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Descomplicando

a Terapia Intensiva
Leandro Braz de Carvalho
Lucas Lima de Carvalho
Maria Aparecida Braga
Christiano Altamiro Coli Nogueira

Primeira Edição
2021
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida em qualquer formato ou mídia, incluindo, entre
outros, formato impresso ou eletrônico, sem a permissão prévia por escrito do detentor dos
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Editor Chefe: Leandro Braz de Carvalho


Produção editorial: MKX Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Descomplicando a Terapia Intensiva [livro eletrônico] / organização Leandro Braz de Carvalho...[et al.].
-- 1. ed. -- Horizonte, MG : Somiti, 2021.
PDF

Outros editores: Lucas Lima de Carvalho, Maria Aparecida Braga, Christiano Altamiro Coli Nogueira.
Vários colaboradores.
Vários coorientadores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-991161-2-4

1. Doentes em estado crítico - Cuidado e tratamento 2. Medicina - Inovações tecnológicas 3.


Tratamento intensivo 4. Unidade de Terapia Intensiva I. Carvalho, Leandro Braz de. II. Carvalho,
Lucas Lima de. III. Braga, Maria Aparecida. IV. Nogueira, Christiano Altamiro Coli.

CDD-616.075
21-78762 NLM-WB 141

Índices para catálogo sistemático:


1. Unidade de Terapia Intensiva : Procedimentos : Medicina intensiva 616.075

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

SOMITI – Sociedade Mineira de Terapia Intensiva


Rua do Ouro, 136/701, Belo Horizonte – MG
Telefone: (31) 3274-8668
www.somit.org.br

Edição e revisão:
Leandro Braz de Carvalho

Produzido por:
SOMITI – Sociedade Mineira de Terapia Intensiva

São Paulo, Brasil, agosto de 2021.


Descomplicando a Terapia Intensiva
Primeira Edição

Editores
Leandro Braz de Carvalho Lucas Lima de Carvalho
Médico graduado pela Universidade Federal de Médico graduado pela Faculdade de Ciências
Minas Gerais (1997). Especialista em Medicina Médicas de Minas Gerais (CMMG) em 2003.
Intensiva pela Associação de Medicina Intensiva Especialista em Cardiologia Clínica pela
Brasileira (AMIB) (2001). Anestesiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).
Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) Especialista em Medicina Intensiva pela
(2000). Associação de Medicina Intensiva Brasileira
Coordenador dos Cursos Fundamentos de (AMIB).
Suporte Intensivo (FCCS), Fundamentos Especialista em Nutrição Parenteral e Enteral
de Suporte Intensivo Pediátrico (PFCCS) e pela Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral
Fundamentos de Suporte Intensivo: Obstetrícia e Enteral (BRASPEN).
(FCCS) na Sociedade Mineira de Terapia Pós Graduação em Emergências Médicas pelo
Intensiva (SOMITI), licenciados pela Society of MEC.
Critical Care Medicine (SCCM). Instrutor de Cursos de Imersão ACLS, BLS,
Membro do Comitê do Programa Fundamentals MAVIT, ECG e PVMA da Sociedade Mineira de
Courses e colaborador das Forças Tarefas Terapia Intensiva (SOMITI) desde 2005.
dos cursos FCCS Surgical, FCCS Disaster
Management 4th edition e FCCS 7th edition, da
Society of Critical Care Medicine (SCCM).

Maria Aparecida Braga Christiano Altamiro Coli Nogueira


Doutora em Medicina pela Universidade Federal Médico graduado pela Universidade Federal de
de Minas Gerais. Especialista em Medicina Juiz de Fora (UFJF) (1999).
Intensiva pela Associação de Medicina Intensiva Especialista em Clinica Médica (MEC) e Terapia
Brasileira (AMIB), Cardiologia pela Sociedade Intensiva pela Associação de Medicina Intensiva
Brasileira de Cardiologia (SBC) e Medicina Brasileira (AMIB).
de Emergência pela Associação Brasileira de Coordenador Médico da UTI da Fundação
Medicina de Emergência (ABRAMEDE). Hospitalar do Estado de Minas Gerais
Coordenadora dos Cursos da American Heart (FHEMIG).
Association na Sociedade Mineira de Terapia Instrutor de Cursos de Imersão ACLS, FCCS
Intensiva (SOMITI). e MAVIT na Sociedade Mineira de Terapia
MBA em gestão de saúde e gestão de negócios Intensiva.
pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

i
Coorientadores

Hermann Alexandre Vivacqua Von Michele Cristina del Caro Paiva


Tiesenhausen Capítulo 5 (Comunicação más notícias)
Capítulo 4 (Direito médico e terapia intensiva) Especialista em Psicologia Hospitalar pela
Especialista em Clínica Médica e Terapia FUMEC, em Bioética pelo IEC-PUC-MG e MBA
em Gestão e Liderança de Equipes de Alta
Intensiva.
Performance pela UNA.
Médico Horizontal do CTI do Hospital São
Psicóloga no CTI do Hospital da Unimed BH –
Lucas – BH. Unidade Contorno.
Chefe da III Enfermaria de Clínica Médica da Tutora do curso de Especialização em Cuidados
Santa Casa de BH. Paliativos da FCMMG.
Preceptor da Residência de Clínica Médica da Professora na Especialização em Psicologia
Santa Casa de BH. Hospitalar da Faculdade Santa Casa de Belo
Conselheiro do Conselho Regional de Medicina Horizonte.
do Estado de Minas Gerais

Marília de Aguiar Araújo Bruno de Freitas Belezia


Capítulo 7 (Cuidados paliativos na UTI). Capítulo 8 (Ultrassonografia à beira leito).
Médica formada pela Universidade Federal de Cirurgião geral e Gerente de Atenção Cirúrgica
Minas Gerais. do Hospital Metropolitano Odilon Behrens
Especialista em Anestesiologia pelo Hospital das (HMOB), Belo Horizonte, MG.
Clínicas da UFMG(MEC/SBA). Preceptor da residência em cirurgia geral do
Especialista em Medicina Intensiva pela Santa HMOB.
Casa de Misericórdia de Belo Horizonte - MG. Instrutor de ultrassonografia Point of Care do
Título de Medicina Intensiva pela AMIB. HMOB.
Pós-Graduação em Cuidados Paliativos pela Médico do SAMU de Belo Horizonte 1996-2010
Faculdade UNIMED. Diretor técnico e instrutor do núcleo PHTLS -
Título em área de Atuação em Cuidados MG.
Paliativos pela AMB. Pós graduação em gestão pública.
Médica Paliativista do Hospital Risoleta
Tolentino Neves – Belo Horizonte, MG.
Médica Intensivista da Unidade de Terapia
Intensiva do Hospital Unimed Contorno - Belo
Horizonte, MG.

ii
Autores
Adriana Rassilan Vilanova Laís Leão Calumby
Alessandra Noronha da Silva Lara Ferreira Freitas
Aléxia dos Santos Ribeiro
Aloísio de Freitas Jorge Júnior Lara Lobão Campos Bignoto
Amanda Perpetuo de Oliveira Larissa Dummer Saebel
Ana Carolina Cunha Rocha Lauanda Carvalho de Oliveira
Ana Carolina Mathias Santa Rita
Laura Antunes Vitral
Ana Cláudia Costa Pereira
Anna Zarife Feres Micheletti Leandra Prates Diniz
Bárbara Braga Costa Lícia Berberich Melo
Brígida Maciel Nunes
Lorena Cristina Peixoto Costa
Bruna Ambrozim Ventorim
Bruna Carolina Horta Lorrayne Flores Oliveira
Bruna Lopes Santiago Luana Albuquerque Pessoa
Brunna Mourthé Marques Villaça Veiga Lucas Alexandre Santos Marzano
Bruno Vinicius Castello Branco
Camila Azalim de Campos Lucas Miranda Lage
Camila Gabriela Rodrigues Alves Luisa Cardoso Maia
Camila Silveira Mota Dutra Luiz Eduardo Machado Vieira
Carina Gabriela Andrade Oliveira
Carlúcio Freire Martins Filho Maiara Peixoto Paiva
Carolina Couy Dantas Marcela Carolina Passini
Carolina dos Santos Cruz Marcelle Amaral de Matos
Carolina Pimentel Orsini
Maria Bernardes Luz
Caroline Rodrigues Velten
Catarina Depieri Michels Mariana Caetano Chaves
Cecília Diniz de Souza Matheus Miranda Bichara
Cinthya Rodrigues Coutinho
Matheus Santos Mazine Viviani
Clara Leal Fraga
Clara Monteiro Moreira Matheus Victor Pereira
Cynthia Pavelisk Iwashima Melissa Amaral Carneiro
Elisa Dall’Orto Figueiredo Piuzana Nathalia Ornelas Ribeiro Chaves
Felipe Gonzales Gimenes
Fernanda Maia Alves Paula Lassi Beduin
Fernanda Penido Gonçalves de Souza Paula Plisker Barbosa de Freitas
Flávia Vanessa Lara Pedro Henrique Lodde Leal
Gabriel Chagas Brandão de Morais
Gabriela de Andrade Lopes Pedro Oertel D'Amico
Gustavo Henrique de Oliveira Soares Rafaela Ayres Catalão
Gustavo Vinícius Jadir Reis Sttéphani Campos de Melo
Ingrid Isabel Lucindo Soares Almeida
Taisa Izabela Magalhães e Souza
Letícia Almeida Honorato
Isabella Caixeta Borges Tayná Alves dos Santos
Isabella Louise de Matos Ribeiro Pinto Thayná Gonçalves Gouveia
João Antônio Santiago Costa e Silva
Thaynara Bianca Cordeiro Lopes
João Pedro Pereira
Júlia Cheik Andrade Verônica Pirâmides Coura Martins de Loyola
Julia de Lima Carvalho Victor Adalberto Machado Nascimento
Júlia Maria Morena Afonso Campos e Lamas Victor Nardelli Durço
Julimar Rocha de Assis
Karoline Sousa Lages Vinícius Rezende Avelar
Kathiane Laranjeira Baleeiro Silva Yuri Osmar de Araújo Costa
iii
Coordenação LIGAMI

Bruna Carolina Horta


Bruno Vinicius Castello Branco
Carlúcio Freire Martins Filho
Mariana Lopes Cançado Lira
Matheus Victor Pereira
Tayná Alves dos Santos
Victor Nardelli Durço

Sede Ligami
Av. João Pinheiro, 161/05, Centro
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
30130-180
(31) 3222-3172/(31) 3247-1645
Eventos@somiti.org.br

iv
Diretoria SOMITI

Presidente - Jorge Luiz da Rocha Paranhos


Vice-Presidente - Luiz Eduardo Parreiras Tálamo
Diretor Secretário Geral - Rogério de Castro Pereira
Diretor 1º Tesoureiro - Hugo Corrêa de Andrade Urbano
Diretor 2º Tesoureiro - Christiano Altamiro Coli Nogueira
Diretor Científico - Leandro Braz de Carvalho

Sede Somiti Centro de Treinamento Somiti


Av. João Pinheiro, 161/05, Centro R. do Ouro, 136 - 701 – Serra
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil Belo Horizonte Minas Gerais, Brasil
30130-180 30220-000
(31) 3222-3172/(31) 3247-1645 (31) 2512-0791
somiti@somiti.org.br cursos@somiti.org.br
www.somiti.org.br www.centrodetreinamentosomiti.com.br

v
Apresentação

A Somiti
A Sociedade Mineira de Terapia Intensiva (Somiti) é uma associação civil com caráter
científico cultural, sediada em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
Tem como objetivos:
• Congregar os profissionais da saúde interessados pela Terapia Intensiva.
• Representar, em âmbito estadual, aqueles que militam no atendimento ao paciente
grave e de alto risco, promovendo a valorização profissional em conjunto com o Poder
Público e com outras entidades e associações.
• Promover atividades de educação continuada, congressos, simpósios e cursos de
atualização, publica e edita livros, periódicos e apostilas.
• Estabelecer diretrizes para utilização dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos;
desenvolver e estimular pesquisas médico-científicas; realizar levantamentos
epidemiológicos.
Até o final do século XIX, pacientes graves morriam rapidamente em razão da falta de
equipamentos e profissionais especializados. Na década de 1970, a Terapia Intensiva ainda não
era reconhecida como especialidade médica no Brasil. No entanto, profissionais que trabalha-
vam nas UTIs já se movimentavam com o objetivo de difundir a atividade e fazer com que ela
ganhasse mais credibilidade.
Em 1980, com a criação da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), surgiu
também a Sociedade Mineira de Terapia Intensiva (Somiti). Desde então, a Somiti vem marcan-
do presença em Congressos e Simpósios, além de promover a realização de palestras, cursos
e jornadas científicas. Atualmente, a Somiti se projeta no cenário estadual como Associação
defensora da valorização da especialidade e integração entre os profissionais intensivistas.
A fundação da Somiti aconteceu em 24 de novembro de 1980, no Centro de Estudos do
Hospital Felício Rocho, em Belo Horizonte. Participaram da reunião os profissionais Ildeu
Batista de Oliveira, José Augusto Peixoto Guimarães, José Luiz de Amorim Ratton, Luiz Gonzaga
Vaz Coelho, Newton Pereira de Mendonça Procópio, Sérgio Luiz de Lima, Raimundo Antônio
de Melo e Valmy Lessa Couto Filho. O professor Mário López foi escolhido como presidente
honorário.

A Ligami
A Liga Acadêmica de Medicina Intensiva (Ligami) de Minas Gerais visa proporcionar a
seus membros uma participação precoce nas atividades práticas em centros de terapia inten-
siva e uma melhor base teórica. Os componentes da Ligami participam de atividades teóri-
cas e práticas, com orientação de médicos e outros profissionais, junto à Somiti, hospitais e
outras entidades definidas pela coordenação. A Ligami está aberta a todas Faculdades e/ou
Universidades credenciadas pelo MEC (em qualquer área da saúde), Associações, Entidades e

vii
Sociedades diversas que venham a colaborar com o funcionamento e com o desenvolvimento
da mesma.
A Ligami tem como objetivos
• Conhecimento teórico: amplificação do conhecimento de seus integrantes na área da
medicina intensiva e medicina baseada em evidências.
• Científico: estimular seus integrantes a desenvolverem trabalhos científicos e
raciocínio clínico com a finalidade de se prepararem para a vida médica bem como o
seu conhecimento nas áreas clínicas relacionadas à medicina intensiva.
• Extensão: estimular seus integrantes a participarem de atividades que proporcionem
um contato direto com a população, como forma de aplicar os conhecimentos recém
adquiridos.
Introdução

O projeto em questão foi idealizado com o intuito de que os acadêmicos se transfor-


massem em agentes ativos dentro do universo da terapia intensiva. Por isso, todos os autores
são acadêmicos de medicina que, em algum momento, participaram da Liga Acadêmica de
Medicina Intensiva de Minas Gerais (Ligami-MG), uma entidade filiada à Sociedade Mineira de
Terapia Intensiva (Somiti) e à Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB).
Imersos em um dos cenários mais desafiadores da medicina, os alunos encontraram sub-
terfúgio no estudo sobre o tema e transmitem, agora, aquilo que aprenderam por meio de lin-
guagem acessível, direta e, sobretudo, precisa, afinal, entendemos que um material escrito de
aprendizes para aprendizes possa ser, didaticamente, mais proveitoso. Contudo, entendemos,
também, que os acadêmicos, por mais que estejam munidos de boa referência bibliográfica,
não têm vasta experiência técnica para imporem expertise ao assunto, motivo pelo qual grandes
nomes da especialidade, na função de editores do livro, revisaram e aprovaram cada capítulo
contido neste material.
Nas páginas seguintes, os leitores encontrarão informações de grande valia. Sempre que
pertinente, o script da condição foi evidenciado, cujos tópicos incluem sua epidemiologia, sua
apresentação clínica, sua etiopatogênese, alguns dos seus possíveis métodos diagnósticos, suas
estratégias terapêuticas, bem como o prognóstico imputado aos pacientes por ela acometi-
dos. Ademais, assuntos afetos à terapia intensiva, que, embora sejam de suma importância,
são pouco discutidos na Academia, contemplam esta obra. Dentre eles se incluem a carreira do
médico intensivista, a transmissão de más notícias, os cuidados paliativos, a gestão da unidade
e os aspectos médico legais.
Por fim, desejamos-lhes ótimos estudos e esperamos que tenhamos conseguido atuar na-
quilo que nos propomos: traduzir a linguagem das Unidades de Terapia Intensiva (UTI).

Com carinho,

Coordenação da Liga Acadêmica de Medicina Intensiva de Minas Gerais


Gestão 2020

ix
Prefácio

A Sociedade Mineira de Terapia Intensiva (SOMITI) e a Liga Acadêmica de Medicina


Intensiva de Minas Gerais (LIGAMI) trazem a público este volume, intitulado “Descomplicando
a Terapia Intensiva”, fruto do trabalho conjunto de dezenas de estudantes de medicina de várias
faculdades do Estado.
Nessa primeira edição, tópicos relevantes para o cuidado do paciente criticamente en-
fermo são abordados de forma rápida e direta, com um sumário das informações relevantes e
atualização dos conhecimentos de cada tema. Trata-se de um trabalho acadêmico, de ensino,
que fez parte do programa da Ligami de 2020.
Em um ano atípico, com diversos desafios enfrentados pelos profissionais de saúde de
maneira inédita, esses acadêmicos de medicina também se reinventaram. Ocuparam seu tem-
po livre com o estudo e aprendizado da Terapia Intensiva e direcionaram esse investimento
para a produção de texto científico destinado aos seus pares. Colegas atuais e futuras gerações
de médicos e outros profissionais de saúde usarão esse trabalho para aprender e se atualizar.
A partir da seleção de temas, feita pelos próprios estudantes, uma revisão abrangente da
literatura foi realizada, com orientação de profissionais médicos da SOMITI e outros profissio-
nais selecionados de acordo com o tópico. Os capítulos foram redigidos por cada um dos auto-
res, passando pelo crivo dos organizadores e editores, até o formato final.
Como médicos intensivistas e educadores, foi um enorme prazer acolher e orientar estes
acadêmicos nesta etapa de formação em suas carreiras. Mais do que apenas se tornarem “fa-
zedores” de atendimentos e procedimentos médicos, eles aprendem assim como “construir” e
“organizar” conhecimentos científicos para o benefício de seus pacientes.
A escolha do título do livro “Descomplicando a Terapia Intensiva” guarda relação com
tudo o que fazemos no cuidado dos pacientes graves. Em um universo de condições e situações
complexas, tornar mais fácil e simples o entendimento dos males que acometem esses indiví-
duos permite que os esforços no seu tratamento sejam utilizados do modo mais proveitoso e,
espera-se, com melhores resultados.

com·pli·car
lat complicare.
1. Tornar(-se) complexo, confuso ou complicado.
2. Levar alguém a uma situação constrangedora ou de comprometimento.
3. Tornar a solução de um problema mais difícil.
des·com·pli·car
1. Fazer cessar a complicação; desembaraçar, facilitar, simplificar.
Fonte: Dicionário Michaelis (https://michaelis.uol.com.br/)

Os Editores
Leandro Braz de Carvalho
Lucas Lima de Carvalho
Maria Aparecida Braga
Christiano Altamiro Coli Nogueira

xi
Sumário

1 Carreira do Médico Intensivista__________________________________________________ 1


Luana Albuquerque Pessoa
Orientadora: Maria Aparecida Braga

2 Critérios de Admissão e de Alta na UTI____________________________________________ 5


Mariana Caetano Chaves
Orientadora: Maria Aparecida Braga

3 Ética em Terapia Intensiva_______________________________________________________ 9


Elisa Dall’Orto Figueiredo Piuzana
Orientadora: Maria Aparecida Braga

4 Direito Médico e a Medicina Intensiva___________________________________________ 13


Julia de Lima Carvalho
Orientadora: Maria Aparecida Braga
Coorientador: Hermann Alexandre Vivacqua Von Tiesenhausen

5 Comunicação de Más Notícias__________________________________________________ 21


Cecília Diniz de Souza
Orientadora: Maria Aparecida Braga
Coorientadora: Michele Cristina del Caro Paiva

6 Gestão de UTI_________________________________________________________________ 29
Matheus Santos Mazine Viviani
Orientadora: Maria Aparecida Braga

7 Cuidados Paliativos na UTI_____________________________________________________ 37


Lícia Berberich Melo
Orientadora: Maria Aparecida Braga
Coorientadora: Marília de Aguiar Araújo

8 Ultrassonografia à Beira Leito___________________________________________________ 45


Cynthia Pavelisk Iwashima
Orientadora: Maria Aparecida Braga
Coorientador: Bruno de Freitas Belezia

9 Índices Prognósticos na UTI____________________________________________________ 57


Júlia Cheik Andrade
Orientadora: Maria Aparecida Braga

10 Monitorização Hemodinâmica e da Perfusão Tissular______________________________ 65


João Antônio Santiago Costa e Silva
Júlia Maria Morena Afonso Campos e Lamas
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

xiii
xiv D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

11 Insuficiência Cardíaca Aguda e Choque Cardiogênico______________________________ 73


Bruna Ambrozim Ventorim
Maria Bernardes Luz
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

12 Choque Hipovolêmico_________________________________________________________ 83
Kathiane Laranjeira Baleeiro Silva
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

13 Arritmias Ameaçadoras à Vida__________________________________________________ 91


Aléxia dos Santos Ribeiro
Rafaela Ayres Catalão
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

14 Infarto Agudo do Miocárdio___________________________________________________ 101


Aloísio de Freitas Jorge Júnior
Karoline Sousa Lages
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

15 Crise Hipertensiva____________________________________________________________ 111


Julimar Rocha de Assis
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

16 Tamponamento Cardíaco_____________________________________________________ 121


Clara Leal Fraga
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

17 Aneurisma de Aorta Abdominal________________________________________________ 127


Yuri Osmar de Araújo Costa
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

18 Dissecção Aórtica____________________________________________________________ 135


Luiz Eduardo Machado Vieira
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

19 Trombose Venosa Profunda e Tromboembolismo Pulmonar_______________________ 143


Melissa Amaral Carneiro
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

20 Oclusão Arterial Aguda________________________________________________________ 151


Gustavo Henrique de Oliveira Soares
Victor Nardelli Durço
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

21 Avaliação Respiratória________________________________________________________ 159


Lorena Cristina Peixoto Costa
Victor Adalberto Machado Nascimento
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

22 Abordagem de Vias Aéreas_____________________________________________________ 165


Isabella Louise de Matos Ribeiro Pinto
Orientador: Leandro Braz de Carvalho
S u m á ri o xv

23 Ventilação Mecânica Não Invasiva e Invasiva: Modos Básicos e Indicações__________ 173


Larissa Dummer Saebel
Lorrayne Flores Oliveira
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

24 Abordagem das Principais Síndromes Pulmonares: DPOC, Asma


e Doenças Intersticiais________________________________________________________ 181
Paula Lassi Beduin
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

25 Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo___________________________________ 189


Leandra Prates Diniz
Bárbara Braga Costa
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

26 Desmame da Ventilação Mecânica______________________________________________ 197


Camila Azalim De Campos
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

27 Avaliação Neurológica________________________________________________________ 203


Lucas Alexandre Santos Marzano
Taisa Izabela Magalhães e Souza
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

28 Analgesia, Sedação e Delirium_________________________________________________ 211


Flávia Vanessa Lara
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

29 Encefalopatias_______________________________________________________________ 219
Paula Plisker Barbosa de Freitas
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

30 Distúrbios Neuromusculares___________________________________________________ 225


Vinícius Rezende Avelar
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

31 Acidente Vascular Encefálico___________________________________________________ 233


Bruna Carolina Horta
Caroline Rodrigues Velten
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

32 Estado de Mal Epiléptico______________________________________________________ 241


Gustavo Vinícius Jadir Reis
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

33 Tontura, Vertigem, Síncope e Coma_____________________________________________ 249


Verônica Pirâmides Coura Martins de Loyola
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

34 Síndrome da Hipertensão Intracraniana________________________________________ 257


Marcelle Amaral de Matos
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira
xvi D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

35 Morte Encefálica e Manejo do Potencial Doador_________________________________ 265


Gabriela de Andrade Lopes
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

36 Abdome Agudo______________________________________________________________ 273


Nathalia Ornelas Ribeiro Chaves
Sttéphani Campos de Melo
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

37 Pós-Operatório na UTI________________________________________________________ 279


Lucas Miranda Lage
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

38 Abordagem ao Paciente Politraumatizado_______________________________________ 285


Ana Carolina Cunha Rocha
Felipe Gonzales Gimenes
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

39 Traumatismo Cranioencefálico_________________________________________________ 295


Carolina Pimentel Orsini
Thaynara Bianca Cordeiro Lopes
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

40 Traumatismo Raquimedular___________________________________________________ 303


Gabriel Chagas Brandão de Morais
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

41 Afogamento_________________________________________________________________ 311
Brunna Mourthé Marques Villaça Veiga
Tayná Alves dos Santos
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

42 Queimaduras________________________________________________________________ 317
Matheus Miranda Bichara
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

43 Reconhecimento e Manejo do Paciente com Sepse_______________________________ 327


Luisa Cardoso Maia
Orientadora: Maria Aparecida Braga

44 Uso Racional dos Antimicrobianos_____________________________________________ 333


Cinthya Rodrigues Coutinho
Clara Monteiro Moreira
Orientadora: Maria Aparecida Braga

45 Pneumonia Adquirida na Comunidade_________________________________________ 341


Fernanda Maia Alves
Lara Ferreira Freitas
Orientadora: Maria Aparecida Braga
S u m á ri o xvii

46 Infecções do Trato Urinário Comunitárias e Nosocomiais_________________________ 347


Anna Zarife Feres Micheletti
Orientadora: Maria Aparecida Braga

47 Infecções Fúngicas na UTI_____________________________________________________ 355


João Pedro Pereira
Matheus Victor Pereira
Orientadora: Maria Aparecida Braga

48 Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde____________________________________ 363


Maiara Peixoto Paiva
Orientadora: Maria Aparecida Braga

49 Síndromes Febris Hemorrágicas Agudas________________________________________ 371


Pedro Henrique Lodde Leal
Orientadora: Maria Aparecida Braga

50 Meningites e Encefalites_______________________________________________________ 381


Carolina dos Santos Cruz
Orientadora: Maria Aparecida Braga

51 Avaliação do Paciente com Doença Renal_______________________________________ 387


Marcela Carolina Passini
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

52 Lesão Renal Aguda e Diálise___________________________________________________ 393


Ana Cláudia Costa Pereira
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

53 Tentativa de Autoextermínio___________________________________________________ 401


Lara Lobão Campos Bignoto
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

54 Descompensações Psiquiátricas Iatrogênicas____________________________________ 407


Camila Silveira Mota Dutra
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

55 Eletroconvulsoterapia na UTI__________________________________________________ 415


Fernanda Penido Gonçalves de Souza
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

56 Anafilaxia e Reações a Fármacos_______________________________________________ 421


Carina Gabriela Andrade Oliveira
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

57 Distúrbios da Coagulação_____________________________________________________ 427


Laura Antunes Vitral
Pedro Oertel D’amico
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira
xviii D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

58 Terapia Transfusional_________________________________________________________ 435


Alessandra Noronha da Silva
Isabella Caixeta Borges
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

59 Nutrição na UTI______________________________________________________________ 443


Bruno Vinicius Castello Branco
Lauanda Carvalho de Oliveira
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

60 Distúrbios Hidroeletrolíticos e Distúrbios Acidobásicos___________________________ 451


Brígida Maciel Nunes
Carolina Couy Dantas
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

61 Descompensações Graves do Diabetes Mellitus__________________________________ 461


Bruna Lopes Santiago
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

62 Distúrbios Endocrinológicos na UTI____________________________________________ 469


Adriana Rassilan Vilanova
Carlúcio Freire Martins Filho
Orientadora: Maria Aparecida Braga

63 Hemorragias Digestivas Alta e Baixa____________________________________________ 479


Ana Carolina Mathias Santa Rita
Orientadora: Maria Aparecida Braga

64 Pancreatite Aguda____________________________________________________________ 487


Catarina Depieri Michels
Orientadora: Maria Aparecida Braga

65 Intoxicações Exógenas________________________________________________________ 499


Thayná Gonçalves Gouveia
Orientadora: Maria Aparecida Braga

66 Emergências Obstétricas______________________________________________________ 507


Camila Gabriela Rodrigues Alves
Laís Leão Calumby
Orientadora: Maria Aparecida Braga

67 Doenças Autoimunes na UTI__________________________________________________ 517


Amanda Perpetuo de Oliveira
Orientadora: Maria Aparecida Braga

68 Infecções Viróticas na UTI_____________________________________________________ 525


Ingrid Isabel Lucindo Soares Almeida
Letícia Almeida Honorato
Orientadora: Maria Aparecida Braga
Carreira do Médico Intensivista 1

Luana Albuquerque Pessoa


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
A Medicina Intensiva é uma especialidade médica, regulamentada pelo Conselho Federal de
Medicina desde 1992 e é dividida com base na idade dos pacientes atendidos pelos profissionais,
existindo médicos intensivistas que assistem adultos, outros que assistem crianças e um terceiro
grupo que assiste recém-nascidos1. Sua finalidade é prestar suporte avançado de vida a pacientes
com alteração aguda de alguma função vital. O médico intensivista é quem monitora as funções
orgânicas e percebe alterações em fases iniciais de determinadas doenças. Assim, é possível in-
tervir, decisivamente, no prognóstico dos pacientes em risco de evolução desfavorável e daqueles
em estados graves, anteriormente com pouca ou com nenhuma probabilidade de sobrevivência. É
dessa área da medicina a responsabilidade pelo cuidado das unidades de terapia intensiva (UTI).
Estão aptos a realizar residência em terapia intensiva os médicos que possuem residência
completa em clínica médica, determinadas especialidades clínicas, anestesiologia e cirurgia geral.
A capacitação completa-se em 2 anos e o médico que tem interesse em obter, também, o título da
AMB/AMIB pode realizar uma prova específica.

História da Medicina Intensiva e da especialidade no Brasil


A terapia intensiva é uma especialidade jovem, reconhecida pelo Conselho Federal de
Medicina a partir de 1992. Sua origem está intimamente relacionada ao tratamento especializado
oferecido a feridos de guerra pela enfermeira Florence Nightingale, em 1854, sendo hoje reco-
nhecida como a precursora dos cuidados intensivos. O primeiro médico intensivista, por sua vez,
surgiu apenas um século depois, na década de 1950, com Peter Safar. Filho de médicos, Safar mi-
grou com os pais para os Estados Unidos, após ter sido recrutado em um campo de concentração
nazista e, em terras americanas, formou-se médico anestesista, onde passou a incentivar a criação
do atendimento de urgência-emergência. Além de ter sido o criador das técnicas de manutenção
de vida para pacientes críticos, em 1962 Safar estabeleceu na cidade de Baltimore a primeira UTI
cirúrgica e desenvolveu a primeira disciplina de “medicina de apoio crítico”, nos Estados Unidos.
2 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Suas últimas contribuições na área foram a elaboração de ambulâncias UTI para transporte e a
fundação da Associação Mundial de Medicina de Emergência e da Society of Critical Care Medicine
(SCCM), em 19723.
Os primeiros passos da terapia intensiva no Brasil ocorreram em 1954, com a prática do
método de ventilação mecânica controlada. Segundo a AMIB (Associação de Medicina Intensiva
Brasileira), a primeira UTI respiratória do Brasil surgiu no Hospital dos Servidores do Estado do
Rio de Janeiro (HSE-RJ), em 1967, graças aos estudos do médico Antônio Tufik Simão, que esteve à
frente da coordenação médica da unidade até 1990. Em 1977, surgiu a SOPATI (Sociedade Paulista
de Terapia Intensiva), liderada pelos médicos João Augustos Mattar Filho, Mariza D´Agostino Dias,
José Thales de Castro Lima e Max Grimberg. Em 1980 foi criada a AMIB, que contou com a presen-
ça e adesão de médicos do Distrito Federal, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, do Rio Grande do
Sul, do Paraná, de Santa Catarina, da Bahia e de São Paulo3.

Como tornar-se um Intensivista


O processo de formação de um médico intensivista, no Brasil, segue duas vias: progra-
mas de Residência Médica credenciados pelo MEC e o Programa de especialização em Medicina
Intensiva (PEMI). O processo de residência tem uma duração de 2 anos e o acesso ocorre após
conclusão de residência médica reconhecida pelo MEC nas áreas pré-requisito pela Comissão
Nacional de Residência Médica – CNRM (Clínica Médica, Cirurgia Geral, Anestesiologia,
Neurologia, Infectologia ou Medicina de Família e Comunidade e Pediatria, no caso de UTI pe-
diátrica). Esses programas reportam-se à CNRM/MEC e habilitam seu egresso a prestar a prova
de título de especialista da AMIB/AMB, bem como a registrar-se imediatamente após o término
do programa de residência como especialista em medicina intensiva junto ao CRM. Os residen-
tes recebem bolsa para custeio de suas despesas básicas durante a formação com valor estabe-
lecido pelo MEC.
Por outro lado, o acesso pelo processo de especialização deve ocorrer em Centro Formador
credenciado pela AMIB – PEMI-AMIB. Esses programas ocorrem por meio de treinamento teóri-
co e prático em centros devidamente credenciados e reconhecidos para essa função e também
habilitam seu egresso a prestar prova de título de especialista em Medicina Intensiva AMIB/
AMB. Contudo, o especializando só poderá registrar-se no CRM como especialista em Medicina
Intensiva após aprovação na prova de título da especialidade realizada pela AMIB/AMB¹. O can-
didato pode ingressar na especialização de duas formas: pelo acesso direto (ao término da gra-
duação em medicina) – PEMI-AMIB, com duração de 4 anos, na maioria dos hospitais, ou pelo
PEMI-AMIB com duração de 2 anos, para o candidato que tenha concluído Residência Médica
– MEC ou Programa de Especialização reconhecido pela respectiva sociedade nas áreas de Clínica
Médica, Anestesiologia, Cirurgia, Pediatria, Neurologia, Infectologia ou Cardiologia4.
A Sociedade Mineira de Terapia Intensiva (SOMITI), criada em 1980, tem o objetivo de con-
gregar os profissionais da saúde interessados pela terapia intensiva, de promover a valorização
profissional e apresenta caráter científico-cultural, que abrange desde a promoção de congressos,
a elaboração de livros, até atividades de educação continuada. Dentre os principais objetivos da
entidade, está o estabelecimento de diretrizes que guiem a utilização dos procedimentos diagnós-
ticos e terapêuticos e o desenvolvimento de pesquisas.
A Liga Acadêmica de Medicina Intensiva de Minas Gerais (LIGAMI), por sua vez, entidade
filiada à SOMITI, visa proporcionar a seus membros uma participação mais precoce nas ativi-
dades práticas em centros de terapia intensiva e uma maior bagagem teórica. Além disso, tem o
C a rre i ra d o M é d i c o I n t e n s i v i s t a 3

objetivo de estimular a pesquisa clínica e experimental, a participação em eventos científicos e


a extensão universitária3.

Habilidades e competências
Além de desenvolver habilidades de diagnóstico, tratamento e profilaxia das doenças que
acometem os pacientes críticos, os intensivistas devem estar aptos a coordenar as ações médicas
de uma equipe multidisciplinar, dentro e fora da UTI, para obter resultados eficientes. Ademais,
esses profissionais precisam ter habilidades práticas que permitam a realização de procedimentos
diagnósticos e terapêuticos essenciais dos quais os pacientes críticos possam necessitar. Também
é papel dos intensivistas garantir segurança assistencial e desenvolver atividades de melhoria con-
tínua na qualidade da assistência na UTI, cuidar dos pacientes e de seus familiares, discutir, plane-
jar e coordenar ações paliativas e de fim de vida e garantir uma prática clínica ética e profissional
ao paciente crítico, sempre tendo como foco principal o indivíduo enfermo.
O que compete ao candidato ao longo do primeiro ano de treinamento é o domínio da ca-
pacidade de atender um paciente clínico com as doenças médicas mais prevalentes, de atender
pacientes sob efeito anestésico, de atender pacientes no pós-operatório imediato e de realizar
pequenos procedimentos cirúrgicos. Essas habilidades deverão ser desenvolvidas em serviços de
clínica médica, de emergência, de anestesiologia e de cirurgia. Nos três anos que se seguem, o
médico deve ser capaz de adotar uma abordagem estruturada e oportuna para reconhecimento,
avaliação e estabilização do paciente com sua fisiologia agudamente desorganizada5.

Características da especialidade
O intensivista pode trabalhar como coordenador (responsável técnico), como rotineiro/dia-
rista em UTI’s gerais ou especializadas, como plantonista ou exercendo, também, a especialidade
na área em que fez residência anteriormente¹.
A Medicina Intensiva tem a peculiaridade da multidisciplinaridade, com ênfase ao traba-
lho em equipe, não apenas a equipe multidisciplinar da unidade, mas também transdisciplinar,
observando o paciente na linha do cuidado. Portanto, o processo precisa estar alinhado com os
departamentos de emergência, do bloco cirúrgico, das unidades de internação, além de todos os
serviços de apoio. A integração com o núcleo de segurança do paciente é o alicerce para a preven-
ção de eventos adversos infecciosos e não infecciosos. Gestão para segurança e qualidade é uma
das competências do coordenador e diaristas, uma vez que o conhecimento da epidemiologia, da
prevenção e do controle de risco são os alicerces para a segurança assistencial.
Para funcionar, a UTI padrão (10 leitos) deve ter, no mínimo, o coordenador médico e o dia-
rista (rotina) como intensivistas titulados. Esses profissionais promovem a homogeneidade das
rotinas estabelecidas como boas práticas médicas. Idealmente, toda a equipe médica deve ser es-
pecialista, uma vez que os resultados da unidade são diretamente proporcionais a essa relação6.
Jovens médicos que gostam de trabalhar em equipe e em ambiente hospitalar, associado a ino-
vações tecnológicas e a procedimentos invasivos, podem considerar a possibilidade de ingressar
na especialidade. É imperioso, também, saber lidar com a constante pressão, determinada pela
gravidade dos quadros clínicos, saber atuar na prevenção de eventos adversos, assim como de-
preender a importância do estabelecimento de uma comunicação adequada com pacientes e com
familiares. Além disso, é de suma importância manter a sensibilidade e a gentileza, considerar a
4 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

autonomia do paciente e gerenciar sintomas físicos e psíquicos. Na medicina intensiva, o espírito


multidisciplinar é o alicerce do cuidado, afinal, o resultado é determinado pela eficiência da equi-
pe durante todo o período de internação do paciente.

Oportunidades de trabalho
O mercado de trabalho para o intensivista é vasto. Atualmente, todo hospital terciário é obri-
gado a ter, no mínimo, 6% de seus leitos voltados à terapia intensiva, mas, na prática, essa propor-
ção é maior. Hospitais privados costumam ter de 20 a 40% de seus leitos voltados aos pacientes
críticos. A demanda por especialistas é bem maior que a oferta, fazendo com que os recém-titu-
lados sejam rapidamente absorvidos pelo mercado de trabalho, com grande chance de ascen-
são para cargos de supervisão e de gerência, de acordo com as suas competências2. Mesmo no
início da carreira, a remuneração, em geral, é boa7. A constante necessidade de profissionais em
todas as regiões do Brasil, principalmente no interior dos estados, tem aumentado a valorização
do intensivista.

Pontos-chave
• A medicina intensiva é uma especialidade médica regulamentada pelo Conselho Federal
de Medicina desde 1992;
• O médico intensivista assiste pacientes que se encontram em estados graves ou em
risco de instabilização;
• Estão aptos a realizar residência em terapia intensiva os médicos que possuem residência
completa em Clínica Médica, em Cirurgia, em Anestesiologia, em Cirurgia geral e em
Infectologia, embora exista entrada direta pelos programas de especialização;
• O mercado de trabalho para o intensivista é vasto. Atualmente, todo hospital terciário
é obrigado a ter, no mínimo, 6% de seus leitos voltados à terapia intensiva, mas, na
prática, essa proporção pode chegar a 40%.

Leitura sugerida
1. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM Nº 1.349, de 17 de janeiro de 1992.
2. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Medicina Intensiva. São Paulo; 2019 07. Especialidades.
3. Associação de Medicina Intensiva Brasileira. Medicina Intensiva - Adultos .2012. AMIB. Feb 21.
4. Associação de Medicina Intensiva Brasileira. Matriz de competências: Especializando em Medicina Intensiva.
AMIB. 2020.
5. Federação Médica Brasileira. Como formar um médico intensivista? 2006 Sep 01. Notícias da FMB.
6. Associação de Medicina Intensiva Brasileira. O médico intensivista: vocação e desafios. 2012 Jun 22.
7. Junior, APN, Azevedo LCP. Fatores associados à satisfação profissional e pessoal em intensivistas adultos brasi-
leiros. Revista Brasileira de Terapia Intensiva. 2016; DOI 10.5935/0103-507X.20160024.
8. Associação de Medicina Intensiva Brasileira. O médico intensivista: vocação e desafios. 2012 Jun 22.
Critérios de Admissão e de Alta na UTI 2

Mariana Caetano Chaves


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
A unidade de terapia intensiva (UTI) fornece suporte avançado de vida aos pacientes críticos
a fim de estabilizá-los e de reverter sua condição, ou de prevenir a deflagração de instabilidade
clínica. Os pacientes críticos, por sua vez, são aqueles que apresentam disfunção orgânica em um
ou em mais sistemas, com risco de morte, ou aqueles que necessitam de monitorização contínua
devido ao grande risco de descompensação1. Nesse cenário, o suporte avançado de vida engloba a
instituição de ventilação mecânica, de terapia de substituição renal, de suporte circulatório mecâ-
nico, de suporte hemodinâmico e de manobras de reanimação cardiorrespiratória1, devendo ser
fornecido por equipe multidisciplinar devidamente capacitada e habilitada.
A decisão sobre indicar ou não a admissão do doente na UTI é muito complexa, dada a limi-
tação do número de leitos em território nacional. Em janeiro de 2020, o Brasil tinha 45.848 leitos
de UTI, sendo 22.844 do Sistema Único de Saúde (SUS) e 23.004 do sistema de saúde privado. Isso
corresponde a uma proporção de 2,2 leitos de UTI para cada 10.000 habitantes no país, o que é
adequado, considerando a relação preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo
Ministério da Saúde de 1 a 3 leitos para cada 10.000 habitantes. Porém, ao se analisar a proporção
de leitos dos sistemas público e privado separadamente, verifica-se uma média de 1,4 leitos de
UTI do SUS para cada 10.000 habitantes contra 4,9 da rede privada. Além disso, há uma concentra-
ção de leitos na região sudeste, que conta com um total de 2,7 leitos para cada 10.000 habitantes,
sendo a relação de 1,8 no SUS e de 4,7 no sistema particular. Por outro lado, a região Norte é a que
oferece menor número de leitos de UTI: 1.331 no sistema público e 751 no privado, resultando em
0,9 leitos do SUS para cada 10.000 habitantes e 4,7 da rede particular2.
Diante disso, o estabelecimento de critérios de admissão e de alta na UTI torna-se funda-
mental para a otimização dos recursos de terapia intensiva. As decisões de admissões e de altas
devem ser tomadas de forma explícita, sem qualquer discriminação, seguidas do registro da soli-
citação de vaga para a unidade no prontuário do paciente e da comunicação à família ou ao repre-
sentante legal¹. As admissões devem considerar a condição do paciente, a possível necessidade de
intervenção que não seja disponível em outro setor da instituição, a disponibilidade de leitos, o
6 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

potencial benefício das intervenções e o prognóstico definido, enquanto a alta é possível após ser
alcançado o devido controle do quadro clínico. Cabe ao médico intensivista a determinação das
admissões e das altas, considerando as indicações médicas e respeitando, sempre, a autonomia
do paciente¹.

Critérios de admissão na UTI


Alguns modelos foram criados para orientar as admissões na UTI, dentre eles o de diagnósti-
co, o de parâmetros objetivos e o de priorização. No modelo de diagnóstico, uma lista de doenças e
condições específicas é utilizada para selecionar os pacientes que receberão terapia intensiva³. No
de parâmetros objetivos, dados vitais específicos, valores de resultados laboratoriais, achados em
exames de imagem ou na eletrocardiografia, bem como a identificação de sinais ao exame físico
são determinantes para a admissão na UTI³. No modelo de priorização, por sua vez, os pacientes
são classificados em níveis de prioridade, conforme a necessidade de intervenções específicas, de
monitorização intensiva, o prognóstico e a limitação de suporte terapêutico³. Apesar de não haver
fortes evidências que sustentem os modelos descritos, na contemporaneidade, as admissões na
UTI são orientadas por um conjunto de fatores, dentre os quais se enquadram as necessidades
específicas de cuidados intensivos, a priorização, de acordo com a condição do paciente, o diag-
nóstico, o prognóstico, o potencial benefício das intervenções, a disponibilidade de leitos e os
parâmetros objetivos no momento do encaminhamento3,4. É recomendado, ainda, que as institui-
ções tenham um protocolo de admissão, baseado nas recomendações atuais¹, a fim de assegurar
a transferência dos pacientes de forma eficiente e segura à UTI. Vale considerar, por último, que,
em se tratando de unidades de terapia intensiva especializadas, deve-se evitar a admissão de pa-
cientes com diagnóstico primário não relacionado à especialidade correspondente, enquanto as
unidades gerais podem receber doentes portadores de qualquer entidade nosológica4.

Triagem
O estabelecimento prévio de critérios de triagem para a admissão na UTI é essencial quando
no gerenciamento dos leitos e, embora possa sobrecarregar o serviço, é preferível que a triagem
seja mais permissiva do que restritiva³. O processo de triagem é baseado no modelo de priorização,
descrito na Tabela 2.1. Segundo a Resolução número 2.156/2016 do Conselho Federal de Medicina
(CFM)¹, a primeira prioridade se refere aos pacientes que necessitam de terapia de suporte à vida,
que têm grandes chances de recuperação e que não possuem limitação de suporte terapêutico.
A segunda engloba aqueles que requerem monitorização intensiva e, também, não têm restrição
de suporte. A terceira prioridade contempla os pacientes que, embora precisem de intervenções
de terapia intensiva, têm baixa probabilidade de se recuperarem ou têm alguma limitação do cui-
dado. A quarta, por sua vez, inclui os indivíduos com alto risco de descompensação, que necessi-
tam de monitorização contínua, mas que possuem restrição de intervenção terapêutica. Por fim, a
quinta prioridade diz respeito aos pacientes com condições terminais ou moribundos, sem pers-
pectiva de recuperação. Os doentes classificados como prioridades dois e quatro, devido ao fato
de exigirem, inicialmente, apenas a monitorização intensiva, devem ser, preferencialmente, admi-
tidos em unidades de cuidados intermediários ou semi-intensivas¹, evitando, assim, a sobrecarga
das unidades de terapia intensiva. Por outro lado, na fase de terminalidade, os doentes devem ser
acompanhados em unidades de cuidados paliativos¹ e devem ser admitidos em UTI apenas em
caráter excepcional.
C ri t é ri o s d e A d m i s s ã o e d e A l t a n a U T I 7

Tabela 2.1. Critérios de priorização para admissão de paciente em UTI


Pacientes que necessitam de terapia de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem limitação de
Prioridade 1
cuidado.
Prioridade 2 Pacientes que necessitam de monitorização intensiva e sem limitação de cuidado.
Pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, mas com baixa probabilidade de recuperação ou com
Prioridade 3
limitação de cuidado.
Prioridade 4 Pacientes que necessitam de monitorização intensiva, mas com limitação de cuidado.
Prioridade 5 Pacientes com doença em estágio terminal, ou moribundos, sem perspectiva de recuperação.

Dados da resolução CFM N° 2.156/20161. Autoria própria.

Critérios para a alta da UTI


Um dos indicadores de maior impacto nos custos assistencial e econômico é o tempo de
permanência na UTI. Ele é aumentado por circunstâncias como atrasos na realização de procedi-
mentos e de exames, ocorrência de eventos adversos, além das condições sociais dos pacientes.
Uma das funções da equipe multidisciplinar, liderada pelo médico intensivista coordenador da
unidade, é a de avaliar, diariamente, a possibilidade de alta, adequando o tempo de permanên-
cia efetivado, ao tempo de permanência previsto para a condição clínica que levou o doente à
internação na unidade. Nesse propósito, é recomendado que cada UTI estabeleça seus próprios
critérios de alta, a fim de facilitar o fluxo dos pacientes no ambiente hospitalar. Esses pontos de-
vem incluir a estabilização do paciente e o controle do quadro clínico¹, de forma que o tratamento
possa ser continuado em outro local. A existência de unidades de cuidados intermediários pode
facilitar a alta, na medida em que oferece cuidados indisponíveis na enfermaria, mas que são ne-
cessários para a plena recuperação. Outra condição passível de alta inclui aquela em que todas as
possibilidades terapêuticas curativas ou restaurativas tenham se esgotado e que o paciente tenha
condição de permanecer em algum ambiente extra-UTI, preferencialmente junto à família¹.

Pontos-chave
• O estabelecimento de critérios de admissão e de alta na UTI é fundamental para a
racionalização dos recursos de terapia intensiva e para se alcançar um melhor fluxo de
atendimento médico na unidade;
• As admissões na UTI são orientadas por um conjunto de fatores, como necessidade
de intervenção de suporte à vida, diagnóstico, prognóstico, disponibilidade de leitos,
condição clínica do doente e limitação de suporte terapêutico;
• A triagem segue o modelo de priorização, que considera a necessidade de intervenção de
suporte à vida, a probabilidade de recuperação e a existência ou a ausência de limitação
de suporte terapêutico. Não deve haver qualquer forma de discriminação.
• Os critérios de alta incluem a estabilização e o controle do quadro clínico do paciente
ou a possibilidade de permanência em ambiente fora da UTI, quando todo o arsenal
terapêutico for esgotado.
8 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Leitura sugerida
1. Conselho Federal de Medicina. Resolução N° 2.156/2016 – Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade
de terapia intensiva. Publicada no D.O.U. de 17 de novembro de 2016, Seção I, p. 138-139.
2. AMIB [homepage na internet]. AMIB apresenta dados atualizados sobre leitos de UTI no Brasil. Disponível em:
https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/abril/28/dados_uti_amib.pdf.
3. White ST, Cardenas YR, Nates JL. O que todo intensivista deve saber sobre critérios de admissão à unidade de
terapia intensiva. Rev. bras. ter. intensiva. 2017 Dez; 29 (4): 414-417.
4. Nates JL, Nunnally M, Kleinpell R, Blosser S, Goldner JDO, Birriel B, et al. ICU Admission, Discharge, and Triage
Guidelines: A Framework to Enhance Clinical Operations, Development of Institutional Policies, and Further
Research. Critica lCare Medicine. 2016 Ago; 44 (8): p 1553-1602.
Ética em Terapia Intensiva 3

Elisa Dall’Orto Figueiredo Piuzana


Orientadora: Maria Aparecida Braga

O que é ética? Como a ética se insere na UTI?


Como os profissionais de saúde podem atuar de forma a serem
mais éticos neste ambiente?

Introdução
Este capítulo abordará um aspecto muito importante da medicina, que envolve importantes
debates e dilemas médicos: a ética. Nesse contexto, merece destaque o papel das unidades de tera-
pia intensiva (UTI), afinal, são locais onde a vida humana mostra grande vulnerabilidade e onde a
linha entre viver e morrer é a mais tênue e mais frágil possível. Por isso, para além do conhecimen-
to técnico, os médicos intensivistas devem dominar e aplicar os conceitos da ciência ética, além de
lidarem da forma mais humanizada possível, tanto com os pacientes, quanto com seus familiares,
pois a morte, na UTI, é uma realidade presente e presumível.
Em sua etimologia, “ética” significa “caráter”, “costume”, “hábito”. Por extensão, “ética” ex-
prime um conjunto de regras e de preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, que
influencia diretamente suas ações1. Partindo desse conceito, foram criados Códigos de Ética que
norteiam profissionais em suas atividades diárias, para garantir o exercício moral da profissão. O
Código de Ética Médica foi redigido e publicado pela primeira vez em 1929 no Brasil, passando
por diversas retificações e, em 2018, foi publicada sua 8ª edição2. O documento possui 26 princí-
pios fundamentais do exercício da medicina e “contém as normas que devem ser seguidas pelos
médicos no exercício de sua profissão, inclusive nas atividades relativas a ensino, pesquisa e ad-
ministração de serviços de saúde, bem como em quaisquer outras que utilizem o conhecimento
advindo do estudo da medicina”3. Para além de nortear os deveres ético-legais, o Código também
evidencia ditames que asseguram direitos aos profissionais, cuja discussão consta no Capítulo 4
deste livro.
No que tange à estruturação do conceito, em meados do século XX, partindo do conceito de
ética, começou-se a pensar em “bioética”4, que se configura como o “conjunto de considerações
que pressupõem a responsabilidade moral dos médicos e biólogos em suas pesquisas teóricas e na
10 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

aplicação delas”1. Essa nova área do conhecimento, surgiu de uma necessidade em se regulamen-
tar a atividade científica, pois ao mesmo tempo em que houve um aumento expressivo no número
de pesquisas realizadas nas áreas biológicas, não existia a definição de como atuar eticamente
nesse propósito4.
As questões éticas contemporâneas que envolvem as UTI’s são inúmeras e laboriosas: decidir
sobre investir ou não no tratamento curativo de um paciente ou partir para os cuidados paliati-
vos, após definição do estado de irreversibilidade do quadro, conforme discutido no Capítulo 7;
comunicar más notícias, conforme discutido no Capítulo 5; decidir sobre admissão e alta da UTI,
como relatado no Capítulo 2; garantir a participação dos familiares e do paciente no processo de
decisão; e promover a interação da equipe de cuidados que atua na UTI com o paciente e com os
familiares5. Neste capítulo serão abordados, principalmente, os dois últimos tópicos.

Garantindo a participação do paciente


e dos familiares no processo de decisão
“A medicina existe porque existem homens doentes”. Apesar de também ser papel do médico
o de prevenir as doenças e não só tratá-las depois de instauradas, esse antigo aforisma nos traz à
tona o óbvio que, muitas vezes, é esquecido ou ignorado pelos médicos. O paciente não é somente
um caso clínico, ele é uma pessoa e é ele quem sofre as chagas de sua doença. Por isso, deve ser ele
o principal decisor acerca dos procedimentos e dos tratamentos aos quais será submetido. A fim
de garantir isso, o artigo XXI do Código de Ética Médica institui que “no processo de tomada de
decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico
aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por
eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”3. Também, o artigo
31 do capítulo V do mesmo documento estabelece que “é vedado ao médico desrespeitar o direito
do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diag-
nósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”3.
Nas UTI’s, onde a tomada de decisão é crítica para o prognóstico, a equipe assistencial deve
redobrar a atenção e o cuidado para que o conhecimento técnico-científico, a base do ensino uni-
versitário, não o leve a ignorar a autonomia do paciente e a de seus familiares, assegurada nos
princípios legais, afinal, garantir a autonomia de decisão demonstra grande respeito. Por isso, é
importante que o médico explique, em linguagem adequada ao entendimento leigo, ao paciente
e/ou aos familiares a natureza de sua doença e o balanço de riscos e de benefícios ao se recomen-
dar um exame ou uma terapia, visto que podem existir diferentes soluções que levam ao mesmo
objetivo, com específicos prós e contras6. Ademais, é imprescindível que exista a aprovação do
paciente ou dos seus representantes, por meio do termo de consentimento informado, anterior-
mente à realização de intervenções3.
Nesse raciocínio, objetivando imputar o paciente e os seus familiares no centro da tomada
de decisão, os médicos devem ter o pensamento ético de que qualquer julgamento é passível de
erros, independentemente da certificação, por diplomas, que o profissional tenha garantida. Se o
princípio de falibilidade for lembrado no momento decisório, se assegurará, mais facilmente, que
o paciente tome conhecimento de sua situação, de forma fácil e compreensível7. Isso porque, para
ser ético, o médico tem de reconhecer que, não necessariamente, a melhor solução para o pacien-
te e para sua família é a melhor solução técnica da qual a medicina dispõe.
É t i c a e m Te ra p i a I n t e n s i v a 11

Humanização na UTI: a interação da equipe


com pacientes e com familiares
O sucesso do cuidado intensivo é resultado do trabalho em equipe, afinal, vai muito além
da monitorização das funções orgânicas e da prescrição de medicamentos. Como já discutido,
o sucesso perpassa, também, pelo respeito à autonomia dos pacientes e dos seus familiares.
Ademais, outros aspectos estão envolvidos no cuidado, como a atenção aos anseios dos insti-
tucionalizados, principalmente em momentos de incerteza prognóstica, tão comuns na reali-
dade das UTI’s. Merecem cuidado especial, também, os familiares, que convivem com o medo
diariamente, motivo pelo qual devem ser integrados à equipe desde a internação de seus entes.
Um equívoco muito comum entre a equipe médica é o de acreditar que o auxílio psicológico é
papel exclusivo do psicólogo ou do assistente social ou que isso depende apenas de habilida-
des individuais. A comunicação, o cuidado e, principalmente, a escuta ativa devem ser aptidões
desenvolvidas por todos os médicos, desde a graduação. É imperioso, urgentemente, que esses
assuntos sejam incluídos de forma decisiva nos currículos acadêmicos e desenvolvidos na edu-
cação permanente, afinal, infelizmente, não são contemplados satisfatoriamente na maioria das
escolas de graduação atuais8.
Outro ponto a se destacar é o despreparo físico do ambiente da UTI, que é visto, muitas ve-
zes, como um local pouco acolhedor e lugar de muito sofrimento, mesmo entre os profissionais
de saúde8. Isso é corroborado pelos resultados de um estudo conduzido em 2014, no Sudeste do
Brasil, cujas conclusões constataram que cerca de 50% das UTI’s não oferece qualquer comodida-
de para os visitantes e que apenas 47% delas possuem sala de reunião para o contato com fami-
liares. Uma possível hipótese para essa constatação é a de que as UTI’s são montadas visando à
conveniência dos profissionais de saúde, negligenciando, muitas vezes, os anseios dos pacientes
e dos familiares9. A humanização da UTI é um movimento atual, apesar de ainda incipiente, que
objetiva melhorias no espaço físico, de modo a possibilitar maior privacidade e maior conforto
dos indivíduos, como o controle dos níveis de ruído, instauração de boxes individualizados e de
local apropriado para comunicação de notícias9.
Infelizmente inexiste no Brasil, até então, atenção plena centrada no paciente. Para exempli-
ficar, analisando o processo de visitação, os dados são alarmantes: no Sudeste, apenas 2,6% das
UTI’s possuem políticas liberais de visitação e 71% delas restringem visitas a um período de 31 a 60
minutos. Vale considerar, porém, que, em situações de terminalidade, 98,7% das UTI’s permitem
horários flexíveis de visitação9. Não são necessárias grandes evidências para entender o papel que
um ambiente amigável depreende na melhora das condições de saúde. Porém, os dados disponí-
veis corroboram essa percepção: horários de visita mais flexíveis contribuem para reduzir os níveis
de estresse e a ansiedade entre familiares, além de facilitar o processo de comunicação entre as di-
ferentes partes envolvidas na condução do caso. Ademais, a ansiedade do paciente é amenizada, o
que reduz seus níveis hormonais e, consequentemente, complicações cardiovasculares. Essa ação
é um pilar do cuidado baseado em valor percebido pelo paciente e requer total atenção por parte
dos gestores e dos profissionais de saúde9.

Conclusão
A ética médica é aspecto crucial e inexorável no cuidado. Apesar de ser destinada, progres-
sivamente, mais atenção a essa esfera, ainda é imperioso que a humanização das unidades de
12 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

terapia Intensiva seja estimulada e que o preparo da equipe de saúde para lidar com os enfermos
e com seus familiares seja iniciado ainda na graduação. Assim, configurando-se como disciplina
indispensável, um manejo mais apropriado é conduzido e um melhor prognóstico é alcançado.

Pontos-chave
• O Código de Ética Médica é o documento legal que rege os direitos e os deveres dos
médicos no Brasil, sendo, sua última versão, publicada em 2018;
• A equipe assistencial deve respeitar a autonomia do paciente;
• O cuidado com os familiares imperioso para o bom exercício de uma medicina ética
na UTI e exige melhorias no espaço físico das unidades, a fim de que as habilidades de
comunicação sejam incentivadas. Ademais, a flexibilização dos horários de visitação
merece ser ponderada.

Leitura sugerida
1. Michaelis. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 2015. Editora Melhoramentos Ltda.
2. Conselho Federal de Medicina. Códigos de Ética Médica (versões anteriores). 17 Maio 2010.
3. Código de ética médica: resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009. Conselho Federal de Medicina –
Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2010. 70p. ISBN 978-85-87077-14-1.
4. Motta LCS, Vidal SV, Batista-Siqueira R. Bioética: afinal, o que é isto? Rev Bras Clin Med. São Paulo, 2012
set-out;10(5):431-9.
5. Pessini L. Vida e morte na UTI: a ética no fio da navalha. Rev. bioét. 2016 jan-ab; 24(1): 54-63.
6. Monte FQ. A ética na prática médica. Rev. Bioética. 2002; 10 (2): 31-46.
7. Oliveira V. A Ética na UTI. 17 abril 2013.
8. Soares M. Cuidando da família de pacientes em situação de terminalidade internados na unidade de terapia
intensiva. Rev. bras. ter. intensiva. 2007. Dez; 19(4): 481-484.
9. Ramos FJS, Fumis RRL, de Azevedo LCP, Schettino G. Políticas de visitação em unidades de terapia intensiva no
Brasil: um levantamento multicêntrico. Rev. Bras. Ter. Intensiva. 2014 Dez; 26(4): 339-346.
10. Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina (2018).
Direito Médico e a Medicina Intensiva 4

Julia de Lima Carvalho


Orientadora: Maria Aparecida Braga
Coorientador: Hermann Alexandre Vivacqua Von Tiesenhausen

Introdução
Por meio do estabelecimento de normas que regem as relações humanas e institucionais no
âmbito da saúde, o Direito Médico promove maior segurança aos pacientes e aos profissionais da
área, já que é responsável por determinar e por assegurar os seus direitos e os seus deveres. Nesse
sentido, o estudo do tema é de suma importância, especialmente para o médico intensivista, uma
vez que lidará com questões éticas, morais e legais envolvendo a vida e a saúde dos seres humanos
durante toda a sua profissão.
Nesse contexto, é importante destacar o cenário singular de fragilidade, de ansiedade e o po-
tencial risco de vida em que os pacientes sob cuidados intensivos e as suas famílias estão frequen-
temente inseridos. Para lidar com essa situação, os especialistas em medicina intensiva necessitam
de conhecimentos e de habilidades que transcendem as competências técnicas relacionadas à
medicina. Dessa forma, para mediar as partes, o direito médico é um dos protagonistas, uma vez
que vem para se concentrar nos aspectos doutrinários, relacionados às ideias e aos valores que
regem a prática médica, bem como nos aspectos normativos, que se referem às ordens e às leis
que trarão, à prática, os valores da doutrina. Este capítulo discutirá, portanto, temas relevantes
que tangem ao direito médico e à medicina intensiva, com um enfoque nos fatores que impactam
a rotina do médico intensivista.

Resolução da Diretoria Colegiada nº. 7 de 2010


A Resolução nº. 7 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)1, de 24 de fevereiro
de 2010, também conhecida como RDC 07/10, dispõe sobre os requisitos mínimos para o fun-
cionamento das unidades de terapia intensiva (UTI). A resolução em questão tem como objetivo
diminuir os riscos e viabilizar a prestação do atendimento de qualidade aos pacientes críticos,
devendo ser aplicada por todas as unidades de terapia intensiva do país, sejam públicas, sejam
privadas.
14 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

É de extrema importância que os profissionais atuantes em unidades de terapia intensiva,


que visam oferecer o melhor cuidado aos pacientes, sejam conhecedores da resolução em ques-
tão. A partir do momento em que há a consciência dos seus direitos, o profissional será capaz de
avaliar e, então, de reivindicar recursos essenciais, cuja falta poderia comprometer seu trabalho.
Nesse sentido, considerando o impacto da RDC 07/10 na qualidade do trabalho do profissional
intensivista, serão abordados, nesta sessão, alguns tópicos relevantes da resolução.
De acordo com a seção III da RDC 07/10, que dispõe sobre os recursos humanos, é reco-
mendável que todas as responsabilidades e atribuições de cada profissional da unidade sejam
designadas, descritas e divulgadas a todos que lá atuam. A UTI deve ter um Responsável Técnico
médico, um enfermeiro coordenador de equipe de enfermagem, um fisioterapeuta coordenador
da equipe de fisioterapia e seus respectivos substitutos, formalmente intitulados, sendo que eles
devem, obrigatoriamente, ter título de especialista, conforme estabelecido pelos seus respectivos
conselhos de classe e associações reconhecidas. Em relação ao responsável técnico médico, é de-
terminado que deva possuir, ipsis litteris: “título de especialista em Medicina Intensiva para gerir
uma UTI adulto; habilitação em Medicina Intensiva Pediátrica para atuação em UTI Pediátrica;
título de especialista em Pediatria com área de atuação em Neonatologia para atuação em UTI
Neonatal”. Além disso, conforme a resolução, o responsável técnico pode coordenar, no máximo,
duas UTI’s e é de sua responsabilidade a assinatura dos documentos de critérios para admissão e
para alta do paciente em sua unidade. Ademais, para que a unidade esteja apta a funcionar, deve
existir uma equipe multiprofissional habilitada, que atue exclusivamente na UTI, contendo, pelo
menos, os profissionais citados na Tabela 4.1.

Tabela 4.1. Quantidade e qualidade mínima de profissionais disponíveis na unidade de terapia intensiva,
de acordo com o artigo 14 da RDC 07/20101
Quantidade mínima de profissionais na UTI
Mínimo de 1 médico especialista em Medicina Intensiva para atuação em UTI
Médico diarista/rotineiro Adulto para cada 10 leitos ou fração, 1 para cada 10 leitos ou fração. A mesma
proporção vale para as UTI Pediátricas e Neonatais

Médicos plantonistas Mínimo de 1 para cada 10 leitos ou fração, em cada turno


Enfermeiros assistenciais Mínimo de 1 para cada 8 leitos ou fração, em cada turno
Mínimo de 1 para cada 10 leitos ou fração, nos turnos matutino, vespertino e
Fisioterapeutas
noturno, totalizando um mínimo de 18 horas diárias de atuação
Auxiliares administrativos Mínimo de 1 exclusivo da unidade
Funcionários exclusivos do serviço de limpeza Quantidade mínima não definida

De acordo com a resolução em questão, os profissionais que atuam nas UTI’s devem parti-
cipar de um programa de educação continuada que os capacitem a atuarem na unidade. Além
disso, devem estar imunizados contra tétano, difteria, hepatite B e contra outros imunobiológi-
cos. Ainda, com o intuito de prevenir e de controlar infecções relacionadas à assistência à saúde
(IRAS), a equipe da unidade intensiva deve cooperar com a Comissão de Controle de Infecção
Hospitalar (CCIH) na vigilância epidemiológica e no monitoramento das IRAS da unidade, sendo
as duas equipes responsáveis por esse controle e por essa prevenção. Outro ponto importante de
funcionamento da UTI, e essencial para o cuidado do paciente crítico, é a necessidade de se regis-
trar, no prontuário do paciente, a evolução do seu estado clínico, as eventuais intercorrências e os
cuidados prestados a ele a cada turno. Já em relação aos recursos materiais dispostos na resolução,
D i re i t o M é d i c o e a M e d i c i n a I n t e n s i v a 15

a unidade deve ter disponíveis, íntegros e higienizados, equipamentos e materiais de acordo com
a complexidade, com a necessidade e conforme a demanda da unidade. Porém, conforme a RDC
07/10, as UTI’s devem dispor de, no mínimo, os recursos materiais citados na Tabela 4.2, afinal,
entende-se que essa seja a condição material mínima para tornar possível a atuação dos profissio-
nais de saúde em uma UTI.

Tabela 4.2. Quantidade mínima de materiais e equipamentos disponíveis em UTI adulto, de acordo com o
Art. 58 da RDC 07/101
Equipamentos e materiais mínimos disponíveis a cada leito de UTI Adulto
Cama hospitalar com ajuste de posição, grades laterais e Equipamento para ressuscitação manual do tipo balão autoinflável, com
rodízios reservatório e máscara facial: 1 por leito, com reserva operacional de 1 para
cada 2 leitos
Estetoscópio Conjunto para nebulização
Quatro equipamentos para infusão contínua e controlada Equipamento e materiais que permitam monitorização contínua de:
de fluidos, com reserva operacional de 1 equipamento para • Frequência respiratória;
cada 3 leitos • Oximetria de pulso;
• Frequência cardíaca;
• Temperatura;
• Pressão arterial não-invasiva.
Fita métrica
Materiais para punção lombar Materiais para drenagem liquórica em Máscara facial que permite diferentes
sistema fechado concentrações de Oxigênio: 1 para cada 2
leitos
Oftalmoscópio Otoscópio Negatoscópio
Materiais para aspiração traqueal em Aspirador a vácuo portátil Equipamento para mensurar pressão de
sistemas aberto e fechado balonete de tubo/cânula endotraqueal
Ventilômetro portátil Capnógrafo: 01 para cada 10 leitos Materiais para drenagem torácica em
sistema fechado
Ventilador pulmonar mecânico Equipamento para ventilação pulmonar Materiais de interface facial para ventilação
microprocessado: 1 para cada 2 leitos, mecânica não invasiva: 1 para cada 10 leitos, pulmonar não invasiva 1 conjunto para cada
com reserva operacional de 1 equipamento quando o ventilador pulmonar mecânico 5 leitos
para cada 5 leitos, devendo dispor, cada microprocessado não possuir recursos para
equipamento de, no mínimo, 2 circuitos realizar a modalidade de ventilação não
completos invasiva
Relógios e calendários posicionados de Refrigerador, com temperatura interna de Materiais para acesso venoso profundo
forma a permitir visualização em todos os 2 a 8 °C, de uso exclusivo para guarda de
leitos medicamentos, com monitorização e registro
de temperatura
Materiais para flebotomia Materiais para monitorização de pressão Eletrocardiógrafo portátil: 1 equipamento
venosa central para cada 10 leitos
Materiais para punção pericárdica Dispositivo para elevar, transpor e pesar o Materiais para curativos
paciente
Monitor de débito cardíaco. Foco cirúrgico portátil Materiais para traqueostomia
Materiais e equipamento para monitorização Kit ("carrinho") contendo medicamentos e Equipamento desfibrilador e cardioversor,
de pressão arterial invasiva: 1 equipamento materiais para atendimento às emergências: com bateria: 01 para cada 5 leitos
para cada 5 leitos, com reserva operacional 1 para cada 5 leitos ou fração
de 01 equipamento para cada 10 leitos

Continua
16 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 4.2. Continuação


Equipamentos e materiais mínimos disponíveis a cada leito de UTI Adulto
Marcapasso cardíaco temporário, eletrodos e Equipamento para aferição de glicemia Materiais para cateterismo vesical de demora
gerador: 1 equipamento para cada 10 leitos capilar, específico para uso hospitalar: 1 para em sistema fechado
cada 5 leitos
Poltrona com revestimento impermeável, Maca para transporte, com grades laterais, Equipamento(s) para monitorização contínua
destinada à assistência aos pacientes: 01 suporte para soluções parenterais e suporte de múltiplos parâmetros (oximetria de pulso,
para cada 5 leitos ou fração para cilindro de oxigênio: 1 para cada 10 pressão arterial não-invasiva; cardioscopia;
leitos ou fração frequência respiratória) específico(s) para
transporte, com bateria: 1 para cada 10 leitos
ou fração
Ventilador mecânico específico para Kit (maleta) para acompanhar o transporte de Cilindro transportável de oxigênio
transporte, com bateria: 1 para cada 10 leitos pacientes graves, contendo medicamentos e
ou fração materiais para atendimento às emergências:
1 para cada 10 leitos ou fração

A resolução permite que os recursos materiais citados sejam substituídos, desde que a sua
eficácia propedêutica e terapêutica sejam comprovadas e possuam regularização junto à Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O não cumprimento das disposições presentes na RDC 07/10 configura infração sanitária e
segue as punições descritas na Lei nº 6.437, de 1977, que dispõe sobre as infrações à legislação sa-
nitária federal. Por fim, é importante ressaltar que o Conselho Federal de Medicina tem resoluções
consonantes com a RDC 07/2010 da Anvisa. As resoluções em questão são:
1. A Resolução CFM 2.153/20162, que dispõe, dentre outras coisas, sobre a estrutura mínima
necessária para o funcionamento de ambientes hospitalares, como das UTI’s, por meio
do manual de vistoria e fiscalização da medicina no Brasil; e
2. A Resolução CFM 2.271/20203, que determina a responsabilidade técnica médica, as
responsabilidades éticas, habilitações e atribuições da equipe médica necessária para o
funcionamento adequado das UTI’s.

Consentimento do paciente e a Medicina Intensiva


O consentimento na relação médico-paciente, nas unidades de terapia intensiva, é pautado
pela constante conciliação entre três partes:
1. O esclarecimento do paciente sobre a patologia da que padece e as possíveis condutas;
2. Os princípios da bioética; e
3. Os documentos legais associados a esse tipo de situação.
Prezando pelo princípio bioético da autonomia, o paciente possui total direito de participar
do processo de tomada de decisão das condutas médicas a serem realizadas. Para isso, é necessário
que o médico responsável seja capaz de transmitir as informações necessárias ao paciente de for-
ma inteligível, em um nível compatível ao de seu entendimento, bem como de esclarecer suas dú-
vidas, a fim de torná-lo capaz de tomar decisões de forma consciente. Nesse contexto, a obtenção
do consentimento verbal do paciente, associado ao registro detalhado da decisão compartilhada
no prontuário, é normalmente suficiente. No entanto, existem algumas circunstâncias em que a
elaboração escrita de um documento que esclarece e que registra a compreensão e a aceitação do
D i re i t o M é d i c o e a M e d i c i n a I n t e n s i v a 17

paciente sobre a terapêutica por ele por escolhida se torna aconselhável. Para tanto, o médico deve
solicitar o preenchimento do chamado “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido” – TCLE
(Recomendação CFM nº. 1/20164), sendo recomendado, pelo CFM, principalmente nas seguintes
situações: “(...) em procedimentos invasivos a critério médico, em determinados procedimentos
que causem desconforto ou quando a complexidade e a quantidade de efeitos dos procedimentos
não são suficientes para o entendimento por meio do consentimento verbal”. Entretanto, é impor-
tante ressaltar que a obtenção do consentimento do paciente por escrito não exime o médico do
ônus de cumprir os dispositivos éticos da profissão. Dessa forma, se o paciente sofrer algum tipo
de dano decorrente da conduta selecionada, e o ato médico for caracterizado como imprudente,
como negligente ou secundário a uma imperícia, o profissional pode responder ética e juridica-
mente pelo possível dano ao paciente.
Contudo, existem algumas situações especiais, como em uma UTI, nas quais o paciente pode
não se encontrar lúcido o suficiente para participar da tomada de decisão e, portanto, não será
possível obter o seu consentimento ou o de seu representante. Nesses casos, o médico responsável
deve avaliar e adotar a conduta cientificamente mais adequada para o caso, sempre com o intui-
to de promover tanto a beneficência, quanto a não-maleficência. Além disso, ele deve registrar e
justificar o ocorrido no prontuário médico do paciente e, cessado o impedimento, o médico deve
comunicar, imediatamente, o paciente ou o seu familiar. Como exemplo de situações que podem
justificar a não obtenção do consentimento do paciente constam as emergências médicas, a re-
cusa do paciente de receber informações sobre o caso, os riscos graves para a saúde pública, o
tratamento compulsório e os transtornos mentais.
Ainda, na busca por tentar garantir a autonomia do paciente, inclusive nas circunstâncias
mencionadas, foi criado um documento que procura registrar os desejos do paciente, enquanto
ainda estiver lúcido, no que se refere a possíveis situações futuras, em que ele não se encontra-
ria capaz de tomar decisões. Esse documento é denominado “Diretivas Antecipadas de Vontade
do paciente” e está especificado na Resolução CFM nº 1.995/20125. As Diretivas Antecipadas são
responsáveis pelo registro formal dos tipos de tratamento que o indivíduo deseja ou não receber
em uma situação em que não possa participar do processo de tomada de decisão e o documento
pode ser modificado ou revogado pelo paciente, a qualquer momento. A título de exemplo, tem-se
o indivíduo que recusa se submeter a determinados procedimentos invasivos, comumente reali-
zados na prática da medicina intensiva, ou aquele que possui ordens de não reanimação (ONR).
Vale ressaltar, também, que as Diretivas Antecipadas de Vontade do paciente resguardam o médi-
co de eventual responsabilização por realização ou não de conduta ética, escolhida previamente
pelo paciente. No entanto, apesar de protagonizar os desejos do paciente, de promover uma maior
dignidade e de auxiliar o médico na tomada de decisão, os desejos registrados no documento em
questão não podem ferir os princípios bioéticos e legais. Um exemplo dessa situação seria a de
um paciente em estado terminal que, em seu documento, registrou o desejo de ser submetido à
eutanásia, prática considerada ilegal no Brasil.

Regimes de contratação e solidariedade entre médico e hospital


Em sua profissão, o médico pode atuar de forma autônoma ou como celetista, ou seja, re-
gido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que consiste no Decreto-lei nº 5.452/1943,
levando em conta as alterações estabelecidas posteriormente, pela Reforma Trabalhista (Lei nº
13.467/2017). O médico que trabalha em regime celetista atua com vínculo empregatício a uma
pessoa jurídica, como um hospital ou uma clínica, e exerce a profissão como um colaborador
18 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

permanente daquele local. O médico celetista está assistido pelos direitos e pelos deveres ex-
pressos na CLT e deve seguir os seguintes princípios: pessoalidade, onerosidade, subordinação
e não eventualidade do trabalho prestado. O médico autônomo, por sua vez, exerce seu trabalho
de forma liberal, sem vínculo empregatício e, portanto, possui menor subordinação ao local
de trabalho, limitando-se a respeitar o regime interno da instituição. Ele atua de forma inde-
pendente, sendo mais livre para gerenciar seus horários e sendo responsável pelo pagamento
de seus tributos. Ainda, há instituições que escolhem fazer a contratação de pessoa jurídica e,
portanto, o profissional deve constituir dessa modalidade para realizar o trabalho. Nesse caso,
ele é contratado representando uma empresa constituída por ele mesmo, sem vínculo emprega-
tício, mas com a existência da subordinação ao contrato da empresa ao qual está vinculado. O
regime de contratação do médico influencia, inclusive, a divisão da responsabilidade de um ato
médico considerado falho. Por exemplo, quando há danos à saúde do paciente dentro de uma
instituição de saúde, um dos pontos de análise é a participação da instituição no ato médico
cometido. Se um profissional exibe o vínculo empregatício, como um celetista, ou se trabalha de
forma liberal, mas fazendo uso dos recursos do estabelecimento de saúde para exercer sua pro-
fissão, a responsabilidade da culpa será compartilhada com a instituição. Dessa forma, haverá
a obrigação solidária do médico e do hospital pela reparação do dano sofrido pelo paciente, ou
seja, haverá a inclusão de ambas as partes no processo de responsabilização e de indenização,
de acordo com o Código Civil. Entretanto, caso o dano ao paciente seja decorrente de uma falha
restrita do médico, sem que ele tenha vínculo com o estabelecimento de saúde ou sem que seja
preposto da instituição, a responsabilidade será atribuída exclusivamente ao profissional, de
forma subjetiva, pessoal e intransferível.

Sigilo médico
O sigilo médico é um dos principais pilares da medicina, constituindo parte do juramento
médico de Hipócrates e sendo, portanto, pauta desde a Grécia Antiga. Sem esse princípio, não
é possível estabelecer uma relação médico-paciente de confiança e, dessa forma, o exercício da
medicina é totalmente comprometido. Devido à relevância desse tema e à necessidade de se ga-
rantir a intimidade e a privacidade do paciente, o sigilo é regulamentado não só pelo Código de
Ética Médica6 (CEM), como também pelo Código Penal e pelo Código Civil Brasileiro. De acordo
com o capítulo IX do CEM, “É vedado ao médico: revelar fato que tenha conhecimento em virtude
do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito,
do paciente”. Essa proibição deve ser mantida mesmo se for de consentimento público ou após a
morte do paciente. Além disso, se for questionado durante uma investigação ou se for intimado
para depor como testemunha, o médico deve comparecer e declarar o seu impedimento. O sigilo
permanece ainda que as informações pessoais do paciente sejam solicitadas por dirigentes de
empresas ou por companhias seguradoras. O não cumprimento das disposições éticas e legais
a respeito do sigilo médico pode implicar penalidades previstas pelo Código Penal, pelo Código
Civil e pelo CEM.
Entretanto, em algumas situações o segredo médico pode e deve ser quebrado, como
acontece:
• Em condições de dever legal, que abrange os casos especificados em lei (doenças de
notificação compulsória, por exemplo);
D i re i t o M é d i c o e a M e d i c i n a I n t e n s i v a 19

• Na vigência de motivos justos, isto é, em situações nas quais a manutenção do segredo


promove riscos à vida do paciente ou de terceiros, como no caso de um motorista de
caminhão diagnosticado com epilepsia;
• Se houver consentimento do paciente ou de seu representante legal.

Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)


De acordo com o Art. 5º da Constituição Brasileira de 1988, a privacidade é um direito
fundamental da pessoa humana e, portanto, são previstas indenizações pelos danos material
ou moral, advindos de sua suposta violação. Nesse sentido, como forma de proteger a inti-
midade humana, principalmente em um contexto de profunda globalização e de fácil acesso
a informações, foi sancionada a Lei nº 13.709/20187, denominada “Lei Geral de Proteção de
Dados pessoais” (LGPD), que entrará em vigor em maio de 2021. A LGPD regulamenta a políti-
ca de tratamento de dados pessoais por empresas, a fim de obter maior proteção, maior priva-
cidade e maior transparência das informações de pessoas físicas. O seu impacto no âmbito da
saúde é grande, afinal, as instituições provedoras de serviços médicos lidam com o armazena-
mento dos prontuários dos pacientes, muitas vezes eletrônicos, que contêm dados íntimos. As
informações contidas no prontuário médico são consideradas “dados pessoais sensíveis” e, de
acordo com o Art. 11 da LGPD, só poderão ser usadas com autorização expressa do titular ou
em situações em que seu uso é indispensável, mesmo sem o consentimento do proprietário,
como em condições de:

“ (...)
e) proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiros;
f) tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde,
serviços de saúde ou autoridade sanitária; (...)”.

Ainda, a legislação em questão prevê que os pacientes tenham o direito de saber quando, por
quem e para qual finalidade seus dados foram usados e permitirá que eles restrinjam o direito ao
acesso de suas informações pessoais ou as excluam a qualquer momento. Além disso, o não cum-
primento das normas ditadas pelo instrumento, seja por compartilhamento de dados, seja por uso
inadequado de redes sociais, seja por negligência no armazenamento dos dados dos pacientes,
por exemplo, pode acarretar multas de até 50 milhões de reais e, dependendo da violação, pode
implicar processo judicial.
Entretanto, de forma geral, no que se diz respeito à saúde, a LGPD somente regulamenta,
de forma mais específica, a conduta ética de sigilo profissional e de proteção de informações que
já era esperada do médico e da instituição de saúde. O direito à privacidade é um tema mile-
nar, principalmente na esfera da saúde, e o compromisso com a sua proteção já era discutida por
Hipócrates, considerado como o “pai da medicina”. Constatação essa corroborada em seus dize-
res: “Penetrando no interior das famílias, meus olhos serão cegos e minha língua calará os segre-
dos que me forem confiados” - Hipócrates, 460 a.C.
20 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• Por meio da legislação vigente, o direito médico determina os direitos e os deveres
dos indivíduos inseridos no cuidado da saúde;
• A RDC 07/10 dispõe sobre os requisitos mínimos para o funcionamento das UTI’s;
• O Conselho Federal de Medicina dispõe das resoluções 2.153/2016 e 2.271/2020, as
quais estão em consonância com a RDC 07/2010 da Anvisa e, portanto, devem ser
seguidas;
• O paciente possui o direito de participar do processo de tomada de decisão das
condutas médicas a serem realizadas;
• Existem regras específicas para a aplicação das Diretivas Antecipadas de Vontade e
do TCLE, cujo conhecimento é imprescindível à equipe de saúde;
• Diferentes formas de contratação do profissional, por parte da instituição de saúde,
determinam diferentes vínculos;
• A LGPD regulamenta a política de tratamento de dados pessoais por empresas e,
com isso, os pacientes terão direito de saber quando, por quem e para qual finalidade
seus dados foram usados, sendo capazes de excluir ou restringir o acesso de suas
informações pessoais a qualquer momento;
• O sigilo é um dos principais pilares da medicina, uma vez que o estabelecimento de
uma relação médico-paciente de confiança não existe sem esse princípio.

Leitura sugerida
1. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Brasil). Resolução no. 7, de 24 de fevereiro de 2010. Requisitos mínimos
para funcionamento de Unidades de Terapia intensiva e outras providências. Diário Oficial da União de 21 de
agosto de 2006.
2. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução CFM no. 2.153, de 18 de setembro de 2017. Manual de Vistoria
e Fiscalização da Medicina no Brasil. Diário Oficial da União 15 de nov de 2018, Seção I. Pg. 322-337.
3. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução CFM no. 2.271, de 23 de abril de 2020. Define as unidades de
terapia intensiva e unidades de cuidado intermediário conforme complexidade e nível de cuidado, determinando
a responsabilidade técnica médica, as responsabilidades éticas, habilitações e atribuições da equipe médica
necessária para seu adequado funcionamento. Diário Oficial da União 23 de abril de 2020, Seção I.
4. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Recomendação CFM no. 1 de 2016. Processo de obtenção de consenti-
mento livre e esclarecido na assistência médica. 21 de janeiro de 2015.
5. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução CFM no. 1995, de 9 de agosto de 2012. Diretivas Antecipadas
de Vontade dos pacientes. Diário Oficial da União 31 ago 2012, Seção I.
6. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução CFM no. 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas
Resoluções CFM no. 2.222/2018 e 2.226/2019. Código de Ética Médica. Diário Oficial da União 1 de nov de 2018,
Seção I.
7. Brasil. Lei no. 13709, de agosto de 2018. Código Civil. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário
Oficial da União 15 ago 2019; Seção 1.
8. França GV. Direito médico. 16. Rio de Janeiro: Forense; 2020.
Comunicação de Más Notícias 5

Cecília Diniz de Souza


Orientadora: Maria Aparecida Braga
Coorientadora: Michele Cristina del Caro Paiva

Introdução
Profissionais imersos no contexto da terapia intensiva comunicam, frequentemente, más
notícias aos pacientes e aos seus familiares. Nesse ponto, o médico assistente e o médico hori-
zontal são os responsáveis por estabelecer o contato, por sanar eventuais dúvidas, por forne-
cer suporte emocional e por propor o planejamento conjunto das condutas assumidas a partir
de cada cenário. Essa responsabilidade exige habilidades de comunicação específicas e certa
experiência, características nem sempre bem trabalhadas durante a formação e que, por isso,
podem representar grandes dificuldades quando se fazem necessárias na prática clínica. O in-
suficiente treinamento em comunicar más notícias no contexto da UTI, associado ao tempo
escasso, às instalações frequentemente inadequadas e à tendência do profissional em investir
nas intervenções técnicas práticas, muitas vezes mediadas por equipamentos tecnológicos, sem
grande envolvimento emocional e pessoal, fazem com que a situação seja particularmente de-
safiadora, podendo ser fonte de ansiedade e de insegurança1,2. No entanto, a comunicação clara
e empática, respeitando os desejos do paciente e adequada ao seu contexto e aos seus valores
pessoais, pode ser uma grande aliada do intensivista, pois propicia melhor relação médico-pa-
ciente, maior satisfação dos envolvidos e garante que o doente possa sanar suas dúvidas e ser o
centro do plano de cuidado ao qual será submetido3. Nesse sentido, a habilidade de comunicar
más notícias deve ser prezada por todo profissional de saúde, especialmente por aqueles que
atuam em contexto de pacientes críticos, como ocorre nas UTI’s, e deve ser objeto de constante
aperfeiçoamento.
Este capítulo objetiva apresentar estratégias para a comunicação de más notícias, por parte
dos profissionais de saúde, dando ênfase às etapas preconizadas pelo protocolo SPIKES4, bem
como elucidar a importância da adequação ao contexto sociocultural do paciente e da participa-
ção tanto de uma equipe multiprofissional quanto da família.
22 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

O que são más notícias


Más notícias são definidas, de modo geral, como as informações que afetam cognitiva, psico-
lógica e emocionalmente, de forma negativa, a pessoa que as recebem5. No âmbito da saúde, isso
inclui informações a pacientes e a familiares sobre a deterioração do quadro clínico, a detecção
de uma doença grave ou estigmatizante, o mau prognóstico, a perda da capacidade funcional ou
a má resposta ao tratamento que, em suma, implicam prejuízo à saúde ou redução da qualidade
de vida6. Vale destacar, porém, que o receptor da mensagem é quem classifica uma notícia em
boa ou em ruim, de acordo com o seu contexto pessoal, as suas expectativas, os seus conceitos
pré-formados e a sua experiência5-7. Nesse raciocínio, alguma coisa que seja considerada trivial
pelos profissionais de saúde, ou por alguns pacientes, pode ser interpretada como uma má notí-
cia por outro. De forma análoga, aquilo que é comumente entendido como má notícia pode ser
recebido de forma diferente, dependendo do contexto do indivíduo que a recebe. Nesse sentido,
é importante que o profissional esteja atento a cada caso e adapte as estratégias, de acordo com
as reações manifestadas7. Existem, no entanto, informações que, frequentemente, causam grande
impacto negativo e, nesses casos, é importante que a comunicação seja realizada de forma clara,
bem como participativa entre os agentes e suportiva pela equipe de saúde7.

Principais dificuldades
Ser o comunicador de más notícias não é tarefa fácil. Apesar de ser uma situação extre-
mamente comum na medicina intensiva e em outras especialidades médicas, os profissionais,
frequente e independentemente do tempo de carreira, experienciam estresse não só durante,
como também antes e depois da conversa2. Isso porque a preparação para o momento costuma
gerar ansiedade no prestador de serviço, quando ele tenta prever quais serão as reações dos
pacientes e dos familiares, bem como qual é a melhor forma de apresentar a informação. Esse
é o momento ideal para que o médico lide com as emoções despertadas pela situação, embora,
nem sempre, seja usufruído dessa forma4,5. Ademais, durante a conversa, eventos inesperados,
perguntas não antecipadas, ambientação inadequada e tempo escasso podem gerar sofrimento
extra ao profissional. O confronto entre suas emoções e as emoções dos interlocutores, situa-
ção para a qual os profissionais de saúde raramente estão preparados, impactam na mesma
medida2,5. Por isso, é comum que a comunicação seja inadequada, que as informações sejam
omitidas, ou que sejam apresentadas de forma incompreensível, imprecisa ou irreal. Nesse ra-
ciocínio, não é raro, por exemplo, que pacientes em cuidados paliativos acreditem estar sendo
submetidos a tratamentos curativos2,5,6.
Muitos profissionais sentem medo e desconforto ao comunicar más notícias. Medo esse,
possivelmente, associado à recepção da informação, ao temor de ser culpado, pelos interlocu-
tores por aquele desfecho, ao desejo de não diminuir as esperanças e de não causar sofrimento
excessivo. Ademais, pode ser atribuído à relação médico-paciente intensa e positiva, atingin-
do, portanto, o luto do próprio médico ou à relação distante com o paciente e com a família,
o que implica incerteza quanto ao que esperar2,5. No mesmo raciocínio, o desconforto pode
ser associado ao confronto do médico com a sua incapacidade, com o sentimento de culpa e
com a própria vulnerabilidade, ou ao receio de não ter todas as respostas para as perguntas
possíveis2,5. Embora essas reações sejam comuns e legítimas, é importante que o profissional
se dedique a explorar os sentimentos, evitando, assim, que impliquem na tomada inadequada
de alguma decisão.
C o m u n i c a ç ã o d e M á s N o t í c i a s 23

O insuficiente treinamento no tema é particularmente desafiador e, por isso, estudantes e re-


sidentes de medicina, normalmente inexperientes, sentem-se inseguros ao comunicar más notí-
cias1,2. Nesse ponto, ressalta-se a necessidade de que o assunto seja adequadamente abordado nos
cursos de graduação, possibilitando que os alunos tenham alguma instrução e que o impacto do
procedimento sobre sua saúde mental seja minimizado1,2,8. Embora, muitas vezes, existam times
responsáveis pela comunicação de más notícias nos hospitais, que incluem médicos, psicólogos,
enfermeiros e outros profissionais de saúde, as pessoas incumbidas do ato devem ser alternadas,
visando ao zelo da saúde mental da equipe9.

Percepção dos pacientes e dos familiares


Por definição, o paciente internado em UTI é aquele que necessita de cuidados intensivos
devido a qualquer condição débil de saúde, com provável risco de vida ou de que graves compli-
cações se desenrolem. Muitas vezes, esses pacientes são acompanhados por familiares (filhos,
irmãos, cônjuges, pais) ou por amigos10, que ficam imersos em um contexto altamente estres-
sante, muitas vezes privados de sono, submetidos a regime irregular de alimentação e afastados
da sua rotina diária10. Nesse contexto, não é raro observar a instauração ou o agravo de transtor-
nos psiquiátricos subjacentes, como depressão, ansiedade, síndrome do pânico e síndrome do
estresse pós-traumático11,12, seja durante, seja após o período de internação (nesse caso, fazen-
do parte da Síndrome Pós-Terapia Intensiva)11, tanto no paciente, quanto nos acompanhantes.
Estresse, esse, influente na qualidade da comunicação médico-paciente-família, bem como na
demanda por e na necessidade de se obter informações que subsidiem a tomada de decisão.
O médico intensivista deve ter em mente, sempre, o contexto daquele que recebe as notí-
cias, bem como deve fazer as adaptações necessárias para cada paciente ou familiar, de acordo
com a capacidade de entendimento e com as reações advindas pela novidade apresentada4,6,13.
Vale considerar que, em geral, os ouvintes desejam ser informados sobre o diagnóstico e sobre as
opções possíveis de conduta1,2,13,14. No entanto, uma menor parcela deles não deseja saber sobre o
prognóstico, o que chama a atenção para a necessidade de se conduzir uma investigação cautelo-
sa sobre as vontades em questão, bem como de modular a quantidade de detalhes fornecidos, de
acordo, também, com a necessidade2.
No que tange aos cuidados de fim de vida, por exemplo, pode ser necessário explicitar as
perspectivas. Por outro lado, quando o prognóstico é favorável, não se pode deixar de oferecer as
informações que têm potencial impacto decisório, enquanto os detalhes mais específicos podem
ser fornecidos, de acordo com a vontade expressa2,6. Em geral, familiares e pacientes do sexo fe-
minino, e com maior nível de educação, mostram maior interesse por detalhes2,14, enquanto os do
sexo masculino e de menor escolaridade preferem conhecer apenas o que for essencial. Fatores
étnico-culturais, nível socioeconômico e religião também influenciam a comunicação2,3. É impor-
tante ressaltar, no entanto, que a decisão entre compartilhar ou não as informações mais detalha-
das deve ser individualizada.
Ressalta-se, ainda, que a forma como o profissional comunica a notícia influencia forte-
mente a percepção dos interlocutores. Nesse sentido, informações vagas e imprecisas, bem como
respostas incompletas às perguntas apresentadas, podem imprimir um otimismo que não corres-
ponde à realidade2,3,10. Isso pode influenciar negativamente as decisões, aumentando, por exem-
plo, a taxa de intervenções invasivas e de procedimentos de ressuscitação em pacientes no fim de
vida15. Respeitando as vontades do paciente e da família e evitando jargões, rispidez e exageros
24 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

nas preocupações apresentadas, a comunicação deve ser clara e simples e as perguntas devem ser
precisamente respondidas4,6.

Protocolo SPIKES
O protocolo SPIKES foi criado no final da década de 1990, com a intenção de orientar mé-
dicos oncologistas quanto à comunicação de más notícias. Na contemporaneidade, ele tem sido
considerado a principal ferramenta para guiar os profissionais de saúde em vários contextos, ex-
trapolando o paciente oncológico, sendo aplicado também por intensivistas. Essa ferramenta é
composta por 6 passos, cada um representado por uma letra da sigla SPIKES, que sumarizam as
recomendações principais. Ressalta-se, contudo, que essas etapas são úteis no propósito de guiar
o comunicador e não limitam a sua conduta, que deve ter flexibilidade para adaptar o discurso,
o ambiente e as propostas, da forma mais propícia para cada situação. O protocolo, dessa for-
ma, representa uma recomendação e não uma regra, devendo o profissional realizar as alterações
necessárias.

Primeiro passo: preparar o encontro


(do inglês, S – Setting up the interview)
O profissional deve se assegurar de que a conversa seja realizada em um local adequado,
preferencialmente em um espaço que tenha assentos para si e para os interlocutores. Ademais, é
importante assegurar a privacidade, seja em uma sala separada, seja isolando o leito com corti-
nas. Se for possível, deve-se dar preferência a um ambiente silencioso onde não haverá interrup-
ções. Também é necessário que o profissional reserve aquele tempo ao propósito em questão,
a fim de que a conversa possa ser feita sem pressa, abrindo espaço para perguntas. Deve haver,
também, um planejamento sobre o que será dito, pensando nas respostas das possíveis dúvidas,
momento em que se torna imprescindível o conhecimento técnico sobre a doença, o seu curso,
as suas opções de conduta e outras informações relevantes. Caso seja do desejo do paciente, a
conversa pode ser feita com a presença de um ou de mais acompanhantes, apesar de não ser
aconselhável a participação de mais de dois deles. Preferencialmente, as notícias devem ser da-
das pelo médico responsável, entendido, pelos interlocutores, como a referência do caso4,6. É
ideal que apenas uma pessoa realize essa tarefa4 e que esse indivíduo perceba os próprios senti-
mentos frente à situação.

Segundo passo: entender a percepção do paciente


(do inglês, P – Assessing the patient’s perception)
No início da conversa, deve-se perguntar ao paciente ou ao familiar qual é o seu conheci-
mento sobre a situação apresentada (o diagnóstico, o prognóstico, entre outros) e permitir que ele
exponha sua percepção. Perguntas abertas como “O que você sabe sobre sua situação de saúde/a
situação de saúde do seu familiar?” podem ser utilizadas para introduzir o assunto, pois abrem es-
paço para que a pessoa exponha a percepção. Eventuais dúvidas devem ser sanadas e mal entendi-
mentos, corrigidos. Além disso, é importante perceber a forma como os indivíduos estão lidando
com os acontecimentos, por exemplo, com negação ou com expectativas irreais. Isso deve ser feito
C o m u n i c a ç ã o d e M á s N o t í c i a s 25

antes de ser dada a notícia a fim de garantir a eficiência e de orientar o comunicador quanto ao
ponto ideal de início da conversa. Essa interpretação deve ser feita a partir da resposta obtida e
deve ser explorada, caso seja necessário.

Terceiro passo: ser convidado pelo paciente


(do inglês, I – Obtain the patient’s invitation)
Eventualmente, o paciente ou o familiar não desejará ser informado com a má notícia, ou
optará por saber apenas parte dela, e isso deve ser respeitado. O médico deve, portanto, perguntar
como quer que as informações sejam discutidas e em qual nível de profundidade. Pode ser neces-
sário discutir sobre o caso, posteriormente, com outros membros da família. Caso o paciente não
deseje que eles sejam informados é dever do profissional respeitar o sigilo, exceto nas situações
previstas no Código de Ética Médica16 (ver abaixo: Aspectos legais).

Quarto passo: informar


(do inglês, K – Giving knowledge and information to the patient)
Desde que seja manifestado o desejo do paciente, o médico tem a obrigação de informá-lo
de forma completa e de não omitir detalhes, exceto em situações especiais, discutidas na se-
quência. A comunicação deve ser adequada ao entendimento do paciente, em linguagem sim-
ples e evitando-se o emprego de jargões. É recomendado que o comunicador dê indícios da
natureza das notícias logo no início, por exemplo, com “infelizmente…”, ou com “sinto informar
que…”. Por outro lado, frases como “não há nada que possamos fazer por você” ou “já fizemos
tudo o que poderia ter sido feito” devem ser evitadas. Informações complexas devem ser ex-
postas em pequenas partes e, as mais importantes delas, podem ser repetidas para garantir um
melhor entendimento. Sempre que necessário for, deve ser dado um tempo para que os inter-
locutores processem as informações. Ademais, o profissional deve estar atento à forma como
reagem, seja verbal, seja não verbal. O contato visual e o tom de voz também são importantes
fatores que influenciam na comunicação4,6. Crispim et al17 acrescentam, ainda, que, no caso de
crianças, algumas considerações devem ser mencionadas: nesse ponto, é imperioso que a co-
municação seja conduzida por alguém com quem ela tenha um vínculo forte já estabelecido e,
muitas vezes, são os próprios familiares quem darão as notícias. Em se tratando da morte, em
especial, o comunicador deve evitar o emprego de metáforas e deve falar de forma explícita e
simples sobre o óbito4.

Quinto passo: lidar com as emoções por meio de respostas empáticas


(do inglês, E – Addressing the patients emotions with emphatic responses)
As emoções do paciente devem ser observadas e variam muito de acordo com o indivíduo,
podendo variar entre raiva, choque, tristeza e descrença, até a esperança por um milagre. Essas
reações precisam ser identificadas, assim como o motivo de cada uma delas, o que pode ser alcan-
çado por meio de perguntas. Devem ser estimuladas as expressões dos sentimentos gerados pela
notícia, por meio da escuta ativa, das perguntas direcionadoras e do processamento das ideias,
por exemplo, com “o que você quis dizer com…” ou com “você disse que está preocupado com ...,
26 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

será que poderia me explicar melhor?”. Expressões de empatia, como “sinto muito por ter que di-
zer isso”, “eu entendo que essas notícias não são boas para você” e “eu também esperava melhores
resultados, isso é muito difícil para mim” são bem-vindas, assim como as frases de validação “eu
entendo o motivo de você se sentir assim” e as perguntas exploratórias: “o que você quer dizer?”,
“me fale mais sobre isso”. Caso o contexto seja apropriado, pode-se realizar contato físico, por
exemplo, tocando o ombro do paciente, visando à transmissão da mensagem de suporte. Ressalta-
se, ainda, que, por mais que as emoções, muitas vezes, sejam dirigidas a ele, argumentar ou res-
ponder de forma agressiva não são boas formas de lidar com a situação. Isso porque as reações do
paciente ou do familiar fazem parte do processo de luto e devem ser respondidas com empatia,
com respeito, entendidas e validadas.

Sexto passo: finalizar e definir estratégias


(do inglês, S – Strategy and summary)
Após ser reservado o devido tempo para o interlocutor lidar com as primeiras emoções
e para as suas dúvidas serem sanadas, deve ser perguntado se ele está pronto para discutir as
opções de conduta, ato que eventualmente deverá ser feito em um segundo encontro. Nesse
momento, deve ser realizado um plano conjunto de ações e o médico tem o dever de garantir
o esclarecimento do paciente quanto aos riscos, aos benefícios e aos prováveis resultados de
algum tratamento, ainda que paliativo. As vontades do doente não podem ser minimizadas e
os seus maiores objetivos com as condutas precisam ser questionados, bem como suas priori-
dades e desejos. Quando o paciente não tiver a possibilidade de falar, perguntar aos familiares
sobre o que acreditam ser a vontade do doente é uma alternativa válida. No entanto, o médico
deve se atentar para não delegar, ao paciente, uma decisão que não lhe cabe no momento. Em
muitos casos, pode ser importante discutir sobre a possibilidade de suporte de vida artificial,
de intervenções invasivas ou de cuidados paliativos, detalhados no Capítulo 7, e de procedi-
mentos de ressuscitação.

Aspectos legais
No momento da comunicação de más notícias, é muito importante despender atenção no
que tange ao sigilo médico, quando tiver de lidar com familiares e com amigos. Todas as informa-
ções a serem transmitidas aos acompanhantes devem ser devidamente autorizadas pelo paciente
e as informações sensíveis devem permanecer sigilosas, mesmo que o doente venha a óbito e que
ele seja menor de idade, desde que tenha capacidade de discernimento. Apenas em situações de
exceção, previstas no Código de Ética Médica16, é permitido, ao médico, revelar informações sem
a permissão do paciente. Além disso, somente é tolerada a omissão de informações se existir, se-
cundário a elas, algum risco de dano físico ou mental, ocasião em que o doente é substituído por
um representante legal, ou quando o próprio paciente informar, expressamente, que esse é o seu
desejo. Nas demais situações, segundo o artigo 34 do Código de Ética Médica, é vedado ao médico
deixar de explicitar o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, cujos de-
talhes constam no Capítulo 3.
C o m u n i c a ç ã o d e M á s N o t í c i a s 27

Pontos-chave
• A comunicação de más notícias é uma atividade desafiadora, mas frequente na
medicina e, em especial, na terapia intensiva, devendo ser uma habilidade prezada
por todo profissional de saúde;
• A definição de más notícias é individual e, apesar de algumas situações afetarem
de forma comum a maioria dos pacientes, são eles quem classificam o que é uma
notícia ruim;
• É importante que a quantidade entregue de informações seja individualizada, de
acordo com o desejo do interlocutor;
• O protocolo SPIKES oferece uma sistematização, em seis passos, do processo de
comunicação de más notícias. No entanto, ele deve ser adaptado para cada situação,
considerando que a demandas serão diferentes em cada caso.
• São muitas as dificuldades na comunicação de más notícias. A elas deve ser dada
especial atenção, uma vez que podem interferir de forma negativa, tanto no processo
propriamente dito, quanto na saúde mental do profissional de saúde.
• Questões como quebra do sigilo médico e omissão de informações são faltas éticas
graves, previstas no Código de Ética Médica, e devem ser observadas durante a
comunicação de más notícias.

Leitura sugerida
1. Girgis A, Sanson-Fisher RW. Breaking Bad News 1: Current Best Advice for Clinicians. Behavioral Medicine.
1998;24(2):53-59.
2. Berkey FJ, Wiedemer JP, Vithalani ND. Delivering Bad or Life-Altering News. Am Fam Physician. 2018 Jul
15;98(2):99-104.
3. Araújo MA. Desenvolvimento de competência em comunicação: habilidade essencial em cuidados paliativos no
cenário da medicina intensiva [Trabalho de conclusão de curso]. Belo Horizonte: Faculdade Unimed-BH; 2020. 20
p. Pós graduação em Cuidados Paliativos.
4. Baile WF, Buckman R, Lenzi R, Gobler G, Beale EA, Kudelka, AP. SPIKES—A Six-Step Protocol for Delivering Bad
News: Application to the Patient with Cancer. The Oncologist. 2000;5:302-311.
5. Buckman, R. Breaking bad news: why is it still so difficult? British Medical Journal. 1984 May 26; 288; 1597-1599.
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Simulated Setting on Interpretation of Prognosis Among Family Members of Patients at High Risk of Intensive Care
Unit Admission: A Randomized Trial. JAMA Network Open. 2020 Apr 01; 3(4).
11. Davidson JE, Jones C, Bienvenu OJ. Family response to critical illness: postintensive care syndrome-family. Crit
Care Med. 2012 Feb;40(2):618-24.
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12. Schmidt M, Azoulay E. Having a loved one in the ICU: the forgotten family. Curr Opin Crit Care. 2012 Oct;18(5):540-
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cas para comunicação e acolhimento em diferentes cenários da pandemia. 2020; 18p.
Gestão de UTI 6

Matheus Santos Mazine Viviani


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
A concepção do agrupamento dos pacientes críticos para intensificar os cuidados, com a
finalidade de reduzir a mortalidade, iniciou-se em 1854 com os trabalhos da enfermeira britânica
Florence Nightingale, conforme discutido no capítulo 3, cujos conceitos de triagem e de vigilância
reduziram, drasticamente, a morte de soldados em estado grave. Hoje, moldada por aqueles prin-
cípios, a unidade de terapia intensiva pode ser definida como um ambiente hospitalar, dotado de
sistema organizado, que oferece suporte vital de alta complexidade para manter a vida na vigên-
cia de condições clínicas de gravidade extrema e de risco iminente de morte, como definido pela
Resolução do CFM nº 2.271/2020.

Unidades de Terapia Intensiva no Brasil


Até 2017, o país possuía 41.478 leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), distribuídos
em 521 municípios1. Esses leitos exercem um papel crucial no atendimento ao paciente grave, de
forma que o funcionamento coordenado do setor é fundamental para a redução da mortalida-
de intra-hospitalar. Para uma gestão eficiente das unidades, são necessários requisitos mínimos,
como uma equipe de profissionais especializados, tecnologias e materiais específicos, protocolos,
indicadores de saúde apropriados, benchmarking, metas, bem como a padronização de ferramen-
tas de comunicação, o que torna o setor um dos de maior complexidade dentro do hospital. Serão
apresentadas neste capítulo, então, medidas básicas que devem guiar as condutas do gestor, obje-
tivando um adequado funcionamento do serviço.

