibilidade os torna demasiado perigosos” 159 – encontraria espaço considerável no Brasil.
Por aqui, nomes como Afrânio Peixoto e Nina Rodrigues fariam ecoar as teses de Lombroso,
de que as tendências criminosas seriam reconhecíveis a partir de processos de exame e
catalogação de características físicas e psíquicas, entre elas a tatuagem.
Nas palavras de Luís Ferla: “Impunha-se a tarefa de identificação dos corpos perigosos.
Prevenir o crime antes que ele acontecesse, conhecer o criminoso antes que ele atuasse”. 160
Embora as limitações da Escola Positiva fossem desde cedo reconhecidas, Ferla defende a
importância de situá-la historicamente dentro do campo científico, não ignorando seus efeitos:
“considerar como científica a medicina legal praticada nas décadas de 20 e 40 no Brasil
significa reconhecer-lhe a autoridade de seu discurso junto à sociedade da época, com
implicação concreta na vida de pessoas e de grupos sociais”. 161 É por isso que tratarei a Escola
Positiva como ciência. Quando trato de discurso científico na Parte I desta tese, é sobretudo à
Escola Positiva e ao discurso higienista aos quais me refiro.
Para compreender a influência deste cientificismo na sociedade brasileira do período, é
necessário ter em mente não apenas a difusão dos discursos que produzem efeito de verdade,
mas sua relação dinâmica com os mecanismos de exercício de poder. Ou seja, nos termos
empregados por Michel Foucault, é preciso empreender uma arqueologia que nos permita
perceber porque os discursos emergem em determinado momento e, mais que isso, quais as
condições de sua existência e porque emergem estes e não outros discursos. Assim, é possível
perceber a articulação entre os discursos de verdade e seus efeitos na construção dos sujeitos.

157
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 24.
158
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 26-27.
159
LOMBROSO, C. O homem delinquente, p.8
160
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 15.
161
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 45.
56
Tomando a noção kantiana da arqueologia como uma “história do que torna necessário
certa forma de pensamento”162, Michel Foucault a depurará conforme a coloca em prática em
obras como História da Loucura, O nascimento da Clínica, As Palavras e as Coisas, até sua
sistematização mais elaborada em A Arqueologia do Saber. Neste percurso, o filósofo francês
procura estabelecer a arqueologia como “um lugar; uma perspectiva onde é preciso se colocar
para analisar aquilo que é um pouco anterior à história, que é mesmo sua condição de
possibilidade”. 163
Trata-se, portanto, de compreender a emergência do discurso que associou a tatuagem
à criminalidade e, mais que isso, qual a sua função social e quais estratégias foram
instrumentalizadas para tal fim.
Fernanda Silva aponta que Foucault operacionaliza a arqueologia como um pensamento
a partir do qual “os fenômenos simplesmente começam em pontos históricos particulares, não
se originam em algum lugar que seria como o lugar próprio da sua verdade: um espírito de
época, uma mentalidade coletiva ou uma consciência individual; numa única palavra, um
sujeito.”164 Assim, o método arqueológico proposto por Foucault não buscaria uma
interpretação dos documentos históricos em busca do sujeito que produz os enunciados em seu
interior, ao contrário, procura entender a produção destes discursos “tomando como documento
fundamental os enunciados para, através deles, perceber as diferenças entre os discursos no
tempo”.165 Ou seja, importa analisar os documentos históricos enquanto lugares de enunciação,
de formações discursivas que são constituídas pela relação de enunciados.
Para o método arqueológico, as formações discursivas são o lugar de relação entre
enunciados que se associam para construir determinado regime de verdade. Dito de forma
mais simples, um discurso sobre a tatuagem no século XX, por exemplo, é o conjunto de
enunciados que convergem tanto em seu conteúdo quanto na estratégia de enunciação, de modo
a conferir um significado a essa prática corporal. Contudo, como os enunciados são
descontínuos no curso do tempo, ao mesmo tempo em que o discurso é contínuo – ou seja,
produz-se um discurso acerca da tatuagem durante todo o século, mas seus enunciados se
alteram de acordo com o contexto em questão – seria possível ao historiador perceber como as
regras de sua produção se alteram no curso do século.

162
FOUCAULT, M. Ditos e escritos, p. 323
163
SILVA, F. Como e até onde é possível pensar um outro pensamento, p. 25
164
SILVA, F. Como e até onde é possível pensar um outro pensamento, p. 29-30.
165
SILVA, F. Como e até onde é possível pensar um outro pensamento P.31.
57
É na compreensão da constituição de um discurso e seus efeitos na produção dos sujeitos
tatuados ao longo do século XX que espero encontrar aquilo que nomeio ressignificação da
tatuagem. Para tanto, seguirei os enunciados produzidos na imprensa e no campo científico ao
longo do século, me baseando na arqueologia foucaultiana como método de análise, intentando
apreender as descontinuidades destes enunciados. Neste sentido, meu objetivo é compreender
como e porque se produziram determinados enunciados acerca dos sujeitos tatuados em
diferentes momentos e como a produção destes enunciados ajudou a construir esses sujeitos: o
que Foucault chama de objetivação.

O que lhe interessa é complementar a análise do saber a partir da articulação


entre os discursos de verdade e as práticas sociais e institucionais, isto é,
compreender como os saberes se tornam dispositivos políticos que auxiliam
os mecanismos de poder. A preocupação de Foucault volta-se, então, para os
efeitos coercitivos das práticas discursivas e das práticas institucionais, que
funcionam em uma dinâmica circular em que a mecânica do poder reclama os
efeitos de verdades. 166

A relação entre poder e saber é fundamental. Segundo Chalhoub, a transição que marca
o fim do Império e o início do período republicano é caracterizada pela emergência de um
discurso cientificista que se apresenta:

[...] como um conjunto de princípios que, estando destinados a conduzir o país


ao verdadeiro, à civilização, implicam a despolitização da realidade histórica,
a legitimação apriorística das decisões quanto às políticas públicas a serem
aplicadas no meio urbano. Esses princípios gerais se traduzem em técnicas
específicas, e somente a submissão da política à técnica poderia colocar o
Brasil no caminho da civilização. Em suma, tornava-se possível imaginar que
haveria uma forma cientifica – isto é, neutra, supostamente acima dos
interesses particulares e dos conflitos sociais em geral – de gestão dos
problemas da cidade e das diferenças sociais nela existentes. 167

É preciso ir adiante na compreensão da elaboração desses discursos se quisermos


compreender seus efeitos. Como afirma Foucault, alguns discursos acabam por ocupar lugar
privilegiado de constituição da verdade, tornando-se capazes de determinar a liberdade ou
prisão de alguém – ou mesmo a vida e a morte – além de serem discursos “que funcionam na
instituição judiciária como discursos de verdade, discursos de verdade porque discursos com

166
CASTANHEIRA, M; CORREA, M. A constituição do sujeito em Foucault, p. 2
167
CHALHOUB, S. Cidade Febril, p.35.
58
estatuto científico, ou como discursos formulados, e formulados exclusivamente por pessoas
qualificadas, no interior de uma instituição científica.”168
Neste sentido, investiu-se em um discurso normalizador sobre o corpo tatuado que o
associou não apenas à criminalidade, mas sobretudo à noção de periculosidade que as classes
pobres representavam. Antes de ser um corpo criminoso, a função política da qual o corpo
tatuado foi investido pelos discursos predominantes no início do século foi a de potencialmente
criminoso, ou seja, perigoso.
Por certo, o trânsito de sujeitos tatuados no interior das prisões não foi raro, e o simples
fato de ser tatuado era elemento suficiente para ser levado para averiguação policial. Todavia,
é preciso afirmar que a associação entre a tatuagem e a criminalidade não foi produzida livre
de tensões. A teoria lombrosiana, por exemplo, que encontrou terreno fértil nos discursos
cientificistas e midiáticos no Brasil, não gozou de um reinado inquestionável.
Em 1919, a revista O Malho seria um dos canais de questionamento dessa teoria. Revista
que, assim como a Careta, privilegiava “o humor político e de costumes”, foi lançada
propagandeando ao leitor a ausência de um programa. Ou melhor, alardeava o fato de ter todos
os programas: “ele é o Malho; tudo que passar a seu alcance será a bigorna. O povo rirá ao ver
como se bate o ferro nesta oficina e só com isso ficaremos satisfeitos, com a tranquila
consciência de quem cumpre um alto dever social e concorre eficazmente para o melhoramento
e progresso da raça humana”. 169
A noção de progresso e melhoramento da raça humana precisa ser entendida no universo
ideológico do período. Naquele momento, o projeto burguês de modernidade apregoava a
disciplinarização da classe trabalhadora como via para tal objetivo. Em reportagem de página
inteira, intitulada A Casa de Detenção, a edição de 06 de dezembro de 1919 afirmava a
incoerência entre a associação da tatuagem e a predisposição ao crime – embora
simultaneamente apontava a sua proliferação no sistema carcerário: “a maior parte destes, têm
uma feição característica: a tatuagem. Não se diga infalível, neste ponto, a observação
lombrosiana. O diretor da Casa de Detenção afirma que alguns dos detentos mais tatuados, são
justamente os detentos mais dóceis.” 170
Três anos antes, em 1916, o Correio Paulistano publicou uma reportagem intitulada
Tatuagens e Tatuados. A reportagem ganhou destaque e foi publicada em duas partes, ocupando

168
FOUCAULT, M. Os anormais, p. 7.
169
NOGUEIRA, C. Revista Careta, p. 70, grifo nosso.
170
O MALHO, A casa de detenção, 6 de dezembro de 1919.
59
em ambos os casos a terceira coluna da terceira página do periódico, nos dias 05 e 07 de
fevereiro daquele ano. 171 Leven Vampré, o autor da reportagem, era advogado e jornalista, e no
intento de confrontar a leitura de Lombroso, que afirmava ser capaz de descrever os crimes
cometidos pelos encarcerados apenas ao analisar suas tatuagens, entrevistou o que ele descreveu
como vários tatuados mais ou menos desinteressantes, até que encontrasse J.M. O entrevistado
é apresentado como conhecedor do universo da tatuagem e nega a suposta correlação entre a
tatuagem e o crime:

Absolutamente não. A pessoa que se deixa tatuar só o faz para imortalizar uma
ideia mais elevada e bela do que a fraqueza do seu crime ou seu defeito
humano, não existem relações algumas diretas entre a tatuagem e o crime do
delinquente, não. O que existe é a pretendida suposição da sinagoga de um ou
outro afiliado gratuito da teoria lombrosiana. Se porventura houver alguma
relação, o que acredito, entre a tatuagem e o crime, esta só se verifica numa
data posterior, depois do delinquente preso, como uma lembrança da vingança
exercida por uma ofensa recebida. Os fatos falam mais alto que a retórica,
mormente sabendo que oferecem um verdadeiro contraste a essa teoria. 172

Se J.M. recusava a associação entre a tatuagem e a criminalidade, o mesmo não se pode


afirmar do advogado-jornalista Vampré, que conscientemente ou não associa a condição de
J.M. às suas práticas corporais, ao afirmar que “aqui fica, para os estudiosos, um não pequeno
contingente de pontos de vista sobre tatuados e tatuagens, que provém de um catedrático no
assunto, como parte que é do subsolo criminalóide brasileiro, por largo hábito e natureza”,
apontando ainda que “esse delinquente, que faz humorismo sobre a escola lombrosiana, está
prestes a terminar sua pena”. 173
As noções de hábito e natureza revelam um tanto acerca da ordenação discursiva do
período. Nas fontes analisadas, é recorrente um embate entre a teoria lombrosiana do criminoso
nato e a da influência do meio. A tensão entre as noções de hábito e natureza é evidenciada em
diversos momentos: Elaborar com psicologia, behaviorismo e darwinismo social

[...] entre os civilizados a ciência considera-a um sintoma de criminalidade


não só porque é de habito entre os criminosos e os que demonstram tendências
para o crime como também porque Lombroso, Ferri e outros ilustres
criminalistas consideram a insensibilidade física um dos característicos de

171
VAMPRÉ, L. Tatuagens e Tatuados I. CORREIO PAULISTANO, 7 de fevereiro de 1916; Tatuagens e Tatuados II.
CORREIO PAULISTANO, 7 de fevereiro de 1916.
172
VAMPRÉ, L. Tatuagens e Tatuados II. CORREIO PAULISTANO, 7 de fevereiro de 1916.
173
VAMPRÉ, L. Tatuagens e Tatuados II. CORREIO PAULISTANO, 7 de fevereiro de 1916.
60
l’uomo delinquente, ou seja do criminoso nato, e a tatuagem exige singular
resistência à dor. 174

Outro autor a ressaltar a inconsistência da teoria lombrosiana, tensionando as noções de


criminoso nato e influência do meio sobre as tatuagens foi João do Rio:

Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo


ou de seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas
mantenedoras dessa usança. Há uma outra — a sugestão do ambiente. Hoje
toda a classe baixa da cidade é tatuada — tatuam-se marinheiros, e em alguns
corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se
soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses
chegados da aldeia com a pele sem mancha, que influência do meio obriga a
incrustar no braço coroas do seu país. 175

Esses conflitos não se resolvem no início do século. Em outra reportagem, desta vez no
Jornal do Brasil, o suposto líder de um bando criminoso conhecido como Silvino é descrito:

Silvino tem o aspecto comum do sertanejo: odeia tatuagem, dizendo que esses
calungas eram próprios da gente baixa. Quando algum tatuado pretendia
entrar no grupo, Silvino o recusava, desconfiando fosse um soldado de polícia
disfarçado. A ausência de tatuagem e de outros estigmas de degenerescência
física fazem acreditar que Silvino não é criminoso nato, mas o resultado do
meio e o produto da fase de barbaria sertaneja aliada a circunstâncias
especiais de sua vida.176

Novamente se tensionam e se confundem as noções de hábito e natureza. O fato de não


possuir tatuagens ou outros estigmas de degenerescência fazia de Silvino um resultado do meio
e das circunstâncias da vida. Como se vê, a produção discursiva da imprensa não dispensou os
cientificismos de início de século e suas teorias de naturalização da criminalidade. Para a
reportagem, se Silvino tivesse tatuagem talvez não fosse resultado do meio e das circunstâncias
da vida.
Em outro momento, nega-se tal teoria com veemência. Na matéria Presídio do
Carandiru é possível perceber o embate entre as concepções de hábito e natureza e a crítica à
escola lombrosiana:

Por aí se vê o engano que existe na afirmação do grande mestre Lombroso,


dizendo que todo homem tatuado é um criminoso e que a tatuagem na infância
é um sinal precoce de criminalidade e indício de anormalidade. Já Mairac dizia

174
A tatuagem. EU SEI DE TUDO, 1917.
175
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 19.
176
JORNAL DO BRASIL, 05 de novembro de 1914, grifo nosso.
61
que a tatuagem resulta muito mais de causas extrínsecas do que intrínsecas. O
indivíduo faz-se tatuar não porque esta ideia gerasse em seu cérebro, mas
porque aí encontrou guarida. Não foi, pois, uma manifestação anormal
originária de um sintoma patológico, foi o resultado de uma impressão
acidental, recebida do exterior. A escola de Lombroso tem sofrido
contestações e até mesmo refutada por uma série de outros autores, tais como
Carde, Baer, Namon, Manouvrier, Lacassagne e outros. O meio tem grande
influência sobre a propagação e o aumento das tatuagens. Ninguém mais nega
hoje a preponderância do meio físico sobre a formação psicológica do homem.
Sua constituição psicológica é o espelho por onde se reflete a imagem do meio.
Já disseram algures que a academia do crime é a casa de detenção. Quantos e
quantos indivíduos se tatuam depois de entrarem pela primeira vez em uma
prisão. Os criminosos reincidentes, é fato verificado, são os mais tatuados. Por
que? Habituam-se àquilo pela adaptação ao meio, a comunidade prolongada
determina-lhes uma tendência associativa com que o faz participar e colaborar
nas ideias de seus companheiros de infortúnio. 177 associar psicologia

Da mesma maneira, a revista Careta procurou associar a tatuagem à criminalidade,


embora também negasse a teoria lombrosiana e reconhecesse a extensão da tatuagem para além
dos criminosos.

A tatuagem é um uso muito generalizado entre os criminosos, vagabundos,


prostitutas, marinheiros e soldados. Sobretudo na classe dos criminosos
profissionais a pratica da tatuagem é muito frequente. Os criminosos do Rio
de Janeiro são, na maior parte, tatuados. [...] A tatuagem não está em relação
direta com a criminalidade. Antes é uma resultante de um meio dado que um
signo revelador de uma psicologia anormal. Nos criminosos, ela tem outra
importância, outra significação. 178

Embora esboçasse uma desassociação, informando a particularidade da tatuagem


criminal ao fim da sentença, a ênfase inicial do texto evidencia a confusão entre criminalidade
e pobreza, tão presente no discurso acerca das classes perigosas.
Mantendo-me na questão da criminalidade, ainda que essas afirmativas resultem de
leituras problemáticas – de teses problemáticas – de Lombroso, é inegável sua influência no
debate do campo científico, debate que se estendia à mídia. Como dito, embora atualmente
considerada pseudocientífica, a Escola Positiva encontrou adeptos no campo científico e foi
instrumentalizada nas ações policiais e nos discursos midiáticos. É possível dizer que seus ecos
ainda assombram a sociedade contemporânea, como se nota na persistência de piadas racistas
embebidas de doses de biodeterminismo, gestadas no interior de uma sociedade cujo passado
escravista é elemento imprescindível para compreensão de sua dinâmica.

177
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, Correio Paulistano, 5 de agosto de 1927.
178
SANCHES, S. A tatuagem dos criminosos. Careta, 02 de março de 1912, grifo nosso.
62
Não faltou também a presença da tatuagem nas páginas policiais, nas descrições dos
corpos de criminosos e vítimas. Em um período no qual a fotografia era um processo
consideravelmente mais trabalhoso e oneroso do que atualmente, a descrição dos sujeitos era
prática usual. Daí que as tatuagens passaram a figurar no cotidiano dos leitores com mais
frequência nas páginas policiais.
Em fevereiro de 1908, trazendo notícias de Minas Gerais, o Correio Paulistano
anunciava a fuga de presos da penitenciária de Uberaba, ocorrida no dia 24 de janeiro. A
descrição física dos sujeitos incluía suas tatuagens, processo constante que, possivelmente,
contribuiu com a associação paulatina entre a tatuagem e a criminalidade no imaginário do
público leitor:

Na noite de 24 do mês passado, em Uberaba, evadiram-se da cadeia os


seguintes presos: [...]Pedro José Moreira, 30 anos, viúvo, baiano, preso a 8 de
dezembro de 1906 e condenado, na última sessão do júri, a pena de 12 anos e
3 meses. É moreno, de pouca barba, olhos vivos e quase redondos, cabelos
encrespados. Tem tatuagens nas mãos e braços, entre as quais – R.V. [...]
Aureliano Aniceto Carrinho, 20 anos, baiano, preso a 26 de junho de 1903, e
condenado a 30 anos pelo júri de Estrella do Sul.[...] É moreno, olhos azuis,
pouca barba e ruiva, cabelos lisos e ruivos, rosto bexigoso. Tem uma viola
desenhada na mão esquerda, em tatuagem.179

Em outros casos, a reportagem ia além da mera descrição e o sensacionalismo associava


com maior ênfase a tatuagem e o criminoso. A prisão do “famigerado estrangulador Justino
Carlo” é um exemplo. Carleto, como era conhecido, foi preso no Rio de Janeiro e ocupou
páginas d’O Paiz, Gazeta de Notícias e outros jornais cariocas. Sua história foi parar em São
Paulo. Lá, o Correio Paulistano dedicaria à sua prisão três colunas da quinta página do jornal,
afirmando que no ato de sua captura “viram então, todos, no peito de Carleto, de um lado uma
mulher, de outro uma outra mulher segurando uma corrente em cuja extremidade há uma
bola”.180
Mesmo os sinais de fé não davam testemunho de virtude aos tatuados. Ao invés disso,
discursos a instrumentalizavam para construir uma percepção ainda mais aguda de sua
natureza. Em 1908, o Correio Paulistano publicaria uma reportagem assinada por João do
Rio 181, acerca dos presos na Casa de Detenção:

179
CORREIO PAULISTANO, 02 de fevereiro de 1908, grifo nosso.
180
CORREIO PAULISTANO, 30 de outubro de 1906.
181
No mesmo da publicação da matéria, fragmentos desse texto serão aproveitados na coletânea A alma
encantadora das ruas, conjunto de crônicas sobre a cidade do Rio de Janeiro, publicadas por João do Rio.
63
Fato exótico é que para essa gente do outro lado da sociedade não basta pensar,
é preciso trazer a marca das próprias opiniões no lombo. Raríssimos são os
presos da Casa de Detenção que não são tatuados; raros são aqueles que entre
as tatuagens – lagartos, corações, sereias, estrelas – não têm no braço ou peito
a coroa imperial. Outra ideia é a crença em Deus, uma verdadeira nevrose da
sensualidade mística por acessos. Rezar, pedir a Deus a sua salvação, trazer
bentinhos ao pescoço, ter entre seus papeis imagens sagradas, não significa,
de resto, redenção. 182

Outro caso que ocupou sistematicamente os jornais é ainda mais emblemático da


instrumentalização da tatuagem como elemento de construção da noção de anormalidade.
Febrônio Índio do Brasil, que em 1927 teria cometido uma série de crimes que envolveram
sequestro, estupro, assassinato e a tatuagem forçada de menores, afirmara ter recebido uma
visão na qual fora designado Filho da Luz, alcunha pela qual ficaria conhecido.
Segundo ele, a visão determinou que deveria tatuar-se e tatuar suas vítimas com a sigla
DCVXVID: Deus, Caridade, Virtude, Santidade, Vida e Imã da Vida. Febrônio passaria a
figurar durante meses – e mesmo anos, pois voltaria às páginas dos jornais em 1935, após fugir
do Manicômio Judiciário – nas páginas de uma imprensa que explorou exaustivamente seu
caso.
Febrônio foi o paciente número 000001 do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro 183,
e “seu processo judicial inaugura as relações do direito com os saberes psicológicos e
psiquiátricos no Brasil”184, e acerca dele se elaborou uma série de discursos que investiriam na
descrição do monstro humano de que fala Foucault em Os Anormais:

[...] em meados do século XVIII, havia um estatuto criminal da


monstruosidade, na medida em que ela era transgressão de todo um sistema
de leis, quer sejam leis naturais, quer sejam leis jurídicas. Logo era a própria
monstruosidade que era criminosa [...] depois, por volta de 1750, vemos surgir
outra coisa, a saber o tema de uma natureza monstruosa da criminalidade, de
uma monstruosidade que tem seus efeitos no campo da conduta, no campo da
criminalidade, e não no campo da natureza mesma. 185

182
Entre ladrões e assassinos. CORREIO PAULISTANO, 11 de fevereiro de 1908.
183
Criado em 1921 e extinto oficialmente em 2013, o Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro ou Manicômio
Judiciário Heitor Carrilho foi um hospital psiquiátrico penal, ou seja, uma instituição governamental destinada a
tratar e recuperar, ao mesmo tempo que punir, “o criminoso e o doente mental”. IBRAHIM, E. Manicômio Judiciário
do Rio de Janeiro, p. 102.
184
MEDIALAB, UFRJ. O paciente 00001: o caso Febrônio Índio do Brasil. Disponível em:
http://medialabufrj.net/projetos/o-paciente-00001-o-caso-febronio-indio-do-brasil/. Consultado em 01 de outubro
de 2019.
185
FOUCAULT, M. Os anormais, p. 63-64.
64
Como afirma Gláucia Soares Bastos, que analisa as produções discursivas acerca de
Febrônio:

As notícias juntam à confissão do assassinato novos elementos: a


possibilidade de ter Febrônio cometido um segundo crime, as tatuagens que
tem no corpo, sua extensa folha penal. Todos esses ingredientes reunidos em
um só personagem asseguram-lhe uma imensa atração sobre o público leitor,
o que aumenta a circulação do jornal. 186

Segundo Bastos, a cada publicação a imprensa trazia novas informações sobre Febrônio,
sempre investindo na construção de sua monstruosidade. Entre essas, a tatuagem. O Correio da
Manhã, “veículo dos sentimentos e motivos da pequena burguesia urbana” 187 ressaltaria as
tatuagens e torturas que ele teria infligido a dois outros garotos, Otávio e Jacob. O jornal O
Paiz, nos dias 5 e 6 de setembro, estampava a matéria “Os crimes de um degenerado”. O termo
degenerado, como aponta Bastos, tem a função de afirmar que “Febrônio não é um homem
como outro qualquer, não é um legítimo representante da espécie humana”. 188 Da mesma forma
faria a edição de setembro da Revista Fon-Fon.
Periódico lançado em 1907, cuja orientação voltava-se para os valores da modernidade
burguesa – notável na alusão da onomatopeia de uma buzina de automóvel, presente em seu
título – as pautas da revista incluíam:

[...] os costumes e o cotidiano carioca; crítica de arte, teatral e cinematográfica;


literatura, partituras, cinema, atualidades; sátira política, crônica social; jogos,
charadas, curiosidades; concursos e colunismo social. Trazia flagrantes em
fotos de nomes do jet set carioca, políticos, artistas e jornalistas brasileiros e
internacionais. Oferecia aos seus leitores, ainda, as mais recentes novidades
do estrangeiro sobre moda e comportamento.189

Sobre a revista, afirma Maria de Lourdes Eleutério:

Suas capas e páginas espelhavam a autoimagem que a elite e as classes médias


em formação faziam do progresso: fotografias de modernos edifícios, a
amplitude da avenida Central, flagrantes de transeuntes nas movimentadas
ruas de comércio do centro da cidade, figurações do urbanismo, tudo isso
impresso em papel cuchê de alta gramatura, veiculando os textos entre
guirlandas art nouveaux. 190

186
BASTOS, G.
Como se escreve Febrônio, p. 35, grifo nosso.
187
SODRÉ, N. História da imprensa no Brasil. p.287.
188
BASTOS, G. Como se escreve Febrônio, p. 39.
189
DANTAS, C. Fon-Fon, p. 1
190
ELEUTÉRIO, M. Imprensa a serviço do progresso, p. 90.
65
Nas páginas da Fon-Fon, Febrônio apareceria como “monstro sem piedade, sem nada
de humano a não ser, infelizmente, a forma”. 191 Como aponta Luís Ferla, as teorias
biodeterministas careciam de sofisticação científica, mas isso paradoxalmente facilitava sua
difusão e utilização por juízes, advogados, jornalistas e público em geral. 192 É nesse sentido
que parece ter se operado a construção da imagem monstruosa de Febrônio e a
instrumentalização da tatuagem para tal fim. Febrônio deveria ser menos civilizado que os
civilizados, menos normal que os normais, menos humano que os humanos.
Em casos como o de Febrônio, os estigmas de degenerescência física que o Jornal do
Brasil não encontrou em Silvino aparecem abundantemente. Febrônio é descrito pelo Correio
da Manhã como “grande celerado” que é também “consumado preparador de mandingas”. 193
Contudo, a tatuagem, possivelmente, foi o mais explorado dos sinais de degenerescência de
Febrônio.
A exploração das tatuagens de Febrônio sob este prisma associava dois elementos. O
primeiro deles era o fato de Febrônio tatuar suas vítimas, o que remetia a um ritual cruel e
primitivista, a antítese do que a sociedade burguesa pretendia estabelecer. O segundo, era o fato
dele próprio ser tatuado, o que era parte do que Bastos citou como os ingredientes que tornavam
sua personagem peculiar ao público leitor. Esse investimento foi tamanho que o Jornal do
Brasil publicou, em setembro de 1927, a reprodução de uma fotografia de Febrônio editada de
forma a realçar suas tatuagens e destacarem-na do resto da imagem, como se observa a seguir,
em contraste com outra fotografia sua, presente em seu prontuário no Manicômio Judiciário do
Rio de Janeiro.

191
BASTOS, G.
Como se escreve Febrônio, p. 39.
192
FERLA, L.
Feios, sujos e malvados sob medida, p. 159.
193
CORREIO DA MANHÃ. Febrônio, Filho da Luz, 7 de setembro de 1929.
66
Imagem 3: Tatuagens de Febrônio destacadas no Jornal do Brasil

Fonte: Jornal Do Brasil, 10 de setembro de 1927

Imagem 4: Fotografia de Febrônio anexada ao laudo médico-psicológico

Fonte: MEDIALAB/UFRJ

67
O realce às suas tatuagens – de fato sua edição, uma vez que aparecem em disposição e
grafia diferente na outra fotografia – seguido da legenda, parecem ter por objetivo enfatizar o
fato de Febrônio ser tatuado, contribuindo para a associação entre a tatuagem e sua
monstruosidade.
Erving Goffman define o estigma quando “um indivíduo que poderia ter sido facilmente
recebido na relação social quotidiana possui um traço que se pode impor à atenção e afastar
aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus”. O
autor afirma que no cotidiano das relações sociais “acreditamos que alguém com um estigma
não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações,
através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida”.194
Se lembrarmos da afirmação do Correio Paulistano de que a remoção da tatuagem
livraria os indivíduos “de marcas ignóbeis, as quais, muitas vezes, os inutilizam para o convívio
social”195, compreenderemos ainda com mais clareza a relação produzida pelos discursos entre
a tatuagem e o estigma, no sentido atribuído por Goffman.
O fato de possuir uma tatuagem, por si só, foi suficiente para a elaboração de uma
identidade sob suspeição. No Brasil, durante a primeira metade do século XX, a tatuagem atuou
eficazmente como um estigma capaz de identificar os sujeitos a serem disciplinados, para os
quais o olhar – não apenas da lei, mas do conjunto das relações sociais – deveria se direcionar
sempre sob suspeita. Isso não se reduziu à noção de criminalidade, embora ela tenha,
inegavelmente, sido instrumentalizada no reforço do estigma.
Outro exemplo dessa construção está no caso de Francisco Antônio Luiz, ou Guilechini.
Preso em flagrante por tráfico de drogas, ele foi tema de uma reportagem escrita por Vidal
Barros para a revista O Malho. Nela, o autor afirma que no ato da prisão as autoridades “não
supunham que ele era mais um caso de psicologia criminal do que da polícia comum”. O
motivo? Guilechini trazia o corpo cheio de tatuagens. 196

194
GOFFMAN, E. Estigma, p. 14-15.
195
CORREIO PAULISTANO, 04 de janeiro de 1909, grifo nosso.
196
VIDAL, B. O homem que tem um álbum de emoções no corpo. O MALHO, 01 de dezembro de 1928.
68
Imagem 5: O barbeiro Guilechini

Fonte: O Malho, 01 de dezembro de 1928.

O interesse do repórter por Guilechini recaía muito mais sobre o fato de ser o indivíduo
extensivamente tatuado do que sua prisão em flagrante pela venda de cocaína.

Todo o seu tórax, como as costas e os braços tinham mais vida, mais expressão
e realidade que as páginas de um livro cheio de realidade, de expressão e de
vida. A tatuagem no seu corpo se apresenta como uma verdadeira arte, tantos
os requintes com que foi feita e tal a perfeição que se lhe descobre. 197

Como aponta Gláucia Bastos acerca dos discursos midiáticos, no mundo globalizado, a
construção da realidade é atravessada pelo que o sujeito “vê, ouve e lê no noticiário”. Mas neste
ponto é pertinente repetirmos a pergunta da autora: “quais são os critérios segundo os quais um
fato deixa de ter interesse estritamente particular para passar ao âmbito do interesse geral? Qual
o paradigma de seleção das informações que serão levadas ao status de notícia, e sob qual ponto
de vista serão veiculadas pelos órgãos de comunicação de massa?” 198
É possível que a qualidade da tatuagem, sua expressividade e forma tenham sido motivo
da atenção recaída sobre Guilechini. Contudo, mais provável é a atenção ao seu caso, que afinal
“era mais um caso de psicologia criminal do que da polícia comum”, se deva à extensão corporal

197
VIDAL, B. O homem que tem um álbum de emoções no corpo. O MALHO, 01 de dezembro de 1928.
198
BASTOS, G. Como se escreve Febrônio, p. 21.
69
de suas tatuagens. Essa noção é também herança da escola lombrosiana. Para Lombroso: “o
lugar da tatuagem, e sobretudo o número, são de grande importância antropológica, porque
provam a vaidade instintiva que é característica no criminoso”. 199 Um corpo extensivamente
tatuado é “prova da pouca sensibilidade à dor, que os delinquentes têm em comum com os
selvagens.”200
Se a perspectiva lombrosiana figurava constantemente nos jornais, há de se perguntar o
quão mais ela não esteve presente nas ações policiais. Em uma reportagem de 1926, o Correio
Paulistano trazia nova nota sobre o Rio, desta vez intitulada Crime na rua Fluminense. A
reportagem afirmava descrever detalhadamente o inquérito do juiz Dr. Cesário Alvim, que
interrogava Augusto Henriques acerca do assassinato de Adolpho Freire. Ao fim do
interrogatório, “o dr. Cesário Alvim, ainda muito delicadamente, perguntou se Henriques tinha
alguma tatuagem, se seus pais bebiam ou se havia tido alguma enfermidade grave. Henriques
respondeu negativamente. Não tenho tatuagens nem marcas. Estive no Limoeiro, mas não como
criminoso”.201 O fato de incluir a tatuagem entre os questionamentos relevantes em um
inquérito sugere, novamente, o eco do pensamento lombrosiano no país. Aliás, é preciso
ressaltar que, embora seja atualmente considerada uma pseudociência e tenha sido desde cedo
uma teoria questionada, postulante de noções esdrúxulas como a de que os sujeitos predispostos
ao crime “concentram no organismo humano tantas anomalias, como nos crimes, tanta
constância nas reincidências” 202, o próprio Lombroso reconhecia o uso e a difusão da tatuagem
entre as classes pobres, para além dos indivíduos criminosos.
Em uma nota n’O Jornal, décadas mais tarde, é possível perceber a persistência da
associação entre tatuagem e criminalidade. Nela, a narrativa apresenta Jurandir do Nascimento,
que por suas características físicas era constantemente confundido com diferentes criminosos e
levado para averiguação policial. O motivo, segundo ele: sua tatuagem. Ao questionar a
incapacidade da polícia, que mesmo tendo diversas fichas de identificação ainda cometiam
erros deste tipo, a reportagem termina afirmando que “o fato é que trazendo uma belíssima
tatuagem em seu braço, a polícia não receia em prendê-lo, pois, aquele sinal, feito como
brincadeira, não passa de um “cartão de visitas” para as delegacias do Distrito Federal.”203

199
LOMBROSO, C.O homem delinquente, p. 35.
200
LOMBROSO, C.O homem delinquente, p. 36.
201
Crime na rua fluminense. CORREIO PAULISTANO, 27 de agosto de 1913.
202
LOMBROSO, C. O homem delinquente, p. 30.
203
O JORNAL, 24 de agosto de 1952.
70
No dia anterior, o jornal Última Hora publicou reportagem bastante semelhante com
Jurandir, sugestivamente intitulada A tatuagem é o seu cartão de visitas. Abrindo a seção Na
Ronda das Ruas – coluna policial que ocupava quase a metade da quinta página do jornal de
Samuel Wainer204 e que ficou famosa por passar aos leitores “a ilusão de que o jornal estava
presente no momento dos acontecimentos, aparentando uma ubiquidade visual da imprensa por
meio da escrita”205 – a matéria com Jurandir o expunha ao lado de outros indivíduos acusados
de crimes, fazendo pouca questão de apontar sua inocência – a ausência de um subtítulo que
evidencie o engano de suas constantes detenções é um exemplo disso.
A narrativa da nota policial nos permite compreender o drama de Jurandir pela
perspectiva dele próprio. Tendo sido preso pela terceira vez, confundido com criminosos
procurados pela polícia devido a sua tatuagem, a reportagem apresenta Jurandir, que “já
aliviado dos terríveis interrogatórios” narra o infortúnio de ser constantemente confundido com
criminosos procurados e conclui mostrando sua tatuagem ao repórter: “E por infelicidade trago
esta tatuagem que mandei fazer por brincadeira e a qual hoje é nada mais que um “cartão de
visitas” para a polícia. Não há investigador da Delegacia de Vigilância que ao ver esta tatuagem
não me “encane” ao menos para averiguações”. 206
O drama de Jurandir parece ter se repetido muitas vezes e ultrapassou o período que
denomino primeira fase da tatuagem brasileira, na qual ela predomina nos corpos dos sujeitos
pobres. Neste período a tatuagem parece ter operado de fato como um cartão de visitas ou em
termo mais preciso, como um estigma: uma evidência física de suspeição, indício de um sujeito
proveniente do que os jornais constantemente chamarão de meios sociais inferiores ou classe
inferior. A noção de classe é, portanto, fundamental. Até mesmo mais importante que a noção
de criminalidade, a qual persistirá de uma forma ou de outra sobre a tatuagem durante todo o
século XX. O caso de Jurandir não foi o único.
O Jornal foi um periódico fundado em 1919 e que seria mais tarde comprado por Assis
Chateaubriand, dando origem a seu império jornalístico que ficaria conhecido como Diários

204
Samuel Wainer foi um jornalista brasileiro fundador de importantes periódicos como o Diretrizes e o Última
Hora. Wainer exerceu um importante papel na história da imprensa nacional, oscilando entre posições de oposição
ao Estado Novo e posterior apoio ao governo eleito de Vargas. Ver:
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/biografias/samuel_wainer. Acesso em: 25 jan. de 2021
205
GODOY, A. Ver pra crer: na Última Hora. Disponível em: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/
materias/anteriores/edicao31/materia02/. Acesso em 03 de jun. de 2020.
206
A tatuagem é o seu cartão de visitas. ÚLTIMA HORA, 23 de agosto de 1952.
71
Associados. Nelson Werneck Sodré afirma que “O Jornal, sob sua direção, tomou feição nova,
moderna, arejada, contando com excelente colaboração do exterior do país”.207
Assim como nas matérias anteriores, em que a tatuagem atuou como cartão de visitas
para a polícia, O Jornal trazia em 1958 uma reportagem de título sugestivo: Linguajar do ferido
foi sua perdição. Segundo a reportagem, Bráulio Augusto de Souza foi atendido em um hospital
com ferimentos à bala, que alegou ser resultado de uma tentativa de assalto à qual reagira.
Contudo, as gírias usadas por Bráulio para narrar o acontecido teriam chamado a atenção dos
médicos, que recorreram às autoridades policiais. Novamente, entra em cena o discurso
estigmatizante acerca do corpo tatuado.
A reportagem se encerra com uma nota assertiva que associa a tatuagem à criminalidade:
“Não há dúvidas de que Bráulio é também marginal e seu caso não foi assalto. Seu corpo é todo
tatuado, apresentando uma cruz no peito, e no braço esquerdo uma tatuagem com os seguintes
dizeres: “Vovô da Ilha””.208 Resultado? Bráulio foi levado à delegacia e submetido a “cerrado
interrogatório”. Ou seja, para o autor da matéria não havia dúvidas de que Bráulio não era
vítima, e sim culpado. O motivo disso, explicitamente, eram suas tatuagens. O processo
dedutivo era empregado de maneira a produzir uma coerência lógica, dentro do universo
ideológico do jornal e seus leitores, entre as identidades sociais virtuais e reais do indivíduo:
Bráulio tinha tatuagens, logo, deveria ser marginal. 209
A distância temporal entre as reportagens demonstra a permanência do estigma que
tentou associar a tatuagem à criminalidade ao longo da primeira metade do século. Essa
associação só será abrandada – mas não extinta – a partir da década de 1960, quando jovens de
classe média passarão a adotar a prática como modo de afirmar uma identidade descolada das
imposições sobre a construção corporal, utilizando-a justamente como elemento de contestação
dessa ordem que se impõe sobre o corpo.
De modo semelhante, o Correio da Manhã defendeu a manutenção da tatuagem como
sinal de identificação de suspeitos, mesmo após o advento de métodos de identificação que
gozavam a pompa de serem mais precisos, como a datiloscopia:

Embora exista excelente método de identificação, a datiloscopia, o melhor que


dentre todos tem aparecido, não se pode deixar de tomar em consideração uma
tatuagem ou muitas delas como ótimo meio adjuvante neste processo. Se se
quiser diminuir o valor da tatuagem como identificação, pode-se ainda dizer

207
SODRÉ, N. História da imprensa no Brasil, p. 361.
208
O JORNAL, 16 de abril de 1958.
209
GOFFMAN, E. Estigma, p. 12.
72
que com o advento da datiloscopia, o seu valor deixou de existir. Mas a
identificação envolve muitas vezes problemas sérios e difíceis a resolver.
Portanto, todo elemento a mais que possa recorre deve fazê-lo sem embargo
de tempo.210

Os exemplos do tratamento destinado à Bráulio, Jurandir e Augusto sugerem aquilo que


foi afirmado por Luís Ferla acerca da influência e da instrumentalização ubuesca das teorias
biodeterministas pelo aparato policial brasileiro:

[...] é curioso verificar que o crescimento da influência da criminologia


positivista, paradoxalmente, não passava sempre pela imprescindibilidade do
médico no ambiente jurídico-policial. Nas últimas décadas do século XIX,
essa corrente se expressava principalmente pelas ideias de Lombroso, cujo
caráter rudimentar facilitava seu manuseio por agentes leigos em medicina.
Esta é, por sinal, uma das razões de sua difusão rápida e generalizada. Os
estigmas físicos do criminoso nato eram facilmente identificáveis no indivíduo
suspeito. Por isso um delegado de polícia poderia se considerar capaz de
examinar um delinquente e dar um parecer, prescindindo da presença do
médico. 211

A afirmação de Ferla ressoa ainda com mais importância sobre a tatuagem e os tatuados
se lembrarmos que, para Lombroso, sua prática era um dos principais estigmas físicos do
criminoso nato, a ponto de ele dedicar um capítulo de O Homem Delinquente exclusivamente
a ela e Sebastião José Roque, seu prefaciador, declarar na edição de 2007:

Um apego positivo aos fatos, por exemplo, é o estudo dedicado às tatuagens,


com base nas quais Lombroso fez classificação dos diversos tipos de
criminosos. Dedicou exaustivos estudos a essa questão, investigando centenas
de casos e louvando-se nos estudos sobre as tatuagens, desenvolvidos por
vários cientistas, como Lacassagne, Tardieu, de Paoli, e até mesmo os da
antiga Roma. Fato constatado e positivo é que os dementes, em grande parte,
demonstram tendência à tatuagem, a par de outras tendências estabelecidas,
como a insensibilidade à dor, o cinismo, a vaidade, falta de senso moral,
preguiça, caráter impulsivo. 212

Os tatuados participaram das páginas policiais como suspeitos, como condenados, mas
também como vítimas. Em 06 de janeiro de 1956 o corpo do tatuado Geraldo Dias Corrêa,
“preto, 23 anos de idade, sem profissão” foi encontrado com uma perfuração de bala. A razão

210
CORREIO DA MANHÃ, 29 de setembro de 1928.
211
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 159, grifo nosso.
212
LOMROSO, C. O homem delinquente, p. 7
73
do crime? Geraldo seria um “cambono conquistador”.213 Ele foi assassinado por Malaquias,
amásio de Norma Cardoso dos Santos, que afirmou ter sofrido tentativa de estupro por Geraldo.
Com fama de conquistador, “Xangô, incorporado no cavalo Manuel de Abreu, por diversas
vezes preveniu que o rapaz teria morte violenta e que os motivos seriam sua mania de conquistar
as mulheres alheias”. 214
Em outro incidente, também publicado pelo jornal Luta Democrática, uma vítima de
espancamento havia sido deixada sobre a linha de trem para que o caso parecesse um acidente
na via férrea. Novamente as marcas corporais e o lugar social condenavam-lhe a priori: “como
na localidade funciona uma churrascaria frequentada por indivíduos da pior espécie e a própria
vítima apresentasse o corpo tatuado, as desconfianças aumentaram consideravelmente,
entrando os policiais em diligencia a fim de elucidar o bárbaro atentado”.215 As tatuagens no
braço esquerdo, com os dizeres “Amor, Ódio e Vingança”, o nome “Bilina”, e a cruz e os dizeres
“Amor de mãe” grafados no braço direito antecipavam a condição do sujeito anônimo que, sem
resistir aos ferimentos, faleceu antes de recuperar a consciência.
Em 1957 o mesmo jornal condenava Délcio Silva, vítima de assassinato. Supostamente
morto por Zé Pernambuco, relacionamento passado de sua atual companheira Ivone Maria,
Délcio é descrito pelo jornal como um malandro, figura estereotipada do sujeito não submetido
à disciplina laboral:

Enquanto dormia no barracão ou perambulava pelas biroscas experimentando


marcas novas de cachaça, a amásia trabalhava nos subúrbios de Vila Kosmos
para sustentá-lo. Vida melhor não queria o malandro, que tinha no corpo cerca
de cinquenta tatuagens de dragões, São Jorge e mulheres. Tirou há um ano
Carteira de Trabalho, que nunca fora utilizada. As páginas permaneciam em
branco e com ela Délcio Silva pretendia enganar a polícia quando fosse preso
para averiguações. 216

Outra vítima de assassinato foi sumariamente julgada pelo jornal Correio da Manhã.
Em suas páginas policiais, em meio a descrição de outros crimes, o jornal não hesitou em
condenar previamente o jovem pardo que aparentava 25 anos de idade e foi encontrado morto
em um campo de futebol. Enquanto a identificação da vítima ainda não havia sido realizada, o

213
Os cambonos são médiuns de sustentação em casas de Umbanda, que participam do trabalho, mas não atuam
nos procedimentos de incorporação mediúnica. Ver: http://nanaburuque.wixsite.com/site/single-
post/2017/04/18/O-que-%C3%A9-ser-Cambono-na-Umbanda. Aceso em: 30 de set. de 2019.
214
LUTA DEMOCRÁTICA. Xangô avisou ao cambono que iria morrer, 06 de janeiro de 1956.
215
LUTA DEMOCRÁTICA, 30 de março de 1956.
216
LUTA DEMOCRÁTICA, 09 de maio de 1957.
74
detetive da Divisão de Polícia Técnica já havia chegado à conclusão de que a razão do crime
era “a desavença entre delinquentes”, devido ao local onde o crime ocorreu. Para o periódico,
as tatuagens da vítima eram motivo suficiente de sua condenação: “o corpo apresentava diversas
tatuagens, o que atesta o passado da vítima, pois, como é sabido, os delinquentes quando
cumprem pena deixam-se tatuar, sendo essa uma tradição entre os malandros e criminosos.” 217
Essa oscilação constante entre as noções de hábito e natureza, que reflete o debate entre
concepções do criminoso nato e da influência do meio, atravessa a primeira metade do século.
Neste contexto, a tatuagem figurou constantemente como elemento sinalizador, seja de uma
degenerescência intrínseca ao sujeito, seja da má influência de suas sociabilidades.
Independente da perspectiva adotada, a tônica do discurso que procurou associar a tatuagem à
criminalidade foi enfática e, certamente, exerceu influência sobre o público leitor – haja vista a
permanência dessa associação no curso do tempo – contribuindo efetivamente na construção
do estigma sobre o sujeito tatuado.
A exploração imagética de casos como o de Febrônio e seu julgamento prévio pela
construção discursiva dos jornais, contribuíram para a produção de uma concepção da tatuagem
associada à degenerescência, ao atraso moral, à vileza dos sujeitos que a portavam. Como
aponta Luís Ferla, “as feições do criminoso nato se tornaram familiares a todos eles,
reconhecíveis nos tribunais e nas fotos dos jornais” 218. A tatuagem foi um dos mais marcantes
elementos dessa familiarização.
Assim, a associação da tatuagem à imagem de criminosos ou suspeitos como Febrônio,
Guilechini, ou mesmo de vítimas como Augusto, Bráulio e Geraldo, tão comum nas páginas
dos jornais brasileiros, operou historicamente na elaboração de uma representação objetal da
tatuagem, ao mesmo tempo em que a tatuagem foi instrumentalizada para construir ou sancionar
representações mentais do criminoso.
Como proposto por Bourdieu, o discurso que elabora as identidades é permeado por
representações mentais – atos de percepção, apreciação, conhecimento e reconhecimento – e
representações objetais – em objetos, signos ou atos operacionalizados na manipulação
simbólica das representações mentais que os outros têm de determinada propriedade ou de seu
portador. 219

217
Crime misterioso na rua viúva Cláudio. CORREIO DA MANHÃ, 23 de novembro de 1955.
218
FERLA, L. Feios sujos e malvados sob medida, p. 31.
219
BOURDIEU, P. O poder simbólico, p. 112.
75
Bourdieu defende que as representações não podem ser percebidas como meras
elaborações mentais. Antes, sua produção tem efeitos objetivos sobre o real. Para ele,
compreender a luta pela definição de identidades passa imperativamente pela inclusão da
representação do real em sua constituição. A luta pelas identidades é permeada pela luta pelas
representações. 220 Com a tatuagem não percebo fenômeno diferente. À medida que a tatuagem
passou a marcar outros corpos, para além das classes pobres, sua representação mental e objetal
– seu significado social – foram reelaboradas.
Deste modo, a representação do sujeito tatuado nos discursos médico-legais, na
imprensa e em outros meios de produção de regimes de verdade, terminou por atuar
objetivamente na construção do real, desencorajando a prática da tatuagem em outros grupos e
reforçando, por meio dessa representação, a premissa de que sua utilização é uma prática social
das classes perigosas.
Até o momento, analiso os discursos instrumentalizados na construção do sujeito
tatuado como associado ao crime. Contudo, essa não foi a única, ou sequer a mais efetiva forma
de objetivação dos sujeitos tatuados na primeira metade do século XX. Por trás do discurso da
criminalidade, que oscilou entre a natureza e o hábito, reside outra questão crucial, que em
minha análise é ainda mais importante para compreender a elaboração destes discursos: a
tatuagem era prática comum entre as classes pobres. E classes pobres foram sinônimo de classes
perigosas.

2.2 CLASSES POBRES, CLASSES PERIGOSAS: A TATUAGEM E A DISCIPLINA


DOS CORPOS
A noção de classes perigosas será o objeto minha análise de agora em diante. Mantendo
o foco sobre a relação entre os discursos e os sujeitos, investigarei a intencionalidade da criação
do estigma sobre os indivíduos tatuados. A função política do corpo ocupa aí lugar fundamental
e o discurso anormalizante acerca da tatuagem objetivará construir o indivíduo normal.
Como afirma a historiadora britânica Jane Caplan sobre a relação entre a tatuagem e as
pesquisas em criminologia, “o objetivo da pesquisa no século XIX era contribuir com o debate
das patologias dos criminosos, porém os dados serviram mais para testemunhar o fato de que a
tatuagem era também um hábito popular entre a classe trabalhadora”.221

220
BOURDIEU, P. O poder simbólico, p.112-113.
221
CAPLAN, J. Written on the body, p. 158.
76
Se o início do século foi caracterizado pela expulsão dos sujeitos pobres das regiões
centrais das grandes cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, procurando legar à burguesia
as ruas antes ocupadas por quitandeiras, escravos de ganho, trabalhadores portuários,
ambulantes, enfim, toda a gente tida como suja e perigosa que a ocupava, fazia-se necessário
distinguir-se dessa gente! Daí a tatuagem adquiriu seu caráter estigmatizante. Ainda que alguns
membros excêntricos da elite europeia, a quem a nossa copiava, a tenham adotado – a exemplo
das mulheres inglesas222 e estadunidenses223 – no Brasil, a tatuagem figurou como prática da
gente vil, suja e pobre. 224
A edição de 14 de dezembro de 1912 da revista Careta, periódico que funcionou como
“plataforma de divulgação de uma desejada modernidade” e caracterizou-se como “registro
importante para o entendimento da vida sociocultural nacional durante a chamada Belle
Époque”225, afirmava:

O uso da tatuagem está muito vulgarizado. Não só nas classes populares como
nas classes aristocráticas é muito comum esse processo decorativo. Todo
mundo sabe que o rei Bernadette era tatuado. Tatuado era lambem o rei de
Inglaterra Eduardo VII. O atual rei Jorge tem uma ancora e um dragão no
braço direito e o czar Nicolau da Rússia, traz os mesmos emblemas no corpo.
Durante algum tempo foi o uso da tatuagem uma verdadeira doença em
Londres. Não havia lady nem marquesa que não recorressem a pintores
celebres para gravar por meio de anil e de outras tintas, no seu corpo, ora os
seus brasões, ora o nome de seus noivos ou esposos, ora uma frase de amor.
No nosso país, esse uso vai se tornando extensivo a muitas classes, sendo
muito mais comum nas classes pobres. 226

A afirmativa da revista coloca uma questão curiosa: de que a tatuagem estaria se


difundindo, embora ainda fosse “muito mais comum nas classes pobres”. A historiadora Silvana
Jeha salienta: “No Brasil, não encontrei registros de membros da elite tatuados de antes da
década de 1970”.227 Embora minha pesquisa tenha encontrado indícios tímidos de uso da
tatuagem para além das classes pobres, como no caso da reportagem acima, estes registros
parecem se estabelecer claramente como exceção, e sempre associados à excentricidade,
geralmente feminina.

222
Tatuagens elegantes. JORNAL DO BRASIL, 05 de abril de 1914.
223
A tatuagem das damas. JORNAL DO BRASIL, 25 de novembro de 1901.
224
SANCHES, S. A tatuagem dos criminosos. Careta, 02 de março de 1912.
225
NOGUEIRA, C. A revista Careta, p.60-63.
226
Tatuagens. CARETA, 14 de dezembro de 1912.
227
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p.15.
77
Ainda que, ao longo da história, a tatuagem tenha aparecido no corpo de sujeitos da elite
europeia e estadunidense, no Brasil, sua prática foi constantemente associada à excentricidade,
como na matéria citada, na qual a tatuagem é uma prática dos ociosos: entre eles, os
milionários. 228
Em reportagem intitulada A arte da tatuagem: um primitivo costume renasce inspirado
pela ciência moderna, que ocupou a primeira página da edição de 9 de fevereiro de 1920 do
Correio da Manhã, o texto inicial afirma que: “A moda da tatuagem parece que volta a se
espalhar. Em Nova York, os “tattoo-artists” têm ultimamente aumentado em grande escala sua
clientela. Na Itália, o gosto pela arte, pela superstição, tão arraigado ainda, principalmente entre
as pessoas do campo, mantém vivo o gosto pela tatuagem”. Essa moda a se espalhar pelos
Estados Unidos e Europa era percebida no Brasil como indício de decadência, o que se nota nas
palavras do autor da reportagem: “Hoje, no delírio da civilização, encontrando-se pessoas
aristocráticas, ou antes excêntricas, que fazem timbre em trazer o corpo tatuado, a gente reflete
que todos os selvagens usavam este costume dos tempos pré-históricos”.229
A tatuagem foi excentricidade entre as classes dominantes, sinal de uma extravagância
aristocrática que representava o delírio civilizatório, ou seja, o exagero daqueles que por muito
possuírem, podiam se dar ao luxo de aproximar-se imageticamente dos selvagens. Aos
civilizados, aos não excêntricos – em uma palavra, aos normais – a tatuagem não deveria caber.
O estigma de excentricidade construído sobre a tatuagem não é exclusividade brasileira.
Em diversos lugares do mundo, especialmente no Ocidente, mas também em países como o
Japão, a tatuagem oscilou historicamente entre a infâmia e a distinção honorífica. A antropóloga
Margot DeMello aponta que:

Desde que chegou aos Estados Unidos, a tatuagem oscilou para cima e para
baixo entre as classes altas e baixas, o que também modificou seu significado.
Em cada estágio de sua evolução social e artística, a tatuagem redefiniu-se,
movendo-se de uma marca do primitivo para um símbolo do explorador, um
sinal de patriotismo e marca de rebeldia, onde ela se mantém para muitos
atualmente, para um signo de status.230

228
A tatuagem. EU SEI DE TUDO, 1917
229
A arte da tatuagem. CORREIO DA MANHÃ, 9 de fevereiro de 1920, grifo nosso.
230
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 3, grifo nosso. Tradução nossa.
78
Segundo DeMello, o período entreguerras é entendido como A Era de Ouro da
Tatuagem. 231 Neste período, afirma a autora, a tatuagem vivenciou possivelmente seu maior
nível de aprovação social nos Estados Unidos. A razão disso é o patriotismo que tomara conta
do cidadão estadunidense no período. Nas palavras de DeMello:

Esse fervor nacionalista também pode ser visto no número de cidadãos,


militares e não militares, que adquirem tatuagens patrióticas durante esse
período. O vínculo de soldados e marinheiros com a tatuagem era tão forte na
época que se supunha que um homem com tatuagens estivesse servindo nas
forças armadas ou já o tivesse feito. 232

No Brasil republicano pós-abolicionismo, o desejo de distinguir-se da ralé social


ganhou contornos próprios, como o racismo institucionalizado que naturaliza práticas sociais
de hierarquização racial e o investimento no repúdio ou distanciamento das práticas populares,
associadas às classes pobres. Esta me parece a razão principal pela qual a tatuagem não gozaria
de qualquer prestígio no país, pelo menos antes da década de 1960.
O desejo burguês de demarcar sua distinção – e sua imitação pelos grupos que
ascendiam, ainda que minimamente, na pirâmide social – foram apontados por Sevcenko:

Acompanham-nas as falanges emergentes dos fiscais do gosto, os censores da


correção, os ditadores da moda, proclamando seus decretos pelos jornais e
revistas mundanas. Porque afinal, nos informa João do Rio, em meio à maré
montante do arrivismo, “ter gosto pode ser urna profissão, dada a raridade do
gosto”. Nesse caso, portanto, o gosto não se refere a nenhum padrão estético
ou estável de excelência, típico de uma sociedade aristocrática, mas ao
empenho dos recém-chegados às benesses do consumo em se diferenciar e
distanciar dos menos afortunados e dos despossuídos, de cujo seio vieram. O
que passa por gosto é na verdade a moda, que deve mudar sempre para
impedir a emulação e, por meio dela, qualquer indesejável identificação. 233

Em outra obra, Sevcenko aponta que:

[..] a reação das classes conservadoras diante desse panorama inseguro e


ameaçador se fará em dois sentidos. A tentativa – vitoriosa ao fim – de
restabelecer uma titularia honorífica, dado que a República extinguira a antiga
nobreza, e o estabelecimento de um verdadeiro culto da aparência exterior,
com vistas a qualificar de antemão cada indivíduo”.234

231
Me refiro entre o intervalo entre o fim da Primeira Guerra Mundial (1918) e o início da Segunda (1939),
comumente referido entre os historiadores como entreguerras.
232
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 63. Tradução nossa.
233
SEVCENKO, N. A capital irradiante, p. 537-538, grifo nosso.
234
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 40, grifo nosso.
79
Neste contexto, forjar uma concepção anormalizada da tatuagem contribuía com a
própria construção de normalidade pretendida pela burguesia. Se a distinção era o objetivo da
burguesia nacional, seguida de longe por uma incipiente classe média, e se para isso se investiu
no culto da aparência exterior como elemento classificatório do sujeito, não espanta que uma
prática surgida entre as camadas populares, fosse construída como uma marca de inferioridade
moral, desqualificante, como foi constantemente representada nos discursos midiáticos.
Esse investimento ultrapassava o discurso de criminalização da tatuagem, embora ele
seja parte do processo. A questão era outra: a distinção de classe. Para essa compreensão, utilizo
a noção de classes perigosas e seu contexto histórico.
Como aponta Luís Ferla, o investimento em uma biopolítica pelo aparelho repressivo
do Estado não se concentrou exclusivamente nos criminosos. “Além dos delinquentes,
propriamente ditos, veremos como os menores, os homossexuais e os trabalhadores urbanos
constituíram o centro da atenção daqueles que pretendiam normalizar a sociedade a partir de
teses biodeterministas”. 235 Para além do Rio de Janeiro, o pensamento cientificista que deu
origem às reformas urbanas cariocas também modificou outras capitais, como São Paulo. De
acordo com Margareth Rago:

Desde o final do século XIX, São Paulo e Rio de Janeiro passaram por uma
série de transformações urbanas, com a abertura de avenidas e alamedas, com
a construção de chafarizes e demais serviços públicos, com o calçamento das
ruas, instalação de iluminação a gás, criação de novos bairros, que passam a
ostentar casarões suntuosos. Na década de 1910, em São Paulo, é construído
o Teatro Municipal, alargam-se as ruas do centro, como a Líbero Badaró,
discute-se o ajardinamento do vale do Anhangabaú, abrem-se parques e praças
com a colaboração de engenheiros e arquitetos estrangeiros. 236

O código sanitário da cidade de São Paulo, publicado em abril de 1918, estipulava


normas de higiene residenciais, e instaurava por meio da higienização uma objetivação do
sujeito pobre a fim de discipliná-lo. “O sonho de tornar o pobre inodoro sugere a possibilidade
de construir o trabalhador comportado e produtivo”. 237
Tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, o trabalhador urbano foi o epicentro de
uma nova política disciplinar, que vigiou, examinou, classificou e tentou disciplinar o tempo, a

235
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 17.
236
RAGO, M. Do Cabaré ao Lar, p. 215.
237
RAGO, M. Do Cabaré ao Lar, p. 228.
80
habitação, as sociabilidades e, sobretudo, o corpo desses sujeitos. Como propõe Ferla, a partir
da leitura de Foucault:

O operário, criatura da Revolução Industrial, personagem recente e


desconhecido, deveria ser domesticado, disciplinado e convenientemente
anulado. Somente dessa maneira ele poderia se “adaptar” a um estilo de vida
completamente novo e estranho para um herdeiro do mundo rural: o horário
fabril, o uso instrumental de seu corpo, a destruição dos laços comunitários, o
salário de subsistência. 238

A estratégia para tal foi a disciplinarização do trabalhador urbano. Ou melhor, a tentativa


disso. Uma vez que “o pobre é outro da burguesia, ele simboliza tudo que ela rejeita em seu
universo”. 239 Assim, uma tripla e amalgamada noção de pobreza-saúde-imoralidade 240 se
investirá sobre o trabalhador, objetivando seu controle. Para tanto, põe-se em curso um projeto
de integração do proletariado aos valores burgueses, que se configura em estratégias múltiplas
de disciplinarização, para além das fábricas, “buscando redefinir sua maneira de pensar, de
sentir, de agir e erradicar práticas e hábitos considerados perniciosos e tradicionais”. 241
Aquilo que diz respeito à particularidade das classes pobres foi sistematicamente
perseguido e submetido ao ajustamento da ordem burguesa. A tatuagem não escapou dessa
empreitada. Insisto nisso, pois o objetivo deste capítulo é desnaturalizar determinados
discursos que condicionaram sua estigmatização à exclusiva associação à criminalidade. Pelo
contrário, repito, o que se torna evidente é a classe como razão do estigma sobre a tatuagem.
Se classes pobres foram confundidas com classes perigosas, isso não estava necessariamente
associado à criminalidade em si.
A emergência do capitalismo e sua ética, impõem a valorização do trabalho, o que
resulta na “proletarização dos miseráveis e homens pobres, que nem por isso deixarão de o ser,
mas que agora, entretanto, não podem simplesmente deixar de trabalhar”.242
Como resultado da nova ordem ideológica, decorrente da abolição e da reestruturação
das relações de trabalho, a sociedade brasileira se viu diante do desafio de não só ressignificar
o trabalho, mas também de disciplinar o trabalhador de modo a domesticá-lo, inserindo-o em
um estilo de vida até então estranho.

238
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 36.
239
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p.229.
240
RAGO, M. Do Cabaré ao Lar, p. 247.
241
RAGO, M. Do Cabaré ao Lar, p. 25.
242
LAPA, J. Os excluídos, p. 32.
81
Segundo Ferla, a abolição trouxe o desafio de apagar o estigma de que “o trabalho que
sujava a mão também sujava a alma”, deslocando este estigma para o desocupado. O vadio,
como aponta o autor, deveria ser “sequestrado e submetido à redisciplinarização pelo
trabalho”. 243 De acordo com Chalhoub, “o problema que se coloca, então, é de que o liberto,
dono de sua força de trabalho, torne-se um trabalhador, isto é, disponha-se a vender sua
capacidade de trabalho ao capitalista empreendedor.”244 Em suma, necessitava-se construir uma
nova ética do trabalho. O avesso do trabalhador era o ocioso, e a ociosidade era o vício maior a
ser combatido pela sociedade que desejava ressignificar o trabalho. Esse processo é percebido
na criminalização da vadiagem.
No início da República a discussão em torno da criminalização da vadiagem ganha
corpo entre os parlamentares brasileiros. Neste sentido, a relação entre o trabalhador e o vadio
é construída a partir de um simples processo de inversão: todos os predicados associados ao
mundo do trabalho são negados quando o objeto de reflexão é a vadiagem. Assim, enquanto o
trabalho é a lei suprema da sociedade, a ociosidade é a ameaça constante à ordem. O ocioso é
aquele indivíduo que, negando-se a pagar sua dívida para com a comunidade por meio do
trabalho honesto, coloca-se à margem da sociedade e nada produz para promover o bem
comum. 245
A ociosidade é mais do que o débito do indivíduo com a sociedade, é também a
perversão dos valores burgueses. Nas palavras de Chalhoub, “é um estado de depravação de
costumes que acaba levando o indivíduo a cometer verdadeiros crimes contra a propriedade e
segurança individual. Em outras palavras, a vadiagem é um ato preparatório do crime, daí a
necessidade de sua repressão.” 246
Esse é um ponto fundamental dos discursos produzidos sobre os tatuados durante a
primeira metade do século XX. Reclusos ou livres, a ociosidade e a imoralidade foram atributos
contumazes na produção dos discursos sobre os tatuados. As tatuagens são, enfim, estigmas
identificadores das classes perigosas.
De acordo com Sidney Chalhoub, a expressão classes perigosas teria surgido na
primeira metade do século XIX, forjada para referir-se “aos indivíduos que já haviam
abertamente escolhido uma estratégia de sobrevivência que os colocava à margem da lei”. 247

243
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 243.
244
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 65.
245
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 73.
246
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 75.
247
CHALHOUB, S. Cidade Febril, p. 20.
82
De modo semelhante às teorias biodeterministas, Frégier, um dos pioneiros do uso do termo
não foi capaz de determinar os limites entre as classes pobres e as classes perigosas.
Sob influência de seu pensamento e diante do desafio de construir um projeto de lei de
repressão à ociosidade que visava, por fim, disciplinar a massa de trabalhadores urbanos no
Brasil, a comissão parlamentar encarregada do projeto reproduziria a mesma confusão:

As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempre foram e hão


de ser sempre a mais abundante causa de todas as sortes de malfeitores: são
elas que se designam mais propriamente sob o título de – classes perigosas –;
pois, quando mesmo o vício não é acompanhado pelo crime, só o fato de aliar-
se à pobreza no mesmo indivíduo constitui um justo motivo de terror para a
sociedade. O perigo social cresce e torna-se de mais a mais ameaçador, à
medida que o pobre deteriora sua condição pelo vício e, o que é pior, pela
ociosidade. 248

Na lógica dos parlamentares, a virtude do bom cidadão era o gosto pelo trabalho, que
resultaria imperativamente no hábito da poupança e consequente qualidade de vida. Por
contraponto, o sujeito economicamente desprovido seria um mau trabalhador, problema
causado pelos vícios. Daí a utilização do termo classes pobres e viciosas, segundo Chalhoub. 249
Paulatinamente, forjava-se a imagem das classes pobres como associadas ao criminoso
potencial. Isso porque um ponto fundamental para a criminalização da vadiagem foi a
associação entre ociosidade e pobreza. A vadiagem só era vadiagem se associada à indigência.
“Só a união da vadiagem com a indigência afeta o senso moral, deturpando o homem e
engendrando o crime. Fica claro, portanto, que há uma má ociosidade e uma boa ociosidade. A
má ociosidade é aquela característica das classes pobres, e deve ser prontamente reprimida.”250
O sujeito de posses não era visto como ocioso, como já demonstrou a diferenciação operada
por João do Rio entre o vagabundo e o flaneur.
Vale ressaltar que a noção de classes perigosas não é a associação direta do sujeito a
criminalidade, mas sim a sua predisposição. O fato de ser pobre e ocioso tornava o sujeito um
criminoso em potencial. No universo ideológico das classes dominantes da Primeira República,
dois mundos se definem em oposição: o mundo do trabalho e o mundo da ociosidade e do crime.
O segundo é o espelho invertido do primeiro, no qual reinaria a moral, o trabalho e a ordem.
Chalhoub afirma ainda que essa elite postulava um paralelismo perfeito entre a hierarquização

248
Anais da Câmara dos Deputados. In: CHALHOUB, S. Cidade Febril, p. 21.
249
CHALHOUB, S.
Cidade Febril, p. 22.
250
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 75.
83
da estrutura social e a constituição desse universo ideológico. Ou seja, no topo dessa hierarquia
estariam os proprietários, seguidos de longe pelos bons empregados. Este seria o nível da
ordem, da moralidade, do respeito à propriedade. No nível inferior estariam os ociosos. Neste
nível, se notava certo grau de depravação moral e uma tendência à desordem, visto que a lei
suprema da sociedade – o trabalho – era desrespeitada. Por fim, haveria ainda o nível mais
inferior, o mundo do crime, formado por “indivíduos de maus instintos, miseráveis e infensos
aos ditames da ordem.” 251
Tatuagem e vadiagem são mais que rimas perfeitas na epopeia da modernização
burguesa. Meu argumento é que a estigmatização sistemática da tatuagem vai muito além de
sua associação à criminalidade: o que não se sustentava no cotidiano dos trabalhadores que
conviviam com tais marcas. Ultrapassando essa noção, foi necessária a construção de uma
significação da tatuagem que fosse capaz de ser instrumentalizada na disciplinarização deste
segundo nível da hierarquia social: o pobre ocioso. É a normalização do trabalhador que parece
ser o foco do investimento no estigma da tatuagem. A razão para tal, o corpo do trabalhador
não deveria pertencer-lhe, afinal.
A estigmatização social da tatuagem em sua primeira fase não se relaciona
necessariamente ao seu uso por indivíduos criminosos. Condená-la foi parte da
disciplinarização da classe trabalhadora. Construir a imagem da virtude como aquela associada
aos valores burgueses de limpeza, de ordem, de certas noções de corporalidade e vestimenta, e
sobretudo do afastamento das práticas populares parece ter sido o elemento fundamental dessa
estigmatização.
Ao descrever as classes pobres do Brasil República, José Murilo de Carvalho aponta
que:

Esta população poderia ser comparada às classes perigosas ou potencialmente


perigosas de que se falava na primeira metade do século XIX. Eram ladrões,
prostitutas, malandros, desertores do Exército, da Marinha e dos navios
estrangeiros, ciganos, ambulantes, trapeiros, criados, serventes de repartições
públicas, ratoeiros, recebedores de bondes, engraxates, carroceiros, floristas,
bicheiros, jogadores, receptadores, pivetes (a palavra já existia). E, é claro, a
figura tipicamente carioca do capoeira, cuja fama já se espalhara por todo o
país e cujo número foi calculado em torno de 20 mil às vésperas da República.
Morando, agindo e trabalhando, na maior parte, nas ruas centrais da Cidade
Velha, tais pessoas eram as que mais compareciam nas estatísticas criminais
da época, especialmente as referentes às contravenções do tipo desordem,
vadiagem, embriaguez, jogo. Em 1890, estas contravenções eram

251
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 79.
84
responsáveis por 60% das prisões de pessoas recolhidas à Casa de
Detenção. 252

Como se vê, Carvalho entende que a burguesia do período associava criminalidade e


pobreza. Corroborando a leitura de Chalhoub, ambos percebem o que Ferla chama de tripla
ameaça que a pobreza carregava: criminal, sanitária e política.253 Tornava-se necessário, assim,
o investimento na disciplinarização do corpo do trabalhador. E se o vício maior a ser combatido
era o ócio, então a tatuagem, predominantemente inscrita nos corpos das classes pobres e
costumeiramente associada à ociosidade nos discursos médicos e midiáticos, atuaria como um
excelente identificador desse sujeito perigoso, dessa ameaça em potencial.
Se a associação entre a tatuagem e a criminalidade foi frequente nos discursos midiáticos
analisados, maior ainda fora sua associação com a ociosidade. O almanaque mensal e ilustrado
Eu Sei de Tudo, que circulou no Brasil entre 1917 e 1958, se apresentava como uma revista
scientífica. Compondo o que Ana Maria Mauad chamou de magazines, a Eu Sei de Tudo tinha
como característica editorial “a educação da elite carioca, principalmente as mulheres, que
pobres em escolaridade e conhecimentos gerais, as utilizavam como fonte de informação, daí a
miscelânea de assuntos contidos em suas páginas”.254
Em edição de seu ano inaugural, a revista traz uma matéria intitulada A tatuagem.
Fartamente ilustrada – como era a proposta da revista – com tatuagens de nativos e marinheiros,
a matéria oscila entre a associação da tatuagem ao costume dos povos incivilizados e dos
criminosos, nada incomum para a época. O que chama a atenção é a afirmativa reveladora do
periódico: “Há, contudo, muitas criaturas absolutamente honestas que se fazem tatuar. São
geralmente os que por destino ou profissão têm longas horas ociosas – como os soldados, os
marinheiros...e os milionários.”

