Você está na página 1de 366

CIRURGIA GERAL

E POLITRAUMA
Equipe SJT Editora
Cirurgia geral e politrauma. São Paulo: SJT Editora, 2016.
ISBN 978-85-8444-091-7

Copyright © SJT Editora


2016 SJT Editora
Todos os direitos reservados.

Diretor editorial e de arte: Júlio César Batista


Diretor acadêmico: Raimundo Araújo Gama
Editor de arte: Áthila Pelá
Projeto grá昀椀co: Rafael Costa
Capa: Erick Balbino Pasqua
Editoração eletrônica: Equipe SJT Editora

Contato com o departamento editorial: editora@sjtresidencia.com.br


Contato com o departamento acadêmico: aluno@sjtresidencia.com.br

Avenida Paulista, 949 – 9º andar


Cerqueira César – São Paulo/SP
CEP: 01311-917
Fone: (11) 3382-3000

http://www.sjteducacaomedica.com.br
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.

É expressamente proibida a reprodução ou transmissão deste conteúdo, total ou parcial, por quaisquer meios
empregados (eletrônicos, mecânicos, fotográ昀椀cos, gravação e outros), sem autorização, por escrito, da Editora.
Este material didático contempla as regras do Novo Acordo Ortográ昀椀co da Língua Portuguesa, que vigora no
Brasil desde 2009.
Apresentação à 16ª edição

Apresentamos, à comunidade médica, a mais nova edição do conteúdo didático SJT

Preparatório para Residência Médica.

Entendemos que nossa função não consiste apenas em prepará-lo(a) para as provas de Residência

Médica, mas possibilitar conhecimento e cultura para o desenvolvimento de sua carreira pro昀椀ssional.

O corpo docente do SJT, composto por professores das melhores instituições de São Paulo,

tem como meta de trabalho fornecer o melhor preparo a você, fazendo com que seus planos se tor-

nem realidade, por meio de muito esforço, determinação e vontade.

O material didático SJT 2016 está atualizado com as últimas questões dos concursos de Residên-

cia Médica de todo o país.

Estude com atenção e entusiasmo. Respeite sua agenda, pois aprendizado requer dedicação.

O maior responsável pelo seu sucesso é você. Participe regularmente das atividades do site – o me-

lhor programa on-line de atividades acadêmicas.

Estamos juntos neste objetivo: Residência Médica 2017!

O contato com o departamento acadêmico deverá ser feito pelo email: aluno@sjtresidencia.com.br.

Você será Residente em 2017!


u n i ve r so
sjt online
www.sjteducacaomedica.com.br
Página inicial do Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA)
Visite ao menos uma vez por semana o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA)! Aprender mais significa
investir na sua felicidade. Você é o dono do seu sucesso.

Login
CPF sem pontos e traço.
4 primeiros números
do CPF.

Relação de cursos SJT.


Encontre o seu.

Meu per昀椀l
Calendário com atividades, agenda de
aulas, atualizações, eventos, etc.

Novidades
Notícias atualizadas sobre os temas dos
cursos.

Meu per昀椀l
Perfil do aluno, informações sobre aces-
so, atividades, notas, etc. Mensagens: Por
aqui o aluno poderá trocar mensagens com
professores, tutores e colegas de curso.

Curso atual
Nesta opção você poderá encontrar to-
dos os participantes do curso e navegar pe-
los temas que serão abordados no mesmo.

Meus cursos
Caso você esteja matriculado em mais de
um curso, poderá acessá-los por aqui.

Administração do curso
Área em que o aluno poderá consultar no-
tas em simulados, fóruns e outras atividades.

Con昀椀gurações de per昀椀l
Nesta opção o aluno poderá alterar seus
dados de perfil, e-mail, imagem, senha, con-
figurações de notificações (Ex.: se receberá
notificações por e-mail, ou apenas pelo AVA).
O Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA)
Neste ambiente você poderá encontrar todo o material didático dos cursos, principais e complementares:
Links para videoaulas; Glossário; Apostilas; Material complementar de leitura (manuais e artigos científicos,
guidelines, etc); Exercícios de fixação; Fóruns de discussões temáticas
Sumário
1 Conceitos básicos em cirurgia................................................................................................................9
2 Pré-operatório – parte I.............................................................................................................................28
3 Pré-operatório – parte II ...........................................................................................................................57
4 Pós-operatório – parte I ............................................................................................................................64
5 Pós-operatório – parte II...........................................................................................................................78
6 Resposta in昀氀amatória ao trauma ...................................................................................................... 89
7 Complicações pós-operatórias.......................................................................................................... 96
8 Cicatrização de feridas ............................................................................................................................118
9 Abdome agudo ............................................................................................................................................ 130
10 Hérnias .................................................................................................................................................................155
11 Hérnia umbilical ............................................................................................................................................174
12 Hérnias incisionais ...................................................................................................................................... 176
13 Hérnias incomuns ........................................................................................................................................181
14 Queimaduras .................................................................................................................................................. 186
15 Hipotermia........................................................................................................................................................205
16 Hematoma da bainha do músculo reto abdominal........................................................... 211
17 Tumores da parede abdominal.........................................................................................................214
18 Politrauma ........................................................................................................................................................ 218
19 Atendimento inicial do politraumatizado .................................................................................. 222
20 Via aérea e ventilação ............................................................................................................................. 234
21 Trauma cervical............................................................................................................................................ 242
22 Trauma de tórax ..........................................................................................................................................248
23 Trauma abdominal.....................................................................................................................................268
24 Trauma genitourinário .............................................................................................................................296
25 Trauma pélvico .............................................................................................................................................. 311
26 Trauma cranioencefálico (TCE).........................................................................................................319
27 Trauma raquimedular (TRM) ...............................................................................................................331
28 Trauma musculoesquelético.............................................................................................................340
29 Trauma pediátrico ......................................................................................................................................346
30 Traumas em gestantes ..........................................................................................................................356
CAPÍTULO

1
Conceitos básicos em cirurgia

Introdução Instrumental cirúrgico


Qualquer procedimento cirúrgico básico consta A organização do material cirúrgico, bem como a
de três etapas: existência de um profissional habilitado para executá-
Diérese ou divisão: consiste em toda e qual- -lo, levou ao surgimento de um membro essencial da
quer manobra que se destina a criar descontinuidade equipe cirúrgica – o instrumentador. O instrumen-
de tecidos, ou seja, permitir o acesso do cirurgião ao tador é responsável pela organização do material,
leito cirúrgico. que deve estar ordenado sequencialmente, seguindo
Hemostasia: toda manobra que objetiva conter as etapas: diérese, hemostasia e síntese. Ou seja, to-
uma hemorragia. dos os materiais de mesma função devem estar
Síntese: manobra que permite aproximação te- juntos e sequencialmente organizados na mesa
cidual e acelera o processo de cicatrização. Sendo as- de instrumentação. O instrumentador cirúrgico
sim, a sutura é realizada com fios cirúrgicos. também tem a função de entregar o material solicita-
do pelo cirurgião e seus assistentes, e ficar atento à
O conceito de cirurgia é bem amplo: conjunto de
reposição de materiais ditos “móveis” utilizados (fios
gestos manuais e instrumentais que o cirurgião exe-
cuta para realização de ato cruento, com finalidades cirúrgicos, gases, algodão etc.), além de servir de elo
diagnóstica, terapêutica e/ou estética. Desta forma, de comunicação com o enfermeiro circulante – que en-
fica bem clara a necessária padronização e organiza- trega os materiais a serem utilizados, sempre atentos
ção sequencial que o cirurgião precisa desenvolver para evitar a contaminação. Aliás, esta é outra função
para conseguir atingir seus objetivos na evolução de do instrumentador: ficar atento e evitar a contamina-
um tratamento. ção de materiais e da equipe cirúrgica em si.
10
Cirurgia geral e politrauma

O instrumentador deve, preferencialmen-


te, ficar em posição oposta a do cirurgião, com
a mesa de instrumentação posicionada, preferencial-
mente, ao seu lado e do paciente. Deve-se evitar a
mesa colocada entre o cirurgião e o instrumentador,
pois isto pode aumentar o risco de contaminação de
materiais, além de criar um obstáculo entre o cirur- Figura 1.3 Tesoura Metzembaum curva/reta.
gião e o instrumentador, afastando-os, quando na ver-
dade devem estar próximos um do outro.
Na montagem da mesa de instrumentação, deve-
-se procurar aproximar materiais de mesma função e
organizá-los de maneira a atender à sequência dié-
rese, hemostasia e síntese. Existem também mate-
riais de preensão (responsáveis pela tração e manipu-
lação de tecidos), bem como afastadores, que mantêm
as bordas da incisão afastadas, facilitando a manipu-
lação de tecidos e órgãos internos e profundos. Estes
Figura 1.4 Tesoura angulada.
materiais devem estar dispostos entre o material de
hemostasia e síntese.
Veja, a seguir, uma relação de materiais mais ro-
tineiramente utilizados para cada uma destas funções,
é uma sugestão de organização para uma mesa de ins-
trumentação (não há uma regra obrigatória – deve-se
atentar à ordem e organização de materiais de
mesma função).

Descrição de alguns
materiais cirúrgicos

Materiais de diérese

Figura 1.1 Bisturi de lâmina (Cabo 4 para lâminas 11, Figura 1.5 Serra manual.
15/Cabo 5 para lâminas 21, 23).

Figura 1.2 Tesoura Mayo reta/curva. Figura 1.6 Cabo-serra de Gigler.

SJT Residência Médica – 2016


11
1 Conceitos básicos em cirurgia

Figura 1.12 Trocarte.

Figura 1.7 Serra de Gigler.

Figura 1.13 Trocarte.

Figura 1.8 Cisalha.

Figura 1.14 Rugina.

Figura 1.9 Costótomo.

Materiais de hemostasia

Figura 1.10 Pinça Goiva.


Figura 1.15 Pinça hemostática curva – Cryle curvo.

Figura 1.11 Pinça Goiva (Saca-bocado). Figura 1.16 Pinça hemostática reta – Cryle reto.

SJT Residência Médica – 2016


12
Cirurgia geral e politrauma

Figura 1.17 Pinça hemostática reta – Kelly reto/curvo. Figura 1.20 Pinça hemostática curva com dente –
Kocher curvo/reto.

Figura 1.18 Pinça hemostática reta – Pean.


Figura 1.21 Pinça vascular atraumática – Satinsky.

Figura 1.19 Pinça de Mixter. Figura 1.22 Pinça vascular atraumática – de Bakey.

SJT Residência Médica – 2016


13
1 Conceitos básicos em cirurgia

Figura 1.23 Pinça vascular atraumática – de Bakey.

Figura 1.26 Clamp intestinal – Copróstase reto.

Figura 1.24 Pinça hemostática atraumática – Bulldog.

Figura 1.27 Clamp intestinal – Copróstase curvo.

Instrumentos de preensão e
afastamento

Figura 1.25 Clamp intestinal. Figura 1.28 Clamp gastrointestinal – Abadie.

SJT Residência Médica – 2016


14
Cirurgia geral e politrauma

Figura 1.32 Pinça de Pozzi.

Figura 1.29 Pinça de Allis.

Figura 1.33 Pinça de Desjardins.

Afastadores

Figura 1.30 Pinça de Duval.

Figura 1.31 Pinça de coração – Colins. Figura 1.34 Afastador de Farabeuf.

SJT Residência Médica – 2016


15
1 Conceitos básicos em cirurgia

Figura 1.35 Afastador de Volkmann.

Figura 1.38 Afastador de Finochietto.

Figura 1.36 Afastador de Balfour.

Figura 1.39 Afastador de Gosset.

Figura 1.37 Afastador de Balfour (2 componentes). Figura 1.40 Afastador de Deaver.

SJT Residência Médica – 2016


16
Cirurgia geral e politrauma

Materiais de síntese

Figura 1.41 Afastador de Doyen. Figura 1.44 Porta-agulha de Hegar.

Figura 1.45 Porta-agulha de Hegar.


Figura 1.42 Afastador de Doyen.

Figura 1.43 Pinça de campo ou Backhaus. Figura 1.46 Porta-agulha de Mathieu.

SJT Residência Médica – 2016


17
1 Conceitos básicos em cirurgia

Instrumentos Instrumentos Instrumentos


de diérese de hemostasia de síntese
Bisturi de lâmina Pinças hemostáti- Porta-agulhas
cas curvas
Bisturi elétrico Pinças hemostáti- Agulhas
cas retas
Figura 1.47 Porta-agulha (Congreve) para cirurgia
laparoscópica. Tesoura curva Pinça de Mixter Fios
Tesoura reta Pinça intestinais Grampos
Serras Eletrocautérico Grampeadores
mecânicos
Cisalhas Pinça de Satinsky Outros
Costótomo Pinça de Potts
Pinças goivas Pinça de Bakey
Trocartes Pinça de Cooley
Figura 1.48 Agulha cilíndrica atraumática. Agulhas de punção Pinça Bulldog
Ruginas Outros
Outros
Instrumentos de Instrumentos Instrumentos
preensão auxiliares especiais
Pinça de Backaus Válvula vaginal Bisturi de argônio
Pinça anatômica Afastador de Raios laser
Farabeuf
Pinça dente de Afastador de Outros
rato Volkmann
Pinça de Allis Afastador de
Finochietto
Pinça de coração Outros
Pinça de Duval
Figura 1.49 Agulha cortante (traumática).
Outros
Tabela 1.1

Na sala cirúrgica

Figura 1.50 Empunhando o porta-agulha.

Figura 1.51 Pinça anatômica.

Figura 1.52 Pinça dente de rato. Figura 1.53 Composição da equipe e mesa cirúrgica.

SJT Residência Médica – 2016


18
Cirurgia geral e politrauma

conforme a área traumatizada e a zona de tensão com


diâmetro transversal menor em áreas mais delicadas e de
menor tensão. É o material usado na síntese cirúrgica.
Características do fio ideal:
a) manter força tênsil até a cicatriz ficar resistente;
b) mínimo de reação tecidual.
c) fatores dos fios a serem considerados: ser
suficiente para unir as bordas, desaparecer tão logo a
Figura 1.54 Distribuição do auxiliar de enfermagem ou cicatrização seja realizada, ser livre de infecção e não ser
“circulante” de servir ao instrumentador e ao anestesista. irritante e com baixo custo, adequada força tênsil, fácil
esterilização e mínima reação tecidual e maleabilidade.
Os seis atributos fundamentais dos fios são divi-
didos em três pares importantes:
Monofilamentar (filamento único) e Multifila-
mentar múltiplos (filamentos trançados ou torcidos);
Biológicos (naturais) e sintéticos;
Absorvíveis e não absorvíveis.

Figura 1.55 Mesa de instrumentação disposta obli-


quamente em relação à mesa cirúrgica. Divisão dos 昀椀os
1) Absorvíveis – O material de síntese é subs-
tituído pela cicatriz. Não é necessário retirar o fio do
local, porque ele se dissolverá e integrará ao organis-
mo através de hidrólise (fios sintéticos) ou digeridos
por enzimas lisossômicas (fios naturais). Perdem sua
força tênsil antes de 60 dias.
2) Inabsorvíveis – Nem enzimas nem água hi-
droliza o material ou dissolve rapidamente o fio. São
fios inertes que mantêm força tênsil praticamente
inalterada com o decorrer do tempo. Causam menos
reação, tipo corpo estranho, do que os absorvíveis. As
suturas cirúrgicas inabsorvíveis são divididas em três
classes, de acordo com o material que as compõe:
Classe I: compreende os fios compostos de seda
monofilamentar ou fibras sintéticas monofilamentares.
Por exemplo, seda, poliéster, polipropileno e náilon.
Classe II: compreende os fios compostos de algo-
Figura 1.56 Disposição dos instrumentos na mesa, dão, linho ou fibras sintéticas, que podem ser naturais ou
com o instrumentador de frente para a mesma. O in- revestidos com produtos à base de estearatos. Por exem-
strumentador deve sempre ficar do lado oposto ao do plo, algodão puro, algodão e poliéster trançados e linho.
cirurgião, de frente para o paciente, com a mesa de in
strumentação ao seu lado. Classe III: compreende os fios metálicos monofi-
lamentares ou multifilamentares. No caso de ser mul-
tifilamentar, o aço recebe uma cobertura de material
sintético à base de polietileno que facilita sua utiliza-
ção, além de proporcionar isolamento elétrico ao fio.
Fios cirúrgicos Por exemplo, aço utilizado para fechamento de ester-
no ou fixação de outras estruturas ósseas.
A síntese cirúrgica é a aproximação das bordas e 3) Mono e multifilamentares – Os fios mono-
tecidos seccionados que visa à restauração da contiguida- filamentares são mais difíceis de manejar. Ocasionam
de tecidual e facilitação da cicatrização. Dependendo do menor trauma, não têm capilaridade. Ainda, na vigên-
local, podem ser utilizados fios com resistência variável cia de infecções, os fios monofilamentares devem ser

SJT Residência Médica – 2016


19
1 Conceitos básicos em cirurgia

preferidos, porque as bactérias que escapam da fagocitose podem crescer entre os filamentos dos fios multifila-
mentares. Por outro lado, os fios multifilamentares ocasionam maior trauma tecidual (são mais ásperos), com
maior tendência à infecção e permeabilidade, mas os nós são mais seguros e fáceis de ser executados.
Tais características poderão ser aplicadas em provas de residência, sobretudo, qual fio é monofilamentar e
qual é natural ou sintético.

Fios absorvíveis Tipo Força tênsil Absorção Reação


Categute simples Feito de colágeno de tripa Fio biológico 0% 7-10 dias 8-14 dias Alta
de carneiro. Utilização em Monofilamentar (8)*
TGI, uro, TCSC. Origem: animal
Categute cromado É o categute tratado com Fio biológico 0% 7-10 dias 20-30 dias Moderada
sais de cromo, que retarda Monofilamentar (21)*
a absorção para 20 dias.
Ácido Poliglicólico Primeiro fio sintético cria- Fio sintético 50% em 14 dias 60-90 dias Baixa
(Dexon) do em 1970. Uso em TCSC, Multifilamentado (60)*
músculos e fáscias.
Poliglactina 910 Utilização TGI, uro, Fio sintético 50% em 14 dias 30-60 dias Baixa
(Vicryl) gineco, oftalmo. Monocryl é monofila- (30)*
mentar;
Vicryl e Polivicryl são
multifilamentares
Polidioxanona Reabsorção mais lenta de Fio sintético 70% em 14 dias 180 dias Baixa
(PDS, Maxon) todos (> 90 dias), e desta Monofilamentado 50% em 30 dias (60)*
forma é utilizado para ten-
dões, cápsulas articulares e
parede abdominal.
Tabela 1.2

Fios inabsorvíveis Tipo Força tênsil Absorção Reação


Aço Possui maior tensão de estiramento Fio natural Alta Não Baixa
de todos os materiais: ferro, cromo, Monofilamentar
níquel e molibdênio. Usado em cirur- Origem: mineral
gia ortopédica, bucomaxilofacial e
cirurgia cardíaca.
Seda Feito de proteína orgânica chamada Fio natural Boa Encapsulação Alta
fibroin. Diminui força tênsil em 1-2 Multifilamentar gradual por te-
anos. Nós firmes. Origem: animal cido fibroso
Algodão Causa granuloma de corpo estranho Fio natural 50% 6 meses Não Alta
estilo fio de seda, potencializa infec- Multifilamentar 70% 2 anos
ção. Muito capilar. Nó firme. Usado Origem: vegetal
para ligadura de vasos.
Poliéster Causam pouca reação tecidual, requer Fio sintético Alta Encapsulação Baixa
(Mersilene) grande número de nós (pelo menos Multifilamentar gradual por te-
5). São resistentes e duráveis. Utiliza-
ção em aponeuroses, tendões e vasos. cido fibroso
Poliéster Coberto Fio de poliéster revestido por resina Fio sintético Alta Encapsulação Baixa
(Ethibond) (polibitilato), entre os filamentos, si- Multifilamentar gradual por teci-
mulando comportamento de mono-
filamentado (apesar de ser multi). do fibroso
Náilon Fio sintético da poliamida. Elastici- Fio sintético Alta Encapsulação Baixa
dade resistente à água. Não produz Monofilamentar gradual por teci-
nó firme. Utilização: pele. do fibroso apro-
Multifilamentar ximadamente
em 5 anos
Polipropileno Não produz nó firme – requer gran- Fio sintético Alta Não Baixa
(Prolene) de número de nós (pelo menos 5). Monofilamentar
Uso vascular e cirurgia geral, sendo
ideal para sutura intradérmica.
Tabela 1.3

SJT Residência Médica – 2016


20
Cirurgia geral e politrauma

O nó é mais fácil com os fios multifilamentares


Atenção! e mais difícil com os fios monofilamentares. Em
A escolha do fio ideal para realização de de- contrapartida, os fios multifilamentares podem al-
terminada sutura deve levar em consideração uma bergar entre seus filamentos micro-organismos
série de características – manter força tênsil pelo causadores de infecção.
tempo suficiente até que o processo de cicatrização
permita que a cicatriz obtenha sua própria resistência
a estímulos mecânicos habituais, causar mínima rea-
ção tecidual, ter um custo aceitável, maleabilidade e
facilidade de esterilização. Capilaridade
Os fios são divididos em absorvíveis – ou seja, É a capacidade de um fio captar e absorver
aqueles que ao cabo de determinado período são “di- líquidos. A capilaridade e a absorção de fluidos es-
geridos” pelo organismo –, e inabsorvíveis – aqueles tão diretamente relacionadas com a capacidade do fio
que permanecem no tecido, causando reação tipo corpo de captar, transportar e reter micro-organismos. Os
estranho e, portanto, não “digeridos” pelo organismo. fios multifilamentares, como algodão ou absorví-
vel sintético, como polímeros de poliglactina ou ácido
Outra nomenclatura que deve ser considerada é poliglicólico, possuem maior capilaridade quando
a do fio monofilamentar – composto de apenas um comparados aos monofilamentares e, portanto, apre-
filamento –, e fio multifilamentar – aquele constitu- sentam maior aderência microbiana.
ído por múltiplos filamentos trançados, que têm a par-
ticularidade de serem menos resistentes à infecção,
pois as bactérias conseguem crescer e se desenvolver
entre os filamentos.
Devemos, portanto, evitar a utilização de fios
Diâmetro
multifilamentados em tecidos infectados. É a medida do calibre do fio determinada em
milímetros e, por convenção, expressa em número de
zeros: quanto menor o diâmetro transversal, maior o
Tipos de agulhas número de zeros, e quanto menor o diâmetro trans-
Traumáticas Secção transversa triangular. São versal, quanto maior o número de zeros, mais fino será
cortantes, utilizadas em tecidos es- o fio. Nem todos os fios com o mesmo número de ze-
pessos e rígidos. ros apresentam o mesmo diâmetro. É proporcional ao
Atraumáticas Secção transversa cilíndrica. Utili- diâmetro a resistência à tração observada sobre o nó.
zadas em tecidos delicados.
Ponta romba Menos traumática.
Ponta cortante Mais traumática.
Tabela 1.4
Resistência à tração
É a quantidade de peso necessária para a ruptura
de um fio, dividida pelo seu diâmetro. Cada material
de sutura tem uma resistência própria à tração. Por
exemplo, o fio de aço é mais resistente do que os fios
Características dos 昀椀os de origem biológica.

de sutura
Força do nó
Con昀椀guração física
É a força necessária para provocar o deslizamen-
Refere-se aos filamentos que compõem o fio: to parcial ou completo do nó. Quanto mais áspero for
Monofilamentar: apresenta um filamento úni- o fio, maior será seu coeficiente de atrito, facilitando a
co. Por exemplo, náilon, aço, polipropileno, poligleca- fixação do nó com menor deslizamento. Os fios mul-
prone, polidioxanona e poligliconato. tifilamentares apresentam coeficiente de atrito mais
Multifilamentar: é um fio formado por vários elevado do que os monofilamentares, portanto, a fixa-
ção do nó é mais segura, embora o deslize seja mais
filamentos unidos por torção ou trançamento.
difícil. Os fios monofilamentares têm um bom des-
Alguns exemplos, o categute simples e cromado, lize do nó, mas a fixação é menos segura, por isso, a
poliglactina, algodão (torcidos), ácido poliglicólico, po- necessidade de reforçar o nó com um número maior
liéster e seda. Cada grupo tem características comuns. deles ou intercalar nós duplos e simples.

SJT Residência Médica – 2016


21
1 Conceitos básicos em cirurgia

assim como também de manter ou desatar o nó. Os


Elasticidade fios multifilamentares apresentam alto coeficien-
É a propriedade de o fio recuperar a forma e o te de atrito, por essa razão, tendem a ser ásperos
comprimento originais depois de um estiramento. ao tecido, mas apresentam segurança e fácil fixa-
O fio mais elástico é o polipropileno. Essa é uma carac- ção do nó. Alguns desses fios, como poliglactina ou
terística importante quando existe presença de edema poliéster, recebem uma capa de cobertura homogênea
na região da sutura. A elasticidade do fio contribui para reduzir o atrito tecidual no plano de sutura. Os
para reduzir a possibilidade de ruptura das bordas fios monofilamentares, como náilon, polipropileno e
de uma incisão ou do desencadeamento de uma es- poliglecaprone apresentam baixo coeficiente de atrito,
tenose em sutura vascular. portanto, deslizam suavemente através dos tecidos. O
nó corre livremente por eles, que são fáceis de ser re-
tirados quando aplicados em suturas cutâneas. Apre-
sentam, entretanto, menor segurança na fixação do
nó que os fios multifilamentares.
Plasticidade
É a propriedade do fio de manter uma nova
forma, após ter sido submetido à determinada de-
formação ou tração. É o contrário da memória. Essa Características da reação
característica está diretamente relacionada à elasti- tissular
cidade. Polipropileno e polidioxanona são exemplos
O fio de sutura é considerado um corpo estranho
de fios que, apesar de monofilamentares, apresentam
para o tecido no qual está sendo implantado.
boa plasticidade.
A reação tissular induzida pelo material de
sutura inicia-se com o trauma da passagem da
agulha e do fio através dos tecidos. Progride pela in-
dução de processo inflamatório que será determinada
Memória pelo calibre desses elementos e pelas características
físico-químicas do fio, desde o momento em que é im-
É a propriedade de um fio de retornar à sua
plantado até sofrer o processo de encapsulamento ou
forma original, após ser tracionado, por exemplo,
de absorção, que sempre causa certo grau de reação te-
ou após um nó cirúrgico. Fios com alta memória têm
cidual, por mais inerte que seja o material de sua com-
um manuseio mais difícil durante a execução da su-
posição. Portanto, quanto menor for o diâmetro do fio
tura, além de maior dificuldade para fixar o nó dado.
utilizado, seja absorvível ou inabsorvível, menor será
Dada a sua alta memória, o náilon tem a tendência
o trauma na passagem do material de sutura através
de desatar o nó e fazer o fio voltar à forma original,
do tecido e menor será a quantidade de material estra-
enquanto o algodão mantém firmemente o nó. O poli-
nho a ser implantada no paciente. Como consequên-
propileno e o categute também apresentam alta me-
cia, a reação tissular tenderá a ser mais branda. Uma
mória, mantendo certa ondulação quando são retira-
reação inflamatória intensa, provocada por um fio de
dos da embalagem, diferentemente dos fios derivados
sutura, retarda a cicatrização e dá condições para a
da polidioxanona.
instalação de um processo infeccioso.

Características de manuseio
A pliabilidade (grau de facilidade de dobramen- Material de prótese
to ou mudança na forma do fio), o coeficiente de
Quando a solução de continuidade entre as estru-
fricção (grau de deslize na passagem através dos teci-
turas é extensa ou a síntese é realizada sob demasiada
dos, na corrida e na fixação do nó) e a rigidez de um
tensão, dá-se a interposição de material de prótese ou
fio definem suas características de manuseio.
implante, que pode ser dividido em dois grupos:
Um fio pliável oferece facilidade ao dobramen-
to e à confecção do nó. São agradáveis ao toque. Os
fios de sutura multifilamentares trançados, como
a seda e a poliglactina, são os que apresentam De origem biológica
maior pliabilidade. 1) Fáscia – a autógena tem sido utilizada em
O coeficiente de fricção ou atrito é a capacida- hernioplastia e, às vezes, em operações plásticas, gi-
de que o fio tem de deslizar, com suavidade maior ou necológicas e urológicas. As fitas de fáscia homólogas
menor, através do tecido em que está sendo aplicado, conservadas não são úteis.

SJT Residência Médica – 2016


22
Cirurgia geral e politrauma

2) Dura-máter – tem sido amplamente empre-


gada a dura-máter homóloga conservada em glicerina,
Tipos de sutura
tanto em cirurgia geral como em cirurgia plástica, car- Princípios fundamentais das suturas
diovascular etc. Observou-se aceitação satisfatória do Não permitir que as bordas da ferida fiquem sob tensão.
ponto de vista histológico. Não suturar em plano único estrutura com espessura superior
a 1 cm.
3) Pericárdio bovino – utilizado, com bons re- Não deixar espaço morto*.
sultados, para a confecção de válvulas cardíacas. Não apertar excessivamente os nós nem torcê-los.
* Espaço morto é termo impróprio; o correto é espaço
vazio.

De Origem Sintética Tabela 1.5

1) Próteses metálicas – muito usadas em orto-


pedia, devem ser livres de atividade elétrica como o vi-
Sutura em pontos separados
tálio, tântalo e determinados tipos de aço inoxidável.
São utilizadas como placas, parafusos, pinos e telas. A sutura em pontos separados apresenta
uma série de vantagens:
2) Plásticas – de náilon, teflon, polipropileno
a) o afrouxamento de um nó, ou a queda do mes-
ou dácron. Constituem materiais de fácil esterilização,
mo, não interfere no restante da sutura;
resistentes, fáceis de manipular e recortar, permeáveis
aos Rx. Não devem ser utilizadas em operações infec- b) há menor quantidade de corpo estranho no
tadas. interior do ferimento cirúrgico;

3) Membranas plásticas – principalmente os c) os pontos são menos isquemiantes do que na


polímeros de metacrilato e de dióxido de silício (SiO4) sutura contínua.
que, dependendo do índice de polimerização, apresen-
tam-se desde o estado líquido até o sólido. Esses polí-
meros possuem baixo grau de tenacidade e bom índice
de tolerância, motivo pelo qual têm sido largamente
empregados como material de síntese (metacrilato) e
de prótese (silicônio).

Nós e suturas
O nó cirúrgico deve ser de fácil execução e tem
por finalidade evitar que o fio entrelaçado se solte. O Figura 1.57 Tipos de suturas. A: Algöwer; B: Donati;
principal é que não se afrouxe, permitindo perfeito C: simples; D: intradérmica; E: chuleio; e F: ponto em X.
ajuste das bordas a serem afrontadas. Para que isto
ocorra devem ser levados em consideração: o tipo de Apresenta como desvantagem relativa o fato de
nó, o treino do cirurgião, o grau de tensão dos tecidos ser mais trabalhosa e mais demorada.
a serem suturados e a natureza do fio. Os fios sinté-
ticos monofilamentares, como o náilon e o poliéster, Tipos de sutura em pontos separados:
tendem a se afrouxar. 1) Ponto simples;
O nó cirúrgico, em geral, consta de uma primeira 2) Ponto simples com nó para o interior da ferida;
laçada que aperta e uma segunda fixadora que impe- 3) Ponto em “U” horizontal;
de o afrouxamento da primeira. Quando há necessi-
dade de maior segurança acrescenta-se um terceiro 4) Ponto em “U” vertical;
nó, também utilizado quando existe tendência de os 5) Ponto em “X” horizontal;
anteriores afrouxarem-se. Cada laçada deve ser feita 6) Ponto em “X” horizontal com nó para o inte-
no sentido oposto ao da anterior, caso contrário, o nó rior da ferida;
tende a se afrouxar. Não existe, contudo, inconvenien-
te em se utilizar nós no mesmo sentido quando se tra- 7) Ponto recorrente;
ta de ligadura sem tensão. 8) Ponto helicoidal duplo.

SJT Residência Médica – 2016


23
1 Conceitos básicos em cirurgia

Sutura contínua Sutura muscular


Na sutura contínua deve-se considerar o nó ini- Em geral, quando a aponeurose que recebe o
cial, a sutura propriamente dita, e o nó terminal. músculo é delicada, utilizam-se, conjuntamente, as
Tipos de sutura contínua: miorrafias, realizadas com maior frequência com fios
1) Chuleio simples; absorvíveis, evitando pontos isquemiantes.
2) Chuleio ancorado;
3) Sutura em barra grega;
4) Sutura intratecidual, em barra grega;
5) Sutura em pontos recorrentes.
Sutura de vasos e nervos
Utilizam-se suturas separadas ou contínuas, mas
sempre com fios inabsorvíveis. Na neurorrafia empre-
ga-se fio inabsorvível de náilon ou poliéster.
Suturas da pele
As suturas de feridas do tegumento cutâneo e de
incisões operatórias devem ser realizadas cuidadosa-
mente, pois constituem, por assim dizer, a “apresen- Sutura do tubo digestivo
tação do cirurgião”.
Nas suturas gastrointestinais, em que a aproxi-
Devem ser utilizados fios inabsorvíveis do tipo mação da camada seromuscular é importante, os se-
poliéster que, por promoverem menor reação tecidual, guintes pontos podem ser utilizados:
propiciam cicatrizes estéticas.
Ponto de Lembert: é uma sutura invaginante,
na qual o ponto é iniciado a cerca de 2,5 mm da borda
da ferida e atravessa a camada seromuscular, aproxi-
Suturas mais indicadas para feri- mando-se da incisão. No lado oposto, a agulha é intro-
das de pele: duzida junto à borda da ferida e exteriorizada lateral-
a) pontos separados de fio inabsorvível; mente a 2,5 mm. Pode ser interrompida ou contínua.
b) pontos separados de fios obtidos do ácido po- Ponto de Cushing: é uma sutura contínua inva-
liglicólico; ginante em forma de U, na qual os pontos em U são
c) pontos intradérmicos, preferentemente separa- passados paralelamente à ferida, através da camada
dos, de fio inabsorvível ou absorvível tipo poliglicólico; seromuscular.
d) aproximação com tiras de esparadrapo micro- Ponto de Connel-Mayo: é uma sutura contínua
porado. em forma de U, na qual os pontos em U atravessam
todas as camadas da parede intestinal e são posicio-
nados paralelamente à ferida e a cerca de 4 mm de sua
borda.
Sutura da tela subcutânea
Ponto de Halsted: é uma sutura seromuscular
A tela subcutânea deve ser aproximada em uma
em U, na qual os pontos são interrompidos e exterio-
ferida para evitar a formação de espaço morto e de
rizados paralelamente à borda da ferida.
consequentes coleções serosas e hemáticas, que favo-
recem a infecção. Deve ser suturada com pontos sepa- Sutura em bolsa de tabaco: é uma sutura contí-
rados com fio absorvível tipo categute ou poliglicólico. nua invaginante posicionada ao redor de uma abertu-
ra circular.

Schmieden: ponto para anastomose gastroin-


testinal, no qual o fio penetra sempre pela mucosa,
Sutura de aponeurose caracterizando a sequência mucosa-serosa. Permite
A síntese correta das aponeuroses é fundamental bom confrontamento das bordas, invaginando-as a
no fechamento das incisões abdominais. Devem-se uti- cada passada.
lizar, preferencialmente, pontos separados de fio inab-
sorvível como náilon, poliéster, algodão ou seda. A su- Barra grega: utilizado no fechamento de coto
tura contínua das aponeuroses facilita as eventrações. visceral como o duodenal.

SJT Residência Médica – 2016


24
Cirurgia geral e politrauma

Sutura através de
grampeadores
A sutura por grampeadores propicia a aproxima-
ção dos tecidos através de mecanismos que, pelo uso de
grampos metálicos e diferentes formatos de grampea-
mento, adaptando-se aos tecidos, promove uma síntese
adequada, rápida, segura e com pequena reação tecidual. Figura 1.58 O grampeador automático.

O tamanho dos grampos varia entre 2,5 e 4,8


mm, correspondendo cada um a três pontos de espes-
sura total equidistante. São agrupados em cargas de
coloração branca, azul ou verde, de acordo com a es- Síntese de ferimentos sem
pessura do tecido a ser grampeado (branca, mais del-
gada, verde, mais espesso). sutura
Tais grampeadores são particularmente Atualmente, tem sido muito utilizada a síntese
úteis nas anastomoses colorretais baixas, prin- de feridas cutâneas, por meio de aproximação das bor-
cipalmente, em pacientes obesos com a pelve es- das com fitas de raion ou de outros materiais dotados
treita e afunilada. de microporos e providos de uma superfície aderente
à custa de impregnação de substâncias do tipo acrila-
Para proceder à anastomose colorretal, após a
to. A presença de microporos na bandagem permite a
ressecção da peça, são realizadas suturas em bolsa na
passagem de secreções da ferida. Por essa razão, reduz
extremidade dos segmentos cólico e retal. A seguir o
a possibilidade da proliferação de germes, mantendo
cirurgião introduz a bigorna e a cabeça do aparelho,
seco o ferimento, o que favorece a cicatrização.
aproximadas através do ânus do paciente, que deve es-
tar em posição ginecológica. Após a inserção, rodando
o botão ajustador, afasta-se a bigorna da cabeça em
uma distância aproximada de 4-5 cm. Colocam-se os
dois segmentos a anastomosar ao redor, respectiva- Sinalização manual
mente, da bigorna e da cabeça do grampeador e, en-
tão, as suturas em bolsa são amarradas em torno do
eixo móvel, cortando-se os fios excedentes. Aproxima-
-se a bigorna e a cabeça rodando o botão ajustador no
sentido horário, cuidando-se de manter os segmentos
intestinais segundo uma orientação apropriada. A bi-
gorna e a cabeça do grampeador devem estar conve-
nientemente ajustadas, de acordo com a espessura das
bordas intestinais a serem anastomosadas. O grampe-
ador é disparado liberando-se a trave de segurança e
pressionando-se a alavanca contra o cabo. Nesse mo-
mento, os grampos passam através das bordas aproxi- Figura 1.59 Solicitação de pinça de campo, tipo
madas e se dobram de encontro à bigorna, ao mesmo Backhaus.
tempo em que a lâmina da guilhotina circular corta o
diafragma de tecido circunscrito pela linha mais inter-
na de grampos. O instrumento é aberto girando-se o
botão ajustador no sentido anti-horário, aproximada-
mente, dez rotações completas. Retira-se o aparelho
aberto rodando delicadamente o seu corpo para libe-
rar as bordas anastomosadas do contorno da bigorna.
Os segmentos anastomosados permanecem, as-
sim, com suas bordas invaginadas e unidas por duas
fileiras circulares concêntricas de grampos metálicos.
A perfeição da anastomose é comprovada pela
presença de dois anéis íntegros de tecido correspon-
dentes às bordas seccionadas das alças suturadas, lo-
calizadas ao redor do eixo móvel do aparelho, entre a
cabeça e a bigorna. Figura 1.60 Solicitação de compressa.

SJT Residência Médica – 2016


25
1 Conceitos básicos em cirurgia

Figura 1.61 Solicitação de bisturi.


Figura 1.65 Solicitando pinça anatômica.

Figura 1.62 Entregando o bisturi.


Figura 1.66 Entregando pinça anatômica.

Figura 1.63 Solicitação de tesoura curva.

Figura 1.67 Solicitação de pinça dente de rato.

Figura 1.64 Entregando tesoura (som característico Figura 1.68 Solicitação de pinça hemostática reta e
na entrega de instrumentos cirúrgicos). curva.

SJT Residência Médica – 2016


26
Cirurgia geral e politrauma

Figura 1.69 Solicitação de pinça de Mixter.

Figura 1.73 Solicitação de porta-agulha de Hegar


montada.

Figura 1.70 Solicitação de gaze montada.

Figura 1.74 Solicitação de fio cirúrgico.

Figura 1.71 Solicitação de gaze solta.

Figura 1.72 Solicitação de afastador de Farabeuf. Figura 1.75 Solicitação de seringa.

SJT Residência Médica – 2016


27
1 Conceitos básicos em cirurgia

Figura 1.79 Manejo do bisturi.

Figura 1.76 Manejo da tesoura.

Figura 1.80 Manejo de pinça hemostática, seja curva


ou reta.

Figura 1.77 Tesoura em posição de repouso.

Figura 1.78 Manejo das pinças anatômica e dente de


rato. Figura 1.81 Manejo do porta-agulha de Mathieu.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

2
Pré-operatório I

horas de pós-operatório) e pós-operatório (até 30


Introdução dias, após o procedimento), além de tentar identifi-
car comorbidades que poderão complicar o resulta-
Uma vez definida a indicação e o momento da do pós-operatório.
operação procede-se à cuidadosa avaliação pré-opera-
tória, que determinará condutas preparatórias e pos- A avaliação adequada compreende:
terior planejamento do ato cirúrgico. € Anamnese;
Avaliar de forma adequada o paciente é compo-
€ Exame físico;
nente fundamental do tratamento cirúrgico, estando
intimamente relacionada com o sucesso da operação. € Exames apropriados;
A avaliação pré-operatória bem conduzida propicia
maior conhecimento do paciente como um todo e € Preparos e cuidados especiais.
fortalece a relação médico-paciente, daí ser de res- Alguns conceitos importantes: cirurgias de pe-
ponsabilidade intransferível do cirurgião, mesmo que queno porte em pacientes jovens, que são assim con-
necessite contar com profissionais especializados para siderados quando no sexo masculino tiverem menos
avaliações específicas. de 40 anos e no sexo feminino menos de 45 anos,
nenhum exame pré-operatório é necessário (ênfase
na clínica e medicações usuais), desde que não tenham
nenhuma queixa clínica, nenhum antecedente de risco
Objetivos da avaliação ou qualquer alteração no exame físico criterioso. Para
pacientes de qualquer faixa etária que se submete-
pré-operatória rão a cirurgia nobre (SNC e aparelho cardiovascu-
lar), faz-se necessária uma abordagem laborato-
Minimizar riscos e favorecer pronta e rápida rial criteriosa, conforme veremos a seguir. Acima
recuperação no período perioperatório (que com- destas faixas etárias citadas ou na vigência de alguma
preende o período intraoperatório e as primeiras 48 comorbidades ou alteração no exame físico sugestiva
29
2 Pré-operatório I

de alguma doença, INDEPENDENTE DA IDADE, o pa- posteriormente, estendida aos portadores de doen-
ciente é colocado dentro do protocolo específico desta ças incapacitantes. Não é parâmetro de indicação
situação clínica e, assim, exames específicos precisa- de cirurgia, no que diz respeito a reservas meta-
rão ser solicitados. bólicas e condições fisiológicas. Avalia o paciente
como um todo.

A avaliação clínica não é substituída por exa-


me complementar! Não são mais recomendados Escala de Karnofsky
os exames laboratoriais de rotina. Somente cerca de Paciente capaz de 100% Paciente normal,
0,2% dos doentes mostrarão alguma alteração nes-
ses exames. levar vida normal sem queixas.
sem cuidados es-
peciais 90% Normal. Sinais
mínimos da doença.
Os riscos envolvidos durante a realização de pro-
cedimentos cirúrgicos dependem de fatores próprios 80% Normal. Sinais
do paciente e do tipo de procedimento cirúrgico a que evidentes de doença.
será submetido. Os preditores importantes da morta-
lidade e morbidade, pós-operatória, incluem idade do Permanece em 70% Consegue cuidar-se
paciente, estado físico, porte e natureza da cirurgia, se casa; incapaz para sozinho.
o trabalho; requer
eletiva ou emergência. assistência 60% Auxílio eventual.
Cuida das próprias
Identificação de tipo de cirurgia necessidades.
Cirurgias de médio e grande porte (maior risco 50% Precisa de auxílio para
cirúrgico) atividade básicas.
1) Intratorácica; Incapaz de cuidar de 40% Incapacidade importante.
si mesmo Necessita de assistência
2) Intra-abdominal;
médica domiciliar
3) Ortopédica;
30% Incapacidade severa.
4) Neurológica;
Necessita hospitalização.
5) Arterial;
20% Necessita de cuidados
6) Risco hemorrágico elevado. intensivos.
Tabela 2.1 Doente terminal 10% Paciênte agônico.
0% Morto.

Fatores preditores de risco Tabela 2.3

1) Idade > 70 anos;


2) Estado clínico;
3) Cirurgia eletiva x cirurgia de emergência;
4) Extensão fisiológica da cirurgia;
5) Número de doenças associadas. Quando pedir exames
Tabela 2.2 e/ou procedimentos
Vários estudos concluíram que as condições
clínicas prévias estão correlacionadas ao risco de
complicações peri e pós-operatórias e que os exa-
mes de triagem detectam anormalidades que não
Avaliação geral do são clinicamente importantes. O manejo desses
pacientes é usualmente inalterado, pois anormali-
paciente dades que são clinicamente importantes, em geral,
podem ser detectadas por história e exame físicos
A avaliação geral do paciente pode ser feita completos. Os seguintes exames deverão ser solici-
pela escala de Karnofsky, uma escala original- tados, conforme idade, tipo de cirurgia e alterações
mente preconizada para pacientes com câncer e, clínicas do paciente.

SJT Residência Médica – 2016


30
Cirurgia geral e politrauma

Suspeita de gravidez

camentos (sombreado = em 90 dias; claro = exames específicos

Y*

Coagulogra- Depende, em princípio, da extensão da operação proposta, como por recomendações de MSBOS do Banco de Sangue.
Fatores clínicos e cirúr- Distúrbios clinicamente significativos e evolução e/ou medi- Anticoagulante/
Sangramento

Y Y Y Y

±
Tireoide Instável

Y Y Y
Y Y Y
Y Y Y

Y
Paratireoide

Y Y

Y
HIV

S
Esteroides/
Síndrome de Cushing

Y Y Y
Y Y Y
Y Y
Y Y Y
Y Y Y
Álcool/ Abuso de Drogas

Y Y

±
Autoimune/Lúpus
Perda de líquidos ou
Procedimentos cirúrgi- devem ser realizados em 30 dias)

Eletrolíticos

Y Y Y Y Y Y
Y Y Y Y Y Y Y Y Y Y
Y Y Y Y Y ±
Renal

Y Y Y Y Y
Y Y Y

Y Y
Hepático
Sugestões de Exame Pré-operatório Adulto

Y
Diabetes
Respiratório

Y
Cardiovascular

Y
Anticonvulsivantes

Y Y

S
Câncer? (metástase) Y Y Y
Y Y
Y Y Y
Y Y Y Y Y

S
Acidente vascular cerebral
Obesidade Mórbida
Tabagismo
Hipertensão
Y Y Y Y Y
Y Y Y Y Y

RTUP Histerostomia
Y Y Y Y
Y Y Y Y

Prótese Ortopédica S
cos (em 90 dias)

Intracraniano
gicos adicionais

Y Y
Y Y

S
PSE antecipada > 2U
Intraperitoneal/Abdominal
de grande porte
Y Y Y Y
Y Y Y Y
Y Y Y Y
Y Y Y Y Y
M Y Y Y Y Y

Vascular
Cardíaco/Torácico
Y

> 70 anos
saudável (em
Básico: Ope-

queno porte
em paciente
ração de pe-

55 a 69 anos
90 dias)

Adulto Saudável
de 45 a 54 anos
Adulto Saudável < 45 anos
Eletrolíticos

Marcadores
Rx do tórax

sangramen-
hormonais
TAP/TTP

Tempo de
plaquetas

tumorais
U/A, cul-

Gravidez
Níveis de
Exame

Glicose

Níveis
Cálcio

droga
HC +

EFH
ECG

tura
EN

ma
to

Tabela 2.4 Adaptado de Halaszynski MT, Juda R, Silverman DG: Optimizing postoperative outcomes with eficiente preoperative
assessment and management. Crit Care Med 32:S76-S86, 2004. IEN: ureia sanguínea; HC: hemograma completo; Rx do tórax: radio-
grafia do tórax; PSE: perda sanguínea estimada; ECG: eletrocardiograma; HIV: vírus da imunodeficiência humana; h. de: história de;
EFH: exames da função hepática; H: em geral indicado para homens; ASHC: agenda de solicitação de hemocomponente; TAP/TTP:
tempo de protrombina/tempo parcial de tromboplastina; S: pode ser solicitado (e revisto) pelo cirurgião como parte do plano de
operação; rtup: ressecção transuretral da próstata; e U/A, urinálise, I: geralmente indicado; ±, em caso de situação aguda/grave.
(*) No mínimo, um teste de gravidez de urina deve ser realizado na manhã da cirurgia em qualquer mulher em idade fértil, a
menos que o útero ou ovários tenham sido retirados cirurgicamente.
Área sombreada: Tempo de teste não é tipicamente crítico, resultados de 90 dias (e possivelmente 180 dias) podem ser aceitáveis;
área clara: tipicamente melhor obter dentro de 30 dias da cirurgia.
Nota: (1) Ocasião e lista de exames são sugestões; não são absolutas e não devem excluir outros testes em determinados quadros,
nem devem impedir um caso de prosseguir se o anestesiologista e o cirurgião considerarem oportuno. (2) O exame para um
determinado distúrbio depende de sua gravidade no contexto da operação planejada, ou seja, os exames têm probabilidade de
fornecer informação potencialmente significativa do ponto de vista clínico e proporcionar informação que poderá ser um impor-
tante componente da história clínica e do exame físico.

SJT Residência Médica – 2016


31
2 Pré-operatório I

Avaliação anestésica Fatores de risco anestésico classificação ASA


Classe Descrição Mortalidade
(%)
A avaliação anestésica serve para vários
PI Paciente hígido < 70 anos. 0,06-0,08
propósitos: (1) o paciente conhecer o anestesista, o
que permite estabelecer relação de confiança e escla- P II Paciente > 70 anos com doença 0,27-0,40
recer dúvidas antes da operação; (2) discutir sobre o sistêmica leve (anemia, HAS leve,
obesidade); tabagista.
impacto da anestesia e seus riscos; e (3) tratamento
da dor pós-operatória. A entrevista pré-anestésica P III Paciente com doença sistêmica 1,8-4,3
deve enfocar o tipo de operação, história de anes- que limita atividade (angina es-
tável, IAM prévio, insuficiência
tesias prévias e de doenças preexistentes. Permite
pulmonar moderada, diabete se-
determinar quando é necessária a avaliação médica
vero, obesidade mórbida).
adicional ou o tratamento antes da operação. Requer
P IV Paciente com doença sistêmica 7,8-23
um exame clínico dirigido e as solicitações de exames
que representa ameaça constante
complementares, quando necessário. de vida (angina estável, estágios
A investigação de condições que estão associadas avançados de doença hepática, re-
a aumento da morbidade perioperatória é importante nal, pulmonar ou endócrina).
para reduzir os riscos associados à anestesia e à ope- PV Paciente moribundo cuja expecta- 9,4-51
ração. Condições subjacentes que devem ser avaliadas tiva de vida é menor que 24 horas
incluem o grau de volume intravascular, anormalida- sem cirurgia (TCE com rápido au-
des das vias aéreas, doenças cardiovascular, pulmonar, mento de PIC, rotura de aneurisma
renal e hepática e desordens nutricionais, endócrinas de aorta com instabilidade hemodi-
ou metabólicas. Aguarde o módulo de anestesiologia nâmica, embolia pulmonar maciça).
que abordará com precisão os temas mais relevantes P VI Paciente com morte cerebral, ór-
para as provas de RM. gãos sendo removidos para doação.
E Sufixo colocado após a classifica-
ção para designar emergência.
Tabela 2.5 ASA – American Society Association. At-
enção! O sistema ASA, atualmente, também conhecido
Avaliação de risco pré- como Physical Status, utilizando o escore P semelhante
à classe ASA.
operatório
Avaliar os riscos e predizer os resultados pós-
-operatórios é um importante aspecto da avaliação
pré-operatória. Várias metodologias avaliam o status
clínico pré-operatório de pacientes cirúrgicos em fun-
Avaliação pré-operatória
ção do estado de saúde geral e função específica dos por sistemas
órgãos. O sistema ASA Physical Status (American
Society Association – P) divide os pacientes em cinco
categorias baseadas na presença ou ausência de doen-
ças sistêmicas leves a graves, fornecendo o risco anes-
tésico geral (probabilidade estatística de óbito).
Sistema cardiovascular
A classificação é de aplicabilidade simples, com As doenças cardiovasculares são a principal
base, principalmente, em história e exame físico do causa de mortalidade no período perioperatório,
paciente e não depende de investigação laboratorial entre estas, as coronariopatias costumam ser a princi-
ou idade. O escore ASA é considerado um ade- pal causa de descompensação, por conta das oscilações
quado preditor de mortalidade perioperatória volêmicas no período intra e pós-operatórios, que po-
(atenção à legenda da Tabela 2.5). Um alto escore dem deixar o paciente hipotenso, e decompensar uma
de ASA correlaciona-se a complicações como tempo obstrução coronariana limítrofe. Outro ponto impor-
de internamento prolongado, necessidade de admis- tante é que as doenças cardiovasculares são altamente
são em UTI no pós-operatório e desenvolvimento de frequentes, possuem alta morbimortalidade e custo
sepse grave no pós-operatória. Apesar de elementos elevado. Existem algumas formas de estratificação de
de subjetividade é um sistema de avaliação global de risco cardíaco, que foram descritas por diferentes au-
prognóstico efetivo. A simplicidade e versatilidade tores, e encontram-se agora consagradas em algumas
do escore de ASA o fazem o mais útil e comumen- classificações, que descrevemos a seguir (tomamos o
te utilizado sistema de avaliação de risco clínico cuidado aqui, de citarmos apenas aquelas que são uti-
pré-operatório. lizadas, atualmente, na prática clínica).

SJT Residência Médica – 2016


32
Cirurgia geral e politrauma

Índices de risco cardíaco


Leva em consideração parâmetros clínicos e laboratoriais que podem ser reproduzidos e definidos
com exatidão, além de comparados por metodologia estatística, o que melhora muito a qualidade dessa classifica-
ção para estratificar risco de complicação cardiológica no período perioperatório. Pontos são atribuídos a algumas
características clínicas e laboratoriais, que, posteriormente, são somados e o resultado obtido distribuído em classes.
Cada classe tem um risco distinto de mortalidade decorrente de descompensação no período perioperatório.
Índices de risco cardíaco com variáveis Pontos Comentários
Índice de Risco Cardíaco de Goldman, 1977 Taxa de complicação cardíaca
1. Terceira bulha ou distensão venosa jugular. 11 0-5 pontos = 1%
2. Infarto do miocárdio recente. 10 6-12 pontos = 7%
3. Ritmo não sinusal ou contração atrial prematura no ECG. 7 13-25 pontos = 14%
4. > 5 contrações ventriculares prematuras. 7 > 26 pontos = 78%
5. Idade > 70 anos. 5
6. Cirurgias de emergência. 4
7. Estado clínico geral ruim. 3
8. Cirurgia intratorácica, intraperitoneal ou aórtica. 3
9. Estenose aórtica significativa. 3
Índice Multifatorial Modificado de Detsky, 1986 Taxa de complicação cardíaca
1. Angina classe 4. 20 > 15 = risco alto
2. Suspeita de estenose aórtica crítica. 20
3. Infarto do miocárdio em 6 meses. 10
4. Edema pulmonar em 1 semana. 10
5. Angina instável em 3 meses. 10
6. Angina classe 3. 10
7. Cirurgia de emergência. 10
8. Infarto do miocárdio > 6 meses. 5
9. Edema pulmonar curado > 1 semana. 5
10. Ritmo não sinusal ou CAP no ECG. 5
11. > 5 CVPs em qualquer momento, antes da cirurgia. 5
12. Estado clínico geral deficiente. 5
13. Idade > 70 anos. 5
Critérios de Eagle para Avaliação Cardíaca, 1989 < 1, nenhum exame
1. Idade > 70 anos. 1 1-2 encaminhar para exame não invasivo
2. Diabetes. 1 ≥ 3, encaminhar para angiografia
3. Angina. 1
4. Ondas Q no ECG. 1
5. Arritmias ventriculares. 1
Tabela 2.6 ECG: eletrocardiograma; CAP: contração atrial prematura; e CVP: contração ventricular prematura.

Risco cardíaco revisado


O grande avanço deste tipo de classificação se refere, especificamente, à precisão em estabelecer cirurgias
de maior e menor risco cardíaco, que está diretamente relacionado ao potencial de oscilação volêmica. Assim,
são cirurgias de maior risco cardíaco aquelas que têm potencial de sangramento maior. Além disso, existem
critérios MAJOR de descompensação cardíaca, conforme a tabela a seguir:

Risco Cardíaco Revisado


1 Operação de alto risco.
1 História de doença isquêmica do coração.
1 História de ICC.
1 História de doença cerebrovascular.
1 Tratamento pré-operatório com insulina.
1 Creatinina sérica pré-operatória > 2 mg/dL.
Tabela 2.7 Quanto maior o número de fatores positivos, maior o risco, respectivamente, 0,5%; 1,3%; 4%; 9% com
1, 2, 3 ou 4 fatores positivos.

SJT Residência Médica – 2016


33
2 Pré-operatório I

Avaliação cardíaca – Colégio Americano de Cardiologia e Associação


Americana do Coração
Atualmente, a avaliação pré-operatória recomendada pela literatura é a proposta em 2002, pelo American
College of Cardiology e pela American Heart Association (Tabela 2.8).

Classificação do porte da cirurgia e risco cardiológico


Porte da cirurgia Tipo da cirurgia (c) Risco cardiológico (%)
Grande € Emergências, principalmente em idosos;
€ Cirurgias arteriais de aorta e ramos e cirurgia vascular periférica; Alto > 5
€ Cirurgias prolongadas com grande perda de fluído e sangue.
Médio € Cirurgia intraperitoneal e intratorácica;
€ Endarterectomia de carótida;
€ Cirurgias de cabeça e pescoço e otorrinolaringológicas;
€ Cirurgias ortopédicas; Intermediário 1 a 5
€ Neurocirurgias;
€ Cirurgia uroginecológica.
Pequeno € Procedimentos endoscópicos;
€ Cirurgias oftalmológicas;
€ Cirurgia de mama; Baixo < 1
€ Procedimentos superficiais.
Tabela 2.8

Preditores Clínicos de Risco Cardiovascular perioperatório


Os preditores clínicos são divididos entre maiores, intermediários e menores, conforme tabela a seguir, e
mostram condições que necessitam de terapia intensiva, definem adiamento ou cancelamento de cirurgia, exceto
em caso de emergência, além de investigar doenças cardiovasculares, comorbidades e situações clínicas específi-
cas que merecem atenção especial.

Preditores clínicos de aumento do risco cardiovascular perioperatório (IAM, ICC, Morte)


Maiores Intermediários Menores
*IAM < 7 dias ou recente (7 a 30 Angina leve classes I e II classificação canadense Idade avançada (> 70 anos).
dias), com evidências de alto risco;
Sintomas a teste não invasivo;
Angina grave ou instável.
Insuficiência cardíaca descompensada; Infarto antigo (história ou onda Q patológica). Hipertrofia de VE;
Valvulopatia grave. Bloqueio de ramo esquerdo;
Alterações ST.
BAV de alto grau; Insuficiência cardíaca prévia ou compensada. Ritmo cardíaco diferente do
Arritmias ventriculares, sintomáticas sinusal, com fibrilação atrial.
com cardiopatia subjacente; Diabetes melito (particularmente insulinode- Baixa capacidade funcional.
pendente).
Insuficiência renal (creatinina > 2 mg/dL). História de acidente vascular
Arritmias supraventriculares, com cerebral;
frequência ventricular não con-
trolada. Doença vascular periférica. Hipertensão arterial sistê-
mica não controlada.
Tabela 2.9 O tempo ideal de um procedimento cirúrgico, após um infarto agudo do miocárdio (IAM) depende do
período de tempo que se passou desde a ocorrência do IAM e da determinação dos riscos de isquemia, tanto por sin-
tomas clínicos quanto por estudos não invasivos. Qualquer paciente pode ser avaliado como um candidato a ser op-
erado, após um IAM (com sete dias de evolução) ou infarto do miocárdio recente (dentro de sete dias de evolução). A
ocorrência de infarto é considerada o principal preditor clínico no contexto de risco de isquemia. As recomendações
gerais são para que se espere de quatro a seis semanas, após a ocorrência de um IAM para o paciente ser operado.

SJT Residência Médica – 2016


34
Cirurgia geral e politrauma

Avaliação da Capacidade Classificação da New York Heart


Association (NYHA) (Cont.)
Funcional
Limitação importante da atividade física.
Esta capacidade funcional é estimada em equiva- III Confortável em repouso, mas pequenas ativi-
lentes metabólicos (MET), que representa o consumo dades físicas desencadeiam sintomas.
de oxigênio de 3,5 mL/kg/min., o que corresponde ao Incapacidade de realizar qualquer atividade
consumo de um indivíduo de 70 kg em repouso e em física sem desconforto. Os sintomas de insu-
decúbito supino. A tabela a seguir lista atividades do dia ficiência cardíaca ou de angina podem estar
IV
a dia e o correspondente consumo de oxigênio em MET. presentes até mesmo em repouso. Qualquer
Além da história clínica e do funcional tem o propósito atividade física resulta em aumento do des-
de auxiliar na triagem de pacientes que necessitarão de conforto.
exames adicionais para o esclarecimento de risco opera- Tabela 2.11 Atenção!
tório, caso apresente baixa capacidade funcional.
Um método fácil e de custo menor para deter-
minar o estado funcional cardiopulmonar para ope-
ração não cardíaca é a capacidade ou incapacidade de
o paciente subir dois lances de escada. Dois lances de
Estratégias para minimizar o
escada são necessários, pois demanda mais de quatro risco cirúrgico
equivalentes metabólicos (MET). Em uma revisão de
O cuidado fundamental é definir antecedentes,
todos os estudos sobre subida de escada com avaliação
patologias cardíacas preexistentes e, acima de tudo, re-
pré-operatória, estudos prospectivos têm demonstra-
serva funcional, para, então, associar o tipo de exame
do que esse é um bom preditor de mortalidade asso-
específico cardíaco que deve ser realizado e com qual
ciada à cirurgia torácica. Em operações não cardíacas
prioridade no período pré-operatório. Assim, quando
de grande porte, a incapacidade de subir dois lances
nos referimos a qual exame fazer para avaliação cardí-
de escada é um preditor independente de morbidade,
aca, o básico é o ECG. Quando o mesmo mostra altera-
mas não de mortalidade perioperatória.
ções de sobrecarga, o problema é de função e o exame
a ser feito é o ECG. Quando o ECG mostra alterações
Estado funcional quanto à atividade física isquêmicas (áreas inativas, alterações de repolarização
(equivalente metabólico – MET) suspeitas), o exame que se segue é o teste de esfor-
Equivalente metabó- Tipo de atividade ço. Se este último está alterado, o próximo passo é a
lico (MET) cintilografia ou testes farmacológicos e quando confir-
mada a isquemia fica patente a necessidade de angio-
Excelente (> 7 MET) Pratica futebol, natação, tênis,
grafia pré-operatório que esclarecerá em definitivo os
corrida de curtas distâncias.
casos que requerem revascularização miocárdica antes
Moderada (4 a 7 MET) Caminhada com velocidade da cirurgia (seja angioplastia ou cirurgia cardíaca).
6,4 km/h. Os betabloqueadores fazem parte da tera-
Ruim (< 4 MET) Pouca atividade, caminhadas pêutica profilática comprovadamente eficaz na
curtas (2 quadras) com veloci- redução da morbidade e da mortalidade de pacien-
dade máxima de 4,8 km/h. tes com insuficiência coronariana, submetidos
à cirurgia não cardíaca (classes II e III da Tabela
MET – O consumo de oxigênio (VO2) de um homem de 2.11, uso obrigatório).
40 anos, com 70 kg em repouso é de 3,5 mL/kg, ou o
correspondente a 1 MET. A ativação do sistema nervoso simpático produz
inotropismo e cronotropismo positivos e liberação de
Tabela 2.10 norepinefrina. O antagonismo beta-adrenérgico apre-
senta um efeito antiarrítmico associado à redução de
mortalidade e incidência de morte súbita, após infar-
Classificação da New York Heart to do miocárdio. Concluídos os resultados dos estudos
Association (NYHA) POISE (Perioperative Ischemia Evolution), em 2007,
Classe Descrição que mostraram o perigo potencial da terapia periope-
Sem limitação de atividade física. A atividade ratória com betabloqueadores, as recomendações atu-
I física normal não causa sintomas como fadiga, ais são manter a terapia para aqueles que já estão em
palpitação ou dispneia. uso no pré-operatório, considera-los em pacientes de
Pequena limitação da atividade física em re- alto risco (mais de um fator de risco), para frequência
II pouso. Confortável em repouso, mas a ativi- cardíaca e pressão arterial, e não administrá-los aos
dade física comum desencadeia sintomas. pacientes de baixo risco.

SJT Residência Médica – 2016


35
2 Pré-operatório I

Atualizações com foco em recomendações do Atualizações com foco em recomendações do


American Heart Association/American American Heart Association/American
College of Cardiology College of Cardiology (Cont.)

Mudança da Classe IIb


Recomendação atual
recomendação anterior
1. A utilidade dos beta- Formulação revisada.
Classe I* bloqueadores é incer-
ta para os pacientes
Betabloqueadores devem Formulação revisada; re- que são submetidos a
ser mantidos em pacien- comendação de prescre- procedimentos de risco
tes submetidos à cirurgia ver betabloqueadores para intermediário ou cirur-
que já estejam recebendo pacientes de alto risco car- gia vascular, nos quais
betabloqueadores para diovascular com achados de a avaliação pré-operató-
tratamento de condições isquemia em exames pré- ria identifica um único
com indicações da cica- -operatórios, movido para fator de risco clínico na
triz classe I ACCF/AHA. baixo na classe de recomen- ausência de doença co-
dação (veja classe IIa). ronariana.

Classe IIa 2. A utilidade dos beta- Nenhuma mudança das re-


bloqueadores é incerta comendações de 2007.
1. Betabloqueadores Recomendação modificada em pacientes submetidos
ajustados à frequência ou combinada, movida para à cirurgia vascular sem
cardíaca e pressão arte- baixo na classificação. fatores de risco clínicos
rial são, provavelmen- que atualmente não es-
te, recomendados para tão tomando betabloque-
pacientes submetidos adores.
à cirurgia vascular que
estão em alto risco cardí-
Classe III
aco por causa da doença
coronariana ou o achado 1. Betabloqueadores Sem alterações das reco-
de isquemia cardíaca em não devem ser admi- mendações de 2007.
exames pré-operatórios. nistrados em pacientes
submetidos à cirurgia
2. Betabloqueadores Recomendação modifica- que têm contraindica-
ajustados à frequência da (adicionado “ajustados à ções absolutas para blo-
cardíaca e pressão arte- frequência cardíaca e pres- queio beta.
rial são razoáveis para são sanguínea” e modifica-
pacientes, nos quais, a dos de “são possivelmente 2. A administração ro- Nova recomendação.
avaliação pré-operatória recomendados” para “são tineira de altas doses de
de cirurgia vascular iden- razoáveis”. betabloqueadores na au-
tifica risco cardíaco ele- sência de ajuste da dose
vado, conforme definido não é útil e pode ser pre-
pela presença de mais de judicial para pacientes
um fator de risco. submetidos à cirurgia
não cardíaca que não
3. Betabloqueadores Formulação revisada. estão tomando betablo-
ajustados à frequência queadores.
cardíaca e pressão arte-
rial são razoáveis para
pacientes, nos quais, a Tabela 2.12 (*) A classe de recomendação baseia-
avaliação pré-operatória se no tamanho do efeito do tratamento combinado
identifica doença coro- com uma estimativa de certeza (precisão) do efeito
nariana ou risco cardí- do tratamento. Fatores de risco clínicos incluem
aco elevado, conforme histórico de doença cardíaca isquêmica, história de
definido pela presença de insuficiência cardíaca prévia ou compensada, história
mais de um fator de risco de doença cerebrovascular, diabetes melito e insu-
clínico, que são subme- ficiência renal (definida no índice de risco cardíaco
tidos à cirurgia de risco
revisado como um nível de creatinina sérica pré-op-
intermediário.
eratória > 2 mg/dL).

SJT Residência Médica – 2016


36
Cirurgia geral e politrauma

Sistema respiratório Classificação da escala de Torrington


& Henderson (1988) (cont.)
A descompensação pulmonar é a principal causa 4. Histórico Pulmonar.
de morbidade no período perioperatório. Requerem Tabagismo atual/Doença pulmonar; 1
avaliação do sistema respiratório as situações que
podem comprometer o funcionamento pulmonar: Tosse + Expectoração/brocoespasmo/
hemoptise. 1
cirurgias torácicas e no andar superior do abdome;
idade > 60 anos, tabagismo, doença pulmonar pre- 5. Espirometria
existente, obesidade ou neoplasias prévias. CVF < 50% do previsto ou VEF1/CVF
Neste grupo de paciente de risco pulmonar au- 65-75%; 1
mentado medidas expirométricas são fundamentais,
50-65%; 2
pois mais uma vez conseguem predizer melhor a reser-
va funcional pulmonar e, assim, dizer se o risco é maior < 50%. 3
ou menor. O VEF1 é considerado, atualmente, o me-
Risco baixo de 0 a 3 pontos; risco moderado de 4 a 6
lhor parâmetro para este tipo de avaliação. Quando
pontos; risco alto de 7 a 12 pontos.
o mesmo é menor que 0,8 L/seg., ou 30% do previs-
to, o paciente passa a ser considerado de alto risco Tabela 2.13
pulmonar. O Rx de tórax também é considerado exame
pré-operatório, porém demonstra apenas alterações
anatômicas e não funcionais e, por este motivo, não é o
exame de escolha para os casos já pré-definidos de risco. Medidas profiláticas para as complicações
pulmonares no pós-operatório de cirurgia
Algumas medidas protetoras se fazem fundamen- abdominal alta
tais nestes casos, visando minimizar o risco. Entre estas
medidas temos: suspensão do cigarro (4 a 8 semanas Reverter fatores de risco respiratório
antes da cirurgia eletiva; o tabagismo aumenta o € Cessação do tabagismo;
risco de complicações pulmonares em até 4 vezes em
relação aos pacientes não fumantes), terapia bron- € Tratamento da obstrução ao fluxo aéreo.
codilatadora pré-operatória para paciente com hiper- Modificar fatores de risco não pulmonares
-reatividade brônquica, antibióticos para infectados, uso
de esteroides para asmáticos graves, tentar ao máximo,
€ Obesidade;
procedimentos sob anestesia peridural ou raqui (preserva € Duração da cirurgia.
o reflexo de tosse, diminuindo o risco de broncoaspiração,
Manobras que aumentam o volume pulmonar
o que reduz a mortalidade de pacientes com doença pul-
monar prévia), fisioterapia respiratória e analgesia (para € Exercícios respiratórios;
garantir boa expansibilidade torácica indolor). € Tosse;
Outra para avaliação de risco de complicações pul-
€ CPAP.
monares pós-operatória (CPP) utilizada na prática clí-
nica é a elaborada por Torrington & Henderson (1988) Tabela 2.14 CPAP: pressão positiva contínua das vias
denominada PORT –Terapia Respiratória Perioperatória aéreas.
– programa de avaliação de risco e cuidados individuali-
zados pós-operatórios. Dentro do protocolo são ava-
liados: local de cirurgia, idade, estado nutricional, histó-
ria pulmonar e espirometria. A partir da associação dos
resultados os pacientes receberam uma pontuação clas-
sificando-os em baixo, moderado ou alto risco para CPP.
Padrão respiratório após
cirurgia abdominal alta
Diversos estudos têm demonstrado os efeitos da
Classificação da escala de Torrington
laparotomia sobre os volumes pulmonares, particu-
& Henderson (1988)
larmente, sobre o volume residual (VR), a capacidade
Fatores clínicos Pontuação residual funcional (CRF), capacidade pulmonar total
1. Localização cirúrgica: abdominal (CPT) e a capacidade vital (CV), que diminuem ime-
alta/torácica. 2 diatamente após a cirurgia, recuperando-se, gradual-
mente, em uma semana. Comparando-se os diversos
2. Idade acima de 65 anos. 1 parâmetros (veja gráficos a seguir), percebe-se que a
3. Estado Nutricional – Distrófico. queda da CV é mais acentuada quando o procedi-
1
mento é abdominal alto.

SJT Residência Médica – 2016


37
2 Pré-operatório I

pelo tempo de sangramento alargado, apesar do


número de plaquetas normais).
Desta forma, neste grupo de pacientes, alguns
exames são fundamentais no pré-operatório – ECG
(e, eventualmente, ecocardiograma quando houver si-
nais de sobrecarga ou teste de esforço quando houver
alteração isquêmica), Rx de tórax (grau de congestão
pulmonar), hemograma completo (grau de anemia e
necessidade de transfusão ou tratamento com eritro-
poetina), coagulograma completo e, quando necessá-
rio, avaliação mais específica da função plaquetária,
creatinina sérica (e clearance de creatinina para avaliar
o grau de disfunção renal).
Considerar hemodiálise em casos de hipercale-
mia refratária e excesso de fluido de manejo difícil. A
Figura 2.1 Variação dos volumes pulmonares no Tabela 2.14 resume os cuidados adequados para a pre-
pós-operatório imediato. RV: volume residual; CRF: ca- venção de IRA e os cuidados necessários ao paciente
pacidade residual funcional; CPT: capacidade pulmonar com IRC.
total; e CV: capacidade vital.

Cuidados para evitar insuficiência renal aguda


(IRA)
€ Manter volume plasmático adequado, fundamental
para evitar hipovolemia.
€ Evitar medicações nefrotóxicas e corrigir as doses
dos antibióticos.
€ Não usar diurético tipo manitol de rotina, que pode
induzir ao desbalanço de fluidos e hipotensão.
€ Evitar hipotensão e redução do débito cardíaco.
€ Evitar uso de contrastes endovenosos em exames de
imagem ou invasivos (endovasculares, arteriogra-
fias); se for indispensável, deve-se usar hidratação
eficiente e N-acetilcisteína como proteção renal.

Cuidados com pacientes com insuficiência renal


crônica

Figura 2.2 Variação da capacidade vital no pós-oper- € Evitar medicações nefrotóxicas e corrigir doses
atório imediato de cirurgia abdominal alta. dos antibióticos.
€ Não usar diurético tipo manitol de rotina, que pode
induzir a desbalanço de fluidos e hipotensão.

€ Realizar, em pacientes dialíticos, diálises 12 a 24 horas


Sistema renal antes da cirurgia, a fim de minimizar complicações.

O que nos interessa para avaliação pré-operatória € Prevenir sobrecarga hídrica e controlar hipercalemia.
são os doente com IRC conhecida, situação em que ris-
cos de descompensações múltiplas são patentes – ris- Tabela 2.15
co de doenças isquêmicas do coração, excesso de fluido
(congestão pulmonar), disfunções bioquímicas (hiper-
calemia; hipocalcemia; acidose metabólica), anemia e Atenção a exames contrastados a base de
distúrbios de coagulação e plaquetas (lembrar que a iodo, realizados em pré-operatórios especí-
avaliação da função plaquetária pode ser prevista ficos, uma vez que o risco de nefrotoxicidade

SJT Residência Médica – 2016


38
Cirurgia geral e politrauma

pode aumentar a morbidade e/ou mortalida- pótese para o potencial benefício da infusão de bi-
de desse grupo. A lesão renal aguda induzida carbonato seria que a alcalinização do fluido tubu-
pelo meio de contraste iodado é definida pela lar reduziria a geração dos lesivos radicais hidroxil.
elevação de 25% ou aumento absoluto de 0,5 Apesar de resultados clínicos iniciais animadores,
mg/dL na creatinina basal, após 48 horas da
ainda são necessários estudos com maior número
exposição. Nos Estados Unidos e Europa, a ne-
de pacientes para elucidar o papel da alcalinização
frotoxicidade aos contrastes radiográficos (NCR)
constitui a terceira causa de insuficiência renal urinária na prevenção da nefrotoxicidade pelo con-
aguda hospitalar, ocorrendo em 10% desses pacien- traste radiológico.
tes. Os maiores fatores de risco para NCR são a
disfunção renal prévia caracterizada por creatinina
plasmática maior que 1,5 mg/dL e/ou depuração da
creatinina menor que 60 mL/min., e a nefropatia
diabética. Os pacientes que desenvolvem estados de
hipoperfusão renal – como na insuficiência cardía-
Sistema hepatobiliar
ca descompensada, cirrose hepática e uso abusivo Da mesma forma como dissemos para alteração
de diuréticos – apresentam maior predisposição à renal, o que nos interessa na avaliação pré-opera-
NCR. A frequência da nefrotoxicidade é maior nas
tória, são os doentes que possuem doença hepática
múltiplas exposições ao contraste, nos exames de
urgência e quando há uso concomitante de outras instalada, levando à insuficiência hepática. Assim,
drogas nefrotóxicas. A principal medida para a sintomas e sinais clínicos de hepatopatia na história
prevenção da nefropatia por contraste é a ex- e exame físico são fundamentais em uma avaliação
pansão do volume extracelular. Esta expansão pré-operatória (icterícia, eritema palmar, encefalo-
deve ser realizada com solução salina (SF 0,9% 50 a patia hepática etc.).
100 mL/hora), devendo ser iniciada por volta de 12
Na avaliação laboratorial, o TAP é o melhor pa-
horas antes do procedimento e mantida por aproxi-
madamente 12 horas, após a infusão do contraste. râmetro pré-operatório para predizer a reserva
Outras medidas universalmente preconizadas funcional hepática.
para pacientes de alto risco são: utilizar a menor Na doença hepática aguda, com níveis elevados
quantidade possível de contraste, evitar a exposi- de enzimas hepáticas, o ideal é suspender o procedi-
ção repetida em curtos intervalos de tempo e sus-
mento cirúrgico eletivo, aguardando algumas sema-
pender a utilização de drogas nefrotóxicas com po-
nas, após normalização dos níveis de AST e ALT, pelo
tencial de causar alterações hemodinâmicas renais
(anti-inflamatórios não hormonais, ciclosporina risco de hepatite fulminante.
etc.). Os novos contrastes não iônicos, de baixa
osmolalidade, causam menos reações alérgicas e
alterações cardiovasculares. A sua eficácia em re- AST/ALT > 2 é sugestiva de hepatite alcoólica.
lação à redução da incidência de nefrotoxicidade foi ALT/AST > 2 é sugestiva de hepatite viral ou medicamentosa.
demonstrada de maneira significativa apenas em BT elevada à custa de BD, FA elevada e/ou 5-nucleotida-
pacientes diabéticos com insuficiência renal prévia. se são compatíveis com colestase.
A N-acetilcisteína, um captador de radicais li-
vres com propriedades vasodilatadoras, parece
apresentar efeito protetor contra a nefropatia Nos casos de hepatopatia crônica, com sinais de
por contraste radiológico e tem sido utiliza- hipertensão portal, a classificação de Child-Pugh
da em modelos animais e ensaios clínicos. A (CP) é obrigatória, pois existe relação direta
associação de hidratação com soro fisiológico e N-
com índices de mortalidade para procedimen-
-acetilcisteína 600 mg, duas vezes/dia por dois dias,
tos abdominais, de acordo com a mesma. Assim,
iniciando-se no dia anterior ao exame, mostrou-se
protetora em ensaios clínicos. Como a N-acetilciste- a mortalidade é de 10%, 31% e 76%, respectivamen-
ína é um medicamento de baixo custo e com poucos te, para CP A, B e C. (Fique atento a Tabela 2.15).
efeitos colaterais, o seu uso tem sido crescente pela Outros fatores que afetam o prognóstico, nes-
comunidade médica. tes pacientes, são a natureza emergencial de um
Outra medida usada na prevenção da nefro- procedimento, o TP prolongado, maior que três
toxicidade por contraste é a expansão volêmica segundos, a falta de correção com vitamina K e a
com solução à base de bicarbonato de sódio. A hi- presença de infecção.

SJT Residência Médica – 2016


39
2 Pré-operatório I

Histórico, exame
e estudos laboratoriais
como indicados

Anormalidades Doença aguda do fígado Doença crônica do fígado


laboratoriais
assintomáticas

Procedimento Indicação de Hepatite aguda Insuficiência Cirrose Não-cirrótico


eletivo ameaça hepática
emergencial à vida fulminante

Classe C Classe B Classe A


Investigação
Proceder com Procedimento
anterior à
extremo cuidado eletivo
operação
Monitoramento Proceder com Operar
perioperatório cuidado, se necessário
detalhado
Protelar, se Considerar Considerar
possível* indicação para alternativas
transplante à operação

Figura 2.3 Abordagem do paciente com doença hepática.


*Pelo menos até os testes de função hepática terem normalizado.

Sistema de Pontuação Child-Pugh


1 2 3
Estádio III
Encefalopatia Nenhum Estádio I ou II
ou IV
Ascite Ausente Leve(controlado com diuréticos) Moderado, apesar do tratamento com diuréticos
Bilirrubina (mg/dL) <2 2-3 >3
Albumina (g/L) > 3,5 2,8-3,5 < 2,8
TP (segundos <4 4-6 >6
prolongados)
INR < 1,7 1,7-2,3 > 2,3
Tabela 2.16 Classe A: 5-6 pontos; Classe B: 7-9 pontos; e Classe C: 10-15 pontos. INR, International Normalized
Ratio; TP: tempo de protrombina. No módulo de cirurgia do fígado abordaremos o escore MELD.

Em pacientes com icterícia obstrutiva algumas recomendações são essenciais: hidratação adequada
no perioperatório para evitar disfunção renal. Alterações hemodinâmicas e renais durante a icterícia obstrutiva têm
sido descritas há décadas, contudo, só recentemente foram bem compreendidas e receberam a merecida impor-
tância clínica. A insuficiência renal surge em 8% a 10% dos pacientes em pós-operatório de icterícia obstrutiva,
levando a uma mortalidade de cerca de 70% a 80%. Há crescente número de evidências demonstrando que a injúria
renal não ocorre por lesão nefrotóxica direta. O quadro colestático promove efeito deletério sobre a função
cardiovascular e volume sanguíneo, havendo assim, maior suscetibilidade à insuficiência renal de ori-
gem pré-renal. A hipotensão arterial sistêmica e o comprometimento da reatividade vascular são habituais nessa
situação. Sem o controle clínico perioperatório adequado, a progressão pós-operatória da lesão pode culminar com o
surgimento de necrose tubular aguda, necessidade de tratamento dialítico e elevada mortalidade. Procedimentos
capazes de descomprimir a árvore biliar, preferencialmente, por drenagem endoscópica interna, redu-
zindo, já no pré-operatório, a colestase, diminuem o risco dessa complicação. Contudo, é primordial
para profilaxia das alterações hemodinâmicas e renais a correção da anemia, a suspensão de drogas
nefrotóxicas como os anti-inflamatórios não hormonais e a manutenção do volume vascular por meio da
infusão de soluções. Dados da literatura, no passado, sugeriam, em estudos não controlados, efeito benéfico do
manitol na icterícia obstrutiva. As evidências atuais não são favoráveis ao seu uso, demonstrando que sua ação como
expansor de volume é, nesse caso, comprometida pelo seu potencial diurético osmótico e natriurético. Profilaxia
com antibiótico (cefazolina 1 a 2 g IV) e correção da coagulação com vitamina K ou plasma fresco se não
houver melhora com a reposição de vitamina K, são passos obrigatórios. Cerca de dois a três dias, após o

SJT Residência Médica – 2016


40
Cirurgia geral e politrauma

início da colestase, observa-se queda dos níveis de Os níveis de glicemia ideais no controle tran-
vitamina K e dos fatores de coagulação, vitaminas soperatório são aqueles que não ultrapassam 180
dependentes II, VII, IX e X, reduzindo a atividade de mg/dL, para que não ocorra perda renal de glicose
protrombina (TAP alargado). e diurese osmótica, e que não sejam menores que
A vitamina K pode ser administrada por via 120 mg/dL para prevenir hipoglicemia. Em razão da
parenteral e corrige os tempos de coagulação den- possibilidade de frequentes complicações pós-opera-
tro de 6 a 12 horas. Até 5 mg são administrados por tórias, os pacientes diabéticos submetidos à cirurgia
via intravenosa lentamente, como dose inicial. As prepa- de médio e grande porte devem ser mantidos, pelo
rações mais antigas de vitamina K eram menos purifica- menos, nas primeiras 24 horas na UTI com monito-
das que as usadas atualmente e foi descrita anafilaxia e rização cardíaca. Durante esse período e até o reinício
morte com a administração destes agentes mais antigos. da alimentação, controle efetivo da glicemia e de ele-
As formas mais purificadas têm menor probabilidade de trólitos deve ser rigoroso. Quando o período de jejum
causar complicações, mas a vitamina K intravenosa deve exceder 24 horas, a administração de aminoácidos e li-
ser administrada com cuidado. A vitamina K intramus- pídios, em adição à glicose, deve ser considerada, para
cular ou subcutânea pode ser aplicada em doses de 10 a minimizar o catabolismo e acelerar o processo de cica-
25 mg/dia. Doses repetidas permitem reposição corporal
trização. Manter o controle da glicemia a cada 2 ou
total (10 a 25 mg/dia por três dias). A administração
4 horas e complementar a insulina ou a glicose para
de plasma corrige rapidamente o deficit de coagu-
manter a glicemia entre 100 e 180 mg/dL. Após o
lação e, por isso, se administra plasma com vitamina K
início da alimentação oral, introduz-se o esquema
nos pacientes que não param de sangrar.
de insulina lenta ou NPH e mantém-se o esquema
Atenção: são fatores vitamina K dependentes: II, VII, de insulina regular de acordo com o esquema de
IX, X e proteínas S e C. glicemia capilar, descrito na tabela a seguir. Se for
indicada a nutrição parenteral total, considerar que
esses regimes utilizam 40% a 50% de glicose e a quan-
tidade de insulina deve ser adequada. Vale ressaltar
que, nesses pacientes, elevações glicêmicas sem cau-
sa aparente podem sinalizar para algum processo
Sistema endócrino infeccioso ou inflamatório presente.
O controle do potássio deve ser feito a cada 6
horas nas primeiras 24 horas e, posteriormente, duas
Diabetes melito (DM) vezes ao dia.
Cuidados e avaliação pré-operatória rigorosa são
fundamentais, pois são pacientes com risco de distúr- Regras básicas no pré-operatório de cirurgias
bios imunológicos, com consequentes deficits de cica- eletivas de médio e grande porte de pacientes
trização e risco maior de infecções. com DM
Assim, dados de história clínica buscando sintomas Avaliação clínica pré-operatória, antes da internação.
e sinais de agressão em órgãos alvo são fundamentais, Se necessário, internar o paciente com antecedência
de 2 a 3 dias do procedimento.
pois se referem à descompensação de longa data, sempre
Manter em dieta balanceada para diabético.
avaliar níveis glicêmicos em jejum, hemograma completo
para avaliar leucocitoses, pois são pacientes de risco para Suspender hipoglicemiantes orais, em especial as bi-
guanidas, 2 dias antes da cirurgia.
infecções silenciosas, ECG pelo risco de doença cardíaca
Manter insulina NPH ou lenta que o paciente vinha
oculta, urina I para avaliar proteinúria, creatinina e ele- usando até o dia anterior à cirurgia ou 2/3 da dose
trólitos para avaliar grau de disfunção renal, são exames pela manhã e 1/3 antes do jantar.
pré-operatórios obrigatórios nestes pacientes. Aplicar insulina regular, subcutânea, conforme esquema
de glicemias capilares antes do café da manhã, almoço, jan-
O principal objetivo no tratamento pré-opera- tar e lanche.
tório do paciente diabético é manter glicemias en- Glicemias (mg/dL) Insulina regular (U)
tre 120 e 180 mg/dL, para prevenir a hipoglicemia e < 120 Não aplicar
a hiperglicemia, fornecer glicose e insulina suficientes 120 a 180 2
para inibir os processos catabólicos e prevenir a mor-
181 a 240 4
bidade e a mortalidade.
241 a 300 6
301 a 360 8
> 301 10
€ Alvo glicêmico transoperatório:
(Sistema Internacional (SI): mg/dL= mmol/L x 18;
120 a 180 mg/dL (evitar níveis < 100 ou > 200 mg/dL). mmol/L = 0,0555 x mg/dL)

SJT Residência Médica – 2016


41
2 Pré-operatório I

Regras básicas no pré-operatório de cirurgias Controle transoperatório do paciente com DM,


eletivas de médio e grande porte de pacientes durante cirurgias eletivas de grande
com DM (Cont.) e médio porte (Cont.)
Manter glicemia antes das refeições < 120 mg/dL e Em caso de uso de bomba insulina
pós-prandiais < 180 mg/dL, sem provocar hipogli- Colocar na bomba de insulina a proporção de 1 mL de
cemia. soro fisiológico para 1 U de insulina de ação rápida.
Realizar a cirurgia, preferencialmente, no período da Controle transoperatório do paciente com DM, duran-
manhã. te cirurgias eletivas de grande e médio porte (cont.)
Manter paciente em jejum, mesmo que a cirurgia seja à Glicemia capilar
tarde. Infusão
(mg/dL)
Monitorar glicemia e potássio antes, durante e após DM tipo
cirurgia. DM (tipo) DM tipo 2
1
Se a glicemia de jejum > 140 mg/dL, adiar grandes ci- Suspender
rurgias; se > 180 mg/dL, adiar pequenas cirurgias. < 80 perfusão

0,5 mL/
Tabela 2.17 Atenção! 81 a 120 1,0 mL/hora
hora
1,0 mL/
121 a 180 2,0 mL/hora
hora
Controle transoperatório do paciente com DM, 1,5 mL/
181 a 220 2,5 mL/hora
durante cirurgias eletivas de grande hora
e médio porte 2,0 mL/
221 a 260 3,0 mL/hora
hora
Suspender esquema de insulina anterior e iniciar, às
7 horas, o protocolo de Alberti ou o de Ammon, com 2,5 mL/
261 a 300 3,5 mL/hora
controles da glicemia de 1/1 hora. hora
Manter todos os pacientes na terapia intensiva, nas 3,0 mL/
primeiras 24 horas pós-cirurgia. > 301 4,0 mL/hora
No centro cirúrgico, manter glicemias entre 120 a 180 hora
mg/dL (sangue total) ou 140 a 200 mg/dL (plasma), Tabela 2.18
com controles de 1/1 hora).
Protocolo GIK
Preparar 3 frascos de 500 mL de soluto glicosado a
10% + 10 mEq de cloreto de potássio* e adicionar in-
sulina de ação curta: frasco 1 a 10 U; frasco 2 a 15 U;
frasco 3 a 20 U. (*Omitir cloreto de potássio do frasco Tireoidopatia
de infusão se valores > 5,5 mEq/L).
Manter sempre velocidade de perfusão de 100
mL/hora Hipertireoidismo
Se glicemia capilar < 120 mg/dL Perfundir frasco 1 As medicações antitireoideanas (metimazol ou
Se glicemia capilar de 121 a 200 propiltiuracil) devem ser utilizadas ou continuadas,
Perfundir frasco 2
mg/dL porém, com doses ajustadas. As tionamidas atuam
Se glicemia capilar > 200 mg/dL Perfundir frasco 3 na síntese e na liberação dos hormônios, porém,
não atuam nos hormônios circulantes (exceto o
Protocolo Insulina, em veias diferentes
PTU que inibe a conversão periférica do T4 para T3;
A. 500 mL de soluto glicosado 10% e 25 mEq de cloreto
este efeito é também observado com betabloqueado-
de potássio, a uma velocidade de 0,1 g glicose/kg/hora.
B. 200 mL de soluto fisiológico 0,9% com 20 U de in-
res e corticoides), o que explica a necessidade de se
sulina regular (1 U insulina/10 mL soluto), à velocida- esperar em torno de seis semanas para se atingir o
de de acordo com o esquema a seguir, em controles de efeito desejado, ou seja, eutiroidismo.
1/1 hora. O estado hemodinâmico (frequência cardíaca e
Glicemias (mg/dL) Infusão B pressão arterial), desses pacientes, deve ser cuidado-
100 a 200 1 U/hora = 10 mL/hora = 10 microgo- samente equilibrado, o que pode ser obtido com o uso
tas/minuto de betabloqueadores, os quais são utilizados também
201 a 250 2 U/hora = 20 mL/hora = 20 microgo- durante a realização da cirurgia. No pré-operatório, o
tas/minuto
propanolol se destaca pela eficácia, pelo baixo cus-
251 a 300 3 U/hora = 30 mL/hora = 30 microgo-
to e pela larga experiência com seu uso na maioria
tas/minuto
301 a 350 4 U/hora = 40 mL/hora = 40 microgo- dos hospitais. A dose é de 40 até 320 mg/dia, con-
tas/minuto trolado conforme a frequência cardíaca basal, que não
> 351 5 U/hora = 50 mL/hora = 50 microgo- deve ser menor que 60 ou maior que 90 bpm. O beta-
tas/minuto bloqueador não deve ser descontinuado na véspera

SJT Residência Médica – 2016


42
Cirurgia geral e politrauma

da cirurgia. O esmolol é um betabloqueador usado


Hipotireoidismo
com mais segurança durante a operação, pois tem
uma meia-vida curta e uma boa eficácia. O estado de eutireoidismo deve ser alcança-
do antes de cirurgias eletivas, com a administração
O uso de iodo no preparo desses pacientes não
de tiroxina, em doses que podem variar de 50 a 200
tem apoio na literatura, porém, facilita a manipulação
µg/dia. Pacientes cardiopatas devem utilizar doses
cirúrgica da glândula durante a operação, pois pro-
pela metade (para evitar o risco de descompensação
porciona uma redução acentuada da vascularização
e um aumento da consistência do tecido tireoidea- cardíaca). Em situações de necessidade de rápido con-
no. Porém, não há dados concretos que mostrem uma trole, podemos utilizar a forma destinada para uso
menor perda sanguínea com o uso prévio do iodo, e a parenteral (intravenoso), uma dose de carga de 300 a
utilização do iodo está restrita ao auxílio no controle 500 µg, por via intravenosa, e 50 a 100 µg por via oral
do hipertireoidismo. Não deve ser administrado como ou por uma sonda nasogástrica, diariamente.
monoterapia, pois pode piorar o hipertiroidismo. O uso A crise mixedematosa (coma mixedematoso),
concomitante de corticoides está indicado em caso a forma mais grave do hipotireoidismo, pode ser de-
de insuficiência adrenal concomitante. sencadeada no pós-operatório, em paciente que não
Caso o paciente desenvolva tempestade tireoi- estava em tratamento adequado ou que não sabia ser
deana (inadequadamente mal conduzido no pré-ope- portador de hipotireoidismo. Os sinais e sintomas
ratório) fique atento às medidas obrigatórias a se- de alerta são, dificuldade de acordar da anestesia ge-
rem instituídas (Tabela 2.18). ral, íleo paralítico prolongado, hipotermia, hiponatre-
mia inexplicável e hipoglicemia. Diante deste quadro a
lembrança de coma mixedematoso deve ser imediata,
Tratamento da crise tirotóxica e a solicitação de TSH ultrassensível e T4 livre
Intervenção médica Agente/Procedimento são obrigatórias, da mesma forma que a dosa-
A. Medidas gerais de su- Redução da febre* gem de cortisol basal, uma vez que não é incomum a
porte Correção dos distúrbios associação de hipotireoidismo e insuficiência adrenal.
hidroeletrolíticos: trata- Como já dissemos antes, a reposição hormonal pode
mento do fator desenca- demorar até seis semanas para colocar o paciente em
deante. um estado ideal de pré-operatório.
B. Controle do hiperti- PTU (de escolha): 200
roidismo mg 4/4 h VO ou metima-
1. Bloquear a síntese hor- zol: 30 mg 6/6 h Iodeto: Tratamento do coma mixedematoso
monal intratiroidiana solução de lugol, 10 gotas Intervenção Procedimento
2. Lentificar liberação de 8/8 h; SSKI, 5 gotas 8/8 A. Tratamento Aquecimento do paciente (uso
T4 e T3 h, ácido iopanoico, 0,5 g das complicações de cobertores e aumento da
12/12 h; ou NaI, 0,5 g EV metabólicas temperatura ambiente);
12/12 h Correção da hiponatremia, da hi-
Propranolol: VO: 40-80 poglicemia e da hipotensão;
mg de 4/4 ou 6/6 h Monitorização dos gases san-
3. Bloquear os efeitos EV: inicial 0,5 a 1 mg – re- guíneos arteriais;
adrenérgicos petir a cada 10 a 15 min., Manter adequada assistência
sob monitorização contí- ventilatória (quando necessário,
nua. utilizar ventilação mecânica).
4. Inibir conversão perifé- Glicocorticoides: dexame- B. Reposição L-Tiroxina;
rica de T4 em T3 tasona, 2 mg IV 6/6 h ou hormonal: Dose de ataque: 300-600 µg EV;
hidrocortisona 100 mg EV Hormônios Manutenção: 50-100 µg/dia
6/6 h. tiroidianos EV ou (se a tiroxina injetável
5. Reduzir a quantidade Ácido iopanoico (Telepa- não estiver disponível);
de hormônios circulantes que®) L-Tiroxina (300-600 µg/dia
Propranolol VO ou SNG) + triiodotironina
Plasmaférese; exsanguine- (25 µg 8/8 h VO ou SNG).
otransfusão C. Glicocorticoides Hidrocortisona, 100 mg 8/8 h
PTU: Propiltiouracil; SSKI: solução saturada de iodeto EV (± 7 dias); depois, retirada
de potássio; e NaI: iodeto de sódio. gradual.
*Obs: para redução da febre (manter temperatura < 39 D. Tratamento dos Na suspeita de infecção, anti-
°C) usar compressas e toalhas úmidas, bolsas de gelo, fatores precipitantes bioticoterapia empírica (após
novalgina, paracetamol e, quando necessário, clorpro- coleta de urocultura e hemo-
mazina e meperidina. NÃO USAR AAS. cultura).
Tabela 2.19 Tabela 2.20

SJT Residência Médica – 2016


43
2 Pré-operatório I

Adrenal Feocromocitoma
O preparo pré-operatória é essencial e inclui
expansão do volume plasmático e bloqueio alfa e
Insu昀椀ciência adrenal beta-adrenérgico, para obter uma hemodinâmica
Doença de Addison (insuficiência adrenal primá- relativamente estável antes da cirurgia. O período
ria) ou secundária ao uso crônico de corticoide (uso de preparo do paciente varia de 1 a 2 semanas.
crônico de corticoides é considerado quando há um Assim sendo, tão logo o diagnóstico seja feito a
uso maior de 5 mg/dia de prednisona por mais de
introdução de alfabloqueadores é instituída visando à
duas semanas a três semanas em um ano), é situ- redução dos sintomas, à queda da pressão arterial e à
ação de risco para complicações intra e pós-operató- melhora dos paroxismos (tríade do paroxismo: cefa-
rias, principalmente hipotensão refratária, caso não leia, palpitação e sudorese). Esse tratamento reexpan-
se faça a adequada suplementação de corticoide. Na dirá o volume plasmático e o leito vascular. Os beta-
crise addisoniana, frequentemente, os pacientes se bloqueadores devem ser administrados em caso de
apresentam com choque ou hipotensão, associados persistência de taquicardia ou taquiarritmia, em
a outros sintomas inespecíficos, tais como anorexia, vigência de um bloqueio alfa eficazes (quando reali-
náuseas, vômitos, dor abdominal (pode simular um zados antecipadamente, pioram a vasoconstricção pe-
abdome agudo), distensão abdominal, fraqueza, apa- riférica e sintomas correlatos). A seguir, listaremos os
tia, confusão mental (pode progredir para coma), fe- principais medicamentos usados nesse controle.
bre (secundária à infecção ou ao hipocortisolismo per
se). Quando presente, a hiperpigmentação (sinal clí-
nico sensível) pode ser útil para o diagnóstico. Alfabloqueadores
Recomenda-se suplementação com esteroi- Fenoxibenzamina: inespecífico e de ação pro-
des pré-operatório em cirurgias de pequeno por- longada. A dose varia de 20 a 80 mg/dia e é ajustada
te (hérnia inguinal) – suplementação com 25 mg de de acordo com a gravidade dos sintomas posturais; o
glicocorticoides (Sabiston, 19ª ed., não recomenda desaparecimento da hipotensão postural define o cor-
dose adicional); cirurgias de porte médio (colecis- reto alfabloqueio. É a droga de escolha.
tectomia aberta) requerem suplementação com 50
Prazosina: bloqueador alfa1 seletivo, competiti-
a 75 mg de glicocorticoides, e cirurgias de grande
porte (colectomia) – 100 a 150 mg de glicocorticoi-
vo e de curta ação. Ótima opção à fenoxibenzamina,
principalmente, por ser menos associado à taquicar-
des por 2-3 dias (geralmente, 100 mg) e hidratação
dia reflexa e à hipotensão no pós-operatório imediato.
adequada no pré e intraoperatório para evitar o cho-
Deve ser suspensa cerca de 8 horas antes do ato ci-
que da crise addisoniana.
rúrgico. Sua dose deve ser 2 a 5 mg, a cada 6 ou 8 ho-
E quando o paciente evoluir com crise adrenal ras. Novas opções, nessa classe, incluem a terazosina
aguda no pós-operatório imediato, o que fazer? (1-16 mg/dia) e a doxazosina.

Tratamento da crise adrenal aguda


Betabloqueadores
Medidas gerais Propranolol: inicia-se com a dose de 10 mg a
1) Colher amostra de sangue para hemograma, dosa-
cada 6 ou 8 horas até a dose de controle da frequên-
gens bioquímicas e hormonais (cortisol e ACTH).
cia cardíaca. São particularmente úteis para os tu-
2) Corrigir depleção de volume (com solução glicofi-
mores secretantes de adrenalina. O metaprolol e
siológica), desidratação, distúrbios eletrolíticos e hipo-
glicemia. o labetolol são alternativos. Nos portadores de con-
3) Tratar a infecção ou outros fatores precipitantes. traindicações ao betabloqueio, pode-se tentar o uso da
lidocaína ou da amiodarona. Você só está autorizado
Reposição de glicocorticoides a prescrever betabloqueadores após alfabloqueio,
1) Administrar hidrocortisona, 100 mg EV inicial- pois a prescrição inadivertida desta droga ao pa-
mente, seguidos de 50 mg EV de 4/4 horas, durante ciente com feocromocitoma pode desencadear crise
24 horas. Depois, reduzir a dose lentamente nas pró- de paroxismos (cefaleia, palpitações e sudorese).
ximas 72 horas, administrando a droga a cada 4 ou 6 Na crise hipertensiva a droga recomendada é
horas EV. Nitroprussiato de sódio (0,5-1 g/kg/min., em infu-
2) Quando o paciente estiver tolerando alimentos são contínua EV) que deve ser usada para obtenção
por via oral, passar a administrar o glicocorticoide de uma redução gradual e controlada da PA. Como al-
VO e, quando necessário, adicionar fludrocortisona
ternativa, temos a nifedipina (10 mg, sublingual) ou o
(0,1 mg VO).
bloqueio não seletivo alfa1/alfa2 com a fentolamina (1
Tabela 2.21 VO: via oral; e EV: via endovenosa. mg em bolus, depois por infusão contínua).

SJT Residência Médica – 2016


44
Cirurgia geral e politrauma

Em razão da vasoconstrição mantida, os porta- Aminoglutetimida: anticonvulsivante com feito


dores de feocromocitoma podem desenvolver contra- em nível da 20,22 desmolase e 11β/18-hidroxilação.
ção do volume intravascular, que se manifesta por hi- Florida em efeitos colaterais, e os mais inconvenien-
potensão postural ou elevação do hematócrito. Desse tes são o surgimento do bócio com hipotireoidismo.
modo, os pacientes correm o risco de apresentar, Etomidato: anestésico que pode ser usado em
após a retirada do tumor e, consequente, desapare- caráter emergencial, pois reduz a cortisolemia em até
cimento da vasoconstrição, hipotensão importante e 10 horas, pelo bloqueio de 11β-hidroxilação do deso-
mesmo choque hipovolêmico. A reposição de glicose xicortisol. As doses são sub-hipnóticas (0,3 mg/kg/
é fundamental para combater a hipoglicemia secun- hora) administradas pelas vias endovenosa ou oral.
dária à descarga de insulina, após a queda dos níveis
Mitotano: além do bloqueio enzimático (11β-
de catecolominas.
OH e 20,22 desmolase) possui ação adrenolítica. Seu
uso é limitado pelas manifestações gastrointestinais e
neurológicas (anorexia, náuseas e redução de memó-
ria são os principais). As doses diárias variam entre 2
Hipercortisolismo (Síndrome de e 12 g/dia. O hipocortisolismo é praticamente regra.
Cushing) No período pré-operatório (24 ou 48 horas),
as anormalidades eletrolíticas devem ser corrigi-
O uso do tratamento medicamentoso tem in- das e todos os pacientes deverão receber hidrocor-
dicação para reduzir a cortisolemia e está indicado tisona 100 mg, endovenosa a cada 8 horas, que será
nas seguintes situações: mantida no trans e pós-operatórios imediatos. Re-
a) no pré-operatório de adrenalectomia uni ou alizada a adrenalectomia, deve-se cuidar para que a
bilateral, para reduzir a morbimortalidade decorren- reposição dos glicocorticoides se faça até a completa
tes do diabetes, da hipertensão, da hipopotassemia e recuperação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (pe-
da baixa resistência às infecções, entre outras; ríodo médio de 9 a 10 meses, podendo manter-se por
b) em pacientes submetidos à radioterapia hipo- até 2 anos). Caso haja a necessidade de adrenalecto-
fisária, enquanto se aguarda seu pleno efeito; mia bilateral, essa reposição deverá ser feita pelo resto
da vida fisiologicamente com a hidrocortisona 12 mg/
c) casos de síndrome de Cushing ACTH-depen- dia (dose única matinal) ou com a prednisona na dose
dente, onde não houve definição etiológica. de 5 a 7,5 mg/dia e sempre associada à fludrocortiso-
Drogas inibidoras da esteroidogênese adrenal na na dose de 0,1 a 0,2 mg/dia (atividade aldosterona-
Cetoconazol: potente inibidor da esteroidogê- -símile). Deve ser enfatizado que em situações de
estresse agudo (pela intensa demanda metabólica e
nese adrenal (age nas enzimas 17,20 liase, 11β-OH,
hemodinâmica) as doses deverão ser dobradas até
17α-hidroxilase e 20, 22 desmolase). Efeitos adicio-
o restabelecimento do completo bem-estar pelo
nais incluem a diminuição na liberação do ACTH e doente. A alta dependerá do estado geral, do contro-
competição com os glicocorticoides pelo seu receptor. le metabólico e pressórico e da ausência de infecções,
Sua dose efetiva varia de 200 a 1.200 mg/dia, dividi- bem como com a técnica cirúrgica empregada (aberta
das em duas tomadas, e com ajustes semanais. Essa ou laparoscópica).
droga mostrou-se eficaz em uma dose média de 400 Caso tenha havido efetividade na retirada da le-
a 800 mg/dia para a redução da hiperglicemia, da são, o paciente desenvolverá insuficiência adrenal no
hipertensão e da hipopotassemia. A preocupação pós-operatório. Isso poderá ser documentado pela do-
com a elevação das transaminases deve ser constante sagem do cortisol plasmático basal na primeira ma-
(cuidado!), já que independe da dose administrada. No nhã, pós-intervenção. Se forem encontrados valores
geral, essa alteração assume caráter transitório (inicia- menores que 5 µg/dL, esse diagnóstico se confirmará
-se por volta do 2o mês de uso e regride após o 3o mês traduzido por sucesso cirúrgico. Do contrário, valores
de suspensão). maiores que 20 µg/dL indicam a retirada incomple-
ta do tumor, e novas diretrizes de condução deverão
Metirapona: inibe a conversão do 11-desocorti- ser propostas. Como acompanhamento, no primeiro
sol em cortisol. A dose diária varia de 750 a 2.250 mg/ ano pós-cirurgia, a cada trimestre o paciente deverá ser
dia (inicia-se com 250 mg e faz-se o ajuste semanal). submetido a um teste dinâmico para avaliação da reser-
Bem tolerada no preparo cirúrgico de todas as formas va adrenal com o uso de ACTH sintético endovenoso.
da síndrome de Cushing, causa remissão do hiper- Valores de resposta do cortisol entre 5 e 20 µg re-
cortisolismo em torno de 80% dos casos. Os efeitos ferendam a descontinuidade da reposição, com pos-
indesejáveis são dose-dependente, sendo a insufici- sibilidade de retorno ao seu uso, caso surjam sinais
ência adrenal o mais temido, além de acne e hirsu- e sintomas de insuficiência adrenal. Um teste que
tismo em mulheres. acuse valores maiores que 20 µg indicará que a re-

SJT Residência Médica – 2016


45
2 Pré-operatório I

posição deverá ser imediatamente descontinuada e mais específicos incluem a quimiotaxia dos neutrófi-
nenhum teste posterior deverá ser realizado. Entre- los e medições de populações de linfócitos específicos.
tanto, valores de cortisol basais menores que 5 µg/dL Os pacientes sob alto risco de imunodeficiência, nos
indicam necessidade imperiosa de reposição, e sua quais estas informações são úteis, incluem indivídu-
dosagem deverão ser repetidos trimestralmente. os idosos e os com desnutrição, traumatismo intenso
ou queimaduras, ou câncer. Além de um período de
hiperalimentação, nenhum estimulante do sistema
Hiperaldosteronismo primário (HP)
imunológico é regularmente usado no período pré-
A principal causa de hiperaldosteronismo pri- -operatório, embora seja extensa a atividade de pes-
mário é adenoma produtor de aldosterona (aldos- quisa nesta área.
teronoma), cujo tratamento é eminentemente ci-
rúrgico. Para diminuir o risco cirúrgico, a hipocalemia
deve ser corrigida com a espironolactona (Aldacto-
ne®), antagonista competitivo específico do receptor
da aldosterona. A dose inicial é de 200-300 mg/dia até
Sistema hematológico
a normalização da calemia e dos níveis tensionais (ge-
ralmente, após 4 a 6 semanas de tratamento), com Anemia
posterior redução para 100-150 mg/dia, até a época
da cirurgia. Quando a espironolactona (SPL) não for Quando transfundir? Sempre ponderar o risco
bem tolerada, graças aos seus efeitos antiandrogêni- do paciente para doença isquêmica do coração e o grau
cos e gastrointestinais, podem ser substituídas por de perda sanguínea estimada durante a cirurgia. Levar
outros diuréticos poupadores de potássio: amilorida em consideração história e exame físico, por exemplo,
(20-40 mg/dia) ou triantereno (50-200 mg/dia). Re- um paciente com anemia normovolêmica, sem risco
centemente, a FDA (Estados Unidos) liberou para uso cardíaco significativo ou risco de sangramento anteci-
controlado a eplerenona (Inspra®, Pfizer), um novo pado, saudável, pode ser operado seguramente com
antagonista do receptor mineralocorticoide com níveis de hemoglobina acima de 8 g/dL.
menor efeito antiandrogênico. Outros agentes anti-
-hipertensivos (por exemplo, bloqueadores dos canais
Diretrizes para a transfusão de hemácias do
de cálcio, inibidores da ECA ou antagonistas do recep-
sangue para perda sanguínea aguda
tor da angiotensina II), podem ser necessários para
um controle adequado dos níveis tensionais, em espe- € Avaliar o risco de isquemia.
cial no HAI (hiperaldosteronismo idiopático), condi- € Estimar/antecipar o grau de perda sanguínea. Me-
ção esta cujo tratamento é essencialmente clínico. nos de 30% de perda rápida de volume, provavel-
mente, não precisam de transfusão nos indivíduos
previamente sadios.
HP: HAS + hipocalemia € Medir as concentrações de hemoglobina: < 6 g/dL, trans-
fusão geralmente necessária; 6-10 g/dL, transfusão di-
tada por circunstâncias clínicas; > 10 g/dL, transfusão
raramente necessária.

Sistema imunológico € Medir sinais vitais/oxigenação dos tecidos quando a


hemoglobina é de 6 a 10 g/dL e a extensão de per-
da sanguínea é desconhecida. Taquicardia e hipo-
A expansão do conhecimento e da apreciação das tensão refratária ao volume sugerem a necessidade
defesas imunológicas levou a uma maior consciência de transfusão; razão de extração de O2 > 50% e VO2
das taxas pós-operatórias aumentadas de complica- diminuída sugerem que a transfusão, geralmente, é
necessária.
ções e morte devidas a infecção em pacientes com dis-
túrbios de imunodeficiência, seja como consequência € Uma unidade de glóbulos vermelhos eleva a Hb em 1
a 2 g/dL e o Ht em 2 a 4 pontos percentuais.
de desnutrição ou por outras condições mais especí-
ficas, por exemplo, imunodeficiência do HIV. A con- Tabela 2.22
tagem de linfócitos totais (< 800 por mm3 indica
depleção grave) e avaliação da imunidade celular são
os dois testes mais comumente realizados. Diagnos-
tica-se anergia ou imunidade comprometida caso
Transfusão de sangue
não se observe resposta a qualquer dos testes cutâ- A anemia das doenças crônicas pode cursar com
neos, enquanto uma resposta positiva (5 mm ou hipovolemia, mas, de modo geral, principalmente em
mais de endurecimento no local do teste) a um ou idosos e cardiopatas, a hemoglobina < 10 g/dL é indi-
mais testes cutâneos indica atividade normal dos cativa de transfusão, no entanto, uma hemoglobi-
linfócitos. A anergia está associada a uma maior sus- na de 8 g/dL é fisiologicamente segura para o trans-
cetibilidade a complicações infecciosas. Outros testes porte de oxigênio em indivíduos saudáveis.

SJT Residência Médica – 2016


46
Cirurgia geral e politrauma

A autotransfusão, com coleta programada, é al-


Plasma Fresco
ternativa interessante nas cirurgias eletivas. As indi-
cações respeitam os pré-requisitos a seguir: evitar O uso de plasma fresco congelado deve ser re-
doenças transmitidas por transfusão; armazenar tipos servado apenas para pacientes com coagulopatia. O
raros de sangue; evitar aloimunização; tratar pacien- concentrado de plasma fresco congelado é obtido por
tes com antecedentes de reações transfusionais; per- meio de centrifugação a partir de uma bolsa de sangue
mitir transfusão em pacientes com crenças religiosas total, congelada a temperaturas inferiores a -18 ºC, no
que a proíbam; substituir perdas maciças de sangue no prazo máximo de 8 horas, após a coleta do sangue total.
intraoperatório. Poderá também ser coletado por processadores automá-
ticos (aférese) e, neste caso, o congelamento da unidade
deverá ser necessariamente anterior a 6 horas da coleta.
Contraindicações da autotransfusão pré- Cada unidade do hemocomponente contém em média
operatória para pacientes que serão submetidos 200 a 250 mL de volume e o armazenamento poderá
à cirurgia se estender até um ano na temperatura de -18 ºC.
Peso abaixo de 50 kg; O plasma fresco congelado é indicado para
Estado geral ruim;
pacientes com quadros hemorrágicos por deficiências
Doenças infecciosas (endocardite, abscessos);
múltiplas de fatores de coagulação, secundárias a dis-
História de epilepsia;
Anemia: Hb < 12,5 g/dL antes da primeira doação; função hepática, anticoagulação oral (medicamentos
Angina pectoris instável; antagonistas da vitamina K), coagulação intravascular
Estenose aórtica; disseminada, coagulopatias dilucionais, pacientes com
Volume de ejeção de ventrículo esquerdo < 45%; deficiências de antitrombina, proteína C e S, púrpura
Tolerância ao exercício < 50 W; trombocitopênica trombótica, síndrome hemolítica
Pressão arterial sistólica acima de 100 mmHg e abai- urêmica (SHU) e pacientes submetidos à assistência
xo de 180 mmHg; circulatória mecânica (circulação extracorpórea, bom-
Pressão arterial diastólica abaixo de 50 mmHg e aci- ba centrífuga, dispositivo de assistência ventricular,
ma de 100 mmHg; balão intra-aórtico e coração artificial).
Arritmia severa;
Distúrbio de condução atrioventricular. Para sua administração deverá ser descon-
gelado em equipamento especial ou banho-maria
Tabela 2.23
em temperaturas entre 30 º e 37 ºC e infundido
por meio de filtros apropriados.
Fique atento ao conceito de transfusão maci-
A dose é muito variável, dependendo da situação
ça: A transfusão maciça é definida como a reposição
clínico-cirúrgica do paciente e, normalmente, usa-se
do volume sanguíneo do paciente com concentrado de
o parâmetro de 10 a 20 mL/kg, com infusão realiza-
hemácias em 24 horas ou a transfusão de mais de 10
da no máximo em 4 horas.
unidades de sangue em um período de poucas horas.
A transfusão maciça pode criar alterações significati- Sugestão de Diretrizes para transfusão de plasma
vas no estado metabólico do paciente em virtude da
Tratamento da deficiência de fatores de coagulação múlti-
infusão de grandes volumes de sangue frio com citra- plos ou específicos com tempo de protrombina e/ou tem-
to, que sofreu alterações durante o armazenamento. po de tromboplastina parciais ativadas anormais.
Quando o sangue é armazenado entre 1º e 6° C, ocor- Deficiência de fator específico anormal na pre-
rem alterações ao longo do tempo, incluindo liberação sença de um dos seguintes:
do potássio intracelular, diminuição do pH, redução Deficiência congênita de antitrombina, protrombina,
fatores V, VII, IX, X e XI; proteína C ou S; plasminogê-
dos níveis de ATP e 2,3-DPG intracelular nas hemá- nio ou antiplasmina.
cias, com aumento da afinidade da hemoglobina pelo Deficiência adquirida relacionada à terapia com var-
oxigênio, degeneração dos leucócitos e das plaquetas farina, deficiência de vitamina K, doença hepática,
funcionais e deterioração dos fatores V e VIII (fatores transfusão maciça ou coagulação intravascular disse-
lábeis). Se for infundido rapidamente um grande volu- minada.
me de sangue estocado, podem ser vistos efeitos signi- Também indicada como profilaxia nas situações anterio-
res, quando houver programação de procedimento cirúrgi-
ficativos no receptor. Muitas das alterações esperadas co/invasivo.
podem ser revertidas após a transfusão ou podem pro- Indicações não justificadas:
duzir padrões metabólicos diferentes dos previstos. Uso empírico associado à transfusão maciça, quando o
Consequentemente, o uso de fórmulas-padrão para paciente não apresentar sinais clínicos de coagulopatia.
a infusão de plasma, plaquetas, cálcio, bicarbonato e Reposição de volume.
Suplementação nutricional.
outras substâncias para um número específico de uni-
Hipoalbuminemia.
dades de concentrados de hemácias transfundidas não
se justifica e pode trazer mais riscos para o paciente. Tabela 2.24

SJT Residência Médica – 2016


47
2 Pré-operatório I

trombina e dosagem do fibrinogênio. Aqueles pacien-


Coagulopatia tes que apresentem aumento do TAP devem ter es-
O principal fator preditor de risco para san- tudado o fator VII, ao passo que aqueles com altera-
gramento perioperatório é a história clínica. De ção do TTPa devem ter estudado os fatores da via
modo geral, pacientes jovens, sem história de discrasia intrínseca (fatores VIII, IX, XI e XII). Caso estejam
sanguínea que serão submetidos a cirurgias de peque- alterados TAP e TTPa e o fibrinogênio for normal é
no ou médio porte não necessitarão de avaliação he- necessário estudar os fatores da via comum (II, V
matológica, aliás, de nenhum exame complementar, e X), avaliar a função hepática e a possibilidade de
como já citado anteriormente. Pacientes com mais múltiplas deficiências.
de 40 anos, e aqueles de qualquer idade que forem 3) Avaliação laboratorial do paciente com com-
candidatos a cirurgias de grande porte, ou em ór- plicação hemorrágica pré-operatória.
gãos nobres deverão ser avaliados criteriosamente
A hemorragia de vulto no período pré-operató-
do ponto de vista laboratorial.
rio pode ocorrer mesmo em pacientes que nunca te-
Em resumo, a avaliação do risco de hemorra- nham apresentado evento hemorrágico considerado
gia pode ter a seguinte orientação: como anormal. Em tal circunstância, faz-se necessá-
1) Pacientes que não apresentem evidências clí- rio diagnosticar de forma rápida e precisa a possível
nicas de risco de hemorragia, detectáveis pela ana- alteração da crase sanguínea, quer seja herdada, quer
mnese e pelo exame físico, podem ser dispensados seja adquirida.
da realização de exames da coagulação no pré-ope- A alteração da coagulação deve ser suspeitada
ratório. Os chamados exames de rotina, utilizados sempre que o sangramento ocorra de modo simultâ-
para avaliar a coagulação, podem induzir a resultado neo em diferentes sítios, apresente-se como sangra-
falso-positivo quando indicam alteração da coagula- mento de forma lenta e de fonte não identificada ou
ção decorrente de erro laboratorial, bem como serem apareça tardiamente, após hemostasia inicialmente
incapazes de identificar desvios da normalidade em adequada. As hemorragias oriundas de um único lo-
pacientes com doença subjacente. Além disso, a re- cal ou que ocorrem de modo abrupto e intenso, pro-
lação custo versus benefício da realização de exames vavelmente, devem-se a condições locais de hemos-
para avaliação do risco de hemorragia em pacientes tasia inadequada.
sem evidência clínica que sugira alteração da coagu-
O estudo do paciente deve incluir: reavaliação
lação é extremamente desvantajosa.
de sua história clínica, identificação do possível uso
2) Pacientes cuja história e/ou exame físico in- de qualquer droga antes da operação, incluindo entre
diquem a possibilidade de doença que acarrete risco elas o uso de cristaloides, coloides ou hemoderivados.
de hemorragia deverão realizar, inicialmente e de for- O exame físico deve buscar o tipo e a localização do
ma indispensável, os seguintes exames laboratoriais: sangramento. Testes laboratoriais devem, inicialmen-
tempo de sangramento (método de Ivy e método de te, abranger todos os possíveis defeitos da coagulação,
Duke), retração do coágulo, contagem e morfologia incluindo deficiência de fatores, trombocitopenia e
das plaquetas, tempo e atividade de protrombina, trombocitopatia, hiperfibrinólise e coagulação intra-
tempo de tromboplastina parcial ativado, tempo de vascular disseminada.

Avaliação laboratorial do risco de hemorragia


Doença Plaqueta TS RC TAP TTPa TT
Trombocitopenia Baixa Prolongado Pobre/ausente Normal Normal Normal
Alteração do fator tissular Normal Prolongado Normal Normal Normal Normal
Alteração qualitativa das Normal
Normal Prolongado Normal Normal Normal
plaquetas Pobre/ausente
Deficiência de fator VII Normal Normal Normal Prolongado Normal Normal
Deficiência de fator II, V ou X Normal Normal Normal Prolongado Prolongado Normal
Deficiência de fator VIII ou IX Normal Normal Normal Normal Prolongado Normal
Doença de von Willebrand Normal Prolongado Normal Normal Variável* Normal
Afibrinogenemia;
Normal Variável Normal Normal Normal Prolongado
desfibrinogenemia
CIVD/Insuficiência hepática Ocasionalmente
Geral/baixa Variável* Prolongado Prolongado Prolongado
pobre
Tabela 2.25 *Variável (por exemplo: prolongado). TS: tempo de sangramento; RC: retração do coágulo; TAP: tem-
po e atividade de protrombina; TTPa: tempo de tromboplastina parcial ativado; e TT: tempo de trombina.

SJT Residência Médica – 2016


48
Cirurgia geral e politrauma

O risco de TVP pode ser classificado em bai-


Quando transfundir plaquetas? xo, moderado ou alto, dependendo dos fatores de
De modo geral cirurgias de pequeno ou médio riscos adicionais e do procedimento cirúrgico exe-
porte podem ser realizadas com taxa de plaquetas igual cutado, com a conduta profilática individualizada a
ou maior que 50.000/mm³, enquanto que, cirurgias de partir desses critérios.
grande porte só deverão ser realizadas com plaquetas
em número igual ou maior que 100.000/mm³. Para res-
ponder esta pergunta fique atento às informações da Fatores de risco para trombose venosa
tabela a seguir. Fatores de risco
Fatores trombofílicos
clínico
Traumatismo e Resistência à proteína C
Linhas de conduta sugeridas para transfusão de cirurgia ativada
plaquetas Idade > 40 anos Fator lúpico anticoagulante
Contagem de plaquetas recente (dentro das 24 horas) (SAF*)
< 10.000/mm³ (para profilaxia). TVP prévia Síndrome anticardiolipina (SAF*)
Imobilização Deficiência de proteínas C e S
Contagem de plaquetas recente (dentro das 34 horas)
< 50.000/mm³ com sangramento microvascular evi- Doenças malignas Deficiência de
dente (exsudação) ou um procedimento invasivo/ci- antitrombina III
rúrgico planejado. Insuficiência cardíaca Deficiência de plasminogênio
Sangramento microvascular evidente e uma queda rá- Fibrilação atrial Hiperfibrinogenemia
pida na plaquetometria. Paralisia de membros Trombocitopenia induzida por
Pacientes adultos na sala de operações que sofre- inferiores heparina
ram procedimentos complicados ou necessitaram de Varizes de membros Necrose cutânea por cumarí-
mais de 10 unidades de sangue e têm sangramento inferiores nicos
microvascular. Dar as plaquetas se assumir que foi Obesidade Hiper-homocisteinemia**
realizada hemostasia adequada.
Terapia de reposição Síndromes de hiperviscosidade
Disfunção plaquetária documentada (por exemplo, estrogênica ou uso sanguínea
tempo de sangramento maior que 15 min., testes de contraceptivo oral
funcionais plaquetários anormais) com petéquias, Parto e gestação Síndrome nefrótica
púrpura, sangramento microvascular (exsudação)
ou procedimento invasivo cirúrgico. Doença intestinal Hemoglobinúria paroxística no-
inflamatória crônica turna (HPN)
Indicações proibidas:
Tabela 2.27 * e **: causas de trombose tanto em
Uso empírico associado à transfusão maciça, quando o veias como em artérias.
paciente não apresenta evidências clínicas de sangra-
mento microvascular (babação).
Profilaxia nos pacientes com síndrome de púrpura
Você pode também utilizar um sistema de escore
trombótica trombocitopênica/hemolítica urêmica ou
para estimar o risco de eventos tromboembólicos, se-
púrpura trombocitopênica idiopática.
guindo as orientações da tabela a seguir, e dessa forma
Disfunção plaquetária extrínseca (por exemplo, insufi- estabelecer as medidas terapêuticas adequadas para
ciência renal, doença de von Willebrand). cada grupo específico.
Tabela 2.26 Atenção!

Fatores de risco para trombose venosa profunda


Fatores de risco Pontos
Fenômenos tromboembólicos Idade > 40 anos 1
A prevenção é a chave para a redução da morbi- Idade > 60 anos 2
mortalidade no tromboembolismo venoso e está jus- Obesidade 1
tificada em virtude da sua eficácia e segurança, com
Estrógenos ou anticoncepcionais 1
poucos efeitos colaterais.
Neoplasia 2
Na profilaxia primária são utilizados métodos
físicos e medicamentosos, ou a combinação de am- Gravidez e puerpério 1
bos. A profilaxia secundária envolve a detecção pre- Imobilização 2
coce e o tratamento da trombose, se possível, em seu
Trombofilia 2
estágio subclínico.

SJT Residência Médica – 2016


49
2 Pré-operatório I

Fatores de risco para trombose venosa profunda Após tromboembolia arterial ou venosa, deve-
(Cont.) -se adiar a cirurgia eletiva por pelo menos um mês;
pacientes com anticoagulação por menos de duas se-
Síndrome nefrótica 1
manas em razão da embolia pulmonar ou TVP devem
Policitemia 2 ser considerados para colocação de filtro de cava an-
Doença autoimune 1 tes da cirurgia.
Leucemias 1 Uso de anticoagulantes orais deve ser sus-
penso pelo menos 4-5 dias antes da cirurgia. Em
IAM não complicado 1 pacientes de risco para trombose, manter com he-
IAM complicado 2 parina que, por sua vez, deve ser suspensa 6 horas
antes da cirurgia e reintroduzida 12 horas após.
AVCi 2
Por existirem evidências de que doses profilá-
Antecedente de TVP/TEP 2
ticas de heparina não fracionada (HNF) ou de baixo
Edema, varizes, úlcera e estase
2 peso molecular (HBPM) aumentam o risco de he-
dos MMII
matoma espinhal depois de técnicas anestésicas por
ICC 2 bloqueio regional (1:150.000 para anestesia epidural
História familiar de TVP/TEP 2 e 1:200.000 na anestesia espinhal), devemos sempre
Cirurgia de grande porte nos últi- informar ao anestesiologista quando da utilização
1 de drogas anticoagulantes antes do ato anestésico,
mos seis meses
Queimadura extensa 2 mesmo em doses profiláticas. A decisão de quando
realizar técnicas anestésicas de bloqueio neuroaxial,
Anticorpo antifosfolípide 2 nesses pacientes, deve ser tomada em bases individu-
Infecções 1 ais, pesando-se o risco versus benefício do método, a
Cirurgia geral > 60 minutos 2 familiaridade com a farmacologia das drogas antico-
agulantes e os estudos clínicos disponíveis envolven-
Cirurgia do quadril, joelho, próte-
do essas medicações. Algumas recomendações são
se, fratura de ossos longos, poli- 4
trauma
sugeridas nos pacientes com risco moderado para o
desenvolvimento de trombose venosa, iniciar a ad-
Total de pontos
ministração de doses profiláticas de HNF ou HBPM 2
Indicação para profilaxia conforme horas, após a punção anestésica. Nos pacientes com
o número de pontos alto risco de TVP, pode-se iniciar a profilaxia 12 ho-
ras antes da punção ou 2 horas após. Nos casos de
Risco baixo Risco moderado Risco alto (> 4 utilização de cateter peridural, iniciar a profilaxia 2
(< 2 pontos) (2-4 pontos) pontos)* horas após a punção, e este só deve ser retirado 12
Medidas não Dalteparina 2.500 Dalteparina 5.000 horas após a última dose profilática de heparina não
farmacológicas Ul SC 1 x/dia Ul SC 1 x/dia fracionada ou 24 horas após a de heparina de baixo
Movimentação Enoxparina 20 mg Enoxparina 40 mg peso molecular, postergando-se uma nova dose de
ativa MMII SC 1 x/dia SC 1 x/dia heparina profilática, quando necessária, para 2 ho-
Deambulação Nadroparina 2.850 Nadroparina 5.700 ras após a retirada do cateter. Se ocorrer acidente de
precoce UI SC 1 x/dia UI SC 1 x/dia punção com sangramento durante o bloqueio anesté-
sico, recomenda-se só administrar heparina após um
Meias elásti- Heparina 5.000 Ul Heparina 5.000 UI
intervalo de 12 horas.
cas de média 2 x/dia 3 x/dia
compressão Atenção a um fato relevante: trombocitopenia in-
até as coxas duzida pelo uso de heparina. Como proceder?
Compressão Nos pacientes ci- Nos pacientes ci- Pode ocorrer trombocitopenia induzida pela he-
pneumática rúrgicos: iniciar 2 rúrgicos: iniciar parina (TIH) em até 5% dos pacientes, causada pela
intermitente horas antes da ci- 2 horas antes da formação de anticorpos IgG contra os complexos
rurgia, seguida de cirurgia, seguida heparina-fator plaquetário 4. Na maioria dos pa-
aplicação diária, de aplicação diária, cientes com TIH, o número de plaquetas cai pelo me-
enquanto persistir enquanto persistir nos 50% em relação ao nível pré-heparina. Isso nor-
o risco. o risco. malmente ocorre depois de 4 a 5 dias de tratamento
Sempre associar às Sempre associar às com heparina, mas pode ocorrer nas primeiras 24 ho-
medidas não far- medidas não far- ras, quando tiver sido administrada heparina nos 100
macológicas. macológicas.
dias anteriores. A TIH pode ser induzida por descargas
Tabela 2.28 (*) HNF 12 horas antes; e HBPM 2 horas de heparina e até por quantidades mínimas removidas
antes. de cateteres mantidos com hepariana. Pode ocorrer

SJT Residência Médica – 2016


50
Cirurgia geral e politrauma

trombose secundária arterial e venosa, pela pri- do que a capacidade de inibir trombina, interagindo
meira, vez até 4 a 6 semanas, após a suspensão menos com plaquetas em comparação com a hepari-
da terapia com heparina. Em qualquer paciente na padrão e, assim, sua tendência é menor para causar
que apresente redução de 30% a 50% do número sangramento. Também têm biodisponibilidade maior
de plaquetas, deve-se suspender imediatamente e uma meia-vida mais longa do plasma, tornando pos-
toda a heparina e administrar outro anticoagulan- sível a administração uma vez por dia na profilaxia e
te, como lepirudina, bivalirudina ou argatroban, no tratamento. Não há necessidade de controle
quando necessário. O fondaparinux não parece re- com TTPA.
agir com o fator 4 das plaquetas e pode vir a ser o
tratamento de primeira linha para a TIH. Algumas situações especiais durante o uso
de heparina de baixo peso molecular requerem a
monitorização laboratorial do fator anti-Xa. En-
tre elas, destacam-se excesso de peso (alguns auto-
res consideram “excesso de peso” valores acima de 90
Breves lembranças a respeito das kg, e outros, acima de 130 kg ou IMC > 32), prematuri-
heparinas e do Warfarin dade, gravidez, insuficiência renal com creatinina aci-
ma de 2,5 mg/dL ou clearance de creatinina < 30 mL/
Heparina de alto peso molecular: a hepari-
min., e, de forma importante, naqueles indivíduos que
na potencializa significativamente a formação
apresentam hemorragia ou trombose na vigência de
de complexos entre antitrombina e os fatores
uma dose adequada corrigida pelo peso da heparina de
de coagulação serino-proteases ativados, trom-
baixo peso molecular.
bina (IIa) e fatores IXa, Xa e XIa. Essa formação
de complexos inativa irreversivelmente tais fatores. Embora o sulfato de protamina seja o inibidor es-
Além disso, a heparina reduz a função das plaquetas. pecífico e efetivo da HEP não fracionada, ele promove
O tratamento é controlado pela manutenção do somente reversão parcial do efeito anticoagulante das
TTPA entre 1,5 e 2,5 vezes o normal. HEP e de baixo PM. Isso decorre da sua menor densi-
dade de cargas de sulfato. Vários trabalhos em modelo
A heparina intravenosa tem meia-vida inferior à
animal e in vitro mostram que o sulfato de protamina
1 hora e, usualmente, apenas a suspensão da infusão
neutraliza a atividade antitrombina (antifator IIa) das
é suficiente. A protamina é capaz de inativar a he-
HEP de baixo PM. Porém, observa-se neutralização
parina imediatamente.
variável da atividade antifator Xa. As diferentes HEP
A dose de protamina para neutralizar os efeitos de baixo PM apresentam diferentes densidades de car-
anticoagulantes da HEP baseia-se na proporção de 1 ga de sulfato e, por isso, o grau de neutralização varia
mg de protamina para cada 100 UI (ou 1 mg) de HEP. A entre elas, havendo forte correlação entre o grau de
protamina é administrada por via intravenosa (IV), na neutralização do fator Xa e o conteúdo total de sulfa-
dose máxima de 50 mg em 10 minutos, pois há risco to. Embora a menor redução de inibição possa resultar
de liberação de histamina, com hipotensão e bronco- em falha no controle de uma manifestação hemorrá-
espasmo. Pacientes que fizeram uso de insulina pro- gica, não é claro o significado clínico dessa inativação
tamínica, vasectomizados e alérgicos a peixe apresen- incompleta do fator Xa, existindo trabalhos com resul-
tam maior risco de reações alérgicas, podendo receber tados contraditórios quanto aos efeitos benéficos do
previamente corticosteroides e anti-histamínicos. A uso do sulfato de protamina para a neutralização das
meia-vida do sulfato de protamina é de sete minutos. HEP de baixo PM. De qualquer maneira, recomenda-
Além disso, uma dose excessiva pode ter efeito antico- -se que, na necessidade de reverter os efeitos antico-
agulante, com manifestações hemorrágicas, em razão agulantes da HEP de baixo PM administrada dentro
de seu efeito de agregação e consumo plaquetário. No de oito horas,seja utilizado sulfato de protamina na
cálculo da dose a ser administrada, deve-se considerar dose de 1 mg para cada 100 UI de HEP de baixo PM (1
a curta meia-vida da HEP não fracionada (60 a 90 mi- mg de enoxaparina tem cerca de 100 UI de atividade
nutos). Assim, um paciente recebendo 1.500 UI/h de antifator Xa); caso ocorra persistência do sangramen-
HEP necessita de cerca de 27 mg de protamina. O tem- to, pode ser administrada uma 2ª dose de 0,5 mg de
po de tromboplastina parcial ativada pode ser empre- sulfato de protamina para cada 100 UI de atividade
gado para controle do efeito do sulfato de protamina. antifator Xa. Quando a HEP foi administrada há mais
de oito horas, e há necessidade de se reverter seu efei-
to anticoagulante, indica-se dose menor de sulfato de
protamina. O emprego do fator VII ativado recombi-
Heparina de baixo peso molecular (PM) nante (rFVIIa) seria uma alternativa para reverter os
As preparações de heparinas de baixo peso efeitos das HEP de baixo PM, tendo sido relatada a efi-
molecular (LMWH) são produzidas por despolari- cácia do emprego de cinco doses repetidas de 100 mg/
zação enzimática ou química de heparina não fracio- kg em um paciente com dose excessiva de enoxaparina
nada. Sua capacidade de inibir o fator Xa é maior e hematoma cerebelar.

SJT Residência Médica – 2016


51
2 Pré-operatório I

Warfarin Os novos anticoagulantes


Anticoagulante oral derivado da cumarina, anta- orais
gonista direto da vitamina K e, assim, o tratamento
resulta em diminuição da atividade biológica dos A dabigatrana é um inibidor direto, seletivo e re-
fatores dependentes de vitamina K: II, VII, IX e versível do sítio ativo da trombina, que é administrado
X, além dos anticoagulantes endógenos proteí- por VO na forma de um promedicamento, o etexilato de
nas S e C. dabigatrana. Trabalhos in vitro mostram que a trombina
ligada à fibrina encontra-se relativamente protegida da
Depois da administração de warfarin (mare- ação de anticoagulantes do tipo heparina, o que não ocor-
van), os níveis de fator VII caem consideravelmente re com a dabigatrana, que, por ter baixo peso molecular,
em 24 horas, mas a protombina tem uma meia-vida consegue promover sua inibição no meio do coágulo. A
plasmática mais longa e cai somente até 50% do nor- dabigatrana é aprovada para uso na prevenção do trom-
mal em 3 dias; o paciente está completamente anti- boembolismo venoso após cirurgias de artroplastia total
coagulado somente depois desse período. O contro- de joelho ou de quadril, e de embolia sistêmica e AVC,
le é feito com o INR e o objetivo é mantê-lo em em pacientes com fibrilação atrial não valvar. Por ser um
2,5 a 3. O antídoto específico é a vitamina K, em inibidor direto da trombina, a dabigatrana não necessita
dose oral ou intravenosa de 2,5 mg é, usualmente, de cofator para exercer sua função, como as heparinas, o
eficaz (doses maiores resultam em resistência a novo pentassacarídeo e outros glicosaminoglicanos.
tratamento com Marevan durante 2 a 3 semanas.
A rivaroxabana e a apixabana são inibidores di-
Quando há necessidade de reversão rápida e to- reitos do fator X ativado, administrados por via oral,
tal dos efeitos anticoagulantes de medicamento com que se ligam diretamente ao sítio ativo do fator Xa,
ação antivitamina K, como em sangramentos graves livre ou ligado às plaquetas, e, desse modo, impedem
ou cirurgias de urgência, três condutas podem ser sua interação com seus substratos. Esses dois fárma-
tomadas em associação: suspensão da medicação, ad- cos são aprovados para a prevenção do tromboembo-
ministração de vitamina K e reposição dos fatores da lismo venoso após cirurgias de artroplastia total de
coagulação dependentes de vitamina K. A vitamina joelho ou de quadril, e de embolia sistêmica e AVC em
K deve ser administrada por via EV, na dose de 5 mg, pacientes com fibrilação atrial não valvar. Somente a
que não acarretaria dificuldades quando da reintro- rivaroxabana foi aprovada para o tratamento da trom-
dução da medicação antivitamina K. A reposição dos bose venosa profunda e da embolia pulmonar.
fatores da coagulação (fatores II, VII, IX e X) pode ser
feita por meio da infusão de PFC ou concentrado de Medidas sugeridas para a reversão dos novos
complexo protombínico (CCP). O PFC contém todos anticoagulantes orais
os fatores dependentes de vitamina K e, em geral, é DABIGA- RIVARO- APIXABA-
administrado na dose de 15 mL/kg, o que dificulta TRANA XABANA NA
seu emprego nos pacientes idosos ou naqueles que Carvão ati-
Sim Sim Sim
não toleram sobrecarga de volume. Admite-se que vado oral
quando é preciso reverter a anticoagulação em pa- Hemodiálise Sim Não Não
ciente com RNI dentro dos valores terapêuticos, Hemoperfu-
pode ser empregada uma dose menor (5 a 8 mL/kg) são com car- Sim Possível Possível
vão ativado
de PFC. Desse modo, nos pacientes com RNI muito
Plasma
elevado não se obtêm níveis hemostáticos dos fato-
Fresco Con- Não Não Não
res vitamina K-dependentes com doses toleráveis
gelado
de PFC. Além disso, nas doses preconizadas de PFC
Fator VII Sem Sem Sem
frequentemente não se consegue a normalização das ativado re- resultados resultados resultados
concentrações de fator IX. Nos CCP, as concentrações combinante claros claros claros
dos fatores dependentes de vitamina K são cerca de Concentra-
25 vezes superiores às do PFC e, portanto, o volume do de Com- Sem Sem Sem
necessário para reverter o RNI seria 25 vezes menor. plexo Pro- resultados resultados resultados
O CCP reverte rapidamente os marcadores laborato- trombínico claros claros claros
riais de coagulopatia decorrentes do efeito, ou maior (3 fatores)*
efeito, dos agentes antivitamina K, sendo relatado Concentra-
que 15 minutos após sua administração é obtida a dos de com-
normalização do RNI. Até o momento, não foi esta- plexo Pro- Possível Possível Possível
belecida a dose ótima de CCP para reverter os efeitos trombínico
das medicações antivitamina K, havendo ampla va- (4 fatores)**
riação das doses administradas. Tabela 2.29

SJT Residência Médica – 2016


52
Cirurgia geral e politrauma

Avaliação nutricional Índice de Massa Corporal


Obrigatória em pacientes com alteração de
(IMC)
peso (desnutridos ou emagrecidos), candidatos ao Há três décadas, Keys e cols., (1972) sugeriram
tratamento cirúrgico da obesidade mórbida, doen- chamar a relação peso (kg)/estatura (m²) de Índice
ças consumptivas ou que afetem a capacidade de ab- de Massa Corporal (IMC). A partir daí, essa relação
sorção do TGI. Além disso, pacientes com fístulas, se tornou popular e alguns passaram a chamá-la “ín-
vômitos e/ou diarreia profusas e infecções merecem dice de Quetelet”, em homenagem a seu criador,
avaliação nutricional. em 1930. É uma medida mais apropriada do que o
peso isoladamente, já que a variabilidade do peso
A avaliação inclui parâmetros antropométri-
em adultos é reconhecidamente dependente da
cos e laboratoriais, tendo por objetivo quantificar
variação em estatura.
as reservas corpóreas.
Vale ressaltar que o uso do IMC como parâmetro
A antropometria nutricional mede as variações
isolado para pacientes não informa a verdadeira situ-
das dimensões físicas e da composição corporal de in-
ação nutricional subestimando o diagnóstico nutri-
divíduos nas diferentes idades e graus de nutrição. É
cional e mascarando a desnutrição. Algumas medidas
um procedimento simples, não invasivo, seguro, po-
como pregas cutâneas triciptal e subescapular, circun-
dendo ser aplicado no leito, não requer equipamento
ferência braquial e circunferência muscular braquial
sofisticado e podem ser repetidas várias vezes para
também podem ser usadas.
acompanhar a evolução nutricional do paciente. En-
tretanto, podem ocorrer erros durante a tomada das São considerados valores normais para o IMC
medidas antropométricas que podem comprometer a entre 18,5 e 24 kg/m², alguns autores recomendando
precisão da avaliação, causados tanto pela imperícia o termo baixo peso para os indivíduos com IMC en-
do avaliador como pela própria doença do paciente, tre 18,5 e 20. Valores acima ou abaixo desses limites
que pode dificultar a tomada das medidas ou alterar são indicativos de risco nutricional. Analisando-se os
o seu significado. A avaliação antropométrica de dados disponíveis na literatura sobre a relação entre o
adultos é realizada, principalmente, por meio da IMC e as condições que levam à morte, foi verificado
relação entre o peso e a estatura, a circunferência que o valor de 12 para o IMC é limite mínimo de so-
braquial e medidas das pregas cutâneas. brevivência humana.
Índice de massa corpórea (IMC) = P (kg)/A2 (m)
Baixo peso: < 18,5 Superobeso > 50*
Normal: 18,5-24,9 Supersuperobeso > 60*
Peso e estatura Pré-obeso: 25-29,9 Megaobeso > 70*
O peso é, sem dúvida, a medida antropométri- Obeso classe I: 30-34,9
ca mais frequentemente obtida. Recomenda-se que Obeso classe II: 35-39,9
o peso seja obtido pela manhã, com o indivíduo em Obeso classe III: ≥ 40
jejum, com o mínimo de roupa, sem sapatos e após o Tabela 2.30 Atenção! * Sociedade Brasileira de Cirurgia
esvaziamento vesical. A calibração frequente da balan- Bariátrica.
ça é fundamental para que não ocorram erros.
A estatura deve ser obtida com o paciente em pé, Na prática clínica, o IMC tem sido amplamente uti-
descalço, encostando a nuca, nádegas e calcanhares lizado para identificar pacientes cirúrgicos de risco, sele-
em uma barra (ou parede) vertical fixa, inextensível cionar indivíduos para serem submetidos a intervenções
e graduada, com a linha de visão na horizontal. A pre- nutricionais e para monitorar o progresso do tratamento
sença de curvaturas anormais na coluna ou a impos- instituído. Entretanto, o IMC subestima a incidência
sibilidade da medida de pé devem ser consideradas, de desnutrição em pacientes cirúrgicos. Comparati-
recomendando-se, nesses casos, que a estatura seja vamente com a relação peso habitual/peso atual, taxa
referida pelo paciente ou estimada pela medida da al- de albumina sérica ou com a avaliação subjetiva global, o
tura do joelho, que é altamente correlacionada com a
IMC é o índice que mais subestima a desnutrição. Além
estatura. Essa medida particular é realizada com um
disso, alguns autores preconizam que o IMC em idosos
antropômetro ajustável do calcanhar ao joelho dobra- deve ser mais alto e consideram desnutridos aqueles
do em um ângulo de 90°, com o paciente deitado. A pacientes com IMC menor que 23 kg/m².
essa medida, é aplicada uma dessas fórmulas:
É importante que se use o registro do peso habi-
Sexo masculino (cm) = (2,02 x altura do joe- tual (aquele que o paciente sempre teve, considerado
lho) – (0,04 x idade) + 64,19 como normal no período em que estava hígido e exer-
Sexo feminino (cm) = (1,83 x altura do joelho) cendo suas atividades usuais) no lugar do peso teóri-
– (0,24 x idade) + 84,88 co ou ideal (aquele calculado de acordo com o sexo, a

SJT Residência Médica – 2016


53
2 Pré-operatório I

estatura e a estrutura óssea do indivíduo são obtidos na prática clínica a Impedância Bioelétrica, ou Bio-
por meio de tabelas), pois é este que registra com maior impedância Corporal, método simples, seguro, rápi-
fidedignidade o porcentual de ganho ou perda de peso. do, sensível, não invasivo e fácil de usar, aplicável à
Alguns pacientes podem apresentar peso inferior ao te- beira do leito. Esse método vem sendo amplamente
órico sem que este traduza algum grau de desnutrição, estudado e validado em âmbito hospitalar, e uma de
ao passo que, nos pacientes obesos, a desnutrição pode- suas vantagens é a eliminação dos erros de medida
rá passar despercebida a esta medida. Algumas vezes, que, normalmente, ocorrem quando são utilizados os
os pacientes ao serem internados não são pesados, e métodos antropométricos.
esse dado, simples e importante, deixa de ser analisado. O princípio da bioimpedância baseia-se no fato
O porcentual de perda de peso é muito impor- que a impedância Z (resultante da resistência ofereci-
tante para o diagnóstico da desnutrição. Ele pode da ao fluxo elétrico) relaciona-se ao volume do corpo
ser obtido pela fórmula: perda de peso = ((peso habi- como um condutor, tendo sido demonstrada uma cor-
tual – peso atual)/peso habitual) x 100. relação significativa entre o seu valor e a massa magra.
Assim, a impedância tem maior valor na massa lipí-
As alterações no peso corporal podem refletir
dica comparativamente à massa biologicamente ativa
uma mudança no conteúdo de proteínas, água, mine-
(tecido magro), que contém praticamente toda a água
rais e/ou gordura. Para avaliar a perda de peso, o por-
corpórea com eletrólitos, portanto, altamente condu-
centual de perda de peso pode ser calculado e relacio-
tora e com resistência baixa.
nado com o tempo em que ocorreu, sendo utilizada a
classificação de Blackburn e cols., (Tabela 2.29). Novos aparelhos que determinam ângulo de fase
na impedância bioelétrica mostram que a composição
Avaliação da percentagem de perda de peso corporal pode predizer complicações e correlaciona-se
Perda de peso Perda de peso com a avaliação subjetiva global.
Tempo
significativa (%) severa (%)
Uma semana 1a2 >2
Um mês 5 >5 Avaliação subjetiva global
Três meses 7,5 > 7,5 (ASG)
Seis meses 10 > 10
Tabela 2.31 Atenção! Atualmente, vem ganhando espaço na prática
da avaliação do estado nutricional a Avaliação Sub-
jetiva Global (ASG). Trata-se de um método clínico,
Algum grau de perda de peso é, geralmente, es- simples, de baixo custo e rápido. Essa técnica de ava-
perado durante a hospitalização ou com a evolução da liação alia o exame físico e a história clínica rápida e
doença. Essa perda é derivada da doença ou do trata- eficiente. Alterações na ingestão alimentar, no peso,
mento. Deficits de 5% a 10% do peso habitual não no trato gastrointestinal e na capacidade funcional
têm sido considerados clinicamente significativos, são avaliadas e pontuadas, de forma que os pacientes
porém, perda rápida de peso acima desse valor sejam divididos em três classes: classe A, bem nutri-
pode ser encontrada com frequência e é evidência dos; classe B, moderadamente desnutrido ou em risco
de desnutrição. de desnutrição; e classe C, severamente desnutrido. A
A variação ponderal para o peso habitual (peso ASG é um acurado preditor de pacientes que tenham
atual/peso habitual x 100%) pode classificar a des- alto risco de complicações ou que necessitem de su-
nutrição de acordo com Grant e cols., (1981) em: porte nutricional. Pacientes que apresentam uma
€ desnutrição leve: 90% a 85% do peso habi- perda corporal de 10% nos últimos seis meses po-
tual; dem ser classificados como C (atenção!).
€ desnutrição moderada: 85% a 75% do peso
habitual;
€ desnutrição severa: menor que 75% do peso Avaliação bioquímica
habitual.
A avaliação do estado nutricional deve ser com-
plementada por meio de exames laboratoriais de
Impedância bioelétrica rotina em pacientes cirúrgicos. Esse método tem a
vantagem de identificar as alterações nutricionais
Para uma avaliação mais criteriosa do estado na fase subclínica. Os níveis de proteínas séricas,
nutricional de pacientes internados, técnicas de esti- albumina e a contagem linfocitária no sangue pe-
mação da composição corporal vêm sendo utilizadas riférico têm-se mostrado específicos e sensíveis
na tentativa de analisar, em detalhes, as modifica- para prever complicações pós-operatórias, taxas
ções ocorridas na constituição de cada um dos com- de permanência hospitalar e mortalidade em pa-
ponentes. Nesse contexto, tem sido muito utilizada cientes cirúrgicos. A avaliação da quantidade de

SJT Residência Médica – 2016


54
Cirurgia geral e politrauma

água e sódio pode ser um dado indireto complemen- Grau de desnutrição de acordo com a albumina e
tar importante para a avaliação nutricional em pa- transferrina sérica
cientes com desnutrição aguda. Estado Albumina Transferrina
nutricional (g/dL) (g/dL)
Normal 3,5 a 5 200 a 400
Proteínas plasmáticas DPE leve 2,8 a 3,4 150 a 199
Uma estimativa do fornecimento adequado de DPE moderada 2,1 a 2,7 100 a 149
aminoácidos ao fígado e de sua capacidade de síntese DPE grave < 2,1 < 100
pode ser obtida por meio de uma série de proteínas Tabela 2.32 Atenção!
plasmáticas, que, geralmente, são reduzidas à medida
que o organismo perde reservas de proteínas. Os exa-
mes mais comumente utilizados são a dosagem da
Pré-albumina
albumina sérica, da pré-albumina e da transferrina. A pré-albumina desempenha um grande papel no
transporte da tiroxina e é carreadora para a proteína
fixadora do retinol. A meia-vida sérica foi calculada
como sendo de apenas dois dias e sua reserva cor-
Albumina sérica poral é pequena. Qualquer demanda brusca de sín-
A albumina é uma das proteínas mais exten- tese proteica, como na infecção aguda ou no trauma-
sivamente estudadas e de uso rotineiro na prática tismo, deprime rapidamente a pré-albumina sérica,
cirúrgica. A taxa de albumina sérica é, geralmente, devendo-se realizar uma interpretação cuidadosa dos
baixa na presença da desnutrição proteico-energéti- dados obtidos antes de se poder inferir a existência de
ca (DPE) e também tem sido amplamente indicada uma depleção nutricional. As concentrações séricas
para avaliar o estado nutricional, sendo particu- normais variam entre 15,7 a 29,6 mg/100 mL, com
larmente usada para o prognóstico do aumento uma média de 22,4 mg/100 mL. Os níveis entre 10
da mortalidade e da morbidade. O total de albu- e 15 mg/100 mL foram considerados como uma
depleção proteica visceral leve, ao passo que 5 a 10
mina corporal em um homem de 70 kg é aproxima-
mg/100 mL denotam uma depleção moderada, e me-
damente de 300 g (3,5 a 5,3 g/kg). Concentrações
nos de 5 mg/100 mL, uma depleção visceral grave.
séricas de albumina superiores a 3,5 g/100 mL são
consideradas normais. Para efeito das questões de provas, deixamos regis-
trado que, além das proteínas anteriormente descritas,
O longo período de meia-vida da albumina (em vale a pena lembrar-se da proteína carreadora do reti-
média 21 dias), assim como a grande reserva corporal nol que possui vida-média de 10 horas, descrita como
(4 a 5 g/kg) têm sido responsabilizados pela sua má cor- um marcador para avaliação nutricional, porém, é de-
relação com processos agudos que levam à desnutrição. pendente dos níveis plasmáticos de vitamina A.
Entretanto, a facilidade de seu uso, o baixo custo e a
sua correlação com a perda de peso e com a mortalidade
fazem da albumina um grande aliado na avaliação e na
Balanço nitrogenado
evolução dos pacientes na prática clínica. A excreção urinária de nitrogênio sob a forma
de nitrogênio ureico é utilizada para avaliar a perda
proteica muscular. O balanço nitrogenado consiste no
cálculo da diferença entre o nitrogênio ingerido e aque-
Transferrina le excretado. O nitrogênio ingerido é obtido dividindo-
A transferrina sérica é uma betaglobulina que -se por 6,25 a grama de proteína ingerida. O nitrogênio
transporta o ferro no plasma. É sintetizada no fíga- excretado é obtido pela somatória das perdas do nitro-
do, com concentrações séricas normais oscilando gênio urinário, nitrogênio das fezes e de outras perdas
de 250 a 300 mg/100 mL e uma reserva plasmáti-
como a pele. Na prática, pode-se usar a dosagem de 24
horas da ureia urinária multiplicada pelo fator 0,46 ou
ca média de 5,29 g. A meia-vida da transferrina
a quantidade total de N urinário (esta é mais fidedigna,
varia de 8 a 10 dias, com uma média de 8,8 dias.
pois o N existe em outros compostos além da ureia). Es-
Por causa da menor reserva corporal e da vida média
timam-se em 2 g as perdas na pele e nas fezes e, assim,
mais curta, admite-se que a transferrina reflete com a fórmula final para o cálculo com a ureia urinária fica:
maior exatidão as alterações agudas ocorridas no
estado da proteína visceral. Entretanto, sua taxa
pode ser influenciada pela carência de ferro (pela di-
minuição na ingestão e/ou no consumo bacteriano Balanço nitrogenado = N ingerido – (N ureico urinário
em infecções). + 2 g)

SJT Residência Médica – 2016


55
2 Pré-operatório I

Identifica-se a população de pacientes com mor-


Linfócitos
bidade e mortalidade aumentadas utilizando-se al-
A interação entre o estado nutricional e a imu- bumina, transferrina, prega cutânea do tríceps
nocompetência é clara. Eles não são fatores inde- e hipersensibilidade cutânea tardia. Um modelo
pendentes e a natureza de sua relação é vital para matemático foi utilizado para melhorar o valor
pacientes cirúrgicos. A infecção, com decorrente preditivo: INP (%) = 158 - 16,6 (albumina) - 1,78 (pre-
diminuição da imunocompetência, é a maior causa ga cutânea do tríceps) - 0,2 (transferrina) - 5,8 (prova
de mortalidade e morbidade em indivíduos severa- cutânea) – em que 0 = não reativo; 1 = reatividade me-
mente desnutridos, formando um ciclo no qual cada nor que 5 mm; e 2 = reatividade maior que 5 mm).
fator pode exacerbar o outro. Atualmente, o estudo
imunitário faz parte do conjunto de métodos usados Índice nutricional
para avaliar o estado nutricional. Já que a maioria prognóstico x morbimortalidade
dos laboratórios não está equipada para realizar ava-
Taxa de Taxa de
liações extensas do sistema imunológico, têm sido Risco (IPN)
complicação mortalidade
principalmente utilizadas a contagem total de linfó-
Baixo (< 40%) 0,8% 0,3%
citos e as provas de hipersensibilidade cutânea. Uma
contagem total de linfócitos entre 1.200 e 2.000 Médio (40%-49%) 30% 4,3%
por mm3 é considerada representativa de deple- Alto (> 50%) 46% 33%
ção nutricional leve, entre 800 e 1.199 por mm3 de Tabela 2.33 Atenção!
depleção moderada, e inferior a 800 por mm3 de
depleção grave.

Avaliação nutricional simpli昀椀cada


É outra forma de avaliação nutricional e que se
Outros critérios utilizados na mostrou útil no dia a dia do cirurgião.
avaliação nutricional
Avaliação simplificada do grau de desnutrição
pré-operatória
Desnutrição Desnutrição Desnutrição
Parâmetro
leve moderada grave
Índice de risco nutricional (IRN) % emagreci-
10 10-20 > 20
Um dos problemas em interpretar os estudos de mento
suporte nutricional é a ambiguidade frequentemente Prega cutâ-
associada com definições de graus de desnutrição. Em nea tríceps 9,0-10,0 7,5-10,0 < 7,5
relação a isso, o IRN, baseado na albumina sérica (mm)
e na magnitude da perda de peso, tem sido usado Albumina
para graduação da desnutrição e como controle em es- sérica 3,1-3,5 2,2-3,1 < 2,2
tudos de avaliação do suporte nutricional. (g/dL)
Total de
IRN = [(1,519 x albumina g/L) + 0,417] + [(peso
linfócitos/ 1.000-1.200 800-1.000 < 800
atual/peso usual) x 100] mm3
€ Desnutrição leve: > 97,5 Testes
4,5-5,0 <5 0
€ Desnutrição moderada: 83,5 a 97,5 cutâneos*
(*) Diâmetro de enduração (em mm).
€ Desnutrição grave: < 83,5
Tabela 2.34

Índice nutricional prognóstico


(INP)
Índice que deve ser empregado em situações es-
peciais. A meta da avaliação nutricional é identificar
pacientes em risco de morbidade ou mortalidade por
desnutrição. A capacidade de fornecer suporte nutri-
cional e potencialmente minimizar ou evitar a morbi-
dade por desnutrição calórico-proteica estimulou os
esforços para identificar, por uma variedade de méto- Figura 2.4 Utilização do adipômetro na medida da
dos, os pacientes de risco. prega cutânea do tríceps.

SJT Residência Médica – 2016


56
Cirurgia geral e politrauma

A oferta de energia pode variar à medida que o


O suporte nutricional paciente oxida as calorias recebidas em ATP e CO2. Por-
tanto, depende também do estado metabólico geral do
A preferência do suporte nutricional nas cirur- paciente em termos de oxigenação, perfusão, pH, hi-
gias eletivas em doentes com deficit nutricional é pelo dratação e presença de minerais. De maneira geral, no
tubo digestivo, por via oral ou enteral. Nas cirurgias
período pré-operatório a meta é fornecer aos doentes
eletivas em doentes com deficit nutricional SEM con-
energia na quantidade necessária para restaurar as
dições de usar o tubo digestivo, indica-se a nutrição
condições mínimas para garantir os processos de coa-
parenteral prévia por período de 7 a 10 dias.
gulação, inflamação, combate à infecção e cicatrização
Após o diagnóstico nutricional e a correta in- do trauma por vir. Para doentes com doenças benignas
dicação da terapia nutricional, devem-se calcular as e se a intervenção cirúrgica puder esperar, recomenda-
necessidades protéticas e calóricas do paciente. O cál- -se um período de terapia nutricional de até três se-
culo pode ser feito por métodos sofisticados, como a manas para a recuperação do estado nutricional. Para
calorimetria indireta ou mediante o uso de equações, aqueles com doenças malignas, recomendam-se de
das quais a mais utilizada é a de Harris-Benedict. 7 a 10 dias de terapia nutricional pré-operatória,
Essa equação fornece o gasto metabólico basal que, se sem se pretender que haja mudanças objetivas nos
multiplicado pelo fator de atividade, fornece o gasto parâmetros rotineiros de avaliação nutricional.
metabólico em repouso. Para pacientes cirúrgicos com No período pós-operatório, a necessidade energética
perda reduzida de peso, é possível proceder ao cálculo vai se modificar conforme a intensidade da agressão
com o peso usual. Quando a perda for superior a cirúrgica ou traumática e de acordo com o tempo de
10%, recomenda-se iniciar com o peso real medi- evolução. Para as cirurgias que decorrem sem maiores
do e progressivamente ajustar com o peso usual. intercorrências, o período catabólico dura até 5 dias,
Para enfermos com índice de massa corpórea superior diferentemente dos doentes que complicam ou que
a 25, recomenda-se usar o peso ideal ajustado. Deve- estão na UTI sob cuidados críticos. Nesses, o período
-se mencionar que os cálculos estimativos de gasto catabólico é prolongado com maior taxa de hipercata-
energético, de forma geral, superestimam os valores bolismo. Doentes sedados no ventilador têm menor
obtidos por calorimetria indireta. gasto energético que aumenta muito na fase de des-
mame. No pós-operatório de cirurgias eletivas,
Fórmula de Harris-Benedict para estimar
sem complicações, recomenda-se a oferta de 25
o gasto energético basal
kcal/kg/dia para doentes mais graves e 30 kcal
H = GEB = 66,42 + (13,75 x P) + (5,0 x A) - (6,76 x I) para os menos complicados. Com o controle me-
M = GEB = 65,51 + (9,56 x P) + (1,85 x A) - (4,67 x I) tabólico, passa-se, quando necessário para até
Em que: 35 a 40 kcal/kg/dia. Deve-se evitar a hiperalimen-
GEB = gasto energético basal; tação acima desses limites, especialmente em doentes
H = homem; criticamente graves, por riscos de alterações hepáti-
M = mulher; cas, imunológicas e dificuldade no desmame de ven-
P = peso (kg); A = altura (cm); tilação artificial. A energia pode ser ministrada como
I = idade (anos). carboidratos e lípides, e a proporção entre eles é vari-
Gasto energético total (GET)* ável de acordo com a via de acesso e o metabolismo do
GET = GEB x FE (MPH) doente. Vale lembrar que a necessidade de oferta de
FE = de 1 a 1,5 glicose no estresse metabólico varia em torno de 60%
Em que: a 70% do total de calorias não proteicas. No entanto,
FE = fator estresse; a oferta de glicose não deve ultrapassar 5 mg/kg
MPH = média para pacientes hospitalizados. por minuto, que é o limite de sua oxidação. Nos
doentes críticos, recomenda-se permanecer abaixo
Tabela 2.35 (*) O valor obtido é multiplicado pelo deste limite (de 3 a 4 mg/kg/minuto), sob pena de hi-
chamado fator de estresse que na inanição vale 1,0, nas perglicemia e suas funestas repercussões. No período
cirurgias eletivas 1,3, no trauma e/ou sepse tem o valor pré-operatório, a oferta de proteína é em torno
de 1,5. de 1,0 g/kg/dia e, após trauma ou intervenção ci-
rúrgica, aumenta chegando até 2,0 g/kg/dia. Em
média se oferece 1,5 g/kg/dia à medida que haja bom
Fórmula do peso ajustado
funcionamento renal e hepático, o que pode significar
Peso ajustado = (peso atual - peso ideal) x 0,25 + peso uma relação, na dieta ofertada, de calorias por grama
ideal de nitrogênio de 150:1.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

3
Pré-operatório II

O preparo do paciente
Interrupção de medicamentos
Pacientes em uso de aspirina devem suspendê-la por pelo menos 7 dias antes da cirurgia eletiva,
aqueles em uso de anticoagulantes orais, devem suspendê-los pelo menos 4 dias antes, enquanto que o
uso de AINH (exceto AAS) deve ser suspenso pelo menos 2 dias antes. Fiquem atentos às próximas tabelas e
valorize cada uma das informações.