Estrutura física
As normas sobre a estrutura física são seguidas conforme a Resolução RDC nº 50, de 21 de
fevereiro de 2002. Elas visam garantir uma organização dotada de condições para internação de
30 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

pacientes críticos, prestando apoio diagnóstico laboratorial, de imagem e terapêutico por 24 ho-
ras, mantendo o monitoramento e a assistência médica contínua. O número de leitos para a UTI
deve corresponder a um mínimo de 6% do total de leitos do hospital, entretanto a evolução da
medicina determina, progressivamente, uma demanda crescente e, idealmente, essa proporção
deve ser maior, motivo pelo qual, na prática, alguns hospitais já contam com 40-50% de suas vagas
destinadas a leitos de terapia intensiva.

Qualidade do serviço e segurança do paciente


A qualidade em um determinado serviço pode ser abordada por diversas definições, com
caracterizações diferentes, o que dificulta a seleção de uma definição universalmente válida. Por
isso, individualmente, cada serviço determina seus próprios conceitos, embora seja importante
ressaltar que a qualidade dependerá de uma série de fatores, sendo comumente utilizados os indi-
cadores adaptados da Organização Mundial da Saúde (OMS)2, explicitados na Tabela 6.1.

Tabela 6.1. Indicadores para um serviço de qualidade


Indicadores OMS
Segurança Ausência de lesões devido à assistência à saúde

Prestação de serviços baseada no conhecimento científico a todos que poderão se beneficiar deles e evitar
Efetividade
a prestação àqueles que, provavelmente, não se beneficiarão

Atenção centrada no Respeitar o paciente, considerar suas preferências individuais, suas necessidades e seus valores,
paciente assegurando que a tomada de decisão será guiará por esses princípios

Oportunidade/acesso Redução do tempo de espera e dos atrasos

Eficiência Prevenção do desperdício de equipamentos, suprimentos, ideias e energias

Prestação de serviços que não variam segundo características pessoais, como gênero, etnia, localização
Equidade
geográfica e status econômico

Dados de Bengoa R, et al. Quality of care a process for making strategic choices in health systems. Geneva: World Health Organization; 20062.
Autoria própria.

É notório, portanto, o fato de a segurança do paciente ser um atributo indissociável da quali-


dade do serviço, afinal, em um ambiente expressivamente intervencionista como a UTI, a equipe
deve identificar, quantificar e prevenir eventos adversos. Nesse sentido, várias entidades interna-
cionais definiram a necessidade de uma cultura de segurança para a proteção do paciente. Sete
itens são importantes nesse propósito, definidos como liderança, trabalho em equipe, comu-
nicação, aprendizagem com erros, justiça, cuidado centrado no paciente e prática baseada em
evidências. Esses tópicos facilitam o entendimento do processo e direcionam os profissionais à
promoção da segurança. Desde 2013, as instituições brasileiras de saúde devem contar com o nú-
cleo de segurança do paciente, responsável por gerenciar todo o processo, inclusive das UTI’s.

Indicadores de saúde
No contexto de cuidados intensivos os indicadores são fundamentais, pois auxiliarão no
monitoramento de eventos adversos e de desfechos ocorridos nas internações. A escolha dos
G e s t ã o d e U T I 31

indicadores empregados tem de ser criteriosa para que os seus resultados sejam úteis na aná-
lise do sistema de saúde. Um indicador, para ser considerado bom, deve ser válido, confiável
e viável mensurável3 . A periodicidade de coleta das informações, bem como as diretrizes dos
benchmarkings, devem ser definidas. Segundo a Instrução Normativa Nº 4 de 24 de fevereiro de
2010, existem 8 indicadores obrigatórios de monitorização mensal na UTI, conforme explicita-
dos na Tabela 6.2.

Tabela 6.2. Indicadores de saúde obrigatórios na UTI


Indicadores utilizados em UTI
Taxas de mortalidade absoluta e estimada
Tempo de permanência dos pacientes na UTI
Taxa de reinternação em 24 horas
Densidade de incidência de pneumonia associada à ventilação mecânica
Taxa de utilização de ventilação mecânica
Densidade de incidência de infecção primária da corrente sanguínea (IPCS) relacionada ao acesso vascular central

Taxa de emprego do cateter venoso central


Densidade de Incidência de Infecções do trato urinário relacionadas a cateter vesical

Dados de Gouvêa CSDD, et al. Indicadores de segurança do paciente para hospitais de pacientes agudos: revisão
sistemática. Cadernos de Saúde Pública3. Autoria própria.

Os dados coletados devem ser utilizados para promover a melhoria contínua do serviço e
para identificar possíveis falhas no atendimento. A critério da própria instituição, indicadores adi-
cionais podem ser utilizados. A Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ) desenvolveu
indicadores padronizados, utilizando-se de dados de admissão hospitalar. Sua primeira ferramen-
ta foi a Patient Safety Indicator (PSI), desenvolvida em 2002, que focava, especialmente, na se-
gurança dos pacientes. Na sua versão mais recente (v2019)5, a ferramenta utiliza 18 indicadores,
entre eles a taxa de úlceras por pressão, de pneumotórax iatrogênico, de infecção de cateter veno-
so central, entre outros.
Após o levantamento dos dados, faz-se a comparação com a série histórica da unidade e/
ou utiliza-se o processo de benchmarking, definido como a comparação dos dados obtidos com
outros serviços ou com dados disponíveis na literatura. Esse processo é capaz de definir metas a
serem atingidas e identificar possíveis falhas. Estatisticamente, podem ser utilizados métodos de
comparação direta de mortalidade entre as instituições, utilizando funnelplots ou de comparações
indiretas por meio de modelos ajustados por riscos de cada paciente. Ambos se mostraram viáveis
e válidos6 para o objetivo ao qual foram propostos. É importante ressaltar que, apesar de a compa-
ração por benchmarking ser capaz de destacar os pontos deficitários de cada serviço, essa é apenas
uma etapa inicial, afinal, para uma análise integrada, devem ser considerados fatores individuais
de cada UTI7.

Equipe, transferência de cuidados e comunicação


Marcadamente, a UTI não se limita ao espaço físico e aos aparelhos de alta complexidade. O
ambiente também conta com uma equipe multidisciplinar que se submete a jornadas de traba-
32 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

lhos com turnos, com rodízios e com plantões de forte carga emocional, envolvidos por diferentes
fatores estressantes. Por isso, os serviços devem delegar atribuições e responsabilidades explícitas
a cada profissional, além de designar, formalmente, um responsável técnico médico, um enfer-
meiro como coordenador da equipe de enfermagem e um fisioterapeuta coordenador da equipe
de fisioterapia8. O grupo deve ser composto, no mínimo, por:
• 1 médico diarista a cada dez leitos ou fração, com título de especialista em UTI;
• 1 médico plantonista para cada dez leitos por turno;
• 1 enfermeiro assistencial para cada 8 leitos;
• 1 fisioterapeuta para cada 10 leitos;
• 1 técnico de enfermagem para cada 2 leitos, além de mais 1 técnico de enfermagem extra;
• 1 auxiliar administrativo por unidade.
Um dos pontos críticos no cuidado intensivo é a transferência de pacientes de diversos
setores intra ou extra-hospitalares para a unidade. Frequentemente, o diagnóstico permane-
ce obscuro para a equipe que recebe o doente, assim como, consequentemente, o tratamento
específico da condição. Os erros de comunicação contribuem, atualmente, para a ocorrência
de 250.000 mortes nos Estados Unidos9 e ocorrem, de forma rotineira, durante o processo de
intercâmbio entre setores. Esses erros podem ser minimizados com a utilização de protocolos
e de “checklists”, como o protocolo IPASS, um mnemônico desenvolvido, especialmente, para a
transferência de cuidados.
Além da admissão, o momento de troca de plantões é sabidamente um ponto crítico que
aumenta drasticamente o número de eventos adversos relacionados10. No cuidado intensivo, a
comunicação verbal e escrita são extremamente importantes e devem ser feitas de modo a passar,
para o outro profissional, uma imagem clara sobre a atual condição do paciente. No sentido de
padronizar a comunicação e de reduzir a incidência de possíveis erros, uma ferramenta útil é o
SBAR, um mnemônico facilmente memorizável que organiza a ordem da comunicação, não dei-
xando que informações importantes passem despercebidas, o que otimiza o cuidado. Os pilares
da ferramenta incluem:
• Situação: Identificar o paciente e explicar sobre o problema e a sua gravidade;
• Background: contexto do paciente, diagnóstico, informações da admissão, das medicações,
das alergias, dos sinais vitais recentes e dos exames laboratoriais;
• Avaliação: a percepção do profissional quanto ao estado de saúde do paciente;
• Recomendações: definir os próximos passos, como exames e condutas terapêuticas.
No que tange à alta do paciente da UTI para a enfermaria ou para o domicílio, um outro
desafio é estabelecido. O momento propício para a ocasião é aquele em que o paciente não mais
necessita dos cuidados intensivos ou não se beneficia deles. O tempo da alta deve ser corretamen-
te estimado, pois a readmissão em UTI está associada a piores desfechos, como menores taxas de
sobrevida, maior tempo de internação hospitalar e maior carga emocional para os pacientes11.
Nesse sentido, o escore SWIFT (Stability and Work load Index Transfer), exposto na Tabela 6.3, atua
satisfatoriamente. Pontuações acima de 15 pontos nessa ferramenta foram associadas a maiores
taxas de readmissão12.
G e s t ã o d e U T I 33

Tabela 6.3. Score SWIFT para estimativa da alta da UTI


Variável Pontuação
Local de origem
Emergência 0
Enfermaria ou outro hospital 8
Tempo de internação (dias)
<2 0
2 a 10 1
> 10 14
Última relação PaO2/FiO2  
> 400 0
400-150 5
150-100 10
< 100 13
Escala de coma de Glasgow
> 14 0
14 a 11 6
10 a 8 14
<8 24
Última avaliação da PaCO2 (mmHg)
< 45 0
> 45 5

Dados de Rosa RG, et al. The impact of critical care transition programs on outcomes afte
intensive care unit (ICU) discharge: can we get there from here? Journal of Thoracic Disease11.

Bundles e protocolos
A fim de melhorar o cuidado ao paciente crítico, em 2001 o Institute of Healthcare
Improvement (IHI), cunhou o conceito de “bundle” (pacotes de assistência ao paciente), definido
como pequenos conjuntos de intervenções baseadas em evidência, depreendidos para pacien-
tes selecionados, que, quando aplicados em cadeia, resultam em um desfecho significativamente
melhor, quando comparado à aplicação individual 13. Para criar um pacote de assistência, algumas
regras devem ser seguidas, como:
• Cada pacote deve ter entre 3 e 5 intervenções, com forte nível de evidência de
recomendação;
• Cada uma delas deve ser relativamente independente entre si;
• O pacote é destinado a uma população específica e deve ser acatado por toda a equipe
multidisciplinar;
34 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

• Ele deverá ser embasado na regra do tudo ou nada, em que somente serão contabilizados
os pacotes se todos os itens nele contidos forem executados, com exceção de possíveis
contraindicações médicas.
Nesse sentido, se um dos itens não for realizado, o pacote será contabilizado como incom-
pleto. A meta do serviço deve ser de 95% de pacotes completos. A título de ilustração, um pacote
preconizado é o Pacote de ventilação, sugerido pela IHI 14 que consiste em manter a cabeceira da
cama entre 30 e 45º, em fazer curtas interrupções diárias da sedação, avaliando parâmetros para
extubação, em realizar profilaxia contra doença ulcerosa péptica, em assumir profilaxia contra
trombose venosa profunda e em depreender cuidado oral diário à base de clorexidina. Serviços
que o adotaram relataram uma significante redução de pneumonia associada à ventilação mecâ-
nica15. Uma das explicações propostas para o sucesso dos pacotes seria o processo de trabalho em
equipe e a comunicação efetiva. Isso tende a resultar em um trabalho integrado e cooperativo, o
que melhora, consequentemente, a performance de cuidado13.
Ademais, no Brasil, seis protocolos básicos devem ser obrigatoriamente assegurados, visan-
do a segurança do paciente, sendo eles:
1. Identificação do paciente;
2. Cirurgia segura;
3. Prevenção de lesão por pressão;
4. Prática de higiene das mãos em serviço de saúde;
5. Prevenção de quedas;
6. Segurança na prescrição, no uso e na administração de medicamentos.
A prevenção de acidentes inicia-se a partir da admissão e da identificação do paciente. É
imprescindível que os doentes utilizem pulseiras de identificação duplas que contenham, pelo
menos, dois identificadores entre nome completo, nome da mãe e data de nascimento. A checa-
gem da identificação deve ocorrer antes de qualquer procedimento. Os erros de medicação, por
sua vez, englobam omissão da droga, administração de medicamento não autorizado, erros na
dosagem e preparos incorretos. O processo de prescrição, de dispensação e de administração de
fármacos é um dos mais complexos. Por isso, gestores devem disponibilizar prescrições eletrôni-
cas e dispensação em doses previamente fracionadas. Ademais, é importante que o código de bar-
ras, individualizado para cada paciente, seja empregado e que a dupla checagem seja privilegiada.
Medicamentos considerados como de alto risco devem ser identificados e o processo de dispensa-
ção merece especificidade. No mesmo raciocínio, comunicação entre integrantes da equipe é peça
singular para o sucesso das ações.

Controle de infecções e notificações


O ambiente de uma UTI combina pacientes graves em uso de antimicrobianos de amplo
espectro, com procedimentos invasivos, itens que se constituem como determinantes para um
aumento de risco de infecções hospitalares (IH). A Comissão de Controle de Infecção Hospitalar
(CCIH) é responsável pelas ações de prevenção e de controle das IH e atua de forma ativa na busca
ativa de infecções. Além disso, é responsável pelo estabelecimento de medidas profiláticas, como
higienização das mãos, e uso de equipamentos de proteção individual. A CCIH deve integrar as
equipes de gerenciamento de antimicrobianos e o núcleo de segurança do paciente. Essas equi-
pes, por sua vez, são compostas por profissionais da saúde e são totalmente integradas aos di-
versos setores da instituição, inclusive UTI’s, e buscam minimizar a incidência e a gravidade de
G e s t ã o d e U T I 35

eventos infecciosos e não infecciosos. Isso implica a adequada gestão de recursos hospitalares de
UTI, uma vez que a redução de taxas de eventos permite, além de um melhor resultado assisten-
cial, uma maior economia financeira e um menor tempo de internação de pacientes, o que gera,
consequentemente, maior disponibilidade de vagas nas UTI’s.

Pontos-chave
• A UTI é um ambiente com sistema organizado para oferecer suporte vital ao paciente
grave;
• A gestão de UTI engloba uma alta complexidade e exige componentes integrados;
• A falha na comunicação é fonte de diversos efeitos adversos e deve ser evitada;
• A segurança do paciente na UTI é um atributo indissociável à qualidade do serviço
e deve ser priorizada;
• A gestão é um processo contínuo e ativo, devendo sempre ser aprimorado para
que possa cumprir com o seu devido fim: o cuidado intensivo e seguro ao paciente
crítico.

Leitura sugerida
1. Associação de Medicina Intensiva Brasileira. Censo AMIB 2017.
2. Bengoa R, Key P, Leatherman S. Quality of care a process for making strategic choices in health systems. Geneva:
World Health Organization; 2006.
3. Gouvêa CSDD, Travassos C. Indicadores de segurança do paciente para hospitais de pacientes agudos: revisão
sistemática. Cadernos de Saúde Pública. 2010;26(6):1061-78.
4. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Brasil). Resolução No 4, de 24 de fevereiro de 2010 Dispõe sobre
indicadores para avaliação de Unidades de Terapia Intensiva. Diário Oficial da União.
5. Quality Indicators. Agency for Healthcare research and quality (AHRQ).
6. Power GS, Harrison DA. Why try to predict ICU outcomes? Current Opinion in Critical Care. 2014;20(5):544-9.
7. Afessa B, Keegan MT, Hubmayr RD, Naessens JM, Gajic O, Long KH, et al. Evaluating the Performance of an
Institution Using an Intensive Care Unit Benchmark. Mayo Clinic Proceedings. 2005;80(2):174-80.
8. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Brasil). RESOLUÇÃO Nº 7, DE 24 DE FEVEREIRO DE 2010 Dispõe
sobre os requisitos mínimos para funcionamento de Unidades de Terapia Intensiva e dá outras providências.
Diário Oficial da União.
9. Makary MA, Daniel M. Medical error – the third leading cause of death in the US. Bmj. 2016:i2139.
10. Petersen LA. Does Housestaff Discontinuity of Care Increase the Risk for Preventable Adverse Events?
AnnalsofInternal Medicine. 1994;121(11):866.
11. Rosa RG, Maccari JG, Cremonese RV, Tonietto TF, Cremonese RV, Teixeira C. The impact of critical care transition
programs on outcomes after intensive care unit (ICU) discharge: can we get there from here? Journal of Thoracic
Disease. 2016;8(7):1374-6.
12. Kareliusson F, Geer LD, Tibblin AO. Risk prediction of ICU readmission in a mixed surgical and medical population.
JournalofIntensiveCare. 2015;3(1).
13. Resar R, Griffin FA, Haraden C, Nolan TW. Using Care Bundles to Improve Health Care Quality. IHI Innovation
Series white paper. Cambridge, Massachusetts: Institute for Healthcare Improvement, 2012.
14. How-to Guide: Prevent Ventilator-Associated Pneumonia. Cambridge, MA: Institute for Healthcare Improvement, 2012.
15. Burger CD, Resar RK. “Ventilator Bundle” Approach to Prevention of Ventilator-Associated Pneumonia.
MayoClinicProceedings. 2006;81(6):849-50.
Cuidados Paliativos na UTI 7

Lícia Berberich Melo


Orientadora: Maria Aparecida Braga
Coorientadora: Marília de Aguiar Araújo

Introdução
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), “os cuidados paliativos são uma
abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes (adultos e crianças) e de suas famílias,
que enfrentam doenças com risco de vida. Previne e alivia o sofrimento através da identificação
precoce, avaliação e tratamento corretos da dor e outros problemas, físico, psicossociais ou espiri-
tuais”. Compreende-se, portanto, que os cuidados paliativos não se limitam à terminalidade, mas
que trazem uma visão mais abrangente do processo de fim de vida1-4.

Princípios dos cuidados paliativos


Os princípios dos cuidados paliativos, pormenorizados no Quadro 7.1, são reconhecidos e
merecem grande atenção.

Quadro 7.1. Princípios dos cuidados paliativos


Promover o alívio da dor e de outros sintomas aflitivos
Asseverar a vida e considerar a morte um processo natural
Não apressurar ou prorrogar a morte
Agregar os aspectos psicológicos e espirituais no cuidado ao paciente
Prestar um suporte que possibilite o paciente viver o mais dinamicamente possível até a morte
Ofertar um sistema de suporte para assistir os familiares durante a doença do paciente e a enfrentar o luto
Utilizar uma abordagem multiprofissional para atender as necessidades dos pacientes e de seus familiares, incluindo o acompanhamento no luto
Melhorar o bem-estar global e influenciar positivamente o curso da doença
Iniciar-se de forma prematura, no começo do curso da doença, associadamente a medidas empreendidas para prolongar a vida, como a
quimioterapia e a radioterapia. Ademais, deve abranger todas as investigações indispensáveis para melhor compreender e administrar as
complicações clínicas angustiantes

Dados do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo1, de Tavares RC e Parsons H3 e da Organização Mundial da Saúde4.
Autoria própria.
38 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Aspectos legais e éticos


Em 2009, o Conselho Federal de Medicina incluiu em seu novo Código de Ética Médica, deta-
lhado no Capítulo 3, os cuidados paliativos como um princípio fundamental2,3,5, cujos trechos são,
a seguir, explicitados.

Resolução CFM Nº 1931/2009


“Capítulo I
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
XXII- Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedi-
mentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção
todos os cuidados paliativos apropriados.”
No que diz respeito à relação com pacientes e familiares, o Código de Ética Médica ainda prevê:
“Capítulo V
RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES
É vedado ao médico:
Art.41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os
cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis
ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua
impossibilidade, a de seu representante legal.”

Abordagem dos cuidados paliativos na UTI


A admissão de pacientes com condições agudas ou crônicas, que ameaçam a vida, é frequen-
te na unidade de terapia intensiva (UTI), o que torna os cuidados paliativos intrínsecos à prática
diária dos intensivistas. Nesse contexto, a implementação da abordagem paliativa, bem como o
desenvolvimento de habilidades pelos profissionais, são essenciais para o cuidado nesse âmbi-
to6-8. O II Fórum da AMIB2 sobre cuidados paliativos na UTI definiu uma classificação, exposta na
Tabela 7.1, para as fases de assistência aos pacientes e aos seus familiares.

Tabela 7.1. Fases de assistência em cuidados paliativos na UTI


Engloba quase todos os pacientes da UTI e os cuidados visam à cura ou ao controle da doença. Os cuidados paliativos nessa
Fase 1
fase têm como objetivo controlar os sintomas e realizar uma comunicação empática com o paciente e com a sua família.
Abrange os pacientes, nos quais a cura ou o controle da doença são improváveis. Nessa fase, os cuidados paliativos buscam
Fase 2
garantir conforto e qualidade de vida aos pacientes e aos seus familiares.
Refere-se aos pacientes cujo risco de morte é iminente ou inevitável. Nesse momento, há um cuidado máximo, visando
Fase 3
promover conforto, alívio da dor, controle de outros sintomas e qualidade de vida.

Dados de Guimarães HP, et al9; Moritz RD, et al2.


C u i d a d o s P a l i a t i v o s n a U T I 39

Conforme o Manual de Medicina Intensiva da AMIB9, pode-se incluir uma quarta fase de
assistência em cuidados paliativos na UTI, que compreende o momento após o óbito do paciente.
Nesse estágio, os cuidados paliativos também são fundamentais e envolvem a comunicação de
más notícias, o suporte e o apoio aos familiares.
Existem dois modelos principais de abordagem dos cuidados paliativos na UTI: o integra-
tivo e o consultivo. Esses dois modelos podem e devem, preferencialmente, ser combinados
na prática7,10-12. O modelo integrativo é baseado na ideia de incorporar os cuidados paliativos
na prática diária da UTI, sendo a própria equipe da unidade a responsável por esses cuidados,
avaliando diariamente os sintomas e as necessidades dos pacientes. A comunicação com os fa-
miliares é estruturada e padronizada independentemente do prognóstico. A vantagem desse
modelo é o fato de ser aplicável a todos os pacientes da UTI como parte de seus planos de cui-
dado, além de não haver a necessidade da contratação de profissionais adicionais. A principal
desvantagem do modelo ocorre em razão dos cuidados paliativos serem fornecidos por profis-
sionais não especialistas, que, muitas vezes, não dominam as habilidades de comunicação e que
relutam em mudar suas práticas, implicando, não raramente, um cuidado pouco efetivo e muito
variável7,10,11,12. Por outro lado, o modelo consultivo baseia-se na prestação dos cuidados palia-
tivos por especialistas. Nesse modelo, são selecionados os pacientes que mais se beneficiariam
dos cuidados, por meio de critérios de triagem. A principal vantagem dessa abordagem é a sua
maior eficácia, de acordo com a literatura, estando associada a uma diminuição no tempo de
internação na UTI e a uma redução do emprego de técnicas suportivas, não benéficas ao pacien-
te. Contudo, existem desvantagens nesse modelo, dentre as quais se elencam a dependência de
especialistas e a fragmentação do atendimento ao paciente, o que pode gerar conflitos entre os
diversos profissionais envolvidos nos cuidados desse paciente7,10,11,12. Independente do modelo
adotado, os cuidados paliativos devem estar presentes em todas as fases do cuidado, bem como
devem ser objetivo de treinamento continuado e de eficácia frequentemente avaliada, visando
à melhoria contínua7,10-12.

Ferramentas para a tomada de decisões


Os princípios bioéticos da autonomia, da beneficência, da não maleficência e da justiça são
a base para a tomada de decisões adequadas no que tange ao cuidado do paciente. Há, ainda, di-
versas ferramentas que auxiliam os profissionais nesse aspecto, como as escalas e os instrumentos
de avaliação de sintomas. Outro ponto essencial é a comunicação hábil, bem como as estratégias
compartilhadas de tomada de decisão entre os profissionais que atuam na UTI, visando garantir
que os tratamentos depreendidos estejam alinhados com metas realistas e atingíveis1-3,10,13,14. Vale
ressaltar que a habilidade de comunicação, discutida no capítulo 5, não se limita à equipe multi-
disciplinar, mas também envolve o contato com o paciente e com os seus familiares, sendo impor-
tante a comunicação empática e centrada em suas necessidades1-3,7,10,13,15.

Escalas e instrumentos
A avaliação do paciente submetido aos cuidados paliativos deve ter uma abordagem ampla
para compreender a doença que o acomete, a sua evolução, os tratamentos já realizados, os sin-
tomas presentes, os medicamentos propostos, o prognóstico e as expectativas. Nesse propósito,
40 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

diversos instrumentos e escalas auxiliam os profissionais. Uma das mais utilizadas é a Palliative
Performance Scale (PPS), uma ferramenta que descreve, rapidamente, o estado funcional do pa-
ciente, por meio da avaliação de cinco critérios: deambulação, atividade e evidência da doença,
autocuidado, ingesta e nível de consciência. É uma escala útil como critério de avaliação de tra-
balho e outras medidas, além de parecer ter algum valor prognóstico, afinal, quando seu valor é
menor que 50%, pressupõe-se que o paciente tenha menos de seis meses de expectativa de vida.
Outras ferramentas prognósticas muito utilizadas na prática são o Palliative Prognostic Index (PPI)
e a Clinical Frailty Scale (CFS)1,3,14,16. A Edmonton Symptom Assessment System (ESAS), por sua
vez, é um instrumento utilizado para avaliar e monitorar, diariamente, nove sintomas: dor, fadiga,
náusea, depressão, ansiedade, sonolência, apetite, dispneia e bem estar. O ESAS permite que, ra-
pidamente, os profissionais reconheçam os sintomas do paciente, por meio da atribuição de notas
para cada um dos sintomas existentes, sendo zero a nota da sua ausência. Dessa forma, pode-se
agir para obter o alívio específico1,3.

Controle dos sintomas físicos


Inúmeros sintomas físicos podem ser manejados de forma a garantir maior conforto ao pa-
ciente, como tosse, náusea, vômitos, constipação, diarreia, anorexia, perda de peso, fraqueza, fa-
diga, delirium, xerostomia e hipersecreção de vias aéreas1,3,7,8,13,17.
Neste capítulo, serão abordados, especificamente, o controle da dor e da dispneia, os princi-
pais sintomas relatados por pacientes em cuidados paliativos.
A dor é o sintoma mais frequentemente relatado por pacientes internados na UTI, acome-
tendo cerca de 70% deles8. Para manejar o incômodo, é importante que a equipe depreenda uma
avalição precisa e detalhada, que domine as diferentes classificações das dores e que conheça as
modalidades de tratamento disponíveis, bem como seus efeitos, seus possíveis eventos adversos e
a farmacologia dos analgésicos. Além disso, é fundamental dispor de analgésicos opioides, assim
como de uma abordagem terapêutica diferenciada para a dor crônica e de uma avaliação e trata-
mento de outros aspectos físicos, psicológicos, sociais, culturais e espirituais do sofrimento, que
podem agravar a dor física1,3,8,13,17,18. Os princípios para o tratamento da dor crônica, determinados
pela OMS, incluem1,18:
1. Empregar, preferencialmente, a via oral, mas quando ela for indisponível, utilizar a
via transdérmica, seguida da retal, da subcutânea, da endovenosa e, em último caso,
empregar a via intramuscular;
2. Administrar os medicamentos em intervalos regulares, conforme for as suas características
farmacocinéticas, evitando que o paciente sinta dor;
3. Utilizar a escada analgésica;
4. O controle da dor deve ser individualizado;
5. Empregar adjuvantes para potencializar o efeito analgésico e para controlar os efeitos
colaterais;
6. Deve-se atentar aos detalhes, realizar a profilaxia contra possíveis efeitos colaterais e
manter reavaliação contínua para o controle da dor.
A escada analgésica, exposta no fluxograma da Figura 7.1, foi criada pela OMS em 1986, como
um modelo para orientar o manejo da dor oncológica. Atualmente, há consenso mundial quanto
ao seu uso para orientar a escolha do tratamento medicamentoso de qualquer dor, não mais ape-
nas a dor do câncer1,18.
C u i d a d o s P a l i a t i v o s n a U T I 41

DOR MODERADA
DOR LEVE DOR INTENSA
Não opiáceo
Não opiáceo + Opiáceo forte
+ Opiáceo fraco +
Adjuvante + Adjuvante
Adjuvante

Figura 7.1. Fluxograma com representação da escada analgésica, OMS, 1986. Inicialmente, para o manejo
de dor leve, utiliza-se um medicamento não opiáceo com um adjuvante. Se essa terapia não alivia a dor,
institui-se o tratamento da dor moderada, adicionando-se um opiáceo fraco. Por fim, caso a dor persista,
é realizada a troca do opioide fraco pelo forte. Dados de Conselho Regional de Medicina do Estado de São
Paulo1. Cuidado Paliativo3 e do Instituto Nacional de Câncer18. Autoria própria.

Os analgésicos não opiáceos compreendem os anti-inflamatórios não hormonais (AINH) e


os analgésicos simples (paracetamol). Os opiáceos, por sua vez, são divididos em fracos (codeí-
na, tramadol) e em fortes (morfina, metadona, fentanil, oxicodona). Quanto aos medicamentos
adjuvantes que atuam auxiliando no controle da dor, destacam-se os antidepressivos tricíclicos
(amitriptilina, imipramina, nortriptilina), os anticonvulsivantes (carbamazepina, gabapentina),
os anestésicos locais (lidocaína), os corticosteroides (dexametasona e prednisona), os antiespas-
módicos, os bifosfanatos, a cetamina e a clonidina. Outra opção de terapia adjuvante para esse
propósito é a radioterapia antiálgica, muito utilizada na oncologia, principalmente para o controle
da dor causada por metástases ósseas1,3,8,13,17,18.
O segundo sintoma muito queixado por pacientes em cuidados paliativos na UTI é a disp-
neia. O tratamento dessa condição pode ser direcionado para a causa específica, quando sua re-
versão for possível e, quando não o for, pode ser paliada, aprimorando a qualidade de vida do
doente1,3,7,8,13. Os agentes mais comumente empregados nessa abordagem são os opioides, pres-
critos em baixas doses para o controle da dispneia de graus leve a grave. Ademais, havendo com-
ponente emocional importante na sintomatologia respiratória, os benzodiazepínicos podem ser
prescritos, associados aos opioides. Outra intervenção a ser considerada no ambiente da UTI é a
instalação da ventilação mecânica não invasiva (VNI), para aliviar a dispneia por um período de
tempo limitado ou daqueles acometidos pela forma grave, refratária aos medicamentos. Ressalta-
se, porém, que essa medida paliativa deve ser bem ponderada, afinal, muitos pacientes não se
adaptam à técnica1,3,7,8,13. Nos casos em que a dor e a dispneia não são controlados, ou quando
há um sofrimento muito intenso, existe a opção de oferecer, ao paciente e aos seus familiares, a
sedação1,3,8,13,17.

Controle dos sintomas psíquicos


Os sintomas mais frequentemente relatados pelos pacientes submetidos aos cuidados palia-
tivos, bem como pelos respectivos familiares, são a ansiedade e a depressão. Uma boa relação mé-
dico-paciente é fundamental para atenuar os sintomas psicológicos dos envolvidos, por meio de
uma comunicação empática e efetiva. O manejo da ansiedade e da depressão no ambiente da UTI,
assim como toda a abordagem em cuidados paliativos, deve ser multidisciplinar1,3,13. No que tange
ao controle da ansiedade, além da terapia farmacológica, com a prescrição de benzodiazepínicos,
de buspirona e de antidepressivos, há, também, a opção de se depreender outras intervenções,
42 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

como a terapia cognitiva comportamental, a acupuntura e técnicas alternativas de relaxamen-


to1,3,13. As estratégias não farmacológicas envolvidas no tratamento da depressão são similares às
terapias alternativas utilizadas na abordagem da ansiedade. Por outro lado, a terapia farmacológi-
ca fundamenta-se na prescrição de antidepressivos, sendo os inibidores seletivos de recaptação de
serotonina (citalopram, escitalopram e sertralina) os fármacos de primeira escolha1,3,13.

Cuidados espirituais
Os cuidados paliativos avançaram muito, ao longo das décadas, quanto à atenção física e psi-
cológica idealmente depreendida para com o paciente e para com os seus familiares, mas ainda há
uma grande dificuldade em abordar os problemas espirituais que afligem o indivíduo, sejam eles
relacionados ao passado, ao presente, ao futuro, às questões religiosas, à vida, à morte ou ao sofri-
mento. Uma maneira de entender a história espiritual do paciente e, assim, de incluí-la na aborda-
gem dos cuidados paliativos, é por meio de questionários, como o FICA (mnemônico inclusivo da
fé, da importância, da comunidade e da abordagem) e o SPIRIT (afiliação religiosa, espiritualidade
pessoal, integração com comunidades espirituais ou religiosas, rituais e restrições, implicações
médicas e planejamento do fim)1,13,15,19,20. Os cuidados espirituais podem ser alcançados de diver-
sas formas, como orar com o paciente, fornecer materiais religiosos, dar um testemunho religioso,
encorajar a religiosidade, facilitar a busca por significado ou por propósito, ajudar o paciente a se
preparar para o fim da vida, aconselhar sobre relacionamentos, facilitar a comunicação, incentivar
a reflexão, permitir a esperança, comunicar-se de forma empática, comunicar as preocupações
dos pacientes a outras pessoas, facilitar o acesso do doente aos padres/pastores/clérigos/cape-
lães/líderes religiosos e espirituais1,15,13,19,20.

Pontos-chave
• Os cuidados paliativos devem ser complementares aos cuidados curativos e devem
permanecer quando não houver possibilidade de cura;
• Os cuidados paliativos têm caráter multi, inter e transdisciplinar;
• O grande objetivo dos cuidados paliativos é o de aliviar o sofrimento, por meio do
controle dos sintomas físicos, psíquicos e dos cuidados espirituais.

Leitura sugerida
1. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Cuidado Paliativo. São Paulo: CREMESP; 2008.
2. Moritz RD, Deicas A, Capalbo M, et al. II Forum of the “End of life study group of the Southern cone of America”:
palliative care definitions, recommendations and integrated actions for intensive care and pediatric intensive care
units. Ver Bras Ter Intensiva. 2011; 23(1): 24-9.
3. Tavares RC, Parsons H. Manual de cuidados paliativos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos. 2 ed.
ANCP, 2012.
C u i d a d o s P a l i a t i v o s n a U T I 43

4. World Health Organization [website]. WHO Definition of Palliative Care. Disponível em: http://www.who.int/cancer/
palliative/definition/en/. Acesso em 20 de março de 2021.
5. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução CFM nº 1931/2009. Código de Ética Médica. Diário Oficial da
União 24 set 2009, Seção I, p.90.
6. Hilton AK, Jones D, Bellomo R. Clinical review: The role of the intensivist and the rapid response team in nosoco-
mial end-of-life care. Critical Care. 2013;17(2):224.
7. Kapo J, Siegel M, Akgün K. Critical Care at the End of Life. Semin Respir Crit Care Med. 2015 Nov 24;36(06):921-33.
8. Puntillo K, Nelson JE, Weissman D, Curtis R, Weiss S, Frontera J, et al. Palliative care in the ICU: relief of pain,
dyspnea, and thirst—A report from the IPAL-ICU Advisory Board. Intensive Care Med. 2014 Feb;40(2):235-48.
9. Guimarães HP, Assunção MSCD, Carvalho FBD, Japiassú AM, Veras KN, Nácul FE et al. Manual de medicina
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10. Aslakson RA, Curtis JR, Nelson JE. The Changing Role of Palliative Care in the ICU. Critical Care Medicine. 2014
Nov;42(11):2418-28.
11. Hua M, Wunsch H. Integrating palliative care in the ICU. Current Opinion in Critical Care. 2014 Dec;20(6):673-80.
12. Nelson JE, Bassett R, Boss RD, Brasel KJ, Campbell ML, Cortez TB, et al. Models for structuring a clinical initiative
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Ultrassonografia à Beira Leito 8

Cynthia Pavelisk Iwashima


Orientadora: Maria Aparecida Braga
Coorientador: Bruno de Freitas Belezia

Introdução
A ultrassonografia à beira leito (POCUS, do inglês point-of-care ultrasonography), representa
uma das maiores inovações na área da saúde, afinal, o aparato tornou-se a extensão do exame
clínico e está ganhando cada vez mais espaço no cotidiano dos atendimentos, em virtude de sua
praticidade. A utilização de aparelhos progressivamente menores e mais resolutivos possibilita a
conclusão de diagnósticos rápidos, permite a monitorização da evolução clínica advinha de téc-
nicas terapêuticas e aumenta não só a eficácia, como também a segurança dos procedimentos in-
vasivos1. Neste capítulo, serão abordadas algumas das diversas funcionalidades dessa ferramenta.

Etapas iniciais do exame


Algumas etapas são preconizadas a fim de que a avaliação seja melhor alcançada:
1. Procurar o que é mais comum: líquido livre = anecoico = preto na imagem;
2. Avaliar qualitativamente;
3. Fazer perguntas, como “existe líquido livre?”, “deslizamento pulmonar presente?”;
4. Procurar respostas: “sim ou não”, “vazia ou cheia”, “presente ou ausente”.

Sequência do exame
Em primeiro lugar, o profissional deve identificar um problema ou alteração, para, em se-
guida, identificar como uma imagem real ou um artefato. Depois disso, é importante associar a
imagem, ou a ausência dela, ao problema identificado. Assim, será possível recomendar alguma
ação propedêutica adicional ou alguma terapêutica apropriada. Ressalta-se, por fim, que a POCUS
deve ser repetida, conforme for a necessidade clínica.
46 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Semiologia da ultrassonografia
O princípio da ultrassonografia consiste na emissão de ondas sonoras geradas pela vibração
de cristais piezoelétricos, presentes nos transdutores (probes ou sondas), que, ao entrarem em
contato com estruturas ou com órgãos de diferentes consistências, são refletidas e formam uma
imagem na tela do aparelho. A orientação dessa imagem e os planos de corte avaliados são os pla-
nos anatômicos principais longitudinais (coronal e sagital) e os transversais (horizontal ou axial)2.
A escolha pelo melhor transdutor, por sua vez, depende da aplicação clínica desejada, conforme
explicitado na Tabela 8.1.

Tabela 8.1. Tipos de transdutores


Visualiza estruturas profundas no tórax e no abdome
Convexo (abdominal) e microconvexo
Frequência de 2 a 5 MHz
Tem boa resolução para estruturas superficiais
Linear (fáscias, músculos, ossos longos, pleura, peritônio, traqueia, tireoide, vasos e nervo óptico).
Frequência 5 a 13 MHz
Transdutor de escolha para o exame cardíaco. Tem boa penetração de estruturas profundas.
Setorial (cardíaco)
Frequência 1 a 5 MHz

Dados de JAMA Intern Med (2017)2.

No que tange à análise da imagem, é imprescindível que os principais termos e conceitos


ultrassonográficos sejam de domínio do avaliador, motivo pelo qual são expostos na Tabela 8.2.

Tabela 8.2. Termos e conceitos ultrassonográficos


Ecogenicidade Quanto uma estrutura deixa passar ou refletir as ondas sonoras emitidas pelo transdutor
Imagem muito preta, representando a ausência de obstáculo à passagem das ondas, portanto, sem
Anecoico
reflexão, sem ecos = líquido (transudato)
Imagem muito branca, representa a presença de um obstáculo à passagem das ondas, com reflexão total
Hiperecoico
ou parcial, com ecos
Hipoecoico Imagem preta/cinza, simbolizando a passagem das ondas através de tecidos pouco densos
Isoecoico São estruturas diferentes, mas que têm a mesma ecogenicidade
Alterações da imagem ecográfica que não correspondem à verdadeira representação da estrutura
Artefatos
examinada
Sombra acústica posterior Sombra anecoica ou hipoecoica que aparece quando a onda sonora é totalmente bloqueada e refletida
Reverberação Padrão presente quando a onda sonora é refletida repetidamente pelo ar, produzindo falsos ecos
Cauda de cometa Visível como uma linha branca hiperecoica, produzida durante a passagem da onda

Dados de JAMA Intern Med (2017)2.

Por fim, devido ao fato de a ferramenta ser intensamente versátil, diferentes modos ultrasso-
nográficos e ajustes, de acordo com a aplicabilidade necessária, podem ser programados, confor-
me exemplificado na Tabela 8.3.
U l t ra s s o n o g ra f i a à B e i ra L e i t o 47

Tabela 8.3. Modos ultrassonográficos e principais ajustes


Modo 2D ou B (bidimensional) Mostra as imagens em tempo real e em 2 dimensões
Modo M (motion) Possibilita o estudo de estruturas que se movem
Utiliza a alteração da frequência de ondas sonoras pela reflexão, a partir de uma estrutura em movimento:
Modo doppler
estudo da função cardíaca e dos vasos
Ganho (gain) Amplifica o brilho das ondas ultrassonográficas
Profundidade (depth) Permite aproximar ou afastar a imagem
Medida (measure) Mensura distâncias e calcula volumes

Dados de JAMA Intern Med (2017)2. Autoria própria.

Exame pulmonar
A ultrassonografia à beira leito revolucionou a avaliação pulmonar. A possibilidade de iden-
tificar achados em tempo real aumentou a incorporação dessa tecnologia no ato de examinar
pacientes críticos com prováveis alterações pulmonares fatais. As doenças da topografia em aná-
lise, geralmente, alteram a proporção entre ar e água do pulmão/pleura e, gravitacionalmente,
enquanto o ar livre na cavidade situa-se superiormente, o líquido deposita-se inferiormente. Os
sinais encontrados, por sua vez, podem ser reais ou baseados em artefatos e originam-se da linha
pleural, principalmente nas agressões agudas. Dependendo do diagnóstico e das intervenções te-
rapêuticas instituídas, os sinais podem se modificar com o tempo3.

Indicações
As principais indicações para o exame incluem a insuficiência respiratória aguda, a presença
de dispneia, o choque, a insuficiência cardíaca, a sepse, o trauma de tronco, a presença de hipo-
transparência na radiografia de tórax, que pode indicar derrame pleural, hemotórax, contusão,
pneumotórax e pneumonia, bem como as fraturas de costela e do esterno3,4.

Técnica do exame
A realização do exame pulmonar é feira através do espaço intercostal (EI), que tem como
limites cranial e caudal as “sombras acústicas posteriores”, geradas pelas costelas. O paciente
pode estar em decúbito dorsal, com a cabeceira elevada, ou assentado3,4,5. Com o transdutor
convexo posicionado perpendicularmente à superfície e com o marcador para a direita (plano
transversal), ou para a região cranial (planos sagital ou coronal), a ferramenta permite a identi-
ficação de alterações locais4,5. O transdutor linear, por sua vez, pode ser empregado para a ava-
liação mais detalhada das partes moles, dos ossos e da pleura. A avaliação será realizada com o
modo B ou com o modo M, nos planos sagital, coronal e transversal2. A Tabela 8.4 expõe as áreas
de exame.
48 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 8.4. Exame do tórax: zonas 1 (anterior), 2 (lateral), 3 (póstero-lateral) e 4 (posterior)


Zona 1 Zona 2 Zona 3 Zona 4
Até a linha axilar anterior Entre as linhas axilares anterior Posterior à linha axilar posterior Medialmente à escápula
Superior: 2º ao 4º EI e posterior 4º ao 10º EI
Inferior: 5º ao 8º EI

Imagens gentilmente cedidas pelo Dr. Bruno de Freitas Belezia.

Avaliação3-5
A avaliação pulmonar começa pela identificação do “padrão A”, exemplificado na figura 8.1,
alcançada pelas seguintes etapas:
1. Localização das pleuras parietal e visceral, representadas pela 1ª linha horizontal
hiperecoica, cuja imagem é real;
2. Localização das linhas A, definidas como o artefato correspondente à reverberação e à
repetição da linha pleural. São linhas horizontais hiperecoicas, que se iniciam após a
linha pleural e que se estendem até o final da tela;
3. Localização do deslizamento pulmonar (lung sliding), evidenciado pelo movimento
contínuo da pleura visceral contra a parietal, que simboliza a presença de pulmão
adjacente (Figura 8.1). No modo B, o movimento é mais visível nas bases, conhecido
como “sinal da cortina” ou curtain sign, enquanto, no modo M, caracteriza-se por um
aspecto granulado da imagem, denominado “sinal da areia de praia” ou seashore sign. A
ausência de deslizamento pleural é representada por linhas retas paralelas, conhecido
como “sinal da estratosfera” (stratosphere sign) ou como “sinal do código de barra” (code
bar sign).

Figura 8.1. Corte ultrassonográfico evidenciando padrão A


em um EI: linha pleural + linhas A + deslizamento pulmonar
+ sombras acústicas das costelas.
Imagem gentilmente cedida pelo Dr. Bruno de Freitas Belezia.

Eventualmente, pode existir líquido disperso na cavidade torácica, evidenciado pela pre-
sença de imagem real, escura e anecoica, que separa as duas pleuras e que interrompe o des-
lizamento pulmonar. Ademais, a presença de linha B sugere a hipótese de espessamento do
interstício pulmonar por edema, por sangue, por fibrose e, indiretamente, de redução no volu-
me de ar. Essa linha é um artefato hiperecoico vertical, em formato de “cauda de cometa”, que
U l t ra s s o n o g ra f i a à B e i ra L e i t o 49

se origina da linha pleural, que se prolonga até o final da tela, de forma a apagar as linhas A, e
que acompanha o movimento de deslizamento pulmonar. Além disso, a identificação do pulso
pulmonar (lung pulse) reforça a ausência de pneumotórax, é um achado ultrassonográfico que
sinaliza a transmissão da onda do batimento cardíaco através do pulmão e, no modo M, aparece
como uma marca linear que corta a imagem do pulmão e que é sincrônica com a frequência de
pulso ou com o traçado do monitor. Por fim, o ponto pulmonar (lung point) que é um ponto de
transição entre a ausência de deslizamento pulmonar (pleuras afastadas) e a sua presença (pleu-
ras adjacentes), é um achado ultrassonográfico com especificidade de 100% para pneumotórax.

Principais achados
Dentre os principais achados do estudo, evidenciam-se o derrame pleural, a síndrome alveo-
lar, a síndrome intersticial e o pneumotórax.
O derrame pleural2-4, em primeiro lugar, caracteriza-se pela presença de líquido entre os fo-
lhetos pleurais e é representado por um espaço real anecoico. O local mais comum de identifica-lo
é a região póstero-inferior, no recesso costofrênico, conforme exposto na Figura 8.2. No modo B,
durante a respiração, a movimentação pulmonar forma uma imagem conhecida como “Jelly fish
sign” ou “sinal da água viva”. No Modo M, é possível visualizar uma imagem ondulante, denomi-
nada “sinal sinusoidal”. O POCUS permite a avaliação qualitativa e quantitativa do líquido pleural,
bem como a seleção do melhor local para a toracocentese. A ecogenicidade do líquido pode su-
gerir a sua etiologia, afinal o transudato é, geralmente, anecoico e o exsudato apresenta ecos no
interior, devido à presença de partículas, de debris ou de septos brancos, que se forem múltiplos,
formam uma imagem conhecida como “sinal do favo de mel”. Imagens com muitos ecos, septos e
com pulmão sem deslizamento sugerem empiema e hemotórax retido. O diagnóstico conclusivo
é alcançado pela análise macroscópica e microscópica do líquido puncionado pela toracocentese.

Figura 8.2. Corte ultrassonográfico evidenciando derrame pleural (DP), localizado no recesso
costofrênico. D: diafragma.
Imagem gentilmente cedida pelo Dr. Bruno de Freitas Belezia.

A síndrome alveolar3,4, ou síndrome de consolidação pulmonar, por sua vez, consiste na


perda de aeração pulmonar e na substituição do espaço por outro material. Geralmente, ocorre
secundariamente a alguma obstrução brônquica, como na atelectasia, ou ao aumento da quan-
tidade de líquido no interior do órgão, como na pneumonia. Nesses casos, o parênquima passa
a ser visualizado como um órgão sólido, fenômeno conhecido como “hepatização”. Na avaliação
50 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

ultrassonográfica podem estar presentes o broncograma aéreo, seja estático, seja dinâmico, o
derrame pleural, o “sinal do estilhaço” (shred sign), exemplificado nas Figuras 8.3 e 8.4, e a con-
solidação subpleural.

Figuras 8.3 e 8.4. Cortes ultrassonográficos evidenciando a presença de consolidação, com broncograma
aéreo e com “sinal do estilhaço” – simbolizados pelas pontas das setas.
Imagem gentilmente cedida pelo Dr. Bruno de Freitas Belezia.

A síndrome intersticial3-5, em terceiro lugar, é caracterizada pela presença das linhas B. Quanto
mais próximas, mais numerosas e mais acometerem os EI, mais intensa é a doença de base. As li-
nhas podem ser unilaterais ou bilaterais refletindo, respectivamente, um processo torácico focal,
como pneumonia intersticial, contusão e atelectasia inicial, ou difuso, a exemplo do edema agudo,
da síndrome da angústia respiratória aguda (SARA) e da fibrose intersticial. A identificação de ³ 3
linhas B em cada EI simboliza uma região alterada. Se houver, pelo menos, 2 regiões positivas, em
ambos os hemitórax, edema pulmonar é uma possível etiologia. (Figura 8.5)

Figura 8.5. (A) Linhas B isoladas (setas); (B) Linhas


B confluentes, pulmão de ecogenicidade aumentada
(colchete).
Imagem gentilmente cedida pelo Dr. Bruno de Freitas Belezia.

Ademais, o pneumotórax3,4,5 constitui importante achado. O fenômeno representa a separa-


ção dos folhetos pleurais, pela presença de ar no local. No modo B, é evidente pela presença de
linhas A e pela ausência de deslizamento pulmonar, o que caracteriza o “padrão A”, anteriormente
descrito. O local mais frequentemente acometido é a região anterior e superior do tórax (2º ao 4º
EI), onde o ar se situa, quando o paciente assume o decúbito dorsal. No Modo M, o “sinal da areia
de praia” é substituído pelo “sinal da estratosfera” e o pulso pulmonar estará ausente. O ponto pul-
monar é o sinal que confirma a doença, mas pode estar ausente no pneumotórax maciço, situação
em que o colapso é total. Vale ressaltar, porém, que a sensibilidade do exame, nesse propósito, é
superior à sua especificidade: a presença de deslizamento pulmonar, de linha B, do pulso pulmo-
nar, de alguma consolidação ou de líquido pleural exclui o diagnóstico de pneumotórax. Por outro
lado, a ausência do deslizamento pulmonar sugere a presença de pneumotórax, mas não confir-
ma. Nesse caso, as informações clínicas, como aderência pleural, tubo seletivo e intubação esofa-
U l t ra s s o n o g ra f i a à B e i ra L e i t o 51

giana ajudam no diagnóstico diferencial. Por fim, se o paciente apresentar alterações pulmonares,
como doença pulmonar obstrutiva crônica, SARA ou estiver submetido a ventilação mecânica,
pode ser mais difícil visualizar o deslizamento pulmonar. (Figura 8.6)

Figura 8.6. Corte ultrassonográfico evidenciando o ponto pulmonar


(seta). EIS e EII: espaços intercostais superior e inferior; LS negativo e
LS positivo: Lung sliding ausente e presente.
Imagem gentilmente cedida pelo Dr. Bruno de Freitas Belezia.

Avaliação no trauma
O FAST foi um dos primeiros protocolos POCUS realizado por médicos não radiologistas e
recebeu o nome de E-FAST (do inglês, avaliação ultrassonográfica focada e estendida no trauma),
ao ser acrescido do exame do tórax5,6,7.

Princípios
O exame consiste em avaliar janelas específicas para detectar a possível presença de líquido
livre nos espaços pericárdico, peritoneal e pleural, além de possibilitar a identificação de pneu-
motórax e de contusão pulmonar. A técnica tem sensibilidade variável entre 63 e 100% para o
diagnóstico de líquido na cavidade peritoneal e a obtenção de novas imagens, nas próximas 12-24
horas, evita resultados falso-negativos. Contudo, sendo o volume de líquido reduzido, o exame é
limitado na avaliação. O E-FAST, ainda, possibilita a identificação de hemopericárdio, de hemo-
peritôneo, de hemotórax, de pneumotórax e de contusão pulmonar, atuando como adjunto na
avaliação primária do trauma de tronco.

Técnica do exame
Estando o paciente em decúbito dorsal, procede-se com o exame das janelas descritas na se-
quência e complementa-se com o exame pulmonar do item 5. Geralmente, utiliza- se o Modo B e,
preferencialmente, o transdutor convexo, posicionado perpendicularmente à superfície analisada
(exceto na janela subxifoidea) e com o marcador no sentido cranial ou voltado para a direita. Os
planos obtidos são o sagital, o coronal e o transversal e o exame é positivo se existir a presença de
líquido ou de outras alterações.

Avaliação
Preconiza-se o estudo de diferentes janelas, expostas na Figura 8.7, para o estudo de pacien-
tes traumatizados. A janela subxifoidea, em primeiro lugar, cuja alternativa é a janela apical, é
examinada ao se posicionar o transdutor paralelamente à parede abdominal e tem o objetivo de
visualizar as quatro câmaras cardíacas, bem como eventual líquido pericárdico, identificado por
imagem anecoica ao redor do coração – eventualmente é hiperecoica, se houver coágulos em seu
interior5. Ademais, objetivando visualizar o espaço hepatorrenal (Morison), o transdutor é posi-
52 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

cionado com o marcador em posição cranial, perpendicularmente, na região da linha axilar média
ou posterior, entre o 7º e o 12º EI. Nesse ponto, é importante identificar o espaço compreendido
entre o fígado e o rim, o diafragma, o recesso costofrênico e o deslizamento pulmonar na base. A
presença de possível imagem anecoica, entre o fígado e o rim direito, indica líquido livre5. O es-
paço esplenorrenal, por sua vez, é avaliado com o transdutor posicionado perpendicularmente, e
com o marcador em posição cranial, na linha axilar posterior, entre o 6º e o 9º EI. Identificar o es-
paço entre o baço e o rim, o diafragma, o recesso costofrênico e o deslizamento pulmonar na base
é imprescindível. Eventual imagem anecoica no espaço esplenorrenal ou no recesso costofrênico
evidencia a presença de líquido livre5. Por fim, a avaliação do espaço pélvico é alcançada ao se
instalar o transdutor na linha abdominal média, acima do púbis, nos cortes transversal e longitu-
dinal. Eventual presença de imagem anecoica, após o término do fundo da bexiga no corte trans-
versal, bem como nas escavações retouterina ou retovesical no corte sagital, indicam líquido livre5.

Figura 8.7. Janelas do E-FAST.


Imagem gentilmente cedida pelo Dr. Bruno de Freitas Belezia e pelo acadêmico Rayner Guilherme de Souza.

Coração
O POCUS é uma ferramenta útil para o diagnóstico do derrame pericárdico e do tampo-
namento cardíaco, bem como é promissora na avaliação qualitativa e quantitativa da função
cardíaca.

Indicações
A técnica é útil para a identificação de derrame e de tamponamento pericárdicos, de insufi-
ciência respiratória aguda, de hipotensão inexplicada, de tromboembolismo pulmonar, de infar-
U l t ra s s o n o g ra f i a à B e i ra L e i t o 53

to do ventrículo direito, de hipovolemia, de sepse, de choque, de pneumotórax hipertensivo, de


insuficiência cardíaca, bem como para o estudo de dor torácica, de trauma torácico penetrante e
contuso e de parada cardíaca em AESP5,6.

Técnica do exame
Tendo o paciente assumido o decúbito dorsal ou o lateral esquerdo, inicia-se o exame das
principais janelas, expostas na Figura 8.8, preferencialmente com o transdutor setorial e com o
marcador voltado para a esquerda. O transdutor convexo é uma opção rápida nas janelas subxifoi-
dea e apical. Para avaliação qualitativa, opta-se pelo modo B. Já na quantitativa, os modos utiliza-
dos são o modo M e o Doppler5. Na janela subxifoidea (subcostal), com o transdutor insinuado sob
o apêndice xifoide e com o marcador direcionado para o ombro esquerdo do paciente, são obtidas
imagens das quatro câmaras cardíacas, do septo interventricular, bem como das valvas tricúspide
e mitral5,6. No que tange à janela apical, o transdutor é colocado na região da linha hemiclavicular
esquerda, entre o 5º e o 6º EI, no local de palpação do ictus cordis, e o marcador fica voltado para a
esquerda do paciente. Nesse ponto, devem ser obtidas imagens das quatro câmaras cardíacas, do
septo interventricular, bem como das valvas tricúspide e mitral. A janela paraesternal eixo longo
(longitudinal), é avaliada com o transdutor colocado na borda esternal esquerda, entre o 2º e o
4º EI, e com o marcador virado para o ombro direito do paciente. São obtidas, então, imagens do
ventrículo direito (VD), do septo interventricular, do ventrículo esquerdo (VE), do átrio esquer-
do, da via de saída do VE, das valvas aórtica e mitral e do início da aorta ascendente5. Por fim, a
janela paraesternal eixo curto (transversal) é avaliada após o estudo do eixo longo, rotacionando
o transdutor e direcionando o marcador para o ombro esquerdo. No momento em que a valva
mitral for identificada, o transdutor é pendulado em direção ao ápice cardíaco. São obtidas, então,
imagens do VE, do VD, do septo interventricular, da valva mitral, dos músculos papilares e do ápice
cardíaco5.

Figura 8.8. Janelas cardíacas.


Imagem gentilmente cedida pelo Dr. Bruno de Freitas Belezia e pelo acadêmico Rayner Guilherme de Souza.
54 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Avaliação5,6
No propósito de interpretar as imagens e as patologias encontradas, o profissional deve ava-
liar a presença de:
1. Derrame pericárdico e sinais de tamponamento pericárdico, pressupostos pelo colapso
das câmaras direitas, pelo maior volume da veia cava inferior e pela sua não colapsibilidade
ou com colapsibilidade inspiratória < 50%;
2. Acinesia das paredes cardíacas (“cardiac standstill”);
3. Hipocinesia ou hipercinesia das paredes cardíacas;
4. Válvulas adequadamente móveis;
5. Sinais de hipovolemia: como “kissing walls” no VE;
6. Proporção VE:VD;
7. Proporção de desvio do septo interventricular.

Miscelânia5,8
A ultrassonografia à beira leito pode ser incorporada em outras situações, dentre as quais se
incluem:
1. Abdômen agudo e sepse;
2. Parada cardiorrespiratória em atividade elétrica sem pulso;
3. Avaliação qualitativa e quantitativa da veia cava inferior;
4. Avaliação de abscessos profundos de partes moles e de celulites;
5. Trombose das veias femoral, safena magna e poplíteas;
6. Procedimentos guiados, como acesso vascular central e periférico, toracocentese,
paracentese, pericardiocentese, punção supra-púbica, nefrostomia, drenagem de
abscessos profundos de partes moles e intracavitários.

Pontos-chave
• A ultrassonografia à beira leito permite avaliação em tempo real, a monitorização
da resposta ao tratamento e a realização de intervenções invasivas guiadas,
favorecendo menores taxas de complicações;
• A associação das técnicas protocolares à avaliação clínica do paciente aumenta a
eficácia do método;
• O conhecimento e o treinamento da técnica, por parte da equipe assistencial,
favorecem a segurança do paciente.
U l t ra s s o n o g ra f i a à B e i ra L e i t o 55

Leitura sugerida
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Índices Prognósticos na UTI 9

Júlia Cheik Andrade


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
Na unidade de terapia intensiva (UTI), identificar condições que tornam pacientes mais
suscetíveis a desfechos ruins é determinante no cuidado otimizado1. Há anos, diversos parâ-
metros clínicos e laboratoriais são utilizados na identificação e na estratificação de doentes em
condições de morbimortalidade aumentada e têm sido propostos como índices prognósticos.
Esses dados possibilitam a avaliação e o acompanhamento do paciente, bem como definem a
probabilidade, por exemplo, de mortalidade, embora não impliquem em previsão individual de
sobrevivência2.
Além de direcionamento ao cuidado intensivo, os índices prognósticos são fundamentais
nos estudos clínicos, pois permitem a padronização de grupos de pacientes comparáveis e a pre-
visão do desfecho avaliado entre os grupos. Assim, as análises estatísticas dos índices prognósticos
são usualmente utilizadas, também, no contexto da gestão da UTI, por possibilitarem a identifi-
cação das necessidades inerentes à unidade, visando à alocação otimizada de recursos materiais
e humanos. Os índices prognósticos também tornam viável a comparação entre serviços, a fim de
identificar demandas locais, o que facilita o benchmarking 3.

Validação dos índices prognósticos


Antes que seu emprego seja recomendado, todo índice prognóstico deve ser validado, con-
siderando as peculiaridades da população de interesse. Critérios epidemiológicos, socioeco-
nômicos e genéticos são variáveis que podem afetar o desempenho do modelo prognóstico,
gerando, por exemplo, previsões inadequadas de um modelo americano em populações de UTI’s
brasileiras. Uma vez identificada a inadequação, podem ser realizadas alterações nos critérios,
adequando-os à realidade local4. Pelo mesmo raciocínio, os modelos prognósticos precisam ser
atualizados periodicamente, acompanhando as mudanças sociais, demográficas e epidemio-
lógicas de determinado serviço ou região4. Para assegurar a confiabilidade do desempenho do
modelo prognóstico, deve ocorrer a validação do modelo para cada função proposta (p. ex., pre-
58 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

visão de mortalidade, previsão de tempo de internação). A validação, também chamada de cus-


tomização, é realizada por meio de duas etapas: calibração e discriminação5. A calibração avalia
a relação entre a probabilidade de mortalidade hospitalar, estimada pelo modelo, e a mortali-
dade observada na população de interesse. Ela pode ser avaliada pelo teste estatístico Hosmer
Lemeshow6 e seu objetivo é detectar o grau de correspondência entre os dados levantados. Por
outro lado, a discriminação permite avaliar a precisão do modelo em distinguir pacientes que
sobreviverão dos que não sobreviverão. Nesse sentido, avalia a sensibilidade e a especificidade
do índice prognóstico, no que tange à previsão de mortalidade e pode ser avaliada, estatistica-
mente, pela área sob a curva ROC7.
Vale ressaltar que os índices prognósticos podem se descalibrar com o tempo, o que, nor-
malmente, causa superestimação do desfecho previsto8. Em geral, são condições que levam à
descalibração:
1. As alterações de casemix, afinal, quando são utilizadas muitas variáveis para agrupar
os pacientes em estudos de coorte, a diversificação de condições clínicas afetará a
previsibilidade do modelo. Para ilustrar esse fenômeno, é possível generalizar que
pacientes de diversas faixas etárias e/ou que apresentem diferentes comorbidades
tendem a evoluir de modo distinto. Logo, agrupá-los no mesmo grupo de estudo afetará
a calibração do modelo8;
2. As intervenções técnicas no cuidado, uma vez que procedimentos intervencionistas, como
instalação da ventilação mecânica, aplicação de cateteres e submissão a procedimentos
cirúrgicos são relevantes para a previsão de desfecho e, portanto, devem ser considerados
ao se empregar o modelo8.

Escores prognósticos
São sistemas prognósticos preditos pelo somatório de escores numéricos em que se incluem
variáveis clínicas/laboratoriais e estratificam o paciente quanto à probabilidade de cursar com
desfecho adverso. Há sistemas que também consideram variáveis demográficas e procedimentos
pelos quais o paciente foi previamente submetido. Os principais modelos de pontuação de índices
prognósticos na UTI são conhecidos pelos seus acrônimos: APACHE, SAPS, MODS, SOFA e MPM.
Outras ferramentas frequentemente utilizadas incluem os escores LODS, ODIN, TRIOS e escala de
coma de Glasgow2.

APACHE (Acute Physiology and Chronic Health Evaluation)


É um sistema norte-americano de pontuação que quantifica a gravidade da doença, por
meio da avaliação de parâmetros rotineiramente avaliados no cuidado intensivo. Apresenta
quatro versões (APACHE I, II, III e IV), dos quais o quarto é a mais recente, desenvolvida a partir
de estudos mais robustos, e a mais utilizada. O APACHE IV avalia 129 parâmetros fisiológicos,
considerando-se os valores mais alterados, mensurados nas primeiras 24 horas de internação, e
os processa de modo computadorizado. Apresenta alta discriminação como modelo prognósti-
co e também é validado para a previsão do tempo de internação do paciente9. No entanto, tem
calibração inferior a outros modelos, o que implica a necessidade de atualizações frequentes e
na superestimação da mortalidade, em situações de mix case ou de intervenções no cuidado4,
elencadas anteriormente. Como alternativa para instituições que não possuem coleta automa-
Í n d i c e s P ro g n ó s t i c o s n a U T I 59

tizada dos parâmetros ou que não possuam o software para o cálculo do APACHE IV, o modelo
APACHE II, evidenciado na Tabela 9.1, é usualmente utilizado, pois configura-se como um mo-
delo prognóstico simplificado, que considera os dados de pior prognóstico, obtidos pela análise
de 12 variáveis fisiológicas, dentro das primeiras 24 horas de internação, além da idade e das
condições prévias de saúde do paciente2.

Tabela 9.1. Variáveis fisiológicas do modelo APACHE II


Alterado alto Alterado baixo
Variáveis fisiológicas +4 +3 +2 +1 0 +1 +2 +3 +4
Temperatura retal (°C) ≥ 41 39-40,9   38,5-38,9 36-38,4 34-35,9 32-33,9 30-31,9 ≤ 29,9
Pressão arterial média (mmHg) ≥ 160 130-159 110-129   70-109   50-69   ≤ 49
Frequência cardíaca (BPM) ≥ 180 140-179 110-139   70-109 55-69 40-54 ≤ 39
Frequência respiratória (IRPM) ≥ 50 35-49 25-34 12-24 10-11  6-9 ≤5
Oxigenação a-ADO2
a) se FIO2 ≥ 0,5 a-ADO2 ≥ 500 350-499 200-349   < 200        
b) Se FIO2 < 0,5   PaO2         > 70 61-70   55-60 < 55
pH arterial ≥ 7,7 7,6-7,69   7,5-7,59 7,33-7,49   7,25-7,32 7,15-7,24 < 7,15
Sódio sérico (mEq/L) ≥ 180 160-179 155 -159 150-154 130-149   120-129 111- 119 ≤ 110
Potássio sérico (mEq/L) ≥7 6-6,9   5,5- 5,9 3,5-5,4 3-3,4 2,5-2,9 < 2,5
Creatinina sérica (mg/dl) ≥ 3,5 2-3,4 1,5-1,9   0,6-1,4   < 0,6    
Hematócrito (%) ≥ 60   50-50,9 46-49,9 30-45,9   20-29,9   < 20
Número de leucócitos ≥ 40   20-39,9 15-19,9 3-14,9   1-2,9   <1
Escala de coma de Glasgow*                  
Total do escore fisiológico agudo**                  
Bicarbonato sérico (mEq/L)
≥ 52 41-51,9   32-40,9 22-31,9   18-21,9 15-17,9 < 15
(usar se não coletar gasometria)

Observações: Pacientes em ventilação mecânica por insuficiência respiratória são pontuados com +4 pontos. Pacientes com insuficiência renal
aguda têm a pontuação da creatinina multiplicada por 2. *A escala de coma de Glasgow é utilizada para estratificar o nível de consciência. Nessa
escala, o paciente é avaliado pelas variáveis resposta de movimento ocular, resposta verbal e resposta motora, e pode ser pontuado entre 3 a 15
pontos. **Corresponde à soma de pontos no modelo, que estratifica o paciente em grupos de morbimortalidade estimada. Dados de Knaus WA, et
al. APACHE II: a severity of disease classification system. Crit Care Med. 1985 Oct;13(10):818-29. Autoria própria.

A soma do escore APACHE permite estratificar pacientes em grupos distintos, sendo os gru-
pos de maior gravidade os grupos de maior pontuação pelo modelo2. O modelo APACHE II, porém,
não considera o viés de lead time, condição definidora de que pacientes transferidos entre insti-
tuições de saúde cursem com maior taxa de mortalidade. Os modelos subsequentes (APACHE III e
IV) consideram esse viés para a previsão de mortalidade2.

SAPS (Simplified Acute Physiologic Score)


É um índice prognóstico que classifica os piores valores aferidos na primeira hora após a ad-
missão na UTI. Esse índice foi desenvolvido com amostrais internacionais, o que, possivelmente,
60 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

implica em maior homogeneidade de resultados, a nível mundial. A terceira versão do modelo


(SAPS 3) é a mais recente e também a mais utilizada, com 20 variáveis divididas entre 3 categorias:
características fisiológicas, variáveis crônicas e variáveis agudas2. A versão eletrônica automatiza-
da (eSAPS 3) depende de algoritmo acessado pelo computador, mas é simples de ser avaliado e
apresenta bom desempenho na previsão de ajuste de risco automatizado2. Embora tenha menor
calibração, sua discriminação é superior ao modelo APACHE IV e sua calibração é menos afetada
por alterações de mix case ou por intervenções no cuidado4.

MODS (Multiple Organs Dysfunction Disorders)


É um índice prognóstico que avalia 6 parâmetros de falência de órgãos. Apresenta elevada
discriminação e mostra-se como um modelo interessante, pois demonstra que o fator “tempo de
internação” é relevante na estimativa do prognóstico. Seu uso é indicado em ensaios clínicos em
que o grupo amostral é composto por pacientes graves2.

SOFA (Sequential Organ Failure Assessment Score)


É um sistema americano que busca, de modo semiquantitativo, estimar a morbimortalidade,
a partir da contabilização de 6 parâmetros que, conjuntamente alterados, indicam falência múl-
tipla dos órgãos. Em geral, é um índice utilizado em populações de pacientes graves da UTI10. Os
critérios são avaliados após 24 horas de internação e são reavaliados sequencialmente, a cada 48
horas. Além da previsão de morbimortalidade, o SOFA é utilizado na identificação e no manejo
de falência múltipla de órgãos nos pacientes sépticos, além de ser validado para a previsão de
mortalidade nesse grupo. Para o cálculo do SOFA, são pontuados escores de 0 a 4 para variáveis
dos sistemas neurológico, cardiovascular, respiratório, hepático, hematológico e renal, conforme
a Tabela 9.210.

Tabela 9.2. Critérios do escore SOFA


0 1 2 3 4
< 200 com suporte < 100 com suporte
PAO2/FIO2 ≥ 400 < 400 < 300
ventilatório ventilatório
PLAQUETAS (10³)/L ≥ 150 < 150 < 100 < 50 < 20
Bilirrubina total (mg/dL) < 1,2 1,2-1,9 2,0-5,9 6,0-11,9 > 12
Dopamina (5,1-15) Dopamina > 15
Dopamina < 5 mL/h
ou adrenalina ≤ 0,1 ou adrenalina > 0,1
Cardiovascular PAM* ≥ 70 (mmHg) PAM* < 70 (mmHg) ou qualquer dose de
ou noradrenalina ou noradrenalina
dobutamina**
≤ 0,1** > 0,1**
Escala de coma de
15 13-14 10-12 6-9 <6
Glasgow
Creatinina ou débito
< 1,2 1,2-1,9 2-3,4 3,5-4,9 ou DU < 500 > 5 ou DU < 200
urinário (DU) (mL/dia)

*PAM: pressão arterial média. **Dose de catecolaminas em µg/kg/min por pelo menos 1 hora. Dados de Marshall JC et. al. Crit Care Med. 1995
Oct;23(10):1638-52. ICU Scoring Group. The Logistic Organ Dysfunction system: a new way to assess organ dysfunction in the intensive care unit.
JAMA. 1996 e de Vincent JL et al: Working Group on Sepsis-Related Problems of the European Society of Intensive Care Medicine. The SOFA
(Sepsis-related Organ Failure Assessment) score to describe organ dysfunction/failure. Intensive Care Med. 1996;22(7):707-710. Autoria própria.
Í n d i c e s P ro g n ó s t i c o s n a U T I 61

q-SOFA (QUICK-SOFA)
É uma ferramenta simplificada, derivada do escore SOFA, que avalia três parâmetros para
rastreio precoce do paciente com sepse. É imprescindível no atendimento da emergência, ao de-
finir o grupo de pacientes que pode necessitar de tratamento precoce e agressivo, como preco-
nizado para o manejo da sepse, além de ser preditivo de maior mortalidade para o grupo10. Vale
ressaltar, porém, que o q-SOFA não é validado para utilização como índice prognóstico em terapia
intensiva11.

MPM (Mortality Prediction Model)


É um índice prognóstico de fácil utilização, cujos dados são obtidos no momento de admis-
são do paciente. Com exceção da idade, os critérios são clínicos, contabilizados como presentes
ou ausentes, sem a necessidade de propedêutica laboratorial. O prognóstico pode ser reavaliado
de forma seriada nos dias seguintes, o que permite acompanhamento da progressão do quadro.
Atualmente, o modelo MPM II é mais utilizado, dentre os modelos MPM. No entanto, configura-
-se como o índice mais suscetível à descalibração, por alterações de casemix, dentre os principais
índices prognósticos4.
Os índices prognósticos citados são ditos genéricos e são, sabidamente, bons preditores de
morbimortalidade para populações mistas - população que reflete a diversidade de pacientes das
UTI’s gerais. No que tange às UTI’s especializadas, podem ser utilizados indicadores específicos,
que se adequam à população em questão, ou podem ser empregados índices genéricos, valida-
dos para o grupo4. Para ilustrar a importância desse adendo, sabe-se que pacientes com disfun-
ções neurológicas (ex. acometidos por acidentes vasculares encefálicos), usualmente, cursam com
baixos escores nos índices prognósticos genéricos, nas primeiras 24 horas de admissão. No en-
tanto, os desfechos dessa população na prática clínica, de modo geral, apresentam prognóstico
desfavorável12.

Conclusões
Indicadores prognósticos gerais ou especializados não são utilizados na previsão de des-
fecho individual. No que tange ao prognóstico individual, a avaliação de biomarcadores, como
marcadores inflamatórios, marcadores de hemostase , de alterações endócrinas e metabólicas,
relacionam-se fortemente com o desfecho clínico e devem ser utilizados para guiar o manejo na
admissão e durante a internação hospitalar13,14. Os escores prognósticos, por outro lado, são usual-
mente utilizados, para a previsão de morbimortalidade de populações internadas na unidade de
terapia intensiva. A maioria das ferramentas pode ser acessada gratuitamente pela internet e são
úteis para o desenho de ensaios clínicos e para as análises de gestão de UTI, em que são compa-
radas intervenções entre pacientes com condições clínicas semelhantes e/ou entre grupos dis-
tintos2. Contudo, os escores não são adequados para a previsão de mortalidade em longo prazo12.
No processo de decisão pelo modelo a ser utilizado, deve-se optar por um modelo validado para a
população em estudo, mas também devem ser considerados fatores logísticos. A predição de mor-
talidade com risco ajustado implica em ausência de viés de lead time e mínimas descalibrações
ao modelo de escolha. Ademais, não há evidência de superioridade entre os modelos. No contexto
brasileiro, resultados de um estudo demonstraram que as ferramentas APACHE IV, SAPS 3 e MPM-
III apresentavam baixa calibração, mas excelente discriminação15. Futuramente, é esperado que
62 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

o processamento computadorizado dos dados obtidos pelos índices, em alta escala (big data),
seja amplamente utilizado para a definição de algoritmos de aprendizagem de máquina. Esses
avanços aumentarão a previsibilidade dos modelos prognósticos e podem vir a auxiliar no manejo
clínico dos pacientes, à luz da observação clínica5.

Pontos-chave
• APACHE, SAPS3, MODS, SOFA e MPM são os principais índices prognósticos
utilizados em terapia intensiva;
• Para a escolha do modelo, devem ser considerados fatores logísticos e precisão do
modelo na população de interesse;
• O modelo APACHE-IV tende a ser mais preciso para prever a mortalidade, além de
prever a duração da estadia. No entanto, não há superioridade comprovada de um
modelo em relação a outro;
• SAPS3, MPM e SOFA são mais facilmente aplicados, mas não são validados para a
previsão do tempo de internação;
• Escores elaborados para populações específicas devem ser considerados;
• A atualização periódica do modelo prognóstico é fundamental para manter sua
calibração.

Leitura sugerida
1. Pronovost A, Rubenfeld G. Quality in critical care. In: Chiche JD. Patient safety and quality of care in Intensive Care
Medicine. 1st Ed, Medizinisch Wissenschaftliche Verlagsgesellschaft Berlin. 2009;127-139.
2. Rapsang AG, Shyam DC. Scoring systems in the intensive care unit: A compendium. Indian Journal of Critical Care
Medicine April 2014 Vol 18 Issue 4
3. Keuning BE, et al. Mortality prediction models in the adult critically ill: A scoping review. Acta Anaesthesiol Scand.
2020;64:424-42.
4. Salluh JI, Soares M. ICU severity of illness scores: APACHE, SAPS and MPM. Current opinion in critical care.
2014;20(5):557–65. 10.1097.
5. Keegan MT, Soares M. O que todo intensivista deveria saber sobre os sistemas de escore prognóstico e mortali-
dade ajustada ao risco. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):264-269.
6. Kramer AA, Zimmerman JE. Assessing the calibration of mortality benchmarks in critical care: The Hosmer-
Lemeshow test revisited. Crit Care Med. 2007;35(9):2052-6.
7. Hanley JA, McNeil BJ. The meaning and use of the area under a receiver operating characteristic (ROC) curve.
Radiology. 1982;143(1):29-36.
8. Teres D, Lemeshow S. When to customize a severity model. Intensive Care Med. 1999;25(2):140-2.
9. Zimmerman JE, Kramer AA, McNair DS, et al. Intensive care unit length of stay: Benchmarking based on Acute
Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE) IV. Crit Care Med 2006; 34:2517.
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Septic Shock (Sepsis-3). JAMA 2016; 315:801.
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Among Patients With Suspected Infection Presenting to the Emergency Department. JAMA 2017; 317:301.
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12. Fuchs PA, Czech IJ, Krzych ŁJ. The Pros and Cons of the Prediction Game: The Never-ending Debate of Mortality
in the Intensive Care Unit. Int. J. Environ. Res. Public Health 2019, 16, 3394; doi:10.3390/ijerph16183394.
13. Kellum JA, Kong L, Fink MP, Weissfeld LA, Yealy DM, Pinsky MR, et al. Understanding the inflammatory cytokine
response in pneumonia and sepsis: results of the Genetic and Inflammatory Markers of Sepsis (GenIMS) Study.
Arch Intern Med. 2007;167(15):1655-63. Epub 2007/08/19.
14. Shapiro NI, Trzeciak S, Hollander JE, Birkhahn R, Otero R, Osborn TM, et al. A prospective, multicenter derivation
of a biomarker panel to assess risk of organ dysfunction, shock, and death in emergency department patients with
suspected sepsis. Crit Care Med. 2009;37(1):96-104.
15. Nassar AP Jr, Mocelin AO, Nunes AL, et al. Caution when using prognostic models: a prospective comparison of 3
recent prognostic models. J Crit Care 2012; 27:423.e1.
Monitorização Hemodinâmica 10
e da Perfusão Tissular

João Antônio Santiago Costa e Silva


Júlia Maria Morena Afonso Campos e Lamas
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
Na unidade de terapia intensiva (UTI), um conjunto de ações permite identificar e coletar
dados fisiológicos a fim de que sejam instauradas intervenções terapêuticas precoces, visando à
prevenção de disfunções orgânicas.
A partir da monitorização hemodinâmica é possível avaliar a perfusão tecidual, cujos da-
dos são de alta relevância, uma vez que a hipóxia celular pode levar à morte de células, gerando
disfunção orgânica¹. Por meio das observações, a equipe guia sua intervenção, buscando melhor
manejo do quadro, o que causa impacto significativo na redução da mortalidade. Além de guiar
ações terapêuticas, a monitorização hemodinâmica ainda auxilia o médico a avaliar a resposta ao
tratamento instituído².
Este capítulo apresenta os principais parâmetros hemodinâmicos, os sinais vitais e os sinais
de perfusão tecidual a serem avaliados, bem como o alvo para a adequada homeostase, as dife-
rentes formas de se alcançar esses parâmetros, ponderando os pontos positivos e os negativos de
cada método³.

Perfusão tissular
A principal razão de se monitorar hemodinamicamente um paciente é a de obter parâmetros
indicativos da condição perfusional. Nesse propósito, é necessário o domínio do conhecimento
de que a perfusão tissular é o produto do fluxo capilar pelo conteúdo de oxigênio que participa do
metabolismo celular. O fluxo está diretamente relacionado ao débito cardíaco, que participa da
distribuição do oxigênio pela circulação sistêmica e que chega ao espaço intracelular. O conteúdo
de oxigênio, por sua vez, considera algumas médias, como a concentração sérica de hemoglobi-
na, a saturação e a pressão parcial de oxigênio arterial. A equação de Fick, exposta na Figura 10.1,
resume o processo. Nesse raciocínio, qualquer alteração na taxa de hemoglobina e qualquer dimi-
nuição do débito cardíaco interferem na perfusão tissular e tornam sua avaliação relevante, tendo
em vista que a hipóxia é danosa às células e pode implicar a disfunção orgânica4.
66 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

TO2 = CaO2 × DC × k

CaO2= (Hb × SaO2 × 1,34) + (0,003 × PaO2)

Figura 10.1. Equação de Fick.TO2 = transporte de oxigênio; CaO2 = conteúdo arterial de O2; DC = débito
cardíaco; k = constante; Hb = hemoglobina; PaO2 = pressão parcial do oxigênio; 1,34 = capacidade de
ligação do O2 na hemoglobina; 0,003 = coeficiente de solubilidade do O2 no plasma.

Apresentação clínica
Necessitarão de monitorização todos os pacientes criticamente doentes que estejam apre-
sentando sinais de perfusão tecidual inadequada à demanda metabólica, que estejam deman-
dando drogas vasoativas em doses altas ou que façam uso de suporte cardiovascular e ventilatório
para alcançar a homeostase5. Alterações de parâmetros, como débito cardíaco, pressão arterial sis-
têmica, pressão venosa central, pressão de oclusão da artéria pulmonar e diurese são importantes
na estratificação de risco de mortalidade, implicando a necessidade de monitorização para guiar
medidas que buscam retomar os padrões de estabilidade e, dessa forma, alterar o desfecho posi-
tivamente. As condições potencialmente causadoras de choque são estudadas, detalhadamente,
em capítulos específicos.

Parâmetros importantes de avaliação


Anteriormente à exposição das técnicas e dos dispositivos úteis nesse propósito, é necessária
a compreensão do que são e o que os parâmetros retratam. Quatro deles serão destacados: pressão
venosa central, pressão arterial invasiva, débito cardíaco e volume sistólico.
A pressão venosa central (PVC) corresponde à força que o sangue faz contra as paredes das
veias que levam o sangue até o átrio direito. Seu valor normal está entre 2-8 mmHg. Assim, é um
importante parâmetro para a avaliação da volemia do paciente. Valores baixos de PVC, na vigência
de hipovolemia, sugerem que o paciente pode se beneficiar de reposição hídrica, ao passo que va-
lores de PVC normal ou aumentada, ainda que existam sinais de hipoperfusão, a reposição hídrica
pode causar sobrecarga de volume e, potencialmente, complicações, como o edema pulmonar.
A monitorização da pressão arterial de maneira invasiva é obtida por meio de um cateter
introduzido, geralmente, na artéria radial. Assim, são obtidos os valores de pressão sistólica, dias-
tólica e média. Essa avaliação é importante nos pacientes graves, visto que, na verificação não
invasiva, podem ocorrer erros, dada a sua menor precisão.
A medida do volume sistólico é a quantidade de sangue ejetado pelo ventrículo a cada ba-
timento. Ele é obtido por meio da subtração entre o volume sanguíneo no ventrículo ao final da
diástole (volume diastólico final) e o volume sanguíneo ao final da sístole (volume sistólico final).
Essa medida se aplica aos dois ventrículos, porém, possui maior utilidade clínica quando aplicada
ao ventrículo esquerdo. O débito cardíaco, por sua vez, é calculado pelo volume sistólico multipli-
cado por uma unidade de tempo, sendo a frequência cardíaca, em batimentos por minuto, a mais
utilizada. Essas duas medidas são particularmente importantes nos pacientes que apresentam
hipoperfusão, pois evidenciam a eficiência do coração como bomba.
M o n i t o ri z a ç ã o H e m o d i n â m i c a e d a P e r f u s ã o Ti s s u l a r 67

Vale ressaltar que a análise dos parâmetros hemodinâmicos deve considerar o conjunto das
informações, uma vez que medidas isoladas podem não corresponder à realidade do paciente,
induzindo a equipe a erros evitáveis.

Monitorização hemodinâmica
O dispositivo ideal de monitorização é aquele confiável, não invasivo, contínuo, que seja
adaptável para uso adulto e pediátrico e que responda rapidamente às alterações fisiológicas ou
induzidas, como a ação de uma droga. Até então, esse dispositivo não existe, mas duas possibili-
dades são plausíveis no propósito da monitorização hemodinâmica². A primeira delas, a moni-
torização invasiva, fornece informações quantitativas e qualitativas das pressões intravasculares,
evidencia dados mais fidedignos e quase instantâneos com a checagem do monitor, além de ser
possível avaliar rapidamente os efeitos induzidos no paciente, como o de uma droga vasoativa6.
Essa estratégia, há algum tempo, vem se tornando, progressivamente, menos hostil, com o advento
dos dispositivos minimamente invasivos, que serão apresentados adiante. A segunda, monitoriza-
ção não invasiva, evidencia parâmetros com certo atraso, motivo pelo qual é dever do profissional
atentar-se à diferença de tempo. Por outro lado, essa estratégia tem como vantagem a característi-
ca de apresentar mínimos riscos de complicações. Considerando esse conjunto de informações, o
médico deve avaliar o risco-benefício de cada dispositivo, aplicado ao paciente específico e definir
qual é melhor mecanismo de monitorização7.

Monitorização não invasiva


Nesse propósito, algumas estratégias são pertinentes e traduzem uma gama de informações:

Exame clínico
Compreende a coleta da história do paciente de forma completa, momento em que se deve
pesquisar a presença de fatores de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares
(DCV) e a história prévia de doenças cardíacas. Ademais, possíveis etiologias hipovolêmicas preci-
sam ser consideradas, como vômitos incoercíveis, vigência de diarreia ou de hemorragia. Possíveis
causas obstrutivas, como trombose venosa profunda (TVP) e tromboembolismo pulmonar (TEP),
além de possíveis etiologias distributivas, como sepse e anafilaxia, entram no rol fundamental de
investigação da anamnese8.
Ao exame físico serão avaliados os dados vitais, reservando atenção especial à pressão arte-
rial, à frequência cardíaca e à saturação de O2. Além disso, deve-se observar a coloração de muco-
sas, a presença de sudorese, o tempo de enchimento capilar, a amplitude e frequência dos pulsos
periféricos e presença de febre5. Ademais, o médico assistente deve atentar-se à presença de cre-
pitações na ausculta pulmonar. Achados como edema periférico e aumento da pressão venosa ju-
gular são indicativos de sobrecarga hídrica. A diurese é outro importante preditor de boa resposta
ao tratamento, quando encontrados valores próximos a 1 mL/kg/dia9.
Vale considerar, ainda, o papel dos testes laboratoriais na avaliação da perfusão tecidual,
como a obtenção da lactatemia, da mensuração do excesso de bases e da quantificação da SvO2.
A lactatemia deve ser mensurada por meio do material obtido em vasculatura de sangue misto,
porque, assim, expressará, mais fielmente, o estado de sofrimento hipóxico. Esse parâmetro é um
68 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

indicador de acidose metabólica, condição que, frequentemente, está presente em pacientes hipó-
xicos, pela estimulação da via glicolítica anaeróbica nas células. O excesso de base, por sua vez, é
bom indicador de situações de baixo fluxo, como a hipovolemia. Por outro lado, valores baixos de
SvO2 apontam aumento do consumo de O2, anemia ou má distribuição de oxigênio para os tecidos³.

Teste de elevação passiva das pernas (EPP)


O teste consiste em trazer, para a circulação central, sangue que estava “represado” na cir-
culação venosa dos membros inferiores, aumentando, assim, a pré-carga e, por consequência,
o débito cardíaco. Estudos mostram que a manobra é equivalente a um bolus de 300 mL de cris-
taloide9. Embora a técnica não se configure como um método de monitorização hemodinâmica
propriamente dito, ela é uma forma útil de predizer a possível resposta do paciente à infusão de
volume, afinal, aqueles que apresentam aumento de 8% após a EPP, geralmente conseguem au-
mentar o débito cardíaco com uma adequada reposição volêmica9, o que aprimora a perfusão
tecidual. O teste consiste em fazer, inicialmente, a medida do fluxo aórtico, por ultrassonografia,
com a cabeceira do paciente a 45 graus e as pernas na horizontal. Depois disso, a cabeceira é co-
locada na horizontal e as pernas a 45 graus por 4 minutos, seguido da uma segunda mensuração
ultrassonográfica e os valores obtidos, nas duas ocasiões, são comparados. No princípio, utilizava-
-se a ultrassonografia transesofágica nesse propósito, porém, é possível utilizar a ultrassonografia
transtorácica, embora novos trabalhos sejam necessários para comprovar a eficácia da técnica em
sua forma adaptada.

Ultrassonografia
A ultrassonografia à beira do leito, ou point of care (POCUS), vem ganhando maior expressi-
vidade no diagnóstico e no tratamento de algumas condições. Trata-se de um método simples de
aplicar, financeiramente viável, não emissor de radiações e pode ser usado para os mais diversos
fins, como na investigação de derrames pericárdicos, na avaliação da volemia e da resposta a vo-
lume, bem como na investigação de cálculos vesiculares ou renais. Em contrapartida, a POCUS
tem como desvantagem o fato de ser examinador-dependente, o que o torna relativamente sub-
jetivo. No propósito de avaliar a volemia, o estudo ultrassonográfico da veia cava inferior é uma
ferramenta importante, pois, como não existe válvula entre a veia cava inferior e o átrio direito,
variações na pressão intra-atrial refletem-se no diâmetro da veia. Ou seja, durante a inspiração,
quando a pressão intratorácica diminui, o fluxo da veia para o átrio é favorecido, o que causa
constrição da veia. Por outro lado, durante a vigência de ventilação sob pressão positiva, devido
ao aumento da pressão intratorácica, o sangue reflui do átrio para a veia, o que implica aumento
do seu diâmetro. Variações do diâmetro da veia cava entre 12%-18% foram associadas à resposta
a volume em pacientes sob ventilação mecânica, por um estudo em 200413. Em contrapartida, em
2018, uma revisão, analisando outros 20 trabalhos sobre resposta à volume avaliando o diâmetro
da veia cava, concluiu que o método possui sensibilidade de 71% e especificidade de 75%14.

Outros dispositivos
Embora pouco utilizados na prática médica, outros dispositivos contemplam o rol de estra-
tégias médicas, como o esCCO™ e o ClearSight™ , que estimam parâmetros utilizando medidas
obtidas nos dedos, a bioimpedância transtorácica, que oferece medidas do débito cardíaco e o
M o n i t o ri z a ç ã o H e m o d i n â m i c a e d a P e r f u s ã o Ti s s u l a r 69

NiCO™, que utiliza a reinalação parcial de CO2 como método de determinação do débito cardía-
co, além de considerar medidas de dados ventilatórios.

Monitorização invasiva
Constituem-se como técnicas mais fidedignas para a obtenção de informações e são repre-
sentadas por diferentes estratégias:

Cateter de artéria pulmonar (PAC)


Principal ferramenta de monitorização hemodinâmica desde os anos 1970 e que vem tendo o
emprego, progressivamente, reduzido. O PAC utiliza tecnologia de termodiluição, na qual é injeta-
da solução salina, em baixas temperaturas, no átrio direito e, depois disso, é medida a temperatura
do sangue que chega à artéria pulmonar. Por meio de equações matemáticas, é possível mensurar
variáveis hemodinâmicas como o débito cardíaco, a pressão na artéria pulmonar, dentre outros11.
A decisão por utilizar essa técnica exige treinamento da equipe, a fim de que a cateterização da
artéria pulmonar seja alcançada, partindo, geralmente, de acessos venosos no pescoço (Figura
10.2). Além disso, a ferramenta pode induzir algumas complicações, sendo a maioria delas rela-
cionadas ao sítio de inserção, embora, complicações graves já tenham sido relatadas, como infarto
pulmonar e arritmias. É importante reforçar, porém, que, apesar de existirem riscos, estudos não
evidenciaram aumento da mortalidade com o uso do PAC, quando comparado à sua ausência12.

Via proximal 1
Termistor 2
Via do balão 3

Via distal 4

Artéria pulmonar
Veia cava superior
2
1
Átrio direito 3
4

Ventrículo direito

Figura 10.2. Cateter de artéria pulmonar (Swan-Ganz). Imagem de Wikimedia commons.


70 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Monitores modernos minimamente invasivos


Diversos dispositivos vêm surgindo nos últimos anos, trazendo, consigo, novas tecnolo-
gias para a monitorização hemodinâmica, como os dispositivos PiCCO™, LiDCO™, Flo Track/
Vigileo™, CoStatus™, Volume View/EV 1000™. A principal característica desses novos dispositi-
vos é a de mensurar parâmetros hemodinâmicos utilizando apenas um acesso arterial periférico
e um acesso venoso central, salvo em algumas exceções, conforme exposto na Tabela 10.1. Outro
ponto de discussão é sobre a acurácia desses aparatos1, que demandam mais estudos para con-
firmar sua confiabilidade quando comparados ao PAC. As principais limitações de cada método
estão descritas na Tabela 10.1.

Tabela 10.1. Características dos principais dispositivos


Sistema Métodos Variáveis obtidas Invasividade Limitações
Shunts cardíacos,
DC, PVC, PAP, SvO2, VS, Requer cateterismo de
PAC Termodiluição arritmias, doenças
PTDVD, PTDVE, POAP artéria pulmonar
valvares
DC, VS, AEVP, GEDVI, Shunts cardíacos,
Termodiluição e análise Cateter em artéria
PiCCO™ ITTV, ITBV, PBV, VVS, arritmias, mudança do
de área do pulso sistólico femoral e AVC
SVRI tônus vascular
Shunts cardíacos,
Diluição de lítio e análise DC, VS, PPV, SPV, VVS, Cateter arterial periférico arritmias mudança do
LiDCO™
da onda de pulso SVRI e AVC tônus vascular, uso
prévio de lítio
Análise de área do pulso Cateter arterial periférico Arritmias, mudança do
Flo Track/Vigileo™ DC, VS, VVS, SVRI
sistólico e AV tônus vascular
DC, VS, AEVP, GEDVI, Shunts cardíacos,
Termodiluição e análise Cateter em artéria
Volume View/EV 1000™ ITTV, arritmias, mudança do
de área do pulso sistólico femoral e AVC
ITBV, PBV, VVS, SVRI tônus vascular

Alta probabilidade de
Ultrassonografia
Cateter arterial periférico mensagem de erro,
CoStatus™ e calibração com DC, VS, SVRI
e AVC tempo de calibragem
termodiluição
aumentado

DC = débito cardíaco; PVC = pressão venosa central; PAP = pressão na artéria pulmonar; SvO2 = saturação venosa de O2; VS = volume sistólico;
PTDVD = pressão telediastólica no ventrículo direito; PTDVE = pressão telediastólica no ventrículo esquerdo; POAP = pressão de oclusão da arté-
ria pulmonar; AEVP = água extravascular pulmonar; GEDVI = índice do volume global diastólico final; ITTV = volume térmico intratorácico; ITBV =
índice de volume sanguíneo intratorácico; PBV = volume sanguíneo pulmonar; VVS = variação do volume sistólico; SVRI = índice de variação do
volume sistólico; PPV = variação da pressão de pulso; SPV = variação pressão sistólica; AVC = acesso venoso central. Dados de Laher AE, et al11
e de Bessa Júnior RC et al15. Autoria própria.
M o n i t o ri z a ç ã o H e m o d i n â m i c a e d a P e r f u s ã o Ti s s u l a r 71

Pontos-chave
• A monitorização hemodinâmica torna possível a avaliação da perfusão tecidual,
capaz de evidenciar dados de alta relevância, uma vez que a hipóxia celular pode
levar à disfunção orgânica;
• Existem duas formas de monitorizar o paciente: pelos métodos invasivos e pelos
não invasivos, sendo dever do médico definir o mais adequado para o paciente,
analisando critérios como reserva fisiológica e a presença de comorbidades;
• A monitorização não invasiva avalia parâmetros como FC, diurese, SpO2, PAM, FR e
temperatura;
• A monitorização invasiva avalia DC, PVC e PAM;
• É imperioso o domínio das técnicas, por parte dos profissionais, para que a decisão
entre uma ou outra seja ponderada.

Leitura sugerida
1. Réa-Neto A, Rezende E, Mendes CL, David CM, Dias FS, Schettino G, et al. Consenso brasileiro de monitorização
e suporte hemodinâmico - Parte IV: monitorização da perfusão tecidual. Rev Bras Ter Intensiva. 2006;18(2):154-60.
2. Manual de Medicina Intensiva - AMIB. Atheneu; 2014. 1200 p.
3. Hollenberg SM, Ahrens TS, Annane D, et al. Practice parameters for hemodynamic support of sepsis in adult
patients; 2004 update. Crit Care Med. 2004 Sep;32(9):1928-48.
4. Silva E, Garrido AG, Assunção MSC. Avaliação da perfusão tecidual no choque. Medicina (Ribeirão Preto).
2001;34(1):27-35.
5. Kern JW, Shoemaker WC. Meta-analysis of hemodynamic optimization in high-risk patients. Crit Care Med.
2002;30(8):1686-92.
6. Vincent JL, Rhodes A, Perel A, et al. Clinical review: Update on hemodynamic monitoring--a consensus of 16. Crit
Care. 2011;15(4):229. Published 2011 Aug 18. doi:10.1186/cc10291.
7. Polanco PM, Pinsky MR. Practical issues of hemodynamic monitoring at the bedside. Surg Clin North Am.
2006;86(6):1431-56.
8. Intravenous fluid therapy in adults in hospital. National Institute for Health and Care Excellence, [s. l.], p. 1-27, 10
dez. 2013.
9. Rocha PN, Menezes JAV, Suassuna JHR. Avaliação hemodinâmica em paciente criticamente enfermo. J. Bras.
Nefrol. 2010 June; 32 (2): 201-212.
10. Dias FS, Rezende EAC, Mendes CL, Silva-Jr JM, Sanches JL. Monitorização hemodinâmica em unidade de
terapia intensiva: uma perspectiva do Brasil. Rev Bras Ter Intensiva. 2014;26(4):360-6.
11. Laher AE, Watermeyer MJ, Buchanan SK, Dippenaar N, Tchouambou NC, Motara F, et al. A review of hemody-
namic monitoring techniques, methods and devices for the emergency physician. American journal of emergency
medicine, Vol. 35, ISSUE 9, P1335-1347. 2017.
12. Rajaram SS, Desai NK, Kalra A, Gajera M, Cavanaugh SK, Brampton W, et al. Pulmonary artery catheters for adult
patients in intensive care. Cochrane Database SystRev, 2013.
13. Feissel M, Michard F, Faller JP, Teboul JL. The respiratory variation in inferior vena cava diameter as a guide to
fluid therapy. Intensive Care Med. 2004;30(9):1834-1837.
14. Orso D, Paoli I, Piani T, Cilenti FL, Cristiani L, Guglielmo N. Accuracy of Ultrasonographic Measurements of Inferior
Vena Cava to Determine Fluid Responsiveness: A Systematic Review and Meta-Analysis. J Intensive Care Med.
2020;35(4):354‐363.
72 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

15. Bessa Júnior RC, Leão BCC. Monitorização do débito cardíaco: vantagens e desvantagens dos métodos disponí-
veis. Rev. méd. Minas Gerais;20(2,supl.3):S29-S45, abr.-jun. 2010. ilus, tab
16. Galstyan G, Bychinin M, Alexanyan M, Gorodetsky V. Comparison of cardiac output and blood volumes in intratho-
racic compartments measured by ultrasound dilution and transpulmonary thermodilution methods. Intensive Care
Med. 2010;36(12):2140-2144.
17. Tsutsui M, Matsuoka N, Ikeda T, Sanjo Y, Kazama T. Comparison of a new cardiac output ultrasound dilution
method with thermodilution technique in adult patients under general anesthesia. J Cardiothorac Vasc Anesth.
2009;23(6):835-840.
18. Crittendon I 3rd, Dreyer WJ, Decker JA, Kim JJ. Ultrasound dilution: an accurate means of determining cardiac
output in children. Pediatr Crit Care Med. 2012;13(1):42-46.
Insuficiência Cardíaca Aguda 11
e Choque Cardiogênico

Bruna Ambrozim Ventorim


Maria Bernardes Luz
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Insuficiência cardíaca aguda


Insuficiência cardíaca (IC) é uma síndrome clínica caracterizada por alterações estruturais e/
ou funcionais do coração que prejudicam a perfusão tissular periférica ou a mantém às custas de
uma pressão de enchimento ventricular elevada.
O termo insuficiência cardíaca aguda (ICA) refere-se ao início súbito ou a alterações rápidas
nos sinais e nos sintomas de IC, que exigem terapia urgente. Por outro lado, a IC crônica é de natu-
reza progressiva, evoluindo ao longo do tempo. Na grande maioria dos casos, a ICA origina-se da
descompensação da IC crônica preexistente, mas pode ser, também, a primeira manifestação de
IC, a qual será denominada, daqui em diante, de ICA nova.
A prevalência da IC é maior entre idosos, é muito semelhante em ambos sexos, mas é de
maior incidência entre homens. Segundo o Datasus-2012, a IC constitui a maior causa de inter-
nação hospitalar por doenças cardiovasculares no Brasil. Além da alta taxa de mortalidade e da
alta taxa de reinternação hospitalar por essa doença, um elevado custo incide sobre o sistema
de saúde.

Etiopatogênese
A IC é uma via comum na história natural da maioria das doenças cardiovasculares (DCV),
logo, qualquer condição capaz de causar, no coração, alguma alteração funcional e/ou estrutu-
ral, pode participar da sua etiologia. As principais causas de ICA são a doença arterial coronaria-
na (DAC), com predomínio de infarto agudo do miocárdio (IAM), a cardiopatia hipertensiva e a
cardiomiopatia dilatada idiopática. Ressalta-se, também, a importância da cardiopatia chagásica,
ainda muito comum no Brasil, e da cardiopatia reumática. Ademais, condições menos comuns,
chamadas de “IC de Alto Débito”, como tireotoxicose e deficiência de vitamina B1, são possíveis
etiologias. Outras causas de IC incluem drogas cardiotóxicas e cardiopatias congênitas.
74 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Os fatores causadores da descompensação são importantes e, quando abordados, aumen-


tam a sobrevida do paciente e o sucesso terapêutico, o que reduz a probabilidade de reinterna-
ção. Os principais deles incluem isquemia, infecção, arritmias e HAS mal controlada.
Os primeiros sinais de disfunção miocárdica ativam alguns mecanismos compensatórios
neuro-hormonais. A redução do débito cardíaco leva à ativação do sistema nervoso autônomo
(SNA) simpático, que promove efeitos cronotrópico e inotrópico positivos, além de vasocons-
trição periférica. A ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) causa retenção
hidrossalina ao nível do ducto coletor, por ação direta da aldosterona, além de vasoconstrição
intensa, causada pela angiotensina II. Por meio do mecanismo de Frank-Starling, existe aumen-
to da contratilidade cardíaca, subsidiada pela hipervolemia instituída. Conclui-se, portanto,
que, na fase inicial, ocorre aumento da contratilidade miocárdica, da pré-carga e da pós-car-
ga. São esses mecanismos que, ativados de forma cíclica ao longo do tempo, causarão lesão do
miocárdio.
A sequência de eventos fisiopatológicos da ICA, exposta na Figura 11.1, demonstra como a
disfunção sistólica e a disfunção diastólica culminam na lesão do miocárdio e no óbito.
Ademais, o estado inflamatório sistêmico em que o paciente se encontra é outro ponto-
-chave para o entendimento da fisiopatologia. Nesse âmbito, ocorre elevação das citocinas,
principalmente de TNF-alfa, que promovem vasodilatação por aumentar a produção de óxido
nítrico, o que contribui para a evolução mais temida da IC: o choque cardiogênico.

Inflamação Disfunção miocárdica

Disfunção sistólica Disfunção diastólica

Congestão pulmonar
Perfusão Atividade
DC PDFVE +
sistêmica adrenérgica
hipoxemia

SRAA
Vasoconstrição PA FC Isquemia
H2O e Na+

Perfusão Arritmias
coronariana

Disfunção miocárdica Morte

Figura 11.1. Sequência de eventos fisiopatológicos da ICA.


PDFVE: pressão diastólica final do ventrículo esquerdo; DC: Débito Cardíaco; PA: pressão arterial; FC: frequência cardíaca.
Fonte: II Diretriz Brasileira de Insuficiência Cardíaca Aguda da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Autoria própria.
I n s u f i c i ê n c i a C a rd í a c a A g u d a e C h o q u e C a rd i o g ê n i c o 75

Atualmente, a abordagem terapêutica direciona-se aos mecanismos fisiopatológicos, divi-


didos em dois grupos: disfunção cardíaca e disfunção vascular. Quando há predomínio da dis-
função vascular, haverá aumento da pressão arterial sistêmica, com início rápido da congestão
pulmonar e elevação da pressão venocapilar pulmonar. Isso revela sinais em exames de imagem
e estertores pulmonares à ausculta. Uma vez que a congestão ocorre principalmente por redis-
tribuição da volemia, o ganho ponderal será mínimo. Geralmente, esses pacientes apresentam
resposta mais rápida ao tratamento. Quando a fisiopatologia está associada, majoritariamente,
à disfunção da bomba, a pressão arterial será normal ou diminuída, com piora gradual durante
alguns dias. Diferencia-se da disfunção vascular, principalmente, pelo ganho ponderal signifi-
cativo, devido à retenção hidrossalínica e ao edema. Esses pacientes, usualmente, apresentam
baixa fração de ejeção (FE ≤ 40%) e a resposta terapêutica é mais lenta.

Apresentação clínica
Dispneia, fadiga e edema são os achados clínicos mais frequentes. A dispneia pode se ma-
nifestar aos mínimos esforços, em repouso, durante o sono, como dispneia paroxística noturna
(DPN) ou como ortopneia. Na anamnese, o paciente pode queixar-se, ainda, de sintomas gas-
trointestinais, de sintomas sugestivos de insuficiência hepática, de manifestações neurológicas,
de noctúria e de perda ponderal involuntária. Os achados clínicos, por sua vez, podem ser dividi-
dos, conforme sua origem, entre aqueles de origem cardíaca, quando fundamentados na própria
bomba e aqueles de origem extracardíaca, relacionados ao leito vascular congesto e à hipoperfu-
são, conforme exposto na Tabela 11.1.

Tabela 11.1. Achados clínicos subdivididos conforme sua origem


Origem cardíaca Origem extracardíaca
• Taquicardia • Dispneia
• Ritmo de galope, B3 • Edema
• Pulsus alternans • Cianose
• Intolerância ao esforço • Expectoração hemoptoica
• Ictus cordis desviado para a esquerda e abaixo do 5º EIE • Estertores pulmonares
• PA diminuída • Estase jugular
• Oligúria
• Refluxo abdominojugular
• Hepatomegalia dolorosa

Autoria própria.

A classificação clínica/hemodinâmica, exposta na Tabela 11.2, não exige a realização de


procedimentos invasivos e pode ser adotada tanto na terapia intensiva, quanto em outros se-
tores do hospital. Devem ser observados os sinais e os sintomas de hipoperfusão, como hipo-
tensão, pulso filiforme, sonolência e extremidades frias, bem como os sinais e os sintomas de
congestão, que incluem ortopneia, distensão jugular, edema e presença de estertores pulmona-
res à ausculta. Em ordem decrescente de sobrevida, os perfis são listados como perfil A, perfil L,
perfil B e perfil C.
76 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 11.2. Classificação do perfil clínico-hemodinâmico


Sinais e sintomas de Sinais e sintomas de congestão
hipoperfusão
Ausente Presente
Ausente Perfil A (quente e seco) Perfil B (quente e úmido)
Presente Perfil L (frio e seco) Perfil C (frio e úmido)

Autoria própria.