252
CARVALHO, J. Os bestializados, p. 18.
253
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 35.
254
MAUAD, A. Sob o signo do olhar, p. 210.
85
Imagem 6: Tatuagens de um marinheiro inglês

Fonte: Eu Sei De Tudo, 1917

Longe de refutar meu argumento, a presença dos milionários entre os ociosos o reforça.
Como afirmado anteriormente, a prática da tatuagem entre os ociosos abastados, além de rara,
era geralmente percebida como extravagância, o que vai ao encontro da percepção de
Chalhoub, de que não bastava ser ocioso para ser ameaça, era preciso também ser pobre.
Na reportagem Presídio do Carandiru, publicada em 1927 pelo Correio Paulistano e
assinada por Honório de Sylos, o periódico dedica a maior parte de um texto largamente
ilustrado com fotos de tatuagens à essas marcas corporais. Analisando um contingente de
duzentos e sessenta detentos no antigo Carandiru, em São Paulo, as notas sobre a tatuagem são
em grande parte resultado da pesquisa de doutoramento de Francisco Alves Corrêa de Toledo,
intitulada Contribuição ao estudo das tatuagens em medicina legal, apresentada à Faculdade
de Medicina de São Paulo, em 1926.

86
Na reportagem, Honório de Sylos apresenta elementos riquíssimos para compreensão
do pensamento que se estabelecia sobre a tatuagem na primeira metade do século XX, bem
como dos discursos que se elaboravam a fim de disciplinar o corpo tatuado. Iniciada com um
retrospecto histórico da tatuagem que passa por Homero e pelos textos bíblicos, a narrativa
chega àquele contexto histórico afirmando a perda de qualquer que fosse a essência valorativa
que a tatuagem tenha tido: “O certo é que ainda hoje se encontra um grande número de pessoas
tatuadas. O espírito que presidia a tatuagem antiga foi pouco a pouco se desvirtuando, passando
de uma para outra significação no seu contínuo evoluir, chegou até nós como um simples
ornamento grotesco e grosseiro.” 255
A razão do esvaziamento de uma suposta virtude antepassada é escancarada na
sequência, pela evidenciação dos grupos sociais que faziam uso da tatuagem naquele contexto:
“Constitui quase que exclusivamente apanágio das classes inferiores, onde a vamos encontrar
muito mais do que era pra se supor na civilização atual – entre os operários, marinheiros,
soldados, forçados, vadios, mascates, artistas de circo, boxeurs, lutadores e prostitutas.” 256
Como se nota, a tatuagem é prática atribuída ao que Chalhoub chamou classes
perigosas. Aqueles sujeitos que ocupavam o intermédio da hierarquia social e, embora não
necessariamente criminosos, representavam a ameaça constante à ordem. O fato dela estar
inscrita entre trabalhadores pobres, e especialmente entre sujeitos que trabalhavam condição de
informalidade – mascates, artistas de circo, boxeadores, lutadores, prostitutas – era motivo para
colocá-la sob suspeita. A inclusão de operários, marinheiros e soldados ao lado de forçados e
vadios dão ainda a nítida mostra da maneira como pobreza e perigo estavam amalgamadas no
imaginário da burguesia brasileira de início de século.
O texto revela outro ponto fundamental de minha argumentação: a tatuagem era
encontrada com muito mais frequência do que a ordem burguesa gostaria. O projeto burguês de
modernidade é altamente civilizatório. Modernizar o país significava regê-lo no andamento da
orquestra capitalista. Para tanto, era preciso civilizar e disciplinar o trabalhador em sua
totalidade, para além das relações de produção, o que se manifesta nas relações de poder que
atravessam o corpo.
O poder é um tema recorrente na obra de Foucault e a utilização de suas teorias por
outros autores é bastante conhecida e problematizada. Sua fertilidade reside na perspectiva

255
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, Correio Paulistano, 5 de agosto de 1927.
256
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, Correio Paulistano, 5 de agosto de 1927.
87
inovadora dada por Foucault ao tema. Uma de suas contribuições diz respeito à associação entre
o poder e o saber. O poder produz o saber, ao passo que o saber legitima o poder. Assim, ao
tratar da produção do saber sob a ótica foucaultiana, é essencial entender sua relação intrínseca
e mútua com o poder. O saber não é produzido de forma livre e desinteressada. Pelo contrário,
“o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros
tantos efeitos” das implicações entre saber e poder. Como aponta Foucault, “não é a atividade
do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-
saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas
e os campos possíveis do conhecimento.” 257
Há, portanto, uma implicação direta entre saber e poder que impossibilita a constituição
daquele à revelia deste, e o exercício deste apartado daquele. Nas palavras do autor, “não há
relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha
e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.”258 Foucault inaugura uma maneira peculiar
de perceber o poder, não mais verticalmente imposto, como objeto cuja pertença instaura-se
invariavelmente nas instâncias superiores, emanado a partir de um centro. Pelo contrário, pensá-
lo a partir de Foucault diz respeito a considerar o que o autor chama de “precauções
metodológicas”. Destacarei algumas delas. A primeira diz respeito justamente a:

[...] captar o poder em suas extremidades em suas últimas ramificações, lá


onde ele torna capilar, captar o poder nas suas formas e instituições mais
regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras
do direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em
instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de
intervenção material, eventualmente violentos. 259

Outra precaução de Foucault é aquilo que talvez seja um dos tópicos mais difundidos
de seu pensamento sobre o poder: a consciência de que o poder não é algo que algum indivíduo
ou grupo possua com exclusividade, que possa ser localizado e apropriado, mas que funciona e
se exerce em rede, e em suas malhas todos os sujeitos estão potencialmente em posição de
exercê-lo e sofrer seus efeitos.
Essa noção, denominada por Foucault como microfísica do poder, é melhor detalhada
em Vigiar e Punir e História da Sexualidade Volume 1. Foucault afirma que o poder não deve

257
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 31.
258
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 31.
259
FOUCAULT, M. Microfísica do poder, p. 282.
88
ser concebido como propriedade, mas como estratégia; e que seus efeitos não são fruto da
apropriação que alguém ou grupo faz dele, mas sim de sua efetiva utilização, ou seja, das
disposições, manobras, táticas e técnicas colocadas em operação pelos sujeitos. Como uma
“rede de relações sempre tensa”, o poder é muito mais algo que se possa exercer do que possuir,
não sendo “o ‘privilégio’ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de
conjunto de suas posições estratégicas.” 260
Foucault aponta também para inversão do foco da análise: das instâncias superiores e
dos níveis macropolíticos, para o funcionamento do poder e dos processos de sujeição dos
corpos, gestos, comportamentos em um nível microfísico, das relações ínfimas.

Em outras palavras, ao invés de perguntar como o soberano aparece no topo,


tentar saber como foram constituídos, pouco a pouco, progressivamente,
realmente e materialmente os súditos, a partir da multiplicidade dos corpos,
das forças, das energias, das matérias, dos desejos, dos pensamentos, etc. 261

Além disso, Foucault chama a atenção para os “instrumentos reais de formação e


acumulação do saber”, afirmando que para o exercício sutil do poder é necessária a formação,
organização e circulação de um saber, ou de aparelhos do saber. 262
Assim, poder e saber conjugam-se na produção – discursiva, mas também real – do
corpo tatuado. Não é possível falar nas tecnologias de poder empregadas na normalização do
corpo, nem da descontínua significação da tatuagem, sem associá-las à produção de discursos
normalizadores, que oscilaram entre a normalização e a anormalização do tatuado.
O saber-poder descrito por Foucault atravessa os corpos dos sujeitos de minha pesquisa.
São elementos constitutivos destes sujeitos. Se reduzirmos a pretensão de Foucault, de “criar
uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-
se sujeitos” 263 a uma escala mais modesta, é possível instrumentalizar seus conceitos e construir
uma história dos modos pelo qual, em nossa cultura, os sujeitos tatuados foram constituídos.
É fundamental compreender a desnaturalização do corpo, entendendo-o como um corpo
político. Atestar o corpo como político é entende-lo como locus de investimentos, de relações
de poder que o atravessam. É ter em conta que o corpo é mais do que mero aparato biológico.
Foucault aponta que é sempre no corpo – topia implacável, invólucro do qual não se pode

260
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 30.
261
FOUCAULT, M. Microfísica do poder, p.283.
262
FOUCAULT, M. Microfísica do poder, p. 285-288.
263
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder, p. 231.
89
escapar – e nunca fora dele, que será preciso falar, andar, olhar e deteriorar, ou seja, existir. 264
Assim, será por meio do corpo que a identidade será construída, a partir dos processos de
objetivação e subjetivação, percebidos na maneira como “os indivíduos se produzem e são
produzidos numa determinada cultura, através de determinadas práticas e discursos, enquanto
subjetividades”.265
Tomar o corpo como político é entender o “conjunto dos elementos materiais e das
técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as
relações de poder e de saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles
objetos de saber”. 266
É exatamente este o ponto a que pretendo chegar. Minha análise objetiva a compreensão
de como se constituíram estes saberes sobre o corpo tatuado, que disciplinas o envolveram e
que relações de poder se estabeleceram na constituição de sua estigmatização na primeira fase
da tatuagem – e na sua posterior ressignificação.
O lugar social dos tatuados é o elemento fundamental de sua estigmatização. É evidente
que uma prática tida como privilégio quase exclusivo das classes inferiores267, encontrada
muito mais do que o processo civilizatório gostaria – o que revela a resistência das classes
populares na manutenção de suas práticas – cairia na ignomínia em uma sociedade que se
constituiu pelo culto à aparência exterior.268
Ser tatuado era ter sua identidade associada à ameaça constante representada pela
pobreza. Longe de repelir apenas a criminalidade, a estigmatização do tatuado visava construir
a noção de normalidade ligada aos valores do trabalho. A referência ao ócio será enfatizada
diversas vezes na reportagem Presídio do Carandiru, para muito além da associação à
criminalidade:

A ociosidade contribui, como em geral concordam todos os que se dedicaram


a estes estudos, para incrementar e difundir este uso. Na prisão todas as horas
são de descanso, nos ateliês, nos quartéis, nos navios, descansa-se também
muito. Esse descanso do corpo faz com que o espírito trabalhe mais, e
habitante de um meio psíquico inferior é guiado na diretriz da sua baixa
educação. Daí encontramos a tatuagem muito mais espalhada entre os
criminosos, marinheiros e soldados. 269

264
FOUCAULT, M. O Corpo Utópico, as Heterotopias, p. 7-8.
265
RAGO, M. O efeito Foucault na historiografia brasileira, p. 76.
266
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 31.
267
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, CORREIO PAULISTANO, 5 de agosto de 1927.
268
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 40.
269
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, CORREIO PAULISTANO, 5 de agosto de 1927.
90
Novamente, o discurso científico é reivindicado para justificar a afirmação jornalística.
Os estudos do período atestam que a ociosidade é elemento fundamental da difusão da
tatuagem. As instituições disciplinares descritas por Foucault, como quartéis e prisões, são
espaços nos quais o corpo é mais detalhadamente esquadrinhado. Daí o seu maior controle.
Mas, mais que isso, para estes discursos o descanso do corpo é má influência ao espírito, isso
conjugado com o fato de tratar-se de habitantes de meio psíquico inferior, compõem a receita
ideal para a tatuagem.
Como apontado por Chalhoub, o ócio é vício pernicioso quando associado à pobreza. O
dito meio psíquico inferior é o complemento necessário às horas de ócio na produção dessa
prática imoral: a tatuagem.
Permeado por esse discurso combativo do ócio, o repórter Honório de Sylos do Correio
Paulistano reconstitui fantasiosamente o caminho de um tatuado no presídio:

Tatua-se, então. Tatua-se sem saber porque. Tatua-se sem saber a significação
do que vai tatuar, só a imitação, a ociosidade e o desprezo por si próprio é
que a ditam. Um detido tanto desenha um coração quanto um ornamento, uma
palavra obscena quanto uma prece. Pode exprimir o estado d’alma num
momento, mas não do feitio íntimo próprio deste mesmo indivíduo. Com a
tatuagem, ainda maior é a distância entre o que ela exprime e o sentimento
natural de cada um. Todos deixam-se tatuar, ao tatuador compete sugerir o
que se vai tatuar. Faça isto ou aquilo. Não chegamos ao ponto de afirmar que
não existe tatuagem criminosa, nós mesmos temos exemplos dela, nem
duvidamos que este uso esteja mais espalhado entre os criminosos, embora
apareça em grande quantidade entre os marinheiros, os sírios, os soldados,
os artistas de circo e os lutadores. Mas como não predominar ela entre os
criminosos, se esses saem desse meio rasteiro cheio de vícios e corrupção,
onde imperam o álcool e a prostituição, sem a noção do que seja a honradez,
o trabalho e a civilidade. Temem a um ente sobrenatural, respeitam a crença
alheia, sujeitam-se ao sofrimento para seguir a crença protetora do
companheiro. Entre os marinheiros e entre os soldados, a tatuagem também se
pratica unicamente pela imitação. A tatuagem constitui a preocupação das
horas de vadiagem. 270

Essa ficcionalização do percurso do sujeito ao encontro da tatuagem revela mais sobre


o universo ideológico das classes média e burguesa – para quem, afinal, os jornais eram
escritos271 – do que sobre o tatuado. Como afirma Eleutério, a imprensa na República tomava
forma a partir do discurso da burguesia urbana: “outros gêneros literários retratam as alterações

270
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, CORREIO PAULISTANO, 5 de agosto de 1927, grifo nosso.
271
DE LUCA, T. A grande imprensa na primeira metade do século XX, p. 165.
91
que se processavam na construção de uma nova urbanidade em que o triunfo da burguesia se
evidencia através do aparato tecnológico. A crença no progresso é destaque nas páginas dos
jornais e revistas sob a forma de crônicas, reportagens, entrevistas”. 272 Como aponta Tania
Regina de Luca, “os jornais não deixaram de se constituir em espaço privilegiado de luta
simbólica, por meio do qual diferentes segmentos digladiavam-se em prol de seus interesses e
interpretações sobre o mundo”.273
Sendo a grande imprensa – a despeito de suas divergências pontuais acerca do regime
republicano, da autonomia dos estados, das candidaturas ou demais arranjos do plano político
– essencialmente representante da voz burguesa, não espanta o investimento na estigmatização
das práticas populares. Mais ainda que fossem associadas ao ócio.
Além de associações textuais explícitas como “a tatuagem constitui a preocupação das
horas de vadiagem”, a leitura atenta da matéria revela ainda o embate pela construção da noção
de trabalhador disciplinado pretendida pela burguesia. Embora a reportagem reconheça a
existência da tatuagem entre criminosos e não criminosos, como “marinheiros, sírios, soldados,
artistas de circo e lutadores”, não há distinção entre criminalidade e não criminalidade. A
tatuagem, em si, é a prática a ser estigmatizada. Seja no criminoso, no vadio ou no trabalhador
pobre. A dita predominância dela entre os prisioneiros 274 era, para Sylos, nítido reflexo da
imoralidade de um “meio rasteiro cheio de vícios e corrupção, onde imperam o álcool e a
prostituição, sem a noção do que seja a honradez, o trabalho e a civilidade”. 275
Faltava ao criminoso, e por extensão a qualquer ocioso, a honradez e civilidade que só
poderia ser proveniente do trabalho. Se a tatuagem era entre os presidiários – e por extensão às
classes perigosas – o resultado do vício da ociosidade, o discurso jornalístico tinha a solução:
a disciplina.
Se no Presídio do Carandiru tatuava-se muito, assim como no interior – o texto ressalta
especialmente a penitenciária de Santos, o que possivelmente se deve ao fato de ser uma cidade
portuária, espaços tradicionais de difusão da tatuagem –, o mesmo não acontecia na

272
ELEUTÉRIO, M. Imprensa a serviço do progresso, p. 97.
273
DE LUCA, T. A grande imprensa na primeira metade do século XX, p. 158.
274
Afirmação frágil, visto que o estudo que deu origem à reportagem limitou-se a analisar sujeitos encarcerados.
O estudo atesta que 69,6% deles foram tatuados no interior do cárcere, revelando outros 30,4% tatuados em
espaços diversos. Certamente, uma amostragem produzida fora da penitenciária revelaria um número maior de
sujeitos tatuados em espaços diversos. SOUZA, F. História da Tatuagem no Brasil, p.128.
275
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, Correio Paulistano, 5 de agosto de 1927, grifo nosso.
92
Penitenciária do Estado, “onde não há um só exemplo de tatuagem ideada e praticada lá dentro,
embora tenha possuído para mais de 1500 prisioneiros”.276
Em tom injuntivo, a reportagem afirma:

A razão é fácil perceber, uma vez que se conhece o regime interno referente
às ocupações dos condenados. Assim é que no verão a alvorada é tocada às 5
horas e, no inverno às 5:30, todos os dias, quer seja útil ou não.
Das 5:30 às 6:30 – Levantar, banho, preparo e café.
Das 6:30 às 10:20 – Trabalho (oficinas diversas ou campo).
Das 10:20 às 11:20 – Almoço
Das 11:20 às 16:30 – Trabalho (idem)
Das 16:30 às 18:00 – Jantar e Descanso
Das 18:00 às 20:00 – Escola (música, desenho, instrução primária, etc.).
Das 20 em diante – Silêncio e leito. 277

Citando um notório prisioneiro conhecido pelas alcunhas de E.M., D’Artagnan ou Pierre


Denis, que era tido como o homem mais tatuado do local, e que “parece sentir prazer em ostentar
suas marcas”, o Correio Paulistano afirma que ele não se tatuou mais desde que ali chegara. A
razão do abandono do interesse pelas tatuagens de Denis seria que ele “esqueceu essa predileção
porque sua atenção está presa a outros afazeres mais agradáveis, não tendo, portanto, de
procurar na tatuagem horas de esquecimento e distração.” 278
Seguindo o tom receituário, Sylos apresenta o que julgava a conclusão óbvia da ausência
da tatuagem na Penitenciária do Estado: “como se vê, os indivíduos reclusos não têm tempo
para pensar em tatuagem, o dia lhes é tomado, todas as horas lhe são úteis”. 279
Conforme Chalhoub, não se trata de pensar o ocioso e o criminoso como indivíduos à
margem do sistema, mas sim como constituintes da própria ordem. Ao negar a oposição entre
um mundo virtuoso e um mundo desvirtuado, Chalhoub indica um caminho fundamental para
a compreensão do rotula-se marginalidade, repensando o conceito:

Há, na verdade, apenas um mundo, coerente e integrado na sua dimensão


ideológica. Não faz sentido, então, pensar o ocioso e o criminoso como
indivíduos que vivem à margem do sistema, marginais em relação a um
suposto mundo da ordem. Cabe pensar a ociosidade e o crime como elementos
constituintes da ordem e, mesmo, como elementos fundamentais para a
reprodução de um determinado tipo de sociedade. [...] Em suma, a hipótese
que se quer lançar aqui é a de que a existência da ociosidade e do crime tem
uma utilidade óbvia quando interpretada do ponto de vista da racionalidade do

276
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, Correio Paulistano, 5 de agosto de 1927.
277
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, Correio Paulistano, 5 de agosto de 1927.
278
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, Correio Paulistano, 5 de agosto de 1927.
279
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, Correio Paulistano, 5 de agosto de 1927.
93
sistema: ela justifica os mecanismos de controle e sujeição dos grupos sociais
mais pobres. 280

É essa noção que pretendo reafirmar ao analisar os sujeitos tatuados na primeira fase da
tatuagem brasileira, e que defendo ser a chave para compreensão dos discursos formulados
sobre essas pessoas.
Os discursos dualistas sobre o trabalho e a ociosidade, analisados por Chalhoub,
repetem-se na relação entre não-tatuados e tatuados. Os sujeitos tatuados pertenciam ao que a
hierarquização social e a construção ideológica burguesa pretendiam determinar como
marginais: “operários, marinheiros, soldados, forçados, vadios, mascates, artistas de circo,
boxeurs, lutadores e prostitutas.” 281
Entretanto, como nos informa Chalhoub, é necessário superar a leitura ideológica que
as classes dominantes produziram e produzem acerca das classes pobres, a fim de compreender
que os discursos que procuraram marginalizar – lançar às margens – os sujeitos tatuados, são
na verdade constituintes da própria ordem social. 282
A margem só existe em relação a um instável centro que, via de regra, é produto das
relações de força que visam forjar e afirmar sua legitimidade a partir de um embate constante
entre sujeitos ou grupos. São os indivíduos que provisoriamente ocupam o centro quem
colocarão em curso estratégias, táticas e técnicas que lhes permitam rotular, por meio de um
conjunto de enunciados e discursos, aqueles que compõem as margens. Afinal, como aponta
Foucault, o poder “não é o privilégio exercido ou conservado da classe dominante, mas o efeito
de conjunto de suas posições estratégicas.” 283
Contudo, situar os dominados à margem não significa sua exclusão, até porque, como
propõe Foucault, em uma concepção de poder que o entende como relacional, como “uma rede
de relações sempre tensas, sempre em atividade” que se desenrolam em um modelo de “batalha
perpétua” não há a exclusão do outro, e sim sua dominação, uma vez que a efetividade do poder
presume a existência do dominante e do dominado, bem como a possibilidade de resistência. 284
Ao invés de exclusão, a marginalização opera a constituição do contraponto necessário
à normalidade. O que quero dizer é que a noção de marginal não resolve a equação das relações

280
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 79-80, grifo nosso.
281
SYLOS, H. Presídio do Carandiru, Correio Paulistano, 5 de agosto de 1927.
282
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 79.
283
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 30
284
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 30.
94
sociais se pensado como sinônimo de excluído. Na economia moderna de poder, muito mais
útil que excluir determinados sujeitos do corpo social e do jogo das representações, é demarcá-
los como desviantes ou anormais. Retomando as palavras de Chalhoub, “cabe pensar a
ociosidade e o crime como elementos constituintes da ordem”.285 A revelação e exposição
contínua do anormal cumpre o papel de colocar em evidência o normal, contra quem ele
aparece. Ser tatuado, assim, cumpria a função de demarcar o anormal – o criminoso de fato,
mas também o criminoso em potencial, ou seja, os sujeitos pobres – para fazer aparecer o
normal: o trabalhador submisso, dócil e domesticado para produzir mais e melhor.
Como aponta Foucault, o momento histórico do surgimento das disciplinas é o da
atenção sobre o corpo, objetivando, no ponto de relação entre a sujeição e a produtividade, a
fabricação de indivíduos assujeitados. Para isso, “forma-se então uma política das coerções que
são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos,
de seus comportamentos”. 286
Isso ajuda a compreender melhor a importância do controle sobre corpo, no caso deste
estudo, sobre o corpo tatuado. Por que tamanho investimento em estigmatizar uma prática
corporal então restrita à plebe, como a tatuagem? Por que ocupar as páginas dos jornais com a
desqualificação do sujeito tatuado, já desqualificado pela sua posição social? A resposta reside
justamente na necessidade de controle do corpo das classes pobres, que se inscreve no plano
das disciplinas de que fala Foucault – e prova disso será a atenuação dos discursos a partir da
década de 1960, quando a tatuagem passou a figurar em outros corpos, como a juventude de
classe média.
Segundo Foucault, “o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera
simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. [...] o
corpo é uma realidade biopolítica”. 287 Esse controle opera exatamente por meio da relação entre
o exercício do poder e a produção dos discursos. Daí a importância de compreendermos tanto
as ações empreendidas contra os tatuados quanto as representações sobre eles produzidas.
Deliberadamente amalgamados e confundidos, “soldados, vagabundos, criminosos,
barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que a influência

285
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 79.
286
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 136.
287
FOUCAULT, M. Microfísica do poder, p.144.
95
do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país” 288 compunham a clientela principal dos
tatuadores ambulantes da primeira metade do século XX.
No mesmo tom discursivo que associava propositalmente as classes populares e os
indivíduos criminosos/criminalizados, a revista O Malho afirma: “assim como as classes
populares das nações civilizadas, os criminosos, vagabundos e prostitutas contemporâneos,
possuem também o corpo incrustado dos mais grosseiros ornamentos”. 289
O jornal A Noite, por sua vez, publicou na seção médica a seguinte nota, em resposta à
pergunta de um leitor sobre remoção de tatuagens: “É muito difícil, só com meios cirúrgicos.
Estes meios são violentos, mas seguros. Ficará depois uma cicatriz no lugar. Sob o ponto de
vista da sociedade, a tatuagem é um pouco esquisita...ao passo que a cicatriz da operação
cirúrgica não indica nenhuma camada social.” 290
É evidente que o que estava em jogo não era meramente o efeito estético. A cicatriz,
embora modificação do corpo natural, não cobrava o preço da classe. A cicatriz não tem classe
social, a tatuagem sim. Embora debatida na seção médica, a questão era de ordem social, não
clínica. A operação em si era segura, embora violenta. Mas para o texto, mais valia o sofrimento
da operação do que o custo social da tatuagem.
O conjunto destes enunciados produziu um discurso que investiu na associação entre a
tatuagem e a anormalidade. Afinal, anormalizar o corpo e as práticas sociais das camadas
pobres não foi por acaso. Foi política de Estado. 291
Nos termos de Goffman, construiu-se sobre a tatuagem um discurso que a
instrumentalizou enquanto elemento informativo de uma identidade social virtual capaz de ser
acionada com sucesso enquanto elemento conformativo da suspeita de uma identidade social
real, o sujeito pobre – e por isso mesmo, perigoso. 292
Por vezes, possuir uma tatuagem e deixá-la à mostra era o suficiente para que o aparelho
repressivo do Estado interpretasse o sujeito como um risco social. Conjugado à criminalização

288
RIO, J. A
alma encantadora das ruas, p. 19.
289
A Tatuagem. O MALHO, 19 de janeiro de 1936.
290
A NOITE, 06 de março de 1926, grifo nosso.
291
Exemplos disso perduram até nossos dias. Em 2017, o comandante da ROTA defendia em São Paulo que o
cidadão dos bairros nobres deveria ser abordado de maneira diferente do que aqueles da periferia, afirmando que
“são pessoas diferentes que transitam por lá”. ADORNO, L. Abordagem nos Jardins tem de ser diferente da
periferia, diz novo comandante da ROTA. UOL, 24 de agosto de 2017. Disponível em
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/24/abordagem-no-jardins-e-na-periferia-tem-de-
ser-diferente-diz-novo-comandante-da-rota.htm. Acesso em: 24 de out. 2019.
292
GOFFMAN, E. Estigma, p.12
96
da vadiagem, isso ajuda a explicar o vai-e-vem dos sujeitos tatuados nas delegacias e cadeias,
como no caso de Madruga, narrado por João do Rio.
O mesmo teria ocorrido com Geraldo Cesar Rios, conhecido como Geraldo da Praia,
que fora morto na Colônia Correcional de Dois Rios, posterior Instituto Penal Cândido Mendes,
fundada em 1894 e que nas primeiras três décadas de existência tinha como objetivo principal
encarcerar os indesejados que a sociedade em aburguesamento pretendia excluir: bêbados,
mendigos, vadios e capoeiras. 293
A história de Geraldo se confunde com a de Madruga, tendo, porém, um final menos
feliz. Geraldo, descrito como “preto desabusado, perigoso desordeiro”, atuava como cocheiro
e era alfabetizado, possuía no braço esquerdo a tatuagem com o nome “Gandira, na mão
esquerda alguns rabiscos, no braço direito um coração atravessado por uma espada, o símbolo
da República Brasileira, e no dorso da mão direita, um peixe”. 294
Condenado a dois anos de reclusão pelo crime de vadiagem – contravenção produto da
ideologia modernizadora da República e que deve ter levado muitas vezes os tatuados à cadeia,
uma vez que suas marcas foram constantemente associadas ao ócio – Geraldo foi assassinado
em 1917 no interior da Colônia, após supostamente tentar agredir dois policiais que o vigiavam.
Outro caso ressalta o que pode ter sido parte do cotidiano de tatuados e tatuadas pelo Rio de
Janeiro na primeira metade do século, e provoca ainda uma série de reflexões.
Em 1926 o Jornal do Brasil, periódico que após uma série de reviravoltas em suas
orientações ideológicas se voltaria para “as questões cotidianas que afetavam as camadas mais
pobres da cidade”, cumprindo certo papel de “defensor dos pobres e oprimidos” 295 revelaria os
limites dessa defesa das classes pobres e a constante estigmatização a que foi submetido o corpo
tatuado. Em tom dramático, a reportagem de Carlos Emydgio tenta forjar a atmosfera de um
encontro acidental com o caso em questão:

Ouvindo pisadas fortes no comprido e empoeirado corredor da delegacia, o


comissário interrompeu a narrativa de suas aventuras de 30 anos de vida
policial, que cheia de exageros e fantasias era contada a algumas pessoas
estranhas à polícia. Interrompeu a narrativa, endireitou-se na cadeira e
esperou. Na sala dividida ao centro por uma grade de madeira, cujo verniz há
muitos anos desapareceu completamente, entraram um homem de uns 40 anos
de idade e uma crioula farta de carnes, acompanhados de dois praças da
Polícia Militar que estavam encarregados da ronda da rua Pereira Franco,

293
SANTOS, M. Os porões da República: a Colônia Correcional de Dois Rios entre 1908 e 1930, p. 456.
294
O PAIZ, 13 de novembro de 1917.
295
LUCA, T. A grande imprensa na primeira metade do século XX, p. 159-160.
97
uma das muitas invadidas pelas mulheres de péssimos costumes, que na
campanha moralizadora das autoridades policiais foram expulsas das ruas
centrais da cidade. Enquanto esperava que os soldados falassem, o
comissário, querendo demostrar aos estranhos sua argúcia de velho policial,
observava em silêncio os recém-chegados. 296

A reportagem segue com a dramatização de um diálogo que, mais ou menos imaginário,


transparece a relação tensa entre indivíduo e sociedade no exercício de controle sobre o corpo:

- Pronto!
- Prendemos em flagrante
-Flagrante de que?
- Este homem estava marcando aquela mulher.
O rápido diálogo entre os soldados e o comissário, que era realmente curioso,
tinha qualquer coisa de enigmático.
- Que história é essa, rapariga?
A crioula não respondeu, parecia recear de ser posta no xadrez.
- Você não fala?
- Vou explicar tudo, seu comissário...
- Então explique-se.
- Fui eu quem pedi a esse homem para assinalar em meu braço esquerdo, que
é o do coração, o amor que dedico ao meu rapaz.
- Como?
- O senhor pode ver. 297

Acuada, a personagem confessa seu desejo de marcar suas experiências e subjetividades


como quem confessa um crime. O que se segue é uma sequência de especulações e pré-
julgamentos da mulher tatuada:

Vagarosamente a crioula retirou dos ombros um xale azul que os cobria,


mostrando então os braços grossos e cheios de ondulação de cima a baixo, nas
quais eram registrados, em sinais cabalísticos e extravagantes, em letras mal
desenhadas, os seus amores de poucos dias. É provável que todos os traços
mal desenhados que a crioula da rua Pereira Franco tinha nos braços, tivessem
por fim despertar o sentimento de ciúme ao amante mais moderno, que podia
vê-los todos os dias. A mulher julga-se amada pelo homem que tem ciúme
dela, mesmo que o ciúme venha a causar futuramente algum desgosto. Em
tatuagens horrivelmente desenhadas viam-se nos braços da crioula corações
atravessados por punhais, estrelas ornadas de ramos, iniciais com arabescos e
outros símbolos extravagantes, assinalando cada um deles um episódio de
amor efêmero que não deixou de ter mais ou menos as suas consequências
trágicas. A mais recente das tatuagens que estava sendo executada na ocasião
da prisão, ainda sangrava. Dizia: “Amor sincero ao meu peixeirinho”. 298

296
Um desenhista da epiderme humana, JORNAL DO BRASIL, 19 de março de 1926, grifo nosso.
297
Um desenhista da epiderme humana, JORNAL DO BRASIL, 19 de março de 1926.
298
Um desenhista da epiderme humana, JORNAL DO BRASIL, 19 de março de 1926.
98
A descrição da mulher e a continuação da reportagem dão conta ainda de outra questão
fundamental: era um corpo feminino. Era, portanto, um corpo visto como inferiorizado. Seu
domínio não poderia pertencer à razão, teria de pertencer à emoção. Enquanto o tatuador era
apresentado, tinha nome e apelido, a mulher permanecia anônima. Era, para o repórter Carlos
Emydgio, apenas “uma crioula farta de carnes”. Presumidamente prostituta – em momento
algum, sua ocupação lhe foi perguntada – a personagem entrou e saiu da delegacia e da
reportagem sem nome, sem afirmar sua profissão, sem voz e sem rosto. Mesmo a foto que
ilustra a reportagem que ocupou quase um quarto da décima página da sessão policial não era
dela. Em seu lugar, foram mostradas fotos de tatuagens de marinheiros que evocavam o
“sentimentalismo” dos homens do mar, que seriam “mais sinceros”, ao contrário das
“transviadas [que] são volúveis, todos os seus amores não passam de simples caprichos que não
tem nada de duradouros”. 299
Essa personagem sem rosto, nome e voz era produto também da transformação urbana.
A dita “campanha moralizadora das autoridades policiais” havia expulsado a gente pobre do
centro da cidade, e a rua Pereira Franco tornava-se um dos recantos da cidade ocupados “pelas
300
mulheres de péssimos costumes”. A moralização, como se percebe, não objetivou
proporcionar qualquer dignidade aos sujeitos indesejados pela pretensa elite. Não se tratou de
incluí-los na modernização urbana, e sim de acantoná-los longe da vista da burguesia, que
poderia circular livremente sem o desgosto de compartilhar a região central com os indesejados.
A sucessão de especulações e julgamentos sumários é sugestiva da constituição dos
discursos acerca dos corpos pobres, permanência em nossa cultura. Se transitava pela Pereira
Franco, só poderia ser meretriz. Se era crioula, deveria ser menos digna. Se decidiu se tatuar,
só poderia ter como razão despertar o ciúme do último amante. Afinal, por extensão a todas as
mulheres o texto arrogava: “a mulher julga-se amada pelo homem que tem ciúme dela, mesmo
que o ciúme venha a causar futuramente algum desgosto”. Brecha para justificação de qualquer
ato violento. Os “mal desenhados punhais, estrelas e iniciais” não poderiam simbolizar qualquer
autonomia ou motivação própria, tinham de ser reduzidos, “cada um deles [a] um episódio de
amor efêmero que não deixou de ter mais ou menos as suas consequências trágicas.”301

299
Um desenhista da epiderme humana, JORNAL DO BRASIL, 19 de março de 1926.
300
Um desenhista da epiderme humana, JORNAL DO BRASIL, 19 de março de 1926.
301
Um desenhista da epiderme humana, JORNAL DO BRASIL, 19 de março de 1926.
99
Deslocando-se a reportagem para o tatuador, este afirma que teria iniciado sua trajetória
em Belém do Pará e percorrendo quase todos os estados do Norte 302, aprendendo a tatuar numa
barca norueguesa que ali aportada. Tendo tatuado, segundo ele, mais de quinhentas pessoas
entre homens e mulheres, sem nunca antes ter sido detido, declara: “Julgo mesmo que isso não
seja crime, já que tatuei um oficial da polícia que me pagou cinquenta mil réis por três
iniciais”.303
Neste trecho, entra em cena um recurso constantemente reivindicado pelos tatuadores
contemporâneos: o fato de terem tatuado pessoas que ocupam posições privilegiadas na
sociedade – advogados, policiais, médicos – seria um indício de que a tatuagem não é prática
dos sujeitos marginais, mas sim um adereço corporal passível de ser compartilhado entre os
considerados normais.
A narrativa da reportagem é explicitadora do que pode ter sido recorrente nas ações
policiais: os sujeitos foram presos em flagrante pela prática da tatuagem. Embora a tatuagem
nunca tenha constituído infração penal, a linha tênue e arbitrária entre suspeição e
criminalização, bem como a prática de intimidação dos sujeitos tatuados, parecem ter
funcionado como elemento de desencorajamento, instrumentalizado para produzir uma espécie
de proibição tácita que se insere em um domínio de exercício simbólico de poder, numa esfera
microfísica, como diria Foucault.
Foucault aponta que essa microfísica é colocada em jogo pelas instituições e aparelhos
de coerção, mas que sua validade se encontra entre esses grandes funcionamentos e os corpos
dos sujeitos. Para ele, as relações de poder que atravessam o corpo dos sujeitos, não se
localizam exclusivamente no Estado, mas fragmentam suas possibilidades de controle e
disciplina em níveis infinitesimais. 304 Ou seja, essas relações não são necessariamente
verticalizadas, mas se dispersam em microrrelações de poder. São essas microrrelações e sua
complexidade que parecem ter constituído a proibição tácita da tatuagem para além das classes
pobres, a tal ponto que o discurso dos tatuadores precise recorrer constantemente à presença da
tatuagem entre cidadãos ditos legítimos – médicos, engenheiros, advogados, oficiais de polícia
– para legitimá-la.

302
O que dá testemunho da difusão da tatuagem pelo país já naquele período e exemplifica o que afirmo na
introdução: estudar a tatuagem no Rio e em São Paulo ao longo do século, é de certa forma produzir um panorama
razoável da tatuagem no Brasil, embora, obviamente, estudos futuros possam dar conta das especificidades locais.
303
Um desenhista da epiderme humana, JORNAL DO BRASIL, 19 de março de 1926.
304
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 30;135.
100
Deste modo, uma prática legalmente não criminalizada se torna cotidianamente
reprimida, inclusive pelas forças do Estado que, em tese, deveriam estar sujeitas à Lei e serem
a garantia de seu cumprimento, como as forças policiais. Ao fazê-lo ou subscrevê-lo, as práticas
policiais e os discursos midiáticos atuam na constituição de uma espécie de interdição implícita
do uso da tatuagem, percebida em sua associação a uma identidade social ilegítima.
Essa deslegitimação cobraria seu preço na vida dos sujeitos tatuados, fossem eles
criminosos ou não. Para muito além da repressão policial, como a mulher sem nome da
reportagem publicada no Jornal do Brasil, aquilo que Foucault chamou de microfísica do poder
– percebida na rede de tensas relações que se capilariza e difunde para muito além das instâncias
institucionalizadas – produzirá efeitos nas mais diversas esferas, objetivado mesmo abarcar a
totalidade da vida dos sujeitos.
Tomemos o caso de Waldemar da Silva. Nascido em fins da Primeira República, em
1930, o drama de Waldemar ocuparia as páginas de jornais e revistas cariocas. Tendo sua trama
aparecido primeiramente em 1953 na revista Mundo Ilustrado, enquanto tentava carreira no
boxe, a estreia de Waldemar nas páginas da imprensa foi descrita como produtora de
curiosidade para o público e orgulho para o tatuado.

101
Imagem 7: As tatuagens de Waldemar, O Almirante

Fonte: O Mundo Ilustrado, 1953

Seguida de sua fotografia, a revista publicava:

Ao olharmos a fotografia deste guapo rapaz, uma dúvida nos assalta o espírito:
será ele um louco, um faquir ou, simplesmente, um homem em busca de
sensacionalismo? Se estivéssemos no Japão, onde a tatuagem se transformou
em uma arte magnífica, graças, em parte, ao estoicismo e senso artístico
daquele povo, compreenderíamos essa tela ambulante. No Brasil, no entanto,
escapa um pouco ao nosso entendimento a curiosa mania desse atleta que fez
de seu corpo um estranho mostruário e que exibe, feliz, posando para a
posteridade. 305

Os bons ventos não parecem ter soprado por muito tempo na vida do Almirante, como
era conhecido. Quatro anos mais tarde, o Última Hora noticiava o fracasso da vida sentimental
de Waldemar. Contando com vinte tatuagens espalhadas pelo corpo, segundo a matéria, ele

305
O MUNDO ILUSTRADO, 1953.
102
teria se tatuado em uma Tattoo Shop, que já existiam em 1950 nos Estados Unidos. Ao custo
de 280 dólares, Waldemar guardaria eternamente as marcas do tempo em que trabalhou como
marinheiro, marcado “por uma tremenda melancolia que riscou sua vida e promete marcar sua
morte, desde que nunca mais poderá se ver livre delas”:306

Uma vistosa casa, tendo à porta um homem que se encarregava da propaganda


da arte nipônica, guiou seus passos até lá. Entrou, postou-se numa grande fila
e aguardou sua vez de sofrer. Minutos depois estaria enfrentando uma agulha
em brasa sobre a pele, que lhe produziram marcas imutáveis, que o tempo não
consegue apagar: a tatuagem. De quando em vez, tomava seus tragos de uísque
para amenizar a dor. Terminada a operação, estava com 20 desenhos
espalhadas pelos braços e tórax. No membro superior direito, uma corrente,
que mandou fazer em homenagem à Tiradentes. Mais acima um dragão além
de outras figuras de sua imaginação. No esquerdo, garotas de biquini e
algumas faixas rememorando seus tempos de marujo. No tórax, uma ferradura
com o número 13 – que diz dar sorte – uma cópia de marinheiro e um peixe.307

A associação entre a tatuagem e a vadiagem, construtora da ameaçadora noção de


classes perigosas, foi constante na vida dos sujeitos tatuados, muitas vezes resultando em sua
prisão, visto que suas marcas corporais provocavam suspeita. Não foi diferente com Waldemar.
A ferradura tatuada parece não ter lhe garantido a sorte, e aquilo que inicialmente foi narrado
como sua aventura de marinheiro, mais tarde cobraria o custo social imposto aos sujeitos
tatuados: a estigmatização e exclusão social.

Hoje, decorridos sete anos do dia em que teve a infeliz ideia de marcar a pele.
“Almirante” sente-se arrependido. Desprezado por tudo e por todos, andando
pelas ruas e despertado a atenção de todos que lhe lançam um olhar curioso,
atraído pelas marcas berrantes, só lhe resta lamentar os 280 dólares que pagou
para marcar seu corpo...e sua vida. “Almirante” já esteve em Minas, São Paulo
e outros estados, tentando fugir à curiosidade pública. Tudo em vão. Ao invés
de conseguir seu objetivo, complicou ainda mais sua situação, recebendo
como prêmio à sua fuga, alguns dias de cadeia, pra variar... 308

O caso de Waldemar ilustra os micropoderes e sua difusão no corpo social, alcançando


a totalidade da vida e exercendo-se em redes de relações. Para além dos problemas com as
forças policiais, o drama de Waldemar ocuparia ainda sua vida profissional e amorosa.

306
20 tatuagens afastam Waldemar da vida e de todas as mulheres. ÚLTIMA HORA, 20 de março de 1957.
307
20 tatuagens afastam Waldemar da vida e de todas as mulheres. ÚLTIMA HORA, 20 de março de 1957.
308
20 tatuagens afastam Waldemar da vida e de todas as mulheres. ÚLTIMA HORA, 20 de março de 1957.
103
Em reportagem publicada no ano seguinte n’O Jornal, o Almirante narra suas
desventuras em busca de estabelecer-se em um emprego. O subtítulo da reportagem atesta:
“Embora seja um bom rapaz, não consegue arranjar emprego”. Tendo atuado na Marinha de
Guerra, Waldemar estaria em sérias dificuldades para conseguir uma ocupação:

[...] simplesmente pelo fato de contar em seu corpo com nada menos do que
17 tatuagens. Waldemar, que já fez de tudo na vida, desde marinheiro até
boxeur profissional, está tentando agora conseguir emprego. Fez concurso
para a Guarda-vidas, soldado da Polícia Militar, Guarda Civil e Noturna, mas
as tatuagens impedem que ele seja aceito em uma dessas corporações. 309

A matéria, cuja informação do número de tatuagens de Waldemar oscila – ora são mais
de vinte, ora são dezessete – informa ainda que Waldemar procurou, sem sucesso, por médicos
que pudessem remover suas tatuagens, dado o custo social que elas lhe impunham. “No próprio
Hospital Central da Marinha lhe declararam que seria possível retirar as tatuagens, ficando,
porém, em seu lugar cicatrizes ainda mais feias. Diante disto, Waldemar preferiu deixar as
tatuagens, embora continue em dificuldades para arranjar uma colocação.” Além de camelô,
Waldemar foi servente de pedreiro, ajudante de caminhão, pescador, e zelador no Clube de
Regatas Flamengo, onde treinou boxe, tentando carreira no esporte. Suas tentativas de firmar-
se em uma ocupação duravam pouco, pois segundo o periódico “as tatuagens lhe apontavam
como mau elemento”. 310
Waldemar chegou a buscar uma chance no cinema. Procurando utilizar a tatuagem a seu
favor, ele teria feito:

[...] pequenas pontas em “Mãos Sangrentas”, “Carnaval em Caxias” e


“Contrabando”. Neste último filme, aliás, fez papel de homem mau,
justamente porque possui o corpo todo tatuado. Mais recentemente fez uma
ponta em “O Homem de Sputnik” e acredita que poderá conseguir novos
papéis, já que, aparecendo como elemento desqualificado nas telas, pode se
valer de suas tatuagens. Na vida real, porém, diz Waldemar ser um homem
pacato e trabalhador e nunca ter tido encrenca de espécie alguma com as
autoridades policiais. 311

Além das dificuldades com as forças policias e com a colocação profissional, a vida
amorosa de Waldemar sofreu os efeitos da estigmatização da tatuagem. Em uma de suas

309
20 tatuagens afastam Waldemar da vida e de todas as mulheres. ÚLTIMA HORA, 20 de março de 1957.
310
Tatuagens por todo o corpo prejudicam vida de jovem. O JORNAL, 03 de dezembro de 1958.
311
Tatuagens por todo o corpo prejudicam vida de jovem. O JORNAL, 03 de dezembro de 1958.
104
viagens, Waldemar conheceu Margarida, em Porto Alegre. Tudo corria bem entre o casal até
que ela o convidou para um passeio na praia:

Qual não foi sua surpresa quando “Almirante” tirou a camisa, deixando à
mostra suas tatuagens, as marcas de sua vida. A garota, como não podia deixar
de ser, lançou um olhar de desdém e o abandonou ali mesmo. “Isso eu
desconhecia. Você é todo tatuado, que coisa horrível”. Conta “Almirante” que
isto lhe aconteceu por mais de uma vez. Deixando escapar um largo sorriso,
comenta: “as garotas não me querem, pra que tentar!”. 312

Casos como o de Waldemar devem ter sido comuns, e as múltiplas forças que atuaram
em sua estigmatização – a repressão policial, a dificuldade de colocação profissional, o
isolamento sentimental – não parecem ter sido exclusividade de seu drama pessoal. Afinal,
disciplinar o corpo das classes pobres – constante ameaça à ordem burguesa – foi o objetivo
maior do adestramento que se procurou exercer sobre suas práticas corporais. A tatuagem
sobreviveu nos corpos pobres durante toda a primeira metade do século XX, demonstrando a
resistência silenciosa das camadas populares na preservação de suas práticas culturais, a
despeito das investidas disciplinares contra elas dispostas.
Essa estigmatização, contudo, é parte das estratégias complexas que não se limitaram
ao corpo, mas procuraram instituir um discurso disciplinar também sobre a alma dos
trabalhadores. Assim, à noção de classes perigosas se associou ainda outra, também
emblemática da representação que as elites faziam das classes pobres e dos sujeitos tatuados: a
noção de atraso moral, presente nos discursos sobre a tatuagem no período.

2.3 O ATRASO MORAL: A TATUAGEM E A DISCIPLINA DA ALMA


O empreendimento de modernização burguesa diz respeito a muito mais do que as
reformas urbanas empreendidas em centros como Rio de Janeiro e São Paulo. Importava
disciplinar o trabalhador em sua totalidade, controlar minuciosamente sua vida. Ao tratar as
transformações urbanas pelas quais passou São Paulo entre os séculos XIX e XX, Oliveira
Sobrinho afirma:

Nos padrões da modernidade e suas contradições, brutal violência,


desigualdade e intolerância, também existe uma ordem, tanto do ponto de vista
econômico, social, como político. É a ordem burguesa em formação e o
incipiente capitalismo industrial e financeiro. Esses valores e tradições,
“modernos” na forma, mas “antigos” em conteúdo, podem ser estabelecidos

312
20 tatuagens afastam Waldemar da vida e de todas as mulheres. ÚLTIMA HORA, 20 de março de 1957.
105
numa estética, mas adaptados às condições concretas do tempo e espaço de
cada país e cultura no Ocidente. Um processo massivo, de vigilância constante
do modo de vida dos trabalhadores. 313

O processo de vigilância permanente do modo de vida dos trabalhadores diz respeito ao


que Foucault define como função da disciplina: tornar os corpos dóceis, tanto mais
economicamente produtivos quanto politicamente submetidos. 314 Isso significa que é preciso
mais do que submetê-lo a uma jornada laboral exploratória. Sua dominação completa inclui
ainda a restrição dos usos que o trabalhador pode fazer do próprio corpo. Daí a importância
dedicada pela burguesia no investimento discursivo e repressivo contra a instrumentalização
deliberada do corpo da classe trabalhadora, no caso de minha análise, especialmente sua
modificação. Um corpo modificado afronta a ordem, sugere o inconveniente da autonomia.
Disso também parece decorrer o investimento contra a tatuagem, prática tradicional das classes
pobres durante a primeira metade do século XX. Para tanto, contra a ela constantemente
associou-se, para além das noções de criminalidade e ociosidade, a ideia do atraso moral.
A modernização foi sistematicamente associada à ideia de progresso. Essa noção
carrega um ímpeto intrinsecamente civilizatório. Por oposição, aquilo que se encontrava em
desacordo com a modernidade idealizada pela burguesia era visto como atraso. Definitivamente
era o caso da tatuagem. E para construir esse discurso, recorreu-se constantemente à noção do
primitivismo inerente ao ato de se tatuar.
Assim, do mesmo modo que os estigmas da criminalidade e ociosidade foram
instrumentalizados para caracterizar o tatuado como ameaça permanente, outra noção se juntou
a essas: a ideia de primitivismo ajudaria a forjar a noção de atraso moral.
Que a tatuagem seja uma prática antiquíssima, encontrada em todos os continentes
habitados pelos seres humanos, em inúmeras sociedades tradicionais, e seus indícios remontem
a milhares de anos, não restam dúvidas. 315 Contudo, compreender a maneira como esse fato foi
operacionalizado nos discursos, bem como seus efeitos, auxilia na compreensão do significado
investido sobre a tatuagem em determinado contexto.

313
OLIVEIRA SOBRINHO, A. São Paulo e a ideologia higienista entre os séculos XIX e XX, p. 222, grifo nosso.
314
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 135.
315
GILBERT, S. Tattoo History, p. 11-18.
106
Se a juventude de classe média após a década de 1960 por vezes passaria a recorrer,
mundo afora, a um discurso laudatório de determinadas práticas culturais tradicionais316, na
primeira metade do século XX, o discurso predominante sobre essas práticas era
significativamente diferente. Se os valores defendidos eram os da modernidade, do progresso,
da transformação vertiginosa da sociedade via industrialização e consumo do novo – vide o
efeito provocado por invenções como o automóvel, a maquiagem, o telefone e o cinema, não
apenas na economia ou na paisagem urbana, mas sobretudo nas formas de sociabilidade e na
apresentação e representação de si; por oposição, aquelas práticas que remetiam às sociedades
tradicionais e à cultura popular deveriam ser expurgadas, ou quando muito, acantonadas nos
guetos para os quais foram empurradas as classes populares.
A noção de primitivismo foi reivindicada durante toda a primeira metade do século para
forjar uma imagem da tatuagem como relacionada ao atraso, ressaltando o descompasso entre
as classes populares e a burguesia, esta sim, bem-assentada no trem da história e pronta para
seguir guiada pela locomotiva do progresso econômico que a Revolução Industrial lhes
destinara. Neste projeto totalizante, o corpo ocupará um lugar central nos discursos e práticas:
o locus da disciplina – e da resistência.
Assim, cotidianamente, as noções de corporalidade, de beleza, de moda e de elegância
foram sendo instituídas também por meio de uma dualidade entre progresso e atraso. Estar
atento às tendências parisienses era diametralmente oposto à adoção de práticas tidas como
primitivas:

Os povos selvagens compreendem a beleza lá a seu modo. E esse modo de


compreendê-la é totalmente diferente do modo por que a vêm os povos
civilizados. Para muitos povos selvagens, ou melhor, para todos eles, a beleza
está nas tatuagens e nas deformações. Isso para o homem civilizado é
considerado horroroso[...] as tribos, à proporção que vão se civilizando vão
abandonando as deformações do rosto e ficando apenas com a tatuagem, que
para elas consistem em traços impressionantes de beleza. Mesmo as tribos
adiantadas usaram a tatuagem facial. Basta citar os Incas no Peru. Quando os
espanhóis chegaram ao Peru já os naturais daquele país eram um povo
adiantado, mas eram tatuados e tatuados no rosto. 317

316
Exemplos disso são movimentos como os hippies e suas aproximações de práticas tradicionais orientais, além
do movimento sugestivamente denominado modern primitives, que liderado por Fakir Musafar propôs novos usos
do corpo a partir da década de 1960. PIRES, B. O corpo como suporte da arte, p. 101.
317
Belezas Selvagens. O TICO-TICO, 1920.
107
O título da matéria, Belezas Selvagens, é sugestivo da instrumentalização da noção de
primitivismo. Veiculado na revista infanto-juvenil O Tico-Tico, lançada em 1905 como
suplemento semanal do jornal O Malho318, a narrativa não hesita em dicotomizar civilizados e
selvagens, incluindo a tatuagem – sobretudo no rosto, tabu permanente em nossa sociedade –
entre as práticas dos sujeitos atrasados. Ao afirmar a contingente noção de beleza ocidental,
seu outro tinha de ser o incivilizado, o selvagem. De modo semelhante, a revista Eu Sei de Tudo
publicava em 1913: “Quer seja executada grosseiramente, ou artisticamente, a tatuagem é
manifestação de um estado inferior. Por isso é que se encontra senão entre os povos de
civilização rudimentar”.319
Grassam reproduções dessa narrativa nos jornais e revistas durante a primeira metade
do século XX. A razão de ser da tatuagem, para esses discursos, era a vaidade. O sujeito tatuado
era a representação da inferioridade moral, da vaidade e do apego ao adorno corporal que se
associavam aos povos tradicionais:

Atualmente os povos selvagens, alguns dos povos asiáticos e africanos, as


mulheres transviadas dos países semicivilizados, os marítimos e os criminosos
empregam a tatuagem, fazendo marcar nos braços, peito e em outras partes do
corpo, à ponta de agulha e tintas especiais, símbolos que representam a
religião que professam, os seus sentimentos pela pátria e inscrições diversas,
ocupando, porém, em primeiro lugar o amor, provavelmente por vaidade
levada ao máximo. 320

Nota-se um discurso de gradação entre países civilizados, semicivilizados e selvagens.


Os semicivilizados parecem ser, na narrativa presente no Jornal do Brasil, aquelas sociedades
que, embora inseridas na lógica desenvolvimentista que influenciaria as disposições
superestruturais das sociedades modernas, mantinham práticas detestáveis e atrasadas, como a
tatuagem.
Em texto que ocupa uma página inteira da edição de 25 de janeiro de 1936, O Malho
decidiu que a tatuagem era o alvo da vez para sua propagandeada bigorna. A noção de atraso,
do velho, de indesejável permanência é perceptível no texto de Elysio de Carvalho – jornalista,
técnico de identificação e professor-diretor da Escola de Polícia do Rio de Janeiro – publicado
post-mortem, ou republicado, como parece ter sido comum aos jornais da época.321

318
ALMEIDA, E. Um Tico para formar adultos, p. 66.
319
EU SEI DE TUDO, 1913.
320
Um desenhista da epiderme humana, JORNAL DO BRASIL, 19 de março de 1926.
321
Encontrei uma série de textos que aparecem parafraseados ou integralmente reproduzidos em jornais ou edições
diferentes, como a matéria Costumes dos Bárbaros, publicada em O TICO-TICO, n/a e no LEITURA PARA TODOS, 1913.
108
Imagem 8: Reportagem A Tatuagem, de Elysio de Carvalho

Fonte: O Malho, 25 de janeiro de 1936

109
Em um discurso ao modo lombrosiano – Lombroso chegaria a associar a tendência
criminosa dos delinquentes à botânica e à criminalidade na natureza, entre plantas e animais 322
–, Elysio de Carvalho compara o sujeito tatuado no corpo social aos órgãos inúteis e anormais
encontrados no corpo humano:

O tatuado é um testemunho dos tempos desaparecidos, um representante da


selvageria passada, que é para o corpo social o que são para o corpo humano
esses órgãos rudimentares, inúteis, anormais, que que muitas vezes descobre
o anatomista e representam o mesmo papel que esses velhos muros e antigos
monumentos que dizem a história da cidade. Não há mister recorrer ao
atavismo para explicar o motivo psicológico da tatuagem. A tatuagem
permanece através do tempo porque são eternos os sentimentos que a
inspiram: a paixão ao adorno e a vaidade. 323

Novamente é operacionalizada no discurso a noção de vaidade, pecado proibido às


classes populares, uma vez que denunciavam a tendência aos prazeres do consumo que
deveriam pertencer exclusivamente à elite – aqui cabe a analogia entre a boa ociosidade e a má
ociosidade.324 Tatuar-se era tido como vaidade primitiva, prazer selvagem em inscrever
indelevelmente na carne sua experiência, o avesso da moda moderna que deveria renovar-se
em intermináveis ciclos de consumo.
Demorariam décadas até que a tatuagem se tornasse um objeto de consumo
relativamente legítimo. Persistiria, contudo, sobretudo durante a primeira metade do século XX,
a associação a uma indesejável presença da “selvageria passada”, o elo incômodo entre a
sociedade moderna, ansiosa pelo futuro; e as sociedades tradicionais, representação de um
passado que se pretendia abandonar ou negar.
Outra matéria, publicada na revista Eu Sei de Tudo, afirma em tom evolucionista que:

[...] segundo os antropologistas, a idade da pedra era já uma etapa da


civilização, um grau na evolução humana. [...] Dir-se-ia que o destino
conservou inalteráveis esses grupos de homens primitivos para que tenhamos
uma perfeita compreensão dos vários períodos que a humanidade atravessou
antes de chegar ao que é hoje. 325

O sugestivo título: No mais baixo degrau da escala, dá o tom da reportagem. Entre as


ilustrações presentes na matéria, uma fotografia de um processo de tatuagem em um nativo

322
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 27-28.
323
CARVALHO, E. A tatuagem. O MALHO, 25 de janeiro de 1936.
324
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 75.
325
No mais baixo degrau da escala. EU SEI DE TUDO, abril de 1933.
110
australiano, seguida da legenda “a cruel operação de tatuagem a que se submetem os
australianos” sugere a analgesia – a insensibilidade à dor –, indício de inferioridade moral que
segundo Lombroso era inerente aos criminosos e selvagens. 326
Imagem 9: Tatuagem entre os povos nativos

Fonte: Eu Sei De Tudo, 11 de abril de 1933

Em 1937, a mesma revista recorreria, novamente, à noção civilizatória de atraso e


afirmaria que “o caso é que, há muitos anos especialmente em algumas raças e determinadas
profissões, a tatuagem é muito frequente. Entre os povos primitivos ou retardados – como os
indianos – a tatuagem é uma necessidade, para distinguir as castas; entre os civilizados, muitos
se fazem tatuar por espírito de imitação ou vaidade”. 327
Anos antes, em 1920, a mesma revista, que se apresentava como scientífica, publicou a
matéria A raça negra: seus caracteres. Eivada de um discurso biodeterminista, a Eu Sei de

326
LOMBROSO, C. O homem delinquente, p. 36
327
EU SEI DE TUDO, abril de 1937, grifo nosso.
111
Tudo descrevia os negros como fisicamente desenvolvidos e superiores ao europeu “em todo
trabalho que dependa somente de músculos”. Reproduzindo as teorias pseudocientíficas que
gozavam do estatuto de legitimidade à época, reafirma a insensibilidade à dor proposta por
Lombroso: “A raça negra tem o sistema nervoso pouco vibrátil e (como a raça amarela) é menos
sensível às dores físicas do que a europeia: os indivíduos dessa raça submetem-se facilmente a
operações cirúrgicas em que um europeu, mesmo anestesiado, falece por esgotamento
nervoso”, e complementa, relacionando à cultura negra – incluindo a tatuagem – ao
primitivismo e à crueldade, produto de uma suposta irracionalidade que seria característica dos
povos menos desenvolvidos:

[...] além disso, quase todos consideram indispensável para sua elegância
algumas tatuagens ou escarificações (marcas de cicatrizes). A tatuagem é feita
por meio de incisões ou agulhadas as quais esfregam uma tintura qualquer, ou
mais vulgarmente o carvão. Porém, mais comum ainda entre os africanos é o
ornato do corpo por meio de escarificações. [...]Os costumes entre os negros
africanos são dos mais primitivos baseando-se, porém, nos princípios do
patriarcado, que lhes ficaram dos tempos das invasões israelitas, árabes e
egípcias. [...]Em estado normal são dotados de bom coração e até carinhosos;
excitados por uma paixão ou pelo álcool, são capazes de crueldades
infernais. 328

O conjunto desses enunciados aponta para uma questão fundamental se quisermos


compreender a forja do significado da tatuagem na primeira metade do século XX: o universo
ideológico das classes dominantes é permeado pela noção evolucionista que as opunha às
classes pobres. Como aponta Eric Hobsbawm, ao analisar a autopercepção da burguesia
europeia da segunda metade do século XIX, período em que se inicia a Belle Époque na França,
imitada no Brasil República: “o burguês era, senão de uma espécie diferente, pelo menos
membro de uma raça superior, um nível mais alto na evolução humana, diferente dos níveis
mais baixos, que permaneciam no equivalente cultural ou histórico da infância, ou, no máximo,
adolescência”.329
A hierarquização social se liga diretamente à questão da moralidade, como aponta o
mesmo autor ao afirmar que “o darwinismo, social ou de outro tipo, não era apenas uma ciência,
mas também uma ideologia, mesmo antes de ser formulada. Ser burguês não era apenas ser

328
A raça negra, seus caracteres. EU SEI DE TUDO, 1920.
329
HOBSBAWM, E. A era do capital, p. 374.
112
superior, mas implicava também ter demonstrado as qualidades morais equivalentes às antigas
qualidades puritanas”. 330
Ou seja, formulou-se a noção burguesa de progresso intrinsecamente relacionada não
apenas à noção de ordem, mas também à ideia de hierarquização social da moral. Nas palavras
de Hobsbawm, ser burguês significava ser superior, exercer dominação sobre os grupos
inferiores. A discussão burguesa não era se as classes pobres eram inferiores ou não – isso lhes
era certo – mas sim a natureza dessa inferioridade. Embora as noções burguesas de mérito e
fracasso individual tenham tido de se fundir a uma estrutura patrimonialista no Brasil, é possível
notar no discurso midiático sobre as classes pobres a imposição do que Hobsbawm chamou de
ética tradicional burguesa: a de que o fracasso econômico era produto de fraqueza moral. 331 O
darwinismo social, portanto, influenciará definitivamente a representação que as elites fizeram
das classes pobres.
O tom evolucionista parece constante nos discursos do período, e a associação entre a
tatuagem e o primitivismo é recorrente. Termos como primitivo, rudimentar, civilização,
selvagem, repugnante exotismo e tipos inferiores da raça humana permeiam o texto publicado
em 1914 na revista Leitura Para Todos, o qual vale a leitura de excerto mais volumoso, pela
profundidade com que se pode compreender o universo ideológico do periódico e seu público
leitor:

Dos povos primitivos que ainda hoje podem estudar-se sobre a terra, aqueles que
apenas têm rudimentos da arte, que não conhecem a agricultura e somente vivem da
pesca e da caça; também os que andam e vivem vida errante, como os australianos, e
começam agora a ter uma ideia de sociedade e de família, todos eles se preocupam de
modo inacreditável em embelezar-se com colares e penas ou com as decorações
epidérmicas dos tatuados, pintando a pele a linhas coloridas ou fazendo nela terríveis
cicatrizes, que são o encanto e a admiração de seus semelhantes. Esse costume geral
dos primitivos existentes, de se interessarem tanto pelo seu tocado, era também
seguido pelos primitivos pré-históricos nas raças que, em tempos remotos povoaram
as terras da Europa, do Oriente e do Egito. [...]Para as nossas raças brancas, essa
decoração de tatuagem não é tão necessária, porque na pele do rosto há já certas
variantes, certos tons rosados que o homem, à medida que vai se civilizando, encontra
mais gosto nessas variantes e nesses tons do que no simples contraste claro e escuro
da tatuagem. [...]Todavia é curioso como até no seio de nossa civilização ocidental,
no próprio cérebro da Europa, como chamam Paris, existem ainda certos tipos
inferiores como o souteneur e os apaches, que sentem a mesma necessidade de um
contraste brusco de claro e escuro em sua pele, como a sente o mais primitivo
selvagem que ainda existe hoje na terra. Um fundo brutal de repugnante exotismo
oculta-se também no homem branco e por mais que, de dia para dia, com novos gozos

330
HOBSBAWM, E. A era do capital, p. 372.
331
HOBSBAWM, E. A era do capital, p. 373.
113
espirituais, vamos esquecendo esta cruel exigência da espécie, amiúde acontece
revestir formas selvagens e renovar entre nós as táticas elementares que emprega com
os tipos inferiores da espécie humana. [...]As gentes primitivas de todos os tempos
compraziam-se nas mesmas deformações e alterações da natureza mais que nas formas
regulares da espécie e como em todos nós vibra a primitiva efetividade pronta a
reviver, por mais encoberta que se ache por outras noções mais elevadas, não é de
estranhar que no próprio seio de nossa civilização contemporânea, se vejam formas de
decoração que pareciam exclusivas dos povos de cultura rudimentar. [...]Os
missionários têm penetrado entre esses homens para pregar-lhes o evangelho e com
seu ensino têm contribuído um pouco para acabar com as práticas selvagens das
decorações de cicatrizes e pinturas. 332

A tatuagem é descrita como atavismo dos povos atrasados, de práticas rudimentares,


que há pouco teriam tido contato com o modo de ser legítimo que a civilização e a evangelização
missionária lhes imporiam. A tatuagem seria desnecessária “para nossas raças brancas” –
ignorando, propositadamente, o fato de que o Brasil nunca foi um país branco. Para a revista,
embranquecimento e civilização eram sinônimos, discurso notável na associação entre a
desnecessidade da tatuagem para o sujeito branco que apreciaria mais a variação natural de suas
tonalidades “à medida que vai se civilizando”. Entre os brancos ditos civilizados, sobretudo na
gloriosa Paris, epicentro da moda e dos modismos copiados à exaustão por uma elite tropical
burlesca e deslocada, a presença da tatuagem aparecia como sinal do “repugnante exotismo”
que tinha a ver com a selvageria dos “tipos inferiores da espécie humana”, que embora vivessem
nas modernas cidades mantinham a odiosa prática.
Associam-se, assim, neste discurso, diversos elementos a fim de forjar a noção do atraso
moral inerente aos sujeitos tatuados, fossem eles os ditos primitivos, presos a formas
elementares de vida que o progresso tinha a missão de redimir; fossem a fatia dos perdidos,
inadequados e anormais que compunham a escória da sociedade dita civilizada, que urgiam ser
disciplinados de modo a se inserirem no sistema produtivo e virtuoso que margeavam.
A construção da noção de atraso moral tem sua razão de ser naquele universo
ideológico, e para compreendê-la retornemos à Chalhoub. Como aponta o autor, o dualismo
entre o mundo do trabalho e o da ociosidade é parte integrante do discurso das classes
dominantes brasileiras no início do século XX, constituinte mesmo de sua leitura de mundo.
Segundo Chalhoub, um maniqueísmo opunha o mundo das classes perigosas, “amoral, vadio e
caótico” ao mundo virtuoso da moral, pertencente às classes dominantes. 333

332
A arte das cicatrizes. LEITURA PARA TODOS, outubro de 1914.
333
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 78-79.
114
Para as elites há, portanto, uma correspondência simétrica entre a hierarquia ideológica
da moralidade e a hierarquia econômica da estrutura social. Deste modo, “cria-se um sistema
segundo o qual o indivíduo mais bem situado na hierarquia social é mais dedicado ao trabalho,
mais moral e ordeiro do que o indivíduo que o precede. Ao contrário, quanto maior a pobreza
do indivíduo, maior sua repulsa ao trabalho e menor a sua moralidade e seu apego à ordem”. 334
A ideia de hierarquização da moralidade permeará o discurso midiático e científico
sobre os tatuados. Mesmo João do Rio, escritor famoso por sua sensibilidade às questões
cotidianas da gente pobre do Rio de Janeiro, a deixa transparecer ao descrever os tatuados
cariocas na primeira década do século XX:

Andei com o Madruga três longos meses pelos meios mais primitivos, entre
os atrasados morais, e nesses atrasados a camada que trabalha braçalmente,
os carroceiros, os carregadores, os filhos dos carroceiros deixaram-se tatuar
porque era bonito, e são no fundo incapazes de ir parar na cadeia por qualquer
crime. A outra, a perdida, a maior, o oceano malandragem e da prostituição
é que me proporcionou o ensejo de estudar ao ar livre o que se pode estudar
na abafada atmosfera das prisões. A tatuagem tem nesse meio a significação
do amor, do desprezo, do amuleto, posse, do preservativo, das ideias
patrióticas do indivíduo, da sua qualidade primordial. 335

A leitura que João do Rio faz das camadas pobres sustenta a proposta de Chalhoub, de
que as elites associavam intrinsicamente pobreza e atraso moral. João do Rio sugere que entre
os atrasados morais, circundantes do que ele chama de meios primitivos, encontram-se
amalgamados os trabalhadores pobres e o “oceano da malandragem e prostituição”. Não há,
para o autor, distinção: ambos são produtos do atraso moral. Ao lidar com a noção de atraso é
fundamental a pergunta: atrasados em relação a quê?
Ao padrão burguês de moralidade que se pretendia estabelecer na República,
especialmente em um contexto sociocultural em que as cidades como Rio de Janeiro e São
Paulo desejavam modernizar-se rápida e profundamente, a fim de atrair o capital
internacional. 336
Se o projeto de modernização burguesa se baseava no ideal de progresso, o que dele
destoasse, era atraso. Essa noção, aliás, não parece operar distinção exclusiva das elites, mas
também entre as classes pobres, no intuito de diferenciar o que Chalhoub chamou de bons
trabalhadores. Ou seja, o que está em jogo é um projeto disciplinar para as classes pobres que

334
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 78-79.
335
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 19.
336
SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 29.
115
envolve a dominação da totalidade de suas vidas, para além das relações produtivas. De modo
semelhante à Chalhoub, Hobsbawm afirma que o interesse da moralidade burguesa residia
menos em determinar padrões de corporalidade, comportamento e sexualidade para as elites do
que em “distinguir os respeitáveis da massa trabalhadora bêbada e licenciosa”. 337

[...] o movimento pela total abstinência do álcool, que floresceu nessa época
nos países protestantes e puritanos, ilustra a questão de modo claro. Não era
efetivamente um movimento para abolir ou mesmo para limitar o alcoolismo
de massa, mas para definir e separar a classe dos indivíduos que tivessem
demonstrado, pela força pessoal de seu caráter, que eram distintos dos pobres
não respeitáveis. O puritanismo sexual preenchia a mesma função. 338

No Brasil, o discurso sobre a tatuagem ocupou precisamente essa função: disciplinar os


corpos das classes pobres. Essa noção aparece com clareza na reportagem A tatuagem, assinada
por Elysio de Carvalho, anteriormente citada. Nela, o autor procura estabelecer uma relação de
continuidade do que ele julga necessidades psicológicas primitivas, tanto nos povos
tradicionais quanto em sua indesejada permanência entre membros da camada
hierarquicamente inferior dos povos ditos civilizados.