Cuidados com uso de medicamentos


Antiplaquetários
AAS Suspender 7-10 dias antes da cirurgia eletiva.
Ticlopidina Suspender 4 a 5 dias antes da cirurgia eletiva.
Clopidogrel Suspender 3 a 5 dias antes da cirurgia eletiva.
Em caso de síndrome coronariana aguda ou acidente vascular cerebral recente
esses medicamentos devem ser mantidos sempre que possível.
Anti-hipertensivos Devem ser continuados até a manhã da cirurgia (com gole d’água), com cuidado
especial no caso de betabloqueadores e clonidina pela possibilidade de síndrome
de retirada.
Antiarrítmicos Geralmente devem ser continuados.
Terapia de reposição hormonal Hormônios devem ser suspensos um mês antes da cirurgia.
58
Cirurgia geral e politrauma

Cuidados com uso de medicamentos (Cont.)


Hipoglicemiantes
Biguanidas ou sulfonilureias(*) Suspender no dia anterior; HGT de 4/4 horas com insulina regular suplemen-
tar, quando necessário SG 5% 100 mL/h durante o jejum.
Insulina subcutânea Insulina NPH 1/2 ou 2/3 da dose na manhã da cirurgia + SG 5% 100 mL/h desde a
manhã da cirurgia até o término do NPO (nada por via oral).
Corticoterapia crônica Hidrocortisona 100 mg de 8/8 horas iniciando na manhã da cirurgia e mantendo
por 48-72 horas ou por período mais prolongado, caso haja complicação no pós-
-operatório.
Hormônios Devem ser mantidos antes e após cirurgia.
tireoidianos
Anticonvulsivantes Devem ser adotados esquemas para a manutenção das concentrações plasmáti-
cas para evitar as crises.
Benzodizepínicos Podem ser mantidos, sendo úteis no pré e transoperatório. Evitar em caso de
história de reação paradoxal a benzodiazepínicos.
Antipsicóticos Geralmente devem ser continuados.
Lítio e antidepressivos tricíclicos Podem ser continuados.

Tabela 3.1 Atenção! (*) Sulfonilureias de longa duração devem ser suspensas 48 horas antes do ato cirúrgico. Al-
guns autores recomendam suspender a metformina (biguanida) 48 horas antes da indução anestésica; neste caso, o
motivo está relacionado com o potencial desenvolvimento de acidose lática em situações de deficit de oxigenação
tecidual.

Preocupações perioperatórias e recomendações para oito medicamentos herbáceos


Nome
Recomendação
comum Preocupação perioperatória
pré-operatória
da erva
Echinacea Reações alérgicas; redução da eficiência de imunossupressores; poten- Sem dados.
cial para imunossupressão com uso em longo prazo.
Ephedra Risco de isquemia do miocárdio por taquicardia e hipertensão: arritmia Descontinuar pelo menos 24
ventricular com halotano; uso em longo prazo esgota as catecolaminas horas antes da operação.
endógenas e pode causar instabilidade hemodinâmica intraoperatória;
ameaça à vida com interação de inibidores da monoamina oxidase.
Alho Potencial ao aumentar o risco de sangramento, especialmente quando com- Descontinuar, pelo menos, 7
binado com outros medicamentos que inibem a agregação de plaquetas. dias antes da operação.
Ginko Potencial ao aumentar o risco de sangramento, especialmente quando com- Descontinuar, pelo menos,
binado com outros medicamentos que inibem a agregação de plaquetas. 36 horas antes da operação.
Ginsen Hipoglicemia; potencial ao aumentar o risco de sangramento; potencial Descontinuar, pelo menos, 7
de reduzir os efeitos anticoagulantes da varfarina. dias antes da operação.
Cava Potencial ao aumentar o efeito sedativo dos anestésicos; potencial ao Descontinuar, pelo menos,
criar dependência, tolerância e retirada, após abstinência não planejada. 24 horas antes da operação.
de São João Inclusão das enzimas P450 citocrômicas, afetando ciclosporina, varfari- Descontinuar, pelo menos, 5
na, esteroides, inibidores de protease e, possivelmente, benzodiazepínicos, dias antes da operação.
bloqueadores de canais de cálcio e muitas outras drogas; redução do nível
sérico de digoxina.
Valerian Potencial ao aumentar os efeitos sedativos dos anestésicos; retirada agu- Sem dados.
da semelhante aos benzodiazepínicos; potencial para aumentar as ne-
cessidades anestésicas com uso em longo prazo.
Tabela 3.2

Banho do paciente na véspera da cirurgia


A propagação de germes é maior entre 30 a 90 minutos após o banho (assim, deve-se evitar o banho, ime-
diatamente, antes da cirurgia).

SJT Residência Médica – 2016


3
3 Pré-operatório II

de punção, as complicações infecciosas são menos fre-


Jejum quentes que as observadas no cateterismo vesical. Vale
O período mínimo de duas horas, quando o lembrar que a colocação de um cateter na bexiga, seja
paciente teve como última alimentação dieta de líqui- transuretral ou por punção, deve ser reservada para os
dos claros (água, líquidos sem gordura e sem proteí- casos selecionados em que a medida é indispensável,
na, suco de frutas sem polpa, chás e café preto), pois principalmente, nas operações de maior porte e no ab-
esta dieta não aumenta o volume de líquido gástrico dome agudo.
ou a acidez. Enquanto que pelo menos 4 horas são
necessárias para o esvaziamento, após uma re-
feição leve. Para uma grande refeição pode ser
necessário mais de 9 horas para o esvaziamento Cateterismo nasogástrico
gástrico. Lembrar que em pacientes diabéticos crôni- Dentro da filosofia de diminuir ao máximo o
cos, o esvaziamento de líquidos e sólidos é retardado trauma cirúrgico-anestésico, a utilização de catete-
em 40% a 50%. res nasogástricos (sondas) como método auxiliar
tem sido cada vez menor. Quando houver indicação
para seu uso, o cateter deve ser colocado apenas quan-
do o paciente já estiver sob o efeito dos anestésicos,
Limpeza mecânica exceto quando ele tiver de ser colocado como medida
pré-operatória do intestino para o esvaziamento gástrico. Nesta situação particu-
lar, pelo risco de refluxo e aspiração do conteúdo gás-
Durante várias décadas a preparação mecânica
trico, o cateter deve ser passado antes da intubação
do intestino com a adição de antibióticos orais foi o
anestésica. Se a necessidade do cateter se restringe ao
padrão de tratamento para qualquer cirurgia intesti-
peroperatório, ele deve ser retirado quando a operação
nal. Estudos mais recentes têm avaliado a necessidade
for finalizada, com o paciente ainda inconsciente.
tanto de antibióticos orais quanto de limpeza mecâ-
nica. Os antibióticos orais não conferem benefício ao
paciente e podem aumentar o risco de infecção pós-
-operatória por Clostridium difficile. Além disso, embo-
ra possa parecer que a remoção de material fecal reduz
Antibioticopro昀椀laxia
o risco de complicações anastomóticas e infecciosas, o As infecções do sítio operatório representam a
oposto é verdadeiro. Uma metanálise recente mostrou principal causa de morbimortalidade no período pós-
que os dois eventos não diminuem e podem aumentar -operatório. O uso profilático dos antibióticos associa-
com a limpeza mecânica. do a medidas gerais de prevenção de infecção cirúrgica
têm se mostrado eficazes, em uma série de situações,
quando utilizado racionalmente.
Está indicado nas cirurgias em que a ocorrên-
Tricotomia cia de complicações é elevada ou grave, e a literatura
Deve ser realizada imediatamente antes de demonstra a eficácia do uso. É fundamental garantir
começar a cirurgia, de preferência na sala cirúrgica, nível sérico adequado do antibiótico no momento da
para minimizar o risco de infecção. Devem ser apara- agressão tissular, assim, a aplicação do antibiótico
dos os pelos somente na área da incisão. A depilação deve se dar cerca de 30 minutos antes do início da
com lâmina oferece MAIOR risco de infecção na ferida cirurgia, geralmente, coincidindo com o momento
operatória facilitando o ingresso de micro-organis- da indução anestésica.
mos. Quando a tricotomia é feita nas condições cita- Diversos estudos têm demonstrado que a utili-
das, a taxa de infecções da ferida operatória gira em zação de antimicrobianos em dose única, na maioria
torno de 5%, chegando até 20%, quando é realizada dos casos, é suficiente como profilaxia da infecção da
mais de 24 horas antes do ato operatório. ferida cirúrgica. Uma segunda dose é suficiente quan-
do o procedimento cirúrgico se estende por mais de 3
horas ou período superior a duas vezes a meia-vida do
antimicrobiano utilizado. Alguns autores repetem a
Cateterismo vesical dose ocorra hemorragia maciça transoperatória igual
Quando indicado, deve ser feito com o máximo ou maior que o volume sanguíneo corporal.
rigor de assepsia, de preferência com o paciente anes- A extensão da profilaxia, por períodos superio-
tesiado. Atualmente, há uma discussão a respeito da res a 24 horas pós-operatório, não reduz a incidên-
escolha entre o cateterismo vesical e a colocação de cia de infecção da ferida operatória e só se justifica
cateter por punção suprapúbica. Os defensores deste a aplicação de antimicrobiano, além desse prazo, em
último método advogam que, apesar da necessidade situações especiais.

SJT Residência Médica – 2016


60
Cirurgia geral e politrauma

As exceções ao uso de antibióticos em cirur- Indicação de antibioticoprofilaxia


gias limpas ocorrem nos seguintes casos: quando
Tipo de ferida cirúrgica Indicação
o doente é portador de febre reumática e/ou usa pró-
Limpa Uso seletivo em pacien-
teses, em operações vasculares ou oftalmológicas em
tes com: 1) colocação de
que a infecção poderia implicar amputação ou ceguei- próteses;
ra, em alguns serviços de neurocirurgia e ortopedia, 2) operações em que a in-
cuja infecção no sítio cirúrgico é de tratamento difícil fecção seria grave;
e prolongado, ou em pacientes imunodeprimidos e na- e
queles que vão ser submetidos à colocação de prótese. 3) pacientes com risco au-
A antibioticoprofilaxia previne apenas infec- mentado de infecção.
ções do sítio cirúrgico e não infecções pulmonares e/ Contaminada Sim.
ou urinárias. Potencialmente contaminada Sim.
Infectada Sim (uso terapêutico).
Tabela 3.5
Classificação da ferida operatória segundo
a NAS e a incidência de infecção
Infecção Esquemas de antibioticoprofilaxia em cirurgia
Critério Tipo de cirurgia Antibióticos/ esquemas
(%)
Limpa Ferida limpa, não traumática, < 5 recomendados
sem inflamação e sem quebra Cabeça e pescoço, sem in- Cefazolina
da técnica asséptica. cluir boca e laringe
Potencial- Operação nos tubos digestivo, 10 Cabeça e pescoço, in- Cefazolina + Metronidazol
mente conta- respiratório ou geniturinário cluindo boca e laringe Sulbactam/Ampicilina
minada sem contaminação e mínima
quebra na técnica asséptica. Cardíaca Cefazolina
Contaminada Ferida traumática, contami- 18-20 Cefuroxima
nação grosseira, quebra da Vascular Cefuroxima
técnica asséptica, processo in- Cefazolina
flamatório não purulento.
Neurocirurgia Cefuroxima
Infectada/ Ferida traumática com te- 30-40
suja cidos desvitalizados, corpo Cefazolina
estranho, contaminação fecal, Ortopédica – prótese total Cefazolina
vísceras perfuradas e inflama- de quadril e outras articu- Cefuroxima
ção com material purulento.
lações
Tabela 3.3 NAS: National Academy of Sciences. Procedimentos Cefazolina
urológicos Ciprofloxacina
Ampicilina
Variáveis que influenciam o Cesariana Cefazolina
desenvolvimento da infecção
Histerectomias vaginal e Cefazolina
Fatores relacionados ao paciente abdominal Sulbactam/Ampicilina
Idade Estado nutricional Cirurgia plástica estética Cefazolina
Diabetes Tabagismo Apendicectomia Cefoxitina
Obesidade Infecção coexis- Colecistectomia* Não usar antibiótico
tente Cefazolina*
Colonização com micro-organismo Imunodeficiência Trato gastrointestinal Cefazolina
Tempo de internação pré-operatória superior
Fatores relacionados à operação Fígado e vias biliares Cefazolina (+ metronidazol)
Duração da escovação das mãos Antissepsia da pele Colorretal Cefoxitina
Tricotomia Preparo pré-opera- Gentamicina + metroni-
tório da pele dazol
Duração da operação Antibiótico profi- Transplantes Sulbactan/Ampicilina/
lático Cefotriaxone
Ventilação da sala de operação Esterilização dos Cirurgia bariátrica Sulbatan/Ampicilina/
instrumentos Cefazolina
Corpo estranho no local da operação Drenos Cirurgias limpas Cefazolina
Técnica cirúrgica: hemostasia Técnica cirúrgica: Trauma abdominal Cefoxitina/Sulbactam/
espaço morto Ampicilina
Técnica cirúrgica: trauma tecidual Tabela 3.6 (*) - Antibiótico indicado em idosos, neopla-
Tabela 3.4 sias, imunocomprometidos, icterícia.

SJT Residência Médica – 2016


3
3 Pré-operatório II

Pro昀椀laxia de endocardite Profilaxia antibiótica de adultos antes de inter-


venção odontológica, segundo a recomendação
infecciosa da American Heart Association
O fator mais importante na prevenção da endo- Via oral Amoxicilina 2g
cardite infecciosa é a manutenção de boa saúde bucal. Ampicilina 2 g por via intramuscular
Considerando que, aproximadamente, 50% das endo- ou intravenosa;
Via parenteral
cardites infecciosas são estreptocócicas e, a maioria Cefazolina 1 g ou ceftriaxone 1 g por
via intramuscular ou intravenosa.
destas, por Streptococcus viridans possam inferir que,
Alergia a penicilina
aproximadamente, 50% dos episódios de endocardite
Cefalexina 2g;
são desencadeados por alguma doença odontológi-
Oral Clindamicina 600 mg;
ca. Assim, valvopatas e cardiopatas, em geral, têm de
Azitromicina ou claritromicina 500 mg.
apresentar saúde bucal impecável para prevenir o de-
Cefazolina ou ceftriaxona 1 g por via
senvolvimento de endocardite infecciosa. intramuscular ou intravenosa;
Parenteral
Clindamicina 600 mg intramuscular ou
intravenosa.
Orientações de profilaxia de endocardite
Tabela 3.8
infecciosa em diferentes países
Associação de Cardiologia Norte-americana, Estados
Unidos, 2007
Princípios
Bacteriemias cotidianas ao acaso são mais importantes Preparo da equipe
que as intervenções odontológicas.
Profilaxia previne número reduzido de casos. Trocar roupas e utilizar gorros e toucas.
Risco da administração de antibióticos excede o benefício Máscara – sempre deve abranger boca e nariz,
potencial. para evitar a projeção de gotículas de saliva e muco ex-
A manutenção da saúde odontoestomatológica é mais im- pelidos pela respiração da equipe cirúrgica.
portante.
A profilaxia pode ser considerada razoável para inter- Mãos – possui dois tipos de flora: permanente (de
venções odontológicas que incluem manipulação gengi- remoção difícil, apenas em número e qualidade), tran-
val, periapical ou com perfuração da mucosa oral. sitória (bactérias agregadas a partículas de pó, gordura
Portadores de prótese valvar cardíaca ou material proteico. da pele, sendo mais fácil sua remoção). Técnica de es-
Endocardite infecciosa prévia. covação das mãos – pelo menos 5-7 minutos, com água
Cardiopatia congênita cianótica ou tratada com prótese (< 6 corrente e substância antisséptica, uso de luvas.
meses).
Valvopatia de receptores de transplante cardíaco.
Instituto Nacional para Excelência Clínica, Inglaterra,
2008
Condições sob maior risco de endocardite infecciosa
Valvopatia, prótese valvar cardíaca, cardiopatia congênita.
Endocardite infecciosa pregressa, cardiomiopatia hiper-
trófica.
Profilaxia não recomendada
Intervenções dentárias, gastrointestinais, geniturinárias,
respiratórias.
Sociedade Europeia de Cardiologia, 2009
Recomendação de limitar a profilaxia antibiótica aos
pacientes sob maior risco de endocardite infecciosa,
submetidos às intervenções odontológicas de maior ris-
co de bacteriemia.
Manter a boa saúde odontoestomatológica e revisões
odontológicas periódicas, tem um papel muito impor-
tante em reduzir o risco de endocardite infecciosa.
Técnicas de assepsia na manipulação de cateteres ve-
nosos e procedimentos invasivos são importantes para
prevenir endocardite relacionada a procedimentos in-
vasivos. Figura 3.1 Técnica para escovação das mãos e ante-
Tabela 3.7 braços.

SJT Residência Médica – 2016


62
Cirurgia geral e politrauma

Álcool etílico – 70%-90% mais barato, pouco


Assepsia – manobra realizada com o intuito de man-
irritante, inócuo ao organismo. Seu mecanismo de
ter o doente e o ambiente cirúrgico livres de germes.
ação é a desnaturação de proteínas da superfície das
Antissepsia – sinônimo de destruição de germes. bactérias. Quanto maior sua concentração, pior a ação
desinfetante. Efeito colateral: secura da pele.
Compostos halogenados – maior uso no processo
Assepsia do campo de escovação das mãos da equipe cirúrgica. Mecanismo
de ação: bloqueio de enzimas bacterianas. São exemplos:
operatório
Tintura de iodo 1%-2% – potente bactericida
A aplicação do antisséptico deve ser cuidadosa,
de amplo espectro (inclusive anaeróbios, esporulados
sempre do centro para a periferia do campo operató-
e fungos), porém, muito tóxico, devendo ser utilizado
rio, tomando-se o cuidado de evitar o escorrimento apenas em pele íntegra.
de excessos, já que irão se depositar e concentrar nas
áreas de declive, podendo determinar lesões na pele. Iodo-Povinil-Pirrolidona – possui agente solu-
bilizante do iodo, o que permite menos ação alérgica e
Após a aplicação do antisséptico são colocados tóxica (pode ser utilizado em pele lesada).
“campos” de tecido ou de material plástico especial, de
forma a manter estéreis as vizinhanças da área a ser Cloro (adicionado à água se converte em áci-
operada. As bordas da incisão devem ser protegidas do hipocloroso = Dakin) – é oxidante e bactericida,
por compressas, fixadas no subcutâneo ou, no caso de porém, de ação fugaz – daí sua utilidade em curativos.
doenças malignas, no peritônio parietal. É também O hexaclorofeno tem ação bacteriostática mais pro-
pela possibilidade de implantação de células tumorais longada (inclusive por dias, graças ao pH de 5-6 da
que, nas operações oncológicas, o instrumental a ser pele). O gluconato de cloro-hexidina tem ação contra
utilizado para a síntese da ferida operatória ficará se- Gram+, Gram – e fungos; sua ação contra esporos so-
parado e reservado para o momento adequado. Nas mente ocorre em altas temperaturas.
operações videolaparoscópicas, em que não há possi- Agentes oxidantes – bloqueio de enzimas e pro-
bilidade desses cuidados, as implantações de células teínas denominadas bacterianas.
tumorais na parede parecem ser mais frequentes. Água oxigenada – ação antisséptica ineficaz.
Permanganato de potássio – fraco agente bac-
tericida, com maior uso em irrigações vesicais e embe-
Agentes antimicrobianos recomendados para bição de compressas em úlceras crônicas da pele.
preparo cirúrgico da pele Íons metálicos – prata (nitrato de prata) e mer-
Solução Comentário cúrio (cloreto de mercúrio) se ligam às proteínas das
Isopropanol a 60%-90% Não usar em membranas bactérias em grande quantidade e competem também
mucosas. com proteínas séricas. Possuem ação tóxica e são mui-
Iodo povidine a 7,5%-10% Pode ser usado em membra- to irritantes à pele. Em desuso.
nas mucosas. Formaldeído – antissepsia do ar ambiental e
Clorexidina a 2%-4% Não usar nos olhos, ouvidos, aparelhos com motor elétrico (serras e trépanos) na
membranas mucosas. forma sólida.
Iodo preparo a 3% Não usar em membranas
mucosas; pode causar irrita-
ção da pele quando deixado Obs: não usar substâncias químicas líquidas para este-
por muito tempo. rilização de material cirúrgico.
para-Clorometaxilenol Não usar em RN; pois pene-
(PCMX) tra na pele.
Tabela 3.9
Antissépticos voláteis
Maior uso para esterilização de material não
autoclavável (não suportam altas temperaturas, por
exemplo, seringas plásticas, sondas plásticas etc.).
Tipos de antissépticos Óxido de etileno – altamente explosivo daí,
líquidos geralmente, é misturado com outras substâncias.
Sabões – sais de sódio e sais de potássio de áci- Tempo de esterilização de 2,5 horas. É o principal an-
dos graxos de cadeia longa. Têm ação bacteriostática tisséptico para esterilização dos fios cirúrgicos.
e bactericida para bactérias Gram-positivas e BAAR. Óxido de propileno – tempo de volatização
Têm pouca ação sob Gram-negativos. mais alto (34 ºC) e com menor ação explosiva.

SJT Residência Médica – 2016


3
3 Pré-operatório II

€ são importantes os cuidados com uma boa he-


Cuidados fundamentais mostasia, seja ela feita com ligaduras, cautérios
ou clipes. A hemostasia deve se limitar, tanto
na operação quanto possível, aos vasos que sangram, evitan-
do-se incluir os tecidos e estruturas vizinhas.
Na realidade, os cuidados intraoperatórios se ini- Os pinçamentos e ligaduras em bloco se soltam
ciam antes da cirurgia. As orientações feitas no pré- com facilidade e devem ser evitados. Também
-operatório são indispensáveis para o restabelecimen- fundamental é o cuidado em não se fazer às ce-
to do paciente. gas pinçamentos, ligaduras ou cauterizações de
O cirurgião, em todas as operações, deve ado- vasos ou áreas sangrantes, pela possibilidade de
tar os seguintes princípios básicos: graves acidentes;
€ mutilar o mínimo; € as drenagens cavitárias são procedimentos de-
nominados muito discutíveis;
€ restaurar o máximo;
€ nunca é demais enfatizar a necessidade de con-
€ preservar, tanto quanto possível, a fisiologia do
trolar o número de gazes e compressas utiliza-
órgão ou sistema;
das na operação, minimizando, assim, a possi-
€ as incisões devem, sempre que possível, obede- bilidade de serem deixados corpos estranhos na
cer às linhas de força da pele e ter extensão sufi- região operada;
ciente para que o cirurgião tenha boa exposição
e trabalhe com segurança. Nas videocirurgias, a
€ é extremamente importante que o cirurgião
preocupação deve ser com a localização das pe- tenha amplo conhecimento de anatomia e que
quenas incisões necessárias para a introdução seja eclético, no sentido de conhecer as várias
dos trocartes. A colocação em locais incorretos alternativas para serem utilizadas, tendo, as-
determinará grandes dificuldades na operação. sim, a capacidade de mudar a técnica ou a tática
A preocupação deve ser maior nos obesos e nos em função das necessidades ou condições pero-
extremamente longilíneos ou brevilíneos; peratórias;
€ os eletrocautérios devem ser utilizados com € ter sempre em mente que a prevenção de com-
muito cuidado, limitando-se a pontos bem es- plicações nunca é demais. Mensagem sobera-
pecíficos. Seu uso em locais de tecido adiposo na de grandes cirurgiões (Ferreira-Santos
abundante deve ser evitado, já que desvitaliza e Okano): uma complicação, por pouco que
extensas áreas de um setor pouco vasculariza- represente porcentualmente em sua casuística,
do, o que dificulta o processo de cicatrização; para o paciente e família equivalem a 100%.

Mas agora tudo o que preciso para ter um futuro é planejar um futuro dentro do qual eu consiga me inserir.
– Francine Julia Clark

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

4
Pós-operatório I

cias, entre outros, devem ser colocados na ficha de


Introdução evolução, fazendo parte do prontuário do paciente,
peça indispensável não só para o relacionamento en-
O pós-operatório se inicia na própria sala de tre os membros da equipe para bem conduzir o tra-
cirurgia, com a reversão anestésica e a transfe- tamento, mas, também, como valioso documento em
rência do paciente para o centro de recuperação. casos de problemas éticos ou legais.
Um membro da equipe cirúrgica deve permanecer
durante esse período, já que complicações relevantes Uma vez finalizado o ato operatório, a reversão
podem aparecer nesta fase. Nos casos muito graves, da anestesia geral é, como regra, realizada na própria
o paciente pode ser transferido para uma UTI, caso o sala operatória, sendo importante que um membro da
hospital disponha deste recurso. No entanto, na maio- equipe cirúrgica acompanhe o paciente até o centro
ria das situações o paciente é encaminhado da recupe- de recuperação anestésica e permaneça junto com ele,
ração para o quarto, onde ficará até a alta hospitalar. já que muitas complicações pós-operatórias podem
ocorrer nesse período de transporte.
É fundamental que no pós-operatório o pa-
ciente seja avaliado uma ou mais vezes por dia, na Com relação aos distúrbios térmicos, vale ob-
dependência do porte da operação, da doença sub- servar que a sala de operações já foi descrita como
jacente, das doenças associadas e do potencial de sendo um ambiente ártico. Assim, não é de estranhar
complicações. Essa tarefa é da equipe cirúrgica e é que cerca de 60% dos pacientes cheguem ao centro
intransferível, mesmo que haja necessidade de cola- de recuperação com temperatura central abaixo
boração especializada. A avaliação deve ser completa, de 36 ºC. Nas operações prolongadas e com hemor-
do paciente como um todo e não apenas “da cirurgia”. ragias relevantes, a hipotermia é ainda mais pronun-
Os dados de anamnese, exame físico, exames comple- ciada. Já a hipertermia maligna, tão temida pelos
mentares, características dos curativos, intercorrên- anestesistas, pode ocorrer na sala operatória ou no
3
4 Pós-operatório I

centro de recuperação. Trata-se de problema grave (desidratação), irritação peritonial (contaminação da


que se manifesta com taquicardia, taquipneia, ciano- cavidade por secreções no intraoperatório são causa
se, arritmias cardíacas, febre alta, sudorese, altera- de íleo prolongado no pós-operatório) até extremos
ções eletrolíticas, principalmente, de cálcio e potás- de fístulas ou deiscências de anastomoses intestinais.
sio, e outras manifestações clínicas. Os anestésicos
voláteis são os mais implicados. Dantrole sódi-
co é o tratamento mais específico.
Na sala operatória, no transporte e no centro Mensuração da dor
de recuperação, o paciente deverá ser cuidadosa- pós-operatória
mente observado com relação à ventilação, lem-
brando sempre que as drogas utilizadas na aneste- A dor pós-operatória pode ser medida pelo relato
sia inibem os movimentos respiratórios. Este tipo do paciente, pela quantidade de analgésico que o pa-
de complicação é mais comum nos pneumopatas ciente necessita e pelas escalas.
crônicos, nos quais, por vezes, há necessidade de
assistência ventilatória mecânica.
Escala verbal
Outro cuidado que se deve ter quando existem
indícios de ventilação insuficiente é o de não remover A escala verbal comumente usa palavras ou des-
o tubo traqueal antes de determinar a PO2 arterial, critores para expressar a intensidade da dor. O pacien-
com o paciente respirando espontaneamente, somen- te relata ou assinala o descritor mais apropriado para
te o retirando se os níveis de pressão parcial de oxigê- a sua dor. A dor é avaliada como ausente, leve, mode-
nio estiverem aceitáveis. Outra complicação que pode rada e intensa com a seguinte pontuação: ausente = 0;
leve =1; moderada = 2; e intensa = 3.
ocorrer no pós-operatório imediato é a queda da lín-
gua, com obstrução das vias aéreas superiores. Nestes O alívio da dor também pode ser avaliado pela
casos, se o paciente estiver sob vigilância, o problema escala verbal que usa os descritores nenhum, discreto,
será facilmente resolvido com a colocação de uma son- moderado, bom e completo, que são pontuados como:
da de Guedel. alívio ausente = 0; discreto =1; moderado = 2; bom =
3; e completo = 4.

Escala numérica verbal


Dor pós-operatória Trata-se de escala alternativa às escalas verbal e
A dor é uma resposta do organismo à agressão, analógica visual. O paciente sugere um número para
tendo função protetora. Impedir seu aparecimento representar a intensidade da dor, sendo que 0 significa
pode reduzir as possibilidades de fazer diagnóstico ausência de dor e 10, a dor mais intensa possível. Tam-
precoce de intercorrências que podem ser graves, por- bém pode ser usada para avaliar o alívio da dor; alívio
tanto, a conduta ante a dor deve sempre ser ditada 0 representa nenhuma melhora da dor, ao passo que
pelo bom-senso, calcada em conhecimentos de fisio- alívio 10 significa alívio completo.
patologia e analisada caso a caso, após raciocínio clí-
nico coerente.
Escala analógica visual (EAV)
Qualquer intervenção cirúrgica é obviamente
seguida de dor, em graus variáveis, e a tendência, ao A EAV é um instrumento simples, sensível e re-
longo dos dias, é de redução gradativa até o desapare- produtível, pois permite a análise contínua da dor. Ela
cimento. Nas cirurgias abdominais, por exemplo, a é mais sensível que a observação ou a escala descritiva.
dor abdominal é localizada e constante, mas exa- É constituída por uma linha horizontal de 100 mm,
cerbada aos movimentos e à Valsalva (12-24 horas cuja extremidade esquerda corresponde à ausência de
iniciais); de pouca intensidade; diminui com o passar dor e a direita representa a dor mais intensa possível,
dos dias. Após 48 horas costuma estar bem contro- na qual o paciente assinala o local que acha ser mais
lada. Dependendo da cirurgia podemos ter irritação representativo da intensidade de sua dor. O escore é
peritoneal no 1o PO (por exemplo, trauma onde houve obtido pela distância entre a extremidade esquerda e
presença de secreções intestinais na cavidade). Dor o local assinalado. Não devem ser colocados pontos ou
persistente nos 3o, 4o e 5o PO deve chamar a atenção marcas nas extremidades, porque podem influenciar,
para uma possível complicação. Neste caso, a mais fazendo que o paciente não selecione as extremidades.
comum é o íleo paralítico (“principal causa de dor ab- Além de medir a intensidade da dor, a escala
dominal persistente no pós-operatório das cirurgias pode ser usada para avaliar o alívio da dor, a satisfação
abdominais”). A principal causa de íleo paralítico com o tratamento e, também, a intensidade de outros
são distúrbios eletrolíticos (hipocalemia), hídricos sintomas, como náusea.

SJT Residência Médica – 2016


66
Cirurgia geral e politrauma

apresenta como principal desvantagem o risco de


hepatotoxicidade, classicamente descrito para pa-
cientes com hepatopatia alcoólica ou outras hepato-
patias, porém, mais recentemente, descrito mesmo
quando utilizado em doses terapêuticas. A dose má-
xima diária situa-se em 4 g/dia. No Brasil, exis-
tem apenas apresentações por via oral, em compri-
midos e gotas.
€ Analgesia por bloqueio epidural: tem como
maior vantagem sobre as vias IM ou EV a de
agir sobre receptores espirais evitando efeitos
sobre o SNC e os nervos periféricos.
Figura 4.1 Escala numérica verbal e expressão visual.
A morfina epidural tem sido utilizada para anal-
Diante de um quadro de dor pós-cirúrgica, a gesia pós-operatória em grandes cirurgias abdominais
conduta terapêutica pode seguir as medidas descri- nas doses de 4 a 10 mg para um efeito de 4 a 24 horas.
tas a seguir: Nas toracotomias e fraturas de costelas, utiliza-se in-
fusão contínua por cateter torácico na dose de 30 µg/
€ Analgesia convencional: a modalidade mais kg/h. Vários estudos têm demonstrado a superiorida-
utilizada na prática clínica, havendo preferência de da via epidural de oferta de morfina para analgesia
para os analgésicos não narcóticos.
pós-operatória em pacientes submetidos à cirurgia co-
A dipirona sódica é um derivado pirazolôni- lorretal, com excelente controle da dor e complicações
co que apresenta propriedade analgésica, antitér- pulmonares, significativamente, menores.
mica, antiespasmódica e anti-inflamatória fraca. € Analgesia Paciente Controlada (APC)
Trabalhos recentes têm enfatizado e confirmado os
resultados de trabalhos realizados há duas décadas Trata-se de uma técnica de controle da dor pós-
que sugeriam que a analgesia provida pela dipirona -operatória, na qual o próprio paciente regula a in-
teria caráter dose-dependente. Atualmente, utilizam- fusão intravenosa ou epidural de narcóticos. Isso é
-se, em período pós-operatório, doses da ordem de 25- realizado por uma bomba de infusão acoplada a um
30 mg/kg/dose, de 6/6 horas. A dose máxima diária dispositivo automático acionado pelo paciente por
situa-se em torno de 8 g/dia. meio de um botão disparador e que permite a infu-
são de doses pré-determinadas a cada disparo. Os
O emprego da dipirona em analgesia pós-opera- pacientes que mais se beneficiam da utilização
tória é amplamente referendado por trabalhos cientí- da APC são aqueles submetidos a intervenções
ficos de países europeus, que demonstram a redução de grande porte ou os que apresentam dor pós-
do consumo de opioides quando da administração -operatório de moderada ou grande intensi-
conjunta com a dipirona no período pós-operatório, dade, pacientes que são submetidos a sessões de
notadamente, pela menor dose de morfina consumi- fisioterapia, trocas de curativo ou mobilizações fre-
da em 24 horas, pelo emprego de bombas de analgesia quentes. Vantagens como melhor analgesia, período
controlada pelo paciente. A dipirona tem sido compa- de internação hospitalar menor, menor consumo de
rada ao tramadol quanto à sua potência analgésica.
analgésico têm sido demonstradas.
O risco de agranulocitose atribuível à dipi-
rona foi situado em 1,1/milhão de casos, que é um
valor extremamente baixo, inferior ao risco de san- Sugestões de soluções para APC venosa
gramento gástrico, após uma única dose de ácido ace-
tilsalicílico. Solução de morfina
O paracetamol é um derivado menos tóxico Solução fisiológica 0,9% – 90 mL
da fenacetina que apresenta propriedade analgé- Morfina 1% – 10 mL
sica, antitérmica e é praticamente destituído de
Total – 100 mL
atividade anti-inflamatória. O seu mecanismo de
ação ainda é pouco conhecido, embora pareça envol- Concentração da morfina 1%
ver inibição seletiva da prostaglandina-sintetase Solução de fentanil
cerebral. A ausência de inibição significativa sobre a Solução fisiológica 0,9% – 90 mL
ciclo-oxigenase periférica pode explicar a sua ativida- Fentamil 0,005% – 10 mL
de anti-inflamatória praticamente ausente.
Total – 100 mL
Esse fármaco apresenta como vantagens não
Concentração da fentanil 0,0005%
irritar a mucosa gástrica e não interferir com
a função plaquetária. Não obstante, o paracetamol Tabela 4.1

SJT Residência Médica – 2016


3
4 Pós-operatório I

Sugestões de soluções para APC peridural Agonistas opioides: doses equianalgésicas


Solução de bupivacaína e fentanil Agentes Dose Meia- Duração da
Solução fisiológica 0,9% – 180 mL equianalgésica -vida ação (horas)
(mg) (horas)
Fentanil 0,005% – 20 mL
IM VO
Bupivacaína 0,5% – 50 mL
Codeína 130 200 2-3 2-4
Total – 250 mL Meperidina 75 300 2-3 2-4
Concentração – bupivacaína 0,1% Oxicodona 15 30 2-3 2-4
Concentração – fentanil 0,0004% Morfina 10 30 2-3 3-4
Solução de ropivacaína e fentanil Metadona 10 20 15-190 4-8
Solução fisiológica 0,9% – 240 mL
Fentanil 0,005% – 20 mL Fentanil TD – – – 48-72
Ropivacaína 0,75% – 40 mL Principais drogas utilizadas para tratamento da
Total – 300 mL dor pós-operatória
Concentração – ropivacaína 0,1% Droga VA* Posologia
Concentração – fentanil 0,0004% Morfina 2-4 mg a cada
IV
Tabela 4.2 4 horas
Fentanil 50-100 mg a
IV
O uso de cateteres peridurais é frequente no pós- cada 3 horas
-operatório de grandes cirurgias, promovendo a redu- Tramadol 50-100 mg a
IV
ção de complicações gastrointestinais, cardiovasculares, cada 6 horas
pulmonares e tromboembólicas na fase pós-operatória. Buprenorfina 0,1-0,3 mg a
IV
As principais restrições ao uso de cateteres cada 6 horas
peridurais são: risco infeccioso e formação de hema- Cetoprofeno 50-100 mg a
IV
toma. Quanto à infecção, deve-se checar diariamente cada 12 horas
eritema ou deslocamento. A presença de bacteremia con- Dipirona 30-50 mg/kg a
IV
traindica a inserção de cateteres peridurais. O tempo de cada 6 horas
permanência do cateter no doente crítico é discu- Cetorolaco 30 mg a cada
IV
tível, e o período de 72 horas é, geralmente, aceitá- 8 horas
vel. Em doentes crônicos, os cateteres são deixados por Tabela 4.3
um tempo maior, porém, geralmente são tunelizados e,
além disso, os doentes normalmente não se encontram
sépticos ou imunocomprometidos. Estudos recomen-
dam que os testes de coagulação estejam normais, com
plaquetas em número maior que 100.000/mm3.
Espasmos musculares
Doentes que estejam recebendo anticoagu- De ocorrência nas primeiras 48 horas. Ge-
lação também merecem atenção. O bloqueio peri- ralmente, ocorrem em doentes muito musculosos,
dural deve ser realizado no mínimo 4 horas, após que se movimentam ou realizam Valsalva. Às vezes,
utilização de heparina não fracionada e 12 horas, ocorrem sem fator desencadeante. Duram 30 segun-
após heparina de baixo peso molecular, devendo- dos e só aliviam (ou pouco aliviam) com alta dose de
-se aguardar no mínimo uma hora para retorno narcóticos ou relaxantes musculares. O abdome fica
da administração de heparina não fracionada e rígido durante os espasmos. Entre as crises, o pacien-
duas horas de heparina de baixo peso molecular. te segue em pós-operatório esperado. Desaparecem
em 48 horas.
DOR LEVE
Analgésico comum + adjuvantes

DOR MODERADA
Analgésico comum + adjuvantes
+ opióide fraco Soluços
DOR INTENSA No período pós-operatório, propicia a ocorrên-
Analgésico comum + adjuvantes
+ opióide forte* cia de deiscência de sutura da parede abdominal, e no
paciente anestesiado interfere com a cirurgia e com a
Figura 4.2 Escala analgésica. A dor pós-operatória
eficiência da ventilação.
segue habitualmente o sentido da seta esquerda, en-
quanto que a dor crônica ou de complicação pós-cirúr- Entre os tratamentos propostos, a maior parte
gica obedece a seta à direita. (*) Morfina, Oxicodona, é efetiva para casos leves, enquanto que para os casos
Fentanil, Metadona e Meperidina. graves torna-se um desafio médico.

SJT Residência Médica – 2016


68
Cirurgia geral e politrauma

tajosos para casos prolongados, não sendo reco-


Medidas não farmacológicas mendado aumento da dose, pois, ao contrário,
€ Estimulação da faringe, realizada com cateter doses elevadas, em casos de intoxicação, podem
introduzido por via nasal, é um dos métodos ser causa de soluço;
mais valiosos, tanto no paciente consciente € Clorpromazina: não tem se mostrado útil
como no anestesiado. A área que responde à es- quando administrada por via venosa ou muscu-
timulação é a porção média da faringe, oposta lar. Por outro lado, é a droga mais eficaz quando
ao corpo da segunda vértebra cervical, área esta usada por via sublingual, possivelmente, por
inervada pelo plexo faríngeo. Esta estimulação agir sobre o plexo faríngeo;
atua bloqueando ou inibindo os impulsos afe-
rentes transmitidos através do vago, assim in-
€ Cetamina: pode ser usada em soluços que ocor-
terrompendo o reflexo do soluço. rem durante a anestesia, na dose de 0,4 mg/kg
por via venosa;
€ Massagem na carótida e pressão do globo ocu-
€ Curarização: para ser eficaz, em geral, requer
lar, para estimulação vagal, que devem ser feitas
dose maior que a necessária para produzir
com muito cuidado pelo risco de bradicardia e
simples relaxamento muscular, e só deve ser
até parada cardíaca;
instituída muito excepcionalmente, em casos
€ Tração forçada da língua, beber água rapidamen- extremos, mediante rigoroso controle por anes-
te, chupar gelo, deglutir açúcar puro ou mel e in- tesiologista experimentado.
duzir vômito, todos agindo sobre o plexo faríngeo.
Muitos outros tratamentos já foram menciona-
€ Prender a respiração, respirar em recipiente fe- dos e sugeridos para tratamento do soluço, muitos
chado de papel ou plástico ou ventilar com CO2, ineficazes ou, no máximo, úteis para casos iniciais. Al-
visa aumentar a pCO2, o que diminui a frequên- guns para situações específicas como nos soluços que
cia, mas não a amplitude do soluço.
ocorrem durante a anestesia; outros com mais efeitos
€ Ventilação com O2, que reduz a amplitude, colaterais do que benefícios como narcóticos, depres-
mas não a frequência. Tanto a administração sores do SNC, anticolinesterase e atropina.
de oxigênio quanto de gás carbônico pode ser
útil apenas no tratamento precoce do soluço.
Os períodos de inalação não devem exceder 10
minutos, administrados por anestesista com- Medidas cirúrgicas
petente. Não são recomendados em pacientes
debilitados ou emaciados. Quando o soluço não cessa com medidas simples,
tornando-se grave a ponto de interferir com a fisiologia
€ Anestesia profunda: tentada inúmeras vezes
respiratória, o doente deve merecer cuidados imediatos.
em situações extremas, mostrou-se completa-
mente sem utilidade, perigosa em pacientes de- A indicação cirúrgica é, então, a opção para es-
bilitados, e não é recomendada. ses casos graves e, muitas vezes, é a única alternativa
quando a causa não é identificada, quando não pode
€ Bloqueio vagal ou frênico no pescoço: tem
ação temporária, desde que a causa não seja ser solucionada, ou no insucesso de todas as tentati-
solucionada. O estudo fluoroscópico deve an- vas de tratamento conservador. A cirurgia visa inter-
teceder o procedimento e nunca deve ser feito rupção da via eferente do reflexo do soluço, ou seja, a
bloqueio bilateral. interrupção do nervo frênico, do simpático, dos ner-
vos torácicos inferiores ou dos lombares superiores.
€ Estimulação galvânica do frênico: tem sucesso
Para tal, se deve levar em consideração as variações
em número limitado de casos, em geral iniciais,
anatômicas dos mesmos, principalmente, do nervo
e demanda sessões repetidas de estimulação
frênico cervical.
com 30 V, 0,93 ma por 0,2 ms.

Medidas farmacológicas Náuseas/vômitos


€ Sulfato de benzedrina: não tem sido reco-
Geralmente ocorrem nas primeiras 18 horas
mendada, pois é útil apenas em casos leves, so-
(efeito anestésico). Parece que os vômitos são mais fre-
lucionáveis com outros procedimentos;
quentes quando se usam anestésicos voláteis do que
€ Sulfato de quinidina: inefetivo em casos pro- com os venosos. Uma das causas, para isso, seria a
longados e, por necessitar de dose elevada, é pe- própria distensão do trato digestivo por gás, parti-
rigoso sob o ponto de vista cardiovascular; cularmente quando se emprega o óxido nitroso. Esse
€ Barbitúricos: úteis em casos iniciais, na dose agente, quando em concentração de 75% no ar alveolar,
de 100 mg a cada 6 horas. Não se mostram van- aumenta o volume do gás intestinal em cerca de 500

SJT Residência Médica – 2016


3
4 Pós-operatório I

mL/h de anestesia. O impacto é maior no intestino do mado íleo adinâmico. Assim, o melhor indicador da
que no estômago, por ser este mais distensível e com resolução do íleo adinâmico é o reinício da peristalse e,
maior volume de reservatório. Habitualmente, durante posteriormente, eliminação de flatos.
a anestesia, o reflexo do vômito estará abolido, apresen-
Obstipação > 6 dias = pensar obstrução intestinal.
tando as consequências daquela distensão no período
pós-operatório. Durante a raquianestesia a hipotensão Diarreia no 7o PO + distensão = obstrução in-
é tida como a grande responsável pela ocorrência de testinal (diarreia paradoxal da suboclusão intestinal).
náuseas e vômitos, que aparecem em menor frequência
quando os níveis pressóricos conseguem ser mantidos A presença de fezes + flatos NÃO é garantia de que
acima de 80 mmHg, mesmo à custa de vasopressores. tudo está bem na cavidade peritoneal!
Os anestésicos, além de poderem desencadear
vômitos por alteração da motilidade do trato gas-
trointestinal, têm um efeito relevante sobre a mo- Atenção ao exame abdominal no pós-operatório.
tilidade gástrica e a função do esfíncter inferior do Na ausculta, RH devem ser considerados com cautela,
esôfago. O efeito sobre esse esfíncter é importante não pois podem ser interpretados erroneamente (“a pre-
só por induzir o vômito, mas, principalmente, porque sença de RH NÃO exclui que uma grave complicação
facilita o refluxo gastroesofágico, com regurgitação do abdominal esteja acontecendo!”).
conteúdo para a boca e risco de aspiração, essencial-
mente, com pacientes em decúbito dorsal. Essa ação
sobre o esfíncter inferior do esôfago aparece com
óxido nitroso e é agravada por halotano e enflura- Prescrição médica no
no. O mecanismo pelo qual esse fato ocorre parece liga-
do à ação central, nas vias de regulação vagal. Os efeitos pós-operatório
sobre a motilidade gástrica são variáveis, dependendo
das drogas e de suas concentrações. O padrão mais
Deve conter o tipo de dieta ou jejum, reposição
comum da maioria dos anestésicos é a redução da
hidroeletrolítica quando houver perdas ou se o pa-
motilidade gástrica diretamente por ação vagal.
ciente estiver incapacitado de receber aporte hídri-
Concomitantemente a esta ação, há relaxamento do
co ou energético por via enteral. Os antibióticos são
esfíncter pilórico, que promove o refluxo de bile
prescritos conforme o caso; se profiláticos devem ser
para o estômago, servindo como fator adicional
suspensos ao término da cirurgia, aceitando-se no
para o vômito por irritação mucosa.
máximo até 24 horas após; se prescritos após este
O tratamento medicamentoso pode ser empre- período, pode-se considerar antibioticoterapia. Anal-
gado com várias drogas como domperidona, metoclo- gesia e antieméticos devem ser prescritas conforme
pramida, fenotiazínicos, butirofenonas (droperidol), o tempo de pós-operatório, pois são marcadores de
anticolinérgicos (ioscina, escopolamina, atropina), an- complicações. Os analgésicos são de horário até
ti-histamínicos e até com acupuntura. Mais recente- o 2º PO, depois são prescritos quando necessá-
mente, muita atenção tem sido dada ao ondansetron*,
rios nas laparotomias. Antieméticos devem ser
um antagonista seletivo da serotonina que bloqueia os
prescritos de horário nas primeiras 24 horas
receptores periféricos no trato gastrointestinal e atua,
e, depois, se houver necessidade. A profilaxia de
também, diretamente no centro do vômito.
TVP e da gastrite por estresse, bem como medicações
* Principais efeitos colateriais: cefaleia e diarreia. usuais, são outros fatores importantes a serem con-
Depois de 24 horas, o doente em pós-opera- siderados e não devem ser esquecidos. Prescrição de
tório NÃO complicado NÃO costuma vomitar. Se débito de sondas e drenos e fisioterapia respiratória
ocorrerem vômitos suspeitar de complicações. também são itens indispensáveis.
Vômitos persistentes em pós-operatório de
cirurgia bariátrica pode ser fator desencadeante
para encefalopatia de Wernicke, e a prevenção é
feita com a prescrição de tiamina.
Reposição hidroeletrolítica

Controle intraoperatório de
líquidos e eletrólitos
Hábito intestinal Quando o deficit de líquido não for adequada-
No PO inicial é usual que haja constipação com mente corrigido no pré-operatório, o paciente pode
ausência de flatos nos 2-3 dias iniciais ou até por 5 desenvolver hipotensão com a indução anestésica,
dias em procedimentos de grande porte, o cha- pela abolição dos mecanismos compensatórios.

SJT Residência Médica – 2016


70
Cirurgia geral e politrauma

Considerando que a perda do volume extracelu- trólitos no intraoperatório, por infusão de solução sa-
lar efetivo é o estímulo aferente essencial na resposta lina balanceada, pode prevenir ou reduzir a liberação
orgânica ao trauma, a manutenção da volemia normal, adicional de aldosterona, causada pelo deficit de volu-
por administração pré-operatória de líquidos e eletró- me extracelular.
litos, pode reduzir a magnitude da resposta ao trauma Embora haja muitas controvérsias sobre a sua
e, consequentemente, a redução do período de ativida- eficácia, além de dúvidas quanto às vantagens em
de endócrina máxima, sobretudo, quanto à liberação comparação com as soluções salinas balanceadas, as
de aldosterona e do ADH. soluções contendo albumina são também indicadas
A reposição de sangue durante o ato operatório para a reposição das perdas de líquido extracelular. O
deve ser realizada, principalmente, com base na inten- uso dessas soluções teria como finalidade a conserva-
sidade da perda sanguínea e nas condições clínicas do ção da pressão oncótica e evitar o edema intersticial.
paciente. Nos pacientes jovens e sadios, a reposição
de perdas de menos de 500 mL de sangue é geral-
Volume e composição dos líquidos digestivos
mente desnecessária. Porém, a transfusão de sangue
deve ser prontamente considerada e iniciada nas Volume Na+ K+ CL -
perdas acima de 500 a 1.000 mL. A reposição sanguí- (24 horas) mEq/L) mEq/L) (mEq/L)
nea deve ser feita à medida que ocorre a perda inde- Água produzi- 400 mL – – û
pendentemente de qualquer terapia de líquidos e ele- da (endógena)
trólitos, porque essa conduta não substitui a reposição Urina 1.000- 60 40 150
1.500 mL
de sangue. Se durante todo o procedimento cirúrgico
o apropriado é a transfusão de apenas uma unidade Saliva 1.500 mL 10 25 10
de sangue, esta é exatamente a quantidade que dever Suco gástrico 2.500 mL 70 10 100
ser administrada, embora seja uma conduta criticada, Suco 700 mL 140 5 70
sob alegação de que a necessidade de uma única uni- pancreático
dade de sangue indica que a transfusão é dispensável. Bile 600 mL 140 5 100
Quando são realizadas transfusões sanguíneas rá- Suco entérico 3.000 mL 120 30 100
pidas, torna-se necessária a reposição de cálcio, na Tabela 4.4 Atenção.
dose de 1 g de gluconato de cálcio para cada quatro
a cinco unidades de sangue, para evitar o desenvol-
vimento de hipocalcemia agudo, da mesma forma
que se torna necessário transfundir concentrado
de plaquetas para evitar sangramento secundário Controle pós-operatório de
a plaquetopenia dilucional. Lembre-se, o concen-
trado de hemácias é pobre em plaquetas e sangue
líquidos e eletrólitos
estocado não tem plaquetas funcionantes. Quando a função renal está normal, o paciente
Nas intervenções cirúrgicas de grande porte, operado, usualmente, tem capacidade de contornar
além das perdas de sangue, observa-se a perda de lí- moderadas depleções e sobrecargas de líquidos e de ele-
quido extracelular causada pela formação de edema, trólitos, consequentes à reposição inadequada, desde
consequente à dissecção tecidual extensa, pelo acúmu- que não seja ultrapassado o limiar crítico de compen-
lo na luz e na parede intestinal, pelo extravasamento sação renal. A eficiência dos mecanismos compensa-
na cavidade peritoneal e pela incisão cirúrgica. Além tórios renais está relacionada com o potencial de ex-
disso, verifica-se, também, a perda de água por eva- creção e conservação de sódio. No homem adulto, os
rins excretam habitualmente cerca de 10 a 80 mEq
poração, em decorrência da exposição das superfícies
de sódio/dia, mas a excreção urinária de sódio pode
de órgãos através da ferida operatória. Essa perda é
ser reduzida para menos de 1 mEq/dia, em condições
de aproximadamente 250 mL/hora de operação, em
dias frios ou em salas refrigeradas, e nos dias quen-
de conservação máxima, ou aumentada acima de 100
tes, 600 mL/hora de operação. mEq/L, em situações de eliminação máxima de sódio. A
reposição adequada de líquidos e eletrólitos pode evitar
As perdas por sequestro no sítio da lesão ou por uma sobrecarga desnecessária à função renal.
evaporação são, usualmente, difíceis de serem estima-
das. Essas perdas líquidas no intraoperatório podem
ser corrigidas com a infusão de 500 a 1.000 mL/hora
solução salina balanceada atingindo, geralmente, um
Balanço hídrico
total máximo de 2 a 3 L em operações de grande porte. A análise comparativa entre as perdas de líquidos,
O controle dos parâmetros clínicos, incluindo débi- externas e internas, e os ganhos obtidos por ingestão,
to urinário horário, pulso, pressão arterial, PVC, é infusão intravenosa e metabolismo são procedimen-
essencial para a reposição eficiente de líquidos. A tos importantes para avaliar a eficácia e a suficiência
compensação adequada das perdas de líquidos e ele- dos líquidos administrados, estimar as sobrecargas e

SJT Residência Médica – 2016


3
4 Pós-operatório I

as depleções de líquidos. Por conseguinte, torna-se es- Os pacientes em hiperventilação, com frequ-
sencial o registro preciso dos ganhos e das perdas de ência respiratória igual ou superior a 35 incursões
líquidos, principalmente, nos pacientes com previsão por minuto, podem apresentar perdas de 1.000 mL
de receber líquidos intravenosos por mais de 24 horas. de líquidos, além das perdas insensíveis normais,
em consequência do aumento da evaporação pelo
No pós-operatório de procedimentos cirúrgicos
trato respiratório. Nos pacientes com traqueostomia
de grande porte, ainda que a meta principal seja a
não umidificada, as perdas de água podem atingir 500
busca do equilíbrio entre as perdas e os ganhos, faz-se
a 1.500 mL/dia, além das perdas pulmonares habitu-
necessário lembrar que o desvio interno de líquidos
ais. As perdas hídricas insensíveis estão aumentadas
nas primeiras 48 a 72 horas pode elevar os ganhos
nos pacientes com temperatura corporal elevada. Du-
e, após esse tempo, no período seguinte, a reabsorção
rante o período febril, para cada grau acima de
desses líquidos sequestrados pode acentuar as perdas.
37,2 ºC, deve ser acrescentada uma perda adicio-
Nessa primeira fase, o balanço hídrico positivo, con-
nal de 10%, acima das perdas insensíveis horá-
sequente à sequestração de líquido no local da le-
rias habituais. O aumento na temperatura ambiente
são, não deve ser considerado como sobrecarga de
causa também maior perda diária de água. Cada au-
volume. Do mesmo modo, o balanço hídrico negativo
mento de 3 ºC da temperatura ambiente, acima de 29
na segunda fase não deve ser interpretado como deficit
ºC aumenta as necessidades de água de cerca de 500
de volume.
mL/dia. Outra fonte de perda de líquidos através da
A determinação do balanço hídrico é obtida por pele é o suor. Quando há sudorese excessiva, observa-
análise comparativa entre o ganho total de líquidos, -se aumento considerável nas perdas hídricas.
por ingestão de alimentos sólidos e líquidos, infusão
de líquidos por via intravenosa e água endógena, e o
total de perdas de líquidos, incluindo diurese, perdas
insensíveis e perdas externas anormais, principalmen-
Pós-operatório imediato
te, oriundas do trato digestório, por exemplo, fístulas, Nas primeiras 24 horas, após a operação, a pres-
cateteres e drenos (Tabela 4.5). crição de líquidos e eletrólitos deve basear-se no esta-
do de hidratação pré-operatória, na estimativa de ga-
nhos e perdas durante a operação, e no exame clínico
Trocas usuais de líquidos em um homem adulto do paciente, sobretudo, pela avaliação da frequência
de 60 a 80 kg de peso corporal cardíaca, da pressão arterial, da frequência respirató-
Ganhos de Água Perdas de Água ria, da pressão venosa central e, principalmente, do
Sensível Sensível débito urinário horário.
Líquidos 800 a 1.500 mL Urina 800 a 1.500 mL
No paciente com depleção de volume, quando a
orais
perda de sangue é excluída como fator causal, o surgi-
Alimentos 500 a 700 mL Fezes 100 a 250 mL
sólidos
mento de sinais clínicos compatíveis com hipovolemia
indica que a reposição de líquidos e eletrólitos foi insufi-
Insensível Insensível
ciente no intraoperatório. Nesse caso, apesar da redução
Água 200 a 500 mL Pulmões 500 a 1.000 mL
endógena e pele da excreção urinária de sódio em resposta ao trauma, a
infusão de soluções contendo sódio pode ser indispensá-
Tabela 4.5 vel na reanimação do paciente cirúrgico. Nos pacientes
submetidos às cirurgias de grande porte, associadas
A água endógena produzida pela oxidação a grandes perdas de volume, torna-se difícil estimar a
das proteínas e lipídios, geralmente, é de cerca de quantidade apropriada de líquidos para as 24 horas se-
400 mL. A principal fonte de perda de líquidos é a guintes. A conduta mais adequada consiste na infu-
diurese, que varia, normalmente, entre 800 e 1.500 são rápida de solução salina balanceada, 1.000 mL de
mL/dia. A excreção habitual de água pelas fezes é de cada vez, sob rigorosa monitorização dos parâmetros
cerca de 200 mL. clínicos, até a estabilização circulatória. Depois dis-
As perdas insensíveis de líquidos no organismo so, procede-se à prescrição de líquidos de manuten-
representam as perdas de água que não são normal- ção para o restante do dia. Entretanto, como a perda
mente visíveis ou mensuráveis, incluindo a água elimi- de líquidos no local do trauma cirúrgico persiste após o
nada pelos pulmões, durante a ventilação, e pela pele, término da operação, com sequestro lento e contínuo de
exceto a água perdida no suor. No adulto inativo e grandes volumes de líquido extracelular, torna-se funda-
sem perspiração, as perdas insensíveis de água va- mental o diagnóstico precoce e o tratamento rápido da
riam entre 0,5 a 0,6 mL/kg/hora, atingindo cerca deficiência de líquidos e eletrólitos.
de 500 a 1.000 mL/dia (média de 600 a 900 mL). A sobrecarga de volume, ainda que possa ocorrer
Geralmente, 75% das perdas ocorrem pela pele e 25% em qualquer fase do período pós-operatório, é mais
pelos pulmões. comum no pós-operatório imediato, principalmente,

SJT Residência Médica – 2016


72
Cirurgia geral e politrauma

quando se busca de modo obsessivo manter o débito Em circunstâncias normais, as necessidades


urinário elevado, à custa da administração de grandes diárias de água variam entre 30 a 35 mL/kg de
volumes de soluções contendo sódio. Não existe evi- peso corporal. Os valores normais e as necessidades
dência fisiológica de que um volume urinário horá- diárias dos principais eletrólitos estão relacionados
rio de 100 mL é melhor que um de 50 mL. nas Tabelas 4.5 e 4.6, respectivamente.
A administração de potássio é geralmente Nos pacientes sem intercorrências pós-opera-
desnecessária ou, às vezes, até prejudicial, nas tórias e que requerem períodos curtos de reposição
primeiras 24 horas após a operação. A reposição de parenteral, a suplementação diária de eletrólitos é ge-
potássio deve ser reservada para os casos evidentes ralmente feita de forma adequada, sem a necessidade
de hipocalemia, e é iniciada após a confirmação de de dosagem sérica dos eletrólitos. Nos pacientes em
função renal adequada. No pós-operatório imediato, pós-operatório de cirurgias de grande porte, ou
a administração inadvertida de potássio nos pacien- com perdas anormais excessivas, ou que necessitam
tes com insuficiência renal de débito elevado pode de reposição parenteral prolongada, a administra-
ser extremamente deletéria. A dificuldade no diag- ção de eletrólitos deve basear-se em determinações
nóstico da insuficiência renal de débito elevado está plasmáticas apropriadas, principalmente quanto
relacionada com o débito urinário normal ou acima ao sódio, cloro, potássio e bicarbonato.
do normal. Os pacientes, particularmente, suscetí-
veis a essa complicação são aqueles que desenvolvem Valores normais e médios dos eletrólitos
períodos de hipotensão, durante procedimentos ci- no plasma
rúrgicos prolongados. Eletrólitos Variação (mEq/L) Valor Médio (mEq/L)
Sódio 135 a 145 140
Potássio 3,5 a 5,5 4
Cloro 85 a 115 103
Pós-operatório tardio Bicarbonato 22 a 29 27
A reposição pós-operatória de líquidos e de ele- Cálcio 4,0 a 5,5 5
trólitos não somente deve incluir as necessidades nor- Magnésio 1,5 a 2,5 2
mais de água e eletrólitos do paciente, como também
Tabela 4.6
as quantidades referentes ao sequestro de líquidos
para o terceiro espaço e perdas eventuais por catete-
res, drenos, fístulas ou feridas. O volume de líquidos Necessidades diárias dos principais eletrólitos
calculado deve ser modificado de acordo com o estado Eletrólitos mEq/kg/dia mEq/dia
de hidratação do paciente, para corrigir uma depleção Sódio 1 a 1,5 50 a 100
ou sobrecarga de volume porventura existente. A esti- Potássio 1 50 a 80
mativa do estado de hidratação do paciente baseia-se Cálcio 0,2 a 0,3 8 a 10
no balanço hídrico, mediante análise comparativa de Magnésio 0,35 a 0,45 18 a 33
ganhos e perdas de líquidos nas últimas 24 horas, e
em avaliações de sinais e sintomas de sobrecarga ou Tabela 4.7
depleção de volume, da pressão arterial, da frequên-
cia cardíaca, do débito urinário, do peso corporal e Nas primeiras 72 horas após a operação, ob-
de eletrólitos séricos e urinários. A comparação do serva-se baixa tolerância do paciente à administra-
peso corporal antes de o paciente entrar para a sala de ção intravenosa de água livre, porque o aumento na
operação com os pesos observados no pós-operatório secreção de ADH limita a maior excreção urinária
constitui parâmetro muito útil para a avaliação das de água. Consequentemente, a administração de água
condições volumétricas do paciente. em excesso para aumentar o volume urinário, que está
usualmente baixo pelo aumento da atividade do ADH,
Embora o passado e o presente sejam analisados pode provocar a hiponatremia iatrogênica.
para ajudar na avaliação do estado de hidratação, a es-
timativa das necessidades de líquidos e eletrólitos do A administração diária de 100 g de glico-
se (400 kcal) não somente elimina a cetose, como
paciente cirúrgico deve estar projetada e direcionada
também reduzirá em 50% o catabolismo das pro-
para eventos futuros, ou seja, na evolução pós-opera-
teínas endógenas, presumivelmente por reduzir a
tória do paciente das próximas 12 ou 24 horas.
demanda por neoglicogênese. Quantidades maio-
O volume das perdas de água pela urina não deve res parecem não produzir efeito proporcional. A in-
ser usualmente corrigido com igual volume de líqui- fusão de 130 a 150 g/dia de glicose resulta em uma
dos, porque um volume urinário de 2.000 a 3.000 mL redução de 40% nas perdas de nitrogênio urinário. A
nas últimas 24 horas pode representar administração dose de glicose não deverá ultrapassar a 0,5 g/kg/
excessiva de líquidos. Nesse caso, a reposição volume hora. Além desse limite, poderá ocorrer maior perda
por volume resulta em sobrecarga adicional. de água, com agravamento das condições do pacien-

SJT Residência Médica – 2016


3
4 Pós-operatório I

te. Na nutrição parenteral, as calorias provenientes da níveis de ADH circulante, relacionados ao estres-
glicose são fornecidas a uma velocidade de infusão de se cirúrgico, associado à infusão iatrogênica de solu-
aproximadamente 4 mg/kg/minuto. O fornecimento ção hipotônica no perioperatório (por exemplo, soro
de carboidratos por via intravenosa em quantidades glicosado a 5%). Irrigação vesical com soluções hipo-
que superem a capacidade máxima de oxidação (5 mg/ tônicas nas ressecções transuretrais de próstata pode
kg/minuto em adultos) pode predispor à lipogênese e contribuir para alguns casos.
à infiltração gordurosa do fígado. A administração de O tratamento da hiponatremia depende da cau-
130 a 150 g/dia de glicose, distribuídos nas soluções sa, do tempo de instalação e da presença de sintomas
administradas no pós-operatório, pela supressão en- e comorbidades. Hiponatremias de instalação lenta
dógena da produção de glicose, pode causar um efeito
levam a alterações adaptativas nas células nervosas,
modesto de conservação de proteínas. O nitrogênio
que perdem substâncias orgânicas osmoticamente
ureico urinário reduziu em 40% quando foi adminis-
ativas na tentativa de equilibrar as osmolalidades in-
trada essa quantidade de glicose.
tra e extracelulares e evitar o edema cerebral. Nesse
Como exemplo, considera-se, geralmente, caso, se a correção da hiponatremia for inade-
adequada a administração diária de 2.000 a 2.500 quadamente rápida, haverá redução abrupta da
mL de água (solução de glicose a 5%), 75 mEq/L de osmolalidade extracelular com consequente de-
sódio e 40 mEq de potássio, para o paciente adulto sidratação das células nervosas, resultando em
não demasiadamente obeso ou de baixo peso.
desmielinização osmótica.
A mielinólise pontina é a sua manifesta-
ção mais conhecida e grave, e suas principais
Reposição de sódio características incluem tetraparesia espástica,
paralisia pseudobulbar, labilidade emocional,
Nas primeiras 72 horas após a operação, os
agitação, paranoia, alterações pupilares, ataxia,
pacientes geralmente não toleram a administra-
ção de grandes quantidades de soluções contendo incontinência urinária e coma. Etilismo, desnutri-
sódio quando comparados às condições normais, ção, hipopotassemia, cirrose, grandes queimaduras
tornando-se edematosos com maior facilidade. A e perimenopausa em uso de diuréticos tiazídicos são
infusão volumosa de soluções salinas, quando há ain- os principais fatores de risco para o seu desenvolvi-
da permeabilidade capilar alterada e intensa atividade mento. A desmielinização osmótica, particularmente
dos mecanismos de conservação de sódio, proporcio- a mielinólise pontina, embora rara, é uma entidade
na uma diluição adicional das proteínas plasmáticas, gravíssima e passível de prevenção.
favorecendo a forte tendência para o edema tecidual, Assim, indivíduos com hiponatremias agudas
sobretudo, dos pulmões, do cérebro e das áreas peri- são mais suscetíveis a sequelas neurológicas perma-
féricas. A administração exagerada de líquidos com o nentes em decorrência do edema cerebral quando a
objetivo de anular os mecanismos de conservação de hiponatremia não for corrigida prontamente, enquan-
sódio e minimizar os efeitos deletérios decorrentes da to indivíduos com hiponatremia crônica são mais sus-
resposta orgânica ao trauma, geralmente, não produz cetíveis a desmielinização osmótica se a hiponatremia
o efeito esperado. for corrigida rapidamente. A velocidade de corre-
Quando o volume extracelular efetivo é repos- ção do sódio não deve exceder 0,5-1 mEq/L/h (12
to de forma adequada, durante o ato operatório e no mEq/L em 24 horas), salvo em hiponatremias
pós-operatório imediato, com volumes apropriados de agudas graves com encefalopatia hiponatrêmica
soluções salinas balanceadas, os rins conservam a ca- importante (convulsões e coma) nas quais se po-
pacidade de excretar os excessos moderados de líqui- dem corrigir o sódio em 5-8 mEq/L nas primei-
dos que eventualmente tenham sido administrados. ras 4-6 horas; entretanto, mesmo nesses casos,
No pós-operatório, a infusão de soluções salinas a correção máxima nas primeiras 24 horas não
deve ser realizada com moderação e em quanti- deve exceder 12 mEq/L.
dades suficientes para repor o deficit de volume Nos casos com hipovolemia ou desidratação, o
extracelular, mantendo a pressão arterial e a frequ- tratamento é realizado com solução salina isotônica
ência cardíaca dentro dos padrões usuais pré-opera- (SF 0,9%), até a restauração de volume extracelular
tórios e um débito urinário de 30 a 50 mL/hora. A adequado. Nos casos associados à hipervolemia e
cautela na administração de soluções salinas deve ser edema, a compensação da doença de base melhoran-
ainda maior nos pacientes com reserva funcional car- do a perfusão sistêmica associada à restrição hídrica
díaca ou renal comprometida. é suficiente para o tratamento da hiponatremia. Nes-
A hiponatremia pós-operatória é uma causa ses casos, a furosemida pode ser utilizada, e a res-
muito frequente e potencialmente grave de hipona- trição de sódio é mandatória, pois o sódio corpóreo
tremia em pacientes internados. É causada por altos total está aumentado.

SJT Residência Médica – 2016


74
Cirurgia geral e politrauma

Nos casos euvolêmicos (SIADH), solução sa- Fórmula de Adrogué-Madias para reposição
lina hipertônica a 3% é indicada quando houver de Sódio:
sintomas e se a hiponatremia for grave e aguda.
Nos casos crônicos de SIADH assintomáticos, po-
de-se utilizar a restrição hídrica isoladamente. ∆Na+ = (Na+ infusão + K+ infusão*) – Na+sérico
Podem-se utilizar também diuréticos de alça associa-
Água corporal total + 1
dos a maior ingestão de cloreto de sódio. Se houver
falha terapêutica com essas medidas, a demeclociclina
na dose de 600-1.200 mg/dia pode ajudar mediante ∆Na+: mudança esperada no Na+ a cada litro de
indução de diabete insípido nefrogênico. solução infundido. (*) caso a solução não possua K+,
Deve-se atentar para o fato de que a velocidade exclua essa variável da fórmula. Na+ infusão: [Na+] em
de correção do sódio deve ser respeitada mesmo nos mEq por litro da solução escolhida.
casos em que não se utiliza a solução salina hipertô-
nica, como em casos com hipovolêmia intensa e nos Soluções:
hipervolêmicos edemaciados. Mesmo em indivíduos
NaCL 5% = 855 mEq/L de Na+
euvolêmicos com hiponatremia crônica oligo ou assin-
NaCL 3% = 513 mEq/L de Na+
tomática causada por algum agente, em que o trata-
NaCL 0,9% = 154 mEq/L de Na+
mento, muitas vezes, é apenas a suspensão do agente,
NaCL 0,45% = 77 mEq/L de Na+
a velocidade de correção deve ser observada e, se ul-
Ringer lactato = 130 mEq/L de Na+
trapassada, indicam-se soluções hipotônicas intrave-
Glicose 5% = 0 mEq/L de Na+
nosas para retomar um nível seguro de concentração
Tabela 4.8
de sódio. A Tabela 4.8 mostra os princípios do trata-
mento da hiponatremia.

0,6 x peso (homem jovem)


Princípios do tratamento da hiponatremia 0,5 x peso (homem idoso)
Água corporal total
Não corrigir rapidamente o sódio (máximo 12 mEq/L 0,5 x peso (mulher jovem)
em 24 horas). 0,45 x peso (mulher idosa)
Utilizar as fórmulas conhecidas para calcular a variação Tabela 4.9
do sódio com a infusão de 1 litro de qualquer solução.
Restrição hídrica não é útil em todos os casos; está in-
dicada nos hipervolêmicos e na SIADH.
Solução hipertônica não é útil em todos os casos, parti- A Fórmula de Adrogué-Madias é a maneira
cularmente nos indivíduos com hipervolemia. mais eficiente e segura de corrigir distúrbios de
Solução salina isotônica não é útil em todos os casos; é in- sódio sérico (disnatremias) em pacientes sinto-
dicada para indivíduos com hiponatremia e desidratação/ máticos, determinando boa reprodutibilidade e
hipovolemia. capacidade de predizer o sódio sérico dosado ao
final da infusão. Foi proposta em 1997 por Adrogué
Tabela 4.8
HJ e Madias NE, em publicação no período Intensive
Care Medicine. É amplamente aceita e é considerada
Na hipernatremia, o tratamento também é uma das maneiras mais fáceis de calcular com relati-
orientado pelo estado do volume extracelular. Na vi- va precisão a quantidade de fluido a ser infundido, de
gência de depleção de volume, o tratamento consis- acordo com a solução salina escolhida.
te na restauração da volemia com soluções salinas
hipotônicas (0,45%) ou isotônicas. Após a estabili-
zação das condições hemodinâmicas, indica-se a admi-
nistração de água, por via oral, ou solução de glicose a Reposição de Potássio
5%, por via intravenosa. No paciente com hiperna- O catabolismo tecidual e o trauma operatório
tremia e normovolemia, o tratamento preferen- causam um aumento na liberação endógena de po-
cial é a administração de água por via oral ou por tássio, o que justifica a restrição desse íon durante
infusão intravenosa de solução de glicose a 5%. Se o período pós-operatório imediato. Nos pacientes
a hipernatremia está associada ao excesso de volume com hipocalemia pré-operatória, a reposição imedia-
extracelular, o tratamento deve incluir administração ta de potássio no pós-operatório pode ser necessária,
simultânea de água livre e de diuréticos para a remo- desde que seja realizada após a confirmação labora-
ção do excesso de solutos. A infusão exclusiva de água torial da hipocaliemia e sob rigorosa monitorização.
pode aumentar a expansão do volume extracelular e Depois do prazo de 24 horas da operação, a admi-
agravar a função cardíaca e a pulmonar. nistração de potássio torna-se essencial, em conse-

SJT Residência Médica – 2016


3
4 Pós-operatório I

quência da grande perda urinária durante o perío-


[K+] sérico < 3,0 mEq/L = deficit > 300 mEq/L
do de atividade endócrina máxima, sobretudo, pelo
[K+] sérico < 2,0 mEq/L = deficit > 700 mEq/L
aumento na secreção de aldosterona.
A hipocalemia é um distúrbio comum no
pós-operatório, e geralmente é causada por suple-
Reposição de Cálcio
mentação inadequada de potássio, excreção renal
excessiva, ou por perdas acentuadas de secreções di- Em pacientes cirúrgicos sem complicações,
gestivas. As perdas de potássio ocorrem, principal- a administração de cálcio de rotina no pós-ope-
mente, nos três primeiros dias após a operação, ratório é geralmente desnecessária, porque as
essencialmente, pelas vias urinárias, com excreção alterações de cálcio são infrequentes. Nos pacien-
de 30 a 60 mEq/ dia de potássio. No pós-operatório, tes com pancreatite aguda, imobilização prolongada,
recomenda-se, usualmente, a suplementação de 40 infecção grave de partes moles, fístulas digestivas e
a 80 mEq/dia de potássio. Na maioria dos pacientes hipomagnesemia, a reposição de cálcio pode ser ne-
cirúrgicos, a infusão de 40 mEq de potássio é ge- cessária.
ralmente suficiente para evitar a hipocaliemia pós- Os sintomas da hipocalcemia dependem, além
-operatória. Antes de começar a infusão de potássio é do grau e da velocidade da queda do cálcio sérico, do
sempre imprescindível verificar se o paciente tem uma estado acidobásico, de hipomagnesemia concomitan-
diurese adequada, ou seja, de 30 a 50 mL/hora. te e da hiperatividade simpática. Os sintomas são
As perdas volumosas ou persistentes de se- mais comuns com níveis de cálcio menores que
creções digestivas no pós-operatório podem causar 7,0-7,5 mg/dL (1,8-1,875 mmol/L), ou cálcio iô-
depleção substancial de potássio. A administração nico < 0,7 mmol/L (2,8 mg/dL), e predominam as
de 20 a 40 mEq de potássio para cada 1.000 mL de lí- manifestações de irritabilidade neuromuscular,
quido gastrointestinal perdido é geralmente suficiente como parestesias de extremidades e perioral, fraqueza
para evitar os efeitos deletérios da hipocaliemia, des- muscular, sinais de Chvostek e Trousseau, cãibras
e mialgia, laringoespasmo, disfagia e cólicas abdomi-
de que o paciente tenha função renal preservada e vo-
nais, tetania, hiperreflexia, espasmo carpopedal, dis-
lume urinário dentro da normalidade.
túrbios do movimento e convulsões focais e genera-
A hipocalemia deve ser apontada como pos- lizadas.
sível fator causal quando se observam arritmias
As manifestações cardíacas incluem pro-
cardíacas, sem uma causa aparente, em pacien-
longamento de intervalo QT que pode evoluir
tes operados. Se for o caso, a reposição de potássio para fibrilação ventricular e BAVT e diminuição
é geralmente suficiente para a correção da arritmia. da contratilidade miocárdica com insuficiência
Todavia, como o magnésio é essencial para o contro- cardíaca (hipocalcemias crônicas). Sintomas neurop-
le da concentração intracelular de potássio, tem sido siquiátricos também podem estar presentes, como an-
sugerido que a arritmia cardíaca pode ser também se- siedade, irritabilidade, psicose, demência e depressão.
cundária à depleção de magnésio.
O tratamento depende da gravidade da hipocal-
cemia. Nos casos graves sintomáticos, a reposição
Alterações eletrocardiográficas nos de cálcio parenteral é recomendada e deve ser
distúrbios do potássio feita preferencialmente com gluconato de cálcio
ECG Hipocalemia Hipercalemia a 10%. Para tetania e convulsões hipocalcêmicas, ad-
Onda P Pontiaguda: Diminuição progres-
ministram-se 10-20 mL de gluconato de cálcio em 10
aumento de siva, podendo estar minutos (infusão mais rápida está associada a arrit-
amplitude. ausente. Aumento do mias cardíacas), repetindo-se a dose até controle dos
intervalo PR. sintomas. Nos casos em que há um processo contínuo
Complexo Aumeno de amplitu- Alargamento. levando a hipocalcemia (por exemplo, na síndrome
QRS de e duração da fome óssea após paratireoidectomia), recomenda-
Segmento Depressão com in- Supradesnivelamento. -se infusão contínua de cálcio, com doses de até 10
ST fradesnivelamento. ampolas de gluconato de cálcio 10% em 8-10 horas e
Onda T Achatada: redução monitorização frequente do cálcio sérico. Além disso,
de amplitude. o magnésio deve ser reposto, caso haja hipomagnese-
Outras Aparecimento da Aparecimento da mia, uma vez que a depleção de magnésio inibe a se-
alterações onda U. onda U. Ritmos creção do PTH. Após o tratamento de emergência, já
ectópicos. se inicia a reposição de cálcio por via oral.
Distúrbios na condu- O tratamento da hipocalcemia crônica (particu-
ção atrioventricular. larmente, aquela associada ao hipoparatireoidismo)
Tabela 4.10 inclui cálcio por via oral (1-2 g/dia), que pode ser ad-

SJT Residência Médica – 2016


76
Cirurgia geral e politrauma

ministrado na forma de carbonato de cálcio ou citrato


de cálcio; esse último, embora contenha apenas 21% Soluções para uso
de cálcio, apresenta melhor absorção com menos in-
tolerância gastrointestinal; e vitamina D, que pode
intravenoso
ser administrada como vitamina D2 (ergocalciferol)
na dose de 25.000-150.000 U/dia ou vitamina D3 Nas Tabelas 4.12 e 4.13, estão relacionadas às
(calcitriol), na dose de 0,25-2 µg/dia. A preparação de soluções parenterais mais comumente utilizadas por
escolha é o ergocalciferol, que apresenta ação lenta e via intravenosa.
prolongada, produzindo níveis de cálcio mais estáveis A solução de Ringer lactato é a que mais se
e custo mais baixo. O calcitriol, geralmente, é reserva- assemelha ao líquido extracelular, e pode ser con-
do para hipocalcemias agudas, mas tem sido usado em siderado o preparado mais fisiológico. Entretanto,
casos crônicos por apresentar menor risco de intoxica- é uma solução levemente hipotônica, e, quando ad-
ção, embora tenha custo elevado. ministrada, em grande quantidade, pode determinar
a liberação de quantidades não desprezíveis de água
Relação Ca++ e albumina
livre. Cada litro dessa solução proporciona 100 a 150
A concentração de albumina pode dar uma ideia mL de água livre. O lactato é convertido em bicar-
errada dos níveis séricos de cálcio. O cálcio pode ser bonato pelo fígado, após a infusão. A utilização
dosado em níveis séricos (carreado por albumina) e do lactato, em vez do bicarbonato, está relacionada
ionizados 45%-50% e é responsável pela estabilidade com a maior estabilidade do primeiro nas soluções
neuromuscular. eletrolíticas para uso intravenoso. Quanto ao uso da
A cada 1 g que cai a albumina, o cálcio cai 0,8. solução de Ringer lactato nos pacientes com choque,
sempre houve a inquietação quanto à possibilidade
de agravamento da acidose láctica. Porém, diversos
Ca++ corrigido = Ca++ medido + [(4,0 – albumina) x 0,8] autores têm demonstrado que essa preocupação é
improcedente, desde que houve normalização mais
rápida do lactato, do pH e do excesso de base nos pa-
cientes que receberam Ringer lactato de forma rápida
e contínua.
Reposição de magnésio
A solução de cloreto de sódio a 0,9%, também
Em pacientes cirúrgicos, a hipomagnesemia
denominada de solução salina normal, caracteriza-se
pode ser observada nos casos de perdas prolongadas
pela alta concentração de cloro e sódio em relação à
ou excessivas de líquidos digestivos, por uso prolonga- concentração plasmática normal. Quando adminis-
do de cateter nasogástrico ou fístulas digestivas, e nas tradas em grande quantidade, o excesso de cloro pode
operações de grande porte, em consequência, às per- produzir acidose metabólica moderada. Essa solução
das exageradas pela urina. A hipomagnesemia pode é ideal para a correção de uma depleção de volume
ocorrer também com o uso prolongado de diuréticos extracelular associada à hiponatremia, à hipoclo-
no tratamento da insuficiência cardíaca congestiva e remia e à alcalose metabólica. Do volume de solução
com as grandes perdas urinárias da fase diurética da salina administrada, cerca de 25% de cada litro perma-
necrose tubular aguda. necem no espaço intravascular e 75% são desviados
A frequente associação da hipomagnesemia à hi- para o espaço intersticial.
pocalemia, à hipocalcemia e à alcalose metabólica difi- A solução de cloreto de sódio a 3% ou 5% é in-
culta a definição dos sintomas específicos da deficiência dicada para o tratamento dos pacientes com hipo-
de magnésio. Assim, as determinações sérica e urinária natremia grave, aguda ou crônica, associada a dis-
do magnésio constituem índices úteis para o diagnóstico. túrbios neurológicos.
No período pós-operatório, a deficiência de mag- A solução de albumina a 20%, utilizada como ex-
nésio deve ser considerada nos pacientes que apresen- pansor do volume plasmático, tem sido recomendada
tam atividade neuromuscular ou cerebral alterada. A no tratamento da hipoalbuminemia grave, principal-
deficiência de magnésio é frequente no pós-opera- mente com fator de restauração da atividade osmótica
tório de pacientes alcoólatras e de pacientes des- específica do plasma. Todavia, há várias indefinições
nutridos. Para evitar a depleção, recomenda-se a in- sobre a eficácia, as indicações e as doses apropriadas
fusão de 10 a 20 mEq/dia de magnésio utilizando-se, de albumina. Provavelmente, há um limite inferior de-
geralmente, da solução de sulfato de magnésio, por via finido de concentração plasmática de albumina, além
intravenosa ou intramuscular. A infusão intraveno- do qual pode aumentar a predisposição ao edema pul-
sa de magnésio não deve ser feita nos pacientes monar e ao íleo paralítico, e interferir na cicatrização
com oligúria ou com depleção grave de volume, das feridas. Quando a albumina é administrada por
devendo ser iniciada após confirmação da função re- via intravenosa, o tempo de permanência no espaço
nal adequada. vascular é temporário, porque o espaço final de ocu-

SJT Residência Médica – 2016


3
4 Pós-operatório I

pação da albumina é aproximadamente o dobro do Composição das soluções parenterais de uso


volume plasmático, em consequência da sua redistri- mais comum por via intravenosa.
buição no compartimento extravascular. O período de Composição eletrolítica do líquido extracelular
permanência intravascular da albumina varia, prova- para permitir análise comparativa
velmente, na dependência da intensidade da permea- Soluções* Na+ K+ Ca++ Mg++ CL- HCO3- Calorias
bilidade capilar. Em circunstâncias normais, a albu- Líquido 142 4 5 3 103 24† -
mina administrada tem uma vida média de 11 dias. extracelular
Quando possível, a normalização dos níveis plasmáti- Ringer 130 4 3 - 109 28† -
cos de albumina é conseguida com mais eficiência pelo lactato
metabolismo endógeno, mediante oferta de suporte Ringer 147 4 5 - 156 - -
nutricional adequado. simples
Para o cálculo do deficit estimado de albumina, Cloreto 77 - - - 77 - -
sódio 0,45%
com base na concentração plasmática e no volume de
Cloreto 154 - - - 154 - -
plasma, torna-se necessário que o resultado encon- sódio 0,9%
trado seja multiplicado por dois. A administração
Cloreto 513 - - - 513 - -
da solução contendo albumina é mais efetiva sódio 3%
quando adicionada em solução salina normal. Cloreto 855 - - - 855 - -
Quanto à velocidade de infusão da albumina, reco- sódio 5%
menda-se que seja lenta, para minimizar os riscos Glicose 5% - - - - - - 200
da expansão súbita do compartimento intravascular, Glicose 10% - - - - - - 400
com sobrecarga cardíaca adicional e desenvolvimen- Glicose 5% 77 - - - 77 - 200
to de edema pulmonar. + cloreto
sódio 0,45%
Glicose 5% 154 - - - 154 - 200
Indicações indiscutíveis de albumina + cloreto
sódio 0,9%
1- Priming da bomba de circulação extracorpórea nas
Tabela 4.12 (*) Eletrólitos (mEq/L) e calorias (kcal/L);
cirurgias cardíacas.
†Em circunstâncias normais, o lactato é metabolizado
2- Tratamento das ascites volumosas por paracenteses re- com produção de bicarbonato. A composição do RL:
petidas. cloreto de sódio 0,6 g; cloreto de potássio 0,03 g; cloreto
3- Após paracenteses evacuadoras nas ascites volumo- de cálcio di-hidratado 0,02 g; lactato de sódio 0,31g e
sas (mais de cinco litros retirados). água para injeção q.s.p. 100 mL.

4- Como líquido de reposição nas plasmaféreses te-


Composição das soluções parenterais suplemen-
rapêuticas de grande monta (retirada de mais de 20
tares para uso intravenoso (med em 10 mL)
mL/kg de plasma por sessão).
Soluções
5- Prevenção da síndrome de hiperestimulação ovaria- Na+ K+ Ca++ Mg++ Cl- HCO3- H2PO4- SO4-
(10 mL)
na no dia da coleta do óvulo para fertilização in vitro. Bicarbonato
12 - - - - 12 - -
6- Cirrose hepática e síndrome nefrótica, quando hou- sódio 10%
ver edemas refratários aos diuréticos e que coloquem Bicarbonato
10 - - - - 10 - -
em risco iminente a vida dos pacientes. sódio 8,4%
Cloreto
7- Grandes queimados, após as primeiras 24 horas 34,2 - - - 34,2 - - -
sódio 20%
pós-queimadura. Cloreto po-
- 13,4 - - 13,4 - - -
8- Pós-operatório de transplante de fígado, quando a tássio 10%
albumina sérica for inferior a 2,5 g%. Cloreto po-
- 20,1 - - 20,1 - - -
tássio 15%
Indicações não fundamentadas de albumina Cloreto po-
- 25 - - 25 - - -
1- Correção de hipoalbuminemia. tássio 19,1%
Sulfato mag-
2- Correção de perdas volêmicas agudas, incluindo - - - 8 - - - 8
nésio 10%
choque hemorrágico. Sulfato mag-
- - - 40 - - - 40
3- Tratamento crônico da cirrose hepática ou da sín- nésio 50%
drome nefrótica. Gluconato
- - 4,5 - - - - -
cálcio 10%
4- Perioperatório, exceto nos casos mencionados anterior-
Fosfato po-
mente. - 14 - - - - 14 -
tássio 25%
Tabela 4.11 Tabela 4.13

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

5
Pós-operatório II

em glicerol e ácidos graxos) em glicose. Esse fenôme-


Introdução no parece ter regulação central envolvendo uma maior
secreção de ACTH pela hipófise e, consequentemente,
Durante o jejum, algumas alterações hormonais aumento da secreção de cortisol pela suprarrenal. O
e metabólicas ocorrem para que o organismo se adap- cortisol, associado à queda da insulina e ao au-
te à situação presente. Em cirurgia, o jejum é extre- mento dos hormônios tireoidianos e adrenérgi-
mamente comum e habitual em todas as operações cos, determina uma mobilização das proteínas
por um período aproximado de 6 horas. Uma carga musculares que passam a fornecer, por meio de
de carboidratos 2 horas antes da operação é segura e reações catabólicas, aminoácidos na corrente
capaz de reduzir a resistência periférica à insulina que sanguínea. Entre os aminoácidos, a alanina e a glu-
acontece após o trauma operatório. Depois de algu- tamina são os mais frequentes na corrente sanguí-
mas horas em jejum, os níveis de insulina caem en- nea e também os preferidos para a gliconeogêne-
quanto os do glucagon aumentam, determinando se, contribuindo com 75% dos átomos de carbono
uma rápida utilização dos parcos recursos de glico- proteico da molécula de glicose neoformada. Como
gênio armazenado pelo organismo, especialmente se verá adiante, a glutamina é especialmente im-
no fígado. Os níveis séricos do hormônio do cres- portante no metabolismo da mucosa intestinal, na
cimento também se elevam caso haja hipoglicemia manutenção da defesa contra a translocação bacte-
ou diminuição de circulação de ácidos graxos livres. riana. Com o jejum (absorção zero de proteínas) e
Como a reserva de glicogênio é pequena e se exaure o catabolismo proteico acelerado, haverá balanço
em pouco tempo, a gliconeogênese passa a ser vital, nitrogenado negativo, caracterizado pela excreção
pois o SNC e as células sanguíneas são altamente de- renal de 4 a 5 g por dia de nitrogênio. Isso equivale
pendentes da glicose para suas atividades metabólicas a uma perda diária de 300 a 400 g de massa magra por
durante o período inicial do jejum não adaptado. As- dia e, dessa maneira, em um jejum prolongado, 35%
sim, o fígado converterá aminoácidos e glicerol do total de massa magra será consumido em um mês.
(resultante da quebra dos triglicérides armazenados Caso o jejum se prolongue, o organismo tentará
3
5 Pós-operatório II

adaptar-se diminuindo o gasto energético basal,


A presença de RH não quer dizer que todo o TGI retor-
porém, o óbito ocorrerá em aproximadamente
nou às suas atividades peristálticas de rotina.
60 dias caso o indivíduo receba apenas água. A
queda dos níveis de insulina, associado ao aumento
do glucagon, leva a níveis aumentados de AMP cí- É conveniente aguardar o retorno com-
clico no tecido adiposo, resultando em estímulo à pleto da peristalse + eliminação de flatos para
lipase hormônio-sensitiva para quebrar a molécula iniciar a dieta. A dieta não precisa seguir a clássica
do triglicerídeo em glicerol e ácido graxo. Esses áci- evolução: líquida + líquida total + pastosa + sólidos
dos graxos serão particularmente importantes no etc., até dieta livre.
fornecimento de energia ao fígado para as reações
da gliconeogênese hepática. Também será a fonte de
energia para os órgãos nesse processo de adaptação à
escassez de glicose. Os glóbulos vermelhos utilizam
a glicose de modo anaeróbico e produzem, portanto, Indicações para nutrição
em seu metabolismo, o lactato e o piruvato. Em um
mecanismo de adaptação e preservação de ener-
enteral
gia, o lactato é convertido pela glicogênese em A terapia nutricional enteral (TNE) é a primeira
glicose, no chamado ciclo de Cori. Por outro lado, o escolha de alimentação para o paciente que tem o
piruvato é transaminado no musculoesquelético, con- trato gastrointestinal funcionante e não conse-
vertido em alanina e glutamina que circulam no san- gue ou não pode alimentar-se pela via oral.
gue e são convertidas novamente em glicose pela gli- Após triagem e avaliação do estado nutricio-
coneogênese hepática. Nesse último ciclo, participam nal, a equipe multidisciplinar pode diagnosticar os
também os aminoácidos de cadeia ramificada que são pacientes incapazes de manter a ingestão calórico-
produzidos também pelo fígado durante o jejum e são -proteica adequada pela via oral. A indicação deve ser
importantes para estimular as sínteses proteicas. Com criteriosa, pois apresenta alto custo quando compa-
o prolongamento do jejum, progressivamente o rada com a dieta via oral normal. A TNE está indicada
cérebro passa a consumir mais corpos cetônicos quando o paciente não deve ou não pode ser alimen-
e menos glicose. Nessa fase, a excreção urinária de tado por via oral, ou o faz de maneira insuficiente
amônia formada no rim pela transaminação da glu- para atender às suas necessidades, e o trato intesti-
tamina aumenta e passa a ser a forma de excreção
nal está funcionante e pode ser utilizado. Tem sua
nitrogenada mais comum. O conhecimento dessas
maior indicação quando a quantidade de calo-
alterações que ocorrem no jejum serve para enfa-
rias e de nutrientes ofertados pela via oral não
tizar a necessidade de tentar, sempre que possível,
minimizar as suas repercussões com fornecimento
é suficiente para a satisfação das necessidades
de calorias e, quando viável, de nutrientes, preco- nutricionais. Várias situações requerem a indicação
cemente ao paciente cirúrgico. da TNE por um tempo curto ou prolongado. A nutri-
ção enteral pode ser indicada como via única de ali-
mentação ou estar associada à nutrição parenteral ou
a via oral, como frequentemente ocorre nos momen-
tos de transição de uma via para outra. As Tabelas
Nutrição no 5.1 e 5.2 sintetizam as principais contraindicações e
indicações da TNE em cirurgia.
pós-operatório
Contraindicações radicais e relativas
da nutrição enteral
Traumas abdominais.
Quando iniciar dieta oral? €
€ Íleo paralítico prolongado.
Lembrar que a peristalse fica diminuída no pós- € Paciente hemodinamicamente instável.
-operatório pelo manuseio das alças intestinais e pelo € Pancreatite aguda grave.
aumento da atividade simpática dos nervos esplânc- € Vômitos incoercíveis.
nicos. Ou seja, aparece um íleo adinâmico que pode € Diarreia intratável.
ser mais ou menos prolongado em peritonites e res- € Pós-operatório imediato em que a TNE está contrain-
dicada.
secções de grandes tumores. € Desnutrição grave com diarreia crônica intratável.
Peristaltismo do intestino delgado = começa € Enterite aguda (processo inflamatório grave, Crohn,
nas primeiras 6-24 h. colite ulcerativa).
€ Obstrução intestinal.
Peristalse gástrica = 24-48 h. € Sangramento crônico e maciço do trato intestinal.
Peristaltismo colônico = 48-72 h. Tabela 5.1

SJT Residência Médica – 2016


80
Cirurgia geral e politrauma

Indicações da terapia nutricional enteral cinco dias, dependendo da evolução, o paciente


em cirurgia deverá estar recebendo todo o aporte calórico e
proteico necessário.
Trato gastrointestinal íntegro
€ Lesão do SNC, acidente vascular cerebral.
€ Trauma muscular, cirurgias ortopédicas. Sistematização do término da TNE
€ Grande queimado. A TNE deve finalizar quando o paciente apresen-
€ Neoplasias. tar condições clínicas favoráveis para receber dieta via
€ Anorexia/perda de peso. oral. É necessário iniciar com uma dieta de consistên-
€ Desnutrição aguda ou crônica. cia que o paciente mais tolerar (geralmente, líquida ou
Dificuldade de ingestão via oral e/ou transtornos semilíquida) em pequenos volumes. Deve-se observar
intestinais a ocorrência de engasgo, tosse, disfagia, odinofagia e
€ Lesões orais ou esofágicas. refluxo gastroesofágico da dieta oferecida. Quando
€ Deglutição comprometida: estenoses, adenocarcino- o paciente passa a aceitar 50% a 60% das suas
mas, megaesôfago. necessidades nutricionais pela via oral por pelo
€ Câncer de boca, faringe e esôfago.
menos três dias consecutivos, pode-se iniciar o
€ Preparo nutricional pré-operatório para cirurgias do
desmame gradativo da nutrição enteral.
trato gastrointestinal (TGI).
€ Pós-operatório de pacientes que não vão receber
nada via oral por pelo menos cinco dias.
€ Doença inflamatória do intestino delgado e grosso.
€ Síndromes de má absorção.
Vias de acesso para a TNE
€ Fístulas digestivas. A via de acesso está diretamente ligada ao quadro
€ Pancreatite aguda. clínico do paciente, ao tipo de formulação a ser pres-
€ Enterite actínica ou por quimioterapia. crita e às condições do trato intestinal (mecanismos de
€ Estados hipermetabólicos. digestão, absorção, excreção e proteção), variando em
€ Síndrome do intestino curto. localização gástrica e pós-pilórica (duodenal e jejunal).
€ Desnutrição grave, com ou sem doença de base. Há grande discussão na literatura a respeito do melhor
Tabela 5.2 posicionamento da sonda. Uma recente metanálise
mostrou que, em pacientes críticos, a melhor posição da
sonda é pós-pilórica. Existem quadros particulares bem
definidos, como na pancreatite, em que a sonda deve
Sistematização do início da TNE estar posicionada no jejuno para deixar o pâncreas em
A TNE deve ser iniciada o mais precocemente repouso. O acesso também depende do tempo em que
possível (12 a 48 horas, após a agressão) no paciente o paciente deverá permanecer com esta terapia. As son-
hemodinamicamente estável, na presença de ruídos das nasoentéricas estão indicadas para pacientes que
intestinais ou quando este estiver débil. No paciente permanecerão quatro a seis semanas com este suporte
com sonda gástrica, a diminuição do débito da sonda nutricional e as estomias para os que necessitarão de
em sifonagem ou em drenagem (igual ou inferior a um tempo maior que seis semanas. As principais vias
200 mL) e o aspecto da secreção compatível com as de acesso são a orogástrica, a nasogástrica, a nasoduo-
características da secreção gástrica também são pa- denal, a nasojejunal, a gastrostomia e a jejunostomia.
râmetros para o início da TNE. Deve-se frisar, entre- Na Tabela 5.3, estão as principais vantagens e desvan-
tanto, que o uso de sonda nasogástrica de rotina em tagens da localização gástrica e pós-pilórica.
cirurgia não tem suporte de evidência na literatura e
está associado a complicações pós-operatórias e pode
Principais vantagens e desvantagens quanto à
ainda atrasar o início da alimentação do paciente. A localização da sonda ou do estorna
TNE precoce melhora a resposta imunológica lo-
Localização gástrica
cal e sistêmica, evita a translocação bacteriana,
Vantagens
melhora o trofismo e a integridade da barreira
Maior tolerância a fórmulas hiperosmolares.
intestinal, minimiza a resposta metabólica ao Mais fisiológica.
trauma e diminui a ocorrência de sepse. Progressão mais rápida para se alcançar as necessidades
A alimentação por sonda deve sempre ser ini- nutricionais do paciente.
ciada em pequenos volumes (20 a 40 mL/hora), de Permite o uso de formulações mais baratas e caseiras.
preferência com bomba de infusão, com densida- Introdução de grandes volumes ao mesmo tempo.
de calórica de 1 a 1,5 cal/mL. A fórmula escolhida Fácil posicionamento da sonda.
vai depender do quadro clínico e nutricional (por Melhor tolerância à administração sem a bomba de in-
exemplo, hidrolisada, polimérica, padrão, específica, fusão.
com imunonutriente ou não). No período de três a Melhor via para pacientes conscientes não acamados.

SJT Residência Médica – 2016


3
5 Pós-operatório II

Principais vantagens e desvantagens quanto à e equipamentos específicos e, ainda, dificultam a mo-


localização da sonda ou do estorna (Cont.) bilização de pacientes não acamados.
Desvantagens Gotejamento intermitente
Risco de aspiração em pacientes com dificuldades de A administração da dieta é realizada por perío-
deglutição e críticos. dos, com o volume variando entre 50 a 300 mL, 4 a 6
Maior facilidade de refluxo e broncoaspiração. vezes ao dia, durante 30 a 60 minutos. Tem a vanta-
Maior facilidade de saída acidental da sonda.
gem de facilitar a deambulação do paciente, diminuir
Contraindicada para pacientes que terão de permane-
o custo comparado ao gotejamento contínuo, pois não
cer por mais de três meses com a sonda.
necessita de bomba infusora. A grande desvantagem
Só pode ser utilizada em pacientes com esvaziamento
gástrico preservado. é o não controle da infusão que pode ocorrer mais rá-
pido do que o programado, facilitando a ocorrência de
Localização pós-pilórica
náuseas, vômitos, distensão abdominal, refluxo, aspi-
Vantagens
ração e diarreia osmótica.
Pode ser usada em pacientes com retardo do esvaziamen-
to gástrico e gastroparesia. Bolo
Menor risco de broncoaspiração e refluxo. É um método pouco utilizado e, geralmente, con-
Melhor via no pós-operatório imediato. traindicado. A dieta é administrada lentamente com
Menor probabilidade de saída acidental da sonda.
auxílio de uma seringa, com o volume variando entre
Desvantagens
50 a 300 mL, 4 a 6 vezes ao dia, por 10 a 15 minutos.
Maior dificuldade de posicionamento da sonda.
Não tolera grande volume nem alta osmolaridade e visco-
sidade da dieta.
Maior custo com as fórmulas. Nutrição enteral cíclica
Requer sondas mais flexíveis, que têm custo mais ele- A escolha de um ou mais períodos para a alimen-
vado. tação do paciente é chamado nutrição enteral cíclica
Estomias (NEC). É muito comum, durante alguns procedimen-
Vantagens tos matutinos, como banho de leito, realização de exa-
Sondas de maiores calibres que toleram soluções mais mes ou fisioterapia, ocorrer a saída acidental da sonda
viscosas.
ou até mesmo a paralisação da dieta por obstrução da
Maior tempo de permanência com a sonda.
sonda ou vômitos. Para evitar essas intercorrências,
Desvantagens
indica-se a NEC, passando o paciente a receber a die-
Estresse em razão do processo cirúrgico para implantação da
ta enteral noturna, por exemplo, das 24 às 6 horas da
sonda.
manhã. Os pacientes domiciliares, em terapia nutri-
Maiores cuidados com a sonda.
Vazamento do conteúdo gastrointestinal para a cavidade ab-
cional enteral prolongada e que trabalham ou estu-
dominal. dam, podem escolher o horário mais adequado para a
Deiscência da parede abdominal. infusão da TNE.
Deslocamento da sonda com deiscência da sutura.
Escoriações e hiperemia da pele.
Tabela 5.3 Avaliação da TNE
A monitorização da TNE permite maior controle
e prevenção das intercorrências, proporcionando uma
Técnicas de administração melhora clínica nutricional mais rápida e redução efe-
tiva dos custos hospitalares. Para o sucesso da terapia
Após a escolha da via de acesso, deve-se escolher
é importante o trabalho da equipe multiprofissional de
o método de administração da dieta, que vai depender terapia nutricional e que cada membro conheça e valo-
do local da sonda, da fórmula selecionada, do calibre rize o papel de cada profissional. Recomenda-se diaria-
da sonda e do estado clínico do paciente. As técnicas mente visitas à beira do leito, inteirar-se das anotações
de administração incluem gotejamento contínuo, go- e discussões realizadas pela equipe, avaliar a evolução
tejamento intermitente e bolo. clínica por meio dos resultados de exames, dos dados
Gotejamento contínuo nutricionais e antropométricos e avaliar, periodicamen-
te, os requerimentos nutricionais. Ajustes nas calorias
A dieta é administrada através de bomba de infu- frente à ocorrência de sepse e aumento das calorias nos
são. Indicado para casos críticos, pacientes internados períodos de anabolismo devem ser feitos. A checagem
em UTI que comumente estão contidos no leito. Tem a do volume de dieta administrada e as intercorrências
vantagem de poder controlar rigorosamente o volume como vômitos, distensão abdominal, peristalse intesti-
prescrito e infundido e a velocidade de infusão. Tem a nal, diarreia e a constipação intestinal também devem
desvantagem do alto custo e manutenção das bombas ser preocupações diárias da equipe.

SJT Residência Médica – 2016


82
Cirurgia geral e politrauma

O gotejamento deve ser mantido uniforme para evi-


Complicações da TNE
tar paralisação da dieta e obstrução da sonda. Evitar,
A TNE praticamente não é acompanhada de sempre que possível, administrar dietas junto com as
complicações graves. A mais temida e grave é a medicações para evitar interações. Sempre que possí-
broncoaspiração, que, felizmente, não é comum. vel, fazer controle bacteriológico das dietas, dos uten-
A maioria pode ser prevenida e tratada, desde que a sílios, dos equipamentos e do local de manipulação
terapia seja bem monitorizada. As complicações são das fórmulas. É importante observar, periodicamente,
classificadas em: mecânicas relacionadas com a sonda, através de radiografia a localização da sonda. A mobi-
metabólicas, gastrointestinais, infecciosas, respirató- lização do paciente deve sempre ser estimulada e re-
rias e psicológicas. As principais complicações da TNE alizada para evitar a formação de úlceras de pressão.
podem ser vistas na Tabela 5.4. Proceder a cuidados higiênicos e de assepsia com a
boca, narinas e as estomias. Sempre que possível, pro-
Complicações da TNE porcionar aos pacientes e familiares apoio psicológico.
Complicações
Diarreia/cólicas intestinais.
Flatulência/distensão abdominal.
Constipação intestinal. Classi昀椀cação das fórmulas enterais
Náuseas/vômitos.
Estase gástrica. As formulas na TNE podem ser classificadas em:
Gastroenterocolites. a) artesanais ou naturais: preparadas a partir
Refluxo gastroesofágico. de alimentos in natura e ou industrializados liquidifi-
Broncoaspiração. cados preparados no lactário ou cozinha dietética;
Pneumonias aspirativas/infecciosas.
Hiperglicemias/hipoglicemias. b) industrializadas: preparadas integralmente
Distúrbios hídricos/desidratação e hiperidratação. pela indústria farmacêutica, necessitando de pequena
Carências nutricionais. ou nenhuma manipulação prévia para o uso.
Saída e migração acidental da sonda. As industrializadas são classificadas em:
Obstrução da sonda.
Fístulas traqueoesofágicas. a) poliméricas: compostas de proteínas, carboi-
Contaminação da formulação. dratos e lipídios íntegros de peso molecular elevado
Esofagite/faringite/rouquidão/sinusite aguda. que requerem um trabalho digestivo maior e a osmo-
Necrose de aba de nariz. laridade da solução é menor que das fórmulas pré-
Abscesso septo-nasal. -digeridas;
Estenose. b) pré-digeridas ou oligoméricas ou semiele-
Diminuição da capacidade gástrica. mentares: são compostas de nutrientes de baixo peso
Ansiedade/depressão.
molecular que requerem capacidade absortiva digesti-
Falta de estímulo ao paladar.
va mínima; são produtos hiperosmolares;
Tabela 5.4
c) monoméricas ou elementares: são compos-
tos com menor peso molecular que requerem mínimo
esforço para absorção;
Cuidados gerais durante a TNE d) fórmulas especiais ou específicas: são pro-
dutos destinados aos nefropatas, aos hepatopatas,
Durante e após a administração da dieta enteral,
aos pneumopatas, aos diabéticos, aos imunodepri-
o paciente deverá ser mantido em cabeceira elevada
midos e outros;
em ângulo de 45°. Deve-se anotar no rótulo da dieta o
nome do paciente, o volume da dieta, a velocidade de e) modulares: são compostos concentrados de
infusão e o horário. Antes da administração, deve-se nutrientes (proteínas, lipídios ou hidratos de carbono,
certificar das características da dieta, observando tipo minerais e vitaminas), nutricionalmente incompletos,
de fórmula, cor, fluidez, identificação e se confere com que podem ser combinados entre si para produzir uma
a prescrição nutricional. Após a administração de dieta dieta nutricionalmente completa ou serem acrescidos
e de medicamentos, deve-se infundir água (10 a 50 mL) a uma fórmula enteral com composição pré-fixada,
para evitar a formação de grumos e obstrução da sonda. atingindo uma fórmula nutricional individualizada;
O volume infundido e a velocidade de infusão de- f) fórmulas suplementares: fórmulas utilizadas
vem ser controlados rigorosamente. para nutrição enteral oral ou por sonda destinadas à
O equipo do sistema fechado deve ser tro- suplementação a uma dieta oral, enteral ou parenteral;
cado a cada 24 horas, verificando-se sempre se g) fórmulas infantis: destinadas especificamen-
o equipamento está adequado para o sistema. te a crianças;

SJT Residência Médica – 2016


3
5 Pós-operatório II

h) fórmulas enriquecidas com nutrientes imu- citos totais circulantes e da síntese de linfócitos T
nomoduladores: específicas para pacientes críticos é frequentemente um achado comum em pacientes
imunodeprimidos, com ou sem sepse. que recebem glutamina. Embora ainda desacreditada
por alguns autores, várias metanálises têm demons-
Os principais imunonutrientes são a gluta-
trado que o seu uso, principalmente por via parenteral
mina, a arginina, os nucleotídeos, os ácidos gra-
e com altas doses, têm direta repercussão na queda de
xos ômega-3 e os antioxidantes. Dos imunonu-
infecção e dias de internação de pacientes cirúrgicos.
trientes destacamos a glutamina.

Glutamina Indicações para nutrição


A glutamina é um aminoácido não essencial
que pode ser sintetizado em quase todos os tecidos
parenteral
do organismo. É o aminoácido mais abundante no Quando o trato gastrointestinal não pode ser uti-
plasma e é avidamente captado pelo enterócito, lizado como via de alimentação, os nutrientes devem
tanto pela corrente sanguínea quanto pela luz intes- ser administrados por via parenteral. A administração
tinal, que a usa como seu substrato energético de ex- de todos os nutrientes por via parenteral (nutrição pa-
celência. Em pacientes que recebem TNP, a falta desse renteral) pode ser feita de duas formas:
nutriente na luz intestinal ou na composição da solu- a) nutrição parenteral central ou total (NPT);
ção nutriente pode determinar uma atrofia das vilosi-
b) nutrição parenteral periférica (NPP).
dades intestinais e, em decorrência desta, favorecer a
translocação bacteriana. A nutrição parenteral (NP) é uma solução ou
emulsão, composta basicamente de carboidratos,
A glutamina tem sido considerada como nu-
aminoácidos, lipídios, vitaminas e minerais, estéril e
triente indispensável em estados catabólicos. Di-
apirogênica. É acondicionada em recipiente de vidro
versos estudos têm mostrado que, em situações carac-
ou plástico, destinada à administração intravenosa
terizadas por estresse catabólico, ocorre redução da
em pacientes desnutridos ou não, em regime hospita-
concentração de glutamina no plasma e musculatura,
lar, ambulatorial ou domiciliar, visando à síntese ou à
esse efeito é proporcional à severidade do estresse.
manutenção dos tecidos, órgãos ou sistemas (Portaria
Isso é resultado de sua maior demanda nesses esta-
272/MS/SNVS, de 8 de abril de 1998).
dos. Quando liberada pela musculatura esquelética, a
glutamina circula no plasma e se transforma em uma
importante carregadora de nitrogênio entre os órgãos,
precursora de diversas proteínas e fonte de energia Indicações
para a mucosa intestinal, fibroblastos e linfócitos.
Geralmente, indica-se a TNP quando o paciente
A maioria das composições de dietas enterais não pode ser alimentado por via oral ou enteral, ou
contém glutamina em quantidades insuficientes e, quando o aporte de nutriente pelo tubo digestório é
por esse motivo, é recomendada a adição desta a TNE. insuficiente. Alguns autores preconizam a central
A dose recomendada é de 0,5 g/kg/dia dividida quando o paciente necessitar de mais de 10 dias de
em três a quatro tomadas. Recomenda-se o prepa- TNP, e a periférica quando a expectativa é de um
ro logo antes da oferta ao paciente, porque a instabi- período inferior a esses 10 dias.
lidade em solução é alta. O uso de glutamina por via Quando indicada no pré-operatório, a TNP deve
endovenosa em soluções de TNP é recente. Havia um ser instituída 7 a 10 dias antes da cirurgia. No pós-
grande problema com a adição de glutamina à com- -operatório, a TNP deve ser indicada quando o
posição das soluções em razão da instabilidade desse paciente não puder receber nada por via oral ou
aminoácido quando em solução que se decompõe em enteral nos próximos 5 a 10 dias. As indicações da
ácido piroglutâmico e amônia. Essa limitação ao uso NPP têm crescido nos últimos anos. A NPP é reservada
clínico promoveu intensa pesquisa por alternativas para aqueles pacientes com indicação de jejum de curta
que culminaram com o advento dos dipeptídeos. Os duração e para melhorar as condições pré-operatórias
dipeptídeos contendo, geralmente, glicil-L-glutamina de pacientes gravemente desnutridos. Alguns autores
(Gly-Gln) ou alanil-L-glutamina (Ala-Gln) apresentam acreditam que a NP é superior à enteral nesses casos pela
boa estabilidade durante a esterilização e a estocagem maior facilidade de atingir os objetivos nutricionais em
e, por isso, parecem ser adequados ao uso clínico. tempo mais rápido. Em algumas situações, a NP pode ser
Vários trabalhos têm enfatizado o papel imu- utilizada como complemento da nutrição enteral para
noestimulador da glutamina tanto por via enteral que as necessidades calóricas do paciente sejam atendi-
quanto na forma de dipeptídeo por via endovenosa das. Isso. Geralmente. acontece em pacientes queima-
em pacientes em TNE. Aumento do número de linfó- dos e politraumatizados ou cirúrgicos de grande porte

SJT Residência Médica – 2016


84
Cirurgia geral e politrauma

do aparelho digestório e quando a dieta parenteral está exclusiva para o suporte, através de bomba de infusão,
sendo finalizada (período de desmame). Na ocorrência em mL/hora, durante 24 horas, conforme volume pres-
de instabilidade hemodinâmica, a NP deve ser sus- crito. O tempo de infusão da solução de nutrição
pensa até a estabilização hemodinâmica. A terapia parenteral não deverá ultrapassar 24 horas. O
parenteral é contraindicada nos pacientes terminais com equipamento deve conter filtro apropriado para
mau prognóstico ou com morte encefálica. Nessas con- infusão da NP e ser trocado a cada 24 horas.
dições, o parecer da equipe deve ser mais importante do Para que essa evolução seja realizada com segu-
que uma opinião isolada do médico assistente. rança, a equipe de terapia deverá realizar uma monito-
rização diária, prevenindo e corrigindo possíveis dis-
Principais indicações da nutrição parenteral túrbios hidroeletrolíticos. Caso ocorra hiperglicemia
No pré-operatório de pacientes eutróficos que não po- ou hipoglicemia no início da terapia, a correção deve
derão receber nada via oral ou enteral por um período ser imediata. A insulinoterapia agressiva para impe-
maior que 7 dias. Por exemplo, gastrectomias com deri- dir a hiperglicemia tem sido muito utilizada nos dias
vação, fístulas enterocutâneas cuja terapia enteral é con- atuais. Preconiza-se que a glicemia deva perma-
traindicada, derivação biliodigestiva em Y Roux, ressec- necer em níveis normais (80 a 110 mg/dL), es-
ções extensas do TGI, síndrome do intestino curto etc.). pecialmente em pacientes cirúrgicos críticos. As
Quando a dieta enteral oferecida não preencher pelo me- alterações de eletrólitos, oligoelementos, vitaminas e
nos 50% das necessidades nutricionais do paciente. minerais devem ser corrigidas conforme carências (re-
No pré-operatório de pacientes desnutridos graves, que posição) ou excesso (diminuição ou suspensão). A água
serão submetidos à cirurgia eletiva, quando a dieta oral
estéril bidestilada pode ser acrescentada para atingir o
e/ou enteral é contraindicada e/ou insuficiente.
volume preconizado (1.200 a 2.000 mL) no primeiro
Complicações cirúrgicas pós-operatórias (abscesso in-
dia de infusão. Essa quantidade varia de acordo com
tracavitário, íleo prolongado).
Trauma abdominal grave. as restrições do paciente.
Desnutrição grave.
Vômitos incoercíveis.
Doença intestinal inflamatória grave. Nutrição parenteral cíclica
Síndrome do intestino curto.
Fístulas digestivas. A infusão contínua de nutrientes impõe mudan-
Pancreatite aguda grave quando não for possível a TNE ças hormonais e metabólicas para o paciente. Mais
por via jejunal. recentemente, tem-se administrado a prática da infu-
Tabela 5.5 são intermitente de nutrientes e calorias no período
noturno. Essa conduta cíclica, além de permitir uma
aproximação com o habitual e normal, propicia perí-
odos pós-absortivos, permite um conforto maior aos
Via de acesso pacientes que ficam livres das bombas e dos equipa-
A NPT deve ser administrada idealmente através mentos, possibilitando a deambulação e atividades
de uma veia central, habitualmente, a veia subclávia leves, principalmente para os pacientes em terapia do-
ou a jugular interna por meio de um cateter de único miciliar e/ou ambulatorial.
lúmen. Deve-se ter rigor com o local de inserção do
cateter para evitar infecções. As principais complica-
ções da punção da veia subclávia ou jugular podem ser Sistematização do término da
vistas na Tabela 5.6. A necessidade de múltiplas vias
de acesso em doentes críticos tornou o uso de cate- nutrição parenteral
teres de dois ou três lúmens muito comum. O uso de Quando o paciente apresentar condições de rece-
cateter totalmente implantável está indicado em ber dieta por via enteral e/ou oral, o desmame da paren-
TNP prolongada e domiciliar. teral deve ser iniciado vagarosamente. No sistema glicí-
dico, o desmame deverá ser realizado com um cuidado
maior em razão da eventual ocorrência de hipoglicemia.
Sistematização do início da TNP Nessa situação, a prescrição de soro glicosado a 10% por
Após triagem e avaliação do estado nutricional, um período de 6 a 12 horas é indicado. No momento de
da determinação das necessidades de nutrientes e calo- transição, a terapia será mista: TNP associada à TNE ou
rias, e da inserção do cateter venoso e, principalmente, à via oral, ou ainda a TNP associada à TNE e oral. Da
após a estabilidade hemodinâmica, inicia-se a terapia mesma forma que no início da administração da solu-
nutricional parenteral. A introdução das calorias e nu- ção, o desmame deve ser gradual. Quando o paciente
trientes deve ser gradual, iniciando-se com 30% a já estiver recebendo 50% das suas necessidades nutri-
40% das necessidades, progredindo para 60% no cionais pela terapia enteral ou dieta oral, a nutrição pa-
segundo dia, aumentando depois para 100% no renteral poderá começar a ser retirada. Caso haja risco
terceiro dia. A TNP será administrada em veia central de o paciente precisar retornar à nutrição parenteral,

SJT Residência Médica – 2016


3
5 Pós-operatório II

aconselha-se manter a punção venosa para a continui- A complicação metabólica mais frequente é
dade da terapia. A NP deverá ser suspensa também na a intolerância à glicose.
ocorrência de instabilidade hemodinâmica. Alterações nas provas de função hepática
podem ocorrer em nutrição parenteral prolon-
Complicações da TNP gada, principalmente em crianças, e podem evo-
luir para hepatopatia crônica.
Complicações da TNP
Menos comumente observam-se hipertriglice-
Metabólicas
ridemia, hipoglicemia, deficiência dos ácidos graxos
Hiperglicemia.
essenciais, hiperinsulinemia, hipercapnia e hiper-
Hipoglicemia (< 75 mg/100 mL)/hipoglicemia insulínica).
Coma hiperglicêmico. volemia. Distúrbios dos eletrólitos podem ocorrer,
Retenção de CO2 por sobrecarga de glicose (hipercapnia). principalmente, em pacientes em estado crítico ou
Hipertrigliceridemias (> 400 mg/100 mL). com insuficiências orgânicas, e devem ser cuidadosa-
Hipofosfatemia (< 2,3 mg/100 mL). mente monitorizados.
Hiperfosfatemia (> 4,3 mg/100 mL). Intolerância à glicose é observada em cer-
Hipocalemia (< 3,5 mEq/L). ca de 25% dos pacientes, manifestando-se por
Hipercalemia (> 5,6 mEq/L). hiperglicemia, glicosúria e, se não manejada ade-
Hiponatremia (< 135 mEq/L).
quadamente, pode evoluir para coma hiperosmolar
Hipernatremia (>145 mEq/L).
não cetótico. O tratamento consiste, basicamente,
Hipocloremia (>108 mEq/L).
Hipomagnesemia (< 1,6 mEq/L). em redução da infusão de glicose por substituição
Hipermagnesemia (> 2,2 mEq/L). da infusão de parte das calorias glicídicas por solu-
Hiperamonemia (> 40 mg/100 mL). ções lipídicas e administração exógena de insulina.
Deficiência de cobre (< 80 µg/100 mL). Estudos recentes demonstraram que a hiperglicemia
Deficiência de zinco (< 75 µg/100 mL). associa-se ao aumento acentuado das complicações
Hiperbilirrubinemia (>1,2 mg/100 mL). infecciosas e, portanto, a glicemia plasmática deve
Acidose (pH <7,45 ou CO2< 21). ser cuidadosamente monitorizada.
Alcalose (pH > 7,45 ou CO2 < 30).
A etiologia das alterações hepáticas decorrentes
Hipocalcemia (< 8,8 mg/100 mL).
da nutrição parenteral não é bem conhecida, mas cer-
Hipercalcemia (> 10,3 mg/100 mL).
Hipoalbuminemia (< 2,5 g/L). tamente é multifatorial. Um dos fatores mais comu-
Alterações hepatobiliares: alterações das provas da fun- mente relacionados às alterações hepáticas durante a
ção hepática, esteatose hepática, insuficiência hepática, nutrição parenteral é o excesso de glicose nas formu-
litíase biliar e colecistite alitíasica*. lações de nutrição parenteral.
Alterações morfológicas da mucosa intestinal predispondo O risco de se desenvolver cálculos biliares é
translocação bacteriana, sepse e síndrome da disfunção de maior com o uso de nutrição parenteral prolon-
múltiplos órgãos e sistemas (SDMOS).
gada, provavelmente, em razão da falta de estí-
Relacionadas com a punção e com o cateter durante mulo para a liberação de colecistoquinina para a
a NPT
contração vesicular que se segue à alimentação
Pneumotórax.
normal. A consequência dessa falta de estimulação é
Hemotórax.
a estase biliar, predispondo à formação de cálculos bi-
Lesão do plexo braquial.
Hidrotórax e hidromediastino. liares. Também pode ocorrer colecistite aguda alitiási-
Trombose venosa. ca em decorrência da falta de estímulo para contração
Lesão do ducto torácico e quilotórax. de vesícula biliar.
Embolia pulmonar e embolia gasosa. Raramente a nutrição parenteral pode oca-
Embolia do cateter. sionar doença metabólica óssea. Ela se manifesta
Arritmia cardíaca e lesão do átrio direito ou válvula tri- por hipercalcemia e perda excessiva de cálcio e fósfo-
cúspide. ro pela urina. Deficiência de ácidos graxos essenciais
Febre.
pode ser observada após poucas semanas do uso de
Sepse.
nutrição parenteral sem lipídeos, apesar de as mani-
Tabela 5.6 (*) O risco de desenvolver cálculos biliares festações clínicas, como lesões de pele, poder levar
é maior com o uso de nutrição parenteral prolongada, meses para se manifestar.
provavelmente, em razão da falta de estímulo para a
liberação de colecistoquinina para a contração vesicu- Complicações infecciosas: a incidência de sep-
lar que se segue à alimentação normal. A consequência se relacionada ao cateter no início da experiência com
dessa falta de estimulação é a estase biliar, predispondo nutrição parenteral era muito elevada, chegando a
à formação de cálculos biliares. Também pode ocorrer 30% dos casos. Com o desenvolvimento das equipes e
colecistite aguda alitiásica em virtude da falta de es- pessoal especializado em terapia nutricional, reduziu-
tímulo para contração da vesícula biliar. -se para cerca de 5%.

SJT Residência Médica – 2016


86
Cirurgia geral e politrauma

redução dos eletrólitos intracelulares, em particular


Nutrição hipocalórica fosfato e potássio, que podem se apresentar com ní-
permissiva veis séricos normais.
Em pacientes criticamente graves, seja por se- Quando um paciente desnutrido começa a se
rem vítimas de trauma e/ou portadores de graves alimentar, ocorre um aumento súbito na produção
complicações cirúrgicas, por vezes, alterações meta- de insulina e energia, restabelecendo o bom fun-
bólicas e hemodinâmicas impedem a oferta ideal de cionamento das bombas de membrana com conse-
energia e poteínas necessárias. Nestas condições e, quente captação celular de fosfato e potássio, com
particularmente, se o doente for obeso, permite-se a hipofosfatemia e hipopotassemia. A falta de fosfato
oferta de energia em quantidade inferior a 25 kcal/ plasmático leva a uma alteração na forma bicôncava
kg/dia, mantendo-se a oferta de proteínas em torno das hemácias, que passam a ser destruídas na mi-
de 1,5 g/kg/dia. crocirculação, levando a um quadro de insuficiência
orgânica e morte em 60% das vezes. Essa síndro-
me está mais relacionada à realimentação de
pacientes desnutridos com o uso de NP. Sua pre-
venção deve-se a um alto nível de suspeita. Muitas
Síndrome da vezes é irreversível, mesmo quando se repõem tar-
diamente os eletrólitos em questão. Esse fenômeno,
realimentação geralmente, ocorre 2-4 dias, após a introdução do
suporte nutricional.
A síndrome de realimentação, ou síndrome A principal forma de prevenção é ofertar inicial-
do roubo celular, caracteriza-se por alterações mente 30% a 50% das calorias calculadas aos pacien-
hidroeletrolíticas graves, como hipofosfatemia, hipo- tes durante os primeiros 3 a 5 dias de dieta. Inicia-se
magnesemia, hipocalemia, deficiência de vitaminas com 10 a 15 kcal/kg/dia e a proteína pode atingir até
e retenção hídrica. São induzidas pelo rápido influxo 1,5 g/kg/dia. A cada 24 a 48 horas aumenta-se 200
intracelular de fosfato em pacientes desnutridos ali- calorias até atingir as necessidades nutricionais de 30
mentados de forma rápida e excessiva. kcal/kg. A quantidade de fluidos infundidos ou libera-
A fisiopatologia da síndrome pode ser dos pela via oral deve ser controlada com cautela até
explicada pela redução na secreção de insulina atingir 30 mL/kg/dia. Deve-se avaliar, diariamente, o
induzida pela inanição e baixa ingesta de carboi- balanço hídrico do paciente e pesquisar edema e fun-
dratos, que faz com que gorduras e proteínas sejam ção pulmonar.
catabolizadas para produzir energia. As bombas de Algumas deficiências de oligoelementos devem
membrana celular funcionam, resultando em uma ser reconhecidas e valorizadas:

Elementos-traço nutricionais e suas implicações clínicas

Avaliação do
Bioquímica e fisiologia Deficiência [RDA*] Toxicidade [TUL†]
Status

O cromo dietético consiste em A deficiência em humanos é des- A ingestão oral raramente A concentração
formas inorgânicas e orgâni- crita somente em pacientes rece- leva à toxicidade. O único plasmática ou séri-
cas. Sua função primária em bendo NPT por longo prazo com sintoma decorrente parece ca de cromo é um
humanos é potencializar a ação quantidade de cromo insuficiente. ser a irritação gástrica. A indicador preciso
da insulina. Ele realiza esta A hiperglicemia ou tolerância à exposição aérea pode causar do status de cromo,
função como um complexo cir- glicose prejudicada é comumen- dermatite de contato, ecze- que parece ter sig-
culante denominado “fator de te observada. ma, úlcera de pele e carcino- nificado somente
tolerância à glicose”, afetando o Foram relatadas, também, con- ma broncogénico [TUL não quando o valor é
metabolismo de carboidratos, centrações plasmáticas elevadas estabelecido]. acentuadamente
Cromo gorduras e proteínas. de ácidos graxos livres, neuropa- mais alto ou baixo
tia, encefalopatia e alterações no que a faixa normal.
metabolismo de nitrogênio. A
suplementação de cromo pode
melhorar a tolerância à glicose em
indivíduos com leve intolerância à
glicose, mas ainda é controverso se
o mesmo acontece em indivíduos
saudáveis [M: 25119; H: 35 µg].

SJT Residência Médica – 2016


3
5 Pós-operatório II

Elementos-traço nutricionais e suas implicações clínicas (cont.)


Avaliação do
Bioquímica e fisiologia Deficiência [RDA*] Toxicidade [TUL†]
Status
O cobre é absorvido por um A deficiência dietética é rara e foi A toxicidade aguda ao cobre Não existem mé-
mecanismo específico de trans- somente observada em crianças foi descrita após ingestão todos práticos para
porte intestinal. prematuras e com baixo peso ao oral excessiva e por absorção detectar deficiên-
Ele é transportado ao fígado, nascer, alimentadas exclusivamen- de sais de cobre aplicados cia marginal. A
onde se liga à ceruloplasmina, te com leite de vaca, e em indiví- sobre a pele queimada. Na deficiência grave é
que circula sistemicamente e duos recebendo NPT sem cobre toxicidade moderada, as detectada de forma
leva o cobre aos tecidos-alvo no
por longo prazo. As manifestações manifestações incluem náu- confiável por níveis
organismo. O cobre é excretado clínicas incluem despigmentação sea, vômito, diarreia e dor séricos reduzidos
pelo trato intestinal e, então, eli-
da pele e cabelo, distúrbios neu- epigástrica; em casos mais de cobre e concen-
minado nas fezes. Os processos rológicos, leucopenia, anemia mi- graves, coma e necrose he- trações de cerulo-
Cobre de absorção e excreção variam crocítica hipocrômica e alterações pática. A toxicidade pode plasmina, assim
de acordo com a ingestão die- esqueléticas. A anemia é decorren- ser observada com doses como baixa ativi-
tética de cobre, possibilitandote de má utilização do ferro, por- tão baixas quanto 70 µg/kg/ dade da superóxi-
a manutenção da homeostase tanto, uma forma condicionada de dia. Há casos também de do dismutase em
do cálcio. O cobre serve como anemia por deficiência de ferro. toxicidade crônica. A doen- eritrócitos.
um componente de diversas A síndrome da deficiência, exceto ça de Wilson é uma doença
coenzimas, incluindo amino- anemia e leucopenia, é também inata rara associada a níveis
-oxidases, ferroxidases, cito- observada na doença de Menkes, baixos de ceruloplasmina e
cromo C-oxidases, dopamina uma condição inata rara associa- acúmulo de cobre no fígado
β-hidrolase, superóxido dismu- da a um prejuízo na utilização do e cérebro, levando, à lesão
tase e tirosinase. cobre [900 µg]. nesses dois órgãos [10 mg].
Componente de diversas me- A deficiência de manganês em A toxicidade por ingestão É preciso estabele-
taloenzimas. A maior concen- humanos não foi demonstrada de oral é desconhecida em hu- cer melhor a sín-
tração do manganês está nas forma conclusiva. Parece cau- manos. A inalação tóxica drome de deficiên-
Manga- mitocôndrias onde é um com- sar hipocolesterolemia, perda de causa alucinação, alterações cia para que uma
nês ponente da manganês-superó- peso, alterações no cabelo e unhas, intelectuais e distúrbios de medida apropriada
xido dismutase. dermatite e síntese prejudicada de movimento extrapiramidal do status de man-
proteínas dependentes de vitami- [11 mg]. ganês seja desen-
na K [M: 1,8 mg; H: 2,3 mg]. volvida
Cofator de diversas enzimas, Um caso, provável de deficiência A toxicidade não é bem Métodos laborato-
principalmente xantina oxidase em humanos foi descrito como re- conhecida em humanos, riais de avaliação
e sulfito oxidase. sultado de administração parente- embora o molibdênio em não estarão dis-
Molib-
ral de sulfito e resultou em hipero- doses elevadas possa interfe- poníveis até que a
dêmico
xipurinemia, hipouricemia e baixa rir no metabolismo do cobre síndrome da defici-
excreção de sulfato [45 µg]. [2 mg]. ência seja mais bem
descrita
A maior parte do selênio die- A deficiência é rara na Améri- A toxicidade está associada A atividade da
tético está sob a forma de um ca do Norte, mas foi observada a: náusea, diarreia, altera- glutationa peroxi-
complexo de aminoácidos. Há em indivíduos recebendo NPT ções cognitivas, neuropatia dase em eritrócitos
uma absorção quase completa deficiente em selênio por longo periférica, queda de cabelo e concentrações
desta forma. A homeostase é prazo. Tais indivíduos apresen- e unhas. A toxicidade foi plasmáticas ou san-
controlada, em grande parte, tam mialgias ou cardiomiopatias. observada em adultos que guíneas de selênio
pelos rins, que regulam a ex- Populações de algumas regiões do consumiram inadvertida- são os métodos
creção urinária de acordo com mundo, como algumas partes da mente 27-2400 mg de selê- mais comumente
o status de selênio. O selênio China, têm ingestão marginal de nio [400 µg] utilizados para ava-
é um componente de diversas selênio. Nessas regiões, a doença liação. Eles são in-
enzimas, principalmente gluta- de Keshan, caracterizada por car- dicadores de status
tiona peroxidase e superóxido diomiopatia, é endêmica e pode moderadamente
dismutase. Essas enzimas pare- ser prevenida (mas não tratada) precisos
Selênio
cem prevenir lesões oxidativas com suplementação de selênio
e por radicais livres a várias es- [55 µg].
truturas celulares. As evidên-
cias sugerem que a proteção
antioxidante do selênio age em
conjunto com a vitamina E,
pois a deficiência de um parece
aumentar a lesão induzida pela
deficiência do outro. O selênio
também participa da conversão
enzimática de tiroxina ao seu
metabólito mais ativo, triiodo-
tironina.

SJT Residência Médica – 2016


88
Cirurgia geral e politrauma

Elementos-traço nutricionais e suas implicações clínicas (cont.)


Avaliação do
Bioquímica e fisiologia Deficiência [RDA*] Toxicidade [TUL†]
Status
A absorção intestinal ocorre A deficiência de zinco tem seus A toxicidade aguda pode ser Não existem indi-
por um processo específico; ela principais efeitos nos tecidos de induzida pela ingestão > 200 cadores precisos
é aumentada pela gestação e proliferação rápida. A deficiên- mg de zinco em um único do status de zinco
corticoesteroides, e diminuída cia leve causa retardo no cresci- dia (em adultos). E mani- para uso na rotina
pela coingestão de fitatos, fos- mento em crianças. Casos mais festada por dor epigástrica, clínica. As concen-
fatos, ferro, cobre, chumbo ou graves de deficiência podem cau- náusea, vômito e diarreia. trações de zinco no
cálcio. Uma ingestão reduzida sar interrupção do crescimento, Após a inalação de fuma- plasma, eritrócitos
Zinco de zinco leva a um aumento teratogenicidade, hipogonadismo ça com zinco pode haver ou cabelo são enga-
na eficiência de sua absorção e e infertilidade, disgeusia, má ci- hiperpneia, diaforese e fra- nadoras
diminuição na excreção fecal, catrização, diarreia, dermatite nas queza.
possibilitando a manutenção de extremidades e ao redor de orifí-
sua homeostase. cios, glossite, alopecia, opacidade
da córnea, perda de adaptação
ao escuro e alterações comporta-
mentais.
O zinco é um componente Observa-se, também, uma alte- O cobre e o zinco competem Em particular, a do-
presente em mais de 100 enzi- ração na imunidade celular. A pela absorção intestinal; a ença aguda diminui
mas, entre as quais estão DNA diarreia crônica e fístulas podem ingestão prolongada de zin- os níveis plasmá-
polimerase, RNA polimerase e causar perda excessiva de secre- co > 25 mg/dia pode levar ticos de zinco, em
RNA sintetase de transferência. ções gastrointestinais e precipitar à deficiência de cobre. Foi parte por provocar
a deficiência. A acrodermatite en- relatada que a ingestão pro- um desvio do zinco
teropática é uma doença genética longada > 150 mg/dia pode do compartimento
recessiva rara na qual a absorção causar erosões gástricas, di- plasmático para o
Zinco intestinal de zinco é prejudicada minuição na lipoproteína de fígado. Testes fun-
[M: 8 mg; H: 11 mg]. alta densidade-colesterol e cionais que deter-
comprometimento da imu- minam a adaptação
nidade celular [40 mg]. ao escuro, acuidade
do paladar e tempo
de cicatrização não
são específicos para
o zinco.

* Cota diária recomendada (RDA) estabelecida para mulheres (M) e homens (H) pelo U.S. Food and Nutrition Board,
1999 a 2001. Em algumas situações, não há dados suficientes para estabelecer uma RDA e, neste caso, é utilizado o ní-
vel de ingestão adequado (Al, adequate intake) estabelecido pelo Board.
Limite máximo tolerável (TUL) estabelecido para adultos pelo U.S. Food and Nutrition Board, 1999 a 2001. NPT = nutrição
parenteral total.
Tabela 5.7

O melhor médico é aquele que mais esperança infunde.


– Samuel Taylor Coleridge

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

6
Resposta inflamatória ao trauma

Os componentes primários são decorrentes e


Introdução inerentes exclusivamente à ação física sobre o orga-
nismo, e nunca podem ser eliminados. Os componen-
A resposta inflamatória ao trauma (RIT) se tra- tes secundários ocorrem em decorrência da ação dos
duz como um mecanismo decisivo para a sobrevi-
componentes primários ou mesmo da consequência
vência em situações de estresse metabólico. En-
de outros componentes secundários sobre o próprio
volve a inter-relação entre o sistema nervoso, sistema
organismo. Finalmente, a existência de componentes
imunológico, sistema endócrino e sistema circulató-
associados depende exclusivamente das condições
rio. O objetivo maior é manter a homeostase, no en-
clínicas e individuais de cada paciente, por ocasião do
tanto, quando exarcebada, pode acarretar disfunção
dos sistemas orgânicos e ser fator determinante para trauma cirúrgico.
a síndrome de falência orgânica múltipla. É de fundamental importância saber que a con-
As duas principais características da RIT são: dição metabólica prévia do paciente modulará a inten-
sidade da resposta pós-agressiva. O domínio e o con-
1) que a intensidade é proporcional à gravidade trole possível do cirurgião sobre essa conjuntura serão
do estresse.
decisivos na melhor ou pior evolução do paciente.
2) e a alteração do metabolismo para a respos-
ta inflamatória direciona as funções energéticas para
manutenção dos processos celulares especializados Primários
necessários. Lesão de tecidos.
Lesão de órgãos específicos.
Principais objetivos da RIT
Preservar órgãos nobres. Secundários
Corrigir distúrbios hidreletrolíticos. Alterações endócrinas.
Estabilizar funções hemodinâmicas e pressão arterial. Alterações hemodinâmicas.
Criar fontes alternativas de energia. Infecções.
Garantir fornecimento de nutrientes ao cérebro e ao Falências de múltiplos órgãos e sistemas.
coração.
Associados
Tabela 6.1 Funções básicas da RIT.
Alterações no ritmo alimentar.
Imobilização prolongada.
Os conceitos dos componentes biológicos da
Perdas hidroeletrolíticas extrarrenais.
agressão são agrupados em três tipos principais: pri-
Doenças intercorrentes.
mários, secundários e associados.
90
Cirurgia geral e politrauma

mentado de energia (hipermetabolismo), mudança


Classi昀椀cação da RIT na utilização de substrato energético caracterizada,
principalmente, pela resistência à ação da insulina,
A resposta normal à inflamação (e principal- e pelo catabolismo muscular proteico (proporcional
mente ao trauma) consiste em uma série de alte- à gravidade do estresse). Em relação às alterações
rações metabólicas que facilitam a recuperação do metabólicas, a fase flow pode ser dividida nas se-
organismo e diminuem a extensão da lesão do hos- guintes subfases:
pedeiro. Classicamente, essa resposta inclui pelo
menos duas fases bem características, sendo que na € fase corticoadrenérgica (duração aproxima-
fase inicial (Fase ebb) há o predomínio da circula- da de 2 a 5 dias), que tem como características
principais o catabolismo e o hipermetabolismo;
ção inadequada, metabolismo anaeróbico, acidose e
hiperlactiacidemia. € fase de transição (duração aproximada de 1
Na fase seguinte (Fase flow), as alterações do a 2 dias), que tem como característica princi-
metabolismo decorrem do aumento da secreção e pal a redução do catabolismo antes de iniciar
atividade de interleucinas, catecolaminas, corticoste- a fase de anabolismo. Outras características
roides e hormônio do crescimento, com hiperinsuline- dessa fase são: diurese aumentada com perda
mia. Após trauma (ou inflamação) grave, o hipotálamo de água livre e sódio, balanço positivo do po-
presumivelmente recebe sinais neuronais aferentes, tássio (redução da perda na urina), diminuição
transmitindo estímulos como dor, hipoxia, hipoten- da perda urinária de nitrogênio (redução da
são, medo, ansiedade etc. degradação proteica). Caso a fase de transição
não ocorra dentro de 3 a 5 dias, após cirurgias
eletivas, o cirurgião deverá suspeitar de algu-
ma complicação;

€ fase de anabolismo precoce (duração apro-


Fase de choque (Fase Ebb) ximada de 3 a 12 semanas). Apresenta como
Corresponde à primeira fase, na qual se nota di- características principais balanço nitrogena-
minuição das funções metabólicas. O objetivo prin- do positivo e deposição de gordura nos teci-
cipal do organismo, nesta fase, é a perfusão de dos adiposos;
órgãos nobres. Geralmente de curta duração após
€ fase de anabolismo tardio (duração aproxi-
o trauma agudo, (cirurgia, queimaduras etc.) o orga-
mada de alguns meses). Caracterizada por ba-
nismo desacelera seu metabolismo, priorizando a so-
lanço nitrogenado neutro, aumento da deposi-
brevivência. Nessa fase, em que o organismo não ção de gordura em tecidos adiposos e balanço
fica mais do que 18 a 72 horas em instabilidade calórico positivo.
hemodinâmica, há redução do consumo de O2 e
a terapia nutricional é de pequeno valor (exceto, Outras características da fase flow são:
talvez, pela nutrição enteral precoce, que pode preser-
var a mucosa intestinal e, talvez, inibir complicações € aumento do débito cardíaco;
como a translocação intestinal de micro-organismos).
O reequilíbrio hemodinâmico, com manutenção da € elevação da temperatura corporal;
perfusão tecidual adequada, regulação do pH dos lí-
quidos corporais etc., são prioritários durante a fase € aumento da produção de glicose;
de baixo fluxo.
€ aumento na concentração de insulina, mas com
intolerância a glicose, em razão, principalmen-
te, da resistência à insulina, que limita a capta-
ção de glicose pelos musculoesqueléticos;

Fase de 昀氀uxo (Fase Flow) € ligeiro aumento na concentração de ácidos gra-


A segunda fase foi denominada flow fase, des- xos livres;
crevendo situação de avanço metabólico ou hiper-
€ aumento dos níveis de glucagon;
metabolismo. Essa fase inicia-se após a estabilização
cardiopulmonar e possui duração variável. Compli- € níveis pouco aumentados de catecolaminas
cações surgidas durante a fase flow, por exemplo, (principalmente adrenalina);
infecção, deiscências agudas de anastomoses, com-
plicações pulmonares e hemodinâmicas, provoca- € níveis normais de lactato;
rão prolongamento da mesma. As três principais
características gerais da fase flow são gasto au- € aumento do consumo de oxigênio.

SJT Residência Médica – 2016


3
6 Resposta inflamatória ao trauma

Fase EBB (baixo fluxo) Fase Flow (alto fluxo) O processo migratório dos neutrófilos para os
locais da inflamação é complexo e didaticamente
Queda das funções Aumento do catabo- pode ser dividido em três etapas: rolamento, adesão
metabólicas lismo
e extravasamento. Na etapa de rolamento, ocorre in-
↓ Temperatura ↑ Temperatura teração de moléculas de adesão localizadas no endoté-
↑ Hormônios do estresse ↑↑ Hormônios do estresse lio (P-selectina e E-selectinas) e a L-selectina presen-
↑ Glicose ↑ Glicose ou normalização
te nos leucócitos, em geral. Na fase de adesão, ocorre
↓ Insulina ↑ Insulina ou normal
a ativação nos leucócitos de β2-integrinas (CD11a,
↑ Glucagon ↑ Glucagon
↑ Catecolaminas
CD11b e CD11c/CD18). Após a ativação dessas inte-
↑ Catecolaminas
↑ Lactato Normalização do lactato grinas, ocorre a ligação destas com moléculas funda-
↓ Consumo de oxigênio ↑ Consumo de oxigênio mentalmente de adesão, denominadas ICAM-1 (inter-
↓ Débito cardíaco ↑ Débito cardíaco cellular adhesion molecule) e VCAM-1 (vascular cellular
Tabela 6.2 Alterações metabólicas e hormonais nas adhesion molecule), que ficam expressas na superfície
fases de resposta ao trauma. endotelial. A interação dessas moléculas promove
a firme ligação entre o leucócito e a parede endo-
telial, possibilitando a posterior migração dessa
Na fase catabólica, o fator extrínseco prioritário
célula para o espaço intersticial.
é a ressuscitação de volume para manter pré-carga,
contratilidade cardíaca e perfusão periférica. Já na Os neutrófilos promovem lesão tecidual por di-
fase anabólica, o fator chave é a reposição de K+, Mg++ versos mecanismos, destacando-se a liberação de enzi-
e PO4. A não reposição efetiva desses tons pode acarre- mas proteolíticas como as elastases. Produzem radicais
tar danos cardíaco, neurológico, renal e hepático. livres de oxigênio ou por ação mecânica de obstrução do
fluxo microcirculatório e, com isso, podem, paradoxal-
mente, estender ainda mais a lesão tissular.

Mediadores celulares
Macrófagos
Essas células têm mobilização mais lenta na
Neutró昀椀los direção da área traumatizada quando comparadas com
os neutrófilos, em compensação, possuem tempo de
Quando o organismo sofre agressão ou estímulo
vida mais longo e produzem enzimas e media-
nocivo, ocorre neutrofilia, como se observa no período
dores inflamatórios de grande importância nas
pós-operatório. Essa neutrofilia é decorrente da mo-
etapas mais tardias da resposta inflamatória. Os
bilização dessas células que ficam agrupadas próximas
macrófagos, diante de um estímulo lesivo (traumatis-
ou aderidas à parede dos vasos e invadem a circula-
mo), têm a possibilidade de liberar vários produtos
ção sanguínea. Essa situação é mediada pela liberação
importantes, como: citoquinas (TNF, IL-1, IL-6, IL-8,
de hormônios produzidos como resposta metabólica
PAF, IFN-α e IFN-γ), proteínas (hidrolases, enzima
aos traumatismos, como o corticoide e a epinefrina.
Em sequência, próximo ao terceiro dia de pós- conversora da angiotensina, antiproteases, elastase,
-operatório, observa-se situação de neutropenia colagenase, lisozima, β-glucuronidade, fibronectina),
transitória em provável decorrência da migra- espécies reativas do oxigênio (peróxido de hidrogênio,
ção dessas células para os órgãos ou tecidos lesa- radical hidroxila, ânion superóxido), produtos lipí-
dos. Em uma fase mais tardia (entre o 5o e o 10o dia dicos (como: ácidos graxos, produtos de degradação
pós-operatório), observa-se nova ocorrência de do ácido aracdônico – TXA2, PGD2, PGE2, 5-HETE,
neutrofilia, só que agora decorrente da mobilização LTB4, LTC4), entre outros.
dos neutrófilos da medula óssea, como resposta à pro-
dução e liberação exacerbada de G-CSF (granulocyte
colony-stimulating factor), que é uma glicoproteína
que estimula a produção de granulócitos no nível da
Mastócitos
medula óssea. Esses são os estímulos sistêmicos que Essas células podem ser consideradas “sentine-
modificam a dinâmica dos neutrófilos, no entanto, las” do processo inflamatório, por causa da peculiar
vários mecanismos locais participam do controle e da distribuição e localização nos tecidos. Elas têm a
mobilização dessas células ante uma agressão traumá- preferência de se localizar nas regiões próximas
tica. Algumas substâncias quimiotóxicas positi- aos vasos e em áreas adjacentes às mucosas e su-
vas (atraentes) locais, como a C5a, calicreína e perfícies epiteliais. Ocupam posições estratégicas,
LTB4, promovem a migração de neutrófilos para o que faz delas a primeira barreira contra estímulos
os tecidos lesados pelo trauma. nocivos ao organismo.

SJT Residência Médica – 2016


92
Cirurgia geral e politrauma

O papel desempenhado pelos mastócitos na res- Entre os principais efeitos das citosinas
posta sistêmica à agressão cirúrgica é marcante, de
pró-in昀氀amatórias estão:
acordo com diversas pesquisas clínicas e experimen-
tais que avaliam a resposta inflamatória nos casos de € aumento da síntese de moléculas de adesão en-
queimaduras e anafilaxia. Estudos comprovam a rela- dotelial;
ção direta entre a extensão e a profundidade de quei- € aumento da migração e ativação dos neutrófilos;
maduras em ratos e a concentração sérica de histami- € inflamação, febre, leucocitose;
na. A histamina e a bradicinina promovem aumento
€ destruição tecidual/muscular (proteólise) pro-
da permeabilidade capilar e vasodilatação arteriolar.
vocando redução funcional;
As células inflamatórias presentes na microcircu- € IL-6 estimula a produção de cortisol e aldoste-
lação de diversos órgãos são ativadas, e isso inicia e ou
rona;
perpetua a resposta inflamatória por meio de produ-
ção e liberação de mediadores, sendo algumas dessas € a concentração de IL-6 tem valor de gra-
substâncias denominadas citoquinas. vidade e prognóstico em pacientes grave-
mente enfermos. Principalmente em vítimas
de trauma, sepse, pancreatite e infarto agudo
do miocárdio.
Alguns desses efeitos ocorrem entre 2 a 5 mi-
Citosinas nutos após a ligação da citosina ao receptor da célula-
-alvo. As principais citosinas anti-inflamatórias
Citosinas são pequenos polipeptídeos produ-
são: antagonista do receptor da IL-1 (IL-1ra), IL-4, IL-
zidos por qualquer célula nucleada, principalmente,
10 (a mais importante), IL-11, IL-13 e fator de cresci-
aquelas envolvidas na inflamação. A ferida operató-
mento transformador-beta (TGF-β).
ria é local de grande produção dessas pequenas
proteínas. Na ferida operatória há células envolvidas
no processo de limpeza de tecidos necróticos e bacté-
rias, angiogênese, epitelização e remodelação do colá- Entre os principais efeitos das citosinas
geno. Tudo isso requer metabolismo intenso. anti-in昀氀amatórias estão:
As citosinas são divididas em duas grandes € redução das lesões pulmonares agudas em pa-
classes, com base nas suas atividades biológicas. Em cientes graves (1L-Ira, IL-13);
geral, elas são capazes de estimular o processo € efeito inibitório na produção de citosinas pró-
inflamatório (pró-inflamatórias) ou inibi-lo -inflamatórias, principalmente IL-1 e TNF;
(anti-inflamatórias). No entanto, todas as citosinas
€ redução da atividade citotóxica do macrófago,
consideradas anti-inflamatórias, exceto a que inibe
diminuindo a capacidade dessa célula matar pa-
o receptor da interleucina-1, desempenham algum
rasitas (IL-4, IL-10);
grau de atividade pró-inflamatória. Portanto,
quando se considera uma citosina pró ou anti-infla- € aumento da proliferação de fibroblastos e endo-
matória, toma-se o resultado final mais importan- télio vascular (IL-4);
te do seu efeito. Para ocorrer RIT adequada, deve € a IL-10, geralmente, protege o hospedeiro da
haver equilíbrio entre as ações das citosinas pró e SRIS exacerbada, mas o coloca em situação sus-
anti-inflamatórias. cetível para infecção fulminante e morte inibe a
secreção de citosinas pró-inflamatórias por cé-
Trabalhos experimentais mostram que o efeito
lulas da linhagem monócito-macrófagos.
exacerbado de uma citosina anti-inflamatória poderá
inibir demasiadamente o sistema imunológico, expon- € o TGF-β é capaz de transformar o local da infla-
do a vítima a complicações infecciosas. Por outro lado, mação ativa em processo de resolução e reparo.
concentração excessiva de citosina pró-inflamatória Além disso, reduz a degradação de matriz extra-
acarreta resposta inflamatória exacerbada, culminan- celular.
do na falência de múltiplos órgãos. É importante notar que alguns patógenos utili-
As principais citosinas pró-inflamatórias zam a complexa rede de citosinas para burlar o siste-
são o fator de necrose tumoral (TNF), as interleucinas ma imunológico do hospedeiro, estimulando a síntese
1 e 8 (IL-1 e IL-8) e o interferon-gama (IFN-γ). A IL-6, de citosinas anti-inflamatórias.
citada como citosina pró-inflamatória, apresenta tam- Além das citosinas, proteínas de fase agu-
bém efeito anti-inflamatório importante, pois é capaz da, entre elas, a proteína C-reativa (PCR), o fi-
de inibir a capacidade dos macrófagos de sintetizar o brinogênio e α2-macroglobulina são produzidos
TNF e a IL-1. O TNF é, provavelmente, a principal no fígado e estimulam o processo inflamatório
citosina iniciadora dos efeitos pró-inflamatórios. durante a RIT.

SJT Residência Médica – 2016


3
6 Resposta inflamatória ao trauma

sa muscular na RIT. O ganho extra de água no


Alterações endócrinas pós-operatório é importante porque, nesse pe-
ríodo, são vários os fatores capazes de aumen-
tar a perda de água corporal. Entre eles: febre,
evaporação pela ferida, drenagem de secreções.
Hormônio antidiurético Além disso, o maior aporte de solutos osmóti-
cos aos quais os rins ficam expostos, em razão
(ADH ou vasopressina) da degradação de proteína muscular, requer
Durante a RIT, a vasopressina, ou hormônio an- maior quantidade de água para serem elimina-
tidiurético (ADH), é liberada pelo hipotálamo como dos na urina.
resposta às alterações volêmicas e da osmolaridade € Aumento do sódio sérico e redução da perda
(concentração de sódio). A perda de volume por ede- de sódio pela urina.
ma ou hemorragia durante a cirurgia é detectada pelos € Aumento da perda urinária de potássio.
receptores de pressão, volume e osmorreceptores, lo-
€ Aumento da perda renal de fósforo e mag-
calizados, respectivamente, nos átrios, na artéria pul-
nésio.
monar e nos neurônios próximos aos núcleos supra-
ópticos. Essas informações aumentam a liberação
de ADH, que por sua vez estimula a reabsorção
de água, principalmente nos túbulos renais pro- Cortisol
ximais. Esse aumento perdura até o 4o a 5o PO.
Rapidamente, após o início do procedimento
cirúrgico, o ACTH estimula o córtex da suprarrenal a
liberar cortisol. O nível máximo é atingido em apro-
Sistema renina-angiotensina- ximadamente 4 a 6 horas. A concentração do cor-
tisol é diretamente proporcional ao grau da lesão
aldosterona (estresse), embora intervenções anestésicas pos-
Outro hormônio importante no equilíbrio hidro- sam reduzir a liberação do mesmo. Para um mesmo
eletrolítico durante a RIT é a renina. Ela é decretada procedimento cirúrgico, a anestesia geral associada a
pelas células justaglomerulares estimuladas por im- bloqueio epidural acarreta níveis menores de cortisol e
pulsos simpáticos provenientes do SNC e da própria menor degradação de proteína muscular do que anes-
ferida operatória. A renina estimula a produção de tesia geral isoladamente. O cortisol apresenta efei-
angiotensina I, que nos pulmões se transforma tos importantes no metabolismo de carboidratos,
em angiotensina II. Esta, além de apresentar ação gorduras e proteínas. Esse hormônio provoca quebra
vasoconstritora, induz a liberação de aldosterona de proteína muscular, permitindo a mobilização de
pelo córtex da suprarrenal. A aldosterona, por sua aminoácidos com os seguintes objetivos:
vez, estimula a reabsorção de água e sal a partir dos tú- € síntese de novas proteínas nas áreas lesadas (fe-
bulos distais e a perda de potássio. O efeito da aldos- ridas, incisão cirúrgica), principalmente, a par-
terona sobre o potássio é importante para manter a tir do aminoácido denominado glutamina;
concentração desse íon dentro dos limites normais. € síntese de novas células de defesa utilizadas
Pois, com o catabolismo muscular, grandes quanti- para controle de infecção, desbridamento e ci-
dades de potássio são liberadas, caso não houvesse catrização das feridas;
o efeito da aldosterona estimulando a perda renal,
€ síntese de mediadores inflamatórios (citosinas
poderia ocorrer hiperpotassemia no pós-operatório.
etc.);
Isso pode ser observado no período pós-operatório de
pacientes com insuficiência renal prévia submetido a O mais importante de todos os objetivos da
grandes procedimentos cirúrgicos. quebra de proteínas musculares na RIT é o forne-
cimento de energia. Para esse fim, a alanina é o
principal aminoácido precursor de glicose no fí-
As consequências 昀椀nais das alterações gado. A glicose é utilizada nos locais da lesão e da in-
hidroeletrolíticas na RIT são: flamação como fonte de energia. Lá, é transformada em
€ Aumento da água corporal total, não só pela lactato que retorna para o fígado para nova produção de
retenção hídrica descrita anteriormente, mas glicose. Essa reciclagem de glicose envolve gasto ener-
também pela administração exógena por meio gético importante e produz calor. O aminoácido gluta-
da soroterapia. Nota-se, então, que os pacien- mina pode ser utilizado como forma de combustível
tes se apresentam edemaciados no período pós- para órgãos de metabolismo rápido, como células do
-operatório. Esse ganho de peso, pelo acúmulo intestino, fibroblastos e células inflamatórias. Nas
de água, endógena e exógena, mascara a perda células do intestino, a glutamina pode ser convertida
de peso que seria esperada pela redução da mas- em alanina, a qual participa da produção de glicose

SJT Residência Médica – 2016


94
Cirurgia geral e politrauma

no fígado. Além disso, a glutamina é precursora da pro- A insulina é um importante hormônio para o
dução de amônia nos rins, necessária para neutralizar anabolismo, inibindo o catabolismo proteico e a lipó-
os ácidos eliminados na urina. lise. A liberação de insulina em pacientes críticos na
O cortisol promove também lipólise, liberan- fase ebb, quando expostos à infusão de glicose, é ine-
do glicerol e ácidos graxos livres, os quais são pre- ficaz, permitindo a hiperglicemia. No entanto, após
cursores da gliconeogênese hepática. a estabilização, como ocorre na fase flow, a resposta
insulínica, após a infusão de glicose, é normal ou até
Sobre o sistema imunológico, o cortisol apresen-
exacerbada. A hiperglicemia na fase flow da RIT
ta efeito anti-inflamatório. Inibe o acúmulo de marcó-
ocorre, portanto, em razão da resistência à ação
fagos e neutrófilos nos locais de inflamação, além de
diminuir a síntese de mediadores inflamatórios. da insulina, principalmente nos tecidos periféri-
cos como os musculoesqueléticos.

Incorpora aminoácidos aromáticos.


Influencia na síntese proteica. Armazena glicose na forma de glicogênio.
Cortisol
Estimula enzimas hepáticas a degradar ami- Insulina
noácidos aromáticos. Favorece incorporação aminoácidos aromáti-
cos nas proteínas musculares.

