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Reduzida a

Três Principias

pelo

R. P. Mauricio Meschler, S. J.

_______________

2° edição

1923

Tip, das “vozes depetropolis"

Petropolis

– Estado do Rio

REINPRIMATUR

Curitybae, die 2 Octobris 1923

Fr. Chrysofogus Kampmann

Min. Provincialis

_____________

Por comissão especial do exmo. e révmo.


Bispo Diocesano. D. Agostinho Bennassi.
Petrópolis, 9 de outubro de 1923
Frei Philippe Niggemeier, O. F. M.
AOS LEITORES

Com a publicação da presente tradução julgamos enriquecer a nossa


literatura acética, tão falha de bons livros, em vernáculo, de uma
verdadeira jóia.

É ela da autoria do conhecido P. Mauricio Meschler, S. J.


Tendo entrado na Companhia de Jesus no ano de 1850, em
Münster (Westfalia), P. Meschler ordenou-se sacerdote em
1860. Além de outros cargos importantes ocupou o de
Provincial da Província Alemã, de 1881·1884, e de Assistente
do Revmo. P. Geral da Companhia, de 1892·1906. Faleceu
santamente em Exaeteu (Holanda) a 2 de Dezembro de 1912.

Não cabe nos moldes deste prefacio fazer, embora de um, modo
ligeiro, a apreciação dos dotes extraordinários e da atividade, sobretudo
literária, deste ilustre filho de S. Ignácio.

Queremos apenas frisar que ele é considerado, sem contestação,


como um dos mestrês mais abalizados do espiritualismo dos tempos
modernos. Suas obras e publicações nos diversos terrenos da vida
espiritual são tão numerosas quão apreciadas.

A quinta essência, porém, de tudo o que foi escrito pelo P.Meschler;


por assim dizer, o seu ceterum censeo, é o belo livrinho: Três Princípios da
Vida Espiritual, cuja tradução, devidamente autorizada, foi feita em
adaptação à quarta edição elemã, que traz o titulo: Dei Grundlehren des
geistlichen ·Lelensvon Moritz Meschler, S. J., Freiburg in Breisgau.
Herdersche Verlagshándlung. 1912.

Ao divino Salvador, pedimos que abençoe o nosso trabalho,


empreendido só e unicamente em sua honra, e que, pela leitura atenta e
piedosa deste livrinho, faça reverter nossos esforços em bênçãos"' sobre
as almas imortais, remidas pelo seu precioso sangue.

Petrópolis, (Convento Franciscano), 29 de Setembro de 1920.

O TRADUTOR
PREFÁCIO

De certo magnata persa refere-se que era grande amador da ciência.


De todos os lados recolhia sábios escritos para a sua biblioteca, levando
os consigo por onde quer que fosse. A empresa não era pequena, nem
leve a bagagem. Homens eruditos foram encarregados de resumir a
sabedoria de todos esses livros, em certo numero de obras, de modo
que um só camelo pudesse, comodamente, tudo transportar. Não
tardou, porém, que, por sua vez, o novo sistema parecesse embaraçoso.
Foram então os livros condensados em um único volume, o qual, por
seu turno, reduziu-se a uma máxima fundamental que o príncipe pode,
d'ora em diante, levar por toda a parte, sem fadiga nem tropeços.
Melhor e mais facilmente correram então as coisas.

Um pensamento similar foi o inspirador desta pequena obra.

Existem copiosos tratados, grossos volumes, relativos à vida


espiritual. A quem será dado saber-lhes, os nomes, ou, simplesmente,
conhecer-lhes o numero? Todavia, não nos queixemos dessa grande
abundancia. Por mais que se escreva e leia, o assunto nunca ficará
esgotado. Nada há mais belo e proveitoso para o homem.

Como, porém, com pulsar tantas obras e assenhorearmo-nos do


conteúdo delas?

Há, pois, incontestável vantagem em poder háurir a ciência da


vida espiritual e dos santos, sem detrimento dessa mesma ciência,
recorrendo a alguma obra simplificada e abreviada. Aliás, é esta a
tendência hodierna; condensar, simplificar, levar à prática, tudo o
que se relaciona com a vida. Em nós mesmos, no decorrer da existência,
opera-se uma simplificação. Com o tempo tornamo-nos de uma
admirável singeleza. Toda a filosofia da vida acaba por resumir-se em
uma breve máxima que nos domina o espírito, inspira e governa toda a
nossa vida. Quanto mais nos aproximamos de Deus, nosso fim ultimo,
tanto mais nos apropriamos algo de sua simplicidade divina.

O mesmo se dá com a verdade; uma só, bem e praticamente


compreendida, basta para nos tornar santos.
'Neste opúsculo, encontrar-se-á toda a vida espiritual simplificada e
reduzida a três lições fundamentais, sem as quais a mais transcendente
ascese de nada serviria. Faltar-lhe-ia o mais necessário, o essencial, e ela
nunca conseguiria fazer-nos atingir a meta. Ao invés, com o auxilio
destas três lições devidamente compreendidas de maneira que nossa
vida seja como impregnada delas, seremos verdadeiros ascetas,
mediante a graça de Deus. Se, porém, no curso da vida espiritual,
notarmos alguma falha ou desvio, façamos um exame relativo a essas
três lições, a fim de verificarmos se nossa vida pratica está de acordo
com os seus ditames. Indubitavelmente descobriremos o ponto fraco e,
para trilhar de novo o caminho da perfeição, só nos resta
compenetrarmo-nos, ainda uma vez, desses ensinamentos e por eles
modelarmos o nosso viver.

Sabedoria de algibeira - Tal é o titulo que um escritor espirituoso deu


ao seu Tratado da vida no mundo - «Ascese de algibeira" - poderíamos
também dizer em referencia ao nosso livro. Nele se nos depara a quinta
essência da vida espiritual: a ascese em miniatura. Três lições bastam
para expô-la, na integra. As boas coisas vão três a três – diz o prolóquio.
- Aqui. vão elas, também por três.

Estreitamente enlaçadas, supondo-se e completando-se mutuamente


formam o anel dos sábios - anel em que se engasta a inestimável perola
da perfeição cristã, tesouro tão precioso, que o negociante arguto,
pesquisando objetos raros, se sujeita, de bom grado, a todas as fadigas,
despende os seus haveres, só com o fito de assegurar-se a posse dele.

(Mat. XIII, 46)

Luxemburgo, 8 de Agosto de 1909.

O Autor.

PRIMEIRO PRINCIPIO
Orar

A oração é para o homem, a origem de todo bem. Daí se infere que


saber orar, dar à oração o devido apreço, entregarmo-nos a sua pratica,
com zelo e fervor, é, para o tempo como para a eternidade, um tesouro
de valor inestimável.

Esta primeira lição impulsionará nossos esforços para·a consecução


desse objetivo.

CAPITULO PRIMEIRO

O que é orar

1. Orar é tudo o que há de mais simples, primeira razão disso é a


própria a necessidade que temos da oração.

2. Para orar, não é mister talento especial, eloqüência, dinheiro


nem recomendação de espécie alguma. Até' a devoção sensível não é
necessária; a doçura a consolação coisas assessorias e não dependem de
nós. Se Deus no-las der, devemos recebê-las com reconhecimento,
porquanto elas tornam a oração mais agradável. Orar, não obstante a
aridez, é sempre orar. Consolados, ou não, cumpre fazê-lo.

3. Para isso, basta o conhecimento de Deus e o de nós mesmos, saber


o que Ele é o que somos nós; como infinita é sua bondade e quão
profunda a nossa miséria.

Para orar, uma única ciência é necessária: a fé e o catecismo.

As palavras serão deitadas pelas nossas próprias necessidades. Poucas


idéias (quanto menos numerosas, melhor será) alguns desejos, e
finalmente umas palavras saídas do coração, - porque se assim não for,
não há oração propriamente dita, - eis tudo o que é preciso.
Haverá, por acaso, um homem que não tenha um só pensamento,
um único desejo? Pois bem, é apenas do que havemos mister para
empreender o nobre trabalho da oração. A graça, Deus no-la dá, de
bom grado, a todos e a cada um em particular.

4. Por conseguinte, orar, é simplesmente falar com Deus; é conversar


com Ele, mediante a adoração, o louvor, a súplica. Alguns teólogos
opinam ser a oração um discurso feito a Deus, uma audiência por Ele
concedida. É avançar muito. Grande é o numero dos que não sabem
produzir um discurso, e a audiência, sendo por demais cerimoniosa,
exclui a cordialidade.

Durante a oração, o nosso proceder deve ser idêntico ao que temos


relativamente a um amigo intimo e querido. A ele confiamos com
sinceridade o que nos vai na alma: dissabores ou alegrias, esperanças e
receios; dele recebemos conselhos e avisos, auxilio e conforto; com ele
decidimos os mais importantes negócios, singelamente e quase sempre
sem que a sensibilidade se manifeste de forma alguma. E isto não obsta
que tudo seja tratado séria e lealmente. É assim que, na oração,
devemos ser para com Deus. Quanto maior for a nossa simplicidade,
tanto melhor será: demos largas ao coração.

5. Se muitas vezes a oração se nos antolha penosa e difícil, é


culpa nossa; é porque não sabemos como nos avir, e fazemos dela uma
idéia errônea. Manifestemos a Deus os sentimentos de nossa alma;
digamos as coisas tais como se apresentam e a oração será sempre pro-
veitosa. Todo caminho leva a Roma, diz o adágio, e toda idéia abre o
seu para chegar a Deus.

Só saberemos orar quando o fizermos simplesmente. Que nos adianta


dirigirmos ao Senhor discursos sublimes ou torneados com graça?

Se acontecer que nenhuma ideia nos venha à mente, tenhamos a


simplicidade, de expor essa mesma nossa indigência. É isto ainda orar,
glorificar a Deus e expressamente advogar a nossa causa.

CAPÍTULO II

Grandeza e excelência da oração


1. Os pensamentos são a imagem da alma. A nobreza do
espírito que os concebe pode aquilatar-se pela sua maior ou
menor elevação.

Enquanto aplicada, exclusivamente, às causas terrenas, visíveis e


criadas, a alma como que se confina nas regiões do finito e do perecível.
Quando, porém, ela se ocupa do Criador, adquire algo de excelência
divina. Pensar em Deus é apanágio do Anjo e do homem, e como Deus
é superior a tudo, fácil é deduzir-se que a mais nobre função do espírito
consiste nesse pensamento, quando ele é o que deve ser. É mormente
pela oração que o homem se eleva até o Supremo Bem. Ora, que pode
haver mais intimamente unido á criatura, que a imagem mesma de seus
pensamentos? E, no presente caso, essa imagem é o próprio Deus; isto
é, o que há de maior, de mais bolo e excelente, no céu e na terra. Logo,
pensar nEle, é o mais honroso dos privilégios.

Neste mundo, abstraindo da comunhão, nada nos pode unir mais


perfeitamente ao Criador que a oração. E' mui fácil discorrer com
nossos semelhantes, porquanto, os vemos e ouvimos; é mister porém,
mais alguma coisa, para poder conversar com um ser invisível, um
puro espírito e fazê-lo de modo condigno é indicio de um espírito superior,
convenientemente formado e que se move à vontade no sobrenatural. O mais
ingênuo dos servos de Deus que, mediante a oração, sabe tratar com a
Majestade divina, acha-se apto para se apresentar na corte de qualquer
rei ou imperador. O que torna a oração, difícil e penosa, ao homem
vulgar, é o tédio; porem o tédio se encontra precisamente nesse mesmos
Homem que é um ser material de espírito apoucado e nunca na oração.

Achá-la, pois, fastidiosa, não é recomendação muito lisonjeira. Ao


invés, a facilidade de orar, o gosto da oração provam que o espírito
triunfou da vulga terrestre. Rememoremos atentamente essas verdades,
afim de nos convencermos que a prece é a melhor e mais nobre das
ocupações.

2. Pela oração, o homem eleva a sua alma a Deus: é uma honra


insigne. E Deus se inclina para o homem; é favor ainda, mais alto.
Vivemos neste triste mundo; Deus habita as alturas do céu: a distancia
é incomensurável. A oração é a ponte lançada entre a terra e o céu e por
onde a Divindade desce até nós. Quão maravilhosa se revela a
liberalidade do Criador, sua misericórdia e inefável condescendência,
neste convite cheio de amor: «Pedi tudo o que desejais; achegai-vos de
mim quando quiserdes; para isso não faz mister apresentações, sereis
sempre bem vindos; disponde de tudo o que me pertence e até de mim
mesmo.»

A absoluta liberdade que Deus nos concede na oração, não é uma


prova irrecusável de que divina é a nossa origem, que fomos criados
para viver na familiaridade do Criador como filhos que somos? Oh!
excesso de bondade! Haverá alguém mais fidalgo que Deus? e no
entanto quem é menos avaro de seu tempo? Ele deixa tudo ao nosso
dispor. Em parte alguma encontraremos mais sincero e afetuoso
acolhimento. Junto dele sentimo-nos à vontade, no conchego da
família, mais que em nenhum outro lugar.

3 Na verdade, o homem possui admiráveis privilégios! E, não


obstante, como são eles pouco apreciados!

Se Deus distribuísse dinheiro e pão, todos acudiriam açodados,


como outrora os judeus que se precipitavam após o Senhor, em
seguida â multiplicação dos pães. Mas ele nos dá a honra de
admitir-nos a sua familiaridade divina e desdenhámos esse favor!
Alguns chegam até a envergonhar-se de orar!

Não será, por ventura, corar de Deus e renunciar ao mais


excelente de seus privilégios?

Aquele que se esquece da oração ou a desaprende, olvida ou


desconhece seu proveito próprio e sua melhor gloria.

CAPÍTULO III

O preceito da oração

1. A oração nos foi concedida por Deus: temos, pois o direito de


orar. Além disso, o Senhor no-la preceitua: assiste-nos, por
conseguinte, o dever de orar.

2. Esse preceito já se encontra nas Taboas da Lei, cujas prescrições,


aliás tão antigas como o homem, lhe estão gravadas no coração
porque exprimem a lei natural. A primeira Taboa nos obriga á
religião e ao culto de Deus; Ao entrar no mundo, trazemos conosco
essa obrigação, dimanada da nossa própria origem, porquanto, pela
criação, viemos de Deus. O homem deve pois reconhecê-lo por seu
Criador e honrá-lo como tal. Nesse intuito, a religião sempre existiu no
mundo, atestando, assim, que ele pertence a Deus e de Deus depende.

3. E mais, nunca houve culto sem oração a qual foi sempre e


essencialmente uma pratica da religião e tem por fim prestar, ao
Criador, a homenagem que lhe é devida.

E ainda, a oração é um ato principal e, por assim dizer, a alma do


culto que nela se funda inteiramente, se afirma e se mantém mediante a
prece publica ou privada.

4. Organizar a prece é pois organizar a religião. O Salvador teve o


cuidado de não omitir essa particularidade e confirmou o mandamento
primitivo, ensinando-nos a orar, por suas palavras e próprio exemplo, e
proporcionando-nos um modelo de oração. Foi a Igreja que nos indicou
exatamente o modo pelo qual deve ser observado o grande preceito
natural da oração que nos obriga tão rigorosamente. Nosso Deus á o
Deus vivo. Seu poder criador se exerce constantemente em relação às
criaturas, conservando-lhes a existência; por conseguinte, Ele exige que,
por uma prece ininterrupta, lhe testemunhemos nossa gratidão.

Ainda nesse sentido, a humanidade sempre orou: é o cunho divino


nela impresso. À proporção que Deus estender sua força criadora, de
um mundo a outro, vai-lhe dilatando o circulo da prece. Um único ser
não tem necessidade d,e orar: é o próprio Deus, porque possui a
plenitude de todos os bens. As criaturas, vivendo da bondade do
Criador, têm o imperioso dever de orar sempre.

5. Deus preceituou-nos a oração por duas razões: uma relativa a si


próprio, outra referente a nós.

Se Ele nos pede a vassalagem de nossa prece, não é que dela


necessite, pois de nada há mister. Exige-a por motivo de justiça e de
santidade. E' Ele nosso Senhor, nosso Pai, a fonte de todos os bens. Não
pode desconhecer-se a si mesmo, abdicar seus títulos e dar sua gloria a
outrem. Relativamente à criatura, a recusa desse preito, equivaleria a,
uma revolta contra Deus, a uma verdadeira apostasia. Em relação a nós,
o Senhor ordena que oremos, antes para nos conceder Seus benefícios que
para receber qualquer coisa de nossa parte. Nem sempre merecemos os
dons de Deus; nem sempre nos achámos convenientemente preparados
para recebê-los. E' pois necessário predispormo-nos a isso; é esse,
precisamente, o fito da oração. Como acima deixamos dito, a prece é
um ato da virtude da religião. Tenhamos ou não consciência disso,
quando oramos, nossa intenção é sempre de honrar a Deus. Esse intuito
está na própria essência da oração e não podemos prescindir dele. Ora,
grande e magnífica é a homenagem prestada, assim ao Criador.

Orando, reconhecemos humildemente nossas necessidades e


profunda indigência; proclamamos o poder de Deus, sua bondade, a
fidelidade que guarda à suas promessas, nossa absoluta confiança na
divina misericórdia.

Quando oramos, rendemos ao Senhor um culto verdadeiro,


santificamo-nos, atraímos sobre nós a benevolência divina e nos
tornamos aptos para receber as efusões das graças do Céu. Em suma,
pela oração, não induzimos Deus a dar, mas nos dispomos a receber. A
súplica dirigida á criatura difere da que se dirige a Deus neste
particular: aquela induz o homem a conceder o que se lhe pede; esta
predispõe a alma a receber a graça impetrada.

Além disso, nada é mais justo e de maior proveito, para o homem,


que a humilde confissão das próprias necessidades e misérias, e o
devido apreço dado aos benefícios do Criador. E' precisamente o que
fazemos mediante a oração.

6. Considerada como um ato do culto, como homenagem devida ao


Senhor, a oração é não somente um meio de obter o que solicitamos,
mas também o fim próximo de nossa vida. Fomos criados por Deus
para adorá-lo, amá-lo e servi-lo. Nesse ponto de vista a oração nunca é
demasiada. Por meio dela preenchemos o nosso fim, o atingido, neste
mundo, tanto quanto possível. Foi essa idéia que deu origem às Ordens
contemplativas. Até no céu a oração será perpetua. É ela que mantém o
reino de Deus aqui na terra. Quando a oração desaparece, finda-se Ele
no coração do homem. Quantos males não causaram à sociedade, as
deploráveis discórdias religiosas! O sacrifício, o louvor de Deus,
cessaram com a supressão dos conventos. Maior razão nos assiste para
praticarmos a oração, reparando assim, o dano feito ao reino de Deus.

7. Dado isto, não é maravilha que todos os homens de boa fé, todos
os cristãos que tomam a religião a sério, se entreguem á pratica da
oração. Para eles o culto divino, e, por conseguinte, a prece, tem a
primazia sobre todas as outras coisas. Nós, os cristãos, somos
essencialmente um povo de oração. O Antigo Testamento não conta
entre suas personagens nem Aristóteles nem Platão, mas possui a
verdadeira prece e, com ela, a vera ciência de Deus, o modo condigno
de adorá-lo. A religião cristã começou no Cenáculo de Jerusalém. Os
pagãos contemplavam admirados os fieis em oração. As igrejas cristãs
foram e são até hoje casas de oração, ao passo que os gentios nunca
tiveram uma idéia real do que ela fosse. A prece é a própria essência da
religião, isto é do bem por excelência. Assim o compreendeu sempre a
humanidade. E o valor desse testemunho não pode ser aluído nem
pelos panteístas que não oram nunca, porquanto, endeusando-se a si
próprios, se têm em conta de uma parcela da divindade, nem pelos
materialistas cujas idéias não se elevam acima do visível; nem pelos
discípulos de Kant que se julgam dispensados de orar por que não
compreenderam ou não querem compreender as provas da existência
de Deus, nem pelos discípulos de Schleiermacher que, para se porem
em oração, estão sempre à espera de não sei que disposições especiais.

Que valem essas negações ante, o imponente testemunho da


humanidade, dos séculos da razão e da fé, atestando o imprescindível
dever da oração?

CAPITULO IV

A oração, o grande meio da graça

Luz - ar - alimento - sem essas três coisas não é possível conceber-se a


vida material. Outro tanto podemos dizer da prece, em relação á vida
espiritual. Se quisermos salvar-nos, devemos orar.

1. Rememoremos algumas verdades incontestáveis e certos


princípios admitidos universalmente. Sem a graça, não há
salvação: sem a oração, ao, menos tratando-se de adultos, não se
recebe a graça. Logo, ambas são indispensáveis.

E certo que Deus instituiu os sacramentos para nos comunicar a


graça; mas, em vários pontos de vista, a oração importa mais que os
sacramentos. Estes nos proporcionam algumas e determinadas graças,
aquela: pode, num dado momento, obter·nos todas elas. Não nos é
possível recorrer aos sacramentos sempre e em todo o lugar, mas
sempre, e em toda a parte temos a oportunidade de orar. É pois mui
verídico o prolóquio: Orar bem equivale a bem viver. Mediante a prece, o
homem proporciona a si próprio, os recursos necessários para se
conservar a altura de sua missão. Sendo assim, é forçoso admitir as
seguintes máximas que se impõem ao espírito; por sua profunda
significação: «Nada podemos alcançar sem a oração. Toda confiança, que
se não estriba na oração, e vá. Deus tudo deve a oração porque a ela tudo
prometeu. Ordinariamente Deus não concede graça alguma sem que ela lhe
seja pedida; a única que está fora deste caso é a própria graça da oração.

2. Estas são verdades gerais.

Há, porém, na vida cristã, determinados atos de virtude mui


precisos e para a realização dos quais a oração é absolutamente
indispensável.

Em primeiro lugar, a observância dos mandamentos,


imprescindível, se nos quisermos salvar. Ora, de nós mesmos e sem
a ajuda da graça não temos o vigor necessário para isso. Acresce que
nem sempre estamos seguros de possuir essa mesma graça, que nos
daria a força de permanecer indefectivelmente fiéis. «É impossível
superar essa dificuldade», dizeis vós, ante um obstáculo que surge
imprevisto. Com efeito, pode ser que realmente não estejais ainda
de posse da graça necessária para triunfar dele; tendes, porém, a que
é precisa para orar, Deus não exige impossíveis. Ou ele concede o
próprio domínio que lhe pedimos, ou a graça da oração que no-lo
obterá.

Vêm, em seguidas, as tentações.

Naturalmente somos incapazes de vencê-las, mas elas nunca chegam


a ponto de obstar a oração. A nossa pusilanimidade provém da
deficiência de nossa prece. O triunfo dos santos foi devido à oração.
Privados desse socorro teriam sucumbido como qualquer de nós.

Isto é particularmente exato, em relação às tentações da carne que nos


cegam, quanto às conseqüências do pecado; fazem-nos olvidar as boas
resoluções e destroem o temor dos juízos de Deus. Se não nos valermos
da oração, estamos irremediavelmente perdidos.

Finamente, não é possível salvarmo-nos sem a graça da perseverança.


Esta é Um insigne e especial favor que Deus nos concede, enviando-nos
a morte no momento em que, livres de pecado, ela é para nós a
mensageira da bem aventurada imortalidade.

A graça da perseverança, diz Sto. Agostinho, é tão grande e


excelente, que, por nós mesmos, não a podemos merecer e só nos é
dado obtê-la mediante humilde prece. Descurar de alcançá-la pela
oração, é prova de que somos indignos de recebê-la.

Eis o domínio da oração e até onde vai sua necessidade. Oramos


muitas vezes com o fito de obter bens transitórios; com quanto maior
razão devemos fazê-lo para alcançar os eternos!

Ou orar, ou perdermo-nos - tal é a temerosa alternativa.

3. Já o dissemos; é essa a lei da vida. Mas, por que faz Deus tudo
depender da oração? Acaso não poderia dar-nos sua graça, abstraindo
dela? A pergunta é ociosa. Não se trata do que Deus poderia fazer, mas
do que fez. Quis Ele que a oração fosse um meio de obter as graças e
assim é. Deus é livre e senhor de seus dons; a Ele compete fixar as
condições de alcançá-los. Devemos aceitar sua decisão com todo o
acatamento. Porém, o homem é também livre e deve usar de sua
liberdade cooperando para a salvação própria. A oração corrobora estes
dois fatos: a livre cooperação do homem e a liberdade de Deus na
escolha dos meios. Um e outro fazem parte do plano divino da Criação.
Relativamente a Deus como ao homem, a liberdade é um fator desse
mesmo plano cujo escopo é a salvação da humanidade e a glorificação
de Deus. E' exclusivamente mediante essa cooperação nossa que
merecemos a bem-aventurança eterna. A oração é a mínima das coisas
que o Senhor possa exigir de nós. E', portanto, justo que rejeitando a
prece, seja o homem excluído da graça e do Céu.

4. Os ensinamentos da Escritura e os da Teologia, referentes à


necessidade da prece, são graves e formais; deles poderíamos inferir
que, considerada como canal da graça, é ela indispensável não somente
por efeitos de uma disposição divina, mas ainda em virtude de um
preceito da lei natural.

E' certo que, afora os que são relativos a fé; a esperança, a caridade e
a recepção dos sacramentos, Cristo não nos prescreveu nenhum
mandamento positivo. Logo, se Ele preceitua a oração com tanta
insistência, é por fazer ela parte intrínseca da economia da salvação.
Efetivamente, dado que Deus baseie sua ação pessoal tanto quanto
possível, no concurso de causas subordinadas, e que o homem, na
medida de suas forças, deva cooperar para própria salvação, a
Providencia divina não podia colocar ao dispor da criatura um meio
mais natural e que estivesse mais ao alcance de todos.

De fato, podemos inquirir a nós mesmos se por acaso existe outro


agente que não este, quando vemos até que ponto reina, em toda a
parte, o esquecimento de Deus, a indiferença religiosa, a dissipação, o
espírito mundano que domina de um extremo da terra a outro.
Sofrermos de doença mortal e essa enfermidade é a frieza de nosso
coração para com Deus e para com tudo o que diz respeito ao
sobrenatural. O homem caminha a esmo, como a sonhar, até que
sobrevenha a morte, e então adormece ele na eternidade, como o
desgraçado viandante entorpecido pelo frio, nos cimos nevosos dos
Alpes. Que é preciso para tirar o pobre desse torpor mortal? Orar. A
prece é o bom anjo que nos levará novamente a refletir, a entrar em
nós mesmos, a meditar, a examinar-nos, que despertará em nosso
coração o desejo latente, as saudades de outra pátria mais feliz, de
um mundo melhor e, em nosso espírito, o pensamento de Deus
nosso Pai, tão menoscabado e esquecido. Foi á oração que o Filho
Pródigo deveu a dita de tornar a casa paterna. E' ela ainda e sempre
que, neste mundo, destrói o pecado e combate o olvido de Deus.
Além disso, os dissabores, as decepções, os infortúnios são tão
freqüentes neste vale de amarguras que, privado de consolo, o
homem entregar-se-ia ao desespero, cavando assim a própria ruína.
O nosso coração anseia por um amigo a quem possa confiar suas
magoas e tristezas. E não é Deus o melhor e mais seguro dos
confidentes? Onde encontrá-lo, porém, se não for na oração, a qual é
um comércio que com Ele mantemos?

A oração exerce em nossa alma o duplo ofício que tem a respiração,


relativamente a vida física. E' por ela que, de certo modo, exalamos
nossos sofrimentos, nossas necessidades e angustias e aspiramos a
graça, o conforto, a luz.

“Bendito a Deus que não me recusa o domínio da oração, nem a sua


misericórdia”. Ps. LXV. 20.

CAPITULO V

O poder da oração

A oração opera maravilhas.

1. Como todas as obras sobrenaturais, é ela meritória e satisfatória. O


que propriamente lhe pertence é a impetração. O homem ora e pede:
Deus lhe ouve e atende a prece, não tanto em vista dos merecimentos
que a criatura possa ter, porém, principalmente em virtude da mesma
prece. A impetração corresponde á força da oração como tal e não ao
mérito daquele que ora. E esse caráter particular, é o que mais
cabalmente demonstra a excelência da oração e sua valia aos olhos de
Deus.

2. E até onde vai o poder da impetração? Entende-se a todas as


necessidades do homem sem excetuar nenhuma, não tendo
outros limites que não os da onipotência e misericórdia divinas.
Assim no-lo afirma o Salvador: Crede que obtereis tudo o que
pedirdes (Math. XXI 22; VII, 7.) Pedi e recebereis (Joann. XIV, 13.)

Se, pois, Deus nada excetua, não nos cabe a nós fazer restrições. Por
conseguinte, devemos pedir tudo o que razoavelmente desejarmos e
que seja conforme á vontade divina, mormente os bens espirituais. A
nossa confiança de obtê-los deve estar na razão da excelência e neces-
sidade desses dons. Relativamente às vantagens temporais, importa
proceder com alguma reserva. Tal delas não nos poderia ser concedida;
senão por punição divina. A Sagrada Escritura prova magnificamente a
eficácia da oração. Israel no deserto, Moises, Josué, os grandes feitos
dos juízes e os dos Macabeus, os milagres de Jesus e os dos Apóstolos,
em suma toda a historia do antigo Povo de Deus e a da Igreja não são
mais que a historia da oração e de seus efeitos. É uma continua e
maravilhosa cadeia em que a prece humana e a humana miséria se
entrelaçam com a misericórdia divina, o socorro de Deus.

As leis naturais derrogam ante o poder da oração, porquanto


momentaneamente podem permanecer suspensas: Foi a oração que fez
parar e retroceder o sol (Jos. X, 13).

Assim como a abóbada celeste se estende sobre nosso globo, tal a


prece se desdobra, por sobre a humanidade e lhe protege a marcha
através dos séculos.

3. Existe um mundo, o mais das vezes oculto aos nossos olhares e


conhecido apenas do céu, no qual a ação da prece se revela
gloriosamente; é o mundo das almas, o reino onde elas se formam e se
purificam santificando-se; Tudo acaba por ceder ante a suave e
penetrante eficácia da oração: paixões indômitas, violência das
tentações, ocasiões perigosas, de tudo ela triunfa, transformando o
homem, brandamente, por uma gradação insensível

O ferro é duro de malhar. Submetei-o: porém, a ação do fogo e


podereis dar-lhe a forma que quiserdes. Orai, perseverai na oração e
dominareis vossas paixões; quaisquer que sejam.

“Ei-lo que ora” dizia o Senhor a Ananias, referindo-se a Paulo,


convertido durante o percurso de Jerusalém a Damasco. Saulo só
respirava ódio e ameaças contra o Senhor: o Senhor o subjuga e,
mediante a oração, o transforma em seu Apostolo. Nada há que
temer de um homem que ora, assim como nada há que recear a seu
respeito.
Aquilo que os Antigos esperavam da filosofia, isto é, a nitidez e a
paz do espírito, o equilíbrio dos sentimentos, a fortaleza na
tribulação e no sofrimento, - a oração o dava aos primitivos cristãos.
Era ela que lhes fazia às vezes de escola e metafísica; era ela a
poderosa alavanca que lhes permitia soerguer a terra do mundo
pagão.

Ainda hoje, é nela que reside a força, a ciência e a política da


Igreja, que por meio dela triunfa sempre, seja subjugando o
adversário, seja convertendo-o.

4. Onde, porém, se acha o segredo da eficácia da oração?

Na união da criatura com o Criador. Grande é o poder do homem


no domínio da natureza, ainda quando se acha reduzido às próprias
forças. Qual não será, se ele opera com Deus e nele se apóia, se tem a
seu favor a Providencia, a Sabedoria e o Poder da mesma
Divindade?

É, pois, de admirar que haja milagres?

Mediante a oração o homem torna-se, nas mãos de Deus, um


instrumento inteligente, e assim a ele redunda parte do resultado.

Na aliança formada pela oração, entre Deus e o homem, este só


concorre com a própria fraqueza, a qual confessa, implorando o auxilio
divino. Deus contribui com a sua bondade, seu poder e fidelidade.

Não se trata, no presente caso, de qualquer mérito nosso, mas da


misericórdia divina, causa eficiente do poder da oração.

A fraqueza é sempre poderosa ante a verdadeira magnanimidade. Se


um animalejo recorre a nossa proteção, não lhe rejeitamos a súplica. A
criança é onipotente no seio da família; pede e tudo obtém.
Comparativamente ao animal, o homem é menos favorecido, em mais
de um ponto de vista. O animal nasce provido do necessário para
subsistir: possui armas e vestimentas; o homem permanece sem defesa,
por largo espaço de tempo. Eis a razão pela qual Deus o dotou de mãos
cuja habilidade e industria lhe permitem acudir ás suas necessidades.
Em relação á vida espiritual, a oração nos presta auxilio similar. Por
meio dela o homem pode prover-se de alimento, vestuário, adornos e
proteção; podem empreender coisas árduas e tudo leva a cabo. É ela,
pois, não somente a metafísica, mas ainda, a dinâmica do cristão. Quem
dera fosse a nossa vida sempre conforme ás suas leis!

Por meio da oração, o homem toma parte nos conselhos da S. S.


Trindade onde se debatem os interesses do mundo. Não há um só deles
em que a prece não tenha o direito de intervir e assim um simples e
humilde cristão regula, de concerto com a Divindade, os destinos do
universo. E sempre assim foi.

A sorte do cristianismo não se decidiu unicamente no combate da


ponte Milvia, nem tão pouco, apenas nos anfiteatro, onde os mártires
davam a Deus o testemunho do sangue; mas também no silencio das
igrejas subterrâneas onde oravam os fies; sob as palmeiras dos eremitas
êmulos de S. Paulo, e nas grutas dos Antonios. Imensa é a eficácia da
oração e não está na nossa alçada aquilatar o poder que ela nos confere,
porquanto, atinge o próprio Deus, que ela, num peculiar sentido,
desarma e violenta, evidentemente por que Ele assim o determinou. O
Senhor se apraz nessa violência que, longe de apoucá-lo, o glorifica.

Essa verdade nos deve animar e dar confiança na valia da oração, ou


melhor, na sua onipotência.

CAPITULO VI

Predicados que a oração deve ter

A nós que não a Deus, devemos atribuir a ineficácia de nossas preces.


Três são as causas determinantes dessa insuficiência. Ou ela se achá em
nós, ou em, nossa oração ou, enfim, no objetivo da mesma.

Mali, male, mala. Geralmente a oração deve reunir as


seguintes condições:

Primeiramente, cumpre termos uma consciência nítida ao que


constitui o objeto de nossa prece, isto é faz mister a intenção, a atenção e
o recolhimento. O ponto importante é não nos querermos distrair ou
não nos entregarmos, cientemente, as divagações. Como poderá Deus
atender-nos, se nós mesmos não temos consciência do que estamos a
dizer? Certamente o nosso anjo custodio sentirá pejo de apresentar a
Majestade Divina semelhante prece. Aliás, o nosso próprio interesse
exige que procedamos de modo diverso, porquanto, as distrações
voluntarias, não somente constituem obstáculo as graças divinas, mas
acarretam necessariamente um castigo. Quanto as involuntárias que
sobrevêm, mau grado nosso, elas não nos privam do mérito, nem tiram
a oração o seu valor satisfatório e imperatório. Apenas interceptam o
gosto, a doçura que nela poderíamos fruir. Deus conhece nossa
fraqueza e tem paciência conosco.

Em segundo lugar é preciso tomar a oração a sério e empenharmo-


nos em ser atendidos. Por conseguinte devemos orar com zelo e fervor;
estes, não consistem na multiplicidade das orações, senão na parte que
a vontade nelas toma. Não sobe o incenso se o fogo, consumindo·o, não
lhe desprende o perfume que se eleva aos céus. O fervor é a alma da
prece; deus escuta a voz do coração e não as palavras que os lábios
proferem. Conversar com Deus é sempre um ato importante e o que lhe
pedimos algo de grande valia. Eis porque o zelo e o desejo são
imprescindíveis. Se, por ventura, a confiança na virtude da oração vier
a fraquear em nosso espírito, recorramos a intercessão de outrem por
meio de prece em comum ou ainda publica; invoquemos os santos e o
bem dito nome de Jesus, ao qual está particularmente ligada a eficácia
da oração.( Jo.XVI,23)

Em terceiro lugar, importa que a prece seja humilde. Devemos


aproximar-nos de Deus como mendigos e não como credores; somos
réus de pecado e não podemos tratar com o Criador de igual a igual. A
própria humildade exterior vem muito a propósito; ela praz a Deus, o
predispõe em nosso favor e excita o zelo em nosso coração.

Em seguida - e esta condição é de suma importância - é preciso orar


confiadamente, com segurança. Tudo nos incita a isso. Deus quer que
oremos, logo, quer atender-nos. Somos criaturas suas e filhos seus;
esses títulos que nos dá jus a sermos ouvidos favoravelmente, Ele os
conhece e preza mais que nós mesmos. Finalmente, e importa não
olvidá-lo, temos que nos avir unicamente com a infinita misericórdia de
Deus a qual compete tudo decidir.