A tatuagem remonta à mais recuada antiguidade, e a sua prática encontra-se


nas nações civilizadas como nos povos mais selvagens. Os mercenários, os
velhos soldados da Antioquia, os príncipes asiáticos dos tempos da
infortunada Carthago, tinham os braços e peitos cobertos inteiramente de
símbolos múltiplos que se confundiam com as cicatrizes de guerra, e os povos
da Groelândia, da Ilha Formosa, da Guiné, da Nova Zelândia, e outros, assim
como as classes populares das nações civilizadas, os criminosos, vagabundos
e prostitutas contemporâneos possuem também, o corpo incrustado dos mais
grosseiros ornamentos. [...] as tatuagens são o remanescente desse tempo
perdido, em que a pele humana bastava às necessidades psicológicas da
comunicação entre os homens, hoje alcançados pelos fardamentos militares,
diplomáticos, e blusas, librés, condecorações gravatas, bandeiras, selos,
divisas, anúncios, reclamos, telas, mármore, impressos. Sem mais razão de ser
continua nos primitivos, nos inferiores, nos degenerados, nos ociosos,
traduzindo as ideias, os sentimentos, os impulsos, a inércia, senão
simplesmente, a imitação d’esses simples; por isso divulgada entre o povo,
marinheiros, prostitutas, entretém os longos ócios das viagens e dos
cárceres. 339

De maneira enfática o autor separa os povos civilizados dos primitivos, apontando que,
nos primeiros, a tatuagem persistia entre as classes populares, criminosos, vagabundos e

337
HOBSBAWM, E. A era do capital, p. 373.
338
HOBSBAWM, E. A era do capital, p. 357.
339
CARVALHO, E. A tatuagem. O MALHO, 25 de janeiro de 1936.
116
prostitutas, isto é, entre os sujeitos tidos como inferiores pela moral burguesa. A noção de
moralização foi recorrente nos discursos midiáticos e esteve diretamente associada à
hierarquização social.
Quando os agentes da Polícia Militar prenderam o tatuador e a mulher sem nome que se
tatuava na rua Pereira Franco, anteriormente apresentados, o Jornal do Brasil foi enfático em
afirmar que a expulsão dos sujeitos indesejados da região central era parte de uma “campanha
moralizadora das autoridades policiais”. 340 Essa campanha não foi restrita à ação policial.
Disseminou-se, no corpo social, na imprensa e nas microrrelações, a ideia amalgamada de
periculosidade e atraso moral das classes pobres. Sobretudo na imprensa, encontrei fartas
evidências do discurso que (con)fundia criminalidade, ócio, vadiagem, primitivismo e atraso
moral.
Elysio de Carvalho enfatiza essa associação ao afirmar que:

Os tatuados procedem geralmente dos meios sociais inferiores. O indivíduo


tatuado pertence, entre nós, à uma classe inferior, estranha aos progressos da
civilização, e por conseguinte possui ainda o instinto dos primitivos. A
tatuagem aparece com mais frequência nos indivíduos analfabetos e
supersticiosos. A tatuagem é mais frequente nos indivíduos que têm um gênero
de vida elementar, monótono, animal e nas profissões mais grosseiras. De
fato, entre os marítimos e pedreiros ela é mais frequente que entre os
tipógrafos e os barbeiros, os alfaiates e mecânicos. As classes altas em geral
não se tatuam. Os estudantes, os professores. Os proprietários, os capitalistas
examinados por Ferri, não eram tatuados. Ao contrário, em certas profissões
rudes como nos soldados, nos marítimos e nos carroceiros, o uso é
constante. 341

Carvalho afirma que os tatuados são pertencentes ao que ele chama de meio social
inferior. Essa hierarquização propõe uma noção de moralidade que ultrapassa o ajustamento às
leis, estendendo-se à toda a classe pobre. 342 Pertencer aos meios inferiores não era enveredar-
se pelo caminho da criminalidade. Era, antes de tudo, ser pobre. Para a burguesia, os pobres
foram – e cabe perguntar em que medida ainda são – a classe inferior, estranha aos progressos
da civilização. Ao contrário dos proprietários e capitalistas, e mesmo daqueles profissionais
cuja atuação supunha-se demandar maior expertise, como professores, tipógrafos, barbeiros,

340
Um desenhista da epiderme humana, JORNAL DO BRASIL, 19 de março de 1926.
341
CARVALHO, E. A tatuagem. O MALHO, 25 de janeiro de 1936.
342
Afinal, como já demonstrou Chalhoub, não foram apenas os “indivíduos que já haviam abertamente escolhido
uma estratégia de sobrevivência que os colocava à margem da lei” a quem as elites brasileiras denominaram classes
perigosas. CHALHOUB, S. Cidade Febril, p. 20.
117
alfaiates e mecânicos; Carvalho se refere às profissões rudes, como marítimos, pedreiros,
soldados e carroceiros como os grosseiros e animais praticantes da tatuagem.
A associação entre criminalidade, primitivismo, atraso e pobreza aparece
constantemente no discurso das elites, instrumentalizados na construção da noção de
moralidade – ou da falta dela – dos tatuados pobres.

A tatuagem é frequente no Rio de Janeiro. Nas classes populares, nos meios


da mala vita e entre os criminosos principalmente é muito usada. Os
marinheiros, estivadores, vendedores ambulantes, os vadios da Saúde, as
rufias da rua de S. Jorge e adjacências, os vagabundos e gatunos da cidade,
tatuam-se sempre. A porcentagem dos tatuados vem a ser enorme. 343

Na matéria Presídio do Carandiru, veiculada no Correio Paulistano, Honório de Sylos,


assim como Elysio Carvalho, refaz um percurso histórico da tatuagem desde os “tempos
remotos” para afirmar que “chegada até os nossos dias, continua sendo usada quase
exclusivamente nas classes onde reinam a miséria, a vadiagem e o crime”. 344
João do Rio reforça essa associação ao afirmar que:

Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada — tatuam-se marinheiros, e em


alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-
se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses
chegados da aldeia com a pele sem mancha, que influência do meio obriga a
incrustar no braço coroas do seu país. 345

O que João do Rio chama de classe baixa englobaria “os vendedores ambulantes, os
operários, os soldados, os criminosos, os rufiões, as meretrizes”. 346
Meton de Alencar Neto e José Nava dedicam boa parte de sua obra Tatuagens e
Desenhos Cicatriciais a demonstrar, em tom cientificista, a tatuagem como um elemento da
degradação moral do indivíduo. Tendo produzido parte substancial de sua pesquisa a partir da
observação e catalogação de menores recolhidos no Serviço de Assistência ao Menor por
infrações ou vulnerabilidade social, os autores, embora afirmem que o conceito lombrosiano
“perdeu o sentido” na criminologia após a década de 1940, destacam na década de 1960 que “a

343
CARVALHO, E. A tatuagem. O MALHO, 25 de janeiro de 1936.
344
Tatuagem no Carandiru. CORREIO PAULISTANO, 05 de agosto de 1927.
345
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 19.
346
RIO, J. A tatuagem no Rio. KOSMOS, novembro de 1904.
118
cultura policial até hoje ainda se afina por este diapasão e a polícia confia nos estigmas de
degenerescência para identificar criminosos natos”. 347
É possível notar no discurso dos autores, a permanência da associação entre tatuagem,
criminalidade e pobreza. A diferença reside no instrumental utilizado por eles. Se a Escola
Positiva e as teorias de Lombroso perdem força na segunda metade do século, e o
biodeterminismo já não se afirma no meio científico com a mesma receptividade de outrora 348,
a crítica ao pensamento lombrosiano não significou sua aniquilação. O estudo de Nava e
Alencar Neto é exemplo disso. Como apontam os autores, “superou-se a interpretação médico-
legal, mas não se pode desprezar, nem diminuir, sua contribuição quanto à semiótica, à região
marcada, o número de tatuagens, etc.” 349
Mais do que isso, se a antropometria perdia espaço no discurso científico, a psicologia
e a psiquiatria gradativamente o ocupariam. Os médicos recorrem à psicopatologia para afirmar
a tatuagem entre presidiários como um processo “de regressão das sínteses éticas, na
degradação ou a assim chamada degenerescência”, que a ligaria ao que eles supõem ser um
gosto pelo sofrimento e “à necessidade de ser infeliz e vil”.350 A noção de moral é fundamental
no discurso desses médicos:

Impulsos e repulsas parecem resultar de moral estranha à nossa cultura, como


a do homem primitivo, isto é, movendo-se em prol da satisfação de
necessidades, com o respeito exclusivo ao que julga seu direito. Esta fase de
regressão degrada a moral, que desce ao nível infantil. Estaria, assim, o
renascimento da tatuagem relacionado ao processo de regressão da
personalidade que involui, atingida por condição degenerativa. 351

A tatuagem figurava nestes discursos como expressão de patologia psicológica, do


descompasso moral entre o tatuado e a sociedade moderna. Nava e Alencar Neto afirmam que
“tatuagens constituem, também, um sinal físico, um sintoma, no quadro da imaturidade
personal ou regressão, por degradação, ou retardamento do desenvolvimento social. O fato de
aparecerem cada vez menos, à medida que o homem evolui, civilizando-se, corrobora esta
impressão”.352

347
ALENCAR NETO, M; NAVA, J. Tatuagens e desenhos cicatriciais, p. 90.
348
FERLA, L. Feios, sujos e malvados sob medida, p. 383.
349
ALENCAR NETO, M; NAVA, J. Tatuagens e desenhos cicatriciais, p. 42.
350
ALENCAR NETO, M; NAVA, J. Tatuagens e desenhos cicatriciais, p. 43.
351
ALENCAR NETO, M; NAVA, J. Tatuagens e desenhos cicatriciais, p. 44-45.
352
ALENCAR NETO, M; NAVA, J. Tatuagens e desenhos cicatriciais, p. 47.
119
Sem desvincular-se totalmente de Lombroso, os autores afirmam que a moderna
corrente psicológica mantém a relação entre o marginal e o primitivo, sendo a tatuagem naquele
uma regressão ética, aproximando-se de grupos primitivos, dotados de uma moral distinta dos
civilizados. Assim, impulsos que domariam o homem primitivo, como a gula, a sexualidade
estéril, o sincretismo religioso, a produção artesanal de objetos e a “vaidade narcísica da
tatuagem” dominariam também o sujeito degenerado.353 Somava-se a isso, segundo os autores,
“a inibição e a falta de poder e de vontade para governar as emoções; os psicólogos denominam-
no amoralidade”. 354
Seguindo a pista dos autores e dos discursos analisados, é possível esboçar uma síntese
da formulação ideológica burguesa: o destino da sociedade moderna era o progresso, e o
caminho para tal era a racionalidade, expressa nas noções de desenvolvimento e de
cientificidade que sua episteme forjou. Para tanto, era fundamental o governo das vontades, das
paixões, das sexualidades e dos impulsos. Por oposição, aquilo que se relacionava ao desejo, ao
impulso, à tradição popular, à superstição e a crença, ao mundo dito primitivo, era apanágio dos
indivíduos inferiores, dos moralmente atrasados.
A confusão desses enunciados, a associação entre criminalidade, vadiagem, pobreza e
tatuagem foram a tônica do discurso midiático e científico sobre a tatuagem na primeira metade
do século XX. Não é por acaso que o discurso midiático confunde estes elementos. Há uma
espécie de coerência ideológica nessa associação. Para a burguesia, que pretendia forjar a ideia
de Brasil moderno – ligada ao progresso e à ordem, a partir de uma noção de modernização que
parece ter sido elaborada por meio de um profundo e contraditório sincretismo entre liberalismo
e conservadorismo –, nomear como meios inferiores o lugar social das classes pobres, em uma
sociedade hierarquizada, significava relegar ao andar de baixo tudo aquilo que se desejava
negar. Daí a elaboração da noção de atraso moral, produzida da indistinção deliberada entre
tatuagem, criminalidade, vadiagem e pobreza. O indivíduo tatuado, advindo de uma classe
inferior, dotado de um espírito primitivo, levado a se tatuar pelo mesmo espírito ocioso que
proliferava a vadiagem e produzia a pobreza, só poderia mesmo vicejar entre as classes pobres,
às quais faltavam as qualidades morais que sobejavam às elites.
Mas os sujeitos não são apenas produtos da objetivação discursiva. Entre imposições,
representações, repressões e relações de poder que procuraram forjar o significado da tatuagem

353
ALENCAR NETO, M; NAVA, J. Tatuagens e desenhos cicatriciais, p. 49.
354
ALENCAR NETO, M; NAVA, J. Tatuagens e desenhos cicatriciais, p. 44.
120
no período, havia também a resistência dos tatuados, suas afirmações, suas produções de si:
sua subjetivação.

121
CAPÍTULO 3

RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO DE SI: USOS DO CORPO TATUADO ENTRE AS


CLASSES POBRES

A tatuagem é a inviolabilidade do corpo e a história


das paixões. 355

O discurso predominante na imprensa durante a primeira metade do século XX


deslegitimava a tatuagem, prática social das classes pobres, como mera vaidade, produto da
ociosidade ou sinal de déficit moral. Contudo, o olhar atento para estas fontes evidencia mais
do que apenas os discursos estigmatizantes das elites burguesas: as intencionalidades e as
possibilidades de construção de si por parte dos sujeitos pobres. Dito de outro modo, sua
subjetivação.
O trecho final da reportagem publicada em 1912 pela revista Careta afirmava:

[...] quase sempre revelando nas inscrições e nos emblemas, na figura de um


Cristo crucificado e na imagem de um S. Jorge venerável, nos troféus e nas
invocações de amor, as ideias, os sentimentos e os impulsos da alma
rudemente apaixonada de nossa ralé social. Quase todos os malandros e fúfias
da rua S. Jorge e adjacências tinham como hábito tatuar as chagas de Cristo
nas mãos, crendo poder derrubar os inimigos com ela. 356

A cultura popular, comumente associada às classes pobres – especialmente se


reconhecermos a intenção de seu distanciamento ou negação por parte das camadas médias, à
medida ascendem socialmente e incorporaram práticas e comportamentos associados às classes
hierarquicamente superiores357 – sobrevive às investidas produzidas pelo projeto de
deslegitimação burguesa, que se utiliza fartamente de meios como a imprensa, na tentativa de
detenção da prerrogativa de impor o que é ou não cultura legítima, definindo quais são os
comportamentos e práticas aceitáveis ou reprováveis.
A despeito dessa investida, Sidney Chalhoub afirma que:

Na época havia uma cultura popular relativamente autônoma, vigorosa e


criativa na cidade e que, apesar de o projeto de sociedade das classes
dominantes cariocas querer se implantar de cima para baixo
independentemente da natureza da resposta social a este projeto, o fato é que

355
RIO, J. A tatuagem no Rio. KOSMOS, novembro de 1904.
356
SANCHES, S. A tatuagem dos criminosos. Careta, 02 de março de 1912, grifo nosso.
357
A exemplo disso, Pierre Bourdieu demonstra como o gosto por determinados estilos de arte, música e esportes,
longe de serem disposições naturais do sujeito, são socialmente construídas pela – e atuam como – elementos de
distinção de classe. BOURDIEU, P. A distinção, p. 9-17.
122
na prática política real estas classes dominantes não puderam escapar às
contingências impostas por uma classe trabalhadora que resistiu tenazmente à
tentativa de destruição de seus valores tradicionais. 358

Penso que essa afirmação seja uma das chaves para compreender como, não obstante o
esforço empreendido em sua estigmatização, a tatuagem sobreviveu entre as classes populares
durante todo o século XX, só adquirindo algum status descolado da função de estigma à medida
que se tornou prática das classes médias urbanas.
Ou seja, a cultura popular – e a prática da tatuagem é um de seus exemplos, na esteira
de outros como a capoeira, o samba, o funk, o curandeirismo, as medicinas alternativas, etc. –
é vigorosa o suficiente para sobreviver, certamente não de forma estática e cristalizada, às
investidas que visam sua deslegitimação ou mesmo sua extinção, pois é parte constituinte da
construção do significado existencial e da visão de mundo das classes populares. Elementos
como a fé, a superstição, os rituais e práticas de sociabilidade ou os sinais identitários
diacríticos, tendem a ser instrumentalizados pelos grupos sociais no cotidiano de sua
experiência, adquirindo um significado profundo e não facilmente destituível.
Para compreender essas experiências, é preciso deslocar o foco dos produtores dos
discursos institucionalizados e seus efeitos, e aproximá-lo dos sujeitos sobre os quais esses
discursos foram produzidos. Analiso, portanto, os tatuados da primeira metade do século XX,
intentando vislumbrar as sociabilidades, os afetos, os ideais políticos, a devoção e as
superstições das classes populares, expressas em suas tatuagens. Para tanto, importam menos
as intencionalidades dos enunciados produzidos sobre os tatuados e mais o que é possível
apreender de suas experiências, de suas possibilidades existência relativamente autônoma.

A tatuagem no Rio faz-se o mais variado estudo da crendice. Por ele se


reconstrói a vida amorosa e social de toda a classe humilde, a classe dos
ganhadores, dos viciados, das fúfias de porta aberta, cuja alegria e cujas dores
se desdobram no estreito espaço das alfurjas e das chombergas, cujas tragédias
de amor morrem nos cochicholos sem ar, numa praga que se faz de lágrimas.
A tatuagem é a inviolabilidade do corpo e a história das paixões. Esses riscos
nas peles dos homens e das mulheres dizem as suas aspirações, de suas horas
de ócio e a fantasia da sua arte e a crença na eternidade dos sentimentos – são
a exteriorização da alma de quem os traz. 359

358
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, p. 256.
359
RIO, J. A tatuagem no Rio. KOSMOS, novembro de 1904.
123
Associada às classes pobres, João do Rio descreve a tatuagem como prática corporal
pela qual as subjetividades dos sujeitos simples se expressam. Essa inviolabilidade do corpo –
paradoxal, pois que depende justamente de sua violação pela submissão às agulhas que lhe
perfuram a derme – parece advir do fato de que, depois de realizada, a marca é indelevelmente
incorporada à pele e à identidade do sujeito que a obtém, assegurando simbolicamente sua posse
permanente.

3.1 MARINHEIROS
Vislumbremos estes afetos e usos do corpo por meio da tatuagem naquele contexto, a
começar por aqueles a quem se atribui a introdução da tatuagem ocidentalizada no Brasil e em
diversas partes do mundo: os marinheiros.
Como aponta Silvana Jeha, ao analisar as fichas de detentos tatuados durante a primeira
metade do século XX, disponíveis no arquivo do Museu Penitenciário Paulista:

[...] dezenas de presos, marítimos ou não, tatuados antes de irem para a cadeia,
declaram que seus tatuadores eram marinheiros, embarcadiços ou estivadores.
Entre eles, muitos brasileiros de todas as partes, mas também espanhóis,
portugueses, ingleses, russos, estadunidenses, alemães, lituanos, italianos.
Outros tantos foram tatuados por marinheiros ou embarcadiços dentro da
cadeia. 360

Jeha acrescenta ainda que a maioria dos “tatuadores profissionais registrados na história
da tatuagem ocidental era composta de marujos ou atendia em áreas portuárias”. 361 Embora seja
discutível a consolidação da tatuagem profissional no Brasil antes do início da década de 1960,
é inegável a participação dos marinheiros na difusão da tatuagem no Brasil, seja como
tatuadores, seja como tatuados, bem como a importância da região portuária para a difusão da
prática no país. 362 João do Rio destaca que apenas na “Rua Barão de São Félix, perto do Arsenal
da Marinha, e nas ruelas da Saúde”, encontrou cerca de 30 marcadores, como os tatuadores
eram chamados no início do século XX. 363
Ao pesquisar a vida dos homens do mar no século XIX, Silvana Jeha aponta o Rio de
Janeiro como uma cidade-encruzilhada: “Cidade portuária, por isso, uma cidade de

360
Uma história da tatuagem no Brasil, p. 31.
JEHA, S.
361
Uma história da tatuagem no Brasil, p. 31.
JEHA, S.
362
Defendo que, no caso do Brasil, a disputa pela construção, delimitação e afirmação do status de profissional
ligada ao ofício de tatuador se desenvolve a partir da década de 1960. Antes disso, a profissão foi vista,
predominantemente, como prática ambulante. SOUZA, F. História da tatuagem no Brasil, p. 31.
363
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 18.
124
marinheiros. Porto mais importante do Atlântico Sul, o maior porto de café do planeta, escala
permanente para navios que seguiam rumo ao Pacífico e ao Índico”. 364 Nessa cidade-
encruzilhada, de ruas viajadas, pois próximas do mar, os marítimos eram sujeitos em um
entrelugar, errantes, cuja especificidade de sua ocupação – o constante ir e vir – produzia um
estilo de vida no qual o anseio por estar em terra firme geralmente acompanhava o desejo de
extravasar as necessidades sociais, afetivas e sexuais que a privação das longas viagens os
impunha.
Incluídos no grupo sobre o qual o estigma de classes perigosas se aplicava largamente,
os marítimos lidavam “o tempo todo com a corda bamba da contenção e a explosão de desejo.
A maioria atravessava a encruzilhada portuária e seguia a vida. Mas um grupo menor ficava
“prisioneiro da passagem”: mortos, condenados, deprimidos, alcoólatras e tantas outras
condições-limite.”365 Conforme Jeha:

Apesar de marginalizados, os marinheiros eram visíveis nas ruas da cidade e


figuravam frequentemente na seção “Polícia da Corte” dos jornais e nas seções
judiciárias: presos por brigas, porres, “andar fora de horas”, falar palavras
obscenas, portar armas proibidas e, eventualmente, por assassinar seus
colegas. [...] Entre outros aspectos, o noticiário contínuo dos delitos de
marujos contribuiu para uma imagem marginalizada desses trabalhadores do
mar, como em tantos outros lugares do mundo. 366

Junto com a suspeição permanente, a saudade de casa, o anseio em extravasar os desejos


sexuais e afetivos, a carência do álcool e a expectativa pelas noites de diversão, aportavam com
os marinheiros suas tatuagens, indeléveis impressões de sua jornada pelo mundo. E com elas,
suas histórias de vida.
Em 1932, O Malho publicou na coluna De Tudo Um Pouco, que trazia variedades sobre
o cinema, comportamento, uma nota curta e não assinada sobre a tatuagem, na qual afirmava
seu uso entre os marítimos:

Braços e peitos do povo de alto mar são marcados – ora com o retrato da noiva,
ora com a efígie de uma santa, ora com espadas, flores e outros símbolos que
eles respeitam sempre. A má sorte é afastada com figuras de tatuagem no
corpo da gente do povo; o mau olhado, por uma figurinha pouco maior que a
cabeça de um alfinete comum, presa à pulseira das moças elegantes. 367

364
JEHA, S. A cidade-encruzilhada, p. 78.
365
JEHA, S. A cidade-encruzilhada, p. 80.
366
JEHA, S. A cidade-encruzilhada, p. 79.
367
O MALHO. A tatuagem, 06 de agosto de 1932.
125
Amor, fé, saudade e uma série de outros sentimentos eram gravados na pele dos
marinheiros que por aqui aportaram. Um deles, E. Keilten, afirmou ao repórter do jornal A Noite
sobre o Cristo crucificado que ocupava quase toda a extensão de seu peito: “Ignora o senhor
que é o símbolo da fé? [...] Sou católico, e quando minha nau está ameaçada, levo a mão ao
peito. Faço minha prece, como bom católico e Deus ainda não me desamparou”. 368
Imagem 10: O peito tatuado de E. Keilten, vendo-se o crucifixo e outros desenhos

Fonte: A Noite, 28 de abril de 1925

Além dos sinais da fé cristã, Keilten ostentava ainda outros elementos comuns aos
homens do mar, como as duas andorinhas em cada lado da parte superior do tórax. Apesar dos
desencontros quando se trata de afirmar o significado 369 dos desenhos tatuados – o que é

368
A NOITE.
Lobos do mar, 28 de abril de 1925.
369
Me atenho aos discursos sobre a tatuagem e seus efeitos na objetivação dos sujeitos tatuados, bem como na
instrumentalização destas marcas na construção de sua subjetividade. Portanto, minha tese não se ocupa da análise
e catalogação dos desenhos tatuados, seus prováveis significados e variações. Antes, interessa-me compreender os
usos dessas marcas nas experiências de construção do sujeito tatuado, tanto por ele mesmo quanto pelo olhar do
outro. Embora um trabalho que explore esses significados possa contribuir para o estudo do tema, lançando
inclusive um olhar para suas transformações em determinados contextos sócio-históricos, não é o foco de minha
pesquisa nesse momento.
126
perfeitamente compreensível, uma vez que determinado signo pode adquirir significados
diversos conforme sua instrumentalização – costuma-se afirmar, na tradição dos marítimos, que
a cada 5 mil milhas náuticas370 navegadas uma andorinha era tatuada, formando o par ao atingir
10 mil milhas. Embora a reportagem refira-se ao crucifixo de Keilten, é provável que as
andorinhas logo acima atestem sua vasta experiência como marinheiro. A diversidade das
tatuagens de Keilten, incluindo o que parecem ser corações e âncoras, possivelmente revelariam
uma interessante história de vida, não contada na resumida reportagem.
Ao invés disso, a reportagem segue descrevendo outro sujeito, A. Hames, cuja tatuagem
de uma serpente atravessada por um punhal revelava suas proezas – reais ou inventadas – de
valentia, uma vez que “tinha morto uma serpente marítima com um punhal, em momento crítico
de sua vida, quando ele e outros companheiros se viram quase perdidos”. 371
Para além das descrições das tatuagens dos marítimos, a reportagem traz ainda um dado
importante. Ao afirmar que o High Rower, navio em viajavam Keilten e Hames, havia partido
para Santos, deixa pistas de que aquilo que era parte do cotidiano do Rio de Janeiro – a exibição
de corpos tatuados na região portuária – deveria ser também de outros portos ao longo da costa
brasileira. Isso me permite supor que sociabilidades semelhantes ocorreram em cidades como
Santos, Salvador e Recife, espalhando a tatuagem pela costa e posteriormente pelo interior do
país, o que possivelmente ocorreu em ritmos distintos, mas não em total descompasso, ao longo
da primeira metade do século.
O amor é outro elemento comumente retratado pelos marítimos. Sobretudo, o amor
perdido ou distante. Charles Stein, que se apresentava como “campeão mundial de tatuagem”,
após perder sua suposta fortuna trabalhou no Southern Cross, navio que aportou no Brasil em
junho de 1939, revelou ao jornal A Noite sobre suas desventuras amorosas:

A primeira vez que dei meu corpo para ser tatuado foi a pedido da primeira
mulher que amei. O coração cercado de flores reproduzia bem o quanto eu a
queria. Mais tarde surgiram várias contrariedades no nosso amor. Como um
velho crente, senti a necessidade de registrar em meu corpo o sinal de nosso
rompimento.372

370
Pouco mais de nove mil quilômetros.
371
A NOITE. Lobos do mar, 28 de abril de 1925.
372
A NOITE. Charles Stein, o homem mais tatuado do mundo está a bordo do “Southern Cross”, 12 de junho de
1930.
127
De modo semelhante, um capitão sueco que se estabelecera na Baía de Guanabara e
atuava como locatário de embarcações, afirmou à reportagem do Leitura Para Todos em 1923
que o amor era o motivo pelo qual gravara em sua pele a tatuagem de uma carta e uma gaivota:

Até os peixes amam, porque razão não devemos gravar a primeira carta de
amor, escrita de além-mar de nossa amada? Na verdade, nunca escrevemos;
mandamos nossa alma e a nossa vida àquela que ficou pensativa e saudosa.
Não temos pombos-correios nem postas-restantes, e são as nossas gaivotas
brancas as portadoras dos sentimentos longínquos, quando esvoaçam nas
costas da Suécia. É a razão por que temos também gravada a figura do nosso
pássaro querido e portador de boas novas. 373

As ideias de saudade, do(s) amor(es) à espera em outro(s) porto(s), de fé e de


superstição, por certo alimentaram a cultura da marcação corporal entre os homens do mar. Mas
não foram a eles restritas. Outros tantos sujeitos atribuíram significados às suas tatuagens,
simultaneamente significando sua própria existência.

3.2 FÉ, RELIGIOSIDADES, SUPERSTIÇÕES E RESSIGNIFICAÇÕES


Em um país multicultural, que recebeu influências africanas, portuguesas, indígenas,
nipônicas, árabes, germânicas, italianas, entre outras tantas, a religiosidade se desenvolveu de
maneira plural e fluída, a ponto de matrizes distintas compartilharem divindades e figuras
místicas, de rituais e superstições ditos pagãos serem introduzidos nas práticas do cristianismo
institucionalizado, entre outras ressignificações. Sem dúvidas, a fé é um elemento fundamental
na tentativa de compreensão das subjetividades envolvidas na prática da tatuagem entre as
classes populares.
A relação entre a crença e a tatuagem é muito bem explorada pela historiadora Silvana
Jeha. Em sua obra Uma história da tatuagem no Brasil, cuja sensibilidade percebe com
competência ímpar as subjetividades forjadas na produção das tatuagens entre a gente pobre
brasileira, a autora dedica um capítulo exclusivamente à relação entre tatuagem e religiosidade.
Percorrendo um caminho que vincula a tatuagem ao cristianismo no ocidente, Jeha encontra
indícios da prática na Europa desde o fim da Antiguidade e em todo o período posterior. O
cristianismo e a tatuagem dialogaram, desde cristãos que se marcavam com o sinal da cruz ou
o nome de Cristo no século V, até peregrinos que voltavam tatuados de Jerusalém no século

373
Leitura Para Todos, set. 1923, p.11
128
XVI, costume que se estendeu aos soldados portugueses nesse período, como forma de se
afirmar cristãos na África.374
Imagem 11: Tatuagens atribuídas aos primeiros cristãos

Fonte: NAVA, J.; NETO, M. Tatuagens e desenhos cicatriciais, p. 33

No Brasil, a tatuagem religiosa se difundiu e representou também a ressignificação da


religiosidade entre as classes populares brasileiras. Figuras de Jesus Cristo, Nossa Senhora, São
Jorge, que possuem representação fundamental tanto para o catolicismo quanto para o
candomblé e a umbanda, se difundiriam entre as tatuagens mais comuns, junto com corações,
iniciais de nomes de amantes, e signos de Salomão, outra influência religiosa.
Estratégias de sobrevivência, de superstição, de fé. A tatuagem religiosa parece ter uma
série de significações e utilizações que vão ao encontro de outras estratégias instrumentalizadas
pelas classes populares nas relações cotidianas. Retomando a reportagem assinada por Elysio
de Carvalho no jornal O Malho:

374
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p. 271.
129
O assunto representado [nas tatuagens] é constituído geralmente por
emblemas patrióticos, religiosos, militares, profissionais, por símbolos
amorosos, históricos, por desenhos fantasistas, inscrições, etc. Os emblemas
religiosos representam Cristo crucificado, as cinco chagas santas, o sino de
Salomão, cruzes; os patrióticos: as armas nacionais, o busto da República, o
barrete frígio; os militares: soldados, troféus, espadas, tambores; os
profissionais: âncora, turquesas, estrelas do mar, bandeiras entrelaçadas,
martelos, triângulos, tesouras, compassos, etc.; os amorosos: mãos
entrelaçadas, cupidos, figuras de mulher, corações trespassados de setas ou
cortados por punhais, iniciais ou nomes das amantes. Inscrições, nomes e
iniciais dos amantes, etc. As tatuagens fantasiosas, desprovidas de
significação consistem em flores, estrelas, animais de toda espécie, pássaros,
etc. Os emblemas obscenos são muito frequentes. 375

Por ora, me ocuparei das tatuagens religiosas descritas por Carvalho. Entre elas,
destacam-se as cinco chagas santas, ou como será encontrado em outras fontes, as cinco chagas
de cristo. Seu uso era tão difundido – possivelmente tanto pelos seus significados quanto pelo
grau de facilidade técnica de sua produção, visto que consiste simplesmente na confecção de
cinco pontos – que o médico Álvaro Teixeira Bastos, em 1903, escreveria que ela poderia ser
considerada “como a nossa tatuagem”, referindo-se à Portugal. 376 Embora Bastos trate do caso
português, no Brasil, a tatuagem das chagas também foi bastante comum naquele período.
Bastos afirma ainda que sua classificação é ambígua, podendo simultaneamente ser catalogada
como religiosa ou como o que ele chama de supersticiosa/cabalística, pois evitaria malefícios:

[...] a imaginação popular casa intimamente as noções religiosas com as


superstições mais grosseiras; assim as cinco chagas, se representam por um
lado o sacrifício de Cristo (e os tatuados não desconhecem esta significação),
têm também o poder oculto de afastar do portador o mau olhado e idênticos
malefícios. 377

Além deste uso, as significações e ressignificações dessas marcas produziram ainda


outra crença. Em seu texto sobre a tatuagem carioca, João do Rio afirma que “quase todos os
rufiões e os rufistas do Rio têm na mão direita entre o polegar e o indicador, cinco sinais que
significam as chagas. Não há nenhum que não acredite derrubar o adversário dando-lhe uma
bofetada com a mão assim marcada”. 378
Na mesma obra, em capítulo que discorre sobre o que afirma serem ideias gerais dos
presos, João do Rio generaliza a religiosidade entre os detidos:

375
CARVALHO, E. A tatuagem. O MALHO, 25 de janeiro de 1936.
376
BASTOS, A. A tatuagem nos criminosos, p. 56.
377
BASTOS, A. A tatuagem nos criminosos, p. 56.
378
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 19.
130
A outra ideia é a crença de Deus — uma verdadeira crise religiosa. Rezar,
pedir a Deus a sua salvação, trazer bentinhos ao pescoço, ter entre os seus
papéis imagens sagradas, não significa, de resto, regeneração. Homens da
espécie do Carlito ou do Cardosinho fazem o sinal da cruz ao levantar da cama
para matar um homem horas depois; Serafim Bueno, um criminoso
repugnante, tem uma fé surda no milagre e em Nosso Senhor; o Carrasco,
gatuno torpe, treme quando se fala no castigo do céu — mas nenhum deles se
regenera. Deus é apenas a salvação das suas patifarias na terra, e tanto é assim
que não há desordeiro assassino em cuja mão direita não apontem, tatuadas,
as cinco chagas de Cristo. Sabem a interpretação dada a este sinal? A piedosa
interpretação de que com a mão, ajudada por tão grande símbolo, não se atira
à cara de um sujeito uma tapona sem que o contendor não caia ao chão! 379

A crônica de João do Rio aponta para alguns referentes importantes, notadamente a fé e


a política. Sua conclusão imagina um mundo governado pelos presos aos quais observou.
Segundo ele, seria um mundo autoritário – falarei da política adiante – no qual: “Um rei
perpétuo governaria os vassalos, por vontade de Deus”. O elemento religioso aparece como
fundamental na significação da experiência de vida da sociedade brasileira, essencial ao que ele
chama de ideias idênticas do povo, “quer seja ele criminoso, quer seja ele honesto”. 380
O percurso significativo das tatuagens ditas religiosas ou místicas, como as Chagas de
Cristo, ultrapassa a mera superstição. É preciso lembrar que se trata de uma prática popularizada
em um país desigual, em que a possibilidade de sobrevivência digna é privilégio de uma
minoria. Quando falo do Brasil na primeira metade do século XX, penso em um país que inicia
sua experiência republicana com 84% da população composta por analfabetos. Trinta anos
depois, em 1920, esse número ainda era de 75%, diminuindo timidamente para 57% em 1940. 381
Nesse país eminentemente rural e analfabeto, que aboliu a escravidão sem proporcionar
qualquer condição de ascensão social da população outrora escravizada, restava aos pobres a
auto-organização e proteção que Sevcenko chama de “um circuito de contatos sociais, trocas
culturais e práticas ritualizadas em redes clandestinas”, como forma de se resguardar frente a
arbitrariedade do Estado. Para Sevcenko: “essas práticas encontram seu equivalente nos muitos
meios pelos quais as gentes do povo desenvolveram rezas, amuletos, mandingas e rituais de
benção ou fechamento do corpo, como defesa de sua última fonte de autonomia”. 382

379
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 97.
380
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 98.
381
CANCLINI, N. Culturas híbridas, p. 68.
382
SEVCENKO, N. História da vida privada no Brasil, p. 32.
131
A luta pela posse – e pela integridade do corpo – instrumentaliza a superstição ou a fé,
transformando-as mesmo em estratégias de resistência nas quais o corpo e a tatuagem são
operacionalizados de modo a enfrentar as condições de vida e as desiguais relações de poder
com sagacidade.
Joaquim, marinheiro descrito por João do Rio, é exemplo da esperteza que Ariano
Suassuna descreve como a coragem do pobre 383: “O marinheiro Joaquim tem um Senhor
crucificado no peito e uma cruz negra nas costas. Mandou fazer esse símbolo por esperteza.
Quando sofre castigos, os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem de sová-lo. – Parece
que estão dando em Jesus!”. 384
Outra tatuagem religiosa significativamente popular no Brasil foi a dos signos de
Salomão. Silvana Jeha localiza seu uso já no século XVIII. Heranças do catolicismo popular
português, naquele período os usos dessas figuras – geralmente desenhadas em papéis e
acompanhadas de orações que o sujeito trazia consigo – tinham o objetivo místico de fechar o
corpo ou submeter quem fosse tocado por seu portador a manter relações sexuais com este.
Segundo Jeha, é possível que a introdução dessas figuras na tatuagem tenha o mesmo
objetivo.385 Conforme a autora:

O uso do signo é espalhado no tempo e no espaço. Num cortiço da Mooca,


bairro industrial de São Paulo, um português tatuado marcou o lavrador
brasileiro Raymundo com cruzes e um signo de Salomão, garantindo que “o
signo de Salomão livraria de muita coisa”. Lindolfo, preso na cadeia de
Itápolis, em São Paulo, tatuou em si próprio um signo de Salomão com uma
cruz acima, “para dar sorte”. Segundo o médico Ladislau D’Albuquerque, no
seu estudo sobre a tatuagem na cadeia de Salvador, o signo de Salomão
merecia “particular estima”, pois lhe atribuíam “extraordinária virtude contra
sortilégios, enguiços ou feitiçarias”. 386

A pesquisa de Silvana Jeha é fundamental ainda por apontar a disseminação das


tatuagens religiosas ou místicas e o fato de sua produção, a exemplo de outras práticas de cunho
religioso, extrapolarem a formalidade ritual e ganharem significações e usos no cotidiano
popular:

Essa prática de proteção, porém, não acontece só em ritos. Muitos tatuados,


quando inquiridos sobre onde fizeram suas tatuagens de símbolos de proteção,
responderam: em casa, num bar, na cadeia, na rua, no porto, no navio. E em

383
DIMITROV, E. O Brasil dos espertos, p. 145.
384
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 19.
385
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p. 278.
386
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p.284.
132
cidades tão diversas como Ribeirão Preto, Salvador, Recife, Porto Alegre, Rio
de Janeiro, Juiz de Fora. 387

A fé foi também constantemente expressa em outra figura significativa da religiosidade


brasileira: São Jorge. Figura fundamental ao catolicismo português e santo ligado à guerra e às
armas – padroeiro do país e de seu exército – São Jorge foi instrumentalizado pelos escravizados
trazidos da África para o Brasil como figura análoga ao deus Ogum, filho de Iemanjá e também
considerado o deus da metalurgia e da guerra. 388
Simbólica representação da ressignificação religiosa, processo violento e desigual de
forja da crença e cultura brasileiras, São Jorge foi representado em inúmeras tatuagens, como a
de Orlando Pereira da Cunha, o Bom Menino, acusado de participar de um assalto a um taxista
no Rio de Janeiro.

“Bom menino” que ostenta uma tatuagem no peito representando São Jorge,
é maconheiro. [...] Orlando Pereira de Moura, conhecido como “Bom
Menino”, 23 anos, solteiro, sem profissão ou residência e maconheiro
contumaz. Dormia a sono solto e em seu calção foram encontrados alguns
cigarros da erva maldita. 389

387
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p. 287.
388
MARQUES, A.; MORAIS, M. O sincretismo entre São Jorge e Ogum na Umbanda, p. 4-8.
389
“Gangsters” juvenis de São Paulo vieram assaltar motoristas do Rio. ÚLTIMA HORA, 29 de outubro de 1958.
133
Imagem 12: Amália e Orlando Moura, o “Bom Menino”, fotografados pelo Última Hora

Fonte: Última Hora, 29 de outubro de 1958.

Nas reportagens do Última Hora, a fotografia seria uma das bases de seu sucesso,
marcado especialmente pela “grande foto de primeira página”. 390 A montagem das fotografias
acima apresenta aquilo que Castro chamou de expressão de literalidade, ou seja, da produção
de uma representação “que se dá a reconhecer e não a analisar”. 391
Ponto importante de seu argumento é a união e complementaridade entre palavra e
imagem. Segundo Castro, “a edição, num ajuste da palavra com a imagem, confirma que no
fotojornalismo esses dois componentes se completam e que, dependendo das forças relativas
da palavra e da imagem, o leitor iniciará sua leitura partindo seja da foto, seja do texto”. 392
Na reportagem, que descreve uma gangue juvenil que saíra de São Paulo para cometer
assaltos no Rio de Janeiro, Amália, uma das integrantes da suposta gangue defende-se alegando
que havia apenas tomado carona com os integrantes do grupo. Já Orlando, o Bom Menino, é
descrito como maconheiro contumaz, e como aponta Silvana Jeha, a religiosidade expressa em
sua tatuagem não lhe serviria de álibi. Pelo contrário, o uso de São Jorge atestava que ele seria

390
LOUZADA, S. Fotografia, modernidade e imprensa carioca, p. 10.
391
CASTRO, S. A imagem fotográfica jornalística, p. 183.
392
CASTRO, S. A imagem fotográfica jornalística, p. 183.
134
macumbeiro, termo pejorativamente empregado na descrição das religiosidades afro-
brasileiras, proibidas no país até 1940. 393
A imagem se associa, se alinha com o texto e o complementa, como proposto por Castro.
Enquanto a fotografia de Amália lhe apresenta com as mãos no rosto, representando alguém em
choque, que chora ou se esconde; Orlando é representado de peito aberto, sem camisa, com as
mãos voltadas para sua tatuagem – que afinal, serve ao discurso predominante no período como
estigma de conformação entre a identidade presumível e a identidade reconhecível de um
tatuado: se Orlando era tatuado, só poderia ser perigoso.
As expressões religiosas não se limitaram aos símbolos de origem católica. Para além
das ressignificações apontadas em seus usos, signos provenientes de religiões de matrizes
africanas também foram tatuados país afora. Como aponta João do Rio, “O feiticeiro Ononenê,
morador da rua do Alcântara tem do lado esquerdo do peito as armas de Xangô, e Felizmina de
Oxum a figura complicada da santa d’água doce”.394
A partir de João do Rio é possível supor que, para além da estigmatização que perseguia
os tatuados de modo geral, recaía sobre os negros tatuados uma suspeita constante ainda maior
– e a atuação policial hodierna, especialmente na diferenciação da abordagem conforme a etnia
e a classe, aponta para as permanências da história. Sobre os negros tatuados no início do século,
o autor aponta que “não se fotografam com um pavor surdo, como se fosse crime usar essas
marcas simbólicas”. 395
Em contraposição aos negros tatuados, que temiam constantemente a ação policial
repressiva, tanto mais pelas suas marcas, os imigrantes portugueses não demonstravam tal
receio. Sobre eles, João do Rio afirma que:

O curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em
geral, o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontaminável
da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços, enquanto os
criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de
antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do
corpo como um crime. 396

Se anteriormente João do Rio aponta com suposta estranheza que os negros “não se
fotografam com um pavor surdo, como se fosse crime usar essas marcas simbólicas”, na

393
Uma história da tatuagem no Brasil, p. 269.
JEHA, S.
394
RIO, J. A tatuagem no Rio. KOSMOS, novembro de 1904.
395
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 18.
396
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 20.
135
sequência afirma que os portugueses não receavam mostrar suas tatuagens, “enquanto os
criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o
possível para ocultá-los e escondem os desenhos do corpo como um crime”. Como se percebe,
o próprio João do Rio reforça a teoria pretensamente científica que imbricava racismo,
criminalização da pobreza e tatuagem.

3.3 TURCOS: IMIGRAÇÃO, MASCATES E TATUAGENS


Entre os grupos étnicos que migraram para o Brasil e trouxeram consigo suas práticas
culturais, é notória a contribuição dos turcos na difusão da tatuagem. Primeiramente, é preciso
salientar que por turcos, as fontes do período se referiam indistintamente a turcos, sírios,
libaneses e judeus. Como aponta João do Rio:

Os turcos são muçulmanos, maronitas, cismáticos, judeus e nestas religiões


diversas não há gente mais cheia de abusões, de receios, de medos. Nas casas
da rua da Alfândega, Núncio e Senhor dos Passos, existem, sob o assoalho,
feitiçarias estranhas, e a tatuagem forra a pele dos homens como amuletos.
[...] É por exemplo muito comum turcos com as mãos franjadas de azul cinco
franjas nas costas da mão correspondendo aos cinco dedos. Essas cinco franjas
são a simbolização das franjas da taletlz, vestimenta dos Khasan, nas quais
está entrançado a fio d’oiro o grande nome de Jhaveh. 397

Diferentes religiosidades se amalgamavam sob a descrição genérica de turcos: tanto


muçulmanos e judeus quanto os cismáticos, membros do catolicismo oriental oriundo do cisma
religioso de 1054. 398 Nessa multifacetada categoria, símbolos diversos eram lidos como turcos
– a exemplo do talet, vestimenta judaica ritualística utilizada em ritos de oração.
As mãos, local até hoje tido como tabu entre os tatuados, chamavam a atenção dos
observadores das tatuagens dos ditos turcos. Em um romance intitulado Sobre o gelo errante,
publicado em 1911, a revista O Tico-Tico informava em nota de rodapé, pressupondo a
necessidade de explicação do significado do termo tatuagem: “Tatuar quer dizer fazer na pele
desenhos que nunca mais desaparecem. Os turcos usam muito tatuar as mãos. Os desenhos se
fazem com picadas de agulhas”. 399

397
A tatuagem no Rio. KOSMOS, novembro de 1904.
RIO, J.
398
O cisma religioso, ou Cisma do Oriente, foi um processo de ruptura entre as lideranças católicas do Ocidente,
sediada em Roma, e a do Oriente, sediada em Constantinopla, atual Istambul. A ruptura resultou em duas
instituições distintas, a Igreja Católica Apostólica Romana e a Igreja Ortodoxa, ou Igreja Católica do Oriente.
399
O TICO-TICO. Sobre o gelo errante, 18 de outubro de 1911.
136
Em 1926, o jornal Correio da Manhã publicou a matéria Quadros novos no
policiamento da cidade. A reportagem lamentava a presença de sujeitos pobres e imigrantes
nas fileiras da polícia paulistana, destacando os turcos e suas tatuagens:

Canhestros, bisonhos, achamboados alguns, debaixo do uniforme caqui e do


chapéu “cowboy”, rifle e revólver a tiracolo, são olhados com curiosidade pela
população, principalmente quando, em pontos movimentados, acumulam a
função de polícia com a de “grilo”. E quando a mão se agita, comandando o
trânsito de veículos, deixa ver, como hoje constatamos em um que policiava
uma das movimentadíssimas esquinas próximas à Luz, a tatuagem que
caracteriza os turcos. 400

Silvana Jeha destaca, com a afetividade de sua origem libanesa, a importância dos turcos
na história da tatuagem no Brasil. Estes imigrantes, que foram sistematicamente “estereotipados
e racializados, identificados com modos considerados rudes” 401, foram fundamentais para
difusão da tatuagem pelo interior do país, sobretudo, por exercerem a profissão de mascate:

No Brasil do século XX, muitos mascates de origem sírio-libanesa


palmilhavam todo o território do país, não como bandeirantes, conforme um
dos mitos a seu respeito, mas como marinheiros do mar continental. Foram
evocados na literatura da primeira metade do século XX por autores que os
conheceram na roça e na cidade. 402

Neste sentido, constantemente retratados com suas tatuagens nas mãos e nos braços, os
turcos teriam sido personagens fundamentais na difusão da prática pelo interior do país,
tornando-a mais ou menos familiar à medida que sua presença como sujeitos tatuados ganhava
alguma constância pelos rincões brasileiros. Os turcos foram ainda responsáveis por uma forma
mais direta de difusão da tatuagem: atuando como tatuadores. Além de tatuarem nas cadeias,
quando encarcerados, segundo Jeha:

Homens e mulheres, sírios e libaneses, profissionais ou não, tatuaram


brasileiros em lugares diversos do estado de São Paulo, como a capital, São
José do Rio Preto, Barretos, São José dos Campos, Jaboticabal e Monte Azul.
Num rancho, num bar, numa casa...Em geral, eram motivos já correntes na
tatuagem no Brasil, como iniciais, signos de Salomão, corações. 403

400
Novos quadros no policiamento da cidade. CORREIO DA MANHÃ, 27 de maio de 1926.
401
Uma história da tatuagem no Brasil, p.144.
JEHA, S.
402
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p. 143.
403
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p. 147.
137
Imagem 13: Tatuagens de Antônio, imigrante de origem síria

Fonte: JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p. 146

3.4 POLÍTICA NA PELE


A mística ou a superstição em torno das tatuagens vai além das figuras religiosas,
produzindo, reproduzindo e reorganizando significações em torno de imagens das mais
diversas, como aponta João do Rio:

A sereia dá lábia, a cobra atração, o peixe significa ligeireza na água, a âncora


e a estrela o homem do mar, as armas da República ou da Monarquia a sua
compreensão política. Pelo número de coroas da Monarquia que eu vi, quase
todo esse pessoal é monarquista. Os lugares preferidos são as costas, as
pernas, as coxas, os braços, as mãos. Nos braços estão em geral os nomes das
amantes, frases inteiras, como por exemplo esta frase de um soldado de um
regimento de cavalaria: viva o marechal de ferro!... desenhos sensuais,
corações. O tronco é guardado para as coisas importantes, de saudade, de
luxúria ou de religião. Hei de lembrar sempre o Madruga tatuando um

138
funileiro, desejoso de lhe deixar uma estrela no peito. — No peito não! Cuspiu
o mulato, no peito eu quero Nossa Senhora! 404

Por certo, assim como atualmente, é ingênuo pensar que os sujeitos que se tatuavam
naquele período estavam inteiramente a par das significações descritas por João do Rio, ou que
não produzissem eles mesmos os significados de suas tatuagens. Contudo, mais do que codificar
o significado e saber se os sujeitos tatuavam sereias devido a feitura o desenho “dar lábia” ao
tatuado, como disse João do Rio, interessa-me o fato de que estes desenhos, oriundos da cultura
marítima, bem como temas religiosos, eróticos, etc., se disseminaram na cultura popular da
tatuagem, e sobre eles foram produzidas significações e ressignificações, participando do
conjunto de signos pelos quais os tatuados simbolizaram sua experiência.
Nesse universo multifacetado, a política encontrou também seu lugar de expressão mais
ou menos consciente. Como aponta João do Rio, emblemas da República e da Monarquia
disputavam espaço na pele dos sujeitos no início do século XX, o que pode ter explicação
também na cultura marítima, já que tatuar emblemas nacionalistas era prática comum entre os
marinheiros, bem como entre os soldados. 405 Ainda assim, não parece sensato exacerbar e nem
subestimar a autonomia dos tatuados em relação às suas escolhas. Os desenhos disponíveis
eram limitados e as escolhas dos tatuados, por vezes, eram influenciadas pelos tatuadores, mas
ainda assim é possível perceber seus espaços de autonomia, como a frase tatuada no soldado
citado por João do Rio: “Viva o marechal de ferro”, fazendo referência ao segundo presidente
militar do Brasil, Floriano Peixoto.406
Em outro trecho, João do Rio reforça a proliferação dos símbolos imperiais,
especialmente da coroa: “O fato curioso é que para esta gente, do outro lado da sociedade, não
basta pensar, é preciso trazer a marca das próprias opiniões no lombo. Raríssimos são os presos
que na detenção não são tatuados; raros são aqueles que entre as tatuagens — lagartos, corações,
sereias, estrelas — não têm no braço ou no peito a coroa imperial.” 407
Contudo, não foi apenas a disputa entre monarquistas e republicanos – se é que eram de
fato – o que estampou na pele dos brasileiros e das brasileiras na primeira metade do século
XX. Outras ideologias políticas ganharam representação na pele e na identidade dos sujeitos.

404
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 19, grifo nosso.
405
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 63.
406
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 19.
407
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 97.
139
A Diretrizes, revista de cunho liberal e democrático fundada em 1938 por Azevedo
Amaral e Samuel Wainer, produziu críticas acirradas aos regimes autoritários e seria
considerada “um dos maiores periódicos de crítica e análise política da história da imprensa
brasileira”.408 Em 1942, alguns meses antes de o Brasil ingressar na Segunda Guerra Mundial
– o que acentuaria ainda mais o caráter liberal e democrático de suas publicações – a Diretrizes
comemorava a tragédia de Ibrahim Nassed. De origem síria e descrito como nacionalista
convicto, Ibrahim se associaria à AIB – Ação Integralista Brasileira.409 Nassed, que se tornaria
um exaltado defensor fascista, tatuaria em seu braço o Sigma, símbolo da AIB. Com a derrocada
do movimento, Nassed teria procurado remover a tatuagem com uma faca. Segundo o jornal, a
remoção foi malsucedida e “então o sigma vingou-se do desertor. Derramou, sem dúvida, seu
veneno verde nas carnes de Ibrahim”. 410 Resultado da tatuagem ou não – é mais provável que
a operação, em si, tenha produzido a infecção e não a tinta, que já havia sido inserida na derme
há algum tempo – Ibrahim precisou amputar o braço e a Diretrizes não perdeu a chance de
zombar do integralista.
O Diário Carioca, jornal fundado em 1928, de forte cunho político, que oscilou entre o
apoio e a oposição ao governo Vargas e foi um duro crítico do comunismo – notadamente pelo
seu apoio à Lei de Segurança Nacional e sua oposição à Revolta Comunista de 1935 – publicou
em 1955, em meio à Guerra Fria, uma matéria sobre a prisão do servente de pedreiro Eutímio
Aurélio de Magalhães. Eutímio, que teria sido expulso da Marinha de Guerra por atividades
subversivas, foi preso por “promover desordens numa rua próxima ao posto policial de
Inhaúma”. A reportagem não hesitou em associar a tatuagem à confrontação da pretensa ordem
e ao comunismo, afirmando que o acusado era malandro, e que resistira à prisão causando
tumulto, quebrado móveis do posto policial e “cometendo toda sorte de desatinos”. O
desordeiro, termo que compõe o título da reportagem, “era comunista e trazia no peito, do lado
esquerdo, a tatuagem da foice e do martelo”. 411
Quatro anos antes, em 1951, o Última Hora também publicou uma reportagem sobre
um desordeiro que teria, em estado de embriaguez, proferido obscenidades contra um

408
BIBLIOTECA NACIONAL. Diretrizes (verbete). Disponível em http://bndigital.bn.br/artigos/diretrizes/. Acesso em
05 de junho de 2020.
409
A Ação Integralista Brasileira, ou AIB, foi um movimento fascista fundado na década de 1930 e liderado por
Plínio Salgado. A AIB aproximou-se dos movimentos fascistas europeus em vários sentidos, sendo possível
afirmá-lo como movimento tipicamente fascista, segundo Athaides. ATHAIDES, R. O fascismo genérico e o
integralismo, p. 1331.
410
O integralista perdeu o braço. DIRETRIZES, 30 de abril de 1942, p. 18.
411
Comunista e desordeiro. DIÁRIO CARIOCA, 01 de fevereiro de 1955, p. 8.
140
investigador de polícia e sua esposa, que transitavam pela cidade. O tal desordeiro atacaria o
investigador e sua esposa com uma navalha, ferindo ainda outro sujeito que tentara intervir. Ao
ser detido, o sujeito teria tentado depredar a delegacia aos gritos de que “era comunista
militante, enquanto exibia uma tatuagem de foice e martelo no peito”.412 O acusado era ex-
marinheiro. Seu nome, Eutímio Aurélio Magalhães.

3.5 TATUAGENS ROMÂNTICAS: A ETERNIDADE DO INSTANTE


O trecho de João do Rio revela ainda outro uso da tatuagem, bastante comum até os dias
atuais: as homenagens românticas. A tatuagem com os nomes ou as iniciais de amores, paixões
ou familiares são uma constante da história da tatuagem brasileira. Como aponta Silvana Jeha,
em capítulo dedicado exclusivamente ao tema, “nomes de amor duradouro, de uma noite, de
uma conquista, de uma paixão platônica” tatuaram corpos durante toda a primeira metade do
século XX e eternizaram – simbolicamente, ao menos pelo tempo de uma vida – sentimentos
de amor, saudade, paixão, sexo e sedução.413
Madruga, personagem apresentada anteriormente por João do Rio, era exemplo das
tatuagens amorosas e da paradoxal relação entre a tatuagem e a paixão:

Homem tão interessante guarda no corpo a síntese dos emblemas das


marcações: um Cristo no peito, uma cobra na perna, o signo de Salomão, as
cinco chagas, a sereia e no braço esquerdo o campo das próprias conquistas.
Esse braço é o prolongamento ideográfico do seu monte de Vênus, onde a
quiromancia vê as batalhas de amor. Quando a mulher lhe desagrada e acaba
com a chelpa, Madruga emprega leite de mulher, sal de azedas, fura de novo
a pele, fica com o braço inchado, mas arranca de lá a cor do nome. Enquanto
andou-me a fornecer seu profundo saber, Madruga teve três dessas senhoras,
a Jandyra, a Josefa e a Maria. A primeira a figurar debaixo de um coração foi
a Jandyra. Um belo dia a Jandyra desapareceu, dando lugar a Josefa, que
triunfava em cima, entre as chamas. Um mês depois a letra J sumira-se e um
M dominava no meio do coração. 414

Descrito por João do Rio como síntese das tatuagens, reunindo signos diversos como
religiosos e marítimos, suas tatuagens românticas, e mais ainda sua relação com elas, chamam
a atenção. Madruga teria por hábito homenagear suas paixões tatuando-se com seus nomes ou
iniciais. O curioso e paradoxal – e possivelmente a psicologia ofereça diagnósticos distintos das
hipóteses de um historiador – é que se adote uma postura tão radical, a de marcar o corpo

412
O homem estava com o diabo no corpo. ÚLTIMA HORA, 26 de julho de 1951.
413
Uma história da tatuagem no Brasil, p. 311-312.
JEHA, S.
414
RIO, J. A tatuagem no Rio. KOSMOS, novembro de 1904.
141
indelevelmente, para afirmar a eternidade de sentimentos que frequentemente são passageiros.
Não por acaso, e isso valeria um estudo à parte, de Madruga aos nossos dias, as tatuagens
românticas são responsáveis por boa parte dos arrependimentos que resultam em cobertura ou
remoção.415
Para além disso, o caso de Madruga reflete a historicidade das relações amorosas. Como
aponta Chalhoub sobre as primeiras décadas do século XX, “os preceitos de uma educação
higiênica presentes no discurso médico da época acabaram por construir modelos de homem,
de mulher e de relacionamento entre os sexos que, mascarados pelos seus propósitos científicos,
reforçam formas de dominação e de manutenção e reprodução da ordem social burguesa”. 416
Entre as instrumentalizações da ciência na definição de papéis sexuais e padrões de
relacionamento, o autor destaca a maneira como a suposta fragilidade física feminina atestava
sua fragilidade moral, cujas virtudes deveriam se resumir à sensibilidade, doçura, passividade
e submissão. Decorrente disso, a lógica do relacionamento deveria ser a submissão da mulher
à proteção masculina, que por sua vez seria um ser menos predisposto ao amor do que ao gozo
sensual. 417
No universo ideológico burguês, que se pretendeu impor às classes populares, o
relacionamento amoroso ia além dos desígnios do desejo e da afetividade, tornando-se mesmo
um instrumento de alianças econômicas ou políticas. Deveria, portanto, seguir determinados
pressupostos: da heterossexualidade, da castidade feminina pré-nupcial, e da digna intenção do
pretendente masculino.

A “família” não era meramente a unidade social básica da sociedade burguesa,


mas também a unidade básica do sistema de propriedade e das empresas de
comércio, ligada a outras unidades similares por meio de um sistema de trocas
de mulheres-mais-propriedade (o dote do casamento) em que as mulheres
deveriam ser, pela estrita convenção derivada de uma tradição pré-burguesa,
virgines intactae. Qualquer coisa que enfraquecesse essa unidade familiar era
inadmissível, e nada a enfraquecia mais do que a paixão física descontrolada,
que introduzia herdeiros e noivas “inadequados” (isto é, economicamente
indesejáveis), separava maridos de mulheres e desperdiçava recursos
comuns.418

415
URBIM, E. Remoção de tatuagem atrai número maior de arrependidos graças a lasers mais eficazes. O GLOBO,
06 de setembro de 2015. Disponível em https://oglobo.globo.com/ela/beleza/remocao-de-tatuagem-atrai-numero-
maior-de-arrependidos-gracas-lasers-mais-eficazes-17404604. Acessado em 11 de dezembro de 2019.
416
CHALHOUB, S. Trabalho lar e botequim, p.177
417
CHALHOUB, S. Trabalho lar e botequim, p. 178.
418
HOBSBAWM, E. A era do capital, p. 358.
142
Afrontando a lógica do pacto firmado nos relacionamentos de modelo burguês, as
diversas tatuagens com nomes de amantes de Madruga são a sua subversão. No lugar da unidade
familiar, sujeitos como Madruga testemunhavam em suas tatuagens a incontinência afetiva tão
reprimida pelo modelo burguês. Na lógica burguesa, o vai-e-vem de amantes atestaria ainda
contra as boas intenções de Madruga para com as moças com quem se relacionava, além de
provocarem a suspeição contra o fato de permanecerem de fato moças. Em suma, a liberdade
amorosa, sexual e afetiva das classes pobres expressas em tatuagens como as de Madruga seria
em certa medida uma afronta ao ideal burguês de família, relacionamento e sexualidade.
Caso semelhante e que permite compreender como a moralidade burguesa procurou
disciplinar a totalidade da vida dos sujeitos pobres, incluindo sua vida amorosa, foi publicado
no jornal A Noite. Trata-se do amor entre José e Ruth, dois jovens cariocas que viraram notícia
por desaparecerem simultaneamente em 1920. Na edição de 20 de abril daquele ano, os pais de
Ruth, Sr. Euclydes Francisco Gonçalves e Marieta Seabra Gonçalves, comunicavam o
desaparecimento da jovem. Seu namorado, José Jardim Filho havia também desaparecido.
A chamada da notícia dava o tom que se desejava imprimir à jovem pela família
anunciante: A mocinha fugiu de casa. Apontando a lógica correlação entre os dois
desaparecimentos, ocorridos na mesma data, importava tanto comunicar o fato quanto
resguardar a honra da jovem, que a partir da lógica do relacionamento burguês só deveria sair
de casa após o casamento e todo cerimonial que o envolve. A suspeita da fuga do casal e o
temor pela imagem da jovem era reforçada pela declaração de amor que José Filho imprimiu
em seu corpo. O jovem carregava no braço uma tatuagem feita recentemente na qual se lia o
nome da amada, Ruth.419

3.6 TATUADAS: CORPO FEMININO, ESTIGMA E REGULAÇÃO SOCIAL


Marcar o corpo como forma de expressão identitária não foi exclusividade masculina
no período, embora predominem as tatuagens nos corpos dos homens durante toda a primeira
fase da tatuagem no Brasil. E se os homens pobres tatuados foram estigmatizados, tanto mais
foram as mulheres. 420 Como declara Silvana Jeha: “Se a história da tatuagem masculina é

419
A NOITE,
20 de abril de 1942.
420
É preciso salientar que as fontes encontradas a respeito das tatuagens em mulheres, embora menos fartas que
as masculinas, instigam a produção de uma interessante e profícua pesquisa futura. Como ponto de partida, Silvana
Jeha dedica parte significativa do sexto capítulo de sua obra Uma história da tatuagem no Brasil às mulheres.
Uma pesquisa que se debruçasse exclusivamente sobre as tatuagens em corpos de mulheres certamente permitiria
novas perspectivas a essa incipiente temática.
143
obscura, a história da tatuagem nas mulheres é ainda mais. Muitas mulheres que se tatuaram e
não passaram pelos órgãos de repressão devem ter escondido pelo resto da vida uma marca que
era de infâmia”.421
Associada à prostituição, a tatuagem entre as mulheres enfrentou repressões ainda mais
intensas. Se o homem tatuado foi constantemente descrito como o vagabundo, termo
empregado para designar o sujeito não disciplinado pelo trabalho, a pecha que recaiu sobre a
mulher tatuada foi a de vagabunda, termo pejorativo empregado para designar a mulher que
ousa não se submeter à repressão e a dominação de sua sexualidade e/ou sociabilidade.
No início do século, era mais comum a referência à tatuagem feminina 422 estrangeira do
que nacional. Em 1901, o Jornal do Brasil alardeava a adesão das mulheres à estranha moda:

[...] um periódico norte-americano diz que as donzelas dos Estados Unidos


adotaram uma estranha moda, a de tatuarem nos braços as iniciais de seus
namorados. Como é natural, aquelas damas exigem de seus admiradores igual
prova de afeto. Casando-se, o fato não oferece inconveniente algum; mas
havendo quebra de relações o caso começa a complicar-se, agravando-se a
medida que as mulheres vão tendo sucessivos namoros, podendo alguma a
chegar ao extremo de não ter polegada da pele onde possa escrever o nome de
seu preferido. E adeus, casamento. 423

Dez anos depois, o periódico O Paiz anunciava a exposição de uma mulher tatuada como
atração circense, algo que se tornara bastante comum na história da tatuagem feminina
estadunidense.424 Na nota de 1911 se lê: “O mais perfeito exemplar de tatuagem se exibe hoje
no Maison Moderne. É uma bela mulher, lindamente tatuada por uma japonesa do mais apurado
gosto artístico. São duas perfeições: a tatuagem e o corpo escultural da linda criatura, que sofreu
gostosamente este suplício. Recomendamos ao público essa novidade”. 425
No anúncio, o tom recorre à premissa que perdura até os dias atuais no que tange ao
corpo feminino: as restrições de sua exibição pública voluntária, impostas pela moralidade,
podem ser facilmente dispensadas quando essa exibição é transformada em produto para o
consumo masculino.

421
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p. 204.
422
A utilização do adjetivo feminino, ao longo do texto, não tem objetivo de problematizar estereótipos de gênero
que distinguem identidades e tatuagens masculinas ou femininas a partir de valorações estéticas ou distinções de
forma ou conteúdo. O termo é utilizado para distinguir as tatuagens inscritas nos corpos de mulheres das inscritas
nos corpos de homens, indistintamente de questões que envolvam sua identidade de gênero.
423
Tatuagem das damas. JORNAL DO BRASIL, 25 de novembro de 1901.
424
MIFFLIN, M. Bodies of subversion, p .13.
425
O PAIZ, 30 de julho de 1911.
144
Na sugestiva coluna Assuntos Femininos do jornal Correio da Manhã, a colunista Sylvia
Patrícia, pseudônimo da jornalista, cronista e poetisa Abiah Lopes, encampava o discurso contra
a tatuagem em mulheres. A culpa por sua disseminação, segundo a Patrícia, era da Moda,
personificada na crônica da autora como a “divindade que governava as mulheres”. 426

É a mesma divindade, quero dizer a Moda, que não tendo mais o que inventar
fala em reviver em nosso século ultramoderno o bárbaro e primitivo sistema
da tatuagem. [...]. Com tanta submissão imitamos os mais complicados
figurinos mandados de Paris, porque não imitaremos os povos que se vestem
de...desenhos! É pouco? Mas nós já nos vestimos tão pouco. [...] A tatuagem
é feita geralmente de um modo bárbaro que muito faz sofrer o paciente. Isso
porém não chega a ser uma razão que nos impeça de adotá-la cedo ou tarde,
se Sua Majestade a Moda assim decretar. A mulher, por amor à beleza, tem
todas as coragens, é capaz de todos os heroísmos. [...] O sexo chamado frágil
é muito mais forte do que parece, e sua maior força está por certo nessa
aparência de fraqueza. Que façam a experiência aqueles que inventam moda
e duvidam da coragem feminina. A tatuagem pode ser amanhã implantada nos
países civilizados. Será bárbara, cruel e dolorosa, tudo quanto quiserem. Mas
se for moda há de triunfar. Eva despirá sorrindo as sedas, os veludos, as
rendas, as alvas cambraias e estoica, serena, entregará seu corpo aos
instrumentos de suplício. Vaidade, seu nome é mulher. 427

Na crônica, em consonância com os discursos do período, a mulher se submeteria a tudo


em nome da vaidade. Assim, nos termos da autora, os suplícios da dor e a crueldade do bárbaro
processo da tatuagem eram facilmente suportados pelas mulheres em nome de manterem-se
alinhadas aos ditames da tirânica deusa Moda. Percebe-se a perenidade do discurso que alinha
a tatuagem feminina à vaidade, pecado constantemente atribuído ao gênero feminino, quando a
mesma autora, duas décadas depois o repete na coluna social do mesmo jornal, com a crônica
intitulada A Tatuagem.