Catecolaminas
As catecolaminas adrenalina e noradrenalina Glucagon
são fundamentais na RIT. Essas substâncias atu-
Apesar de os níveis de glicemia estar elevados,
am como mediadores entre o sistema nervoso e o
observamos o aumento do glucagon plasmático.
sistema endócrino, apresentando efeitos diretos e
Esse aumento é diretamente proporcional à intensi-
indiretos na RIT. Os níveis de catecolaminas são
dade do trauma. O glucagon favorece a degradação
proporcionais à gravidade do paciente; são os
da glicose e bloqueia a formação do glicogênio,
principais responsáveis por taquicardia, taquip-
favorecendo a transformação de aminoácidos
neia, vasoconstrição periférica e redução do débito
aromáticos em glicose no fígado.
cardíaco observadas na fase ebb. Além disso, con-
tribuem também para o hipermetabolismo e
catabolismo proteico, observados na fase flow. Degrada glicose.
A ativação do sistema nervoso simpático autônomo,
Degrada lipídeos.
a partir de estímulos do hipotálamo, resulta na li-
beração de catecolaminas da medula da suprarrenal Glucagon Bloqueia formação de glicogênio.
e das terminações nervosas pré-sinápticas. Os efei- Favorece a transformação de aminoácidos
tos das catecolaminas são diferentes quando recep- aromáticos em glicose no fígado.
tores, alfa ou beta, são estimulados. Na fase flow
predomina a estimulação beta-adrenérgica.
As catecolaminas afetam também o pâncre-
as endócrino. A produção pancreática de insulina em
resposta à glicose torna-se prejudicada quando há es- GH, ACTH, prolactina e
tímulo alfa-adrenérgico e o contrário quando há estí-
mulo beta-adrenérgico. O somatório dos efeitos resul-
hormônios tireoidianos
ta no aumento da resistência à insulina. O principal hormônio secretado pela hipófise
anterior envolvido na RIT é o ACTH ou corticotrofi-
na, um peptídeo composto de 39 aminoácidos. Proce-
Glicogenólise.
Catecolaminas dimentos cirúrgicos são fortemente capazes de pro-
Gliconeogênese.
(adrenalina; vocar a síntese de ACTH na hipófise anterior a partir
Mobilização de AA muscular.
anoradrenalina) de uma molécula maior, a ópio/melanocortina. Pou-
Hidrólise de lipídeos.
cos minutos após o início de um procedimento
cirúrgico, pode-se notar elevação do ACTH. O
principal efeito do ACTH é estimular a produção de
Insulina cortisol pela suprarrenal.
Com o aumento de catecolaminas no PO, a pro- O hormônio de crescimento (somatotrofina)
dução de insulina fica limitada. A insulina circulan- também é secretado pela hipófise anterior. Peque-
te é menor do que as necessidades em relação à nas proteínas denominadas insulin-like growth factors
glicose sanguínea (que está elevada). (IGF), produzidas no fígado e nos músculos, desempe-

SJT Residência Médica – 2016


3
6 Resposta inflamatória ao trauma

nham os efeitos do hormônio de crescimento quando


estimuladas por ele. Na RIT, os principais efeitos do Modulação da RIT
hormônio de crescimento são:
Embora a RIT seja uma resposta fisiológica à
€ estimula a síntese proteica e inibe a degradação agressão cirúrgica, e fundamental para a sobrevivên-
(efeitos mais observados na fase de anabolismo);
cia do paciente ao estresse operatório, torna-se neces-
€ estimula a lipólise, aumentando a produção de sário que várias condutas sejam tomadas com o obje-
ácidos graxos livres e glicerol; tivo de minimizar a agressão evitando, dessa forma,
€ antagonista da insulina, reduzindo, assim, a exarcebação da RIT e quebra da homeostase.
captação de glicose pelas células; Entre as medidas atuais capazes de reduzir os
€ estimula glicogenólise no fígado; efeitos indesejáveis da RIT destacamos:
€ procedimentos cirúrgicos minimamente inva-
€ estimula o sistema imunológico.
sivos, técnica operatória apurada, limitando a
Nota-se, portanto, que o hormônio de cresci- destruição tecidual, capazes de reduzir os estí-
mento contribui para a resistência à insulina, for- mulos, a partir da ferida, que podem desenca-
necendo, com isso, substrato energético para RIT. dear uma RIT exacerbada;
A prolactina e a beta/endorfina, também pro- € no campo anestésico, a associação do bloqueio
duzidas na hipófise anterior, apresentam efeitos epidural com a anestesia geral e o bloqueio adre-
pouco importantes na RIT. Ambas aumentam em nérgico reduz a intensidade da resposta infla-
resposta ao estresse cirúrgico, assim como no exer- matória, inclusive com menor perda de prote-
cício físico. ína muscular. Além disso, os efeitos benéficos
sobre as funções cardiorrespiratórias são evi-
Logo após cirurgia ou trauma, níveis séricos dentes com analgesia adequada;
de T3 diminuem enquanto níveis T4 e TSH aumen- € o controle da temperatura corporal, evitando
tam. Enquanto os níveis de T3 permanecem baixos tanto a hipotermia quanto a hipertermia, têm
durante a fase aguda da resposta, o TSH inapro- efeitos benéficos sobre o hipermetabolismo e o
priadamente normaliza, refletindo um controle do consumo do oxigênio;
feedback central anormal. A magnitude da queda do € manutenção do estado nutricional, preferen-
T3 nas primeiras 24 horas, após a injúria tem sido cialmente por via enteral, é importante para a
correlacionada à gravidade da agressão. Assim que síntese proteica durante a RIT e para reduzir o
a agressão se torne crônica, as concentrações de TSH consumo de proteína muscular endógena;
diminuem e ocorre perda da pulsatilidade normal. O € manutenção do estado hemodinâmico e o for-
único consenso para reposição de hormônio tireoidia- necimento adequado de oxigênio aos tecidos
no durante doença crítica é em pacientes com diag- promovem benefícios significativos para a so-
nóstico presuntivo de coma mixedematoso. brevida de pacientes sépticos;
€ drenagem precoce de abscessos, desbridamento
de tecidos necrosados e cuidados com as feridas
abertas contribuem para reduzir a intensidade
A resposta imune da RIT. Além disso, a descompressão abdominal
precoce, em menos de 8 horas, nos casos de sín-
drome de compartimento abdominal, também
O trauma cirúrgico é um significativo fator de
reduz a mortalidade.
imunossupressão pós-operatória em indivíduos nor-
Trauma operatório
mais. Quanto maior o trauma cirúrgico, mais
profunda é a imunossupressão observada. Primários
Lesão de tecidos
A imunidade celular é particularmente afe- Lesão deórgãos específicos

tada. Atividade reduzida das células natural killer Associados


Jejum
(NK) no pós-operatório é observada no sangue peri- Imobilização
Perdas extrarrenais
férico de pacientes submetidos a estresse cirúrgico. A Secundários
Alterações hemodinâmicas
Doenças intercorrentes

imunidade celular mediada é deprimida em 3 a 10 dias Alterações endócrinas


Infecções
de pós-operatório em pacientes submetidos a grandes Falências orgânicas

cirurgias, porém não em cirurgias menores.


Alterações do meio interno
Além disso, é observada uma redução na capaci- Recuperável Irreecuperável

dade de apresentação de antígenos pelos monócitos. A


Sobrevivência Morte
capacidade de apresentação de antígeno é reduzida no
pós-operatório por 1 a 5 dias e retorna aos níveis pré- Figura 6.1 Esquematização da fisiopatologia do trau-
-operatórios entre 7 e 10 dias. ma operatório.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

7
Complicações pós-operatórias

Introdução Febre
As complicações pós-operatórias podem ocor- A temperatura é controlada pelo hipotálamo
rer em cirurgias de qualquer porte. A ocorrência de anterior. A elevação da temperatura de 0,5 º a 1 ºC
complicações depende do tipo de cirurgia, da técnica acima do normal, no pós-operatório imediato, deve
operatória empregada e do organismo do doente a ser considerada como resposta endócrina ao trau-
ser operado. ma. Portanto, uma febre pós-operatória é tão comum
que, na maioria das vezes, não é considerada um desa-
Complicações pós-operatórias mais comuns fio a ser enfrentado. No entanto, febre alta e persis-
Febre e complicações da termorregulação. tente deve merecer investigação adequada.
Complicações pulmonares.
Complicações da ferida operatória.
Complicações urinárias. Fatores envolvidos na
Complicações digestivas.
Complicações metabólicas.
昀椀siopatologia da febre
Complicações cardíacas. a) liberação de substâncias pirogênicas de agen-
tes infecciosos;
Complicações cerebrais.
Complicações anestésicas (veja o Capítulo 4). b) complexo antígeno anticorpo;
Tabela 7.1 c) liberação de citosinas;
3
7 Complicações pós-operatórias

d) resposta fisiológica ao estresse (estímulo en- Deve ser estimulada a saída precoce do leito e a
dócrino agudo); inspiração profunda. A toalete brônquica é favorecida
e) drogas; pela tosse; com a dor do pós-operatório e por medo de
evisceração, muitos pacientes não tossem nem respi-
f) desidratação; ram direito, facilitando, assim, complicações evitáveis.
g) tumores no hipotálamo anterior. A seguir descreveremos as mais relevantes.
Febre nas primeiras 6 horas de pós-operatório
quase sempre é decorrente do próprio ato cirúrgico,
fazendo parte da adaptação ao trauma sem que haja in-
fecção; tem curta duração e baixos níveis térmicos. Atelectasia
Febre nas primeiras 24-48 horas do pós-ope- É a complicação pulmonar mais frequente;
ratório é atelectasia até que se prove o contrário. afeta 25% dos pacientes submetidos a uma operação
A maioria das infecções ocorre após o quinto dia abdominal. Geralmente, surge 24-48 horas após
de PO. a cirurgia, sendo responsável por mais de 90% dos
episódios febris nesse período (patogênese desconhe-
Tromboflebite pode levar a febre (conhecida
cida). Quase sempre sua evolução é autolimitada e
como “febre do terceiro dia”); outra causa de febre
sem sequelas.
no pós-operatório é a infecção de trato urinário (ITU),
que pode aparecer a qualquer hora, mas, geralmente, Na atelectasia maciça, entretanto, a febre
ocorre após o terceiro dia. A avaliação adequada define pode atingir 39 ºC e apresenta-se com taquipneia
o diagnóstico e a conduta terapêutica. e taquicardia. A radiografia de tórax pode mostrar
a elevação do diafragma, desvio do mediastino para
o lado comprometido e estreitamento dos espaços
Cuidado com doentes em uso de corticoides, pois po- intercostais do mesmo lado. Além disso, aparece
dem NÃO apresentar febre na vigência de infecção. imagem hipotransparente (condensação parenqui-
matosa), correspondendo ao pulmão ou lobo atelec-
tasiado. A cirurgia laparoscópica diminui a incidên-
O paciente que permanece febril 5 a 8 dias cia desta complicação.
após a cirurgia deve passar por uma investigação
criteriosa, que inclui abordagem do aparelho respira-
tório à procura de um foco infeccioso, investigação do
TGU, bem como avaliação da ferida operatória. Outra Aspiração
possibilidade importante, nesse período, é a presença
Geralmente ocorre no pós-anestésico imediato e
de trombose venosa profunda como causa de febre.
na extubação do doente que ainda está com seus refle-
Diante de um paciente com febre e diarreia e xos reduzidos (deglutição e tosse). Caso o jejum não
que esteja em uso de antibióticos é necessário in- tenha sido realizado no pré-operatório, o vômito e a
vestigar infecção por Clostridium dificille (agente aspiração podem acontecer.
etiológico da diarreia induzida por antibiótico e que
O tipo mais grave ocorre após vômitos com as-
pode culminar em colite pseudomembranosa).
piração de conteúdo gástrico (causas: alimentação
recente ou distensão gástrica por íleo). Infelizmente,
é mais frequente em crianças, grávidas e politrauma-
tizados. Dois terços dos casos de aspiração ocorrem
Complicações após cirurgia torácica ou abdominal e, destes, metade
evolui para pneumonia. A mortalidade por aspiração
pulmonares maciça é de 50%.
Os segmentos basais são afetados mais fre-
Complicações respiratórias são as principais cau- quentemente. Tratamento: aspiração endotraqueal
sas de morbidade após um procedimento cirúrgico, e a imediata e/ou broncoscopia + antibioticoterapia. Em
segunda principal causa de morte em pacientes maio- pacientes com insuficiência respiratória grave: intuba-
res de 60 anos submetidos à cirurgia. ção e ventilação mecânica. A hidrocortisona pode ser
útil nos três primeiros dias.
São mais frequentes em pacientes fumantes
(mais de 20 cigarros/dia), portadores de bronquite
crônica e enfisema pulmonar. Por outro lado, doentes
Quando o pH do aspirado é de 2,5 ou menos, ocorre
que farão cirurgia torácica e do abdome superior,
pneumonite química, que resulta em edema local e infla-
bem como aqueles acamados, em imobilização pro-
mação, com maior risco de infecção secundária – Sín-
longada no leito, apresentam mais facilmente as
drome de Mendelson.
complicações pulmonares.

SJT Residência Médica – 2016


98
Cirurgia geral e politrauma

Pneumonia Embolia gordurosa


A pneumonia no pós-operatório é uma compli- O termo embolia gordurosa significa presen-
cação potencialmente grave, cuja incidência gira em ça de glóbulos gordurosos no parênquima pulmonar
torno de 4%. Como para a atelectasia, os pacientes ou na microcirculação periférica e que geralmente é
com DPOC e os fumantes são os mais propensos a assintomática. A síndrome de embolia gordurosa
desenvolver infecção pulmonar, após cirurgia do an- é constituída pela presença dos glóbulos de gordura
dar superior do abdome ou do tórax. e um cortejo clínico caracterizado por insuficiência
Idade superior a 60 anos, alcoolismo, imobi- respiratória, manifestações neurológicas e peté-
lização parcial ou total do paciente, uso crônico de quias (mais de 90% dos pacientes que sofrem fratu-
ras de ossos longos apresentam embolia gordurosa,
corticoide e a perda de 10% ou mais de peso nos 6
mas desses, um número muito pequeno evolui para
meses que antecedem a cirurgia, são os patógenos
síndrome de embolia gordurosa).
potenciais Streptococus pneumoniae, Haemophilus in-
fluenzae, Staphilococus aureus, meticilino sensível e A formação dos glóbulos de gordura é assunto con-
bacilos Gram-negativos. troverso, e a fisiopatologia da embolia gordurosa está
relacionada com vários fatores. Primeiro, os capilares
pulmonares são bloqueados mecanicamente pelos gló-
bulos de gordura, resultando em shunting arteriovenoso
e hipoperfusão, e consequente hipoxia. Segundo, a re-
Embolia e infarto pulmonar ação inflamatória surge à medida que a gordura neutra
é desmembrada em ácidos gordurosos livres pela lipase
Risco maior do 7o ao 10o PO. Inicialmente, se
contida nos pulmões. Terceiro, as plaquetas aderentes
manifestam com taquipneia e taquicardia sem fe-
aos glóbulos de gordura também são desmembradas e
bre. Dez por cento das embolias são assintomá-
liberam serotonina, que acarreta mais vasoconstrição e
ticas. Na radiografia de tórax podemos encontrar
broncoconstrição e, por consequência, mais hipoxia. Em
elevação diafragmática, imagens cuneiformes (si-
razão de os ácidos gordurosos livres serem muito tóxicos
nal de Hamptom), aumento da área cardíaca e au-
às células pulmonares, sua liberação desagrega a mem-
mento do tronco da artéria pulmonar e seus ramos
(sinais indiretos de hipertensão pulmonar – sinal brana alvéolo capilar e a película de fosfolipídeos que
de Palla). Estes achados se associam a formas mais
revestem os alvéolos, causando colapso alveolar, hemor-
graves de TEP. ragia e edema. Todas essas condições resultam em deficit
de ventilação/perfusão e uma série de dados clínicos con-
O importante é lembrar-se da profilaxia de TVP, sistentes com a síndrome de angústia respiratória aguda.
que é a melhor maneira de evitarmos TEP (Capítulo 2).
O início das manifestações clínicas varia de
algumas horas até quatro dias, e cerca de 90% dos
pacientes apresentam sinais e sintomas nas pri-
meiras 24 horas após o trauma.
Embolia gasosa Os critérios usados para o diagnóstico clínico são
os de Gurd e Wilson, de 1974. São divididos em dois
Condição clínica rara, mas potencialmente fa-
grupos, major e minor.
tal. A injeção de 20 a 30 mL de ar na circulação
pode levar a grave disfunção orgânica. Esta situ- Critérios major:
ação pode ocorrer nas insuflações gasosas (pneumo- € Petéquias axilares ou subconjuntivais.
peritônio, retropneumoperitônio e insuflação tubá- € Hipoxemia (PaO < 60 mmHg e FiO ≤ a 0,4).
2 2
ria), nas infusões venosas e em procedimentos como
€ Depressão do SNC.
hepatectomias amplas e cirurgias radicais de esvazia-
€ Edema pulmonar.
mento cervical. O quadro clínico é similar ao da em-
bolia pulmonar acarretando as mesmas repercussões € Critérios minor:
hemodinâmicas. € Taquicardia > 110 bpm.
Na suspeita clínica as medidas mais efetivas € Febre > 38,3 ºC.
consistem em posicionar o paciente em decúbito € Êmbolos retinianos à fundoscopia.
lateral esquerdo com a cabeça inclinada para bai-
xo, quando necessárias manobras de ressuscitação € Gordura na urina.
e cateterização de veia central com cateter calibro- € Gordura no escarro.
so que permita aspiração dos êmbolos espumosos € Trombocitopenia.
do átrio e ventrículo esquerdo, que respondem pela
€ Hematócrito baixo.
parada cardíaca e, juntamente com os pulmonares,
levam o paciente ao óbito. € Velocidade de hemossedimentação aumentada.

SJT Residência Médica – 2016


3
7 Complicações pós-operatórias

Para a confirmação diagnóstica, é necessário um A definição mais precisa da SARA é insufici-


critério major ou quatro minor. ência respiratória aguda caracterizada por edema
O diagnóstico de embolia gordurosa é essen- pulmonar não cardiogênico, hipoxemia e consoli-
cialmente clínico. dações difusas no parênquima pulmonar.

Os exames de laboratório auxiliam no diagnós-


tico da embolia gordurosa, embora não haja nenhum Definição de LPA/SDRA pelo American-European
teste definitivo precoce. Os exames de sangue de roti- Consensus Conference
na revelam anemia, trombocitopenia, elevação da sedi- LPA SDRA
mentação, hipohemoglobinemia e alterações do tempo
Início agudo. Início agudo.
de coagulação e sangramento. A lipidúria pode estar
presente nos primeiros dias após o trauma. Entre- Infiltrado bilateral na radio- Infiltrado bilateral na radio-
tanto, os testes diagnósticos recomendados incluem grafia de tórax. grafia de tórax.
determinação seriada dos valores da lipase sérica e tri- PaO2/FiO2 ≤ 300 mmHg. PaO2/FiO2 ≤ 200 mmHg.
glicerídeos e exame direto de glóbulos de gordura no Pressão de oclusão da arté- Pressão de oclusão da arté-
sangue circulante, porém, o de maior importância para ria pulmonar ≤ 18 mmHg ria pulmonar ≤ 18 mmHg
o diagnóstico e a avaliação do tratamento é a dosagem ou ausência de evidên- ou ausência de evidên-
seriada da PO2 arterial. A redução da tensão do oxi- cia clínica de hipertensão cia clínica de hipertensão
gênio arterial, repetidamente abaixo de 50 a 55 mmHg atrial esquerda. atrial esquerda.
nas primeiras 72 horas do acidente, em associação com Tabela 7.2 FiO2: fração inspirada de O2; PaO2: pressão
as manifestações clínicas descritas anteriormente, são parcial de oxigênio.
aceitos como o melhor critério diagnóstico da embolia
gordurosa. A radiografia do tórax, obtida também de
modo seriado, revela infiltrado flocular disseminado
nos campos pulmonares, de grande valor diagnóstico. Causas de LPA/SDRA
O eletroencefalograma pode revelar arritmia, mas sem Primária
especificidade. Outros exames como pesquisa de glóbu- Pneumonia.*
los de gordura no escarro, biópsia cutânea das áreas de Aspiração de conteúdo gástrico.*
petéquias ou mesmo biópsia renal pouco acrescentam Contusão pulmonar.
ao diagnóstico. Embolia gordurosa.
O tratamento da síndrome de embolia gordu- Quase afogamento.
rosa é dirigido, principalmente, à manutenção da Edema de reperfusão.
respiração, seja nos casos moderados por meio de Secundária
inalação de oxigênio (máscara ou cateter nasal), seja Sepse.*
nos casos graves, por ventilação pulmonar assistida, Trauma grave.*
mediante intubação traqueal e, quando necessário, Circulação extracorpórea.
suplementada por pressão positiva, a fim de manter a Overdose de drogas.
tensão do oxigênio arterial acima de 70 mmHg. Pancreatite aguda.
Transfusão de hemoderivados.
A administração venosa de altas doses de cor-
ticosteroide, 13 mg/kg/dia, associada às medidas Tabela 7.3 *Causas mais comuns.
descritas e mantidas por quatro a cinco dias, resul-
ta em recuperação notável da insuficiência respira-
tória. A ação do corticosteroide no parênquima pul- Predominância de alterações em LPA/SDRA pri-
mária (pulmonar) e secundária (extrapulmonar)
monar é incerta, mas pode ser atribuída à redução dos
ácidos gordurosos nas membranas alvéolos capilares, Primária Secundária
diminuição do edema pulmonar, melhora da relação Patogênese Lesão do epitélio Lesão do endotélio
perfusão/ventilação, aumento da integridade capilar alveolar. pulmonar.
e ação aos efeitos adversos da serotonina. Histopatologia Colapso alveolar. Edema intersticial.
Preenchimento Congestão micro-
alveolar. vascular.
Mecânica ↓ complacência ↓ complacência
Síndrome da angústia pulmonar torácica
respiratória do adulto (SARA) Resposta a ++ +++
recrutamento e
A SARA é frequente em doentes com choque hi- posição prona
povolêmico, cardiogênico, séptico, politraumatizados
Mortalidade Não há diferença.
por esmagamento e grandes queimados, e apresenta
índice de mortalidade de 30% a 40%. Tabela 7.4

SJT Residência Médica – 2016


100
Cirurgia geral e politrauma

Em linhas gerais, esses pacientes, pela potencial crônica. O pneumotórax pode ocorrer também du-
complexidade e frequente concomitância de outras rante a confecção de traqueostomia e em massagens
condições clínicas instáveis, necessitam de diversos cardíacas de ressuscitação. A perfuração esofageana,
recursos avançados que vão desde sedação, eventual- principalmente instrumental, apresenta derrame
mente paralisação, até suporte ventilatório (invasivo pleural em 60% e pneumotórax em 25% dos pacientes.
ou não) e suporte hemodinâmico. O tipo de pneumotórax mais comumente as-
Existe a tendência atual de que as estratégias de sociado a pacientes cirúrgicos é o iatrogênico. O
ventilação mecânica em LPA/SDRA sejam pautadas tratamento desse pneumotórax pode ser conserva-
em um paradigma de open lung approach, ou seja, a dor se estes forem menores que 30% e o paciente
homogeneização do sistema respiratório pela “abertu- estiver assintomático. A observação deve ser rigoro-
ra” e manutenção da patência alveolar, evitando-se a sa, pois um pneumotórax simples pode evoluir e/ou
abertura e o fechamento cíclico e a consequente lesão se tornar hipertensivo. A administração suplementar
pulmonar induzida pela ventilação mecânica. de oxigênio acelera a absorção do pneumotórax. Nos
maiores de 30% e/ou sintomáticos, a drenagem
O volume corrente deve ser baixo (6 mL/ pleural em selo d’água se faz necessária.
kg de peso ideal) e as pressões de platô do sis-
tema respiratório devem estar abaixo de 30-35 Pneumotórax, pneumomediastino e enfisema
cmH2O, ainda que para isso seja necessário “tole- subcutâneo podem ocorrer como complicações de ci-
rar” níveis mais elevados de pCO2, conceito este rurgia laparoscópica, principalmente quando há vio-
conhecido como hipercapnia permissiva. lação do hiato esofageano. O pneumomediastino é um
achado comum e considerado normal, mas o pneu-
Elevadas PEEPs podem ser necessárias na ten- motórax sempre deve ser encarado como patológico e
tativa de homogeneização e minimização do efeito da pode ter repercussão clínica. A rotura esofágeca deve
abertura e fechamento cíclico dos alvéolos, deletérios ser suspeitada sempre que há pneumomediastino
para o sistema respiratório. associado à instrumentação endoscópica do esôfa-
É importante lembrar que a normalidade da oxi- go ou trauma torácico.
genação não será restaurada se o paciente estiver hi- O pneumotórax espontâneo, seja primário ou se-
pertenso. Drogas vasoativas podem ser necessárias e cundário, é raro em pacientes cirúrgicos. É importan-
seu uso deve ser pautado nas necessidades hemodinâ- te, todavia, lembrar-se da associação de pneumotórax
micas e na otimização baseada nas variáveis metabóli- espontâneo e pneumonia por Pneumocystis jiroveci, em
cas (SvO2, lactato, excesso de bases etc.). pacientes com Aids, que apresentam taxa de recorrên-
cia e morbimortalidade associada elevadas. O pneu-
momediastino espontâneo é condição rara causada
por rotura de alvéolos centrais e dissecção dos tecidos
Derrame pleural e peribrônquicos pelo ar. O tratamento é conservador e
a condição está associada a trauma de tórax e o grande
pneumotórax esforço com a glote fechada.
Em operações de abdome superior um pequeno
derrame pleural é frequente, sendo geralmente reab-
sorvido e não tendo nenhum significado clínico.
Na ausência de insuficiência cardíaca ou lesão Complicações da ferida
pulmonar, o aparecimento de derrame pleural tardio
no pós-operatório deve alertar para a possibilidade operatória
de abscesso intra-abdominal (especialmente após o
10º PO) ou mesmo pancreatite (a cauda do pâncreas
irrita o diafragma, aparecendo derrame pleural à es-
querda). Hematoma
O pneumotórax no pós-operatório deve ser O acúmulo de sangue dentro e entre os tecidos
considerado nas seguintes situações: da ferida operatória favorece infecção cirúrgica. Ge-
Vários procedimentos podem ser complicados ralmente, aparece nas primeiras 24 horas. Caso
com pneumotórax e os mais comuns são a biópsia ocorra em planos profundos, pode não ser reconheci-
pulmonar transtorácica (35%), a punção venosa supra do até a fase de infecção. Por isso é que, no ato cirúrgi-
e infraclavicular (1% a 12%), a toracocentese (10% a co, não deve ficar espaço morto. Os tecidos devem ser
20%), biópsia pleural (10%) e ventilação com pressão cuidadosamente aproximados com fio de preferência
positiva (4%). A morbidade e a mortalidade, nesse monofilamentar (menor índice de infecção).
grupo, são maiores quando há doença pulmonar ad- Pacientes que recebem aspirina ou heparina, de
jacente, principalmente doença pulmonar obstrutiva baixo-peso, possuem considerável aumento na taxa

SJT Residência Médica – 2016


3
7 Complicações pós-operatórias

de hematomas de ferida cirúrgica. Doentes que usam


anticoagulantes orais por muito tempo podem fa-
De昀椀nições da infecção de sítio
zer hematoma na bainha do reto. cirúrgico
Hematomas cervicais, após cirurgias na tireoide, Uma definição precisa de infecção do sítio ci-
são considerados emergências e devem ser pronta- rúrgico é essencial para as equipes que mensuram as
mente drenados. taxas de infecção. Ela deve ser simples e aceita por
enfermeiros e cirurgiões. O uso de uma definição pa-
dronizada permite comparar as taxas entre cirurgiões
e hospitais. Na definição do NNIS, a infecção do sítio
Seroma cirúrgico está dividida entre dois grupos principais,
Os seromas são coleções fluídas constituídas incisional e de órgãos ou cavidades. As infecções in-
de serum e/ou lipólise e destituídas de sangue e cisionais mais comuns são também divididas entre
pus. São extremamente comuns em procedimentos superficiais (pele e tecido subcutâneo) e profundas
nos quais haja grande dissecção subcutânea com con- (tecidos moles profundos como fáscias e camadas
sequente ruptura de linfáticos, como mastectomias e musculares). As infecções do sítio cirúrgico de órgãos
reparos de grandes hérnias ventrais. Curativos com- e cavidades envolvem qualquer parte da anatomia que
pressivos ou drenos de sucção são indicados em pro- não seja a incisão que é aberta ou manipulada durante
cedimentos de alto risco para desenvolvimento de uma cirurgia. Os critérios para os diferentes sítios
seroma. Tanto hematoma quanto seroma de ferida de infecção são fornecidos a seguir.
cirúrgica são associados a aumento de incidência de
infecção. Coleções pequenas são manejadas de modo Infecção do sítio cirúrgico incisional super-
conservador, sendo reabsorvidas espontaneamente. ficial: infecção que ocorre no local da incisão dentro
Coleções maiores são mais bem tratadas com incisão e de 30 dias, após a cirurgia e que envolve apenas a pele
drenagem associada à revisão de hemostasia e punção ou o tecido subcutâneo na incisão e com pelo menos
por agulha em hematomas e seromas, respectivamen- um dos seguintes:
te. Geralmente ocorre após 48 horas. € drenagem purulenta originada da incisão su-
perficial;
€ um micro-organismo isolado por cultura de flui-
Infecção do ou de tecido originado da incisão superficial;
A infecção pode ser precoce ou tardia. O agente € abertura deliberada da ferida pelo cirurgião em
etiológico mais comum ainda é S. aureus. razão da presença de pelo menos um sinal ou sin-
toma de infecção (dor, edema, sensibilidade, au-
Distribuição de patógenos isolados de infecções mento de volume localizado, eritema ou calor), a
de sítio cirúrgico pelo Sistema Nacional não ser que a cultura da ferida seja negativa; ou
de Vigilância de Infecções Nosocomiais € diagnóstico de infecção do sítio cirúrgico inci-
Porcentagem de isolados sional superficial pelo cirurgião ou pelo médico
Patógeno 1986-1989 1990-1996 assistente.
(n= 16.727) (n= 17.671) As seguintes condições não são geralmente rela-
Staphylococcus aureus 17 20 tadas como infecção do sítio cirúrgico:
Staphylococcus coagulase- 12 14 € ponto de abscesso com mínima inflamação e
-negativo
drenagem confinada aos pontos de penetração
Enterococcus spp. 13 12 das suturas;
Escherichia coli* 10 8
€ infecção em um local de episiotomia;
Pseudomonas aeruginosa 8 8
Enterobacter spp. 8 7 € infecção em um local de circuncisão neonatal; ou
Proteus mirabilis 4 3 € ferido por queimadura infectada.
Klebsiella pneumonia 3 3 Infecção do sítio cirúrgico incisional pro-
Outros Streptococcus spp. 3 3 funda: infecção que ocorre no local da operação den-
Candida albicans ↓ 3 tro de 30 dias, após a cirurgia, se nenhuma prótese
Streptococci Grupo D, ou- - 2 (corpo estranho não derivado de humano permanen-
tros (não enterococci) temente posicionado no paciente durante a cirurgia)
Outros aeróbios Gram- - 2 for deixada no local e dentro de um ano após a cirur-
-positivos gia, se uma prótese for deixada no local. Além disso, a
Bacteroides fragilis - 2 infecção parece estar relacionada à cirurgia e envolve
Tabela 7.5 * É o germe mais comum nas feridas lim- tecidos moles profundos (músculo e camadas fásciais)
pa-contaminadas e nas contaminadas. e pelo menos com um dos seguintes:

SJT Residência Médica – 2016


102
Cirurgia geral e politrauma

€ drenagem purulenta originada de incisão pro-


funda, mas não do componente órgão-cavidade Fascite necrosante (Gangrena
do sítio cirúrgico; de Meleney)
€ deiscência de ferida ou abertura deliberada pelo Causada por múltiplos patógenos não clostrí-
cirurgião quando o paciente apresenta febre (> deos. Geralmente, inclui Estreptococos microaerofíli-
38 °C) ou dor localizada ou sensibilidade, a não
cos, Estafilococos, Gram-negativos aeróbios e anaeró-
ser que a cultura da ferida seja negativa;
bios. Inicia-se em ferida cirúrgica, úlcera de perna ou
€ um abscesso ou outra evidência de infecção ferimento puntiforme. A infecção se espalha pelos pla-
envolvendo a incisão profunda observada por nos fásciais levando à trombose dos vasos perfuran-
exame direto durante a cirurgia, por exame his- tes. Externamente, bolhas hemorrágicas é o primeiro
topatológico ou por exame radiológico; ou sinal cutâneo e a pele pode estar com diminuição da
€ diagnóstico de infecção de sítio cirúrgico inci- sensibilidade, hiperemiada, edemaciada e até mesmo
sional profunda pelo cirurgião ou pelo médico apresentar crepitação. Dor súbita geralmente na ex-
assistente. tremidade associada à ferida é um sintoma comum.
Infecção do sítio cirúrgico em órgãos ou ca- Pode haver saída de secreção fétida e escura pela feri-
vidades: infecção que ocorre dentro de 30 dias, após a da e pode-se observar nos tecidos afetados quando se
cirurgia, se nenhum implante (corpo estranho não de- avalia a radiografia.
rivado de humanos permanentemente posicionados Quanto ao tratamento recomenda-se observação
no paciente durante a cirurgia) for deixado em posição diária da ferida para diferenciar tecidos edemaciados
e dentro de um ano após a cirurgia, se um implante for de necróticos e a fim de realizar debridamentos seria-
deixado em posição. dos, quando necessário e sem atraso. Ampla drenagem
Além disso, a infecção parece estar relacionada é fundamental e pode ser necessária a total desnuda-
à cirurgia e envolve qualquer parte da anatomia que ção do membro afetado. A amputação pode ser uma
não seja a incisão aberta ou manipulada durante uma medida a ser realizada quando o membro estiver sem
cirurgia e pelo menos com um dos seguintes: função ou quando apresentar miosite difusa.
€ drenagem purulenta originada de um dreno A antibioticoterapia inicial é empírica e de largo
posicionado através de uma ferida perfurante espectro, em virtude da elevada frequência de infec-
dentro do órgão-cavidade; ções polimicrobianas. O exame pelo Gram do exsuda-
€ um micro-organismo isolado de uma cultura de to purulento pode ajudar na escolha das drogas. O es-
fluido ou tecido obtida de maneira asséptica no quema recomendado é a associação de penicilina
órgão ou cavidade; G (Streptococo β Hemolítico permanecem altamente
sensível às penicilinas) + aminoglicosídeos (para
€ um abscesso ou outra evidência de infecção en-
volvendo o órgão ou cavidade observada por germes Gram-negativos em pacientes com boa fun-
exame direto durante a cirurgia, por exame his- ção renal) + clindamicina, que fornece boa cobertura
topatológico ou por exame radiológico; ou para Streptococo β Hemolítico, estafilococos e ana-
eróbios. A clindamicina deve ter preferência sobre o
€ diagnóstico de infecção de sítio cirúrgico de
metronidazol, não só por sua ação sobre S. aureus, mas
órgão-cavidade pelo cirurgião ou pelo médico
também em decorrência de sua característica de redu-
assistente.
zir a produção de lipopolissacarídeos e a liberação de
Caso ocorra em menos de 48 horas, com pre- peptideoglicanos por parte de cepas de germes Gram-
sença de enfisema subcutâneo no local e saída de -positivos e Gram-negativos produtores de toxinas,
exsudato marrom-avermelhado, deve ser conside- assim como a sua capacidade de diminuir a produção
rada infecção por Clostridium perfringens; por Es- de citosinas. Em pacientes com função renal alterada
treptococo β hemolítico, quando um eritrema rapi- ou limítrofe, o aminoglicosídeo (gentamicina ou ami-
damente progressivo com sensibilidade nas bordas
cacina) pode ser substituído por uma fluorquinolona,
da ferida for documentado. Habitualmente, a infec-
como ciprofloxacino, ou por cefalosporinas de terceira
ção de ferida operatória ocorre após o sétimo PO.
geração, como cefotaxima e ceftriaxona. Outras qui-
nolonas, como o levofloxacino e o moxifloxacino, com
Índices de infecção da ferida operatória ação sobre estreptococos, permitem a associação de
Limpa 1,5%-2,9% apenas duas drogas.
Potencialmente contaminada 2,8%-7,7% A cefepima, uma cefalosporina de quarta geração,
tem potente ação contra Gram-negativos e Gram-posi-
Contaminada 15,2%
tivos, mas é pouco ativa contra Gram-negativos anae-
Suja 40% róbios. Deve ser utilizada em infecções graves, princi-
Tabela 7.6 Frequência de infecção de ferida segundo palmente quando há suspeita da presença de bactérias
o tipo de cirurgia. resistentes, e associada à droga antianaeróbica.

SJT Residência Médica – 2016


3
7 Complicações pós-operatórias

Suporte hídrico com cristaloides, plasma e san- A dor e a hipersensibilidade local são achados
gue deve ser realizado e o diabetes, quando presente, frequentes, em especial nas coleções anteriores e em
controlado. Câmara hiperbárica inibe a invasão bac- contato com o peritônio parietal. Quando presentes,
teriana, porém, não elimina o foco infeccioso. esses sinais guardam estreita relação com o local da
infecção. Nas localizações subfrênicas posteriores e na
retrocavidade, a dor e a hipersensibilidade podem fal-
tar, e nos acúmulos pélvicos o toque retal é a maneira
Infecções intra-abdominais mais precisa para identificar tais coleções. A leucoci-
As infecções intra-abdominais difusas são deno- tose está presente na quase totalidade dos casos.
minadas peritonite, enquanto que as que foram iso- Há desvio à esquerda com granulações tóxicas nos po-
ladas e limitadas pelo organismo dentro de um órgão limorfonucleares. Velocidade de hemossedimentação
intra-abdominal ou na cavidade peritoneal são chama- elevada e hemocultura positiva são outros dados que
das abscesso. Infecção intra-abdominal complicada é contribuem para o diagnóstico.
definida como a infecção que se estende da víscera oca A radiografia simples pode contribuir para o
de origem para a cavidade peritoneal e é associada à diagnóstico na metade dos pacientes, e os achados
formação de abscesso ou peritonite. mais comuns são: gás extraluminal, níveis hidroaé-
Os abscessos abdominais continuam a ser reos subfrênicos, condensações localizadas, elevação
um problema difícil, com mortalidade que pode diafragmática e derrame pleural. Os exames radiológi-
atingir 20%. Apresentam-se como coleções puru- cos constrastados podem demonstrar deslocamentos
lentas, separadas do resto da cavidade peritoneal por de vísceras, trajetos fistulosos ou extravasamentos de
aderências inflamatórias da parede e das vísceras ab- contraste para fora do trato digestório. A ultrassono-
dominais, e podem ser únicos ou múltiplos. São resul- grafia é de grande sensibilidade na identificação dos
tantes da resolução das peritonites generalizadas, ou abscessos abdominais. Por ser de fácil e rápida reali-
em consequência de perfuração de vísceras ocas, trato zação, incruento e relativamente barato, está sempre
biliar ou pâncreas, onde os mecanismos de defesa do indicada. A sua capacidade diagnóstica pode ser su-
peritônio conseguem bloquear o conteúdo contami- perior a 90%. Os resultados da ecografia podem estar
nado. Os abscessos em vísceras maciças são, em comprometidos nos pacientes excessivamente obesos,
geral, oriundos de disseminação hematogênica nos colostomizados, nos pacientes com drenos e ban-
de um foco séptico à distância. dagens, ou com feridas abertas. A tomografia compu-
Por razões anatômicas, os acúmulos de secre- tadorizada é um exame cuja precisão aproxima-se
ções purulentas tendem a localizar-se em espaços e de 97% (padrão-ouro). Permite o diagnóstico de pe-
recessos que se encontram nas vias preferenciais de quenas coleções e dá uma perfeita localização anatô-
disseminação da cavidade, quais sejam as goteiras mica do problema.
parietocólicas, os espaços subfrênicos, o espaço Os exames com radionuclídeos, principalmente
sub-hepático e a pelve. A retrocavidade, como está com gálio e índio, têm sido indicados no diagnóstico
praticamente isolada da grande cavidade, apresen- dos abscessos abdominais, pois têm capacidade de
ta coleções purulentas resultantes de processos in- concentrarem-se nos tecidos ou regiões infectadas.
fecciosos de órgãos contíguos, como na pancreatite
aguda ou na perfuração gástrica posterior. A maioria
dos abscessos intracavitários é causada por bactérias
Gram-negativas, anaeróbicas e enterococos. A Esche- Tratamento
richia coli é a principal bactéria Gram-negativa, A evolução de um abscesso abdominal não tra-
e o Bacteroides fragilis o principal representante tado culmina com o óbito na quase totalidade dos pa-
do grupo dos anaeróbicos. A virulência das bacté- cientes. O diagnóstico precoce e as drenagens com-
rias aumenta na presença da hemoglobina. põem a base do tratamento.
O tratamento conservador com antibióticos deve
sempre ser desencorajado, pois falha quando a forma-
Diagnóstico ção do abscesso está consolidada. Alguns esporádicos
A história de condição determinante e a suspeita sucessos com essa forma de tratamento podem ocorrer
clínica são o primeiro e importante passo no diagnós- na fase de inflamação flegmonosa localizada, antes do
tico do abscesso abdominal, pois os sintomas podem aparecimento do pus líquido e sua camada envolvente.
ser pouco definidos. A febre está presente em quase A drenagem dos abscessos abdominais pode ser
todos os pacientes, iniciando-se em caráter intermi- operatória ou por punção percutânea, métodos cujos
tente e tendendo, com o evoluir do quadro, tornar-se resultados se equivalem quando corretamente indica-
persistente e alta. dos e perfeitamente executados.

SJT Residência Médica – 2016


104
Cirurgia geral e politrauma
A punção percutânea, por evitar um procedimen-
to anestésico-cirúrgico, deve ser a escolhida para uma
Peritonite
abordagem inicial nos abscessos localizados. Os requi- Peritonite bacteriana primária ou espontânea
sitos para indicação de drenagem percutânea estão lis- é definida como uma infecção bacteriana do líquido as-
tados na Tabela 7.7. cítico na ausência de uma fonte infecciosa intra-abdo-
minal cirurgicamente tratável. O possível mecanismo
patogênico de proliferação bacteriana no líquido ascíti-
Requisitos para drenagem de abscesso co é em razão da deficiência no mecanismo imunológi-
abdominal por punção percutânea co de destruição de bactérias que alcançaram a cavidade
Cavidade unilocular e bem definida. peritoneal por disseminação hematogênica ou, mais
frequentemente, por translocação bacteriana.
Rota de drenagem segura, sem atravessar intestino ou
cavidade contaminada. Este tipo de infecção é mais comum em pacientes
Ausência de fonte que alimente a contaminação. cirróticos com ascite, mas pode ocorrer em pacientes
com síndrome nefrótica ou, mais raramente, em pa-
Infecção não causada por fungos.
cientes com insuficiência cardíaca congestiva. As
Suporte cirúrgico para o fracasso ou complicação do proce- bactérias mais frequentemente responsáveis por
dimento. peritonite primária são E. coli e Klebsiella pneumo-
Tabela 7.7 niae. Em crianças, Estreptococo do grupo A, S. aureus
e Streptococcus pneumoniae (este último mais fre-
quente em nefróticos) são os mais comuns. O diag-
A cavidade do abscesso é puncionada com agu-
nóstico é realizado pela presença de sinais de sensibili-
lha fina (calibre 22) com aspiração do material pu-
dade abdominal difusa, ausência de pneumoperitônio
rulento. Após essa confirmação, a drenagem é exe-
em radiografia simples de abdome e presença de mais
cutada com orientação de ecografia ou tomografia
de 250 neutrófilos/mm³ na análise do líquido ascí-
computadorizada. É introduzido um cateter tipo
tico. Geralmente, não é necessário aguardar o resul-
“rabo de porco” calibroso (8 a 12 FR). A cavidade é
tado da cultura do líquido ascítico. O tratamento con-
evacuada e lavada com solução salina, podendo-se siste em antibioticoterapia, preferencialmente uma
ou não instilar antibiótico. Após limpeza satisfató- cefalosporina de terceira geração, como a cefotaxima,
ria, pode ser injetado contraste hidrossolúvel para por pelo menos cinco dias. Nos pacientes cirróticos,
se avaliar o volume da cavidade. O cateter ou cate- após o primeiro episódio, é obrigatória a profilaxia
teres são deixados em drenagem fechada e a invo- secundária, e a droga de escolha é norfloxacina 400
lução da cavidade é acompanhada por ecografia, TC mg/dia até a realização do transplante.
ou fistulografias.

Etiologia da PBE*
Indicações para drenagem por laparotomia Bactérias aeróbicas Gram-negativas (60%)
Processo supurativo difuso. Escherichia coli
Klebsiella pneumoniae
Cavidades múltiplas.
Cocos Geam-positivos (25%)
Ausência de via segura para punção. Streptococcus ssp
Fístulas entéricas de alto débito.
Tabela 7.9 * Enterococos, anaeróbicos e fungos são
Componentes sólidos que exigem desbridamento. raros. A presença de flora polimicrobiana sugere peri-
Tabela 7.8 tonite secundária.

Os abscessos subfrênicos são preferencial- Fatores predisponentes para o desenvolvimento


mente drenados por abordagem subcostal lateral, de PBE
que se inicia na borda da 11ª costela, prolongando- 1. Doença hepática avançada: Child-Pugh C.
-se oblíqua e medialmente sob a borda costal. Ao 2. Proteínas totais no líquido ascítico < 1 g/dL.
seccionarem-se as camadas musculoaponeuróticas, 3. Sangramento gastrintestinal agudo.
procede-se ao descolamento de um plano extraperito-
4. Infecção urinária.
neal até a localização do acúmulo de pus. Esse acesso
5. Procedimentos invasivos (sondas urinárias ou cate-
permite ainda a drenagem de coleções sub-hepáticas
teres intravasculares).
sem contaminação do resto da cavidade. Abscessos
subfrênicos posteriores são mais bem drenados atra- 6. Episódio prévio de PBE.
vés de ressecção da 12ª costela. Tabela 7.10

SJT Residência Médica – 2016


3
7 Complicações pós-operatórias

Análise do líquido ascítico e recomendações* Deiscência – evisceração –


Classificação Achados Recomendações hérnias
PBE clássica PMN ≥ 250/mm³ Tratar com antibió-
e cultura do líqui- tico e albumina**. Deiscência (incidência de 1% a 3%) de ferida
do ascítico positi- é a ruptura parcial ou total de uma ou mais camadas
va para um único envolvidas no fechamento da incisão, enquanto que
germe. evisceração corresponde à ruptura total de um fecha-
mento efetuado após laparotomia. A mortalidade de
Ascite neutro- PMN ≥ 250/mm³ Tratar com antibió-
pacientes com evisceração é em torno de 10%, prin-
cítica cultura- e cultura negativa tico e albumina**.
cipalmente, em virtude da infecção associada.
-negativa do líquido ascítico.
Bacteriascite PMN < 250/mm³ Repetir a paracen-
não neutrocíti- e cultura positiva tese. Tratar com
ca monobacte- do líquido ascíti- antibiótico se a nova Os fatores predisponentes podem
riana co para um único contagem de PMN
germe. for ≥ 250/mm³. ser divididos:
Sugere perito- PMN ≥ 250/mm³ Tratar como peri- Sistêmicos:
nite bacteriana e cultura positiva tonite secundária, DM, uremia, imunossupressão, sepse, hipoalbu-
secundária do líquido ascítico investigar e tratar minemia, câncer, obesos e pacientes fazendo uso de
para vários germes a causa básica esteroides.
ou anaeróbico. (perfuração de vís- Locais:
ceras etc.). € Técnica inadequada de fechamento.
€ Aumento de pressão intra-abdominal.
Tabela 7.11 * PBE: peritonite bacteriana espontânea;
€ Cicatrização deficiente – infecção, hematomas,
PMN: polimorfonucleares. **Estudos recentes sugerem
que apenas um subgrupo dos pacientes com PBE real- seromas.
mente se beneficia de albumina. Dessa forma, podemos A ocorrência de deiscência pode se dar em qualquer
restringir a sua indicação para os pacientes com PBE e: momento do pós-operatório precoce, mas é mais obser-
creatinina sérica > 1 mg/dL ou ureia > 60 mg/dL ou bilir- vada entre o quinto e o oitavo dia, quando a resistência
rubina total > 4 mg/dL. dos tecidos é mínima. O primeiro sinal de deiscência é
a saída de líquido serossanguinolento através da pele,
mas evisceração súbita também pode ocorrer. Deis-
Peritonite bacteriana secundária ocorre cências de esterno cursam com instabilidade da caixa to-
por contaminação da cavidade abdominal em ra- rácica. Pacientes com laparotomia complicada por deis-
zão da perfuração de víscera oca ou inflamação cência devem ser mantidos em repouso no leito e a ferida
grave e infecção de algum órgão intra-abdominal. coberta por compressas estéreis embebidas em solução
Os exemplos mais comuns são apendicite, diverti- salina ou Ringer. Sob anestesia geral, a cavidade abdo-
culite, fístulas pós-operatórias, entre outras infec- minal deve ser lavada copiosamente, as suturas antigas
ções intra-abdominais. Para o tratamento efetivo devem ser removidas e o novo fechamento realizado me-
são necessários intervenção no órgão acometido, ticulosamente, utilizando-se pontos totais ou subtotais
o debridamento do tecido necrótico e infectado e a com material inabsorvível resistente. Evisceração está
administração de antibióticos contra germes aeró- ligada à mortalidade de 10%, principalmente, em de-
corrência da infecção associada. Em esternotomias, se
bios e anaeróbios. O controle eficiente do local da
o grau de osteomielite não for grave, a incisão deve ser
infecção associado à antibioticoterapia vincula-se
revisada e fechada no centro cirúrgico. Se a infecção for
a baixos índices de insucesso, sendo a mortalidade
importante, a ferida deve ser debridada e coberta por um
inferior a 6%.
retalho vascularizado de músculo peitoral. Deiscência de
Peritonite bacteriana terciária ou peritonite ferida sem evisceração em bons candidatos cirúrgicos
persistente ocorre em pacientes imunocomprometi- é mais bem corrigida efetivamente no pós-operatório
dos, nos quais as defesas peritoneais do paciente não precoce no centro cirúrgico. Entretanto, se a mesma
conseguem eliminar efetivamente a infecção bacteria- complicação ocorrer em um paciente com comorbida-
na peritoneal secundária. As bactérias mais comumen- des importantes, o manejo conservador com aceitação
te envolvidas incluem Enterococcus faecalis e faecium, de uma hérnia ventral a ser corrigida, posteriormente,
Staphylococcus epidermidis, C. albicans e Pseudomonas constitui tática segura e aceitável.
aeruginosa. O tratamento é o mesmo da peritonite se- A hérnia incisional ocorre por deiscência
cundária, associado à imunomodulação e a manipula- parcial da aponeurose, despercebida, mas que
ções medicamentosas. Estas infecções, mesmo com não rompeu a pele e não apresentou evisceração.
o uso de antibióticos efetivos, estão relacionadas à O diagnóstico é realizado vários meses mais tarde. O
mortalidade de 50%. tratamento é eletivo nessas circunstâncias.

SJT Residência Médica – 2016


106
Cirurgia geral e politrauma

Síndrome compatimental Infecção urinária


Resumidamente, consideramos a presença de Geralmente ocorre após o terceiro PO. Infec-
HIA quando há medidas de PIA > 12 mmHg e de SCA ções do trato urinário são as infecções nosocomiais
quando há medidas de PIA < 20 mmHg, associadas à mais comuns e são responsáveis por cerca de 30%
disfunção orgânica. Atualmente, levamos em conside- das bacteremias em pacientes internados. Fatores
ração a PPA, que é a diferença entre a PAM e a PIA. predisponentes incluem uso liberal de cateteres uriná-
PPA inferiores a 60 mmHg são geralmente associadas rios e anormalidades neurológicas ou anatômicas do
à SCA. trato urinário.

Graduação da hipertensão abdominal


Grau Pressão (mmHg) Pressão (cm H2O) Insu昀椀ciência renal aguda
I 12-15 16-20
No pós-operatório imediato é esperado que o do-
II 16-20 21-27
ente ficasse oligúrico em razão da ação de hormônios,
III 21-25 28-34
fundamentalmente ADH.
IV > 25 > 34
Entretanto, pode ocorrer insuficiência renal em
Tabela 7.12 doentes por muito tempo hipovolêmicos, com dispo-
sição prévia, rabdomiólise por esmagamento e uso de
A descompressão abdominal por meio de la- drogas (AINES etc.).
parotomia é o método mais rápido e efetivo para Nesses casos, o tratamento clínico de suporte
o controle das alterações sistêmicas, mas nem deve ser instituído, e caso não seja possível, a solução
sempre isto é necessário. Basicamente, a descom- é a hemodiálise.
pressão abdominal está indicada na presença de reper-
cussões renais , respiratórias ou hemodinâmicas não
reversíveis com o tratamento clínico em doentes com Causas de insuficiência renal aguda pós-operatória
hipertensão abdominal aferida. Este tema será abor- Pré-renal Renal Pós-renal
dado plenamente no módulo de Politrauma. Hemorragia Toxinas (contraste, sepse). Ligadura do
ureter.
Hipovolemia Drogas (aminoglicosídeos, Disfunção da
anfotericina). bexiga urinária.
Insuficiência Nefropatia pigmentar Obstrução
Complicações urinárias cardíaca (mioglobina, hemoglobina). uretral.
Desidratação
São extremamente comuns, principalmente Tabela 7.13
após tempo prolongado de internação, sondagem de
demora, cirurgias urológicas, proctológicas ou, ainda,
em anestesias por bloqueio (raqui e peridural, em ra- Avaliação diagnóstica da insuficiência renal aguda
zão da retenção urinária). Parâmetro Pré-renal Renal Pós-renal
Osmolaridade > 500 mOs/L = Plasma Variável
urinária
Sódio urinário < 20 mOs/L > 50 mOs/L > 50 mOs/L
Retenção urinária Fração de excre- < 1% > 3% Variável
ção do sódio
É frequente após cirurgias proctológicas e em
Creatinina uri- > 40 < 20 < 20
doentes acamados. Doentes com prostatismo, idosos
nária/plasmática
e mulheres que realizaram cesáreas e cirurgias perine-
ais são também propensos. O doente relata que está Ureia urinária/ >8 <3 Variável
plasmática
urinando em curtos espaços de tempo, mas em peque-
na quantidade (incontinência paradoxal). No exame Osmolaridade < 1,5 > 1,5 Variável
físico existe a presença do globo vesical (vulgarmente da urina/os-
chamado “bexigoma”). molaridade do
plasma
O alívio do paciente é obtido através do cateteris-
Urina Tipo I Cilindros Cilindros Cilindros
mo vesical. A atonia vesical é tratada com drogas coli-
hialinos* granulosos hialinos
nérgicas como prostigmina (0,5 mg IM, três a quatro
vezes ao dia). Tabela 7.14 Atenção! *São fisiológicos.

SJT Residência Médica – 2016


3
7 Complicações pós-operatórias

Indicações para hemodiálise Fatores relacionados com atonia e/ou


Hipercalemia refratária. dilatação gástrica aguda (cont.)
Acidose persistente. Doença de Crohn
Sobrecarga aguda de líquidos. Distúrbios psiquiátricos.
Sintomas urêmicos. Distúrbios neuromusculares.
Tabela 7.15 Tabela 7.16

Uma vez haja suspeita do diagnóstico, a confir-


mação radiológica deve ser estabelecida.

Complicações digestivas O tratamento consiste na colocação de sonda


nasogástrica ou reposicionamento naqueles que já
estavam sondados. Nos pacientes com diagnóstico
correto observa-se saída de ar e de volumes de secre-
ção em grande quantidade (> 1 litro e em torno de 4
Dilatação gástrica aguda litros). A sonda deve ser mantida no mínimo por
Trata-se de uma complicação que não é comum, 24 a 48 horas, assim como adequada reposição
podendo se expressar como discreto desconforto ab- hidroeletrolítica.
dominal local, distensão gástrica, náuseas e vômitos,
até quadros mais graves complicados com hemorragia
digestiva e até rotura gástrica.
Do ponto de vista fisiopatológico, parece Íleo adinâmico
que o fator mais relevante é inibição do reflexo Ocorre pela perda da peristalse coordenada e efe-
motor do estômago pelas vias vagais e esplânc- tiva que se dá após laparotomia com manipulação das
nicas, e como fator secundário, os distúrbios hi- alças. A peristalse gastrointestinal retorna dentro de
droeletrolíticos. 24 horas após a maioria das cirurgias que não envol-
Os pacientes mais predispostos são aqueles sub- vem a cavidade abdominal. Após uma laparotomia,
metidos à laparotomias e lobotomias, particularmen- a peristalse gástrica retorna em cerca de 24 a 48
te, idosos e debilitados. horas. A atividade colônica retorna em 48 horas,
começando no seco e progredindo caudalmente, e o
delgado nas primeiras 24 horas.
Fatores relacionados com atonia e/ou O tratamento usual do íleo pós-operatório in-
dilatação gástrica aguda clui a reposição de líquidos e eletrólitos, SNG (não
Drogas obrigatória para todos os casos), mobilização pre-
Anticolinérgicos. coce e uso de agentes pró-cinéticos.
Agonistas beta-adrenérgicos.
Bloqueadores dos canais de cálcio.
Opioides.
Citostáticos.
Agonistas dopamínicos.
Obstrução intestinal
Distúrbios hidroeletrolíticos mecânica
Hipocalemia. É comum após peritonite generalizada. Outra
Hipocalcemia.
razão seria por bridas (causa mais comum), situação
Hipomagnesemia.
comum em indivíduo que já foi submetido a várias
Distúrbios metabólicos
cirurgias. O tratamento deve ser clínico, inicialmente
Diabetes melito.
com SNG, analgesia e hidratação e, posteriormente,
Hipotireoidismo.
Hipoparatireoidismo. não havendo melhora (48-72 horas), tratamento ci-
Gravidez. rúrgico. Também pode ser causada por hérnias inter-
Vagotomia nas (mesentéricas).
Gastropatia infiltrativa
Amiloidose.
Anemia perniciosa.
Neoplasia. Pancreatite
Doenças sistêmicas Não é complicação frequente. Geralmente, ocor-
Esclerodermia. re após cirurgia de via biliar, com descolamen-
Dermatomiosite. to do duodeno e/ou pâncreas, podendo atingir

SJT Residência Médica – 2016


108
Cirurgia geral e politrauma

1%-3%, sobe para 8% em pacientes submetidos


à exploração de via biliar. Sinais e sintomas apa-
Colite pseudomembranosa
recem nos primeiros dias de pós-operatório. Nas ci- Trata-se da forma mais grave de diarreia indu-
rurgias realizadas nas regiões vizinhas ao pâncreas, zida por antibióticos. O agente etiológico é o Clostri-
a pancreatite pós-operatória pode ser explicada por dium dificille.
agressões mecânicas ao parênquima, canais ou vasos Na colite pseudomembranosa, a diarreia ini-
pancreáticos. Nas outras operações citadas, não se cia-se após a primeira semana de antibioticotera-
conhece o mecanismo que leva ao aparecimento da pia e é geralmente aquosa, de frequência variável
pancreatite. Tem sido descrita, ainda que raramente, e associada a tenesmo, em cerca de 90% a 95% dos
após apendicectomia. casos. Outros sintomas que podem acompanhar o
A pancreatite aguda pode se apresentar com qua- quadro são cólica abdominal (80% a 90%), febre (80%)
dros de gravidade variável. Cerca de 5% a 15% são e, menos comumente, náuseas, vômitos e calafrios.
formas graves, com 20% a 60% de mortalidade. O Desidratação com desequilíbrio hidreletrolítico e hi-
diagnóstico, a definição da gravidade e o tratamento potensão podem estar presentes, dependendo princi-
seguem as orientações tradicionais, que serão aborda- palmente da intensidade da diarreia. Em casos raros,
das no módulo das doenças pancreáticas. hipoalbuminemia intensa pode decorrer de entero-
patia perdedora de proteína. Em 80% dos pacientes,
há leucocitose, que pode atingir níveis elevados como
30.000 cels/mm3.
A suspeita diagnóstica de CPM pode ser confir-
Úlcera de estresse mada por exame proctossigmoidoscópico, quando
revela presença de placas branco-amareladas, me-
Pode ocorrer, principalmente, em doentes com
dindo cerca de 2 a 5 mm de diâmetro, sob a mucosa
insuficiência respiratória, infecção grave, politrau-
intestinal. Estas correspondem a pseudomembranas
matizados (Úlcera de Cushing), grande queimados
que podem confluir, dando a impressão de uma mem-
(Úlcera de Curling) que são os casos em que se indi-
brana única que recobre toda a superfície infectada.
ca a profilaxia.
Entretanto, na ausência de pseudomembranas, o
Úlcera de Curling se refere a uma diminuição diagnóstico de CPM não deve ser excluído, já que
na produção do muco gástrico, causado por uma vaso- em até 30% dos casos elas se localizam na porção
constrição na submucosa do estômago, principalmen- mais proximal do cólon, em áreas fora do alcance
te pela redistribuição do volume sanguíneo. Devemos do retossigmoidoscópio.
relembrar que quanto maior o fluxo de sangue na sub- Na colite fulminante por C. difficile, a exten-
mucosa do estômago, maior a produção de muco. As- são transmural do processo inflamatório pode
sim, no grande queimado ou em situações de hipovo- resultar em microperfurações intestinais com pe-
lemia intensa, a vasoconstrição esplâncnica (incluindo ritonite localizada. Nos casos graves, o cólon perde
estômago) e cutânea consegue privilegiar o fluxo san- seu tônus muscular e tende a dilatar-se, resultando em
guíneo para órgãos nobres com SNC, coração e rins, megacólon tóxico (complicação mais temível). Sem
e acabam levando à diminuição do muco, com conse- o tratamento adequado, o quadro pode evoluir para
quente gastrite e ulceração. Na úlcera de Cushing perfuração intestinal com peritonite generalizada e
existe hipersecreção ácida pelo distúrbio adrenérgico, sepse, que pode resultar no óbito do paciente.
levando à ulceração. Febre, taquicardia, distensão e sensibilidade
abdominal localizada, redução da peristalse, além
de sinais de sepse podem estar presentes. À medida
Fatores de risco para o desenvolvimento das
que a dilatação tóxica aguda se desenvolve, a diarreia
úlceras de estresse
pode diminuir em consequência do íleo paralítico, em-
Trauma múltiplo. bora a condição clínica piore.
Trauma craniano. Deve-se suspeitar de colite fulminante por C.
Grandes queimaduras. difficile com megacólon tóxico em todo paciente em
uso atual ou recente de antibiótico, que desenvolva
Anormalidades da coagulação.
íleo paralítico ou peritonite localizada. A radiogra-
Sepse grave. fia simples do abdome mostrará acúmulo de gás in-
Síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SRIS). traluminal e dilatação no segmento do cólon acome-
Derivação cardíaca.
tido. A realização de exame de fezes com pesquisa de
toxinas do C. difficile, além da proctossigmoidoscopia,
Operação intracraniana. pode permitir o diagnóstico correto, evitando a reali-
Tabela 7.17 zação de uma laparotomia desnecessária.

SJT Residência Médica – 2016


3
7 Complicações pós-operatórias

A pesquisa da toxina B nas fezes é o principal Os agentes antidiarreicos, incluindo a lopera-


método diagnóstico laboratorial. As vantagens dos mida, o difenoxilato e a codeína, não são recomen-
ensaios da citotoxina são sua alta sensibilidade dados porque prolongam o tempo de exposição das
(94% a 100%) e especificidade (99%). As maiores toxinas à luz intestinal, podendo precipitar o me-
desvantagens são seu custo e o tempo para obten- gacólon tóxico.
ção do resultado, que oscila entre 24 a 48 horas.
Existem dois potentes e efetivos antibióti-
Testes imunoenzimáticos (Elisa) detectam to- cos para o tratamento da colite pelo C. difficile: o
xina A ou B e são mais rápidos (2 a 6 horas) que os metronidazol e a vancomicina. Os dois antimicrobia-
ensaios da citotoxina, entretanto, demonstram exce- nos são eficientes quando administrados oralmente.
lente especificidade (99%), porém, são menos sensiti- O metronidazol é a substância de escolha, sendo
vos (70% a 90%), comparados com os ensaios das cito- utilizada na dosagem de 500 mg, VO, 3 vezes ao dia,
toxinas. Algumas limitações foram estabelecidas com durante 10 a 14 dias.
os testes imunoenzimáticos (Elisa), como: resultados
falsos-positivos com a presença de sangue nas fezes; Antibióticos para o tratamento de colite
resultados falsos-negativos caso a toxina não tenha pseudomembranosa
sido bem isolada durante a obtenção da amostra; ina-
bilidade para conseguir repetitivas análises porque a Nome científico Posologia Duração
toxina se degrada com o transcorrer do tempo ou pela
pobre correlação com a gravidade da doença. 400 a 500 mg, VO, de
Metronidazol 10 a 14 dias
Outros testes diagnósticos incluem o teste de 8/8 h
aglutinação do látex e cultura das fezes. O teste de 125 a 500 mg, VO, de
Vancomicina 10 a 14 dias
aglutinação do látex é conveniente e de baixo custo, 6/6 h
mas não é confiável. A cultura das fezes não é especí- Tabela 7.20
fica para a bactéria produtora de toxina, daí pacien-
tes assintomáticos poderem apresentar cultura de
fezes positiva decorrente da colonização de outras Em pacientes não responsivos à introdução
linhagens não toxigênicas. Além disso, resultados de antibioticoterapia específica, alguns autores pre-
de cultura estão indisponíveis antes de 2 a 5 dias. conizam o uso de imunoglobulina endovenosa com
resultados favoráveis. Deve-se atentar para que em
presença de deficiência de IgA e alergia a componentes
Alto risco da imunoglobulina, como a maltose, está contraindi-
Cefalosporinas (3ª/4ª gerações) cada essa forma terapêutica.
Clindamicina*
Penicilinas
Fluoroquinolonas Fecaloma
Tabela 7.18 * O mais tradicional. É causa comum no pós-operatório de doentes
que usaram morfina, idosos, paraplégicos, caquéticos
e que já tinham constipação de longa data. No toque
retal existe massa endurecida pseudotumoral. No exa-
Agentes quimioterápicos envolvidos na diarreia
me físico pode-se ter o Sinal de Gersuny (palpação
e/ou colite associada ao Clostridium difficile
moldável do cólon com sensação tátil de desprega-
5-Fluorouracil mento – separação – quando da retirada da mão).
Metotrexato O tratamento consiste na retirada manual do fe-
Doxorrubicina caloma, com ou sem anestesia geral.
Ciclofosfamida
Tabela 7.19
Parotidite
O tratamento da colite associada ao Clostridium Aparece em pós-operatório tardio. Ocorre pela
difficile requer, inicialmente, a interrupção do trata- desidratação que leva ao acúmulo de secreções visco-
mento com o agente antimicrobiano causal. sas na boca e obstruem o ducto de Stenon. O germe
O quadro diarreico pode regredir sem tera- mais implicado é o Staphilococcus aureus. Acomete
pia específica em aproximadamente 15% a 25% principalmente indivíduos idosos, debilitados ou
dos pacientes, entretanto, quando esta é iniciada, desnutridos. O tratamento é iniciado com vanco-
contribui para a diminuição, duração e evolução dos micina e, em casos graves, deve ser realizada drena-
sintomas. gem externa da glândula.

SJT Residência Médica – 2016


110
Cirurgia geral e politrauma

tilação mecânica com emprego de pressão expiratória


Icterícia – hepatite positiva determina aumento da resistência à passagem
Pode acontecer em anestesias repetidas com ha- da bile, na junção coledocoduodenal, levando a estase
lotano (fluotanonecrose hepática), hemólise em razão biliar. A Tabela 7.21 resume os principais processos de-
da reação transfusional, choque prolongado (necrose terminantes da colecistite alitiásica.
centrolobular hepática), colestase por drogas (eritro-
micina) e infecções graves (hepatite transinfecciosa).
Na hemólise transfusional, deve-se ter o controle ri- Processos determinantes da colecistite aguda
alitiásica
goroso da função renal.
Aumento da viscosidade biliar.
Constrição, edema ou estase amputar.
Politransfusão-hemólise – NPT.
Colecistite Refluxo da secreção pancreática.
Isquemia.
Pode acontecer em qualquer tipo de operação,
Estado de baixo fluxo
mas é mais comum em procedimentos digestivos. É
Ativação do fator XII.
frequentemente acalculosa, mais comum em ho-
mens, e tende a evoluir rapidamente para necrose Tabela 7.21 Atenção!
da vesícula.
A colecistite aguda alitiásica apresenta caracte- A colecistite aguda alitiásica tem evolução
rísticas bem distintas da colecistite aguda calculosa. O rápida e, possivelmente, fatal. A mortalidade tem
comprometimento da parede vesicular é mais intenso, variado, nos diferentes relatos, de 16,6% a 81,8%. Como
com áreas de comprometimento da mucosa, muscular e em mais de 60% dos casos ocorrem colangite, empie-
serosa, podendo evoluir para necrose e perfuração. Vá- ma, gangrena ou perfuração, a intervenção cirúrgica
rios fatores de risco têm sido considerados impor- deve ser realizada o mais precocemente possível. O
tantes. Os principais entre eles são os seguintes: tipo de intervenção cirúrgica ficará na dependência das
condições do paciente e dos achados operatórios.
€ trauma;
€ desidratação – hipovolemia – choque; A colecistectomia é a melhor alternativa,
mas nem sempre é possível. Em pacientes muito
€ jejum prolongado; graves a colecistostomia é opção válida, podendo ser
€ íleo prolongado; feita até com anestesia local. Nos casos de sofrimen-
€ suporte nutricional parenteral total (atenção!); to vascular da vesícula, a colecistostomia não tem lu-
gar, devendo, mesmo com dificuldades, ser realizada
€ infecção – sepse;
a colecistectomia.
€ anestésicos – sedativos;
€ politransfusão;
€ ventilação mecânica;
€ queimaduras extensas. Complicações
Tais fatores de risco então acionam os determi-
nantes etiopatogênicos, representados por aumento
cardíacas
da viscosidade biliar, constrição esfincteriana com São infrequentes, mas quando ocorrem são re-
consequente estase, hemólise por politransfusão, re- sultado de outra complicação. A atenção deve estar
fluxo da secreção pancreática para o sistema biliar, is- voltada para o controle do equilíbrio hidroeletrolítico
quemia da parede vesicular por aterosclerose ou alte- e hidratação.
rações na circulação, estados de baixo fluxo e ativação
do fator XII (fator de Hageman).
Agindo de diferentes e discutíveis maneiras, os
fatores de risco aqui citados podem participar na deter- Arritmias cardíacas
minação do processo inflamatório. Assim, algumas dro- Aproximadamente 10% dos pacientes cirúr-
gas usadas como anestésicos ou sedativos podem levar gicos apresentam taquicardia supraventricular e
ao espasmo do esfíncter de Oddi, à febre e à desidrata- quase metade dos pacientes têm, em algum mo-
ção, e o jejum podem levar ao aumento da viscosidade mento, arritmias ventriculares. Diferentemente
da bile, o que também ocorreria nos politransfundidos, de arritmias pré-operatórias, que indicam risco au-
pela hemólise e consequente formação aumentada de mentado de morbidade cardíaca perioperatória, ar-
bilirrubina. O suporte nutricional parenteral total alte- ritmias que ocorrem após cirurgia, geralmente, estão
ra a composição das secreções biliopancreáticas. A ven- associadas a problemas de ordem sistêmica como dor,

SJT Residência Médica – 2016


3
7 Complicações pós-operatórias

hipoxia, distúrbio hidroeletrolítico, infecção, sangra- O delirium é classificado de acordo com nível
mento, hipotensão e isquemia miocárdica, e a corre- de atenção e atividade psicomotora em:
ção desses fatores podem ser suficientes para coibi-los. € hipoativo;
€ hiperativo;
€ misto.
Infarto do miocárdio Na UTI, dada à magnitude dos tratamentos uti-
A incidência de infarto agudo do miocár- lizados, principalmente sedativos, e às condições ge-
dio pós-operatório varia de 0,1% a 0,7% e pode ralmente graves, a forma de delirium mais comum é a
atingir a cifra de 37% em pacientes submetidos à hipoativa. Está associada com maior tempo de inter-
operação, após terem sofrido um infarto recente nação, maior mortalidade e pior prognóstico, pois tem
(menos de 3 meses). A mortalidade associada ao como complicações a aspiração, embolia pulmonar e
infarto pós-operatório pode chegar 40%. úlceras de decúbito.
O fator principal na patogenia do infarto é a exis- É importante ressaltar que pacientes com a for-
tência de doença coronariana. Além disso, a vasocons- ma hiperativa oferecem riscos à sua própria seguran-
trição coronariana pode reduzir ainda mais o fluxo ça, pois pelo grau de agitação removem tubos, pun-
sanguíneo e o suplemento de oxigênio. A resposta fi- ções venosas e arteriais, sendo necessárias altas doses
siológica ao estresse cirúrgico representa um dos fato- de sedativos, o que consequentemente os expõem a
res precipitantes na geração de isquemia miocárdica, maior tempo de ventilação mecânica, tempo que, por
mas a correlação exata entre os eventos perioperató- vezes, seria desnecessário.
rios e o desenvolvimento de infarto ainda é difícil de
O delirium é um quadro agudo, porém há re-
explicar. Um número significativo de pacientes com
latos de sua permanência após alta hospitalar, em
infarto do miocárdio pós-operatório não apresenta
especial naqueles pacientes idosos com quadro de-
os sintomas clássicos de dor torácica ou opressão.
mencial prévio.
Isso pode ser explicado pela presença de dor na
ferida operatória e pelo uso de analgésicos. O sin- Uma característica marcante do delirium é a flu-
toma mais frequente é a dispneia, mas a instalação tuação dos sintomas, com oscilação do nível de cons-
aguda de insuficiência cardíaca ou instabilidade hemo- ciência e cognição. A atenção está sempre comprome-
dinâmica deve desencadear investigação laboratorial e tida, tornando difícil o contato verbal com o paciente
eletrocardiográfica imediata. que se apresenta distraído, com dificuldade para res-
ponder seletivamente aos estímulos do examinador.

Causas de delirium agudo

Complicações cerebrais Intoxicação medicamentosa (álcool, anti-histamínicos, se-


dativos).
Extremamente raras no pós-operatório em cirur- Abstinência a drogas (álcool, narcóticos, ansiolíticos).
gia geral, sendo mais comuns após cirurgia cardíaca. Distúrbios cerebrais agudos (edema, ataque isquêmico
transitório, acidente vascular cerebral, neoplasia).
Distúrbios metabólicos (desequilíbrio eletrolítico, hipogli-
cemia).
AVC Distúrbios hemodinâmicos (hipovolemia, infarto do
Ocorre no paciente idoso, com doença vascular miocárdio, insuficiência cardíaca congestiva).
cerebral prévia, que sofreu choque hemorrágico pro- Infecções (septicemia, infecção do trato urinário, pneu-
longado ou episódio de hipertensão arterial. monia).
As medidas diagnósticas e terapêuticas seguem as Distúrbios respiratórios (insuficiência respiratória, em-
mesmas orientações para o paciente da população geral. bolismo pulmonar).
Trauma (lesão craniana, queimaduras).
Tabela 7.22
Psicose pós-operatória
Sempre suspeitar de delirium naquele pacien-
Ocorre principalmente em indivíduos idosos ou te que agudamente apresenta:
com doenças crônicas, constantemente com distúrbio
psiquiátrico prévio. Vinte por cento dos pacientes € confusão mental;
têm delirium, e ocorre fundamentalmente após o € alterações cognitivas: alterações da memória,
terceiro PO. desorientação, discurso incoerente;

SJT Residência Médica – 2016


112
Cirurgia geral e politrauma

€ alterações perceptivas: alucinações, principal- O uso de antipsicóticos atípicos, como a rispe-


mente visuais, não são essenciais para fechar o ridona, olanzapina e quetiapina, diminui o risco de
diagnóstico e ocorrem menos frequentemente; desenvolvimento de efeitos colaterais, principalmente
€ alterações comportamentais: medo, irritabili- extrapiramidais, em comparação ao haloperidol. No
dade, euforia ou apatia; entanto, seu uso no delirium é baseado apenas em re-
latos de séries de casos ou derivados de estudos para
€ distúrbios do ciclo sono-vigília; controle de sintomas em demenciados.
€ aumento ou diminuição da atividade psicomo- Os benzodiazepínicos são tratamento de esco-
tora. lha apenas nos casos de delirium tremens e nas sín-
Os agentes de escolha para o tratamento de dromes de abstinência por hipnóticos e sedativos.
pacientes agitados são os neurolépticos, particular- Em situações de alto risco de acatisia por neurolépti-
mente o haloperidol, que possui pouco efeito sedativo, cos, os benzodiazepínicos podem ter benefício.
hemodinâmico ou depressor respiratório. Possui alto Alguns relatos de casos e estudos prospectivos pe-
poder antipsicótico, rápido início de ação, meia-vida quenos concluíram que o uso de inibidores da colines-
longa (entre 10 e 18 horas), disponível em várias vias terase (como galantamina, donepezil e rivastigmina)
de administração e ampla janela terapêutica. Em pa- pode ser benéfico em delirium por droga anticolinérgica.
cientes críticos, sob ventilação mecânica, tem sido usa- Em pacientes com agitação acentuada que ofe-
do há muito tempo para manejar a agitação. recem risco à sua própria segurança, algumas vezes,
A infusão contínua de haloperidol tem se mos- pode ser necessária a sedação mais profunda associada
trado segura e efetiva. Usa-se um bolus inicial de 2,5 com bloqueio neuromuscular. Neste caso, o midazolan
a 10 mg, quando se deseja um efeito mais rápido e se- é o agente sedativo de escolha em pacientes graves em
dativo, seguido por infusão contínua de 0,5 a 5 mg/h. geral, pois sua meia-vida curta permite a interrupção
É recomendada a monitorização cuidadosa do inter- da sedação em poucas horas.
valo QT e dos níveis séricos de potássio e magnésio Depressão pós-operatória grave é mais pre-
devido ao risco de prolongamento de QT com taqui- valente nos pacientes submetidos a cirurgia ba-
cardia ventricular polimórfica e torsade de pointes. riátrica qualquer que seja o tipo de operação.

Medicamentos usados no tratamento farmacológico de Delirium


Antipsicóticos Sintomas extrapiramidais, Medicação de primeira escolha.
0,5 a 1 mg VO 2 x/dia, po- especialmente se dose maior Efetividade demonstrada em en-
Haloperidol dendo oferecer dose adicional que 3 mg/dia. saios clínicos randomizados.
a cada 4 horas (pico de ação 4 Prolongamento de QT no Evitar uso EV por causa da dimi-
a 6 horas). ECG. nuição da duração de ação.
0,5 a 10 mg IM, observar Evitar em pacientes com sín- Meia-vida longa de 10 a 18 horas.
por 10 a 60 minutos, repetir drome de abstinência alcoóli-
quando necessário (pico de ca, insuficiência hepática.
ação 20 a 40 min.). Risco de síndrome neurolép-
tica maligna.
Antipsicóticos 0,5 mg 2 x/dia Sintomas extrapiramidais Testado em pequenos ensaios
atípicos 2,5 a 5 mg 1 x/dia equivalentes ou em menor in- clínicos.
Risperidona 25 mg 2 x/dia tensidade que o haloperidol. Associado a um aumento da
Olanzapina Prolongamento do intervalo mortalidade em pacientes com
Quetiapina QT no ECG. demência.
Benzodiazepínicos Efeito paradoxal, agitação, de- Agente de segunda linha.
Lorazepam 0,5 a 1 mg VO, com doses pressão respiratória, sedação Associado a prolongamento e
adicionais a cada 4 horas, excessiva. piora dos sintomas de delirium
quando necessário. em alguns ensaios clínicos.
Reservado apenas para síndrome
Diazepam de abstinência alcoólica, doença
5 a 10 mg, VO, IM ou EV, de Parkinson e risco de síndrome
com doses adicionais a cada 4 neuroléptica maligna.
horas, quando necessário.
Antidepressivos 25 a 150 mg VO à noite Sedação excessiva. Testados apenas em ensaios não
Trazodona controlados.

Tabela 7.23 ECG: eletrocardiograma; VO: via oral; IM: intramuscular; EV: endovenoso.

SJT Residência Médica – 2016


3
7 Complicações pós-operatórias

As deficiências de volume encontradas no pós-


Complicações -operatório surgem tanto imediatamente após o
traumatismo cirúrgico como em períodos mais tar-
metabólicas dios. Os fatores causais são muito distintos nestas
duas circunstâncias. Imediatamente após o trau-
matismo surge depleção do volume extracelular
em consequência de sequestro de líquidos na área
Complicações do metabolis- traumatizada. Vários litros de líquido extracelular
mo hidroeletrolítico (HE) podem se acumular neste local no intervalo de algu-
mas horas. Em algumas circunstâncias, este seques-
Alguns pacientes fogem do padrão esperado de tro pode ser calculado. Por exemplo, um aumento
comportamento no PO, apresentando o que podemos de 5 a 10 cm na circunferência da coxa de um adulto
chamar de complicações do metabolismo hidroeletro- corresponde a um acúmulo de 1 a 1,5 litro. Infeliz-
lítico pós-trauma. mente, entretanto, é impossível avaliar a maioria
Tais complicações são oriundas, na maior parte desses sequestros, embora eles possam ser volumo-
das vezes, de cuidados médicos inadequados frente sos. Em uma laparotomia com manipulação de alças
às alterações existentes. Em grande parte dos casos, delgadas e na presença de peritonite química, pode-
os pacientes se encontram com hidratação parenteral, -se ter um acúmulo de 6 a 7 litros no peritônio e
situação em que o médico deve decidir quais serão as alças intestinais.
quantidades de água, nutrientes e eletrólitos a serem O sequestro de líquidos após os traumatismos
consumidos. manifesta-se pela instabilidade circulatória, que
Daí a importância de se fazer um adequado ba- surge depois de algumas horas. O uso exclusivo dos
lanço hídrico (o que é que o paciente ingeriu de líqui- critérios de pressão e pulso pode levar a um diagnós-
dos e o que eliminou). tico tardio deste tipo de problema. O paciente deve
ser acompanhado, sempre que o traumatismo for
extenso ou que moléstias associadas exijam grande
Tipos de complicações HE no pós- estabilidade hemodinâmica, por meio de avaliações
-operatório de: pressão arterial, pulso, pressão venosa central,
temperatura e coloração da pele e volume urinário
€ Distúrbios de volume: são as grandes modifi-
(volume mínimo entre 30 e 50 mL/hora). Deve-se
cações da quantidade do volume dos comparti-
mentos líquidos do organismo, principalmente ressaltar que este último dado pode ser falho nos
no compartimento extracelular. casos com utilização de diurético osmótico ou com
insuficiência renal aguda ou crônica. A utilização dos
€ Distúrbios de concentração: referem-se às parâmetros de avaliação citados permitirá uma repo-
grandes modificações da osmolaridade do meio
sição volêmica que deve ser feita meticulosamente,
interno, que são principalmente determinadas
com reposições parceladas e acompanhando as per-
pelas variações da concentração do sódio no lí-
das na medida em que estas se processam. Os líqui-
quido extracelular.
dos que serão utilizados variarão de acordo com as
€ Distúrbios de composição: referem-se às per- circunstâncias envolvidas.
turbações do potássio e magnésio, constituin-
tes importantes no equilíbrio hidroeletrolítico As alterações de volume mais tardio (terceiro
celular. dia em diante) decorrem geralmente de reposição in-
suficiente de perdas extrarrenais. Na maioria das ve-
zes são perdas gastrointestinais. Esses problemas são
Distúrbios de volume mais facilmente prevenidos do que tratados.
Deficiência A prevenção deve ser feita com o acompanha-
São os distúrbios mais frequentes. Ocorrem mento cuidadoso dos doentes, cujo balanço hidro-
como resultado de perdas de líquidos de composição eletrolítico deve ser calculado ao menos uma vez ao
eletrolítica semelhante ao plasma, de modo que não dia, tendo-se em vista a reposição por via parenteral
se refletem sempre por alterações nas concentrações da solução mais adequada para o caso, atingindo-se a
de eletrólitos. Seu diagnóstico deve ser realizado por concentração adequada dos principais eletrólitos.
meio de uma análise exclusivamente clínica, segundo Excessos
seus sinais e sintomas. O aumento volêmico ocorre quando há, de certa
Tais sinais dependem não só da quantidade de forma, a administração de soluções salinas isotônicas
líquidos perdida, mas também da rapidez com que se em excesso, em relação às perdas internas ou exter-
produziram tais perdas e das possíveis moléstias as- nas. Pacientes com aparelhos circulatório e respirató-
sociadas. rio normais toleram bem este excesso, havendo logo

SJT Residência Médica – 2016


114
Cirurgia geral e politrauma

após o equilíbrio entre os compartimentos (intracelu- Reposição das perdas de líquidos que con-
lar, intravascular e interstício), no intuito de regulari-
têm sódio com soro glicosado
zar a volemia normal. Chama-nos a atenção, porém,
a necessidade de uma correta avaliação do paciente Erro muito comum na reposição de perdas gas-
cirúrgico, que requer contínua avaliação dos parâme- trointestinais. Por vezes, em vez de soro glicosado são
tros clínicos extracelulares, como pressão arterial, pul- usadas soluções salinas demasiadamente carentes de
so, pressão venosa central, diurese, cor e temperatura sódio, fato que leva às mesmas consequências. Pacien-
da pele, além do balanço hidroeletrolítico. A medida tes com lesões renais podem elaborar uma urina com
de peso também deve ser avaliada. Se o paciente não alta concentração de sódio, mesmo no período pós-
for corretamente avaliado, vários litros de solução sa- -operatório. Nessas condições, poderemos ter diurese
lina poderão ser administrados, sem a apresentação diária com volume normal e concentração de sódio de
de edemas. 50 a 200 mEq/L. A mesma dificuldade na conservação
renal de sódio pode surgir após traumatismo crania-
O sinal mais precoce de sobrecarga é o au-
no. Nesses casos, a reposição de soro glicosado para as
mento de peso durante o período de catabolis-
mo, quando o paciente deverá perder 300 a 500 perdas pode levar também à hiponatremia.
gramas por dia. Sinais de sobrecarga mais grave
são: edema (no dorso e porções posterolaterais
do tronco e das coxas em primeiro lugar), disp- Diminuição do volume urinário
neia e estertores pulmonares. Quando o excesso A oligúria de qualquer origem pode ocorrer quan-
é administrado lentamente, podemos ter grande do não são corrigidos os requisitos diários de água. Na
sobrecarga sem aumento significativo de pressão
insuficiência renal aguda, o catabolismo dos substra-
venosa central, que é um índice muito acurado
tos orgânicos corpóreos aumenta a produção de água
para avaliação dos excessos feitos em curto in-
endógena, o que diminui ainda mais os requisitos de
tervalo de tempo.
água por dia.
O tratamento dos excessos de líquidos é feito
por indução de um balanço hídrico negativo, funda-
mentalmente pela restrição da água administrada. Diminuição das perdas insensíveis
Diuréticos podem ser administrados, com os cuidados
necessários para que uma deficiência de potássio não A vasoconstrição cutânea de qualquer causa di-
se associe aos distúrbios já existentes. minui a perda insensível de água. Esta condição é en-
contrada no choque e na hipotermia.
Os excessos de líquidos surgem frequentemente
em pacientes com falência renal pós-traumática. Nes-
ta condição, enquanto não se chegar à fase de diurese Sepse
adequada, a água só poderá ser eliminada por meio de
diálises. A eliminação de água por diálise peritoneal é A infecção bacteriana com repercussões sistêmi-
mais eficiente que por hemodiálise, apesar de este pro- cas é frequentemente acompanhada por queda acen-
cesso ser menos adequado para enfermos com compli- tuada da concentração plasmática de sódio.
cações frequentes. A maioria dos estados de hiponatremia é as-
sintomática até que a concentração plasmática do
íon caia abaixo de 120 mEq/L. Uma hiponatremia,
mesmo moderada, entretanto, sugere terapêutica ina-
dequada ou uma condição associada que requer cui-
Distúrbios de concentração dados apropriados. O quadro clínico da hiponatremia
acentuada é variável, podendo encontrar-se astenia,
do sódio náuseas, convulsões, coma e apneia. Esses três úl-
timos sinais ocorrem principalmente em crianças e
idosos. O tratamento deve ser feito pela restrição de
Hiponatremia água, chegando-se ao uso de soluções hipertônicas de
cloreto de sódio nos casos mais graves. Na insuficiên-
Surge frequentemente quando se usa soluções cia renal, o problema é corrigido por diálises.
sem sódio (soro glicosado, por exemplo) para repor
perdas de líquidos que contêm este íon, ou quando a
administração destas soluções excede a capacidade re-
nal de diminuição de água. A hiponatremia (Na+ < 135 Hipernatremia
mEq/L) grave ou refratária ao tratamento dificilmente A hipernatremia (concentração plasmática acima
acontece quando a função renal permanece adequada. de 145 mEq/L) é uma condição rara, que, em geral, decor-
Analisando-se as condições, temos: re de perdas exageradas de água livre de eletrólitos e fre-

SJT Residência Médica – 2016


3
7 Complicações pós-operatórias

quentemente grave. Em contraposição à hiponatremia, ência adrenal é a administração de doses farmacológicas


pode surgir mesmo com uma função renal normal. Se- de glicocorticoides, que suprimem a secreção de ACTH,
gundo a hipótese de Darrow-Yannet, uma concentração suprimindo consequentemente as glândulas adrenais.
alta de sódio indica deficit acentuado de água corpórea. A interrupção abrupta da administração crônica
de doses farmacológicas de glicocorticoides resulta em
insuficiência adrenal, que geralmente é muito sinto-
Causas mais comuns mática e ocasionalmente letal.
Os pacientes se apresentam com um colapso car-
Aumento das perdas extrarrenais de água diovascular súbito, incluindo hipotensão, febre, con-
fusão mental e dor abdominal. A avaliação laboratorial
Com o aumento do metabolismo basal, em conse-
revela hiponatremia, hipercalemia, hipoglicemia
quência de qualquer fator, mas principalmente por cau-
e azotemia. Um ECG, ocasionalmente, revelará
sa da febre, a perda de água por evaporação pode chegar
baixa voltagem e picos de ondas T.
a 200 mL/hora. Em pacientes queimados, o aumento
da evaporação por tecido de granulação pode elevar as
perdas até 3 a 5 litros/dia, ocorrendo algo semelhante Quadro clínico da crise adrenal aguda
em pacientes traqueostomizados em ambientes secos. Sinais Sintomas Alterações
laboratoriais
Hipotensão e choque Febre Hiponatremia
Aumento das perdas de água Desidratação Náuseas, vômi- Hipercalcemia
Grandes volumes de água com baixo teor de ele- tos, anorexia
trólitos podem ser perdidos pela urina na vigência de Cianose ou palidez Dor abdominal Hipoglicemia
lesões tubulares ou quando o organismo deixa de se- Confusão mental, torpor Fraqueza Uremia
cretar o ADH, como em lesões do SNC. Em ambas as Coma Apatia Linfocitose,
condições há uma alteração na reabsorção de água. eosinofilia
Tabela 7.24
Sobrecarga de solutos
Pacientes em risco incluem os idosos criticamente
Dietas hiperproteicas produzem um aumento da doentes, pacientes que utilizavam doses prévias de cor-
produção de ureia, a qual, funcionando com diuréti- ticosteroides e os submetidos à ressecção da adrenal e
co osmótico, necessita de um grande volume de água pacientes com grandes sangramentos retroperitoneais.
para ser excretada; o mesmo pode ocorrer com glicose
A prevenção desse problema é mais desejável e resulta de
em grande excesso.
história completa, administração adequada de corticos-
No quadro clínico da hipernatremia, além de fe- teroides, antes da operação, e de alto índice de suspeita
bre e taquipneia, também predominam os sinais neu- em pacientes idosos, de alto risco. O tratamento envol-
rológicos de confusão mental, obnubilação e coma. O ve a administração rápida de hidrocortisona, na dose de
tratamento é feito com a administração de água por 100 mg IV e posteriormente 50 mg IV de 6/6 horas pelas
via digestiva (oral ou sonda gástrica) ou parenteral próximas 72 horas, com redução até ajuste adequado.
(SG a 5%, solução de NaCℓ a 0,45%).

Medidas gerais
1) Colher amostra de sangue para hemograma, dosa-
Insu昀椀ciência adrenal gens bioquímicas e hormonais (cortisol e ACTH).
2) Corrigir depleção de volume (com solução glicofisio-
A insuficiência adrenal é uma condição rara, lógica), desidratação, distúrbios eletrolíticos e hipogli-
mas potencialmente letal, associada à falência das cemias.
glândulas adrenais. A insuficiência adrenal primá- 3) Tratar a infecção ou outros fatores precipitantes.
ria se dá por atrofia adrenal autoimune (doença Reposição de glicocorticoides
de Addison), mas outras causas incluem doenças 1) Administrar hidrocortisona, 100 mg EV inicialmente,
infecciosas (por exemplo, tuberculose, paracoccidio- seguidos de 50 mg EV de 4/4 horas, durante 24 horas.
domicose), hemorragia adrenal, metástases e res- Depois, reduzir a dose lentamente nas próximas 72 ho-
secção cirúrgica bilateral. ras, administrando a droga a cada 4 ou 6 horas EV.
A insuficiência adrenal secundária pode ser causa- 2) Quando o paciente estiver tolerando alimentos por via
da pela secreção inadequada de hormônio adrenocorti- oral, passar a administrar o glicocoticoide VO e, quando
necessário, adicionar fludrocortisona (0,1 mg VO).
cotrófico (ACTH), causada por doenças na hipófise ou no
hipotálamo. Entretanto, a causa mais comum de insufici- Tabela 7.25 Tratamento da crise adrenal.

SJT Residência Médica – 2016


116
Cirurgia geral e politrauma

A restrição da ingestão hídrica é o principal


SSIADH elemento no tratamento da SSIADH, sendo a quan-
tidade de líquido oferecida ao paciente calculada
A síndrome da secreção inapropriada do hor- pelo débito urinário menos 500 mL. Outros autores
mônio antidiurético (SSIADH) responde por 14% a preconizam uma ingestão inferior a 1.000 mL/dia.
40% dos casos de hiponatremia (definida como só-
dio sérico < 135 mEq/L) e é a causa mais comum de
hiponatremia normovolêmica. Infusão rápida (solução cloretada a 3%, à veloci-
Embora a causa mais comum de SSIADH seja dade de 1 a 2 mL/kg/hora, em duas ou três horas)
carcinoma de pequenas células de pulmão, cirurgias Indicação: convulsões e coma, exceto quando a urina
abdominais ou torácicas de grande porte comumen- estiver diluída e o débito urinário > 300 mL/hora.
te se associam à hipersecreção do ADH. Entretanto, Infusão lenta (solução cloretada a 3%, à velocidade
SSIADH foi igualmente descrita após cirurgias meno- de 15 mL/hora)
res, como colecistectomia laparoscópica ou cesariana. A Indicações: resposta lenta à restrição hídrica; incapaci-
hiponatremia é observada em 9% a 35% dos pacien- dade de ingerir sal.
tes submetidos à cirurgia hipofisária.
Cuidados na infusão da solução hipertônica
Os sintomas diretamente atribuídos à hiponatre- Evitar correção da natremia > 12 mEq/L/dia.
mia primariamente ocorrem com reduções agudas ou Usar juntamente com furosemida (sobretudo, nos pa-
marcantes na concentração plasmática do sódio e refle- cientes em risco de insuficiência cardíaca).
tem disfunções neurológicas secundárias a edema ce-
rebral. Este último resulta do movimento de água para Vale a pena deixar registrada uma condi-
dentro das células, favorecido pelo gradiente osmótico ção clínica distinta da SSIADH e que é relevante
criado pela queda na osmolalidade plasmática (Posm). na prática clínica, Síndrome Cerebral Perdedora
Os sinais e sintomas na SSIADH dependem do de Sal (SCPS). A SCPS é uma condição clínica não to-
grau da hiponatremia e da velocidade com que se talmente compreendida do ponto de vista de sua pato-
instala. Em geral, a velocidade da redução do sódio gênese, embora tenha sido descrita há várias décadas e
sérico (Na+) é mais importante no surgimento dos seja de ocorrência relativamente comum no cenário do
sintomas neurológicos do que a própria magnitude da neurointensivismo. A SCPS ocorre mais comumente
hiponatremia. A sintomatologia e a taxa de mortalida- após a hemorragia subaracnoidea, principalmente
de são maiores na hiponatremia aguda do que na crô- acompanhando o vasoespasmo cerebral, embora
nica. Com níveis de Na+ entre 125 e 135 mEq/L, os também possa ocorrer em neoplasias intracrania-
pacientes geralmente são assintomáticos ou apre- nas e meníngeas e no trauma de crânio grave. Sua
sentam sintomas frustros. Quando esses níveis manifestação mais comum é a poliúria, acompanhada de
encontram-se abaixo de 125 mEq/L, podem sur- intensa natriurese, osmolalidade urinária elevada, osmo-
gir, cefaleia, náuseas, vômitos, anorexia, fraqueza lalidade plasmática baixa e hipovolemia. Geralmente é
geral, alterações mentais, sinais neurológicos focais e autolimitada a cerca de três semanas, mas tem alta
convulsões. Se os valores de Na+ situam-se abaixo morbidade e mortalidade neste período. O defeito pri-
de 120 mEq/L, aumenta o risco para crises convul- mário que leva a essa intensa natriurese e poliúria (às ve-
sivas e podem surgir estupor e coma. Em um estudo, zes, a diurese chega a mais de 10 litros por dia) ainda não
a coma estava presente em 13% dos pacientes com Na+ estão claros. Pode se tratar de um peptídio natriurético
menor ou igual a 120 mEq/L. Outros sinais e sinto- cerebral ou mesmo estar relacionada à presença de um
mas que podem se associar com hiponatremia gra- efeito inibitório da Na+/K+ ATPase, tipo digoxina-like. A
ve são paralisia pseudobulbar, alterações reflexas, tabela a seguir compara as manifestações da SCPS e da
sinal de Babinski e sinais extrapiramidais. Quando SSIADH. A SSIADH é o principal diagnóstico diferen-
há lesão cerebral prévia, hipoxia, acidose ou hipercal- cial da SCPS, pois também pode ocorrer acompanhando
cemia pode ocorrer sintomatologia neurológica com quadros neurológicos. O tratamento da hiponatremia da
níveis mais altos de sódio. SCPS é muito particular a essa situação. Retardo em seu
reconhecimento e na rápida instalação de medidas agres-
Critérios diagnósticos de SSIADH sivas podem ser catastróficos, uma vez que pode haver
1. Baixa osmolaridade plasmática ( < 2070 mOsm/kg). evolução rápida para hiponatremia grave em pacientes
2. Urina inapropriadamente concentrada a despeito da neuropatas altamente suscetíveis à complicação neuro-
hiponatremia (> 100-200 mOsm/kg). lógica. A vigorosa infusão de solução fisiológica para
3. Na+ urinário > 40 mEq/L (por expansão volêmica). impedir hipovolemia se faz necessária, embora, mui-
4. Euvolemia. tas vezes, não seja o suficiente para a correção/manu-
5. Descartar: IRC, insuficiência adrenal, hipotiroidismo, tenção do Na+ em valores normais, pois a natriurese
ICC, insuficiência hepática. pode ser muito elevada. A medida do Na+ urinário ajuda
Tabela 7.26 a programar a reposição de sódio ao longo do dia. Não é

SJT Residência Médica – 2016


3
7 Complicações pós-operatórias

incomum a perda de mais de 100 mEq/L de Na+ em um Diagnóstico diferencial entre SCPE e SSIADH
paciente que urina mais de 5 litros/dia. Portanto, geral-
Características SCPS SSIADH
mente há a necessidade de infusão de soro de manuten-
ção com maior oferta de sódio (> 150 mEq/L), e/ou ofer- Volume urinário Elevado/muito elevado Reduzido
ou normal
ta de NaCℓ pelo trato intestinal. Na impossibilidade de
corrigir o Na+ com estas medidas, e em situações emer- Pressão arterial Reduzida/normal Normal
genciais, também se faz uso do NaCℓ a 3%. Vale lembrar Pressão venosa Baixa Normal
a necessidade de várias dosagens de Na+ plasmático ao central
longo do dia para acompanhar a correção deste distúrbio. Na+ urinário Muito elevado (geral- > 40 mEq/L
Como medida adjuvante ao tratamento mais agudo da mente 100 mEq/L)
hiponatremia relacionada à SCPS, pode-se tentar a asso- Sede Aumentada Normal ou
ciação de fludrocortisona, na tentativa de manter o meio reduzisa
intravascular expandido e preservar sódio. Tabela 7.27

Nem sempre depende do médico que o doente se restabeleça: algumas vezes o mal é mais forte que a ciência.
– Ovídio

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

8
Cicatrização de feridas

As fases, via de regra, ocorrem simultaneamente


Introdução e cada peculiaridade acaba por se sobrepor às demais.

A lesão tecidual, com a ocorrência de necrose, faz Respostas de Cicatrização

com que o organismo humano desenvolva uma cica- Hemostasia


1- Cessação do
sangramento
triz. Embora alguns animais, como a salamandra, te- Inflamatória
Inflamação 2- Quimiotaxia
nham a capacidade de regenerar partes amputadas, os (reativa)
3- Migração epitelial
mamíferos só conseguem regenerar o fígado e o osso. Regeneração de 4- Proliferação
Proliferativa
tecido conjuntivo (regeneradora)
Quanto maior for o trauma, mais intensa será a 5- Maturação
resposta inflamatória e pior a formação da cicatriz. 3- Contração Maturacional
Contratura 4- Cicatriz (remodelação)
Quimioterapia, aterosclerose, insuficiência re- 5- Remodelação da cicatriz
nal, cardíaca e o local do trauma são alguns dos fatores
Figura 8.1 Fatores da cicatrização de ferida.
que alteram a cicatrização.
As características anatômicas da topografia da
lesão são também importantes. Desta forma, o su-
primento sanguíneo das extremidades inferiores é
Fase in昀氀amatória
o pior no corpo. Já a vascularização da face e das Inflamação é a resposta tecidual inicial ao trau-
mãos é a melhor que temos. ma. Ela ativa mecanismos protetores e prepara os te-
Em relação à idade, quanto mais idoso, mais tar- cidos para as fases seguintes. A inflamação é mediada
dia é a resposta à cicatrização. Aquela ferida crônica pela liberação de grande número de substâncias quí-
(exemplo: úlcera em pé diabético, sem tratamento, ou micas, os mediadores, como leucotrienos, frações de
úlcera de pressão), que por alguma razão não consegue complemento, fator ativador de plaquetas, produtos
obter a restauração da estrutura e função, fica limita- da degradação da fibrina, serotonina e histamina. A
liberação de mediadores na ferida resulta em vasodila-
da à fase inflamatória e não fecha.
tação, aumento da permeabilidade capilar e estimula-
Fases da cicatrização: ção das fibras dolorosas.
€ Fase inflamatória. A fase inflamatória perdura por até seis dias.
€ Fase proliferativa – com síntese do colágeno. O A persistência dos sinais inflamatórios por mais tem-
tecido de granulação aparece aqui. po habitualmente está relacionada com problemas na
cicatrização, principalmente infecção de ferida.
€ Fase de maturação – com fibroplasia, angiogê-
nese e epitelização. Aqui há uma maior produ- Várias células são atraídas à área da ferida e ati-
ção do colágeno, com contração da ferida e per- vadas para cumprirem seus papéis no processo cica-
da do edema. tricial. As primeiras células a chegarem à ferida são
3
8 Cicatrização de feridas

os neutrófilos que são atraídos por substâncias como A fase inflamatória afeta de modo decisivo as
complemento, interleucina-1, fator de necrose tu- etapas seguintes da cicatrização. A diminuição do
moral (FNT-α), fator transformador do crescimento, estímulo inflamatório resulta em quimiotaxia diminu-
(FTC-β), fator plaquetário - 4 e produtos bacterianos. ída e fagocitose alterada, o que facilita o aparecimento
Após cerca de 72 horas da lesão, os macrófa- de infecções e redução na deposição de colágeno.
gos se tornam as células dominantes, fagocitando O macrófago é o ponto central da resposta in-
células mortas e bactérias. Mais tardiamente, em flamatória, pois orquestra toda a liberação de cito-
torno do sexto dia pós-lesão, os linfócitos se tornam cinas e estimula muitos dos processos da cicatriza-
as células de defesa predominantes na ferida. ção. Os macrófagos ativados também liberam radicais
A contribuição de cada população celular no processo livres. Em presença da IL-2, ocorre a potencialização
cicatricial é variável. Macrófagos e linfócitos exercem pa- de radicais livres.
péis essenciais, porém, desde que não haja contaminação O macrófago libera IL-1, que causa ativação de
bacteriana, os neutrófilos não são fundamentais para a ci- linfócitos e estimulação do hipotálamo, incluindo
catrização. Isso decorre de que o seu papel na fagocitose e resposta com febre. Além disso, o macrófago também
defesa antimicrobiana pode ser suprido pelos macrófagos. libera o TNF (antigamente chamado de caquectina). O
Macrófagos ativados cumprem várias funções TNF-α produz febre semelhante à IL-1. Em verdade, ele
na cicatrização, como: na angiogênese, via liberação amplifica os efeitos da IL-1. A IL-6 induz proliferação
de céls T, febre e produção de outras proteínas de fase
de fatores de crescimento e citocinas como o TNF-α;
no recrutamento e na ativação de células como os lin- aguda, bem como age sinergicamente com a IL-1.
fócitos, que liberarão linfocinas como interferons e in- Os macrófagos e as plaquetas liberam PDGF
terleucinas, e fibroblastos que participarão na síntese (fator de crescimento derivado de plaquetas). TGFα
de colágeno; na regulação da síntese da matriz celular, (fator de crescimento transformador) e TGF β são li-
via fatores de crescimento, citocinas, prostaglandi- berados pelos monócitos. O TGF-β é o mais potente
nas e outras enzimas como arginase e colagenase; no estimulador de fibroplasia. O TGF-α vai estimular
desbridamento da ferida, tanto por fagocitose quanto a angiogênese e, à medida que o TGF-β aumenta no
pela liberação de enzimas como colagenase e elastase; sítio inflamatório, os fibroblastos são diretamente es-
na função antimicrobiana, pela produção de óxido ní- timulados para a produção de colágeno e fibronectina,
trico e outros radicais livres. levando então à fase proliferativa.

Figura 8.2 Interação de fatores celulares e humorais na cicatrização de ferida. bFGF: fator de crescimento do fi-
broblasto básico; EGF: fator de crescimento epidérmico; GAG: glicosaminoglicans; IGF-1: fator de crescimento tipo
insulina-1; KGF: fator de crescimento do ceratinócito; PDGF: fator de crescimento derivado da plaqueta; TGF-β: fator
betatransformador de crescimento; TNF-α: fator alfa de necrose tumoral; KGF: fator de crescimento do ceratinócito;
H202: peróxido de hidrogênio; O2, superóxido; IL: interleucina; INF-y: interferon gama; PGE2: prostaglandina E2;
VEGF: fator de crescimento endotelial vascular.

SJT Residência Médica – 2016


120
Cirurgia geral e politrauma

Fase proliferativa Epitelização


A fase de proliferação de novos tecidos segue-se à Epitelização é a cobertura da ferida por células epi-
resposta inflamatória. Inicia-se em torno do quarto teliais. Em feridas de espessura total, ou seja, que aco-
dia pós-trauma e perdura, em geral, até o 14º dia. metem todas as camadas da pele, a regeneração ocorre
Essa fase envolve três processos:
a partir das margens da ferida. Nas feridas de espessura
parcial, remanescentes de folículos pilosos parcialmen-
€ fibroplasia (granulação), que leva à forma- te lesados, também contribuem para a reepitelização.
ção de uma rede de novos vasos sanguíneos As células epiteliais se multiplicam e migram para cobrir
(angiogênese) em uma matriz rica em colágeno;
a ferida. Esse processo de migração centrípeta aconte-
€ contração, que contribui para a diminuição do ce até que uma camada contínua de epitélio recubra a
tamanho da ferida; ferida. A migração é, então, inibida pelo contato entre
€ epitelização, que recobre a ferida por epitélio as células epiteliais provenientes de regiões opostas das
regenerado, habitualmente partindo de suas margens da ferida. Esse epitélio inicialmente formado é
margens para o centro. delgado e pode ser facilmente rompido.
Este processo é dependente de oxigênio ofertado
através dos vasos e não do ar atmosférico que se difun-
de mal através dos tecidos.
Granulação Alguns fatores podem interferir sobre a epiteliza-
A formação de tecido de granulação se inicia ção, como a presença e o tipo de curativos, a temperatu-
em torno do quinto dia pós-trauma. Macrófagos são ra e o pH. A epitelização pode ser retardada pela presen-
atraídos à ferida e secretam vários fatores de cresci- ça de corpos estranhos, pela dessecação e pela infecção.
mento e quimiotáticos em resposta à baixa tensão te-
cidual de oxigênio. Os fibroblastos respondem a esses
fatores de crescimento e quimiotáticos na ferida por
multiplicação, migração e deposição de matriz celular. Fase de maturação ou
Células endoteliais de vasos sanguíneos também res-
pondem formando novos capilares que crescem atra-
remodelagem
vés da ferida (angiogênese). Essa fase se inicia em torno do oitavo dia pós-
-lesão e permanece por tempo variável. O principal
Nessa fase, a matriz rica em colágeno do tipo
aspecto dessa fase é a deposição de colágeno, cuja
III secretado pelos fibroblastos provê o substrato
síntese encontra-se aumentada por pelo menos
para macrófagos, fibroblastos e novos vasos san-
quatro a cinco semanas. Muitas alterações de cicatri-
guíneos. Os novos vasos, por sua vez, provêm nu-
zação se manifestarão, do ponto de vista clínico, nesse
trientes e oxigênio para o crescimento continuado.
período. Acontecerão seja por deficiência de deposição
A vitamina C age como uma coenzima, na sín- de colágeno, como no diabetes ou uso crônico de corti-
tese de colágeno, para a hidroxilação de prolina em costeroides, seja por síntese excessiva de colágeno nos
hidroxiprolina. A hidroxiprolina contribui para o en- casos de cicatriz hipertrófica e de queloides.
trecruzamento das fibras de colágeno, que resultará em
maior força e resistência dessas fibras recém-formadas. Inicialmente, a matriz tecidual ao nível da ferida é
composta de fibrina e fibronectina. Glicosaminoglicanas
e proteoglicanas, e também outras proteínas, são em se-
guida sintetizadas e representam o suporte para a depo-
sição de outros componentes. Em sequência, o colágeno
Contração se torna a proteína predominante na área da ferida.
A contração é um processo gradual e, desse O colágeno tipo I é o principal componente da
modo, nem sempre é facilmente observada na prática pele normal (80 a 90%) ao passo que o tipo III é en-
clínica. Entretanto, pode diminuir de modo significa- contrado em menor quantidade (10 a 20%). Em te-
tivo a área a ser coberta por epitélio. cido de granulação, o colágeno tipo III está aumen-
A contração das feridas parece ser função de tado (30%), já na cicatriz madura essa proporção
fibroblastos da ferida diferenciados, os miofibro- diminui (10%). O papel desempenhado pela deposi-
blastos, que contêm fibrilas de actina e de miosina. ção aumentada de colágeno tipo III na fase inicial da
Estes estão presentes em grande número em feri- cicatrização não está esclarecido, porém se reconhece
das em contração. que ele não contribui para a resistência da ferida.
A contração pode ser inibida por enxerto de Na maturação, o colágeno tipo III, que iniciou
pele de espessura total por meio de mecanismo ain- sua formação durante a fase de proliferação, será
da não esclarecido. convertido em tipo I e submetido a extenso proces-

SJT Residência Médica – 2016


3
8 Cicatrização de feridas

so de reorganização. Uma vez que a base de coláge- bitual. O risco de deiscência da ferida aumenta
no esteja estabelecida, o conteúdo total de colágeno nos pacientes com hipoalbuminemia (< 2 g/dL),
permanece constante, porém se trata de um balanço denotando o efeito deletério da desnutrição
dinâmico em que está ocorrendo constantemente sín- crônica no reparo.
tese e degradação. Com o progredir do processo de re- € Deficiência de vitamina C (ácido ascórbi-
modelagem, a atividade celular se reduz e o número de co) – a cicatrização de feridas é interrompida
vasos sanguíneos na área reparada diminui. durante a fibroplasia (escorbuto). Um número
normal de fibroblastos é encontrado na ferida,
mas eles produzem uma quantidade insuficien-
Maturação
te de colágeno. A vitamina C é necessária para
Número relativo de células

Proliferação
a hidroxilação de resíduos lisina e prolina. Sem
Inflamação a hidroxiprolina o colágeno recém-sinteti-
Neutrófilos
Macrófagos
zado não é transportado para fora das cé-
lulas. Sem a hidroxilisina não há formação de
Fibroblastos ligações cruzadas entre as fibrilas de colágeno.
€ Deficiência de vitamina A (ácido retinoi-
co) – a necessidade desta vitamina aumenta
Linfócitos durante a agressão. Reverte parcialmente o
comprometimento da cicatrização dos pa-
0
0 2 4 6 8 10 12 14 16 cientes que fazem uso crônico de esteroi-
Dias pós-ferida des. Esta vitamina permite a estabilização
da membrana dos lisossomos.
Figura 8.3 Evolução em tempo do aparecimento de
€ Deficiência de vitaminas do complexo B – o
diferentes células na ferida durante a cicatrização. Mac-
déficit de vitamina B6 (piridoxina) compromete
rófagos e neutrófilos são predominantes durante a fase
a formação de ligações cruzadas do colágeno. As
inflamatória (máximo nos dias 2 e 3, respectivamente).
deficiências de vitamina B1 (tiamina) e B2 (ribo-
Linfócitos aparecem mais tarde e atingem o máximo no
flavina) provocam síndromes associadas a repa-
dia 7. Os fibroblastos são as células predominantes du-
ro insatisfatório das feridas.
rante a fase proliferativa.
€ Oligoelementos – a deficiência de zinco e cobre
têm sido implicadas no reparo insatisfatório das
Maturação feridas, uma vez que eles são cofatores em muitas
reações enzimáticas. A deficiência de zinco está
Síntese relativa da matriz

Proliferação
associada a epitelização inadequada e a feri-
Inflamação Colágeno I das crônicas que não cicatrizam.
Fibronectina € Oxigênio – o oxigênio é essencial para infla-
mação, angiogênese, epitelização e deposição
Ferida resistente à ruptura de matriz bem-sucedidas e, consequentemente,
Colágeno III uma boa cicatrização. As feridas isquêmicas não
cicatrizam bem e existe um risco muito maior
de infecção.
0
0 2 4 6 8 10 12 14 16

Dias pós ferida Embora a hipóxia venha a estimular a angiogêne-


se, esta etapa essencial no agrupamento de fibrilas de
Figura 8.4 Deposição da matriz ao longo da evolução.
colágeno ocorre de maneira deficiente quando a PO2
Fibronectina e colágeno tipo III constituem a matriz
inicial. Colágeno tipo I acumula-se mais tarde, e corre-
cai abaixo de 40 mmHg. Existe uma PO2 ideal para a
sponde ao aumento da resistência à ruptura da ferida. síntese de colágeno na periferia da ferida, enquanto o
centro permanece hipóxico.
€ Anemia – a anemia em um paciente normovo-
lêmico não é deletéria para o reparo de feridas
enquanto o hematócrito for superior a 15%,
Fatores clínicos que afetam porque o conteúdo de oxigênio no sangue não
afeta a síntese de colágeno na ferida. Todavia,
a cicatrização das feridas o aumento da PO2 até níveis sanguíneos mui-
to superiores a uma saturação de hemoglobina
€ Depleção proteica – compromete a cicatriza- de 100% permite que mais oxigênio se difunda
ção da ferida se a perda ponderal recente ul- para a borda da ferida relativamente pouco vas-
trapassar de 15 a 25% o peso corporal ha- cularizada, o que otimiza a síntese de colágeno.

SJT Residência Médica – 2016


122
Cirurgia geral e politrauma

€ Perfusão tecidual – é o fator determinante final € Homocistenúria: baixa perfusão tecidual por
da oxigenação e da nutrição das feridas. Para otimi- trombose.
zar o reparo das feridas, os fatores que provocam € Osteogenesis imperfecta: mutação dos genes
isquemia da ferida devem ser evitados. Os pontos
que codificam o colágeno tipo I.
de sutura não devem ser muito apertados. Deve-
-se manter o paciente aquecido, a dor deve ser bem
controlada para evitar vasoconstrição mediada por
catecolaminas e a hipovolemia deve ser corrigida.
€ Diabete melito – a cicatrização de feridas está Cuidados locais para
comprometida nos pacientes diabéticos por me-
canismos desconhecidos. Quando os níveis de
a obtenção de uma
glicose estão bem controlados, a cicatrização me-
lhora. A incidência elevada de feridas cutâneas
boa cicatriz
crônicas nesses pacientes está relacionada, ami-
úde, à combinação de neuropatia, vasculopatia, Feridas cirúrgicas oferecem sempre condições de
comprometimento das defesas do hospedeiro cicatrização mais favoráveis, pois a agressão tecidual é
contra infecção e distúrbios metabólicos. previsível, o local é escolhido e o paciente é geralmen-
€ Obesidade – a obesidade interfere no reparo inde- te preparado para a agressão, ao contrário das feridas
pendentemente do diabetes. Os pacientes obesos e que resultam de politrauma.
diabéticos apresentam cicatrização das feridas in- É sempre pertinente colocar a incisão acom-
satisfatória, a despeito do grau de controle da glice- panhando as linhas de tensão da pele que coin-
mia e da insulinoterapia. É provável que a perfusão cidem com a disposição predominante das fibras
insatisfatória das feridas e os restos adiposos ne- elásticas e colágenas da pele local, proporcionando
cróticos comprometam a cicatrização tanto em pa- assim maior tensão sobre suas extremidades e me-
cientes obesos diabéticos como em não diabéticos. nor tensão sobre suas bordas, resultando em me-
€ Corticosteroides – os esteroides comprometem lhor cicatrização.
a cicatrização, sobretudo quando administra-
dos nos 3 primeiros dias após o ferimento.
Substâncias nocivas, como nicotina e aspirina,
Os esteroides reduzem a reação inflamatória, a devem ser suspensas no pré-operatório. A aspirina
epitelização e a síntese de colágeno nas feridas. pode favorecer a ocorrência de seromas, de hemato-
mas e prejudicar o processo usual de cicatrização.
€ Quimioterapia e radioterapia – tanto a radia-
ção como os agentes quimioterápicos exercem Substâncias como buflomedil, manitol e alopuri-
seus efeitos principais nas células em divisão. A nol podem ser benéficas no processo de cicatrização.
divisão das células endoteliais, dos fibroblastos
Suturas subdérmicas (intradérmicas) devem ser
e dos ceratinócitos está comprometida no teci-
feitas com fios mais grossos, 4-0 ou 3-0, que deslizam
do irradiado, o que lentifica a cicatrização das
feridas. De modo geral, o tecido irradiado exibe melhor e não se rompem com facilidade. As profundas
alguma lesão residual das células endoteliais e geralmente são feitas com mononáilon preto.
endarterite, que provoca atrofia, fibrose e reparo
tecidual insatisfatório. Os agentes quimioterá-
picos não são administrados até pelo menos 5 a
7 dias após a operação, para evitar comprometi- Quanto aos curativos, seus
mento dos eventos iniciais da cicatrização.
objetivos são:
€ Infecção – a contaminação da ferida por bactérias
provoca infecção clínica e retarda a cicatrização se € Proteção.
mais de 10 micro-organismos/mg estiverem pre- € Compressão.
sentes. Antigamente, a resposta do hospedeiro à
€ Imobilização.
infecção localizada foi descrita como rubor, dor,
calor e tumor (eritema, dor, calor e tumefação). Por
conseguinte, as feridas infectadas são eritematosas A utilização de curativos visa a proteger as feri-
e doloridas e comumente apresentam drenagem. das do ambiente externo. Eles formam uma barreira
física que impede a entrada de agentes externos, re-
Síndromes associadas à disfunção da cicatrização: têm umidade e exsudação e reduzem a perda de calor.
€ Síndromes de Ehlers-Danlos: anormalidades As feridas limpas necessitam, habitualmente,
do tecido conjuntivo resultantes de defeitos apenas de uma cobertura com fina camada de gaze
inerentes de força, elasticidade, integridade e hidrófila, seca, que será mantida por cerca de 24 ho-
propriedades de cicatrização dos tecidos. Defei- ras. Após esse período, poderá ser deixada descoberta,
tos na síntese, no entrecruzamento ou na estru- pois em decorrência da epitelização já apresenta uma
tura do colágeno. barreira de proteção ao meio externo.

SJT Residência Médica – 2016


3
8 Cicatrização de feridas

Outra opção que pode ser utilizada é a cobertura mínima e em 24 a 48 horas a ferida já foi lacrada por
da ferida limpa, após suturada, com colódio elástico. epitélio, o que evitará a contaminação bacteriana. A
Esse tipo de curativo é especialmente indicado em contração da ferida apresenta papel pouco relevante
crianças, que por vezes tendem a retirar os curativos nesse tipo de cicatrização.
ou a tocar a ferida repetidamente. É o método habitualmente utilizado após opera-
No caso de feridas com secreções, deve-se utili- ções, especialmente nos casos de operações limpas. A
zar maior quantidade de gazes que devem ser trocadas aproximação das bordas poderá ser feita com pontos,
tantas vezes quanto necessário para se manterem lim- grampos ou mesmo tiras de adesivos que permitam o
pas. Para auxiliar na retirada de debris, devem ser uti- perfeito apropinquamento das bordas.
lizadas soluções de NaCl 0,9%; o uso de soluções antis-
sépticas está restrito à pele sadia em torno da ferida.

Cicatrização por segunda


intenção ou secundária
Quanto à retirada dos pontos Esse é o tipo de cicatrização que ocorrerá após
O tempo que a sutura deve ser mantida na ferida perdas de pele ou tecidos moles, em que os processos
é questão de julgamento. De um modo geral a maioria biológicos naturais se desenvolverão sem intervenção
dos serviços adotam as mesmas sugestões. cirúrgica. É o procedimento em que a ferida é deixa-
da aberta, e a contração é o fenômeno mais impor-
O suprimento sanguíneo à área suturada, a ten-
tante nesse tipo de cicatrização.
são e a mobilização a que está sujeita a ferida em razão
de sua localização, bem como a idade e as condições Essa opção é também utilizada nos casos de feri-
gerais do paciente, e também fatores cosméticos, to- das maciçamente infectadas, como nos casos de dre-
dos precisam ser considerados para esta escolha. nagem de abscessos e após grandes desbridamentos
de áreas necrosadas.
De modo geral, feridas na face desenvolverão
resistência suficiente em quatro a cinco dias (mé- A cicatrização por segunda intenção pode demo-
dia de 48 h para pálpebra), e as suturas poderão ser rar semanas ou meses, dependendo do local e do ta-
retiradas, diminuindo os efeitos cosméticos residuais. manho do defeito.
Feridas no dorso ou em membros necessitarão de su-
porte de pontos por mais tempo e podem ser manti-
dos por dez dias ou mais. As suturas no abdome ge-
ralmente são retiradas com seis a sete dias.
Cicatrização por terceira
Artifícios para se retirar mais precocemente os
pontos da ferida e melhorar seus efeitos cosméticos intenção ou primária
são a retirada intercalada dos pontos e a colocação de retardada
fitas adesivas apoiando a sutura. Os pontos intradér-
É aquela em que a correção cirúrgica se dá após
micos são, habitualmente, retirados com sete dias,
ou mais precocemente com a utilização de fitas ade- a formação de tecido de granulação. Ou seja, a ferida
sivas auxiliares para sustentação. é deixada aberta por um período e, então, o cirur-
gião promove a aproximação das bordas da lesão.
Encontra especial indicação nos casos de fecha-
mentos de incisões maciçamente contaminadas, que
podem acontecer após operações infectadas, em que
Tipos de cicatrização seu fechamento é protelado, dando tempo para que
as respostas inflamatórias e imunológicas do paciente
das feridas possam controlar a contaminação.
Como exemplo, podemos citar os casos de apen-
dicectomias com abscesso e contaminação grosseira
da ferida operatória. A ferida é, então, deixada aber-
Cicatrização por primeira ta, são realizados curativos, e, em torno do terceiro
ou quarto dia pós-operatório, caso não haja sinais de
intenção ou primária infecção, é, então, fechada. Caracteristicamente, esse
Esse tipo de cicatrização ocorre quando as bordas tipo de procedimento não interfere sobre a força e a
de uma ferida de espessura total são aproximadas logo resistência da ferida, que apresentará valores seme-
após a produção da lesão. A epitelização decorrente é lhantes às feridas fechadas por primeira intenção.

SJT Residência Médica – 2016


124
Cirurgia geral e politrauma

ação inflamatória prolongada e retardo na resolução


Queloides, cicatrizes da ferida com resultante reação inflamatória prolon-
gada e depósitos exagerados de fibras colágenas.
hipertróficas e cicatrizes
Alguns fatores de crescimento e outros pro-
retráteis dutos celulares têm sido implicados no estabeleci-
mento de cicatrizes hipertróficas e queloides, como
Falhas na remodelação das cicatrizes causadas TGFβ, EGF, FGF, PDGF, uma vez que esses produtos
por desequilíbrio entre a síntese e a degradação do estimulam a proliferação celular e a fibroplasia, com
colágeno, bem como alteração em sua organização consequente alteração na deposição e na reabsorção
espacial, têm como resultado cicatrizes exuberantes, do colágeno. Níveis elevados de fibronectina, detec-
denominadas hipertróficas ou queloides. tados em cicatrizes hipertróficas e queloides, podem
Os queloides representam o crescimento e a justificar o aumento da migração celular, uma vez que
extensão de tecido cicatricial para além dos limites esta funciona como um locorreceptor celular.
da ferida, em pessoas com predisposição familiar, e Apesar de semelhanças no aspecto clínico, há di-
que raramente regride espontaneamente. Cicatrizes ferenças histológicas e bioquímicas entre os dois tipos
hipertróficas são lesões fibróticas, elevadas, que de cicatrizes. Contrariamente à presença ordenada
respeitam os limites da ferida original e podem das fibras de colágeno na derme normal ou das fi-
apresentar resolução espontânea, ao menos parcial; bras finas e organizadas ao acaso nas cicatrizes
frequentemente, estão associadas à retração da ferida. hipertróficas, nos queloides as fibras de colágeno
apresentam-se organizadas como cordões disper-
sos em meio à matriz rica em ácido hialurônico e
glicosaminoglicanos sulfatados. Esses feixes estão
alinhados paralelamente à epiderme, enquanto na
Fisiopatogenia e fatores porção central do queloide se apresentam compacta-
de risco dos, com poucas células entremeadas. Em contraste,
nas cicatrizes hipertróficas, o material colageno-
Indivíduos jovens têm maior predisposição (10 so é mais fibrilar, sem uma orientação específica,
a 30 anos), com risco maior na segunda década) à for- e pode ser encontrado conformando nódulos que
mação de cicatrizes hipertróficas e queloides. É raro envolvem miofibroblastos. Os miofibroblastos não
em crianças com menos de 10 anos e em idosos. são detectados em queloides.
A incidência é maior nos extremos pigmenta- Ainda é controverso se os depósitos excessivos de
res cutâneos, sejam negros ou brancos. Os queloides colágeno nos queloides são decorrentes do aumento
também incidem mais em pacientes com pigmentação de sua produção, da menor degradação, ou de ambos.
cutânea acentuada (negros e orientais), de 2 a 20 ve- A principal causa parece ser o aumento da síntese do
zes, do que em indivíduos caucasianos. É controver- colágeno, corroborado pelo elevado número de fibro-
so se queloide é mais comum em mulheres (alguns blastos na periferia das cicatrizes e por níveis elevados
autores acreditam ser mais comum nesta população). de prolil-hidroxilase e RNAm intracelular, denotando
Alguns fatores podem contribuir para tal inci- elevado metabolismo celular. Mas há também dimi-
dência, como maior índice de traumas nessa faixa etá- nuição da reabsorção da matriz justificada por níveis
ria, maior turgor cutâneo no jovem e maior síntese de mais baixos de colagenase produzida pelos fibroblas-
colágeno. Pacientes que apresentam grave tendência à tos nos queloides.
formação de cicatrizes hipertróficas na infância e ado- Além da distribuição espacial anômala, as pro-
lescência podem deixar de ter essas manifestações na porções dos principais componentes da matriz extra-
idade adulta. Apesar de ter sido descrita a formação celular, como colágenos do tipo I, III, IV e V, além de
“espontânea” de queloide, com frequência seu apare- proteoglicanos (em especial sulfato de dermatano),
cimento estaria associado a trauma ocorrido muito também estão alteradas em comparação com a derme
tempo antes ou despercebido, por ser tão mínimo normal. Os queloides possuem concentrações mais
como uma picada de inseto ou uma foliculite isolada. elevadas de água, sódio, potássio, magnésio, cobre,
Fator importante que predispõe aos queloides fósforo, cálcio e ferro quando comparados com a
é genético. Outros fatores são a tensão excessiva na pele normal e com cicatrizes hipertróficas.
oclusão de feridas cirúrgicas, orientação das incisões As cicatrizes retráteis representam o encurta-
cirúrgicas contrárias às linhas de força da pele, fatores mento patológico do tecido cicatricial, resultando em
autoimunes justificados pela detecção aumentada de deformidades e disfunções. Podem ser tratadas com o
imunoglobulinas e complexos inflamatórios, anorma- uso de moldes de pressão. A liberação cirúrgica está in-
lidades no metabolismo do hormônio estimulador dicada nos casos de lesões refratárias ou que, por sua
de melanócitos, infecção da ferida com resultante re- localização, não permitam seu manuseio conservador.

SJT Residência Médica – 2016


3
8 Cicatrização de feridas

Quadro clínico
O queloide caracteriza-se por estender-se lateral-
mente para os tecidos adjacentes em relação ao ponto
de origem. Essa lesão pode ter crescimento contínuo
ou intermitente, com ausência de regressão signi-
ficativa e com tendência à recidiva após a ressecção.
Apresenta uma fase de atividade, exibindo sinais e
sintomas, e uma fase de inatividade ou estável, sem
a presença destes. Na fase de atividade, além de um
objetivo e gradativo crescimento, os sintomas mais
frequentes são o prurido (74%), a dor (19,1%), in-
fecção (1,5%) e a evolução para ulceração (0,6%).
Os lóbulos das orelhas e a região pré-esternal
são os locais mais frequentes, seguidos pela região
lateral da face, região mandibular e pescoço. Figura 8.5

Trata-se de uma lesão de comportamento impre-


visível, uma vez que pode desenvolver-se em segmentos
parciais de uma mesma cicatriz. Pode, também, surgir
num ferimento ou incisão e não em outros ferimentos
ou incisões ocasionados num mesmo acidente ou ato
operatório, em regiões corporais vizinhas ou distantes.
O queloide também pode ter um caráter temporal, pois
pode desenvolver-se num determinado local do corpo,
a partir de uma incisão cirúrgica e, futuramente, uma
nova incisão no mesmo local, ou imediatamente vizi-
nho, pode não desenvolver esse distúrbio cicatricial.
Regiões da pele com inserções de fibras musculares ou
com variações específicas na estrutura da camada dér-
mica, como a placa areolopapilar da mama, pênis, es-
croto e pálpebras, são raramente afetados por queloide,
por motivos ainda não esclarecidos.

Diagnóstico diferencial
clínico/histológico
O principal diagnóstico diferencial do queloide
a ser considerado é a cicatriz hipertrófica. Porém, al-
guns pesquisadores consideram o queloide e a cicatriz
hipertrófica como diferentes estágios de um mesmo
processo. Este fato poderia ser refletido pela dificul-
dade, às vezes existente, em diferenciar clinicamen-
te o queloide da cicatriz hipertrófica, onde apenas o
exame histopatológico pode fazer o diagnóstico. No
queloide as fibras colágenas ficam dispostas em
nódulos e de forma aleatória, estando entre-
meadas com abundante mucina e praticamen-
te com ausência de fibras elásticas, enquanto
na cicatriz hipertrófica as fibras se dispõem de
forma mais ordenada e formando feixes parale-
los. Porém, na periferia do queloide comumente ob-
servam-se fibrilas colágenas dispostas similarmente
a uma cicatriz normotrófica. O estudo histológico
do tecido queloideano revela abundante colá-

SJT Residência Médica – 2016


126
Cirurgia geral e politrauma

geno do tipo I (colágeno adulto) e uma proporção em relação à linha mediana. Sendo assim, qualquer
aumentada do colágeno tipo III (colágeno fetal). intervenção cirúrgica antes desse período seria preci-
Em queloides com 2 ou 3 anos de evolução não há pitada, com prejuízo na evolução natural do distúrbio.
mais um aumento significativo da produção de co- A injeção intralesional do corticosteroide ace-
lágeno. Os folículos pilosos e as glândulas sebáceas tonido de triancinolona, numa dose de até 40 mg
estão ausentes ou bastante diminuídas. por sessão, é um dos tratamentos mais empregados
Na microscopia eletrônica, os queloides apresen- no queloide, assim como para cicatrizes hipertrófi-
tam sinais de serem hipóxicos, como evidenciado pela cas pruriginosas e/ou dolorosas, tanto de forma iso-
exuberância da camada endotelial dos vasos sanguíneos. lada ou em associação a outra modalidade terapêuti-
ca. Preconiza-se a injeção intralesional mensal, a nível
Clinicamente, após alguns meses, a cica-
da derme papilar, de 10 mg por centímetro linear de
triz hipertrófica tende à regressão, enquan-
queloide do corticosteroide, por até 6 meses. A involu-
to o queloide aumenta suas dimensões ou as
ção do queloide, representada pela atenuação dos sinto-
mantêm inalteradas por tempo indeterminado.
mas de prurido, dor e aspecto hiperêmico, assim como
Outros diagnósticos diferenciais a serem considera-
de sua espessura, ocorreria pela diminuição da síntese
dos são os dermatofibromas e alguns casos de acne
de colágeno, que poderia ser resultante tanto de uma
queloideana. Cicatrizes hipertróficas, queloides e
hipoatividade dos fibroblastos, como de uma redução
dermatofibromas poderiam ser consideradas lesões
da sua densidade, ou de uma alteração da maturação
resultantes de formas diferentes dos fibroblastos re-
dessas células. Ainda, observou-se que esse corticoste-
agirem a ferimentos cutâneos.
roide provocaria uma diminuição de novos brotamen-
tos endoteliais a partir de vasos sanguíneos. Em relação
ao aumento da degradação do colágeno, o acetonido de
Tratamento triancinolona causaria uma diminuição acentuada da
alfa-1-antitripsina e da alfa-2-macroglobulina, que es-
A ressecção operatória da lesão, já se mostrou tão aumentadas no tecido queloideano, e são inibidores
ineficaz como método isolado. A exérese sem outra naturais da colagenase na pele humana.
associação terapêutica apresenta um índice de reci-
A associação da ressecção cirúrgica com a inje-
diva que varia de 45 a 100%. Atualmente, a melhor
ção intralesional de corticosteroide reduz o índice
opção de associação é a complementação por beta-
de recidiva para menos de 50%. Porém, os principais
terapia, após 24 a 48 h da excisão, com o intuito de
atenuar a fibroplasia. Utiliza-se, após 48 horas, a be-
efeitos colaterais locais são atrofia, despigmentação
taterapia com o estrôncio (90Sr), numa carga total de e telangiectasias da cicatriz tratada, principalmente
2.000 cGy na cicatriz de cada queloide ressecado, fra- depois de repetidas infiltrações. Alternativamente,
cionada em 10 sessões de 200 cGy em dias alternados. utiliza-se o acetonido de triancinolona de forma tópi-
O efeito adverso mais comum é a discromia da cica- ca, veiculado em pomadas ou cremes, como suporte
triz, geralmente representada pela hiperpigmentação. coadjuvante na prevenção ou regressão do queloide.
Outras modalidades de tratamento cirúrgico
É preferível ressecar uma lesão queloideano na
do queloide incluem a operação com laser de dióxido de
fase de inatividade. Nesse caso, a excisão do queloide
pode ser total e justalesional, ou seja, imediatamente carbono, argônio e de Nd:YAG, e a criocirurgia com ni-
na transição com a pele íntegra, com retirada do tecido trogênio líquido. Sob a forma de tratamento tópico, têm-
fibroso excedente, seguida de betaterapia. Se a lesão -se utilizado o 5-fluoruracil, tamoxifeno, ácido retinoico,
estiver em fase de atividade, é mais conveniente penicilamina, colchicina, tetraidroquinona, sulfato de
aguardar até a fase de inatividade para ressecá- destran, Madecassol (Centella asiática), beta-omino-pro-
-la. Enquanto isso, deve-se explicar detalhadamente prionitrilo, óxido de zinco e imiquidona a 5%.
ao paciente o motivo dessa espera e, se necessário, Menos conhecidos, porém relatados na literatura,
orientá-lo a utilizar outras medidas para amenizar o são tratamentos com interferon intralesional (IFNal-
desconforto, como aplicação tópica de cremes à base pha2b), radioterapia pós-operatória com banho de elé-
de corticosteroide, injeções intradérmicas dessa subs- trons, verapamil, 5-fluorouracil e mitomicina C tópica.
tância e compressão elástica. O uso de gel de extrato de cebola mostrou-se ineficiente
Ao contrário das cicatrizes queloideanas, para estatisticamente em relação a diminuição de prurido e
as quais a cirurgia é a primeira opção de tratamento, tamanho de cicatrizes hipertróficas quando comparado
principalmente na fase de inatividade clínica, nas ci- a placas de gel de silicone, tendo ação na melhora da cor
catrizes hipertróficas, como ocorre uma regressão da cicatriz. Há um relato na literatura do uso de enala-
temporal da lesão na maioria dos casos, a ressec- pril em dose baixa com efeito na regressão de queloides,
ção cirúrgica constitui-se numa opção de exceção. sendo relacionada à sua ação antifibrótica pulmonar,
As cicatrizes hipertróficas iniciam sua regressão a bem como sua conhecida ação na remodelação ventri-
partir do 8o mês, geralmente de forma centrípeta cular esquerda pós-infarto. Na prevenção em pacientes

SJT Residência Médica – 2016


3
8 Cicatrização de feridas

com história familiar, pode-se optar por métodos varia- A literatura mostra que nenhum método isolado
dos, sendo atualmente muito indicadas, pela facilidade é satisfatório e que a combinação de métodos é mais
de uso e baixo risco de efeitos adversos, placas de silico- eficaz. Porém, nenhuma dessas estratégias tem apro-
ne ou gel de silicone, usadas durante 12 a 24 horas por vação generalizada. Portanto, apesar das várias moda-
dia, pelo menos de 2 a 3 meses. lidades de tratamento e prevenção, o queloide ainda é
Atualmente, há estudos com inibidores de fa- um desafio.
tores de crescimento para suprimir a síntese de
colágeno tipo I. A interrupção de vias sinalizadoras
no processo de formação de queloides pode possibilitar
novas e promissoras estratégias terapêuticas. Estudos Cicatrização de tecidos
in vitro sugerem que a aspirina poderia inibir a prolife-
ração de fibroblastos mediante a inibição de TNF-alfa, especializados
podendo auxiliar no desenvolvimento de terapêuticas.

Nervos
Prevenção
O cérebro cicatriza principalmente pela forma-
As modalidades terapêuticas propostas até hoje ção de cicatrizes do tecido conjuntivo, em que célu-
são ainda bastante diversas, em, virtude da falta de las gliais e perivasculares parecem diferenciar-se em
compreensão da verdadeira fisiopatogenia do queloi-
fibroblastos. Quando um nervo periférico é seccio-
de. Em termos de profilaxia, há pouco disponível, me-
nado, sua parte distal degenera, deixando as bainhas
recendo destaque a compressão mecânica de uma
axônicas cicatrizarem por inosculação. O axônio se
ferida operatória recente em paciente com ten-
regenera, então, a partir da célula nervosa e através
dência a desenvolver queloide. A compressão deve
das bainhas reunidas, avançando até 1 mm/dia. In-
ser contínua, e pode ser exercida por vestes elásticas
felizmente, como as bainhas neurais individuais não
excedendo 24 mm/Hg, a qual reorientaria os feixes de
tém um meio de procurar sua extremidade distal ori-
fibras colágenas.
ginal, as bainhas axônicas unem-se ao acaso e axônios
Lâminas de silicone tem obtido um sucesso de nervos motores podem regenerar-se inutilmente
relativo no tratamento preventivo do queloide. numa bainha distal e órgão terminal de natureza sen-
Embora o mecanismo ainda não esteja completamen- sorial. O resultado funcional da regeneração neural
te esclarecido, cogita-se, em virtude de sua imperme- é, pois, mais satisfatório nos nervos periféricos mais
abilidade sobre o estrato córneo, numa contínua hi- puros e em nervos rejuntados por técnicas cirúrgicas
dratação cutânea, com redução da hiperemia e fibrose microscópicas. A descoberta do fator de crescimento
incipientes. Todavia, essas lâminas não seriam indi- nervoso e a natureza isquêmica e hipóxica das feridas
cadas sobre cicatrizes queloideanas (ou hipertróficas) sugerem que podem ser criados meios de melhorar a
inativas ou antigas. regeneração nervosa.

Intestino
A velocidade do reparo varia de uma parte do in-
testino a outra, proporcionalmente à vascularização. As
anastomoses do cólon e do esôfago são precárias e
propensas a deiscências, enquanto a deiscência nas
anastomoses do estômago ou do intestino delgado é
rara. As anastomoses intestinais em geral recuperam a
força rapidamente. Por volta de uma semana, elas resis-
tem mais fortemente à ruptura que o tecido mais nor-
mal circundante. Entretanto, o intestino circunvizinho
participa da reação à lesão, perde uma grande parte de
seu colágeno por lise e, por conseguinte, perde força.
Figura 8.6 Modelos de lâminas de silicone utilizados Por esta razão, a deiscência tem aproximadamente a
na prevenção do queloide. Existem modelos prontos mesma probabilidade de ocorrer a alguns milímetros
apropriados conforme o formato da cicatriz, como em da anastomose como na própria anastomose, especial-
mastoplastias redutoras, e tiras ou blocos para serem mente em locais de suturas ou grampos excessivamente
esculpidos conforme a necessidade. apertados. O desenvolvimento da força linear no intes-

SJT Residência Médica – 2016


128
Cirurgia geral e politrauma

tino ocorre aproximadamente à mesma velocidade da


pele, embora o estômago e o intestino delgado cicatri-
Ossos
zem um pouco mais rapidamente. A força de ruptura A cicatrização nos ossos depende principalmente
aumenta muito logo após a lesão, porque o edema e a da síntese do tecido conjuntivo. A cicatrização óssea,
enduração da ferida limitam a distensão do segmento, porém, também depende de um processo singular,
protegendo-o assim da ruptura. a condensação de cristais de hidroxiapatita em
pontos específicos sobre a fibra de colágeno, com
A urogastrona, um peptídio intestinal, pode mo-
um resultado final análogo ao concreto reforçado.
dular o reparo e também a rotatividade epitelial no in-
O longo período necessário para se chegar à plena for-
testino, o que talvez explique a rapidez do reparo em
ça nas fraturas em cicatrização é bem conhecido, mas
áreas onde ele não é limitado pela perfusão sanguínea.
não é efetivamente mais longo que aquele necessário
Qualquer evento que retarde a síntese do coláge- para o desenvolvimento da força integral nas feridas
no ou intensifique a lise do mesmo pode aumentar o em tecidos moles. A calcificação integral é tão im-
risco de perfuração e vazamento. O risco de vazamen- portante para o restabelecimento da força que a
to é maior do quarto ao sétimo dia, quando normal- cicatrização óssea parece ser protraída. A cicatriza-
mente se espera um rápido aumento da força tênsil. ção óssea também ilustra graficamente o processo de
Uma infecção local, que ocorre com frequência nas remodelagem descrito anteriormente para os tecidos
proximidades de anastomoses do esôfago e do cólon, moles. O grande calo observado após aproximadamen-
promove a lise e retarda a síntese, aumentando assim te um mês numa fratura em processo de cicatrização é
a probabilidade de uma perfuração. frequentemente remodelado, até que as chapas radio-
Embora o cirurgião vise a cicatrização primá- gráficas têm de ser examinadas com bastante cuidado
ria nas anastomoses, grande parte da cicatrização para se ver onde era a fratura. O efeito do estresse me-
ocorre efetivamente por segunda intenção. As anas- cânico sobre a cicatrização do tecido conjuntivo é ilus-
tomoses por inversão ou término terminais em ge- trado pelo fato de que, embora as extremidades ósseas
ral cicatrizam melhor que as evertidas. Uma técnica possam estar inicialmente mal alinhadas, o resultado
cirúrgica hábil tem maior probabilidade de promo- após meses de remodelagem mostra que o osso cicatri-
ver o reparo primário. zou segundo linhas de força normais.
As aderências são consideradas consequência O fato de o tecido em processo de cicatrização
quase que inevitável das cirurgias abdominais. Em- depositar osso em vez de tecido fibroso depende, em
bora sejam comuns, elas não são inevitáveis. Os estí- grande parte, da matriz extracelular local. O osso em
mulos mais fortes são tecidos isquêmicos (que atraem pó e o periósteo induz a formação de osso. Este efei-
um novo suprimento vascular que assume a forma de to tem um grande valor clínico na cirurgia craniana e
aderências vascularizadas) e granulomas – ninhos de na ortopedia, mas também pode ser responsável pelo
macrófagos que destroem bactérias, corpos estranhos desagradável problema de ossificação das feridas ab-
e tecido morto, sendo assim ativados de modo a gerar dominais, em que a cartilagem xifoide é seccionada.
um processo fibrótico. Defeitos peritoneais simples O reparo ósseo é muito semelhante ao reparo dos
não são suficientes para ocasionar aderências, mas, tecidos moles. Os ossos cicatrizam por intenção pri-
quando se somam traumatismos, grandes defeitos, mária e secundária. Quando cortados com uma serra
infecções, isquemia ou corpos estranhos, o processo de diamante resfriada, as extremidades ósseas podem
torna-se mais intenso. Traumatismos e inflamações ser precisamente reunidas e cicatrizam bem, com pou-
suscitam vazamentos de plasma e depósitos de fibri- ca formação de calos ósseos. As fraturas cominutivas,
na. Quando permanece, a fibrina aumenta o volume ao contrário, podem cicatrizar com um calo exuberan-
de tecido isquêmico. O peritônio normalmente pro- te e extenso, que é o equivalente da saliência de cica-
duz o ativador do plasminogênio, que leva rapida- trização na ferida de um tecido mole.
mente à lise da fibrina. Um ativador do plasminogênio As fraturas produzem as mesmas sequências bio-
exógeno tem diminuído a ocorrência de aderências em químicas amplificadoras das lesões dos tecidos moles.
condições experimentais. Entretanto, sob a influência da matriz extracelular e
As tentativas de impedir aderências pela sutu- talvez devido a uma substância denominada proteína
ra de defeitos peritoneais em geral agravam o pro- morfométrica óssea, os fibroblastos tornam-se osteo-
blema causando uma isquemia local e granulomas blastos e os macrófagos tornam-se osteoclastos, em-
das suturas. O pó de amido utilizado em muitas bora não se saiba porque os osteoclastos permanecem
luvas cirúrgicas foi um grande avanço em relação tão proeminentes no metabolismo ósseo. A angiogê-
ao talco, mas já foram bem documentadas graves nese é basicamente a mesma nas fraturas e nos tecidos
reações inflamatórias peritoneais (bem como peri- moles. Ao cruzarem as extremidades ósseas os vasos
cárdicas, pleurais e meníngeas) devidas ao amido e novos são precedidos de osteoclastos, assim como fa-
ocasionando aderências. zem os macrófagos no reparo dos tecidos moles. Esta

SJT Residência Médica – 2016


3
8 Cicatrização de feridas

unidade é denominada um “cone de corte”, porque Os fios de sutura sintéticos não absorvíveis (nái-
ela literalmente corta seu caminho através do osso no lon, polipropileno) suscitam menor reação inflamatória
processo de ligação a outros vasos. que os fios orgânicos naturais (sedas, algodão). Além
disto, os fios sintéticos por não apresentarem capilari-
O osso é tão resistente que concentra o movimen-
dade podem permanecer por um tempo major no orga-
to numa pequena área e os delicados tecidos em proces-
nismo. De outro lado, os fios de sutura constituem-se
so de cicatrização têm de ser imobilizados para se evi-
em corpos estranhos e tendem a ser naturalmente ex-
tarem o rompimento dos vasos e a consequente união
pulsos do organismo em torno do 14° dia de pós-opera-
fibrosa ou ausência de união. Entretanto, numa peque-
tório e, os pontos separados, englobando pele e tecido
na tração oscilante repetida (uma fração de milímetro) celular do subcutâneo, tornam-se cortantes Para a pele.
estimula e acelera a formação do calo. Se as extremida-
des ósseas fraturadas forem cuidadosa e continuamen- Assim, quando os pontos forem separados, estes
te tracionadas – uma fração de milímetro por dia –, um devem ser retirados entre o sexto e sétimo dia de pós-
osso longo pode ser significativamente alongado. -operatório.
Deve-se enfatizar que os pontos dados na pele
O reparo ósseo também é altamente dependente
constituem a última etapa da cirurgia. O fechamen-
da perfusão e da oxigenação e a osteomielite ocorre
to adequado dos planos anteriores, como aponeurose
mais frequentemente em fragmentos ósseos isquê-
e musculatura, já propiciam em si uma aproximação
micos. A hiperoxigenação acelera a cicatrização das
adequada da pele. Em consequência deste fato, os pon-
fraturas e ajuda na cura da osteomielite. Uma hipoxia
tos dados na pele ficarão submetidos a menor tensão
aguda ou crônica lentifica o reparo ósseo. com benefício para o aspecto estético da cicatrização.
Diferentes tipos de osso têm diferentes modos Quando as incisões são paralelas às linhas de for-
de reparo. Os ossos chatos cicatrizam pela formação ca da pele (linhas de Langer e Kraisal), os pontos po-
de tecido fibroso e a calcificação subsequente. O osso dem ser retirados no quarto dia de pós-operatório. Em
cortical cicatriza pela formação de um calo (ou seja, casos de sutura intradérmica com o fio sintético não
por meio de uma fase cartilaginosa intermediária). absorvível os pontos podem permanecer até o 12º PO.
Os grampeadores mecânicos para o fechamento
da pele apresentam a vantagem de ser tecnicamen-
te mais rápidos e simplificados que a sutura manual,
além de propiciar pouca reação inflamatória, por uti-
Retirada de pontos lizar grampos constituídos de aço. Em se tratando de
tecnologia que diminui o tempo cirúrgico e, conse-
A retiradas de pontos deve obedecer aos seguin- quentemente, o ato anestésico, a sua utilização deve
tes critérios: ser considerada para incisões extensas. Em outras
€ tipo de fio de sutura: sintético ou orgânico não situações deve ser analisada a relação custo/benefí-
absorvível; cio, para que esta tecnologia possa ser incorporada
na rotina cirúrgica sem maiores gastos ao paciente.
€ tipo de pontos: separado ou intradérmico con-
O princípio de retirada dos pontos dos grampeadores
tínuo;
mecânicos obedece ao principio da retirada dos pon-
€ tipo profundidade e extensão da incisão, e se tos separados feitos manualmente.
paralela ou perpendicular as linhas de forcas Nas adversidades como infecção e desnutrição,
naturais do organismo; os pontos devem ser retirados mais tardiamente, isto
€ condições adversas: infecção, hipoproteinemia, é, entre o 10° e 12° dia de pós-operatório, principal-
neoplasias, diabetes, deficits de vitaminas, oli- mente quando as incisões são perpendiculares às li-
goelementos, AINE, entre outras. nhas de força.

Não é o diploma médico, mas a qualidade humana, o decisivo.


– Carl Gustav Jung

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

9
Abdome agudo

módulos da clínica cirúrgica. Leia com carinho e aten-


Introdução ção este capítulo, ao final você terá assimilado infor-
mações nobres para as provas de RM.
“A regra geral para o abdome agudo são: pa-
cientes que estavam previamente bem e iniciaram
quadro com dor abdominal contínua por mais de
seis horas (dor de importância cirúrgica)”.
Sir Zachary Cope (1881-1974) Classi昀椀cação
Define-se abdome agudo como a entidade abdo- Embora, com frequência, observa-se sobrepo-
minal de acometimento agudo (menos de uma sema- sição de aspectos clínicos e fisiopatológicos na maior
na de duração), geralmente doloroso, com anormali- parte dos casos de abdome agudo, o quadro predomi-
dade na peristalse, e que nos obriga a um diagnóstico nante nos permite adotar uma classificação etiológica.
precoce e à terapêutica de urgência. Alguns autores classificam o abdome agudo traumáti-
co ou, ainda, o incluem como um subtipo de síndrome
Embora os sinais e sintomas possam, em geral,
hemorrágica.
ser agudos, a lesão subjacente nem sempre é aguda.
Vale lembrar que, abdome agudo não quer dizer,
necessariamente, abdome agudo cirúrgico (por 1) Inflamatório*: apendicite aguda, colecistite aguda,
exemplo, cetoacidose diabética). pancreatite aguda, diverticulite, doença inflamatória
pélvica, abscessos intracavitários, peritonites primá-
O diagnóstico exato pode não ser detectado até a rias e secundárias, febre do Mediterrâneo, adenite me-
realização da cirurgia e, por vezes, a causa exata do ab- sentérica e tiflite.
dome agudo não é esclarecida mesmo nesse momento. 2) Perfurante: úlcera péptica, câncer gastrointesti-
nal, febre tifoide, diverticulite, doença de Crohn.
O propósito deste capítulo é fazer uma aborda- 3) Obstrutivo: obstrução pilórica, hérnia estrangu-
gem de cunho generalista, deixando as particularida- lada, bridas, áscaris, corpos estranhos, cálculo biliar,
des de cada grupo de abdome agudo para os próximos volvo, intussuscepção, ílio adinâmico.
131
9 Abdome agudo

4) Hemorrágico: gravidez ectópica, rotura de aneu- tosos. É desencadeada sempre que se aumenta a tensão
risma abdominal, cisto hemorrágico de ovário, rotura da parede da víscera, seja por distensão, inflamação, is-
de baço, endometriose, necrose tumoral. quemia ou contração exagerada da musculatura.
5) Vascular: trombose da artéria mesentérica, torção
do grande momento, torção do pedículo de cisto ova- A dor visceral é uma sensação dolorosa pro-
riano, infarto esplênico. funda, surda e mal localizada, de início gradual e de
Tabela 9.1 Classificação do abdome agudo não longa duração. Ao contrário da dor somática, a dor
traumático de origem abdominal, segundo a natureza visceral é causada quase unicamente por distensão ou
do processo determinante. estiramento dos órgãos.
É sentida na linha mediana do abdome em vir-
*O tipo inflamatório é o mais comum e a apendici- tude de a inervação sensorial ser bilateral; exceções
te corresponde à causa mais comum de abdome agudo. são as vísceras duplas como rins e ureteres e anexos
uterinos onde a dor tende a ser do lado afetado, pois,
nestes casos, as vias nervosas são unilaterais.
A sensação de dor é projetada em diferentes ní-
Anamnese veis da parede abdominal, desde o epigástrio até o hi-
pogástrio, na dependência da origem embriológica da
Os dados de identificação do paciente quanto ao víscera afetada (Atenção!):
sexo, idade e procedência oferecem informações de
grande importância em razão da existência de doenças Intestino primitivo superior (foregut – da boca à papila
mais comuns ligadas ao sexo e idade, por exemplo, a de Vater) = dor referida no epigástrio.
intussuscepção nos climas temperados, que ocorre ge- Intestino primitivo médio (midgut – da papila de Vater
ralmente em crianças com idade inferior a dois anos. à metade do cólon transverso) = dor referida no meso-
gástrio.
A apendicite, que é menos frequente na infância,
Intestino primitivo inferior (hindgut – do transverso
é mais comum em jovens adolescentes. A obstrução
até metade do ânus) = dor referida no hipogástrio.
do intestino grosso, por uma estenose maligna, rara-
mente é vista antes dos 30 anos, mas é a causa mais A dor visceral é sempre a primeira manifestação
comum de obstrução intestinal (ID) em pessoas com de doença intra-abdominal, sendo, com frequência,
mais de 50 anos. Existem também doenças endêmicas resultante de alterações da motilidade de vísceras ocas
relacionadas à procedência, como um quadro obstruti- (cólica intestinal, uretral, biliar), em especial quando
vo intestinal baixo em paciente originário de área en- secundária a gastroenterocolites agudas.
dêmica de doença de Chagas, caracterizando suspeita
de volvo (torção de víscera oca em torno do seu eixo de
pelo menos 180o) do sigmoide.

Dor abdominal Epigástrio Estômago, duodeno,


hepatobiliar e pâncreas
A dor abdominal é fundamental para o diagnós-
tico, sendo comumente a queixa principal. Costuma ter Intestino delgado,
Periumbilical
como sintomas associados: anorexia, náuseas e vômitos, apêndice, cólon direito
distensão abdominal, parada de eliminação de gases e fe- Cólon, renal,
Suprapúbica
zes. Além disso, pode ser acompanhada de manifestações ginecológica,
específicas que se originam na víscera ou órgão de deter- apêndice
minado sistema, como icterícia, hemorragia digestiva, he-
Figura 9.1 Localização da dor visceral.
matúria ou corrimento genital, e de sintomas gerais como
febre, sensação de fraqueza ou perda de consciência.
Atenção: dor visceral + dor somática (parietal) = sus-
Costuma-se distinguir três tipos fundamentais peita de abdome agudo.
de dor abdominal: a visceral, a parietal (visceroperito-
neal) e a dor referida.
Dor parietal ou somática
A dor parietal, também denominada visceroperi-
Dor visceral toneal ou mesmo somática, é mediada por receptores
É mediada por fibras aferentes do sistema nervoso ligados a nervos somáticos existentes no peritônio
autônomo (SNA), cujos receptores se localizam na pare- parietal e raiz do meso (dobra de peritônio que liga
de das vísceras ocas e na cápsula de órgãos parenquima- uma alça intestinal à parede com vasos no seu interior).

SJT Residência Médica – 2016


132
Cirurgia geral e politrauma

Sua distribuição cutânea é unilateral e corres- € Centro tendíneo do diafragma – ar, sangue,
pondente à área inervada pelo nervo cerebrospinal suco gástrico ou pus → a dor se localizará na re-
estimulado; como o peritônio é inervado pelas raízes gião cervical e ombro cuja inervação é realizada
nervosas provenientes de T6 a L1, a dor é percebida pelos nervos cervicais originários das mesmas
em um dos quatro quadrantes do abdome (superior raízes nervosas que o nervo frênico (C3, C4, C5);
e inferior, direito e esquerdo). A dor parietal é pro- € Periferia diafragmática – dor na parede ab-
vocada por estímulos mais intensos resultantes do dominal, no território dependente dos nervos
processo inflamatório (edema e congestão vascular). intercostais.
A sensação dolorosa é aguda, em pontada, melhor
localizada e mais constante; associa-se à rigidez mus- Dor referida
cular e à paralisia intestinal. A dor somática pode ser
provocada pela compressão manual da parede abdo- Pancreatite aguda
minal, levando o paciente a contrair voluntariamente Colescistite Dorso Dorso ou flanco
a musculatura desse local, como defesa muscular. A aguda
Ruptura de
Cólica ureteral
compressão do local e a brusca retirada da mão pro- Aneurisma
movem a exacerbação da dor (sinal de descompressão
brusca dolorosa positiva). Esse é o “DB +”.
A contratura muscular involuntária é conse- Apendicite Úlcera perfurada
quente ao reflexo espinhal que se origina nas termi-
nações nervosas subperitoneais, provocado pela infla-
Dor deslocada
mação do peritônio. Quando o processo é localizado,
a contratura muscular ocorre no mesmo metâmero Figura 9.2 Localização da dor referida.
inervado pelos mesmos nervos somáticos do segmen-
to de peritônio comprometido. Quando o processo in-
flamatório atinge todo o peritônio parietal, como na
peritonite química por úlcera péptica perfurada, toda Níveis sensitivos associados a estruturas viscerais
a musculatura abdominal se contrai. É o que se deno- Estruturas Vias do sistema nervoso Nível
mina “abdome em tábua”. sensitivo
Fígado, baço e Nervo frênico. C3-5
parte central do
Dor referida diafragma.
É transmitida pela via visceral, propriamente Diafragma peri- Plexo celíaco e nervo T6-9
dita, que leva à percepção da sensação dolorosa em re- férico, estômago, esplâncnico maior.
pâncreas,
giões distantes do órgão de origem da dor no ponto do
vesícula biliar e
segmento medular onde se insere no corno posterior
intestino delgado.
da medula. É sentida como se fosse superficial, porque
Apêndice, cólon e Plexo mesentérico e nervo T10-11
esta via faz sinapse na medula espinhal com alguns vísceras pélvicas. esplâncnico menor.
dos mesmos neurônios de segunda ordem que rece- Cólon sigmoide, Nervo esplâncnico mínimo. T11 –L1
bem fibras de dor da pele. Assim, quando as viscerais reto, rins, ureteres
para a dor são estimuladas, os sinais de dor das vísce- e testículos
ras são conduzidos por pelo menos alguns dos mes- Bexiga e Plexo hipogástrico. S2-4
mos neurônios que conduzem sinais de dor proceden- retossigmoide.
tes da pele. Frequentemente, a dor visceral referida é Tabela 9.2
sentida no segmento dermatotópico do qual o órgão
visceral se originou embriologicamente. Isso se expli-
ca pela área que primeiro codificou a sensação de dor
no córtex cerebral. Um exemplo seria o caso do infarto Irradiação da dor
do miocárdio, em que a dor é sentida na superfície do É frequentemente diagnóstica, principalmente
ombro e face interna do braço esquerdo. Outro caso é nas cólicas em que a dor se irradia para as áreas de dis-
a cólica de origem renal, na qual é comum o paciente tribuição dos nervos provenientes daquele segmento
referir dor na face interna da coxa. da medula que supre a região afetada:
Pode ocorrer por estímulo direto de fibras nervo- € Cólica biliar – dor irradiada do hipocôndrio
sas somáticas que se originam em níveis superiores da direito para zona inferior à ponta da escápula
medula espinhal. É o que ocorre, por exemplo, no dia- direita (oitavo segmento dorsal); a cólica biliar
fragma, que tem dupla inervação somática por causa pode inibir os movimentos do diafragma e a dor
de sua origem embriológica: pode aumentar por uma respiração forçada.

SJT Residência Médica – 2016


133
9 Abdome agudo

€ Cólica renal – dor no dorso irradiada para tes- favor de uma gastrenterite. Exceção a essa regra pode
tículo (grandes lábios) do mesmo lado. ser a apendicite em crianças, em que nem sempre o
€ Dor pleural – piora durante uma inspiração quadro é típico.
profunda e é reduzida ou abolida durante as O reflexo do vômito é desencadeado após os cen-
pausas respiratórias. tros medulares do vômito terem sido estimulados por
impulsos conduzidos pelas fibras nervosas aferentes
do SNA. Os vômitos são responsáveis pelo alívio tem-
Características da dor abdominal porário da dor.
As principais causas de dor de início súbito Nas obstruções intestinais, os vômitos são de
são: a perfuração de vísceras ocas em peritônio livre, início reflexos, e, por esse motivo, o material expeli-
a rotura do aneurisma da aorta e seus ramos, a isque- do apresenta características de suco gástrico ou tem
mia mesentérica e outros menos graves, como a cólica restos alimentares. Com o passar do tempo, os vômi-
biliar e a cólica ureteral. tos tornam-se biliosos e, posteriormente, fecaloides,
Nas perfurações de vísceras ocas, a intensida-
por causa da regurgitação do conteúdo intestinal que,
de da dor diminui progressivamente, após a per-
impedido de prosseguir, reflui para o estômago. Nas
peritonites químicas (suco gástrico, bile, sangue ou
furação; quando há sangramento intraperitoneal, a
urina) ou bacterianas secundárias (perfuração de vís-
intensidade da dor e do choque que se seguem é pro-
ceras ocas ou rotura de abscessos), as náuseas e vô-
gressiva. O grau de dor abdominal e de defesa muscu- mitos são secundários ao íleo adinâmico que se segue.
lar depende do comprometimento peritoneal, sendo
intensa na víscera perfurada e pouco expressiva, pelo Além das características do conteúdo, a intensi-
menos inicialmente, na isquemia mesentérica. dade e a frequência dos vômitos são importantes no
diagnóstico diferencial dos processos obstrutivos intes-
Assim, o abdome agudo cujo início é rápido e tinais, sendo mais intensos e frequentes quanto mais
a dor é de grande intensidade precisa de uma inter- proximais for a obstrução. Por essa razão, decorre o
venção mais rápida. A dor de início rápido, que au- maior grau de desidratação e hipovolemia observado
menta de intensidade em minutos, é característica nas obstruções mecânicas altas, ocorrendo tam-
de processo inflamatório como pancreatite aguda, bém perda de íons (hidrogênio e cloro das secreções
mas também é observada em outras afecções não gástricas e sódio e bicarbonato das secreções duodenais
menos graves como prenhez ectópica rota e isque- perdidas), o que determina com maior facilidade a
mia mesentérica. frequência de desvios do equilíbrio acidobásico (al-
As afecções que cursam com dor gradual e con- calose metabólica hipoclorêmica, hipocalêmica).
tínua evoluem lentamente antes que ocorram graves Nas obstruções baixas (delgado distal e có-
complicações. Neste grupo, encontram-se as afecções lon), os vômitos são tardios, geralmente fecaloides
inflamatórias e/ou infecciosas, as mais frequente- e acompanhados em longo prazo de hipovolemia,
mente encontradas no abdome agudo, como apen- sem distúrbios acidobásicos, e quando este ocorre,
dicite aguda, colecistite aguda, a salpingite aguda o esperado é acidose metabólica.
e a linfadenite mesentérica.