Diagnóstico
Quando um paciente com dispneia aguda é admitido na emergência, deve ser colhida a his-
tória, realizado o exame físico e solicitados eletrocardiograma e radiografia de tórax. Apenas essas
informações, na maioria dos casos, são suficientes para confirmar ou para excluir IC como a causa
do sintoma. Porém, havendo dúvida remanescente, solicitar a dosagem de peptídeos natriuréticos
tipo B pode ser útil, uma vez que seus níveis, se normais, descartam a presença de ICA. As altera-
ções desses exames, indicativas da insuficiência, estão evidenciadas na Tabela 11.31,2 e radiografia,
indicatica de silhueta cardíaca aumentada e presença de congestão pulmonar, está na Figura 11.2.

Tabela 11.3. Principais alterações, indicativas de ICA, nos exames diagnósticos


Radiografia de tórax Congestão pulmonar, derrame pleural, edema intersticial, cardiomegalia
Eletrocardiograma Fibrilação Atrial, ondas Q na parede anterior, bloqueio de ramo esquerdo
Peptídeos natriuréticos Confirma ICA: BNP > 400 pg/mL
Improvável ICA: BNP < 100 pg/mL

Dados de Canesin MF1 e de Montera MW2. Autoria própria.

Figura 11.2. Mulher, 28 anos, com IC. Na radiografia: silhueta cardíaca aumentada e presença de
congestão pulmonar.
Imagem de CDC/Dr Thomas Hooten, disponível em Wikimedia Commons.
I n s u f i c i ê n c i a C a rd í a c a A g u d a e C h o q u e C a rd i o g ê n i c o 77

A dispneia tem alto valor preditivo negativo e baixa especificidade, ou seja, sua ausência di-
minui a chance de o paciente ser portador de ICA, porém é sintoma comum a outras patologias,
principalmente doenças pulmonares. Alguns achados do exame físico são dotados de alta especi-
ficidade e de baixa sensibilidade para o diagnóstico da condição, como desvio do ictus cordis para
esquerda e para baixo, presença de B3, de refluxo abdominojugular e de distensão da veia jugular1,2.
Para a avaliação inicial do paciente com diagnóstico de ICA, devem ser incluídos, além dos
estudos já citados, hemograma completo, urina rotina, concentração sérica de eletrólitos, quanti-
ficação de ureia e de creatinina séricas, glicemia de jejum, provas de função hepática, perfil lipídi-
co, mensuração do hormônio tireoestimulante (TSH) e ecocardiograma transtorácico1,2.

Choque cardiogênico
Choque é a manifestação clínica de um desequilíbrio entre a oferta e a demanda de oxigênio
pelo organismo. Nesse estado, o sistema circulatório não é capaz de atender às necessidades teci-
duais de oxigênio, o que resulta em hipoperfusão de órgãos e, portanto, em hipóxia.
O choque cardiogênico (CC) não é o mais frequente, corresponde a cerca de 10 a 20% dos me-
canismos de choque. Decorre de um grave comprometimento da performance cardíaca. O mio-
cárdio, mesmo na presença de adequado volume intravascular, não consegue manter um débito
cardíaco satisfatório às funções orgânicas. A despeito dos avanços terapêuticos e do aumento da
sobrevida, ainda é uma complicação temida no departamento de emergência, com mortalidade
intra-hospitalar alta, em torno de 40 a 50%. Complica cerca de 5 a 10% dos quadros de infarto agu-
do do miocárdio (IAM), sendo a principal causa de morte nesses pacientes. A incidência é maior
em mulheres e em pacientes com idade acima de 75 anos.

Etiopatogênese
As patologias que cursam com falência da bomba cardíaca e com comprometimento do dé-
bito sistólico são as principais causas relacionadas ao CC e estão representadas na Tabela 11.4.

Tabela 11.4. Etiologias do CC


Principais etiologias do choque cardiogênico
IAM – etiologia mais comum, > 90% por falência ventricular esquerda5
IAM com supra de ST possui risco duas vezes maior do que o IAM sem supra3
Complicações mecânicas decorrentes do infarto: ruptura da cordoalha, do músculo papilar ou defeito septal ventricular. São causas menos
comuns
Insuficiência cardíaca crônica descompensada
Doenças valvares e arritmias
Miocardite aguda, miocardiopatia avançada
Outras: disfunção miocárdica na sepse, disfunção cardíaca pós-PCR e disfunção cardíaca pós-CEC

Dados de Contemporary Management of Cardiogenic Shock: A Scientific Statement From the American Heart Association. Autoria própria.

A fisiopatologia do choque cardiogênico é complexa e envolve uma resposta orquestrada e


multissistêmica, descrita na Figura 11.3.
78 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Vasoconstrição
Depressão e Redução do Piora do
Hipotensão compensatória
contratilidade débito desempenho
arterial e isquemia
miocárdica cardíaco cardíaco
coronariana

Figura 11.3. Sequência de eventos desencadeadores do choque cardiogênico.


Dados de Contemporary Management of Cardiogenic Shock: A Scientific Statement From the American Heart Association.
Autoria própria.

Cabe considerar que, inicialmente, a vasoconstrição sistêmica é capaz de priorizar o fluxo


sanguíneo e de melhorar a perfusão coronariana; contudo, o aumento na resistência vascular
eleva a pós-carga, refletindo em maior sobrecarga cardíaca e em piora da perfusão tecidual, já
comprometida. A hipoperfusão induz resposta inflamatória sistêmica, além de privilegiar o meta-
bolismo anaeróbico, a hiperlactatemia e a acidose intracelular (Figura 11.4).

Lesão microvascular, trombose,


Desequilíbrio mantido entre
Ativação imunológica/ vasodilatação patológica,
entrega e demanda de
inflamatória liberação de mediadores inflamatórios
O2 /substratos
e cardiotóxicos

Figura 11.4. Mecanismos de sustentação da lesão cardíaca.


Dados de Contemporary Management of Cardiogenic Shock: A Scientific Statement From the American Heart Association.
Autoria própria.

Um ciclo vicioso instala-se, visto que a hipóxia e a lesão celular ativam respostas patológicas
que pioram a hipoperfusão.

Apresentação clínica
Choque cardiogênico corresponde a uma síndrome cujo diagnóstico é baseado em crité-
rios clínicos, em alterações laboratoriais e em parâmetros hemodinâmicos objetivos. As defini-
ções de CC divergem na literatura, sendo, as mais utilizadas na prática clínica, apresentadas na
Tabela 11.5.
Os parâmetros mais utilizados incluem: PAS < 90 mmHg por ≥ 30 minutos ou o uso de su-
porte farmacológico para manter PAS ≥ 90 mmHg. O quadro clínico manifesta-se por sinais e por
sintomas decorrentes do baixo débito e má perfusão, como pele e extremidades frias, sudorese,
palidez, confusão mental, sonolência e redução de diurese, associados à congestão pulmonar e/
ou sistêmica, identificada pela dispneia, pela ortopneia, pela tosse e pelo edema periférico. Ao
exame físico, pode existir taquicardia, taquipneia, hipotensão, oligúria, enchimento capilar lento,
pulso fino ou filiforme, crepitações pulmonares, hepatomegalia e turgência da veia jugular.
Após a identificação dos sinais de baixo débito e de hipoperfusão, deve-se instituir a moni-
torização hemodinâmica do paciente, a fim de se determinar o perfil do choque. O emprego da
ultrassonografia complementa o exame físico e avalia, rapidamente, a volemia, como discutido
no Capítulo 12. O padrão mais comum de CC é o frio e úmido, porém, cerca de 10-20% dos casos
apresentam-se como frio e seco.
I n s u f i c i ê n c i a C a rd í a c a A g u d a e C h o q u e C a rd i o g ê n i c o 79

Tabela 11.5. Diferentes definições de CC


SHOCK Trial4 IABP-SHOCK II4 ESC HF Guidelines4

I. PAS < 90 mmHg por ≥ 30 min OU suporte I. PAS < 90 mmHg por ≥ 30 min OU I. PAS < 90 mmHg com volume adequado e
para manter a PAS ≥ 90 mmHg catecolaminas para manter a sinais clínicos/laboratoriais de hipoperfusão
E PAS > 90 mmHg
E Hipoperfusão clínica: extremidades frias,
II. Hipoperfusão de órgãos (débito urinário
oligúria, confusão mental, vertigem e pressão
< 30 mL/h ou extremidades frias) II. Congestão pulmonar clínica
de pulso diminuída
OU E
III. Critérios hemodinâmicos: III. Perfusão tecidual prejudicada (estado Hipoperfusão laboratorial: acidose
IC de ≤ 2,2 L/min/m2 mental alterado, pele e extremidades frias/ metabólica, hiperlactatemia, creatinina sérica
POAP ≥ 15 mmHg úmidas, débito urinário < 30 mL/h ou elevada
lactato > 2,0 mmol/L)

PAS: pressão arterial sistólica; POAP: pressão de oclusão da artéria pulmonar; IC: índice cardíaco. Dados de Contemporary Management of
Cardiogenic Shock: A Scientific Statement From the American Heart Association. Autoria própria.

Diagnóstico
O diagnóstico de choque cardiogênico é eminentemente clínico. O grau de suspeição, ainda
nas fases iniciais, é determinante no prognóstico do paciente. Investigações adicionais, apesar de
importantes, não devem atrasar a abordagem. Os principais exames para o diagnóstico da condi-
ção estão descritos na Tabela 11.63,4.

Tabela 11.6. Exames preconizados para a investigação de CC


Biomarcadores de necrose miocárdica (troponinas/CKMB).
Lactatemia – hipóxia celular/estresse e depuração comprometida. Indicador de mortalidade
Creatinina sérica – avaliação de lesão renal aguda
ECG – diagnosticar IAM, arritmias, embolia, miocardite aguda, desequilíbrios eletrolíticos e toxicidade de drogas
BNP – elevação significativa na IC aguda. Associa-se a pior prognóstico
Cineangiocoronariografia – deve ser solicitada se o choque cardiogênico foi causado por IAM. Tem importância diagnóstica e, principalmente,
terapêutica
Gasometria arterial – investigar redução da pO2. Associada a distúrbios de ventilação e metabólicos
Ecocardiograma – estuda a função ventricular, alterações segmentares, complicações mecânicas, valvopatias, derrame pericárdico e
parâmetros hemodinâmicos adicionais

IAM: infarto agudo do miocárdio; BNP: peptídeo natriurético cerebral. Dados de Contemporary Management of Cardiogenic Shock: A Scientific
Statement From the American Heart Association. Autoria própria.

Tratamento
O tratamento da IC e do CC possuem alvos terapêuticos e abordagens semelhantes, enten-
dendo um como a evolução do outro. Os casos devem ser conduzidos em sala de emergência.
Inicialmente, é imperiosa a avaliação do perfil clínico (B, C, L), seguida de oxigenação adequada
e de manutenção da via aérea. O próximo passo é a avaliação da volemia e, se necessário for,
80 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

repor volume com cristaloides ou coloides. A administração de diuréticos para melhora dos sin-
tomas de congestão e hipervolemia é realizada no manejo inicial da ICA, podendo ser utilizados
diuréticos de alça, tiazídicos ou espironolactona. O ECG de 12 derivações deve ser solicitado nos
primeiros minutos, para a avaliação da presença de isquemia, de IAM, de bloqueios atrioventri-
culares (BAV) e de arritmias. Na presença de alterações da frequência cardíaca, a abordagem deve
priorizar aumento do débito cardíaco. Em caso de descompensação da IC os medicamentos anti-
-hipertensivos de uso crônico não devem ser suspensos, mas na vigência de hipotensão todos os
medicamentos anti-hipertensivos devem ser suspensos. A profilaxia para trombose venosa pro-
funda e para tromboembolismo pulmonar deve ser feita com heparina, de acordo com o risco
estimado do paciente1,2.
Na vigência de choque cardiogênico, deve-se providenciar a cateterização arterial para a
monitorização e para a coleta de material. Além disso, acesso venoso central, para ressuscitação
volêmica e para a administração de drogas vasoativas, deve ser puncionado. O pilar do manejo ob-
jetiva restaurar os padrões cardiovasculares e respiratórios, provendo perfusão tecidual adequada,
enquanto se identifica e se corrigem os fatores precipitantes. As condutas específicas são descritas
na Tabela 11.73,5,6.

Tabela 11.7. Manejo da insuficiência cardíaca aguda e do choque cardiogênico


1. Oxigenoterapia deve ser instituída para manter a SatO2 > 90%5. Se houver dispneia intensa ou hipoxemia persistente, garantir via aérea
com ventilação invasiva. A dieta deve ser inicialmente suspensa e, se necessário, optar por nutrição parenteral
2. Ressuscitação com fluidos deve ser feita com parcimônia, evitando sobrecargas de volume. Bolus de cristaloides podem ser prescritos se
houver hipovolemia importante ou se o paciente for de perfil “seco”. Monitorar PVC, SvcO2 e lactatemia5,6
3. Os inotrópicos aumentam o débito cardíaco na maioria dos pacientes cujo perfil é “frio e úmido”. Além disso, em caso de hipotensão
refratária à reposição com fluidos, também podem ser prescritos. O agente de escolha é a dobutamina. Se a PAS se mantiver < 80 mmHg,
devem ser associados a um vasopressor4,6
4. Se houver má perfusão a despeito do inotrópico, as drogas vasoativas devem ser iniciadas para manter PAM > 65 mmHg. A noradrenalina,
por ser menos associada a arritmias, é a de primeira linha em muitos casos3
5. Os vasodilatadores (nitratos) reduzem o trabalho cardíaco ao reduzir a pós-carga. Podem causar hipotensão grave, mas o uso adequado
melhora a perfusão microvascular3
6. As medicações do paciente, como betabloqueadores e anti-hipertensivos, devem ser suspensos. Furosemida pode ser adicionada nos
casos de hipervolemia sem hipotensão6

PVC: pressão venosa central; SvcO2: saturação venosa central de oxigênio. Dados de Contemporary Management of Cardiogenic Shock: Ameri-
can Heart Association e de Management of cardiogenic shock complicating myocardial infarction: European Heart Journal. Autoria própria.

Na vigência do diagnóstico de IAM, a revascularização miocárdica precoce reduz a mortali-


dade de cerca de 80 para 50%. A angioplastia percutânea com stent é a de escolha nesse propósito
mas, não sendo possível ocorrer no tempo hábil, a fibrinólise é uma alternativa a considerar3,6.
Dispositivos de suporte circulatório vêm ganhando espaço na abordagem de pacientes com CC
refratários à terapêutica farmacológica. Exemplos incluem bombas de fluxo axial, dispositivos de
assistência ventricular mecânica, oxigenação por membrana extracorpórea e balão intra-aórtico4.
Havendo deterioração do quadro clínico, a despeito de adequado manejo, a instituição de trata-
mento paliativo é plausível4.
I n s u f i c i ê n c i a C a rd í a c a A g u d a e C h o q u e C a rd i o g ê n i c o 81

Pontos-chave
• O fator precipitante da descompensação da IC deve ser abordado e corrigido;
• Identificar sintomas de congestão e de hipoperfusão, definindo o perfil do paciente,
é extremamente importante para estimar o prognóstico e para guiar a terapêutica;
• Pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER) devem
receber iECA ou BRA e beta-bloqueadores, para reduzir o remodelamento cardíaco;
• O diagnóstico de CC é eminentemente clínico. A suspeição deve ser alta diante
de hipotensão persistente (PAS < 90 mmHg), a despeito de reposição volêmica
adequada;
• O CC é uma emergência e deve ser conduzida de forma imediata, associadamente
à busca pela etiologia;
• IAM é a principal causa de CC e a angioplastia primária deve ser realizada o mais
rapidamente possível.

Leitura sugerida
1. Canesin MF, Oliveira Jr MT, Pereira-Barreto AC, editors. Suporte Avançado em Insuficiência Cardíaca: SAVIC.
Barueri, SP: Manole; 2015
2. Montera MW, Almeida RA, Tinoco EM, Rocha RM, Moura LZ, Réa-Neto A. II Diretriz Brasileira de Insuficiência
Cardíaca Aguda. Sociedade Brasileira de Cardiologia. São Paulo: Arq. Bras. Cardiol.; 2009. Vol. 93.
3. Contemporary Management of Cardiogenic Shock: A Scientific Statement From the American Heart Association.
Circulation - Vol 136:e232–e268. October, 2017.
4. ACC/AHA/HFSA Focused Update of the 2013 ACCF/AHA Guideline for the Management of Heart Failure. Journal
of the American College of Cardiology, 2017.
5. Thiele H, Ohman EM, Waha-Thiele S, Zeymer U, Desch S. Management of cardiogenic shock complicating myo-
cardial infarction: an update 2019, European Heart Journal, Volume 40, Issue 32, 21 August 2019.
6. V Diretriz sobre Tratamento do Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnível do Segmento ST. Sociedade
Brasileira de Cardiologia. Volume 105, n. 2, Supl. 1, Agosto 2015.
Choque Hipovolêmico 12

Kathiane Laranjeira Baleeiro Silva


Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
Choque é uma síndrome de incapacidade do sistema circulatório de prover oxigênio e nu-
trientes aos tecidos e órgãos de modo a suprir suas necessidades metabólicas, na qual a perfusão
tecidual apresenta-se insuficiente, tendo como consequência a disfunção orgânica. O choque hi-
povolêmico está associado a grave perda de volume intravascular, acompanhado por uma redução
da pré-carga, sendo o tipo mais frequente de choque. Aproximadamente 1,9 milhão de pessoas
morrem por ano em todo o mundo devido a hemorragias, dos quais 1,5 milhão resultam de trauma
físico. Os sobreviventes dessa condição apresentam aumento significativo da morbimortalidade
em longo prazo, com maus resultados funcionais. A principal causa do choque hipovolêmico é a
hemorragia por trauma, com perda sanguínea interna ou externa, sendo os locais de sangramento
mais comuns a pelve, o abdome, o tórax e os ossos longos.

Apresentação clínica
O paciente em choque hipovolêmico pode apresentar alteração do estado de consciência,
hipotensão, geralmente pressão arterial sistólica (PAS) < 90 mmHg e pressão arterial diastólica
(PAD) < 60 mmHg, redução da pressão de pulso, taquicardia, taquipneia, pele fria e úmida, oli-
gúria e acidose metabólica. Esses sinais e sintomas dependem do nível do choque. A hipotensão
arterial não é bom indicador de choque, devido aos mecanismos compensatórios que podem
impedir uma queda mensurável da pressão sistólica até que a perda de fluidos ultrapasse um
limite crítico.

Etiopatogênese
O choque hipovolêmico pode ser classificado em hemorrágico, que pode ter como causa o
trauma, o hemotórax, o hematoma retroperitoneal, o hemoperitônio, a hemorragia digestiva e as
84 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

perdas externas e em não hemorrágico, associado a causas gastrointestinais (diarreia e vômitos), a


perdas para terceiro espaço (obstrução intestinal, pancreatite aguda), a perdas renais (nefropatia
com perda de sal, estado hiperosmolar hiperglicêmico, excesso de uso de diurético) a hipertermia
e a queimaduras.
A perda de líquidos resulta em uma diminuição do volume intravascular e, consequente-
mente, em redução do débito cardíaco. O fornecimento inadequado de oxigênio ativa mecanis-
mos homeostáticos importantes que preservam a perfusão em órgãos vitais. A redução do volume
sanguíneo promove alterações na PA média e no metabolismo de oxigênio, promovendo ativação
de barorreceptores e de quimiorreceptores no arco aórtico, nos átrios, no corpo carotídeo e nos
vasos pulmonares, o que leva à inativação dos centros vasomotores do tronco cerebral, resultando,
então, em ativação simpática e em desativação vagal (nó sinusal). Como consequência de todo o
processo, há uma série de respostas compensatórias, como:
• Ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA);
• Liberação de catecolaminas, com aumento de adrenalina e de noradrenalina na medula
adrenal e nas terminações nervosas periféricas, respectivamente;
• Liberação de vasopressina pela hipófise posterior;
• Aumento de glucagon para favorecer a gliconeogênese e a glicogenólise, com subsequente
hiperglicemia e aumento de endotelina, a fim de promover a vasoconstrição.
Nesse contexto, ocorre aumento da frequência e da contratilidade cardíacas, da reabsorção
de água e de sódio pelos rins, da oferta de substratos e da extração de oxigênio, bem como a re-
distribuição da volemia, priorizando a perfusão de órgãos nobres, que incluem coração e cérebro.
No que tange às repercussões hematológicas, a redução da volemia resulta na redução de
fatores de coagulação em cerca de 30%, o que contribui para maiores riscos de sangramento es-
pontâneo. Além disso, alterações que ocorrem no endotélio, secundárias à apoptose das células
locais pela hipóxia, podem levar à endoteliopatia do choque, caracterizada por permeabilidade
vascular aumentada, por distúrbios da coagulação e por ativação inflamatória, o que pode levar à
disfunção de órgãos.
Dependendo da gravidade do choque, da sua etiologia, dos fatores associados ao paciente
e do tratamento instituído, a resposta compensatória não é suficiente para restaurar a perfusão
tecidual e corrigir o desequilíbrio entre oferta e demanda de oxigênio. Com o metabolismo aeró-
bico prejudicado, há ativação do metabolismo anaeróbico, depleção de ATP, produção de lactato
e acidificação celular. Todas essas alterações, no nível macro e microvascular, podem prosseguir
a uma fase irreversível, a partir da qual nenhum tratamento é eficaz, em que a lesão celular é tão
extensa a ponto de causar disfunção de múltiplos órgãos e óbito.

Diagnóstico
O diagnóstico é principalmente clínico. Deve-se avaliar as condições clínicas e definir a ex-
tensão da hemorragia, com base nos sinais e nos sintomas apresentados pelo paciente1. O volume
sanguíneo em um adulto corresponde a aproximadamente 7% do peso corporal. Em indivíduos
obesos, calcula-se o volume do sangue por meio do valor de peso ideal, a fim de evitar uma supe-
restimação do valor encontrado2.
A gravidade do choque pode ser classificada de acordo com a perda volêmica e com sinais
clínicos, evidenciados na Tabela 12.1.
C h o q u e H i p o v o l ê m i c o 85

Tabela 12.1. Sumarização dos achados e do tratamento preconizado a cada classe de hipovolemia
Classe I Classe II Classe III Classe IV
Perda volêmica (mL) Até 750 750-1500 1500-2000 > 2000
Perda volêmica (%) Até 15% 15-30% 31-40% > 40%
Frequência cardíaca < 100 bpm 100-120 bpm 120-140 bpm > 140 bpm
Pressão arterial Normal Normal Diminuída Diminuída
Pressão de pulso
Normal Diminuída Diminuída Diminuída
(mmHg)
Frequência respiratória 14-20 irpm 20-30 irpm 30-40 irpm > 35 irpm
Diurese (mL/h) > 30 20-30 5-15 Desprezível
Estado mental (ECG) Levemente ansioso Moderadamente ansioso Ansioso, confuso Confuso, letárgico
Déficit de base 0 até -2 mEq/L -2 até -6 mEq/L -6 até -10 mEq/L -10 mEq/L ou menos
Reposição de líquidos Monitorar/Cristaloide Cristaloide Cristaloide e sangue Cristaloide e sangue

Autoria própria. Dados da 10ª edição do ATLS2.

Na hemorragia de classe I, os sintomas e sinais clínicos são mínimos. A frequência cardíaca


pode estar discretamente elevada ou pode não apresentar nenhuma alteração. A pressão arterial,
a pressão de pulso e a frequência respiratória não sofrem modificações mensuráveis. Não há ne-
cessidade de reposição volêmica, a perda sanguínea é inferior a 15% e os mecanismos compensa-
tórios são suficientes para restabelecer o volume de sangue em 24 horas2.
Na hemorragia de classe II, a perda sanguínea varia entre 15 a 30 %. Em um paciente adulto
de 70 kg, por exemplo, o déficit volêmico é de 750 a 1.500 mL de sangue3, logo os sinais clínicos já
são relevantes. No entanto, devido ao aumento compensatório das catecolaminas, a alteração da
PA fica pouco perceptível, embora a pressão de pulso esteja notoriamente reduzida. Essa redução
ocorre mais pelo aumento da PAD, ocasionado pelo aumento da resistência vascular periférica, do
que pela discreta diminuição da PAS. O débito urinário é levemente afetado, de forma que a diu-
rese fica mantida entre 20 e 30 mL/hora em adultos. Há sutis alterações no nível de consciência,
com sintomas de medo e de ansiedade. Os pacientes são estabilizados, inicialmente, com soluções
cristaloides, e necessitam, eventualmente, de transfusão sanguínea2.
Na vigência da hemorragia de classe III, por sua vez, a perda volêmica pode induzir resultados
arrasadores. Há sinais característicos de perfusão inadequada, acentuada taquicardia e taquip-
neia, queda significativa da PAS e alterações importantes no nível de consciência2. É importante
que a equipe assistencial se empenhe em interromper a hemorragia, lançando mão, se necessário,
de cirurgias emergenciais ou de embolização. Ademais, é necessária a reposição de volume para
reverter o estado de choque e a transfusão de concentrado de hemácias (CH) pode ser necessária,
dependendo da resposta do indivíduo à reposição inicial de líquidos2.
Em hemorragias de classe IV, a perda de volume sanguíneo é maior que 40% e o risco de mor-
te é iminente3. Os sintomas clínicos característicos são taquicardia acentuada, redução significa-
tiva da pressão sistólica, pressão diastólica não mensurável, pressão de pulso consideravelmente
diminuída, débito urinário insignificante, nível de consciência rebaixado, além de pele pálida e
fria. Esses pacientes, frequentemente, necessitam transfusão sanguínea rápida e intervenção ci-
rúrgica de emergência2.
86 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

A razão entre a frequência cardíaca e a PAS (SI- Shock index) pode ser um índice para melhor
classificar os pacientes em relação a sangramentos críticos, a maiores necessidades de transfusão
e a mortalidade precoce. Entretanto, não deve ser utilizada para reduzir o grau de suspeita de le-
sões graves. A piora do SI é indicativa de maior gravidade1 e uma classificação válida é: Grupo I SI
< 0,6; grupo II ≥ 0,6 a < 1,0; grupo III SI ≥ 1,0 a < 1,4; grupo IV ≥ 1,4.
Exames laboratoriais auxiliam o diagnóstico, como:
• Hemograma;
• Mensuração de eletrólitos;
• Gasometria arterial;
• Coagulograma4;
• Lactatemia;
• Déficit De Base;
• PaCO2.
Teste de gravidez em mulheres em idade fértil2 e exames de imagem podem ser úteis na defi-
nição da etiologia do choque e, assim, complementar o diagnóstico. Pacientes vítimas de trauma
podem ter fontes intracavitárias de hemorragias, como tórax, abdome e pelve, motivo pelo qual a
avaliação rápida dessas topografias, por meio do protocolo ultrassonográfico FAST e de radiogra-
fias de tórax e de pelve, pode sinalizar possíveis sangramentos. A ultrassonografia também pode
ser importante em causas não traumáticas, como ruptura de aneurisma de aorta, gravidez ectópi-
ca rota e sangramento uterino4.

Tratamento
O tempo médio entre o início do sangramento e o óbito do paciente gira em torno de duas
horas1. Pacientes em choque estão criticamente doentes e precisam ser internados em Unidades
de Terapia Intensiva. O tratamento inicia-se no ambiente pré-hospitalar e é de suma importância
para a maior sobrevida do paciente1. Desse modo, realiza-se o C-ABCDE modificado (circulação
– via aérea, ventilação, circulação, nível de consciência, exposição), por meio do qual o choque
hemorrágico tem tratamento preferencial, exceto na vigência da insuficiência respiratória5. O re-
gistro das condições iniciais é necessário para avaliar a resposta do doente ao tratamento. Faz-se
imperiosa a aferição dos sinais vitais, da diurese e do nível de consciência. Deve-se garantir per-
meabilidade da via área do paciente com ventilação e com oxigenação adequadas, mantendo a
saturação de oxigênio em níveis superiores a 95%2 e a PaCO2 entre 5,0 e 5,5 kPa (35 a 40 mmHg)1. O
controle da hemorragia externa pode ser realizado por meio de compressão direta sobre o local e,
em casos de sangramento maciço nas extremidades, pode ser necessária a utilização de tornique-
tes. Em fraturas pélvicas, um lençol ou cinta pélvica são úteis para controlar a perda sanguínea2.
Pacientes inconscientes devem ser submetidos a sondagem nasogástrica, devido ao risco
elevado de aspiração de conteúdo gástrico decorrente da dilatação gástrica. A sondagem vesical,
por sua vez, possibilita a avaliação da presença de hematúria, que pode sinalizar perda sanguí-
nea intra-abdominal, e a monitorização da perfusão renal, por meio da mensuração da diurese.
Presença de sangue no meato uretral ou hematoma perineal são contraindicações absolutas à in-
serção da sonda vesical, sendo necessária a confirmação, por radiografia, da integridade uretral2.
O acesso venoso deve ser obtido rapidamente para que a reposição de fluidos possa ser ini-
ciada4. Primeiramente, insere-se um cateter intravenosos periférico curto (calibre de pelo menos
C h o q u e H i p o v o l ê m i c o 87

18 G no adulto), para a infusão rápida e de grandes volumes de líquidos, sendo as veias do antebra-
ço ou as veias antecubitais as preferenciais. Na eventualidade de não ser possível puncionar veias
periféricas calibrosas, opta-se pela instituição do acesso venoso central na veia femoral, na veia
jugular ou na veia subclávia. Se a inserção do cateter acontecer na veia subclávia ou na veia jugular
interna, realiza-se radiografia de tórax para documentar a posição do dispositivo e para excluir a
presença de pneumotórax ou de hemotórax2.
No primeiro momento é difícil mensurar o volume de líquidos e de sangue necessários, mo-
tivo pelo qual é imperioso o acompanhamento longitudinal do paciente. Os detalhes relacionados
à terapia transfusional são discutidos no Capítulo 58, porém, vale ponderar a necessidade de se
administrar, em adultos, 1 litro de solução eletrolítica isotônica aquecida, como Ringer lactato ou
soro fisiológico, em bolus. Em pacientes pediátricos, com peso inferior a 40 kg, 20 mL/kg de líqui-
dos são preconizados a fim de restaurar a perfusão tecidual. O aquecimento dos fluidos deve ser
realizado a 39 °C e tem como finalidade a prevenção da hipotermia2. Em se tratando de hemorra-
gia grave, opta-se pela terapia transfusional com plasma congelado, com CH e com plaquetas na
proporção 1:1:16.
De acordo com a gravidade do paciente, a cirurgia de controle de danos (CCD) pode ser ne-
cessária, concentrando-se na restauração da fisiologia e, secundariamente, na correção das le-
sões anatômicas. Algumas das condições que indicam a realização do procedimento incluem
a necessidade de hemotransfusão maciça (> 10 CH/24h), a hipotermia (< 35 °C), a presença de
coagulopatia, de lesões extensas, de rotura do anel pélvico e de sangramento intenso. Ademais,
a ressuscitação de controle de danos (RCD) objetiva a ressuscitação hipotensiva e a infusão de
hemoderivados com o intuito de se prevenir a tríade letal do trauma, constituída por acidose, por
coagulopatia e por hipotermia7.
A hipotensão permissiva, com pressão arterial sistólica alvo entre 80 e 90 mmHg e pressão
arterial média entre 50 e 60 mmHg, é recomendada até que o sangramento intenso seja interrom-
pido na fase inicial após o trauma, desde que não haja lesão cerebral. A prescrição de reposição
volêmica restrita deve ser empreendida para atingir a pressão arterial alvo, até que ocorra o con-
trole da hemorragia1. Para os casos de hipotensão grave, pode ser utilizada a terapia vasopressora
com noradrenalina5.
Os indivíduos diagnosticados com choque hipovolêmico precoce apresentam alcalose devi-
do à taquipneia, constantemente seguida de acidose metabólica leve, que não exige tratamento.
Em choques prolongados ou de maior gravidade, a acidose metabólica grave pode se instalar, em
virtude do metabolismo anaeróbico instituído. Pode ocorrer, ainda, acidose persistente por efeito
da ressuscitação volêmica inadequada ou da perda contínua de sangue. A lactatemia e o déficit de
base são mensurações importantes na avaliação da presença e da gravidade do choque, bem como
da resposta à terapia. O tratamento da acidose é realizado por meio da reposição de líquidos, de
sangue e do controle da hemorragia. A prescrição de bicarbonato de sódio para reverter a acide-
mia não é recomendada2.
Os mesmos critérios diagnósticos do choque hipovolêmicos são utilizados, também, para
avaliar a resposta do paciente à terapia administrada7. O volume do débito urinário é um indicador
de sensibilidade razoável para predizer a perfusão renal. A diurese deve ser de, aproximadamente,
0,5 mL/kg/h em adultos, monitorada por sonda vesical, para demonstrar adequada resposta do
paciente à ressuscitação volêmica2.
Os padrões prováveis de resposta à administração inicial de fluidos podem ser divididos em
três categorias, descritas na Tabela 12.2.
88 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 12.2. Padrões prováveis de resposta à administração inicial de fluidos


Resposta rápida Resposta transitória Resposta mínima ou ausente
Melhora transitória, recidiva de
Sinais vitais Retorno ao normal Permanece anormal
redução da PA e aumento da FC
Moderada e persistente
Perda sanguínea Mínima (< 15%) Grave (> 40%)
(15 a 40%)
Necessidade de hemotransfusão Baixa Moderada a alta Imediata
Liberado em caráter de
Preparo do sangue Tipado e com prova cruzada Tipo específico
emergência
Necessidade cirúrgica Possível Provável Altamente provável
Presença precoce do cirurgião Sim Sim Sim

Dados da 10ª Edição ATLS2. PA: pressão arterial; FC: frequência cardíaca. Autoria própria.

Complicações clínicas
O choque hipovolêmico não tratado adequadamente é potencialmente fatal e, dependendo
da gravidade e das condições subjacentes, os riscos de morbimortalidade são altos2. As complica-
ções incluem congestão sistêmica e pulmonar, cor pulmonale, lesão renal aguda, danos cerebrais,
edema intestinal, síndrome do compartimento devido à reposição volêmica expansiva e, final-
mente, morte.

Pontos-chave
• O choque é um desequilíbrio entre oferta e demanda de oxigênio, que cursa com
hipoperfusão tecidual;
• A intervenção rápida diante do quadro de choque aumenta a sobrevida do paciente;
• A reposição volêmica é dependente da gravidade do choque;
• Valores de lactatemia e excesso de base auxiliam na definição da gravidade e da
resposta terapêutica;
• Na vigência de hipotensão refratária à reposição volêmica, a prescrição de
noradrenalina é imperiosa.

Leitura sugerida
1. Spahn DR, Bouillon B, Cerny V, Duranteau J, Filipescu D, Hunt BJ, et al. The European guideline on management
of major bleeding and coagulopathy following trauma: fifth edition. Crit Care. 2019 23:98.
2. American College of Surgeons Committee on Trauma. ATLS. Student Manual 10th Edition. Chicago: American
College of Surgeons. 2018.
3. American College of Surgeons Committee on Trauma. ATLS. Student Manual 9th Edition. Chicago: American
college of surgeons. 2012.
4. Cannon JW. Hemorrhagic Shock. N Engl J Med. 2018; 378(4):370-9.
C h o q u e H i p o v o l ê m i c o 89

5. Hempel D, Michels G. Schock-eine Übersicht für die klinische Praxis. Dtsch Med Wochenschr 2019; 144: 884-91.
6. Holcomb JB, Tilley BC, Baraniuk S, Fox EE, Wade CE, Podbielski, JM et al. Transfusion of plasma, platelets, and
red blood cells in a 1:1:1 vs a 1:1:2 ratio and mortality in patients with severe trauma: The PROPPR randomized
clinical trial. JAMA. 2015 313(5): 471-82.
7. Brandão PF, Macedo PHAP, Ramos FS. Choque hemorrágico e trauma: breve revisão e recomendações para
manejo do sangramento e da coagulopatia. Rev Med Minas Gerais. 2017;27 (Supl 4): S25-S33.
8. Lier H, Bernhard M, Hossfeld B. Der Anaesthesist. 2018 67(3):225-44.
9. Martins GT, Parizotto TM, Piccinini AB. Tipos de Choque: Manifestações Clínicas e Tratamento. Reinpec. 2018
4(1):1-5.
Arritmias Ameaçadoras à Vida 13

Aléxia dos Santos Ribeiro


Rafaela Ayres Catalão
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
As arritmias cardíacas são causadas por anormalidades na geração e/ou na condução do im-
pulso elétrico e são divididas em dois grandes grupos, as taquiarritmias e as bradiarritmias. Essas
entidades são comuns nos pacientes críticos, com apresentações que vão desde assintomáticas à
instabilidade hemodinâmica. As arritmias ameaçadoras à vida são aquelas que levam o paciente a
uma degeneração hemodinâmica tão intensa, que podem implicar em parada cardiorrespiratória.

Taquiarritmias
Taquiarritmias são definidas como distúrbios de ritmo, com frequência cardíaca superior a
100 batimentos por minuto (bpm)1-4. Apresentam espectro variado de sintomas, fazendo-se ne-
cessária a avaliação de dois aspectos fundamentais: a intensidade dos achados (presença dos si-
nais de instabilidade hemodinâmica, evidenciados na Quadro 13.1) e a relação causal deles com
a taquiarritmia2,3.

Quadro 13.1. Sinais indicativos de instabilidade hemodinâmica


Alteração do nível de consciência
Hipotensão Arterial Sistêmica (PAS < 90 mmHg)
Choque circulatório com alteração da perfusão periférica
Congestão pulmonar
Dor torácica com características anginosas

Dados de Scuotto et al.4 e de Souza et al.5 Autoria própria.


92 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

As taquicardias podem ser classificadas, de acordo com a repercussão clínica, em taquicar-


dias estáveis ou instáveis e, de acordo com o sítio de origem, em ventriculares (QRS largo, regulares
ou irregulares) ou supraventriculares (QRS estreito ou largo, regulares ou irregulares)4.
É importante ressaltar que todas as taquicardias instáveis, definidas como a presença de
frequência cardíaca (FC) maior que 150 bpm com, no mínimo, um dos sinais de instabilidade
hemodinâmica, deve ser imediatamente tratada com choque, seja com cardioversão, seja com
desfibrilação, dependendo da classificação da taquiarritimia2,3.

Taquiarritmias ventriculares
As arritmias ventriculares são distúrbios de condução que interrompem o ritmo sinusal e que
têm origem ou no miocárdio ventricular ou no sistema His-Purkinje5. Figuram entre elas as extras-
sístoles ventriculares, as taquicardias ventriculares, sustentadas ou não, e a fibrilação ventricular.
Estão associadas à cardiopatia estrutural e constituem importante causa de morte súbita6.

Taquicardia ventricular
Define-se a taquicardia ventricular (TV) como a presença de três ou mais batimentos conse-
cutivos em frequência acima de 100 batimentos/min (bpm) e com o QRS durando um tempo su-
perior a 120ms. O vetor ST-T, normalmente, é oposto à polaridade principal do QRS5. Três ou mais
batimentos consecutivos com frequências mais baixas são designados como ritmo idioventricu-
lar. Dependendo de sua ocorrência, são extremamente graves e podem levar o paciente à parada
cardiorrespiratória6. Como etiologia dessa condição, destaca-se a isquemia do miocárdio6, afinal,
a formação da cicatriz fibrótica leva à formação de áreas de bloqueio de condução, associadas
à atividade elétrica atípica, formando-se, assim, os circuitos de reentrada e, consequentemente,
a TV5. As taquicardias ventriculares podem ser classificadas, quanto à duração, em sustentadas,
quando duram mais que 30 segundos, ou em não sustentadas6. Ademais, quanto à morfologia do
complexo QRS, são classificadas em monomórficas, quando os complexos QRS possuem a mesma
morfologia em determinada derivação, e em polimórficas, quando o QRS tem diferentes morfolo-
gias (Figura 13.1), embora estejam presentes na mesma derivação6.
O grande desafio no diagnóstico consiste em diferenciar a taquicardia ventricular da su-
praventricular com aberrância de condução ou da FA associada à Síndrome de Wolff-Parkinson-
White (WPW). A diferenciação entre TV e TSV com aberrância se dá pelos critérios de Brugada.
Na dúvida, o tratamento deve ser instituído como sendo TV5. O principal objetivo do tratamento
inicial é o de buscar ou de manter a estabilidade hemodinâmica do paciente. Posteriormente, é
de extrema importância implantar condutas que reduzam o risco de novos eventos arrítmicos.
Esforços devem ser realizados para identificar as possíveis causas e fatores agravantes da TV, bem
como para contê-los6.
Na fase aguda, em vigência de TV’s monomórficas com instabilidade hemodinâmica, a car-
dioversão elétrica com 100 Joules deve ser realizada imediatamente5. Na TV monomórfica sus-
tentada com estabilidade hemodinâmica, o tratamento de escolha é a cardioversão química6.
Pacientes com TV sustentada polimórfica devem ser imediatamente submetidos à desfibrilação
com a carga máxima do aparelho. Vale considerar que, em vigência de TV polimórfica, a equipe
deve depreender esforço especial para analisar o ritmo de base do paciente, por meio da leitura
de ECG’s prévios, visando o estudo do intervalo QT, afinal, em pacientes com intervalo QT longo
adquirido, as possíveis drogas devem ser descontinuadas e, as causas, tratadas6 (Figura 13.2).
A rri t m i a s A m e a ç a d o ra s à V i d a 93

Figura 13.1. Traçado eletrocardiográfico evidenciando taquicardia ventricular (TV) não monomórfica.
Fonte: Wikimedia Commons, disponível em https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=45756093.

A Torsades de Pointes é uma síndrome com alto potencial de degeneração para fibrilação
ventricular e responde mal à CVE. Para seu tratamento, as drogas de escolha, em ordem de pre-
ferência, são o sulfato de magnésio, a lidocaína e a fenitoína. No tratamento de manutenção, um
controle medicamentoso deve ser instituído criteriosamente, de acordo com a arritmia apresen-
tada, a cardiopatia de base e a função ventricular5. Estudo eletrofisiológico, ablação por radiofre-
quência e cardiodesfibrilador implantável podem estar indicados em pacientes selecionados6.

Figura 13.2. Traçado eletrocardiográfico evidenciando TV polimórfica, resultante de prolongamento do


intervalo QT (TV tipo Torsades de Pointes).
Fonte: Wikimedia Commons, disponível em https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=19738256.
94 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Fibrilação ventricular
Fibrilação ventricular (FV) é definida como uma ativação elétrica ventricular desordenada,
sem complexos QRS identificáveis. As taquicardias ventriculares (TV) sustentadas (Figura 13.3 ),
sejam polimórficas ou monomórficas, muitas vezes degeneram para fibrilação ventricular e, por
isso, consistem na principal etiologia dessa arritmia7.

Figura 13.3. Traçado eletrocardiográfico evidenciando fibrilação ventricular.


Fonte: Wikimedia Commons, disponível em https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2599757.

O tratamento da condição segue as diretrizes do ACLS, com desfibrilação, para restaurar o


ritmo sinusal. Ao retorno da circulação, procede-se à investigação complementar para identificar
e para tratar as causas precipitantes do evento6.

Taquiarritmias supraventriculares
Taquiarritmias supraventriculares (TSV) são definidas como condições originadas no nó si-
nusal, nos átrios, no nó atrioventricular ou no feixe de His5. São arritmias comuns e, normalmente,
não oferecem risco de morte ao paciente4,8. Neste capítulo, serão discutidos apenas o flutter atrial
e a fibrilação atrial6.

Flutter atrial
Flutter atrial (FLA), também chamado de taquicardia atrial por macrorreentrada, o flutter
atrial está associado a maior risco de ocorrência de eventos tromboembólicos2,3. A condição pode
ser dividida entre flutter típico (90% dos casos) e atípico4. Normalmente, acometem o átrio direito,
porém, podem acontecer à esquerda e, quando esquerdo, geralmente são secundários à ablação
cirúrgica ou por cateter4.

Fibrilação Atrial
Fibrilação Atrial (FA) é a arritmia mais comum, tanto na população geral quanto nas UTI’s9,
caracterizando-se pela ativação atrial descoordenada, a exemplo do exposto na Figura 13.4, com
consequente deterioração da função mecânica atrial10 e apresenta-se como uma importante cau-
sa de mortalidade em pacientes críticos9,11.
A rri t m i a s A m e a ç a d o ra s à V i d a 95

Figura 13.4. Traçado eletrocardiográfico evidenciando fibrilação atrial.


Fonte: Wikimedia Commons.

A FA de instalação recente é um preditor independente de mortalidade no cuidado intensi-


vo. Está relacionada a maiores probabilidades de morte por cardioembolia, a aumento de cinco
vezes no risco de acidente vascular encefálico (AVE), na piora da função ventricular esquerda e da
qualidade de vida, devido às consequências dos fenômenos tromboembólicos e das alterações
cognitivas. Os AVE’s de origem trombótica são mais incapacitantes e apresentam maior mortali-
dade2-4,11-13. Embora possa ocorrer em pacientes jovens e sadios, é mais comum entre portadores
de alguma cardiopatia estrutural4. Seu principal fator predisponente, entre aqueles possíveis, ex-
postos na Tabela 13.1, é a idade4,12, o que a torna uma questão importante de saúde pública13,14. Os
sinais e os sintomas são variáveis, podendo ser desde ausentes a sintomas intensos, como palpi-
tações, dor torácica anginosa, pulsos irregulares e aqueles advindos de baixo débito cardíaco2-4,13.

Tabela 13.1. Possíveis causas de FA em pacientes críticos


Distúrbios hídricos Hipertireoidismo agudo
Distúrbios eletrolíticos Episódio vagotônico agudo
Distúrbios neuro-hormonais Intoxicação alcoólica aguda
Drogas arritmogênicas Pós operatório
Síndrome da resposta inflamatória sistêmica Outros (TEP, p.ex.)

Dados de Scuotto F et al.4 e de Gupta S et al.9 Autoria própria.

No que tange ao tratamento das taquiarritmias supraventriculares descritas, o mesmo pro-


tocolo é adotado, seja na FA, seja no FLA. O primeiro passo deve ser a avaliação da situação he-
modinâmica. Na eventualidade de o paciente estar instável, há indicação de cardioversão elétrica
sincronizada imediata, independentemente do tempo depreendido após o início dos sintomas1,2,9.
Quando existe estabilidade hemodinâmica, escolhe-se o tratamento de acordo com o tempo de
início dos sintomas, devido ao risco da formação de trombos intracavitários e de eventos embóli-
96 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

cos à reversão2-4. Em casos agudos, com < 48h de evolução, a cardioversão elétrica (CVE) é a terapia
de primeira escolha, pois reverte o ritmo sinusal de forma rápida e eficiente. A terapia farma-
cológica (propafenona ou amiodarona) deve ficar reservada a pacientes que apresentam alguma
contraindicação à CVE ou à sedação1,2,9. Nas situações crônicas, com > 48h de evolução, e naquelas
de duração desconhecida, inicia-se a anticoagulação e o controle farmacológico da frequência
ventricular (betabloqueadores ou bloqueadores e canais de cálcio, como o verapamil) e, poste-
riormente, decide-se sobre a reversão do ritmo2-4. Nesse propósito, duas estratégias são plausíveis:
• Prescrever a anticoagulação efetiva e mantê-la por 3 semanas para, então, realizar a
cardioversão, mantendo a terapia anticoagulante por mais 4 semanas; ou
• Solicitar a realização do ecocardiograma transesofágico para descartar a presença
de trombo no átrio esquerdo, seguida da terapia de anticoagulação e de cardioversão,
simultaneamente, mantendo o anticoagulante por mais 4 semanas. Para a anticoagulação
efetiva, pode-se utilizar tanto a varfarina, quanto os novos anticoagulantes orais (exceto em
casos de próteses valvares metálicas ou de FA por estenose mitral). Pacientes de alto risco
para eventos tromboembólicos devem ter a anticoagulação mantida indefinidamente
após a cardioversão12,13,15.
Na presença da Síndrome de Wolff-Parkinson-White, a terapia passa a ser diferenciada. Nesse
sentido, evolução de < 48h pode ser controlada com CVE. Ademais, a propafenona, a amiodarona,
a procainamida e a ibutilida podem ser prescritas se optar-se por reversão farmacológica ou se
houver a necessidade de controlar a frequência cardíaca em pacientes estáveis. Adenosina, beta-
bloqueadores, bloqueadores de canal de cálcio e digoxina estão contraindicados pela ação predo-
minante no nó atrioventricular2,3. Em pacientes cuja arritmia tenha mais de 48h de evolução, um
especialista deve ser consultado (Tabela 13.2 ).

Tabela 13.2. Posologia de medicações para manutenção do ritmo sinusal e/ou reversão aguda
Droga Via Dose de ataque (mg) Manutenção Intervalo doses (h)
Amiodarona Oral 800-1.600/dia (por 15-20 dias) 200-400 mg/dia 24
EV 150-1.200 100-300 mg/dia
Propafenona Oral - 450-900 mg/dia 8
EV 150 2 mg/min
Sotalol Oral - 160-480 12

Dados das II Diretrizes Brasileiras de Fibrilação Atrial13. Autoria própria.

Existem situações em que é indicado o tratamento definitivo do FLA e da FA, por meio de
ablação por radiofrequência. A taxa de sucesso é elevada, principalmente no flutter14.

Bradiarritmias
Bradiarritmia (ou bradicardia) é definida como um ritmo com frequência cardíaca menor
que 50 batimentos por minuto (bpm)3. Podem ser fisiológicas (por exemplo, em atletas ou durante
o sono) ou patológicas, acompanhadas ou não de repercussão hemodinâmica16. Baseado no local
de sua formação, a condição pode ser classificada como distúrbios da função sinusal, como distúr-
bios da condução atrioventricular ou como distúrbios neuromediados16.
A rri t m i a s A m e a ç a d o ra s à V i d a 97

Distúrbio da condução atrioventricular


São instaurados por bloqueios atrioventriculares, condição em que um estímulo atrial é blo-
queado ou é, patologicamente, lentificado, seja no nível do nó atrioventricular, seja no nível dos
feixes intraventriculares (intra ou infra-hissiano). Quanto maior é o grau de bloqueio e quanto
mais distal ele é no sistema de condução, maior é a gravidade6. As principais causas de BAV são
a senescência do sistema de condução cardíaco (fibrose ou esclerose progressiva de suas fibras,
conhecida como doença de Lev-Lenegre) e a cardiopatia isquêmica. As etiologias funcionais (au-
tonômicas, metabólicas/endócrinas e relacionadas a fármacos) tendem a ser reversíveis5. Os blo-
queios atrioventriculares podem ser classificados, de acordo com sua gravidade, em de primeiro
grau, de segundo grau e de terceiro grau (ou total). Ademais, podem ser classificados de acordo
com a localização que assumem no sistema de condução AV7.

BAV de 2º grau
No bloqueio AV de 2° grau, há falha intermitente na condução do impulso elétrico do átrio
para o ventrículo, e, por isso, alguns impulsos atriais são bloqueados. Nesse raciocínio, ao regis-
tro eletrocardiográfico algumas ondas P não se seguem de QRS. Os BAV de 2º grau são divididos,
ainda, em Mobitz tipo I (Wenckebach) e em Mobitz tipo II6. No Mobitz I, existe encurtamento no
intervalo RR e prolongamento progressivo do intervalo PR, até que uma despolarização atrial não
seja seguida por uma ventricular (fenômeno de Wenckebach), fenômeno evidenciado pelo blo-
queio do complexo QRS, conforme exemplificado na Figura 13.5. Nesse caso, o defeito no sistema
de condução encontra-se, geralmente, no NAV5. No Mobitz II, por outro lado, existem falhas de
condução AV, seja de forma anárquica, representadas pela ausência de despolarização ventricular
esporádica, sem alterações nos intervalos PR ou RR precedentes, seja de forma regular7. Em com-
paração ao tipo I, o bloqueio AV de segundo grau tipo II ocorre no sistema de condução distal ou
infra-hissiano e tem maior probabilidade de evoluir para graus mais elevados de bloqueio AV. A
condição constitui-se uma indicação de implante de marca-passo permanente6.

Figura 13.5. Traçado eletrocardiográfico evidenciando bloqueio atrioventricular (BAV) de segundo grau,
Mobitz tipo I.
Fonte: Wikimedia Commons, disponível em https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=47645793.

Quando o BAV de 2º Grau se apresenta na frequência rítmica de 2:1, ou seja, para cada dois
batimentos de origem atrial, um é conduzido e despolariza o ventrículo, e outro é bloqueado e não
consegue despolarizá-lo, a diferenciação entre Mobitz I e II é prejudicada, conforme observado na
Figura 13.66. Por isso, convencionou-se classificar esse BAV como BAV de 2º Grau tipo 2:1.
98 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Figura 13.6. Traçado eletrocardiográfico evidenciando bloqueio atrioventricular (AV) de segundo grau
tipo 2:1.
Fonte: Wikimedia Commons, disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=47645793.

BAV 3º grau ou BAV total (BAVT)


É caracterizado por uma falha completa na condução do estímulo elétrico do átrio para o
ventrículo, com uma total dessincronia AV, como exposto na Figura 13.75. O ritmo ventricular é
assumido, então, pelo automatismo das células abaixo do bloqueio, que pode ocorrer em qualquer
nível, a partir no NAV. Quanto mais distal o ritmo de escape for, menor será a frequência cardíaca6.

Figura 13.7. Bloqueio atrioventricular (AV) de terceiro grau.


Fonte: Wikimedia Commons, disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=47645793

O tratamento objetiva garantir o bombeamento do débito cardíaco adequado e varia de acor-


do com a doença de base, com a intensidade e com a gravidade dos sintomas5. Uma vez identifica-
da a bradiarritmia, a equipe deve iniciar as medidas de suporte clínico e procurar sinais e sintomas
indicativos de baixo débito cardíaco. Na eventualidade de existir perfusão cerebral/periférica, a
conduta expectante pode ser adotada; caso contrário, preparar o paciente para receber o mar-
ca-passo provisório é fundamental6. O marca-passo, temporário ou permanente, é a forma mais
confiável de tratar os pacientes portadores de distúrbios sintomáticos da condução AV. A correção
dos desequilíbrios eletrolíticos e de isquemia, a inibição de tônus vagal excessivo e a suspensão
de fármacos com propriedades bloqueadoras do nó AV são medidas que podem aumentar a fre-
quência cardíaca5. Em associação, o tratamento farmacológico, seja com atropina, seja com iso-
proterenol, pode ser útil se o bloqueio for sediado no nó AV. Considerando-se que a maioria dos
tratamentos farmacológicos demanda algum tempo para o início dos seus efeitos, é possível que
exista a necessidade de instalar-se um marca-passo temporário. Não havendo resolução imediata,
trata-se possivelmente de um bloqueio de condução em posição distal ao nó AV, condição que
exige o implante de marca-passo permanente6.
A rri t m i a s A m e a ç a d o ra s à V i d a 99

Pontos-chave
• As arritmias cardíacas são causadas por anormalidades na geração e/ou na condução
do impulso elétrico e são divididas em dois grandes grupos;
• Taquiarritmias são definidas como distúrbios de ritmo, com frequência cardíaca
superior a 100 batimentos por minuto;
• Bradiarritmia (ou bradicardia) é definida como um ritmo com frequência cardíaca
inferior a 50 batimentos por minuto;
• O tratamento objetiva garantir o bombeamento do débito cardíaco adequado e
varia de acordo com o diagnóstico, com a doença de base, com a intensidade e com
a gravidade dos sintomas.

Leitura sugerida
1. Kerton M, Wiggins J, Purkiss M. Cardiac arrhythmias in the critically ill. Anaesthesia and Intensive Care Medicine.
2018 Jun01;19:298-307.
2. Gonzalez MM, Timerman S, Gianotto-Oliveira R, Polastri TF, Canesin MF, Lage SG, et al. Sociedade Brasileira
de Cardiologia. I Diretriz de Ressuscitação Cardiopulmonar e Cuidados Cardiovasculares de Emergência da
Sociedade Brasileira de Cardiologia. ArqBrasCardiol. 2013; 101(2Supl.3): 1-221.
3. Bernoche C, Timerman S, Polastri TF, Giannetti NS, Siqueira AWS, Piscopo A et al. Atualização da Diretriz de
Ressuscitação Cardiopulmonar e Cuidados de Emergência da Sociedade Brasileira de Cardiologia – 2019.
ArqBrasCardiol. 2019; 113(3):449-663.
4. Scuotto F, Voss TH, Paul LC, Fenelon G, Figueiredo MJ. Arritmias na sala de emergência e UTI. Taquicardias de
QRS Estreito: Fundamentos para a abordagem. RevSocCardiol Estado de São Paulo. 2018;28:276-85.
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Como Eu Trato. Revista do Hospital Universitário Pedro Ernesto, UERJ. 2008;7.
6. Kasper DL, Hauser SL, Jameson JL, Fauci AS, LL, Loscalzo J. Medicina Interna de Harrison. 19th ed. Porto
Alegre: AMGH Editora, 2017. Parte 10 - Doenças do Sistema Cardiovascular: Seção 3 - Distúrbios do Ritmo.
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2015;(10):2254-2255.
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submetido a cardioversão: já podemos contar com os novos anticoagulantes orais? RevSocCardiol Estado de São
Paulo. 2018;28:286-90.
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RevSocCardiol Estado de São Paulo. 2015;25:219-26.
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Estado de São Paulo [Internet]. 2017;27:205-10.
16. Assumpção AC, Moreira DR. Arritmias na sala de emergência e UTI. Bradiarritmias: como identificar e tratar o
paciente com baixa perfusão? RevSocCardiol Estado de São Paulo [Internet]. 2018;28:296-301.
Infarto Agudo do Miocárdio 14

Aloísio de Freitas Jorge Júnior


Karoline Sousa Lages
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
O infarto agudo do miocárdio (IAM) é definido como o evento clínico decorrente da morte
dos cardiomiócitos, gerado por episódio de isquemia prolongada. Essa isquemia é causada por
um desequilíbrio entre a oferta e o consumo de oxigênio pelo tecido cardíaco, embasado, na maior
parte das vezes, em doença aterosclerótica coronariana aguda.
No que tange à classificação do evento, vale considerar a existência da síndrome coronariana
aguda (SCA), entidade que engloba não apenas o infarto agudo do miocárdio com supradesnive-
lamento do segmento ST (IAMCSST), como também o infarto agudo do miocárdio sem suprades-
nivelamento do segmento ST (SCASSST) e a angina instável (AI). O IAMCSST, propriamente dito,
é definido como um episódio de isquemia aguda causado pela obstrução total de vasos corona-
rianos, tendo como resultado final a necrose de células miocárdicas. A SCASSST, por outro lado,
é decorrente da obstrução parcial das artérias coronárias, com consequente evento isquêmico
agudo na parede do miocárdio. O IAMSSST e a AI diferenciam-se pela presença ou pela ausência
de marcadores circulantes de necrose miocárdica, respectivamente.
Epidemiologicamente, a SCA é a principal causa de morte no mundo, atingindo, principal-
mente, adultos acima de 20 anos de idade, sendo que, nos homens, a doença tende a ocorrer mais
precocemente do que em mulheres. A incidência de IAM nos Estados Unidos é de 550.000 novos
casos e de 200.000 casos reincidentes ao ano. Vale considerar, porém, que a SCASSST se tornou a
forma mais frequente de apresentação clínica da SCA, provavelmente em consequência do ad-
vento de estudos mais sensíveis de lesão miocárdica, de reperfusão precoce e de prevenção do
IAMCSST.

Classificação
É de suma importância entender as classificações da SCA, as quais exprimem alterações no
eletrocardiograma (ECG) e em biomarcadores de lesão miocárdica, como elevação de troponina
102 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

ou creatinoquinase. No que tange ao ECG, a análise baseia-se no segmento ST, que pode estar su-
pradesnivelado ou não, como evidenciado na Figura 14.1.

AI
SCASSST

SCA IAMSSST

SCACSST IAMCSST

Figura 14.1. Classificação do IAM segundo as alterações no eletrocardiograma.


SCA: Síndrome Coronariana Aguda; SCASSST: Síndrome Coronariana Aguda sem Supradesnivelamento do segmento ST;
SCACSST: Síndrome Coronariana Aguda com Supradesnivelamento do segmento ST; AI: Angina instável; IAMSSST: Infarto Agudo
do Miocárdio sem Supradesnivelamento do segmento ST; IAMCSST: Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnivelamento do
segmento ST. Dados de Thygesen K, et al., 20181. Autoria própria.

Ademais, uma nova classificação visa dividir os eventos isquêmicos em relação às diferenças
patológicas, prognósticas e clínicas, a fim de alcançar uma melhor abordagem terapêutica, como
exposto na Tabela 14.1.

Tabela 14.1. Classificação do IAM segundo sua etiopatogenia


Tipo de IAM Descrição
1 IAM ocasionado por doença arterial aterotrombótica.
IAM secundário a anemia grave, hipotensão, hipoxemia grave, vasoespasmos em coronárias, embolia coronariana,
2
taquiarritmias, hipertensão grave, entre outros.
IAM resultando em óbito antes que se possa obter amostras sanguíneas in vivo para estimar valores dos biomarcadores
3
de isquemia.
4a IAM resultante de intervenção coronariana percutânea.
4b IAM resultante de trombose em stent associado à intervenção coronariana percutânea.
4c IAM resultante de reestenose das artérias coronárias associada à intervenção percutânea.
5 IAM associado à cirurgia de revascularização do miocárdio.

Dados de Thygesen K, et al., 20181. Autoria própria.

Etiopatogênese
A etiologia mais comum do IAM é a formação das placas ateroscleróticas, formadas pelo acú-
mulo de colesterol e de gordura saturada na camada íntima das artérias coronárias epicárdicas,
principalmente na artéria descendente anterior, na artéria circunflexa e na artéria coronária di-
reita. No momento posterior, ocorre a migração de células musculares lisas e a deposição de ma-
triz extracelular na região. Oportunamente, pode acontecer a ruptura abrupta dessa placa, o que
resulta na exposição das substâncias pró-coagulantes do seu interior ao sangue circulante, o que
leva à ativação e à agregação plaquetária. Nesse ponto, forma-se um trombo que pode obstruir
abruptamente o fluxo sanguíneo da coronária, instituindo o IAM tipo 1.
Há, ainda, outras etiologias possíveis para o IAM, como eventos agudos secundários que im-
possibilitam a oxigenação do miocárdio, entre eles: febre, sepse, vasculite, uso de cocaína, anemia,
I n f a r t o A g u d o d o M i o c á rd i o 103

hipoxemia, hipertensão grave e obstrução dinâmica (espasmo focal da artéria coronária ou angina
de Prinzmetal), originando o IAM tipo 2.
É importante considerar o fato de que as etiologias do IAMCSST e das SCASSST podem ser
as mesmas, porém diferem-se quanto ao tempo de isquemia e ao grau de oclusão das artérias
coronárias. Nas SCASSST existe a isquemia transitória, como a suboclusão ou oclusão transi-
tória das artérias coronárias, induzindo à redução da oxigenação miocárdica por um curto pe-
ríodo de tempo. No IAMCSST, por outro lado, ocorre a oclusão total das artérias coronarianas
ou a permanência de fatores secundários que reduzem a oxigenação miocárdica por um tempo
prolongado.
A necrose miocárdica progride quanto maior for o tempo de obstrução arterial. Inicialmente,
instaura-se no subendocárdio e se estende para o epicárdio com o passar das horas, até que toda
a espessura do tecido cardíaco seja acometida, condição denominada como infarto transmural.
Alguns fatores são cruciais para a ocorrência ou não da necrose, evidenciados na Figura 14.2.

Capacidade da rede de circulação colateral

Consumo de oxigênio pelo miocárdio

Exaustão, lipotimia e síncope


A necrose se inicia após 30 minutos da
oclusão arterial, podendo atingir toda a
Tempo de reperfusão miocárdica
espessura da parede cardíaca quando o
tempo de obstrução é maior que 6 horas.

Figura 14.2. Fatores que influenciam na ocorrência de necrose.


Dados de Longo DL, et al., 20154; Goldman L, et al., 20166; Lopes AC, et al., 20169. Autoria própria.

Apresentação clínica
A sintomatologia comum da SCA é a precordialgia constritiva, tipicamente de forte intensi-
dade, com duração maior que 20 minutos, que não cessa após o repouso ou após a administra-
ção de nitrato sublingual. Frequentemente, a dor pode irradiar para a região do epigástrio, para
o dorso, para o mento, para os membros superiores e para mandíbula. Além disso, outros sinais
e sintomas são constantemente associados ao IAM, como dispneia, náuseas, vômitos, ansiedade,
sudorese, síncope e palidez. No entanto, alguns pacientes têm uma apresentação atípica, cujas
manifestações incluem aquelas expostas na Figura 14.3.

Dispepsia
Dor torácica em Exaustão, Déficit Morte súbita
(epigastralgia,
“queimação” lipotimia neurológico (por fibrilação
náuseas
ou “facada” ou síncope focal ventricular)
e vômitos)

Figura 14.3. Manifestações atípicas do IAM.


Dados de Thygesen K, et al., 2018¹; Longo DL, et al., 20154; Goldman L, et al., 20166. Autoria própria.
104 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Geralmente, os grupos mais propensos a apresentar a sintomatologia atípica da SCA são ido-
sos, mulheres, diabéticos, portadores de insuficiência cardíaca, indivíduos que possuem marca-
-passo definitivo e transplantados cardíacos.
Vale considerar, ainda, o perfil do paciente mais propenso ao desenvolvimento da SCA, cuja
investigação faz-se imperiosa durante a anamnese. Os fatores de risco relacionados a um pior
prognóstico das SCA em geral, incluem tabagismo, dislipidemia, história familiar positiva, idade
avançada, cardiomiopatia, aterosclerose, diabetes e doença renal crônica.

Diagnóstico
O diagnóstico da SCA baseia-se na anamnese, no exame físico, no ECG e nos biomarcadores
de necrose miocárdica. A história clínica e o exame físico são fundamentais na estratificação de
risco dos pacientes com infarto e permite uma abordagem adequada e precoce na terapêutica, o
que propicia um melhor prognóstico1,2.

Importante
Dissecção da aorta com assimetria de pulso entre os MMSS ou entre MMSS e MMII
+ elevação da PA + alargamento do mediastino ao raio X

Suspeita de IAM de ventrículo direito, já que a dissecção pode ser retrógrada,
atingindo a artéria coronária direita

Os critérios para diagnóstico de SCA e de IAM encontram-se nas Tabelas 14.2 e 14.3,
respectivamente.

Tabela 14.2. Critérios diagnósticos para a SCA


Aspectos diagnósticos das SCA
Anamnese
Caracterização da dor: localização, intensidade, fatores de melhora ou piora (uso de nitratos, por exemplo), irradiação, sintomas associados
(dispneia, hipotensão, sudorese), antecedentes familiares e fatores de risco.
Exame físico
• Aparelho cardiovascular
◦◦Ausculta cardiopulmonar (atenção à terceira bulha cardíaca e aos sopros cardíacos);
◦◦Aferição pressão arterial em ambos os MMSS;
◦◦Avaliação de frequência cardíaca e palpação de pulsos arteriais periféricos em MMSS e membros inferiores (MMII);
◦◦Falência de ventrículo esquerdo: terceira bulha, congestão pulmonar, hipotensão, palidez e sudorese fria.
• Aparelho respiratório
◦◦Atentar para presença de ruídos adventícios: ventrículo esquerdo com falência provoca congestão pulmonar (classificação de Killip).
Continua
I n f a r t o A g u d o d o M i o c á rd i o 105

Continuação

Aspectos diagnósticos das SCA


Eletrocardiograma (ECG)
Evidência de oclusão ou suboclusão arterial
• Suboclusão (IAMSSST ou AI):
◦◦Infradesnivelamento do segmento ST > 0,5 mm em 2 ou mais derivações contíguas;
◦◦Inversão de onda T.
• Oclusão (IAMCSST):
◦◦Supradesnivelamento do segmento ST.
• O ECG deve ser realizado em todos os pacientes com suspeita de SCA o mais rapidamente possível e deve ser interpretado em até 10
minutos da admissão hospitalar;
• Devem ser realizadas, de rotina, as 12 derivações e ainda V7, V8 e V3R, V4R;
• Os achados típicos de ECG podem estar presentes, porém alguns pacientes apresentam ECG normal e, portanto, devem repetir o ECG
entre 15 a 30 minutos na primeira hora e depois de 6 em 6 horas nas primeiras 24h, ou sempre que o paciente se queixar de dor ou
apresentar novos sintomas associados.
Marcadores de necrose miocárdica
• Não fazem diagnóstico de SCA;
• Úteis para diferenciar entre oclusão e suboclusão em associação com achados eletrocardiográficos. Geralmente estão ausentes na
suboclusão;
• Positivam-se após 4 horas da oclusão coronariana;
Observação: Na suboclusão, pode ocorrer infarto, ainda que sem supradesnivelamento de ST, sendo demonstrado pelos marcadores positivos.
• IAMCSST e IAMSSST = Marcadores de necrose alterados
• AI = Marcadores de necrose normais
Tipos de marcadores
• Troponina
◦◦Marcador mais sensível e mais específico, logo, se houver troponina positiva, não é necessária a solicitação de outros marcadores;
◦◦Determina o risco cardiovascular de uma SCASSST evoluir para IAMCSST e de um IAMCSST evoluir para choque cardiogênico ou para
óbito;
◦◦Permanece positiva por 10-14 dias.
• Creatinoquinase MB (CKMB)
◦◦Melhor marcador para diagnóstico de reinfarto;
◦◦Ascende com 4 horas, tem pico em 18 horas e permanece positiva por 24-72 horas.
• Mioglobina
◦◦Utilizada para exclusão do IAM, principalmente em pacientes com suboclusão;
◦◦Ascende mais rápido (30 minutos) e retorna ao nível basal mais rapidamente do que os demais marcadores.
Dados de Thygesen K, et al., 20181; das Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia2,7 e de Souza PVR, et al., 20183. Autoria própria.

Tabela 14.3. Critérios diagnósticos para IAM tipo 1 e 2


Ascenção e/ou queda de marcadores de necrose miocárdica (preferencialmente troponina) com pelo menos uma dosagem acima do percentil
99, associado a, pelo menos, um dos seguintes critérios
1. Sintomas de isquemia;
2. Surgimento de novas alterações de segmento ST ou de onda T ou de bloqueio de ramo esquerdo ao ECG;
3. Ondas Q patológicas no ECG;
4. Evidência, através de exames de imagem, de nova perda de tecido cardíaco viável ou de nova alteração na contratilidade segmentar do
ventrículo esquerdo;
5. Identificação de trombo intracoronariano por cateterismo ou por necropsia.

Dados de Thygesen K, et al., 20181 e Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia, 20142. Autoria própria.

Acerca do ECG no contexto de uma oclusão coronariana total, ou seja, no IAMCSST, pode-se
observar uma evolução típica nos traçados eletrocardiográficos, conforme exposto na Tabela 14.4.
106 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 14.4. Evolução do Eletrocardiograma no IAMCSST de acordo com o tempo de acometimento


Evolução do ECG no IAMCSST

Fase hiperaguda
• Surge logo após a oclusão coronariana (de segundos a minutos);
• Caracteriza-se por: ondas T positivas e pontiagudas, que podem ocorrer concomitantemente
a um discreto supradesnivelamento de ST com concavidade para cima.

Fase aguda
• Ocorre nas primeiras horas após a oclusão;
• Caracteriza-se por: supradesnivelamento de ST com convexidade para cima; ondas Q
patológicas; redução progressiva da onda R; pode ocorrer inversão de onda T.

Fase subaguda
• Ocorre após 12 horas da oclusão coronariana;
• Caracteriza-se por: supradesnivelamento de ST com convexidade para baixo; ondas T
invertidas; presença de complexos QS.

Fase crônica/cicatricial
• Ocorre após semanas do evento isquêmico;
• Caracteriza-se pela normalização do segmento ST associado ou não a ondas Q patológicas.
Ondas T podem voltar ao normal ou continuar invertidas.

Adaptada de Longo DL, et al., 20154 e de Garcia MP, et al., 20065. Autoria própria.

É importante, ainda, o conhecimento sobre os possíveis diagnósticos diferenciais do IAM,


principalmente nos casos de apresentação típica, como dor torácica2,4,6.

Tabela 14.5. Diagnósticos diferenciais de dor torácica


Diagnósticos diferenciais de IAM
Acometimento Síndromes
Cardiovascular Angina estável, angina instável, pericardite, dissecção aórtica
Pulmonar Embolia pulmonar, hipertensão pulmonar, pleurite, traqueobronquite, pneumotórax espontâneo, pneumonias
Gastrointestinal Refluxo gastroesofágico, úlcera péptica, doença da vesícula biliar, pancreatite
Musculoesquelético Costocondrite, dor do disco cervical
Infeccioso Herpes-zóster
Psicológico Síndrome do pânico

Adaptada de Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia, 2014²; Longo DL, et al., 20154 e Goldman L, et al., 20166. Autoria própria.
I n f a r t o A g u d o d o M i o c á rd i o 107

Tratamento
Grande parte dos óbitos por IAM ocorre nas horas iniciais da manifestação clínica, sendo,
cerca de 65% deles, na primeira hora. Isso reflete, portanto, a importância de o atendimento pré-
-hospitalar ser de boa qualidade2.
Assim como no manejo inicial, o paciente com suspeita de IAM deve ser internado em uma
unidade com monitoramento cardíaco constante, que tenha suporte para intervenção coronaria-
na percutânea (ICP), como o cateterismo cardíaco (CAT) e a angioplastia. Ademais, é imperiosa
a manutenção do repouso restrito ao leito, o estabelecimento de uma via intravenosa calibrosa,
preferencialmente periférica, a administração de oxigênio a baixo fluxo (2 L/min – cateter nasal),
se a oximetria aferida for abaixo de 94%, a administração de ácido acetilsalicílico e de nitroglice-
rina sublingual, além da prescrição de analgesia com opioides. Por fim, a equipe deve manter por
perto um aparelho desfibrilador, uma vez que a principal arritmia secundária ao IAM é a fibrilação
ventricular1,2.
Ao longo do atendimento inicial de um paciente com suspeita de SCA, é importante que se
realize a estratificação de risco de morte ou de IAM recorrente. Atualmente, existem diversas fer-
ramentas para esse fim, como os escores TIMI e GRACE, os quais podem ser usados para estimar o
risco de morte e de eventos cardíacos isquêmicos não fatais. Na prática clínica, o escore de TIMI,
exposto na Tabela 14.6, é mais frequentemente utilizado, devido à sua menor complexidade1,2,7,8.

Tabela 14.6. Escore TIMI


Histórico Pontos
Idade ≥ 65 anos 1
Presença de no mínimo 3 fatores de risco para DAC 1
DAC previamente documentada (≥ 50 %) 1
Uso de AAS nos últimos 7 dias 1
Apresentação clínica
Dois episódios de angina recente (últimas 24 h) 1
Elevação de marcadores cardíacos 1
Infradesnivelamento de ST ≥ 0,5 mm no ECG admissional 1
Risco estimado
Escore Risco de morte (%) Classificação
0 ou 1 4,7 %
2 8,3 %
0-2 pontos: baixo risco
3 13,2 %
3-4: médio risco
4 19.9 %
5 ou mais: alto risco
5 26,2 %
6 ou 7 40,9 %

Adaptada de Galliano FT et al, 20178. Autoria própria.


108 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Além de dominar a conduta adequada (Tabela 14.7), a equipe deve, em casos de SCASSST,
sempre, avaliar o risco do paciente, a fim de decidir se realiza ou não a intervenção percutânea
(CAT/angioplastia)2. O paciente com SCASSST será de alto risco se apresentar as características
evidenciadas na Figura 14.4 e os cuidados específicos são elucidados na Tabela 14.8.

Tabela 14.7. Conduta preconizada para o IAM


Terapêutica Indicação Descrição
Oxigenioterapia IAMCSST/SCASSST Indicada para pacientes com saturação de oxigênio < 94%
Alívio álgico IAMCSST/SCASSST Administração de sulfato de morfina endovenosa - dose inicial: 2 a 8 mg
• Nitrato venoso se dor refratária, edema agudo de pulmão ou hipertensão arterial
Nitratos IAMCSST/SCASST • Dose: 5mg a cada 10-15 min até alívio dos sintomas (dose máxima: 15 mg)
• Se persistir a dor, deve ser oferecido por via intravenosa
• Indicado para todos os pacientes, exceto se contraindicação (alergia)
Ácido acetilsalicílico IAMCSST/SCASSST
• Dose: 200-300 mg de ataque + 100 mg diários VO
• Atentar-se para as contraindicações dos antiagregantes plaquetários
• Prasugrel: mais utilizado do que o clopidogrel atualmente, uma vez que é cerca de dez
vezes mais potente que este. Deve ser suspenso uma semana antes da CRVM
Clopidogrel/Prasugrel/ IAMCSST/ • Dose: 60 mg de ataque, seguindo-se 10 mg ao dia de manutenção
Ticagrelor SCASST • Ticagrelor: Principal vantagem em relação ao prasugrel é poder ser suspenso em
até 3 dias antes da CRVM, além de não aumentar a incidência de sangramento pós-
operatório. Também é superior ao clopidogrel em termos de eficácia
• Dose: 180 mg de ataque, seguido de 90 mg duas vezes ao dia
• Sempre recomendado. Usar sempre. Atenção aos pacientes asmáticos: podem fazer
uso apenas do atenolol
IAMCSST/ • Metoprolol: é o mais utilizado
Betabloqueadores
SCASSST • Doses: Via intravenosa (IV) – 5 mg (1-2 minutos) a cada 5 min até completar a dose
máxima de 15 mg. Via oral: 50-100 mg a cada 12 horas, iniciado 15 minutos após a
última administração IV
• A heparina de baixo peso molecular (enoxaparina) é o anticoagulante de escolha.
Porém, se houver previsão de cirurgia de revascularização do miocárdio nas próximas
24h, a heparina não fracionada deve ser usada, pois seu efeito anticoagulante pode ser
rapidamente revertido com o emprego da protamina
IAMCSST/
Anticoagulantes • Enoxaparina: 1mg/kg 12 em 12 horas até a alta hospitalar
SCASST
• Heparina não-fracionada (HNF): Bolus 60-70 IU/kg (máximo 4000 UI) seguida de
infusão contínua de 12 UI/kg/h (máximo 1000 IU/h) com medidas do TTPA a cada 6
horas até atingir o valor “alvo”
• Fondaparinux: 2,5 mg SC uma vez ao dia por 8 dias ou até a alta hospitalar
É preferível ao trombolítico, desde que esteja disponível no hospital e que o tempo desde
IAMCSST, SCASSST o início dos sintomas até a abordagem (tempo porta-balão) não ultrapasse 90 minutos
CAT/ICP
de alto risco OU desde que a transferência para outra unidade que tenha o serviço não ultrapasse 120
minutos.
Geralmente indicado se não puder ser realizada CAT/angioplastia ou não puder transferir o
Trombolítico IAMCSST
paciente no tempo adequado. Avaliação das contraindicações é imperiosa.

Dados de Souza PV, et al., 20183; Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia2,7. Autoria própria.
I n f a r t o A g u d o d o M i o c á rd i o 109

Duração da dor Infradesnivelamento do


Elevação de troponina
maior que 20 minutos segmento ST ao ECG

Insuficiência ventricular
Pontuação no escore de
esquerda (com fração de
Diabetes Mellitus TIMI ≥ 5 ou pontuação no
ejeção ao ecocardiograma
escore de GRACE > 140
menor que 40%)

Figura 14.4. Critérios para classificar o paciente com SCASSST em alto risco.
Dados de Thygesen K et al, 2018¹ e Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia2. Autoria própria.

Tabela 14.8. Condutas para síndromes suboclusivas a depender do risco


Condutas para SCASSST
• Adicionar antitrombótico à terapêutica: inibidor da glicoproteína IIb-IIIa (abciximab)
Paciente de alto risco
• Programar CAT com intenção de angioplastia em até 48 horas
Paciente de não alto risco Realizar teste provocativo de isquemia

Dados das Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia2,7. Autoria própria.

Havendo a oclusão coronariana completa, a terapêutica de reperfusão deverá ocorrer em até


12 horas do início dos sintomas e pode ser realizada por meio de trombolíticos ou de angioplastia,
como exposto na Figura 14.52.
Para progredir para a alta hospitalar, o paciente deve receber a prescrição de:
6. Uso contínuo de AAS, de betabloqueador e de estatina;
7. Controle pressórico e glicêmico rigorosos;
8. Incentivo à prática de exercícios físicos e desencorajamento ao tabagismo;
9. O clopidogrel deve ser mantido adjunto ao AAS durante 1 mês ou 1 ano, dependendo do
tipo de stent implantado, e suspenso após vencido o tempo.

Hospital com ICP Paciente segue para essa unidade se


tempo porta-balão < 90 minutos

Hospital sem ICP Transferir paciente para hospital com


ICP se tempo porta-balão < 120 minutos

Não consigo transferir o paciente Iniciar trombolítico em até 30 minutos


a tempo para um hospital com ICP da chegada do paciente ao hospital

Se falha, deve-se transferir o paciente Manter paciente anticoagulado


para um hospital com suporte por 2 a 8 dias

Figura 14.5. Manejo da SCACSST.


Dados da Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia, 20157. Autoria própria.
110 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Complicações clínicas
As complicações clínicas mais comuns incluem as arritmias (ventriculares e supraventricu-
lares), as bradiarritmias (bloqueios atrioventriculares e de ramo esquerdo), além de insuficiência
cardíaca, choque cardiogênico, angina instável pós-IAM, dor torácica recorrente, aneurisma ven-
tricular, ruptura dos músculos papilares, síndrome de Dressler e transtorno depressivo.

Pontos-chave
• A SCA é uma das maiores causas cardiovasculares de internação e a principal causa
de óbitos na população adulta mundial;
• É de suma importância a realização do diagnóstico precoce e a instituição do
tratamento de acordo com o subtipo específico, objetivando um melhor prognóstico;
• O IAMCSST e o IAMSSST podem ter apresentações clínicas semelhantes,
distinguindo-se, na maior parte dos casos, apenas por diferenças no traçado
eletrocardiográfico.

Leitura sugerida
1. Thygesen K, et al. Fourth universal definition of myocardial infarction (2018). Journal of the American College of
Cardiology, v. 72, n. 18, p. 2231-64, 2018.
2. Nicolau JC, Timerman A, Marin-Neto JA, Piegas LS, Barbosa CJDG, Franci A. Sociedade Brasileira de Cardiologia.
Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre Angina Instável e Infarto Agudo do Miocárdio sem
Supradesnível do Segmento ST. ArqBrasCardiol; 102(3Supl.1):1-61, 2014.
3. Souza PVR, Guimarães PO, Boros GAB, Soeiro AM. Angina Instável e Infarto Agudo do Miocárdio sem
Supradesnivelamento de St: Tratamento e Prognóstico. RevSocCardiol Estado de São Paulo;28(4):403-8, 2018.
4. Longo DL, et al. Harrison’s Principles of Internal Medicine. 19th ed. New York: McGraw-Hill, 2015.
5. Garcia MPH, Pimenta CLK, Batista DJ, Santos RE, Breda DJP, Michelli OL, et al. Análise de registros eletrocardio-
gráficos associados ao infarto agudo do miocárdio. Arq. Bras. Cardiol; 87 (2): 106-114, 2006.
6. Goldman L, Schafer AL. Goldman’s Cecil Medicine. 25th ed. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016.
7. Piegas LS, Timerman A, Feitosa GS, Nicolau JC, Mattos LAP, Andrade MD, et al. V Diretriz da Sociedade
Brasileira de Cardiologia sobre Tratamento do Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnível do Segmento ST.
ArqBrasCardiol; 105(2):1-105, 2015.
8. Galliano FT, Miranda CH. Síndrome Coronariana Aguda (SCA) sem Supradesnivelamento do Segmento ST
(SSST). Revista Qualidade HC. FMRP-USP, 2017.
9. Lopes AC, et al. Tratado de Clínica Médica. 3. ed. São Paulo: Roca, 2016.
Crise Hipertensiva 15

Julimar Rocha de Assis


Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
Crise hipertensiva (CH) é definida como uma elevação súbita e intensa da pressão arterial
(PA), acompanhada de sintomas de leves a graves e que pode se associar ou não a alguma lesão
de órgão-alvo (LOA). Valores de ponto de corte arbitrários de pressão arterial sistólica (PAS) de 180
mmHg e pressão arterial diastólica (PAD) de 120 mmHg são definidos, mas há evidências de LOA
em pacientes com níveis pressóricos inferiores a esses. Esse fato insta a necessidade de a avaliação
do quadro clínico e de o diagnóstico serem individualizados.
A prevalência da hipertensão arterial sistêmica (HAS) na população brasileira é estimada em
32,5% dos adultos e aumenta, progressivamente, à medida que a faixa etária aumenta, atingindo,
aproximadamente, 60% dos idosos. Essa entidade patológica é responsável por cerca de 50% das
internações fundamentadas em doenças cardiovasculares nos serviços terciários de saúde brasi-
leiros. Dentre os portadores de HAS, estima-se que 1-2% irão desenvolverão CH.
A CH pode ser dividida em 2 subtipos: a emergência hipertensiva (EH), em que há elevação
súbita da PA associada à lesão aguda de órgão-alvo, e a urgência hipertensiva, em que a lesão
aguda não está presente. Vale evidenciar que a crise hipertensiva pode acometer pacientes sem o
diagnóstico prévio de HAS.

Apresentação clínica
Frente a um paciente com elevação intensa da PA, alguns diagnósticos são possíveis. Além
da crise hipertensiva, duas outras situações clínicas, muito prevalentes, devem ser pesquisadas: a
HAS crônica mal controlada e a pseudocrise hipertensiva, cujas apresentações são esquematiza-
das no Figura 15.1.
112 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

HAS crônica mal


Não
PA elevada controlada
(PAS ≥ 180
ou PAD ≥120 Pseudocrise
mmHg)* Sim
Sinais de hipertensiva
+ sintomas? estresse físico
Sim
ou psicológico Urgência
desencadeante? Não
hipertensiva
Não LOA
Emergência
Sim
hipertensiva

Figura 15.1. Diagnósticos diferenciais da elevação da PA. *Esses valores são arbitrários, não sendo
obrigatórios. A crise hipertensiva pode ocorrer em pacientes com menores valores de PA.
HAS: hipertensão arterial sistêmica, LOA: lesão de órgão-alvo, PAD: pressão arterial diastólica, PAS: pressão arterial sistólica.
Adaptada de van den Born BH et al2.

As lesões em órgãos-alvo podem ser diversas e incluem síndrome coronariana aguda (SCA),
dissecção aórtica, edema agudo de pulmão (EAP) com ou sem falência do ventrículo esquerdo
(VE), encefalopatia hipertensiva, acidente vascular encefálico (AVE) hemorrágico ou isquêmico,
crise simpaticomimética, eclâmpsia e síndrome HELLP (do inglês hemolysis, elevated liver enzy-
mes, low platelets – hemólise, enzimas hepáticas elevadas e plaquetopenia). Na Tabela 15.1 estão
descritos alguns dados da anamnese e do exame clínico que podem direcionar a(s) hipótese(s) de
possíveis LOA.
Por outro lado, existem condições clínicas que, embora não ofereçam risco iminente à vida
do paciente, demandam um controle dos níveis pressóricos, devido à possibilidade de evoluírem
para a emergência, motivo pelo qual comportam o rol das urgências hipertensivas. Fazem parte
desse grupo o ataque isquêmico transitório (AIT), a glomerulonefrite aguda, a pré-eclâmpsia, a
doença arterial coronariana (DAC), a doença renal crônica (DRC), a insuficiência cardíaca (IC)
descompensada e o aneurisma de aorta.

Tabela 15.1. Condições associadas à emergência hipertensiva e suas características à entrevista e ao


exame clínicos
Condição associada à EH Dados da anamnese Dados do exame físico
Síndrome coronariana aguda Dor em aperto ou em queimação em região Apesar de os achados ao exame clínico serem
(SCA) retroesternal, que pode se irradiar para região infrequentes, B3, B4 e sopros valvares à ausculta
cervical, mandibular ou para os membros superiores. cardíaca e crepitações finas em bases à ausculta
Náuseas, vômitos e sudorese podem estar pulmonar podem estar presentes. Desvio de ictus
associados. pode ser encontrado.
Dissecção aórtica Dor torácica intensa e súbita em caráter “rasgante Assimetria de pulsos e diferença de PA >20 mmHg
ou cortante”, podendo irradiar-se para a região entre os membros superiores. Sopro carotídeo ou
interescapular. Náuseas e sudorese podem estar de insuficiência aórtica podem estar presentes à
presentes. ausculta.
Disfunção de VE com EAP Dispneia intensa, ortopneia, diaforese, sibilância e, Crepitações basais ou atingindo até os terços médios
às vezes, escarro espumoso e sanguinolento. Pode pulmonares, baixa saturação de oxigênio, podendo
haver sinais de baixo DC. haver B3 na ausculta cardíaca.

Continua
C ri s e H i p e r t e n s i v a 113

Continuação

Condição associada à EH Dados da anamnese Dados do exame físico


Hipertensão maligna Cefaleia, fraqueza, alterações visuais, alterações À fundoscopia: hemorragias superficiais (em
urinárias, emagrecimento, edema, vômitos, casos de níveis pressóricos muito elevados, as
rebaixamento do nível de consciência. hemorragias podem não acontecer devido a um
intenso vasoespasmo), exsudatos – algodonosos e
duros – e papiledema.
Encefalopatia hipertensiva Cefaleia, confusão, alterações visuais, letargia ou Papiledema, exsudatos e hemorragias dos vasos
convulsões, de início agudo ou subagudo. retinianos à fundoscopia.
Acidente vascular encefálico Déficit focal, normalmente sem comprometer o nível Perda de força ou de sensibilidade em membros,
isquêmico de consciência, a menos que o AVE seja extenso. desvio de rima labial, afasia e ataxia.
Acidente vascular encefálico No caso de HSA, cefaleia súbita e intensa, associada Perda de força ou de sensibilidade em membros,
hemorrágico a náuseas, vômitos, rigidez de nuca, seguida por desvio de rima labial, afasia e ataxia.
rebaixamento do nível de consciência; no caso de
hemorragia intraparenquimatosa, crise convulsiva,
déficit focal e pode haver rebaixamento de
consciência.
Crise de feocromocitoma Palpitação, cefaleia, sudorese, palidez e mal estar, Alterações à fundoscopia e hipotensão postural
podendo ocorrer em paroxismos. podem estar presentes.
Crises simpaticomiméticas História de ingestão de substâncias Taquicardia, hipertensão, hipertermia, diaforese,
simpaticomiméticas (tais como cocaína e hiperreflexia, hipertonia, rabdomiólise, midríase,
anfetaminas) ou interrupção da ingestão de inibidores palidez, convulsões, alterações de nível e campo da
adrenérgicos (como a clonidina, por exemplo). consciência.
Lesão renal aguda Pode ser oligo ou assintomática ou cursar com Pode não ter nenhum sinal clínico ou apresentar-se
alterações urinárias (oligúria, anúria, hematúria) e com edema.
com edema.
Eclâmpsia Gestante entre a 20ª semana e até a 6ª semana pós- Convulsões.
parto que foi diagnosticada com pré-eclâmpsia.
Síndrome “HELLP” Epigastralgia, cefaleia, mal estar geral, edema, Icterícia acomete uma pequena porcentagem das
hiporexia, náuseas e vômitos. pacientes.

DC: débito cardíaco, EAP: edema agudo pulmonar, EH: emergência hipertensiva, HSA: hemorragia subaracnóidea, IAM: infarto agudo do miocár-
dio, PA: pressão arterial, VE: ventrículo esquerdo. Dados de Vilela-Martin JF, et al8.

Etiopatogênese
Pacientes portadores de HAS, desde que mantenham níveis pressóricos relativamente es-
táveis, podem ser menos atingidos por uma emergência hipertensiva. Isso ocorre porque adap-
tações cardiovasculares são instituídas para permitir a compatibilidade entre a homeostase e os
níveis pressóricos persistentemente elevados, dentre as quais se incluem a hipertrofia e remodela-
mento cardíaco, que elevam o limiar de autorregulação do fluxo sanguíneo e permitem adaptação
dos órgãos-alvo. Alguns fatores de risco para o desenvolvimento da crise hipertensiva incluem
sexo feminino, obesidade, múltiplas drogas para tratamento da HAS, não adesão ao tratamento
anti-hipertensivo e presença de cardiopatia hipertensiva ou de doença coronariana.
O mecanismo de estabelecimento da emergência hipertensiva não é completamente conhe-
cido, mas uma perda da capacidade de autorregulação, com consequente aumento abrupto da
resistência vascular periférica (RVP) parece ter efeito iniciador. Esse aumento pode ser secundário
a uma elevada secreção de vasoconstritores (como angiotensina II e norepinefrina) ou a uma re-
dução da concentração dos vasodilatadores, por exemplo. Os mecanismos propostos estão esque-
matizados no Figura 15.2.
114 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pressão arterial abrupta Perda da autorregulação


ou persistente

RVP

Estado pró-trombótico Vasoconstrição

SRAA
Lesão endotelial
ativado

Isquemia

Lesão de órgão-alvo
(LOA)

Figura 15.2. Mecanismos etiopatogênicos da crise hipertensiva.


Cascata de eventos levam à LOA na emergência hipertensiva e instaura-se um ciclo vicioso. SRAA: sistema renina-angiotensina-
aldosterona, RVP: resistência vascular periférica. Adaptada de Varounis et al10.

Diagnóstico
Como a definição da entidade clínica sugere, para que se estabeleça o diagnóstico da con-
dição de crise hipertensiva deve-se aferir a pressão arterial e investigar a presença de situações
estressoras que poderiam precipitar essa elevação da PA. Associados a essas medidas, uma anam-
nese e um exame físico minuciosos devem ser conduzidos para que se possa encontrar os sinais
e os sintomas dos sistemas orgânicos que aumentariam a suspeita de uma possível LOA. Depois
essas etapas, os métodos propedêuticos complementares que forem pertinentes para confirmar a
hipótese e definir a conduta, sintetizados na Tabela 15.2, devem ser solicitados.
Na disfunção de VE associada ao EAP hipertensivo, é provável que algumas alterações sejam
encontradas nos exames complementares. Sobrecarga ventricular é comum no ECG e é possível
analisar a presença de isquemia ou de arritmias associadas. A dosagem de BNP (do inglês, brain
natriuretic peptide – peptídeo natriurético cerebral, ou tipo B) tem valor na diferenciação de uma disp-
neia de origem cardíaca e não cardíaca. O ecocardiograma (com Doppler, preferencialmente), por
sua vez, é importante para se avaliar a função do VE, avaliando o diâmetro diastólico e sistólico, a
fração de ejeção, a presença de dessincronias e de discinesias, entre outros1,2.
Na dissecção aórtica, o achado mais comum à radiografia de tórax é o alargamento do me-
diastino, porém, a imagem pode apresentar-se sem achados em 50% dos casos. A ecocardiogra-
fia transesofágica apresenta elevada sensibilidade e especificidade. O exame mais utilizado nessa
suspeita é a angiotomografia, que permite uma análise evidente das características da lesão e uma
programação cirúrgica, caso necessária, na maior parte dos casos. Outros estudos, menos utiliza-
dos, são a ressonância nuclear magnética e a aortografia.3,4
A encefalopatia hipertensiva baseia-se em diagnóstico clínico. A realização de TC de crânio
faz-se necessária por conta da sintomatologia apresentada, para que se descarte a presença de um
possível AVE5.
C ri s e H i p e r t e n s i v a 115

Tabela 15.2. Exames complementares que auxiliam no diagnóstico de LOA nas crises hipertensivas
Condição associada à crise hipertensiva Possível propedêutica
EAP com ou sem disfunção de VE ECG, ecocardiograma, BNP sérico
ECG, dosagem de marcadores de lesão miocárdica (troponina, CPK, CKMB),
Síndrome coronariana aguda
cineangiocoronariografia
Radiografia de tórax, angiotomografia, ecocardiograma transtorácico ou
Dissecção aórtica
transesofágico, aortografia, ressonância nuclear magnética
Encefalopatia hipertensiva TC de crânio para descartar um AVE
Acidente vascular encefálico isquêmico ou hemorrágico TC de crânio, ressonância magnética, angiografia cerebral e punção liquórica
Urina tipo I, proteinúria 24h, ureia, creatinina, sódio, potássio, cloretos,
Lesão renal aguda
gasometria arterial, dosagem de complementos e biópsia renal
Eclâmpsia Urina tipo I, relação albumina/creatinina urinária.
Síndrome “HELLP” Hemograma, dosagem em enzimas hepáticas (AST, bilirrubinas) e LDH
Sódio e potássio plasmáticos, dosagens de epinefrina, norepinefrina e
Crises simpaticomiméticas (incluindo feocromocitoma) dopamina urinárias e plasmáticas, metanefrinas e normetanefrinas urinárias,
ácido vanilmandélico urinário, TC de abdome
Hipertensão maligna Urina tipo 1, ureia, creatinina, sódio, potássio, cloretos e gasometria arterial

AST: aspartato aminotransferase, AVE: acidente vascular encefálico, BNP: peptídeo natriurético cerebral (tipo B), CPK: creatinofosfoquinase,
CKMB: creatinofosfoquinase-MB, ECG: eletrocardiograma, LDH: lactato desidrogenase, EAP: edema agudo pulmonar, LRA: lesão renal aguda,
SCA: síndrome coronariana aguda, TC: tomografia computadorizada, VE: ventrículo esquerdo. Dados de Malachias MVB et al7.

O diagnóstico da crise simpaticomimética (seja adrenérgica, seja serotoninérgica) pode ser


realizado com base em uma boa anamnese e um exame físico completo. Os exames citados na
Tabela 15.2 servem para a comprovação laboratorial do aumento de substâncias simpaticomi-
méticas circulantes. Eles devem preceder o exame de imagem no que tange à investigação de
feocromocitoma6.
Por fim, a hipertensão maligna (hipertensão acelerada com retinopatia) também tem um
diagnóstico eminentemente clínico. Os exames descritos no quadro 15.2 são úteis no propósito de
avaliação e de quantificação de possível injúria renal2.

Tratamento
O objetivo principal do tratamento da crise hipertensiva é prevenir uma possível LOA ou
impedir a progressão de uma lesão que já esteja estabelecida, por meio da redução da PA. Apesar
de essa redução ser alvo tanto na urgência, quanto na emergência hipertensiva, a forma pela qual
será feita, e o prazo para se alcançar os valores pressóricos esperados, diferem nas duas condições2.
Na urgência hipertensiva, o primeiro passo é manter o paciente em observação clínica sob
um ambiente calmo, bem como administrar analgésicos e/ou tranquilizantes, conforme a neces-
sidade, afastando, assim, a hipótese diagnóstica de pseudocrise. O objetivo é reduzir a PA até valo-
res usuais em 24-48 horas. Para se alcançar essa meta, utilizam-se medicamentos via oral, como o
captopril (inibidor da enzima conversora de angiotensina – IECA -), a clonidina (agonista α2 adre-
nérgico) e o propranolol (β-bloqueador não seletivo), por exemplo. Além dessas medidas iniciais,
deve-se iniciar ou otimizar o tratamento anti-hipertensivo e agendar retorno ambulatorial pre-
coce (em até 7 dias)2,7. Portanto, não demanda internação em unidade de terapia intensiva (UTI),
tampouco medicamentos parenterais ou sublinguais. No caso de o paciente já ser previamente
diagnosticado como portador de HAS, é imperioso que a equipe exponha, a ele, a importância da
utilização correta dos medicamentos anti-hipertensivos, bem como oriente o agendamento de
116 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

retorno ambulatorial para um controle efetivo da PA. Por outro lado, não existindo um diagnóstico
prévio, deve-se iniciar a terapêutica ainda na instituição e prescrever um tratamento domiciliar,
sem negligenciar a importância do acompanhamento ambulatorial adequado da PA.
A emergência hipertensiva, por sua vez, exige abordagens mais rigorosas. Nesse âmbito, as
recomendações gerais incluem admissão em UTI, monitorização da PA, coleta de material para
exames e prescrição de medicamentos intravenosos (IV), constantes nas Tabelas 15.3 e 15.4, con-
forme a lesão de órgão-alvo instituída, visando a uma redução rápida da PA. Essa redução conta
com algumas particularidades, abordadas a seguir, mas, em princípio, deve ser conduzida sob o
protocolo:
1. Reduzir a PAS ou a PAM em, no máximo, 25% na primeira hora;
2. Reduzir a PA para 160 × 100 ou 160 × 110 mmHg entre 2-6 horas;
3. Alcançar uma PA ≤ 135 × 85 mmHg entre 24-48 horas7. Ressalta-se a importância de não
reduzir muito intensamente e/ou em muito pouco tempo a PA pelo risco de ocorrer
hipoperfusão tecidual, afinal, os limites de autorregulação vascular foram elevados por
ocasião da crise hipertensiva.
Na presença de dissecção aórtica, ao contrário das outras condições associadas à EH, a re-
dução deve ser feita abrupta e consideravelmente, até atingir a meta de PAS ≤ 120 mmHg em 20
minutos1,2,3. Isso porque a progressão da lesão está intimamente relacionada ao valor da PA2. Antes
de iniciar a infusão de um vasodilatador (nitroprussiato é a primeira escolha), deve-se administrar
um β-bloqueador, para se atingir uma frequência cardíaca de 60 bpm, afinal, se o vasodilatador é
infundido isoladamente, pode aumentar a FC e a velocidade de ejeção ventricular. Após atingido
o controle da pressão e da FC, o procedimento para a correção da lesão poderá ser realizado ou
programado, seja pela técnica cirúrgica aberta ou endovascular de emergência, seja pela técnica
cirúrgica eletiva2,3,4,7.
No EAP, condição que pode acontecer sem evidência de disfunção ventricular esquerda em
até 1/3 dos pacientes, o tratamento é baseado na monitorização, na oxigenoterapia por ventilação
não invasiva (VNI), se necessário, na punção de acesso venoso e no controle da PA, alcançado com

Tabela 15.3. Medicamentos parenterais utilizados no tratamento da emergência hipertensiva,


condicionados à lesão de órgão-alvo diagnosticada
Lesão de órgão-alvo Tratamento de primeira linha Tratamento alternativo
Edema agudo de pulmão Nitroprussiato + furosemida Urapidil* + furosemida
Esmolol + vasodilatador (nitroprussiato,
Dissecção aórtica Labetalol* e metoprolol + vasodilatador
nitroglicerina ou nicardipina*)
Encefalopatia hipertensiva Labetalol* e nicardipina* Nitroprussiato
Hipertensão maligna Labetalol* e nicardipina* Nitroprussiato e urapidil*
AVE isquêmico Labetalol* e nicardipina* Nitroprussiato
AVE hemorrágico Labetalol* e nicardipina* Urapidil*
Síndrome coronariana aguda Nitroglicerina e labetalol* Urapidil*
Sulfato de magnésio + Labetalol* ou
Emergências obstétricas Esmolol, hidralazina e urapidil*
nicardipina*
Hidralazina, furosemida, metoprolol e
Lesão renal aguda Fenoldopam* e nicardipina
nitroprussiato
Feocromocitoma Fentolamina* Nitroprussiato e urapidil*
Crises simpaticomiméticas Benzodiazepínicos, fentolamina* e clonidina Nitroprussiato e nicardipina*
*Medicamentos não amplamente disponíveis no Brasil. AVE: acidente vascular encefálico. Adaptado de Unger et al5.
C ri s e H i p e r t e n s i v a 117

Tabela 15.4. Características dos medicamentos utilizados nas EH


Medicamento Mecanismo de ação Início de ação
Nitroprussiato Vasodilatador direto Imediato
Nitroglicerina Vasodilatador direto 2-5 minutos
Metoprolol β-bloqueador seletivo 5-10 minutos
Esmolol β-bloqueador seletivo (ação ultrarrápida) 1-2 minutos
Hidralazina Vasodilatador direto 10-30 minutos
Labetalol* α e β bloqueador 5-10 minutos
Nicardipina* Bloqueador de canais de cálcio (BCC) 5-10 minutos
Inibidor da enzima conversora de
Enalaprilato* 15 minutos
angiotensina (IECA)
Fenoldopam* Agonista dopaminérgico D1 5-10 minutos
Fentolamina* α-bloqueador 1-2 minutos
Diazóxido* Vasodilatador arteriolar 1-10 minutos
Trimetafan* Bloqueador ganglionar do SNAS e SNAP 1-5 minutos
Furosemida Diurético de alça 2-5 minutos

*Medicamentos não amplamente disponíveis no Brasil. SNAP: sistema nervoso autonômico parassimpático, SNAS: sistema
nervoso autonômico simpático. Adaptada de Malachias MVB et al7.

a infusão de diuréticos. A prescrição de opioides, apesar de atuar reduzindo a ansiedade e a sen-


sação de dispneia, não está recomendada, devido ao risco de induzir efeitos colaterais danosos,
incluindo a depressão respiratória1.
No que tange à encefalopatia hipertensiva, um passo inicial importante é a proteção da via
aérea, associada à monitorização e a uma redução da PA entre 10-25% na primeira hora ou alcan-
çar PAD = 110 mmHg (o maior valor entre os dois)2,5,7.
A hipertensão maligna, por sua vez, deve ser conduzida semelhantemente à encefalopatia
hipertensiva, porém, atenção especial deve ser voltada à função renal e ao balanço hídrico do
paciente7.
Nas crises simpaticomiméticas (incluindo o feocromocitoma), o tratamento deve se iniciar
com um α-bloqueador, devido ao risco de acontecer uma sobrecarga de efeitos nesses receptores,
pela sobrecarga de compostos simpáticos livres caso seja utilizado um β-bloqueador isoladamen-
te5,7. Bloqueadores de canais de cálcio também podem ser prescritos. Em se tratando do feocro-
mocitoma, o tratamento cirúrgico é resolutivo e o paciente deve permanecer em terapia com α e β
bloqueadores até a realização da operação.
No AVE hemorrágico, a PAS deve ficar entre 130 e 180 mmHg (o menor valor tolerável) e essa
meta deve ser alcançada o mais rapidamente possível, dentro da primeira hora2,5,7. Por outro lado,
na presença de AVE isquêmico sem indicação de trombólise, em que a PAS seja > 220 × 120 mmHg,
deve-se reduzir esse valor em 15-20% ou até atingir uma PAD de 100-110 mmHg (o que for maior)
nas primeiras 24 horas, avaliando-se a possibilidade de realização de trombólise após o controle
pressórico. Porém, no caso de a trombólise ser indicada, a PA deve ser mantida < 185 × 110 mmHg
nas primeiras 24 horas após a realização do procedimento7.
118 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Na SCA, preconiza-se evitar a administração de nitroprussiato, devido à possibilidade de


acontecer “roubo coronariano” com a sua infusão. Portanto, nesse caso, o vasodilatador indicado
é a nitroglicerina, que reduz, sobretudo, a pré-carga, associada a um β-bloqueador, caso não exista
contraindicação ao seu uso2,5,7.
Os anti-hipertensivos de escolha para o tratamento da lesão renal aguda são a hidralazina,
um diurético de alça e um β-bloqueador. Se, depois de instituídas essas medidas, não haver me-
lhora clínica, inicia-se a infusão de nitroprussiato até que a diálise seja realizada7.
Na eclâmpsia, por fim, é preconizada a administração de hidralazina no objetivo de controlar
a pressão arterial. Entretanto, esse controle não previne a ocorrência de crises convulsivas, deven-
do, para isso, ser administrado sulfato de magnésio. As metas, nesse caso, são PAS < 160 mmHg e
PAD < 105 mmHg2,5,7.

Pontos-chave
• A crise hipertensiva corresponde a uma elevação acentuada e abrupta da PA que
gera sintomas;
• A CH é subdividida em duas condições, com base na presença ou não de LOA aguda
e progressiva: a urgência hipertensiva (UH) e a emergência hipertensiva (EH);
• Para se diferenciar a UH da EH e para planejar a terapêutica, deve-se coletar uma
boa história clínica e realizar um exame físico minucioso, procurando sinais de LOA;
• Após a condução dos estudos complementares necessários, cada condição na crise
hipertensiva deve ser manejada singularmente;
• Na UH, não é preconizada a administração parenteral ou sublingual de
medicamentos;
• A PA deve ser reduzida gradativamente na EH, para que sejam minimizados os riscos
de acontecer a hipoperfusão de órgãos. Exceção a essa regra incluem a dissecção
aórtica, o AVE hemorrágico e as emergências obstétricas, que demandam uma
redução significativa e rápida.