. Se grande deve ser nossa confiança, na oração feita em vista de obter


bens espirituais, faz mister, porém, evitar dois escolhos, quando for
questão de favores de ordem temporal: implorá-los
incondicionalmente, porquanto, eles nos podem ser nocivos, ou então
pensar que nunca os devemos pedir.

Ao contrario, cumpre fazê-lo; porém, de modo conveniente. Deus


quer que o reconheçamos também como origem e fonte de todos os
bens temporais; é a razão pela qual no-los faz pedir na Oração
Dominical.

Por ultimo, a oração deve ser perseverante. As prescrições divinas


que a ela se referem, insistem nessa condição. Devemos orar sempre e
incessantemente (Luc. XVII,1.) isto é, não descurar a prece por indolência,
desanimo, falta de confiança ou desprazer. Oramos sempre, quando o
fazemos regularmente, em momentos determinados; da mesma forma é
costume dizer que nos alimentamos sempre, quando não deixamos de
fazê-lo nas horas dadas. Se, por ventura, a nossa prece não for ato
tendida com prontidão, é mister convir em que,ou as nossas disposições
são insuficiente ou Deus quer pôr, a prova, a nossa boa vontade.
Quantas vezes não espera também Ele a porta dos corações! Aliás, nada
perdemos com a delonga. Cada vez que renovamos a oração o Senhor
nos recompensa com um novo mérito. Todavia, é preciso não nos
esquecermos de que não é Ele nosso servo e de modo algum está
obrigado a responder incontinenti ao nosso apelo. É um Pai generoso
que sempre nos concede o necessário para o bem nosso, porém, em
tempo oportuno. Pedir, a nós compete; deferir esse pedido é do
domínio de Deus. Deixemo-lo dispor da nossa prece como lhe
aprouver.

Orar, orar tanto quanto possível, faz também parte da perseverança


na oração. Urge orar muito, porquanto, de tudo carecemos e é dever
nosso interceder também por tantos outros. Pedir unicamente para si e
só advogar seus mesquinhos interesses não é preencher sua missão na
terra; é desconhecer o poder e a eficácia da oração. A nossa, deve ser a
de um filho de Deus, isto é, estender-se a todas as necessidades da
Igreja e da humanidade inteira.

Quantas graves e importantes questões, das quais dependem, em


grande parte, a salvação das almas e a gloria divina, estão, a cada
momento, perante o tribunal de Deus, a espera das respectivas solu-
ções! Incluir em nossas preces os interesses do mundo, apresentá-los ao
Senhor recomendando-os a Ele, é isto orar de um modo apostólico,
divino e ao mesmo tempo humano.

Assim o fez o Salvador e é o que nos ensina na Oração Dominical. Se,


por acaso, acontecer que não tenhamos intenção precisa ou particular,
percorramos, em espírito, as diferentes regiões da terra a fim de confiar
á proteção divina, os interesses que nelas se debatem; todos reclamam o
auxilio de nossas preces.

Assim como aprendemos a andar, a ler a escrever, andando lendo e


escrevendo, assim também aprenderemos a orar bem exercitando-nos
na prática da oração. Se esta nos parece enfadonha e insípida é porque
não recorremos a ela com assiduidade; e, no entanto, quanto importa o
gosto da prece, a facilidade de orar! Se prezarmos a oração seremos
engenhosos em achar tempo para o exercício da mesma. Encontramos
sempre ocasião propicia para aquilo que nos apraz.

CAPITULO VII

Da oração vocal

A necessidade da oração impõe-se de si mesma. A eficácia da prece é


imensa, consoladora a sua facilidade, porquanto está em nosso alcance
diversificá-la, ao sabor da conveniência própria.

A oração pode geralmente ser de duas sortes: vocal ou mental.

1. Oramos vocalmente quando nos servimos de uma formula


determinada, cujas palavras são pronunciadas de maneira que
possam ser ouvidas ou não.

2. É fora de duvida que a oração mental é mais excelente, todavia a


vocal não deve ser desdenhada, pelo contrario, convém tê-la em grande
estima, primeiramente por ser dirigida a Deus, razão de sobra, para que
seja prezada; além disso, acha-se ela em harmonia com a nossa natureza
que é um composto de alma e corpo. É dever nosso louvar a Deus, utili-
zando todas as fatuidades que dele recebemos: as do corpo como as da
arma. Na prece vocal, quem ora é o homem tomado em conjunto: seu
coração e sua carne rejubilam-se no Senhor(Salmo LVVVII). A Sagrada
Escritura denomina a oração: o fruto dos lábias que louvam a
Deus(Hebr.XIII,15). Há tantos que, não somente recusam essa homenagem,
mas ainda blasfemam o santo nome do Senhor! É pois, justo oferecer ao
Criador uma compensação; é a que lhe damos mediante a oração vocal.

Na formula da prece, a memória encontra um apoio poderoso, o


sentimento, um estímulo na articulação das palavras, nas quais a
inteligência acha ampla provisão de idéias e verdades.

As palavras são imagens e símbolos; postas em vibração pela vara


mágica da memória, elas nos descortinam magníficas perspectivas no
reino da verdade e fazem brotar mananciais da mais suave consolação.
- O Espírito Santo compôs, para nosso uso, no livro dos Salmos, as mais
belas orações vocais que se conhecem, e o Salvador levou a
condescendência a ponto de nos dar uma formula precisa desse gênero
de prece. Na celebração de seu culto oficial a Igreja só emprega orações
vocais, que, por via de regra, são mui breves. A maior parte da
humanidade só conhece esse modo de orar e nele encontra a salvação
eterna. E, pois, essa forma de oração a estrada real que conduz ao céu; a
escada de ouro por onde sobem e descem os anjos, levando a Deus as
mensagens da terra e trazendo aos homens as graças divinas. - Enfim,
mercê da oração vocal, a prece da cristandade, em todo o mundo, é si-
multaneamente particular e comum.

A oração vocal empresta sua voz potente a confissão da fé, a qual


comunica, aos cristãos; força e valor; com bate. e repele a incredulidade
e rejubila todo o céu.

Isto se dá, mormente, quando os fieis se reúnem em grande numero,


formando procissões ou romarias e que, através dos campos ou das
ruas das cidades, recitam o rosário e entoam hinos litúrgicos, pro
clamando altamente sua crença. Verdadeiras falanges do Senhor, neste
mundo visível, o rumor de seus passos apavoram os espíritos do erro e
da mentira, por quanto, essas generosas manifestações são uma prova
de que a terra não lhes é ainda propriedade exclusiva e que eles têm
que se avir com um povo que ora. Grande é o reconhecimento que
devemos a Deus pela graça da oração vocal e o melhor meio de lho
testemunhar é recorrermos a ela com assiduidade.

3. Entretanto, é preciso convir: esse gênero de oração apresenta


algumas dificuldades tais como a rotina e as distrações, resultantes
ambas do uso frequente e quotidiano, da continua repetição das
mesmas formulas. Com o intuito de dirimi-las, é bom empregar os
seguintes meios: Primeiramente façamos o firme propósito de nunca
começar qualquer oração, mormente vocal, por mais breve que seja,
sem antes nos termos recolhido por alguns momentos, a fim de refletir
no ato que vamos praticar e implorar de Deus a graça de fazê-lo
dignamente. Quem quer saltar um fosso, prepara, primeiro, o
arremesso. Sem essa curta preparação, começaremos distraídos e assim
iremos até o fim. Quanto mais breve for a prece, tanto mais necessário
se torna o recolhimento. Se a oração vocal for prolongada, convém
renovar, de vez em quando, essa retrospecção sobre si mesmo, ainda
que não seja senão por um instante; é este um· excelente meio que nos
ajuda a orar com piedade e fervor.

Em segundo lugar importa reprimir a curiosidade não permitindo


que nossos olhos andem a vaguear sem rumo; é bom conservá-los
fechádos ou então fixos em qualquer objeto. .

Com o intento de favorecer o recolhimento, faremos notar, em


terceiro lugar, ser licito, ao recitarmos uma oração, quer reflexionar
sobre as palavras que a compõem, quer ocupar o nosso espírito com a
pessoa a quem ele se dirige, quer, em fim, pensar em nós mesmos e em
nossas próprias necessidades. Um só desses pontos basta para que hája
a intenção requerida. Usar ora de um, ora de outro, variando-os muito
contribui para tornar a oração vocal fácil e proveitosa.

CAPITULO VIII

Modelos de oração
Há um grande numero de orações que constituem excelentes
modelos, dignos de todo acatamento, não somente pelo valor intrínseco
mas ainda em razão do seu autor, que é ou o Espírito Santo ou a Igreja.

Mencionemos, apenas, os Salmos, a Oração Dominical, a Saudação


Angélica, a Ladainha de Todos os Santos e as orações litúrgicas da
Igreja.

Consideremos cada uma de per si, em uma breve síntese:

1. - Os Salmos são as mais antigas orações de que temos noticia.


Inspirados por Deus, e destinados, na maior parte, ao culto do Antigo
Testamento, nem por isso deixam de pertencer a Igreja, pela estreita
conexão que têm com o Messias. São eles uma prece essencialmente
nossa; porquanto só no Tabernáculo Eucarístico encontram seu
significado próprio e sua completa realização. O objeto desses cantares
são Deus e o homem, as relações que entre eles existem por meio da
Revelação e da Lei, assim como as bênçãos, as esperanças, recompensas
e castigos que delas dimanam.

Deus é aí representado, ora, como Legislador, Rei, Doutor, Criador e


Pai; ora, como o Messias, o Esposo da Igreja, seu Pontífice e Redentor, a
braços com o sofrer e a amargura. Por seu turno, o homem também
aparece; considera e admira as obras de Deus e se compraz na lei do
Senhor; lamenta suas infidelidades, confessa seus erros, dá graças ao
Criador, implora sua bondade e anseia pela ventura de possuí-lo.

Todas as com moções e sentimentos que fazem pulsar o coração


humano acham eco nesses admiráveis cânticos. Sofrimento ou alegria,
apelo instante á misericórdia divina, grito de angustia na desgraça,
nossas aspirações todas encontram neles a expressão que melhor e com
mais verdade as traduz. Será necessário aludir aos Salmos da
Penitencia, mormente ao Miserere que se tornou, para as almas
contritas, a humilde confissão das próprias faltas? Aqueles quê se
deixam enlevar pelos encantos da poesia, descobrem na peculiar
formosura desses inimitáveis hinos, o que·é mister para satisfazer o
espírito e o coração. A leitura ponderada e assídua do livro dos. Salmos,
ensinar-nos-á o modo adequado de comunicarmos com a Majestade
divina. Unida a da humanidade toda, nossa prece será ditada pelo
próprio Deus.
2. Esta ultima consideração se aplica especialmente a oração
Dominical que goza do particular privilegio de ser composta por
palavras saídas dos lábios do Divino Salvador. Recitando a, podemos
dizer em toda a realidade: Vivemos e oramos mediante o Filho de Deus.
Aquele a quem dirigimos nossas súplicas, houve por bem ensinar-nos
pessoalmente, o modo de formulá-las. Ainda prescindindo dessa
prerrogativa, a oração Dominical não deixa de ser por si mesma, a prece
por excelência. É explicita, breve, completa. Neste ultimo ponto de
vista, ela possui a. essência do que constitui a prece: a invocação e a
súplica. O titulo de - nosso Pai - que damos a Deus, implica tanto a
honra do mesmo Deus, como a utilidade nossa, porquanto, traz á
memória as relações que a Ele nos unem como a um pai; inspira-nos os
mais reconfortantes sentimentos de respeito, amor e confiança; mostra-
nos no gênero humano a que pertencemos, a grande família do Pai
celeste. - As súplicas contêm tudo o que razoável e oportunamente
poderíamos solicitar e a ordem em que estão dispostas é a mais
adequada. Referem-se ou ao fim a que devemos tender, ou aos meios de
alcançá-lo. O fim é duplo: consiste na glorificação de Deus e em nossa
salvação pela posse do céu. Os dois primeiros pedidos relacionam se
com esse intuito. Dispostos em duas séries, acham-se, depois,
concatenados os meios de obtermos o nosso fim. Na primeira,
solicitamos os bens necessários a alma ou a vida material, - terceiro e
quarto pedidos na segunda, imploramos a preservação dos males que
possam ameaçar ou impossibilitar a realização de nossos desígnios - os
três últimos - Nossa ambição não poderia ir mais longe, nem almejar
coisa melhor. Tudo se acha sumariado nessa prece divina.

É ela, pois, a oração modelo onde tudo é grande,


excelente e magnífico. As súplicas visam os mais caros
interesses do homem e todo o seu ser, no tempo como na
eternidade. Segundo o testemunho dos Padres da Igreja, a
Oração Dominical é um compendio do Evangelho e da
própria Religião. Instrui a inteligência, fortifica a vontade
comunicando-lhe a direção de que ela há mister; resume
nossas aspirações, súplicas e anelos, relativos a salvação
eterna; traz com sigo o penhor de que seremos ouvidos
favoravelmente, porquanto, orando, servimo-nos das
próprias palavras de Jesus Cristo que intercede conosco, e,
sendo Ele nosso Senhor e Pontífice, é sempre atendido em
razão de sua dignidade de Filho de Deus. Nenhuma outra
oração nos une mais intimamente as intenções e aos sentimentos do
Salvador, a seu espírito e ao desejo que Ele nutre de promover a gloria
de Deus e nos obter a salvação.

A Oração Dominical é a eloqüente expressão do amor de Jesus por


Deus seu Pai, pela Igreja e por toda a humanidade. Nela está
concentrado tudo o que individualmente possamos desejar assim como
o que corresponde a todas as necessidades do gênero humano. É ela,
pois, a prece da família, do reino de Jesus·Cristo e da Igreja.

3. Mediante a Saudação Angélica, temos o consolo de associar, à


nossa prece vocal, Maria, Nossa Senhora, Soberana e Mãe de cujas mãos
recebemos todas as graças e em cuja proteção queremos viver e morrer.

É de nobre estirpe a Ave Maria; é a saudação que, em nome


de Deus, um Anjo trouxe do céu e jamais mortal foi dela
favorecido. O Espírito Santo a ampliou, por meio de algumas
palavras inspiradas a S. Isabel, e com o fito de transformá-la em
prece, a Igreja acrescentou o pedido que a finaliza. Desde o XVI
século, a Ave Maria é, sob a forma atual, recitada por toda a
cristandade. Acompanha a Oração Dominical e, no concerto da
prece cristã, é o acorde que ressoa em honra da Virgem Mãe.
Denominaram-na, com razão, - saudação ininterrupta porque
efetivamente ela nunca cessa de ecoar na terra para se elevar
até o céu.

De que se compõe a Ave Maria e como se encadeiam sua diversas


partes? Como qualquer outra oração, contem ela uma invocação e uma
suplica. A invocação compreende cinco títulos de louvor a gloria da Mãe
de Deus. Os três primeiros formulados pelo anjo, referem-se ao mistério
da Encarnação do qual era mensageiro o mesmo anjo. Recordam como
Maria pela plenitude da graça recebida, estava cabalmente preparada
para esse grande mistério, explicam, em seguida, a natureza da própria
Encarnação - Deus habitando em Maria, de modo todo especial pela
concepção de seu próprio Filho; finalmente, o efeito desse mistério na
Virgem que é por ele elevada e bendita entre todas as mulheres. Por seu
turno, Isabel indica o principio e a causa dessa elevação e plenitude de
graças: - o divino Infante que Maria concebera e daria ao mundo.
A excelência da Virgem, bem aventurada entre todas, já notificada
pelas revelações do Anjo e de Isabel, a Igreja, por sua vez, novamente a
proclama e atesta por meio de palavras que são e serão para todo o
sempre, um dogma memorável de nossa fé: - Mãe de Deus. - Essa
gloriosa invocação encerra tudo o que a fé nos ensina em relação à
Maria; é Ela por assim dizer, a suma da doutrina católica, nesse
particular.

A suplica de uma profunda significação, não obstante sua brevidade,


lembrando-nos a hora presente e aquela em que havemos de abandonar
o mundo, resume toda a nossa vida e a instante necessidade que temos
de auxilio e proteção; exprime eloquentemente a idéia que formam os
cristãos, da onipotente intercessão de Maria, e a confiança que
depositam na misericordiosa dispensadora das graças.

Não se limita, porém, a isso, a eficácia da Saudação Angélica.


Reunida, combinada de diversos modos com outras orações, ela assume
lugar preeminente, em duas importantes devoções: o Ângelus,
assinalado três vezes por dia, pelos sinos das igrejas, e o Rosário. Estas
duas devoções não são mais que a Saudação Angélica repetida, a qual
se fizeram algumas adições, no intuito de dar ao sentido das palavras,
uma relação com os mistérios da vida, morte e gloria de Jesus e Maria.

Desde então, se bem compreendermos a significação e importância


da Ave Maria, se tomarmos o costume de recitá-la piedosamente,
podemos ficar certos que oramos com fervor e proveito para a nossa
alma, glorificando, ao mesmo tempo, a Mãe de Deus e Mãe nossa. Cada
um de nossos dias será semelhante a uma flor desse jardim de rosas,
onde Maria se compraz de habitar.

«Mas, poder-se-á objetar, não será fastidioso repetir sempre as


mesmas palavras e insípida a monotonia de uma única prece?»

Se a oração nos parece monótona e as palavras falhas de senso, é por


culpa nossa. A vista habitual de uma imagem querida, a repetição de
um nome amado, ou ainda de um mavioso canto, nada tem de
enfadonho em si mesmo. O pássaro repete sempre o mesmo gorjeio e
nunca dele se enfastia; a criança não cessa de redizer os mesmos nomes
e emitir as mesmas idéias, não obstante, os pais experimentam cada
vez, um júbilo novo por quanto, essas coisas sempre repetidas, partem
de um coração amante. O essencial é amar e pensar no objeto amado; e
o que estimula o amor é a reiteração amiudada das mesmas idéias e
verdades para que o espírito dela se compenetre.

4. Estas considerações se aplicam também a recitação do Credo, do


Gloria Patri e das palavras que acompanham o sinal da Cruz. Até em
suas formulas de oração, a Igreja possui uma força, uma diversidade
maravilhosa. Assim como Deus esparzi por sobre a terra mil germens
de flores os quais desabrocham em uma infinidade de variegadas
espécies, assim, no magnífico domínio da oração, o Espírito Santo
opera, sem cessar, estupenda diversidade.

As orações cristãs e católicas contêm tal opulência e plenitude de


verdades, que jamais poderão exaurir-se. É a mais perfeita unidade na
mais encantadora variedade. Assim o Gloria Patri é a explanação das
simples palavras do sinal da cruz; e o Credo é um comentário mais
copioso de ambos. Ao nome das três divinas Pessoas, evocadas com
brevidade nas duas primeiras orações, acrescenta-se no Credo, a
menção das relações existentes entre estas mesmas Pessoas; do modo
como procedem uma da outra e das respectivas operações exteriores. E
o Credo torna-se desta feita o compendio de nossos dogmas, o símbolo
de nossa fé, um magnífico drama, por assim dizer, uma sorte de Divina
Comedia onde se nos deparam em grandiosa concatenação os festivos
divinos e os mistérios sobrenaturais.

5. Ainda uma palavra sobre as orações litúrgicas ou formulas de que


se serve a Igreja, no seu culto publico e por esse motivo estão revestidas
de sua aprovação. É indubitável que, entre as preces não reveladas, elas
devem ter a primazia em a nossa estima e veneração. Ensinando-nos o
que devemos crer, a Igreja nos indica a maneira de orar; a regra de sua
fé é também a norma de sua prece, e em nenhuma parte encontraremos
orações mais substâncias e tão profundamente impregnadas do espírito
cristão e do perfume católico. Nelas, como nos Salmos e na Oração
Dominical encontram-se a clareza, a simplicidade, a concisão, a
garantia de sermos atendidos. Quando a Igreja ora, o Espírito Santo,
inspirador de sua prece, intercede com ela. Para fazermos idéia do
amor, da terna solicitude, do carinho com "que a Igreja cerca a
humanidade, é bastante ler as orações do Santo Sacrifício da Missa,
particularmente as da Sexta-Feira da Paixão e do Sábado Santo. Não há
um modo de ser, um interesse, um sofrimento da mísera família
humana, de que ela não tenha a intuição e a inteligência, pelo qual não
sinta compaixão ou deixe de interceder. Sendo todos os homens filhos
seus, ela os reúne numa mesma prece, em um só amor.

As Ladainhas e, com especialidade, a de Todos os Santos, oferecem-


nos uma excelente forma de oração que remonta ás primitivas eras
cristãs quando a Igreja se dirigia súplice, em peregrinação, aos túmulos
dos mártires ou aos principais santuários. A ladainha dos Santos,
disposta com o intento de servir para uma recitação alternada, e levada
a efeito por grandes multidões, lembra-nos, outrossim, que vivemos em
pleno cristianismo e entre irmãos. Os interesses da Igreja, as
necessidades comuns aos cristãos, tudo é relembrado
pormenorizadamente. O clero e o povo unem as vozes, fazendo subir
suas súplicas ao céu. Os membros do clero formulam o objeto da prece,
o povo repete em coro as mesmas palavras. Esta particularidade é uma
reminiscência da constituição outorgada por Jesus Cristo á sua Igreja e
da jerarquia que nela estabeleceu. Nas invocações dos Santos, nota-se o
cunho eminentemente católico: aludimos a uma peculiar humildade, a
atestação da comunhão dos santos e da grande lei da mediação,
mormente da de nosso Salvador, Medianeiro supremo e universal cujos
méritos solenemente proclamamos, enumerando os mistérios de sua
dolorosa Paixão e os de sua vida gloriosa. A ladainha de Todos os
Santos é, pois, uma formal profissão de fé cristã. Tudo nela é instrutivo,
simples, natural, grandioso e do mais puro catolicismo. É u.m modelo
acabado de oração comum e popular.

Vem a propósito dizer alguma coisa a respeito das antífonas que, de


conformidade com as estações do ano eclesiástico; a Igreja acrescenta a
seus ofícios em honra de Mãe de Deus; são elas flores de suave poesia, o
que não exclui, como por exemplo, na Salve Rainha, uma delicadeza de
sentimentos profunda e levada até o sublime.

6. Eis algumas das preciosas gemas que podemos auferir do tesouro


das orações vocais da Igreja, tesouro, na verdade, magnífico confiado à
totalidade dos cristãos, e a todas as almas que invocam o santo nome de
Deus. Além dessas, possuímos grande copia de outras orações vocais;
nossos manuais estão cheios delas. Tanta opulência quase nos
empobrece, porquanto, a multiplicidade nos põe em risco de nos
tornarmos superficiais. Com efeito, não é singular, irmos aprender nos
livros o que devemos dizer a Deus? Se não for possível proceder de
outro modo, empreguemos, esse meio; antes nos servimos de um livro
que orar mal ou deixar de fazê-lo. Entretanto seria melhor utilizar de
preferência as antigas e sempre usuais formulas de prece, aprendidas
desde a nossa infância: A Oração Dominical, a Saudação Angélica, o
Credo, o Gloria Patri. Eis o nosso verdadeiro livro de orações. Tudo o
que pudermos encontrar nas diversas compilações se encontra aqui,
numa forma mais singela; mais eloqüente inteligível. Para alcançarmos
esse resultado é mister, porém, darmo-nos ao trabalho de penetrar o
sentido dessas orações fundamentais, aprofundá-las e nos familiarizar
com elas.

7. Outra excelente maneira de orar é o uso de jaculatórias. No que


concerne a oração, é isto uma indústria pessoal. Consistem as
jaculatórias, em aspirações ou ato de virtude muito breve, os quais, no
decurso do dia, segundo as circunstâncias e sem preparação especial,
desprendem-se de nosso coração e se elevam a Deus. Tudo pode dar
ocasião a esses impulsos da alma: o sofrimento, os prazeres, uma graça
obtida ou tentação que nos assalte; o desejo de renovar nossos bons
propósitos ou as lembranças do que consiste o ponto do exame
particular, uma igreja que nos antolha, uma imagem de um santo ou
ainda a presença de tal pessoa a quem desejamos qualquer bem ou
queremos preservar de algum mal, finalmente, o cuidado de aproveitar
os instantes de lazer, assaz numerosos, se neles atentarmos. Para uma
alma amante a oração, muito importa vigiar com calma e prudência a
fim de que esses momentos, deixados os mais das vezes improdutivos,
sejas frutuosamente empregados no louvor de Deus. É isso – seja-nos
permitida a comparação - uma espécie de comércio por miúdos; mas
um negociante avisado, não descura os pequenos proveitos, pois que é
isto um meio de se enriquecer. Quem menospreza as pequeninas coisas
não é digno das maiores. As jaculatórias são parcelas diminutas, sim,
porém, parcelas de ouro.

Essa maneira de orar e isenta de distração, antes que estas cheguem


já as invocações alaram-se céleres a Deus. A pratica inteligente das
jaculatórias mantém a alma numa disposição propícia a oração. Aquele
que se limita a orar apenas quando for necessário, arrisca fazê-lo mal.

Relativamente a prece, essas aspirações são o mesmo que os miríades


de pequenos astros cintilantes, para uma noite límpida e serena: ornato
e luz, consolo supremo, quando a sombra da hora extrema invadir o
céu de nossa existência.

CAPITULO IX

Da oração mental

A oração mental ou meditação é outra forma da prece.

1. Denomina·se mental, porque não tem formula determinada,


e as palavras não são emitidas. E' também, chamada - meditação
- consideração -- porque, efetivamente, consiste num refletir
sério, sobre as verdades da fé, no intuito de adaptá-las ao nosso
viver pratico. Abstraindo dessa forma utilitária, a meditação
torna·se mero exercício especulativo ou estudo teológica. E'
ainda uma prece, porquanto, considerar qualquer verdade, é
apenas predispormo-nos a oração, a qual consiste propriamente no
comércio intimo com Deus. Orar é conversar com Deus, e sem este
característico a meditação se reduziria a uma simples reflexão ou
conversa da alma com sigo mesma.

2. Antes de tudo é mister precavermo-nos contra a idéia


errônea de ser a meditação coisa mui sublime, por demais difícil
e, por conseguinte, fora do nosso alcance.

Quantas vezes meditamos sem nem sequer atentarmos a isso!


Quando, por exemplo, examinamos o modo de empreender este ou
aquele negócio, por que e como nós devemos encarregar dele, não
fazemos mais que refletir e ponderar. Si a questão concerne à vida
espiritual, é só ajuntar-lhe a prece para termos uma meditação em
regra.
3. Há diversas maneiras de orar mentalmente. Alguns autores
espirituais indicam determinada série de idéias, de atos e
reflexões como adorar, humilharmo-nos ante a Majestade divina,
produzir atos de fé, de esperança e caridade, etc. S. Ignácio preconiza o
método denominado - das três potencias - A memória, a inteligência e a
vontade são aplicadas na consideração de um mistério da vida do
Salvador. A memória resume brevemente, seja a verdade proposta a
nossa consideração, seja a narrativa de um fato histórico, acrescentado,
mediante a fantasia, a composição do lugar - ou representação do sitio
onde se desenrolou a cena. A inteligência especulativa aplica-se a
penetrar no âmago do mistério, a compreender-lhe a verdade, a
excelência, a beleza, as consolações; a inteligência prática deduz as
adaptações que podem ser feitas a nossa vida ordinária. A sensibilidade
suscita atos de complacência ou desprazer em relação com o assunto
meditado. A vontade assimila-se o ensinamento recebido e toma sérias
resoluções, implorando de, Deus a graça de lhes permanecer fiel.
Ajunte·se breve oração preparatória a fim de dispor o espírito e está
completa a meditação.

Este método consiste especialmente em exercer as potencias da alma


aplicando-as ao conhecimento de uma verdade da fé ou de um
acontecimento histórico, o qual por sua vez pode ser dividido em varias
partes, sendo possível apresentar cada uma, de per si, as faculdades da
alma num tríplice ponto de vista: personagens, palavras, ações.
Indicada de algum modo pela própria natureza, esta forma de
meditação simples e fácil, constitui excelente exercício. O homem todo,
servindo-se das faculdades de que dispõe procura, mediante o auxilio
de Deus, compenetrar-se da verdade divina, e pautar a vida quotidiana
em conformidade com as inspirações que dimanam dessa mesma
verdade.

As normas de qualquer arte são utilíssimas aos principiantes.


Paulatinamente a regra se transforma em hábito e a prática torna-lhe o
emprego cada vez mais fácil.

Além deste método, S. Ignácio ensina ainda três outros. O primeiro


consiste em percorrer os mistérios históricos tais como, em seus
pormenores, se apresentam aos nossos sentidos externos: olhos,
ouvidos, sensibilidade ou disposição em que nos achámos
relativamente às virtudes que lhe são peculiares. Utilizado até pelos
maiores Santos, este método singelo e cômodo, tem a vantagem de
purificar e santificar a imaginação estimular a vontade e fazer penetrar
a inteligência no mais intimo recesso dos sentimentos e virtudes do
Salvador.

Na segunda maneira de meditar, a alma passa em revista os


mandamentos, as obrigações do próprio estado, os sentidos internos e
externos, examinando seu proceder nesse ponto de vista, excitando, em
si mesma, sentimentos de contrição, fazendo bons propósitos, .ao caso
de reconhecer ter incorrido em alguma falta. A bem dizer, é isto mais
propriamente exame de consciência, mas é possível transformá-lo em
meditação, se, em referencia ao preceito, considerarmos o que é
ordenado ou proibido; e, quanto aos sentidos, a razão pela qual nos
foram outorgados e o modo de bem usar deles, a semelhança do
Salvador e dos Santos. Esta maneira de orar, sobre contribuir para
maior pureza da alma, constitui excelente preparação para o
sacramento da penitência.

O terceiro modo consiste em nos servirmos de uma formula de


oração; detendo-nos em cada palavra enquanto nela acharmos matéria
para reflexão ou sentimento. Este método é excelente e muito nos
auxilia durante os ofícios algum tanto longos, ou nos momentos de
fadiga ou abatimento. Ele nos dá uma compreensão mais clara do
sentido, da plenitude e formosura das orações, sendo ao mesmo tempo
precioso auxilio quando se tratar da oração vocal, pois nos ajuda a bem
recitá-la.

4. Nada é mais vantajoso a quem tem o lazer e a precisa


aptidão para refletir e considerar, do que familiarizar-se coma
oração mental. Quantas vezes, na Sagrada Escritura, o Senhor
não nos recomenda a meditação de sua Lei e a consideração de
seus benefícios! O divino Salvador orava incessantemente e a
vida contemplativa foi a parte de escol, por Ele recomendada,
em uma referencia a Maria de Bethânia.

Durante a meditação, a prece prolonga-se de si mesma, pois as


reflexões estimulam o fervor e o desejo; a oração reveste-se então de um
caráter de intimidade que sem isso não teria. Acresce que seus efeitos, o
mérito, a satisfação, as disposições para sermos atendidos, adquirem
maior força e valor.
Os mestres da vida espiritual são acordes em admitir, como axioma, a
imprescindível necessidade da oração mental para todos os que visam a
perfeição. Daí se deduz a obrigação de ser ela praticada, com peculiar
cuidado, nas comunidades religiosas, mormente nas Ordens que,
abraçando a vida mista e apostólica, conservam relações com o mundo.
Uma regra que prescreva a oração mental e a conscienciosa fidelidade a
observar essa prescrição, podem até compensar uma clausura
relativamente pouco rigorosa e vida exterior menos austera. Com efeito,
não é possível tornar-se apostolo e homem de fé, aquele que, amiúde,
não evoca as verdades eternas, no intuito de meditá-las, de penetrar-
lhes o sentido e modelar a vida pelos seus ditames, e se não impregna
da virtude que delas emana, por meio de fervorosa prece, construindo
assim uma reserva, onde se alimente a vida espiritual. Se não tomar
essa precaução, viverá sempre á míngua e nunca conseguirá fazer coisa
que valhá. A meditação possui excepcional eficácia para formar e
amoldar as almas, sendo, ainda nesse particular, superior á prece vocal.
Sem duvida, nesta, ultima, exercemos também as potencias da alma,
mas na primeira esse exercício é muito mais real aprofundado e
continuo.

A prática perseverante de oração mental, formará verdadeiros servos


de Deus, estribados em sólida virtude. Um abalizado mestre da vida
espiritual não hesita em afirmar ser a leitura, a oração vocal, a assistência
aos sermões, excelentes coisas no começo; mas que depois, a medição deve
tornar·se, para nós, livro, prece e prédica; a não ser assim, nunca passaremos
de aprendizes e jamais conseguiremos a verdadeira sabedoria. É esta a razão do
numero relativamente diminuto de contemplativos entre os sacerdotes, re-
ligiosos e teólogo (Gerson, Iib,. de myst. theolog. Pract. Consid. II.). Tomemos, pois, a
firme resolução de, tanto quanto possível, nunca omitiu a oração
mental. Em substancia, toda leitura espiritual, conjugada com a reflexão
e a prece pode tornar-se meditação, sempre preferível a oração vocal.
Até nesta ultima, se o tempo o permitir, é útil desviarmo-nos do texto e
nos entregarmos aos impulsos do coração a fim de elevar nossa alma a
Deus. Os exercícios de S. Ignácio constituem a verdadeira escola da
oração mental, mormente da meditação propriamente dita. É ·neles que
devemos haurir essa ciência divina ou dela nos impregnar novamente,
se porventura a tivermos olvidado.
CAPITULO X

As devoções da Igreja

A pratica das devoções da Igreja muito importa a vida de oração.

1. - Tomadas em conjunto, são elas homenagens prestadas a Deus e,


por sua natureza, fazem parte dos exercícios do culto divino.

O seu objeto é sempre qualquer causa pertencente ã fé, ou que a ela


se refira. Nesse ponto de vista, as devoções nada têm de novo. O que,
porém, as remoça é a particularidade seguinte: Em épocas diversas, ao
influxo de súbito raio de luz, brota uma flor na arvore da fé; fixa sobre
si a atenção dos fiéis, torna-se o objeto de atrativo especial para as
almas e, com a aprovação. Da Igreja, entra para o domínio do culto
publico. A coisa é antiga, nova, porém, é a luz dimanada do Espírito
Santo, cuja ação divina em introduzir a Igreja em toda verdade e,
por esse meio, franquear a seus filhos, segundo as
necessidades de cada tempo, novos mananciais de auxilio e
consolação, dirigindo-os para o fim particular que a Providência se
propõe no decorre dos séculos.

2. - A oração é o primeiro ato e o mais natural das devoções,


porquanto, estas pertencem ao domínio da Religião, cujo exercício
capital é a prece. Daí, o atrativo para a oração que caracteriza as
devoções e, se ele for atingido pelos fieis, elas entram na vida pratica e
por sua vez tornam-se incentivo da prece. Para nos convencermos dessa
verdade, basta considerar, mesmo por alto, quantas orações, festas e
cerimônias, as devoções introduziram na Igreja. Seria incalculável
perda, para a vida de oração, apreciada em si mesma, se, conservando-
se apenas a missa e a ,comunhão, fossem suprimidas as enumeráveis
praticas e exercícios em honra da SS Virgem e dos Santos, com o cortejo
de preces e atos religiosos que lhes são próprios.

Quão indigente e triste pareceria o ano no eclesiástico! São as


devoções que entretêm, no gracioso jardim da Igreja, as flores sempre
frescas e odorosas da oração e da piedade.

3. - A prece traz com sigo todas as graças que lhe são inerentes.

Ora, as devoções, afervorando o espírito, oferecem-nos o ensejo de


nos apropriarmos de grande parte das que se acham contidas nos
mistérios da fé e que, então, se esparzem mais copiosamente por sobre a
Igreja.

Há, numa devoção popular, tal e tão fecunda seiva de prece, que ela
só basta para transformar uma época toda e produzir um verdadeiro
ressurgimento.

Sabido é que Deus se praz em renovar a face da terra por intermédio


dos Santos, das Ordens religiosas e das grandes devoções. .

4 - O modo pelo qual estas ultimas operam esse renovo, essa


expansão da prece, traz a lembrança as palavras do profeta Oséas:
Atrai-los-ei com os elos de Adão, os laços do amor (Os., XI..4.). Com efeito, é
assim que Deus entra pela nossa porta, e sai pela sua própria,
acumulando-se, de certo modo, ao caráter, ás disposições e inclinações
de cada individuo e da época toda. As circunstâncias variam, assim co-
mo o tempo e as personagens. E' a razão que leva o Espírito Santo a
suscitar tantas e tão diversas devoções.

Por esse meio, Ele incita a Igreja a escrutar amorosamente o tesouro


da verdade e da ciência que o divino Esposo lhe deixou por dote, e ao
qual ela recorre sempre conforme as aspirações e necessidades de seus
filhos, tendo assim a oportunidade de revelar a própria formosura, as
verdades de que é depositaria e o império que exerce sobre as almas.

Então, irmanadas com as antigas preces e tradicionais cerimônias,


aparecem novas formas do culto suavizando o rigor e a
uniformidade das praticas habituais, e acordes com as mutações da
alma humana. As devoções da Igreja assemelham-se ao magnífico
festim de Assuero(Est.1,3 sqs): Cada qual encontra, nele o que lhe apraz e a
contento de seu gosto particular, a graça da oração lhe é oferecida sob a
forma atraente que melhor lhe convém.
Dir-se-ia que Deus e a Igreja se esmeram em cativar-nos a alma
conformando-se com a nossa inclinação e, por assim dizer, com o
nosso capricho espiritual, no intuito de nos fazer prezar a oração,
que é o canal de todas as graças.