Anda-se a murmurar por aí que os grandes costureiros de Paris – que por


absoluta ignorância deixo de citar o nome desses “soberanos” vêm pensando
seriamente em fazer surgir na próxima estação imaginem o que: a tatuagem
que servirá de motivo ornamental nas toilettes femininas. [...] Depois, os
“tomara que caia” já despem tanto que um pouquinho menos de fazenda não
terá realmente grande importância[...] Vejamos se pega realmente a estranha
moda que anda a bailar na fantasia dos artistas dos lindos trapos, vejamos se
pega a moda da tatuagem que obedece a processos verdadeiramente cruéis.
Mas isso não há de ser nada, a mulher é geralmente corajosa para enfrentar as
contingências da vida, sabendo mostrar-se mais corajosa ainda, quando se
trata de enfrentar os todo-poderosos ditames da vaidade. 428

426
PATRICIA, S. A tatuagem, ornamento feminino. CORREIO DA MANHÃ, 23 de fevereiro de 1930.
427
PATRICIA, S. A tatuagem, ornamento feminino. CORREIO DA MANHÃ, 23 de fevereiro de 1930.
428
PATRICIA, S. A tatuagem. CORREIO DA MANHÃ, 24 de março de 1954.
145
Seja reaproveitamento de pauta pelo jornal, seja a persistência do debate nos círculos
sociais, é notável como estes discursos atuaram na construção da imagem da mulher tatuada.
Como aponta Denise Bernuzzi Sant’Anna a respeito da moda e da beleza na primeira metade
do século XX, comparando práticas das mulheres pobres às das burguesas:

Talvez as mulheres com faces cobertas de pó branco, adornadas com pesados


chapéus e mantendo o ventre envolto por pesados espartilhos não fossem
menos exóticas que as mulheres pobres tatuadas. Mesmo com a emergência
de modas favoráveis ao uso da maquiagem, “pintar o rosto” permaneceria um
gesto duvidoso, sujeito a reprovações. Para muitas famílias da época, o
carmim e o batom sugeriam o deboche. O rosto “pintado” lembrava um
reboque destinado a esconder uma falha de caráter ou alguma imperfeição da
alma. O espectro da “mulher fácil” permeava as desconfianças masculinas e
femininas. 429

Em João do Rio, a tatuagem feminina ganhou também o estigma da vaidade, tanto mais
desvalorizada quanto inserida entre as classes pobres. O autor aponta que entre os motivos para
a tatuagem entre as mulheres: “Há ainda a vaidade imitativa. As barregãs das vielas baratas têm
sempre um sinalzinho azul na face. É a pacholice, o grain de beauté, a gracinha, principalmente
para as mulatas e as negras fulas que o consideram o seu maior atrativo”.430
O cerceamento da autonomia sobre o corpo ganhou contornos de cruzada moral,
acentuadamente sexual. Além da prostituição, constantemente associada às mulheres tatuadas
na primeira metade do século, a ciência entraria em cena por meio da psicanálise para atestar
que a tatuagem feminina era indício de comportamento masoquista. Em nota de 1956, O Jornal
afirmava que “se a moda pegar e as mulheres desandarem a se cobrir de desenhos estranhos, os
noivos de amanhã junto com o exame de saúde, devem exigir um exame de pele pra ver se a
noiva não tem desenhado algum bichinho ou alguma florzinha que revele ser ela um pouquinho
masoquista”. 431
Repressão da sexualidade, anulação das agências políticas do corpo, interdição da
autonomia. Se o projeto disciplinar burguês visa tornar comum esses elementos aos homens
pobres, nas mulheres eles se intensificam. A condição de pobreza compromete a posse do
próprio corpo por esses sujeitos a partir do projeto aqui discutido. Quando essa
instrumentalização ganha a arena do sexo, a repressão se intensifica. João do Rio escreve:

429
SANT’ANNA, D. História da beleza no Brasil, p. 27.
430
RIO, J. A alma encantadora das ruas, p. 20, grifo nosso.
431
O JORNAL, 07 de agosto de 1956.
146
Grande parte desses homens e dessas mulheres têm o delírio mais sensual,
fazem os nomes queridos em partes melindrosas, marcam os membros
delicados com punhais, lâmpadas e outros símbolos. Neste caso eu tenho o
Antônio Doceiro, um lindo rapazito que foi bombeiro depois de ter rolado pelo
mundo, e a Anita Pau. Ambos têm desenhos curiosos por todo o corpo, e a
pobre Anita mostra no calcanhar por extenso o nome do pai seus filhos e traz
em cada seio a inicial dos dois pequenos como numa oferenda – a sua única
oferenda de mãe aos desgraçados perdidos... 432

Sob a ótica burguesa, se as tatuagens masculinas marcavam os ociosos e perigosos


pobres, a tatuagem feminina foi percebida predominantemente como produto da motivação
amorosa, reduzindo a mulher à costela de Adão, cuja existência se deu em função de amar,
cuidar e dar prazer ao homem. Como se fossem incapazes de uma existência autônoma, essa
lógica retrata as tatuagens femininas como destinadas quase que exclusivamente à atração ou
submissão do amor masculino:

As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam,


desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e marcam o mesmo nome
no pé, no calcanhar. — Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano.
Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o
seu nome odiado. É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira,
amassado por todo o peso da mulher...433

Em 1928, Barros Vidal, o mesmo autor que havia escrito sobre as tatuagens do barbeiro
Guilechini, publicou no jornal O Malho o texto Romance Escrito. 434 Nele, o autor narra as
desventuras amorosas de Marocas Barradas, mulher que chamava a atenção por suas tatuagens
e pelas significações que fazia delas. Tendo nascido filha de uma prostituta e de um pai que
nunca conheceu, e cujo nome gravara no braço esquerdo na esperança de um dia encontrá-lo,
Marocas havia crescido no prostíbulo, ocupando aos treze anos de idade, após a morte da mãe,
seu lugar na casa. Se mantivera ali e não conhecera outra vida pelo menos até os quarenta e oito
anos, quando a reportagem foi produzida. De acordo com Dona Thomásia, a cafetina da casa,
Marocas possuía tatuagens que revelavam suas crenças, esperanças e paixões.

432
A alma encantadora das ruas, p. 20.
RIO, J.
433
A alma encantadora das ruas, p. 19-20.
RIO, J.
434
VIDAL, B. O romance escrito. O MALHO, 21 de julho de 1928.
147
Imagem 14: Reportagem ilustrada O romance escrito, publicada na revista O Malho, parte 1

. Fonte: O Malho, 21 de julho de 1928

148
Imagem 15: Reportagem ilustrada O romance escrito, publicada na revista O Malho, parte 2

Fonte: O Malho, 21 de julho de 1928


149
Em reportagem fartamente ilustrada, característica da revista O Malho, especializada
em crítica política e caricatura 435, a trajetória de Marocas foi contada por imagem e texto que
se complementam. O olhar altivo de Marocas na primeira ilustração, fumando um cigarro,
procura representar o que a textualidade de Vidal descreve como “uma expressão canalha na
fisionomia”. Os braços de Marocas aparecem fartamente tatuados, talvez mais do que de fato
fossem. O texto de Vidal procura o significado de suas tatuagens, sempre obtidos de segunda
ou terceira mão.
A primeira tatuagem de Marocas a ser descrita é a representação de um cárcere na mão
esquerda. Segundo Thomásia, a tatuagem tinha a função mística de prender qualquer homem a
quem aquela mão tocasse. Nos braços, Marocas trazia a lembrança de uma tragédia. Seu amante
do coração a surpreendeu aos beijos com outro homem “depois da meia-noite”436 e matou-o,
ferindo Marocas. Como amava o assassino, que fugiu, Marocas mandou tatuar uma lembrança
do evento que os separou.
Para “defender-se de pragas rogadas pelas costas”, Marocas tinha nelas tatuada uma
imensa árvore cujas ramagens transformavam-se em cabeças de serpentes. A simbologia dos
desenhos de Marocas abrangia também as figuras religiosas, como o crucifixo que trazia no
peito. Além de representar a devoção religiosa, o Cristo crucificado de Marocas simbolizava o
sofrimento constante de seu coração, que nos momentos de amargura teria Cristo por perto. 437
Entre outras tatuagens, Marocas tinha no calcanhar uma tatuagem que remete ao caso
narrado anteriormente por João do Rio. Era o nome de um sargento de polícia por quem ela se
apaixonara. Após desentendimentos, Marocas lhe proferiu impropérios e declarou-lhe,
mostrando a tatuagem:

Vocês homens, são assim. Se a gente tem vocês no coração, vocês não gostam
da gente. Pondo vocês no calcanhar, de rastos, esfregados no pó e na lama,
vêm doidinhos feito cachorros. O peso de uma mulher vale mais que um litro
de lágrimas, desgraçado! Estás aqui, debaixo de mim. Tens de ser meu. 438

Como qualquer diálogo reproduzido a posteriori por terceiros – seja a fala de Marocas
ou as palavras atribuídas à Jesus Cristo na Bíblia cristã – a fidelidade de sua reprodução é

435
MAUAD, A. Sob o signo da imagem, p. 208.
436
É provável que o termo faça referência à Marocas se relacionando com outro homem de forma não profissional,
fora do expediente de prostituição.
437
VIDAL, B. O romance escrito. O MALHO, 21 de julho de 1928, p. 12.
438
VIDAL, B. O romance escrito. O MALHO, 21 de julho de 1928, p. 12.
150
questionável. Ainda assim, o caso retratado reforça a indicação de João do Rio, da
instrumentalização das tatuagens como meio de atração e vingança contra amores
malsucedidos. Contudo, as tatuagens de Marocas revelam que, para muito além disso, as
mulheres fizeram uso da marcação corporal com objetivos vários.
A tatuagem foi, portanto, durante toda a primeira metade do século XX, uma prática
corporal objetivada pelo discurso de repressão que aliou política, ciência e imprensa em sua
construção. As elites brasileiras significaram-na como estigma capaz de revelar o criminoso
nato ou o degenerado arruinado por seu meio social; o pobre ocioso, constantemente sob a
suspeição de classe perigosa, incapaz de partilhar os legítimos valores burgueses do mérito e
do apreço pelo trabalho; ou o sujeito primitivo representante do atraso moral que se opunha ao
desenvolvimento e ao progresso que a modernização burguesa pretendia.
Por outro lado, os tatuados construíram a si mesmo a partir da marcação indelével de
seu corpo com suas experiências de amor, paixão, ódio, esperança e fé. Tatuar-se com este ou
aquele signo pode ter tido os significados mais diversos possíveis para os tatuados estudados,
para muito além daquilo que esbocei, especialmente se considerarmos que o acesso que temos
às suas significações são sempre mediados pelos mesmos instrumentos repressivos que os
objetivaram, como a imprensa e a ciência.
Contudo, independente do que signifique à Marocas seu crucifixo estampado no peito;
do que tenha de fato representado o cupido carregando um coração gravado no peito do ex-
marinheiro Waldemar; ou do grau de consciência política mais ou menos aguçado de quem
trazia as armas da República ou a Coroa Imperial estampadas no corpo; é inegável que o fato
de se tatuarem, para além do significado atribuído ao desenho, contribuiu para a produção de
uma experiência de subjetivação que envolve a sensação – real ou fictícia – de autonomia sobre
o próprio corpo.
Como afirma Denise Sant’Anna, “até meados do século XX, para ambos os sexos, ter
direitos sobre o próprio corpo tendia a ser uma excentricidade típica de pessoas da elite
mundana ou um capricho afeito aos malandros, libertinos, homossexuais e prostitutas”. 439 Não
por acaso, a curiosidade do repórter acerca de suas tatuagens parecia incomodar mais ao
barbeiro Guilechini do que sua própria detenção440, assim como Marocas repelia a intromissão

439
SANT’ANNA, D. História da beleza no Brasil, p. 58.
440
VIDAL, B. O homem que tem um álbum de emoções no corpo. O MALHO, 01 de dezembro de 1928.
151
do mesmo repórter ao dizer: “As minhas tatuagens? São minhas, minhas! São a minha
intimidade, os meus segredos que não confio a qualquer um”. 441
No contexto de privação, submissão e disciplina que se pretende encerrar as classes
pobres, o corpo, por vezes único elemento material de que dispõem, aparece como último reduto
de resistência e possibilidade de construção de uma experiência de existência relativamente
autônoma.

441
VIDAL, B. O romance escrito. O MALHO, 21 de julho de 1928.
152
PARTE II

JUVENTUDE E REBELDIA: RESSIGNIFICAÇÃO DISCURSIVA E TATUAGEM


ENTRE AS CLASSES MÉDIAS URBANAS

No início dos anos 60, eram poucos os que tinham


coragem de andar com águias, sereias e estrelas
pintadas no corpo. Hoje, entretanto, estar de bem com
a vida é aderir à tatuagem. 442

Publicada no ano de 1983, a epígrafe que inaugura a segunda parte dessa tese é
instigante. Se os discursos predominantes até o final da década de 1950 mantém sobre a
tatuagem um considerável valor de estigma, instrumentalizando-a como um signo de
primitivismo, criminalidade, decadência ou atraso moral, componentes atribuídos ao ethos das
classes pobres, como as décadas seguintes teriam produzido o entendimento de que “estar de
bem com a vida é aderir à tatuagem”?
O caminho para a compreensão dessa reformulação discursiva parece ser precisamente
a questão de classe. Iniciá-lo-ei por um ator social que protagonizou importantes
transformações, sobretudo na cultura urbana: a juventude. Nas palavras do historiador Eric
Hobsbawm:

A cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural no sentido mais


amplo de uma revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer e
nas artes comerciais, que formavam cada vez mais a atmosfera respirada por
homens e mulheres urbanos. Duas de suas características são, portanto,
relevantes. Foi ao mesmo tempo informal e antinômica, sobretudo em
questões de conduta pessoal. 443

Se os acontecimentos políticos mais dramáticos das décadas de 1970 e 1980 foram


protagonizados pela juventude 444, e se as décadas de 1960 e 1970 inseriram a tatuagem no
mundo da contracultura e da indústria pop por meio de movimentos juvenis como o punk, o
hippie e o Rock and Roll445, é coerente supor que estes fenômenos estão imbricados. Ou seja, a
incorporação da tatuagem como prática corporal pela juventude de classe média no período que

442
SANTOS, A.
Tatuagem. UH REVISTA. 01 de fevereiro de 1983.
443
HOBSBAWM, E. A era dos extremos, p. 323.
444
HOBSBAWM, E. A era dos extremos, p. 317.
445
LEITÃO, D. Mudança no significado da tatuagem contemporânea, p.4.
153
denomino segunda fase da tatuagem brasileira, justamente entre as décadas de 1960 e 1980,
não se restringe a uma alternativa estética, uma moda. Pelo contrário, essa incorporação parece
ter atuado precisamente como estratégia de ação política e de reivindicação sobre o próprio
corpo, por parte dessa juventude.
Uma vez que, a partir desse deslocamento vertical a tatuagem gradativamente se
desvincula da exclusão econômica, mas mantém-se ligada a confrontação de normas políticas,
éticas e estéticas446, a partir dos anos de 1960 ela deixa de operar como sinal distintivo das
classes perigosas para passar a ser associada à noção de rebeldia e transgressão, marcas desse
novo e importante sujeito, (re)inventado na segunda metade do século XX: o jovem. E com o
deslocamento do sujeito, ocorreu a reelaboração do discurso sobre a prática, produzindo sua
ressignificação.

446
LEITÃO, D. Mudança no significado da tatuagem contemporânea, p.4.
154
CAPÍTULO 4

A JUVENTUDE E A REINVENÇÃO DA CULTURA


Havia, portanto, a gestação de uma nova ética
cultural jovem no período, novas esperanças e
novos sonhos de liberdade. 447

Analisar a ressignificação da tatuagem e sua difusão para além das classes pobres, na
qual predominou durante a primeira metade do século XX, implica na compreensão do papel
político, social e cultural da juventude. Como aponta Eric Hobsbawm, o século XX estabeleceu
a juventude a partir de três elementos fundamentais: 1) ela deixou de ser entendida como um
estágio preparatório para ser vista como estágio de pleno desenvolvimento humano; 2) tornou-
se um nicho etário fundamental nas relações de consumo, propensa a consumir novas
tecnologias e produtos; 3) internacionalizou-se culturalmente, difundindo padrões de consumo
e comportamento. Para o autor, a difusão do blue jeans e do rock representam esses três
aspectos, além da hegemonia dos Estados Unidos da América, tanto na cultura popular quanto
nos estilos de vida.448
Eric Hobsbawm afirma ainda que:

A juventude, um grupo com consciência própria que se estende da puberdade


– que nos países desenvolvidos ocorria vários anos mais cedo que nas gerações
anteriores – até a metade da casa dos vinte, agora se tornava um agente social
independente. [...] A radicalização política dos anos 60, antecipada por
contingentes menores de dissidentes culturais e marginalizados sob vários
rótulos, foi dessa gente jovem, que rejeitava o status de crianças e mesmo de
adolescentes. 449

Uma vez que a cultura é um campo privilegiado dos embates entre distintos grupos
sociais, a consolidação da cultura juvenil e seu potencial revolucionário tornam-se elementos
fundamentais de análise, se quisermos compreender as relações de poder, de controle, de
conformação e de resistência que se desenrolam, sobretudo, a partir da década de 1960. Como
aponta Leonardo Brandão, historiador da cultura juvenil, em especial da prática do skate:

[...] foi a partir da segunda metade do século XX, e mais precisamente a partir
dos Estados Unidos, que se generalizou esse processo, ainda em curso, de
simbolização (sobretudo pelo cinema) de um ideal de juventude em

447
BRANDÃO, L. Por uma história dos “esportes californianos” no Brasil, p. 55.
448
PEREIRA, C. Os jovens e a contracultura brasileira, p. 18.
449
HOBSBAWM, E. A era dos extremos, p. 317.
155
consonância a um certo conjunto de elementos que, entre os mais visíveis,
figuram o gosto pela música (principalmente o rock), por práticas esportivas
e de lazer, pela valorização do corpo, da moda e também, e talvez
principalmente, pela busca de vivências que contenham alguma experiência
de transgressão e rebeldia. [...] De todo modo, as características arroladas
acima (gosto pela música, moda, corpo, lazer, etc.) parecem resumir os
sentidos mais exaltados – e explorados – pelos meios de comunicação que, a
um só tempo, tanto retrataram quanto ajudaram a construir esse conjunto de
significados geralmente identificados como juvenis. 450

Transgressão e rebeldia são palavras-chave para a compreensão do papel exercido ou


atribuído à juventude após a Segunda Guerra Mundial. São palavras-chave também para a
compreensão da adoção da tatuagem por parte desses grupos e da consequente ressignificação
que se procurou empreender sobre essas marcas corporais.
O colapso das expectativas de progresso econômico, social e cultural que o século XIX
prometia ao Ocidente, do qual as duas guerras mundiais são a representação mais impactante,
aliado à desilusão crescente quanto a alternativa soviética ao modelo liberal-capitalista, teriam
gerado novas configurações de sociabilidade e de modos de vida; de percepção e de relação
com o corpo e com a individualidade; e mesmo de organização coletiva em torno de pautas
reivindicatórias e movimentos sociais.
Leonardo Brandão denomina essa nova ética cultural de juvenilização da cultura.

Especialmente nos países capitalistas do Ocidente, na Europa, mas


principalmente nos Estados Unidos e também no Brasil, a segunda metade do
século XX assistiu a uma juvenilização da cultura e com ela a busca por novos
canais de expressividade. Muitos jovens, em maior ou menor escala,
passaram, através de suas práticas sociais e atitudes cotidianas, a reivindicar
que um outro mundo era possível, não mais aquele da guerra, do militarismo,
da repressão e da sisudez – ou do trabalho incessante e com ele o pouco tempo
dedicado ao tempo livre – mas sim um mundo com características diferentes,
de realidades mais abertas ao prazer, ao lúdico e à alteridade, sendo a música
Imagine de John Lennon, a canção Blowing in the wind de Bob Dylan, ou o
hino antimilitar de Geraldo Vandré, alguns exemplos dessas utopias levadas a
sério. [...] Havia, portanto, a gestação de uma nova ética cultural jovem no
período, novas esperanças e novos sonhos de liberdade. 451

Como aponta Brandão, as consequências da Segunda Guerra sobre a percepção e o


posicionamento social dos jovens encontraram via de expressividade no Rock and Roll,

450
BRANDÃO, L. Por uma história dos “esportes californianos” no Brasil, p. 46-47, grifo nosso.
451
BRANDÃO, L. Por uma história dos “esportes californianos” no Brasil, p. 55.
156
fenômeno cultural que confrontava o conservadorismo social, cultural e estético vigente,
compondo a trilha sonora das mudanças sociais de seu tempo.452
Herança cultural do blues, gênero musical afro-americano e essencialmente ligado à
experiência da escravização nos Estados Unidos, o Rock and Roll manterá uma relação cultural
íntima com a tatuagem, para muito além da apropriação das tattoos pelos rockstars, que nas
décadas seguintes estamparão inúmeras capas de revistas e ocuparão canais de televisão como
a MTV 453, cuja programação destinava-se amplamente a exibição de videoclipes de música
voltados ao público jovem.
Para além disso, me refiro à apropriação dessas duas práticas por parte da juventude de
classe média, e em menor medida, de classe alta. Assim como o Rock, essa espécie de Blues
embranquecido, a tatuagem se deslocará de uma prática quase exclusiva das camadas pobres
para as classes médias, transformando-se em opção de consumo de estilos de vida. Essa
ascensão vertical de práticas culturais é percebida já no século XIX, e é justamente a juventude
o canal de sua fluidez interclasse.

Na Era dos Impérios, as influências culturais começaram pela primeira vez a


mover-se sistematicamente de baixo para cima, tanto através do forte impacto
das artes plebeias em desenvolvimento recente quanto através do cinema,
diversão do mercado de massa por excelência. Contudo, a maioria das
diversões populares e comerciais entre as guerras permaneceu em muitos
aspectos sob a hegemonia da classe média, ou foi posta sob suas asas. [...] A
novidade da década de 1950 foi que os jovens das classes alta e média, pelo
menos no mundo algo-saxônico, que cada vez mais dava a tônica global,
começaram a aceitar a música, as roupas e até a linguagem das classes baixas
urbanas, ou o que tomavam por tais, como seu modelo. O rock foi o exemplo
mais espantoso. [...] O mercado de moda para os jovens plebeus estabeleceu
sua independência e começou a dar o tom para o mercado grã-fino. [...]
Rapazes respeitáveis, e cada vez mais moças, começaram a copiar o que antes
era uma moda machista estritamente não respeitável entre os operários
braçais, soldados e pessoas assim, o uso ocasional de palavrões na conversa. 454

A incorporação de práticas culturais das classes pobres pela juventude de classe média
urbana é, possivelmente, o elemento mais importante no estudo da ressignificação da tatuagem.
Sem ela, é difícil vislumbrar o mesmo deslocamento de significado produzido sobre o ato de

452
BRANDÃO, L.
Por uma história dos “esportes californianos” no Brasil, p. 54.
453
A MTV, ou Music Television, é um canal de televisão criado nos Estados Unidos em 1981, cuja programação é
em boa parte voltada à exibição de videoclipes musicais. Sua criação é um dos marcos da história da música
contemporânea, pela importância da incorporação definitiva da imagem ao som, no mercado das produções
musicais. No Brasil, o canal entrou em exibição em 1990 e permaneceu até 2013, quando a detentora dos direitos
da marca encerrou as atividades no país. CORREA, L. Breve história do videoclipe, p. 10.
454
HOBSBAWM, E. A era dos extremos, p. 323-325, grifo nosso.
157
tatuar-se. Mesmo a profissionalização dos tatuadores e a institucionalização dos espaços de
tatuar, pontos fundamentais dessa história, parecem ter se desenvolvido em em razão da
apropriação da tatuagem pela classe média, como forma de atender a esse novo público. 455
Como afirma a reportagem de Antonieta Santos para a UH Revista, suplemento do
jornal Última Hora:

Entre os surfistas, a tatuagem já era usada desde a época dos pranchões de


madeira. Mas não era todo mundo que tinha coragem de encarar uma águia ou
um dragão no braço. Só mesmo os mais espertos enfrentavam os preconceitos,
a tatuagem era malvista e considerada coisa vulgar, de marinheiro ou de
estivador. Daí os preconceitos. Antônio, 33 anos, que começou a surfar
enquanto o esporte ainda era uma aventura louca. Era o início dos anos 60,
das manifestações de inconformismo dos jovens, “da vontade de ser livre, de
caminhar com os próprios pés”, dispensar a tutela dos pais. Tatuar – do
taitiano tatu, sinal, só poderia chegar à juventude da Zona Sul por influência
direta dos surfistas que “importavam até revistas americanas para saber das
coisas”. O rock também deu sua contribuição a essa moda. 456

Malvista e vulgar são os termos atribuídos à tatuagem no momento em que a autora a


associa às classes pobres: coisa de marinheiro e estivador. Como revela o discurso de
Antonieta, a apropriação posterior da prática pela juventude obrigava a reformulação
discursiva. Não mais vulgar e malvista, doravante a tatuagem deveria ser signo do
inconformismo, da vontade de ser livre.
A tatuagem há muito estampava a pele das classes pobres brasileiras. Mas foi justamente
a adesão da juventude de classe média que provocou a necessidade de reelaboração de seu
significado, transmutando-a, aí sim, de um estigma conformador e confirmador de uma
identidade marginalizada, daqueles anteriormente nomeados classes perigosas; para uma
estética alternativa, ou uma moda, como os discursos midiáticos passam a retratá-la após a
adesão da juventude de classe média.
Tal dinâmica não se restringiu à tatuagem, e a trajetória do rock é prova disso. Pelo
contrário, o que defendo é que a cultura juvenil de classe média adotou intencionalmente signos
das classes pobres como manifestação de dissidência ética e divergência estética. Como afirma
Carolina Pereira, ao estudar a moda:

Os símbolos da cultura juvenil passam, então, a vir da rua, e estes ganham


vida na passarela. Assim, a moda deixa de ser padronizada e, gradativamente,

455
SOUZA, F. A infame arte da tatuagem, p. 131.
456
SANTOS, A. Tatuagem. UH REVISTA. 01 de fevereiro de 1983.
158
o estilo individual norteia as escolhas da composição, com peças de vestuários
e acessórios. Expressam engajamentos políticos, pessoais e culturais de cada
pessoa e influenciam a sociedade a se vestir inspirada nesta cultura juvenil
emergente. 457

Se nos ditos países desenvolvidos este processo se inicia, como propôs Hobsbawm,
entre o fim do século XIX e o início do XX, é possível percebê-lo ganhando força no Brasil a
partir da década de 1950, como afirma Paulo Sérgio do Carmo:

Na década de 50, a nossa classe média cada vez mais assimilava padrões de
comportamento vindos de fora, e aqui também surge o novo rebelde
influenciado pelo estilo de vida norte-americano popularizado através do
cinema, e que exerceu papel influente na mudança de valores, hábitos e modos
de agir dos jovens brasileiros. 458

Referindo-se à influência do cinema hollywoodiano, Carmo salienta a radicalização


comportamental da juventude, no sentido de a segunda metade do século XX marcar uma
ruptura mais expressiva entre as gerações, a partir da experimentação de possibilidades de
existência e experiências individuais mais distanciadas daquelas consagradas como legítimas
pelas gerações anteriores. Nas palavras do autor:

A recusa radical da juventude aos valores convencionais entrava em cena


com grande alarde. Cabelos longos, roupas coloridas, misticismo oriental,
muita música e drogas. Uma série de manifestações culturais novas refletiam
e provocavam novas maneiras de pensar, modos diferentes de compreender e
de se relacionar com o mundo e com as pessoas. Configurava-se, assim, o
florescer de um movimento social de cunho fortemente libertário, com enorme
sedução da juventude dos setores médios urbanos. 459

De forma semelhante, Eric Hobsbawm afirma que a construção identitária da juventude


sob o signo da ruptura, resulta da conjugação de elementos econômicos e culturais. Segundo
Hobsbawm, a consolidação da sociedade de consumo facilitou a descoberta de símbolos
materiais e culturais de identidade por parte da juventude. Contudo, afirma o autor, a identidade
juvenil foi construída a partir recusa às gerações anteriores, a partir do que Hobsbawm se refere
como “enorme abismo histórico” que separava as gerações nascidas a partir de 1950.460

457
PEREIRA, C. Os jovens e a contracultura brasileira, p. 19.
458
CARMO, P. Culturas da rebeldia p. 31.
459
CARMO, P. Culturas da rebeldia p. 51, grifo nosso.
460
HOBSBAWM, E. A era dos extremos, p. 322.
159
O caráter individualista, por focar o sujeito e certo discurso individual e libertário; e o
coletivista, por resultar em novas configurações de sociabilidade e agregação, aquilo que
Michel Maffesoli nomeará neotribalismo 461; serão habilmente apropriados pelo sistema
capitalista na direção de sua mercantilização, e a noção de moda comporá o discurso
predominante sobre a tatuagem em sua segunda fase. Em matéria publicada no Jornal do Brasil
em 1982, Isabel Rodrigues afirmava a tatuagem como um dos símbolos de identificação de uma
juventude que adotava identidades simultaneamente disruptivas e aglutinadoras:

Punk, ska, new wave, são palavras que definem movimentos jovens europeus,
e que no Brasil traduzem-se em moda, roupas, cabelos e maquilagens. E nada
além disso é exigido para essa festa do Rock Meu Bem: uma caracterização
divertida, fora do traje passeio ou jeans batido. Vale a pena usar a imaginação
e tentar vestir algo diferente, bonito, dentro do espírito rock do baile. Estes
são os improvisos possíveis: [...]Punk: o mais fácil. Dispensando o olhar
agressivo e os alfinetes enfiados na pele, podemos partir para jeans justos, com
botas de bico fino, e os collants e camisetas sem mangas, aderentes à pele, em
malha preta. Cintos e pulseiras tacheados, uma tatuagem pintada nos braços e
maquilagem feminina com muito vermelho. Para ele, um bom topete ou
cabelo arrepiado. 462

Considerar essa mercantilização das identidades é importante se quisermos


compreender a ressignificação da tatuagem a partir da juventude de classe média. É preciso ter
clareza de que não se trata, simplesmente, da reconfiguração do significado das práticas
culturais das classes pobres, mas sim de sua incorporação pelas classes médias. Como afirma
Carmo sobre a cultura juvenil pós-década de 1960:

Não se tratava, porém, de uma rebelião de despossuídos. Ao contrário, esses


jovens tinham amplo acesso aos privilégios da cultura capitalista, que lhes
proporcionariam possibilidades de sucesso no sistema de ensino e no mercado
de trabalho. Mas rejeitavam todos os valores e os saberes estabelecidos por
essa cultura. 463

Portanto, o discurso sobre a tatuagem se ressignificou para se adequar ao novo público


tatuado e produzir sobre este uma identidade coerente: não mais restrita às classes pobres-

461
O conceito de neotribalismo pode ser sintetizado como uma dinâmica associativa típica das sociedades urbanas
pós-modernas. A expansão da indústria cultural e das tecnologias, especialmente as da comunicação, teriam
promovido novas configurações de socialização que se afastariam das associações predominantemente
condicionadas às comunidades locais dos indivíduos, para incluir possibilidades associativas em torno de
identificações reconhecíveis a partir de outros elementos, compartilhados por uma nova dinâmica de trocas
simbólicas, mediada pela expansão cultural e tecnológica citadas. Ver: MAFFESOLI, M. O tempo das tribos.
462
RODRIGUES, I. A roupa da festa, pretexto para a fantasia. JORNAL DO BRASIL, 29 de janeiro de 1982.
463
CARMO, P. Culturas da rebeldia p. 52.
160
perigosas e sua insuficiência moral inata, doravante incorporando a juventude de classe média,
com sua rebeldia temporária e transgressão consentida.

4.1 CONTRACULTURA, DISSIDÊNCIA ÉTICA E DIVERGÊNCIA ESTÉTICA


A rejeição dos valores e saberes estabelecidos pelas gerações anteriores, manifesta na
adoção de posturas éticas dissidentes e manifestações estéticas divergentes, aspectos típicos da
juventude durante a segunda fase da tatuagem brasileira, seria amplamente reconhecida pelo
termo contracultura.
Antes de me ater à noção de contracultura e sua relação com a juventude brasileira do
período, importa-me discutir as noções de dissidência ética e divergência estética. Essas noções
são empregadas pelo sociólogo português Vítor Sérgio Ferreira:

A estética da divergência, que caracteriza a corporeidade extensivamente


marcada com recurso à tatuagem e ao body piercing, configura uma forma de
demarcação estilística através da qual alguns jovens constroem e dão a
(re)conhecer não só a sua identidade pessoal, mas também o modo como
percebem e se relacionam com o mundo. Implica uma performance estética
que excorpora uma homóloga atitude ética, consubstanciando um sentido de
desafiliação perante a ordem cultural e social estabelecida. Trata-se de uma
ética de dissidência que reclama uma remoralização da vida quotidiana no
sentido de conquistar um espaço social de existência no mundo, onde seja
possível viver o compromisso com um corpo, uma identidade e um estilo de
vida que se pretende “alternativo” aos disponibilizados pelo atual
“supermercado de estilos”, em condições de autenticidade, respeito e
liberdade individual. 464

Tomo emprestada a reflexão de Ferreira sobre os corpos extensivamente marcados da


contemporaneidade, pois ela me parece adequada ao entendimento da juventude de classe
média entre as décadas de 1960 a 1980. A diferença reside no fato de que, se para o sujeito
contemporâneo de Ferreira, é a extensão área tatuada no corpo do indivíduo o que denota o seu
potencial ético dissidente e estético divergente, defendo que para a juventude de classe média
entre as décadas de 1960 e 1980, uma única tatuagem evocava potencialmente o valor de
dissidência ética e divergência estética. A ruptura não se encontrava na extensão corporal
tatuada, mas sim no próprio ato de se tatuar. Melhor dizendo, no ato de adotar uma prática
cultural das classes pobres.

464
FERREIRA, V. Política do corpo e política de vida, p. 291.
161
Portanto, adoto a proposição de Ferreira, de que a tatuagem é uma expressão estética
divergente resultante da excorporação de uma atitude ética dissidente. Nossas análises se
diferenciam no que tange ao contexto sócio-histórico analisado, no sentido de afirmar que, para
a juventude brasileira de classe média entre as décadas de 1960 e 19800, a divergência estética
não precisava apelar à extensividade corporal para manifestar a dissidência ética do sujeito
tatuado.
Em reportagem publicada em 1989 pelo Jornal do Brasil, intitulada “Moda da tatuagem
se alastra e preocupa pais”, as pequenas tatuagens que Gisele de Andrade tinha pelo corpo
eram suficientes para ilustrar a preocupação parental presente no título. No período entre as
décadas de 1960 e 1980, a juventude de classe média dos centros urbanos brasileiros não
precisavam recorrer à marcação extensiva do corpo para afirmar valores éticos de
inconformismo, rebeldia e transgressão. A tatuagem, em si, prática herdada das classes pobres,
era a afirmação de tais valores.
Imagem 16: Gisele e suas tatuagens: preocupação para os pais de classe média

Fonte: Jornal do Brasil, 27 de agosto de 1989.

162
Assim, aplicando à proposição de Ferreira uma leitura diacrônica, entendo que, para
a juventude de classe média entre as décadas de 1960 e 1980, a tatuagem é uma manifestação
estética que se vale da divergência, da ruptura com o normal, como modo de confrontação e
afirmação identitária que visa excorporar, ou seja, evidenciar por meio de sua experiência de
construção e afirmação corporal, o distanciamento consciente para com a normalidade
estabelecida pelas instâncias que se encontram em situação privilegiada de exercício de poder,
tornando-se assim, potencialmente, uma estratégia de resistência à normalização, por meio da
deliberada anormalização do corpo.
A reivindicação dessa divergência estética e dissidência ética são comumente
sintetizadas a partir de um outro termo, comumente associado à juventude: rebeldia. Para
Ferreira, a tatuagem entre a juventude se associa diretamente à rebeldia, que se expressa em
duas instâncias fundamentais. Em primeiro lugar, tatuar-se é confrontar a noção sacralizada de
corpo naturalizado. Em segundo, a prática entre os jovens caracteriza-se por desafiar as
instâncias sociais e institucionais que personificam o controle, a autoridade e o poder: os pais,
os educadores e os empregadores. 465
A percepção desse potencial disruptivo, segundo Ferreira, se insere precisamente no
ponto que defendo. A noção de rebeldia reside, para o autor, no potencial que a tatuagem tem
de suscitar um pânico moral entre os pais de jovens da classe média, tanto pelo
conservadorismo desses pais quanto por resquícios da associação dessas práticas a
comportamentos desviantes, psicopatológicos ou criminosos466, tônica dos discursos sobre a
tatuagem na primeira metade do século XX.
Rebeldia e transgressão são também importantes para a compreensão de outro conceito
fundamental para a análise da juventude que viveu sob ditadura no Brasil: a contracultura.
Segundo Carolina Pereira:

O termo “contracultura” pode ser definido como um novo estilo de


contestação social ao sistema político-econômico vigente, bem diferenciado
da prática política da esquerda tradicional. Este termo foi muito empregado na
década de 1960, quando empregado para designar um movimento social
libertário, impulsionado pela juventude que se contrapunha aos valores da
sociedade ocidental. [...] Desta forma, esta se afirmou como uma cultura à
margem do sistema; uma cultura marginal ou anticultura. 467

465
FERREIRA, V. Política do corpo e política de vida, p. 298.
466
FERREIRA, V. Marcas que demarcam, p. 42-43.
467
PEREIRA, C. Os jovens e a contracultura brasileira, p. 20.
163
Essa cultura marginal ganhou espaço na moda, nas práticas de lazer e sociabilidade e
na relação da juventude com o corpo. Em relação à moda, Carolina Pereira afirma:

A consequência desse estilo jovem é a admissão de um visual mais


descontraído e colorido, com inspiração na cultura hippie, longe de suas
ideologias. Esta descontração no vestuário esteve presente somente no meio
universitário, na rua e no ambiente de lazer, enquanto no trabalho mantinha-
se o traje formal e sério. A adesão de um vestuário mais confortável e informal
era a reação a um relaxamento dos hábitos para alguns momentos em que se
começava a permitir a informalidade no comportamento. [...] Assim, a moda
jovem foi descoberta como um mercado potencial carregado de erotismo.
Neste período, o corpo feminino era sutilmente sugerido nas calças saint-
tropez, em que o umbigo ficava de fora, causando suspiros e revoltas. 468

É forçoso afirmar, como faz Pereira, que a contracultura tenha se configurado, na


prática, em anticultura. Afinal, a apropriação de manifestações ora transgressoras como o rock,
a tatuagem e a estética hippie e punk, por parte da dita cultura oficial, provam o contrário. Ainda
assim, a contracultura foi um ponto de ruptura com a noção de legado geracional e,
consequentemente, viabilizadora de novas configurações de corporeidade, sociabilidade e
política. Conforme Eric Hobsbawm:

Liberação pessoal e liberação social, assim, davam-se as mãos, sendo sexo e


drogas as maneiras mais óbvias de despedaçar as cadeias do Estado, dos pais
e do poder dos vizinhos, da lei e da convenção. [...] O recém-ampliado campo
do comportamento publicamente aceitável, incluindo o sexual, na certa
aumentou a experimentação e a frequência de comportamento até então
considerado inaceitável ou desviante, e sem dúvida aumentou sua
visibilidade. 469

A noção de liberação individual é ponto fulcral dos movimentos que marcaram as


décadas de 1960 e 1970 e, portanto, da própria noção de contracultura. Esse período é
caracterizado pela eclosão simultânea e não coordenada de revoltas juvenis em diversos países
do mundo. O slogan hippie, faça amor, não faça guerra, dá pistas sobre como a liberação
individual e a instrumentalização política do corpo ganharam força. Segundo Marcelo Ridenti:

[...] a contracultura caracterizava-se por pregar a liberdade sexual e o uso de


drogas – como a maconha e o LSD, cujo uso era considerado uma forma de
protesto contra o sistema. O amor livre e as drogas seriam liberadores de
potencialidades humanas escondidas sob a couraça imposta aos indivíduos
pelo moralismo da chamada sociedade de consumo. Aliás, contra os valores

468
PEREIRA, C. Os jovens e a contracultura brasileira, p. 19.
469
HOBSBAWM, E. A era dos extremos, p. 326-328.
164
dessa sociedade, começaram a se formar comunidades alternativas com
economias de subsistência no campo e um modo de vida inovador, como as
do movimento hippie. 470

Causando impactos permanentes no comportamento, na relação entre os sexos e nas


demandas sociais, a contracultura foi fundamental para a reconfiguração política que se viu a
partir da década de 1960. Segundo Ridenti, o período é marcado pela transformação na relação
entre os sexos, visível na crescente emancipação feminina; pelas reivindicações do movimento
negro – o Black Power – contra a sociedade excludente; pela eclosão de movimentos defensores
da diversidade sexual; e pelo sonho da nova esquerda na construção do homem novo, termo
empregado com frequência por Che Guevara. 471

Havia necessidade de quebrar velhos tabus e destruir valores estabelecidos.


Paz e amor; desbunde; aqui e agora; [...] Esse conjunto de manifestações novas
que brotaram em diversos países foi chamado de contracultura. Trata-se da
reivindicação de um estilo de vida diferente da cultura oficial, valorizada e
defendida pelo sistema. Underground, no sentido de “à margem”, essa cultura
contestava e criticava radicalmente o que já havia sido produzido pela cultura
ocidental, pondo em xeque os valores tradicionais, de diferentes maneiras, e
buscando novas formas e novos canais de expressão. 472

No Brasil, a década de 1960 é marcada por um golpe civil-militar que instaurou no país
um regime ditatorial que se estendeu até a metade da década de 1980. Posto em marcha em 31
de março de 1964, sob o pretexto de proteger as instituições políticas da ameaça do comunismo,
o processo interrompeu a democratização política do país, as tímidas reformas de base ensaiadas
nos anos anteriores, e procurou silenciar as reivindicações dos trabalhadores urbanos e rurais,
estudantes, intelectuais e militares de baixa patente.473 No plano da política institucional os anos
seguintes foram marcados pela extinção de partidos políticos constituídos, cassação de
mandatos, suspensão de direitos políticos e civis, como o habeas corpus, censura e perseguição
política da oposição, incluindo a juventude organizada em torno do movimento estudantil. Ao
mesmo tempo, nos porões do braço armado do regime – as delegacias de polícia do
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) – a tortura se generalizou. 474

470
RIDENTI, M. 1968: rebeliões e utopias, p. 141.
471
RIDENTI, M. 1968: rebeliões e utopias, p. 136-139.
472
CARMO, P. Culturas da rebeldia p. 51.
473
RIDENTI, M. 1968: rebeliões e utopias, p. 149.
474
RIDENTI, M. 1968: rebeliões e utopias, p. 153.
165
Em 1968, o Ato Institucional número 5 enrijeceria ainda mais o controle dos militares
sobre a política brasileira, marcando a derrota das expectativas de redemocratização e
deslocando a juventude antiditadura para três caminhos possíveis: a luta armada, a resistência
democrática em pequenas ações e o desbunde. 475 Este último faz referência à postura adotada
por aqueles que se abstiveram da luta armada e concentraram suas ações políticas na
contracultura.
Segundo Carolina Pereira, o termo desbunde evidenciava “o deboche que criticava as
atitudes ‘bem comportadas’, tornando-se, então, uma crítica comportamental. Isto ocorreu
quando o Tropicalismo começou a refletir sobre a necessidade da revolução do corpo e do
comportamento, rompendo com a falta de flexibilidade da prática política vigente”. 476
Vitor Sérgio Ferreira chama a atenção para distinção entre os atos de rebeldia e as
práticas de resistência. Para ele, os primeiros situam-se em tempos e espaços restritos,
correspondendo a ações pontais e, não necessariamente, associadas à reflexividades
transformadoras. Já as práticas de resistência, segundo o autor, designam ações
intencionalmente transformadoras. 477 No Brasil sob ditadura, portanto, é possível perceber a
contracultura associada aos atos de rebeldia, marcada pelo afastamento da luta armada contra
o regime. Contudo, é preciso que questionar o quanto disso não se converteu, no cotidiano de
uma juventude sob ditadura, em práticas de resistência.

A derrota de 68, os sinais de desgaste das alternativas “militaristas”, a minúcia


e a violência da ação repressiva, configuram um período de dispersão e
isolamento. Por outro lado, as sugestões da “revolução individual” que
estiveram presentes no Tropicalismo, encontram um solo fértil. A descrença
em relação às alternativas do sistema e à política das esquerdas dá lugar ao
florescimento, em áreas da juventude, de uma postura “contracultural”. A
droga como experiência de alargamento da sensibilidade e de mudança de
cabeça, a valorização da transgressão comportamental, a marginalização, a
crítica violenta à família – nesse momento, mais que nunca fechada com o
Estado, que lhe oferece as delícias do “milagre econômico” –, a recusa do
discurso teórico e intelectual, crescentemente tecnicista [...] – que tem seus
aspectos na vivência-limite da loucura e do desajustamento – dão o tom do
desbunde: “A cultura e a civilização, elas que se danem, ou não”, cantava
Gilberto Gil na virada da década. 478

475
NAPOLITANO, M. Cultura brasileira, p. 84.
476
PEREIRA, C. Os jovens e a contracultura brasileira, p. 25.
477
FERREIRA, V. Política do corpo e política de vida, p. 298.
478
HOLANDA, H.; GONÇALVES, M. Cultura e participação nos anos 60, p. 25.
166
Aqueles jovens que recusavam o autoritarismo político e o conservadorismo social, que
se percebiam como inadequados, no sentido mesmo do não enquadramento deliberado à ordem
social, recorriam a formas alternativas de revolta e esperanças individualistas de revolução. O
uso recreativo de drogas, a música e o corpo tornavam-se possibilidades de confronto, como
sugere Pereira.

A rejeição ao sistema e a descrença na esquerda geraram um período de


desilusão política. O rock passou a ser um estilo de vida, ou seja, uma forma
nova de se entender a sociedade e o comportamento. Em consequência da
intenção da liberdade comportamental, para radicalizar os costumes
tradicionais e conservadores da sociedade, o uso de tóxicos e a valorização de
experiências sensoriais se tornavam recorrentes nestes jovens, descontentes
com o sistema em vigência. 479

De modo semelhante, Marcos Napolitano descreve a chamada geração AI-5 como:

[...] caracterizada pela disseminação do uso da droga, pelo modismo


psicanalítico e pela desarticulação do discurso racional e politizado, em nome
de uma “expansão da mente” e da liberdade de ação individual. A estética da
marginalidade, ou seja, a opção pela transgressão aos costumes morais e
sexuais, a crítica radical às instituições, tidas como base do “sistema
autoritário” apareciam em diversas peças contraculturais. 480

Para Napolitano, as comunidades contraculturais formadas no período se organizam em


torno de formas não comerciais de viver a cultura, calcadas no artesanato, na diluição da
fronteira entre a vida e a arte e na busca de novos valores morais e sexuais. 481 Neste contexto,
não surpreende que parte da juventude de classe média, associada à contracultura, adotaria a
tatuagem como possibilidade estética de transgressão, provocando o efeito de choque nas
gerações mais velhas e conservadoras.
A tatuagem possui a capacidade simbólica de desconcertar o olhar do outro,
forçosamente provocando a quebra de expectativas entre o corpo esperado e o corpo
encontrado. Essa distância, segundo Ferreira, cria um espaço de confronto simbólico que obriga
o outro a se posicionar diante do que vê, reavaliando ou rejeitando a corporeidade que encontra.
A tatuagem possui, assim, um potencial disruptivo para com os padrões de corporeidade
estabelecidos e desejáveis, produzindo o que Ferreira chama de valor de choque social, que é

479
PEREIRA, C. Os jovens e a contracultura brasileira, p. 26.
480
NAPOLITANO, M. Cultura brasileira, p. 95.
481
NAPOLITANO, M. História do Regime Militar brasileiro, p. 175.
167
tanto mais elevado quanto maior a distância entre as gramáticas de produção e as gramáticas de
recepção. 482
Esse choque é bem expresso na troca de cartas intermediadas pelo Jornal do Brasil.
Entre os dias 15 de março e 12 de abril de 1987, Beatriz Ryff e Claudia Daflon, leitoras do
periódico, expuseram posições divergentes sobre a tatuagem na Seção de Cartas do jornal.
Embora Beatriz não tenha sua idade identificada, referências à inconsequência dos adolescentes
sugerem tratar-se de uma mulher adulta. Já a expressão “futuramente serei mais uma
adolescente tatuada” revela a faixa etária de Claudia, que reproduzia a postura dissidente de
parte dessa juventude.
Em 15 de março, Beatriz afirmava a revista:

Incentivar a tatuagem é uma temeridade. Uma revista tão poderosa não


poderia encarar com naturalidade um comportamento que leva a cicatrizes
irreversíveis. A tatuagem permanente é um desrespeito ao corpo e à pureza
do adolescente que comete por vezes loucuras para as quais não existe volta
nem recuperação. Nenhuma mãe quer ver seu filho tatuado como um boi no
pasto, sem falar nos riscos que um trabalho mal feito pode acarretar. Esses
artistas do fogo, profissionais exímios, deveriam dirigir sua criatividade para
materiais menos perigosos, como produtos mais modernos, cosméticos
coloridos, gel brilhoso de cabelo, adesivos, pinturas laváveis, etc. Beatriz
Barcellos Ryff, Rio de Janeiro, RJ. 483

A resposta de Claudia veio com o mesmo ímpeto:

Gostaria de dizer a Beatriz Barcellos Ryff que a tatuagem é um tipo de arte e


quem a faz, faz com consciência. Não existe essa de “filho tatuado como um
boi no pasto”. Isso é puro egoísmo de sua parte. Se um dia eu tiver um filho
e ele quiser fazer uma ou mais tatuagens, vou explicar a ele o que vem a ser
uma tatuagem e os riscos que ele pode ou não correr. E se for realmente isso
que ele quer e for se sentir bem com isso, ele terá todo o meu apoio. Mesmo
porque, futuramente, serei mais uma adolescente tatuada. Afinal o corpo é
nosso e cada um de nós tem liberdade de usá-lo como quiser. Se alguém está
se sentindo agredido, é porque quer, porque o tatuado está pouco se
incomodando pelo que você pensa ou deixar de pensar. Ele quer mais é se
sentir bem consigo mesmo. Claudia Daflon, Rio de Janeiro, RJ. 484

Mais do que opiniões individuais, a troca de cartas permite vislumbrar parte do conflito
entre a juventude e as gerações mais velhas pelo controle do corpo. No cerne do embate entre
Claudia e Beatriz, reside a instrumentalização da tatuagem como transgressão. As práticas de

482
FERREIRA, V.
Política do corpo e política de vida, p. 299.
483
Antitatuagem. JORNAL DO BRASIL, Seção Cartas, 15 de março de 1987, grifo nosso
484
Pró-tatuagem. JORNAL DO BRASIL, Seção Cartas, 12 de abril de 1987, grifo nosso.
168
marginalidade, conforme Heloísa Buarque de Hollanda, representaram a assunção de uma
postura política de contestação consciente. Nas palavras da autora:

A marginalidade é tomada não como saída alternativa, mas no sentido de


ameaça ao sistema; ela é valorizada exatamente como opção de violência, em
suas possibilidades de agressão e transgressão. A contestação é assumida
conscientemente. O uso de tóxicos, a bissexualidade, os comportamentos
descolonizados são vividos e sentidos como gestos perigosos, ilegais e,
portanto, assumidos como contestação de caráter político. 485

Essa percepção é compartilhada por Leonardo Brandão ao analisar a prática do skate


nas cidades brasileiras. Brandão afirma que “muitos dos jovens que aderiram a essas novas
práticas corporais buscavam vivenciar experiências de excitação e transcendência que, de certo
modo, promoviam uma ‘contestação’ que não mais tinha a ver com os dilemas políticos da
época”. Recorrendo à Lipovetsky, Brandão percebe a adoção dessas transgressões corporais
como “um superinvestimento em questões hedonistas e subjetivas”.486
Notadamente, se o objetivo desses grupos juvenis ao adotarem a tatuagem como sinal
de transgressão era produzir choque e promover a ruptura com os padrões de corporeidade
estabelecidos, tanto sua prática foi bem-sucedida quanto a reação conservadora foi notável.
No mesmo período em que Claudia e Beatriz trocaram suas cartas – e ofensas – no
Jornal do Brasil, o periódico entrevistou Vania Faissal, a Vaninha, uma espécie de professora
de boas maneiras, apresentada como “estudiosa dos hábitos e costumes da Zona Norte”. Tida
como “uma das últimas organizadoras de bailes debutantes no Rio”, Vania fazia coro à voz de
Beatriz e comemorava o suposto “interesse crescente pelas boas maneiras”, que marcaria o
retorno ao que ela chamava de caminho correto. Celebrando o suposto fim da “liberdade sexual
e a volta da etiqueta e da boa conduta”, para ela, os jovens teriam cansado “do excesso de
liberdade” e ansiavam viver dentro de padrões estabelecidos. A tatuagem aparece, na fala de
Vania, como uma afronta a esses padrões: “O comportamento padrão é o que mais abre portas
e tenho notícias, por exemplo, de rapazes com bons currículos que são vetados em empregos
porque têm tatuagem”. 487
Todavia, entre os jovens, o período em questão foi marcado pelo desejo de ruptura, em
que a tatuagem foi mais uma das formas de manifestação. Conforme Célia Ramos, o corpo se

485
HOLLANDA, H. Impressões de viagem, p. 68.
486
BRANDÃO, L. Por uma história dos “esportes californianos” no Brasil, p. 57.
487
JORNAL DO BRASIL, 21 de março de 1987.
169
torna um instrumento fundamental de reivindicação política da juventude pós-guerra e pós-
revolução, como ela chama os grupos juvenis que emergem após o maio de 68 francês. Esta
juventude, negando os sistemas políticos, sociais, religiosos, educacionais e estéticos vigentes,
reinventam o cotidiano por meio da instrumentalização do corpo e da tatuagem. 488
Associada a outros elementos estéticos, a tatuagem compôs a identidade de grupos
dissidentes que procuraram elaborar novas noções de sociabilidade, de vida e de corporeidade.
Alguns deles surgiram entre as classes pobres, especialmente entre o operariado urbano, como
os punks e os skinheads. Outros, surgiram e consolidaram-se no interior juventude urbana de
classe média, como os surfistas, os hippies e os choppers ou bikers, nomes dados à grupos
organizados de motociclistas. O impacto cultural destes grupos e sua associação com a difusão
da tatuagem entre a juventude de classe média é, doravante, o objeto de minha análise.

4.2 PUNKS
Como expressão cultural, o movimento punk surge relacionado à diversos movimentos
e correntes de pensamento, como aponta Leonardo Brandão em diálogo com Antônio Bivar.
Produto do que Bivar chamou de “caldeirão cultural, social, econômico e político”, o punk
emerge como grito de revolta juvenil e menosprezo pela sociedade estabelecida. Associado à
marginalidade, rebeldia e desilusão em relação ao futuro, o punk nasceu entre as classes pobres
de países industrializados, como os Estados Unidos e a Inglaterra, e encontrou significativa
ressonância no Brasil. 489
Visto como uma reação ao otimismo psicodélico do movimento hippie, o punk
representava a parcela da juventude composta por jovens operários ou filhos de operários dos
subúrbios das grandes cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro. Um dos elementos
fundamentais do movimento punk é sua agressividade estética, caracterizada por “roupas pretas,
cabelos moicanos e descoloridos, tatuagens, coturnos, correntes e diversos outros adornos pelo
corpo”. 490
A influência estética do punk foi um ponto de ruptura com relação à cultura juvenil.
Segundo Helena Abramo, “no Brasil, é a primeira vez que o tom central, a inspiração básica do
universo cultural juvenil é dada por jovens das classes trabalhadoras”. 491 Para Paulo Sérgio do

488
RAMOS, C. Teorias da tatuagem, p. 122.
489
BRANDÃO, L. Corpos deslizantes, corpos desviantes, p. 98-99.
490
BRANDÃO, L. Corpos deslizantes, corpos desviantes, p. 99; CARMO, P. Culturas da rebeldia p. 124-125.
491
ABRAMO, H. Cenas juvenis, p. 103.
170
Carmo, o movimento punk operacionalizou o corpo como reflexo do mundo. Explicitar a
violência era a forma de denunciá-la, devolvendo-a simultaneamente contra a ordem social que
privava a juventude suburbana do acesso aos bens culturais e materiais. Surgindo nas classes
trabalhadoras, o punk encontrou adeptos entre a juventude de classe média, especialmente nos
meios universitários e colegiais. 492
A estética e a ética punk foram representadas com maestria pelo cartunista Angeli, em
seu personagem Bob Cuspe:

Bob Cuspe é uma dessas pessoas que, até travar contato com as demais, é
invisível. A diferença é que Cuspe quer ser invisível, quer desaparecer, ao
mesmo tempo em que quer provocar, intimidar e fazer valer sua liberdade
punk. [...] A personagem tem uma personalidade contestadora, rebelde,
irascível, que tem na sua cusparada a revanche contra a sociedade. Assim, Bob
Cuspe cospe em todas as pessoas que passam por ele, como forma tanto de
demonstrar sua rebeldia quanto seu desprezo pela humanidade e pela
sociedade como um todo. Tal qual o jovem urbano do período, a contestação
parece ser sua arma e, ao mesmo tempo, seu modus operandi, já que sua
impotência perante o sistema fica evidente. 493

Embora, curiosamente, não seja representado como um sujeito tatuado por Angeli, Bob
Cuspe é a representação do sujeito punk. Com seus cabelos moicanos e coloridos, seu coturno,
Bob traz consigo outro elemento ligado à cultura da tatuagem no Ocidente: o piercing.
Como afirma Rodrigo Otávio dos Santos, o visual de Bob Cuspe:

lembra muito e é inspirado nos punks que habitavam São Paulo no final dos
anos 1970 e início dos anos 1980. O típico punk paulistano usava roupas
pretas, cinto de couro com tachas, jaquetas também de couro, calças jeans
rasgadas, camisetas furadas, braceletes com metal pontiagudo, coturnos,
correntes e alfinetes nas orelhas. Seu cabelo, em geral, era cortado estilo
moicano, arrepiado ou raspado, deixando-os com aparência agressiva. [...]
Muitos jovens urbanos – seja na capital paulista seja em outras grandes
metrópoles – identificavam-se com Bob Cuspe e suas ideias, tanto que o
personagem foi um dos principais símbolos da rebeldia juvenil nas grandes
cidades. 494

492
CARMO, P. Culturas da rebeldia p. 149.
493
SANTOS, R. A juventude urbana brasileira, p. 96-98.
494
SANTOS, R. A juventude urbana brasileira, p. 101-102.
171
Imagem 17: Bob Cuspe, a personagem punk de Angeli

Fonte: ITAU CULTURAL.ORG.BR/ANGELI. Acesso em: 20 dez. 2020..

Ao lado de Rê Bordosa, outra personagem icônica do autor, Bob Cuspe retratava, no


contexto da década de 1980:

o urbanismo na virada da ditadura militar para a Nova República, e as pessoas


– principalmente os jovens do período – identificam-se com as posturas das
personagens e suas escolhas e ideias. Facetas como a liberdade sexual e a
proliferação da AIDS, o uso de álcool e drogas, a rebeldia explicitada no
vestuário e nas contradições típicas dos punks além do sentimento de culpa
encontradas nas personagens de Angeli não eram muito diferentes daquelas
encontradas nas esquinas das grandes cidades brasileiras durante a transição
democrática ocorrida na década de 1980.495

Se a tatuagem não é marca presente no punk de Angeli, embora ele utilize o piercing, a
relação entre a prática corporal e o movimento serão constantes na imprensa. Diferentemente

495
SANTOS, R. A juventude urbana brasileira, p. 109.
172
do discurso produzido nas décadas anteriores, quando predominava no corpo das classes pobres
e era vista como sinal de primitivismo, atraso moral e predisposição criminosa, a tatuagem entre
a juventude seria mania.

O esvaziamento da conotação marginal que durante anos marcou os tatuados


– marinheiros, estivadores e boêmios – aliado às nova técnicas empregadas,
que garantem a beleza do trabalho e a saúde de quem se submete, são as
principais causas da difusão da nova mania. “Tal como uma pintura do corpo
e outros tipos de adorno, a tatuagem tem um componente narcisista que é a
característica mais marcante da adolescência. O jovem quer ter a ilusão de que
é diferente. Aí, a tatuagem funciona tal como a maconha, o rock, a moda punk,
ou seja, ela vai caracterizar a pessoa como membro de um grupo”. 496

O termo mania é descrito no dicionário, entre outros sinônimos, como “hábito ou


comportamento extravagante; esquisitice, excentricidade, moda”. 497 Não por acaso,
excentricidade e moda se associam no termo utilizado para designar a prática da tatuagem a
partir dos anos de 1960. É perceptível o deslocamento dos discursos quando o alvo deixa de ser
as classes pobres para incorporar a juventude de classe média. O que antes era a explicitação
da moral primitiva ou criminosa, passa a ser narcisismo característico da adolescência, logo,
passageiro. E neste sentido, a reportagem associou a moda punk e a tatuagem a outros elementos
dissidentes como o rock e a maconha.
Considerados um dos veículos de difusão da tatuagem, os punks ajudaram a reforçar
sobre ela o significado que se procurou produzir entre as décadas de 1960 e 1980: o de rebeldia
e transgressão. Como afirma Débora Leitão:

Uma transformação no público consumidor da tatuagem vai acontecer nas


décadas de 50 e 60 do século XX, quando ela passa também a ser utilizada por
gangues e como emblema de movimentos contraculturais, como o movimento
hippie e mais tarde o movimento punk. Não está, então, mais
necessariamente, vinculada à exclusão econômica, mas, sem dúvidas,
mantém-se ligada a propostas políticas, éticas e estéticas contrárias à norma
social, próximas ainda de um estilo de vida relacionado ao desvio. 498

A afirmação de Leitão reforça a tese por mim proposta. O significado desprestigioso


produzido sobre a tatuagem durante a primeira metade do século XX esteve intrinsicamente
associado ao seu predomínio entre as classes populares. A partir da década de 1960, a adesão

496
BRASIL, L. Tatuagem. UH REVISTA. 03 de março de 1983.
497
UOL. MICHAELIS. Mania. Disponível em http://michaelis.uol.com.br/. Consultado em 15 de outubro de 2020.
498
LEITÃO, D. Mudança no significado da tatuagem contemporânea, p.4.
173
de sua prática por parte de jovens de classe média promoveu sua ressignificação, deslocando-
se do gueto sígnico da amoralidade e criminalidade para o da rebeldia e transgressão.
A revista O Cruzeiro, que se tornou a maior revista em circulação na América Latina,
com uma tiragem de 80 mil exemplares na década de 1940, foi um importante canal de difusão
cultural no país. Atingindo considerável penetração no interior do país, ela se tornou um dos
meios de comunicação mais importantes do Brasil a partir dos anos de 1950.499
A reportagem Os tatuados de Ipanema, publicada em 1978, destacou os punks como
importantes difusores da tatuagem, ao lado dos surfistas. Nela, Maria Tereza Delgado afirma
que o dinamarquês Lucky, pioneiro entre os autoafirmados tatuadores profissionais no
Brasil 500, afirmava receber em seu ateliê, em Santos, “surfistas e jovens com tendência punk
vindos de muitos lugares do Brasil”.501 A diversidade de desenhos produzida por Lucky,
segundo a matéria, viabilizava ao tatuado o descobrimento de “identidades com seu modo de
ver a vida”. 502
O papel de punks é, novamente, associado à moda da tatuagem pelo Jornal do Brasil,
que ao lado dos surfistas, são apontados como os responsáveis pela propagação da prática entre
os jovens: “A moda parece que vai e vem, em ondas. Foi redescoberta pelos surfistas no início
dos anos 70. Depois sumiu e voltou relançada pelos punks, no final dos 70”.503
Embora seja um movimento oriundo das classes operárias, o que poderia contradizer
minha tese de que a adesão da classe média é o elemento fundamental da ressignificação da
tatuagem, duas constatações evidenciam que a incorporação da tatuagem pela estética punk está
intimamente ligada à tese defendida. A primeira delas, já citada, é que o movimento punk
repercutiu significativamente e encontrou adeptos entre a classe média. 504 A outra é que, como
afirma Vitor Sérgio Ferreira, a cultura punk e seus elementos estéticos foram gradativamente
incorporados ao mercado como opção estética:

Mais recentemente, as formas culturais do punk, bem como de outras culturas


juvenis pós-guerra, entram no circuito comercial e vão sendo transformadas
em estilo, fundamentadas numa linguagem que destaca os valores da
“autenticidade”, da “diferença” e da “individualidade”. Com este movimento,
as marcas corporais vão também saindo da clandestinidade a que estavam
votadas, conhecendo um crescente sucesso associado à ideia implícita do

499
RIO DE JANEIRO. Secretaria Especial de Comunicação Social. O Cruzeiro, p.10.
500
SOUZA, F. História da Tatuagem no Brasil.
501
DELGADO, M. Os tatuados de Ipanema. O CRUZEIRO, 24 de novembro de 1978.
502
DELGADO, M. Os tatuados de Ipanema. O CRUZEIRO, 24 de novembro de 1978.
503
Comportamento. JORNAL DO BRASIL, 22 de fevereiro de 1987, p. 65.
504
CARMO, P. Culturas da rebeldia p. 149.
174
corpo como objeto maleável, forma provisória. Escapam aos lugares
marginais do sadomasoquismo, do fetichismo e do punk e propagam-se ao
conjunto da sociedade através do sistema da moda.505

A análise de minhas fontes dialoga com as perspectivas de Carmo e Ferreira. Em 1982,


o Jornal do Brasil prometia um verão romântico, com a juventude elegendo a praia como espaço
de reunião de distintas tribos. Lugares como a praia do Pepino, eleita Praia Aberta pelos
frequentadores, na qual grupos distintos poderiam reunir-se e, supostamente, não haveria
modismos ou vetos, aglutinavam-se jovens que se descreviam ou eram descritos como psi 506,
surfistas ou punks. Diferentes daqueles jovens identificados pela sua posição confrontadora do
sistema capitalista e dos valores estabelecidos, os punks a que se refere a matéria eram jovens,
possivelmente moradores da Zona Sul, que se reuniam e se conformavam aos moldes e ditames
da moda. A matéria descreve a interação entre os ditos psis, surfistas e punks, além de
publicitários e cineastas, como Bruno Barreto e Arnaldo Jabor:

A frente dos psi, ficam os surfistas, gente mais jovem, e os punks, que exigem
sungas e biquinis mínimos, e óculos pretos, bem finos (lentes e aros pretos)
sem esquecer as tatuagens (o lugar onde uma tatuagem faz mais sucesso,
atualmente, é pé ou no calcanhar). Publicitários também frequentam São
Conrado, assim como cineastas – Bruno Barreto é assíduo, Fábio Barreto
também, e Arnaldo Jabor é eventual – mas se quiser ir ao Pepino deve ter em
mente que em frente ao Hotel Nacional e Inter Continental a maior presença
é de turistas, facilmente identificados pela cor (muito brancos), e pelas
máquinas fotográficas que insistem em levar para a praia, apesar dos assaltos
frequentes na área. 507

A convivência entre estes punks de apartamento, artistas e profissionais liberais na Zona


Sul, área nobre do Rio de Janeiro, indicia a incorporação mercadológica da estética punk por
grupos de classe média, o que seria alvo de duras críticas – e, por vezes, conflitos diretos – por
parte de outro movimento juvenil urbano que também faria uso da tatuagem: os skinheads.

4.3 SKINHEADS
Outro movimento gestado nos subúrbios metropolitanos e que ressoou no Brasil, foi o
movimento dos skinheads ou, como também ficariam conhecidos nas metrópoles brasileiras,
especialmente nos polos industriais: os carecas.

505
FERREIRA, V.
Marcas que demarcam, p. 46.
506
Grupos que reuniam profissionais e estudantes ligados às áreas de psicologia e psiquiatria.
507
WAINER FILHO, S. Verão 82 será o verão romântico. JORNAL DO BRASIL, 02 de novembro de 1981, p. 6.
175
Como afirma Carlos Eduardo França, o movimento surgiu na Inglaterra, como resposta
rebelde da juventude operária à crise econômica e social da década de 1960, ao crescente
desemprego e a inserção de minorias étnicas no mercado, que aceitavam trabalhar por salários
menores do que os fixados pelos sindicatos operários britânicos. 508
Em julho de 1986, o Jornal do Brasil os apresentava com estranhamento, possivelmente
compartilhado por seus leitores:

Mas quem é esse pessoal que começa a ser visto aqui e ali no Rio,
principalmente no subúrbio e em algumas bandas de rock? Em São Paulo, o
movimento careca já não é novidade. Muitos deles são metalúrgicos, só se
sentem em casa nas cidades industriais do ABC e têm nos integrantes da banda
Garotos Podres os seus representantes mais famosos. Com sua fama de
violentos, os carecas paulistas já foram acusados de serem uma versão
brasileira dos agressivos skinheads ingleses. Os seus companheiros que
tentam repetir o movimento no Rio são os primeiros a rejeitar a comparação:
“O nosso movimento não é uma simples tradução dos skins. Não temos as
mesmas ideias políticas deles – eles são racistas e fascistas. Só tiramos deles
o visual, a maneira de se vestir e a música – o som-ôi”. Quem argumenta
assim é o careca Roberto Avelar da Silva, de 22 anos. Carioca, ele mora na
Pavuna. Já foi office-boy, trabalhou no comércio e numa gráfica, mas agora
está desempregado. 509

O carioca Roberto é exemplo da difusão do movimento skinhead nos centros urbanos


brasileiros. No Brasil, o movimento skinhead ganha força no início dos anos de 1980, no caos
urbano de São Paulo, especificamente a partir de dissidências e contradições no interior de
grupos punks. Segundo França, os carecas do subúrbio, como eram conhecidos, reuniam-se
“em torno de uma forma identitária própria composta por certa agressividade corporal e
incorporação de novas ideias ligadas à procura de um nacionalismo pouco definido do ponto de
vista teórico de proposta de projeto de sociedade”. 510
O nacionalismo incutido na identidade do grupo foi expresso pelo Tribuna da Imprensa,
jornal carioca fundado por Carlos Lacerda, ex-governador do Estado da Guanabara – atual Rio
de Janeiro – e um dos articuladores do golpe civil-militar de 1964. No ano de 1986, o Tribuna
da Imprensa descreveu o estilo dos carecas cariocas:

A vestimenta dos carecas tem caráter nacionalista: “Tenho orgulho de ser


brasileiro. Não uso essas roupas escritas em inglês”, diz Luís. O traje típico
inclui um par de botas do Exército, casaco, de preferência também do Exército

508
FRANÇA. C. Algumas histórias dos grupos de skinheads no Brasil, p. 90.
509
FIGUEIREDO, C. Os carecas dominam a periferia. JORNAL DO BRASIL, 13 de julho de 1986.
510
FRANÇA. C. Algumas histórias dos grupos de skinheads no Brasil, p. 90.
176
e suspensório, que ultimamente vem caindo em desuso “porque está virando
moda”. Sem esquecer a tatuagem colorida, seja um dragão, como a do Beto,
ou uma caveira alada, como a do Nilson. “Em São Paulo”, continua Luís, “os
carecas do subúrbio usam todos uma tatuagem com o nome do grupo, duas
machadinhas cruzadas e embaixo um monte de caveirinhas”. Pra ser careca,
não basta raspar a cabeça. A identificação é pela semelhança e a maioria é
chegada na malhação: “a gente cultua o corpo, tem que ter um corpo
bacana”. 511

O nacionalismo, embora componha a gênese do movimento skinhead inglês, não é ponto


pacífico entre as vertentes do movimento. Como afirma Marcia Regina Costa:

Embora seja clara a ligação de parte dos Skins com a extrema-direita, devemos
ter cuidado com as generalizações, pois também existiam grupos entre eles
que recusavam essa ligação. E ainda havia aqueles que tiveram sua percepção
social e política transformada pela atuação de grupos de extrema-esquerda,
que procuravam mostrar à classe operária a existência de interesses comuns
entre ela e outros setores da população, como as minorias imigradas. 512

No caso dos skinheads brasileiros, o mesmo movimento difuso parece ter acontecido.
Enquanto alguns rejeitaram sistematicamente a associação aos ultranacionalismos, outros
parecem ter se aproximado dele. No Brasil, Carlos França ressalta a atuação do movimento
paulista chamado Poder Branco, como representante da ideologia ultranacionalista entre os
skinheads. Essa divergência também esteve presente na reportagem do Jornal do Brasil sobre
os skinheads cariocas:

Uma menina que andou com o grupo careca durante algum tempo e acabou se
afastando explica a razão: “Eles pessoalmente eram legais, mas começaram a
se interessar demais por tudo que dizia respeito a nazismo...Não gostei disso
e saí fora”. Os nomes das bandas admiradas pelos carecas também são
sugestivos: Solução Final e Auschwitz – que agora mudou de nome para
Catedral da Desordem. Mas eles insistem – não querem se definir
politicamente como anarquistas, nazistas, socialistas ou qualquer outra coisa.
Se há um ista em que se enquadrariam, segundo um deles, é o termo niilista. 513

O intercâmbio cultural Rio-São Paulo, ressaltado na primeira parte desta tese,


permanece relevante ao analisar a juventude dessas capitais entre as décadas de 1960 e 1980.
Roberto, o skinhead apresentado na matéria do Jornal do Brasil, teria migrado entre duas essas
tribos urbanas juvenis – como Michel Maffesoli nomeou parte dos movimentos de

511
As volúveis tribos da noite. TRIBUNA DA IMPRENSA. Tribuna Bis, 20 de junho de 1986.
512
COSTA, M. Os carecas do subúrbio, p. 175.
513
FIGUEIREDO, C. Os carecas dominam a periferia. JORNAL DO BRASIL, 13 de julho de 1986.
177
contracultura que eclodiram na segunda metade do século XX 514 – após viajar para a capital
paulista.