Dor abdominal difusa – diagnóstico diferencial


Parada de eliminação de
Peritonite
Pancreatite aguda gases e fezes
Crise falcêmica A adnamia do tubo digestivo (íleo) é consequente
Apendicite em fase inicial ao reflexo inibidor de sua motilidade, desencadeado pela
Trombose mesentérica estimulação de fibras nervosas sensitivas viscerais e do
Gastrenterite peritônio, cujas vias eferentes são fibras simpáticas.
Dissecção ou ruptura de aneurisma aórtico Esse mesmo reflexo pode ser desencadeado por
ID estímulos extraperitoneais (cólica nefrética) ou extra-
Diabetes melito descompensado -abdominais (afecções pleuropulmonares basais ou
Tabela 9.3 mesmo fratura de costelas). Como resultado desse re-
flexo, não há eliminação de gases ou fezes e o abdome
progressivamente se distende.
Nos processos obstrutivos mecânicos intesti-
nais, o obstáculo, em determinada altura do tubo di-
Náuseas e vômitos gestivo, dificulta ou impede o trânsito intestinal.
No abdome agudo as náuseas e vômitos costu- Nas obstruções mecânicas parciais, como: hérnia
mam ocorrer após a dor abdominal. Caso o primeiro de Richter (hérnia com pinçamento lateral da alça
sintoma tenha sido vômito, isso indica fortemente a intestinal), aderências pós-operatórias imediatas (bri-

SJT Residência Médica – 2016


134
Cirurgia geral e politrauma

das) ou neoplasias suboclusivas dos cólons há passa- Nas mulheres, a pesquisa sobre o ciclo mens-
gem de gases e conteúdo intestinal, o que também pode trual também é muito importante, possibilitando um
ocorrer nas obstruções totais pela eliminação de gases e diagnóstico diferencial de ginecopatias agudas como
do conteúdo fecal a jusante (distal) do obstáculo. prenhez ectópica, ovulação dolorosa (dor do meio
Nessas circunstâncias, pode ocorrer a diarreia pa- do ciclo ou “Mittelschmerz”) e endometriose. Deve-
radoxal, que é a eliminação pelo ânus de muco e conteú- mos questionar a paciente sobre o uso de anticoncep-
do intraluminal previamente coletado a jusante do obs- cionais, por causa da sua implicação na formação de
táculo. A presença de diarreia não exclui obstrução! adenomas hepáticos e do infarto venoso mesentérico.
Após afastar qualquer hipótese de atraso menstrual
A diarreia abundante, com fezes líquidas, é ca-
ou gravidez, devemos solicitar exames radiográficos.
racterística das gastroenterocolites e outras afecções
não cirúrgicas. Entretanto, vários episódios com
pouca quantidade de fezes diarreicas por dia podem
levantar a suspeita de abscesso intra-abdominal.
Exame físico
O exame deve ser completo e sistematizado, investi-
Sintomas específicos gando-se todos os órgãos e sistemas, em especial o tórax, o
exame do aparelho genital feminino e o exame proctológi-
Os sintomas específicos são úteis para a locali-
co. Deve-se observar e descrever a dor, pois, muitas vezes,
zação da afecção responsável pelo abdome agudo. A
é por meio dela que se descobre o problema.
icterícia sugere doença hepatobiliar. A hematêmese e
melena denunciam a doença gastroduodenal; a hema- As afecções que determinam quadro de abdome
toquezia (às vezes) e a eliminação pelo ânus de restos agudo rapidamente progressivo e grave costumam ser
necróticos são características de colite isquêmica agu- acompanhadas de manifestações sistêmicas como:
da; a hematúria sugere a passagem de cálculo uretral palidez acentuada, taquicardia, taquipneia, sudorese
ou cistite. O corrimento vaginal purulento relaciona- fria, sugerindo grave peritonite ou hemorragia intra-
-se com a moléstia inflamatória pélvica. peritoneal por rotura de prenhez ectópica ou de aneu-
risma de aorta abdominal.
A febre é uma manifestação comum e de elevada
importância para o diagnóstico. A temperatura costu-
Antecedentes ma ter discreta elevação, entre 37,5 º a 38 ºC, nas fases
Algumas manifestações clínicas pregressas, bem iniciais de afecções inflamatório-infecciosas (apendicite
como exames complementares realizados também po- aguda, colecistite aguda, pancreatite aguda), mas pode
dem nos auxiliar no diagnóstico. Assim, a úlcera pépti- ser elevada (39º a 40 ºC) na moléstia inflamatória pélvi-
ca, previamente conhecida, pode reforçar um diagnós- ca aguda (MIPA), ou em infecções graves como perito-
tico de úlcera péptica perfurada. nites purulentas ou colangite supurativa, que são acom-
panhadas de manifestações sistêmicas como calafrios e
A colecistite calculosa sintomática ou quando
toxemia e podem evoluir para choque séptico.
reconhecida por ultrassom (US) pode reforçar o diag-
nóstico de colecistite aguda ou pancreatite aguda.
Casos de melena e mudanças do hábito intesti-
nal em pacientes com manifestações de obstrução do Exame do abdome
cólon nos orientam sobre uma possível obstrução ne- Deve ser realizado com o paciente em decúbito
oplásica, assim como uma operação ginecológica ou dorsal, na posição anatômica e de maneira confortá-
apendicectomia prévia em doente com obstrução in- vel, com exposição total do abdome, incluindo a face
testinal (ID) sugerem bridas ou aderências. anterior do tórax e das regiões inguinocrurais.
Alterando a sequência tradicional do exame
Bridas são a causa mais comum de obstrução físico, recomenda-se iniciar a avaliação pela ins-
intestinal (ID) no adulto! peção, posteriormente, ausculta e percussão e, por
A causa mais comum de ID em idoso ainda é a neopla- fim, a palpação. Isto se impõe porque, muitas vezes,
sia (IG). Já a causa mais comum de ID em indivíduo > ao executarmos a palpação, a contratura da parede ab-
70 anos com colelitíase é o ÍLEO BILIAR! dominal pode agravar-se, dificultando a sequência da
avaliação, além de também poder ser alterada a peris-
talse, por meio do estímulo provocado pela palpação.
O uso de drogas associadas pode ser uma pista
para o diagnóstico. Anticoagulantes podem causar A ausculta deve ser realizada antes da palpação,
hematomas retroperitoneais ou mesmo hematoma pois esta pode modificar o caráter dos sons intesti-
em bainha do reto abdominal. nais. Após o aquecimento do diafragma do estetos-

SJT Residência Médica – 2016


135
9 Abdome agudo

cópio, inicia-se a ausculta pelo quadrante inferior Sinal de Blumberg: é DB + no ponto de McBur-
esquerdo, seguindo-se os outros três quadrantes. ney (a meio caminho entre espinha ilíaca anterossu-
Recomenda-se um tempo mínimo de três minutos perior e cicatriz umbilical), que sugere irritação peri-
antes de definirmos um estado de aperistalse. toneal clássica da apendicite aguda.
Sons metálicos de alta intensidade podem Sinal de Halban: percussão ou palpação cada vez
corresponder a uma “peristalse de luta”, observada mais dolorosa, conforme se progride da fossa ilíaca até o
na fase precoce da obstrução intestinal mecânica. hipogástrio. Observado nas patologias ginecológicas.
A defesa abdominal deve ser pesquisada colocan- Sinal de Rovsing: é o sinal da mobilização
das massas de ar; palpação do cólon esquerdo com mo-
do-se ambas as mãos sobre o abdome, comprimindo-o
bilização do ar em direção do apêndice. A distensão do
delicada e comparativamente. Caso a contração mus- ceco e apêndice ocasiona exacerbação da dor em FID. É
cular seja voluntária, recomendam-se manobras para encontrado na apendicite.
distrair o paciente. A dor à palpação é um dos sinais
Sinal do ileopsoas: dor à elevação e extensão
mais importantes do abdome agudo e, além da defesa
do membro inferior, quando o doente se encontra em
muscular, denota também inflamação do peritônio. posição de decúbito dorsal. Pesquisado nos quadros de
É bem localizada em algumas doenças como: co- apendicite retrocecal.
lecistite aguda, apendicite aguda, MIPA e na peridiver- Sinal do obturador: é a rotação do quadril
ticulite colônica. A dor costuma se acentuar quando a fletido. Se existir inflamação/massa aderente à fáscia
mão que comprime o abdome é retirada bruscamente do músculo obturador interno, a realização da rotação
(DB+). Na contratura muscular, o abdome é tenso, não interna da coxa fletida em decúbito dorsal resulta em
depressível, e sua palpação provoca muita dor. Esta dor hipogástrica. Pode ocorrer nos quadros de apendi-
dor não acompanhada de defesa muscular pode estar cite aguda – apêndice pélvico.
associada às gastroenterocolites ou outras afecções Sinal de Lennander: é a diferença de tempera-
abdominais sem comprometimento peritoneal. tura retal x axilar > 1 grau Celsius, sugerindo abdome
agudo inflamatório. Entretanto, não é específico de
Na palpação podemos surpreender a presença de apendicite, podendo ocorrer em isquemia mesentérica.
tumores ou visceromegalias, como vesícula palpável e
Sinal de Jobert: timpanismo pré-hepático; é
dolorosa na colecistite aguda ou um plastrão fixo na
o desaparecimento da macicez hepática nos grandes
fossa ilíaca direita (FID), de consistência firme, dolo- pneumoperitônios. A percussão com som timpânico
roso na apendicite. tem valor quando realizada na face lateral do hipocôn-
drio direito.
Sinal de Giordano: punho-percussão doloro-
Sinais físicos relevantes sa das regiões lombares. Sugestiva de quadros de in-
Na obstrução por fecaloma é possível palpar massa fecções do trato urinário.
volumosa, de localização variável no abdome, geralmente Manchas equimóticas periumbilicais (sinal
hipogástrica, e que à palpação é moldável, apresentando a de Cullen) ou nos flancos (sinal de Gray Turner)
sensação tátil de descolamento, quando a pressão exercida sugerem a hipótese de hemoperitônio, em especial
sobre a mesma é relaxada (sinal de Gersuny). relacionado com pancreatite aguda necrosante.
Renitência: esse é um reflexo desencadeado Sinal de Kehr: dor referida na região da articu-
pela palpação, e pode ser voluntário ou involuntário. lação do ombro, resultante de inflamação aguda da
A renitência involuntária é uma resposta proteto- superfície inferior do diafragma homolateral, po-
ra, mediada pela medula espinhal na presença de dendo fazer suspeitar de úlcera péptica perfurada, ro-
peritonite. Renitência voluntária é conscientemen- tura esplênica, colecistite aguda supurada ou abscesso
te mediada pelo paciente. O reflexo voluntário pode hepático com peritonite local.
tornar o exame particularmente difícil, podendo ser
necessário distrair o paciente.
Sinal de Fothergill: a renitência a palpação pro-
funda é reduzida pela contração ativa da parede abdo-
minal anterior (pela elevação da cabeça do leito), simu-
lando a renitência voluntária. Isto ajuda a estabelecer
distinção entre dores abdominais causadas pela parede
abdominal e intra-abdominal. O paciente com patologia
intra-abdominal deve apresentar menos dor à palpação.
Sinal de Murphy: observado nas colecisti-
tes agudas. É a parada abrupta da inspiração profun-
da por aumento da dor no momento em que o fundo Figura 9.3 Sinal de Cullen, mancha equimótica pe-
da vesícula biliar inflamada é pressionado pelos dedos riumbilical e/ou umbilical, em razão da presença de
do examinador. hemoperitônio.

SJT Residência Médica – 2016


136
Cirurgia geral e politrauma

Figura 9.7 Sinal psoas direito com o paciente em


decúbito lateral esquerdo: a hiperextensão da coxa pro-
Figura 9.4 Sinal de Grey Turner na pancreatite agu-
voca dor que impede o prosseguimento da manobra.
da. Observe as manchas equimóticas na região do flan-
co em direção às fossas ilíacas.

Figura 9.5 Sinal de Jobert, indicando pneumoperitônio.

Figura 9.8 Sinal do psoas com o paciente em decúbi-


to dorsal.

Exame das regiões inguinal e crural


Estas regiões devem ser cuidadosamente inspe-
cionadas, especialmente em obesos, onde a saliência
de uma hérnia crural pode passar despercebida. É pre-
ciso verificar a redutibilidade das hérnias, uma vez que
em casos de ID de outra natureza, as alças intestinais
distendidas podem habitar o saco herniário sem que a
hérnia seja a responsável pelo quadro obstrutivo.

Hérnia encarcerada = não redutível (não pode ser


Figura 9.6 Sinal do obturador: a rotação interna da reduzida mediante manipulação).
coxa, previamente fletida, até o seu limite externo de- Hérnia estrangulada = hérnia encarcerada + sofri-
termina dor referida na região hipogástrica. mento vascular.

SJT Residência Médica – 2016


137
9 Abdome agudo

Na dosagem da amilase, podemos encontrar


Exame proctológico uma hiperamilasemia, acima de três vezes o valor
O toque retal do fundo de saco pode provocar máximo normal, sendo muito sugestivo de pancreati-
dor, indicando inflamação do peritônio pélvico. O te aguda; a hiperamilasemia pode ser observada em
abaulamento doloroso do fundo do saco de Douglas outras afecções, como na obstrução intestinal, úlcera
sugere a presença de abscessos nesta região. O toque perfurada, infarto intestinal, cisto ovariano torcido
retal também permite identificar lesões na parede re- ou, ainda, afecções fora da cavidade abdominal, porém
tal, como neoplasias estenosantes ou a presença no valores normais de amilase não descartam quadros de
lúmen de fecaloma. abdome agudo, já que seu valor pode ser normal após
48 horas do início do quadro, bem como nas pancreati-
tes hemorrágicas graves, sendo a lipase mais fidedigna
Exame ginecológico para o acompanhamento da sua evolução.
Deve ser feito na mulher com vida sexual ativa ou Em casos de icterícia, a dosagem de bilirrubina,
que já foi gestante. Usado no diagnóstico diferencial da fosfatase alcalina (esta mais específica) e da gama-
entre MIPA e apendicite aguda. Permite o diagnóstico -glutamil-transferase (gama GT) permite confirmar o
de afecções pélvicas responsáveis por abdome agudo diagnóstico de icterícia obstrutiva, em geral de trata-
ginecológico (prenhez ectópica rota, cisto ovariano mento cirúrgico, além de avaliar o grau de comprome-
torcido, abscesso tubo-ovariano), sendo a punção do timento hepático.
fundo do saco retovaginal recurso diagnóstico, muitas
O exame de sedimento urinário é útil nas suspei-
vezes, decisivo. É importante verificar a regularidade
tas de infecção do trato urinário (piúria) ou de cólica
dos ciclos menstruais visando, principalmente, o dis-
nefrética (hematúria). Entretanto, uma apendicite re-
cernimento para o diagnóstico de prenhez tubária e/
trocecal/pélvica pode resultar em leucocitúria, hema-
ou aborto incipiente.
túria e diarreia por irritação local.

Exames laboratoriais Exames de imagem


No acompanhamento e na investigação das afec-
ções hemorrágicas do abdome agudo são importantes
o hematócrito e a dosagem da hemoglobina, que de- Radiogra昀椀a simples de abdome
vem ser repetidos para avaliação comparativa.
Não deve ser indicado em mulheres grávidas (até
Na leitura do leucograma, podemos encontrar: o terceiro mês de gestação), ou com atraso menstru-
1) leucocitose acentuada (acima de 15.000 leu- al, em função do risco teratogênico. Deve-se sempre
cócitos/mm3), com neutrofilia e desvio à esquerda e incluir a radiografia simples do tórax ao exame do
ausência de eosinófilos, o que é característico de um abdome, para melhor estudo das cúpulas diafrag-
processo infeccioso agudo; máticas (busca de pneumoperitônio).
2) leucocitose moderada (de 10.000 a 15.000 O exame radiológico do abdome deve ser fei-
leucócitos/mm3) não é específica, podendo ser encon- to sempre em duas posições: em ortostase (de pé ou
trada em afecções inflamatórias de tratamento cirúr- sentado), em decúbito dorsal e ainda em decúbito la-
gico ou não; teral esquerdo.
3) leucopenia (contagem inferior a 8.000 leucó- Esse tipo de raio X é muito importante nas obs-
citos/mm3) pode ser encontrada em afecções virais do truções intestinais, onde permite diferenciar o íleo
tipo da adenite mesentérica ou em gastroenterocolites, adinâmico do mecânico ou estimar a altura da obstru-
podendo também ser encontrada em processos infec- ção mecânica (jejuno, íleo ou cólon).
ciosos graves, especialmente em idosos e debilitados. No íleo adinâmico há dilatação difusa e irregu-
Vale também lembrar que o leucograma normal lar do intestino e presença de ar no reto. Nos proces-
não exclui o abdome agudo inflamatório, quando a sos inflamatórios localizados (por exemplo, pancreatite
história clínica for consistente. aguda), pode existir apenas uma alça dilatada na sua
Em doentes hipovolêmicos (vômitos abundan- vizinhança (sinal da alça sentinela – Cutt Off sign).
tes), em doentes em estado de choque, com afecções Na obstrução, a morfologia das alças intestinais
graves (peritonite generalizada, pancreatite hemorrá- é mais bem estudada na radiografia de decúbito dor-
gica, isquemia mesentérica aguda), e desde que o qua- sal, onde podemos identificar as válvulas coniventes,
dro clínico for arrastado, devem-se pedir os exames numerosas no jejuno e escassas no íleo. Nas radio-
de ureia, creatinina (usados para avaliação da função grafias em posição ereta, sentada ou em decúbito la-
renal), dosagem dos eletrólitos (Na+, K+, bicarbonato) teral, existem níveis líquidos dispostos em escada,
e a gasometria arterial. tanto mais numerosos quanto mais baixos for o ní-

SJT Residência Médica – 2016


138
Cirurgia geral e politrauma

vel da obstrução. Além disso, aparece a imagem em A opacidade piriforme da colecistite aguda e o
pilha de moedas (detalhamento das válvulas coniven- íleo adinâmico regional são, com certa frequência,
tes também chamadas válvulas circulares). identificados.
No volvo do sigmoide, o raio X mostra enorme A presença de ar em via biliar é compatível
alça intestinal preenchendo praticamente todo o ab- com o diagnóstico de íleo biliar (Figura 9.13).
dome, com dois grandes níveis líquidos, é o “sinal do As radiografias simples também mostram calcifi-
grão de café”. Também no volvo existe o referido “si- cações anormais. Cerca de 5% dos fecalitos apendicula-
nal da alça em ômega” e “sinal do bico de pássaro”. res, 10% dos cálculos biliares e 90% dos cálculos renais
Na obstrução do cólon por fecaloma, além dos contêm quantidades suficientes de cálcio para serem ra-
sinais de obstrução, evidencia-se alça sigmoidiana di- diopacos. As calcificações pancreáticas, observadas em
latada, tendo seu lúmen uma imagem com densidade muitos pacientes com pancreatite crônica, são visíveis
radiológica aumentada, com pequenas áreas de hiper- nas radiografias simples, da mesma forma que as calcifi-
transparência (imagem em “miolo de pão”), que su- cações nos aneurismas da aorta abdominal, aneurismas
gere presença de fezes. de artéria visceral e aterosclerose nos vasos viscerais.
A radiografia simples permite distinguir as obs- As radiografias simples abdominais nas posições
truções do cólon da válvula ileocecal continente (obs- em pé e supina são muito úteis na identificação de
truções em alça fechada), pela dilatação isolada das obstrução da saída gástrica e obstrução do intestino
alças colônicas, identificadas pela sua posição e mor- delgado proximal, médio ou distal.
fologia característica (boceladuras). O diâmetro do
O transito intestinal é útil nas obstruções par-
ceco superior a 12 cm é considerado indicador da
ciais do delgado e o enema opaco tem sido indicado
iminência de rotura e exige medidas terapêuticas
no diagnóstico de volvo ou nos processos obstrutivos
imediatas (Atenção!).
neoplásicos.
O sofrimento vascular da alça (estrangula-
mento) é sugerido pela identificação de alça intestinal
de paredes lisas, com densidade radiológica aumen-
tada, especialmente quando esta imagem fica fixa e
se repete em exames sucessivos. Além disso, o raio X
aparece com alças edemaciadas, com aumento difuso
do padrão “água”, que aumenta a radiopacidade total
da radiografia e dá um aspecto de “Raio X sujo”.
No abdome agudo perfurativo (úlcera péptica
perfurada), na radiografia em posição ereta, o acú-
mulo de ar sob a cúpula diafragmática (pneumoperi-
tônio), sob a forma de meia-lua hipertransparente, é
frequente (80% dos casos) e muito característico. Os
grandes pneumoperitônios são vistos, mais frequen-
temente, nas perfurações dos cólons.
As radiografias do tórax com o paciente de pé po- Figura 9.9 Radiografia de tórax mostrando um
dem detectar uma quantidade tão pequena quanto 1 mL grande pneumotórax (setas).
de ar injetado na cavidade peritoneal. As radiografias ab-
dominais em decúbito lateral também podem detectar
pneumoperitônio efetivamente em pacientes que não
podem ficar de pé. Quantidades tão pequenas quanto 5
a 10 mL de gás podem ser detectadas com essa técnica.
A presença de faixa de opacidade entre as alças
distendidas por gás, observada nos processos inflama-
tórios agudos da cavidade peritoneal, sugere a presen-
ça de líquidos fora das alças e/ou edema das paredes
da cavidade peritoneal.
A não visualização da linha do psoas e o au-
mento da densidade radiológica, ou alargamento
de sombra renal (ar ao redor do rim – pneumorre-
troperitônio), sugerem perfuração de víscera oca
retroperitoneal (mais comum é úlcera duodenal).
A presença de imagem radiopaca de cálculo no
trajeto renoureteral, pode justificar o diagnóstico de
cólica nefrética.

SJT Residência Médica – 2016


139
9 Abdome agudo

Figura 9.13 Aerobilia em paciente com íleo biliar e


distensão de alças por obstrução distal pelo cálculo.
Figura 9.10 Radiografia panorâmica do abdome
mostrando obstrução do intestino delgado. (A) supina.
(B) de pé. As alças jejunais encontram se dilatadas e os
níveis hidroaéreos são evidentes.

Figura 9.11 Radiografia simples do abdome Figura 9.14 Radiografia simples do abdome eviden-
mostrando obstrução do intestino grosso em um pa
ciando um grande volvo de ceco.
ciente com carcinoma da flexura esplênica do cólon.
Observe a marcada dilatação do ceco e hemicólon di-
reito até a flexura esplênica.

Figura 9.12 Radiografia simples de abdome em um Figura 9.15 Sinal de Rigler-Frimann-Dahl (perfuração
paciente com íleo paralítico. Observe a considerável de víscera oca). A parede da alça intestinal é vista por
dilatação do intestino delgado e grosso que se estende dentro (em razão do ar em seu interior) e por fora (em
até a pelve. razão do pneumoperitônio). Atenção!

SJT Residência Médica – 2016


140
Cirurgia geral e politrauma

Figura 9.16 Volvo de sigmoide. Sigmoide muito


dilatado, apresentando nítida linha densa central (seta).

Figura 9.19 Radiografia de abdome: fecaloma. Disten-


são de cólon com grande quantidade de conteúdo fecal.

Ultrassonogra昀椀a
É extremamente útil nas suspeitas diagnósticas
de colecistite aguda e é o primeiro exame solicitado
na pancreatite aguda (a TC vê melhor retroperitônio).
Permite também a investigação de massas inflama-
tórias e abscessos, bem como para conduzir punções
Figura 9.17 Radiografia de abdome: volvo de sig- dirigidas para esclarecimento diagnóstico ou com fi-
nalidade terapêutica (esvaziamento de abscessos). É a
moide. Grande distensão do cólon.
melhor opção em doentes magros e em jejum (gases
atrapalham o exame).
Em mulheres grávidas, substitui com vantagem
o exame radiográfico, por não ter radiação.
Tem o inconveniente de ser prejudicado pela pre-
sença de gases intestinais, o que é frequente no abdo-
me agudo.
Os sinais ultrassonográficos de colecistite aguda
são o aumento do volume vesicular, o espessamento
da parede vesical, presença de edema junto à sua pa-
rede, representado por halo hipoecoico marginal e cál-
culos no lúmen.
Na apendicite aguda possibilita identificar o apên-
dice aumentado, com paredes espessadas e coleções
líquidas ao seu redor. Facilita a distinção entre o plas-
trão da apendicite hiperplástica (apendicite crônica),
caracterizado por centro hiperecoico envolto por áre-
as de menor ecogenicidade, correspondendo à parede
Figura 9.18 Raio X simples de abdome. Alça senti edemaciada, e o abscesso apendicular, que se apresenta
nela na FID. como massa complexa, predominantemente líquida.

SJT Residência Médica – 2016


141
9 Abdome agudo

Figura 9.21 TC em paciente com íleo biliar. (A) Pre-


sença de ar nas vias biliares; e (B) distensão de alças pelo
cálculo no íleo distal.

Figura 9.20 Ultrassonografia de vias biliares. Col-


ecistite aguda, observe o espessamento da parede da
vesícula pela presença de edema (setas horizontais) e a
presença de cálculo com sombra acústica (seta vertical)

Tomogra昀椀a computadorizada
(TC)
Embora submeta o doente à radiação, este exa-
me não é afetado pela presença aumentada de gases
intestinais.
É muito útil no diagnóstico e quantificação de
Figura 9.22 TC abdominal mostrando dilatação de
necrose pancreática (pâncreas “morto” não aparece
alças dos intestinos delgado e grosso, com níveis hi-
denso na TC), massas inflamatórias abdominais (pe-
droaéreos em um paciente com íleo paralítico (as setas
ridiverticulite aguda, apendicite hiperplástica), de
apontam para o cólon ascendente e descendente).
abscessos intracavitários ou contidos em vísceras
parenquimatosas (padrão-ouro); a localização preci-
sa destas coleções permite não só o diagnóstico, mas
também a terapêutica com drenagem percutânea efi-
caz, sem a necessidade de via de acesso cirúrgica.

Figura 9.23 TC de abdome evidenciando pancre-


atite aguda. Observe o aumento difuso com perda dos
limites pancreáticos.

SJT Residência Médica – 2016


142
Cirurgia geral e politrauma

tagem de plaquetas inferior a 50.000/mm3), distensão


Endoscopia digestiva abdominal, choque, insuficiência respiratória e/ou
Nos processos obstrutivos do retossigmoide, cardíaca (que contraindiquem a anestesia), peritonite
a endoscopia baixa (retossigmoidoscopia), além de generalizada e hérnia de hiato muito volumosa (com
diagnóstica, facilita a terapêutica. risco de compressão das estruturas torácicas quando
O volvo gástrico é raro, mas pode ocorrer e a da realização do pneumoperitônio).
endoscopia alta pode ser diagnóstica. Já no volvo do Além das absolutas, existem contraindicações re-
sigmoide (mais comum), identifica-se o aspecto típico lativas, que, geralmente, estão ligadas com a maior ou
da torção pela convergência das pregas mucosas e pos-
menor destreza ou experiência de quem está realizando
sibilita a introdução de sonda lubrificada no sigmoide
o exame, por exemplo, obesidade excessiva e suspeita
(sonda de Fouchet); com isto, promove-se a desinsu-
de aderências peritoneais (previstas em pacientes com
flação e a distorção espontânea.
antecedentes de cirurgia abdominal ou de peritonite).
Nas obstruções por neoplasia do reto, confirma-
-se o diagnóstico e permite a biópsia. Para diagnóstico
de processos inflamatórios ou obstrutivos colônicos
por neoplasias em localização proximal, pode-se fazer
colonoscopia. Esta também tem aplicação terapêuti-
Punção abdominal,
ca na resolução da pseudo-obstrução do cólon (sín- culdocentese e lavado
drome de Ogilvie). Nessa síndrome, o ceco começa
a dilatar a montante (proximal), sem ter obstrução a peritoneal diagnóstico (LPD)
jusante (distal). Atualmente, a punção abdominal e a culdocen-
O emprego da videolaparoscopia no abdome agu- tese encontram-se quase em desuso. Podem ser úteis
do tem aumentado à medida que vem se firmando sua nos doentes em colapso circulatório com suspeita de
contribuição para o diagnóstico e terapêutica. A lapa- hemoperitônio, quando o ultrassom não está disponí-
roscopia é contraindicada nas grandes distensões ga- vel ou deixa margens a dúvidas em sua interpretação.
sosas. É útil nas suspeitas de colecistite aguda, apendi- Em circunstâncias de exceção, quando o doente se en-
cite aguda e nas doenças pélvicas (prenhez ectópica), contra em condições precárias, o diagnóstico não está
onde, além de identificá-las, permite o tratamento. claro e não existem recursos diagnósticos por imagem;
o LPD pode ser de utilidade no diagnóstico de hemor-
ragia intraperitoneal.

Arteriografia
É um exame de exceção, não só pelas dificulda-
des de realização na urgência, como também por ser
um método invasivo. É, entretanto, de grande impor- Abdome agudo perfurativo
tância para o diagnóstico e definição da conduta nas
isquemias mesentéricas, em que existe a indicação do Os exemplos mais comuns de víscera oca perfu-
exame que tem finalidade diagnóstica e até terapêuti- rada são as úlceras gastroduodenais.
ca com embolizações. A perfuração de uma úlcera péptica pode deter-
A arteriografia seletiva dos troncos mesentéri- minar uma catástrofe abdominal que pode ser fatal
cos, por outro lado, é o único procedimento capaz de quando não for precocemente diagnosticada e tratada.
identificar causas pouco comuns de sangramentos in- As úlceras são ditas perfuradas quando se esten-
traperitoneais, como a rotura de adenoma hepático e dem pela parede muscular e serosa, permitindo comu-
aneurisma da artéria esplênica e de outras artérias do nicação entre a luz da víscera e a cavidade abdominal.
tubo digestivo. Denomina-se penetrante quando é bloqueada pelas
vísceras vizinhas e pelo peritônio.
A perfuração é mais frequente no duodeno
Laparoscopia do que no estômago. A úlcera duodenal perfura,
habitualmente, a parede anterior do bulbo duode-
Com o desenvolvimento da videolaparoscopia nal (92%) e em 10% dos casos está associada à he-
cirúrgica, este recurso passou a ser empregado com morragia digestiva alta, por ulceração concomitante
frequência no diagnóstico do abdome agudo, em es- da parede posterior do duodeno, levando ao sangra-
pecial na diferenciação da dor pélvica e, também, no mento (úlcera em kissing). Em 30% a 50% dos casos,
seu tratamento. não existe história prévia de doença ulcerosa. Não
Existem algumas contraindicações absolutas à existem dúvidas de que a média de idade dos pacientes
utilização da laparoscopia. São elas: alterações da co- com úlcera perfurada aumentou muito nas últimas dé-
agulação (taxa de protrombina abaixo de 50% e con- cadas e a mortalidade chega a 30% nos pacientes com

SJT Residência Médica – 2016


143
9 Abdome agudo

mais de 70 anos. A perfuração de uma úlcera péptica perfurações indiretas, com transfixação do sigmoide,
não é mais uma doença que acomete apenas o paciente e daí a sintomatologia e o quadro comum às vísceras
jovem e saudável; ela é, atualmente, muito frequente ocas gastrointestinais e com localização da dor na
em pacientes idosos e doentes. fossa ilíaca esquerda, hiperestesia cutânea e “defesa
muscular”, sinal de Blumberg localizado, pneumope-
As úlceras gástricas perfuradas localizam-se
ritônio e peritonite consequente.
normalmente na parede anterior do antro, entre o
piloro e a incisura angularis. A sintomatologia é seme- A prenhez ectópica rota com perfuração da
lhante a da úlcera duodenal perfurada. trompa é reconhecida pela dor lancinante abrupta,
na região hipogástrica ou em uma das fossas ilíacas,
A perfuração do câncer gástrico é rara e ocor- havendo atraso menstrual ou gravidez propriamente
re em cerca de 4% dos casos de câncer gástrico. Ra- dita. Há abaulamento do fundo do saco de Douglas
ramente o diagnóstico é feito no pré-operatório e o (toque vaginal). Nesse caso, a punção em fundo de
quadro clínico é semelhante ao de pacientes com per- saco de Douglas (culdocentese) com saída de sangue
furação gastroduodenal. vivo faz o diagnóstico.
Em geral, a perfuração de uma víscera em peritô- Aproveitamos este módulo para inserir duas situ-
nio livre provoca uma dor lancinante intensa, em “fa- ações clínicas que se não são comuns como causas de
cada”, de localização aproximada à topografia da vísce- abdome perfurativo, são relevantes nas perguntas das
ra que perfurou, com irradiação variada para ombros, provas de ressonância magnética (RM), estamos nos re-
dorso, lombos, precórdio, dependendo dos metâmeros ferindo a duas causas infecciosas: tuberculose intestinal
correspondentes às sinapses dos neurônios ao nível da e febre tifoide, fique atento a estas informações.
medula espinhal.
Inicialmente o paciente adquire atitude de imo-
bilização, com respiração superficial para se defender
da dor pelos movimentos do músculo diafragma, e Tuberculose (TB)
pode entrar em um estado de agitação psicomotora A forma secundária da tuberculose intestinal
por não encontrar posição cômoda, porque já pode ocorre mais comumente pela ingestão de bacilos na
estar se instalando o choque. Podemos encontrar ca- vigência de doença pulmonar. Clinicamente, pode-se
sos de perfuração em peritônio livre sem dor, mas é evidenciar que 5% a 8% dos doentes com afecção pul-
raro. Nesse caso, há só mal-estar indefinido no abdo- monar em fase inicial tenham lesão intestinal e que,
me, com sensação de distensão, podendo haver cho- nos casos mais avançados, de 70% a 80% dos pacien-
que hipovolêmico também (sequestração de líquidos).
tes apresentam doença intestinal.
No início o choque ocasionado pela perfuração é
A tuberculose intestinal é encontrada em todas
neurogênico, provocado reflexamente pela dor brusca,
as faixas etárias, sendo mais frequente entre a se-
e rapidamente associa-se ao vasogênico, pela infecção
gunda e quarta décadas de vida. Embora a tubercu-
da peritonite química e infecciosa. É um choque misto
lose possa acometer o intestino por via hematogênica,
grave, de evolução medianamente rápida, e necessita ser
diagnosticado com urgência e precisão para ser corrigido. linfática ou, ainda, por contiguidade, a via de trans-
missão mais comum é a mucosa, por meio da ingestão
A palpação abdominal demonstra hiperestesia de bacilos de Koch.
cutânea localizada ou mais frequentemente genera-
lizada, acompanhada também da “defesa muscular” Podemos distinguir duas formas denomina-
generalizada (abdome em “tábua”), que impede a das anatomopatológicas distintas:
palpação profunda, tudo consequência do pneumope- 1) Forma ulcerativa: localizada geralmente no
ritônio e da peritonite generalizada. A descompressão íleo terminal, podendo, às vezes, ser generalizada. A
brusca dolorosa positiva é nítida e generalizada, e será lesão inicial é constituída de numerosos tubérculos
localizada na região correspondente ao peritônio do que contêm os bacilos, que se confluem formando um
local da perfuração. conglomerado. Após a caseificação, esses conglomera-
A percussão determinará a existência da dor à dos ulceram-se dando origem à úlcera tuberculosa. As
percussão leve de toda a parede abdominal. Pode-se úlceras têm forma oval ou arredondada, são elevadas
notar a presença do pneumoperitônio pelo sinal de em relação à mucosa circunjacente e, geralmente, são
Jobert, ou timpanismo pré-hepático. maiores no sentido transversal ao eixo intestinal por
Com a instalação e evolução da peritonite, o íleo causa da distribuição linfática. São mais frequentes na
adinâmico é de ocorrência precoce e os ruídos hidroa- borda contramesenterial e, além disso, de extensão
éreos estão ausentes. variável, podendo, às vezes, circundar toda luz.
Outras causas de perfuração devem ser consi- Inúmeras úlceras podem surgir e acometer com
deradas, entre estas a perfuração do útero que é, ge- frequência crescente desde o jejuno até o íleo terminal
ralmente, acidental e instrumental. A dor é na região e a área ileocecal. O tecido lesado é branco e friável, o
hipogástrica ou suprapúbica. Mais comuns são as que corresponde ao achado microscópico de degenera-

SJT Residência Médica – 2016


144
Cirurgia geral e politrauma

ção caseosa. Os gânglios mesentéricos regionais têm o to, porém, na forma ulcerativa, pode ocorrer mesmo
seu volume aumentado, hiperplásicos e com focos de na sua ausência. O achado anatomopatológico reve-
necrose caseosa. O mesentério é espesso e opaco. la granuloma com necrose caseosa, células epitelio-
ides, células gigantes de Langhans e linfócitos.
As ulcerações, inicialmente, têm sua base constitu-
ída pela submucosa e podem aprofundar-se, atingindo a A conduta cirúrgica nesses doentes é controver-
camada muscular serosa ou mesmo perfurar, seja em pe- sa, principalmente nos doentes sépticos. Nos casos de
ritônio livre ou em cavidade restrita por aderências. perfuração única, a sutura simples é acompanha-
da de fístulas e alta mortalidade, próxima a 50%.
2) Forma hipertrófica: localiza-se mais co-
Essa conduta deve ser reservada para os pacientes que
mumente no ceco. A parede intestinal apresenta-se
apresentem aderências firmes entre as alças de delga-
espessada, dura e de aspecto lardáceo, e a luz intesti-
do, nos quais a mobilização intestinal é tecnicamente
nal apresenta-se muito reduzida. Na submucosa, evi-
difícil e pode acarretar inúmeras lesões intestinais,
dencia-se intensa reação conjuntival, responsável pelo
agravando o prognóstico. A ressecção do segmento
espessamento. Essa infiltração ocorre também na ca- acometido deve ser a conduta de eleição e a decisão
mada mucosa, o que contribui para o aspecto tumoral entre anastomose primária ou estorcia dependerá
do segmento afetado. Os tubérculos são numerosos na da experiência do cirurgião e das condições locais
camada submucosa e na muscular, onde se encontram e clínicas. O segmento intestinal ressecado e os gân-
as necroses e a caseificação. glios mesentéricos devem ser enviados para exame
anatomopatológico e cultura de micobactérias. Esses
Quadro clínico dados são particularmente úteis, principalmente em
idosos, nos quais poderia haver dúvidas quanto à pre-
As manifestações da tuberculose intestinal são sença de doença maligna.
variáveis e podem corresponder às formas anatomo-
patológicas. Na forma ulcerativa, predominam a Além disso, o tratamento com quimioterápicos
dor abdominal e a diarreia, associadas a náuseas,
deve ser introduzido tão logo seja realizado o diagnós-
vômitos, anorexia e perda de peso. Nesses doentes, as tico e assim que for possível utilizar o trato digestivo.
manifestações pulmonares são frequentes. Na forma
hipertrófica, o quadro clínico é geralmente de uma
obstrução intestinal associada a um tumor palpá-
vel na fossa ilíaca direita. O quadro obstrutivo é len-
Febre tifoide
to e periódico. A febre tifoide é uma doença infecciosa sistêmica
causada, essencialmente, pelo bacilo Gram-negativo,
A perfuração em peritônio livre é uma compli-
Salmonella typhi e ocasionalmente por outros tipos
cação muito rara da tuberculose intestinal. A inci-
de Salmonella ssp. Embora seja rara em países desen-
dência de perfuração intestinal em adultos varia de
volvidos, continua sendo uma doença, muitas vezes,
0% a 10% e em crianças esse índice está em torno
fatal em países em desenvolvimento, em virtude da
de 4%. Essa baixa incidência é decorrente de um es-
precariedade de condições ambientais e sanitárias. Na
pessamento reacional do peritônio e da formação de ausência de infraestrutura de higiene e inadequa-
aderências pelos tecidos subjacentes na presença da das condições socioeconômicas, a febre tifoide é
reação inflamatória. A perfuração intestinal é mais uma doença endêmica e, algumas vezes, epidêmica.
frequentemente observada na forma ulcerativa da
A porta de entrada da febre tifoide é a via diges-
doença, podendo manifestar-se por meio de um qua-
tiva; o bacilo deve sobrepujar a barreira defensiva repre-
dro de peritonite difusa evidente. Na forma hiperplás-
sentada pela acidez gástrica. O agente, que consegue
tica, a perfuração é um evento raro e quando ocorre é sobreviver as primeiras 24 a 72 horas no intestino,
bloqueada, formando fístulas com a parede abdominal penetra no epitélio intestinal (jejuno e íleo distal),
e os órgãos vizinhos. A perfuração pode ser decorrente onde se multiplica nos tecidos linfoides locais, pro-
de um processo agudo ou de uma complicação crônica duzindo uma linfangite, com necrose multifocal por
obstrutiva. A radiografia dos campos pleuropulmo- ação direta das toxinas bacterianas. A seguir, princi-
nares apresenta, geralmente, dados consistentes palmente através do ducto torácico, as bactérias atingem
com tuberculose, uma vez que a presença de envol- o coração direito, daí se propagando hematogenicamente
vimento pulmonar é uma constante nesses doen- a todo o organismo (fase septicêmica).
tes, fato que auxilia na presunção diagnóstica.
A febre tifoide é uma doença cosmopolita que
As perfurações intestinais decorrentes de tu- afeta indivíduos de todas as idades, entretanto, parece
berculose podem ser únicas ou múltiplas e geral- ser mais frequente em adolescentes e adultos jovens.
mente ocorrem no íleo, a um metro da válvula ileo- O período de incubação é de 10 a 14 dias, geralmen-
cecal. Outros locais menos comuns de perfuração são te assintomático. O início dos sintomas é insidioso,
o cólon ascendente e o jejuno. Em geral, essas perfura- com mal-estar, anorexia e febre remitente. No final da
ções ocorrem próximas ou no local de um estreitamen- primeira semana, surgem os sintomas intestinais,

SJT Residência Médica – 2016


145
9 Abdome agudo

principalmente a diarreia. O exame físico mostra Coprocultura: deve ser coletada em mais de uma
intensa toxemia, dissociação entre o pulso e a tem- amostra. Sua positividade é maior entre a segunda
peratura (fenômeno ou sinal de Faget), máculas e a quarta semana da doença. Pelo menos sete dias
eritematosas no abdome superior e no tórax (roséolas após ter cessado o uso de antimicrobianos, o conva-
tíficas) e hepatoesplenomegalia. lescente que não manipula alimentos deve colher, no
Durante a sua evolução, pode cursar com com- mínimo, três amostras em dias sequenciais. Já os ma-
plicações, como hemorragia e perfuração ileal. A nipuladores de alimentos devem coletar, no mínimo,
perfuração intestinal é uma grave complicação da fe- sete amostras em dias sequenciais.
bre tifoide e sua incidência varia de 0,5% a 78,6%. A Urocultura: assim como a coprocultura, é menos
perfuração intestinal decorrente de febre tifoide é frequentemente positiva, mas deve ser obtida para au-
uma complicação local de uma doença sistêmica, na mentar o rendimento diagnóstico. Torna-se positiva
qual estão presentes imunodepressão, depleção hi- na terceira e quarta semana em 25% dos casos.
droeletrolítica e endotoxemia. A perfuração é mais
Outros materiais biológicos podem ser cultivados
comum em homens do que em mulheres (3:1). Em
quando disponíveis: linfonodos, líquidos pleural, peri-
50% dos casos, a perfuração ocorre durante a tercei-
ra semana, podendo ocorrer mesmo na vigência do
cárdico, peritoneal e biliar, liquor, material de biópsia
tratamento da febre tifoide. A apresentação clínica é
da roséola tífica, e secreção de abscesso, quando houver.
variável e a dor abdominal uma constante, ocorrendo Exame histopatológico: é realizado excepcio-
em mais de 98% dos pacientes. Outros sintomas signi- nalmente, sobretudo, em placas de Peyer e nas rosé-
ficativos são a febre ou mesmo queda da temperatura, olas tíficas.
náuseas e vômitos, distensão abdominal, parada de eli- Exames imunológicos: a reação de Widal é a
minação de gases e fezes ou ainda diarreia. O exame fí- mais utilizada rotineiramente para o diagnóstico da
sico pode evidenciar sinais de irritação peritoneal. febre tifoide. No Brasil, é considerada positiva quando
os títulos forem superiores a 1:80 ou 1:100 na ausên-
A perfuração intestinal secundária à febre tifoide pode cia de história anterior de vacinação específica. Nesta
ser classificada em seis estádios: reação, são quantificados dois tipos de aglutininas, an-
Estádio 0: febre tifoide sem evidência clínica ou radio- ti-O (antígeno somático) e anti-H (antígeno flagelar).
lógica de perfuração. Nas áreas endêmicas, as pessoas podem apresentar
Estádio 1a: febre tifoide com moderada peritonite sem sorologia acima de 1:100 e não ser diagnosticadas
evidência radiológica ou operatória de perfuração. como doentes. Os vacinados também apresentam
Estádio 1b: peritonite localizada com perfuração sim- elevação do anticorpo H. A valorização da reação de
ples e mínima contaminação peritoneal. Widal é maior quando se demonstra a elevação dos tí-
Estádio 2: peritonite discreta com uma ou mais perfu- tulos de anticorpos entre duas amostras colhidas com
rações e pequena contaminação peritoneal. intervalo de 10 a 15 dias. A sorologia pelo método de
Estádio 3: uma ou mais perfurações e peritonite moderada. Elisa ainda é de pouca utilidade para febre tifoide. Ou-
Estádio 4: uma grande perfuração ou perfurações múl- tros métodos imunodiagnósticos que podem ser em-
tiplas, abscesso e contaminação fecal com fibrina e pus pregados são o PCR (reação em cadeia da polimerase),
nas goteiras paracólicas. a ribotipagem e PFGE (pulsed-field gel electrophoresis),
os quais são ainda poucos acessíveis por terem custos
Diagnóstico laboratorial especí昀椀co elevados para aplicação rotineira. Têm como vanta-
gem maior a especificidade e rapidez no diagnóstico.
O método diagnóstico preferido é o isolamento
do organismo infeccioso. Para tanto, temos à disposi- O hemograma pode indicar anemia do tipo mi-
ção culturas e exame histopatológico, além da possi- crocítica e hipocrômica em menos de 10% das vezes, ao
bilidade de identificação de antígenos e anticorpos da passo que o número de leucócitos está frequentemente
Salmonella por meio de métodos imunodiagnósticos, normal. Pode ocorrer, entretanto, leucocitose ou leuco-
descritos a seguir: penia, sendo este último o achado mais sugestivo da
doença, ainda que presente em menos de 20%.
Hemocultura: é o principal exame para o diag-
nóstico da febre tifoide. Em geral, é positiva já nos Em relação aos exames radiológicos, o pneu-
primeiros dias da doença, com positividade de 90% moperitônio é o sinal mais importante, podendo
na primeira semana, 75% na segunda e 35% no fi- ocorrer em 60% a 80% das vezes, nos pacientes com
nal da terceira. Recomenda-se a coleta de duas amos- suspeita de perfuração. O achado mais frequente, en-
tras, quando em método automatizado. tretanto, é a presença incaracterística de níveis hidro-
Mielocultura: é o teste mais sensível, sendo
aéreos na radiografia simples de abdome.
usualmente positiva em 90% dos pacientes. Não é exa- Uma vez realizado o diagnóstico de perfuração
me de rotina em vitu de sua agressividade, mas pode ser intestinal, faz-se necessário uma vigorosa ressuscita-
utilizado quando o diagnóstico bacteriológico é crucial ção volêmica pré-operatória, incluindo reposição de
ou em pacientes já tratados com antimicrobianos. hemoderivados, quando necessário.

SJT Residência Médica – 2016


146
Cirurgia geral e politrauma

O achado cirúrgico mais comum é a contamina- A morbidade e a mortalidade estão intimamente


ção maciça da cavidade peritoneal. As culturas do lí- relacionadas ao intervalo entre o início do quadro e a
quido peritoneal são positivas para S. typhi em 20%. cirurgia, ao estado imunológico do paciente e à viru-
As perfurações ovaladas ou redondas ocorrem pró- lência do bacilo. Além da deiscência da anastomose,
ximas à válvula ileocecal (50 cm) e podem ser úni-
no período pós-operatório pode ocorrer reperfura-
cas (84%) ou múltiplas (16%), geralmente na bor-
ção, situação que incide em cerca de 10% dos casos e
da contramesenterial.
traduz-se em grande desafio diagnóstico, uma vez que
Atualmente, as drogas tidas como primeira es-
a presença de febre prolongada no período pós-ope-
colha são as fluoroquinolonas (ciprofloxacino e oflo-
ratório é muito frequente. As complicações ocorrem
xacino), já bem estabelecidas, e as cefalosporinas de ter-
ceira geração (ceftriaxona) e quarta geração (cefepima). em aproximadamente 25% e o índice de mortalidade
O tempo de tratamento com as fluorquinolonas é varia de 3% a 20% com a adoção das medidas terapêu-
mais curto, de sete a dez dias, com índice de cura em ticas mencionadas.
torno de 90%. Nos casos de multirresistência, alguns
autores sugerem a associação de ciprofloxacino ou oflo-
xacino com uma cefalospoina de terceira geração.
A dose preconizada do ofloxacino para adultos é Abdome agudo
de 200 mg, por via oral, a cada 12 horas, e a do ciproflo-
xacino é de 500 mg, via oral, ou 200 mg, via intravenosa
(IV), a cada 12 horas. Existem estudos pouco contro-
in昀氀amatório
lados com o uso de novas quinolonas. Habitualmente, As vísceras que mais comumente resultam
não se recomenda o emprego de quinolonas em crian- em abdome agudo inflamatório são aquelas do
ças e gestantes, muito embora na literatura médica abdome inferior: a apendicite aguda, a salpingite
existam inúmeros trabalhos em que tais drogas foram
aguda e a diverticulite abscedada do cólon, geralmente
utilizadas em crianças, sem efeitos adversos.
o sigmoide. Neste quadro, a dor referida é progressiva
Em crianças e gestantes recomenda-se o uso e bem localizada.
das cefalosporinas de terceira geração, especial-
mente, ceftriaxona. A dose da ceftriaxona é de 50 Muito importante nos processos agudos do ab-
a 100 mg/kg/dia (dose em adultos de 2 a 4 g/dia), IV, dome é a diferença da temperatura axiloretal, que,
fracionada com intervalo de 12 horas. A ceftriaxona é se for maior que 1 ºC, indica que o peritônio está sen-
eficaz mesmo contra as cepas resistentes a quinolonas. do acometido agudamente por inflamação química,
Mais recentemente, a azitromicina vem-se reve- em princípio, e infecciosa posteriormente (sinal de
lando uma nova alternativa terapêutica para os casos Lennander).
de febre tifoide não complicada, mostrando-se eficaz
O estado de choque dificilmente se instala, mas,
mesmo em infecções por estirpes da S. typhi resisten-
tes ao cloranfenicol e à ampicilina. Em adultos, reco- se ocorre, é tardio e indica disseminação hematogêni-
menda-se a azitromicina na dose de 1 g por via oral ca bacteriana e toxêmica. Assim, a lesão da microcir-
no primeiro dia, seguido da dose de 500 mg em dose culação é grave, e o choque parte para a irreversibili-
única diária, durante mais seis dias. dade em tempo mais curto que o choque hemorrágico
O tratamento cirúrgico a ser adotado depende e neurogênico.
das condições gerais do paciente, do grau de conta- A inspeção da pele identificará processos infla-
minação peritoneal, do tempo de história e, ainda, da matórios com coleção purulenta em qualquer parte do
presença de perfuração única ou múltipla. Para os do- tegumento abdominal, com os clássicos sinais de tu-
entes com perfurações únicas menores que 1 cm, existe
moração correspondente com hiperemia, calor e dor.
alguma controvérsia entre o desbridamento seguido de
simples sutura em dois planos e a ressecção segmentar As manchas equimóticas dos flancos (sinal de
seguida de anastomose. Já nos casos de perfurações Gray-Turner) e manchas pigmentares amarelo-vinho-
maiores ou múltiplas, a ressecção do segmento afeta- sas periumbilicais (sinal de Cullen) na pancreatite
do deve ser realizada rotineiramente. aguda necro-hemorrágica são excepcionais e tardias.
Em virtude da elevada incidência de compli- Em muitos casos a posição antálgica do paciente
cações na ferida cirúrgica, a pele e o subcutâneo
já é sugestiva. Em processos apendiculares agudos ou
devem ser deixados abertos. No pós-operatório, o
apoio nutricional por meio de soluções parenterais dos órgãos pélvicos da mulher. Quando se provoca a
deve ser liberalmente utilizado, uma vez que a doença contração ativa e forte do músculo psoas com o mem-
está associada a um estado de hipercatabolismo, em bro inferior em hiperextensão e flexão posterior desse
virtude da febre e toxemia, e, frequentemente, a um membro, a dor é espontânea e muito maior, na palpa-
prolongado período de íleo pós-operatório. ção profunda e deslizante, quando possível realizá-la.

SJT Residência Médica – 2016


147
9 Abdome agudo

complicações de algumas doenças como a doença de


Crohn, apendicite, diverticulite, neoplasia colorretal,
infecção urinária, neoplasias da via excretora, pós-li-
totripsia extracorpórea, osteomielite vertebral, artrite
séptica, sacroileíte, aneurisma de aorta infectado, en-
docardite e uso de contraceptivos intrauterinos.
Em mais de 80% dos casos, o agente etiológico
encontrado é o Staphylococcus aureus. Outros que
podem aparecer são os Bacteroides fragilis, Escherichia
Figura 9.24 Atitude passiva antálgica de um pa- coli, Mycobacterium tuberculosas, Proteus sp, Clostri-
ciente com apendicite aguda e/ou abscesso periapen- dium sp, Yersinia enterocolitica e Klebsiella sp.
dicular, ou qualquer outro processo inflamatório agudo A tríade clássica de febre, dor na região dorsal
dos órgãos pélvicos do hemiabdome inferior direito. e dor à movimentação do quadril ocorrem em ape-
nas em 30% dos casos. Outros sintomas descritos são
A palpação superficial apresenta-se pouco dolo- dor abdominal, náusea e perda de peso. Muitas vezes,
rosa, e destina-se à pesquisa da hiperestesia cutânea, o paciente chega ao pronto-socorro (PS) em posição
para a localização do processo inflamatório e para a
antálgica com a coxa homolateral fletida de encon-
referência de “defesa muscular” regional, uma contra-
tro ao hipogástrio. Um teste que pode ser utilizado
tura muscular pelo reflexo visceromotor, que aparece
para determinar a presença de psoíte é a extensão da
quando o peritônio regional correspondente ao órgão
afetado tiver sido comprometido. Em um intervalo perna homolateral a dor com o paciente em decúbito
variável, mas não longo de tempo, a difusão do pro- dorsal. Esse teste mostra que existe uma inflamação
cesso inflamatório do peritônio levará a uma defesa no músculo psoas e não é patognomônico de psoíte.
muscular generalizada, correspondendo ao “abdome Por exemplo, um paciente com apendicite retrocecal
em tábua”. e com o apêndice inflamado localizado sobre o psoas
pode apresentar esse mesmo sinal.
Transudativa – líquido seroso claro. Laboratorialmente pode ocorrer leucocitose,
Exsudativa – líquido seroso turvo. anemia e aumento da proteína C-reativa e da VHS,
Fibrino-purulenta – presença de fibrina e pus livre. todos inespecíficos. A ultrassonografia pode eviden-
Abscessos – presença de pus em loja formada por es- ciar o abscesso, porém, o faz somente em até 60%
truturas adjacentes (epíplon, alças intestinais). dos casos. O diagnóstico de certeza, atualmente, é
conseguido pela tomografia computadorizada de
Verifica-se que a descompressão brusca dolorosa
abdome, que mostrará o psoas aumentado de tama-
positiva está presente no local da inflamação, ou ainda
pode-se apresentar de forma difusa. nho e com alterações parenquimatosas, mostrando a
coleção purulenta.
Deve-se realizar o toque vaginal ou retal, pro-
curando abaulamento doloroso no fundo do saco de O tratamento está baseado na antibioticote-
Douglas, que indica a existência de coleção líquida in- rapia e drenagem do abscesso. Essa drenagem pode
flamatória do peritônio. ser feita por punção percutânea ou cirurgicamente por
Neste grupo, destacaremos o abscesso de psoas, um acesso retroperitoneal através de incisão na região
não por ser o mais relevante, mas para termos a opor- do flanco. Ultimamente, a drenagem por punção
tunidade de lembrá-lo, já que as causas mais notórias vem sendo cada vez mais realizada e com excelen-
de abdome agudo inflamatório, apendicite aguda e pan- tes resultados, e a via cirúrgica está sendo reserva-
creatite aguda serão abordadas em módulos distintos. da para os casos em que a punção percutânea não
foi efetiva.

Abscesso de psoas
Pode ser classificado em primário e secundário. Abdome agudo obstrutivo
Os primários são decorrentes da disseminação he-
matogênica de processo infeccioso de alguma região Pode ser definido como o impedimento à pro-
oculta do corpo e tem como causas mais comuns o dia- gressão do conteúdo do intestino. Pode ocorrer em
betes, uso de drogas endovenosas, Aids, insuficiência decorrência de um obstáculo mecânico ou mecanismo
renal e imunossupressão. O secundário ocorre como funcional.

SJT Residência Médica – 2016


148
Cirurgia geral e politrauma

Miscelânea (9%) Para facilitar o entendimento será realizada a divi-


são baseada na localização da obstrução. As obstruções
Neoplasias (10%) de delgado são consideradas altas e as de cólon baixas,
embora obstruções de íleo terminal possam apresentar
manifestações clínicas similares as de cólon.
Na obstrução alta, a história clínica e o exame
Aderências (56%) físico podem contribuir para identificar a causa de
Hérnias (25%) obstruções de delgado. Os pacientes associam com
frequência a ocorrência de cirurgias abdominais ante-
riores a aderências e bridas. No exame físico, deve-se
verificar a presença de hérnias de parede abdominal
Miscelânea (10%)
que possam ter relação com a causa da obstrução. Os
Doença pacientes submetidos à radioterapia têm possibilida-
diverticular (10%) de de evoluir, mesmo após alguns anos, com enteri-
te actínica que pode produzir quadro obstrutivo. Na
obstrução alta, o sintoma predominante são vômitos
amarelo-esverdeados e precoces. O distúrbio hidroele-
trolótico e acidobásico clássico é alcalose metabólica
Neoplasias Vólvulo (20%)
(60%) cloropênica e hipopotassêmica.
Na obstrução baixa, observam-se vômitos mais
tardios, de coloração amarelada e, posteriormente, de
Figura 9.25 Etiologias de obstrução do IG. aspecto fecaloide. O sintoma predominante é a disten-
são abdominal. A obstrução baixa é decorrente do acú-
A obstrução intestinal é mais frequente no mulo de gases e de líquido entérico, que são impedidos
intestino delgado, em razão das bridas ou aderên- de progredir por obstrução ou adinamia dos segmen-
cias pós-operatórias. Pode ser simples ou complica- tos intestinais. Quando há alteração hidroeletrolítica
da pelo fato de ocorrer ou não sofrimento vascular e, e acidobásica o esperado é acidose metabólica com
ainda, estar associada à perfuração e peritonite, inde- hiperpotassemia, hiponatremia e hipocloremia.
pendentemente da localização. A dilatação extrema dos segmentos intestinais
As alterações anatomofuncionais mais rele- pode levar à isquemia, necrose e perfuração. Nas si-
vantes são: tuações de obstrução de cólon em alça fechada, ob-
Interrupção ou alteração intensa e grave do gra- servada nos pacientes com tumores obstrutivos do
diente pressórico da motricidade intestinal: os movi- cólon esquerdo ou sigmoide que apresentam a válvula
mentos do sistema gastrointestinal serão alterados no ileocecal continente (VICC), ocorre dilatação progres-
sentido da não execução do isoperistaltismo, em segui- siva do cólon e aumento da pressão intraluminal, com
da, instalação do antiperistaltismo e, por fim, paralisia. comprometimento da circulação. O fato de a parede
do cólon direito ser menos espessa em relação ao es-
Processo obliterativo venoso, arterial e linfáti- querdo, com a VICC, nas grandes dilatações, facilita a
co com alteração inflamatória e funcional dos nervos ocorrência de perfuração do ceco. A VICC está presen-
da região ocluída: há perturbação da nutrição da região te em aproximadamente 75% dos pacientes.
ocluída e que mais tarde acaba necrosando, tornando-se
permeável e facilitando a contaminação peritoneal.
Perturbações metabólicas prolixas podem ge-
rar choque vasogênico, que se soma ao neurogênico Abdome agudo hemorrágico
inicial. A irreversibilidade pode levar à morte.
As obstruções intestinais produzem quadro clí-
(AAHE)
nico variável, o qual depende de diversos fatores: lo-
calização, tempo de obstrução, sofrimento ou não de O abdome agudo traumático é acrescentado na
alça, presença ou ausência de perfuração, grau de con- seção de AAHE em alguns livros. Este assunto será
taminação e condição clínica do paciente. abordado no capítulo de Trauma Abdominal.
Os sintomas habituais são: dor abdominal em As causas mais frequentes de AAHE são: gra-
cólica de início surdo, seguida de náuseas, vômitos e videz ectópica, rotura de aneurisma abdominal, cisto
parada da eliminação de gases e fezes. A cólica sugere hemorrágico de ovário, rotura de baço, endometriose.
patologia obstrutiva em víscera oca. Os ruídos hidro- Os distúrbios fisiopatológicos são proporcionais
aéreos (RHA) com aumento do timbre e da frequência à perda. O quadro hemodinâmico do AAHE reflete a
são percebidos nos quadros obstrutivos. perda aguda de sangue. Em sua forma mais exuberan-

SJT Residência Médica – 2016


149
9 Abdome agudo

te, traduz-se pelo choque hemorrágico, definido pela tos por minuto, mas a pressão arterial mantém-se
perfusão tecidual deficiente. Entretanto, os sinais e normal. Sangramento entre 1.500 mL e 2.000 mL
sintomas variam conforme o volume perdido e a ve- provoca hipotensão arterial e aumento da FC, carac-
locidade da perda sanguínea e as condições físicas do terísticas do choque classe III, e caracteriza instabi-
paciente. No adulto, a perda de até 750 mL de sangue, lidade hemodinâmica. No choque classe IV, o volume
considerado choque classe I, não altera a pressão nem de sangramento é acima de 2.000 mL e a situação é de
a frequência cardíaca (FC), ainda que, ocasionalmen- extrema gravidade. A presença de instabilidade hemo-
te, provoque hipotensão postural. No choque classe dinâmica pode implicar risco de morte e é necessário o
II, com perda de sangue entre 750 mL e 1.500 mL, o controle cirúrgico imediato da hemorragia para preve-
doente apresenta taquicardia acima de 100 batimen- nir maiores perdas sanguíneas.

Classes do choque hemorrágico segundo o American College of Surgeons


Classe I Classe II Classe III Classe IV
Perdas (mL) < 750 750-1.500 1.500-2.000 > 2.000
Perdas (%) relativas à vo-
< 15% 15%-30% 30%-40% > 40%
lemia
Frequência cardíaca < 100 bpm > 100 bpm > 120 bpm > 140 bpm
Pressão arterial Normal Normal Diminuída Diminuída
Pressão do pulso Normal Diminuída Diminuída Diminuída
Frequência respiratória 14%-20% 20%-30% 30%-40% > 35%
Diurese (mL/h) > 30 20-30 5-15 Desprezível
Estado neurológico Ansioso Agitado Confuso Letárgico
Tabela 9.4 À medida que ocorre maior perda volêmica, os sinais se intensificam. Observa-se que a hipotensão
ocorre apenas em choque classe III. Adaptada de American College of Surgeons.

Os sinais e sintomas decorrentes de hemorragia


intra-abdominal são incaracterísticos e podem passar Abdome agudo vascular
despercebidos quando o sangramento é lento ou resul-
A expressão “abdome agudo vascular” engloba
ta na perda de menos de 15% da volemia.
uma ampla variedade de situações fisiopatológicas, a
Na hemorragia intra-abdominal, súbita, maciça e qual é resultante de um inadequado fornecimento de
contínua, o paciente apresenta-se letárgico ou coma- oxigênio para o intestino. Essas situações podem va-
toso, com pele pálida e lívida, de aspecto céreo. riar de uma lesão reversível de mucosa a um catastró-
fico e extenso infarto transmural do intestino com ne-
A dor é de início súbito, sendo curto o intervalo
crose. A apresentação clínica pode variar amplamente
de tempo para a procura de atendimento. Predomi- desde a ausência de sinais e sintomas até a clássica
nam os sintomas de hipovolemia (hipotensão, sudo- apresentação de dor abdominal de início súbito, des-
rese fria); palidez cutaneomucosa; taquicardia; pulso proporcional aos achados do exame clínico. De forma
fino e hipotensão. Como o sangue, em função de seu geral, a insuficiência vascular intestinal pode ser divi-
pH, não é tão irritante ao peritônio, o abdome apre- dida em crônica, que é representada pela angina ab-
senta-se flácido, doloroso difusamente, com sinal de dominal, ou aguda, situação das mais dramáticas, que
irritação peritoneal, porém, sem defesa ou contratura. pode evoluir rapidamente para o infarto intestinal.
As três principais causas de isquemia intesti-
Equimoses na cicatriz umbilical (sinal de Cullen)
nal aguda são:
e na região dos flancos (sinal de Gray-Turney) descri-
l. Oclusão da artéria mesentérica superior por
tos na pancreatite aguda sugerem hemorragia intrape-
trombose (de 15% a 20%) ou por um êmbolo (50%).
ritoneal e retroperitoneal, respectivamente. A obtenção
pormenorizada da história e do exame físico permite 2. Trombose da veia mesentérica superior (5%).
suspeitar da presença do AAHE e de sua possível etio- 3. Isquemia mesentérica não oclusiva (de 20% a 30%).
logia, orientando os procedimentos de reanimação e as O diagnóstico precoce dos quadros de abdome
etapas diagnósticas e terapêuticas apropriadas. agudo vascular envolve o reconhecimento da popu-

SJT Residência Médica – 2016


150
Cirurgia geral e politrauma

lação de risco e um alto índice de suspeita clínica. O


quadro clínico, algumas vezes, permite diferenciar as Diagnóstico diferencial
eventuais causas de isquemia mesentérica aguda.
Abdome agudo não é sinônimo de cirurgia.
Dor abdominal incaracterística, de início súbi- Existem formas clínicas de abdome agudo em que a
to e intenso, presença de arteriopatia obstrutiva em cirurgia não está indicada e outras em que a explora-
outros territórios e antecedentes de dor abdominal ção operatória está formalmente contraindicada. Nos
pós-prandial que melhora com o jejum podem sig- melhores serviços de emergência, o índice de acerto
nificar oclusão arterial, bem como a associação com no que se refere ao diagnóstico etiológico correto de
lesões cardíacas produtoras de arritmia ou lesões abdome agudo fica em 80%.
arteriais proximais. É essencial que se proceda a uma anamnese
bem feita, não raro com auxílio de elementos da fa-
Quanto ao exame clínico desses pacientes, o si-
mília ou de um acompanhante, dada a eventual inca-
nal mais comum é a distensão abdominal com claro
pacidade do doente de fornecer informações. O exa-
timpanismo, os sinais de irritação peritoneal difusa
me físico tem de ser minucioso, geral, não devendo
são tardios e, nas fases iniciais, quase sempre ausen- voltar-se exclusivamente ao abdome, mas ser abran-
tes (“dor desproporcional ao exame clínico do ab- gente e completo. A facilidade com que se realizam
dome”). Ao toque retal, pode-se notar a presença de exames complementares, como os de diagnóstico
fezes sanguinolentas, principalmente se a necrose es- por imagem, e que, erroneamente, são considerados
tiver instalada. Nos casos mais graves, com infarto ex- como definitivos, pode estar concorrendo para uma
tenso, os pacientes se apresentam com respiração do atitude totalmente equivocada. Não se contesta o va-
tipo acidótica, taquicárdicos e desidratados. lor dos exames complementares, porém, como o pró-
prio termo indica, eles apenas complementam uma
anamnese bem colhida, um exame físico completo,
e, o que é mais importante, um diagnóstico de que já
se suspeita.
Apesar da perfeição que se exige no exame do
doente e do critério na solicitação e interpretação dos
exames complementares, o diagnóstico etiológico,
não raro, é impossível. Por essa razão, que é importan-
te reavaliar o doente.
Esgotados todos os recursos para que se possa
chegar a um diagnóstico etiológico preciso, cabe ao ci-
rurgião estabelecer um de dois caminhos a serem segui-
dos: submeter o paciente à exploração cirúrgica ou não.
Figura 9.26 Isquemia arterial mesentérica: fase pre- Várias moléstias podem simular abdome agu-
coce. do cirúrgico, com o quadro clínico que se caracteriza
por dor abdominal, febre, alterações do trânsito e
manifestações que simulam peritonites: dor à pal-
pação, sinais de peritonismo (não de peritonite) e
modificações relativas aos RHA. Uma classificação
é difícil. Segue uma enumeração, separando-as pela
origem provável:

Torácicas
Infarto do miocárdio.
Pneumonia de lobo inferior.
Infarto pulmonar.
Pericardite aguda.
Pneumotórax.
Embolia pulmonar.
Hematológicas
Figura 9.27 Isquemia arterial mesentérica: fase tar- Crise falciforme.
dia. Observe o grave sofrimento vascular. Leucemia aguda.

SJT Residência Médica – 2016


151
9 Abdome agudo

Neurológicas toxicação) e de coproporfirina III na urina deman-


dam alguns dias. Assim, apenas uma boa anamnese,
Herpes-zóster.
principalmente sob o ponto de vista profissional, pode
Compressão de raiz nervosa.
permitir uma suspeita diagnóstica correta.
Tabes dorsal.
Metabólicas O tratamento da fase aguda, sobretudo das có-
licas, se faz com antiespamódicos, aos quais se pode
Cetoacidose diabética.
associar gluconato de cálcio por via endovenosa.
Porfiria intermitente aguda.
Crise addisoniana.
Hiperlipoproteinemia.
Relacionadas e tóxicas
Intoxicação por chumbo (saturismo).
Abstinência de narcóticos.
Picadas de cobras ou insetos.
Etiologia desconhecida
Fibromialgia.
Tabela 9.5 Causas extra-abdominais mais comuns
em abdome agudo.

A investigação clínica criteriosa (anamnese, Figura 9.28 Sinal de Burton (saturnismo).


exame físico) permite que se faça uma hipótese de
diagnóstico, na maioria dos casos. Porém, em várias
situações, os exames complementares, laboratoriais
ou de imagem são indispensáveis para confirmar o
diagnóstico principal e diferenciar as doenças que si-
mulam o abdome agudo, ou como forma auxiliar no
Causas metabólicas
planejamento cirúrgico.
Cetoacidose diabética
A descompensação do diabético com acidose
pode levar a um quadro clínico caracterizado por fe-
Causas exógenas de abdome bre, náuseas e vômitos, dor abdominal intensa, sinto-
agudo (Atenção!) mas e sinais de desidratação e alteração do estado de
consciência que pode chegar ao coma. O exame físico,
além dos sinais neurológicos e da desidratação, pode
revelar dor à palpação do abdome, defesa e até sinais
Intoxicação pelo chumbo de irritação peritoneal, consequência da acidose e
A intoxicação pelo chumbo (saturnismo) ocorre desidratação. Ainda mais uma vez, a anamnese é deci-
de maneira crônica por inalação (mais comum), conta- siva para o diagnóstico.
to, ou por via digestiva. Esta moléstia é relativamente É preciso diferenciar a dor abdominal da cetoa-
frequente na indústria automobilística, de tintas e ba- cidose diabética (CAD) daquela decorrente de outras
terias para automóveis. O quadro clínico é caracteriza- patologias clínicas como pielonefrite, pancreatite ou
do por anemia, dores abdominais em cólicas, náuseas apendicite aguda, que podem ter sido precipitadas pela
e vômitos e, às vezes, astenia e surtos diarreicos. cetoacidose. Caso a dor abdominal seja consequência da
Nas crises agudas, a palpação superficial e pro- cetoacidose, deve desaparecer rapidamente com o tra-
funda do abdome é extremamente dolorosa, embora tamento da mesma, como demonstrado nos dois exem-
não existam sinais de irritação peritoneal. Os RHA plos dados. Não é raro que a amilase sérica esta elevada
podem estar aumentados. O exame físico geral reve- inespecificamente, tornando difícil o diagnóstico de
la palidez cutaneomucosa, ausência de febre, tendên- pancreatite. Dor persistente no abdome. após correção
cia à hipertensão arterial e presença de linha azul de da cetoacidose requer, contudo, atenção médica.
Burton nas gengivas. O quadro clínico lembra abdo-
me agudo obstrutivo alto, desde que não se encontre
distensão abdominal, e o vômito é precoce e abun-
dante. O diagnóstico exato pode ser obtido dentro
Uremia
de alguns dias, já que as dosagens de chumbo no Quadro clínico de insuficiência renal com uremia
sangue (acima de 0,08 mg/100 mL é indicativo de in- e acidose metabólica pode determinar o aparecimento

SJT Residência Médica – 2016


152
Cirurgia geral e politrauma

de dor abdominal, alteração do trânsito intestinal com com analgésicos, bem como com glicose e hemati-
distensão, parada da eliminação de gases e fezes, náu- na intravenosas. Um mínimo de 300 g de carboidra-
seas e vômitos, que podem simular o abdome agudo tos por dia deve ser fornecido por via oral ou intra-
cirúrgico obstrutivo. O exame do abdome mostra dis- venosa. O balanço eletrolítico requer mais atenção.
tensão, palpação superficial e profunda dolorosas, au- A terapia com hematina está ainda em desenvolvi-
sência de sinais de irritação peritoneal, RHA escassos mento e deve ser utilizada com o reconhecimento
ou ausentes. A investigação de outros sintomas como pleno de consequências adversas, especialmente
oligúria ou anúria, passado renal e crises hipertensi- flebites e coagulopatias. A dosagem intravenosa é
vas, pode orientar o diagnóstico correto. Como exa- de até 4 mg/kg uma ou duas vezes ao dia.
mes complementares, a ureia e creatinina elevadas,
aliadas ao quadro de edema, oligúria ou anúria, são
bons indicadores da origem do quadro abdominal. O
tratamento adequado baseia-se na abordagem da do-
ença subjacente. Hemopatias agudas

Anemia falciforme
Por昀椀ria aguda intermitente A anemia de células falciformes é a hemoglo-
(AIP) binopatia mais prevalente no Brasil, predominando
É uma doença hereditária, rara, que se caracte- na raça negra. As manifestações da doença surgem
após o sexto mês de vida extrauterina, quando toda
riza fundamentalmente por distúrbios dos pigmen-
tos tetrapirólicos, em crises, com eliminação de uri- população de hemoglobina é padrão SS (não há hemo-
na característica com cor de vinho do Porto. As crises globina A) e se caracteriza por anemia crônica, surtos
podem ser espontâneas ou provocadas por determi- de hemólise seguidos de febre e dor multissistêmica
nados medicamentos (anticoncepcionais, fenitoína, decorrente dos fenômenos vaso-oclusivos. A dor ab-
barbitúricos, rifampicina e ácido valproico). Clinica- dominal, quando de grande intensidade, pode simular
abdome agudo cirúrgico, principalmente em crianças,
mente, caracteriza-se por crises de dor abdominal
cujo exame físico é difícil. A história clínica e familiar
em cólica, de grande intensidade, acompanhada de
conduz, geralmente, ao diagnóstico correto, evitando-
náuseas e vômitos, distensão abdominal e parada
-se assim uma laparatomia branca.
da eliminação de gases e fezes. Ao exame físico nota-
-se dor à palpação, defesa voluntária e ausência ou re-
dução de RHA. O quadro clínico propedêutico lembra
em tudo uma obstrução intestinal com sofrimento de
alça. A maioria dos doentes possui uma ou mais inter-
venções cirúrgicas que redundaram em laparotomias
Outras moléstias
não terapêuticas.
Do ponto de vista laboratorial, frequentemente Febre Familiar do Mediterrâneo
observamos hiponatremia grave. O diagnóstico pode
ser confirmado pela demonstração, na vigência das
(FFM)
crises agudas, de quantidades aumentadas de porfo- Também conhecida como polisserosite fami-
bilinogênio na urina. Uma amostra de urina recente liar recorrente ou peritonite periódica. Trata-se
pode apresentar cor normal, mas se torna escura se de uma rara doença recessiva autossômica de pato-
deixada exposta ao meio ambiente. genia desconhecida que afeta quase que exclusiva-
mente indivíduos com ascendentes originários do
A maioria das famílias apresenta uma mutação
Mediterrâneo, especialmente judeus sefardis, ar-
diferente no gene para a porfobilinogênio desamina-
mênios, turcos e árabes. A maioria dos pacientes
se, causando porfiria aguda intermitente. Com algum
se apresenta com sintomas antes dos 20 anos. É
esforço em laboratórios de pesquisa, mutações podem
caracterizada por episódios de crises agudas de pe-
ser descobertas e utilizadas para os diagnósticos pré-
ritonite, que pode estar associada com serosite
-sintomático e pré-natal.
envolvendo as articulações e a pleura. As crises
O tratamento com dieta rica em carboidra- peritoneais são caracterizadas por início súbito de
tos reduz uma série de crises em alguns pacientes, febre, dor abdominal grave e sensibilidade abdo-
constituindo-se em medida empírica razoável por minal, com defesa ou dor à descompressão. Se dei-
sua benignidade. Crises agudas podem ser letais, xadas sem tratamento, as crises se resolvem em
requerendo diagnóstico imediato, suspensão dos 24-48 horas. Como os sintomas lembram aqueles
agentes desencadeantes (se possível) e tratamento da peritonite cirúrgica, os pacientes podem ser sub-

SJT Residência Médica – 2016


153
9 Abdome agudo

metidos a uma laparotomia exploratória desneces-


sária. Demonstrou-se que a colchicina, 0,6 mg duas Indicação cirúrgica
ou três vezes ao dia, pode reduzir a frequência e a
gravidade das crises. O interferon (três milhões de Quando o diagnóstico etiológico é possível, a in-
unidades) administrado no início de uma crise pode dicação cirúrgica é feita com segurança. Calcula-se que
entre os doentes com dor abdominal, os idosos (acima
também melhorar os sintomas. A amiloidose se-
de 65 anos) são mais frequentemente operados do que
cundária com envolvimento renal ou cardíaco pode
adultos jovens (15%).
ocorrer em 25% dos casos; colchicina pode prevenir
seu desenvolvimento. Na ausência de amiloidose, Não é infrequente que, após certo período de ob-
o prognóstico é excelente. O gene responsável pela servação, o quadro clínico se torne mais claro ou no-
FFM foi identificado e clonado, e o diagnóstico pode vos exames complementares possam defini-lo melhor.
ser estabelecido por meio de avaliação genética A desidratação e hipovolemia devem ser tratadas
(gene MEFV localizado no braço curto do cromosso- por medidas apropriadas, utilizando-se os parâmetros
mo 16 e que codifica uma proteína anti-inflamató- clínicos, fisiológicos e laboratoriais necessários, e com
ria denominada pirina). a rapidez que o caso exige. A não ser em condições de
extrema urgência, nenhum doente deve ser operado
sem ter restabelecido suas condições fisiológicas.
Infarto agudo do miocárdio.
A sonda nasogástrica deve ser realizada especial-
Pericardite. mente nas obstruções intestinais mecânicas ou na-
Pneumonia lobar inferior quelas situações em que existe íleo adinâmico acentu-
ado. O esvaziamento gástrico visa prevenir a aspiração
Herpes zoster.
pulmonar durante a indução anestésica, bem como re-
Anemia falciforme. duzir a distensão abdominal e facilitar a cirurgia.
Porfiria. O tratamento das diversas causas de abdome agu-
Cetoacidose diabética.
do cirúrgico será detalhado em outros módulos da clí-
nica cirúrgica de acordo com a agenda de aulas 2014.
Intoxicação pelo chumbo.
Aguarde os módulos de cirurgia do Aparelho Digestivo.

Dor abdominal aguda

1o Estágio

– Anamnese
– Exame físico

– Investigação complementar
básica, incluindo USG
– Diagnóstico diferencial

Diagnóstico definido

SIM NÃO
2o Estágio

Tratamento específico – Avaliação clínica


– TC helicoidal

Diagnóstico definido

SIM NÃO
3o Estágio

Tratamento específico – Laparoscopia


– Laparotomia

Figura 9.29 Algoritmo com sugestão objetiva de abordagem da dor abdominal.

SJT Residência Médica – 2016


154
Cirurgia geral e politrauma

Resumo dos principais sinais do exame de abdome agudo


Sinal Descrição Diagnóstico/condição
Sinal de Aaron Dor ou pressão no epigástrio ou tórax anterior com pressão fir- Apendicite aguda
me persistente aplicada ao ponto de McBurney.
Sinal de Bassler Dor aguda criada pela compressão do apêndice entre a parede ab- Apendicite crônica
dominal e o ilíaco.
Sinal de Blumberg Sensibilidade transitória em rebote na parede abdominal. Inflamação peritoneal
Sinal de Carnett Perda da sensibilidade abdominal quando os músculos da parede ab- Fonte intra-abdominal de
dominal são contraídos. dor abdominal
Sinal de Chandelier Dor extrema abdominal inferior ou pélvica com movimento da Doença inflamatória pélvica
cérvice.
Sinal de Charcot (trí- Dor abdominal superior direita intermitente, icterícia e febre. Colecistite aguda
ade)
Sinal de Claybrook Acentuação dos ruídos cardíacos e respiratórios pela parede ab- Víscera abdominal rota
dominal.
Sinal de Courvoisier Vesícula palpável e indolor na presença de icterícia. Tumor periampular
Sinal de Cruveilhier Veias varicosas periumbilicais (caput medusae). Hipertensão portal
Sinal de Cullen Equimose periumbilical. Hemoperitônio/Pancreatite
necro-hemorrágica
Sinal da Danforth Dor no ombro à inspiração. Hemoperitônio
Sinal de Fothergill Massa da parede abdominal que não cruza a linha média e per- Hematomas do músculo
manece palpável quando o reto está contraído. reto
Sinal de Grey Turner Equimose em torno dos flancos. Pancreatite hemorrágica agu-
da/Hemoperitônio
Sinal do Iliopsoas Elevação e extensão da perna contra resistência provoca dor. Apendicite com abscesso
retrocecal
Sinal de Kehr Dor do ombro esquerdo quando em posição supina e pressão Hemoperitônio (especial-
aplicada no abdome superior esquerdo. mente de origem esplênica)
Sinal de Mannkopf Pulso aumentado quando o abdome doloroso é palpado. Ausência de malignidade
Sinal de Murphy Dor causada pela inspiração, enquanto se aplica pressão ao ab- Colecistite aguda
dome superior direito.
Sinal do Obturador Flexão e rotação externa da coxa direita em posição supina pro- Abscesso pélvico ou massa
voca dor hipogástrica. inflamatória na pelve
Sinal de Ransohoff Descoloração amarela da região umbilical. Ducto biliar comum rom-
pido
Sinal de Rovsing Dor no ponto de McBurney quando se comprime o abdome in- Apendicite aguda
ferior esquerdo.
Sinal de Ten-Horn Dor causada por tração suave do testículo direito. Apendicite aguda
Sinal de Fox Equimose na base do pênis Pancreatite necro-hemor-
rágica
Tabela 9.5

Alcançar consiste em 3 passos: Querer, lutar e realizar. Isto é possível.


Hellena Zimmermann – Cirurgiã Geral

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

10
Hérnias

Ligamento de Cooper – é uma faixa fibrosa, re-


De昀椀nição sistente, que se estende lateralmente por cerca de 2,5
cm ao longo da linha iliopectínea, na face superior do
Consiste na protrusão anormal de um saco ramo pubiano superior, tendo início na base lateral do
com revestimento peritoneal, através da cobertu- ligamento lacunar.
ra musculoaponeurótica do abdome. A fraqueza da
Ligamento inguinal (ligamento de Poupart) –
parede abdominal, de origem congênita ou adquirida, porção mais grossa e inferior da aponeurose do oblí-
resulta na incapacidade de manter o conteúdo visceral quo externo.
da cavidade abdominal em seus locais normais.
Ligamento lacunar (Gimbernat) – possui cerca de
1,25 cm de comprimento e tem a forma triangular. A bor-
da lateral aguda, semilunar, deste ligamento é a armadilha
inflexível para o estrangulamento de uma hérnia femoral.
Pontos anatômicos de Ligamento de Henle – situado no nível da borda
importância lateral do músculo reto do abdome, formando limite me-
dial do anel femoral.
Anel inguinal externo – defeito medial no oblíquo Espaço pré-peritoneal – entre a fascia transversalis
externo, acima do tubérculo pubiano que dá passagem e o peritônio.
do cordão espermático ao escroto. Fascia transversalis – lâmina que recobre o mús-
Anel inguinal interno – defeito na fascia trans- culo transverso do abdome e sua aponeurose. Separa a
versalis e aponeurose do TA, a meio caminho entre o parede abdominal da gordura pré-peritoneal.
púbis e a espinha ilíaca anterossuperior. Trato iliopúbico – banda aponeurótica dentro
da lâmina do transverso do abdome, que faz uma pon-
Tendão conjunto – fusão das fibras aponeuróti-
te entre os vasos ileofemorais externos do arco iliopec-
cas do oblíquo interno e transverso. Ocorre em menos
tíneo até o ramo superior do púbis. O trato iliopúbico
de 10% das dissecções.
é posterior ao ligamento inguinal. Ele passa por cima
Trígono de Hesselbach – delimitado pela artéria dos vasos femorais e compõe uma porção da bainha
epigástrica inferior, borda lateral do reto abdominal e femoral. Variações no trato iliopúbico podem causar a
ligamento inguinal. formação da hérnia femoral.
Trígono de Hessert – delimitado pelo ligamento Fáscia de Camper – localizada abaixo da pele é a
inguinal, vasos epigástricos e oblíquos internos. fáscia superficial.
156
Cirurgia geral e politrauma

Fáscia de Scarpa – localizada abaixo da fáscia de Camper; é mais espessa e dirige-se à região escrotal, onde
forma a fáscia de Dartos.
Triângulo de Doom (triângulo vascular) – delimitado pelo ducto deferente medialmente e os vasos
espermáticos lateralmente contendo a veia e artéria ilíaca externa.
Funículo espermático – contém: músculo cremáster, ducto deferente, veia plexo pampiniforme, ramo genital
do nervo genitofemoral, artérias e veias testiculares, nervo ilioinguinal. Na mulher, não existe funículo espermático; o
que se tem é o ligamento redondo.

Estrutura herniária básica


Orifício herniário
Saco herniário
Colo do saco herniário
Conteúdo do saco herniário

1
5
2 6

3 7

8
4

Figura 10.1 Estrutura herniária básica. (1) Desenho esquemático mostrando a pele; (2) a parede do saco herniário;
(3) a cavidade do saco herniário; (4) o conteúdo do saco herniário; (5) o colo do saco herniário e o orifício herniário; (6)
o peritônio parietal; (7) a cavidade peritoneal; e (8) e o plano muscular. Colo é a parte mais estreita do saco herniário.
Orifício herniário é o espaço que, originado no ponto fraco, permite a saída de estrutura intra-abdominal.

Triângulo de Hesselbach
Músculo Reto (hoje)

Triângulo de Artéria
Hesselbach epigástrica Ligamento inguinal
(1814) profunda
Músculo iliopsoas

Artéria femoral
Veia femoral
Ligamento pectíneo
(de Cooper)
Ligamento lacunar

Figura 10.2 O triângulo de Hesselbach segundo a descrição original (à esquerda) e segundo a descrição atual.

SJT Residência Médica – 2016


157
10 Hérnias

Músculo oblíquo Músculo transverso abdominal


externo Fascia transversalis
(lâmina posterior)
Artéria e veia epigástrica transversal
Fascia transversalis (lâmina posterior)

Músculo oblíquo Anel inguinal secundário


interno

Canal inguinal interno

Anel abdominal
Canal interno
inguinal
Artéria e veia
ilíaca externa

Trato iliopúbico

Figura 10.3 Diagrama parassagital clássico de Nyhus da região médio-inguinal direita ilustrando as camadas muscu-
loaponeuróticas separadas nas paredes anterior e posterior. A lâmina posterior da fascia transversalis foi adicionada, com os
vasos epigástricos inferiores cursando através da parede abdominal medialmente ao canal inguinal interno.

Área de
hérnia direta

Área de
hérnia indireta

Anel
inguinal
interno

Borda do
Tubérculo V. E. I. ligamento
púbico inguinal

T. I. P.

Ligamento
de Cooper
V. G.
Canal
femoral

V. I. E.
D. D.

Figura 10.4 Anatomia das estruturas pré-peritoneais importantes no espaço inguinal direito. VEi: vasos epigástricos
inferiores; TIP: trato iliopúbico; DD: ducto deferente; VG: vasos gonadais; e VIS: vasos ilíacos externos.

SJT Residência Médica – 2016


158
Cirurgia geral e politrauma

Na verdade, muito se escreveu da anatomia sobre


a hérnia, mas foi somente a partir do fim da década de
1950 que, graças a Henry Fruchaud, entendeu-se o con-
ceito de região inguinocrural, determinando uma área
chamada orifício miopectíneo, limitada cranialmente
pelos músculos transverso e oblíquo interno, medial-
mente pelo músculo reto do abdome, lateralmente
pelo músculo iliopsoas, e caudalmente pelo ligamen-
to pectíneo, que recobre o ramo superior do púbis.

Figura 10.5 Ponto fraco da parede abdominal. Em 1,


a fosseta inguinal lateral, mostrando o funículo esper-
mático, o qual se relaciona com o anel inguinal profun-
do; em 2, a fosseta inguinal média.

Figura 10.8 A musculatura posterior do trígono ingui-


nal e a fáscia transversal. 1: Músculo reto do abdome; 2:
músculo transverso; 3: trato iliopúbico; 4: músculo iliop-
soas; 5: ligamento pectíneo; e 6: forame obturatório.

A hérnia inguinal do adulto, principalmente a


partir da década de 1980, não é mais entendida como sim-
ples artefato mecânico, em que uma solução de continui-
dade ocorre na parede abdominal, mas é a patologia que
Figura 10.6 Ponto fraco da parede abdominal. Ob- ocorre à luz de conceitos de biologia celular e mole-
serva-se o triângulo ou quadrilátero de Grynfeltt (1), cular com alterações moleculares do colágeno e das
cuja nomenclatura oficial é trígono lombar superior, e fibras elásticas integrantes da matriz extracelular,
um vaso local (2), que debilita mais ainda a região. componente soberano da fáscia transversal.
Esta concepção atual agora justifica a associação de
hérnias com doenças como: tabagismo, sobrepeso, prosta-
tismo, emagrecimento acentuado, aterosclerose, afecções
que podem acompanhar a doença herniária inguinal.

Incidência e prevalência
Nomenclatura Incidência (%)
Hérnias inguinofemorais 75
Hérnias umbilicais 10
Hérnias incisionais 10
Hérnias epigástricas 5
Hérnias de Spigel 5
Figura 10.7 Ponto fraco da parede abdominal. Hérnias paraestomais 5
Notam-se: hérnia lombar superior (1, Grynfeltt), trígono Tabela 10.1 Incidências das hérnias da parede ab-
lombar inferior (2) e hérnia lombar inferior (3, Petit). dominal.

SJT Residência Médica – 2016


159
10 Hérnias

A distribuição epidemiológica aqui descrita se re- Indireta ou oblíqua externa – mais comum
fere a doentes adultos, pois, se considerarmos toda a delas, principalmente em homens. Acontece pela per-
população, vale dizer, incluindo a faixa etária pediátri- sistência do conduto peritoniovaginal (CPV). Ocorre
ca, a hérnia inguinal atinge cifras de 83%. porque não há a obliteração do processo vaginal que é
o caminho peritoneal que o testículo faz descendo até
A hérnia inguinal representa 69% da doen-
ça herniária do adulto. A distribuição, segundo o
a bolsa escrotal. O saco herniário passa através do anel
sexo estabelece, 80% dos casos atingindo homens
inguinal interno, em posição anteromedial dentro do
e 20% mulheres. funículo espermático, podendo estender-se ao longo
do canal inguinal ou seguir para fora pelo anel ingui-
Quando analisamos a distribuição quanto à faixa nal externo. O saco herniário está lateral aos vasos
etária, podemos afirmar que 35% das hérnias ingui- epigástricos inferiores.
nais ocorrem entre os 20 e 40 anos e os 65% restan-
tes estão distribuídos a partir dos 40 anos.
Quanto à topografia, em homens até os 40
anos, temos a predominância de hérnia inguinal
à direita, com 65% dos casos, 28% à esquerda e 7%
bilateral. Na mulher, nesta mesma faixa etária, 13%
são bilaterais e as unilaterais são distribuídas ho-
mogeneamente à direita e à esquerda. Nos homens
com idade superior a 40 anos, 40% são bilaterais e
a distribuição unilateral, seja à direita ou à esquerda,
se equivalem.
As hérnias crurais ou femorais (tipo V da clas-
sificação de Rodrigues Jr./Campanha Nacional do
Mutirão de Hérnia Inguinal do Ministério da Saú-
de, 1999) são mais comuns na mulher do que no
homem, na proporção de 4 para 1 e na faixa etária
acima dos 40 anos. Ela também é duas vezes mais
frequente à direita.
Figura 10.9 Volumosa hérnia inguinoescrotal.
Quando analisamos pacientes portadores de
hérnia inguinal com mais de 60 anos, representando
cerca de 18% do total de doentes com hérnia inguinal,
é mito não oferecer possibilidade de correção, pois a Direta ou oblíqua interna – resulta do enfra-
maioria apresenta indicação cirúrgica. quecimento da parede posterior (fascia transver-
salis). Tem como local de menor resistência a fosse-
ta peritoneal média. O saco herniário é medial aos
Características das Hérnias Inguinais
vasos epigástricos inferiores, através do trígono de
Indiretas Diretas
Hesselbach. Por isso, a hérnia direta é chamada hérnia
Congênitas Adquiridas do trígono de Hesselbach. O saco peritoneal se desen-
Homem jovem Homem mais idoso volve perpendicularmente à parede abdominal. Qual-
Aparece lentamente Aparece rapidamente quer condição que demande muito esforço muscular
Pode chegar à bolsa escrotal Raramente chega à bolsa e/ou aumento de pressão abdominal pode resultar em
escrotal
hérnia direta: obesidade, ascite e atrofia dos músculos
Pode estrangular É muito raro estrangular
abdominais por velhice.
Difícil a redução espontânea Redução espontânea
Tabela 10.2 Características das hérnias inguinais, se- Mista ou Pantaloon – coexiste hérnia direta e
gundo fatores predisponentes. Atenção! indireta.
Femoral – saco herniário passa por trás do liga-
mento inguinal e insinua-se por meio do anel femoral,
por dentro da bainha dos vasos femorais. Das hérnias
estranguladas, a femoral é de grande frequência e, ain-
Classi昀椀cação das hérnias da, pode ocorrer com hérnia de Richter.
Hérnia de deslizamento – parte da parede do
Apesar de não existir consenso entre os cirur- saco é a própria víscera (cólon, bexiga etc.).
giões sobre qual das classificações é a mais prática e
acreditada, é aceito que as hérnias inguinais e crurais De acordo com a classificação proposta por
podem ser classificadas como uma única deficiência: o Nyhus (1991) podemos dividir as hérnias da região
defeito da parede posterior. inguinofemoral em quatro tipos (Tabela 10.3).

SJT Residência Médica – 2016


160
Cirurgia geral e politrauma

Classificação de Nyhus De acordo com o tamanho do anel herniário, po-


dem ser pequenos (< 1,5 cm), médias (1,5 a 3-4 cm) e
I – Hérnia indireta sem alargamento do anel interno grandes (> 3-4 cm ou duas polpas digitais).
(por exemplo, hérnia na criança).
II – Hérnia indireta com alargamento do anel interno,
Conforme o tamanho do saco herniário, as hér-
nias podem ser classificadas como restritas ao canal
mas parede posterior intacta e vasos epigástricos na
inguinal, situadas além do anel inguinal externo e, por
posição anatômica esperada.
último, na bolsa escrotal.
III – Defeitos da parede posterior.
IIIA – Hérnia direta. As hérnias podem ser redutíveis ou irredutí-
IIIB – Hérnia indireta – anel interno dilatado com des- veis (encarceradas). O estrangulamento é caracteri-
truição medial da fáscia transversalis. Por exemplo, in- zado pela impossibilidade de redução associada à is-
guinoescrotais, pantaloon, hérnias de deslizamento. quemia de seu conteúdo. Na hérnia de deslizamento,
IIIC – Hérnia femoral. parte do saco herniário é constituída pela parede
de alguma víscera intra-abdominal, mais frequen-
IV – Hérnias recidivadas*.
temente o cólon, seguido da bexiga.
IVA – Direta.
IVB – Indireta.
IVC – Femoral.
IVD – Combinação de A, B e C.
Tabela 10.3 Atenção! *IV A: hérnia direta; IV B: Hérnia Etiopatogenia
indireta; IV C: hérnia femoral; e IV D: hérnia mista.
Defeitos congênitos e adquiridos são responsá-
veis pela maioria das hérnias inguinais.
Outra classificação utilizada na prática cirúrgica
é a idealizada por Junqueira Rodrigues Jr. A persistência do processo vaginal é o fator pri-
mário que desencadeia o desenvolvimento de uma hér-
nia inguinal indireta.
Classificação de Junqueira Rodrigues Jr. Prematuridade e baixo peso ao nascer são com-
Tipo 1 Presença de saco herniário lateral aos vasos provadamente fatores de risco significativos.
epigástricos profundos. Anel inguinal profun-
Anormalidades congênitas, como deformi-
do < 1 cm. Assoalho do canal inguinal íntegro e
resistente (hérnia do jovem). dades pélvicas ou extrofia da bexiga, podem causar
Tipo 2 Presença de saco herniário lateral aos vasos epi- anormalidades do canal inguinal, resultando na forma-
gástricos profundos. Anel inguinal profundo “pá- ção de hérnias inguinais.
tulo” > 2,5 cm. Assoalho do canal inguinal parcial- Deformidades congênitas ou deficiências de co-
mente alterado (hérnia do adulto/idoso). lágeno podem proporcionar o aparecimento de hérnias
Tipo 3 Fraqueza do assoalho, em geral de natureza inguinais diretas. As hérnias diretas são atribuídas aos
diverticular (hérnia do adulto/idoso). estresses e desgastes da vida. O esforço para urinar ou
Tipo 4 Hérnia dupla ou “em pantalona” (hérnia do para defecar, tossir e levantar objetos pesados tem sido
adulto/idoso). implicado como fator causal, provocando traumatismo
Tipo 5 Hérnia femoral. Pode ser redutível ou, em geral, e enfraquecimento do assoalho inguinal.
encarcerada (ocorre com maior frequência em
Já se verificou que hérnias inguinais ocorrem
mulheres).
mais amiúde em tabagistas do que em não tabagistas.
Tabela 10.4 Classificação das hérnias inguinocrurais Idade avançada e doenças crônicas são fatores de
de Junqueira Rodrigues Jr. risco associados ao desenvolvimento de hérnias. Ati-
vidade física vigorosa e a prática de esportes também
Classificação das hérnias externas têm sido propostas como estresses crônicos que podem
Superiores Diafragmáticas Hérnia do hiato esofa- apresentar formação de hérnias.
giano.
Anterior (Morgagni).
Posterior (Bochdalech).
Inferiores Perineais Isquiáticas. Apresentação clínica e
Posterio- Lombares
res
Superior (Grynfeltt).
Inferior (Petit).
diagnóstica
Anteriores Epigástricas. De modo geral, um paciente com hérnia inguinal
Umbilicais. queixa-se de um “caroço” na região inguinal. O pacien-
Inguinais. te pode descrever dor discreta ou vago desconforto as-
Femorais. sociado à protrusão abdominal. Às vezes, os pacientes
Linha semilunar. queixam-se de parestesias relacionadas à irritação ou
Tabela 10.5 Classificação das hérnias externas. compressão de nervos inguinais pela hérnia.

SJT Residência Médica – 2016


161
10 Hérnias

A área inguinal é examinada com o paciente de Hérnia irredutível ou encarcerada é a que se


pé e de frente para o médico. A inspeção visual da viri- mantém em estado de protrusão crônica ou aquela
lha revela, com frequência, perda da simetria ou uma que não pode ser reduzida mediante manipulação.
protrusão bem definida. Quando se pede ao paciente
Estrangulada é a hérnia encarcerada que apre-
para tossir ou realizar a manobra de Valsalva, a protru-
são acentua-se. senta comprometimento da vascularização do seu con-
teúdo, podendo evoluir para gangrena e perfuração.
A manobra de Landivar consiste na colocação da
ponta dos dedos na parede abdominal sobre a região A ultrassonografia específica da parede abdomi-
inguinal e pede-se ao paciente para repetir a manobra nal na região inguinofemoral, com transdutores meno-
de Valsalva. A seguir, coloca-se a ponta de um dedo no res, tem sido cada vez mais utilizada para o diagnóstico
canal inguinal, e a manobra de Valsalva é repetida. Uma de herniações, com sensibilidade de 90% e especificida-
protrusão que passa de uma posição lateral para uma de entre 82% e 86%. Para melhores resultados, o exame
medial contra a ponta do dedo é mais compatível com deve ser realizado com o paciente alternando situação de
uma hérnia indireta. Já a protrusão que avança contra relaxamento muscular com manobra de Valsalva.
o dedo de uma posição profunda para uma superficial
por meio do assoalho do canal é mais compatível com A herniografia, realizada por injeção de contras-
hérnia inguinal direta. A diferenciação entre hérnias di- te iodado na cavidade peritoneal, é pouco utilizada em
retas e indiretas, por ocasião do exame físico, não é es- nosso meio. Apesar de ser um exame simples e que
sencial, porque os dois tipos podem ser reparados pela pode evitar intervenções cirúrgicas desnecessárias
mesma abordagem. em casos duvidosos, apresenta alguns inconvenientes,
Uma protrusão abaixo do ligamento inguinal é como dor abdominal após o contraste, risco de perfu-
compatível com uma hérnia femoral. ração de vísceras e reações alérgicas.
A tomografia computadorizada, por sua vez, é re-
alizada para elucidação diagnóstica de massas, e o acha-
do de hérnias acaba sendo incidental. Outra utilidade da
tomografia é a mensuração do volume do conteúdo her-
niado nas grandes hérnias inguinoescrotais, bem como
a identificação dos órgãos que possam estar herniados.
A ressonância nuclear magnética, não constitui
método habitual para diagnóstico de hérnias inguinais
ou femorais. Apresenta, porém, sensibilidade e especifi-
cidade maiores que 95% para estabelecer o tipo de hérnia
encontrado, se femoral ou inguinal.

Manobra de Landivar: Palpação para


Figura 10.10
exame do orifício inguinal externo e avaliação da pare-
Tratamento cirúrgico das
de posterior. hérnias inguinais

A seguir, o paciente é examinado em decúbito


dorsal, repetindo as etapas descritas para o exame em Indicação cirúrgica: após o
posição ortostática. Uma massa inguinal descrita pelo
paciente, mas que não foi identificada no exame físi- diagnóstico
co, pode tornar-se palpável ou visível após se fazer o Exceção: Paciente em estado terminal, imunossu-
paciente deambular ou ficar de pé por algum tempo. primido ou extremamente idoso estaria na categoria dos
É incomum a necessidade de fazer o paciente retornar pacientes cuja correção cirúrgica pode ser postergada até
para um novo exame da região inguinal. A incapaci- a melhora das condições clínicas ou não ser operado.
dade de reduzir manualmente uma hérnia encarce- A história natural da hérnia inguinal é de aumen-
rada exige intervenção cirúrgica imediata. A maio- to progressivo e enfraquecimento, com o potencial de
ria das hérnias ocorre em homens. encarceramento e obstrução intestinal e subsequente
comprometimento da irrigação vascular para o intestino
A hérnia mais comum em homens e mulheres é (estrangulamento), resultando em infarto intestinal.
a hérnia inguinal indireta.
As hérnias não desaparecem espontaneamente nem
Hérnia redutível é a hérnia cujo conteúdo regres- melhoram com o passar do tempo. A correção de uma hér-
sa espontaneamente ou mediante manipulação para a nia inguinal pode ser planejada de maneira eletiva, a me-
cavidade abdominal. nos que exista encarceramento ou estrangulamento.

SJT Residência Médica – 2016


162
Cirurgia geral e politrauma

Fatores associados ao aumento da pressão intra- do pênis e do escroto. O ramo genital do nervo geni-
-abdominal devem ser corrigidos ou atenuados, se pos- tofemoral inerva o grande lábio na mulher e a bolsa
sível, antes da herniorrafia eletiva, como prostatismo, escrotal no homem.
tosse crônica ou constipação.
Existem numerosas opções para reconstrução do
assoalho inguinal; faremos uma descrição dos diver-
sos procedimentos cirúrgicos.
Antibioticopro昀椀laxia Resumem-se em três tempos fundamentais:
Apesar de a herniorrafia inguinal ser classificada € cuidar dos elementos herniados, reconduzin-
como uma cirurgia limpa, vários estudos atestam a van-
do-os à cavidade de origem ou ressecando-os,
tagem de antibioticoprofilaxia. O antibiótico de escolha é
a cefazolina (dose única ou, no máximo, por 24 horas, se quando necessário (caso haja necrose);
for usada prótese). O antibiótico deve ser administrado € dissecção cuidadosa do saco herniário, seguida
por via endovenosa na indução da anestesia. de ligadura e secção do mesmo;
€ correção do defeito anatômico que permitiu a
formação herniária.
Anestesia
As herniorrafias inguinais podem ser realizadas
com anestesia local, espinhal (regional) ou geral. A
seleção do tipo de anestesia depende de vários fato-
res, principalmente a idade e as condições gerais do
paciente, a preferência do cirurgião e a técnica de her-
niorragia utilizada.
Os agentes anestésicos mais utilizados para
a anestesia local são a lidocaína e a bupivacaína,
associadas ou não a vasoconstritores. A lidocaína
inicia sua ação mais rapidamente e sua duração ha-
bitualmente não excede duas horas, apresentando
ações tóxicas com níveis séricos acima de 5 mg/L.
A bupivacaína, por sua vez, inicia sua ação com um
período de latência maior, sua duração é mais pro-
longada, alcançando até oito horas, e seu nível sérico
Figura 10.11 Hérnia inguinal indireta. Canal ingui-
limite é 1,6 mg/L.
nal aberto evidenciando cordão espermático afastado
O uso de adrenalina diminui a absorção local medialmente e o saco peritoneal herniário indireto dis-
dos anestésicos e permite que o seu tempo de ação secado acima do nível do anel inguinal interno.
seja prolongado. A concentração adequada de adre-
nalina para esse objetivo é de 1/200.000, acima da
qual poderão aparecer efeitos colaterais.
O desconforto referido durante a infiltração dos
anestésicos locais pode ser reduzido com a adição de
bicarbonato de sódio ou de solução salina isotônica à
solução anestésica, visando à diminuição de sua acidez.
Habitualmente com anestesia local, obtém-
-se 80 mL de solução de bupivacaína a 0,125%
(dose total de 100 mg) e lidocaína a 0,5% (dose
total de 400 mg) pela adição de 20 mL de bupiva-
caína 0,5% a 20 mL de lidocaína 2% e a 40 mL de
soro fisiológico.
A correção da hérnia a céu aberto começa com
uma incisão curvilínea a aproximadamente dois de-
dos transversos acima do ligamento inguinal. Deve- Figura 10.12 Hérnia inguinal direta. Canal inguinal
-se ter cuidado para não lesar os nervos ilioingui- aberto e o cordão espermático afastado para baixo
nal e íleo-hipogástrico, que são responsáveis pela e para fora para revelar a protuberância herniária por
inervação da pele da porção inferior do abdome, meio do assoalho do triângulo de Hesselbach.

SJT Residência Médica – 2016


163
10 Hérnias

Técnicas de reconstrução da Correção de Shouldice (canadense)


parede posterior do canal Após dissecção, a parede posterior da fascia trans-
versalis é aberta e suturada “em jaquetão” por dois planos
inguinal de sutura. A primeira sutura fixa a borda inferior da fás-
cia à face posterior do folheto superior, e a segunda fixa a
Técnica de Marcy borda inferior do folheto superior da fáscia ao ligamento
Publicada por Henry Orlando Marcy, em 1871, no inguinal. Um segundo reforço é feito pela aproximação
Boston Medical and Surgical Journal. Pode ser utilizada do tendão conjunto, da borda inferior dos músculos oblí-
em hérnias inguinais indiretas isoladas ou associadas a quo interno e transverso ao ligamento inguinal. Todos os
hérnias diretas, com a técnica, neste caso, fazendo parte planos são aproximados por suturas contínuas com fio
de um procedimento mais extenso. As indicações para monofilamentar; com esta técnica as recidivas herniárias
o uso da técnica de Marcy são: lactentes e crianças com ficam em torno de 1%.
anéis internos dilatados (tipo II); pacientes jovens com
PPCI (parede posterior do canal inguinal) preservada Desvantagens: elevado índice de recidiva, ten-
(tipo II); pacientes de meia-idade ou idosos com hérnias são excessiva na linha de sutura, aprendizado difícil.
inguinais indiretas grandes ou com hérnia inguinal di- Atualmente, pouco utilizada no Brasil.
reta, nos quais o anel inguinal profundo está fechado,
como parte de um procedimento mais extenso de reforço
da PPCI (tipos IIIa e IIIb).
A técnica de Marcy pode ser realizada por via tran-
sabdominal, pré-peritoneal ou inguinal. Caracteriza-se
pelo fechamento do anel inguinal profundo com estru-
turas pertencentes exclusivamente à PPCI, ou seja, o
arco do músculo transverso do abdome e o trato ilio-
púbico. O resultado final desse procedimento preserva
a mobilidade e a função protetora do anel profundo, ao
contrário do que ocorre em técnicas nas quais o anel é fixa-
do por pontos cirúrgicos ao ligamento inguinal, como nas
técnicas de Bassini e de Zimmerman, por exemplo.

Técnica de Bassini (ligamento de


Poupart)
Originalmente consiste na aproximação do ten- Figura 10.13 Técnica de Shouldice: exposição da
dão conjunto e a borda dos músculos oblíquos inter- parede posterior do canal inguinal e linha de incisão.
nos e transversos ao ligamento inguinal de Poupart.
A sutura se inicia no púbis e termina no anel interno.
Corresponde ao método mais amplamente utilizado.
O reparo de Halsted coloca o músculo oblíquo externo
abaixo do cordão, mas de outra forma assemelha-se ao
reparo de Bassini.
Como só 11% da população possui tendão con-
junto, a técnica é também descrita da seguinte forma:
aproximação do arco aponeurótico do transverso ao
ligamento inguinal, com pontos separados de sutura
inabsorvível.
As principais indicações são: hérnias ingui-
nais unilaterais ou bilaterais.
Desvantagens: elevado índice de recidiva, ao re-
dor de 30%.
Atualmente, praticamente abandonada, em
função dos altos índices de recidiva.

Zimmerman (cinta iliopectínea) Figura 10.14 Técnica de Shouldice: abertura da


Sutura a fascia transversalis à cinta iliopectínea, parede posterior do canal inguinal, expondo o tecido
iniciando-se no nível do púbis e terminando na borda adiposo pré-peritoneal, desde o anel inguinal profundo
do orifício interno, estreitando-o. Em desuso. até o tubérculo púbico.

SJT Residência Médica – 2016


164
Cirurgia geral e politrauma

Operação de Condon
Reparo anterior ao trato ileopectíneo. O reparo
de Condon é feito mediante suturas separadas, a 5 a 7
mm de distância uma da outra, que unem a borda do
transverso abdominal (tendão conjunto) ao trato ilio-
púbico. As suturas mais laterais ligam até o ânulo in-
guinal interno e logram seu fechamento medial; mas,
além disso, o reparo total do ânulo efetua-se mediante a
colocação de outras suturas laterais ao cordão espermá-
tico. Como em outros reparos, o ajuste do fechamento
do ânulo é determinado pela ponta de uma pinça he-
mostática grande. Nesta técnica, é recomendada uma
incisão de relaxamento no reparo das hérnias diretas.
Figura 10.15 Técnica de Shouldice: primeiro plano;
sutura contínua iniciada no tubérculo púbico e termi-
nando no anel inguinal profundo, unindo a borda livre Operação de McVay
do folheto inferolateral (IL) à face posterior do folheto
Esta técnica consiste na sutura do arco aponeuró-
superomedial. tico do transverso ao ligamento pectíneo (Cooper), com
incisões relaxadoras na bainha do reto abdominal.
Suas indicações são: hérnias inguinais unila-
terais ou bilaterais e hérnias femorais. Este reparo é
particularmente utilizado para as hérnias femorais
estranguladas, porque proporciona obliteração do es-
paço femoral sem o uso de malha.
Desvantagens: elevado índice de recidiva, tensão
excessiva na linha de sutura e lesão da veia femoral.

Técnicas com utilização de


prótese livre de tensão
Figura 10.16 Técnica de Shouldice: segundo plano;
sutura contínua unindo a borda livre do folheto supero- Lichtenstein (livre de tensão)
medial ao ligamento inguinal, desde o anel inguinal Lichtenstein enfatizou a falta de lógica de
profundo até o tubérculo púbico. corrigir uma hérnia por meio da reunião de teci-
dos que são suturados sob tensão. Então, propôs
que a “ausência total de tensão na linha de sutura é
condição sine qua non para a correção (de hérnias)”.
A rotina é realizar a cirurgia em esquema ambu-
latorial com anestesia local. Uma tela de Marlex®
(polipropileno) é suturada ao tecido aponeurótico
sobreposto ao osso púbico, com a continuação des-
sa sutura ao longo da borda do ligamento inguinal
(de Poupart), até um ponto lateral do anel ingui-
nal interno. A borda lateral da tela é cortada para
permitir a passagem do cordão espermático. A bor-
da cefálica da tela é suturada no tendão conjunto,
com a borda do músculo oblíquo íntimo sobrepos-
ta em aproximadamente 2 cm. As duas pontas da
face lateral da tela são suturadas. Atualmente, é
a técnica mais utilizada para o tratamento das
Figura 10.17 Técnica de Shouldice: terceiro plano; hérnias inguinais, no entanto, tem como des-
sutura contínua aproximando os músculos oblíquo in vantagens maior incidência de neurodinia as-
terno e transverso do abdome ao ligamento inguinal sociada à lesão de nervos periféricos e intensa
desde o anel profundo até o tubérculo púbico. fibroplasia local.

SJT Residência Médica – 2016


165
10 Hérnias

Figura 10.21 Técnica de Lichtenstein: tela suturada,


aspecto final.
Figura 10.18 Herniorrafia inguinal pela técnica de
Lichtenstein.
Stoppa
Consiste no revestimento do peritônio pélvico
com tela de polipropileno. A tela é fixada ao osso pú-
blico em sua face posterior e mantida em posição pela
pressão abdominal. Os elementos do cordão inguinal
são parietalizados.
As principais indicações são: hérnias inguinais
bilaterais, hérnias inguinais grandes ou com destrui-
ção do ligamento inguinal, hérnias recidivadas, hér-
nias femorais.
Desvantagens: dissecção grande, difícil aprendi-
zado que exige o conhecimento da anatomia pré-peri-
toneal, intensa fibroplasia pré-peritoneal.
É a técnica mais radical para tratamento de
hérnias inguinocrurais. Deve ser realizada por cirur-
Figura 10.19 Secção longitudinal da tela, a partir de giões experientes no tratamento de hérnias.
sua borda superior, até o anel inguinal profundo, o que
permite ao cordão inguinal emergir pelo extremo infe-
rior dessa secção, sendo criados dois folhetos na tela. Técnica de Nyhus
A incisão cutânea é horizontal, à direita e acima
da sínfise pubiana. A dissecção é realizada até o espa-
ço pré-peritoneal, após divulsão das fibras do múscu-
lo oblíquo interno e transverso. É realizada secção do
espaço pré-peritoneal, com prolongamento da incisão
medial, lateral e inferiormente. Dessa forma, os sacos
herniários podem ser visualizados como divertículos
peritoneais, os quais (sacos diretos ou indiretos) são
separados dos elementos do cordão e reduzidos. O re-
paro da hérnia é realizado por meio de suturas com
fio monofilamentar, aproximando o tendão conjunto
ao trato iliopúbico. Mais recentemente, Nyhus prega a
utilização de prótese, além das suturas, para correção
das hérnias inguinais, principalmente as diretas.

Operação de Gilbert
Esta técnica de reparo das hérnias inguinais em-
Figura 10.20 Técnica de Lichtenstein: posiciona- prega uma prótese de polopropileno conhecida como
mento do folheto medial da tela sobre o folheto lateral. Prolene Hérnia System (PHS) que combina três mecanis-

SJT Residência Médica – 2016


166
Cirurgia geral e politrauma

mos de ação. A tela de PHS é formada por uma malha Uma variante é a técnica de Alexandre, que rea-
interna, o componente pré-peritoneal que reforça o liza uma dissecção mais ampla do espaço pré-perito-
orifício miopectíneo. Também inclui um componente neal, com secção dos vasos epigástricos. A tela gran-
oval externo que é inserido sobre a fáscia transversal de de 18 x 15 cm é deixada no espaço pré-peritoneal
para reforçar o assoalho da região inguinal, como na sem fixação. Um reparo de McVay é realizado ante-
técnica de Lichtenstein. Os componentes internos e ex-
riormente à prótese.
ternos da tela são acoplados por meio de um cilindro.
As principais indicações são: hérnias inguinais
unilaterais ou bilaterais, hérnias inguinais recidiva-
das, hérnias femorais.
Operação de Trabucco
Desvantagens: procedimento tecnicamente
Um cone de polipropileno oblitera o ânulo ingui- difícil que exige conhecimento da anatomia pré-
nal profundo e uma prótese do mesmo material, re-
-peritonial, aprendizado difícil, intensa fibropla-
cortada segundo a área do trígono inguinal do pacien-
te, é colocada sobre a fáscia transversal, envolvendo o sia local. Os melhores resultados são observados
funículo, sem fixação às estruturas adjacentes. nas hérnias recidivadas com destruição da pare-
de posterior.

Operação de Rutkow e
Robbins Técnica de PHS
Um cone de polipropileno é introduzido no ânulo
O PHS (Prolene Hernia System) é uma tela tri-
inguinal profundo e uma prótese pré-confeccionada,
de tamanho padrão, é aplicada sem suturas sobre a dimensional dupla com um conector no meio, que
fáscia transversal. permite que a hérnia seja corrigida por meio de uma
pequena incisão (em média de 3 a 5 cm), na região in-
guinal. O material pode ser utilizado em todos os tipos
de hérnia e possui tamanhos diferentes, para vários
Operação de Rives tamanhos de hérnias.
Consiste na fixação de tela de polipropileno sob a Possibilita o tratamento das hérnias de maneira
fascia transversalis, no espaço pré-peritonial. A tela é su- eficaz, com baixo índice de recidiva (1%). A técnica
turada ao ligamento pectíneo e ao arco aponeurótico do com PHS é considerada segura, em geral, realizada
transverso. Também é realizada uma abertura na porção sob anestesia local. Permite que o paciente saia ca-
lateral da tela, que permite a passagem do funículo esper- minhando do centro cirúrgico, gerando assim menos
mático e a criação de um novo anel inguinal profundo. gastos, pois não necessita de internação hospitalar.

Diferenças técnicas entre as operações de hernioplastia com prótese de polipropileno


Autor Dimensões da prótese Posição da prótese Proteção do ânulo profundo Posição do funículo
Lichtenstein 16 x 8 cm, recortada Sobre a fáscia transversal, fixa Cruzamento da prótese ao Abaixo da aponeurose
no intraoperatório. nas estruturas adjacentes. redor do funículo. do MOE.
Gilbert 8 x 4 cm, recortada Sobre a fáscia transversal, sem fi- “Guarda-chuva” no EPP. Abaixo da aponeurose
no intraoperatório. xação nas estruturas adjacentes. do MOE.
Rutkow e 8 x 4 cm, pré-cortada. Sobre a fáscia transversal, sem fi- Cone no EPP. Abaixo da aponeurose
Robbins xação nas estruturas adjacentes. do MOE.
Trabucco 8 x 4 cm, pré-cortada. Sobre a fáscia transversal, sem Cone no EPP. Acima da aponeurose
fixação nas estruturas adjacentes. do MOE.
EPP: Espaço pré-peritoneal; MOE: músculo oblíquo externo.
Tabela 10.6

Hérnias femorais
A hérnia femoral ocorre por meio de um espaço limitado superiormente pelo trato iliopúbico, inferior-
mente pelo ligamento de Cooper, lateralmente pela veia femoral e medialmente pela inserção do trato
iliopúbico no ligamento de Cooper. No exame físico, encontra-se uma massa abaixo do ligamento inguinal. As
hérnias femorais são mais comuns nas mulheres (4 a 5 vezes) do que nos homens.Em razão do seu pequeno e
rígido orifício é a que mais facilmente estrangula.

SJT Residência Médica – 2016


167
10 Hérnias

A cirurgia da hérnia femoral pode ser realizada visceral constitui mais comumente a parede posterolate-
através de vários acessos, cada um apresentando vanta- ral do saco herniário. Essencial ao reparo de deslizamen-
gens e inconvenientes: 1) via inguinal; 2) via femoral; 3) to é a redução de uma hérnia das vísceras para dentro da
via combinada; e 4) via pré-peritoneal. cavidade peritoneal e a ligadura do saco herniário.
A hérnia femoral pode ser corrigida usando-se
uma técnica-padrão de reparo do ligamento de Cooper
A chave para o reparo bem-sucedido de uma hérnia de
(de McVay) ou a técnica de Gilbert modificada, em que
deslizamento é o reconhecimento do componente vis-
se usa um plug de Marlex (polipropileno) na região fe-
ceral e a devolução segura das vísceras para a cavida-
moral. As abordagens pré-peritoneal e laparoscópica
de abdominal, com reconstrução meticulosa do canal
também proporcionam excelente visualização e aces-
inguinal.
so. A recorrência é semelhante àquela descrita para
hérnia inguinal direta, de cerca de 5%-10%.
Em serviços como a Unifesp, o plug femoral é
considerado o padrão de excelência no tratamento de
hérnias femorais. Correção laparoscópica das
hérnias
O tratamento videocirúrgico das hérnias apre-
senta várias vantagens em relação à abordagem aberta,
sendo as principais: redução acentuada da dor, retorno
mais precoce ao trabalho e cicatriz mínima. A videoci-
rurgia permite a inspeção das regiões inguinal e femoral
bilateralmente, de forma que hérnias contralaterais não
diagnosticadas, previamente, podem ser reparadas con-
comitantemente sem a necessidade de incisões adicionais.
As principais desvantagens da hernior-
rafia videocirúrgica são a utilização de anestesia
geral pela maioria dos cirurgiões e o custo mais ele-
vado, quando se utilizam clampeadores e outros ma-
teriais descartáveis. Pacientes que não podem tolerar
a anestesia geral ou que apresentam várias cirurgias
prévias em abdome inferior não devem ser submeti-
dos à herniorrafia laparoscópica. Apesar da maior
dificuldade técnica, o procedimento laparoscó-
Figura 10.22 HF típica – localizada medialmente pico totalmente extraperitoneal é a herniorrafia
à veia femoral e lateralmente à borda medial do anel videocirúrgica (laparoscópica), mais utilizada,
femoral. atualmente, em razão de seus menores índices
de complicações e recorrência.

Técnica laparoscópica
Hérnias de deslizamento transabdominal pré-
peritoneal (TAPP)
Uma hérnia inguinal de deslizamento é definida
como aquela na qual uma víscera forma uma porção da Após a realização de pneumoperitônio, os tro-
parede do saco herniário. Mais comumente, a víscera cartes são colocados dentro da cavidade abdominal.
envolvida é um segmento do intestino ou da bexi- O peritônio é incisado superiormente ao assoalho
ga. O ceco é envolvido mais comumente nas hérnias
inguinal, de modo a produzir um retalho de peritô-
nio. A dissecção e a fixação da tela são realizadas no
inguinais à direita, enquanto o cólon sigmoide é o
espaço pré-peritoneal. O saco herniário é dissecado e
órgão mais frequentemente envolvido no lado es-
reduzido, como mencionado na técnica laparoscópica
querdo. As hérnias inguinais indiretas representam o
anterior. A tela é posicionada e fixada no ligamento de
tipo mais comum de hérnia de deslizamento, embora
Cooper e ao lado interno do tendão conjunto, não co-
ocorram hérnias de deslizamento diretas e femorais.
locando suturas lateralmente aos vasos epigástricos.
O perigo primário associado a uma hérnia de Finalmente, o retalho do peritônio é colocado em sua
deslizamento é a incapacidade de detectar o compo- posição inicial, de modo a cobrir totalmente a tela e
nente visceral da hérnia, antes que ocorra lesão do evitar aderências e erosões da tela a alças intestinais.
intestino ou da bexiga. O saco herniário deve ser aber- Relatos atuais demonstram bons resultados com bai-
to em sua borda anteromedial, enquanto o componente xas taxas de recidiva.

SJT Residência Médica – 2016


168
Cirurgia geral e politrauma

A fisiopatologia da orquite isquêmica, prova-


Técnica laparoscópica velmente, tem início com a congestão venosa in-
totalmente extraperitoneal tensa dentro do testículo, secundária à trombose das
veias do cordão espermático (veias pampiniformes).
(TEP)
Vaso deferente: trauma no vaso deferente pode
Apesar da maior dificuldade técnica, a técnica ser por transecção ou obstrução. A transecção, geral-
totalmente extraperitoneal (TEP) é a herniorrafia
mente, ocorre em reparos abertos, principalmente nas
videocirúrgica (laparoscópica) mais utilizada atu-
hérnias recidivadas. A obstrução pode ocorrer pelo pin-
almente. Essa operação inicia-se com uma pequena
çamento excessivo causando fibrose de intensidade va-
incisão na bainha anterior do músculo reto do abdo-
me, na altura ou pouco abaixo do umbigo. Afastando- riada no lúmen do vaso.
-se o músculo reto do abdome, um trocarte rombo é Hidrocele: é uma complicação pouco comum das
introduzido na bainha do músculo, sobre a aponeuro- operações para correção de hérnias inguinais. Prova-
se posterior, paralelo à bainha, em direção ao púbis. A velmente, está relacionada à esqueletização do cordão
partir da linha arqueada de Douglas, o trocarte pene- espermático e dissecção excessiva do saco herniário e
tra diretamente no espaço pré-peritoneal, e a dissec- do ânulo inguinal interno. Além disso, a persistência
ção romba ou por meio de um balão dissector é efeti- da parte proximal do saco herniário indireto pode ser
vada. Posteriormente, o gás é insuflado nessa região um fator predisponente.
pré-peritoneal dissecada, permitindo a introdução dos
trocartes auxiliares e a identificação das estruturas do Seromas: na região inguinal são raramente de re-
orifício miopectíneo. A colocação e a fixação da pró- levância clínica. Entretanto, com a introdução das pró-
tese podem ser semelhantes àquelas utilizadas pela teses, há uma tendência maior à formação de seromas.
técnica transabdominal. Vasculares: lesões da veia femoral podem ser
causadas por suturas próximas à parede anterior da
veia, ou por compressão da veia femoral por uma sutu-
Comparação entre as técnicas
ra colocada muito lateralmente, próxima ao ligamento
laparoscópicas TAPP versus TEP
de Cooper. A lesão da artéria femoral pode acontecer
Vantagens da TAPP Vantagens da TEP durante a reconstrução da parede posterior, próximo
Permite o rápido e fácil Não viola a cavidade perito- ao anel inguinal profundo; neste local a artéria femo-
diagnóstico de “hérnia neal. ral se situa 1 a 1,5 cm abaixo da fáscia transversal.
contralateral” (não diag-
Bexiga: a bexiga é posterior e medial à parede in-
nosticada no pré-opera-
tório). guinal posterior e pode estar aderida ou “deslizar” em
uma hérnia direta ou femoral. Além disso, retenção uri-
Mais fácil reconhecimen- Menor risco de lesões vis-
nária, principalmente, após anestesias locorregionais, é
to dos elementos anatô- cerais.
uma complicação comum das herniorrafias inguinais.
micos.
Menor risco de conversão. Menor risco de obstrução Intestinos: nos casos de encarceramento ou es-
intestinal e de hérnias nas trangulamento da hérnia há envolvimento direto do in-
incisões dos trocartes. testino, necessitando de inspeção rigorosa e, até mesmo,
Menor risco de lesões Realização mais suscetí- ressecção de alças em alguns casos. Indiretamente, pode
vasculares. vel quando realizada com haver laceração ou até ruptura de uma alça na presença
anestesia locorregional . de hérnia deslizante.
Na maioria dos casos não Infecção: pode complicar todos os tipos de ci-
precisa fixar a prótese. rurgia. As mulheres têm maior índice de infecção
Tabela 10.7 que os homens. Hérnias encarceradas, recorrentes,
umbilicais e femorais também apresentam maiores
taxas de infecção, respectivamente 7,8%, 10,8%,
5,3% e 7,7%. A presença de prótese também aumenta
os índices de infecção.

Complicações cirúrgicas A presença de infecção não exige necessa-


riamente a retirada da prótese, a não ser que
para correção das hérnias esta se encontre mergulhada em um abscesso ou
banhada por secreção purulenta. Infecções tar-
inguinais dias também podem acontecer quando houver
próteses, até meses ou anos, após o implante.
Testículos: orquite isquêmica e atrofia testicular
são as duas possíveis complicações que acometem o Lesões de nervo: são infrequentes. Os nervos mais
testículo, após herniorrafias inguinais. Apresentam-se atingidos durante o reparo aberto da hérnia são o ilioin-
como dor, edema e endurecimento do testículo asso- guinal, ramo genital e genitofemoral e íleohipogástrico.
ciado a febre baixa. Essa condição pode progredir para No reparo laparoscópico, os nervos cutâneo femoral late-
atrofia testicular. ral e genitofemoral são afetados com mais frequência.

SJT Residência Médica – 2016


169
10 Hérnias

A dor inguinal crônica ou inguinodinia pode ser


neurálgica ou neuropática. A neuralgia é caracteri- Comparação entre correção
zada por hiperestesia sobre o dermátomo, com dor
intensa sobre um neuroma ou nervo que foi incluído
laparoscópica e a céu aberto
em uma sutura ou sob a tela. Se não houver resposta
ao tratamento clínico, deve ser realizada a explora- A comparação entre a herniorrafia laparoscópica
ção cirúrgica com secção dos três nervos da região e os controles realizados a céu aberto demonstrou que
inguinal. A dor neuropática é caracterizada por um a abordagem laparoscópica é pelo menos tão eficaz
período inicial de anestesia e posterior hiperestesia quanto à abordagem a céu aberto no que diz respeito
da região e dor paroxística. à infecção de ferida (12% vs. 3%), formação de seroma
(14% vs. 6%) e taxa de recorrência (10% vs. 3%).
Recidiva: permanece como a complicação mais
comum da cirurgia para hérnias inguinais. A recidiva
é elevada para as técnicas que não usam prótese,
variando de 2,3% a 20% para hérnias inguinais e
de 11,8% a 75% para hérnias femorais. A recidiva Materiais protéticos para
é bem menor com os procedimentos que usam tela
(técnica sem tensão na sutura), de 1% a 2%. herniorrafia
Apesar das preocupações iniciais sobre possível
rejeição e infecção resultantes do uso de próteses, a
Complicações da correção evidência de que hernioplastias “livres de tensão”
usando um biomaterial têm uma taxa reduzida de re-
laparoscópica cidivas e menores taxas de complicações, tornou esta
conduta, atualmente, uma decisão sem conflitos.Telas
As complicações encontradas na herniorrafia simples e duplas de diferentes materiais passaram a
laparoscópica abdominal são semelhantes às encon- ser uma preocupação do cirurgião. Materiais como:
tradas na experiência com cirurgia a céu aberto, a prolene, polipropileno, politetrafluoretileno, poliéster
saber, infecção de ferida e formação de seroma. É trançado, passaram a fazer parte dos materiais a se-
comum o achado de enduração no orifício de entra- rem incluídos na síntese cirúrgica.
da dos trocartes e foi observado em todos os pacien-
tes em um estudo. Em geral, esta enduração cede
completamente no prazo de 6 a 8 semanas. As in-
fecções de ferida são muito raras, com incidência
aproximada de 3%.
Os seromas pós-operatórios foram raros, com in-
cidência aproximada de 6%. Esta incidência pode ser
mais minimizada se o saco herniário não for excisado.
No entanto, se surgir um seroma, devemos evitar a
tentativa de aspirar, pois este procedimento aumenta
o risco de infecção e não acelera a resolução. Também
há relatos de lesão intestinal acidental que ocorrem
durante a retirada de aderências ou como consequên-
cia de uma lesão térmica da transmissão da corrente Figura 10.23 Eletromicrografia de malha de polipro-
do eletrocautério. Consequentemente, devemos dar pileno trançada monofilamentar (Marlex).
ênfase ao uso limitado do eletrocautério durante a
dissecção e a lise das aderências.

Taxa de recorrência da
correção laparoscópica
Aproximadamente 3%. No entanto, assim como
na correção das cirurgias a céu aberto, a real incidên-
cia da recorrência só será evidente depois que dispu-
sermos de um acompanhamento a longo tempo. Figura 10.24 Eletromicrografia da malha de Surgipro.

SJT Residência Médica – 2016


170
Cirurgia geral e politrauma

Figura 10.29 Visão macroscópica de placa de Gore


Figura 10.25 Eletromicrografia da malha de Trelex. Tex de politetrafluoroetileno expandida.

Figura 10.30 Eletromicrografia da malha de poliéster


Figura 10.26 Eletromicrografia da malha Atrium.
trançada (Mersilene).

Critérios para biomateriais


Biomateriais usados no reparo de hérnia não só
têm de satisfazer estes critérios na maior extensão pos-
sível, como também devem ser fáceis de manusear. Estu-
dos de próteses usadas em reparos de parede abdominal,
geralmente, focalizaram-se no desenvolvimento de ade-
rências, hérnia recorrente, infecção, formação de sero-
ma, crescimento interno de tecido associado a seu uso, à
força dos materiais e às várias técnicas para implantá-los.
Figura 10.27 Eletromicrografia da malha de Prolene.
Tela de polipropileno (PPM)
A malha de polipropileno tem sido usada em re-
paros abertos convencionais de hérnia há mais de 30
anos, com resultados geralmente bons. O material sa-
tisfaz muitos dos critérios de Cumberland e Scales e é
fácil de manusear. As taxas relatadas de recidiva depois
da implantação de PPM foram inferiores àquelas após
o fechamento primário, porém, a PPM foi associada a
várias complicações sérias, especialmente quando usa-
da em reparos ventrais. Estes incluíram sepse de ferida,
fístula intestinal, erosão em órgãos intra-abdominais e
exteriorização da tela.
Muitas destas complicações se desenvolveram
porque a PPM tende a evocar uma reação intensa, infla-
Figura 10.28 Visão macroscópica da malha de Com- matória, de corpo estranho, que no final das contas re-
posix. Note as duas superfícies de materiais diferentes. sulta no intestino ficando densamente aderido ao mate-

SJT Residência Médica – 2016


171
10 Hérnias

rial. Estas aderências são irregulares e desorganizadas, tável. O desenvolvimento de complicações severas
tornando o PPM especialmente difícil de remover, caso pelo polipropileno é, felizmente, muito incomum.
seja necessário. Vários investigadores aconselham que O desenvolvimento de uma infecção, embora in-
a PPM não seja usada em reparos de hérnia nos quais o frequente, é tratado mais facilmente do que com
material protético deva ser colocado diretamente sobre E-PTFE e comumente não necessita da remoção
as vísceras, o que pode ser frequentemente necessário do próprio material da malha. Foi sugerido que os
na hernioplastia ventral. A víscera também é um local seromas seriam menos prováveis depois de reparos
exigido no reparo intraperitoneal laparoscópico com com PPM do que aqueles em que foram utilizados
malha de hérnia inguinal ou de hérnia ventral. Um rela- outros materiais. Da mesma forma, há evidências
to avaliando Marlex, Dexon (Davis & Geck, Wayne, NJ) de que o selamento da cavidade peritoneal acontece
e Gore-Tex defendeu o uso deste último material no fe- dentro de 12 horas, sendo usada ou não uma tela,
chamento temporário da parede abdominal no paciente e que nenhuma drenagem deve ser possível depois
traumatizado. Nesse estudo, três dos quatro pacientes desse tempo.
com um implante de Marlex desenvolveram uma fístula
intestinal. Outros estudos não encontraram nenhuma
diferença estatística na formação de aderência entre Politetrafluoroetileno expandido
Prolene, E-PTFE ou Marlex em modelos suínos. (E-PTFE)
As vantagens da E-PTFE em reparos de hérnia in-
cluem sua inércia, força, baixa taxa de formação de ade-
Critérios para biocompatibilidade de material
rências, características do crescimento interno de teci-
protético
do, baixa taxa de infecção, e a suavidade e flexibilidade
O biomaterial ideal deve ter as seguintes que muitos cirurgiões acreditam tornar mais fácil de
características: controlar que outros biomateriais. Ao contrário de ou-
Quimicamente inerte. tros materiais, a E-PTFE não é macroporosa, portanto,
Não carcinogênico. permite a visualização de qualquer estrutura atrás dela.
Resistente a tensões mecânicas. Estudos clínicos do uso de E-PTFE em enxerto
Capaz de ser fabricado na forma necessária. vascular estabeleceram que o material seja inerte e
Capaz de ser esterilizado. biocompatível. A força material e a capacidade de reter
uma sutura da E-PTFE foram avaliadas em testes me-
O biomaterial ideal não deve: cânicos e estudos em animais e constatou-se ser maior
Provocar uma reação inflamatória ou de corpo estra- ou igual ao de outros materiais protéticos usados no
nho. reparo de hérnia.
Produzir alergia ou hipersensibilidade. Ao contrário da PPM, a E-PTFE produz apenas
Ser modificado fisicamente por líquidos teciduais. uma reação inflamatória mínima nos tecidos circunvi-
Tabela 10.8 zinhos, com pequena resposta de corpo estranho.
Próteses de politetrafluoroetileno expandidas
Atuais produtos de malha de polipropileno para reparos de hérnia estão agora disponíveis em
seis formas. A placa de tecidos moles Gore-Tex é uma
Marlex
folha porosa lisa de E-PTFE. O biomaterial Gore-Tex
Trelex
Mycro-Mesh tem macroporos visíveis a olho nu, que
Atrium são projetados para acelerar o crescimento interno
Surgipro de tecido. Este material também possui microporos
Prolene com aproximadamente 22 µm de diâmetro para per-
Composix mitir a penetração celular e de colágeno. A adição
Tabela 10.9 do macroporos a este material não resulta em um
aumento na resistência à tração do tecido cicatricial
O uso de polipropileno como prótese no repa- pós-implante sobre a PPM. Ela também não parece
ro da parede abdominal tem ampla base científica. aumentar as aderências subsequentes que aconte-
Na realidade, atualmente, é o tipo de material mais cem no processo de cicatrização. Uma forma de Go-
utilizado mundialmente. O reparo livre de tensão, re-Tex MycroMesh com macroporos ainda maiores,
aberto, provou ser um excelente material para re- facilita a visualização de tecidos e estruturas embai-
paro de hérnias. O desenvolvimento de intensa for- xo do material durante reparos inguinais laparoscó-
mação de tecido cicatricial é um apelo para muitos picos. O biomaterial Gore-Tex DualMesh tem duas
cirurgiões. Isto levou ao reparo laparoscópico dos superfícies: uma é muito lisa (microporos < 3 µm de
defeitos do abdome. Este material tem sido usado diâmetro), e a outra é semelhante à placa de tecidos
no reparo do assoalho inguinal, da superfície ven- moles de Gore-Tex (microporos aproximadamente
tral do abdome e de vários outros locais por muitos iguais a 22 µm). O DualMesh é projetado para ser
anos, tanto com a abordagem aberta quanto com o implantado com a superfície lisa contra o tecido ou
método laparoscópico. Em ambas as técnicas, a taxa vísceras às quais uma mínima aderência tecidual é
de recidivas é baixa e a taxa de complicações acei- desejada, e a outra contra a superfície onde a in-

SJT Residência Médica – 2016


172
Cirurgia geral e politrauma

corporação de tecido é desejada. Há duas escolhas mentais de uma tela impregnada por gelatina flu-
estruturais do produto Gore-Tex DualMesh. Um é oropassivada, a TMS 2, uma estrutura de metano
uma folha sólida e o outro é perfurado para permitir policarbonato coberta em um lado com elastômero
maior incorporação de tecido. de silicone e um composto de PPM impregnado com
Uma recente inovação nos produtos supracitados folhas de silastic vulcanizadas.
foi a incorporação de prata e clorexidine ao E-PTFE. A
adição destes agentes resulta em uma cor marrom-cla-
ra em lugar do branco do E-PTFE. Os dois produtos
têm ação antimicrobiana que objetiva reduzir o risco Malhas em tampão e em placa
de infecção quando estes produtos forem usados. Es- Durante os últimos anos, a proliferação do re-
tudos clínicos não encontraram qualquer evidência de paro em tampão e em placa de hérnias inguinais e
efeito colateral pelo uso destes biomateriais saturados ventrais foi proeminente. Em cada um destes tipos
com antimicrobiano. Dados clínicos, em longo prazo, de reparo o biomaterial é uma textura de polipropi-
não estão disponíveis para avaliar qualquer benefício leno. Este material é configurado em várias formas
percebido na adição de um agente antimicrobiano a pelo fabricante (Perfix, C.R. Bard) ou modelado pelo
estes produtos. defeito, enquanto o material é inserido (Atrium).
Cada reparo confia no conceito livre de tensão por-
que um material de placa é usado em frente (Perfix,
Produtos de PTFE expandido atuais Atrium) ou atrás (Kugel, Surgical Sense, Arlington,
Placa de tecidos moles TX) da musculatura da parede abdominal. O Prolene
MycroMesh Hernia System coloca uma placa na frente e atrás da
parede muscular.
MycroMesh Plus
DualMesh
DualMesh Plus Produtos de malha em tampão/placa
Tampão Prefix
DualMesh com orifícios
Placa Kugal
Tabela 10.10 PTFE, politetrafluoroetileno. Prolene Hernia System
Tampão e Placa de malha de Atrium
Tabela 10.11
Tela de 昀椀bra de poliéster
A tela de fibra de poliéster trançada é usada,
principalmente, na França em hernioplastias in-
cisionais abertas, nas quais uma grande prótese
é inserida entre os músculos abdominais e o pe-
ritônio (cirurgia de Stoppa). A prótese estende-se
além das bordas do defeito e é mantida em posi-
ção, inicialmente, pela pressão intra-abdominal e
depois por meio de crescimento interno fibroso.
Cirurgiões que executam frequentemente estes
procedimentos preferem uma prótese de poliéster
em razão da sua flexibilidade, que permite moldar-
-se livremente ao saco visceral, sua textura gra-
nulada que permite agarrar-se ao peritônio e sua Figura 10.31 Visão macroscópica do sistema de
capacidade para induzir uma resposta fibroblástica tampão e placa Prefix.
rápida para assegurar sua fixação.
Como o biomaterial perfeito ainda está por ser
descoberto, os esforços continuam para desenvol-
ver uma prótese que satisfaça as metas do cirurgião
e do paciente. Este material asseguraria uma incor-
poração de tecido significativa, contudo limitaria o
desenvolvimento de respostas teciduais anormais
como aderências. A nova tela Composix represen-
ta a última tentativa de atingir essa meta. Recentes
relatos comentam os primeiros resultados experi- Figura 10.32 Placas de hérnia Kugel.

SJT Residência Médica – 2016


173
10 Hérnias

Alguns relatos de acompanhamento têm mostrado


bons resultados em curto prazo. Os resultados em lon-
go prazo destes procedimentos relativamente novos são
desconhecidos, particularmente os procedimentos que
são executados em grande número pelo grupo maior de
cirurgiões menos experientes. Adicionalmente, compli-
cações em longo prazo, como erosão, fistulização ou en-
colhimento do material, que se sabe ocorrer com o poli-
propileno, podem tornar-se evidentes no futuro.

Telas absorvíveis
Embora as telas absorvíveis não sejam úteis como
Figura 10.33 Prolene Hernia System. Esta é uma tela próteses permanentes no reparo de hérnias de parede
de polipropileno em camada dupla interconectada por abdominal, elas têm um papel para proporcionar o fecha-
uma peça de material. mento temporário de grandes defeitos, contaminados.

HÉRNIA INGUINAL

Estrangulada Sintomática Assintomática/Oligossintomática

Considerar
Cirurgia de emergência
Cirurgia eletiva observação
Reparo tecidual de risco
de infecção ↑

Unilateral primária Bilateral primária Recorrente

Reparo com tela: Reparo com tela:


Lichtenstein ou endoscópico endoscópico ou Lichtenstein

Após cirurgia por via anterior Após cirurgia por via posterior

Reparo com tela: Reparo com tela:


endocópico ou aberto via posterior Lichtenstein

Em qualquer situação, considerar cirurgia endoscópica se há proficiência por parte do cirurgião

Figura 10.34

É parte da cura o desejo de ser curado.


Sêneca.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

11
Hérnia umbilical

que determinariam o aparecimento das hérnias pa-


Etiopatogenia raumbilicais; com menor frequência o mesmo de-
feito na linha Alba pode ocorrer também abaixo do
A cicatriz umbilical é uma cicatriz fibrosa resul- umbigo. Sua gênese se deve à mesma falha na linha
tante das alterações que ocorrem nas estruturas que Alba que leva à formação das hérnias epigástricas.
compõe o cordão e o anel umbilical, após o nascimen-
O não fechamento do anel herniário leva à for-
to. No feto, o anel umbilical permite a passagem
mação da hérnia umbilical congênita, a qual se exte-
dos elementos do cordão umbilical que constam
da veia e de duas artérias umbilicais e do úraco. rioriza sob a cicatriz umbilical formando um abaula-
Após o nascimento há proliferação do tecido aponeu- mento circunferencialmente simétrico. Estas hérnias
desaparecem espontaneamente, na maioria das
rótico do anel com aderência às estruturas que por aí
vezes, entre o terceiro e quarto ano de idade. No
passam, as quais atrofiam e/ou trombosam, tornan-
adulto, apenas 10% das hérnias umbilicais existem
do-se a veia o ligamento redondo (na borda livre do
desde a infância.
ligamento falciforme) o qual se insere na borda in-
ferior do anel juntamente com o resquício do úraco, A maioria das hérnias do adulto não ocorre na
transformado no ligamento umbilical mediano e das cicatriz umbilical sendo na realidade paraumbili-
duas artérias agora ligamentos umbilicais mediais. cais e são adquiridas; nestes casos, caracteristica-
Posteriormente, ao anel umbilical existe um espessa- mente, a maior parte do saco herniário é recoberto
mento da fáscia endoabdominal (fáscia de Richet). pela pele do abdome e apenas parte do saco herniá-
A inserção da veia umbilical trombosada (ligamento rio é coberto pela cicatriz umbilical.
redondo) na borda inferior do anel herniário e o es-
pessamento da fáscia endoabdominal reforçam a área
umbilical. Para Scandalakis e cols., a falta de ambas
as estruturas, enfraquecendo esta área, propiciaria o Tratamento
surgimento de uma hérnia umbilical direta. Quando
o espessamento da fáscia endoabdominal cobre par- As hérnias paraumbilicais pequenas (< 2 cm),
cialmente a área umbilical, entre o anel e as margens frequentemente assintomáticas e descobertas in-
superior ou inferior da fáscia, formar-se-ia uma área cidentalmente, geralmente, não são operadas. No
de menor resistência, por meio da qual poderia ocor- entanto, em mulheres durante a gravidez aumentam
rer uma hérnia (indireta). Para Askar são os defeitos de tamanho e se tornam sintomáticas. Alguns autores
na linha alba supraumbilical e na fáscia de Richet são mais radicais e consideram que no adulto, exceto
175
11 Hérnia umbilical

durante a gravidez e no puerpério imediato, sempre mesma, além da fixação por sutura da cicatriz no pla-
está indicada a correção cirúrgica das hérnias umbili- no aponeurótico, deve-se fazer curativo compressivo
cais. (Atenção!) com um conjunto de gases no recesso umbilical, que
A operação está indicada para as hérnias sin- deve ser mantido por pelo menos 72 horas.
tomáticas, as irredutíveis (encarceradas crônicas) Das complicações tardias a recidiva é a mais te-
e para aquelas que estão aumentando de tamanho, mida. Em anéis herniários maiores do que 3 cm as
estas duas últimas, em razão da elevada prevalência de recidivas ocorrem em 11% dos casos tratados por
estrangulamento. As hérnias em pacientes com ascite sutura e em apenas 1% quando se utiliza a prótese.
devem ser operadas eletivamente após tratamento clí-
nico para controle da ascite. Nestas circunstâncias os
resultados, em termos de morbidade ou de mortalida-
de, se equivalem a dos pacientes sem esta comorbida-
de, o que não ocorre em casos operados na urgência.
As hérnias umbilicais pequenas são tra-
tadas, preferencialmente, por meio de incisão
curvilínea infraumbilical conservando a cicatriz
umbilical, o que dá melhor resultado cosmético.
O saco herniário é dissecado ao seu redor e seccionado
junto à face interna da cicatriz umbilical deixando seu
fundo aderido à mesma, evitando, assim, isquemiá-la.
O saco peritoneal é ligado por transfixação em seu colo Figura 11.1 Volumosa hérnia umbilical.
e o excesso ressecado. O coto peritoneal é liberado da
aponeurose no plano pré-peritoneal. Deve-se decidir
agora se o fechamento será realizado lábio a lábio ou
em jaquetão (técnica de Mayo), ambos com fio inab-
sorvível de preferência monofilamentar.
Nas hérnias volumosas com grande anel her-
niário (> 3-4 cm) torna-se necessária a realização de
incisão fusiforme ressecando toda a pele adel-
gaçada, incluindo a cicatriz umbilical, que reco-
bre a hérnia. Após o tratamento do saco herniário, o
grande anel pode ser fechado em sentido transversal
lábio a lábio ou pela técnica de Mayo.
A tendência atual é a de se abandonar a técni-
ca de Mayo (jaquetão), qualquer que seja o tama- Figura 11.2 Grande hérnia umbilical.
nho do anel herniário, uma vez que não se compro-
vou o melhor reforço da sutura. Pelo contrário, dada
à mobilização maior dos planos aponeuróticos haveria
maior tensão e, portanto, maior risco de deiscência.
Para os anéis herniários grandes (> 3-4 cm de
diâmetro) preconiza-se a utilização de prótese de
polipropileno. Esta deve ser colocada, preferencial-
mente, no plano pré-peritoneal excedendo em pelo me-
nos 2 cm as bordas do anel herniário e fixada por trans-
Figura 11.3 Incisão semilunar na pele e tela sub-
fixação com fio do mesmo material da prótese. A seguir,
cutânea, imediatamente abaixo do umbigo.
realiza-se aproximação cuidadosa da tela subcutânea e
sutura da pele. A drenagem fechada do subcutâneo é
opcional e na dependência de existir espaço morto.

Complicações
Para evitar os seromas ou hematomas que impe-
dem o acolamento da cicatriz umbilical do plano apo- Figura 11.4 Incisão elíptica na pele e ela subcutânea, em
neurótico, determinando necrose ou epidermólise da torno do umbigo, reservada às grandes hérnias umbilicais.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

12
Hérnias incisionais

os quimioterápicos são dois fatores comumente im-


Introdução plicados no desenvolvimento de hérnias incisionais;
esses agentes podem embotar as respostas inflamató-
Incidência de cerca de 11%, após cirurgia rias normais e comprometer o processo de cicatriza-
abdominal. Aproximadamente 150.000 pacientes ção habitual. Durante o preparo pré-operatório, os
por ano nos Estados Unidos desenvolverão esta com- objetivos ideais são perda ponderal, abandono do
plicação. tabagismo, controle rígido do diabetes e abstinên-
Risco de encarceramento (6% a 15%) e es- cia do uso de medicamentos que possam compro-
trangulamento (2%). Taxa de recidiva aproxima- meter a cicatrização da ferida cirúrgica.
damente 45%.

Fatores relacionados com a


Etiopatogenia técnica cirúrgica
Decorrem de cicatrização inadequada de uma in-
cisão prévia ou de tensão excessiva no local de uma ci- Tipo de incisão
catriz na parede abdominal (40% dos casos ocorrem Incisões transversais apresentam menor inci-
nos primeiros meses do pós-operatório). A obesi- dência de hérnia, enquanto que as incisões longitu-
dade é uma das principais causas do aparecimento dinais medianas resultam mais frequentemente em
de hérnias incisionais. Outros fatores incluem ida- hérnias incisionais.
de avançada, desnutrição, ascite, hematoma pós-ope-
ratório, diálise peritoneal, gravidez e outras condições
que provocam aumento da tensão na parede abdomi- Tipo de 昀椀o cirúrgico
nal. O fator causal mais comum no desenvolvimen- A maioria das suturas realizadas com fios ra-
to de hérnias incisionais é o desenvolvimento de pidamente absorvíveis (Catgut, Catgut cromado)
infecção pós-operatória na incisão. Os esteroides e perde boa parte da sua força de tensão entre 14 e 21
177
12 Hérnias incisionais

dias, estando, portanto, mais sujeitas a desenvolver volver quando o orifício é realizado lateralmente ao
hérnia incisional. As suturas com fios lentamente músculo reto abdominal, e não através dele. O manejo
absorvíveis (Vicryl, PDS e Maxon), que persis- cirúrgico é muito complexo.
tem no sítio da ferida operatória por um período en- Hérnia do sítio de trocarte: de ocorrência in-
tre 90 e 180 dias, e com fios inabsorvíveis (Prolene, comum, desenvolve-se em 0,02% a 0,7% dos pacientes
Ethibond) perduram ao longo da terceira fase da submetidos à laparoscopia, embora existam relatos
cicatrização, que se inicia, aproximadamente, após cuja incidência atinge índices de até 1,2%.
o 20º dia de pós-operatório, quando o rearranjo das
fibras de colágeno oferece à cicatriz mais de 80% da
força de tensão original.

Tipo de sutura
O tipo de sutura não parece influenciar na inci-
dência de hérnia incisional, no entanto, a evisceração
quando ocorre, parece ser maior e mais impactante
se a sutura for contínua.

Fatores de risco
Interferem com a cicatrização
O tipo de fio cirúrgico. Figura 12.1 Hérnia incisional gigante.
Erro na técnica de fechamento.
Tabagismo (> risco em 4 vezes).
Desnutrição
Uso de corticoide; quimioterápicos; deficiência de vita-
mina C; deficiência do fator de coagulação VIII.
Infecção da ferida operatória. Tratamento
Defeitos genéticos na síntese do colágeno.
Diabetes melito. Confirmado o diagnóstico de hérnia incisional
Aumentam a pressão intra-abdominal pelo exame clínico acurado do cirurgião, a análise rigo-
rosa dos resultados dos exames clínicos e laboratoriais,
Obesidade.
pode ser realizada a indicação do tratamento cirúrgico.
Prostatismo.
Constipação intestinal.
O anestesista, após examinar o paciente e analisar os
Ascite. exames laboratoriais, escolhe o método anestesiológico
Diálise peritoneal. que geralmente é um bloqueio espinhal.
Tabela 12.1 A antibioticoprofilaxia é imperativa uma vez que
é um procedimento que exige a colocação de tela.

Preparo Pré-operatório
Tipos de hérnia incisional Redução de peso nos pacientes obesos.
Esta classificação se refere apenas àquelas hér- Interrupção do tabagismo
nias que se originaram de incisões cirúrgicas, onde Controle adequado de qualquer doença pulmo-
não existia defeito aponeurótico prévio. nar pré-existente.
Hérnia incisional: pode ser dividida em trans- Identificação e tratamento de sintomas como
versa, ventral ou oblíqua dependendo do tipo de incisão prostatismo e constipação intestinal.
utilizada para a realização do procedimento cirúrgico.
Hérnia incisional paraestomal: caracterizam-
-se pela herniação de conteúdo intra-abdominal, co-
mumente alças intestinais, em orifício por onde se A Cirurgia
exteriorizou um segmento intestinal. A hérnia para- O reparo primário das hérnias incisionais pode
estomal ocorre em cerca de 20% das colostomias e em ser realizado quando o defeito é pequeno (≤ 2 cm de
10% das ileostomias, e é mais propensa a se desen- diâmetro) e existe tecido circundante viável. Defeitos

SJT Residência Médica – 2016


178
Cirurgia geral e politrauma

grandes (> 2-3 cm de diâmetro) têm uma taxa alta de Vários estudos têm comparado as complica-
recidiva se fechados primariamente e são reparados ções pós-operatórias entre o reparo convencional
com uma prótese. As taxas de recidiva variam entre e o laparoscópico, e demonstram menor taxa de
10% e 50% e são tipicamente reduzidas a mais da me- complicações após a abordagem laparoscópica,
tade com o uso de prótese de malha. sobretudo, relacionada a complicações infeccio-
Já é consenso, universalmente, o uso das pró- sas. A taxa de infecção, após o reparo laparoscópico,
teses de polipropileno (Marlex , Prolene , Μesh é significativamente menor que o reparo convencional

) e de politetrafluoretileno (PTFE) para substituir (infecção de ferida menor que 1% após o reparo lapa-
ou reforçar a fáscia transversal no tratamento das roscópico versus 3% a 7% após reparo convencional).
hérnias incisionais. Outra vantagem da abordagem laparoscópica é
A prótese deve ser bem maior que a lesão, a fim identificar múltiplos defeitos fasciais, conhecidos como
de que possa ser suturada em tecido sadio. É consen- defeitos em “queijo suíço”, que podem passar desperce-
sual que esse reparo deve ser realizado de forma que bidos durante o reparo aberto. Estes pequenos defeitos
a prótese se estenda por no mínimo 3 a 4 cm. são causa de “recidiva” da hérnia. Apesar da grande
A sutura deve ser usada em pontos separados, heterogeneidade dos trabalhos, o risco de recidi-
em U, em todo o contorno da prótese, utilizando fio va, após o acesso laparoscópico, parece ser igual
prolene 2-00, sobre a fáscia transversal sadia, nos es- ou menor que o convencional. Entretanto, as
paços existentes na prótese o que permitirá a forma- principais limitações são a necessidade de anestesia
ção de uma estrutura forte e segura na composição da geral, o risco de lesões intra-abdominais e o maior cus-
parede abdominal. to direto do procedimento (relacionado ao uso de telas
não aderentes e grampeadores para fixação).
A ressecção do retalho cutâneo gorduroso permi-
te o fechamento da pele sob tensão, o que determina Hérnias grandes podem resultar em perda do
a extinção ou redução de espaço morto, evitando, as- domínio abdominal, que ocorre quando os conteúdos
sim, a formação de hematomas ou seromas. abdominais não mais estão na cavidade abdominal.
Esses defeitos grandes da parede abdominal também
Nos pacientes com volumosas eventrações
podem resultar da incapacidade de fechar o abdome,
no abdome inferior, em alguns casos, produtos de
primariamente, por causa de edema do intestino,
várias tentativas de correção de hérnia incisional
tamponamento abdominal, peritonite e laparotomia
está indicada a dermolipectomia. Este procedimen-
repetida. Com perda do domínio, a rigidez natural da
to não só permite uma visão mais ampla da lesão o
parede abdominal torna-se comprometida, e a muscu-
que facilita idealizar o tamanho da prótese, que deve
latura abdominal, em geral, é retraída. Pode ocorrer
ser suturada em todos os seus contornos, inclusive, na
disfunção respiratória porque esses grandes defeitos
parte inferior, deve ser suturada no periósteo inferior
ventrais provocam movimento respiratório abdomi-
do arco anterior do púbis para evitar recidiva nesta
nal paradoxal. A perda do domínio abdominal tam-
área. Depois de suturar a aponeurose dos músculos
bém pode resultar em edema do intestino, estase do
sobre a prótese a pele é suturada oferecendo uma
sistema venoso esplâncnico, retenção urinária e cons-
grande satisfação para a paciente com a reconfigura-
tipação. O retorno da víscera deslocada à cavida-
ção do seu abdome.
de abdominal durante o reparo pode gerar maior
As hérnias incisionais da linha mediana supraum- pressão abdominal, síndrome compartimental
bilical, geralmente, não se apresentam muito volumo- abdominal e insuficiência respiratória aguda.
sas. Mesmo assim, a ressecção conveniente do retalho
Nestes pacientes com perda do domínio,
cutaneoadiposo facilita a identificação das estruturas e
a técnica de separação dos componentes da pa-
colocação da prótese de marlex sobre o peritônio. Após
rede abdominal-Ramires (1990) é elegível. Esse
o fechamento da aponeurose dos retos sobre a prótese
procedimento permite readquirir cerca de 5 a 10 cm
observa-se a reaproximação dos músculos na linha me-
de cada lado da parede abdominal para colaborar no
diana e o fechamento da pele sob tensão mostra uma
fechamento parietal.
boa recomposição da parede abdominal.
O primeiro passo é a dissecção da pele e do tecido ce-
É contraindicada a colocação da prótese de
lular subcutâneo dos músculos até uma distância de apro-
marlex substituindo o peritônio. A malha de Mar-
ximadamente 5 cm da borda lateral do reto abdominal.
lex apresenta grande poder de fixação e aderindo
nas alças intestinais pode determinar fístulas di- A seguir é realizada uma incisão na bainha dos
gestivas ou obstrução intestinal. retos, e o músculo é separado do folheto posterior.
A cirurgia videolaparoscópica entusiasmou os Depois a aponeurose do oblíquo externo é inci-
cirurgiões para usá-la no tratamento cirúrgico das sada a 2 cm da borda lateral do reto abdominal do re-
hérnias incisionais. O “princípio” é inteligente: seria bordo costal até a espinha ilíaca e o oblíquo externo é
entrar na casa sem quebrar a parede. separado do oblíquo interno até a linha axilar média.

SJT Residência Médica – 2016


179
12 Hérnias incisionais

Em seguida, ocorre a síntese da aponeurose do


reto abdominal na linha média.

Figura 12.5 Terceiro passo da cirurgia de separação

dos componentes da parede abdominal.


Figura 12.2 Primeiro passo da cirurgia de separação
dos componentes da parede abdominal.

Figura 12.3 Segundo passo da cirurgia de separação Figura 12.6 Síntese da aponeurose do reto abdominal.
dos componentes da parede abdominal.

Figura 12.4 Terceiro passo da cirurgia de separação


dos componentes da parede abdominal. Figura 12.7 Síntese da aponeurose do reto abdominal.

SJT Residência Médica – 2016


180
Cirurgia geral e politrauma

Cuidados Pós-operatórios
Tela

Analgesia adequada para facilitar a mobilização e


ventilação do paciente.
Fisioterapia respiratória nos pacientes com do-
ença pulmonar pré-existente.
Profilaxia de trombose venosa profunda (TVP).
Retirar o dreno assim que possível para reduzir a
chance de complicações infecciosas.
Acompanhamento ambulatorial para diagnosti-
car as recidivas de maneira precoce.

Figura 12.8 Colocação da prótese no plano pré-per-

Complicações itoneal e sua fixação por trás do reto.