Leitura sugerida
1. Rohde LE, et al. Diretriz Brasileira de Insuficiência Cardíaca Crônica e Aguda. ArqBrasCardiol, 2018; 111(3):436-539.
2. vanden Born BH, Lip GYH, Brguljan-Hitij J, et al. ESC Council on hypertension position document on the manage-
ment of hypertensive emergencies. Eur Heart J CardiovascPharmacother. 2019;5(1):37-46.
3. Erbel R, Aboyans V, Boileau C, et al. ESC Guidelines on the diagnosis and treatment of aortic diseases. Eur Heart
J, 2014; 35:2873-926.
4. Zhao L, Chai Y, Li Z. Clinical features and prognosis of patients with acute aortic dissection in China. J IntMed Res,
2017; 45(2): 823-9.
5. Unger T, et al. 2020 International Society of Hypertension Global Hypertension Practice Guidelines, Hypertension
(Highwire), 2020; 75(6): 1334-57.
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107(3): 1-83.
C ri s e H i p e r t e n s i v a 119

8. Vilela-Martin JF, Yugar-Toledo JC, Rodrigues MC, Barroso WKS, Carvalho LCBS, González FJT, et al.
Posicionamento Luso-Brasileiro de Emergências Hipertensivas. Arq Bras Cardiol, 2020; 114(4): 736-751.
9. Almeida, FA. Emergências hipertensivas:bases fisiopatológicas para o tratamento. Ver Bras Hipertens, 2002; 9:
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10. Saguner AM, et al. Risk Factors Promoting Hypertensive Crises: Evidence From a Longitudinal Study. American
Journal of Hypertension, 2010; 23(7): 775-80.
11. Varounis C, Katsi V, Nihoyannopoulos P, Lekakis J, Tousoulis D. Cardiovascular Hypertensive Crisis: Recent
Evidence and Review of Literature. Front Cardiovasc Med.,2016; 3: 51.
Tamponamento Cardíaco 16

Clara Leal Fraga


Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
O tamponamento cardíaco é secundário ao acúmulo de transudato, de sangue, de exsudato
ou de ar dentro do espaço pericárdico, o que promove a elevação da pressão intrapericárdica.
Embora o pericárdio consiga se distender até certo ponto, para acomodar alterações fisiológicas
no volume cardíaco, depois que o volume de reserva é excedido ocorre restrição do enchimen-
to cardíaco, principalmente, nas câmaras direitas, pela suscetibilidade intrínseca, e, consequen-
temente, redução no débito cardíaco. O tamponamento cardíaco é responsável por 0,05% das
admissões hospitalares nos EUA. A epidemiologia, no entanto, é diretamente relacionada à inci-
dência das doenças causadoras1.
No que tange às etiologias do tamponamento cardíaco, listadas na Tabela 16.1, as mais ex-
pressivas incluem iatrogenia, trauma, neoplasias, sobretudo de mama e de pulmão, tuberculose e
pericardite purulenta; nestas etiologias cerca de 50% dos pacientes desenvolve tamponamento. No
caso da pericardite viral ou idiopática, apesar da maior prevalência, apenas 10-15% dos pacientes
usualmente evolui com tamponamento. Outras etiologias menos comuns incluem doenças vas-
culares do colágeno, pericardite induzida pela radiação, mixedema, uremia e pneumopericárdio.
O tamponamento cardíaco é uma complicação frequente da dissecção aórtica tipo A (19% dos
pacientes) e pouco frequente após infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do seg-
mento ST com tratamento trombolítico, também conhecida como Síndrome de Dressler (0,85%).

Tabela 16.1. Possíveis etiologias do tamponamento cardíaco


Idiopática/viral 37% Uremia 4%
Neoplásica 19% Actínica 2%
Iatrogênica/trauma 13% Dissecção aórtica 2%
Tuberculose/purulenta 6% Hipotireoidismo 1%
Infarto agudo do miocárdio 4% Outros 2%
Doenças do colágeno 4%
Insuficiência cardíaca 4%

Adaptada de Nishimura RA, KiddKR.Em: Braunwald E, Goldman L, EDS. Primary cardiology, 2 ed. Filadelfia: WD Saunders; 2003:625.
122 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Apresentação clínica
O tamponamento cardíaco é um importante diagnóstico diferencial de dor torácica atípica
e de dispneia, podendo ser, também, acompanhado de síncope e de pré-síncope. Na anamnese,
é importante atentar-se à presença de fatores de risco da condição, motivo pelo qual os pacien-
tes devem ser questionados a respeito de neoplasias, do passado de infecções (como tuberculose
e pericardite bacteriana), da realização de procedimento cardíaco invasivo recente, do históri-
co de doenças autoimunes, de injúria renal crônica (IRC) e de hipotireoidismo, além do uso de
anticoagulantes.
Ao exame físico, a Tríade de Beck – hipotensão, estase jugular e bulhas hipofonéticas –, apesar
de estar integralmente presente em pequena parte dos casos (sensibilidade de 26%), é bastante
específica e permite o diagnóstico clínico. Na observação do pulso venoso jugular é possível notar
o descenso × aumentado (durante a sístole ventricular), associado a pouco ou a nenhum descen-
so Y (durante o início da diástole). A presença de pulso paradoxal, definido como queda maior
que 10 mmHg na pressão arterial sistólica durante a inspiração, quando comparada à expiração,
demonstra a interdependência ventricular e a queda do débito cardíaco instituída pela doença
tem 98% de sensibilidade, com 83% de especificidade. Também podem ser observados sinais de
edema periférico e de choque cardiogênico (extremidades frias, cianose periférica e redução do
débito urinário), que demonstram um maior comprometimento hemodinâmico, comprovando
a gravidade do quadro. A presença de atrito pericárdico, por sua vez, pode ser notada e está mais
relacionada às etiologias inflamatórias do tamponamento cardíaco.
Os tamponamentos devem ser classificados a partir da velocidade de sua instalação e da
sua natureza. O tamponamento cardíaco agudo, por exemplo, é marcado pelo início abrupto,
sendo observado comumente após trauma e iatrogenia. Nesse caso, embora o derrame possa ser
pequeno, a relativa inelasticidade do pericárdio leva a um aumento vertiginoso das pressões in-
trapericárdicas e, então, os pacientes manifestam sintomatologia exuberante. Por outro lado, o
tamponamento cardíaco subagudo diz respeito a um processo gradual de acúmulo de líquido,
o que permite o estiramento gradual do pericárdio e, portanto, derrames muito maiores que os
observados no tamponamento agudo. É o tipo mais comum encontrado na prática clínica, os
achados clínicos tendem a ser mais sutis e tem como possíveis etiologias a doença neoplásica, a
tuberculose, a uremia ou a doença idiopática. Menos comumente, os tamponamentos podem se
apresentar de maneira atípica, como é o caso do regional e do de baixa pressão. No tamponamen-
to regional, um derrame loculado ou um hematoma afetam, mecanicamente, uma câmara car-
díaca, o que prejudica o enchimento normal e tende a ser mais comum pós-IAM ou após cirurgia
aberta. O tamponamento de baixa pressão, por sua vez, cujos achados típicos ao ecocardiograma
são úteis para o diagnóstico, ocorre em pacientes hipovolêmicos, condição em que se instaura
uma queda na pressão do átrio direito e, por isso, qualquer discreta elevação na pressão intraperi-
cárdica pode provocar colapso da câmara.

Fisiopatologia
No tamponamento cardíaco, a anormalidade primária é a compressão das câmaras cardía-
cas, devido ao aumento da pressão pericárdica, afinal, a limitação do espaço pericárdico acentua
a interdependência entre as câmaras cardíacas. Fisiologicamente, a inspiração reduz as pressões
intratorácicas e, com isso, aumenta o retorno venoso para o coração direito. Em condições normais,
o volume extra comporta-se adequadamente nas câmaras cardíacas, dada a distensibilidade intrín-
Ta m p o n a m e n t o C a rd í a c o 123

seca ao órgão. Porém, na vigência de tamponamento cardíaco, a distensibilidade fica prejudicada, e


o maior volume aportado no coração direito pressiona, agora, os septos interatrial e interventricu-
lar sobre o coração esquerdo, processo denominado “interdependência ventricular”. Nesse raciocí-
nio, ocorre diminuição do débito cardíaco sistêmico e queda da pressão arterial sistêmica durante
a inspiração, comprovados, clinicamente, pela presença de pulso paradoxal e, ao ecocardiograma,
pela variação maior que 25% nas velocidades de entrada ventricular durante a inspiração.
Além disso, devido ao fato das pressões no lado direito do coração serem menores e de as
suas paredes serem mais complacentes, o átrio e ventrículo direitos são mais vulneráveis à com-
pressão. O enchimento cardíaco direito anormal é o primeiro sinal do derrame pericárdico hemo-
dinamicamente significativo.

Diagnóstico
A Tríade de Beck é diagnóstica da condição. Na sua ausência, deve-se proceder ao estudo
ecocardiográfico ou ao ultrassonográfico pelo protocolo FAST à beira do leito, se houver a suspeita
clínica.
Idealmente o eletrocardiograma (ECG), a radiografia torácica e o ecocardiograma devem ser
realizados com urgência em todos os pacientes com suspeita de tamponamento; visto que auxi-
liam a descartar diagnósticos diferenciais como IAM do ventrículo direito, pneumotórax hiperten-
sivo e DPOC descompensado2. Outros exames são considerados úteis na pesquisa pela etiologia e
devem ser solicitados, posteriormente, de acordo com a clínica apresentada pelo paciente.

Ecocardiograma
É a ferramenta mais útil para estabelecer o diagnóstico de derrame pericárdico, bem como
para estimar seu tamanho, sua localização e seu grau de impacto hemodinâmico. Ademais, é útil
para orientar a pericardiocentese, se ela for indicada2,3. As características mais marcantes ao estu-
do incluem:
1. Swinging heart, definido como o batimento do coração dentro do derrame4, conforme
evidenciado na Figura 16.1;
2. Colapso de câmaras cardíacas, principalmente à direita. O colapso do átrio direito durante
mais de Ä sístole tem 94% de sensibilidade e 100% de especificidade no diagnóstico.
Também é comum observar o colapso diastólico do ventrículo direito;
3. Variação de volumes e de fluxos condicionada pela respiração, afinal, variação do fluxo
mitral superior a 25% é considerada diagnóstica, bem como do fluxo na tricúspide
superior a 60%;
4. Pletora de veia cava inferior5, definida como redução de menos de 50% no diâmetro da
veia cava inferior durante a inspiração, refletindo aumento da pressão venosa central
(PVC). É um achado altamente sensível, mas pouco específico.

Radiografia de tórax
Método inespecífico e insensível. O pericárdio pode reter mais de 200 cm3 de líquido an-
tes de sinais serem notados ao exame2. É útil, sobretudo, para descartar possíveis diagnósticos
diferenciais.
124 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Eletrocardiografia
Normalmente, evidencia taquicardia sinusal e baixa voltagem. Ademais, alternância elétrica,
exemplificada na Figura 16.1, pode estar presente e é caracterizada por alterações de amplitude do
QRS a cada despolarização ventricular, o que reflete a movimentação do coração sobre o líquido
pericárdico, constituindo-se como um achado muito específico, porém, pouco sensível. Na even-
tualidade de existir pericardite associada, também podem ser observados os achados eletrocar-
diográficos típicos.

Figura 16.1. Traçado eletrocardiográfico demonstrando alternância elétrica.


Fonte: Wikimedia Commons, Imagem por Jer5150.

Outros exames
A rotina deve incluir uma avaliação da função renal, mensuração do hormônio tireoestimu-
lante (TSH), hemograma completo com diferencial, contagem de plaquetas, coagulograma e teste
tuberculínico (do inglês, PPD). As hemoculturas são indicadas quando existe a suspeita de causa
infecciosa. As mensurações dos níveis do complemento, dos anticorpos antinucleares e da taxa de
sedimentação podem ser solicitadas na suspeita de colagenase como a etiologia em questão. A to-
mografia computadorizada ou a ressonância nuclear magnética cardíacas geralmente são desne-
cessárias para a avaliação do derrame pericárdico, se houver ecocardiografia disponível, embora
tenham grande utilidade no diagnóstico de tamponamento regional. O cateterismo cardíaco, por
sua vez, por meio da demonstração de equalização das pressões das câmaras cardíacas, é o teste
mais específico para o diagnóstico de tamponamento. Entretanto, o monitoramento hemodinâ-
mico invasivo é raramente necessário. Por fim, o fluido de pericardiocentese, para a realização de
cultura microbiológica e da análise citológica4, pode ajudar a diferenciar a causa subjacente em
casos não traumáticos e constitui-se como o subsidiador do tratamento. Por exemplo, o achado
de derrame serossanguinolento aponta para a possibilidade de tuberculose e de doenças neoplá-
sicas, enquanto o derrame exsudativo associa-se melhor à pericardite bacteriana.
Ta m p o n a m e n t o C a rd í a c o 125

Tratamento
O tratamento definitivo do tamponamento cardíaco é alcançado com a remoção do líquido
pericárdico, aliviando, assim, a pressão intrapericárdica e estabilizando o estado hemodinâmico
do paciente. A maioria dos casos exige o procedimento da pericardiocentese no tratamento ou na
prevenção do tamponamento, mas existem exceções. O tamponamento cardíaco “precoce”, por
exemplo, com evidências mínimas ou inexistentes de comprometimento hemodinâmico, pode
ser tratado de forma conservadora, desde que instituído um cuidadoso monitoramento hemodi-
nâmico, estudos ecocardiográficos seriados (a cada dois ou três dias), prevenção contra a depleção
de volume e terapia direcionada à causa do derrame pericárdico. No que tange aos derrames in-
flamatórios (por exemplo, derrame pericárdico idiopático, doença do tecido conjuntivo, etc) pode
ser adicionada terapia anti-inflamatória, por exemplo, AINEs e colchicina2.
Na maior parte das vezes, porém, é indicada a pericardiocentese urgente, preferencialmente
fechada. Nesse propósito, uma agulha é inserida no espaço subxifoide, com orientação ecocar-
diográfica. Se a orientação ecocardiográfica estiver indisponível, a agulha deve ser direcionada
para o ombro esquerdo, sempre com monitorização eletrocardiográfica. Depois que o dispositivo
adentra o espaço pericárdico, uma quantidade modesta de fluido é removida imediatamente. Um
fio-guia é, então, inserido e a agulha é substituída por um cateter pigtail, que é útil na remoção
do derrame. É importante considerar, contudo, que a quantidade inicial do líquido pericárdico
drenado não deve exceder 1 litro. O cateter, geralmente, é deixado no espaço pericárdico até que
a drenagem de líquidos seja < 25 mL/dia4. A pericardiocentese ecoguiada tem uma taxa de suces-
so de mais de 95% e uma taxa de complicações sérias de menos de 2%, que inclui laceração das
coronárias ou do miocárdio, formação de êmbolos de ar, de pneumotórax, punção peritoneal ou
a indução de arritmias2. Raramente, os pacientes sofrem da síndrome de descompressão pericár-
dica, que não tem a fisiopatologia plenamente elucidada.
Por outro lado, a pericardiocentese aberta é, ocasionalmente, preferida para a remoção ini-
cial de líquido. Derrames localizados, de tamanho pequeno, ou derrames contendo coágulos e
material fibroso, aumentam o risco e a dificuldade da pericardiocentese fechada. Em se tratando
da existência de hemopericárdio, o perigo de uma abordagem fechada é a de que a redução da
pressão intrapericárdica permita a instauração de um maior volume hemorrágico, sem que exista
a oportunidade de corrigir a fonte da condição. Por isso, para quadros de trauma ou de ruptura
pós-infarto do miocárdio, e na dissecção aórtica tipo A, a pericardiocentese fechada, geralmente,
deve ser evitada2. Nos derrames recorrentes, a pericardiocentese aberta com biópsia e a criação
de uma janela pericárdica são preferidas. Para essas situações, a pericardiotomia percutânea com
balão e a pericardioscopia têm sido empregadas.
Após a instituição da drenagem percutânea ou cirúrgica do derrame, o paciente deve ser mo-
nitorado com telemetria contínua e por meio da obtenção frequente dos sinais vitais por, pelo
menos, 24 a 48 horas. A monitorização subsequente com ecocardiografia bidimensional e com
Doppler, antes da alta hospitalar, é necessária a fim de confirmar a remoção adequada do derrame
e de detectar possível novo acúmulo de líquidos6.
A taxa de mortalidade hospitalar é menor que 10%, no entanto, o prognóstico varia conforme
a etiologia subjacente. Por exemplo, a taxa de mortalidade é de cerca de 75% se o tamponamento
é fundamentado em neoplasias, em comparação com apenas 3% a 5% de mortalidade anual se a
condição tem outras etiologias.
126 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• O tamponamento cardíaco é uma emergência clínica que deve ser reconhecida e
tratada rapidamente, devido à sua elevada morbimortalidade;
• A equipe deve envidar esforços para identificar a etiologia do tamponamento;
• O diagnóstico do tamponamento cardíaco é, essencialmente, clínico, por meio da
observação da Tríade de Beck, quando presente. No entanto, o ecocardiograma
possui excelente acurácia diagnóstica e deve ser realizado sempre que possível;
• Na ausência de hemopericárdio, de derrame loculado e de neoplasia, em geral,
prefere-se a pericardiocentese fechada subxifoide, guiada por ecocardiografia como
o método terapêutico.

Leitura sugerida
1. Al-Ogaili, Ahmed, et al. Cardiac tamponade incidence, demographic sandin-hospital outcomes: analysis of the
national inpatient sample database. Journal of the American College of Cardiology. 2018, v. 71, n. 11 Supplement,
p. A1155, 2018.
2. Adler Y, Charron P, Imazio M, et al. 2015 ESC Guidelines for the diagnosis and management of pericardial
diseases: The Task Force for the Diagnosis and Management of Pericardial Diseases of the European Society
of Cardiology (ESC)Endorsed by: The European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS). Eur Heart J
2015; 36:2921.
3. American College of Cardiology (ACC)/American Association for Thoracic Surgery (AATS)/American Heart
Association (AHA)/American Society of Echocardiography (ASE)/American Society of Nuclear Cardiology
(ASNC)/Heart Rhythm Society (HRS)/Society for Cardiovascular Angiography and Interventions (SCAI)/Society of
Cardiovascular Computed Tomography (SCCT)/Society for Cardiovascular Magnetic Resonance (SCMR)/Society
of Thoracic Surgeons (STS): Appropriate use criteria for multimodality imaging in the assessment of cardiac struc-
ture and function in non valvular heart disease. Little WC, Freeman GL. Pericardial disease. Circulation 2006;
113:1622.
4. Zipes D, Libby P, Bonow R, et al. Braunwald’s Heart Disease: A Textbook of Cardiovascular Medicine. 11th ed.
Philadelphia: WB Saunders; 2019:1757-81.
5. Klein AL, Abbara S, Agler DA, et al. American Society of Echocardiography clinical recommendations for multi-
modality cardiovascular imaging of patients with pericardial disease: endorsed by the Society for Cardiovascular
Magnetic Resonance and Society of Cardiovascular Computed Tomography. J Am Soc Echocardiogr 2013; 26:965.
6. Cheitlin MD, Armstrong WF, Aurigemma GP, et al. ACC/AHA/ASE 2003 Guideline for the clinical application of
echocardiography.
Aneurisma de Aorta Abdominal 17

Yuri Osmar de Araújo Costa


Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
A artéria aorta percorre um trajeto extenso, que vai desde a base do coração até o abdome,
local onde se bifurca nas artérias ilíacas. Seu diâmetro é variável, a depender da região anatômica
que permeia, mas tem, na porção abdominal, seu menor diâmetro, com cerca de 2,0 a 2,3 cm. Essa
artéria, principalmente no trecho abdominal, é sede frequente de aneurisma, definido como uma
dilatação anormal, em que há um aumento de, pelo menos, 50% do diâmetro do vaso. Nesse racio-
cínio, o aneurisma de aorta abdominal (AAA) constitui-se como uma dilatação focal e permanente
do vaso, com diâmetro maior do que 3 cm no segmento abdominal.
Dados americanos evidenciaram que 1,4% da população entre 50 e 84 anos apresentam a
dilatação focal da artéria, o que totaliza cerca de 1 milhão de adultos portadores de AAA³. É uma
condição mais prevalente na população idosa, responsável por cerca de 95% de todos os casos de
AAA e é de 2 a 3 vezes mais frequente no sexo masculino.
Na maioria dos pacientes, o AAA é assintomático e é um achado ocasional de procedimentos
ultrassonográficos de rotina. Entretanto, representa uma condição clínica muito relevante, con-
siderando seu potencial de evolução para ruptura e sua alta taxa de mortalidade. Em relação à
definição do tratamento, é importante estratificar o risco de ruptura e observar a presença de sin-
tomas ocasionados pelo aneurisma para, posteriormente, optar ou por acompanhamento com
exames de imagem, ou por encaminhamento à cirurgia de reparo.

Fatores de risco
Dentre os fatores de risco, a idade avançada é o mais relevante para o desenvolvimento do
AAA. A incidência de casos tem um pico inicial entre a 5ª e 6ª década de vida e aumenta conco-
mitantemente ao envelhecimento. Ademais, o tabagismo constitui-se como um segundo fator de
risco importante. Acredita-se que o risco de desenvolver o aneurisma é 7 vezes maior em indi-
víduos fumantes, em relação a não fumantes. Em um estudo realizado nos Estados Unidos com
mais de 3 milhões de pacientes, verificou-se uma estreita associação do AAA com o tabagismo. Na
128 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

pesquisa, constatou-se que 90% dos indivíduos com aneurisma da aorta abdominal ou tinham o
hábito de fumar ou eram ex-fumantes. Ainda, foi observado que o tabagismo é dose-dependente
no desenvolvimento do AAA, com maior incidência entre indivíduos com carga tabágica maior
que 35 anos/maço. Além da idade avançada e do tabagismo, outros fatores estão associados ao
desenvolvimento do AAA, como sexo masculino, história familiar positiva para AAA em parentes
de primeiro grau, hipertensão, hipercolesterolemia, doença arterial periférica, aterosclerose e va-
riação genética do cromossomo 9p21, condição que, acredita-se, aumenta em 20% os riscos de
AAA. Por fim, alguns trabalhos em andamento estudam alguma suposta associação do AAA com
diabetes mellitus, com raça negra ou asiática e com o consumo moderado de álcool. Embora con-
clusões mais robustas sejam necessárias, essas condições parecem promover uma menor dilata-
ção da artéria aorta abdominal.

Manifestações clínicas
A maioria dos portadores de AAA é assintomática, porém, quando sintomático, o aneurisma
pode se manifestar com dor abdominal inespecífica, dor em flancos ou “dor nas costas”. Ao exame
físico, suspeita-se de AAA quando é palpada massa abdominal pulsátil, algumas vezes relatada
pelo próprio paciente, e quando, à ausculta abdominal, percebe-se a presença de um sopro em
topografia aórtica. Na minoria das vezes, o AAA pode se manifestar com isquemia de membros
inferiores. Por ser, geralmente, assintomático, o AAA pode ter sua primeira manifestação clínica
ao se romper. Nesses casos, é comum a apresentação de uma tríade clássica, representada por dor
abdominal aguda intensa, massa abdominal pulsátil e hipotensão. Logo, é de extrema importância
que o médico saiba identificar os sintomas rapidamente para manejar a rotura em um serviço de
emergência e, assim, reduzir a mortalidade.

Etiopatogênese
A base da formação do aneurisma fundamenta-se no enfraquecimento da parede arterial,
quando há alteração na função e/ou na estrutura do tecido conjuntivo localizado no interior da
parede vascular. Fisiologicamente, as artérias estão em constante processo de remodelação, com
períodos de síntese, de degradação e de remodelação da matriz extracelular dos vasos. Nesse âm-
bito, qualquer fator que interfira no processo pode alterar a composição da parede arterial, con-
tribuindo para a sua atonia e para a sua dilatação, conforme exposto na Figura 17.1. Dentre os
fatores possíveis, observa-se, principalmente, a formação de placas ateromatosas como a desen-
cadeadora do fenômeno, que ocorrem, principalmente, entre a emergência das artérias renais e a
bifurcação das artérias ilíacas. Por isso, idade e tabagismo são considerados importantes fatores
de risco, afinal, são intimamente relacionados à formação de placas ateromatosas, além da disli-
pidemia. O maior acometimento dos pontos anatômicos elencados se dá, fundamentalmente, por
serem áreas de fluxo turbilhonar e submetidas a constantes alterações de pressão extravascular.
A formação de placas ateromatosas na túnica íntima do vaso, por sua vez, comprime a camada
média subjacente e, com isso, há comprometimento da difusão de nutrientes da luz do vaso para a
parede arterial. Esse processo isquêmico resulta em degeneração e em necrose da parede vascular,
com perda de células musculares lisas, o que causa fraqueza e diminuição da espessura da parede,
formando o aneurisma.
A n e u ri s m a d e A o r t a A b d o m i n a l 129

Artéria renal direita Aneurisma de aorta


abdominal infrarrenal

Figura 17.1. Aneurisma de aorta abdominal infrarrenal.


Fonte: Wikimedia commons.

Acredita-se que o processo isquêmico desencadeia uma cascata inflamatória com a forma-
ção de MPM (micropartículas produzidas por monócitos). Essas micropartículas degradam os
componentes da matriz extracelular do vaso, como fibras colágenas, fibras elásticas, laminina e
proteoglicanos, que são fundamentais para integridade da parede do vaso. Ainda, admite-se que
a predisposição genética à formação dos aneurismas é decorrente de polimorfismos nos genes
produtores de MPM, que induzem à maior produção dessas substâncias.
Em suma, acredita-se que o processo isquêmico torne a parede vascular frágil, com perda de
células musculares lisas, e induz à formação de tecido cicatricial, que, no processo, privilegia a for-
mação de substância fundamental amorfa em detrimento da matriz extracelular. Assim, forma-se
uma parede frágil e predisposta ao aneurisma, como esquematizado na Figura 17.2.
Vale ressaltar, porém, que embora a maior parte dos AAA forme-se por essa patogênese, duas
vias variantes podem ser encontradas. A primeira delas é o AAA inflamatório, cuja etiologia é in-
certa, caracterizado por densa fibrose e por reação celular local, formando-se células gigantes. A
segunda é o AAA micótico, associado principalmente à infecção bacteriana da parede vascular,
que cursa com supuração local e com destruição da camada média, o que potencializa a formação
do aneurisma.
130 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Comprometimento
da difusão do vaso
Degeneração e
Formação da Fragilidade da Dilatação
necrose da
placa ateromartosa parede vascular Local do vaso
parede vascular
Compressão da
túnica média

Figura 17.2. Processo fisiopatológico na formação do AAA.


Dados de Robbins e Cotran, 8. ed. 2010. Autoria própria.

Diagnóstico
Na maioria dos casos, o diagnóstico do AAA assintomático é aventado durante o exame físi-
co. Isso porque, ao realizar a palpação abdominal, o médico pode palpar uma massa abdominal
pulsátil, muito sugestiva de AAA, principalmente se o paciente examinado se incluir nos principais
fatores de risco para a formação do aneurisma. Entretanto, a sensibilidade da palpação abdomi-
nal é de, aproximadamente, 39%, motivo pelo qual não é recomendado seu emprego para fins
diagnósticos1-3.
Nesse sentido, diante das limitações impostas pelo exame clínico, os principais meios
diagnósticos são representados pelos exames de imagem, destacadamente a ultrassonografia,
a tomografia computadorizada e a ressonância nuclear magnética2-4. A ultrassonografia (USG),
evidenciada na Figura 17.3, é o método de escolha para o diagnóstico e para o rastreio do AAA
assintomático, sendo o exame padrão-ouro. Além de ser um exame barato e ser uma técnica não

Figura 17.3. Corte de ultrassonografia demonstrando AAA.


Fonte: Wikimedia commons.
A n e u ri s m a d e A o r t a A b d o m i n a l 131

invasiva, é de fácil manipulação e não expõe o paciente à radiação ionizante. É um método muito
sensível (96%) e muito específico (99%). A indicação de ultrassonografia no AAA é preconizada
para os seguintes casos:
1. Presença de massa abdominal pulsátil ou de sopro abdominal5;
2. Presença de dor lombar, em flanco ou abdominal sem etiologia conhecida5;
3. Seguimento pós diagnóstico de AAA5.
Nesse contexto, percebe-se que a USG se tornou o principal exame para triagem e para vi-
gilância do AAA. A diretriz da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular recomenda o
rastreio anual de homens fumantes ou que tenham interrompido o hábito há menos de 10 anos,
com idade entre 65 e 75 anos. Porém, na eventualidade de a primeira USG mostrar um diâmetro
da aorta abdominal < 2,6 cm, não se recomenda a continuidade do rastreamento anual, que passa
a ser bienal, se caso não houver sintomas sugestivos no período. Em mulheres da mesma faixa
etária, fumantes ou não, benefícios do rastreio anual não foram observados e, por isso, o USG
deverá ser solicitado seletivamente, avaliando-se a presença de possíveis fatores de risco para o
desenvolvimento da condição1.
A tomografia computadorizada (TC), exposta nas Figuras 17.4 e 17.5, é outro exame de alta
acurácia, porém, é reservado para pacientes sintomáticos e com suspeita de ruptura, em avaliação
perioperatória. É um estudo de alta sensibilidade (90%) e alta especificidade (91%)1 para o diag-
nóstico de AAA.
A ressonância nuclear magnética (RNM), por sua vez, é um terceiro método diagnóstico e
permite avaliar as imagens de qualquer plano ortogonal; entretanto, é um procedimento caro e
não pode ser empregado em portadores de próteses metálicas1.
Vale ressaltar que, tanto a TC quanto a RNM, oferecem imagens com maior precisão quando
são injetados contrastes. No entanto, devem ser reconsiderados em se tratando de pacientes dia-
béticos ou doentes renais, pois podem agravar ou desencadear patologias no nível nefrológico1.

Figura 17.4. Corte axial de tomografia computadorizada evidenciando dilatação da aorta abdominal de
48,5mm em seu maior diâmetro.
Fonte: Wikimedia Commons.
132 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Figura 17.5. Corte sagital de tomografia computadorizada


contrastada, evidenciando aneurisma de aorta abdominal.
Fonte: Wikimedia commons.

Tratamento
Em primeiro lugar, é imperioso repassar ao paciente, em linguagem acessível, informações
sobre a sua condição clínica e destacar quais são os fatores que estimulam o crescimento e a rup-
tura de um aneurisma. Assim, o paciente é orientado sobre a importância da cessação do tabagis-
mo, quando presente, e incentivado a depreender um tratamento eficaz contra a hipertensão, a
dislipidemia e o diabetes1,2.
No que tange aos pacientes assintomáticos, o controle da condição baseia-se no diâmetro do
AAA. Isso porque diâmetros entre 4 e 5,4 cm apontam a necessidade de acompanhamento ultras-
sonográfico anual. Daí, havendo crescimento > 1 cm por ano ou surgindo sintomas, intervenção
cirúrgica ou endovascular é preconizada. Diâmetros > 5,4 cm ao primeiro exame, por sua vez, exi-
gem reparo, independentemente da evolução 1,2.
Por outro lado, quanto à abordagem de pacientes sintomáticos inexiste consenso sobre o
momento da intervenção. Assume-se, porém, que, nesses casos, o risco de ruptura é maior, logo,
quanto mais breve acontecer a intervenção cirúrgica, menor são os riscos de rotura, representante
da principal complicação do AAA, cujos índices de mortalidade são elevados1.
A n e u ri s m a d e A o r t a A b d o m i n a l 133

Por muito tempo, o tratamento do AAA foi a cirurgia aberta, procedimento em que era realiza-
da laparotomia exploratória de toda a cavidade abdominal, procedendo com o clampeamento das
duas extremidades distais do aneurisma e, por fim, com a introdução de uma prótese. Entretanto,
a cirurgia era demasiadamente demorada, apresentava alta mortalidade durante e instantes após
a sua realização, bem como a recuperação do paciente era morosa2,3. Adventos da medicina atua-
ram, então, no sentido de possibilitar que, na contemporaneidade, o método de escolha seja a ci-
rurgia de reparo endovascular (EVAR), tanto para pacientes submetidos à cirurgia eletiva, quanto
para pacientes acometidos pela ruptura de AAA2,3,6. Na EVAR, a introdução da prótese se dá por
meio da inserção de um cateter na artéria femoral, que percorre o leito vascular até o local aco-
metido pela dilatação. Com isso, foi observada uma significativa redução do tempo de cirurgia,
uma menor perda de sangue, menores complicações e, também, menor taxa de mortalidade1,2,5,6.
Depois de decorridos 30 dias do procedimento, todos os pacientes devem ser submetidos à TC,
para a confirmação de posicionamento adequado da prótese e para a constatação de possíveis
anormalidades no fluxo sanguíneo. Após cirurgias abertas, é recomendada a realização de ultras-
sonografia com Doppler após 5, após 10 e após 15 anos do procedimento2.

Complicações
A principal complicação do aneurisma de aorta abdominal é a ruptura, que culmina em um
extravasamento de sangue para a cavidade abdominal, constituindo-se como um evento de ele-
vada mortalidade. O risco de ruptura varia de acordo com o diâmetro do aneurisma, conforme
explicitado na Tabela 17.1.

Tabela 17.1. Risco de ruptura do aneurisma de aorta abdominal, condicionado ao seu tamanho
Diâmetro do aneurisma Risco de ruptura em 12 meses
3-3,9 cm 0%
4-4,9 cm 1%
5-5,9 cm 1-11%
6-6,9 cm 10-22%
Maior que 7 cm 30 a 33%

Dados da Sociedade brasileira de angiologia e cirurgia vascular (2015)1. Autoria própria.

Além disso, o risco de ruptura do AAA é dependente da presença de tabagismo, de hiper-


tensão, da sua velocidade de crescimento, do aumento da rigidez da parede arterial. Por fim, vale
considerar que o sexo feminino é mais predisponente à rotura e responde por mais de um terço
das mortes daí advindas, embora o AAA seja de 2 a 3 vezes mais incidente no sexo masculino.
134 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• O AAA é definido como uma dilatação focal e permanente do vaso, alcançando
valores > 3 cm, e é condição comum entre a população idosa;
• Na maior parte dos afetados, o aneurisma é assintomático; contudo pode se
manifestar como massa abdominal pulsátil, como dor abdominal, como dor nas
costas e até com isquemia de membros inferiores;
• O diagnóstico da condição é geralmente acidental, e para confirmar sua presença a
ultrassonografia é o exame de escolha, além de ser útil para rastreio anual e para a
abordagem terapêutica;
• A abordagem adotada depende do diâmetro do vaso e da presença ou não de
sintomas. Em alguns casos, o acompanhamento anual pode ser realizado, enquanto,
em outros, a intervenção cirúrgica para reparo é preconizada;
• Sua principal complicação é a ruptura, uma condição de alta mortalidade.

Leitura sugerida
1. Aneurismas da aorta abdominal: diagnóstico e tratamento Projeto diretrizes. Sociedade brasileira de angiologia e
cirurgia vascular. Dezembro,2015.
2. Chaikof RLE, Dalman RL, Eskandari MK, Jackson BM, Lee AM, Mansour ALM, et al. The Society for Vascular
Surgery practice guidelines on the care of patients with an abdominal aortic aneurysm. Journal of vascular surgery.
2018 v. 67, p. 2-77.
3. Ministério da saúde (BR). Diretriz brasileira para tratamento do Aneurisma de aorta abdominal. Brasília (DF).2017.
4. Thompson AR, Cooper JA, Ashton HA, Hafez H. Growth rates of small abdominal aortic aneurysms correlate with
clinical events. British Journal of Surgery 2010; 97: 37-44.
5. Pratice parameter for the performance of diagnostic and screening ultrasound of the abdominal aorta in adults.
American College of Radiology.2015.
6. Simão ACP, Gonçalves ACA, Paulino MM, Oliveira RB, Poli CA, Fratezi AC. Estudo comparativo entre tratamento
endovascular e cirurgia convencional na correção eletiva de aneurisma de aorta abdominal: revisão bibliográfica.
J. vasc. bras. vol.8, n. 4 Porto Alegre Dec. 2009.
Dissecção Aórtica 18

Luiz Eduardo Machado Vieira


Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
A dissecção aórtica (DA) é uma doença de instalação abrupta, que consiste na delaminação
longitudinal da camada íntima da aorta, criando-se, assim, um falso lúmen dentro da artéria. As
implicações dessa condição são graves, traduzindo-se em mortalidade muito elevada nos pacien-
tes não tratados, estimada em 40% no momento imediato, com acréscimo de 1% por hora após
o início dos sintomas até os dois primeiros dias e em 80% ou mais nas duas primeiras semanas.
Nesse sentido, a detecção precoce da condição, alinhada à escolha do método terapêutico ade-
quado, faz-se de grande importância para mudar o prognóstico da doença. O IRAD (International
Registry of Acute Aortic Dissection) prevê uma incidência de 2,6 a 3,5 casos em 100.000 pessoas a
cada ano, sendo mais comum no sexo masculino que no feminino, na proporção de 2:1. A pato-
logia mostra-se sazonalmente variável e é mais incidente durante o inverno. A idade média de
apresentação é de 63 anos em homens e de 67 em mulheres.

Classificação
Duas diferentes ferramentas para a classificação são depreendidas, de acordo com o aco-
metimento anatômico dos segmentos aórticos. Os pontos utilizados para a referência são a aorta
ascendente, que segue até o ramo braquiocefálico, e a aorta descendente, que se inicia distal-
mente à emergência da subclávia esquerda. A classificação de DeBakey tem como base a origem
e a extensão da dissecção, sendo denominada de tipo I quando se origina da aorta ascendente,
envolve o arco aórtico e, geralmente, a aorta descendente, de tipo II quando envolve apenas a
aorta ascendente e, de tipo III, se envolve apenas a aorta descendente. A segunda classificação, de
Stanford, não leva em conta a origem da lesão intimal, mas divide os casos de acordo com o aco-
metimento ou não da aorta ascendente. Nesse âmbito, é denominada de tipo A se acomete a aorta
ascendente, podendo ou não envolver a aorta descendente e de tipo B se acomete apenas a aorta
descendente. É de se notar, então, que o Tipo A de Stanford abrange os Tipos I e II de DeBakey e
o Tipo B de Stanford corresponderia ao Tipo III de DeBakey. As dissecções do Tipo A são as mais
136 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

comuns, podendo chegar ao dobro de incidência das dissecções do Tipo B. Pela classificação de
DeBakey, o Tipo I é o mais comum. (Figura 18.1)

Tipo I (A) Tipo II (A) Tipo III (B)

Figura 18.1. Classificação da dissecção aórtica: Stanford (Tipo A e B) e DeBakey (Tipo I, II e III). Imagem
por J.Heuser MD/CC BY-SA 3.0.
Fonte: Wikimedia Commons.

Ademais, a dissecção aórtica também pode ser classificada de acordo com o tempo decorrido
desde o início dos sintomas. A divisão clássica abrange a forma aguda, aquela que tem duração
< 2 semanas e a crônica, que dura > 2 semanas. Contudo, outras classificações levam em conta a
variação da mortalidade em função do tempo de duração dos sintomas, como a classificação do
IRAD (International Registry of Aortic Dissection) e outras, ainda, são sugeridas por diretrizes das
diferentes sociedades médicas relevantes. A Tabela 18.1 resume essas classificações.

Tabela 18.1. Classificação da dissecção aórtica com base no tempo desde o início dos sintomas
Definição clássica Definição IRAD Diretriz TAD Diretriz ESC
Aguda: < 14 dias Hiperaguda: < 1 dia Aguda: < 14 dias Aguda: < 14 dias
Crônica: > 14 dias Aguda: 2-7 dias Subaguda: < 2-6 semanas Subaguda: 14-90
Subaguda: 8-30 dias Crônica: > 6 semanas dias
Crônica: > 30 dias Crônica: > 90 dias

Dados de The IRAD (International Registry of Aortic Dissection) classification system for characterizing survival after aortic
dissection, do Guidelines for the diagnosis and management of patients with thoracic aortic disease (ACCF/AHA) e do
ESC guidelines on the diagnosis and treatment of aortic diseases. Autoria própria.

Apresentação clínica e complicações


O quadro clínico da dissecção aórtica é variável e pode se confundir com manifestações de
outras doenças, o que torna o diagnóstico bastante desafiador. A dor torácica intensa, de início sú-
bito e de caráter lancinante é o quadro clássico da DA aguda. A localização da dor pode predizer a
origem da lesão intimal e pode avançar de acordo com a progressão anterógrada (mais comum) da
D i s s e c ç ã o A ó r t i c a 137

dissecção. Pacientes com dissecção do Tipo A comumente apresentam mais dor torácica anterior
(71%) do que posterior (32%), mas podem, também, apresentar dor lombar (47%) ou abdominal
(21%), como resultado da progressão da DA. Pacientes com dissecção do Tipo B, por outro lado, re-
latam, mais frequentemente, a ocorrência de dor lombar (64%), mas é comum, também, apresen-
tarem dor torácica (63%) e abdominal (43%). Uma pequena porcentagem de pacientes apresenta
apenas dor abdominal, o que pode retardar o diagnóstico. A intensidade da dor é maior no início
e o caráter lancinante (em pontada) é o mais relatado. Essas duas características são fundamen-
tais para o estabelecimento do diagnóstico diferencial com o Infarto agudo do Miocárdio (IAM),
condição consideravelmente mais incidente, em que a dor aumenta progressivamente e é mais
relatada como em “peso” ou em “aperto”. Apesar disso, alguns pacientes com DA também podem
relatar essas características semiológicas. Muitos doentes evoluem para subsequente alívio ou re-
solução da dor, o que pode mascarar a condição. Condições em que os pacientes não apresentam
nenhuma dor podem existir (6,4%), mas são mais comuns entre aqueles cometidos por outras
comorbidades.
Os achados clínicos também se manifestam como consequências de déficits perfusionais
e podem variar de acordo com a origem da DA e do envolvimento de diferentes ramos da aorta.
Sintomas da insuficiência cardíaca congestiva são relatados por, aproximadamente, 6% dos pa-
cientes e podem ser explicados por uma insuficiência aórtica (IA) aguda grave, instaurada pela
dissecção. IAM pode estar presente em até 7% dos casos e é explicado pela obstrução do fluxo
coronariano devido à progressão da dissecção para o interior das coronárias. A síncope, presen-
te em 13% dos casos, pode ter origem cardíaca (tamponamento, IA grave, ruptura aórtica), vas-
cular (obstrução ao fluxo cerebral), neurológica (resposta vasovagal à dor) ou fundamentada na
hipovolemia. Em qualquer das hipóteses, os pacientes que apresentam síncope têm uma taxa de
mortalidade mais elevada que os demais. Sintomas neurológicos estão presentes em cerca de 17%
dos pacientes, evidenciados por AVE isquêmico, por ataque isquêmico transitório ou, em menor
frequência (1%), por paraplegia, desencadeada por má perfusão da medula espinhal.
Muitos dos sinais evidentes ao exame físico também estão relacionados às complicações
da DA e, se presentes, devem levantar a suspeita da doença. São representados por anormalida-
des e déficits de pulso, presentes em cerca de 31% dos casos, por sopro diastólico, secundário à
insuficiência aórtica aguda gerada por diferentes mecanismos e por alterações nas medidas da
pressão arterial (PA). Aproximadamente metade dos pacientes têm, inicialmente, medidas pres-
sóricas altas, principalmente na DA do Tipo B. Em contrapartida, 20% dos pacientes podem ter
hipotensão ou choque, o que induz a equipe à hipótese de ruptura aórtica ou de tamponamento
cardíaco. Assimetrias de valores da PA entre os membros superiores podem ocorrer devido ao aco-
metimento de ramos da aorta; portanto, é de suma importância a aferição das medidas em ambos
os membros. Derrame pleural é encontrado em, aproximadamente, 16% dos casos e, geralmente,
tem origem vascular quando é exuberante ou inflamatório/exsudativo quando tem pequeno vo-
lume. O exame físico clínico é, na maioria das vezes, insensível para a detecção de isquemia renal
ou mesentérica, devendo o avaliador, para isso, ater-se às informações clínicas e aos achados la-
boratoriais ou radiológicos.

Etiopatogênese
A fisiopatologia da DA aguda pode ser explicada por meio de duas principais teorias. A pri-
meira e mais difundida delas advoga que o fenômeno se deflagra com um evento primário de rup-
tura da camada íntima da aorta, que, associada à degeneração da túnica média (necrose cística da
138 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

média) permite o desvio de parte do fluxo sanguíneo para o espaço entre a camada íntima e a mé-
dia, criando, assim, um falso lúmen. A segunda hipótese fundamenta-se no rompimento primário
da vasa vasorum, desencadeando hemorragia na parede do vaso e levando, então, à delaminação,
à ruptura da camada íntima e, assim, à dissecção. O fluxo sanguíneo no interior do falso lúmen
pode seguir, mais comumente, o fluxo anterógrado, ou o retrógrado, ambos causando a distensão
desse novo lúmen contra o verdadeiro, o que aumenta o diâmetro da artéria. Essa situação pode
implicar a oclusão dos diversos ramos da aorta ou o comprometimento direto das estruturas car-
diovasculares, gerando consequências catastróficas que envolvem desde síndromes isquêmicas
de má perfusão (coronariana, cerebral, espinhal, visceral) a patologias cardiovasculares, como in-
suficiência aórtica, ruptura aórtica e tamponamento cardíaco.
Em geral, os fatores de risco para DA traduzem-se em condições que resultam na degenera-
ção da túnica média ou que estabelecem fatores de alto estresse sobre a parede da artéria, aumen-
tando a força de cisalhamento. Nesse sentido, hipertensão arterial sistêmica destaca-se como o
principal fator de risco, principalmente quando mal controlada, e está presente em cerca de 75%
dos portadores de DA. Além dela, aterosclerose constitui-se como um outro fator importante e
pode estar presente em 25% dos casos. Outras condições que envolvem aumento de estresse sobre
a parede arterial são o uso de crack e cocaína, subsidiados na liberação adrenérgica, que promove
picos hipertensivos e a prática de exercícios físicos intensos submetidos à manobra de Valsalva,
como o levantamento de peso. Trauma, principalmente dilacerante, a exemplo daquele advindos
de acidentes motociclísticos, também é documentado como fator de risco. Ademais, a coarcta-
ção da aorta figura entre os fatores predisponentes, principalmente se associada à iatrogenia de
procedimentos prévios na artéria. As condições que cursam com anormalidades na túnica média
da aorta, por sua vez, são muitas, dentre as quais merece destaque a predisposição genética, no
contexto de doenças do tecido conjuntivo, como as síndromes de Marfan, de Ehler-Danlos, de
Loeys-Dietz e de Turner. Nesse contexto, metade dos pacientes de DA, em pacientes com menos
de 40 anos de idade, portam a Síndrome de Marfan. Vale considerar, ainda, que, mesmo na ausên-
cia dessas entidades, a DA pode ter caráter hereditário.
Outras condições, se presentes, predispõem a anormalidades na aorta e são fatores de risco
para DA, como aneurisma de aorta preexistente, que pode estar presente em até 13 % dos casos,
valva aórtica bicúspide, manipulações prévias da artéria, incluindo histórico de cirurgia cardíaca,
histórico familiar de aneurisma da aorta torácica e vasculites causadas por doenças inflamató-
rias, dentre as quais se incluem a arterite de células gigantes, a arterite de Takayasu, a arterite de
Behçet, entre outras. A gravidez e parto são predisponentes à condição, devido às adaptações he-
modinâmicas e hormonais próprias da gravidez, subsidiadas no hiperdinamismo e nas alterações
da parede arterial. É importante ressaltar que o risco de DA é maior em gestantes portadoras de
doenças do tecido conjuntivo.

Diagnóstico
As diretrizes da AHA/ACCF de 2010 para Doenças da Aorta Torácica¹ recomendam um alto
grau de suspeição para Dissecção Aórtica quando presente, pelo menos, um dos seguintes fatores:
1. Histórico de condições de alto risco, como as síndromes descritas, doenças do tecido
conjuntivo, predisposição genética, histórico familiar de DA ou aneurisma de aorta
torácica, valvopatia aórtica conhecida, manipulação recente da aorta em procedimentos
e aneurisma de aorta torácica;
D i s s e c ç ã o A ó r t i c a 139

2. Sintomatologia de alto risco, dentre as quais incluem dor de início abrupto, dor de
intensidade elevada, dor com característica de pontada ou cortante;
3. Sinais clínicos de alto risco: déficit de pulso, diferença na PA aferida entre os membros
superiores maior que 20 mmHg, déficit neurológico focal e sopro diastólico de
insuficiência aórtica.
Após estabelecida a suspeita clínica, deve-se usar métodos de imagem para a confirmação
ou não da DA. Nesse propósito, o diagnóstico é firmado quando se visualiza o lúmen verdadeiro e
falso lúmen, delimitados por um septo denominado “flap intimal”. Os estudos mais apropriados
para este objetivo incluem a angiotomografia de tórax, exposta na figura 18.2, e abdome, a angio-
ressonância de tórax e abdome e o ecocardiograma transesofágico (ETE)1,2,3. A arteriografia tem
sido menos utilizada para o diagnóstico, e vem cedendo espaço para exames menos invasivos. A
equipe deve considerar as particularidades de cada exame e suas disponibilidades nos diferentes
centros. Outros métodos e outros achados podem ser úteis para guiar o diagnóstico, além de per-
mitirem a visualização de possíveis complicações já estabelecidas1, 2, 3, 4.

Figura 18.2. Angiotomografia contrastada de tórax, em corte axial, evidenciando dissecção aórtica do
Tipo A. Nela, observa-se o falso lúmen, separado do lúmen verdadeiro pelo flap intimal (setas), tanto na
aorta ascendente, quanto na descendente.
Fonte: Imagem por James Heilman, MD/CC BY-SA 3.0, Wikimedia Commons.

Angiotomografia contrastada
Devem ser realizadas angiotomografias de tórax e abdome. É o método mais empregado,
devido à sua alta acurácia e disponibilidade em centros de emergência. A sensibilidade da técnica
pode variar entre 90-100% e, a especificidade, entre 87-100%. Nela, pode-se observar o sinal do
duplo lúmen (lúmen falso e verdadeiro) e o flap intimal. Além disso, possibilita a avaliação de di-
ferentes ramos da aorta1,3.
140 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Angioressonância
Devem ser realizadas angioressonâncias de tórax e de abdome. Assim como a angiotomogra-
fia, também é um método de elevada acurácia, com sensibilidade e com especificidades chegando
próximas a 100%. É um bom método para visualizar a lesão intimal primária e outros detalhes.
Porém, sua disponibilidade em centros de emergência é menor e a duração do exame é superior à
da TC, o que a mantém em segundo plano1, 3.

Ecocardiograma
O ecocardiograma transesofágico é o método ideal para a avaliação de pacientes hemodina-
micamente instáveis. Com sensibilidade e com especificidade semelhantes às da angio TC e da
angio RM, pode guiar, rapidamente, a tomada de decisão em pacientes críticos. Também é uma
técnica útil para a avaliação do acometimento coronariano, da presença de derrame pericárdico
ou regurgitação aórtica. Suas principais limitações incluem a dependência de um examinador al-
tamente qualificado e a dificuldade de visualizar algumas áreas da aorta ascendente, caracterís-
ticas representativas das poucas desvantagens se comparado ao ecocardiograma transtorácico1,3.
O ecocardiograma transtorácico, por sua vez, pode ser empregado alternativamente, embora a
modalidade transesofágica seja preferencial.

Eletrocardiograma
Pode ser empregado para estabelecer o diagnóstico diferencial com outras condições, desde
que não retarde a obtenção de imagens em pacientes com alta suspeita clínica de DA1,3.

Radiografia de tórax
O achado mais comum, em se tratando da DA, é o alargamento mediastinal. Porém, aproxi-
madamente 40% dos exames realizados em pacientes com DA não demonstram essa alteração, e
cerca de 16% deles são desprovidos de qualquer alteração. Portanto, deve ser usado apenas como
um método auxiliar no diagnóstico diferencial e não como o exame de imagem definitivo1,3.

D-dímero
O D-dímero é um potencial marcador sérico para a DA, porém, deve ser analisado com cau-
tela. O valor de referência estabelecido é de 500 ng/mL, e números superiores têm sensibilidade
de 97%, especificidade de 56% e um elevad0 valor preditivo negativo1,3,4.

Tratamento
A DA aguda constitui-se como uma emergência hipertensiva, motivo pelo qual deve ser ma-
nejada em uma unidade de terapia intensiva (UTI). Simultaneamente à investigação radiológica, a
equipe deve envidar esforços para controlar adequadamente a dor do paciente, com a prescrição
de opioides EV, bem como para reduzir a pressão arterial, a frequência cardíaca e a força de con-
D i s s e c ç ã o A ó r t i c a 141

tratilidade miocárdica, com uso de betabloqueador. A adoção dessas medidas visa estabilizar a
condição clínica do paciente, reduzir a propagação da dissecção e minimizar o risco de ruptura1,2,3.
A redução da PA sistólica deve ser intensa e, por fim, a PA deve ser mantida no nível mais
baixo tolerado, salvo se existir comprometimento cerebral ou renal, ocasiões que exigem alvo en-
tre 100 e 120 mmHg. A frequência cardíaca deve ser levada a valores abaixo de 60 bpm. A classe
de drogas preferencial para atingir essas metas é a dos betabloqueadores, via EV, dos quais fazem
parte, por exemplo, propranolol, metoprolol, esmolol e labetalol. O labetalol parece ser vantajoso
em detrimento dos demais, devido ao seu efeito alfa-bloqueador adjunto, o que favorece a redu-
ção dos níveis da PA, porém, essa droga não está disponível no Brasil. Se após o uso de betablo-
queadores os valores pressóricos mantiverem-se elevados, é plausível adicionar nitroprussiato de
sódio ao esquema terapêutico, para o controle efetivo da PAS. Merece especial atenção a expressa
contraindicação de se administrar o nitroprussiato antes do controle da frequência cardíaca (FC),
devido ao elevado risco de induzir, iatrogenicamente, taquicardia reflexa. Preferencialmente, pa-
cientes cuja terapia inclui a prescrição de nitroprussiato, devem ter a PA monitorada pelo método
invasivo (PAM), a fim de que um controle eficaz seja alcançado em tempo hábil. Outros vasodi-
latadores diretos, como a hidralazina, devem ser evitados. Bloqueadores de canais de cálcio não
diidropiridínicos (verapamil e diltiazem) podem ser prescritos alternativamente, tanto para a re-
dução da pressão arterial, quanto da frequência cardíaca1.
Havendo hipotensão, a expansão volumétrica é uma opção viável. Vasopressores também
podem ser prescritos, embora aumentem o risco de que a dissecção se propague. Agentes ino-
trópicos, como a dobutamina, não devem ser administrados, pois aumentam a FC e a força de
contratilidade miocárdica, o que implica propagação da DA e aumento do estresse na parede da
aorta. Ademais, a equipe deve tomar conhecimento quanto à causa da hipotensão e deve instituir
medidas para preveni-la. Importante registrar, também, que, na presença de tamponamento car-
díaco associado à condição, a pericardiocentese foi associada a maior risco de hemorragia e de
choque1,4. Embora todas essas medidas de suporte intensivo sejam imperiosas, não devem atra-
sar a transferência do paciente para um centro cirúrgico, caso exista a indicação de intervenção
imediata. Portanto, manter o diálogo com a equipe de cirurgia cardiovascular deve ser uma das
pioridades¹.
O tratamento definitivo da DA aguda é definido após a obtenção de imagens e é diferente
para cada categoria de dissecção. De forma geral, o tratamento para DA do Tipo A é cirúrgico,
instituindo-se o tratamento medicamentoso apenas para os casos em que o paciente não sobrevi-
veria ao procedimento. Em contrapartida, pacientes com dissecção do Tipo B se beneficiam, nor-
malmente, do tratamento medicamentoso, salvo quando existe alguma complicação associada.
Quando indicada, a reparação para DA do Tipo A é feita por meio de cirurgia aberta e, nos casos
complicados de DA Tipo B, grande parte se beneficia do reparo endovascular1,3. Enfim, o aprofun-
damento no tratamento definitivo e nas indicações e técnicas cirúrgicas para a correção da DA
aguda fogem do escopo deste capítulo.
A mortalidade intra-hospitalar para a dissecção aórtica calculada pelo IRAD em um de seus
primeiros levantamentos foi de 27,4%, com diminuição expressiva nos últimos anos, devido aos
avanços conquistados no campo da cirurgia cardiovascular. Na contemporaneidade, a mortalida-
de intra-hospitalar da DA do tipo A é estimada em 22% e, do tipo B, em 13%. A sobrevida em 3 anos
para os pacientes com DA do tipo A, tratados cirurgicamente, foi estimada em 90.5%, porém, a ex-
pressividade desse dado carrega um importante viés de seleção, devido ao fato de os participantes
incluídos nas estatísticas terem chegado com vida ao atendimento. Para os pacientes com DA do
tipo B, por sua vez, a sobrevida em 3 anos foi calculada em 79%4.
142 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• A DA aguda, embora seja pouco incidente, tem uma alta taxa de letalidade;
• Os mecanismos fisiopatológicos da doença envolvem a criação de falso lúmen na
aorta, facilitada na presença de fatores de risco;
• Uma dor torácica intensa de início súbito e de caráter lancinante deve levantar a
suspeita de DA;
• Muitas das vezes, os pacientes podem se apresentar ao pronto-atendimento com
complicações instauradas, cujos sinais devem ser de conhecimento do profissional;
• O diagnóstico da DA é concluído com a superposição de dados clínicos aos
achados de imagem, dos quais os mais apropriados são a angioTC, a angioRM e o
ecocardiograma transesofágico;
• O tratamento em UTI visa controlar a dor, bem como reduzir os níveis pressóricos e
a frequência cardíaca. O tratamento cirúrgico deve ser ponderado por um cirurgião
cardiovascular e depende do estabelecimento do tipo de dissecção (Tipo A ou Tipo
B de Stanford), por métodos de imagem.

Leitura sugerida
1. Hiratzka LF, Bakris GL, Beckman JA, et al. 2010 ACCF/AHA/AATS/ACR/ASA/SCA/SCAI/SIR/STS /SVM guideli-
nes for the diagnosis and management of patients with Thoracic Aortic Disease: a report of the American College
of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines, American Association
for Thoracic Surgery, American College of Radiology, American Stroke Association, Society of Cardiovascular
Anesthesiologists, Society for Cardiovascular Angiography and Interventions, Society of Interventional Radiology,
Society of Thoracic Surgeons, and Society for Vascular Medicine. Circulation 2010; 121:266.
2. Erbel R, Aboyans V, Boileau C, et al. 2014 ESC Guidelines on the diagnosis and treatment of aortic diseases:
Document covering acute and chronic aortic diseases of the thoracic and abdominal aorta of the adult. The Task
Force for the Diagnosis and Treatment of Aortic Diseases of the European Society of Cardiology (ESC). Eur Heart
J 2014; 35:2873.
3. Braunwald E, Zipes D, Libby P. Braunwald’s heart disease: A textbook of cardiovascular medicine. 11th ed. Elsevier;
2018. p. 3199-243.
4. Evangelista A, Isselbacher EM, Bossone E, et al. Insights From the International Registry of Acute Aortic Dissection:
A 20-Year Experience of Collaborative Clinical Research. Circulation 2018; 11:645.
Trombose Venosa Profunda e 19
Tromboembolismo Pulmonar

Melissa Amaral Carneiro


Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
A trombose venosa profunda (TVP) e o tromboembolismo pulmonar (TEP) são apresentações
clínicas do tromboembolismo venoso (TEV). Mundialmente, o TEV é a terceira doença cardiovas-
cular mais comum, atrás apenas do infarto agudo do miocárdio (IAM), discutido no Capítulo 14,
e do acidente vascular encefálico (AVE), discutido no Capítulo 31 . Dados de estudos epidemio-
lógicos mostram que a incidência anual de TVP varia de 53 a 162 casos a cada 100.000 pessoas e
de TEP de 39 a 115 casos a cada 100.000 pessoas. O TEV é uma condição clínica importante, tem
incidência mundial e deve ser bem compreendido para que seja adequadamente conduzido.

Apresentação clínica
Os sinais e os sintomas das duas entidades em discussão são inespecíficos. Pacientes com
trombose venosa profunda podem ser assintomáticos ou se queixarem de dor muscular persis-
tente na perna acometida e que piora ao longo dos dias, de hipersensibilidade, de edema e de dor
à palpação ao longo do trajeto das veias profundas. Ao exame, a perna pode se apresentar quente
ao toque, hiperemiada ou cianótica, com distensão venosa. É importante ressaltar, contudo, que
alguns pacientes, ainda que apresentem poucos sinais e sintomas, podem portar TVP extensa. A
embolia pulmonar, por sua vez, ocorre em cerca de metade dos pacientes com TVP confirmada
de maneira objetiva, mas muitos dos êmbolos não precipitam sintomas. O sintoma mais frequen-
te dessa condição é a dispneia, que pode ser leve e transitória, quando o trombo acomete a pe-
riferia pulmonar, ou aguda e grave, nos casos de acometimento central. Pode ocorrer, também,
dor pleurítica, tosse e hemoptise. Ao exame, taquipneia e taquicardia, associados à hipoxemia, à
palpitação, à ansiedade e à vertigem, podem estar presentes. Ademais, a presença de TEP maciço
pode induzir a apresentação de síncope, de pré-síncope, de hipotensão, de angina ou de infarto
do miocárdio. Além disso, havendo insuficiência cardíaca direita decorrente de êmbolos situados
na artéria pulmonar, podem ocorrer cianose central e periférica, ritmo de galope, ingurgitamento
das veias jugulares e desdobramento da segunda bulha.
144 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Etiopatogênese
O risco de desenvolvimento do TEV depende da interação entre fatores genéticos e adquiri-
dos. Os fatores de risco genéticos estão associados à hipercoagulabilidade sanguínea, cujas mu-
tações mais comuns são a do fator V de Leiden, responsável pela resistência instaurada contra o
anticoagulante endógeno, e a do gene da protrombina, resultando no aumento da concentração
plasmática da proteína. Entre os fatores de risco adquiridos estão a síndrome antifosfolípide, a
idade avançada, a ocorrência de TEV prévio, a presença de câncer ativo e a obesidade. Outros
fatores, como diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica e cirurgia laparoscópica também
influenciam no risco, mas são considerados fatores de risco “fracos”. Geralmente, o TEV ocorre
devido à presença de um fator desencadeante, seja cirurgia, trauma, imobilização do paciente
ou, uso de contraceptivos orais. Essas situações levam à estase venosa, à hipercoagulabilidade e
à lesão endotelial, componentes da tríade de Virchow. Vale considerar, porém, que em 40% dos
pacientes com TEP, nenhum fator de risco é identificado.
A TVP ocorre, mais frequentemente, nos membros inferiores, sendo a causa de TEP em 90%
dos pacientes diagnosticados, embora possa ocorrer nos membros superiores. Quando instaladas
nos membros superiores, geralmente associam-se à presença de cateter venoso central e à insta-
lação de marcapasso ou de desfibrilador cardíaco implantável. O trombo, usualmente, tem sua
formação iniciada em veias profundas da panturrilha e cerca de 1/5 deles progride em direção
proximal, onde o deslocamento é mais provável. Uma vez deslocado, o êmbolo pode alcançar a
circulação pulmonar e, dependendo do seu tamanho, pode se alojar em ramos arteriais centrais,
causando repercussões hemodinâmicas, ou em ramos menores na periferia pulmonar, que não
afetam o estado hemodinâmico, mas causam áreas de infarto pulmonar e resultam em hemop-
tise, em dor pleural e em derrame pleural. Quando a obstrução se instala, há aumento do espaço
morto fisiológico, pelo excesso de ventilação em alvéolos mal perfundidos, e aumento da resistên-
cia vascular pulmonar, pela liberação de agentes vasoconstritores plaquetários. Quando ocorre
oclusão de 30-50% da circulação pulmonar, a pressão da artéria pulmonar aumenta, assim como
a pós-carga ventricular direita, levando à dilatação do ventrículo direito (VD). Alguns mecanis-
mos compensatórios são ativados a fim de manter a pressão arterial sistêmica, como aumento
do tempo de contração do VD e estimulações ino e cronotrópicas, pela ativação neuro-humoral.
O aumento do tempo de contração do VD leva ao deslocamento do septo interventricular para a
esquerda que, associado à regurgitação tricúspide causada pela dilatação do VD, comprometem
o enchimento do VE e, consequentemente, do débito cardíaco, levando à hipotensão. Em alguns
casos, o comprometimento é tão expressivo que pode levar ao choque obstrutivo e à morte.

Diagnóstico
Como exposto anteriormente, os sinais e os sintomas do TEV são inespecíficos; portanto, ou-
tras ferramentas, esquematizadas na Tabela 19.1, são necessárias para estabelecer o diagnóstico.
Primeiramente, é importante definir a probabilidade pré-teste de o paciente desenvolver TEV, pois
essa classificação determina os exames que devem ser solicitados para o diagnóstico1. Essa proba-
bilidade pode ser determinada subjetivamente pela avaliação clínica ou, preferencialmente, por
meio de escores validados, como o Escore de Wells e o escore de Geneva, instrumentos que levam
em consideração fatores da história do paciente, além dos seus sinais e seus sintomas. Por meio de
um esquema de pontuação, as ferramentas dividem os pacientes em baixa, moderada ou alta pro-
babilidade pré-teste. Independente do escore utilizado, a proporção esperada de pacientes com
Tro m b o s e Ve n o s a P ro f u n d a e Tro m b o e m b o l i s m o P u l m o n a r 145

TEP confirmado é em torno de 10% nos pacientes com baixa probabilidade pré-teste, de 30% se a
probabilidade for moderada e de 65% se a probabilidade for alta1. As estratégias diagnósticas va-
riam de acordo com a disponibilidade dos exames e com a experiência da equipe local. As Figuras
19.1 e 19.2 demonstram uma possibilidade de estratégia, baseada na proposta das diretrizes da
Sociedade Europeia de Cardiologia.

Tabela 19.1. Esquematização dos exames úteis para o diagnóstico de trombose venosa profunda e de
tromboembolismo pulmonar
Exames básicos
Trombose venosa profunda (TVP) Tromboembolismo pulmonar (TEP)
D-dímero D-dímero
US por compressão Angiografia pulmonar por TC
Exames adicionais
Tromboembolismo pulmonar (TEP)
Ecocardiograma Eletrocardiograma Radiografia de tórax

Autoria própria.

Suspeita de TEP com estabilidade hemodinâmica

Baixa/moderada probabilidade pré-teste Escore de Wells Alta probabilidade pré-teste alta

D-dímero Ângio-TC

Negativo Positivo Negativo Positivo

Exclui TEP Ângio-TC Exclui TEP Tratamento

Negativo Positivo

Figura 19.1. Modelo diagnóstico de tromboembolismo pulmonar (TEP) em pacientes estáveis


hemodinamicamente.
Angio-TC: angiografia pulmonar por tomografia computadorizada.
Dados da European Society of Cardiology working groups of aorta and peripheral vascular diseases and pulmonary circulation
and right ventricular function2. Autoria própria.

No que tange às características dos exames mais utilizados para o diagnóstico de TVP e de
TEP, algumas considerações merecem destaque. A quantificação por ELISA do D-dímero, proteína
plasmática resultante da degradação da fibrina pela plasmina, tem elevada sensibilidade, sendo
³ 80% para TVP e ³ 95% para TEP3, e baixa especificidade. Dessa forma, quando o resultado é nor-
mal, ele pode ser útil para excluir o diagnóstico de TEP em pacientes com probabilidade pré-teste
146 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Suspeita de TVP

1 Escore de Wells 2

D-dímero

Negativo Positivo USG por compressão

Figura 19.2. Modelo diagnóstico de trombose venosa profunda (TVP).


USG: ultrassonografia. Dados da European Society of Cardiology working groups of aorta and peripheral vascular diseases and
pulmonary circulation and right ventricular function2. Autoria própria.

baixa ou moderada1,2. Contudo, o método não pode ser usado para confirmar o diagnóstico, pois
pode se elevar em outras situações como idade avançada, doença inflamatória crônica, infarto
agudo do miocárdio, pneumonia, sepse, malignidade, pós-operatório e gestação, durante o segun-
do e terceiro trimestres1,3. A ultrassonografia por compressão, por sua vez, é o método de imagem
mais utilizado atualmente para o diagnóstico de TVP2. Em pacientes sem trombo, quando se co-
loca o transdutor sobre a veia e se aplica uma leve pressão, é possível perceber o seu colabamen-
to, porém, quando existe um trombo no local, essa deformação não ocorre. A ultrassonografia
tem sensibilidade > 90% e especificidade de aproximadamente 95% para pacientes com TVP pro-
ximal sintomática1, enquanto para trombos localizados na panturrilha, a sensibilidade é menor
que 90%4. Localizar TVP proximal em pacientes cuja suspeita diagnóstica seja TEP, é considerado
suficiente para a instituição da terapia1. Ademais, a angiografia pulmonar por tomografia com-
putadorizada (angio-TC), exemplificada pela Figura 19.3, é o exame radiológico de escolha para

Figura 19.3. (1) Angiografia pulmonar por tomografia computadorizada evidenciando a presença de
trombos (setas vermelhas) nos ramos principais da artéria pulmonar. Imagem por Hellerhoff, disponível
em Wikimedia Commons. (2). Cintilografia pulmonar de ventilação-perfusão. Na fase de ventilação
(A) nota-se a distribuição do marcador por todo território pulmonar; na fase de perfusão (B), notam-
se falhas de preenchimento do marcador intravenoso, locais acometidos pelos êmbolos. Imagem por
Westgate EJ et al, disponível em Wikimedia Commons.
Tro m b o s e Ve n o s a P ro f u n d a e Tro m b o e m b o l i s m o P u l m o n a r 147

a avaliação de pacientes com suspeita de TEP. O estudo apresenta sensibilidade de 83% e especifi-
cidade de 96%1, além de ter baixa taxa de resultados inconclusivos e de ser um método que pode
indicar algum possível diagnóstico diferencial para o quadro. Como desvantagens, esse método
expõe o paciente à radiação ionizante e ao contraste iodado.
Outras modalidades diagnósticas existem, mas são solicitadas apenas em condições es-
peciais, motivo pelo qual serão abordadas sucintamente. A cintilografia pulmonar de venti-
lação-perfusão, por exemplo, foi substituída pela angio-TC, mas permanece como o método
de escolha para pacientes com comprometimento renal, com histórico de alergia ao meio de
contraste e para gestantes, por não utilizar fármaco iodado e por expor o paciente a menores
radiações que a angiografia por TC1. No exame, caso o paciente apresente algum êmbolo em
território pulmonar, é esperada a detecção de ventilação normal e de hipoperfusão da área afe-
tada, conforme exemplificado na Figura 19.1. Por outro lado, a angiografia pulmonar é realizada
com obtenção de imagens após a injeção de contraste diretamente nas artérias pulmonares. A
presença do trombo é confirmada pela visualização de falha de enchimento nos ramos da arté-
ria pulmonar. Atualmente, seu emprego é raro por ser uma técnica mais invasiva. Ademais, ao
eletrocardiograma existe taquicardia sinusal em 40% dos pacientes com TEP1. Em casos mais
graves, pode haver inversão da onda T nas derivações de V1 a V4, ocasionada pela sobrecarga e
pela isquemia do VD, bem como o conjunto S1Q3T3 (onda S na derivação I, onda Q na derivação
III e onda T invertida na derivação III) e um bloqueio completo ou incompleto do ramo direito.
O ecocardiograma é útil para estratificar o risco da doença, abordado a seguir, e para descar-
tar condições que justifiquem a sintomatologia, como tamponamento pericárdico, discutido
no capítulo 16, e dissecção de aorta, abordada no Capítulo 18 . O sinal ecocardiográfico indireto
mais conhecido no TEP é o sinal de McConnell, que consiste em hipocinesia da parede livre do
VD, com movimento normal de seu ápice. A radiografia de tórax não é útil para estabelecer o
diagnóstico de TEP, uma vez que, frequentemente, a imagem é normal em pacientes acometidos
pela doença, mas pode ser importante para descartar a presença de outras doenças que cursam
com dispneia e com angina3,8. Apesar disso, quando presentes, alguns dos sinais radiográficos
do TEP incluem oligoemia focal (sinal de Westermark), densidade periférica em forma de cunha,
representando infarto pulmonar (corcova de Hampton) e aumento do calibre da artéria pulmo-
nar direita (sinal de Palla).
Para pacientes instáveis hemodinamicamente, o ecocardiograma transtorácico à beira do
leito é o exame inicial mais conveniente, uma vez que pode evidenciar disfunção aguda do VD,
se o TEP for a causa da descompensação hemodinâmica. Em doentes muito instáveis hemodi-
namicamente, a evidência de disfunção de VD é suficiente para que a equipe induza a reperfusão
imediata, sem outros testes. Ao se alcançar a estabilidade, porém, o paciente deve ser submetido
à angiografia pulmonar por TC para confirmar o diagnóstico1.

Determinação da gravidade e risco de morte prematura


A estratificação do risco do paciente é feita por meio da avaliação da estabilidade hemodi-
nâmica, da presença ou não de disfunção do VD, dos níveis séricos de troponina e das condições
agravantes de cada paciente1. Integrando essas informações, o paciente é considerado de alto,
moderado alto, moderado baixo ou baixo risco de mortalidade. A evidência de instabilidade he-
modinâmica já é suficiente para enquadrá-lo como de alto risco, sem a necessidade de conduzir
outros estudos.
148 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tratamento
De forma geral, para pacientes com alto risco de mortalidade a reperfusão medicamen-
tosa, detalhada a seguir, está indicada. Não sendo possível utilizar esse método, ou havendo
fracasso em seu emprego, é recomendada a realização da embolectomia cirúrgica. Por outro
lado, em se tratando de pacientes com risco baixo ou moderado, a anticoagulação, discuti-
da em seguida, deve ser prontamente iniciada, enquanto se aguarda o resultado dos exames
diagnósticos. A heparina de baixo peso molecular (HBPM) e o fondaparinux são preferíveis em
detrimento da heparina não fracionada (HNF) nesse propósito, por apresentarem menor risco
de eventos adversos. Se a via oral for preferida, os novos anticoagulantes orais (NOACs) devem
ser privilegiados aos antagonistas de vitamina K; contudo, optando pelos antagonistas, deve
ser prescrito, concomitantemente, algum anticoagulante parenteral durante os primeiros 5
dias, até que se atinja a meta do RNI entre 2,0 e 3,0. Na eventualidade de os pacientes de baixo
ou moderado risco apresentarem deterioração, a revascularização farmacológica de resgate é
recomendada1.
A decisão pelo tempo de duração da terapia deve levar em conta os fatores de risco para a
recorrência de TEV e o risco de sangramento associado à anticoagulação. Pacientes com TEV por
fatores secundários transitórios devem ser anticoagulados por 3 meses. Por outro lado, pacientes
com episódios recorrentes de TEV (pelo menos um episódio anterior), sem um fator de risco tran-
sitório e reversível presente, devem ser abordados de forma que a terapia se estenda indefinida-
mente, contanto que o risco de sangramento permaneça baixo1.

Suporte hemodinâmico e respiratório


Recomenda-se a administração de oxigênio suplementar em se tratando de pacientes com
saturação de oxigênio abaixo de 90%1. Havendo instabilidade hemodinâmica, deve-se considerar
a administração de oxigenação de alto fluxo ou a instituição de ventilação mecânica. Por outro
lado, se houver falência do VD e redução da pressão arterial sistêmica, a administração de fluidos
em pequenos volumes pode ser considerada. A prescrição de vasopressores torna-se necessária
em pacientes que cursam com choque cardiogênico.

Terapia de anticoagulação
É a base do tratamento do TEV. Os agentes prescritos, bem como suas principais característi-
cas, devem ser de domínio do médico assistente e estão esquematizados na Tabela 19.2.
Tro m b o s e Ve n o s a P ro f u n d a e Tro m b o e m b o l i s m o P u l m o n a r 149

Tabela 19.2. Opções medicamentosas para o tratamento de TVP e de TEP


Medicação Considerações
HNF Administrada por via intravenosa;
Além do uso em pacientes graves, é uma opção para pacientes com comprometimento renal grave e obesidade grau III;
A dose deve ser ajustada de acordo com o TTPa, que deve se manter entre 1,5-2,5 vezes o valor de referência (dosado
a cada 6 horas durante a infusão);
Pode causar trombocitopenia induzida por heparina (TIH).
HBPM e Usados por via subcutânea;
fondaparinux Possuem maior biodisponibilidade, meia-vida mais longa, resposta mais previsível à dose e menor risco de
sangramento e de TIH do que a HNF;
Não é necessário dosagens laboratoriais para seu controle.
Antagonistas de • Usados por via oral;
vitamina K • Requer monitorização frequente do RNI e possui interações com várias outras medicações.
NOACs Podem ser inibidores diretos da trombina (dabigatrana) ou inibidores do fator Xa (rivaroxabana, apixabana e
edoxabana). São fármacos que possuem biodisponibilidade e farmacocinética previsíveis e, por isso, podem ser
administrados em doses fixas sem monitorização laboratorial, além de possuírem menos interações medicamentosas
e alimentares. Não há diferença entre o uso dos NOACs e de outros anticoagulantes em relação a sangramento, a
recorrência de TEV e a mortalidade por qualquer causa, além de poderem ser usados com a mesma eficácia para o
tratamento de TVP9,10.
Dados do ESC Guidelines1 e de Kasper D et al3. Autoria própria.

Terapia de reperfusão
É uma forma rápida de aliviar a obstrução pulmonar. A reperfusão farmacológica, atingida
por um agente fibrinolítico, como a estreptoquinase, a uroquinase ou o ativador do plasminogênio
tecidual, tem maior benefício quando iniciada dentro de 48 horas após o início dos sintomas. Essa
técnica aumenta os riscos de sangramento tanto extra, quanto intracraniano. Tem como contrain-
dicações absolutas história prévia de AVC hemorrágico ou de origem desconhecida, neoplasia de
sistema nervoso central, trauma significativo ou cirurgia nas últimas três semanas, sangramento
gastrointestinal no último mês ou sangramento atual significativo. Outra modalidade para esse
fim é a reperfusão mecânica, que pode ser feita por embolectomia por cateter percutâneo, ou por
meio da embolectomia cirúrgica. No caso de TVP, a reperfusão mecânica é rara, sendo mais usada
em casos de trombose arterial.

Filtro de veia cava


É inserido via percutânea e atua impedindo que trombos venosos dos membros inferiores
alcancem o leito pulmonar. As principais indicações para seu uso são TVP com contraindicação
absoluta de anticoagulação, TEP recorrente, mesmo com anticoagulação plena, e como profilaxia
primária em pacientes de alto risco para TVP1,2. A complicação mais comum associada à técnica é
a trombose da veia cava2,3.

Complicações clínicas
Uma vez instauradas as patologias discutidas, algumas complicações podem se seguir.
Exemplo disso é a hipertensão pulmonar tromboembólica crônica, complicação rara causada pela
organização fibrinótica do trombo na artéria pulmonar. O estabelecimento diagnóstico é difícil,
afinal, os sinais e os sintomas iniciais são inespecíficos, mas, tardiamente, são perceptíveis sinais
de disfunção do VD. Ademais, a persistência dos sintomas e limitações funcionais podem acon-
150 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

tecer por até 3 anos após o episódio de TEP, principalmente a dispneia e a má performance física.
Fatores que podem estar relacionados a isso envolvem idade avançada, comorbidades cardiopul-
monares, índice de massa corporal elevado e histórico de tabagismo. Por fim, destaca-se a síndro-
me pós-trombótica como a complicação tardia mais comum da TVP, desenvolvendo-se entre 20 e
50% dos pacientes. É considerada uma síndrome por se manifestar com uma ampla variedade de
sinais e de sintomas, desde edema ao final do dia na perna acometida até dor debilitante e ulcera-
ções no membro.

Pontos-chave
• A escolha do método diagnóstico empregado deve considerar a probabilidade pré-
teste de cada paciente, evitando a solicitação de exames desnecessários;
• A estratificação rápida em relação ao risco de mortalidade deve ser feita para guiar
a modalidade terapêutica escolhida;
• Pacientes com alto risco devem ser submetidos à terapia de reperfusão;
• Pacientes com risco baixo ou moderado devem iniciar a terapia de anticoagulação,
preferencialmente com HBPM ou com fondaparinux;
• O tempo mínimo de uso dos anticoagulantes é de 3 meses após o diagnóstico da
condição. A prorrogação da terapia deve ser considerada para pacientes com TEV
recorrente não relacionada a fatores de risco transitórios.

Leitura sugerida
1. Konstantinides S, Meyer G, Becattini C, Bueno H, Geersing G, Harjola V, et al. 2019 ESC Guidelines for the diag-
nosis and management of acute pulmonary embolism developed in collaboration with the European Respiratory
Society (ERS). European Heart Journal. 2019;41(4):543-603.
2. Mazzolai L, Aboyans V, Ageno W, Agnelli G, Alatri A, Bauersachs R, et al. Diagnosis and management of acute
deep vein thrombosis: a joint consensus document from the European Society of Cardiology working groups of
aorta and peripheral vascular diseases and pulmonary circulation and right ventricular function. European Heart
Journal. 2017;39(47):4208-18.
3. Kasper D, Fauci A, Hauser S, Longo D, Jameson J, Loscalzo J. Harrison’s Principles of Internal Medicine. New
York: McGraw-Hill Professional Publishing, 2015.
4. Goldman L. Goldman Cecil Medicina. 24th ed. Rio de Janeiro: Elsevier Health Sciences Brazil, 2014.
5. Hirsh J, Hull R, Raskob G. Clinical features and diagnosis of venous thrombosis. Journal of the American College
of Cardiology. 1986;8(6):114B-127B.
6. Kahn S, Comerota A, Cushman M, Evans N, Ginsberg J, Goldenberg N, et al. The Postthrombotic Syndrome:
Evidence-Based Prevention, Diagnosis, and Treatment Strategies. Circulation. 2014;130(18):1636-61.
7. Moheimani F, Jackson D. Venous Thromboembolism: Classification, Risk Factors, Diagnosis, and Management.
ISRN Hematology. 2011;2011:1-7.
8. Moore A, Wachsmann J, Chamarthy M, Panjikaran L, Tanabe Y, Rajiah P. Imaging of acute pulmonary embolism:
an update. Cardiovascular Diagnosis and Therapy. 2018;8(3):225-43.
9. Robertson L, Kesteven P, McCaslin J. Oral direct thrombin inhibitors or oral factor Xa inhibitors for the treatment of
pulmonary embolism. Cochrane Database of Systematic Reviews. 2015.
10. Robertson L, Kesteven P, McCaslin J. Oral direct thrombin inhibitors or oral factor Xa inhibitors for the treatment of
deep vein thrombosis. Cochrane Database of Systematic Reviews. 2015.
Oclusão Arterial Aguda 20

Gustavo Henrique de Oliveira Soares


Victor Nardelli Durço
Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
As oclusões arteriais agudas representam tema de grande importância dentro das doenças
arteriais periféricas e da medicina intensiva, por serem uma das apresentações mais potencial-
mente devastadoras, porém tratáveis, se abordadas em tempo hábil. Ademais, a manifestação
desse evento pode sugerir a existência de uma arteriopatia proximal pré-existente e/ou de fonte
emboligênica central potencial, as quais podem ainda não estar diagnosticadas no momento em
questão, de modo que a identificação se torna determinante para o prognóstico do paciente.
O diagnóstico e a avaliação inicial são predominantemente clínicos e atrasos nesse proces-
so e/ou retardo na instituição terapêutica possuem implicações funcionais aos pacientes, dentre
as quais figuram as lesões neurológicas periféricas irreversíveis, a necessidade de amputação de
membros ou de órgãos e, inclusive, a morte do indivíduo.
Este capítulo abordará, portanto, as oclusões arteriais agudas periféricas, sendo seu foco te-
mático as duas causas mais prevalentes: a embolia e a trombose arterial.

Etiopatogênese
A oclusão arterial aguda periférica implica a interrupção repentina ou a redução do fluxo e
da perfusão arterial distal, com um consequente comprometimento da viabilidade tecidual à ju-
sante da oclusão. As duas principais etiologias são a embolia e a trombose, embora também seja
relatada, na literatura, a associação da oclusão com os eventos iatrogênicos, com os traumas, com
o aprisionamento de artéria poplítea e com a doença cística da artéria poplítea, os quais não serão
abordados neste capítulo.
152 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Embolia arterial
O embolismo (do grego “émbolon”, ou tampão) é a consequência de uma obstrução da árvore
arterial causada por um componente migratório, cuja natureza pode incluir trombos, fragmentos
de placas ateromatosas, células tumorais, gases ou corpos estranhos. A migração dos êmbolos, por
sua vez, é determinada por dois fatores importantes: o diâmetro do vaso acometido e o tamanho
da partícula móvel. Nesse raciocínio, a partir do momento em que há o destacamento do êmbolo,
ele transita facilmente pelas artérias de grande calibre, ao contrário do que ocorre em regiões de
estreitamento luminal, de forma que os sítios de alojamento mais prevalentes sejam esses pontos
anatômicos, como é o caso das bifurcações arteriais, da emergência de vasos colaterais relevantes
e das áreas acometidas por placas ateroscleróticas. Por isso, nos membros inferiores, os locais
mais afetados são a artéria poplítea e a bifurcação da femoral, enquanto, nos membros superiores,
são a artéria braquial, na saída da artéria braquial profunda, e a bifurcação da artéria braquial, em
região de fossa cubital. A ocorrência de embolia arterial em membros inferiores é até cinco vezes
maior do que em membros superiores.
Do ponto de vista etiológico, existem três classificações para a fonte da embolia arterial. A
mais comum é a cardíaca, sendo a fibrilação atrial, citada no Capítulo 13, a causa mais frequen-
te. Nesse caso, há a formação de um trombo mural, geralmente em átrio esquerdo, que se solta e
migra distalmente, podendo acometer artérias normais. Em segundo lugar, figura a causa arterial,
representada pelos fragmentos ateroscleróticos que se destacam de artérias proximais acometidas
(ateroembolismo), em sua grande maioria advinda da aorta torácica, em indivíduos com doença
aterosclerótica relevante ou que foram submetidos a manipulações intra-arteriais por fios guias
ou por cateteres. Por fim, a etiologia venosa, representada pela embolia paradoxal, em que um
coágulo derivado do sistema venoso se desloca, pelo forame oval patente, para o sistema arterial.
Pacientes acometidos pela etiologia venosa, geralmente, padecem de um quadro conhecido de
trombose venosa profunda.

Trombose arterial aguda


É consequência da ativação plaquetária anormal dentro da artéria, implicando a formação
de coágulos que podem obstruir o lúmen parcial ou completamente. A oclusão arterial aguda
causada pela trombose arterial pode ser classificada entre degenerativa, displásica, inflamató-
ria, mecânica, hematológica e miscelânea. Dentre essas etiologias, a degenerativa, representada
pela doença aterosclerótica obliterante, é a mais associada ao processo trombótico, e cursa com
a formação de coágulos sobre a placa. Observa-se que a história natural da doença ateroscleró-
tica, geralmente, segue um caminho progressivo e insidioso. Porém, algumas situações podem
resultar em oclusão arterial aguda, como é o caso da presença de algum redutor do débito car-
díaco, exemplificado pelo choque hipovolêmico e pela insuficiência cardíaca, em paralelo com
a doença aterosclerótica, o que pode gerar isquemia aguda, por redução da perfusão arterial do
membro. Outra situação de isquemia aguda acontece quando há disrupção da capa fibrosa da
placa aterosclerótica e, consequentemente, exposição do núcleo lipídico à corrente sanguínea.
Dessa forma, infere-se que a espessura da capa fibrosa é um determinante importante no que
tange à progressão para a oclusão. As demais etiologias associam-se a três fatores primordiais,
descritos por Virchow, que incluem a lesão endotelial, o estado de hipercoagulabilidade e o fluxo
sanguíneo anormal. A primeira delas, a displásica, é representada pela displasia fibromuscular
idiopática, enquanto, a inflamatória, pelas colagenoses e arterites de médio e de pequeno cali-
bre. A mecânica, por sua vez, acontece por traumas, por procedimentos invasivos ou por causas
O c l u s ã o A r t e ri a l A g u d a 153

externas. Por outro lado, a hematológica fundamenta-se na trombofilia e nos demais estados
hipercoaguláveis, enquanto a miscelânea é embasada em neoplasias, em infecções e em enxer-
tos arteriais.

Apresentação clínica
A clínica da oclusão arterial aguda manifesta-se pela presença de dor com apresentação
inicial variável. Geralmente, tem início geralmente abrupto e evolui com piora progressiva, mas,
independentemente da forma de instauração, com o passar do tempo se constitui na queixa prin-
cipal do paciente. Ademais, sinais e sintomas, como parestesia, paralisia, esfriamento, palidez e
ausência de pulsos palpáveis são frequentes. Essa apresentação pleomórfica da oclusão arterial
aguda fundamenta-se na variação do tamanho da artéria ocluída, na existência ou na ausência de
uma rede de artérias colaterais previamente desenvolvidas e na necessidade metabólica do tecido
acometido. Nesse sentido, o indivíduo pode evoluir, inicialmente, tanto para a isquemia aguda do
membro, na ausência de colaterais, quanto para claudicação súbita aguda, na presença de uma
rede arterial prévia bem desenvolvida.
Os dados clínicos que podem auxiliar o diagnóstico diferencial entre trombose e embolia são
a intensidade da dor e a evolução dos sintomas, que podem ser subagudos na trombose, devido
à existência frequente de rede colateral pérvia, e, predominantemente, agudos na embolia. Outro
ponto que auxilia na distinção clínica entre ambas as entidades é a presença de doença cardíaca
prévia, comum quando a etiologia é embólica e ocasional quando é trombótica. Ademais, antece-
dentes de claudicação raramente são observados na embolia, embora sejam presentes na trombo-
se e, por fim, a presença de déficit de pulso e de sopros no membro contralateral, mais frequentes
na oclusão aguda por trombose do que por embolia, devido à maior prevalência de doença ateros-
clerótica associada.
Observa-se que a ocorrência de isquemia aguda em membros inferiores associa-se, mais for-
temente, à patogênese embólica cardíaca, por fibrilação atrial. Entretanto, não é incomum que os
pacientes com isquemia aguda tenham doença aterosclerótica associada, haja vista os avanços na
medicina e o perfil etário desses pacientes, cada vez mais avançado. Nesse raciocínio, apesar de
existirem distinções clínicas entre as origens embólica e/ou trombótica, ocasionalmente elas se
sobrepõem.
A evolução da isquemia aguda ocorre de maneira escalonada, a depender da gravidade da
isquemia. Primeiramente, são afetados os nervos sensoriais, seguidos pelo comprometimento
motor, que causa fraqueza muscular mais tardiamente e, então, pelo acometimento da perfusão
capilar dos músculos, motivo pelo qual a hipersensibilidade muscular é um sinal de estágio final
da isquemia aguda. A definição da duração dos sintomas, por sua vez, é importante para a condu-
ção do caso. Isso porque, de acordo com a American Heart Association e com o American College of
Cardiology, define-se isquemia crítica a condição que tem duração dos sintomas inferior a 2 sema-
nas e, nessa população, se o fluxo sanguíneo não for restabelecido, a necrose muscular irreversível
acontece entre 4 e 6 horas.
Portanto, a classificação da oclusão arterial aguda baseia-se na gravidade da isquemia arte-
rial, de maneira a estratificar a urgência da intervenção, que terá impacto direto no prognóstico do
paciente. A partir disso, a Society for Vascular Surgery e a International Society for Cardiovascular
Surgery propõem uma classificação com achados do Doppler arterial e venoso, a qual estratifica o
paciente em três categorias e em suas respectivas subdivisões. Essa mesma classificação foi des-
crita por Rutherford et al, evidenciada a seguir:
154 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

I. Viável/Claudicação súbita aguda: pode haver a presença de dor isquêmica em membro,


porém, sem ameaça imediata. Não há perda sensorial ou fraqueza muscular. Os sinais do
Doppler arterial e venoso estão audíveis;
II. Ameaçado: existe ameaça, mas ela é reversível se houver intervenção imediata. Apresenta
sinais de Doppler arterial inaudível e Doppler venoso sem alterações. Quanto mais tardia
for a abordagem, maior é o risco de instalação da necrose muscular irreversível. Engloba
a maioria dos pacientes e é subdivida em:
a. Ameaça marginal/Isquemia subcrítica aguda: pode haver a presença de dor contínua
e de pequena perda sensorial, restrita aos artelhos. Não há a presença de fraqueza
muscular;
b. Ameaça imediata/Isquemia crítica aguda: existe a presença de dor isquêmica durante
o repouso, de perda sensorial além dos artelhos e acometimento da força muscular
(paresia ou paralisia);
III. Irreversível: há perda profunda da sensibilidade do membro (anestesiado) e paralisia com
rigidez muscular acima do nível do tornozelo. Há, também, sinais de isquemia cutânea,
sem reenchimento capilar. Ademais, existe uma ausência de sinais do Doppler arterial e
venoso. Evolui para amputação de membro ou para perda neuromuscular permanente.

Diagnóstico
O diagnóstico é estabelecido, geralmente, com base na história clínica e no exame físico, que
inclui a avaliação do índice tornozelo-braquial, bilateralmente. A etiologia da qual se suspeita,
bem como a gravidade da isquemia, determinam se existe ou não a necessidade de se prosseguir
com estudos adicionais1,2.
A investigação por métodos de imagem pode atuar na confirmação diagnóstica, na identi-
ficação de características que sugiram embolia ou trombose e no estabelecimento da terapêuti-
ca ideal. Entretanto, o tempo necessário para a obtenção das imagens deve ser levado em conta
quando a revascularização de urgência é aventada. Pacientes viáveis ou com ameaça marginal
são, normalmente, candidatos aos exames de imagem de urgência; entretanto, pacientes imedia-
tamente ameaçados devem ser, preferencialmente, encaminhados para a sala cirúrgica, a fim de
serem avaliados e tratados adequadamente1,3. Os principais exames envolvidos no propósito diag-
nóstico incluem a arteriografia, o duplex arterial, a angiotomografia computadorizada e a angior-
ressonância magnética.

Arteriografia
É de grande valor para a localização e para a visualização da árvore arterial, a fim de fazer a
distinção entre trombose e embolia. Esse método é considerado padrão-ouro para a investigação
de oclusão arterial aguda, sendo indicado, na maioria das vezes, no momento pré-operatório4,5.

Duplex arterial
Por ser acessível, ter baixo custo, não ser invasivo, não emitir irradiação e levar pouco tempo
para ser feito, o duplex arterial deve ser considerado como um método diagnóstico. Pode pro-
porcionar informações relevantes sobre a hemodinâmica e pode ser importante no seguimento
O c l u s ã o A r t e ri a l A g u d a 155

após a realização de procedimentos de revascularização6. Todavia, não deve ser empregado como
a única modalidade no sentido de descartar a presença de oclusão arterial, pois possui baixa sen-
sibilidade para detectar estenoses e oclusões em artéria tibial1.

Angiotomografia computadorizada (angio-TC) e angioressonância


magnética (angio-RM)
São exames não invasivos que ajudam no diagnóstico e delimitam a extensão da oclusão.
Porém, por ser um método que não oferece tratamento concomitante, como é o caso da arte-
riografia, pode levar ao atraso na terapia. Ademais, a equipe deve dirigir atenção aos pacientes
submetidos à infusão de contraste endovenoso, uma vez que a nefropatia por contraste é uma
entidade reconhecida3,5.

Diagnóstico diferencial
Algumas condições podem simular a oclusão arterial aguda, como choque sistêmico,
Flegmasia cerulea dolens e neuropatia compressiva aguda. Além deles, outros diagnósticos dife-
renciais devem ser elencados e incluem dissecção aguda de aorta, envolvendo os vasos ilíacos,
síndrome compartimental, trauma arterial, arteriopatia, ergotismo e vasculite. A isquemia arterial
crônica é distinguida pelo tempo da duração dos sintomas que é, geralmente, superior a duas
semanas5,6.

Tratamento
O diagnóstico e o tratamento precoce são fundamentais para um melhor desfecho da oclusão
arterial aguda. A primeira etapa da terapia consiste na administração de heparina não fracionada
5000 UI ou 70-100 UI/kg, assim como na prescrição de analgesia, de hidratação e de oxigeniotera-
pia, caso haja indicação clínica. O objetivo desse manejo é o de preservar a patência da microcir-
culação, o de produzir efeito anti-inflamatório e o de evitar a ocorrência de trombose secundária
e da piora da isquemia6.
O manejo subsequente é indicado de acordo com a classificação de Rutherford obtida, em
que são avaliados o tipo de oclusão, a urgência do tratamento, a melhor abordagem terapêutica, a
localização da lesão, a duração da isquemia e as condições gerais do paciente1,4.

Cirurgia aberta
Pacientes acometidos por oclusão embólica, principalmente se o êmbolo está impactado em
uma artéria não acometida por processo aterosclerótico, são bons candidatos à cirurgia aberta.
Também o são, aqueles diagnosticados com isquemia crítica aguda, os portadores de by-pass so-
bre o qual, supostamente, existe infecção e naqueles em que a trombólise seja contraindicada.
Esse tipo de cirurgia pode ser conduzido tanto por tromboembolectomia, com cateter de Fogarty
quanto, havendo fracasso do procedimento anterior, por confecção de bypass cirúrgico1,6. É im-
portante que, após a tromboembolectomia, seja realizada uma angiografia para avaliar se existem
trombos residuais ou lesões que exijam novas abordagens5.
156 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Cirurgia endovascular
Existe grande variedade de procedimentos endovasculares, como a trombólise por cateter
direto, a trombectomia mecânica percutânea e a tromboaspiração percutânea, esses dois últimos
com ou sem terapia trombolítica3,4.
A trombólise por cateter direto, em primeiro lugar, é indicada para pacientes cuja classifica-
ção de Rutherford seja I ou IIa, fato traduzido pela possibilidade de a condição suportar um maior
intervalo de tempo até que seja iniciada a terapia. A trombólise por cateter é contraindicada em
pacientes cujo risco de sangramento seja alto, e, após o procedimento, é importante a realização
do estudo angiográfico1,2. A Figura 20.1 ilustra o resultado da técnica trombolítica.

Figura 20.1. Vasos observados, por meio do estudo angiográfico, antes (A) e depois (B) da terapia
trombolítica instituída, cujo diagnóstico era trombose na topografia da mão.
Fonte: Imagem por Ipaktchi K/CC BY, disponível em Wikimedia Commons.

Em uma revisão sistemática conduzida por Enezate et al., cujo objetivo foi comparar a ci-
rurgia endovascular com a cirurgia aberta, 1773 pacientes foram incluídos e concluiu-se que não
existem diferenças significativas na taxa de mortalidade, no número de amputações e na taxa de
isquemia recorrente após os tratamentos7.

Complicação pós-operatória
A síndrome da reperfusão é uma complicação pós-operatória subsidiada no aumento da
permeabilidade capilar do membro afetado, após a revascularização, o que leva ao edema e à hi-
pertensão compartimental. Está relacionada, principalmente, ao tempo de evolução da lesão e à
intensidade da isquemia. O diagnóstico da condição é clínico, cujos principais achados incluem
dor intensa no membro, edema, hiperestesia e redução de pulsos arteriais na extremidade distal.
Além disso, níveis pressóricos tissulares locais acima de 20 mmHg e a presença de distúrbios hi-
droeletrolíticos ou acidobásicos incitam a favor do diagnóstico. O tratamento é realizado por meio
da terapia de suporte para correção dos distúrbios e da fasciotomia nos quatro compartimentos
do membro (anterior, lateral, posterior profundo e posterior superficial), com duas incisões, sen-
do uma lateral e a outra anterolateral2,4.
O c l u s ã o A r t e ri a l A g u d a 157

Pontos-chave
• A oclusão arterial aguda periférica implica a interrupção repentina ou a redução
do fluxo e da perfusão arterial distal, que compromete a viabilidade tecidual e cuja
duração é inferior a duas semanas. As duas principais causas da condição são a
embolia e a trombose;
• O embolismo é consequência da obstrução arterial total, causada por diferentes
componentes migratórios, que acomete a árvore arterial. Por outro lado, a trombose
arterial aguda é consequência da ativação plaquetária anormal dentro da artéria,
implicando a geração de trombos;
• A classificação da oclusão arterial aguda baseia-se na gravidade da isquemia arterial
e estratifica a urgência da intervenção, que terá impacto direto no prognóstico do
paciente;
• O diagnóstico e o tratamento precoce são fundamentais para um melhor prognóstico
do paciente acometido pela oclusão arterial aguda;
• Além das medidas terapêuticas iniciais, os procedimentos cirúrgicos devem ser
indicados com base na classificação de Rutherford obtida.

Leitura sugerida
1. Gerhard-Herman MD, Gornik HL, Barrett C, et al. 2016 AHA/ACC Guideline on the Management of Patients
With Lower Extremity Peripheral Artery Disease: A Report of the American College of Cardiology/American Heart
Association Task Force on Clinical Practice Guidelines. Circulation 2017; 135:e726.
2. Bjorck, M, Earnshaw JJ, et al. Editor’s Choice – European Society for Vascular Surgery (ESVS) 2020 Clinical
Practice Guidelines on the Management of Acute Limb Ischaemia. European Journal Of Vascular And Endovascular
Surgery 2020; v. 59, n. 2, p. 173-218.
3. Cronenwett JL, Johnston KW, et al. Isquemia aguda: Avaliação e tomada de decisão. In: Earnshaw J.J. Rutherford’s
Vascular Surgery 8ª ed. Rio de Janeiro. Saunders Elsevier, 2016. p. 2519-27.
4. Maffei FHA, Lastória S, Yoshida WB, Rollo HA, Giannini M, Moura R. Oclusões arteriais agudas. In: Lastória,
S., Maffei, F.H.A. Doenças vasculares periféricas. 4ª ed. vol. 2. Rio de Janeiro. Guanabara Koogan, 2008. p.
1097-121.
5. Norgren L, Hiatt WR, Dormandy JA, Nehler MR, Harris KA, Fowkes FG, et al. Inter-Society Consensus for the
Management of Peripheral Arterial Disease (TASC II). J Vasc Surg. 2007;45 Suppl S:S5-67.
6. Olinic DM, Stanek A, Tantaru DA, Homorodean C, Olinic M. Acute Limb Ischemia: an update on diagnosis and
management. Journal Of Clinical Medicine, 2019 [s.l.], v. 8, n. 8, p. 1215-27.
7. Enezate TH, Omran J, Mahmud E, Patel M, Abu-Fadel MS, White CJ, Al-Dadah AS. Endovascular versus sur-
gical treatment for acute limb ischemia: a systematic review and meta-analysis of clinical trials. Cardiovascular
Diagnosis And Therapy, [s.l.], 2017 v. 7, n. 3, p. 264-71.
8. Rutherford RB, Baker JD, Ernst C, Johnston KW, Porter JM, Ahn S, et al. Recommended standards for reports
dealing with lower extremity ischemia: revised version. J Vasc Surg 1997;26:517-38.
Avaliação Respiratória 21

Lorena Cristina Peixoto Costa


Victor Adalberto Machado Nascimento
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
A respiração é uma função vital cujo principal objetivo é promover a troca de gases com o
meio ambiente, de forma a captar oxigênio (O2) e a liberar dióxido de carbono (CO2), oxigenando,
desse modo, o sangue do indivíduo. O processo automático da respiração é controlado pelo centro
respiratório, localizado no bulbo, que define o ritmo respiratório básico1. Por outro lado, no que
tange à respiração voluntária, pode-se considerar que a regulação ocorre no córtex cerebral.
Além dos componentes do sistema nervoso central, diferentes estruturas estão envolvidas no
processo da respiração: cavidade nasal e oral, faringe, laringe, traqueia, brônquios, bronquíolos e
alvéolos1. Nesse sentido, fica evidente o fato de a respiração poder ocorrer pela via nasal e pela via
bucal, ambas convergentes para a orofaringe2.
Na análise sumária, é fundamental ressaltar que o sistema respiratório deve se adaptar aos
aumentos da demanda de O2, que podem ser ocasionados tanto por alterações metabólicas, quan-
to por desequilíbrios ácido-base3,4. Havendo falhas no processo de oxigenação, a pressão parcial
de oxigênio no sangue arterial está sujeita a redução para valores inferiores a 60 mmHg, condição
denominada insuficiência respiratória hipoxêmica5.
O objetivo deste capítulo, então, é o de explicitar as diferentes estratégias das quais a medici-
na dispõe para avaliar, do ponto de vista da função respiratória, um paciente. Assim, na eventua-
lidade de desbalanços serem identificados, a equipe pode traçar estratégias de manejo, conforme
o quadro clínico evidenciado.

Anamnese
Essa etapa se inicia com a adequada identificação do paciente, considerando seu ambiente
de trabalho, o local onde nasceu, por onde transitou, onde viveu no passado e onde reside no pre-
sente. Esses dados podem auxiliar na detecção de possíveis doenças e de fatores de risco, como
é o caso da exposição à sílica, à fumaça de cigarro, aos poluentes atmosféricos e aos pelos de
animais6. Em seguida, a queixa principal deve ser registrada, nas palavras do paciente. Assim, é
importante conhecer como se iniciaram os sinais e os sintomas, as suas características, os sin-
160 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

tomas adicionais, os fatores de alívio ou de piora, se houve modificação da rotina do paciente


pelo agravo e como o paciente se encontra no momento do atendimento. Associa-se a isso uma
revisão de todos os sistemas orgânicos. Nesse ponto, é importante considerar que alguns sinais
e sintomas podem estar fundamentados em condições sediadas no aparelho respiratório, como
febre, astenia, baqueteamento digital, dor torácica, dispneia, pigarro, halitose, ronco, alterações
de voz, tosse, disfagia, modificações no formato do tórax, nodulações, expectoração, hemoptise,
vômica, sibilos, estridores e tiragem. Além disso, sintomas do trato gastrointestinal podem estar
associados às alterações respiratórias, como pirose, disfagia, regurgitação e dispepsia. Ademais,
sinais e sintomas relacionados ao aparelho cardiovascular, como síncope, alteração do sono, cia-
nose e edema, podem direcionar o raciocínio para uma possível associação entre os dois sistemas:
respiratório e cardiovascular6. Na investigação da história pregressa, aspectos como doenças pul-
monares na infância e na vida adulta, alergias, realização de cirurgias, internações hospitalares,
traumas, vacinação e os medicamentos em uso podem auxiliar o raciocínio clínico6. Na história
familiar, por sua vez, deve-se pesquisar a presença de doenças pulmonares, como asma, alergias,
fibrose cística, câncer pulmonar e enfisema, afinal, algumas entidades apresentam caráter genéti-
co ou hereditário e, portanto, devem ser investigadas em parentes de primeiro grau7. No que tange
aos hábitos de vida, é necessário avaliar o tabagismo, os fatores de risco para o desenvolvimento
de cânceres relacionados ao sistema respiratório e de afecções cardiovasculares. Assim, é essencial
questionar o paciente sobre a quantidade diária de cigarros consumidos, o tipo do tabaco, a fre-
quência de consumo, a duração da dependência, as tentativas de cessação do hábito e os quadros
de abstinência. Outrossim, infecções como pneumonia por Pneumocystis carinii, sinusite crônica,
pneumonia pneumocócica e tuberculose são complicações que podem se associar à infecção pelo
vírus da imunodeficiência humana e, portanto, a pesquisa pela exposição deve ser investigada7.
O consumo de drogas ilícitas, como a cocaína, deve também ser indagado, visto que o uso pode
desencadear alterações pulmonares, como opacidades em vidro fosco, consolidações e barotrau-
mas. Ademais, o conhecimento sobre as condições de moradia do paciente é importante para a
anamnese respiratória, pois algumas regiões podem predispor ao desenvolvimento de algumas
doenças, como a histoplasmose e a coccidioidomicose7.