Até uns oito meses atrás, ele se considerava um punk convicto. Hoje, quem o
chama de punk vai estar comprando briga. Roberto começou a mudar de ideia
depois de uma viagem a São Paulo, quando conheceu o pessoal de lá, os
carecas do ABC. “O cara vê um punk com cabelo de moicano e acha graça,
pensa que é palhaçada”, explica. “O movimento punk já foi massificado. Essa
história de falar em anarquia, em paz, não dá em nada. Esse ar de deboche é
que acaba com eles. Com careca é diferente, a gente vê um, sabe que a coisa
é séria”. 515

A massificação do movimento punk, percebida na incorporação de sua estética pelo


mercado fashion, teria provocado o esvaziamento de seu potencial transgressor, o que levou ao
deslocamento de jovens de um grupo para o outro:

O mundo dos carecas começa de Bonsucesso pra cima e a explicação pode ser
encontrada num manifesto publicado num jornalzinho do grupo, xerocado e
distribuído de mão em mão. “Sabemos que somos discriminados por sermos
do subúrbio, o sistema tenta nos ridicularizar e isolar. Moramos longe sim,
assim como a Zona Sul também é longe, depende do ponto de vista. Moramos
e vivemos longe dos centros de alienação e nos orgulhamos disso”. E para
quem está atrás de uma definição eles mesmo adiantam: “O movimento careca
não é moda (nem moda alternativa), nem curtição. É revolta e insatisfação. 516

Essa insatisfação que teria se dissipado no movimento punk, segundo os skinheads, era
expressa em sua divergência estética. O visual dos carecas era apresentado pelo Jornal do
Brasil como um ponto fundamental de sua identidade:

Eles podem ser identificados pela cabeça raspada, pelas tatuagens e pelo gosto
pelo halterofilismo. Dificilmente serão vistos em qualquer barzinho da moda
da Zona Sul. Quando querem tomar alguma coisa – geralmente cerveja – é
num boteco qualquer. “O mais barato possível”, explica um deles. Quanto à
Zona Sul, nem pensar. O grande barato deles é frequentar os subúrbios
cariocas – e quanto mais longe melhor.517

No caso dos skinheads, a incorporação da tatuagem parece ter seguido a tônica dos
outros grupos juvenis: provocar o efeito de choque. Neste grupo, inclusive, a tatuagem marcou
lugares menos comuns, que provocavam e ainda provocam o efeito de estranhamento naquele

514
MAFFESOLI, M. O tempo das tribos.
515
FIGUEIREDO, C. Os carecas dominam a periferia. JORNAL DO BRASIL, 13 de julho de 1986.
516
FIGUEIREDO, C. Os carecas dominam a periferia. JORNAL DO BRASIL, 13 de julho de 1986.
517
FIGUEIREDO, C. Os carecas dominam a periferia. JORNAL DO BRASIL, 13 de julho de 1986.
178
que observa o tatuado. Roberto é descrito como calçando um par de coturnos de soldado,
“desses bem pesadões”, uma “surrada camiseta Lacoste com o jacarezinho cuidadosamente
arrancado”. Traço comum entre os carecas, Roberto possuía tatuagens. Em seu caso, mais de
uma: “o cabelo raspado rente deixa ver uma caveirinha tatuada na cabeça. No braço, outra
tatuagem.” 518 Conforme o tatuador paulistano Antônio Carlos Ferrari, o Carlinhos, que iniciou
sua trajetória como tatuador nos anos de 1980 – mesmo período em que Roberto se tatuou – a
tatuagem em regiões como a cabeça e as mãos carregavam um potencial estigmatizante ainda
maior:

Tinha muita gente do Rock and Roll, que curtia rock, curtia banda. O pessoal
de banda as vezes, nova, que estava iniciando, tatuava bastante. E o pessoal
um pouco...contra o sistema. Era muita gente que batia de frente com o
sistema. A gente percebia que as pessoas vinham às vezes pra fazer uma
tatuagem como uma forma de revolta. E às vezes alguns a gente tinha que
segurar um pouco. Por exemplo, o cara estava querendo lançar uma tatuagem
no rosto ou na mão, sem ter nenhuma tatuagem. A gente tinha que parar, ser
quase um psicólogo, conversar com a pessoa e falar: “essa tatuagem pra você
vai trazer tanto problema, você está com essa vontade de fazer...”. A gente
tinha que fazer várias perguntas pra saber se aquela tatuagem não ia dar muito
problema pra pessoa, porque dito e feito, algumas pessoas que eu fiz, que
fizeram na mão não conseguiram mais emprego depois. Teve que virar
tatuador. Eu, teve pessoas, colega meu, que eu falava: “não faz na mão, não
faz na mão, não faz na mão, não faz na mão”. Por que? Você não vai conseguir
mais emprego. 519

Como notável na fala de Carlinhos – e lugar comum no discurso de diversos tatuadores


– a escolha do local do corpo a ser tatuado implicava em uma disposição ética de ruptura mais
exacerbada. Locais como as mãos e o rosto, ainda hoje são considerados tabu entre o público
consumidor de tatuagens e, mais ainda, entre os não tatuados. A tatuagem nas mãos e no rosto,
áreas dificilmente dissimuláveis, sinaliza uma radicalização ético-estética ainda mais
expressiva do que a das tatuagens realizadas em locais do corpo passíveis de ocultação, em
situações em que isso for conveniente.
A utilização da tatuagem como elemento identitário entre os grupos juvenis foi também
ressaltada pelo tatuador Élcio Sorrentino Sespede. Polaco, como é chamado, iniciou sua
trajetória na tatuagem no ano de 1983, ainda jovem, e afirma ter encontrado nela uma forma de

518
FIGUEIREDO, C. Os carecas dominam a periferia. JORNAL DO BRASIL, 13 de julho de 1986.
519
ENTREVISTA: Antônio Carlos Ferrari – Carlinhos. São Paulo: 2017
179
se expressar. O tatuador afirma que teve entre seus clientes punks e skinheads, além de outros
grupos marginalizados:

Antes, eram meus clientes: careca do subúrbio, prostituta, punk, trombadinha,


bandido, policial...eram todos meus clientes no início. Hoje meus clientes são:
advogados, médicos, dentistas, pessoas influentes, com cargo bem elevado...
juiz de direito, o que você possa imaginar. Tatuei todos também.520

Polaco narra as desavenças entre esses grupos e o esforço de alguns deles em manter
seus sinais diacríticos identificáveis, distantes da massificação provocada pela incorporação
destes sinais por outsiders.

Careca do subúrbio me encostava pra me intimar, falar que eu fiz uma teia de
aranha no outro lá, e eu tinha que resolver meus problemas com os caras,
entendeu? Porque era a marca dos caras e eu falei: “Cara, esse é um meio de
vida. O cara me pagou, eu faço o que eles pedem, e eu não tô nem aí pra
vocês”. Quantas vezes careca com metaleiro se encontravam na minha loja e
eu tinha que apartar a briga ou ter que dar uma solução pra resolver aquilo,
faze-los respeitar meu estabelecimento. Anos assim, cara! Anos assim! Anos.
[...] Você vai ver um punk lá, qual a ideologia do cara? Não, ele tá imitando
um inglês que realmente, ele sim tem uma ideologia. Tem uma ideologia vai
lá no planalto lá, faz uma passeata, faz mudar a história. Aí sim começa a ter
uma ideologia. Quando que eles fizeram isso? Sabe? Aí você vê a ideologia
de um careca do subúrbio, que o cara é alemão, e o cara nem compra uma
briga [...] O cara no próprio sangue, a própria raça dele, brasileira, tem
miscigenação, tem misturas, e ele é contra o pernambucano, ou seja lá quem
for, o gay, ou seja lá quem é. Porra cara, não tem sentido né, velho. É uma
coisa absurda. 521

A narrativa de Polaco é ratificada por Renata Matias, ao identificar o simbolismo da


tatuagem de teia de aranha para os skinheads brasileiros. Além desta, o machado, o soco inglês
e a bandeira do Brasil são temas recorrentes entre os carecas. 522
Nas palavras de T.D., um entrevistado de Renata, a teia de aranha representaria o
conservadorismo dos skinheads, e “é o aspecto de velho que a teia traz que remete a essa ideia”.
Além disso, afirma ele, “caso esteja representada, além da teia, uma aranha na tatuagem,
significa que, se um indivíduo passar pelo Careca, pode ficar tudo bem, mas, se mexer com ele,
o “cair na teia” desse Careca será mortal”.523

520
ENTREVISTA: Élcio Sorrentino Sespede – Polaco. São Paulo: 2017.
521
ENTREVISTA: Élcio Sorrentino Sespede – Polaco São Paulo: 2017.
522
MATIAS, R. Carecas do subúrbio, p. 58.
523
MATIAS, R. Carecas do subúrbio, p. 58.
180
Apesar do esforço pelo monopólio dos sinais diacríticos representados nos desenhos
tatuados, como destaca Polaco, os carecas não foram capazes de restringir a tatuagem a seu
próprio grupo. Mesmo seus sinais pretensamente exclusivos e, portanto, invocados como
elementos identitários, como a tatuagem de teia de aranha, foram massificados e incorporados
ao conjunto de desenhos disponíveis nos estúdios contemporâneos.

4.4 HIPPIES
Os hippies foram outro importante movimento juvenil a adotar a tatuagem como
manifestação de inconformismo. Diferente dos punks e skinheads, movimentos cuja base era
composta de jovens oriundos da classe operária, os hippies, assim como os surfistas, vicejaram
entre a juventude de classe média.
A formação de uma sociedade alternativa, independente ou insubmissa aos valores
capitalistas preconizados nas décadas anteriores pelo American Way of Life, encontrou espaço
entre a juventude, especialmente em centros urbanos como o Rio de Janeiro e São Paulo.
Associados a uma nova esquerda, pautada na valorização de bandeiras como a liberdade sexual,
a luta contra o racismo e a igualdade de gênero, o movimento hippie representou, notadamente
entre a juventude de classe média das décadas de 1960 e 1970, uma nova concepção política na
qual o corpo se constitui em locus privilegiado de atuação. Como aponta Carolina Pereira:

A liberdade e a sensualidade de comportamento caracterizavam esse


movimento, assim como a preferência por objetos que não fossem
industrializados ou mesmo significassem símbolos do sistema. As drogas, o
amor livre e a expressão artística, ao invés da política, impulsionavam os
jovens deste período para um comportamento de contracultura. 524

No movimento hippie, a corporeidade conquista um significado distinto,


intrinsecamente ligado a uma perspectiva de atuação política desses jovens, no sentido da
construção de uma possibilidade de sociedade, de sociabilidades e de individualidades que
propõem uma ruptura com a ordem estabelecida.
Noções como experimentação e autoconhecimento, aproximando-se de uma
espiritualidade ligada às religiosidades orientais, serão caras ao movimento. Deste modo,
experiências intermediadas pelo corpo, como o sexo, as drogas e a tatuagem, encontraram lugar
privilegiado no interior do movimento. Ao referir-se às influências que o imaginário hippie

524
PEREIRA, C. Os jovens e a contracultura brasileira, p. 20.
181
produziu na cultura underground brasileira, especialmente no campo musical, Paulo Sérgio do
Carmo salienta que o movimento produziu um afastamento da ostentação do vestuário,
características da Jovem Guarda.525

Na ode aos marginalizados e aos malditos da sociedade de consumo, a viagem


simbolizava a atitude errante, de vagabundagem e descoberta do mundo para
quem caiu na estrada. Signo positivo, é sinal de busca, de vivência para
autoconhecimento, no embalo de drogas e meditações orientais. 526

Ao aproximarem-se idealmente de uma vida simples, despojada dos bens de consumo


da sociedade capitalista, o movimento hippie adota signos de ruptura com essa sociedade, tanto
no que diz respeito à sexualidade e ao uso de drogas alucinógenas quanto no sentido de
experimentarem uma produção corporal distinta dos padrões estabelecidos pela convenção
social dominante. Daí sua importância na ressignificação da tatuagem. Posteriormente, parte
considerável destes jovens foi incorporada pelo mercado de trabalho, pela estrutura dominante
a qual se opuseram, forçando o deslocamento do significado da tatuagem.
Em 1967, meses antes da série de movimentos juvenis que abalariam o mundo, a revista
O Cruzeiro destinou uma matéria aos hippies, destacando a importância da tatuagem na
composição estética do movimento. Nela, o jornalista Antônio Machado afirma que:

Muito já se escreveu e ainda se escreverá sobre o fenômeno. Mas o que é


exatamente um hippie? Externamente, é uma pessoa (a idade não importa, ele
pode ter 17 ou 60 anos) que procura libertar-se o mais completamente das
estruturas sociais, usando enormes óculos, saias curtíssimas, roupas
psicodélicas, coloridas, luminosas, movediças, tatuagens com dizerem em
inglês (a palavra love ou a frase-programa “make love not war”, por exemplo),
sandálias cheias de cores, etc. 527

De fato, como aponta a revista, muito se escreverá sobre o fenômeno. Entre os grupos
juvenis pesquisados, quando em relação direta com a tatuagem, os hippies só não aparecerão
mais nas páginas dos jornais do que talvez os surfistas, outra tribo juvenil tipicamente de classe
média, a quem se atribui grande importância na difusão da tatuagem para além das classes
pobres.

525
A Jovem Guarda foi um movimento musical surgido no Brasil na década de 1960, estritamente associado à
juvenilização do mercado consumidor, produzindo efeitos relevantes no mercado musical, televisivo e
cinematográfico. DANTAS, M. A juventude como protagonista no consumo de produtos culturais, p. 109.
526
CARMO, P. Culturas da rebeldia p.47.
527
MACHADO, A. Os hippies, o amor e a flor. O CRUZEIRO, 23 de dezembro de 1967.
182
Em uma reportagem longa, intitulada As muitas impressões da tatuagem, a Revista de
Domingo, suplemento semanal do Jornal do Brasil, não ignorou a importância dos hippies na
difusão da prática, afirmando que a “nova mania da tatuagem, registrada principalmente na
França e nos Estados Unidos – onde sempre foi popular – está chegando ao Brasil, timidamente,
depois dos hippies, através das crianças. Elas entram na onda da tatuagem industrializada,
removível com álcool e acetona”. 528 O jornal afirma ainda que a tatuagem temporária há muito
fazia sucesso entre os hippies e era vendida nas boutiques de Ipanema – o que dá indícios do
público a quem era destinada. A novidade era que, a partir de então, a tatuagem chegava às
crianças por meio dos chicletes e das bancas de jornais. 529
Constantemente, a tatuagem entre os hippies foi representada como uma moda efêmera,
produzida por meio de técnicas não indeléveis, removíveis. Diferentemente da tatuagem
tradicional, que utilizava agulhas para inserir a tinta na derme, a tatuagem hippie propagandeada
pela imprensa era “aplicada na hora e sai com álcool”, compondo juntamente com “lances
psicodélicos, sirenas tocando e luz negra”, os ingredientes indispensáveis ao que a revista O
Cruzeiro chamou, em 1967, de “uma festa hippie legítima”. 530
O esforço pela representação da tatuagem entre os hippies como uma prática efêmera se
relaciona justamente ao seu lugar social. Predominantemente oriundos das classes médias, os
jovens hippies foram percebidos como alternativos, produtos de uma rebeldia e transgressão
momentâneas, passíveis de serem abandonadas tão logo o jovem amadurecesse e se ajustasse
à ordem e à normalidade, criando juízo.
Essa perspectiva é expressa na reportagem do Jornal do Brasil, anteriormente citada.
Ao passo que a matéria, publicada em 1973, atestava que “a mania, desenvolvida em outros
países, chegou devagar ao Brasil”, afirmava que “alguns hippies andaram anunciando a sua
disposição de se fazer tatuar, para seguir a onda mundial entre os congêneres, mas são poucos”.
Ao invés da tatuagem permanente, afirma o jornal, “era mais fácil colocar tatuagens temporárias
encontráveis em boutiques avançadas de Ipanema.” 531 Uma dessas boutiques era a Hippie
Center, na qual os jovens de Ipanema tinham acesso à “coraçõezinhos flechados ou não, flores,
borboletas” que poderiam ser “usados e removidos com água e sabão quando se queria”.532 De
forma perspicaz, a edição da reportagem produz o efeito discursivo de alerta e repressão

528
As muitas impressões da tatuagem. Revista de Domingo. JORNAL DO BRASIL, 20 de maio de 1973.
529
Em confiança. O CRUZEIRO, 02 de dezembro de 1967.
530
Em confiança. O CRUZEIRO, 02 de dezembro de 1967.
531
As muitas impressões da tatuagem. Revista de Domingo. JORNAL DO BRASIL, 20 de maio de 1973.
532
As muitas impressões da tatuagem. Revista de Domingo. JORNAL DO BRASIL, 20 de maio de 1973.
183
simbólica no encadeamento da matéria. Logo na sequência da citação aos hippies da Zona Sul,
a reportagem afirma que a tatuagem, “com as respectivas exceções, continua sendo um –
discutível – privilégio de prisioneiros e frequentadores do cais do porto”. Associando-a às
camadas pobres que historicamente fizeram uso da tatuagem, a matéria ressalta que sua prática
pode ser impeditivo para a ocupação de determinadas posições sociais, como no caso das
corporações militares, e alardeia o grande número de indivíduos que procuravam atendimento
no então INPS 533, para remoção clínica de suas tatuagens. 534
Ainda assim, o movimento hippie e a tatuagem fizeram a cabeça de muitos jovens de
classe média no período entre as décadas de 1960 e 1980. Segundo Paulo Sérgio do Carmo, o
movimento hippie foi caracterizado no Brasil, pela “opção por uma vida simples, à margem dos
valores da sociedade de consumo”:

Fazia-se a opção de levar uma vida independente, realizando o desejo de sair


do convencional. Como diz o jornalista Eduardo Lins e Silva, “havia naquela
época uma ‘guerrilha’ em curso, não apenas estritamente política. Combatia-
se também no campo dos costumes; sobrevivia a ideia de que era preciso
encontrar formas alternativas de vida”. [...] Para alguns jovens, a filosofia
libertária da sociedade alternativa se estendia às relações afetivas ao propor o
desprendimento do apego egoísta da monogamia e ao voltar-se para a
experiência criativa do “amor livre”. Nutria-se também a ideia de “pegar um
velho navio”, pagando as passagens com a lavagem de pratos ou com as
tarefas na cozinha, mesmo que isso fosse mais lenda do que realidade.
Carregar mochila nas costas, pedir carona, dormir ao relento, acampar nas
inúmeras praias desertas ainda existentes foram resquícios da filosofia hippie.
[...] Procuravam vestir-se fora do convencional; compravam adereços em
brechós e feiras hippies. Pegava-se carona no que ainda restava da crítica à
sociedade de consumo. Era a maneira de resistir às convenções sociais e ao
mundo estreito da classe média. 535

Conforme Baracuhy e Godoi, o movimento hippie, assim como o punk, foi forjado na
intenção de negar a massificação capitalista, criando um “estilo de vida, de comer, de beber, de
vestir, mas, principalmente, de habitar o corpo”. Esses grupos, apontam as autoras, rompiam
com o discurso midiático pela rejeição das representações tidas como legítimas pelo mundo da
moda. Recorrendo à Foucault, elas afirmam que:

No final da década de 1970 e início dos anos 1980, a mídia buscava construir
um sujeito disciplinado que podia ser “radical”, dono do seu corpo, que fazia

533
Instituto Nacional de Previdência Social, que seria substituído em 1990 pelo Instituto Nacional de Seguridade
Social o INSS.
534
As muitas impressões da tatuagem. Revista de Domingo. JORNAL DO BRASIL, 20 de maio de 1973.
535
CARMO, P. Culturas da rebeldia p. 118.
184
suas escolhas, mas não rompia com ideais, enquanto cidadão – sujeito político
que cumpria as leis – através de um conjunto de enunciados que colocava em
voga a constituição de um sujeito tatuado descolado, “diferente”, submetido a
manobras de exposição do corpo, sem fugir das verdades sociais vigentes. 536

A tese da incorporação midiática de movimentos contraculturais como os hippies e


punks encontra sustentação tanto nas fontes analisadas quanto nas interpretações de outros
autores. Carolina Morgado afirma que a partir da década de 1960 a moda se transformou a partir
da incorporação de “um visual mais descontraído e colorido”, inspirada na cultura hippie,
embora distante de sua ideologia.

A adesão de um vestuário mais confortável e informal era a reação a um


relaxamento dos hábitos para alguns momentos em que se começava a
permitir a informalidade no comportamento. [...] Assim, a moda jovem foi
descoberta como um mercado potencial carregado de erotismo. Neste período,
o corpo feminino era sutilmente sugerido nas calças saint-tropez, em que o
umbigo ficava de fora, causando suspiros e revoltas. 537

A chamada moda jovem encontrava, portanto, uma valiosa fonte de lucros em


movimentos que surgiram em sua oposição. Não tardaria, a tatuagem – e não apenas aquela
removível, das boutiques hippies – faria percurso semelhante.
Conforme Baracuhy e Godoi, o movimento hippie, que procurava romper com a
hegemonia discursiva, acabou ressignificado em “tendência fashion pelo discurso da moda, que
lançava representações esteticamente aceitáveis – corpo magro, tatuado, malhado, vestido pela
roupa de grife – para serem adotadas conforme o sistema simbólico cultural vigente.” 538
Como demonstram os textos jornalísticos analisados, a opção pela vida simples e a
crítica à sociedade de consumo têm seus limites. A resistência às convenções da classe média
acabou por esbarrar no próprio sistema, que parece ter visto na rebeldia juvenil uma
possibilidade de incrementar seus lucros, como é perceptível na moda das tatuagens removíveis
vendidas em boutiques da Zona Sul carioca.
Neste sentido, a construção das identidades dos tatuados, excorporada pela pele –
fronteira por excelência entre o corpo e o mundo, entre os outros e eu; e a importância conferida
à tatuagem pelo nosso sistema cultural, que (re)elabora seus significados conforme os grupos
que dela se utilizam, são marcadas pela disputa travada entre indivíduo e sociedade pela posse

536
BARACUHY, R.; GODOI, E.
Da marginalização ao glamour, p. 216.
537
PEREIRA, C.
Os jovens e a contracultura brasileira, p. 19.
538
BARACUHY, R.; GODOI, E. Da marginalização ao glamour, p. 218.
185
e pelos limites da utilização do corpo. A aparente ruptura dos movimentos contraculturais que,
adotando uma estética divergente visam afirmar uma ética dissidente, encontrou desafios na
apropriação e na assimilação desta estética pelo sistema cultural dominante, solapando seu
potencial de ruptura.

4.5 SURFISTAS
Entre os grupos juvenis aos quais se atribui papel relevante na ressignificação da
tatuagem, os surfistas são os mais reconhecidos. Desde que o cantor Caetano Veloso compôs
Menino do Rio, canção de 1979, que exaltava a beleza e a juventude de um jovem surfista, a
associação entre o surfe e a tatuagem foi constante, tanto nas revistas especializadas em
tatuagem quanto no discurso de tatuadores e tatuados, sempre na intenção de conferir à
modificação corporal um status de legitimidade.
A música Menino do Rio foi gravada por Baby do Brasil no disco Pra Enlouquecer no
mesmo ano de sua composição, e em 1980 foi escolhida como tema de abertura da telenovela
Água Viva, exibida como novela das oito na Rede Globo de Televisão, o que lhe conferia
considerável audiência. 539
Concentrando sua análise no Rio de Janeiro, Andréa Osório destaca a importância da
canção de Caetano e dos surfistas na difusão da tatuagem entre as camadas médias. A autora
afirma que, embora não tenha sido o primeiro entre os surfistas a se tatuar, “a partir de Petit e
da cultura de massas, construiu-se um imaginário ligando a tatuagem à juventude no país”. 540
José Arthur Machado, o Petit, inspiração de Caetano para a composição, era assíduo
frequentador do Píer de Ipanema, espaço privilegiado de socialização da juventude de classe
média do Rio de Janeiro e descrito por Ruy Castro como “um grande underground a céu aberto,
o epicentro do desbunde – e, como tal, frequentado por gente de todo tipo, muitos sem nenhuma
intimidade com a areia”. 541 Praticante de artes marciais, modelo e surfista, Petit, que tinha vinte
e dois anos na época da composição de Caetano, sintetizava a imagem da geração saúde, da
rebeldia juvenil e da reivindicação dessa juventude sobre o próprio corpo.

539
O termo Novela das Oito é utilizado pela Rede Globo de Televisão para se referir à principal atração novelística
da emissora, exibida após o Jornal Nacional, no que se convencionou chamar horário nobre da televisão, por
referir-se àquele de maior audiência e, consequentemente, maior lucro da emissora pela venda do intervalo
comercial.
540
OSÓRIO, A. Tatuagem e autonomia, p. 83.
541
CASTRO, R. Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema, p. 298.
186
Imagem 18: Petit e o dragão tatuado no braço, cantado por Caetano Veloso.

Fonte: WAKABARA.COM. Acesso em: 03 nov. 2020

Em 1982, Antônio Calmon e Bruno Barreto – este último assíduo frequentador das
praias cariocas – escreveram o roteiro de Menino do Rio, filme que fazia referência à canção de
Caetano e à vida dos garotos surfistas cariocas. Nele, André De Biase interpreta Ricardo
Valente, um surfista aventureiro cuja história em muito se assemelhava à de Petit e outros
garotos de classe média carioca que tinham como objetivo curtir a vida.

187
Imagem 19: Menino do Rio (Filme), 1982.

Fonte: WWW.ADOROCINEMA.COM. Acesso em: 03 de nov. 2020.

Contudo, a relação entre o surfe e a tatuagem é muito mais antiga do que o dragão
tatuado no braço de Petit. Aquilo que se poderia chamar de renascimento da tatuagem na
modernidade, ocorreu no século XVIII e está associado a duas personagens descritas nessa tese:
o marinheiro e o surfista.
Essa relação diz respeito a citada reintrodução da tatuagem na cultura europeia – e por
extensão nas Américas – após as viagens do capitão James Cook às ilhas da Polinésia. Em 2003,

188
a revista Tatuagem, Arte e Comportamento a reivindicava como uma forma de legitimar a
tatuagem, inclusive aludindo à canção de Caetano como parte de sua tática discursiva:

A história do surf e da tattoo estão intimamente ligadas desde a criação da


modalidade que virou um esporte e desde o surgimento da prática da tatuagem,
que se transformou em arte. Hoje a relação entre esse esporte radical e essa
arte radical é bem visível, com os desenhos nos corpos tatuados deslizando
sobre ondas e até na inspiração para a moda surf-wear e a decoração dos
equipamentos. Por outro lado, o surfe também inspira os desenhos das
tatuagens, como ondas, pranchas e os tribais dos antigos inventores do surf. A
origem da tattoo se perde no tempo e nos povos, mas a disseminação da
tatuagem aconteceu através dos nativos da Polinésia, das Ilhas dos Mares do
Sul, local de ondas perfeitas onde também nasceu o surf. Antes do contato
com os europeus, os havaianos já praticavam o surf como diversão e a
tatuagem no estilo tribal como forma de identificação social. A partir das
incríveis tatuagens dos polinésios, os marinheiros europeus se encarregaram
de transformar os estilos e divulgar a prática para o mundo. Com o
desenvolvimento do surf a partir do século XX, a mística relação histórica
entre o surf e a tatuagem permanece viva, como se pode comprovar no alto
número de surfistas tatuados, incluindo os principais competidores da
atualidade [...] O Brasil é um caso à parte nessa ligação tattoo-surf, desde o
começo da década de 70, com os pioneiros do surf no Arpoador, que também
foram os primeiros a ostentar os dragões tatuados no braço. 542

Inácio da Glória, tatuador que iniciou sua carreira na década de 1970 e tatuou até o seu
falecimento, em 2019, aos 66 anos de idade, narrou a revista Tatuagem, Arte e Comportamento
os inúmeros percalços vivenciados em sua trajetória profissional e social, ressaltando a
importância de associar a tatuagem a um esporte como o surfe, que passa a imagem de corpos
saudáveis, jovens e, especialmente, daquilo que Margot DeMello chamou de middle-class
tattoo:

“A gente já amargou todos os pesadelos e os preconceitos relacionados a


tatuagem; muitos sucumbiram”, diz ele. “No começo dos anos 70, quando
começaram a aparecer os primeiros tatuadores brasileiros, as pessoas
desconheciam a figura do tatuador profissional”. Inácio da Glória explica que,
naquela época romântica, o que motivava o pessoal era a descoberta de uma
forma de arte que significava a extensão da personalidade da pessoa. “Na
nossa origem, a tatuagem é fruto da manifestação espontânea da arte. A gente
acreditava na filosofia da estética para desenvolver os desenhos. Hoje, é tudo
mais fácil e muita gente entra nessa como profissão, como forma de ganhar
dinheiro”, afirma Inácio. Inácio da Glória acha interessante vincular a
tatuagem com a imagem do surfe e diz que isso ajudou a mudar a imagem
preconceituosa de parte da sociedade com relação à tatuagem. Além do
aspecto histórico, dos antigos nativos havaianos tatuados deslizando em
pranchas pelas ondas do Pacífico, existe também a relação do lado

542
A irmandade Tattoo e Surf. Tatuagem, arte e comportamento, Ano 3, n. 34, p. 10.
189
comportamental, da arte e do esporte radical. “É saudável associar a tattoo a
um esporte, tem um aspecto mais saudável”, afirma o tatuador. [...] O surfe,
como um imã, atraiu para a sua prática, corpos radicalizados em forma de
desenhos que manifestam sua identificação com o potencial adrenalizante das
performances em ondas cada vez mais habitadas por verdadeiros
desbravadores de comportamentos autênticos. 543

Para Inácio, a associação entre a tatuagem e o surfe tinha o potencial de mitigar o


estigma historicamente construído sobre a tatuagem por meio da evocação de corpos saudáveis
e legítimos. A perspectiva de Inácio corrobora a leitura de Foucault acerca do corpo enquanto
locus do exercício de poder e resistência. Conforme Foucault, à medida que os corpos são
instrumentalizados no sentido de promover rupturas com a ordem estabelecida, o poder
responde por meio da exploração econômica e ideológica daquele mesmo movimento
subversivo. Ou seja, a partir do ato de rebeldia da juventude de classe média, percebido na
adoção de uma prática corporal das classes pobres, as relações de poder são reorganizadas de
modo a possibilitar uma nova normalidade, um novo enquadramento daquilo que é ou não
considerado uma corporalidade legítima.
Essa noção é reafirmada em uma reportagem do Jornal do Brasil, publicada em 1985.
Em matéria extensa, na qual o chamado modismo é representado como uma possibilidade
estética para além da simples ornamentação, sendo empregada em coberturas de cicatrizes ou
outras reparações estéticas, a adoção da tatuagem pelos grupos juvenis de classe média é
imediatamente associada à ressignificação, ou seja, a desassociação entre tatuagem e
marginalidade, discurso predominante no período anterior à década de 1960:

Hoje, no Rio, os surfistas são os campeões das tatuagens, seguidos de perto


por mergulhadores, frequentadores de academias de ginástica e as menininhas
que gostam de praia e de roupas bem coloridas. Outro dado: a tatuagem deixou
de ser símbolo de marginal. 544

O mesmo discurso será reafirmado pelo tatuador Antônio Stoppa, que associa a praia, a
exibição pública dos corpos típicas deste ambiente, e o público consumidor das tatuagens:

O público é bastante variado. Os surfistas sempre, os estudantes gostam muito,


mas a maioria não tem muito dinheiro e acaba olhando e só voltando mais
tarde. Quem mais se tatua são os turistas que estão na praia e querem

543
Tatuador Inácio da Glória: Ilha Nativa. Tatuagem, arte e comportamento, Ano II, n. 11, p. 7-9.
544
LABORIAU, M. Tatuagens: o modismo esconde velhas cicatrizes. JORNAL DO BRASIL, 18 de janeiro de 1985.
190
embelezar o corpo. Já a escolha das imagens depende da época. É uma questão
de moda. Hoje em dia a gente pode tatuar não importa o quê. [Stoppa] 545

A relação entre as praias brasileiras e a tatuagem não é apenas parte do discurso, mas
também da prática dos tatuadores que se estabeleceram entre as décadas de 1960 e 1980. Para
além de Lucky, tatuador que se tornou uma espécie de mito de origem546 da tatuagem
profissional no país, diversos tatuadores se estabeleceram nessa região. Além dos já citados
Inácio da Glória, no Guarujá, e Stoppa, em Florianópolis, inúmeros tatuadores se estabeleceram
na região litorânea, incialmente em busca dos marinheiros, e em seguida dos surfistas e demais
frequentadores das praias. Fernando Luis Zacché, o Russo, foi um desses tatuadores.
Russo teve seu primeiro contato com a tatuagem no ano de 1977, quando deixou o
emprego e decidiu mochilar pela América, inspirado pela filosofia hippie.

Desci pra São Paulo, peguei o trem aqui na estação da Luz, fui até Porto
Soares, entrei pela Bolívia, e aquela história. Peru, Equador, Colômbia, voltei
pela parte americana, Chile até Patagônia, Argentina... Nisso me tornei hippie,
era mochileiro. Voltando pra Quito no Equador conheci um chinês que tatuava
manualmente naquela época, muito rudimentar. Imagina um hippie chinês
fazendo tatuagem em 1997, uma coisa assim, muito rudimentar. Foi onde eu
iniciei e onde eu mudei minha vida. 547

Em 1987, Russo havia se estabelecido no Rio de Janeiro e antecipava em uma década a


frase que ficaria famosa na canção da banda santista Charlie Brown Jr. Russo procurava seus
clientes nas praias cariocas e os conduzia ao estúdio e em suas palavras, assim como na letra de
Chorão, vocalista da banda citada, seu escritório era a praia: 548

Há quem circule na praia atrás de possíveis clientes, oferecendo seus serviços,


como Fernando Luis Zacché, de 30 anos, o Russo, um dos mais bem sucedidos
tatuadores de Ipanema. As tatuagens não são feitas na praia, mas é ali que ele
mostra alguns exemplos de seu trabalho, em suas próprias pernas, braços e
peito, convencendo a galera a dar um pulo na sua loja, a Bad Land’s, na Praça
General Osório. Ele aprendeu a tatuar durante uma viagem easy rider pela
América Latina, quando conheceu no Equador um mestre chinês da tatuagem.
De volta ao Brasil, passou a viver disso, inicialmente usando uma máquina de
tatuar adaptada de um barbeador elétrico. Agora ele está mais sofisticado e
usa equipamento profissional para fazer uma média de sete tatuagens por dia,
ao preço básico de 10 dólares, que é o padrão internacional dos tatuadores,
mas que podem ser convertidos em cruzados – cerca de Cz$ 260 no câmbio

545
RAMOS, C. Teorias da tatuagem, p. 141, grifo nosso.
546
SOUZA, F. História da Tatuagem no Brasil, p. 49.
547
ENTREVISTA: Fernando Luiz Zacché – Russo. São Paulo: 2016, grifo nosso.
548
CHARLIE BROWN JR. Zóio de Lula (1997).
191
paralelo. O próprio Fernando cria os desenhos, que os clientes escolhem, e já
tem 5 mil modelos. É na praia que ele colhe inspiração para as novas
concepções. “Todos os dias”, venho de manhã ao escritório (a praia) e só de
tarde vou atender os clientes na loja”. 549

Imagem 20: Russo buscando clientes na praia de Ipanema

Fonte: Jornal do Brasil, 03 de fevereiro de 1987

Gradativamente, a praia substituiu o porto e grupos juvenis como os surfistas, os punks


e os skinheads, substituíram marinheiros e estivadores enquanto público majoritário dos ateliês
de tatuagem, que surgem em cidades como o Rio de Janeiro, Santos, Salvador, Florianópolis e
São Paulo.
Essas tatuagens e esse novo público, legitimados pela sua posição social, passaram a
figurar como representação dos corpos saudáveis e desejáveis, ao mesmo tempo que novas
estratégias de controle vão aprimorar o esquadrinhamento, a sujeição e a anormalização do
tatuado das classes pobres. Exemplo disso são as tatuagens produzidas às margens dos padrões
estéticos e sanitários do que se convencionou chamar de tatuagem profissional ou artística.

549
REIS, A. Trabalhadores da praia. JORNAL DO BRASIL, 03 de fevereiro de 1987.
192
No Brasil, a associação entre os surfistas e a tatuagem não se restringiu aos tatuadores
e revistas de tatuagem, que buscaram validar sua prática pela associação a um esporte
tipicamente de classe média, mas também envolveu instâncias discursivas que outrora
representaram-na como uma prática das classes perigosas. Constantemente, a figura do surfista
será descrita pela grande imprensa como o sujeito jovem e saudável; com o corpo magro e
musculoso, moldado pelo exercício sobre a prancha; com cabelos loiros, efeito da mesma
parafina que era passada nas pranchas; e espírito aventureiro. Neste sentido, a tatuagem
reforçará o estereótipo radical do surfista, ao mesmo tempo em que o surfista reafirmará o
discurso de rebeldia investido sobre a tatuagem após a década de 1960. Radicalidade e rebeldia,
porém, domesticadas, temporárias e, sobretudo, mercantilizadas.
Nessas relações de poder, o discurso midiático550 ocupou um lugar central de análise,
especialmente pela possibilidade de detecção de seus deslocamentos. Se até a década de 1960,
enquanto predominou nas classes pobres, a tatuagem foi revestida de um significado marginal,
primitivo, moralmente inferior e mesmo criminoso, a partir de então, a adesão da juventude de
classe média forçou sua ressignificação, percebida no discurso dessas mídias.
Novamente, portanto, as proposições de Foucault me parecem úteis. Se insisti na noção
foucaultiana de arqueologia durante a primeira parte desta tese, me aproximarei da noção de
genealogia. Não para que se oponham, mas para que se complementem.
Para Azevedo e Ramos é possível pensar a genealogia em Foucault como “análise do
porquê dos saberes, que pretende explicar sua existência e suas transformações, situando-o
como peça de relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo político.”551 Essa análise,
portanto, busca perceber os saberes colocados em prática, atuando nas relações de poder que
constituem o sujeito. Vera Portocarrero complementa a reflexão ao propor que:

Se tradicionalmente a Filosofia supõe um sujeito puro a priori de


conhecimento, Foucault, ao contrário, em sua genealogia do poder, mostra
como os sistemas de poder e de verdade fabricam sujeitos, produzindo os
indivíduos normais das Ciências Humanas e Biomédicas, como efeitos do
poder disciplinar que os tornam úteis e dóceis, normalizando as condutas. 552

550
Quando me refiro ao discurso midiático, estou me referindo à chamada grande imprensa e excluindo as Revistas
de Tatuagem que surgem em meados dos anos de 1990. Embora algumas destas sejam produzidas por grandes
editoras, representarão um nicho de mercado direcionado a um consumidor específico, e investirão em um discurso
legitimador da tatuagem, constantemente fazendo apologia à prática como uma arte legítima.
551
AZEVEDO, R; RAMOS, F. Arqueologia e genealogia como opções metodológicas de pesquisa, p. 289.
552
PORTOCARRERO, V. Práticas sociais de divisão e constituição do sujeito, p. 282.
193
Assim, simultaneamente, proponho uma arqueologia dos discursos produzidos sobre a
tatuagem e uma genealogia da produção do sujeito tatuado. História, portanto, da objetivação
dos sujeitos a partir da disciplinarização e normalização do corpo, mas também da subjetivação
que se constrói na experiência ética de resistência, na recusa à normalização.
Para tanto, é fundamental lançar sobre o corpo tatuado um olhar que o desnaturalize,
que entenda sua fabricação enquanto resultado de relações exercidas em uma escala microfísica,
que operacionaliza saberes produzidos por discursos historicamente situados. Portanto, trata-se
da percepção de descontinuidades, uma vez que, no compasso dos discursos que objetiva o
corpo tatuado, sua subjetivação também é um processo descontínuo.
Falo, portanto, de uma arqueogenealogia que coloca em relação as descontinuidades na
produção dos discursos e na constituição dos sujeitos. Ou seja, trata-se de compreender o
descontínuo, “o fato de que em anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até
então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo” a fim de perceber não apenas a
descontinuidade em si, mas antes a “dispersão da continuidade” que torna possível compreender
“a mutação histórica, o fato de algo deixar de ser para que algo diferente lhe tome o lugar, isto
é, a passagem de um estado ao outro”. 553
No que tange à ressignificação da tatuagem, a investigação sobre essa passagem de um
estado ao outro centra-se na juventude de classe média da segunda metade do século XX. Como
em qualquer análise histórica de transformações culturais, de modificações na percepção social
de uma prática, esse deslocamento ocorre de maneira gradativa, em anos, como afirma
Foucault, resultando em relações de força que envolvem dominação e resistência; progressismo
e reacionarismo; em um contínuo cabo de guerra.
No caso da dualidade discursiva que envolveu os surfistas e outros grupos juvenis de
classe média, o lento e claudicante deslocamento discursivo, um minucioso e microfísico poder,
exercido detalhadamente, visando garantir, de um lado o simultâneo controle e legitimidade
social da juventude temporariamente rebelde; de outro a continuidade da ilegitimidade das
classes pobres – agora compartilhando as mesmas marcas corporais – são evidenciados nos
discursos midiáticos do período.
Perdendo seu universal degradante, a tatuagem precisou ser ressignificada. Não sem
antes sofrer um refino de seu caráter estigmatizante. Entra em cena aquilo Foucault chamou de:

553
SILVA, F. Como e até onde é possível pensar um outro pensamento, p. 26.
194
[...] técnicas minuciosas, muitas vezes íntimas [...] um certo modo de
investimento político e detalhado do corpo. Pequenas astúcias dotadas de um
grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas
profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias
inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza. 554

Quanto aos surfistas, esse investimento discursivo é perceptível. Mesmo quando sua
aparição na imprensa estampava as páginas policiais, havia um cuidado em diferenciá-los dos
outros tatuados. Luís Cláudio, um jovem surfista de 26 anos, embora também tenha sido
descrito como usuário de maconha, recebeu da imprensa tratamento bastante distinto daquele
direcionado à Orlando Cunha, o Bom Menino, em 1958.
Se no final da década de 1950 Orlando era maconheiro contumaz e macumbeiro, Luís
Cláudio era um surfista alto, louro e tatuado, morador de Humaitá, bairro nobre da Zona Sul
carioca.

O surfista Luis Cláudio Edelman de Sousa, de 26 anos, foi encontrado morto


por seus pais, Luiz Gonzaga Gomes de Sousa e Enilda Edelman de Sousa, que
voltavam da região dos Lagos, onde passaram o carnaval. Morador do
Humaitá – Rua Viúva Lacerda 249/204 – Luís Cláudio teria morrido, segundo
os peritos, na terça-feira de carnaval, após se reunir no início da noite, em
casa, com dois rapazes e uma moça. Alto, louro, queimado de sol e com uma
tatuagem no braço, Luis Cláudio estava caído na sala com a nuca
ensanguentada e um ferimento nos lábios. Segundo moradores do prédio, Luis
Cláudio era sempre visto fumando maconha na garagem e na calçada do
edifício. 555

Se Orlando era descrito como perigoso, Cláudio era um jovem inconsequente que,
embora fizesse uso das mesmas substâncias que Orlando, as utilizava na proteção dos arredores
de casa, na Zona Sul. Orlando era algoz, Cláudio, vítima.
A figura do jovem de classe média é descrita com ares de rebeldia e inconsequência
mesmo quando é o acusado em um crime. Há um notável abrandamento do discurso
criminalizante quando o sujeito tatuado provém de grupos de classe média. Em 1987, a notícia
da tentativa de assassinato de um turista francês não utilizaria termos como criminosos,
assassinos, ladrões ou mesmo atrasados morais, como nas décadas anteriores. Tratava-se, agora,
tão somente de rapazes, como expresso no título da matéria.

554
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 136.
555
JORNAL DO BRASIL, 09 de fevereiro de 1989.
195
O turista francês, Marcel Penvern, 38, conseguiu escapar de ser assassinado
por dois rapazes que levava para “tomar Whisky” em seu apartamento, na
avenida Rainha Elizabeth, 371/1008, Posto Seis, em Copacabana. Ele foi
ferido à faca e sangrava muito por todo o corpo. [...] o Delegado Romeu
Diamant acha que pode chegar rapidamente aos dois envolvidos, Alexandre e
Jorge, já que são bastante conhecidos na praia de Ipanema e frequentadores
assíduos do bar “Saideira”, na rua Gomes Carneiro. A vítima contou que
conhecera Alexandre, um rapaz louro, alto, do tipo surfista, com uma
tatuagem nas costas, na praia de Ipanema. 556

O desdobramento do caso aparentemente não resultou na prisão de Alexandre, o rapaz


louro, alto, do tipo surfista, mas sim de outro rapaz, Gláucio, descrito como um garoto bonito
– e fartamente tatuado.
Com seis tatuagens, incluindo “a figura simbólica da morte, com foice na mão e ossos
aos pés”, Gláucio Garcia Arruda não é descrito e esquadrinhado por delegados lombrosianos,
mas sim por figuras como Rodrigo Farias Lima e José Celso Martinez, ambos ligados a
atividades culturais como teatro e música, que vêm em suas tatuagens bandeiras políticas ou
histórias em quadrinhos dos crimes pelo qual é acusado. 557 Gláucio, que havia trabalhado em
boutiques jovens e tinha antecedentes criminais, tem suas tatuagens descritas como “apenas
sinais de quem ama o sol, a praia e a liberdade”, bem diferente do barbeiro Guilechini, que por
suas tatuagens foi apresentado na década de 1920 como “mais um caso de psicologia criminal
do que da polícia comum”. 558
Se Guilechini ou Bom Menino deveriam ser estudados a partir da ótica lombrosiana,
Gláucio é retratado pelo Jornal do Brasil como um garoto bonito, “com seus músculos bem
distribuídos e cerca de 1,80 de altura” e com “QI alto”, diferente da maioria dos criminosos que
o detetive encarregado do caso alegava interrogar com frequência.
Obviamente, não me interessa especular sobre a inocência ou não de Gláucio,
Alexandre, Guilechini ou Orlando. A história é um campo de análise e compreensão da
experiência humana, não um tribunal exumativo. O que interessa é evidenciar que a prática da
tatuagem foi eficiente em demarcar os corpos dos sujeitos de forma a conformar e confirmar
identidades desviantes em relação direta com seu lugar social. A partir do momento em que ela
se descola dos guetos e portos, passando a estampar o corpo de sujeitos de classe média, seu
efeito estigmatizante se desloca: da identificação do criminoso, do imoral, do primitivo e

556
Rapazes tentam matar turista em Copacabana. JORNAL DO BRASIL, 18 de novembro de 1987.
557
Tatuagem enseja interpretações de todos os tipos. JORNAL DO BRASIL, 30 de dezembro de 1987.
558
VIDAL, B. O homem que tem um álbum de emoções no corpo. O Malho, 01 de dezembro de 1928
196
inferior; para o jovem, o inconsequente e rebelde. E neste sentido, a caracterização de suspeitos
oriundos de diferentes classes sociais deixa isso evidente.
A partir da década de 1960, inclusive, ela passa a figurar com mais frequência em outros
cadernos da imprensa, para além das páginas policiais. A figura do surfista apareceu em
matérias sobre concursos para salva-vidas, quando o jovem vencedor foi um surfista tatuado de
dezenove anos559, e até nas colunas sociais, quando em um inusitado caso, uma madame
solicitou um serviço de massagens após um tombo e recebeu em sua casa um massagista de
outro tipo:

A história está sendo contada pelas melhores amigas de tal senhora. Os


telefones funcionando a todo vapor. Todas morrem de achar engraçado. Vou
do começo: uma certa madame, muito bem casada, teve um ligeiro problema
com um tombo. O médico receitou: “banho de luz e muita massagem”. Deu o
nome de um massagista. Ela telefonou é achou que o cavalheiro estava
cobrando um pouco caro. Desistiu. Começou a folhear um jornal. Viu um
anúncio onde rapazes se ofereciam como massagista. Ela ligou: “é madame
tal, quero um massagista.” Pergunta: “de que Idade?” Madame assustou-se:
“pode ser um jovem.” O preço foi combinado. Hora marcada o garotão
apareceu. Surfista e tostado pelo sol. Tatuagem de uma margarida no braço.
Madame pensou: “tatuagem horrível!” Ela explicou o problema. Onde queria
a massagem. O clima que pintou foi dos mais estranhos. Equívocos e grilos.
Os dois ficaram sem graça. Principalmente quando o rapaz informou: ‘’minha
massagem é outra’’. Ela não entendeu. O rapaz explicou com todas as letras.
Ela teve uma crise. Ameaçou chamar a Polícia e colocou o jovem na rua.560

O surfe e a tatuagem se relacionaram também nas premiações esportivas. Em 1986,


durante o Hot Summer Smuggler de Surfe Amador, realizado em Ipanema, Sérgio Correa, o
surfista vencedor do campeonato foi premiado com uma passagem Rio-Lima-Rio e uma
tatuagem, feita pelo tatuador Russo. Giorgio, o segundo colocado, recebeu como prêmio uma
passagem para Florianópolis e uma tatuagem. 561
No ano de 1978 a tatuagem ganharia projeção nacional para além das cidades litorâneas
e dos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro. Em um período no qual a
televisão já ocupava lugar privilegiado no consumo de informação e entretenimento dos
brasileiros, o programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão, apresentava uma reportagem
sobre a moda da tatuagem, como foi descrita pelo programa. Iniciada com a aclamação da
prática que ganhava terreno nos Estados Unidos, a reportagem retratou a tatuagem brasileira

559
BARROS, J.
Cabeça d’água para prova do Salvamar. JORNAL DO BRASIL, 04 de agosto de 1983.
560
Madame. Coluna Reynaldo Loy. UH REVISTA, 04 de março de 1983.
561
O prêmio do primeiro surfista: uma tatuagem. Esportes. JORNAL DO BRASIL, 15 de dezembro de 1986.
197
como um processo primitivo e manual, demonstrando o desconhecimento da existência de
tatuadores artesãos, que tatuavam no país com máquina elétrica há pelo menos duas décadas.562
Apresentando o jovem Pepito, tatuador ambulante em Ipanema, a reportagem entrevista
jovens tatuados na praia, enfatizando as noções de celebração e de rebeldia, bandeiras caras à
juventude que vivia sob ditadura no país. Novamente, a figura do surfista se destaca:

Mas esses jovens não encaram essas tatuagens apenas como uma moda. Eles
procuram sempre dar um significado ao desenho. “Elas têm um significado
pra mim. Ela marca uma fase, um grupo de gente que eu andei, enfim, tem o
meu próprio significado. Agora, é claro que tá dentro da moda. E dentro da
moda eu procurei fazer uma coisa diferente, que não é comum: é uma
tatuagem nas costas”. “É liberdade, liberdade espiritual, do jovem, do
surfista”. 563

A tese que defendo acerca da juventude de classe média é a de que seu protagonismo na
ressignificação da tatuagem passa por dois movimentos distintos: em primeiro lugar, como
apontado, a adesão desse grupo à tatuagem obriga a reelaboração de seu significado, que
doravante precisa ser afastado das classes perigosas.
Em segundo lugar, e este efeito é sentido no intervalo de poucas décadas, à medida que
essa juventude envelhece, passa a ocupar espaços profissionais e a desempenhar papéis sociais
interditados aos tatuados de outrora. Esse movimento, além da necessária reelaboração do
significado da tatuagem, propiciará um impacto e valor de subversão menores na geração
seguinte, do que aquele enfrentado pela geração dos jovens que adotou a prática no auge de seu
valor de choque.
À medida que se torna familiar – inclusive no sentido literal do termo – o valor de
choque da tatuagem parece erodir-se. Uma vez domesticada, ou seja, inserida no cotidiano da
interação doméstica das classes médias, passando a marcar seus próprios filhos, o teor
subversivo dessas marcas corporais ganhou um novo significado. Não é mais possível
conformar a identidade virtual do tatuado com a identidade real do criminoso, do vagabundo
ou do moralmente inferior. É preciso construir sobre a tatuagem um novo significado, se não
honorífico ou legítimo, ao menos suportável e, sobretudo, transitório e corrigível. Daí a
importância de apelar à noção de rebeldia juvenil para explicar a tatuagem entre a classe média.

562
Em outro texto, analiso a distinção entre tatuadores ambulantes, artesãos e profissionais, sob perspectiva da
construção histórica destes termos e seus efeitos na legitimação social da tatuagem. SOUZA, F. A infame arte da
tatuagem.
563
TV GLOBO. FANTÁSTICO. Reportagem sobre a Tatuagem, 1978. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=NDXpxC58NGw. Acesso em: 15 de set. 2020.
198
4.6 MOTOCICLISTAS
Os motociclistas, também referidos na literatura sobre a tatuagem como choppers ou
bikers, são personagens importantes na reelaboração sígnica da prática, especialmente por seu
lugar social. De fato, seus efeitos na ressignificação da tatuagem brasileira foram mais
incisivamente produzidos a partir da década de 1990, quando a juventude das décadas de 1960
e 1970 estava já amadurecida e encontrou no motociclismo uma possibilidade de manutenção
de uma via de expressão inconformista, ou mesmo um escape à adequação social imposta. Parte
considerável dos motociclistas se tornaram rebeldes de fim de semana, enquanto durante a
semana são profissionais liberais, funcionários públicos, empresários, etc.
O movimento de associação entre a motocicleta e a transgressão é característico do pós-
Guerra, sobretudo em países como os Estados Unidos. Segundo Pereira:

A geração dos anos 50 foi considerada como a de poetas beats, que


personificavam a juventude pós-guerra, contando com o seu auge, o rock ‘n’
roll de Elvis Presley (1935 – 1977). Rebeldia e música configuravam a cultura
jovem do período. Chamada de juventude transviada, esta se caracterizava por
gangs de motociclistas. Nos anos de 1960, a oposição exercida pelo jovem,
que vinha ganhando força social ao longo da década anterior, culminou em
uma explosão político cultural. 564

A relação entre o fim da Segunda Guerra Mundial – e posteriormente, a Guerra do


Vietnã – e os efeitos sociais provocados nos países beligerantes é expresso também por Célia
Ramos. Ao analisar as transformações no público consumidor da tatuagem, a autora destaca a
formação das chamadas tribos urbanas, que acabam por construir noções de identidade que
passam, preferencialmente, por uma (re)apropriação ou reivindicação do corpo como
instrumento de expressão e, mais ainda, afirmação.

Embora lugar comum, o pós-guerra – iniciado em janeiro de 1945 – e


posteriormente o pós-revolução – a partir de maio de 68, na França,
provocaram em alguns grupos jovens o desconforto dos então atuais sistemas,
não só políticos, mas sociais, religiosos, educacionais e estéticos. Procurando
conquistar um novo espaço – ou não-espaço – sócio/político/estético -, esses
grupos, que foram codificados pela imprensa como hippies, punks, choppers,
cada um à sua maneira e todos de maneira semelhante, experimentaram uma
(re)invenção do cotidiano. Tendo pouco acesso, ou nenhum – ou nem mesmo
querendo esse acesso – aos meios do discurso dominante, apoderaram-se do
seu mais imediato meio de comunicação, o corpo. 565

564
PEREIRA, C. Os jovens e a contracultura brasileira, p. 20.
565
RAMOS, C. Teorias da tatuagem, p. 122.
199
Neste sentido, tanto Ramos quanto Pereira ressaltam o papel dos motociclistas na
difusão da tatuagem, especialmente nos Estados Unidos. Por ali, o fim da Segunda Guerra
Mundial trouxe com os soldados regressos seus efeitos psicológicos e como aponta Fátima
Pinto, “muitos jovens que voltavam do combate não conseguiam suportar o cotidiano de
trabalho e vida, mais tranquilos, de suas cidades”. Neste contexto:

[...] muitos veteranos formaram fortes ligações uns com os outros, relações
que transcendiam o período da guerra, iniciadas provavelmente durante os
treinamentos básicos, onde os homens eram forçados a situações
aparentemente impossíveis e muito estressantes, de modo a construírem um
grau excepcionalmente elevado de interdependência. 566

Com o retorno, passam a se reunir em bares e os laços de irmandade criados na guerra


persistem, exercendo “grande influência na constituição dos motoclubes, como um
agrupamento de pessoas que compartilham valores, propósitos e experiências”.567 Segundo a
autora, a Guerra do Vietnã e a oposição popular aos combatentes, que ao retornar foram
tachados de baby killers 568; a recusa de oportunidades de trabalho; aliadas aos traumas da guerra
e aos vícios com ela adquiridos levaram esses jovens, que tinham em média 19 anos, a isolar-
se em grupos de identificação, dos quais os motoclubes foram exemplo importante.569
Nos Estados Unidos, a associação entre os motociclistas e as tatuagens seria tão intensa,
que os usuários de tatuagens menos elaboradas, que no senso comum brasileiro por vezes são
referidas como de cadeia ou de bandido, por lá receberiam a pecha de bikers ou choppers,
termo que designa os grupos de motociclistas; scratcher, o que literalmente seria arranhador,
mas no contexto pode se referir tanto às tatuagens mal realizadas quanto aos sujeitos que fazem
pouco dinheiro com suas atividades, o popular pé-rapado no Brasil; e sailor, marinheiro, em
português.

Biker – assim como scratcher ou sailor – é uma imagem poderosa que indica
tanto a descrição real de uma pessoa e seu estilo de vida quanto um estereótipo,
por vezes pouco próximo da realidade. Por exemplo, motociclistas são
tatuados, e em alguns – mas certamente não em todos – as tatuagens são mal
executadas e representam expressões antissociais. Mas o estereótipo
motociclista também é usado para se referir a tudo que é ruim, antiquado e
não classe média na tatuagem contemporânea. [...] A classe média supõe que
os comportamentos e valores da classe trabalhadora sejam baseados nesses

566
PINTO, F.
Você tem uma moto ou uma Harley, p. 46.
567
PINTO, F.
Você tem uma moto ou uma Harley, p. 46.
568
Assassinos de bebês, em português.
569
PINTO, F. Você tem uma moto ou uma Harley, p. 47.
200
estereótipos. Essa suposição, por sua vez, informa a percepção que a classe
média tem de si mesma – como liberal, tolerante e saudável, por exemplo.
Novamente, se a diferença de classe é constituída na relação, podemos notar
como os estereótipos de uma classe são usados para definir e representar o que
a outra não é. 570

Como apontado por Margot DeMello, a tatuagem de motociclista torna-se uma espécie
de subgênero da tatuagem estadunidense, informando o lugar social de seu praticante, em
oposição à classe média. No caso do Brasil, a dinâmica é distinta. O motociclismo e os
motoclubes forjaram seu significado distante das classes trabalhadoras, especialmente pelo alto
custo das motos custom no país.
Embora a década de 1960 também tenha tido sua importância na história dos motoclubes
– como percebido no surgimento de grupos como o Zapata MC e o Balaios MC em São Paulo
e no Rio de Janeiro, respectivamente – estas tribos urbanas serão impulsionadas após a política
de abertura às exportações dos anos de 1990, durante o governo Collor, o que facilitou o
ingresso de motocicletas e peças importadas como as modelos custom, que compõe parte
importante da representação dos membros de motoclubes, além das choppers, motocicletas
construídas ou modificadas artesanalmente e que adquirem formas e configurações bastante
distintas das versões comercializadas. 571
O motoclube Abutre’s é um exemplo dessa agremiação tardia. Fundado em 1989, é hoje
um dos maiores motoclubes do mundo. Em suas práticas e representações, a tatuagem é
elemento bastante presente, como se percebe na arte que estampa o site do grupo, na qual um
motociclista é representado trajando o tradicional colete – ou patch, indumentária típica dos
motoclubes; a numeração da placa da motocicleta fazendo alusão ao ano de formação do clube;
as inscrições A.S.S.A – Abutre’s sempre, sempre Abutre’s; e o braço esquerdo extensivamente
tatuado, com a representação de uma caveira.
A caveira é uma marca constante na cultura dos motociclistas, segundo Célia Ramos:

Corpo tatuado, de preferência com caveiras e crucifixos – símbolos da morte


– e carregando caixões mortuários, esse grupo só que chamar a atenção das
pessoas, “deixá-las perdidas, para depois mostrar o que realmente somos”,
comenta Alemão. “Essa é só uma maneira da tribo se expressar e exigir seu
direito de ir e vir. 572

570
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 6-7. Tradução nossa.
571
PINTO, F. Você tem uma moto ou uma Harley, p. 47.
572
RAMOS, C. Teorias da tatuagem, p. 123.
201
Imagem 21: Representação de um motociclista do Abutre’s MC

Fonte: WWW.ABUTRES.COM.BR Acesso em: 30 jan. 2021

Em foto também disponível no site do motoclube, Zé Carlos, vice-presidente do


Abutres, é fotografado com outra tatuagem bastante comum entre membros de motoclubes: o
brasão ou outros símbolos do MC gravados na pele, replicando o colete como uma encarnação
deste.

202
Imagem 22: Zé Carlos – Vice-Presidente do Abutre’s Moto Clube

Fonte: WWW.ABUTRES.COM.BR Acesso em: 30 jan. 2021

Embora, como dito, a cultura dos motoclubes parece ter produzido maiores efeitos na
difusão da tatuagem após a década de 1990, a importância do motociclismo para a
ressignificação da tatuagem se dá por ao menos duas razões. Em primeiro lugar, pelo fato de
serem grupos que estão em constante trânsito, cuja própria essência se liga ao deslocamento por
diversas regiões do país e fora dele, caracterizando um constante intercâmbio cultural e
sedimentando um estilo de vida entre seus participantes, muitos deles oriundos da classe média.
Lançada em 2004 – quando a juventude dos anos de 1960 já havia sido absorvida, em
sua maioria, pelo sistema ao qual combatiam – a revista Tatuagem, Arte e Comportamento,
publicação da Empório Editorial, apresentou uma reportagem sobre o motoclube Forasteiros,
evidenciando sua relação com a tatuagem:

Vários Forasteiros têm tatuagens. A maioria usa o brasão do motoclubes


tatuado no corpo, como Carlão e Roberto, que também têm várias outras
tatuagens. Geralmente, o pessoal faz a tattoo do brasão depois de ficar um
203
tempo rodando com o grupo. Quando não estão viajando, eles costumam se
encontrar em Curitiba, toda quinta-feira, no bar Café Platea, onde quem
aparece com escudo de motoclubes não paga entrada. Os Forasteiros se
reúnem para tomar uma cerveja e curtir um som de rock e MPB com a banda
Blindagem. Dentro do motoclube, convivem pessoas de várias profissões:
comerciantes, bancários, profissionais liberais e funcionários públicos. 573

A narrativa ressalta aquilo a que me referi anteriormente. Para uma parte considerável
dessa juventude, a rebeldia foi uma forma de resistência fugaz, o que tornava essa mesma
rebeldia uma inadequação temporária aos olhos dos grupos que possuíam a prerrogativa do
exercício de poder. Mais tarde, esses grupos de motociclistas tatuados, cujo imaginário foi
associado ao bad boy, serão compostos por comerciantes, bancários, profissionais liberais e
funcionários públicos, ou seja, por sujeitos que se conformaram à sociedade a qual sua
corporalidade, como tatuados, supostamente desafiara.
Na impossibilidade de se manterem dissidentes, apartados da sociedade cujos valores
afirmam recusar, à medida que envelhecem esses jovens passam a compor o conjunto de
indivíduos socialmente adequados. Neste universo, a tatuagem e a motocicleta se mantêm como
fugas da realidade cotidiana ou como resquícios de uma rebeldia represada. Ao entrevistar
Sílvio, um executivo de 44 anos, praticante de motociclismo e adepto do “visual selvagem das
motos custom”, como as Harley-Davidson, Fátima Pinto recebe de seu interlocutor:

O que tem aqui é o efeito Hollywood. A divulgação da cultura HD ocorreu


através do cinema com os filmes tipo O Selvagem, Easy Rider e o
Exterminador do Futuro. A marca virou ícone em função do cinema
americano. O cinema promoveu o conhecimento da marca falando do estilo
de uma outra coisa – os motoclubes como o Hells Angels, que passam um lado
wild, com as roupas de couro, barba, barrigão. Quanto mais feio, melhor. [...]
O cara é um engravatado que presta contas. A Harley é o alter ego dele. Não
mexe comigo, que a minha turma não é de brincadeira! É um tipo de
disfarce. 574

Contudo, nem todos os motoclubes primam por exibir a imagem fabricada de selvagens
ou bad boys, embora a liberdade seja um lugar comum no discurso desses sujeitos. O líder do
motoclube Falcões, quando entrevistado pela revista Tatuagem, Arte e Comportamento,
procurou afirmar valores mais próximos daqueles socialmente conformados, como a
cordialidade, o pacifismo, e claro, o amor pela liberdade:

573
Forasteiros. Tatuagem, arte e comportamento, ano I, n. 12, p. 65.
574
PINTO, F. Você tem uma moto ou uma Harley, p. 92.
204
Paulinho faz de tudo para manter a união dos integrantes e o bom
relacionamento com todos os outros motociclistas: “Eu dou o meu sangue pelo
Falcões e trabalho muito nos eventos para que dê tudo certo e não haja
problemas com os outros motoclubes”. E continua: “o falcão entra e sai de
cabeça erguida, não pode se meter em encrencas, porque quem paga depois é
o brasão e nós somos da paz”, comenta. Já realizaram muitas viagens juntos,
entre elas, Payakan destaca: Goiânia, Rio de Janeiro, Goiás e Santa Catarina.
“É muito bom curtir a estrada com os amigos e viver a vida com liberdade”.575

Além da reafirmação dos valores da liberdade e do companheirismo, o presidente do


Falcões retoma um lugar comum no discurso dos motociclistas, que coincide com o discurso
dos tatuadores e tatuados: o da ressignificação da tatuagem não mais como prática exclusiva
das classes perigosas, mas como prática difundida entre os sujeitos respeitáveis:

O nosso motoclube não é fechado para novos integrantes, mas para fazer parte
do Falcões é preciso antes ser apresentado por um deles. Não temos restrições,
os integrantes são advogados, administradores de empresas, engenheiros,
empresários, comerciantes, funcionários públicos e uma grande parte é de
militares. 576

O segundo ponto que ressalta a importância dos bikers para a tatuagem no período foi a
difusão do estilo de vida do motociclismo como algo associado às tatuagens. Ao menos dois
importantes tatuadores brasileiros da década de 1980 têm sua história ligada ao motociclismo,
e indicam este estilo de vida como determinante para seu ingresso no universo da tatuagem.
O já citado Antônio Stoppa, tatuador radicado em Florianópolis, narra sua experiência
com a tatuagem e sua relação com o universo das motocicletas:

Graças às revistas importadas sobre as motos choppers, logo eu comecei a me


interessar ainda mais pelas tatuagens. As revistas mostravam um cartaz sobre
as tatuagens ligando ao modo de vida dos bikers. A identificação com as motos
e a maneira de viver deles já existia; eu mesmo me dedicava a transformar
motos comuns em motos choppers, e já que havia a identificação com o grupo,
com a maneira de viver deles, porque não fazer uma tatuagem? 577

Stoppa é membro do Abutre’s, assim como Cláudio Mendonça, conhecido como


Alemão. Alemão é tatuador na cidade de Santo André, no ABC paulista, desde o início da
década de 1980. Quando o entrevistei, em 2016, a primeira pergunta que lhe fiz foi sobre o seu

575
Falcões. Tatuagem, arte e comportamento, s/d, p. 21-23.
576
Falcões. Tatuagem, arte e comportamento, s/d, p. 21-23.
577
RAMOS, C. Teorias da tatuagem, p. 132.
205
contato com a tatuagem. Na resposta, Alemão significa sua experiência a partir da imbricação
entre tatuagem, motocicletas, juventude, liberdade e rebeldia:

Por gostar de motocicletas exóticas, o que hoje seria chamado chopper. O meu
negócio é a rebeldia. Eu sou de uma geração pós-hippie, curtindo a liberdade
que nós não tínhamos. Só tinha um tatuador na época, que era o Lucky. Lucky
era um dinamarquês bastante fechado, ele também tinha medo da ditadura,
mas gostava muito do Brasil, da pescaria, da vida portuária que ele vivia.
Quando soube que existia uma tatuagem coloria, eu e o Stoppa, que é meu
irmãozão, e mais quatro amigos fomos até Santos e conhecemos a tatuagem.
Naquele momento eu me encantei, fiquei maravilhado pela tatuagem. Mas o
propósito da tatuagem, pra nós, era rebeldia. Era causar, impactar a sociedade
e afirmar nossa liberdade, nosso estilo de vida. Era um tempo muito difícil por
causa da ditadura. Nós, jovens, não podíamos fazer nada. Eu e o Stoppa nos
encantamos, nossos amigos viam e também queriam, em nosso grupo todo
mundo gostava de tatuagem, mas custava caro. Era preciso ir até Santos pra
fazer uma. Então nós começamos a fazer maquininha de tatuagem. Fizemos
até com buzina de motocicleta e com campainha de residência. 578

O relato de Alemão, para além de restringir-se à experiência dos motociclistas tatuados,


permite entrever uma questão cara à juventude do período: a noção de liberdade e rebeldia. No
período em que o Brasil vivencia aquilo que chamo de segunda fase da tatuagem, caraterizada
pela adesão significativa da juventude de classe média, o Brasil experimentou um governo
ditatorial que restringiu liberdades e impôs não apenas dominações econômicas e políticas,
como os arrochos salariais e as cassações de mandatos típicos do período, mas censurou
também manifestações políticas que tomavam formas transgressivas, como os usos do corpo
fora dos padrões de normalidade estabelecidos.
Reside aqui um ponto fundamental: o corpo é político. Não apenas na modernidade ou
pós-modernidade, obviamente. Mas, sem dúvidas, a partir dos anos de 1960, a
instrumentalização política do corpo pela juventude é um ponto crucial não apenas para uma
História da Tatuagem, mas para a história das relações de poder. Como afirma Castañeda:

O que os anos 60 deixaram estabelecido em todo o mundo foi, primeiro, que


o poder existe em outros âmbitos além do político, econômico e do Estado;
segundo, que é necessário resistir a ele, questionar sua legitimidade, contestar
sua permanência. Aí reside a verdadeira herança daquela fase e a razão de sua
sobrevivência em nossa memória. 579

578
ENTREVISTA: Cláudio Mendonça – Alemão. São Paulo: 2016.
579
CASTAÑEDA, J. Che Guevara: a vida em vermelho, p. 81.
206
A resistência a esse poder ultrapassa a relação entre cidadão e Estado. A desobediência
às definições de corporalidade e estilos de vida desejáveis para a juventude, como aquelas
expressas por Vaninha, promotora dos cursos de etiqueta para os jovens da elite carioca; e a
recusa deliberada à conformação com estes padrões, parecem ter sido precisamente as
motivações da geração de tatuados da qual Alemão faz parte.
Em sua narrativa, Alemão ressalta a desconfiança policial sobre os sujeitos tatuados e
as estratégias desenvolvidas por estes para se afirmar como dissidentes ou rebeldes, ao mesmo
tempo em que mantinham sua integridade física e sua liberdade jurídica, escapando da
truculência da polícia:

Naquele tempo, para a tatuagem ser aceita na sociedade, nós colocamos o


nome de tatuagem artística e colorida. Como gerava problemas como a
polícia, tínhamos que falar que a tatuagem era artística e colorida. Como a
sociedade criticava, nos odiava, nós éramos convidados a nos retirar dos
ambientes. Não éramos aceitos em lugar nenhum, mas nós gostávamos. Fui
expulso de vários lugares. Éramos convidados a nos retirar ou chamavam a
polícia pra gente sair da cena. Várias vezes fomos convidados a sair da cena.
Muitas coisas aconteciam por conta da ignorância. Nos restringiam. Para ir ao
banco ou a qualquer lugar, sempre tínhamos problema. Em qualquer lugar que
a gente ia, sempre tinha um segurança cuidado de nós, um guarda-costas
gratuito. A sociedade não nos aceitava. 580

Ao relatar a relação entre a repressão policial e a tatuagem, Alemão ressaltou tanto a


instrumentalização da tatuagem como um signo de rebeldia para a juventude de classe média
quanto a permanência de discursos estigmatizantes sobre ela, quando produzidas no corpo das
pessoas das classes pobres. Segundo ele, o status artístico da tatuagem foi uma estratégia dos
tatuadores para driblar a repressão policial:

Até então só existia a tatuagem feita na agulha, a dita tatuagem de cadeeiro.