Será possível resistir ao amor de um Deus que se mostra tão


condescendente para conosco?'

E' Ele que dá os primeiros passos com fito de despertar em nossa


alma o gosto da oração.

Felizes de nós se o Senhor conseguir o seu intento misericordioso!


Ele quer, por esse meio, solicitar·nos ao bem, levar-nos a perfeição
e, por conseguinte, a posse da eterna bem-aventurança.

CAPITULO XI

O espírito de Oração

1. Por espírito de qualquer coisa, entende-se aquilo que lhe


constitui a essência, o âmago, o seu mais nobre elemento, o que lhe
dá força, por assim dizer, a alma, e a suma das condições,
abstraindo das quais, essa coisa não poderia existir. O espírito de
oração, é pois o princípio ativo da mesma, o que nos atrai e prende,
o que a torna eficaz e nos permite realizar-lhe o glorioso fim.

2. Consiste ele em três requisitos. O primeiro é um alto conceito


da oração, a íntima convicção de seu valor intrínseco. Devemos estar
compenetrados não somente de ser ela um comércio com Deus,
compendiando-se nisso a sua excelência, mas ainda firmemente
persuadidos de que é a melhor e mais útil das ocupações. Sem
duvida, temos outros deveres· importantes: cumprir, por exemplo,
as obrigações do próprio estado, o que constitui ainda o, serviço de
Deus e, até certo ponto, uma oração. Sem embargo, há uma
diferença que importa não passar despercebida. Os outros misteres
a que nos entregamos, no intuito de nos conformar com a vontade
divina, não dizem respeito diretamente a Deus, mas, a um objeto fora
dEle, ainda que de um qualquer modo possa e deva a Ele referir-se. A
oração, porém, tem Deus por objeto imediato; por meio dela o servimos
pessoalmente, porquanto, depois dos atos das virtudes teologáis, o de
adoração é o mais excelente de todos.

Até no mundo, os áulicos que se ocupam do serviço pessoal do


monarca, são tidos em alta consideração. E' evidente que, para conceber
grande estima da oração, é necessário possuir uma idéia justa de Deus.
A falta desse conhecimento prévio é a causa do pouco apreço em que se
tem a prece, a ponto de ser ela muitas vezes negligenciada.

Orar, dizem, não é trabalhar; isso é bom para as crianças, as


mulheres, os infelizes e os velhos. - Não chegamos a esse extremo, sem
duvida, mas uma tal ou qual leveza de animo, a falta de espírito
sobrenatural e de fé viva, expõem-nos; sempre, ao perigo de não
prezarmos, devidamente, a oração e de darmos a primazia as
ocupações em que a vaidade, o capricho ou qualquer outra vantagem
temporal encontrem seu proveito. Devemos apreciar a oração como
Deus a preza e, na medida em que as nossas obrigações pessoais o
permitirem, dar-lhe a preferência sobre qualquer outro dever e até mes-
mo sacrificar-lhe tudo o mais. E' que se trata de um ato privilegiado do
serviço pessoal de Deus. Colocando-se nesse ponto de vista, afirmava
um eminente teólogo que teria preferido renunciar a toda sua ciência, a
omitir voluntariamente uma Ave Maria em suas orações obrigatórias.

Em segundo lugar, devemos estar profundamente convictos da


absoluta necessidade da oração para a vida espiritual, o progresso na
virtude e até para a salvação eterna. Se, como acima foi dito, o pouco
conhecimento de Deus é uma das causas de não darmos a prece o seu
valor real, podemos acrescentar que a ignorância de nossa própria
indigência muito contribui para esse deplorável erro. Descuramos a
oração porque não estamos persuadidos de sua imprescindível neces-
sidade. Urge convencermo-nos de ser ela um meio indispensável para
conseguirmos a perfeição e obtermos a vida eterna e que nenhum outro
a pode substituir. E assim é, não somente em razão do preceito formal
do Senhor, mas também pela própria natureza das coisas. É porque a
oração pertence ao domínio da lei natural e da divina e faz parte da
economia da salvação, haja vista a necessidade da graça, que Jesus
Cristo, os Apóstolos e os Padres da Igreja nos exortam a sua pratica
com tanta insistência. Logo, devemos orar se quisermos progredir,
orar ainda se não quisermos retroceder.

Nada adianta dizer: “Tanto vale orar como não, pois o que deve
vir, virá.” É incontestável que muitas coisas chegam a propósito,
porque oramos, e outras não, por descurarmos a prece. - Mas, dirá
alguém, não sei orar! Aprendei. Querer é poder. Quantas coisas
muito mais difíceis que a oração, conseguimos aprender a força de
vontade! “- Não tenho fé, logo é impossível orar.” Mas tendes a
graça da oração e pedi a fé e ela vos será dada. É orando que nos
exercitamos a crer. No dia em que abandonarmos a prece ou a ela
renunciarmos, iremos ao encontro do perigo, o pecado e da ruína. É
a vida penosa jornada, onde não faltam azares e dificuldades.
Ordinariamente, os homens se amoldam ao meio em que vivem e,
em regra, não são melhores que seus familiares. Se, pois, vivemos
numa ambiência sadia, a coberto das tentações, ignorantes do mal
que nos circunda, é por insigne graça e especial proteção de Deus,
sem a qual não evitamos um, escolho senão para toparmos com
outro e perecermos finalmente como, porém, obter esse auxilio
divino?

Mediante a oração que nos faz caminhar segurando Deus pela


mão, tal como a criança que se apega a mãe; e assim não corremos
risco de nos transviar. Privados desse socorro, espreita-nos o perigo.
Sem a oração, ·nada podemos; com ela tudo é possível.

Em terceiro lugar, o que constitui a força do espírito de oração, é a


confiança absoluta nesse apelo a misericórdia divina: "Pedi e
recebereis”, Consiste, essa confiança, na intima persuasão de que a
prece humilde e perseverante tudo alcança, Naturalmente não se
trata senão da que preencha as outras condições, exigidas pela razão
e pela consciência. Quem se limita a orar, sem se precaver contra as
ocasiões perigosas e pretende dessa sorte, garantir-se do pecado;
zomba da oração e requer um milagre. Se, porém, as condições
forem observadas, é indubitável que podemos; obter tudo, até as
coisas mais excelentes e dificultosas como sejam a formação do
caráter e a aquisição das virtudes. Há no Catecismo uma palavra de
ouro, referente a oração. “A oração - nos é aí dito – transforma-nos em
criaturas celestes”. O comercio com os ·sábios nos dá a sabedoria, o
comércio com Deus nos deifica. Tudo em nós, pensamentos,
princípios, sentir, intenções, tudo será semelhante a Deus. Aos
poucos, a imagem divina imprime-se em nossa alma. A
transformação opera-se lenta e insensivelmente, porém, de maneira
profunda e duradoura. O que era penoso e desagradável, torna·se
fácil e suave; a sedução do mundo perde o encanto que sobre nós
exercia. Só anelamos por Deus e pela eternidade. Que Vitória
alcançada sobre a natureza! É o fruto da oração perseverante e da
graça por ela obtida. Quão amáveis sois, lições da prece, tão suaves
e penetrantes como as que recebemos outrora entre os braços de
terna e carinhosa mãe! Então, aprendíamos a pensar, a falar, a
proceder como homens e como cristãos. E tudo sem esforço, sem
fadiga. E' que nossa mãe se inclinava amorosamente para nós e,
fazendo se criança, balbuciava conosco a linguagem infantil, a fim
de nos elevar o espírito e formá-lo a imagem do seu próprio. O
mesmo se dá com a oração. Nessa escola divina, quem nos instruí e
educa é o nosso Criador que mais uma vez nos forma a sua imagem
e semelhança. E' ainda na prece que devemos depositar toda a
confiança quando mourejamos pela salvação do próximo, porquanto,
sendo esta obra da graça, e não da natureza, quanto mais nos unirmos a
Deus, tanto maior será a abundancia das bênçãos que, por mediação
nossa, serão derramadas sobre as almas. Tudo o que é exterior e
natural, não passa, no fim de contas, de uma arma e esta, embora da
melhor têmpera, de nada serve se não houver um braço que a maneje.

O que contribui para nos unir a Deus é muito mais importante do


que aquilo que nos relaciona com os nossos semelhantes. Ora, é o
sobrenatural, é a oração que nos une a divindade. Deus pode fazer
grandes coisas ·servindo-se de um pobre instrumento, mas, para nos
tornarmos uteis ao próximo Ele exige a prece, porquanto, não é
somente pelo nosso esforço próprio mas também mediante a oração
que converteremos o mundo. Seja questão de nós ou de outrem, a lei é a
mesma. Deus assim o quis afim de que a honra e a gloria lhe sejam
atribuídas e não tenhamos a possibilidade de nos orgulharmos
apropriando-nos de uma coisa que é obra sua.

A oração tem mais eficácia que a predica e os outros meios. Podemos


orar sempre e em toda a parte, e a extensão da prece é incomensurável.
Falando ou escrevendo, atendemos um numero diminuto de almas:
A oração eleva-se até o céu e desce transformada em chuva de
graças fecunda e benéfica sobre as nações, sobre a terra toda e a
universalidade dos séculos. Ainda aqui, a historiada propagação da
fé e a da reforma da Igreja não são mais que a historia da prece.
Aquele que melhor possuir a ciência da oração será por isso mesmo
o mais zeloso apostolo e o mais devotado cidadão. Esta
consideração se reveste de máxima importância em nosso XX
século. A divisa hodierna é: Trabalhar! E trabalham, trabalham
afanosamente, com excesso, sem medida, porém, ai! de um modo
puramente exterior! É um suicídio extenuar-se o homem por essa
forma. E, depois, que resta de tão duro labor? Tudo passa e nós
como o mais. Só a piedade tem as promessas do tempo, e as da vida eterna
(I Tim., IV, 8). Orar, Trabalhar. É esta a verdadeira regra, a lei cristã, a
condição de um resultado permanente.

3. Sintetizando: O espírito de oração consiste num alto conceito


da mesma, na convicção pratica de sua necessidade, na confiança
em sua absoluta eficácia. Na vida espiritual é ele um preciosismo
domínio; é o princípio de todas as graças, a origem e consumação de
todos os bens, o meio por excelência. Enquanto o possuirmos, Deus
permanece conosco e nossa alma conserva a raiz de toda a perfeição:
tudo pode ser sa1vo ou ao menos, reparado. Sem ele, Deus não pode
fiar-se em nós; perde-lo é a desgraça extrema e a ruína iminente, Um
grande mestre da vida espiritual que é, ao mesmo tempo, grande santo,
Afonso, de Ligório, entre outras obras excelentes, escreveu um pequeno
opúsculo, no prefacio do qual diz ser essa obrinha o mais importante e
útil de seus livros, e declara que, se todos os outros viessem a ser
destruídos, e1e se daria por satisfeito, se só esse fosse conservado. O
opúsculo é um tratado da oração. Este parecer do santo, resume o que
foi dito, nesta primeira lição da vida espiritual: Profunda convicção da
excelência da prece;" sua necessidade, eficácias e extrema facilidade.

SEGUNDO PRINCÍPIO

Vencer-se

Por mais indispensável que seja, a·oração é apenas um inicio. É


imprescindível acrescentar-lhe a Vitória sobre si mesmo.
É esta a segunda das três lições fundamentais e a que dá
segurança e felicidade a nossa vida espiritual.

CAPÍTULO PRIMEIRO

Idéia exata do homem

A oração coordena os pensamentos e os dirige para Deus.


Torna- se fácil e suave a quem possui o conhecimento do mesmo
Senhor.

A vitória sobre nós mesmos obriga-nos a uma constante


introspecção e nos ensina o modo de nos avirmos, relativamente a
nossa própria individualidade. Ora, para que o nosso procedimento
seja adequado é necessário o conhecimento de nós mesmos e da
nossa natureza. Há três modos de encarar a criatura humana:

1. De acordo com o primeiro, o homem é naturalmente bom, perfeito


desde a origem. Perverte-se só mais tarde, não por culpa própria mas pela força
e as circunstâncias e em conseqüência de suas relações com o mundo
corrompido que exerce sobre ele a sua funesta influencia. Tem, pois, só uma
causa que fazer: garantir-se contra esse influxo deletério. No mais, pode deixar-
se ir, ao sabor das inspirações da própria natureza.

Tal é a teoria dos filósofos naturalistas, quaisquer que sejam seus


diferentes matizes. Negam eles toda a ordem sobrenatural: não querem
ouvir falar em pecado de origem nem de seus tristes remanescentes no
homem. É o otimismo absoluto que recusa admitir a corrupção e a
desordem, no entanto, tão visíveis, que afligem a humanidade e de que
ela dá testemunho.

Essa filosofia é a destruição do cristianismo.

2. No segundo modo, sustenta-se a tese contraria. O homem, dizem,


saiu bom das 'mãos do Criador, mas a culpa original atingiu-o a tal ponto, que
todo seu ser não é mais que pecado. O próprio Deus é impotente para lhe
restituir a bondade e a justiça internas, sendo necessário que Ele feche os olhos
á malicia intrínseca da criatura, cobrindo a extrinsecamente com a justiça do
Filho, o qual atrai as almas a si, mediante a fé e a confiança. Até no céu o
homem conserva sua perversidade original: Assim argumentavam os
Pseudo-Reformadores do XVI século. E' o pessimismo radical,
poderíamos dizer, uma sorte de maniqueísmo, pois que Deus mesmo
desiste de dominar o mal, uma vez que o permitiu. E, como essa
maneira de justificação é um contrassenso, ao homem, só lhe resta
desesperar de si.

3. Segundo a terceira opinião, Deus criou o homem bom e justo;


enganado, porém, pelo demônio ele decaiu e, como consequencia da falta de
origem e da subtração da graça santificante, foi, não somente privado do fim
sobrenatural, mas ainda lesado, em sua natureza, pela má concupiscência, não
essencialmente, sem embargo, de modo bastante sensível.

O batismo reintegra o homem no estado de graça, tornando·o bom, justo,


santificado intrinsecamente. 'Remanesce, porém, a força da concupiscência e
das paixões ·desordenadas, as quais, ainda que não o privem ·da liberdade, lhe
preparam duras lidas e lhe proporcionam continuamente ocasiões de ficado.
Ele pode sair vencedor em combate, mediante a graça de Jesus Crist,o e a sua
própria cooperação, se recorrer aos meios que a Igreja lhe oferece: a oração e a
luta contra, si mesmo.

Esta é a doutrina cristã e católica, a única verdadeira e exata. É


igualmente justa para com Deus e para com o homem. Abate e eleva;
avisa e estimula; enfim, traz com sigo a esperança. Nela, tudo está no
seu lugar. Dá a Deus a gloria de ser o autor e o consumador da justiça;
ao homem a honra e o mérito de cooperar para a salvação própria.

Não há exagero nem de um lado nem de outro. É o mais moderado


pessimismo e o mais razoável otimismo.

Resta ainda uma consideração de subida importância, e convém


nunca a perdes de vista: é que nossa vida toda está sujeita á lei da, luta
contra nós mesmos.
CAPITULO II

Em que consiste a vitória sobre si mesmo

A vitória sobre si mesmo denomina-se também - mortificação. E' o


que assusta desde logo. Ora, a pior das coisas é assustar-se alguém sem
saber por que, e o melhor meio de readquirir a tranqüilidade é verificar
ser a imaginação a única causa de nossos terrores. O mesmo se dá com
essa virtude; basta vê-la de perto, para com ela nos reconciliarmos.

1. Que é, pois, a mortificação? E' a compressão moral, o


esforço a que cumpre recorrermos, se quisermos viver segundo a
razão, a consciência e a fé; é a energia de que precisamos, para
proceder em conformidade com o dever, a fim de sermos o que
devemos e queremos ser: criaturas racionais, capazes de
compreender nossa dignidade de homens. A necessidade de
empregarmos a compressão, para atingir esse fim, é uma das
consequencias do pecado original; e continua atestação da queda
primitiva. Antes, não era questão nem de dificuldades nem de
sofrimento. Depois, as coisas mudaram. E, em razão da violência
que devemos exercer contra nós mesmos, esse trabalho pessoal
toma diferentes denominações: vitória ou domínio sobre si
mesmo, renúncia, mortificação, ódio de si próprio, outras tantas
denominações que designam uma coisa única e que estão de
acordo com a linguagem da Sagrada Escritura. Despertam a idéia
de combate, de privação voluntária, de esforço contínuo; e esse
pensamento não deixa de causar, ao espírito, certo mal estar. A
dificuldade não provém somente da coisa, em si mesma, a qual, na
essência, devemos desejar e apreciar, mas sobre tudo de nossa natureza,
atualmente enfraquecida e que importa corrigir.

2. Qual é, propriamente, o objeto desse combate? Que inimigo


devemos atacar e vencer? Desde já podemos afirmar que não é a
nossa natureza. Não a criamos e não é propriedade nossa:
pertence a Deus que dela nos deu o uso, mas não o direito de
arruiná-la. Nossas faculdades naturais não podem construir, tão
pouco, o objeto da mortificação. Delas havemos mister para viver
e operar. E' do nosso maior interesse mantê-las afetivas e
perfeitas. Serão por ventura as paixões, a mira desse combate?
Também não, porquanto, consideradas em si mesmas, elas são
boas, ou, pelo menos, indiferentes, e constituem o apanágio
indispensável de nossa natureza: somente o abuso as torna
nocivas. Em si, nenhuma dessas causas constitui, pois, o objetivo
da mortificação: o que devemos combater é unicamente a
desordem, o desregramento que nelas possam existir.

Ora, desregrado, desordenado, é tudo o que vai de encontro ao nosso


fim, que nos faz desviar dele, nos põe em risco de perdê-lo ou de nada
lhe aproveita. Logo, é desordem todo e qualquer pecado, desordem, o
perigo a que nos expomos, sem necessidade, desordem, as
inutilidades que não encontram justificativa diante da razão, da
consciência e da fé. Tal é o objeto da mortificação, e o único
propriamente dito. Eis o que importa combater e dominar se
quisermos viver de vida racional e pura.

3. O escopo da mortificação está, pois, nitidamente definido. Não


é empecer a natureza e muito menos oprimi-la, prejudicá-la e
arruiná-la, ao contrario, é ajudá-la, guiar-lhe os passos, melhorá-la e
dar-lhe força, vontade e perseverança para o bem: é reconduzi-la,
tanto quanto possível, á pureza, a justiça, a santidade de origem;
finalmente, é torná-la cada vez mais apta para utilizar suas
faculdades, empregando-as no serviço de Deus e do próximo.

O constrangimento, a violência, o mal estar, inerentes a


mortificação; não podem ser o alvo que visamos. Não nasceu
o homem para sofrer, mas para gozar, na alma e no corpo; foi
o pecado a causa única da mutação que sobreveio. O
sofrimento é, pois, uma circunstância acidental; não constitui
um fim, porém, o simples' meio de alcançar a vitória e a paz.
Aliás, a sensação penosa vai-se atenuando na razão direta da
energia e perseverança desenvolvidas durante o combate.

4. Para melhor compreendemos a importância da mortificação,


faz mister considerar o lugar que ela ocupa na hierarquia das
virtudes e a qual delas se acha mais intimamente ligada. A falar
verdade, ela intervém em todos os casos onde for preciso recorrer á
força e a energia, não obstante, aproxima-se sobre tudo das virtudes
de temperança e de fortaleza: da primeira quando se trata de
reprimir as desordens de qualquer paixão; da segunda, se for
necessário empregar o valor e a perseverança num empreendimento
de difícil execução.

Eis, pois, o que é a vitória sobre si mesmo. Dadas as


circunstâncias, é ela o que há demais simples e natural. Demanda,
apenas, que sejamos o que devemos e queremos ser, porquanto
exige que nos demos ao trabalho de viver como criaturas racionais,
em nobre integridade digna de cristãos.

S. Inácio diz, excelentemente, no livro dos Exercícios, que o


resultado da mortificação deve ser um absoluto domínio sobre nós
mesmos a tal ponto, que nunca nos deixemos arrastar por uma
paixão desregrada. Ligar-lhe outra importância que não esta, é
fantasia e só serve para fazê-la cair em descrédito. E' das idéias
falsas e errôneas que se origina, em grande parte, a aversão essa
virtude.

- A mortificação nos aparece como esse - leão postado no caminho


- (Prov.XXVI, 13) do que falam as Sagradas Letras. Consideramo-la
como instrumento de suplício destinado a torturar e imolar a nobre
natureza humana que Deus criou para seu serviço. Nada disso.
Importa, pois, formar idéias exatas, a esse respeito. É a resposta para
dirimir quaisquer dificuldades.

CAPÍTULO III

Por que devemos mortificar-nos

Numerosos são os motivos que nos incitam á pratica


da mortificação.

1. Primeiramente, cumpre não nos esquecermos de que nosso


estado é de decadência; isto é, uma condição sujeita a desordem e a
corrupção; aliás, a evidencia não nos permitiria iludirmo-nos a esse
respeito. Nossa natureza assemelha-se a um tronco de arvore tosco e
nodoso; as rugosidades, os nós, são todas essas inclinações
mesquinhas e perigosas, muitas vezes inconfessáveis, que nos
dificultam a pratica do bem, impelem-nos ao mal induzindo-nos ao
pecado. Somos repletos de amor próprio, orgulho inveja, indolência,
covardia, impaciência, sensualidade, inconstância! O mais prendado
dos homens pode decair miseravelmente de sua primitiva nobreza,
se vier a perder o domínio sobre si mesmo, cessando de lutar contra
a própria natureza. Descurar, por um só dia, de combater as nossas
más inclinações, é expormo-nos as mais funestas consequencias.
Enjaulam-se os animais ferozes, e, ainda quando dominados, a
prudência aconse1há que estejamos sempre de sobreaviso. Ora, em
todo homem existe o animal. Não há vileza de que a criatura não
seja capaz, sob o impulso das paixões desenfreadas. Só lhe resta um
refúgio: a graça de Deus, coadjuvada pela força que provém do
domínio de si mesma.

2., Sendo homens, vivemos na sociedade dos demais homens. Sem


duvida, o mundo não é o inferno, mas está bem longe de
assemelhar-se ao Paraíso. A vida é uma viagem, porém, não de
simples recreio. É mister lidar, labutar; ora, o trabalho, como a lida,
é uma fadiga. A vida é uma milícia, a ela não nos podemos furtar. É
ainda a vida uma sucessão de sofrimentos e de alegrias, de boa e má
fortuna; a prosperidade ensoberbece-nos até a presunção, a
adversidade nos abate até o desalento e gera o desespero.

A vida é a convivência com outros homens, ligados todos entre si


por uma rede de associações, classes, estados e vocações as mais
diversas, e cada cargo, cada posição, exige sacrifícios de toda a
espécie. Que advirá se não tivermos adquirido o domínio sobre nós
mesmos, um completo desprendimento e uma paciência a toda
prova?

De paciência havemos mister, para conosco, com os outros e até


para com Deus, e não é possível a sua pratica se não nos
renunciarmos a nós mesmos.

3. Somos cristãos e, no cristianismo, tudo nos incita á mortificação.


Nosso divino Salvador no-lo prega em sua doutrina e por seus
exemplos. É ela ensinada em todos os mistérios relativos a sua vida, do
presépio ao Calvário, e, a renuncia de si mesmo, é a condição
indispensável, imposta por Ele, aos que pretendem seguir-lhe seus
passos, na qualidade de discípulos. ( Mat. XVI, 24) A mortificação é, por
assim dizer, a divisa de sua doutrina. Crucificando o orgulho de
nossa inteligência, a fé cristã compendia todos os motivos da
abnegação de si mesmo. Os preceitos constituem outras tantas oca-
siões de renuncia e os próprios sacramentos, símbolos da
mortificação, nos ajudam a praticá-la mediante as graças de que são
canais. Segundo S. Paulo, a vida cristã consiste em morrer com Jesus
Cristo e ser com Ele sepultado (Rom. VI, 24 - Col. III, 3). O cristianismo seria
uma religião vã, senão exigisse o desprendimento essencial que nos
habilita a evitar todo pecado mortal, a resistir às tentações e a observar
os mandamentos.

O homem só pode entrar no céu pelo caminho estreito e a acanhada


porta do desapego (Mat. VII, 14). Rejeitar, de caso pensado o
desprendimento de si mesmo, é inspirar-se ele nas máximas da
natureza, renegar a fé e abdicar as noções da vida cristã.

4. Urge trabalharmos para a aquisição das virtudes, por ser esse o


único meio de atingirmos o nosso fim. A prática das boas obras, para
ele nos encaminhar mas essa prática requer forças e estas só podem ser
proporcionadas pelas virtudes, que constituem a capacidade
permanente de operar o bem. Necessárias a todos, são elas, porém, de
acesso mais ou menos difícil. É então que intervém a vitória sobre si
mesmo. Como já vimos, a mortificação não é uma virtude insulada, mas
que coopera com todas as outras.

É a virtude, por si mesma, bela, atraente, desejável; o que nos


amedronta e dela nos afasta é a dificuldades que oferece sua aquisição e
prática. Ora, o domínio de si mesmo dirime esse obstáculo. Aquele que
conseguir vencer-se, possui a chave de todas as virtudes. Eis o que
constitui a extrema importância da mortificação.

5. Outro tanto pode ser dito a respeito dos méritos, sem os quais não
podemos entrar no céu. Não há nenhum tão seguro, como a renuncia a
si próprio, por quanto ela vai de encontro ás impressões naturais e está
a salvo do perigo de ilusão. Nenhum é maior, porque não há' maior
vencer que vencer o homem a si mesmo, e essa vitória nos proporciona
ocasiões de praticar as mais excelentes virtudes.

A lembrança dos menores sacrifícios, das mínimas mortificações, nos


encherá a alma de jubilo, na hora extrema, e o mérito das boas obras
fixará para sempre a nossa eternidade. Se formos vigilantes, quanto
proveito podemos tirar das ocasiões grandes ou pequenas que se
nos·deparam no correr do dia!

6. Sendo assim, o mais excelente dos diretores é o que nos incita com
maior energia a alcançar a vitória sobre nós mesmos, e o melhor livro
espiritual, o que nos ensina a mortificação. O progresso na virtude, diz o
autor da Imitação, está na razão direta da violência que o homem fizer a si
mesmo. Isto é exato: a melhor espiritualidade e a menos sujeita a ilusões
é a que nos leva a purificar o coração, a praticar atos de virtude e, por
conseguinte, a extirpar as paixões desregradas.

Só o desprendimento é que nos dá os meios de conseguir esse


resultado. A mortificação é a pedra de togue da verdadeira ascese.

7. Enfim, queremos e devemos ser do nosso tempo, isto é,


‘modernos’, o que vale dizer que é mister vivermos em conformidade
com a nossa época, apropriando-nos o que ela tiver de bom, nas idéias e
criações. Bem longe de se opor a isto, Deus se serve desse ideal, dessas
tentativas e aspirações, para conduzir a humanidade a uma época e a
um fim por Ele determinados.

Hodiernamente a grande preocupação dos espíritos é a cultura, o


progresso, a civilização, em geral, e, particularmente, a formação da
individualidade, da personalidade, do caráter, enfim. Tudo excelentes
coisas. Efetivamente, de que aproveitará a ciência, a arte, a economia
social, e todo o progresso exterior, se, no magnífico cenário por ele
criado, o homem permanecer, individualmente, um bárbaro, destituído
de formação moral, escravo das mais degradantes paixões? se a
palavra do profeta encontrar nele sua triste realidade: «A terra que
lhe pertence, exubera ouro e prata; não há limites para os seus tesouros... o
homem degradou-se, vilipendiou-se(Is.7,sqs.).

Em que consiste a formação do caráter, da personalidade, da


individualidade, senão em formar, educar e fortificar a vontade de
modo a torná-la apta para o bem, capaz de tudo o que é nobre e
verdadeiramente digno de estima? E' especialmente a vitória sobre
si mesmo que opera essa transformação porquanto, por meio dela, a
vontade exercita as próprias forças e se torna o instrumento do bem.

8. Se o homem apreciar essa escola, e aproveitar dessa formação,


readquirirá a nobreza e o valor moral de que Deus o dotara
primitivamente. Cada ato de mortificação, qualquer vitória ganhá
sobre si mesmo, o aproximam do original divino. Torna-se ele,
segundo o desejo de Criador: a imagem de Deus, o santuário da
justiça, da sabedoria, da ordem, da formosura, da liberdade, da
verdadeira fé.

Mas para atingir esse ideal há uma condição indispensável: E'


preciso que cada qual se convença a si mesmo.

CAPÍTULO IV

Predicados que deve ter a vitória sobre si mesmo

Nobre e glorioso é o intuito que prosseguimos mediante a vitória


sobre nós mesmos; mas para consegui-lo é necessário que nossa
mortificação seja de bom quilate e possua qualidades mui peculiares.

1. Primeiramente o domínio de nós mesmos deve constituir


um principio a que sempre nos devemos ater. Alguns há, que
consentem em vencer-.se, porém de modo acidental, em determinadas
ocasiões e, por assim dizer, excepcionalmente, por ser isso
imprescindível, em razão dos inconvenientes que sobreviriam, no caso
contrario. Isto não basta. E' forçoso que a mortificação seja na nossa
vida um exercício habitual; metódico, admitido a priori como dever de
estado. Cumpre tomar a resolução de vigiarem nós mesmos, de não dar
largas a natureza, de violentarmo-nos, porque, de outro modo, não
conseguiremos dominar as paixões desordenadas nem o mal que em
nós vive e não cessa de constituir perigo. Nunca, olvidemos que a
concupiscência é a desordem não se acham em nós acidentalmente e
como por acaso, mas sim como herança de nossa natureza. Trazemo-la
conosco, ao entrar no mundo, e conservamo-la por toda a vida. Diz São
Paulo que o mal constitui, em nós, uma lei, um hábito arraigado, uma
potencia solidamente estabelecida. Ora, um hábito só pode ser
superado por outro hábito; a uma lei, é mister opor outra lei, a um
poder, outro poder. Aquele que quiser marchar com segurança, não
deve, cessar de repetir a si mesmo: "Cumpre vencer-te, violentar-te, senão o
mal triunfara de ti.”
2. Em segundo lugar, é necessário que a prática da vitória sobre nós
mesmos, abranja tudo; não devemos negligenciar coisa alguma, por
mínima que seja, mas usar de constante vigilância, em nosso corpo, na
alma e em cada uma de suas potências: memória, inteligência, vontade,
assim como em todas as nossas inclinações. Qualquer paixão descurada
é um inimigo que deixamos atrás de nós, que pode atacar-nos de
improviso e causar nossa ruína. A quem acudiria a idéia de que o apego
ao dinheiro viesse a transformar um apostolo em traidor, em suicida?
Uma paixão desordenada é temeroso adversário, e, por assim dizer, um
demônio prestes a estrangular-nos.

3. Em terceiro lugar o exercício da mortificação deve ser perseverante


e ininterrupto. O inimigo não dorme e o mal continua, em nossa alma,
seu trabalho, latente: é uma erva daninha que pulula, e força é termos
sempre o sacho em mão. Além disso, difícil coisa é vencer o homem a si
mesmo, lutar, incessantemente, contra a própria natureza; só hábito e a
pratica é que podem atenuar essa dificuldade.

Quando um pesado veículo está em marcha, ele avança regularmente


e com relativa facilidade, mas quando, após longo repouso, é preciso
repô-lo novamente ao caminho, que custo! Quantos clamores, quantas
vergastadas! O mesmo se dá com a mortificação; se a interrompermos
por largo espaço de tempo, novos estorvos se nos deparam e nos corre
a vida em meio de perpétuos transes.

.4. Enfim, - e este é o último predicado que requer a vitória sobre nós
mesmos, - cumpre não nos limitarmos a permanecer na defensiva, mas
tomar a ofensiva e estar sempre aparelhado para a arremetida. Esse
princípio da ciência militar aplica-se, com toda a propriedade, ao
combate espiritual. Logo, tomemos a dianteira, invistamos com o
inimigo antes que ele nos acometa, senão arriscamos a ser apanhados
de improviso e então a resistência viria demasiado tarde. E' sempre
mais fácil atacar que defender.

No assalto estamos em plena atividade e a vantagem é nossa; na


defesa, ficamos passivos e em posição desvantajosa. “Se quiserdes a paz,
preparai a guerra”, diziam os antigos. Tal é a tática preconizada por S.
Inácio, no livro dos Exercícios. Não devemos contentar-nos com o
necessário, mas ir além. Se sentirmos, por exemplo, a tentação de
ultrapassar certa medida que nos propusemos observar, relativamente
a alimentação; de omitir ou abreviar as orações habituais, tomemos
uma quantidade de alimento menor que a determinada e
acrescentamos alguns instantes ao tempo fixado para a oração. Assim
faz o soldado aguerrido do reino de Cristo. E' deste modo que nos
tornaremos temíveis ao demônio.

Tais são as qualidades da verdadeira mortificação; tais as armas de


que usam os fortes de Israel. Com elas poderemos arremeter contra o
inimigo, qualquer que seja, mas... unicamente com elas.

CAPÍTULO V

Algumas objeções

É impossível negá-lo; a verdadeira mortificação não é um brinco.


Como todas as obras séria, nobre e santa, ela apresenta alguma
dificuldade.

Aliás, não é esta a características de tudo o que é belo e grandioso? O


que nada custa, nada vale. Não admira, pois, que se levantem certas
objeções. Sempre assim foi, e isso está na própria essência das coisas.

1. Em primeiro lugar, é plausível ocorrer ao espírito a seguinte


pergunta: será possível levar essa vida de continua mortificação e nela
perseverar? A resposta se acha no Evangelho. A lei da abnegação nos
foi dada pelo divino Salvador e concerne a todos. É um simples
corolário do funesto pecado original, e ninguém a pode modificar.
Estamos em presença de um fato: ou vencer ou perecer. Além disso, a
própria razão reconhece a necessidade do desapego de si mesmo,
principio admitido em todas as eras por todos os homens ponderados e
de bom senso. As qualidades já enumeradas, que deve possuir a
mortificação, derivam-lhe do próprio fim e são indispensáveis para
atingir-lo. Ora, uma coisa ordenada por Deus, reconhecida como um
bem fundamentado, por todos os homens sérios, não somente admitida,
mas imposta pela razão, essa coisa é possível e realizável.

Efetivamente, imenso é o numero dos que observaram e observam


ainda hoje, essa mesma lei. Porque não conseguíamos o que eles
puderam e podem efetuar? Nem os socorros nem os meios nos falham.
Não estamos entregues a nós mesmos. S. Paulo geme a sua miséria,
termina, porém, o lamento, não por um grito de desespero, mas por um
hino de esperança e de vitória: «Desgraçado de mim! Quem me libertará
deste corpo de morte? A graça de Deus por Jesus Christo Nosso Senhor».

Nós também recebemos a graça da oração e uma vontade capaz, a


um tempo, de dobrar-se e resistir; temos a certeza da vitória, mediante
o auxilio divino.

2. «Não será, por ventura, nociva á saúde a pratica constante


da mortificação?

É possível que o seja, em dadas circunstâncias, se a prudência vier a


faltar. Aliás, é descabido proceder, cegamente, sem atentar no fim
proposto. O escopo da mortificação não é prejudicar a natureza e ainda
menos arruiná-la, mas, prestar-lhe auxilio; logo, se houver detrimento
real, é forçoso modificar o sistema. Uma incomodidade passageira não
constitui dano verdadeiro nem tão pouco um perigo. É também
imprudente não precisar o objetivo da mortificação, o qual deve ser
unicamente o que for desordenado, repreensível, perigoso e inútil, e
nunca a natureza em si mesma, nem o que nela houver de bom e
razoável imprudência, ainda, é querer alcançar tudo de uma feita.
Demos tempo ao tempo, em quanto Deus no-lo der. A natureza e a
graça procedem lentamente: o essencial é perseverar na obra encetada.
Enfim, é imprudente agir de nosso próprio movimento, sem conselho,
nem direção. Cumpre atermo-nos as decisões de um diretor
experimentado, no que disser respeito a medida, ao tempo e ·ao modo
de modificar-nos.

Tomadas essas precauções, nenhum perigo é para recear-se. O risco é


incontestavelmente mais sério, onde não há mortificação. É muito
maior o numero de pessoas que prejudicam a saúde, aceleram a morte e
de modo menos glorioso, pela falta de mortificação, que por se
excederem nela. Não obstante, é forçoso convir ser a mortificação coisa
difícil e árdua, porém, cumpre não olvidar que não é mais fácil, nem
menos oneroso, desdenhá-la para nos colocarmos sob o jugo das
paixões. Breve é.o prazer, duradouro o remorso. Aliás, a prática dirime
as dificuldades. A alegria da alma, a paz, a consolação, compensam
amplamente o labor e o sacrifício.