As complicações mais frequentes estão relacio-


nadas com a ferida operatória, incluindo seroma ou
hematoma, infecção e deiscência ou recidiva de hér-
nia. Os índices de infecção variam de 5% a 21%, não
sendo incomum a necessidade de reintervenção cirúr-
gica ou até mesmo a retirada da prótese infectada.
Complicações sistêmicas são observadas com a Tela

mesma incidência quando comparadas a cirurgias de


porte similar. Atelectasia e pneumonia são as mais fre-
quentemente observadas, seguidas de tromboflebite e
retenção urinária. Embora incomuns, perfuração ou
erosão de alça intestinal, formação de fístulas entero-
cutâneas e obstrução intestinal são relatadas na litera-
tura e, geralmente, relacionadas com deslocamento da Figura 12.9 Sutura da aponeurose superficial co-
prótese ou manipulação excessiva do saco herniário. brindo a prótese.

Não se esqueça que o amor, tal como a medicina, é só a arte de ajudar a natureza.
Pierre Laclos.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

13
Hérnias incomuns

nha do músculo reto (MR). Na linha mediana, finas


Hérnia epigástrica fibras tendíneas das lâminas anterior e posterior da
bainha dos MR cruzam com as fibras provenientes do
As hérnias da linha Alba (LA) ocorrem mais co-
lado oposto contribuindo para a ligação anátoma fun-
mumente acima do umbigo do que abaixo deste. São
cional da musculatura da parede abdominal anterior,
mais comuns em homens, entre os 20 e 50 anos.
de modo a permitir o seu funcionamento coordenado.
Prevalência de 3% a 5% na população geral.
Segundo Askar existem três diferentes tipos de cruza-
A LA é uma faixa fibrosa densa que se estende na mento destas fibras acima da cicatriz umbilical. O pri-
linha mediana do abdome, do apêndice xifoide à sín- meiro tipo se caracteriza por um único cruzamen-
fise púbica. Ela é larga no epigástrio e na região um- to aponeurótico, tanto da lâmina anterior como
bilical, abaixo da qual vai se estreitando até se tornar da lâmina posterior das bainhas dos MR. As fibras
uma linha, próximo ao púbis. Provavelmente, em ra- mais superficiais cruzam a linha mediana e se unem
zão desta característica anatômica são raras as hérnias com as fibras mais profundas do mesmo estrato do
abaixo da cicatriz umbilical. lado oposto. Este tipo de cruzamento é observado em
A LA é formada pelo tecido aponeurótico pro- 30% dos casos. No segundo tipo, presente em 60% dos
veniente das três aponeuroses dos músculos late- casos, haveria três cruzamentos das fibras tendíneas
rais do abdome (oblíquo externo – MOEx , oblíquo originadas da lâmina anterior e três da posterior. No
interno – MOI- e transverso – MT-), que formam a bai- terceiro tipo haveria um cruzamento proveniente da
182
Cirurgia Geral e politrauma

lâmina anterior e três da lâmina posterior. Estes três


tipos de decussação aponeurótica seriam responsáveis
pela resistência tensil e durabilidade diferentes da LA.
As hérnias epigástricas predominariam em
pacientes com a LA do tipo I (única decussação an-
terior e posterior) a qual teria a menor resistên-
cia tênsil. Outra teoria baseada em dados anatômi-
cos foi proposta por Moschowitz, segundo o qual, as
hérnias se formariam em um ponto fraco ocasionado
pela passagem de vasos sanguíneos. Esta teoria tem,
atualmente, poucos adeptos embora ainda seja citada.
O anel herniário é em geral pequeno, medindo
de 1 a 2 cm em 70% dos casos e é superior a 3 cm em
18%. As hérnias epigástricas podem ser múltiplas
(20% dos casos) bem como associar-se a hérnias
umbilicais. Este último fato reforça a teoria segundo
a qual a gênese das hérnias para umbilicais se deve à
mesma falha na linha Alba que leva à formação das Figura 13.1 Hérnia epigástrica.
hérnias epigástricas.
A hérnia epigástrica não deve ser confun-
dida com diastase de retos abdominais. Nas duas
condições há aumento de volume da região epigástri-
ca. Entretanto, na diastase esse abaulamento apresen-
ta um formato caracteristicamente alongado, acompa-
nhando os bordos mediais dos músculos retos, e não
há solução de continuidade da camada aponeurótica.
Assim, não existe conteúdo herniário, sendo, portan-
to, impossível ocorrer encarceramento. Além disso, a
diastase muito raramente é acompanhada de dor.
As hérnias epigástricas sintomáticas devem ser
operadas. Na maioria das vezes, estas hérnias se
apresentam como pequenos nódulos ≤ a 1 cm que
após pequena incisão transversal da pele e tela sub-
cutânea revelam serem pelotões gordurosos, emer-
gindo de pequenas falhas na aponeurose. Após liga-
dura de seu colo e ressecção desse tecido e identificado
Figura 13.2 Hérnia epigástrica já identificada e dis-
o anel herniário este é fechado, lábio a lábio, com pon-
tos simples de fio inabsorvível. secada.

Na eventualidade de existir mais de uma hérnia é


necessária a incisão mediana longitudinal de tamanho
suficiente para exploração cuidadosa da linha Alba.
Nas hérnias maiores, com saco peritoneal, após re-
dução de seu conteúdo, o saco é ligado em seu colo
e ressecado o excesso. Na dependência do tamanho
do orifício a sutura com pontos simples resulta em
certo grau de tensão. Nestes casos, é útil o emprego
de uma prótese, em geral de polipropileno, coloca-
da no espaço pré-peritoneal e fixada por transfixa-
ção, com fio do mesmo material, a pelo menos 2 cm
das bordas do orifício.
A recorrência pode chegar a 20% e está associada
ao não reconhecimento de múltiplas hérnias epigástricas
ou à obesidade.
As complicações pós-operatórias mais comuns Figura 13.3 Ligadura do saco herniário em seu pedícu-
são infecção, seroma e hematoma de ferida operatória. lo, após sua abertura e verificação de seu conteúdo.

SJT Residência Médica – 2016


183
13 Hérnias incomuns

Hérnia de Littré
O achado de um divertículo de Meckel como
único componente do saco herniário define uma
hérnia de Littré. Pode ser extremamente difícil de
diagnosticar, dada a frequente ausência de sinais e sin-
tomas de obstrução. Pode ocorrer o estrangulamento
do divertículo de Meckel, resultando em abscesso ou
fistulização como queixa inicial.
Esse tipo de hérnia, assim como a de Ritcher,
pode ocorrer em qualquer localização, sendo sua
distribuição 50% inguinal, 20% femoral, 20%
umbilical e 10% em outros locais.
Figura 13.4 Sutura do defeito aponeurótico. É uma hérnia extremamente rara e de difícil
diagnóstico pela falta de sintomas obstrutivos, exceto
quando há qualquer espécie de sofrimento do diver-
tículo. Pode haver estrangulamento do divertículo de
Meckel, causando dor, febre, abscesso ou até mesmo
Hérnia de Richter fístula entérica.
O tratamento é a correção do defeito her-
Pinçamento lateral da alça intestinal. A borda niário, com ou sem a ressecção do divertículo de
antimesentérica do intestino precisa fazer pro- Meckel. Nos casos sintomáticos ou de sofrimento do
trusão para o saco herniário, mas não envolve divertículo, deve-se fazer a sua ressecção.
toda a circunferência do intestino. As manifesta-
ções e a evolução clínica variam muito, dependendo do
grau de obstrução em relação à quantidade de circun-
ferência do intestino envolvida. Pode ocorrer estran-
gulamento, manifestando-se como massa dolorosa,
Hérnia de Spigel
náuseas, vômitos e distensão abdominal. Pode ocorrer Consiste de uma hérnia por meio da fáscia ao
em qualquer tipo de hérnia da parede abdominal, em- longo da borda lateral do MR abdominal no espaço
bora a localização mais comum seja no local de uma entre a linha semilunar e a borda lateral do músculo
hérnia femoral. reto abdominal. Mais comumente, as hérnias de Spi-
O tratamento da hérnia de Ritcher é realizado de gel ocorrem abaixo da linha semicircular de Dou-
acordo com sua localização. O ponto principal no reparo glas (hérnia intermuscular). A ausência de fáscia
dessas hérnias é o reconhecimento da viabilidade da alça posterior do músculo reto abdominal abaixo da linha
intestinal envolvida. Em alguns casos, é necessária uma de Douglas contribui para a fraqueza inerente nessa
incisão abdominal mediana para melhor avaliação e repa- área. As hérnias de Spigel podem ser encontradas em
ro do dano intestinal. ultrassonografias ou tomografias computadorizadas
(TC) realizadas por outros motivos.
O tratamento cirúrgico das hérnias de Spie-
Hérnia de Richter
gel é sempre recomendado, pois o encarceramento
e estrangulamento, necessitando operação de ur-
gência, ocorrem de 10% a 21% dos casos.
A incisão cutânea é transversal, sobre o abau-
lamento. A aponeurose do MOEx é aberta no senti-
do de suas fibras, abaixo da qual se encontra o saco
Cordão espermático herniário, frequentemente, constituído por tecido
Veia femoral gorduroso pré-peritoneal ou por um saco peritone-
al envolvido por tecido gorduroso. O saco peritoneal
pode ser habitado pelo omento, intestino delgado e
cólon, havendo relatos do encontro do apêndice cecal
e do divertículo de Meckel. Nas hérnias com estran-
gulamento de delgado, a ressecção do segmento com-
Canal femoral
prometido e o restabelecimento do trânsito são reali-
Figura 13.5 Hérnia de Richter. Apenas a borda an zados pela mesma via. O defeito herniário, em geral,
timesentérica do intestino delgado encontra-se encar- é pequeno, como uma fenda, podendo os MOI e MT e
cerada no canal femoral. suas aponeuroses, na maioria das vezes, serem sutu-

SJT Residência Médica – 2016


184
Cirurgia Geral e politrauma

rados sem tensão, mesmo em casos de recidiva. Em


hérnias com anéis herniários maiores ou em razão do 12ª costela
Grande
adelgaçamento da musculatura pode-se, após trata- oblíquo
mento do saco peritoneal, utilizar prótese sintética. Serrato
menor
Quadrilátero
A prótese deve ser colocada, preferencialmente, no Grande
de Grynteltt

plano pré-peritoneal, excedendo em pelo menos 2 cm dorsal Pequeno


Quadrado oblíquo
as bordas da fenda e fixada por transfixação. Sendo lombar
possíveis os MOI e MT são aproximados com pontos
simples ou por sutura contínua e sobre estes se sutu-
ra a aponeurose do MOEx. Raramente há necessida-
de de drenagem fechada.
O tratamento pode ser realizado por via laparos- Figura 13.6 Hérnia lombar superior (Grynfeltt).
cópica com bons resultados quanto à morbidade, per-
manência hospitalar e resultados tardios.
Grande
dorsal

Hérnia obturadora Grande


oblique
O canal obturador é recoberto por uma membra- Triângulo
na perfurada pelo nervo obturador e por vasos. O en- de J. L. Petit Crista
ilíaca
fraquecimento da membrana obturadora e o aumen-
to do canal podem resultar na formação de um saco
herniário, que pode causar obstrução e encarceramen-
to intestinais. O paciente pode apresentar sinais de
compressão do nervo obturador, resultando em dor
na face medial da coxa. O achado mais específico é o
sinal de Howship-Romberg positivo, no qual a dor Figura 13.7 Hérnia lombar inferior (J. L. Petit).
se estende para baixo, na face medial da coxa, com
abdução, extensão ou rotação interna do joelho.
Dá-se preferência à abordagem abdominal, a céu
aberto ou laparoscópica, quando se suspeita de com-
prometimento intestinal. Seja qual for a abordagem, a
redução do conteúdo e a inversão do saco herniário são Hérnia de Amyand/hérnia
as etapas iniciais no tratamento cirúrgico das hérnias
obturadoras. O forame obturador dilatado é reparado
de Garengeot
com pontos de sutura simples. A taxa de mortalidade
(13%–40%) por esse tipo de hérnia a torna a mais Representam a presença do apêndice cecal infla-
letal de todas as hérnias abdominais. mado dentro de um saco herniário inguinal (hérnia
de Amyand) ou femoral (hérnia de Garengeot). Sua
ocorrência é rara (em 0,3% a 1% dos casos de apendi-

Hérnia lombar (dorsal) cite aguda).


Pela doença adjacente, exigem tratamento emer-
A hérnia de Grynfeltt Lesshaft aparece por gencial. Discute-se a utilização de telas tendo em vista
meio do triângulo lombar superior, enquanto a a vigência de processo infeccioso, sendo sugerida pela
hérnia de J. L. Petit ocorre pelo triângulo lombar maioria dos autores a realização de reparos teciduais.
inferior (estas incidem mais em mulheres jovens
atletas). As hérnias lombares difusas, um terceiro
tipo, são quase sempre iatrogênicas. De modo geral, as
hérnias lombares aumentam de tamanho e se tornam
cada vez maiores e problemáticas do ponto de vista Hérnia de Cooper
estético. É exequível a realização de reparo de hérnias
pequenas por meio de pontos de sutura simples. Os É uma hérnia femoral com dois sacos, sendo o
pacientes com hérnias grandes ou aqueles com tecidos primeiro no canal femoral, e o segundo por meio de
extremamente atenuados podem precisar de reforço um defeito na fáscia superficial, aparecendo imediata-
com tela, retalhos pediculados ou retalhos livres. mente abaixo da pele.

SJT Residência Médica – 2016


185
13 Hérnias incomuns

Segundo Delvis, as hérnias paraestomais po-


Hérnia ciática dem ser classificadas em:

Essas hérnias extremamente incomuns são difí- Intersticial – o saco herniário fica localizado en-
ceis de diagnosticar. A ciatalgia raramente é provocada tre as camadas musculares da parede abdominal.
por compressão por uma hérnia ciática. Essas hérnias Subcutânea – o conteúdo herniário está no teci-
podem ser cirurgicamente reparadas por via transab- do subcutâneo.
dominal ou transglútea.
Intraestomal – o saco herniário pode penetrar
em uma ileostomia tubular.

Hérnia perineal Paraestomal – o saco herniário faz parte do pro-


lapso da colostomia.
Causadas por defeitos adquiridos ou congênitos A maioria das hérnias estomais é manejada
são muito raras. Essas hérnias podem ocorrer após conservadoramente, principalmente, aqueles pacien-
ressecção abdominoperitoneal, prostatectomia ou tes portadores de hérnias de reduzidas dimensões ou
retirada dos órgãos pélvicos. Com frequência, um re- nos que tenham pouca expectativa de sobrevida em
talho miocutâneo ou reforço com tela são necessários consequência de neoplasia intestinal avançada, deter-
para reparar uma hérnia perineal.
minante da ostomia.
O reparo cirúrgico está normalmente indicado
nas hérnias estomais de grande porte em razão dos
Hérnia paraestomal fenômenos já relatados da síndrome do eventrado
estomal, causa de grandes transtornos físicos, fisio-
A hérnia paraestomal pode ocorrer após a con- patológicos e psicológicos. As complicações ou disfun-
fecção de uma ileostomia, de uma colostomia ou de ções mais graves, ou as vinculações aos problemas de
uma cecostomia. Quando a hérnia ocorre em um es- estética, também são motivo de tratamento cirúrgico.
toma temporário, geralmente, é pequena e não causa
transtornos ao paciente, e deverá ser corrigida quando Na vigência de um episódio agudo de obstrução
do fechamento do estoma. Por outro lado, quando o intestinal ou estrangulamento, a cirurgia de urgência
estoma é definitivo, a hérnia pode avolumar-se e cau- se impõe, com as devidas precauções e cuidados técni-
sar grandes problemas ao paciente. cos necessários.
Os resultados das diferentes técnicas descritas
são de julgamento dificultoso em virtude das informa-
Incidência ções discrepantes bem como da precariedade de séries
É extremamente variável, embora seja a complica- maiores e de ensaios clínicos controlados, reportados
ção mais comum das estomias acima mesmo da estenose, na literatura especializada que avaliam cientificamen-
da intussuscepção e do prolapso. Inclusive alguns a con- te as vantagens ou desvantagens de um procedimento
sideram como urna, consequência inevitável da constru- em relação ao outro. Dessa maneira, a avaliação de sua
ção de um estoma, o que considero um exagero. A hérnia real eficácia fica inviabilizada. A maioria dos relatos
paraestomal ocorre em cerca de 20% das colostomias consiste em trabalhos retrospectivos, compilações, sé-
e em 10% das ileostomias e é mais propensa a se de-
ries de casos ou mesmo apenas relatos de caso que não
senvolver quando orifício é realizado lateralmente ao
permitem um juízo categórico.
músculo reto abdominal e não através dele. Outros
apregoam números conflitantes de 0% a 48%. As múltiplas opções existentes para o mane-
jo das hérnias estomais e os resultados, geralmente,
Fatores predisponentes desapontadores do tratamento cirúrgico, atestam as
Falhas técnicas. controvérsias existentes e a inexistência de uma solu-
Baixo tônus muscular pela sedentariedade. ção efetiva e definitiva.
Uso prolongado de esteroides. Para as grandes hérnias estomais, atualmen-
Denervação muscular na feitura do estorna. te, são empregados quatro protótipos cirúrgicos, de
Infecção no entorno estomal. acordo com as características técnicas de cada um:
Obesidade. € Reparo fascial (sutura primária).
Distenção abdominal (ascite, tumores, tosse crônica).
€ Com permanência do stoma in situ acrescido do
Desnutrição.
uso de tela.
Diabetes.
Doença básica neoplástica. € Com recolocação do stoma e uso de tela.
Tabela 5.1 € Por videolaparoascopia.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

14
Queimaduras

bém, outra lesão cutânea a distância, correspondendo


Introdução ao local de saída da corrente elétrica. Ocorrem profun-
das alterações do equilíbrio acidobásico e mioglobinú-
Queimadura é a lesão dos tecidos, em decorrência
ria, acarretando graves problemas na função renal.
de traumas térmico, elétrico, químico ou radioativo. A
gravidade e o prognóstico são definidos avaliando-se: 3. Queimadura química – os agentes químicos
agente causal, profundidade, extensão da superfície causam dano progressivo até que sejam totalmente
corporal queimada, localização, idade, presença de do- inativados pela reação com os tecidos. As lesões causa-
enças subjacentes e lesões associadas. O tratamento das por álcalis, que penetram rápido e mais profunda-
das queimaduras será orientado na dependência des- mente, costumam ser mais graves do que as causadas
tes fatores. por ácidos.
4. Queimadura por irradiação – os efeitos cau-
sados pela radiação nuclear são permanentes e pro-
gressivos, o que torna este tipo de queimadura parti-
Classi昀椀cação cularmente grave.

De acordo com o agente causal Quanto à profundidade da


1. Queimadura térmica – pode ser causada pelo
calor ou pelo frio. Líquidos superaquecidos são a causa lesão
mais frequente, seguindo-se a exposição direta à cha- Pode ser de difícil avaliação à inspeção inicial.
ma, a combustão de material inflamável e o contato Nas queimaduras elétricas, sobretudo, a lesão se defi-
com objetos aquecidos. ne melhor após 48 a 72 horas. Durante a própria evo-
2. Queimadura elétrica – resulta da passagem da lução da queimadura, o ressecamento, a infecção e a
corrente elétrica pelo corpo do paciente. Neste tipo de instabilidade hemodinâmica podem provocar o apro-
queimadura, pode existir extensa destruição dos planos fundamento da lesão. Por este motivo, é importante a
profundos abaixo de pequena lesão cutânea. Há, tam- reavaliação diária do paciente.
187
14 Queimaduras

1. Queimadura de 1° grau – atinge apenas a epi- semanas e, geralmente, com formação de contraturas
derme. Determina dor e eritema local, sem formação e cicatrizes hipertróficas. A área apresenta-se esbran-
de flictenas. Usualmente, são causadas por contato quiçada e pouco dolorosa.
com líquidos quentes ou por exposição solar e a reação
sistêmica é ligeira ou até inexistente. 3. Queimaduras de 3° grau – ocorre destrui-
ção da epiderme, da derme e de parte do subcutâneo.
2. Queimaduras de 2° grau – se dividem em:
Caracteriza-se por ser indolor e apresentar coloração
superficiais, quando atingem a epiderme e a esbranquiçada ou vermelho-amarelada de consistên-
derme superficial. Caracterizadas por dor e formação
cia endurecida, semelhante ao couro. Geralmente, ne-
de flictenas. Como a derme profunda está preservada,
cessitam desbridamento cirúrgico e enxertia.
a área afetada reepiteliza em torno de 15 a 20 dias.
profundas, quando a lesão acomete toda a epi- 4. Queimaduras de 4° grau – referem-se às quei-
derme e a derme. Restam apenas os folículos pilosos e maduras que atingem estruturas profundas, como
as glândulas sebáceas e sudoríparas que promoverão a músculos e ossos (quarto grau), podendo chegar à car-
reepitelização da ferida tardando, porém, quatro a seis bonização (5º grau).

Classificação da profundidade da queimadura e suas principais características


Grau Sinais Comprometimento Sintomas Formas de reparação
1º grau Eritema Epiderme Dor intensa Epidermização a partir da derme su-
perficial → regeneração.
2º grau Eritema e flictenas Epiderme e derme super- Dor intensa Epidermização a partir da derme super-
superficial ficial ficial ou a partir dos brotos dérmicos →
restauração.
2º grau Flictenas, pele branca, Epiderme e derme pro- Dor mode- Epitelização a partir dos brotos dérmicos
profundo rosada e úmida funda rada (folículos, glândulas) → restauração ou
enxertia.
3º grau Pele nacarada, cinza, Epiderme e derme total Dor ausente Epitelização concêntrica ou por trans-
seca e vasos observa- plantes cutâneos → enxertia.
dos por transparência
4º grau Pele nacarada, cinza, Epiderme, derme total Dor ausente Epitelização concêntrica ou por trans-
seca e vasos observa- e estruturas profundas plantes cutâneos → enxertia e reta-
dos por transparência (tendões, ossos etc.) lhos.
Tabela 14.1

a genitália que é 1%. Na criança, principalmente,


Quanto à extensão da área nas menores de quatro anos, o cálculo da SCQ não
queimada deve seguir essa regra, pois apresenta superfícies
A extensão da superfície corporal queimada corporais parciais diferentes dos adultos e estão
(SCQ) deve ser avaliada, inicialmente, para permitir o continuamente mudando. Para tentar reparar um
cálculo da reposição hídrica e para avaliar o prognósti- pouco, tem-se a Regra dos Nove modificada, a qual
co. Os dois métodos mais utilizados para este cálculo considera o cálculo da cabeça da criança igual a 19%
são a “Regra dos Nove” e a “Tabela de Lund e Browder”. menos a idade em porcentagem e, nos membros in-
feriores, adiciona o quociente da idade dividida por
dois à porcentagem de 13.
Regra dos Nove
A Regra dos Nove só deveria ser aplicada em
Nas emergências, outro método frequentemen-
adultos e pacientes que atingiram a puberdade. En-
te utilizado é a Regra dos Nove, por ser prático e de
fácil memorização, porém, de pouco valor científico. tretanto, alguns autores consideram-na prática, útil e
Essa regra atribui valores iguais a nove ou seus múl- extremamente valiosa como guia para o cálculo do vo-
tiplos às partes queimadas, sendo: 9% para cabeça, lume inicial da reposição hídrica na emergência, ape-
9% para cada membro superior, 18% para cada mem- sar de reconhecerem que ela não é uma medida precisa
bro inferior, 18% para cada face do tronco, exceto da superfície total queimada.

SJT Residência Médica – 2016


188
Cirurgia Geral e politrauma

Figura 14.1a Regra dos Nove aplicada para a faixa Figura 14.1b Regra dos Nove aplicada para a faixa
etária pediátrica. etária adulta.

Tabela de Lund e Browder


A tabela de Lund & Browder, instituída desde 1944, de uso internacional, leva em consideração as diferenças
de proporção entre as várias regiões do corpo e de idade, permitindo a estimativa exata da área queimada (Tabela
14.3) (Figura 14.2). Nas crianças, algumas regiões diferem proporcionalmente com a idade, como a cabeça, que
corresponde a uma área proporcionalmente maior em comparação a do adulto; e os membros inferiores apresen-
tam uma área menor em proporção, comparada a do adulto.

Tabela de Lund & Browder


reaÁ (%) Idade
Recém-nas- 1 ano 5 anos 10 anos 15 anos Adulto
cido
Cabeça 19 17 13 11 9 7
Pescoço 2 2 2 2 2 2
Tronco anterior 13 13 13 13 13 13
Tronco posterior 13 13 13 13 13 13
Nádega direita 2,5 2,5 2,5 2,5 2,5 2,5
Nádega esquerda 2,5 2,5 2,5 2,5 2,5 2,5
Genitália 1 1 1 1 1 1
Braço direito 4 4 4 4 4 4
Braço esquerdo 4 4 4 4 4 4
Antebraço direito 3 3 3 3 3 3
Antebraço esquerdo 3 3 3 3 3 3
Mão direita 2,5 2,5 2,5 2,5 2,5 2,5
Mão esquerda 2,5 2,5 2,5 2,5 2,5 2,5
Coxa direita 5,5 6,5 8 8,5 9 9,5
Coxa esquerda 5,5 6,5 8 8,5 9 9,5
Perna direita 5 5 5,5 6 6,5 7
Perna esquerda 5 5 5,5 6 6,5 7
Pé direito 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5
Pé esquerdo 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5 3,5
Total (%) 100 100 100 100 100 100
Tabela 14.2

SJT Residência Médica – 2016


189
14 Queimaduras

A A Quanto à gravidade da lesão

13 13
Classificação quanto à gravidade das queimaduras
2 2 2
1 /2
1
1 /2 1 /2
1 1 1 /2
1
Pequeno queimado
11/4
11/4 11/4 11/4
1 Queimaduras de 1° grau em qualquer extensão; e/ou
B B B B
Queimaduras de 2° grau com ACQ < 5% em crianças <
C C C C 12 anos e ACQ < 10% em >12 anos.
13/4 13/4 13/4 13/4
Médio queimado
Áreas Extensão queimada Queimaduras de 2° grau com ACQ entre 5% e 15% em
< 12 anos e 10% e 20% em > 12 anos; ou
Idade A B C Cabeça
Queimaduras de 3° grau (quando não envolver face,
0 9,5 2,75 2,5 Pescoço
mão, períneo ou pé) com até 10% da ACQ em adultos e
1 8,5 3,25 2,5 Tronco ACQ < 5% nos < 12 anos; ou
5 6,5 4,0 2,75 Braço Qualquer % ACQ de 2° grau envolvendo mão, pé, face,
10 5,5 4,5 3,00 Antebraço pescoço ou axila.

15 4,5 4,5 3,25 Mão Grande queimado


Adulto 3,5 4,75 3,5 Nádega Queimaduras de 2° grau com ACQ > 15% em < 12 anos
ou ACQ > 20% em > 12 anos; ou
Genitais
Área total
Coxa
Queimaduras de 3° grau com ACQ > 10% no adulto e
ACQ >5% nos < 12 anos; ou
Perna
Peso corpóreo Qualquer % ACQ de 3° grau envolvendo mão, pé, face,
Pé pescoço ou axila.
Figura 14.2 Diagrama de Lund & Browder. Queimaduras de 4° grau; ou
Queimaduras de períneo; ou
Queimaduras por corrente elétrica.
Método de mão esplanada Tabela 14.3
O método da mão espalmada utiliza a mão espal-
mada do paciente como unidade para medir, em por-
centagem, a superfície corpórea, pois a mão tem pra-
ticamente 1% da superfície corpórea para doentes de
todas as idades. É uma medida mais prática que a tabela
de Lund & Browder, pois essa é de memorização difícil. Fisiopatologia
A compreensão da fisiopatologia das queimaduras
é importante para a efetividade do tratamento. Além
Quanto à localização disso, os diferentes mecanismos de injúria revelam con-
A localização é um fator determinante da gravi- figurações e características de lesão diversificadas, cada
dade sendo consideradas graves as queimaduras que qual requerendo abordagem e manejo próprios.
atingem olhos, orelhas, face, mãos, pés, períneo, arti- A queimadura compromete a integridade funcio-
culações e região cervical anterior. Especialmente gra- nal da pele, responsável em parte pela homeostase hi-
ves são as lesões de vias aéreas por inalação de gases droeletrolítica, pelo controle da temperatura interna,
superaquecidos. flexibilidade e lubrificação da superfície corpórea. Por-
tanto, a magnitude do comprometimento dessas fun-
ções depende da extensão e profundidade da queima-
dura. A agressão térmica provoca no organismo uma
Quanto à faixa etária resposta local, traduzida por necrose de coagulação
São consideradas graves as queimaduras em tecidual e progressiva trombose dos vasos adjacentes
crianças de menos de 2,5 anos e adultos acima de em um período de 12 a 48 horas. A ferida da queima-
65 anos. Os idosos desenvolvem, muitas vezes, com- dura, a princípio, é estéril, porém, o tecido necró-
plicações letais em queimaduras moderadas. Isto é tico rapidamente se torna colonizado por bactérias
menos frequente em crianças. endógenas e exógenas.

SJT Residência Médica – 2016


190
Cirurgia Geral e politrauma

Respostas fisiológicas da lesão por queimadura Aumentos acentuados e sustentados nas cateco-
laminas circulatórias levam ao hipermetabolismo, e o
Resposta local* tratamento com betabloqueadores pode ser protetor.
Zona de coagulação: ocorre no ponto de máxima lesão, Aumentos sustentados no glucagon e glicocorti-
havendo perda irreversível de tecido em razão da necrose coides resultam em gliconeogênese excessiva e um
por coagulação dos constituintes proteicos da pele. estado insulinorresistente. Glicocorticoides aumen-
Zona de estase (isquemia): circundando a zona de tados também levam a um estado catabólico grave,
coagulação, essa região é caracterizada pela perfusão especialmente porque os hormônios anabólicos (hor-
sanguínea tecidual diminuída (oligemia), sendo, no en- mônio do crescimento e testosterona) estão reduzidos
tanto, potencialmente regenerável. Porém, fatores como
depois de uma queimadura.
hipotensão prolongada, infecção ou edema podem con-
verter essa zona em uma área desvitalizada e inviável.
Zona de hiperemia: é a região mais afastada do centro Causas do hipermetabolismo em
da lesão e caracteriza-se por fluxo sanguíneo aumenta-
do. Se as medidas de controle de infecções e reposição
queimados
volêmica forem precoce e adequadamente instituídas, A resposta metabólica ao trauma pode ser descrita
os tecidos dessa zona, invariavelmente, se recuperarão. em duas fases. A fase ebb é caracterizada pela perda de
Resposta sistêmica volume plasmático, choque, redução dos níveis plasmá-
Alterações cardiovasculares: há aumento da perme- ticos de insulina, diminuição do consumo de oxigênio,
abilidade capilar levando à perda de proteínas intra- da temperatura corpórea, do gasto energético basal e
vasculares e fluidos intersticiais, ocorre vasoconstrição do débito cardíaco. Após a ressuscitação, a fase ebb
da circulação esplâncnica e periférica e a contratilidade evolui para a fase flow. A transição para a fase flow
miocárdica está comprometida. Isso, somado às perdas é dominada pelas alterações hormonais. Há um incre-
líquidas no local da ferida, resulta em hipotensão arterial mento nos hormônios catabólicos, como catecolami-
sistêmica e hipoperfusão orgânica. nas, glicocorticoides e glucagon, que desempenham im-
Alterações respiratórias: mediadores inflamatórios portante papel para mediar a resposta metabólica. Essa
liberados na circulação sistêmica podem causar bron- fase é caracterizada pelo aumento do débito cardíaco e
coespasmo e, nas queimaduras graves, pode ocorrer da temperatura corpórea, maior consumo energético,
síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA).
proteólise acelerada e neoglicogênese.
Alterações metabólicas: há aumento significativo na
taxa metabólica basal que, somado à hipoperfusão na O pico de demanda energética em pacientes
região esplâncnica, gera a necessidade de alimentação queimados está por volta do 10º dia de queimadura
enteral precoce e agressiva para reduzir o catabolismo e retorna gradativamente ao normal com a reepi-
excessivo e manter a integridade da mucosa intestinal. telização e enxertia, se não houver episódios de in-
Alterações imunológicas: uma queda (down regula- fecção e falência de múltiplos órgãos.
tion) não específica da resposta imune ocorre, afetando Alguns autores vêm utilizando betabloqueador
tanto via mediada por células quanto a via humoral. que reduz a atividade beta-adrenérgica em pacientes
Tabela 14.4 * Essas três zonas da área queimada são gravemente queimados com o intuito de reduzir o gas-
tridimensionais e a perda de tecidos na zona de estase le- to energético basal e o catabolismo proteico neles, no
vará a uma expansão lateral e em profundidade da lesão. entanto, ainda não existe consenso para essa conduta.

Causas de hipermetabolismo
Hipermetabolismo Perda evaporativa de água Ansiedade
Começando no quinto ou sexto dia há um Aumento das catecolaminas Distúrbios do sono
aumento gradual na taxa metabólica, de um nor- Níveis elevados de cortisol Citocinas e prostaglandinas
mal de 35 a 40 cal/m2/h (25 cal/kg/dia) para o do- Infecção Terapia nutricional tardia
bro deste valor em cerca de dez dias. O aumento Tabela 14.5
na taxa metabólica, após queimaduras, é muitíssimo
maior que o visto após qualquer outra lesão grave, in-
clusive sepse. A magnitude do aumento é relacionada
ao tamanho da queimadura. O estado hipermetabó-
lico é caracterizado por consumo aumentado de
oxigênio, produção de calor, temperatura corpo-
Imunidade
ral e catabolismos proteicos, também aumenta- Após a queimadura, ocorre a rápida ativação
dos. A temperatura corporal aumenta do normal das cascatas do ácido aracdônico e da citocina, com
para 38 º a 38,5 ºC em razão de um reajuste do cen- a translocação bacteriana e de endotoxina. Com 24
tro termorregulador hipotalâmico, resultante do a 48 horas de trauma, ocorrem as maiores altera-
ambiente hormonal alterado. ções metabólicas, hormonais e celulares e depois

SJT Residência Médica – 2016


191
14 Queimaduras

de três a quatro dias, o segundo pico de endoto- Grande edema intersticial poderá ser formado
xemia que reinduz às cascatas do ácido aracdô- e sua gravidade estará relacionada com a extensão e
nico e inflamatória da citocina. Apesar das alte- profundidade da lesão e volume infundido na ressus-
rações ocorrerem precocemente, não é significativo citação hídrica. A perda do volume plasmático é dire-
até alguns dias após o trauma. Com esses processos, tamente proporcional à extensão das queimaduras.
ocorre uma série de alterações que determinarão a O retorno do líquido presente no interstício para
resposta imunológica do paciente, entre elas, defi- o intravascular ocorre à custa da drenagem por linfá-
cits das imunidades celular e humoral, redução
ticos e capilares venosos, depois de restaurada a per-
da função dos linfócitos T, disfunção dos neutró-
meabilidade capilar. Esse edema intersticial é reabsor-
filos, diminuição da capacidade bactericida, alte-
ração dos receptores de membrana, diminuição
vido progressivamente, de modo a desaparecer, quase
da IgG sérica. Diversos estudos estão sendo reali- por completo, no final da primeira semana.
zados buscando uma terapêutica eficiente e de custo Nas queimaduras pequenas, a formação má-
aceitável, a fim de se reduzir as alterações imunoló- xima do edema acontece em 8 a 12 horas da lesão,
gicas, no entanto, até o momento, não há nenhuma enquanto, nas queimaduras maiores, ocorre em 12
viável. Certamente, a mais efetiva permanece sendo a 24 horas do trauma térmico. A taxa da progressão
a remoção precoce das escaras e a cobertura cutânea do edema depende de uma adequada ressuscitação
definitiva precoce. (Figura 14.3).

Trauma Térmico
Fisiopatologia do choque no
Exposição das fibras colágenas
queimado
Mastócitos Sistema calicreína Fosfolipase
Inicialmente, logo após o trauma térmico, que
expõe as fibras colágenas do tecido afetado, ocorrem Histamina Cininas Ácido aracdônico
graves mudanças agudas no tecido queimado, como
Prostaglandinas
a ativação de mastócitos, sistemas calicreína e fosfo-
Tromboxane - Trombina
lipase-ácido aracdônico, com liberação de histamina, Plasmina
cininas e prostaglandinas (entre essas a prostaciclina-
Aumento da Permeabilidade Capilar
-PGI2), as quais, respectiva e conjuntamente, provo-
cam danos na integridade do endotélio capilar pela
separação das junções das células desse endotélio. Pressão Coloidosmótica

Pode-se resumir a fisiopatologia das queima- Edema Hematócrito

duras da seguinte maneira: primeiro ocorre aumen-


Volemia Viscosidade
to da permeabilidade capilar (APC), que leva à fuga
maciça do filtrado plasmático para o espaço extra- Resistência periférica
vascular nos primeiros instantes do trauma térmico,
formando edema intersticial nos tecidos queimados, Débito cardíaco

consequentemente, levando à hipovolemia e, por fim, Débito urinário


ao choque do queimado.
Choque hipovolêmico
O aumento da permeabilidade capilar inicia-
-se alguns segundos após o trauma e dura, em mé- Figura 14.3 Fisiopatologia do choque hipovolêmico.
dia, de 18 a 24 horas, voltando ao normal progres-
sivamente. É imediatamente generalizado por todo o
organismo, sendo de maior importância nas quei-
maduras com SCQ igual ou maior a 25%. A criança
desenvolve falência circulatória, débito cardíaco baixo,
oligúria e acidose metabólica.
Tratamento
Kurzer e Russo afirmam que, durante as primei- O paciente queimado sofre muitas alterações fi-
ras 6 a 8 horas do trauma térmico, o extravasamento siológicas e metabólicas dramáticas ao longo da evolu-
de líquido para o interstício é mais rápido e dura entre ção da lesão. Estas alterações são tão acentuadas que
24 e 36 horas, aumentando, progressivamente, o ede- o médico pode ter a sensação de tratar um paciente
ma local e pode levar à redução de 50% a 70% do volu- diferente em todos os vários dias, à medida que o pro-
me plasmático nas primeiras 5 horas em um paciente cesso evolui. A lesão da queimadura é dividida em
com 40% ou mais de SCQ. quatro fases, cada uma das quais possui muitas

SJT Residência Médica – 2016


192
Cirurgia Geral e politrauma

características fisiológicas e metabólicas dife- corpos estranhos. A intubação orotraqueal pode ser
rentes: (1) fase de ressuscitação (0 a 36 horas); (2) necessária em queimaduras do trato respiratório su-
fase pós-ressuscitação (2 a 6 dias); (3) fase de infla- perior, sendo mantida até a redução do edema local
mação e infecção (7 dias até o fechamento da ferida); (cerca de uma semana). A traqueostomia deve ser evi-
e (4) fase de reabilitação e remodelação da ferida (da tada por sua maior morbidade.
admissão a 1 ano mais tarde). Broncoscopia
Nas queimaduras importantes do segmento cer-
vicofacial, na inalação (ou suspeita de inalação) de
Indicações de hospitalização produtos de combustão, acidentes ocorridos em am-
bientes fechados e nos acidentes por incêndio com
liberação de fumaça tóxica, a solicitação de uma bron-
Os critérios para admissão em Centro de coscopia é imperativa. Presença de irritação, muco ex-
Terapia de Queimados são: cessivo e escurecido e fuligem na árvore traqueobrôn-
quica definem o prognóstico do caso em questão, bem
€ Queimaduras de segundo grau com SCQ supe-
como norteiam a indicação de manter uma intubação
rior a 15% em adultos ou 10% em crianças;
endotraqueal por períodos maiores.
€ Queimaduras de terceiro grau com mais de 5%
Os problemas pulmonares advindos direta e in-
de SCQ;
diretamente das queimaduras são, na atualidade, os
€ Queimaduras elétricas; maiores responsáveis pela morte prematura de gran-
€ Queimaduras que acometem vias aéreas, face e des queimados nas UTQ.
períneo; Analgesia e sedação
€ Queimaduras associadas a outras lesões.
O controle da dor no paciente queimado é um de-
safio desde o atendimento inicial na sala de emergên-
cia até a fase final de reabilitação. Sua intensidade está
Como orientação geral do tratamento, relacionada com a profundidade e extensão da quei-
podemos seguir a seguinte rotina: madura. Os cuidados com as feridas e condutas cirúr-
1. Avaliação geral do paciente; gicas podem gerar dor equivalente ou ainda maior do
que aquela sentida no momento da lesão.
2. Manutenção de via respiratória adequada;
Em termos de tratamento, a dor durante a hos-
3. Analgesia e sedação, quando necessário; pitalização pode ser manejada: no atendimento ini-
4. Hidratação e combate ao choque; cial, pré-curativos ou procedimentos, pré-reabilitação,
5. Monitorização do débito urinário; pós-operatório, na manutenção analgésica, além do
controle da ansiedade (Tabela 14.6).
6. Profilaxia do tétano;
7. Profilaxia da úlcera de Curling;
Esquema de tratamento e controle da dor no
8. Tratamento da ferida; paciente queimado
9. Aporte nutricional; Atendimento inicial
10. Antibioticoterapia sistêmica, quando indicada; Morfina < 16 anos: 0,05 mg/kg/dose + paraceta-
mol 15 mg/kg > 16 anos: 0,07 mg/kg/
11. Reabilitação. dose + paracetamol 15 mg/kg; pode-se
Avaliação geral do paciente repetir até 3 vezes.
Na avaliação inicial do paciente deve ser realiza- Pré-curativos ou procedimentos
da uma anamnese dirigida para investigar a história 1ª escolha Midazolam 0,3 mg/kg + paracetamol 15
mg/kg.
do acidente, incluindo o agente etiológico, o tempo de
Se insufi- Morfina 0,05 a 0,1 mg/kg.
evolução, as patologias prévias, estados alérgicos e uso
ciente
de medicamentos. As roupas são retiradas e as lesões
Pré-reabilitação
são analisadas durante o exame físico. Sempre que
Morfina 0,1 a 0,3 mg/kg.
possível, o paciente deve ser pesado.
Pós-operatório
Manutenção de via respiratória adequada PCA (> 5 anos) Morfina 10 a 20 mg/kg a cada 4 horas.
A perviedade da via respiratória deve ser garan- Morfina < 16 anos: 0,05 mg/kg/dose.
tida logo de início. Deve-se examinar a boca, o nariz e (pode-se re- > 16 anos: 0,07 mg/kg/dose.
a faringe na busca de fuligem e hiperemia bem como petir
de fratura de mandíbula ou obstrução por muco ou até três vezes)

SJT Residência Médica – 2016


193
14 Queimaduras

Esquema de tratamento e controle da dor no molecular, como o dextrano, também são usados. O
paciente queimado (cont.) objetivo das várias outras soluções utilizadas é a ma-
nutenção da volemia e da perfusão renal com o míni-
Manutenção analgésica
mo de edema. Como as membranas celulares deixam
Morfina Metade de toda a quantidade de morfi-
na utilizada a cada 4 horas. passar até moléculas grandes nas primeiras 24 horas,
Após 24 horas sem dor, reduz-se em 1/8 após uma queimadura, o líquido de escolha inicial con-
a quantidade. tinua a ser o Ringer lactato.
Ansiedade O Ringer lactato deve ser infundido através
Lorazepam Adulto: 2 a 6 mg/dia, 2 x/dia. de duas veias periféricas calibrosas em pele não
Criança: 0,03 mg/kg/dia. queimada e não lesada, se isso for de todo possível.
Tabela 14.6 PCA: analgesia controlada pelo pa- Os acessos centrais devem ser evitados, uma vez que
ciente. tendem a infectar-se. Entretanto, em queimaduras de
grande porte, a realização de uma dissecção ou a intro-
A avaliação da dor deve ser contínua e de prefe- dução de um cateter femoral pode tornarem-se muito
rência utilizando um método permanente de avaliação difíceis uma vez desenvolvido o edema.
(visual e/ou numérico), em razão da grande variabili- A fórmula de Parkland obedece aos seguintes
dade do sintoma interpaciente. É recomendada uma parâmetros: 4 mL de líquidos a serem infundidos (Rin-
abordagem estruturada de analgesia do paciente quei- ger Lactato isotônico) x peso corporal em kg x superfície
mado, que incorpore tanto medidas farmacológicas corporal queimada em porcentagem até um máximo de
quanto terapias alternativas. 50%. Se as lesões estiverem em uma superfície superior
a 50%, esse valor fica fixo nesse número, pois a capaci-
Na admissão, com o paciente hipovolêmico, o
dade de “sequestro” de líquidos, por parte do paciente,
analgésico opioide pode ser administrado por via en-
não se torna maior com queimaduras acima dos 50%.
dovenosa (EV), em pequenos bolus, sob supervisão e
monitoração dos parâmetros clínicos vitais. O uso in- A taxa de infusão deve ser calculada pela fórmula:
tramuscular ou subcutâneo, nessa fase, deve ser evitado
em virtude da redução do fluxo sanguíneo muscular e Peso kg x ASCT/8
dérmico pelo choque, levando, posteriormente, à absor-
ção de grande quantidade da droga, após a fase de res- Em crianças, utiliza-se a fórmula de Parkland
suscitação, com risco de depressão respiratória, especial- modificada. Substitui-se o fator 4 mL por 3 mL para o
mente se doses repetidas tiverem sido usadas e naqueles cálculo do volume principal e acrescenta-se uma dose
pacientes que não estarão sob suporte ventilatório.
de manutenção, com a mesma solução isotônica de Rin-
Se houver a presença de monitoração adequada, ger Lactato, na quantidade de 1.000 mL para crianças
em procedimentos muito dolorosos, a “sedação cons- com até 10 kg de peso corporal. De 10 a 20 kg, soma-se
ciente” poderá ser efetuada com o uso de agentes mais aos 1.000 mL o volume de 50 mL para cada quilograma
potentes como o fentanil e a ketamina, que promovem entre 10 e 20. De 20 a 30 kg, soma-se aos 1.500 mL o
um nível de sedação maior que mera analgesia. volume de 20 mL para cada quilograma entre 20 e 30.
Por exemplo, uma criança com 25 kg terá, como dose
de manutenção, 1.600 mL de Ringer Lactato isotônico.
Escala subjetiva Escala numérica A solução hipertônica de Ringer com lactato
0 Sem dor 0-5 deve ser reservada para pacientes chocados ou com
1 Dor leve 0-10 superfície corporal queimada acima de 40%, in-
2 Dor moderada 0-100 dependentemente de choque e/ou lesão pulmonar
3 Dor severa causado pelo trauma. Também nas graves queima-
Figura 14.4 Exemplo de avaliação da dor por meio duras do segmento cervicofacial e circulares de mem-
de escala visual, subjetiva e numérica. bros, a solução hipertônica, devem ser sempre cogi-
tadas. Por se tratar de uma terapêutica pouco usual,
Hidratação e combate ao choque recomenda-se a sua utilização e condução sempre por
mãos experientes de intensivistas de UTQ.
A reanimação hídrica dos pacientes queimados
continua a ser objeto de investigação. A reanimação Pacientes idosos ou com doenças cardíacas pré-
inicial de escolha é feita com solução de Ringer vias podem necessitar de cardiotônicos para melhorar
lactato. Outras soluções utilizadas em unidades de o débito cardíaco e a perfusão renal, durante o período
queimados são a salina hipertônica, soluções protei- de reposição hídrica.
cas como albumina ou plasma e soluções proteicas es- Esses números correspondem a uma hidratação
tabilizadas por calor, disponíveis comercialmente. Os que tem seu início logo em seguida a queimadura. Se
coloides não proteicos ou polissacarídeos de alto peso o paciente chega ao hospital algumas horas depois do

SJT Residência Médica – 2016


194
Cirurgia Geral e politrauma

acidente, o tempo perdido deve ser incluído na conta- ferência à albumina endovenosa (albumina a 10% em
gem. Não começar a contar o tempo (24 horas) a partir 150 mL de SG 5%, EV de 8/8 horas), mantendo o nível
do atendimento. sérico maior que 3 g/dL.
Do total calculado, para as primeiras 24 horas No segundo dia, associa-se albumina à repo-
de queimadura, a metade deve ser administrada sição, com o intuito de promover a reabsorção do
nas primeiras 8 horas, já que é nesse período que as edema, tentando-se estabelecer o nível de 3 g/dL,
perdas são mais acentuadas. sendo a hidratação calculada pela avaliação clínica.
Para se calcular a velocidade de infusão hídrica, Como parâmetros importantes para esta avaliação es-
usa-se a seguinte fórmula: tão a diurese horária, a frequência cardíaca, a pressão
venosa central, a pressão encunhada de artéria pulmo-
n° de gotas por minu- volume a ser transfundido
nar e os exames laboratoriais.
to = (mL) O controle da hidratação é realizado de hora
3 x n° de horas em hora, sendo o parâmetro de mais fácil verifica-
ção a diurese. Esta é satisfatória na criança quando
Todos esses cálculos servem para iniciar a hidra- de 1 a 2 mL/kg/hora e o balanço hídrico deve tender
tação e são os responsáveis pela redução das perdas para o positivo, porém, variando de zero a + 100 mL;
hídricas e reversão do gradiente osmótica, fortemente no adulto, a diurese deve estar acima de 50 mL/h e
alterado no paciente queimado agudo. acima de 70 ou 100 mL/h no trauma elétrico.
A sua manutenção é feita por meio do controle clí-
nico do paciente, especialmente, por seu volume uriná- Monitorização da ressuscitação volêmica (débito urinário):
rio horário, que é medido por cateter vesical de demora. adultos: 0,5 mL/kg/h.
A infusão de coloides, quando indicada, pode crianças: 1-2 mL/kg/h.
ser realizada 24 horas após o acidente. Dá-se pre- queimadura elétrica: 2 mL/kg/h.

Esquemas de reposição volêmica


Cristaloides Coloides Glicose a 5%
Fórmulas com coloide
Evans SF a 0,9% 1 mL/kg/%ACQ 1 mL/kg/%ACQ 2.000 mL
Brooke Ringer lactato 1,5 mL/kg/%ACQ 0,5 mL/kg 2.000 mL
Slater Ringer lactato 21/24 horas Plasma fresco 75
mL/kg/24 horas
Fórmulas com cristaloides
Parkland Ringer lactato 4 mL/kg/%ACQ
Brooke modificada Ringer lactato 2 mL/kg/%ACQ
Fórmulas com solução hipertônica
Solução salina hipertônica (Monafo) Volume para manter débito urinário de 30
mL/h
Solução com 250 mEq Na/L
Solução hipertônica modificada (Warden) Ringer lactato + 50 mEq NaHCO3 por 8 horas
para manter débito urinário de 30-50 mL/h
Ringer lactato para manter débito urinário de
30-50 mL/h, começando 8 horas após a quei-
madura
Tabela 14.7

Profilaxia do tétano No adulto, não vacinado, vacinado há mais de 5


anos ou com imunização duvidosa: imunização ativa
Na criança, verificar o esquema de vacinação.
com anatoxina tetânica (Anatox®, Tetavax®) intramuscu-
Profilaxia realizada com a vacina tríplice (DPT = dif-
lar, em três doses, sendo a primeira na ocasião da lesão, a
teria, pertússis, tétano) com cinco doses (2, 4, 6, 18 segunda, após 60 dias e a terceira 6 meses, após a segun-
meses e entre 4 e 6 anos). Acima de 7 anos é usada a da dose. No vacinado: se há menos de 1 ano, nenhuma
vacina dupla (DT tipo adulto), que deve ser repetida profilaxia; vacinado entre 1 e 5 anos, recebe apenas refor-
a cada 10 anos. ço com anatoxina intramuscular em dose única.

SJT Residência Médica – 2016


195
14 Queimaduras

Antibioticoterapia redor das margens da área queimada, aumento da


O uso de antibioticoterapia sistêmica não está espessura da lesão com aprofundamento da quei-
indicado na fase inicial do tratamento de queimados. madura e rápida separação da escara necrótica são
Nos casos de desbridamentos cirúrgicos programados algumas das manifestações que servem como parâ-
ou enxertias, pode-se, de acordo com as diretrizes das metro para a indicação precisa da droga.
comissões de infecção hospitalar de cada hospital, pres-
crever antibioticoterapia profilática ou mesmo terapêu- S. viridans
tica, dependendo de cada caso específico. P. aeruginosa
S. aureus
É muito importante basear a escolha do antimi- E. cloacae

crobiano na flora colonizadora do paciente e no perfil Streptococos


não grupo D
epidemiológico da UTQ.
37%
Os critérios para a indicação de terapia anti- C. albincans

biótica sistêmica tem base nos achados clínicos e


Enterococos
nas manifestações locais da ferida. 5%

No primeiro caso, taquipneias acima de 40 12%


19%
irpm, íleo funcional, hemorragia digestiva, altera-
ção da curva térmica, oligúria e falência cardiovas-
cular, são dados importantes na decisão de se ini-
E. coli
ciar o tratamento.
Da mesma forma, escurecimento das lesões, Figura 14.5 Principais agentes etiológicos de sepses
secreção purulenta, formação de abscessos, ne- pós-queimadura. As infecções correspondem à princi-
crose tecidual, arroxeamento ou edema da pele ao pal causa de morte nos pacientes queimados.

Organismos mais comuns nas infecções de queimaduras


Staphylococcus aureus Pseudomonas aeruginosa Candida albicans
Aspecto da ferida Perda da granulação da ferida Necrose de superfície, focos negros Exsudatos mínimos
Evolução Início lento, 2-5 dias Início rápido, 12-36 horas Início lento, dias
Sistema nervoso central Desorientação Alterações modestas Muitas vezes,
sem alteração
Temperatura Aumento acentuado Alta ou baixa Alterações modestas
Leucócitos Aumento acentuado Altos ou baixos Alterações modestas
Hipotensão Modesta Frequentemente grave Alteração mínima
Mortalidade 5% 20%-30% 30%-50%
Tabela 14.8

Quanto à terapia antimicrobiana tópica, dá-se preferência ao creme de sulfadiazina de prata ou, mais recente-
mente, ao creme de sulfadiazina de prata associado ao nitrato de cério (Dermacerium). Este, pela sua ação imunomo-
duladora, bloqueando os efeitos imunodepressivos do complexo lipoproteico (LPC) presente na carapaça necrótica
do tecido queimado, potencializa a excelente capacidade antimicrobiana e regenerativa da sulfadiazina de prata,
tornando-se, atualmente, uma droga de ponta na terapia tópica das queimaduras.
As indicações de antimicrobiano tópico na fase aguda são: 1. lesões de espessura parcial > 20% em adul-
tos e > 10% em crianças; 2. lesões de espessura total; 3. pós-escarotomias; 4. pós-desbridamentos; 5. lesões com
sinais de contaminação; e 6. queimadura de orelha externa (condrite).

Antibioticoterapia tópica, seu espectro, características e reações adversas


Medicamento Espectro Características Reações adversas
Sulfadiazina Gram + Dor local: + Leucopenia transitória (5% a 15% dos
de prata 1% Gram -, porém certa resistência Pouca penetração na escara pacientes) e neutropenia
tem sido relatada Fungos Uso: 2 x/dia Cristalúria e síndrome nefrótica (raro)
Custo: + Metemoglobina (raro)
Reação maculopapular cutânea (5%)

SJT Residência Médica – 2016


196
Cirurgia Geral e politrauma

Antibioticoterapia tópica, seu espectro, características e reações adversas (cont.)


Medicamento Espectro Características Reações adversas
Nitrato de Gram +, bacteriostático Gram- Dor local: + Alteração do balanço eletrolítico
prata a 0,5% -bacteriostático Pouca penetração na escara Metemoglobina
Uso: a cada 2 h Citotoxicidade acima de concentrações
Custo: + de 5%
Tinge de marrom ou preto Hiponatremia
ao contato Hipocalemia
Tabela 14.9 Atenção!

Profilaxia da úlcera de Curling trocoagulação dos vasos para reduzir o sangramento


A úlcera de Curling é uma das mais significantes e manter curativo absorvente. Deve-se monitorizar e
complicações de um paciente queimado. Consiste na ocor- ampliar as incisões relaxadoras, quando necessário, e
rência súbita de sangramento gastrointestinal em razão de iniciar antibioticoterapia tópica e sistêmica.
ulcerações múltiplas da mucosa gástrica. Sua prevenção é
feita com bloqueadores HZ tipo ranitidina, na dose de 50 Cateter vesical de demora
mg de 8/8 h, ou Omeprazol, 40 mg IV por dia.
Um dos mais importantes parâmetros da eficácia
da hidratação do grande queimado é a medida do fluxo
Tratamento da ferida urinário horário. Deve-se atentar para a importância
O local deve ser lavado com água e solução deger- técnica do cateterismo, dando a ele importância cirúr-
mante (clorexidine 2%), raspando-se os pelos adjacentes gica, reduzindo o risco de contaminações grosseiras.
e cuidando-se em desbridar todo o tecido necrótico exis- Em pacientes do sexo masculino, menos graves, ou
tente, inclusive as flictenas rotas. As flictenas íntegras com mais de cinco dias de cateter de demora, pode-
serão mantidas ou não, dependendo do caso. Pode haver -se utilizar coletor externo de urina. Nunca descartar
necessidade de anestesia geral para este procedimento. a possibilidade de entupimentos ou dobras no cateter,
caso o débito urinário, apesar de um bom programa de
Escarotomia hidratação, não a esteja contento.
Queimadura de espessura total circular em tó-
rax, que dificulta sua expansão, e de região cervical, que
restringe a respiração do paciente, necessita da realiza-
Aporte nutricional
ção de incisões em toda a extensão e profundidade das O dispêndio de energia dos queimados é
lesões de espessura total até o aparecimento de tecido proporcional à extensão das lesões, atingindo
viável, no plano longitudinal do tórax na linha axilar o dobro da taxa metabólica normal de repou-
anterior; e no tórax, podendo associar no plano trans- so em pacientes com mais de 50% de superfície
versal, ao nível da junção entre o término das costelas e corporal queimada. O rigoroso acompanhamento
o abdome, até a completa liberação das restrições. Rea- ponderal do paciente é fundamental para sua avalia-
lizar fasciotomia, quando necessário, ou incisões para- ção nutricional. Outros dados como a antropometria
lelas as iniciais se a liberação não foi completa. branquial, excreção de 24 horas de creatinina, prote-
Queimadura de espessura total circular em ínas séricas e testes cutâneos para energia têm utili-
membros, superiores e inferiores, mãos, pés ou dedos
dade limitada como indicadores nutricionais. Assim, o
necessitam da realização de escarotomia longitudinal suporte nutricional desses pacientes é instituído qua-
ao longo do eixo do membro na face medial e na late- se sempre com base na gravidade das lesões.
ral, nos dedos da mão também medial e lateral, preser- Diversas fórmulas têm sido propostas para a estima-
vando a face ulnar do primeiro e quinto, a face radial tiva da demanda energética do grande queimado. Uma de-
do segundo; no dorso da mão, quando se suspeita de las, para o paciente adulto, é a fómula de Curruri, baseada
edema da musculatura interóssea, devem-se fazer in- na área de superfície corporal queimada (SCQ):
cisões entre os metacarpos para liberação, evitando, Demanda energética = 25 cal/kg + 40 cal % SCQ
sempre que possível, o trajeto dos vasos e nervos, de-
Para crianças com mais de 1 ano a fórmula cor-
vendo o membro ser mantido em elevação para mini-
respondente é:
mizar o edema e sendo reavaliado com frequência.
Não é necessário usar anestesia nos casos de
Demanda energética = 60 cal/kg + 35 cal % SCQ
queimadura de 3º grau, porque todas as termina- Glicídios – o fornecimento adequado de carboi-
ções nervosas estão lesadas e não deve existir dor dratos é primordial, já que uma boa oferta de glicose
na necrose. Entretanto, é conveniente utilizar a ele- representará importante economia de proteínas para

SJT Residência Médica – 2016


197
14 Queimaduras

o paciente queimado. Em funções das limitações da comerciais, ricas em proteínas, encontram-se disponí-
oxidação glicídica, ele deverá receber até 5 mg/kg/mi- veis. Pode ser necessária a complementação com oli-
nuto de glicose ou até 500 g/dia no adulto de 70 kg. O goelementos. A via oral, mesmo que utilizada parcial-
restante das calorias não proteicas deverá ser propor- mente, deve ser encorajada sempre que possível, com
cionado sob a forma de gordura. suplementação enteral durante as horas de sono.
Na verdade, o excesso de glicose é transformado Nutrição parenteral – está indicada em pacien-
em gordura, com utilização de ATP e produção de CO2, tes com distúrbios gastrointestinais, como íleo paralí-
o que pode agravar as condições respiratórias de pa- tico prolongado, procedimentos cirúrgicos múltiplos e
cientes portadores de edema pulmonar, pneumonite planejados, pancreatite ou doença intrínseca do intes-
ou insuficiência respiratória aguda. tino delgado.
Dietas ricas em carboidrato, comparadas àquelas A nutrição parenteral periférica tem seu emprego
com alto teor lipídico, podem promover um melhor limitado no paciente gravemente queimado, podendo
balanço proteico na musculatura esquelética, entre- não fornecer a quantidade de calorias/dia necessária,
tanto, também estão associadas à importante elevação uma vez que nessas condições as necessidades diárias
da glicemia, o que é deletério em pacientes críticos. podem ultrapassar as 3.000 calorias.
Estudos comprovaram que a hiperglicemia ou Quando se prescreve a nutrição parenteral total
mau controle glicêmico, nesses pacientes, se relacio- central, as concentrações de aminoácidos, glicídios e
na diretamente com aumento de complicações como oligoelementos são as mencionadas anteriormente.
bacteremia, alteração do processo cicatricial da pele e Inicia-se a infusão com 40 mL/hora; ela é aumentada
da eficácia dos enxertos, além de aumento da morbi- progressivamente, de acordo com a tolerância à sobre-
mortalidade. Portanto, é recomendada monitoração carga de glicose. O risco de contaminação do cateter
rigorosa da glicemia, bem como a terapia insulínica de infusão aumenta no paciente queimado, e os cuida-
intensiva, objetivando manter os níveis glicêmicos do dos para se evitar a infecção devem ser redobrados. Al-
paciente o mais próximo do normal. guns autores recomendam a troca do cateter, por um
Proteínas – a quantidade ideal de proteína a ser fio-guia, a cada três ou quatro dias.
administrada ao paciente queimado ainda não foi defi- Um aumento na atividade anabólico é capaz de
nitivamente estabelecida. Alguns autores sugerem até reduzir a resposta catabólica à queimadura, preser-
3 g/kg/dia de proteínas. Davies e Liljedahl propuse- vando, desse modo, a massa magra corporal, o que
ram a seguinte fórmula para a administração proteica melhora todos os aspectos da cura da ferida. Glu-
em adultos: 1 g/kg + 3 g/% SCQ. tamina, um aminoácido condicionalmente essen-
A fórmula para crianças é: 3 g/kg + 1 g/% SCQ. cial, está invariavelmente em deficiência depois de
uma queimadura, por causa da utilização aumentada
Pacientes portadores de comprometimento he- e aporte diminuído. A suplementação de glutamina
pático ou renal deverão receber quantidades menores nas grandes queimaduras, a uma dose de 0,4 g/kg
de proteína (1,4 g/kg/dia). peso corporal, melhora a cura da ferida e reduz in-
Micronutrientes – os preparos multivitamíni- fecções e mortalidade. As concentrações endógenas
cos são largamente utilizados no paciente queimado. dos anabolizantes do hormônio do crescimento hu-
Doses suplementares das vitaminas C e A, de ácido mano e testosterona estão diminuídas depois de cirur-
fólico e tiamina são igualmente administradas. Ácido gia de queimadura e frequentemente, se desenvolve
ascórbico, com importante papel na síntese do coláge- resistência à insulina. Estas alterações intrínsecas são
no, e o zinco, importante na cicatrização das feridas, todas deletérias para a cura da ferida.
devem ser suplementados. O hormônio do crescimento humano, suplemen-
Pacientes com nutrição parenteral deverão rece- tar, reduz, significativamente, a taxa de perda de mús-
ber doses padronizadas de oligoelementos. A admi- culo e aumenta a cicatrização da ferida. Similarmente, a
nistração de cálcio, fósforo e magnésio dependerá das infusão de insulina com glicose nos pacientes queimados
respectivas dosagens séricas. Outros elementos são diminui a perda de massa magra e melhora o desfecho.
oferecidos na seguinte dosagem: O único esteroide anabólico aprovado pela FDA
a) ferro, 10 a 15 mg/semana; – Food and Drug Administration para tratar perda de
b) zinco, 2 a 5 mg/dia; peso e catabolismo é a oxandrolona, que é dada oral-
mente (10 mg, duas vezes ao dia), excretada pelo rim
c) vitamina K, 10 mg/semana;
e não tem nenhum efeito sobre o metabolismo, a não
d) vitamina C, 250 mg a 1 g/dia. ser síntese de proteína.
Nutrição enteral – está geralmente indicada A oxandrolona atua sobre os receptores an-
nos pacientes com ≥ de 30% da SCQ, sendo adminis- drogênicos na massa magra, especialmente sobre
trada através de sonda alimentar. Inúmeras fórmulas os fibroblastos da pele. Diversos estudos demonstra-

SJT Residência Médica – 2016


198
Cirurgia Geral e politrauma

ram sua capacidade de preservar a massa magra, após A maioria dessas lesões é carcinoma de célu-
a queimadura e, dessa maneira, melhorar a cura local. la escamosa (75% a 96%) que ao exame histológico
Além disso, vários estudos recentes demonstraram revela-se como um tipo bem diferenciado com pou-
propriedades diretas de curar a queimadura. cas figuras de mitose; segue-se o carcinoma de células
basais (1% a 25%) e o melanoma e o sarcoma (raros).
Duas variantes são descritas: uma forma aguda, na
qual o câncer ocorre por volta de um ano, após a lesão
Complicações tardias que ocasionou a cicatriz, e uma forma crônica, na qual
A cicatriz da queimadura que evolui com contra- o desenvolvimento da neoplasia se dá com uma média
tura e consequente perda da função, na maioria das de 36 anos (variando de 1 a 75 anos) da lesão inicial.
vezes, resultado de infecção das feridas e imobilidade O carcinoma da cicatriz da queimadura não tem
articular, permanecem como a mais frustrante com- sua patogênese conhecida. É visto em adultos, sem
plicação tardia da queimadura. preferência de idade ou raça. A média de idade dos
As unidades de tratamento de queimados dis- pacientes é em torno da quinta década, variando entre
põem, cada vez mais, de equipes multidisciplinares 18 a 84 anos, com uma preferência para o sexo mas-
compostas por cirurgiões, clínicos, pediatras, ortope- culino em uma proporção de 3:1. Ao contrário dos
distas, fisiatras, terapeutas ocupacionais e corpo de cânceres de pele espontâneos que ocorrem em 90% na
enfermagem especializado, a fim de prestar atendi- cabeça e no pescoço, os carcinomas de queimaduras
mento integral ao paciente gravemente queimado. são tipicamente lesões de extremidades.
Muitas lesões decorrentes de fibrose intensa ou O tratamento de escolha é a excisão local com
de processo anormal de cicatrização, por exemplo, a margem de 2 cm, acompanhada de enxerto. A ampu-
formação de queloides escapa ao controle mais rigoro- tação é reservada para lesões envolvendo articulações,
so e também necessitarão de algum tipo de tratamen- com invasão óssea e com invasão local extensa. Rádio
to especializado posterior. e quimioterapia não causam benefícios. Esvaziamen-
to linfonodal regional é controverso é recomendado
Várias técnicas têm sido usadas para diminuir a
apenas quando há lesão palpável ou quando o exame
contratura e a escolha da técnica mais adequada vai
histológico da lesão primária revela tratar-se de neo-
depender da localização e avaliação do comprometi-
mento da pele adjacente. Tais técnicas incluem o uso plasia de alto grau.
de expansores, retalhos locais e distantes, plásticas (Z, Tem-se, então, que a conduta aceita, atualmente,
W, Y-Z etc.) e enxertos. é que toda lesão ulcerada em uma cicatriz de quei-
madura deve ser examinada por biópsia. Caso não
A medicina física também tem relevante papel
haja evidência histológica de malignidade, proce-
a desempenhar junto a esses pacientes, por meio de
de-se à excisão da área ulcerada com uma margem
medidas profiláticas fundamentais. As mais impor-
de segurança de 2 cm.
tantes são o posicionamento adequado dos segmen-
tos corporais atingidos, por aparelho de sustentação O fator prognóstico mais importante do carci-
e tração transesquelética e a manutenção permanente noma da cicactriz da queimadura é metástase para
da mobilidade articular, pelos processos habituais de linfonodos regionais, a qual ocorre em uma incidên-
fisioterapia. cia média de 35%, podendo chegar a 50%, quando a
lesão é de membro inferior.
Pode sobrevir, ainda, quadro de colite pseudo-
membranosa pelo uso de antibióticos; colecistite agu-
da alitiásica naqueles pacientes cronicamente graves,
desidratados, septicêmicos e usando nutrição paren- Reabilitação
teral; endocardite bacteriana proveniente de flebite
supurativa que se deve aos longos períodos com veias As queimaduras de 2° grau que, eventualmen-
profundas canulizadas e a úlcera de Marjolin, que te, dependendo da extensão e de suas características,
surge em cicatrizes de queimaduras e merece um podem ser clinicamente graves, na maioria dos casos
maior comentário. evoluem para epitelização sem maiores sequelas fun-
cionais ou estéticas.
O carcinoma de cicatriz de queimadura é uma
neoplasia rara. Em 1828, Marjolin, publicou a des- As queimaduras de 3º grau, no entanto, deman-
crição clássica de úlceras crônicas originadas sobre dam hospitalização por longos períodos e tratamen-
tecido cicatricial. Entretanto, foi Da Costa, em 1903, to cirúrgico. Deixam sempre sequelas estéticas e, em
que propôs o termo úlcera de Marjolin para descrever muitos casos, funcionais. O acompanhamento fisiote-
a degeneração maligna de cicatrizes, especialmente rápico contínuo, estimulando a mobilização precoce e
das queimaduras. Atualmente, úlcera de Marjolin é a manutenção de posição adequada durante o repouso,
sinônimo de carcinoma de cicatriz de queimadura. previne as perdas de movimento e de massa muscular.

SJT Residência Médica – 2016


199
14 Queimaduras

O apoio psicológico é outro aspecto de extrema com edema, em qualquer momento da reposição volê-
importância, pois o paciente encontra-se subitamente mica. A lesão acima da glote pode ser térmica ou quí-
envolvido por uma patologia que é dolorosa, assusta- mica, enquanto, aquela abaixo da glote é normalmen-
dora, potencialmente letal e determinante de sequelas te química;
funcionais e estéticas. lesão química: ocorre edema progressivo de-
terminando obstrução das vias aéreas inferiores por
edema da mucosa, perda do mecanismo de depu-
ração ciliar, microatelectasias difusas por perda de
Inalação de fumaça surfactante e mudanças na permeabilidade capilar,
resultando em edema pulmonar. A perda do meca-
Na presença de inalação de ar, vapor e gases su- nismo de depuração ciliar e a redução da função imu-
peraquecidos, fumaça e/ou aspiração de líquidos su- nitária pulmonar facilitam o crescimento bacteriano
peraquecidos, pode ocorrer lesão das vias respiratória e a pneumonia.
superior e inferior. Esse tipo de lesão cursa com edema
das vias aéreas superiores, causado pela lesão térmica
direta, seguida por broncoespasmo e obstrução das Intoxicação por monóxido de carbono
vias aéreas inferiores. Esta pode ser causada pela pre- Nível de Gravidade Sintomas
sença de debris e perda do mecanismo ciliar, levando a carboxiemoglobina
um aumento do espaço morto e shunting intrapulmo- < 20% Leve Cefaleia, leve disp-
nar, redução das complacências pulmonar e torácica, neia, alterações visu-
edema alveolar, traqueobronquite e maior predisposi- ais, confusão mental.
ção para infecção por pneumonia. 20%-40% Moderada Irritabilidade, perda
do juízo crítico, visão
O diagnóstico é realizado clinicamente, base-
obscura, náuseas, fa-
ando-se nos seguintes dados:
tigabilidade fácil.
€ história de queimadura em ambiente fechado; 40%-60% Grave Alucinações, confu-
€ queimaduras faciais; são mental, ataxia,
colapso, coma.
€ vibrissas nasais queimadas;
> 60% Fatal
€ resença de debris carbonáceos no escarro, boca
ou faringe;
Tratamento tradicional da intoxicação
€ edema nas vias aéreas superiores; por monóxido de carbono (CO)
€ dificuldade respiratória. Condição clínica do paciente Tratamento
Apesar da alta incidência de falso-positivo, estes Vítimas de incêndio. O2 a 100%
sinais sempre devem ser avaliados, evitando o risco de Perda da consciência, ciano- Intubação orotraqueal e
subestimar a lesão. O diagnóstico pode ser confirma- se, dificuldade de manter a O2 a 100%.
do pela broncoscopia. ventilação.
Carboxi-hemoglobina > 25% ou Oxigenioterapia hiper-
A lesão inalatória ocorre em razão de três fato-
cefaleia, fraqueza, vertigem, vi- bárica, 3 atm, repetir se
res, isolados ou em associação:
são turva, náusea, vômito, sín- os sintomas não desapa-
intoxicação por monóxido de carbono (CO): cope, aumento da frequência recerem.
a afinidade da hemoglobina ao CO é 200 a 250 vezes respiratória, coma e convulsão.
maior que ao O2. Os sinais clínicos da intoxicação, mui- Observação: a meia-vida da carboxihemoglobina é de
tas vezes, passam despercebidos, uma vez que os pa- 250 minutos em ar ambiente, 40 a 60 minutos em uma
cientes podem apresentar-se seriamente hipóxicos sem pessoa respirando oxigênio a 100%.
cianose, apenas com palidez cutânea e labial. Embora o Tabela 14.10
teor de O2 no sangue esteja reduzido, a PaO2 não é afe-
tada e tais pacientes não se apresentam taquipneicos.
Esses pacientes devem ser tratados com oxigeniotera-
pia (O2 a 100%) e, naqueles com nível de carboxie-
moglobina > 25%, pode ser instituída oxigeniote- Condutas na lesão inalatória
rapia hiperbárica o mais precocemente possível; Soluções coloides na reposição de fluidos não
lesão direta do calor: é rara e costuma ficar têm sido correlacionadas a uma melhor recuperação
confinada à face, orofaringe e às vias aéreas superio- pós-inalação. A profilaxia antimicrobiana é injustifi-
res, em razão da capacidade de troca de calor das vias cada, sendo o diagnóstico precoce e o tratamento da
respiratórias. Normalmente, são sérias quando ocor- bronquite e da broncopneumonia bacteriana, verda-
rem e a obstrução pode evoluir muito rapidamente deiramente, importantes. Os corticoides indicados

SJT Residência Médica – 2016


200
Cirurgia Geral e politrauma

somente nos quadros de broncoespasmo grave para re- Os efeitos do choque elétrico são proporcio-
dução do edema de mucosa e aumento da secreção de nais à voltagem. Correntes elétricas superiores a
surfactante, mas seu uso é controverso! 1.000 volts são classificadas como de alta volta-
gem, enquanto aquelas inferiores a esse valor são
Via aérea arti昀椀cial e ventilação de baixa voltagem que, em alguns casos, também
podem ser fatais. A energia elétrica das casas e am-
mecânica bientes de trabalho tipicamente varia de 110 a 230
A manutenção da via aérea é crítica. A presença volts; já as linhas de alta tensão podem apresentar
de edema superior, gerando desconforto respiratório, mais de 100.000 volts.
indica a necessidade de intubação traqueal, pois o ede-
Flash burn é o nome dado a queimaduras resul-
ma, geralmente, é progressivo, aumentando muito em
tantes da produção de calor, após explosão de rede elé-
8 a 12 horas. Os critérios para intubação traqueal e
ventilação são estes: trica ou exposição a arco voltaico de alta tensão.
€ PaO2 < 60 mmHg; Comparado ao choque elétrico, o raio possui uma
magnitude muito maior (até 10 milhões de volts), po-
€ PaCO2 > 50 mmHg;
rém, em virtude de sua ação instantânea, a energia li-
€ PaO2/FiO2 < 300 mmHg; berada por um raio no organismo pode ser menor que
€ sinais de desconforto respiratório; a de um choque elétrico de alta voltagem.
€ edema grave de vias aéreas superiores. O osso é o tecido mais resistente à passa-
O objetivo do suporte ventilatório é promover gem da corrente elétrica, seguido do tecido adi-
adequada troca gasosa, com atenção à possibilidade poso, tendão, pele, músculo, vasos sanguíneos
de lesão pulmonar associada à ventilação mecânica e o e nervos.
comprometimento hemodinâmico decorrente do au- O contato de uma pessoa com corrente alternada
mento das pressões intratorácicas. No manejo respi- (das casas e locais de trabalho) causa contrações mus-
ratório do paciente com consequente lesão pulmonar, culares mantidas, levando a um aumento no tempo de
os parâmetros do ventilador mecânico devem seguir
contato com a corrente, enquanto a corrente contínua
as recomendações de tratamento do tipo de compro-
(raios) provoca uma única e forte contração muscular,
metimento ocorrido.
permitindo que a vítima se afaste da corrente.
A síndrome da angústia respiratória aguda
(SARA) ou síndrome do desconforto respiratório agu- Correntes que passam pelo tórax têm maior
do (SDRA) é conceituada como uma síndrome de insu- probabilidade de provocar parada cardiorrespiratória
ficiência respiratória de instalação aguda, caracterizada (PCR). Estudos clínicos demonstraram que a morte
por infiltrado pulmonar bilateral à radiografia de tórax, por fibrilação ventricular (FV) é mais frequente por
compatível com edema pulmonar, e por hipoxemia gra- trajeto horizontal da corrente (mão H mão) do que
ve, definida como relação PaO2/FiO2 200, com POAP pelo vertical (cabeça – pé).
18 mmHg ou ausência de sinais clínicos ou ecocar- As vítimas de acidentes com raios podem ser
diográficos de sobrecarga atrial esquerda, além da atingidas por três formas de contato:
presença de um fator de risco para dano pulmonar,
no caso, a lesão por inalação no paciente queimado. € por contato direto (tipo mais grave);

A lesão pulmonar aguda (LPA), cujo conceito é € por contato por meio de outro objeto (tipo mais
idêntico ao da SDRA, difere pelo grau menos acentuado comum); e
de hipoxemia presente (PaO2/FiO2 300), e tem por obje- € por contato por meio do solo.
tivo identificar os pacientes mais precocemente durante
a evolução de seu quadro clínico, e tomada de decisões.
Comparação entre raio e choque elétrico
Raio Choque elétrico
Ocorrência Fora de Ocupacional, dentro
Lesões elétricas e raios Corrente
casa de casa.
Contínua Alternada
As lesões decorrentes de choque elétrico são resul- Voltagem Alta Baixa
tantes da ação direta da corrente elétrica e da conver- Duração da des- Curta Prolongada
são da energia elétrica em energia térmica, durante sua carga
passagem pelo corpo, podendo deixar, ainda, ponto de Fenômeno flash Sim Não
entrada e saída. Vários fatores determinam a gravidade over
do choque, como a magnitude da energia, resistência à Parada cardíaca Assistolia Fibrilação ventricular.
corrente, tipo, duração do contato e o trajeto da corrente. Tabela 14.11

SJT Residência Médica – 2016


201
14 Queimaduras

Efeitos da corrente elétrica


Intensidade da corrente Efeito
1 a 5 mA Sensação de formigamento.
5 a 10 mA Sensação dolorosa.
10 a 20 mA Caso o contato seja na mão, induz contração muscular tetânica e impede a liberação vo-
luntária da mão da fonte de corrente.
30 a 50 mA Parada respiratória secundária à tetania diafragmática e torácica.
30 a 90 mA Parada respiratória, caso a corrente siga um trajeto através da medula.
50 a 100 mA Fibrilação ventricular.
2a5A Queimaduras cutâneas.
5 a 10 A Assistolia.
Tabela 14.12

Nos pacientes vítimas de choque elétrico uma série de sinais e sintomas podem ser observados, de acordo
com o exposto na Tabela 14.13.

Complicações associadas ao choque elétrico


Tipo de comprometimento Complicações
Cardiovascular Morte súbita (fibrilação ventricular, assistolia), dor torácica, arritmias, anormalidades do
segmento STT, bloqueio de ramo, lesão miocárdica, disfunção ventricular, infarto do mio-
cárdio (raro), hipotensão (secundária à depleção volumétrica), hipertensão (secundária à
liberação de catecolaminas endógenas).
Neurológico Alteração do nível de consciência, confusão, agitação, amnésia, coma, convulsões, edema
cerebral, encefalopatia hipóxica, cefaleia, afasia, quadriplegia, paraplegia, fraqueza moto-
ra focal, disfunção medular (pode ser tardia), neuropatia periférica, disfunção cognitiva,
insônia, labilidade emocional.
Cutânea Lesões de contato eletrotérmicas, queimaduras em arco sem contato e queimadura em
flash, queimaduras térmicas secundárias (ignição de vestuário, aquecimento de objetos
metálicos como anéis ou fivelas de cintos).
Vascular Trombose vascular, necrose de coagulação, hemólise intravascular, ruptura vascular tardia,
síndrome compartimental.
Pulmonar Parada respiratória, pneumonia de aspiração, edema pulmonar, contusão pulmonar
(rara).
Renal/metabólico Insuficiência renal aguda (secundária ao depósito de pigmento heme e a hipovolemia),
mioglobinúuia, acidose metabólica (láctica), hipopotassemia, hipocalcemia, hiperglicemia.
Tipo de Complicações
comprometimento
Gastrointestinal Íleo paralítico (“eletroíleo”), perfuração intestinal, hemorragia esofágica intramural,
necrose hepática, necrose pancreática, úlceras de estresse (úlceras de Curling), hemor-
ragia GI, disfunção das vias GI.
Muscular Mionecrose, síndrome compartimentai; miosite por Clostrídio, fibrose muscular.
Esquelético Fraturas de compressão vertebral, fraturas de ossos longos, luxações no ombro (anterior e
posterior), fraturas escapulares, necrose asséptica, queimaduras periósteas, destruição da
matriz óssea, osteomielite.
Infeccioso Sepse, infecção local da ferida, mionecrose por clostrídio, celulite, pneumonia, osteo-
mielite.
Oftalmológico Queimaduras da córnea, formação tardia de cataratas, hemorragias ou trombose intra-
oculares, uveíte, descolamento de retina, fratura orbitária.
Auditivo Perda auditiva, zumbido, perfuração da membrana timpânica (rara).
Queimaduras orais Hemorragia tardia da artéria labial, fibrose e deformidade facial, desenvolvimento tar-
dio da fala, crescimento hipoplásico da mandíbula, desenvolvimento inadequado da
dentição.
Fetal Aborto espontâneo, morte fetal, oligoidrâmnio, retardo do crescimento infrauterino,
hiperbilirrubinemia.

Tabela 14.13 Atenção!

SJT Residência Médica – 2016


202
Cirurgia Geral e politrauma

Indicações para internação Complicações associadas aos raios (cont.)


Exposição a correntes de alta tensão (> 1.000 V). Cutâneo Queimaduras lineares, queima-
Exposição a correntes de baixa tensão (< 1.000 V) e al- duras puntiformes, queimadu-
gum dos seguintes: ras arborescentes em formato
Qualquer suspeita de fluxo de corrente condutivo, de pena (marcações ceraunográ-
especialmente os que envolvem correntes através do ficas, figuras de Lichtenberg),
tórax, do tronco ou da cabeça; queimaduras de espessura total,
Quaisquer sintomas sugestivos de comprometimento queimaduras térmicas.
sistêmico ou cardiovascular (por exemplo, dor toráci- Extremidades Pontilhados, espasmo vasomotor
ca, palpitações), gastrointestinal (por exemplo, dor ab- intenso, ceraunoparalisia (espas-
dominal, vômitos), neurológico (por exemplo, cefaleia, mo vascular grave, paralisia moto-
perda de consciência, confusão, fraqueza, parestesias) ra, perda sensitiva).
ou do sistema respiratório (por exemplo, dispneia);
Oftalmológico Cataratas, lesões da córnea, hife-
Lesões elétricas que envolvam uma extremidade ou um ma, uveíte, iridociclite, hemorragia
dedo com suspeita ou possibilidade de comprometimento do vítreo, diplopia, coriorretinite,
neurovascular; descolamento da retina, degenera-
Queimaduras eletrotérmicas com evidência ou suspei- ção macular, atrofia óptica, distúr-
ta de comprometimento de tecido subcutâneo; bios autônomos oculares.
Achados anormais ao exame físico;
Achados anormais aos exames laboratoriais ou ao EAS; Auditivo Ruptura da membrana timpâni-
Achados anormais no eletrocardiograma; ca, otorreia de líquido cefalorra-
Arritmia documentada ou suspeita; quidiano, hemotímpano, surdez
História de doença cardíaca, renal ou de outros proble- temporária ou crônica.
mas clínicos subjacentes; Renal Mioglobinúria, hemoglobinúria,
Lesões elétricas associadas a suspeita de sabotagem, insuficiência real (rara).
maus-tratos ou intuitos suicidas; Diversos Traumatismo contuso secundário
Lesões associadas que impliquem a necessidade de in- (cabeça, coluna, tórax, abdome,
ternação; extremidades), síndrome muscu-
Tabela 14.14 lar compartimental, coagulação
intravascular disseminada.
Tabela 14.15 Atenção!
Nos pacientes atingidos por raio, várias complica-
ções podem ocorrer, e estão relacionadas na Tabela 14.15.

Comparação entre lesões causadas pelos raios


Complicações associadas aos raios e lesões elétricas de alta voltagem.
Tipo de Complicações Fator Raio Alta voltagem
comprometimento Duração da exposi- Instantânea Pode ser prolongada
Cardiovascular Morte súbita (assistolia, fibrilação ção à corrente
ventricular), arritmias (extras-
sístoles ventriculares, taquicar- Nível de energia
dia ventricular, arritmias atriais), Voltagem 3.000 a 1.000 a 70.000 V
anormalidades do segmento ST, 30.000.000 V
necrose cardíaca, infarto do mio- Amperagem 50.000 A 10 a 10.000 A
cárdio, disfunção cardíaca, derra-
me pericárdico, hipertensão. Características Unidirecional Alternada
Pulmonar Parada respiratória, edema pul- da corrente (direto)
monar, contusão pulmonar, he- Trajeto da Em descarga Horizontal
morragia pulmonar. corrente disruptiva (mão a mão)
Neurológico Confusão, amnésia, perda da cons- Vertical (mão a pé)
(agudo) ciência, convulsões, hemorragia Características da Superficial, Profunda, destruição
intracraniana (epidural, subdural,
intraventricular), paralisia do cen- queimadura pequena dos tecidos subja-
tro respiratório, edema cerebral, centes
infarto ou hemorragias cerebrais, Ritmo inicial em Assistolia Fibrilação ventricu-
paralisia das extremidades, pares- parada cardíaca mais comum lar mais comum
tesias, descoordenação, ataxia, he- Comprometimen- Mioglobinú- Mioglobinúria e
miplegia, afasia, perda visual.
to renal ria ou hemo- insuficiência renal
Neurológico Paraplegia, hemiplegia, paresia,
globinúria comuns
(em longo prazo) parestesias, neuralgia, dificulda-
des de equilíbrio, insônia, ataques raras
de pânico, afasia, sintomas de Fasciotomia e Raramente Relativamente co-
distúrbio de estresse pós-trau- amputação necessárias muns e extensas
mático, dificuldades de função
motora fina, disfunção cognitiva, Lesões contusas Efeito explosi- Quedas, sendo
cefaleias, depressão, distúrbios vo com “onda projetado da fonte
do humor, labilidade emocional, de choque” da corrente
fobias de tempestades. Tabela 14.16

SJT Residência Médica – 2016


203
14 Queimaduras

Queimaduras químicas
Causadas mais frequentemente por ácidos ou álcalis em acidentes de trabalho, originam lesão progressiva
até o agente ser totalmente removido, preferencialmente por água em abundância; devem ser consideradas pro-
fundas até prova em contrário.
Agentes de origem álcali são mais agressivos que os ácidos por sua ação na membrana celular,
que facilita sua penetração, aprofundando a lesão. A região atingida deve ser abundantemente lavada com água
corrente. Nunca lavá-la em água parada ou utilizar outras substâncias químicas para neutralização da-
quela produtora das lesões. Essa neutralização pode-se fazer por reações químicas que provocam mais lesões
que as originais.
Se o agente etiológico foi o fósforo, deve-se tomar o cuidado de retirar todas as partículas com
uma pinça antes de fazer a lavagem do local.
Lesões por Piche: este produto é aquecido acima de 300 °F (148 °C) e comumente causa queimadura profunda.
Inicialmente, o piche deve ser resfriado com irrigação de água de torneira para limitar a progressão da lesão e, mais
tarde, removido por solventes lipofílicos.
Após a irrigação inicial, são tratadas por cirurgia indicada pela profundidade, a qual é frequentemente su-
bestimada no exame inicial.

Incidente com agente químico

Irrigar copiosamente com água (vários litros)

Queimaduras por ácidos Queimaduras por álcalis

Verificar o pH superficial Verificar o pH superficial

Caso < 7, continuar irrigando até Caso < 7,5, continuar irrigando até
alcançar o limite fisiológico (7-7,5). que o pH atinja o limite fisiológico
Tomar cuidado em dirigir o irrigante (7-7,5). O pH deve ser verificado
para longe da pele saudável. Uma novamente após o desbridamento,
vez que o pH da queimadura atinja já que as bases podem penetrar
variação fisiológica, o processo através da superfície. Desde
de lesão acabou então, tratar a queimadura
com as técnicas convencionais
Figura 14.6 Tratamento da queimadura por ácido e álcalis.

Características das queimaduras mais comuns


Queimaduras Monitorização cardíaca por 24-48 horas.
elétricas Lesão em extremidades deve ser monitorada continuamente para síndrome compartimental.
Monitorização urinária para mioglobinúria e acidose.
Sequelas oculares e neurológicas tardias.
Tendem a ser progressivas, especialmente em membros.
Apresentam porta de entrada e saída.
Queimaduras Irrigação contínua com água corrente e irrigação do globo ocular com solução isotônica por 30
químicas minutos, pois apresentam danos progressivos até o agente ser completamente removido.
Até que se prove o contrário, devem ser consideradas queimaduras profundas.
Exposição ao ácido hidrofluorídrico pode levar à hipocalcemia severa.

Queimaduras Áreas expostas tendem a ser mais superficiais que as com vestimentas.
por líquidos Tendem a apresentar forma irregular e aspecto de “escorrido”.
Queimaduras por imersão tendem a ser profundas e graves.
Queimaduras Geralmente, são limitadas em extensão, mas profundas.
por contato Quando há perda da consciência, tendem a ser muito profundas.
Tabela 14.17

SJT Residência Médica – 2016


204
Cirurgia Geral e politrauma

Pomadas Vantagens e desvantagens


Suldadiazina de Prata Amplo espectro; indolor; não penetra na escara; pode deixar tatuagens brancas na pele
(Sulfadene) de ionização com prata; inibe suavemente a epitelização.
Acetato de Mafenida Amplo espectro; penetra a escara; doloroso; acidose metabólica; inibe suavemente a
(Sulfamilon) epitalização.
Bacitracina Espectro não tão amplo; indolor.
Neomycina Espectro não tão amplo; indolor.
Polymyxina B Espectro não tão amplo; indolor.
Nystatina (Mycostatin) Antifúngico; contraindicado junto com acetato de mafenide.
Mupirocina (Bactroban) Efetivo contra staphilococcus; não inibe a epitalização, mas é caro.
Antimicrobianos líquidos
0,5% Nitrato de Prata Amplo espectro; mancha nas áreas de contato; expolia sódio; pode desencadear mete-
moglobinemia.
5% Acetato de Mafenida Amplo espectro; não cobre fungo; doloroso; acidose metabólica.
0,025% Hipoclorito de Sódio Efetivo principalmente em Gram-positivos; inibe suavemente a epitelização.
(Dakin solution)
0,25% Ácido Acético (vinagre) Efetivo principalmente em Gram-negativos; inibe suavemente a epitelização.
Tabela 14.18 Pomadas e antimicrobianos tópicos usados em queimaduras.

Não há medicina que cure o que não cura a felicidade.


Gabriel Garcia Márquez..

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

15
Hipotermia

podendo estar associada a disfunções orgânicas


Introdução agudas ou doenças crônicas agudizadas. As causas
mais frequentes são a exposição ao frio, ao vento,
É uma síndrome, na qual a temperatura central infusão excessiva de líquidos parenterais frios, es-
do organismo cai abaixo de 35 ºC de modo não in- pecialmente nas transfusões, imersão em ambien-
tencional e ocorre quando a termogênese for me-
tes gelados, contato do corpo com superfícies frias
nor que a termólise. O ser humano está adaptado a
e úmidas.
uma faixa de temperatura estável (homeotérmico),
entre 36,4 ºC e 37,5 °C, para que as reações enzimáti- A hipotermia secundária ocorre por lesões no hi-
cas ocorram corretamente. potálamo, geralmente causadas por doenças orgânicas
e uso de medicamentos ou drogas, com ação no siste-
Com a redução da temperatura o metabolismo
ma nervoso central (SNC). As principais causas que
celular diminui acentuadamente, podendo ocasionar
colocam a termoestabilidade em risco são:
morte nos casos de hipotermias graves. A hipotermia
pode ocorrer por redução da termogênese, por perda 1. Diminuição da produção de calor (termogêne-
excessiva de calor (termolise exagerada) ou pela com- se), como as causas endócrinas (hipotireoidismo, hipo-
binação de ambas, por exemplo, após anestesia geral pituitarismo e hipoadrenalismo), a diminuição do apor-
em que a termogênese está reduzida em decorrência te calórico (hipoglicemia e desnutrição) e redução da
da imobilidade, maior radiação pela vasodilatação pe- atividade neuromuscular (idade avançada, diminuição
riférica, e o paciente pode estar exposto a ambientes dos tremores, inatividade e falta de adaptação ao frio).
frios e com vestes reduzidas. 2. Redução da termorregulação por insuficiência
vascular periférica, neuropatias, secção de medula e
diabete melito.

Classi昀椀cação 3. Disfunções no SNC causadas pelo uso de medica-


mentos, alterações metabólicas, toxinas, acidente vascu-
lar cerebral, trauma, neoplasias e doenças degenerativas.
Pode ser acidental (primária) e secundária.
A hipotermia acidental ou primária origina-se 4. Aumento da perda de calor (termolise)
da redução espontânea da temperatura central, pelo uso de drogas vasodilatadoras, presença de
206
Cirurgia Geral e politrauma

toxinas, dermatites graves, queimaduras, exposi-


ção excessiva ao frio, alcoolismo, infusão de flui- Alterações 昀椀siológicas
dos frios, imersão, politraumas, choque, doença
A taxa do metabolismo basal reduz-se a 50% a
cardiopulmonar avançada, acidose sistêmica, in-
uma temperatura de 28 ºC. O resfriamento retarda o
fecções (bacteriana, viral, fúngica ou parasitária),
consumo de oxigênio, a formação de oxigênio e a for-
pancreatites, carcinomatose, uremia e hipotermia mação de gás carbônico de modo semelhante em todos
recorrente ou episódica. os tecidos, cerca de 7% a 9% por grau centígrado.
Em um estudo multicêntrico de 401 casos de A alteração mais precoce da hipotermia é ca-
hipotermia em razão da exposição, a taxa de mor- racterizada por aumento da frequência respirató-
talidade era de 21% quando a temperatura cen- ria. Com a diminuição da temperatura ocorre depres-
tral caía em níveis entre 28 ºC e 32 ºC. Em vítimas são do centro respiratório e dos reflexos bronquiolar e
de traumatismo, a temperatura central de 32 ºC ou alveolar. A respiração espontânea persiste de 25 ºC a 20
menos está associada com uma taxa de mortalidade ºC. Ocorre uma diminuição do volume minuto de 30% e
próxima de 100%, e qualquer hipotermia é conside- aumento da resistência vascular pulmonar a 28 ºC.
rada um sinal prognóstico sombrio. O prognóstico O transporte de oxigênio (O2) e de gás carbô-
do paciente hipotérmico traumatizado, pela gravi- nico (CO2) sofre influência da temperatura. Os gases
dade das lesões associadas, é classificado de uma tornam-se mais solúveis à medida que a temperatura
forma distinta. do líquido no qual estão dissolvidos reduz-se. ABBOT,
1977 afirmou que, durante a hipotermia profunda, a
quantidade aumentada de oxigênio dissolvido no san-
Classificação de Hipotermia
gue tem papel importante na prevenção de lesão teci-
Hipoter- Em razão da Associada ao dual durante a parada cardíaca total. Na hipotermia há
mia exposição e/ou paciente um deslocamento da curva da dissociação da hemo-
controlada (ºC) traumatizado globina para a esquerda, aumentando a afinidade
(°C)
da Hb pelo O2, podendo causar privação de oxigênio
Ligeira > 34 < 36-34 aos tecidos. O CO2 é 20 vezes mais solúvel em água e
Moderada 30-34 < 34-32 plasma que o oxigênio, e torna-se mais solúvel no san-
Severa < 30 < 32 gue com a redução da temperatura sanguínea central.
Tabela 15.1 O CO2 para ser eliminado e transportado pelo sangue
é dissolvido no plasma como bicarbonato e compos-
tos carbaminos. A hipotermia provoca progressiva
depressão respiratória, dificultando sua eliminação.
O CO2 dissolve-se na água corporal, e por meio da ani-
Mecanismos de hipotermia
drase carbônica, hidrata-se, se transformando em ácido
Vasodilatação Doenças endocrinológicas carbônico (H2CO3), que no meio corpóreo dissocia-se
Drogas (BZD, barbitúricos, Hipotiroidismo em bicarbonato HCO3– e íon hidrogênio H+.
neurolépticos etc.) Insuficiência adrenal
Álcool Hipopituarismo A redução da temperatura sanguínea central in-
Toxinas Diminuição de reserva duz mudança no equilíbrio acidobásico por aumento
Lesões cutâneas energética da solubilidade dos gases no sangue. Ocorre alteração
Grandes queimados Hipoglicemia da constante de dissociação dos ácidos (pKa). Há um
Ictiose Desnutrição aumento da concentração de íons hidrogênio (H+) no
Lesões esfoliativas Exaustão física sangue (pH) (0,0147 da [H+], para cada grau centígra-
Iatrogênica Paralisia neuromuscular do. Acidose metabólica é o achado mais comum.
Infusão de soluções frias Extremos de idade
Cirurgia Diminuição de tremores Ocorre elevação do hematócrito e a concentração
Hemodiálise Perda da adaptação ao frio de proteínas é secundária à perda de plasma. Ocorre
Circulação extracorpórea Inatividade aumento da viscosidade do sangue a temperatura
Exposição ambiental Outras causas sanguínea inferior a 25 ºC. Há uma diminuição da
Imersão Pancreatite fagocitose de leucócitos polimorfos e células fagoci-
Exposição ao frio Uremia tárias do sistema reticuloendotelial, com sequestro
Doenças neurológicas Trauma esplênico, hepático e intravascular. Hipotermia de
AVC Sepse 20 ºC provoca o desaparecimento quase total das
Doenças degenerativas Doença cardiopulmonar plaquetas, o fator V diminui 45%, os fatores I, II,
Doença de Parkinson avançada VII, VIII, IX, X e antitrombina III não sofrem alte-
Disfunção hipotalâmica Acidose sistêmica rações. Pode ocorrer coagulação intravascular dis-
Tabela 15.2 seminada em virtude da lesão tecidual difusa.

SJT Residência Médica – 2016


207
15 Hipotermia

O volume plasmático reduz-se em 25% pelo mo-


vimento da água para o espaço extracelular com tem- Quadro clínico
peratura de 26 ºC. O sódio (Na+) reduz-se no plasma
A suspeita clínica de hipotermia sempre deve
e o potássio (K+) aumenta, consequentemente, há re-
ser realizada quando a aferição pelo termômetro
dução na atividade enzimática da bomba de Na+/K+ da
clínico mostrar temperatura de 35 ºC ou menos.
membrana celular.
Em geral, na hipotermia leve constatam-se
Ocorre uma redução na demanda metabóli-
apatia, taquipneia, taquicardia, dificuldade de jul-
ca de oxigênio e glicose, com a diminuição do flu-
xo cerebral de 6% a 7% para cada grau centígrado
gamento, tremores generalizados, queda sem justi-
da redução da temperatura. A oferta de O2 excede o
ficativa, pele fria, fala empastada, incompreensível
e lentificada.
consumo. O aumento da viscosidade do sangue pro-
duz alterações na microcirculação cerebral. Tremores, Na moderada ocorrem bradiarritmias, fibrilação
denominados de tiritação podem surgir no início da atrial, piora das manifestações neurológicas e senso-
redução da temperatura cerebral, podendo aumentar a riais, hipoventilação, oligúria, arreflexia e diminuição
taxa metabólica cerebral a valores superiores a 100%. dos tremores musculares. A presença da onda de Os-
borne (onda J) aparece quando a temperatura cen-
Inicialmente, ocorre diminuição das funções cere-
tral está menor que 32 ºC. Outras alterações ocorrem
brais nervosas superiores, como os movimentos volun-
no ECG, tais como aumento do espaço PR, RR, QRS e
tários, equilíbrio, audição e visão. A seguir são abolidos
QT, em virtude de menor velocidade de condução dos
os atos de deglutir e morder e, finalmente, os centros
impulsos pelos canais de potássio. Praticamente todas
bulbares que controlam a respiração são afetados. A se-
essas alterações regridem com o aquecimento.
dação ocorre com a temperatura sanguínea central
de 33 ºC, a obnubilação a 31 ºC e a narcose a 30 ºC. Na forma grave observam-se sinais clínicos se-
O consumo de oxigênio pelo miocárdio dimi-
cundários às reduções do fluxo sanguíneo para o cé-
rebro, com depressão grave do nível de consciência,
nui na hipotermia. O coração em assistolia conso-
alucinações, coma, arritmias complexas, congestão
me 1 mL de O2/100 g/min. a 37 ºC e a 22 ºC 0,3 mL
pulmonar e apneia.
O2/100 g/min. Ocorre aumento da irritabilidade da
célula cardíaca. Podem ocorrer também bradicardia É importante lembrar que o limiar para arrit-
sinusal, bloqueio atrioventricular, fibrilação atrial e mias no paciente hipotérmico é muito baixo e isto
ventricular. As anormalidades do eletrocardiogra- limita manobras bruscas com ele, bem como uso de
ma iniciam-se com bradicardia, onda T invertida drogas hipertônicas, inotrópicas, passagem de cate-
e intervalo ST prolongado. Na hipotermia profunda teres centrais que possam atingir o miocárdio, insta-
há depressão da responsividade do coração às cateco- lação precipitada de marca-passo cardíaco, pois são
laminas. A adrenalina aumenta a probabilidade de fi- procedimentos que podem desencadear fibrilação
brilação ventricular durante a hipotermia, enquanto ventricular e óbito.
que dopamina e norepinefrina estabilizam o ritmo. No hipotérmico em estado grave podem-se en-
O sistema urinário apresenta uma diminuição contrar sinais clínicos que simulam a morte, porém
progressiva no transporte tubular de sódio, cloreto e não se deve considerar o indivíduo morto até que se
água, tornando a urina com composição próxima ao tenha uma cuidadosa e completa avaliação da função
plasma. A oligúria e insuficiência renal ocorrem em e frequência cardíaca, e as manobras de ressuscitação
pequena porcentagem. cardiopulmonar devem ser realizadas até que o pa-
ciente esteja suficientemente aquecido.
A motilidade do intestino diminui quando a
temperatura sanguínea central reduz-se a 34 °C, Pacientes que permaneceram durante períodos
ocorrendo íleo com presença de fluidos. A ação de prolongados em temperaturas inferiores a 28 °C, com
aminas vasoativas como a histamina e serotonina po- acentuada redução da frequência cardíaca e respirató-
dem provocar úlceras no trato gastrointestinal. A fun- ria, após reanimação, não tiveram nenhuma sequela
ção metabólica e excretora hepática torna-se diminuí- neurológica.
da durante a hipotermia. Alterações laboratoriais são encontradas com
Pode ocorrer supressão na secreção de corti- frequência, assim como alterações eletrolíticas in-
coides do córtex adrenal em hipotermias prolonga- consistentes, acidose metabólica, alcalose respira-
das. Há aumento do TSH (hormônio tireoestimulan- tória, hipoglicemia, leucopenia, hemoconcentração,
te) e este estimulará a tireoide a produzir tiroxina. A amilase elevada, inibição da cascata da coagulação,
hiperglicemia ocorre em razão da inibição da libe- elevação das enzimas musculares indicando presença
ração de insulina no pâncreas. O aumento das cate- de rabdomiólise, alterações da PO2 e eletrocardio-
colaminas circulantes aumenta a glicogenólise. gráficas já discutidas.

SJT Residência Médica – 2016


208
Cirurgia Geral e politrauma

Alterações clínicas durante a hipotermia


Grau de Sistema nervoso Sistema Sistema Sistema Sistema renal/
hipotermia central (SNC) cardiovascular respiratório neuromuscular gastrointestinal
(Gl)
Leve * Apatia ou desorientação Taquicardia Taquipneia Tremores Diurese induzida
(Fase excitatória) musculares** pelo frio - tubulopa-
tia distal
Hiperrreflexia Hipertensão Broncorreia Vasoconstrição Diminuição da
motilidade Gl
Disartria Aumento do Broncoespasmo Rigidez muscular Constipação
DC
Moderada EEG anormal, lentifica- Bradicardia Bradipneia Cessam os tre- Íleo paralítico
(Fase de depressão) ção de ondas mores
Hiporreflexia Hipotensão Diminuição da FR Espasmo muscular Erosões Gl
Pupilas não reativas Arritmias Diminuição do – Necrose hepática
atriais consumo de O2
Alucinações – – – Pancreatite
Grave Coma profundo Fibrilação Edema pulmonar Rigidez Oligúria
ventricular
Arreflexia Assistolia Apneia Síndrome Diminuição do flu-
compartimental xo sanguíneo renal
EEG silente – – – –
Tabela 15.3 DC: débito cardíaco; EEG: eletroencefalograma; FR: frequência respiratória. (*) Veja a Tabela 4.2. (**)
Tremor é um mecanismo de reaquecimento fisiológico eficaz e não deve ser suprimido farmacologicamente.

Achados laboratoriais
Raio X de tórax Pode mostrar congestão pulmonar, pneumonia ou aspiração.
Eletrólitos As alterações encontradas em geral não são consistentes, os exames devem ser repetidos quan-
do a temperatura corpórea estiver acima de 35 oC.
Glicemia Pode haver hipo ou hiperglicemia. Em geral, a glicemia é normal.
Hemograma Ocorre a elevação do hematócrito em razão da hemoconcentração, há leucopenia e plaquetope-
nia em resposta ao sequestro esplênico.
Amilase Pode estar aumentada, pois a hipotermia pode induzir pancreatite.
Coagulograma Em geral, o TP e o TTPA estão alargados em razão da inibição da cascata de coagulação; retor-
nam ao normal com o reaquecimento.
Gasometria arterial Acidose metabólica, alcalose respiratória ou ambas as alterações.
Tabela 15.4

Figura 16.1 Onda J (de Osborne).

SJT Residência Médica – 2016


209
15 Hipotermia

I CLB FIA aVR V1 V4 CAL

II aVL V2 V5

III aVF V3 V6

II

Figura 15.2 Bradicardia sinusal com FC: 38 bpm. QRS alargado pela presença de uma deflexão em sua porção
final (onda J) de maior amplitude nas derivações precordiais. Intervalo QT aumentado (QT = 720 ms e QTc = 576 ms).
As ondas J acompanhadas de bradicardia sinusal e de intervalo QT prolongado são alterações características do ECG
que surgem na hipotermia.

Medidas de aferição da temperatura corpórea


Vários são os locais de monitoração da temperatura corporal. A temperatura esofágica capta a temperatura san-
guínea central, com sensor térmico atingindo o mediastino inferior, entre o coração e a aorta descendente.
A temperatura timpânica reflete com exatidão a temperatura do sangue que flui através do cérebro e corre-
laciona-se com a temperatura esofágica.
A temperatura nasofaríngea é uma variação da temperatura esofágica e timpânica, e é utilizada em cirurgia cardí-
aca com pacientes em circulação extracorpórea.
A temperatura do sangue é aferida por meio de um sensor térmico próximo à extremidade distal do cateter
de monitoração cardíaca tipo “Swan-Ganz”.
A temperatura da bexiga é aferida por meio de um cateter urinário com sensor térmico próprio. Se o fluxo
urinário for inferior a 270 mL/h, a resposta de mudança é lenta.
A temperatura retal pode ser influenciada pelo calor produzido pela flora retal e também pelas fezes. É mais
elevada (0,5 ºC a 1,0 °C) e responde mais vagarosamente à alteração da temperatura do que aos outros métodos.

Tratamento
Considerar os principais fundamentos para manter o paciente aquecido, conservar o calor interno,
repor nutrientes e elevar a temperatura de 1 ºC a 2 ºC por hora, evitar aquecimento externo excessivo nos
casos graves, porque se pode provocar vasodilatação periférica, com prejuízo para a nutrição de órgãos e,
especialmente, do encéfalo.
O reaquecimento externo passivo é a técnica menos invasiva e que fornece o aquecimento mais len-
to, devendo ser utilizada em casos de hipotermia leve. Ele requer que o paciente esteja seco em um ambiente
aquecido, protegido de correntes de ar e usando cobertores para reduzir a perda de calor, desta forma, permitindo
que o organismo recupere pela termogênese a temperatura corpórea. Em geral, pessoas jovens recuperam mais rá-
pido a temperatura com esse método de reaquecimento. A taxa média de reaquecimento nessa técnica é de 0,3 ºC a
0,4 ºC por hora.

SJT Residência Médica – 2016


210
Cirurgia Geral e politrauma

O reaquecimento externo ativo é a técnica Opções para o reaquecimento


mais controversa. Nessa técnica a elevação da tem- sanguíneo extracorpóreo
peratura central se dá por meio do aquecimento da pele
Hemodiálise (HD) Circuito – canulação de
com cobertores aquecidos, pás de aquecimento elétri-
um ou dois vasos.
cas e bolsas com água quente ou imersão em banheiras
Estabiliza as anormalida-
com água quente. Entretanto, técnicas como a imersão
des eletrolíticas ou toxico-
dificultam o manuseio e a monitorização desses pacien-
lógicas.
tes. Essas técnicas funcionam, contudo, a mortalidade é
Volumes do ciclo de troca de
maior nessa técnica do que com as outras duas. Porém,
200 a 500 mL/min.
a utilização de um cobertor de plástico com ar aquecido
circulando em seu interior parece ser efetiva no reaque- TDR de 2 ºC a 3 ºC/h.
cimento de pacientes hipotérmicos, principalmente em Reaquecimento arte- Circuito – cateteres femo-
pacientes no pós-operatório. Esta última parece ser uma riovenoso contínuo rais n. 8,5 percutâneos.
técnica eficaz e isenta de complicações, sendo a técnica (RAVC) Requer PA sistólica de 60
de aquecimento ativo externo, atualmente, preconizada. mmHg.
Nenhum perfusionista/
O reaquecimento interno ativo é a técnica mais bomba/anticoagulação.
invasiva e que promove uma elevação da tempera- Taxas de fluxo de 225 a
tura central de maneira mais rápida, devendo ser 375 mL/min.
usada em casos de hipotermia grave. Essas técnicas TDR de 3 ºC a 4 ºC/h.
envolvem a administração de oxigênio umidificado e aque-
Circulação extracorpó- Circuito – suporte circula-
cido até 41 ºC pelo tubo endotraqueal ou máscara facial
rea (CEC) tório completo com bomba
preferencialmente em aparelho de ventilação não invasiva
e oxigenador.
(CPAP); essa técnica eleva a temperatura em 1 ºC a 2 ºC
Gradiente de temperatura
por hora. Outra técnica possível é a irrigação peritone-
do sangue perfundido (5
al feita com 2 litros de solução salina ou fluido de diálise
ºC a 10 ºC).
aquecido, entre 40 ºC e 45 ºC com trocas a cada 15 ou 20
Taxas de fluxo de 2 a 7 L/
minutos, que eleva a temperatura entre 1ºC e 3 ºC por
min. (média de 3 a 4).
hora. A lavagem gástrica com soluções aquecidas deve ser
TDR de até 9,5 ºC/h.
desencorajada, pela pequena área de troca e pelos riscos
inerentes ao procedimento, como perfuração esofágica, Tabela 15.5 PA: pressão arterial; VC: venoso central;
aspiração e indução de arritmias cardíacas e pela pouca e TDR: taxa de reaquecimento.
resposta em termos de aquecimento corpóreo. A irrigação
da bexiga pode ser usada, porém, apresenta baixa resposta
na elevação da temperatura corpórea. Quando a fibrilação ventricular está pre-
sente, choques elétricos repetidos não devem
Nos pacientes que não responderam e que evoluíram
ser tentados até que a vítima tenha sido rea-
com arritmias ventriculares graves ou paradas cardiorres-
piratórias, recomenda-se as medidas anteriores com: quecida a uma temperatura central acima de
30 ºC; em lugar deles, ressuscitação cardio-
€ Banho peritoneal ou torácico, utilizando solu-
pulmonar deve ser mantida durante este perí-
ção salina ou dialisante aquecida a 42 ºC (ideal-
mente até três litros de solução salina, trocadas
odo. Arritmias podem ser tratadas com lidocaína,
a cada 30 minutos). propanolol ou bretílio. Medidas específicas como
marca-passo não são necessárias, uma vez que
A hemodiálise a 41 ºC e a circulação extracorpó-
rea proporcionam recuperação rápida da temperatura as arritmias atriais, geralmente, remetem com
(ganho de 1 ºC a 2 ºC cada cinco minutos). São indi- as medidas de reaquecimento. Resfriamento
cadas, principalmente, nos casos muito graves, com corporal induz diurese de frio, de modo que o vo-
resposta inadequada às medidas anteriores. lume plasmático necessita ser restabelecido para
suportar perfusão adequada: os pacientes devem
Opções para o reaquecimento
receber uma infusão intravenosa de 250 a 1.000 mL
sanguíneo extracorpóreo
de glicose a 5% em soro fisiológico aquecido (40 ºC
Técnica de reaqueci- Considerações
a 42 ºC). Solução de Ringer lactato deve ser evi-
mento extracorpóreo
tada porque o fígado não é capaz de metaboli-
(REC)
Venovenosa (VV) Circuito – cateter VC para
zar lactato eficientemente durante a hipoter-
cateter VC ou periférico. mia. Os pacientes devem ser monitorados quanto a
Nenhum suporte circula- perturbações no potássio e glicose. Se hipoglicemia,
tório/oxigenador. intoxicação por álcool ou opiáceo estiverem contri-
Taxas de fluxo de 150 a buindo para a hipotermia, pode ser indicada glicose
400 mL/min. intravenosa (10 a 25 g), tiamina (100 mg) ou nalo-
TDR de 2 ºC a 3 ºC/h. xona (1 a 2 mg).

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

16
Hematoma da bainha do músculo
retoabdominal

endoabdominal, também conhecida por fáscia trans-


Introdução versal ou fascia transversalis; tecido adiposo pré-peri-
toneal; peritônio.
O hematoma da bainha do músculo reto abdominal
(HBRA) é tão antigo quanto a história da medicina, foi Os músculos de cada lado da parede abdominal an-
descrito por Hipócrates. Virchow, em 1857 documentou terior são dois: o resto do abdome e o piramidal, e três na
com mais clareza este diagnóstico e, em 1937, Cullen e parede anterolateral: oblíquo externo, oblíquo interno e
Brodel demonstraram anatomicamente a lesão. É con- transverso. Há, ainda, os músculos intercostais inferio-
siderada uma entidade rara, com acometimento de res. As fibras dos músculos da parede abdominal dispõe-
cerca de 1/10.000 de todas as urgências. -se, de tal forma, que dão à cavidade o máximo de reforço
de contenção e a maior elasticidade possível.
O músculo reto do abdome caracteriza-se por pos-
suir a forma de fita, ou seja, é longo, delgado e relativa-
Anatomia da parede mente largo. Fixa-se, acima, no processo xifoide e na
quinta e sétima cartilagens costais, e abaixo, na crista
abdominal púbica e sínfise púbica. Há três ou mais intersecções ten-
díneas, que cruzam o músculo anteriormente e fundem-
As estruturas anatômicas da parede abdominal -se com a lâmina anterior da bainha. A borda medial de
são representadas por oito camadas, consideradas cada reto, em sua parte superior, se encontra natu-
a partir do exterior: pele; tela subcutânea, que con- ralmente aderida à linha Alba. O músculo pirami-
tém, além de tecido adiposo em maior ou menor grau, dal é pouco importante e frequentemente ausente.
a fáscia de Camper, que é mais externa, e a fáscia Está contido em uma loja formada pela lâmina anterior
de Scarpa, mais profunda; músculo oblíquo externo; da bainha do músculo reto e fixado ao corpo do púbis e
músculo oblíquo interno; músculo transverso; fáscia à linha Alba. O músculo oblíquo externo do abdome é o
212
Cirurgia Geral e politrauma

mais superficial dos três músculos da parede anterolate- Os vasos linfáticos da parte superior da pa-
ral do abdome. Suas fibras se dirigem obliquamente, de rede abdominal drenam para os linfonodos axi-
cima para baixo e de trás para frente, terminando em lares, e os da inferior para os linfonodos ingui-
uma forte aponeurose que constitui a sua inserção. O nais e, destes, para os linfonodos ilíacos. O fluxo
músculo oblíquo interno do abdome situa-se imediata- linfático periumbilical pode também drenar, pelo liga-
mente debaixo do oblíquo externo, e proteja suas fibras mento redondo do fígado, para o hilo hepático, cuja
obliquamente para cima e para frente, em direção cruza- nomenclatura oficial é porta do fígado.
da com as fibras do oblíquo externo. O músculo transver- A parede abdominal é inervada pelos ner-
so do abdome, o mais profundo dos três, tem suas fibras vos intercostais, do 7º ao 11º, e pelos nervos
dispostas transversalmente, dirigindo-se de trás para ílio-hipogástrico e ilioinguinal. Os nervos inter-
frente, partindo horizontalmente da coluna vertebral e costais deixam os espaços intercostais e se dirigem,
se direcionando para a linha média do abdome. inferior e anteriormente, entre os músculos trans-
Abaixo dos músculos da parede anterolateral do verso e oblíquo interno, inervando os dois músculos
abdome encontra-se a fáscia transversal. Esta é consi- e também o oblíquo externo. Continuando, pene-
derada uma das mais importantes camadas da parede tram na bainha do reto, onde se ramificam em sen-
abdominal, situa-se entre o complexo músculo-aponeu- tido anterior, para inervar o músculo reto e a pele
rótico e o tecido adiposo pré-peritoneal e cobre a super- suprajacente. Uma incisão longitudinal, que passe
fície profunda do músculo transverso do abdome. pela borda lateral do reto, como na laparotomia pa-
ramediana pararretal externa, desenervará o múscu-
A linha Alba corresponde a uma rafe ten-
dinosa que se estende do processo xifoide à lo; uma realizada entre as bordas lateral e medial do
sínfise púbica. É formada pela fusão, na linha reto, como na laparotomia paramediana transretal,
mediana, das lâminas anterior e posterior, de cada desenervará a parte medial do músculo.
lado, que constituem as bainhas dos músculos retos,
ou, em outras palavras, pela fusão das aponeuroses
dos músculos oblíquo externo, oblíquo interno e
transverso do abdome. É dividida, pelo umbigo, em
segmentos supra e infraumbilical. No corpo do osso Etiopatogenia
púbis, ela se fixa ao ligamento pubiano superior,
O HBRA representa 1% a 2% dos casos de dor
por meio de uma expansão triangular denominada
abdominal de etiologia desconhecida. É mais comum
adminículo da linha Alba. O umbigo é uma cicatriz
deprimida na linha mediana, formada pela fusão de em mulheres (2 a 3:1), após a quinta década de vida,
todas as camadas da parede abdominal. Localiza-se, embora possa ocorrer em qualquer faixa etária. A raça
geralmente, um pouco mais próximo do púbis que negra é mais acometida. A incidência maior nas
do processo xifoide. mulheres pode ser explicada pela menor massa mus-
cular do reto abdominal e multiparidade.
A bainha do reto consiste em uma lâmina an-
terior e uma posterior, que envolvem o músculo. O evento inicial parece ser a lesão do músculo ou
De maneira resumida, pode-se afirmar que acima rotura dos vasos epigástricos inferiores.
da linha arqueada, também conhecida por linha se-
micircular de Douglas, a lâmina anterior é formada HBRA é o acúmulo de sangue dentro da bainha do mús-
pelas aponeuroses do oblíquo externo e oblíquo in- culo reto anterior do abdome e, em consequência, da
terno. Abaixo da linha arqueada, a lâmina anterior ruptura dos vasos epigástricos ou do próprio músculo.
é constituída pelas aponeuroses do oblíquo externo,
oblíquo interno e transverso. A lâmina posterior é
formada, ao nível do processo xifoide, pelo músculo A localização mais frequente do HBRA é
transverso e sua aponeurose, e abaixo, até a linha abaixo do umbigo (90% dos casos) onde existe
arqueada, pelas aponeuroses do oblíquo interno e um pequeno suporte para o músculo. A porção
do transverso. inferior da bainha do reto é mais extensa e fraca e
possui ramos vasculares mais longos. A maioria dos
O músculo reto abdominal é irrigado em
casos é unilateral, a apresentação pode ser agu-
sua porção superior pela artéria epigástrica
da ou crônica.
superior (ramo da artéria mamária interna) e em
sua porção inferior pela artéria epigástrica in-
ferior, que se origina da artéria ilíaca externa.
A artéria espigástrica inferior se anastomosa
com a artéria epigástrica superior e origina vá- Fatores precipitantes
rios ramos musculares em sua face posterior.
Duas veias epigástricas inferiores acompanham Em toda a literatura, o fator predisponente
a artéria, para se anastomosar com as veias epi- mais frequentemente citado é o uso da terapia
gástricas superiores. anticoagulante profilática. No entanto, qualquer

SJT Residência Médica – 2016


213
16 Hematoma da bainha do músculo reto abdominal

contratura muscular mais intensa ou abrupta, como a


desencadeada por tosse persistente, esforço físico, ou
mesmo um trauma, podem provocar solução de conti-
nuidade nos vasos epigástricos com consequente san-
gramento para dentro do músculo ou entre este e sua
bainha aponeurótica.
Em pacientes cirróticos, o HBRA tem sido rela-
tado como complicação da doença subjacente e, nesta
população, se associa a maior morbimortalidade.
Na gestação os casos documentados ocorre- Figura 16.1 Sinal de Laffond.
ram em multíparas com mais de 30 anos e no ter-
ceiro trimestre, provavelmente, pela contração
brusca das fibras musculares com lacerações de Diagnóstico
pequenos vasos intercostais ou mesmo da arté-
ria epigástrica. O exame clínico aliado à TC do abdome (princi-
Há casos relatados nos quais o HBRA ocorreu de pal método de diagnóstico) define a maior totalidade
dos casos. À TC observa-se alargamento do músculo
forma espontânea sem um fator precipitador, sendo,
reto abdominal, presença de conteúdo fluido dentro
então, denominados idiopáticos.
da bainha e coágulos confinados à parede abdominal.

Quadro clínico
A manifestação clínica mais comum desses hema-
tomas é a dor e/ou massa abdominal, eventualmen-
te, com febre e sinais de irritação peritoneal e, menos
frequentemente, com choque hipovolêmico. Rara- Figura 16.2 Tomografia computadorizada de ab-
mente é uma doença que ameaça a vida, entretan- dome, evidenciando coleção no músculo reto abdomi-
to, visto a sua similaridade na forma de apresentação nal esquerdo (seta).
com outras condições abdominais agudas, o hematoma
A punção diagnóstica não é aconselhada em ra-
dos músculos retos deve fazer parte do diagnóstico di- zão do risco de contaminação da coleção.
ferencial do abdome agudo, evitando-se, assim, laparo-
tomias desnecessárias.
O exame físico identifica massa dolorosa em 95%
a 100% dos casos.
Tratamento
A pesquisa do sinal de Fothergill faz parte do Quanto ao tratamento do HBRA, alguns auto-
exame físico destes pacientes. res defendem o tratamento conservador com contro-
les radiológicos seriados. Outros autores defendem o
O sinal de Fothergill consiste na elevação do tratamento cirúrgico na admissão, com drenagem do
tronco e na contração simultânea da musculatura da hematoma e ligadura dos vasos sangrantes.
parede abdominal, estando o paciente em decúbito
O tratamento conservador, usualmente, preconiza-
dorsal; a massa tumoral persiste palpável e bem de-
do consiste de: repouso, medidas locais, analgesia, anti-
finida, ou se tornando mais proeminente e unilateral, -inflamatórios e cobertura antibiótica. Em nossa opinião,
o que não ocorre com massas intra-abdominais. Esta o uso de antibióticos torna-se absolutamente dispensável,
massa não pode ser movida de um lado para o outro. a menos que criemos uma porta de entrada através de
É possível sentir ranhuras entre a porção final retraí- punção diagnóstica, que deve ser evitada exatamente pelo
da do músculo rompido. Sensibilidade e espasmo mais risco inexorável da colonização bacteriana do hematoma.
frequentemente estão presentes.
As principais indicações para o tratamento ci-
Sinal de Nadeau, que representa o aumento rúrgico são: choque hipovolêmico, falha do tratamento
da dor com a elevação da cabeça ou do membro in- conservador e infecção do hematoma. A mortalidade da
ferior e o sinal de Laffond, equimose sobre a mas- cirurgia varia de 4% a 18%, sendo creditada, principal-
sa ou periumbilical, finda a fase aguda, são outros mente, à infecção, cuja incidência se eleva nos casos de
achados físicos. drenagem externa.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

17
Tumores da parede abdominal

Introdução
Aproximadamente 80% das lesões neoplásicas
da parede abdominal são benignas, e o tumor be-
nigno mais comum é o lipoma (panículo adiposo).
Lesões como papilomas, hemangiomas e fibromas são
menos frequentes. Vale destacar os neurofibromas,
que quando múltiplos podem compor o diagnóstico
da neurofibromatose, doença de von Recklinghausen.

Figura 17.1 Sinal da irmã Mary Joseph.


Tumores malignos
Cerca de 20% dos tumores da parede abdo-
minal são malignos. Estes podem ser primários
(os sarcomas e o tumor desmoide representam
50% dos casos) ou secundários, em geral, metástases
de carcinoma de ovários, estômago, útero, rins, cólons,
pulmão e mamas. Obviamente as lesões secundárias re-
presentam doença avançada e, na maioria das vezes, a
lesão localiza-se na região umbilical. As lesões metastá-
ticas umbilicais são conhecidas pelo epônimo “nódulo
da irmã Mary Joseph”, em homenagem à irmã Mary
Joseph, enfermeira que trabalhava com o Dr. William
Mayo, e que foi a primeira profissional a identificar que
um nódulo umbilical duro, firme, era frequentemente
associado à neoplasia maligna intra-abdominal. Figura 17.2 Sinal da irmã Mary Joseph.
215
17 Tumores da parede abdominal

A reconstrução dos defeitos da parede abdomi-


Sarcoma da parede nal pode ser realizada, primariamente, por meio de
abdominal retalhos miocutâneos ou com telas protéticas, depen-
dendo do sítio e da extensão da ressecção.
Os subtipos histológicos incluem lipossarcoma,
fibrossarcoma, leiomiossarcoma, rabdomiossarcoma e
histiossarcoma fibroso maligno.
Na maioria dos casos, se expressa como massa
indolor e o comportamento clínico é determinado
Tumor desmoide (TD)
mais pelo sítio anatômico, grau e tamanho do tumor. Os TD, também conhecidos como fibromatoses
músculo-aponeuróticas, são neoplasias não encapsu-
As características clínicas que sugerem um tu-
ladas originárias do tecido conjuntivo, caracterizadas
mor maligno da parede abdominal são:
por apresentarem baixo potencial metastático e
1. Lesões irredutíveis localizadas abaixo da fáscia exuberante crescimento locorregional, além de ele-
superficial. vados índices de recidiva.
2. Tamanho maior que 5 cm. Os TD são neoplasias raramente descritas, repre-
3. Aumento recente de tamanho. sentando 0,03% a 0,13% dos tumores de partes
moles e a incidência é estimada em 2,4 a 4,3 casos
4. Fixação à parede abdominal.
novos por 100.000 habitantes por ano. Na maioria
5. Fixação a órgãos abdominais. dos casos descritos encontram-se associados à po-
lipose adenomatosa familial (PAF), sobretudo, na
variante clínica denominada síndrome de Gardner,
Diagnóstico em que, além da polipose cólica, ocorrem concomitan-
Os exames de imagem mais relevantes são TC e temente tumores cutâneos (lipomas, cistos epidermoi-
RNM. Este último fornece informações a respeito da des), osteomas, malformações dentárias e retinopatia
localização e extensão desse tumor, bem como se há hiperpigmentada congênita. O aparecimento do TD
comprometimento de estruturas contíguas. não associado à PAF é um evento extremamente raro.
O diagnóstico definitivo exige biópsia, e a biópsia Podem surgir em ambos os sexos e qualquer faixa etária,
incisional é historicamente considerada o padrão-ouro sendo, contudo, mais frequentemente descritos nas
para a obtenção de tecido diagnóstico, em massas de mulheres em idade reprodutiva e, principalmente,
tecidos moles suspeitos. durante a gravidez ou período puerperal.
A desvantagem teórica da biópsia incisional é Apesar de possuírem etiologia pouco conhecida, estu-
que esta possibilita uma contaminação maior por te- dos genéticos recentes em doentes portadores de PAF que
cido neoplásico em comparação com as punções com desenvolveram TD demonstraram que mutações do gene
agulha fina ou grossa, já que a maior quantidade de APC (adenomatous polyposis coli) poderiam não só predispor
pele e tecido subcutâneo sadio terá de ser ressecado à formação de pólipos no cólon como também a TD. A pre-
em bloco, no tratamento definitivo, caso seja diagnos- sença de traumatismo tecidual antecedendo o aparecimen-
ticado um sarcoma. to do tumor em boa parte dos casos, além da maior incidên-
cia dos TD nas mulheres em período de vida reprodutiva ou
durante a gestação, sugerem o possível papel que o trauma
Tratamento tecidual e a estimulação hormonal possam desempenhar no
A cirurgia é o principal tratamento dos sarcomas desenvolvimento e crescimento da neoplasia.
e a única capaz de oferecer cura. Em muitas séries, é
observado um pior prognóstico para os pacientes com
margens de ressecção comprometidas. São descritas Localização
quatro categorias de margens cirúrgicas: Quanto à localização, podem ser divididos em
1. Intralesional: margem obtida com transec- extra-abdominais, abdominais e intra-abdominais, apre-
ção do tumor, implicando em persistência do tumor. sentando variações na sua localização segundo o sexo e
a faixa etária. Nas mulheres antes da menarca e nos ho-
2. Marginal: margem delimitada por pseudocáp-
mens, os TD, geralmente, são extra-abdominais, ao pas-
sula tumoral. A recidiva local é elevada, principalmente,
so que nas mulheres em idade reprodutiva possuem
por causa das lesões satélites na zona de reatividade.
marcante predisposição pela parede abdominal.
3. Alargada: margem de tecido normal, porém, Nos tumores de localização abdominal, a parede ante-
no mesmo compartimento. Apresentam taxas de reci- rior, e em particular o músculo reto abdominal, é a região
diva local baixas, provavelmente, por causa das lesões mais frequentemente atingida. Com relação ao tamanho
satélites no mesmo compartimento. pode ter dimensões variadas, desde poucos centímetros
4. Radical: o tumor é removido incluindo todo até tumores de grandes proporções que se estendem para
o compartimento afetado, e o risco de recidiva é mui- a parede do tórax, podendo invadir órgãos das cavidades
to baixo. abdominal e torácica.

SJT Residência Médica – 2016


216
Cirurgia Geral e politrauma

O exame histopatológico estabelece o diagnós-


Etiopatogenia
tico definitivo. A biópsia percutânea deve ser evitada
No passado, diversas teorias foram propostas para pela possibilidade, em caso de sarcomas, de dissemi-
explicar a etiopatogenia dos TD e entre elas merecem nar o tumor no trajeto da punção, optando-se, sempre
destaque a teoria traumática e a endócrina. Na traumáti- que possível, pela biópsia cirúrgica com remoção com-
ca, supõe-se que o traumatismo muscular provocado pela pleta da lesão, respeitando as margens de pelo menos
distensão da musculatura abdominal decorrente da gra- dois centímetros. O exame macroscópico geralmente
videz, pelo esforço muscular durante o trabalho de par-
demonstra tumor de consistência firme, desprovido
to ou, ainda, pela incisão cirúrgica levaria à ruptura de
de cápsula, com abundante neoformação vascular na
fibras musculares. A reação inflamatória necessária para
superfície externa. A superfície de corte apresenta ca-
a reparação tecidual se faria de modo desproporcional ao
racterísticas semelhantes às externas, podendo existir
trauma, originando o tumor. O surgimento de TD intra-
-abdominais, em cerca de 20% dos doentes submetidos a
áreas de aspecto gelatinoso, principalmente, no cen-
ressecções do cólon para o tratamento cirúrgico da PAF, é tro do tumor. A microscopia mostra que a neoplasia
evidência irrefutável do papel exercido pelo traumatismo é constituída de células fusiformes com pequenos
tecidual como fator desencadeante da neoplasia. núcleos em fuso distribuídos longitudinal e transver-
salmente, com raras figuras de mitose, imersas em
abundante substância amorfa rica em colágeno. Ob-
Quadro clínico e diagnóstico serva-se maior população celular nas zonas periféricas
Os pacientes com tumor desmoide apresentam- do tumor, enquanto a região central é preenchida por
-se com uma massa indolor crescente. Os sintomas lo- maior quantidade de colágeno. A presença de fibras
cais podem surgir da compressão de órgãos adjacentes musculares comprimidas e células gigantes é um acha-
ou de estruturas neurovasculares. do comum nas zonas mais periféricas da neoplasia.
A radiografia simples do abdome é de pouca va-
lia nos TD da parede abdominal, pelas dificuldades em Tratamento
definir precisamente a localização do tumor e o envol-
vimento de tecidos ou órgãos próximos. A ultrassono- Em relação ao tratamento a observação rigorosa
grafia do abdome possui melhor acuidade diagnóstica, é uma estratégia aceitável, visto que alguns tumores
porém, quando comparada à TC e RM apresenta menor apresentam crescimento muito lento ou permanecem
precisão na avaliação do comprometimento de tecidos estáveis, as elevadas taxas de recidiva, necessidade de
e órgãos vizinhos. Na paciente, do presente relato, a TC cirurgias de grande porte e pelo benefício duvidoso no
não só permitiu a correta localização do tumor como ex- ganho de sobrevida nos pacientes submetidos à res-
cluiu o comprometimento de órgãos intra-abdominais. secção completa. Assim, seriam evitadas morbidades
maiores com a realização de cirurgias desnecessárias,
sem prejudicar o prognóstico. Os pacientes com indi-
cação para essa conduta devem apresentar doença es-
tável e estar assintomáticos.
O guidaline americano para tratamento de tumo-
res sugere tratamento conservador nos tumores pe-
quenos e não localizados no tronco e nos casos em que
a cirurgia poderá causar excessiva morbidade.

Figura 17.3 Imagem mal delimitada de aproximad-


amente 3,8 cm de diâmetro transverso por 2,6 cm de
diâmetro anteroposterior com densidade de partes Figura 17.4 Tumor desmoide aderido à aponeurose
moles (seta). do músculo reto anterior do abdome.

SJT Residência Médica – 2016


217
17 Tumores da parede abdominal

Quando se optar por tratamento conservador, rúrgico está indicado nas lesões pequenas e nas pas-
este pode ser apenas observacional com realização de síveis de ressecção sem grande morbidade (disfunção
exames com frequência determinada ou pelo uso de funcional ou estética). Nas lesões que implicam em
terapia sistêmica. A utilização de AINES e hormônios procedimento de grande porte (por exemplo, amputa-
(por exemplo, tamoxifen) pode ser benéfica, porém, ção), deve ser indicado tratamento conservador.
ainda com dados conflitantes sobre sua eficácia, po- A radioterapia é uma opção terapêutica nos pa-
dendo apresentar bons resultados iniciais, entretanto, cientes sem condições para realização de cirurgia, para
com benefício mínimo em longo prazo. os que não aceitam realizar a cirurgia e naqueles em
O tratamento padrão para os tumores des- que a cirurgia implicará em grane morbidade. O tem-
moides, quando possível, é a cirurgia com mar- po de regressão, após o término da radioterapia, é va-
gens negativas. A cirurgia no tumor desmoide é riável e pode levar muitos anos.
complexa e, muitas vezes, necessitam de reconstrução Não está comprovado o benefício da radioterapia
com enxertos e retalhos (nos casos de parede abdomi- adjuvante, após ressecção completa do tumor. Contu-
nal e tumores extra-abdominais), como também res- do, existe grande controvérsia sobre sua utilização,
secções multiorgânicas (colectomias, enterectomias, após ressecção com margem comprometida (microscó-
nefrectomias, esplenectomias, entre outros) por sua pica ou macroscópica). Alguns autores relatam melhor
natureza infiltrativa. controle com uso de radioterapia, porém, outras séries
Tumores desmoides apresentam altas taxas não veem benefício, visto que, como dito anteriormen-
de recidiva local, mesmo após ressecção cirúrgi- te, a recidiva pode não ser alterada em razão do status
ca completa (16% a 75%), e a contribuição nas da margem. Uma alternativa é a não utilização da radio-
taxas de recidiva, após ressecção com margens terapia adjuvante nos casos com margem microscopica-
positivas, não está clara. mente positiva, deixando seu uso apenas nos casos de
margem macroscopicamente comprometida.
Em resumo, o tratamento do desmoide deve ser
A radioterapia pode promover controle local nos
individualizado:
tumores irressecáveis e nos casos de doença recorren-
Tumores intra-abdominais: a cirurgia é indicada te, como adjuvante. A quimioterapia é indicada nos
como tratamento padrão nos tumores ressecáveis in- tumores de crescimento rápido e com critérios de ir-
tra-abdominais. Nos tumores grandes, de crescimento ressecabilidade.
lento e comprometendo vasos ou órgãos, o tratamen-
Uma nova modalidade de tratamento com utili-
to conservador deve ser o preferido.
zação da radioterapia e quimioterapia neoadjuvante,
Nos casos de síndrome de Gardner, alguns au- combinadas ou isoladas, para tumor desmoide tem
tores sugerem o tratamento cirúrgico, se doença res- sido descrita com intuito de aumentar a ressecabilida-
secável, enquanto outros defendem a não cirurgia de e reduzir recidiva, porém, os dados são conflitantes
fundamentados na característica mais agressiva dos e necessitam de confirmação de benefício.
tumores na recidiva. Sempre que possível, a cirurgia é indicada nos
Tumores extra-abdominais e de parede abdo- casos de recidiva local do tumor, reservando a radio-
minal: os tumores extra-abdominais (extremidade e terapia para os casos com alta morbidade utilizando o
tórax) e de parede abdominal são mais passíveis de tratamento cirúrgico. Nos pacientes irradiados previa-
ressecção que os intra-abdominais. O tratamento ci- mente, pode-se utilizar terapia sistêmica.

Se não pode fazer o bem, pelo menos não faça dano.


Hipócrates.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

18
Politrauma

€ custo: 100 bilhões de dólares – 40% do orça-


Introdução mento do país.
A melhor maneira de evitar toda essa morbimor-
O trauma pode ser descrito como o dano físico
talidade e gasto econômico relacionado está na pre-
produzido pela transferência de energia cinética, térmi-
venção do trauma.
ca, química, elétrica ou por radiação. Também pode ser
causado pela ausência de oxigênio ou calor. O intervalo
de tempo a partir da transferência de energia ou da sus-
pensão de elementos fisiológicos essenciais é conhecido
como exposição, a qual pode ser aguda ou crônica.
O trauma é, atualmente, a principal causa
Mortalidade por trauma
de morte entre 1-44 anos de idade desde o início A morte está diretamente relacionada com o tem-
da década de 1980. po e a gravidade da lesão. Podemos dizer que a morte
Por ano, segundo dados dos Estados Unidos, cer- no trauma é um fenômeno trimodal, isto é, ocorrem
ca de 60 milhões de americanos (1 em cada 4) sofrem em três distintos momentos ou picos de morte.
algum tipo de trauma, com: Primeiro pico de morte – óbito praticamen-
€ 145.000 mortes; te irreversível. Ocorre nos primeiros segundos a mi-
nutos do trauma, como no TCE grave com laceração do
€ 30 milhões requerem tratamento médico;
cérebro, lesão de tronco cerebral, no trauma raquime-
€ 3,6 milhões requerem hospitalização; dular (TRM) alto, no afundamento maciço de tórax,
€ 9 milhões são ferimentos incapacitantes, dos nas lesões cardíacas e trauma de aorta e grandes vasos.
quais 300.000 serão de incapacidade definitiva Esses pacientes dificilmente chegam vivos ao hospital
e 8.700.000 de incapacidade permanente; e morrem de imediato.
219
18 Politrauma

Segundo pico de morte – óbito por perdas da aorta, entre outras causas. 2º pico: minutos a horas
de sangue. Acontece em poucos minutos (geralmente do trauma. Este é o foco do ATLS. Causa morte: hema-
após os três primeiros minutos) até várias horas após tomas epi/extradurais, hemopneumotórax, trauma
o trauma. É mais frequente o óbito na primeira hora, a hepático, fratura de pelve e ferimentos associados com
chamada Golden Hour. perda de sangue. 3º pico: ocorre tardiamente – dias, se-
manas ou meses e se deve às intercorrências e compli-
As principais causas são insuficiência respirató- cações do trauma.
ria aguda por obstrução das vias aéreas, pneumotórax
(principalmente o hipertensivo), hemopneumotórax
ou contusões pulmonares; TRM com instabilidade
cervical; choque hipovolêmico por hemorragia trau-
mática interna ou externa, trauma pélvico; TCE com
hematoma extra dural, subdural e cerebral.
O objetivo do Advanced Trauma Life Support
ATLS é centrado em prevenir o óbito no segundo pico
das mortes por trauma.
Terceiro pico de morte – óbito por infecção.
Ocorre dias, semanas ou meses após o trauma. Resul-
ta de complicações e intercorrências como síndrome
da resposta inflamatória sistêmica (SIRS), broncop-
neumonias (BCP), infecções (principal causa de mor-
te tardia ao trauma), disfunção de múltiplos órgãos e
sistemas (DMOS) e doenças preexistentes agravadas
pelo trauma (diabete, cardiopatias, nefropatias etc.). Figura 18.2 Vítima de trauma após colisão direta com
A vantagem do método do ATLS é que inicial- trem. Trauma de tórax grave, com esmagamento e trau-
mente podemos tratar os traumatizados sem que te- ma de extremidades.
nhamos o diagnóstico definitivo como pré-requisito.
O caminho é estabelecer a padronização do politrau-
matizado da mesma maneira: avaliação inicial para-
lela e simultânea aos procedimentos de reanimação
respiratória e cardiocirculatória. Reavaliação frequen-
te, com reanimação das funções vitais e encaminha-
mento para cirurgia ou para exames complementares
específicos. A decisão de transferência para o hospital
especializado deve ser feita até o final do fim do exame
primário. Palavras chaves para as questões de re-
sidência médica – reavaliar o paciente, tempo e
sequência de atendimento padronizado.

Distribuição Trimodal das


Mortes por Trauma
Lacerações:
Cérebro
1º Pico Aorta
Medula
Coração
Mortes

2º Pico Epidural
Subdural
Hemopneumotórax 3º Pico Figura 18.3 Hematoma epidural à esquerda. Repare
Fraturas Pélvicas Sepse
Fraturas de Ossos Longos DMOS na convexidade para dentro do cérebro que desvia a
Lesões Abdominais
linha média. O desvio na linha média é mais comum no
hematoma subdural e raro no epidural (que tem bom
prognóstico). Há sinais indiretos de hemorragia, menín-
gea que é o “aspecto em J”, na linha média, do sangue
0 1 Hora 3 Horas
Tempo
2 semanas 4 semanas na foice do cerebelo. O hematoma epidural é caracteri-
zado pelo intervalo lúcido de tempo: o paciente fala e
Figura 18.1 Distribuição trimodal das mortes por morre. Na verdade, o paciente geralmente chega com
trauma. 1º pico: segundos a minutos do trauma. Nesse Glasgow 15 e na evolução há rebaixamento súbito do
período os pacientes morrem por lacerações no cére- nível de consciência (Glasgow < 8) havendo necessi-
bro, trauma raquimedular alto, trauma cardíaco, rotura dade de intubação.

SJT Residência Médica – 2016


220
Cirurgia Geral e politrauma

apenas a soma dos quadrados dos três maiores


Índices de trauma AIS que são os mais graves. O índice tem valor mí-
nimo de zero e máximo de 75, e quanto maior o valor,
Os índices de trauma são medidas quanti- maior a probabilidade de morbimortalidade e tempo
tativas para avaliar a gravidade do trauma. Eles de internação. Lesões maiores que 25 são consi-
permitem que um serviço de emergência prepare ade- deradas traumas graves. Pacientes que apresentam
quadamente os recursos terapêuticos necessários an- lesão fatal correspondem a AIS 6 e, automaticamente,
tes da chegada de um paciente ao hospital. É possível terão um ISS de 75.
avaliar as mudanças no estado do paciente durante
Crítica a esse método são os pacientes que apre-
um determinado período, prever diferentes desfechos
sentam mais de uma lesão em um mesmo segmento
e analisar prognósticos. Os escores de trauma permi-
corporal que serão desconsiderados no cálculo se não
tem, ainda, avaliar e comparar a qualidade do atendi-
forem graves o suficiente. E qualquer erro no AIS au-
mento em diferentes serviços.
menta muito o ISS. O ISS não é usado como triagem.

Índices anatômicos Novo índice de gravidade da lesão


(NISS)
Escala abreviada de lesões (AIS) O NISS é obtido pela soma dos quadrados das três
Em 1969 foi publicada a Escala Abreviada de Le- lesões mais graves do AIS, independentemente do seg-
sões (AIS), sendo revisada em 1990. O AIS é um índice mento corporal acometido. Pacientes que apresentem
anatômico importante para cálculo de outros níveis lesões graves associadas ao mesmo segmento corporal,
frequentemente usados em publicações e compara- o que é relativamente frequente em traumas penetran-
ções entre serviços como o ISS e o TRISS. É uma lis- tes, podem ser considerados para calcular o NISS.
ta que contém diversas lesões de todos os segmentos
corporais, divididos pela gravidade. Os segmentos
corporais são em número de seis: cabeça e pesco-
ço, face, tórax, abdome, pelve, membros e lesões ex- Índices 昀椀siológicos
ternas (Tabela 18.1). Cada lesão recebe um valor, com
gravidade crescente, que varia de 1 (lesão mínima) a
6 (lesão possivelmente fatal). Vale lembrar que o AIS
não prediz mortalidade. Sua importância está no fato Escore de trauma revisado (RTS)
de servir como base para outros índices prognósticos. O RTS é escore fisiológico com alta acurácia para
Uma crítica do método seria a avaliação de pacientes predizer probabilidade de óbito.
com múltiplas lesões.

Variáveis do escore de trauma revisado (RTS)


Escala abreviada de lesões (AIS) GCS PAS FR Valor
1. Menor 13-15 >89 10-29 4
2. Moderado 9-12 76-89 > 29 3
3. Sério 6-8 50-75 6-9 2
4. Grave 4-5 1-49 1-5 1
5. Crítico 3 0 0 0
6. Mortal (não sobrevive) 0,9368 0,7326 0,2908 Constante
Tabela 18.1 Tabela 18.2 TS = 0,9368 GCS + 0,7326 SBP - 0,2908 RR

Para o cálculo utilizam-se os valores iniciais da


Índice de gravidade da lesão (ISS) escala de coma de Glasgow (GCS), da pressão arterial
sistólica (SBP) e da frequência respiratória (RR) que
É utilizado para quantificar a gravidade do são convertidos em uma escala de gravidade de 0 a 4
trauma. O corpo humano é dividido em seis segmen- como na Tabela 18.2.
tos: cabeça e pescoço, face, tórax, abdome e pelve, ex-
tremidades e ossos da pelve e superfície externa. Em Após estudos de regressão logística, estratificou-
cada um desses segmentos, a lesão recebe uma pon- -se a gravidade de cada parâmetro por meio de cons-
tuação de 1 a 6, tendo como base os critérios do AIS, tantes demonstradas acima na fórmula da Tabela 18.2.
conforme descrito na Tabela 18.1. O ISS considera Dessa maneira, o RTS varia de 0 a 8 (7,8408).

SJT Residência Médica – 2016


221
18 Politrauma

O RTS é um prático índice fisiológico e deve ser


calculado na admissão do paciente no hospital. Po-
Índices mistos
rém, ele não é um preditor de complicações, mas
correlaciona-se com probabilidade de sobrevida. TRISS
Um paciente com RTS < 4 deverá ser transferido
a um centro de trauma. É um índice que avalia a probabilidade de sobre-
vida, utilizando-se do RTS e do ISS. Além do RTS e
do ISS, consideram-se a idade do paciente (menor ou
Probabilidade de sobrevida pelo RTS maior do que 54 anos) e o tipo de trauma (fechado ou
Probabilidade de sobrevida pelo RTS (%)

1 0.919
0.969 0.988 penetrante). Esses valores são colocados em programa
0.9 0.807 de computador e aplicados em uma tabela TRISSCAN,
0.8
0.7
0.605
que determina através de regressão logística probabi-
0.6
0.5
lidade de sobrevida.
0.361
0.4
0.3
Atenção: vale lembrar quais são os índices anatô-
0.2
0.071
0.172
micos, fisiológicos e mistos e o seus significados ao in-
0.1 0.027
0 vés de decorar fórmulas. É improvável que o examinador
questione sobre a fórmula dos índices ainda mais que são
Revised Trauma Score (RTS)
calculados por programas de computador, mas é interes-
Figura 18.4 sante saber os componentes do RTS, por exemplo.

O que diz respeito aos médicos, só os médicos tratam: de ferragens cuidam os ferreiros.
Horácio

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

19
Atendimento inicial ao
politraumatizado

O atendimento ocorre em dois cenários dis-


Introdução tintos: atendimento pré-hospitalar e hospitalar.
Se tempo é dinheiro, para os americanos tempo Existem diferenças entre países e continentes
é sangue no ATLS. O tratamento de pacientes vítimas em relação ao sistema empregado. Na Europa, por
de trauma grave requer rápida avaliação de suas lesões exemplo, o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel
e imediata instituição de medidas terapêuticas que de Urgência) francês adota certas medidas de tra-
possam garantir a sobrevivência desses pacientes.
tamento na fase pré-hospitalar que podem retardar
Uma vez que o tempo é fator essencial no resul- um pouco a remoção até o hospital, já que existe a
tado final do tratamento, é necessário fazer uma abor- presença de médicos que podem fazer procedimen-
dagem sistematizada, incluindo sequência hierar-
tos no local. No sistema norte-americano, há a fi-
quizada de prioridades.
gura do paramédico, que foca em fazer reanimação
O processo é denominado avaliação inicial e in- básica e transporte rápido para o centro de trauma
clui diversas etapas como preparação pré-hospitalar, (scoop and run).
triagem, exame primário (ABCDE), exames adjuntos
ao exame primário, reanimação, exame secundário e A equipe de atendimento pré-hospitalar, ao
cuidados definitivos. chegar ao local, deve observar:
223
19 Atendimento inicial do politraumatizado

€ segurança do local e da equipe; € houve ejeção da vítima para fora do veículo;

€ mecanismo de trauma/gravidade; € houve morte de um ou mais ocupantes do ve-


ículo;
€ número de vítimas.
€ ocorreram danos graves ao veículo (perda total);
No Brasil, a equipe observa, mediante exame
sumário, se existem alguma situação crítica e lesão Atenção: procedimentos secundários, como
ameaçadora de vida a ser tratada no exame primá- exames contrastados, tomografia, lavado perito-
rio como necessidade de desobstrução de vias neal diagnóstico (LPD), arteriografia e ressonân-
aéreas, oclusão de ferimentos aspirativos de cia, não devem ser realizados no hospital que irá
tórax (que possam levar a pneumotórax hi- transferir o paciente, mas sim priorizar e não re-
pertensivo) , descompressão de pneumotórax tardar a transferência. A decisão desses exames
hipertensivo, ventilação mecânica, contenção deverá ficar a critério do médico assistente do hos-
de grandes hemorragias e suspeita de tampo- pital de destino.
namento cardíaco. Na fase hospitalar é preciso ter planeja-
mento. Os equipamentos devem estar testados (la-
ringoscópios, tubos etc.) e disponíveis para serem usa-
No atendimento pré-hospitalar, dos imediatamente. Além disso, para o atendimento
antes de qualquer ABCDE, do politraumatizado deve ser usada proteção contra
doenças transmissíveis (hepatite, AIDS etc.), usando
verifique: a cena está segura?
máscaras, protetor ocular, avental impermeável, luvas
etc. O ATLS obriga sempre o cuidado com o con-
trole da infecção.
Pelo ATLS de 2008, as novas mudanças in-
cluem a necessidade de drenar um pneumotórax
traumático ainda que pequeno antes de se realizar
a transferência.
É fundamental, no atendimento ao trauma, o
cuidado com a integridade da equipe que está prestan- Triagem
do o atendimento.
O controle da cena é fundamental, identifican- É a avaliação e screening (classificação) dos pa-
do situações de risco (exemplo: risco de explosão), evi- cientes politraumatizados de acordo com a probabi-
tando-as, afastando curiosos etc. Nessa mesma linha, lidade de sobrevida, recursos e pessoal disponível e
temos a questão da divisão do atendimento ao trauma tratamento provável necessário.
em zonas: O atendimento prestado deve ser baseado nas
prioridades, com ênfase nas lesões ameaçadoras à
€ zona quente: é o foco principal do trauma,
onde estão as vítimas (exemplo: local exato
vida. A classificação dos doentes no local do acidente
onde foi encontrada a vítima, dentro do carro, e a decisão do tipo de hospital para o qual deve ser
presa em ferragens). transportado o doente são primordiais, principalmen-
te tratando-se de catástrofes.
€ zona morna: é um raio ao redor da zona quen- Em situações de catástrofes, a triagem realizada
te onde ficam o pessoal de apoio, a unidade de
pelas equipes deverá obedecer a dois aspectos:
resgate estacionada, os materiais necessários ao
atendimento organizados etc. – O número de pacientes não excede a capacida-
de dos cuidados disponíveis: pacientes com lesões gra-
€ zona fria: raio ao redor da zona morna, onde ves são cuidados primeiro.
se controla e restringe o acesso ao foco do trau-
– O número de pacientes excede a capacidade de
ma e são afastados os curiosos etc.
cuidados disponíveis: pacientes com maior chance de
No atendimento pré-hospitalar suspeita-se de sobrevivência são tratados primeiro.
traumatismo grave quando: Em princípio, devem ser encaminhados para
€ ocorreram quedas de mais de 6 metros;
um centro de trauma os traumatizados que apresen-
tarem alguma das características apresentadas na
€ colisões a mais de 32 km/h (20 mph); Figura 19.1.

SJT Residência Médica – 2016


224
Cirurgia geral e politrauma

Medida dos sinais vitais e nível de consciência

Primeira Escala de coma de Glasgow .............................................................................. < 14 ou2


etapa1 Pressão sistólica .................................................................................................... < 90 ou
Frequência respiratória ....................................................................................... < 10 ou > 29
Escore de trauma revisado (RTS)...................................................................... < 11

Sim Não

Encaminhar ao centro de trauma; alertar a equipe de trauma. Avaliar a anatomia


As etapas 1 e 2 da triagem buscam identificar os pacientes mais gravemente da lesão
lesionado no local. Em um sistema de trauma, esses pacientes deveriam ser
transportados, de preferência, para o mais alto nível de assistência no sistema.

Segunda • Todas as lesões penetrantes da cabeça, pescoço, tronco e extremidades proximais ao cotovelo e joelho
etapa2 • Tórax flácido
• Combinação de trauma com queimaduras
• Duas ou mais fraturas de osso longo proximal
• Fraturas pélvicas
• Fraturas abertas e afundamentos do crânio
• Paralisia
• Amputação próxima ao punho e ao tornozelo
• Queimaduras grandes

Sim Não

Encaminhar ao centro de trauma; alertar o centro de trauma. Avaliar a evidencia do


As etapas 1 e 2 da triagem buscam identificar os pacientes mais gravemente mecanismo da lesão e do
lesionados no local. Em um sistema de trauma, esses pacientes deveriam ser impacto de alta energia
preferencialmente transportados para o mais alto nível de assistência no sistema.

Terceira • Projeção do automóvel • Queda > 20 metros


etapa3 • Morte no mesmo compartimento do passageiro • Rolagem
• Tempo de liberação > 20 minutos
• Colisão do automóvel em grande velocidade Velocidade inicial > 70 km/h
Grande estrago do automóvel > 50 metros
Entrada no compartimento do passageiro > 30 metros
• Lesão automóvel-pedestre/automóvel-bicicleta com grande impacto (> 8 km/h)
• Atropelamento de pedestre
• Colisão de motocicleta > 35km/h ou com lançamento do motorista

Sim Não

Contatar a supervisão clínica e considerar transporte até o centro de trauma


Alertar equipe de trauma

Quarta • Idade < 5 ou > 55


etapa4 • Doença cardíaca, doença respiratória
• Diabetes dependente de insulina, cirrose ou obesidade mórbida
• Gravidez
• Pacientes imunossuprimidos
• Pacientes com distúrbios sanguíneos ou pacientes usando anticoagulantes

Sim Não

Contatar a supervisão clínica e considerar transporte para o centro de trauma Reavaliar com
Alertar equipe de trauma supervisão clínica

EM DÚVIDA, ENCAMINHAR A UM CENTRO DE TRAUMA

Figura 19.1 algoritmo de triagem no campo do American College of Surgeons. Adaptado de SABISTON, 18ª
ed. 2009.

SJT Residência Médica – 2016


225
19 Atendimento inicial do politraumatizado

No trauma pediátrico e na gestante, as


Avaliação e exames prioridades são as mesmas do adulto. Entretanto,
peculiaridades fisiológicas e anatômicas inerentes à
primário gravidez modificam a resposta ao trauma. A gestante
tem aumento de 30-40% da volemia progressiva
Os pacientes serão avaliados conforme priori-
até pico na 34ª semana, em preparação para a
dades de tratamento. Para os gravemente lesionados,
perda sanguínea pelo parto vaginal ou cesárea.
é estabelecida uma sequência lógica no tratamento,
obedecendo-se às prioridades baseadas na avaliação Assim, devido à hipervolemia fisiológica da grá-
geral do doente. Um paciente com problemas na via vida, o feto já pode estar em sofrimento fetal an-
aérea morre mais facilmente do que aquele com pro- tes que a mãe apresente sinais de taquicardia,
blemas respiratórios que, por sua vez, tem mais chan- hipotensão ou oligúria. Isso resulta da redução
ces de morrer do que um que tem hemorragia. abrupta de volume circulante da mãe ocasiona aumen-
to da resistência vascular uterina, reduzindo a oxige-
Sempre obedeça à sequência do ABCDE (*)!
nação fetal.
O tratamento começa paralelamente ao exame
O foco então para salvar o feto é voltar todo o
primário rápido e consiste na reanimação das funções
cuidado para a fase de ressuscitação da mãe.
vitais comprometidas, pois o tempo é fator fundamen-
tal no resultado final, em que as decisões terapêuticas O diagnóstico de gestação é outro fator extre-
exigem rapidez e precisão. mamente importante tanto para a sobrevida da mãe
quanto para a do feto. Toda mulher em idade fértil
(*) O ABCDE dos cuidados com o politraumati- deve ser considerada grávida até que se prove o
zado é a sistematização do atendimento que objetiva contrário e possui prioridade absoluta.
identificar as condições que implicam risco de morte
na sequência: O idoso também merece cuidados especiais na
reanimação. O processo de envelhecimento é frequen-
A (Airway & Cervical Spine Control) – vias aéreas temente acompanhado de doenças crônicas, com re-
pérvias e proteção da coluna cervical. dução significativa das reservas fisiológicas, compro-
B (Breathing) – Respiração e ventilação. metendo a resposta metabólica ao trauma.
C (Circulation) – Circulação e controle da hemor- Isso sem considerar as inúmeras medicações que
ragia. o idoso faz para múltiplas comorbidades. Vale lem-
brar que o ATLS coloca que o idoso do sexo masculino
D (Disability) – Diagnóstico com exame neuroló- tem maior mortalidade. Por outro lado, o contrário é
gico sumário: GLASGOW e pupilas. visto em jovens e atletas, que são capazes de compen-
E (Exposure) – Exposição do doente (dedos em sar a agressão fisiopatológica com facilidade. Assim,
tubos em todos orifícios a ser realizado no exame se- se houver um idoso e um atleta hipotensos, ou
cundário), com controle contra a hipotermia. seja, com o C comprometido, deve ser atendido
primeiro o jovem, que tem reserva funcional e,
Durante o exame primário, todas as condições
portanto, se esse descompensou, teve um volu-
que implicam risco à vida deverão ser diagnosticadas
me de sangramento excessivo. Já um idoso san-
e, simultaneamente, o tratamento deverá ser instituí-
gra pouco e evolui para instabilidade hemodinâ-
do imediatamente.
mica rápida.
Essa sequência foi descrita para ser usada em
ambiente hospitalar, no qual estiver disponível um
médico com um auxiliar. É claro que, na prática, ela
é desenvolvida quase que simultaneamente por pes- A – Manutenção da via aérea
soal treinado.
e proteção da coluna cervical
No ATLS novo, é muito nítida a importância da
realização do atendimento por uma equipe e não ape-
nas por um único médico. Assim, em várias ocasiões, Tarefas do A
fica claro que, no momento que um examinador está € Imobilização da coluna cervical e falar com o
fazendo o A, ele já consegue (quando muito experien- paciente;
te) avaliar a escala de coma de Glasgow. Se a avaliação
€ Colar cervical;
for retardar o atendimento (por exemplo – um único
médico socorrista), deve-se prontamente proceder à € Permeabilização da via aérea (Jaw Thrust ou
sequência acima colocada. Deve-se sempre priorizar Chin Lift, manobras para reverter obstrução por
sequência, principalmente se o atendimento estiver corpo estranho ou queda de língua);
sendo praticado por pessoas inexperientes. € Aspiração da via aérea (aspirador rígido);

SJT Residência Médica – 2016


226
Cirurgia geral e politrauma

Na avaliação primária, a via aérea e a coluna cer- € Inspeção e remoção de corpos estranhos/pró-
vical são prioridades absolutas. A primeira ação que teses: abrir a cavidade oral, olhar no interior,
deve ser feita é a avaliação da via aérea, daí a impor- remover próteses ou corpos estranhos, aspirar
tância de se falar com o paciente. Detalhe: sempre secreções e hemorragias com aspirador rígido.
proteja a coluna cervical antes de falar com o pa- € Jaw-Thrust: anteriorização da mandíbula atra-
ciente. Se o paciente consegue responder verbalmen- vés da elevação do ângulo da mandíbula.
te à abordagem inicial, significa que a via aérea está
€ Chin-lift: elevação do mento.
patente (pérvia); doente consciente significa boa oxi-
genação cerebral. Manobras para remover corpos estranhos:
Há de se fazer a imobilização do pescoço do do- € Manobra de Heimlich (Figura 19.7).
ente com as mãos e então fale com ele: Você está bem?
Se ele responder, ótimo! Por hora, duas questões fo-
ram resolvidas: o paciente está consciente e as vias aé-
reas (VA) estão pérvias. Instale o colar cervical.