Exame físico
O exame físico inicia-se com a inspeção. Na inspeção estática, são avaliados o estado da pele,
as deformidades da coluna vertebral, as estruturas superficiais da parede torácica, a presença de
circulação colateral e o formato do tórax. De acordo com a medida do diâmetro anteroposterior do
tórax, ele pode ser classificado em: tonel, infundibuliforme ou pectus excavatum, cariniforme ou
pectus carinatum, piriforme, cifótico, escoliótico ou cifoescoliótico. Ademais, a avaliação da sime-
tria torácica, da presença de cicatrizes, de abaulamentos e de retrações também é realizada nessa
etapa do exame3. No momento posterior, o da inspeção dinâmica, são avaliadas as características
da respiração, como o ritmo, a frequência e a amplitude. O tipo respiratório avaliará se o padrão
é abdominal, torácico ou toracoabdominal. Deve-se considerar que os esforços respiratórios po-
dem desencadear tiragens. Ademais, é importante observar a presença de possível cianose e, na
inspeção do pescoço, verificar se há retração de fúrcula, sinal sugestivo de esforço respiratório3.
Em seguida, a palpação torácica avalia expansibilidade e elasticidade pulmonares. Nesse sentido,
o frêmito toracovocal fica aumentado nos espaços acometidos por consolidações e abolido na
presença de atelectasia ou de derrame pleural. Associado a isso, deve-se avaliar possíveis topo-
grafias em que o paciente apresente dor, linfonodomegalias ou enfisema subcutâneo3. A percus-
são pulmonar, nas faces anterior, lateral e posterior do tórax, deve comparar regiões homólogas.
A v a l i a ç ã o R e s p i ra t ó ri a 161

Assim, sons de macicez ou de submacicez podem ser encontrados na área cardíaca, na área hepá-
tica ou na área esplênica, mas também em alterações pulmonares, como nos derrames pleurais,
nas atelectasias e nas condensações. Alterações como a hipersonoridade e o timpanismo podem
ser encontradas se houver pneumotórax ou cavernas tuberculosas3. A ausculta, por sua vez, inicia-
-se pela face posterior do tórax, seguindo-se, à posteriori, para as faces laterais e anterior. Deve-se
auscultar as regiões de maneira simétrica, solicitando ao paciente que realize algumas inspirações
profundas e uma expulsão vigorosa do ar, na forma de tosse6. Os sons pleuropulmonares podem
ser divididos em sons respiratórios normais, em sons respiratórios anormais e em sons vocais,
com suas respectivas classificações, conforme exposto na Tabela 21.1.

Tabela 21.1. Classificação dos sons pleuropulmonares


Sons respiratórios normais
Audível na região da traqueia, no pescoço e na região esternal;
O som é originado pela passagem do ar na traqueia e na fenda glótica;
Som traqueal
A inspiração (ruído soproso, mais ou menos rude) é bem diferenciada da expiração (mais forte e mais
prolongada do que a inspiração).
Audível na zona de projeção dos brônquios de maior calibre, na face anterior do tórax e próximo ao esterno;
Som brônquico
Semelhante ao som traqueal, diferencia-se por apresentar expiração menos intensa.
Audível na periferia dos pulmões;
Murmúrio vesicular A inspiração é mais intensa, mais duradoura e com tonalidade mais alta que a expiração;
Som mais fraco e mais suave, em comparação com o som brônquico.
Audível na região esternal superior e interescapulovertebral direita;
Som broncovesicular A intensidade e a duração da inspiração e da expiração apresentam mesma magnitude;
É mais forte do que o som vesicular, mas não alcança a intensidade do som brônquico.
Sons respiratórios anormais
Descontínuos
Audíveis, principalmente, nas zonas pulmonares influenciadas pela força da gravidade;
Ocorrem no final da inspiração, são agudos e apresentam curta duração;
Estertores finos
Não se modificam com a tosse, mas podem ser abolidos ou modificados conforme posicionamento do paciente;
Estão presentes na pneumonia, na fibrose pulmonar, no edema pulmonar e nas bronquiectasias.
Audíveis em todas as áreas do tórax;
São menos agudos e de maior duração que os estertores finos;
Estertores grossos
Sofrem alteração com a tosse;
São comuns na bronquite crônica e nas bronquiectasias.
Contínuos
Roncos são constituídos por sons graves; os sibilos por sons agudos.
Aparecem tanto na inspiração, quanto na expiração, mas predominam na última.
Roncos e sibilos
Os sibilos são múltiplos e disseminados por todo o tórax, como acontece na asma e na bronquite; quando
localizados, indicam semiobstrução por neoplasia ou por corpo estranho.
Som produzido pela semiobstrução da laringe ou da traqueia, provocado por: difteria, laringites agudas, câncer
Estridor
da laringe ou estenose da traqueia.
Som de duração maior e de tonalidade grave. É um ruído irregular, descontínuo, mais intenso na inspiração e
Atrito pleural
frequentemente comparado ao “ranger de couro”. A principal causa é a pleurite seca6.
Sons vocais
Solicita-se que o paciente fale durante a ausculta. São os sons produzidos pela voz e ouvidos na parede torácica.
Ausculta-se a voz sem nitidez;
Broncofonia
Ocorre em casos de condensação pulmonar.
Forma especial de broncofonia. Apresenta qualidade nasalada e metálica.
Egofonia
Pode estar presente na parte superior de derrames pleurais e na condensação pulmonar.
Pectorilóquia fônica e afônica Ouve-se com nitidez a voz falada na pectorilóquia fônica, já na afônica ouve-se com nitidez a voz cochichada

Dados de Porto, CC. Porto & Porto Semiologia Médica. 7. ed. 20176. Autoria própria.
162 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Exames complementares
Os exames complementares devem ser solicitados quando não for possível obter informa-
ções suficientes na anamnese e no exame físico, com a finalidade de confirmar ou de descartar
algum diagnóstico. A seguir, são abordados os principais exames complementares na avaliação
respiratória.
Exames de imagem
Incluem a radiografia de tórax, a tomografia computadorizada, a angiotomografia computa-
dorizada de tórax, a ressonância magnética nuclear e algumas técnicas adicionais.
• Radiografia de tórax: trata-se de um método frequentemente utilizado, devido ao baixo
custo e à maior disponibilidade, em comparação com os demais exames de imagem. Tem
como objetivo estabelecer a confirmação do diagnóstico clínico4;
• Tomografia computadorizada (TC): método de maior sensibilidade para detecção e
detalhamento de anormalidades do tórax. Para a avaliação do mediastino ou de lesões
expansivas parenquimatosas, utiliza-se contraste iodado4;
• Angiotomografia computadorizada do tórax (Angio-TC): exame de escolha para avaliação
de embolia pulmonar e para avaliação da etiologia da hipertensão pulmonar4;
• Ressonância magnética nuclear (RMN): tem maior sensibilidade para a detecção de
invasão de estruturas mediastinais e da parede torácica, por exemplo, no estudo de
neoplasias do sulco pulmonar superior (Pancoast) e de neoplasias mediastinais4;
• Exames de imagem adicionais: tomografia por emissão de pósitrons, ultrassonografia,
cintilografia pulmonar e radioscopia4.

Outros exames
• Além dos métodos radiológicos, outros estudos podem ser solicitados pelos profissionais,
alguns dos quais são evidenciados na sequência.
• Testes de função pulmonar: a avaliação funcional pulmonar é essencial na investigação
das doenças respiratórias6. A espirometria mede a quantidade e o fluxo de ar que entra e
que sai dos pulmões durante a respiração (volumes e capacidades pulmonares contidos
na capacidade vital), não sendo possível, somente por meio da espirometria, medir o
volume residual e as capacidades pulmonares6. As variáveis avaliadas nesse exame são: a
Capacidade Vital (CV), a Capacidade Vital Forçada (CVF), o Volume Expiratório Forçado
(VEFt) e o Volume Expiratório Forçado no primeiro segundo (VEF1). Um dos parâmetros
avaliados na espirometria é a razão entre o VEF1 (volume exalado no 1º segundo durante
a manobra da capacidade vital forçada) e a CVF (volume máximo exalado com esforço
máximo, após uma inspiração forçada máxima). Na eventualidade de essa razão estar
reduzida, distúrbio obstrutivo deve ser aventado; enquanto que, caso o valor encontrado
esteja normal ou aumentado, causas restritivas, distúrbios inespecíficos ou distúrbio
obstrutivo inferido com resposta a broncodilatador devem ser investigados6;
• Prova broncodilatadora: é utilizada durante a realização da espirometria para avaliar
se os valores das variáveis, como capacidade inspiratória e CV, encontram-se elevadas6.
Consiste na administração de broncodilatadores, como salbutamol ou fenoterol, depois
A v a l i a ç ã o R e s p i ra t ó ri a 163

de realizada a primeira espirometria, seguida de um segundo estudo espirométrico, 15


minutos depois da administração do fármaco6. O Consenso Brasileiro de Espirometria
recomenda variações maiores que 200 ml e 7% em relação aos valores previstos. Por
outro lado, a American Thoracic Society recomenda os limites de 12% e 200 ml para o
VEF16. Elevações da capacidade inspiratória maior que 300ml e da CV maiores que 400 ml
expressam desinsuflação pulmonar após o efeito do broncodilatador e apresentam bom
valor preditivo para resposta clínica6;
• Exames de secreção broncopulmonar: as secreções broncopulmonares podem ser
estudadas por coleta da expectoração, por aspiração do conteúdo gástrico, por aspiração
traqueobrônquica, pela coleta na broncoscopia, pelo lavado broncoalveolar, pela
aspiração transtraqueal ou por aspiração percutânea por agulha. Esses procedimentos,
embora simples, são úteis e contemplam a observação macroscópica do escarro e o
exame microscópico de uma preparação fresca com coloração pelo Gram. Sabe-se que
o exame microscópico da expectoração avalia a presença de inclusões virais, de fungos,
de bactérias, de parasitos e de células. Há alguns requisitos para a realização dos exames,
dentre os quais se ressaltam:
1. É necessário que o paciente se empenhe em eliminar material proveniente da traqueia
ou da garganta após a tosse;
2. A secreção deve ser colhida no período diurno, após o despertar e após a higiene oral;
3. O material, uma vez colhido, deve ser enviado imediatamente para análise. Dentre
as técnicas para coleta das secreções, destaca-se o lavado broncoalveolar, método
diagnóstico para o estudo da celularidade alveolar. O procedimento é útil para a
detecção de diferentes doenças pulmonares, como das afecções granulomatosas, dos
infiltrados pulmonares e das fibroses pulmonares intersticiais difusas, cujo diagnóstico
permanece indefinido, mesmo após a realização dos exames tradicionais6.

Pontos-chave
• O conhecimento sobre a anatomia e a fisiologia respiratória é fundamental para
uma adequada avaliação do aparelho, bem como uma adequada condução da
anamnese e do exame físico;
• O exame físico do aparelho respiratório pauta-se na inspeção, na palpação, na
percussão e na ausculta, sendo fundamental a diferenciação dos sons respiratórios
normais e anormais;
• Quando não for possível estabelecer um diagnóstico a partir da anamnese e do
exame físico, os exames complementares devem ser solicitados. Nesse sentido,
destaca-se a radiografia de tórax, um dos métodos mais utilizados, devido ao seu
baixo custo e à sua maior disponibilidade;
• Na investigação das doenças respiratórias, pode-se avaliar a funcionalidade
pulmonar. Nesse propósito, a espirometria é de grande valia, por diferenciar doenças
restritivas de doenças obstrutivas.
164 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Leitura sugerida
1. Longo DL, Fauci AS, Kasper DL, Hauser SL, Jameson JL, Loscalzo J. Medicina Interna de Harrison. 18. ed. Porto
Alegre: AMGH, 2013.
2. Lumb AB, Pearl RG. Nunn’s Applied Respiratory Physiology. Elsevier, 2016.
3. Senra D. Medicina intensiva: Fundamentos e Prática. São Paulo: Atheneu, 2013.
4. López M, Medeiros JL. Semiologia Médica: As bases do diagnóstico clínico. 5.ed. Rio de Janeiro. Revinter, 2004.
5. Burt CC, Arrowsmith JE. Respiratory failure. Surgery. 2009;27(11):475-9.
6. Porto, CC. Porto & Porto Semiologia Médica. 7 Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2017.
7. Goldman L, Schafer AI. Goldman Cecil: Tratado de Medicina Interna. 25. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2018.
Abordagem de Vias Aéreas 22

Isabella Louise de Matos Ribeiro Pinto


Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
A abordagem de vias aéreas tem como função principal garantir ventilação e oxigenação ade-
quadas ao paciente. Para que esse objetivo seja alcançado, é necessário que o profissional esteja
atento a possíveis dificuldades encontradas no processo, de modo que ele as reconheça precoce-
mente e, a partir disso, obtenha um plano de ação. Portanto, a realização de anamnese e de exa-
me físico adequados, conhecimento quanto aos diversos dispositivos disponíveis e comunicação
eficaz entre os membros da equipe são imprescindíveis para garantir via aérea adequada e para
reduzir o risco de complicações associadas ao procedimento¹.

Anamnese
Durante a anamnese, devem ser observados indícios que possam sugerir existência de via
aérea de difícil manejo, como histórico de radioterapia cervical, presença de apneia obstrutiva do
sono, laringoscopia ou intubação prévia difícil, além da presença de doenças adquiridas, como
osteoartrite degenerativa, anquilose, obesidade e doenças respiratórias. Associado a isso, é im-
portante a identificação de anomalias anatômicas e de neoplasias em via aérea superior, visto que
essas características podem dificultar a abordagem topográfica¹.

Exame físico
No que tange ao exame físico, deve-se avaliar o comprimento dos incisivos superiores, a dis-
tância interincisivos durante a protusão mandibular e o fechamento normal da boca. Além disso,
é importante avaliar a visibilidade da úvula, por meio da escala de Mallampati, evidenciada na
Figura 22.1, o formato do palato, a distância tireomento, a amplitude de movimento de cabeça e
de pescoço, bem como o comprimento e a espessura cervicais. Nesse sentido, são condições indi-
cativas de via aérea difícil:
166 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

1. Sobremordida dos incisivos superiores em relação aos inferiores;


2. Incapacidade de protrair os incisivos inferiores de modo a ultrapassar os incisivos
superiores;
3. Distância interincisivos < 3 cm;
4. Escala de Mallampati > 2;
5. Palato extremamente arqueado ou estreito;
6. Distância tireomento inferior à largura de três dedos;
7. Comprimento cervical reduzido e de espessura larga;
8. Restrição de movimento cervical².
Para facilitar a avaliação dos diversos parâmetros, foram criadas estratégias mnemônicas,
discutidas a seguir.

I II III IV

Figura 22.1. Escala de Mallampati.


Fonte: Imagem por Jmarchn sob CC BY-SA 3.0, disponível em Wikimedia Commons.

Roman
Representa os indicativos de ventilação difícil ao se utilizar bolsa-válvula-máscara ou másca-
ra facial: radiação prévia cervical ou restrição de movimento cervical; obstrução de via aérea supe-
rior e obesidade; Mallampati de graus III ou IV e sexo masculino; idade superior a 55 anos (age); e
ausência de dentes (no teeth)².

Lemon
Representa os indicativos para uma laringoscopia difícil:
• Aparência externa (look externally – presença de anormalidades anatômicas,
sangramentos, obesidade, pescoço curto ou agitação);
A b o rd a g e m d e V i a s A é re a s 167

• Avaliação (evaluate) da abertura inapropriada da boca segundo a regra 3-3-2:


Paciente deve ser capaz de colocar 3 dedos entre os incisivos com a boca aberta, 3 dedos
entre distância mento-hioidea e 2 dedos colocados entre a laringe e a base da língua².
• Mallampati;
• Obstrução;
• Mobilidade cervical (neck mobility).

Rods
Representa os indicativos de dificuldade para o emprego de dispositivos supraglóticos: ra-
diação/restrição; obstrução e obesidade; distorção ou descontinuidade de via aérea; e rigidez de
nuca (stiff)².

Smart
Representa os indicativos para via aérea cirúrgica difícil: distorção da anatomia (surgery);
presença de massas, de hematomas e de abscessos (mass); anatomia e acessos difíceis; radiotera-
pia; tumorações².

Dispositivos de via aérea


No que tange ao acesso às vias aéreas, diferentes dispositivos são úteis e podem ser empre-
gados, cuja decisão fica a cargo da equipe, condicionada aos objetivos específicos e às condições
clínicas do paciente³.

Máscara facial
A máscara facial é muito empregada na pré-oxigenação do paciente, bem como na manu-
tenção, seja da ventilação, seja da oxigenação, se a tentativa de intubação orotraqueal falhar.
O procedimento é mais eficaz quando realizado em associação com a manobra de tração da
mandíbula³.

Bolsa-válvula-máscara (AMBU)
Tem as mesmas funções da máscara facial³.

Cânulas orofaríngeas e nasofaríngeas


Objetivam aumentar a perviedade da via aérea, de forma a melhorar a ventilação do pacien-
te. A cânula de Guedel, exposta na Figura 22.2, é um dos dispositivos da categoria².
168 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Figura 22.2. Cânulas de Guedel.


Fonte: Imagem por Intersurgical Ltd sob CC BY-SA 3.0, disponível em Wikimedia Commons.

Laringoscópio
O videolaringoscópio, exemplificado na Figura 22.3, é a primeira escolha quando compa-
rados à laringoscopia direta por dispositivos convencionais, uma vez que oferece mais fácil vi-
sualização da anatomia. No entanto, outros fatores, como experiência e treinamento do médico,
devem ser levados em consideração para a determinação de um procedimento bem sucedido.
Por isso, a decisão do tipo de laringoscópio empregado fica a cargo do profissional que realizará a
intubação orotraqueal (IOT)³.

Figura 22.3. Videolaringoscópio.


Fonte: Imagem por Intersurgical Jack7011, disponível em Wikimedia Commons.
A b o rd a g e m d e V i a s A é re a s 169

Dispositivos supraglóticos (DSG)


Os dispositivos supraglóticos utilizados são a máscara laríngea, exposta na Figura 22.4, o
combitube, o tubo laríngeo, o i-gel e o SLIPA. Os diferentes dispositivos devem ser escolhidos de
acordo com a situação clínica, com a disponibilidade do aparato e com a experiência do ope-
rador. Pode-se considerar que os DSG de segunda geração (i-gel, SLIPA) apresentam melhores
resultados³.

Figura 22.4. Máscara laríngea.


Fonte: Imagem por Ignes, disponível em Wikimedia Commons.

Indução anestésica em sequência rápida (ISR)


A ISR tem, principalmente, duas finalidades: reduzir as taxas de aspiração do conteúdo gás-
trico, a chamada síndrome de Mendelson, e estabelecer controle rápido e efetivo da via aérea. A
ISR foi descrita por Sellick em 1961 e tinha como princípios o esvaziamento gástrico por sonda, se-
guido da pré-oxigenação, da indução anestésica, da pressão sobre a cricoide (manobra de Sellick),
da laringoscopia e da presença de fasciculações, precedentes à IOT. Com o passar do tempo, al-
gumas modificações foram implementadas à prática, embora seja, ainda, subsidiada nos mesmos
objetivos. Alguns grupos, destacadamente, beneficiam-se do procedimento, dentre os quais se
elencam os pacientes sem preparo gástrico prévio (por exemplo, os pacientes traumatizados), as
gestantes, os diabéticos portadores de gastroparesia intestinal e aqueles intoxicados por álcool.
Por outro lado, a ISR deve ser evitada quando se antecipa a possibilidade de via aérea difícil¹.
O procedimento é conduzido sob a ação de três categorias de drogas: os analgésicos, os
bloqueadores neuromusculares e os hipnóticos. Os analgésicos, em primeiro lugar, têm como
função abolir ou reduzir a dor que ocorre durante o manejo. A classe de escolha é a dos opioides,
principalmente o fentanil, embora a lidocaína também possa ser utilizada. Além disso, os opioi-
des têm como função reduzir o broncoespasmo e a tosse, ambos induzidos pela IOT. Ademais,
os bloqueadores neuromusculares inibem os reflexos da laringe e aumentam a complacência
torácica, além de facilitarem a ventilação com máscara facial. Nesse propósito, são comumente
170 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

empregados o suxametônio, que produz paralisia e fasciculações em cerca de 15 a 45 segundos


após a administração, embora possa induzir mialgia, hipercalemia e hipertermia maligna, bem
como o rocurônio, cujos efeitos ocorrem entre 45 e 60 segundos após a infusão. O rocurônio
pode ser antagonizado por seu antídoto, o sugammadex, apresenta longa duração e menos efei-
tos colaterais, quando comparado ao suxametônio, além de não produzir fasciculações. Por fim,
os hipnóticos induzem sedação ao deprimirem o sistema nervoso central. Dentre eles, os mais
utilizados são o propofol, a cetamina e o midazolam. O propofol é indicado para pacientes he-
modinamicamente estáveis e apresenta maior índice de depuração, embora deprima a função
miocárdica. A cetamina, por sua vez, tem efeito hipnótico e induz ao aumento da frequência
cardíaca e da pressão arterial. É indicada para pacientes hemodinamicamente instáveis e im-
plica aumento de secreções respiratórias, motivo pelo qual se recomenda sua associação com
atropina ou com antissialorreicos. O midazolam, por último, além de exercer efeito hipnótico,
também induz amnésia recente².

Ventilação
Para se alcançar uma ventilação adequada, várias técnicas, visando à maior permeabilidade
das vias aéreas, podem ser aplicadas. Recomenda-se que a ventilação seja instituída imediata-
mente após a indução anestésica, seja por meio do dispositivo bolsa-válvula-máscara, seja por
meio da máscara facial durante a pré-oxigenação³.

Posição adequada
Em pacientes sem lesão cervical, flexão do pescoço, associada à extensão da cabeça, conheci-
da como posição olfativa, propicia o alinhamento dos eixos oral, laríngeo e faríngeo. Essa posição
pode ser mantida com o uso de um coxim como anteparo para a cabeça do paciente¹.

Manobra de elevação da mandíbula (jaw-thrust)


Consiste na tração da parte óssea da mandíbula, de modo a impedir a queda da base da lín-
gua, conforme evidenciado na Figura 22.5. É de suma importância salientar que em caso de lesão
cervical a manobra está contra indicada².

Figura 22.5. Manobra Jaw-Thrust.


Fonte: Imagem por BruceBlaus sob CC BY-SA 3.0, disponível em
Wikimedia Commons.
A b o rd a g e m d e V i a s A é re a s 171

Cânulas nasofaríngeas e orofaríngeas


Como citado anteriormente, ambos dispositivos podem auxiliar na ventilação para garantir
maior perviedade de via aérea².

Planejamento para a ventilação mecânica invasiva


Diferentes planos podem ser aplicados para se alcançar a ventilação mecânica invasiva, a
depender dos entraves encontrados em abordagens anteriores que são, por sua vez dependentes
das condições clínicas do paciente, das condições da cena e da experiência da equipe, conforme
elucidado na Tabela 22.1¹.

Tabela 22.1. Planejamento para a intubação orotraqueal


Planejamento para a ventilação mecânica invasiva
Plano Método Instruções
Deve ser realizada a pré-oxigenação por máscara facial e o posicionamento adequado do paciente
Acesso de via aérea por
durante a indução anestésica.
Plano A máscara facial, seguido
Poderão ser realizadas três tentativas para IOT pelo mesmo profissional e uma quarta por outro
de IOT
profissional, mais experiente. Deve-se confirmar o sucesso da IOT, por meio da capnografia.
Manutenção da Inserção de máscara laríngea ou de outro DSG, totalizando-se, no máximo, 3 tentativas. Havendo
oxigenação por sucesso no procedimento, o médico deve repensar sobre as próximas intervenções: acordar o
Plano B
dispositivo supraglótico paciente, intubar via DSG, realizar o procedimento sem IOT, ou acessar via aérea por método
(DSG) cirúrgico (cricotireoidostomia ou traqueostomia).
Se a ventilação por máscara facial se mostrar adequada, o paciente deve ser acordado e, em alguns
Tentativa final de
casos, será necessário reverter o bloqueio neuromuscular instituído. Se a ventilação por máscara for
Plano C oxigenação por máscara
insatisfatória, o médico deve recorrer ao DSG ou às cânulas nasotraqueais para manter oxigenação
facial
adequada antes de iniciar o plano D.
Para o procedimento, é necessário: bisturi, bougie e cânula traqueal de 6mm. Assim, uma incisão na
Acesso de via aérea membrana cricotireoidea deve ser realizada, seguida da inserção do bougie e, posteriormente, da
Plano D de emergência por cânula, conectada a uma fonte de oxigênio.
cricotireoidostomia É importante salientar que, enquanto o procedimento de cricotireoidostomia é preparado, as
tentativas de suplementar oxigênio por via aérea superior devem ser continuadas.

Dados de Difficult Airway Society 2015 guidelines for management of unanticipated difficult intubation in adults1. Autoria própria.

Avaliação do procedimento
É importante que, ao término da abordagem, o procedimento seja conferido. Os métodos de
avaliação podem ser a confirmação visual do tubo entre as cordas vocais na IOT, a verificação de
expansão torácica bilateral, a ausculta do tórax e/ou a medição do CO2 por meio da capnografia,
que se constitui o método mais acurado¹.

Possíveis complicações no manejo de vias aéreas


As principais complicações associadas ao manejo de via aérea envolvem hipoxemia, aspi-
ração, regurgitação, bradicardia e parada cardiorrespiratória. Ademais, as complicações agudas
relacionadas à via aérea cirúrgica incluem pneumotórax, enfisema subcutâneo e mediastinal, per-
172 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

furação de traqueia e de órgãos adjacentes, hipercarbia e lesão de cordas vocais. Por fim, é pruden-
te considerar as possíveis complicações tardias, como a instalação de traqueomalácia, de fístula
traqueoesofágica, de estenose traqueal ou subglótica, bem como alteração da voz².

Pontos-chave
• A abordagem da via aérea consiste na avaliação e na realização de procedimentos
que garantam suporte ventilatório e oxigenação adequados;
• A avaliação das vias aéreas é realizada por meio do exame clínico. Em seguida,
inicia-se o procedimento de IOT em sequência rápida: havendo falha, os planos B,
C e D podem ser instituídos;
• Planejamento da abordagem, conhecimento técnico, prática laboral e boa
comunicação entre a equipe são fatores que aumentam a probabilidade de sucesso
do manejo;
• Depois de finalizado o procedimento, é imperioso se obter a confirmação de que
a ventilação e a oxigenação estão adequadas, preferencialmente por meio de um
capnógrafo.

Leitura sugerida
1. Frerk C, et al. Difficult Airway Society 2015 guidelines for management of unanticipated difficult intubation in adults.
British journal of anaesthesia. 10 Nov 2015; 827-48.
2. Brown III CA. Manual de Walls para o Manejo da Via Aérea na Emergência. 5 ed. Porto alegre: Artmed; 2019.
3. Apfelbaum JL, et al. Practice Guidelines for Management of the Difficult Airway: An Updated Report by the
American Society of Anesthesiologists Task Force on Management of the Difficult Airway. American Society of
Anesthesiologists. Fev 2013; 251-270.
Ventilação Mecânica Não Invasiva 23
e Invasiva: Modos Básicos e Indicações

Larissa Dummer Saebel


Lorrayne Flores Oliveira
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
A ventilação mecânica substitui ou auxilia a ventilação espontânea, seja com o emprego de
cânulas endotraqueais (ventilação mecânica invasiva), seja sem o uso da cânula (ventilação mecâ-
nica não invasiva). Tem por objetivo principal prover adequada troca gasosa, diminuindo, assim,
a necessidade metabólica e o esforço respiratório. Estudo recente mostrou que, no Brasil, 71% dos
pacientes instalados na VM o eram por insuficiência respiratória aguda, 21,2% por coma, 5,5%
por DPOC e 2,3% por doença neuromuscular. Desde a epidemia de poliomielite, na década de
1950, a VM provou-se eficaz na redução da mortalidade e consagrou-se nos ambientes de terapia
intensiva.

Ventilação Mecânica Não Invasiva (VNI)


Categoriza-se como ventilação não invasiva (VNI) qualquer suporte ventilatório adminis-
trado sem o emprego de cânulas endotraqueais. Nesse sentido, a interface entre o paciente e o
ventilador é realizada por máscaras nasais, por máscaras faciais ou por capacetes. A VNI pode uti-
lizar-se, conjuntamente, de pressão inspiratória para ventilar o paciente (pressão positiva inspira-
tória nas vias aéreas – IPAP ou ventilação com pressão de suporte – PSV) e de pressão expiratória
(pressão expiratória positiva nas vias aéreas – EPAP ou pressão positiva expiratória final – PEEP),
esta remanescente durante a expiração, para manter os alvéolos e os condutos aéreos pérvios ou
apenas da pressão expiratória, conforme o dispositivo empregado nesse propósito. Os equipa-
mentos de CPAP (do inglês, pressão positiva contínua nas vias aéreas), por exemplo, administram
ao paciente apenas um nível de pressão, previamente titulada pela equipe, constantemente. Com
isso, os ciclos respiratórios são dependentes do próprio doente. Por outro lado, os equipamentos
de BIPAP (do inglês, pressão positiva em vias aéreas a dois níveis) fornecem duas pressões diferen-
tes, uma para a inspiração, visando à ventilação, e outra para a expiração, objetivando manter os
alvéolos abertos.
174 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

A VNI deve ser instituída, após excluídas a presença de eventuais contraindicações expostas
na Tabela 23.1, aos pacientes que não mantêm a ventilação espontânea de forma eficiente. Nesse
sentido, destacam-se os sinais indicativos de dificuldade ventilatória, que incluem frequência res-
piratória maior que 24 irpm, PaCO2 (pressão parcial de CO2 no sangue arterial) > 50 mmHg e pH
arterial < 7,25. Recomenda-se iniciar a terapia de VNI com dois níveis de pressão, por meio da qual
a pressão inspiratória suficiente manterá a ventilação adequada e evitará a instalação de fadiga
muscular e/ou de parada respiratória.

Tabela 23.1. Contraindicações absolutas e relativas à instalação da ventilação não invasiva


Contraindicações à VNI
Absolutas
• Necessidade de intubação orotraqueal urgente
• Parada cardiorrespiratória
Relativas
• Instabilidade hemodinâmica
• Rebaixamento do nível de consciência (a exceção se faz em pacientes com acidose hipercápnica em pacientes portadores de DPOC)
• Encefalopatias
• Arritmias malignas
• Cirurgia facial ou neurológica
• Trauma ou deformidade facial
• Alto risco de aspiração e secreção abundante em vias aéreas
• Obstrução de vias aéreas superiores
• Anastomose recente de esôfago
• Hemorragia digestiva ou pulmonar
• Distensão abdominal progressiva e vômitos
• Obesidade mórbida

Dados da Diretriz Brasileira de Ventilação Mecânica, 20137. Autoria própria.

É importante que os pacientes em VNI sejam monitorizados por profissional de saúde ca-
pacitado, à beira do leito, a cada intervalo de tempo depreendido entre 30 minutos e 2 horas. Se a
melhora clínica, cujos critérios incluem redução da frequência respiratória, aumento do volume
corrente, melhora do nível de consciência, aumento da PaO2 arterial e/ou da SpO2, diminuição da
PaCO2 arterial e da redução do emprego da musculatura respiratória acessória, não for observada
nesse período, é recomendado que a intubação orotraqueal seja imediatamente realizada e, então,
que a ventilação mecânica invasiva seja instituída.

VNI na doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC)


As exacerbações de DPOC são causas comuns de admissão hospitalar. Cerca de 20% dos
pacientes hospitalizados pela condição apresentam insuficiência respiratória hipercápnica, po-
dendo evoluir para acidose respiratória aguda ou para acidose respiratória crônica agudizada. Na
exacerbação aguda da DPOC, a instalação da VNI pode ser considerada em duas situações:
1. Para prevenir a ocorrência de acidose respiratória, quando a PaCO2 está normal ou elevada
e o pH arterial ainda se encontra dentro dos limites da normalidade. Apesar das análises
agrupadas demonstrarem resultados imprecisos, a VNI por BIPAP não é recomendada
para pacientes com hipercapnia que não estejam acidóticos, uma vez que a medida não
demonstrou redução na mortalidade (RR 1,46, IC 95% 0,64-3,35) e reduziu levemente a
necessidade de intubação subsequente (RR 0,41, IC 95% 0,18-0,72); e
Ve n t i l a ç ã o M e c â n i c a N ã o I n v a s i v a e I n v a s i v a : M o d o s B á s i c o s e I n d i c a ç õ e s 175

2. Para prevenir a necessidade de intubação traqueal e de ventilação mecânica invasiva nos


pacientes taquipneicos, portadores de acidose respiratória entre graus leve e moderado,
e como alternativa em portadores de acidose respiratória grave. Nesse sentido, naqueles
pacientes em que se considera a intubação endotraqueal, testar, anteriormente, a instalação
da ventilação não invasiva é uma medida plausível, exceto se houver deterioração clínica
imediata. Em suma, A VNI deve ser considerada quando o pH arterial for inferior a 7,35,
a PaCO2 for maior que 45 mmHg e a frequência respiratória for superior a 20 irpm, a
despeito da terapia medicamentosa padrão e tem impacto, nessas ocasiões, na redução
da mortalidade (RR 0,63, IC 95% 046-0,86), na necessidade de intubação (RR 0,41, IC 95%
0,33-0,54) e na frequência de pneumonia nosocomial (OR 0,26, IC 95% 0,08-0,81).

VNI no edema pulmonar cardiogênico


No edema pulmonar cardiogênico, a associação entre diminuição da complacência pulmo-
nar e edema alveolar resulta em insuficiência respiratória. Nessa patologia, a VNI melhora a mecâ-
nica respiratória e facilita o trabalho do ventrículo esquerdo. A VNI, nesse propósito, pode incluir
tanto o CPAP quanto o BIPAP, e os trabalhos evidenciam, com o seu emprego, redução da morta-
lidade (RR 0,80, IC 95% 0,66-0,96), menor necessidade de intubação (RR 0,60, IC 95% 0,44-0,80) e
não teve associação significativa com aumento dos casos de infarto agudo do miocárdio (OR 1,18,
IC 95% 0,95-1,48). Devido à não inclusão de pacientes com síndrome coronariana aguda ou com
choque cardiogênico nos estudos que avaliaram VNI em edema pulmonar cardiogênico, as reco-
mendações são limitadas a esse subgrupo.

VNI na asma
A VNI pode ser empreendida, juntamente com a terapia medicamentosa, para aliviar a obs-
trução ao fluxo aéreo e para reduzir o esforço respiratório de pacientes com crise asmática mode-
rada ou acentuada.

VNI no paciente imunocomprometido


Em pacientes imunossuprimidos, a insuficiência respiratória aguda é a principal indicação
para admissão na UTI. A literatura atual disponível apoia o emprego da VNI como abordagem de
primeira linha nestes pacientes, afinal, ela foi capaz de reduzir as taxas de pneumonia nosocomial,
de necessidade de intubação traqueal e de mortalidade. No entanto, é indispensável manter a mo-
nitorização rigorosa sobre os parâmetros clínicos do paciente e a intubação traqueal não deve ser
postergada, se necessária ela se fizer.

VNI na síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA)


Define-se falência respiratória aguda a condição que cursa com insuficiência respiratória em
pacientes sem doença respiratória crônica pré-existente. A maioria dos doentes com essa condi-
ção apresentam-se insuficiência respiratória hipoxêmica, com PaO2/FiO2 < 200 e com taquipneia
(frequência respiratória > 30 irpm). Embora estudos mostrem que a falha na VNI seja um fator de
risco independente para mortalidade específica nesse grupo, e que sua instituição pode atrasar a
176 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

intubação orotraqueal necessária, em pacientes com falência respiratória aguda a VNI reduziu a
mortalidade (RR 0,83, IC95% 0,65-1,05), a necessidade de intubação (RR 0,75, IC95% 0,63-0,89), e
a taxa de mortalidade hospitalar (RR 0,83, IC95% 0,65-1,05). No entanto, em ambas as situações
supracitadas, as evidências são de baixa certeza, sendo um dos motivos a heterogeneidade da po-
pulação estudada. Em relação à SDRA, sugere-se o emprego da VNI especialmente em casos leves,
mantendo-se o cuidado de observar a resposta do paciente entre 30 min a 2 horas após a instaura-
ção da medida. Na SDRA grave, por outro lado, não é recomendada a instalação da VNI, devido à
alta taxa de falência respiratória. Não havendo sucesso com a técnica, seja na falência respiratória
aguda, seja na SDRA, a intubação não deve ser atrasada.

VNI no pós-operatório
A combinação da cirurgia, da anestesia e da dor pós-operatória pode ocasionar hipoxemia,
diminuição do volume pulmonar e atelectasia, efeitos que podem permanecer por até 7 dias após
o procedimento. Nesse sentido, sugere-se o emprego da VNI, seja CPAP, seja BIPAP, em pacientes
com insuficiência respiratória aguda pós-operatória. A técnica mostrou redução da mortalidade
(RR 0,28 IC 95% 0,09-0,084), da necessidade de intubação (RR 0,27 IC 95% 0,12-0,61) e da inci-
dência de pneumonia nosocomial (RR 0,20 IC 95% 0,04-0,88). Em cirurgias esofágica, torácica,
abdominal, cardíaca e bariátrica, deve-se manter pressões inspiratórias mais baixas (EPAP < 8 e
IPAP < 15).

VNI após extubação


Recomenda-se o emprego de VNI após a extubação, como medida profilática contra a insufi-
ciência respiratória, em pacientes de alto risco, elencados na Tabela 23.2. O procedimento resultou
em diminuição da mortalidade (RR 0,41, IC 95% 0,21-0,82) e da necessidade de reintubação (RR
0,75, IC 95% 0,49-1,15). Enfatiza-se, contudo, que a VNI não seja instituída como técnica terapêu-
tica na insuficiência respiratória aguda instalada após a extubação, ocasião que exige reintubação.
Nesse grupo, o emprego da VNI implicou aumento da mortalidade (RR 1,33, IC95% 0,83-2,13),
supostamente pelo atraso na reintubação, e teve efeito incerto na análise de prevenção contra a
intubação (RR 1,02, IC95% 0,83-1,25).

Tabela 23.2. Pacientes considerados em risco de falha na extubação e que


poderão se beneficiar do emprego imediato de VNI, após a extubação
Hipercapnia
Idade >65 anos
Paciente portador de doença cardíaca e/ou respiratória subjacente
Tosse ineficaz ou secreção retida em vias aéreas
Mais do que um fracasso no teste de respiração espontânea
Obstrução das vias aéreas superiores
APACHE > 12 no dia da extubação
Tempo de ventilação mecânica > 72 horas
Pacientes obesos

Dados da Diretriz Brasileira de Ventilação Mecânica, 20137. Autoria própria.


Ve n t i l a ç ã o M e c â n i c a N ã o I n v a s i v a e I n v a s i v a : M o d o s B á s i c o s e I n d i c a ç õ e s 177

Ventilação mecânica invasiva


Ventilação mecânica invasiva é a técnica de ventilação pulmonar que exige a introdução de
um tubo endotraqueal, seja pela boca (orotraqueal), seja por incisão cirúrgica (traqueostomia),
e que libera pressão positiva de oxigênio. É empregada para substituir a respiração espontânea,
podendo ser total ou parcialmente e, com ela, a expiração ocorre passivamente.

Modos de ventilação
Devido ao fato de inexistir um único modo de ventilação que seja eficaz para todos os pacien-
tes, a decisão entre o mais adequado deles fica a cargo da equipe assistencial e da instituição de
saúde. Independentemente da escolha inicial, o modo ventilatório precisa, muitas vezes devido à
resposta insatisfatória, ser alterado no curso do tratamento, seja por assincronia do paciente com o
ventilador, seja por intolerância aos parâmetros instalados. A regulagem geral do aparelho, por sua
vez, pode incluir a determinação da pressão inspiratória, da razão de tempo inspiratório para expi-
ratório, da frequência respiratória, da PEEP, da fração de O2 e do volume de ar inspirados. Deve-se
considerar, ainda, que o volume e a pressão de inspiração dependem, ambos, da complacência pul-
monar, da resistência das vias aéreas do paciente e da resistência da tubulação do ventilador. No que
tange às características mecânicas do fornecimento do ar, a equipe pode escolher entre a ventilação
determinada a volume e a ventilação determinada a pressão, detalhadas na sequência. Por outro
lado, quanto ao modo de disparo do ventilador, a equipe tem de optar entre a ventilação mecâni-
ca controlada, a ventilação assistocontrolada, a ventilação mandatória intermitente e a ventilação
mandatória intermitente sincronizada. Na ventilação mecânica controlada (VMC), o paciente não
inicia ventilações além das predeterminadas e não exerce nenhum esforço. Na ventilação assisto-
controlada (VAC), o médico configura o aparelho para uma quantidade mínima de ventilações por
minuto, porém, o paciente pode ventilar a uma frequência maior, com as respirações excedentes
obedecendo às predeterminações configuradas. A ventilação mandatória intermitente (VMI), por
sua vez, é muito semelhante à VAC, entretanto, somente acontece com os parâmetros a volume e
as respirações excedentes podem ser ou não assistidas, com volume predeterminado. A ventilação
mandatória intermitente sincronizada (SIMV) é semelhante à VMI, porém as respirações ocorrem
sempre após detectado algum esforço respiratório e podem ter parâmetros a volume ou a pressão.
Dentre os modos de disparo, deve-se considerar a SIMV e a VAC: quando comparados, em-
bora a SIMV permita maior sincronia do doente com o respirador e, então, preserve o trofismo
muscular, a VAC, entre pacientes muito enfermos, é vantajosa, por conceder suporte máximo e
constante. O modo SIMV está em desuso, mesmo no desmame da ventilação mecânica, por não
ter demonstrado vantagens em relação a ventilação PSV, descrita adiante. Portanto, a associação
entre as características mecânicas do fornecimento do ar e o modo de disparo do ventilador deter-
mina diferentes formas de abordagem, das quais alguma beneficiará o paciente. No que tange às
características mecânicas do fornecimento, algumas considerações devem ser explicitadas.

Ventilação determinada a volume (VCV)


Nesse caso, as respirações acontecem com o volume corrente e com o fluxo de ar predetermi-
nados, além de a inspiração se finalizar quando todo o volume é aspirado. Existe, ainda, a ventila-
ção controlada por volume regulada por pressão (PRVC), que ajusta a vazão de volume de acordo
com a pressão da via aérea, determinada, por sua vez, por sua complacência e por sua resistência.
178 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Ventilação determinada a pressão (PCV)


No PCV, a equipe estabelece a pressão inspiratória limite. Assim, o respirador insufla gás até
atingir a pressão desejada e a mantém constante durante a inspiração, gerando um fluxo variável
em direção ao pulmão. O fluxo é variável, de acordo com a complacência pulmonar e reduz pro-
gressivamente ao longo da inspiração. A ciclagem, cujo início coincide com o início da expiração,
ocorre após ser atingido o tempo inspiratório predeterminado.
Em estudos que visavam a comparação da eficácia entre a ventilação determinada por pres-
são e aquela determinada por volume, não houve diferença significativa da oxigenação alcançada
pelo paciente, da mortalidade e do trabalho respiratório. Contudo, apenas a ventilação controlada
por volume pode garantir um volume corrente constante. Por outro lado, a ventilação controlada
por pressão permite uma distribuição dos gases mais homogênea, pressões de pico mais baixas e
liberação mais precoce da ventilação mecânica.
Por fim, a equipe pode optar pela ventilação com pressão de suporte (PSV). Nesse caso, o ven-
tilador é completamente dependente do disparo (drive) do paciente, sem o qual não pode deflagrar
movimentos. O trabalho do doente para respirar é inversamente proporcional ao fluxo respiratório
e ao nível de suporte pressórico. Esse método é muito eficaz no conforto do paciente durante o des-
mame da VM; entretanto, estudos mostram que não melhora a eficácia, em si, do processo.

Estratégia ventilatória – regulação do ventilador


Algumas estratégias são sugeridas para a regulação inicial do ventilador, as quais são con-
sideradas na Tabela 23.3. Com a evolução do paciente e com os resultados das gasometrias ar-
teriais solicitadas a cada 30 minutos, ajustes são realizados nos parâmetros. De forma prática,
as duas alternativas às quais o médico assistente tem acesso para adequar a PaCO2 do paciente,
cuja alteração foi observada na gasometria, é por meio de ajustes na frequência respiratória e
na pressão, duas variáveis que influenciam no volume de ar liberado a cada minuto. Visando à
adequação da saturação de oxigênio e da PaO2, por outro lado, a equipe realiza ajustes na FiO2 e
na PEEP.

Posição prona
Em algumas situações, a ventilação em posição prona, aquela em que o paciente assume
o decúbito ventral, é preconizada. Isso porque os pacientes podem assim obter melhor expan-
são das regiões dorsais pulmonares e consequentemente melhora da oxigenação. A ventilação em
posição prona é indicada para pacientes acometidos pela SDRA moderada a grave, desde que o
paciente já tenha titulado a PEEP, para pacientes acometidos por cor pulmonale agudo de graus
moderado a grave e para aqueles incapazes de manter a ventilação protetora, quando é oferecido
volumes correntes mais próximos do fisiológico e níveis apropriados de pressão. É necessário que
a posição seja assumida nas primeiras 48 horas da VM e pode ser mantida por, apenas, 16-20 ho-
ras, podendo alternar os decúbitos.
Essa conduta é contraindicada nos casos em que existe elevação de pressão intracraniana,
fratura pélvica, fratura de coluna, hipertensão intra-abdominal, peritoniostomia, gestação, tórax
instável, instabilidade hemodinâmica grave ou se a equipe local for inexperiente.
Ve n t i l a ç ã o M e c â n i c a N ã o I n v a s i v a e I n v a s i v a : M o d o s B á s i c o s e I n d i c a ç õ e s 179

Tabela 23.3. Estratégias para regulação inicial do ventilador


Uso de FIO2
• Deve ser suficiente para atingir saturação de O2 entre 93-97%
Volume corrente
• 6 mL/kg de peso predito inicial
Modo ventilatório inicial
• Escolha do modo ventilatório
Frequência respiratória
• Entre 12-16 irpm visando uma relação inspiração:expiração de 1:2 a 1:3. Se o paciente apresentar doença obstrutiva, pode-se iniciar a
ventilação com frequência menor. Em contrapartida, caso o paciente apresente doença restritiva, pode-se ser iniciar a ventilação com
frequência maior.
Tipo de disparo do ventilador
• Podendo ser a tempo ou pelo paciente, sendo o primeiro controlado pelo ventilador
Utilizar PEEP de 3-5 cmH2O
• Em doenças como SDRA pode-se iniciar com pressão diferente
Umidificador e aquecedor
• Fazer uso de umidificador e de aquecedor passivo
Alarmes e back-up
• Regular os alarmes e back-up (reserva) de apneia de acordo com as necessidades do paciente
Observar curvas de pressão, de volume e de fluxo de oxigênio
• Para avaliar a necessidade de ajustes, assim como realizar gasometria arterial após 30 min de ventilação estável
Cuidado para não exceder o uso do trabalho muscular para além da capacidade do paciente
• Caso isso ocorra, fornecer repouso de 24-48h
Avaliar repercussões hemodinâmicas e pneumotórax

Dados da Diretriz Brasileira de Ventilação Mecânica, 20137. Autoria própria.

Pontos-chave
• A ventilação mecânica não invasiva (VNI) propicia melhora das trocas gasosas e
diminui o trabalho respiratório, com a vantagem de preservar a fala e a deglutição
do paciente, bem como de demandar menores doses de sedativos;
• Faz-se importante a vigilância e a reavaliação contínua do paciente em uso de VNI.
Havendo necessidade, a ventilação mecânica invasiva deve ser instituída sem atraso;
• A ventilação mecânica invasiva é realizada por meio da liberação de pressão positiva,
via tubo orotraqueal ou via traqueostomia e executa a ventilação, seja total, seja
parcialmente;
• Não existe um modo de ventilação ideal para todos os pacientes. A decisão depende
das características do paciente, das preferências do hospital e da experiência do
médico;
• A ventilação em posição prona é indicada, principalmente, para pacientes
acometidos por SDRA de moderada a grave intensidade.
180 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Leitura sugerida
1. Hirshberg EL, Lanspa MJ, Peterson J, et al. Estudo de viabilidade randomizado de um protocolo de ventilação de
liberação de pressão de volume corrente de maré baixa, comparado com os protocolos tradicionais de ventilação
de liberação de pressão de via aérea e controle de volume. Crit Care Med. 2018; 46 (12): 1943-52.
2. Damasceno MPCD, et al. Ventilação mecânica no Brasil: aspectos epidemiológicos. Rev. bras. ter. intensiva, São
Paulo, v. 18, n. 3, p. 219-228, Sept. 2006.
3. Putensen C, Mutz NJ, Putensen-Himmer G, et al. (1999). A respiração espontânea durante o suporte ventilatório
melhora as distribuições ventilação-perfusão em pacientes com síndrome do desconforto respiratório agudo. Am
J Respir Crit Care Med 159: 1241-8.
4. Chiumello D, Pelosi P, Calvi E, Bigatello LM, Gattinoni L. Diferentes modos de ventilação assistida em pacientes
com insuficiência respiratória aguda. European Respiratory Journal, outubro de 2002, 20 (4) 925-33.
5. Rochwerg B, Brochard L, Elliott MW, et al. Official ERS/ATS clinical practice guidelines: noninvasive ventilation for
acute respiratory failure. Eur Respir J 2017; 50: 1602426
6. Xu XP, Zhang XC, Hu SL, Xu JY, Xie JF, Liu SQ, et al. Noninvasive Ventilation in Acute Hypoxemic Nonhypercapnic
Respiratory Failure: A Systematic Review and Meta-Analysis. Crit Care Med. 2017 Jul;45(7):e727-33.
7. Barbas CSV, et al. Diretrizes Brasileiras de Ventilação Mecânica. 2013. 140 p.
Abordagem das Principais Síndromes 24
Pulmonares: DPOC, Asma
e Doenças Intersticiais

Paula Lassi Beduin


Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
A doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) é caracterizada por obstrução fixa de via aé-
rea causada por enfisema, por bronquite crônica ou por ambos1. Em 2016, segundo a Organização
Mundial de Saúde (OMS), as doenças pulmonares obstrutivas crônicas foram responsáveis por 3
milhões de óbitos em todo o mundo. No Brasil, no período de 2000 a 2016, a DPOC alternou entre
a 4ª e a 5ª causa básica de morte.
A asma, por outro lado, é uma doença inflamatória crônica e intermitente das vias aéreas,
que apresenta períodos de exacerbações com dispneia, tosse, sibilos, hiper-reatividade brônquica
e obstrução brônquio-alveolar variável. Na maioria das vezes, o quadro é reversível, porém, casos
indevidamente conduzidos podem ser fatais. De acordo com a OMS, há, aproximadamente, 339
milhões de asmáticos em todo o mundo, sendo a doença respiratória mais comum entre as crian-
ças. Estima-se que, nos Estados Unidos, entre 4 e 5% da população seja acometida pela condição.
No Brasil, cerca de 5 a 10% da população convive com a doença1.
Por fim, as doenças pulmonares intersticiais (DPI’s) consistem em afecções heterogêneas
que acometem os pulmões difusamente, por meio de processos inflamatórios e fibróticos progres-
sivos. Embora as principais alterações aconteçam no interstício (tecido que sustenta o pulmão),
com frequência há alteração das arquiteturas alveolares e das vias aéreas. Nesse grupo, estão
incluídas diferentes patologias com apresentações semelhantes. Visando a facilitação da comu-
nicação entre os profissionais, a realização de estudos e de pesquisas, e, principalmente, o aper-
feiçoamento na abordagem aos pacientes, essas entidades são agrupadas de acordo com critérios
clínicos, radiológicos e histológicos, entre os cinco grandes grupos existentes. O primeiro deles
engloba as doenças por causas e por associações conhecidas, como pneumoconioses, infecções,
drogas, colagenoses, aspiração gástrica, imunodeficiências, proteinopatias, metal duro e tabaco
relacionadas. O segundo, por sua vez, representa as doenças linfoides, que incluem bronquiolite
linfoide, hiperplasia linfoide reativa, pneumonia (PNM) intersticial linfoide, granulomatose linfo-
matoide e linfoma. O terceiro grupo responde pelas pneumonias intersticiais idiopáticas, dentre
182 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

as quais figuram a fibrose pulmonar idiopática, a pneumonia intersticial não especificada, a pneu-
monia organizante, a pneumonia intersticial aguda e a pneumonia intersticial bronquiolocêntri-
ca. Ademais, as doenças granulomatosas, como sarcoidose, pneumonite de hipersensibilidade e
infecções, têm um grupo específico para si. Por fim, as doenças do grupo miscelânia incluem lin-
fangioleiomiomatose, proteína alveolar, pneumonia eosinofílica, bronquiolite constritiva e doen-
ças de depósito.

Apresentação clínica
Devido ao fato de cada uma das entidades nosológicas discutidas neste capítulo manifesta-
rem-se de forma específica, é importante que a equipe assistencial se atente aos sinais e aos sinto-
mas do paciente, objetivando estabelecer o diagnóstico de forma assertiva e instituir as condutas
apropriadas.

Doença pulmonar obstrutiva crônica


Tem como principais sintomas a dispneia (ou a piora da dispneia), o aumento e/ou a al-
teração da qualidade da expectoração, a tosse e os achados compatíveis com broncoespasmo,
como sibilos, roncos e uso de musculatura acessória. Exacerbações graves podem cursar com
cianose e com hipoxemia1. O exame físico, geralmente, evidencia sibilância, taquipneia, com-
prometimento respiratório, dificuldade na vocalização (fala entrecortada), emprego de muscu-
latura acessória e movimentos torácicos ou abdominais paradoxais (assincronia entre tórax e
abdome durante a respiração). Os pacientes podem, ainda, apresentar sinais de hipertensão
pulmonar, como edema periférico, estase jugular, sinal de Kussmaul (aumento da turgência ju-
gular durante a inspiração), pulso paradoxal e hepatomegalia, sendo eles, também, sugestivos
da presença de cor pulmonale, cujo diagnóstico, por sua vez, é estabelecido pela associação
entre o exame clínico e a ecocardiografia. Além disso, a presença de alterações do estado mental
pode levar a suspeição de possível estado hipercápnico ou hipoxêmico1. É importante avaliar a
história prévia do paciente, de forma a questionar sobre o comportamento das crises, o histórico
de internação, os medicamentos utilizados, o impacto da doença nas atividades de vida diária e
o uso de suporte ventilatório, por exemplo.

Asma
É caracterizada por um conjunto de sintomas típicos, que incluem dispneia, sibilância e
opressão torácica. A dispneia, geralmente, é descrita como grande dificuldade de fazer o ar en-
trar nos pulmões. Outro sintoma frequente é a tosse. Deve- se considerar que a história clínica
pode fornecer dados que permitam analisar a evolução e a gravidade da patologia em curso, con-
forme evidenciado na Tabela 24.1. O exame físico tem função importante no estabelecimento da
gravidade da crise asmática. Nesse sentido, a sibilância, um sinal clássico de obstrução das vias
aéreas, pode estar presente. Entretanto, a ausência desse sinal não descarta a existência de obstru-
ção e, pelo contrário, estando ausente, pode sugerir obstrução grave ou associada a pneumotórax
hipertensivo.
A b o rd a g e m d a s P ri n c i p a i s S í n d ro m e s P u l m o n a re s : D P O C, A s m a e D o e n ç a s I n t e rs t i c i a i s 183

Tabela 24.1. Pacientes com alto risco para evolução desfavorável


História de intubação ou de necessidade de UTI (mais importante preditor de evolução desfavorável)
História de exacerbação grave com início súbito
Doente com má percepção dos sintomas (apresenta poucos sintomas apesar de ter grave broncoespasmo)
Rápida piora clínica
Uso de mais de dois frascos de β2-agonista/mês
Acompanhamento ambulatorial inadequado

Presença de comorbidades (cardiovasculares ou DPOC)


Hospitalização ou visita ao departamento de urgência no último ano
Doença psiquiátrica associada
Uso de corticoide oral.

Dados Velasco IT. Medicina de Emergência: Abordagem Prática. 13th rev. ed. e atual. São Paulo: Manole: 2019. Autoria própria.

Doenças pulmonares intersticiais


Seus sinais e sintomas mais comuns incluem dispneia, tosse e sibilância. A dispneia deve ser
avaliada e graduada, sendo útil para avaliação da gravidade e para acompanhamento da doença.
A tosse pode estar presente devido à rinossinusite, à hiperreatividade brônquica e à doença do
refluxo gastroesofágico (DRGE). Deve-se excluir essas causas antes de se atribuir a tosse a uma
DPI. Os sibilos podem estar associados à asma, nas situações em que a doença envolve o feixe
broncovascular ou nos casos de bronquiolite. Ao exame físico, alguns sinais das DPI’s são particu-
larmente relevantes, dentre os quais se incluem a presença de estertores tipo velcro (comuns em
doenças intersticiais fibrosantes e menos frequentes em doenças granulomatosas, especialmente
na sarcoidose), de grasnidos (comumente audíveis em pacientes com bronquiolites diversas) e de
baqueteamento digital (frequente nas doenças pulmonares fibrosantes).

Etiopatogênese
Embora as patologias discutidas guardem semelhanças entre si, cada uma delas é secundária
a alguma via específica, motivo pelo qual a dissertação sobre o assunto deve ser individual.

Doença pulmonar obstrutiva crônica


Na DPOC, ocorre obstrução do fluxo aéreo em virtude da resposta inflamatória, o que acar-
reta perda da função pulmonar e hiperinsuflação. Como consequência, há remodelação e in-
flamação das vias aéreas, disfunção mucociliar e destruição do parênquima pulmonar. Deve-se
considerar, ainda, que a DPOC tem como etiologia, principalmente, duas patologias, presentes
simultânea ou individualmente, o enfisema e a bronquite crônica. No enfisema, há aumento
permanente e anormal dos espaços aéreos, assim como sua destruição, porém inexiste fibrose.
Na bronquite crônica, inflamação que geralmente acomete os brônquios, há aumento da pro-
dução e do acúmulo de secreção nos pulmões. Manifesta-se por meio de hipoxemia, de hiper-
184 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

capnia e, em casos mais graves, de cianose. O tabagismo e a exposição à poluição e aos vapores
ocupacionais são os principais fatores de risco para o desenvolvimento da doença.

Asma
A etiopatogenia da asma envolve diversos mecanismos, sendo o mais importante deles a
inflamação brônquica. A inflamação da submucosa, com irritação da musculatura lisa das vias
aéreas, pode ser precipitada pela exposição aos alérgenos, à poeira, aos agentes químicos, às infec-
ções virais e aos fatores não identificados1. A exacerbação dos sintomas é resultado das interações
entre as células inflamatórias, os mediadores liberados e as células estruturais das vias aéreas1.
Outro mecanismo envolvido na crise asmática é a associação à inervação autonômica das vias
aéreas. O fator precipitante mais comum (cerca de 80% dos casos) de crise aguda de asma são as
infecções virais1.

Doenças pulmonares intersticiais


A fisiopatologia das DPI’s varia de acordo com o tipo de exposição e com o agente desen-
cadeante. Em geral, ocorre uma agressão ao epitélio alveolar ou ao endotélio vascular, que pode
ser de origem externa ou autoimune, progredindo para um processo inflamatório tecidual. Em
seguida, há alterações nas paredes dos alvéolos, com modificações epiteliais, espessamento fibró-
tico e colapso alveolar. O espessamento intersticial dificulta a hematose que contrai o parênqui-
ma pulmonar. Nessa lógica, ficam evidentes as principais características da doença: desarranjo
das estruturas alveolares, perda de unidades alvéolo-capilares funcionantes e redução do volume
pulmonar.

Diagnóstico
A depender da suspeita diagnóstica estabelecida, diferentes propedêuticas devem ser
conduzidas.

Doença pulmonar obstrutiva crônica


O diagnóstico de DPOC exacerbado é eminentemente clínico, mas alguns exames podem
guiar a investigação. Nesse raciocínio, é importante considerar os mais comuns entre eles: a radio-
grafia de tórax, em primeiro lugar, revela anormalidades que alteram o planejamento terapêutico
em cerca de 20% dos casos. O hemograma completo, por sua vez, pode avaliar a presença de po-
licitemia e de leucocitose. A quantificação de eletrólitos séricos, bem como a avaliação da função
renal são imperiosas por detectarem a presença de suposta hipocalemia, instituída pelo uso de
broncodilatadores. O eletrocardiograma (ECG) pode ser útil na presença de dor torácica, de taqui-
cardia ou de bradicardia em pacientes acometidos pela doença. A tomografia computadorizada
(TC) de tórax, por sua vez, pode ser útil se existir alguma dúvida diagnóstica ou se houver a suspei-
ta de tromboembolismo pulmonar (TEP). Por outro lado, a gasometria arterial deve ser solicitada
para todos os pacientes que preenchem critérios de internação hospitalar, em que se suspeita de
acidose respiratória aguda ou crônica agudizada ou em que se prevê a necessidade de suporte
ventilatório (PaO2 < 60 mmHg ou PCO2 > 50 mmHg – insuficiência respiratória; PaO2 < 50 mmHg,
A b o rd a g e m d a s P ri n c i p a i s S í n d ro m e s P u l m o n a re s : D P O C, A s m a e D o e n ç a s I n t e rs t i c i a i s 185

PCO2 > 70 mmHg e pH < 7,3 – episódio grave). Por fim, a glicemia deve ser avaliada em todos os
pacientes com indicação de internação hospitalar1.

Asma
O diagnóstico de asma exacerbado, assim como o de DPOC, também é eminentemente
clínico, não sendo necessárias investigações adicionais. Os exames complementares podem ser
solicitados para avaliar a gravidade, podem sugerir a presença de complicações e de fatores pre-
cipitantes associados. A radiografia de tórax raramente modifica a conduta e não é realizada
de rotina, devendo ser indicado caso exista a suspeita de pneumonia, de pneumotórax e de
derrame pleural associados, bem como se o paciente não apresentar melhora ou se preencher
critérios de internação hospitalar. Ademais, a mensuração da saturação arterial de oxigênio é
recomendada, afinal, havendo saturação de O2 abaixo de 94%, deve ser ofertado O2 suplementar.
A realização de gasometria arterial é indicada para os casos de desconforto respiratório impor-
tante. Nesse sentido, se a PaCO2 for > 45 mmHg, é prudente considerar a internação do paciente
em UTI. O hemograma completo é indicado se houver febre e/ou expectoração purulenta, en-
quanto a mensuração dos eletrólitos é solicitada para pacientes com indicação de internação.
Ademais, o estudo eletrocardiográfico deve ser conduzido em pacientes com doença cardíaca,
com DPOC associada ou se a idade de indivíduos for superior a 50 anos. Por fim, prova de função
pulmonar é indicada para todos os pacientes com exacerbação aguda da asma, monitorados no
serviço de emergência1.

Doenças pulmonares intersticiais


Geralmente, as DPI’s são doenças de curso lento e progressivo, mas podem apresentar
períodos de agudização, associados ou não a infecção, a hipertensão pulmonar e a reação às
drogas. Nesses períodos, a internação na UTI pode ser necessária2. Para o diagnóstico, é funda-
mental que uma boa anamnese seja conduzida, incluindo-se a pesquisa de doenças pulmona-
res e extrapulmonares, a história de tabagismo, de câncer, de contato com animais, do uso de
medicações, da exposição ambiental e de viagens recentes2. Alguns exames podem ajudar na
avaliação, dentro dos quais está incluída a radiografia de tórax, uma boa opção por ser pouco
sensível e pouco específica para o tipo de infiltrado apresentado. Ademais, a TC de tórax deve ser
solicitada com o objetivo de se avaliar o parênquima pulmonar, devido ao fato de possibilitar a
visualização do aspecto, da extensão e da distribuição espacial dos infiltrados pulmonares e das
anormalidades eventualmente associadas em outros compartimentos (mediastinais e pleurais),
que podem ser importantes no estabelecimento do diagnóstico diferencial. O lavado broncoal-
veolar (BAL) é útil para o diagnóstico específico e para descartar doenças infecciosas associadas
que possam constituir contraindicações à prescrição de imunossupressores. Por fim, deve ser
avaliada a necessidade de se realizar a biópsia pulmonar, por via transbrônquica ou cirúrgica3.

Tratamento
A terapêutica está condicionada ao diagnóstico específico e à apresentação clínica do
paciente.
186 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Doença pulmonar obstrutiva crônica


Na DPOC exacerbada, o tratamento inclui oferta de oxigenoterapia suplementar (saturação
de oxigênio alvo 88 a 92%), prescrição de agonistas β-adrenérgicos inalatórios e de anticolinérgi-
cos (podendo ser de curta duração ou não). Os medicamentos β agonistas podem ser consumidos
por meio de bombinhas/espaçadores ou de nebulização1. É importante considerar, ainda, que o
uso de corticosteroide sistêmico, na exacerbação aguda da DPOC, é consagrado. Isso porque es-
tudos com diferentes doses e vias de administração mostram benefícios como melhora da função
pulmonar e redução da hipoxemia arterial, do risco de recidiva precoce e do tempo de internação
hospitalar4. Na eventualidade de insuficiência respiratória grave, não havendo contraindicações,
deve-se iniciar ventilação mecânica não-invasiva (VNI). A VNI, cujas indicações e contraindica-
ções são detalhadas no Capítulo 23, está associada a redução da mortalidade e das taxas de in-
tubação orotraqueal (IOT). Por fim, a IOT deve ser instituída se acontecer evolução desfavorável,
alteração do nível de consciência, bradicardia ou iminência de parada cardiorrespiratória1.

Asma
Para o controle da asma exacerbada, visando à redução do broncoespasmo, recomenda-se a
prescrição de β agonista inalatório de curta duração, continuamente, associado ou não a antico-
linérgico inalatório (brometo de ipratrópio) durante a primeira hora de abordagem. A administra-
ção endovenosa deve ser evitada inicialmente. Por outro lado, é importante a prescrição precoce
de corticosteroides sistêmicos por via endovenosa ou oral. O sulfato de magnésio deve ser utiliza-
do caso o paciente não tenha obtido resposta com o esquema terapêutico habitual; sua adminis-
tração tem sido preconizada para os episódios de asma aguda grave. Antimicrobianos devem ser
prescritos apenas se existir suspeita de pneumonia associada à asma. Vale lembrar que na vigência
de saturação de O2 (SpO2) abaixo de 94%, deve ser ofertado O2 suplementar, objetivando mantê-la
entre 94% e 98%, por cateter nasal ou por máscara com reservatório, a depender da tolerância e da
necessidade de cada paciente. Na eventualidade de todas essas medidas serem insuficientes para
reverter a condição, há a possibilidade de se instituir a VNI e, em casos extremos, a IOT. Apenas 2%
dos pacientes internados com asma precisem ser submetidos a IOT. Caso a IOT seja necessária,
deve-se pré-oxigenar o paciente de forma adequada e fazer uso da sequência rápida de indução
anestésica para a intubação5. Os parâmetros ventilação mecânica são explicados no Capítulo 23.

Doenças pulmonares intersticiais


A agudização das DPI’s pode estar associada à infecção. Assim, a administração empírica
de antimicrobianos de amplo espectro é plausível. As drogas imunossupressoras devem ser ad-
ministradas, preferencialmente, após o estabelecimento diagnóstico, mas, em algumas ocasiões,
podem ser iniciadas empiricamente. Nesses casos, recomenda-se que sejam aguardados os resul-
tados do BAL, a fim de que a equipe se certifique da inexistência de contraindicações ao fármaco.
Contudo, ainda com a instituição terapêutica precoce, a resposta clínica é usualmente limitada
em se tratando de doenças intersticiais crônicas cursando com descompensação aguda2. Alguns
pacientes podem evoluir para hipoxemia, sendo necessária a instalação de suporte ventilatório,
que varia desde oxigenoterapia via cateter nasal/máscara facial, nos casos mais leves, até a VNI ou
a ventilação invasiva, nos casos mais graves. O prognóstico é variável e condicionado ao grupo a
que a DIP pertence, afinal, para algumas condições, inexistem opções terapêuticas farmacológi-
A b o rd a g e m d a s P ri n c i p a i s S í n d ro m e s P u l m o n a re s : D P O C, A s m a e D o e n ç a s I n t e rs t i c i a i s 187

cas capazes de alterar a evolução. É importante ressaltar, ainda, que a necessidade de intubação
se configura importante preditor de pior prognóstico, motivo pelo qual, aos portadores de DPI’s,
deve-se oferecer a ventilação protetora, discutida no Capítulo 232.

Complicações clínicas
As complicações clínicas da DPOC, da asma e das DPI’s são semelhantes e incluem tanto
condições pulmonares quanto extrapulmonares. Dentre as pulmonares, destacam-se a ocorrência
do pneumotórax, do pneumomediastino, do enfisema subcutâneo, da pneumonia recorrente e,
se houver a necessidade de se proceder com IOT, de pneumonia associada à ventilação mecânica
(PAV) e de atelectasias. Por outro lado, dentre as complicações extrapulmonares se incluem os
distúrbios hidroeletrolíticos (hipocalemia, hipofosfatemia e hipomagnesemia), que podem estar
associados ao uso de broncodilatadores, às arritmias, à acidose láctica e à injúria cerebral, se hou-
ver hipóxia prolongada.

Pontos-chave
• A doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) é caracterizada por obstrução fixa
da via aérea causada por enfisema, por bronquite crônica ou por ambos;
• A asma é uma doença inflamatória crônica e intermitente das vias aéreas, que
apresenta períodos de exacerbações com sintomas e com grau de obstrução
variáveis;
• As doenças pulmonares intersticiais (DPI’s) consistem em afecções heterogêneas
que englobam inúmeras condições. Acometem os pulmões difusamente em um
processo de inflamação e de cicatrização progressiva;
• Nas três síndromes pulmonares, anamnese detalhada e avaliação dos fatores de risco,
em tempo hábil, são essenciais para a definição do diagnóstico, da propedêutica
e do prognóstico do paciente. Em casos selecionados, exames complementares
podem ajudar na definição da melhor conduta;
• O tratamento, na maioria dos casos, consiste na prescrição de corticoides e de
broncodilatadores. Ademais, antimicrobianos são indicados para situações
específicas.

Leitura sugerida
1. Velasco IT. Medicina de Emergência: Abordagem Prática. 13ª rev. ed. e atual. São Paulo: Manole, 2019.
2. Lazzaorini LCO, Chacur FH, Machado CA. Doenças Intersticiais Pulmonares no CTI - Quando pensar? Como
conduzir. Pulmão RJ; 24(3): 27-30, 2015.
3. Baldi BG, Pereira CAC. Diretrizes de doenças pulmonares intersticiais da sociedade brasileira de pneumologia e
tisiologia. Jornal brasileiro de pneumologia, 38 sup 2: 1-133, 2012.
4. Crisafulli E, et.al. Management of severe acute exacerbations of COPD: an updated narrative review. Muldisicplinary
Respiratory Medicine, 13:36, 2018.
188 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

5. Conte PL, et.al. Management of severe asthma exacerbation: guidelines from the Société Française de Médecine
d’Urgence, the Société de Réanimation de Langue Française and the French Group for Pediatric Intensive Care
and Emergencies. Ann. Intensive Care, 9:115, 2019.
6. Sharifabad MA. Doença Pulmonar Obstrutiva crônica (DPOC). BMJ Best Practice, 2019.
Síndrome do Desconforto 25
Respiratório Agudo

Leandra Prates Diniz


Bárbara Braga Costa
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
A síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) é classificada como um tipo de insu-
ficiência respiratória aguda hipoxêmica (tipo 1)1. É caracterizada por um processo inflamatório
pulmonar bilateral que induz formação de edema pulmonar rico em proteína, resultando em hi-
poxemia importante, em redução de complacência pulmonar, em aumento de shunt intrapulmo-
nar e do espaço morto1-4.
A SDRA foi descrita oficialmente, pela primeira vez, em 1967 por Ashbaugh, mas desde 1821
existem registros científicos de infiltrado pulmonar bilateral idiopático2,4,5. Desde sua primeira
descrição, o conceito da síndrome vem sendo rediscutido e redefinido com critérios diagnósticos
objetivos.
Estudos populacionais estimam que a incidência possa chegar a 86 casos por 100.000 pes-
soas-ano e há tendência de que esses números sejam subnotificados por falta de recursos diag-
nósticos e por dificuldades de reconhecimento da SDRA. É uma síndrome que apresenta alta taxa
de letalidade (cerca de 50%), mas esse valor vem caindo nos últimos anos, em função dos avanços
nas modalidades possíveis de tratamento5,6.

Causas e condições predisponentes


Existem diversos fatores e condições clínicas que predispõem ao desenvolvimento da SDRA.
Eles podem ser divididos em fatores de risco pulmonares diretos ou indiretos, conforme eviden-
ciado na Tabela 25.1. Dentre eles, sepse, pneumonia e aspiração gástrica compreendem cerca
de 85% dos casos1. A presença de vários fatores de risco concomitantes aumenta as chances de
desenvolvimento1,7,8.
190 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 25.1. Fatores de risco para SDRA


Fatores de risco pulmonares diretos Fatores de risco pulmonares indiretos
Pneumonia Sepse
Fatores comuns Aspiração gástrica Grandes traumas não torácicos
Choque hemorrágico
Contusão pulmonar Pancreatite
Lesão aguda por inalação Grandes queimaduras
Quase afogamento Sobredosagens
Fatores incomuns Transfusões sanguíneas
Bypass cardiopulmonar
Edema de reperfusão após transplante
pulmonar ou embolectomia

Autoria própria.

Etiopatogênese
A história natural da doença pode ser dividida em três fases: exsudativa, proliferativa e fibró-
tica, conforme explicitado na Figura 25.1. A primeira fase ocorre durante os primeiros sete dias
após a exposição a um fator de risco ou a piora dos sintomas respiratórios. A fase seguinte atua
como um processo reparativo dos danos pulmonares e do edema. Por volta da 3ª semana, os in-
divíduos que não se recuperam podem evoluir para a fase fibrótica da doença, caracterizada por
intensa fibrose e por formação de bolhas. Nem todos os pacientes evoluem para a fase fibrótica e
a doença, geralmente, tem curso autolimitado1,3,7,8.

Exsudativa Proliferativa Fibrótica


Dia 0 Dia 7 Dia 21

Figura 25.1. Fases da SDRA analisadas em dias após a exposição a um fator de risco ou após a piora do
quadro respiratório.
Autoria própria.

Fase exsudativa
Histologicamente, a fase inicial da SDRA é caracterizada por infiltrado alveolar difuso neu-
trofílico com presença de hemorragia e de edema hiperproteico1. O processo inicia-se com dano
direto ou indireto aos pneumócitos tipo I e II (barreira alvéolo-capilar) e a sua rede microvascu-
lar. Macrófagos residentes são ativados e liberam mediadores pró-inflamatórios e citocinas (por
exemplo, IL-1, IL-2, TNF-alfa, leucotrienos), o que gera acúmulo de leucócitos. A ativação de neu-
trófilos resulta em liberação de mediadores tóxicos (espécies reativas de oxigênio e proteases) que
S í n d ro m e d o D e s c o n f o r t o R e s p i ra t ó ri o A g u d o 191

danificam a barreira alvéolo-capilar1,3. A perda funcional da barreira promove extravasamento


de fluido proteico para o interstício e para o espaço alveolar. O ambiente pró-inflamatório e rico
em proteínas gera inativação do surfactante e redução de sua produção, provocando atelectasias.
É observada neste momento uma tendência pró-coagulante nas regiões afetadas, com redução
de proteínas anticoagulantes (isto é, proteína C), aumento de proteínas coagulantes (isto é, fa-
tor tecidual) e de proteínas antifibrinolíticas, provavelmente responsáveis pela trombose capilar
pulmonar1,3,6.

Fase proliferativa
A fase fibrótica da SDRA ocorre após o sétimo dia de doença e pode durar de 7 a 21 dias.
Ocorre proliferação transitória dos fibroblastos com a formação de uma matriz provisória, proli-
feração de células progenitoras da via aérea e de pneumócitos tipo II, produção de surfactante e
diferenciação em pneumócitos tipo I. Deve-se destacar que o infiltrado leucocitário é predomi-
nantemente de linfócitos1,6. Muitos pacientes apresentam boa recuperação e iniciam o desmame
da ventilação mecânica nesta fase, embora possam continuar sintomáticos – dispneia, taquipneia
e/ou hipoxemia. Por outro lado, parte dos pacientes continua com lesão pulmonar progressiva e
pode expressar sinais fibróticos precoces ainda nesta fase3,8.

Fase fibrótica
A fase fibrótica da SDRA ocorre nos pacientes que não se recuperaram da doença, geralmente
entre 3 a 4 semanas após seu início1. O edema e o exsudato inflamatório das fases anteriores se
transformam em fibrose intra-alveolar e intersticial. Ocorre distorção da arquitetura pulmonar,
que adquire característica enfisematosa. Além disso, a proliferação de fibroblastos na microcir-
culação gera oclusão e hipertensão pulmonar1,8. Pacientes com SDRA portadores de fibrose pul-
monar em qualquer estágio da doença possuem morbidade aumentada. A presença de fibrose
aumenta a possibilidade do desenvolvimento de pneumotórax, reduz a complacência pulmonar e
provoca aumento do espaço morto1,8.

Apresentação clínica
O paciente com SDRA apresenta sintomas de insuficiência respiratória aguda, detalhada no
Capítulo 21, com início em algumas horas ou até dois dias após a exposição a um fator de risco,
explicitados na Tabela 25.1. O sintoma mais comum é a dispneia, podendo existir, também, tosse
seca. Ao exame físico, pode-se verificar taquipneia, sinais de esforço respiratório, cianose, crepi-
tações e sibilos difusos. Associado a isso, o paciente apresenta queda da saturação periférica de
oxigênio com hipoxemia importante e refratária à suplementação de oxigênio1,4,5,8. Em casos gra-
ves, pode haver dor torácica e alteração do nível de consciência, bem como outras manifestações
sistêmicas e insuficiência de outros órgãos3. Os sintomas respiratórios e a oxigenação tendem a
melhorar parcialmente com a resolução do edema pulmonar. Os pacientes que entram na fase
fibrótica da doença persistem com sintomas respiratórios importantes e requerem suporte venti-
latório a longo prazo1. Os exames laboratoriais são variáveis e influenciados pelo insulto de base
associado ao desenvolvimento da SDRA. Dentre os achados mais comuns no paciente com SDRA,
destaca-se hipoxemia importante e hipercapnia secundária1,8.
192 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Apresentação radiológica
As alterações da SDRA na radiografia de tórax fazem parte dos critérios diagnósticos atuais e
podem ser percebidas entre 12 a 24h após o insulto inicial7. O achado característico é um infiltrado
alveolar difuso bilateral exemplificado na Figura 25.24–7. Geralmente não há alteração na silhueta
cardíaca e podem ser encontradas atelectasias. Ressalta-se que a intensidade dos achados radio-
lógicos varia com o tempo e com a gravidade da doença1,3,7.

Figura 25.2. Radiografia de tórax em incidência anteroposterior de paciente com SDRA.


Fonte: Imagem de James Heilman, MD - Own work, CC BY-SA 4.0, disponível em Wikimedia Commons.

Na tomografia computadorizada (TC) de tórax, as alterações variam de acordo com a fase


da doença. Na fase aguda pode-se observar classicamente consolidações e áreas em vidro-fosco,
predominantes em regiões pulmonares dependentes e hiperinsuflação em áreas não dependen-
tes. Regiões hiperdensas móveis podem ser encontradas, oriundas de atelectasias compressivas,
devido ao aumento do peso pulmonar. Em casos de SDRA extrapulmonar, é comum existir altera-
ções bilaterais simétricas, enquanto que nos casos com fatores de risco pulmonares, predominam
alterações assimétricas1,3. Na fase tardia, a depender da evolução do paciente, pode-se encontrar
TC normal, naqueles que evoluíram com resolução ou alterações como padrão de infiltrado reti-
cular, opacidades, cistos e bolhas8.

Diagnóstico
Desde 1967, quando foi descrito pela primeira vez por Ashbaugh, o conceito de SDRA foi re-
definido quatro vezes ao longo dos anos e seguiu os seus princípios iniciais1,2,5. A última definição
adotada foi a definição de Berlim em 2012, evidenciada na Tabela 25.2, que trouxe ineditamente,
dentre outros pontos, a estratificação da síndrome em leve, moderada ou grave, a depender da
relação entre a PaO2/FiO2 (grau de hipoxemia)1,9.
S í n d ro m e d o D e s c o n f o r t o R e s p i ra t ó ri o A g u d o 193

Tabela 25.2. Definição de Berlim para SDRA


Critérios Descrição

Início Em até 7 dias após um insulto clínico ou piora dos sintomas respiratórios

Imagem do tórax* Opacidades bilaterais não explicadas por efusões, colapsos ou nódulos
Insuficiência respiratória não é explicada por falência cardíaca ou por sobrecarga de fluidos. É
Origem do edema necessário excluir edema hidrostático por meio de meios objetivos (como a ecocardiografia), se não
houver fatores de risco
Leve***: 200 mmHg < PaO2/FiO2 ≤ 300 mmHg com PEEP ou CPAP ≥ 5 cmH2O
Oxigenação** Moderada: 100 mmHg < PaO2/FiO2 ≤ 200 mmHg com PEEP ≥ 5 cm H2O
Grave: PaO2/FiO2 ≤ 100 mmHg com PEEP ≥ 5 cmH2O

* Por meio de radiografia ou tomografia computadorizada de tórax. ** Se em altitude maior do que 1.000 metros, calcular fator de correção pela
fórmula [PaO2/FiO2 X (Pressão barométrica/760)]. *** Pode ser obtida de forma não invasiva. CPAP: pressão positiva contínua de vias aéreas,
FiO2: fração inspirada de oxigênio, PaO2: pressão parcial de oxigênio, PEEP: pressão expiratória positiva final. Dados de Acute respiratory distress
syndrome: The Berlin definition9. Autoria própria.

Existem condições que se assemelham clínica e/ou radiologicamente à SDRA. É impor-


tante estar atento para diferenciá-las dessa síndrome, tendo em vista que requerem mane-
jo diferente do adequado para a SDRA. Dentre elas, estão a insuficiência cardíaca, as doenças
pulmonares intersticiais (por exemplo, pneumonia aguda intersticial), as doenças do tecido
conjuntivo, a hemorragia difusa alveolar oriunda de vasculite ou síndrome de Goodpasture, as
doenças pulmonares induzidas por drogas (por exemplo, amiodarona), os cânceres e a tubercu-
lose endobrônquica1,8,9.

Tratamento
Os princípios de manejo da SDRA são coletivamente conhecidos como ventilação proteto-
ra do pulmão e visam a evitar ou a minimizar lesões pulmonares associadas ao uso da ventila-
ção mecânica em volumes correntes baixos com pressão controlada, com uso adequado de PEEP
(pressão positiva expiratória final), com FiO2 racionalizada e com uma abordagem permissiva à
hipercapnia1,10. Os parâmetros de ventilação e as medidas terapêuticas implementadas ao pacien-
te com SDRA devem ser reavaliados com frequência. Dentre os cuidados adjuvantes, usados em
casos moderados a graves, estão a estratégia conservadora de manejo de fluidos, o bloqueio neu-
romuscular e a ventilação em posição prona10-11. Esses princípios básicos requerem equipamento
especializado e devem ser acessíveis em qualquer UTI. A oxigenação por membrana extracorpórea
(ECMO) pode ser usada como uma terapia de resgate em casos graves11. O algoritmo do manejo da
SDRA é evidenciado na Figura 25.3.

Ventilação com baixo volume corrente


O volume corrente de cerca de 6 mL/kg do peso predito (Tabela 25.3) deve ser usado na abor-
dagem inicial de pacientes com SDRA na ausência de acidose metabólica grave, inclusive naque-
les com SDRA leve, para reduzir a mortalidade. Abordagem semelhante para todos os pacientes
sob ventilação mecânica e sob sedação em UTI também é sugerida pelas diretrizes mais recentes
do manejo da síndrome, devido a alta taxa de casos não reconhecidos e a importância da rápida
implementação da proteção pulmonar para o bom prognóstico da doença11.
194 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 25.3. Cálculo do peso predito


Cálculo do peso predito
Homem 50 + [0,91 × (altura cm – 152,4)]
Mulher 45,5 + [0,91 × (altura cm – 152,4)]

Autoria própria.

Após definir o volume corrente (6 mL/kg do valor predito do peso), a pressão de platô deve ser
monitorada continuamente e não deve exceder 30 cmH2O, para reduzir a mortalidade11. Volumes
correntes mais baixos estão fortemente associados à redução da mortalidade e ao aumento de dias
sem necessidade de uso do ventilador1,10,11. Estudos apontam que esse padrão seja resultado da
redução da distensão ou do alongamento excessivo do pulmão aerado, o que pode estar associado
à liberação de citocinas pró-inflamatórias que, possivelmente, contribuiriam para a lesão do pul-
mão (volutrauma) e de outros órgãos10.

Pressão expiratória final positiva (PEEP)


A PEEP previne o desrecrutamento alveolar, minimizando o atelectrauma. Além disso, au-
menta a capacidade residual funcional, desloca fluido dos alvéolos para o interstício e move o
pulmão para a parte mais íngreme da curva de complacência10-11. Contudo, isso deve ser contra-
balançado com potencial hiperinsuflação pulmonar e redução do retorno venoso, o que pode
comprometer o débito cardíaco11. A PEEP é um componente da ventilação mecânica essencial
no manejo da SDRA e os especialistas sugerem a manutenção de um valor acima de 5 cmH2O em
todos os pacientes1,10,11. Valor de PEEP maior deve ser usado em pacientes com SDRA moderada ou
grave, mas não em pacientes com SDRA leve11.

Tratamentos adjuvantes
Bloqueadores neuromusculares podem melhorar a adaptação do paciente ao ventilador e
devem ser considerados naqueles pacientes acometidos pela SDRA e cuja relação PaO2/FiO2 seja
< 150 mmHg, com o objetivo de reduzir a mortalidade. Deve ser iniciado precocemente e mantido
nas primeiras 48 horas após o diagnóstico de SDRA11. A posição prona deve ser usada na SDRA
em pacientes com relação PaO2/FIO2 < 150 mmHg, pois está associada à redução de mortalidade,
além de melhorar a oxigenação. Sessões de ventilação em posição prona de pelo menos 16 horas
consecutivas devem ser realizadas10-11. A ECMO, por sua vez, deve ser considerada em casos de
SDRA grave cuja PaO2/FiO2 seja < 80 mmHg. Outra indicação da ECMO são as situações em que
a ventilação mecânica é arriscada devido ao aumento da pressão de platô1,10,11. A decisão de usar
ECMO deve ser avaliada precocemente por uma equipe especializada10-11.
Os especialistas sugerem que o óxido nítrico inalado possa ser prescrito em casos de SDRA
com hipoxemia persistente, mesmo após a implementação de uma estratégia de ventilação prote-
tora e da posição prona. O uso de óxido nítrico inalado deve ser considerado antes de ser indicada
a ECMO. No entanto, essa prática não reduz mortalidade11. Ventilação oscilatória de alta frequên-
cia e manobras de recrutamento não são usadas de forma rotineira em pacientes com SDRA11.
S í n d ro m e d o D e s c o n f o r t o R e s p i ra t ó ri o A g u d o 195

P/F < 80 Avaliar VV-ECMO


Bloqueador
P/F < 150
neuromuscular/posição prona
P/F < 200 PEEP alta, caso a oxigenação melhore

• Volume corrente 6 mL/kg de peso predito


SDRA confirmada • Pressão de platô < 30 cmH20
• PEEP > 5 cmH2O
• Verificar hipercapnia

Iniciar ventilação • Volume corrente 6 mL/kg de peso predito na ausência


mecânica invasiva de acidose metabólica grave
• Triagem dos critérios diagnósticos de SDRA

Figura 25-3. Algoritmo terapêutico de SDRA.


Modificado de Papazian et al. Formal guidelines: management of acute respiratory distress syndrome Ann. Intensive Care (2019)
9:69. Autoria própria.

Complicações clínicas
Em geral, pacientes que respondem com rapidez ao tratamento se restabelecem por comple-
to, quase sem alterações pulmonares em longo prazo10,11. Os indivíduos que evoluem com tecido
cicatricial (fibrose pulmonar) necessitam de ventilação mecânica por longos períodos, inclusi-
ve após a desospitalização1,10,11. Outro aspecto importante dos pacientes com SDRA é a perda de
peso e de massa magra durante o curso da doença. Para ajudá-los na recuperação de força e de
independência para atividades de vida diárias, a reabilitação pulmonar por meio de fisioterapia
é muito importante11. As complicações são, principalmente, relacionadas à ventilação mecânica
ou à doença de base. Dentre as complicações relacionadas à ventilação mecânica estão incluí-
dos o barotrauma, devido ao estresse determinado pela pressão positiva exercida pela ventilação
mecânica nas membranas alveolares doentes11, cujos detalhes são abordados no Capítulo 23 e as
infecções relacionadas à assistência. Quanto a essas infecções, a pneumonia associada à ventila-
ção mecânica (PAV) é a principal representante, seguido por infecção relacionada ao cateter e a
Clostridium difficile11. Importante destacar que a SDRA se relaciona, de forma independente, a
maior risco para PAV e os detalhes são expostos no Capítulo 48. Por outro lado, as complicações
relacionadas às doenças de base incluem delirium, um evento adverso comum nas UTI’s, descrito
no Capítulo 28, os fenômenos tromboembólicos, o sangramento gastrointestinal por úlcera de es-
tresse, descrito no Capítulo 63 e a desnutrição. No que se refere aos fenômenos tromboembólicos,
descritos no Capítulo 19, o aumento do risco está relacionado à imobilização ou à gravidade das
doenças de base, principalmente da sepse. A desnutrição, abordada no Capítulo 59, é uma com-
plicação também frequente em pacientes gravemente enfermos, dada a dificuldade de reposição
de nutrientes e de vitaminas, associada a maior catabolismo ou a presença de íleo funcional e
gastroparesia11.
196 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• A síndrome do desconforto respiratório agudo corresponde a um quadro de
insuficiência respiratória aguda hipoxêmica, associado a edema pulmonar não-
cardiogênico rico em proteína, que ocorre em cerca de 10% dos pacientes de
unidades de terapia intensiva (UTI);
• A síndrome pode ser dividida em 3 fases que possuem características histopatológicas
e clínicas distintas: fase exsudativa, proliferativa e fibrótica;
• Os princípios do manejo da SDRA visam a evitar a exacerbação da lesão pulmonar.
São eles: ventilação com volumes correntes baixos com pressão controlada,
uso adequado de pressão positiva expiratória final e abordagem permissiva à
hipercapnia;
• Cuidados adjuvantes incluem estratégia conservadora com fluidos, bloqueio
neuromuscular e ventilação em posição prona;
• Deve-se estar atento a possíveis complicações como o barotrauma e às infecções,
bem como identificar precocemente delirium, fenômenos tromboembólicos,
sangramentos gastrointestinais, úlceras de estresse e desnutrição;
• A maioria dos pacientes apresenta recuperação plena. No entanto, a progressão
para a fase fibrótica da doença pode indicar suporte ventilatório a longo prazo.

Leitura sugerida
1. Thompson BT, Chambers RC, Liu KD. Acute respiratory distress syndrome. Vol. 377, New England Journal of
Medicine. Massachussetts Medical Society; 2017. p. 562-72.
2. Cutts S, Talboys R, Paspula C, Ail D, Premphe EM, Fanous R. History of acute respiratory distress syndrome.
Lancet Respir Med. 2016;4(7):547-8.
3. Wheeler AP, Bernard GR. Acute lung injury and the acute respiratory distress syndrome: a clinical review. Lancet.
2007;369.
4. Petty TL, Ashbaugh DG. The adult respiratory distress syndrome. Clinical features, factors influencing prognosis
and principles of management. Chest. 1971;60(3):233-9.
5. Bernard CR. Acute respiratory distress syndrome: A historical perspective. Am J Respir Crit Care Med.
2005;172(7):798-806.
6. Johnson ER, Matthay MA. Acute Lung Injury: Epidemiology, Pathogenesis, and Treatment. J Aerosol Med Pulm
Drug Deliv. 2000;23(4):243-52.
7. Orraine L, Are BW, Atthay AM. The Acute Respiratory Distress Syndrome. N Engl J Med. 2000;1334:16.
8. Paula F, Galhardo L, Antônio J, Martinez B. Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo. 2003
9. Ranieri VM, Rubenfeld GD, Thompson BT, Ferguson ND, Caldwell E, Fan E, et al. Acute respiratory distress
syndrome: The Berlin definition. J Am Med Assoc. 2012 Jun 13;307(23):2526-33.
10. Rae J. Acute Respiratory Distress Syndrome [Internet]. Anaesthesia Tutorial of the Week. Dundee, UK: World
Federation of Societies of Anaesthesiologists, 2019.
11. Papazian L, Aubron C, Brochard L, Chiche JD, Combes A, Dreyfuss D, et al. Formal guidelines: management of
acute respiratory distress syndrome. Vol. 9, Annals of Intensive Care. Springer Verlag, 2019.
Desmame da Ventilação Mecânica 26

Camila Azalim De Campos


Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
O desmame da ventilação mecânica (DVM) caracteriza-se como o processo transitório entre
o suporte mecânico e a respiração espontânea1. A ventilação mecânica invasiva (VM), por sua vez,
é uma intervenção que salva vidas, mas que também está associada a complicações. Portanto, é
desejável liberar precocemente o paciente da VM, assim que ele for capaz de sustentar a respira-
ção espontânea e a hematose adequada2.
Deve-se considerar que a maioria dos doentes ventilados mecanicamente não apresentam
dificuldades com relação ao desmame. Entretanto, em cerca de 20% dos casos, há certos entraves,
os quais, em sua maioria, contemplam patologias pulmonares como pneumopatias crônicas e/ou
agudas e doenças neuromusculares2. É relevante ressaltar que o DVM ocupa mais de 40% do tempo
total da VM, e esse percentual pode variar dependendo da etiologia da insuficiência respiratória3.
Atualmente, no Brasil, a principal complicação da VM é a Pneumonia Associada à Ventilação
Mecânica (PAV)1. Estima-se que a PAV apresente incidência de 9 a 27%, com taxa de mortalidade
de 25 a 50%1. Estatísticas internacionais relatam a ocorrência de 5 a 10 casos de pneumonia a cada
1000 internações hospitalares. Essa taxa pode ser aumentada em até 20 vezes nas situações em que
o paciente se encontra sob ventilação mecânica e em cuidados intensivos4. Além disso, a pneumo-
nia é responsável pelo prolongamento no tempo de permanência na unidade de terapia intensiva
(UTI) e hospitalar, o que está associado a importante incremento dos custos hospitalares4.

Manejo clínico
A descontinuação da ventilação mecânica é um processo que envolve diferentes etapas. Com
fins didáticos, é relevante enumerá-las a fim de que o profissional seja guiado no processo.
198 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Identificar o paciente apto para iniciar o desmame


Identificar e avaliar diariamente o paciente contribui para a redução do tempo de ventilação
mecânica. Nesse sentido, os critérios levados em conta são:
1. Identificação da causa da falência respiratória resolvida ou controlada;
2. PaO2 ≥ 60 mmHg com FiO2 ≤ 0,4 e PEEP ≤ 5 a 8 cmH2O;
3. Hemodinâmica estável, com boa perfusão tecidual, sem ou com doses baixas de
vasopressores, ausência de insuficiência coronariana descompensada ou de arritmias
com repercussão hemodinâmica;
4. Paciente capaz de iniciar esforços inspiratórios;
5. Balanço hídrico zerado ou negativo nas últimas 24 horas;
6. Equilíbrio acidobásico e hidroeletrolítico normais;
7. Adiar extubação quando houver programação de transporte para exames ou para cirurgia
com anestesia geral nas próximas 24h.
Além da avaliação desses critérios, o sucesso do desmame está relacionado, também, ao re-
sultado do Teste de Respiração Espontânea (TRE), cujos sinais estão explicitados na Tabela 26.1.
Nesse propósito, o paciente deve ser colocado em Tubo em T ou em ventilação com suporte pres-
sórico (PSV) de 5-7 cmH2O durante 30-120 minutos3. É considerada condição de sucesso no TRE
aquela em que os pacientes mantêm padrão respiratório, troca gasosa, estabilidade hemodinâmi-
ca e conforto adequados1.
Ademais, é importante a suspensão diária da sedação para a verificação da capacidade de
ventilação espontânea do paciente3.

Tabela 26.1. Sinais de tolerância ao Teste da Respiração Espontânea


Frequência respiratória < 35 irpm
Saturação arterial de O2 > 90%

Frequência cardíaca < 140 bpm


PAS < 180 mmHg e > 90 mmHg
Ausência de agitação

Dados das Diretrizes Brasileiras de Ventilação Mecânica – 20131. Autoria própria.

Após a obtenção de um TRE bem sucedido, é importante avaliar se as vias aéreas estão pér-
vias e se o paciente é capaz de protegê-las. Vale considerar, ainda, os índices preditivos de des-
mame com melhor acurácia, que são: a taxa da frequência respiratória dividida pelo volume
corrente (f/Vt) ou Índice de Ventilação Superficial Rápida (IVSR), e o índice de desmame integrado
(IntegrativeWeaning Index – IWI). Porém, esses instrumentos são úteis apenas em situações de
difícil decisão e não devem ser utilizados como instrumentos isolados definidores da conduta2,3.

Avaliar o momento da extubação


Inclui a avaliação da proteção e a da permeabilidade das vias aéreas. No que se refere pro-
teção, a equipe deve atentar-se ao nível de consciência do paciente (Escala de Coma de Glasgow
D e s m a m e d a Ve n t i l a ç ã o M e c â n i c a 199

acima de 8), verificar se há tosse eficaz (teste do Cartão Branco positivo- e pico de fluxo maior que
60 L/min) e constatar a presença de pouca secreção (sem necessidade de aspiração a cada 1 ou
2 horas)1. Quanto à avaliação da permeabilidade das vias, está indicada em pacientes com maior
risco para estridor laríngeo e para obstrução de vias aéreas, como aqueles submetidos à ventilação
mecânica prolongada ou com história de trauma. Isso pode ser realizado por meio do teste de va-
zamento do balonete do tubo traqueal (cuff-leak test). Esses pacientes de risco podem apresentar
benefício com o uso preventivo de corticoide (as doses descritas oscilam entre 20-40mg de me-
tilprednisolona IV a cada 6 horas), iniciado pelo menos 4 horas, mais comumente 12 a 24 horas,
antes da extubação1.

Emprego da ventilação mecânica não invasiva (VNI)


A VNI pode ser útil tanto como facilitadora do desmame, quanto como profilática contra fa-
lha. No propósito de facilitar o processo, recomenda-se seu emprego, precocemente, em pacientes
portadores de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), mesmo naqueles que não passaram
no TRE, desde que sob adequada condição clínica4. Por outro lado, em sua atuação profilática
contra falhas, a VNI deve ser instituída imediatamente após a extubação, de forma preventiva, em
pacientes selecionados com maior risco, descritos na Tabela 26.25.

Tabela 26.2. Pacientes considerados de maior risco de falha de extubação,


que poderão se beneficiar do uso de VNI imediata após extubação
Condições indicativas de benefício da VNI profilática
Hipercapnia após extubação (> 45 mmHg)
Insuficiência cardíaca
Tosse ineficaz
Secreções copiosas
Mais de uma falência consecutiva no desmame
Mais de uma comorbidade
Obstrução das vias aéreas superiores
Idade maior de 65 anos
Falência cardíaca como causa da intubação
APACHE II > 12 no dia de extubação
Pacientes com mais de 72h de VM

Dados das Diretrizes Brasileiras de Ventilação Mecânica – 20131. Autoria própria.

Emprego da VNI na falência respiratória após a extubação (VNI curativa)


Nesse ponto, a VNI não deve ser encorajada. Geralmente, a reintubação é recomendada, ex-
ceto em grupos cirúrgicos que desenvolvem falência respiratória no pós-operatório1.
200 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Considerações importantes
Diversos estudos mostraram que o uso diário do TER, para identificar pacientes aptos à li-
beração da VM, é seguro e reduz o tempo de extubação, em comparação com abordagens que
reduzem, gradualmente, o suporte do ventilador3. Em média, os pacientes tratados com protocolo
de liberação da VM permanecem 25 horas a menos em ventilação mecânica, quando comparados
a pacientes tratados sem protocolo3. Além disso, há redução de cerca de um dia com relação à
permanência na UTI4. Outro dado relevante para o mau desfecho clínico inclui iatrogenias, como
manter os pacientes em estado imóvel ou minimamente móvel durante o atendimento, e pres-
crever sedativos de forma excessiva e/ou prolongada2. Ambas as práticas citadas estão associadas
a piores resultados, incluindo aumento da incidência do delirium, aumento do número de tra-
queostomias realizadas, maior duração da ventilação mecânica e maior tempo de permanência
na UTI2.
Nesse sentido, protocolos para a liberação precoce da VM são indicados na maioria dos es-
tudos e, em todos eles, há a presença do Teste de Respiração Espontânea3. Ademais, é importante
que a equipe conheça o protocolo de desmame da instituição onde atuam.

Complicações clínicas
As complicações relativas à VM são diversas. Em primeiro lugar, cabe considerar as mais pre-
valentes, aquelas relacionadas à intubação orotraqueal, ocorridas durante a introdução da cânula
de intubação ou secundariamente ao contato da cânula/do balonete sobre as estruturas das vias
aéreas, e envolvem estruturas da laringe e da traqueia4. Ademais, infecções podem ocorrer por
ocasião da VM, que incluem sinusite, traqueobronquite e PAV (complicação de maior incidência:
5% em pacientes com 1 dia de VM e incidência de 69% em paciente com 30 dias de VM)4. Deve-se
considerar que as infecções podem ter origem exógena, originária de equipamentos colonizados,
e/ou endógena, oriundas, por exemplo, do trato gastrointestinal6. Assim, a prevenção à PAV inclui
manter decúbito elevado (30-45°), adequar diariamente o nível de sedação, realizar o TRE, aspirar
a secreção subglótica rotineiramente e fazer a higiene oral. O tratamento das infecções inclui an-
tibioticoterapia, de acordo com o perfil epidemiológico da UTI6. Em terceiro lugar, vale considerar
as complicações relacionadas à utilização de altas taxas de FiO2, cujas manifestações dependem
da quantidade e do tempo de exposição à oxigenoterapia. A exposição a 100% de O2, por 12-24 ho-
ras, aumenta as chances de traqueobronquite, de tosse seca e de dor torácica subesternal. Já com
100% de O2, por 4-6 horas, pode ocorrer inativação do surfactante e, consequentemente, edema
alveolar por aumento da permeabilidade3. Por fim, a VM pode induzir a disfunção diafragmática,
por causar atrofia do músculo e possível lesão estrutural3.
D e s m a m e d a Ve n t i l a ç ã o M e c â n i c a 201

Pontos-chave
• O desmame da ventilação mecânica caracteriza-se como o processo transitório
entre o suporte mecânico e a respiração espontânea;
• A ventilação mecânica prolongada está associada a significativa morbimortalidade;
• O desmame da ventilação mecânica deve ser considerado precocemente, de acordo
com a condição clínica do paciente;
• É essencial a identificação do paciente apto para iniciar o desmame, a avaliação do
momento da extubação e a indicação do uso da VNI na retirada da VM;
• Atentar-se a pneumonia associada à ventilação mecânica, presente em cerca de
20% dos pacientes em VM (48-72 horas após a intubação).

Leitura sugerida
1. Barbas CSV, Ísola M, Farias AMC. Diretrizes Brasileiras De Ventilação Mecânica. AMIB, 2013.
2. Girard TD, Alhazzani W, Kress JP, Ouellette DR, Schmidt GA, Truwit JD, et al. Na Official American Thoracic
Society/American College of Chest Physicians Clinical Practice Guideline: Liberation from Mechanical Ventilation
in Critically Ill Adults. Rehabilitation Protocols, Ventilator Liberation Protocols, and Cuff Leak Tests. American jour-
nal of Respiratory and Critical Care Medicine. U.S. National Library of Medicine, 2017.
3. Perkins GD, Mistry D, Gates S, Gao F, Snelson C, Hart N, et al. Effect of Protocolized Weaning With Early Extubation
to Noninvasive Ventilation vs Invasive Weaningon Time to Liberation From Mechanical Ventilation Among Patients
With Respiratory Failure: The Breathe Randomized Clinical Trial. JAMA. American Medical Association, 2018.
4. Torres A, Niederman MS, Chastre J, et al. International ERS/ESICM/ESCMID/ALAT guidelines for the manage-
ment of hospital-acquired pneumonia and ventilator-associated pneumonia: Guidelines for the management of
hospital-acquired pneumonia (HAP)/ventilator-associated pneumonia (VAP) of the European Respiratory Society
(ERS), European Society of Intensive Care Medicine (ESICM), European Society of Clinical Microbiology and
Infectious Diseases (ESCMID) and Asociación Latinoamericana del Tórax (ALAT). EurRespir J, 2017.
5. Davidson AC, Banham S, Elliott M, Kennedy D, Gelder C, Glossop A, et al. BTS Standards of Care Committee
Member, British Thoracic Society/Intensive Care Society Acute Hypercapnic Respiratory Failure Guideline
Development Group, On behalf of the British Thoracic Society Standards of Care Committee. BTS/ICS guideline
for the ventilatory management of acute hypercapnic respiratory failure in adults. Thorax. 2016 Apr;71 Suppl 2:ii1-
35. doi: 10.1136/thoraxjnl-2015-208209. Erratum in: Thorax. 2017 Jun;72 (6):588. PMID: 26976648.
6. Arthur L, Kizor R, Selim A, van Driel M, Seoane L. Antibiotics for ventilator-associated pneumonia. Cochrane
Database of Systematic Reviews, 2016.
Avaliação Neurológica 27

Lucas Alexandre Santos Marzano


Taisa Izabela Magalhães e Souza
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
A avaliação neurológica em pacientes críticos é de extrema importância para que um bom
prognóstico seja alcançado. O valor dessa avaliação não se limita aos pacientes com disfunções
neurológicas já conhecidas, afinal, todos os pacientes sob cuidados intensivos devem ser subme-
tidos ao exame neurológico. Tendo a premissa de que as funções neurológicas e habilidades de
compensação do processo fisiopatológico se perdem antes da instalação de uma lesão estrutural
irreversível, esta avaliação se torna indispensável nos pacientes críticos. Em pacientes com patolo-
gias neurológicas já diagnosticadas, a avaliação torna-se mais minuciosa e mais complexa. Nesses
casos, a meta fundamental baseia-se na identificação, na prevenção e no tratamento dos danos
cerebrais secundários que alteram o desfecho. De um modo geral, ela pode ser feita pelo exame
neurológico, na avaliação da pressão intracraniana e no eletroencefalograma.

Exame neurológico
O exame neurológico consta como uma das principais ferramentas para avaliação da funcio-
nalidade do sistema nervoso¹. A sua grande vantagem em relação às outras formas de avaliação é
a ausência de maquinaria e equipamentos podendo ser repetida com facilidade, caso necessário.
O exame neurológico pode evidenciar alterações com bases anatômicas bem definidas e assim
facilitar o diagnóstico. Entretanto, vários fatores também o limitam. Por ser um exame avaliador
dependente, pode resultar em variáveis resultados em um mesmo momento de condição clínica
do paciente. Além disso, os pacientes com condição crítica e em sedação podem limitar a própria
execução do exame neurológico, tornando-o pouco capaz de realizar uma avaliação minuciosa.
Ademais, ele deve levar em conta a avaliação do nível de consciência, dos reflexos do tronco cere-
bral e das respostas motoras a estímulos verbais e dolorosos, os quais estão incluídos na Escala de
Coma de Glasgow (ECG), evidenciada na Tabela 27.1. Nesse ponto, deve-se acrescentar a pesqui-
sa dos reflexos do tronco fotomotor, o oculocefálico e o corneano, principalmente nos pacientes
comatosos. Em relação às escalas clínicas para posterior avaliação e classificação dos pacientes,
204 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

estas visam a avaliação do grau de consciência, através da ECG, o grau de sedação, através da
Richmond Agitation Sedation Scale (RASS) evidenciada na Tabela 27.2, e a presença de delirium
por meio do Intensive Care Delirium Screening Checklist (ICDSC).

Tabela 27.1. Escala de Coma de Glasgow


Variáveis Apresentação Pontuação
Espontânea 4
Ao estímulo verbal 3
Abertura ocular À pressão 2
Nenhuma 1
Não testável NV
Orientada 5
Confusa 4
Palavras 3
Resposta verbal
Sons 2
Nenhuma 1
Não testável NV
Obedece a comandos 6
Localizando 5
Flexão normal 4
Resposta motora Flexão anormal 3
Extensão anormal 2
Nenhuma 1
Não testável NV
Dados do ATLS - Advanced Trauma Life Support for Doctors. American College of Surgeons. Chicago 10a. Ed 2018.
Autoria própria.