Em suma, a mortificação é penosa, quando não é praticada, como


principio, em tudo e de modo continuo. Nossa alma está efetivamente
enferma e, se quisermos curá-la, é necessário sujeitarmo-nos ai um
regime.

“Quero!" quantas dificuldades não foram superadas por esta palavra


mágica! De quantos feitos nobres e gloriosos não foi ela a origem!

Logo, saibamos - querer - e tudo está dito.

CAPITULO VI

Da mortificação exterior

1. A mortificação exterior consiste em empregarmos nossas forças


morais para manter na ordem e obediência os sentidos e faculdades do
corpo, a fim de nos servirmos deles segundo a razão e a consciência.

2. De um modo geral, o fim desta sorte de mortificação é


preservar-nos dos desvios e abusos, sempre possíveis, no emprego dos
sentidos e dispor os mesmos a pratica do bem. Em outros termos,
consiste em cercear tudo o que; constituir perigo ou incentivo
repreensível e cuja mira seja somente a satisfação própria. Abnegarmo-
nos, acostumar o corpo ao que lhe parece desagradável e penoso é
pratica de suma importância. Descendo a minúcias; é mister reprimir a
curiosidade dos olhos, não lhes permitindo que tudo vejam ou leiam,
mormente sem ver risco de sensualidade. Tão pouco, não devemos
consentir em requintes no que concerne ao paladar, mas nos contentar
de todo e qualquer alimento, não ultrapassar a quantidade determinada
e usar de grande reserva relativamente as bebidas. Quanto ao tato,
cumpre habituarmo-nos a um trabalho sério, a um sono moderado, a
suportar a fadiga e as intempéries das estações. Um excelente modo de
disciplinar os sentidos, e isento de qualquer, perigo, é observar o
decoro em conformidade com a nossa condição e vocação.
3. A pratica da penitencia exterior requer grande prudência e
moderação; não nos esqueçamos de que ela tem por fim auxiliar a
natureza e nunca prejudicá-la. Esse princípio nos deve servir de norma.
É de grande utilidade não continuar as mesmas penitências, por um
tempo prolongado; será bom variá-las. Uma privação imposta
passageiramente não acarreta, em geral, dano algum. Importa ater-lhe
cada qual a um regime que não enfraqueça as forças físicas ou
intelectuais, mormente se se tratar de pessoas jovens. Pouco, porém,
fielmente; dizia um santo, a propósito dessa sorte de mortificação.

4. O primeiro motivo que nos induza mortificarmo-nos é a


condição atual de nosso corpo e o seu pendor para o mal.

Conforme a doutrina cristã, após a queda primitiva, tornou-se ele


uma potencia do mal, um instrumento de pecado. A Sagrada
Escritura denomina-o simplesmente um «corpo de pecado» (Rom. VI, 6),
uma lei de pecado»(Rom.VIII,23.) e ajunta que a carne combate contra o
espírito(Gal.V,17). Eis por que S. Paulo castiga o corpo ( Cor. IX, 27) e
apresenta a penitencia própria como testemunho de sua missão
apostólica. A concupiscência, que constitui pecado, reside
propriamente na alma; mas esta forma com o corpo um único e
mesmo ser, e, consequencia dessa estreita união, o que se passa nos
sentidos repercute no espírito e se torna pecado, pelo consentimento
da vontade.

Quem Ignora a perturbação e o dano que pode causar um olhar


imprudente É pelos sentidos que a maior parte das tentações se
introduz na alma. Discipliná-los equivale a desarmar o demônio e
furtar-se o homem a tentação. A penitência tem por alvo tirar ao
corpo, não somente uma passividade ou excitabilidade demasiadas
relativamente as impressões dos sentidos, mas, também, comunicar-
lhe; de outro lado, facilidade, agilidade, disposição e perseverança para
operar o bem subtraindo-o a morosidade e indecisão a timidez, a
indolência e a mobiliza na consecução dos bons propósitos. O melhor
meio de conseguir esses resultados é a mortificação dos sentidos. Até o
espírito tira proveito da penitencia imposta ao corpo. O tratamento
pouco lisonjeiro que ele deve infligir a carne lembra-lhe constantemente
a própria fraqueza e inclinação ao mal. Perde assim o orgulho, causa
funesta de todas as faltas, e evita as ocasiões de pecado. Adquire força
contra a sensualidade, assim como o fervor o animo, a alegria, o gosto
da oração Pela pratica da penitencia exterior que consiste, em suma, na
mortificação corporal, o espírito reanima-se e, como águia, renova sua
juventude. Das profundezas da terra eleva-se ele as alturas da pátria
celestial.

5. Enfim, a mortificação nos é recomendada por todos os santos até os


mais brandos e amoráveis; aliás, eles apenas reproduzem a doutrina do
Salvador. Praticavam as austeridades com o rigor que as circunstâncias
e as respectivas vocações o permitiam.

- Certamente, está na essência do cristianismo dar o maior apreço a


mortificação exterior, rejeitá-la é desistir o homem de se tornar
espiritual.

CAPÍTULO VII

Da mortificação interior

1. A mortificação interior tem por mira introduzir a disciplina e a


ordem nas faculdades da alma, com o fito de afastá-las do mal e torná-
las aptas para o bem.

Por essas faculdades entendemos a inteligência, a vontade, a


imaginação e a faculdade apetitivo-sensitiva.

2. A importância da mortificação interior ressalta primeiramente da


sua comparação com a penitencia exterior, Esta é apenas um meio, uma
condição, um fruto daquela. A primeira constitui propriamente o
principio e o fim da segunda, comunicando-lhe seu valor moral. .

Abstraindo da mortificação interior, a outra é falha de consistência e


se reduz, quando muito, a religiosidade de um faquir, um modo de
adestramento aplicável aos animais. Em dadas ocasiões, a mortificação
exterior pode suprir-se pela interior, mediante o retiro, o recolhimento
de espírito e o desapego do coração. Em fim, a penitencia exterior deve,
necessariamente, restringir-se a certos limites; é variável quanto ao
lugar, a duração e a medida; a interior, ao contrario, é ilimitada, de
continua aplicação, e pode ser praticada sempre e em toda a parte.
Em segundo lugar, podemos aquilatar a importância da
mortificação interior, pela intima relação que ela tem com a
moralidade e o exercício da virtude.

Tanto a ordem como a desordem moral, a culpa, como o mérito,


têm o respectivo principio no nosso interior. .

Todo o valor moral de nossa vida, assim como a responsabilidade


de nossos atos, se acham em nós mesmos, no conhecimento que
temos das coisas e na liberdade própria. Segundo o testemunho do
divino Salvador é no coração que se gera o pecado. «No coração
originam-se os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, às fraudes,
os falsos testemunhos, as blasfêmias. São essas coisas que tornam o homem
impuro, porque a boca fala da abundancia do coração»(Mat. XV,18).

Ora, a penitencia interior possui todas as condições e


características de uma pura e sólida virtude. Sólido é tudo o que
procede de Deus, de um motivo sobrenatural, de uma vontade reta
e sincera, de um principio firme e verdadeiro e não da paixão, de um
simples impulso natural; é ainda tudo o que custa, que é árduo, que
pesa. Prosseguir, não obstante, é sinal certo de que não procuramos a
satisfação próprio mas reagimos contra a natureza. Sólido, enfim, é
tudo o que nos faz progredir, isto é, que tende a suprimir os obstáculos
que em nós se opõem as comunicações da graça. Essas qualidades,
próprias da verdadeira virtude, só se encontram na mortificação
interior. Por isso os santos e os mestres da vida espiritual a
consideraram sempre como a pedra de toque da perfeição e da
santidade. Esse é também o juízo do Mestre infalível, o divino Salvador.
Sem embargo de uma justiça aparente, os Fariseus eram, a seu ver,
sepulcros caiados que, sob exterioridade enganosa, ocultavam a
corrupção e a morte (Mat.XXIII,27).

3. A pergunta: Onde a mortificação deve, mormente praticar-


se? Respondemos:

A mortificação deve exercer-se de preferência em tudo o que diz


respeito a nossa vocação e constitui estorvo ao perfeito desempenho de
nossos deveres de estado; em seguida, nos pontos cuja necessidade se
impõe a cada um de nós, segundo as circunstâncias, as dificuldades
especiais, os defeitos particulares externos ou internos e, finalmente,
naquilo que for exigido ou solicitado por Deus.

CAPÍTULO VIII

Mortificação no que concerne a inteligência

Importa passar, agora, aos pormenores e considerar em que pode e


deve exercer se a mortificação.

1. Tratando-se da inteligência, o objetivo só pode ser uma falta ou


uma desordem de que nos tornamos culpados, isto é, uma falha ou um
excesso quer na formação quer no uso das potencias intelectuais.

2. A inteligência é a faculdade que nos permite chegar á verdade,


pela apropriação dos conhecimentos. Formar a inteligência, equivale a
adquirir esses mesmos conhecimentos. O primeiro e o mais essencial de
nossos deveres consiste em nos aplicarmos a essa formação porque a
inteligência é a faculdade distintiva e mais nobre do homem e, em
peculiar sentido, a mais necessária de todas. Os ignorantes de nada
servem, nem para Deus nem para o mundo, nem para o demônio.

3. Na aquisição dos conhecimentos, podemos pecar, primeiramente,


por insuficiência. Cumpre que eles sejam seguros, claros e vastos. É
mister evitar a leviandade, a inconstância, e triunfar da indolência. A
ciência das verdades religiosas deve ter a primazia sobre as outras, por-
quanto essas verdades supremas e eternas (rationes aeternae) nos
revelam as relações existentes entre a alma e Deus e nos permitem
adquirir a noção verdadeira e cristã do que é o mundo. Esse é
indubitavelmente o principal escopo da educação da inteligência, se
quisermos que todas as outras ciências tenham uma base sólida e se
harmonizem entre si. Disso dependem os princípios dirigentes que, na
pratica da vida, devem regular nosso procedimento moral. É na fé que
se encontram esses princípios e máximas, logo, é indispensável o
conhecimento e a com penetração pratica da mesma fé. .

.4. Também podemos pecar por excesso. Importa reprimir a


curiosidade desregrada, a temeridade, o prurido de saber tudo, sem
distinguir o necessário e útil do que é inútil e perigoso, do que está fora
do nosso alcance ou apenas interessa a vaidade ou a ambição.

Os antigos colocavam no numero das virtudes uma tal que


denominavam - studiositas - e cujo fim era combater e reprimir esses
desejos insofridos. E tinham razão, porque desse exagero originam-se
numerosos inconvenientes. Em primeiro lugar, dá ele, a inteligência,
excessiva preponderância. Além disso, como muitas vezes acontece, as
faculdades intelectuais não estão a altura de corresponder a essa paixão
de uma ciência universal e o resultado é adquirirmos, apenas, idéias
inexatas,falsas, noções superficiais, mal assimiladas, e desperdiçamos
nossas forças de modo lamentável.

Nada exige tamanha tensão de espírito como o estudo e as pesquisas


científicas. Levados a excesso, desencanam o coração, tornam árida a
prece, não falando, já, no enfraquecimento da vontade, o que se verifica,
infelizmente, em grande numero de casos. A ciência, a semelhanças da
alimentação, exige certo critério.

O alimento em demasia sobrecarrega o estômago; o demasiado saber


envaidece o espírito. Aquece não ser a ciência o soberano bem; acima
está a verdade; sem esta, aquela é ilusão e mentira. Não pode haver
estudo nem saber autônomos. Aprendamos primeiramente o
necessário, depois o útil e finalmente o agradável.

5.Tenhámos cuidado em evitar a teimosia, a obstinação nas idéias e


juízos próprios, por ser isso incompatível com a piedade, a qual vai
sempre conjugada com a simplicidade e a humildade. Estas duas
últimas virtudes não se acham na tenacidade exagerada em nossas
opiniões. Aliás, a pertinácia provoca dissensões e nos torna
fastidiosos e insuportáveis ao próximo. É uma sorte de fanatismo,
mas que não tem a verdade por objeto. Os fanáticos são
sempre cuidadosamente evitados.

A contumácia nas idéias é inimiga da verdade: não há uma só


heresia que não tenha tido nela sua origem. Essa espécie de
obstinação não cede nem diante de Deus, nem da Igreja. Ofende,
não somente a verdade especulativa, mas também a moral e até a
filosofia prática da vida, que tem seu fundamento no bom senso.
Nada há menos pratico que a falta de bom senso, e menos conforme
a este que a pertinácia e obstinação no próprio juízo.

Não tenhamos a pretensão de possuir o monopólio da ciência


nem de haver encontrado a ultima palavra na solução de todas as
questões. O que sabemos nada é, em comparação do que ignoramos.
É bom ter idéias próprias, porém, muitas vezes, é mais proveitoso
guiarmo-nos pelas alheias. A independência é coisa excelente, exceto
quando vai contra a verdade. O conhecimento de nos mesmo é o
melhor remédio contra a obstinação, porquanto, ele nos torna
humildes e prudentes.

Os verdadeiros sábios são sempre os mais condescendentes dos


homens.

CAPÍTULO IX

Mortificação no que concerne a vontade

1. Três são as razões que tornam de extrema importância a


formação dá vontade. Primeiramente o ser ela uma das mais
excelentes faculdades do homem. A verdade e o bem
constituem a vida espiritual humana; pela inteligência o
homem aproxima-se da virtude; pela vontade, do bem. Assim como
a inteligência é, até certo ponto, a mais necessária das faculdades, assim
também, em determinado sentido, a vontade é a principal delas. É certo
que, por si mesma, é ela uma potencia cega, havendo mister que a
inteligência lhe indique o bem ao qual deve tender. Ordinariamente a
vontade não obedece; nem sempre, porém, o faz e, em quanto a
inteligência adere infalivelmente a verdade, a vontade não é
necessitada por este ou aquele bem particular. É livre, e como o é, e
deve sê-lo, ninguém, nem Deus mesmo, pode coacta-la. Essa liberdade
de eleição e arbítrio é que lhe constitui a excelência e a nobreza; é ela a
imagem da liberdade de Deus, é dela que dependem o bem e o mal e,
por conseguinte, o valor moral do homem.

Eis porque sua posse é disputada por Deus e pelo demônio. É ela que
decide a nossa eterna felicidade ou perpetua desventura.
Em segundo lugar a vontade precisa absolutamente de ser formada,
de ser submetida a uma severa disciplina. Limitada em virtude de sua
natureza é não sendo suas resoluções susceptíveis de calculo ou
previsão, essa fraqueza e instabilidade foram ainda agravadas pelo
pecado original. A primeira queda feriu principalmente a vontade, que
se vê continuamente hostilizada, no interior, pela concupiscência, e, no
exterior, pela tentação. É pelo fio tão frágil da vontade que está apensa
a felicidade do homem; razão pela qual Deus proporciona a essa mesma
vontade auxílios relativamente mais fortes e numerosos que os
ministrados a inteligência.

Em terceiro lugar, a vontade humana é mui susceptível de formação


e corresponde largamente aos esforços feitos para discipliná-la; esse
trabalho é geralmente mais fecundo do que o que concerne a
inteligência. Pode o homem sujeitar o seu querer; nunca porém sua
inteligência. A faculdade de conhecer esbarra a cada passo, com limites
intransponíveis, mediante a graça divina, o homem pode o que quer.
Os santos comprovam essa asserção. Neles, por assim dizer, a boa
vontade é que foi canonizada.

2. A mortificação deve tender a corrigir três defeitos da vontade: O


primeiro é a falta de retidão e de pureza, virtudes estas que consistem
na sujeição e obediência à razão e à consciência, em tudo o que ela
prescrevem como bom e imprescindível. A vontade cessa de ser reta e
pura desde que se nega ao bem e ao necessário reconhecido como tal.
Essa desordem é, para ela, o pior dos males, porquanto é seu dever
aderir forçosamente a consciência e á razão, sem que haja nisso nenhum
detrimento para sua dignidade própria. Sendo cega, deve obedecer, se
não quiser tropeçar.

Por fim de contas, ela só se submeter a Deus, regra suprema do bem,


que lhe é revelado pela razão e pela consciência. Para que essa retidão e
pureza sejam perfeitas, é mister não empreender coisa alguma sem que
haja para isso um motivo razoável, e praticar todo o bem que estiver ao
alcance das próprias forças.

O segundo defeito é o torpor, a impassibilidade, a hesitação, a


morosidade na pratica do bem conhecido e que estiver de acordo com o
dever. Sem duvida é preciso um exame prévio das causas, porém, este
uma vez feito, cumpre operar energicamente, sem tergiversações, por-
que, no caso contrario, talvez que a ação viesse demasiado tarde e o mal
se tornasse irreparável. É de uma pronta decisão que depende muitas
vezes uma eternidade feliz ou desgraçada.

A pusilanimidade de caráter e a falta de perseverança constituem o


terceiro defeito, que provém amiúde de um apego a qualquer bem
terrestre. O homem que se apega escraviza-se, porquanto encadeia à
liberdade de movimento e ação, degrada-se, torna·se mesquinho e
digno de lastima. Para esse mal só há um remédio: libertar a alma
rompendo o laço que a retém cativa. Por esse meio o coração recupera,
com a liberdade, a força e a paz.

A tibieza da vontade pode provir da irresolução ante um obstáculo


imprevisto, do temor de empreender uma obra por demais árdua. E
preciso não olvidar que uma vontade sem energia para nada presta,
neste mundo, onde, por toda a parte, se nos deparam cruzes e
contradições. Por ventura devemos fazer bons propósitos unicamente
se as circunstâncias nos forem favoráveis?

A vontade sem energia e sem consistência deixa de ser vontade e essa


falta de firmeza reduz o homem a uma espécie de cata-vento.

3. Entre os meio de educar a vontade é a oração que cabe a


primazia. Orar, mormente a horas fixas, a despeito dos obstáculos,
é colocar a vontade na escola da paciência. Além disso, a oração
nos proporciona os meios de lhe vencer as resistências e lhe
corrigir as hesitações e volubilidades.

Consiste o segundo remédio em possuir princípios nítidos e formar


resoluções seguras e firmes. Se, não obstante, somos tão frequentemente
faltos de perseverança e energia, que advirá se nos falhar esse duplo
auxilio? Nesse ponto de vista, é coisa excelente a sujeição a um
regulamento de vida, o qual deve ser para os seculares o que é a regra
para os religiosos. É de suma importância que cada qual a ele se atenha
rigorosamente, e, se acontecer algum deslize, que este seja reparado o
mais cedo possível.

As tentações proporcionam ótimas ocasiões de fortalecer a vontade


que se desenvolve, assim como o valor pessoal, nessa sorte de
combates. As ocasiões de luta se nos deparam com tanta frequencia,
surgem de tão diversos lados, que, afrontando-as valorosamente, não
podemos deixar de adquirir sólida virtude e grande firmeza de
caráter.

Finalmente resta-nos ainda um maravilhoso meio de formar a


vontade. Consiste em triunfarmos de nós mesmos numa infinidade
de pequeninas coisas, de minúcias, por si indiferentes, que se nos
oferecem no decurso do dia indubitavelmente, são insignificâncias,
porém, renovam-se amiúde, e cada vitória revigora o caráter. A
ocasião é somenos, o resultado é precioso.

4. Sendo, em nossos dias, a formação da inteligência excessivamente


impulsionada, convém mais que nunca dar a vontade uma educação
racional e metódica, em vez de deixá-la descurada, entregue a si
própria, tal como se abandonam, aos ventos encontrados, os arbustos
agrestes de charneca inculta.

Quando, mais tarde, os acerbos frutos dessa negligência


abrolham, por toda a parte, em razão de se terem desenvolvido as
paixões irrefreadas, é a ela que é imputada a culpa. Mas ai! Quem
jamais cogitou em formá-la? Nunca o repetiremos bastante:
Ninguém se preocupa, séria e metodicamente, em amoldar e for-
talecer o caráter. Relativamente, poucos conhecimentos precisamos
ter para sermos bons e nos tornarmos uteis a sociedade. Se
dedicássemos a formação da vontade a metade do trabalho e da
atenção empregada na cultura da inteligência, há muito, talvez,
seriamos santos.

CAPITULO X

Das paixões

Como remate ao que foi dito, e para melhor compreensão do que


segue, ajuntaremos algumas palavras a respeito das paixões.

1. Consideradas, não como inclinações viciosas e desregradas, porém


como manifestações naturais da vida da alma, são elas movimentos do
apetite sensitivo ou da vontade inferior, provocados por um objeto
agradável ou molesto, o qual é oferecido a alma, por intermédio dos
sentidos e da imaginação e ordinariamente acompanhado de comoção
física. Determinados pelo objeto a que se referem, esses movimentos
consistem numa apetição ou desejo, numa repulsa ou resistência.
Existem, pois, duas paixões fundamentais: o amor e o ódio com suas
diversas ramificações. De um dado o anelo, a esperança, a coragem,
a alegria; do outro, a repugnância, a tristeza, o temor, o desespero.

2. É em nossa natureza; simultaneamente espiritual e corporal,


que se encontra o principio das paixões. Servem elas para a
conservação e felicidade do indivíduo enquanto o ajudam a atingir,
eficaz e facilmente, o bem desejado ou a evitar o mal que receia.
Quando os movimentos das paixões se antecipam a consciência e a
vontade superior, não têm nenhum valor moral, são indiferentes; se,
porém, houver adesão da vontade, podem ser ocasião ou instrumento
de culpa ou de virtude e tornar-se bons ou maus. Em consequencia do
pecado original, as paixões excitadas manifestam suas exigências sem
esperar o consentimento da vontade superior e, ainda mais, persistem
nelas, não obstante essa mesma vontade e a própria razão. São, pois,
causa de desordem e dissensões, podem constituir principio de tentação
e até de pecado. Todavia a vontade superior tem sempre a faculdade de
pronunciar-se pró ou contra esses movimentos das paixões. Sem
embargo, estas possuem vantagens reais. São um poderoso auxiliar do
bem, pela facilidade e constância, pelo impulso que dão a pratica da
virtude até mesmo Heróica. Prestam-nos valiosos serviços quando
operam sob a direção da vontade superior. Com o concurso das
paixões, o homem atira-se afoitamente a ação, empregando nela todas
as forças de que dispõe.

3. O modo de nos avirmos com as paixões assim como o


emprego delas assumem extrema importância, na vida espi-
ritual, porquanto elas constituem uma potência tanto para o
bem como para o mal. São más conselheiras, porém, eficazes
auxiliares. Urge, pois, desviá-las do mal e ateá-las para o bem.
Temos paixões e é necessário tê-las; toda a questão se resume
no emprego que lhes dermos; Não devemos tratá-las
despoticamente porque não se deixam sufocar nem extirpar, por
completo. Cumpre usar de diplomacia, isto é, afastá-las do
mal, dando curso diverso as idéias, por meio da aplicação a
um trabalho sério, ou incitando-as a prosseguir um qualquer
bem que devemos ter o cuidado de lhes apresentar. Assim
dirigidas, elas nos ajudam poderosamente no cumprimento do
dever.

As devoções ao Sagrado Coração de Jesus e ao Espírito Santo são


muito eficazes para nos obter a ciência e a força de regular e dirigir
nossas paixões.

CAPITULO XI

A preguiça

Passemos agora ao estudo pormenorizado de algumas paixões e


certos defeitos. Comecemos pela decidia da inteligência.

1. Consiste ela em certa inércia da alma e de suas faculdades que,


ordinariamente, pendem para o descanso e a inatividade; em uma sorte
de ociosidade do espírito, o qual, comprazendo-se em idéias frívolas e
vãs, edifica castelos no ar, passa o tempo em nugacidades, pensa de
modo superficial e confuso e se entrega a dissipação e a sonolência. a
qual se acentua, particularmente, nas horas reservadas a oração.

Por sua vez, a vontade padece também do mesmo mal que, nela, é
caracterizado por uma espécie de acabrunhamento, de mau humor, em
face das dificuldades, de desânimo e indecisão quando importa agir
prontamente, por continuas delongas, ou projetos instáveis e sem fim
preciso.

Fisicamente, esse vício se traduz pela indolência, pelo requinte no


bem estar e nas comodidades. O preguiçoso prefere antes ficar de pé
que caminhar; sentar-se que permanecer ereto e, mais que tudo, deitar-
se. Dormir! eis o seu supremo ideal!

2. É mister combater a preguiça nos exercícios espirituais, seja


recorrendo a frequentes e fervorosos colóquio ou á oração vocal, seja
tomando uma atitude mais respeitosa, seja, enfim, variando as praticas
de devoção e o modo de orar.

A indolência ·na ação opor-se-á uma vivacidade exterior sadia,


porém não exagerada. O que cumpre fazer não deve ser adiado.
Tentar o inútil é uma espécie de ociosidade disfarçada. – É
necessário que haja ordem nas ocupações e constância nos planos. A
prática da penitencia corporal e da vitória sobre si mesmo é
excelente antídoto, contra a preguiça, tanto física como intelectual,
porque, dominando o torpor do corpo, ela dá leveza a alma.

3. Inúmeros são os motivos que nos incitam a combater essa


inclinação viciosa. Como ela se acha mais ou menos em cada um de
nós, pois, não somos puros espíritos, sobejam-nos razões para nos
mantermos sempre na defensiva. Até as pessoas naturalmente ativa
devem precaver-se, quer contra a preguiça intelectual, quer contra a
inação da vontade ou o torpor físico. A melancolia, o vezo de
sofismar, de devanear, um fleuma exagerado, não são mais que
variedades de preguiça.

Esta é um inimigo astuto que nos escraviza docemente.


Desenvolve-se conosco e a ela nos habituamos, a ponto de nos
passar despercebida. Dissimula com habilidade; as faltas que
ocasiona são, por assim dizer, imponderáveis. Aliás, ela não nos
solicita diretamente ao pecado; reveste, ao contrario; aparências
amistosas para nos escamotear mais a vontade.

Finalmente, é um adversário pernicioso e maligno que enfraquece


a vida espiritual até paralisá-la totalmente. É a esse inimigo que
deve ser imputado o pouco ou nenhum êxito que obtemos em
nossas empresas e na aquisição da virtude. A preguiça enerva a
vontade, embota o espírito, e o torna melancólico, incita a carne,
faz·nos perder o tempo, priva-nos de muitos merecimentos e
desorganiza a vida da alma. O pior ê que ela visa, de preferência, os
atos mais importantes da vida espiritual tais como a meditação, o
exame de consciência, as práticas de penitencia. Assemelha-se
extremamente a tibieza, esse cancro da alma de que ela é a fiel aliada.

Ninguém quer ser tido por preguiçoso; razão de sobra para não
negligenciarmos coisa alguma que nos preserve de sê-lo realmente.
CAPÍTULO XII

O temor

Esse defeito apresenta certa similaridade com a preguiça. ,

1. Consiste numa apreensão da alma, em certa impressão que a


atormenta quando ela se acha na expectativa de um mal que, só com
extrema dificuldade, pode ser conjurado, o objeto, a causa do temor é,
pois, um mal vindouro de que a muito custo o homem poderá
eximir-se. O efeito natural que produz ao espírito e na vontade é a
perturbação, a paralisia das forças, efeito tanto mais acentuado,
quanto mais grave for o dano que se receia, quanto maior a soma de
esforços exigida para desviá-lo e a fraqueza da pessoa por ele
ameaçada. Essa debilidade ainda aumenta se a inteligência for
obscura e indecisa, se a imaginação domina e a sensibilidade for
vibrante. É a razão de serem os velhos, as mulheres e as crianças
mais accessíveis as comoções do temor. As consequencias deste
estendem-se até as faculdades físicas, chegando, às vezes, a
produzir um estado de inconsciência e de torpor. Não nos
ocupamos desses casos extraordinários, limitamo-nos, apenas, ao
estudo da influencia que o temor exerce sobre a vontade, no curso
habitual da vida. É sempre a mesma impressão de angustia que
entrava as energias da alma. Nesse ponto de vista é que ele oferece
certa analogia com a preguiça.

2. Experimentar o temor é causa natural que, em si mesma, não


denota fraqueza. Só o louco ou o animal irracional é que são
inaccessíveis a esse sentimento. O louco não tem o gozo de suas
faculdades e o animal é completamente destituído de inteligência; um e
outro não podem reconhecer o perigo.

Até certo ponto, o temor constitui uma característica da precaução e


da prudência, porém, um homem razoável deve dominá-lo e nunca
sacrificar-lhe o dever; de outro modo, seria cair na pusilanimidade.
E este o primeiro motivo que nos induz a reagir contra essa fraqueza,
a fim de nos garantirmos e não nos deixarmos avassalar, porquanto ela
pode levar-nos a violação da ordem e do bom senso e então
cometeríamos uma falta. A sensibilidade, o apetite sensitivo, devem
permanecer sob o domínio da razão; ora, esta não nos prescreve
somente fugir de tal coisa e tender a tal outra; indica também até que
ponto cumpre recuar ou ir avante, assim como nos ensina que devemos
arrostar todos os sofrimentos, no entanto de alcançarmos certos e
determinados bens. Quando o receio de um mal nos faz renunciar a
posse de um bem necessário, isto é, quando sacrificamos o dever, há
nisso imperfeição, falta leve ou grave, conforme as circunstâncias.
Assim é que, na vida quotidiana, um temor servil nos arrasta a cometer
numerosas infidelidades em relação ao dever e a consciência. Isto basta
para nos pôr de sobre aviso e nos induzir a envidar todos os esforços a
fim de dominá-lo.

Os efeitos do temor são ainda mais desastrosos quando se trata de


alcançar o bem verdadeiro e tender á perfeição. A primeira condição do
progresso espiritual consiste em suprimir as faltas e cercear toda
desordem. O meio mais eficaz de obter esse resultado é a confissão de
nossas imperfeições, feita a alguém que tenha autoridade para receber
nossas confidencias e que nos possa aconselhar e dirigir. Ora, nesse
caso o temor é um obstáculo, porque tolhe a manifestação de nossas
misérias, quer por falso acanhamento, quer pelo receio de sermos
obrigados a nos corrigir. Além disso, importa sumamente atentar nas
inspirações divinas e com elas conformar a nossa vida. Ainda nesse
particular, é o temor, a indolência, o medo de sofrer, que tornam sem
efeito as intenções misericordiosas de Deus relativamente a nossa alma.

Enfim, sem princípios firmes e esforços enérgicos, é impossível


cogitar em adquirir a perfeição, porquanto não podemos obtê-la senão
mediante o sacrifício das comodidades de uma vida plácida e deleitosa,
em que a natureza facilmente se compraz. É ainda o termo que nos
retém e tudo compromete quando Deus nos pede um sacrifício ou nos
inspira uma resolução generosa. Preferimos, então, permanecer em
lamentável mediocridade. O dano é ainda muito maior quando o
temor chega a ponto de desviar a alma de um nobre empreendimento
que diz respeito á gloria de Deus e a salvação do próximo. Será
incalculável se se tratar de uma vocação superior e dificultosa. O
exemplo, temo-lo no jovem rico do Evangelho. A tristeza, companheira
inseparável do temor, impediu-o de corresponder ao suave convite do
Salvador, ao apelo vindo de seu amantíssimo coração. A toupeira é
funesta ao trabalho do jardineiro. No jardim de nossa alma, a toupeira é
o temor; tudo corrói e tudo estraga. É sob os claros raios da alegria e do
valor que abrolham viçosas, as flores da perfeição, ao passo que a
frouxa e pálida luz do torpor e do desanimo, elas definham e não
chegam a um completo desabrochar. Quem não conseguir dominar o
temor deve renunciar a perfeição.

Finalmente é mister bani-lo si quisermos viver em paz e


verdadeiramente felizes. E' certo que há muitos males neste mundo, e
só a idéia deles basta para nos apavorar e nos tirar a tranquilidade e a
alegria. O temor enxerga-os em toda a parte; descobre-os até onde não
se achám e exagera os que existem realmente. Não nos assustemos com
essas quimeras suscitadas em nosso espírito. O medroso inventa
torturas imaginarias, sendo este um gênero de martírio que não traz
gloria nem dignidade.

Ao contrario, aquele que conseguiu superar o temor, que caminha


animosamente na senda do dever, sem se deixar amedrontar por
fantasmas inconsistentes, dá prova de grande inteligência e energia de
vontade. Que poderá perturbar-nos a alegria, ou tirar-nos a calma
do espírito, se tivermos a coragem de arrastar com esses espectros que
se nos deparam em meio do caminho? O sol não é somente luz, em si
mesmo; possui também a propriedade de tornar luminoso tudo o que
dele se aproxima ou que seus raios esbatem. Tal é o homem inaccessível
ao temor: irradia em torno de si o animo e a paz.

3. Tudo isso é exato, dirá alguém, não é possível discorrer com mais
acerto, existem, porém, realmente, meios de superar o temor? O que
obsta que ele seja dominado pela vontade é a imaginação e a
sensibilidade que se aliam para provocar a perturbação e comunicar
suas apreensões a inteligência e á vontade. O sentir não depende de
nosso querer; o que está ao nosso alcance é dominar essas revoltas e
excessos de sensibilidade, afim de que não suscitem a vontade tantos
perigos e obstáculos. E', pois, mister que a faculdade sensitiva obedeça
como um cãozinho bem adestrado que sem dúvida estremece e ladra
ouvindo o menor rumor, porém que se aquieta ao primeiro apelo do
dono.
Três são os meios de que dispomos para atingir esse fim.
Primeiramente, cumpre persuadirmo-nos que em tudo neste mundo -
prazer ou magoa - a realidade fica muito aquém do que nos afigura a
imaginação. - No fim de contas, o único bem verdadeiro é a
bem-aventurança eterna, por conseguinte só devemos temer a eterna
desventura. Compenetremo-nos desta verdade: Em todas as coisas, os
três quartos são fornecidos pela fantasia. Importa rememorar esse prin-
cipio quando nos sentirmos tomados de qualquer receio e deste modo
cercearemos as dificuldades. Imaginamos, por exemplo, que ficaremos
perdidos se fizermos tal coisa exigida pelo dever ou pelo desejo da
perfeição. Façamo-la. Apegamo-nos a uma criatura, a ponto de
acreditar não ser possível viver sem ela. Desprendamo-nos e, em breve,
veremos que não estamos perdidos, ao contrario, tudo corre tão bem,
ou melhor, que dantes. Aliás, quantas vezes não temos já feito essa
experiência! Que receio só com a idéia do que poderia advir! E, no
momento dado, a nuvem prenhe de tempestades se esvai, como um
sonho. Tudo passa, neste mundo, e o tempo minora toda magoa.
Esse pensamento deve animar-nos. - As ilusões da fantasia são
particularmente funestas, na vida espiritual, porquanto, nos fazem
ver as coisas através de lentes de cor e pesá-las em balança cujo fiel
não regula; por conseguinte, não as vendo tais quais são em
realidade, as julgamos mal. Disso é que provêm tantos preconceitos,
tantos receios infundados e pretensas impossibilidades. A
imaginação nos faz ver em toda a parte o - leão feroz – (Pro.XXVI,13) e
nos leva a praticar atos poucos dignos de pessoa razoável e de
animo generoso. E' pondo corajosamente mãos a obra, que o homem
consegue libertar-se desse jugo aviltante e trilhar resoluto a senda
do dever. Por essa razão é que os antigos mestres da vida espiritual
davam, a seus discípulos, como primeira lição, a seguinte máxima: -
Corrigere phántasiam - isto é, enfrear a imaginação. - Finalmente, é a
oração e a confiança em Deus. o terceiro meio que devemos empregar
contra o temor e o desanimo. O exemplo nos foi dado pelo nosso divino
Salvador. A pressão da angústia não chegou ainda a nos fazer verter
sangue. Jesus quis experimentar esse suplício e o quis para instrução
nossa, para nos ensinar que, em si mesmo, o temor não é pecado nem,
tão pouco, desordem; o quis, ainda, afim de nos consolar, de nos
merecer abundantes graças e nos mostrar a trilha que devemos seguir
quando soar, para nós, a hora das agonias de Getsemani. Se Santa
Humanidade do Salvador recebeu, nessa ocasião, o consolo de um anjo,
não foi por dele precisar, senão porque assim o determinara e, dessa
sorte reconfortado, Jesus marchou heroicamente ao encontro de sua
dolorosa Paixão. Se aprouver a Deus colocar-nos na contingencia de
um sacrifício, numa dessas horas de desfalecimento, tenhamos
confiança e crença firme de que Ele e sua graça permanecem conosco. E,
com·esse auxílio, de que não seremos capazes?