Considere a existência de uma lesão de coluna cervi-


cal em todo doente com traumatismo multissistêmi-
co, especialmente nos doentes que apresentam nível
de consciência alterado ou traumatismo fechado aci-
ma da clavícula.

Quando se tratar de uma vítima de acidente


de motocicleta, cuidado na remoção do capacete. Figura 19.3 aspiração de secreções e remoção de
Empregue a manobra-padrão de retirada do capacete, corpos estranhos da boca com aspirador rígido.
sem movimentar o pescoço. Não realize hiperex-
tensão, nem flexione a coluna cervical.

Figura 19.4 Manobra de chin-lift: elevação do men-


to impedindo que a língua oclua a retrofaringe.

Figura 19.2 note a retirada do capacete que deverá


ser retirado em manobra com duas pessoas. Um so-
corrista imobiliza a coluna cervical alinhando manual-
mente a cabeça e o pescoço (A), a segunda pessoa abre
o capacete lateralmente, liberando os tirantes do capa-
cete e retira o mesmo, cuidando para não ferir nem o
nariz, nem o occipital (B) e (C). Note que uma pessoa
deve ficar sempre com o controle da cervical, e no final
segura a cabeça do paciente (D) para a colocação do co-
lar cervical.
Figuras 2.5 manobra de chin-lift no modelo de ca-
Manobras para assegurar a permeabilidade beça da via aérea: note que após a elevação do mento
das vias aéreas: o ar flui com facilidade sem obstrução na retrofaringe.

SJT Residência Médica – 2016


227
19 Atendimento inicial do politraumatizado

Corpo estranho
Pela última atualização do Circulation 2010, na sus-
peita de corpo estranho, deve-se estimular a tosse, realizar
a manobra de Heimlich e ligar para serviço de emergência
(193) quando o paciente cair inconsciente. Após a sequên-
cia, iniciam-se compressões torácicas, abdominais e ven-
tilações na tentativa de desobstruir a via aérea. O finger
sweep (“dedo em gancho”) não está mais indicado e pode
ser prejudicial (classe III). E o tapa nas costas não está mais
contraindicado por relatos de que essa manobra foi efetiva
em desobstruir previamente a via aérea. As compressões
abdominais em crianças < 1 ano estão contraindicadas,
Figura 19.6 Manobra de Jaw-Thrust: elevação da
preferindo-se as compressões torácicas e o tapa nas costas
mandíbula e tração do mento a ser usada no trauma
quando a manobra head-tilt-chin-lift (hiperextensão da
(back bows); no paciente obeso, a preferência é por com-
cabeça) está contra-indicada. pressões torácicas pela maior efetividade.
Uma vez que o A (via aérea) esteja garantido com
controle de coluna cervical, procede-se para o B (respi-
ração). Se as manobras de permeabilização da vias aérea
não foram efetivas, deve-se imediatamente garantir via
aérea definitiva principalmente no paciente com re-
baixamento do nível de consciência (Glasgow < 8). No
doente que está falando, sem sinais de rouquidão ou
dispneia, é improvável que haja obstrução de vias aére-
as. Entretanto, o segredo do ATLS é a reavaliação
constante do paciente que é fundamental.

Via aérea definitiva: tubo na traqueia com balão insu-


flado e ventilando adequadamente.

A via aérea da criança, por outro lado, exige co-


nhecimento adequado das peculiaridades da traqueia
infantil, que é mais curta e angulada em relação a do
adulto quando a entubação nasotraqueal fica contra
indicada em < 12 anos de idade.

Figura 19.8 cânulas de Guedel.

Figura 19.7 manobra de Heimlich para remoção de


corpo estranho. A: manobra de Heimlich em ortostase Figura 19.9 escolha do tamanho da cânula de Gue-
com paciente consciente; B: compressões abdominais del consiste em: aproximar o bocal da cânula na rima
no epigástrico; C: compressões torácicas semelhantes bucal, verificar se a ponta da mesma atinge o ângulo da
às usadas na reanimação cerebrocardiorrespiratória. mandíbula e não ultrapassa o lóbulo da orelha.

SJT Residência Médica – 2016


228
Cirurgia geral e politrauma

sa dessa cartilagem e da membrana cricotireoidiana,


Exame neurológico isolado não exclui lesão de pode ocorrer um grave desabamento de laringe em
coluna cervical. direção ao mediastino, obstrução da via aérea e óbito.
O que pode ser feito, em crianças é a crico-
tireoidostomia por punção. Um jelco (Abocath) 16-
Qualquer manobra no paciente com rebaixamen-
18 é colocado na cricóide e adaptado a um tubo T, que
to do nível de consciência deve ser feita com proteção
é conectado a 15 litros de O2/min. e até tempo máxi-
da coluna cervical.
mo de 30-45 min. para evitar hipercarbia, até que pos-
Tal cuidado pode ser feito não só com colar cer- sa ser realizada a traqueostomia, como será abordado
vical, mas na imobilização do doente com 2 soros de no capítulo de via aérea.
1.000 mL, um de cada lado da cabeça, junto à maca
A cricotireoidostomia cirúrgica pode até ser fei-
do doente, fazendo a fixação com esparadrapo entre a
ta, desde que esse procedimento seja realizado por
maca, o doente e os soros fisiológicos. Assim, visa-se
pessoa experiente e que conheça muito bem anatomia
minimizar a movimentação antero-posterior da cabe-
e não realize a incisão em local incorreto, o que pode
ça, bem como a latero-lateral da coluna cervical.
ocasionar danos irreversíveis à via aérea da criança.
Deve-se considerar a cinemática e o mecanismo
do trauma para suspeição diagnóstica de lesões asso-
ciadas. O uso de cinto de segurança pode relacio- Cricotireoidostomia por punção não é via aérea de-
nar-se diretamente com lesões de vísceras ocas finitiva!
retroperitoneis (trauma duodenal e explosão de
ceco) e fraturas de Chance na coluna lombar, além
de trauma a órgãos retroperitoneais como pâncreas,
rim e ureter. O uso de air bags relaciona-se às fraturas
de face, mas já foram descritos casos de rotura cardía-
B – Respiração e ventilação
ca por esse dispositivo.
Atenção: no doente com GCS = 15 e, portanto, Tarefas do B
consciente e não alcoolizado, sem queixas de dor na – Máscara de O2 10-12 L/min. (reservatório de
região cervical, o colar cervical poderá ser retirado oxigênio);
sem necessidade obrigatória de radiografia cervical
– Oxímetro de pulso + capnografia;
de perfil C1-T1 (importante visualizar todas as vérte-
bras), desde que uma pessoa realize a estabilização da – Ausculta do tórax.
cabeça e a outra faça a palpação da região cervical. É Resolvido o A, inicia-se o B assegurando-se de que
necessário avaliar se existem dor e sensibilidade local. o doente ventila apropriadamente. Afinal, via aérea pér-
Após, deve ser estimulada a movimentação ativa da via não significa necessariamente ventilação adequada.
cabeça (é o paciente que movimenta a cabeça e não o
Todo paciente politraumatizado deve rece-
médico) no sentido antero-posterior e latero-lateral.
ber O2 em máscara de 10 a 12 litros/minuto. Outra
Uma vez persistindo dor ou a dúvida de lesão de
regra fundamental – sempre ofertar oxigênio suple-
coluna cervical, o raio X de perfil da coluna cervi-
mentar – por máscara com reservatório de oxigênio.
cal C1-T1 perfil deverá ser feito.
Uma boa ventilação exige funcionamento ade-
Uma vítima de trauma fechado acima da claví- quado da caixa torácica, funcionalidade adequada dos
cula deve ser considerada como possível portadora pulmões, da parede torácica e do diafragma.
de trauma de coluwna até que se prove o contrário. A
proteção da coluna com colar cervical é essencial. O paciente deve estar com o tórax exposto para
a inspeção. A ausculta deve ser realizada, bem como a
Na impossibilidade de intubação, a via aérea ci- percussão para evidenciar a presença de ar/sangue no
rúrgica definitiva é mandatória, devendo ser feita de espaço pleural.
modo rápido e seguro. A escolha na maioria dos trau-
mas é a cricotireoidostomia. A traqueostomia deve Lesões ameaçadoras à vida devem ser reco-
ser evitada, via de regra, mas existem situações em nhecidas no exame primário:
que seu emprego é necessário na urgência, como nas € obstrução da via aérea;
fraturas de laringe e também em crianças. € pneumotórax hipertensivo;
Em doentes pediátricos, a cricotireoidosto- € pneumotórax aberto;
mia cirúrgica é contraindicação relativa na fai- € contusão pulmonar com tórax instável;
xa etária abaixo dos 12 anos, pois a cartilagem
cricóide constitui o esqueleto de sustentação da € hemotórax maciço;
laringe, e dessa forma, se houver uma lesão exten- € tamponamento cardíaco.

SJT Residência Médica – 2016


229
19 Atendimento inicial do politraumatizado

Já as lesões potencialmente ameaçadoras à vida de- € Tipagem sanguínea;


verão ser reconhecidas até o final do exame secundário: € Gasometria arterial;
€ pneumotórax simples; € Antitetânica; imunoglobulina se necessário.
€ hemotórax;
€ contusão pulmonar;
€ lesão traqueobrônquica; Hipotensão em politraumatizado é devida a choque
€ trauma cardíaco fechado; hipovolêmico, até que se prove o contrário!
€ rotura da aorta;
€ lesão diafragmática traumática; A hemorragia é a principal causa de morte pós-
€ ferimento transfixante de mediastino; -traumática evitável, após rápido tratamento em ní-
€ ferimento de esôfago. vel hospitalar. Portanto, é essencial a rápida e precisa
avaliação do estado hemodinâmico desses pacientes,
Armadilhas: identificar a origem da dispneia verificando-se:
do paciente: avalie se o paciente está dispneico por
um problema de A (exemplo: obstrução), B (exemplo: € nível de consciência;
pneumotórax), C (exemplo: hipovolemia), D (exem- € cor da pele;
plo: TCE), E (exemplo: hipotermia) ou um somatório € pulso.
desses fatores. A diferenciação entre problemas pul-
monares e obstrução de vias aéreas pode ser muito
difícil. O paciente pode se apresentar profundamente 1- Nível de consciência
taquipneico e dispneico, levando a crer que seu proble-
ma mais importante decorra de via aérea inadequada. A perfusão cerebral poderá estar prejudicada
Há de se lembrar que um pneumotórax simples pode quando o volume sanguíneo estiver diminuído. Lem-
se tornar hipertensivo naqueles pacientes em ventila- brar que doente consciente também poderá ter perdi-
ção mecânica com pressão positiva. do quantidade significativa de sangue, pois os meca-
nismos compensatórios são variáveis de paciente para
Importante: o diagnóstico de pneumotórax é paciente.
clínico!
As radiografias imprescindíveis deverão ser
feitas na sala de trauma somente após término 2- Cor da pele
do exame primário (ABCDE), utilizando-se pre-
A coloração da pele poderá ser importante na
ferencialmente de aparelhos portáteis, sem que
o paciente seja transportado ou mobilizado des- avaliação do choque. A coloração acinzentada da face e
necessariamente até a sala de radiologia. pele esbranquiçada das extremidades são sinais suges-
tivos de hipovolemia.
Lamentavelmente, inúmeros pacientes morrem
ao serem transportados para o raio X.
3- Pulsos
Pulsos centrais de fácil acesso deverão ser checa-
dos quanto à presença e simetria podendo se estimar
a pressão sistólica pela detecção de pulsos:
C – Circulação com controle € pulso radial palpável = 80 mmHg;
da hemorragia € pulso femoral palpável = 70 mmHg;
€ pulso carotídeo palpável = 60 mmHg.

Tarefas do C Pulsos regulares, lentos e cheios indicam normo-


volemia desde que o doente não esteja fazendo uso de
€ Compressão de hemorragias; betabloqueadores. Pulsos filiformes e rápidos são su-
€ Verificação dos pulsos; gestivos de hipovolemia.
€ Monitor cardíaco;
€ SF 0,9% 2.000 mL IV jelco 14-16 (soro aquecido Atenção: enchimento capilar > 3 segundos denota má
- 39ºC); perfusão periférica. Taquicardia é o primeiro sinal de
€ Sangue para laboratório (hemograma, glicemia, hipovolemia! Doente com pulso radial presente tem
β-hCG em mulheres em idade fértil, amilase, pressão sistólica de pelo menos 80 mmHg.
eletrólitos, creatinina, ureia, coagulograma);

SJT Residência Médica – 2016


230
Cirurgia geral e politrauma

Hemorragias Perdas sanguíneas em fraturas


Perdas sanguíneas externas devem ser identi- Fratura de fêmur: 1.500 mL
ficadas e controladas no exame primário. Deverá ser Fratura de tíbia/fíbula: 750 mL
feita compressão manual direta sobre o ferimento. A Fratura de úmero: 750 mL
pressão direta é o método mais rápido e eficaz Fratura de bacia: 2 litros ou mais!
para controle da hemorragia externa. Tabela 19.1

Armadilhas: a resposta às perdas sanguíneas é


variável e não ocorre de modo semelhante ou mesmo
normal nos pacientes idosos, crianças, atletas e indiví-
duos portadores de doenças crônicas.
– Idosos: mesmo saudáveis, têm capacidade li-
mitada de elevação da frequência cardíaca (FC), devi-
do à rigidez miocárdica e retardo eletrofisiológico na
condução elétrica cardíaca.
Muitas vezes, o primeiro sinal de choque (a taqui-
cardia) pode não aparecer precocemente no idoso, so-
bretudo quando o paciente usa betabloqueador. Além
Figura 19.10 pressão direta da ferida com compressa. disso, o débito cardíaco não guarda correlação com a
medida de pressão arterial nesse grupo de doentes.
Atenção: a medida e reavaliação da pressão de
pulso (pressão sistólica – pressão diastólica) é ponto
fundamental de correlação com o débito cardíaco em
qualquer faixa etária.
– Crianças: demonstram poucos sinais de per-
da volêmica, mesmo quando são significativas, já que
têm reserva fisiológica exuberante. Então, quando
aparece a deterioração hemodinâmica, geralmente é
muito rápida e catastrófica.
– Atletas: normalmente são bradicárdicos.
Quando ficam taquicárdicos é porque já houve perda
Figura 19.11 compressão direta e elevação da área significativa de sangue.
traumatizada. O C começa com a compressão direta da hemor-
ragia, monitorização cardíaca e reposição volêmica.
A tentativa de controle de sangramento com pin- O acesso venoso é calibroso (Jelco 14-16) em adultos
ças hemostáticas, em campo de pouca visibilidade, é que deverão receber cristalóide (soro fisiológico 0,9%)
causa de iatrogenia, com frequentes lesões de nervos aquecido a 39ºC. Alternativamente poderá ser feito
e vasos no local. O uso de torniquete, era contrain- Ringer Lactato, mas o qual deve ser evitado sobretudo
dicado em versões de ATLS anteriores, mas ago- em pacientes com TCE, por trabalhos mostrarem a ne-
ra, pela experiência dos americanos em guerras cessidade de uma solução hipertônica para melhores
com o mundo Árabe, poderá ser utilizado em ca- resultados neurológicos. O ATLS de 2008 ainda men-
sos selecionados de amputações traumáticas porque ciona alternativamente a solução salina hipertônica
o risco de lesão neurovascular associada ao torniquete (“salgadão”) que pode ser empregada temporariamen-
é mais teórico do que efetivamente real. te para manutenção cardiovascular com bons resul-
tados. Entretanto, há ainda dificuldades na padroni-
Além disso, paciente em choque persistente, de
zação de sua fórmula e, por isso, apesar de poder ser
causa obscura, sem evidência de fraturas deve ser in-
utilizada, vale lembrar que não há ainda diferença de
vestigado: fratura de pelve e lesão de esôfago. mortalidade na literatura atual.
Os mecanismos de trauma por ejeção, esmaga-
mento ou queda de mais de 3,6 metros são bastante
sugestivos de fraturas pélvicas. E a presença de der- Acesso venoso
rame pleural e dor torácica sem fraturas com pa- A preferência é por duas veias periféricas (basíli-
ciente persistentemente em choque após trauma ca, cefálica ou safena interna no maléolo) e deverá ser
fechado fala a favor de lesão do esôfago. feita a punção em no máximo três tentativas. No in-

SJT Residência Médica – 2016


231
19 Atendimento inicial do politraumatizado

sucesso, indica-se a dissecção cirúrgica. Por exemplo: da pressão intracraniana e compressão do III par cra-
a veia safena deverá ser dissecada anteriormente ao niano (nervo oculomotor) que resulta em midríase.
maléolo medial; a veia basílica deverá ser dissecada 2 Veja as tabelas abaixo para a classificação da GCS e da
dedos acima do processo estilóide da ulna. gravidade do trauma cranioencefálico (TCE). O mais
Em crianças, após falha na punção, a veia axilar é importante não é um GCS isolado, mas a reava-
a via de escolha na dissecção venosa na urgência. liação frequente e seriada de GCS.
Nas crianças menores de 6 anos, pode-se tentar
a via medular (intraóssea). Penetrando o platô tibial Abertura ocular
anterior, com uma agulha curta e grossa a cerca de 1,5 Espontânea 4
a 2 cm abaixo da epífise, obtém-se uma boa via para Estímulo verbal 3
a reposição volêmica, utilizando qualquer tipo de so-
Estímulo doloroso 2
lução (cristaloide, coloide, sangue ou derivados) ou
Sem resposta 1
medicamento. Na via intraóssea, a administração de
líquidos entra na circulação em cerca de 20 segundos. Melhor resposta motora
Obedece a comandos 6
Classificação da hemorragia Localiza a dor 5
segundo a perda de volume Flexão normal (retirada) 4
Classe I Classe II Classe III Classe IV Flexão anormal (decorticação) 3
Perda de Extensão (descerebração) 2
750 a 1.500 a
sangue > 750 > 2.000
1.500 2.000 Sem resposta 1
(mL)
Perda de Resposta verbal
sangue Orientado 5
> 15% 15 a 30% 30 a 40% > 40%
(% volume Confuso 4
total) Palavras inapropriadas 3
Pulso Sons incompreensíveis 2
< 100 > 100 > 120 > 140
(bpm) Sem resposta 1
Pressão Normal Normal Diminuída Diminuída
arterial Tabela 19.3 scala de coma de Glasgow = motor + ver-
bal + ocular.
Pressão Normal ou Diminuída Diminuída Diminuída
de pulso aumentada
(mmHg) Classificação do Trauma Cranioencefálico
Respiração/ 14 a 20 20 a 30 30 a 40 > 35
Classificação GLASGOW
minuto
Diurese > 30 20 a 30 5 a 15 Desprezível Leve 13-15
(mL/hora) Moderada 9-12
Estado Pouco Moderada Ansioso e Confuso e Grave ≤8
mental ansioso ansiedade confuso letárgico Tabela 19.4
Reposição Cristaloide Cristaloi- Cristaloide Cristaloide
(3/1) de e sangue e sangue
Tabela 19.2

E – Exposição do doente e
proteção contra a hipotermia
D – Disability (Exame Todo paciente traumatizado deve ser totalmente
Neurológico Sumário) despido, cortando-se as roupas para facilitar o acesso
visual adequado de lesões e promover exame físico
Tarefas do D completo.
€ Glasgow;
Fluidos intravenosos devem ser aquecidos a
€ Pupilas; 39ºC; cobertores devem ser utilizados e a sala deverá
€ Pesquisa de sinais de TCE grave: sinal da bata- ser aquecida com ar condicionado.
lha, sinal do guaxinin, sinal do duplo halo. A hipotermia agrava a acidose e a coagulopa-
Aqui, ao invés de exames neurológicos porme- tia e constitui a chamada tríade da morte, portanto,
norizados que poderão ser realizados no exame se- a necessidade de todo o paciente politraumatizado ter
cundário, o foco será a detecção precoce do aumento prevenção desde o atendimento pré-hospitalar.

SJT Residência Médica – 2016


232
Cirurgia geral e politrauma

As vítimas de trauma devem ser retiradas da A – Ambiente e eventos relacionados ao acidente


prancha longa antes de 2 horas, pois, após esse perí- É a hora do exame pormenorizado:
odo, começa a ocorrer isquemia dos tecidos sob pres-
são e isso propicia a formação de escaras (úlceras de
€ Cabeça: procura por lesões de couro cabeludo,
tábua óssea (crânio), região mastóide e base
pressão).
do crânio. Sinais de fratura de base do crânio:
Sinal de Battle (Sinal de Batalha); Sinal do
Acidose Guaxinim (Racoon Eyes), otoliquorragia/otor-
ragia (saída de líquor/sangue pelo ouvido); Si-
nal do duplo halo é líquor que se mistura com
sangue e aparece no lençol do leito do doente
Triângulo sugerindo otoliquorragia e ou rinoliquorragia
da (mancha em alvo).
MORTE
Coagulopatia Hipotermia Otoscopia e fundo de olho. Verificar a presença
de hemotímpano, e/ou ruptura do tímpano, otorragia
Figura 19.12 Atenção! (lesão do andar médio), e/ou perda liquórica que fala a
favor de TCE e fratura de base de crânio.
€ Face: traumas maxilofaciais sem obstrução das
Exames adjuntos ao exame primá- vias aéreas ou sangramentos importantes só
rio e à reanimação são tratados após completa estabilização dos
doentes. Fraturas de terço médio de face podem
€ Oxímetro de pulso. estar associadas a fraturas de placa crivosa, as-
€ Monitor cardíaco/pressão arterial/frequência sim a sondagem nasogástrica fica contraindica-
respiratória. da e deve ser realizada por via oral.
€ Gasometria arterial e laboratório. € Pescoço: pacientes com trauma craniano e ma-
xilofacial devem ser considerados como porta-
€ Capnógrafo.
dores de lesão raquimedular até prova contrá-
€ Exames radiológicos: raio X cervical perfil (C1- ria. Ausência de déficit neurológico não exclui
T1), tórax AP e bacia AP), devem ser usados lesão de coluna cervical. Por vezes, as lesões
racionalmente, nunca retardando o tratamento medulares não podem ser avaliadas pelo fato de
de lesões ameaçadoras à vida. o paciente encontrar-se comatoso, assim a aná-
€ Sondagem nasogástrica e vesical (atentar para lise do mecanismo de trauma pode ser a única
as contraindicações). arma disponível para o médico.
€ FAST (Focused Assessment with Sonography for € Tórax: lesões torácicas significativas podem
Trauma - ultrassom) e lavado peritoneal diag- manifestar-se por dor, dispneia ou hipóxia. A
nóstico (LPD). avaliação inclui a ausculta e o exame radiológi-
co. Doentes idosos não toleram lesões torácicas,
€ A decisão da transferência do doente e os cuida-
mesmo relativamente pequenas, entrando rapi-
dos definitivos devem ser tomados até o final do
damente em insuficiência respiratória.
exame primário.
€ Abdome: o diagnóstico e tratamento das lesões
abdominais deve ser rápido e agressivo. Um
exame inicial normal do abdome não exclui le-
Exame secundário sões intra-abdominais. Paciente com contusões
É o exame pormenorizado que se faz com a rea- abdominais deve ser observado de perto e com
valiação do paciente, sendo importante sobretudo no frequentes reavaliações. Doentes com hipoten-
diagnóstico de lesões potencialmente ameaçadoras à são inexplicada, lesões neurológicas, alterações
vida. Na avaliação secundária, o paciente é exa- do sensório devido ao uso de álcool e/ou drogas
e com achados abdominais duvidosos devem
minado dos pés à cabeça e dedos e sondas são
ser considerados candidatos a uma LPD / FAST.
introduzidas nos orifícios naturais em busca de
lesões. € Genitália/períneo: o períneo deve ser exami-
nado à procura de contusões, hematomas, lace-
No exame secundário é a hora de se revisar a his-
rações e sangramento uretral. Atualmente, o to-
tória do doente. A mnemônica AMPLA é útil: que retal pode ser realizado antes da introdução
€ A – Alergias da sonda vesical. Nas mulheres, o toque vaginal é
€ M – Medicamentos parte fundamental do exame secundário, desde
que haja risco de lesão vaginal. Faça o toque vagi-
€ P – Passado médico/prenhez nal e retal. Nesse último, verifique a competência
€ L – Líquidos/sólidos ingeridos pela última vez do esfíncter (lesão raquimedular), a presença de

SJT Residência Médica – 2016


233
19 Atendimento inicial do politraumatizado

sangue na ampola, lacerações e fragmentos ou € Exames contrastados (arteriografia, uretrocis-


pontas ósseas (fratura de bacia) e presença de tografia, esofagograma).
crepitação (trauma duodenal). Nos homens, ve- € TC/Ressonância.
rifique volume, forma e posição da próstata (na
secção uretral, a glândula desloca-se para cima). € Demais estudos radiológicos sem ser aqueles
Verificar se existem equimose perineal ou locais incluídos no exame primário, incluindo os de
de contusões (escoriações) e outras lesões (fratu- extremidades.
ras, luxações, perfurações e cortes). € Endoscopias digestivas/via aérea (fibrobroncos-
€ Extremidades/musculoesqueléticas: as extre- copia).
midades devem ser inspecionadas à procura de
Cuidados definitivos: realizado o tratamento
contusões e deformações. Fraturas pélvicas po-
dem ser suspeitadas pela identificação de equimo-
das lesões ameaçadoras à vida no exame primário, e, em
ses sobre as asas do ilíaco, púbis, grandes lábios ou alguns casos, com o resultado de exames mais especiali-
saco escrotal. A dor à palpação do anel pélvico é zados em mãos, procederemos aos cuidados definitivos.
um achado importante no doente consciente.
Segurança
€ Sistema nervoso: a avaliação neurológica ade- 1º passo Controle de cena
Mecanismo de trauma
quada não inclui somente a apreciação sensorial
e motora, mas também a reavaliação do nível de
consciência (GCS) e do tamanho e da resposta da Controle cervical
Abordagem primária
pupila do doente. Qualquer evidência de perda de 2º passo
rápida
Consciência
Respiração - sim/não
sensibilidade, paralisia ou fraqueza sugere lesão Circulação • pulso
grave da coluna ou do sistema nervoso periférico. • color/umidade
• temperatura
• enchimento/umidade
Grandes lesões/hemorragia
Comunicação com médico
regulador

Exames adjuntos ao A= Vias aéreas/controle cervical


B= Respiração-qualidade
exame secundário 3º passo
Abordagem primária
completa C= Circulação/controle hemorragia
• Pulso
• Enchimento capilar
• Coloração/umidade
Uma vez que as lesões ameaçadoras/potencial- D= Nível de consciência/pupila
mente ameaçadoras à vida foram identificadas e tra-
tadas no exame primário, exames mais sofisticados 4º passo Abordagem secundária
Cabeça
Pescoço
poderão ser feitos para confirmar a suspeita diagnós- Tórax
tica existente desde que o doente esteja hemodinami- Abdome
MMII
camente estável. MMSS
Dorso
Todo paciente instável hemodinamicamente,
sem resposta à reposição volêmica necessita de cirur- 5º passo
Sinais vitais e escala
gia para a resolução da hemorragia. de coma e trauma

Entretanto, uma vez que exista a necessidade de


transferência do paciente, é inadmissível que ocorra Comunicação com
retardo em função de quaisquer exames, sejam eles médico regulador

quais forem e até mesmo LPD. São adjuntos ao exa-


me secundário: Figura 19.13 Atendimento inicial à vitima de trauma.

Cirurgia é ciência e arte.


Paulo Tubino e Elaine Alves

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

20
Via aérea e ventilação

A agitação do paciente sugere hipóxia; já


Introdução sonolência levanta suspeita de hipercapnia. Res-
piração ruidosa, com roncos ou estridor, leva-nos a
Via aérea (VA) é prioridade absoluta no pensar em obstrução de faringe. Presença de disfonia
atendimento ao politraumatizado. E a permeabi- sugere obstrução de laringe.
lidade da VA não implica necessariamente ventilação
adequada. O tórax do paciente deve ser exposto com- As manobras de permeabilização da VA depende
pletamente para avaliar a ventilação pulmonar. Além da causa da obstrução. Se o problema é a queda da lín-
disso, devemos identificar a origem da disfunção res- gua, a tração do mento e elevação da mandíbula (jaw-
piratória com diagnóstico diferencial do problema: -thrust) ou a simples elevação do mento (Chin-lift) re-
será que a dispneia é por obstrução da VA, por proble- solvem. Deve ser usado aspirador rígido para aspirar
ma pulmonar ou ainda por má perfusão periférica ou secreções e corpos estranhos. Sondas flexíveis devem
problema neurológico associado? ser evitadas.

A VA pode ficar comprometida pela queda da lín- Independentemente da manobra a ser realizada,
gua, no paciente inconsciente, pela presença de cor- há de se ter cuidado com a coluna cervical. Via de re-
pos estranhos, restos alimentares, sangue, hematoma gra, o colar cervical deverá estar posicionado de modo
e edema de laringe por trauma direto. Pacientes com adequado. Ele poderá ser mobilizado desde que um so-
TCE, trauma bucomaxilofacial e ou trauma na região corrista fixe a cabeça, enquanto o médico responsável
cervical são particularmente propensos a apresentar examina a região cervical e coloca o colar.
problemas na VA. Todo paciente politraumatizado deverá re-
O diagnóstico de obstrução da VA começa no ceber suplementação com oxigênio (10-12 litros/
contato com o doente. A verificação da consciên- minuto) em máscara.
cia com as perguntas: “como você está?”, “qual é seu O oxímetro de pulso deverá ser também aco-
nome?” fornece-nos vários dados importantes. Doen- plado. Esse aparelho oferece informações sobre a
te que fala e está orientado mostra que a VA está saturação de O2, mas não garante que a ventila-
pérvia e existe boa oxigenação cerebral. ção esteja adequada.
235
20 Via aérea e ventilação

Via aérea temporária Máscara Laríngea (ML)


Quando a ventilação com AMBU e a entubação
Para obtenção da via aérea temporária, po-
orotraqueal falham durante VA difícil, a ML é proposta
demos utilizar: (a) ventilação com sistema balão-vál-
vula-máscara (AMBU) acoplado a reservatório de O2; atraente naquele socorrista treinado com esse tipo de VA
(b) cânula orofaríngeo (Guedel); (c) cânula nasofarín- temporária. É colocado sem visualização da glote.
gea; (d) máscara laríngea (intubação difícil); (e) tubo
laríngeo (intubação difícil); (f) introdutor do tubo
traqueal Eschmann (intubação difícil); (g) Combitube
(tubo duplo lúmen, intubação difícil); (h) cricotireoi-
dostomia por punção.
Existem critérios padronizados para a obtenção
da VA definitiva. A VA temporária não substitui VA
definitiva, mas ela é importante até planejamento da
VA definitiva a fim de garantir oxigenação adequada.

Sistema balão-válvula-
máscara (AMBU) acoplado a
reservatório de O2
O AMBU é um sistema de válvula unidirecio-
nal que deve ser acoplado ao reservatório de O2 para
maximizar a oferta de oxigenação adequada. Ele tem
uma máscara transparente que permite visualização
caso ocorra regurgitação. O balão adulto tem 1-2 li- Figura 20.1 máscara laríngea.
tros e deve permitir ofertar volume corrente de 600
mL , o suficiente para a expansão do tórax e preser-
vação normocarbia. A ventilação deve durar 1 se-
gundo e o fluxo conectado é 10-12 L/min. No caso
de ventilação durante reanimação cardiopulmonar Tubo laríngeo
(RCP), devem ser feitas 30 compressões para duas É dispositivo de VA extraglótica semelhante a
ventilações, o que equivale a uma ventilação a cada ML usado em casos de VA difícil. Também é colocado
6-8 segundos (não precisa mais ser sincronizado com sem visualização da glote e seu posicionamento não
as compressões e vai resultar 8-10 por minuto), man- exige hiperextensão da VA.
tendo-se frequência de compressões torácicas de 100
por minuto. Vale lembrar também que a ventilação
não invasiva (BIPAP) no paciente consciente pode
dar suporte temporário até melhor planejamento da
VA definitiva.

Cânulas oro e nasofaríngeas


Somente devem ser introduzidas em pacientes
inconscientes porque provocam reflexo de vômito.
E se o doente tolera uma cânula de Guedel, então é
porque ele precisa mesmo de VA definitiva. O Guedel
deverá ser introduzido e rodado 180º para a correta in-
serção, voltando-se à concavidade para baixo. Momen-
taneamente, evita a queda da língua na orofaringe.
A cânula nasofaríngea é introduzido pelo nariz e
introduzido para a orofaringe posterior. Figura 20.2 tubo laríngeo.

SJT Residência Médica – 2016


236
Cirurgia geral e politrauma

Guia de introdutor de
intubação (Eschmann)
Nada mais é do que um fio guia para entubação.
O socorrista vai entubar e não enxerga as cordas vo-
cais. Daí ele coloca o fio guia de Eschman que tem uma
dobra de 3,5 cm angulada em 40º. A posição traqueal
é diagnosticada porque ocorre atrito entre a ponta do
introdutor e os anéis cartilaginosos da traqueia em até
90% das vezes. Quando se sente a rotação do guia é
porque o introdutor cruzou a carina e daí o tubo deve
ser tracionado um pouco para cima. Imediatamente
depois da intubação, o Eschmann é retirado e o tubo
endotraqueal é conectado ao respirador.

Figura 20.4 Combitube.

Cricotireoidostomia por
punção
É de fácil e rápida realização. A punção é reali-
zada com jelco calibroso (14-16 no adulto e 16-18 na
criança) na membrana cricotireoideana, usando-se
inicialmente de seringa (pressão negativa) até entrada
na laringe em 45º. Em seguida, deve ser conectado um
tubo em T, para permitir a oclusão manual de 1 se-
gundo, liberando por 4 segundos. Esse método oferece
ventilação adequada por 30-45 minutos (depois come-
Figura 20.3 Eschmann. ça a haver hipercapneia). Após esse período, deve-se
proceder à VA definitiva (exemplo: traqueostomia).
Precisa ser conectado também o oxigênio a 15 L/min.
Na suspeita de obstrução de VA por corpo estranho,
o O2 deve ser colocado em doses menores (5-7 litros/
Combitube (tubo de duplo min.). Note que a cricotireoidostomia cirúrgica
lúmen) não pode ser feita em crianças <12 anos, mas a
crico por punção pode.
O combitube é usado por muitas equipes no pré-
-hospitalar nos EUA quando a VA definitiva não é vi-
ável. Trata-se de um tubo de duas vias e com dois ba-
lões na ponta. Uma via comunica-se com o esôfago e
a outra com a traqueia. Os balões são insuflados, com
a ajuda de um capnógrafo, o socorrista identifica qual
via está na traqueia e imediatamente a ventila. Então,
o paciente quando chega ao hospital tem o combitube
substituído por VA definitiva.

SJT Residência Médica – 2016


237
20 Via aérea e ventilação

duas pessoas até que a SaO2 esteja adequada. Na im-


possibilidade de entubação em três tentativas, pode-
-se proceder a VA temporária ou VA cirúrgica.
A decisão de instalar a VA aérea definitiva é
baseada em achados clínicos e fundamenta-se em:
GCS < 8;
Presença de apneia;
Proteção da VA contra a aspiração de sangue, vô-
mitos incoercíveis;
Tratamento da VA comprometida, com lesão
iminente ou potencial da VA, em queimaduras inala-
tórias, fraturas faciais sangrantes, hematoma retrofa-
ríngeo ou convulsões persistentes;
Figura 20.5 cricotireoidostomia por punção: jelco 14-
16 em adultos, sendo 16-18 em crianças. É conectada Impossibilidade de manter a via aérea permeá-
uma seringa e faz-se pressão negativa até aspiração de ar, vel por outros métodos e saturação de O2 em queda
indicando-se a entrada da traqueia. É conectado O2 a 15 progressiva;
L/min., a não ser que haja obstrução, quando a pressão Critérios para a intubação endotraqueal
de O2 deverá ser mais baixa. Conecta-se à extensão em Y (IOT):
e se faz a oclusão de 1 s para 4 s sem oclusão.
€ PaO2 < 60 mmHg;
€ PaCO2 > 50 mmHg;
€ SaO2 < 88-90% (cuidado com paciente DPOC);
Complicações da cricotireoidosto- € FC > 120 e FR > 35;
mia por punção € PaO2/FiO2 < 300 (lesão pulmonar aguda).
1- Ventilação inadequada – hipóxia e morte; Dica: esses critérios são importantes não
só para a prova de residência médica mas para a
2- Aspiração;
vida como médico porque uma das piores situa-
3- Laceração esofágica; ções que pode acontecer é não entender a urgên-
4- Hematoma; cia que existe no paciente que entra progressiva-
5- Perfuração posterior da traqueia; mente em fadiga respiratória. Portanto, busque
por esses sinais em todos os pacientes na urgên-
6- Enfisema; cia, não somente no trauma.
7- Perfuração da tireoide. A gasometria arterial é fundamental para ava-
liar adequadamente a ventilação após obtenção de
VA definitiva.

Via aérea de昀椀nitiva


Intubação orotraqueal (IOT)
VA definitiva é tubo na traqueia com cuff inflado venti-
lando adequadamente. A IOT é usada com maior frequência. A compres-
são da cricóide (manobra de Sellik) é útil para melhor
visualização das cordas vocais e prevenção de vômitos.
Existem três tipos de VA definitiva: A preferência é a IOT com duas pessoas (“manobra a 4
€ Intubação orotraqueal; mãos”) onde um socorrista irá estabilizar a coluna cer-
vical (posicionando-se à direita) e o outro procederá à
€ Intubação nasotraqueal;
IOT (posicionando-se à esquerda). De início, o doente
€ VA cirúrgica (cricotireoidostomia cirúrgica e deve ser pré-oxigenado e ventilado adequadamente. O
traqueostomia). material de aspiração deve estar em mãos em caso de
A preferência é a IOT, mas tanto a endotraqueal vômitos. Da mesma maneira, todos os dispositivos de-
como nasotraqueal são efetivas. Após cada tentativa verão ser checados e estarem funcionantes sobretudo
de entubação deve ser feita ventilação com AMBU com as pilhas das luzes de laringoscópios.

SJT Residência Médica – 2016


238
Cirurgia geral e politrauma

O laringoscópio deve ser usado com a mão es- LEMON


querda, entrando na orofaringe com movimento de
deslocar a língua da direita para a esquerda em movi-
€ Look: observe externamente.
mento de levantar a traquéia na valécula da glote até € Examine a regra 3-3-2*.
visualização das cordas vocais (laringoscópio curvo) € Mallampati: paciente sentado deve abrir a boca
evitando-se o movimento de báscula que pode causar para avaliar o grau de visuabilidade da hipofa-
trauma dentário. ringe com o auxílio de uma lanterna.
€ Obstrução (epiglotites, abscessos e trauma).

O tubo para ser introduzido no paciente politrauma-


€ Neck (mobilidade do pescoço): normalmente é
tizado é o maior possível no adulto para minimizar a avaliado pedindo-se ao doente para fletir o quei-
resistência na VA. O ATLS indica 8,5 para mulheres e 9 xo até o peito e hiperextender o pescoço olhando
para homens. ao teto. É claro que o paciente politraumatizado
com colar cervical não deve fazer isso e é classi-
ficado com VA difícil. *Na regra 3-3-2 há de se
considerar se cabe a distância de:
Após isso, introduz-se o tubo endotraqueal (TET)
sem lesar estruturas. Na criança, o tubo adequado é – 3 dedos dentro da boca em baixo dos incisi-
aquele do tamanho do 5º dedo da mão da criança. O vos superiores e inferiores;
AMBU deve ser conectado e o paciente ventilado até a – 3 dedos abaixo da mandíbula até o osso hioide;
chegada do ventilador apropriado.
– 2 dedos acima da protuberância laríngea.
Após IOT, deve-se proceder à checagem primá-
ria (ausculta pulmonar – ápices e bases – e auscul- Caso não haja espaço suficiente colocados na re-
ta epigástrica) e secundária (detector de dióxido de gra 3-3-2, então se trata de VA difícil. Além disso, o
carbono). A detecção de níveis muito baixos de CO2 uso de drogas sedativas, anestésicas e bloqueadores
sugere entubação esofágica. Da mesma maneira, a neuromusculares (curare) facilitam a entubação e ma-
presença de CO2 sugere IOT, mas não diferencia se a nutenção da IOT de modo confortável. Observe a figu-
entubação ficou seletiva no brônquio direito porque ra abaixo demonstrando a correta IOT somente após a
é mais verticalizado, no qual a ausculta pulmonar visualização das cordas vocais.
torna-se extremamente importante na verificação de
som claro pulmonar bilateralmente, bem como o raio
X de tórax.
Dispositivos de auxílio na IOT são o monitor
de CO2 (capnógrafo) e o oxímetro de pulso.

O ATLS indica que o uso da capnografia (medida con-


tínua) é preferível e mais efetivo que a capnometria
(medida isolada).
Figura 20.6 classificação de Mallampati, utilizada
para visualizar a hipofaringe.
O raio X de tórax é importante para inspecionar
a presença de líquido ou ar no espaço pleural, atelec-
tasia, expansão de tórax adequada, avaliação de deslo-
camento do TET e intubação seletiva. Entretanto, ele
não exclui a intubação esofágica.

Predizendo a VA difícil
Fatores externos: suspeita de lesão de coluna
cervical, artrite cervical avançada, trauma mandibular
e maxilofacial grave, limitação da abertura da boca e
variações anatômicas como micrognatia, prognatis- Figura 20.7 Intubação orotraqueal: necessari-
mo, pescoço curto são desafios que caracterizam a VA amente precisamos visualizar a glote e as cordas vocais.
difícil. O ATLS 2008 traz a mnemônica LEMON para Caso contrário, não entube! Se o fizer, a sonda segue
lembrete do potencial de dificuldade da VA. para o esôfago.

SJT Residência Médica – 2016


239
20 Via aérea e ventilação

quer por INT. Assim, a VA definitiva cirúrgica (cricoti-


Complicações da IOT
reoidostomia) está indicada. A traqueostomia não é
1. Intubação esofágica com hipóxia e morte. rotina na emergência e deve ser evitada no aten-
2. Intubação seletiva (atelectasia). dimento do politraumatizado, com exceção dos
casos de fratura de laringe e crianças < 12 anos.
3. Impossibilidade de intubação.
A traqueostomia é mais demorada, de difícil
4. Indução ao vômito (aspiração, hipóxia, morte).
execução e leva muitas vezes a sangramento de difícil
5. Trauma com hemorragia e aspiração. controle.
6. Trauma dos alvéolos dentários (corpo estranho).
7. Perfuração do cuff (balão).
8. Fratura instável com déficit neurológico à mo- Cricotireoidostomia cirúrgica
bilização da VA. Paciente em que não se conseguiu uma via aérea
definitiva por intubação são candidatos a uma via aé-
rea cirúrgica. No caso do trauma, a preferência recai
sobre a cricotireoidostomia (exceto em crianças me-
Intubação nasotraqueal (INT) nores de doze anos, pois é contraindicada uma
Antes de saber suas indicações é prudente ter vez que a cartilagem é o único suporte circunfe-
ciência das contraindicações. São contraindicações rencial para a parte superior da traqueia), a não
da INT: ser em casos de fraturas de laringe, nos quais se deve
€ Apneia; realizar a traqueostomia de urgência.
€ Suspeita de fratura de 1/3 médio da face e fratu-
ra de base de crânio;
€ Criança < 12 anos (traqueia curta e angulada).

Figura 20.9 Cricotireoidostomia cirúrgica: é feito


um corte com lâmina de bisturi na membrana cricotir
eoidea, vira-se o cabo do bisturi a 90º e, se o doente es
tiver ventilando, o ar já pode sair por ali. Feita correta-
mente, é rápida e não há sangramento.

Após antissepsia e anestesia (doente conscien-


te), estabiliza-se a traqueia com uma das mãos e faz-
-se uma incisão sobre a membrana cricotireoideana;
ao virar o cabo do bisturi e girando-o a 90º no local
Figura 20.8 Intubação nasotraqueal: ouvir as da incisão, o doente consegue respirar. Depois de se
respirações para acertar a intubação; logo, não há como colocar a cânula de traqueostomia #5 ou #6, infla-se o
intubar com apneia. balonete e ventila-se o doente. Na ausência de cânu-
la de traqueostomia, pode-se proceder à colocação do
Além das mesmas complicações da IOT, a INT próprio tubo endotraqueal.
tem risco de lesão cerebral (caso haja fratura da lâmina Complicações da cricotireoidostomia cirúrgica
crivosa), sinusites crônicas e maior incidência de pneu- 1. Aspiração;
monias em um momento mais tardio. A INT tem como
inconveniência a necessidade de um tubo muito peque- 2. Falso trajeto;
no como 6,5 que aumenta muito a resistência na VA. 3. Estenose/edema glótico;
Entretanto, em uma urgência com um paciente com VA 4. Estenose laríngea;
difícil, a INT pode ser alternativa à IOT. No edema de
glote, fratura de laringe ou intenso sangramento oro- 5. Formação de hematoma/hemorragia;
faríngeo, a intubação é por vezes difícil, quer por IOT 6. Laceração da traqueia/esôfago;

SJT Residência Médica – 2016


240
Cirurgia geral e politrauma

7. Enfisema subcutâneo/mediastinal; A hemoglobina fetal é ávida por oxigênio e, se


8. Paralisia das cordas vocais/rouquidão. presente, pode deslocar a curva da hemoglobina para
a esquerda (hemácias captam o oxigênio).

Outros dispositivos Monitor de CO2 (capnógrafo)


auxiliares da via aérea Detecta a presença de CO2. Sob níveis baixos de
CO2, o monitor mostra coloração roxa; já em níveis altos,
a coloração é amarelada, o que sugere intubação correta.
Deve-se esperar ao menos seis ventilações para ver a co-
Oximetria de pulso loração final. O monitor de CO2 não permite diagnosticar
intubação seletiva. Da mesma maneira, doente com dis-
É dispositivo que mede a saturação de oxigênio tensão gástrica pode mostrar altos níveis de CO2.
e a frequência cardíaca por meio de sensores: diodo
emissor de luz e fotodiodo receptor de luz. A luz emi-
tida é absorvida em maior ou menor grau pela hemo-
globina oxigenada em nível diferente da hemoglobina
não oxigenada. Intubação de sequência
Leitura prejudicada pela oximetria de pulso rápida (RSI)
Má perfusão periférica, hipotensão, aparelho
de pressão acima do local da medida, hipotermia (< Deve ser empregada quando a via aérea defi-
30ºC), anemia grave (< 5 g/dL), carboxiemoglobina, nitiva é premissa e o doente está acordado e não in-
metemoglobinemia, esmalte e ambiente muito ilumi- consciente. Pelo risco de vômito, por necessidade de
nado provocam uma leitura inadequada da oximetria proteção ou mesmo de tratamento de VA acometida,
de pulso. A relação entre saturação de oxigênio e curva podemos proceder à RSI:
de pressão parcial de oxigênio não é linear. Observe o
1. Pré-oxigenar o paciente a 100%;
quadro abaixo:
2. Deve ser feita pressão na cricóide (manobra
de Sellick).
PaO2 SatO2
90 mmHg 100% 3. Pode ser administrado Dormonid® (midazo-
60 mmHg 90% lan) 0,1 mg/kg ou Diazepan® para diminuir a ansie-
30 mmHg 60% dade do paciente (flumazenil deve estar em mãos em
caso de superdosagem);
27 mmHg 50%
Tabela 20.1 relação entre saturação e pressão parcial 4. Succinilcolina 1 a 2 mg/kg (Quelecin®);
de O2. Ou seja, na urgência, em um doente de 70 kg, a
succinilcolina deve ser diluída para 10 mL, aplicando-
-se 7 mL (1 mL = 10 mg).
Além disso, existem variáveis que influenciam na A succinilcolina é bloqueador neuromuscular
curva de dissociação da hemoglobina. (curare) de curta duração, cujo efeito começa em me-
nos de um minuto e dura por cinco minutos.
100 pH
A pior complicação é não conseguir intubar. Por
80
pH isso, deve-se ter em mãos material pronto para a crico-
Saturação O2 (%)

tireoidostomia cirúrgica caso seja necessária.


60 Lembrar que a succinilcolina causa fasciculações
40 que antecedem o bloqueio muscular. Logo, devemos
evitar seu uso quando existem grandes esmagamentos
20 ou lesões musculares (queimadura elétrica), devido ao
risco de uma liberação excessiva de mioglobina na cir-
culação, que é extremamente tóxica ao rim.
20 40 60 80 100
PaO2 (mmHg) 5. Proceder intubação orotraqueal.
Figura 20.10 saturação de O2 x PaO2 – Desvio para a
direita (hemácias liberam oxigênio aos tecidos): ↓ pH; ↑
A urgência deve justificar o risco!
temperatura; ↑ PaCO2; ↑ 2,3 DPG (produto da glicólise).

SJT Residência Médica – 2016


241
20 Via aérea e ventilação

Contraindicações da RSI
1. Insuficiência renal crônica (risco de hiperpotassemia – succinilcolina).
2. Paralisia crônica.
3. Doença neuromuscular.
O tiopental não deve ser usado em hipovolemia. A RSI em crianças deve ser precedida de atropina 0,1-0,5
mg para evitar bradicardia.

Via aérea permeável?


Respiração inadequada? Não
Medidas adicionais
GCS < 8? para via aérea

Sim

< 12 anos de idade? Sim Traqueostomia


Lesão da laringe?
Não

Suspeitar de lesão
da coluna cervical

Lesão maxilofacial
grave?
Sim Cricotireoidotomia

Não

Indução por
sequência rápida

Intubação orotraqueal

Sim

Bem-sucedido? Não

Sim

Continuar
Reanimação

Figura 20.11 Algoritmo para tratamento da via aérea no paciente com trauma. Existe um papel estabelecido da
máscara laringea (ML) no tratamento dos doentes com via aérea difícil. Particularmente, quando a intubação en-
dotraqueal e a ventilação com máscara falharem.

É o seco, mais que o úmido, que mais se aproxima do são.


Escola de Cirurgia de Bolonha (1158)

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

21
Trauma cervical

Introdução
O pescoço abriga a maior quantidade de ele-
mentos nobres anatômicos em um pequeno espaço:
traquéia, carótidas, jugulares, artéria vertebral, vasos
subclávios, esôfago, tireóide, paratireóide, medula
cervical e parótidas.
Do ponto de vista anatômico dividimos o pesco-
ço em zonas (I, II e III) e trígonos (anterior e poste-
rior), conforme a figura abaixo.

Figura 21.1 Divisão anatômica do pescoço. A: triân-


gulo anatômicos do pescoço. Os triângulos anatômi-
cos anterior e posterior do pescoço são definidos pelo
músculo esternocleidomastoideo. As estruturas vascu-
lares e aerodigestórias mais importantes no pescoço
estão contidas no triângulo anterior. Os ferimentos en-
volvendo apenas o triângulo posterior têm uma baixa
probabilidade de necessitar de intervenção cirúrgica
urgente. B: zonas do pescoço. O limite entre a zona I
e a zona II está no nível da cartilagem cricoide. O limite
entre a zona II e a zona III está no ângulo da mandíbula.
Essas zonas são principalmente úteis no tratamento das
lesões nos triângulos anteriores do pescoço.
243
21 Trauma cervical

O músculo platisma na fáscia superficial do pes- com consequente denervação diafragmática e o pa-
coço é o ponto anatômico que classifica a profundi- ciente entra em apneia pela ausência da movimenta-
dade das lesões do pescoço e diferencia o ferimento ção diafragmática.
superficial do penetrante. Os critérios para indicar a cirurgia imediata são
Zona I: vai desde a clavícula na base do pesco- bem estabelecidos:
ço (incluindo a transição cervicotorácica), na fúrcula € hemorragia externa profusa;
esternal, até a cartilagem cricóide (C6). Ali localizam-
-se: artéria vertebral e carótida proximais, pulmões, € instabilidade hemodinâmica, não responsiva à
traquéia, tireóide, esôfago, medula espinhal e laringe, reposição volêmica;
além de outros vasos torácicos. Os ferimentos des- € hematoma expansivo;
sa região são de grande poder letal, basicamente € obstrução de vias aéreas;
por lesão estruturas vasculares (artéria inomina-
da e vasos subclávios) e também pela possibilidade de
€ piora dos sinais neurológicos;
lesões torácicas associadas. É o segundo local mais € enfisema de subcutâneo rapidamente progres-
comum dos ferimentos (5 a 31%). sivo;
Zona II: vai desde a cartilagem cricoide (C6) até € saída de saliva pela lesão.
o ângulo da mandíbula. Ali localizam-se a veia jugular II- Sintomático mas sem risco de morte ime-
superficial e profunda, artérias carótidas comuns, tra- diata. Esses pacientes são estáveis do ponto de vis-
quéia, esôfago, medula espinhal e laringe, nervo frêni- ta cardiocirculatório e tem VA pérvia, mas possuem
co. Ferimentos penetrantes nessa região têm menor hematoma cervical e dúvida da existência de lesão
letalidade e melhor controle cirúrgico. Este é o local cervical. Isso porque o achado de hematoma cervical
mais comum dos ferimentos (47 a 82%). levanta a suspeita, mas não é patognomônico de lesão
Zona III: vai do ângulo da mandíbula até a base vascular. Outros sinais de trauma vascular são: a
do crânio. Nessa área localizam-se a faringe, artéria diminuição de pulsos carotídeos e do membro supe-
vertebral e a parte distal da carótida interna e externa. rior, frêmitos, sopros na região cervical e perda da
É látero posterior. É região de alto risco e de difícil consciência. A lesão nervosa pode ficar sugerida por
acesso cirúrgico, principalmente nas lesões de alterações de sensibilidade e motricidade, implicando
carótida interna. na avaliação de lesão medular e do plexo braquial (per-
da de força no membro superior).
E vale lembrar também que as lesões de faringe
e esôfago são traiçoeiras. Apresenta sintomatologia
escassa (disfagia, hematêmese, enfisema subcutâneo,
Racional do trauma hematoma cervical) e, se for inadvertidamente libe-

cervical rada a dieta a esses pacientes, ocorre mediastinite e


choque séptico progressivo.
Nas lesões penetrantes, as lesões vasculares são III- Assintomáticos. Há apenas a presença do
as mais comuns (artéria carótida pode ser lesada até ferimento, mas na ausência de sintomas. Aqui en-
80% das vezes por trauma penetrante), seguindo-se quadram-se os pacientes com ferimentos de artéria
de lesões neurológicas e lesão do trato aerodigestório. carótida por trauma fechado que leva a grave lesões
neurológicas mesmo dias depois do trauma. O exame
O trauma cervical pode acontecer após trauma
clínico não é confiável e a experiência do cirur-
penetrante ou fechado no pescoço, e o paciente pode
estar estável ou em choque. gião será importante no manejo desses ferimen-
tos. Há de se saber os critérios para provável trauma
vascular após trauma fechado:
Existem três grupos de pacientes: € Mecanismo do trauma de grande hiperexten-
I- Com risco de morte imediato. Esses pa- são-rotação (mais comum);
cientes estão em choque, com sangramentos profu- € Contusão direta do pescoço;
sos ou com hematoma contido com aumento pro- € Trauma intraoral; presença de fraturas do terço
gressivo da circunferência do pescoço. A lesão das
médio da face e mandíbula; associação muitas
carótidas é exanguinante e o hematoma progressivo
vezes com fraturas de cervical;
também pode levar à compressão da VA. Lesões de
laringe podem levar a rouquidão, estridor e enfisema € Fratura de base de crânio. TCE com lesão axonal
subcutâneo. Garantir a permeabilidade da VA é es- difusa; fratura de esfenóide ou porção petrosa
sencial. Lesões completas medulares altas (particu- do osso temporal;
larmente em nível de C4) levam à denervação frênica € Sinal do cinto de segurança no pescoço.

SJT Residência Médica – 2016


244
Cirurgia geral e politrauma

Esses traumas fechados podem resultar em dis- exames, sobretudo EDA e broncoscopia nessa região.
secção, trombose e formação de pseudoaneurisma, Entretanto, a conduta obrigatória na exploração de
fístula carotídea-corpo cavernoso ou ainda rotura ar- ferimentos de Zona II deverá ser empregada na au-
terial completa (fatal). A síndrome de Horner (ptose, sência de equipamento diagnóstico necessário. Além
miose e anidrose) pode também aparecer em lesão as- disso, lesões transfixantes por FAF de zona II têm
sociada à trauma de carótida interna (ACI). alta probabilidade de lesão significativa e ainda
têm indicação de cervicotomia de urgência sem
Mais de 90% das lesões vasculares por trauma fechado necessidade de maiores exames diagnósticos.
acometem a artéria carótida interna na sua porção dis- O Doppler de região cervical pode ser exame ini-
tal, sendo difícil de ser avaliado por Doppler. cial em pacientes estáveis. A arteriografia que era o
padrão-ouro no diagnóstico de lesões vasculares vem
O raio X cervical perfil (C1-T1), tórax PA, a endos- sendo substituída progressivamente pela angiotomo-
copia aerodigestiva e a ultrassonografia arteriovenosa grafia helicoidal, mas ainda é importante nos casos
(ultrassom doppler colorido) poderão ser de grande terapêuticos com colocação de stent.
valia na avaliação do trauma cervical. Atualmente, a Além disso, a angiotomografia tem papel impor-
angiotomografia de cortes finos (multislice) vem subs- tante no diagnóstico de trauma de laringe, lesões ós-
tituindo a arteriografia e aumenta o diagnóstico de seas e do sistema nervoso. Em lesões medulares, a res-
trauma cervical com diminuição do impacto significa- sonância magnética também é importante (exceto se
tivo das lesões neurológicas que ocorriam em 50% dos houver projétil metálico, pois aí está contraindicada).
casos da região cervical e transição cervicotorácica.
A avaliação do trato aerodigestório pode ser feita
Pacientes com trauma cervical instáveis he- no pré-operatório e no momento da exploração cirúr-
modinamicamente tem de ir à cervicotomia com gica no intraoperatório. Os ferimentos cervicais que
ou sem toracotomia (e mais raramente à esternoto- não necessitam de exploração operatória imediata po-
mia), dependendo da zona lesada. Já os pacien- dem precisar de avaliação aerodigestória com tomo-
tes estáveis poderão fazer os exames necessários grafia computadorizada, fibrobroncoscopia, endosco-
para depois realizar a abordagem cirúrgica guia- pia alta ou esofagografia para excluir-se uma lesão.
da pelos exames.
Acesso cirúrgico: incisão na borda interna do
Os pacientes com sinais clínicos evidentes de esternocleidomastoideo desde a zona I até a III se ne-
lesão vascular ou no trato aerodigestório requerem cessário. E se houver ferimento de zona I concomitan-
exploração cirúrgica do pescoço por cervicotomia na te à incisão oblíqua poderá ser estendida ao tórax para
borda interna do esternocleidomastoideo desde a a região supraclavicular ou para o esterno (esternoto-
zona I até a zona III (descritas abaixo), fazendo-se a mia). Vale lembrar também que a incisão mais usada
secção do músculo omo-hioídeo. Esses sinais clínicos no trauma é a toracotomia anterolateral e não a ester-
incluem hemorragia externa significativa, hematoma notomia. Reserva-se a esternotomia para ferimentos
grande ou em expansão, saída de ar pelo ferimento de subclávia na sua emergência junto à primeira cos-
com a respiração, fístula com presença de saliva na re- tela, bem como lesões de tronco braquioencefálico e
gião cervical, crepitação no pescoço, alterações da voz, veias jugulares de zona I (geralmente protegidos pela
disfagia e odinofagia. incisura jugular do esterno).
Zona III (zona da arteriografia e de desar-
ticulação mandibular): como é uma área de difícil
acesso, se o paciente estiver estável, a arteriografia é
Zonas do pescoço boa opção para manejo diagnóstico e terapêutico. Na
instabilidade, procedimentos mais complexos como
Zona I (zona da arteriografia): o paciente com a desarticulação da mandíbula e a divisão da parte
ferimento de zona I estável deverá ir à arteriografia. posterior carnosa do músculo digástrico poderá ser
Acesso cirúrgico: caso esteja instável hemo- necessária e então consegue-se o controle vascular da
dinamicamente, uma das melhores abordagens aos artéria carótida interna junto à base do crânio no fora-
vasos subclávios é a retirada da clavícula e contenção me carotídeo, além de melhor acesso a ferimentos de
direta do sangramento podendo associar-se com tora- transição da zona II e III.
cotomia anterolateral (4º ou 5º EIC) se necessário. Conduta: atualmente, lesões altas da artéria ca-
Zona II (zona das endoscopias – EDA e bron- rótida interna em pacientes estáveis e assintomáticos
coscopia): pacientes com lesões penetrantes na zona são tratadas com tratamento conservador com anti-
II que eram todos de conduta obrigatoriamente ci- coagulação. Isso porque a maior parte das sequelas
rúrgica na II Guerra Mundial, hoje têm abordagem desses pacientes é neurológica e decorre de trombose
mais seletiva, guiando-se conforme o resultado dos aguda, propagação de trombo ou embolização distal,

SJT Residência Médica – 2016


245
21 Trauma cervical

em virtude do trauma, que facilita a tríade de Virchow


(estase venosa, lesão da parede vascular e hipercoagu-
Tratamento endovascular
labilidade). Assim, a tendência no momento é trata- No trauma vascular cada vez mais vem sendo
mento não operatório para dissecções e tromboses. empregado o uso de próteses (stents). Nesse caso,
a arteriografia não só é diagnóstica mas também é
terapêutica. Tal abordagem é especial nas lesões de
zona I e zona III em que o acesso cirúrgico padrão é
bem difícil.
Tratamento cirúrgico e
conservador
Cuidados na UTI
As prioridades do ATLS deverão ser sempre con-
Pacientes vítimas de trauma de carótida
sideradas. A maior parte dos pacientes não irá ser ope-
devem ficar anticoagulados no pós-operatório.
rado porque a conduta seletiva com sistematização
O exame físico e a reavaliação do paciente é impor-
diagnóstica é a regra em pacientes do grupo III assin-
tante sobretudo na avaliação dos pulsos e déficit neu-
tomáticos. A cirurgia será realizada naqueles pa-
rológico motor ou sensitivo. Realiza-se a heparini-
cientes com ferimentos penetrantes (platisma)
que estejam sintomáticos (grupo II) ou que apre- zação plena e depois o paciente é mantido com
sentem lesões com risco de vida (grupo I). anticoagulação oral (variaria ou equivalente)
por 3-6 meses.
A preocupação volta-se para a restauração de ar-
térias e restauração precoce de faringe, esôfago, larin-
ge e traqueia.
A anticoagulação precoce com heparinização plena em
Ferimentos no trato aerodigestório: pacientes estáveis é a forma principal de tratamento de
€ Boca: operar/observar; complicações de lesões vasculares não operatórias no
trauma fechado.
€ Orofaringe/rinofaringe: observar;
€ Hipofaringe/esôfago: operar (SNE);
€ Laringe: reparo + traqueostomia;
€ Traquéia: reparo + traqueostomia;
Complicações do
€ Tireoide: sutura hemostática/ressecção. trauma cervical
As lesões traqueais devem ser desbridadas e fe-
chadas primariamente. Nas lacerações simples da Desconsiderando-se as complicações decorren-
traquéia, frequentemente recomenda-se sutura dire- tes do trauma agudo e procedimentos no atendi-
ta com fio não absorvível. Quando há perda de uma mento primário, uma das maiores preocupações no
porção maior da traqueia, pode haver a necessidade de pós-trauma imediato é a mediastinite que pode se
uma traqueostomia ou de complexos procedimentos desenvolver após trauma de esôfago e faringe, por-
reconstrutivos. que essas lesões muitas vezes possuem sintomatolo-
gia escassa.
Já as lesões da faringe são tratadas com sutura
das lacerações da mucosa e redução das fraturas car- A maior preocupação, a curto prazo, são as
tilaginosas. lesões vasculares e neurológicas (decorrentes das
lesões vasculares, sobretudo em artéria carótida
Nas lesões do esôfago, se o diagnóstico foi interna). Daí a importância da anticoagulação no
feito no período de até 24 horas, o reparo pri- pós-operatório de pacientes com trauma vascular
mário pode ser praticável, caso contrário após esse fechado até a decisão de se intervir cirurgicamente
período a esofagostomia proximal com drenagem (je- ou não. As dissecções e tromboses têm geralmente
junostomia ou gastrostomia para a alimentação) é a tratamento não operatório, enquanto que pseudoa-
melhor alternativa. neurismas têm tratamento endovascular ou cirúrgi-
Vale lembrar que a maior parte dos casos não co (mas logo após o diagnóstico o paciente já deverá
será operado e em especial ferimentos de: ser anticoagulado até realização de cirurgia o mais
€ parede posterior de rinofaringe e orofaringe; breve). Por outro lado, pacientes vítimas de trauma
penetrante da ACI devem ser abordados cirurgica-
€ pequenos hematomas de laringe; mente naquelas lesões de fácil acesso, reservando-
€ medula e cérebro concomitantes ao trauma cer- -se o tratamento conservador com anticoagulação
vical. para tromboses e dissecções.

SJT Residência Médica – 2016


246
Cirurgia geral e politrauma

Indicações clínicas à exploração do pescoço


Vascular
Hematoma expansivo
Hemorragia externa
Pulso carotídeo diminuído
Vias aéreas
Estridor
Rouquidão
Figura 21.2 Classificação das fraturas maxilares. Pa-
Disfonia/alteração da voz
Hemoptise drão horizontal (Le Fort I), padrão “V” invertido (Le Fort
Enfisema subcutâneo II) e padrão “W” da desjunção craniofacial (Le Fort III).
Trato digestório
Disfagia/odinofagia Podem ocorrer ainda fraturas sagitais ou paras-
Enfisema subcutâneo sagitais, também conhecidas como fraturas de Lan-
Sangue na orofaringe nelongue. Podem ocorrer ainda as fraturas transver-
Neurológica sas de maxila, chamadas de fraturas de Walther, que
Deficiência neurológica lateralizada consistente com a dividem a maxila em quatro segmentos. Destas, as
lesão; estado alterado da consciência não causado pelo fraturas parassagitais, de Walther e Le Fort I, quando
trauma craniano. isoladas, são as que determinam menor repercussão
Tabela 21.1 clínica do ponto de vista estético na avaliação inicial,
por envolverem somente os processos palatinos e al-
veolares, segmentos inferiores da maxila.

Fratura da maxila Quadro clínico


Os pacientes com fraturas tipo Le Fort I, II e III
Pacientes com fratura da maxila no terço médio
exibirão edema da face e hematomas periorbitais que
da face frequentemente apresentam concomitante-
podem ocluir as rimas palpebrais em poucas horas.
mente fraturas do nariz, malar (arco zigomático), fra-
Ocorrem sangramento nasal e sufusão hemorrágica
turas da base do crânio e lesão encefálica (atenção!).
nas regiões genianas e na mucosa oral. Ocorre ainda
hipoestesia nas áreas de inervação dos nervos infraor-
bitais (regiões nasogenianas, mucosa gengival e den-
Classi昀椀cação tes superiores). Há dificuldade para deglutição e
As fraturas da maxila são classificadas em: má oclusão dentária, que é o sinal patognomôni-
€ Fraturas Le Fort I: fraturas com traço que co da fratura da maxila. Na palpação, pode-se per-
tangenciam a margem inferior da abertura piri- ceber desnível no rebordo orbital inferior e na crista
forme e se dirigem horizontalmente pela pare- maxilomalar. Pode haver crepitação entre os fragmen-
de anterior do seio maxilar, em ambos os lados, tos ósseos e percepção de enfisema subcutâneo facial.
até a tuberosidade da maxila, comprometendo
o processo pterigoide.
€ Fraturas Le Fort II: mais frequentes. Traços Exame radiográ昀椀co
de fratura que comprometem a região nasofron-
tal. Progridem pela apófise frontal da maxila,
A melhor combinação para estudo do esque-
estendendo-se lateralmente através dos ossos leto do terço médio da face é a obtida a partir das
lacrimais, assoalho da órbita, rebordo orbital incidências de Waters e perfil do crânio. Waters
inferior e suturas zigomático-maxilares até a permite a visão panorâmica de todos os ossos do terço
parede lateral da maxila, atingindo a fossa pte- médio da face, possibilitando identificar fraturas no
rigomaxilar, com fratura ou disjunção do pro- processo frontozigomático, rebordo orbital inferior,
cesso pterigoide. Invariavelmente, associam-se crista maxilomalar, esqueleto nasal e seio maxilar. A
a fraturas da pirâmide e do septo nasal. incidência de perfil demonstra os desvios da maxila
€ Fraturas Le Fort III: disjunção craniofacial to- no sentido de intrusão e/ou de colapso posterior. As
tal (face alongada) através da sutura nasofron- incidências em frontonaso e mentonaso demonstram
tal, das paredes medial e inferior das órbitas, os traços de fratura que causam disjunção frontozigo-
desde as suturas zigomático-frontais e os arcos mática e nasofrontal, bem como velamento de seios
zigomáticos, até atingir o processo pterigoide frontal e etmoidal. A incidência de Hirtz para arcos zi-
do esfenoide. gomáticos possibilita o estudo dos arcos zigomáticos.

SJT Residência Médica – 2016


247
21 Trauma cervical

Tratamento
A imobilização maxilomandibular é quase sempre necessária. A colocação das barras constitui a primeira
etapa. Esses pacientes devem ser operados o mais rapidamente possível. A máscara ortopédica facial é disposi-
tivo que permite a instalação de tração esquelética nos ossos da face, outra opção terapêutica para o tratamento
dessas fraturas.
A tração determinada por esse aparelho promove a redução posteroanterior da maxila. É útil quando da
existência da impactação óssea e consequente mordida aberta anterior. Quando se utiliza a máscara ortopédica
facial, a dieta deve ser líquida e pastosa, devendo orientar o paciente para que não mastigue durante o tratamen-
to. O uso da máscara ortopédica facial é indolor, confortável e de baixo custo. Sua aplicação é fácil de ser realiza-
da, com a vantagem de não ser necessário o uso de imobilização maxilo-mandibular.

Complicações
Complicações precoces:
€ imediatas: a mais frequente é a obstrução das vias aéreas superiores e a hemorragia.
€ mediatas: a mais grave é a fístula liquórica.
Complicações tardias: as mais graves são a pseudoartrose e a consolidação viciosa. A pseudoartrose é uma
complicação rara das fraturas da face, mas a consolidação viciosa é frequente e caracterizada pela má oclusão dentária.
Outras complicações tardias também ocorrem: diplopia por distopia ocular, oftalmoplegia e déficit na acui-
dade visual, advindos de lesões de nervos cranianos. Outro dano neurológico observado com certa frequência é a
demora no retorno da sensibilidade cutânea no terço médio da face e na arcada dentária superior, consequente à
neuropraxia traumática dos nervos infraorbitais.
As fraturas da maxila são as mais relevantes para as provas de RM. Como reforço deixamos na tabela abaixo
um resumo de outros sítios de fratura na região maxilofacial.

Fratura Exames de imagem Principais achados clínicos

Radiografias simples em norma de perfil Afundamento e presença de degraus ósseos,


de crânio e posteroanterior de face, tomo- sangramentos, edema e hematoma, equimose,
Frontal
grafia computadorizada em cortes axial, epistaxe e/ou rinoliquorreia, áreas de crepitação
coronal e sagital. óssea, enfisema.
Edema e equimose em dorso nasal, epistaxe, ri-
Radiografias nas incidências de Waters e noescoliose, crepitação e degraus palpáveis nos
Nariz
perfil para ossos próprios do nariz. ossos próprios do nariz, diminuição do fluxo aé-
reo nasal.
Edema, hematoma ou equimose periorbitários,
oclusão palpebral, hiposfagma, quemose, enolf-
talmo, proptose de bulbo, hipoftalmo, desnivela-
Radiografias nas incidências de Waters e
mento do nível pupilar, restrição de movimenta-
Hirtz para arco zigomático, tomografia
Zigomático-orbitais ção ocular; perda de projeção do corpo do zigoma,
computadorizada em cortes axiais, coro-
afundamento ou abaulamento do arco zigomáti-
nais e saltitais.
co, limitação de abertura bucal, epistaxe, diplo-
pia, amaurose, enfisemas extra e intraorais, difi-
culdade em palpar a crista zigomático-maxilar.
Panorâmica de mandíbula, oblíquas e pos-
Edema e equimose extra e intraorais, limitarão e
tero anterior de mandíbula, e Hirtz para
desvio da mandíbula durante abertura bucal, alte-
mandíbula, incidência de Towne para côn-
Mandíbula ração da oclusão dental, desnível do plano oclusa)
dilos mandibulares, tomografia computa-
mandibular, avulsões dentárias, sangramento,
dorizada em cortes axial, coronal, sagital e
degraus ósseos palpáveis, mobilidade, otorragia.
reconstrução 3D.

Tabela 21.2

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

22
Trauma de tórax

Introdução Avaliação inicial


O trauma de tórax representa a principal causa e atendimento
de morte em pacientes politraumatizados – 25% dos
casos morrem pelo trauma de tórax sobretudo relacio- O atendimento prestado deve ser baseado nas
nado à hipóxia, acidose e hipercarbia decorrentes de prioridades, com ênfase nas lesões ameaçadoras à vida
rotura traumática de aorta, tórax instável com contu- a serem reconhecidas no exame primário.
são pulmonar e rotura traqueobrônquica. Lesões ameaçadoras à vida devem ser reco-
Aproximadamente 80% dos traumas de tó- nhecidas no exame primário:
rax serão resolvidos com medidas de drenagem
1. Obstrução da via aérea;
torácica em selo d’água, passíveis de serem rea-
lizadas em hospitais terciários por qualquer tipo 2. Pneumotórax hipertensivo;
de médico com conhecimento de urgências. 3. Pneumotórax aberto;
Menos de 10% dos traumas fechados requer to- 4. Contusão pulmonar com tórax instável;
racotomia e 15-20% dos ferimentos penetrantes irão
à cirurgia. 5. Hemotórax maciço;
6. Tamponamento cardíaco.
Classificação proposta
para os traumatismos torácicos Lesões potencialmente ameaçadoras à vida de-
Doentes instáveis Morte iminente (10-15%) vem ser reconhecidas até o final do exame secundário:
Drenagem de tórax é o tratamento 1. Pneumotórax simples;
Doentes estáveis
definitivo (70-80%)
2. Hemotórax;
Drenagem de tórax não é o trata-
mento definitivo (10-15%) 3. Contusão pulmonar;
Tabela 22.1 4. Lesão traqueobrônquica;
249
22 Trauma de tórax

5. Trauma cardíaco fechado; nitorada pela pressão de pulso (PA sistólica – PA dias-
6. Rotura da aorta; tólica). Perfusão tecidual pode ser avaliada pela cor
e temperatura da pele. Observar estase jugular para
7. Lesão diafragmática traumática; suspeita de lesões de risco imediato de morte (tam-
8. Ferimento transfixante de mediastino; ponamento cardíaco, pneumotórax hipertensivo e até
9. Ferimento de esôfago. mesmo o hemotórax maciço). Lembrar que pacientes
com tamponamento cardíaco e hipovolemia não têm
distensão de jugulares. Monitor cardíaco deve ser
instalado. A hipóxia e acidose aumentam essa possi-
Vias aéreas bilidade, bem como espasmo coronariano e contusão
miocárdica, caso tenha ocorrido por desaceleração rá-
O atendimento deve seguir os critérios de priori-
pida ou ferimento em área do esterno. Há de se reava-
dade ABCDE. A orofaringe deve ser examinada na bus-
liar o paciente.
ca de corpos estranhos. Os batimentos de asa nasal e
tiragens denunciam o esforço respiratório na tenta-
tiva de compensar possíveis distúrbios ventilatórios.
Ver capítulo de VA para mais detalhes, lembrando dos
critérios para obtenção de VA definitiva.
Tipos de trauma
de tórax
Respiração
A exposição do tórax permite a avaliação da am-
plitude dos movimentos torácicos, presença de movi-
Lesões super昀椀ciais
mentos paradoxais (afundamento torácico), simetria São tratadas do mesmo modo que aquelas em ou-
da expansibilidade, fraturas do gradil costal, enfisema tra parte do corpo, se o ferimento não atinge a fáscia
subcutâneo. Todo o paciente politraumatizado neces- endotorácica e o gradeado costal. A exploração digital
sita de oxigênio em máscara com reservatório de O2. ou instrumental de ferimentos superficiais deve ser
O tórax deverá ser auscultado em ápices e bases e a evitada no tórax, em áreas de trajeto vascular e em
oximetria de pulso deve ser monitorada. A cianose é precórdio, pelo risco de sangramento de ferimento
sinal tardio de hipóxia no paciente traumatiza- tamponado e pneumotórax.
do e não há de se esperar que ela se manifeste para
ser tomada alguma conduta. Contudo, a ausência de
cianose não indica uma oxigenação tecidual ade-
quada e via aérea permeável. Fraturas costais e esterno
A fáscies pletórica com cianose facial e cer- É a lesão mais comum do traumatismo torácico
vicotorácica é alerta para possibilidade de pneu- (35 a 75% dos casos), atingindo preferencialmente do
motórax hipertensivo e tamponamento cardíaco 4º a 9º arcos costais. As fraturas de arcos costais com-
como explicados a seguir. prometem primariamente a ventilação, uma vez que
a dor associada restringe os movimentos da parede
torácica, pode levar a atelectasia e pneumonia. Além
disso, fraturas de costelas inferiores podem ocasionar
lacerações pulmonares (hemopneumotórax), trauma
Circulação de baço e trauma hepático.
Paciente deverá receber reposição volêmica com As fraturas de costelas podem ser isoladas ou es-
2 litros de SF 0,9% (39ºC) 1.000 mL em cada veia peri- calonadas (múltiplas). São escalonadas quando três ou
férica do braço e sangue será retirado para exames (ver mais arcos costais são fraturados em um mesmo lado.
capítulo de choque). O diagnóstico de choque deverá O tórax instável (flácido) ocorre nas fratu-
ser precoce e a tipagem sanguínea é importante, mas ras escalonadas na presença de fratura de três
dependendo da gravidade do choque, ela não é obriga- arcos costais em dois ou mais pontos. Assim, a re-
tória porque os pacientes podem receber temporaria- gião vizinha às lesões ósseas se deprime, desabando a
mente sangue O negativo até que a tipagem sanguínea cada inspiração, em vez de se expandir como o restan-
específica seja feita. te da caixa torácica. Essa é uma situação que ameaça à
Checar qualidade, frequência e regularidade dos vida não só pelas fraturas em si, mas pela dor e com-
pulsos. Paciente gravemente hipovolêmico tem pulsos prometimento respiratório e pulmonar (lacerações,
radiais e pediosos ausentes. A Pressão Arterial é mo- contusões, hemopneumotórax).

SJT Residência Médica – 2016


250
Cirurgia geral e politrauma

associação com perda de substância, podem ser fixa-


das concomitantemente à reparação do ferimento. O
foco é para a identificação de critérios para a necessi-
dade de se obter VA definitiva e IOT.
A fratura de esterno é tratada com analgesia.
Quando não existem outras lesões associadas, com-
prometimento respiratório ou desvio importante
Figura 22.1 Fraturas de costelas. dos fragmentos, uma fratura simples de esterno
deve ser tratada apenas com analgésicos, even-
tualmente complementados por bloqueio local.
A presença de movimento paradoxal sem comprome-
Fratura do esterno timento respiratório ou dor importante não requer
Requer trauma grave, com grande energia cinética maiores cuidados e não é critério para obtenção de
para promover fratura do esterno, de tal forma que cos- VA definitiva.
tuma haver lesões associadas graves, frequentemente A estabilização cirúrgica do esterno está
letais. As vítimas são jovens, com boa elasticidade da indicada quando há desvio importante dos
caixa torácica, que absorve o trauma sem desenvolver fragmentos. Entretanto, tal correção fica para
fratura. Representa 1 a 4% dos traumatismos de tórax. segundo plano, uma vez que, na fase inicial, a
Os principais mecanismos de fratura do ester- prioridade são as lesões de estruturas vitais.
no são: impacto frontal e compressão direta (mais co- Se há suspeita de que o fragmento desviado interna-
mum); secundário à fratura-luxação da coluna vertebral; mente possa estar ameaçando algum órgão interno, a
correção pode ser precoce, mas essa situação deve ser
Traumas contra o volante ocasionam desacelera-
considerada uma exceção. A correção imediata pode
ção brusca e o esterno é deslocado posteriormente re-
também ser realizada se o paciente for ser submetido
sultando na fratura e compressão das estruturas me-
à cirurgia para reparo de uma outra lesão. A simples
diastinais sobre a coluna. O cinto de segurança e o air
sutura das bordas da fratura com fios de aço é suficien-
bag tem papel importante na profilaxia desse trauma.
te para estabilizar o esterno.
Além do acidente automobilístico, a queda livre e si-
tuações menos frequentes, como massagem cardíaca,
podem também determinar tais fraturas. Bem mais
raro, as fraturas patológicas podem também ocorrer.
Em função da fixação do esterno à coluna verte-
bral, através dos arcos costais, ele pode ser fraturado em
consequência da fratura-luxação da coluna associada.
O local mais comum de fratura é na tran-
sição para o manúbrio esternal e em função de
forte fixação do esterno à clavícula, ele costuma
deslocar-se anteriormente, cavalgando o seg-
mento inferior. Apesar disso, o periósteo da face
posterior do esterno costuma permanecer intacto. As
fraturas costumam ser simples e transversas.
O diagnóstico deve ser suspeitado quando clini-
camente existe dor local à compressão profunda, equi-
mose, hematoma, escoriação óssea. A radiografia de
tórax em perfil ou oblíqua confirma o diagnóstico.
A fratura do esterno isolada apenas promo-
ve dor. Quando associado às fraturas de costelas,
pode fazer parte de tórax instável e contusão
miocárdica descrita adiante.

Tratamento Figura 22.2 fratura esternal. A: radiografia em PA não


O tratamento de fratura de costelas é con- revelou a fratura esternal que só aparece no raio X tórax
servado com analgesia e eventual bloqueio anes- perfil. B: radiografia em perfil demostrando a fratura em
tésico. Com exceção no pneumotórax aberto que, por dois fragmentos.

SJT Residência Médica – 2016


251
22 Trauma de tórax

Pneumotórax aberto
O pneumotórax aberto (ferida torácica aspirati-
va) é causado por um defeito na parede torácica de di-
âmetro superior a dois terços do diâmetro da traqueia.
Ocorre equilíbrio entre as pressões intratorácica e at-
mosférica, pois o ar passa preferencialmente de fora
para dentro da cavidade pleural, uma vez que esse é o
caminho de menor resistência. A ventilação é prejudi-
cada, resultando em hipóxia e hipercarbia.

O tratamento do pneumotórax aberto é com o cura- Figura 22.4 demonstração do curativo de três pontas.
tivo de três pontas de imediato e drenagem de tórax
a seguir.
Pneumotórax hipertensivo
O tratamento imediato se faz com um curativo de É uma das lesões torácicas mais rapidamente fa-
três pontas, transformando o pneumotórax aberto em tais no trauma. O escape progressivo de ar no es-
fechado. Entretanto, um curativo oclusivo à mão pode paço pleural em sistema de válvula unidirecional
ser usado temporariamente até realização do curativo provoca o aumento de pressão intratorácica, ocasio-
nando grave distúrbio ventilatório e circulatório. Le-
de 3 pontas. É necessário o curativo de três pontas
sões traumáticas da parede torácica com laceração do
porque ocorre efeito de válvula unidirecional, o
pulmão, lesões brônquicas e ferimentos penetrantes
qual faz com que, na inspiração, a entrada do ar
são causas de pneumotórax hipertensivo. Em pacien-
seja bloqueada, pois o curativo é aspirado contra
tes internados em unidades de terapia intensiva com
as bordas da lesão devido à pressão negativa; na ventilação mecânica, o pneumotórax simples e a rup-
expiração, o lado não fixado permite o escape de ar de tura do pulmão por barotrauma são causas comuns de
dentro da cavidade torácica para a atmosfera. Imedia- pneumotórax hipertensivo. O diagnóstico de pneu-
tamente após o curativo de três pontas, há a necessi- motórax hipertensivo é clínico e o tratamento
dade de se realizar drenagem. nunca deve ser retardado à espera de confirma-
O tratamento definitivo se dá por drenagem ção radiológica.
torácica sob selo d’água, inserindo-se o dreno O paciente cursa com ausência do murmúrio
longe do ferimento. vesicular, turgência jugular, hipotensão arterial,
hiperressonância, diminuição do frêmito toraco-
vocal, desvio da traqueia e sofrimento respirató-
rio muito significativo, além de demonstrar SaO2
< 90%, tiragem intercostal e batimentos da asa
do nariz.
A atividade elétrica sem pulso (AESP) refor-
ça o diagnóstico de pneumotórax hipertensivo. O
achado de AESP deve ter como diagnósticos diferenciais
a hipovolemia e o tamponamento cardíaco (atenção). O
tratamento inicial do pneumotórax hipertensivo
é a descompressão imediata pela inserção de jelco
14-16 no 2º EIC na linha hemiclavicular do hemi-
tórax afetado. Essa manobra deve ser seguida de dre-
nagem pleural com dreno tubular em selo d’água 38F
inserido entre o 4º e 5º EIC entre a linha axilar anterior
e média próximo à linha intermamilar.

O diagnóstico de pneumotórax hipertensivo é clínico


e reflete ar sobre pressão no espaço pleural. O trata-
mento não deve ser adiado à espera de confirmação
Figura 22.3 A: pneumotórax. B: pneumotórax aber- diagnóstica.
to. C: hemopneumotórax.

SJT Residência Médica – 2016


252
Cirurgia geral e politrauma

Descrição do procedimento de drenagem to-


rácica (importante para a prova prática):
1. Paciente em decúbito dorsal + antissepsia e
colocação de campos;

2. Anestesia com xilocaína sem vasoconstritor;

3. Incisão transversa com bisturi entre o 4º e 5º


EIC do lado do hemopneumotórax junto à borda su-
perior da costela inferior (porque abaixo da costela
passa o feixe vasculonervoso do tórax);

4. Divulsionar com pinça de Kelly até sentir que


penetrou a pleura parietal do pulmão porque verifica-
-se a saída de ar da cavidade pleural. Introduz-se o
dedo enluvado para palpar o pulmão e certifica-se que
Figura 22.5 Pneumotórax hipertensivo direito em- realmente se está na cavidade pleural, podendo tam-
purrando o pulmão direito (setas) e provocando deslo- bém remover coágulos e aderências.
camento do mediastino para a esquerda.
5. Introduzir a ponta do dreno com múltiplos fu-
ros que deverá estar pinçado na parte proximal com a
Kelly. A introdução será no sentido posterior e cranial
da caixa torácica. Deverão ser observados a existência
de coluna móvel e embaçamento do dreno.

6. Conectar o dreno de toracostomia com o selo


d’água.

7. Fixar o dreno em pontos em “U” e realizar


curativo.

8. Solicitar raio X de tórax.

Complicações da drenagem de tórax:


Figura 22.6 Raio X do tórax em AP, demostrando € Drenagem do subcutâneo (principalmente em
pneumotórax a direita com deslocamento do medias- obesos) ao invés da cavidade pleural;
tino para a esquerda (seta preta). O pulmão fica atelec- € Lesão de nervo, artéria ou veia intercostal re-
tasiado e retraído medialmente (setas brancas). Note a sultando em hemopneumotórax e nevralgia in-
ausência da trama vascular na periferia à direita. tercostal;
€ Dreno em posição incorreta no tórax;
€ Desconexão do selo d’água e obstrução do dreno
com pneumotórax persistente;
€ Enfisema subcutâneo do dreno (ponto inade-
quado);
€ Recidiva do pneumotórax após remoção preco-
ce do dreno;
€ Reação anestésica a xilocaína local;
€ Ausência de expansão pulmonar, com borbu-
lhamento persistente no frasco de selo d’água,
mesmo com um ou dois drenos, nesse caso deve
ser solicitada broncoscopia por possível associa-
Figura 22.7 Toracocentese com agulha. O pneu
ção com lesão traqueobrônquica.
motórax hipertensivo é tratado inicialmente pela inser-
ção rápida de uma agulha de grosso calibre conectada € Edema de pulmão de reexpansão (evitar esva-
a uma seringa no 2º EIC na linha hemiclavicular do ziamento do hemotórax tardio com vários dias
hemitórax afetado. de história maior de 1 litro subitamente).

SJT Residência Médica – 2016


253
22 Trauma de tórax

Pneumotórax simples (PTX) Tórax instável ou


Tanto o trauma penetrante como o fechado po- 昀氀ácido (retalho costal móvel)
dem causar PTX. A fratura-luxação da coluna torácica
Ocorre quando um segmento da parede torácica
também pode estar associada ao PTX. A laceração pul-
não tem mais continuidade óssea com o resto da cai-
monar com vazamento de ar é a causa mais comum de
xa torácica. Isso é decorrente de mais de três fraturas
pneumotórax após um trauma fechado.
de costelas em dois ou mais pontos. O achado clínico
Normalmente, a cavidade torácica está com- de movimento paradoxal desse segmento afeta-
pletamente preenchida pelo pulmão, mantido em do, associado à crepitação das fraturas costais ou
íntimo contato com a parede torácica por uma ten- costocondrais, é indicativo do seu diagnóstico. É
são superficial existente entre as superfícies pleurais importante entender que o tórax instável comumente é
e presença de aproximadamente 10 mL de líquido associado com contusão pulmonar. E nesse caso o tra-
pleural. A presença de ar no espaço pleural rompe a tamento final do tórax instável é o suporte respiratório
força de adesão entre as pleuras visceral e parietal, e ventilação mecânica como recomendado nos critérios
permitindo o colapso do pulmão. Isso resulta em de indicação para ventilação mecânica no tórax instá-
alteração na ventilação/perfusão, porque há sangue vel. O ATLS 2008 orienta que aqueles pacientes
oxigenado, mas não ocorre perfusão com trocas de com PaO2 < 65 mmHg e SatO2 < 90% deverão ser
O2 por CO2. entubados antes da primeira hora pós-trauma.
Na presença de um PTX, o murmúrio vesicular Entretanto, nem todos os pacientes terão crité-
está diminuído no lado afetado e a percussão de- rios de VA definitiva e é importante a analgesia e mo-
monstra hipertimpanismo. O raio X de tórax PA em nitorização deles, sobretudo a cautelosa administra-
expiração pode auxiliar no diagnóstico de pequeno ção da reposição volêmica porque neles ocorre edema
pneumotórax. de pulmão facilmente.
O exame radiológico do tórax pode sugerir fra-
turas múltiplas de costelas, mas a disjunção costo-
O diagnóstico é clínico com a presença de diminuição condral pode passar despercebida. A dispneia pode
de murmúrio respiratório, hiperressonância e atenu- ser aguda, logo após o trauma ou pode manifestar-se
ação do frêmito toracovocal. tardiamente. A insuficiência respiratória que se
segue vai depender de três principais fatores: o
grau de instabilidade da caixa torácica, a intensida-
ATLS anteriores ao de 2008 declaravam que todo de da dor e a extensão da lesão pulmonar subjacente
o PTX deveria ser drenado. Hoje sabe-se que o trata- (contusão pulmonar).
mento conservador de PTX poderá ser feito conside- O grau de insuficiência respiratória quantificada
rando-se cada caso e a escolha deve ser feita por um com base em parâmetros clínicos (frequência e fadiga res-
médico qualificado. Entretanto, em casos de transfe- piratória) e gasométricos orienta o tipo de tratamento.
rência, aérea ou terrestre, deve-se fazer a drenagem do
PTX conforme descrito anteriormente.
Os doentes vítimas de PTX traumático não de-
Tratamento
vem ser submetidos a anestesia geral ou a ventilação
com pressão positiva, até que tenham seu tórax dre- Cuidados gerais como melhorar a oferta de oxigê-
nado. Um PTX simples pode transformar-se pronta- nio, reexpansão pulmonar, reposição volêmica cautelo-
mente em PTX hipertensivo com risco de vida particu- sa na ausência de choque (para evitar hiperhidratação),
larmente quando seu diagnóstico não é feito desde o analgesia para melhorar a dor (bloqueio intercostal in-
início no respirador. termitente, anestesia peridural) e ventilação além de
fisioterapia respiratória são medidas essenciais.
Dica: não confunda PTX traumático com
PTX espontâneo. No PTX espontâneo (não re- O momento apropriado de se obter VA definitiva vai
lacionado com trauma), o PTX < 20% pode ser ser definido pela monitorização cuidadosa da FR, PaO2
observado clinicamente. Todavia, aquele pneu- e estimativa do trabalho respiratório.
motórax > 20% deverá ter drenagem de tórax.
Geralmente, esses pacientes têm roturas de bo- Os pacientes com FR > 30 mov/min. e hipóxia
lhas (blebs) no pulmão e necessitam ser avalia- grave, mantendo PaO2 < 65 mmHg (equivale a SaO2
dos para possível decorticação e talcagem pleu- < 90% exceto em pacientes DPOC) mesmo com O2
ral para evitar recidiva de PTX espontâneos. Já a suplementar 12 L/min., sinais de fadiga respiratória
maior parte dos PTX traumáticos é drenado, mas com FC > 120 bpm, necessitam de VA definitiva (IOT
a decisão final é do médico assistente. + ventilação mecânica).

SJT Residência Médica – 2016


254
Cirurgia geral e politrauma

Atenção redobrada deve ser dada a pacientes com


doenças associadas e lesões traumáticas em outros
Hemotórax
segmentos corpóreos, visto que a insuficiência respi- O tipo de lesão torácica determinará o volume
ratória grave pode manifestar-se mais precocemente. de sangue acumulado no espaço pleural. Os sintomas
Nesse último aspecto, a embolia gordurosa dependem do volume de sangue coletado. Perdas de
em pacientes com trauma torácico e fraturas de ossos 500-1.000 mL no espaço pleural correspondem a 15-
longos é diagnóstico que deve ser lembrado quan- 20% da volemia (ver capítulo de choque).
do há piora repentina na insuficiência respiratória Hemotórax simples é aquele menor do que 1,5 L.
com alterações do nível de consciência e apare- Hemotórax maciço é maior do que 1.500 mL.
cimento de petéquias conjuntivais e cutâneas na
O ferimento periférico do pulmão é a causa
região torácica.
mais comum do hemotórax. Por ser uma pequena
Indicações de ventilação mecânica circulação pulmonar de baixa pressão, a hemorragia
no tórax flácido que se dá por lesões a esse nível costuma ser de baixo
volume e autocontrolada.
€ Fadiga clínica
€ FR < 8 ou > 35 ipm A ausculta pulmonar revela murmúrio vesicular di-
€ PaO2 < 60 mmHg com FiO2 > 50% minuído, associado à percussão submaciça no hemitórax
€ PaCO2 > 55 mmHg com FiO2 > 50% comprometido e diminuição do frêmito toracovocal.
€ Shunt > 20% O diagnóstico do hemotórax traumático tam-
€ Choque bém deve ser clínico. Entretanto, eventualmente pe-
€ Lesões associadas e de tratamento cirúrgico quenos hemotórax sem sintomas poderão ser visua-
Tabela 22.2 critérios para ventilação mecânica. lizados no raio X.

Volume de líquido mínimo para aparecer no raio X


de tórax para velar e deslocar medialmente o seio
costofrênico é 150-300 mL (derrame pleural subp-
neumônico)

Pequenos derrames pleurais só são vistos no raio


X em decúbito lateral. O derrame pleural > 10 mm
no raio X em decúbito lateral exige realização de
toracocentese para drenagem.
Figura 22.8 Tórax flácido ou instável. Observe o padrão A drenagem pleural deve ser realizada logo após
de respiração paradoxal com retração do segmento fratu- o diagnóstico, com o propósito de aliviar o espaço
rado a cada inspiração, ao contrário a fisiologia normal. pleural, quantificar o volume de sangue perdido e ob-
servar o débito de sangramento pleural nas horas após
a colocação do dreno.
O sangramento oriundo da periferia do
pulmão cessará com a reexpansão pulmonar em
aproximadamente 85% dos casos.

Caso haja sangramento persistente pelo dreno to-


rácico com volume > 200 mL/h durante 2-4 horas,
indica-se toracotomia para hemostasia cirúrgica.

É também indicação de toracotomia de emer-


gência:
€ hemotórax maciço agudo com drenagem inicial
Figura 22.9 Tórax flácido. Observe a perda de continui- pelo dreno torácico > 1.500 mL de sangue;
dade dos arcos costais em pelo menos dois pontos em três € ferimento penetrante de tórax com parada car-
ou mais costelas e a presença de enfisema subcutâneo. diorrespiratória;

SJT Residência Médica – 2016


255
22 Trauma de tórax

€ hemotórax < 1.500 mL mas que persiste drena- plicações de hemotórax coagulado e empiema inade-
gem > 200 mL/h por 2-4 horas; quadamente drenado incluem fístula broncopleural e
€ tamponamento cardíaco. broncopleurocutâneas. Situações essas que envolvem
tratamento com pleurostomia, ressecção de costela,
Ferimentos na área de Ziedler, também chama-
decorticação e outros procedimentos de reconstrução.
da Zimmerman ou Salmer-Murdock (medialmente
entre as escápulas e entre as linhas hemiclaviculares Embora a radiografia de tórax seja útil como fer-
e a linha intermamilar) requerem atenção especial ramenta inicial, ela não deve ser usada como único
para o FAST e eventualmente ecocardiograma transe- exame para selecionar pacientes com indicação de eva-
sofágico para avialiação de tamponamento cardíaco. cuação cirúrgica de hemotórax retido. A decisão deve
Ferimentos penetrantes nessa região têm alta estar apoiada também nos achados da tomografia
incidência de toracotomia por lesões no coração, computadorizada de tórax. O que parece ser imagem
grandes vasos, estruturas hilares e pelo poten- de hemotórax retido no raio X de tórax pode revelar-se
cial descrito de tamponamento cardíaco. como condensação pulmonar à TC.

Videotoracoscopia é procedimento de escolha para o


hemotórax coagulado que no raio X aparece sem ex-
pansão pulmonar adequada.

Quilotórax
Lesão do ducto torácico causa derrame linfático
quiloso no espaço pleural sendo facilmente confundi-
do com líquido purulento.

Figura 22.10 radiografia de tórax mostrando um


volumoso hemotórax à direita, provavelmente maciço.

Durante a reanimação do doente, deve-se con-


tabilizar o volume de sangue perdido imediatamente
após a drenagem, acrescido do que continuar drenan-
do a seguir para o cálculo do volume total de fluidos
requeridos para a reposição com SF 0,9%. A coloração A B C
do sangue (arterial ou venoso) não é um bom indica-
dor para avaliar a necessidade ou não de toracotomia. Figura 22.11 A: hemotórax de metástase pulmonar
de câncer de mama; B: quilotórax de carcinoma brôn-
O hemotórax retido ou coagulado é situação de
quico que invadiu e obstruiu o ducto torácico; C: tran-
ocorrência frequente em que a drenagem de tórax não
sudato pleural típico de pacientes com insuficiência
foi suficiente para a expansão pulmonar adequada e
cardíaca e edema generallizado.
há sangue coletado no espaço pleural. Os coágulos e
as coleções de sangue não atingidas pelo dreno tubu-
lar podem dar origem à infecção (empiema pleural) e Cerca de 50% dos quilotórax são por tumores
a consequente encarceramento pulmonar. Daí a im- mediastinais, especialmente linfoma. Vale lembrar
portância de se fazer o raio X de tórax controle após a que a ocorrência do quilotórax, como complica-
drenagem pleural. ção de cirurgia torácica ocorre em 20% e é menos
frequente de ocorrer no trauma (5%).
Diagnosticado o hemotórax coagulado, o
melhor procedimento é a videotoracoscopia para Em se tratando de trauma: como o trajeto do
limpeza e aspiração da cavidade pleural e decorti- ducto torácico é no mediastino posterior, o qui-
cação pulmonar. Entretanto, procedimentos clínicos lotórax à direita resulta de trauma torácico bai-
como a administração de antifibrinolítico (estreptoqui- xo; por outro lado, quilotórax à esquerda é por
nase) intrapleural pelo dreno vêm sido utilizados em trauma torácico alto.
alguns centros em pacientes sem condições cirúrgicas O diagnóstico é baseado na toracocentese
ou que não têm serviço de videotoracoscopia. Com- com triglicérides no líquido pleural > 110 mg/dL.

SJT Residência Médica – 2016


256
Cirurgia geral e politrauma

Tratamento São necessários pelo menos 6 horas para o apareci-


O tratamento é toracocentese ou drenagem pleu- mento da contusão pulmonar.
ral com reexpansão pulmonar. A dieta prescrita deve
ser pobre em gorduras com ascréscimo de triglicérides
de cadeia média. Merece destaque a melhor definição oferecida
Entretanto, dependendo da decisão do cirurgião pelos atuais aparelhos de tomografia com tecnologia
torácico, o débito elevado por duas ou três semanas helicoidal e com vários cortes (multislice), permitindo
de um quilotórax, com complicações metabólicas ou avaliação mais rápida e fidedigna da condição desses
nutricionais pode requerer toracotomia e ligadura do doentes. A extensão da contusão, avaliada pela tomo-
ducto torácico. grafia de tórax, tem sido vista como fator preditivo da
necessidade de ventilação mecânica.
O tratamento é o mesmo descrito no tórax instá-
Tratamento do quilotórax é com dieta POBRE em vel voltando-se para a identificação dos critérios para
gorduras, além da prescrição de triglicérides de ca- via aérea definitiva e IOT, bem como reposição volêmi-
deia média. ca cautelosa na ausência de choque hemorrágico.
Enfermidades associadas, como doença pulmo-
nar crônica e insuficiência renal, predispõem à neces-
Contusão pulmonar sidade de intubação precoce e de ventilação mecâni-
Entre as lesões torácicas potencialmente letais ca. Alguns doentes em condições estáveis podem ser
de manifestação tardia, essa é a mais frequente. Nor- tratados seletivamente sem intubação endotraqueal
malmente se manifesta algumas horas após um ou ventilação mecânica e apenas máscara de O2 com
trauma fechado. É típica a história da vítima que reservatório de oxigênio.
estava bem na admissão hospitalar e que, progressiva- Para um tratamento adequado são necessários
mente, passou a apresentar dispneia. monitoração da oximetria de pulso, determinações ga-
sométricas arteriais, monitoração eletrocardiográfica
e equipamento apropriado para ventilação, se neces-
Em crianças, muitas vezes são comuns a ausência sário. Pacientes que irão ser transferidos e próximos
de fraturas de costelas (ou fratura em galho verde) e aos critérios para a intubação deverão ser submetidos
grave contusão pulmonar pela elasticidade da parede a IOT + ventilação mecânica para maior segurança.
torácica.
O prognóstico da contusão pulmonar está na
dependência de lesões associadas. Isoladamente,
a mortalidade é de 16%, mas, quando associa-
Na contusão pulmonar, ocorre alteração da per-
da ao tórax instável, eleva-se para 42%. Em
meabilidade de membrana com inundação do espa-
longo prazo, muitos pacientes com afundamento
ço alveolar por líquido e destruição temporária dos
torácico e contusão pulmonar se queixam de disp-
pneumócitos tipo II (produzem surfactante). Histo-
neia, baixa tolerância aos exercícios e dor torácica
patologicamente, podem-se encontrar desde áreas de
no hemitórax comprometido.
hemorragia alveolar e intersticial até lacerações de pa-
rênquima. Fraturas costais múltiplas e principalmen-
te, das três primeiras costelas, da escápula e, do es-
terno alertam para a presença de contusão pulmonar.
O principal fator determinante de hipóxia é o
aumento do shunt pulmonar resultante da contusão
do parênquima pulmonar subjacente às fraturas. Em
alguns casos, ainda há pneumotórax e/ou hemotórax,
o que é mais um fator de hipóxia.
O diagnóstico fundamenta-se nos achados ra-
diológicos de opacificações focais ou difusas homo-
gêneas, que não respeitam a anatomia segmentar e
lobar do pulmão.
Em 1/3 dos pacientes o raio X de tórax pode
ser inicialmente normal. O tempo médio de apa-
recimento das imagens radiológicas leva em Figura 22.12 Raio X de tórax mostrando área de
média 6 horas, podendo ocorrer até 48 horas opacificação em lobo médio após trauma de trânsito, o
após o trauma. que sugere contusão pulmonar à direita.

SJT Residência Médica – 2016


257
22 Trauma de tórax

Grupo I – traumatismo mínimo restrito à endo-


Ferimentos laringe, sem fratura.
traqueobrônquicos Grupo II – edema, hematoma com laceração
São lacerações na traqueia ou brônquios (maior moderada da mucosa, sem exposição da cartilagem.
parte < 2-3 cm da carina) que fazem fístula pleural, a Podem existir pequenas fraturas da cartilagem, mas
qual pode ser persistente e necessitar de cirurgia. sem desvio.
Grupo III – edema e laceração grave da mucosa.
Presença de fraturas com desvio.
Deve haver suspeita de ferimento traqueobrônquico
Grupo IV – lesão grave da laringe com instabili-
quando o pulmão não expandir, mesmo após drenagem
dade anatômica e funcional.
de PTX e se o dreno torácico em selo d’água tiver borbu-
lhamento persistente. A fibrobroncoscopia deverá ser Grupo V – disjunção laringotraqueal.
solicitada o mais breve!
A observação cuidadosa da localização da ferida
e do trajeto do projétil (ou outro agente traumático),
a constatação de enfisema subcutâneo, de enfisema do
Ferimentos transfixantes de mediastino médio mediastino, de dispneia e de hemoptise podem condu-
ou superior, compressão torácica intensa e fugaz, des- zir ao diagnóstico de lesão de traquéia cervical e/ou de
conforto respiratório e enfisema subcutâneo evidente laringe. A traqueoscopia não se mostrou importante
com hemoptise, no exame inicial, são situações que para o estabelecimento do diagnóstico das lesões da
nos induzem a solicitar fibrobroncoscopia. Ferimen- região cervical. Eventualmente a diagnose da localiza-
tos que se comunicam com o espaço pleural podem ção exata da ferida pode ser feita durante a exploração
resultar em pneumotórax hipertensivo. O borbulha- cirúrgica por manobra do borracheiro. Deve-se no-
mento intenso do dreno em selo d’água sem ex- tar que nas feridas altas podem ser necessários desin-
pansão pulmonar é o achado patognomônico do suflar o balonete e recolocar a sonda orotraqueal um
ferimento traqueobrônquico. pouco mais alta na traqueia para que o escape de gás
O tratamento pode ser conservador por 3 a pela ferida seja percebido.
5 dias. Entretanto, caso o escape aéreo persista, a to- Em virtude da associação frequente das lesões de
racotomia guiada pelo resultado da broncoscopia será laringe e de traquéia cervical com feridas de esôfago e/
a escolha em pacientes estáveis. Todavia, pacientes ou faringe, todos esses pacientes devem ser submetidos
instáveis hemodinamicamente deverão ser sub- a um esofagograma com contraste hidrossolúvel. Essa
metidos à toracotomia de urgência e realização associação pode estar presente em 26% dos portadores
de broncoscopia intraoperatória, além da “ma- de lesões da traqueia cervical e laringe. Tal combinação
nobra de borracheiro” para achar o local do furo acarreta maior morbidade e mortalidade, que aumen-
irrigando-se a cavidade torácica. tam proporcionalmente ao tempo decorrido entre o
A toracotomia para abordagem é anterolateral diagnóstico e o tratamento. Torna-se, portanto, impe-
ou posterolateral, dependendo das lesões acometidas rioso que o diagnóstico de ferida de faringe e/ou esôfa-
como traqueia, carina e brônquio direito, com desa- go seja estabelecido precocemente para evitar complica-
linhamento das bordas da ferida e obstrução de vias ções graves tais como mediastinite e sepse.
aéreas. Se as bordas estão alinhadas e tamponadas por
hematoma e tecidos circunjacentes, o manejo pode ser
conservador.
Traquéia e brônquios
É lesão pouco frequente e potencialmente fatal. No
trauma contuso, a lesão geralmente ocorre próximo à ca-
Laringe rina e, na maioria das vezes, na parede membranosa.
É uma lesão rara. Manifesta-se por rouquidão, O doente apresenta hemoptise, enfisema sub-
enfisema subcutâneo e crepitação palpável. Se o pa- cutâneo ou pneumotórax hipertensivo com desvio do
ciente estiver em insuficiência respiratória, a intuba- mediastino. É comum esse tipo de lesão passar des-
ção é indicada; se não for possível, deve-se realizar percebido. Pneumotórax com grande fuga aérea pelo
uma traqueostomia. dreno torácico sugere lesão traqueobrônquica.
Com o objetivo de uniformizar os critérios de A fibrobroncoscopia continua a ser o exame pa-
descrição das lesões e tentar estabelecer normas de drão ouro para o diagnóstico da lesão e deve ser reali-
conduta, as lesões da laringe podem ser agrupadas em zada, de preferência, em ambiente cirúrgico, com a via
cinco categorias: aérea protegida por intubação traqueal.

SJT Residência Médica – 2016


258
Cirurgia geral e politrauma

A inserção de mais de um dreno de tórax fre- conhecimento da cinemática do trauma de colisão de


quentemente é necessária para superar um grande alta velocidade e queda de mais de 3,6 metros sugerem
vazamento e expandir o pulmão. Para garantir um for- rotura traumática da aorta.
necimento adequado de oxigênio, pode ser necessária,
em caráter temporário, a intubação seletiva do brôn-
quio principal do pulmão oposto. Paciente que está hipotenso e tem sinais radiológi-
cos sugestivos de rotura traumática da aorta não está
Frequentemente a intubação pode ser difícil,
sangrando da aorta! Se não, já teria morrido. Buscar
seja pela distorção anatômica decorrente do hema-
outras causas prováveis para o choque hipovolêmico,
toma paratraqueal, pelas lesões orofaríngeas associa-
como fratura de bacia e trauma abdominal.
das ou pela própria lesão traqueobrônquica. Nesses
casos, está indicada a intervenção cirúrgica imediata.
Já em doentes mais estáveis, o tratamento cirúrgico Se todos os pacientes com achado radiológi-
das lesões traqueobrônquicas pode ser postergado co de alargamento de mediastino fossem subme-
até a resolução do processo inflamatório agudo e do tidos à aortografia, apenas 3% confirmariam a
edema local. rotura real da aorta. Por isso que, atualmente, não
se justifica a realização rotineira de arteriografia em
todos os pacientes com mediastino alargado. A pre-
sença do mediastino alargado (90% das vezes asso-
Acesso cirúrgico ciado) e fraturas nas três primeiras costelas podem se
€ Traqueia intratorácica, brônquio direito e relacionar a outras lesões vasculares torácicas.
brônquio esquerdo proximal – toracotomia
posterolateral direita 4º-5º EIC (evita o cora-
ção e arco da aorta).
A TC do tórax multislice contrastada substituiu a ar-
€ Brônquio esquerdo > 3 cm da carina – toracoto- teriografia no método diagnóstico de rotura traumá-
mia posterolateral esquerda. tica da aorta por apresentar 100% de sensibiliadade e
especificidade. Entretanto, tal resultado depende da
tecnologia disponível.

Ferimento de grandes vasos


A rotura traumática de aorta é a causa mais Se a TC de tórax for negativa para rotura traumá-
comum de morte súbita após acidente automo- tica da aorta e para hematoma de mediastino, nenhum
bilístico ou queda de grande altura. A aceleração outro exame é necessário. A arteriografia deve ser re-
e desaceleração rápida fazem com que haja o cisalha- alizada na positividade de achados tomográficos para
mento nos pontos de fixação do coração e da aorta. rotura traumática da aorta e caso seja considerado o
É importante entender que 80% dos pacientes com tratamento endovascular de rotura traumática de aorta
rotura traumática da aorta morrem no local do trau- que atualmente é factível. Versões anteriores do ATLS
ma (separação da base da aorta do coração). O local indicavam a necessidade de realização de arteriografia
mais comum da rotura traumática da aorta nos no caso de malformações não identificáveis à TC, mas
pacientes que sobreviveram é na sua porção des- com o advento da TC multislice essa conduta prescreveu.
cendente junto ao ligamento arterioso (ligamen-
to de Botalo) e da saída da subclávia. Sinais e sintomas eventualmente
associados à ruptura traumática da aorta
Hipotensão arterial
Local mais comum de rotura traumática da aorta é na Pseudocoarctação aórtica (pressão arterial desigual
aorta descendente no ligamento arterioso (ligamento dos membros superiores em relação aos inferiores)
de Botalo). Desigualdade da pressão arterial entre dois membros su-
periores
Sopro ou frêmito interescapular
Se a adventícia estiver íntegra, forma-se o he- Desvio traqueal por hematoma
matoma contido e o paciente não morre de imediato. Estridor por compressão extrínseca de traqueia (lesão
Essa é a característica encontrada nos sobreviventes de carótida comum)
de rotura de aorta (presença de hematoma bloqueado Hematomas supraclaviculares
no mediastino). Fratura de esterno e ou coluna torácica palpáveis
É muito raro, mas em 1-2% das vezes o paciente Esmagamento torácico
pode ter rotura traumática da aorta e não ter qualquer Hemotórax volumoso
achado no raio X de tórax. Nesses casos, somente o Tabela 22.3

SJT Residência Médica – 2016


259
22 Trauma de tórax

Sinais associados à ruptura traumática da aorta Tratamento


Alargamento de mediastino > 8 cm (posição ortostática) Pacientes estáveis devem ser submetidos a
“Borramento” do contorno aórtico tratamento endovascular com prótese (stent) por
Obliteração do espaço aórtico-pulmonar radiologia intervencionista. Além disso, o uso de
Relação entre as larguras do mediastino e tórax > 0,25 betabloqueadores (propanolol ou labetalol) para con-
Rebaixamento do brônquio fonte esquerdo trole de pressão é realizado na maioria dos centros. Na
Desvio traqueal para direita ausência de serviço endovascular, a cirurgia permanece
Desvio da sonda naso ou orogástrica para direita como método de escolha. O interessante do tratamento
Hematoma extrapleural apical (“boné apical”) endovascular é que evitam-se o risco da isquemia me-
Alargamento das linhas para vertebrais dular e paraplegia, as insuficiências renal e mesentéri-
Alargamento da faixa paratraqueal ca decorrentes do clampeamento aórtico, complicação
Fratura do primeiro e segundo arcos costais (trauma possível no acesso cirúrgico por toracotomia.
de alta energia)
Fratura da escápula (trauma de alta energia) A orientação diagnóstica e terapêutica desses pa-
Fratura de coluna torácica cientes deve ser feita por serviço qualificado para tal
Fratura de esterno atendimento, em que atuem tanto radiologistas inter-
Hemotórax à esquerda vencionistas como cirurgiões com apoio de equipe de
circulação extracorpórea. A correção cirúrgica da lesão
Tabela 22.4
por toracotomia posterolateral esquerda com sutura
primária ou prótese segmentar de aorta é a conduta
cirúrgica recomendada.

Figura 22.15 Sem alargamento de mediastino, mas


Figura 22.13 Aortografia demonstrando a topografia tem apagamento do cajado aórtico (seta).
da lesão mais comum na aorta descendente e formação
de pseudoaneurisma.

Figura 22.14 Lesão de artéria inominada. Notar desvio


discreto da traqueia para a esquerda acompanhada da
SNG em paciente com hematoma junto ao desfiladeiro Figura 22.16 Alargamento do mediastino. Depressão
torácico (ao contrário de hematoma no istmo aórtico). do brônquio esquerdo.

SJT Residência Médica – 2016


260
Cirurgia geral e politrauma
A tríade de Beck (hipotensão, abafamento de
bulhas e turgência jugular) está presente em 1/3 dos
pacientes. A distensão de veias do pescoço pode
estar ausente em decorrência de hipovolemia.
O pulso paradoxal é definido como a queda
de mais de 10 mmHg de pressão sistólica duran-
te inspiração profunda no final da inspiração no
traçado da pressão arterial média (PAM). Entre-
tanto, vale saber que não é só o tamponamento pe-
ricárdico que justifica o pulso paradoxal. Outras situ-
ações como asma, embolia pulmonar, pneumotórax
Figura 22.17 Desvio da traqueia para direita: suspeita hipertensivo e pericardite constritiva também funda-
de rotura traumática da aorta. mentam tal achado.
O sinal de Kussmaul (aumento da pressão ve-
nosa na inspiração espontânea) e a atividade elétrica
Trauma cardíaco sem pulso (na ausência de hipovolemia e de pneumo-
tórax hipertensivo) sugerem tamponamento cardíaco.
Quando disponível, o exame ultrassonográfico
na sala de emergência FAST (Focused Assessment with
Tamponamento cardíaco Sonography for Trauma ATLS®) avalia a presença de lí-
agudo quido no saco pericárdico com 90% de acurácia e 5%
de falsos-negativos. O tratamento de escolha para
Dos traumas cardíacos, 90% resultam de trau- tratamento de tamponamento cardíaco é a to-
ma penetrante (41% das lesões é ventrículo direito e racotomia e rafia da lesão sangrante através de
40% é ventrículo esquerdo). O trauma fechado também toracotomia anterolateral esquerda, a qual é a
pode resultar em acúmulo de sangue no saco pericárdico incisão mais usada no trauma.
decorrente do coração, dos grandes vasos ou dos vasos
pericárdicos. O tamponamento pode desenvolver-se ra-
pidamente ou de modo mais lento porque o saco pericár-
Atenção: o tratamento de escolha para o tampona-
dico é estrutura fibrosa inelástica e menos de 200 mL de
mento cardíaco é a toracotomia e não a pericardio-
sangue é suficiente para restringir os movimentos cardí-
centese.
acos (geralmente 50 mL mostra sintomas) e apresentar
quadro clínico de tamponamento cardíaco.
Ferimentos penetrantes na área de Ziedler ou área A pericardiocentese ainda aparece no ATLS
de Salmer-Murdock sugere trauma cardíaco. Da mes- de 2008 ,mas somente sendo reservada como
ma maneira, fáscies pletórica, engurgitamento de veias um dos últimos recursos quando a toracotomia
cervicais e pulso paradoxal sugerem trauma cardíaco. não está disponível, podendo ser tanto diagnóstica
Limites anatômicos da zona de Ziedler: quanto terapêutica, também podendo ser guiada por
ultrassom. Entretanto, a pericardiocentese não é tra-
1. Linha horizontal que passa pelo ângulo de tamento definitivo para o tamponamento pericárdico
Louis do esterno. porque esse paciente deverá ir necessariamente à tora-
2. Linha horizontal que passa à altura da extre- cotomia para rafia da lesão cardíaca.
midade anterior da décima costela. Um procedimento melhor do que a pericardio-
3. Linha paraesternal D. centese e menos agressivo do que a toracotomia ante-
4. Linha axilar anterior E. rolateral esquerda passível de ser feito em indivíduos
estáveis é a pericardiotomia subxifoidea (incisa a pele
abaixo do xifoide e chega até o coração sem abrir pleu-
ra ou o peritônio abdominal) realizada sob visão dire-
ta no centro cirúrgico. Ao explorar o saco pericárdico
por pericardiotomia subxifoidea, obedeça à seguinte
orientação:
a) saída de líquido amarelo citrino garante a pe-
ricardiorrafia por planos;
b) saída < 50 mL sangue em paciente hemodina-
micamente estável significa que houve ferimento mí-
Figura 22.18 zona de Ziedler. nimo de pericárdio ou músculo cardíaco, sem lesão de

SJT Residência Médica – 2016


261
22 Trauma de tórax

câmaras cardíacas. Irriga-se o saco pericárdico com SF


+ drenagem pericárdica com Pezzer ou Malecot + ob-
servação por 48-72 horas;
c) saída > 50 mL com sangramento persistente
e alterações hemodinâmicas garantem toracotomia
anterolateral esquerda. Há ainda relatos do uso de
videotoracoscopia e laparoscopia para drenagem de
tamponamento cardíaco, mas esses dois últimos tra-
tamentos não são regra e padrão, apesar de terem sido
já descritos.
Vale lembrar ainda os acessos cirúrgicos dos
traumas vasculares arteriais cervicotorácicos:
€ aorta descendente (traumatizada 60% das ve-
zes): toracotomia posterolateral esquerda;

€ arco da aorta (trauma em 10%): esternotomia


mediana com circulação extracorpórea;

€ artéria inominada: esternotomia mediana. Figura 22.19 Punção de Marfan.

€ vasos subclávios à esquerda: toracotomia ante-


rolateral + incisão supraclavicular (toracotomia
em alçapão ou janela); ou somente a remoção da
clavícula e acesso direto. Contusão miocárdica
€ vasos subclávios à direita: esternotomia media- O trauma fechado do coração pode resultar em
na + cervicotomia, ou somente a remoção da contusão do músculo cardíaco, rotura de câmaras car-
clavícula e acesso direto. díacas ou laceração valvular. A ruptura de câmaras car-
díacas tipicamente se manifesta como tamponamento
€ artéria carótida esquerda: esternotomia + cer- cardíaco. O FAST facilita o diagnóstico.
vicotomia.
O espectro de apresentação é amplo, variando
€ artéria pulmonar: esternotomia. desde uma condição benigna assintomática até ar-
ritmias, infarto e mesmo choque refratário à repo-
sição volêmica.
O trauma cardíaco fechado pode determinar ar-
ritmias cardíacas, e o ECG (eletrocardiografia) é uti-
Pericardiocentese (punção de lizado para triagem desses doentes. Os achados do
Marfan) ECG mais comuns são: extrassístoles ventriculares,
alterações do segmento S-T, taquicardia sinusal inex-
Deve ser feito com paciente em decúbito dorsal, plicada, fibrilação atrial e bloqueios de ramos. Novas
antissepsia, colocação de campos e anestesia local e arritmias súbitas poderão ocorrer em 24 a 48 ho-
monitorizado (ECG). Introduz-se uma agulha longa ras, razão pela qual os doentes deverão ficar mo-
(de peridural) no espaço xifocostal, dirigida para o om- nitorados. Após esse período de tempo a incidência
bro esquerdo (via de Marfan) em 45º. de arritmias diminui consideravelmente. Os pacientes
Se houver alteração no traçado do complexo que apresentarem um ECG normal à admissão, dificil-
QRS, puxe a agulha para trás, pois provavelmente mente apresentarão alguma arritmia posteriormente.
atingiu o músculo cardíaco. Aspirar com a seringa. A Para os doentes com instabilidade hemodinâ-
remoção de 30 mL de sangue incoagulável significa mica passageira inexplicada, está indicado o uso de
que está no saco pericárdico e produz significante me- ecocardiografia, ou simplesmente o FAST (Focused
lhora hemodinâmica. Logo após a pericardiocentese, Abdominal Sonography in Trauma), para afastar um
introduz-se cateter por dentro da agulha e mantenha- eventual tamponamento cardíaco.
-o posicionado no interior do saco pericárdico com Apesar de existirem vários estudos avaliando o
torneira(dispositivo de três vias) na extremidade dis- uso de enzimas cardíacas como marcadores do trauma
tal até que o paciente possa ir à toracotomia. Talvez cardíaco, em especial enzimas cardíacas específicas,
haja necessidade de aspirar mais sangue do saco peri- como a troponina I, não há até o momento evidências
cárdico antes do tratamento definitivo. que sustentem seu uso na prática clínica.

SJT Residência Médica – 2016


262
Cirurgia geral e politrauma

pectivamente. No trauma agudo, a preferência pela via


Hérnia diafragmática abdominal é indicada porque não há o problema rela-
traumática cionado com a formação de aderências como existe em
trauma diafragmático tardio. E as anuências ocorrem
O trauma penetrante, na maioria das vezes, causa
mesmo sem cirurgia e somente pelo trauma.
pequena perfuração no diafragma, que não leva imedia-
tamente à formação de hérnia diafragmática. Já o trau- Dica: não confunda hérnia diafragmática trau-
ma contuso produz grandes e radiadas lesões que con- mática com hérnia paraesofagiana e hérnia hitatal de
duzem facilmente à herniação. O lado mais comum da deslizamento. As hérnias hiatais têm revestimento de
hérnia diafragmática traumática é a esquerda. No peritônio enquanto as hérnias traumáticas não.
entanto, estudos em cadáveres demonstraram que, em
autópsias, o lado direito aparece mais frequentemente,
porém, não é diagnosticado em razão da posição do fí-
gado. Raramente, o trauma diafragmático é descoberto
no período imediato pós-trauma.
O paciente pode ser assintomático, mas achados
radiológicos podem sugerir o diagnóstico através da
elevação da cúpula diafragmática ou presença de nível
hidroaéreo no tórax.
O diagnóstico também pode ser melhor elucida-
do por angiotomografia de tórax ou esofagograma. To-
davia, com certeza o método diagnóstico mais fácil
da avaliação da hérnia diafragmática traumática
é através de passagem de SNG e raio X de tórax
PA, que demonstrará a SNG enrolada no tórax,
sugerindo o defeito traumático característico.

Figura 22.21 raio X de tórax PA na suspeita de hérnia


diafragmática. A: nível hidroaéreo no tórax à esquerda.
Borramento do hemidiafragma à esquerda. B: observe a
imagem da sonda nasogástrica no tórax.
Figura 22.20 Hérnia diafragmática traumática es-
querda. Observam-se o fundo do estômago no hemitó-
rax esquerdo pelo raio X de esôfago, estômago e duo-
deno contrastado (SEGD).

Lesão trans昀椀xante de
mediastino
Tratamento
O trauma penetrante que atravessa o mediastino
€ Fase aguda: videolaparoscopia; pode acarretar lesão de qualquer estrutura que esteja
no tórax: coração, grandes vasos, ducto torácico, árvo-
€ Fase tardia: toracoscopia.
re traqueobrônquica, pulmões, lesão medular e ainda
É importante entender que alternativamente esôfago. Suspeita-se desse tipo de lesão quando o fe-
em serviços que não tenham laparoscopia poderá ser rimento de entrada encontra-se em um hemitórax e o
feito a laparotomia exploradora e a toracotomia, res- de saída no hemitórax contralateral.

SJT Residência Médica – 2016


263
22 Trauma de tórax

A presença de pneumomediastino (enfise- fechado podem ser causadas por golpe de forte inten-
ma mediastinal) faz suspeitar de lesão esofagia- sidade no abdome superior, levando à expulsão força-
na ou traqueobrônquica. Por outro lado, quando da do conteúdo gástrico para o esôfago, produzindo
há hematoma de mediastino, deve-se pensar em lacerações no esôfago inferior e quadro semelhante à
lesão de grandes vasos. síndrome de Boerhaave com rotura de todas as cama-
Há dois tipos de doentes com ferimento transfixante das do esôfago. A abertura para o espaço pleural causa
empiema e mediastinite. O quadro clínico é igual ao da
de mediastino: hemodinanicamente estáveis e instáveis.
ruptura pós-hemética (Boerhaave).
Pacientes instáveis deverão ter os dois he-
Deve-se considerar uma possível lesão de
mitórax drenados e encaminhados imediata-
esôfago quando:
mente ao centro cirúrgico para toracotomia.
1. Presença de PTX ou hemotórax à esquerda
Já os doentes estáveis hemodinamicamente
sem sinais de fratura de costelas;
também terão seus dois hemitórax drenados e irão
provavelmente à toracotomia, mas terão tempo de 2. Cinemática de trauma em paciente vítima de
fazer exames que auxiliarão no diagnóstico e reparo golpe em região esternal inferior ou epigástrica;
da lesão: FAST, EDA, broncoscopia, angiotomografia 3. Choque desproporcional sem causa aparente;
helicoidal, esofagograma com contraste baritado.
4. Eliminação de restos alimentares pelo dreno
O exame primário detectará as prioridades do torácico;
atendimento. Caso exista hemopneumotórax com gran-
A presença de ar no mediastino também sugere o
de perda sanguínea e anormalidade hemodinâmica com
diagnóstico, frequentemente confirmado por estudos
sinais de tamponamento cardíaco, a indicação de dre-
contrastados e EDA.
nagem pleural imediata e exploração cirúrgica por tora-
cotomia podem ser necessárias. O cirurgião deve optar Classificação das lesões esofágicas segundo a
por qual hemitórax vai iniciar a toracotomia, tendo como American Association for the Surgery of Trauma
parâmetro a presença de tamponamento cardíaco ou o (AAST)
hemitórax com maior volume de sangue drenado. O pa- Grau da Descrição das lesões
ciente em decúbito dorsal horizontal é submetido à tora- lesão
cotomia anterolateral no 4º EIC que pode ser prolongada Contusão/hematoma ou laceração parcial
para o outro lado por meio de bitoracotomia. I
sem abertura
Os doentes estáveis hemodinamicamente (cerca II Laceração < 50% da circunferência
de 50% dos casos), mesmo que não apresentem sinais III Laceração ≥ 50% da circunferência
clínicos e radiológicos iniciais de lesões de órgãos me- IV Perda tecidual ou desvascularização < 2 cm
diastinais, devem ser avaliados por meio de exames V Perda tecidual ou desvascularização ≥ 2 cm
auxiliares, para excluir lesões de esôfago, traqueia, Tabela 22.5
brônquios, vasos mediastinais e coração. O FAST en-
focando o pericárdio deve conduzir o início da investi-
gação ainda como exame adjunto ao primário.
Debate sobre exames contrastados
A TC helicoidal deverá ser feita para descartar
hematoma mediastinal e sinais de rotura traumática Existe debate se usar gastrografina ou bário no
da aorta em pacientes estáveis, além de avaliar pene- esofagograma. Gastrografina, um contraste hidrosso-
tração da cavidade torácica. Ela tem sensibilidade e lúvel, é importante utilizar no abdome, mas não no
especificidade de 100% para a detecção de rotura tórax porque, se houver fístula esofágica e trauma
traumática da aorta. pulmonar, poderá resultar em pneumonite química,
já que é irritante para a mucosa respiratória na pre-
A via de acesso cirúrgico, se toracotomia esquerda sença de fístula traqueoesofágica. Entretanto, como a
ou direita ou bitoracotomia, dependerá do diagnóstico gastrografina é relativamente inócua no mediastino,
das estruturas torácicas lesadas. A mortalidade global alguns preferem esse contraste primeiro para depois
desse tipo de ferimento está em torno de 20%. Essa usar bário. O problema da gastrografina é que ela é
porcentagem duplica se o paciente se encontra instável. menos radiodensa e pode não delinear adequadamen-
te pequenas perfurações e vazamentos. A maior parte
dos cirurgiões torácicos prefere o uso de bário para fe-
rimentos em esôfago torácico.
Trauma de esôfago Veja o algoritmo a seguir (Figura 22.22) e aproveite
para relembrar o tratamento não só de lesões traumáti-
Em 95% das vezes resultam de trauma pe- cas de esôfago mas aquelas por cáusticos e Boerhaave que
netrante. Entretanto, lesões de esôfago por trauma serão estudados na apostila de Cirurgia do Esôfago SJT.

SJT Residência Médica – 2016


264
Cirurgia geral e politrauma

puntiforme ou ausência de perfuração visível. Nesses


Tratamento casos, apenas a drenagem com passagem de SNE é a
opção adequada.
Conservador
O manejo não operatório da perfuração esofági-
Lesão de Esôfago Cervical
ca ainda é controverso. Entretanto, já existem relatos
de sucesso, principalmente nas lesões iatrogênicas e Pouco tempo de evolução Longo tempo de evolução
Baixa graduação Sinais de infecção ou
perfurações por corpo estranho. Nos traumas pene- Sem infecção local desvascularização
trantes e contusos, o tratamento deve ser cirúrgico, Ressecção local Esofagostomia no Lesões puntiformes
permitindo a correção da lesão esofágica e a identifica- Debridamento Fechamento distal
Esofagostomia
local da lesão Abscessos sem
visualização da lesão
ção e correção das frequentes lesões associadas. SNE Jejunostomia Jejunostomia Drenagem

Para indicar o tratamento não operatório, é Sutura SNE

necessário que o paciente esteja estável hemodina- Drenagem

micamente e não tenha evidência clínica de sepse.


Figura 22.22 conduta nas lesões de esôfago cervical.
Além disso, deve ser excluída, por exame de imagem, SNE: sonda nasoenteral.
a presença de abscesso ou sinais de mediastinite. As
perfurações que ocorrem em esôfago patológico não
devem ser incluídas na possibilidade de tratamento
conservador. O tratamento consiste em observação Esôfago torácico
rigorosa do paciente, passagem por via endoscópica A abordagem cirúrgica deve, preferencialmente, ser
de SNE ou nutrição parenteral total e uso de antibio- realizada por toracotomia posterolateral direita. Faz-se
ticoterapia. Ocorrendo qualquer evidência de piora necessária entubação seletiva para exposição adequada
clínica e progressão de processo infeccioso, o trata- do esôfago (tubo de Carlens). A conduta depende, sobre-
mento não operatório deve ser interrompido e a ci- tudo, do tempo de evolução e, consequentemente, das
rurgia realizada imediatamente. condições locais. Nas lesões com pouco tempo de evolu-
ção (<12 horas) e sem sinais infecciosos locais, pode ser
Cirúrgico realizado reparo primário da lesão, passagem de SNE e
drenagem pleural. Nas situações em que já existem sinais
O segredo do tratamento do trauma de esôfago é
inflamatórios ou secreção purulenta restrita ao local, a
o diagnóstico precoce das lesões (< 24 horas), sugerido
lesão ainda pode ser debridada, reparada e drenada, mas
por pneumomediastino (sinal patognomônico da per-
é necessário desvio do trânsito mediante esofagostomia
furação) e enfisema subcutâneo, além de avaliar se a
e realização de jejunostomia, pois a chance de fístula ou
perfuração é grande (há extravasamento de contraste
deiscência é grande. Nos casos em que a lesão é tardia
por esofagograma).
(>24 horas), com sinais de mediastinite e as condições
locais demonstram inflamação, infecção ou desvascula-
Esôfago cervical rização e/ou, ainda, no paciente com choque séptico, a
Quando as condições locais são adequadas e a le- esofagectomia pode ser opção aplicável como forma de
são tem pouco tempo de evolução e baixa graduação, a evitar complicações graves e fatais. Nos casos com infec-
sutura simples, em plano único, associada à drenagem ção grave, a antibioticoterapia deve ser instituída, com
da região, é o tratamento adequado. O debridamento fármacos de amplo espectro e com cobertura para anae-
do ferimento deve ser lembrado, principalmente nos róbios, sendo a nutrição precoce fundamental na preven-
ferimentos por projétil de arma de fogo, assim como ção e no combate à infecção.
a passagem de sonda nasoenteral (SNE) antes do fe- A cerclagem distal do esôfago, com o objetivo
chamento da lesão, com o objetivo de nutrição preco- de impedir o refluxo do conteúdo gástrico, é procedi-
ce. Nas lesões em que já existem sinais importantes mento teoricamente adequado mas que não possui, na
de infecção ou desvascularização, deve ser realizada literatura, comprovação efetiva de sua validade. A prá-
ressecção com fechamento do esôfago distal e esofa- tica de gastrostomia, para também evitar refluxo ou
gostomia proximal ou, ainda, esofagostomia no local para nutrição, deve ser evitada, pois estômago íntegro
da lesão, em dupla boca, sendo que a jejunostomia, é necessário para posterior reconstrução do trânsito.
nessas duas alternativas, pode ser necessária. A opção Uma opção válida, quando se faz reparo do esôfago, é
por deixar pele e tecido subcutâneo abertos pode auxi- a colocação de um patch de pleura, pericárdio ou mus-
liar no controle de infecção local e impedir a formação culatura intercostal como reforço. A conduta diminui
de abscessos, que podem ocasionar fístulas, deiscên- significativamente as fístulas deiscências. Alguns re-
cias ou dissecção para o mediastino, com consequente latos na literatura citam a colocação de um tubo em T
mediastinite descendente. Pode-se encontrar, duran- no local da lesão,. quando não houver possibilidade de
te o ato operatório, somente abscesso local com lesão repará-la, orientando trajeto fístuloso.

SJT Residência Médica – 2016


265
22 Trauma de tórax

Lesão de Esôfago Torácico


Ferimentos da zona de
Tempo de evolução
< 12h
Tempo de evolução
intermediário
Tempo de evolução
> 24h
transição toracoabdominal
Sem sinais de (12-24h) Sinais de mediastinite
infecção local Infecção restrita ao local Infecção grave e
desvacularização Devem ser investigados para excluir lesão de dia-
Choque séptico fragma que está associado em 40% das vezes. Se hou-
Debridamento Debridamento
Esofagectomia
ver saída de epíplon pelo orifício torácico, presença de
SNE Reparo peritonite, o diagnóstico está confirmado e o paciente
Esofagectomia deverá ir à laparotomia. Entretanto, se o paciente es-
Reparo Esofagectomia cervical
tiver estável, com pouca ou nenhuma sintomatologia,
cervical
Drenagem Jejunostomia exames deverão ser feitos como FAST, TC e mesmo
Jejunostomia LPD (muitas vezes o líquido infundido no LPD apa-
rece no tórax). Se o doente desenvolver peritonite ou
Figura 22.23 conduta nas lesões de esôfago torácico.
o lavado for positivo, indica-se cirurgia (laparoscopia
SNE: sonda nasoenteral.
em pacientes estáveis).

Esôfago abdominal A melhor indicação da laparoscopia no trauma são


A maioria das lesões de esôfago abdominal é naqueles ferimentos tangenciais toracoabdominais
detectada no transoperatório, sendo importante ins- ou em flanco, em pacientes estáveis hemodinami-
peção cuidadosa dessa região, que nem sempre é de camente, quando existe dúvida da penetração da
cavidade peritoneal visando evitar laparotomias
fácil acesso. A base do tratamento lesões esofágicas
desnecessárias.
abdominais é o debridamento e rafia da lesão, com re-
forço através de fundoplicatura. A jejunostomia tem
indicação para nutrir precocemente e servir como op-
ção enteral nos casos de fístulas. Nas lesões em que Os ferimentos penetrantes da transição to-
existe necessidade de ressecção de um segmento do racoabdominal são aqueles entre a linha inter-
esôfago, não havendo alto grau de contaminação a mamilar anteriormente (4º EIC) até o final do
anastomose deve ser realizada com o estômago e não rebordo costal e o 7º EIC posteriormente (ângulo
com o próprio esôfago, diminuindo o risco de fístula da escápula).
ou deiscência. Caso o reparo ou a anastomose sejam Os pacientes que se apresentam com descon-
proibitivos, o esôfago distal deve ser fechado e realiza- forto respiratório após trauma abdominal fechado
-se, primariamente ou após a estabilização clínica, je- podem ter vísceras herniadas ao espaço pleural es-
junostomia e esofagostomia cervical. A drenagem da querdo, provocando desconforto respiratório im-
região após sutura ou anastomose deve ficar a critério portante. A drenagem pleural esquerda no 5º EIC
do cirurgião, de acordo com sua avaliação e experiên- deverá ser urgente, com o importante detalhe téc-
cia. A colocação de omento sobre o reparo também nico de se explorar o espaço pleural digitalmente
pode ser realizada com o intuito de reforçá-lo e evitar antes de se introduzir o dreno tubular. Ao se sus-
a formação de fístulas. peitar de víscera abdominal no espaço pleural, a in-
trodução do dreno deve ser realizada de modo a se
evitar lesão iatrogênica. A passagem de SNG se faz
Lesão de Esôfago Torácico
necessária para descompressão gástrica e melhora
da ventilação pulmonar.
Tempo de evolução Tempo de evolução Tempo de evolução
< 12h intermediário > 24h Ainda como adjunto ao exame primário, deve-se
(12-24h) Sinais de mediastinite
Sem sinais de
Infecção restrita ao local Infecção grave e
fazer raio X de tórax para confirmação da posição do
infecção local
desvacularização dreno pleural, sinais de hérnia diafragmática e avalia-
Choque séptico ção de expansão pulmonar. A presença da SNG no me-
Debridamento Debridamento
Esofagectomia
diastino no raio X de tórax simples confirma a lesão.
SNE Reparo Em versões anteriores do ATLS, todo o ferimen-
Esofagectomia
cervical to toracoabdominal deveria ir necessariamente a lapa-
Reparo Esofagectomia
cervical rotomia exploradora.
Drenagem Jejunostomia
Jejunostomia
Mesmo com a evolução tecnológica, ainda po-
dem existir dúvidas da penetração da cavidade peri-
Figura 22.24 conduta nas lesões de esôfago abdominal. toneal. Nesse contexto surgiu a laparoscopia no trau-

SJT Residência Médica – 2016


266
Cirurgia geral e politrauma

ma que visa avaliar a ocorrência de penetração na


cavidade abdominal, sendo importante como técnica
Toracotomia de reanimação
diagnóstica e também terapêutica em casos selecio- São objetivos essenciais: realizar massagem
nados (ferimentos parenquimatosos de fígado, baço; cardíaca interna e pinçamento da aorta, o que permite
ferimentos de estômago e diafragma). O uso da lapa- aumento no fluxo do sangue oxigenado para as coro-
roscopia em víscera oca será discutido no capítulo de nárias e artérias cerebrais, reduzindo simultaneamen-
trauma abdominal. te uma eventual hemorragia.

Na ausência de serviço de laparoscopia, o pa- Não há tempo hábil para realizar exames. O
ciente deverá ir à laparotomia exploradora para doente está em parada cardíaca ou em vias de apre-
sentá-la. Nessa situação, a via de acesso escolhida será
avaliação de penetração da cavidade abdominal.
sempre a toracotomia anterior esquerda, independen-
Uma vez realizado o diagnóstico de lesão dia- temente do tipo e local do trauma.
fragmática, devem ser avaliados no intraoperatório a
presença de hemotórax e o grau de contaminação por
conteúdo extravasado do tubo digestivo aspirado ao
espaço pleural. A ampla limpeza do espaço pleural, Toracotomia de emergência
seguida de drenagem adequada, diminui os riscos de Os pacientes candidatos a esse tipo de pro-
complicações pleuropulmonares no pós-operatório. cedimento são aqueles hemodinamicamente ins-
O uso da videotoracoscopia (VT) é alternativa táveis: em choque profundo, sem parada cardíaca.
na suspeita de ferimento diafragmático para os pa- Nesses casos, toracotomia de reanimação obviamente
cientes que já tiveram invasão da pleura por ferimen- não se aplica. É necessário tratamento para coibir a he-
to traumático cujo tórax já foi drenado. O problema morragia intratorácica, fonte da hemorragia. O diag-
da videotoracoscopia é que ela não pode visualizar nóstico do local de sangramento só é obtido durante
a cavidade abdominal. Nesse sentido, a laparosco- a cirurgia. Não há tempo para obter o diagnóstico por
pia no trauma, antes muito temida por alto índice meio de exames. Pode ser difícil decidir sobre a via de
acesso se a fonte de sangramento ainda não foi diag-
associado de lesões despercebidas, agora mostra-se
nosticada. É preciso usar uma via que permita rápido
procedimento efetivo no diagnóstico de lesões trau-
acesso aos órgãos suspeitos de causar o sangramento.
máticas por ferimento penetrante quando empre-
Deve-se preferir a toracotomia. Nos ferimentos pe-
gada em protocolo racional, utilizando-se de pronta
netrantes, a toracotomia deve ser direita ou esquer-
conversão para a laparotomia na presença de feri- da, conforme o hemitórax comprometido. A decisão
mentos aos “pontos cegos do abdome” (hematoma fica mais difícil quando o ferimento é transfixante no
retroperitoneal de zona I, II ou III, ferimentos em mediastino. Nesses casos, é preferível a toracotomia
segmento hepático VI e VII, lesão na parte posterior anterolateral esquerda, pois esta via permite acesso à
do baço e ferimentos de cólon) conforme publicado maioria dos órgãos responsáveis por hemorragia: co-
por Kawahara & Alster no Journal of Trauma em ração e grandes vasos. São raras as situações em que
2009. Cabe salientar que esse protocolo padronizado esta via não permite tratar a lesão. Se isto acontecer,
em nível mundial foi brasileiro do HCFMUSP. Além deve-se ampliar a incisão via esternotomia transver-
disso, a laparoscopia também já foi descrita para au- sal. Assim, pode-se alcançar o lado oposto do tórax.
totransfusão e para correção de lesões cardíacas no
tórax. Esse protocolo demonstrou que o diagnóstico
de lesões de intestino delgado tem acurácia de 100%,
mas a laparoscopia deverá ser contraindicada para Toracotomia de urgência
uso no trauma retroperitoneal. Os candidatos a este tipo de toracotomia
são os pacientes hemodinamicamente estáveis.
Nesses, há tempo hábil para realizar exames subsidi-
ários e, portanto, tentar firmar o diagnóstico. Raio X,
endoscopia, arteriografia, TC, videotoracoscopia são
Toracotomia no trauma exames que permitem confirmar o diagnóstico, sendo
realizados principalmente em função do mecanismo
de tórax do trauma, não pelos sintomas dos pacientes.
Na toracotomia de urgência, não há dificuldades
Os traumatismos torácicos são, em sua grande para escolher a via de acesso, pois a lesão já é conheci-
maioria (80% dos casos), tratados por procedimentos da. Além disso, a maior disponibilidade de tempo para
simples e medidas conservadoras. Todavia, 20-30% dos o atendimento ao traumatizado permite o concurso de
ferimentos penetrantes tem indicação de toracotomia. um especialista.

SJT Residência Médica – 2016


267
22 Trauma de tórax

esquerdo (rotura traumática da aorta). Visualizar se


Videotoracoscopia não há presença de pneumomediastino em linha tê-
nue lateralmente à traqueia;
Para os pacientes portadores de hemotórax,
pneumotórax ou hemopneutórax traumático, quando 3B- Respiração: avaliar parênquima pulmonar:
a drenagem pleural não for eficaz (são poucos os ca- observar se a trama vascular vai até a periferia (PTX apa-
sos) o próximo passo é a videocirurgia, logo, é trata- rece preto no raio X e denota ausência de trama vascular);
mento de exceção. avaliar recessos costofrênicos se estão velados ou há des-
Em relação ao ferimento da transição toraco- locamento medial sugerindo presença de hemopneumo-
abdominal, uma área de difícil avaliação, particu- tórax. Avaliar presença de infiltrações e opacidades su-
larmente no trauma penetrante e em especial no gestivas de contusão pulmonar pela história do trauma.
diagnóstico de lesão diafragmática, a videocirurgia 3C- Coração: avalie o mediastino superior em
é um método excelente, seja por via toracoscópica
busca de alargamento de mediastino (> 8 cm) ou
ou laparoscópica.
apagamento do cajado aórtico (sinal mais confiável
Quando o ferimento está localizado no tórax e há na rotura traumática da aorta); rever se não há ne-
derrame pleural dê preferência à toracoscopia. Caso se nhum pneumomediastino. No mediastino inferior,
constate lesão diafragmática, complemente com vide-
considerar alteração na silhueta cardíaca (pneumo-
olaparoscopia.
mediastino) e suspeita de insuficiência cardíaca (área
cardíaca > 0,5).
D- Diafragma: avaliar se não existe nível hidro-
aéreo no tórax, elevação da cúpula diafragmática ou
Peculiaridades da análise presença de pneumoperitônio (observe lâmina de ar à
da radiogra昀椀a de tórax esquerda); localização de bolha gástrica.
E- Esqueleto: analisar possíveis fraturas de cla-
Da mesma maneira como existe a sequência vícula, escápula, costelas e esterno.
ABCDE no atendimento ao politraumatizado, existe F- Falta ver partes moles (enfisema subcutâneo),
uma padronização da visualização do raio X de tórax, drenos, tubos e monitorização do paciente.
a saber:
F (fat) subcutâneo: procurar evidência de enfi-
1- Verificar se o raio X realmente é do paciente
sema subcutâneo e deslocamento ou interrupção de
para não cometer procedimentos errôneos em outro
indivíduo; planos teciduais.

2A- Via aérea: avaliar traqueia e brônquios: G (guides and tubs) Guias e tubos: analisar po-
desvio de traqueia para direita (PTX ou rotura trau- sição de tubo endotraqueal, drenos de tórax, cateteres
mática da aorta) ou para a esquerda (PTX ou lesão de venosos centrais, sonda nasogástrica e outros disposi-
artéria inominada) e/ou rebaixamento de brônquio tivos de monitorização.

Ambroise Paré (1510–1590), o fundador da Ortopedia, modificou o tratamento das feridas que, até então,
eram cauterizadas e queimadas com óleo.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

23
Trauma abdominal

Introdução Trauma fechado (contuso)


€ Baço: 40-55%;
O trauma abdominal fechado é frequente, tendo € Fígado: 35-45%;
como causa principal o acidente automobilístico em € Hematoma retroperitoneal: 15%;
grandes núcleos de trauma. Por outro lado, centros de
€ Intestino delgado: 5-10%.
periferia têm maior incidência de trauma penetrante.
Outras causas incluem atropelamento, acidente de
motocicleta, bicicleta, quedas e assalto.
Órgãos mais lesados por FAB:
Durante a avaliação primária do trauma abdomi- € Fígado: 40%;
nal fechado, a avaliação da circulação inclui o ponto de
€ Intestino delgado: 30%;
reconhecimento de hemorragias abdominopelvicas.
Infelizmente, a lesão despercebida abdominal con-
€ Diafragma: 20%;
tinua sendo causa frequente de mortes evitáveis por € Cólon: 15%.
trauma do tronco.
A identificação do órgão abdominal mais fre-
quentemente lesado relaciona-se com o mecanismo do
Órgãos mais lesados por FAF:
trauma porque a incidência dos traumas diferem para € Intestino delgado 50%;
o tipo de trauma aberto (ferimento por arma branca € Cólon 40%;
(FAB) versus ferimento por arma de fogo (FAF)) bem € Fígado 30%;
como para o trauma fechado. € Lesões vasculares 25%.
269
23 Trauma abdominal

As vísceras intraperitoneais são mais lesadas nos


Trauma penetrante ferimentos anteriores, já as retroperitoneais nos trau-
O trauma abdominal é definido como pene- mas posteriores. A necessidade de tratamento ope-
trante quando existe solução de continuidade ratório é maior nos ferimentos anteriores e menor nos
na aponeurose anterior. Antigamente se definia a posteriores. A apresentação clínica é diferente, sendo os
penetração abdominal pela perfuração do peritônio, sinais de peritonite mais frequentes nas lesões da pare-
mas o ATLS e a maior parte dos centros coloca a fáscia de anterior. A avaliação diagnóstica depende da região
anterior (aponeurose anterior) como ponto marco da em análise, sendo os métodos de imagem (TC) mais
identificação da penetração da cavidade abdominal. O sensíveis no diagnóstico das lesões posteriores e exis-
trauma fechado é mais comum em países desenvolvi- tem trauma de retro peritoneais em que não aparecem
dos, ao passo que as agressões por armas brancas ou sinais de lesões no lavado peritoneal diagnóstico (LPD).
projéteis de arma de fogo são mais comuns nos países
em desenvolvimento e subdesenvolvidos. Os ferimentos de parede anterior necessitam de menor
energia cinética para ocorrer porque é mais delgada em
Repare que 90% dos FAF resultam em penetra- relação à região posterolateral do abdome e o dorso (pro-
ção da cavidade abdominal com lesões intra-abdomi- tegido pelos músculos paraespinhais) em que os músculos
nais importantes. Em comparação, apenas 30% dos agem como importante barreira de proteção a traumas.
FAB apresentam lesões intraperitoneais associadas.
Qualquer paciente deverá ir à exploração cirúr-
gica da cavidade peritoneal desde que apresente:
Anatomia interna do abdome
€ Choque não responsivo à reposição volêmica de
4 L de cristalóides; Entenda que o abdome possui três comparti-
mentos:
€ FAF com suspeita de penetração na cavidade
peritoneal; € cavidade peritoneal;
€ Sinais de irritação peritoneal;
€ cavidade pélvica;
€ Penetrabilidade da aponeurose anterior.
€ cavidade retroperitoneal.

Cerca de 33% dos ferimentos penetrantes não É importante saber essa classificação pois, du-
atingem a cavidade abdominal. É nesse contexto que rante uma expiração profunda, o diafragma pode
a laparoscopia no trauma vem para avaliar melhor a elevar-se até o 4º EIC e fraturas nas costelas inferio-
res abaixo da linha do mamilo podem causar lesões de
possibilidade de penetração da cavidade peritoneal
vísceras abdominais.
em pacientes estáveis com o grande objetivo de evitar
laparotomias desnecessárias e a comorbidade relacio- Estruturas que estão no espaço retroperitoneal:
nada a esse procedimento (tema discutido a seguir). € aorta e cava;
€ duodeno;
€ cólon ascendente e descendente (faces poste-
riores);

Anatomia € rins, pâncreas e ureter.


€ componentes retroperitoneais da cavidade pél-
Quatro áreas são importantes: vica.
€ Parede abdominal anterior: entre os rebordo É fundamental entender essas peculiaridades
costais e os ligamentos inguinais, anteriormen- sobre o retroperitônio porque muitas das lesões nes-
te às linhas axilares anteriores. sa região não mostram sinais de irritação peritoneal,
€ Flancos: zona entre as linhas axilares ante- nem peritonite e tampouco LPD positivo.
rior e posterior (limite suerior desde os rebor-
dos costais no 6º EIC até limite inferior nas
cristas ilíacas).
€ Região dorsal: área entre as linhas axilares Avaliação
posteriores, desde as pontas das escápulas até
as cristas ilíacas.
Região toracoabdominal ou abdome in-
€
tratorácico: vai desde a linha intermamilar
História
até o final do rebordo costal anteriormente no O paciente, quando consciente, é quem melhor
4ºEIC, 6ºEIC lateralmente no flanco e 8º EIC presta essa informação. O pessoal do resgate e a polí-
posteriormente. cia também podem fornecer detalhes importantes: a

SJT Residência Médica – 2016


270
Cirurgia geral e politrauma

cinemática do trauma, uso de dispositivos de seguran- a) Sinais vitais;


ça (cinto de segurança de duas ou três pontas, air bag), b) Lesões óbvias ao exame físico;
óbitos no local, posição no carro, se ficou preso nas
ferragens, tempo até chegada no hospital (delta t) e se c) Resposta do doente às medidas terapêuticas.
houve perda total do carro. A distância do trauma pe- Tratando-se de trauma penetrante é fundamen-
netrante também é fator fundamental a saber porque tal saber:
FAF com distância > 3 metros diminui a probabilidade 1. Momento em que ocorreu a agressão;
de lesões viscerais.
2. Tipo de arma (FAB, FAF, qual calibre);
O paciente hipotenso precisa ser adequadamente
avaliado quanto à causa da hipotensão, se realmente é 3. Distância entre a vítima e o agressor (3 metros);
abdominal. Fraturas podem sangrar muito, sobretudo 4. Número de facadas (FAFs);
as pélvicas (> 2 L) e fraturas de fêmur (1,5 L), podendo 5. Intensidade da dor abdominal, sinais como
confundir a avaliação. irradiação para o ombro (sinal de Kehr na rotura
esplênica).
A reavaliação no trauma , através do exame físico se-
riado realizado por um mesmo médico, tem a mesma
sensibilidade para indicação de laparotomia do que
uma TC de duplo ou triplo contraste! Portanto, reava- Características dos Ferimentos por
lie o paciente. Projétil
Nos ferimentos causados por projéteis, além da
distância do disparo (distância menor de 3 metros
maior o dano), temos:
€ Orifício de entrada: é menor do que o de sa-
ída; geralmente tem formato oval, redondo ou,
por vezes, em fenda. Os tiros a distância apre-
sentam apenas zona de contusão e enxugo. Nos
disparos à queima-roupa (curta distância), além
das características peculiares a todas as distân-
cias de tiro (contusão e enxugo), ainda pode-
rão existir uma orla de queimadura e a clássi-
ca área de tatuagem e esfumaçamento.
€ Buraco de mina de Hoffman: encontrado
em marcas de FAFs encostados nas têmporas
ou na mastoide. Por sua vez, os tiros encosta-
Figura 23.1 sinal do cinto de segurança: as marcas na dos, principalmente quando feitos sobre áreas
pele evidenciam a síndrome do cinto de segurança, com- teciduais de grande densidade (osso), causam
provadas pela presença de eritema. Equimoses violáceas intensa destruição sob a superfície tegumentar,
e escoriações em faixa também podem prognosticar em razão da rápida e poderosa expansão dos ga-
lesões internas por explosão ou cisalhamento de vísceras ses. Projéteis de grande massa e baixa velocida-
ocas (duodeno e ceco), bruscamente comprimidas con- de (calibres 38, 44 e 45) produzem grande área
tra a coluna dorsal. Fraturas de Chance na coluna, lesões de destruição, porém não muito profunda, en-
de pâncreas e ureter também vêm sendo descritas e rela- quanto os FAFs de alta velocidade (calibre 7.62)
cionadas com esse mecanismo de trauma. causam grande e profunda destruição tecidual,
diretamente proporcionais à densidade do teci-
Em vítimas de trauma automobilístico é im- do atingido.
portante estimar: € Orifício de saída: tem maior diâmetro que o
1. A velocidade do veículo; de entrada. O contorno é irregular e as bordas
geralmente encontram-se viradas para fora.
2. Tipo de colisão; Não exibe nenhuma das zonas características
3. Se houve destruição grave do veículo, com in- do orifício de entrada.
trusão de partes do veículo no compartimento do pas-
sageiro etc.;
4. Uso de dispositivos de restrição/airbags; Exame físico
5. Condições dos outros ocupantes. A verificação abdominal deverá ser feita no
Os integrantes do grupo de resgate devem forne- exame secundário após o exame primário ter sido
cer informações sobre: realizado (ABCDE) e exames adjuntos ao exame pri-

SJT Residência Médica – 2016


271
23 Trauma abdominal

mário (raio X de tórax AP, coluna cervical perfil C1-


Palpação
T1, pelve AP) tenham sido solicitados e avaliados
conforme o caso. A palpação abdominal fornece informações sub-
jetivas e objetivas. As primeiras consistem na avalia-
ção, pelo próprio paciente, da localização e intensi-
Inspeção dade da dor. A dor inicialmente é de origem visceral
e com localização imprecisa. Aumento voluntário da
O paciente deve estar completamente despido.
tensão da parede abdominal resulta do medo de sentir
As faces anterior e posterior do abdome, o tórax in-
dor e pode não corresponder a lesões viscerais signifi-
ferior e o períneo devem ser inspecionados em busca
de escoriações, contusões, lacerações e ferimentos pe- cativas. Por outro lado, um aumento involuntário da
netrantes. O paciente deve ser cuidadosamente rola- tensão da musculatura é um sinal fidedigno de irrita-
do para permitir o exame completo do dorso, ou seja, ção peritoneal (DB+). Da mesma forma, dor bem ca-
tanto o abdome anterior como o posterior, incluindo racterizada à descompressão súbita é sinal inequívoco
o períneo. de peritonite. Podemos encontrar sinais de irritação
peritoneal por hemoperitônio e secreções do trato
Atenção: o paciente deverá ser rolado com a pre-
gastrointestinal na cavidade pela palpação, bem como
sença de pelo menos 4 pessoas. Um fica responsável
estabelecer diagnóstico de útero gravídico e ainda es-
pelo controle da coluna cervical, os outros dois na mo-
timar a idade do feto.
vimentação do tronco e o último examinará e palpará
o dorso.
Nos EUA, dispositivos como o PASG (pneuma-
tic anti-shock gargment) deverão ser removidos para
exame, mas o paciente deverá ser bem hidratado para Toque retal
não entrar em choque hipovolêmico na desinsuflação
O toque retal é um item importante da avalia-
do PASG. Esse mecanismo funciona como um grande
ção abdominal. Os objetivos básicos do toque retal
esfigmanômetro visando aumentar a resistência peri-
nos traumas penetrantes são: detecção da presença
férica para o paciente ter melhor pressão. Ele está con-
de sangue na luz intestinal (indicativa de perfu-
traindicado em situações como supeita de trauma de
ração intestinal) e avaliação do tônus do esfíncter
diafragma. Se a pressão sistólica cair mais de 5 mmHg
subitamente deve-se reinflar o PASG e hidratar mais o anal, para estimar a integridade da medula espinhal.
paciente antes de nova desinsuflação. O PASG não é Após uma contusão abdominal, a parede do reto
mais usado tanto quanto no passado, mas em ca- também deve ser examinada na tentativa de palpar
sos de fratura de bacia ele é muito eficaz porque fragmentos ósseos (fratura de bacia) e para avaliar
é útil na fixação da bacia. a posição da próstata. A próstata elevada e flutu-
ante, sugere a possibilidade de rotura da ure-
tra posterior. A presença de crepitação ao toque
revela pneumo-retroperitônio, sugerindo rotura de
Ausculta estruturas retroperitoneais como duodeno ou pare-
O abdome deve ser auscultado para a avaliação de posterior de cólon ascendente ou descendente. É
dos ruídos hidroaéreos (RHA). A presença de sangue mais raro esse achado no exame físico. Entretanto,
ou conteúdo intestinal pode levar ao íleo paralítico ou no raio X de abdome e na TC pode aparecer enfisema
adinâmico, resultando na ausência dos RHA. Entre- retroperitoneal que diagnostica a rotura de víscera
tanto, a ausência de RHA não é diagnóstica de lesões retroperitoneal. Existe uma discussão sobre toque
intra-abdominais. O íleo também pode ocorrer em retal no ATLS 2008 que pode ser realizado antes da
consequência de traumas extra-abdominais, como fra- sondagem vesical. A substituição da obrigatorida-
turas de costelas, coluna ou pelve. riedade pela possibilidade de realizar o toque retal é
porque existem outros sinais no exame clínico sem
ser o manejo retal com igual poder preditivo (99%)
Percussão de lesão de uretra como: impossibilidade de uri-
A percussão do abdome após o trauma tem por nar, sangue no meatro uretral e uretrorragia,
objetivo primário verificar, de forma sutil, se existe equimose perineal, hematomas no períneo e
dor à descompressão brusca. Esta manobra determina fratura instável do anel pélvico. De qualquer for-
existência de irritação peritoneal (DB+). Produz uma ma, no paciente com fratura de bacia ou com equi-
resposta similar à obtida quando o paciente tosse. E se mose perineal, o toque retal é aconselhável antes da
presente nem precisa pesquisar dor a descompressão sondagem vesical, assim como sangue no meato ure-
brusca porque já é sinal que existe irritação peritoneal. tral e uretroragia também indicam uretrocistografia
Macicez difusa leva a pensar em hemoperitônio. retrógrada antes do cateterismo vesical retrógrado.

SJT Residência Médica – 2016


272
Cirurgia geral e politrauma

Avaliação de ferimentos penetrantes


Sempre que existir a suspeita de ferimento tangencial (superficial ou de raspão à camada musculoaponeu-
rótica do abdome), pode-se optar pela exploração da ferida com anestesia local para avaliar se ultrapassou ou
não a fáscia anterior (aponeurose anterior). Esse procedimento está contraindicado em lesões acima do rebordo
costal, pelo risco de causar PTX, hemotórax e destamponamento de hematoma (ver capítulo de trauma de tórax
- ferimentos toracoabdominais).

O ferimento penetrante é aquele que ultrapassou a aponeurose anterior do abdome e os músculos posteriormente.

A exploração de ferimentos por arma branca é fundamental. Cerca de 25 a 33% dos FAB não penetram no
peritônio. É conduta útil na dúvida da penetração da cavidade peritoneal se o paciente não está hipotenso e não
tem sinais de irritação peritoneal. Deve-se proceder à antissepsia + anestesia e exploração do local da ferida.

Em ferimentos tangenciais toracoabdominais e em flanco, sejam FABs ou FAFs, em pacientes hemodinamicamente


estáveis, na dúvida da penetração da cavidade peritoneal, a laparoscopia é o exame padrão ouro.