Tabela 27.2. Richmond Agitation Sedation Scale (RASS)


Pontuação Classificação
4 Combativo
3 Muito agitado
2 Agitado
1 Inquieto
0 Alerta e calmo
-1 Sonolento
-2 Sedação leve
-3 Sedação moderada
-4 Sedação intensa
-5 Não desperta
Dados de Sessler CN, Gosnell M, Grap MJ, et al.The Richmond Agitation-Se-
dation Scale: Validity and Reliability in Adult Intensive Care Unit Patients. Am J
Respir Crit Care Med. 2002 Nov 15;166(10):1338-44.
A v a l i a ç ã o N e u ro l ó g i c a 205

Avaliação da pressão intracraniana


A avaliação da pressão intracraniana (PIC) e a discussão sobre o tema será detalhadamente
explicitada no Capítulo 34 deste livro. Vale adiantar, porém, que a condição pode implicar injú-
rias críticas ao paciente, como o deslocamento de estruturas e a isquemia encefálica que podem
ser letais. As manifestações clínicas da hipertensão intracraniana são clássicas e incluem cefaleia,
vômitos e papiledema (edema de papila ocular). Entretanto, em pacientes críticos, em sedação,
esse tipo de avaliação se torna imprecisa, possibilitando um aumento silencioso da PIC. Nesse
sentido, a monitorização contínua da PIC² é um recurso valioso para diagnosticar a hipertensão
intracraniana. Recomenda-se sua realização em pacientes com dano cerebral agudo com suspeita
de hipertensão intracraniana baseado na clínica ou evidenciado em exames de imagem, como em
casos de hemorragias subaracnóideas, hemorragias intracranianas ³ e traumatismos crânio ence-
fálicos 4. A mensuração da PIC pode ser realizada de forma invasiva ou não invasiva. Entretanto,
os métodos não invasivos não têm reprodutibilidade clínica comprovada, motivo pelo qual, na
prática rotineira, não são utilizados5. Os métodos invasivos, por sua vez, subdividem-se depen-
dendo da sede anatômica empregada nesse propósito, sendo, as mais comuns, as localizações
intraventricular e intraparenquimal. Embora o método intraventricular seja considerado como
o padrão-ouro, as duas formas de monitorização possuem boa acurácia em suas medições5. Vale
considerar, porém, que a literatura atribui maior ocorrência de infecções ao método intraventri-
cular e maior tendência de perder a acurácia, com o decorrer do tempo, ao intraparenquimato-
so. Ressalta-se, ainda, que os casos de hidrocefalia devem ser monitorizados, preferencialmente,
pelo método intraventricular, devido à possibilidade de intervenção terapêutica de drenagem por
aquela via, o que não é possível se a monitorização acontece intraparenquimatosamente. 

Eletroencefalograma
A monitorização contínua com o eletroencefalograma (EEG)6ganhou grande utilidade nos
últimos anos dentro da medicina intensiva. Isso se deveu, principalmente, à necessidade de com-
plementar a avaliação neurológica, afinal, muitas vezes, alterações significativas da função ou da
estrutura cerebral podem não ser identificadas inicialmente no exame clínico. Além disso, o EEG
possibilita a detecção precoce de complicações secundárias às lesões cerebrais agudas, que au-
mentam substancialmente a morbidade e a letalidade em pacientes com injúria cerebral. Suas
principais indicações consistem na avaliação de condições sistêmicas, como desordens metabó-
licas, tóxicas, degenerativas, isquêmicas, inflamatórias e pós-traumáticas, que afetam o sistema
nervoso central direta ou indiretamente.

Princípios da avaliação e da interpretação


O traçado do EEG é o registro dos potenciais elétricos excitatórios e inibitórios pós-sinápti-
cos, produzidos na camada piramidal do córtex cerebral. As ondas elétricas do EEG são descritas
em termos de frequência - Hertz (Hz) = ciclos/segundo - e de amplitude - voltagem-, além de se-
rem classificadas em delta, em teta, em alfa ou em beta, conforme indicado na Tabela 27.3.
206 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 27.3. Tipos de ondas do EEG e suas características em relação à frequência, à localização, às
situações normais de aparecimento e aos estados patológicos.
Presença em condições
Ondas Frequência Localização Situações fisiológicas
patológicas
Frontalmente em adultos,
Delta (O a 4 Hz)  Sono, anestesia profunda Frequentes
posteriormente em crianças
Teta (4 a 8 Hz)  Sem localização específica Sono, anestesia profunda Frequentes
Paciente alerta com os olhos fechados
Alfa (8 a 13 Hz)  Região occipital Pouco frequentes
ou anestesia superficial
Concentração ou sedação leve com
Beta  (> 13 Hz) Mais evidentes nas regiões anteriores Pouco frequentes
benzodiazepínicos/barbitúricos
Dados de Azevedo LCP, Taniguchi LU, Ladeira JP, Martins HS. Medicina intensiva: abordagem prática. 2. Ed. Barueri, SP :Editora Manole, 20156.
Autoria própria.

No que tange à interpretação das curvas do EEG, por serem complexas e envolverem nuan-
ces, a presença de um especialista, geralmente, é requisitada. Por isso, o EEG quantitativo surgiu
e representa uma forma simplificada que transforma os sinais do EEG em medidas de frequência
versus tempo e de amplitude versus tempo, o que facilita a leitura do exame. Os dados podem ser
expressos de diferentes modos, como via gráfico de tendências ou de barras, que apresenta os
valores de porcentagem de amplitude das ondas alfa, a amplitude total das ondas captadas e a
relação alfa/delta, e, assim, possibilitam uma melhor compreensão dos resultados obtidos.

Aplicações práticas do EEG contínuo


O EEG contínuo7 é importante para a detecção de “crises não convulsivas” (CNC) e de “estado
epiléptico não convulsivo” (EENC), condições progressivamente mais reconhecidas na UTI que
apresentam pouca ou nenhuma manifestação clínica. A hemorragia intraparenquimatosa pode
cursar com CNC, associadas ao desvio da linha média do cérebro, o que causa degeneração do
quadro neurológico. Em pacientes com estado epiléptico, o EEG pode ser valioso no diagnóstico,
uma vez que, mesmo na ausência de crises convulsivas, o exame pode mostrar atividade elétrica
anormal, situação comum naqueles que não recuperam a consciência rapidamente. Na hemor-
ragia subaracnoidea, a redução percentual de atividade alfa relaciona-se com a ocorrência de va-
soespasmo na evolução clínica. Em situações de isquemia aguda, por exemplo, mesmo quando a
tomografia computadorizada não mostra alterações, o EEG já pode evidenciar redução da ativi-
dade metabólica local, supostamente pela redução do fluxo sanguíneo na região. Nesse sentido,
o EEG pode detectar áreas de penumbra que se beneficiariam de uma intervenção terapêutica,
visando à prevenção de lesão cerebral permanente. Ademais, o exame presta-se para estabelecer
prognósticos em doenças específicas, como é o caso da encefalopatia anóxica.

Índice bispectral (BIS)


O BIS7 é um parâmetro multifatorial derivado da análise do EEG, que permite monitori-
zar o nível de sedação. O aparelho de BIS possui um adesivo que contempla as derivações da
A v a l i a ç ã o N e u ro l ó g i c a 207

região frontal do crânio, idênticas às do eletroencefalograma (EEG). Por meio de uma fórmula
matemática, as informações sobre as ondas alfa, beta e teta dessas derivações são convertidas
em uma escala numérica de 0 a 100, como evidenciado na Figura 27.1, em que o grau 100 repre-
senta o nível completamente desperto e o grau 0 representa o coma, ocasião em que o EEG fica
isoelétrico.

Baixa Alta
Sedação Anestesia Anestesia
amplitude Acordado amplitude
moderada geral profunda
e alta BIS = 100 e baixa
BIS = 70 BIS = 60 a 40 BIS ≤ 40
frequência frequência

Desperta Responde ao Não Hipnose


e responde estímulo verbal responde a profunda
ao chamado vigoroso e ao estímulos
estímulo tátil
moderado

Figura 27.1. Índice Bispectral (BIS) e sua correlação com a profundidade anestésica e com o traçado
cortical.
Dados de Queiroz RB, Holanda MMA, Maia AKHL, Morais LCSL. Analysis of the Electroencephalogram and the Bispectral Index.
Use in the Intensive Care Unit. Rev Neurocienc 2012;20(2):302-3107. Autoria própria.

Potencial evocado
Os potenciais evocados (PE’s)6 estão bem estabelecidos como ferramentas de diagnóstico e
monitoramento na unidade de terapia intensiva (UTI). Os EP’s consistem em um potencial elé-
trico do Sistema Nervoso Central (SNC) que pode ser detectado pelo EEG. A avaliação do PE con-
siste no registro da atividade elétrica do SNC, quando um estímulo sensorial (elétrico, auditivo
ou visual) ou motor (elétrico ou magnético) é deflagrado. Na terapia intensiva, a utilização do
PE permite avaliar a integridade funcional das estruturas que compõem determinada via neu-
ronal, podem ajudar na detecção de lesões nos nervos periféricos e na medula espinhal e ainda
ser útil quanto ao prognóstico de pacientes após traumatismo cranioencefálico (TCE) e parada
cardíaca, por exemplo. Na prática, geralmente são estudados os PE’ s que avaliam as respostas
aos estímulos visuais, auditivos e somatossensoriais.

Novas técnicas de monitorização neurológica


Com o avanço da medicina, algumas técnicas, como as elencadas a seguir, progressivamente
vêm sendo desenvolvidas. Porém, apesar de promissoras, ainda são necessários estudos robustos
que comprovem a utilidade dessas ferramentas e o papel de cada uma delas no que se refere à
avaliação do paciente crítico.
208 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pressão parcial de O2 cerebral


A PO2 cerebral (PcO2)8, reflete a medida da pressão parcial de oxigênio no tecido cerebral,
sendo um marcador do equilíbrio entre a entrega e o consumo de oxigênio nas células cerebrais.
A medida da PcO2 é realizada usando-se um eletrodo implantado em áreas específicas cerebrais,
que permite medir a tensão do oxigênio no fluido extracelular6. A saúde do tecido cerebral moni-
torado relaciona-se consideravelmente com o comportamento das medições de oxigênio cerebral.
Por isso, pode ser útil na monitorização de pacientes em risco de isquemia e/ou hipóxia cerebral8.

Oximetria cerebral
A mensuração da oximetria cerebral8 é feita por meio de um sensor, que, posicionado sobre a
pele da região frontal, emite uma luz que atravessa os tecidos até chegar ao córtex cerebral. A luz,
quando em contato com a hemoglobina, sofre uma reflexão variável, conforme a saturação de O2
local. A oximetria representa a saturação venosa de O2 (SvcO2) de determinada região, sendo que
grande parte do volume sanguíneo cerebral, aproximadamente 80%, está localizada no território
venoso6. A medição oferece uma estimativa das variações da oxigenação cerebral8.

Microdiálise cerebral
A técnica da microdiálise cerebral8 permite uma avaliação neuroquímica do espaço extrace-
lular, por meio da introdução de um cateter no córtex frontal, que depois de inserido, passa a ser
perfundido por uma solução iônica semelhante ao plasma. Essa modalidade de avaliação permite
a mensuração de vários substratos como a glicose, o lactato, o piruvato, o glicerol ou o glutamato.
O método possibilita, pela medição dos biomarcadores intersticiais, relacionar o fornecimento, a
difusão e o consumo de energia. Assim, mostra-se promissor na detecção de estados isquêmicos
e de hipoxemia, a partir da relação quantitativa de lactato/piruvato, por exemplo. Espera-se que,
nos casos de isquemia ou de hipóxia, ocorra um aumento moderado da quantidade de lactato
cerebral e uma redução na quantidade do piruvato cerebral. Embora essa técnica mostre grande
utilidade, ainda é restrita a poucas instituições.

Ultrassonografia do nervo óptico


Por fim, a ultrassonografia do nervo óptico6 é um método novo, não invasivo e é uma alter-
nativa promissora para detecção do aumento da PIC. Para essa avaliação, utiliza-se a medição do
diâmetro da bainha do nervo óptico.
A v a l i a ç ã o N e u ro l ó g i c a 209

Pontos-chave
• O exame neurológico deve ser realizado em todos os pacientes, afinal, é um método
prático e pode ser repetido rotineiramente;
• A avaliação da PIC, por meio da monitorização contínua, é recomendada na suspeita
de hipertensão intracraniana;
• O EEG pode auxiliar na detecção precoce de complicações secundárias às lesões
cerebrais agudas não identificadas no exame clínico neurológico;
• O EEG contínuo pode ser útil no diagnóstico precoce do estado epiléptico e da
isquemia aguda, na previsão de vasoespasmo após hemorragia subaracnóidea e no
prognóstico da encefalopatia anóxica;
• O BIS é útil como um parâmetro de monitorização do nível de sedação;
• Os PE’s são úteis na detecção de lesões nas vias neuronais, como nos nervos
periféricos e na medula espinhal;
• Novas técnicas de monitorização neurológica estão sendo aventadas, mas ainda
exigem estudos robustos no propósito de definir a utilidade dessas ferramentas no
cuidado do paciente neurológico grave.

Leitura sugerida
1. Alcantara TF, Marques IR. Advances in intensive neurological monitoring: implications for nursing care. Rev Bras
Enferm. 2009;62(6):894-900.
2. Andrews PJ, Citerio G, Longhi L, Polderman K, Sahuquillo J, Vajkoczy P, et al. NICEM consensus on neurological
monitoring in acute neurological disease. Intensive Care Med. 2008;34(8):1362-70.
3. Forsyth RJ, Raper J, Todhunter E. Routine intracranial pressure monitoring in acute coma. Cochrane Database
Syst Rev. 2015(11):CD002043.
4. Lane PL, Skoretz TG, Doig G, Girotti MJ. Intracranial pressure monitoring and outcomes after traumatic brain
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5. Brain Trauma Foundation, American Association of Neurological Surgeons, Congress of Neurological Surgeons,
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logy. J Neurotrauma 2007; 24 Suppl 1:S45.
6. Azevedo LCP, Taniguchi LU, Ladeira JP, Martins HS. Medicina intensiva: abordagem prática. 2. Ed. Barueri, SP
:Editora Manole, 2015.
7. Queiroz RB, Holanda MMA, Maia AKHL, Morais LCSL. Analysis of the Electroencephalogram and the Bispectral
Index Use in the Intensive Care Unit. Rev Neurocienc 2012;20(2):302-310.
8. Lee K. The Neuro IC book. 2 Ed. McGraw-Hill Education, 2018.
9. Claassen J, Taccone FS, Horn P, Holtkamp M, Stocchetti N, Oddo M, et al. Recommendations on the use of
EEG monitoring in critically ill patients: consensus statement from the neurointensive care section of the ESICM.
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10. Le Roux P, Menon DK, Citerio G, Vespa P, Bader MK, Brophy GM, et al. Consensus summary statement of the
International Multidisciplinary Consensus Conference on Multimodality Monitoring in Neurocritical Care: a state-
ment for healthcare professionals from the Neurocritical Care Society and the European Society of Intensive Care
Medicine. Intensive Care Med. 2014;40(9):1189-209.
11. Luccas FJ, Anghinah R, Braga NI, Fonseca LC, Frochtengarten ML, Jorge MS, et al. [Guidelines for recording/
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12. Rodriguez-Boto G, Rivero-Garvia M, Gutierrez-Gonzalez R, Marquez-Rivas J. Basic concepts about brain patho-
physiology and intracranial pressure monitoring. Neurologia. 2015;30(1):16-22.
13. Rosner MJ, Rosner SD, Johnson AH. Cerebral perfusion pressure: management protocol and clinical results. J
Neurosurg. 1995;83(6):949-62.
14. Schomer AC, Hanafy K. Neuromonitoring in the ICU. Int Anesthesiol Clin. 2015;53(1):107-22.
Analgesia, Sedação e Delirium 28

Flávia Vanessa Lara


Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
Grande parte dos pacientes admitidos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) tem dor, an-
siedade e agitação. Um dos principais objetivos da analgossedação é controlar essa sucessão des-
favorável de eventos e evitar complicações do quadro clínico e prolongamento da permanência do
paciente na UTI e no hospital.
O uso da analgesia e da sedação em UTI é um assunto complexo por ter implicações nas
comorbidades prévias dos pacientes, pela suscetibilidade desses medicamentos a interações far-
macológicas e por favorecer, em alguns casos, disfunções orgânicas. Nesse sentido, o emprego de
protocolos de sedação é encorajado para promover uma abordagem coerente com alvos indivi-
dualizados. Protocolos esses baseados em recomendações de Diretrizes de Analgesia e Sedação e
elaborados com vieses científicos.
Inicialmente, acreditava-se nos benefícios da sedoanalgesia profunda. Em 2002, a Society of
Critical Care Medicine recomendou que o grau de sedação fosse avaliado regular e individualmen-
te para cada paciente. A mesma instituição orientava que os sedativos de primeira escolha fossem
os benzodiazepínicos, sendo que o midazolam deveria ser usado para pacientes com agitação
aguda e por curto prazo (entre 48 e 72 horas) e que, após esse período, deveria ser prescrito o lo-
razepam para sedação contínua. Para outras situações, em que era desejável o despertar rápido,
foi recomendado o uso de propofol. Essas diretrizes também orientaram a titulação da dose do
sedativo, ou uma estratégia de despertar diário. O delirium foi discutido brevemente, com ênfase
na necessidade rotineira de rastrear sua instauração e na prescrição de haloperidol para o trata-
mento da condição.
Nas diretrizes de 2013, o termo “analgossedação” começou a ganhar destaque. Nesse procedi-
mento, a analgesia é primariamente prescrita e só depois, a partir da necessidade de cada pacien-
te, é realizada a sedação. Na mesma publicação, também ficou evidente a importância de priorizar
a não sedação ou sedação leve, a menos que a sedação profunda fosse clinicamente recomendada.
212 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Em 2018, as “Diretrizes de Prática Clínica para Prevenção e Tratamento da Dor, Agitação/


Sedação, Delirium, Imobilidade e Interrupção do Sono em Pacientes Adultos na UTI” (PADIS),
atualizaram as recomendações já existentes, acrescentando novas orientações.

Dor
O entendimento e o manejo da dor são complexos, na medida em que aspectos subjetivos,
como percepções e níveis de tolerabilidade a ela, são bem variáveis.
A dor é descrita como o principal fator estressante no processo de internação e, em pacien-
tes de UTI, pode se desenvolver por diferentes causas, como: tubo endotraqueal, mudança de
decúbito, curativo, lesão cirúrgica, sondas, cateteres, escaras, punção venosa ou arterial, drenos e
traumas. O controle álgico deve ser prioridade nos cuidados de pacientes críticos, devendo a dor
ser prevenida e tratada.
A medida padrão de referência da dor deve ser o autorrelato do paciente, usando a Escala
Numérica de Dor de 0 a 10 (Numeric Rating Scale), podendo ser realizada verbal ou visualmen-
te 1. Quando o paciente é incapaz de se comunicar, deve-se utilizar a escala comportamental
Behavioral Pain Scale (BPS), que tem escores de 3 a 12 para características como: expressão fa-
cial, movimentos de membros superiores e sincronia (adaptação) com o ventilador1. Nessa escala,
quando o escore resultante for > 4, interpreta-se que o paciente apresenta dor inaceitável e deve
ser tratada. Vale ressaltar que os sinais vitais, como frequência cardíaca (FC), pressão arterial (PA),
frequência respiratória (FR) e saturação de oxigênio (SpO2), não são considerados indicadores vá-
lidos para a análise de dor em pacientes de UTI e que, quando estiverem alterados, devem somen-
te suscitar a necessidade da avalição apropriada1.
Os opioides continuam sendo uma das principais classes de medicamentos para o controle
da dor na UTI1. Porém, devido à relevância de seus efeitos colaterais, progressivamente ganha des-
taque a terapia multimodal como a primeira abordagem analgésica1, em que os agentes adjuvan-
tes devem ser escolhidos de acordo com as características individuais dos pacientes, assim como
dirigidos aos seus sintomas específicos, buscando, sempre, melhores resultados.
Os analgésicos mais usados para suprimir dores leves são a dipirona e o paracetamol2. Na
eventualidade de ocorrerem dores mais intensas, esses analgésicos podem ser associados a opioi-
des1,2. Sugere-se, também, a prescrição dos anti-inflamatórios não-esteroidais (AINES), com res-
salvas em pacientes mais críticos devido aos seus maléficos efeitos colaterais gástricos e renais1,2.
A analgesia adequada evita, ou pelo menos reduz, a necessidade de sedação, evidenciando
que o manejo eficiente da dor, além de aliviar a sensação desagradável, evitando processos desne-
cessários e\ou precoces de sedação.

Agitação/sedação
A prescrição de sedativos geralmente é realizada para aliviar a ansiedade, para reduzir o es-
tresse de procedimentos e para evitar danos aos próprios pacientes ou aos profissionais de saúde,
causados pela agitação. Ressalta-se, porém, que a agitação não deve ser uma indicação direta e
isolada para a sedação. Sempre que ela ocorrer, deve-se buscar a causa específica -dor, ansiedade,
delirium- e essa causa tem de ser tratada adequadamente.
A necessidade de sedação deve ser sempre avaliada e, se o procedimento for considerado
essencial, também é importante decidir quanto à forma de executá-lo, à periodicidade de infusão
A n a l g e s i a , S e d a ç ã o e D e l i ri u m 213

necessária e à melhor droga para a situação clínica apresentada, visto que a sedação excessiva se
associa a maior duração da ventilação mecânica, maior permanência na UTI, aumento de casos
de delirium e maior mortalidade.
Segundo as “Diretrizes para Sedação e Analgesia em adultos em Terapia Intensiva”, o alvo de
sedação deve ser avaliado regularmente para cada paciente usando escalas válidas e confiáveis,
como a “Escala de Agitação e Sedação de Richmond” (RASS)1, ver Tabela 28.1.

Tabela 28.1. Escala de Agitação e Sedação de Richmond (RASS)


Pontos Categoria Definição
4 Combativo Violento, podendo apresentar risco para profissionais.
3 Muito agitado Agressivo física e verbalmente, podendo remover tubos e cateteres.
2 Agitado Movimentação frequente.
1 Inquieto Ansioso, mas sem movimentos agressivos e vigorosos.
0 Alerta e calmo Atento aos estímulos, mas sem agitação.
-1 Sonolento Facilmente acordado, mantendo contato visual mais de 10 segundos.
-2 Sedação leve Acordado com estímulo verbal, mas não mantém contato visual mais de 10 segundos.
-3 Sedação moderada Mantém movimentos e abertura ocular com estímulo verbal, mas não mantém contato visual.
-4 Sedação intensa Não responde a contato verbal, mas mantém movimento e abertura ocular ao contato físico.
-5 Não desperta Não apresenta nenhuma resposta a estímulo verbal ou físico.
Interpretação: i) nota inferior a zero = sedação em algum grau; ii) nota zero: alerta, sem agitação ou sedação; iii) nota superior a zero: agitação em
algum grau. Autoria própria.

A diretriz de 2013 já sugeria o emprego de sedação leve, quando necessária ela fosse, com
tentativas diárias de despertar o paciente, além de privilegiar outros fármacos em detrimento dos
benzodiazepínicos2. Como forma de manter um nível de sedação leve, ganhou destaque a inter-
rupção diária de sedação (IDS) e a sedação controlada pela enfermagem (SCE)1. Na IDS, a cada
dia, durante um período de tempo, a medicação do paciente é interrompida, permitindo que eles
acordem e que apresentem respostas, conseguindo, assim, uma pontuação de -1 a +1 na escala
RASS. Na SCE, é definido um protocolo de sedação pelos enfermeiros à beira do leito, determi-
nando a escolha dos sedativos e titulando esses medicamentos para direcionar e para atingir os
protocolos de sedação.
De acordo com as diretrizes de 2013, os sedativos não benzodiazepínicos, como propofol e
dexmedetomidina, são preferíveis em detrimento dos sedativos benzodiazepínicos1. As diretrizes
de 2018 por sua vez, sugerem que, nos pacientes pós-cirúrgicos cardíacos, a prescrição de pro-
pofol tem mais benefícios quando comparado aos benzodiazepínicos1. Em pacientes clínicos ou
naqueles submetidos à cirurgia não cardíaca, a prescrição tanto do propofol, quanto de dexme-
detomidina, comparados aos benzodiazepínicos, apresentam bons resultados1. Infusões de ben-
zodiazepínicos, porém, foram associadas a maior risco de morte comparado ao propofol. Além
disso, o tratamento prolongado com benzodiazepínicos resulta em dependência fisiológica e, por
isso, sua redução, deve ser gradual, não abrupta, pode precipitar uma síndrome de abstinência
iatrogênica, que pode estar associada a agitação, a delirium e a prolongamento do tempo de ven-
tilação mecânica.
214 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

O propofol tem características sedativas, ansiolíticas, hipnóticas e anticonvulsivantes. Deve


ser prescrito de forma cuidadosa para pacientes instáveis hemodinamicamente, devido ao seu
potencial de causar hipotensão. Ademais, o fármaco pode causar a “Síndrome de infusão do pro-
pofol”, quando usado em alta dosagem ou por tempo prolongado, levando a um quadro grave e
irreversível de acidose metabólica, de hiperlipidemia, de arritmias e de parada cardiorrespiratória.
A dexmedetomidina, por sua vez, tem características sedativas e analgésicas e não causam
depressão respiratória, mas pode induzir a hipotensão e a bradicardia.
Os benzodiazepínicos possuem atividade sedativa, ansiolítica, anticonvulsivante e podem
causar amnésia anterógrada. Devem ser administrados com cautela, pois, quando administrados
em bolus, podem causar hipotensão. Além disso, a interrupção do fármaco, após aproximada-
mente três dias de uso, pode causar crise de abstinência, relacionando-se, então, a quadros de
delirium. Em idosos e em pacientes renais crônicos, ocorre prolongamento de seu efeito devido à
menor velocidade de depuração corporal.
Como já relatado, manter o paciente acordado, calmo e interativo logo após a intubação, é
o alvo principal e, se necessário, devem ser usados sedativos de fácil titulação e de curta dura-
ção. Entretanto, em alguns casos a sedação profunda ainda se faz necessária, como é verdade na
síndrome da angústia respiratória do adulto (SDRA) grave, nas hipoxemias refratárias em que a
pronação é indicada e no controle de pressão intracraniana2. Ainda nesses casos, a necessidade de
sedação profunda deve ser avaliada diariamente, e, assim que possível, os medicamentos devem
ser rapidamente reduzidos ou retirados.
Além dos efeitos já descritos, os sedativos também são capazes de induzir sonolência. Por
isso, seu uso pode ser considerado nas UTI’s, tendo em vista a privação do sono frequente nessa
população. Contudo, estudos mostram que a prescrição desses medicamentos não provoca au-
mento da proporção do sono REM repousante2 e, portanto, a sedação não deve ser aumentada
à noite com o objetivo de promover o sono. Para esse fim, a melatonina e outros hipnóticos não
benzodiazepínicos podem ser considerados, assim como as medidas não farmacológicas3.

Delirium
O delirium é uma síndrome clínica que ocorre pelo rebaixamento do nível de consciência,
caracterizado por pensamento desorganizado ou por desatenção2. Geralmente, tem início sú-
bito e sua evolução é flutuante ao longo do dia, podendo manifestar quadros de agitação e de
alucinação. Mais comum em idosos e em pacientes hospitalizados, e é fundamentada na com-
plicação de distúrbios infecciosos, tóxicos ou metabólicos. Sua incidência é maior em pacientes
de UTI, estando presente em 80% dos pacientes submetidos à ventilação mecânica (VM) e em
30-50% dos pacientes que não estão em VM. É uma manifestação grave, indicando instabilidade
clínica de base e é associada a aumento do tempo de internação e a maior mortalidade. A sín-
drome pode estar associada a vários fatores de risco, como os fatores específicos do paciente
– idade, tabagismo, etilismo, depressão, demência, comprometimento auditivo e/ou visual –, e
os fatores iatrogênicos – imobilização, polifarmácia, privação do sono, restrição física, solidão,
drogas psicoativas1,2,4.
Sua fisiopatologia é complexa e multifatorial, com alterações nas vias de sinalização inflama-
tória, metabólica e neurotransmissora. Sabe-se que pacientes com delirium apresentam ativida-
des corticais e subcorticais alteradas. Além disso, a deficiência colinérgica e o excesso de dopamina
também podem ter relação com a manifestação. Para desencadear o delirium, a ativação de uma
resposta inflamatória parece ser importante que, por aumento de citocinas, pode levar à ativação
A n a l g e s i a , S e d a ç ã o e D e l i ri u m 215

endotelial, à mudança no fluxo sanguíneo local e à apoptose neuronal, tendo como consequência
a diminuição da atividade neuronal e a flutuação do nível de consciência.
O delirium pode ser classificado, clinicamente, como:
• Hipoativo, quando o paciente apresenta letargia, redução da mobilidade, desatenção,
sonolência, olhar fixo, discurso raro ou lento. Apesar de ser comum e o mais relacionado
à mortalidade, frequentemente não é diagnosticado;
• Hiperativo, quando o paciente apresenta agitação psicomotora, alucinações, desatenção,
verborreia e pode representar risco para si ou para a equipe de saúde. A condição precisa
ser controlada imediatamente, sendo necessária, por vezes, contenção física até que o
paciente se acalme. Apesar de esse tipo ser mais facilmente identificado, ele é responsável
por apenas 1,6% dos casos, sendo o delirium tipo misto (hipoativo e hiperativo) responsável
por 54,1% do total de casos.
Os exames complementares podem ser solicitados para diagnosticar a causa precipitan-
te ou para diagnosticar outras possíveis causas de rebaixamento do nível de consciência, sendo
importante avaliar a possibilidade de hipoxemia, de hipoglicemia, de acidoses respiratória ou
metabólica2.
O diagnóstico do delirium é basicamente clínico e, por não haver um método específico para
seu diagnóstico, apenas 30% dos casos são detectados. Um dos instrumentos mais usados para a
identificação de delirium é o Confusion Assessment Method (CAM)1, um método rápido, de fácil
aplicação e que apresenta 98% de acurácia. Nele são avaliados:
• 1 = mudança aguda no status mental com curso flutuante;
• 2 = desatenção;
• 3 = pensamento desorganizado;
• 4 = alteração do nível de consciência. O diagnóstico da condição é concluído se as
condições 1 e 2 estiverem necessariamente presentes e associadas ou à condição 3 ou à
condição 4.
É importante, também, diferenciar delirium de demência e de doença psiquiátrica, por meio
da análise dos seguintes critérios, típicos do delirium: instalação (abrupta), evolução em 24 horas
(flutuante), atenção (reduzida), consciência (flutuante), orientação (alterada), memória (altera-
da), percepção (alucinações), pensamento (desorganizado), linguagem (lentificada).
O monitoramento diário do delirium é importante pela possibilidade do reconhecimento
precoce, que pode acelerar a avaliação e a intervenção, afinal, a presença da condição induz um
aumento de 10% no risco relativo de mortalidade, para cada dia de seu desenvolvimento.
O delirium pode ser evitado por meio de orientação adequada e por meio de ações para
reduzir a privação do sono e para reduzir a imobilização intensa. Ademais, ações que visam o
reconhecimento precoce da condição, assim como o reconhecimento dos fatores de risco pre-
sentes, podem ser depreendidas. Por fim, visar o conforto do paciente por meio de analgesia
adequada e de atitudes que evitam a constipação ou a retenção urinária, é importante. A diretriz
de 2018 sugere não prescrever o haloperidol, a dexmedetomidina ou a cetamina para prevenir
o delirium1.
Quando detectado, o delirium deve ser avaliado e tratado da maneira adequada, descartando
sempre as causas infecciosas. Os antipsicóticos são geralmente prescritos, mas devem ser exclusi-
vos para casos de agitação e a equipe assistencial deve ter atenção para a manifestação dos possí-
veis efeitos colaterais desses fármacos, como a reação extrapiramidal.
216 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

A diretriz de 2018 sugere não usar rotineiramente o haloperidol ou a estatina para o trata-
mento da síndrome. A prescrição da estatina, apesar da falta de estudos conclusivos, vem sendo
discutida pelo seu efeito anti-inflamatório e suposta modulação das vias moleculares da inflama-
ção. Como visto anteriormente, a resposta inflamatória é um processo importante no desenvol-
vimento do delirium; portanto estudos mais aprofundados e com metodologias mais adequadas
podem, futuramente, mostrar possíveis benefícios da estatina em pacientes da UTI para a preven-
ção e para o tratamento de delirium.
Quando apresentam, além do delirium, ansiedade, medo, alucinações ou agitação excessiva,
os pacientes podem se beneficiar da prescrição de curto prazo do haloperidol ou de um antipsi-
cótico atípico1. Para pacientes em ventilação mecânica que apresentam agitação intensa – difi-
cultando o desmame –, a diretriz sugere a prescrição de dexmedetomidina1, mas seu papel em
condições sem agitação ou com agitação leve permanece incerta. As doses terapêuticas recomen-
dadas, dos agentes descritos neste capítulo, estão expostas na Tabela 28.2.
É importante ressaltar que várias ações não farmacológicas podem ser relevantes por atua-
rem na redução da dor, na redução da ansiedade do paciente e, assim, na prevenção do delirium,
como: exposição à luz natural durante o dia, silêncio e ambiente escuro durante a noite, tranqui-
lidade, comunicação efetiva e conversação, presença da família, musicoterapia, terapia de relaxa-
mento, cuidado espiritual, atividades distrativas, massagens, remoção precoce de drenos e início
precoce da nutrição enteral e da mobilização1-4.

Tabela 28.2. Drogas e dosagens recomendadas para analgesia, para sedação


ou para controle do delirium, conforme as indicações
Drogas Dosagens
Tramadol Bolus 50-100 mg, manutenção 6/6 h ou 8/8 h
Fentanil Bolus 25-100 µg, manutenção 0,5-5 µg/kg/h
Morfina Bolus 2-5 mg, manutenção 0,05-0,1 mg/kg/h
Dipirona Bolus 2 g IV 6/6 h
Paracetamol Bolus 1 g IV 6/6 h
Propofol Bolus 0,5-3 mg/kg, manutenção 05-5 mg/kg/h
Dexmedetomidina Manutenção 0,2-1,5 µg/kg/h
Diazepan Bolus 2-10 mg, manutenção 4/4 h ou 6/6 h
Midazolan Bolus 2-5 mg, manutenção 0,02-0,6 mg/kg/h
Haloperidol 0,5-1,0 mg a cada 12 horas
Risperidona 0,5-1,0 mg a cada 12 horas
Quetiapina 12,5-50 mg a cada 12 horas
Olanzapina 2,5-5,0 mg a cada 24 horas
Dados retirados de i) Medicina intensiva: abordagem prática, 20192; ii) Medicina de emergência: abordagem
prática. 2020:555-5784. Autoria própria.
A n a l g e s i a , S e d a ç ã o e D e l i ri u m 217

Pontos-chave
• O controle das situações desconfortáveis é importante para evitar complicações do
quadro clínico e prolongamento da permanência do paciente na UTI;
• A avaliação da dor deve ter prioridade e ser rotineira. Seu tratamento deve ser feito
pela abordagem da terapia multimodal, buscando sempre poupar e/ou diminuir o
uso de opioides, priorizando a analgossedação;
• Sempre que possível, deve-se priorizar a não sedação. Caso seja estritamente
necessária, deve-se manter sedação leve com interrupção diária;
• O delirium é um evento indesejável e muito presente em pacientes de UTI, estando
associado ao aumento de tempo de internação e de mortalidade, devendo, portanto,
ser prevenido e reconhecido precocemente;
• Dor, agitação e delirium são processos que pioram o quadro do paciente e podem ser
evitados por meio tanto de medidas farmacológicas quanto de não farmacológicas,
o que exige o envolvimento de toda equipe de saúde.

Leitura sugerida
1. Devlin JW, Gélinas C, Nunnaily ME, et al. Diretrizes de Prática Clínica para Prevenção e Tratamento da Dor,
Agitação/Sedação, Delirium, Imobilidade e Interrupção do Sono em Pacientes Adultos na UTI. Critical Care
Medicina, 2018.
2. Azevedo LCP, Taniguchi LU, Ladeira JP, Martins HS, Velasco IT. Medicina intensiva: abordagem prática. 2020.
Barueri: Manole, 2020.:555-78.
3. Devlin JW, Roberts RJ. Pharmacology of commonly used analgesics and sedatives in the ICU: benzodiazepines,
propofol and opioids. Crit Care Clin, 2009; 25: 431-49.
4. Velasco IT, Neto RAB, Souza Hp, et al. Medicina de Emergência: abordagem prática, 2019.Barueri, Manole, 2019.:
174-92.
5. Aissaoui Y, Zeggwagh AA, Zekraoul A et al. Validation of a behavioral pain scale in critically ill, sedated, and
mechanically ventilated patients. Anesth Analg, 2005; 101:1470-6.
6. Ahlers SJ, van der Veen AM, Dijik M et al. The use of the Behavioral Pain Scale to assess pain in conscious
sedated patients. Anesth Analg. 2010; 110: 127-33.
7. Devlin JW, Roberts RJ. Pharmacology of commonly used analgesics and sedatives in the ICU: benzodiazepines,
propofol and opioids. Crit Care Clin, 2009; 25: 431-49.
8. Gholami B, Haddad WM, Tannenbaum AR. Agitation and pain assessment using digital imaging. Conf Proc IEE
Eng Med Biol Soc, 2009; 2176-9.
9. Mehta S, McCullagh I, Burry L. Current sedation practices: lessons learned from international surveys. Crit Care
Clin, 2009; 25: 471-88.
10. Mehta S, Spies C, Sehabi Y. Ten tips for ICU sedation. Intensive Care Medicine. 2017
11. Riker RR, Fraser GL. Altering intensive care sedation paradigms to improve patient outcomes. Crit Care Clin, 2009;
25: 527-38.
12. Salluh JIF, Pandharipande P. Prevenção de delirium em pacientes críticos: um recomeço? Rev Bras Terapia
Intensiva, 2012, v.24.
13. Sessler CN, Pedram S. Protocolized and target-based sedation and analgesia in the ICU. Crit Care Clin, 2009; 25:
489-513.
14. Suominen H, Lundgrén-Laine H, Salantera S et al. Evaluating pain in intensive care. Stud Health Technol Inform,
2009; 146: 192-6.
Encefalopatias 29

Paula Plisker Barbosa de Freitas


Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
Define-se como encefalopatia o processo que afeta a função cortical do cérebro a partir de
uma disfunção bioquímica cerebral. Trata-se de uma desordem neurológica, sem prévia patologia
estrutural ou eletrofisiológica, consequente a uma disfunção sistêmica, que pode se manifestar a
partir de diversas causas, como disfunção orgânica, distúrbios eletrolíticos, sepse, distúrbios me-
tabólicos e intoxicação.
A entidade é de ocorrência comum em pacientes internados nas unidades de terapia inten-
siva, podendo, em alguns casos, levar a danos cerebrais permanentes se não for reconhecida e
tratada rapidamente.
Os fatores de risco mais comuns para desenvolvimento de encefalopatia são falência de ór-
gãos, idade maior que 60 anos, uso de drogas tóxicas ao sistema nervoso central (SNC) e graves
deficiências nutricionais, como aquelas que ocorrem nos pacientes acometidos por câncer e nos
que abusam de álcool. Outros fatores incluem infecções, febre, doenças neurológicas crônicas e
distúrbios endócrinos.

Apresentação clínica
Alterações cognitivas presentes nos quadros de encefalopatia incluem agitação, confusão
mental, rebaixamento de consciência, desorientação no tempo e no espaço, alterações no ciclo
sono-vigília, alucinações e falhas na memória, podendo evoluir para estado de coma rapidamen-
te. As mudanças comportamentais observadas podem ocorrer em horas ou até mesmo em dias,
com flutuações. Sinais de hiperatividade simpática como taquicardia, hipertensão e tremor usual-
mente estão presentes. A instalação aguda pode se manifestar como crises epilépticas, geralmente
tonicoclônicas generalizadas.
220 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

A avaliação do paciente deve preconizar exame neurológico, reflexo pupilar e do nervo


oculomotor, padrão respiratório, resposta motora e reflexos tendinosos. As pupilas geralmente
estão contraídas e há reflexo oculomotor preservado, mesmo em pacientes comatosos, exceto
se a causa da encefalopatia for intoxicação por anticolinérgicos ou por glutetimida. Os movi-
mentos oculares estão preservados, mas pacientes em coma podem apresentar movimentações
desconjugadas. O padrão respiratório é ponto importante para diagnóstico de encefalopatia e
pode sugerir alguma etiologia. Pacientes letárgicos tendem a respirar em ciclos de hiperventi-
lação com momentos de apneia. Pacientes com overdose por drogas depressoras do SNC, com
falência pulmonar ou com alcalose metabólica tendem a hipoventilar. Encefalopatia metabólica
por uremia ou hipóxia apresenta-se com respiração de Cheyne-Stokes. Atividade motora anor-
mal é comum na maioria das causas de encefalopatia e pode ocorrer na forma de tremores, mio-
clonia, rigidez ou coreoatetose. Tremores ocorrem na maioria das vezes nas encefalopatias por
hipoglicemia, por tireotoxicose, por uremia aguda, por hipercapnia ou por intoxicação com dro-
gas simpaticomiméticas. Mioclonia multifocal é vista mais comumente nas encefalopatias por
falência hepática, por falência pulmonar, por intoxicação com metaqualona ou drogas alucinó-
genas, além das encefalopatias hipóxico-isquêmicas. Rigidez ou espasmos musculares genera-
lizados estão presentes na encefalopatia metabólica mais grave e ocorrem nos estágios finais
de falência hepática, de hipoglicemias severas, de falência renal aguda, de hipertermia ou de
hipotermia, podendo levar o paciente a quadros de estupor ou de coma. Distonia pode ocorrer
e geralmente tem como etiologia a intoxicação por anfetamina ou por fenotiazina. Coreoatetose
ocorre na falência hepática crônica, endocardite subaguda, diálise crônica, hipoglicemia crôni-
ca, hiperparatireoidismo crônico, entre outros. No exame dos reflexos tendinosos, geralmente
há hiperreflexia difusa e simétrica, inclusive com extensão no reflexo cutâneo plantar. Algumas
respostas autonômicas anormais na encefalopatia metabólica podem causar significante mor-
bimortalidade e devem ser prontamente identificadas e tratadas. Exemplo delas é a hipotensão
não responsiva a volume, que pode estar relacionada a um quadro de sepse sem foco evidente
ou de intoxicação por barbitúricos/opioides. Convulsões são sintomas significantes, mais co-
mumente presentes nas encefalopatias por uremia, por hipoglicemia, por falência pancreática
e nos quadros de acidose metabólica, ocorrendo, principalmente, se a instalação dessas condi-
ções for aguda. O controle da convulsão somente será alcançado com o devido tratamento da
causa subjacente. 

Etiopatogênese
Encefalopatia metabólica
Sepse é a causa mais comum de encefalopatia metabólica e sua presença está relacionada
a aumento de mortalidade. A fisiopatologia é multifatorial, ocorrendo a partir de anormalidades
na microcirculação, de alterações na permeabilidade da barreira hematoencefálica, da presença
de citocinas inflamatórias, da redução da quantidade de neurotransmissores monoaminérgicos,
do aumento da quantidade de falsos neurotransmissores de octopaminas, além das isquemias
secundárias a trombos formados nos órgãos acometidos. Hipoxemia e hipercapnia podem cau-
sar encefalopatia em pacientes com falência pulmonar, como é o caso de pacientes com doença
pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), por exemplo. O principal fator no desenvolvimento da
encefalopatia nesses pacientes é o aumento rápido da PCO2, que pode ser agravado, ainda, por
E n c e f a l o p a t i a s 221

uso de sedativos, por falência cardíaca e por hipoperfusão renal. Ademais, a liberação exagerada
de insulina, o uso de agentes hipoglicemiantes, o alcoolismo e a doença hepática podem cursar
com hipoglicemia, desencadeando, assim, a encefalopatia hipoglicêmica. Por sua vez, o estado
hiperosmolar hiperglicêmico e a cetoacidose diabética favorecem uma desidratação neuronal
devido à hiperosmolaridade sanguínea instituída, levando a disfunções neurológicas. 

Encefalopatia hepática
A fisiopatologia é multifatorial e está relacionada ao aumento da concentração de amônia,
de falsos neurotransmissores, do metabolismo anormal de ácidos graxos, de danos causados por
radicais livres, entre outros. Edema cerebral é encontrado em 80% dos pacientes com encefalo-
patia hepática aguda, tanto por edema citotóxico quanto por aumento da permeabilidade da
barreira hematoencefálica. Encefalopatia de Wernicke pode desenvolver-se em pacientes alcoo-
listas por deficiência na absorção de tiamina, afinal, a vitamina atua como cofator na oxidação
cerebral de glicose. 

Encefalopatia urêmica
É um sinal de falência renal avançada e geralmente se instala de forma aguda. Pode ocorrer,
também, como consequência de diálise crônica. As toxinas dialisáveis responsáveis pela encefalo-
patia urêmica ainda não foram completamente identificadas.

Encefalopatia por distúrbios eletrolíticos


Hipo e hipernatremia são causas frequentes de encefalopatia, por alterarem a osmolalidade
do líquido extracelular. A hiponatremia não é comumente diagnosticada fora do ambiente hos-
pitalar, exceto em crianças acometidas por diarreia severa cuja reposição oral esteja inadequada.
Distúrbios das concentrações de potássio, de magnésio e de fosfato também podem desencadear
a encefalopatia.

Diagnóstico
O diagnóstico de encefalopatia baseia-se na exclusão de outras condições que podem causar
estado confusional agudo ou rebaixamento do nível de consciência e na identificação de possíveis
etiologias subjacentes. A história do paciente e de suas medicações, além do exame físico bem
realizado, auxilia na determinação da causa, embora grande parte dos quadros permaneça sem
etiologia definida.
Exames laboratoriais sugeridos, na suspeita de encefalopatia, incluem hemograma com-
pleto, gasometria arterial e perfil de coagulação, além da mensuração sanguínea da glicemia,
dos eletrólitos, do lactato, das transaminases, da amônia, da ureia, da creatinina, das bilirrubi-
nas e da osmolaridade1. Os exames toxicológicos devem ser solicitados se houver a suspeita de
intoxicação e o exame de cultura do líquor é recomendado se houver a suspeita de infecção do
SNC. Exames de função tireoidiana, de vitamina B12 e de concentração do cortisol, por sua vez,
devem ser solicitados se houver a suspeita de causas endócrinas.
222 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Exames de neuroimagem estão indicados quando sinais focais forem diagnosticados ao


exame físico ou quando existir a suspeita de hematoma subdural, a partir da história clínica1. O
Eletroencefalograma (EEG) pode tanto confirmar disfunção cerebral global, quanto excluir con-
vulsões subclínicas com grande sensibilidade. As ondas do EEG evidenciam encefalopatia leve
quando existe redução da frequência alfa normal – 8 a 13 Hz –, moderada quando há a presença de
frequências teta – 4 a 8 Hz – ou profunda na presença de frequências delta ≤ 4Hz)1,3,4.

TRATAMENTO
O tratamento da encefalopatia consiste em tratar a causa do quadro, sendo, então, variável
de acordo com a etiologia.
Na encefalopatia causada pela sepse, o tratamento consiste, primariamente, no controle da
infecção1,2,4. Na encefalopatia hepática, por sua vez, o tratamento inicia-se com a correção dos
parâmetros de coagulação, das anormalidades eletrolíticas, da depleção de volume e da hipoxe-
mia, seguido por identificação e pelo tratamento de possível infecção desencadeante3,4. O alvo
terapêutico, nesse caso, será a redução dos níveis de amônia circulantes, cuja produção aconte-
ce, em grande parte, nos intestinos por ação de bactérias locais e dos enterócitos. Antibióticos
como neomicina, rifaximina e vancomicina são úteis nesse propósito, associados à lactulona e à
restrição dietética. A lactulona possui efeito catártico, reduz o pH luminal colônico, favorecen-
do, assim, a conversão de amônia em amônio, aumenta a população de lactobacilos não produ-
tores de amônia e, ainda, aumenta a incorporação de amônia pelas bactérias locais intestinais.
Condutas que reduzam a tumefação cerebral devem ser empregadas. O transplante hepático
pode ser considerado como alternativa terapêutica, afinal, a mortalidade desses pacientes em
um ano, sem tratamento adequado, é maior que 50%. Outros alvos terapêuticos incluem agentes
que diminuam os níveis séricos de amônia, como L-ornitina, L-aspartato e L-ornitina fenilace-
tato. A encefalopatia urêmica, por sua vez, é tratada com diálise, mas as alterações cognitivas
podem persistir mesmo após vários dias do tratamento em pacientes com injúria renal crôni-
ca1,5. Nas encefalopatias fundamentadas em distúrbios eletrolíticos, a correção iônica cuidadosa
mostrou-se imperiosa, devendo, a equipe, evitar reposição abrupta para prevenir a deflagração
de danos neuronais por desmielinização6,7. O tratamento da hipernatremia é determinado pela
causa de base da afecção. A volemia e o estado neurológico do paciente conduzem a urgência
da correção eletrolítica. O tratamento no estado hiperglicêmico hiperosmolar e na cetoacidose
metabólica baseia-se na intensa hidratação endovenosa e na administração de insulina, se os
níveis séricos de potássio forem seguros8,9. Na encefalopatia de Wernicke, tiamina endovenosa
pode reverter o quadro em dias ou em semanas, podendo, mesmo com tratamento, haver danos
cognitivos e de memória permanentes.
E n c e f a l o p a t i a s 223

Pontos-chave
• Os principais fatores de risco para encefalopatias são falência de órgãos, idade maior
que 60 anos, drogas tóxicas ao SNC e pacientes com graves deficiências nutricionais;
• As principais alterações cognitivas presentes nas encefalopatias incluem agitação,
confusão mental, rebaixamento do nível de consciência, desorientação, mudanças
no ciclo sono-vigília, alucinações e falhas na memória, que podem evoluir para
estado de coma rapidamente;
• As etiologias mais comuns das encefalopatias incluem infecções, falência hepática,
distúrbios metabólicos e eletrolíticos;
• O diagnóstico de encefalopatia envolve a avaliação clínica do paciente e os exames
laboratoriais;
• O tratamento da encefalopatia perpassa pelo controle da etiologia e, por isso, é
variável.

Leitura sugerida
1. Chen R, Young GB. Baillere´s Clinical Neurology. Bolton CF editora. Londres, 1997.
2. Earnest MP, Parker WD. Management of the acutely neurological patient. Grotta J editora. New York, 1993.
3. Plum F, Posner JB. The diagnosis of stupor and coma. FA Davis Company, Philadelphia, 1982.
4. Young GB, DeRubeis DA. Coma and Impaired Consciousness. Bolton CF editora, 1998
5. Bolton CF, Young GB. Neurological Complications of Renal Disease. Bolton CF editora, 1990.
6. Votey SR, Peters AL, Hoffman JR. Disorders of water metabolism: hyponatremia and hypernatremia. Emerg Med
Clin North Am 1989; 7:749.
7. Wijdicks E. Neurologic manifestations of acid base derangements, electrolyte disorders, and endocrine crises. In:
Neurology of Critical Illness, Wijdicks E (Ed), FA Davis Company, Philadelphia 1995. p.104.
8. Lorber D. Nonketotic hypertonicity in diabetes mellitus. Med Clin North Am 1995; 79:39.
9. Harden CL, Rosenbaum DH, Daras M. Hyperglycemia presenting with occipital seizures. Epilepsia 1991; 32:215.
10. Damiani, Daniel et al. Encefalopatias: etiologia, fisiopatologia e manuseio clínico de algumas das principais formas
de apresentação da doença. Rev. Bras. Clin. Med, v.1, n.11, p.67-74,2013.
11. Irwin, Richard S., RIPPE, James M. Irwin and Rippe’s intensive care medicine. Lippincott Williams & Wilkins, 2018.
Distúrbios Neuromusculares 30

Vinícius Rezende Avelar


Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
Os distúrbios neuromusculares são entidades que afetam os músculos, os nervos e/ou a
junção neuromuscular, conforme explicitado na Tabela 30.1. Frequentemente, essas patologias
requerem a internação do paciente em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), além de cursarem
com alta morbimortalidade. Por isso, dominar as técnicas diagnósticas e de manejo clínico são
essenciais no que tange a melhores prognósticos. Neste capítulo serão abordadas as principais
entidades nosológicas, perpassando por algumas de suas particularidades.

Tabela 30.1. Distúrbios neuromusculares classificados com base na localização anatômica de


acometimento
Localização Anatômica Exemplos
Enteroviroses, principalmente poliomielite; Esclerose lateral
Neurônio motor periférico (corno anterior da medula espinhal)
amniotrófica
Nervo periférico Guillain Barré; Paralisia do carrapato; Polineuropatia do doente crítico
Junção neuromuscular Miastenia gravis; Botulismo
Músculos Miosites; Polidermatomiosite

Adaptada de Kiyomoto BH, Oliveira ASB, Gabbai AA1. Autoria própria.

Síndrome de Guillain-Barré (SGB) – polineuropatia


desmielinizante aguda inflamatória
Definida como uma doença inflamatória aguda dos nervos periféricos e das raízes nervosas,
acomete de 1-2/100.000 pessoas por ano. A incidência aumenta de acordo com a idade, mas está
presente em todas as faixas etárias, principalmente em indivíduos do sexo masculino. Apresenta
226 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

mortalidade de 1 a 5% e seu prognóstico depende, fundamentalmente, da qualidade dos cuidados


prestados na terapia intensiva. Vale considerar, ainda, que SGB é o distúrbio neuromuscular mais
prevalente no ambiente de UTI.

Apresentação clínica
É a causa mais comum de paralisia flácida aguda, de hiporreflexia e de hipotonia. A SGB
pode ser descrita como uma neuropatia de predomínio motor, rapidamente progressiva e rever-
sível. Paresia (fraqueza muscular) e arreflexia são sinais cardinais. Nessa síndrome, paresia facial
é comum e esse achado é útil para estabelecer o adequado diagnóstico diferencial com outras
etiologias de paresia rapidamente progressiva. O curso da doença é característico, existindo uma
fase inicial de progressão em até 2 semanas (70% casos), seguida de estabilidade clínica, e tem
uma duração de 2 a 4 semanas. Vale ressaltar, contudo, que a SGB é uma síndrome heterogênea,
motivo pelo qual existem apresentações diferentes das anteriormente citadas. Nesse sentido, di-
sautonomias acometem cerca de 60% dos pacientes e até 89% dos doentes relatam a sensação de
dor. De qualquer forma, a maioria deles apresentam uma boa recuperação em até 1 ano após o
aparecimento dos sintomas e cerca de 80% voltam a andar após 6 meses da instalação sindrômica.

Etiopatogênese
A SGB é, essencialmente, uma doença inflamatória, patologicamente caracterizada por infil-
trado mononuclear no endoneuro e na bainha de mielina. Desmielinização segmentar multifocal
está presente ao longo dos nervos periféricos, predominantemente nas raízes anteriores. Resulta
de uma resposta imune exagerada e alterada contra componentes do sistema nervoso periféri-
co, estabelecendo um mecanismo de lesão imuno-mediada, ainda não totalmente esclarecido.
Provavelmente, tanto a imunidade celular quanto a humoral participam do processo fisiopatoló-
gico, existindo evidência de possível papel da hipersensibilidade tardia promovida por linfócitos,
além da provável participação de autoanticorpos circulantes contra a bainha de mielina. Cerca de
2/3 dos pacientes relatam histórico de infecção nos últimos 6 meses antes do aparecimento dos
sintomas, o que corrobora a hipótese de que infecções possam atuar como o gatilho para uma
resposta imune cruzada. Nesse sentido, seis patógenos já foram associados à condição, os quais
incluem Campylobacter jejuni, citomegalovirus, vírus da hepatite E e Zika Vírus.

Diagnóstico
É embasado na anamnese e no exame físico dos pacientes e, se necessário, é confirmado pela
eletroneuromiografia2,3. Eletroneuromiografia e estudos de condução nervosa podem diagnosti-
car neuropatia desmielinizante, com degeneração axonal secundária2. Embora o exame possa ser
normal nos primeiros dias, alguns autores reforçam seu valor prognóstico e defendem que pacien-
tes com redução acentuada na amplitude do potencial de ação muscular têm pior recuperação3.
Exames laboratoriais são importantes para excluir outras causas de paresias agudas, como infec-
ções e distúrbios hidroeletrolíticos3. Espera-se, na avaliação liquórica, uma elevação da concen-
tração de proteínas, mantendo a contagem normal de células; entretanto de 30-50% dos pacientes
apresentam concentração proteica normal na primeira semana e de 10-30% na segunda semana
da doença3. Exames de imagem não são necessários para a confirmação, mas podem ser úteis para
excluir diagnósticos diferenciais3.
D i s t ú r b i o s N e u ro m u s c u l a re s 227

Tratamento
O manejo da SGB pode ser dividido em tópicos fundamentais, como se segue:
1. Avaliação da gravidade do caso: atentar-se aos critérios de internação na UTI, que incluem
falência respiratória4 e disfunção autonômica grave são atos imprenscindíveis5;
2. Adequada avaliação da função respiratória: nesses pacientes, a avaliação da função
respiratória deve ser realizada frequentemente, pois até 30% deles precisarão ser
intubados4. A equipe assistencial deve atentar-se à regra do 20/30/40, que sugere manter
a capacidade vital (volume pulmonar com uma expiração forçada após uma máxima
inspiração) abaixo de 20 mL/kg, a PImax (máxima pressão inspiratória) abaixo de
30 cmH2O e a PEmax (máxima pressão expiratória) abaixo de 40 cmH20.4,6 Vale considerar,
porém, que pacientes com acometimento bulbar, apesar de as provas pulmonares
estarem normais, podem se beneficiar de uma intubação protetora7. Nos pacientes
intubados, a decisão de realizar traqueostomia pode ser adiada em até 2 semanas, prazo
rotineiramente preconizado na UTI4;
3. Tratamento farmacológico: é realizado ou com a administração de imunoglobulina
intravenosa (IgIV) ou com a plasmaférese. As duas estratégias são igualmente eficazes
para o tratamento, sendo a IgIV mais disponível e, provavelmente, indutora de menos
complicações3,7. A combinação das duas técnicas não se mostrou mais efetiva3 e a prescrição
de corticoide não é recomendada7. Quanto mais precoce, mais eficaz é o tratamento, o
uso de IgIV deve ser iniciado em até 2 semanas após o aparecimento dos sintomas e o de
plasmaférese em até 4 semanas. Prescrever esses tratamentos, após o período preconizado
para iniciá-los, ainda carece de comprovação na literatura especializada3,7.

Miastenia gravis
A miastenia gravis (MG) é um distúrbio autoimune da junção neuromuscular, especifica-
mente da transmissão pos-sináptica.

Apresentação clínica
Clinicamente é caracterizada por fadigabilidade e por paresia muscular flutuante, piorando
ao longo do dia ou após atividades físicas, e acomete os músculos oculares, bulbares e proximais
dos membros. A MG apresenta subtipos, os quais incluem a forma ocular, que afeta exclusivamen-
te os músculos extrínsecos do globo ocular e o músculo levantador da pálpebra, resultando em
diplopia e ptose, e a forma generalizada, caracterizada por acometimento em grupos musculares
em todo o corpo.

Etiopatogênese
A doença fundamenta-se na presença de autoanticorpos que bloqueiam a transmissão si-
náptica. Os mais estudos nesse sentido são os anticorpos contra o receptor nicotínico de acetilco-
lina (AchR), a tirosina-quina se muscular (MuSK) e a lipoproteína 4 (LRP4).
228 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Diagnóstico
O diagnóstico da MG é confirmado pela dosagem sérica dos anticorpos contra AchR, MuSK
ou LRP4 em indivíduos com características clínicas da doença7. Os testes neurofisiológicos, como
a estimulação nervosa repetitiva ou a eletromiografia de fibra-única, são reservados para indiví-
duos que, mesmo com sintomas característicos, têm as dosagens séricas dos anticorpos negativa7.
Nos quadros agudos com necessidade de urgência diagnóstica, utiliza-se o teste rápido inibidor
de acetilcolinesterase; contudo, resultado negativo dessa propedêutica não exclui a presença da
doença7. A avaliação da função tireoidiana é indicada, pois o hipertireoidismo pode exacerbar a
MG8. Vale considerar, ainda, que aproximadamente 10-15% dos casos representam a manifestação
paraneoplásica do timoma9.

Tratamento
0 tratamento sintomático consiste na prescrição de inibidores de acetilcolinesterase (iAChE),
sendo o brometo de piridostigmina o mais utilizado7,9,10. Essas drogas aumentam a concentra-
ção de acetilcolina na fenda sináptica, por bloquearem a atividade da enzima acetilcolinesterase7.
A terapia imunossupressora, por sua vez, consiste na prescrição de corticoides e de azatioprina
como drogas de primeira linha9,10.

Crise miastênica
A crise é definida como piora da fraqueza muscular respiratória e, consequentemente, evolui
com a necessidade de a equipe instituir a ventilação mecânica. Ela acomete de 10-15% dos pacien-
tes com MG, sendo mais comum nos primeiros 2 anos da doença e no sexo feminino. Raramente,
a crise miastênica é a primeira apresentação da MG. Na maioria dos casos, é desencadeada por
má adesão ao tratamento, por medicações, por infecções, por cirurgias e por hipertireoidismo;
entretanto, na maioria dos pacientes o fator precipitante não é esclarecido. Os pacientes sucumbi-
dos à crise devem ser admitidos em UTI para acompanhamento eficiente da função pulmonar. O
principal tratamento para a crise miastênica é semelhante ao supracitado, exceto pelo fato de ser
urgente e de dever ser associado a altas doses de corticoides.

Polineuromiopatia do paciente crítico


A polineuromiopatia do paciente crítico (PNMC) acomete, aproximadamente, 25-45% dos
pacientes graves internados em terapia intensiva.

Apresentação clínica
Três formas de apresentação são descritas para a condição, cujas características estão descri-
tas na Tabela 30.2.
D i s t ú r b i o s N e u ro m u s c u l a re s 229

Tabela 30.2. Apresentação clínica específica dos subtipos de polineuromiopatia do paciente crítico
Subtipo Clínica
Maior acometimento da musculatura proximal, atrofia muscular, mas existe preservação
Polimiopatia do paciente crítico
sensorial
Maior gravidade na musculatura distal, sem manifestações disautonômicas e os distúrbios
Polineuropatia do paciente crítico
sensitivos associados são leves
Dano na musculatura proximal maior que o da distal, perda sensorial distal e grau variável de
Polineuromiopatia do paciente crítico
atrofia

Dados de Shepherd S, Batra A, Lerner DP11. Autoria própria.

Etiopatogênese
A etiopatogênese é complexa e não está totalmente esclarecida. A Figura 30.1 evidencia os
principais desbalanços da síndrome.

Doença crítica
e liberação de citocinas

Alterações na Alterações Alterações


microcirculação metabólicas elétricas

1. Vasodilatação 1. Hiperglicemia 1. Disfunção dos canais


2. Aumento de 2. Ativação do de sódio da fibra
permeabilidade catabolismo muscular
3. Extravasamento 3. Produção de radicais 2. Alteração da
de leucócitos livres homeostase do cálcio
4. Hipoxemia 4. Hipoalbuminemia 3. Ausência de
excitabilidade celular

Figura 30.1. Principais desbalanços da polineuromiopatia no paciente crítico.


Dados de Shepherd S, Batra A, Lerner DP11. Autoria própria.

Diagnóstico
A suspeita diagnóstica é levantada em pacientes críticos que cursam com paresia periférica
e com dificuldade no desmame da ventilação mecânica11,12. Em seguida, o exame de eletroneu-
romiografia, padrão-ouro para o diagnóstico, deve ser solicitado. Uma vez realizada, a eletroneu-
romiografia pode fazer a diferenciação entre os subtipos da síndrome, além de descartar outras
possíveis etiologias para a paresia instalada11.
230 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tratamento
Não existe um tratamento específico para a condição, motivo pelo qual se baseia em medi-
das suportivas e preventivas7. Os níveis glicêmicos devem ser monitorados, afinal, estudos mos-
tram que a hiperglicemia é fator de risco importante para o desenvolvimento da síndrome11,12.
Estratégias de reabilitação precoce, como movimentação ativa e/ou passiva dos músculos, estí-
mulo elétrico muscular e mudança frequente de decúbito promovem uma recuperação mais rápi-
da, favorecendo menor tempo de ventilação invasiva e de hospitalização12.

Pontos-chave
• Os distúrbios neuromusculares são entidades que afetam os músculos, os nervos e/
ou a junção neuromuscular;
• Pacientes com distúrbios neuromusculares podem evoluir com insuficiência
respiratória e com necessidade de ventilação invasiva;
• A Síndrome de Guillain-Barré é a causa mais comum de paralisia flácida aguda,
hiporreflexia e hipotonia;
• A Miastenia Gravis é caracterizada por fadigabilidade e por fraqueza muscular
flutuante;
• A polineuromiopatia do paciente crítico é aventada em pacientes críticos que
cursam com paresia periférica.

Leitura sugerida
1. Kiyomoto BH, Oliveira ASB, Gabbai AA. Doenças Neuromusculares. Rev Neurociências. 1999;4(2):47–56.
2. Asbury AK, Cornblath DR. Assessment of current diagnostic criteria for Guillain‐Barré syndrome. Ann Neurol.
1990;27(1 S):S21-4.
3. Leonhard SE, Mandarakas MR, Gondim FAA, Bateman K, Ferreira MLB, Cornblath DR, et al. Diagnosis and
management of Guillain–Barré syndrome in ten steps. Nat Rev Neurol. 2019;15(11):671-83.
4. Rach, Efmw, Ebdrc, Afh, Jmm, et al. Supportive care for patients with Guillain-Barre syndrome. Arch Neurol.
2005;62(8):1194-8.
5. Kusunoki S. Autonomic involvement in Guillain-Barré syndrome. Clin Neurol. 2006;46(11):878-80.
6. Damian MS, Srinivasan R. Neuromuscular problems in the ICU. Curr Opin Neurol. 2017;30(5):538-44.
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8. Sanders DB, Wolfe GI, Narayanaswami P. Author response: International consensus guidance for management of
myasthenia gravis: Executive summary. Vol. 88, Neurology. 2017. p. 505-6.
9. Melzer N, Ruck T, Fuhr P, Gold R, Hohlfeld R, Marx A, et al. Clinical features, pathogenesis, and treatment of myas-
thenia gravis: a supplement to the Guidelines of the German Neurological Society. J Neurol. 2016;263(8):1473-94.
10. Sussman J, Farrugia ME, Maddison P, Hill M, Leite MI, Hilton-Jones D. Myasthenia gravis: Association of british
neurologists’ management guidelines. Pract Neurol. 2015;15(3):199–206
D i s t ú r b i o s N e u ro m u s c u l a re s 231

11. Shepherd S, Batra A, Lerner DP. Review of Critical Illness Myopathy and Neuropathy. The Neurohospitalist.
2017;7(1):41-8.
12. Zhou C, Wu L, Ni F, Ji W, Wu J, Zhang H. Critical illness polyneuropathy and myopathy: A systematic review. Neural
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13. Deenen JCW, Horlings CGC, Verschuuren JJGM, Verbeek ALM, Van Engelen BGM. The epidemiology of neuro-
muscular disorders: A comprehensive overview of the literature. J Neuromuscul Dis. 2015;2(1):73-85.
14. Canineu RFB, Cabral MM, Guimarães HP, Lopes RD, Saes LSV, Lopes AC. Polineuropatia no paciente crítico: um
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Acidente Vascular Encefálico 31

Bruna Carolina Horta


Caroline Rodrigues Velten
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
O acidente vascular encefálico (AVE) apresenta em escala mundial a segunda posição dentre
as principais causas de morte, acometendo principalmente adultos e idosos.
O Brasil é o país da América Latina com maior taxa de mortalidade. Entretanto, segundo da-
dos do Ministério da Saúde, houve redução desse índice no último ano, de 39,5 para 35,2 óbitos
por 100 mil habitantes do sexo feminino. Segundo a American Stroke Association, o AVE é definido
como déficit neurológico caracterizado por lesão focal aguda atribuído a uma isquemia cerebral,
hemorragia intracerebral (intraparenquimatosa) ou hemorragia subaracnoidea (HAS).
1. AVE isquêmico (AVEi): corresponde a 80-87% dos acidentes vasculares cerebrais e
consiste em disfunção neurológica devido a interrupção do fluxo sanguíneo em uma
determinada área do encéfalo. Este, por sua vez, é um órgão dependente de glicose e
oxigênio e incapaz de armazenar tais substâncias, necessitando do aporte sanguíneo
constante para o seu funcionamento adequado. Nesse contexto, a isquemia cerebral pode
ser subdividida em trombótica, embólica e por hipoperfusão. No entanto, se o fenômeno
isquêmico for de curta duração, geralmente poucos minutos, e de baixa intensidade com
déficit neurológico passageiro, sem dano tissular irreversível, configura-se como ataque
isquêmico transitório (AIT).
2. AVE hemorrágico (AVEh): consiste em 13-20% do número de casos de AVE e ocorre
devido à ruptura de um vaso sanguíneo intracraniano, ocasionando extravasamento
sanguíneo para o parênquima cerebral (hemorragia intraparenquimatosa) ou para o
espaço subaracnoideo (hemorragia subaracnóidea - HSA).
Cada uma dessas categorias pode ser separada em subtipos que diferem em etiopatogênese,
apresentação clínica, prognóstico e tratamento, como veremos a seguir.
234 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Apresentação clínica
A história do início e a evolução dos sintomas são essenciais para avaliação inicial, e atrasos
no reconhecimento e no atendimento podem tornar o tratamento inviável. O tempo de início
do AVC é calculado como o momento em que os primeiros sintomas foram identificados e, para
pacientes que acordam com sintomas neurológicos, o tempo de início é considerado o momen-
to em que estavam acordados pela última vez e sabidamente livre de sintomas. Os comprome-
timentos neurológicos refletem a área da lesão cerebral e, em geral, são de início súbito, com
evolução variada. Os sintomas mais comuns são fraqueza, perda sensorial, queixas visuais e
disartria. Alguns pacientes apresentam também rebaixamento do nível de consciência, náusea,
vômito e cefaleia (na HSA é usualmente descrita como a “pior dor de cabeça da vida”). Além
disso, se os eventos embólicos afetarem o córtex cerebral, podem ocorrer convulsões. Os sinto-
mas, isoladamente ou em conjunto, não possuem acurácia suficiente para diferenciar entre AVEi
e AVEh.
Deve-se atentar a história pregressa, identificando fatores de risco, como doenças cardio-
vasculares, possíveis diagnósticos diferenciais e particularidades importantes para a decisão tera-
pêutica. Assim, deve-se perguntar sobre enxaqueca, convulsões, trauma, uso de drogas ilícitas e
medicamentos (em especial anticoagulantes), infecções e gravidez.
O exame físico geral inclui avaliação dos sinais vitais e da via aérea. O exame neurológico
concentra-se no padrão e extensão das deficiências, que refletem a localização e a gravidade do
AVE, e pode ser aprimorado pelo uso de escalas padronizadas como National Institute of Health
Stroke Scale (NIHSS) e a de Hunt-Hess. Ademais, o exame cardíaco pode evidenciar a etiologia do
derrame ou complicações cardiovasculares agudas.

Etiopatogênese
AVE isquêmico
Isquemia cerebral trombótica
Consiste em isquemia devido à obstrução de uma artéria, de pequeno ou grande calibre, por
processos intrínsecos da parede vascular levando a danos na região cerebral previamente suprida.
A aterosclerose configura-se como causa mais comum de isquemia cerebral trombótica em
grandes vasos do sistema arterial intracraniano e extracraniano. Essa patologia pode ocasionar
uma região de estenose crítica ou a ruptura de placa com formação de trombo, proporcionando
hipoperfusão em uma região cerebral. Ocorre comumente em pontos de ramificação vascular em
que há fluxo turbulento, como na bifurcação da artéria carótida comum, na origem da artéria ver-
tebral, na junção vertebrobasilar ou na origem das artérias cerebrais anterior ou média.
A lipo-hialinose e a formação de micro ateroma são geralmente consequência de Hipertensão
Arterial Sistêmica (HAS) e configuram-se como causas comuns da isquemia cerebral trombótica
de pequenos vasos, o denominado AVE lacunar. Ocorre em pequenas artérias perfurantes oriun-
das da artéria cerebral média, das artérias cerebral posterior e da artéria basilar. O espessamento
do vaso pode ocasionar redução do lúmen, provocando aparecimento de pequena região de is-
quemia aguda (< 1,5 cm), característico do infarto lacunar.
A c i d e n t e Va s c u l a r E n c e f á l i c o 235

Isquemia cerebral embólica


O êmbolo consiste em um corpo estranho livre intravascular que pode ser constituído por ar,
por placa de colesterol, por vegetação, por gordura, por células tumorais, dentre outros. A isque-
mia cerebral embólica, por sua vez, ocorre devido a êmbolos originados em qualquer outro local
do organismo que ocluem uma artéria responsável pelo suprimento sanguíneo de uma determi-
nada região do cérebro, ocasionando isquemia. Tendo em vista que esse acontecimento geralmen-
te ocorre de maneira súbita, há o início repentino e intenso dos sintomas.
Os êmbolos cerebrais geralmente são originados no coração, na aorta ou nos grandes vasos
extracranianos. Nesse contexto, a fibrilação atrial é uma das principais causas de formação car-
dioembólica, sendo que a formação de trombos sucede comumente no átrio esquerdo.

Isquemia cerebral por hipoperfusão 


Diferente das outras isquemias citadas anteriormente, na hipoperfusão sistêmica os sinto-
mas de disfunção cerebral são difusos e não focais, ou seja, a hipoperfusão não se limita a regiões
isoladas no cérebro, sendo global. Os sinais neurológicos são tipicamente bilaterais e simétricos,
porém, podem ser assimétricos caso haja acometimento preexistente da vasculatura cerebral.

AVE hemorrágico
Hemorragia intracerebral (intraparenquimatosa)
A hipertensão é a causa mais comum de hemorragia intraparenquimatosa, destacando-se
também diáteses hemorrágicas, angiopatia amiloide, uso de drogas ilícitas (anfetaminas e cocaí-
na) e malformações vasculares. Já as causas menos comuns incluem sangramentos dentro de tu-
mores, ruptura de aneurismas e vasculites.
O sangramento geralmente é originário de arteríolas ou de pequenas artérias que irrigam o
cérebro, assim, o rompimento desses vasos leva à formação de hematomas que se espalham pela
substância branca. Com o acúmulo de sangue, os sintomas ocorrem de maneira gradual com pio-
ra de minutos a horas e se manifestam de acordo com a região cerebral acometida.

Hemorragia subaracnoidea (HSA)


Os aneurismas arteriais na base do crânio e o sangramento proveniente de malformações
com localizações próximas à superfície meníngea são as principais causas de hemorragia suba-
racnoidea. As causas menos comuns incluem diátese hemorrágica, trauma, angiopatia amiloide
ou uso de drogas ilícitas.
A ruptura de um aneurisma leva a um sangramento dentro do espaço subaracnoide. Esse ex-
travasamento de sangue faz com que haja um aumento da pressão intracraniana, podendo levar à
perda da consciência. O paciente pode entrar em estado de coma ou à morte, caso haja persistên-
cia no sangramento. De maneira geral, o sangramento dura poucos segundos, porém, pode acon-
tecer ressangramento, cuja taxa é em torno de 5 a 10% nas primeiras 72h, com risco aumentado
nas primeiras 12h. Dentro desse espectro, 33% sucede nas primeiras 3h e 50% nas primeiras 6h.
Quando acontece o ressangramento, a taxa de mortalidade é em torno de 50-70% e isso implica
necessidade precoce de reparo do aneurisma, afinal, esta etiologia responde por cerca de 70% dos
casos de HSA.
236 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Os sintomas aparecem de forma súbita, diferentemente do que ocorre na hemorragia intra-


parenquimatosa. Além disso, vômitos e cefaleia difusa são comuns e sinais neurológicos ocorrem
apenas em torno de 20% casos, quando há sangramento intraparenquimaroso associado.

Diagnóstico
A apresentação clínica, conforme elucidado anteriormente, é essencial para a identificação
do AVE e para avaliação de fatores de risco, de diagnósticos diferenciais e de particularidades da
conduta. No entanto, os sintomas não possuem acurácia suficiente para diferenciar o AVEi do AVEh
e descartar etiologias não vasculares, por isso, exames de neuroimagem tornam-se fundamentais¹.
A imagem cerebral pode fornecer achados detalhados do evento, como localização, tama-
nho, território vascular, presença de hemorragia, mensuração do conteúdo hemático (utilizada
em escalas, como Fisher e escore de HIC) e complicações agudas como hidrocefalia, possibilitan-
do um melhor planejamento da conduta terapêutica e estabelecimentos prognósticos. Para isso,
pode-se realizar uma tomografia computadorizada (TC) ou uma ressonância magnética (RM). Na
maioria dos casos, a TC sem contraste fornece as informações necessárias para tomar decisões
sobre o manejo agudo².
Nas primeiras horas após um AVEi, pode não ser possível detectar as alterações isquêmicas
agudas pela TC, porém é um bom exame para detectar AVEh e descartar diagnósticos diferenciais.
Dessa forma, parte-se do pressuposto que a isquemia aguda é a explicação dos sintomas neuro-
lógicos focais de início súbito quando a TC é normal e outras causas são excluídas. Além disso, a
TC pode ser utilizada para auxiliar na avaliação da elegibilidade do paciente a terapêutica e para
monitorar alterações hemorrágicas1,2.
A RM permite a detecção de isquemia em poucos minutos após o aparecimento dos sinto-
mas e apresenta maior acurácia no diagnóstico do AVEi quando comparada à TC¹. A associação de
multiparâmetros e sequências, como FLAIR, DWI e angiorressonância, vêm destacando-se como
ferramentas potenciais no diagnóstico e prognóstico da isquemia cerebral, como a identifica-
ção de áreas de penumbras que podem se beneficiar de reperfusão cerebral, ampliando a janela
terapêutica³.
Ademais, para complementação da avaliação clínica alguns exames laboratoriais devem ser
solicitados, os quais incluem hemograma, contagem de plaquetas, testes de coagulação (tempo
de protrombina e tempo de tromboplastina parcial ativado), glicose sérica, testes de eletrólitos
séricos/função renal, eletrocardiograma e marcadores de isquemia do miocárdio (troponina)¹.

Tratamento
O tratamento de pacientes com AVE na emergência deve começar com a avaliação das fun-
ções vitais (ABC) e o estabelecimento dos cuidados básicos, tais como suporte respiratório, moni-
torização da temperatura, monitorização cardíaca, controle glicêmico e da pressão arterial (PA),
afinal, se o paciente estiver hipotenso, por exemplo, é importante a infusão de volume para reduzir
a progressão do AVE isquêmico. Os objetivos primordiais do tratamento incluem controlar com-
plicações agudas e estabilizar o paciente para que intervenções específicas possam ser prescritas.
O tratamento direcionado para os tipos de AVE (isquêmico, hemorrágico intraparenquimatoso ou
subaracnoideo) deve ser iniciado dentro de 60 minutos de admissão no serviço hospitalar para que
haja melhores resultados1, respeitando-se os critérios de inclusão e de exclusão de cada terapia.
A c i d e n t e Va s c u l a r E n c e f á l i c o 237

Tabela 31.1. Condutas propostas para a abordagem dos AVE’s


AVE isquêmico AVC hemorrágico
1. Ativador de plasminogênio tecidual intravenoso (tPA IV): é 1. Monitorização da PA: a equipe deve ter como alvo os valores
recomendada a administração de alteplase (0,9 mg/kg, sendo a de PAS entre 140-180 mmHg. Ademais, deve ser evitada uma
dose máxima 90 mg) 10% da dose administrada em bolus por redução da PAS para níveis < 140 mmHg, pelo risco de pior
1 a 2 minutos e restante infundido por mais de 1 hora. A infusão prognóstico².
deve ocorrer até 4 horas e 30 minutos após o início dos sintomas.
Quanto mais precocemente iniciada, maior a chance de desfecho
clínico positivo. Atenção voltada aos critérios de inclusão e de
exclusão à terapia é imperiosa¹.
2. Trombectomia mecânica: geralmente indicada na oclusão 2. Se o paciente fizer uso de drogas antitrombóticas ou existir
da artéria cerebral média proximal ou da carótida interna coagulopatia subjacente: a equipe deve incluir intervenções
em pacientes com apresentação tardia e/ou inelegíveis para apropriadas, como vitamina k, complexos protrombínicos, plasma
trombólise intravenosa. Objetiva a recanalização da artéria e fresco e concentrado de plaquetas².
deve ser feita, preferencialmente, em até 6 horas do início dos
sintomas. Em pacientes criteriosamente selecionados, a janela
terapêutica pode ser estendida para até 24 horas. Entretanto, as
taxas de complicações se elevam e o benefício diminui à medida
que esse intervalo de tempo aumenta. Ademais, intervenções
mecânicas endovasculares podem ser realizadas em conjunto
com medicamentos trombolíticos. Atentar-se para critérios de
inclusão e exclusão1,3,4.
3. Monitorização da PA: se tratamento de recanalização tiver 3. Tratamento de hipertensão intracraniana: a equipe deve
acontecido, manter PA ≤ 180/105 mmHg nas primeiras 24 horas monitorizar a PIC para manter a pressão de perfusão cerebral
após o tratamento.  > 70 mmHg, além de manter a cabeceira do paciente elevada
Nos pacientes não submetidos a tratamento de recanalização, a 30°, e de prescrever analgesia, sedação e solução salina
a hipertensão arterial não deve ser reduzida, salvo se pressão hipertônica. Ademais, manitol (bolus 0,5-1 g/kg e infusão de
sistólica > 220 mmHg, pressão diastólica > 120 mmHg ou se 0,25-0,5 g/kg a cada 4-12h, conforme necessário) e
coexistir alguma condição clínica aguda merecedora de redução hiperventilação terapêutica (manter PaCO2 entre 28 e 32 mmHg)²
pressórica¹. devem ser considerados.

4. AAS (160-300 mg): entre 24 e 48 horas do início do AVEi. Para os 4. Crises epiléticas: administrar fenitoína IV (20 mg/Kg, infusão em
pacientes tratados com alteplase, a administração de AAS deve 1 hora)².
ser adiada em 24 horas¹.
5. Profilaxias: a equipe assistencial deve manter vigilância frequente 5. Tratamento cirúrgico: deve ser considerado em hemorragia
no sentido de prevenir a ocorrência de TEV e de úlceras cerebelar, em hidrocefalia, em efeito de massa importante e na
(tanto de estresse quanto de pressão), além de lançar mão de presença de sinais de compressão de tronco cerebral².
monitorização frequente¹.

Dados da American Heart Association/American Stroke Association1,2. Autoria própria.

Tabela 31.2. Possíveis complicações clínicas decorrentes dos AVE’s


Complicações clínicas
AVE isquêmico Edema, convulsões, rebaixamento do nível de consciência, distúrbios metabólicos, transformação hemorrágica e
pneumonia.
AVE hemorrágico Edema com efeito de massa, convulsões, rebaixamento do nível de consciência, hidrocefalia, vasoespasmos,
ressangramento, aumento da PA e hipertensão intracraniana.

Dados da American Heart Association/American Stroke Association1,2. Autoria própria.

Na Figura 31.1, podemos observar um fluxograma com a síntese dos conceitos apresentados
no capítulo.
238 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

ACIDENTE VASCULAR ENCEFÁLICO


Déficit neurológico, geralmente focal, de instalação súbita e evolução rápida

Sinais clínicos de AVE


• Hemiparesia • Queixas visuais, especialmente se unilateral • Cefaléia súbita
• Perda sensorial unilateral • Rebaixamento súbito do nível de consciência
• Disartria • Perda do equilíbrio ou incoordenação motora repentina

História e exame físico


• Atentar-se para diagnósticos diferenciais • Definir território vascular suspeito
• Estabelecimento do tempo de início dos sintomas • Estratificação de gravidade (Escala NIHSS)
• Evolução dos sintomas • Doenças e comorbidades prévias

Exame de neuroimagem
• TC de crânio sem contraste • Outras opções
- Na maioria dos casos, fornece as informações necessárias - Angiotomografia cerebral e cervical
para o manejo - RM de encéfalo (Sequências DWI e FLAIR)

AVE isquêmico (tempo de evolução) AVE hemorrágico

≤ 4h30min Até 6h > 6h Monitorização da pressão arterial


• Alvo PAS entre 140-180 mmHg
• Deve-se ser evitada uma redução da PAS para
Trombólise Trombectomia Trombectomia
níveis < 140 mmHg, pelo risco de pior
Intravenosa mecânica ou tratamento clínico
prognóstico
• Alteplase (0,9 mg/kg, • Geralmente indicado • Em pacientes
sendo a dose máxima na oclusão da artéria criteriosamente Tratamento de hipertensão intracraniana
90 mg) 10% da dose carótida interna ou selecionados, a • Monitorização da PIC para manter a pressão
administrada em bolus cerebral média trombectomia pode de perfusão cerebral > 70 mmHg
por 1 a 2 minutos e o proximal em pacientes ser realizada em até • Elevação da cabeceira a 30°, analgesia,
restante infundido por com apresentação 24 horas do início dos sedação, solução salina hipertônica
mais de 1 hora tardia e/ou inelegíveis sintomas, atentando-se • Manitol (Bolus 0,5-1 g/kg e infusão de
• Verificar critérios de para trombose para as complicações 0,25-0,5 g/kg a cada 4-12h, conforme
inclusão e exclusão intravenosa decorrentes do necessário)
• Verificar critérios de procedimento • Hiperventilação (manter PaCO2 entre 28 e
inclusão e exclusão • Tratamento clínico 32 mmHg)

Monitorização da pressão arterial Tratamento hemostático


• Se tratamento de recanalização, manter PA ≤180/105 mmHg nas primeiras • Se uso de drogas antitrombóticas ou
24 horas após o tratamento coagulopatia subjacente, incluir intervenções
• Nos pacientes não submetidos a tratamento de recanalização, a hipertensão apropriadas, como vitamina K, complexos
arterial não deve ser reduzida, salvo se pressão sistólica > 220 mmHg ou protrombínicos, plasma fresco e plaquetas
pressão diastólica > 120 mmHg, ou se coexistir alguma condição clínica
Crises epiléticas
aguda merecedora de redução pressórica
• Fenitoína IV (20 mg/kg – infusão em 1 hora)
Tratamento sequencial Tratamento cirúrgico
• AAS (160-300 mg) entre 24 e 48 horas do início do AVEi. Para aqueles • Considerar em hemorragia cerebelar,
tratados com Alteplase, a administração deve ser adiada por 24 horas hidrocefalia, efeito de massa importante,
• Monitorização sangramentos lobares superficiais e presença
• Profilaxias (TEV, úlceras de estresse e de pressão) de sinais de compressão de tronco cerebral

Figura 31.1. Síntese dos conceitos apresentados.


Dados da American Heart Association/American Stroke Association1,2. Autoria própria.
A c i d e n t e Va s c u l a r E n c e f á l i c o 239

Pontos-chave
• O AVEi corresponde a 80-87% dos casos e o AVEh é responsável por 13-20%;
• Os sintomas mais comuns do AVE são hemiparesia, perda sensorial, disartria e
queixas visuais e, isoladamente ou em conjunto, não possuem acurácia suficiente
para diferenciar entre AVEi e AVEh;
• O exame de neuroimagem é fundamental para diagnóstico, prognóstico e conduta
terapêutica;
• O manejo do AVE deve ser iniciado dentro de 60 min da admissão no serviço
hospitalar para que haja melhores resultados.

Leitura sugerida
1. Powers WJ, Rabinstein AA, Ackerson T, et al. Guidelines for the Early Management of Patients With Acute Ischemic
Stroke: 2019 Update to the 2018 Guidelines for the Early Management of Acute Ischemic Stroke: A Guideline for
Healthcare Professionals From the American Heart Association/American Stroke Association. 2019.
2. Morgenstern LB, HemphillIII JC, Anderson CA, et al. Guidelines for the Management of Spontaneous Intracerebral
Hemorrhage: A Guideline for Healthcare Professionals From the American Heart Association/American Stroke
Association. AHA JORNALS. 2010.
3. Tsivgoulis G, Katsanos AH, Malhotra K, et al. Thrombolysis for acute ischemic stroke in the unwitnessed or exten-
ded therapeutic time window. Neurology. 2020;94(12):e1241-e1248.
4. Lang E, Lin K. Review: In acute ischemic stroke, adding endovascular therapy to t-PA improves functional indepen-
dence at 90 days. ACP JOURNAL CLUB. 2015 Oct 20.
Estado de Mal Epiléptico 32

Gustavo Vinícius Jadir Reis


Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
O estado de mal epiléptico (EME) é uma emergência neurológica que requer diagnóstico e
tratamento imediatos. Deve-se ressaltar que a incidência da condição é subestimada, visto que
sua detecção acontece somente nos pacientes que procuram atendimento médico, além de ser
escassa a eletroencefalografia contínua nas unidades de terapia intensiva (UTI’s)1,2. O EME res-
ponde por cerca de 20% dos pacientes admitidos em unidades de pronto atendimento (UPA’s)
por problemas neurológicos e por cerca de 1% dos atendimentos gerais. Nas UTI’s neurológicas,
até 33% dos pacientes têm crises convulsivas, na maior parte das vezes, estado de mal epiléptico
não convulsivo (EMENC). Nas UTI’s clínicas, o EMENC pode ocorrer em até 10% dos casos e, nos
pacientes sépticos, crises convulsivas podem ocorrer em até 30% deles1-4.
Vale considerar ainda que, uma metanálise realizada em 2017, sem restrições regionais, as-
sociou a etiologia sintomática aguda do EME (infecção do sistema nervoso central [SNC] e doença
cerebrovascular), além da idade avançada, a maior mortalidade (28,4%)5.

Definição
A International League Against Epilepsy (ILAE) define o EME como “uma condição resultante
da falha dos mecanismos responsáveis pelo término das crises epilépticas ou pelo desencadea-
mento de mecanismos que levam ao prolongamento anormal das crises (ponto de tempo t1: 5
minutos para crises tônico-clônicas generalizadas; 10 minutos para crises focais)”. A associação
reconhece, também, que “a EME pode ter consequências em longo prazo (ponto de tempo t2: 30
minutos para crises tônico-clônicas generalizadas; 60 minutos para crises focais com ou sem com-
prometimento da consciência), incluindo morte neuronal, lesão neuronal e alteração de redes
neuronais, dependendo do tipo e da duração das crises”.
Fica evidente, portanto, a importância de investigar a duração da crise, a fim de que o trata-
mento seja melhor direcionado, conforme explicitado na Tabela 32.16.
242 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 32.1. Tempo para instituir o tratamento na EME, conforme sua classificação
Tempo T1 Tempo T2
Tipo
(Iniciar tratamento) Tratamento agressivo – risco de consequências)
EME tônico-clônica 5 minutos 30 minutos
EME focal 10 minutos 60 minutos

Dados de A definition and classification of status epilepticus – Report of the ILAE Task Force on Classification of Status Epilepticus6. Autoria
própria.

Etiopatogênese
No EME, existe uma atividade epileptiforme prolongada ou reentrante e um curso de impor-
tantes consequências, conforme evidenciado na Figura 32.1.

• Mecanismos que geram crises


anormalmente prolongadas
Ativação sináptica Atividade
• Falha dos mecanismos envolvidos na
(inicialmente compensada) epileptiforme sustentada
cessação da atividade epiléptica nos
circuitos neurais

Processos inflamatórios neuronais,


Sequelas clínicas,
quebra da barreira hematoencefálica Morte neuronal
inclusive cognitivas
e alterações sinápticas

Figura 32.1. Fisiopatologia do EME e suas consequências.


Adaptada de “A definition and classification of status epilepticus – Report of the ILAE Task Force on Classification of Status
Epilepticus”6.

Classificação e apresentação clínica


O EME pode ser classificado de acordo com 4 eixos – vide Tabela 32.2 – que irão fornecer,
primordialmente, uma estrutura para diagnóstico clínico, para investigações subjacentes e para
abordagens terapêuticas6. Idealmente, todos os pacientes devem ser avaliados em cada um dos
quatro eixos; contudo, isso nem sempre será possível.

Tabela 32.2. Eixos importantes na abordagem do EME


1. Semiologia
2. Etiologia
3. Correlação com o eletroencefalograma (EEG)
4. Idade
Dados de A definition and classification of status epilepticus – Report of the
ILAE Task Force on Classification of Status Epilepticus6. Autoria própria.
E s t a d o d e M a l E p i l é p t i c o 243

Semiologia
Os pacientes podem apresentar, clinicamente, duas formas de EME, assim categorizadas:
1. EME tônico-clônico generalizado (EMEG), que manifesta movimentos tônicos-clônicos
generalizados contínuos ou repetidos, ou espasmos rítmicos das extremidades. Os
pacientes também apresentam alteração no estado mental, a qual pode variar desde
atenção e capacidade de resposta reduzidas, a um estado de coma profundo. Depois
que as convulsões cessam, um comprometimento motor focal pode persistir, conhecido
como Paralisia de Todd;
2. EMENC, definido como uma atividade convulsiva observada no eletroencefalograma
(EEG), sem ou com movimentos convulsivos sutis, como espasmos nos membros,
no tronco, nos músculos faciais e/ou desvio tônico ocular. Nesse caso, dois tipos
de pacientes são comumente observados, cujas características estão descritas na
Tabela 32.3.

Tabela 32.3. Quadros clínicos típicos de pacientes com EMENC


Paciente que chega à emergência Paciente gravemente enfermo
Geralmente "confuso" e/ou com manifestações epilépticas crônicas Geralmente apresenta comprometimento grave do estado mental,
sem ou com movimentos motores sutis

Dados de A definition and classification of status epilepticus – Report of the ILAE Task Force on Classification of Status Epilepticus6. Autoria
propria.

Além da categorização do EME de acordo com a clínica, existe uma segunda subdivisão, atri-
buída aos pacientes cujas crises não cessam, mesmo após a instituição do tratamento medica-
mentoso. Essa segunda classificação é assim determinada:
• EME refratário (EMER), quando existem crises contínuas irresponsivas às terapias
medicamentosas anticonvulsivantes de primeira e de segunda linha. Pode ser convulsivo
ou não convulsivo;
• EME super refratário (EMESR), que ocorre entre 10 a 15% dos pacientes com EMER,
irresponsivos, também, à terapia de terceira linha.

Etiologia
Conforme a evidenciação da causa subjacente, o EME é dividido, pela Comissão de
Classificação do ILAE 2015, em duas subcategorias. A primeira delas enquadra EME’s cujas etiolo-
gias são “conhecidas”, enquanto a segunda engloba causas não identificadas, denominadas como
“etiologias desconhecidas” ou “criptogênicas”. A Tabela 32.4 evidencia algumas condições que
podem deflagrar EME e, se assim o fizerem, serão ditas causas conhecidas e. Nessa categoria, a
subdivisão entre etiologias agudas, remotas e progressivas pode ser aplicada, com base na relação
temporal da condição.

Correlação eletroencefalográfica (EEG)


Não existe um padrão eletroencefalográfico específico do EME. As descargas epileptiformes
são as mais comuns; entretanto, com o prolongamento do EME, alterações no EEG e os padrões
244 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 32.4. Causas conhecidas do EME


Agudas Acidente vascular cerebral (AVC); intoxicação; malária; encefalite, entre outros
Remotas Pós-traumático; pós-encefálico; pós-AVC, entre outros
Progressivas Tumor cerebral; Doença de Lafora e outras epilepsias mioclônicas progressivas; demências, entre outros

Dados de: A definition and classification of status epilepticus – Report of the ILAE Task Force on Classification of Status Epilepticus6.
Autoria própria.

rítmicos não-epileptiformes podem aparecer. O EEG é indispensável, principalmente, nas for-


mas clínicas não convulsivas, uma vez que os sinais podem ser sutis, inespecíficos e até ausentes.
Portanto, um EEG deve ser obtido rapidamente sempre que possível.

Idade
Por último, é importante dividir os pacientes em faixas etárias, afinal, conforme a idade do
paciente, a incidência é maior ou menor de específicos EME’s, conforme evidenciado na Tabela
32.6, apesar de não serem exclusivos. Ademais, a idade é um fator prognóstico importante, motivo
pelo qual deve ser avaliada.

Tabela 32.5. Subdivisão dos EME’s mais incidentes em cada faixa etária
Neonatal e início da infância
• Status mioclônico na síndrome de Dravet
• Status focal
• EME febril
Infância e adolescência
• EME autonômico na epilepsia occipital benigna na infância (síndrome de Panayiotopoulos)
• Estado afásico na síndrome de Landau-Kleffner
• Estado de ausência na epilepsia de ausência juvenil
• Status mioclônico na síndrome de Down
Idosos
• Estado mioclônico na doença de Alzheimer
• Estado epiléptico não convulsivo na doença de Creutzfeldt-Jakob
• Status de ausência de novo (ou recaída) da vida adulta
Dados de A definition and classification of status epilepticus – Report of the ILAE Task Force on Classification
of Status Epilepticus6. Autoria própria.

Manejo clínico e tratamento


O principal objetivo do manejo no EME é parar a atividade convulsiva, tanto clínica quanto
eletrográfica. Além disso, a investigação do motivo que levou ao EME deve ser realizada em parale-
lo com o tratamento. Inicialmente, a estratégia aplicada é representada pelo mnemônico MOVIG,
aplicado em diversas áreas da medicina intensiva, cujas iniciais evidenciam:
• Monitorização dos dados vitais do paciente;
• Oxigênio suplementar quando necessário e, principalmente, proceder com a avaliação e
E s t a d o d e M a l E p i l é p t i c o 245

com o manejo das vias aéreas;


• Veia deve ser puncionada para possibilitar a administração de medicamentos necessárias
e a coleta de sangue para investigação laboratorial;
• Índice Glicêmico deve ser aferido, afinal, a hipoglicemia constitui-se como um importante
causa de crises convulsivas, principalmente em níveis abaixo de 60 mg/dl. Uma vez
instituídas as medidas iniciais, a equipe assistencial deve proceder com a administração,
o mais precocemente possível, de drogas que cessam a crise, visando reduzir a
morbimortalidade. Em paralelo, recomenda-se realizar uma busca pela etiologia, por
meio de dados da história, dos exames laboratoriais e dos exames de imagem, se forem
necessários. O EEG contínuo deve ter sua instituição considerada em todos os pacientes
que não têm o quadro controlado ou na suspeita de EME não convulsivo em curso. A
estratégia farmacológica do EME é diferente conforme os estágios de tempo da condição
e está exposta na Figura 32.26.

Inicial Estabelecido Refratário Super refratário


(Estágio I) (Estágio II) (Estágio III) (Estágio IV)
5-10 minutos 10-30 minutos 30-60 minutos > 24 horas

Figura 32.2. Estágios do EME.


Adaptada de 25 years of advances in the definition, classification and treatment of status epilepticus8.

Fase inicial
Nesse momento é recomendada a prescrição de benzodiazepínicos, devido ao fato de a clas-
se apresentar eficácia, segurança e tolerabilidade comprovadas. Conforme a disponibilidade do
acesso venoso, uma ou outra droga será preconizada.
Se o acesso venoso estiver disponível, recomenda-se: diazepam IV (0,15 a 0,2 mg/kg/dose –
máximo 10 mg/dose) ou lorazepam IV (0,1 mg/kg/dose – máximo 4 mg/dose). Durante a terapia
inicial, o diazepam pode ser administrado duas vezes. Na ausência do acesso venoso, recomenda-
-se a prescrição de midazolam intramuscular (IM) – na dose de 10 mg para pacientes que pesam
mais de 40 kg e de 5 mg para paciente que pesam entre 13-40 kg8-11.

Fase estabelecida
Não há estudos que comprovem, nessa fase, uma melhor droga para emprego. No entanto, as
opções preconizadas são:
• Fosfenitoína IV: dose única de 20 mg/kg – máximo de 1.500 mg. A equipe deve se atentar
para a velocidade de infusão máxima de 50 mg/min, que deve ser realizada em uma veia
calibrosa ou central, com monitorização eletrocardiográfica e da pressão arterial (PA);
• Ácido valproico IV: dose única de 40 mg/kg – máximo de 3.000 mg/dose;
246 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

• Levetiracetam IV: dose única de 60 mg/kg – máximo de 4.500 mg/dose. Vale considerar,
ainda, que o fenobarbital IV (15 mg/kg dose única), devido os seus efeitos adversos, deve
ser reservado às ocasiões em que nenhuma das terapias anteriores esteja disponível.

Fase refratária e super-refratária


Inexistem estudos bem consolidados que orientam a terapia nesses casos. Entretanto, diretri-
zes recomendam repetir a linha de tratamento da fase “estabelecida”. Além disso, uma alternativa
plausível é a prescrição de anestesia geral, mantendo monitorização contínua por EEG, e proce-
dendo com intubação e com ventilação mecânica8-10,12. Nesse propósito, podem ser prescritos:
• Propofol, na dose de 1,5 a 3 mg/kg em bólus e de 1 a 5 mg/kg/h na manutenção;
• Midazolam, na dose de 1 mg EV em bolus e de 0,05 a 0,20 mg/kg/hora na manutenção; e
• Tiopental 3-5 mg/kg em bolus, seguidos de 50 mg a cada 2-3 minutos até que o EME seja
controlado.

Monitorização eletroencefalográfica
Como discutido anteriormente, nem sempre o EEG está disponível. Entretanto, é um exame
essencial para o acompanhamento do EME nos pacientes relacionados na Tabela 32.6 e deve ser
instituído, preferencialmente, dentro da primeira hora depois de ser estabelecida a suspeita.

Tabela 32.6. Principais indicações da monitorização eletroencefalográfica


Convulsão clínica recente ou EME sem retornar à linha de base > 10 min
Coma, incluindo pós parada cardíaca
Atividade epileptiforme ou descargas periódicas no EEG inicial durando 30 min
Hemorragia intracraniana, incluindo: traumatismo craniano, hemorragia subaracnóidea e hipertensão intracraniana
Suspeitas de convulsões não convulsivas em pacientes com estado mental alterado
Pacientes sendo tratados com drogas antiepilépticas de infusão contínua com resolução da maioria ou de toda a atividade convulsiva (única
forma de saber se o tratamento é eficaz)

Adaptada de Guidelines for the Evaluation and Management of Status1.

Recomenda-se, quando disponível, a monitorização com EEG por, ao menos, 24 horas para
descartar a possibilidade de crises eletrográficas em curso, da ocorrência de um EMENC após
o controle do EMEC e durante o desmame de drogas antiepilépticas. Isso é justificável porque
grande parte dos pacientes que apresentam pelo menos uma crise documentada, e mantêm al-
gum grau de encefalopatia, terão crises eletrograficamente registradas nas primeiras 24 horas de
monitorização prolongada1,12. Em pacientes que não recuperam o nível de consciência após uma
crise epiléptica, pacientes em coma e pacientes cujo quadro clínico sugere EMENC, o EEG deve
ser realizado durante 48 horas contínuas11,12.
Vale considerar que os padrões com descargas epileptiformes são os mais comuns; entretan-
to, os padrões rítmicos não-epileptiformes podem acontecer e, nesse caso, uma avaliação especia-
lizada se faz necessária1,12.
E s t a d o d e M a l E p i l é p t i c o 247

Perspectivas futuras no tratamento


Diante do cenário atual, maiores evidências científicas devem ser obtidas no sentido de
definir o papel de outros medicamentos no tratamento do EME, principalmente no que tange
aos estágios refratário e super-refratário. Nesses estágios persistentes, tratamentos alternativos,
além dos anestésicos intravenosos, vêm sendo aventados, como anestésicos inalatórios, topi-
ramato, pregabalina, magnésio, piridoxina e imunoterapia; contudo, ainda não existem estu-
dos capazes de confirmar seus benefícios. Ademais, tratamentos não farmacológicos, os quais
incluem hipotermia, dieta cetogênica, neurocirurgia de emergência, terapia eletroconvulsiva,
drenagem do líquido cefalorraquidiano, estimulação do nervo vagal e estimulação cerebral
profunda são perspectivas futuras e esperançosas para o tratamento da patologia8,9. Por fim,
vale considerar o fato de os estudos atuais mostrarem uma possível relação de causalidade dos
mecanismos inflamatórios na epileptogênese. Nesse sentido, agentes anti-inflamatórios, como
esteroides e imunoglobulinas, tornam-se alternativas plausíveis, apesar de ainda não serem su-
portados por trabalhos robustos8,9.

Complicações clínicas
O estado de mal epiléptico é uma patologia capaz de acometer vários sistemas e órgãos, con-
forme evidenciado na Tabela 32.7, seja em decorrência da atividade convulsiva prolongada, seja
devido ao tratamento empregado, motivo pelo qual exige alto nível de atenção no atendimento7.

Tabela 32.7. Acometimento do EME, classificado de acordo com o sistema fisiológico envolvido
Neurológico: morte neuronal e lesão cerebral
Cardíaco: arritmias durante o EME e cardiomiopatia de estresse devido à liberação maciça de catecolaminas
Pulmonar: risco de aspiração, de hipóxia e de edema pulmonar
Renal: insuficiência renal devido à rabdomiólise e à mioglobinúria
Dados de Neurocritical care: status epilepticus review7. Autoria própria.

Prognóstico
Ainda que as devidas intervenções médicas sejam instituídas, a mortalidade intra-hospita-
lar, relacionada ao EME, é estimada em cerca de 9,4 a 21%, enquanto a mortalidade em 30 dias
fica entre 19 a 27%. Além disso, observa-se que pacientes cujos EME’s duram além de 1 hora,
EME mioclônico e EME sintomático apresentam maiores taxas de mortalidade. No EME refratá-
rio, por sua vez, as taxas de mortalidade são ainda superiores, ficando entre 23 a 61%7. Embora a
etiologia da condição seja o preditor mais importante para o prognóstico, outros fatores devem
ser considerados, sendo a idade avançada, e as comorbidades, fatores de risco independentes
para mortalidade.
248 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• Prolongamento anormal das crises pode ter consequências em longo prazo;
• O EME deve ser avaliado conforme 4 eixos: semiologia (convulsivo x não convulsivo);
etiologia; EEG e idade do paciente;
• O tratamento para EME que duram até 5 minutos é representado pelo mnemônico
“MOVIG”;
• Para EME’s que duram mais de 5 minutos, o tratamento é dividido conforme o
tempo decorrido após o início do quadro.

Leitura sugerida
1. Brophy GM, Bell R, Claassen J, Alldredge B, et al. Guidelines for the Evaluation and Management of Status
Epilepticus. Neurocrit Care, 2012; 17:3-23.
2. Young BG, Jordan KG, Doig GS. An assessment of nonconvulsive seizures in the intensive care unit using conti-
nuous EEG monitoring. NEUROLOGY 1996;47: 83-89.
3. Oddo MMD; Carrera EMD; Claassen JMD; Mayer SA, et al. Continuous Electroencephalography in the Medical
Intensive Care Unit Crit Care Med 2009 Jun;37(6):2051-6.
4. Mayer SA, Claassen J, Lokin J, Mendelsohn F, Dennis LJ, Fitzsimmons B-F. Refractory status epilepticus: frequen-
cy, risk factors, and impact on outcome. Arch Neurol. 2002;59(2): 205-10.
5. Lv R, Wang Q, Cui T, Shao X. Status epilepticus-related etiology, incidence and mortality: A meta-analysis. Epilepsy
Research. 2017; 136: 12-17.
6. Trinka E, Cock H, Hesdorffer D, Rossetti AO, Scheffer IE, et al. A definition and classification of status epilepticus
– Report of the ILAE Task Force on Classification of Status Epilepticus. Epilepsia, 2015; 56(10):1515-1523.
7. Al-Mufti F, Claassen J. Neurocritical care: status epilepticus review. Crit Care Clin. 2014 Oct;30(4):751-64.
8. Trinka E, Kälviäinen R. 25 years of advances in the definition, classification and treatment of status epilepticus.
Seizure, 2017; 65:65-73.
9. American Epilepsy Society Guideline Evidence-Based Guideline: Treatment of Convulsive Status Epilepticus in
Children and Adults: Report of the Guideline Committee of the American Epilepsy Society; Epilepsy Currents;
16(1): 48-61.
10. Olmos-López A, Ibarra-Aguilar J, Cornelio-Nieto JO, Ocaña-Hernández LA, et al. Clinical guideline: status epilep-
ticus in children and adults. Rev Mex Neuroci. 2019;20(2):110-115.
11. Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Epilepsia; 2019. Páginas: 16-17.
12. Velasco IT, Brandão Neto RA, Souza HP de, Marino LO, Marchini JFM, Alencar JCG de. Medicina de emergência:
abordagem prática. 2019.
Tontura, Vertigem, Síncope e Coma 33

Verônica Pirâmides Coura Martins de Loyola


Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
Tontura, vertigem, síncope e coma são entidades que guardam alguma semelhança entre si,
mas que devem ser distinguidas, afinal, a definição, a etiologia e a abordagem de cada uma delas
são singulares.
A tontura é uma queixa frequente, mas trata-se de um termo inespecífico que pode descrever
diversas sensações como desmaios, sensações de cabeça vazia, de flutuações, de desequilíbrios ou
ainda de visão turva.
A vertigem, por sua vez, é um sintoma comum nas disfunções do sistema vestibular perifé-
rico ou central. Caracteriza-se como uma sensação de movimento ilusório, sendo o de rotação o
mais comum e pode ser sentida em torno de si ou do ambiente. As causas para os episódios de
vertigem podem ser benignas e autolimitadas ou, por outro lado, podem ser, inclusive, fatais.
A síncope é definida como uma perda transitória da consciência, decorrente da interrupção
global do fluxo sanguíneo cerebral. Em geral, trata-se de uma síndrome autolimitada e de curta
duração, com rápida recuperação.
Diferentemente disso, o coma é um estado clínico no qual a resposta do paciente aos estímu-
los externos está prejudicada. Essa alteração da excitabilidade cerebral é uma emergência médica
que pode exigir intervenção imediata para a preservação da vida e da função cerebral do paciente.
Este capítulo tem como objetivo auxiliar na identificação das condições clínicas descritas,
dissertando sobre suas apresentações clínicas, seus mecanismos fisiopatológicos, assim como
sobre seus respectivos diagnósticos e tratamentos, a fim de possibilitar a abordagem inicial dos
casos no contexto de medicina intensiva.
250 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Apresentação clínica
Tontura e vertigem
A tontura pode ocorrer em qualquer faixa etária, mas é mais comum com a progressão do
envelhecimento. Ela acomete por volta de 40% das pessoas acima dos 40 anos, pode ser momen-
tânea ou crônica (mais comum entre idosos) e pode estar associada a diversas patologias. Alguns
sinais, dignos de nota, devem alertar a equipe médica se estiverem associados à tontura e incluem
cefaleia, dor de garganta, ataxia, perda de consciência, déficit neurológico focal, além da presença
expressiva, por mais de uma hora, da sensação. A vertigem, por sua vez, ocorre durante o movi-
mento da cabeça e esse fato pode ajudar a diferenciá-la de outras entidades. Geralmente é descri-
ta como uma sensação de rotação em torno de si ou do ambiente e pode estar acompanhada de
náuseas, de vômitos, de palidez ou de sudorese fria. A presença de nistagmo, movimento rítmico
dos olhos, bem como a análise de suas características, pode contribuir para a diferenciação dos
distúrbios vestibulares periféricos dos centrais que o causam, motivo pelo qual vale uma breve
consideração. Os nistagmos horizontal ou rotatório, de caráter episódico e autolimitado, acom-
panhados de hipoacusia ipsilateral, sugerem a presença de distúrbios vestibulares periféricos. Por
outro lado, nistagmo puro, vertical ou assimétrico, de caráter persistente, sugere distúrbios vesti-
bulares centrais.