O artístico veio depois: Tatuagem Artística. Por conta da ditadura, pra que se
pudesse ter tatuagem, pra tirar aquele arquétipo de tatuagem de cadeia. Tanto
que no meu estúdio, quando comecei a tatuar, eu fiz cartão e pedia pra
ninguém tirar o cartão da carteira. Se a polícia o parasse, ele apresentava o
cartão: “fiz aqui”. Tinha cliente que voltava só pra pegar um cartão novo, que
as vezes o outro estragava, molhava. Porque se não era hostilizado. Houve
caso de cliente sair do estúdio e ser morto pela polícia. Saiu do meu estúdio,
tatuagem novinha, e mataram ele. O negócio era grave. Naquele tempo
policial não agia pela Lei, a Lei era ele. Dependendo do grau de consciência
do cara, agia da forma que achava melhor e não era punido. Apanhar? Muitos!

580
ENTREVISTA: Cláudio Mendonça – Alemão. São Paulo: 2016.
207
E apanhar feio ainda, machucava grave, tomava choque! Foi um tempo
brabo. 581

A complexidade da narrativa de Alemão traz a dinâmica de repressão e resistência nas


relações de poder que envolveram os sujeitos tatuados. Violência, tortura e morte, como
fartamente relatado pela historiografia da ditadura, também se fizeram presentes sobre aqueles
que ousaram manifestar em seu corpo uma construção estética divergente daquela tacitamente
autorizada, excorporando assim uma atitude ética dissidente. É a partir dessas agências políticas
do corpo que analiso a ressignificação da tatuagem. Os discursos produzidos sobre os sujeitos
tatuados se deslocaram em resposta ao lugar social e à ação política desses sujeitos.

4.7 MENININHAS TATUADAS: PERMANÊNCIAS, RUPTURAS E REFINAMENTOS


NA REGULAÇÃO SOCIAL DO CORPO FEMININO
Compreender o fenômeno de ressignificação da tatuagem passa, imperativamente, por
analisar a instrumentalização da tatuagem pelas mulheres, visto que constituem atualmente o
público majoritário dos Tatoo Studio. 582
Em primeiro lugar, é preciso dizer o óbvio: a despeito do incomensurável esforço
feminista na luta pela igualdade de gênero, as mulheres foram e são alvo da regulação social, e
consequentemente do atravessamento de seu corpo pelas tecnologias de poder, vigilância e
controle, em uma escala muito maior do que os homens.
Portanto, a instrumentalização feminina da tatuagem como uma estratégia de afirmação
de posse sobre o próprio corpo é a hipótese que orienta a análise da tatuagem entre as mulheres.
Se a análise da tatuagem feminina na primeira metade do século evidenciou sua estratégica
associação à prostituição583, cabe perguntar quais mudanças efetivamente as reivindicações de
liberação pós-década de 1960 teriam produzido. Além disso, seguindo a tese foucaultiana, quais
contraofensivas o poder empreendeu para a continuidade de sua dominação, é o que pretendo
analisar nas linhas a seguir.
Como apontado por Paulo Sérgio do Carmo, nos anos de 1950:

As jovens eram separadas em dois tipos: as moças de família, que impunham


respeito social, futuras rainhas do lar que conservavam sua inocência sexual,
mantendo-se virgens como garantia de honra até o casamento; as moças

581
ENTREVISTA: Cláudio Mendonça – Alemão. São Paulo: 2016.
582
LEITÃO, D. Mudança de significado na tatuagem contemporânea; OSÓRIO, A. O gênero da tatuagem.
583
SANT’ANNA, D. História da beleza no Brasil, p. 58.
208
levianas, que, desviando-se do bom caminho, permitiam certas intimidades
físicas com os rapazes e, consequentemente, ficavam malfaladas. 584

A cultura patriarcal não se restringe ao Brasil, obviamente. Na Inglaterra dos anos de


1950, apenas 1% das britânicas admitiam o sexo pré-nupcial. Na década de 1980, esse número
alcançava 21%. Nas palavras de Hobsbawm, “tornavam-se agora permissíveis coisas até então
proibidas, não só pela lei e a religião, mas também pela moral consuetudinária, a convenção e
a opinião da vizinhança”. 585 O que se evidencia nas palavras de Hobsbawm é aquilo que
Foucault denominou microfísica do poder. Não apenas as instâncias de controle institucional
realizavam a censura, o julgamento e a eventual exclusão ou punição dos sujeitos. A postura de
recusa à ordem patriarcal, vista como desvio feminino, não residia necessariamente na força da
Lei ou na excomunhão religiosa, mas também nas estratégias microfísicas de controle, como a
família e a vizinhança.
Neste sentido, a liberação do corpo feminino enfrenta paradoxos e dicotomias entre
confrontação e conformação, liberdade identitária e submissão estética, entre outros desafios.
Como aponta Joana Novaes:

“Nosso corpo nos pertence”, gritavam no começo dos anos de 1970 as


mulheres que defendiam o direito ao aborto, à liberdade sexual, ao direito ao
agenciamento de seus próprios corpos – mas até que ponto pode-se dizer que
tal tarefa foi bem-sucedida? Até que ponto muitas delas não se encontram
aprisionadas em seus próprios corpos, na justeza de suas próprias medidas, na
busca permanente por um ideal, que, como tal, não pode ser atingido? Claro
está que nem de longe trata-se de negar todo o valor libertário do movimento
feminista e dos outros que vieram em sua esteira. O que se propõe aqui é
refletir quanto a “liberdade” pode, às vezes, aprisionar; levantar a censura
sobre o próprio corpo, ideal de todas nós, pode, muitas vezes, redundar em
uma censura maior ainda. 586

A reflexão de Joana me conduz à seguinte questão: em que medida a tatuagem


contribuiu para a emancipação ou submissão feminina? Iniciarei pela perspectiva da
emancipação. Para David Le Breton, a prática da tatuagem pode ser entendida enquanto
instrumento de afirmação da posse do próprio corpo e autonomia para atuar sobre ele,
modificando-o. O autor emprega o conceito de posse de si para definir tal experiência. Segundo
ele, aqueles que se tatuam:

584
CARMO, P. Culturas da rebeldia p. 22.
585
HOBSBAWM, E. A era dos extremos, p. 316-317.
586
NOVAES, J. Beleza e feiura: corpo feminino e regulação social, p. 479.
209
Sentem-se metamorfoseados saindo da loja ou após eles mesmos terem
gravado os sinais no seu corpo. Vivem à sua maneira um ritual pessoal de
passagem. Mudando a forma do seu corpo, julgam mudar a sua existência
algumas vezes conseguem-no porque o seu olhar sobre si próprios se
modificou radicalmente. Tanto mais que a marca corporal é muitas vezes num
meio de ganhar autonomia, uma maneira simbólica de tomar posse de si. 587

Débora Leitão percebe contornos semelhantes na tatuagem entre as mulheres no século


XXI. Segundo a autora, as tatuagens de suas interlocutoras foram justificadas pelo “desejo de
‘sentir-se bem consigo mesma’ e ‘estar bem na sua pele’, remetendo à ideia de bem-estar
próprio como um valor importante na contemporaneidade.” 588
Andrea Osório, por sua vez, destaca a importância de compreender a tatuagem feminina
para além da expressão da individualidade, incluindo a experiência, de fato, dessa
individualidade. Para ela, a tatuagem marca “uma busca por se viver plenamente esta
individualidade frente a um contexto social que é experimentado pelo sujeito como restritivo a
sua autonomia pessoal”.589 Osório instrumentaliza o conceito de Le Breton na análise da
tatuagem entre as mulheres, salientando que “a posse de si é a marca de uma individualidade,
uma autonomia pessoal, na forma de marca pessoal de propriedade sobre o próprio corpo. É o
exercício, a tentativa de exercício ou o enunciado/comunicado de que o sujeito, dentro do corpo
marcado, é soberano sobre si.” 590 A autora sugere ainda que a tatuagem estaria se tornando
“parte do aparato de embelezamento feminino, como uma ida ao salão de cabeleireiros”. Porém,
atenta para o fato de que, mantido seu forte apelo estético, deve-se considerar outras razões para
seu uso, superam o mero embelezamento corporal.591
Débora Leitão complementa essa noção ao afirmar que o bordão constantemente
emitido por suas interlocutoras, o corpo é meu, e faço com ele o que eu quero, diz respeito a
“ideia de autoresponsabilização pessoal e financeira”, instrumentalizada para autorizar e
legitimar os usos do corpo caracterizados pela autonomia das mulheres tatuadas. 592 A
construção da autonomia feminina pelo ato de se tatuar deve ser historicizada, e o período entre
as décadas de 1960 e 1980 é fundamental para a compreensão dos debates atuais acerca da
construção dessas identidades.

587
LE BRETON, D. Sinais de identidade, p. 12, grifo nosso.
588
LEITÃO, D. Mudanças no significado da tatuagem contemporânea, p. 6.
589
OSÓRIO, A. O gênero da tatuagem, p. 2.
590
OSÓRIO, A. O gênero da tatuagem, p. 2.
591
OSÓRIO, A. O gênero da tatuagem, p. 173.
592
LEITÃO, D. Mudanças no significado da tatuagem contemporânea, p. 6-7.
210
As transformações culturais deste período, segundo Françoise Thébaud, resultam da luta
política das mulheres. Para ela, as reivindicações sociais feministas produziram transformações
efetivas não apenas na política, mas na sociedade e na cultura.

[...] o fator essencial de emergência é, no início dos anos 1970, um fator


político, acompanhado por uma realidade sociológica. Animado pelas jovens
do baby boom, tendo se beneficiado da primeira onda de democratização do
ensino secundário e superior, o movimento de liberação das mulheres –
chamado frequentemente pelos historiadores “feminismo da segunda onda” –
dá um impulso decisivo, interrogando-se sobre o passado e buscando as raízes
da opressão ou da revolta. 593

Neste contexto, a tatuagem foi instrumentalizada como uma das estratégias de


reivindicação da autonomia corporal. No início da década de 1970, o Jornal do Brasil afirmava
em matéria intitulada Nem a tatuagem escapa, que o “antigo símbolo da virilidade agora é
assunto de mulher”. Referindo-se ao trabalho do tatuador nova-iorquino Peter Poulos, cuja
clientela feminina tornou-se majoritária, o jornal anunciava que a tatuagem entre as mulheres
obedecia a códigos distintivos, não podendo ser feita no braço “porque fica muito viril”. A nota
afirmava que “é melhor em lugares que fiquem à mostra – como as pernas – ou em lugares para
serem desvendados oportunamente, como os seios. E sempre usando motivos delicados, como
borboletas, rosas e pássaros”. 594 O tatuador ainda faz questão de distanciar as tatuadas da década
de 1970 do estigma reconhecidamente imposto sobre as mulheres na primeira metade do século,
adequando seu discurso à época, e afirmando que “suas clientes nada têm de swingers, mas pelo
contrário, são mulheres da maior seriedade”. 595
Da mesma maneira, em 1968 o programa O Fantástico apontava que nos Estados
Unidos e na Europa a tatuagem deixava de ser “coisa apenas de marinheiros e presidiários” para
estender-se às mulheres. Em entrevista ao programa, o tatuador Cliff afirmava que “antigamente
atendia no máximo a duas mulheres por ano. Agora metade da clientela é de mulheres”. 596
Por ser digno de nota nas reportagens brasileiras, matérias sobre a procura pela tatuagem
entre as mulheres estadunidenses nos permite entrever uma prática ainda vista sob desconfiança
no país, durante anos de 1960 e 1970. Ainda assim, no ano de 1968 o tatuador Mr. Tattoo

593
THÉBAUD, F.
Políticas de gênero nas ciências humanas, p.36
594
Nem a tatuagem escapa. Zózimo. JORNAL DO BRASIL, 16 de março de 1972.
595
Nem a tatuagem escapa. Zózimo. JORNAL DO BRASIL, 16 de março de 1972.
596
TV GLOBO. FANTÁSTICO. Reportagem sobre a Tatuagem, 1978. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=NDXpxC58NGw. Acesso em 15 de setembro de 2020.
211
Lucky 597 afirmava atender “muitas senhoras da alta sociedade do Rio e de São Paulo” que o
procuravam para fazer pintas ou pequenos sinais. 598
No que tange aos Estados Unidos, Margot DeMello destaca a fala do tatuador Samuel
Steward, que afirma sobre a década de 1950:

Quando eu finalmente descobri o problema em torno da tatuagem nas


mulheres, estabeleci uma política de recusar tatuar mulheres a menos que
tivessem vinte e um anos, fossem casadas e estivessem acompanhas de seus
maridos, com documentação que provasse seu casamento. A única exceção
foram as lésbicas, e elas tinham que ter vinte e um anos e provar isso. Naqueles
rígidos e intolerantes anos de 1950, muitas cenas de maridos irados, pais
furiosos, namorados indignados e amantes selvagens tornaram necessário
aceitar clientes mulheres apenas sob grande cautela. 599

Nas palavras Steward, era raro encontrar mulheres tatuadas porque, naquele período,
boas garotas não se tatuavam. Segundo Margot DeMello, as boas garotas a que Steward se
referia eram aquelas que fossem “atraentes, de classe média e heterossexuais”. Cabia ao
tatuador, segundo DeMello, impedir que as ditas boas garotas não adotassem a tatuagem e
passassem a ser vistas como vagabundas. 600
No início da década de 1960, a tatuagem entre as mulheres aparecia em uma proporção
menor que a dos homens, sempre associada à transgressão, futilidade e a moda. Quanto às
tatuagens das estadunidenses, o jornal santista A Tribuna afirmava em 1963 que “segundo as
mais recentes estatísticas, nos Estados Unidos cinco milhões de mulheres e dezenove milhões
de homens possuem tatuagens em diversas partes do corpo. Um jornal de Nova York afirmou,
por sinal, que a tatuagem é atualmente um dos ‘hobbys’ mais procurados, pois está na moda.” 601
A incompatibilidade entre a tatuagem e a noção de boa garota, apontada por Margot
DeMello, é percebida também no Brasil. Em reportagem de 1987 o Jornal do Brasil apresentava
a modelo Karen Bertrand de modo peculiar. Ao invés do reforço de suas qualidades
profissionais – ou mesmo pessoais – ela era caracterizada como boa garota por aquilo que não
era, ou seja, por aquilo que era interdito às boas garotas. A matéria afirma que: “Karen Bertrand,

597
Entre os pioneiros da tatuagem brasileira ainda em atividade, é comum a atribuição à Lucky do papel de
“primeiro tatuador profissional do Brasil”, em uma genealogia da profissão que constrói uma espécie de mito de
origem que confere capital simbólico àqueles que por ele foram iniciados ou tiveram contato. SOUZA, F. História
da Tatuagem no Brasil, p.49-50.
598
MONTANDON, M. A tatuagem. O CRUZEIRO, 11 de maio de 1968, p. 16.
599
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 61.
600
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 61.
601
Tatuagem está na moda. A TRIBUNA, 27 de setembro de 1963, grifo nosso.
212
19, não posa nua, não brinca na tv, não tem tatuagem – e, no entanto, é modelo. A melhor de
86 segundo os editores. Jamais será musa do verão, pois só mergulha no quintal de casa, em
Angra. É diferente: ‘Desfilo para vender roupas, as outras, eu não sei’”. 602
Karen era modelo ainda que não tivesse tatuagem ou posasse nua, indicando
simultaneamente a depreciação da profissão, sua associação implícita à prostituição – algo
constante na carreira das modelos603 – e o potencial da tatuagem em reforçar estes estigmas.
Oposto de Karen e, portanto, carregando os estigmas do que era não ser uma boa garota,
a jovem Cristina Martinelli encarnava – literalmente, por meio de sua tatuagem e seus vários
brincos – a imagem da garota má. Bailarina do Teatro Municipal, Cristina havia sido afastada
por um comportamento não condizente com o trabalho daquele corpo de balé. Descrita como
insubmissa e mau exemplo para as demais bailarinas, Cristina afrontava os valores defendidos
por aquela sociedade:

Calça de náilon azuis, sapatilha rosa, cabelos repartidos ao meio e presos na


nuca, três brincos na orelha direita, dois na esquerda, tatuagem se sobressaindo
na pele branca do pulso (“a nuvem significa minha fragilidade, o raio minha
força”), Cristina tem o físico de uma garota. Mede 1,58cm, pesa 39 quilos.
Alimenta-se a base de carnes e legumes, dorme cinco horas por noite, fuma
dois maços de cigarro por dia. 604

Em consonância com o que DeMello percebe nos Estados Unidos, a tatuagem entre as
mulheres manteve seu potencial estigmatizante mesmo quando da adesão da classe média. Se
já não era mais possível conformar as mulheres tatuadas à identidade de prostitutas, como feito
outrora pelos discursos dominantes, permaneciam discursos que a associavam à transgressão e,
sobretudo, ao discurso da frivolidade feminina.

As filhas de Eva sempre insistiram em chamar a atenção. Os recursos provêm


da moda ou da própria imaginação. Entre os “teenagers” da República Federal
da Alemanha, está em voga o “Art Tattoo”, inspirado pelos marujos. As
meninas de hoje colam nos braços ou no rosto as figurinhas de passar que as
suas avozinhas colecionavam em grossos álbuns. Florezinhas na face direita e
um “símbolo” no antebraço esquerdo estão atualmente em moda. Quanto aos
motivos – âncoras, rosas, sagitário ou leão – não há limites: cada qual escolhe
seu gosto. 605

602
Nomes. JORNAL DO BRASIL, 11 de janeiro de 1987.
603
FARIAS, R. Conjugalidade e profissão de modelo, p. 167.
604
MARIA, C. Cristina Martinelli vai à justiça para recuperar seu lugar no Balé Municipal. JORNAL DO BRASIL, 17 de
abril de 1983.
605
Tatuagem, a moda. A TRIBUNA, 22 de fevereiro de 1968, grifo nosso.
213
Em reportagem produzida para a revista O Cruzeiro, David Cohen apresenta a britânica
Débora Shaw, que na fala do jornalista, se submetia à tatuagem com o exclusivo interesse de
chamar a atenção, possivelmente masculina, considerando a prepotência do discurso do autor:

Todo mundo sabe que as mulheres garotas fazem qualquer coisa pra chamar
a atenção. É o caso de Débora Shaw. Quando ela for a qualquer das praias da
Ilha Britânica, fará sensação com sua borboleta tatuada no peito. Ela possui
tatuagem também nos braços e nas pernas. Deborah explica: “A tatuagem do
peito foi um pouco dolorosa e foi preciso coragem para fazê-la. Mas estou
feliz por tê-la feito. Eu simplesmente adoro tatuagens”. Joe Brent que fez essas
tatuagens, nos diz: “Eu tenho feito tatuagens em garotas, especialmente no
peito, mas posso fazê-las em qualquer parte do corpo”. É de se crer que logo
não haverá mais tangas corpo das mulheres, somente tatuagens... 606

A repetição do termo chamar a atenção em ambos os discursos não é coincidência.


Como aponta Denise Sant’Anna, ainda que a década de 1960 tenha sido marcada pelo gradativo
aumento do interesse científico pelo tema da beleza, práticas de embelezamento como o carmim
e o batom ainda eram vistas sob suspeita, do mesmo modo que o corpo feminino ainda sofria o
controle masculino, sobretudo dos pais, irmãos e maridos:

Interessante observar o quanto o assunto “beleza” passou a despertar maior


interesse científico desde então, mas ainda era difícil admitir que o corpo da
mulher pertencia em primeiro lugar a ela. A livre possibilidade de embelezá-
lo, segundo os desejos pessoais, provocava reprovações contundentes. Para
manter o corpo feminino sob controle masculino (em particular, de pais,
maridos, médicos, e não de comerciantes, curandeiros ou senhores
considerados “malandros e fanfarrões”), costumava-se associar uma parte do
embelezamento diretamente ao pecado. [...] Na mesma época, moças de 14 e
15 anos consideradas de boa família raramente possuíam autorização de seus
pais e irmãos para utilizar o carmim e o batom. 607

No que diz respeito à tatuagem, a relação não foi menos tensa. Se a tatuagem
predominou nos corpos masculinos pelo menos até o fim do século XX – Andrea Fonseca
percebe essa virada no público consumidor entre os anos de 1996 e 2002, quando as mulheres
se tornaram clientela majoritária dos estúdios por ela analisados, chegando a constituir 60% dos
clientes em Florianópolis/SC 608 – essa transformação de público foi constantemente associada
pelos discursos à noção moda e embelezamento feminino.

606
COHEN, D. Vivendo e aprendendo. O CRUZEIRO, 27 de abril de 1979, grifo nosso.
607
SANT’ANNA, D. História da beleza no Brasil, p. 55-56.
608
FONSECA, A. Identidade à flor da pele, p. 192.
214
Na década de 1980, é notável a aparição de corpos femininos tatuados vinculados a um
discurso apartado da marginalidade. Em reportagem publicada em 1983 no jornal Última Hora,
Antonieta Santos entrevista a modelo e atriz do cinema underground Thereza Cristina, que teria
se tatuado com um amigo em 1975. Thereza considerava que a tatuagem teria sido banalizada
na década de 1980, e o fato de ter se tatuado na década anterior, era pra ela uma prova de
coragem e sagacidade, um atestado de posse sobre o próprio corpo: “Quando eu fiz a minha
ninguém fazia. Só quem estava mesmo muito por dentro. Só quem sabia das coisas”. 609
O que se evidencia no discurso produzido sobre as tatuagens femininas de classe média
é que, se a prática não se torna legítima, ao menos precisa se afastar das noções de
marginalidade ou imoralidade. Gradativamente, portanto, o discurso produzido sobre a
tatuagem se desvincula de sua aura marginal, à medida que esses grupos aderem à prática mais
sistematicamente. Neste sentido, em 1989 uma reportagem do Jornal do Brasil apresenta os
tatuados como um grupo sensivelmente mais heterogêneo do que outrora. Da atriz Monique
Evans à família Fernandes, a tatuagem parece ter saído dos guetos para ocupar os mais variados
corpos.
A reportagem narra a relação dos Fernandes, uma família de classe média, com a
tatuagem. Osvaldo, sócio de uma indústria de móveis, teria levado suas duas filhas, Débora e
Heloísa, de 13 e 16 anos respectivamente, para serem tatuadas. Posteriormente, ele mesmo se
tornaria um tatuado por influência delas. A professora Daisy, mãe das garotas, descreveu ainda
um grau de desconfiança que mantinha sobre a prática: “minhas amigas comentam comigo até
hoje que eu não deveria ter autorizado, que é uma marca que ficará por toda vida e que eles
podem se arrepender”. 610 Novamente, entra em cena o poder em sua esfera microfísica. Se
Débora e Heloísa não corriam o mesmo risco de outrora, de serem conduzidas à delegacia,
como ocorrera com a personagem sem nome em 1926; ser mulher e tatuar-se ainda lhes
mantinha sob uma sutil e eficaz forma de vigilância e controle: o julgamento alheio, temido
pela mãe.
Para as jovens de classe média do período, tomar posse de si por meio da tatuagem
significou empregá-la a serviço da afirmação da autonomia de modificar-se e da liberdade de
decidir quando, como e onde fazê-lo. Contudo, na intrincada relação entre poder e resistência
denunciada por Foucault; na complexidade dos discursos operacionalizados em favor de seu

609
FONSECA, A. Identidade à flor da pele, p. 192.
610
ABEND, C. Moda da tatuagem se alastra e preocupa pais. JORNAL DO BRASIL, 27 de agosto de 1989.
215
exercício; e na complexa, capilarizada e interiorizada atuação das disciplinas corporais; a
instrumentalização da tatuagem como elemento emancipatório parece ter seus limites,
sobretudo ao tratarmos do corpo feminino, historicamente investido de repressão.
Como percebido por autores e autoras que pesquisam a tatuagem, parece haver limites
bem demarcados para o masculino e o feminino no universo dessas marcas corporais. Algumas
dessas restrições dizem respeito aos desenhos e locais do corpo em que devem se inscrever as
tatuagens masculinas e femininas. Conforme aponta Andréa Osório, as tatuagens masculinas
são relacionadas a um determinado tipo de virilidade, enquanto as femininas seguem uma lógica
inversa.

Nesta oposição, o masculino emerge como: agressivo, grande, forte, corajoso,


mortal. O feminino, seu oposto, aparece como: delicado, frágil, pequeno,
infantil. O que é considerado masculino, portanto, não deve ser utilizado por
mulheres e vice-versa. Os desenhos e os locais do corpo tatuados estão,
ambos, presos nesta lógica intrincada de diferenciação de gênero. Mesmo
quando as mulheres buscam desenhos normalmente utilizados pelos homens,
estes são redesenhados de forma a se extirpar suas características
masculinizantes. O desenho, junto ao local tatuado, indica, assim, o grau de
feminilidade/masculinidade presentes nos sujeitos. Uma mulher com um
dragão tatuado no braço é vista como uma mulher masculina. Um homem com
uma flor tatuada na nuca não é visto como homem. São elementos
feminilizantes ou masculinizantes em si, que têm o poder de tornar feminino
ou masculino quem os porta e, portanto, afirmar ou negar identidades
sexualmente constituídas. A tatuagem é, portanto, uma forma de operar esta
afirmação, ou construção, das identidades de gênero. 611

Além dos desenhos, especificamente, os locais do corpo a serem tatuados sugerem uma
lógica de gênero. Pesquisando tatuados em academias de ginástica, César Sabino e Madel Luz
apontam para tais diferenciações:

Os locais do corpo também definem o gênero: mulheres costumam tatuar a


nuca, a região lombar (principalmente as chamadas tribais), os seios, as
nádegas e virilhas, às vezes omoplatas, pés e calcanhares. Já entre os homens
os desenhos situam-se principalmente no bíceps (em geral na parte exterior,
mas também há desenhos na parte interior), costas, deltoide, antebraço e mais
raramente abdômen, panturrilhas e peito. 612

Andrea Fonseca percebe algo semelhante, e afirma que o que orienta essas escolhas são
padrões de gênero. Para ela: “estas diferenças expressam a forma como se percebe o corpo, com

611
OSÓRIO, A. O gênero da tatuagem, p. 168.
612
SABINO, C; LUZ, M. Tatuagem, gênero e lógica da diferença, p. 255.
216
base em parâmetros referentes ao ‘feminino’ e ao ‘masculino’, marcando limites e transmitindo
valores. O corpo é uma construção cultural e, como tal, sinalizado, fragmentado e sexualizado
em cada uma de suas partes”. 613
Decorre disso uma questão ainda mais inquietante, no que tange aos possíveis limites
emancipatórios do corpo feminino: as tecnologias de poder que coagem o corpo feminino à
conformação ao olhar. Para Sabino e Luz, a tatuagem funciona como adorno que reforça
determinadas noções de gênero e relações de força. Segundo eles, mesmo os desenhos tidos
como unissex se inscrevem em determinados lugares do corpo feminino para reforçar as
“peculiaridades do contrapoder feminino radicado na dependência da dominação
masculina”.614 Neste sentido, os desenhos funcionariam como adorno de supostas qualidades
sensuais e sedutoras da mulher, “sugerindo que o uso do corpo e da estética feminina continua
subordinado e radicado no ponto de vista masculino, já que tais qualidades sensuais o são
justamente por reiterarem a condição subordinada daquela que as apresenta.615
Débora Leitão manifesta percepção semelhante ao afirmar que uma das funções da
tatuagem seria o elemento de sedução, marcado pelos jogos de “de mostrar e esconder”, no qual
a tatuagem “age como catalisador do desejo e, como no jogo de cartas, é percebida como a
jogada certeira, capaz de suscitar, no parceiro, a reação esperada”.616 Sabino e Luz reafirmam
a proposição ao apontar que a tatuagem “concretiza e reitera a ordem da sedução e da beleza
femininas, socialmente construídas, mostrando e demonstrando, mesmo que circunstancial e
sorrateiramente, os atrativos do corpo relacionados diretamente a sua sexualidade”.617
Aceitas essas leituras, têm-se aquilo que Foucault chama de falsa impressão de vacilo
do poder. Ou seja, na leitura eufórica da emancipação do corpo feminino, deixa-se escapar a
percepção de que o que as relações de poder demandam, doravante, é um controle mais
sistematizado e refinado do corpo. Um poder que age de forma positiva, não mais proibindo,
mas estimulando e mantendo a prerrogativa de afirmar quais desenhos, em quais lugares do
corpo, e, sobretudo, quais corpos são ou não legítimos.
É preciso ter em mente que questionar-se acerca desses novos investimentos e
estratégias de controle do corpo não significa negar o potencial reivindicatório do ato de tatuar-
se, mas sim problematizar o contraditório das forças presentes em tal ato.

613
FONSECA, A. Identidade à flor da pele, p. 192.
614
SABINO, C; LUZ M. Tatuagem, gênero e lógica da diferença, p. 258.
615
SABINO, C; LUZ M. Tatuagem, gênero e lógica da diferença, p. 258.
616
LEITÃO, D. Mudanças no significado da tatuagem contemporânea, p.6
617
SABINO, C; LUZ M. Tatuagem, gênero e lógica da diferença, p. 260.
217
Não se trata de dizer que a autonomia feminina sobre o próprio corpo seja ilusória, ou
que a tatuagem não tenha o potencial emancipatório que parece reivindicar. Mesmo no que diz
respeito à sua instrumentalização nos jogos de sedução e conquista citados por Débora Leitão,
isso não implica puramente em dominação masculina ou restrição da liberdade feminina. Antes,
diz respeito também à autonomia feminina de escolher seus parceiros ou parceiras, de
relacionar-se livremente.
O jogo de forças entre a liberação sexual e a exploração econômica da erotização é
perceptível na relação entre a tatuagem e o corpo, sobretudo o corpo feminino. Andréa Osório
aponta para limites da liberação do corpo tatuado:

Pode-se, também, ver neste consumo feminino uma das facetas do atual culto
ao corpo, que atinge tanto homens quanto mulheres. Cuidado do corpo e
cuidado de si se confundem nesta visão, um levando ao outro. Neste âmbito,
cirurgias plásticas e muita malhação têm prefigurado o caminho da beleza e
da saúde. A tatuagem, adorno corporal que chama a atenção para as formas
esculpidas, torna-se, nesse escopo, um elemento de valorização do corpo
belo. 618

Encontrei indícios dessa disputa entre autonomia e disciplinarização nas tatuagens


femininas produzidas na segunda metade do século XX. Na reportagem do jornal Última Hora,
intitulada A Tatuagem, os corpos de mulheres tatuadas foram exibidos a partir da lógica da
erotização de que fala Foucault.
Considerando que a análise fotográfica, por parte do historiador, deve levar em conta o
compartilhamento de significados entre produtor e receptor, resultando na produção de um
discurso que atende a determinados interesses e se inscreve em certa arena de poder 619, vale
notar a distinção que a matéria produz entre as fotografias das tatuagens masculinas e femininas,
tanto no que tange ao enquadramento, enfoque e local do corpo escolhido, quanto no que diz
respeito à materialidade do jornal, ao espaço dado a cada fotografia e sua disposição na
reportagem.
No caso do corpo masculino, a atenção é direcionada à tatuagem, operando um recorte
e foco que destacam o desenho seja ao fotografar uma tatuagem no braço, seja ao fazê-lo no
glúteo.

618
OSÓRIO, A. O gênero da tatuagem, p. 167.
619
OSÓRIO, A. O gênero da tatuagem, p. 43.
218
Imagem 23: Tatuagens masculinas na UH Revista

Fonte: UH Revista, 01 de fevereiro de 1983.

Quando as tatuagens exibidas são as femininas, há um evidente deslocamento na


produção da fotografia, que coloca em destaque não mais exclusivamente a marca corporal,
mas também o corpo feminino, e notadamente sob a perspectiva da erotização, exibindo as
coxas e virilha, os seios e o rosto – embora seja quase certo tratar-se de tatuagem removível, no
caso do rosto.

219
Imagem 24: Tatuagens femininas na UH Revista

Fonte: UH Revista, 01 de fevereiro de 1983.

O destaque dado às fotografias do corpo feminino também é considerável, ocupando


boa parte da página do jornal, em oposição a uma pequena tarjeta destinada à exposição dos
corpos masculinos, como se observa na visualização da página inteira.

220
Imagem 25: Reportagem UH Revista em 1983

Fonte: UH Revista, 01 de fevereiro de 1983.

221
Ainda assim, a história das tatuadas na segunda metade do século XX, jovens, em sua
maioria, não se restringe à conformação. Parte que é da instrumentalização política do corpo,
a tatuagem marcou a pele de mulheres que, como apontou Paulo Sérgio do Carmo, não se
limitaram à submissão ao comportamento recatado. Sem ignorar as permanências nas distinções
de gênero, Carmo cita Ruy Castro para se referir ao bairro de Ipanema como “o território do
sexo sem culpa, das mulheres liberadas e dos homens que tiveram de reeducar-se para conviver
com elas”. 620
Como aponta Margot Mifflin em Bodies of Subversion, com a revolução sexual dos anos
de 1960 a tatuagem foi “resgatada da ignomínia e ressurgiu na contracultura por meio de
mulheres que estavam repensando a feminilidade”. 621 Segundo a autora, as recentemente
empoderadas mulheres do período invocavam a tatuagem como reflexo da percepção que
tinham de si mesmas. Não sem desafios, o percurso das tatuadas e das tatuadoras foi sendo
redefinido a partir de sua confrontação aos discursos estabelecidos que, mesmo quando se
deslocavam da antiga – mas persistente – associação da tatuagem feminina à prostituição,
insistiam em produzir, como demonstrado, outras formas de estigmatização.
Ainda assim, as mulheres tatuadas resistiram e confrontaram as tentativas de
constituição de uma imagem submissa de si mesmas. Como aponta Marcia Rasner, entrevistada
de Mifflin, que vivia como uma típica dona de casa estadunidense até abandonar aquela vida,
a partir de sua experiência de sua aproximação com o movimento hippie, ela conheceu nos anos
de 1960 uma mulher cuja tatuagem de uma rosa nas mãos parecia enunciar sua autoafirmação.
Em suas palavras, ela “se afastou de seu preconceito, olhou aquela mulher nos olhos e viu que
ali havia uma pessoa”.622
Talvez ao leitor e a leitora contemporâneos – tatuados ou não – pareça desconcertante
ou incompreensível que um ser humano tenha tido de se esforçar para enxergar o outro por trás
de suas tatuagens. É exatamente na compreensão da produção de olhares desumanizadores e,
sobretudo, do entendimento do contexto histórico, social e cultural da produção destes olhares-
discursos, que reside a eventual virtude de um trabalho como este. Afinal, se parte considerável
dos tatuados hodiernos não são submetidos a esse olhar, em muitos outros eles ainda serão. E
mais que isso, se é que a tatuagem alcançou algum tipo de redenção simbólica, o mesmo não

620
CARMO, P. Culturas da rebeldia p. 23.
621
MIFFLIN, M. Bodies of subversion, p. 54.
622
MIFFLIN, M. Bodies of subversion, p. 54.
222
se pode dizer de vários outros estigmas identitários manifestos no corpo e expressos ainda sob
a égide da desumanização.
Mesmo quando se tratou de mulheres autônomas e economicamente livres, a
objetificação, a simplificação e a banalização da vontade e da autonomia feminina não se
esvaíram dos discursos predominantes. Ao ser retratada pela revista O Cruzeiro, a atriz italiana
Monica Vitti foi descrita como exibindo “uma bem trabalhada tatuagem na sua não menos bem
feita perninha”. Segundo a revista, “esse tipo de tatuagem, que está muito em voga, começou
pelos joelhos, com o advento das minissaias, mas não sabemos onde vai parar”.623
Imagem 26: A atriz Monica Vitti e sua tatuagem

Fonte: O Cruzeiro, 26 de julho de 1966

Repete-se o lugar comum nos discursos sobre a tatuagem feminina nos corpos da classe
média: se não mais prostitutas, precisam ser ainda representadas como fúteis, reféns da moda
ou vítimas de escolhas passionais.
A relação das mulheres com a tatuagem, assim como a relação do jovem, de modo geral,
no sentido de sua instrumentalização enquanto objeto de afirmação da posse de si, da autonomia
de intervenção e uso do próprio corpo é marcada por uma relação de ambiguidade, ou melhor,
de uma verdadeira disputa de poder, conduzindo ao que chamo de autonomia relativa.

623
Monica Vitti adota bossa da tatuagem para decorar perna. O CRUZEIRO, 26 de julho de 1966.
223
É necessário considerar, como faz Denise Sant’Anna, que a construção da autonomia,
seja pelo jovem, seja pela mulher, não é historicamente vivenciada sob a perspectiva da
linearidade, o que ignoraria as reações conservadoras e os rearranjos das relações de poder:

É bom não acreditar numa suposta linearidade histórica referente aos cuidados
com o corpo e às tentativas de liberalizá-lo. Pois, entre o glamour e o sex
appeal, não existiriam apenas rupturas, nem, unicamente liberações. Mulher
casada que usava calças compridas ou minissaia podia despertar críticas
ácidas, pois, em várias regiões do Brasil, ainda havia diferença entre a
aparência de solteiras e casadas, jovens e maduras, mulheres sérias e vadias. 624

A análise das relações de poder que atravessam o corpo não prescindem nem das ações
empreendidas na direção da maior autonomia, nem das reações, tanto aquelas mais agressivas
quanto as mais sutis, como o refinamento das disciplinas corporais. Se durante a primeira
metade do século XX as mulheres tatuadas foram sistematicamente associadas à prostituição,
como demonstrei, a partir da década de 1960 os discursos se deslocaram na direção da
frivolidade, da moda. A descontinuidade discursiva, portanto, faz sair de cena o inato e
moralmente inferior, para dar lugar à experimentação, aos caprichos da moda. Saem de cena as
prostitutas, entram as menininhas que gostam de praia e de roupas bem coloridas:

Hoje, no Rio, os surfistas são os campeões das tatuagens, seguidos de perto


por mergulhadores, frequentadores de academias de ginástica e as menininhas
que gostam de praia e de roupas bem coloridas. Outro dado: a tatuagem
deixou de ser símbolo de marginal. 625

Analisando a representação do skate na revista Pop, periódico publicado pela editora


paulistana Abril, e que circulou entre 1972 e 1979 e abordou temas como comportamento, moda
e música, voltados para a juventude 626, Leonardo Brandão afirma que a Pop espetacularizava
os corpos magros e bronzeados, enfatizando sorrisos expansivos, corpos desnudos e espaços de
lazer, como as praias. A noção de alegria juvenil e libertação da corporeidade são destacadas
pelo autor, indicando que os aspectos contraculturais juvenis acabaram por ser incorporados à
publicidade.

Assim, ao longo das páginas dessa edição da revista Pop, garotas na praia
desfilavam com refrigerantes de Coca-Cola enquanto inúmeras fotos de
corpos em trajes de banho eram acompanhadas de frases que incitavam esse

624
SANT’ANNA, D. História da beleza no Brasil, p.118.
625
LABORIAU, M. Tatuagens: o modismo esconde velhas cicatrizes. JORNAL DO BRASIL, 18 de janeiro de 1985.
626
OLIVEIRA, C. A crítica musical e o rock brasileiro nas páginas da revista Pop, p.70.
224
clima hedonista juvenil: “Como não poderia deixar de ser, neste verão as
tangas continuam diminuindo. Alegria geral!”. Toda essa ambiência celebrava
a juventude como a melhor época da vida e o verão como a melhor estação do
ano. 627

Diferente da sisudez imposta aos corpos durante a primeira metade do século XX,
doravante os rostos podem sorrir e os corpos podem aparecer, desde que seja para amplificar as
vendas de refrigerantes, roupas ou pranchas de surfe. Obviamente, a tatuagem não escapou a
este investimento de controle e normalização. Além das boutiques hippies e dos chicles, outras
vias investiram nas tatuagens removíveis. Em 1987, o Jornal do Brasil anunciava:

Já existe uma solução para quem sempre teve vontade de se deixar tatuar, mas
temia uma marca irremovível: foi lançada ontem, à frente do Posto 9, em
Ipanema, a tatuagem de verão, desenhada à flor da pele com tinta japonesa
que desaparece depois de 20 dias, ou mesmo, se for lavada e esfregada com
muita força. A tatuagem do verão foi levada à praia pelo artesão Paulo
Roberto Rodrigues, de 28 anos, conhecido como Bob. 628

Roberto, o idealizador da tal tatuagem, participa da elaboração de um discurso de


amenização da transgressão do ato de se tatuar, especialmente quando se trata das tatuagens
removíveis:

Para ele, a tatuagem não é mais questão de moda, mas um tipo de


complemento da personalidade das pessoas livres de preconceitos. [...] Ontem,
quando começou a fazer as tatuagens de verão nos corpos de seus fregueses,
foi imediatamente cercado por dezenas de curiosos, até mesmo crianças. “Isto
é inofensivo e todo mundo se sente feliz, porque fica moderno”, explicou. 629

Se durante a primeira metade do século, ser moderno era encarnar os ideais e valores
burgueses, para a juventude varrida pela onda do rock e da rebeldia a modernidade era viver de
acordo com o que Hobsbawm chamou de estar na sua: gozar a liberdade com a mínima restrição
externa, o que esbarrava na uniformização imposta pela moda e pela pressão das comunidades
de afeto em torno das quais essa juventude se organizava.630
Entrava em cena uma nova sociabilidade e corporeidade juvenil, calcada no prazer
hedonista e no desbunde – talvez por isso, inclusive, socialmente tolerada e
mercadologicamente incentivada. A juventude zen, as pequenas aventuras e transgressões, a

627
BRANDÃO, L. Por uma história dos “esportes californianos” no Brasil, p. 134.
628
REIS, A. Rio tem agora tatuagem que dura apenas 20 dias. JORNAL DO BRASIL, 06 de fevereiro de 1987.
629
REIS, A. Rio tem agora tatuagem que dura apenas 20 dias. JORNAL DO BRASIL, 06 de fevereiro de 1987.
630
HOBSBAWM, E. A era dos extremos, p. 323.
225
ilusória liberdade de pegar uma onda ou cair na estrada ouvindo um Rock and Roll são
destacadas em uma reportagem do paulistano Jornal da República, no ano de 1979. Em
linguagem juvenil, permeada pelas gírias da época, a nota enaltece a liberdade de uma parte
privilegiada da juventude brasileira:

[...] as ondas, o sun, o surf, barato, tremendo peyote. Quanto mais parafina
melhor. Mete o Peter Frampton no som da máquina e zune pra Ubá: só. O
rango da comprar no Super São José: muito macarrão, pão, queijo e salame:
as gatinhas vão preparar o grude. Aquela prainha que o Bob descolou é uma
chapação, não tem paneleiro metido a fera: nem. Led Zeppelin mandando ver
no som, desabotina a bruxinha: ondas, amor, sun, liberdade total. A cidade é
a maior caretice, só, maior sufoco. O velho fica numas de arrocho por causa
do cursinho. Tá ruço, nem. Na cabeça as carreiras e muita parafina, que é pra
dar um barato tchans no cabelo. O velho grilou quando você fez aquela
tatuagem de gaivota no peito, tremendo visual. As gatinhas acham numa boa,
é só meter a bermuda de nylon, uma havaiana virada ao contrário e uma
correntinha com uma miniatura de prancha, comprada no Hawaii. Se der uma
sorte no vestibular de engenharia, o velho descola uma trip pro Hawaii, pra
ver todas as feras de perto, nas ondas de até 10 metros de altura: só. 631

Os símbolos dessa rebeldia juvenil são mais intensamente instrumentalizados


justamente pelas parcelas de classe média. Aos filhos da classe trabalhadora, dificilmente o surf
era acessível, muito menos uma viagem ao Hawaii. O carro, os discos e as viagens, e mesmo a
cobrança do rendimento no “cursinho”, parte do cotidiano – ainda que idealizado – daquela
juventude, passava longe do acesso da maioria da população. A liberdade total apregoada pela
juventude, era a liberdade apenas de parte da juventude.
No ano seguinte à canção Menino do Rio, a reportagem do Jornal do Brasil afirmava
em seu título: Praias repletas dão à quinta-feira carioca um ar de sábado de verão.
Obviamente, não se trata do espaço e da diversão de todos. Para a classe trabalhadora, a quinta-
feira não poderia ser sábado. Enquanto ela trabalhava, a juventude privilegiada se bronzeava e
aproveitava a praia em Ipanema.

Para o compositor Caetano Veloso, que tomava banho de sol em frente à Rua
Vinícius de Moraes, em Ipanema – a praia mais informal do Rio, onde um
topless ou um cigarro de maconha não causam estranheza aos frequentadores
– a chegada do verão traz um clima de “excitação crescente” que contagia toda
a cidade. [...] Apenas uma mulher ousou fazer topless, mas não foi
incomodada por ninguém, pois a moda já está incorporada à paisagem. [...] Já
uma psicóloga que se instalou perto da Rua Joana Angélica, comentava que
“no verão, não existe a possibilidade de se trabalhar de manhã”. [...] Entre as
novas bossas do verão, o uso por parte dos homens, de pequenas bolsas de

631
Quanto mais parafina... JORNAL DA REPÚBLICA, 27 de outubro de 1979.
226
crochê para a guarda de chaves e documentos; e a substituição, por parte da
colônia gay, dos brincos de identificação por pequenos óculos totalmente
pretos, junto com uma tatuagem no braço direito. 632

A tal impossibilidade de trabalhar de manhã durante o verão, comentada pela


entrevistada, evidencia a classe daqueles a quem me refiro quando investigo a disseminação da
tatuagem entre a juventude. Os efeitos positivos do Milagre Econômico Brasileiro, como é
chamado o período entre os anos de 1969 a 1973, marcado por um alto índice de crescimento
econômico e concomitante ampliação da desigualdade social; e a liberdade total – obviamente
ilusória – propagandeada pela reportagem; são privilégios de uma parcela reduzida da
população. Para o restante, para aqueles que não tinham suas tatuagens artísticas e coloridas,
como afirmou Alemão, a realidade era outra.
Juventude, transgressão e rebeldia foram sinônimas na narrativa sobre a tatuagem da
classe média brasileira entre as décadas de 1960 e 1980. Seja na estética punk ou nos sinais
diacríticos dos skinheads, gestados nas classes operárias e habilmente apropriados pelo que
Ferreira chamou de supermercado de estilos; na ilusória sociedade alternativa hippie e sua
utopia de liberação corporal; na onda dos surfistas que posteriormente seriam incorporados
profissionalmente e de meninos do Rio se tornariam adultos em repartições públicas,
empresários ou profissionais liberais, enfim, os engravatados que buscariam no próprio surfe
ou na wild life das motocicletas custom a ilusão de retorno à liberdade perdida para a vida
adulta; seja na autonomia relativa, sempre em disputa entre a liberalização e o controle do corpo
feminino por parte das mulheres tatuadas; as estratégias de resistência e emancipação juvenil
enfrentam a reação normalizadora. Seja pela rejeição, pelo desencorajamento, ou por uma
forma mais sutil de controle: a incorporação mercadológica.

632
Praias repletas dão à quinta-feira carioca um ar de sábado de verão. JORNAL DO BRASIL, 12 de dezembro de 1980,
p. 7.
227
CAPÍTULO 5

REFINANDO O DISCURSO: ESTÍMULO, RESTRIÇÃO E CONFORMAÇÃO DO


CORPO TATUADO

Classe média é um conceito chave na compreensão da tatuagem a partir da segunda


metade do século XX. Portanto, é necessário apurar seu entendimento. Como propus, a reflexão
de classes empreendida é sustentada pela teoria sociológica de Pierre Bourdieu. Assim, parto
do pressuposto que os estilos de vida são elementos fundamentais para a compreensão das
relações de classe, pois agem como (re)produtores da lógica de classificação dos sujeitos, a
partir da produção de distinções. 633 Se isso ficou evidente ao colocar em relação as práticas
culturais das classes pobres e da burguesia do Rio de Janeiro e de São Paulo na primeira metade
do século, é fundamental considerar essa noção para compreender como a apropriação da
tatuagem pela juventude de classe média contribuiu para sua ressignificação.
Até meados do século XIX, como apontam Scalon e Salata, a estrutura social brasileira
era pouco diversificada, baseada no sistema escravista agroexportador. Neste período, em
cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, grupos de profissionais liberais, militares e
funcionários públicos – grupos comumente inseridos nas definições de classe média baseadas
na ocupação – compunham menos de 7% da população economicamente ativa. 634
O processo de expansão da classe média brasileira inicia-se na década de 1930, a partir
das políticas de industrialização, da urbanização e da expansão econômica, geradoras de
ocupações intermediárias635; e intensifica-se a partir da década de 1950, com a ampliação dos
investimentos na infraestrutura e industrialização do país, promovidos pelo governo Juscelino
Kubitschek. 636 Incluída nos benefícios que o chamado milagre econômico brasileiro produziu
na transição entre as décadas de 1960 e 1970, notadamente pela promoção do acesso a bens de
consumo 637, não surpreende que esse grupo protagonize mudanças culturais significativas,
como no caso da tatuagem.
Constantemente associada ao consumo, a classe média tem nessa característica seu mais
identificável elemento diacrítico. Composta por sujeitos que não se encontram nem entre

633
BOURDIEU, P. A distinção.
634
SCALON, C.; SALATA, A. Uma nova classe média no Brasil na última década, p. 392.
635
SCALON, C.; SALATA, A. Uma nova classe média no Brasil na última década, p. 393.
636
OLIVEIRA, U. A controvérsia da nova classe média brasileira, p. 10.
637
O’DOUGHERTY, M. Autorretratos da classe média, p. 1.
228
aqueles cuja capacidade econômica se limita a satisfazer as necessidades básicas de existência,
nem entre os detentores dos meios de produção e renda, que compõem a minoria da população
e aos quais as necessidades de consumo são facilmente sobrepujadas pelo rendimento passivo,
as classes médias são descritas como grupos que têm justamente no consumo seu recurso
distintivo mais imediato.
Vale dizer que a perspectiva da qual me coloco recusa interpretações maniqueístas da
composição das classes e mesmo da própria luta de classes. As classes, como mostra E. P.
Thompson, são construídas a partir de suas experiências comuns – herdadas ou partilhadas, diz
o autor – e constroem seu senso de pertencimento a partir da identificação de interesses comuns.
Longe de se restringir aos elementos estritamente econômicos, elas se constituem e se
expressam em termos culturais. 638
A leitura proposta na primeira parte deste trabalho, de uma burguesia ansiosa pela
imposição de seus padrões de moralidade, de corporeidade, de moda, enfim, de existência, não
deve ser confundida com um dualismo maniqueísta que contrapõe uma burguesia inerentemente
má, cruel e dominadora; a uma classe trabalhadora inerentemente boa, amável e dominada. Os
indivíduos são produtos tanto das estruturas quanto das conjunturas a que estão sujeitos,
somadas a sua autonomia sempre relativa. Conflitos de classes são essencialmente relações de
poder, não gradações éticas, embora, como demonstro, essas gradações sejam justamente parte
das estratégias dos grupos em disputa.
Se é errôneo pensar a classe trabalhadora fora da experiência histórica e do contexto que
a possibilitou constituir-se dessa e não de outra maneira, por qual razão eu deveria produzir
uma leitura da burguesia ou da classe média de maneira distinta? Me parece pouco científico
desprezar um método de análise ou interpretação de grupos distintos enquanto me movimento
entre eles. Meu trabalho não trata, portanto, da simples oposição entre classes virtuosas e
classes viciosas.
A burguesia brasileira de início de século parece ter se constituído no limite do que lhe
foi possível ser. Formada muito menos pelo confronto revolucionário com as classes
dominantes agrárias do que pela sua própria transmutação – vide a expansão industrial paulista,
capitaneada pelos recursos do café – e importando suas referências de cultura, consumo e
sociabilidade da maneira que lhes era possível – e guinadas nacionalistas são exemplos de um

638
THOMPSON, E. A formação da classe operária inglesa, p. 10.
229
processo nada linear de europeização –, constituiu-se com suas peculiaridades, nunca descolada
de seu contexto histórico.
Outrossim, as classes médias brasileiras não podem ser entendidas fora de seu contexto
de formação e reprodução. Acochadas entre as classes pobres que majoram nos espaços urbanos
e as minoritárias elites econômicas; sendo parte de uma estrutura social acentuadamente
desigual, parece restar à classe média o objetivo – ou a ilusão, o mais das vezes – de se distanciar
das classes pobres, das quais estão sempre assustadoramente próximas, aproximando-se das
elites econômicas, embora apenas em seus devaneios, tão distantes que delas estão. Daí a
importância da sistemática recusa ao compartilhamento de signos oriundos das – ou adotados
pelas – classes pobres. Mais ainda, manifesta-se aí a dimensão do potencial transgressor da
adoção da tatuagem por parte da juventude de classe média, eticamente dissidente.
Em suma, penso os grupos sociais analisados como classes e reconheço seu óbvio
conflito, mas deliberadamente me distancio de leituras teleológicas da história, que pressupõem
tanto um destino ou desfecho inevitável para o que se entende como luta de classes quanto
sugerem, sobretudo quando mal instrumentalizadas, uma gradação ética entre elas. Se tiver de
reivindicar lugar em alguma corrente, prefiro me situar entre aqueles que entendem a
experiência humana a partir da indefinição, que percebem ao invés do cosmos, o caos, somente
ordenável em retrospectiva – e sempre a partir de lugares sociais específicos.
A classe média de que trato, portanto, está em luta pela determinação de sua identidade
e legitimidade social e a entendo como produção histórica, como um grupo inserido em um
determinado contexto, que se percebe e é percebido sempre em relação aos outros grupos.
Justamente por isso, a ressignificação da tatuagem surgiria como a solução de uma
anomalia na teoria de classes bourdiesiana. Uma vez que a postura que se espera dos grupos
de classe média é que adotem sinais distintivos que demarquem com clareza seu distanciamento
das classes pobres, visto que, como propõe O’Dougherty, à medida que as classes populares
acessam determinados bens de consumo, os estratos imediatamente superiores são
“incentivados a redobrarem esforços na construção de barreiras materiais e simbólicas” 639, a
adoção deliberada de um signo das classes pobres por parte da juventude de classe média
desestabiliza esse sistema de dotação de sentidos, resultando na necessidade de sua
reformulação discursiva.

639
O’DOUGHERTY, M. Autorretratos da classe média, p. 3.
230
À primeira vista, o preço que a classe média pagou pela aventura rebelde de sua
juventude foi o esvaziamento do significado de um consistente elemento estigmatizante das
classes pobres. Na prática, o que se percebeu foi menos o abandono do que o refinamento das
estratégias de controle e dominação. O que analiso a seguir são justamente os deslocamentos
discursivos e as táticas de reformulação dessas barreiras materiais e simbólicas.
Para tanto, analiso o discurso midiático sobre a tatuagem no período em questão,
considerando três táticas fundamentais e enganosamente excludentes destes discursos: o
estímulo, a restrição e a conformação.

5.1 – ESTÍMULO: MODA, MÍDIA E ESTÉTICA


Conforme Leonardo Brandão, o período entre as décadas de 1960 e 1980 é marcado por
um deslocamento no fenômeno da moda, que passa a “expressar linhas de liberdade,
contestação e novos imaginários que, ao longo das décadas seguintes, foram se reconfigurando
e ampliando seu alcance a um número cada vez maior de consumidores”. 640 O termo é
precisamente conveniente para abordar a tatuagem no período, uma vez que a noção de moda
será associada à adoção dessas marcas corporais com frequência.
Nessa direção, Baracuhy e Godoi apontam que:

No Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, o discurso midiático propunha, por


meio de revistas, da música, da moda, uma forma de ser e de estar na vida, ao
perceber o fascínio dos jovens pela tatuagem, tendo em vista que ela
representava o fim da centralização dominante e o desejo de gerir seus
próprios corpos. Diferentes tribos e classes sociais começaram a se tatuar. O
corpo se torna um território. Gestos, atitudes, roupas e interferências como o
“body building”, a tatuagem e o piercing são apropriações ideológicas do
corpo. Era o desejo de se representar que ganhava o direito de construir certas
identidades sobre quem eram e quem deveriam ser. 641

Sistematicamente, essa construção identitária encontrou resistências diversas, das mais


sutis às mais explícitas. O desejo de construção de si pela tatuagem, como demonstram as
autoras, está atrelado a uma possibilidade de sua existência e manifestação. Em contrapartida,
o discurso midiático garante certo poder de modelar esses desejos, de se apropriar deles na
direção de mercantilizá-los. Neste sentido, a tatuagem se associará de maneira ambígua à moda.

640
BRANDÃO, L. Por uma história dos “esportes californianos” no Brasil, p. 138.
641
BARACUHY, R.; GODOI, E. Da marginalização ao glamour, p. 215.
231
Por vezes, a associação entre a tatuagem e a moda recorreu à efemeridade desta e se
dispôs a proferir enfáticas previsões. Traço comum das previsões, estas se mostraram
comicamente errôneas. Em 1960, o jornalista Daniel Bicudo profetizava a derrocada da moda
da tatuagem:

Nem todas as modas voltam, periodicamente, depois de dominarem por algum


tempo nos costumes de bom tom. A tatuagem é uma delas, que parece haver
sumido, felizmente, para nunca mais. Hoje, os tatuados são apenas
embarcadiços, vistos de vez em quando com as marcas escuras no antebraço
nu. Foi entanto, outrora, de muito apreço exibir essa prova de sujeição à
desatraente moda. 642

Em outros momentos, o discurso midiático assumia a imprevisibilidade e o caráter


cíclico do modismo. Em 1987, o Jornal do Brasil apresentava uma narrativa da tatuagem
enquanto uma prática associada ao modismo, à influência midiática e à facilidade de sedução
da juventude:

A “moda” parece que vai e vem, em ondas. Foi redescoberta pelos surfistas
no início dos anos 70. Depois sumiu e voltou relançada pelos punks, no final
dos 70. Uma música como Menino do Rio, de Caetano Veloso, pode fazer
com que milhares de braços juvenis se encham de dragões. Ou o disso Tattoo
You, do Rolling Stones, pode aumentar de novo a procura. Para muitos pais e
empregadores é um estigma, algo que é coisa de bandidos, piratas e todo o
tipo de marginais. [...] Por que as pessoas se tatuam? Amor? Exibicionismo?
Agressividade? Ninguém parece ter uma resposta precisa para isso. 643

Caraterística do discurso produzido sobre a tatuagem no período, a dualidade discursiva


revela a preocupação na produção de enunciados que simultaneamente não deslegitimem a
juventude oriunda da classe média e não legitimem uma prática das classes pobres. Em
decorrência disso, a síntese parece ser sempre um discurso de rebeldia, transgressão e
inconformismo temporários. Na mesma matéria que recorre ao vai-e-vem das ondas para
sinalizar a fugacidade da tatuagem, Tyés, um tatuador estabelecido entre aqueles que afirmavam
sua legitimidade dentro do campo dos tatuadores profissionais644, é enfático ao destacar que a
tatuagem não tem a ver com efemeridade, e sim com a perenidade: “o cuidado na escolha do
desenho, pensar bastante antes de se decidir a procurar o tatuador, parece ser a característica da

642
BICUDO, D.Miçanga. A TRIBUNA, 13 de novembro de 1960.
643
Comportamento. JORNAL DO BRASIL, 22 de fevereiro de 1987, p. 65.
644
Tratei da formação do campo profissional da tatuagem no país especificamente em outro momento. SOUZA, F.
História da tatuagem no Brasil.
232
maior parte dos tatuados. ‘A tatuagem não é uma moda, pois dura para sempre. Nem é uma
maquiagem que se coloca e depois se remenda’, avisa Tyés”. 645
Reportagens associando a tatuagem à moda vicejaram na imprensa carioca e paulistana
entre as décadas de 1960 e 1980. Moda, hobby dos mais procurados 646, bossa 647, onda do
verão 648, muitas são as alusões à efemeridade quando a tatuagem é inscrita no corpo da
juventude de classe média. A dualidade discursiva para com a tatuagem, denunciadora de uma
prática cujo significado está em transição, é percebida também no discurso dos jovens tatuados.
Em discursos permeados de termos conflitantes como vício, mania, permanência,
arrependimento, empolgação e arte; jovens na casa dos 20 anos, entrevistados pelo Jornal do
Brasil em 1987, evidenciam a transitoriedade do significado da tatuagem no período:

Esse efeito de “vício”, querer mais e mais tatuagens, é comum. Alexandre


Peçanha, o Mainá, 25 anos, morador no Rio Comprido, não consegue contar
mais as caveiras, guerreiros, castelos, dráculas e mulheres que tem pelo corpo.
“Eu queria ter dois corpos pra fazer mais tatuagens”. Já Nicole Morávia, 20
anos, que mora no Leblon, teve de lutar para convencer os pais de que a
tatuagem não era uma coisa vulgar e conseguir a permissão deles para fazer
uma rosa nas costas, um trabalho de Tyés. “Escolhi a dedo. É um sinal que vai
ficar no meu corpo pro resto da vida”. Ela não quer mais, ao contrário de Ana
Maria Fructuoso, 19 anos, moradora de Copacabana, que já tem sete desenhos.
“Isso pega”, diz ela. “Você frequenta as lojas, vê desenhos novos, vai se
empolgando. Minha mãe tem medo de que eu me arrependa mais tarde. Mas
até ela concorda que é trabalho de arte”. 649

Chegando mesmo a figurar em colunas de classificação do que estava em alta ou em


baixa entre as tendências da moda, ao lado de elementos como os relógios que trocam a pulseira,
o sutiã meia-taça, os bigodes fininhos descritos como gay style, calças com bolsos entre outras
possibilidades estéticas; no final da década de 1980, a tatuagem é descrita como tendência
positiva na coluna Termômetro do Alto Verão, publicada no Jornal do Brasil. Mas com um
adendo: “só se for bem discreta”. 650
Outra faceta da dualidade dos enunciados sobre a tatuagem no período é a sua visível
incorporação mercadológica, como alternativa estética de consumo. Neste sentido, é perceptível
o estímulo à tatuagem substituindo a repressão de outrora, inclusive quando se trata do corpo

645
Comportamento. JORNAL DO BRASIL, 22 de fevereiro de 1987, p. 65.
646
Tatuagem está na moda. A TRIBUNA, 27 de setembro de 1963.
647
Monica Vitti adota bossa da tatuagem para decorar perna. O CRUZEIRO, 26 de julho de 1966.
648
REIS, A. Rio tem agora tatuagem que dura apenas 20 dias. JORNAL DO BRASIL, 06 de fevereiro de 1987.
649
Comportamento. JORNAL DO BRASIL, 22 de fevereiro de 1987, p. 65.
650
O termômetro alto do verão. JORNAL DO BRASIL, 08 de fevereiro de 1987.
233
feminino. Em 1986 o Jornal do Brasil anunciava um “novo tipo de sutiã” que prometia agitar
as praias brasileiras. Propagandeado como “já usado amplamente na Europa”, a empresa
vendedora do produto anunciava um sutiã descartável “que serve também como tatuagem e
gruda no corpo como se fosse uma segunda pele”. 651
Imagem 27: Lançamento de novo tipo de sutiã agita praias do Rio

Fonte: Jornal do Brasil, 09 de junho de 1986.

A apropriação mercadológica da tatuagem é ponto importante da compreensão de sua


ressignificação. Na adoção transgressora dessa marca corporal por parte da juventude, entra em
cena uma estratégia de poder positivadora, como afirma Foucault.
Foucault denuncia limites e contradições nas relações entre a autonomia e a dominação
nos termos do que ele chama de controle-estimulação. Neste sentido, o corpo não é investido
exclusivamente de um controle repressivo, que visa negar o acesso a determinada possibilidade
de corporeidade, mas sim daquela que é uma importante chave para compreender o poder em
Foucault – a sua positividade. Para ele:

O corpo se tornou aquilo que está em jogo numa luta entre os filhos e os pais,
entre a criança e as instâncias de controle. A revolta do corpo sexual é o
contraefeito dessa ofensiva. Como é que o poder responde? Por meio de uma
exploração econômica (e talvez ideológica) da erotização, desde os produtos
para bronzear até os filmes pornográficos... Como resposta à revolta do corpo,
encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-

651
Lançamento de novo tipo de sutiã agita praias do Rio. JORNAL DO BRASIL, 09 de junho de 1986.
234
repressão, mas de controle-estimulação: “Fique nu...mas seja magro, bonito e
bronzeado”. A cada movimento de um dos adversários corresponde o
movimento do outro. É preciso aceitar o indefinido da luta. 652

Percebo este movimento na produção dos enunciados que formaram um discurso sobre
a tatuagem a partir da década de 1960. A percepção das descontinuidades, do “fato de que em
anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra coisa
e de outro modo” 653 é uma chave fundamental de minha leitura da ressignificação.
Portanto, me parece que a associação entre a tatuagem e a moda cumpriu uma dupla
função. Em primeiro lugar, ao conferir um caráter de efemeridade à tatuagem, estes discursos
parecem tentar suavizar seus efeitos transgressores. Representá-la como sinal da rebeldia
passageira possibilita o deslocamento da tatuagem de uma prática intrinsecamente
estigmatizante para uma prática ao mesmo tempo potencialmente estigmatizante – pois alguns
estigmas persistem, como mostrarei – e temporariamente transgressora, no sentido de que
passado o furor da juventude, aqueles tatuados de classe média, em tese, se conformariam.
Em segundo lugar, a relação entre tatuagem e moda manifestaria uma forma talvez ainda
mais explícita de estímulo, cumprindo a função de cooptação, no sentido de tornar a
modificação corporal mais uma entre as possibilidades de excorporação identitária, doravante
incorporada a um supermercado de estilos, nos termos de Ferreira. 654 Parafraseando o “fique
nu, mas seja magro, bonito e bronzeado” de Foucault 655, tem-se o seja tatuado, seja punk, seja
hippie, seja rebelde: desde que pague – e caro – por essa identidade.
Essa percepção é reforçada pela narrativa de Alemão, que confere à tatuagem
contemporânea a faculdade de excorporar a identidade do indivíduo, restando ao tatuador a
função artística de revelar a identidade interiorizada do sujeito, mediando a excorporação:

Eu digo que hoje eu não mais tatuo. Eu revelo a tatuagem que está dentro da
pessoa. A maioria das pessoas põem a tatuagem dentro dela antes, depois vão
no estúdio revelar. Eu só tenho o trabalho de usar meu lado artístico para
revelar a arte dela. Tatuagem é autoestima. Eleva sua autoestima, traz algum
benefício pra você. Então você está tirando de você, de dentro, e colocando
pra fora. Cada um simboliza isso de uma maneira. 656

652
FOUCAULT, M. Microfísica do poder, p. 236.
653
SILVA, F. Como e até onde é possível pensar um outro pensamento, p. 26.
654
FERREIRA, V. Política do corpo e política de vida, p. 291.
655
FOUCAULT, M. Microfísica do poder, p. 236.
656
ENTREVISTA: Cláudio Mendonça – Alemão. São Paulo: 2016.
235
A narrativa de Alemão, especialmente seu uso do termo revelar, curiosamente remete à
filosofia platônica e a maneira como o filósofo operacionaliza o termo alethéia como
desencobrimento, como deixar-se ver. No mesmo sentido essencialista, que concede à verdade
a possibilidade de ser revelada, Alemão parece conferir à tatuagem um potencial de
emancipação do sujeito pela excorporação de uma identidade interiorizada, previamente
idealizada. Alemão aponta para não apenas par ao sentido da construção, mas no descobrimento
de si. Processo este que se daria, na visão do tatuador, por aquilo que Ferreira chamou
excorporação.
Ainda no que diz respeito às táticas de estímulo que envolvem a tatuagem na trama das
relações de poder, Alemão atesta – não sem uma dose de nostalgia e empenho na legitimação
dos tatuados de sua geração – um abrandamento no potencial de subversão que envolveu a
tatuagem até fins da década de 1980, hoje diluído.

Até os anos 80 a tatuagem era rebeldia pura. Hoje não tem mais a ver com
rebeldia. Tatuagem é arte, é estética, é vaidade...e é um luxo também. Então
não tem nada a ver com rebeldia mais. Tatuagem hoje não tem rebeldia nem
loucura. A gente era maluco. Tatuagem era coisa de maluco. 657

Não menos importante que a legitimação da tatuagem por sua associação com a moda,
a exposição midiática da prática e a influência de tatuados famosos foi outro ponto importante
na descontinuidade discursiva do período.
Sujeitos tatuados alcançarem posições de prestígio na estrutura social não era novidade.
A presença de figuras ilustres entre os tatuados era (re)conhecida. Figuras como o inglês
Henrique III, Príncipe Philip e Winston Churchill, o príncipe Bernard da Holanda, estavam
entre os tatuados que ocupavam posições de prestígio. Da mesma forma, apontei que havia, no
início do século XX, sujeitos economicamente favorecidos e tatuados, como no caso dos
“milionários excêntricos” descritos pela revista Eu Sei de Tudo, em 1917.658
A questão que muda a partir da década de 1960 parece ser, sobretudo, a exposição
cotidiana da tatuagem no corpo de sujeitos de prestígio, no sentido de ocuparem posições
sociais tidas como inegavelmente legítimas. Um elemento fundamental dessa exposição,
indubitavelmente, é a difusão da televisão.

657
ENTREVISTA: Cláudio Mendonça – Alemão. São Paulo: 2016.
658
A tatuagem. EU SEI DE TUDO, 1917
236
Como aponta Marcos Napolitano, “o ano de 1968 pode ser considerado o momento em
que a televisão, efetivamente, se tornou um veículo de massa, suplantando a importância do
rádio como principal meio de comunicação de massa nas grandes cidades brasileiras”.659
Difundida sobretudo, mas não apenas, nas grandes cidades do país, a televisão passa a exercer
um importante papel na construção do imaginário brasileiro, especialmente por meio das
telenovelas, produto da cultura de massas consumido em larga escala. Neste sentido, ao
adentrar os lares brasileiros por meio da televisão, a tatuagem gradativamente se tornava mais
familiar, solapando a estranheza provocada e erodindo gradativamente seu valor de choque.
Os exemplos dessa exposição são fartos. Em 1987 o Jornal do Brasil entrevistava Ana
Velho, tatuadora carioca que ganhava notoriedade, especialmente por inaugurar aquela que
seria uma das primeiras lojas modernas de tatuagem no país, a Tropical Tattoo. 660 Na
reportagem, Ana anunciava a técnica de produção de sobrancelhas artificiais por meio da
tatuagem, e a atriz Malu Mader era a referência a ser seguida:

Ana Velho promete deixar todo mundo com as sobrancelhas da Malu Mader.
É uma pintura hiper realista, com técnicas de tatuagem. As mulheres já
rasparam a sobrancelhas, agora a moda pede-as de volta. Fartas. “Ficam com
a cor e o volume da original”, garante Ana. Custa CZ$ 6 mil, é pra sempre.
Mas atenção: se a moda voltar atrás, não dá pra raspar. 661

Outra atriz relacionada à tatuagem foi a argentina erradicada no Brasil, Irma Alvarez.
Descrita pela pelo jornal Última Hora como A Bela Tatuada, a narrativa sobre Irma envolve a
afirmação de padrões estéticos e uma aparente revolta da reportagem com os diretores de
cinema com quem a atriz trabalhava, acusados de tentar “enfeia-la” por meio de trapos,
máscaras, da raspagem de seu cabelo e, não menos destacado, “desenhos de tatuagem”.