Historicamente, a laparoscopia no trauma tinha um alto índice de lesões despercebidas intestinais com
apenas 80% dos ferimentos sendo corretamente diagnosticados. Entretanto, por haver essa discrepância na li-
teratura, em recente publicação no Journal of Trauma 2009, Kawahara & Alster demonstraram que quando um
protocolo racional, fidedigno e reprodutível de laparoscopia no trauma é empregado, as lesões intestinais são
diagnosticadas em 100% das vezes em pacientes selecionados.
Atualmente, a laparoscopia é procedimento efetivo no diagnóstico de penetração da cavidade peritoneal e
lesões traumáticas por ferimento penetrante. Há de se entender que várias lesões intestinais passavam desperce-
bidas porque antigamente não se fazia o correr de alças por laparoscopia que foi o grande objetivo da padroniza-
ção dos procedimentos laparoscópicos desse trabalho também citado no ATLS.
O trabalho demonstrou que na ocorrência de traumas penetrantes existem “pontos cegos no abdome”
para a laparoscopia que se associam ao alto índice de lesões despercebidas. A evidência de ferimentos penetrantes
nos pontos cegos do abdome é indicação de conversão para laparotomia exploradora.
Eis os pontos cegos: (hematoma retroperitoneal de zona I, II ou III, ferimentos em segmento hepático VI
e VII, lesão na parte posterior do baço e ferimentos de cólon).

Laparoscopia no trauma é ótima para avaliação da cavidade peritoneal, mas não é eficaz nem efetiva para identifica-
ção de lesões traumáticas no retroperitônio que devem ser corrigidas por laparotomia exploradora.

A B
FAB Toracoabdominal ou em flanco
Penetração da cavidade peritonial? FAF ou FAB ABDOMINAL
(Paciente Estável)

Considere
Estável Instável
Toracoabdominal Tangencial Abdominal
(central)
FAST + Cristalóides TORACOTOMIA
LPD Laparoscopia Laparotomia
- Laparoscopia Pontos Cegos:
- Hematoma retroperitonial
Alta (I, II e III); NÃO Penetração SIM
-Parede post. do baço;
-Segmento VI e VII do Peritonial
fígado. SIM
-Lesão do cólon PONTOS CEGOS:
Lesão Lesão -Hematoma retroperitonial
Parenquimatosa Alta Parenquimatosa (I, II, III);
Estômago Estômago -Parede post. do baço;
Diafragma Diafragma -Segmento VI e VII do
fígado.
"Bowel runnig" Lesão de cólon
"Bowel running" INSUCESSO +
LAPAROTOMIA Insucesso
+ Laparoscopia
Laparoscopia Terapêutica
Terapêutica

Figura 23.2 Algoritmo de indicação de laparoscopia no trauma. Adaptado de Kawahara & Alster et al. Standard
examination system for laparoscopy in penetrating abdominal trauma. J Trauma 2009; 67(3):589-595.

SJT Residência Médica – 2016


273
23 Trauma abdominal

Cuidado: na presença de fraturas de face ou


Avaliação da estabilidade pélvica
sinais de fratura de crânio (sinal do guaxinim,
A compressão normal das espinhas ilíacas ante- sinal da batalha, sinal do duplo halo), a sonda
ro-superiores ou cristas ilíacas pode revelar desloca- gástrica deve ser introduzida via oral para pre-
mento anormal dos ossos ou ainda despertar dor. Se a venir a introdução acidental no interior do crâ-
pelve permanecer estável, procede-se à tração das es- nio, por meio de fratura da placa crivosa.
pinhas ilíacas anteriores. Em vítimas de traumatismo
No início da fase de reanimação, a introdu-
de tronco, tais achados sugerem fratura pélvica. Esse
ção da SNG é para:
exame não deve ser repetido porque tal manobra pode
piorar a hemorragia. 1. Descomprimir possível dilatação do estômago;
2. Descomprimir o estômago antes do LPD, mi-
nimizando riscos de aspiração e lesões associadas.
Toque vaginal Caso haja sangue na sondagem nasogástrica,
Lacerações da vagina podem ser oriundas de afastada a presença de lesões oro ou nasofaríngeas,
traumas penetrantes ou a fragmentos ósseos de fra- atentar para a possibilidade de lesões do esôfago ou
turas pélvicas. TGI alto.
Cateterismo vesical (sonda vesical de demo-
ra – SVD)
Toque retal
É o melhor indicador de perfusão tecidual no trau-
Em vítimas de trauma contuso, o toque retal é útil ma. O débito urinário deve ser mantido 50 mL/h.
para avaliar o tônus muscular esfinctérico, a posição da
próstata e possível fratura dos ossos da pelve. Já em As funções principais são: descompressão da be-
ferimentos penetrantes, além do tônus, a presença de xiga e avaliação do índice da perfusão tecidual e débi-
sangue na luva indica perfuração de víscera oca. to urinário. Além disso, é necessário descomprimir a
bexiga antes de realizar LPD. A hematúria é um sinal
importante de possível trauma renal ou de trauma
não renal, mas afetando o sistema genitourinário. Nos
Exame do pênis
EUA, a urina coletada pode ser utilizada na detecção
A presença de sangue no meato uretral deve le- laboratorial de drogas, porém não aqui no Brasil. A
vantar a suspeita de laceração da uretra, bem como coloração da urina é importante sobretudo em quei-
hematomas ou equimoses no períneo. maduras e trauma com grande destruição muscular
porque há a preocupação com o desenvolvimento de
rabdomiólise (mioglobinúria). Nessas condições, há
Exame da região glútea
o acúmulo de mioglobina nos túbulos renais e insu-
A região glútea vai desde as cristas ilíacas até as ficiência renal, por isso a urina assume um aspecto de
pregas glúteas. Os ferimentos nessa região são acompa- coloração âmbar (marrom). Nesses casos de rabdomi-
nhados de lesões intra-abdominais em 50% dos casos. ólise, o débito urinário deve ser mantido em 100 mL/h
Ferimentos na região glútea geralmente como discutido no capítulo de queimaduras.
incluem trauma de reto abaixo da reflexão pe- Cuidado: antes da introdução da SVD, examine
ritoneal. o reto e os genitais, visando detectar sinais que con-
traindiquem o procedimento. Elevação da próstata ao
toque retal e a presença de sangue no meato uretral ou
Sondagens de hematomas escrotais ou perineais contraindicam o
procedimento. Nesse momento, é necessário realizar
A inserção de sondas gástricas e urinárias é reali- uretrocistografia retrógrada que confirme a inte-
zada como exame adjunto ao exame primário. gridade da uretra.

Uma vez existindo a contraindicação da SVD, é impor-


Sondagem nasogástrica (SNG)
tante a realização da uretrocistografia para diagnóstico
Tem finalidade diagnóstica e terapêutica. O obje- de lesões de uretra ou bexiga extraperitoneal e intra-
tivo principal é o esvaziamento do conteúdo gástrico, peritoneal.
reduzindo a pressão e volume do estômago e a possi-
bilidade de broncoaspiração. A presença de sangue nas
secreções aspiradas, excluída uma fonte nasofaringea- Confirmada a lesão da uretra, é fundamental que
na de hemorragia, sugere lesão alta do trato gastroin- se faça uma cistostomia, sendo mais seguro a inserção
testinal (TGI). guiada por ultrassom ou por aberta.

SJT Residência Médica – 2016


274
Cirurgia geral e politrauma

Contraindicações do cateterismo vesical: tônio. Já o raio X de abdome supino pode detectar ar


1. Impossibilidade de urinar espontaneamente; retroperitoneal e determinar o trajeto do projétil com
2. Fratura instável do anel pélvico; o uso de clipes metálicos no orifício de entrada e saída.
3. Sangue no meato uretral;
4. Próstata deslocada cranialmente;
5. Hematoma escrotal/equimose perineal. Estudos radiológicos contrastados

Coleta de sangue e urina Uretrocistogra昀椀a retrógrada (UCR)


Doentes hemodinamicamente estáveis = ti- Deve ser realizada na suspeita de rotura da
pagem + provas cruzadas (demora 1 hora). uretra. Realiza-se a injeção de 15-20 mL de contraste
não diluído em baixa pressão, com cateter 8 French,
Doentes hemodinamicamente instáveis =
com a extremidade mantida presa ao meato insuflado
sangue O negativo (choque grau III e IV) que está dis-
com um balão 1,5-2 mL ou com clip apropriado para
ponível de imediato, sangue tipo específico (demora
este estudo. O contraste vai sendo injetado desde a
10 min. e é compatível com sistema ABO e Rh) para os
uretra até a bexiga. Se possível acompanhamento por
pacientes com resposta volêmica transitória.
fluoroscopia. a UCR Pode demonstrar extravasamen-
O ATLS recomenda que sejam solicitados leuco- to de contraste na uretra e ainda na bexiga intra e ex-
grama, eletrólitos, principalmente potássio, glicemia, traperitoneal. Dessa maneira, 300 mL de contraste são
amilase, β-hCG em mulheres em idade fértil. infundidos na bexiga e realiza-se raio X em incidência
anteroposterior e oblíqua com estudo pós-miccional
necessário para excluir lesão vesical. As respostas que
esperamos deste exame são: 1. existe ou não lesão de
Radiologia uretra, 2. esta lesão é parcial ou total, 3. esta lesão é
de uretra anterior ou posterior, 4. existe ou não lesão
Trauma contuso vesical, 5. esta lesão é intra ou extra peritoneal.

Os raio X adjuntos ao exame primário são:


A uretrocistografia deve preceder a TC de abdome
€ raio X coluna cervical perfil C1-T1 (o raio X AP sempre que houver a suspeita de lesão de bexiga, como
não faz parte da avaliação primária!); no caso das fraturas pélvicas. Neste contexto, a CT
€ raio X tórax AP; pode caracterizar algum contraste que extravazou du-
€ raio X pelve AP. rante a uretrocistografia.

Lembre que o raio X de crânio não faz parte


dos exames adjuntos à avaliação primária. nos do-
entes hemodinamicamente estáveis, o raio X de abdo- Urogra昀椀a excretora
me (supino e ortostase com proteção da coluna) pode Era frequentemente realizado mas hoje foi subs-
ser útil para detectar pneumoperitônio ou ar extralumi- tituído pela TC. Então, a urografia excretora só é uti-
nal entre alças (Sinal de Riedler), ou, ainda, ar no retro- lizada em serviços que não têm TC abdominal ou no
peritônio (pneumorretroperitônio). Todos os eventos intra operatório.
acima indicam laparotomia exploradora sem demora.
Usam-se doses altas de contraste com injeção
O apagamento da imagem do psoas também intravenosa rápida de 200 mg de contraste iodado/
pode sugerir lesão retroperitoneal. Caso haja a kg. Administram-se 100 mL (1,5 mL/kg) de solução
impossibilidade de realizar o raio X em ortostase (dor de contraste iodado a 60%, injetando durante 30-60
ou suspeita de fratura de coluna), pode-se fazer raio X segundos, em duas seringas de 50 mL.
em decúbito lateral esquerdo.
Dois minutos após a injeção do contraste,
deve-se visualizar os cálices renais. Caso não
apareça, pensar em:
Trauma penetrante € agenesia renal unilateral;
O doente que estiver instável não necessita de € trombose/avulsão artéria renal;
qualquer raio X, mas sim de tratamento cirúrgico. Já no
paciente estável, considerar como portador potencial € lesão gravíssima do parênquima renal.
de lesão de tórax aquele trauma penetrante supraum- Se houver alterações, prossegue-se para o diag-
bilical. O raio X de tórax em ortostase é útil para excluir nóstico de imagem pela TC de abdome e arteriografia
hemo/pneumotórax, bem como detectar pneumoperi- ou laparotomia exploradora.

SJT Residência Médica – 2016


275
23 Trauma abdominal

pode dar falso-positivo, mas na verdade é só SF0,9%


Urogra昀椀a realizada no intra
ou Ringer que transudou para a cavidade peritoneal.
operatório (one shot urography) Nesses casos, o LPD evitaria a laparotomia explorado-
Para aqueles pacientes em que não foi possível ra porque o resultado seria negativo.
estudo por imagem antes da cirurgia, com hematoma
Além disso, o LPD pode ser alternativa em pa-
de zona II e com necessidade de avaliação do rim con-
tra lateral. Utiliza-se 2mL/Kg contraste e após 15 mi- cientes com síndrome do cinto de segurança (apresen-
nutos se realiza uma imagem. tam sinal do cinto de segurança) com suspeita de lesão
de delgado em serviços que não dispõem de FAST.
Na suspeita de traumatismo renal e impossibi-
lidade de realização de tomografia computadorizada, As contraindicações relativas referentes à
podem ser realizados alternativamente ultrassonogra- realização da LPD são: presença de cirurgias abdo-
fia e orografia excretora minais prévias, obesidade mórbida, cirrose avançada
A tomografia computadorizada no traumatis- e coagulopatia. A única contraindicação absoluta
mo abdominal deve ser realizada sem contraste via para a realização da LPD é a indicação de laparo-
oral e com contraste ev. pois todo politrauma é um tomia já estabelecida.
paciente potencialmente cirúrgico e deve ser manti-
do em jejum vo.
Indicações e contraindicações para LPD
Indicações
Exames gastrointestinais
Exame físico equivocado
Lesões retroperitoneais isoladas (duodeno, có- Choque a esclarecer
lon, trato biliar, pâncreas) não levam à peritonite e Alteração sensorial (TCE, drogas, intoxicações)
não são detectadas pelo LPD. Se essa é a suspeita, de- Anestesia geral para cirurgias extra-abdominais (ex.:
vem ser feitos exames contrastados e específicos (lem- neurocirurgião)
brar do uso preferencial de contraste iodado sempre TRM com lesão de medula
que houver suspeita de perfuração de visceral oca). Contraindicação absoluta
Vale lembrar também que na TC nas primeiras 8 horas Indicação clara de laparotomia exploradora
de trauma a TC de abdome pode ser normal em trau- Contraindicações relativas
ma pancreático. Laparotomia exploradora prévia
Gravidez
Cirrose hepática
Coagulopatia
Lavado peritoneal Obesidade
diagnóstico (LPD) Tabela 23.1 Lavado peritoneal diagnóstico (LPD).
Certamente a LPD tornou-se um dos métodos
mais difundidos e seguros no diagnóstico do trauma
abdominal por duas décadas. Entretanto, como é in- LPD positiva para trauma abdominal fechado
vasivo, o FAST é preferível ao LPD. Aspiração de mais de 10 mL de sangue
As indicações de LPD na investigação de Líquido da lavagem com uma das seguintes caracter-
ísticas
trauma abdominal é para identificar presença de
> 100.000 hemácias/mm³
sangue ou secreções do TGI no líquido peritoneal.
> 500 leucócitos/mm³
Tanto pacientes estáveis como instáveis hemo- Presença de bile, bactérias (Gram) ou secreções TGI,
dinamicamente podem fazer LPD na dúvida de lesão urina
abdominal, sobretudo naqueles com alteração do nível Dosagem de amilase > 175 UI/dL
de consciência por TCE ou drogas, trauma raquimedu-
Tabela 23.2 Critérios de positividade para o LPD.
lar (TRM), com perda de sensibilidade abdominal por
lesão de medula.
Atualmente, o LPD é pouco utilizado. Todavia, Comparação entre os métodos diagnósticos
nos casos em que há dúvida de trauma abdominal, em para lesões abdominais (ATLS, 2008)
que o paciente está sendo operado pela neurocirurgia Itens LPD FAST TC
e vai ser anestesiado para realização de exames ou Indica- Diagnostica Diagnostica Diagnostica
cirurgias, o LPD aparece como um bom procedimen- ção sangue > PA líquido > PA lesões especí-
to. Da mesma maneira, em pacientes que receberam é normal ou é normal ou ficas, se a PA
reposição volêmica em grandes quantidades, o FAST caindo. caindo. é normal.

SJT Residência Médica – 2016


276
Cirurgia geral e politrauma

Comparação entre os métodos diagnósticos Ultrassonogra昀椀a no trauma


para lesões abdominais (ATLS, 2008) (Cont.)
(Focused Assessment Sonography
Vanta- Rápido. Sen- Rápido. Não Lesões intra-
gens sibilidade invasivo e -abdominais. for Trauma – FAST)
98%, mas é pode ser repe- Acurácia 92- O FAST é exame focado para o doente traumati-
invasivo e tido. Acurácia 98%. zado e está direcionado especificamente para a identi-
não dá para 86-97%. ficação de líquido livre e não para o estudo detalhado
repetir.
dos órgãos abdominais. As indicações do FAST são as
Des- Invasivo. Não Operador Diagnósti- mesmas da LPD. O FAST pode ficar prejudicado em
vanta- diagnosti- dependente; co difícil do
doentes obesos (gordura diminui a acurácia), bem
gens ca lesões em ruim se muito diafragma,
como a presença de ar, seja no subcutâneo, na parede
diafragma e meteorismo, mesentério
retroperitô- enfisema sub- e trauma de toracoabdominal e nas alças intestinais. O FAST deve
nio. cutâneo e gor- pâncreas (< 8 estudar o pericárdio, os espaços hepatorrenal (Mori-
dura. horas). son) e esplenorrenal e o fundo de saco posterior.
Tabela 23.3 Métodos diagnósticos na suspeita Necessariamente há de se repetir novo FAST
lesões intra-abdominais. de controle 30 minutos após o primeiro. Assim,
eventual sangramento que ocorra nesse intervalo ou
um trauma muito precoce pode ser identificado com
segurança.
Técnica cirúrgica
LPD infraumbilical: em nosso meio, tem-se
preferência à técnica aberta. Após antissepsia e anes-
tesia com vasoconstritor, realiza-se incisão de pele
e subcutâneo mediana infraumbilical de 3 a 4 cm, in-
cisa-se a aponeurose, realiza-se sutura em bolsa com
fio inabsorvível no peritônio, abre-se o peritônio e
posiciona-se cateter de diálise peritoneal em direção
ao fundo de saco de Douglas. A próxima etapa é a aspi-
ração com seringa de 20 mL. Se houver saída de 5-10
mL de sangue ou conteúdo do TGI, considera-se a LPD
como positiva. Caso contrário infundem-se 1.000 mL
de soro fisiológico na cavidade peritoneal do adulto e
10 mL/kg de peso na criança. Ao final, aspira-se por si-
fonagem o líquido infundido. Considere a Tabela 23.2
para os critérios de positividade do LPD. Figura 23.3 FAST: o ultrassom é utilizado para detec-
Em análise macroscópica, considera-se positivo tar a presença de hemoperitônio e hemopericárdio.
o líquido que, colocado em tubo de ensaio, não per-
mite a leitura de texto de jornal posicionado atrás do
Vantagens e desvantagens do FAST
tubo. Na análise laboratorial, considera-se positivo
o exame que apresente 105 (100.000) eritrócitos ou Vantagens
500 leucócitos por mm3, presença de fibras vegetais, Não invasiva
bactérias, amilase acima de 175 U/dL, secreções do Não requer radiação
TGI ou urina. Com LPD positiva, indica-se a laparo- Útil no departamento de emergência ou na sala de res-
tomia ou laparoscopia exploradora dependendo se suscitação
tiver critérios para a cirurgia minimamente invasiva Pode ser repetido
(trauma penetrante toracoabdominal ou flanco em Utilizado durante a avaliação inicial
pacientes estáveis com dúvida da penetração da ca- Baixo custo
vidade peritoneal). Desvantagens
LPD também pode ser feito pela técnica fechada Examinador dependente
(técnica de Seldinger) com punção percutânea, mas o Obesidade
ATLS preconiza a técnica aberta por ser mais segura. Interposição de gás
LPD supraumbilical: na presença de fratura Baixa sensibilidade de líquido livre < 500 mL
pélvica ou gravidez, a abordagem é supraumbilical Falsos-negativos: líquido retroperitoneal e lesão de
aberta, para não entrar em hematoma pélvico, ocasio- víscera oca
nando hemorragias ou lesionar o útero e/ou o feto. Tabela 23.4 Risco-benefício do FAST.

SJT Residência Médica – 2016


277
23 Trauma abdominal

ção, em se tratando de trauma penetrante com líquido


na TC sem evidência de trauma de fígado ou baço, o
paciente necessitará de laparoscopia exploradora. Já
se for trauma fechado, o paciente poderá ir ao LPD e à
laparotomia exploradora.

Indicações e contraindicações para


tomografia computadorizada do abdome
Indicações
Trauma contuso ou penetrante duvidoso
Estabilidade hemodinâmica
Contraindicações
Figura 23.4 Lavado peritoneal diagnóstico (LPD) é Indicação óbvia de laparotomia exploradora
um procedimento invasivo, de execução rápida e tem Instabilidade hemodinâmica
uma sensibilidade de 98% para detectar sangue intra- Agitação
peritoneal com acurácia maior que 95%.
Alergia ao contraste e insuficiência renal
Tabela 23.5 Características da TC de abdome.

Tomogra昀椀a computadorizada (TC)


A TC é o exame que possui maior especificidade
para diagnóstico das lesões abdominais e retroperi-
toneais de órgãos específicos com acurácia superior a
Laparoscopia no Trauma
95%. Entretanto: (Laptrauma)
€ Somente pode ser feita em pacientes estáveis A principal indicação para a laptrauma é
sendo contra-indicada no choque; no ferimento abdominal penetrante, com dúvida
€ O contraste via oral no estômago deve ser ad- diagnóstica de penetração da cavidade peritoneal após
ministrado pelo menos 30 minutos antes do lesão toracoabdominal ou em flanco, a fim de evitar la-
exame; Deve ser ressaltado que o paciente po- parotomias desnecessárias e a morbidade relacionada
litraumatizado deve permanecer em jejum pois com esse procedimento (20% de complicações).
é potencial candidato a tratamento cirúrgico,
desta forma o uso de contraste oral deve ser re-
alizado apenas em pacientes estáveis e cujo ris- Trauma Fechado versus Penetrante: indicações da
co benefício do método justifiquem a utilização LAPTRAUMA
deste contraste. Na suspeita de perfuração de
Nível II de evidência. Utilidade como
visceral oca, o contraste iodado é preferível método de “screening”, diagnóstico e ter-
€ Necessidade de transporte (40-60 minutos) apêutico;
para que o doente seja conduzido para o apare- Trauma Ferimento tangencial em trauma tora-
lho; Penetrante coabdominal com dúvidas de penetração*;
€ Há necessidade de administração de contraste Lesão da víscera parenquimatosa ou di-
endovenoso; afragma*;
Trauma gástrico.
€ O custo é elevado;
Nível III de evidência. Não tem indicação
€ Tem menor acurácia para trauma de diafragma, aceita de modo geral. Entretanto, pode
pâncreas (< 8 horas), bexiga e intestino delgado. ser usada, em centros de pesquisa, como
“screening”, sendo realizada laparotomia
Trauma
A presença de líquido intra-abdominal na ausência de a seguir para determinação do índice de
Fechado
trauma hepático ou esplênico identificado na TC levanta lesões despercebidas; tratamento conser-
alta possibilidade para lesão de intestino delgado. vador do trauma hepático com coleção ab-
dominal que precisa ser drenada; trauma
de bexiga.
Nessa eventualidade, o líquido acumulado no pe-
ritônio pode ter se originado de lesão intestinal mas *Pacientes hemodinamicamente estáveis, Glasgow >
12, pressão sistólica > 90 mmHg; reposição volêmica <
também pode ser que tenha sido de lesão vascular no
3 L na 1ª hora de atendimento.
mesentério ou da bexiga. Isso porque a TC não identi-
fica claramente ou diferencia essas lesões. Nessa situa- Tabela 23.6

SJT Residência Médica – 2016


278
Cirurgia geral e politrauma

As contraindicações ao uso da videolapa-


roscopia no trauma abdominal são: (a) insta- Ferimentos por arma
bilidade hemodinâmica; (b) gestalção; (c) trauma
craniencefálico com ECG < 13; (d) ferimentos pene-
branca (FAB)
trantes com orifício de entrada em dorso; (e) exis-
tência de laparotomias prévias extensas e (f) crianças Dos pacientes que sofreram FAB, 60% chegam
com idade < 12 anos. ao PS eviscerados (exteriorização de epíploon ou vís-
ceras), hipotensos e com sinais de irritação peritoneal.
Na evisceração, não se deve reconduzir o conteúdo no-
vamente para o interior da cavidade abdominal, pois
Indicações de laparotomia tais estruturas, pelo contato com o meio externo, já
estão contaminadas. O importante é a proteção com
exploradora compressas úmidas com SF 0,9% e a preparação do pa-
Esse procedimento deverá ser prontamente ciente para a laparotomia exploradora.
indicado para as seguintes situações:
€ Trauma abdominal fechado com hipotensão; Órgãos Frequência
FAST positivo; Fígado 40%
€ Trauma abdominal fechado com LPD positivo; Intestino delgado 30%
€ Ferimento penetrante de abdome com hipoten- Diafragma 20%
são; Cólon 15%
€ FAF que atravessa o abdome e compromete a ca- Tabela 23.7 órgãos mais frequentemente lesados
vidade; peritoneal ou estruturas retroperitoneais; por FAB (ATLS, 2008).
€ Evisceração;
€ Hemorragia do estômago, reto ou TGU; Há pacientes que chegam ao hospital ainda com
a arma branca introduzida. A prioridade é evitar a re-
€ Peritonite;
tirada da faca (ou outro objeto de empalamento) na
€ Pneumoperitônio ou pneumorretroperitônio; sala de admissão. Estes pacientes, após as medidas
€ Ruptura de diafragma; iniciais (e se as condições clínicas permitirem), deve-
€ TC do abdome: lesão do TGI, de bexiga intra- rão ser encaminhados para estudo radiológico com o
peritoneal, de pedículo renal e parenquimatosa intuito de saber o tamanho, o trajeto e a posição da
grave em pacientes instáveis. Lembrar que a ponta da arma. A partir de então, o paciente deve ser
única indicação de laparotomia de urgên- encaminhado ao centro cirúrgico. O que determina-
cia no trauma renal é a hemorragia com rá a indicação de cirurgia (laparoscopia ou la-
risco de vida. parotomia exploradora) é a penetração da arma
branca através da aponeurose anterior (parede
Trauma
Abdominal
anterolateral) ou da musculatura lombar (pare-
de posterior).
Ferimentos Contusões O melhor método para avaliar se um ferimento
penetrantes abdominais
é penetrante ou não é a exploração local cirúrgica sob
Quadro clínico Quadro clínico
anestesia local com técnica antisséptica.
conclusivo não conclusivo
Se o ferimento for pequeno, ou mesmo nos casos
Indicação Condições hemodinâmicas Condições hemodinâmicas de ferimento puntiforme, a melhor conduta é a sua
cirúrgica estáveis instáveis
ampliação sob anestesia local e afastadores tipo Fara-
beuff. Em caso positivo, está indicada a laparotomia
Exploração Tomografia
intraoperatória computadorizada
Ultrassom, LDP exploradora para saber se há ou não lesão de estrutu-
ras intra-abdominais.
Correção
das lesões
Lesões de visceras
parenquimatosas
Lesões de
vísceras ocas
Positivos Negativos Ferimentos por FAB < 6 horas sem penetra-
ção da cavidade peritoneal devem ser suturados
Considerar
tratamento não
Indicação Reexaminar e
continuar
e o paciente deverá receber a antitetânica caso
cirúrgica
operatório investigação desconheça o calendário vacinal. No caso de feri-
Exploração
mento profundo (> 1 cm) e contaminado com terra ou
intraoperatória
outros materiais, o paciente deverá receber adicional-
Correção das
mente imunoglobulina. FAB > 6 horas não são su-
lesões turados e a ferida deverá cicatrizar por segunda
Figura 23.5 Conduta no trauma abdominal. intenção, pois já é considerada infectada.

SJT Residência Médica – 2016


279
23 Trauma abdominal

Toda a ferida traumática é contaminada. O ferimento


acima de 6 horas é infectado e por isso não deve ser
suturado.

O raio X do abdome poderá mostrar pneumope-


ritônio (rotura de víscera oca na cavidade peritoneal)
e pneumorretroperitônio (rotura de víscera oca no re-
troperitônio como duodeno, cólon ascendente e des-
cendente), além de borramento do músculo psoas de-
vido à presença de sangue no retroperitônio. O líquido Figura 23.6 Ferimento por arma de fogo. Note orla de
livre na cavidade peritoneal aparece como borramento queimadura esfumaçamento e tatuagem (externo) e jun-
da pequena bacia pela presença de sangue ou líquidos to ao centro a orla de escoriação, enxugo e equimótica.
digestivos, extravasados nesse local (sinal da orelha Característico do orifício de saída FAF a curta distância.
de cachorro).

Procedimento para avaliar pene-


tração na cavidade peritoneal
Trauma abdominal
€ exploração digital (anestesia local); fechado
€ raio X simples do abdome;
Pode acontecer por compressão, esmagamento-
€ fistulografia; -cisalhamento, ou, ainda, por lesões de desaceleração.
€ FAST/ LPD; O impacto direto pode causar rotura de vísceras intra-
-abdominais com hemorragia e peritonite. Dentro da
€ TC;
modalidade do esmagamento, há o cisalhamento pelo
€ laparoscopia (para ferimento penetrante tan- uso inadequado de dispositivos de segurança e restri-
gencial toracoabdominal ou flanco em doentes ção (cinto de segurança, airbag etc.). Nas lesões de de-
estáveis, não acometendo dorso). saceleração, ocorre deslocamento desigual das partes
mais ou menos fixas do corpo. Isso decorre, por exem-
plo, em lacerações do fígado e baço (órgãos móveis) e
seus locais de inserção (ligamentos de suporte), que
Ferimentos por arma são estruturas fixas. Pela lei de Laplace (quanto
maior o raio de um tubo, maior a tensão de suas
de fogo (FAF) paredes) o ceco é um dos órgãos mais propensos à
explosão durante um trauma fechado, bem como
Em caso de dúvida da penetração da cavidade pe- duodeno em pontos fixos (ligamento de Treitz).
ritoneal, é melhor realizar uma laparoscopia ou lapa-
O exame clínico seriado em paciente politrauma-
rotomia branca (sem lesões intra-abdominais) a ficar
tizado (sem comprometimento neurológico) tem acu-
na dúvida e deixar passar lesões que, se operadas tar-
rácia semelhante a da TC de triplo contraste.
diamente, podem levar a quadros abdominais graves.
Nos casos em que o paciente está inconsciente
Importante lembrar:
ou com o grau de consciência diminuído (associação
€ Até que se prove o contrário, toda lesão abdo- com TCE, pacientes alcoolizados ou drogados), naque-
minal aberta deve ser considerada penetrante e les portadores de TRM ou nos com hipovolemia inex-
avaliada. plicada, é necessária a realização de exames especiali-
€ Lesões na parte inferior do tórax, períneo ou zados (FAST/ LPD, TC, laparoscopia) porque o exame
nádegas podem ter atingido o abdome, depen- físico ficará comprometido.
dendo do tamanho da arma branca ou da traje-
O FAST é rápido e útil para identificar presen-
tória da arma de fogo.
ça de líquido intra-abdominal com paciente estável
ou instável. Apesar do ultrassom poder identificar
Órgãos Frequência também lesões em órgãos, o foco do FAST é para
Intestino delgado 50% identificação de líquido e indicação precoce de lapa-
Cólon 40% rotomia exploradora.
Fígado 30%
Unindo-se os dados da história (quando
Vasos 25% possível) ao exame físico apurado, além da ob-
Tabela 23.8 Lesões mais frequentes por FAF (ATLS, 2008). servação clínica rigorosa e procedimentos com-

SJT Residência Médica – 2016


280
Cirurgia geral e politrauma

plementares, consegue-se, na grande maioria Condições básicas para o tratamento


dos casos, indicar ou não a laparotomia explora- não operatória de lesões em órgãos sólidos
dora nos casos de trauma abdominal fechado. (Cont.)
€ Centro Cirúrgico disponível 24 h
Órgãos Frequência € Serviço de TC 24 h
Baço 40-55% € Banco de Sangue 24 h
Fígado 35-45% € Laboratório 24 h
Hematoma retroperitoneal 15% Tabela 23.10
Intestino delgado 5-10%
Rim 10%
Estômago 4%
Pâncreas 3%
Diafragma 3%
Diafragma
Duodeno 0,2% As lesões de diafragma representam cerca
Tabela 23.9 Lesões mais frequentes no trauma ab-
de 3% de todas as lesões abdominais e 0,8% das
dominal fechado. admissões por trauma. Contudo, esses números po-
dem variar entre instituições. 90% dos traumas de
diafragma são acidente de trânsito.
O trauma diafragmático é mais comum à es-
querda em 54-87% das vezes. A lesão diafragmá-
Tratamento não operatório tica direita só se torna frequente quando forem
O tratamento não operatório das lesões em ór- considerados estudos de necropsia. A cavidade pe-
gãos sólidos, em pacientes vítimas de trauma abdo- ritoneal está sujeita à lei de Boyle. Quando ocorrer um
trauma por compressão do abdome, haverá diminui-
minal fechado, particularmente fígado, baço e rim,
ção do tamanho da cavidade peritoneal, aumentando
tornou-se padrão nos grandes centros médicos. Nos
a pressão intra-abdominal. E o ponto mais fraco é o
EUA os serviços de referência também realizam, em
diafragma à esquerda, já que à direita o fígado absorve
situações selecionadas, o tratamento não operatório
o impacto e protege do trauma.
das lesões pancreáticas. Essas medidas obviamente
evitam todas as consequências e complicações de uma As lesões bilaterais ocorrem em aproximada-
laparotomia branca. mente 2% dos casos. Em geral, as lesões por ferimen-
tos penetrantes são pequenas e raramente provocam
O tratamento não operatório das lesões de ór-
herniação logo após a ocorrência. Na maioria das vezes
gãos parenquimatoros por agentes penetrantes come- são encontradas durante a laparotomia exploradora.
ça a ganhar corpo e passa a ser um campo promissor.
Já as lesões resultantes de trauma fechado são
Doentes selecionados a partir de avaliação clínica maiores, variando de 5 a 10 cm. Como dito anterior-
e por imagem (Tomografia), devem ser constantemen- mente, ocorrem mais frequentemente na região poste-
te monitorados preferencialmente em UTI. O exame rolateral do lado esquerdo e produzem herniação mais
físico deve ser seriado, pois o trauma é uma doença facilmente do que os ferimentos penetrantes. A hernia-
dinâmica e muitas vezes há grandes variações em um ção pode ser identificada na radiografia de tórax.
espaço curto de tempo. Devem ser colhidos hemogra-
Os achados da radiografia são elevação ou
ma, amilase e gasometria arterial na admissão. Nas
borramento do hemidiafragma, apagamento do con-
primeiras 24 horas, esses exames devem ser repetidos
torno do diafragma, sombra gasosa e nível hidroaéreo
a cada seis horas. No segundo dia, a cada doze horas.
no tórax e SNG na projeção torácica e hemotórax. Caso
Nos dias seguintes, uma vez ao dia é suficiente para a
não exista a hérnia, a radiografia de tórax pode ser
maioria dos doentes. As informações devem ser ano-
considerada normal. Há de se lembrar da cinemática
tadas rigorosamente em prontuário. do trauma porque 50% dos raio X de tórax podem ser
normais ou limitados a pequenos hemopneumotórax.
Condições básicas para o tratamento
não operatória de lesões em órgãos sólidos Não Invasivos Invasivos
€ Dependente do paciente: Raio X tórax LPD
€ Estabilidade hemodinâmica (PAsist ≥ 90 mmHg) FAST Toracoscopia
€ Ausência de sinais de peritonite generalizada Esofagograma Laparoscopia
€ Dependente das condições locais: TC/Ressonância Laparotomia
€ Unidade de Terapia Intensiva ou Semi-intensiva Tabela 23.11 Métodos invasivos e não invasivos para
€ Equipe Cirúrgica com experiência disponível 24 h diagnóstico de hérnia diafragmática traumática.

SJT Residência Médica – 2016


281
23 Trauma abdominal

O tratamento da lesão diafragmática deve


A rotura de víscera oca resulta em pneumoperitônio (vís-
ser feito por laparoscopia (hérnia diafragmática
cera intra-abdominal, ex. estômago) ou pneumoperitônio
aguda) ou toracoscopia (hérnia diafragmática tardia
(víscera retroperitoneal, ex. duodeno, cólon ascendente e
> 6 meses) com retorno das estruturas herniadas ao descendente).
abdome e sutura da lesão com pontos separados de fio
inabsorvível em U com prolene 0 ou 1 (lesões < 5 cm).
Vale lembrar a síndrome do cinto de segurança
Lesões maiores exigem tela (Marlex, Dacron ou Prole-
que caracteristicamente ocasiona-se com a presença
ne). Alguns cirurgiões preconizam a realização de ou-
da marca do cinto e lesões viscerais (intra-abdominais
tra sutura contínua sobre as bordas que restaram da
ou retroperitoneais) do intestino delgado, fraturas de
sutura em U. Caso haja lesão pleural, pode-se drenar a
Chance na coluna lombar e fortuitamente lesões do
cavidade pleural com dreno de tórax tubular multiper-
estômago e do cólon.
furado (36-40 F) sob selo d’água do lado do ferimento.
A lesão diafragmática também pode ser tratada por la-
60% dos pacientes com fratura de Chance têm lesões
parotomia ou toracotomia. Existe 55% de associação
intestinais associadas ao trauma.
de rotura traumática do diafragma e fratura de bacia.
Em 93% a rotura do diafragma direito está associada
a trauma hepático. Provavelmente a localização da lesão depende do
somatório de diferentes fatores, tais como a natureza e
As complicações agudas mais comuns da le- a biomecânica do trauma, o estado de repleção da vísce-
são diafragmática traumática são: deiscência de ra no momento do impacto e a eventual concomitância
sutura, paralisia do hemidiafragma, decorrente de le- de alguma doença gástrica presente ou passada.
são traumática ou iatrogênica do nervo frênico, insufi-
ciência respiratória, empiema ou abscesso subfrênico. O ferimento penetrante é a principal causa
de lesão do estômago e do intestino delgado em
Complicações mais tardias são: a hérnia estrangulada
80% das vezes.
e perfurada de vísceras abdominais e a obstrução in-
testinal recorrente. Nas vítimas de ferimentos penetrantes de ab-
dome, o intestino delgado é o órgão mais lesado. O
trauma fechado produz lesão por ruptura. No intestino
delgado, as lesões ocorrem quando é criado um segmen-
Trauma do diafragma to de intestino que fica em alça fechada, com aumento
Grau Descrição da lesão súbito de pressão. A utilização errônea do cinto de segu-
rança (cinto abdominal acima das espinhas ilíacas) pode
I Contusão
provocar lesões tanto de intestino delgado quanto de
II Laceração ≤ 2 cm mesentério. Nesses doentes é frequente a presença de
III Laceração 2-10 cm equimose ou hematoma na parede abdominal (sinal do
Laceração > 10 cm com cinto de segurança). Lesões por explosão de estômago
IV e de intestino delgado estão frequentemente associadas
perda tecidual ≤ 25 cm2
Laceração com perda a outras lesões, como a fratura de Chance.
V
tecidual > 25 cm2 A fratura de Chance são fraturas transver-
*American Association for sais que passam horizontalmente através do pro-
the Surgery of Trauma – Or- cesso espinhoso, lâmina, processo transverso,
gan Injury Scale (AAST-OIS). pedículos e porção posterior do corpo vertebral.
Tabela 23.12 Classificação para trauma do diafragma. Esse tipo de lesão foi descrito para o segmento
lombar do esqueleto axial e frequentemente é acom-
panhado pela síndrome do cinto de segurança, carac-
terizada por trauma abdominal fechado.
Trauma de estômago e
intestino delgado
As contusões abdominais raramente resul-
tam em lesões gástricas (4%) e a maioria é na face
anterior na pequena curvatura. O estômago é nor-
malmente protegido pelo gradeado costal e o trauma
ocasiona explusão do seu conteúdo tanto para o esôfago
como para o duodeno, sempre que a pressão intragás- Figura 23.7 Fratura de Chance: note a linha horizon-
trica aumenta subitamente. Mesmo assim, o estômago tal de fratura com o acunhamento da vértebra lombar
é mais suscetível à rotura quando cheio de alimentos. característico.

SJT Residência Médica – 2016


282
Cirurgia geral e politrauma

O diagnóstico das lesões de estômago e de in- do inviável, fechamento com sutura absorvível (para
testino delgado nem sempre é fácil. Nos ferimentos evitar formação de cálculos no futuro por matriz de
penetrantes centrais de abdome, indica-se rotineira- corpo estranho) e drenagem tanto interna (duplo j)
mente a laparotomia exploradora e essas lesões são quanto externa.
encontradas durante a exploração. Porém, existem al- O tratamento de perfurações gástricas e de intes-
guns sinais que podem ou não estar presentes. tino delgado é cirúrgico. Após a abertura da cavidade
Sinais clássicos de lesão de estômago são: abdominal, a hemostasia é prioridade. Terminado o
exteriorização de sangue pela sonda gástrica, pneu- controle do sangramento, inicia-se o tratamento das
moperitônio na radiografia simples de abdome e si- lesões de estômago e de intestino. Para inspeção ade-
nais de irritação peritoneal. quada, a incisão deve ser ampliada e o estômago mo-
Os sinais de lesão de intestino delgado são bilizado de maneira que permita avaliação adequada.
mais sutis, destacando-se apenas a irritação pe- As lesões gástricas devem ser suturadas em dois
ritoneal. Em doentes que apresentam alteração do planos. Geralmente, a sutura contínua seromuscular
nível de consciência por lesão cerebral ou intoxicação é feita com fio absorvível 3-0, e a sutura serosserosa
e alteração de sensibilidade abdominal por lesão de com pontos separados e fio inabsorvível 3-0 ou 4-0.
medula, o exame físico fica prejudicado. Aquelas que envolvem o piloro devem ser tratadas
realizando-se sutura e piloroplastia. As lesões do cor-
O FAST só visa identificar líquido sem avaliar se
po gástrico devem ser cuidadas com sutura primária.
é sangue ou secreção do TGI. O LPD, com exame la-
Caso a lesão envolva a transição gastroesofágica, após
boratorial do lavado, apresenta boa sensibilidade para
a sutura do ferimento deve-se fazer esofagogastro-
identificação dessas lesões. A TC com duplo e triplo
fundoplicatura, cobrindo a lesão ou somente Patch de
contraste pode não identificar a lesão de intestino del-
Thal (fundo do estômago).
gado mas a presença de líquido intra-abdominal sem
evidência de trauma de baço ou trauma de fígado le- Caso a lesão seja extensa nessa localização, pode
vanta alta suspeita. haver lesão do nervo vago. Nessa eventualidade, deve-
Pequenos pneumoperitônios podem ser identifi- -se acrescentar a piloroplastia.
cados à TC e abdome. Para as lesões extensas do estômago, recomen-
da-se a ressecção com reconstrução a Billroth I ou II,
conforme seja possível. Deve-se ter cuidado especial
O achado mais frequente da TC sugestivo de lesão intes- com os doentes que apresentam associação de lesão
tinal é a presença de líquido livre na cavidade peritone- gástrica e de diafragma. A contaminação da cavidade
al, sem lesão de víscera parenquimatosa associada. pleural, principalmente na vigência de choque hemor-
rágico, está associada a complicações pleuropulmo-
nares infecciosas. A cavidade pleural deve ser cuida-
O líquido livre pode ser oriundo de lesão he- dosamente lavada através da lesão diafragmática.
morrágica do mesentério, lesão de bexiga e finalmen- Tratamento das lesões do intestino delgado:
te lesão de intestino delgado. Sinais indiretos de € menores de 50% e borda antimesentérica: rafia
lesão de intestino delgado são espessamento de simples;
parede intestinal e de mesentério. É fundamental
lembrar que diagnóstico e tratamento tardios da lesão € maiores de 50% ou aquelas que acomentam
intestinal estão associados ao aumento de morbidade borda mesentérica: ressecção e anastomose
e mortalidade. primária com um ou dois planos.
Após o diagnóstico definido de lesão gastroin-
testinal ou indicação de laparotomia é realizada a son- O mesentério deverá ser fechado para não ocor-
dagem gástrica e vesical e administração de atibioti- rer pontos de facilitação de hérnia interna.
coterapia 2 g de cefalosporina de segunda geração na Se a lesão provocou isquemia de grande extensão
indução anestésica (ver também ferimentos de cólon). de intestino, pode-se fazer ressecção e fechamento das
Nos ferimentos com menos de 12 horas de evolução, a bocas proximal e distal, para revisão programada em
duração da antibioticoterapia limita-se ao ato cirúrgi- 24 horas, quando se realiza a anastomose.
co ou é mantida por 24 horas.
Prioridades de tratamento de lesões intra-abdo- Nas lesões múltiplas próximas uma da outra, prefere-se
minais: a ressecção de todas as lesões e anastomose primária.
1. suturar lesões que sangram (hemostasia);
Em doentes com lesões extensas graves na vi-
2. suturar lesões com secreções do TGI; gência de coagulopatia e anormalidade hemodinâ-
3. no TGU proceder ao ato de desbridar o teci- mica, realizam-se ressecção e fechamento das bocas

SJT Residência Médica – 2016


283
23 Trauma abdominal

proximal e distal, deixando-se a reconstrução do Classificação da lesão de intestino delgado


trânsito para o momento em que o doente se en- (Cont.)
contrar equilibrado. Tanto em doentes portadores
de lesão gástrica como naqueles portadores de lesão IV Laceração Transecção de segmento
intestinal, a cavidade peritoneal deve ser cuidadosa e intestinal com perda de 4
meticulosamente lavada para retirar todo conteúdo substância
do tubo digestivo que tenha eventualmente ali caído. V Laceração Desvascularização de seg-
A laparoscopia faz melhor limpeza da cavidade mento intestinal 4
Vascular
peritoneal do que a laparotomia. *Aumente um grau para lesões múltiplas até a grau III.
Caso não seja possível oferecer dieta via oral, de- **AIS: Abbreviated Injury Scale.
ve-se administrar nutrição enteral ou parenteral (ex.:
Tabela 23.14 Classificação para trauma de intestino
lesões de duodeno).
delgado.
As complicações das lesões de estômago e de
intestino delgado são raras. As mais comuns são o
sangramento, a formação de abscesso intraperitone-
al e a fístula. Um grave problema que acompanha as
ressecções de delgado é a síndrome do intestino curto
Trauma duodenal
(ressecções extensas e o paciente fica com menos de A primeira parte do duodeno situa-se ao nível da
100 cm de intestino delgado). Caso o cólon esteja ín- primeira vértebra lombar (L1) e é intraperitoneal. A
tegro, são necessários 50 a 60 cm de delgado para que segunda porção do duodeno acompanha L2 e L3 e é re-
seja possível nutrição via oral. troperitoneal contendo abertura da papila maior (co-
lédoco e ducto de Wirsung) e menor (ducto de Santori-
ni). Esse segmento pode ser mobilizado pela manobra
Classificação da lesão de estômago de Kocher. A terceira porção da víscera cruza a coluna
Grau Descrição da lesão AIS-90 lombar ao nível de L3 e passa na frente da veia cava
I Contusão ou hematoma 2 inferior, ureter, coluna lombar e aorta. Em cima da 3ª
porção do duodeno passa a artéria mesentérica
Espessura parcial 2
superior constituindo a pinça aortomesentérica.
Laceração da JGE ou piloro < 2 cm; Lesão A quarta porção acaba no Treitz.
II 1/3 proximal do estômago < 5 cm; Lesão 3
do 1/3 distal do estômago < 10 cm Assim, com exceção dos dois primeiros centíme-
Laceração > 2 cm na JGE ou piloro; lesão trros em que o duodeno é intraperitoneal, ele situa-se
III em 1/3 proximal do estômago > 5 cm; le- 3 na maior parte em posição retroperitoneal e é prote-
são 2/3 distais do estômago > 10 cm gido medialmente pela coluna vertebral e a posterior
IV Perda tecidual ou desvascularização < pela musculatura paravertebral. Exceção faz a quarta
4 porção do duodeno que cruza a coluna e volta à cavida-
2/3 do estômago
de abdominal continuando-se com o jejuno. Por isso,
Perda tecidual ou desvascularização >
V 4 as lesões duodenais resultam, habitualmente, de feri-
2/3 do estômago
mentos penetrantes ou de contusões graves do abdo-
*Aumente um grau para lesões múltiplas até a grau III.
me frequentemente com sinal de sinto de segurança.
**AIS: Abbreviated Injury Scale. JGE: junção gastroe-
sofageana. Em virtude dessa localização, o duodeno situa-se
em proximidade ou em contato com o fígado, o pedí-
Tabela 23.13 Classificação para trauma de estômago.
culo hepático, o pâncreas, o rim direito, a veia cava in-
ferior, os vasos mesentéricos, a aorta e o rim esquerdo.
Calcula-se que em cerca de 80 a 90% das ve-
Classificação da lesão de intestino delgado
zes, e particularmente nos traumas penetran-
Grau Tipo de Descrição da lesão AIS- tes, as lesões duodenais são acompanhadas de
lesão 90**
lesões de outras vísceras (principalmente fígado,
I* Hematoma Contusão ou hematoma 2 pâncreas, delgado e cólon, estômago, veia cava inferior
sem desvascularização e rim direito), o que torna mais complexa a abordagem
II* Laceração Laceração de espessura 3 terapêutica e dificulta a interpretação dos resultados
parcial sem perfuração dos exames diagnósticos. As taxas de morbidade e de
Laceração < 50% da cir- mortalidade giram ao redor de 20-30%.
cunferência
III Laceração Laceração > 50% sem 3 Destaca-se, em decorrência da topografia
transecção duodenal acima mencionada, a associação de feri-
mentos duodenais com lesões pancreáticas, já que

SJT Residência Médica – 2016


284
Cirurgia geral e politrauma

ambos dividem a mesma vascularização. Isso é tensas é possível também fazer a sutura duodenal
importante porque há mortalidade de 20-30% re- e, a seguir, suturar a serosa de outra alça intestinal
lacionada e 60% de morbidade relacionada princi- sobre a lesão suturada do duodeno. Outra opção se-
palmente à gravidade do trauma do duodeno, com ria a diverticulização do duodeno, na qual se realiza
ocorrência de hemorragia exsanguinante (morta- gastrectomia parcial com reconstrução a Bilrotth
lidade precoce), e choque séptico e disfunção de II. A literatura descreve inúmeros procedimentos
múltiplos órgãos (mortalidade tardia > 48 h pós- utilizados para proteger o local da sutura duodenal
-trauma). Aproximadamente 90% dos trauma (exclusão pilórica, duodenoduodenoanastomose,
duodenopancreáticos têm lesões associadas. duodenojejunostomia e gastroduodenopancreatec-
Os ferimentos penetrantes são a causa da tomia - GDP). Cabe mencionar a cerclagem pilórica
lesão do duodeno em 75% dos casos. O trauma associada à gastroenteroanastomose, pela técni-
contuso também pode provocar lesões do duodeno e ca de Vaughan/Jordan. Esse procedimento deriva
de estruturas vizinhas e nesse caso o mecanismo mais temporariamente o trânsito intestinal do duodeno.
comum de produção da lesão do duodenal é a com- Outras técnicas recomendam a colocação de SNG e
pressão direta do abdome. jejunostomia com posicionamento de sonda em di-
A lesão isolada do duodeno pode provocar pou- reção ao duodeno, para descomprimir e drenar obri-
cos sintomas na fase inicial. Essa lesão pode sangrar gatoriamente a secreção do duodeno.
para o intra luminal com exteriorização pela cavida- A lesão duodenal associada a cabeça do
de gástrica e consequentemente pela SNG. Quando o pâncreas, colédoco e papila, pode requerer
sangramento for extra luminal, pode ocorrer edema procedimentos maiores, como a GDP e pancre-
de alça ou hematoma peri duodenal. O raio X de ab- aticojejunoanastomose, mas anastomose bile-
dome ou a TC também podem mostrar ar no retrope- odigestiva não são procedimentos de escolha
ritônio. Os dois achados relatados podem levantar a no trauma em um primeiro momento. O mais
suspeita de lesão de duodeno. O diagnóstico de cer- comum é deixar vários drenos e, após estabili-
teza pode ser feito por meio de raio X simples zação clínica na UTI, com diminuição de inter-
ou com contraste vo, arteriografia do TGI ou TC leucinas, nova reintervenção e GDP ou pancrea-
com contraste oral e endovenoso. ticojejunoanastomose.
O contraste oral deve ser bem visível em todas
as porções do duodeno e pode ocorrer extravasamen-
to de contraste na lesão. É importante lembrar que
existem exames falsos-negativos. A LPD não é útil
na lesão de duodeno isolada porque não avalia o Hematoma duodenal
retroperitônio. Entretanto, o LPD pode ser útil em Uma lesão particular do duodeno que deve ser
alguns casos, pelo alto índice de lesões associadas que comentada é o hematoma duodenal. Embora possa
podem fazer com que a LPD seja positiva. ocorrer em adultos, ele é mais frequente em crianças e
A LPD também apresenta taxa significativa resulta da compressão súbita sobre o epigástrio. A ins-
de falsos-negativos por lesões pouco importantes talação do quadro ocorre antes de 48 horas após
já que é exame altamente sensível, mas pouco es- o trauma. O doente queixa-se de dificuldade para
pecífico. Na laparotomia por trauma contuso, a comer e de vômitos associados à dor no epigástrio. O
presença de sangue, ar ou bile na região duo- raio X de esôfago, estômago e duodeno contrastado
denal exige exploração minuciosa do duodeno. mostra parada de contraste no duodeno. Atualmen-
Na laparotomia por ferimento penetrante, deve-se te a TC com contraste oral também revela parada de
fazer exame sistematizado de todo o tubo digestivo contraste no duodeno. Em 20% desses casos, pode
à procura de lesão. ocorrer lesão associada do pâncreas. O tratamento
O segredo para o tratamento das lesões duo- do hematoma duodenal sem lesões associadas
denais está na exposição adequada desse segmento não é cirúrgico, voltando-se para colocação de
de intestino, que é conseguida com dissecção cui- SNG e aplica-se nutrição parenteral total. Habi-
dadosa e ampla, utilizando manobras como a de tualmente o hematoma é reabsorvido entre 5 e
Cattell-Braasch (descolamento do peritônio junto 7 dias. Caso isso não ocorra, pode-se esperar até 15
ao cólon direito, liberando a goteira parietocólica dias para indicar cirurgia com objetivo de esvaziar o
direita) e de Kocker (descolamento e exposição hematoma cirurgicamente.
do duodeno). A lesão duodenal isolada pode ser
tratada com sutura simples. Recomenda-se a su-
tura em dois planos com pontos separados com fio 50% dos hematomas duodenais em crianças relacio-
inabsorvível. As lesões duodenais simples com- nam-se a abuso.
preendem 80% dos casos. Nas lesões mais ex-

SJT Residência Médica – 2016


285
23 Trauma abdominal

Classificação das lesões duodenais (American Association for the Surgery of Trauma – AAST)
Grau da lesão Tipo de lesão Descrição
Hematoma Acometendo segmento único
I*
Laceração Parcial, sem perfuração
Hematoma Acometendo mais de um segmento
II*
Laceração Rotura < de 50% da circunferência
Rotura de 50-75% de D2
III Laceração
Rotura 50-100% de D1, D3 ou D4
IV Laceração Rotura > 75% de D2, envolvendo a ampola ou o colédoco distal
Laceração Rotura extensa do complexo duodenopancreático
V
Lesão vascular Desvascularização do duodeno
Tabela 23.15 Classificação para lesões duodenais.

Figura 23.8 Trauma duodenal. A: note estreitamento da primeira e terceira porções do duodeno no raio X con-
trastado de esôfago, estômago e duodeno. B: TC de abdome com duplo contraste demonstrando espessamento
duodenal da 3ª porção.

Lesão abdominal/intestinal

Controle de sangramento
e contaminação

Lesão gástrica Lesão intestinal

Piloro → piloroplastia Manobra de Catell


Corpo → reparo primário
Extensa → ressecção Lesão mesentérica Lesão intestinal

Junção GE Sem isquemia intestinal → reparo Pequena → reparo


Isquemia → ressecção e anastomose Próximas → comunicação e reparo
Pequena Grande Extensa → ressecção e second look Múltiplas → ressecção e
anastomose
Reparo Anastomose Múltiplas com instabilidade
primário e piloroplastia hemodinâmica e coagulopatia
→ damage control

Figura 23.9 Conduta no trauma duodenal. Para o reparo simples das lesões graus I e II o período de 6 horas é divi-
sor de conduta. Nas primeiras 6 horas, reparo primário simples; decorridas 6 horas, o risco de deiscência de sutura
aumenta, portanto descompressão duodenal é a conduta.

SJT Residência Médica – 2016


286
Cirurgia geral e politrauma

tos. A distinção da fração (isoamilase) pancreática,


Trauma pancreático da amilase salivar, não aumenta a acurácia da amila-
O diagnóstico da lesão pancreática no trauma se como marcador de lesão pancreática. Além disso, a
abdominal contuso é dificultado pela inespecificidade hiperamilasemia na presença de TCE não é marcador
das manifestações clínicas da lesão, mas também pela de trauma pancreático (o mecanismo da regulação da
escassa relação das manifestações clínicas, radiológi- amilase é via SNC).
cas e laboratoriais com a gravidade da lesão. Cerca de
60% das lesões pancreáticas são contusões, he- Dosagens após 3 horas do trauma aumen-
matomas e lacerações capsulares (grau I), e cer- tam a sensibilidade e o valor preditivo positivo
ca de 20% são lacerações do parênquima sem ruptura da amilasemia.
maior de ducto ou perda de tecido (grau II).
A morbidade e a mortalidade da lesão pan- Valores normais precoces de amilasemia não afastam a
creática é alta em pacientes operados tardiamente presença de traumas pancreáticos graves. No período
após período inicial de observação. São geralmente pós-traumático até 8 horas, a TC com duplo contraste
pode não identificar trauma pancreático.
associadas à dificuldade diagnóstica pré-operató-
ria ou à presença de lesões do ducto não detectadas
na primeira operação. A realização da TC espiral (mul- O resultado da TC depende do tempo entre o mo-
tislice) e da colangiorressonância muito contribui para mento do trauma e do exame, por isso este deve ser
o diagnóstico de contusão pancreática e principalmente repetido em caso de dúvida, posto que lesões graves
para identificar lesão do ducto pancreático principal que do pâncreas podem ser assintomáticas.
é o critério para indicar cirurgia.
A posição retroperitoneal do pâncreas, a ina- A sensibilidade e a especificidade da TC no diagnóstico
tividade continuada das enzimas pancreáticas após do trauma pancreático podem chegar a 80%, na de-
lesão isolada e a reduzida secreção do fluido pancre- pendência da experiência do examinador, qualidade do
ático após lesão do parênquima poderiam explicar a aparelho e tempo entre o trauma e o exame.
ausência de manifestações de lesões ocorridas sobre-
tudo nas primeiras 6-8 horas. Os pacientes estáveis,
com trauma abdominal contuso por compressão an- Imagens da TC tem sensibilidade e especi-
teroposterior com alto dispêndio de energia, apresen- ficidade de 80% para detecção de trauma pan-
tando abrasão na parede abdominal superior, e que à creático e incluem: a visualização direta da lesão do
radiografia simples apresentam fraturas concomitan- parênquima do pâncreas, hematoma intrapancreático,
tes de vértebras torácicas inferiores, devem ser avalia- líquido no omento menor, líquido separando a veia es-
dos com alto índice de suspeita de lesão pancreática. plênica do corpo pancreático, espessamento da fáscia
Nesses casos, exames radiológicos são necessários renal anterior e líquido retroperitoneal. Esses achados
além de determinações sequenciais de amilasemia. são muito sutis e às vezes passam despercebidos e ini-
A avaliação do trauma pancreático em pacien- cialmente 40% das TC nas primeiras 6 h do trauma de
tes instáveis como em qualquer outro órgão abdomi- pâncreas podem ser normais.
nal não requer nenhum exame porque a prioridade é Pacientes com alterações na TC, persistência de
que o paciente vá a laparotomia. Já naqueles estáveis, dor abdominal e hiperamilasemia deverão ir neces-
pode envolver TC com duplo contraste, CPRE, colan- sariamente à CPRE nas primeiras 12-24 horas para
giorressonância ou ainda laparotomia. delimitação da anatomia pancreática e avaliação de
rotura ductal.
O reconhecimento da lesão ductal é o principal de-
terminante isolado do prognóstico no trauma pan- Lesões pancreáticas que acometem o ducto de
creático. Wirsung requerem laparotomia exploradora. A cirur-
gia é voltada para drenagem do pâncreas e ressecção
Frequentemente, pacientes com lesões pancre- distal da glândula se necessário.
áticas despercebidas inicialmente manifestam crises
abdominais em poucos dias após o trauma. Mesmo Lesões pancreáticas que acometem o ducto de Wirsung
na ausência de achados clínicos, laboratoriais, e requerem laparotomia exploradora e não tratamento
de exames por imagem indicativos de exploração conservador.
cirúrgica, lesões graves como a transecção total
do pâncreas ou do ducto pancreático podem de- A indicação principal da CPRE seria para esclarecer
morar semanas e meses para produzir sintomas. a suspeita de possível lesão de ducto pancreático, quer em
O valor diagnóstico de elevação da amilasemia pacientes em tratamento conservador de lesão pancreá-
no trauma pancreático requer atenção a vários aspec- tica, quer em pacientes no intra ou pós-operatório.

SJT Residência Médica – 2016


287
23 Trauma abdominal

Figura 23.10 Trauma pancreático com rotura da cauda


do pâncreas no 10º PO. A 1ª TC havia mostrado pâncreas
normal porque foi feita em tempo menor de 6 horas pós- Figura 23.12 C mostrando transecção pancreática.
trauma. Os níveis de amilase começaram a subir no 9º PO.
Esse paciente fez colangiorressonância que não mostrou
lesão de Wirsung e o paciente não foi operado.

Classificação das lesões pancreáticas (American Tratamento das lesões


Association for the Surgery of Trauma – AAST) pancreáticas
Grau* Tipo de Descrição**
O tratamento do trauma pancreático volta-se
lesão
para manter o fluxo pancreaticoentérico e bileoenté-
I Hematoma Contusão menor sem lesão ductal
rico, drenagem de lesões duodenopancreáticas e final-
Laceração Laceração superficial sem lesão
mente redirecionar secreções do TGI para minimizar
ductal
estímulo pancreático se necessário. Dessa forma, defi-
II Hematoma Contusão maior sem lesão ductal
ne-se as seguintes condutas:
Laceração Laceração maior sem lesão ductal
III Laceração Transecção distal ou lesão do parên- A localização da lesão em relação à posi-
quima com lesão ductal (Wirsung) ção dos vasos mesentéricos determina o mane-
IV Laceração Proximal à veia mesentérica supe- jo mais apropriado. As lesões à esquerda dos vasos
rior ou lesão de parênquima envol- mesentéricos, sem comprometimento ductal, podem
vendo a ampola de Vater ser manejadas com debridamento e sutura simples. As
V Laceração Rotura da cabeça pancreática lesões distais que comprometem o ducto pancre-
*Aumente um grau para lesões múltiplas até a grau III. ático devem ser tratadas com pancreatectomia
**Baseando-se em estudos radiológicos, de autópsia ou distal, preservando-se, sempre que possível, o
achados de laparotomia baço. Alguns autores consideram factível a preserva-
Tabela 23.16 ção esplênica se esta não aumentar o tempo operatório
em mais de 30 minutos ou não exigir a transfusão de
mais de uma unidade de sangue. A ressecção esplênica
pode tornar-se imperiosa para facilitar tecnicamente a
ressecção do pâncreas em pacientes instáveis.
As lesões pancreáticas proximais aos vasos
mesentéricos possuem alto potencial para evo-
luirem com fístulas pancreáticas. O debridamento
e a drenagem ampla dessas lesões são o manejo mais
apropriado, acompanhados de controle da hemorra-
gia e das lesões associadas. As fístulas pancreáticas
pós-trauma evoluem favoravelmente, desde que
bem drenadas e com suporte nutricional adequa-
do. A drenagem das lesões pancreáticas é recomen-
dação universal, devendo ser ampla e realizada com
Figura 23.11 Colangiografia intraoperatória. Note a drenos que permitam a irrigação e aspiração de debris
punção feita na vesícula biliar e o contraste sendo in- e secreções, em geral por meio de sistemas fechados.
jetado. Ferimento demonstrando lesão com compro Drenagens abertas com drenos tipo Penrose devem ser
metimento de ducto de Wirsung proximal (grau III) com evitadas. As lesões pancreáticas mais graves, com en-
extravasamento de contraste. volvimento da papila de Vater e do duodeno são mais

SJT Residência Médica – 2016


288
Cirurgia geral e politrauma

bem tratadas com controle de danos (“laparotomia


abreviada”), drenagem e reconstrução postergada, à
Trauma hepático
semelhança das lesões duodenais de mesmo grau. O fígado é o segundo órgão mais atingido no
trauma fechado (baço é o primeiro) mas o trau-
A duodenopanereatectomia (DPT) está indicada
ma hepático representa 5% das admissões hospi-
somente quando a reconstrução for impraticável e,
talares. Aproximadamente 85% de todos os pacien-
ainda assim, idealmente, em segundo tempo, com o tes com trauma hepático fechado estabilizam após a
paciente estabilizado. A DPT na abordagem inicial ressuscitação inicial. Os graus I, II e III correspon-
restringe-se aos casos de pacientes que foram dem a 75% das lesões hepáticas. A mortalidade
“pancreatectomizados” pelo próprio trauma. global do trauma hepático é 10%.
Complicações do trauma pancreático
Complicações do trauma pancreático: fís-
Classificação do trauma hepático
tula (20-30%), abscesso subfacial ou peripancreático
que resultam de debridamento inadequado (20%), Tipo de
Grau Descrição AIS
pancreatite (10-20%), pseudocistos, hemorragia re- lesão
querendo transfusões (10%) e insuficiência exócrina Subcapsular, não expansivo
Hematoma 2
e endócrina. < 10%
A maior parte das fístulas pancreáticas é I Lesão capsular, não san-
de pequeno débito (< 200 mL) e 90% resolve em Laceração grante, < 1 cm de profundi- 2
duas semanas com tratamento conservador com dade no parênquima.
nutrição parenteral ou enteral (SNE jejunal) po- Subcapsular, não expansível
bre em gordura. Fístulas de alto débito (> 500 mL) 10-50%; intraparenquima-
Hematoma 2
são raras e exigem cirurgia. O uso do octreotide que é toso não expansível com <
feito nas ressecções eletivas pancreáticas poderia ser II 10 cm de diâmetro.
interessante mas a administração 12 horas antes da Lesão capsular 1-3 cm de
cirurgia torna impraticável no trauma onde a maior Laceração profundidade e com < 10 2
parte das cirurgias é de urgência. Os abcessos são re- cm de extensão.
solvidos através de drenagem percutânea que também Subcapsular > 50% ou he-
ajuda a diferenciar se é um abscesso ou um pseudocis- matoma expansivo subcap-
to. A pancreatite pós-operatória é tratada conservado- Hematoma sular roto com sangramento 3
ramente, com SNG, hidratação e jejum via oral além de III ativo; Intraparenquimatoso
suporte nutricional. Felizmente, a pancreatite necro- > 10 cm ou expansivo.
-hemorrágica ocorre em 2% dos pacientes que têm > 3 cm de profundidade pa-
Laceração 3
pancreatite. E ainda bem porque a mortalidade alcan- renquimatosa.
ça 80% sem nenhum tratamento efetivo. Em relação Hematoma intraparenqui-
aos pseudocistos tudo vai depender da integridade do Hematoma matoso roto com sangra- 4
Wirsung. Sem rotura do ducto pancreático somente mento ativo.
a drenagem externa percutânea resolve. Entretan- IV Rotura parenquimatosa
to, não há de se fazer drenagem externa em casos de 25-75% de um lobo ou de
Laceração 4
pseudocisto que comunica com o Wirsung porque re- 1-3 segmentos de Couinaud
sultará em fístula crônica. Nesses casos de pseudocis- dentro de um único lobo.
to e comprometimento do ducto pancreático podem Rotura parenquimatosa >
ser feitos os seguintes tratamentos: 75% de um lobo ou de > 3
Laceração 5
segmentos de Couinaud
€ ressecção distal da glândula (tratamento prefe-
dentro de um lobo.
rido do pseudocisto de cauda); V
Lesões venosas justa-he-
€ cistojejunostomia em Y de Roux; páticas (veia cava inferior
Vascular 5
€ gastrocistostomia (pseudocistos que abaulam o retro-hepática e veias hepá-
estômago); ticas maiores)
€ stent transpapilar endoscópico do ducto pancre- VI Vascular Avulsão Hepática 6
ático; *Aumente uma graduação para lesões múltiplas até a
graduação III.
É preciso 20% do tecido pancreático para função
pancreática normal (ou seja, pode-se ressecar 80% da Tabela 23.17 Classificação do trauma hepático. O AIS
glândula distal aos vasos mesentéricos). é colocado a título de curiosidade.

SJT Residência Médica – 2016


289
23 Trauma abdominal

€ pacientes hemodinamicamente estáveis;


€ UTI;
€ tomógrafo;
€ banco de sangue;
€ centro cirúrgico;
€ cirurgião do trauma.
A instituição que oferece condições para trata-
mento não cirúrgico de tais lesões deve contar com
Figura 23.13 Tomografia computadorizada demon estrutura que possa proporcionar assistência intensi-
strando hematoma hepático do segmento VIII. va e imediata ao paciente traumatizado, em todas as
circunstâncias e possíveis complicações.
Os pacientes candidatos ao tratamento não ope-
ratório são os que preenchem os seguintes critérios:
€ Estabilidade hemodinâmica: este é um crité-
rio básico e fundamental que deve ser obedeci-
do sempre. Pacientes instáveis, após reanima-
ção inicial, devem ser levados para laparotomia
de imediato.
€ Transfusão < 4 U de concentrado de hemá-
cias transfundidas nas primeiras 24 horas:
Figura 23.14 TC abdominal demonstrando laceração se houver necessidade de mais unidades é sinal
hepática grau IV do segmento VII. de que o sangramento ainda persiste e o pacien-
te necessitará de transfusão de sangue, arterio-
grafia ou laparotomia exploradora.
Há de se lembrar que a maior parte da vasculari-
zação do fígado vem pela veia porta (80%). Entretan- € Ausência de sinais de irritação peritoneal di-
to, aqueles 25-30% que vêm pela artéria hepática re- fusa: dor localizada em quadrante superior direito
presentam a maior parte do sangue oxigenado (50%). não exclui o tratamento não operatório, pois a lesão
hepática por si só pode causar tal alteração. Entre-
tanto, qualquer suspeita de lesões intestinais con-
traindicaria o tratamento conservador e declararia
necessidade de laparotomia de urgência.
€ Graduação da lesão: a TC com contraste é
fundamental para que a lesão seja graduada.
Há relatos de lesões até grau V terem sido
tratadas conservadoramente. Entretanto,
quanto maior a graduação da lesão, menor a
probabilidade de não necessitar cirurgia e maior
a chance de sangramento e instabilidade preco-
ce ou tardia.

Figura 23.15 TC abdominal demonstrando o blush O tratamento das lesões hepáticas de acordo com
característico do trauma hepático arterial em segmen- o grau das lesões pode ser assim resumido:
tos VII e VIII em laceração hepática grau IV. A arteriogra- Graus I e II: apenas hemostasia com cautério.
fia nesses doentes é diagnóstica e terapêutica.
Grau III: suturas com categute cromado 2.0 ou
vicryl 2.0 com agulha atraumática longa.
Grau IV: Damage control. Pode-se suturar ou
Tratamento não operatório das realizar desbridamento do fígado. As hepatectomias
lesões hepáticas regradas são evitadas no trauma.
O êxito da conduta não operatória das lesões Grau V: Damage control. Pringle. Shunt atrio-
hepáticas está na dependência da seleção e estratifica- caval. Transplante.
ção criteriosa dos pacientes e avaliação da capacidade Deve-se evitar suturas em massa e grosseiras, en-
institucional. globando muito tecido hepático, pois essa técnica pro-
Critérios fundamentais para a conduta não voca necrose nas bordas da lesão aumentando o risco
operatória: de formação de abscesso hepático e peri-hepático.

SJT Residência Médica – 2016


290
Cirurgia geral e politrauma

Trauma hepático grave deve ser resolvido rapi-


damente. As cirurgias de damage control também
conhecidas como laparotomias abreviadas melho-
raram muito a sobrevida do trauma abdominal exsan-
guinante sem resposta às manobras de controle da he-
morragia. São colocadas várias compressas no fígado,
tamponando áreas sangrantes do parênquima hepáti-
co, que são retiradas dias depois, quando é feita revi-
são da cirurgia para verificar se o sangramento cessou
(48-72 horas após). Caso ainda haja sangramento sig-
nificativo, podem ser recolocadas novas compressas e
o procedimento é repetido. Neste ínterim, o paciente
fica na UTI e é estabilizado (controle da coagulopatia,
hipotermia e acidose) e eletivamente operado para os
reparos definitivos. Figura 23.17 Ferimento transfixante do fígado,
A manobra utilizada para abordagem do trauma demonstrando a colocação intra-hepático do balão
hepático grave é a manobra de Pringle, que consiste de Sengstaken-Blakemore, o mesmo usado no es
na oclusão do pedículo hepático através do forame de ôfago para cessar hemorragia digestiva alta por var-
Winslow, com a colocação de uma pinça vascular em izes de esôfago. Quando o balão é insuflado automat-
direção à margem do ligamento hepatoduodenal. Uma icamente ocorre hemostasia no fígado nesses FAF
vez feita a manobra de Pringle, podem-se avaliar gros- transfixantes. Esse balão poderá ser retirado no pós-
operatório quando desinsuflarmos e o paciente per
seiramente quais são os prováveis vasos lesados.
manecer estável.

O Pringle pode ser mantido até 60 min. com seguran- O controle da cava inferior acima das renais e
ça. Entretanto, clampeamento de 20 min. com des- na altura do hiato diafragmático, bem como das veias
canso por 5 min. vem sendo descrito e sugerido como hepáticas, pode ser necessário em casos de lesão da
apresentando menor lesão por isquemia e reperfusão. cava retro-hepática. Para isso, faz-se extensa mobi-
lização do fígado, que é liberado dos ligamentos, ou
mesmo submetido à digitoclasia do parênquima,
Caso o sangramento cesse com a manobra
para acesso à veia cava retro-hepática. Os shunts
de Pringle (clampeamento da veia porta, arté-
atriocavais, com cânulas de intubação orotraqueal
ria hepática própria e colédoco), supõe-se que
ou sondas, antigamente muito utilizados, resultam
a lesão é de ramos da veia porta ou da artéria
em alto índice de mortalidade e estão sendo usa-
hepática. Se o sangramento persistir, deve-se sus-
dos cada vez menos. São situações dramáticas, pois
peitar de lesão de veia cava retro-hepática, justa-he-
o controle vascular da veia cava inferior ao nível do
pática ou de ramos das veias hepáticas cujo fluxo vem
de cima do fígado. hiato diafragmático leva a redução do débito cardíaco
que ficaria garantido apenas pelo território de veia
cava superior. nesta situação pode ser necessário o
clampeamento da aorta descendente para garantir
perfusão de carótidas e coronárias deixando a perfu-
são menestérica prejudicada.

Figura 23.16 Demonstração da manobra de Pringle


com clampeamento da veia porta, artéria hepática e Figura 23.18 Compressão manual de ferimentos
colédoco. hepáticos.

SJT Residência Médica – 2016


291
23 Trauma abdominal

Lesões vasculares do pedículo hepático:


€ veia porta: não pode ser ligada. Mortalidade >
90% se ligada. Há de se fazer rafia ou enxerto.
€ artéria hepática: pode ser ligada em casos de
trauma grave.

Trauma esplênico
O baço é o órgão mais lesado nos traumas
fechados.
Funções do baço:
€ Defesa: exerce função primordial como primei-
ra linha de defesa do organismo; é responsável
pela opsonização inicial contra antígenos circu-
lantes (processo que facilita a fagocitose), além
de remover aqueles mal opsonizados.
Isso se deve à anatomia da microcirculação esplê-
nica. Os antígenos fagocitados por macrófagos do siste-
ma reticuloendotelial dos sinusoides da polpa vermelha
Figura 23.19 Shunt atriocaval. Faz-se toracotomia são carregados para os centros germinativos, onde se dá
anterolateral esquerda e clampeia-se o átrio direito a produção de IgM, uma imunoglobulina de fase aguda
para incisão com bisturi para passar um tubo en- que surge 4-5 dias após o contato com o antígeno. A IgM
dotraqueal por dentro do coração até a veia cava infe- é capaz de opsonizar e de ativar o sistema complemento,
rior. Daí infla-se o balão acima das renais. Obviamente tanto pela via clássica quanto pela via alternativa. En-
o tubo endotraqueal estará preenchido por SF 0,9%. quanto isso, após 2-3 dias, já se pode titular IgG específi-
Será feita sutura em bolsa do átrio direito. Pelo tubo ca, de meia-vida mais longa, também produzida no baço.
endotraqueal poderá ser administrado cristaloides e € Produção de tuftsina: tetrapeptídeo deriva-
sangue e desse modo consegue-se o controle de todo do da IgG que possui função imunoestimulante
o sangramento hepático. através do aumento da citotoxicidade de neu-
trófilos e células NK; estimula a quimiotaxia de
neutrófilos e monócitos e potencializa a fagoci-
tose estimulada por anticorpos.

Trauma das vias biliares € Produção de properdina é uma proteína sinte-


tizada no baço, de grande relevância na ativa-
O local mais comum de lesão no trauma ao pedí- ção da via alternativa do sistema complemento.
culo hepático é no ducto hepático comum. Esta função pode ser ainda mais importante na
ausência de anticorpos específicos. Toda essa
As lesões das vias biliares extra-hepáticas (vesí-
função opsonizante e de ativação do sistema
cula biliar, cístico, ductos biliares direito e esquerdo, complemento assume importância maior na
hepatocolédoco, colédoco e papila) são abordadas da defesa contra germes encapsulados, natu-
seguinte forma: ralmente mais resistentes à fagocitose, notada-
mente os Streptococus pneumoniae, Haemo-
€ vesícula biliar e ducto cístico: colecistecto-
philus influenzae e Neisseria meningitidis.
mia.
Estes germes podem provocar sepse fulminante
€ ductos hepáticos: sutura quando possível + em pacientes esplenectomizados devido à au-
dreno em T de Kehr. sência de tuftsina e properdina. Essa sepse pode
ocorrer mesmo anos após a cirurgia, o que justi-
€ ducto hepático comum e colédoco: lesão parcial, fica a vacinação contra esses germes em pacien-
dreno de Kehr; lesão total, anastomose biliodi- tes submetidos à esplenectomia total.
gestiva (hepaticojejunostomia em Y-de-Roux).
Vacinação: nas cirurgias eletivas, deve ser feita
Dica: não adianta tentar fazer coledococo- no pré-operatório (duas semanas antes); nas de ur-
lédoco anastomose porque resulta em alta inci- gência (antibioticoprofilaxia na indução anestésica), e
dência de estenose. A hepaticojejunoanastomose a vacinação será feita no pós-operatório imediato (na
é superior. mesma internação).

SJT Residência Médica – 2016


292
Cirurgia geral e politrauma

Cerca de 60% dos traumas esplênicos irão resul-


tar em cirurgia de urgência. A dor no ombro esquerdo
após trauma levanta suspeita para a rotura esplênica
(sinal de Kehr).
Dos exames, a presença de blush na TC de ab-
dome fala em favor de sangramento ativo no baço
com extravasamento de contraste. Esses são os pa-
cientes que caracteristicamente poderão ir preferencial-
mente à arteriografia ou à laparotomia exploradora.

Figura 23.20 C de abdome, demonstrando laceração


esplênica com hematoma. Tratamento não operatório das
lesões esplênicas
Escala da AAST* para Lesão Traumática do Baço O tratamento inicial segue as mesmas normas
(Revisão de 1994) descritas no trauma hepático, ou seja, o paciente deve
ser reanimado segundo as normas preconizadas pelo
Grau da
Lesão Descrição da lesão ATLS®. Após avaliação inicial e reanimação, o paciente
lesão*
pode ser candidato ao tratamento não operatório des-
Subcapsular, não expan- de que preencha os critérios (UTI, cirurgião do trau-
Hematoma dido, < 10% da área de
ma, centro cirúrgico, banco de sangue, tomógrafo).
I superfície
Capsular, não sangrando, A conduta não operatória como forma de
Laceração tratamento só deve ser realizada caso o paciente
< 1 cm de profundidade
preencha os seguintes pré-requisitos:
Subcapsular, não expan-
dido, 10-50% da área de € estabilidade hemodinâmica (PAS > 90).
Hematoma superfície; intraparenqui- € ausência de sinais e sintomas de irritação peri-
matoso, não expandido, < toneal franca.
II 5 cm de diâmetro
€ ausência de coagulopatia ou doenças sistêmicas
Capsular, sangramento graves.
ativo, 1-3 cm de profun-
Laceração € lesão graduada por TC de abdome.
didade não envolvendo
vasos trabeculares € transfusão < 4 unidades de concentrado de he-
Subcapsular, > 50% da mácias.
área de superfície; sub- € sem múltiplas lesões associadas.
capsular roto com san-
Hematoma A taxa de sucesso do tratamento conserva-
gramento ativo; intrapa-
renquimatoso ≥ 5 cm de dor para trauma de baço é 80% para adultos e
III
diâmetro ou em expansão 95% em crianças.
> 3 cm de profundidade Acompanhamento:
Laceração ou envolvendo vasos tra- Assim que o paciente com lesão esplênica for
beculares candidato ao tratamento não operatório, devem ser
Intraparenquimatoso roto adotadas as seguintes condutas:
Hematoma
com sangramento ativo
€ Observação contínua entre 2 a 3 dias (preferen-
IV Envolvendo segmento ou temente em UTI).
vaso hilar que desvascula-
Laceração € Jejum por 48 horas.
rize > 25% do parênquima
esplênico € Avaliação clínica a cada 6 horas durante as pri-
Fragmentação completa meiras 24 horas.
Laceração
do baço € Dosagem de hematócrito e hemoglobina a cada
V Lesão hilar com avulsão 12 horas nas primeiras 24 horas.
Vascular ou completa desvasculari- € Repouso absoluto no leito nos três primeiros dias;
zação do baço
€ É recomendável tempo de hospitalização de,
*Avançar um grau para lesões múltiplas até grau III.
no mínimo, 5 dias, e, após esse período, a alta
Tabela 23.18 Trauma de baço. dependerá do grau de lesão esplênica e das con-

SJT Residência Médica – 2016


293
23 Trauma abdominal

dições do paciente. É importante verificar a es- avaliação clínica seriada, visando à identificação pre-
trutura de apoio domiciliar, assim como o grau coce de anormalidades na evolução do paciente.
de compreensão deste e de seus responsáveis.
Acrescente-se ao arsenal diagnóstico desses pa-
€ A TC de controle antes da alta é desnecessária, cientes, quando a indicação cirúrgica não é evidente,
caso a evolução seja favorável; o lavado peritoneal diagnóstico (LPD), a ultrassono-
€ Recomenda-se evitar esforços físicos e esportes grafia e a tomografia computadorizada com contraste
de contato por, no mínimo, 2-6 meses. (grau de recomendação A).
Na evidência de queda brusca do hematócrito, ins- As técnicas cirúrgicas utilizadas para o tra-
tabilização hemodinâmica, aumento da dor abdominal tamento das lesões de cólon intraperitoneal são
com irritação peritoneal ou taquicardia persistente com semelhantes ao intestino delgado:
palidez de mucosas, indica-se laparotomia exploradora. € menores de 50% e borda antimesentérica = rafia
simples;

Mais de 70% dos pacientes estáveis estão sendo sub-


€ maiores de 50% ou aquelas que acomentam
metidos a tratamento não cirúrgico. borda mesentérica = ressecção e anastomose
terminal (Hartmann), anastomose em alça (Mi-
kulicz) ou anastomose primária com um ou dois
planos.

Trauma de cólon O mesentério deverá ser fechado para não ocor-


rer pontos de facilitação de hérnia interna. Além dis-
Cerca de 90% das lesões colônicas são cau- so, poderá ser feita anastomose de cólon mais colosto-
sadas por ferimentos penetrantes. O toque retal mia proximal protetora com exteriorização no local da
com sangue é sugestivo de lesão intestinal. No trauma lesão após a ressecção ou ampliação da lesão. A sutura
contuso, quando não existe indicação absoluta de la- primária ou ressecção do cólon com anastomose pri-
parotomia, a TC com triplo contraste pode identificar mária colocólica ou ileocólica são as alternativas mais
lesão de cólon. frequentemente utilizadas.
Trauma de cólon da AAST Critérios para realização da colostomia ao
invés da anastomose primária:
Grau* Descrição da lesão
Contusão ou hematoma sem desvas- € choque;
Hematoma
I cularização € politransfusão;
Laceração De espessura parcial, sem perfuração € mais de 6 horas de trauma;
II Laceração Laceração < 50% da circunferência € contaminação maciça da cavidade;
Laceração > 50% da circunferência
III Laceração € desnutrição;
sem transecção
IV Laceração Transecção do cólon € infecção ou fator comprometedor da cicatrização;
Transecção do cólon com perda seg- € predisposição de fístula.
V Laceração
mentar de tecido
A cirurgia de Mikulicz (colostomia em alça) é
*Avançar um grau para lesões múltiplas até grau III.
mais segura, menos trabalhosa e facilita para posterior
Tabela 23.19 Classificação para trauma de cólon. reconstrução do trânsito intestinal, pois não precisa fa-
zer laparotomia, é só aumentar a incisão por onde sai a
colostomia em alça. Uma vez reconstruído o trânsito é
só retornar a alça para o interior da cavidade abdominal.
Tratamento
Naqueles tratados com a técnica de damage con-
A avaliação inicial, na sala de emergência, assu- trol, não se deve realizar o tratamento com anastomose
me papel fundamental no prognóstico e deve ser re- primária da lesão, pois tanto a politransfusão quanto o
alizada seguindo os preceitos do programa Advanced edema de alças são fatores determinantes de aumento
Trauma Life Support (ATLS). de deiscência. Quando o doente não apresenta as me-
A antibioticoprofilaxia tem hoje sua indicação lhores condições, quando foi submetido a transfusão
bem definida e a literatura aponta uma preferência maciça e quando apresenta doenças prévias importan-
pela monoprofilaxia com cefalosporinas de segunda tes, dá-se preferência à realização de colostomia.
geração por no máximo 24 horas de uso (grau de re- Na cirurgia de controle de dano, o cólon pode ser fe-
comendação A). chado temporariamente com sutura manual ou mecâni-
Em pacientes com traumatismo cranioencefálico ca, realizando-se a colostomia no momento oportuno
ou raquimedular, e mesmo em casos de trauma ab- durante as reoperações. A maturação da colostomia deve
dominal em tratamento não operatório, é necessária ser feita após o fechamento da laparotomia.

SJT Residência Médica – 2016


294
Cirurgia geral e politrauma

Para a realização de sutura primária ou ressec- dimento simples, deve ser realizado em todos os pa-
ção segmentar com anastomose primária, deve-se cientes vítimas de projétil de arma de fogo que estiver
considerar extensão da lesão, presença de isquemia e localizado em topografia pélvica inferior.
comprometimento do mesentério. Caso haja dúvida
sobre a viabilidade do segmento lesado, deve-se
dar preferência à ressecção.
Classi昀椀cação anatômica das
Nas lesões proximais à artéria cólica média que
lesões do reto
necessitam de ressecção, pode-se fazer com segurança Do ponto de vista terapêutico é importante a
a anastomose ileotransversa. Esse tipo de anastomo- classificação anatômica das lesões retais.
se apresenta boa evolução em doentes traumatizados. € Reto intraperitoneal: parte superior e média do
As anastomoses devem ser feitas sempre em condi- reto.
ções ideais: irrigação sanguínea adequada, ausência de € Reto extraperitoneal: 2/3 do órgão.
tensão e utilização de boa técnica cirúrgica em um ou
dois planos. As ressecções distais à artéria cólica mé- € Subperitoneal: acima do assoalho pélvico.
dia e as ressecções no cólon esquerdo provocam maior € Perineal: abaixo do assoalho pélvico.
trauma para o doente e as reconstruções não são tão € Região pré-sacral.
simples. Quando o doente não apresenta as melhores
condições, quando foi submetido a transfusão maciça
e quando apresenta doenças prévias importantes, dá- Classificação da lesão de reto da
-se preferência à realização de colostomia. associação americana da cirurgia
Na cirurgia de damage control, o cólon pode ser do trauma (AAST)
fechado temporariamente com sutura manual ou Grau Descrição da lesão
mecânica, realizando-se a colostomia no momento Hemato- Contusão ou hematoma, sem des-
I
oportuno durante as reoperações. Os mesmos cuida- ma vascularização
dos técnicos na anastomose devem ser adotados na Laceração Laceração de espessura parcial
confecção da colostomia: irrigação sanguínea adequa- II Laceração Laceração < 50% da circunferência
da, ausência de tensão e utilização de boa técnica ci- III Laceração Laceração > 50% da circunferência
rúrgica. A maturação da colostomia deve ser feita após Laceração de espessura total com
IV Laceração
o fechamento da laparotomia. O coto distal do cólon extensão para o períneo
ressecado pode ser fechado e deixado dentro da cavi- V Vascular Segmento desvascularizado
dade peritoneal (cirurgia de Hartmann) e ainda ser *Avançar um grau para lesões múltiplas até grau III.
exteriorizado junto com o coto proximal na colosto- Tabela 23.20 Trauma de reto.
mia (cirurgia de Mikulicz ou em cano de espingar-
da) ou no ângulo inferior da laparotomia. A literatura
prefere a cirurgia de Hartmann à fístula mucosa na
incisão, pois esta última opção está relacionada a altos Tratamento
índices de infecção. Intraperitoneal: as mesmas condutas preconi-
zadas para os demais segmentos colônicos.
Extraperitoneal: desbridamento + sutura +
drenagem pré-sacra + colostomia obrigatória.
Trauma de reto
As lesões do reto são por ferimentos pene-
trantes por projétil de arma de fogo (80%), trau-
ma fechado (10%) e o restante por via anal. As lesões
retais diferem do trauma de cólon, uma vez que pelo
menos metade do reto é retroperitoneal. A perfura-
ção do reto extraperitoneal não causa peritonite, mas
poderá causar retroperitonite e fascite necrotizante
perineal. Nas lesões de reto intraperitoneal, o quadro
de peritonite é precoce, não oferecendo maior dificul-
dade da indicação cirúrgica. Todos os pacientes com Figura 23.21 Note que à esquerda há necessidade de
suspeita de lesão retal devem ser submetidos ao toque se fazer colostomia a hartman e desbridamento e rafia da
retal; a presença de sangue deve ser investigado para bexiga. A figura da direita demonstra claramente a de-
uma possível lesão colorretal, no entanto vale lembrar marcação entre lesão de reto intra e extraperitoneal, bem
que o toque retal pode não detectar sangue, e isto não como o dreno pré-sacral colocado e a colostomia que
exclui a presença de lesão (30% dos casos). Este proce- nessas lesões de retro extraperitoneal são obrigatórias.

SJT Residência Médica – 2016


295
23 Trauma abdominal

O uso de antibiótico nas lesões de reto é definido A vantagem da colostomia em alça é a rapidez na
conforme o tempo de evolução do trauma. Pacientes sua construção e facilidade do seu fechamento. Pode-
com evolução inferior a seis horas são tratados com -se reconhecer uma colostomia em alça pela presença
antibioticoprofilaxia. Nas lesões com mais de seis ho- da sonda retal que envolve a colostomia.
ras de evolução, indica-se antibioticoterapia com co- A necessidade de drenagem das lesões de
bertura para Gram-negativos e anaeróbios. reto extraperitoneal está bem estabelecida. A
O ferimento de reto intraperitoneal deve drenagem pode ser feita por via transperitoneal ou
ser tratados de maneira semelhante aos feri- por via pré-sacral. Dá-se preferência a via pré-sacral
mentos de cólon, isto é, o ferimento deve ser de- nos ferimentos de reto de parede posterior e lateral
bridado e suturado. e nos de parede anterior preferimos a drenagem por
Nos ferimentos de reto extraperitoneal, sempre via abdominal. A drenagem pré-sacral é realizada com
que possível, devemos colocar em posição ginecológica dreno de Penrose, colocado através de uma incisão ar-
modificada, permitindo acesso abdominal e retal simul- ciforme entre o ânus e o cóccix, sendo o dreno coloca-
tâneos caso necessário para identificar e tratar a lesão do no espaço pré-sacral por dissecção romba através
retal. A sutura pode ser por via abdominal ou transanal. da fáscia de Waldeyer. Atualmente muitos cirurgi-
Porém, algumas vezes, a identificação da lesão é muito ões só realizam a drenagem quando não for pos-
difícil e a dissecção do reto extraperitoneal poderá ser sível a sutura do ferimento.
muito deletéria pelo risco de lesão neurológica, vascular No que diz respeito ao fechamento da co-
ou urológica. Nestas circunstâncias, a melhor abordagem lostomia, a maior parte dos cirurgiões resta-
é tratar o paciente como se ele tivesse a lesão, mesmo belece o trânsito em 3 meses. Entretanto, al-
que falte a evidência definitiva de sua existência. Deve- guns cirurgiões optam por fechá-la na mesma
mos ter em mente que a colostomia tem por objetivo internação ao redor do 10º pós-operatório.
proporcionar um desvio temporário do trânsito Nesse período, a cicatrização já ocorreu em 70%
fecal, propiciando condições para a cicatrização da dos ferimentos retais e em 92% dos ferimentos co-
lesão e evitando complicações relacionadas ao ex- lônicos. Se o ferimento distal estiver cicatrizado e
travasamento de fezes para os tecidos adjacentes. o paciente estiver estável, sem quadro infeccioso,
As opções da colostomia incluem: colostomia a colostomia poderá ser fechada na mesma inter-
em alça (Mickulicz), colostomia proximal e fístula mu- nação, principalmente se for em alça que fica mais
cosa, e finalmente colostomia proximal e sepultamen- fácil ainda pois o procedimento pode ser feito com
to do coto retal (Hartmann). anestesia local e sedação.

Quando o rei Carlos IX ficou doente, disse a Ambroise Paré (1510-1590):


“Espero que vás tratar melhor o rei do que os pobres do hospital”.
Ambroise Paré responde:
– “Não, isto é impossível!”
– “E porque?” Perguntou-lhe o rei.
– Respondeu:
“Porque eu os trato como a reis”.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

24
Trauma genitourinário

Traumatismo renal Classi昀椀cação


As lesões renais são classificadas de acordo com as
Os rins são órgãos que se localizam no retrope-
normas da Associação Americana para a Cirurgia do Trau-
ritônio, sendo assim protegidos posteriormente pela
ma, em 1989 e pode ser assim resumida (Figura 24.1):
musculatura paravertebral, medialmente pela coluna
vertebral, lateralmente pelos arcos costais e anterior-
mente pelas vísceras abdominais e pela parede mus-
cular (músculo reto abdominal). Além disso, possuem O sinal mais comum para sugerir trauma renal é a pre-
mobilidade natural durante os movimentos respirató- sença de hematúria.
rios e também são protegidos pela fáscia de Gerota.
O trauma renal ocorre em 5 a 10% dos trau-
mas abdominais, constituindo 3% das admissões Trauma renal – Associação Americana da
hospitalares, sendo que os traumas renais mais Cirurgia do Trauma (AAST)
graves são por trauma fechado. Cerca de 80% dos Grau Descrição da lesão
traumas renais são por trauma contuso. Antigamente I Contusão Hematúria (macro ou mi-
era alto o índice de nefrectomias pelo atendimento de croscópica). Estudos urológicos
pacientes politraumatizados por cirurgiões pouco ex- normais.
perientes com o trauma renal. Hoje as taxas de nefrec- Hematoma Subcapsular, não expansivo sem
tomias não chegam a 30% quando há lesão penetrante laceração parenquimatosa.
ou trauma contuso, mas são bem maiores quando há II Hematoma Hematoma perirenal não expan-
sivo confinado ao retroperitônio
lesão do pedículo vascular.
renal.
Pacientes com lesão renal devem ser examinados, Laceração < 1 cm de profundidade do
avaliados hemodinamicamente e de forma adequada, córtex sem extravasamento de
com o objetivo de preservar ao máximo o parênquima urina.
renal e evitar a realização de nefrectomias desnecessá- III Laceração Laceração > 1 cm de profundida-
rias. A quantidade de hematúria e o tipo do trau- de do córtex sem extravasamen-
ma não são parâmetros para a indicação compul- to de urina ou rotura do sistema
sória de laparotomia. coletor.
297
24 Trauma genitourinário

Trauma renal – Associação Americana da Antigamente a urografia excretora com injeção


Cirurgia do Trauma (AAST) (cont.) de contraste IV também chamada de pielografia intra
venosa era a escolha, entretanto, como 20% das uro-
IV Laceração Laceração parenquimatosa se ex-
tendendo pelo córtex, medula e grafias excretoras podem dar falsos-negativos além
sistema coletor. de só informar sobre as vias urinárias, a TC abdomi-
Extravasamento de urina. nal passou a ser o exame de escolha para avalia-
Vascular Lesão de artéria ou veia renal ção do trauma renal em pacientes estáveis. Vale
com hematoma contido. lembrar que a urografia excretora avalia a morfologia
V Laceração Esmagamento e esfacelamento e função renal, além de delimitar o sistema coletor e
do rim pode ser usada no intraoperatório para avaliação da
Vascular Avulsão do hilo renal com des- função do rim contralateral (2 mL/Kg de contraste
vascularização do rim. com o filme batido 10 - 15 min. depois da injeção
*Avançar um grau para lesões múltiplas até grau III. do contraste).
Tabela 24.1 Classificação de Moore para trauma renal.

Figura 24.2 Técnicas de uretrocistografia. A: uretro-


cistografia retrógrada com injeção de 300 mL de con-
traste através de sonda vesical infantil introduzida no
meato uretral na ponta da glande. Note o ferimento de
uretra que vai ser demonstrado pelo extravasamento
Figura 24.1 Classificação do trauma renal de acordo de contraste. B: cistografia de estresse que é o exame
com a tabela da AAST. clássico para diagnóstico de rotura de bexiga onde
300 mL são injetados através de paciente que já está
sondado (Foley) até o paciente ter sensação de urinar.
Note que o extravasamento de contraste para a cavi-
dade abdominal tipicamente revela a rotura de bexiga
Diagnóstico intraperitoneal.
É importante lembrar que 70% dos traumas
são grau I e 20% grau II.
O diagnóstico de lesões renais deve ser feito com A TC abdominal com contraste é o exame de escolha
uma boa história, investigando-se queixas do paciente para avaliação da suspeita de trauma renal com acurá-
e mecanismos do trauma. Exame físico deve identifi- cia de 98%.
car lesões no flanco, ferimento na pele, hematomas e
presença de hematúria macroscópica e sangue no me-
ato uretral. Os exames laboratoriais (queda do hema- A TC avalia a extensão e gravidade das lesões
tócrito e hemoglobina) devem ser seriados, bem como renais e do sistema coletor, hematomas retroperito-
urina tipo I (hematúria) e de imagem (TC abdominal). neais, lesões de outros órgãos e possível trombose de
O raio X de tórax pode mostrar fraturas dos últi- veia renal. É o melhor exame para esse tipo de situação
mos arcos costais e/ou nas vértebras, apagamento do (Figuras 7.3 a 7.4). Indica-se TC com contraste ev para
músculo psoas, escoliose voltada para o lado oposto da pacientes que instáveis na admissão (PA sistólica < 90
lesão, opacificação sobre a área renal mas não informa mm/Hg), que apresentem hematúria macroscópica,
muito sobre trauma renal. A ultrassonografia é sim- crianças ou rebaixamento do nível de consciência. Na
ples, rápida, barata, pode ser repetida várias vezes e, impossibilidade de realizar TC, poderiam ser realiza-
portanto, é utilizada para seguimento. dos Urografia excretora e ultrassonografia.

SJT Residência Médica – 2016


298
Cirurgia geral e politrauma

A TC não deverá ser indicada em pacientes ins-


táveis hemodinamicamente refratários à reposição
volêmica adequada (estes candidatos à laparotomia de
emergência). Na fase arterial do exame são avaliados
os vasos hilares e a contrastação homogênea do parên-
quima renal, com atenção para a presença de sinais de
sangramentos (blush arterial) ou hematomas em ex-
pansão. Na fase tardia (excretora) deve ser avaliada a
eliminação do contraste pela via excretora, com aten-
ção para a presença de extravasamentos ou obstruções
na passagem do contraste.
Nos casos em que se suspeita de fístula arterio-
venosa ou se deseja realizar embolização terapêutica
a arteriografia é de grande valia para diagnóstico e
tratamento.
Figura 24.3 TC com contraste no traumatismo renal.
A: TC com contraste, corte axial (fase excretora) demon- Pacientes com trauma penetrante em flanco ou abdome,
strando lesão grau 4 no polo inferior do rim direito. B: hematúria importante, ou hematúria microscópica e PS
TC com contraste, corte coronal (fase excretora), no < 90 mmHg , ou crianças ou rebaixamento de nível de
mesmo paciente anterior. C: TC com contraste, corte consciência, devem ser investigados radiologicamente
coronal (fase nefrograma), explosão do polo inferior do com TC contrastada.
rim esquerdo e grande hematoma perirrenal. D: TC com
contraste, corte axial, demonstrando a fragmentação
do polo inferior do rim esquerdo, no mesmo paciente
anterior de C.

Figura 24.5 Trauma renal complicado após FAB em


paciente com hematúria macroscópica. TC de abdome,
demostrando laceração profunda no rim direito e hema-
toma perirrenal moderado. O paciente estava em trata-
mento conservador quando fez hipotensão (mas respon-
deu a cristaloides), hematúria macroscópica e precisou 4
UI de concentrado de hemácias. B: foi levado à arterio-
grafia que demonstra duas áreas de fístula aerocalicinal
manejada com sucesso por embolização seletiva. C: arte-
riografia tardia demonstrou área de infarto em forma de
Figura 24.4 Trauma renal. A: TC de abdome, sugerindo
cunha devido à embolização. Esse teria sido um paciente
oclusão de artéria renal após acidente de trânsito com
que se tivesse ido à arteriografia teria ido à laparotomia e
motorista com cinto de segurança. O rim esquerdo não
provavelmente nefrectomia total.
está perfundido e demonstra mínima intensificação com
contraste dos vasos capsulares. Esse achado é patog-
nomônico de oclusão da artéria renal e nem precisaria A ausência de hematúria (< 3 hemácias por campo)
fazer a arteriografia (B) que só foi feita porque o cirurgião não exclui lesão renal.
vascular achou necessário para planejar o tratamento.

SJT Residência Médica – 2016


299
24 Trauma genitourinário

possuem indicações cirúrgicas relativas. A maior par-


Tratamento te das lesões traumáticas é leve, sendo que apenas 5%
As lesões renais podem ser tratadas de forma dos casos aparecem lesões significativas (> grau II).
conservadora ou por meio de exploração cirúrgica. Pacientes com lesões > grau IV são praticamen-
A maioria das lesões renais é tratada de forma te cirúrgicos, mas inicia-se sempre o tratamento
conservadora em 80-98% dos adultos e 95% das conservador e avalia-se a evolução.
crianças com trauma renal fechado não têm in- O tratamento clínico conservador consiste em
dicação de cirurgia, ao contrário daqueles com feri- repouso, manutenção da volemia, correção do he-
mentos penetrantes (consegue-se fazer manejo coser- matócrito com transfusões e monitoração clínica e
vador em 50% dos FAB e 25% dos FAF, desde que sem radiológica. Não se deve esquecer que um paciente
lesão intra peritoneal associada). submetido a tratamento conservador pode se tornar
cirúrgico em qualquer momento de sua evolução.
O tratamento cirúrgico é realizado por meio de
RIM (Organ injury scale) laparotomia por incisão mediana xifopubiana, iso-
Grau Tipo Descrição lamento e controle dos vasos renais (artéria e veia)
Hematúria macro/micro
antes da abertura da fáscia de Gerota e da explora-
Contusão com exames urológicos ção da lesão. O cólon é mobilizado antero superior-
normais mente, a fáscia de Gerota é então aberta e o rim é
I
exposto. A cavidade abdominal é inspecionada cui-
Subcapsular. Não expansi-
Hematoma dadosamente, com o intuito de identificar e reparar
vo, sem laceração
outras lesões associadas.
Confinado no retroper-
Hematoma itônio renal. Não expan- Na cirurgia, inicialmente procura se proceder a
sivo nefrorrafia, nefrectomia parcial e, em último caso, a
II nefrectomia total, sempre procurando avaliar a função
< 1 cm de profundidade
do rim contralateral.
Laceração parenquimatosa, sem ex-
travasamento urinário
> 1 cm de profundidade
parenquimatosa. Sem rup- Indicações para a cirurgia no trauma renal
III Laceração
tura de sistema coletor ou
extravasamento urinário Indicação Descrição

Extensão para córtex, me- Persistência de sangramento de


Laceração Absoluta
dula e sistema coletor origem renal com risco de morte
IV Lesão de artéria ou veia Hematoma expansível e pulsátil
Vascular renal com hemorragia Absoluta retroperitoneal não contido, que
tamponada (contida) sugere lesão do pedículo renal
Rim completamente Grande laceração da pelve renal ou
Laceração Relativa
destruído avulsão da junção ureteropiélica
V
Avulsão de hilo renal. Des- Lesões pancreáticas e intestinais
Vascular Relativa
vacularização do rim associadas
Observação: avançar um grau para lesões bilaterais até
Persistência da perda urinária
o grau III.
mesmo após a colocação do cateter
Relativa
Tabela 24.2 duplo J e drenagem das coleções
perirrenais
Segmento renal desvitalizado com
Relativa
Cirurgia imediata: extravasamento de urina
€ Instabilidade hemodinâmica; Completa trombose da artéria re-
€ Queda progressiva do hematócrito necessitan- Relativa nal de ambos os rins ou quando há
do de várias transfusões (> 4 UI); apenas um rim

€ Hematoma pulsátil ou em expansão; Lesão vascular quando o tratamen-


Relativa
to hemodinâmico falhar
€ Avulsão do pedículo renal.
Relativa Hipertensão renovascular
A presença de tecido não viável, trombose ar-
terial, extravasamento de contraste e estadiamento Tabela 24.3 Indicações absolutas e relativas de cirur-
incompleto devem ser avaliados com cuidado pois gia no trauma renal.

SJT Residência Médica – 2016


300
Cirurgia geral e politrauma

Figura 24.7 Anatomia renal. Note a veia cava inferior


(VCI) com trajeto retro-hepática que é onde encontra-se
a maior mortalidade relacionada com esse tipo de trau-
ma. Repare a aorta ramificando-se em artérias renais e
a posição que fica atrás da veia renal que vem direta-
mente da VCI. Note os dois ureteres passando por cima
das artérias ilíacas comuns. Essas questões anatômicas
são frequentes nas provas de residência médica.

Alternativamente, a cirurgia de damage control


com colocação de compressas para controle de sangra-
mento, encaminhamento do paciente à UTI para cor-
reção de distúrbios hidroeletrolíticos e anormalidades
metabólicas seguido de reparo reconstrutivo renal tar-
Figura 24.6 Controle do pedículo renal (principal- dio é boa opção.
mente o direito). A: exposição transperitoneal. Após Entretanto, quando o reparo reconstrutivo não
evisceração das vísceras abdominais para a direita, for viável tecnicamente e a vida do paciente está ame-
faz-se excisão no peritônio posterior sobre a aorta açada por sangramento grave incontrolável, indica-se
medialmente aos vasos mesentéricos inferiores, po- a nefrectomia.
dendo extender-se até o duodeno. B: a veia renal es-
querda. Posteriormente a v. renal esquerda está a ar-
téria renal direita que é melhor controlada por acesso
medial. Tem que tomar cuidado porque às vezes da Complicações
aorta até o rim a artéria renal bifurca-se. Nesse caso, A classificação das complicações do tratamento
a visualização de uma artéria renal caudal à veia re-
das lesões renais pode ser dividida em precoce (de 4-6
nal esquerda significaria que há alta probabilidade
semanas após o trauma) e tardia (após 6 semanas).
de haver outra artéria renal superiormente (as duas
terão um diâmetro bem menor do que o esperado). As complicações precoces são hemorragia,
O controle vascular do pedículo renal demonstrou dor, fístulas urinárias, infecção, sepse e trombose vas-
diminuir a incidência de nefrectomias de 50% para cular. As tardias são atrofia renal, hipertensão reno-
18%. C: incisão retroperitoneal lateral ao cólon, ex- vascular (33%), litíase, hidronefrose e insuficiência
pondo o rim. renal (trauma em rim único ou bilateral).

Traumatismo renal
Indicações de Nefrectomia em pediatria
A nefrectomia é indicada nas extensas lacera-
ções renais com desvitalização de grande parte do pa- O rim da criança é mais vulnerável do que o adul-
rênquima ou avulsão do pedículo, principalmente no to já que as crianças têm rins maiores, menos gordura
indivíduo que possui o outro rim funcionante e está perinéfrica e maior incidência de anormalidades re-
instável hemodinamicamente. nais que facilitam o trauma.
Não se deve correr o risco de tentativas prolon- As causas de trauma renal fechado mais comuns
gadas de reconstrução renal, procurando-se evitar a na faixa etária pediátrica são quedas, acidentes recre-
tríade da morte (hipotermia, acidose, coagulopatia). ativos e com veículos motorizados. Felizmente, ape-

SJT Residência Médica – 2016


301
24 Trauma genitourinário

nas 3% dos traumas abdominais fechados na infância


acometem o rim. Alguns fatores associados são predis-
Anatomia ureteral
ponentes a esse tipo de lesão, tais como: rim em ferra- Os ureteres estão no retroperitônio e apoiados
dura ou policístico, pielonefrite crônica, hidronefrose sobre os músculos psoas, lateralmente às veias gona-
por estenose de junção ureteropiélica, entre outros. dais, e vão descendo do rim até passar por cima das
artérias ilíacas comuns.
A classificação do trauma renal é a mesma usada
no adulto. Vascularização: é segmentar. Os ureteres são
fartamente vascularizados por meio de ramos oriun-
A hematúria também não se correlaciona
dos das artérias renais, gonadais, lombares, aorta e ilí-
com a gravidade da lesão renal.
acas. Isso é bom porque permite a realização de anas-
Os pacientes pediátricos têm alta liberação de ca- tomoses terminoterminais sempre que possível, desde
tecolaminas e portanto o choque não é bom preditor que essa anastomose possa ser realizada sem tensão.
do grau de lesão renal.
Quando amplamente dissecados, esta irriga-
A TC é o melhor exame para o diagnóstico de ção fica prejudicada aumentado a chance de fístulas
lesões renais e de órgãos outros. O exame de urina e deiscência antastomóticas na reconstrução deste
e a ultrassonografia de vias urinárias são ideais para ureter lesado. Assim, deve-se ter o cuidado de obser-
seguimento e seleção de casos duvidosos. var a vascularização do coto ureteral quando houver
O tratamento conservador é inicialmente reali- dissecção extensa dessa estrutura, de modo a evitar
zado. As contusões simples e lacerações superfi- estenose cicatricial e fístula anastomótica. É preferí-
ciais representam 85% dos traumas em crianças. vel ressecar um pequeno segmento que possa eventu-
Até mesmo pacientes pediátricos com lesões grau IV almente ter sua irrigação comprometida, mesmo que
isso implique em um procedimento mais complexo
podem ser tratados de maneira conservadora em 60%
para a reconstrução do trato urinário, a correr risco
dos casos. Quando o tratamento cirúrgico é indicado,
de estenose ou fístula. Lesões de ureter inferior são
realiza-se reparo renal, nefrectomia parcial, nefrecto-
tratadas preferencialmente com reimplante. A recons-
mia total ou, em casos estritos, autotransplante renal
trução ureteral se faz por meio de sutura absorvível.
podem ser necessários.

Trauma do ureter
As lesões ureterais representam menos de 4%
dos ferimentos penetrantes e menos de 1% dos trau-
mas fechados.

A hematúria é um sinal importante no trauma ureteral


mas pode estar ausente em 45% das vezes. Lesões de
ureter podem ser assintomáticas.

O alto índice de suspeição é importante e o diag-


nóstico é feito através de TC contrastada (o ideal) ou
urografia excretora. Há de se ter cuidado de analisar
uma fase tardia excretora de contraste mesmo na TC
multislice para melhor identificação na falha da opaci-
ficação distal do ureter.
A etiologia mais comum do trauma de ure- Figura 24.8 Ureter. Anatomia retroperitoneal. Note
ter é iatrogênico classicamente no intraoperató- a vascularização segmentar diretamente de ramos se-
rio de cirurgias pélvicas ou endourológicas. cundários da aorta e ramos da aorta.
Quando não diagnosticadas, ou quando identi-
ficadas tardiamente, essas lesões podem determinar Em seu trajeto, os ureteres possuem três pontos
a perda da função renal em decorrência do extravasa- de estreitamento anatômico: na junção com a pelve,
mento de urina com consequente formação de absces- no cruzamento com os vasos ilíacos e na junção
so, fibrose periureteral e estenose cicatricial. Coleções com a bexiga. Esses locais devem ser observados com
urinárias infectadas podem ser causa de sepse e até cuidado durante a manipulação endoscópica para evi-
consequente óbito. tar perfurações.

SJT Residência Médica – 2016


302
Cirurgia geral e politrauma

Grande parte da extensão ureteral está frouxa- A TC com reconstrução sagital da via excretora
mente aderida ao retroperitônio, possibilitando avul- mostra-se a mais adequada para avaliar conjuntamen-
sões durante tentativas intempestivas de tração para te lesões viscerais e ureterais nos traumatismos abdo-
retirada endoscópica de cálculos ou ao forçar a passa- minais externos.
gem de endoscópios.
Por possuírem íntima relação com as artérias Trauma de ureter - Escala AAST
uterinas, podem ser lesados durante a ligadura desses Grau da lesão Tipo de lesão Descrição da
vasos para a realização de histerectomia. ureteral * ureteral lesão
Contusão ou he-
I Hematoma matoma sem des-
O ureter é reconhecido no intraoperatório porque o seu vascularização
pinçamento com pinça anatômica demonstra peristalse < 50% transecção
II Laceração
significativa. do ureter
> 50% transecção
III Laceração
do ureter
Transecção com-
Diagnóstico IV Laceração pleta sem desvas-
cularização
As lesões ureterais podem ser iatrogênicas Avulsão do hilo
(80%) ou decorrentes de traumatismos abdominais V Laceração renal com desvas-
externos (20%) e, mais raramente, sequelas de trata- cularização
mentos radioterápicos.
Tabela 24.4 Escala de Moore para trauma de ureter
As lesões iatrogênicas são decorrentes de inci- pela escala da AAST: Associação Americana para a Ci-
sões e transecções inadvertidas, ligaduras, queimadu- rurgia do Trauma. *Avançar um grau na classificação
ras por eletrocoagulação, isquemias do coto ureteral quando a lesão for bilateral até o grau 3.
por dissecções extensas, avulsões e perfurações por
manipulação endoscópica. As lesões por FAF ou FAB
incidem em até 10% dos casos.
Quando não identificadas no ato intraoperató-
rio, as lesões ureterais devem sempre ser suspeitadas
nas evidências de fístulas urinárias, abscessos retro-
peritoneais e hidronefrose pós-operatória.
Aproximadamente 50 a 70% das lesões ure-
terais agudas não são diagnosticadas de imedia-
to e, quando não tratadas, podem determinar seque-
las graves como hidronefrose e perda da função renal.
Nas situações em que exista suspeita de lesão
intraoperatória, o ureter deve ser minuciosamente
examinado e a injeção intravenosa de azul de metile-
no poderá auxiliar no diagnóstico. Lesões mínimas
podem ser tratadas com a introdução de cateter
ureteral duplo J. Considerar o risco benefício do azul
de metileno pois pode causar meta hemoglobinemia
quando utilizado por via intra venosa.
Quando a suspeita diagnóstica é tardia, a rea-
lização de pielografia ascendente é o procedimento
mais adequado, pois permite a identificação precisa
do local da lesão e, eventualmente, seu tratamento,
mesmo que temporário, por meio de cateter duplo J.
Alternativamente, na impossibilidade de cateteriza-
ção ureteral e na presença de hidronefrose, devem ser
realizadas pielografia percutânea e nefrostomia com o
objetivo de preservar a função renal e derivar o trato
urinário, criando condições locais mais satisfatórias Figura 24.9 Urografia excretora: extravasamento
para o tratamento definitivo a ser realizado posterior- de contraste no ureter direito (seta) demonstrando
mente, em prazo não inferior a 90 dias. lesão do ureter direito.

SJT Residência Médica – 2016


303
24 Trauma genitourinário

€ Ureter proximal: ureterouretoroanastomose


primária (e o duplo J é colocado para facilitar
a sutura). Caso haja perda extensa do ureter
pode-se fazer autotransplante de rim e ainda
interposição de alça intestinal. Nefrostomia ra-
ramente é necessária.
As lesões percebidas no decorrer de procedimen-
tos cirúrgicos, assim como as avulsões decorrentes de
procedimentos endoscópicos, devem ser tratadas de
imediato com colocação de duplo J.
Lesões que comprometem pequenas extensões
do ureter são abordadas por meio de ressecção do
segmento comprometido e anastomose termino-
terminal. Para tanto, é necessário que a sutura seja
feita sem tensão, com fio absorvível (Vicryl 3-0, 4-0
ou 5-0, categut cromado), tomando-se o cuidado de
ampliar os cotos da anastomose por uma pequena
incisão longitudinal (anastomose em bizel). Uma al-
ternativa ao duplo J é o J simples que é exteriorizado
pela bexiga.
€ Ureter médio proximal: prefere-se anas-
tomose terminoterminal mas quando não é
possível há de se fazer transureteroureteroa-
nastomose. Esse procedimento é bom porque
permite anastomose em local longe de pro-
cessos patológicos. Alternativamente, pode-
-se fazer ainda interposição de segmento ileal
(pielo/ureteroileocistoanastomose) Este seg-
mento pode ser tubulizado para adequação de
calibre. Uma vez interposta alça, esta deve ir
desde a lesão ureteral até a bexiga.
€ Segmento médio distal: reimplante urete-
rovesical associado à fixação bexiga-psoica
(preferido para diminuir a tensão na anastomo-
se com ponto de vicryl 2.0, unindo-se a bexiga
ao psoas). Aqui há de se ter o cuidado de não
lesar o nervo genitofemoral (que está na super-
Figura 24.10 TC de abdome e pelve, na fase excreto- fície do psoas) ou o nervo femoral.
ra, mostrando lesão ureteral proximal e extravasamento Alternativamente pode ser feito de flap para a
de contraste para hilo renal e tecido celular subcutâneo. confecção de um tubo de bexiga (técnica de Boari).

Avaliação da integridade da junção uretero-


pélvica: diagnóstico realizado por TC contrastada vi- Formas de tratamento do traumatismo ureteral
sualizando sistema coletor renal e ureter proximal com € Cateterização com duplo J e/ou nefrostomia percu-
material de contraste excretado. Em pacientes instáveis tânea
onde a TC não pode ser feita a alternativa é realizar a
€ Ureteroureterostomia (anastomose terminoterminal)
urografia excretora “em tomada única” com injeção do
contraste 2 mL/Kg e raio X 10 - 15 minutos após. € Transureteroureterostomia (anastomose termino-
lateral)
€ Reimplante ureteral sem mobilização vesical
€ Bexiga psoica (Psoas-Hitch)
Retalho de Boari
Tratamento €

€ Substituição ureteral (ureter ileal)


Pequenas perfurações provocadas por procedi-
mentos endoscópicos podem ser tratadas apenas com
€ Autotransplante renal
a colocação de cateter duplo J. Tabela 24.5 Tratamento do trauma de ureter.

SJT Residência Médica – 2016


304
Cirurgia geral e politrauma

Classi昀椀cação das lesões


de bexiga
As lesões vesicais geralmente acompanham le-
sões de uretra. Elas podem ser observadas como:
€ Contusões de bexiga: são resultados de força so-
bre a área da parede detrusora, sem haver rup-
tura do órgão.
€ Ruptura intraperitoneal: lesão de todas as ca-
madas da parede da bexiga com extravasamen-
to de urina e sangue para a cavidade peritoneal.
€ Ruptura extraperitoneal: ruptura vesical com
extravasamento de sangue e urina ao espaço re-
Figura 24.11 Topografia das lesões uretrais e opções troperitoneal, de Retzius, sem haver urina den-
terapêuticas. tro do peritônio.
€ Lesão combinada: lesões intra e extraperitone-
ais concomitantes.
Princípios da cirurgia reparadora uretal

€ Preservação da adventícia e gordura periureteral


€ Desbridamento até bordas com irritação preservada
Mecanismo de lesão
€ Espatulação dos cotos terminais Traumas como esmagamento, atropelamento e
€ Colocação de stent ureteral transanastomótico golpe contuso são mecanismos que oferecem estresse
ao anel ósseo pélvico, favorecendo fraturas. Fraturas
€ Sutura hemética e sem tensão (fios absorvíveis)
que comprometem a estabilidade da bacia são consi-
€ Dreno externo próximo à sutura (sem sucção) deradas de maior potencial para trauma de bexiga e
€ Proteção da sutura com peritônio ou omento uretra. A fratura de bacia é a lesão que mais se as-
socia ao trauma de bexiga. Obviamente, contusões
Tabela 24.6 abdominais, sobretudo em hipogástrio, no momento
em que a bexiga está repleta, favorecem rupturas vesi-
cais, sem haver necessariamente fratura de bacia.
Na prática clínica, longe de ser regra, observa-se
que fraturas que geram instabilidade vertical do anel

Traumatismo vesical ósseo pélvico (isto é, impacto frontal, esmagamento


anteroposterior) são mais propensas a provocarem
ruptura intraperitoneal. Fraturas com instabilida-
A bexiga é o terceiro órgão genitourinário mais
de rotatória (tipo livro aberto) podem causar le-
traumatizado, depois do rim e órgão genital externo. sões extraperitoneais. Com mais energia no impac-
Em traumas graves de bacia, a bexiga e uretra são os to, lesões combinadas possuem maior probabilidade
principais órgãos acometidos, sendo 0,5% a incidência de ocorrência.
de trauma vesical entre todos os traumas fechados ad-
mitidos na sala de emergência. Traumas penetrantes, como aqueles provocados
por arma branca ou projétil de arma de fogo, podem
Na maioria dos casos em que se constata le- comprometer a bexiga. Armas de fogo com projéteis
são vesical, o trauma é fechado em aproximada- de grande energia podem lesar a bexiga sem mesmo
mente 80% dos casos e, em geral, é consequência haver contato do projétil com o órgão. Nesses casos,
de acidentes automobilísticos. a lesão ocorre por cavitação: a transmissão energética
As lesões iatrogênicas de bexiga não são inco- confere diferenças de pressão em diferentes locais da
muns. Algumas análises demonstram, por exemplo, pelve, provocando ruptura vesical.
incidência de 0,02 a 8,3% nas cirurgias laparoscópicas,
sendo a histerectomia vaginal a que apresenta mais
chance de ocorrência dessas lesões. Procedimentos
como histerectomias abdominais, exérese de massas Quadro clínico
pélvicas, cesáreas, ressecções intestinais e correção de A lesão de bexiga, de causa iatrogênica, tem sua
incontinência urinária são clinicamente importantes constatação no momento da lesão na maioria dos ca-
como causa de lesão vesical. sos. Quando isso não ocorre, a lesão pode ser sus-

SJT Residência Médica – 2016


305
24 Trauma genitourinário

peitada pelos sintomas apresentados pelo paciente. e ruídos hidroaéreos diminuídos. Pacientes com rebaixa-
Por exemplo, lesões decorrentes de ressecções tran- mento de nível de consciência necessitam de cuidados
sureteroscópicas de bexiga podem provocar rupturas adicionais com base em exames complementares.
vesicais cujo extravasamento de urina no espaço re- A análise da urina pode revelar micro-hematú-
troperitoneal provoca dor lombar e até torácica dor- ria, achado que se traduz em lesão vesical com um
sal importante. Essas lesões extraperitoneais podem risco menor (cerca de 1%). Deve-se lembrar da con-
evoluir com infecção ou fístula para outros órgãos tusão vesical como sendo também responsável por
pélvicos ou para a pele. Lesões com extravasamento essa apresentação.
intraperitoneal podem gerar desconforto e dor abdo-
minal, além de sinais de irritação peritoneal.
Exames complementares
O tempo necessário para se constatar a ruptu-
ra vesical em média é de 3,2 horas após a admissão.
Nos casos em que esse tempo ultrapassa 24 horas, obser-
va-se elevação da mortalidade. Com o intuito de realizar
o diagnóstico de trauma vesical é importante a suspeita
clínica pelo médico assistente já no momento do atendi-
mento inicial, no setor de emergência. Além dos exames
de avaliação hemodinâmica, urina tipo 1, creatinina e
ureia são importantes para completa avaliação.
Primeiramente, a realização dos exames específicos
de imagem deve pressupor que os pacientes estejam es-
tabilizados do ponto de vista hemodinâmico. Dentre os
exames de imagem, a cistografia e a tomografia compu-
tadorizada são os exames mais realizados na prática clí-
nica. A cistografia apresenta sensibilidade próxima
a 100%. Por outro lado, a tomografia não possui grande
acuidade em predizer trauma de bexiga, a não ser que se
utilize contraste instilado pela sondagem vesical.
O exame físico, atentando-se aos sinais clí-
nicos do paciente, deve alertar o médico assis-
tente a solicitar exames de imagem com o intuito
de confirmar ou afastar o diagnóstico de trauma
vesical. A cistografia merece ser realizada na presença
de sinais e sintomas que são altamente sugestivos de
trauma vesical (dor suprapúbica, distensão abdomi-
nal, diminuição de ruídos hidroaéreos, incapacidade
Figura 24.12 A-D: tomografia computadorizada de de esvaziamento vesical, coágulos na urina, hemato-
abdome e pelve mostrando lesão de bexiga com ex- ma perineal ou edema, líquido livre na cavidade pe-
travasamento intraperitoneal. ritoneal à tomografia ou ultrassonografia, presença
de obstrução miccional prévia, cirurgia vesical prévia,
No paciente vítima de trauma pélvico fechado, a elevação dos níveis de creatinina e ureia por reabsor-
presença de fratura de bacia deve levantar a hipótese ção peritoneal). Nessas condições, a indicação é relati-
de comprometimento vesical, sobretudo na presença va, visto que a chance de ruptura vesical, embora exis-
de hematúria total. A presença desse sinal deve indu- tente, é menor quando comparada aos quadros com
zir a hipótese de outros traumatismos genitouriná- hematúria e fratura de bacia.
rios; além disso, a fratura pélvica associada transpõe o
Cistografia após trauma
paciente ao risco em torno de 40% de haver lesão vesi-
cal. Nesses casos, não se deve esquecer a possibilidade Indicação absoluta:
de trauma de uretra e os cuidados com esse paciente € Hematúria franca e fratura pélvica
devem ser tomados como tal. Indicação relativa:
€ Hematúria franca sem fratura pélvica
Nesse cenário, os pacientes podem apresentar ao
€ Micro-hematúria com fratura pélvica
exame físico dor e tensão abdominal suprapúbicas, re-
€ Micro-hematúria isolada
tenção urinária ou dificuldade miccional, coágulos em
urina, edema e hematoma perineal, distensão abdominal Tabela 24.7

SJT Residência Médica – 2016


306
Cirurgia geral e politrauma

Trauma de bexiga - Escala AAST


Grau da lesão * Tipo de lesão Descrição da lesão
I Hematoma Contusão ou hema-
toma intramural
Laceração Espessura parcial
II Laceração Rotura de bexiga ex-
traperitoneal < 2 cm
III Laceração Rotura de bexiga
extraperitoneal > 2
cm. Rotura de bexi-
ga intraperitoneal
< 2 cm
IV Laceração Rotura da parede da
Figura 24.13 Cistografia mostrando pequeno ex- bexiga intraperito-
travasamento de contraste no domo de bexiga, lesão neal > 2 cm
encontrada no intraoperatório bloqueada pelo cólon V Laceração Rotura de bexiga in-
sigmóide. traperitoneal exten-
dendo-se até o colo
da bexiga ou orifício
do ureter (trígono)

Tratamento Tabela 24.8 Escala de Moore para trauma de bexiga


pela escala da AAST: Associação Americana para a Ci-
O tratamento deve ser instituído assim que o rurgia do Trauma. *Avançar um grau na classificação
diagnóstico é confirmado e as condições clínicas
quando a lesão for bilateral até o grau 3.
do paciente permitam. Muitas vezes, a lesão vesi-
cal é observada apenas no intraoperatório, quando
o paciente com instabilidade hemodinâmica e claro Suspeita de traumatismo
comprometimento abdominal é levado às pressas ao fechado de bexiga
centro cirúrgico ou quando é verificada lesão em ou-
tros órgãos abdominais e pélvicos que necessita de Uretrocistografia
Lesão Lesão
tratamento cirúrgico. intraperitoneal
retrógrada ou
extraperitoneal
tomografia de abdome
A lesão intraperitoneal normalmente é
tratada com cirurgia aberta, seja pela indicação Exploração Contusão
Sondagem
vesical por 10
de laparotomia exploradora por outras lesões, seja, cirúrgica
a 14 dias
nos casos iatrogênicos, pelo reconhecimento imedia-
to. Traumas penetrantes podem necessitar de prévio Sutura da
desbridamento e posterior sutura em dois planos bexiga sondagem
por 10 a 14 dias
com fios absorvíveis. A presença de lesões mais com-
plexas pode envolver ampliação vesical, utilizando-se Figura 24.14 Algoritmo de tratamento do trauma de
ou não retalhos. bexiga.
As lesões extraperitoneais em geral são
conduzidas com simples sondagem vesical de de-
mora, com o intuito de se derivar a urina favorecendo
a cicatrização da lesão.
O tempo de internação geralmente não apresen-
Traumatismo uretral
ta diferenças em relação à gravidade da lesão vesical. As lesões traumáticas de uretra são pouco fre-
Apenas a gravidade do trauma e suas lesões associadas quentes. Tradicionalmente, são divididas em lesões
determinam o tempo de internação. Casos em que há de uretra anterior e posterior, uma vez que o manu-
fratura de bacia, por exemplo, apresentam mais tem- seio inicial varia de acordo com o grau e a localização
po de internação. destas. As rupturas de uretra posterior costu-
Com a evolução, os pacientes podem apresentar mam estar associadas a lesões de múltiplos ór-
disúria, retenção urinária crônica e aguda decorrente gãos e mortalidade considerável, ao passo que
de tamponamento por coágulos. A longo prazo, po- as lesões de uretra anterior em geral ocorrem
dem ocorrer estreitamento uretral e impotência. de forma isolada.

SJT Residência Médica – 2016


307
24 Trauma genitourinário

gaigne) com laceração para dentro da uretra. O segundo


Etiologia inclui lesões por fratura em livro aberto, pelo qual um
A maioria das lesões de uretra posterior é fragmento da sínfise púbica é deslocado posteriormen-
decorrente de trauma contuso associado à fratu- te, levando à ruptura. O último mecanismo consiste
ra pélvica. A ruptura uretral ocorre em aproximada- na diátese da sínfise púbica, por meio da qual a uretra
mente 10% dessas fraturas, que em geral são secundá- membranosa é estirada até sua ruptura.
rias a acidentes automobilísticos (68 a 78%), quedas e
lesões pélvicas por esmagamento (6 a 25%).
As fraturas pélvicas têm maior incidência nas Classi昀椀cação
primeiras três décadas de vida, acometendo duas ve- Colapinto e McCallum descreveram, em 1977,
zes mais homens do que mulheres. As mulheres são o mais aceito sistema de classificação de trauma de
menos acometidas em razão de menor comprimento uretra posterior, que recentemente foi modificado por
e maior mobilidade uretral em relação ao arco púbico. Goldman para incluir todos os tipos de lesão contusa.
Os subtipos de fraturas pélvicas mais comu- Essa classificação utiliza-se de achados radiográficos
mente associadas à ruptura de uretra posterior para enumerar os tipos de lesão:
incluem a fratura em livro aberto, também cha-
mada de fratura em borboleta, em que os quatro Tipo 1: ruptura do ligamento puboprostático e he-
ramos púbicos estão fraturados, e a fratura de Mal- matoma periprostático adjacente, estirando a uretra
gaigne, que envolve ruptura pelo ramo isquiopúbico membranosa sem ruptura
anteriormente, bem como através do sacro ou da jun-
Tipo 2: ruptura completa ou parcial da uretra mem-
ção sacroilíaca posteriormente. Se a fratura em livro
branosa acima do diafragma urogenital ou da mem-
aberto estiver associada com disjunção sacroilíaca, a brana perineal. Na uretrografia, o contraste é visto
lesão uretral é mais prevalente. extravasando-se acima da membrana perineal
As lesões de uretra anterior também têm como Tipo 3: ruptura completa ou parcial da uretra mem-
principal causa os traumas contusos, incluindo aci- branosa, com ruptura do diafragma urogenital. O con-
dentes automobilísticos, quedas a cavaleiro e chutes traste extravasa para dentro da pelve e do períneo
no períneo. A uretra bulbar é o segmento mais
Tipo 4: lesão do colo vesical com extensão para dentro
acometido (85%). da uretra
As lesões penetrantes são raras, em geral decor- Tipo 5: ruptura vesical extraperitoneal com lesão na
rentes de perfurações por arma de fogo, envolvendo base da bexiga e extravasamento periuretral, simulan-
normalmente a uretra anterior em seus segmentos do uma lesão tipo 4
bulbar e peniano igualmente.
Tipo 6: lesão de uretra anterior
Ocorre envolvimento da bexiga em 10 a 20%
dos casos de ruptura uretral, sendo extraperi- Tabela 24.9
toneal em 56 a 78% das vezes e intraperitoneal
em 17 a 39%. Lesões de colo vesical concomitantes O tipo 3 constitui o tipo mais frequente,
costumam ter consequências graves na continência. ocorrendo em 66 a 85% das lesões de uretra pos-
Lesões uretrais em mulheres na maioria das ve- terior. Os tipos 1 e 2 são incomuns, representando
zes estão associadas a lacerações vaginais (75%) aproximadamente 10 e 15%, respectivamente. As le-
e retais (33%). sões tipo 4 são raras.
O sistema de classificação utilizado com mais
frequência para lesões de uretra anterior foi descrito
Mecanismo de lesão por McAninch e Armenakas, também com base em
achados radiográficos:
Na uretra anterior, a força de impacto no períneo
esmaga a uretra bulbar contra o ramo púbico, ocasio-
nando contusão ou laceração da uretra. Já o mecanismo Contusão: achados clínicos sugestivos de lesão uretral,
de lesão da uretra posterior consiste em uma força de ci- mas com uretrografia normal
salhamento, que avulsiona o ápice da próstata da uretra Ruptura incompleta: a uretrografia demonstra extrava-
membranosa, com rotura do ligamento pubo prostáti- samento, porém a continuidade uretral é parcialmente
co, alto risco de lesão do esfíncter estriado, podendo mantida
assim comprometer a continência. Pokorny postulou Ruptura completa: a uretrografia demonstra extrava-
três mecanismos por meio dos quais esse cisalhamento samento com ausência do enchimento da uretra proxi-
pode ocorrer. O primeiro envolve o deslocamento su- mal ou bexiga. A continuidade uretral é interrompida
perior de uma hemipelve (por exemplo, fratura de Mal- Tabela 24.10

SJT Residência Médica – 2016


308
Cirurgia geral e politrauma

A classificação da AAST modificada leva em con- A tomografia computadorizada (TC) é ideal para
sideração a extensão do trauma e a localização anatô- visualizar lesões no trato urinário superior e na be-
mica avaliadas na uretrografia retrógrada. xiga, ao passo que a ressonância nuclear magnética
(RNM) é útil na avaliação da pelve pós-trauma antes
Classificação da AAST modificada
de intervenções reconstrutoras, não tendo papel no
Grau Tipo Descrição diagnóstico inicial dessas lesões.
I Alongamento Alongamento da uretra
sem extravasamento de
contraste
II Contusão Sangue no meato. Sem ex-
travasamento de contraste
III Ruptura parcial de Extravasamento de con-
uretra anterior/ traste no local da lesão.
posterior Presença de contraste na
uretra proximal/bexiga
IV Ruptura total de Extravasamento de con-
uretra anterior/ traste no local da lesão.
posterior Ausência de contraste na
uretra proximal/bexiga
V Ruptura total de Lesão de colo vesical ou
uretra posterior vaginal associada
Tabela 24.11

Apresentação clínica
A presença de fratura pélvica, sangue no meato
uretral e incapacidade de urinar (ou distensão vesical)
consistem na tríade diagnostica de ruptura uretral. A
capacidade de urinar, no entanto, não afasta a possibili-
dade de lesão parcial da uretra. A presença de sangue
no meato é mais um importante sinal de trauma
uretral, sendo observado em 37 a 93% dos pacientes,
com uma sensibilidade de 98% para lesão posterior e
75% para lesão anterior da uretra. Em geral, o volume
de sangue expelido pelo meato não se correlaciona com
a gravidade do quadro. Outros sinais sugestivos de trau-
ma uretral incluem hematúria maciça, equimose ou he-
matoma escrotal, peniano ou perineal, e dificuldade de
cateterização vesical. O exame retal digital pode revelar
uma próstata elevada ou deslocada em 34% dos casos,
porém trata-se de um achado incerto na fase aguda,
uma vez que o hematoma pélvico associado à fratura de
bacia pode prejudicar a palpação prostática adequada,
em particular em pacientes jovens.
A lesão uretral feminina é suspeitada na pre-
sença de fratura pélvica associada com sangra-
mento vaginal ou laceração, uretrorragia, hema-
túria, edema labial ou incapacidade de urinar.

Diagnóstico
A uretrografia retrógrada é o exame de es-
colha no diagnóstico de lesões uretrais em razão
de sua simplicidade e acurácia, e possibilidade de
ser realizada rapidamente na sala de trauma.

SJT Residência Médica – 2016


309
24 Trauma genitourinário

mento for incompleto < 2 cm o cateterismo pode ser


tentado por urologista, mas na menor resistência o
mesmo deverá ser colocado sob endouroscopia direta.
Confirmada a rotura total de uretra ante-
rior, o reparo na fase aguda pode ser realizado,
uma vez que não há comprometimento esfinc-
teriano. Caso seja realizada cistostomia deverá
permanecer por 3 meses (ou até o desapareci-
mento do hematoma). Após esse período, que é
quando desaparece o edema e hematoma perineal daí
faz-se uretroplastia terminoterminal.

Rotura de uretra posterior


É possível tentar fazer o realinhamento endos-
cópico precoce naqueles pacientes estáveis quando
houver disponibilidade de material endoscópico. O
realinhamento primário por laparotomia também
é factível, mas implica em chance de hemorragia.
Este realinhamento precoce evitaria estenose de
difícil tratamento. A disfunção sexual (impotên-
cia) e a incontinência urinária dependem da lesão
e poderiam ser agravadas por uma tentativa de re
anastomose primária na fase aguda. A principal
vantagem do tratamento com realinhamento
endoscópico é evitar algumas uretroplastias
Figura 24.15 A: radiografia de pelve mostrando fra- tardias e nestes casos facilitar a técnica pois
tura dos ramos iliopúbico e isquiopúbico esquerdos e o hiato entre os cotos saudáveis comprometi-
da asa sacral direita, em associação à diastase da sín- dos por estenose seria menor. Alternativamen-
fise púbica. B: uretrocistografia, na fase retrógrada, te pode-se fazer o tratamento convencional com
mostrando opacificação até o nível da uretra bulbar. C cistostomia por 3 meses (ou no desaparecimento
e D: uretrocistografia, na fase retrógrada, mostrando do hematoma) e daí repetir o uretrocistograma
indefinição de uretra membranosa e prostática com e ver se o hematoma pélvico cedeu e a anatomia
extravasamento de contraste. E: uretrocistografia de ficou melhor de ser identificada para finalmente
controle evolutivo após três meses, na fase miccional,
fazer a uretroplastia.
mostrando ainda extravasamento do contraste.

Suspeita de
traumatismo uretral

Tratamento da lesão da Uretrografia retrógrada e urografia excretora

uretra
Normalmente não é reparada no trauma agudo, Lesão de uretra anterior Lesão da uretra posterior
mas sim tardiamente 3 meses depois. Entretanto, com
a evolução do serviço de endourologia algumas lesões
vem sendo realinhadas na urgência, mas em pacientes Parcial Total Simples Complexa
selecionados.

Tentativa de Abordagem
sondagem Cistostomia Cistostomia cirúrgica
Rotura de uretra anterior ou imediata
cistostomia ou cistostomia
Faz-se a uretrocistografia e procede-se o
reparo na fase aguda ou a cistostomia. Se o feri- Figura 24.16 Conduta imediata no traumatismo uretral.

SJT Residência Médica – 2016


310
Cirurgia geral e politrauma

Trauma peniano e Trauma testicular


testicular Há de se explorar caso se acredite que houve
rotura testicular e é interessante fazer um ultras-
som Doppler testicular antes para avaliar se é ne-
Trauma peniano cessário cirurgia ou não nos traumas fechados de
testículo. Já nos traumas penetrantes, o objetivo
Geralmente o trauma é fechado relacionado a ato é evacuar o hematoma, debridar a fim de reparar e
sexual violento. O tratamento é cirúrgico com repa- salvar o testículo.
ro direto da túnica albugínea. Em se tratando de fe-
rimento penetrante, a conduta é exploração e reparo.
A cistouretrografia é importante porque pode haver
lesão de corpo cavernoso e rotura de uretra concomitante. O mais importante é entender que ferimentos
Amputações traumáticas do pênis precisam não pelviperineais complexos exigem a realização de
só de manejo cirúrgico microcirúrgico, mas tratamen- colostomia proximal e cistostomia para desviar o
to psiquiátrico porque os pacientes podem apresentar transito intestinal e urinário de lesões perineais
para diminuir a mortalidade.
distúrbios psiquiátricos relacionados após essa desco-
nexão genótipa e fenótipa do indivíduo.

Em 16 de Outubro de 1846 (Harvard, EUA) ocorreu a primeira operação sob anestesia geral.
Cirurgião: John Waren
Anestesista: William Morton
Paciente: Edwart Gilbert Aboot
Diagnóstico: Tumor cervical benigno

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

25
Trauma pélvico

Introdução
Os acidentes automobilísticos são responsáveis pela
maioria das fraturas da pelve, exceto para as pessoas acima
dos 60 anos de idade, onde as quedas levam à maioria das
fraturas pélvicas. As fraturas do anel pélvico estão presen-
tes em aproximadamente 25% dos pacientes traumatiza-
dos. Os tipos principais de fraturas pélvicas são:
€ compressão anteroposterior;
€ compressão laterolateral;
€ cisalhamento vertical.
O anel pélvico é composto de três ossos: osso ilí-
aco direito, osso ilíaco esquerdo e o sacro que são esta-
bilizados por ligamentos fortes. O osso ilíaco é formado
pelo íleo, o pube e o ísquio que se fundem no acetábulo.
312
Cirurgia geral e politrauma

Valores normais:
€ sínfise púbica < 1 cm;
€ junção sacroilíaca < 0,4 cm.

A gravidade da lesão é proporcional à violência


do trauma. Assim sendo, a pelve pode sofrer lesão
mínima e estável até roturas extremamente graves
capazes de determinar óbito por hemorragia (fratu-
ras pélvicas sangram > 2 litros); cerca de 30% dos
politraumatizados com lesão do anel pélvico
irão a óbito. As fraturas do anel pélvico verdadeiras
(instáveis - sínfise púbica, sacroilíaca e sacro) preci-
sam ser diferenciadas das fraturas que não afetam
Figura 25.1 A e B: imagens mostrando aspectos an
a estabilidade (estáveis porque não rompem liga-
terior e posterior da pelve, com suas estruturas liga-
mentares.
mentos anteriores e posteriores da bacia, exemplo:
fratura acetabular). Além disso, há de se olhar L5
para avaliar se há fratura de processo transverso que
Esses tipos de trauma têm associação com alta indica instabilidade da pelve porque o ligamento ile-
morbimortalidade sobretudo devido às lesões associa- olombar se insere aí, bem como a espinha ilíaca pos-
das. Daí a importância de se reconhecer o padrão de terosuperior (o forte ligamento sacroilíaco posterior
lesão à pelve porque há relação com o mecanismo de se insere aí). As lesões estáveis têm um bom prog-
trauma e o tratamento apropriado. O segredo é veri- nóstico e raramente levam a alterações funcionais,
ficar se houve deslocamento da hemipelve facilmente enquanto as fraturas instáveis (fraturas posteriores)
visualizado no raio X de pelve porque é isso que irá apresentam maior incidência de mortalidade, conso-
indicar a cinemática do trauma: lidação viciosa, não consolidação e dor crônica. Além
Compressão lateral é o mecanismo mais co- disso, a avaliação do hematoma pélvico e a classifica-
mum. Pode ocorre rotação interna da hemipelve afe- ção de Tile serão um dos critérios para determinar a
tada com deslocamento do pube que geralmente leva necessidade de arteriografia.
à lesão de uretra associada, podendo haver disjunção
sacroilíaca ou não. Geralmente, essas fraturas não des-
troem os ligamentos pélvicos e não “abrem” a pelve,
não necessitando ser estabilizadas. fraturas horizon-
tais nos ramos púbicos são características. Está asso-
Classi昀椀cação
ciado a lesão de uretra e geralmente não relaciona-se Várias classificações das lesões do anel pélvico
com sangramentos significativos (exceto aquelas que são apresentadas na literatura, mas a classificação
lesam espinha esquiática maior que podem lesar arté- proposta por Tile e Pennal (Tabela 25.1), é a mais uti-
ria glútea, mas é muito raro). lizada e relaciona-se à cinemática de rotação após o
Compressão anteroposterior (fratura em trauma, orientando para o tratamento.
livro aberto) é o segundo mecanismo mais comum.
Como nota-se abaixo as características clássicas são o
alargamento da sínfise púbica (> 2,5 cm) e diástase de Fraturas da Pelve - Classificação de Tile e Pennal
articulação sacroilíaca (disjunção sacoilíaca facilmente Tipo A - Estável (vertical e rotação)
visualizadas no raio X de pelve AP). E quanto maior
Al - Fraturas que não comprometem o anel: lesões por
a energia cinética do trauma maior a rotação externa
avulsão
da pelve (a TC é melhor para avaliar a rotação externa
geralmente direita e posterior da pelve) em pacientes A2 - Fratura com desvio mínimo
estáveis. São fraturas verticais do quadril podendo A3 - Fratura transversa do sacro e do cóccix
ou não ter disjunção sacroilíaca. Fraturas em livro Tipo B - Instabilidade rotacional / Estabilidade
aberto ocasionam o pior tipo de sangramento (> vertical (open-book fractures)
2 litros).
B1 - Instabilidade em rotação externa: lesão em livro-
Cisalhamento vertical: há deslocamento da -aberto
hemipelve afetada em direção cranial que ocasiona
B2 - Instabilidade em rotação interna: lesão por com-
disjunção sacroilíaca. É uma fratura orientada verti- pressão lateral
calmente e caracteristicamente de um lado só. San-
gram menos que as de livro aberto. B3 - Lesão posterior bilateral

SJT Residência Médica – 2016


313
25 Trauma pélvico

Fraturas da Pelve - Classificação de Tile e Pennal


Tipo C - Instabilidade rotacional e vertical
C1 - Lesão posterior unilateral
C2 - Lesão posterior bilateral - um lado com instabili-
dade rotacional e outro vertical
C3 - Lesão posterior bilateral (ambos os lados com ins-
tabilidade vertical)
Tabela 25.1 Classificação de Tile para fraturas de bacia.
Figura 25.3 Classificação das fraturas do anel pélvico
de acordo com Tile.

A classificação de Young e Burgess, que se baseia


no mecanismo de trauma e no tipo de vetor força apli-
cado na pelve, procura estabelecer uma sequência de
prioridades diagnósticas e terapêuticas. Esses autores
definiram a compressão anteroposterior, a com-
pressão lateral e o cisalhamento vertical como
mecanismos de trauma pélvico.

Fraturas da pelve – Classificação de


Young e Burgess
Compressão anteroposterior (AP)
I- Alargamento da sínfise púbica < 2,5 cm sem lesão
pélvica posterior significativa.
II- Alargamento da sínfise púbica > 2,5 cm sem lesão
pélvica posterior significativa.
III- Rotura completa da sínfise púbica e ligamentos
posteriores com deslocamento da hemipelve.
Compressão lateral (CL)
I- Compressão posterior da articulação sacroilíaca sem
rotura ligamentar. Fratura oblíqua do pube.
II- Rotura do ligamento sacroilíaco posterior: rotação
interna da hemipelve em direção anterior à sacroilíaca
com lesão de esmagamento do sacro. Fratura oblíqua
do pube.
III- Compressão anteroposterior para a hemipelve
contralateral.
Cisalhamento vertical
Tabela 25.2

As lesões por compressão anteroposterior


(APC), causadas por forças exercidas no sentido ante-
roposterior da bacia, tendem a abrir a pelve com rup-
Figura 25.2 Mecanismo de trauma para as fraturas tura da sínfise púbica e das articulações sacroilíacas,
de bacia. promovendo a rotação das asas ilíacas para fora. A pel-
ve tende a se abrir anteriormente como se fosse um li-
Suspeitar de fratura pélvica em doente chocado, sem vro (open-book). Essas fraturas podem ser subdivididas
resposta à reposição volêmica, que não tem sinal de em 3 tipos, APC I, II e III. Ao tipo APC-I, corresponde a
fratura ao exame físico. uma lesão estável do anel pélvico, com diástase isolada
da sínfise pubiana ou com fratura dos ramos do púbis.
Corresponde a um afastamento da sínfise < 2,5 cm e
O alargamento de sínfise púbica sugere fratura ins- o anel posterior permanece intacto. As do tipo APC-II
tável do anel pélvico. A fratura pélvica é importante são rotacionárias, instáveis, associadas com a ruptura
marcador da magnitude da lesão retroperitoneal. da sínfise ou menos comumente, a fraturas de seus ra-

SJT Residência Médica – 2016


314
Cirurgia geral e politrauma

mos, ou ruptura dos ramos púbicos e dos ligamentos A avaliação neurológica dos membros inferiores
sacrotuberosos, sacroespinhosos e sacroilíacos. Esses é importante, pois a raiz L5 pode estar comprometida,
traumatismos são associados com a grande afasta- principalmente nas lesões instáveis da pelve.
mento da sínfise pubiana, > 2,5 cm, e alargamento de A estabilidade rotacional pode ser determinada
1 ou das 2 sínfises sacroilíacas. As lesões tipo APC-III pela manobra de compressão da região anterossupe-
são as que apresentam lesão completa das articulações rior dos ilíacos, tanto em rotação externa quanto in-
sacroilíacas, as quais se tornam instáveis no plano ver- terna. Essa manobra deverá ser feita apenas uma vez
tical e rotacional. sob pena de agravar a hemorragia.
O cisalhamento vertical (VS) decorre de A manobra de pistonagem (puxar-empurrar
agressão anterior e posterior ao anel pélvico e da rup- o membro inferior) deve evidenciar a presença
tura dos ligamentos sacroespinhosos e sacrotubero- de instabilidade vertical da pelve.
sos causando grande instabilidade pélvica. As forças
As fraturas pélvicas, principalmente as
verticais de cisalhamento tendem a deslocar uma das
instáveis, devem ser inicialmente tratadas com
hemipelves em sentido cranial, com a resultante lesão
fixação externa para a estabilização da pelve e
da articulação sacroilíaca correspondentes. Todas as
o controle da hemorragia. A recomendação atual
lesões pélvicas enquadradas nesta categoria têm des-
pelo ATLS é que havendo possibilidade de arteriogra-
truição completa da articulação sacroilíaca e são con-
fia com embolização, nos casos de fratura de bacia que
sideradas instáveis.
não respondem hemodinamicamente à reposição vo-
lêmica, esta pode ser feita antes da fixação da fratura,
mas somente nos casos de Tile B e C.
É importante antecipar a necessidade de sangue
Aspectos clínicos nesses pacientes. O déficit de base menor que -6 é
fator de pior prognóstico e mais sensível do que
o lactato. É importante entender que o sangramento
É importante entender que fraturas posteriores
arterial é responsável pelo choque em fraturas da pel-
da pelve podem requerer arteriografia de imediato em
ve em 15% das vezes que é causado por fragmentos
10% das vezes.
e deslocamentos ósseos. Entretanto, na maior parte
Mas o usual na maior parte dos traumas de bacia dos casos o sangramento pélvico é venoso. Daí a
é priorizar: necessidade de entender que a arteriografia será efe-
1. Fização da pelve; tiva só em casos selecionados. Pacientes com fratura
pélvica e em choque tem mortalidade de 30-50%.
2. FAST/LPD e laparotomia exploradora para
conter o sangramento com damage control e colosto-
mia se necessário (associação com ferimentos pelvipe-
rineais complexos). O sangramento, na maior parte dos casos na fratura
de bacia é venoso!
3. Arteriografia.
A idade e a profissão do paciente são fatores que
também influenciam na escolha do melhor tipo de tra-
tamento.
Exames
Fraturas em livro aberto necessitam de reposição san-
guínea em média de 11 U de concentrado de hemácias.
complementares

No exame físico deve-se procurar, à inspeção, Raio X de pelve AP


por discrepância dos MMII, deformidades rotacionais, Para a adequada avaliação das lesões do anel pélvi-
deformidade pélvica e por lesões abertas. Sinais de he- co é fundamental a realização das radiografias da pelve
morragia e áreas de contusão de partes moles na região nas três incidências descritas por Pennal, ou seja:
pélvica podem sugerir a existência de fratura da pelve
€ Anteroposterior (AP);
(secundária principalmente à lesão dos plexos venosos
pélvicos e mais raramente, lesão da artéria pélvica). A € Inlet: raios centrados sobre a pelve com inclina-
existência de sangramento anal ou vaginal pode ser de- ção cranial caudal de 45°;
corrente de uma fratura com perfuração da vagina ou € Tangencial ou outlet: raios centrados sobre a
do reto, o que constitui a fratura exposta oculta. pelve com inclinação caudal cranial de 45°.

SJT Residência Médica – 2016


315
25 Trauma pélvico

2. A compressão da bexiga por hematoma pélvi-


FAST
co também pode ser considerada como marcador de
É exame adjunto ao exame primário. Útil para hemorragia arterial na TC, com indicação de arterio-
detectar coleções intra-abdominais ainda que o pa- grafia e embolização.
ciente esteja instável. Em mãos experientes pode ain-
3. A determinação do volume dos hematomas
da diferenciar coleção intra-abdominal de hematoma retroperitoniais pélvicos de causa traumática sugere
retroperitoneal. que volumes > 500 mL têm 45% de probabilidade de
estarem relacionados com hemorragias causadas por
lesões arteriais, permitindo indicação de arteriografia
pélvica seguida de embolização.
LPD
O LPD é o exame padrão para a avaliação de san-
gramento intra-abdominal. Entretanto, ele tem 30% Arteriogra昀椀a
de falsos-positivos em pacientes com fratura de bacia. A prioridade do paciente com fratura de bacia é
fazer FAST e LPD. Se forem positivos no paciente instá-
vel, ele deverá ir à laparotomia. Se esses exames forem
negativos, os pacientes devem ir à arteriografia e embo-
lização mesmo que instáveis hemodinamicamente.
TC da pelve
Pacientes com hematomas retroperitoneais
A TC da pelve desempenha um papel fundamen- podem se beneficiar da arteriografia se houver um
tal na avaliação da lesão que ocorre na porção posterior componente arterial associado porque aí o procedi-
da pelve. Permite um diagnóstico preciso do compro- mento é diagnóstico e terapêutico em 11% das fra-
metimento dos ligamentos posteriores da articulação turas pélvicas. Vinte por cento das fraturas em livro
sacroilíaca, das fraturas do sacro e da região posterior aberto e cisalhamento vertical requerem emboliza-
do osso ilíaco. ção, enquanto só 2% das secundárias a compressão
Pacientes com fratura em livro aberto e cisalha- lateral necessitarão desse procedimento. Caso o san-
mento vertical que estejam estáveis deverão fazer TC gramento possa ser identificado pela arteriografia,
de pelve. A TC fornece dados sobre o tipo de insta- a embolização é capaz de tratar o sangramento em
bilidade da lesão (vertical e rotacional e classifica o 90% das vezes. Daí a importância de se determinar
Tile. A realização da TC é imperativa para o correto precocemente quais os pacientes que se beneficiarão
planejamento do tratamento definitivo das fraturas da arteriografia (idealmente < 5 horas). A emboliza-
do anel pélvico. ção com gelfoam é preferível. Há casos em que o pa-
ciente está exanguinando e a embolização às cegas
Todos os recursos diagnósticos (clínicos e de da artérias hipogásticas (nesta situação dramática a
imagem) têm como objetivo avaliar a estabilidade do embolização é bilateral) com 2 mm de gelfoam pode
anel pélvico. funcionar. Pacientes com maior probabilidade de
Ainda que o LPD tenha sido positivo, a TC de sangramento arterial:
abdome é o exame que diminui as preocupações em € compressão anteroposterior II e III e compres-
relação aos falsos-positivos do LPD (exemplo: se há são laterolateral II e III;
líquido intra-abdominal mas lesão de fígado provavel- € cisalhamento vertical;
mente é do trauma de fígado e tem menos chances de
ser rotura intestinal). É muito importante determinar € hematoma pélvico grande à TC;
quem realmente irá a laparotomia porque há morbi- € pseudoaneurisma pélvico à TC;
dade e complicações ocorrendo em 40% dos pacientes
€ instabilidade hemodinâmica com FAST e LPD
que irão a laparotomias não terapêuticas.
negativos;
€ mais de 4 U de concentrados de hemácias em
menos de 24 horas.
Na maior parte dos sangramentos que se resol-
ATENÇÃO:
vem com arteriografia, os vasos que mais sangram são
1. A TC com extravasamento persistente de con- ramos anteriores da artéria ilíaca interna (arté-
traste (blush) tem sensibilidade variável (60-84%), ria obturadoria e pudenda) e mecanismo do trauma
especificidade entre 85-98% e valor preditivo positi- por compressão lateral. Pacientes que requerem em-
vo de 93% para o diagnóstico de lesões arteriais com bolização são aqueles de mecanismo de trauma AP II
hemorragia ativa. e III e LCIII.

SJT Residência Médica – 2016


316
Cirurgia geral e politrauma

Tratamento
Politraumatizado com
lesão da pelve

Hemodinamicamente Hemodinamicamente
estável instável

Pesquisa para
sangramento no tórax Figura 25.6 Fixação externa da pelve com lençol no PS.
e abdome
Negativa Positiva

Radiografia da pelve Tratamento da lesão no


com fratura instável tórax ou abdome para
estabilizar paciente
Radiografia da pelve

Reposição de Ressuscitação do
volume paciente

Estabilização da pelve
Fixador externo
Clamp pélvico Figura 25.7 London splint é esta faixa preta aplicada
Tração
em fraturas de bacia no resgate pré-hospitalar.
Hemodinamicamente Hemodinamicamente
estável instável

Angiografiade emergên-
cia com embolização ou
exploração cirúrgica da
lesão vascular

Manutenção do fixador
externo
Programação de fixação
interna definitiva

Figura 25.4 Algoritmo do tratamento das fraturas da


pelve.

Figura 25.8 Vítima utilizando a calça antichoque (PASG).

PASG: a calça antichoque conhecida nos EUA


como PASG (pneumatic antishock gargment) não é dis-
ponível amplamente no Brasil: ela realiza o controle
da hemorragia por pressão direta em membros infe-
riores e pelve (paciente com PA < 50-60 mmHg e au-
menta a pressão), melhorando a perfusão para órgãos
nobres como cérebro, coração e rim. O PASG faz uma
compressão efetiva até na estabilização de fraturas
pélvicas, mas para a retirada desse dispositivo deve-se
hidratar muito bem o paciente porque ao desinsuflar
Figura 25.5 Fratura de bacia exposta e em livro ab- rapidamente este poderá entrar em choque refratário.
erto com ferimento complexo pelviperineal grave, Contraindicações da calça antichoque: ges-
com destruição e avulsão da genitália e sangramento tante e rotura traumática do diafragma.
expressivo. Em um primeiro momento, até a fixação
cirúrgica da bacia, a aplicação de talafix pelo dorso + Modo de aplicação da calça antichoque: in-
faixas ou mesmo lençóis é útil na tentativa de fechar a flá-la após posicioná-la sob a vítima até a pressão sis-
pelve em livro aberto. Levá-lo para laparotomia para tólica atingir 80 mmHg. Ao desinsuflar tem que ser
realizar colostomia protetora é primordial para desvi- 5 mmHg a cada 10 min. e se o paciente apresentar
ar o trânsito intestinal e evitar síndrome de Fournier hipotensão há de se insuflar de novo e hidratar mais
nesses pacientes. com cristaloides.

SJT Residência Médica – 2016


317
25 Trauma pélvico

Hematoma
retroperitoneal
Os vasos do retroperitônio são fontes de sangra-
mento grave e que cursam com alta mortalidade sobre-
tudo nas fraturas de compressão AP. As lesões tampo-
nadas e restritas ao retroperitônio resultam em grandes
hematomas. Quando há ruptura para o peritônio livre,
a morte ocorre em minutos. Nesses doentes, quanto
mais precoce a hemostasia, melhor será o prognóstico.
As 3 maiores fontes de sangramento são: focos
de fraturas ósseas, lesões arteriais e lesões venosas.
Admite-se que o sangramento oriundo dos focos de
fratura e das lesões venosas seja auto-limitante devi-
do ao aumento na pressão no espaço retroperitoneal
pélvico. Atualmente, aceita-se que em 86% dos casos
a hemorragia associada com as fraturas pélvicas seja
constituída de sangue venoso proveniente dos focos
de fratura e que em 10% dos casos o sangramento seja
de origem arterial. A lesão em grandes veias é mais
rara e ocorre em menos de 1% dos pacientes.
Alguns autores entendem que a lesão das veias
ilíacas é a principal causa de choque hemorrágico em
alguns pacientes com fraturas pélvicas instáveis após
trauma fechado.
Embora menos frequentes, as lesões arteriais são as Figura 25.9 zonas de hematomas do retroperitônio.
que mais costumam causar instabilidade hemodinâmica.
As artérias pudenda interna, glútea superior, sa-
cral lateral e hemorroidária média foram consideradas
como as maiores fontes de sangramento nas fraturas
pélvicas. As lesões nos vasos ilíacos comuns ou nos Condutas cirúrgicas
externos foram relacionadas com fraturas graves nos
Hematoma de zona I: explora-se sempre (feri-
ossos ilíacos ou com luxação da articulação sacroilíaca.
mentos penetrantes e fechados).
Lesões nas artérias obturatórias e pudendas internas
podem ser causadas por fraturas nos ramos púbicos. Hematoma de zona II: explora-se às vezes quan-
do o trauma é penetrante e há suspeita de lesão vascular.
Achados arteriográficos mais recentes permitem
supor que as artérias pélvicas mais vulneráveis aos Hematomas pélvicos (zona III) fechados:
traumas fechados são: iliolombar (3%), glútea inferior não devem ser explorados, exceção em trauma pene-
(6%), obturatriz (16%), sacral lateral (23%), glútea su- trante com suspeita de lesão arterial. Entretanto, es-
perior (25%) e pudenda interna (27%). ses pacientes não devem ser abordados cirurgicamen-
te, mas sim via arteriografia.
Quando o hematoma estiver em expansão, tal-
vez a melhor conduta seja a colocação de compressas
Classi昀椀cação para damage control, estabilizando o doente na UTI e
Hematomas da zona I: são os de localização procedendo à arteriografia para embolização dos va-
central (retromesentéricos). Delimitados entre as li- sos ilíacos.
nhas hemiclaviculares e a linha que passa entre as Os hematomas causados por agentes penetran-
cristas ilíacas. tes (FAFs/FABs), mesmo os pélvicos e os das zonas I
Hematomas da zona II: localizam-se nas gotei- e II, devem ser explorados após controle vascular pro-
ras parietocólicas. Entre as linhas hemiclaviculares e a ximal e distal.
linha axilar posterior. Geralmente os trajetos da aorta e da cava são
Hematomas da zona III: pélvicos. Abaixo da abordados, respectivamente, pelas manobras de
linha horizontal que passa nas cristas ilíacas. Mattox e a de Grande Kocher ou Catell.