Pré-síncope e síncope
A pré-síncope1 é expressa, geralmente, como uma sensação de “quase desmaio” que pode
ou não evoluir para uma síncope. No entanto, os sintomas podem ser mais inespecíficos do que
aqueles que acontecem na síncope e, frequentemente, duram poucos segundos. A síncope1, por
sua vez, pode ser precedida ou não por sintomas prodrômicos, mas, quando presentes, incluem
tontura, sensação de calor ou de frio, sudorese, palpitações, náuseas, hipoacusia e palidez. A recu-
peração do paciente costuma ser completa e rápida, ocorrendo em segundos. Durante a anamne-
se é importante avaliar o início da síncope, a quantidade e a frequência dos episódios, os sintomas
associados, os fatores precipitantes, os sintomas após o evento, as condições clínicas prévias, os
medicamentos em uso e, ainda, a história familiar. No exame físico, pulso e pressão arterial devem
ser aferidos em ambos os membros superiores, tanto com o paciente em decúbito dorsal, quanto
em pé. O avaliador deve, ainda, realizar exame físico pulmonar e avaliar a presença de sinais neu-
rológicos focais.

Coma
As principais etiologias da condição, esquematizadas na Tabela 33.1, incluem eventos trau-
máticos, doenças cerebrovasculares, intoxicações, infecções, convulsões e distúrbios metabóli-
cos2. O evento pode ocorrer, ainda, por complicações de parada cardiorrespiratória e de convulsões
epiléticas.
No coma, é fundamental buscar informações com familiares ou com acompanhantes que
possam descrever o decaimento do nível de consciência do paciente. Algumas perguntas impor-
tantes incluem o curso da perda de consciência (abrupto, gradual ou flutuante), a presença de
sinais focais ou de alterações neurológicas precedentes ao quadro, a presença de comorbidades, a
To n t u ra , Ve r t i g e m , S í n c o p e e C o m a 251

Tabela 33.1. Principais causas de coma


Estruturais Intoxicações Metabólicas
Neoplasias Agentes sedativos-hipnóticos Insuficiência Respiratória
Hidrocefalia Agentes dissociativos Hipo/Hiperglicemia
Hemorragia subaracnóidea Monóxido de carbono Hipo/Hipertermia
Hemorragia subdural Álcool Hipoglicemia
Hemorragia epidural Antidepressivos Hipertensão
Oclusão vascular Antiepilépticos Distúrbios Hepáticos
- Opioides Distúrbios Renais
- Síndrome neuroléptica maligna Infecção

Dados de Traub SJ & Wijdicks EF2. Autoria própria.

presença de sinais infecciosos, a presença de história de trauma, o uso de medicações e o questio-


namento de possíveis intoxicações.
No exame físico do paciente em coma, bradicardia pode ocorrer no contexto de intoxicação
por drogas simpatolíticas (clonidina), por barbitúricos e também no de aumento da pressão intra-
craniana. A presença de taquicardia é comum em quadros de intoxicação por drogas psicotrópi-
cas, por metilenodioximetanfetamina (MDMA) e de hemorragia intracraniana. Hipertermia pode
ocorrer em casos de infecção, de hemorragia subaracnóidea e de lesões hipotalâmicas. Hipotermia,
por sua vez, pode ocorrer secundariamente à exposição ambiental ou à hipoglicemia, qualquer
que seja a causa. Equimose orbital bilateral e hematomas pós-auriculares sugerem fratura de base
do crânio. Miose ocular pode sugerir intoxicação por opioides e por clonidina. Midríase pode indi-
car envenenamento por anticolinérgicos, como antidepressivos tricíclicos ou MDMA. Hipotensão
pode ocorrer em casos de sepse e de intoxicação por antidepressivos tricíclicos, por hipnóticos e
por clonidina. A hipertensão, por sua vez, pode ocorrer na encefalopatia hipertensiva e também
nas intoxicações por cetamina e por MDMA. Taquipneia é comum nas acidoses metabólicas, en-
quanto a bradipneia pode ocorrer nos casos de intoxicação por opioides e por hipnóticos, além de
ser possível na vigência de doenças estruturais do sistema nervoso central. O exame neurológico
do paciente em coma deve ser essencialmente breve e direcionado para as possíveis causas estru-
turais, metabólicas e tóxicas. Descrever o nível de consciência, com respostas importantes como
abertura dos olhos, vocalização e movimentação ativa dos membros é importante. A escala de
coma de Glasgow não se presta ao diagnóstico da condição, mas reflete a gravidade e o prognós-
tico do coma. É necessário, também, avaliar o tônus muscular, assim como os movimentos e os
reflexos motores. Assimetrias podem revelar hemiplegias que afetam o hemisfério cerebral oposto
ou o tronco cerebral superior. Doenças estruturais agudas estão relacionadas à perda de tônus
muscular, assim como à redução de movimentos espontâneos. Além disso, é imprescindível testar
os reflexos dos pares cranianos, como o reflexo pupilar, o córneo-palpebral e o vestíbulo-ocular.

Etiopatogênese
O sistema vestibular é o principal sistema neurológico responsável pelo equilíbrio. Ele é com-
posto pelo aparelho vestibular da orelha interna, pelo VIII par de nervo craniano, que leva os sinais
para o sistema central e, por fim, pelos núcleos vestibulares no cerebelo e no tronco cerebral. Os
252 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

distúrbios que envolvem a orelha interna e o nervo vestibulococlear são considerados periféricos.
Por outro lado, aqueles que afetam os núcleos vestibulares e suas vias no tronco ou no cerebelo
são considerados centrais. Desordens em qualquer desses campos podem se apresentar como
sensações de tonturas e de vertigem. A síncope, por sua vez, é causada por um hipofluxo cerebral
que culmina em um suprimento inadequado de nutrientes para o sistema nervoso central, ten-
do como consequência a queda abrupta da pressão arterial sistêmica. Esse hipofluxo leva a um
quadro de perda da consciência e a uma consequente perda de tônus postural. No que tange ao
coma, a etiopatogênese envolve a rede de neurônios que se origina da ponte e do mesencéfalo,
constituintes do sistema de ativação reticular ascendente (ARAS). Acredita-se que essa rede neu-
ronal seja responsável por parte da manutenção do estado de alerta. Assim, lesões focais no tronco
cerebral superior que afetam diretamente o ARAS podem causar alterações no estado de alerta.
Além disso, acometimento dos hemisférios cerebrais pode implicar coma quando o envolvimen-
to é bilateral, difuso ou unilateral, desde que seja grande o suficiente para afetar o hemisfério
contralateral ou o tronco cerebral. A explicação simplificada para as causas de coma nas etiolo-
gias tóxicas, metabólicas ou infecciosas fundamenta-se na escassez de oxigênio disponível para o
metabolismo cerebral, o que pode interferir diretamente na excitabilidade neuronal e na própria
função sináptica.

Diagnóstico
Tontura e vertigem
As causas mais comuns de tonturas não acompanhadas de vertigem são relacionadas a
medicamentos, a causas multifatoriais ou são idiopáticas. Pacientes com transtorno do pâni-
co, com ansiedade, com depressão ou portadores de outras entidades psicogênicas podem ter
queixas de tonturas inespecíficas. Na vertigem, as causas periféricas compreendem as etiologias
mais comuns e, felizmente, costumam ser benignas. Dentre elas, as mais encontradas são a ver-
tigem posicional paroxística benigna (VPPB), a neuronite vestibular, a doença de Meniére e a
labirintite. A VPPB3 é descrita por muitos pacientes durante movimentações da cabeça na cama
ou na inclinação, podendo ser acompanhada de náuseas, mas com duração breve de segundos
e, raramente, de minutos. Os sintomas auditivos estão ausentes. Seu diagnóstico pode ser feito
por meio da manobra de Dix-Hallpike, que induz a manifestação do nistagmo posicional. A
neuronite vestibular3, por sua vez, geralmente ocorre após infecções virais, tem início abrupto
com vertigem grave e pode ser acompanhada de náuseas, de vômitos e de nistagmo espontâ-
neo, horizontal unidirecional e persistente em direção ao lado acometido, com duração de 7 a
10 dias. Não ocorre perda auditiva, tampouco ocorre zumbidos e a recuperação se dá gradual-
mente, no curso de dias ou de semanas, tendo o diagnóstico estabelecido por meio de achados
clínicos associados a exames complementares, como audiometria, prova calórica ou ressonân-
cia magnética. Na doença de Meniére3, os episódios vertiginosos usualmente duram horas e são
acompanhados de zumbidos unilaterais e de perdas auditivas. Pode ser grave e pode ocasionar
desequilíbrios incapacitantes. A perda auditiva confirmada por audiometria pode auxiliar no
diagnóstico da condição. A labirintite3 ocorre por intoxicações ou por infecções na orelha média.
Dor e febre são comuns e diversos graus de perdas auditivas podem ocorrer. Suspeita-se dessa
etiologia após a ocorrência de um episódio de otite média aguda e a tomografia computadoriza-
da do osso temporal pode auxiliar no diagnóstico. Em suma, para o diagnóstico seguro de uma
síndrome vestibular aguda, deve-se atestar a ausência de alterações nos pares cranianos e ce-
To n t u ra , Ve r t i g e m , S í n c o p e e C o m a 253

rebelares, a capacidade de o paciente se assentar e se levantar sozinho, a presença de nistagmo


unidirecional e horizontal, a presença do teste do impulso da cabeça anormal unilateralmente
e, por último, o alinhamento vertical normal dos olhos.
Em portadores de síndrome vestibular episódica, devem ser atestadas a ausência de hipoten-
são ortostática, a presença do teste posicional positivo com nistagmo específico para VPPB, assim
como resposta terapêutica imediata e clara às manobras de reposicionamento canaliculares.
A vertigem causada pelos distúrbios vestibulares centrais3, aqueles que acendem alerta para
a gravidade do caso, raramente está acompanhada de sintomas auditivos e, frequentemente, está
associada a alterações na marcha e no equilíbrio. Os estudos sugerem que exames focados nos
movimentos oculares, quando realizados por especialistas, são mais sensíveis para diagnosticar
acidente vascular encefálico (AVE) precoce do que exames de imagem do cérebro. Além disso,
nas manobras de posicionamento, como Dix Hallpike e teste de rolamento supino, achados de
nistagmo posicional geralmente ocorrem com duração variável (embora com tempo superior a 90
segundos), com direção variável e não costumam ter reversão espontânea.
Diante da queixa de tontura ou de vertigem, é importante a realização de uma anamnese de-
talhada, bem como de uma revisão laboratorial apropriada para descartar síndromes metabólicas,
imunológicas, hematológicas e hormonais.

Síncope
As síncopes reflexas1 são mais comuns antes dos 40 anos e podem ser precedidas de sinto-
mas prodrômicos, como náuseas, vômitos e diaforese. Podem existir gatilhos, como local quente
ou lotado, momento pós-prandial, odores ou dor intensa, além de rotação da cabeça, inexistindo
qualquer associação com doença cardíaca. A massagem do seio carotídeo é recomendada para o
diagnóstico da condição em pacientes > 40 anos, afinal, a bradicardia e/ou a hipotensão desen-
cadeadas pela massagem comprovam a etiologia reflexa. Esse procedimento, no entanto, deve ser
realizado com cautela nos pacientes com histórico de acidente vascular cerebral ou de esteno-
se carotídea. Por outro lado, a síncope secundária à hipotensão ortostática1 ocorre, geralmente,
quando o paciente, de pé, tem uma hipotensão e guarda associação com permanência ortostática
prolongada, com mudança de posição, com momento pós-prandial, com o uso de determinados
medicamentos, como diuréticos, com neuropatias autonômicas e com o parkinsonismo. A con-
dição pode ser confirmada quando, durante a aferição intermitente da pressão arterial nos 3 pri-
meiros minutos, há uma queda na pressão sistólica > 20 mmHg, na pressão diastólica > 10 mmHg,
ou uma diminuição da pressão sistólica para < 90 mmHg que reproduza os sinais. As síncopes por
causas cardíacas1 podem ser desencadeadas durante o esforço físico ou podem ser súbitas mes-
mo no repouso. História familiar de morte súbita e doenças cardíacas estruturais prévias devem
ser investigadas. Achados como anormalidades na condução intraventricular, bradicardia sinusal
inapropriada, intervalos QT longos ou curtos, elevações nos segmentos ST e repolarização pre-
coce são alguns dos indícios, ao ECG, de causas cardíacas para a síncope. A síncope arrítmica é
confirmada quando se correlaciona com uma arritmia cardíaca (bradiarritmia ou taquiarritmia).
A síncope de origem isquêmica, por sua vez, pode ocorrer na evidência de isquemia miocárdica,
independentemente se existe infarto, enquanto a síncope causada por desordens cardiopulmona-
res pode ocorrer devido à presença de um mixoma atrial com prolapso ou à presença de trombo
no átrio esquerdo em decorrência de embolia pulmonar ou, até mesmo, de uma dissecção aguda
de aorta. As síncopes por causas neurológicas1 também devem ser consideradas e diferenciadas.
Nesse conjunto, enquadra-se a insuficiência autonômica, cujos sinais de alerta incluem impo-
254 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

tência precoce, liberação dos esfíncteres, movimento rápido dos olhos, ataxia, comprometimento
cognitivo e déficits sensoriais. Pode ocorrer, também, secundariamente a um ataque isquêmico
transitório (AIT) e, nesse caso, existem sinais focais, alteração da marcha, ataxia, diplopia, disar-
tria, entre outros. Além disso, é importante diferenciar a ocorrência de um episódio de síncope
com uma crise epiléptica. Isso porque a assistolia epiléptica, em crises convulsivas mais comple-
xas, pode cursar com síncope se durar um tempo maior que oito segundos, embora isso seja raro.
A maioria dos casos de parada cardíaca em pacientes epilépticos são decorrentes de doenças car-
diovasculares, e não da assistolia ictal.
A monitorização com eletrocardiograma está indicada para todos os pacientes de alto risco
e também para aqueles com síncope de origem incerta ou recorrente. O ecocardiograma, por sua
vez, está indicado para a estratificação de risco nos pacientes com suspeita de cardiopatias estru-
turais. O teste ergométrico é indicado para aqueles que apresentam a síncope durante ou após o
esforço físico. Por fim, uma revisão laboratorial, incluindo hemograma quando houver suspeita
de hemorragias, saturação de oxigênio e gasometria arterial quando existir suspeita de hipóxia,
troponina sérica na suspeita de etiologia isquêmica e D-dímero na suspeita de embolia pulmonar
é recomendada.

Coma
Além da avaliação inicial breve e completa, exames laboratoriais e de imagem são fundamen-
tais para a investigação das possíveis etiologias. Nesse contexto, a avaliação inclui a solicitação de
hemograma completo, de glicemia, de eletrólitos séricos, de parâmetros da função renal, de parâ-
metros da função hepática, de lactato sérico, de gasometria arterial, dos tempos de protrombina
e de tromboplastina parcial ativada, associados a um eletrocardiograma. Para pacientes em que
a causa do coma permanece obscura, deve-se acrescentar exames como hemocultura, testes de
função adrenal e tireoidiana, esfregaço sanguíneo e rastreamento para abuso de medicamentos ou
de outras drogas específicas. A tomografia computadorizada de crânio é o exame de escolha ini-
cial para avaliação do paciente em coma e é muito sensível para a pesquisa de causas estruturais.
Ademais, o eletroencefalograma pode ser útil para pacientes com históricos convulsivos. Por fim, a
punção lombar só está indicada nos casos de suspeita de meningites ou de encefalites. A angioto-
mografia, quando disponível, pode possibilitar a avaliação acurada das circulações intracranianas
arterial e venosa e, assim, ser útil na investigação de acidente vascular encefálico, principalmente
naqueles com sede no tronco encefálico. A ressonância magnética, por sua vez, propicia análise
mais acurada das estruturas corticais e subcorticais, motivo pelo qual pode auxiliar na detecção de
anormalidades em pacientes com encefalite, com derrames isquêmicos precoces, com pequenas
hemorragias e com patologias na substância branca. No entanto, apesar dos benefícios, trata-se de
um exame menos acessível, com maior tempo de execução e de custo elevado.

Tratamento
Tontura e vertigem
O tratamento das sensações de tontura e de vertigem consiste no alívio dos sintomas e no tra-
tamento das causas subjacentes. Os principais medicamentos de supressão vestibular indicados
To n t u ra , Ve r t i g e m , S í n c o p e e C o m a 255

são os benzodiazepínicos, anti-histamínicos, anticolinérgicos, bloqueadores dos canais de cálcio,


neurolépticos e ainda antidepressivos. Os mais usados são os benzodiazepínicos e os anti-hista-
mínicos. É importante considerar, porém, que esses medicamentos podem causar sonolência e
que, portanto, devem ter a prescrição limitada. Além disso, manobras de reposicionamento para
tratar VPPB3 devem ser feitas por médicos experientes, enquanto os demais distúrbios principal-
mente os de ordem central requerem acompanhamento por neurologistas, uma vez que são po-
tencialmente fatais.

Síncope
O tratamento da síncope deve ser baseado na estratificação de risco e na identificação de
suas possíveis causas. Para as síncopes reflexas1, é indicada a educação do paciente e a mu-
dança no estilo de vida, assim como orientações sobre os gatilhos que podem levar à ocorrên-
cia da condição. Uma abordagem adicional pode ser necessária dependendo da gravidade dos
episódios, da idade do paciente e do impacto na sua qualidade de vida. Além disso, terapias
medicamentosas que precipitam a hipotensão devem ser reavaliadas. Manobras de contrapres-
são, como cruzar as pernas ou agachar, estão indicadas para pacientes com pródromos e que
sejam mais jovens e capazes de realizá-las. A prescrição de fludrocortisona está indicada para
pacientes jovens não hipertensos, embora seja contraindicada para pacientes com insuficiência
cardíaca. Em seguida, as terapias medicamentosas de cada paciente também devem ser revistas
ou substituídas, uma vez que o uso concomitante de três anti-hipertensivos ou mais pode ser
um preditor significativo deste tipo de síncope. Os estudos indicam que inibidores da enzima
de conversão da angiotensina, bloqueadores dos receptores da angiotensina e bloqueadores
dos canais de cálcio estão menos associados com hipotensão ortostática em comparação aos
betabloqueadores e diuréticos tiazídicos. Ademais, meias de compressão podem ser indicadas
principalmente para os pacientes idosos e a elevação da cabeceira da cama (> 10 graus) também
são recomendadas. Na síncope de origem cardíaca1, os respectivos tratamentos das arritmias
cardíacas identificadas devem ser empreendidos. A abordagem com marcapasso cardíaco pode
ser indicada para pacientes com síncopes frequentes, recorrentes e imprevisíveis. A duração dos
pródromos na síncope pode contribuir para a diferenciação das suas causas, afinal, um período
superior a dez segundos aponta para a etiologia reflexa.

Coma
O tratamento do coma consiste na estabilização inicial do paciente, associada ao manejo
das etiologias subjacentes. Pacientes com pontuação igual ou menor que 8 na escala de coma de
Glasgow geralmente requerem intubação orotraqueal. O manejo do paciente em coma, além de
medidas suportivas, deve ser direcionado à causa do coma, seja por intoxicações, por acidentes
vasculares, por traumas ou por outras etiologias.
256 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• A tontura é um sintoma descrito por muitos pacientes e pode estar associado a
diferentes patologias;
• A vertigem é decorrente de distúrbios vestibulares periféricos ou centrais, podendo
ser benigna ou, até mesmo, fatal;
• A síncope é caracterizada como uma perda transitória da consciência, geralmente
com rápida recuperação;
• O tratamento do coma envolve estabilização e manejo específico de suas possíveis
etiologias.

Leitura sugerida
1. Brignole M, Moya A, de Lange FJ, Deharo JC, Elliott PM, Fanciulli A, et al. Guidelines for the diagnosis and
management of syncope European Heart Journal, Volume 39, Issue 21, 1 June 2018.
2. Traub SJ, Wijdicks EF. (2016). Initial Diagnosis and Management of Coma. Emergency Medicine Clinics of North
America, 34(4), 777-93. doi:10.1016/j.emc.2016.06.017.
3. Edlow JA, Newman-Toker D. Using the physical examination to diagnose patients with acute dizziness and vertigo.
The Journal of Emergency Medicine, Vol. 50, No. 4, pp. 617-28, 2016.
4. Ludwig L, McWhirter L, Williams S, et al. Functional coma. In: Hallett M, Stone J, Carson A (Eds). Handbook of
Clinical Neurology: Functional Neurologic Disorders. 1. ed. Academic Press, Cambridge, 2016. Vol. 139, p.313.
Síndrome da Hipertensão Intracraniana 34

Marcelle Amaral de Matos


Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
A síndrome da hipertensão intracraniana (SIC) é uma emergência neurológica associada
a alta morbimortalidade. É caracterizada por conjunto de sinais e de sintomas decorrentes do
aumento da pressão intracraniana (PIC)1. Atualmente, é considerada hipertensão intracraniana
(HIC) a manutenção da pressão, no interior da caixa craniana, maior que 22 mmHg por mais de
cinco minutos1, sem estímulo externo que justifique o desequilíbrio.

Apresentação clínica
As principais manifestações clínicas da síndrome de hipertensão intracraniana são cefaleia
de forte intensidade, vômitos e alterações visuais e são decorrentes da elevação da PIC1-4.
No exame físico do paciente é importante realizar o exame de fundo de olho com o intuito
de identificar a presença de papiledema. Acredita-se que a hipertensão intracraniana dificulta a
drenagem venosa que acompanha o nervo óptico, levando à estase sanguínea na papila óptica4,5.
É valido ressaltar que o papiledema é mais comum em quadros crônicos de hipertensão intracra-
niana, como é o caso de lesões tumorais5.
As manifestações neurológicas focais podem ocorrer na síndrome da hipertensão intracra-
niana devido ao efeito de massa local ou por deslocamento de estruturas cerebrais (herniação)2,4.
O exame neurológico é fundamental nesse momento para identificar tais manifestações.
As herniações podem ser classificadas em: subfalsiana (A), transtentorial central (B), uncal(C)
e cerebelar (E)2-4 – vide Figura 34.1. As manifestações clínicas variam de acordo com a localização
da hérnia. O paciente, em resposta ao aumento da PIC, pode apresentar, reflexamente, a Tríade de
Cushing, caracterizada por bradicardia, por depressão respiratória e por hipertensão. Essa tríade é
um achado de alta gravidade e exige intervenção imediata3,5.
258 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Figura 34.1. Hérnias cerebrais.


Fonte: BrainHerniationtypes/Wikicommons.

Etiopatogênese
A PIC é a pressão no interior da caixa craniana que, normalmente, varia entre 5-15 mmHg
em adultos3,4. A PIC é definida pela relação entre os volumes contidos no crânio. O interior da cai-
xa craniana tem 80 % de seu volume preenchido por massa encefálica, 10% por líquor e 10% por
componente vascular. Embora qualquer desses componentes possa determinar aumento da PIC,
o principal deles, em casos agudos, é o componente vascular, embora a melhor forma de tratar a
HIC se dê pela regulação do volume liquórico5. É de se considerar, entretanto, que, em condições
homeostáticas, pequenas alterações volumétricas em qualquer compartimento (sangue, líquor,
encéfalo, etc) não causam alteração da PIC, pois, nesses casos, o cérebro ativa, automaticamente,
mecanismos compensatórios, explicados pela Doutrina de Monro-Kellie1-4.
Os mecanismos compensatórios, por sua vez, consistem na redução do volume intracrania-
no por meio da redução da quantidade do líquor e/ou do sangue circulantes, afinal, o volume
encefálico é praticamente constante em não se tratando de lesões tumorais de crescimento lento.
Em neoplasias, o encéfalo pode se remodelar, seja por redução da quantidade de água extracelular,
seja por perda de células neuronais e gliais, decorrente de processos ainda pouco conhecidos1-3.
O líquido cefalorraquidiano (LCR), em situação de elevada pressão intracraniana, é o primeiro a
ter o volume reduzido, sendo desviado para o espaço subaracnoideo, principalmente para o saco
dural. Por outro lado, o volume sanguíneo cerebral tem 60% de representação venosa, 40% de re-
presentação arterial4 e é determinado pelo fluxo sanguíneo cerebral (FSC). Durante a progressão
da HIC, os mecanismos compensatórios são ativados, mas depois de um determinado ponto, em
que seus limites são extrapolados, ocorre um aumento exponencial da PIC, mesmo com pequenas
elevações no volume intracraniano1-4. A HIC instituída leva, então, à lesão cerebral por meio de
isquemia global e por deslocamento de estruturas (herniações).

Fatores de risco
Algumas condições aumentam consideravelmente os riscos de desenvolvimento da SIC e,
por isso, é preconizada a monitorização da pressão intracraniana nos pacientes por elas acometi-
dos, cujos destaques são representados por:
S í n d ro m e d a H i p e r t e n s ã o I n t ra c ra n i a n a 259

• Acidente vascular encefálico isquêmico (AVEi): quando a área infartada é > 50% do
território de irrigação da artéria cerebral média5; e
• Acidente vascular encefálico hemorrágico (AVEh): até 20 % dos pacientes com hemorragia
subaracnóidea (HSA) podem evoluir com HIC, especialmente se pontuarem > 2 na
escala de Hunt-Hess com hidrocefalia à tomografia computadorizada de crânio (TCC)
ou se precisarem de tratamento endovascular para conter o vasoespamo dali decorrente.
Ademais, na eventualidade de existir hemorragia intraparenquimatosa com sangramento
supratentorial maior de 50 mL exercendo efeito de massa ou com sangramento cerebelar
medindo mais de 30 mm de diâmetro, o risco para desenvolvimento da HIC é elevado. Por
último, a presença de hematoma, seja subdural ou epidural com desvio da linha média,
também indica maiores chances de evolução para HIC.
No traumatismo cranioencefálico (TCE) grave (ECG < 9), a monitorização da PIC é preconi-
zada se existir:
• TCC anormal na admissão;
• TCC normal com a presença de pelo menos 2 critérios dentre os que se seguem: idade
superior a 40 anos, postura anormal e pressão arterial sistólica inferior a 90 mmHg.
Nesses casos, a incidência de HIC pode chegar a 53-63%5. A monitorização direta da PIC
apresenta alguns entraves, como o risco de infecção e de sangramento; no entanto, a
incidência dessas complicações é baixa3,6.

Diagnóstico e monitoramento
O diagnóstico da HIC deve ser feito com monitoração multinodal3.
A TCC é o exame de escolha na fase inicial da síndrome2,3 e sugere elevação da PIC quando
há presença de lesões em massa, de deslocamento da linha média ou quando há apagamento
das cisternas basilares3. É válido ressaltar que a TCC normal em paciente com sintomatologia de
elevação de PIC não exclui o diagnóstico da síndrome, afinal, estudos revelam que pacientes pode
apresentar TCC normal na fase inicial da SIC3. A ressonância nuclear magnética (RNM) pode ser
utilizada para identificar a etiologia da SIC.
Ademais, a medida direta da PIC, apesar de invasiva, é uma alternativa indicada para alguns
casos, como citado no tópico anterior. O local anatômico padrão-ouro nesse propósito é o intra-
ventricular, por fornecer medidas acuradas, por permitir calibração e por garantir drenagem li-
quórica usual, diferentemente dos outros locais, como as regiões subaracnoide e epidural (menor
precisão)3,6. A PIC no monitor não é uma onda estável e varia com a contração cardíaca, com a res-
piração e com a complacência intracraniana3,6. A curva típica de PIC apresenta três componentes,
gerados pela pulsação arterial no círculo de Willis e no parênquima cerebral, denominados como
ondas P1 (onda de percussão, representa pulso arterial sistólico), P2 (“tidal-wave”) e P3 (onda di-
crótica)3,6. À medida que a complacência craniana diminui, as ondas P2 e P3 se igualam à P1 e,
posteriormente, a ultrapassam. A falência dos mecanismos compensatórios com elevação da PIC
é representada pela presença da onda A, conhecida também como onda de platô, no monitor2,3.

Tratamento
A HIC é considerada emergência neurológica e requer tratamento imediato para redução
tanto da mortalidade, quanto da morbidade. O foco terapêutico deve será etiologia primária da
260 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

condição. Objetiva-se, com o tratamento, manter PIC < 22 mmHg e pressão de perfusão cerebral
(PPC) de pelo menos 50 a 60 mmHg1.

Intervenções de 1ª linha Intervenções de 2ª linha

• Posicionamento do paciente; • Hiperventilação;


• Troca de ventilação; • Barbitúricos;
• Saturação de O2 > 92%; • Hipotermia terapêutica;
• Sedação e analgesia; • Descompressão cirúrgica.
• Controle de temperatura;
• Terapia Hiperosmolar;
• Cirurgia.

Fluxograma 34.1. Principais ferramentas terapêuticas no manejo da hipertensão intracraniana.


Dados de Stevens et al (2015)7 e Koenig et al (2018)1. Autoria própria.

Posicionamento do paciente
A manutenção da cabeceira do leito a 30° com o pescoço do paciente em posição ereta otimi-
za a drenagem venosa cerebral. Isso reduz o volume de sangue no cérebro e, consequentemente,
diminui a PIC2,3,7.

Sedação
A dor e a agitação podem gerar aumento da PIC, logo, o paciente com HIC pode ser seda-
do . Sedação, essa, importante por otimizar a drenagem venosa, por auxiliar na intubação (quan-
2

do necessária ela for), por reduzir a demanda metabólica e por reduzir a resposta simpática3,7.
O Propofol é um sedativo muito utilizado nesse propósito dada a sua grande acessibilidade e o
seu curto tempo de meia-vida, o que permite a realização de exame neurológico frequente para
acompanhamento dos pacientes3. Na eventual necessidade de intubação orotraqueal em pacien-
tes com HIC, a analgesia com lidocaína vem sendo recomendada, devido ao elevado potencial do
fármaco em reduzir a PIC3.

Oxigenação
Manutenção de boa oxigenação com normocapnia é importante, pois tanto os níveis de oxi-
gênio, quanto os de gás carbônico são variáveis que influenciam no FSC e, dessa forma, na PIC. Em
casos de extrema urgência, a hiperventilação temporária, durante a ventilação mecânica, pode
ser utilizada, por promover redução na quantidade de CO2 circulante, o que provoca alcalose, va-
soconstrição cerebral e, assim, reduz a PIC1,3,7. É importante considerar que, ao lançar mão da
hiperventilação terapêutica, a equipe deve monitorizar a oxigenação cerebral, seja local ou global
por meio do bulbo jugular.
S í n d ro m e d a H i p e r t e n s ã o I n t ra c ra n i a n a 261

Nível de consciência
O nível de consciência é determinado pela escala de coma de Glasgow (ECG), pois pode pre-
dizer a gravidade da hipertensão intracraniana3. No entanto, é válido ressaltar que o estado coma-
toso pode ser causado por diversas outras patologias e dever ser investigado.

Pressão arterial
A pressão arterial (PA) deve ser mantida em níveis usuais e a hipotensão deve ser evitada,
pois hipotensão implica aumento da PIC, devido à vasodilatação cerebral reativa2,3. Os anti-hi-
pertensivos demonstraram segurança e podem ser utilizados para controlar a PA, se PPC > 120
mmHg e PIC > 20 mmHg3. Contudo, é imperioso que o manejo da PA em paciente com HIC aguda
seja feito com drogas de curta duração, tituláveis. Os pacientes hipertensos crônicos apresentam
autorregulação da pressão intracraniana diferente dos demais indivíduos2-4,6,7, afinal, a elevação da
PA, de grau leve a moderado, gera vasoconstrição arterial e arteriolar com o intuito de evitar que a
hipertensão alcance os vasos cranianos. Nesse sentido, redução aguda da PA pode gerar isquemia
cerebral em hipertensos, motivo pelo qual o controle da PA deve ser ainda mais cauteloso.

Temperatura corporal
O aumento da temperatura leva ao aumento da demanda metabólica cerebral, motivo pelo
qual deve ser evitado nos pacientes com PIC elevada2-4,6,7. O controle da temperatura pode ser rea-
lizado com o uso de antitérmicos.

Anti-convulsivantes
Convulsões levam ao aumento da demanda metabólica cerebral e devem ser evitadas nos pa-
cientes com PIC elevada3,6,7. No entanto, os anticonvulsivantes devem ser administrados de forma
precoce, na primeira semana, ou se crises convulsivas forem diagnosticadas.

Terapia hiperosmolar
A terapia hiperosmolar na HIC gera um gradiente osmótico que leva à saída de fluidos do
interstício e das células cerebrais para o compartimento vascular, diminuindo, assim, o volume
intracraniano4. Os principais agentes utilizados na terapia hiperosmolar são o manitol e a solução
salina hipertônica. O manitol é um diurético osmótico utilizado em pacientes com PIC elevada,
pois reduz o volume sanguíneo total e, consequentemente, o cerebral. A dose utilizada é de 0,25 a
0,5 g/kg a cada 6-8 horas3,7. No entanto, seu uso deve ser cauteloso, pois pode induzir efeitos cola-
terais, dentre os quais incluem hipernatremia, hiperosmolaridade, necrose tubular e hipotensão.
A solução salina hipertônica (SSH), por sua vez, pode reduzir significativamente a hipertensão
intracraniana. Atualmente, é administrada SSH na concentração entre 2-23,4%, variando de acor-
do com os serviços de saúde1. A sua administração pode ser em bolus ou em infusão contínua,
devendo ser empregada a administração contínua em pacientes hiponatrêmicos1.
262 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Glicocorticoides
Indicados em casos de SIC cuja etiologia seja tumoral ou infecciosa3.

Barbitúricos
O principal barbitúrico prescrito nesse propósito é o pentobarbital, geralmente com uma
dose de carga de 5 a 20 mg/kg, seguido de 1 a 4 mg/kg por hora1. O fármaco atua reduzindo a PIC
por meio da diminuição do metabolismo cerebral. A equipe assistencial deve monitorizar os pa-
cientes via eletroencefalograma contínuo, atingindo níveis de surto-supressão. Ademais, os riscos
de toxicidade, de imunossupressão, de comprometimento gastrointestinal e de choque distributi-
vo1,7 secundários à administração da droga precisam ser considerados.

Hipotermia terapêutica
A hipotermia terapêutica consiste no resfriamento de todo o corpo até uma temperatura
central de 32 a 34°1,3. Os estudos demonstram que baixas temperaturas corporais reduzem a PIC,
apesar de inexistirem evidências baseadas em resultados que recomendam seu emprego1,3. No
entanto, a hipotermia pode ser induzida em casos de HIC refratária a outros tratamentos1,3.

Tratamento cirúrgico
Conforme a etiologia da SIC, os procedimentos cirúrgicos são a primeira linha de tratamento,
por meio da descompressão, como ocorre nos casos de lesão cerebral expansiva focal e de hidro-
cefalia2,3,7. Contudo, em pacientes graves cujas causas para a HIC provenham de outras etiologias,
a cirurgia pode ser utilizada se forem refratários às outras terapias.

Pontos-chave
• HIC é definida como a manutenção da pressão intracraniana > 22 mmHg por mais
de cinco minutos;
• As principais manifestações clínicas incluem cefaleia, alterações visuais e vômitos;
• As principais etiologias da SIC incluem edema cerebral, hidrocefalia e lesão de
massa;
• O diagnóstico da SIC exige associação entre exame físico, anamnese e exames de
imagem;
• O monitoramento invasivo da PIC é realizado em um grupo específico de pacientes;
• O manejo da SIC consiste em estabilização clínica e em redução da PIC, por
diferentes meios.
S í n d ro m e d a H i p e r t e n s ã o I n t ra c ra n i a n a 263

Leitura sugerida
1. Koenig KAM. Cerebral. Edema and Elevated Intracranial Pressure. Neurology.2018;24(6):1588-1602.
2. Westover MB, DeCroos EC, Awad K, Bianehi M. Pocket Neurology.2° ed. Lippincott Williams & Wilkins: 2016.
3. Smith ER, Amin-Hanjani S. Evaluation and Management of Elevated Intracranial Pressure in Adults, UpToDate.
2019.
4. Carlotti Jr CG, Colli BO, Dias LAA. Hipertensão intracraniana. Medicina (Ribeirão Preto).1998; 31:552-562.
5. Latorre JGS, Greer DM.Management of Acute Intracranial Hypertension.The Neurologist.2009;15(4):193-207.
6. Costa LS, Martins WA, Marrone LCP. Avaliação e reconhecimento da síndrome de hipertensão intracraniana/
Evaluationandrecognitionofintracranialhypertensionsyndrome. Acta méd.2014;35(6): 1-7.
7. Stevens RD, Shoykhet M, Cadena R. Emergency Neurological Life Support: Intracranial Hypertension and
Herniation. NeurocritCare. 2015;23(2): 76-82.
8. Jauch EC, Saver JL, Adams HP, et al. Guideline for Healthcare Professionals From the American Heart Association/
American Guidelines for the Early Management of Patients With Acute Ischemic Stroke: A Stroke Association.
Stroke. 2013; 44(3):870-947.
Morte Encefálica e Manejo 35
do Potencial Doador

Gabriela de Andrade Lopes


Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
A morte encefálica (ME) é considerada um evento relativamente incomum, com estimativa
de ocorrência em apenas 1% de todas as mortes. No Brasil, por determinação de uma lei federal,
o Conselho Federal de Medicina (CFM) garante a normatização dos critérios de morte encefálica,
publicados pela primeira vez em 1997, válidos para todo o território nacional. Portanto, de acor-
do com o CFM, a morte encefálica é definida como a perda completa e irreversível das funções
encefálicas, caracterizada pela cessação das atividades corticais e do tronco encefálico. Contudo,
apesar de existirem lesões orgânicas decorrentes da cessação das atividades cerebrais, a maioria
dos órgãos permanecem viáveis para o transplante, devido à manutenção do fluxo sanguíneo cor-
poral, de forma que a doação dos órgãos de um indivíduo pode beneficiar, aproximadamente, 7
pessoas que necessitavam de um transplante. Cerca de 60% das doações de órgãos são decorren-
tes de indivíduos já falecidos, sendo que, desse grupo, aproximadamente 80% são previamente
diagnosticados com morte encefálica. Os outros 20% decorrem de morte circulatória, que não será
abordada neste capítulo.

Apresentação clínica
De acordo com o CFM, a morte encefálica é caracterizada pela história de lesão cerebral gera-
dora de coma irreversível. Dessa forma, a associação de dados do prontuário médico com estudos
de neuroimagem que evidenciem a presença de lesão cerebral, é pré-requisito para se considerar
o diagnóstico de morte encefálica. Além disso, no exame neurológico do paciente observa-se au-
sência de resposta a estímulos externos, ausência dos reflexos pupilar, corneopalpebral, óculoves-
tibular e faríngeo, além da presença de apneia.
266 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Etiopatogênese
A lesão cerebral decorrente de traumas, de hemorragias, de isquemias, de intoxicações e de
neoplasias pode levar ao dano irreversível das estruturas encefálicas, o que implica o diagnóstico
de morte encefálica. Contudo, em adultos, os traumas e as hemorragias subaracnóideas lideram o
ranking das principais causas. Já em crianças, as maiores etiologias incluem os traumas, as infec-
ções e as neoplasias cerebrais.

Diagnóstico
Pacientes em suspeita de ME devem ser mantidos em observação por um período mínimo
de 6 horas1,2. Esse tempo deve ser estendido para 24 horas se a etiologia da morte foi encefalopatia
hipóxico-isquêmica ou hipotermia terapêutica1. Depois de decorrido o período preconizado, a
conduta diagnóstica de morte encefálica pode ser iniciada, desde que sejam observados os se-
guintes pré-requisitos:
• Lesão cerebral irreversível compatível com o quadro clínico do paciente;
• Temperatura corporal maior do que 35ºC;
• Saturação de oxigênio maior do que 94%;
• Pressão arterial média (PAM) maior ou igual a 65 mmHg em indivíduos com idade maior
ou igual a 7 anos;
• Ausência de intoxicação por drogas depressoras do SNC;
• Ausência de distúrbios hidroeletrolíticos e/ou ácido/básicos;
• Ausência de outras condições clínicas que poderiam simular a condição do paciente,
como hiperglicemia, insuficiência renal aguda ou anemia1.

Testes clínicos
Preenchidos os pré-requisitos supracitados, procede-se a avaliação com a realização de, pelo
menos, dois exames clínicos, realizados por dois médicos diferentes, que evidenciem a presen-
ça de morte encefálica1,2. Nesse propósito, é lançada mão da avaliação do coma com a Escala de
Coma de Glasgow (ECG) e da avaliação da disfuncionalidade dos nervos cranianos pela ausência
do reflexo pupilar fotomotor bilateral, do reflexo córneo-palpebral bilateral, do reflexo oculocefá-
lico, do reflexo óculovestibular e do reflexo faríngeo2. Desde 2017, o CFM determina que os exami-
nadores devam ser neurologistas, neurocirurgiões, intensivistas ou emergencistas1. Na ausência
de médicos especialistas nessas categorias, qualquer médico capacitado que tenha, no mínimo,
um ano de experiência no diagnóstico de morte encefálica, que tenha realizado ou acompanhado
pelo menos dez determinações de ME, ou que tenha realizado curso de capacitação para a ativi-
dade, podem realizar os testes clínicos1,2. Além disso, o médico examinador não deve fazer parte
da equipe de médicos assistentes do paciente e/ou da equipe de transplantes, caso a doação de
órgãos seja uma opção a ser considerada2. O CFM determina, ainda, que, entre a execução de pelo
menos dois testes clínicos, haja um intervalo de tempo pré-determinado de acordo com a idade
do paciente, conforme evidenciado na Tabela 35.1.
M o r t e E n c e f á l i c a e M a n e j o d o P o t e n c i a l D o a d o r 267

Tabela 35.1. Intervalo de tempo recomendado entre a realização de


dois testes clínicos para determinar ME
Idade Intervalo recomendado
7 dias completos até os 2 meses incompletos 24 horas
2 meses até os 24 meses incompletos 12 horas
2 anos ou mais 1 hora
Dados do Conselho Federal de Medicina . Autoria própria.
1

Teste de apneia
Consiste na avaliação dos movimentos respiratórios sem o apoio do ventilador mecânico,
após a realização de pré-oxigenação por 10 minutos com fração inspirada de oxigênio a 100%2. O
teste é considerado positivo para morte encefálica se o paciente permanecer cerca de 8 a 10 minu-
tos sem apresentar esses movimentos, ou seja, se o paciente permanecer em apneia, mesmo após
a estimulação máxima do sistema respiratório, com uma pressão parcial de gás carbônico (PaCO2)
acima de 55 mmHg1,2. Caso o paciente apresente instabilidade clínica durante a realização do teste
de apneia, como hipotensão, saturação de oxigênio igual ou menor que 85%, ou arritmia cardíaca
grave, o teste deve ser interrompido e considerado inconclusivo2.

Testes complementares
No Brasil, o CFM determina que a realização de pelo menos um exame complementar, além
dos testes clínicos e do teste de apneia, é obrigatório, e o laudo deve ser emitido por um médico
especialista na interpretação do exame em situações de ME2. A realização desses testes tem o ob-
jetivo de atestar o comprometimento da atividade elétrica, metabólica, e/ou da perfusão sanguí-
nea cerebral. Nesse propósito, podem ser realizados o eletroencefalograma (EEG), a angiografia
cerebral, o doppler transcraniano ou a cintilografia cerebral, sendo que a angiografia cerebral é
considerada o padrão-ouro para a determinação de ME1,2.

Manejo do potencial doador


Ao término dos testes clínicos, do teste de apneia e dos testes complementares, caso a morte
encefálica tenha sido confirmada, a equipe médica responsável pelo diagnóstico deverá docu-
mentar todos os achados no Termo de Declaração de Morte Encefálica (TDME) e no prontuário
do paciente, além de realizar notificação da confirmação à Central Estadual de Transplantes, de
proceder ao preenchimento da Declaração de Óbito (DO) e de comunicar a família do paciente1. É
importante lembrar que, na eventualidade de a morte ter ocorrido por causas externas, como ho-
micídio, acidentes, suicídio ou mortes suspeitas, a DO deve ser emitida pelo médico do Instituto
Médico Legal (IML)1. A data e o horário da morte correspondem ao momento de conclusão do
último teste realizado para o diagnóstico de ME1,2.
Após a determinação da morte encefálica, a doação de órgãos sempre deve ser considera-
da . Casos em que a família não autorize a doação, ou em que ela não seja indicada, os familiares
3
268 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

podem optar pela interrupção do suporte vital3. Por outro lado, se a família autoriza a doação de
órgãos, o suporte vital deverá ser mantido com o objetivo de manter os órgãos viáveis para a doa-
ção1,3. O gerenciamento, a alocação e a preservação dos órgãos em sua área designada é respon-
sabilidade da equipe de transplantes3. No propósito de garantir que os órgãos do doador estejam
viáveis e que não haja condições que contraindiquem a doação, além do objetivo de avaliar a
compatibilidade com possíveis receptores, alguns exames podem ser realizados no paciente com
ME, como tipagem sanguínea, tipagem de antígenos leucocitários humanos (HLA), hemograma,
hemocultura, função hepática, coagulograma, gasometria arterial, urina rotina, urocultura e soro-
logias para Hepatite B e C, HIV, sífilis, toxoplasmose, citomegalovírus e vírus Epstein-Barr3. Além
desses testes, dependendo dos órgãos candidatos à doação, pode ser necessária a realização de
outros exames, como estudos radiográficos, ecocardiograma, broncoscopia e biópsia hepática3.
Pacientes que tenham apresentado hemorragia intensa, ou que tenham necessitado de transfusão
sanguínea, podem apresentar sangue hemodiluído, condição que pode alterar a correta interpre-
tação dos exames e aumentar o risco de o paciente possuir doenças não identificadas pelos testes3.
Além de tudo, o manejo do potencial doador envolve, também, medidas de suporte que garantam
a estabilidade clínica do paciente após a morte encefálica, como monitorização e controle dos
níveis pressóricos3. É importante lembrar que o tempo entre a declaração da morte encefálica e a
aquisição dos órgãos para doação não deve ser prolongado, visto que complicações clínicas decor-
rentes da ausência de função cerebral podem prejudicar a viabilidade orgânica para transplante3.

Complicações clínicas
Estima-se que, cerca de alguns dias após a confirmação da morte encefálica, ocorra a de-
terioração do sistema nervoso simpático, o que leva à vasodilatação generalizada e à disfunção
orgânica múltipla. Por isso, diante de estabilidade clínica duradoura, o diagnóstico de ME torna-se
improvável. Outras complicações clínicas decorrentes da morte encefálica são listadas a seguir:

Alterações dos níveis pressóricos


Descargas simpáticas em um momento inicial podem levar ao aparecimento de taquicardia
e de hipertensão arterial, motivo pelo qual os pacientes podem se beneficiar da prescrição de
betabloqueadores, como o esmolol, para a preservação da função cardíaca, principalmente dos
candidatos à doação de órgãos. Contudo, em um segundo momento, o paciente pode evoluir com
hipotensão aguda devido a fatores como diminuição do volume circulante, vasodilatação gene-
ralizada secundária à falência do sistema nervoso simpático e disfunção cardíaca. Diante disso, a
expansão volêmica controlada torna-se opção terapêutica necessária, com o objetivo de garantir a
pressão arterial média (PAM) acima de 60 mmHg e o débito urinário de 0,5 a 1 mL/kg/h. Em alguns
casos, pode ser necessária a prescrição de vasoconstritores, como vasopressina e/ou catecolami-
nas, para compensar a diminuição do tônus vascular secundário à falência simpática.

Disfunções cardíacas
A ecocardiografia pode ser útil na avaliação de pacientes com ME que apresentam hipotensão
refratária às medidas terapêuticas, com o objetivo de avaliar a presença de alguma lesão miocár-
dica. Havendo um diagnóstico positivo, terapias com noradrenalina, com dobutamina, com epi-
nefrina ou com dopamina podem ser benéficas. Pacientes diagnosticados com morte encefálica e
M o r t e E n c e f á l i c a e M a n e j o d o P o t e n c i a l D o a d o r 269

que possuam mais de 40 anos de idade ou algum fator de risco para doença coronariana podem,
ainda, ser submetidos à angiografia das artérias coronárias, com o objetivo de evitar complicações
cardíacas e de garantir a viabilidade orgânica funcional para a doação de órgãos.

Redução da viabilidade pulmonar


A retenção de fluidos corporais pode gerar acúmulo de líquidos no pulmão e diminuição
da viabilidade pulmonar. Além disso, podem ocorrer pneumonia aspirativa e tromboembolismo
pulmonar. Dessa forma, a determinação de parâmetros ventilatórios é importante para a manu-
tenção da estabilidade clínica do paciente diagnosticado com ME. A redução do volume corrente
ofertado, caracterizada por uma ventilação protetora de lesão pulmonar, parece ser uma opção
viável. Ademais, recomenda-se manter a saturação de oxigênio maior que 95% e a PaCO2 entre 35
e 45 mmHg. Contudo, os parâmetros ventilatórios ideais para o paciente com morte encefálica
ainda são incertos. Por fim, com o objetivo de prevenir a pneumonia associada ao ventilador, a
cabeceira do leito do paciente pode ser elevada a cerca de 30 graus, caso não haja contraindicação.

Disfunções endócrino-metabólicas
Alterações endócrinas podem ocorrer e a prescrição de drogas pode ser necessária. Os glico-
corticoides devem ser considerados com o objetivo de reduzir a atividade inflamatória pulmonar e
sistêmica em pacientes com ME. Além disso, o uso dos glicocorticoides no paciente com ME, apto
à doação de órgãos, objetiva minimizar o risco de rejeição orgânica no receptor. Ademais, pacien-
tes com morte encefálica podem se beneficiar do uso de hormônios tireoidianos, caso apresentem
déficit na produção, associado à instabilidade hemodinâmica e à fração de ejeção reduzida ao
ecocardiograma. Por fim, com o objetivo de manter a glicemia entre 180 e 240 mg/dL, medidas
como a prescrição de soluções que não contenham glicose, e a administração de insulina, podem
ser necessárias.

Diabetes insipidus
A redução do fluxo sanguíneo intracerebral, secundário à morte encefálica, resulta em isque-
mia hipofisária e em ausência de produção do hormônio antidiurético (ADH). Além disso, durante
a herniação cerebral, instaurada pela ME, pode ocorrer compressão e lesão da glândula pituitária.
Dessa forma, o paciente passa a apresentar aumento do débito urinário e perda de volume circu-
lante, o que leva a alterações das concentrações iônicas, a aumento da concentração plasmática
de sódio e de cloro e a aumento da concentração urinária de potássio, de fosfato e de magnésio,
situação denominada diabetes insipidus, presente na maioria dos pacientes diagnosticados com
ME. Casos de hipernatremia podem ser tratados com a administração de soluções hipotônicas,
apesar de o consenso sobre a melhor opção terapêutica nesses casos, ainda não ser bem estabe-
lecido. De acordo com as diretrizes mais recentes, os níveis de sódio devem ser mantidos abaixo
de 150 mEq/dL e os de potássio devem ser mantidos acima de 4 mEq/dL, com o objetivo de ga-
rantir a estabilidade clínica do paciente. O tratamento do diabetes insipidus pode ser feito com a
administração de vasopressina, que também é útil para auxiliar no controle dos níveis pressóricos
e pode evitar a necessidade de aplicação de catecolaminas, potencialmente prejudiciais à doação
de órgãos. Na eventualidade de o paciente estar com os níveis pressóricos normais ou elevados, a
vasopressina pode ser substituída pela desmopressina.
270 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Resposta reflexa
Apesar de não ser efetivamente uma complicação da ME, a resposta reflexa, que pode ocorrer
espontaneamente ou sob estímulo tátil, por vezes configura como um agente de confusão diag-
nóstica e pode atrasar o início da abertura do protocolo de ME, inviabilizando o processo de doa-
ção de órgãos. Dessa forma, é preciso estar ciente de que, mesmo após a ME, a medula espinhal
do paciente pode preservar a presença de alguns reflexos, como a movimentação dos membros,
as contrações faciais e a ereção peniana. Por isso, a equipe médica deve avaliar a necessidade da
administração de agentes anestésicos, como os bloqueadores neuromusculares. Essa medida é
útil, principalmente, para evitar insegurança entre os familiares, que, muitas vezes, não aceitam o
diagnóstico de morte encefálica.

Eventos tromboembólicos
Como a circulação sanguínea corporal pode estar prejudicada na ME, alterações no fluxo
sanguíneo podem gerar lesões endoteliais e facilitar a ocorrência de eventos tromboembólicos.
Além disso, devido ao desequilíbrio entre produção e consumo dos fatores de coagulação, pode
ocorrer a coagulação intravascular disseminada. Por isso, o paciente diagnosticado com ME, sen-
do um candidato apto à doação de órgãos, deve ser anticoagulado com heparina pelo cateter ve-
noso central, preferencialmente. Desse modo, busca-se garantir a estabilidade clínica do doador e
a mitigação dos danos teciduais.

Infecções
Como o paciente diagnosticado com morte encefálica encontra-se em uma unidade hos-
pitalar, em uso de ventilação mecânica invasiva e de cateteres venosos, infecções oportunistas
podem ocorrer e prejudicar a doação de órgãos. Além disso, o sistema imunológico do paciente
com morte encefálica pode estar prejudicado, devido aos desequilíbrios homeostáticos aos quais
estão impingidos. A privação da perfusão hipotalâmica contribui, ainda, para a perda da regula-
ção da temperatura corporal, dificultando a correta avaliação dos sinais vitais do paciente, como
a temperatura e a sua relação com possíveis infecções. Considerando que a hipotermia pode pre-
judicar a aquisição de órgãos e pode levar à parada cardiorrespiratória, o emprego de medidas
que mantenham a temperatura corporal acima de 35ºc, como o uso de mantas e de fluidoterapia
aquecidas deve ser considerado. Contudo, parâmetros de normotermia e a necessidade de anti-
bioticoprofilaxia em casos de ME não são bem elucidados. A prescrição de antibioticoterapia para
tratar infecções instauradas em potenciais doadores deve ser uma decisão individualizada, reser-
vada à equipe médica.
M o r t e E n c e f á l i c a e M a n e j o d o P o t e n c i a l D o a d o r 271

Pontos-chave
• De acordo com o CFM, a morte encefálica é definida como a cessação completa e
irreversível das atividades corticais e do tronco encefálico;
• O paciente com suspeita de morte encefálica deve ser mantido em observação
pelo período mínimo de 6 horas, antes do manejo diagnóstico. Esse tempo deve ser
prolongado para 24 horas em casos de hipotermia terapêutica ou de encefalopatia
hipóxico-isquêmica;
• No Brasil, o diagnóstico de ME é realizado após realização de dois testes clínicos,
um teste de apneia e um teste complementar;
• Após a confirmação da ME, a equipe médica responsável deve preencher o TDME,
realizar notificação à Central de Transplantes, emitir DO e realizar a comunicação
familiar;
• A Central de Transplantes e a família devem ser atualizadas durante todo o processo
de determinação da ME;
• Após a autorização da família para a doação de órgãos, deve-se manter o suporte
vital visando à estabilidade clínica e à viabilidade orgânica.

Leitura sugerida
1. Conselho Federal de Medicina: Resolução Nº 2.173, de 23 de novembro de 2017.
2. Westphal GA, Veiga VC, Franke CA. Determinação da morte encefálica no Brasil. Revista Brasileira de Terapia
Intensiva. 2019.
3. Youn TS, Greer, DM. Brain Death and Management of a Potential Organ Donor in the Intensive Care Unit. Critical
Care Clinics. 2014.
Abdome Agudo 36

Nathalia Ornelas Ribeiro Chaves


Sttéphani Campos de Melo
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
O termo abdome agudo refere-se a sinais e a sintomas de dor abdominal súbita, espontânea,
não traumática e, geralmente, intensa1,2. É uma condição clínica que, usualmente, exige cirurgia
de emergência e requer diagnóstico rápido e específico2. O abdome agudo é uma situação habi-
tual em pronto socorro e a dor abdominal, principal característica dessa condição, correspon-
de a aproximadamente 10% dos atendimentos em serviços de emergência3. Dentre as principais
causas da condição destacam-se apendicite aguda, úlcera péptica aguda, colelitíase, colecistite
aguda, pancreatite aguda, isquemia intestinal aguda, diverticulite aguda e gravidez ectópica2,4. Os
diagnósticos associados a essa afecção variam de acordo com a idade e com o sexo do paciente,
afinal, a apendicite, por exemplo, é mais frequente entre indivíduos jovens, enquanto a diverticu-
lite o é entre idosos2.

Etiologia
Habitualmente, o abdome agudo é classificado pelo processo que o determina. Nesse sen-
tido, 5 grupos abrigam as diferentes etiologias. O primeiro deles, o abdome agudo inflamatório,
é o tipo mais comum, causado por processo inflamatório ou infeccioso. É caracterizado por dor
insidiosa com piora progressiva, por febre e por peritonite. São exemplos dessa condição: apen-
dicite aguda, colecistite aguda, pancreatite aguda e diverticulite5. O abdome agudo perfurativo,
por outro lado, é caracterizado pela presença de dor súbita, geralmente associada ao choque e
à sepse. São exemplos do quadro as úlceras pépticas, as neoplasias e a diverticulite5,6. Ademais,
o abdome agudo obstrutivo é caracterizado por obstáculos mecânicos ou funcionais que levam
à interrupção da progressão do conteúdo intestinal, manifestando-se com distensão, parada da
eliminação de flatos e de fezes, náuseas e vômitos. As aderências, a hérnia estrangulada, as neo-
plasias, a intussuscepção e o íleo paralítico5 constituem-se exemplos da classe. A quarta catego-
ria, representada pelo abdome agudo vascular, geralmente induz a presença de dor abdominal
intensa, desproporcional ao exame físico. Esse quadro pode estar associado às doenças vascula-
274 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

res, à fibrilação arterial, às cardiopatias e à idade avançada, do qual fazem parte a isquemia me-
sentérica, a colite isquêmica e a ruptura de aneurismas5,6. Por fim, o abdome agudo hemorrágico
é caracterizado pela presença de dor abdominal que aumenta progressivamente e pode levar ao
choque hipovolêmico. São exemplos dessa entidade a ruptura de aneurismas, a gravidez ectópi-
ca rota, a ruptura de folículo ovariano com sangramento e a ruptura hepática espontânea6.
Além disso, devem ser descartadas as causas extra-abdominais, como: infarto agudo do
miocárdio, endocardite, insuficiência cardíaca, pneumonia, embolia ou infarto pulmonares,
pneumotórax, esofagite, uremia, diabetes mellitus, hiperlipidemia, hipertireoidismo, anemia,
leucemia, reação de hipersensibilidade, herpes zóster, osteomielite, doenças psiquiátricas e sín-
drome de abstinência2.

Apresentação clínica
Diante das diferentes etiologias de abdome agudo, uma anamnese e um exame físico de-
talhados são essenciais para a formulação do diagnóstico diferencial acurado e do esquema te-
rapêutico adequado2. Nesse sentido, a história clínica deve avaliar queixas álgicas, problemas
antecedentes e sintomas associados. É necessário determinar o início, o tipo, a localização, a
duração e a irradiação da dor, além de fatores de melhora e de piora da sensação2. A presença de
sintomas associados, como vômito, diarreia, parada da eliminação de gases ou de fezes, melena,
hematúria ou dor ventilatório-dependente podem sugerir determinadas condições2. Além disso,
a análise da história patológica pregressa é de fundamental importância durante a anamnese,
afinal, os diagnósticos de doenças prévias, a utilização de medicamentos ou de outras substân-
cias e a história ginecológica contribuem, consideravelmente, para a definição diagnóstica2. No
que se refere ao exame físico, vale considerar que a primeira etapa deve ser a inspeção geral do
paciente, seguida, então, pelo exame abdominal que, por sua vez, é composto pela inspeção,
pela ausculta, pela percussão e pela palpação. Na inspeção, é importante avaliar o aspecto do
abdome e descrever sua forma, a presença de alterações cutâneas, vasculares e de cicatrizes. Na
ausculta, avalia-se a intensidade, a frequência e o padrão dos ruídos hidroaéreos, bem como os
sons de origem vascular, quando presentes. A percussão objetiva avaliar a densidade do conteú-
do abdominal. Nesse sentido, considera-se que o timpanismo é característico da presença de ar,
enquanto a macicez é característica da percussão de órgãos sólidos ou de massas2,4. A palpação
é capaz de revelar a gravidade e a localização da dor, além de identificar a presença de irritação
peritoneal, de visceromegalias ou de massas intra-abdominais. Esse procedimento deve ser ini-
ciado em ponto distante da área de dor relatada, por meio de manobras delicadas, com o pa-
ciente em decúbito dorsal e com a bexiga vazia. Na Tabela 36.1 são descritos os achados físicos
associados a condições específicas2,4. Ademais, o toque retal pode ser realizado para identificar
a presença de massas, de dor pélvica ou de sangue intraluminal. Por fim, a realização do exame
ginecológico está indicada em mulheres que apresentam dor infraumbilical2.
A b d o m e A g u d o 275

Tabela 36.1. Possíveis sinais presentes ao exame abdominal e as mais prováveis hipóteses diagnósticas
Sinal Descrição Diagnóstico
Blumberg Sensibilidade da parede abdominal de rebote transitória Inflamação peritoneal
Candelabro Dor intensa nas regiões abdominal e pélvica à mobilização do colo do útero Doença inflamatória pélvica
Doença de
Febre, icterícia e dor abdominal intermitente em hipocôndrio direito Coledocolitíase
Charcot
Claybrook Acentuação dos sons respiratórios e cardíacos através da parede abdominal Ruptura de víscera abdominal
Courvoisier Vesícula biliar indolor palpável na presença de icterícia Tumor periampular
Cruveihier Varizes na altura do umbigo Hipertensão portal
Danforth Dor no ombro durante a inspiração Hemoperitônio
Iliopsoas Dor ao realizar elevação e extensão da perna com contra resistência aplicada Apendicite com abscesso retrocecal
Murphy Dor causada pela inspiração enquanto se comprime o hipocôndrio direito Colecistite aguda
Dor hipogástrica ao realizar flexão e rotação externa da coxa direita, em Abscesso ou massa inflamatória
Obturador
decúbito dorsal pélvica
Rovsing Dor no ponto de McBurney, ao se comprimir a fossa ilíaca esquerda Apendicite aguda

Dados de Sabiston, 20152. Autoria própria.

Diagnóstico
Para auxiliar no estabelecimento diagnóstico, exames laboratoriais e exames de imagem, ex-
plicitados na Tabela 36.2, são constantemente solicitados na abordagem do paciente acometido
pelo abdome agudo2. Embora tenham ocorrido avanços das técnicas diagnósticas, principalmen-
te dentro da radiologia, a condução da anamnese e do exame físico detalhados é imperiosa2.

Tabela 36.2. Exames utilizados na abordagem do paciente com abdome agudo


Principais exames na investigação do abdome agudo
Hemograma completo Pode evidenciar leucocitose, sugerindo processo inflamatório
Eletrólitos, ureia e creatinina séricos Podem sugerir condições metabólicas ou endócrinas
Níveis elevados podem sugerir pancreatite, infarto de intestino delgado ou perfuração de
Amilase e lipase
úlcera duodenal
Função hepática, aminotransferases e fosfatase
Alterações sugerem afecções hepatobiliares
alcalina
Gasometria arterial e lactato sérico Podem ser úteis no diagnóstico de isquemia ou de infarto intestinal
Urinálise Útil para avaliar infecções do trato urinário
βHCG Fundamental em pacientes com idade fértil para avaliação de gravidez
Exame de fezes Detecção de sangue oculto ou de parasitas
Capaz de identificar cálculos biliares, calcificações pancreáticas e aterosclerose nos
vasos viscerais, bem como evidenciar obstruções gastrointestinais e pneumoperitônio
Radiografia de abdome
As incidências AP em decúbito dorsal e ortostase fazem parte do protocolo de abdome
agudo

(Continua...)
276 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

(...Contiuação)

Principais exames na investigação do abdome agudo


Útil na detecção de pneumoperitônio e de patologias em bases pulmonares
Radiografia de tórax
A incidência PA em ortostase faz parte do protocolo de abdome agudo
Utilizada para a avaliação das vias biliares e do sistema reprodutor feminino, importante
Ultrassonografia de abdome
para identificar a presença de líquido na cavidade abdominal
Possuem alta acurácia diagnóstica. Utilizadas para diferenciar obstrução mecânica do
Tomografia computadorizada de abdome e de
intestino delgado de íleo paralítico, para identificar isquemia intestinal aguda e lesão
pelve
intestinal após trauma abdominal fechado
Possui alta sensibilidade e especificidade diagnósticas. Ademais, tem potencial
Laparoscopia
terapêutico para várias condições que cursam com abdome agudo

Dados de Current, 20171 e de Sabiston, 20152. Autoria própria.

Tratamento
Anteriormente à instituição de qualquer terapia, os pacientes devem ser avaliados quanto à
estabilidade hemodinâmica, motivo pelo qual os dados vitais são monitorizados continuamente.
É importante dar especial atenção às condições que cursam com maior potencial de letalidade,
como isquemia mesentérica e rupturas de aneurismas, devido à necessidade de rápida interven-
ção2,7. A presença de hipotensão, de taquicardia e de rebaixamento do nível de consciência suge-
rem hemorragia, hipovolemia ou sepse e requerem, então, manutenção de vias aéreas pérvias,
suplementação de oxigênio quando necessário e ressuscitação volêmica, por meio de acesso ve-
noso periférico2,7. O controle oportuno e adequado da dor atua no sentido de reduzir a frequência
de complicações e de facilitar o alcance, mais rapidamente, da recuperação. Essas características,
em conjunto, aumentam a satisfação do paciente, melhoram a qualidade de vida e reduzem os
custos gerais de saúde8. Nesse propósito, as drogas mais utilizadas são opioides e anti-inflama-
tórios não esteroidais. O emprego de antieméticos pode ser importante, pois o controle de vô-
mitos atua favorecendo a melhora clínica8. Antimicrobianos de amplo espectro, com cobertura
para gram-negativos entéricos e para anaeróbios, devem ser administrados se existir a suspeita
de infecção peritoneal ou de sepse. A cobertura fúngica deve ser avaliada em imunodeprimidos2,7.
Na suspeita de se tratar de emergência cirúrgica, um cirurgião deve ser consultado anterior-
mente à condução de exames, afinal, esses procedimentos podem retardar a avaliação e a devida
abordagem4. A Figura 36.1 esquematiza as condutas iniciais preconizadas, de acordo com as clas-
sificações etiológicas da condição.
A b d o m e A g u d o 277

Dor abdominal

Anamnese + Exame físico

Alta probabilidade de abdome agudo cirúrgico


(Exames laboratorias)

Inflamatório Perfurativo Obstrutivo Isquêmico Hemorrágico

Raio X de Raio X de Raio X de Raio X de Raio X de


abdômen agudo abdômen agudo abdômen agudo abdômen agudo abdômen agudo

Ultrassonografia Tomografia Tomografia Angio TC/ Tomografia


do abdômen computadorizada computadorizada Angiografia computadorizada

Tomografia Viodeolaparoscopia Viodeolaparoscopia


computadorizada

Viodeolaparoscopia

Figura 36.1. Esquematização das condutas iniciais preconizadas, de acordo com a classificação etiológica
da condição.
Rx abd: radiografia do abdome. Dados dos Consensos do XXVI Congresso Brasileiro de Cirurgia6. Autoria própria.

Pontos-chave
• O termo abdome agudo refere-se a sinais e a sintomas de dor abdominal súbita,
espontânea, não traumática e geralmente intensa;
• Abdome agudo pode ser classificado entre inflamatório, perfurativo, obstrutivo,
vascular e hemorrágico, conforme sua etiologia;
• Anamnese e exame físico detalhados são essenciais para a formulação de um
diagnóstico diferencial acurado;
• Exames laboratoriais e de imagem são constantemente utilizados na abordagem do
paciente com abdome agudo;
• Usualmente, o abdome agudo exige intervenção cirúrgica de emergência.
278 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Leitura sugerida
1. Doherty GM. Current cirurgia: diagnóstico e tratamento. 14th ed. Porto Alegre: AMGH Editora Ltda; 2017. 3130 p.
1 vol.
2. Townsend CM, Beauchamp RD, Evers BM, et al. Sabiston tratado de cirurgia: A base biológica da prática cirúrgica
moderna. 19th ed. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda; 2015. 5311 p. 1 vol.
3. Gans SL, Pols MA, Boermeester MA. Guideline for the Diagnostic Pathway in Patients with Acute Abdominal Pain.
Digestive Surgery. 2015. March.
4. Bastos RW, Berg W, Souza HP, et al. Abdome Agudo: Diagnóstico Sindrômico. Acta méd. (Porto Alegre). 2014
5. Feres O, Parra RS. Abdômen agudo. Medicina (Ribeirão Preto) [Internet]. 30 de dezembro de 2008. 41(4):430-6.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rmrp/article/view/285. Acesso em: 30 de dezembro de 2008.
6. Souza HP, Utiyama EM, Andrade JI. et al. Algoritmo no diagnóstico do abdome agudo: Consenso 9. Consensos
do XXVI Congresso do Colégio brasileiro de Cirurgiões; 2005 jun 5-9; Rio de Janeiro, Brasil. Bol CBC. 2006; (ed.
esp.):40-3.
7. Patterson JW, Dominique E. Acute Abdomen. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2020.
8. Falch C, Vicente D, Haberle H, Kirschniak A, Müller S, Nissan A, Brücher BL. (2014). Treatment of acute abdominal
pain in the emergency room: a systematic review of the literature. European journal of pain (London, England),
18(7), 902-913.
Pós-Operatório na UTI 37

Lucas Miranda Lage


Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
No Brasil, em 2019, foram realizados 5.074.633 procedimentos cirúrgicos pelo Sistema Único
de Saúde (SUS), dos quais 774.184 enquadravam-se como alta complexidade1. Nesse contexto e
levando-se em conta que 17% destes pacientes complexos apresentam complicações durante a
internação2, bem como sabendo-se que pacientes de alto risco correspondem a 80% da mortalida-
de de pacientes cirúrgicos3, fica evidente a necessidade de estratificá-los quanto à probabilidade
de má evolução. Assim, definindo-se protocolos e diretrizes de monitorização hemodinâmica, de
reposição volêmica, e de outros tópicos importantes, a equipe intensivista, no pós-operatório, po-
derá intervir precocemente, ao menor sinal de deterioração clínica3.
Este capítulo objetiva, portanto, abordar a classificação de risco dos doentes, a monitoriza-
ção hemodinâmica, a terapia guiada por objetivos (TGO) e as estratégias de otimização do cuida-
do dirigido ao paciente cirúrgico.

Avaliação de risco do paciente


A classificação de risco é útil para que sejam estabelecidas as condutas adequadas ao pacien-
te . Nesse propósito, o APACHE II (do inglês, Fisiologia Aguda e Avaliação Crônica de Saúde II), o
2

Índice de Charlson, o P-POSSUM (do inglês, Pontuação de Severidade Fisiológica e Operatória


de Portsmouth para a Enumeração de Mortalidade e Morbidade) e a ASA-PS (do inglês, Avaliação
do Estado Físico da Sociedade Americana de Anestesiologistas)4 são ferramentas comumente
empregadas.

APACHE
O APACHE II, criado em 1985, é um sistema de pontuação e de estratificação de mortali-
dade, foi amplamente utilizado nas UTI’s brasileiras, porém vem perdendo forças desde a cria-
280 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

ção do APACHE IV, em 2006. Foi desenvolvido como ferramenta para predizer a mortalidade do
paciente não cirúrgico e deve ser aplicado em até 24 horas após admissão na UTI4. Embora não
tenha sido concebido, originalmente, para o cenário intervencionista, no entanto pode predizer
o desfecho cirúrgico.

SAPS
O SAPS (do inglês, Pontuação de Fisiologia Aguda Simplificada) é um escore, que assim como
o APACHE, foi criado com intuito de predizer a mortalidade do paciente admitido em UTI5. O SAPS
III é o mais recente e utilizado atualmente, sendo composto por 20 variáveis, englobando escore
fisiológico agudo e avaliação do estado prévio.

Índice de Charlson
Estabelecido para avaliar a relação das comorbidades existentes com o prognóstico do pa-
ciente, determinando o risco de mortalidade para os próximos 10 anos, independentemente do
cenário cirúrgico. Alguns estudos mostraram eficácia da predição a curto prazo; entretanto, o es-
tudo com maior evidência científica utilizou dados quantitativos e definiu o índice de Charlson
como moderadamente eficaz nesse propósito4.

P-POSSUM
É uma versão modificada do POSSUM, é acurado na predição de risco de pacientes cirúrgi-
cos e leva em conta variáveis tanto pré-operatórias, quanto intraoperatórias. Contudo, algumas
limitações da ferramenta são aventadas, como a subjetividade de algumas das variáveis, a grande
quantidade de itens utilizados, a superestimação da gravidade em pacientes de baixo risco e a
impossibilidade de ser empregada no pré-operatório, por ser sujeita a variáveis intraoperatórias4.

Avaliação de estado físico da ASA


É um escore muito utilizado, uma vez que apresenta boa correlação com os desfechos pós-
-operatórios. Entretanto, seu emprego é limitado, pois não avalia variáveis importantes como a
idade do paciente, a complexidade e a duração da cirurgia4.

Monitorização hemodinâmica
A otimização hemodinâmica deve ser empreendida a todos os pacientes no momento pós-
-operatório, afinal, a partir da vigilância contínua das funções vitais, são alcançados resultados
benéficos, como a redução da mortalidade. A monitorização baseia-se na avaliação constante de
parâmetros hemodinâmicos, da perfusão tecidual e dos sinais vitais, com o intuito de impedir que
ocorra hipóxia tecidual e disfunção dos órgãos. Dessa forma, critérios como a reserva fisiológica, a
presença de comorbidades e a extensão traumática da cirurgia contribuem para que o intensivista
defina o mecanismo de monitorização adequado6. Vale considerar, porém, que alguns parâmetros
são imprescindíveis na avaliação, dentre os quais se incluem a frequência cardíaca (FC), o volume
P ó s - O p e ra t ó ri o n a U T I 281

da diurese, a eletrocardiografia contínua (ECG), a saturação de oxigênio (SpO2), a pressão arterial


média invasiva e não invasiva (PAM), a frequência respiratória (FR), a temperatura corporal e a
pressão venosa central (PVC). A monitorização hemodinâmica é abordada com mais detalhes no
Capítulo 10 .

Terapia guiada por objetivos


A terapia guiada por objetivos (TGO), é estabelecida de acordo com o risco do paciente e com
o risco cirúrgico, objetivando a redução da morbimortalidade, embora a mais significativa redu-
ção tenha ocorrido entre pacientes de altíssimo risco3. Nesse raciocínio, fica evidente a necessida-
de de se utliizar a monitorização hemodinâmica, para a qual se recomenda a avaliação do débito
cardíaco (DC), da oferta de oxigênio (DO2), da variação da pressão de pulso (VPP) e da variação do
volume sistólico (VSS), a fim de se definir a TGO3.
A terapia de otimização perioperatória orienta a intervenção terapêutica com fluidos, com
drogas inotrópicas, com concentrados de hemácias e com vasodilatadores, mesmo na ausência
de déficits perfusionais. A garantia de uma melhor DO2 durante o período crítico tem como finali-
dade a prevenção ou a reparação de uma possível hipoperfusão. Um grande procedimento cirúr-
gico ou um trauma significativo aumentam o consumo de oxigênio (VO2) de, aproximadamente,
110 mL/min/m2 para 170 mL/min/m2 no pós-operatório8. Fisiologicamente, ocorre aumento da
FC, da contratilidade miocárdica e da extração tecidual de O2 para suprir a VO2. Entretanto, essa
compensação ocorre até um determinado nível crítico de queda da DO2. Depois disso, o VO2 não é
suprido, o que gera acidose láctica devido ao desequilíbrio da oferta e da demanda de O29. Um dos
principais marcadores de perfusão tecidual é o lactato, produzido nos casos de hipóxia. A redução
do lactato sérico em 5% ou a depuração de 10%, em 4 a 6 horas, associa-se a uma evolução clínica
favorável10. Um estudo realizado demonstrou que a estratégia terapêutica de reduzir o lactato sé-
rico em 20% a cada 2 horas, nas primeiras 8 horas após a admissão na UTI, reduziu significativa-
mente o tempo de internação e a taxa de mortalidade11.

Estratégia de otimização
No manejo de pacientes de alto risco, é importante a manutenção da pré-carga e do volume
intravascular13. Para isso, a administração criteriosa de fluidos, em grandes cirurgias, é fundamen-
tal. Deve-se ressaltar que a hipovolemia e a disfunção miocárdica podem não ser percebidas nes-
ses pacientes, principalmente durante o ato cirúrgico, pois a indução anestésica implica redução
do retorno venoso, em virtude do aumento da capacitância vascular14.
Ainda que alguns pacientes atinjam a meta de DO2 depois de ser instituída a reposição volê-
mica, grande parcela deles necessita de drogas inotrópicas para alcançar a meta proposta14. Nesse
propósito, a dobutamina é o fármaco mais utilizado, cujos efeitos são o aumento da contratilidade
miocárdica, do volume de ejeção sistólica e, consequentemente, do fluxo sanguíneo. Alguns es-
tudos, avaliando a dopexamina (não disponível no Brasil), mostraram efeitos anti-inflamatórios
associados ao efeito inotrópico com o emprego da droga15. No que se refere ao efeito colateral,
ambos induzem frequentemente à taquicardia. Por outro lado, estudos mostram que pacientes
submetidos à estratégia transfusional com concentrado de hemácia liberal, transfundidos com
Hb < 10 g/dL e que mantêm níveis séricos de Hb entre 10 e 12 g/dL, apresentam a mesma taxa
de mortalidade em comparação com pacientes submetidos à estratégia transfusional restritiva,
282 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

transfundidos com Hb < 7 g/dL e que mantêm níveis séricos de Hb entre 8 e 9 g/dL. Além disso,
em pacientes com APACHE II < 20 e idade < 55 anos, a sobrevida foi maior no grupo restritivo. Em
suma, terapias transfusionais restritivas têm sido mais recomendadas nos últimos anos, exceto
aos pacientes com idade superior a 66 anos, submetidos a cirurgias não cardíacas, com quadro
séptico e SAPS III elevado, condição em que a transfusão liberal de hemácias reduziu significativa-
mente o risco de morte16. A terapia transfusional é abordada com detalhes no Capítulo 58 .

Conclusão
A incapacidade do paciente de alto risco aumentar a DO2 em resposta ao trauma operatório,
pode gerar hipoperfusão tecidual e, consequentemente, ocasionar falência múltipla de órgãos.
Portanto, é importante considerar a TGO, de forma a manter o equilíbrio entre a DO2 e o VO2.

Pontos-chave
• A internação pós-operatória na UTI, de pacientes de alto risco, reduz a
morbimortalidade;
• Existem diferentes escores úteis na classificação de risco do paciente, dentre eles:
APACHE II, índice de Charlson, P-POSSUM e Estado Físico de ASA;
• Os critérios de inclusão de Shoemaker e os critérios de risco pré-operatório, definidos
pelo Consenso Brasileiro sobre Terapia Hemodinâmica Perioperatória, devem
ser aplicados aos pacientes admitidos na UTI, quando o intensivista considerar
adequado;
• A monitorização hemodinâmica dos pacientes em pós-operatório é fundamental,
uma vez que pode identificar, precocemente, a depreciação de parâmetros
considerados determinantes para a homeostase corporal;
• A partir da avaliação hemodinâmica, é possível definir qual é a terapia de otimização
perioperatória adequada para o paciente.

Leitura sugerida
1. Ministério da Saúde. Datasus.gov.br. 2020.
2. Besen BA, Nassar Jr. AP, Azevedo LC. Medicina Intensiva: Revisão rápida. 1ªth ed. Barueri-SP: Manole; 2018.
Capítulo 42, Otimização hemodinâmica perioperatória; p. 512-520.
3. Silva ED, Perrino AC, Teruya A, Sweitzer BJ, Gatto CST, et al. Consenso Brasileiro sobre terapia hemodinâmica
perioperatória guiada por objetivos em pacientes submetidos a cirurgias não cardíacas: estratégia de gerencia-
mento de fluidos - produzido pela Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo (SAESP). Rev. Bras.
Anestesiol. 2016.
4. Moonesinghe S, Mythen M, Das P, Rowan K, Grocott M. Risk Stratification Tools for Predicting Morbidity and
Mortality in Adult Patients Undergoing Major Surgery. 2020.
P ó s - O p e ra t ó ri o n a U T I 283

5. Silva JJM, Malbouisson LMS, Nuevo HL, Barbosa LGT, Marubayashi LY, et al. Aplicabilidade do escore fisiológico
agudo simplificado (SAPS 3) em hospitais brasileiros. Rev. Bras. Anestesiol. [Internet]. 2010 Feb; 60 (1): 20-
31. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-70942010000100003&lng=en.
https://doi.org/10.1590/S0034-70942010000100003. Acesso em: 04 de setembro de 2020.
6. Réa-Neto A, Rezende E, Mendes CL, David CM, Dias FS, et al. Consenso brasileiro de monitorização e suporte
hemodinâmico - Parte IV: monitorização da perfusão tecidual. Rev Bras Ter Intensiva. 2006;18(2):154-60.
7. Davies SJ, Wilson RJ. Preoperative optimization of high-risk surgical patient. Br J Anaesth. 2004;93:121-8.
8. Older P, Smith R, Courtney P, Hone R. Preoperative evaluation of cardiac failure and ischemia in elderly patients
by cardiopulmonary exercise testing. Chest. 1993;104:701-4.
9. Baigorri F, Russell JA. Oxygen delivery in critical illness. Crit Care Clin. 1996 Oct;12(4):971-94.
10. Nguyen HB, Rivers EP, Knoblich BP. Early lactate clearance is associated with improved outcome in severe sepsis
and septic shock. Crit Care Med. 2004;32:1637-4.
11. Jansen T, Van Bommel J, Schoonderbeek J, Sleeswijk Visser S, Van der Klooster J. Early Lactate-Guided Therapy
in Intensive Care Unit Patients: a multicenter, open-label, randomized controlled trial. Am J Respir Crit Care Med.
2010;182:752-61.
12. Shoemaker WC, Appel PL, Kram HB. Hemodynamic and oxygen transport responses in survivors and nonsurvi-
vors of high-risk surgery. Crit Care Med. 1993 Jul;21(7):977-90.
13. Pearse R, Dawson D, Fawcett J, Rhodes A, Grounds RM, Bennett ED. Changes in central venous saturation after
major surgery, and association with outcome. Crit Care. 2005;9:R694-99.
14. Lobo SM, Lobo FR, Polachini CA, Patini DS, Yamamoto AE, et al. Prospective, randomized trial comparing fluids
and dobutamine optimization of oxygen delivery in high-risk surgical patients. Crit Care. 2006;10:R72.
15. Pearse R, Dawson D, Fawcett J, Rhodes A, Grounds RM, Bennett ED. Early goal-directed therapy after major
surgery reduces complications and duration of hospital stay. A randomised, controlled trial [ISRCTN38797445].
Crit Care. 2005; 9(6):R687-693.
16. Sakr Y, Lobo S, Knuepfer S, Esser E, Bauer M, Settmacher U. Anemia and blood transfusion in a surgical intensive
care unit. Critical Care. 2010;14:R92.
Abordagem ao Paciente Politraumatizado 38

Ana Carolina Cunha Rocha


Felipe Gonzales Gimenes
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
Define-se como paciente politraumatizado aquele que sofreu lesões estruturais e, secunda-
riamente, alterações fisiológicas em, pelo menos, dois sistemas orgânicos1. As causas são, habi-
tualmente, acidentes automobilísticos ou industriais, brigas de rua e desastres que, geralmente,
envolvem grande variação de energia. No mundo, mais de 5,8 milhões de pessoas morrem por
acidentes ou por violência, anualmente2. No Brasil, aproximadamente 1 milhão de pessoas são
internadas devido a causas externas, a cada ano3. Vale considerar, ainda, que muitos dos sobrevi-
ventes tornam-se debilitados e incapacitados, o que coloca o politraumatismo como um grande
problema de saúde e de economia públicas.

Princípios do atendimento ao traumatizado


O Advanced Trauma Life Support (ATLS), elaborado pelo Colégio Americano de Cirurgiões,
objetiva padronizar e garantir atendimentos de excelência às vítimas de traumas. O protocolo pre-
coniza, então, 3 grandes princípios nesse propósito. O primeiro deles diz respeito à identificação
e ao tratamento das condições que podem implicar prognóstico desfavorável. O segundo orienta
que o manejo seja iniciado mesmo que inexistam diagnósticos confirmados. Por fim, o terceiro
defende que a avaliação física e a realização dos primeiros cuidados sejam privilegiados em detri-
mento da coleta da história. Assim, estabeleceu-se um mnemônico, o “ABCDE”, exposto na Tabela
38.1, para sistematizar a avaliação e sugerir as intervenções imediatas, bem como outros mnemô-
nicos para avaliações subsequentes.
286 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 38.1. Exame primário do paciente politraumatizado


Exame primário do paciente politraumatizado
A Abertura de via aérea com proteção cervical (Airway)
B Boa respiração e ventilação (Breathing)
C Circulação e controle de hemorragias (Circulation)
D Disfunção neurológica (Disability)
E Exposição do paciente e controle do ambiente (Exposition)
Dados do Advanced Trauma Life Support (ATLS) Student Course Manual, 10th ed,
American College of Surgeons, Chicago, 20181. Autoria própria.

As fases do atendimento ao politraumatizado


Na ocasião da abordagem ao paciente traumatizado, orienta-se a divisão do cuidado em 3
momentos. Na avaliação primária, as lesões e os sinais vitais são analisados rapidamente, fazen-
do-se necessária, em alguns casos, a reanimação do paciente. Ainda nesta fase, a monitoração
contínua dos parâmetros fisiológicos é instaurada. Em seguida, institui-se a avaliação secundá-
ria, com a estabilização da vítima, com a coleta da anamnese completa e com a manutenção de
monitorização contínua. No terceiro momento, prioriza-se o tratamento definitivo das lesões e a
presença de especialistas é, geralmente, requisitada, como ortopedistas e cirurgiões.

Avaliação primária
É a fase orientada pelo “ABCDE”, em que são analisados itens específicos. Inicialmente,
objetivando estabelecer a permeabilidade da via aérea e a instalação da proteção cervical, é im-
portante observar a presença de possíveis obstruções mecânicas, aspirações, corpos estranhos
e fraturas ósseas, capazes de impedir a condução adequada do ar. No propósito dessa avaliação,
solicitar que o paciente vocalize é uma alternativa plausível e, obtendo sucesso no teste, é pro-
vável que a via aérea esteja pérvia, embora avaliações periódicas se façam necessárias. Ademais,
a proteção cervical, com colar de estabilização, deve ser prontamente instituída no resgate das
vítimas de trauma, bem como a prancha rígida e os coxins laterais são empregados, pois evitam
a ocorrência de lesões medulares cujas morbimortalidades são elevadas. Além disso, a elevação
do queixo, seguida da tração da mandíbula, manobra conhecida como Jaw thrust, deve ser con-
duzida no paciente inconsciente, sem que a proteção cervical seja retirada, objetivando manter
as vias aéreas patentes. Máscara facial com oxigênio, até o fluxo de 11 L/min, também pode ser
instalada no mesmo propósito. Havendo a presença de grandes volumes de secreções, recomen-
da-se que a via aérea seja aspirada, bem como que o paciente seja posicionado em decúbito la-
teral1. Na sequência, se a instauração dessas medidas não surtir o efeito desejado, ou se alguma
das situações expostas na Tabela 38.2 estiver presente, acessos definitivos às vias aéreas devem
ser alcançados, seja via intubação orotraqueal, seja via cricotireoidostomia, seja via traqueosto-
mia, cujos detalhes foram discutidos no Capítulo 22 . Uma vez estabelecida a permeabilidade da
via, a atenção da equipe se volta à ventilação do paciente. Nesse sentido, é imperiosa a obser-
vação cuidadosa da respiração: simetria, sons pulmonares, expansibilidade e utilização ou não
A b o rd a g e m a o P a c i e n t e P o l i t ra u m a t i z a d o 287

da musculatura acessória devem ser considerados. Na eventualidade de existir leve dificuldade


respiratória, a suplementação de oxigênio, por meio de máscara facial, é plausível. Em casos de
incapacidade de manter a oxigenação adequada, é necessária a instalação da ventilação mecâ-
nica invasiva1. Além disso, o paciente deve ser monitorado por meio do oxímetro de pulso e do
eletrocardiograma (ECG) contínuo e pode ser submetido à radiografia de tórax ou à ultrassono-
grafia à beira do leito, a fim de que lesões sediadas na topografia do sistema respiratório sejam
identificadas.

Tabela 38.2. Situações que, se presentes, justificam o estabelecimento de acesso definitivo da via aérea
Indicações para via aérea definitiva
Apneia
Traumatismo cranioencefálico (TCE) grave com rebaixamento de consciência
Escala de Coma de Glasgow ≤8
Incapacidade de manter oxigenação adequada por meio de métodos não invasivos
Dados do Advanced Trauma Life Support (ATLS) Student Course Manual, 10th ed, American College of Surgeons, Chicago, 20181. Autoria
própria.

Havendo comprometimento da respiração, a equipe deve suspeitar da presença de condi-


ções como o hemotórax maciço, o tórax instável, o pneumotórax aberto e o hipertensivo. O he-
motórax maciço, por exemplo, é definido quando ocorre acúmulo de, pelo menos, 1.500 mL de
sangue ou 1/3 do volume sanguíneo, dentro da cavidade torácica1. Nesta situação a transfusão de
hemoderivados é preconizada, bem como a drenagem intercostal para descomprimir a região.
Se, eventualmente, a drenagem inicial for maior ou igual a 1.500 mL de sangue, ou apresentar
vazão de 200 mL/h por 2 a 4 horas, a toracotomia de emergência deve ser realizada1. Por outro
lado, o tórax instável, esquematizado na Figura 38.1, ocorre quando duas ou mais fraturas em
pelo menos dois arcos costais consecutivos estão presentes, o que desencadeia a respiração pa-
radoxal1. O manejo envolve a suplementação de O2, a administração de analgésicos e, havendo
piora do estado geral da vítima, a introdução da ventilação mecânica invasiva pode ser necessá-
ria1. No que se refere à instauração do pneumotórax aberto, o ar atmosférico alcança a cavidade
pleural pela ferida que mede, pelo menos, 2/3 do diâmetro da traqueia1. Visando ao controle da
situação, a equipe deve instalar um curativo de 3 pontas sobre a região, formando-se, então, um
mecanismo valvular artificial. Dessa forma, o fluxo de ar somente acontece durante a expiração,
no sentido da cavidade para a atmosfera, atuando na descompressão1. Por fim, no pneumotó-
rax hipertensivo, exemplificado na Figura 38.2, o ar entra continuamente na cavidade pleural
e não pode ser eliminado, o que deflagra grande aumento da pressão intratorácica1. As princi-
pais consequências incluem o colapso pulmonar ipsilateral e o desvio mediastinal para o lado
contralateral, o que pode desencadear insuficiência respiratória e redução do retorno venoso,
implicando hipotensão ou choque. A instituição de ventilação mecânica invasiva, porém, pode
agravar a condição do paciente, devido à pressão positiva instalada pelo ventilador. Faz-se im-
periosa, então, a realização de toracocentese com agulha calibrosa para aliviar a pressão, bem
como de toracostomia, com drenagem em selo d’água, para o tratamento definitivo1.
288 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Figura 38.1. Representação esquemática do tórax instável. Note que o fragmento ósseo isolado se desloca
no sentido oposto ao restante da caixa torácica, tanto na expiração (à esq), quanto na inspiração (à dir).
Imagem cedida por Baedr-9439 sob licença CC0 1.0. Wikimedia Commons.

Figura 38.2. Radiografia de tórax evidenciando pneumotórax à esquerda e deslocamento contralateral


do mediastino. Há, também, derrame pleural à esquerda.
Imagem cedida por Clinical Cases sob licença CC BY-SA 2.5. Wikimedia Commons.

Na sequência do “ABCDE”, o próximo ponto de análise consiste na avaliação da circulação e


no controle das hemorragias. Considerando que a hemorragia é a principal causa de morte após
o trauma, e que em pacientes hipotensos, o choque hipovolêmico1 é a segunda principal causa
de hipotensão, atrás apenas do pneumotórax1, ela deve ser identificada e tratada precocemente.
Nesse propósito, a avaliação do nível de consciência, cuja redução pode se dar no espectro entre
confusão e coma, é a primeira medida empreendida. Em seguida, deve-se avaliar a cor da pele,
uma vez que coloração acinzentada da face, palidez de extremidades e a presença de mucosas
hipocoradas sugerem o diagnóstico de hipovolemia1. Por último, deve-se avaliar os pulsos, tanto
A b o rd a g e m a o P a c i e n t e P o l i t ra u m a t i z a d o 289

centrais quanto periféricos, quanto à qualidade (fino ou cheio), quanto à frequência e quanto à
regularidade.
Entre os pulsos centrais, os de mais fácil palpação são o femoral e o carotídeo, enquanto, en-
tre os periféricos, é o radial. A ausência de pulso central indica necessidade de ação imediata para
restaurar o volume sanguíneo1 e, assim, garantir um débito cardíaco eficaz. Por outro lado, a detec-
ção de pulso rápido e filiforme é um forte indício de hipovolemia, afinal, taquicardia constitui-se
o sinal mais precoce da condição. Ressalta-se, porém, que a identificação de pulso fisiológico não
garante a presença de normovolemia; portanto, o diagnóstico de choque hipovolêmico não pode
ser totalmente descartado pelo simples exame do pulso, principalmente em se tratando de idosos,
de crianças e de atletas, cujas respostas fisiológicas são singulares. Uma vez tendo sido constatada
a presença de hipovolemia, deve-se proceder com a identificação da origem da hemorragia, seja
interna ou externa. Em se tratando de hemorragia externa, o quadro deve ser controlado durante
o exame primário, por meio da compressão manual direta sobre o ferimento1. Os torniquetes ape-
nas devem ser instalados em lesões exsanguinantes de extremidades, quando a compressão direta
não for efetiva, pois, quando indevidamente empregados, podem causar lesões isquêmicas e ne-
crose. No que se refere às hemorragias internas, os sítios anatômicos mais acometidos incluem o
tórax, o abdome, o retroperitônio, a pelve e os ossos longos. Nesses casos, a identificação da fonte é
um desafio maior, embora seja possível fazê-la por meio do exame físico minucioso e por meio de
exames de imagem, dos quais o FAST (do inglês, avaliação focalizada com sonografia para trauma)
é o mais utilizado, mas em um segundo momento, durante a avaliação secundária (ver adiante). A
próxima etapa consiste na identificação de possíveis disfunções neurológicas, alcançada, inicial-
mente, por meio da aplicação da Escala de Coma de Glasgow, discutida no Capítulo 27. A redução
do nível de consciência pode ser um indício de baixa oxigenação, de redução da perfusão sanguí-
nea, de hipoglicemia ou do consumo de álcool e/ou de drogas. Uma vez detectada a redução do
nível de consciência, é necessário realizar a reavaliação imediata da ventilação, da oxigenação e da
perfusão, corrigindo-as se for necessário. Por outro lado, excluídas ou corrigidas as causas ventila-
tórias, deve-se pressupor que a redução do nível de consciência seja consequente a alguma lesão
primária do sistema nervoso central, bem como o paciente deve receber oxigenação e perfusão
adequadas1, a fim de que lesão neurológica não se agrave e de que outros danos não sejam instau-
rados. Por fim, o doente deve ser completamente exposto, retirando-se todas as suas vestimentas,
a fim de que as partes corporais anteriormente cobertas sejam examinadas, e o ambiente deve ser
controlado, com a temperatura adequada, para evitar a ocorrência de hipotermia.
Quanto à monitorização instituída na avaliação primária, alguns pontos merecem especial
atenção. Partindo do pressuposto de que, a partir do primeiro contato com o paciente, os parâ-
metros fisiológicos serão monitorizados, a reavaliação periódica é de fundamental importância.
Fazem parte dessa monitorização, principalmente, a quantificação da saturação sanguínea de O2,
a solicitação de gasometria arterial, a aferição da pressão arterial, a mensuração do débito urinário
e a contagem da frequência respiratória. Embora as alterações desses parâmetros sejam pouco
específicas, elas são bastante sensíveis para detectar complicações do trauma, e, consequente-
mente, favorecem a instalação de intervenções precoces. Ademais, a eletrocardiografia (ECG) deve
ser empregada em todos os pacientes traumatizados, afinal, alterações no traçado podem indicar
lesões cardíacas ou piora sistêmica. Arritmias, como fibrilação atrial, taquicardia inexplicável e
alterações no segmento ST, podem sugerir contusão miocárdica. Além disso, pneumotórax hiper-
tensivo, tamponamento cardíaco e hipovolemia grave podem se manifestar por atividade elétrica
sem pulso (AESP). Hipóxia e hipoperfusão levam à bradicardia, a extra-sístoles ou à condução
aberrante. Por sua vez, a passagem do cateter urinário deve ser realizada nos traumatizados, logo
após o exame do reto e da genitália, visto que ela possibilita a aferição do débito urinário e, con-
290 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

sequentemente, da perfusão tecidual. Vale considerar, contudo, que essa cateterização é contrain-
dicada em pacientes que apresentam sangue no meato uretral, fratura pélvica instável, sangue no
escroto, equimose perineal ou algum outro sinal que sugira lesão da uretra. Havendo a suspeição,
a integridade uretral pode ser inferida por meio da uretrografia retrógrada e, confirmando-se a
presença da lesão, a equipe pode inserir a sonda por punção suprapúbica. Ainda na abordagem
do sistema excretor, amostras de urina de todos os pacientes devem ser enviadas ao laboratório
para a realização de análise rotineira. A cateterização gástrica, também é recomendada a todos
politraumatizados, a fim de evitar a dilatação aguda do estômago e a broncoaspiração. Caso seja
observado sangue no conteúdo gástrico, excluídas as causas faríngeas, deve-se suspeitar de lesão
de esôfago e do trato gastrointestinal superior. Existindo fratura grave da face ou da base do crânio
é possível introduzir o cateter via oral. A cateterização gástrica deve ser instituída precocemente,
ainda na avaliação primária, logo após o “ABCDE”.
Os exames radiológicos devem ser utilizados de forma racional e não podem interferir na rea-
nimação do paciente. Em vítimas de trauma fechado, a solicitação de radiografias com incidência
anteroposterior, executadas ainda na sala de emergência, por aparelhos portáteis, pode ser útil
para esclarecer lesões de tórax e de pelve. É importante considerar que a gravidez não se constitui
como contraindicação à execução das radiografias nesse cenário, uma vez que os benefícios de
eventuais diagnósticos precoces são maiores do que os possíveis prejuízos causados pela expo-
sição aos raios X. Por fim, para a investigação de hemorragias intra-abdominais, são utilizadas a
lavagem peritoneal diagnóstica (LPD) ou o FAST, ambas técnicas examinador-dependentes.

Avaliação secundária
A avaliação secundária deve ser instituída após o término da avaliação primária (ABCDE) e
após realizadas as medidas de reanimação necessárias. Nesse momento, o paciente deve mostrar
tendência à normalização das funções vitais. A equipe procede, então, com a anamnese clínica e
com a coleta da história do trauma, seja entrevistando o próprio paciente, seja entrevistando fa-
miliares, acompanhantes, testemunhas e paramédicos, com o objetivo de entender o mecanismo
das lesões. Nesse propósito, o mnemônico “AMPLA”, exposto na Tabela 38.3, deve ser empregado
e, depois de coletada a história, o trauma deve ser classificado de acordo com as informações le-
vantadas, conforme detalhado na sequência.

Tabela 38.3. Exame secundário do paciente politraumatizado


Mnemônico para a avaliação secundária do politraumatizado
A Alergia
M Medicamentos de uso habitual
P Passado médico/Prenhez
L Líquidos e alimentos ingeridos recentemente
A Ambiente e eventos relacionados ao trauma
Dados do Advanced Trauma Life Support (ATLS) Student Course Manual, 10th ed,
American College of Surgeons, Chicago, 20181. Autoria própria.

• Trauma fechado1: é resultante de colisões entre automóveis, de quedas, de lesões


relacionadas ao trabalho ou à recreação. No que se refere à colisão entre automóveis, é
A b o rd a g e m a o P a c i e n t e P o l i t ra u m a t i z a d o 291

importante indagar o paciente quanto ao uso do cinto de segurança, quanto à ocorrência


de ejeção dos passageiros e quanto à velocidade estimada dos veículos envolvidos. Essas
informações são necessárias para a equipe entender o mecanismo do trauma e, assim,
prever possíveis lesões.
• Trauma penetrante1: incluem ferimento por arma de fogo, por arma branca e
empalamentos. A topografia anatômica da lesão sugere as estruturas possivelmente
acometidas.
• Lesão térmica1: pode ocorrer isoladamente ou ser associada a alguma outra categoria de
trauma. É importante o questionamento sobre o contato com gases/fumaça, uma vez
que as lesões por inalação1 e a intoxicação por monóxido de carbono1 complicam os
danos causados pelas queimaduras e, desse modo, exigem maior atenção no que se refere
ventilação e à oxigenação do paciente.
• Ambientes de risco: é importante o levantamento sobre as condições do ambiente onde
ocorreu o trauma, incluindo notícias sobre exposição a elementos químicos tóxicos, afinal,
alguns deles, potencialmente, geram disfunções orgânicas graves e podem representar
perigo para a equipe de atendimento.

Ainda na avaliação secundária, após a coleta da história do “AMPLA”, deve-se realizar o exa-
me físico minucioso, no sentido craniocaudal, à procura de alterações evidentes nas topografias
discutidas a seguir.
• Cabeça e face: o couro cabeludo e a face devem ser examinados visando à identificação
de lacerações, de contusões1 ou de fraturas1. Ademais, a equipe precisa estar atenta à
avaliação da acuidade visual, da mobilidade ocular, do tamanho e da reatividade das
pupilas e da presença de hemorragias conjuntivais. Além disso, examinar a cavidade oral
e a estrutura dentária é atitude imperiosa.
• Coluna cervical e pescoço: havendo lesões cranianas e/ou faciais1, a equipe deve aventar
a possibilidade de lesões cervicais fazerem-se presentes, motivo pelo qual o pescoço
deve continuar imobilizado até que a hipótese seja descartada. O pescoço, ainda, deve
ser inspecionado, palpado e auscultado e, percebendo a existência de dor ao longo da
coluna cervical, de enfisema subcutâneo1, de desvio traqueal, bem como a de frêmitos
e de sopros, é também plausível que a equipe questione lesões na topografia. A marca
do cinto de segurança, impressa sobre o corpo, alerta para a presença de possível lesão
da artéria carótida1. Nesse caso, a arteriografia e o doppler podem ser empregados para
confirmar ou para excluir a suspeita.
• Tórax: à inspeção torácica, lesões que anteriormente não foram notadas como
pneumotórax aberto1 e tórax instável1, podem ser identificadas. Nesse propósito, a caixa
torácica é palpada em sua integralidade, incluindo-se as clavículas e o esterno, bem como
a ausculta e a percussão da região são conduzidas, a fim de se detectar possível hemotórax
ou pneumotórax. A radiografia de tórax pode ser empregada para confirmar ou para
excluir essas condições. A presença de espessamento pleuroapical, de hemotórax1, de
alargamento mediastinal e de fratura das primeiras costelas sugere ruptura aórtica1.
• Abdome: pacientes hipotensos sem sítio hemorrágico localizado, com redução do
nível de consciência e com achados abdominais duvidosos são candidatos à LPD ou ao
FAST, que podem ser feitos à beira-leito. Se hemodinamicamente estáveis, a tomografia
computadorizada contrastada de abdome é a primeira opção como método diagnóstico.
292 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

• Pelve: o exame deve buscar contusões1, hematomas1, lacerações e sangramentos


uretrais1. Em caso de suspeita de lesão, o toque retal deve ser realizado a fim de se excluir,
anteriormente à sondagem vesical, a presença de lesões uretrais prostáticas, de se
avaliar a tonicidade do esfíncter anal e de detectar eventuais lesões baixas de intestino.
Em mulheres, se o mecanismo de trauma sugerir lesão vaginal, o exame da vagina é
recomendado. Além disso, a quantificação do β-HCG deve ser solicitada para as mulheres
em idade fértil. Equimoses visíveis nas asas do ilíaco, do púbis, dos grandes lábios ou do
escroto, bem como a presença de dor à palpação do anel pélvico, são fortes indícios de
fratura pélvica. Por fim, é prudente evitar a mobilização repetida.
• Sistema musculoesquelético: a equipe deve buscar contusões e deformidades visíveis,
além de dor à palpação e à movimentação das extremidades. A palpação dos pulsos
periféricos pode evidenciar eventuais lesões vasculares.
• Sistema neurológico: nesse ponto, é prudente que a reavaliação do nível de consciência,
da resposta pupilar, da movimentação e da sensibilidade dos membros seja conduzida.
A reavaliação periódica é importante no sentido de detectar possíveis alterações
neurológicas que, se presentes, podem indicar evolução progressiva da lesão. Havendo
piora da condição clínica a oxigenação, a ventilação e a perfusão do paciente devem ser
avaliadas. A presença de sinais como perda da sensibilidade, paralisia ou fraqueza muscular
sugere lesão medular ou lesão nervosa periférica, motivo pelo qual, até que a hipótese
seja descartada, a coluna deve ser protegida. Havendo traumatismo crânioencefálico1,
a avaliação neurocirúrgica, bem como os procedimentos discutidos no Capítulo 39, são
imperiosos.

Durante a avaliação secundária exames especializados podem ser realizados para identificar
lesões específicas. Nesse sentido, destacam-se radiografias adicionais, tomografias de crânio, de
abdome e de tórax, urografia excretora, arteriografia, ultrassonografia, broncoscopia, dentre ou-
tros. Devido ao fato de muitos desses procedimentos exigirem que o paciente seja transportado
para outra ala do hospital, somente devem ser realizados após alcançada a segurança e a estabili-
zação hemodinâmica.