Dando mais uma prova de quem não tem medo de parecer feia, pois sabe que
é mesmo bela, a atriz serviu como modelo para desenhos de tatuagem,
conforme atualmente é moda na Inglaterra, onde o chamado sexo frágil aderiu
à moda tão apreciada em outros tempos pelos marinheiros e outros homens
rudes. 662

659
NAPOLITANO, M. Cultura brasileira, p. 73
660
Para mais sobre o surgimento dos espaços institucionalizados de tatuagem, ler SOUZA, F. História da tatuagem
no Brasil.
661
JORNAL DO BRASIL, 01 de novembro de 1987.
662
Irma: a bela tatuada. ÚLTIMA HORA, 06 de junho de 1964.
237
O caráter dicotômico da tatuagem é bem descrito no caso de Irma. Por certo, ao construir
a imagem de Irma como bela mesmo enquanto tatuada, o discurso produzido sobre ela visava
estabelecer a tatuagem como associada ao feio e ao rude.
Imagem 28: A atriz Irma Alvarez é representada como tatuada

Fonte: Última Hora, 06 de junho de 1964.

A exposição midiática da tatuagem não se restringiu às mulheres. A exibição de homens


tatuados parece ter sido um elemento ainda mais constante no período, para além do já citado
Menino do Rio, presente na trilha sonora de Água Viva. Na novela Guerra dos Sexos, exibida
pela Rede Globo de Televisão o ator Mário Gomes representou o personagem Orlando Cardoso.
238
Descrito como motorista e companheiro de aventura do núcleo de ricos da trama, Orlando
viveria o dilema do romance com a moça rica na condição de empregado. 663
Imagem 29: Mário Gomes em Guerra dos Sexos, 1983.

Fonte: TV GLOBO/Divulgação

Com uma tatuagem de uma gaivota em frente ao sol, o ator figurava diariamente nas
telas das famílias de classes diversas. Em exibição entre junho de 1983 e janeiro de 1984, os
cento e oitenta e cinco capítulos da telenovela ajudaram na familiarização da tatuagem, no

663
GLOBO. Guerra dos sexos. Disponível em https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/guerra-dos-
sexos-1a-versao/personagens/. Acesso em 04 de dezembro de 2020.
239
sentido estrito do termo. Como aponta Paulo Sérgio do Carmo, o efeito da televisão não pode
ser desprezado na relação entre o corpo e o imaginário social. Referindo-se ao programa
televisivo da Jovem Guarda, Carmo afirma que:

Num ambiente de festa, o movimento também lançava as primeiras


manifestações culturais do corpo como fonte de prazer. O público podia
acompanhar as evoluções sensuais de seus ídolos pela tevê, cujo número de
aparelhos crescia enormemente. [...]Na tevê, misturavam-se moral familiar
conservadora e o inconsciente desejo de transgressão do espectador
tradicional. 664

As telenovelas parecem ter provocado o mesmo efeito. Para além de sua exibição diária,
as novelas passavam a ocupar espaço também nas mídias impressas, que retratavam bastidores,
curiosidades e eventos relacionados à programação televisiva. O próprio Mário Gomes e sua
célebre tatuagem foram notícia por algumas vezes na imprensa. Em tom efusivo, descrito como
a causa de uma espécie de furor feminino, o ator e sua tatuagem são notícia no Jornal do Brasil,
em caderno destinado à programação televisiva:

O bando de homens bonitos que agora trabalha nas novelas da Globo está
deixando as mulheres da emissora enlouquecidas. O último tititi ficou por
conta de Mário Gomes. Ele resolveu sair de sunga do estúdio e foi aquele
corre-corre. A mulherada quase saiu no tapa para ver de perto a tatuagem que
está deixando a Roberta Leone (Glória Menezes) maluca em Guerra dos
Sexos. 665

Em outro momento, na revista Última Hora, o ator-celebridade foi noticiado novamente


em relação a sua tatuagem, desta vez descrita pelo atributo bela e representativa da cultura dos
jovens surfistas.

Mario Gomes está aprendendo a arte da tatuagem. Seu personagem Orlando


exibe uma bela tatuagem no peito. Antes das gravações, ela é feita pela
maquiadora com a ajuda de Mário. O desenho foi criado pelo próprio ator, que
escolheu um motivo simples e de fácil reprodução para ser feito rapidamente.
A tatuagem é um sol e algumas gaivotas. Antes de ser escolhido o desenho,
foi feita uma pesquisa entre os surfistas, para que não ficasse ultrapassado. 666

A associação entre a tatuagem e o elemento sedutor no personagem Orlando não é


exclusividade da mídia impressa. A própria Rede Globo de Televisão, na página destinada à

664
CARMO, P. Culturas da rebeldia p.45.
665
CAMPOS, C. TV. JORNAL DO BRASIL, 24de julho de 1983.
666
Mário e a tatuagem para boa comunicação. UH REVISTA. Jornal da TV, 03 de junho de 1983.
240
novela, atribui à tatuagem de Orlando, também chamado Nando, uma função fundamental em
seu papel como galã, associando diretamente a atração exercida pelo personagem na trama à
sua tatuagem: “Apesar da diferença de idade, Roberta luta com todas as suas armas para
conquistar Nando. Ela fica encantada por aquele jovem de olhos azuis, corpo escultural e
tatuagem no peito. No final da novela, é com Roberta que Nando decide ficar”. 667
Imagem 30: Tatuagem é elemento importante na trama de telenovela

Fonte: TV GLOBO/Divulgação

Inspirado na canção homônima de Caetano Veloso, o já citado filme Menino do Rio foi
outra produção audiovisual a exibir a tatuagem em destaque. Sua continuação, lançada em 1984
sob o título de Garota Dourada, trazia Alexandre Frota, ator e atual Deputado Federal, no papel
de Peninha, um jovem tatuado que se vangloriava de sua forma física e, conforme Baracuhy e
Godoi, representava a forma esteticamente legítima do corpo jovem e atlético, promovendo
uma representação positivada da tatuagem. 668
Neste sentido, a televisão exerce um papel fundamental, não apenas na descontinuidade
dos discursos produzidos sobre a tatuagem – pois eles também se modificaram em outros
suportes midiáticos – mas sobretudo pelo efeito de familiarização que ela produz nos sujeitos.
A construção do significado da tatuagem ao longo do século XX não opera exclusivamente a

667
GLOBO. Guerra dos sexos. Disponível em https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/guerra-dos-
sexos-1a-versao/personagens/. Acesso em: 04 dez. 2020.
668
BARACUHY, R.; GODOI, E. Da marginalização ao glamour, p. 218.
241
partir de uma verticalização, na qual as camadas de cima impõem suas noções de cultura
legítima às de baixo. Penso que o grande trunfo de um estudo que relacione a televisão e a
ressignificação da tatuagem resida na análise não apenas das rupturas, mas do efeito de
familiarização, da erosão do valor de choque que a exposição diária de corpos tatuados
produziu, especialmente à medida que representavam sujeitos socialmente legitimados: os
típicos mocinhos e galãs das telenovelas.
A importância televisiva não pode ser desprezada na análise dos fenômenos culturais
após a década de 1960. Para se ter ideia de sua importância, no ano de 1970 existiam mais de 4
milhões de residências com televisores no país, o que correspondia a 56% da população. Na
década seguinte, em 1982, eram mais de 15 milhões de aparelhos, o correspondente a 73% dos
domicílios existentes. 669 Considerando que essa difusão se iniciou justamente pelas cidades em
que meu estudo se concentra, é razoável admitir que este meio de comunicação exerceu um
papel fundamental no abrandamento do valor de ruptura que a tatuagem provocava.
A música é outro campo em que a tatuagem pululou. Como evidenciado anteriormente,
a ligação entre a tatuagem e gêneros musicais como o Rock and Roll é traço comum na literatura
sobre o tema. A importância dessa associação reside na influência que o estilo produziu na
cultura juvenil, provocando transformações que extrapolaram o campo musical para inundar o
campo da moda, do cinema, da política e das manifestações corporais, das quais a tatuagem é
indubitavelmente um elemento de destaque.
Como aponta Paulo Sérgio do Carmo, a partir da década de 1950 o rock tornava-se
expressão do descontamento e da revolta da juventude. Para o autor, “o rock, mais do que
apenas um gênero, transformou-se num símbolo que ultrapassou a esfera musical. Gerou nova
forma de comportamento para a juventude, como os blusões de couro, as motos e lambretas, a
dança, os topetes, as camisas coloridas, a calça rancheira ou o autêntico brim coringa”. 670
Contudo, Fernando Além aponta que, assim como acontecerá com a tatuagem, a noção
do Rock and Roll como elemento transgressor, signo da rebeldia que causava “mal-estar nas
famílias mais conservadoras” se abrandará a partir da década de 1980, momento no qual a
indústria cultural se apropriará do rock, promovendo a acomodação do estilo musical às regras
da indústria cultural.671

669
ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira, p. 130.
670
CARMO, P. Culturas da rebeldia p.32.
671
ALÉM, F. A revista Bizz, o rock nacional e a indústria cultural, p.13.
242
A música parece cumprir o mesmo papel de familiarização entre a tatuagem e a
sociedade promovido pela televisão. Sobretudo a partir de meados da década de 1980, quando
o Rock in Rio insere o Brasil no circuito mundial dos megafestivais de música. Sua relevância
é destacada por Fernando Além, que afirma que o festival se insere entre os responsáveis pelo
que chama de boom do Brock, em referência ao rock produzido no Brasil. Para o autor, um dos
desdobramentos desse fenômeno é o surgimento de uma indústria nacional de videoclipes e de
programas televisivos para sua exibição, além de serem veiculados em programas de grande
audiência como o Fantástico, da Rede Globo. 672
A primeira edição do Rock in Rio, ocorrida entre os dias 11 e 20 e janeiro de 1985, fez
proliferar a presença da tatuagem em outros veículos midiáticos, para além da televisão.
Durante o período do festival, além dos corpos dos roqueiros no palco e na plateia, a tatuagem
foi presença constante na mídia impressa. Entre os dias 16 e 18, por exemplo, todos os dias o
Jornal do Brasil publicou ao menos uma reportagem mencionando a tatuagem.
Ozzy Osbourne, vocalista da banda inglesa Black Sabbath, é descrito pelo jornalista
Anderson Ramos como tímido e recatado, descrição que se chocava diretamente com o
imaginário que se tinha dos músicos de Heavy Metal. As tatuagens de Ozzy, prática iniciada na
passagem do cantor pela cadeia, durante sua juventude673, são destacadas de modo muito
distinto do discurso criminalizante da primeira metade do século XX. Pelo contrário, o repórter
associa Ozzy a adjetivos como simpático e pacífico.674
A tatuagem e o rock tornaram-se elementos tão associados nesses discursos, que os
músicos não tatuados eram motivo de destaque. Jimmy Zavala, gaitista de Rod Stewart foi
descrito como, além de um músico excepcional, uma figura peculiar entre os artistas
estrangeiros do estilo. Embora compartilhasse elementos comuns como as roupas, algo lhe
diferenciava: não era tatuado.

Se ele disser que é do Kid Abelha ou do Barão Vermelho, o leitor não se


surpreende. Jimmy Zavala até parece um deles: baixo, cabelo bem preto,
jaqueta Lee sem mangas e tênis Puma. Nada de brilho no cabelo, tatuagem e
os adereços que os roqueiros internacionais adoram. Mas se algum deles
ascendeu subitamente no estrelato do Rock in Rio, foi ele. 675

672
ALÉM, F. A revista Bizz, o rock nacional e a indústria cultural, p. 45.
673
OSBOURNE, O. Eu sou Ozzy, p.19
674
RAMOS, A. Osbourne explica o jejum de morcego. JORNAL DO BRASIL, 18 de janeiro de 1985.
675
BATALHA, A. Uma gaita soa bonito na noite da Barra. JORNAL DO BRASIL, 17 de janeiro de 1985.
243
Se a tatuagem se tornava comum entre os músicos de rock, especialmente os
estrangeiros que chegavam para o Rock in Rio, a ponto de Zavala se diferenciar pela ausência
destas marcas, tanto mais ela se tornaria comum entre os fãs. E pra isso não seriam necessárias
várias edições do festival. Já no primeiro Rock in Rio, a tatuagem se tornou empreendimento e
foi comercializada nos arredores do festival. Mais do que isso, pelo fato de receber público de
diversos lugares do país, o festival ajudava também a difundir a prática, como no caso de
Ivanildo Cordeiro, que foi ao Rio assistir ao festival e voltou para Brasília tatuado.

Um fusquinha amarelo é, desde sábado, uma das atrações dos arredores do


Rock In Rio. Ali, Jimi e Johnny, dois jovens do Grajaú, anunciam tatuagens
em vários tamanhos, cores e desenhos, eles os próprios modelos vivos, com
dragões e aves em peitos e braços. De Cr$10 a Cr$ 180 mil, os candidatos
podem levar para sempre luas, dragões ou o que a imaginação mandar.
Ivanildo Cordeiro, cabelereiro em Brasília, submete-se com boa-vontade à
operação. Por Cr$ 25 mil, levará para Brasília um sol, o perfil de uma
montanha e uma gaivota. Comprou um passaporte para dez dias, mas os
rapazes da tatuagem não pensam nisso: preferem investir na média de dez
tatuagens diárias. 676

A cantora Marina Lima foi outra figura do campo musical que difundiu a tatuagem entre
a juventude brasileira. Revistas especializadas como a Tatuagem, Arte e Comportamento
recorreram à imagem legitimada de Marina para afirmar a análoga legitimidade da tatuagem.
Possuindo três tatuagens na época da matéria, o cometa que trazia no braço chamava a atenção:

Com sua marca corporal mais conhecida, a tatuagem de um cometa, Marina


Lima retorna ao seu público, trazendo o seu brilho depois de seis anos sem se
apresentar ao vivo. [...] Marina Lima tem três tattoos, “por enquanto”, como
ela própria diz. “Sou louca para fazer, gosto muito e acho que tem tudo a ver
com o nosso tempo. É uma tradução da época da gente, acho contemporâneo
e adoro. Todo mundo deveria ter”, diz a cantora. 677

Diferentemente dos discursos outrora produzidos sobre as mulheres tatuadas, os termos


para referir-se a Marina, presentes no subtítulo da reportagem, são sensualidade, estilo e
glamour, evocando a imagem emancipada da cantora.
O cometa de Marina não ocuparia exclusivamente as páginas das revistas sobre
tatuagem. Sintomaticamente inserida na coluna Comportamento do Jornal do Brasil, uma

676
SCHILD, S.Roqueiro, um consumidor quase sempre retraído. JORNAL DO BRASIL, 16 de janeiro de 1985.
677
Personalidade. Tatuagem, arte e comportamento, Ano II, n. 11, p. 16.
244
reportagem publicada em 1987 colocava celebridades como Marina Lima e a modelo Monique
Evans entre os tatuados ilustres, legitimando assim a gente comum, como o estudante Cláudio.

No Brasil, a cantora Marina vibra com o cometa que tem gravado no braço
direito. A modelo Monique Evans tinha uma sereia tatuada no seio, um Pégaso
na virilha e uma borboleta no cóccix. Agora, achou que a borboleta estava
muito solitária e arranjou um namorado pra ela: outra borboleta desenhada
perto da primeira. [...] A cantora Marina, por exemplo, queria “uma marca
selvagem no corpo”, um sinal escolhido e perpetuado por ela mesma. Já
Cláudio Henrique Dantas, 21 anos, estudante de arte que mora no Flamengo e
tem três tatuagens no corpo (castelo com caveira no braço, dragão no outro
braço e gaivota na perna), a tatuagem é “uma transferência do interior da gente
pra fora”. [...] Marina, por exemplo, pensou bastante antes de escolher seu
cometa, “que é uma estrela que anda a mil por hora, como eu”, define ela. A
cantora não pretende fazer outras tatuagens: “seria uma coisa over
(exagerada), uma só já é significativa. Mas Monique Evans diz que “pirou”
com as que fez: “Tenho que me conter para não fazer mais, porque a vontade
é muito grande”. 678

678
Comportamento. JORNAL DO BRASIL, 22 de fevereiro de 1987, p. 65.
245
Imagem 31: Cantora Marina Lima e sua tatuagem de cometa

Fonte: Tatuagem, Arte e Comportamento, Ano II, n. 11, p. 16.

A maneira como os discursos são produzidos nesse contexto evidenciam o afastamento


da tatuagem tanto das classes perigosas quanto da rebeldia a que ela fora posteriormente
associada. É perceptível, ao fim da década de 1980, marcada pelo contexto redemocratização
política do país, um novo deslocamento dos enunciados e a tentativa de construção de uma

246
legitimidade em torno da tatuagem, o que será a marca de sua terceira fase, a partir da década
de 1990. 679
Essa legitimidade se associa à incorporação mercadológica da tatuagem e sua inserção
no conjunto das modificações corporais legítimas, como a maquiagem e a cirurgia plástica. É
neste sentido que refiro à estratégia de positivação que denomino estímulo. Não são todas as
tatuagens, por certo, que serão consideradas legítimas. Mas aquelas que assim o forem, terão
sua produção publicamente estimulada, justamente no sentido de demarcar o refinamento das
estratégias de controle do corpo, demarcando as tatuagens entre legítimas e ilegítimas. Ou
melhor, distinguindo os corpos que as utilizam entre legítimos e ilegítimos.
Quando presentes no corpo de Marina Lima, de Monique Evans, de Ozzy Osbourne, a
tatuagem deixa de ser coisa de marinheiro. Quando associada aos artistas, como se percebe no
excerto abaixo, ela deixa de ser maldita e passa a ser percebida como arte.

Já vai longe, em algum porto perdido do planeta, o último navio que


carregava a crença de que tatuagem era coisa de marinheiro. Ela está em
todas. No braço da cantora Marina (em forma de uma estrela vermelha com
cauda), no bumbum de Monique Evans (uma borboleta) e no peito cabeludo
de Ozzy Osbourne (dragões irados soltando fogo pelas narinas). A tatuagem
quer deixar definitivamente de ser maldita e está convidando para a exposição
de alguns de seus mestres cariocas, a partir das 20 horas da próxima terça, no
bar Aleph, da Lagoa. – É uma forma de arte tão bonita quanto qualquer outra,
só que a gente carrega em nosso corpo – diz Vicenta Perez, de 32 anos, a
diretora do Aleph que está promovendo a mostra, e que tem, a alguns dedos
acima do seu bumbum, a tatuagem de uma pirâmide (“energia”) sobre uma
flor de lótus (“feminilidade”), enquanto duas pombinhas (“liberdade”) flanam
em frente ao sol (“mais energia”). 680

Como aponta Débora Leitão, as décadas de 1960 e 1970 marcam a inserção da tatuagem
no mundo da contracultura e da indústria pop. A associação da tatuagem à marginalidade
começa a ser erodida, segundo a autora, a partir “dos corpos de gente famosa”, o que teria

679
Embora opte por restringir minha pesquisa às duas primeiras fases da tatuagem brasileira, defendendo que elas
são suficientes para compreensão da ressignificação da tatuagem – de um estigma a um produto no mercado da
modificação corporal – há ainda um terceiro momento, pós década de 1990, marcado pela emergência dos estúdios
modernos de tatuagem e da institucionalização das técnicas de tatuagem, do investimento do tatuador na
legitimação de sua posição como profissional e artista, além da profusão inédita da tatuagem em classes, gêneros,
religiões ou profissões as mais diversas, borrando suas fronteiras tradicionais e configurando aquilo que chamo de
heterogeneização do sujeito tatuado, que torna imprecisa qualquer tentativa de classificação dos tatuados como
um grupo homogêneo. Sobre esse assunto, pretendo produzir um estudo futuro, mas é considerável a literatura
produzida, sobretudo no campo da sociologia e antropologia. Destaco os trabalhos de Vítor Sérgio Ferreira (2008),
Andrea Lisset Perez (3003), Célia Antonacci Ramos (2001), Zeila Costa (2004) e Andrea Osório (2006).
680
Tatuagem, uma exposição pouco maldita. JORNAL DO BRASIL, 05 de agosto de 1985.
247
promovido transformações na prática, “até tornar-se socialmente aceitável em quase todos os
círculos”.681
De modo semelhante, Vítor Sérgio Ferreira afirma que:

Os contextos mediáticos, designadamente a música e os meios que a difundem


– revistas, programas televisivos, documentários, videoclipes, Internet, etc. –
revelam-se um poderoso meio de produção de referências dos modelos de
corporeidade e dos visuais que integram as marcas corporais. O corpo icônico
veiculado pelos media, nomeadamente os media de promoção e divulgação
musical, surge amplamente reconhecido como significante e indutor de
atitudes e comportamentos respeitantes ao fenômeno de marcação corporal
em contextos juvenis. 682

Nas palavras de Ferreira, a exposição cotidiana dessas figuras midiáticas termina por
constituir “instâncias de autoridade somática que estimulam e legitimam a mobilização de um
modelo de corporeidade socialmente reconhecido como divergente”. 683 Ouso ir além e propor
que essa exposição, que denomino táticas de estímulo, acaba por reconfigurar os modelos de
corporeidade, reorganizando os significados do que são ou não modelos divergentes,
promovendo gradações entre as divergências toleráveis – aquelas inscritas na rebeldia juvenil
de classe média – e as divergências intoleráveis – a dos corpos empobrecidos, cujas tatuagens
permanecem sob o constante escrutínio de instâncias de poder como a polícia, os empregadores,
etc.
O campo esportivo foi outro espaço que, gradativamente, ajudou a reelaborar o
significado do corpo tatuado. Em 1984, o jogador de vôlei Fernandão, torcedor do Vasco da
Gama, foi representado pelo Jornal do Brasil como alguém que “não perde um jogo das
arquibancadas e ainda usa uma tatuagem da Cruz de Malta no braço direito”. 684 A coluna social
do jornal Última Hora, nomeada Fofoca e assinada por Gladis Cipriano, descreve um evento
realizado pela atriz Solange Couto, em área nobre do Rio de Janeiro. O evento reunia
personalidades como o humorista Mussum, as atrizes Maria Alves, Iris Nascimento e Taís de
Campos. Na nota sobre a banalidade da vida das celebridades, ganha destaque o jogador
Leandro, que se distinguia do grupo por carregar uma “imensa tatuagem no braço”. 685

681
LEITÃO, D. A flor da pele,
p. 5
682
FERREIRA, V. Marcas que demarcam, p. 62.
683
FERREIRA, V. Marcas que demarcam, p. 64.
684
Fernandão encontra seus ídolos. JORNAL DO BRASIL, 31 de maio de 1984.
685
CIPRIANO, G. Fofoca. UH REVISTA, 04 de julho de 1984.
248
Jogador de importantes clubes do futebol brasileiro e internacional, além da Seleção
Brasileira de Futebol, Walter Casagrande Jr. é outro dos jogadores tatuados que ajudaram a
popularizar a marca – no sentido de tornarem-na mais comumente visualizada, para além dos
espaços onde ela tradicionalmente circulava – na década de 1980.
Em fevereiro de 1985, ainda sob o efeito que o Rock in Rio provocava na imprensa e na
cultura nacional, o Jornal do Brasil apresentava Casagrande como o jogador metaleiro,
referenciando suas preferências musicais. Utilizando “uma fitinha na cabeça, ao melhor estilo
dos frequentadores do recém-encerrado Rock in Rio” e com “tatuagem no braço esquerdo e
cigarro na boca”, Casagrande é apresentado, assim como o cantor Ozzy, como “uma pessoa de
paz”, assumindo, no contexto político da redemocratização brasileira “uma posição coerente
com um líder da Democracia Corintiana”. 686
Contudo, propositadamente ou não, a representação de Casagrande na charge do
cartunista André, que acompanha a matéria faz uma estranha referência. Além do inexistente
piercing no nariz, que reforçava a caricatura do jogador como o metaleiro descrito no texto, ao
invés de ser representado com a águia que de fato possuía no braço, o jogador é descrito com
uma suástica, referência à ideologia alemã nazista e, portanto, contraponto da democracia a qual
o texto lhe associava.
Imagem 32: Charge representando o jogador Casagrande

Fonte: Jornal do Brasil, 04 de fevereiro de 1985.

686
Casagrande ao estilo “metaleiro”. JORNAL DO BRASIL, 04 de fevereiro de 1985.
249
Imagem 33: Jogador Casagrande e sua tatuagem

Fonte: CORINTHIANS.BLOGSPOT.COM.BR. Acesso em: 06 de nov. 2020.

A despeito da representação distorcida de Casagrande, é perceptível como os discursos


de estímulo a tatuagem ganham força quando a marca é inserida no corpo de sujeitos
socialmente legitimados.
De modo geral, mesmo quando esses sujeitos destoam do grupo em que estão
costumeiramente inseridos, há um nítido desconforto na atribuição de sinais negativos a estes
indivíduos. Quando não descritos a partir da dualidade, marca dos signos culturais cujo
significado está em disputa, os famosos são geralmente legitimados, mesmo sendo tatuados. A
presença de figuras públicas tatuadas produz um efeito de ruptura do potencial estigmatizante
da tatuagem. Somada à já citada familiarização que a exposição televisiva da marca produz, a
legitimação das figuras públicas contribui significativamente para esta ressignificação, uma vez
que desestabilizam os sistemas classificatórios que atribuíam à tatuagem a condição de estigma.
A resolução deste conflito parece ser o refinamento da disciplina corporal que confere
significados à tatuagem, separando as marcas entre legítimas, que passam a sofrer o efeito de
estímulo; e ilegítimas, que experimentam a restruturação das estratégias de repressão.
O tatuador Alemão destaca a contribuição da mídia para essa restruturação:

250
Quando veio a primeira convenção de tatuagem no Brasil, tivemos a mídia, e
isso deu um up, mostrando que éramos uma galera, éramos unidos. A mídia
também ajudou. De lá pra cá a tatuagem foi socializando, devagarzinho. As
pessoas que eram mais radicais, mais antigas, a maioria morreu. Então o
negócio foi amenizando e hoje virou esse universo da tatuagem. 687

De modo semelhante, Baracuhy e Godoi afirmam que a tatuagem:

[...] situada em um espaço de positividades, entra na ordem do discurso


publicitário, a partir do século XX, não como a tatuagem dos “infames”, dos
sem classe, mas como a tatuagem das atrizes e atores, dos cantores e cantoras,
dos modelos, dos jovens adeptos a prática esportiva, a procedimentos médicos
estéticos, a indústria de cosméticos. E o que estiver fora desses padrões está
fora dos regimes de verdade da época. 688

A ressignificação da tatuagem e as estratégias de estímulo que envolvem sua enunciação


se inserem em uma lógica de elevação de seu potencial mercadológico, ligada a um contexto
no qual a publicidade se volta agressivamente para a juventude, de modo a cooptar uma parcela
significativa de novos consumidores. Paradoxalmente, uma das respostas ao movimento de
confrontação produzidos por essa juventude, que adotou a prática como a excorporação de uma
atitude ética dissidente, foi justamente a incorporação mercadológica da tattoo pela
contraofensiva do estímulo. Como bem coloca Leonardo Brandão:

[...] se durante a primeira metade do século passado era difícil observarmos a


aparição de jovens como modelos ou público alvo nas propagandas
publicitárias, a partir de sua segunda metade, sobretudo com a exaltação da
juventude durante a década de 1970, este quadro começou a se modificar.
Certamente, neste período, a juventude passou a ter um sentido e um valor de
mercado muito maior do que possuía nas décadas anteriores no Brasil. 689

A incorporação mercadológica da tatuagem fez com que ela passasse a constituir um


elemento de representação de certa noção de juventude. O efeito que se desejou produzir foi o
de autonomia, ruptura ou vanguarda, com se percebe no anúncio a seguir, em que a modelo é
apresentada com uma tatuagem em alusão à personagem Batman, uma figura da cultura pop
oriunda dos quadrinhos:

687
ENTREVISTA: Cláudio Mendonça – Alemão. São Paulo: 2016.
688
BARACUHY, R.; GODOI, E. Da marginalização ao glamour, p. 218.
689
BRANDÃO, L. Por uma história dos “esportes californianos” no Brasil, p. 138.
251
Imagem 34: Anúncio publicitário envolvendo a tatuagem

Fonte: Jornal do Brasil, 22 de julho de 1989.

A aparente vitória da rebeldia juvenil deve ser contrastada com as contraofensivas que
incorporaram mercadologicamente seus signos contraculturais, inserindo-os no supermercado
de estilos690 socialmente legitimados. A tática do estímulo é parte de um conjunto de táticas
que se alternam entre estímulo, repressão e conformação, produzindo um refinamento
disciplinar que visa constituir uma estratégia de dominação do corpo tatuado, doravante
empreendida sob circunstâncias distintas daquelas percebidas na primeira metade do século
XX. Assim, devidamente diferenciadas das outras, as tatuagens legitimadas, produzidas a partir
de processos técnicos legitimados, e inserida em corpos socialmente legitimados, ganham o
status de estética alternativa.
Essa noção de legitimação é evidente na fala do tatuador Stoppa. Referindo-se a um
passado em que a tatuagem era restrita aos marinheiros e prisioneiros, como parte constituinte
de sua identidade, a tatuagem contemporânea é descrita por Stoppa como “uma arte no corpo,

690
FERREIRA, V. Política do corpo e política de vida, p. 291.
252
é como uma joia exclusiva. Todo mundo quer ter uma. Tem muita gente investindo em si
mesmo”. 691
O sentido de investimento ressaltado por Stoppa corrobora a hipótese da tatuagem
inserida em uma lógica de mercado, como parte das modificações socialmente aceitas. Outro
indício dessa reconfiguração sígnica é o surgimento e a popularização das tatuagens removíveis,
anteriormente citadas. No outono de 1988, o Jornal do Brasil apresentou o tatuador Marcelo
Arantes, de dezenove anos, que oferecia tatuagens removíveis nas areias da Barra da Tijuca:

Armado de pena de nanquim e canetas japonesas, um verniz (fabricado por


ele mesmo e antialérgico) e um catálogo com centenas de desenhos, ele
tentava convencer os receosos a arriscar uma tatuagem temporária.
“normalmente as pessoas não fazem tatuagem com medo da reação da família
e dos amigos. Com a tatuagem temporária, que dura de cinco a 15 dias, a
pessoa pode perceber se curte ou não e também acostumar os outros sobre seu
novo visual”, disse. 692

Se a tatuagem removível aparece como solução aos receosos, sua transformação em


mercadoria por parte de sujeitos como Marcelo indica algo caro à teoria de Foucault: as relações
de poder não são necessariamente imposições de instâncias superiores. Embora tratar de
incorporação mercadológica sugira um movimento arquitetado por forças que operam de
maneira centralizada, impondo decisões verticalizadas, essa leitura é dúbia. Como demonstra o
caso de Marcelo, um jovem oriundo da classe trabalhadora que buscava sobreviver como
tatuador, as relações que envolvem a (re)significação dos signos culturais escapam ao controle
centralizado, se constituindo em um emaranhado de relações capilarizadas. Antes de partir de
uma instância central, a mercantilização da tatuagem parte das redes de relações que a envolve.
O tatuador Israel, conhecido como Zen, foi outro a depositar sobre a atividade itinerante
a expectativa de estabelecer-se economicamente. Encontrado em Búzios, litoral do Rio de
Janeiro, ele havia viajado para a cidade “de carona, carregando na mochila algumas mudas de
roupa e seus apetrechos de tatuagem”. Visando criar uma estamparia na região, Israel e seu
aprendiz, Elanailton, comemoravam o mercado favorável aos tatuadores, expandido pela
incorporação da tatuagem como possibilidade estética:

Mercado não falta. Quem não quer ter no braço ou no peito uma boquinha
maneira, uma serpente chocante, um místico raio, uma lua com estrela,
símbolo do alto astral? Zen chega num local de encontro de jovens e vai

691
RAMOS, C. Teorias da tatuagem, p. 133.
692
SERRA, J. Outono chegou, mas deu praia. Cidade. JORNAL DO BRASIL, 21 de março de 1988.
253
mostrando a pasta onde se destacam furiosos dragões, rosas e flores coloridas,
serpentes que soltam fogo pelas ventas, boquinhas com a língua de fora. Os
menores custam Cz$ 100, os mais complicados, com muitas cores e detalhes,
podem chegar a Cz$ 1 mil e 500. Conversa vai, conversa vem, oferece um
abatimento ou a tatuagem em troca de uma temporada de abrigo, ou uma
semana de almoço e jantar. – A gente tá na luta, né? Quero ficar em Búzios e
transar uma estamparia. 693

Entre a clientela, jovens de classe média, apresentados como figuras populares na


região:

Mônica, namorada do Carlão, figura bastante conhecida, é uma de suas


clientes. Fez questão de um desenho novo. O “cometa Halley arrebentando a
boca do balão”. Satisfeita com o trabalho, arranjou duas amigas argentinas que
desfilam agora com serpentes e flores. [...] Tatuagem que eu faço não inflama,
garante Israel, que em menos de uma semana já havia espalhado sua marca
registrada em pelo menos 20 braços, pernas, peitos e costas. 694

Tatuadores ambulantes como Marcelo e Israel não foram os únicos a perceber o


potencial mercadológico da tatuagem e reivindicá-la como uma possibilidade estética legítima.
Especialmente a partir da década de 1980, sujeitos oriundos dos mais diversos estratos sociais
recorreram à tatuagem não apenas como modificação corporal, mas também como ocupação
profissional.
Um exemplo dessa trajetória é percebido nos irmãos Jorge e Marcos Davies. Artistas
plásticos de formação, os irmãos Davies encontraram na tatuagem um campo de atuação
economicamente mais promissor do que a arte em outros suportes. Como resultado, inauguram
a loja Banzai Tattoo no início da década de 1980. Localizada na Barra da Tijuca, bairro nobre
do Rio de Janeiro, o Jornal do Brasil a descreve em tom publicitário como um lugar “onde
máquinas modernas aplicam desenhos exclusivos e coloridos”.695
A inserção de sujeitos oriundos de diferentes lugares sociais entre os tatuadores é parte
do reordenamento sígnico da tatuagem. Reordenamento este que parece cumprir a função de
positivação, de construção de noções legítimas acerca de determinadas tatuagens.
A transmutação da tatuagem em estética alternativa, como parte das táticas de estímulo,
converte-se simultaneamente em meio e fim de tais táticas. Ao considerá-las entre estéticas
alternativas legítimas, estes discursos cumprem o papel de mercantilizá-las, de torná-las

693
GROPILLO, C. Tatuagem: escolha dragões, cometas ou flores. JORNAL DO BRASIL, 29 de março de 1986.
694
GROPILLO, C. Tatuagem: escolha dragões, cometas ou flores. JORNAL DO BRASIL, 29 de março de 1986.
695
Tatuagem. JORNAL DO BRASIL, 16 de dezembro de 1984.
254
produto a ser consumido, convertendo o potencial de rebeldia em potencial de lucratividade. Se
a disciplina foucaultiana dociliza os corpos à medida que os tornam tanto mais economicamente
produtivos quanto politicamente submissos 696, a ressignificação da tatuagem como estética
alternativaparece tornar essa corporeidade tanto mais economicamente lucrativa quanto
politicamente inofensiva, pela conversão de um elemento de excorporação de uma ética
dissidente em um signo de incorporação de uma estética conformada à moda.
Assim, o que chamo de refinamento da disciplina corporal passou não mais a construir
a imagem da tatuagem exclusivamente pela negação. Antes, proliferou o discurso de
positivação e de estímulo, que passou a determinar quais tatuagens são legítimas e passíveis de
serem legitimadas. Atualizando a noção de normalidade, aquelas que se mantiveram à margem
destes padrões permaneceram cumprindo a função de demarcação da anormalidade.

5.2 – RESTRIÇÃO: PSICOLOGIZAÇÃO DA REBELDIA E INCORPORAÇÃO


PROFISSIONAL DA JUVENTUDE
Para além das táticas de estímulo, que procuraram conferir legitimidade à tatuagem de
classe média por meio de sua mercantilização e inclusão entre as modificações corporais
legítimas, a imposição de condições aos tatuados se inscreve no que chamarei táticas de
restrição.
Definido pelo Dicionário On-Line de Língua Portuguesa como “circunstância ou estado
restritivo; que impõe limite ou se apresenta de modo condicionante”697 o termo restrição
responde adequadamente ao que as fontes analisadas sugerem acerca dessas táticas de controle
do corpo tatuado. Me refiro aos enunciados que, diferente das táticas de estímulo, não buscaram
a legitimação da tatuagem de classe média pela sua mercantilização, mas sim pelo
enquadramento dos sujeitos à lógica que rege a classe à qual pertencem, e mais, ao atendimento
das expectativas sobre eles depositadas, como uma condição para sua legitimação social. Ao
invés de excludentes ou contraditórias, táticas de estímulo e táticas de restrição são
instrumentos complementares na estratégia de disciplinarização corporal da juventude de classe
média. Onde uma apresenta suas brechas, a outra se impõe.
A resposta do poder à expansão da tatuagem na classe média, fenômeno que rompe com
a normalidade estabelecida, é empreendida tanto por meio de táticas de estímulo, calcadas na

696
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 135.
697
RESTRIÇÃO. Dicionário On-line de Língua Portuguesa. Disponível em: https://www.dicio.com.br/restricao/.
Acesso em 14 dez. 2020.
255
cooptação dos signos de rebeldia e sua transmutação em mercadoria – o que parece valer para
a tatuagem, para o rock, para o punk, para o hippie – quanto pelas táticas de restrição, que
impõem conformações ao jovem de classe média que decide se tatuar.
Neste sentido, as táticas de restrição são investidas na adequação do sujeito tatuado,
sugerindo condicionantes que envolvem a relação entre a tatuagem e a juventude de classe
média: uma vez adotada a prática das classes perigosas, foi preciso aprimorar os mecanismos
de diferenciação social entre os grupos. Uma das formas de fazê-lo foi demarcar os limites para
a aventura identitária dessa juventude, além de garantir sua incorporação ao mercado de
trabalho em funções legitimadas. Esses dois esforços foram constantes nos discursos que
envolvem a tatuagem e a classe média entre as décadas de 1960 e 1980.
Como aponta Vítor Sérgio Ferreira, há um nítido deslocamento nos processos de
significação da tatuagem nas sociedades contemporâneas. Segundo o autor, nestas sociedades:

As marcas deixam de corresponder a signos estatutários claros e precisos,


socialmente determinados e codificados – como eram em contextos “tribais”
tradicionais – para passarem a constituir signos identitários voluntariamente
apropriados, simbolicamente flutuantes, ambíguos e desconcertantes,
ancorados em narrativas biográficas individuais a partir das quais assinalam e
celebram expressivamente tomadas de decisão e opções pessoais, momentos,
situações e vivências que consubstanciam uma experiência particular,
revelando também estéticas e éticas de vida que se pretendem “diferentes” e
“alternativas” ao padrão dominante. 698

A apropriação voluntária destes símbolos na direção da construção identitária individual


e coletiva destes grupos juvenis de modo algum foi isenta de conflitos. No curso desse processo,
as respostas dos grupos legitimados e em condições de exercício de controle sobre o corpo dessa
juventude transgressora se moldaram de modo a protegê-los da associação às classes perigosas
e condicioná-los a uma corporalidade legítima, impondo limites à autonomia juvenil. Para
tanto, dois deslocamentos discursivos foram fundamentais nas táticas de restrição: a
psicologização da rebeldia juvenil e a incorporação profissional desses jovens.
No que tange ao primeiro, é notório como os discursos acerca da tatuagem de classe
média699, mesmo quando não adotam o tom de estímulo que a associa à moda e ao consumo,
promovem um arrefecimento do potencial de desviante dos tatuados.

698
FERREIRA, V.
Marcas que demarcam, p. 47.
699
A expressão tatuagem de classe média aparece ao longo de minha narrativa na intenção de, simultaneamente,
evidenciar a classe à qual se associa, e a partir dessa associação passa a reivindicar uma série de condicionantes
distintivos; bem como para estabelecer diálogo com a pesquisa de Margot DeMello, que percebe na working-class
256
Segundo Baracuhy e Godoi, nas décadas de 1970 e 1980, os discursos midiáticos
incorporaram aspirações juvenis de liberdade e autogestão corporal, contribuindo para a
promoção de uma autorrepresentação juvenil que encontrava na tatuagem uma forma de
excorporação destes valores. 700 Contudo, a celebração do corpo pelos instrumentos midiáticos
é uma meia-verdade.
Em primeiro lugar, a disciplinarização das classes pobres e a docilização de seus corpos
operou e opera a distinção entre tatuagens legítimas e ilegítimas – representadas em termos
como tatuagens artísticas e tatuagem de cadeia 701 – no sentindo de manter a distinção entre os
tatuados normalizados e aqueles que, sem condições de aderir às onerosas tatuagens produzidas
nos estúdios modernos, optam por tatuagens artesanais, feitas por tatuadores outsiders ao
campo dos autoafirmados profissionais. 702
Segundo, para aqueles que não se situavam entre os estratos mais empobrecidos da
sociedade, restrições de ordem estética, sanitária, profissional e ideológica se impuseram no
sentido de ressignificar a tatuagem de classe média sem inviabilizar o potencial estigmatizante
da tatuagem nas classes pobres.
Ao passo que a juventude de classe média incorporava o estigma das classes pobres
como ato de rebeldia, uma rede de enunciados se (re)organizava para conferir um significado
distinto para suas tatuagens. Entra em cena o discurso psicologizante sobre a tatuagem e o
tatuado.
A substituição da medicina legal pela psicologia como locus enunciativo privilegiado
acerca da tatuagem é resultado tanto do ocaso da primeira quanto de um deslocamento
discursivo conveniente. Já não era mais apropriado traçar o perfil do criminoso nato pela
tatuagem. Nascidos entre os produtores dos discursos de verdade – ou mesmo compondo suas
fileiras – os tatuados de classe média serão convertidos em inconformistas, e a patologia
congênita do pobre se converte em rebeldia juvenil e ânsia por liberdade da classe média.
No ano de 1973, o Jornal do Brasil explicitava a psicologização do tatuado, intimamente
ligada à transformação do público:

e na middle-class tattoo dois universos distintos da tatuagem estadunidense, que obedecem a dinâmicas, lógicas e
valorações próprias sobre a tatuagem, o tatuador e o tatuado.
700
BARACUHY, R.; GODOI, E. Da marginalização ao glamour, p. 215.
701
Noções reforçadas inclusive por tatuadores legitimados e tatuados de classe média, como evidente na fala de
Alemão e Carlinhos.
702
SOUZA, F. A infame arte da tatuagem.
257
Estudos feitos por especialistas no comportamento humano classificam a
tatuagem, em nossos tempos, como resultado de algum distúrbio psicológico
(vontade de chamar atenção, afirmação de personalidade) ou de entusiasmo
juvenil que, mais tarde, envergonhavam seu portador. [...] Outro dado novo é
fornecido pelas mulheres que, pelo menos em Nova Iorque, segundo o
depoimento de Peter Poulos, fazem a maioria absoluta dos frequentadores de
seu atelier de tatuagem. [....]. “Mulheres da maior seriedade – afirma o
tatuador – que decoram pernas, costas e as vezes seios”. Na França, o mesmo
fenômeno é observado envolvendo sobretudo homens, cujas roupas, hábitos e
comportamentos não deixam dúvidas sobre sua classificação social pequeno-
burguesa ou classe média. [...] M. Bruno, que tatua entre as 20 horas e o
amanhecer, diz o que está acontecendo em Paris em 1973: “Inscrevo palavras
no peito – lado esquerdo, é claro – dos homens, dedicadas às suas mães.
Depois vêm os apaixonados: jovens casais de bonitos bairros, intelectuais,
sonhadores, burgueses evoluídos que se vestem como todo mundo e não dizem
palavrão. Em geral são exibicionistas e só eles podem compreender o
significado dos símbolos escolhidos. Escolhem lugares não visíveis, inclusive
a planta dos pés.” Para o psicanalista é relativamente simples: o tatuado é, um
pouco mais que os outros, alguém impressionado com a rapidez do tempo.
Quer fixar seu amor, sua revolta, sua tristeza ou a inevitabilidade de seu
destino num material que dura tanto quanto ele e que a ele fica
indissoluvelmente ligado. 703

É perceptível que o entusiasmo juvenil, a afirmação de personalidade e a relação


filosófica entre o sujeito e o tempo, venham associados a um novo grupo de tatuados: “mulheres
da maior seriedade”, “homens pequeno-burgueses ou de classe média”, e casais de “jovens
intelectuais bonitos”. Essa associação é persiste em outra reportagem, produzida na década
seguinte.
Em 1983, o psicólogo Paulo Roberto de Carvalho era convidado do jornal Última Hora
para “traçar o perfil de adolescentes e adultos que procuram os leões-marinhos, as borboletas e
as sereias”. O próprio Paulo era tatuado. Na reportagem, de modo distinto das referências feitas
à Marocas, Febrônio, Guilechini, Orlando e outros sujeitos que estamparam os jornais na
primeira metade do século XX, a tatuagem se apresentava como “uma trip diferente”, cujos
símbolos “enfeitam definitivamente braços, costas, seios, bundinhas e coxas dos gatões e das
gatinhas”. Apresentando a tatuagem como “estado de espírito”, a reportagem, avalizada pelo
psicólogo, afirmava que “o esvaziamento da conotação marginal que durante anos marcou os
tatuados – marinheiros, estivadores e boêmios – aliado às nova técnicas empregadas, que
garantem a beleza do trabalho e a saúde de quem se submete, são as principais causas da difusão
da nova mania”.704

703
As muitas impressões da tatuagem. Revista de Domingo. JORNAL DO BRASIL, 20 de maio de 1973.
704
BRASIL, L. Tatuagem. UH REVISTA. 03 de março de 1983, grifo nosso.
258
Evidentemente, o citado esvaziamento da conotação marginal não significa o ocaso da
tatuagem da entre os detentos, visto que é prática comum até os dias atuais e parte importante
da cultura carcerária.705 Pelo contrário, a tal conotação marginal parece se referir à classe de
seus usuários: trabalhadores pobres como estivadores e marinheiros. Estes grupos não deixam
de ser percebidos como marginais pelo ingresso de suas práticas corporais na classe média. Pelo
contrário, o que ocorrerá será o refinamento das estratégias de controle, estigmatização e
distinção.
No que tange à classe média, o discurso sobre o tatuado se desloca então para o
individualismo, para as ilusões de liberdade juvenil:

Tal como uma pintura do corpo e outros tipos de adorno, a tatuagem tem um
componente narcisista que é a característica mais marcante da adolescência.
O jovem quer ter a ilusão de que é diferente. Aí, a tatuagem funciona tal como
a maconha, o rock, a moda punk, ou seja, ela vai caracterizar a pessoa como
membro de um grupo. [...] O jovem tem noção da irreversibilidade da marca
que está fazendo, mas não aprofunda muito essa questão: “ele é imediatista.
Vive o aqui e o agora sem se preocupar com valores futuros”. O número de
adolescentes que usa a tatuagem como forma de agredir os pais parece ser
cada vez menor. Pelo menos a maioria dos jovens que passa pelos consultórios
psiquiátricos não é tatuada. A prova de que é modismo mesmo é que não
apenas os jovens, mas também as pessoas mais velhas – “como eu próprio” –
afirma o psicólogo, estão se tatuando [...] A psicologia não consegue apontar
nenhuma novidade na escolha da figura escolhida para a tatuagem. Tal como
todos os símbolos sociais, as pessoas determinam o que é masculino e
feminino: “Mas uma coisa é certa – diz Paulo Roberto – a pessoa sempre se
projeta na sua tatuagem. A flor pode ser o símbolo de uma menina sonhadora
e boba como a borboleta representa a ânsia da liberdade. Animais selvagens
são indicação de temperamentos fortes ou demonstração de força e
virilidade”. 706

A narrativa de Paulo Roberto explicita a associação entre tatuagem e juventude ao


mesmo tempo em que afirma que adultos de classe média passam também a se tatuar. Em sua
perspectiva psicologizante, Paulo faz piada com sua própria condição, afirmando que “os coroas
que se tatuam deve estar inconscientemente buscando um pouquinho de juventude”. 707
Paulo Roberto segue (des)conectando tatuagem e erotismo ou tatuagem e uso de drogas
ilícitas, além de impor uma leitura psicanalítica da tatuagem, na qual ele afirma que os pais
deveriam estar mais preocupados com a criação de laços de afetividade com seus filhos do que

705
PAREDES, C. A influência e o significado das tatuagens nos presos no interior das penitenciárias.
706
BRASIL, L. Tatuagem. UH REVISTA. 03 de março de 1983, grifo nosso.
707
BRASIL, L. Tatuagem. UH REVISTA. 03 de março de 1983.
259
com o que chama de “novidades que eles tentam lhes impor”. Em tom biográfico, o que confere
à sua narrativa um duplo impacto, de ordem profissional e experiencial, Paulo afirma:

Quando eu apareci tatuado, as pessoas faziam uma cara espantadíssima.


Aquela famosa cara que a mãe faz quando descobre que a filha está grávida
ou quando dá um flagrante de maconha. Pois bem, as pessoas me olhavam
penalizadas, até que eu dizia para elas: não é tatuagem, é uma pintura chinesa
que sai com água e sabão. Elas respiravam aliviadas e começavam a curtir o
desenho. Achavam lindíssimo. 708

O enunciado de Paulo aponta para uma significação bastante distinta daquela produzida
durante a primeira metade do século XX. Se a perspectiva lombrosiana moldou os discursos
daquele período, doravante era preciso relativizar a rebeldia juvenil e construir sobre ela uma
noção de transitoriedade. Ao invés de demarcar com clareza o atraso moral das classes pobres,
a tatuagem da classe média revelava um “componente narcisista que é a característica mais
marcante da adolescência” e resultava da ilusão juvenil da individualidade. 709
Tão ou mais importante do que o que se enuncia, nesse caso, é quem enuncia. A
incorporação de indivíduos tatuados nas redes de produção de regimes de verdade interfere na
elaboração do discurso. Quando sujeitos dotados de elementos estigmatizantes, como o tatuado
Roberto, passam a ocupar posições privilegiadas na produção dos discursos, gradativamente
atuam em sua reorganização discursiva, contribuindo para o deslocamento dos significados
sociais destes elementos.
Como apontado pela reportagem, crescia o número de sujeitos tatuados cuja ocupação
profissional os legitimava socialmente. Neste sentido, o crescente número de médicos,
professores e psicólogos que se tatuavam 710 impôs uma reavaliação da tatuagem e do sujeito
tatuado, produzida no interior das instâncias de saber-poder, reorientando os discursos na
direção do abrandamento do potencial estigmatizante da tatuagem.
Mesmo com relação à família, o potencial de ruptura da tatuagem parece gradativamente
ter se esvaído, à medida que sua exposição cotidiana erodia seu efeito de choque. O conflito
geracional é apontado pelo tatuador Carlinhos como um motivador da tatuagem entre os jovens
de classe média:

Geralmente as pessoas da época usavam a tatuagem como uma certa revolta,


contra o sistema ou a própria família. As pessoas que já são um pouco mais

708
BRASIL, L. Tatuagem. UH REVISTA. 03 de março de 1983.
709
BRASIL, L. Tatuagem. UH REVISTA. 03 de março de 1983.
710
BRASIL, L. Tatuagem. UH REVISTA. 03 de março de 1983.
260
independentes, né? Tinha muita família conservadora na época, e as pessoas
que queriam mais liberdade às vezes usavam a tatuagem pra mostrar pra
família: “eu quero ser independente”. Mas também tinha muita gente que fazia
a tatuagem, gostava de tatuagem, mas fazia pra ninguém ver. Nem a própria
família. Porque dizia: “Nossa, se minha família visse, me expulsava de casa”.
Às vezes havia o medo das pessoas de mostrar para a própria família. 711

Do mesmo modo, Polaco afirma que o conflito geracional foi um elemento recorrente
na incorporação da tatuagem pela juventude de classe média:

O preconceito existia. Era geralmente de pais, relacionado aos filhos. Todo


aquele climão de preconceito. Isso você sentia na pele. Mas eu sofrer,
realmente, não. Porque eu sempre fui um cara descolado, sempre soube o que
quis. Eu assumi minha posição desde o início e foi essa minha intenção: bater
de frente com a sociedade. Eu tinha aquilo como meu trabalho e acreditava
nele, não me importava o que as pessoas achavam. Aliás, tatuagem é isso:
você assumir aquilo que você quer. 712

É notável como ambos destacam o potencial de autonomia presente no ato de se tatuar.


Com relação à família, as restrições à tatuagem parecem ter se ancorado nas disputas por essa
autonomia e nos conflitos geracionais. Tatuar-se, pode ter significado uma agressão à ordem
predominante também no ambiente familiar, na qual o sujeito mais velho e economicamente
estabelecido exerce o controle sobre o mais jovem, restringindo suas alternativas estéticas,
religiosas, amorosas ou profissionais, o que parece ser tanto mais efetivo quanto o desejo de
conservação ou ascensão da posição sociocultural daquele núcleo. Neste sentido, as táticas de
restrição imporiam limites à autonomia juvenil e buscariam sua conformação ao habitus de
classe média, que procura negar as práticas culturais das camadas pobres enquanto mimetiza
aquelas das classes economicamente superiores.
A tatuagem removível figurou como possibilidade de estreitamento da relação entre a
tatuagem e a classe média. Chamada de tatuagem do verão, em alusão a uma prática passageira,
a tatuagem temporária era apresentada pelo Jornal do Brasil em 1987 como um “complemento
da personalidade das pessoas livres de preconceitos”, além de ser uma forma de “se acostumar
e testar a reação dos pais”, se referindo à prática por parte da juventude:

A estudante Andréa Falcão, de 16 anos, foi uma das primeiras a querer


experimentar a tatuagem de verão. Segundo ela, seu desejo era ter uma
tatuagem definitiva, bem grande, mas nunca teve coragem. Por isso contratou
os serviços de Bob para ver se consegue se acostumar e também testar a

711
ENTREVISTA: Antônio Carlos Ferrari – Carlinhos. São Paulo: 2017.
712
ENTREVISTA: Élcio Sorrentino Sespede – Polaco. São Paulo: 2017.
261
reação de seus pais. O próprio Bob acha que todo mundo que está inseguro
em se deixar tatuar deveria fazer primeiro uma dessas tatuagens
temporárias. 713

A noção de familiaridade entre a classe média e a tatuagem que, gradativamente,


passava a adentrar – mesmo que a contragosto – seu universo doméstico é um elemento
fundamental da compreensão de sua ressignificação, e a psicologização da prática no interior
deste grupo foi uma condição imprescindível à restruturação de seu significado.
Se a cooptação mercadológica da tatuagem, sua sanitização e artificação foram
elementos fundamentais da distinção estética da prática, a psicologização do tatuado de classe
média e sua incorporação profissional são os principais elementos de sua distinção ética.
Quando refiro à incorporação profissional, trato de um processo que vai muito além do
conseguir um emprego. O que considero incorporação profissional é o fato de estes sujeitos
ocuparem posições de prestígio na estrutura social. A ocupação destas posições por sujeitos
tatuados é uma condição essencial para a reelaboração discursiva da tatuagem, uma vez que
estes sujeitos passam a exercer posições privilegiadas na produção de significados sobre a
prática. À medida estes tatuados de classe média se convertem em professores, médicos,
psicólogos, empresários, artistas, jornalistas, entre outros, passam a produzir discursos sobre o
corpo tatuado, não mais restritos à objetivação do outro, mas que também consideram sua
própria subjetivação.
Como resultado, a construção doravante que se faz da tatuagem, elaborando um discurso
que a distancia da criminalidade, da ociosidade e do atraso moral, interfere na percepção que
os tatuados elaboram sobre si. Gradativamente, estes sujeitos se tornam legítimos por ocuparem
posições de prestígio, e ocupam posições de prestígio por se perceberem e serem percebidos
como legítimos. Assim, ressignifica-se a tatuagem, o tatuador e o tatuado em um processo
imbricado de retroalimentação.
Conforme Vítor Sérgio Ferreira, o que ele chama de renascimento da tatuagem tem
produzido a emergência de uma luta simbólica pela dignificação e legitimação da prática.
Ferreira corrobora a percepção de um processo interrelacionado no qual “indivíduos oriundos
de uma posição socioeconômica mais elevada que os tradicionais clientes, dispondo de maior
prestígio social, de uma mais elevada capacidade financeira” 714 contribuem para a qualificação

713
REIS, A. Rio tem agora tatuagem que dura apenas 20 dias. JORNAL DO BRASIL, 06 de fevereiro de 1987.
714
FERREIRA, V. Ofícios de marcar o corpo, p. 95.
262
da tatuagem como uma prática cultural legítima da classe média, ao passo que os tatuadores,
oriundos também de novos grupos sociais, por vezes formados no campo artístico, elevam o
grau de exigência estética da prática. A exemplo do que aponta Ferreira sobre a tatuagem
portuguesa, o tatuador brasileiro também se distancia gradativamente da imagem a qual foi
tradicionalmente associado:

Se, anteriormente, a prática de tatuar se via sobretudo dispensada por sujeitos


sem qualquer tipo de socialização escolar e/ou vocação artística, hoje em dia,
entre a mais nova geração de tatuadores portugueses, tem sido encarada como
uma possibilidade concreta nos horizontes laborais de muitos jovens com
trajetórias escolares de sucesso, nomeadamente com formação superior em
escolas de Belas Artes. 715

No Brasil, esse itinerário formativo é percebido em tatuadores como Marcos e Jorge


Davies. Os Davies são apresentados em 1985 pelo Jornal do Brasil como parte desses sujeitos
oriundos de grupos distintos daqueles que tradicionalmente deram origem aos tatuadores:

Ex-artista plástico, Jorge conta que passou a se interessar por tatuagens


quando percebeu que o nosso mercado de arte era decepcionante. E, de tanto
receber informações sobre tatuagens, decidiu aprender a tatuar. E não parou
mais. – Aprendi com outro tatuador, pois não existem cursos sobre isto no
Brasil. E quando passei a tatuar pessoas descobri que, embora muitas pessoas
se interessassem pela beleza dos desenhos, grande número delas nos
procurava para retocar operações nos lábios ou seios. Umas queriam igualar
as cicatrizes ao tom da pele. Outras, somente disfarçá-las. 716

Estes tatuadores, ao lutarem pela dignificação de sua atividade, acabaram por contribuir
também com a formação de um campo profissional que mais tarde atrairia jovens de formação
diversa. Ao realizar convenções de tatuagem, encontros de tatuadores e eventos similares,
construíram um campo que, simultaneamente, excluía os outsiders pela inadequação e
delimitava as normas sanitárias, éticas e estéticas da profissão. O Rio Tattoo Show, realizado
em 1987 no Bar Let It Be foi um desses eventos. Reunindo tatuadores como Boris, Caio, Tyés,
Russo, Ana Velho, Carlinhos e os irmãos Davies, um dos objetivos do evento era fomentar a
criação da Associação de Tatuadores do Rio de Janeiro.717
A atuação profissional dos tatuados de classe média não se restringiu à função de
tatuadores, nem à ocupação de postos de desprestígio social e econômico, como ocorrera na

715
FERREIRA, V. De ofício de periferia a arte periférica, p. 160.
716
LABORIAU, M. Tatuagens: o modismo esconde velhas cicatrizes. JORNAL DO BRASIL, 18 de janeiro de 1985.
717
Alô Tatuagem. JORNAL DO BRASIL, 26 de abril de 1987.
263
primeira metade do século XX. Especialmente a partir da década de 1970, o mercado de
trabalho se abre para a juventude, proporcionando a incorporação destes jovens à esfera do
consumo. Como aponta Marcos Napolitano:

[...] para a grande maioria dos jovens brasileiros de classe média, e mesmo
alguns das classes populares, o início dos anos 1970 representou a abertura de
um grande mercado de trabalho, com novas possibilidades de consumo (por
exemplo, a compra do automóvel, uma marca da juventude alienada). Longe
das alternativas radicais de recusa ao sistema, politizada ou desbundada, o
jovem brasileiro “médio” queria apenas comprar o seu Corcel 73 e tentar
aproveitar o milagre, conforme a crítica de Raul Seixas. 718

Paulatinamente, os jovens tatuados passam também a ser incorporados ao mercado de


trabalho, contribuindo para a ressignificação da tatuagem, uma vez que sua rebeldia juvenil
cede lugar às responsabilidades da vida adulta e aos desejos de consumo.
Essa incorporação se dará também em posições de prestígio nas redes de produção
discursiva. Tema recorrente no discurso dos tatuadores, o fato de médicos, militares, advogados
e professores se tatuarem é percebido por eles como um importante recurso de legitimação da
prática. O tatuador Carlinhos narra que a adoção da tatuagem entre os médicos, por exemplo,
foi um fator preponderante na reconstrução de seu significado:

Médico não fazia tatuagem. Médico começou a fazer só depois de quase 20


anos que eu comecei a tatuar. Aí, quando o médico veio fazer, ele fez no
quadril, sob a cueca, pra esconder. Para que quando ele estivesse no vestiário
nenhum outro médico visse a tatuagem. Porque a medicina era a área mais
preconceituosa de todas as atividades. Então, quem fazia, fazia super
escondido. Para você ver: pessoas que tinham um preconceito com a tatuagem
já cederam completamente. Já não analisam mais a pessoa pela tatuagem. Já
estão analisando a pessoa como profissional, independentemente de ter uma
tatuagem ou não. 719

No ano de 1986, o Jornal do Brasil apresentou uma reportagem que evidencia a


incorporação da juventude ao mercado de trabalho. Intitulada Os Garotos da Bolsa, a
reportagem romantizava a trajetória de jovens como Walter Corcione, que abandonou as
aventuras como surfista para se tornar operador na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro.

É um trabalho literalmente estonteante. Diariamente, durante duas horas e


meia, cerca de 600 homens gritam e se empurram por amor ao dinheiro – o
próprio e o alheio. O pregão da Bolsa de Valores é uma espécie de vício a que

718
NAPOLITANO, M. Cultura brasileira, p. 84.
719
ENTREVISTA: Antônio Carlos Ferrari – Carlinhos. São Paulo: 2017.
264
se tem entregue um número cada vez maior de jovens com menos de 30 anos.
Alguns descem parafinados numa onda na Zona Sul e vão cair em plena Praça
15, já amarrados num terno e gravata. Outros começam como office-boys em
corretoras de valores e um dia recebem a “aquela chance” na vida. A maioria
consegue o cargo na base do pistolão porque é grande a demanda. [...] Neste
mundo fechado, visto de fora como uma fábrica de fazer malucos ricos, eles
criam uma sólida cumplicidade. “É um tipo de família, todo mundo se
conhece”, conta Walter Francesco Corcione, 24 anos, da Aplicap, que
adentrou esse universo aos 17 anos com uma tatuagem no braço e o peito
aberto. “Saí da loucura de ser surfista para outro tipo de loucura”. 720

Os chamados Garotos da Bolsa, descritos como surfistas parafinados, alguns tatuados,


como Walter, representam a conformação desses grupos juvenis à vida adulta e ao sistema que
por vezes procuraram confrontar ética e esteticamente, indicando não apenas o poder de
conformação das estruturas sociais, mas ainda mais, o potencial de domesticação e
mercantilização das identidades e manifestações dissidentes por parte desse mesmo sistema e
suas estruturas.
Também em empregos subvalorizados, como o setor comerciário, os tatuados passam a
ocupar suas posições com maior frequência. Como aponta Carlinhos acerca de determinadas
redes de varejo, por vezes a imagem despojada do jovem tatuado é valorizada e constitui um
atrativo para a marca, pois sinaliza uma aproximação com o público com o qual pretende
dialogar:

Hoje ainda existe um certo preconceito em algumas firmas grandes. Mas a


maioria das empresas estão quase ao contrário. Às vezes, como em uma C&A
da vida, você entra e não vê um funcionário sem tattoo. Até parece que tem
que ter tatuagem pra poder trabalhar! Agora virou ao contrário. 721

A incorporação profissional dos jovens de classe média contribui para o deslocamento


discursivo sobre a tatuagem que faz surgir uma distinção entre as tatuagens legítimas e as
ilegítimas. Neste sentido, ao invés de representar o abrandamento subversivo do ato de se tatuar
ou a legitimação irrestrita do sujeito tatuado, demarca novos elementos distintivos capazes de
conformar as identidades produzidas por meio da tatuagem.
Dito de outra maneira, a adesão da classe média não ressignifica pacificamente a
tatuagem. Antes, obriga o refinamento discursivo na direção de um sistema simbólico que opere
uma distinção mais precisa entre os sujeitos considerados legítimos e ilegítimos.

720
Os garotos da Bolsa. JORNAL DO BRASIL, 08 de junho de 1986.
721
ENTREVISTA: Antônio Carlos Ferrari – Carlinhos. São Paulo: 2017.
265
5.3 – CONFORMAÇÃO: ESTRATÉGIAS DE REFINAMENTO DISCURSIVO-
COERCITIVO
O refinamento discursivo a que me refiro resulta do colapso sígnico vivenciado pela
tatuagem a partir da década de 1960. Se até ali ela funcionou eficientemente na confirmação de
uma identidade marginal – vale lembrar, a expressão classes perigosas evidencia uma
estigmatização de classe, que tinha mais a ver com o lugar social dos sujeitos do que com a
criminalidade – a partir daí, a adoção da prática por parte da juventude de classe média produz
uma incoerência entre o que se pretendia que o signo confirmasse: um sujeito marginal(izado);
e o que ele de fato revelava: um indivíduo pertencente aos estratos socialmente legitimados.
Este colapso impulsionou a reordenação discursiva sobre a tatuagem. Contudo, longe
de resultar em sua legitimação irrestrita, o que se percebe a partir da década de 1960 é um
investimento no refinamento do discurso sobre a prática. Dito de maneira simples: se antes a
tatuagem per se era elemento suficiente para a estigmatização do tatuado, a partir dali, teve de
se associar a outros filtros que distinguiram o sujeito legítimo do ilegítimo. Filtros éticos e
estéticos, ligados tanto ao lugar social, etnia e classe do sujeito tatuado quanto associados a
determinados padrões formais e regulações sanitárias em sua produção, que uma tatuagem
precisou ter para ser considerada artística e se distinguir da tatuagem de cadeia.
Para tanto, novas estratégias discursivas colocaram em ação aquilo que denomino
sintonia fina do poder ou refinamento coercitivo: uma mudança nas regras do jogo de
legitimação de determinada prática social, notável tanto na permanência do potencial de
estigmatização de determinados praticantes quanto no investimento da distinção de outros
sujeitos no interior de um mesmo grupo, no sentido de manter a ilegitimidade dos primeiros
sem deslegitimar os últimos.
Esse reordenamento discursivo é percebido também por Margot DeMello, ao pesquisar
a tatuagem nos Estados Unidos. Segundo a autora, o discurso típico da mídia tradicional sobre
a tatuagem sublinha o contraste entre as tatuagens de motociclistas, marinheiros e presidiários;
e a de profissionais formados. Ao fazê-lo:

Borra as fronteiras entre marinheiros, motociclistas e membros de gangues,


que usam diferentes tipos de tatuagens, por diferentes motivos. Ao borrar
essas linhas, a mídia cria uma imagem na qual o estereotípico sujeito tatuado

266
pode ser facilmente definido como a ralé 722, e por implicação, facilmente
desconsiderado. 723

Ressaltando esse contraste, DeMello afirma que um artigo típico da grande mídia teria
como sequência questões como “Quem se tatua atualmente?”. Essa narrativa seguiria afirmando
a predominância de carreiras socialmente valorizadas entre os tatuados contemporâneos: “Os
clientes da tatuagem tipicamente nomeados na mídia tradicional incluem um grande número de
médicos, advogados e Ph.D’s. 724
No Brasil, essa transformação de público consumidor se associa às modificações
técnicas e espaciais, como surgimento dos estúdios e a luta pela profissionalização do ofício de
tatuar. O tatuador Alemão ressalta essa reorganização a partir da inserção de novos públicos
consumidores da tatuagem:

Quando se fazia tatuagem lá atrás, eram os mais malucos. Combinavam com


o ateliê. O público que ia também era maluco, não estava nem aí. Do jeito que
estava, estava bom. Mas quando um outro público começou a fazer tatuagem,
o próprio ateliê também teve que mudar. Porque veio a sociedade de um modo
geral: o dentista, o médico...Então teve que ir se adequando pro seu tempo.725

De modo semelhante, ao estudar o surgimento dos estúdios de tatuagem em


Florianópolis/SC, Zeila Costa afirma:

O advento do estúdio marca uma outra concepção de tatuagem. A tatuagem


deixa a “periferia” e busca o “centro” da cidade, os pontos comerciais. A
entrada da tatuagem no mercado é acompanhada de uma nova configuração
no espaço de tatuar, onde a organização e a decoração representam e ao
mesmo tempo contribuem para a construção de novos sentidos para a prática
da tatuagem. 726

Espaços, técnicas e corpos se transformam em imbricada interrelação. A inserção da


tatuagem entre a classe média força uma reordenação discursiva que abranda seu potencial
estigmatizante quando no corpo destes sujeitos. Isso se dá, em partes, pela reivindicação de
legitimação por parte dos indivíduos de classe média. Como afirma DeMello:

722
A autora utiliza o termo low-class trash, que indica, em sentido pejorativo, sujeitos oriundos das classes sociais
baixas.
723
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 99.
724
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 99.
725
ENTREVISTA: Cláudio Mendonça – Alemão. São Paulo: 2016.
726
COSTA, Z. Do porão ao estúdio, p. 24.
267
À medida que a tatuagem penetrou nas classes médias nos anos de 1980, novos
porta-vozes emergiram, incluindo influentes artistas da tatuagem, editores de
revistas de tatuagem e representantes de organizações de tatuagem. Eles
passaram a defini-la no sentido de enfatizar cada vez mais seus novos aspectos
– aspectos mais sofisticados, artísticos e significativos, além do crescente
profissionalismo da nova geração de tatuadores artistas jovens e
majoritariamente de classe média. Simultaneamente, estes porta-vozes
trabalharam para distanciar a tatuagem moderna de sua história ligada às
classes trabalhadoras. [...] Eu concluo que a comunidade da tatuagem de fato
consiste em duas culturas, em dois corpos, marcada principalmente pela classe
e pelo status. 727

Como aponta DeMello, dois grupos são formados, cuja distinção se produz pela classe
e status. Me refiro a estes grupos como tatuados legítimos e ilegítimos. Os primeiros, são
aqueles que, oriundos das classes médias, constroem uma série de estratégias de legitimação de
sua identidade, evidenciando seu distanciamento de significados ligados à marginalidade, além
de reivindicar o caráter artístico de sua prática corporal, doravante resultante de um processo
de criação que conta com técnicas específicas, materiais industrializados e autorizados, além de
procedimentos assépticos que garantem a integridade dos tatuados.
Anteriormente, analisei os enunciados sobre estes tatuados, ditos legítimos: a juventude
de classe média. Constitui-se, como demonstrei, um discurso claudicante, que se esforçou por
produzir uma aura de rebeldia e transgressão sem, contudo, associar os tatuados de classe média
à criminalidade.
Moda, influência de famosos, rebeldia e psicologização do comportamento juvenil
deram o tom do discurso sobre os indivíduos tatuados. Na tentativa de disciplinarização destes
grupos, os enunciados são atenuados e apelam para advertências que oscilam entre a dificuldade
de estabelecimento profissional e o arrependimento estético. Em uma reportagem sobre a
exposição do trabalho de tatuadores cariocas, esses enunciados estão presentes:

Mas há empresas, como os Correios, o Banco do Brasil e também a Polícia


Militar, que não costumam admitir pessoas tatuadas em seus quadros. – É um
preconceito ridículo achar que alguém deve ser sério só porque usa uma
tatuagem em algum lugar do corpo – diz Ana Velho, 28 anos, uma das
tatuadoras que vai expor trabalhos na Aleph (ela tem flores e pássaros
espalhados pelo corpo). [...] – A tatuagem é uma maneira de a pessoa deixar
o corpo como ela gostaria que fosse, uma identificação do corpo com ela
mesma – diz Ana Velho. Foi Ana, por sinal, quem desenhou um peixe nas
costas exuberantes de Rose Di Primo, a maneca mais escultural dos anos 70,
e também uma borboleta na perna de Angela Catrambi, uma das mais belas

727
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 97. Tradução nossa. Grifo nosso.
268
misses do Rio. Pequenas delicadezas é a sua especialidade. – Só gosto de
desenho alto astral. 728

É notável a oscilação entre repressão e estímulo, indicando a tatuagem como uma


barreira profissional e um elemento estético nas mulheres citadas. Enunciados como este não
eram raros no período. Dois anos antes, em 1983, o mesmo jornal alertava sobre o risco do
arrependimento:

Por exemplo, jovens que conseguem emprego em repartições públicas e não


podem mais usar suas tatuagens. Ou mesmo, e muito comum, as mulheres que
gravam as inicias do nome do namorado ou símbolos – geralmente nas
nádegas ou coxas – e que, depois de desfeito o romance, preferem morrer a
continuar com a lembrança na pele. 729

Na mesma matéria, a tatuagem é retratada como um modismo juvenil, produzida na


“tentativa de afirmação pessoal diante do meio”. A reportagem, assinada por Sandra
Bittencourt, alertava para a conotação psicológica do ato de se tatuar. Um médico cirurgião,
especializado em procedimentos estéticos – entre eles a remoção de tatuagens – anunciava os
problemas da tatuagem, especialmente entre os jovens:

Mas, o que muitos desconhecem é que o tatuar-se – fenômeno resultante da


impregnação da pele com pigmentos – traz um problema de conotação
psicológica e orgânica, por seu caráter indelével. Ou seja, uma vez tatuado,
será para sempre. Quem explica é o cirurgião plástico Marcelo Daher. – Uma
vez passada a faixa etária de 15 a 25 anos (época em que a maioria dos jovens
se tatuam), começam a ocorrer mudanças psicossociais. Torna-se assim, muito
flexível o equilíbrio entre o tatuado e sua tatuagem, a qual deixa de ser um
elemento decorativo para ser uma deformidade. 730

Contudo, é inegável que o discurso produzido sobre a juventude tatuada de classe média,
ainda que tenha combinado enunciados de estímulo e restrição, evocando termos como
modismo, embelezamento, sensualidade, rebeldia, comportamento, enunciados produzidos a
partir de um espaço de saber-poder ligado à psicologia, e não mais à medicina legal ou a
antropologia criminal; fez prevalecer sobre estes indivíduos a noção de normalidade e

728
Tatuagem, uma exposição pouco maldita. JORNAL DO BRASIL, 05 de agosto de 1985.
729
BITTENCOURT, S. Tatuagem: não há remédio que apague, a solução é cirúrgica. JORNAL DO BRASIL, 29 e maio de
1983.
730
BITTENCOURT, S. Tatuagem: não há remédio que apague, a solução é cirúrgica. JORNAL DO BRASIL, 29 e maio de
1983.
269
legitimidade, quando muito, de uma transgressão permissível, produzida sob o signo da
inconsequência.
Esse discurso remete à genealogia de um suposto ethos de classe média, que elabora, a
partir da noção de inconsequência juvenil, justificativas para comportamentos ilegítimos,
quando são produzidos no interior da classe média. Não raros são os casos em que adultos de
classe média cometem crimes e, por seu lugar social, são justificados a partir da noção de que
são jovens, ou são só garotos. Por exemplo, mais de uma vez, o atual Presidente da República
se refere a seus filhos, ambos adultos com mais de 35 anos, como garotos, ao procurar justificar
suas ações potencialmente criminosas. 731
É perceptível, portanto, o rearranjo discursivo ao tratar dos tatuados de classe média,
ditos legítimos. A reportagem da revista O Cruzeiro, intitulada Os Tatuados de Ipanema, produz
um discurso que visava legitimar estes sujeitos, utilizando em seus subtítulos expressões como
“a sociedade abre as portas a um hábito antigo”, “Dragões, cobras, estrelas e flores em corpos
dourados do sol”. 732 Ao se referir aos jovens socialmente legitimados, a jornalista Maria Teresa
Delgado salienta, de forma complacente:

Tudo começou na época dourada do “píer” de Ipanema, que era um pedaço


de Europa onde as pessoas chegavam de fora trazendo as novidades e
implantando normas liberais, ensinando a curtir loucuras a que o brasileiro
não estava acostumado. Foi surgindo assim a nova moda, que, de repente,
tomou vulto, mas ainda hoje suscita olhares perplexos daqueles refratários a
inovações e dos que acham que tatuagem é “coisa de bandido”. Nos povos
civilizados o costume da tatuagem circunscrevia-se a grupos minoritários –
marinheiros, prostitutas e marginais diversos – mas agora ganha força entre
os jovens, sobretudo surfistas. No Rio, a mania está invadindo as praias, nos
corpos queimados de sol. 733

Os corpos queimados do sol – e não como resultado do trabalho, mas do ócio que lhes
permite a exposição diuturna nas praias – precisam ser legitimados e distinguidos dos grupos
minoritários citados pela reportagem. Para tanto, além do texto, a reportagem investe em uma
ampla exposição fotográfica, traço característico das matérias da O Cruzeiro. Nelas, corpos

731
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/ja-adverti-o-garoto-diz-bolsonaro-sobre-filho-
ter-falado-em-fechar-stf.shtml. Acesso em: 15 de jan. 2021. Disponível em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/01/24/interna_politica,732546/pressao-sobre-
flavio-e-para-me-atingir-diz-bolsonaro.shtml. Acesso em 15 de jan. 2021.
732
DELGADO, M. Os tatuados de Ipanema. O CRUZEIRO, 24 de novembro de 1978.
733
DELGADO, M. Os tatuados de Ipanema. O CRUZEIRO, 24 de novembro de 1978.
270
juvenis são expostos em poses e legendas que evocam saúde, alto astral, espiritualidade, e
valores socialmente legitimados, como força e luta.
Imagem 35: Revista O Cruzeiro retrata tatuagens de jovens cariocas

Fonte: O Cruzeiro, 24 de setembro de 1978.