SJT Residência Médica – 2016


318
Cirurgia geral e politrauma

Na manobra de Catell, incisa-se a goteira parietocólica direita, em seguimento à tradicional manobra de Kocher.

Figura 25.10 a manobra de Catell, incisa-se a goteira parietocólica direita para acessar os rins e vasos do retro-
peritônio. Essa é a mesma manobra que fazemos para acessar o apêndice retroperitoneal. Nessa imagem foi feito
também manobra de Kocher de liberação do peritônio da segunda porção do duodeno que se pode palpar pâncreas
e colédoco distal.

Figura 25.11 manobra de Mattox consiste na abertura da goteira parietocólica esquerda; há exposição da aorta;
pode-se fazer Mattox deslocando-se o rim e baço apenas pela incisão de reflexos peritoneais.

Figura 25.12 a manobra de Kocher, a 2ª porção do duodeno é liberada de sua reflexão de peritônio e o duodeno
volta a ter a mobilidade que possuía embriologicamente.

Inácio Felipe Semmelveis (médico húngaro) é considerado um dos pioneiros da


antissepsia e da prevenção da infecção hospitalar.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

26
Trauma cranioencefálico (TCE)

O crânio é uma caixa óssea rígida que contém os


Introdução seguintes elementos:
€ cérebro (70%/1.250 mL) e fluido intersticial
O número exato de pessoas que anualmente so-
(10%/150 mL);
frem traumatismo cranioencefálico (TCE) não é exa-
tamente conhecido por diversas razões. Eles são sub € sangue (10%/150 mL);
avaliados. Muitas pessoas que sofrem TCE leve não € líquido cerebroespinhal (10%/150 mL).
procuram cuidados médicos, em situações de politrau-
Sabemos que o volume craniano permanece
ma, TCEs leves podem não serem identificados. Nos
constante e que a expansão de um dos componentes
TCEs graves, a ausência de registros nos casos de mor-
da caixa craniana leva a uma diminuição compensa-
te resultante de lesões múltiplas graves e dificuldades
tória dos outros compartimentos com o intuito de
na utilização dos critérios de classificação de TCE.
manter a pressão intracraniana (PIC) dentro de valo-
O aumento da mortalidade resultante de TCE res normais, de acordo com a doutrina de Monroe-
nos últimos anos, particularmente nos países em de- -Kellie-Burrows (o volume total do conteúdo intra-
senvolvimento, chama a atenção para as consequên- craniano deve permanecer constante, já que o crânio
cias sérias deste problema que Miller, em 1986, deno- é uma caixa rígida não expansível). Por exemplo, se
minou epidemia silenciosa. um hematoma comprime o cérebro, ou há um ede-
Sabe-se que, anualmente, por volta de 2 mi- ma swelling (inchaço) no compartimento cerebral, os
lhões de pessoas sofrem TCE; 25% (500 mil) neces- demais compartimentos tendem a diminuir. A saída
sitam de hospitalização, 70 mil a 90 mil dos sobre- forçada de volume igual de líquido e sangue venoso
viventes ficam com sequelas crônicas importantes e, do cérebro mantém inicialmente a PIC normal. En-
aproximadamente, 200 mil do total de pessoas que tretanto, quando os mecanismos de compensação se
sofreram hospitalização ficarão com sequelas meno- esgotam, ocorre aumento exponencial da PIC mesmo
res, mas que podem interferir na sua vida cotidiana. para um pequeno aumento do volume do hematoma.
Cerca de 100 mil pacientes morrem anualmente em Com esta elevação da PIC existe resistência do san-
consequência de TCE. gue para chegar até o cérebro com consequente má
320
Cirurgia geral e politrauma

perfusão e suas consequências (sofrimento e morte o subsequente fluxo de água para dentro da célula por
neuronal). Apenas em crianças, nas quais as suturas gradiente osmótico. Logo, o edema citotóxico também
não são fusionadas, o crânio pode expandir-se para ocorre, porém em fase subaguda e/ou crônica. O ede-
acomodar um volume extra. ma intersticial, para ocorrer, necessita que haja com-
Com o intuito de manter a pressão dentro dos li- plicação traumática por hidrocefalia. Como o crânio é
inexpansível nos adultos, o edema cerebral parece ser
mites fisiológicos, o sistema venoso colapsa facilmen-
de pior prognóstico nestes do que nas crianças.
te, espremendo o sangue venoso nas veias jugulares e
nas veias emissárias do couro cabeludo scalp. O líquido A monitorização contínua da PIC é um método
cerebrospinhal, de forma semelhante, pode deslocar- difusamente usado para acessar a dinâmica intracra-
-se através do forame magno para dentro do espaço niana, sendo a presença de hemorragia subaracnoide
subaracnoideo espinhal. Quando esses mecanismos um dos critérios mais utilizados para a monitorização
compensatórios entram em exaustão, mudanças míni- da PIC.
mas no volume precipitam aumento na pressão. Cha- Indica-se monitoração da PIC em todos os pa-
ma-se hipertensão intracraniana quando a PIC é cientes graves (3-9 pontos na ECG) seguindo-se as di-
maior ou igual a 20 mmHg (valor normal varia de retrizes do Brain Trauma Foundation 1996 e 2004. O
10 a 15 mmHg ou 136 a 204 mmH2O). uso de cateteres intraventriculares de monitoração da
A curva que relaciona volume intracraniano em PIC, além de permitir a mensuração da PIC, possibilita
expansão e pressão intracraniana foi descrita por Lan- a drenagem de LCR, avaliar a shunt dependência, do
gfitt (Figura 26.1); observe que ela não é linear e a de- paciente de necessitar de um sistema de derivação por
terioração neurológica súbita pode ser explicada pela válvula, e inferir a PPC com mais segurança. A drena-
inflexão abrupta da curva, quando os mecanismos gem do sistema ventricular promove a redução da PIC
fisiopatológicos de complacência se exaurem (redis- e o redirecionamento do fluido intersticial cerebral ao
tribuição do LCR e incremento do retorno venoso ce- ventrículo, que pode estar aumentado quando asso-
rebral). Neste momento, o parênquima cerebral pode ciado ao edema cerebral intracelular e vasogênico.
sofrer herniações que levam ao coma e morte, se não Como complemento, a monitoração da PIC, a
tratado imediatamente. obtenção de monitoração da PAM de forma invasiva,
proporciona o calculo indireto da PPC (PPC = PAM —
PIC). Assim, pode-se ter uma ideia mais acurada do
estado da perfusão tecidual do cérebro que deve ser
80 mmHg.
O fluxo sanguíneo cerebral normal é de 55
a 60 mL/100 g de tecido cerebral/min. O fluxo
na matéria cinzenta é de 75 mL/100 g/min., en-
quanto na substância branca é de 45 mL/100 g/
min. Esse fluxo é suficiente para manter as necessi-
dades metabólicas cerebrais. O fator mais importante
para que o fluxo sanguíneo cerebral seja determinado
é pressão de perfusão cerebral (obtida pela diferença
entre a pressão arterial média e a pressão intracra-
niana). Após um TCE, pressões de perfusão < 70
mmHg relacionam-se a evolução desfavorável.
Figura 26.1 Curva volume-pressão. O conteúdo in-
tracraniano é inicialmente capaz de compensação, PPC (Pressão de perfusão cerebral) = PAM (pressão ar-
quando surge nova massa intracraniana, como um terial média) – PIC (pressão intracraniana)
hematoma subdural ou extradural. Uma vez que o vol-
PAM = PS - 2/3 PD
ume dessa massa atinja um limite crítico, frequente-
mente ocorre um aumento rápido da pressão intracra- É fundamental e prioritário manter a pressão de per-
niana, que pode levar a redução ou cessação do fluxo fusão cerebral no TCE grave!
sanguíneo cerebral.

Os fatores mais importantes que regulam o flu-


Os TCEs levam a falhas na barreira hematoen-
xo sanguíneo cerebral sob condições fisiológicas nor-
cefálica permitindo que os componentes plasmáticos
mais são:
atravessem facilmente essa barreira para dentro do te-
cido neural (edema vasogênico). A hipóxia (injúria se- € pressão arterial sistêmica;
cundária) afeta a ATPase sódio/potássio da membrana € concentração arterial de CO2, hidrogênio e oxi-
celular, promovendo acúmulo intracelular de sódio, e gênio.

SJT Residência Médica – 2016


321
26 Trauma cranioencefálico (TCE)

A tensão de CO2 é o estímulo cerebrovascular mais dados ou estilhaçados. Este tipo de lesão é, em geral,
importante para a vasodilatação. O fluxo sanguíneo ce- grave e há grande possibilidade de complicações infec-
rebral aumenta quando a tensão de dióxido de carbono ciosas intracranianas.
situa-se entre 15 e 80 mmHg. A hipóxia também gera
Tanto no traumatismo fechado quanto no aberto
vasodilatação. O fluxo sanguíneo cerebral é autorregula-
do, mantendo-se normal na variação de 50 a 160 mmHg pode ocorrer hematoma epidural, subdural e intrace-
da pressão arterial média. Valores abaixo de 50 mmHg rebral.
correspondem a choque hipovolêmico, e os acima de 160 Os traumas de face e crânio, em que ocorreu fra-
mmHg levam a edema vasogênico e hemorragia. tura de clavícula, geralmente vêm associados à TRM.
O fluxo sanguíneo cortical regional (rCBF) é Esteja atento para trauma fechado acima das clavícu-
parâmetro objetivo da perfusão cerebral. O rCBF las! Proteja a coluna cervical!
pode ser quantitativamente identificado por um flu-
xômetro de difusão térmica. O fluxo normal cortical Classificações do Trauma Cranioencefálico
médio é o citado anteriormente, porém em geral pode Mecanismo Alta velocidade (colisão de veículos)
variar de 40 a 70 mL/100 g/min. Os pacientes nos Fechado Baixa velocidade (queda, agressão)
quais o rCBF é menor do que 20 mL/100 g/min. são
considerados portadores de isquemia cerebral severa. Penetrante Ferimentos por arma de fogo
Nos pacientes comatosos o rCBF situa-se entre 35 e Outras lesões penetrantes
40 mL/100 g/min. e nos com morte cerebral o rCBF Gravidade
é menor do que 7 mL/100 g/min. A monitorização de Leve Escore GCS 13-15
pacientes com injúria cerebral severa demonstra que Moderada Escore GCS 9-12
os pacientes com evolução favorável apresentavam Grave Escore GCS 3-8
tendência à normalização ou rCBF normal, enquanto Morfologia
os de evolução desfavorável possuíam rCBF abaixo dos Fraturas de crânio Linear vs. estrelada
valores normais. Os dados do rCBF permitem otimizar De calota Com ou sem afundamento
a hiperventilação, a oxigenoterapia e a osmoterapia. Exposta ou fechada

Basilares Com ou sem perda de LCR


Com ou sem paralisia do VII nervo
Classi昀椀cação Lesões
intracranianas
Os TCEs podem ser classificados em três tipos,
Focais Epidural
de acordo com a natureza do ferimento do crânio:
Subdural
€ Traumatismo craniano fechado; Intracerebral
€ Fratura com afundamento do crânio;
Difusas Concussão
€ Fratura exposta do crânio. Contusões múltiplas
Esta classificação é importante, pois ajuda a defi- Lesão hipóxica/isquêmica
nir a necessidade de tratamento cirúrgico. Tabela 26.1
O traumatismo craniano fechado caracteriza-
-se por ausência de ferimentos no crânio ou, quando
muito, fratura linear. Quando não há lesão estrutural Tipos de edema pós-traumático
macroscópica do encéfalo, o traumatismo craniano fe- Edema Causa Exemplo
chado é chamado de concussão. Contusão, laceração,
hemorragias e edema (inchaço) podem acontecer nos Vasogênico Lesão vascular Contusão, laceração
traumatismos cranianos fechados com lesão do parên- intracerebral, hema-
quima cerebral. toma
Hidrostático Aumento da Perda da autorregula-
Os traumatismos cranianos com fraturas
pressão vascu- ção após descompres-
e afundamento caracterizam-se pela presença de
lar transmural são do cérebro
fragmento ósseo fraturado afundado, comprimindo e
lesando o tecido cerebral adjacente. O prognóstico de- Citotóxico Falha da bomba Hipóxia, isquemia
pende do grau da lesão provocada no tecido encefálico. de membrana (contusão)
devido a fator
Nos traumatismos cranianos abertos, com
energético
fratura exposta, ocorre laceração dos tecidos pericra-
nianos e comunicação direta do couro cabeludo com a Hiposmótico Hiponatremia Hemodiluição (SIA-
massa encefálica através de fragmentos ósseos afun- DH)

SJT Residência Médica – 2016


322
Cirurgia geral e politrauma

Tipos de edema pós-traumático (Cont.) A tomografia computadorizada sem contraste


(TC) é método por imagem que permite o diagnós-
Intersticial Hidrocefalia Efeito de massa com
com aumento obstrução ventricular
tico precoce de lesões traumáticas, possibilitando
de pressão (III e IV ventrículos) que pacientes com exame normal recebam alta sem
pós-hemorragia, blo- permanecer em observação por períodos prolonga-
queio de vilosidades dos, reduzindo o custo global do atendimento des-
aracnoideas tes pacientes.
Tabela 26.2 Uma vez indicada, a TC deve ser realizada o mais
rapidamente possível, pois a curva de pressão intra-
craniana segue um padrão exponencial e, portanto, o
Escala de Coma de Glasgow (ECG) diagnóstico das lesões traumáticas e seu tratamento
Área de avaliação Escore deve ser instituído precocemente, evitando-se a insta-
lação de déficits neurológicos.
Abertura ocular (O)
Espontânea 4
A estímulo verbal 3 Indicações de TC no TCE Leve
A estímulo doloroso 2
Sem resposta 1 A TC de crânio é necessária em doentes portadores de
trauma cranioencefálico leve (por exemplo: perda de
Melhor resposta motora (M) consciência testemunhada ou desorientação testemu-
Obedece comandos 6 nhada em doente com escore na GCS de 13 a 15) e em
Localiza dor 5 qualquer um dos seguintes casos:
Flexão normal (retirada) 4
Flexão anormal (decorticação) 3
Alto risco para intervenção neurocinúrgica:
Extensão (descerebração) 2
1 Escore na GCS menor do que 15 até 2 horas após o
Sem resposta (flacidez)
trauma
Resposta verbal (V) Suspeita de fratura exposta ou com afundamento
Orientado 5 Qualquer sinal de fratura de base de crânio (por
Confuso 4
exemplo: hemotímpano, olhos de guaxinim, otorréia
Palavras inapropriadas 3 ou rinorréia de LCR, sinal de Battle)
Sons incompreensíveis 21 Vômitos (mais do que dois episódios)
Sem resposta Idade superior a 65 anos
Tabela 26.3 Escore = (E + M + V); melhor escore pos-
sível = 15; pior escore possível = 3. Risco moderado para lesão cerebral na TC:
Amnésia para fatos anteriores ao impacto (mais que 30
minutos)
Mecanismo perigoso (por exemplo: atropelamento de
Ao avaliar o escore na ECG, quando existe assimetria pedestre por veículo automotor, ejeção do ocupante de
direita/esquerda, é importante que se use a melhor dentro do veículo automotor, queda de altura maior do
resposta motora no cálculo do escore porque esta é o que 1 metro ou 5 degraus)
preditor mais confiável do resultado.
Tabela 26.4 Indicações de TC no TCE leve.

A TC possibilita o diagnóstico, define a indicação


Exames cirúrgica e monitora o tratamento das lesões intracra-
nianas.
complementares Além da tomografia, o Doppler transcraniano e
a ressonância magnética podem ser usados no diag-
Em casos de TCE leve, normalmente é realizada nóstico e seguimento dos pacientes com TCE. O Dop-
uma radiografia simples do crânio (AP e perfil), porém pler transcraniano avalia a atividade do leito vascular
este exame é útil somente para a pesquisa de fratura/ intracraniano, permitindo diagnóstico de vasoespas-
afundamento craniano, não sendo capaz de possibili- mo, hiperemia, hipertensão intracraniana e morte ce-
tar o diagnóstico de lesões intracranianas. Desta for- rebral. A ressonância magnética de encéfalo permite
ma, caso o paciente permaneça sintomático (cefaleia, avaliação adicional de isquemia aguda, embolia gordu-
tontura, confusão), ou em traumas moderados ou gra- rosa e, por espectroscopia, o diagnóstico de lesão axo-
ves, faz-se necessária a realização de uma tomografia nal difusa por diminuição de aspartato no esplênio do
computadorizada. corpo caloso.

SJT Residência Médica – 2016


323
26 Trauma cranioencefálico (TCE)

Marshall et al., classificaram as lesões difusas de O tratamento, na maioria dos casos, é cirúr-
acordo com a apresentação à TC em quatro categorias gico mesmo que o seu volume não seja crítico no
(Tabela 26.5). momento do diagnóstico. Não raro, o hematoma vi-
sualizado no intraoperatório é mais volumoso do que
Categoria Definição a TC pré-operatória mostrava, indicando haver uma
progressão sensível no volume ao longo do tempo; isto
Marshall I TC sem anormalidades visíveis
faz com que a espera para o tratamento cirúrgico seja
Cisternas livres muito deletéria ao paciente. Recomenda-se cirurgia
Marshall II para todo paciente com HED > 5 mm e naqueles
Desvio da linha média < 5 mm
com HED < 5 mm na admissão que apresentam ex-
Cisternas comprimidas ou ausentes pansão do hematoma. Os pacientes com hematomas
Marshall III
Desvio da linha média < 5 mm > 30 cm3 devem ser operados, independente da ECG. A
cirurgia consiste em programar a craniotomia para que
Colapso cisternal
Marshall IV seja suprajacente ao hematoma, retirada do hematoma,
Desvio da linha média > 5 mm
hemostasia da fonte de sangramento (óssea, arterial ou
Tabela 26.5 venosa) e ancoramento dura) na tábua óssea interna.

Hematomas epidurais
São decorrentes da lesão arterial, envolvendo
a artéria meníngea média, após fratura temporal. São
chamados também de hematomas extra-durais, pois
estão localizados fora da dura-máter, mas dentro do
crânio. Tipicamente, têm a forma biconvexa ou em
forma de lente, sendo frequentes nas regiões tempo-
ral ou temporoparietal. São mais raros (0,5% de todos
os TCEs), mas em 9% de todos os comatosos sua insta-
lação é rápida e tende a evoluir para o óbito se não for
feita a descompressão rápida.
Manifestam-se clinicamente por:
Figura 26.2 Hematoma epidural ou extradural. Ob-
€ perda da consciência (intervalo lúcido); é o do- serve o aspecto biconvexo da lesão e a compressão do
ente que fala e morre; encéfalo subjacente. Estas lesões costumam estar asso-
ciadas a fraturas em cerca de 40% dos casos.
€ rápida piora neurológica (por isso é importante
realizar repetitivas medidas de Glasgow);
€ coma (Glasgow ≤ 8);
€ pupila midriática unilateral (anisocoria) – o pa-
ciente olha para a lesão. Geralmente, o lado da
pupila midriática é o lado em que está ocorren-
do o hematoma em 90% das vezes;
€ paresia contralateral ao hematoma.
A TC é mandatória seguida de tratamento ci-
rúrgico de urgência (craniotomia), sob o risco de
uma herniação transtentorial se não houver evacu-
ação do hematoma. Se tratado precoce e adequada-
mente, o prognóstico do epidural é melhor do que
o subdural.

Intervalo lúcido = hematoma epidural! Figura 26.3 Extenso hematoma extradural parieto-
temporal direito (epidural).

SJT Residência Médica – 2016


324
Cirurgia geral e politrauma

Hematomas subdurais
São bem mais frequentes do que os epidu-
rais – 30% de todos os TCEs são subdurais – e ocor-
rem com a ruptura de vênulas encontradas entre a
dura-máter e a aracnóide (espaço subdural). A ins-
talação é insidiosa e pode manifestar-se nas formas
aguda, subaguda e crônica, dependendo do efeito
de massa exercido por seu volume e concomitan-
te ao edema cerebral e ao brain swelling associados.
Como os hematomas subdurais recobrem toda a su-
perfície do cérebro e o acometimento cerebral tende
a ser mais grave, o prognóstico é pior. Figura 26.4 Hematoma subdural com importante
desvio de linha média.
Esse hematoma pode manifestar-se clinicamen-
te pela:

Tríade de Cushing: hipertensão arterial, bradicardia


Hematoma subdural crônico
e bradipineia (respirações irregulares). Ocorre preferencialmente na faixa etária acima
de 50 anos. Em 25 a 50% dos casos de hematomas sub-
durais crônicos, há história de traumatismo craniano,
sendo frequentemente de pequena intensidade. Existe
Essa tríade é sinônimo de grave hipertensão in- uma predisposição em doentes idosos ou alcoólatras
tracraniana. Tal lesão, com frequência, está associada crônicos com atrofia cerebral, ou em doentes subme-
a lesões do córtex e hematomas intracerebrais. Após tidos a tratamento anticoagulante ou com discrasias
a TC, o tratamento é realizado por intermédio de cra- sanguíneas ou leucoses e em epiléticos.
niotomia se houver desvio > 5 mm, sendo o prognós-
tico reservado devido à mortalidade perto dos 60% e
às graves sequelas.
Seu aspecto na TC de crânio é de um cres- Contusão cerebral
cente (lente côncavo-convexa), hiperdenso
adjacente à tábua óssea interna. É mais fre- Em maior ou menor grau, ocorre a formação de
quentemente encontrado na convexidade cerebral, hematomas intracerebrais, com importante compro-
mas também pode ser inter-hemisférico, junto ao metimento cortical e subcortical. O quadro é de extre-
tentório ou na fossa posterior. Os HSDA laminares ma gravidade, com coma profundo (Glasgow 5, 4 e 3),
(espessura < 0,5 cm) com DLM < 5 mm, volume < ainda mais quando associados, como frequentemente
30 cm3 quando supratentoriais, ou 16 cm3 quando ocorre a hematomas subdurais, brain swelling, edema
infratentoriais, e cisternas basais patentes podem cerebral e lesão axonal difusa (LAD).
ter conduta conservadora. Quando localizados na O aspecto destas lesões à TC é heterogêneo,
fossa média ou posterior, em pacientes com 14 ou com áreas de hiperdensidade (hemorragia) jun-
15 pontos na ECG que piorem clinicamente ou TC tamente com áreas de hipodensidade (necrose/
revelando aumento de volume devem ser submeti- isquemia). Este aspecto pode variar bastante, ou
dos à cirurgia, principalmente se associado à tume- seja, pode haver lesões com predominância de
fação cerebral hemisférica. O tratamento cirúrgico hipodensidade e outras com maior hiperdensi-
imediato é obrigatório em casos de rebaixamento dade. Há também área hipodensa em torno da lesão
de consciência. A craniotomia deve ser ampla para que corresponde ao edema perilesional e tende a au-
facilitar a drenagem do coágulo e controlar pontos mentar com a evolução dos dias, contribuindo com o
de hemorragia que se aproximem da linha mediana. efeito de massa tardio. Podem comportar-se de forma
Deve-se sempre considerar a monitoração de PIC no evolutiva com aumento do efeito de massa, por san-
mesmo ato cirúrgico, pois pode haver inchaço cere- gramento ou aumento da área de edema. Por isso os
bral após a reperfusão do hemisfério antes adjacen- pacientes com contusões cerebrais, quando não ope-
te a lesão. rados nas primeiras horas, devem ser observados por

SJT Residência Médica – 2016


325
26 Trauma cranioencefálico (TCE)

vários dias, com necessidade de serem feitas TCs se- guntas). A amnésia anterógrada pode ocorrer conco-
riadas de controle. Por volta do quinto dia de evolução, mitantemente (após você explicar o que aconteceu
geralmente as contusões atingem o pico de edema le- no acidente, passam alguns segundos e o paciente
sional) estabilizando seu efeito de massa. Quando pre- volta a fazer as mesmas perguntas, como se nada
sentes nos lobos temporais, principalmente em seus lhe tivesse sido dito antes). O quadro decorre de pe-
polos, são de maior risco, pois podem desencadear quenos TCEs contusos, de baixa energia, sem lesão
facilmente a síndrome de herniação uncal. Nesses ca- estrutural do encéfalo constatável por exames com-
sos, quando há aumento do volume nos polos tempo- plementares (TC e RM). Sua evolução é benigna e
rais, o uncus é empurrado medialmente e comprime o rápida. A concussão cerebral é a lesão que leva ao
mesencéfalo juntamente com o nervo oculomotor (III nocaute de um lutador. Diversas concussões suces-
NC) originando midríase ipsilateral e hemiparesia ou sivas podem levar ao quadro neurológico conhecido
mesmo postura em extensão contralateral. Portanto, por demência pugilística.
contusões temporais são mais frequentemente opera- Os pacientes com TCE, em geral, devem ser man-
das que contusões frontopolares ou occipitais. tidos com a cabeça elevada, principalmente os que
apresentarem fístulas liquóricas, com generoso apor-
te de oxigênio, se necessário, e intubado e ventilado
mecanicamente; reposição hidroeletrolítica cuidadosa
e correção dos distúrbios acidobásicos.

História clínica
É importante a coleta de informações sobre
evento traumático a partir dos observadores. Deve-se
procurar saber a causa do traumatismo, a intensidade
do impacto, a presença de sintomas neurológicos, con-
vulsões, diminuição de força, alteração da linguagem,
e, sobretudo, é preciso documentar qualquer relato de
perda de consciência.
Figura 26.5 Área de contusão parenquimatosa fron- A amnésia para o evento é comum nas con-
tal direita. cussões. Pode haver, também, perda de memória re-
trógrada (em eventos ocorridos antes do trauma) ou
anterógrada (nos eventos que se sucederam logo após
o trauma). A amnésia é característica dos TCEs que
Lesão axonal difusa cursam com perda de consciência. Amnésia cuja du-
ração é superior a 24 horas é indicativa de que
É o coma pós-traumático prolongado, que não é re- o TCE foi mais intenso, e pode estar relacionada
sultante de lesões de massa ou lesões isquêmicas. Carac- com prognóstico menos favorável. A amnésia de
teriza-se pela perda de consciência no local do acidente, curta duração não tem maior significado clínico.
seguido frequentemente de coma prolongado. O pacien- A alteração da consciência é o sintoma mais co-
te pode assumir a postura de descerebração/decortica- mum dos TCEs. A breve perda de contato com o
ção. A lesão é por tosquia ou cisalhamento do axônio, de meio é característica da concussão. O coma pode
modo difuso. O diagnóstico é feito por sinais indiretos à durar horas, dias ou semanas, dependendo da gravi-
TC, que não diagnostica a LAD. A ressonância magnética dade e localização da lesão. Lesões difusas do encéfalo
(RM), por vezes, o faz. O tratamento é eminentemen- ou do troncoencefálico podem levar a comas prolon-
te clínico, não havendo indicação cirúrgica. gados, sobretudo quando há contusão ou laceração de
amplas áreas cerebrais, tumefação ou edema impor-
tante. A melhora do nível de consciência tem relação
direta com o grau de lesão.
Concussão cerebral Dor de cabeça intensa, sobretudo unilateral,
pode indicar lesão expansiva intracraniana, sendo ne-
É muito frequente a perda temporária da cons- cessária investigação neurológica cuidadosa. Cefaléia
ciência, com confusão, obnubilação e amnésia re- intensa na região occipital pode ser indicativa de fra-
trógrada (o paciente não sabe o que aconteceu no tura do odontóide (estrutura da segunda vértebra, que
acidente e, via de regra, fica fazendo inúmeras per- se articula com a primeira).

SJT Residência Médica – 2016


326
Cirurgia geral e politrauma

Exame físico
O exame físico inicial, na fase aguda, deve ser rápido e objetivo. É importante lembrar que pacientes com
TCE são politraumatizados, sendo frequente a associação com traumatismos torácicos, abdominais e fraturas
inclusive de coluna cervical (use colar cervical!). Hipóxia, hipotensão, hipo ou hiperglicemia, efeito de drogas
narcóticas e lesões instáveis da coluna vertebral devem ser procurados e convenientemente tratados.
O exame da pele da cabeça deve ser feito com cuidado. Fraturas no crânio devem ser investigadas. Fraturas
da base do crânio podem ser suspeitadas pela presença de sangue no tímpano e pela drenagem de lí-
quido cefalorraquidiano pelo ouvido ou nariz.
O propósito do exame neurológico inicial é determinar as funções dos hemisférios cerebrais e do tronco en-
cefálico. Os exames subsequentes são importantes para verificar a evolução do paciente, se está havendo melhora
ou deterioração do seu quadro clínico. Escalas neurológicas foram desenhadas para permitir quantificar o exame
neurológico. A escala de coma de Glasgow é uma medida semi quantitativa do grau de envolvimento cerebral, que
também orienta o prognóstico. Entretanto, não é válida para pacientes em choque ou intoxicados. Existe uma
escala modificada para crianças. A presença de traumatismo dos olhos e da medula espinhal dificulta a avaliação.
A escala consiste em pontuar os achados do exame neurológico, avaliando a resposta verbal, a abertura dos olhos
e a resposta motora.

€ Midríase unilateral: lesão do III (herniação tentorial); hematoma EPI/subdural; se não tiver resposta à luz ou
perda de visão, pense em lesão associada do II .
€ Midríase bilateral: perfusão cerebral inadequada; paralisia bilateral do III par craniano.
€ Miose unilateral: lesão do simpático (exemplo: trauma da bainha carotídea).
€ Miose bilateral: drogas (opiáceos), encefalopatia metabólica, lesão da ponte.

Tabela 26.6 Sinais relacionados às diversas lesões cranioencefálicas.

Os pares cranianos podem ser afetados no TCE contuso ou no aberto. As principais possibilidades são:
I par (olfatório): resulta em anosmia (não sente cheiro) e perda parcial da acuidade gustatória. Sua lesão
decorre das fraturas do frontal com comprometimento da placa cribriforme.
II par (óptico): fratura da órbita (esfenoide), causando cegueira ipsilateral.
IV par (troclear): fratura da asa do esfenoide, levando à diplopia.
VII par (facial): fratura que compromete o temporal, a apófise estiloide e a base do crânio. Paralisia central
de instalação tardia (5 a 8 dias) após o trauma.
VIII par (auditivo ou vestibulococlear): fratura do petroso, cursando com hipoacusia, surdez (fazer diagnós-
tico diferencial com ruptura do tímpano) e quadro vertiginoso, por lesão dos canais semicirculares (órgão de Corti).

Características clínicas e recuperação neurológica em lesões cerebrais traumáticas


Concussão Lesão axonal difusa
Leve Clássica Leve Moderada Grave
Perda da consciência Não Imediata Imediata Imediata Imediata
Duração da inconsciência Não <6h 6 - 24 h > 24 h Dias-sem.
Postura descerebrada Não Não Rara Ocasional Presente
Amnésia pós-traumátíca Minutos Min.-horas Horas Dias Semanas
Déficit de memória Não Minutos Leve-moderado Moderado Grave
Déficit motor Não Não Não Leve Grave
Recuperação (3 meses)
% % % % %
Boa recuperação 100 100 63 38 15
Déficit moderado 0 0 15 21 13
Déficit grave 0 0 2 12 14
Vegetativo 0 0 1 5 7
Morte 0 0 15 24 57
Tabela 26.7

SJT Residência Médica – 2016


327
26 Trauma cranioencefálico (TCE)

injúria cerebral é o observado na prática médica diá-


Manejo clínico ria. A redução da PIC ocorre por conta do efeito vaso-
constritor da hiperventilação.
A acidose lática secundária à injúria cerebral está
Medidas gerais relacionada com evolução pobre. A hiperventilação
diminui o dióxido de carbono cerebral, resultando no
As medidas clínicas para tratamento da PIC em
aumento do pH e combatendo a acidose.
UTI iniciam-se com medidas preventivas como: ele-
vação no dorso do leito a 30° com o plano horizon- O uso indiscriminado da hiperventilação de for-
tal; manutenção do paciente em alinhamento neutro ma profilática durante um período de 5 dias é capaz de
evitando flexões, extensões e movimentos laterais retardar a recuperação do paciente com injúria cere-
cervicocranianos > 15°; manutenção de vias aéreas bral. Os pacientes submetidos a esse método apresen-
pérvias e ventiladas para boa difusão de O2 pulmo- taram evolução estatisticamente pior em um período
nar. Recomendamos níveis de Hb > 10 mg/dL para de 3 a 6 meses. Assim, surgiram dúvidas de quando
se otimizar suporte de oxigênio adequado, evitando- devemos hiperventilar e até quando.
-se lesões secundárias. Deve-se também manter a Os estudos da diferença arteriojugular dos ní-
euvolemia e os distúrbios hidreletrolítico corrigidos. veis de glicose e oxigênio mostraram que a hiper-
A febre aumenta o metabolismo cerebral e a hipergli- ventilação deve ser otimizada, para o máximo de
cemia relaciona-se com um pior prognóstico no TCE benefício do paciente. A hiperventilação otimizada
grave, portanto devem ser tratadas agressivamente. (PaO2 carotídea ≥ 100 mmHg e PaO2 jugular entre
As crises convulsivas são evitadas por meio de profi- 60 e 65 mmHg) parece estar associada com uma
laxia medicamentosa. mortalidade menor e boa recuperação dos doentes.
A terapia com hiperventilação objetiva manter nor-
malizada tanto a PIC quanto a extração cerebral de
oxigênio. A taxa normal de diferença arterioju-
gular de glicose é de 6,5 a 13 mg%, e não requer
Soluções salinas intravenosas correções por ventilação mecânica. Para que
um método de diferença arteriojugular de oxigê-
As soluções salinas intravenosas devem ser ad- nio funcione corretamente é necessário que a taxa
ministradas conforme a necessidade para reanimar metabólica cerebral de oxigênio e a concentração de
o doente e manter a normovolemia. A desidratação, hemoglobina permaneçam constantes, o oxigênio
apoiada anteriormente, é considerada atualmente dissolvido seja ignorado e as reservas de oxigênio
mais prejudicial do que benéfica para estes doentes. dissolvidos no tecido cerebral e no volume sanguí-
Deve-se tomar cuidado, entretanto, para não so- neo contribuam pouco nas variações das diferenças
brecarregar o doente com volume excessivo. Em pa- de saturação arteriovenosa.
cientes com TCE, é crítico que não se usem soluções
hipotônicas, assim como soluções glicosadas, pois a
hiperglicemia parece ser prejudicial ao cérebro lesado. A hiperventilação deve ser usada somente com mode-
A melhor solução, portanto, é o Ringer lactato. Moni- ração e, tanto quanto possível, por período de tempo
torização constante dos níveis de sódio deve ser feita, limitado.
pois a hiponatremia está associada ao edema cerebral
e deve ser prevenida ou tratada agressivamente quan-
do presente.
Manitol
O manitol é largamente empregado para reduzir
a PIC. A apresentação da solução a 20% é a normal-
Hiperventilação mente utilizada, com uma dosagem de 0,25 a 1 g/kg
intravenoso rápido (em 5 minutos). Doentes hipo-
A hiperventilação é o método inicialmente capaz
tensos não devem receber manitol, sob pena de
de restaurar a autorregulação da perfusão cerebral,
piorar a hipovolemia (trata-se de um diurético
mas com o viés de também ser potencialmente danosa osmótico). Doentes comatosos com pupilas inicial-
ao paciente. A principal aplicação é no resgate de pa- mente normais evoluindo com midríase e pacientes
cientes em urgência de herniação cerebral. midriáticos e com pupilas não reativas, desde que
O uso generoso da hiperventilação para obter não estejam hipotensos, podem se beneficiar do uso
PaCO2 de 25 a 30 mmHg dentro dos primeiros dias de de manitol.

SJT Residência Médica – 2016


328
Cirurgia geral e politrauma

Quando a hipertensão intracraniana persiste


Indicações para uso de manitol na sala de mesmo com a sedação por narcóticos, e há tônus
emergência
muscular elevado ou o paciente resiste à ventilação,
1. Evidências de herniação (dilatação pupilar, aniso- um bloqueio neuromuscular pode ser adicionado
coria) para controlar a PIC elevada. Agentes como o ven-
curonium, pancuronium ou antracurium são efe-
2. Evidência de efeito massa (déficit focal, por ex.: hemi- tivos na manutenção do relaxamento e podem ser
paresia) administrados de forma contínua quando necessá-
3. Deterioração súbita antes da TC rios. A agitação secundária por álcool pode contri-
buir para a PIC elevada e é refratária à terapêutica
4. Após a TAC se houver lesão associada a aumento com narcóticos; drogas como os benzodiazepínicos
da PIC podem ser úteis.
5. Após a TC se indicado tratamento cirúrgico com
HIC

6. Garantir salvabilidade em casos de suspeita de


lesão de tronco Furosemida
Tabela 26.8 Costuma ser utilizada juntamente com o manitol
quando a PIC está elevada. A diurese pode ser aumen-
tada pelo uso associado desses agentes. A dose de 0,3
Nos pacientes submetidos a uso prolongado de a 0,5 mg/kg de furosemida intravenosa é uma quanti-
manitol devem-se ter os eletrólitos rigorosamente dade razoável.
controlados, assim como a osmolaridade plasmática, A acetazolamida (Diamox®) (250-500 mg/dia)
a qual deve ser ≤ 320 mOsm/L. O efeito inicial do ma- reduz a produção de LCR pelos plexos coróides, no en-
nitol na diminuição da PIC é secundário à vasocons- tanto tem um efeito vasodilatador cerebral que transi-
trição e rápido. O efeito mais tardio é secundário à toriamente exacerba a pressão intracraniana. Portan-
retirada de líquidos do tecido cerebral. Há também to, ela é contraindicada em pacientes com TCE.
uma provável ação antioxidante do manitol que está
atualmente em pesquisa.

Vasodilatadores
Sedação As lesões secundárias levam a uma redução
do fluxo sanguíneo cerebral ou oxigenação, resul-
A sedação pode ser realizada quando não se tem tando em lesão hipóxica/isquêmica cerebral. Anta-
dúvidas das causas determinantes do nível de consci- gonistas do cálcio são usados em casos de isquemia
ência do paciente com injúria cerebral no momento cerebral e hemorragia subaracnoide. O tratamento
presente e em um futuro, assim não é aconselhável com nimodipina aparentemente é capaz de minimi-
sedar um paciente quando não há disposição de mé- zar os efeitos adversos da hemorragia subaracnoide
todos complementares de imagem que permitam a (HSA); 44% dos pacientes tratados com nimodipina
identificação de lesões determinantes da diminuição apresentaram evolução desfavorável, contra 61% do
do nível de consciência, como o hematoma epidural. grupo placebo.
A sedação é preferencialmente realizada com
morfina intravenosa em bolus, que pode ser repetida
uma vez. Se a sedação for eficaz na redução da hiper-
tensão intracraniana, uma infusão contínua de mor-
fina deve ser instituída na dose de 5 mg/h. Essa dose Esteroides
pode ser elevada de 5 a 20 mg/h, se necessário, para O tratamento com doses convencionais de es-
conter a agitação ou o excesso de atividade motora. O teróides não mostraram benefício para os pacientes
fentanil é uma alternativa aceitável no lugar da mor- com injúria cerebral. Alguns estudos demonstraram
fina. Nos pacientes que requerem sedação com altas aumento da mortalidade e complicações associadas
doses de narcóticos, essas doses devem ser retiradas com o uso de esteroides. Portanto, não se recomenda
gradualmente, e nunca de forma abrupta. esteroides para o tratamento do TCE agudo.

SJT Residência Médica – 2016


329
26 Trauma cranioencefálico (TCE)

cerebral global, diminuindo assim o consumo de


Barbitúricos substância de alta energia e o acúmulo metabólico
O ácido barbitúrico é uma 2,4,6-trioxo-hexa- tóxico. A hipotermia diminui a energia global reque-
-hidroxi-pirimidina. O composto não tem ação de- rida pelo cérebro para diminuição do metabolismo
pressora central, mas a presença de grupos alquí- necessário para a função neuronal e o metabolismo
licos ou arílicos na posição 5 confere atividades residual necessário para manutenção da integri-
sedativo-hipnóticas. Os barbituratos deprimem dade neuronal. Na normotermia, o cérebro huma-
reversivelmente a atividade de todos os tecidos ex- no pode tolerar 5 a 8 minutos de isquemia global
citáveis. O SNC é especialmente sensível, podendo completa sem lesão neurológica, enquanto entre 15
ser deprimido desde uma leve sedação até a anes- e 20°C o cérebro humano pode tolerar aproximada-
tesia geral. Certos barbituratos, particularmente mente 60 minutos de isquemia. A essa temperatura,
aqueles que contêm um substituinte 5-fenílico (fe- o consumo de O2 é de aproximadamente um décimo
nobarbital, mefobarbital e metabarbital), têm ativi- do valor da normotermia, permitindo que o cére-
dade anticonvulsivante seletiva. bro possa tolerar, sem lesão, um tempo maior de
isquemia. Diminuição leve na temperatura cerebral
Nos pacientes com hipertensão intracraniana, tem sido referida para reduzir significativamente a
a indução do coma com barbitúricos de ação curta é mortalidade e o déficit neurológico. Investigações
a última opção na redução da PIC, quando todas as preliminares referem que a hipotermia leve pode re-
outras medidas falharam. Os barbitúricos decrescem duzir a PIC, melhorando os resultados neurológicos
a PIC por vários mecanismos. Eles inibem a liberação em pacientes com TCE grave. A indução e a retira-
de peroxidase-ácida lipídica, inibem o metabolismo da da hipotermia é lenta. Não existem evidências
cerebral e reduzem o fluxo sanguíneo cerebral. A dro- de aumento de arritmia cardíaca, coagulopatia ou
ga mais comumente usada é o tiopental, que é ofe- complicações pulmonares em pacientes submetidos
recido na dose ataque de 10 mg/kg por um período à hipotermia leve.
maior do que 10 min., e dose de manutenção de 1 a
2 mg/kg/h. O nível sérico deve ser mantido em 3 a 4
mg/L. Pacientes em coma barbitúrico requerem cui-
dados intensivos de monitorização hemodinâmicas,
PIC e gasometrias. Vasopressores, como a dopamina,
devem ser administrados se surgir hipotensão. Ou- Anticonvulsivantes
tros efeitos colaterais podem ocorrer, como a insu-
A epilepsia pós-traumática ocorre em cerca de
ficiência respiratória (os barbitúricos deprimem os
5% de todos os doentes admitidos no hospital com
impulsos neurogênicos, bem como os mecanismos
traumatismos cranioencefálicos fechados e em 15%
responsáveis pelo controle rítmico da respiração) e
daqueles com traumatismos cranioencefálicos gra-
manifestações alérgicas.
ves. Três fatores principais estão ligados à alta
incidência de epilepsia tardia: (1) convulsões
que ocorrem durante a primeira semana, (2) hema-
toma intracraniano, ou (3) fratura com afundamen-
to de crânio. Um estudo duplo cego identificou que
Hipotermia a fenitoína reduziu a incidência de convulsões na
primeira semana após o trauma, mas não após este
A terapia por hipotermia tem a capacidade de período. Atualmente a fenitoína ou fosfenitoína são
proteger o cérebro e outros órgãos vitais durante os agentes habitualmente empregados na fase agu-
períodos de diminuição ou ausência da oferta de da. A dose de ataque habitual para adultos é 1 g ad-
oxigênio, sendo bem conhecida e usada cotidiana- ministrado por via endovenosa com velocidade não
mente durante cirurgia cardíaca, objetivando para- superior a 50 mg/minuto. A dose de manutenção
da cardíaca total por mais de 60 minutos com 15 a habitual é 100 mg/8 horas, com titulação da dose
18°C, sem qualquer lesão neurológica subsequente. para obter níveis séricos terapêuticos. O diazepam
A teoria da proteção cerebral hipotérmica foi ba- ou lorazepam são usados além de fenitoína em do-
seada no fato de que a hipotermia empiricamente entes com convulsões prolongadas, até a parada da
retardava os processos que conduzem à perda irre- convulsão. O controle de convulsões contínuas pode
versível da função ou morte celular. Assume-se que exigir anestesia geral. É imperativo que a convulsão
a habilidade da hipotermia para proteger o cérebro seja controlada tão logo que possível porque convul-
ou outros órgãos contra lesão da isquemia é devida sões prolongadas (30 a 60 minutos) provavelmente
somente à capacidade para diminuir o metabolismo causam lesão cerebral secundária.

SJT Residência Médica – 2016


330
Cirurgia geral e politrauma

Definição: Definição: Escore GCS 9-12


O doente encontra-se acordado e pode estar orientado
(GCS 13-15)
Exame inicial
• O mesmo que para trauma craniencefálico
História leve, mais exames rotineiros de sangue
• Nome, idade, sexo, raça, • Nível subsequente de • A TC de crânio é realizada em todos os casos
ocupação consciência • Admitir em hospital que dispõem de
tratamento neurocirúrgico definitivo
• Mecanismo de trauma • Amnésia: retrógrada,
• Hora da ocorrência do trauma anterógrada
• Perda de consciência • Cefaleia: leve,
moderada, grave
imediatamente após o trauma
Depois da internação
• Avaliações neurológicas frequentes
• Seguimento com TC se as condições
piorarem ou preferivelmente antes da alta
Exame geral para excluir
lesões sistêmicas

Se o doente melhora (90%) Se o doente piora (10%)

Exame neurológico sumário

• Alta quando adequado • Se o doente não obedece


• Segmento ambulatorial ordens simples, repita a
Radiografia de coluna cervical e TC e trate de acordo com
outras conforme indicação o protocolo de trauma
cranioencefálico grave

Níveis sanguíneos de álcool e Figura 26.7 Algoritmo para o tratamento do trauma


perfil toxocológico da urina cranioencefálico moderado.

A realização de TC de crânio é indicada caso


existam critérios de risco moderado ou alto Definição:
para intervenção neurocirúrgica O doente não é capaz de obedecer ordens simples
por alteração da consciência (escore GCS 3-8)

Observar ou internar Alta do


no hospital Hospital Exame inicial
• ABCDEs
• Avaliação primária e reanimação
• Não há disponibilidade • O doente não apresenta
• Avaliação secundária e história AMPLA
de tomógrafo nenhum dos critérios
• Admissão em hospital que dispõe de tratamento
• TC com alteração para internação neurocirúrgico definitivo
• Todos os traumatismos • Discutir a necessidade • Reação pupilar à luz
cranioencefálicos penetrantes de retorno caso apareça
qualquer problema e
• Agentes terapêuticos (habitualmente administrados
• História de perda após consulta ao neurocirurgião)
entregue um protocolo
prolongada de consciência
de instruções Manitol
• Piora do nivel de consciência
• Marque um retorno ao Hiperventilação moderada (PCO2 = 35 mmHg)
• Cefaleia moderada para grave
ambulatório
• Intoxicação significativa Anticonvulsivantes
por álcool/drogas • Reavaliação neurológica: GCS
• Fratura de crânio Abertura ocular
• Perda de LCR: rinorreia Resposta motora
ou otorreia Resposta verbal
• Traumatismos
significativos associados
• Falta de acompanhante
confiável em casa
• Escore GCS anormal (<15)
• Défices neurológicos focais TC

Figura 26.6 Algoritmo para o tratamento do trauma Figura 26.8 Algoritmo para o tratamento do trauma
cranioencefálico leve. cranioencefálico grave.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

27
Trauma raquimedular (TRM)

to quanto o neurocirurgião. São 24 vértebras pré-sacrais,


Incidência sendo que cinco fundidas formam o sacro e quatro o
cóccix. No sentido crânio caudal as vértebras suportam
Nos EUA, 10.000 casos/ano com prevalência de mais peso e são progressivamente maiores. Existem 4
191.000 casos, 80 em 100.000 hab. têm déficits par- curvaturas sagitais, sendo duas torácica e sacral, que são
ciais por TRM e 20 em 100.000 hab. têm déficits com- côncavas e primárias, (presentes desde o nascimento), e
pletos. O SUS, em 2004, para o diagnóstico de fraturas duas curvaturas, cervical e lombar, que são convexas. A
de coluna vertebral registrou 15.700 internações, 505 cifose e a lordose são fisiológicas e a escoliose pode ser
óbitos, 1 óbito para 300.000 hab./ano (faixa etária: 16 apenas funcional.
a 35 anos). Cerca de 50% por acidentes de veículos, Para se poder identificar o nível de lesões neu-
20% queda e 30% (FAF, acidente de trabalho, espor- rológicas no TRM é necessário conhecer pelo me-
te), sendo o principal nível o cervical (55%), restante nos dois grandes tratos ou sistemas: somestésico
45% (torácico, toracolombar e lombosacral). O C2 é o e o piramidal. O sistema piramidal, ou trato motor, é a
nível mais frequente, principalmente em idoso, principal grande via eferente do SNC. Inicia-se na área 4
seguido pelo C5 e C6. de Broca, giro pré-central, representado em corte sagital
pelo homúnculo de Penfield, que mostra a distribuição
somatotópica do córtex motor para cada região do corpo.
As fibras axonais formam a coroa radiata, passam pelo
joelho e perna posterior da cápsula interna, porção an-
Considerações gerais terior do mesencéfalo (pedúnculo cerebral). Na ponte o
trato assume forma piramidal, que dá nome à via, e na
O cirurgião na maioria das vezes é quem avalia ini- transição bulbomedular decussa 90% das fibras e consti-
cialmente a coluna cervical, o dorso do politraumatiza- tui o trato corticoespinal lateral. Na porção anterolateral
do e a condição da estabilidade da coluna vertebral para do funículo lateral, o restante das fibras seguem ipsilate-
retirada do colar cervical e da prancha rígida na sala de rais e formam o trato corticoespinal anterior. Entretanto
emergência. Portanto, necessita de conhecimentos ana- antes de realizar sinapse com o motoneurônio medular,
tômicos da coluna vertebral e de exame neurológico tan- cruza para o outro lado no nível da raiz espinal.
332
Cirurgia geral e politrauma

Outro sistema a ser conhecido para identificar le- Com os atuais avanços do tratamento das com-
são neurológica é o somestésico, que na verdade se cons- plicações decorrentes do TRM e, portanto, da sobrevi-
titui de três tratos: um com receptores responsáveis pela da dos traumatizados, a prevalência vem aumentando
sensação de dor e temperatura – testado pelo examina- a cada década. Os números variam de 900 a 1.200 se-
dor com objeto de superfície pontiaguda, que possui o quelados pós-TRM para cada 1 milhão de habitantes.
primeiro neurônio no gânglio espinal, entra pela raiz
dorsal, faz sinapse com neurônio do corno posterior, Ainda, de acordo com Spósito, houve predomínio
cruza para hemimedula contralateral e ascende no fu- das lesões medulares completas em 75% dos casos, es-
nículo lateral como trato espinotalâmico lateral, fazen- tando a paraplegia presente em 40% dos casos.
do sinapse no núcleo VPL talâmico e se distribuindo no Quanto aos níveis de lesão, a região cervical
córtex somestésico, área 3, 2, 1 de Broca, ou giro pós- predomina em cerca de 45 a 60%, a região toraco-
-central. Outro trato se inicia com receptores para tato lombar encontra-se presente em 25 a 35% dos casos, a
protopático e pressão, que é geralmente o mais testado região lombar está acometida em cerca de 15 a 20%, e
pelo médico em geral, com primeiro neurônio no gânglio a região sacrococcígea é atingida em 4 a 6% das vezes.
espinal, entra pela raiz dorsal, faz sinapse com neurônio
do corno posterior, cruza para hemimedula contralateral
e ascende no funículo anterior como trato espinotalâmi-
co anterior, fazendo sinapse no VPL talâmico e se distri-
buindo no córtex somestésico. Diferente dos dois tratos Síndromes medulares
anteriores próximos entre si, a sensibilidade para tato
epicrítico e propriocepção, que são testados com objetos Quanto ao grau de lesão, é completo se não hou-
na mão ou pés para se definir nome e textura e com mu- ver evidência de preservação de qualquer função mo-
dança na posição de dedos das mãos ou pés em relação tora ou sensitiva abaixo da lesão e incompleta se exis-
ao espaço, o trato tem o primeiro neurônio em gânglio, tir amplo espectro de disfunções neurológicas, mesmo
entra no corno posterior da medula sem sinapse e ascen- que preservação sensitiva até apenas nos dermátomos
de ipsolateral pelo funículo posterior no trato grácil para sacrais. As classificações são usadas para facilitar a
fibras membros inferiores e cuneiforme para membros comunicação entre cirurgiões, como a classificação
superiores, até no bulbo. Quando fazem conexão nesses de Frankel, na qual: A (perda completa das funções
núcleos migram ventralmente e cruzam para outra hemi- motora e sensitiva abaixo da lesão), B (percepção sen-
medula, fazendo conexões em VPL e córtex. O que justi- sitiva residual, paralisia motora completa), C (função
fica em lesões em hemimedula a perda das sensibilidades motora residual, mas insuficiente), D (função motora
dolorosa e térmica contralateral à lesão e tato epicrítico e útil, mas subnormal) e E (normal).
propriocepção ipsilateral à lesão.
O choque medular ou espinal ocorre por tra-
Em resumo, com relação às vias aferentes: em ção das fibras na medula espinal e se relaciona à fase
lesões mais anteriores e laterais ocorrem perdas das sen- aguda do TRM, sendo caracterizado pela perda total da
sibilidades dolorosa, térmica e de pressão e tato grosseiro; função motora no momento do traumatismo e acom-
nas lesões mais posteriores à alteração ocorre na perda de
panhado por abolição completa de todas as formas de
reconhecimento da posição dos dedos no espaço (proprio-
sensibilidade e de toda atividade reflexa abaixo do ní-
cepção). Outro dado anatômico importante é que existe
vel da lesão. Evolui com postura flácida, diminuição de
também uma estratificação na posição das fibras motoras,
nas quais a porção mais lateral se relaciona com as fibras
reflexos, priapismo, alteração da frequência respirató-
dos membros inferiores, tronco e membros superiores ria, atonia gástrica, retenção urinária e fecal que tra-
mais medial. Assim, a apresentação de lesões extrínsecas, duz perda do controle da função neurovegetativa. Já
como é a maioria das lesões em TRM, o déficit se inicia o choque neurogênico ocorre por disfunção neuro-
primeiramente em membros inferiores e depois se apre- vegetativa por lesão das vias descendentes do sistema
senta em membros superiores. Déficits iniciais apenas em simpático na medula cervical, acarretando perda do
membros inferiores não excluem lesões cervicais. tônus vasomotor com consequente vasodilatação e hi-
potensão arterial, além de venodilatação e bradicardia
ou perda da resposta com taquicardia à hipovolemia.
Em algumas situações de TRM o exame neu-
Epidemiologia rológico não tem déficit completo e o achado
ajuda a entender a biomecânica do trauma e sua
Dados do Instituto de Ortopedia e Traumato- localização neurológica: na paralisia cruzada de Bell
logia do Hospital das Clínicas da USP mostram que secundária à fratura de C2 (fratura no processo odon-
94,3% dos casos atendidos eram do sexo masculino, toide com retropulsão sobre a medula) ocorre a perda
com a faixa etária predominante variando de 21 a 30 ou redução da força muscular nos membros superio-
anos. Considera-se bastante próximo do real um nú- res com relativa preservação nos membros inferiores;
mero entre 50 e 70 novos casos de vítimas de TRM por existe lesão das fibras do trato corticoespinal na de-
ano, para cada milhão de habitantes. cussação das pirâmides.

SJT Residência Médica – 2016


333
27 Trauma raquimedular (TRM)

Síndrome medular central: é uma lesão por Síndromes neurológicas no trauma medular
hiperextensão aguda, geralmente com estenose de (Cont.)
canal raqueano preexistente (idoso). A hiperextensão
Síndrome de Hemissecção medular
traciona a região central que é zona de vascularização Brown- Séquard Déficit motor e de propriocepção
limítrofe, ocorrendo lesão isquêmica central. O pa-
ipsilateral e de sensibilidade
ciente apresenta déficit motor desproporcionalmen- dolorosa e térmica contralateral
te maior nas extremidades superiores, pois acomete
Síndrome do Fraturas da transição
mais as fibras dos MMSS, associada à perda da sensi- cone medular toracolombar
bilidade superficial e da propriocepção. Bexiga neurogênica e
Síndrome medular anterior: ocorre lesão por incontinência fecal, associadas a
hiperflexão e carga axial, havendo infarto no territó- graus diversos de lesão motora e
rio da artéria espinal anterior por fragmento ósseo sensitiva
ou disco herniado traumático e evoluindo com déficit Síndrome da Fraturas lombares
motor e perda da sensibilidade térmica e dolorosa com cauda equina Paraparesia, anestesia em sela,
preservação da propriocepção, sensibilidade vibrató- distúrbios esfincterianos
ria e tátil descriminativa. Tabela 27.1 Atenção!
Síndrome de Brown-Séquard: é a hemissecção
de uma hemimedula espinal mais comum em lesões
Gravidade das lesões medulares
traumáticas da coluna cervical e que na maioria das
vezes é consequência de trauma penetrante, podendo Grau A Completa Ausência de qualquer atividade mo-
tora voluntária e de sensibilidade
ocorrer por compressão epidural. No exame haverá
perda de força motora e da propriocepção consciente Grau B Incompleta Presença apenas de sensibilidade
ipsolateral à lesão e perda de sensibilidade à dor e tér- Grau C Incompleta Presença de atividade motora vo-
luntária, mas com força motora
mica contralateral à lesão.
menor que III
Síndrome do cone medular: o cone medular Grau D Incompleta Presença de atividade motora vo-
ocupa a região entre T11 e L2, sendo zona de transi- luntária, com força motora maior
ção toracolombar mais susceptível a TRM. Ocorre pa- ou igual a III
ralisia de extremidades inferiores, retenção urinária e Grau E Normal Exame neurológico normal
atonia esfíncter anal, mas com variação na alteração
Tabela 27.2
motora em termos de grau e padrão de reflexos.
Síndrome da cauda equina: em geral é associa-
da à fratura abaixo de L2, acomete uma ou várias raí-
zes e provoca paralisia assimétrica. O déficit sensitivo
pode ser unilateral e assimétrico, em geral com perda
do controle vesical.
Atendimento ao paciente
O atendimento ao politraumatizado sempre deve
Síndromes neurológicas no trauma medular se iniciar com a sinalização do local quando a cena não
Síndrome Sinais de comprometimento de é segura, para diminuir o risco evidente para a vítima e
cervicobulbar tronco equipe de socorro. O atendimento ao trauma raquimedu-
Encontrada em lesões cervicais lar se inicia no atendimento pré-hospitalar com o alinha-
altas mento da coluna cervical e dorso, seguida da imobiliza-
Síndrome Paresia de membros superiores ção da coluna vertebral com: estabilização manual, colar
centromedular mais acentuada do que em cervical rígido, prancha longa com 3 tirantes e imobili-
membros inferiores zadores laterais. Existem situações especiais como, por
Compressão anteroposterior da exemplo, em crianças abaixo de 7 anos que possuem a
medula cervical em lesões por cabeça proporcionalmente maior que o corpo e necessi-
extensão tam de coxim desde o quadril até extremidade superior
do tronco para que a coluna permaneça em posição neu-
Síndrome Lesão motora com preservação
tra; quando o paciente está sentado preso nas ferragens,
medular anterior da sensibilidade táctil e
ele necessita do sistema KED (Kendrick extrication device)
propriocepção
para imobilização cervical e toracolombar com o pacien-
Compressão medular anterior,
te sentado. Existem situações de necessidade de retirada
lesão da artéria espinal anterior
rápida do local do acidente: como em risco iminente de
Síndrome Rara
vida, quando a cena do acidente não é segura ou necessi-
medular Preservação do trato dade de remoção rápida para acesso a outro paciente mais
posterior espinotalâmico grave. Nessas situações deve-se imobilizar o paciente em
Déficit de propriocepção no mínimo quatro pessoas para transporte adequado.

SJT Residência Médica – 2016


334
Cirurgia geral e politrauma

Todo paciente politraumatizado deve ser sub- Pacientes que não apresentam déficit neurológico
metido ao raio X de coluna cervical simples em AP e relacionado à lesão de coluna, com CT e RM e que não de-
perfil, que correspondem às incidências para inves- monstrem instabilidade da coluna, mas com dor e/ou fra-
tigação inicial recomendadas pelo ATLS. Se houver tura estável em um dos três eixos de sustentação (Primei-
dúvida diagnóstica ou suspeita de lesão, deve-se realizar ro eixo: ligamento longitudinal anterior, corpo e disco;
incidência transoral para visualização de C1 e C2 e oblí- Segundo eixo: anulo fibroso do disco, terço posterior do
quas para melhor visualização de processo transverso e corpo e ligamento longitudinal posterior; Terceiro eixo:
facetas articulares. A investigação do TRM deve ser re- processo transverso, arco vertebral e processo espinho-
alizada em todos os níveis da coluna vertebral caso se so) devem usar algum imobilizador externo para reduzir
encontre alguma lesão vertebral na investigação inicial. a dor, reduzir ou eliminar a movimentação do segmento
O ATLS recomenda a utilização de quatro diretrizes ana- vertebral fraturado para fixação espontânea ao longo do
tômicas para a análise do raio X de coluna cervical: ali- tempo (em geral 3 meses). São eles: colar macio – mínima
nhamento (face anterior de corpo, posterior de corpo, limitação (uso questionável) apenas para dor miofascial;
face posterior de canal medular, extremidade de proces- Philadelphia: limita mais a flexão-extensão, mas ineficaz
so espinhoso), ossos (corpo, arcos, processo transverso na rotação e flexão lateral; Miami-J: Apoio mais rígido
e espinhoso), junturas (discos e facetas) e partes moles com maior limitação da flexão-extensão ambos para fra-
(espaço pré-vertebral, gordura pré-vertebral e espaço turas pequenas e alinhadas de corpo ou processo espi-
entre os processos espinhosos). Condições patológicas: nhoso; Minerva: limita a rotação axial e alguma restrição
desalinhamento de corpo vertebral visualizado no per- à flexão lateral, usado para fraturas subaxiais cervicais;
fil de mais de 3 mm, desalinhamento no AP de processo Halo-Vest: limita os 4 movimentos, sendo usado para
espinhoso sugerindo luxação unilateral, dimensão do ca- fraturas como de C1, C2 e fraturas associadas de C1 e C2.
nal medular de menos de 13 mm no adulto, angulação do
espaço intervertebral de mais de 11 graus, diferença de
altura de alguma parte do corpo de mais de 3 mm, linhas
de fratura oblíqua no corpo ou no processo espinhoso,
perda de paralelismo das facetas; em C1 e C2 podemos
Tratamento
ter distância entre a face posterior do arco anterior de C1 O tratamento do paciente com traumatismo
e processo odontóide maior que 3 mm, linha de fratura raquimedular tem início no local do acidente, com a
em odontóide, alargamento do espaço pré-vertebral em imobilização adequada (prancha e colar), de modo a
nível de C2 maior que 5 mm sugerindo sangramento e impedir piora neurológica por mobilização de uma
lesão da coluna e alargamento do espaço interespinhoso coluna instável. De início, todo paciente politrauma-
sugerindo fratura anterior de canal. tizado deve ser considerado como portador de lesão
Quando o paciente está consciente, possui exame instável na coluna.
neurológico normal e não tem alteração em raio X sim-
A sequência de atendimento deverá obedecer
ples, porém tem dor cervical, deve ser realizado o raio
ao estabelecido pelo ATLS, desde o local até a sala de
X dinâmico em hiperextensão e hiperflexão. O limite
admissão. Especial atenção deverá ser dada ao padrão
desses movimentos deve ser início de dor ou limite fisio-
respiratório e à estabilidade hemodinâmica, não só pela
lógico, podendo evidenciar instabilidades ocultas como
listeses, desnivelamentos entre os corpos vertebrais,
prevalência destas alterações, mas também pelo impac-
subluxações entre as facetas articulares ou instabilida- to de hipóxia e hipotensão no agravamento da lesão
de – se a altura intervertebral medir mais que 2 mm em secundária. Caso necessária, a intubação orotraqueal
relação à posição neutra ou se o ângulo entre os corpos deverá ser realizada com extremo cuidado, mantendo
vertebrais aumentar mais que 7 graus em relação ao raio sempre o pescoço na posição neutra. Não sendo possí-
X em posição neutra. vel, deve-se optar pela traqueostomia. A hipotensão é
corrigida inicialmente com expansão volêmica, poden-
A tomografia de coluna (CT) vertebral permite vi-
do-se associar drogas vasoativas. Anemia e distúrbios
sualizar imagens anatômicas da coluna com maior reso-
hidroeletrolíticos devem ser prontamente corrigidos,
lução, esclarecer dúvidas ao achado do raio X simples, es-
tudar a transição cervicotorácica quando o raio X simples no intuito de minimizar a lesão secundária. Profilaxia
não permite. Além disso, nas CT de coluna são possíveis de TVP deverá ser iniciada assim que possível.
diversas reconstruções ósseas (em 3D) e em diversas Após a publicação dos estudos cooperativos NAS-
incidências como em sagital ou coronal. A CT também CIS, a utilização de altas doses de metilprednisolo-
permite avaliar com maior resolução o nível com déficit na tornou-se quase que mandatória, principalmente
neurológico e a sua correspondência vertebral. nos EUA. Recentemente, diversas críticas e dúvidas
A ressonância magnética permite estudar algumas têm sido lançadas sobre estes estudos e sobre a eficá-
situações clínicas especiais: como nível da fratura dife- cia da droga em melhorar o quadro neurológico, além
rente do nível do déficit neurológico, déficit neurológico de ressaltar os efeitos colaterais e a morbidade. Como
sem lesão óssea identificada e a possibilidade de visua- existem publicações que sugerem benefício, apesar da
lização de lesões das junturas e das estruturas neurais. ausência de evidências médicas sólidas, a metilpred-

SJT Residência Médica – 2016


335
27 Trauma raquimedular (TRM)

nisolona permanece como opção terapêutica, devendo maior que 7 mm é estável e deve-se colocar halo-vest.
ser ponderada em função de efeitos adversos (imu- Caso haja deslocamento, deve-se realizar fixação C1
nossupressão, úlcera gástrica, pancreatite, distúrbios com C2 ou fixação occipito cervical; fratura da massa
eletrolíticos, hiperglicemia). A dose preconizada lateral (estável e uso de halo-vest); fratura horizontal
é de 30 mg/kg na primeira hora, seguida de 5,4 do arco anterior (rara e estável e uso de halo-vest).
mg/kg/hora por mais 23 horas, caso o início do
No TRM aberto ou penetrante o tratamento
tratamento ocorra em até 3 horas do momento
clínico é diferente do fechado, pois como a ferida é
da lesão e por mais 47 horas, caso o intervalo es-
contaminada existe o alto risco de sepse se usado
teja entre 3 e 8 horas.
corticóide em altas doses e o benefício não é com-
Não existe benefício documentado caso o início provado na literatura dado à grave lesão provocada
do tratamento ocorra após 8 horas, nem para ferimen- pelo projétil. A maioria dos pacientes tem déficit mo-
tos penetrantes (incluindo os por projétil de arma de tor completo devido à energia cinética do projétil no
fogo), estando, portanto, contraindicado nestas situ- TRM penetrante. Indicações cirúrgicas: deterioração
ações e em pacientes gestantes, diabéticos, com mais neurológica em paciente previamente estável neuro-
de 65 anos de idade ou que tenham outros trauma- logicamente pela possibilidade de hematoma epidu-
tismos potencialmente infectados. Estudos recen- ral, descompressão da medula ou das raízes da cauda
tes sugerem algum benefício na administração equina em déficits parciais e quando há fragmentos
do gangliosídeo GM-1 na fase aguda, logo após no canal. Quando há fístula liquórica na ferida, esta
o término do pulso de metilprednisolona, com deve ser corrigida para a prevenção de complicação
dose inicial de 300 mg, mantida com 100 mg/dia infecciosa como meningite.
por 56 dias.
Após diagnóstico e avaliação neurológica, lesões
instáveis com listese ou luxação, em traumatismos
cervicais fechados, deverão ser reduzidas e estabiliza-
das mediante tração ou cirurgia. A correção cirúrgica,
tanto para estabilização quanto para descompressão
Considerações gerais
de fragmentos no canal central, deverá ser realizada sobre fratura cervical
assim que o quadro clínico permita (estabilidade he-
modinâmica). A estabilização precoce permite
uma rápida mobilização e reabilitação do pacien-
te, diminuindo as complicações sistêmicas.
A perda da estabilidade ocorre com lesão de dois Fraturas da coluna
ou mais eixos de sustentação da coluna. Indicações ou- cervical superior
tras: descompressão de estruturas neurais, hérnia dis-
São consideradas lesões da coluna cervical su-
cal traumática, facetas com luxação. Vantagens: mobi-
lização precoce do paciente, redução das complicações perior as que envolvem as vértebras de C1 a C3 jun-
associadas ao decúbito prolongado. tamente com a articulação occipito-C1. As lesões oc-
cipitocervicais na porção superior da coluna cervical
Em casos de listeses e luxações cervicais pode ser facilmente passam despercebidas, merecendo um
usado o halo de tração cervical para se estabilizar a co- elevado grau de suspeita, principalmente no pacien-
luna antes do procedimento cirúrgico, tentar reduzir a te politraumatizado. Lesões da junção craniovertebral
lesão na coluna para facilitar o procedimento cirúrgico necessitam de uma avaliação criteriosa, pois, além de
e reduzir a lesão na medula para interromper a agres- ser uma localização de difícil análise, também pode
são medular. apresentar alterações como calcificação do ligamento
As fraturas de côndilo occipital podem ser linea- alar que confundem o diagnóstico.
res ou cominutivas, sendo ambas estáveis e de trata-
mento conservador. Já a avulsão de côndilo necessita
de fixação occipito cervical. O deslocamento atlanto
occipital pode gerar desde dor a tetraplegia e insta-
bilidade respiratória e deve ser submetido à fixação
Luxação atlanto-occipital
occipito cervical. A fratura do atlas corresponde a Rara, com mecanismo de ação de alta energia
10% das fraturas da coluna cervical, ocorre por cinética, muitas vezes em hiperextensão e tração, as-
compressão axial e o déficit neurológico é raro sociado a um componente rotacional que pode causar
na fratura isolada. Há 4 padrões básicos: fratura do ruptura de todas as conexões ligamentares e transec-
arco posterior (estável e uso de halo-vest); fratura de ção medular, na maioria das vezes incompatível com a
Jefferson (fratura de arco anterior e posterior bilate- vida. O tratamento é realizado por meio de artrodese
ralmente), se não há deslocamento de massa lateral via posterior.

SJT Residência Médica – 2016


336
Cirurgia geral e politrauma

Subfuxação atlantoaxial
Mais comum em crianças, quando ocorrem após
trauma pequeno ou espontaneamente. Em adultos, ne-
cessita um trauma maior provocando a lesão dos liga-
mentos alares e transverso com flexão e translação de
Cl anteriormente. Enquanto alguns pacientes são as-
sintomáticos, outros podem apresentar dor cervical ou
torcicolo. Radiograficamente, nota-se o deslocamento
das massas laterais em relação ao odontoide, na inci-
dência transoral, aumento do intervalo atlantodental
superior a 3 mm na incidência lateral e desvio dos pro-
cessos espinhosos C1-C2 na incidência anteroposterior
(AP). O tratamento da subluxação rotatória atlatoaxial
é, geralmente, conservador, com tração seguida de imo-
bilização. Entretanto, há alta taxa de recorrência do
problema. Nesses casos, indica-se artrodese C1-C2. Em
lesões instáveis, realiza-se fusão posterior C1-C2.
Figura 27.2 Esta fratura da primeira vértebra cervi-
cal (fratura de Jefferson) produziu uma abertura dos
Fratura do atlas (fratura de maciços laterais em relação à segunda vértebra cervical.

Je昀昀erson)
Ocorre por meio de mecanismo de compressão
axial secundariamente ao impacto dos côndilos occipi-
tais sobre o arco de C1. O diagnóstico dessas fraturas é
realizado com radiografias planas. A incidência transoral
mostra assimetria das massas laterais de C1 sobre C2. O
alargamento bilateral maior que 6,9 mm é sugestivo de
ruptura do ligamento transverso, com potencial instabi-
lidade tardia. O tratamento das fraturas isoladas do atlas
é, geralmente, incruento, com uso de halo-gesso por 3 a
4 meses. Se permanecer instabilidade tardia, mesmo com
consolidação óssea, indica-se fusão posterior C1-C2.

Figura 27.3 Cortes axiais de TC. Observe as fraturas


comprometendo de forma bilateral e simétrica o arco
de C1 e os pedículos de C2.

Fratura do odontoide
Associada a trauma de alta velocidade, em geral
Figura 27.1 Classificação das fraturas do atlas (a topo- em flexão. De acordo com Anderson e D’Alonzo,
grafia das lesões está delimitada pela marcação escura). há 3 tipos de fraturas.

SJT Residência Médica – 2016


337
27 Trauma raquimedular (TRM)

No tipo I a fratura ocorre no ápice do processo a radiografia de frente mostra perda do alinhamento
odontóide, por meio da avulsão de fragmento ósseo. entre os processos espinhosos. A luxação facetária
Com bom suprimento sanguíneo e estabilidade pre- pode ser observada nas radiografias oblíquas. A es-
servada, é uma fratura de tratamento conservador. tabilização cirúrgica é indicada mesmo após redução
No tipo II, mais comum, a fratura ocorre na com tração e halo craniano.
base do processo odontóide, na sua junção com o cor-
po. Esta apresenta alta taxa de pseudartrose com o
tratamento clínico, podendo ser indicado tratamento
cirúrgico de imediato ou se houver falha do tratamen-
to conservador. As indicações precisas do tratamento
cirúrgico ainda são muito discutidas.
No tipo III a fratura ocorre no corpo do áxis e
o tratamento incruento costuma apresentar bons re-
sultados.

Fratura do enforcado (espondilo-


listese traumática do áxis)
O mecanismo causador dessa lesão é a extensão
combinada com carga axial. Geralmente, não apresen-
ta alterações neurológicas, pois ocorre alargamento
do canal medular. A maioria responde a tratamento
conservador com redução com halo craniano e imobi-
lização em halo-veste por 12 semanas. Nos casos asso-
ciados à luxação facetária, o tratamento cirúrgico está
indicado de imediato.

Este tipo de fratura é classi昀椀cada em


três tipos:
€ Tipo I: sem deslocamento ou angulação;
€ Tipo II: angulação e translação significativas;
€ Tipo III: tipo II acrescido de luxação facetária
uni ou bilateral.

Fratura em gota de lágrima


Fratura associada a um mecanismo de trauma em
flexão e compressão axial. Um exemplo clássico deste
trauma é o traumatismo após mergulho em água rasa.
Esta denominação deve-se ao aspecto do fragmento
fraturado do corpo anterior da vértebra observado na
radiografia de perfil. Esta fratura muitas vezes está as-
sociada à lesão neurológica e a estabilização cirúrgica
está indicada. Figura 27.4 A: radiografia em perfil da coluna cervi-
cal. Verificar sempre: alinhamento, estruturas ósseas,
discos intervertebrais, articulações interapofisárias
e, finalmente, os tecidos moles. Observe fratura nos
pedículos de C2, fratura do enforcado. B: mesmo pa-
Fratura-luxação ciente de A. Corte de TC na base da segunda vértebra
Fratura instável associada a mecanismo de trau- cervical. Observe as fraturas de ambos os pedículos de
ma em flexão e rotação. A radiografia de perfil de- C2. C: RM ponderada em T1, plano sagital mostrando
monstra escorregamento entre vértebras adjacentes e muito discreta espondilolistese anterior de C2 sobre C3.

SJT Residência Médica – 2016


338
Cirurgia geral e politrauma

Fraturas da coluna cervical Critérios de White Panjabi de instabilidade para


coluna cervical inferior
baixa
As lesões da coluna cervical baixa são aquelas Critério Pontos
que acontecem da vértebra C3 à C7. Essas lesões po- Estruturas anteriores lesadas 2
dem ser divididas em: ruptura aguda do disco inter-
vertebral, subluxação facetária, luxação facetária uni Estruturas posteriores lesadas 2
ou bilateral, fraturas do corpo vertebral, do arco pos-
Translação sagital > 3,5 mm 2
terior e fraturas-luxações.
Um episódio de quadriplegia ou quadriparesia Rotação sagital > 11 graus 2
em paciente vítima de trauma cervical com estudo ra-
Teste do estiramento 2
diográfico normal sugere ruptura aguda do disco in-
tervertebral. Essa lesão pode causar, entre outros sin- Lesão medular 2
tomas, uma síndrome da lesão medular anterior. Na
síndrome da medula anterior, a lesão acontece Lesão radicular 1
nos 2/3 anteriores da medula. Em geral, ocorre Espaço discal anormal 1
perda motora completa e deficiência sensitiva
parcial com preservação da propriocepção e per- Estenose congênita 1
da da discriminação da dor e da temperatura.
Tabela 27.3 Total ≥ 5 pontos = instabilidade.
O diagnóstico da ruptura aguda traumática do
disco intervertebral é realizado com a RM. A subluxação
facetária pode ocorrer como resultado de um trauma
que crie uma força de cisalhamento através do espaço
discal intervertebral com lesão posterior da sustentação
ligamentar. Radiografias podem mostrar estreitamento
do espaço intervertebral, angulação vertebral anterior,
listese vertebral de corpos adjacentes e aumento da dis-
tância entre seus processos espinhosos.
Fraturas e luxações da coluna cervical inferior
frequentemente têm envolvimento neurológico grave,
devido à relação íntima entre canal medular e medula
(continente-conteúdo).
Os critérios de White e Panjabi de instabi-
lidade são úteis na definição dos pacientes que
necessitam de estabilização cirúrgica.
Figura 27.5 Observe nesta radiografia de perfil da
White et al. reconheceram que a literatura nem coluna cervical um desalinhamento entre a sexta e a sé-
sempre é clara ou consistente na descrição do que tima vértebra cervical. O diagnóstico foi possível porque
constitui uma coluna cervical instável. Esses autores, a radiografia evidenciou a sétima vértebra cervical.
em seus estudos biomecânicos clássicos, definiram es-
tabilidade clínica como sendo a habilidade da coluna
vertebral em suportar cargas fisiológicas, prevenindo
dano ou irritação da medula espinal e/ou raízes nervo-
sas. A instabilidade deve ser suspeitada quando:
€ todos os elementos anteriores ou todos os ele-
mentos posteriores de sustentação forem des-
truídos ou estiverem incapazes de exercer sua
função normal;
€ mais que 3,5 mm de listese vertebral for me-
dido na radiografia em perfil entre 2 vértebras
adjacentes;
€ houver mais de 11 graus Cobb de diferença de an-
Figura 27.6 Cortes axiais, observe a fratura da lâmina
gulação entre as corticais posteriores de 2 vérte-
esquerda de C5, a luxação anterior de C5 sobre C6, a
bras adjacentes medidas na radiografia em perfil;
fratura-explosão do corpo de C6 e a fratura da lâmina
€ houver lesão medular associada. esquerda de C6.

SJT Residência Médica – 2016


339
27 Trauma raquimedular (TRM)

Figura 27.7 A: radiografia em perfil da coluna cervical. Observe o alinhamento, as estruturas ósseas, os interes-
paços, as articulações interapofisárias, as apófises espinhosas e os tecidos moles. B: RM da coluna cervical na ponder-
ação T2. Observe: coleção hiperintensa (metaemoglobina extracelular) em situação pré-vertebral; espondilolistese
anterior de C4 sobre C5; afastamento das apófises espinhosas de C4 e de C5; a lesão hiperintensa da medula e o he-
matoma entre as apófises espinhosas. A área de hiperintensidade de sinal da medula em T2 pode representar edema
(reversível), isquemia (irreversível), malácia (irreversível), ou, ainda, uma soma destes três fatores.

Oscar Huntigton Allis (1836–1921) criador da famosa pinça Allis..

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

28
Trauma musculoesquelético

Tanto as lesões de extremidades que cursam com


Introdução hemorragia intensa e visível quanto os sangramentos
que ocorrem para os tecidos moles e cavidades inter-
O importante a saber é que no exame primário nas devem ser rapidamente controlados, pois podem
prioriza-se salvar a vida do doente. Somente no exame facilmente cursar com perdas volêmicas extremamen-
secundário é que o objetivo será salvar o membro. Em te significativas, até mesmo choque hemorrágico.
fraturas que sangram só após termos verificado via
aérea (A) e ventilação (B), é que prosseguiremos com O trauma musculoesquelético consiste em lesões
a compressão direta de ferimentos. Fraturas expostas causadas por trauma que envolve ligamentos, mús-
não devem ser reduzidas, pois irão ao centro cirúrgico. culos e ossos. De maneira geral, a história e o exame
Como fraturas sangram muito (fratura de pelve pode clínico fazem o diagnóstico destas lesões, que deman-
sangrar 2 litros ou mais!), deve ser determinada se a dam atenção logo que possível por poderem, quando
causa do choque é da fratura ou existe hemorragia in- não adequadamente tratadas, resultar em invalidez
tra-abdominal. A profilaxia antitetânica não deve ser permanente ou complicações decorrentes da hemor-
esquecida. ragia, principalmente em fraturas múltiplas da pelve
ou bilaterais do fêmur.
Principalmente, tratando-se de fratura de gran-
des ossos (exemplo: fêmur), a complicação de embo-
lia pulmonar/ gordurosa deve ser lembrada.
Embolia gordurosa: petéquias no tronco +
dispneia + fratura ossos longos, ocorrendo geralmente
Avaliação
nas primeiras 48-72 horas. A avaliação do paciente traumatizado que apre-
Embolia pulmonar: fatores de risco TVP + senta trauma de extremidades é, obviamente, a mes-
dispneia, geralmente ocorrendo após 72 horas. ma preconizada de maneira geral pelo ATLS.
341
28 Trauma musculoesquelético

Cabe ressaltar que, muitas vezes, por essas le- € Lesões resultantes de projétil de arma de fogo
sões apresentarem sangramento importante ou de- de alta velocidade;
salinhamento ósseo grave, o socorrista abandona o € Lesões resultantes de queimaduras por eletrici-
protocolo por causa de sua ansiedade em controlar o dade, calor ou frio;
sangramento ou aliviar a dor. Tal conduta é errônea e € Lesões com contaminação significativa;
deve ser combatida. A prioridade das vias aéreas e da
respiração deve ser mantida. Apenas com o paciente € Lesões com tecido denervado ou isquêmico.
estabilizado com relação às vias aéreas e sua respira-
ção é que iniciamos o passo seguinte, que consiste na
análise da circulação sanguínea.
Obviamente, em um serviço que disponha de Amputações
mais de um socorrista para realizar o atendimento, é
benéfica a intervenção simultânea em relação às par- traumáticas
tes respiratória e circulatória.
Representam um risco significativo de vida e à
Sempre lembrar que as fraturas, especialmente
as de pelve, que podem sequestrar até mais de 2 litros, sobrevivência do coto residual da extremidade, por
devem ser consideradas lesões potencialmente deple- isso a hemostasia e os cuidados com a ferida têm prio-
toras de volume e muitas vezes encontram seu lugar ridade no tratamento.
no C do ABCDE do trauma. Os cuidados com a parte amputada consistem
No exame físico, o paciente precisa estar despido em: coibir o sangramento da extremidade por com-
e deve ser feita a comparação das extremidades com as pressão (com pano ou compressa limpa); envolver o
extremidades contralaterais. Qualquer fator de desse- coto residual em pano limpo; introduzi-lo em um saco
melhanças pode sugerir lesão. plástico e então mergulhar em uma caixa com gelo, a
fim de aumentar sua viabilidade por resfriamento.
É de imensa importância analisar a perfusão do
membro lesado, para nos assegurarmos de que não
haja lesão vascular associada ao trauma, o que ocorre
com relativa frequência nas luxações de joelho. Logo,
devemos nos ater a observar: semelhança das extremi-
dades, sangramentos, coloração da pele, escoriações,
crepitação, temperatura, dor, movimentação ativa e
passiva e, sobretudo, pulsos.
O estado neurológico pode se encontrar alterado
por lesão direta do nervo, lesão vascular ou por sín-
drome compartimental.
Caso apareçam ou persistam, após o alinhamen-
to da fratura, sinais sugestivos de lesão vascular ou
nervosa, o médico deve verificar o método de imobili-
zação e reavaliar o alinhamento do membro.
A avaliação da perfusão distal pode ser feita com
medidas de pressão arterial, com ou sem o auxílio do
Doppler. Em casos de dúvida, o médico pode se utilizar Figura 28.1 Amputação traumática de perna esquer-
de métodos de imagem como a angiografia, que pode da por acidente automobilístico.
ser realizada assim que o paciente estiver estável.

Os ferimentos que apresentam Lesões ligamentares


maior gravidade e risco de
São lesões localizadas na região articular que
infecção são: provocam um movimento que ultrapassa a amplitude
normal da articulação em uma ou mais direções.
€ Ferimentos com mais de 6 horas de evolução;
Podem causar desde pequenos estiramentos li-
€ Ferimentos contusos, abrasões ou avulsões; gamentares (entorses) até rupturas completas de liga-
€ Ferimentos com mais de 1 cm de profundidade; mentos e da cápsula, podendo provocar uma luxação.

SJT Residência Médica – 2016


342
Cirurgia geral e politrauma

Para melhor identificar a gravidade da lesão, o A classificação de fraturas expostas de maior


exame clínico deve ser realizado, se possível, sob anes- aplicação prática é a de Gustillo
tesia local, troncular ou geral.
I - Fratura exposta com exposição < 1 cm (puntifor-
Uma radiografia em estresse pode comprovar o
me).
grau da lesão, evidenciando o grau de subluxação ou
II - Fratura exposta com exposição > 1 cm sem lesão
luxação. A ultrassonografia também pode identificar extensa às partes moles (pouco contaminada).
a lesão. IIIA - Fratura exposta com cobertura adequada de te-
O tratamento visa restituir a estabilidade articu- cidos moles, apesar de extensas lacerações/retalhos;
lar, podendo ser incruento (imobilização) ou cirúrgico ferimento de alta energia cinética de ferida de qual-
(sutura dos ligamentos e da cápsula articular), sendo quer tamanho. Osso periostizado.
este reservado para as lesões mais instáveis e para IIIB - Fratura exposta com lesão extensa às partes mo-
les com exposição óssea e arrancamento do periósteo
competidores esportivos.
(osso desvitalizado).
As luxações representam o desencaixe da ar- IIIC - Fratura exposta com lesão arterial/ nervosa ne-
ticulação; significam a ruptura completa dos liga- cessitando de reparo.
mentos e da cápsula articular e constituem lesões
de grande gravidade, devendo ser reduzidas o mais Tabela 28.1 Classificação de Gustillo para fraturas ex-
rápido possível para restabelecimento da embebi- postas do membro inferior.
ção articular.

Lesões musculares
São causadas por traumas diretos ou indiretos nos
músculos, provocando lesões que interrompem, em ex-
tensão variável, a integridade das fibras musculares.
As radiografias demonstram poucas alterações,
enquanto a ultrassonografia e a RNM são muito úteis
para se visualizar a extensão da lesão.
O tratamento dependerá da extensão da lesão,
do músculo acometido e da atividade do paciente.
Pode variar desde a imobilização até a reparação cirúr-
gica, principalmente nas lesões completas do ventre
muscular, nas transições miotendíneas, no tendão ou Figura 28.2 ratura exposta de perna direita.
na inserção óssea.

Com relação ao seu tratamento


temos como variável importante
Fraturas o tempo:
O aspecto radiográfico geralmente nos permite Até seis horas: ferida contaminada (as bacté-
definir o mecanismo do trauma. rias ainda não se fixaram);
Do ponto de vista de exame clínico é importante De seis a doze horas: potencialmente infectada;
analisar com precisão o acometimento das partes mo- Doze horas ou mais: infectada.
les. Desta maneira temos as fraturas expostas (aber-
tas, com comunicação com o ambiente) ou fechadas.
As fraturas expostas caracterizam-se por con-
tato com o meio externo e possuem grande risco de Consolidação
contaminação. A consolidação da fratura é uma reação inflama-
Não se deve esquecer de avaliar de imediato as tória, localizada, acelerada e controlada no tempo, que
lesões nervosas e vasculares envolvidas no trauma. produz uma cura não por tecido cicatricial, mas por

SJT Residência Médica – 2016


343
28 Trauma musculoesquelético

tecido ósseo igual ao original. Pode se dar de maneira € fraturas de diáfise dos ossos do antebraço;
direta (primária), ou indireta (secundária) e sempre ne- € fraturas expostas;
cessita de duas condições: vascularização e estabilidade.
€ pseudoartroses;
A consolidação indireta se dá na natureza, sem
€ falha no tratamento conservador;
intervenção ativa. A dor e instabilidade local acabam
provocando uma contratura dos músculos próximos, € polifraturados e politraumatizados;
o que propicia uma redução da instabilidade anterior- € fraturas associadas à lesão vascular.
mente apresentada às custas de encurtamento por
muitas vezes. O hematoma local possui células pluri-
potentes, que se diferenciam em fibrócitos e condró-
citos, que produzem um arcabouço fibroso para esta- b) Indicações recomendáveis:
bilizar a fratura; só então haverá produção de tecido € fraturas de diáfise de fêmur;
ósseo. A ossificação se inicia distalmente, sob formato € justa-articulares;
de reação periostal.
€ maleolares;
A consolidação direta não apresenta o calo ósseo,
evoluindo com a produção de tecido ósseo diretamen- € diáfise de úmero instável ou em obesos;
te. Sua unidade funcional é a osteona, que consiste de € instáveis de diáfise de tíbia etc.
um capilar neoformado a partir do osso vascularizado
possuidor de osteoclastos que imediatamente passam
a absorver o osso desvitalizado. A partir de então, o
capilar conduz histiócitos, que se diferenciam em os- c) Indicações relativas:
teoblastos, que produzem a matriz osteoide. De acordo com características próprias do doen-
De ambas as maneiras, a consolidação se dá te e não da fratura. Exemplo disso seria o paciente que
em aproximadamente 2 meses e o fenômeno de não aceita permanecer por longo período imobilizado
remodelação, em 18 meses. ou não pode se afastar do serviço por muito tempo.
Existem dois tipos de osteossíntese (méto-
do cirúrgico): fixação externa e interna.
A fixação externa utiliza aparelhos transfixan-
Tratamento tes (utiliza-se fios de Kirschner), ou não transfixan-
tes, e propicia boa estabilização sem a necessidade de
O tratamento da fratura segue o que se chama
abordagem maior próxima ao foco.
personalidade da fratura, que se define de acordo
com características próprias da fratura, da equipe mé- A fixação interna utiliza placas (de proteção,
dica, do doente, do hospital e do material disponível. compressão ou sustentação), ou de síntese intrame-
Logo, uma mesma fratura pode apresentar mais de um dular (hastes intramedulares, pinos de Rush, gama
tratamento adequado. nail etc.) e pode ser realizada com ou sem a abertura
O objetivo a ser alcançado é a manutenção da do foco.
função, nos níveis existentes antes do acidente, no
menor espaço de tempo, sem prejuízo na consolida-
ção, com as articulações vizinhas estáveis, sem a pre-
sença de dor e de maneira permanente. Isto pode ser Tratamento incruento
obtido de modo cruento ou incruento.

Consiste em:
€ Abstenção de tratamento: para fraturas que
Tratamento cruento não necessitam de intervenção por não apresen-
Há três níveis de indicação do tratamento opera- tarem desvio importante ou dor. Exemplo: 3° ou
tório (a, b, c): 4° metacarpianos, terço proximal de fíbula etc.;
€ Imobilização com enfaixamento ou gessada:
visa redução da fratura e alívio da dor. Exemplo:
a) Indicações absolutas: costelas, diáfise de úmero e clavícula etc.;

€ interrupção dos músculos extensores;


€ Redução incruenta seguida de engessa-
mento: recolocação dos fragmentos com ma-
€ fraturas instáveis de colo de fêmur; nobra externa seguida de engessamento de uma
€ fraturas articulares instáveis e com desvio; articulação acima e uma abaixo do foco;

SJT Residência Médica – 2016


344
Cirurgia geral e politrauma

€ Tração esquelética ou cutânea seguida ou Nos casos das lesões abertas, segue-se o mesmo
não de aparelho gessado: redução dos frag- raciocínio das lesões vasculares, porém com a particu-
mentos de maneira lenta e progressiva. A tração laridade de que os troncos nervosos devem sempre ser
esquelética é mais eficiente, sendo que a cutâ- reparados e até enxertados nos casos de falha segmen-
nea apresenta caráter provisório, enquanto o tar e/ou de retração dos cotos.
melhor método de tratamento é providenciado.

Complicações Infecção
É mais comum nas fraturas expostas, sendo o
tratamento baseado no tempo de evolução, extensão
Precoces da lesão, condições do paciente etc.
Quando acontece no pós-operatório, o tratamen-
to inicia-se com a administração de antibióticos. Na
Síndrome compartimental falta de uma resposta satisfatória nos primeiros 3 dias,
Trata-se de complicação grave, que deve ser sus- recomenda-se internação, troca do antibiótico para
peitada sempre na presença de dor desproporcional. O um de maior espectro e limpeza cirúrgica com coleta
compartimento anterior é o mais comumente envol- de material para cultura e antibiograma (3 amostras).
vido. É mais comum em fraturas fechadas, sobretudo Ao se obter o resultado desses exames, promove-se o
nas primeiras horas após o trauma e no pós-operató- descalonamento do antibiótico, direcionando-o para
rio imediato. A ocorrência em fraturas expostas é rara, as bactérias encontradas.
com exceção daquelas tratadas cirurgicamente com Sempre que possível, o material de síntese deve ser
fechamento completo da ferida. preservado pelo menos até a consolidação da fratura.
O diagnóstico é basicamente clínico, com a
presença de sinais como palidez, parestesia, diminui-
ção de pulso e perfusão, e, principalmente, dor in-
tensa, agravada com a distensão da musculatura
existente no compartimento envolvido. Todavia, em
Tardias
pacientes inconscientes, como é o caso daqueles que fo-
ram vítimas de traumatismo cranioencefálico, o parâme-
Sinostose radioulnar pós-traumática
tro clínico encontra-se comprometido. Nesta situação,
deve-se proceder a mensuração da pressão intracompar- É uma complicação rara e intimamente rela-
timental e, de posse desta, pode proceder o cálculo do cionada à gravidade do trauma, visto que é mais
coeficiente delta-P, que é o produto do valor da pressão comum nos pacientes vítimas de esmagamento.
arterial média menos o valor da pressão intracomparti- Outras situações que aumentam o risco de tal com-
mental, considerando-se que valores iguais ou menores plicação são: a utilização de via de acesso única para
que 40 indicam a presença da síndrome compartimentai. os dois ossos, a colocação de parafusos grandes em
direção à membrana interóssea e a ocorrência de
Ao ser confirmada, o seu tratamento é de
fraturas proximais.
emergência, pois uma vez instalada a síndrome,
8 horas já são suficientes para causar lesões ir- O tratamento é cirúrgico, consistindo em res-
reversíveis. O tratamento deve ser sempre cirúrgico, secção da sinostose, controle do hematoma e inter-
consistindo em fasciotomias amplas, podendo a inci- posição de tecidos moles, associado à mobilização
são de pele ser segmentar. precoce no pós-operatório. A radioterapia e a indo-
metacina (25 mg 3 vezes/dia) também podem ser
usadas nesse período.

Lesões neurológicas
Também são raras nas fraturas fechadas, devendo
sempre ser avaliadas não só por questões legais, mas tam-
bém para comparações pós-operatórias. Caso exista após Consolidação viciosa
o trauma, a conduta normalmente é expectante, e, se em Ocorre, sobretudo, por má e/ou perda de redução
3 meses não houver sinais de recuperação, a exploração da fratura. A indicação cirúrgica torna-se imperativa
está indicada. Nas situações em que o quadro se instala nos pacientes que cursam com diminuição importante
após a cirurgia, a intervenção deve dar-se o quanto antes da pronossupinação, sendo que quanto mais precoce
a fim de procurar compressões causadas pela placa. for a correção, melhor será o resultado.

SJT Residência Médica – 2016


345
28 Trauma musculoesquelético

Pseudartrose e retardo de consolidação Trauma extremidade com lesão combinada


A incidência é inferior a 10% e as duas condições vascular/ óssea modificado (Cont.)
podem desenvolver-se por problemas mecânicos e/ou Lesões por esmagamento
biológicos, cujo diagnóstico exato é fundamental para Mecanismo de lesão fechada
a obtenção de êxito do tratamento, o qual é cirúrgico. Idosos com comorbidades
Retardo no diagnóstico
Se a causa for biológica, a indicação é de enxertia
Retardo na cirurgia
óssea. Se mecânica, troca da síntese óssea.
Fasciotomia tardia
Tabela 28.2

Refratura
Refraturas são mais comuns nos primeiros 4 me-
ses após a retirada do material de síntese e devem ser
tratadas, basicamente, como fraturas agudas, porém, Quando fazer
neste caso, com peso de constituírem uma reoperação,
e, portanto, com maior índice de complicações, pois já
fasciotomia?
existem alterações teciduais perifratura, muitas vezes
com presença de tecido fibroso abundante que dificul- Diante de síndrome compartimental (pressão
ta a identificação das estruturas anatômicas. compartimental elevada > 30 mmHg), cuja expressão
clínica clássica (se caracteriza por parestesia, paralisia
e dor), um procedimento com fasciotomia imediata
para aliviar a pressão.
Consideração para A avaliação clínica pode ser muito difícil em
razão de o doente estar sedado, anestesiado ou com
amputação trauma cranioencefálico, e a indicação de fascioto-
mia inicial pode ser postergada. Por isso, a extre-
A amputação primária sem nenhuma tentativa midade deverá ser cuidadosamente observada no
de salvamento do membro é relatada em 10 a 22% dos pós-operatório, com monitoração da pressão com-
casos com trauma complexo da extremidade. partimental, avaliação da perfusão, palpação da
musculatura da panturrilha.
As lesões combinadas que resultam em perda ou
disfunção do membro podem ser previstas em poucos Alguns critérios auxiliam a indicação de fas-
dias da lesão, por um número de fatores prognósticos ciotomia precoce:
que determinarão o resultado. A amputação precoce 1. Edema maciço da extremidade;
com poucos dias deverá ser considerada se esses fato-
2. Lesão musculoesquelética distal grave;
res estiverem presentes.
3. Choque prolongado;
Trauma extremidade com lesão combinada
4. Retardo na normalização do fluxo (isquemia
vascular/ óssea modificado
> 6 horas);
Múltiplas fraturas
5. Lesões de artérias e veias associadas;
Fratura Gustillo III - C
Transecção nervo tibial ou ciático 6. Ligadura da veia poplítea ou das múltiplas
Isquemia prolongada (> 6 a 12 horas) veias da perna;
Lesão arterial abaixo do joelho 7. Lesão por esmagamento associada.
Ligadura venosa
Perda extensa de tecidos moles O procedimento é realizado pela técnica
Cobertura inadequada dos tecidos moles do reparo
de Mubarak e cols., e consiste em praticar duas in-
cisões cutâneas longas, uma anterolateral e a outra
vascular
posteromedial na perna. Os quatro compartimentos
Contaminação severa da ferida
devem ser descomprimidos evitando sequelas vascu-
Choque com lesões associadas que ameaçam a vida
lares e neuromusculares.

Em 1897, Johannes Von Mikulicz Radecki (1850-1905): descreveu o uso da máscara cirúrgica.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

29
Trauma pediátrico

As prioridades na avaliação e tratamento de ví-


Introdução tima de trauma pediátrico são as mesmas do adulto
e devem ser empregados os protocolos do ATLS e do
O trauma é a principal causa de morte de 1 até PALS (Pediatric Advanced Trauma Life Support, que é o
44 anos de vida. Do 1 aos 14 anos, também represen- protocolo para reanimação e parada cardíaca em crian-
ta causa significativa de invalidez, sendo que nos EUA ças, principalmente).
mais de 10 milhões de crianças recebem atendimento
Entretanto, as características anatômicas pe-
no pronto-socorro e 10 mil morrem por ano de trauma culiares da criança merecem consideração especial: o
(ATLS, 2003). trauma fechado mais grave na criança é o trau-
Apesar de esses dados estarem diminuindo (em ma de crânio com comprometimento cerebral; a
comparação com o ATLS de 1993), a morbimortalidade apneia, a hipoventilação e a hipóxia ocorrem cinco ve-
por trauma ainda supera todas as doenças de crianças e zes mais frequentemente do que a hipovolemia. Daí a
adolescentes. Acidentes de trânsito, afogamentos, incên- necessidade de maior ênfase na via aérea e ventilação
dios, homicídios e quedas são as causas mais frequentes. no trauma pediátrico, em comparação com o adulto.
O trauma fechado é a regra em crianças, Finalmente, equipamentos de tamanho apro-
mas o trauma penetrante pode estar relacionado priado e de disponibilidade imediata são fundamen-
a regiões de alta criminalidade e violência, como tais para o sucesso do atendimento inicial. A Escala
de Broselow para Reanimação pediátrica deter-
em grandes centros urbanos.
mina rapidamente o peso baseado na altura da crian-
Crianças com trauma multissistêmico podem de- ça, facilitando o cálculo das doses adequadas de medi-
teriorar rapidamente e o médico socorrista deve ter a camentos e a escolha dos equipamentos de tamanho
noção de que se o hospital que realiza o atendimento apropriado. Além disso, essa escala também tem uma
não tem condições/preparação para o paciente pediá- lista dos números dos tubos endotraqueais adequados
trico, a transferência é premissa. para a idade da criança.
347
29 Trauma pediátrico

Segue uma tabela (não se trata da escala de Broselow, mas também é muito útil):

Equipamento de uso pediátrico


Idade, Equipamentos
Via aérea / Ventilação Circulação
peso (kg) complementares
Máscara O2 Cânula Máscara Lâminas de Cânula Mandril Aspirador Manguito Cateter SNG Dreno Sonda Colar
oral e balão laringoscópio I.E.T venoso tórax vesical cervical
Pré-termo Pré-termo Lactente Lactente 0 2,5-3 6 Fr 6-8 Fr Pré-termo 22 G 12 10-14 5 Fr -
3 kg /RN Reta Sem cuff /RN Fr Fr
0-6 meses RN Lactente Lactente 1 3-3,5 6 Fr 8 Fr RN 22 G 12 12-18 5-8 Fr -
3,5 kg Pequeno Reta Sem cuff Lactente Fr Fr
6-12 meses Pediát. Pequeno Pediát. 1 3,5-4 6 Fr 8-10 r Lactente 22 G 12 14-20 8 Fr Pequeno
7 kg Reta Sem cuff Criança Fr Fr
1-3 anos Pediát. Pequeno Pediát. 1 4-4,5 6 Fr 10 Fr Criança 20-22 12 14-24 10 Fr Pequeno
10-12 kg Reta Sem cuff G Fr Fr
4-7 anos Pediát. Médio Pediát. 2 5-5,5 14 Fr 14 Fr Criança 20 G 12 20-32 10-12 Pequeno
16-18 kg Reta ou Sem cuff Fr Fr Fr
Curva
8-10 anos Adulto Médio Pediát. 2-3 5,5-6,5 14 Fr 14 Fr Criança 18-20 12 28-38 12 Fr Médio
24-30 kg Grande Adulto Reta ou Com cuff Adulto G Fr Fr
Curva

Tabela 29.1 Equipamentos de uso pediátrico segundo a idade.

na qual é feita discreta elevação do mento), em am-


Atendimento no Pronto- biente intra-hospitalar e mesmo para transporte de
resgate, além de coxim para realizar nivelamento do
-Socorro dorso e da cabeça.
Os protocolos do PALS (ACLS pediátrico) e do
ATLS devem ser seguidos de modo que as lesões ame- Se você hiperestender a cabeça de uma criança (como faz
açadoras à vida sejam diagnosticadas ainda no exame no adulto) para intubá-la, não vai conseguir! A laringe é
primário da mesma maneira que no adulto. angulada!

A causa mais comum de parada cardíaca em


criança é a incapacidade de se estabelecer e/ou manter Todo paciente vítima de trauma, sobretudo no
a via aérea pérvia com consequente falta de oxigena- acidente de trânsito e no trauma fechado acima da cla-
ção e ventilação. Portanto, a via aérea da criança deve vícula, deve receber proteção da coluna cervical com
ser a prioridade inicial. colares adequados ao tamanho do doente. Atenção
Segue o ABCDE que é feito no exame primário: deve ser dispensada para manter a posição neutra, en-
quanto se providencia a proteção adequada para a co-
A. Via Aérea e controle da coluna cervical.
luna cervical, principalmente na criança obnubilada.
B. Boa ventilação e oxigenação.
A manobra de Jaw-Thrust (elevação do men-
C. Circulação e controle de hemorragias. to com tração da mandíbula), realizada na suspeita de
D. Diagnóstico neurológico sumário (Glasgow) e trauma cervical sem mobilização da coluna, pode ser
pupilas. também realizada enquanto se espera a chegada do
colar cervical. Entretanto, deve ser feita por pessoal
E. Exposição do paciente com proteção contra
treinado e com conhecimento da técnica.
hipotermia.
Em caso de corpo estranho, este deve ser aspi-
Lembrete: a decisão de transferência do pa-
rado e removido da orofaringe com aspirador rígido.
ciente deve ser tomada ainda no exame primário!

A- Via aérea e controle da B- Boa ventilação e


coluna cervical oxigenação
Assegurar via aérea patente com oxigenação teci- Todos os pacientes vítimas de trauma devem re-
dual adequada é fundamental. A criança deve ser man- ceber O2 suplementar. O oxímetro de pulso com co-
tida com a cabeça em posição neutra (sniffing position, nector apropriado deve ser conectado à criança.

SJT Residência Médica – 2016


348
Cirurgia geral e politrauma

No doente inconsciente, dispositivos auxiliares à Deve-se utilizar uma sonda sem balão (crianças <
permeabilidade da via aérea podem ser empregados, não 9 anos) e de tamanho apropriado para evitar o edema
esquecendo suas peculiaridades, principalmente quanto subglótico, lesão da mucosa e a ruptura da frágil via
à colocação de cânulas orofaríngeas (ver via aérea). aérea da criança ou do bebê.
O importante a ser lembrado é que, antes de Uma técnica simples para escolha do tamanho
qualquer tentativa de obtenção de via aérea, o pacien- da sonda de intubação é compará-la com o diâmetro
te deve ser oxigenado. Deve ser ofertado O2, 10-12 da narina ou do dedo mínimo da criança ou usando a
litros/min. (FiO2=100%), seja em máscara ou em dis- equação abaixo. Na criança inconsciente, a intubação
positivo balão-válvula-máscara (AMBU) com reserva- orotraqueal ocorre, na maioria das vezes, sem maiores
tório de O2. problemas. O grande problema é na criança consciente
A frequência respiratória da criança diminui com e agitada que não permite a intubação, mas que neces-
a idade. Lactentes necessitam de 40 a 60 movimentos sita de via aérea definitiva. Nessa situação, a intubação
respiratórios por minuto, enquanto crianças mais ve- de sequência rápida pode ser realizada com oxigenação
lhas respiram 20 vezes por minuto. Os volumes corren- prévia e aplicação de atropina para evitar bradicardia e
tes variam de 6 a 8 mL/kg para lactentes e crianças (vo- possível progressão irreversível para assistolia (sabe-
lumes maiores de até 10 mL/kg mais raramente podem -se que o principal determinante do débito cardí-
ser empregados, já que volumes maiores favorecem o aco na criança é a frequência cardíaca).
barotrauma e pneumotórax/pneumomediastino).
Diâmetro interno (mm) = 16 + idade (anos) / 4
A causa mais comum de parada cardíaca em
criança é a hipoventilação (problemas pulmonares ou
na VA). E o pior: as crianças não evoluem para fibri- A pressão na cartilagem cricóide evita a aspira-
lação ventricular como ocorre no adulto (no adulto é ção de conteúdo gástrico.
mais fácil, pois se procede à desfibrilação); a criança
A criança deve, então, ser sedada para, após, ser
evolui direto para a assistolia e daí o choque não tem
curarizada (paralisia muscular). O fator mais impor-
efeito, pois primeiro temos de fibrilar o coração com
tante na escolha do tipo de sedação é a volemia.
drogas e depois desfibrilar com o choque.
O paciente normotenso pode ser sedado com tiopen-
Antes que ocorra a parada cardíaca, entretanto, a tal. Entretanto, se hipotenso, deve ser sedado com mi-
hipoventilação provoca acidose respiratória (distúrbio dazolam, uma vez que o tiopental piora ainda mais a
acidobásico mais frequente durante a reanimação da hipotensão e a instabilidade hemodinâmica.
criança traumatizada).
De maneira ideal, devem-se usar agentes paralisan-
Se a ventilação e perfusão não forem adequadas, tes de ação curta como, por exemplo, a succinilcolina.
a tentativa de corrigir a acidose com bicarbonato de
O antídoto específico para os diazepínicos (mi-
sódio pode levar ao agravamento da hipercapnia, pio-
dazolam, etc.) é o flumazenil, que deve estar pron-
rando a acidose. Por isso que, inicialmente, a conduta
tamente disponível. A succinilcolina tem um início de
deve ser o aumento discreto da frequência respirató-
ação rápida, curta duração e, provavelmente, é a droga
ria, com cautela em pacientes vítimas de TCE grave
mais segura. Depois que o tubo endotraqueal é inseri-
(retenção de CO2 no cérebro causa vasodilatação e
do, a sua posição deve ser avaliada. Se não for possível
pode piorar lesões intracerebrais que porventura exis-
posicionar o tubo endotraqueal depois que a criança
tam; por outro lado, se a criança for hiperventilada,
foi paralisada, ela deve ser ventilada com dispositivo
pode haver isquemia cerebral).
balão-válvula-máscara até que a via aérea seja protegi-
da de forma definitiva.
A sonda endotraqueal deve ser posicionada 2
1- Intubação orotraqueal a 3 cm abaixo das cordas vocais e mantida no lugar
Indicações de via aérea definitiva (mesmas cuidadosamente. Em seguida, deve-se proceder à aus-
do adulto): culta de ambos os hemitórax, na região axilar, para
confirmar que não houve intubação seletiva do brô-
a) Proteção de via aérea; nquio fonte direito e que ambos os hemitórax estão
b) Via aérea comprometida (queimadura de vias ventilando adequadamente. Uma radiografia de tórax
aéreas, fraturas de face etc.); deve ser feita para identificar precisamente a posição
c) Glasgow ≤ 8; do tubo endotraqueal. Qualquer movimento da cabe-
ça da criança pode deslocar a sonda endotraqueal. A
d) Queda da saturação e piora clínica em ventila- ausculta pulmonar deve ser realizada periodicamen-
ção com máscara. te para garantir que o tubo esteja situado na posição
A intubação orotraqueal é o meio mais seguro de se apropriada e para identificar o desenvolvimento de
estabelecer a permeabilidade da via aérea e de ventilar. uma disfunção ventilatória.

SJT Residência Médica – 2016


349
29 Trauma pediátrico

A intubação nasotraqueal não deve ser reali- da cavidade torácica através do 5° espaço intercostal,
zada na criança com idade inferior a 12 anos. Esta anteriormente à linha axilar média. Em recém-nascidos
técnica requer a introdução da sonda às cegas, através do prematuros e de muito baixo peso (exemplo: 700 g),
ângulo agudo da nasofaringe e em direção à glote, que nos quais o menor dos drenos torácicos não cabe no
se encontra posicionada anterior e superiormente. Isto espaço intercostal, a drenagem torácica pode ser feita
torna a intubação por esta via extremamente difícil. utilizando-se cateter central (intracath), simulando um
dreno de tórax que será conectado a equipo de soro e
então às conexões normais dos drenos de tórax.
2- Intubação de sequência rápida
(ISR) para o doente pediátrico
Pré-oxigenar C- Circulação e controle de
Sulfato de atropina 0,1 - 0,5 mg hemorragias
Sedação
Enquanto se realiza o diagnóstico de choque, deve-
-se conectar o monitor cardíaco com eletrodos infantis.
Paciente Hipovolêmico Paciente Normovolêmico
Midazolam HCl 0,1 mg/kg Tiopental sódico Um dos grandes problemas na criança é que fren-
(máximo de 5 mg) 4 - 5 mg/kg te a grandes hemorragias, existe grande capacidade de
(*Alternativa: Etomidato (*Alternativa. Etomidato 0,3 mg/kg compensação do estado hemodinâmico (grande reser-
0,3 mg/kg) ou Midazolam 0,1 mg/kg )
va fisiológica), antes que possa ocorrer sinais clínicos
Pressão na Cricoide de choque. Isso é perigoso porque os sinais vitais es-
Paralisia
tão próximos do normal (mesmo no choque grave) e
Cloreto de succinilcolina (Quelecin) quando a clínica de choque aparece, a deterioração do
< 10 kg: 2 mg/kg
> 10 kg: 1 mg/kg paciente é súbita e a morte é iminente se medidas de
reanimação não forem empregadas rapidamente.
Intubar, checar posição do tubo;
Liberar pressão na cricoide

Pressão sistólica normal da criança: 70 - 80 mmHg + 2(i*)


Figura 29.1 Organograma para ISR no doente
Pressão diastólica = 2/3 da pressão sistólica
pediátrico. (*Proceder de acordo com julgamento clíni-
co e nível de treinamento/experiência) Tabela 29.2 Estimativas da pressão em crianças. (*i =
idade em anos).

3- Cricotireoidostomia
a) por punção: pode ser feita em todas as Sinais mais precoces de
crianças, incluindo bebês. Tem caráter temporário, hipovolemia na criança
no máximo de 30-45 min. Posteriormente precisa ser
convertida para traqueotomia por retenção de CO2 1) Taquicardia (é o primeiro sinal que aparece,
(hipercapnia progressiva). mas pode ser confundido com dor ou medo);
b) cirúrgica: contraindicada em < 12 anos, já
Quando avaliarmos taquicardia é importante lembrar
que a cricóide representa o esqueleto de sustentação
a FC normal no paciente com idade ≤ 6 meses (160-
da laringe.
180 bpm), no lactente (160 bpm), no pré-escolar (120
Nos doentes < 12 anos, a traqueostomia é bpm) e no adolescente (100 bpm).
preferível.
2) Má perfusão (enchimento capilar > 3 s);
Obs.: Não esquecer da possibilidade de cri-
co em menores de 12 anos, desde que o cirurgião 3) Diminuição > 20 mmHg da pressão de pulso
seja experiente, segundo o novo ATLS. (Psistólica-Pdiastólica);
4) Extremidades frias;

4- Drenagem torácica 5) Diminuição do nível de consciência com res-


posta lenta a estímulos dolorosos;
Lesões que resultam no acúmulo de fluidos ou ar
entre as pleuras, por exemplo, o hemotórax ou o pneu- 6) Diminuição do débito urinário (achado mais
motórax, ocorrem tanto nas crianças como nos adultos tardio).
e têm as mesmas consequências fisiológicas. Essas le- Tais indicadores sutis de hipovolemia ocorrem
sões são tratadas com a descompressão pleural. Os dre- quando existe redução de 25-30% do volume de san-
nos de tórax são de menor diâmetro e colocados dentro gue circulante.

SJT Residência Médica – 2016


350
Cirurgia geral e politrauma

A avaliação precoce por um cirurgião deve ser realizada em todos os tipos de choque.
Quando não se sabe os valores normais da pressão arterial em crianças, a seguinte fórmula é útil
e prática:

PAS normal = 70 - 80 mmHg + 2x a idade (em anos). PAD é 2/3 do valor PAS

A pressão arterial sistólica da criança deve ser igual a 70 - 80 mmHg mais o dobro da idade em anos, enquan-
to a diastólica deve ser igual a 2/3 da pressão sistólica, como já foi mencionado.
Quando hipotensão aparece é porque já está presente choque grave (tipo IV) não compensado
com perda grave maior do que 45% do volume sanguíneo circulante.
E o que é pior: quando a hipotensão aparece, a taquicardia é substituída frequentemente por
bradicardia, que pode ser rapidamente fatal, sobretudo em lactentes (a frequência cardíaca é o principal deter-
minante do débito cardíaco em crianças).

Reposição volêmica
O objetivo no C do ABCD é o controle da hemorragia. Enquanto isso não ocorre (com cirurgia, fixação de fra-
turas etc.), é necessário que se faça a reposição volêmica rápida do volume circulante que foi perdido, usando-se,
preferencialmente, soluções cristalóides (Ringer ou soro fisiológico). O Ringer é preferível, haja vista que na uti-
lização isolada do soro fisiológico teríamos complicações (acidose hiperclorêmica). Entretanto, o Ringer pode
ser usado em intercâmbio com o soro fisiológico, sendo previamente aquecido e administrado em até
3 bolus de 20 mL/kg de peso da criança inicialmente, na mesma regra do adulto na proporção de 3:1.
O volume sanguíneo da criança pode ser estimado em 80 mL/kg.
Se as anormalidades hemodinâmicas não melhoram após o primeiro bolus de 20 mL/kg de cristalóide, aumen-
ta a suspeita de que existe hemorragia contínua e novos bolus de 20 mL/kg, por mais uma ou duas vezes, deverão ser
administrados. A avaliação de um cirurgião deve ser solicitada o mais breve possível. Quando se inicia o terceiro
bolus de cristalóides, ou se as condições da criança pioram, deve-se considerar a necessidade de trans-
fusão imediata de 10 mL/kg de concentrado de hemácias tipo específico ou tipo O negativo, aquecido.

Sistema Perda volêmica Perda volêmica Perda volêmica


< 30% 30-45% > 45%
Cardíaco Pulso fraco, filiforme, taquicardia Taquicardia Hipotensão taquicardia ou
bradicardia
SNC Letárgico, irritável confuso Mudança no nível de consciência, Comatoso
fraca resposta à dor*
Pele Fria, úmida Cianose, enchimento capilar Pálida,
retardado, extremidades frias muito fria
Rins Redução mínima do débito urinário, Diminuição acentuada do débito Ausência de débito
aumento da densidade urinária urinário urinário
Tabela 29.3 Resposta lenta ao estímulo doloroso da criança com 30-45% de perda sanguínea é observada fre-
quentemente durante a inserção de um cateter endovenoso.

Faixa Peso Frequência cardíaca Pressão arterial Frequência respiratória Débito urinário
etária (kg) (bat./min.) (mmHg) (resp/min.) (mL/kg/h)
Nascimento
3-6 180-160 60-80 60 2
até 6 meses
Lactente 12 160 80 40 1,5
Pré-escolar 16 120 90 30 1
Adolescente 35 100 100 20 0,5
Tabela 29.4 Parâmetros de sinais vitais em crianças segundo faixa etária.

SJT Residência Médica – 2016


351
29 Trauma pediátrico

A resposta à reanimação com soluções salinas e apropriado, pois não é isenta de complicações (celuli-
a tendência à normalização da perfusão orgânica de- tes, síndrome compartimental, fratura iatrogênica e,
vem ser monitoradas cuidadosamente em toda crian- raramente, osteomielites).
ça traumatizada. O acesso central deve ser evitado na urgência,
O retorno à estabilidade hemodinâmica é mas em situações especiais, e como uma última es-
indicado por: colha e conduta de exceção, pode ser introduzido por
1. Diminuição da frequência cardíaca (FC < 130 profissional bem treinado e conhecedor das possíveis
bat./min. com melhora de outros sinais fisiológicos); complicações que porventura venham a ocorrer. Dé-
bito urinário – melhor indicador de perfusão te-
2. Retorno dos pulsos periféricos (precisão sistó-
cidual na urgência.
lica de 80 mmHg para ter pulso radial palpável);
Para medir corretamente o débito urinário da
3. Aumento na pressão de pulso (> 20 mmHg);
criança, deve-se inserir uma sonda vesical de calibre
4. Retorno da cor normal da pele e reaquecimen- adequado a uretra pediátrica. Em crianças < 15 kg,
to das extremidades; deve ser evitado o uso de sonda vesical com balonete
5. Melhora do nível de consciência (melhora do insuflável (o ideal é usar sondas vesicais sem balão).
Glasgow); O débito urinário e a densidade da urina
6. Aumento da pressão arterial sistólica (> 80 representam os melhores métodos para deter-
mmHg); minar se a reposição de volume foi suficiente.
7. Débito urinário deve ser mantida na criança Dessa maneira, à medida que o déficit do volume
com idade ≤ 1 ano (2 mL.kg-1h-1), no escolar (1,5 mL.kg- intravascular tenha sido reposto, o débito uriná-
h ), na criança maior e no adolescente (1 mL.kg-1h-1)
-1 -1 rio volta ao normal.
e no adulto normal (0,5 mL.kg-1h-1). O débito urinário varia com a idade, assim como
o volume sanguíneo.
O débito urinário para recém-nascidos ou
lactentes de até um ano de idade é de 2 mL/kg/
Acesso venoso hora. A criança que está começando a andar tem
Logo que o acesso venoso é obtido devem um débito urinário de 1,5 mL/kg/hora, e a mais
ser coletados exames laboratoriais (hemogra- velha, de 1 mL/kg/hora até a adolescência.
ma, amilase, glicemia, eletrólitos, tempo de pro- Somente depois que a criança para de crescer é
trombina, tempo de protrombina parcial ativa- que ela passa a ter o débito urinário igual ao de adulto,
da). A gasometria arterial deve ser colhidas em ou seja, de 0,5 mL/kg/hora.
vítimas de traumas graves. Diagnóstico neurológico sumário (Glasgow)
Preferencial: punção periférica percutânea (v.
Muitas vezes, fica difícil realizar a escala de coma
cefálica ou v. basílica).
de Glasgow em crianças pequenas. Assim sendo, tra-
A veia femoral comum deve ser evitada, na me- tando-se de crianças < 4 anos, podemos utilizar a res-
dida do possível, em lactentes e crianças, exceto em posta verbal pediátrica modificada.
situações de extrema urgência, por causa da alta in-
cidência de trombose venosa e do risco de perda do
membro por isquemia ou de distúrbios no desenvolvi- Glasgow adulto Glasgow criança < 4 anos
mento do mesmo. Abertura ocular Abertura ocular
No insucesso da via periférica, o acesso periféri- Espontânea 4 Espontânea 4
co cirúrgico (flebotomia na veia safena, cefálica e mes- Estímulo verbal 3 Estímulo verbal 3
mo axilar/braquial em recém-nascidos) é a escolha. Estímulo doloroso 2 Estímulo doloroso 2

O acesso intraósseo pode ser obtido na ur- Sem resposta 1 Sem resposta 1
gência em crianças < 6 anos, quando não se con- Melhor resposta motora Melhor resposta motora
segue acesso periférico depois de duas tentati- Obedece a comandos 6 Obedece a comandos 6
vas. Esse acesso é feito através de punção da medula Localiza a dor 5 Localiza a dor 5
de um osso longo (1/3 proximal da tíbia abaixo da Flexão normal(retirada) 4 Flexão normal (retirada) 4
tuberosidade tibial) em um membro não traumatiza- Flexão anormal 3 Flexão anormal 3
do, sendo procedimento de emergência, que é seguro, (decorticação) (decorticação)
eficiente e requer menos tempo do que a dissecção ve- Extensão (descerebração) 2 Extensão 2
nosa. Apesar disso, a infusão infraóssea deve ser inter- (descerebração)
rompida assim que for estabelecido um acesso venoso Sem resposta 1 Sem resposta 1

SJT Residência Médica – 2016


352
Cirurgia geral e politrauma

Glasgow adulto Glasgow criança < 4 anos exames considerados adjuntos ao exame primá-
(Cont.) rio. Não se deve retardar transferência para fazer
Resposta verbal Escala verbal pediátrica LPD, TC, exames contrastados ou aortografia.

Orientado 5 Palavras apropriadas, 5


sorriso social, segue
objetos
Confuso 4 Chora, mas é consolável 4
Lesões mais especí昀椀cas em
Palavras inapropriadas 3 Persistente, irritável 3
Sons incompreensíveis 2 Inquieto, agitado 2
crianças
Tratamento não operatório (tratamento
Sem resposta 1 Nenhuma 1
conservador)
Tabela 29.5 Comparação entre as escalas de Glasgow A presença de sangue intraperitoneal à TC, à LPD
adulta e pediátrica. ou ao ultrassom em crianças não obriga necessaria-
mente a realização de laparotomia.
O tratamento conservador pode ser realizado
em centros de trauma, desde que o serviço disponha
E- Exposição do paciente com necessariamente de requisitos para conduta não
operatória:
proteção contra hipotermia
1) Tomografia computadorizada prontamente
A criança tem uma grande relação entre superfí- disponível;
cie/massa corpórea. Assim, a pele fina e o pouco tecido
celular subcutâneo permitem maior perda de calor por 2) Banco de sangue;
evaporação e consumo calórico. Se por um lado é mais 3) Centro cirúrgico;
fácil a troca de calor com o meio ambiente no paciente
pediátrico, por outro, isso afeta diretamente o auto- 4) Equipe de cirurgia do trauma habituada ao
controle da temperatura central. procedimento;
A hipotermia pode tornar a criança traumati- 5) Unidade de terapia intensiva (UTI).
zada refratária ao tratamento, prolongar o tempo de Isso pode ser feito porque o sangramento de
coagulação e comprometer a função do sistema ner- trauma de baço, fígado e rim costuma ser autolimi-
voso central. tado. Portanto, uma LPD positiva que mostre a
Assim, durante a exposição, deve-se proteger presença de sangue, por si só, não obriga à reali-
contra a hipotermia com aquecedores elétricos, ar zação de laparotomia, desde que as condições he-
condicionado ou cobertores térmicos e evitar perdas modinâmicas da criança se normalizem pronta-
de calor, bem como aquecer a sala de admissão e os mente através da reanimação com cristaloides.
líquidos para serem infundidos (cristaloides, hemode- Já a presença de leucócitos, fezes, fibras ve-
rivados e os gases inalados).
getais e/ou bile, no líquido da lavagem, obriga a
realização de laparotomia.
Quando as condições hemodinâmicas da
criança não podem ser corrigidas e desde que o
Exame secundário procedimento diagnóstico realizado se mostre
positivo, com a presença de sangue, está indi-
Após a fase dedos e sondas em todos os orifícios cada a laparotomia imediata para controle da
e somente depois da resolução de lesões ameaçadoras à hemorragia.
vida tratadas no exame primário, o exame secundário A indicação de intervenção cirúrgica na
começa com exame clínico mais minucioso e particula- criança que continue apresentando instabilida-
rizado dos sistemas e pode ser facilitado indo da cabe- de hemodinâmica é a necessidade de administra-
ça aos pés. É nessa fase que é feito exame neurológico ção de sangue que exceda metade do volume sanguí-
completo com exame de fundo de olho e otoscopia. neo, ou seja, 40 mL/kg durante as primeiras 24 horas
Os exames considerados como adjuntos ao depois do trauma. Na maioria das crianças cujas cirur-
exame secundário são tomografia computadori- gias estão indicada por lesão de órgãos sólidos, essa
zada, aortografia, exames contrastados gastroin- necessidade é precoce, dentro de 18 a 24 horas. A ava-
testinais e/ou urológicos. O ultrassom no trauma liação frequente do cirurgião é necessária para avaliar
(FAST) e a lavagem peritoneal diagnóstica são a condição hemodinâmica da criança traumatizada.

SJT Residência Médica – 2016


353
29 Trauma pediátrico

O tratamento não operatório, bem como a decisão vadas (cisto / vesicostomia) já lesões da uretra poste-
de operar um doente com trauma abdominal e com uma rior são tratadas com derivação urinária (cistostomia)
lesão visceral parenquimatosa confirmada, é uma op- e reconstrução em um segundo tempo, após desapare-
ção cirúrgica e como tal deve ser tomada por cirurgiões. cimento do hematoma.
Portanto, a participação do cirurgião na conduta inicial
do doente pediátrico é absolutamente necessária.

Fraturas da coluna (Fratura de


Chance)
Hematoma de duodeno e trauma
Todo doente vítima do afastamento da coluna
de pâncreas lombar (fratura de Chance) deve ser considerado
Crianças ciclistas podem sofrer trauma pelo como potencial portador de lesão do trato gastroin-
guidão de bicicleta no abdome superior (musculatura testinal, até prova em contrário. Isso é especialmente
abdominal pouco desenvolvida), ocorrendo o hema- importante porque crianças com esse tipo de lesão
toma de duodeno. O tratamento inicial é conserva- costumam ser tratadas através da aplicação imedia-
dor (não operatório) com aspiração nasogástrica e ta de dispositivo ortopédico, que pode dificultar o
nutrição parenteral. As lesões pancreáticas resultan- exame físico e retardar o tempo de diagnóstico da
tes de trauma fechado ocorrem em consequência de peritonite emergente. Além disso, se o trauma for
mecanismos semelhantes. ao nível de L1, trauma de rim e de ureter devem ser
também pesquisados.

Perfurações do intestino delgado


Ocorrem mais frequentemente em crianças do Órgãos parenquimatosos
que em adultos, sobretudo junto ao ângulo de Treitz, O baço, o fígado e os rins das crianças podem se
bem como avulsões do mesentério por mecanismo de romper caso tenha havido trauma fechado. É raro que
aceleração-desaceleração. Infelizmente são lesões de tais lesões necessitem de tratamento cirúrgico.
diagnóstico tardio, pois os sintomas iniciais são vagos É também incomum que crianças portadoras de lesões
e podem passar despercebidos. desses órgãos necessitem de transfusão sanguínea. Mais
rara ainda é a ocorrência de hemorragia tardia por
As crianças que utilizam cinto abdominal
ruptura esplênica.
mal colocado têm maior risco de ruptura de in-
testino delgado, especialmente quando apre- O que ocorre habitualmente é uma criança que
sentam fratura com ruptura em flexão da coluna chega ao pronto-socorro em condições hemodinâmicas
lombar (fratura de Chance). anormais, que após receber solução de cristaloides fica
hemodinamicamente estável.
Se a criança for candidata a tratamento conser-
vador (em centros que preenchem os 5 requisitos para
Rotura da bexiga / uretra a conduta não operatória), pode então ser submetida a
Também é mais frequente em pacientes pediátri- uma TC que diagnostica a lesão do fígado, baço ou rim.
cos em virtude da pequena profundidade da pelve em Nessas condições, ela deve ser admitida e monitorizada
comparação com o adulto. Os ferimentos penetrantes continuamente em UTI.
de períneo ou aqueles que resultam de queda a cavalei-
ro ocorrem quando a criança cai sobre uma cerca e cor-
relacionam-se com lesões associadas intraperitoneais,
por causa da proximidade do peritônio com o períneo.
Trauma musculoesquelético
Confirmada a ruptura de víscera oca, esta deve Se no exame primário o objetivo é salvar a vida,
ser tratada cirurgicamente, sem demora. no exame secundário as preocupações agora se voltam
Já o tratamento da rotura de bexiga extra- para salvar o membro. E as prioridades são seme-
peritoneal é não operatório. O doente permanece lhantes as do adulto, acrescentando-se a preocupação
com a bexiga drenada (svd ou cistostomia) e a recons- com traumas junto às epífises de crescimento e possí-
trução seria feita na falha de tratamento conserva- veis deformações a longo prazo.
dor. Quanto as lesões uretras, seguem os princípios O crescimento ósseo é realizado pelos núcleos de
da lesão uretral no adulto: sangue no meato uretral, crescimento localizados próximos à superfície articu-
equimose perineal, fratura pélvica, impossibilidade de lar. Lesões destas áreas ou em sua proximidade, an-
sondagem indicam uretrocistografia. Lesões de uretra tes da consolidação da linha de crescimento, podem
anterior poderiam ser tratadas na fase aguda ou deri- retardar o crescimento ou alterar o desenvolvimento

SJT Residência Médica – 2016


354
Cirurgia geral e politrauma

normal. As lesões por esmagamento na epífise de cres-


cimento, cujo diagnóstico radiográfico é difícil, têm o Trauma raquimedular
pior prognóstico.
em crianças
A imaturidade e a flexibilidade dos ossos das
crianças podem levar à chamada fratura em galho É tratado da mesma maneira que no adulto. A le-
verde. Essas fraturas são incompletas e a angulação é são da medula espinhal na criança ocorre em 5% dos
mantida pela camada cortical da superfície côncava. A doentes pediátricos, sendo os acidentes de trânsito
fratura por impactação, observada em crianças me-
e as atividades esportivas (em crianças maiores) os
nores, implica angulação em decorrência da impacta-
principais responsáveis.
ção cortical e se apresenta como uma linha de fratura
radiotransparente. Fraturas supracondilianas, ao
nível do cotovelo ou do joelho, têm uma alta incidên-
cia de lesões vasculares, bem como de lesões dos nú- Diferenças anatômicas
cleos de crescimento.
1. Os ligamentos interespinhosos e as cápsulas
Na criança pequena, o diagnóstico radiológico de articulares são mais flexíveis;
fraturas e luxações é difícil por causa da falta de mi-
neralização ao redor da epífise e da presença dos nú- 2. Os corpos vertebrais têm forma de cunhas,
cleos de crescimento. Assim, antecedentes de trauma mais baixos em sua face anterior do que na posterior,
devem ser investigados. e tendem a deslizar para a frente com a flexão;

As evidências radiológicas de fraturas de ida- 3. As facetas articulares são planas;


des diferentes devem alertar o médico quanto à 4. A criança tem uma cabeça relativamente gran-
possibilidade de se tratar de criança espancada, ví- de quando comparada ao pescoço. Portanto, a força
tima de abuso. E caso você suspeite de abuso, solicite aplicada ao pescoço é relativamente maior do que
avaliação da assistente social e interne a criança se for comparada com o adulto.
necessário. É sempre bom lembrar que, enquanto você
faz isso, não dê a informação aos pais de que você está
suspeitando de maus tratos ou terá problemas com os
pais e familiares. Deixe isso para a assistente social. Radiologia
Devemos ser capazes de visualizar no raio X nor-
mal de coluna cervical (perfil):
Perda sanguínea 1) Raio X está adequado? Deve aparecer de C1
até base de T1;
A hemorragia associada à fratura da pelve e
dos ossos longos é proporcionalmente maior na 2) Linha anterior ao corpo vertebral;
criança do que no adulto. Mesmo uma criança pe- 3) Linha anterior ao canal medular;
quena pode perder uma a duas unidades de sangue den- 4) Linha posterior ao canal medular;
tro da massa muscular da coxa e a instabilidade hemo-
dinâmica pode ser o resultado de uma fratura de fêmur. 5) Espaço pré-vertebral (o espaço entre C3 e la-
ringe é < 5 mm);
6) Espaços intervertebrais;

Imobilização precoce 7) Sem luxações (perda de contato entre duas su-


perfícies articulares);
Depois de tratadas as lesões ameaçadoras à vida,
a imobilização pode começar como adjunto ao exame 8) Sem fraturas (solução de continuidade no osso).
primário. A fixação precoce de fraturas é o tratamen-
to mais efetivo para prevenir embolia gordurosa. Além
disso, a fixação precoce tem efeito analgésico, diminui
o sangramento e evita manipulações e lesões teciduais.
Pseudo subluxação
A colocação de talas (talafix etc.) no membro fra- Cerca de 40% das crianças abaixo de 7 anos mos-
turado costuma ser suficiente até que seja realizada a tram um deslocamento anterior de C2 sobre C3, en-
avaliação ortopédica definitiva. As lesões de extremi- quanto crianças acima de 16 anos apresentam este
dades com evidência de comprometimento vascular fenômeno com frequência de aproximadamente 20%.
exigem avaliação urgente para prevenir as sequelas Este achado radiológico é observado com menor
adversas da isquemia. Não devem ser feitas tentativas frequência entre C3 e C4, mas pode ocorrer. Quando
inúteis de reduzir fraturas expostas, pois o tratamen- estas articulações são estudadas com manobras de
to é realizado mediante cirurgia. flexão e extensão, pode ser visto um deslocamento

SJT Residência Médica – 2016


355
29 Trauma pediátrico

de mais de 3 mm. É claro que essas manobras não são Portanto, o exame radiológico normal não exclui
isentas de risco e devem ser solicitadas por ortopedis- a presença de lesão significativa da medula espinhal.
ta/ neurocirurgião. Assim, se o raio X for normal, e existirem dúvidas
Quando é vista uma subluxação na radiografia a respeito do exame físico ou de história de trauma
lateral de coluna cervical, deve-se ter certeza se é uma violento, a imobilização deve ser mantida e solicitada
pseudo subluxação ou uma lesão de coluna cervical. avaliação neurocirúrgica.
A pseudo subluxação das vértebras cervicais torna-se O tratamento de lesão da coluna de crianças
mais pronunciada pela flexão da coluna cervical, que é o mesmo oferecido aos adultos.
ocorre quando a criança deita em posição supina sobre Trauma fechado, chegada ao pronto-socor-
uma superfície dura. Para corrigir essa anormalidade ro em até 8 h do trauma: prescrever metilpredniso-
radiológica, deve-se colocar a cabeça da criança em po- lona 30 mg/kg/IV em bolus em 20 min. e 5,4 mg/kg
sição neutra, trazendo a cabeça para a frente, na po- nas demais 23 horas.
sição de cheirar, e repetir o raio X. A presença de uma
lesão de coluna pode ser identificada pelos achados do
exame neurológico ou através da palpação cuidadosa
da face posterior da coluna cervical, o que permite Conclusão
identificar uma área de edema facilmente depreciável
ou um degrau. Finalmente deve ser lembrado que a criança não
é um adulto em miniatura e tem várias peculiaridades
O aumento da distância entre o odontóide e o que devem ser observadas no atendimento de emer-
arco anterior de C-1 ocorre em cerca de 20% das crian- gência. A reanimação deve ser rápida e ao mesmo
ças mais jovens. Frequentemente são observadas dis- tempo efetiva, lembrando-se que, se o estado hemo-
tâncias maiores do que o limite superior da normali- dinâmico da criança subitamente piora, existe risco
dade para a população adulta. iminente de morte e o socorrista deve estar atento.
As linhas de crescimento ósseo podem ser O abuso infantil deve ser sempre suspeitado,
confundidas com fraturas. sobretudo na presença de fraturas múltiplas de dife-
As crianças podem apresentar lesão medular rentes idades. Nesse caso, a assistente social deve ser
sem anormalidades no raio X, com frequência maior acionada. Mais uma vez, se o hospital que recebe o
do que os adultos. Em mais de 2/3 das crianças que trauma não tem condições ou experiência em trauma
são portadoras de lesão medular, os exames ra- pediátrico, a criança deverá ser transferida. Essa deci-
diológicos são normais. são deverá ser feita ainda no exame primário.

Imtrotep – 2.700 a.C.


1º Tratado de Cirurgia

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

30
Trauma em gestantes

Introdução Alterações anatômicas e


A incidência de traumatismo na gestação vem 昀椀siológicas da gravidez
aumentando a cada ano, acompanhando o cresci-
mento da violência urbana. O trauma é a principal
causa não obstétrica de mortalidade materno
fetal. Cerca de 6 a 7% das gestações são complicadas Anatômicas
por traumas.
O útero permanece em situação intrapélvi-
Estima-se que mais de 100 mil pessoas morrem ca até a 12ª semana de gestação, quando então
anualmente no Brasil em consequência de traumas, começa a deixar a pelve e a invadir a cavidade pe-
com mais de 1,5 milhão de feridos. ritoneal. Em torno da 20ª semana o útero alcança a
Na avaliação e manejo do trauma na gestante é cicatriz umbilical. Entre a 34ª e a 36ª semana de gesta-
essencial o pleno conhecimento das modificações que ção atinge o rebordo costal. Nas duas últimas semanas
ocorrem no organismo materno em decorrência da de gestação, o fundo uterino frequentemente desce à
gestação. As prioridades no tratamento da ges- medida que a cabeça fetal se encaixa na pelve. À pro-
tante traumatizada são as mesmas de uma pa- porção que o útero aumenta, o intestino é empurrado
ciente não grávida, porém modificadas e adequa- em direção cefálica de modo que acaba deslocando-se
das às alterações anatômicas e fisiológicas que cada vez mais para a parte alta do abdome. Como re-
ocorrem durante a gravidez. sultado, o intestino acaba sendo parcialmente protegi-
O sucesso do atendimento depende de uma abor- do no trauma abdominal contuso, enquanto o útero e
dagem sistemática, realizada por uma equipe multi- seu conteúdo (feto e placenta) se tornam mais vulne-
disciplinar. ráveis. Entretanto, traumas penetrantes que acome-
357
30 Trauma em gestantes

tem o abdome superior nas fases tardias da gestação melhas é proporcionalmente menor, o que resulta em
podem resultar em lesões intestinais complexas em redução do hematócrito (anemia fisiológica da gravi-
decorrência deste deslocamento em direção cefálica. dez). No final da gestação, um valor de hematócrito
Durante o primeiro trimestre, as paredes do úte- entre 31 e 35% é normal. Durante uma hemorra-
ro são mais espessas, o seu tamanho é pequeno e ele se gia, gestantes que não apresentam problemas de
saúde podem perder 1.200 a 1.500 mL de seu vo-
encontra protegido pelos ossos da pelve.
lume sanguíneo, antes que ocorram sinais e sin-
Durante o segundo trimestre, o útero aumenta tomas de hipovolemia. Entretanto, esta perda san-
além de sua proteção pélvica, mas o pequeno feto per- guínea pode resultar em sofrimento fetal, evidenciado
manece móvel e protegido por grande quantidade de por uma frequência cardíaca fetal anormal.
líquido amniótico. Esse, por sua vez, pode ser fonte
de embolia por líquido amniótico e coagulação intra-
vascular disseminada após traumatismo, desde que
ganhe acesso ao espaço intravascular. Composição
Em torno do terceiro trimestre, o útero é gran- O número de glóbulos brancos aumenta na gra-
de e suas paredes finas. Quando o feto se apresenta videz. Não é incomum que se detectem leucocitoses
em posição occipital, sua cabeça costuma estar dentro de 15.000/mm3 na gravidez, e que esse número al-
da pelve, enquanto o restante de seu corpo é exposto cance 25.000/mm3 durante o trabalho de parto. Os
acima do anel pélvico. Fraturas pélvicas na gestação níveis séricos de fibrinogênio e de muitos outros fa-
avançada podem resultar em fraturas do crânio do tores de coagulação estão discretamente elevados. Os
feto assim como em outras lesões intracranianas gra- tempos de protrombina e de tromboplastina parcial
ves. Contrariamente ao que ocorre com o miométrio, ativada podem estar diminuídos, mas os tempos de
que é elástico, a placenta possui elasticidade reduzida. sangramento e coagulação não se alteram. A albu-
Esta falta de elasticidade dos tecidos placentá- mina sérica cai a níveis entre 2,2 e 2,8 g/100 mL na
rios facilita a atuação de forças de cisalhamento gravidez, provocando diminuição dos níveis de pro-
na interface uteroplacentária, que podem levar teínas séricas em aproximadamente 1 g/100 mL. A
ao descolamento da placenta. osmolaridade plasmática permanece em torno de
280 mOsm/1 na gravidez.

Excluindo-se a morte materna, o DPP é a principal


causa de óbito fetal após trauma.

Parâmetros hemodinâmicos
Embora se encontrem muito dilatados durante
a gestação, os vasos placentários são particularmente
sensíveis à estimulação por catecolaminas. Assim sen- Débito cardíaco
do, a redução abrupta do volume circulante pode resul- Depois da 10ª semana de gestação, o débito car-
tar em profundo aumento na resistência vascular uteri- díaco aumenta em 1 a 1,5 litro por minuto como de-
na, reduzindo a oxigenação fetal a despeito de os sinais corrência do aumento do volume plasmático e da re-
vitais da mãe se manterem razoavelmente normais. dução da resistência vascular do útero e da placenta,
Todas essas alterações tornam o útero e o seu estruturas que recebem cerca de 20% do débito cardí-
conteúdo mais suscetíveis ao traumatismo, incluindo aco da gestante no terceiro trimestre de gravidez. Este
perfuração, ruptura, descolamento de placenta e rup- aumento de débito cardíaco pode ser influenciado de
modo significativo pela posição materna na segunda
tura prematura da bolsa.
metade da gravidez. Em posição supina, a com-
pressão da veia cava pode reduzir o débito cardí-
aco em torno de 30% em decorrência da redução
do retorno venoso dos membros inferiores.
Volume e composição do
sangue
Frequência cardíaca
A frequência cardíaca aumenta gradualmente de
Volume 10 a 15 batimentos por minuto durante a gravidez, al-
O volume plasmático aumenta progressiva- cançando seus valores máximos no terceiro trimestre.
mente ao longo da gestação, alcançando seu pico Esta alteração deve ser considerada na interpretação
na 34ª semana. O aumento do volume de células ver- da taquicardia secundária à hipovolemia.

SJT Residência Médica – 2016


358
Cirurgia geral e politrauma

Pressão arterial Gastrointestinais


A gravidez resulta em uma queda de 5 a 15 O tempo de esvaziamento gástrico é prolongado
mmHg nas pressões sistólica e diastólica durante o na gravidez e o médico deve sempre partir da premis-
segundo trimestre. No termo, a pressão arterial retor- sa de que o estômago da grávida traumatizada esteja
na a níveis próximos do normal. Algumas mulheres, cheio. Desta maneira, a descompressão nasogástrica
quando em posição supina, podem exibir hipotensão precoce é particularmente importante para evitar a
(síndrome hipotensiva supina). Esta resposta é abo- aspiração de conteúdo gástrico para a árvore respira-
lida quando se coloca a gestante em decúbito lateral tória. Os intestinos são deslocados para a parte supe-
esquerdo. Tendo em vista as alterações fisiológicas na rior do abdome e podem estar protegidos pelo útero.
mulher grávida, vítima de um traumatismo, as alte- A posição do baço e do fígado na gestação não se altera
rações na pressão sanguínea, no pulso, nas taxas de significativamente.
hemoglobina e nos valores de hematócrito devem ser
interpretadas cuidadosamente.

Urinárias
Pressão venosa A filtração glomerular e o fluxo plasmático
renal aumentam na gravidez. Os níveis plasmáti-
A pressão venosa central (PVC) de repouso é va-
cos de ureia e creatinina caem à metade dos valores
riável na gravidez, mas a resposta à administração de
normais observados antes da gravidez. A glicosúria é
volume é semelhante àquela da doente não grávida. A
comum na gestação. A urografia excretora revela di-
hipertensão venosa dos membros inferiores é normal
latação fisiológica dos cálices renais, da pelve e dos
no terceiro trimestre.
ureteres, dilatação esta que pode persistir por várias
semanas após o término da gravidez. Tendo em vista
a dextro-rotação usual do útero, o sistema cole-
Alterações eletrocardiográ昀椀cas tor direito frequentemente está mais dilatado
do que o esquerdo.
O eixo pode estar desviado para a esquerda em
cerca de 15º. O achatamento ou a inversão da onda T
em D3, AVF e nas derivações precordiais podem ser
normais. As extrassístoles podem ocorrer com maior
frequência durante a gravidez.
Endócrinas
A hipófise aumenta 30 a 50% em tamanho e peso
durante a gravidez. O choque pode causar necrose da
hipófise anterior, levando à insuficiência hipofisária
(Síndrome de Sheehan).
Respiratórias
O volume minuto aumenta principalmente como
resultado do aumento do volume corrente. Admite-se
que esta alteração seja devida aos elevados níveis de Musculoesqueléticas
progesterona observados durante a gravidez. Por esta
A sínfise púbica é alargada no 7º mês (4 a 8 mm).
razão, a hipocapnia (pCO2 de 30 mmHg) é comum no
Os espaços das articulações sacroilíacas também au-
final da gravidez. Na gestação, níveis de PaCO2 de 35
mentam. Esses aspectos devem ser considerados na
a 40 mmHg podem refletir a iminência de uma insufi-
interpretação das radiografias da bacia.
ciência respiratória. Embora a capacidade vital força-
da tenha leves flutuações na gravidez, ela é mantida
constante pela alteração equivalente e oposta da ca-
pacidade inspiratória (que aumenta) e do volume re-
sidual (que diminui). A diminuição do volume residual Neurológicas
parece ser causada por alterações anatômicas na cavi- A eclâmpsia é uma complicação do final da gra-
dade torácica e está associada à elevação diafragmáti- videz que pode simular trauma craniano. Ela deve
ca e a alterações pulmonares, parenquimatosas e vas- ser considerada quando ocorrem convulsões acom-
culares, visíveis no raio X. O consumo de oxigênio panhadas por hipertensão, hiperreflexia, proteinúria
está geralmente aumentado durante a gravidez, e edema periférico. A interconsulta com um neurolo-
razão pela qual a manutenção de uma oxigenação gista e um obstetra costuma ser de grande ajuda para
arterial adequada é importante na reanimação o diagnóstico diferencial entre eclâmpsia e outras
da gestante traumatizada. causas de convulsões.

SJT Residência Médica – 2016


359
30 Trauma em gestantes

As gestantes com mais de 20 semanas de-


Atendimento pré- vem ser colocadas, tão logo seja possível, em
decúbito lateral esquerdo. Caso haja dificuldade,
hospitalar pode-se somente deslocar o útero para a esquerda com
a gestante em decúbito dorsal. A simples descompres-
Inicialmente, o tipo de evento traumático deve ser
são da veia cava melhora o retorno venoso, podendo
identificado – colisão de veículos, atropelamento, que-
ser um fator decisivo na estabilização das condições
das, lesão por arma branca ou lesão por projétil de arma
materna e fetal.
de fogo. Muitas vezes, o tratamento inicial da gestante
pode e deve ser feito no local de ocorrência do evento.
O objetivo inicial deve ser a estabilização da con-
dição materna, assegurando sua vitalidade enquanto a Transporte
vítima é transferida para o hospital. Se possível, deve
A gestante traumatizada deve ser transportada
ser realizado contato prévio com o setor de emergên-
o mais rapidamente possível para o hospital. Em ca-
cia para que uma equipe multidisciplinar possa estar
sos de politraumatismos ou suspeita de lesão de co-
presente para atender a gestante.
luna, a paciente deve ser transportada imobilizada,
preferencialmente em uma prancha longa inclinada
para a esquerda.
Avaliação das vias aéreas
As vias aéreas devem ser avaliadas para assegu-
rar sua permeabilidade. Nos casos de acidentes auto-
mobilísticos e quedas, deve-se sempre considerar a Atendimento hospitalar
possibilidade de lesão da coluna cervical. A manobra
de escolha para tratamento da queda de língua, nestes
casos, é a elevação modificada da mandíbula com esta-
bilização manual da cabeça e do pescoço. Avaliação primária
Devem ser tomadas medidas adequadas para evi-
tar broncoaspiração, visto que o tempo de esvaziamen-
to gástrico está significativamente aumentado – rota- Avaliação das vias aéreas
ção lateral do corpo em bloco e aspiração das vias aéreas € Resposta verbal da paciente. A simples res-
superiores (quando disponível material adequado). posta verbal a uma pergunta simples (Qual o
seu nome?, Onde você está?) fornece infor-
mação favorável sobre o nível de consciência
da gestante, respiração e permeabilidade das
Respiração e ventilação vias aéreas e capacidade de gerar volume ins-
Se possível, iniciar oxigênio suplementar sob más- piratório significativo;
cara durante o transporte da vítima para o hospital.
Lembrar que o consumo de O2 aumenta na gestação. € Abertura de vias aéreas, através da inclinação
da cabeça e elevação do queixo. Em pacientes
inconscientes com suspeita de lesão cervical,
pode-se proceder à elevação da mandíbula, sem
inclinação da cabeça. Todo paciente com trau-
Circulação mas múltiplos, traumatismo craniano ou trau-
A hemorragia é a principal causa de morte no matismo facial deve ser considerado como se
período pós-traumático imediato. A gestante está pre- apresentasse lesão da coluna cervical;
parada para perdas relativamente grandes de sangue,
sem que haja qualquer repercussão hemodinâmica. € Limpeza da orofaringe por intermédio de varre-
Entretanto, o feto pode estar privado de seu aporte dura digital (somente em vítimas inconscientes
de oxigênio mínimo e entrar em sofrimento antes de a e imóveis) ou, preferencialmente, através de ca-
mãe apresentar sinais ou sintomas de choque. teteres rígidos de sucção (Yankauer);

A reposição intravenosa rápida de líquido (Rin- € Utilizar cânula orofaríngea (cânula de Guedel),
ger lactato ou soro fisiológico) deve ser iniciada se se necessário, em vítimas inconscientes que não
houver qualquer suspeita de sangramento importante apresentam reação à sua introdução. Em pa-
(externo ou interno). Utilizar cateter de grosso calibre cientes conscientes, pode induzir vômitos e/ou
em até duas veias periféricas. laringoespasmo, sendo contraindicada nestes;

SJT Residência Médica – 2016


360
Cirurgia geral e politrauma

€ Intubação endotraqueal/nasotraqueal. É a me- toração fetal prolongado. Em casos mais graves,


dida mais utilizada para manter as vias aéreas com evidências de sangramento importante,
pérvias. Tem a vantagem de proteger contra a pode ser necessária a realização de cesariana.
broncoaspiração, mais frequente em gestantes.

Avaliação neurológica – dé昀椀cit


Ventilação neurológico
€ Pacientes politraumatizadas devem receber oxigê- Na avaliação inicial, o estado neurológico é veri-
nio suplementar, preferencialmente por máscara.
ficado através do nível de consciência (estímulo ver-
O cateter nasal não fornece oxigênio suficiente,
bal e doloroso) e estado das pupilas. O exame neu-
sendo indicado somente em pacientes com des-
rológico mais pormenorizado deve ser realizado na
conforto respiratório mínimo ou ausente;
avaliação secundária.
€ Ventilação artificial deve ser iniciada se neces-
sária;
€ As condições traumáticas que mais frequente-
mente comprometem a respiração são o pneu-
Exposição completa e avaliação
motórax hipertensivo, pneumotórax aberto, da vitalidade fetal
hemotórax, afundamento torácico com contu-
A paciente deve ser despida para um exame ge-
são pulmonar e a hérnia diafragmática.
ral completo, permitindo que lesões não passem des-
percebidas.
O feto deve ser avaliado de forma cuidadosa. O
Circulação e controle da consumo de oxigênio pelo feto tende a permanecer
hemorragia estável até que a oferta diminua em mais de 50%. Nes-
te período há redistribuição do fluxo sanguíneo fetal
€ O choque no trauma é geralmente hipovolêmi- para o cérebro, adrenais e coração. A resposta cardio-
co. O traumatismo cranioencefálico dificilmente vascular fetal à hipoperfusão placentária e/ou hipo-
é causa primária de alteração hemodinâmica. A xemia inclui taquicardia, bradicardia, desacelerações
avaliação inicial cuidadosa da gestante pode indi- tardias e alterações no padrão cardiotocográfico.
car sinais precoces de hemorragia. Identificar al- O melhor meio para avaliar a saúde fetal é a car-
terações na pressão arterial, enchimento capilar diotocografia basal. A ausculta fetal intermitente pode
periférico, frequência cardíaca e débito urinário.
identificar bradicardia e taquicardia fetal, entretanto,
€ A paciente deve ser colocada em decúbito lateral não permite a avaliação de alterações como a perda da
esquerdo, sempre que possível. variabilidade beat-to-beat e a presença de desacelera-
€ Se há suspeita ou evidência de hemorragia im- ções tardias, muito sugestivas de sofrimento fetal. A
portante, dois catéteres de largo calibre devem monitoração fetal não deve interferir nos esforços de
ser introduzidos em veia periférica. A reposição ressuscitação materna. O tempo de monitorização é
volêmica com soluções cristalóides ou sangue variável, deve ser iniciado o mais rápido possível e du-
deve ser agressiva na paciente com sangramento rar até 24 horas nos traumatismos mais graves.
intenso. Lembrar que há importante aumento do
fluxo sanguíneo na região genital e que qualquer
lesão arterial pode ser fatal em poucos minutos.
Avaliação secundária
€ A infusão rápida de 1 a 2 litros de Ringer lactato
pode restaurar a volemia até que soluções mais A avaliação secundária somente deve ser iniciada
definitivas sejam tomadas. Quando há necessi- após a conclusão da avaliação primária. Realiza-se o
dade de reposição sanguínea, deve-se dar prefe- exame detalhado de todos os segmentos do corpo: ins-
rência ao sangue com prova cruzada. peção, palpação, percussão e ausculta. O exame de cada
um dos segmentos representa um capítulo à parte.
€ Em pacientes com idade gestacional mais avan-
çada (terceiro trimestre e final do segundo tri-
mestre) sempre pensar na possibilidade de des-
colamento prematuro da placenta associado ao
trauma. O descolamento placentário causado Tratamento
por traumatismos abdominais leves não está as-
sociado, na maioria das vezes, a evidências clíni- No atendimento à gestante vítima de qualquer
cas imediatas de sofrimento fetal. Nestes casos, tipo de trauma em região abdominal (inclusive quedas
é necessário e aconselhável um período de moni- de mesmo nível), em situações de idade gestacional

SJT Residência Médica – 2016


361
30 Trauma em gestantes

acima de 20 semanas (útero acima da cicatriz umbi- O tratamento de cada lesão específica poderá ser
lical), é aconselhável deixá-la em obser vação por um cirúrgico ou não, seguindo os mesmos princípios do
período não inferior a 12 h, em razão do risco de de- tratamento de outros pacientes.
senvolver descolamento prematuro de placenta que,
Caso haja indicação de laparotomia, o feto tolera
em uma fase inicial, pode ser assintomático.
bem o procedimento desde que seja mantida uma boa
oxigenação e estabilidade hemodinâmica da mãe. Nem
Escala de lesão uterina em gestantes
sempre haverá indicação de cesariana e os traumatis-
Grau Lesão mos penetrantes do útero necessitarão muitas vezes
Contusão/hematoma (sem descolamento de de avaliação multidisciplinar, com neonatologista e ci-
I
placenta) rurgião pediátrico, para se decidir sobre a interrupção
Laceração superficial (≤ 1 cm) ou descolamento da gravidez.
II
de placenta parcial < 25%
A hemorragia maternofetal pode resultar em
Laceração profunda (> 1 cm) ocorrendo no se- anemia e morte do feto. No caso de mãe Rh negati-
gundo semestre ou descolamento de placenta > vo, pode ocorrer isoimunização com a passagem de
III
25% e < 50%
0,01 mL de sangue fetal com fator Rh positivo, sen-
Laceração profunda (> 1 cm) no terceiro trimestre
sibilizando cerca de 70% das gestantes com fator Rh
Laceração envolvendo a artéria uterina. Lace-
IV ração profunda (> 1 cm) com > 50% de descola- negativo. A terapia com imunoglobulina em mães Rh
mento de placenta negativo deve ser indicada nas primeiras 72 h após
Ruptura uterina no segundo ou terceiro trimestre o trauma.
V
Descolamento de placenta completo A indicação de cesariana post mortem é contro-
Tabela 30.1 versa e depende da avaliação de cada caso específico.

“As doenças que não são curadas por medicamentos são curadas pelo ferro; aquelas que não são curadas pelo
ferro, são curadas pelo fogo, as que não são curadas pelo fogo são incuráveis”.
Gregos.

SJT Residência Médica – 2016


referências
Abernathy C, Harken A. Segredos em cirurgia. Porto Feliciano DV, Ma琀琀ox KL, Moore EE, editors.Trauma. 6th
Alegre: Artes Médicas; 1993. ed. New York (NY): McGraw-Hill Medical; 2008.

American College of Surgeons. Commi琀琀ee on Trauma. Gama Rodrigues JJ, Machado MCC, Rasslan S. Clínica
ATLS: Advanced Trauma Life Support Program for Doctors. cirúrgica – FMUSP. São Paulo: Manole; 2008.
9th ed. Chicago: American College of Surgeons; 2014.
Goffi FS. Técnica cirúrgica: bases anatômicas,
Assef JC. Emergências cirúrgicas traumá琀椀cas e não fisiopatológicas e técnicas da cirurgia. 4ª ed. São Paulo:
traumá琀椀cas: condutas e algoritmos. São Paulo: Atheneu; Atheneu; 2006.
2012.
Goldman L, Schafer AI. Goldman’s Cecil Medicine. 24th
Carvalho M, Santana E. Técnica cirúrgica. Rio de Janeiro: ed.; 2012.
Guanabara Koogan; 2006.
Hirshberg A, Ma琀琀ox KN. A arte e a estratégia da cirurgia
do trauma. São Paulo: Elsevier; 2008.
Coelho J. Manual de clínica cirúrgica - cirurgia geral e
especialidades. v 1 e 2. São Paulo: Atheneu; 2009. Jorge Filho I. Cirurgia geral: pré e pós-operatório. 2ª ed.
São Paulo: Atheneu; 2011.
D’Ancona C, Palma P, Ne琀琀o Jr N. Urologia prá琀椀ca. São
Paulo: Roca; 2007. Junior RS, et al. Tratado de cirurgia do CBC. São Paulo:
Editora Atheneu; 2009.
FALCÃO LFR. Emergências fundamentos e prá琀椀cas. São
Paulo: Mar琀椀nari; 2010. Kawahara NT, Alster C, Fujimura I, et al. Standard
Examina琀椀on System for Laparoscopy in Penetra琀椀ng
Faloppa F, Albertoni W. Ortopedia e traumatologia. São Abdominal Trauma. Journal of Trauma-Injury Infec琀椀on &
Paulo: Manole; 2008. Cri琀椀cal Care; 67(3):589-95; 2009.

Fauci AS, et al. Harrison: Principles of Internal Medicine. Machado M, Cerqueira C, et. al. Clínica cirúrgica. Barueri:
18ª ed. New York: McGraw Hill; 2012. Manole; 2008.
364
Cirurgia Geral e politrauma

Mar琀椀ns HS, et al. Pronto-Socorro: condutas do Hospital Rohde L, et. al. Ro琀椀nas em cirurgia diges琀椀va. 2ª ed. Porto
das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade Alegre: Artmed; 2011.
de São Paulo. 2ª ed. Barueri: Manole; 2008.
Saraiva Mar琀椀ns H, et al. Emergências clínicas: abordagem
Mendelssonh P. Controle clínico do paciente cirúrgico.
prá琀椀ca. 6ª ed. Barueri: Manole; 2011.
Rio de Janeiro: Atheneu; 2008.

Monteiro E, Santana E. (org.). Técnica cirúrgica. Rio de Sche琀�no G, Cardoso LF, Ma琀琀ar J, Ganem F. Paciente
Janeiro: Guanabara; 2006. crí琀椀co: diagnós琀椀co e tratamento: Hospital Sírio-Libanês.
2ª ed. Barueri: Manole; 2012.
Oliveira BFM, Parolin MKF, Teixeira Jr EV. Trauma:
atendimento pré-hospitalar. 2ª ed. São Paulo: Atheneu; Souza JCK. Cirurgia pediátrica - teoria e prá琀椀ca. São
2007. Paulo: Roca; 2007.

Paola AAV, Barbosa MM, Guimarães JI. Livro texto da


Towsend C. (org.). Sabiston: tratado de cirurgia. v. 1. 19ª
Sociedade Brasileira de Cardiologia. Barueri: Manole;
2012. ed. Philadelphia: Elsevier; 2012.

Prado RV. Urgências e emergências – 2012/13. São Paulo: Vieira O. (org.). Clínica cirúrgica: fundamentos teóricos e
Artes Médicas; 2012. prá琀椀cos. São Paulo: Atheneu; 2000.

Rasslan S, Birolini D. Atualização em cirurgia geral, Way L. (org.). Cirurgia – diagnós琀椀co e tratamento. 9ª ed.
emergência e trauma IV. São Paulo: Manole, 2010. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1993.

Rasslan S. Procedimentos básicos em cirurgia. Barueri: Way L. Current surgical diagnosis and treatment. 13rd
Manole; 2007. ed. McGraw-Hill; 2011.

SJT Residência Médica – 2016

Você também pode gostar