Na qualidade de cristãos, somos soldados de Cristo e que pode haver


mais desonroso para o soldado, que a cobardia e o desalento? O
batismo sagrou o cristão para a luta tornando-o um nobre cavaleiro tal
como o representa Alberto Durer - um cavaleiro que, ladeado pelo
demônio e pela morte, os afronta caminhando impávido, em linha
reta. Apenas o cão, ao contrario do dono, dá mostras de terror. O
cristão só teme a Deus e só receia o pecado. Tudo o mais, inclusive a
morte,. e tido, por ele, como lucro e vitória( Fil.1,21).Foi mediante a
morte que Jesus Cristo e o cristianismo conquistaram o mundo.
Triunfar do temor e do desanimo, é coisa de que se faz pouca
monta, na vida espiritual, e, todavia, grandes são os danos que
resultam dessa negligencia. O temor é a arma de que se servem a
preguiça, a tibieza, a imperfeição para ruir por terra nossos esforços
tendentes ao bem, mantendo-nos em vergonhosa mediocridade.
.Quantas vezes, escreve Santa Teresa, não fiz a experiência desta verdade:
«Quando, no inicio de uma boa ação, consegui triunfar das repugnâncias e
pusilanimidades da natureza, só tive que me dar os parabéns. Quanto
maior tiver sido a apreensão, tanto mais intenso é o júbilo que experimenta
a alma na realização de um desígnio que parecia por demais árduo. Se me
fosse permitido dar um conselho, este seria: Tomai cuidado em não vos
preocupar com os temores da natureza e em nunca faltar de confiança na
bondade de Deus, quando Ele vos inspira uma boa resolução ou vos convida a
encetar um nobre empreendimento.» O temor é irmão da preguiça; ambos
nada produzem de bom. Segundo Dante, os covardes e os medrosos
não são dignos de gloria nem de ódio: vil poeira, quem sabe onde a
conduzirá o vento?

CAPITULO XIII
A cólera e a impaciência

1. Estes dois defeitos não são mais que um desordenado desejo de


vingança. Supõem, por conseguinte, dano real ou imaginário, violação
da justiça relativamente a nós ou a outrem e intentam restabelecer a
ordem por meio de uma vindicta ou punição. Geralmente a cólera
implica uma falta contra a virtude da doçura, carência de moderação e
de domínio de si mesmo.

2. E' dever nosso combatê-la ainda que não seja senão a titulo de
pessoas razoáveis. Por serem, de ordinário muito prontos os seus
movimentos, ela constitui um obstáculo ao bom uso da razão. O
resultado é que não somente o mal não é reparado, mas a cólera pode
ocasionar um sem numero de injustiças. Pessoas inocentes, ou, pelo
menos, que não mereciam ser tratadas com tanto rigor, são
implacavelmente sacrificadas. Frequentemente o móvel secreto não é o
amor da justiça, nem, tão pouco, o desejo de restabelecer a ordem,
porém, a paixão ou o prazer de exercer represálias. E' nesse particular
que consiste o desregramento e a culpabilidade da cólera. - Acresce que
nós mesmos ficamos prejudicados, porquanto, sendo uma desordem,
esse defeito nos avilta, nos priva da estima alheia tornando-nos odiosos.
O atrativo da vingança nos induz a crer que o perdão das injurias é
pusilanimidade, abjeção, alguma coisa que lesa nossa dignidade
pessoal. E' exatamente no contrario que se achá a verdade. A cólera é
uma fraqueza, uma falta de domínio sobre si mesmo e, por conseguinte,
implica depressão moral. Essa paixão produza cegueira do espírito e a
perturbação da inteligência; ora, uma e outra são provas negativas da
elevação de nossos sentimentos. Como cristãos, incumbe-nos o dever de
lutar contra essa inclinação viciosa. A mansidão, o amor de nossos
inimigos, nos foram prescrito, por Jesus Cristo, de modo formal e
absoluto. Ele mesmo, o nosso divino Salvador, nos deu, sempre, os mais
admiráveis exemplos de paciência, os quais devem servir de normas
aos cristãos que se prezam desse nome. É nisto que consiste o triunfo
do cristianismo, sua divina e maravilhosa maneira de combater.

- Vencer, não pondo a violência a violência, porem, usando da


doçura e da humildade. Esse espírito é a pedra de toque da virtude
e, por conseguinte, uma das condições exigidas para a vocação
religiosa.
Mantida nos justos limites, inspirada por zelo sincero da justiça,
da gloria de Deus e da salvação ao próximo, a cólera não é somente
um sentimento louvável, mas ainda uma nobre virtude.

3. A mansidão e o antídoto por excelência contra essa perigosa


tendência de nossa natureza. Ela tempera o desejo infrene de
vingança e modera o que há de exagerado na indignação. Mas é
erro supor que ele consiste numa espécie de insensibilidade, de
indiferença ou timidez. Não. O que propriamente constitui a
virtude, é o amor de tudo o que ela encerra de razoável, nobre e
belo.

Quantos motivos não temos de praticá-la! Em primeiro lugar, é


ela indispensável, no curso habitual da vida, a ponto de nada
conseguirmos, se nos fizer falta.(Hebr.X, 36)

Sem duvida, não é a mansidão a mais sublime das virtudes,


porém é, talvez, a mais necessária. O açúcar nos sabe melhor que o
sal, sem embargo este é mais útil por ser de emprego quotidiano e
universal. - A brandura do trato faz presumir grande superioridade de
inteligência, juízo reto, madura experiência da vida, e, acima de tudo,
energia de vontade pouco comum, coração bondoso, humilde e
compassivo. É de todas as virtudes a que melhor nos ajuda a conciliar a
estima, a confiança, o amor de nossos semelhantes e a que mais
seguramente atrai os corações pelo encanto que sobre eles, exerce.

A cólera e a impaciência têm muita similitude com o vulcão cuja


vizinhança é evitada por todos; não produzem bem algum e ocasionam
muitos males, mais do que geralmente se pensa. Sempre e em toda a
parte ela nos faz comprometer os interesses de Deus que, por esse
modo, se vê impossibilitado de utilizar os nossos serviços. Esse defeito
não tem cabida no Novo Testamento que é uma lei de amor, de
confiança e de paz. A mansidão nos torna queridos de Deus e dos
homens.

4. É necessário viver em grande recolhimento de espírito, se


quisermos gozar de calma inalterável e evitar as, surpresas da
impaciência. .

Importa convencermo-nos, de antemão, de que tudo é possível neste


mundo e, por conseguinte, coisa alguma deve surpreender-nos. É
mister ter por norma, sofre com paciência toda injustiça, qualquer que
seja, de onde for que nos venha, sob esta ou aquela forma, deste ou
daquele lado, persuadidos, de que não temos motivo algum de nos
impacientar. Enquanto estivermos sob a influência de qualquer
comoção, é prudente guardar o silencio, até mesmo quando se trata de
faltas dos nossos subordinados. A força de um bom governo não
consiste numa intervenção imediata e precipitada, mas no cuidado que
ele puser em não desperceber nem descurar coisa alguma e tudo
remediar a tempo e oportunamente.Qualquer pessoa bem intencionada
e de coração leal, recebe de boa vontade uma censura razoável, mas
ninguém a aceita se ela for inspirada pela paixão. Julgai as faltas do
próximo como julgais as vossas; com suavidade e indulgência. O fato
de sermos brandos, com as pessoas de boa índole, não é prova de nossa
virtude, porém da cordura dos que nos cercam. A mansidão verdadeira
como a verdadeira caridade e toda virtude sincera, deve saber suportar
e sofrer. As queixas longe de nos aliviar, aumentam nossa impaciência e
nos põem em risco de com musicá-la a outrem. Como toda e qualquer
virtude, é pelo exercício que se obtém a paciência; por conseguinte, em
vez de fugir as ocasiões de praticá-la, devemos antes, ir-lhes ao
encontro. Caridade e paciência, eis o que nos prescreve a mansidão.

Quando experimentardes os primeiros assomos da cólera, refleti na


instabilidade das coisas deste mundo; amanhã não mais sentireis a
injustiça que hoje vos contrista, vosso juízo será outro e dar-vos-eis por
felizes de ter sofrido com paciência.

CAPITULO XIV

O orgulho

l. Tem uma genealogia esse sentimento desordenado. As suas origens


se acham no egoísmo que produz dois rebentos: o orgulho e a
sensualidade. Entre a progênie do primeiro, nota-se a vaidade, criatura
melíflua, porém, algum tanto parva; vem, em seguida, a ambição,
personagem turbulenta, que aspira sempre as honras e dignidades,
finalmente a sede de dominação que não cede o passo a ninguém e
pretende elevar-se acima de todos; é a crença despótica que nada
respeita, nem sequer a Deus.

Traços característicos comuns a toda à família: Pretensão exagerada.


desejo cada vez mais imperioso de fausto e de aparato, tendência a
empreender o que sobrepuja as próprias forças. O distintivo especial do
orgulho é a complacência em si mesmo, a admiração da própria
excelência, é atribuir tudo a si; é também a susceptibilidade que se
abespinha pela menor falta de consideração, pela mais leve suspeita. ou
insignificante censura. O orgulho é extremamente melindroso no que
toca o ponto de honra; pensa ter só o que dá na vista e causa admiração
aos outros. O orgulhoso é também um critico acerbo, cita tudo a seu
tribunal e se constitui juiz dos vivos e dos mortos. Pode até chegar a
considerar-se uma espécie de semideus. Tudo sabe e, por conseguinte,
nada tem que aprender. Relativamente a si. prescinde de conselhos e se
retrai em absoluta inacessibilidade.

Esses super-homens pululam no mundo; é uma raça constituída


particularmente dos que não querem admitir nem a Igreja nem o
próprio Deus. Manifesta-se o orgulho em toda a parte e sob diversas
formas: orgulho dos governos e dos governados, dos nobres e dos
plebeus, dos sábios e dos rústicos. Reina no mundo em estado
epidêmico desde apalavra insidiosa da antiga serpente: Sereis quais
deuses (Gen.III,5). É esta a divisa dos filhos dos homens.

2. Tomai o inverso, e tereis a humildade. Neta da temperança e


filha da modéstia interior, esta amável virtude, modera e reprime os
ímpetos desordenados da soberba, da ambição e do espírito de
independência; esforça se por se manter em prudente reserva tanto
no que respeita a si como no que é relativo aos outros. Tem um
modesto conceito de si mesma e se regozija quando os outros
participam dos mesmos sentimentos e os manifestam; foge das
honrarias, não fala de si e suposta as humilhações com paciência e
jubilo. Não se excursa e, se for conveniente, confessa a própria
miséria e as faltas em que tiver incorrido, mormente no tribunal da
penitencia. Seu maior triunfo e sua culminância é o amor a
humilhação.

3. O conhecimento de nós mesmos sobre ser. uma condição, sine


qua non, da humildade, é ainda o educador, o mestre e o conselheiro
da mesma virtude. É ele que nos leva a considerar como domínio de
Deus e obra de sua Providencia, todo o bem que em nós se achá ou
de que somos instrumentos, incutindo-nos no espírito a profunda
convicção do nosso nada e da nossa capital incapacidade para
produzir o mesmo bem. Daí a explicação da humildade e até do
amor as humilhações. Rebaixar-se a seus próprios olhos conforme a
justiça e a razão: eis o que constitui a alma da virtude da humildade.

4. Quantos motivos se nos antolham de opor ao orgulho, essa nobre e


bela virtude!

Ser humilde é a condição indispensável para que a verdade em nós


permaneça, porquanto, verdade e humildade são uma só e mesma
coisa.

No espelho fiel do conhecimento de nós mesmos vemos não somente


que nada somos, mas que tudo recebemos de Deus. É pois a soberba
uma mentira, uma deslealdade, um roubo que prejudica a gloria de
Deus, uma abominação aos olhos do Senhor e o que há de mais ridículo
aos olhos dos homens razoáveis.

Ter um conceito elevado de si mesmo, é prova de espírito mesquinho


e muito apoucado. E que é a gloria humana, a estima das criaturas?

Acresce que a humildade é de suma importância em toda a vida


espiritual porquanto, tudo depende da graça de Deus e, se formos
orgulhosos, Ele não poderá conceder-nos nenhum domínio particular. E
isto por duas razões. Primeiramente em atenção a si próprio, porque só
a humildade é que lhe reenvia a glória que lhe pertence; em segundo
lugar, em consideração a nós mesmos, porque,- sem a humildade, as .'
graças mais assinaladas nos seriam nocivas, tornando-nos ainda mais
orgulhosos.

Sejamos humildes se quisermos ter uma vida pura e isenta de culpas.


Geralmente nossas infidelidades têm por principio uma carência de
humildade. Negligencia da oração, inveja, críticas, detrações, falta de
modéstia, de obediência, exigências exageradas no trato, melindres,
impaciência, mau humor ante os trabalhos e as dificuldades, tristeza,
desanimo, todas essas faltas e muitas outras ainda desaparecem desde
que hája a humildade. Os pequenos e os humildes não caem de muito
a1to, diz o prolóquio, ao contrario os soberbos e ambiciosos correm
sempre risco de se ver precipitados, do fastígio onde se colocaram, e, as
vezes, a queda é·profunda e vergonhosa. Sem embargo, é necessário
que assim aconteça afim de que o orgulhoso aprenda a refletir. A
soberba é a origem de todos os pecados assim como a humildade é o
fundamento de todas as virtudes, não que ela seja a mais excelente, mas
por ser a condição necessária de todo proceder correto e virtuoso. Que
retidão de consciência pode ter o homem que não se conhece a si
próprio e nem sabe aquilatar suas forças? É o caso do orgulhoso. Só a
humildade pode dar essa ciência pelo conhecimento de nós mesmos.
Finalmente se quisermos que nossas obras tenham mérito real aos olhos
de Deus, amemos as humilhações. É nisto que consiste a culminância da
humildade. Amar a própria abjeção e ir-lhe ao encontro é o mais árduo
dos sacrifícios, é o caminho mais curto para a verdadeira
espiritualidade, a linha de demarcação entre o perfeito e o que não o é.
O orgulho é o amor de si mesmo levado até o desprezo de Deus; a
humildade é o amor de Deus impelido até ao ódio, bem compreendido,
de si mesmo. ÉS ela, pois, o triunfo completo e a verdadeira glorificação
do Criador, dora em diante Ele pode fiar-se absolutamente em nós, até
então não lhe oferecíamos garantia segura. Uma vida pura, virtuosa e
feliz: eis a recompensa da humildade.

Não nos esqueçamos da máxima importância que assume essa


virtude na escolha e exercício de qualquer vocação e, de modo geral,
quanto contribui para a paz e ventura da sociedade humana. Há
pessoas que aspiram a uma alta situação porque se afiguram poder
assim trabalhar com mais eficácia para a gloria de Deus. Na realidade
elas obedecem simplesmente a um motivo de ambição. Se o êxito não
lhes vier coroar os esforços, afligem-se em extremo e perdem todo o
valor. Não suportam ser um talento escondido. A gloria de Deus era a
capa que encobria o desejo da própria exaltação. Ao contrario,
conseguem elas realizar os seus intentos, bem depressa o orgulho as
despoja, diante de Deus, de todo mérito verdadeiro. A soberba e a
ambição atuam poderosamente sobre o caráter, corrompendo-o e
privando-o de consistência, independência, retidão e lealdade para com
Deus e para com os homens. São elas que produzem esses animalia
gloriae de que fala Tertuliano.
E, na vida social, qual é o principio dessas agitações, dessas
aspirações doentias a elevar-se o homem cada vez mais dessas revoltas
contra toda autoridade? Qual a origem das revoluções e heresias? O
orgulho e a ambição.

Renunciemos a ambos assim como á gloria humana, fruto enganoso


que deles provêm. A reputação, as grandezas do mundo são, apenas,
um engodo, porquanto, são bens que não podem enriquecer-nos
realmente. Um roto a lisonjear um esfarrapado, que vos parece?

Envidemos todos os esforços para adquirir, diante de Deus, a


verdadeira grandeza por meio de sincera humildade e completa
abnegação de nós mesmos. A honra virá em tempo oportuno. E esta
será verdadeira.

CAPITULO XV

Antipática e simpatia

Versa o presente capitulo sobre a caridade e particularmente o amor


do próximo.

1. A caridade é uma virtude que, mediante a nossa livre vontade, nos


une a Deus como a nosso soberano Bem e nos faz repousar nele como
em nosso ultimo fim. Tem duplo objeto - Deus e o homem - o homem
em relação a Deus, na medida que lhe pertence, que é criatura sua e
filho seu. Com efeito, Deus não se compraz unicamente em si, mas
também em tudo o que é propriedade sua. Para ter o cunho divino,
cumpre que nossa caridade seja extensiva a Deus e ao próximo. Não
obstante ser duplo o seu objeto, o motivo é único. - Deus e tudo o mais
por Deus.

Eis a ordem que devemos observar no exercício da caridade: Em


primeiro lugar e acima de tudo - Deus; em seguida, nós mesmos e
finalmente o próximo como a nós. Os bens espirituais devem ter a
primazia sobre os corporais, de sorte que a preferência seja sempre
dada ao bem espiritual do próximo, mesmo em detrimento do nosso
bem corporal. É licito, embora não obrigatório, sacrificarmos este em
proveito do de outrem. Logo haverá desordem no exercício da caridade
si não amarmos tudo e a todos por amor de Deus, se a Ele preferirmos
qualquer objeto, se colocarmos os bens corporais acima dos espirituais.

2. Os motivos que nos induzem a prática da caridade são os


seguintes: É ela o primeiro ê o mais importante dos preceitos, o
compendio, a raiz, o fundamento de todos os outros, os quais são
apenas a aplicação do primeiro.

Mediante essa virtude, Deus se assenhoreia de nossa vontade, cujo


móvel por excelência é o amor, e assim possui ao homem todo inteiro e
tudo pode exigir dele. É pela caridade que Deus nos une do modo mais
perfeito ao próximo, e a si mesmo, nosso ultimo fim. É ela, pois,
verdadeiramente, o liame da perfeição, na mais alta acepção da palavra.
Eis por que o Salvador constituiu o cristianismo, a religião do amor e
quer que a caridade seja o sinal distintivo de seus discípulos. Por
consequencia, propriamente falando, só temos uma lei: - a caridade;
uma só coisa que fazer: - amar.

3. Mas o amor de Deus, bem como o do próximo, tem um adversário


e inimigo figadal que só se mantém com quebra da caridade. Aludimos
ao amor desordenado de si mesmo que induz o homem a se preferir aos
outros, a julgar as coisas segundo os próprios interesses, a fazer refluir
tudo a si e a procurar sua satisfação até no que respeita o amor do
próximo quer por antipática quer por simpática.

4. Diz-se, com razão, que o amor se estriba na igualdade e na


semelhanças. Deste modo a antipática ou diminuição da caridade
para com outrem pode ter por origem seja uma oposição aos
sentimentos naturais, seja uma divergência no modo de pensar, de
sentir, na atitude exterior etc., coisas essas que contribuem para que
uma pessoa se nos torne antipática. As ofensas reais ou imaginarias
de que nos julgamos vítimas, são outra causa de antipatia de onde
provém uma terceira, os juízos pouco lisonjeiros, desdenhosos,
acerbos, críticos, cheios de despeito que se traduzem por palavras
duras, intempestivas, observações descorteses, discussões
desagradáveis, coisas muito prejudiciais a caridade. É dela ainda
que procedem certos ditos agudos e o abuso que deles se faz. Um só,
penetra às vezes, mais fundo que uma ofensa direta.
Esse gênero de espírito é geralmente um talento perigoso que, não
raro, encobre insensibilidade de coração e malicia cruel. Um gracejador
dificilmente será benévolo. As mais das vezes, seu móvel é a vangloria;
ostenta agudeza, porém, em detrimento da caridade. O amor dessa bela
virtude que constitui um bem tão precioso, deve incitar-nos a evitar os
defeitos que lhe são contrários. Acautelemo-nos em não admitir, em
nosso coração, de maneira ciente e voluntária, qualquer sentimento de
antipatia ou de acrimônia; não entretenhamos de propósito deliberado,
a lembrança de uma ofensa ou de um proceder incorreto ou antipático,
porquanto, longe de atenuar as causas, essas reminiscências só servem
para aumentar o mau humor. O primeiro gérmen de antipatia são os
pensamentos desfavoráveis que nutrimos a respeito dos outros.
Sejamos indulgentes em nosso modo de pensar e evitaremos as demais
faltas. O homem cujo juízo é sempre benévolo, é certamente um santo,
diz o P. Faber. Há pessoas que parece terem vindo ao mundo só para
nos contrariar; chegam sempre fora de propósito, fazem
constantemente o que nos desagrada e ofende. Outras há, cujos
costumes e deploráveis defeitos nos afrontam realmente. Que fazer
senão não armarmo-nos de paciência? Para, não termos que suportar ou
sofrer coisa alguma, seria mister interdizer todo comércio com nossos
semelhantes. Esses dissabores são o resgata das vantagens que
auferimos da sociedade. Quão monótona seria a existência, se todos
pensassem e procedessem identicamente! Por fim de contas a prática da
paciência e da caridade, que sobrepuja a tudo o mais, é o grande
proveito que nos proporciona a vida social. Na maioria dos casos, o que
nos faz sentir as coisas com tanta vivacidade é o egoísmo, o mau
humor, a teimosia, o apego as idéias próprias, é nossa falta de aptidão e
de jeito para compreender os outros e a eles nos acomodar.

Há um excelente meio para remediar esse mal; consiste em nos


habituarmos a considerar os defeitos de outrem com os mesmos olhos
com que vemos os nossos. Em primeiro lugar, não admitimos
facilmente as faltas que se nos imputam; em seguida, escusamo-nos,
pretextando a excelência de nossos dotes pessoais, finalmente usamos
de grande indulgencia a nosso respeito quando a evidencia não nos
permite duvidas. Abstenhamo-nos cuidadosamente de falar, sem
motivo, das faltas do próximo, porquanto isso só serviria para
aumentar o nosso mal estar e nos por na contingencia de indispor
também aos outros.
Fugir das pessoas que nos são antipáticas, não é precisamente o
meio de triunfarmos de nós mesmos. Atingiremos o alvo mais fácil e
seguramente, indo-lhes ao encontro e fazendo assim prevalecer o
bem sobre o mal. Em todo o caso, cumpre que estejamos resolvidos
a enfrentar com as dificuldades inevitáveis da vida comum, a
suportá-las com paciência e a superá-las, valorosamente. E' ótimo
principio admitir tudo como possível e não nos admirar de coisa
alguma.

5. Considerada em si mesma, a simpatia é um sentimento bom e


louvável. E' o ímã que atrai o homem para o homem, a alma para a
alma, a fim de uni-los na caridade. Por sua natureza é um pendor
involuntário, uma disposição puramente instintiva. Não merece o
nome de caridade, senão quando se torna consciente e é justificada
pelos motivos que a inspiram. A desordem nesse particular, pode
provir de causas diversas.

Haverá desordem, primeiramente se o motivo não for Deus


porque, abstraindo d'Ele, a simpatia é uma inclinação natural e não
a caridade divina.

Em segundo lugar, se não nos conformarmos com a hierarquia


estabelecida pelo próprio Deus e pela razão. Depois de Deus e de
nós mesmos, nossa caridade deve exercer-se, de preferência, em
relação as pessoas que nos são mais intimamente unidas, pelos
laços da natureza ou por disposição divina: nossos pais, superiores,
benfeitores, que, a nosso respeito, representam mais especialmente
a autoridade de Deus, sua providencia e santidade; e também
aqueles que têm mais necessidade de nossa assistência.

Em terceiro lugar, se a simpatia tiver por incentivo, não os dotes


da inteligência e do espírito, porém, as vantagens físicas ou
materiais, talvez mesmo em detrimento da alma. Nesse caso é o
egoísmo que domina e, se considerarmos as coisas de um modo
elevado, esse amor do próximo merece antes o nome de ódio.

Finalmente, haverá ainda desordem, se a simpatia testemunhada


a este ou aquele em particular, lesa o bem geral, porquanto, a
sociedade tem direito a nossa dedicação, tanto ou mais que o
indivíduo.
Nesse gênero de afeições desordenadas, acham-se incluídas todas
as que são puramente sensíveis, também denominadas – amizades
particulares - e cuja característica é desviar nosso amor e simpatia
dos que a eles têm jus e nos expor a pecar contra os preceitos divinos.
Constituem, pois, uma fraude cometida em prejuízo da sociedade
humana ou de uma comunidade particular a que pertencemos. Se o
verdadeiro amor de Deus e do próximo nos eleva e nos reveste de
nobreza e felicidade, esse arremedo indigno nos avilta e perverte; é a
morte da virtude da caridade.

6. Aspiremos, pois, ao sincero amor de Deus e do próximo, o qual


somente nos pode opulentar e enobrecer, proporcionando-nos o ensejo
de praticar um bem imenso. Ninguém pode desculpar-se pretextando
incapacidade e insuficiência. A verdadeira caridade nos tornará assaz
ricos para que possamos beneficiar os outros. Entretenhamos, em nosso
espírito, pensamentos caridosos. A idéia impulsiona o coração e este
dirige a mão. Que é ainda preciso para praticarmos essa bela virtude?
Termos a nossa disposição palavras caridosas. Quanto fruto não
produzem elas! Fazem cessar os mal entendidos e dissipam as
suspeitas. Deixemos transparecer a bondade em nossos olhares. O olhar
benévolo afugenta a tristeza e as tentações, inspira a coragem e a alegria
e a alegria transforma a terra num paraíso. O homem caridoso, bom e
jovial exerce fecundo apostolado. E' um verdadeiro exorcista: expulsa o
demônio; é um evangelista, prega o amor de Deus e reproduz, no meio
da sociedade, o amor e a mansuetude do divino Mestre. Esforcemo-nos
por adquirir a verdadeira simpatia, o sincero amor do próximo; não são
os meios que nos faltam. A caridade é imutável, (1 Cor. XIII, 8) não encontra
tropeços, o conselho que dá é sempre bom. O bem que praticarmos no
decurso da vida nunca será demasiado e, para leva-o a cabo. é mister
coragem e desejo. Qualquer ato de caridade encerra em si consolação e
alegria e excita em nós a nobre paixão de bem-fazer; é o triunfo do
elemento divino, no coração do homem.

CAPÍTULO XVI
Defeitos de caráter

1. Por - caráter- entende se o traço distintivo, particular e especifico


que domina as disposições naturais do homem. O defeito provém de
uma desordem - falha ou excesso -nas faculdades da alma, em suas
mutuas relações.

2. Todos nós temos, mais ou menos, uma defeituosidade de caráter.


Só Deus, - por ser infinitamente simples, exclui qualquer imperfeição.
Nenhum de seus atributos é maior ou mais perfeita que os outros. Não
se dá o mesmo em relação as criaturas, ao homem, por conseguinte, que
é um ser finito, limitado, sujeito as desigualdades. Em cada um, esta ou
aquela faculdade, ou disposição natural, sobrepuja as outras,
destruindo assim o equilíbrio, a harmonia do conjunto e tornando
possíveis os desvios.

3. O defeito de caráter pode provir das disposições do próprio


espírito, da alma, conforme predomina a inteligência, a vontade, a
imaginação ou o afeto, não em proveito, mas em detrimento das outras
faculdades e, deste modo, caracterizam todo o homem. Assim
distinguimos o homem intelectual, o independente, o inflexível, o
enérgico, o fantasista, o sentimental e o entusiasta.

Essas diversidades podem também ter sua origem no físico, isto é, no


temperamento que influi sobre nossas tendências naturais, em
consequencia da intima conexão da alma com o corpo e assim temos o
temperamento sanguíneo, o colérico, o fleumático e o melancólico.
Cada um deles apresenta vantagens e inconvenientes.

4. Para remediar aos defeitos de caráter, importa, primeiramente,


conhecermo-nos a nós mesmos. Ainda que todos padeçam, mais ou
menos, de uma falha desse gênero, nem sempre é fácil descortina-la; o
obstáculo provém, ou do pouco conhecimento de nós mesmos, ou da
falta de reflexão ou ainda da nossa vaidade e cegueira.

A consciência de um defeito ou falta nos humilha, eis por que sempre


procuramos escusar-nos. É também possível haver certos caracteres tão
lisos e bem equilibrados, que não seja fácil encontrar-se um ponto fraco.
Nesse caso o defeito é, as mais das vezes, o temor, a irresolução, a
dificuldade em se decidir a empreender qualquer coisa. Eis alguns
meios que nos podem ajudar a descobrir nosso defeito capital.
Primeiramente, cumpre conhecer o que domina em nós, se é a
inteligência, a vontade ou a imaginação e qual é o nosso temperamento.
Observemos, em segundo lugar, quais as faltas em que incorremos mais
amiúde e, necessariamente, acharemos a raiz comum, e esta é que
constitui o nosso defeito de caráter. Em terceiro lugar notemos as
virtudes que nos são próprias; também elas serão um indicio, porque,
todas tem, um reverso, bem como cada planta sua parasita. Finalmente
estudemos a disposição dominante em nossa alma, ela nos indicará,
com segurança, a direção habitual de nossa natureza, se tivermos o
cuidado de examinar, ao mesmo tempo, o que nos causa alegria, nos
consola e compensa quando tudo não corre a medida de nossos desejos,
bem como as idéias que, de ordinário, ocupam nosso espírito. Temos
ainda outro meio - extrínseco este - de descobrir nosso defeito: são as
luzes que Deus nos concede, na oração, o juízo de nosso diretor e o das
pessoas com quem convivemos. Importa tirar proveito de tudo.

5. Uma vez conhecido o defeito de caráter, urge combatê-lo com


energia e perseverança. Há três razões principais que nos induzem
a fazê-lo:

A primeira é que essa defeituosidade prejudica, não o nosso exterior,


porem -- coisa mais grave -- a consciência intima; é uma mácula na
alma, desfigura a imagem de Deus. Com que cuidado evitamos o
mínimo senão físico! Qual não deve ser ele, tratando-se do moral?

A segunda razão é a suma importância da correção do caráter, no que


concerne a vida espiritual. Nosso defeito dominante constitui um
obstáculo capital ao progresso no caminho da perfeição. Não é
simplesmente uma fraqueza, mas ainda a origem das outras faltas que
todas têm, como ele, um ar de família bastante característico.
Combatê-lo é pois generalizar o ataque; corrigirmo-nos nesse ponto
equivale a nos emendar em tudo o mais. Não raro ouvimos esta
queixa: ‘Quem me dera não ter esse desgraçado defeito! O resto seria
tolerável.’ Logo é ele um verdadeiro tiranete, não obstante aparentar
muitas vezes ares de virtude. Nada há mais urgente que entrar em
luta com esse temeroso adversário; o socorro divino não nos há de
faltar porque é ele inimigo de Deus tanto quanto nosso. Priva-nos
das graças celestes e dos méritos adquiridos a custa de tantos esfor-
ços. A mais daninha parasita é menos nociva a planta em que se
enrosca. - Os mestres da vida espiritual são unanimes em declarar
que uma boa índole é o mais importante dos meios naturais de que
Deus se serve para conduzir as almas a seu fim derradeiro. Sigamos
essa indicação da Providencia, lutando energicamente contra nosso
defeito dominante. A recompensa nos será dada, já neste mundo,
pela pureza da alma, a paz e serenidade do coração.

Consiste o terceiro motivo, na necessidade dessa luta, no ponto de


vista da nossa vocação. Aquele que a ela se exime, pode ir refugiar-se
em um deserto, e renunciar, da mesma feita, a exercer qualquer ação
sobre seus semelhantes. Ao menos, na solidão, não fará mal a
ninguém. Mas, para viverem sociedade e beneficiar os outros,
cumpre esforçamo-nos por adquirir um caráter nobre e generoso.
Qualquer defeito, nesse particular, restringe ou aniquila nossa
influência pessoal. Para atuar no animo dos outros é necessário
possuir muitas virtudes. As vezes, um só defeito basta para pôr
tudo a perder. Quantas resultas auspiciosas não foram
comprometidas ou arruinadas, quer pela cólera, quer pela
imprudência ou sensualidade! Graças a elas os mais belos talentos,
permanecem estéreis.

É preciso pois, nesse ponto, exercer uma séria mortificação.


Ainda mesmo sem esperança de vitória, deveríamos lutar
corajosamente. Mas tudo nos faz prever o bom êxito. Temos que
enfrentar com um só inimigo e contra ele reunimos todas as
nossas forças. É a verdadeira tática que importa seguir. Deus virá
em nosso auxilio, porque, é a sua própria causa que se achá em
jogo. Se os santos triunfaram de suas defeituosidade de caráter
porque não o conseguiríamos também? Tudo depende de nossa
energia e perseverança. Nada resiste a uma vontade firme e
resoluta. Façamos o que estiver ao nosso alcance: certamente não
será possível mudarmos a essência do nosso caráter, mas
chegaremos a reprimir-lhe os excessos e corrigir-lhe os senões.

O tempo nos é dado; podemos querer, lutar e orar.

É quanto basta.
CAPÍTULO XVII

Conclusão

1. Uma conclusão lógica se depreende de tudo o que foi dito até


aqui: Fazer consistir o fundamento do edifício de nossa vida
espiritual na firme resolução de triunfarmos de nós mesmos,
conjugada com o principio da imprescindível necessidade da prece.
Essa ilação constituirá uma de nossas máximas e a ela nos devemos
ater como a uma idéia fixa, não obstante todos os obstáculos que
possam sobrevir.

Sem dúvida, teremos que registrar mais de uma falha, porém, o


dano será somenos enquanto permanecermos fieis ao principio.
Aliás as faltas irão diminuindo e, finalmente, a máxima que deve
orientar-nos tornar-se-á a regra vitoriosa de nossa vida.

2. Pelo contrario, no dia em que abandonarmos esse principio,


seremos forçados a renunciar, ao mesmo tempo, a toda espiritualidade
séria, a perfeição, por conseguinte. Por si só, a oração não basta.
Contentar-se com ela, abstraindo da luta contra si mesmo, é um dos
desacertos da ascese moderna, ascese de água açucarada que pretende
achar a Deus e unir-se a ele unicamente por meio da oração. A despeito
dos esforços empregados durante anos, a alma, após intermináveis cir-
cuitos, achar-se-á no ponto de partida.

Para atingir o fim, é mister a oração e o desapego de si mesmo, a


estreita união desses dois meios, assim como para voar é necessário
duas asas e como para lavar as mãos serem elas duas. A prece e a
mortificação devem auxiliar-se, apoiar-se, mutuamente, uma
completando a outra. A oração implica necessariamente o des-
prendimento, sem o qual ela não pode subsistir; e, ainda mesmo que
isso fosse possível, Deus não se manifestaria a alma. O homem que não
sabe mortificar-se; procura a Deus, na oração, e não o encontra, ao
passo que o Senhor se compraz em visitar aquele que se abnega porque
o coração desse homem é isento de culpa e desapegado dos bens da
terra e, por conseguinte, preparado para a união divina. O Senhor
deseja ardentemente comunicar·se, unir-se a nós mas, para isso, é
preciso conservarmos o coração puro e abnegado. Assim como a oração
não subsiste sem a penitencia, assim também esta não se mantém sem
aquela. Difícil coisa é mortificarmo-nos; só a graça de Deus no-la pode
tornar accessível, e a graça nos vem pelo canal da prece. Desde logo, se
quisermos ser o homem avisado do Evangelho, que constrói sua
morada sobre um rochedo, edifiquemos nossa vida espiritual na rochá
da oração e do desprendimento de nós mesmos.

3. Sem duvida é duro ouvir falar sempre em mortificações e a vereda


do desapego é árdua e penosa, mas foi o pecado que nos colocou nela e
agora, por mais áspera que seja, cumpre trilhá-la até o fim!

Com tudo não nos esqueçamos de que o caminho da perdição não é


menos trabalhoso; ao contrário, o jugo das paixões, é ainda mais
pesado. Se não nos renunciarmos a nós mesmos, cairemos no pecado. É
preciso optar: ou a mortificação ou a ofensa de Deus. Por fim de contas
se o caminho se nos antolha por demais rude, é porque somos faltos de
animo. Tomemos uma resolução enérgica e tenhamos confiança; com o
tempo ele se tornará ameno e até deleitoso. A vida provém da morte e a
doçura da força. 1) A sarça da penitencia não produz somente abrolhos,
mas também as rosas do gozo espiritual. Todavia, como tudo o que. é
grande e belo, no mundo, a consolação deve ser conquistada pelo
esforço próprio, mas para a alma generosa de um herói, a dificuldade e
a fadiga são antes incentivo que obstáculo. É essa a face sedutora da
mortificação.

4. Para nos furtarmos a penitencia não escasseiam os pretextos. Não


raro ouvimos dizer: “Isso não é mais do nosso tempo, hoje a saúde e o
trabalho não permitem esses excessos.” Distingamos. Se querem falar da
mortificação interior, o argumento não procede, porquanto ela não
compromete nem a saúde, nem o trabalho. Quanto à exterior, quase
poderíamos afirmar que as saúdes seriam mais robustas se ela fosse
praticada com mais assiduidade. Ninguém contesta ser o trabalho
excelente penitencia, mas para se tornar útil e consciencioso, cumpre
que ele seja acompanhado de mortificação; de outra forma, ·perdemos o
tempo em futilidades deixando nos ir ao sabor dos nossos caprichos;
ora, isso não merece o nome de trabalho. “Esta ascese já está fora da
moda.” Ao que parece o mundo de hoje é o mesmo de outrora; não
consta que tenha havido, nele, modificações essenciais. Não houve
também mudança em Jesus Cristo; o fim que devemos atingir e o
caminho que a ele conduz, são ainda os mesmos. Logo, importa atermo-
nos a antiga prática da mortificação. «Seja! admitimos a penitencia interior,
mas não a corporal.» Evidentemente, em todos os pontos de vista, a
mortificação do espírito é superior a da carne e até mais necessária,
porém não se infere daí que esta deva ser descurada, porque sem ela a
outra não pode subsistir. Desdenhá-la, rejeitá-la, de caso pensado, é ir
de encontro ao' espírito do cristianismo, é desconhecer, por completo, a
condição que nos foi criada pelo pecado. Grande parte de nossas faltas
tem sua origem no corpo. De acordo com a doutrina cristã, não é ele
somente uma potencia do mal que importa refrear, mas também a
mirra preciosa da penitência e a satisfação por nossas próprias culpas e
as do mundo; é o preço e o sacrifício que nos obtêm graças especiais,
luzes abundantes e méritos para a eternidade. É por essa razão que as
almas mais inocentes são também as mais intrépidas no exercício da
penitencia corporal. .A mortificação exterior é útil aos principiantes, depois
não é necessário.» Assim como a sombra nos acompanha por toda a
parte, assim também não nos podemos furtar a influência que o corpo
exerce sobre a alma. O desapego de si mesmo é o a b c da vida
espiritual: não o olvidemos.