271
Imagem 36: Casal de jovens tatuados na revista O Cruzeiro

Fonte: O Cruzeiro, 24 de setembro de 1978.

Por sua vez, os tatuados ilegítimos serão aqueles que, não dispondo do capital
econômico necessário para se tatuar segundo as convenções estéticas e sanitárias estabelecidas,
oriundos das classes pobres e escrutinados pela soma de elementos distintivos considerados
típicos destes grupos – sejam étnicos, de linguagem, gestos, vestimenta etc. – terão suas
tatuagens consideradas ilegítimas, comumente sintetizadas pelo epíteto: tatuagem de cadeia.
Sejam elas feitas no interior do sistema prisional ou não. Sobre eles, o discurso estigmatizante
permanece.
Se era impensável associar a tatuagem da juventude dourada à criminalidade, o mesmo
não se poderia dizer das classes pobres. A mesma reportagem que enaltecia os corpos juvenis
dourados sob o sol em Ipanema, reproduzia o discurso típico da primeira metade do século,

272
quando o tema eram os tatuados ilegítimos. Ao produzir um retrospecto da tatuagem nos países
ditos civilizados, a noção de inferioridade moral das classes pobres permanece atrelada ao
discurso sobre a tatuagem:

Já nos contextos civilizados, apenas classes inferiores adotavam esse uso,


com acentuado sentido supersticioso. Negros brasileiros, por exemplo,
usavam a tatuagem para evitar “mau-olhado”, acusando-se atrás das figuras
“poderosas” de Xangô, Ogum, etc. Entre marinheiros, segundo o sociólogo
Francisco Vale, a proteção da tatuagem é solicitada através da solidão das
longas viagens, ou pelo isolamento nas prisões em países estranhos e
distantes. Alguns tatuam-se para encher o tempo, outros motivados por
privação de objeto: - fazem substituição de suas carências pela tatuagem que,
de forma simbólica, lhes restitui a posse da pessoa ou da coisa que não têm
no momento. O costume é, por tais motivos, muito disseminado entre
criminosos e sentenciados, mas, desses, muitos cautelosamente o evitam,
suprimindo assim um elemento de futura identificação; pois as tatuagens
frequentemente mostram a psicologia dos seus portadores. Esses desenhos
são muito significantes, também, para a Medicina Legal, pelos dados
precisos que encerram quanto a hábitos de vida e à profissão da pessoa. 734

Assim, na grande imprensa brasileira aglutinam-se indistintamente negros, marinheiros


e presidiários no mesmo sentido em que a imprensa estadunidense borrava as fronteiras entre
motociclistas, marinheiros e membros de gangues, objetivando produzir sobre eles uma
identidade deslegitimada, como afirma Margot DeMello.735
Tal fenômeno não se restringiu à grande imprensa. As revistas de tatuagem também
investiram na diferenciação entre as tatuagens ilegítimas e as legítimas. Como afirma DeMello,
“a função das revistas de tatuagem de elite é clara: definir e legitimar as diferenças entre a
tatuagem contemporânea, de classe média, versus a tatuagem da classe trabalhadora”. 736
No Brasil, é notável o investimento das revistas especializadas na legitimação social da
tatuagem. Esta legitimação, contudo, recorre à mesma estratégia discursiva apontadas por
DeMello: a distinção entre a tatuagem profissional e artística; e a tatuagem de rua ou de cadeia,
dois termos quase tratados como sinônimos.
O editorial da edição de 1996 da revista MetalHead Tattoo ressaltava a persistência do
preconceito contra a tatuagem no país e atribuía aos tatuadores sua parcela de “contribuição
para que o preconceito seja posto abaixo”. O alvo das críticas eram os tatuadores ambulantes,

734
DELGADO, M. Os tatuados de Ipanema. O CRUZEIRO, 24 de novembro de 1978.
735
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 99.
736
De Mello utiliza os termos middle-class e working-class tattoo. DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 103.
273
que não dispondo do capital para a abertura de um estúdio, tatuavam nas ruas, “sujando ainda
mais o nome tatuador”.737 Buscando a adequação que legitimaria a tatuagem, a revista afirma:

A tatuagem deve ser feita em um lugar fechado, com todos os equipamentos


necessários para a higiene, tanto do profissional que está trabalhando quanto
do cliente, que vai ter um desenho pra sempre em sua pele. Portanto, se um
dia você encontrar um tatuador trabalhando na rua, explique para ele que desta
maneira ele não está agindo de forma correta, além de estar possibilitando que
as pessoas falem mal de uma profissão. 738

Durante minha pesquisa de mestrado, realizei entrevistas com tatuadores e tatuados de


cidades como Três Lagoas/MS, São Paulo/SP e Rio de Janeiro/RJ, com a finalidade de produzir
fontes que me permitissem elaborar hipóteses, delimitar problemáticas de pesquisa e
compreender as questões que envolvem a profissionalização do ofício de tatuar. Entre os
tatuadores entrevistados, pude notar a permanência do esforço dos autodenominados tatuadores
profissionais na distinção entre sua prática, que resultaria em tatuagens legítimas; e a prática de
outros tatuadores, considerados ilegítimos pelos insiders. O tatuador Douglas Coelho, o
Gnomo, afirma acerca do preconceito que envolve a tatuagem:

Uma coisa que me ajudou a não sofrer preconceito é muito o meu jeito de ser
e de me vestir, não só da tatuagem. O que eu vejo as pessoas falando sobre
preconceito, geralmente são aqueles bairreiros, vestindo-se igual a um
corintiano, daqueles de torcida, como um gangueiro, que tem as tatuagens
mais feias do mundo. Então no meu ponto de vista, sempre fui uma pessoa
que se vestiu bem, tenho uma educação, não falo tanta gíria assim no meio de
uma conversa, então o pessoal vê em mim assim “ah, beleza, esse é um cara
instruído”. Geralmente essas pessoas que reclamam são as que se vestem mais
como um gangueiro, não se portam bem, não conseguem falar bem. Hoje você
vai a um estúdio sujo, bagunçado, com tinta na parede, biqueira jogada em
tudo quanto é lugar, maquina suja, o cara vestido igual um gangueiro lá, o
tatuador. Provavelmente se é uma pessoa de uma classe C, B e A, ele já não
volta no estúdio. Hoje ele quer ser atendido por um cara legal, um cara que
fala bem, um cara bem arrumado, um cara bonitinho, com o estúdio bonitinho,
limpinho, cheirosinho. 739

A mesma percepção sobre a legitimação do tatuador é reafirmada ao tratar do indivíduo


tatuado. Novamente, Gnomo ressalta a importância de outros atributos socialmente legítimos,
para além da tatuagem, como elementos de reafirmação ou destituição do potencial
estigmatizante da tatuagem:

737
Editorial. METALHEAD TATTOO, Ano I, nº 4, p.3.
738
Editorial. METALHEAD TATTOO, Ano I, nº 4, p.3.
739
ENTREVISTA: Douglas Viana – Gnomo. Três Lagoas, 2016.
274
Eu comecei a ver isso porque eu converso com muitos clientes e geralmente
são esses que reclamam “ah, mas esse negócio de emprego, não sei o que lá”.
E os demais que eu conheço têm umas tatuagens melhores, mais bem
acabadas, que se vestem bem, conversam bem, ou são gerentes de alguns
lugares assim, eles não reclamam disso. Então acho que vem muito da origem
da pessoa, do que ela consegue passar profissionalmente. 740

Focado no atendimento a um público B e C, Gnomo atesta o constante crescimento do


público universitário entre a clientela do estúdio. O tatuador afirma atender a clientes de maior
poder aquisitivo, hierarquizando os cursos universitários de seus clientes principais, além de
destacar o papel das metrópoles e da industrialização das cidades do interior na disseminação e
ressignificação da tatuagem:

Tem bastante estudante de Direito, Medicina tem um pessoal agora que está
vindo fazer tatuagem, de Arquitetura. De forma geral, o pessoal que tem o
curso de nível maior. História e Geografia não procuram, têm poder aquisitivo
baixo. Hoje conheço bastante promotores e juízes que são tatuados. Acho que
eles não julgariam o cara por ter uma tatuagem também, que a maioria também
tem hoje em dia. Eu que frequentava muito curso em São Paulo. Em São
Paulo eu acho que basicamente já não existe preconceito. É uma cidade
grande, vem a mil anos na frente de qualquer cidade do interior, questão de
desenvolvimento, até da mente das pessoas. E as cidades do interior estão
chegando a isso. Ainda mais da nossa região, que veio muita gente de fora.
Então essas pessoas convivem com tatuados, podem até não ser tatuados, mas
convivem com o diferente há muito mais tempo que nós. 741

Novamente, se destaca na fala de Gnomo o elemento econômico como principal


característica distintiva entre os tatuados legítimos e ilegítimos. A mesma narrativa cambiante
e divisória aparece implícita na fala do advogado Carlos Hetch, entrevistado por mim no ano
de 2015, durante minha graduação em História na Universidade Federal do Mato Groso do Sul,
em Três Lagoas. A narrativa de Carlos ajuda a compreender não apenas a incorporação da
tatuagem por sujeitos de classe média, estabelecidos em profissões prestigiosas, como os
profissionais liberais, mas também evidencia a construção da distinção entre tatuagens
legítimas e ilegítimas e, por conseguinte, entre tatuados legítimos e ilegítimos.
Carlos inicia seu discurso afirmando não haver preconceito contra a tatuagem no interior
das profissões ligadas ao sistema jurídico. Segundo ele, não há impedimentos legais que
impeçam a atuação profissional de um advogado tatuado, nem mesmo relatos conhecidos de

740
ENTREVISTA: Douglas Viana – Gnomo. Três Lagoas, 2016.
741
ENTREVISTA: Douglas Viana – Gnomo. Três Lagoas, 2016.
275
advogados vítimas de preconceito no exercício da profissão, com exceção da contratação pelos
clientes:

Neste tempo em que estamos na OAB, com quase 530 advogados, não vimos
nenhum caso de reclamação por preconceito, pelo profissional ter vários
brincos, utilizar uma pulseira, um piercing ou tatuagem. O que pode
influenciar um pouco é a questão da contratação pelo seu cliente. O fato de o
cliente já ter esse preconceito. 742

Contudo, ao narrar sua experiência pessoal, Carlos reafirma os valores defendidos no


interior do campo profissional dos tatuadores, que distinguem as tatuagens legítimas das
ilegítimas, destacando sua relutância em se tatuar durante o curso de graduação, concluído no
início dos anos 2000:

Sempre achei bonita a arte da tatuagem, desde que bem feita. Desde que você
perdesse um tempo para estudar a tatuagem que está fazendo, escolher um
desenho, escolher um profissional que tenha qualidade. Eu não fiz antes
porque há 15 anos não havia toda [essa qualidade]. Hoje ela não é mal vista e
nem bem vista. Ela está num meio termo, mas está mais pra ser aceita. Hoje
o povo acha que é uma forma de arte mesmo que a pessoa utiliza. Na época
eu não fiz por isso, e por maturidade também. Pensei que influenciaria lá na
frente, pelo fato de o curso de Direito ser um curso mais sério, você trabalha
com coisas urgentes, com a vida da pessoa, com o filho, com o ganho, com a
necessidade de comer da pessoa. Como são coisas muito sérias, como a prisão,
a locomoção, vi que você realmente tinha de ter um caráter muito sério. Não
só com a tatuagem. Na época da faculdade eu usava anel. Quando comecei a
trabalhar eu retirei tudo. Não pela certeza do preconceito, mas para evitar. 743

A única tatuagem de Carlos foi feita em uma região não exposta, o que segundo o
advogado não teve como intuito a ocultação da marca, mas sim uma opção estética:

Eu tenho uma tatuagem. Ela não é escondida. Eu escolhi um local que eu


gostava, mas que por coincidência é escondida, que é nas costas. Quem me
procura não vê, mas também não escondo de forma nenhuma. Já vi pessoas
trocando de advogado porque o achou imaturo, ou porque ele se envolveu em
algum ato, alguma festa, se excedendo no consumo de bebida ou algumas
brincadeiras. Mas não pelo fato de usar brinco ou alguma coisa. 744

Reafirmando os valores distintivos que remetem à classe, Carlos aponta que:

742
ENTREVISTA: Carlos Hetch. Três Lagoas, 2015.
743
ENTREVISTA: Carlos Hetch. Três Lagoas, 2015.
744
ENTREVISTA: Carlos Hetch. Três Lagoas, 2015.
276
As pessoas mais simples elas vão numa tatuagem mais simples, outras querem
uma tatuagem mais bonita. Às vezes o que pode influenciar uma pessoa mais
humilde de não fazer é o fato de não ter juntado dinheiro pra fazer uma bonita,
uma muito mais cara, que vai pagar uma sessão trezentos, trezentos e poucos.
Eu tenho uma amiga que por várias vezes demonstrou esse interesse em fazer,
mas não consegue juntar dinheiro. O fator financeiro a impede, porque ela
quer escolher uma tatuagem bonita e bem feita, que vai sair caro. 745

A classe é um elemento distintivo entre as tatuagens autorizadas e não autorizadas. Sua


ação legitimadora é produzida não apenas pelo alto custo das tatuagens legitimadas, que
seguindo uma lógica de mercado são inflacionadas pela procura, pela exposição midiática e
pela artificação do processo de tatuar, que confere à determinados tatuadores o status de artista
e lhes permite cobrar valores altos por um desenho exclusivo. O tatuador Cristiano Anselmo,
entrevistado em 2015, no mesmo contexto de produção da entrevista de Carlos Hetch, salienta
a relação entre o status do tatuador, sua legitimação e os preços por ele cobrados, o que reflete
diretamente na clientela atendida:

Eu tenho mais cliente entre a classe baixa. Pessoas humildes. Pessoas da classe
média conversam, pechincham pra carai, às vezes acham que o serviço da
gente não é nada. Você viu o trampo que eu fiz agora? Eu fiz uma cobertura.
Essa cobertura no primo meu de Campinas, ele ia cobrar na faixa de mil reais
dela. Eu cobrei o que? Duzentos e oitenta reais dela. Essas meninas, elas são
da classe muito baixa. Se você vê onde elas moram, cara, você pira. Elas tão
no semiaberto, é umas meninas que elas não têm nada. Vende paradinha. 746

Para além disso, elementos estigmatizantes que se associam às classes pobres são
ressaltados e instrumentalizados em conjunto com a tatuagem na afirmação das identidades
marginalizadas e ilegítimas. É o caso de Rosicler, a cliente a quem Cristiano se referia.
Entrevistei Rosicler também em 2015, enquanto ela cumpria pena em regime
semiaberto. Rosicler era cliente de Cristiano “há algum tempo” e, mesmo durante o período em
que cumpriu pena em regime fechado de reclusão, disse não se dispor a realizar tatuagens no
interior da penitenciária, pela precariedade do processo de produção.
Embora suas tatuagens tenham sido produzidas por tatuadores autoproclamados
profissionais, em estúdios de tatuagem legitimados, Rosicler é enfática ao demarcar a diferença
na recepção entre ela e os tatuados legítimos. Perguntada se alguma vez sofreu preconceito pelo
fato de ser tatuada, Rosicler afirma:

745
ENTREVISTA: Carlos Hetch. Três Lagoas, 2015.
746
ENTREVISTA: Cristiano Anselmo. Três Lagoas, 2015.
277
Até hoje me tratam diferente. Eu entro em um lugar e o povo discrimina, acha
que a gente é ladrão, bandido. Tem tanta gente aí que filho de fulano e é
tatuada. Mas em nós, temos que sair tampando. Muita gente da sociedade tem.
Gente que não é igual a nós, vida louca. Porque nós somos vida louca, o
preconceito é maior. Você chega em um lugar para pedir serviço, já é
discriminado, não é recebido daquela forma que, vamos supor, você seria
recebido. Não só por causa da tatuagem, por causa do jeito. Nós somos
diferentes. O povo nos discrimina. Chegamos em um lugar e o povo nos olha
de baixo a cima. Parece que até sabe que nós somos presidiárias. É por causa
da tatuagem também. 747

O efeito de choque de que fala Vítor Sérgio Ferreira é evidente na fala de Rosicler. Se,
como aponta o autor, o potencial disruptivo da tatuagem é potencializado pela distância entre
as gramáticas de produção e recepção da tatuagem 748, defendo que, na tatuagem hodierna,
balizada nas estratégias de refinamento coercitivo que separa legítimos e ilegítimos, essa
gramática produz reivindicações lexicais para além da própria tatuagem, instrumentalizando
elementos identitários outros, capazes de refutar ou reforçar a identidade estigmatizada.
Isso é evidenciado na fala de Rosicler, ao afirmar que a discriminação por ela sofrida
não se deve apenas à tatuagem, mas o que ela chama de seu jeito. A desconfiança explícita no
olhar do outro, cujo primeiro contato lhe faz parecer que “até sabe que nós somos presidiárias”
reafirma aquilo que Goffman nomeia identidade social. Para o autor, a rotina das relações
sociais impõe expectativas normativas a respeito daqueles com quem nos deparamos. Neste
contexto, o contato pressupõe o cumprimento ou a ruptura dessas expectativas produzidas a
priori, que o autor denomina identidade social virtual, pela revelação dos atributos
efetivamente presentes no sujeito, sua identidade social real.749
A introjeção dessa expectativa identitária produzida pelo outro faz Rosicler se perceber
como diferente, resultado do olhar-discurso que se impõe na constância com que ela afirmar
ser olhada de cima à baixo. Essa interrelação entre objetivação e subjetivação é ponto
fundamental no processo de construção do sujeito, como propõe Foucault. O pensamento de
Foucault recusa a existência de um sujeito puro, um ser essencial pré-existente à sua produção.
Pelo contrário, Foucault se dispõe à compreensão do sujeito como produto de relações de poder
e do investimento de saberes. Este sujeito passa a ser constituído a partir de um binômio
normal/anormal, binômio este produzido justamente pelo investimento do saber-poder.

747
ENTREVISTA: Rosicler Ferreira do Carmo. Três Lagoas, 2015, grifo nosso.
748
FERREIRA, V. Política do corpo e política de vida, p. 299.
749
GOFFMAN, E. Estigma, p.12.
278
Essa “política das coerções” 750 ou “tecnologia política do corpo”751 produz um “elo
coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada”. 752 E é justamente na
disciplina, na “anatomia política do detalhe” 753, que percebo o modo pelo qual o sujeito tatuado,
em determinadas condições históricas, produziu a si mesmo – a subjetivação – a partir de uma
ética da dissidência e uma estética da divergência, conceitos traduzidos por Rosicler no termo
vida louca. Contudo, como explicitado na fala da tatuada, o sujeito é também produzido nos
discursos e nas relações de poder. A objetivação produzida pelo olhar e pela fala do outro,
também é parte fundamental da construção da percepção que Rosicler tem de si mesma.
Objetivação e subjetivação são, portanto, processos complementares, como afirma Castanheira:

Por um lado, o sujeito é constituído a partir de imposições que lhe são


exteriores, sendo compreendido como um produto das relações de saber e de
poder; por outro, o sujeito é constituído a partir de relações intersubjetivas em
que há espaço para a manifestação da liberdade que possibilita a criação de si
mesmo como um sujeito livre e autônomo. [...]A objetivação e a subjetivação
são, portanto, processos complementares que se relacionam por meio do que
Foucault resolveu chamar de jogos de verdade. 754

É na articulação entre o exercício da disciplina corporal sobre o corpo tatuado,


objetivando constitui-lo como anormal, e a resistência dos indivíduos à normalização de seu
corpo, que reside a construção do sujeito tatuado. Ou seja, é na disputa entre indivíduo e
sociedade pela posse do corpo que a tatuagem pode ser percebida enquanto manifestação de
uma ética da dissidência e uma estética da divergência, produzindo, como no caso de Rosicler
e tantos outros tatuados – legítimos e ilegítimos – uma autonomia sempre relativa sobre seus
corpos.
Se a tatuagem é, portanto, um elemento potencialmente emancipatório do indivíduo,
ela é simultaneamente mais um dos mecanismos empreendidos no esquadrinhamento dos
sujeitos. Considerar esse efeito gangorra nas relações de poder é fator fundamental no exercício
de compreensão da ressignificação da tatuagem. Se é ilusório que o sujeito constrói a si mesmo
em plena autonomia, incorporando manifestações estéticas e éticas disruptivas à revelia das
instâncias de controle, é igualmente ilusório que essas instâncias possam exercer a dominação
inconteste dos sujeitos.

750
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 135
751
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 30.
752
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 135-136.
753
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p.137.
754
CASTANHEIRA, M. A constituição do sujeito em Foucault, p. 1-2
279
No caso dos sujeitos oriundos das classes pobres, o potencial estigmatizante da tatuagem
permanece, mas precisa ser conjugado a outros elementos classificatórios de uma identidade
marginal, como expresso no que Rosicler chama de seu jeito. Esse refinamento coercitivo,
expresso em uma reordenação discursiva não se restringe à sujeitos em condição de privação
total ou parcial de liberdade. A distinção entre representantes de diferentes gêneros musicais é
outro exemplo.
Constantemente associada ao rock, gênero que conquistou adeptos especialmente entre
a juventude de classe média e teve nela, desde a jovem guarda, seus maiores representantes no
país, a tatuagem dos astros do rock foi constantemente exaltada como símbolo da rebeldia e
excentricidade pela mídia nacional. Quando se associou a gêneros ligados às classes pobres,
como o samba, a história parece ter sido outra. Nelson do Cavaquinho, sambista carioca gravou
uma canção dedicada à Ligia, mulher por quem fora apaixonado:

O meu único fracasso


Está na tatuagem do meu braço
É feliz quem já viveu aflito
E hoje tem a vida sossegada
Muita gente tem um corpo tão bonito
Mas tem a alma toda tatuada 755

A canção gravada por Nelson do Cavaquinho foi composta em parceria com Guilherme
de Brito. A historiadora Silvana Jeha afirma que a razão de Guilherme para o arrependimento
narrado na composição não era a desilusão amorosa, mas sim a constante perseguição policial.

A minha tatuagem eu fiz quando era uma coisa proibida. Você estava numa
roda, a polícia chegava, o sujeito com tatuagem ia em cana. Não tinha
argumento não, “Mas doutor...” “Doutor, uma porra, entra aí!”. Leva uma
porrada e entrava mesmo. Era assim antigamente, eles já chegavam e
levantavam a camisa para procurar tatuagem. Hoje não, moça usa tatuagem
no seio, na bunda, em tudo que é lugar. [...] Eu desenhei esse índio e o cara
que tatuou em mim fez outra no Cachimbo exatamente igual. Só que aí eu
comecei a ver a consequência da coisa. Eu sempre andei com carteira
profissional no bolso com medo da polícia me pegar com tatuagem e me levar
em cana. Então eu comecei a usar manga comprida para esconder a tatuagem,
me habituei tanto que até hoje uso manga comprida. 756

A ocultação da tatuagem é o recurso também empregado pelo músico Jefferson Willian.


O jovem músico, negro, oriundo da classe trabalhadora, narra uma trajetória marcada por uma

755
CAVAQUINHO, N. BRITO, G. Tatuagem, 1972.
756
JEHA, S. Uma história da tatuagem no Brasil, p.193-195.
280
infância itinerante. Jefferson morou com a avó, com o pai, com um tio, e aos dezenove anos de
idade dividiu residência com um tatuador, processo que despertou seu interesse pela tatuagem.

No início, eu sabia que era complicado o pensamento das pessoas, então fiz
uma tatuagem no meio do peito, onde qualquer coisa que você tampa. Depois
eu fiz uma no braço, pequena, mas já com medo. Eu tenho certeza que minha
dificuldade de arrumar emprego depois disso foi por causa das tatuagens,
porque as outras são expostas. Apesar de ser artístico, são todas expostas.
Hoje em dia, apesar de ter mudado o conceito das pessoas, elas ainda associam
muito a tatuagem à criminalidade. A galera está abrindo a cabeça, mas ainda
falta muito para o Brasil começar a ter uma ideologia legal nessa área da
tatuagem. 757

Enquanto os entrevistados de classe média, em sua maioria, afirmavam que o


preconceito contra a tatuagem era página virada na história da prática no país, os indivíduos
ligados às classes pobres manifestam com clareza as permanências do potencial de estigma
presente tatuagem. Como afirma Jefferson, suas tatuagens lhe trazem problemas apesar de
serem artísticas. Ou seja, a exemplo de Rosicler, mesmo carregando tatuagens produzidas em
estúdios modernos, por tatuadores socialmente legitimados, indivíduos como Jefferson são alvo
das estratégias de refinamento coercitivo empregadas pelas instâncias que exercem poder sobre
os corpos, dentre elas o mercado de trabalho.
Tanto Jefferson quanto Rosicler afirmaram a dificuldade de conseguir um emprego pelo
fato de serem tatuados. Na experiência de Jefferson:

O mercado de trabalho ainda é fechado pra tatuagem. Eu fui fazer entrevista,


a primeira coisa que a galera olha é tatuagem. Já tentei esconder, cheguei com
camisa longa e tudo, mas no final das contas, a hora que você vai fazer um
teste, não tem como esconder, acaba aparentando. 758

Rosicler atesta recusa semelhante, agravada por sua condição de apenada: “um dia eu
fui procurar um trampo, quando viram minhas tatuagens falaram: ‘nossa, mas você tem um
monte de tatuagem, você já foi presa?’. Não pude esconder, porque se puxar minha ficha
criminal vai sair. Até hoje não arrumei um serviço”.759
O refinamento coercitivo é percebido ainda na ação policial. Como aponta Paulo do
Carmo acerca do período ditatorial brasileiro:

757
ENTREVISTA: Jefferson Willian. Três Lagoas, 2016.
758
ENTREVISTA: Jefferson Willian. Três Lagoas, 2016.
759
ENTREVISTA: Rosicler Ferreira do Carmo. Três Lagoas, 2015, grifo nosso.
281
[...] eram comuns os atritos entre policiais e jovens (principalmente os mais
pobres, considerados suspeitos até que se provasse o contrário), que passam
por constantes revistas ou por uma “geral”. Aliás, é frequente a população
mais idosa e conservadora afirmar que “tem política de menos” e muitos
jovens sentirem na pele que “tem polícia demais”. 760

A persistência do estigma sobre a tatuagem na abordagem policial é constante na


narrativa dos tatuados entre as décadas de 1960 e 1980. A narrativa do tatuador Carlinhos
evidencia o efeito de refinamento coercitivo a que me refiro, elaborado pelo exercício de um
maior escrutínio do sujeito tatuado, buscando outros elementos capazes de afirmar sua
identidade marginal:

Quando a polícia via minhas tatuagens olhava pra minha cara, olhava pra
tatuagem de novo e dizia: “É, foi feita com máquina, né?”. Eles ficavam
loucos atrás de tatuagem feita à mão. Feita a mão, na época, os caras
tentavam levantar a ficha pra ver se o cara não era um presidiário. Quem
tinha tatuagem feita manualmente tinha problema com a polícia. A polícia
levava mesmo. A gente bateu de frente com o sistema mesmo. Estávamos
saindo da ditadura, era um país com uma polícia violenta. Aos pouquinhos
a gente foi mostrando que tatuagem não é coisa de bandido, não! Tatuagem
é coisa de quem gosta de tatuagem. Tatuagem tem que ser bem-feita. 761

Os pais, outra instância de controle social sobre a juventude, são descritos pelo tatuador
Alemão como preocupados com a possível confusão dos com os sujeitos pertencentes às classes
perigosas:

Por sua vez, a grande maioria dos pais não tinha preconceito com a tatuagem,
mas tinha receio de o filho fazer tatuagem e a polícia pegar e ferrar o filho
dele. Confundir ou fazer de conta, e eliminar o filho. Então muitos pais, com
um grau de cultura melhor, não tinham restrição com a tatuagem em si, mas
tinham medo de o filho ser confundido com vagabundo, e a polícia matar. A
polícia matava fácil naquele tempo. 762

O medo de pais de classe média, que Alemão denomina como possuidores de um


suposto grau de cultura melhor, residia não na tatuagem em si, mas na associação que
permanecia entre a tatuagem e as classes pobres, que como dito por Carmo, eram – e ainda são
– o alvo preferido da ação policial.

760
CARMO, P. Culturas da rebeldia p. 154.
761
ENTREVISTA: Antônio Carlos Ferrari – Carlinhos. São Paulo: 2017.
762
ENTREVISTA: Cláudio Mendonça – Alemão. São Paulo: 2016.
282
De forma mais sutil, a propaganda midiática também investiu na distinção social dos
tatuados. Se a moda destinada aos jovens de classe média incorporou a tatuagem como símbolo
de vitalidade, saúde e juventude, a tatuagem das classes pobres permaneceu como elemento
estigmatizante. Isso é evidenciado em uma matéria que hierarquiza o consumo de marcas de
cigarro conforme a posição social ocupada pelo indivíduo, destacando a tatuagem nos estratos
mais baixos:

Diga-me o cigarro que você fuma e eu te direi quem você é. Hollywood é da


classe média, relacionado com o primeiro amor. Mistura Fina está sempre
na boca de burocratas. Beverly é companhia constante dos rapazes que
jogam sinuca o dia inteiro. [...] Liberty Ovais era cigarro de pobre. Mata-
rato. O embarcadiço virava ao cálice de cachaça, fazia uma cara feia de
prazer, cuspia no chão e acendia um Liberty Ovais. Em meu espírito, essa
marca está associada à lembrança de homens rudes que ao entardecer se
embriagam, e que ostentam no braço uma tatuagem feita em Havana.763

Se a tatuagem em si perde seu potencial transgressor, um rearranjo discursivo é


produzido no sentido de manter determinadas tatuagens, inscritas em determinados sujeitos
sob permanente suspeição. Constantemente entre tatuados e tatuadores, essas tatuagens são
descritas como tatuagens de cadeia. O termo é explicado pelo tatuador Otávio Costa:

A tatuagem de cadeia é a tattoo feita de qualquer forma. Às vezes a tatuagem


é feito com o mínimo: o cara conseguiu uma agulha, uma linha, uma tinta e
furou, fez um desenho na pele de alguém. Mas isso é muito relativo também,
porque tem coisas dessas que eu olho e adoro, acho louco, falo “nossa que
foda essa tattoo” e tem uns que odeiam. A tatuagem mais bonita é relativa,
mas geralmente é assim. O cara olha a tattoo e pergunta: - “onde você fez?” -
“ah, fiz com o cara ali da minha rua”. Sem experiência nenhuma, sem saber
de tattoo.764

Natural da cidade de São Paulo, tatuando na região de Interlagos, Zona Sul da cidade
desde 2000, o tatuador Otávio Costa Braga iniciou sua trajetória artística e profissional no
Grafite765 e migrou em seguida para a tattoo, após ser convidado para executar o trabalho de
grafiteiro em um estúdio de tatuagem. Otávio revela a importância da legitimação de
determinados processos, espaços e técnicas de tatuagem que distinguem uma tatuagem
autorizada de uma tatuagem de cadeia. Disso decorre que, como a tatuagem legitimada tende

763
OLIVEIRA, J. Cigarros. JORNAL DO BRASIL, 15 de agosto de 1962.
764
ENTREVISTA: Otávio Costa Braga. São Paulo: 2017.
765
Estilo de arte urbana surgido nos Estados Unidos na década de 1960 e chegando ao Brasil na década seguinte,
o Grafite se caracteriza por intervenções artísticas de escrita ou pintura em murais urbanos. CANTANHEDE, R.
Grafite/Pichação, p. 7.
283
a ser consideravelmente mais cara, a tatuagem produzida fora dos padrões estéticos de
legitimidade é, via de regra, consumida por sujeitos oriundos das classes pobres,
retroalimentando um sistema excludente que opera a distinção entre sujeitos e tatuagens
legítimos e ilegítimos.

284
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como argumentei na Introdução deste trabalho, ao conectá-lo à minha pesquisa de


mestrado, uma história da ressignificação da tatuagem não deve prescindir da análise de
diferentes deslocamentos, intimamente relacionados. A ressignifição da tatuagem não resulta
unicamente da profissionalização do ofício do tatuador, da institucionalização e sanitização dos
espaços de tatuar ou da adoção da prática por grupos de classe média. Ela resulta da imbricação
destes elementos, correlacionados e interdependentes. As transformações em um destes campos
resultam das/nas transformações dos outros.
Margot DeMello percebe dinâmica semelhante na tatuagem estadunidense. Segundo a
autora, o atual movimento em torno da tatuagem naquele país se aglutina em torno de três
diferentes processos:

Primeiro, a tatuagem tem sido apropriada das classes trabalhadoras, cujos


membros agora se encontram marginalizados no interior do movimento,
criando, assim, duas subcomunidades separadas. Segundo, argumentarei que,
em certo sentido, a tatuagem foi higienizada ou despojada de suas raízes de
classe trabalhadora, a fim de garantir que ela seja adequada para o consumo
da classe média. Terceiro, a tatuagem recebeu um novo conjunto de
significados, derivados principalmente de culturas não ocidentais, dando à
tatuagem um sabor exótico ou primitivo. 766

DeMello afirma ainda que a mudança na base de clientes da tatuagem nos Estados
Unidos, de uma origem quase que exclusivamente entre a classe trabalhadora para a inclusão
de uma grande quantidade de clientes de classe média, revela mudanças demográficas e
estéticas na tatuagem, “de um design padronizado e estereotipado, executado por artesãos, a
uma imagem de arte feita sob medida, executada por artistas profissionalmente treinados”. 767
Se a pós-modernidade se caracteriza pela fragmentação, instabilidade e contradição das
identidades, como é conhecido no debate proposto por Stuart Hall 768, e se nela as instituições
que outrora estabilizavam as relações sociais não são mais capazes de fazê-lo; Zygmunt
Bauman, aponta que há ainda um elemento agregador em torno do qual orbitam as diversas
construções identitárias: o mercado.

766
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 4, grifo nosso. Tradução nossa.
767
DEMELLO, M. Bodies of inscription, p. 4. Tradução nossa.
768
HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, p. 11.
285
Segundo Bauman, antes de nos apressarmos em exaltar a tolerância à diversidade ou
amor à diferença no mundo pós-moderno, devemos nos atentar o fato de que:

[...] no mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente


concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto
por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de ser
seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo
mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir
identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas
sensações e cada vez mais inebriante experiência. 769

E como nem todos podem consumir incessantemente, critério pós-moderno de


normalização sugerido por Bauman, o anormal passa a ser aquele que pela escassez de recursos,
torna-se o consumidor falho. Importa menos a proibição indistinta da tatuagem e mais a
promoção de sua mercantilização, de sua adequação a um rigor estético, sanitário e ético que
delimita quais os corpos podem ou não se tatuar, a partir de uma lógica que precifica as
tatuagens autorizadas como obras de arte e as distingue das tatuagens de cadeia.
Como marca corporal, a tatuagem é constantemente instrumentalizada na disputa entre
indivíduo e sociedade pela construção, afirmação ou subversão das identidades e, no limite,
pela posse do corpo. Por sua vez, o corpo se converte em locus fundamental dessa construção
identitária, elaborada por meio de processos de interdependentes de objetivação e subjetivação.
Interdependentes, pois as percepções que os sujeitos tatuados têm de si mesmos estão
intimamente relacionadas ao discurso que a sociedade produz sobre eles, ao passo que a
gramática desse discurso sofre interferências constantes destes sujeitos, a depender do lugar
social em que estão posicionados, inclusive como ocupantes de espaços privilegiados de
produção destes mesmos discursos.
Enquanto prática predominante entre as classes pobres, o discurso sobre a tatuagem foi
formado pelo amálgama de enunciados que a associaram à criminalidade, ao primitivismo, à
vadiagem e à pobreza, (con)fundindo deliberadamente estes elementos. Obedecendo a uma
lógica aburguesada de modernização dos espaços urbanos, certa coerência ideológica
conformava as identidades de tatuado e de marginal.
Ainda assim, inúmeros homens e mulheres ousaram construir a si mesmos por meio do
recurso à tatuagem, convivendo com o estigma de pertencer ao grupo dos considerados
moralmente atrasados, sofrendo na pele os efeitos de afrontar a ordem corporal socialmente

769
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade, p. 23.
286
estabelecida, resultando no convívio com a constante suspeição, com a necessidade de se provar
idôneo diante das investidas policiais, com a recusa de empregadores e familiares, com o
desinteresse amoroso ou, no limite, com a prisão ou execução.
Entre as décadas de 1960 e 1980, após a incorporação da tatuagem pela juventude de
classe média, instrumentalizada como elemento de ruptura diante da corporeidade estabelecida,
novos enunciados reorientaram o discurso sobre a tatuagem. O termo rebeldia entrou na ordem
do discurso sobre o corpo tatuado, a fim de conferir-lhe o sentido de contingência, de
transgressão passageira, produto de uma fase transitória que deveria ser a juventude.
Neste sentido, a tatuagem hodierna se constitui em uma possibilidade de modificação
corporal cujas restrições não mais se ancoram em uma disciplina corporal exclusivamente
calcada na proibição, mas doravante se relacionada à refinadas e sutis estratégias disciplinares
que envolvem estímulo, restrição e conformação, a fim de operar a distinção entre os tatuados
legítimos e ilegítimos, sobretudo por sua capacidade de ser inserida na sociedade de consumo,
notadamente o consumo das tatuagens ditas autorizadas, altamente expensivas.
Examinando, classificando, normalizando e estimulando tais tatuagens, opera-se a
conversão de seu significado em estética alternativa, em arte. Assim, sua incorporação entre
as possibilidades de consumo no mercado da modificação corporal – ao lado das cirurgias
plásticas, aplicações subcutâneas de substâncias como silicone e Botox, e do body building nas
academias de ginástica – torna-se elemento definidor de sua ressignificação.
Em contrapartida, as tatuagens não autorizadas, produzidas às margens do controle
profissional, sanitário e estético; realizada por tatuadores ilegítimos e, sobretudo, marcando
corpos estigmatizados por elementos como classe e etnia; atuam como elemento (re)afirmador
destes estigmas, conformando o persistente significado estigmatizante à identidade do
estigmatizado, caracterizando o anormal: os tatuados pobres ou, para usar o termo de Margot
DeMello, a working-class tattoo.
Ao longo de todo o século XX, o significado social da tatuagem foi construído em razão
direta da posição econômica ocupada pelos sujeitos tatuados. Em uma linha, é esta minha tese.
Isso me permite propor que no interior de determinada cultura, o significado de determinado
símbolo é produzido de acordo com o status social daqueles que o utilizam, ao mesmo tempo
que sua instrumentalização política cumpre a função conformar ou confrontar estas posições.
A depender do uso político que deles se faz, podem experimentar a erosão de seu significado

287
estabelecido, impulsionando assim sua ressignificação ou o refinamento de seu potencial
identificador.
Não há como compreender uma história dos significados atribuídos à tatuagem durante
o século XX sem considerar o lugar social dos sujeitos que se tatuaram. Como demonstrei, foi
precisamente esse lugar o que orientou o deslocamento discursivo produzido sobre a tatuagem,
resultando em uma estratégia de refinamento coercitivo que procurou distinguir sujeitos
tatuados legítimos e sujeitos tatuados ilegítimos. A classe, no sentido em que Bourdieu a
considera, é fator determinante e o principal elemento orientador deste refinamento.
Quando se trata das classes médias, o discurso adquire novos contornos, destituindo-se
do caráter depreciativo que se cristalizou nos enunciados sobre a tatuagem enquanto ela
predominou entre as classes pobres. Por outro lado, como sua prática se manteve entre as
mesmas, a permanência de seu potencial estigmatizante não pôde ser desconsiderada, sendo
necessária a associação da tatuagem a outros elementos de deslegitimação, capazes de serem
somados a ela no objetivo de confirmar uma identidade social ilegítima ou marginalizada.
Foucault afirma que “a impressão de que o poder vacila é falsa, porque ele pode recuar,
se deslocar, investir em outros lugares...e a batalha continua”. 770 Neste sentido, embora o
discurso hegemônico sobre a prática tenha se deslocado de uma marca de infâmia para uma
arte corporal, a tatuagem permanece permeada de um persistente potencial de estigma,
doravante sofisticado, refinado em sua instrumentalização, mas sempre à espreita.

770
FOUCAULT, M. Microfísica do poder, p. 235.
288
FONTES

BIOGRAFIAS:
OSBOURNE, OZZY. Eu sou o Ozzy. São José dos Campos: Editora Benvirá, 2012.

ENTREVISTAS:
ENTREVISTA Antônio Carlos Ferrari – Carlinhos (áudio). Produção: Fernando Lucas
Garcia de Souza. São Paulo: 2017. 57 min. (aprox.), 1 arquivo mp3.
ENTREVISTA: Carlos Wilson Cunha Hetch. (áudio). Produção: Fernando Lucas Garcia de
Souza. Três Lagoas: 2015. 37 min. (aprox.), 1 arquivo mp3.
ENTREVISTA Cláudio Mendonça – Alemão (áudio). Produção: Fernando Lucas Garcia de
Souza. São Paulo: 2016. 38 min. (aprox.), 1 arquivo mp3.
ENTREVISTA Cristiano Anselmo (áudio). Produção: Fernando Lucas Garcia de Souza. Três
Lagoas: 2016. 32 min. (aprox.), 1 arquivo mp3.
ENTREVISTA Douglas Coelho Viana – Gnomo (áudio). Produção: Fernando Lucas Garcia
de Souza. Três Lagoas: 2016. 47 min. (aprox.), 2 arquivos mp3.
ENTREVISTA Élcio Sorrentino Sespede – Polaco (áudio). Produção: Fernando Lucas
Garcia de Souza. São Paulo: 2017. 67 min. (aprox.), 1 arquivo mp3.
ENTREVISTA Fernando Luiz Zacché – Russo (áudio). Produção: Fernando Lucas Garcia de
Souza. São Paulo: 2016. 30 min. (aprox.), 1 arquivo mp3.
ENTREVISTA: Jefferson Willian. (áudio). Produção: Fernando Lucas Garcia de Souza. Três
Lagoas, 2016. 33 min. (aprox.), 1 arquivo mp3.
ENTREVISTA: Otávio Costa Braga. (áudio). Produção: Fernando Lucas Garcia de Souza.
São Paulo: 2017. 45 min. (aprox.), 1 arquivo mp3.
ENTREVISTA: Rosicler Ferreira do Carmo. (áudio). Produção: Fernando Lucas Garcia de
Souza. Três Lagoas, 2015. 7 min. (aprox.), 1 arquivo mp3.

FONOGRAMAS:
BRITO, Guilherme. CAVAQUINHO, Nelson. Tatuagem. RCA Victor, 1972.
ABRÃO, Alexandre M. (Chorão). Zóio de Lula. EMI/VIRGIN, 1997.

PERIÓDICOS – ACERVO DA HEMEROTECA DA BIBLIOTECA NACIONAL:


Rio de Janeiro/RJ:
A noite
Correio da Manhã
Diário Carioca
Diretrizes
Eu Sei De Tudo
Jornal do Brasil
289
Kosmos
Leitura Para Todos
Luta Democrática
O Careta
O Cruzeiro
O Jornal
O Malho
O Mundo Ilustrado
O Paiz
O Tico-Tico
Tribuna da Imprensa
UH Revista
Última Hora

São Paulo/SP:
Correio Paulistano

Santos/SP:
A Tribuna

PERIÓDICOS ESPECIALIZADOS:
MetalHead Tattoo, ano i, n. 4.
Tatuagem, Arte e Comportamento, ano I, n. 12.
Tatuagem, Arte e Comportamento, ano II, n. 11.
Tatuagem, Arte e Comportamento, ano III, n. 34.

PUBLICAÇÕES ON-LINE:
ADORNO, Luís. Abordagem nos Jardins tem de ser diferente da periferia, diz novo
comandante da Rota. UOL. Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2017/08/24/abordagem-no-jardins-e-na-periferia-tem-de-ser-diferente-diz-novo-
comandante-da-rota.htm. Acesso em: 18 jan. 2021.

BIBLIOTECA NACIONAL. Diretrizes (verbete). Disponível em


http://bndigital.bn.br/artigos/diretrizes/. Acesso em: 05 jun. 2020.

ESTADO, Agência. Bolsonaro defende Flávio: “Não é justo usar um garoto para me atingir”.
CORREIO BRAZILIENSE. Disponível em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/01/24/interna_politica,73254
6/pressao-sobre-flavio-e-para-me-atingir-diz-bolsonaro.shtml. Acesso em: 15 jan. 2021.

FERNANDES, Talita. “Já adverti o garoto”, diz Bolsonaro sobre filho ter falado em fechar
o STF. UOL. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/ja-adverti-o-
garoto-diz-bolsonaro-sobre-filho-ter-falado-em-fechar-stf.shtml. Acesso em: 15 jan. 2021.

ITAU CULTURAL. Disponível em:


https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/angeli/personagens. Acesso em: 03 out. 2020.

290
KRUTAK, Lars. Embodied Symbols of the south seas. Disponível em:
https://www.larskrutak.com/embodied-symbols-of-the-south-seas-tattoo-in-polynesia/.
Acesso em: 03 jun. 2020.

____. The last Kalinga Tattoo Artist in the Philippines. Disponível em:
https://www.larskrutak.com/the-last-kalinga-tattoo-artist-of-the-philippines/. Acesso em: 03
de jun. 2020.

LORENZI, Gisella W. Uma breve história dos direitos da criança e do adolescente no Brasil.
Disponível em: http://fundacaotelefonica.org.br/promenino/trabalhoinfantil
/noticia/uma-breve-historia-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente-no-brasil/. Acesso em:
24 de setembro de 2019.

REDE GLOBO. FANTÁSTICO. Reportagem sobre a Tatuagem, 1978. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=NDXpxC58NGw. Acesso em: 15 set. 2020.

REDE GLOBO. Guerra dos sexos. Disponível em: https://memoriaglobo.globo.com/


entretenimento/novelas/guerra-dos-sexos-1a-versao/personagens/. Acesso em: 04 dez. 2020.

RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro: município neutro. Disponível em:


http://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/estude/historia-do-brasil/rio-de-janeiro/65-o-rio-de-
janeiro-novamente-corte-o-imperio/2880-rio-de-janeiro-municipio-neutro. Acesso em: 30 abr.
2020.

____. Secretaria Especial de Comunicação Social. O Cruzeiro: a maior e melhor revista da


América Latina. Cadernos da Comunicação, 2002.

MEDIALAB, UFRJ. O paciente 00001: o caso Febrônio Índio do Brasil. Disponível em:
http://medialabufrj.net/projetos/o-paciente-00001-o-caso-febronio-indio-do-brasil/. Acesso
em: 01 out. 2019.

URBIM, E. Remoção de tatuagem atrai número maior de arrependidos graças a lasers mais
eficazes. O GLOBO, 06 de setembro de 2015. Disponível em
https://oglobo.globo.com/ela/beleza/remocao-de-tatuagem-atrai-numero-maior-de-
arrependidos-gracas-lasers-mais-eficazes-17404604. Acesso em: 11 dez. 2019.

WAKABARA. Quem tatuou o menino do Rio? Disponível em:


https://www.wakabara.com/blog/quem-tatuou-o-drago-do-menino-do-rio. Acesso em: 25 jan.
2021.

VERBETES:

ARRAIA-MIÚDA. Dicionário on-line Priberam. 27 de abril de 2020. Disponível em:


https://dicionario.priberam.org/. Acesso em: 27 de abr. 2020.

BRASIL, Bruno. Jornal do Brasil. Disponível em Disponível em:


https://bndigital.bn.gov.br/artigos/jornal-do-brasil/. Acesso em: 06 de jun. 2020.

291
____. Correio Paulistano. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/artigos/correio-
paulistano/. Acesso em: 06 de jun. 2020.

DANTAS, Carolina Vianna. Fon-Fon (verbete). Disponível em:


https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/FON%20FON.pdf. Acesso
em: 01 de out. 2019.

RESTRIÇÃO. Dicionário On-line de Língua Portuguesa. Disponível em:


https://www.dicio.com.br/restricao/. Acesso em 14 de dez. 2020.

292
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMO, Helena Wendel. Cenas juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo:
Scritta, 1994.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Bauru:


Edusc, 2007.

____. Michel Foucault e a Mona Lisa ou Como escrever a História com um sorriso nos lábios.
In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo. Figuras de Foucault. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.

ALÉM, Fernando Castro. A revista Bizz, o rock nacional e a indústria cultural (1985-2001).
255f. Tese. Doutorado em História – Universidade Federal da Grande Dourados. Dourados:
UFGD, 2018.

ALENCAR NETO, Meton; NAVA, José. Tatuagens e desenhos cicatriciais. Belo Horizonte:
MP, 1966.

ALMEIDA, Edson Wilson Mendes. Um tico para formar adultos. Revista Eletrônica História
em Reflexão, Dourados, MS, v. 11, n. 21, 2017.

ALMEIDA, Maria Isabel. Mendes. Nada além da epiderme: a performance romântica da


tatuagem. In: BARBOSA, Lívia e CAMPBELL, Colin. Cultura, consumo e identidade. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2006.

ALMEIDA, Sílvia Capanema Pereira. Vidas de marinheiros no Brasil republicano:


identidades, corpos e lideranças na revolta de 1910. Antíteses, v.3, n. esp., p.90-114, 2010.

ALONSO, Leandro Seawright. O corpus documental em história oral: teoria, experiência e


transcriação. Revista Observatório, v. 2, n. 1, p. 54-75, 2016.

ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. História da fotorreportagem no Brasil: a fotografia


na imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

ANKERSMITH, Frank. A escrita da História: a natureza da representação histórica.


Londrina: Eduel, 2012.

ASSUNÇÃO, Paulo. As condições urbanas da cidade de São Paulo no século XIX. Revista
Histórica. Ed. 05, N. 37. Arquivo Público da cidade de São Paulo. São Paulo, 2009.

ATHAIDES, Rafael. O fascismo genérico e o Integralismo: uma análise da Ação Integralista


Brasileira à luz de recentes teorias do fascismo. Diálogos. v. 18, n.3, p. 1305-1333, 2014.

AZEVEDO, Rosimeiry C; RAMOS, Flávia. Arqueologia e genealogia como opções


metodológicas de pesquisa na enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem. v. 56, n. 3,
2003.

293
BARACUHY. Regina; GODOI, Edileine. Da marginalização ao glamour: o corpo tatuado nas
redes de poder-saber e jogos de verdade do discurso midiático. Revista Moara, Ed.43, 2015.

BARROS, José D’ Assunção. Teoria e Formação do Historiador. Rio de Janeiro: Vozes,


2017.

BASTOS, Álvaro Teixeira. A tatuagem nos criminosos: estudo feito no posto


anthropometrico da Cadeia da Relação. Porto: Tipografia à Vapor de Arthur José de Souza &
irmão, 1903.

BASTOS, Glaucia Soares. Como se escreve Febrônio. 1994. 175f. Dissertação (Mestrado) -
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 1994.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,


1998.

BENCHIMOL, Jaime. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. In:
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano. Vol. 1: o
tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

BERTONCELO, Edison Ricardo. O espaço das classes sociais no Brasil. Tempo social. v. 28,
n.2, pp.73-104, 2016.

BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2013.

____. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

____. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

BRANDÃO, Leonardo. Por uma história dos “esportes californianos” no Brasil: o caso da
juventude skatista (1970-1990). 2012. 299f. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. São Paulo.

BRITO, Ângela Ernestina Cardoso; SILVA, Karla Katiúcia. A trajetória das protoformas
brasileiras de atendimento à infância e adolescência: do código de menores ao estatuto da
criança e do adolescente. IV Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais. Belo Horizonte, 2006.

CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: Edusp, 2015.

CANTANHEDE, Rosane. Grafite/pichação: circuitos e territórios na arte de rua. 106 f.


Dissertação – Mestrado em Ciência da Arte. Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Arte e Comunicação, 2012.

CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na História do Brasil. São Paulo: Contexto,
1988.

294
CAPLAN, Jane. Written on the body: the tattoo in European and American History.
Princeton: Princeton University Press, 2000.

CARMO, Paulo Sérgio. Culturas da rebeldia: a juventude em questão. São Paulo: Editora
SENAC, 2001.

CARNEIRO DA CUNHA, Manoela. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.

CASTAÑEDA, Jorge. Che Guevara: a vida em vermelho. São Paulo: Companhia de Bolso,
2006.

CASTANHEIRA, Marcela; CORREIA, Adriano. A constituição do sujeito em Foucault:


práticas de sujeição e práticas de subjetivação. Disponível em:
http://www.sbpcnet.org.br/livro/63ra/conpeex/mestrado/trabalhos-mestrado/mestrado-
marcela-alves.pdf. Acesso em: 10 de jun. 2019.

CASTRO, Ruy. Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.

CASTRO, Silvio Rogério. A imagem fotográfica jornalística. Revista Científica do


Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão. Ano 19, V. 1,
2009.

CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.

____. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.

CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras. Dourados, v.


13, n. 24, p.15-29, 2011.

CORREA, Laura Josani Andrade. Breve história do videoclipe. VIII Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação da Região Centro-Oeste. Cuiabá: 2007.

COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Editora
UNESP, 2010.

COSTA, Márcia Regina. Os carecas do subúrbio: caminhos de um nomadismo moderno. São


Paulo: Vozes, 1993.

COSTA, Zeila. Do Porão ao Estúdio: Trajetórias e práticas de tatuadores e transformações


no universo da tatuagem. 124f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004.

295
COURTINE, Jean-Jacques. Introdução. In: CORBIN, Alan; COURTINE, Jean-Jacques;
VIGARELLO, Georges. História do Corpo: As mutações do olhar - O século XX. Petrópolis:
Vozes, 2011.

CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário Cunha. Na oficina do historiador:


conversar sobre história e imprensa. Projeto História. São Paulo, n. 35, 253-270, 2007.

DANTAS, Marcelo. A juventude como protagonista no consumo de produtos culturais: 50


anos da jovem guarda. Interfaces Científicas – Humanas e Sociais. V. 4, Ed. Especial, p. 109-
120, 2015.

DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

DE LUCA, Tânia Regina. A grande imprensa na primeira metade do século XX. In:
MARTINS, Ana Lúcia.; LUCA, Tânia Regina de (orgs). História da imprensa no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2008.

____. História dos, nos e por meio de periódicos. In: PINKSY, Carla Bassanezi. Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2008.

DEMELLO, Margo. Bodies of inscription: A cultural history of the modern tattoo


community. Durham: Duke University Press, 2000.

DIMITROV, Eduardo. O Brasil dos espertos: uma análise da construção social de Ariano
Suassuna como criador e criatura. São Paulo: Alameda, 2011.

DUARTE, André. Biopolítica e resistência: o legado de Michel Foucault. In RAGO,


Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo. (orgs). Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica,
2008.

ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Imprensa a serviço do progresso. In: MARTINS, Ana


Luiza; DE LUCA, Tânia Regina. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto: 2018.

ERIBON, Didier. Foucault, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FARIAS, Rita de Cássia Pereira. Conjugalidade e profissão de modelo: projetos conflitantes


ou complementares. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 33, p. 167–197, 2016.

FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo. São
Paulo: Alameda, 2009.

FERREIRA, Marieta de Moraes. História Oral: velhas questões, novos desafios. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Novos domínios da história. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2012.

FERREIRA, Vitor Sérgio. Marcas que demarcam: tatuagem, body piercing e culturas
juvenis. Lisboa: ICS, 2008.

296
____. Política do corpo e política de vida: a tatuagem e o body piercing como expressão
corporal de uma ética da dissidência. Etnográfica, Nº 11(2), p.291-326, 2007.

FONSECA, Andréa Lisset Perez. Tatuar e ser tatuado: Etnografia da Prática Contemporânea
da Tatuagem. 2003. 151f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

____. Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

____. O corpo utópico, as Heterotopias. São Paulo: N-1 Edições, 2013.

____. Os anormais. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

____. O sujeito e o poder. Porque estudar o poder: a questão do sujeito. In: DREYFUS
Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

____. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.

GILBERT, Steve. Tattoo history: A source book. New York: Juno Books, 2000.

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de


Janeiro: Editora LTC, 1988.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde:


1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1980.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos. Cultura e participação nos anos
60. São Paulo: Brasiliense, 1999.

HOBSBAWM, Eric. A era do capital (1848-1875). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

____. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras,
1995.

____. A era dos impérios (1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

IBRAHIM, Elza. Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro: hospital ou prisão? Arquivos


Brasileiros de Psicologia. Rio de Janeiro, 41(3)101-106, 1989.

JEHA, Silvana. A cidade encruzilhada: o Rio de Janeiro dos marinheiros, século XIX. Revista
do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, v.9, 2015.
297
____. Uma história da tatuagem no Brasil: do século XIX à década de 1970. São Paulo:
Veneta, 2019.

KARNAL, Leandro; TATSCH, Flavia G. A memória evanescente. In: PINSKY, Carla


Bassanezi; LUCA, Tania Regina de. (orgs.) O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
2015.

KRISCHKE LEITÃO, Débora. À Flor da Pele: um estudo antropológico sobre a prática da


tatuagem em grupos urbanos. Trabalho de conclusão do curso de Ciências Sociais –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2000.

____. Mudança no significado da tatuagem contemporânea. Caderno IHU ideias. Unisinos,


ano 2, n. 16, 2004.

LAPA, José Roberto do Amaral. Os excluídos: contribuição à história da pobreza no Brasil


(1850-1930). Campinas: Editora Unicamp, 2008.

LE BRETON, David. Signes D’identité: tatouages, piercings et autres marques corporelles.


Paris: Éditions Métailié, 2002.

LIMA, Natália Dias Casado. A Belle Époque e seus reflexos no Brasil. Anais da XI Semana
de História da UFES. Universidade Federal do Espírito Santo, 2018.

LIMA, Solange; CARVALHO, Vânia. Fotografias: usos sociais e historiográficos. In:


PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de. (orgs.) O historiador e suas fontes. São
Paulo: Contexto, 2015.

LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. São Paulo: Ícone, 2007.

LOUZADA, Silvana. Fotografia, modernidade e imprensa carioca. Anais do XIII Encontro de


História da ANPUH – Rio. ANPUH: Rio de Janeiro, 2008.

LOVE, Joseph L. A construção do Terceiro Mundo: Teorias do subdesenvolvimento na


Romênia e no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades pós-
modernas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

MAIA, Antônio Cavalcanti. Deleuze leitor de Foucault: Elementos para uma crítica da cultura
contemporânea. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo. Figuras de Foucault. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008.

MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento


das metrópoles brasileiras. In: SEVCENKO, Nicolau (org). História da Vida Privada no
Brasil – vol. 3. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

298
MARQUES, Adílio Jorge; MORAES, Marcelo Alonso. O sincretismo entre São Jorge e
Ogum na Umbanda: Ressignificações de tradições europeias e africanas. Revista Brasileira de
História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, 2011.

MARQUES, Toni. O Brasil tatuado e outros mundos. Rio De Janeiro: Rocco, 1997.

MATIAS, Renata Cristina. Carecas do Subúrbio: a experiência urbana narrada pela música,
as práticas sociais e a construção de um herói nacional. 2018. 220 f. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018.

MATOS, Maria Izilda Santos. Na Trama Urbana: Do público, do privado e do íntimo. Projeto
História, v.13, p. 129-149, jun. 1996.

MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: Editora
UFF, 2008.

____. Sob o signo da imagem: a Produção da Fotografia e o Controle dos Códigos de


representação Social da Classe Dominante, no Rio de Janeiro, na Primeira Metade do Século
XX. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro,
1990.

MIFFLIN, Margot. Bodies of subversion: A secret history of women and tattoo. New York:
Power House Books, 2013.

NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto,
2017.

____. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). São Paulo: Contexto, 2014.

NOGUEIRA, Clara. Revista Careta (1908-1922): símbolo da modernização da imprensa do


século XX. Miscelânea Revista de Pós-Graduação em Letras - UNESP, vol.8, jul./dez. Assis,
2010.

NOVAES, Joana Vilhena. Beleza e feiura: corpo feminino e regulação social. In: DEL
PRIORE, Mary. AMANTINO, Márcia (orgs). História do corpo no Brasil. São Paulo, Editora
Unesp, 2011.

O’BRIEN, Patricia. A história da cultura de Michel Foucault. In: HUNT, LINN. A nova
história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

O’DOUGHERTY, Maureen. Autorretratos da classe média: hierarquias de “cultura” e


consumo em São Paulo. Dados, v.41, n.2, 1998.

OLIVEIRA, Cassiano Francisco Scherner. A crítica musical e o rock brasileiro nas páginas da
revista Pop (1972-1979). Comunicação & Informação, n. 19, v.1, p. 70-86, 2016.

299
OLIVEIRA, Ualace Roberto de Jesus. A controvérsia da nova classe média brasileira.
Estação Científica, v.3, n.2, p.07-20, 2013.
OLIVEIRA, Rodrigo Santos. A relação entre a história e a imprensa: breve história da
imprensa e as origens da imprensa no Brasil (1808-1930). Historiae, v.2, n.3, p.125-142,
2011.

OLIVEIRA SOBRINHO, Afonso Soares. São Paulo e a Ideologia Higienista entre os séculos
XIX e XX: a utopia da civilidade. Sociologias, vol.15, n.32, 2013.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São
Paulo, Brasiliense, 1998.

OSÓRIO, Andrea Barbosa. O gênero da tatuagem: continuidades e novos usos relativos à


prática na cidade do Rio de Janeiro. 2006. 272f. Tese (Doutorado em Antropologia) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

____. Tatuagem e autonomia: reflexões sobre a juventude. Cadernos De Campo, n. 15 (14-


15), p. 83-98, 2006.

PAULINO, Fernanda Mansilia. A pobre gente: as crônicas de João do Rio no jornal e no


livro. Dissertação. Mestrado em Letras – Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho. São
José do Rio Preto: UNESP, 2014.

PEREIRA, Carolina Morgado. Os jovens e a contracultura brasileira. IARA – Revista de


Moda, Cultura e Arte, v.8, n.2, 2016.

PEREIRA, Robson Mendonça. Cultura e sociabilidade na Belle Époque paulista através de


um diário íntimo. Fênix: Revista de História e Estudos Culturais. Vol. 11 Ano 11, nº 2, 2014.

PINTO, Fátima Regina de Toledo. Você tem uma moto ou uma Harley? Vínculos com a
marca Harley-Davidson em São Paulo. 203f. Tese. Doutorado. Antropologia – Universidade
de São Paulo. São Paulo: USP, 2011.

QUELHAS, Iza. A cidade nas crônicas de João do Rio. Cadernos do Tempo Presente. Edição
n. 07. São Cristóvão: UFS, 2012.

QUINTO, Maria Cláudia. Por trás das lentes, uma história: a percepção de fotógrafos sobre as
imagens na mídia impressa. In: MONTEIRO, Charles (org). Fotografia, História e Cultura
Visual: pesquisas recentes. Poro Alegre: EDIPUCRS, 2012.

PIRES, Beatriz Ferreira. O corpo como suporte da arte: piercing, implante, escarificação,
tatuagem. São Paulo: Editora SENAC, 2005.

PORTOCARRERO, Vera. Práticas sociais de divisão e constituição do sujeito. In: RAGO,


Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo. Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista


(1980-1930). São Paulo: Paz e Terra, 2014.
300
____. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. Tempo Social, v. 7(1-2): p. 67-82, out.
1995.

RAMOS, Celia Maria Antonacci. Teorias da tatuagem: corpo tatuado. Uma análise da loja
Stoppa Tattoo da Pedra. Florianópolis, UDESC, 2001.

RASPANTI, Márcia. Vestindo o corpo: breve história da indumentária e da moda no Brasil.


In: DEL PRIORE, Mary. AMANTINO, Márcia (orgs). História do corpo no Brasil. São
Paulo, Editora Unesp, 2011.

RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp,


2007.

RIDENTI, Marcelo. 1968: rebeliões e utopias. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA,
Jorge; ZENHA, Celeste. O século XX: o tempo das dúvidas, vol. 3. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2002.

RIO, João. (Paulo Barreto). A alma encantadora das ruas. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

SABINO, César; LUZ, Madel. Tatuagem, gênero e lógica da diferença. Physis, v.16, n.2,
p.25-272, 2006.

SALIBA, Elias Thomé. Aventuras modernas e desventuras pós-moderna. In: PINSKY, Carla
Bassanezi; LUCA, Tania Regina de. (orgs.) O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
2015.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. História da beleza no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.

SANTOS, Myrian Sepúlveda. Os porões da República: a Colônia Correcional de Dois Rios


entre 1908 e 1930. Topoi, v. 7, n. 13, 2006.

SANTOS, Rodrigo Otávio. A juventude urbana brasileira nas páginas da revista Chiclete com
Banana. Projeto História, São Paulo, v. 58, p. 76-112, 2017.

SCALON, Celi; SALATA, André. Uma nova classe média no Brasil da última década? o
debate a partir da perspectiva sociológica. Sociedade e Estado, v.27, n.2, p.387-407, 2012.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1999.

____. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: SEVCENKO, Nicolau (org.).
História da Vida Privada no Brasil – vol. 3. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

SILVA, Fernanda Gomes. Como e até onde é possível pensar um outro pensamento? Uma
leitura crítica do projeto filosófico de Michel Foucault. Dissertação (Mestrado em Filosofia) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

301
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

SOUSA, Patrícia de Castro. A problemática da narrativa de João do Rio: crônica ou


reportagem? XI Congresso Internacional da ABRALIC. São Paulo: USP, 2008.

SOUZA, Fernando Gralha de. A Belle Époque carioca: imagens da modernidade na obra de
Augusto Malta (1900-1920). 2008. 162f. Dissertação (Mestrado em História) –Universidade
Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. 2008.

SOUZA, Fernando Lucas Garcia. A infame arte da tatuagem: transformações e


ressignificações da prática em contextos urbanos brasileiros. 200f. Dissertação. (Mestrado em
História) – Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, 2018.

____. A questão da ressignificação cultural da tatuagem. Contemporâneos: Revista de Artes e


Humanidades, nº 15, 2017.

____. História da tatuagem no Brasil: corpos, técnicas e espaços em transformação.


Dourados: Editora UFGD, 2020.

THÉBAUD, Françoise. Políticas de gênero nas ciências humanas: o exemplo da disciplina


histórica na França. Espaço Plural. Ano X, n. 21. Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
2009.

THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa – volume 1. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1987.

302

Você também pode gostar