Aliás, é preciso convir: a renúncia de si próprio, é, para o homem


decaído, causa penosa e que demanda perseverante energia, mas é
precisamente o que importa, para que ele possa triunfar do mal e se
formar na prática generosa do bem.

O caminho é rude, porém o escopo glorioso e um nobre coração não


mede sacrifícios quando se trata de conquistar a gloria. Eis por que a
Imitação de J. C. termina com estas palavras o capitulo que versa sobre
o real caminho da Santa Cruz: É a custa de muitas tribulações que entra-
remos no reino de Deus. (II, 12) Ora, para superar as tribulações é mister
que o homem se vença a si mesmo e pratique uma mortificação
sistemática universal, incessante.

TERCEIRO PRINCÍPIO

Amar o Divino Salvador


Suave e deleitoso é o comércio que, mediante a oração, mantemos
com nosso Criador e Pai. Nobre e magnânimo o impulso que nos leva a
dominar nosso coração a fim de torná-lo digno da familiaridade divina.
Mas esse duplo dever é por vezes árduo e laborioso. É então que
intervém o amor aplainando todas as dificuldades.

CAPITULO I

O amor

1. Desprender nosso coração da terra e voltá-lo para o céu; carregar


valorosamente a cruz de cada dia e aceitar, com júbilo, os sacrifícios que
se nos deparam no decorrer da existência, são coisas penosas a que a
natureza humana dificilmente se afaz. Só o auxilio de uma qualquer
coisa cuja força e amabilidade nos seja contínuo atrativo e uma
alegria que compense as agruras da vida, é que nos poderá
facilitar o cumprimento dessa rude tarefa.

2. Pois bem, esse tesouro, nós o temos: é o amor.

O amor é a inclinação da vontade para um bem que contenta o


coração, satisfaz sua aspiração à felicidade e cuja posse lhe dá paz e
alegria. Essa tranqüilidade, esse contentamento, inseparáveis do amor,
são os efeitos naturais que dimanam da posse do bem anelado e por
isso, o amor tem a primazia sobre tudo o mais. Deus é amor; e entre os
dons, por ele outorgados ao homem, nenhum sobreleva a este.

3. Mas para que o amor possa dar ventura duradoura e satisfazer a


todas as faculdades, cumpre, não somente que o bem, fonte de alegria e
paz, constitua um ideal de verdade, de bondade e beleza, mas também
que esse ideal exista realmente e não seja, apenas, uma possibilidade.
Além disso, importa que, de um lado, ele nos supere, a fim de elevar-
nos acima de nós mesmos atraindo·nos para si; de outro, que se
assemelhe a nós para que possamos compreendê-lo e dele nos achegar
confiadamente. É mister que seja imutável e eterno porquanto, se não
nos sobrevivesse seria inferior a nós. Finalmente, deve constituir o Bem
infinito, incomensurável, para que lhe seja possível satisfazer
plenamente os desejos eliminados de nosso coração.
4. Onde, porém; encontrar esse ideal neste mundo, em que tudo é
finito e perecedouro? Cumpre, pois, subir ao céu para fazê-lo de lá
descer ( Deuter; XXX, 12). Deus conhece nossa instante necessidade de amar
e encontrar a ventura no amor. Foi ele que gravou essa aspiração em
nossa alma e sua solicitude não se descurou de satisfazê-la. Existe -
Alguém - que habita simultaneamente o céu e a terra e que, sendo, ao
mesmo tempo, Deus e homem, reúne em si toda a formosura, toda a
excelência da natureza humana e da divina. No céu e na terra, tudo
vive da vida desse ideal, haurindo a alegria no reflexo de sua beleza.
Nunca poderemos compreender toda a sua magnificência não
bastando, para isso, a própria eternidade. Caia sobre nós um raio de sua
gloria e de sua formosura e isso basta para constituir a felicidade da
vida inteira, para compensar a perda de todos os bens e consolar das
maiores tribulações. É o antegozo da eterna bem aventurança..

Esse - Alguém - é Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus infinitamente


bendito nos séculos dos séculos. Alguns traços de sua adorável
fisionomia, e uns tantos pormenores acerca de sua vida nos
proporcionarão sobejos motivos de amá-lo, motivos suficientes para
arraigar esse amor em nosso coração, aumentá-lo incessantemente e nos
fazer encontrar nele a força que anima e ampara a vida.

CAPÍTULO II

Jesus Cristo - Deus

Só Deus pode dar, ao homem; a perfeita felicidade. Uma abusão


do espírito e do coração, nos leva a crer que o amor da criatura é
capaz de nos satisfazer completamente. Porém, uma dura e amarga
experiência nos fará, em breve, reconhecer a verdade. Como tudo
neste mundo é pobre, miserável, obscurecido, estragado pela
imperfeição! Como tudo passa e desaparece, qual sonho fugaz,
deixando-nos tristes, desgostosos e de mais a mais atormentados
pela incessante aspiração ao amor e a ventura! Para nos contentar
plenamente, é mister um bem infinito: Deus, em uma palavra. É esse
o cunho inato de nossa semelhanças como Criador, aprova de que
lhe pertencemos como a nosso último fim e fonte de toda felicidade;
é, por assim dizer, o instinto de nossa adoção divina.

1. 'Regozijemo-nos! Viver com Jesus Cristo é permanecer com Deus,


pois que Jesus·Cristo é verdadeiramente nosso Deus. Não caberia aqui
demonstrar cientificamente essa verdade, porquanto cremos
firmemente nela e ciosos conservamos essa fé no coração. Desejamos,
pois, tão somente, fruir algo da beleza e suavidade que ela encerra no
seu âmago.

2. S. João inicia o seu Evangelho com as seguintes palavras: «No


principio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus (joann; I, 1)
Assim, já pela sua eternidade, o Cristo se revela Deus. Nele reside
verdadeiramente a Divindade em cujo seio é Ele o Verbo, a Sabedoria; a
Verdade, o Filho da Luz, a Vida, a Beleza. Na Sagrada Escritura, o
Salvador confere, a si mesmo, esses títulos que nos indicam seus
atributos pessoais. Que sentimentos despertam em nossa alma todas
essas expressões? Sabedoria, Vida, Beleza, que pode haver mais amável,
mais doce e reconfortante? E tudo isso é Jesus Cristo, é Ele,
essencialmente,em sua própria pessoa, como nenhum outro o poderia
ser.

3; «Ele estava no principio com Deus, continua S. João, todas as


coisas foram feitas por Ele.»(Jo; I,2-3) Na qualidade de Sabedoria do
Pai, Ele ara o livro da Vida onde se achavam contidas, em sua
variedade e formosura, as intenções da Bondade Criadora de
Deus e as comunicações que o Senhor se digna fazer as
criaturas. Todas as coisas foram feitas em conformidade com
esse ideal divino.

Quem poderá, jamais, compreender a riqueza e a magnificência do


poder criador de Deus?

Também nós lá estávamos como imagens vivas de sua Bondade, lá


existíamos e éramos amados de um peculiar amor, pois que Ele
intentava criar-nos, ao passo que tantos outros seres deveriam perma-
necer, por todo sempre, no vasto oceano dos possíveis. A Sabedoria
incriada foi, pois, nossa primeira pátria e eterna morada, o foco de
nosso ser, o princípio de nossa existência. Como, pois, deixar de amá-
la? Como olvidá-la?

«Oh! se me fosse dado ver o Senhor! quão fácil seria amá-lo!» Quantas
vezes não nos tem acudido ao espírito esse pensamento e esse desejo ao
coração! E todavia de certo modo, Deus se manifesta visivelmente a
nós, ou pelo menos, permite que vislumbremos algo de suas perfeições
divinas. A natureza, o mundo da ciência, da arte, a criação visível ou
ainda a invisível, são apenas uma imagem, sem duvida, mas, sem
embargo, imagem de Deus e uma continua ocasião de representá-lo a
nosso espírito, um motivo permanente de amá-lo. A criação terrestre é
até tão bela e magnífica que faz mister comprimir violentamente o
coração afim d.'obstar que ele sé desgarre nas afeições dás criaturas. E
Deus, qual será? Indubitavelmente mui diverso do que achámos mas
infinitamente superior a tudo quanto poderia figurá-la a nossa mente.
Sendo o autor de todas as coisas, a criação, na sua ordem admirável é
na variedade de sua beleza, reflete necessariamente a imagem do Filho
e tudo nela é uma tradução visível da invisível magnificência do Verbo.
E que dúvida! o Senhor, principio ,de toda beleza, que dá a sua obra
essa peregrina formosura, não será por ventura incomparavelmente
mais belo?(Sab.XIII,3) Qual é pois sua magnitude! Quão amável e
magnífico se revela o nosso Deus!

4. Jesus Cristo é Deus. A fim de atestar essa verdade que constitui


nossa glória a nossa salvação Ele desceu pessoalmente a terra.
Consciente de sua Divindade, não trepida em filmá-la, sempre,
de diversas maneiras e nas formas mais atraentes. Um dia,
discorrendo em termos persuasivos, sobre seu Pai e sobre a
esplêndida morada do céu, um dos discípulos lhe fez este pedido:
"Senhor, mostra·nos o Pai e isto nos basta» "Filipe, respondeu Jesus,
quem me vê a mim, vê também ao Pai. Não credes que Eu estou em meu
Pai e meu Pai em mim está?» .(Jo XIV,8) Eu sou a luz(Jo X,30) e a vida do
mundo (Jo VIII,12). Eu sou o caminho, a verdade e à vida (IX,5). E é esta a
eterna vida: conhecera Jesus Cristo, vosso Filho, a quem enviastes (XIV.6).
Com o intuito de confirmar estas palavras, Ele opera milagres no
mundo dos espíritos, pelas profecias e, no mundo visível, curando
os doentes e ressuscitando os mortos. Firmado nestes testemunhos,
Jesus exige a fé: Credes no Pai; crede também em mim (XIV,1), e ainda
mais que a fé, Ele pede o amor, um amor, porém, que só Deus pode
reclamar. Aquele que disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o
coração (X, 27), o que reivindica para si a totalidade do amor de que é
capaz o coração humano e que por conseguinte é o único apto para
satisfazer às ardentes aspirações de nossa alma, não é Ele por ventura o
próprio Deus?

5. E esse amor que não pode convir senão a Deus, Jesus Cristo o
encontrou plenamente. Ao remontar ao céu Ele fundou um reino
que abrange a terra toda, reino que jamais terá fim. Nele, Jesus, é
amado, adorado, como Deus. Desde os tempos apostólicos que
um sem-número de almas escolhidas, renunciando as vantagens
transitórias e desprezando a vida terrestre, crucificam o mundo
em seu coração e consagram ao Senhor a plenitude do amor de
que são capazes. E assim será até o fim. O verdadeiro cristão está
sempre pronto a dar a vida, a sacrificar os seus mais caros
interesses para defender a verdade capital do Cristianismo.
Estribado na fé e no amor, o reino de Jesus não perecerá. A vitória
moral do Cristo, transformando a sociedade, mediante a fé e o
amor é prova irrefragável de sua Divindade. A história apresenta
homens ilustres que, enquanto vivos, atraiam a si o mundo, quer
pelo influxo de potente inteligência, quer por meio da força material;
por causa deles muitos afrontavam a morte. Mas houve, acaso, alguém
que, por amor desses mesmos homens, se tivesse convertido e
renunciado aos apiteis mais íntimos da natureza? Desapareceram os
gênios surpreendentes', os grandes conquistadores e, do edifício que
arquitetaram, nada, hoje perdura. A noite do esquecimento envolve-os
no seu sudário. Quão diversa deve ser a força que submete o mundo a
Jesus Cristo, provocando a adesão dos corações por meio da fé e do
amor! É o poder da Divindade a qual, durante a vida como depois da
morte do Homem Deus, se afirma radiosa e triunfante.

5. Jesus Cristo, objeto da fé, da esperança e do amor nosso, é Deus.


Exulte mos de jubilo! porquanto, possuir a Jesus é gozar de tudo o que
constitui o ardente e incessante anelo de nosso coração. Jesus não é
unicamente o homem por excelência, a mais nobre e bela das criaturas;
é mais que tudo quanto poderíamos idealizar: é Deus; logo,
infinitamente superior a todas as criaturas reunidas. Desde então,
devemos não somente admirar e entregar·nos aos transportes do amor,
mas ainda, adorar.
Em Jesus Cristo, nosso fim ultimo, encontramos o repouso completo
e definitivo. É ocioso procurar alhures a verdade, a bondade e a beleza.
Nele, não se estabelecem detenções entre a homenagem prestada ao
homem e o culto rendido a Deus; entre a gloria do Criador e o nosso
próprio bem. Servi-lo é servir a Deus, é alcançar a nossa salvação e
eterna felicidade. O tempo e a morte que nos despojam impiedosos,
de todos os bens deste mundo, não podem privar-nos do objeto do
nosso afeto. Ao invés do que se dá com a criatura, jamais o tédio e a
saciedade virão perturbar a alegria e o gozo desse amor. As
criaturas são tão indigentes, o contentamento que delas nos vem,
estanca·se com tanta rapidez, que bem depressa elas se esvaem, sem
ter conseguido satisfazer·nos o coração. A inconstância, a
infidelidade ou a morte, são, neste mundo, o termo inevitável de
todas as causas. No tocante a Deus, porém, não acontece o mesmo.
Á medida que nos esforçamos por conhecê-lo melhor, novos
encantos se desvendam ao nosso espírito.

Não há declínio, para o amor, a paz e a alegria que transbordam


de nossa alma. Até nesse particular, é verdadeira a palavra de S.
João: Deus é maior que nosso coração .(Jo III,20) Ninguém arrebatará o nosso
gozo.(XVI,25) Aquele que em mim crê terá a vida eterna. (II, 36) Ora, viver é
conhecer, é amar, é ser venturoso. segundo a bela expressão de S.
Agostinho. "Vacabimus et videbimus, videbimus et amabimus, amabimus et
laudabimus. Ecce quod erit in fine sine fine», «Descansando contemplaremos,
contemplando amaremos, e amando exultaremos. Eis. o que constituirão fim
sem fim, de todas as cousas» (De civ. Dei I,XXII c 30 n 5). .

A primeira condição do amor é, que o objeto de nossa afeição nos


seja não somente superior, mas ainda infinito, em todos os sentidos.
Essa condição Jesus a realiza plenamente mediante sua Divindade.
Qual não deve ser a nossa gratidão para com o Pai celeste que nos deu
seu próprio Pilho e, com Elie a plenitude dos dons que no Filho se deu
a si mesmo com o Espírito Santo! Não precisamos mais de ir mendigar
o amor das criaturas, nem a felicidade que elas não nos podem dar.
Tudo possuímos em Jesus Cristo, Filho de Deus. Podemos dizer com os
discípulos, modificando a expressão: "Pai, mostrai-nos vosso Filho e isto
nos basta. (JoXIV,8).

.
CAPÍTULO III

Deus Homem

A felicidade primordial do homem, sua primeira alegria, é Deus; em


seguida- o homem. Eis a razão por que Deus, na qualidade de homem,
em Jesus Cristo aproximou-se da criatura humana, no intuito de lhe
granjear o amor. Sendo puro espírito e, em consequência, invisível, por
natureza, cumpre que Ele se apresente, sob uma forma visível, afim de
que o homem o possa conhecer e compreender. E, supostos que Deus
crie uma imagem de si mesmo, quais serão os encantos, a beleza dessa
criatura ideal? Pois bem, essa imagem, existe realmente. O Senhor no-la
deu na Santa Humanidade do Cristo. Jesus, verdadeiramente Deus e
Homem, apareceu·nos em todo o esplendor de sua formosura e de seu
amor por nós. (Tit. III, 4)

1. Fazendo·se homem, o Filho de Deus revestiu-se realmente


da humana natureza, sem, todavia, despojar-se da divindade;
possuía um corpo e uma alma com as faculdades que lhe são
próprias - inteligência vontade, imaginação, sensibilidade; -
fez·se, em tudo semelhante a nós. A pessoa do Verbo, tomou
somente o lugar da personalidade natural, unindo em si as duas
naturezas: a divina e a humana. Sem embargo, essa união não
modificou em coisa alguma, a natureza humana; elevou-a,
·simplesmente á participação da divindade, comunicando infinita per-
feição ás faculdades e potencias naturais.

A bela inteligência de Jesus Cristo, conhecia toda a verdade, tanto na


ordem natural como na sobrenatural; sua vontade puríssima,
santíssima, onipotente, não encontrava limites nem no céu nem na
terra; o corpo, de incomparável formosura e delicadeza, era o
instrumento de seus admiráveis atos. Em tudo o Homem-Deus se
mostrava por excelência, a obra prima da criação, a magnífica revelação
de Deus á criatura.

2 - Para se revestir da natureza humana, o Filho de Deus escolheu o


modo que mais adequadamente atestasse sua misericórdia e seu amor.
Primeiramente Ele não a recebeu diretamente das mãos de Deus, como
Adão; mas quis nascer de nosso sangue, de nossa raça e descender de
nosso primeiro Pai, mediante seus ascendentes na família humana, isto
é, quis ser homem como nós o somos. Possuía uma mãe, uma família,
uma pátria, uma nacionalidade, uma religião e até um nome humano.
Abstraindo do pecado, ·assemelhou·se a nós, em tudo o mais. É pois
com toda a verdade irmão nosso segundo a carne. Além disso, o Verbo
não assumiu uma natureza humana impassível, imoral, como
originariamente era a de Adão. Porém, tal como ela se tornou após a
queda, sujeita aos sofrimentos e à morte e, não somente aos
sofrimentos, na medida em que eles são a nossa partilha tanto no que
respeita a alma, como no que se refere ao corpo, mas na proporção que
o próprio Senhor havia determinado e que Ele realizou em sua vida.
Efetivamente, segundo uma opinião teológica que se funda em sólidos
argumentos, Deus deixou ao Salvador, desde o primeiro instante de sua
vida mortal, a livre escolha do modo por que Ele deveria operar nosso
resgate e foi em plena liberdade, como convinha ao Filho de Deus, que
Jesus Cristo selecionou todas as circunstâncias de sua vida e de sua
Paixão Redentora(Hebr.X,5,;XII,2). No momento da encanação Nosso
Senhor escolheu verdadeiramente o seu estado de vida. A que gloria, a
que felicidade renunciou Ele; quais os excessos de pobreza, trabalhos,
humilhações e sofrimentos a que se sujeitou, nós o sabemos
sobejamente. E, mercê dessa eleição Jesus imprimiu o selo do sacrifício
em toda a sua vida. Na verdade o Verbo divino aniquilou-se tomando a
forma e, a natureza de um servo (Fil. II, 7).

3. E qual foi o motivo dessa preferência? Em ultima análise, o seu


amor por nós, porquanto, para a gloria de Deus e a expiação
do ,pecado, bastava a mínima das ações do Homem-Deus, pois que tu-
do nele, - atos e sofrimentos - era de um valor infinito. Nem se pode
alegar que houvesse qualquer vantagem, um acréscimo de gloria para o
Salvador visto que desde o primeiro instante possuía Ele a gloria
essencial a qual não é susceptível de aumento. Quanto a acidental, que
consiste na honra e amor que a criatura deve testemunhar-lhe, Jesus era
por si mesmo assaz amável e digno de estima, para atrair todos os
corações; alem disso, dispunha de copiosas graças próprias a suavizar o
que esses deveres pudessem ter de penoso á natureza. Assim pois, não
subsiste outro motivo senão o amor. Foi ele a razão determinante da
escolha. Quis o divino Salvador, que nenhum privilégio o sobrelevasse
aos demais homens, seus irmãos; assemelhando-se a nós, em tudo, com
exceção do pecado, foi seu intento, não somente, servir-nos de modelo,
exemplo e consolo em todas as nossas tribulações, mas ainda
oferecer·nos o ensejo de obter mérito eterno aos nossos sofrimentos,
mediante o amor e a dedicação a sua adorável pessoa. Que nobre,
constante e desinteressado amor! Desde esse instante Ele nos amou e se
entregou por nós (Gal.II,20).

4. Quantas bênçãos, quantos privilégios nos proporciona essa


caridade do Salvador, revestindo-se do nossa própria natureza!
Antes de tudo Ele honrou e ·exaltou o gênero humano,
porquanto, a união da natureza divina com a humana,
enobreceu-nos, divinizou-nos a ponto de nos constituir parentes
de Deus! Um de nós é, por natureza, verdadeiramente Filho do
Altíssimo. Os próprios anjos nos tratam com reverencia. Em
Jesus Cristo, a família humana foi elevada acima das
hierárquicas angélicas, pois que sendo senhor dos anjos, Jesus
não lhes é, todavia, irmão pela identidade de natureza.
Imperando no trono de Deus, o Cristo recebe a adoração de
todos os coros angélicos.

A segunda vantagem é a opulência de que fomos gratificados. Jesus


Cristo é ·a Cabeça da humanidade e, como esta comunica seus bens aos
membros do corpo, assim a humana natureza participa dos tesouros
que o Cristo encerra. A vida sobrenatural, a graça, a gloria, todos os
méritos de Jesus, são propriedade nossa: temos direito a toda essa
riqueza, se nos unirmos a nosso Chefe, mediante a fé e o amor. Até
em relação a Deus, essa união nos opulenta, porquanto, pela
mediação do Cristo, não somente podemos oferecer ao Criador a
adoração, a ação de graças, a satisfação que lhe são adequadas mas
também satisfazer a tudo quanto Ele exige de nós.

Uma suave consolação e afetuosa confiança é a terceira vantagem


que auferimos da certeza de que Jesus Cristo, verdadeiro Deus, é
também verdadeiro homem. Com efeito, sendo Deus, ele possui
tudo o que constitui a natureza humana. O que coloca a sua
humanidade acima dos demais homens, é obra da graça, da pura
liberalidade do Criador. Jesus bem o sabia e por isso era e é, tão
humilde, tão bom e condescendente para conosco não obstante as
nossas fraquezas e misérias. Experimentou todas as provações, foi
cercado de fragilidade a fim de se tornar um Pontífice
misericordioso (HebV,2). Logo, nada há que nos possa afastar de nosso
Salvador; nem temor, nem sentimento da distancia que dele nos
separa. Não é Ele um estranho, um ser fantástico que cumpre
admirar e temer, não; é um de nós, um amigo, a quem podemos
dedicar toda afeição e com quem conversamos simples e
confiadamente. Na qualidade de homens e irmãos que somos de
Jesus Cristo, temos o direito de tudo esperar do ilimitado amor de
seu coração. Eis o que é o Filho de Deus relativamente a nós,
mediante o mistério da Encarnação, mistério augusto que nos deu o
Homem-Deus tão grande e admirável que a Escritura o denomina o
Primogênito de todas as criaturas (Col.I,15,16,19), o Herdeiro de todas as
coisas (Heb.I,3) o Homem·Deus, tão poderoso que ante Ele todo joelho
se dobra, no céu, na terra e nos infernos (Fil.II,10), o Homem·Deus tão
belo e amável que Ele é, por assim dizer, a flor dos pensamentos do
Eterno Pai; o Homem-Deus, objeto do amor e da admiração da corte
celeste; o Homem Deus, vida e consolo de nossa mísera terra; Jesus
que, se constituiu nosso irmão e que, estreitando·nos ao coração, nos
apresenta ao Pai, na eterna pátria, como o preço de seu sangue, o
triunfo de sua ternura para com a humanidade. Que meio resta a
Deus, e que poderá ele fazer, em favor de um coração que se não
deixa vencer pela formosura e magnificência do Homem·Deus.

CAPÍTULO IV

Deus-menino

1. Deus se fez homem, no mais estrito sentido da palavra, e, por


conseguinte, quis passar pela infância, a qual constitui uma fase
essencial da vida humana. Todavia, aqui, tomamos o termo -infância -
na acepção mais lata de juventude; é o período de formação, desde o
primeiro Instante da existência até o completo desenvolvimento. E há
nisto uma diferença entre o primeiro e o novo Adão. O primeiro, não
conheceu infância nem juventude; entrou no mundo com a idade de
homem perfeito. O novo Adão quis percorrer o ciclo habitual da vida
humana. A infância de Jesus Cristo é, pois, consequencia lógica do fato
mesmo·da Encarnação do Senhor e de sua determinação de se tornar
em tudo semelhante a nós.
2. Ora, qual é o caráter distintivo dessa primeira aparição de Jesus
entre os homens?

O Apostolo o resume nestas breves palavras: «Apareceu a bondade do


Salvador nosso Deus e o seu amor para com os homens» (Tit. III,4). Logo, a
bondade e o amor são o traço característica dessa primeira
revelação. E tudo converge para o mesmo fim.

Efetivamente, não é a criança o que há de mais amável ?

O homem é a obra prima da criação visível, a criança, a flor da


humanidade.

Quem poderá eximir-se de um sentimento de eterna afeição para com


essa mimosa criatura, ao contemplar-lhe as graças, o progressivo
despertar da inteligência, a candura da inocência da alma? Como
repeli-la, se, cheia de confiança, ela procura o refugio e o apoio de nossa
proteção? Pois bem, foi precisamente dessas encantadoras aparências
que o Filho de Deus quis revestir·se, no intuito de cativar o nosso amor.

Em cada uma de suas manifestações, Deus se aproxima da criatura,


num desígnio de misericórdia; sem embargo, essa revelação do
Salvador é a mais apropriada ao seu intento de atrair os corações.
(Heb.I,2) Há nela tal condescendência, que, comparados a essa criança,
parecemos ser mais avisados, mais fortes que ela, e seria licito –
amercearmos-nos de um Deus tão pobre e tão desamparado. Todas as
barreiras que poderiam separá-lo de nós, foram abatidas. Não somente
Ele se tornou como um de nós, mas até, aparentemente, inferior a
qualquer de nós. «Nasceu·nos um menino, um «Filho nos foi dado» (Is. 9, 6.)
«Filho do homem» tal é o titulo do nosso excelso Deus! Mísera criança
envolta em planos, reclinada numa manjedoura! São esses os
extraordinários sinais que devem dar a conhecer o seu advento no
mundo! Com razão e excelentemente diz S. Bernardo: «Grande é o Se-
nhor, e infinitamente digno de nossos louvores; o Senhor é pequeno e merece
infinitamente nosso amor». Tal é toda a sua infância e juventude. Quão suave
é esse Deus todo poderoso que se confia aos cuidados de uma mãe e de
um pai terrestres, que deles recebe o alimento e lhes permite defende-lo
contra seus inimigos! Como é enternecedora a maravilha de seu
desenvolvimento e progresso a medida que o corpo adquire novas
graças e maior nobreza, que a inteligência se revela com mais esplendor
e as ações se manifestam cada vez mais perfeitas.

Como são amáveis as virtudes que o adornam! A humildade, a


obediência, a piedade, a aplicação ao trabalho, enfim, todas as virtudes
próprias da vida doméstica e cujo espetáculo regozijando o céu e a
terra, tornam os habitantes de Nazareth, docemente ciosos de Maria,
a Mãe de tal Filho! Que graça semovente, encerra o mistério de Jesus
detendo·se no Templo, como a começar a sua vida pública, na qual
se há de revelar Messias e Deus, porém, na pobreza, no
desprendimento de tudo o que concerne a carne e o sangue.
Dir-se-ia que ele não pode conter-se por mais tempo, que anseia por
mostrar que temos nele mais direito que a sua própria Mãe e suspira
pela hora de se entregar inteiramente a nós.

Até o presépio com o seu silencio e desamparo é um símbolo


eloquente do que Jesus fará, um dia, por nosso amor. Hoje, Maria o
envolve em panos, mais tarde o cobrirá com um sudário; agora Ele
derrama lagrimas, dia virá, em que verterá _ seu sangue; hoje,
repousa em uma manjedoura que lhe não pertence, amanhã
descansará num sepulcro alheio.

3. O próprio cenário da infância do Salvador, os lugares que


habita, a saciedade que o cerca tudo concorre para ajuntar encanto
novo a tantos atrativos. Sua residência é, primeiramente a pequena,
porém, nobilíssima cidade de Belém a qual domina verdes colinas e
frescas pastagens que trazem a memória as mais graciosas
reminiscências dos tempos de outrora; é, em seguida, o maravilhoso
país dos Faraós com suas gigantescas pirâmides, a sombra das quais, os
filhos de Jacob, acrisolaram sua religião, amestraram-se nas artes e
amoldaram-se ao sofrer, tornando-se destarte um povo forte e
poderoso; vem em terceiro lugar o remanso de Nazareth, por tanto
tempo testemunha de sua amável juventude, de seu labor e humildade;
finalmente, o venerando templo de Jerusalém, onde Deus se revelou e
onde o próprio Jesus se manifestará, num dia de gloria, constrangendo
os Doutores da Lei, rodeados de respeito quase supersticioso, a prestar
homenagem a uma criança de doze anos! E cada um desses lugares tem
seu significado particular e nexo especial com a missão de Jesus. A
sociedade que cerca a infância do Salvador não é menos amável e
instrutiva: a Virgem-Mãe, glorioso rebento da raça de David; S. José,
seu pai putativo; os simples, os pastores, os mensageiros celestes,
Simeão, Anna, os reis Magos guiados pela estrela. Todas essas
personagens podem denominar-se - os santos da infância de Jesus - por
quanto, são eles os seus primeiros adoradores e piruetas; anunciaram
seu advento a todo o mundo e confessaram sua divindade. Jesus é
Deus! É isso o que nos importa extremamente, senão, de que nos
serviria a pobreza em que nasceu e viveu, os encantos de que se
revestiu o seu amor enfim?

No decorrer da infância, o Senhor não quis romper o silencio que


impusera a si mesmo e proclamar a sua divindade, como o fará mais
tarde. Por ora; Ele confia esse cuidado aos santos que se grupam em
torno do seu berço; eles pertencem a sua Santa Infância e, de certo
modo, fazem parte dela, prestando-nos o serviço inestimável de atestar
a divindade desse Menino.

4. Quantos atrativos encerra a infância do nosso Deus! É um Deus


menino; que se acha reclinado no presépio, que se entrega aos cuidados
de seus pais, que chora e foge diante de seus inimigos, que vive obscuro
e ganha penosamente o pão de cada dia. Isto quanto ao exterior. No que
respeita o intimo, porém; não é mais questão de penúria nem de
fraqueza. Tudo é potência e vida -vida imensa, divina sob a forma de
um amor suavíssimo, infinito, que atrai tudo a si com força irresistível.

E que efeito produziu essa divina infância?

Sobre quem exerceu seu poder de atração'? Sobre tudo e todos, sobre
nós mesmos. O Infante do presépio foi nossa primeira devoção, Belém,
a nossa primitiva morada espiritual. E que duvida! "Lá podíamos orar e
amar com toda a confiança e talvez que nunca tenhamos orado mais
fervorosamente nem amado com mais extremos. Será mister volvermos
ao primeiro amor de nossa tenra idade? E por que não? O Salvador é
sempre o mesmo, no presépio como na cruz, no altar como no seu trono
de gloria. Em toda a parte tem jus ao nosso amor e á nossa adoração.

Todas as devoções atinentes á Humanidade de Jesus, são caminhos


que conduzem a Deus. É por esta razão, que alguns dos grandes santos,
desses cujo influxo poderoso renovou a face da terra como S. Francisco
de Assis ou S. Bernardo, tiveram uma peculiar devoção ao mistério da
Santa Infância.
Onde poderiam os encontrar maior cópia de verdades, de sabedoria,
de amável grandeza, de arrebatadora formosura, de suavidade e terno
afeto, senão junto ao berço do Senhor menino?

Confiança e ternura - eis o ritual da devoção á Infância de Jesus.


Porque não seria ele o lema de nossa vida?

CAPITULO V

O Doutor sapientíssimo e o Guia das almas

1. Após os anos de infância e juventude, o Salvador dá começo a sua


vida publica.

Consagrou-a mormente ao ensino. Os oráculos haviam anunciando


nEle o Profeta e o Doutor: instruir os homens, constituía, pois, uma
parte essencial de sua missão.

Abstraindo da fé, não é possível viver racionalmente nem conseguir a


salvação. Havemos mister de um preceptor e temos em Jesus Cristo que
é o mais excelente e o mais sábio de quantos possam existir.

2. Possui ele todos os predicados do Mestre, o principal dos quais a


autoridade.

Mediante a educação, o homem é, por assim dizer, criado novamente,


remodelado. Só Deus e os que são, por Ele, destinados a essa missão,
podem preenche-la cabalmente.

A autoridade do Salvador, não era de proveniência humana, Ele a


possuía de si mesmo, porquanto, era Deus, assim como a realeza, o
sacerdócio e o magistério lhe pertenciam por direito de nascimento.
A segunda qualidade do mestre, é a ciência, e Jesus a possui
igualmente. Sendo Deus, a Verdade; o Filho Unigênito do Pai,
Sabedoria incriada, Ele sonda os arcanos dó céu e os segredos do
coração humano. Quantas vezes, no curso de seus ensinamentos,
não utilizou Ele a sua divina ciência das almas!

O terceiro atributo do magistério do Cristo, era o poder o qual


consistia principalmente na santidade de sua vida, espelho fiel da
doutrina por Ele ensinada; residia, outrossim, nos milagres que
atestavam a verdade de sua palavra e enfim na graça da qual era
sempre por cujo meio inclinava os corações ao bem, facilitando e
amenizando a pratica dos preceitos.

3. E que nos ensinava o divino Mestre?

Primeiramente o que Deus exige de nós, o que nos é necessário e


útil a reconhecer no mesmo Deus, nosso Pai, nosso ultimo fim e
eterna bem-aventurança. Ensinava-nos a orar, a ser humildes, a nos
vencermos a nós mesmos; a levar, a cruz com paciência e alegria e,
em fim, a amar a Deus de todo o coração, sobre todas as coisas e
ao.próximo como ã nós mesmos. Tal é a substancia de sua doutrina
e o que importa praticarmos aqui, na terra. Isso basta para nos
assegurar a felicidade.

E essa doutrina Jesus a espalhava a mãos cheias. Sem duvida Ele


poderá revelar·nos, um numero de verdades infinitamente maior
quis porém, reservá-las para o céu afim de nos deixar o mérito da
fé. No paraíso teremos o complemento de sua doutrina, sem perigo
pára nossa humildade. Ainda mais que a ciência é a sabedoria que
o divino Mestre nos ensina. Ora, a fé encerra a mais insondável
sapiência.

4. Instruindo, o Salvador faz primeiramente com tal clareza e


simplicidade que uma criança o pode compreender e, no mesmo
tempo de modo tão profundo que a mais potente inteligência,
jamais conseguirá exaurir sua doutrina.

Em segundo lugar, Ele usa de prudente moderação e discreta


reserva.
Não diz tudo a todos, indistintamente: só fala na ocasião azada.
Não sobrecarrega a inteligência nem a vontade do homem;
contenta-se com o que está ao alcance de cada um. Ao opulento
jovem que deseja salvar-se e tender a mais alta perfeição, Ele
responde progressivamente. aconselhando, em primeiro lugar, a
simples observância dos preceitos e indicando, em seguida, a
pratica dos conselhos (Mat. XIX,16 sq.).

Aos Apóstolos declara: «Muitas cousas tenho ainda que dizer-vos,


porém, não estão agora ao vosso alcance (Jo.XVI,12). Grande é a prudência
com que expõe os mistérios de sua morte na cruz e de sua divindade.

Finalmente, o Salvador ensina com extrema paciência. É. incansável


em semear, nos corações, o bom gérmen de sua doutrina. Muitas vezes,
vê a semente cair na estrada entre cardos e abrolhos, ou, então, servir
de alimento ás aves: repara na morosidade do resultado e, sem
embargo, continua, sempre, no seu ímprobo trabalho. Desde a primeira
solenidade da Páscoa que a semente da fé caíra na alma de Nicodemos
e só produziu fruto, na ocasião da quarta festa, isto é, após a morte do
Salvador. Quanto tempo não consagrou Ele na formação dos Apóstolos,
antes que estes se tornassem o que depois vieram a ser! Enfim, a
paciência do Senhor foi coroada do mais brilhante e glorioso êxito;
Jesus triunfou não somente nesta ou naquela alma, mas na humanidade
inteira.

A Judéia, terreno árido e pedregoso, não quis receber a semente da


divina palavra, porém os Apóstolos, órgãos do Espírito·Santo,
levaram·na aos gentios entre os quais fez ela surgir o mundo cristão, a
ciência, a civilização, a arte, as leis, emanadas do espírito do
cristianismo. E a prédica do Salvador continua ininterrupta
convertendo as almas, dando sabedoria as crianças, aclarando os
olhos aos cegos, trazendo, as almas, paz e felicidade, mercê das
consolações que dela defluem (Ps., XVlII, 3.).

5. Havemos mister de verdade, de luz e graça; necessitamos de


um Mestre; onde encontrá-lo senão em Jesus que é nosso Deus?
Depois de nos ter criado Ele continua a formar·nos; impera nas
consciências, conhece os desfalecimentos e aptidões da humana
natureza, possui a ciência necessária para constituir a nossa
felicidade e invencível paciência para suportar as nossas
irresoluções e infidelidades, finalmente, dispõe de graças eficazes
para coroar gloriosamente sua obra. Recorramos a Jesus como
Nicodemos, como Pedro, André e Natanael. Todos pressentiam,
nEle, o Doutor sapientíssimo, enviado por Deus, o Mestre, o Senhor
das consciências, da vida e da felicidade. «Rabi, onde moras? ( Jo., I, 37
sqq) perguntavam-lhe e, seguindo-o, tornavam-se seus discípulos.
Façamos diligencia por encontrá-lo, por meio da leitura e meditação
do seu santo Evangelho. Quão suave. e proveitoso é sentarmo-nos
aos pés da Eterna Sabedoria, afim de lhe escutar a divina palavra!
Se, como narra o Evangelho, o próprio Deus se achega, por essa
forma, dos filhos dos homens, expondo-lhes sua lei cheia de
mansuetude, se em tão bela, não obstante tão humana linguagem,
desvenda-Lhes os segredos do céu, é que esses fatos têm
importância capital; são cenas verdadeiramente divinas que
reclamam toda a nossa atenção e devem penetrar-nos de
admiração e amor pela incomparável inteligência e nobilíssimo
coração donde brotaram tais ensinamentos. Na verdade,
possuímos o mais sábio dos doutores e o mais excelente guia das
almas. Por sua doutrina, Jesus se constitui realmente, nossa
santificação e nossa sabedoria (Cor,I 30):'«Senhor, a quem iremos? Tu
tens as palavras de vida eterna.(Jo,VI,69)>> E, graças a essa protestação,
inspirada pela fé e pelo amor, Pedro triunfa de perigosa crise; e a
vitória é a recompensa das horas decorridas aos pés do Mestre, a
ouvi-lo e a recolher-lhe as lições. «Rabboni!. «Bom Mestre» -tal foi a
saudação que Madalena, a fiel ouvinte de Jesus, lhe dirige ao
revê-lo pela primeira vez, após a ressurreição (Jo.XX,16). Ela só diz
essa única palavra que, porém, tudo exprime: o que sabe, o que sente,
que ela é. Os elos que unem os discípulos ao Mestre são os mais doces,
os mais nobres e ternos. São formados pelo respeito e reconhecimento e
uma afetuosa dedicação.

CAPITULO VI

O Filho do homem

A denominação: «Filho do homem» sob a qual os Piruetas anunciam o


Salvador, (Dan.VII,13) e que mais de uma vez. Ele próprio aplicou a sim
mesmo,(mat. XXVI,64) não é aqui tomada no sentido de Messias» «Filho de
Deus» ou Chefe de todo gênero humano, porém, no de possuidor e
representante da natureza humana, na sua mais nobre e perfeita
acepção. Efetivamente o Salvador é a expressão desta natureza assim
elevada, e a viva imagem do mais amável dos homens - e isso
compreende de três coisas.

1. Considerada em todos os pontos de vista, a vida de Jesus Cristo foi


simples e ordinária existência humana. 'Não se deu o mesmo com João
Baptista seu Precursor e Profeta, cujo viver de uma austeridade
excessiva, passou-se todo na solidão, longe do bulício das cidades.
Do fundo do deserto sua voz potente reboava atraindo as
multidões. Jesus, ao contrario viveu entre os homens; membro de
uma família, habitante de uma cidade, permaneceu em constante
relação com o mundo.

Sujeitou-se a todos os deveres impostos pela vida social, dos


quais é a religião o primeiro. Ele a Sabedoria divina, o Principio de
todo culto legitimo, aceita as prescrições de uma determinada
religião! Como Israelita, temente a Deus, preenche todas as
obrigações impostas pela Lei, frequentando o Templo, a sinagoga e
até mesmo recorrendo aos meios de salvação estabelecidos para
certa época e que não obrigavam rigorosamente: de envolta com o
povo, procura João Baptista e dele recebe o batismo. - A segunda
condição, o liame da vida social, é a obediência á autoridade, e,
nesse particular, nunca houve discrepância no proceder do
Salvador, tanto nó seio da família como na vida civil, em relação aos
chefes da nação como aos príncipes estrangeiros. Obedecia a todos
tal qual o mais simples de seus compatriotas. E mais ainda, quis Ele
que essa Perfeita submissão fosse consignada especialmente no
Evangelho (Luc., 11, 51). No curso do processo que decidiu a sua morte
Ele não protesta senão diante de uma única imputação: a de se ter
revoltado contra a autoridade. (Jo XVIII, 37) - A terceira condição da
sociedade é o trabalho. Jesus sempre trabalhou. Grande parte de sua
existência foi consagrada a um, labor obscuro, porquanto, queria
ganhar o pão á custa do esforço próprio. O maior dentre os filhos dos
homens é, da mesma feita, o mais acabado modelo das classes
laboriosas.

Participando das fadigas da vida, o Salvador quis, outrossim, gozar


as alegrias legitimas que, ordinariamente, ela encerra. No inicio de sua
carreira publica, vemo-lo assistir a um banquete de núpcias e
comover-se a tal ponto ao notar o apuro em que se acham seus
hospedes, que o seu primeiro milagre, a mudança da água em vinho,
foi efetuado precisamente ao celebrar-se o matrimonio, fundamento da
família. - Parece que era costume na Terra Santa, convidarem-se aos
doutores da lei para uma refeição, após qualquer lição dada durante o
curso de suas peregrinações. Com o intuito de não ir de encontro ao uso
geral, o Salvador não recusava esses convites embora soubesse que as
vezes, davam eles azo a criticas mordazes e apreciações caluniosas ou
tinham por principio um sentimento diverso da amizade. (Luc. VII, 36; XIV,1)
Não chegaram a ponto de dizer dEle:" «Eis um homem glutão e amigo do
vinho? (Mat. Xi,19). Má depois da Ressurreição e já de posse da vida
gloriosa, o Senhor quis, segundo certa usança estabelecida, tomar uma
refeição, com os seus discípulos, antes de se separar deles (At. I,4).

Afim, de não ultrapassar os limites de uma vida simples e comum, o


Salvador ocultava quanto possível, o que havia de extraordinário em
seus dotes pessoais. Escondeu a graça e a formosura da juventude na
obscura oficina de carpinteiro de Nazareth, e, em mais de uma
circunstâncias, Ele teria podido manifestar sua vasta inteligência,
particularmente no que concerne a salvação das almas; todavia não o
quis. A própria santidade, Ele não a revelava senão na proporção que
convinha a uma criança dócil, a um piedoso adolescente. Tudo o que
nEle sobrepujava o ordinário era tão cuidadosamente velado, que
Natanael, cuja residência distava apenas algumas léguas de Nazareth,
nunca ouvira falar dEle. (Jo. I, 46) Com quanta razão são denominados: -
Vida oculta - esses anos decorridos na humilde aldeia da Galiléia! até
na vida pública, quando a fama já lhe espalhara o nome, por toda a
parte, Jesus só manifesta o seu poder, sabedoria e santidade, na medida
que sua missão o exige.

O que Ele subtraiu ao conhecimento dos homens; excede


infinitamente o que permitiu que se patenteasse. Fazendo-se em tudo
semelhante a nós; Ele quis, certamente, dar-nos o exemplo da
humildade, porém, desejou ainda mais cativar-nos o coração,
envidando todos os esforços com o intuito de ser no exterior aquilo que
naturalmente somos, porquanto a igualdade é a condição do amor.

2. O segundo traço da nobreza de caráter do Filho Homem é a


delicadeza e a afetuosa solicitude que sempre testemunhou a todos os
que o cercavam. Quando multiplicou os pães, pela segunda vez, Ele faz
observar que muitos dos ouvintes, vindos de longe, estão exaustos de
fadiga e mortos de fome. Cheio de compaixão, ordena aos discípulos
que dêem, de comer a essa multidão. (Mac. XII, 26)

Encontrando um cortejo fúnebre, nas cercanias de Naim, logo se


enternece ante a dor da aflita viúva que acaba de perder o filho único, e,
sem esperar que lhe peçam, intervém, operando o milagre.

As festividades e regozijo da segunda Páscoa, não o fazem olvidar os


enfermos da piscina de Bethsaida. Achegando-se deles cura o mais
desamparado.

Que vale um bocado de pão? Sem embargo, essa coisa mínima ocupa
um lugar na Oração Dominical e multiplicando os pães, Jesus ordena
que sejam recolhidos os restos.

Ao expulsar, pela primeira vez, os vendilhões do Templo, Salvador


derriba-lhes as mesas, porém, amerceando-se das rolinhas, manda
simplesmente que as levem para fora (Jo. II, 16).

Que solicitude, quantas atenções não mostrou para com o pai do


menino surdo e possesso, bem como para com as crianças que os
Apóstolos tentam afastar dEle!

Na sua marcha triunfal, circundado de tantas honras, aclamado


delirantemente pela multidão, o Senhor verte lagrimas amargas ao
evocar o lúgubre quadro da ruína de Jerusalém.

Nos transes da agonia, suspenso na Cruz, Ele perdoa ao ladrão,


apenas ouve a expressão do seu arrependimento. Confia sua SS. Mãe a
ternura do discípulo predileto.

A falta de urbanidade, o olvido das atenções indicam sempre,


carência de amor e podem magoar profundamente. A pessoa que se
mostra cortês e afável para com todos, dá prova de bondade e
prudência, atrai os corações e inspira confiança.

3. O terceiro indicio de um coração nobre é a gratidão e essa nota


características é visível em toda a vida de Jesus Cristo. Com que
magnanimidade divina retribui, Ele a menor prova de amor o mais leve
serviço!

Pedro empresta-lhe a barca para uma predica e recebe a magnífica


recompensa da pesca milagrosa e a vocação que o transformará em
pescador de homens! O mesmo Apostolo confessa a divindade do
Cristo: e o Senhor lhe confere a primazia no colégio apostólico.
Nicodemos faz-lhe uma curta visita durante a noite e obtém a graça da
fé. Zacheu dá alguns passos ao seu encontro e Jesus hospeda-se em casa
do publicano, cumulando-a de graças extraordinárias.

Segundo a lenda, ao deparar-se Jesus, no caminho do Calvário, a


Verônica enxuga-lhe o rosto com um véu, e entrega aos soldados o
vinho misturado com mirra, para ser dado ao Senhor, no horrível
momento da crucifixão e, em paga, recebe no véu a impressão
miraculosa da Sagrada Face.

E' ainda por um sentimento de gratidão que o Salvador não desvia


os lábios dessa bebida que a piedade lhe ofertara. Que diremos do
precioso legado, feito a S. João, na pessoa da SS. Virgem, como
penhor da sua fidelidade, em acompanhar a Mãe dolorosa até o
Calvário!

Ás piedosas mulheres que choram, ao verem-no caminhar para o


suplício, Jesus agradece essa prova de amor, dirigindo-lhes palavras
repassadas de ternura e compaixão. Maria Madalena recebe, em
recompensa, a imperecível memória que a Igreja dela conserva
(Mat.XXV, 19). Finalmente Lázaro, o ressuscitado é o mais brilhante
testemunho dos bens preciosos e das graças extraordinárias que a
amizade de Jesus nos proporciona.

4. Vemos assim, de modo patente, até que ponto nosso Deus se


fez humano, amorosamente humano; como manifesta a sua
grandeza sob a forma atraente da mais nobre humanidade e como
se digna trilhar conosco as veredas comuns da vida ordinária. E' a
transformação, a transfiguração de nossa própria existência e esse
pensamento é um lenitivo, um conforto para nós pobres mortais!

Dir-se-ia que mediante essa doçura e esses encantos Jesus nos


quer dar uma compensação de sua divindade e infinita majestade.
Poderia ter-nos esmagado com a revelação de sua temerosa
magnitude; preferiu, porém, atrair-nos pela suave manifestação de
sua Humanidade. E não é isso simples condescendência: é amor, e o
amor da eterna Sabedoria, acerca do qual foi dito: «Ele encontrou
todos os caminhos da verdadeira ciência e os deu a Jacob seu servo, a Israel
seu dileto: foi em seguida, visto no mundo conversando com os filhos dos
homens (Bar. II,I37-83).

CAPITULO VII

Acima da natureza

Jesus Cristo é homem, na mais perfeita e elevada acepção da


palavra; está, porém, acima de tudo o que à natureza humana lhe
possa ter dado. E' Ele, por excelência, um ser sobrenatural
porquanto é Deus ao mesmo tempo. A prova evidente, temo-la em
seus milagres, que constituem um tríplice e poderoso apelo a nosso
coração, conforme se relacionam com a fé, o amor ou a confiança.

1. Inúmeros foram os prodígios operados pelo Salvador, quer na


ordem invisível do espírito e da verdade, por suas profecias; quer
no domínio do - mundo visível, multiplicando os argumentos que
patenteavam seu poder soberano. O escopo que se propunha, como
Ele próprio o declarou, em varias circunstâncias (V,38; X,25; XI,42) era
confirmar a sua doutrina, mormente na parte referente a sua missão
e divindade, no intuito de nos incitar a crer nele. Abstraindo da fé,
condição primordial e imprescindível, é impossível efetuar-se a
salvação; ora, para produzir essa mesma fé, é o milagre o meio mais
simples, mais breve e, em certas ocasiões o único adequado. Quando
Um verdadeiro prodígio intervém, corroborando um ensinamento, é
Deus que opõe a autoridade de seu testemunho e o que Deus atesta
não pode ser senão a infalível verdade. Se, pois, tantas vezes, e de
modo tão claro, o Salvador deu os milagres, como argumento de sua
doutrina e de sua missão, é óbvio que todo o edifício de nossa fé,
repousa no fato das maravilhas que Ele operou.

Daí se infere a grande importância que os milagres assumem


relativamente a nós, e a gratidão que devemos ao Salvador. Cumpre
notar uma particularidade interessante e consoladora: a conexão que
existe, entre os prodígios de Jesus e a sua doutrina. Alguns
ensinamentos são confirmados, incontinente, por um milagre, em
relação direta com os princípios que o Mestre acaba de expor. «Sou a luz
do mundo», diz Ele e dá vista a um cego. «Sou a ressurreição e a vida» e
evoca um morto do sepulcro. «Sou·o pão de vida. e opera a multiplicação
dos pães. Afirma que tem o poder de quebrar os grilhões do pecado e
cura um paralítico. - Alguns milagres são figuras e predições do que se
haveria de realizar, mais tarde, na Igreja. Assim a cura dos cegos, dos
surdos e mudos, representa o batismo; a dos leprosos e a ressurreição
dos mortos prefiguram o sacramento da penitencia; a multiplicação dos
pães, a Eucaristia; a barca de Pedro é a imagem da Igreja. Têm, pois, os
milagres um nexo real com a doutrina, a obra e pessoa de Jesus Cristo e
essa magnífica harmonia aumenta e ilumina a nossa fé e o nosso amor,
porquanto, os prodígios como os ensinamentos do Salvador, são prova
irrecusável de sua sabedoria, de seu poder e da solicitude que sempre
mostrou, para com tudo o que respeita a nossa salvação.

2. Os milagres de Jesus provocam o nosso amor, porque todos eles


são manifestações da bondade e não de uma potencia que amedronta.
O Salvador veio ·resgatar-nos; ora, a redenção consistia em
arrancar-nos ao jugo de Satanás o qual, juntamente com o pecado,
havia introduzido, no mundo, os males temporais, a enfermidade e
a morte. O Senhor exerce, pois, seu império sobre o vasto e sombrio
domínio do sofrer humano e ante a onipotência da sua vontade,
tudo cede e se esvai: castigo, maldição, enfermidade, possessão,
morte. Todos os seus milagres trazem o cunho de uma
·benevolência, de uma bondade infinita. Inspirados pelo mais terno
amor, estão a apelar para o nosso coração e para a nossa ternura.

O mesmo amor que Jesus nos testemunha, por seus prodígios, é


ainda um meio de nos incitar á fé, porquanto, o objeto desta sendo
verdades que a razão não pode compreender, a vontade
desempenha um papel essencial na aquiescência a essas mesmas
verdades. Ora, os benefícios concedidos ao homem mediante os
milagres, contribuem maravilhosamente para estimular a boa
vontade. Acreditamos, de bom grado, naqueles de cuja afeição não
podemos duvidar e assim a misericordiosa bondade do Senhor,
estende sua benfazeja influência até no domínio da fé: esta e o amor
realizam a conquista do homem todo.

3. Finalmente, os milagres de Jesus despertam a confiança. Só por


si, eles demonstram um poder divino, infinito. E, em que
deslumbrante irradiação de luz esplendida, nos revelam a
onipotência do Homem-Deus, a qual se afirma vitoriosa em todos
os domínios: criação animada, espíritos, homens, demônios -
evidenciando sua soberania absoluta sobre todas as criaturas. Não
há um sofrimento, um mal que o Salvador não possa sanar e, ante
Ele abrem-se, de par em par, as portas da eternidade. Sempre e em
todas as necessidades pode o homem dizer ao Senhor: «Se quiserdes,
podeis: curar-me e salvar·me»

A ressurreição do jovem de Naim comprova essa asserção. Já o


levavam a sepultar; a mãe aflita seguia o cortejo. Vozes amigas,
quiçá, já lhe haviam dito, á pobre mulher: «Não chores» e este era o
único lenitivo que lhe podiam dar. Quando, porém,. Jesus diz: «Não
chores» já não é a mesma coisa. Mediante essa palavra Ele ressuscita
o menino e o restitui a mãe. - De pé, junto ao túmulo de seu amigo
Lazaro, enquanto as irmãs do morto e grande numero de pessoas
imploram, em prantos, a sua misericórdia. o Salvador também
chora. Não se limita porém, a verter lagrimas de amizade e
compaixão. Com uma só palavra evoca o morto no túmulo e
restituindo-o a afeição dos seus, faz cessar a dor e o luto. Tal é o
conforto que do Senhor nos vem e que sô Ele pode oferecer. Se um
prodígio se faz mister, não há que duvidar, seu amor e sua onipotência
aí estão e o Salvador ainda dispõe deles. Cientes disso, crendo em Jesus,
amando-o de coração, será possível que a confiança nos venha a faltar?
O supremo mal do mundo é a morte. Jesus, seu vencedor, nos há de
valer poderosamente nesse doloroso transe. Ê com razão que o livro da
Imitação de Cristo, assim conclui: «Permanecei unidos a Jesus, na vida e na
morte; ainda que todos vos abandonem, Ele nunca vos há de desamparar.»

CAPITULO VIII

O livro de vida
Há, na vida de Jesus Cristo, um fato admiravelmente próprio a nos
inspirar um terno amor e afetuosa dedicação por sua pessoa divina.
(Luc.19,17-24. Mt. 11, 25-30)

1. Decorria o ano terceiro da vida publica. O Salvador associará aos


Apóstolos, setenta e dois discípulos que deviam coadjuvá-los no
trabalho da evangelização.

Regressando, no fim de pouco tempo, os novos obreiros


comunicam jubilosos, ao Mestre, o feliz êxito que lhes coroara os
esforços, graças ao poder de que Ele os investira, até os demônios
lhes eram submissos. Satisfeito com a humildade de que davam
prova, o Salvador observa, todavia, que não somente por esses
resultados devem eles regozijar-se, mas também e sobre tudo por
algo de mui superior alcance: Estarem-lhes os nomes inscritos no
livro da vida. Importa muito mais, ao homem, salvar-se a si mesmo
que trabalhar para a salvação dos outros: para eles assim deve ser,
em razão da eterna eleição, designada pelo livro de vida.

2. Lançando então um olhar para o grande mistério dessa eleição,


o Salvador vê, de um lado, os sabias, os avisados do mundo os
quais, desde Satanás até a consumação dos séculos, impelidos pelo
orgulho, só curam de si, afastam·se de Deus e se precipitam na
perdição; do outro, os pequenos, os humildes que se submetem a
Deus e operam a própria salvação. Revela-nos então a causa que
decide a sorte de uns e outros dessa causa é o Pai celeste e Ele, o
Salvador: Falando de si mesmo diz: «Todas as coisas me foram dadas
pelo Pai e ninguém conhece ao Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o
quiser revela» E em outra ocasião«Ninguém a mim pode vir se o não
trouxer o Pai que me enviou», (Jo. VI, 44)

Vemos, por essas palavras, que o Salvador é a causa coeficiente, o


medianeiro, o centro do magnífico mistério da eleição. Como Verbo e
Sabedoria do Pai, e na qualidade de Homem-Deus é Ele realmente a
fonte de todo o conhecimento da Divindade e o principio de toda
salvação; nele se acha o ponto de partida das vocações humanas.
Aquele que se quiser salvar deve ir a Jesus e por Jesus ao Pai,
porquanto, o Salvador é verdadeiramente o livro de vida, no qual estão
inscritos os escolhidos. E esse mistério é uma esplendida revelação da
excelência e divindade de Jesus Cristo. Eis porque Ele exulta de jubilo
no Espírito Santo e dá graças, não somente por si, mas também por seus
Apóstolos e por todos que a Ele se unirem pela fé e pelo amor.

3. Já que não podemos salvar-nos nem ir ao Pai senão por mediação


do Cristo é óbvio que devemos amá-lo e a Ele nos submeter: .

E' o próprio Salvador que tira essa ilação das palavras acima citadas,
e acrescenta: «Vinde a mim», isto é uni-vos a mim mediante a fé e o
amor, «Tomai o meu, jugo., isto é, o jugo de meus preceitos, de minha
doutrina e autoridade. “Aprendei comigo», sede meus discípulos,
aprendei sobretudo a ser humildes e mansos. Por outras palavras
importa colocarmo-nos em número dos «mínimos» que Ele proclama
bem-aventurados. Cumpre, pois, renunciar a toda preocupação de nós
mesmos, a toda complacência em nossa própria personalidade e
procurar em Jesus a ventura temporal e a eterna; sujeitarmo-nos a Ele
humildemente e da melhor boa vontade. Então o Pai nos revelará o
Cristo e o Cristo nos conduzirá ao Pai, seremos do numero dos
escolhidos e os nossos nomes inscritos no livro de vida. E' a isso que o
Salvados nos convida.

E o mesmo Senhor nos, indica os motivos que temos para


corresponder a esse apelo, motivos belíssimos e dignos de nossas
reflexões. E' natural desejarmos irresistivelmente a ciência, o amor, a
felicidade, uma felicidade, porém, sem limites e sem fim. Onde
encontrá-la? Não será em nós, nem no mundo, nem nas criaturas, mas
unicamente em Deus, em Jesus, Verdade infinita, infinita Bondade e
infinita beleza. Só Ele pode satisfazer plenamente o nosso coração.

Todos nós sem exceção, sofrermos de mil maneiras, no corpo, na


alma, na ordem natural e na sobrenatural. Todos gememos sob a tirania
das paixões, dos pecados, dos males temporais. Onde achar consolo e
refrigério senão em Jesus, cuja palavra e exemplo nos animam, cuja
graça tudo ameniza e torna passível "Vinde a mim vós todos que estais
afadigados e oprimidos e eu vos aliviarei».

E' na própria pessoa do Salvador, na amenidade de suas virtudes que


encontramos o segundo motivo de amá-lo entranhadamente. A nossa
miséria e insuficiência mostram-nos claramente que força nos é
vivermos sob a dominação de alguém. Temos que optar entre dois
senhores: Jesus ou o mundo. Comparai a condescendência, a doçura, a
fidelidade do Salvador, com o egoísmo, o orgulho e o despotismo do
mundo! A doutrina de Jesus achar-se em harmonia com tudo o que há
de bom na natureza; consola, eleva o coração e a alma; diminutos são os
preceitos, numerosas as graças, recompensas e promessas que ela
encerra.

Sábio, opulento, poderoso é o Senhor; Ele mesmo será nossa


'magnífica recompensa e nele nossa alma encontrará a ventura e a paz.
Se assim é, digamos com S. Pedro: "Senhor, a quem iremos? Tu tens as
palavras da vida eterna»

Cumpre unirmo-nos a Jesus pela fé e pelo amor se nos quisermos


salvar. Ele é o caminho que conduz ao Pai; a verdade que satisfaz o
coração e o espírito; a vida que nos torna verdadeiramente felizes. Que
pode haver no céu e na terra digno de nossas esperanças e anelos senão
Deus, o Deus de nosso coração e nossa partilha por toda a eternidade?
Boa e salutar coisa é apegar-se o homem a Deus só e nele depositar toda
a sua confiança.

CAPITULO IX

Jesus era bom

Quando o Salvador entrou pela ultima vez em Jerusalém, durante a


festa dos Tabernáculos, corria entre a multidão grande rumor a seu
respeito. «Ele seduz o povo", diziam uns; «Não», replicavam outros,
«Ele é bom» (Jo. VIII, 12). A razão estava com os últimos. E' pelo valor dos
atos que se aquilata o mérito do homem e esse valor, esse mérito se
revelam nas relações que ele mantém com seus semelhantes. O
Salvador era bom, porquanto era Deus, e Deus é misericordioso para
Com .todos.

1. Ele era benévolo relativamente aos ricos. Os homens são


muitas vezes injustos para com os opulentos do mundo.
Odiá-los ou idolatrá-los, por causa de suas riquezas, é erro
idêntico; no primeiro caso é inveja, no segundo loucura. Jesus
não procedia assim. Amava os ricos e desejava fazer-lhes bem,
porque também eles têm uma alma e são filhos de Deus.
Amerceava-se deles em razão mesmo das riquezas, contra as
quais os premunia, por constituírem perigoso escolho para a
alma. Mas também via neles e em seus bens, um excelente meio
que se poderia utilizar em proveito do reino de Deus e salvação
das almas. Era esse o motivo pelo qual longe de descurá-los,
procurava atraí-los ao bem, porém, de um modo justo e digno
de Deus. Não lhes ia ao encontro, esperava que a Ele viessem.
Herodes o teria visto, de bom grado, figurar entre os de sua
corte. Jesus nunca se prestou a isso; não se quis fazer cortesão. E'
de longe que Ele cura o filho do oficial do rei e não lhe entra em
casa. Acedendo ao pedido, do centurião põe-se a caminho;
detém-se, porém, ante a humildade que esse homem manifesta.
e não penetra em sua morada. Acolhe pressuroso o chefe da
sinagogas e o acompanha até a casa; a menina já estava morta e
Jesus previa o bem que podia operar. Ele aceita o convite dos ricos
sem se preocupar com os dissabores nem esperar a gratidão. Isso é
que é amar verdadeira e desinteressadamente.

2. O Salvador era igualmente bom para com os pobres, os


infelizes, os doentes e todos os que careciam de consolo e
proteção. Eram até eles os seus preferidos porque, dizia, “são os
enfermos que precisam de medico e não os que gozam saúde» (Mat.IX,12). Assim
como o ímã atrai o ferro, assim a bondade de Jesus atraía a si o
sofrimento e a miséria. Os pobres eram, de sua parte, objeto de um
amor sincero e profundo por serem filhos de Deus, irmãos seus e
por sofrerem indizivelmente. E essa piedade não lhe ficava
·encerrada no segredo do coração, ao contrario, Ele a manifestava
exteriormente. Para os aflitos tinha lagrimas e palavras de conforto,
testemunhando-lhes seu amor por meio de benefícios. Não
esperava o apelo dos desgraçados; ia-lhes a procura
oferecendo-lhes auxilio e consolação. Envidava todos os esforços
para alivia-las; sua ciência e sabedoria estavam ao dispor de seu
coração. Não se deixava desalentar com as importunidades e a
ingratidão de muitos.

3. Eram mormente os pecadores que recorriam a sua misericórdia,


como mais pobres e dignos de compaixão. Nenhum lenitivo oferece o
mundo a esses infelizes; não lhes conhece, sequer, a desgraça e os
abandona ao desespere. Era esse o proceder dos Fariseus; não assim,
porém, o do Salvador. Como Bom Pastor e Pai misericordioso, Ele vai
ter com o filho prodigo e, retendo com um osculo as palavras de
arrependimento, lhe restitui todos os bens. A bondade, o amor de Jesus
para com os pecadores, eram tão notórios, que, mais de uma vez, seus
inimigos aproveitaram-se disso para lhe armar ciladas e tentar a sua
perda. (Jo. VIlI, 3; Luc. VI , 7)

4. Em relação a esses mesmos inimigos, o Salvador era bom,


inefavelmente bom, não obstante ultrajarem eles de modo indigno seu
amantíssimo Coração e repelirem criminosamente sua misericórdia que
os queria salvar.

Num dia festivo, os Judeus o cercaram, no Templo, armados de


pedras e prestes a lapidá-lo. Jesus Lhes dirige estas comovedoras
palavras: «Tenho feito, em vossa presença, muitas boas obras; por qual delas
me quereis apedrejar?» Responderam eles: '«Não é por nenhuma boa obra
que te queremos apedrejar, mas porque sendo homem por Deus te inculcas.»(Jo
X,32-33

E era bem verdade! Jesus havia derramado benefícios as mãos


cheias, porém, a sua doutrina eles opunham as contradições; aos
milagres, blasfemais; aos favores, a mais negra ingratidão; a seu
amor, um ódio entranhado, a ponto de o condenarem ao mais
infamante suplício. E, sem embargo, o Senhor continua, com
invencível paciência, o seu ministério de amor. Não os evita,
responde sempre a suas pérfidas interrogações e aproveita o ensejo
para lhes dar novos ensinamentos e premuni-los contra o castigo
que os ameaça. Não cessa de se mostrar bom para com todos até que
seu coração seja despedaçado na Cruz e, ao morrer, implora o
perdão para os algozes. Tal era a bondade do Salvador. Viva imagem
da divina beleza (Sab. VII,26), passou no mundo fazendo o bem porque
Deus estava com Ele. (At. X,38)

Assim como ninguém se pó de furtar a luz vivificante do astro do


dia, assim também não há um único ser a quem tanta bondade e doçura
não traga alegria e felicidade. Que devemos deduzir de tudo isso? A
necessidade de sermos bons a seu exemplo? Sem duvida, mas outra
conclusão se impõe: Amarmos Aquele que é a própria Bondade.
Prezamos o bem e os bons; porque então não havemos de amar a Jesus?
Não foi Ele bom para conosco? Consideremos os bens que nos
prodigalizou: a graça preciosa do batismo, o dom da fé, da vida no seio
da Igreja católica, cujas riquezas estão todas a nossa disposição e, quem
sabe? talvez o perdão do abuso de tantas graças e a remissão de muitas
faltas em que tivermos incorrido. Consideremos também os benefícios
passados e os que Ele nos reserva para o futuro dando-se a si mesmo, e
vejamos, depois, se há alguém mais digno de amor que o nosso divino
Salvador.

CAPITULO X

Paixão e morte

O sofrimento é o crisol do amor. Isto é verdade em relação a qualquer


afeto. O homem ama, na medida em que é capaz de sofrer pelo objeto
amado; O próprio Salvador não quis aquilatar de outro modo o seu
amor por nós. E esse amor devia ainda ser patenteado pelo batismo
de sangue da Paixão, prova esta tão comovente, que, para os
corações bem formados, é sempre o mais poderoso motivo de
retribuir amor por amor, sacrifício por sacrifício. Três são as razões
que dão á Paixão de Jesus·Cristo esse atrativo vitorioso.

1. Primeiro motivo: - As causas da Paixão. - Se um homem ferido


da desgraça e a braços com o sofrimento, suporta a aflição em
espírito de penitencia e reparação, suas tribulações, ainda
ocasionadas por culpa própria, inspiram piedade e até uma sorte de
respeito; Jesus não mereceu, de forma alguma, os sofrimentos que o
oprimiram. Sua vida era a mais pura e santa que se possa conceber
e, por isso, Deus o escolheu para que fosse constituído vítima de ex-
piação pelos pecados do mundo.

A dívida pesava sobre nós, sobre todo o gênero humano e a voz


de nossos crimes subia aos céus bradando vingança e reclamando
satisfação. A Paixão de Jesus Cristo, com as torturas que a
acompanharam, nada mais é que o contra-choque de nossos
pecados; o golpe em vez de nos atingir, feriu-o a Ele, nosso
misericordioso fiador. «Deus propôs seu Filho para ser, pela efusão de
seu sangue, vítima de propiciarão afim de mostrar a justiça pelo perdão dos
pecados.» (Ro.III,25) Impelido por esse inefável amor, o Filho ofereceu-
se ao sacrifício e nos resgatou morrendo na cruz. Pagou a divida que
não havia contraído.(Sl. LVIII,5) O Apostolo o testifica em termos
comoventes: «Ele me amou e se entregou a morte, por amor de mim.» (Gal.
I,20) É sob esse aspecto que devemos considerar a Paixão de Jesus
Cristo. Lá estávamos, também nós, no Calvário, a retaguarda do
povo judeu, instrumento imediato da morte do Salvador; estávamos
com as nossas culpas e tomávamos parte nessa obra abominável!.
Ao contemplar, de per si, as cenas desse pavoroso drama, cada um
de nós pode dizer a si mesmo: «És culpado, eras tu que devias sofrer.»

O Salvador havia trazido, aos homens, uma religião, uma fé, uma
moral, uma nova economia de graças, um sacrifício novo. Essa fé,
Ele a devia selar com a sua morte; devia encher e alimentar a fonte
de graças, consagrar com o próprio sangue, o altar do sacrifício. Mas
o que importava, sobre tudo, era que Ele nos ensinasse a levar a cruz
da mortificação e do sofrimento e a tornasse merecedora da salvação
eterna. Foi o que realizou mediante a sua Paixão.

Finalmente o Redentor queria congregar todos os homens num reino


grande e glorioso e, assim unidos, conduzi-los ao céu. Ora, o mundo se
achava sob o domínio de Satanás. Só um duelo decisivo, entre o
Salvador e o nosso adversário, é que nos poderia reintegrar na posse da
pátria de nossas almas. A exemplo de alguns nobres príncipes, Jesus
resgatou-nos a custa da própria vida. Verteu todo o seu sangue para
nos assegurar um lugar no grêmio de sua Igreja.

Seria possível olvidar tanta clemência generosidade?

As causas da Paixão de Jesus Cristo, têm, conosco, intima relação. Foi


por nós, em prol de nossos mais caros interesses, que Ele padeceu e
morreu.

2. O vitorioso atrativo da Paixão de Cristo tem uma segunda origem


- o número e o excesso de seus sofrimentos. Efetivamente, são eles tão
múltiplos e especiais, que em nenhuma outra parte se acham assim
reunidos. O Salvador sofreu exterior e interiormente, no corpo e na
alma. Alguns desses padecimentos lhe eram peculiares, e não podiam
ser ocasionados senão por Ele próprio; outros provinham das
criaturas e o oprimiam de todos os lados. Aqueles que o cercavam, -
amigos ou inimigos - contribuíram para lhe causar profundas dores,
agravadas ainda pela diversidade que apresentavam: desprezo,
ignomínia, ultrajes, escárnios, ingratidão, traição, injustiça, tudo,
enfim, que pode torturar um nobre e generoso coração. Jesus nunca
encontrou equidade nos que o julgaram. Os representantes do
direito e da justiça humana, abandonaram-no, entregaram-no a seus
inimigos e o condenaram a morte mais cruel e infamante. Na Paixão
do Salvador se nos deparam os mais humilhantes maus tratos como
sejam a flagelação e a crucificação; crueldades inventadas para a
circunstância e contrarias a todas as leis, como a coroação de
espinhos e os ultrajes sofridos no átrio da casa de Caiphás e torturas
inenarráveis como a misteriosa agonia no horto das Oliveiras,
sofrimentos estes que somente o Redentor podia conhecer e
ocasionar a si próprio.

E são, precisamente, essas angustias da alma que exacerbam a


amargura do sofrer humano. O Redentor se via submerso no
imenso oceano das dores cujas vagas o assoberbavam, por todos os
lados, conforme havia dito o profeta, referindo-se a Jerusalém, quando
pesava sobre ela a mão do Senhor; -«Ó vós todos que transitais pelo
caminho, considerai é vede, si há dor que iguale a minha dor.» (Lam.I,12)
«Minha aflição é vasta como o mar.» (Lam. II.13)

Para fazermos idéia de quão profundos e acerbos foram esses


sofrimentos, seria mister compreender os maravilhosos atributos da
Santa Humanidade do Salvador; a melindrosa delicadeza de seu corpo
e a sensibilidade de seu coração, dupla causa de um acréscimo de
torturas. Jesus possuía um vivo sentimento da dignidade própria e das
honras que lhe eram devidas. Poucos dias antas havia Ele percorrido
essas mesmas ruas saudado como profeta e taumaturgo, no meio das
aclamações e da adoração do um povo, em delírio, reputado o mais
formoso, o mais sábio dos filhos de Israel e a cidade, em peso, lhe
prestava homenagem! E agora, que ignomínia! Qual é o homem que
não consentiria em sacrificar a vida, numa ação brilhante, para adquirir
a gloria ou merecer a gratidão? Porém, morrer, no suplício reservado
aos facínoras, abandonado de Deus e dos homens, sem gloria e sem
consolo, numa agonia, em que se concentram todos os desamparos,
todos os desfalecimentos da mísera natureza humana e, a um ponto tal,
que excitam a hilaridade dos inimigos (Mt. XXVII,49) - eis o extremo e
duríssimo sacrifício, a suprema dor! E, sem embargo, é isso que nos
revela o grito de angustia que o Redentor exalou na cruz: «Deus meu,
Deus meu, porque me desamparaste?»(Mt.XXVII,46); é o que os profetas
haviam anunciando: "Sou um verme e não homem, o opróbrio dos homens, a
escoria do povo.» (Sl. XXI,7) Nele, não há beleza nem esplendor; vimo-lo
desfigurado... desprezível... o mais abjeto dos homens...Seu rosto estava como
oculto, aviltado...tomamo-lo por um leproso, um homem castigado de Deus e
humilhado. (Is.XLII,2) «Ele me conduziu e me levou as trevas e não a luz ..
Colocou-me em lugares tenebrosos como os mortos sempiternos ... Quando o
implorei, ele rejeitou a minha prece. .. E a paz foi banida de minha alma e perdi
a memória da felicidade... Completou-se o meu fim e esvaiu·se a esperança que
eu depositava no Senhor; Lembrai-vos de minha indigência e do excesso de
meus males... Essa recordação me está sempre presente na lembrança e minha
alma consumir-se-á em si mesma.» (Lam. lII)

Ó tremendo monte Calvário ! Houve jamais, lugar mais desamparado


de Deus, hora mais desolada que o lugar e a hora em que no extremo de
seu amor por nós, Jesus, o mais santo, glorioso e amável dos filhos dos
homens, submeteu-se a morte que Ele próprio havia escolhido? Seria
possível desconhecer essa excessiva caridade?

3. Consideremos, finalmente, como o Salvador aceitou e


consumou a sua Paixão. Ela não o feriu de modo repentino e
inesperado. Tudo havia sido previsto, anunciando, selecionado por
Ele mesmo, desde toda a eternidade. Quantas vezes o Senhor não
predisse tudo aquilo que o esperava! Na ocasião de ser preso opõe-
se a que seus discípulos o defendam, porque, diz Ele; a seu dispor
estão legiões de anjos prestes a socorrê-lo, com uma só palavra deita
por terra esbirros e soldados. Com a mesma liberdade entra na vida
e dela sai. Inclina a cabeça e morre, atestando assim que ninguém
lhe pode tirar a vida mas que Ele a deixa por sua livre vontade e
próprio poder. «Ofereceu-se, por nós, por que o quis. (Is.LIII,6).

A Paixão do Salvador apresenta um segundo caráter - a coragem -


porém a coragem na sua mais nobre e admirável expressão. Jesus sofre
mas não alardeia, nem indiferença estóica, nem orgulhoso desprezo da
vida ou lamentável fraqueza.

Sente intensamente o sofrimento e não se peja de o manifestar; seu


intento não é lastimar-se, porém consolar-nos pela atestação de um real
e cruel padecer, mediante o qual, Ele oferece a Deus a expiação de
nossos pecados, em sua qualidade de Pontífice supremo, de quem diz S.
Paulo: «Nos dias de sua Humanidade, tendo oferecido com lagrimas e com um
grande brado, suas preces e suplicas Aquele que O podia libertar da morte, foi
atendido por causa de seu humilde respeito.» (Hr. V,7)

O ultimo caráter da Paixão e morte de Jesus·Cristo é a santidade. Ele


sofreu e morreu no exercício das mais sublimes virtudes. Perdoa aos
verdugos; implora a misericórdia do Eterno Pai para todos aqueles que
se tornaram réus de sua morte; cuida solicito, em assegurar o futuro de
sua S. S. Mãe que permanecia de pé, junto a cruz; atende as palavras de
arrependimento, proferidas pelo bom ladrão; cumpre as ultimas
propícias; finalmente exala sua alma e o ultimo suspiro é um ato do
mais terno amor para com os homens e da mais filial submissão ao Pai
celeste. A morte do Redentor não é somente santa, é ainda o modelo, a
causa meritória da morte de todos os santos.

Sentindo a aproximar-se, Jesus entra em luta com ela, e morre como


qualquer de nós, não por necessidade, mas porque quis e afim de nos
provar o seu amor.

Ao pé da Cruz, considerando as derradeiras gotas de sangue que


efluem do lado aberto do Salvador, e contemplando o seu coração
chagado, não podemos deixar de repetir estas palavras: «Haverá maior
prova de amor que dar a vida por seus amigos?» (Jo.XV,13) «Deixei a própria
casa, abandonei minha herança, expus a doce vida minha a sanha de
meus inimigos (Jo.XII,7). «Eu sou o bom Pastor que dá a vida por suas
ovelhas»(Jo.X,11). Digamos com S. Paulo: «O que mais claramente
demonstra ,o amor de Deus para com os homens, é ter Jesus·Cristo dado a sua
vida por nós, ainda quando éramos pecadores.» (Ro.V,8-9). A Cruz tudo
revela. Para nos provar o seu amor, o Salvador não podia fazer e sofrer
mais do que fez e sofreu. Porém, o amor não avoca o amor?

Seria demasiado que, em compensação, lhe oferecêssemos o sacrifício


do mundo e o de nós mesmos? .

A resposta no-la deu uma alma generosa que desejava consagrar-


se a Deus em uma Ordem religiosa muito austera, Puseram-na a
prova e, para esse fim, conduziram-na ao coro no qual deveria
passar longas horas em oração, nas rigorosas noites de inverno;
levaram-na ao refeitório onde o alimento seria frequentes vezes
substituído pelo jejum; mostraram-lhe o rude e grosseiro leito de
onde o sono seria afugentado pela vigília e perguntaram-lhe, em
seguida, que juízo fazia de sua vocação. Terei um crucifixo em minha
cela?» interrogou, por sua vez. E ante a resposta afirmativa: «Então a
minha resolução está tomada. Serei fiel ao apelo de Deus;»

S. Paulo diz o mesmo, em outros termos: «No meio de todos esses


males (aflições, perseguições, fome, etc.) permanecemos vitoriosos pela
virtude d' Aquele que nos amou.» (Ro.VIII,37)

CAPITULO XI

Jesus glorioso

A aurora do segundo dia que, após o sábado da Páscoa, raiara sobre


Jerusalém, não havia encontrado Jesus no sepulcro, situado no sopé da
colina do Calvário. Ressuscitando glorioso, o Salvador entrara no
terceiro período de sua vida teândrica. E aí, vamos ainda encontra-lo
cheio de doçura e amabilidade.

1. A ressurreição é a reunião do corpo e da alma, não para um


viver terrestre e sujeito a morte, mas para uma vida nova e
gloriosa. Dotado de propriedades, similares as de espírito, o
corpo, sem cessar de sê-la, adquire existência diversa e
maravilhosa; torna-se, na criatura visível, a obra prima da
sabedoria e da onipotência de Deus; é, não somente, adorno pa-
ra a alma glorificada, mas também principio de alegria e de
força. Eis, pois, Jesus-Cristo, no renovo, na plenitude e beleza
dessa vida transfigurada. É Ele verdadeiramente Filho de Deus,
mesma quanto ao corpo no qual a divindade transparece, de
Certo modo. sobretudo pelo!' dotes de . caridade, formosura e
imortalidade. Como nos afigurar tanta gloria e majestade! Esvaíram-se
as sombras que poderiam relembrar a terra; esse rosto mais radiante
que a luz do dia, respira a graça, a bondade e o amor. E, como a cada
instante, um oceano de gozo e doçura se eleva da Criação inteira e
reflui a seu adorável Coração, Jesus derrama, em torrentes, a paz e a
felicidade sobre todos os que d'Ele se aproximam. O Evangelho no-la
comprova: a aparição do Senhor estanca as lágrimas, sua saudação dá
paz e alegria; em toda a parte onde Ele se manifesta, reina o jubilo
pascal Para sermos felizes é bastante contemplar e possuir a
humanidade glorificada do Salvador. Quão irresistível é o império que
a beleza exerce sobre o coração humano! E, todavia, quantas vezes, a
decepção, a infidelidade e a morte são a paga das homenagens que lhe
são tributadas! Com o tempo, a insuficiência, a imperfeição de toda
criatura acabam por se tornar patentes. Se desejamos a verdadeira
felicidade em uma formosura imortal, cumpre visar mais alto e, para
isso a solenidade da Pascoa vai orientar-nos. A Ressurreição é, em
verdade, a festa do corpo, porquanto, a alma de Jesus-Cristo já estava
glorificada pela morte, é pois, ao corpo que ela dá a glorificação plena,
completa, perfeita. Intrinsecamente, a Ascensão não aumenta essa
gloria, por ser toda extrínseca a que ela proporciona, mediante a
mansão onde introduz o corpo. Foi na Ressurreição que o Salvador,
adquiriu à imortal beleza que constitui a felicidade do céu e da terra.
Pascoa é pois a festa da formosura; ela nos ensina a dirigir nossas
aspirações à Beleza soberana; modelo de todas as outras.

Vale então desdenhar os encantos da terra e saber esperar com


paciência, não nos chegou ainda o tempo das núpcias, diz um Padre
da Igreja, mas ele virá e então a nossa ventura será incomensurável.

2. O Salvador não subiu ao céu imediatamente após a


Ressurreição: ficou ainda quarenta dias na terra, entre os seus,
conversando com eles e consumando a sua obra, sempre divino e
digno de nosso amor. Ora aparece a este ou aquele discípulo, a uma
ou a algumas das santas mulheres, afim de os consolar,
recompensar, ou confiar-lhes uma missão; ora se ocupa em dar à
Igreja sua completa organização. Institui dois sacramentos: o
baptismo e a penitencia, relativamente às verdades da fé, revela e
confirma o mistério da SS. Trindade e o da Ressurreição. Põe ao
edifício da Igreja, o seu remate definitivo pela instituição da
primazia de Pedro.

Em tudo isso o Senhor dá mostra de bondade inesgotável e


admirável condescendência. Dir-se-ia que as aflições, os sofrimentos
e a morte aumentaram-lhe ainda a doçura e misericórdia tal é a
graciosa afabilidade que Ele põe em consolar e perdoar. Jesus tudo
perdoa porque tudo sabe. Os sacramentos do baptismo e da
penitencia, a primazia, a imortalidade dos corpos, que magnifico
domingo pascal, feito á humanidade inteira. Se, na Ressurreição,
Jesus nos revela sua beleza imortal, é sobretudo a bondade que Ele nos
manifesta durante esses quarenta dias.

3. Enfim, o Salvador sobe glorioso ao céu. A Ascensão é o


encerramento de sua vida terrestre, a entrada na gloria e a consumação
da mesma, pela tomada de posse do paraíso. A vida teândrica não
podia ter mais esplendida conclusão. Jesus conduz os discípulos ao
monte Olivete e, na presença deles, se eleva majestosamente ao céu
permitindo-nos, assim, entrever, de certo modo, o reino da gloria de
que toma posse em nosso nome. O Paraiso ê o magnifico termo de
todas as coisas, o ultimo ensinamento que o Senhor nos lega! .

Que vasto e grandioso ê esse reino! E a mansão da suprema gloria, da


paz suavíssima que nada pode perturbar e onde tudo concorre
incessantement'3 para o jubilo e a honra de nosso Deus; o reino do gozo
indizível que nunca terá fim. Grande alegria e subida mercê, e
podermos esperar e reclamar a fruição desses bens eternos. Com que
amorosa solicitude devemos orientar nossos pensamentos para essa
pátria celeste, nela fixar o coração e nela reportar nossos labores e todo
o nosso ser! O paraíso é o triunfo do poder, da bondade e do amor de
Jesus. Por sua Ascensão Ele deu um fundamento inabalável á fé, á
esperança, á caridade. Jesus é, para nós, a radiante estrela da manhã
que não conhece declínio. Surgindo triunfante do sepulcro, o Senhor
brilha agora no céu, afim de que, nos dias de nossa peregrinação
terrestre, em meio das vicissitudes da vida, possamos dirigir nossos
pensamentos e aspirações a esses bens verdadeiros e eternos.

O céu, infindo e sempiterno gozo, é, pois, a magnifica consumação da


vida mortal do Salvador e o compêndio dá vida gloriosa. E era mister,
que assim fosse. Jesus é o Ser soberanamente feliz, principio e causa de
toda alegria; para que esta cessasse, seria necessário que Ele deixasse de
ser Deus. Na qualidade de Homem-Deus é Ele a imagem da Divindade;
o gozo do céu lhe pertence com mais direito que a nenhuma outra
criatura. Os sofrimentos a que se submeteu aqui na terra eram
transitórios; Ele os quis experimentar por amor de Deus e amor nosso,
mas não podiam durar eternamente. O mesmo se dá em relação a nós,
criaturas suas, servos e irmãos seus. O sofrimento e a dor não são a
ultima palavra de nossa existência; isso cabe à alegria e á felicidade.
Não o olvidemos. A alegria é a explicação final do cristianismo, a senha
do nosso soberano Senhor, a única expressão que lhe convém, a Ele e
também a nós. Nela reside uma força misteriosa e secreta virtude. Essa
palavra mágica triunfa de tudo, dá a coragem que arrosta todos os
sacrifícios, supera as dificuldades, resolve os enigmas da religião
cristã,penetra·o coração de amor para com um Deus que quis fazer
consistir sua gloria e felicidade, na nossa própria ventura e
contentamento. «Nosso caminho é vossa vida» diz mui judiciosa· mente
o livro da Imitação, "e a santa paciência nos conduz a Vós que sois nossa
corôa.” Imt. Chr.; m, 18.

CAPITULO XII

O Santíssimo Sacramento do altar

Subindo ao céu, o Salvador não deixa de permanecer corporalmente


na terra. Essa maravilha se realiza mediante o SS. Sacramento do altar,
em que, sob o véu das espécies sacramentais, Jesus está, verdadeira e
substancialmente presente, com seu corpo e alma, sua divindade e
humanidade, em toda a parte onde se acham essas mesmas espécies e
durante todo o tempo que elas subsistirem. O SS. Sacramento é, por
assim dizer, o elo de ouro que une essencialmente o céu á terra .

1. Um dos efeitos da Eucaristia é dar-nos, aqui, no mundo, a continua


presença do Salvador, permanência essa, que havia sido o ardente anelo
de seu amantíssimo coração.

: Antes que seus inimigos conseguissem o criminoso intento de


suprimi-lo do mundo, tirando· lhe a vida, o Senhor tivera o cuidado de
prover a outro modo de presença, por meio da instituição da Eucaristia.
Em consequencia da maneira, pela qual se efetua essa permanência
continua, a presença de Jésus é, primeiramente real, em seguida,
miraculosa. Assim Ele está simultaneamente no céu e aqui na terra, em
mil lugares diferentes; oculta-se a nossos olhos que apenas veem as
aparências do pão, e, não obstante, está mais cheio de vida que o mais
perfeito e formoso dos filhos dos homens; ê tão pequeno que o contém
a mão de uma criança, e tão grande que a imensidade do céu não o
pode abranger, maravilhas estas que só a onipotência, colocada à
disposição do amor, é capaz de realizar. A presença de Jesus na
Eucaristia, reveste-se de peculiar atrativo, por ser a mais plácida e
intima que se possa idear.

Como Ele exige pouco de nós! O que aspira é habitar em nosso


coração; confia tudo o mais a nosso amor e generosidade.

Exteriormente, contenta-se com as honras que nos apraz tributar-lhe.


Nos dias de sua vida mortal, era preciso que os homens se dessem ao
trabalho do ir procurá-lo e hoje, é Ele que Lhes vem ao encontro e, em
toda a parte, estabelece sua morada ao nosso lado, favorecendo-nos,
não somente com a sua vizinhança, mas ainda com os bens que ela
proporciona, enriquecendo-nos com as devoções de que sua presença
real é objeto. Como a terra seria vulgar e desolada se não fosse esse
sacramento de amor!

2. Ao Salvador não basta ficar continuamente conosco, imola-se por


nós. A presença de Jesus na Eucaristia, não pode realizar-se e
prosseguir senão mediante a missa. Ora, a missa é essencialmente um
sacrifício, o sacrifício da nova Aliança. Dois foram os que o Salvador
ofereceu: o da Cruz e o da Ceia. A missa sendo exatamente o sacrifício
da Ceia, constitui, com o da Cruz, uma única e mesma oblação,
porquanto, não é ela apenas um memorial, uma representação, a
consumação do sacrifício da Cruz, pois, o sacerdote, a vítima e os
merecimentos são os mesmos. Não vivemos no tempo em que Jesus se
imolou na Cruz e ofereceu o sacrifício da Ceia, logo, é grande
misericórdia e excessiva condescendência, de sua parte, renovar
incessantemente esse mesmo sacrifício, querer de certo modo, colocar, a
nosso dispor, os méritos de Sua imolação, prestar a Deus, em nosso
nome, o tributo que lhe devemos de adoração, de ação de graça e de
satisfação. E não é tudo. Jesus não se acha mais só, para oferecer o
sacrifício. Escolhe, entre os filhos dos homens, uma milícia sagrada,
com a qual e por cujo ministério, Ele se imola a Deus. Dessa sorte, seu
sacrifício confunde·se com o nosso que adquire, assim, um valor
infinito e nos permite oferecer, ao Senhor, uma homenagem digna de
sua infinita majestade.

É a oblação contínua ininterrupta. Começa ao raiar da aurora E, de


sem numero de altares, esse incenso de agradável odor sobe até o trono
de Deus, transformando a terra em templo vivo do Senhor.

Quantos tesouros nos proporciona o amor de Jesus! Mercê do


sacrifício eucarístico, ele nos opulenta até em relação ao próprio Deus! É
sobretudo mediante essa oblação mística que o fim da criação é
plenamente atingido.

3. Sobre ser um sacrifício, a Eucaristia é também um sacramento.


Considerada no primeiro ponto de vista, ela pertence, mormente a
Deus, se atendermos ao segundo, a primazia nos cabe a nós. É pelo
canal dos sacramentos que Deus nos concede a graça de vivermos
santamente e alcançarmos a salvação. A vida sobrenatural, conferida
pelo baptismo, é conservada e fortalecida pela Eucaristia. Enquanto, nos
outros sacramentos, Jesus Cristo se serve de um sinal visível para
comunicar a graça, neste é o seu próprio corpo que ele constitui
instrumento dela.

A Eucaristia é pois o corpo de Cristo, debaixo das espécies de pão e


sob a forma de alimento. Que extremos de amor, e que delicadeza na
expressão desse amor! Quantos dons compendiados em um só!

Assim como outrora Jesus se servia de suas divinas mãos para curar
os enfermos e ressuscitar os mortos, assim, no sacramento do altar, Ele
se serve de seu sacratíssimo corpo para nos comunicar as mais
preciosas graças; hoje, porém, a condescendência que manifesta é ainda
maior, porquanto, juntamente com o próprio corpo, maravilha do céu e
da terra, Ele nos faz dono de sua alma e divindade, de seus méritos e
graças. Entrega-nos a propriedade de tudo o que lhe pertence, até do
próprio ser. Haverá, por ventura, no mundo, alguém mais rico e
poderoso que o homem em cujo coração Deus habita pessoalmente?1
Que bem sobreleva a este? A generosidade de Jesus poderia ser
ultrapassada?

De tudo o que precede, se deduz que o sacramento do altar é o


primeiro e o mais excelente de todos, não somente por sua dignidade,
mas ainda por sua eficácia. A comunhão é a intima união com Jesus
Cristo, união simultaneamente corporal e espiritual; por conseguinte
para entender e amplificar a vida sobrenatural, sua eficácia sobrepuja a
dos outros sacramentos. Jesus é a vida, a comunhão é, pois, o
sacramento da vida. (Joann, VI, 56, 57.) As mais sublimes virtudes e mais
excelentes disposições da alma, como sejam a caridade, a paz, a alegria,
a coragem, a castidade, a virgindade, o espírito de sacrifício lhe são
justamente atribuídas. A vida divina de Jesus Cristo torna-se nossa
partilha; (Joann.; VI, 5l;53.) até o corpo recebe o penhor da ressurreição
gloriosa.

Esses maravilhosos efeitos da Comunhão, estão admiravelmente


expressos no sinal sensível do sacramento. Na qualidade de alimento o
pão e o vinho são símbolos da vida; a manducação lembra a força e a
mais intima união; o banquete é indicio de jubilo e cordial amizade.
Finalmente, Jesus não poderia atestar o seu amor desinteressado por
uma manifestação exterior que melhor o traduzisse. Sabendo que nada
se identifica tanto conosco como os alimentos materiais, o Salvador
escolhe esta forma a fim de penetrar em nosso ser, incorporar-se a ele e
com ele unificar-se. Não sofrendo que qualquer outro tenha conosco
mais estreita união, Ele se constitui alimento de nosso corpo e de nossa
alma, ou antes, nós nos escoamos nele, mais propriamente, que Ele em
nós.

Por sua onipotência o Salvador nos transporta para o seu próprio Ser
a fim de nos associar, tanto quanto possível à sua divindade. Poderia
humilhar-se mais profundamente e mostrar maior condescendência?
Mas é assim que seu amor alcança o fim que propôs a si mesmo: atrair o
nosso coração a fim de lhe dar honra, riqueza e felicidade. Como este
pensamento é suave e enternecedor: O coração do homem, fim da Santa
Hóstia!

4. Com que amplitude e magnificência divina, o amor de Jesus se


manifesta nas diversas aplicações do sacramento do altar! Não foi uma
palavra vã a que o Salvador proferiu quando afirmou que não nos
deixaria órfãos, mas permaneceria conosco; que Ele era a vide e nós os
sarmentos e com Ele formamos uma viva unidade.

A Eucaristia é, de certo modo, a Encarnação ampliada a todos os


homens. Na Encarnação Jesus se une a uma única natureza humana - a
sua santa humanidade - na comunhão a união se efetua com cada um
de nós e do modo mais intimo que se possa conceber. Pela criação, Ele é
nosso Pai; conservando-nos a vida constitui-Se nossa Providencia;
justificando-nos é nosso Redentor. E pelo sacramento do altar que será,
relativamente a nós? A união que contrata conosco é tão inefável, que a
linguagem humana é impotente para exprimi-la. E o que levou o
Salvador a realizar essa maravilha, não foi somente a compaixão, a
misericórdia, a bondade, foi sobretudo o amor, mas um amor sem
limites, cheio de abnegação e que nenhum sacrifício fez recuar. Jesus
poderia ter-se contentado com muito menos. Bastaria que Ele se
tornasse presente em um único lugar da terra, que essa felicidade nos
fosse concedida uma só vez, no decorrer da existência e ainda com a
condição de sermos dignos dela; ou então, que se manifestasse apenas,
no momento preciso da recepção. Mas seu amor desdenha essas
restrições; prefere expor-se a mil indignidades e profanações. À custa
de quantas amarguras, ingratidões e ultrajes, vem Ele bater á porta de
nosso coração, dizendo, como o esposo dos Cantares: «Abre, amiga
minha; trago a cabeça húmida de orvalho e meus cabelos rorejam o pranto da
noite.» (Cant.; V, 2.)

Como poderíamos, com ·mais verdade, retribuir a Jesus amor por


amor, do que pelo sacramento do altar, foco de tão ardente caridade
que ele é denominado, com razão - sacramento do amor? Graças a sua
presença continua, o Salvador permanece conosco sempre e a todo
instante; na missa, Ele se oferece por nós; na comunhão entrega se a
nós. Quantas razões de amá-lo e quantos meios de progredir no seu
amor!

CAPITULO XIII

Ultimas recomendações

As derradeiras palavras, os ultimas desejos de um amigo caro que de


nós se aparta, de um pai, uma mãe, na hora da morte, constituem um
como legado sacro, santo e penhor das bênçãos celestes. Antes de dar
começo a sua Paixão, o Salvador quis também deixar aos Apóstolos e a
todos nós, um testamento, no sublime Discurso de despedida, no qual,
manifestando-nos plenamente o seu Coração, Ele nos dá um derradeiro
e instante conselho. Esse ensinamento supremo será o fecho do presente
opúsculo.

1. Em que consiste essa recomendação? Não é ela mais que o anelo


formulado, no momento da separação, por todos aqueles que,
estremecidamente, se amam, isto é, permanecerem unidos, ao menos
em espírito. É essa união que Jesus recomenda, expressa e
instantemente, aos Apóstolos, quando prestes a retirar deles a sua
presença corporal: “Permanecei em mim.” ( Joann., XV, 4, 6, 9.)

2. Como entender essa união? Evidentemente o laço que nos devia


unir ao Salvador, não podia ser senão espiritual, sem embargo, cumpria
que fosse uma realidade verdadeira e vivaz; não um ato momentâneo,
porém, estável e arraigado no mais intimo recesso do ser. É por isso que
o Senhor emprega a bela comparação da videira e seus ramos. Joann., XV,
1,sqs.) Organicamente unidos à cepa, os ramos formam com ela uma
unidade e vivem da mesma vida. É o emblema da união que devemos
ter com Jesus-Cristo, a qual é obra da graça santificante. __ Esta
constitui realmente uma qualidade espiritual e permanente de nossa
alma, uma comunicação criada da natureza divina, uma imagem da
divina filiação; tornamo-nos espiritualmente filhos de Deus por
adopção e semelhantes a Jesus-Cristo, filho de Deus por natureza.

Enquanto possuímos a graça santificante, tudo o que o Salvador diz


dessa união se realiza plenamente: Ele está e permanece em nós, somos
um nEle e no Pai, assim como o Pai e Ele são um. (Joann.; XVII, 21, sqs.) O
Pai e o Filho são um, porque têm a mesma natureza. Pela graça
santificante temos em nós a semelhança, somos feitos á imagem dessa
natureza divina. Estar de posse dessa mesma graça, é a condição
primordial, essencial da união com .Jesus Cristo; aliás é ela o principio,
o fundamento de todos os dons e de todas às forças que constituem a
vida espiritual.

3. Unindo·se á própria essência da alma, a graça santificante traz com


sigo força e faculdades espirituais que lhe permitem manifestar a nossa
vida pela pratica de atos virtuosos. Entre essas virtudes o Salvador
assinala três. _ .

Antes de tudo a fé. E ela o primeiro passo no caminho que conduz a


Deus (Hebr.; XI, 6.), por ser a união com Ele, mediante a inteligência,
enquanto o reconhecemos por nosso Deus, soberano bem e fim ultimo,
à medida que Ele próprio se revelas a nós com o intuito de nos dar os
magnificas motivos dessa união, o Salvador atesta expressamente a sua
divindade; relembra em seguida os seus milagres e finalmente, insiste
na necessidade de nos unirmos a Ele si nos quisermos salvar e produzir
frutos para a eternidade. Credes em Deus, crede também em mim.
“Quem me vê a mim, vê também o Pai, não credes que estou no Pai e o
Pai está em mim? Crede-o, ao menos, por causa de minhas obras. Em
verdade, em verdade vos digo, o que crê em mim fará também as obras
que faço e ainda maiores» (Loann., XIV; 1, 9, 11, 12.) .Sou a videira e vós sais
os ramos. O que permanece em mim, como eu permaneço nele, esse
produz copioso· fruto. porque sem mi.m nada podeis fazer. Se alguém
não permanece em mim, será lançado fora como um sarmento inútil e
secará e será colhido e atirado ao fogo.”( Joann., XV, 5, 6.)

Quão precioso é o domínio da fé! e qual não deve ser o nosso zelo
em produzir atos relativos a essa virtude, pois que só ela nos dá a luz
do amor!

O amor é a segunda e mui natural manifestação da nossa união com


Deus. É o amor a contínua inclinação da vontade para o objeto amado.
«Permanecei no meu amor» (Joann. xv, 9.) O Salvador nos declara para
nosso maior consolo, que, essencialmente, o amor não consiste na
doçura dos sentimentos; porém na constante aplicação da vontade a
observar os preceitos da lei (joann XIV, 14, 15,21, 23, 24; XV, 10,14.) É isso que
constitui a caridade habitual contida na graça santificante e que, em
quanto não nos tornamos réus de culpa mortal, permanece em nós e,
desde então, nossa vontade continua unida a Deus.

O Salvador nos dá os motivos dessa caridade que são,


primeiramente, o amor que o eterno Pai terá por nós, se o amarmos a
Jesus, o Filho do Pai (Joann .. XIV, 21, 23; XVI, 27) que o Pai nos deu; em
segundo lugar o amor que Ele próprio já nos testemunhou,
constituindo-nos amigos seus, afim de nos revelar todos os segredos do
céu (joann , XV, 15.) e sacrificando a vida por nós (Joann., XV, 13.); finalmente
Promete a quem o ama, uma especial comunicação das três Pessoas
divinas que se hão de dar e revelar a alma de modo todo particular
(Joann., XV, 23.). Estas palavras anunciam a graça de escol com que,
mesmo aqui na terra, a alma pode ser favorecida, em diversos graus, na
união mística com Deus, as quais graças são como o antegozo da bem-
aventurança celeste.

É mediante a oração que a fé e o amor comunicam com Deus: a prece


constitui, pois, o terceiro ato de nossa união com a Divindade. A que o
Salvador nos recomenda, no Discurso de despedida, já tem com Ele
estreita relação, porquanto, deve ser feita em seu nome. (Joann.; XIV, 13,
14; XV, 15, 23, 26).Oramos em nome de Jesus, quando o fazemos unidos a
Ele pela graça e nas mesmas intenções, quando pelos seus méritos,
advogamos os interesses da gloria de Deus e de seu reino. Este maneira
de encarar a prece, oferece, por si só, um excelente motivo de orar.
Efetivamente, no sentir do Salvador: ela devia ser, para os apóstolos,
uma compensação da privação de sua presença visível. Por meio dela, o
Senhor continuará a exercer seu ministério de amor, instruindo-nos;
consolando-nos, defendendo-nos e provendo a todas as nossas
necessidades. Por isso lhes disse que até então nada haviam pedido em
seu nome, porque gozavam de sua presença (Joann XVI, 24.). Dora em
diante, é pela oração feita em seu nome, que Ele tudo fará, por eles e
por nós. A eficácia de tal prece, é incalculável porquanto é ela, por
assim dizer, a mesma oração do Cristo e eis por que tudo pode. E isto é
tão exato que ela prescinde da própria recomendação do Senhor.
Orarem nome de Jesus, é permanecer com ele na mais intima união, é
trabalhar eficazmente para a extensão de seu reino. E não é esse o mais
nobre e mais poderoso incentivo da oração?

Tais são as ultimas recomendações do Senhor Jesus:

Intima união com Ele por meio da graça, da fé, da caridade e da


oração. É a derradeira e mais consoladora prova de seu amor para com
os homens e do ardente desejo de ser deles amado; é o preceito final
garantido por sua palavra; é, enfim, a sua vontade suprema. E essa
vontade não deve ser, para nós, uma prescrição sagrada? Havemos
tudo o que é mister para nos unirmos a Jesus Cristo. A inteligência a Ele
se une pela fé, a vontade pelo amor, a memória e os sentimentos pela
oração e assim o homem todo é transplantado em sua divina Pessoa:
não mais vive ele senão o Cristo que nele vive. (Joann. XIV, 14: XV, 16.)

Começamos pela oração e, passando pe· Ia caridade que, na


oração,'busca a Jesus Cristo, tornamos ao ponto de partida ..• A prece,
o desapego de si mesmo, o amor de Deus, intimamente unidos, formam
o triplice élo da vida espiritual e· da perfeição cristã, quer vivamos
livres no muno do, quer, no recolbimentoao estado rl?· ligioso. Mas
essas três coisas. são essen· ciaes e imprescindíveis. Sem a oração não
pode háver energia na renuncia nem a~fectuoso conbecimento de Deus
e verda· deira caridade. Sem o desapego, a oração não subsiste e é
impossível progredir no amor de Deus porque o requinte da própria
satisfação o})sta todo e qualquer pro· gresso. Finalmente, sem o amor
de Deus não é possível háver o' gosto da oração nem gênerosidade: no
sacrifi~io. Oração, desapego, amo!:" reunidos, formam a corôa de nossa
justiça.

São três estas virtudes porém a mais excelente é a caridade ( Cor., m, 13.)
por ser o liame da perfeição e o ultimo e supremo preceito do Senhor.
Pedindo-nos o nosso amor Ele nos abandona tudo é mais e esse mesmo
amor o constitui soberano incontestado de nosso coração. O amor
dirime as dificuldades e as transforma em meios e ocasiões de
provarmos que pertencemos a Deus e reconhecemos seu domínio sobre
todas as coisas. «Amar e fazei o que vos aprouver» diz S. Agostinho. (ln
epist. Joannis ad Parthos tract, 7, n. 8 (Migne P. L. II 2, 2033.) E S. João escreveu:
“Cremos em seu amor”.(Joann.; IV, 16.) Nada resiste ao amor de Jesus
crucificado. Ele venceu o mundo. E como não! Nosso Redentor, nosso
Deus e Senhor é infinitamente amável e digno de nosso amor; amou-
nos até a morte e ainda nos ama com inefável ternura; deseja que o
amemos e pede o nosso coração. Não será isso bastante para nos
contentar, a nós tão pobres e mesquinhos, tão sedentos de amor e
felicidade?

O amor é um bem precioso e infinitamente desejável. Para possui-lo,


tudo o que fizermos será pouco. Oremos, oremos incessantemente; não
se fechem os nossos olhos, à luz da vida, antes de chegarmos à
perfeição do amor. Conhecer, amar a Jesus é o bem por excelência, no
tempo e na eternidade. Quão digno de lastima é aquele, que, durante a
vida, não teve esse conhecimento e nem gozou desse amor! Nossa
sabedoria, santidade e ventura estão na razão direta do conhecimento
que temos de Jesus e da intensidade do amor que lhe dedicamos.

E embora a nossa vida seja semeada de cruzes e tribulações, não nos


deixemos desalentar. No começo a paciência é posta á prova, mas este
princípio é o penhor do fim glorioso. Ao suave influxo do amor, tudo se
torna ameno e deleitoso, porém, não mais meritório. No céu não é
mister lições para aprender a amar a Deus, mas neste mundo em que
vivemos na fé, onde temos muitas vezes que lutar contra os perigos ou
as seduções, é difícil arte e excelente meio de glorificar ao Senhor,
manter sempre o nosso coração nas alturas do puro amor de Deus. Mas
não percamos a esperança: dia virá em que, mesmo aqui na terra,
teremos adquirido o Conhecimento de Jesus e aprendido a nos deleitar
nas doçuras de seu amor, e então terá raiado, para nós, a aurora da
eterna bem-aventurança.

INDICE

Aos leitores
Prefacio

PRIMEIRO PRINCIPIO

Orar

Capítulo I. O que é ora


Capítulo II. Grandeza e excelência da oração.
Capítulo III. O preceito da oração
Capítulo IV. A oração, o grande meio da graça
Capítulo V. O poder da oração
Capítulo VI. Predicados que a oração deve ter
Capítulo VII. Da oração vocal.
Capítulo VIII. Modelos de oração
Capítulo IX. Da oração mental
Capítulo X. Devoções da Igreja
Capítulo XI. O espírito de oração.

SEGUNDO PRINCIPIO

Vencer-se

Capítulo I. Ideia exata do homem.


Capítulo lI. Em que consiste a vitória sobre si mesmo
Capítulo III. Por que devemos mortificar-nos
Capítulo IV. Predicados que deve ter a vitória sobre si mesmo
Capítulo V. Algumas objeções
Capítulo VI. Da mortificação exterior
Capítulo VII. Da mortificação interior
Capítulo VIII. Mortificação no que concerne à inteligência
Capítulo IX. Mortificação no que concerne á vontade.
Capítulo X. Das paixões
Capítulo XI. A preguiça.
Capítulo XII. O temor
Capítulo XIII. A cólera e a impaciência
Capítulo XIV. O orgulho.
Capítulo XV. Antipatia e simpatia.
Capítulo XVI. Defeitos de caráter
Capítulo XVII. Conclusão

TERCEIRO PRINCIPIO

Amar o Divino Salvador

Capítulo I. O amor
Capítulo II. Jesus Cristo-Deus
Capítulo III. Deus Homem
Capítulo IV. Deus Menino
Capítulo V. O Doutor sapientíssimo e Guia das almas
Capítulo VI. O Filho do homem
Capitulo VII. Acima da natureza
Capitulo VIII. O livro de vida
Capitulo IX. Jesus era bom
Capitulo X. Paixão e morte
Capitulo XI. Jesus glorioso.
Capitulo XII. O S.S. Sacramento do altar.
Capitulo XIII. A ultima recomendação.

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