Tratamento definitivo
Após conduzidas as avaliações primária e secundária, a estabilização do paciente e a exe-
cução dos exames complementares, o tratamento definitivo das lesões deve ser programado e
realizado, cujas possibilidades incluem reconstruções intestinais, neurocirurgias e correções de
fraturas ósseas. Na eventualidade de serem procedimentos complexos para execução no hospital
atual, a transferência para um centro especializado deve ser aventada. Nesse caso, ao contatar a
equipe que receberá o paciente, o médico que, até então, prestou a assistência, informa a história
e presta esclarecimentos quanto aos cuidados já instituídos1.
A b o rd a g e m a o P a c i e n t e P o l i t ra u m a t i z a d o 293

Pontos-chave
• O trauma representa um grande problema de saúde pública, devido à sua elevada
morbimortalidade;
• A intervenção médica eficaz e sistematizada na primeira hora, a “hora de ouro”, é
impactante no prognóstico do traumatizado;
• A hemorragia é a principal causa de morte no trauma e deve ser identificada
precocemente. Nesse ponto, a taquicardia é, geralmente, o sinal mais precoce de
hipovolemia;
• Lesões torácicas e abdominais devem ser investigadas rapidamente por meio
do exame físico que, por sua vez, é subsidiado, racionalmente, pelos exames
complementares, como radiografias, FAST e LPD;
• A transferência do paciente para um centro especializado ou para setores
propedêuticos deve ser precedida por controle da estabilidade hemodinâmica.

Leitura sugerida
1. American College of Surgeons Committee on Trauma. Advanced Trauma Life Support (ATLS) Student Course
Manual, 10th ed, American College of Surgeons, Chicago. 2018.
2. Global Health Estimates 2016: Deaths by Cause, Age, Sex, by Country and by Region, 2000-2016. Geneva, World
Health Organization; 2018
3. Mascarenhas MDM, Barros MBA. Evolução das internações hospitalares por causas externas no sistema público
de saúde - Brasil, 2002 a 2011. Epidemiol. Serv. Saúde. 2015 Mar; 24( 1 ): 19-29.
4. Kotwal RS, Howard JT, Orman JA, et al. The Effect of a Golden Hour Policy on the Morbidity and Mortality of
Combat Casualties. JAMA Surg 2016; 151:15.
Traumatismo Cranioencefálico 39

Carolina Pimentel Orsini


Thaynara Bianca Cordeiro Lopes
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
O traumatismo cranioencefálico (TCE) é definido como qualquer lesão anatômica ou alte-
ração funcional do couro cabeludo, do crânio, das meninges, do líquor ou do encéfalo, causada
por força externa¹. O TCE representa cerca de 50% das mortes relacionadas ao trauma, sendo o
sexo masculino o mais acometido, principalmente entre os jovens com idade entre 15 e 24 anos².
É importante considerar que as causas mais comuns de TCE são os acidentes automobilísticos, as
quedas e outras causas violentas³.

Apresentação clínica
As lesões podem ser divididas didaticamente conforme as estruturas acometidas pelo trauma.

Lesões cranianas
Envolvem as fraturas do crânio, que podem ser fraturas lineares simples, fraturas com
afundamento, fraturas abertas ou fraturas da base do crânio. Na fratura linear há apenas uma
linha de fratura cruzando o crânio. A fratura com afundamento, por outro lado, evidencia uma
depressão no crânio, que ultrapassa a espessura da calota. Na fratura aberta existe comunicação
do meio externo com o parênquima cerebral, possibilitada pelo rompimento da dura-máter. Por
fim, as fraturas da base do crânio podem se manifestar com: rinorreia e/ou otorreia devido à ex-
teriorização do líquor pelo nariz e pelo ouvido; equimoses nas regiões pré-auricular e/ou mas-
toidea (sinal de Battle); equimoses na região periorbitária (sinal de guaxinim); paralisia facial e
perda da audição devido a lesões no VII e VIII pares cranianos, respectivamente³.
296 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Lesões intracranianas
Envolvem as lesões cerebrais difusas que ocorrem devido à desaceleração súbita dos
componentes do sistema nervoso central (SNC) dentro do crânio e geram a interrupção das
funções cerebrais. Essas lesões são denominadas concussão cerebral, quando há a interrup-
ção temporária da função neurológica e da consciência, e lesão axonal difusa (LAD), quando
acontece a ruptura de axônios que se manifesta com perda da consciência/coma com duração
maior que 6 horas³.

Lesões focais
São as lesões restritas a determinada área do encéfalo. Nesse caso, temos:
• Hematoma subdural, caracterizado pela presença de hematomas entre a dura-máter e
a aracnoide, resultante do rompimento de veias. A sintomatologia desse quadro inclui
alteração do nível de consciência, déficits lateralizados, anisocoria e aqueles oriundos
do efeito de massa, como a síndrome de hipertensão intracraniana, discutida no
Capítulo 34, que se manifesta pela tríade de Cushing (hipertensão arterial, bradicardia
e bradipneia). O hematoma subdural é comum em idosos e em alcoólatras, uma vez que
esses indivíduos apresentam aumento do espaço subdural devido à atrofia cerebral;
• Hematoma epidural, definido pela presença de sangue entre os ossos do crânio e a dura
máter, muitas vezes resultante do rompimento da artéria meníngea média. Apresenta-se
com perda da consciência seguida por intervalo lúcido. Na sequência, há deterioração
súbita neurológica, que pode levar ao coma; e
• Hematoma intraparenquimatoso, caracterizado pelo acúmulo de sangue dentro do
parênquima cerebral. Comumente é ocasionado por fenômeno de desaceleração do
encéfalo e gera déficit neurológico que varia de acordo com o tamanho da lesão³.

Classificação
O TCE é classificado de acordo com a Escala de Coma de Glasgow (ECG), detalhada no
Capítulo 27. Um escore menor ou igual a 8, nessa escala, indica TCE grave, de 9 a 12 indica TCE
moderado e de 13 a 15 TCE leve.

Etiopatogênese
O TCE pode levar ao sangramento e edema no compartimento intracraniano. Inicialmente,
o aumento do volume local pode ser acomodado pelo movimento do sangue e do líquor para fora
da caixa craniana, conforme dita a Doutrina de Monro-Kellie. Entretanto, quando o volume intra-
craniano é excedido, a pressão intracraniana (PIC) aumenta agudamente. Esse processo reduz a
perfusão cerebral, gerando isquemia e, consequentemente, dano neural.
Tra u m a t i s m o C ra n i o e n c e f á l i c o 297

Diagnóstico
O diagnóstico de TCE é realizado a partir da combinação dos dados da história do trauma, da
anamnese, das manifestações clínicas, do exame neurológico com a ECG, dos exames radiológicos
e laboratoriais4.
O atendimento ao paciente deve se iniciar conforme as regras instituídas pelo Advanced
Trauma Life Support (ATLS), com atenção especial à hipóxia e à hipotensão. Assim, é importante
seguir o ABCDE do trauma, sequência de atendimento em que está incluso o exame neurológico
associado à ECG. É fundamental considerar que, além de indicar o nível de consciência, o exa-
me neurológico deve ser útil para avaliar a presença de eventuais déficits motores, bem como a
reatividade pupilar. Deve-se, também, inspecionar a região crânio cervical, mantendo a coluna
cervical estável e protegida, em busca de possíveis alterações provenientes do trauma, como he-
matomas subgaleais, escoriações, eritema de couro cabeludo, sangramentos, exposição de parên-
quima encefálico e drenagem de líquor4.
Após essa avaliação clínica e a estabilização do paciente, exames de imagem devem ser
realizados.
A tomografia computadorizada de crânio (TCC) é o exame preferencial para pacientes víti-
mas de TCE, hemodinamicamente estáveis. A TCC tem como vantagem a sensibilidade de eviden-
ciar o efeito de massa intracraniana, o tamanho e a configuração ventricular, as fraturas ósseas e
a hemorragia intracraniana aguda. As alterações relevantes na TCC que podem ser visualizadas
incluem hematomas subgaleais, fraturas de crânio, hemorragias intracranianas, obliteração das
cisternas basais, hematomas, contusões e desvio da linha média. Essas quatro últimas alterações
indicam maior gravidade e podem ser determinantes tanto para estabelecimento do prognóstico,
quanto do direcionamento terapêutico4.
De acordo com o American College of Radiology (ACR, 2015), existindo o diagnóstico de TCE
grave ou moderado, é imperiosa a realização da TCC, associada ao exame da coluna cervical. Em
casos de TCE leve a indicação de realização de TCC tem como base os critérios estabelecidos pela
Regra Canadense de Traumatismo Craniano, pelos Critérios de New Orleans e pelos Critérios
Clínicos do Estudo Nacional de Utilização de Radiografia X de Emergência II (NEXUS II). Nesses
casos, de forma geral, a TCC é solicitada quando há: história de perda de consciência ou amnésia
ou desorientação testemunhada por outra pessoa e quando há qualquer um dos critérios a seguir,
presentes na Regra Canadense de TC de crânio4,5:
• ECG menor do que 15 após duas horas do acidente4;
• Suspeita de fratura de crânio aberta ou com afundamento4;
• Um ou mais sinais de suspeita de fratura de base do crânio4;
• Vômitos (mais que dois episódios) 4;
• Idade maior que 65 anos4;
• Perda de consciência maior que 5 minutos4;
• Amnésia retrógrada (mais que 30 minutos antes do impacto) 4;
• Mecanismo do trauma perigoso (ejeção do veículo, atropelamento, queda de uma altura
superior a cinco degraus de uma escada ou de 0,9 metros) 4;
• Coagulopatias e uso de anticoagulantes4.
298 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Além do estudo inicial do TCE por meio da TCC, há indicação de reavaliação com neuroima-
gem em casos específicos. Nesse sentido, havendo alteração do estado neurológico, ou se a TCC
inicial tiver evidenciado qualquer anormalidade, uma tomografia de acompanhamento em 24 ho-
ras deve ser realizada. Além disso, indica-se repetir a TCC em 24 horas nos casos de contusões, de
hematomas, de doença subfrontal, de hemorragia intracraniana com volume maior que 10 mL,
nos casos em que os pacientes fazem uso da terapia anticoagulante e naqueles em que o doente
tem idade superior a 65 anos. Ressalta-se que as fraturas de base do crânio, geralmente, requerem
TCC com configurações de janela óssea para identificação de fraturas.
Por outro lado, a indicação de se obter imagens por radiografia de crânio acontece nos casos
em que existem lesões penetrantes, corpos estranhos radiopacos, fraturas calvarianas e suspeitas
de acometimento do osso temporal. Isso porque a presença de um traço de fratura visualizado na
radiografia pode ser indicativa de possível hematoma extradural. No entanto, na eventualidade de
a TCC estar disponível, a radiografia é dispensável4,5.
Em lesões cerebrais penetrantes, a TCC ou a angiografia convencional são, também, reco-
mendadas quando a trajetória do corpo estranho passa através ou próximo da base do crânio ou
de um seio venoso dural maior. Deve-se considerar que hemorragias subaracnóideas substanciais
ou hematomas tardios são indicações para a obtenção de imagem vascular.
A ressonância nuclear magnética (RNM), por sua vez, desempenha papel na avaliação de
ferimentos penetrantes por objetos não magnéticos, de lesões cerebrais crônicas e subagudas e
na avaliação da LAD⁴. De acordo com os critérios de adequação do ACR, a RNM é mais sensível do
que a TCC na detecção de hemorragias intracranianas, de contusões não hemorrágicas, de lesões
na fossa posterior, de lesões do tronco cerebral e de LAD. Importante considerar que as limitações
da RNM estão associadas à disponibilidade, ao maior tempo de execução do exame e à incompa-
tibilidade com algumas particularidades dos pacientes. Ademais, a RNM é a principal modalidade
de detecção de TCE subagudo a crônico, com sensibilidade para detectar e caracterizar atrofia e
micro-hemorragias. Por esse raciocínio, é um método recomendado para pacientes acometidos
por déficits neurológicos persistentes ou crescentes5.
Os exames laboratoriais, por sua vez, devem ser solicitados de acordo com a gravidade e clí-
nica específica de cada paciente, podendo incluir hemograma, quantificação dos eletrólitos, glice-
mia, provas de coagulação, gasometria, nível de álcool sérico e toxicologia urinária⁴.
Alguns outros exames são indicações específicas do ACR na presença de determinadas con-
dições, conforme exposto a seguir.
• Suspeita de lesões arteriais intracranianas: angiotomografia de crânio e de pescoço com
contraste endovenoso (EV) ou RNM de crânio e de pescoço com e sem contraste EV ou
TCC sem contraste EV5.
• Suspeita de vazamento de LCR pós-traumático: TC maxilofacial sem contraste EV ou TC
sem contraste EV do osso temporal5.
• Suspeita de lesão venosa intracraniana: venografia por TCC com contraste EV ou
venografia por RNM sem e/ou com contraste IV5. 

Tratamento
Os princípios básicos do tratamento do TCE incluem evitar a ocorrência de danos secundá-
rios ao parênquima encefálico lesionado e proporcionar condições ideais para que o tecido neu-
ral comprometido se recupere. Nesse sentido, a terapêutica deve prevenir hipóxia, hipovolemia,
Tra u m a t i s m o C ra n i o e n c e f á l i c o 299

isquemia, hiperglicemia, febre e convulsões. Para isso, é importante considerar a instituição de


reposição volêmica com fluidos intravenosos, de suporte ventilatório, de intubação se a ECG for
inferior a 9, a correção da anticoagulação, a hiperventilação temporária, a elevação da cabeceira
a 30°, bem como a prescrição de manitol, de solução salina hipertônica, de ácido tranexâmico, de
barbitúricos e de anticonvulsivantes4. A seguir, serão discutidas as possíveis modalidades terapêu-
ticas do TCE e as suas principais indicações.

Fluidos intravenosos
A administração de fluidos e de hemoderivados está indicada para a ressuscitação do pa-
ciente e para a manutenção da normovolemia, uma vez que a hipovolemia, em vítimas de TCE, é
prejudicial por promover hipóxia cerebral. A reposição volêmica não deve ser realizada com líqui-
dos hipotônicos ou com líquidos compostos por glicose. Ademais, a reposição deve ser controlada
para não causar hipervolemia4. No que se refere à reanimação, são preconizadas a solução de NaCl
0,9% ou as soluções isotônicas semelhantes, sem dextrose. É fundamental que os níveis séricos de
sódio sejam monitorizados, pois a hiponatremia está associada ao edema cerebral4.

Correção de anticoagulação
Pacientes em terapias anticoagulantes ou em terapia antiplaquetária devem ser avaliados
com exame do tempo e da atividade de protrombina, com RNI (índice internacional normalizado)
e com TCC, sendo, geralmente, necessária a rápida neutralização da anticoagulação4.

Anticonvulsivantes
O controle de convulsões agudas pode ser realizado com anticonvulsivantes, entretanto
esses medicamentos podem inibir a recuperação cerebral, por isso, devem ser usados somente
quando for absolutamente necessário. A fenitoína e a fosfenitoína são indicados para a fase agu-
da. Para adultos, a dose habitual é de 1 g de fenitoína por via intravenosa, com dose máxima de 50
mg/min. A dose habitual de manutenção é de 100 mg de 8 em 8 horas. Diazepam ou Lorazepam
são, frequentemente, prescritos em adição à fenitoína na abordagem da crise inicial. É imperativo
realizar o controle de convulsões agudas o mais rápido possível, visto que convulsões prolongadas
(30 a 60 minutos) podem provocar lesão cerebral. Uso profilático de fenitoína ou valproato não é
recomendado para prevenção de crises pós-traumáticas tardias4.

Terapia antimicrobiana
Havendo lesão cerebral penetrante, fratura aberta de crânio ou fístula liquórica, é indicada a
prescrição profilática de antimicrobianos de amplo espectro4.

Terapia antifibrinolítica
A administração de ácido tranexâmico (TXA), antifibrinolítico estudado em traumas graves,
com o objetivo de evitar perda excessiva de sangue, apresenta benefícios comprovados na dimi-
nuição da mortalidade em pacientes que apresentam TCE moderado, quando infundido dentro
300 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

de três horas após a lesão. O TXA na dose de 1 g é infundido em 10 minutos, seguido pela infusão
endovenosa de 1 g ao longo de oito horas6.

Terapia osmótica
A prescrição do manitol ou da solução salina hipertônica é preconizada aos pacientes com
TCE que apresentam sintomas de edema cerebral ou de elevação da PIC não responsiva a medidas
iniciais (drenagem do LCR, sedação e analgesia). Porém, o manitol pode ser infundido, anterior-
mente à instalação do monitoramento da PIC, se o objetivo for tratar alguma herniação cerebral
ou no caso de haver deterioração neurológica aguda que não seja atribuível a causas extracrania-
nas. A dose de manitol indicada é de 0,25 a 1 g/kg a cada 4 a 6 horas. Uma metanálise de ensaios
clínicos randomizados demonstrou melhor controle da PIC, melhor perfusão e melhor oxigena-
ção cerebral quando a solução salina hipertônica foi utilizada com esse propósito7.

Analgesia e sedação
A analgosedação é indicada para diminuir a duração da ventilação mecânica e o tempo de
internação na UTI. O agente sedativo de preferência é o propofol, ao passo que o opioide de esco-
lha é o fentanil8.

Tratamento neurocirúrgico
O tratamento cirúrgico pode ser necessário na abordagem de feridas do couro cabeludo, de
fraturas deprimidas do crânio, de fraturas abertas, de massas intracranianas, de lesões cerebrais
penetrantes e de ruptura dural. Ademais, a craniectomia descompressiva é eficaz no controle da
PIC4,9.

Complicações clínicas
Algumas condições são comuns em pacientes acometidos por TCE. Dentre elas, destacam-se
a síndrome pós-concussão, a presença de cefaleia, a instalação de epilepsia, os distúrbios do sono,
a vertigem e a tontura pós-traumáticas, a hérnia cerebral iminente, a hiperatividade simpática
paroxística, a amnésia pós-traumática, as lesões de nervos cranianos, os déficits neurológicos e a
morte encefálica4. Os TCE’s moderados e graves estão associados a danos neurológicos e funcio-
nais. Até 30% dos pacientes com TCE grave podem desenvolver crises pós-traumáticas precoces.
Essas crises aumentam o risco de status epilepticus, que, por sua vez, está associado ao agrava-
mento de lesões cerebrais secundárias e à alta taxa de mortalidade10. Já a alta incidência de epi-
lepsia pós-traumática tardia está associada a três fatores principais: convulsões que ocorrem nas
primeiras semanas pós trauma, presença de hematoma intracraniano e de fratura com depressão
de crânio4. Ademais, deve-se considerar que até um terço dos pacientes com TCE grave apresen-
tam coagulopatia por liberação de fator tecidual e de fosfolipídios cerebrais na circulação, o que
gera coagulação intravascular disseminada e coagulopatia de consumo. Esse processo resulta em
aumento do risco de hemorragias e potencialização dos riscos neurológicos11. Os TCE’s recorren-
tes, por sua vez, são associados ao comprometimento neuropsicológico crônico.
Tra u m a t i s m o C ra n i o e n c e f á l i c o 301

Pontos-chave
• O TCE é uma condição neurológica com significativa morbimortalidade a longo
prazo e acomete, principalmente, jovens do sexo masculino;
• As causas mais comuns de TCE são os acidentes automobilísticos, as quedas e
outras causas violentas;
• O objetivo principal dos protocolos de tratamento na terapia intensiva é evitar
danos secundários ao cérebro lesionado;
• O TCE é classificado de acordo com a escala de Coma de Glasgow. Um escore menor
ou igual a 8 indica TCE grave, de 9 a 12 indica TCE moderado e de 13 a 15 TCE leve;
• A tomografia computadorizada de crânio é o exame preferencial no estudo das
vítimas de TCE hemodinamicamente estáveis;
• O tratamento do TCE pode incluir: reposição volêmica, suporte ventilatório,
intubação (se ECG < 9), correção de anticoagulação, hiperventilação temporária,
elevação da cabeceira a 30°, manitol, solução salina hipertônica, ácido tranexâmico
(TXA), barbitúricos e anticonvulsivantes;
• Os TCE’s moderados e graves estão associados a danos neurológicos e a danos
funcionais.

Leitura sugerida
1. Menon DK, et al. Position statement: definition of traumatic brain injury. Archives of Physical Medicine and
Rehabilitation, Philadelphia, v. 91, n. 11, p. 1637-1640, 2010.
2. Manifestações clínicas e classificações: Goldman L, Ausiello D. Cecil: Tratado de medicina interna. 22 ed. Rio de
Janeiro: Editora Elsevier, 2005, 3000p.
3. Manifestações clínicas e classificações: Moore EE, Mattox KL, Feliciano DV. Manual do Trauma. 4. ed. Porto
Alegre: Artmed, 2006, 646p.
4. Manifestações clínicas, classificações, condutas, diagnóstico, tratamento, complicações: American College of
Surgeons Committee on Trauma. Advanced Trauma Life Suport - ATLS. 10 ed., 2018.
5. American college of radiology. ACR Appropriateness Criteria of Head trauma. Journal of the American College of
Radiology, 2015.
6. Vicini FA, et al. The CRASH-3 Trial Collaborators. Effects of tranexamic acid on death, disability, vascular occlusive
events and other morbidities in patients with acute traumatic brain injury (CRASH-3): a randomized, placebo-
-controlled trial. Lancet 2019; 394: 1713-1723. Lancet, v. 395, p. 117-122, 2020.
7. Rickard AC, et al. Salt or sugar for your injured brain? A meta-analysis of randomised controlled trials of mannitol
versus hypertonic sodium solutions to manage raised intracranial pressure in traumatic brain injury. Emergency
Medicine Journal, v. 31, n. 8, p. 679-683, 2014.
8. Devlin JW, et al. Clinical practice guidelines for the prevention and management of pain, agitation/sedation, delirium,
immobility, and sleep disruption in adult patients in the ICU. Critical care medicine, v. 46, n. 9, p. e825-e873, 2018.
9. Carney N, et al. Guidelines for the management of severe traumatic brain injury. Neurosurgery, v. 80, n. 1, p. 6-15,
2017.
10. Temkin NR. Risk factors for posttraumatic seizures in adults. Epilepsia, v. 44, p. 18-20, 2003.
11. De Oliveira M, Airton L, et al. Traumatic brain injury associated coagulopathy. Neurocritical care, v. 22, n. 1, p.
34-44, 2015.
Traumatismo Raquimedular 40

Gabriel Chagas Brandão de Morais


Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
O traumatismo raquimedular (TRM) é o resultado de um evento traumático na coluna espi-
nhal com repercussões motoras, sensoriais e autonômicas. Nos Estados Unidos (EUA), país com
maior taxa de TRM mundial (906/milhão), a cada ano 4 mil pacientes morrem antes de chegarem
ao hospital e outros mil falecem durante a hospitalização¹. No Brasil, a incidência de TRM é de
40 casos novos/ano/milhão de habitantes, sendo que, das vítimas, 80% são homens e 60% se en-
contram entre os 10 e os 30 anos de idade². Os estudos mundiais sobre prevalência corroboram o
predomínio deste evento no sexo masculino, com taxas que variam de 12:1 a 4:1, dependendo do
país em análise¹. No que se refere às causas, no Brasil, podem ser apontados os acidentes de trân-
sito (41,7%), os ferimentos por armas de fogo (26,9%), a queda de altura (14,8%) e o mergulho em
água rasa (9,3%)², situação que não difere da realidade mundial, na qual os acidentes de trânsito
respondem por 36-59% dos casos¹. A coluna cervical é a região topográfica mais acometida, com
uma prevalência de 43,9 a 61,5% de todos os acidentes, em termos mundiais¹.
Quanto aos custos desta condição, um estudo feito no Canadá mostrou que, ao longo da vida,
pode variar de 1,5 a 3 milhões de dólares, caso a pessoa apresente tetraparesia³.
Portanto, dada a prevalência, a repercussão na vida do paciente e o alto custo de tratamento,
deve-se ressaltar a importância da prevenção e do desenvolvimento de métodos que possibilitem
melhor manejo clínico, tanto intra, quanto extra-hospitalar, de forma a reduzir os impactos na
vida do paciente e no sistema de saúde.

Apresentação clínica
A abordagem inicial do TRM, assim como de outras emergências traumáticas inicia-se com o
ABCDE do trauma e, em seguida, utiliza-se o mnemônico AMPLA, discutido no Capítulo 38 , para
a entrevista própria da avaliação secundária. Na Tabela 40.1, são mostrados os aspectos relevantes
do ABCDE do trauma, no contexto do TRM.
304 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 40.1. Considerações do ABCDE do trauma no contexto do TRM4,11-13


• Atenção deve ser dada à necessidade de imobilização cervical e de mobilização em bloco;
• Pacientes alertas, sem dor cervical, sem déficits neurológicos, sem qualquer outra lesão dolorosa, sem intoxicação e com
movimentação cervical preservada podem retirar o colar cervical antes da radiografia. Os demais pacientes devem se submeter à
A
radiografia de coluna, antes do colar cervical ser retirado (1A);
• Não é conhecida, estatisticamente, a efetividade do colar cervical na prevenção de lesões cervicais secundárias. Entretanto,
atualmente, o seu uso é símbolo de boa prática clínica, sendo assim adotado na maioria dos protocolos.
B Não há nada digno de nota que mereça relevância específica no TRM
C Importante diferenciar o choque hipovolêmico do choque neurogênico
Aplicar a escala de coma de Glasgow, avaliar as pupilas e, posteriormente, aplicar a escala ASIA para determinar nível motor e
D
sensitivo da lesão.
Deve-se ter atenção aos pacientes com choque neurogênico, pois são mais propensos à hipotermia. O choque neurogênico é uma
E
condição grave marcada por hipotensão arterial sem taquicardia, devido à perda do tônus simpático.

ASIA: American Spinal Injury Association. Autoria própria.

A apresentação clínica do TRM é avaliada pela escala ASIA (American Spinal Injury
Association), protocolo empregado mundialmente para a avaliação inicial do TRM, em que se ava-
liam a força motora, a sensibilidade e os reflexos do paciente. Esses parâmetros são pontuados de
acordo com a avaliação clínica, diferenciando o nível medular da lesão e o lado do corpo acometi-
do. De acordo com a pontuação final, o paciente é classificado em uma escala que vai de “A” a “E”.
Algumas etapas são preconizadas5:
1. Determinação do nível sensorial dos lados direito e esquerdo do corpo;
2. Determinação do nível motor dos lados direito e esquerdo do corpo;
3. Determinação do nível neurológico da lesão, por meio da identificação do segmento mais
caudal que tem força e sensibilidade preservadas;
4. Determinação de fato se a lesão é completa ou incompleta: definida como completa
se não há contração anal voluntária e a sensibilidade de S4/S5 está abolida, ou, como
incompleta, se há contração anal voluntária e a sensibilidade de S4/S5 está preservada;
5. Classificar o paciente de acordo com a escala ASIA, mostrada na Tabela 40.2.

Tabela 40.2. Escala ASIA de classificação


Escala ASIA de classificação
ASIA A Deficiência completa motora e sensorial
ASIA B Deficiência incompleta. Há função sensorial abaixo do nível sacral, mas nenhuma função motora
Função sensorial preservada. Função motora abaixo da lesão tem teste de Mingazzinni 3 ou 4 em mais de 50% da cadeia
ASIA C
muscular principal
Função sensorial preservada. Função motora abaixo da lesão tem teste de Mingazzinni 3 ou maior em, no mínimo, 50% da
ASIA D
cadeia muscular principal
ASIA E Funções sensoriais e motoras sem deficiência

Dados da American Spinal Injury Association5. Autoria própria.


Tra u m a t i s m o R a q u i m e d u l a r 305

Etiopatogênese
Para a avaliação do paciente com TRM, deve-se observar a presença de diferentes tipos de
lesão, tanto a nível medular, quanto a nível ósseo/ligamentar. Assim, considera-se lesão medular
completa quando inexiste função sensorial e motora abaixo dos níveis sacrais e lesão medular
incompleta quando há preservação motora abaixo do nível sacral. É importante ressaltar que a
ausência de reflexos, no quadro de choque medular, em um primeiro momento de avaliação, não
confirma se a lesão corresponde à completa ou à incompleta, motivo pelo qual recomenda-se
cautela durante a análise.
Ademais, além de classificá-la entre lesão medular completa e incompleta, outras divisões
podem ser empregadas. Por exemplo, a hemissecção medular (Síndrome de Brown-Sèquard) é
suspeitada quando existe perda de força e de sensibilidade tátil e vibratória ipsilaterais, além de
perda da sensibilidade térmica e dolorosa contralaterais. A síndrome central da medula, por sua
vez, manifesta-se por fraqueza em membros superiores e por diparesia, ocasionadas por infarto
medular. A síndrome anterior da medula tem etiologia vascular e manifesta-se por perda da fun-
ção motora, abaixo da lesão, com perda da sensação térmica e dolorosa. Por outro lado, a síndrome
do cone medular manifesta-se como anestesia em “sela”, com perda da sensibilidade das nádegas
e do períneo, embora exista preservação motora dos membros inferiores e do reflexo aquileu. Por
fim, a síndrome da cauda equina pode ocorrer, devido ao acometimento das raízes nervosas dis-
tais ao cone medular, à altura de L1/L2.
Além disso, cabe destacar alguns tipos de lesões ósseas/ligamentares prevalentes, dentre as
quais se incluem as fraturas do côndilo occipital, o deslocamento occipito-cervical, as lesões do
ligamento transverso, as fraturas de c1, de c2, de c3-c7 e as fraturas toracolombares.

Diagnóstico
Para o diagnóstico clínico do TRM emprega-se a escala ASIA, complementada, então, por
exames de imagem, discutidos a seguir. No que se refere à propedêutica laboratorial, nenhum es-
tudo se faz necessário para a definição diagnóstica, embora se revelem importantes para o manejo
intra-hospitalar.

Radiografia/tomografia computadorizada (TC) cervical


Com alto grau de evidência, a TC cervical é o exame de escolha para pacientes alertas, mas
sintomáticos. Caso a TC cervical não revele anormalidades, o paciente esteja alerta, mas sinto-
mático, quatro condutas são possíveis: manter a imobilização até que o paciente esteja assin-
tomático; descontinuar a imobilização após exame de prova dinâmica negativa; descontinuar a
imobilização após ressonância magnética nuclear sem anormalidades; descontinuar imobilização
sem nova propedêutica. Para os pacientes com ECG menor ou igual a 14 com TC normal, o estudo
dinâmico não é recomendado, embora as outras três condutas sejam possíveis. Na eventualidade
de a TC estar indisponível, recomenda-se, com alto grau de evidência, o estudo por radiografia em
incidência AP (anteroposterior), perfil e transoral.
306 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Radiografia/TC toracolombar
Nesse ponto, não existe indicação bem definida, embora se reconheça que a TC deva ser
preferida em detrimento da radiografia. Recomenda-se, ainda, que todo paciente com TRM deva
ser considerado como portador de lesão vertebral, motivo pelo qual devem ser mantidos em cama
plana (0°) e mobilizados em bloco até que o exame radiológico descarte a hipótese. Porém, caso o
paciente esteja alerta, sem dor lombar, dorsal ou cervical, sem déficit neurológico, sem outra lesão
dolorosa distrativa e sem ter passado por trauma de alta energia cinética, a conduta de mantê-los
em cama plana e de mobilizá-los em bloco não se faz necessária.

Ressonância magnética nuclear


No contexto de TRM, deve ser solicitada em duas situações:
1. Se o paciente manifestar algum déficit neurológico, embora a TC não evidencie nenhuma
anormalidade;
2. Se existir a suspeita de lesão ligamentar, associada a ECG ≤ 14.
Vale considerar que o TRM pode não se manifestar em imagens radiográficas, como as da ra-
diografia e as da TC, embora estejam presentes déficits neurológicos focais, o que é chamado, em
inglês, de SCIWORA. – Spinal Cord Injury without Radiographic Abnormality6.

Tratamento
A estabilização clínica e o controle na UTI têm como objetivos manter as funções vitais, evi-
tar a progressão do dano neurológico e prevenir complicações.

Sistema respiratório
Na eventualidade de o paciente não estar intubado, deve-se avaliar a função respiratória por
espirometria e realizar nebulização periódica com albuterol. É importante estar atento à possibi-
lidade de complicações respiratórias ocorrerem, caso o paciente seja tabagista prévio e ainda não
esteja intubado11-13. Ademais, havendo necessidade de intubar, a equipe deve considerar a pro-
gramação de altos volumes correntes, para prevenir a ocorrência de atelectasia. Por fim, é funda-
mental considerar a instalação de marcapasso diafragmático nos pacientes tetraplégicos11-13, bem
como a realização de traqueostomia precoce em pacientes acometidos por lesão alta (C1-C5) 11-13.

Sistema cardiovascular
A equipe não deve tolerar pressão arterial sistólica (PAS) menor que 90 mmHg1,12,13. É neces-
sário, ainda, manter pressão arterial média (PAM) entre 85-90 mmHg nos primeiros 7 dias após
o trauma. Para pacientes classificados como ASIA A, a PAM deve ser > 65 mmHg11-13. Ademais, é
fundamental que seja realizada, precocemente, a profilaxia contra trombose venosa profunda em
pacientes com déficits graves. O emprego de compressão pneumática intermitente é indicado, se
a profilaxia farmacológica for contraindicada11-13.
Tra u m a t i s m o R a q u i m e d u l a r 307

Sistema neurológico e controle da dor


A espasticidade deve ser controlada com baclofeno e, não havendo resposta, deve-se consi-
derar a prescrição de dantrolene11-13. Na vigência de dor neurogênica durante a internação, pode
ser prescrita a gabapentina ou a pregabalina. Por outro lado, para o controle da dor generalizada,
medidas específicas podem ser tomadas, as quais estão descritas no Capítulo 28 . Quanto à cor-
ticoterapia no manejo do paciente com TRM, inexistem evidências que suportem a prática10. Por
fim, em se tratando de lesões instáveis, é importante que a equipe mantenha mobilização em
bloco, cabeceira plana e posição de Tredenlenburg reverso (15-30 graus,) até que seja concluída a
intervenção cirúrgica11-13.

Sistema gastrointestinal
Nesse ponto, é prudente se instituir a profilaxia contra lesões gástricas de estresse, por meio
da prescrição de inibidores da bomba de prótons11-13. Ademais, é importante evitar a ocorrência
de hiperglicemia ou hipoglicemia. Com relação aos objetivos nutricionais, o catabolismo deve ser
evitado, bem como a desnutrição deve ser prevenida. Por fim, na eventualidade de o paciente não
evacuar nas 72 horas após a admissão, deve-se intervir11-13, bem como, se houver diarreia, é impor-
tante descartar as infecções como causa do processo e, também, interceder 11-13.

Descompressão cirúrgica precoce


A descompressão cirúrgica precoce (< 72 horas), na existência de compressão de medula es-
pinhal, é recomendada. A descompressão muito precoce (< 24 horas) apresenta vantagem com
relação à descompressão tardia para recuperação funcional, tanto em lesões completas quanto
em incompletas11-13.

Tratamento específico
O tratamento específico é direcionado ao diagnóstico etiológico, motivo pelo qual pode ser
cirúrgico ou expectante11, 12,14.

Outras alternativas
Outras medidas podem ser empregadas, como estabelecer mudanças periódicas de decúbito
para prevenir a ocorrência de escaras por pressão11-13, instalar a sonda vesical de demora, na vigên-
cia de bexiga neurogênica e aplicar o teste PHQ-9, útil para a triagem de ocorrência de depressão
durante a permanência hospitalar11-13.

Prognóstico
O prognóstico do paciente é variável, a depender do diagnóstico etiológico, do tempo des-
pendido no atendimento inicial, do local onde o paciente é abordado, da capacitação da equipe,
dentre outros fatores15.
308 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Complicações clínicas
Como complicações do TRM, o paciente pode apresentar disfunção neuromuscular de agru-
pamentos específicos, em que se enquadram a musculatura respiratória, a musculatura do tra-
to gastrointestinal e a musculatura do trato geniturinário, bem como complicações derivadas de
cada sistema. Por esse motivo, a reavaliação periódica dos pacientes deve ser incentivada. Além
disso, a equipe deve manter atenção ao risco de choque, das úlceras de pressão e da trombose ve-
nosa profunda. Por fim, transtornos psiquiátricos são prevalentes e devem ser considerados.

Pontos-chave
• O traumatismo raquimedular é o resultado de um evento traumático na coluna
espinhal, com repercussões motoras, sensoriais e autonômicas;
• Na avaliação diagnóstica, deve-se utilizar a escala ASIA;
• É importante avaliar o emprego da propedêutica radiológica precoce, para evitar a
ocorrência de lesões neurológicas secundárias;
• Ressalta-se que o atendimento e o tratamento de um TRM são multidisciplinares;
• Avaliar e reavaliar são as palavras-chave no manejo desses pacientes;
• O objetivo das condutas médicas deve ser o de oferecer qualidade de vida aos
pacientes acometidos pelo TRM, almejando, sempre, a máxima recuperação
funcional.

Leitura sugerida
1. Singh A, Tetreault L, Kalsi-Ryan S, Nouri A, Fehlings MG. Global prevalence and incidence of traumatic spinal cord
injury. Clinical epidemiology,2014, 6, 309-331.
2. Masini M. Estimativa da incidência e prevalência de lesão medular no Brasil. J BrasNeurocirurg. 2001; 12 (2):
97-100.
3. Krueger H, Noonan VK, Trenaman LM, Joshi P, Rivers CS. The economic burden of traumatic spinal cord injury in
Canada. ChronicDisInj Can. 2013;33:113-122.
4. Sundstrøm T, Asbjørnsen H, Habiba S, Sunde GA, Wester K. Prehospital use of cervical collars in trauma patients:
a critical review. Journal of neurotrauma,2014, 31(6), 531-540.
5. American Spinal Injury Association. International standarts for neurological classification of spinal cord injury.
Atlanta (US): American Spinal Injury Association; 2019.
6. Rozzelle CJ, Aarabi B, Dhall SS, et al. Spinal cord injury without radiographic abnormality (SCIWORA). Neurosurgery.
2013;72 Suppl 2:227-233.
7. American College of Radiology. ACR-SAR-SPR practice parameter for the performance of magnetic resonance of
imaging (MRI) of the adult spine. Mintz DN et al; American CollegeofRadiology; 2018.
8. American College of Radiology. ACR-SAR-SPR practice parameter for the performance of computed tomography
(CT) of the spine. Ortiz AO, et al; American CollegeofRadiology; 2016.
9. American College of Radiology. ACR-SAR-SPR practice parameter for the performance of spine radiography.
Lenchik L, et al. American CollegeofRadiology; 2017.
10. Bracken MB. Steroids for acute spinal cord injury. Cochrane Database of Systematic Reviews 2012, Issue 1. Art.
No.: CD001046.
Tra u m a t i s m o R a q u i m e d u l a r 309

11. DynaMed. Ipswich (MA): EBSCO Information Services. 1995. Record No. T114275, Spinal Cord Injury - Acute
Management.
12. Fehlings MG, Tetreault LA, Wilson JR, Kwon BK, Burns AS, et al. Clinical Practice Guideline for the Management
of Acute Spinal Cord Injury: Introduction, Rationale, and Scope. Global spinejournal, 2017, 7(3 Suppl), 84S-94S.
13. National Clinical Guideline Centre (UK). Spinal Injury: Assessment and Initial Management. London: National
Institute for Health and Care Excellence (UK); 2016 Feb. (NICE Guideline, No. 41.).
14. Rath N, Balain B. Spinal cord injury-The role of surgical treatment for neurological improvement. J ClinOrthop
Trauma. 2017;8(2):99-102.
15. Van Middendorp JJ, Goss B, Urquhart S, Atresh S, Williams RP, Schuetz M. Diagnosis and prognosis of traumatic
spinal cord injury. Global Spine J. 2011;1(1):1-8.
Afogamento 41

Brunna Mourthé Marques Villaça Veiga


Tayná Alves dos Santos
Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
O afogamento pode ser definido como um processo em que há comprometimento respiratório
em função da entrada de líquido nas vias aéreas, decorrente da imersão ou submersão do paciente
em meio fluido1,2. De acordo com o relatório da Organização Mundial de Saúde, em torno de 372.000
pessoas morrem por ano em decorrência do afogamento3. Nesse cenário, países de baixa e de média
renda representam mais de 90% das mortes globais3. Esses números, embora alarmantes, parecem
subestimados, em função da dificuldade de padronização na categorização das mortes em diferentes
países, além da não inclusão de algumas situações, como afogamento intencional e desastres natu-
rais3. No Brasil, em torno de 6.000 mortes por afogamento são constatadas anualmente e a condição
corresponde à segunda principal causa de morte entre as crianças de 1-9 anos e a terceira causa
entre os com 10-19 anos no país4. Desse modo, um maior conhecimento sobre fatores de risco, fisio-
patologia do afogamento, terapêuticas direcionadas a cada paciente e, essencialmente, medidas de
prevenção, são imprescindíveis para redução da morbimortalidade. A Figura 41.1 descreve os sinais
e os sintomas do afogamento e a Figura 41.2 explicita a fisiopatologia dos danos dali decorrentes.

Sensação de pânico Comprometimento


• Taquicardia cardiopulmonar
• Taquipneia • Dispneia
• Tremor • Tosse
Assintomático • Palidez • Esforço respiratório
Sinais Pode evoluir • Dor no peito
e para • Cianose
Sintomas insuficiência • Palidez
respiratória • Alteração da • Bradicardia
consciência • Arritmias
• Déficit • Hipotensão
neurológico • Pulso não palpável
• Frio ao toque

Figura 41.1. Sinais e sintomas de afogamento.


Dados de McPhee, SJ et al e Szpilman, D et al1,4. Autoria própria.
312 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Fisiopatologia

Fases do afogamento

Fase de pânico, perda do padrão respiratório normal e luta para ficar acima da água

Ao submergir, a água é voluntariamente engolida ou cuspida

Apneia voluntária (resposta consciente)

Em menos de 1 minuto, essa resposta é interrompida pela necessidade de respirar

Com isso, a água começa a ser aspirada para as vias aéreas

A tosse pode ocorrer como uma resposta reflexa

A aspiração contínua e a hipoxemia provocam, rapidamente, perda de consciência e apneia

Em função da hipóxia, inicia-se o A aspiração de água gera “lavagem” do


processo de disfunção cardíaca surfactante e comprometimento da
membrana alveolocapilar

Taquicardia Bradicardia
Atividade elétrica sem pulso Assistolia Aumento da permeabilidade da membrana
alveolocapilar Edema pulmonar

Redução do débito cardíaco


Hipotensão arterial Redução da complacência pulmonar, shunt
Vasoconstrição periférica intrapulmonar, atelectasias e alveolites
Arritmias

Comprometimento das trocas gasosas


Parada cardíaca decorrente de hipóxia
Distúrbios no equilíbrio acidobásico
Na maioria dos casos, o tecido (insuficiência respiratória)
cardíaco está relativamente normal
Hipoxemia

Acidose

Parada cardiorrespiratória
Isquemia cerebral
Insuficiência renal aguda

Figura 41.2. Fisiopatologia do afogamento.


Dados de Szpilman, D et al4,7,11. Autoria própria.
A f o g a m e n t o 313

Fisiopatologia
Entender os mecanismos de lesão envolvidos no processo de afogamento, expostos na Figura
41.2, é imperioso ao adequado manejo terapêutico.

Diagnóstico
O diagnóstico de afogamento é baseado na história clínica do paciente, associada a altera-
ções do exame físico decorrentes da presença de líquidos nas vias aéreas, conforme evidenciado
na Figura 41.36. Inicialmente, os exames expostos na Tabela 41.1 devem ser solicitados6.

Tabela 41.1. Avaliação inicial preconizada para afogamento


Exames iniciais
Oximetria de pulso e gasometria arterial → Mensurar o grau de hipoxemia
Radiografia de tórax → Avaliar a presença de infiltrados ou anormalidades parenquimatosas
Exames metabólicos e de íons → Analisar descompensação sistêmica
Autoria própria.

De acordo com o quadro clínico do paciente, estudos adicionais podem ser solicitados, como
tomografia computadorizada de coluna cervical para descartar lesões, creatinoquinase (CK) to-
tal para identificar possível rabdomiólise causada pelo esforço do processo ativo de afogamento,
exame toxicológico, eletrocardiograma e enzimas cardíacas para identificar fatores de risco que
podem ter predisposto o episódio e pesquisa do nível sérico de anticonvulsivantes para pacientes
que façam uso deles, no sentido de auxiliar na detecção de possível fator desencadeante.

Informação da cena • Houve testemunhas? • Tempo de socorro à vítima • Esforços de ressuscitação


• Estado mental inicial • Duração da submersão

História do Saúde Fatores de risco • Inabilidade na natação


Anamnese
paciente pregressa • Idade (0-4 anos) • Problemas cardíacos
• Falta de supervisão • Acidente vascular cerebral
• Sexo masculino • Convulsão
• Uso de álcool ou drogas • Déficit intelectual

Exame físico Estado geral • Sinais de sofrimento? • Cianótico?


• Assintomático? • Estado de consciência • Pupilas fotorreagentes?

Sinais vitais (comprometimento • Sem pulso detectável • Apneia


cardiorrespiratório) • Hipotermia
• Bradicardia • Hipotensão
Exame pulmonar e cardíaco Evidências de trauma?

Figura 41.3. Avaliação clínica do paciente afogado.


Dados de McPhee, SJ et al, Szpilman, D et al e Denny SA et al1,4,5. Autoria própria.
314 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Classificação
O algoritmo utilizado para a classificação do afogamento auxilia na avaliação da gravidade e
guia o tratamento, tanto inicial quanto a nível hospitalar. Por meio desse instrumento, as vítimas
são classificadas de acordo com as manifestações clínicas apresentadas no momento do resgate4.
Conforme explicitado na Tabela 41.2, o paciente pode ser classificado em 8 graus6.

Tabela 41.2. Classificação do afogamento


Grau Sinais e sintomas Tratamento
Ausência de ruídos anormais na ausculta
O atendimento inicial prioriza avaliar o estado geral e promover o
Resgate pulmonar, sem tosse ou espuma nas cavidades.
aquecimento. Não há necessidade de encaminhamento hospitalar.
Sem parada cardiorrespiratória (PCR).
Deve-se acalmar a vítima, promover conforto e aquecimento. Não há
necessidade de encaminhamento hospitalar. Complicações são raras, porém,
Paciente apresenta tosse, mas com ausência
Grau 1 deve-se orientar a vítima a procurar o serviço de urgência caso haja novos
das demais manifestações.
sintomas, como dispneia e febre, principalmente, nas primeiras 8 horas após
o evento.
Ausculta pulmonar alterada (estertores difusos Atendimento inicial no local do acidente e encaminhamento ao serviço
de intensidade leve ou moderada). Pode haver hospitalar. Realizar aquecimento, suplementação de oxigênio (meta de
Grau 2
pequena quantidade de espuma nas cavidades saturação de 92-96%) e observação hospitalar por 24 horas. O oxigênio deve
oral e/ou nasal. ser ofertado em maior concentração que o ar ambiente.
Cuidados iniciais no local do acidente e encaminhamento ao serviço
hospitalar. As medidas de suporte hospitalar incluem: internação em
Edema agudo de pulmão sem sinais de unidade de terapia intensiva (UTI); aquecimento; oferta de oxigênio
Grau 3
hipotensão ou choque. em concentração maior que a do meio (através de ventilação invasiva ou
não invasiva). Se for escolhida a ventilação não invasiva e houver piora das
manifestações, é recomendada a rápida intubação endotraqueal.
Edema agudo de pulmão com sinais de choque Executar medidas semelhantes ao grau 3. Incluir fluido intravenoso
Grau 4 e hipotensão. Ausência de pulso periférico. associado a vasopressor e monitorização contínua da respiração para
Respiração presente. tratamento imediato em caso de parada respiratória.
No pré-hospitalar, realizar respiração de resgate por meio do boca-a-boca
Parada respiratória com presença de pulso ou máscara. As medidas de suporte hospitalar incluem: internação em UTI;
Grau 5
central. aquecimento; intubação endotraqueal e fluido intravenoso associado a
vasopressor. Em caso de hipotermia grave, aquecer o fluido intravenoso.
As medidas pré-hospitalares devem seguir o protocolo de PCR Iniciar
PCR. Ausência de pulso central e periférico,
Grau 6 reanimação cardiopulmonar (RCP). As medidas de suporte hospitalar são
sem respiração espontânea.
semelhantes às discutidas para o grau 5.
PCR há mais de 1 hora ou sinais de óbito como Atendimento inicial para avaliação do quadro e, após a confirmação do óbito,
Óbito livor mortis, rigidez cadavérica e sinais de o corpo deve ser encaminhado para análise no Instituto Médico Legal. Não
decomposição corporal. há necessidade de iniciar RCP.

Dados de McPhee, SJ et al e Szpilman, D et al1,4,6. Autoria própria.

Prognóstico
O quadro clínico decorrente do afogamento é variável de acordo com as condições inerentes
ao indivíduo e à situação enfrentada no incidente. Desse modo, pode-se considerar que, enquanto
alguns pacientes recuperam sem sequelas, outros, porém, apresentam redução da qualidade de
vida ou evoluem para o óbito. Nesse sentido, alguns fatores podem ser associados a um prognósti-
A f o g a m e n t o 315

co desfavorável. Dentre eles, o de maior relevância clínica é o tempo de submersão4, considerando


que um período maior ou igual a seis minutos está associado a um pior prognóstico7,9. Além disso,
pacientes com grau 6 apresentam pior prognóstico, com cerca de 93% de mortalidade, enquanto
95% dos indivíduos com graus de 1 a 5 recuperam sem sequelas8.
Com relação à assistência pré-hospitalar, pode-se afirmar que alguns fatores contribuem
para um cenário desfavorável, como: falta de treinamento adequado e de equipamentos de supor-
te às vítimas, maior distância da costa, águas abertas, além de condições físicas do paciente que
dificultam o resgate, por exemplo, a obesidade8. Manobras de ventilação realizadas ainda dentro
da água estão associadas a menor duração da hipóxia e a maior taxa de sobrevida9. O maior tempo
despendido entre a localização da vítima, o início da RCP e o transporte para o hospital também
contribuem para um pior desfecho1. Por fim, comorbidades, baixa pontuação na escala de coma
de Glasgow e ausência de reatividade pupilar também estão relacionados a um pior prognóstico.

Complicações clínicas
Complicações específicas de cada sistema orgânico podem estar presentes e atuam no senti-
do de piorar o prognóstico do paciente.

Sistema nervoso
Em função da insuficiência respiratória e do comprometimento das trocas gasosas, a hipo-
xemia pode levar a um quadro de edema cerebral e aumento da pressão intracraniana, com áreas
de isquemia e, assim, gerar danos neurológicos variados10. A maior parte das mortes tardias e das
sequelas geradas pelo afogamento são consequências da falta de oxigenação cerebral4. Por isso,
manobras de RCP realizadas precocemente contribuem para um melhor desfecho neurológico4.

Sistema cardiovascular
A hipoxemia é responsável por disfunções cardíacas. Arritmias são comumente verificadas.
Há redução do débito cardíaco e hipotensão4. Caso o processo não seja rapidamente interrompi-
do, evolui-se para parada cardíaca.

Sistema respiratório
As pneumonias ocorrem em consequência à exposição a patógenos nosocomiais, quando
em uso da ventilação mecânica. Pacientes afogados podem evoluir para um quadro semelhante à
síndrome do desconforto respiratório agudo4,7. Sequelas pulmonares tardias são incomuns8.

Sistema renal e metabolismo


Pode haver insuficiência renal aguda, embora seja rara4. Quando ocorre, normalmente está
associada à necrose tubular aguda gerada pelo quadro de hipoxemia, de choque hipovolêmico,
de rabdomiólise e/ou de acidose láctica4. Acidose metabólica é comumente verificada, embora
distúrbios eletrolíticos sejam incomuns em afogamentos não fatais4,7.
316 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Traumatismos
As vítimas de afogamento podem apresentar traumatismos associados, como lesão de colu-
na cervical, principalmente em acidentes de águas rasas e piscinas4.

Pontos-chave
• Afogamento é o acidente em que há comprometimento respiratório em função
da entrada de líquido nas vias aéreas, decorrente da imersão ou da submersão do
paciente em meio fluido;
• É de suma importância a avaliação dos fatores de risco para o afogamento, de forma
a investir em medidas de prevenção;
• A classificação do afogamento em graus é fundamental, uma vez que permite a
avaliação da gravidade do quadro e a orientação do tratamento;
• A classificação é de fácil aplicação, pois analisa os critérios clínicos do paciente no
momento do acidente;
• A rápida e adequada abordagem, tanto em ambiente extra quanto intra-hospitalar,
permite uma redução da morbimortalidade.

Leitura sugerida
1. McPhee SJ, PAPADAKIS MA. CURRENT Medical Diagnosis & Treatment. 59.ed. McGraw-Hill, San Francisco,
2020.
2. Van Beeck EF, Branche CM, Szpilman D, et al. A New Definition Of Drowning: Towards Documentation And
Prevention Of A Global Public Health Problem. Rotterdam. Bulletin of the World Health Organization. Nov 2005;
83(11): 853-856.
3. Word Health Organization.Global Report On Drowning: Preventing a leading killer. Geneva. 2014.
4. Szpilman D, Sempsrott J, Schmidt A. Drowning - Symptoms, Diagnosis And Treatment. BMJ Best Practice. Nov
2017.
5. Denny SA, Quan L, Gilchrist J, et al. Prevention Of Drowning. Official journal of the American Academy of Pediatrics.
Mai 2019; 143(5).
6. Szpilman D, Webber J, Quan L, Bierens J, Morizot-Leite L, Langendorfer SJ, Beerman S, Løfgren B. Curso De
Emergências Aquáticas. Sobrasa. Sep 2014; 85(9):1149-5.
7. Szpilman D, Bierens J, Handley A. Orlowski J. Current Concepts Drowning. The New England Journal of Medicine.
Rio de Janeiro. Out 2012.
8. Szpilman D. Near-Drowning And Drowning Classification: A Proposal To Stratify Mortality Based On The Analysis
Of 1,831 Cases. The American College of Chest Physicians. Elsevier. Rio de Janeiro. Set 1997; 112 (3): 660-5.
9. Mott TF, Latimer KM. Prevention And Treatment Of Drowning. American Family Physician. Pensacola Abr 2016;
(7):576-82.
10. McGillicuddy JE, 1985. Cerebral Protection: Pathophysiology And Treatment Of Increased Intracranial Pressure.
The American College of Chest Physicians. Elsevier. Jan 1985; 87(1):85-93.
11. Szpilman D. Afogamento. 6 ed. Revista Brasileira de Medicina do Esporte. Jul 2000. P. 131-144.
Queimaduras 42

Matheus Miranda Bichara


Orientador: Leandro Braz de Carvalho

Introdução
Queimaduras podem ser definidas como lesões diretas ou indiretas no tecido cutâneo ou
mucoso por agente externo, geralmente relacionado a altas temperaturas. Essas lesões causam
grande morbimortalidade e têm uma incidência de 1.000.000 de casos por ano no Brasil. Cerca de
100.000 eventos necessitam de atendimento médico hospitalar e, aproximadamente, 2.500 mor-
rem por consequências da queimadura¹. Em um contexto global, 66% dos acidentes ocorrem em
ambiente doméstico e 20% envolvem crianças2,3. Além do risco de morte por dano extenso de via
aérea, as queimaduras podem gerar lesões incapacitantes e desconfigurações estéticas que difi-
cultam a reabilitação da vítima.

Etiopatogênese
A queimadura promove desnaturação proteica maciça, exposição de colágeno, lesão das
membranas e dano celular extenso. A intensidade do agravo está relacionada ao grau de acometi-
mento da pele e ao agente causador4.
O local de acometimento pode ser dividido em três zonas, que dependem da profundidade
da injúria e apresentam distribuição circular. A zona de coagulação consiste no tecido celular ne-
crótico, irreversivelmente destruído. A zona de estase tem relação com a estagnação sanguínea
formada em resposta ao trauma. Por causa do dano vascular, ocorre liberação de tromboxano A2,
que produz vasoconstrição local. Esse processo é inibido após ressuscitação volêmica e o tecido
acometido pode ter sua viabilidade restabelecida. A zona de hiperemia, a mais profunda, apresen-
ta vasodilatação decorrente de mediadores inflamatórios e nessa região os danos são mínimos4.
As principais consequências da resposta metabólica são a formação de edema perilesional,
a perda de transudato e o aumento da permeabilidade capilar, o que pode acarretar desidratação,
choque hipovolêmico, perda de eletrólitos, hipotermia e sepse. Os resultados de uma lesão desse
tipo estão relacionados com a extensão da resposta inflamatória5.
318 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Classificação das queimaduras


Diferentes classificações podem ser realizadas. As principais delas incluem o agente causal,
descritos na Tabela 42.1, a profundidade, descrita na Tabela 42.2, a extensão, exposta na Figura
42.1 e 42.2, a localização anatômica e a gravidade, descritas na Tabela 42.3.

Classificação quanto ao agente causal


Dependendo da etiologia da queimadura, o acidente é classificado como exposto na Tabela 42.1.

Tabela 42.1. Agentes causais em queimadura


Agente causal Descrição
Fogo Chamas de fogo ou vapor de fumaça superaquecido
Escaldura Injúria por líquidos quentes
Contato Contato com materiais sólidos quentes ou frios
Química Contato acidental ou manuseio de ácidos, de bases, de álcalis e de hidrocarbonetos
Elétrico Transmissão direta de corrente elétrica
Dados de Garcia-Espinoza et al. Burns: Definition, Classification, Pathophysiology and Initial Approach.
General Medicine: Open Acess, 20176. Autoria própria.

Classificação quanto à profundidade


Tradicionalmente, as queimaduras eram classificadas como 1° grau, 2° grau superficial, 2°
grau profunda, 3° grau e 4° grau. Atualmente, a American Burn Association (ABA) recomenda que as
terminologias utilizadas sejam: queimadura superficial, queimadura de espessura parcial superfi-
cial, queimadura de espessura parcial profunda, queimadura de espessura total e queimadura que
se estende para tecidos profundos ou 4° grau, conforme explicitado na Tabela 42.27.

Tabela 42.2. Características das queimaduras de acordo com a profundidade


Profundidade Características
Lesão confinada à epiderme; extremamente dolorosa; eritematosa que empalidece com digitopressão; seca;
Superficial
resolução em 3 a 6 dias por regeneração.
Espessura parcial Lesão que acomete a epiderme e a camada superficial da derme; bolhosa; extremamente dolorosa; eritematosa que
superficial empalidece com digitopressão; úmida; resolução em 7 a 21 dias; pode gerar hipocromia no local.
Espessura parcial Lesão que se estende da epiderme até a camada profunda da derme; bolhosa; dolorosa ao toque; esbranquiçadas;
profunda não empalidece com digitopressão; úmida ou cerosa; resolução 14 a 24 dias; pode formar cicatriz expressiva.
Lesão que se estende da epiderme até parte do tecido subcutâneo; pouca ou nenhuma dor; escara dura com
Espessura total coloração branca, amarelada ou escurecida; úmida e rígida; indolor; difícil resolução; necessita de intervenções
cirúrgicas e cursa com grandes cicatrizes.
4° grau ou lesão Lesão que envolve todas as camadas da pele juntamente com fáscia e/ou músculo, podendo lesar, também, ossos e
profunda órgãos internos; extremamente debilitantes; necessita de intervenções cirúrgicas e cursa com graves cicatrizes.

Dados de Kagan et al. Surgical Management of the Burn Wound and Use of Skin Substitutes: An Expert Panel White Paper. Journal of Burn Care
& Research. Vol 34, n° 2; 20137,12. Autoria própria.
Q u e i m a d u ra s 319

Classificação quanto à extensão


A extensão das queimaduras é avaliada pela regra dos noves, evidenciada na Figura 42.1, que
estabelece uma estimativa de qual é o percentual de cada membro na área superficial corporal
total (ASCT), sendo variável de acordo com a idade da vítima. Uma alternativa é a regra das pal-
mas, exposta na Figura 42.2, que estabelece que a palma da mão, associada aos dedos do paciente,
corresponde a cerca de 1% da ASCT, sendo mais fidedigna na avaliação de queimaduras de distri-
buição mista.

4,5% 4,5%
4,5%

4,5%
4,5%

4,5%

18%
18%

1%

9% 9% 9% 9% 1%

Figura 42.1. Regra dos noves. Figura 42.2. Regra das palmas.
Autoria própria. Autoria própria.

Classificação quanto à localização anatômica


As áreas anatômicas consideradas críticas são: cabeça, via aérea, pescoço, mãos, pés, genitá-
lia, períneo e grandes articulações8.

Classificação quanto à gravidade


A avaliação da gravidade de uma lesão por queimadura leva em consideração o agente cau-
sal, a profundidade, a extensão, a localização, a idade, outros traumas associados e a presença de
doenças prévias estabelecidas. Com isso, é possível classificar o paciente como pequeno, médio
ou grande queimado, de acordo com os critérios expostos na Tabela 42.39.
320 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 42.3. Gravidade da queimadura


Pequeno queimado Médio queimado Grande queimado
Queimaduras de espessura parcial: Queimaduras de espessura parcial: 10-20% Queimaduras de espessura parcial:
< 10% ASCT (10 a 50 anos) * ASCT (10 a 50 anos) > 20% ASCT (10 a 50 anos)
Queimaduras de espessura parcial: Queimaduras de espessura parcial: 5-10% Queimaduras de espessura parcial:
< 5% ASCT (< 5 anos ou > 50 anos)* ASCT (< 5 ou > 50 anos) > 10% ASCT (< 5 ou > 50 anos)
Queimadura de espessura total: Queimadura de espessura total: 2-5% ASCT Queimadura de espessura total:
< 2% ASCT em qualquer idade* em qualquer idade > 5% ASCT em qualquer idade
• Injúria por alta voltagem • Queimadura por alta voltagem
• Suspeita de inalação de fumaça • Inalação por fumaça
Tratamento ambulatorial
• Lesão circunferencial • Acometimento de área crítica
• Comorbidade associada • Outro trauma associado
Tratamento hospitalar Tratamento especializado
*Para lesão isolada, que não envolva área crítica e não seja circunferencial. Dados de Singer AJ, Dagum AB. Current Management of Acute
Cutaneous Wounds, 20089. Autoria própria.

Avaliação primária e ressuscitação volêmica


As primeiras etapas do manejo do paciente queimado consistem em interromper o mecanis-
mo de dano se o acidente foi presenciado, assegurar via aérea e ventilação adequadas e garantir
bom controle do estado hemodinâmico5. Assim como em outros traumas, as prioridades no aten-
dimento inicial devem seguir o ABCDE do ATLS8.

Interromper o agente causal


É fundamental afastar a vítima do agente causal. Em acidentes com chamas é recomenda-
do cobrir a vítima com um cobertor ou orientá-la a deitar no chão e rolar, na tentativa de apa-
gar o fogo. Depois disso, o paciente deve ser aquecido por um cobertor limpo e seco para evitar
hipotermia5-8.

Via aérea
O vapor da fumaça ocasiona dano extenso ao trato respiratório e resposta inflamatória que
cursa com edema maciço. É importante considerar que esse processo não ocorre imediatamen-
te e que os sinais de obstrução podem ser sutis5. Nesse sentido, a avaliação da via respiratória
deve ser feita constantemente, principalmente se houver sinais suspeitos de inalação de fuma-
ça, como queimadura de face, de boca, de sobrancelhas e de vibrissas nasais³. A ABA recomenda
intubação orotraqueal nas seguintes situações: sinais de obstrução de via aérea como rouqui-
dão, estridor laríngeo, uso de musculatura intercostal e retração esternal; > 40-50% da ASCT
queimada; queimaduras faciais extensas e profundas; edema ou risco de edema; dificuldade de
deglutição; indícios de comprometimento respiratório; queda do nível de consciência; ou ante-
riormente à transferência de um queimado, caso não haja equipe para realizar o procedimento
no deslocamento5.
Q u e i m a d u ra s 321

Respiração e ventilação adequadas


Os fatores que podem afetar a respiração e a ventilação do queimado são: inalação de mo-
nóxido de carbono (CO), queimaduras extensas do tórax e outros traumas. Nessas situações, há
risco aumentado para hipóxia e para insuficiência respiratória, logo, a oxigenoterapia e outras
intervenções devem ser realizadas. A inalação de CO deve ser considerada a partir da história do
paciente, da mensuração da carboxiemoglobina (HbCO) > 10% e da constatação de sinais como
cefaleia, náuseas, vômitos, confusão mental e coma. Além disso, queimaduras circunferenciais do
tórax podem comprometer a expansibilidade torácica e prejudicar a ventilação5.

Circulação
A estabilização hemodinâmica deve ser realizada com a inserção de um acesso venoso peri-
férico calibroso (> 18G), caso > 20% ASCT esteja acometida. Deve-se considerar o acesso venoso
central ou a infusão intraóssea como vias alternativas5. É importante salientar que queimaduras
superficiais possuem um risco maior para síndrome compartimental e, nesse caso, a escarotomia
deve ser precoce³.
A reposição volêmica inicial para pacientes gravemente queimados varia de acordo com a
idade, conforme explicitado na Tabela 42.48.

Tabela 42.4. Reposição volêmica inicial


Idade Volume de fluidos
< 5 anos 125 mL de Ringer lactato por hora
6 a 13 anos 250 mL de Ringer lactato por hora
> 14 anos 500 mL de Ringer lactato por hora
Dados da American Burn Life Support Couse (ABLS) – Provider Manual, 20188.
Autoria própria.

Déficit neurológico
Deve-se avaliar, precocemente, o estado de alerta e a orientação do paciente. Em caso de
alteração, deve-se considerar inalação por CO, intoxicações, hipóxia ou outra condição prévia.
Nesse propósito, a avaliação do nível de consciência é categorizada em quatro níveis: alerta, res-
ponsivo ao chamado verbal, responsivo ao estímulo doloroso ou sem resposta8.

Exposição e controle ambiental


O paciente deve ser despido e examinado da cabeça aos pés. É preciso retirar todo o tecido
que estiver aderido à pele e os adornos devem ser removidos para evitar o efeito torniquete5. Para
pacientes com < 5% ASCT queimada, há benefícios no resfriamento imediato da ferida com água
corrente a 15 °C, durante 3 a 5 minutos. Esse resfriamento nunca deve ser feito com gelo ou com
água gelada, e o uso de compressas geladas por tempo prolongado aumenta o risco de hipoter-
mia8. Assim, o controle da temperatura corporal e ambiental é fundamental para o prognóstico
dos pacientes queimados³.
322 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Avaliação secundária e manejo


Após a avaliação primária e a ressuscitação volêmica inicial, deve ser realizada a avaliação
secundária8. A ABA preconiza a análise de alguns tópicos, explicitados a seguir.

História do trauma
É fundamental que a história do trauma seja explorada de forma minuciosa. Para isso, fami-
liares, colegas de trabalho e socorristas podem oferecer informações valiosas sobre as circunstân-
cias do trauma.

Histórico médico do paciente


Verificar alergias, medicamentos, história prévia, última alimentação ou última ingestão de
líquidos, eventos relacionados à injúria e história de imunização antitetânica.

Peso corporal antes do acidente


É importante que o peso do paciente, anterior ao acidente, seja obtido para que ajustes na
taxa de ressuscitação volêmica sejam possíveis.

Inspeção geral
Exame completo da cabeça, da face, do pescoço, da coluna vertebral, do tórax, do abdome, da
genitália, do períneo, do dorso e dos sistemas musculoesquelético, vascular e neurológico.

Classificação da queimadura
O paciente deve ter suas lesões classificadas de acordo com a gravidade, com a profundidade
e com a extensão da queimadura.

Ajuste da reposição volêmica depois da determinação da ASCT (%)


O cálculo é realizado de acordo com o agente causal, com a idade e com o peso do paciente.
Nesse sentido, metade do volume calculado é administrado nas primeiras 8 horas e o restante nas
16 horas subsequentes. Além disso, para avaliar a necessidade de ajuste da dose, é importante
monitorizar o débito urinário e a resposta fisiológica do paciente durante a reposição volêmica,
conforme a Tabela 42.5.
Q u e i m a d u ra s 323

Tabela 42.5. Volume de fluido a ser ofertado para o paciente queimado


Categoria Idade e peso Volume de fluidos Débito urinário esperado
2 mL RL x kg x % ASCT
Adultos e crianças > 14 anos 0,5 mL/kg/hora

3 mL RL x kg x % ASCT
Chamas ou escaldadura Crianças com < 14 anos 1 mL/kg/hora

3 mL RL x kg x % ASCT + D5RL de
Neonatos ou crianças com < 30 kg 1 mL/kg/hora
manutenção
4 mL RL x kg x % ASCT até a urina 1-1,5 mL/kg/hora até a urina
Queimadura elétrica Todas as idades
clarear clarear

RL: Ringer Lactato; D5RL: Ringer Lactato contendo 5% de dextrose. Dados de Advanced Trauma Life Support, 20185. Autoria própria.

Exames laboratoriais e exames complementares


Alguns exames devem ser solicitados para uma adequada avaliação da fisiologia corporal,
como hemograma, sódio, potássio, cloretos, ureia, glicemia, urina rotina e radiografia de tórax em
pacientes intubados.

Monitorização da ressuscitação volêmica


Os pacientes com > 20% ASCT queimada devem ter os sinais vitais checados a cada hora.
Ademais, é fundamental a inserção da sonda vesical de demora, uma vez que o débito urinário é o
melhor avaliador da ressuscitação volêmica.

Inserção de tubo gástrico


É indicado quando o paciente apresenta náuseas e vômitos expressivos, distensão abdomi-
nal ou > 20% ASCT acometida5.

Manejo da dor e da ansiedade


O manejo da dor deve começar desde o atendimento pré-hospitalar³. Nesse contexto, os
opioides são opções para analgesia e os benzodiazepínicos podem usados por sua ação ansiolíti-
ca. A via de escolha é a intravenosa (IV) e a função respiratória deve ser avaliada constantemente8.

Tratamento da ferida
O manejo da ferida tem como objetivo principal evitar a contaminação secundária. Após
possível desbridamento ou escarotomia, a ferida deve ser coberta com gaze e faixa estéreis. Não
há consenso sobre o uso de antibióticos e de agentes cicatriciais tópicos10.
324 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Suporte psicológico
Queimaduras podem causar estresse pós-traumático grave, de forma que tanto a vítima,
quanto os familiares podem apresentar sentimento de culpa, de medo, de raiva e de depressão.
Por isso, é essencial uma abordagem multidisciplinar desde o momento da hospitalização, até a
completa reinserção social.

Critérios para transferência


A ABA recomenda que o grupo de pacientes, exposto na Tabela 42.6, seja transferido ao cen-
tro de queimados8,11.

Tabela 42.6. Grupos que se beneficiariam da transferência ao centro de queimados


Queimaduras de espessura parcial em > 10% ASCT
Queimaduras em áreas críticas
Queimaduras de espessura total em qualquer extensão e faixa etária
Queimaduras elétricas
Queimaduras químicas
Lesão por inalação
Queimaduras em pacientes com condições clínicas prévias, que podem complicar o tratamento, prolongar a recuperação ou aumentar a
mortalidade
Queimaduras e outro trauma associado nos quais a lesão por queimadura apresenta um risco maior de morbimortalidade
Crianças com qualquer tipo de queimaduras em hospitais sem condições para o atendimento infantil
Queimaduras em pacientes que necessitarão de intervenções sociais e emocionais especiais ou reabilitações por longo prazo

Dados da American Burn Association. Burn Center Referral Criteria; 20188,11. Autoria própria.
Q u e i m a d u ra s 325

Pontos-chave
• Lesões por queimadura possuem grande morbimortalidade, com uma incidência
de 1.000.000 casos/ano no Brasil;
• As principais consequências das queimaduras são desidratação, choque
hipovolêmico, perda de eletrólitos para o meio externo, hipotermia e, em casos mais
graves, sepse;
• A correta classificação das lesões é fundamental para o manejo e para o seguimento
dos pacientes;
• Assim como em outros traumas, as prioridades no atendimento inicial devem seguir
o ABCDE estabelecido pelo ATLS-2018;
• A ressuscitação volêmica inicial depende do peso e da ASCT (%) e varia de acordo
com a idade;
• Para adultos vítimas de queimaduras, excluídas causas elétricas, a fórmula de
reposição hídrica a ser utilizada é: 2 mL RL x kg x ASCT %;
• O débito urinário é o melhor marcador de reposição volêmica;
• A abordagem do paciente queimado deve ser multidisciplinar desde o momento da
hospitalização, até sua completa reinserção social.

Leitura sugerida
1. Ministério da Saúde – Portal da Saúde. Queimados. Brasília: [Ministério da Saúde], 2017.
2. American BurnAssociation. NationalBurnRepository: Reportof data from 1999-2008, 2009.
3. PHTLS Prehospital Trauma Life Support. 9ª ed. Jones &Bartlett Learning; 2018.
4. Townsed Jr CM, Beauchamp RD, Evers BM, Mattox KL. Sabiston Tratado de Cirurgia: a base biológica da prática
cirúrgica moderna. 19ª ed, Vol 1. Rio de Janeiro: Elsevier; 2015.
5. ATLS - Advanced Trauma Life Support. American CollegeofSurgeons. 10ª ed, capter 9; 2018.
6. Garcia-Espinoza et al. Burns:Definition, Classification, PathophysiologyandInitial Approach. General Medicine:
Open Acess. Los Angeles, 2017.
7. American BurnAssociation. White Paper. Surgical: management of the burn wound and use of skin substitutes.
Copyright 2009.
8. American Burn Association. Advanced Burn Life Support Course - Provider Manual. Chicago; 2018.
9. Singer AJ, Dagum AB. Current Management of Acute Cutaneous Wounds. New England Journal of Medicine,
2008.
10. Dumville JC, Munson C, Christie J. Negative pressure wound therapy for partial-thickness burns. Cochrane
Database Syst Rev. 2015.
11. American Burn Association. Burn Center Referral Criteria; 2018.
12. Kagan et al. Surgical Management of the Burn Wound and Use of Skin Substitutes: An Expert Panel White Paper.
Journal of Burn Care&Research. Vol 34, n° 2; 2013.
Reconhecimento e Manejo 43
do Paciente com Sepse

Luisa Cardoso Maia


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
Sepse é uma síndrome clínica caracterizada por alterações biológicas, fisiológicas e bioquí-
micas, culminando em disfunção de órgãos e de sistemas. Essa síndrome é secundária à resposta
inflamatória desregulada a uma infecção, seja por bactérias, por vírus, por fungos ou por proto-
zoários. As infecções mais comumente associadas à sua instalação são a pneumonia, a infecção
intra-abdominal e a infecção do trato urinário1.
A sepse traz uma grande preocupação à saúde pública, pois sugere-se que de 20 a 40% do
custo total das UTI’s sejam oriundos desta síndrome2. No Brasil, a incidência da sepse na terapia
intensiva é de, aproximadamente, 36 a cada 1.000 pacientes/dia, sendo responsável por mais de
80.000 internações ao ano. Essa incidência tem aumentado ao longo dos anos, devido ao envelhe-
cimento da população, ao aumento de procedimentos realizados que favorecem a proliferação
de microrganismos, ao aumento do número de pacientes imunodeprimidos, ao aumento da flora
bacteriana resistente e ao seu maior reconhecimento2-4. Em 2015, sua letalidade global foi esti-
mada em 46%3. Nesse contexto, frisa-se a importância de se estudar sepse, a fim de prevenir, de
reconhecer e de tratá-la adequadamente, evitando, assim, desfechos desfavoráveis.

Definições
Em 1991, a sepse era descrita como resultado de uma síndrome de resposta inflamatória sis-
têmica (SRIS), contemplando pelo menos 2 dos 4 critérios estipulados, secundária a uma infecção.
Existia, também, o conceito de sepse grave, que ocorria devido à disfunção orgânica e ao choque
séptico, definido como a presença de hipotensão induzida por sepse, refratária à ressuscitação
volêmica adequada. Essas definições sofreram alterações em 2001, porém, sem que os conceitos
fossem alterados2. Com o passar do tempo, porém, a Sociedade Europeia de Medicina Intensiva
(ESICM) e a Sociedade Médica Americana de Terapia Intensiva (SCCM), observando a necessida-
328 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

de de reavaliá-las, convocaram uma força-tarefa que, em 2015, publicou os novos critérios, co-
nhecidos como Sepse 3.0, nos quais foram simplificadas as definições já existentes, removidas as
referências à sepse grave e questionada a SRIS como descritor da fisiopatologia da sepse1,2. Novas
definições foram criadas e, a partir de então, sepse passou a ser caracterizada pela disfunção or-
gânica com risco de vida causada por uma resposta desregulada do hospedeiro à infecção. Os
critérios da SRIS foram retirados, embora continuem sendo úteis no propósito de facilitar o reco-
nhecimento de uma infecção. Vale ressaltar, ainda, que toda sepse passou a ser considerada grave,
não sendo necessária, então, a utilização dessa antiga terminologia2. O choque séptico, por outro
lado, passou a ser reconhecido como o agravamento da sepse, no qual ocorrem alterações circu-
latórias e celulares intensas, que incrementam substancialmente a taxa de mortalidade. Nesse es-
tado, instala-se a insuficiência circulatória aguda com hipotensão refratária à expansão volêmica,
exigindo a administração de vasopressores para manter a pressão arterial média (PAM) maior ou
igual a 65 mmHg, além da lactatemia > 2 mmol/L (18 mg/dL)2.

Fisiopatologia
Quando o organismo é agredido por um patógeno, células das imunidades inata e adqui-
rida o reconhecem, ligam-se aos componentes microbianos e, geralmente, promovem sua er-
radicação. Em uma resposta fisiológica, substâncias pró-inflamatórias são liberadas de forma
controlada e balanceada com os mediadores anti-inflamatórios. Assim, a infecção é combatida e
a homeostase do hospedeiro é restabelecida, sem maiores danos, levando à reparação do tecido
e à cura1,5.
Entretanto, na sepse, ocorre uma resposta desregulada desses mecanismos, que gera uma
inflamação generalizada, capaz de causar disfunção orgânica. Vale considerar que o efeito direto
dos microrganismos ou de seus produtos tóxicos pode desencadear esta condição, além do que
alguns organismos são mais susceptíveis, geneticamente, ao desenvolvimento desta síndrome.
Os principais mediadores inflamatórios da sepse incluem o TNF-a, a IL-1, as prostaciclinas,
os tromboxanos, os leucotrienos, o óxido nítrico, o sistema do complemento e o fator de ativação
plaquetária, que geram efeitos sistêmicos como febre, hipotensão, leucocitose, indução de outras
citocinas inflamatórias, ativação da coagulação e fibrinólise1,5. Quando a resposta imunológica
do indivíduo se generaliza, as lesões celulares também passam a ser generalizadas, sendo elas as
precursoras das disfunções orgânicas5. O mecanismo de lesão dessa resposta é dividido em três
níveis: circulatórias, sistêmicas e celulares. As alterações circulatórias baseiam-se na inflamação,
que provoca uma vasodilatação periférica e, consequentemente, um extravasamento de líquido
para o terceiro espaço. Isso gera hipovolemia relativa, que, por sua vez, leva à hipotensão2. Além
disso, instauram-se os distúrbios da coagulação, tornando o endotélio pró-coagulante, gerando a
coagulação intravascular disseminada (CIVD). O consumo de plaquetas e de fibrina torna-se ace-
lerado, bem como ocorrem alterações na fibrinólise, o que implica a formação de trombos na mi-
crocirculação, com a hipoperfusão e a disfunção orgânica. Vale ressaltar que o consumo de fibrina
e de plaquetas pode desencadear hemorragias graves, complicando ainda mais esta condição2,5.
No que se refere às alterações sistêmicas, por sua vez, devido à liberação de hormônios contra-in-
sulínicos (glucagon, corticosteroides, catecolaminas e hormônio do crescimento), instaura-se o
hipermetabolismo, com aumento da glicogenólise e da gliconeogênese hepática, da lipólise e do
catabolismo proteico muscular, intestinal e do tecido conjuntivo5. Todos os eventos citados, em
R e c o n h e c i m e n t o e M a n e j o d o P a c i e n t e c o m S e p s e 329

conjunto, podem levar à morte da célula5. Com a hipóxia tissular, o metabolismo celular anaeró-
bio é privilegiado, o que gera a produção de ácido lático e, consequentemente, acidose metabó-
lica2. Conjuntamente, instala-se hipoxemia citopática, definida como a dificuldade de utilização
de oxigênio pelas mitocôndrias, mesmo que o elemento esteja disponível, devido aos mediadores
pró-inflamatórios e aos produtos da resposta inflamatória2. Por fim, os fenômenos celulares de
apoptose ficam inibidos em neutrófilos e em macrófagos, devido à presença de citocinas pró-in-
flamatórias, prolongando e aumentando, assim, a inflamação, o que, em última instância, pode
levar à falência múltipla de órgãos2.

Apresentação clínica
O paciente séptico demanda muita atenção e agilidade no diagnóstico e no tratamento.
Porém, a apresentação inicial da doença é inespecífica, podendo existir sinais de infecção, como
temperatura ≥ 38,3 ou ≤ 36 °C; frequência cardíaca ≥ 90 bpm; frequência respiratória ≥ 20 irpm
e pele quente nas fases iniciais. Com a evolução dos sinais de choque/hipoperfusão como pele
fria, cianose, aumento do tempo de enchimento capilar, estado mental alterado, obnubilação ou
inquietação, oligúria/anúria e redução ou ausência de ruídos intestinais podem se desenvolver.
Também é importante a pesquisa de sinais e de sintomas específicos da fonte infecciosa. As alte-
rações laboratoriais também são inespecíficas, mas costumam estar associadas à presença da in-
fecção, como leucocitose/leucopenia e desvio à esquerda, além de disfunção orgânica. Ademais, a
acidose metabólica indica elevada gravidade e a lactatemia permanentemente elevada associa-se
a pior prognóstico. A propedêutica recomendada inclui hemograma, provas de função hepática,
mensuração de creatinina sérica, coagulograma, mensuração do lactato sérico, hemoculturas pe-
riféricas (preferencialmente anteriores à terapia antimicrobiana), análise de urina, culturas micro-
biológicas de fontes suspeitas, gasometria arterial e mensuração da proteína C-reativa (PCR)1,3,4,6.
É importante salientar que inexistem sinais radiológicos específicos da sepse, mas, sim, alterações
relacionadas ao possível foco de infecção. A ultrassonografia à beira do leito é muito utilizada no
sentido de orientar a reposição volêmica1.

Diagnóstico
A síndrome é consideravelmente mais letal do que uma infecção comum e, por isso, precisa
ser abordada urgentemente. Na suspeita de uma infeção, a equipe deve cogitar a possibilidade de
sepse, lembrando-se da importância da avaliação clínica e laboratorial para a definição da pre-
sença de disfunção orgânica e para a avaliação da gravidade. O escore SOFA, exposto na Tabela
43.1, foi indicado no Sepsis-3 como o método de identificação da disfunção orgânica2. Definiu-se
que o diagnóstico de sepse é obtido quando o paciente apresentar um foco infeccioso, além da
obtenção de 2 ou mais pontos nesse escore. Vale notar que, quanto mais alta a pontuação, maior
é a mortalidade2.
Uma pesquisa rápida a respeito da gravidade pode ser realizada por meio do escore qSOFA,
exposto na Tabela 43.2. Uma pontuação ≥ 2 é positiva para o teste, embora valha ressaltar que a
ferramenta não pode ser utilizada para estabelecer o diagnóstico de sepse2.
330 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 43.1. Escore SOFA (Sequential Sepsis-related Organ Failure Assessment)


0 1 2 3 4
PaO2/FiO2 ≥ 400 < 400 < 300 < 200 < 100
Plaquetas × 10³/μL ≥ 150.000 < 150.000 < 100.000 < 50.000 < 20.000
Bilirrubina (mg/dL) < 1,2 1,2-1,9 2,0-5,9 6,0- 11,9 > 12
Dopamina Dopamina
Dopamina
5,1-15 mg/kg/min > 15 mg/kg/min
Sistema < 5 mg/kg/min ou
PAM ≥ 70 mmHg PAM < 70 mmHg ou noradrenalina/ ou noradrenalina/
cardiovascular qualquer dose de
adrenalina adrenalina
dobutamina
≤ 0,1 mg/kg/min > 0,1 mg/kg/min
Escala de coma de
15 13-14 10-12 6-9 <6
Glasgow
Creatinina (mg/dL) < 1,2 1,2-1,9 2,0-3,4 3,5-4,9 > 5,0
Débito urinário
Usual Usual Usual <500 < 200
(mL/dia)

Dados de Ferreira FL. Serial Evaluation of the SOFA Score. October. 20018. Autoria própria.

Tabela 43.2. ESCORE qSOFA


Sistema Pontuação
Frequência respiratória ≥ 22 irpm /min 1
Alteração do nível de consciência 1
Pressão sistólica ≤ 100 mm/Hg 1
Dados de Singer M, Deutschman CS, Seymour CW, et al: The Third
International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock (Sepsis-3).
JAMA 20162.

Abordagem e tratamento
A precocidade no diagnóstico e no tratamento é fundamental para a redução da mortalidade
e, por isso, é necessária ação da equipe assistencial em até uma hora3. A equipe deve colher uma
breve história do paciente, realizar o exame físico inicial, solicitar e realizar exames complemen-
tares e de imagem7. Contudo, não é necessário aguardar os resultados dos estudos para a tomada
de decisão terapêutica, que é baseada, inicialmente, em manter o equilíbrio hemodinâmico e na
antibioticoterapia empírica precoce1,2.

Avaliação inicial e estabilização hemodinâmica


A avaliação inicial deve incluir exame físico e monitorização dos dados vitais, incluindo satu-
ração de oxigênio, volume urinário, níveis de consciência, além de gases sanguíneos e lactatemia.
Pode ser necessária a proteção das vias aéreas, seguida da suplementação de oxigênio. A oximetria
é muito importante, pois ela pode indicar a necessidade de medidas mais agressivas de suporte de
O2, como a intubação7,9.
R e c o n h e c i m e n t o e M a n e j o d o P a c i e n t e c o m S e p s e 331

Um acesso venoso deve ser puncionado o mais precocemente possível. Geralmente, o


acesso periférico é suficiente, mas, com frequência, pode ser necessária a punção de um cateter
venoso central (CVC). O CVC deve ser indicado quando for necessária infusão de doses mais ele-
vadas de drogas vasoativas, embora sua instalação não deva atrasar a infusão dos líquidos, que
deve ser prontamente iniciada em acesso periférico de grosso calibre7,9. A ressuscitação efetiva
precoce com fluidos deve ser individualizada e monitorada, uma vez que a hipervolemia piora o
prognóstico. Recomenda-se a infusão em bolus de cristaloides de 150-500 mL e, a cada adminis-
tração, deve-se observar a resposta clínica e hemodinâmica do paciente, bem como a presença
ou a ausência de edema pulmonar subjacente1. Vale considerar que o alvo da pressão arterial
média é de 65 mmHg, mas pode ser individualizado, com base nas características clínicas do en-
fermo. Caso a infusão de líquidos seja insuficiente para manter a PA em sua meta ou o paciente
apresente sinais de gravidade, a associação de norepinefrina endovenosa contínua, por bomba
de infusão, é preconizada1,7,9.

Terapia antimicrobiana e controle da fonte


Deve ser instituída o mais precocemente possível, no máximo, dentro de uma hora após a
identificação da sepse. Inicialmente, deve-se aplicar a terapia empírica de amplo espectro seguida
por descalonamento, após o reconhecimento o patógeno e/ou a melhora clínica1,7,9.
Ao optar por um antimicrobiano em detrimento de outro, a equipe deve considerar os pa-
tógenos mais prováveis, levando em conta o local da infecção, os microrganismos possíveis e sua
resistência, assim como alergias, condições do paciente, dados de farmacocinética e de farma-
codinâmica. Havendo dúvidas quanto ao melhor protocolo, a CCIH da instituição deve ser con-
sultada7. Ademais, o controle da fonte da infecção precisa ser atingido. Podem estar presentes
abcessos e perfurações gastrointestinais, colecistite, pielonefrite, infecção por dispositivos (como
cateteres), entre outros. Nesse propósito, algumas ações são essenciais, como drenagem de abces-
sos, desbridamento de tecido necrótico e remoção de dispositivos infectados. Em alguns casos, é
necessário levar o paciente para o bloco cirúrgico a fim de que o procedimento seja realizado com
segurança7,9.

Prescrição de corticoesteroides
Não há dados conclusivos que subsidiem a prescrição ou a proscrição desses agentes em
uso rotineiro, motivo pelo qual são utilizados, apenas, se a ressuscitação hídrica associada a va-
sopressores não for eficaz na estabilização do paciente ou se existe história do uso de esteroides/
disfunção adrenal1,7,9.

Complicações
As principais complicações ocorrem no sistema cardiovascular, no pulmonar e no hematoló-
gico. Porém, outros sistemas podem ser acometidos. Ocorrem alterações neurológicas que cursam
com alteração do nível de consciência, como confusão, coma e delirium. No sistema renal, por sua
vez, pode ocorrer hipovolemia, hipotensão, necrose tubular aguda, redução do débito urinário e
aumento dos níveis séricos de ureia e de creatinina3. Por outro lado, as manifestações do sistema
gastrointestinal incluem gastroparesia e íleo adinâmico, que dificultam a manutenção do supor-
332 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

te nutricional, bem como, destacadamente, colestase transinfecciosa. Por fim, existem alterações
endocrinológicas, subsidiadas em disfunções tireoidianas, em alterações nas suprarrenais e em
distúrbios glicêmicos3. Todas as complicações citadas, se não tratadas adequadamente, podem
levar a lesões irreversíveis e até à morte.

Pontos-chave
• A sepse é uma síndrome que leva a diversas alterações orgânicas, devido à resposta
exagerada do hospedeiro frente a uma infecção, implicando disfunção de órgãos e,
potencialmente, choque e morte;
• O reconhecimento precoce da sepse evita desfechos desfavoráveis ao paciente,
sendo seu diagnóstico feito com a obtenção de 2 ou mais pontos no escore SOFA,
desde que exista infecção presumida;
• A antibioticoterapia deve ser instituída o mais precocemente possível, assim como
as demais medidas terapêuticas.

Leitura sugerida
1. Velasco lT. Medicina de Emergência - Abordagem Prática. 13. ed. Barueri:Editora Manole, 2019.
2. Singer M, Deutschman CS, Seymour C, Shankar-Hari M, Annane D, Bauer M, et al. The third international consen-
sus definitions for sepsis and septic shock (sepsis-3). JAMA - J Am Med Assoc. 2016;315(8):801-10.
3. Instituto Latino-Americano para Estudos da Sepse. Sepse: Um problema de saúde pública. 2015.
4. Gotts JE, Matthay MA. Sepsis: Pathophysiology and clinical management. BMJ. 2016;353:1-20.
5. Romanova M. Pathophysiology of sepsis. J Vis Commun Med. 2019;42(4):1957.
6. Zoppi D. Sepse e choque séptico na emergência. Rev QualidadeHC [Internet]. 2018;1-10.
7. Rhodes A, Evans LE, Alhazzani W, Levy MM, Antonelli M, Ferrer R, et al. Surviving Sepsis Campaign: International
Guidelines for Management of Sepsis and Septic Shock: 2016. Vol. 43, Intensive Care Medicine. 2017. 304-377.
8. Ferreira FL, Bota DP, Bross A, Mélot C, Vincent JL. Serial evaluation of the SOFA score to predict outcome in
critically ill patients. JAMA. 2001 Oct 10;286(14):1754-8.
9. Luce JM. Pathogenesis and management of septic shock. Chest [Internet]. 1987;91(6):883-8.
Uso Racional dos Antimicrobianos 44

Cinthya Rodrigues Coutinho


Clara Monteiro Moreira
Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
Desde a sua descoberta, os antimicrobianos trouxeram marcantes inovações na medicina, na
agropecuária e na agricultura. Essas substâncias alteraram as relações do ser humano com a na-
tureza, especificamente com as doenças e com a produção de alimentos, melhorando a qualidade
de vida e aumentando a longevidade, em escala mundial. Por esse motivo, essas drogas tornaram-
-se globalmente difundidas e seu uso abusivo é um dos grandes problemas de saúde pública do
século XXI1,2.
Ao promover inibição do crescimento e destruição dos microrganismos, os antimicrobianos
exercem uma pressão seletiva que elimina os seres a eles sensíveis, mas favorece a reprodução
dos resistentes que, por sua vez, têm potencial de letalidade. Essas drogas, portanto, não exercem
influência somente no meio em que atuam, mas podem provocar alterações capazes de atingir
diversos seres vivos e ambientes, além de apresentarem efeitos colaterais e interações medica-
mentosas que podem ser evitados ou minimizados, se uma melhor opção terapêutica for consi-
derada1,3. Diante disso, fica evidente que a indução medicamentosa de resistência microbiana é
um dos principais problemas de saúde pública mundial, afinal, torna as atuais drogas ineficazes,
aumenta os custos do tratamento e facilitam a propagação de germes multirresistentes, o que
ameaça a vida humana¹,². Este capítulo objetiva, portanto, discutir as ações necessárias para se
alcançar o controle da resistência e dos demais problemas associados ao uso inadequado dos an-
timicrobianos, em âmbito hospitalar, que determinarão, consequentemente, redução da morbi-
mortalidade e dos custos econômicos1.

Predisponentes à prescrição inadequada


A forma como os antimicrobianos são utilizados atualmente foi moldada ao longo dos anos
e marcada por sua produção e por sua prescrição em larga escala, principalmente quando ainda
não se falava em resistência2. No âmbito hospitalar, microrganismos resistentes representam um
grande problema e são fundamentados em uma prática prescritora incorreta que, na maioria das
334 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

vezes, precede a solicitação de culturas microbiológicas, é inadequada quanto ao sítio da infec-


ção, ao agente etiológico (a exemplo das inúmeras doenças virais tratadas com antibióticos), às
dosagens, aos intervalos de administração e à duração correta da terapia1. Além disso, as pres-
crições são, em sua grande parte, redigidas de forma inadequada, o que propicia a ocorrência de
erros grosseiros, inclusive na identificação dos pacientes. Existe entre os profissionais, também, a
mentalidade de que a prescrição de drogas de amplo espectro é mais eficaz, evitando-se o desca-
lonamento, o que, na realidade, atua apenas na indução de resistência e incrementa os efeitos co-
laterais do tratamento1. Ademais, a falta de um plano para uso racional por parte das instituições
que deveriam restringir o acesso às drogas é uma lamentável realidade1.
Um plano estratégico bem elaborado permite que as prescrições sejam discutidas e modifi-
cadas ao longo da internação, de forma que o tratamento seja constantemente adequado e que o
prescritor tenha um feedback do processo. Ademais, integra as decisões clínicas com os resultados
microbiológicos e com as recomendações farmacológicas de cada uma das substâncias1.

Prescrição adequada de antimicrobianos


Ao prescrever drogas com as características dos antimicrobianos, é necessário que alguns
princípios sejam observados. Os pilares do uso racional de antimicrobianos são o conhecimento,
a revisão sistemática diária do plano proposto e das condições do paciente, bem como a disponi-
bilidade de métodos diagnósticos. Tudo isso demanda um trabalho coordenado em equipe, tempo
e educação permanente1,3. 
No que diz respeito aos pacientes recém-admitidos na UTI, o provável foco infeccioso deve
ser, sempre, coletado para a cultura microbiológica. Além disso, antimicrobianos devem ser ad-
ministrados empiricamente, na primeira hora do atendimento, devido ao fato de serem doentes
sépticos ou que cursam com alta suspeita de sepse4, ainda que a coleta do material não tenha sido,
até então, realizada4. Uma vez de posse dos resultados microbiológicos, a equipe pode readequar
o espectro de ação. Ressalta-se, porém, a importância de se depreender uma interpretação críti-
ca sobre os laudos, que dependem da qualidade da amostra, da técnica empregada e do quadro
clínico do paciente1,2. Isso porque existe a probabilidade de os resultados serem falso-negativos
ou falso-positivos para infecção, como acontece nos casos de colonização (presença de microrga-
nismos que não provocam repercussão clínica) e de contaminação (amostra mal processada ou
mal coletada). No que tange à bacteriúria assintomática, a prescrição de antimicrobianos não é
recomendada, na maioria dos casos1,3.
Aspectos importantes a serem considerados para a escolha de uma droga segura são as
características do paciente (idade, peso e comorbidades - principalmente doença renal, doença
hepática e imunodeficiência), a gravidade e o curso da infecção corrente, a presença de alergia
a alguma droga, a potencial interação entre o fármaco de escolha e os medicamentos em uso,
a presença de gestação ou de lactação e fatores de risco para a instalação da resistência, como
tempo prolongado de internação, história de internações prévias e uso recente de antimicrobia-
nos1,3. Nesse raciocínio, a equipe deve levar em consideração a epidemiologia do agente etio-
lógico, o sítio de infecção e o perfil microbiológico local, optando, sempre, pelo medicamento
com menor toxicidade, via de administração mais adequada, menor indução de resistência e
melhor custo-benefício1,3. Para isso, é essencial conhecer o espectro de ação dos antimicrobia-
nos e a concentração necessária deles no sítio da infecção, para o adequado efeito terapêutico,
determinada pela farmacocinética (PK) e pela farmacodinâmica da droga (PD)3,5. A relação PK/
PD é utilizada para o estudo farmacológico e para a otimização da terapia medicamentosa, uma
U s o R a c i o n a l d o s A n t i m i c ro b i a n o s 335

vez que prediz qual concentração de fármaco é associada à maior atividade bactericida3. A PK,
em primeiro lugar, descreve os processos de absorção, de metabolização e de excreção e seus
parâmetros de maior relevância incluem5,6:
• O pico plasmático, definido como a concentração máxima do fármaco (Cmax);
• A meia-vida (t1/2) da droga, definida como o tempo necessário para que sua concentração
seja reduzida à metade;
• A área sob a curva (AUC), que representa a quantidade de droga que penetra no sangue;
• A ligação proteica, que gera uma fração livre do fármaco responsável por sua eficácia e
por sua toxicidade;
• O volume de distribuição (Vd), que diz respeito à capacidade de penetração da droga no
organismo, de acordo com a dose e com suas propriedades físico-químicas; e
• O clearance, definido como a depuração do fármaco.
Algumas situações podem alterar esses parâmetros, como a sepse ou o choque séptico5,6. Por
outro lado, a PD descreve o mecanismo de ação de um fármaco, sua concentração a nível sérico/
no sítio de infecção, além de explicar seus efeitos adversos5,6. Os parâmetros utilizados nessa ava-
liação são a concentração mínima inibitória (CIM), bem como outras medidas, obtidas em função
da CIM, como5,6:
• Cmax/CIM;
• AUC/CIM; e
• T > CIM.
Para a atividade terapêutica, o antimicrobiano deve estar em concentração acima da CIM ao
atingir o sítio de ligação3,6. Ressalta-se, ainda, a importância de se compreender a relação entre a
fisiopatologia e a farmacocinética, a fim de que a dose do fármaco seja ajustada para a máxima
eficácia. Por último, deve-se conhecer os efeitos adversos específicos de cada antimicrobiano7. De
modo geral, esses medicamentos alteram a microbiota natural do organismo e podem acometer
diferentes sistemas, de modo que alguns dos achados incluem diarreia, rash cutâneo, náuseas, vô-
mitos, nefrotoxicidade e prolongamento do intervalo QT ao estudo eletrocardiográfico. É impres-
cindível que, tanto os profissionais de saúde, quanto os pacientes, estejam cientes da existência
desses efeitos8.

Gerenciamento e estratégias
Em conformidade com a Portaria 529/2013, o Ministério da Saúde instituiu o Núcleo de
Segurança do Paciente1,9, responsável pela criação do Programa Nacional de Segurança do Paciente
(PNSP), cujo objetivo é a elaboração de um plano de segurança que siga os princípios de melhoria
contínua dos processos de cuidado e que estimule o uso de tecnologias da saúde, a disseminação
sistemática da cultura de segurança, a articulação dos processos de gestão de risco e a garan-
tia das boas práticas de funcionamento do serviço de saúde9. Já a Portaria GM/MS nº 2616, de
12/05/1998, obriga as Comissões de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) a elaborar e a imple-
mentar o programa de gerenciamento do uso de antimicrobianos1,7, com a premissa de otimizar a
escolha dessas drogas e de diminuir os custos gerais, tanto diretos, quanto indiretos, que a prática
irracional da prescrição pode implicar. Diferentes medidas podem ser adotadas pela CCIH a fim
de criar e de executar os programas, como elencadas a seguir.
336 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Educação continuada
Deve ser o pilar de qualquer programa de controle. Tem a função de promover conhecimen-
to, seja por discussão de caso, seja por feedback, gerando uma maior aceitação das medidas de
controle pelo corpo clínico do serviço1,7. É importante ressaltar a importância da conscientização
dos pacientes e dos seus acompanhantes, sobre o uso correto dos antimicrobianos1, bem como
sobre as condutas preconizadas na internação (indicação medicamentosa, via de administração e
tempo de tratamento)8.

Formulário
O formulário para a solicitação de antimicrobianos consiste no documento que subsidia a
solicitação, contendo o motivo da prescrição, e é preenchimento pelo médico assistente1,7,10.

Auditoria
Consiste na revisão da prescrição, incluindo a indicação, a posologia e a duração de trata-
mento, seja de forma retrospectiva, seja prospectiva1. A auditoria retrospectiva envolve a análi-
se dos formulários de solicitação de antimicrobianos, idealmente após 48 horas da prescrição1,
quando já existem outros parâmetros de avaliação clínica e laboratorial para embasar qualquer
mudança terapêutica. Por outro lado, a auditoria prospectiva acontece por meio de reuniões pe-
riódicas com a equipe multiprofissional, cujo objetivo é o de discutir sobre os antimicrobianos em
uso no serviço7, concretizando o princípio da decisão compartilhada. Alguns serviços priorizam a
auditoria das prescrições de antimicrobianos onerosos, de largo espectro, contra germes multirre-
sistentes ou que estejam prescritos por mais de sete dias1.

Política de restrição
De acordo com a literatura, esse é um dos métodos mais efetivos para o controle do uso de
antimicrobianos1. Após a auditoria, a prescrição pode ou não ser autorizada pela CCIH. A restri-
ção, quando acontece, é subsidiada no alto custo das drogas, na elevada toxicidade ou no alto risco
de induzir resistência3,7.

Padronização das drogas


Quando o hospital toma essa conduta, possíveis mudanças no perfil de sensibilidade do ser-
viço devem ser monitoradas. No entanto, por ser uma medida geradora de possíveis conflitos in-
ternos, muitos serviços não a adotam7.

Substituição de medicamentos
Por ser mais aceita por parte do médico prescritor, configura-se como uma alternativa à restri-
ção da prescrição e à padronização do medicamento. Consiste em substituir um medicamento por
um equivalente, com o objetivo de diminuir o espectro de ação ou de alterar a via de administração11.
Um exemplo é a troca de terapia parenteral para oral7,8, que gera menores custos para o sistema.
U s o R a c i o n a l d o s A n t i m i c ro b i a n o s 337

Vigilância eletrônica
É desejável que os hospitais disponham não só de um sistema de prontuário e prescrição
eletrônicos, mas também de um software que auxilie na monitorização da prescrição de antimi-
crobianos e na tomada de decisão, além de possuírem atualização automatizada do perfil micro-
biológico do serviço1,8.

Gestão de farmácia
Tem a intenção de diminuir os custos, por meio de negociação com empresas farmacêuticas1,7.

Laboratório de microbiologia
É preconizado que o hospital disponha de um laboratório próprio, afinal, o tempo necessário
para a conclusão diagnóstica interfere diretamente no processo de prescrição racionalizada1,7.

Trabalho intersetorial e integrado


A direção do hospital e a ação conjunta dos setores envolvidos determinam o sucesso do
programa, afinal, ele depende do investimento em recursos humanos, financeiros e tecnológicos,
bem como do trabalho em equipe dos profissionais envolvidos1,7.

Contenção da resistência
Os programas devem incluir, também, estratégias para a contenção da resistência micro-
biana e da propagação de agentes multirresistentes, dentre as quais incluem aquelas elencadas a
seguir.
• Rotação de antimicrobianos: não se deve utilizar antimicrobianos durante períodos
prolongados de tempo7.
• Associação de drogas: possui algumas indicações clínicas, a exemplo de pacientes
graves com risco de infecção por microrganismos multirresistentes7. Sua premissa é a de
aumentar a cobertura e a de diminuir as doses de cada medicamento, a fim de minimizar
os efeitos colaterais que o uso isolado de cada um deles, em maior dose, poderia gerar.
• Terapia descalonada: é imprescindível realizar o descalonamento1,8 da terapia empírica, a
partir do resultado das culturas previamente colhidas. Essa medida resulta não só em uma
menor exposição aos antimicrobianos, como também em redução do custo hospitalar4.
• Ajuste de posologia: tem como objetivo otimizar o índice farmacodinâmico no regime
terapêutico. A prescrição deve, sempre, levar em consideração as características do
paciente, as do patógeno e as do sítio infeccioso7,8, além de as variáveis farmacodinâmicas,
que incluem o mecanismo de ação do medicamento e seus efeitos colaterais. Deve-se
atentar para o fato de que, para cada classe de antimicrobiano, existe um parâmetro
farmacocinético/farmacodinâmico (PK/PD) associado à maior atividade bactericida3.
• Protocolos clínicos: o emprego de protocolos para guiar a conduta médica é um método
efetivo na promoção do uso racional dos antimicrobianos7,8. Eles devem ser objetivos
338 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

e adaptados de acordo com as características clínicas e com os perfis epidemiológico


e microbiológico locais, podendo divergir de hospital para hospital, e até de setor para
setor1. Sua implementação aumenta a qualidade e a segurança da assistência, dado que
homogeneíza as condutas e permite, por conseguinte, uma avaliação mais fidedigna dos
resultados dos fluxos preconizados. Os programas com os melhores resultados lançam
mão de diversas medidas e estratégias de controle, concomitantemente1.

Considerações finais
É evidente que a principal causa de resistência dos patógenos é a prescrição irracional dos
antimicrobianos. A pouca adesão às medidas de controle é justificada pela desinformação, tanto
por parte do corpo clínico hospitalar, quanto dos pacientes, por condutas divergentes dos pro-
tocolos (ou pela ausência deles) e por hábitos antigos de prescrição que perduram, apesar de
existirem evidências que comprovem o benefício das estratégias aqui discutidas. Sendo assim, a
implementação dos programas de gerenciamento torna-se necessária em hospitais e o cuidado
durante a prescrição torna-se essencial no combate ao desenvolvimento de novos mecanismos de
resistência, que são cada vez mais complexos.

Pontos-chave
• Os antimicrobianos não atuam apenas na profilaxia ou no tratamento de uma
infecção, mas também afetam o ambiente hospitalar, por alterarem a ecologia
microbiana;
• O uso excessivo dos antimicrobianos não está apenas associado à emergência e
seleção de cepas de germes resistentes, mas também a eventos adversos, a elevação
dos custos e da morbimortalidade;
• O médico precisa conhecer as características clínicas, epidemiológicas e
microbiológicas do paciente e do hospital para identificar situações propícias à
prescrição de antimicrobianos, bem como para minimizar os riscos inerentes à
indicação.

Leitura sugerida
1. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Brasil). Diretriz Nacional para Elaboração de Programa de Gerenciamento
do Uso de Antimicrobianos em Serviços de Saúde [internet]. Brasília; 2017.
2. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Brasil). Plano de Ação da Vigilância Sanitária em Resistência aos
Antimicrobianos. Brasília; 2018.
3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Uso racional de medica-
mentos: temas selecionados / Ministério da Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos
[internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.
4. Instituto Latino-Americano para Estudos da Sepse. Sepse: um problema de saúde pública. Instituto Latino-
Americano para Estudos da Sepse. Brasília: CFM, 2015.
U s o R a c i o n a l d o s A n t i m i c ro b i a n o s 339

5. Varghese JM, Roberts JA, Lipman J. Antimicrobial pharmacokinetic and pharmacodynamics issues in the critically
ill with severe sepsis and septic shock. CritCareClin. 2011;27(1):19-34.
6. Federico MP et al. Noções sobre parâmetros farmacocinéticos/farmacodinâmicos e sua utilização na prática mé-
dica. RevSocBrasClin Med. 2017 jul-set;15(3):201-5. 2017.
7. Silva EU. A Importância do controle da prescrição de antimicrobianos em hospitais para melhoria da qualidade,
redução dos custos e controle da resistência bacteriana. Prática Hospitalar V. 10 N. 57. Belo Horizonte; Mai/
Jun/2008.
8. European Commission. EU Guidelines for the prudent use of antimicrobials in human health. 2017.
9. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Brasil). Resolução - RDC Nº 36, de 25 de julho de 2013.
10. Ebserh. Fluxo de prescrição de antimicrobianos de uso restrito. 2016.
11. Barlam TF, Cosgrove SE, Abbo LM, et al. Implementing an Antibiotic Stewardship Program: Guidelines by the
Infectious Diseases Society of America and the Society for Healthcare EpidemiologyofAmerica.ClinInfectDis2016;
62:e51.
Pneumonia Adquirida na Comunidade 45

Fernanda Maia Alves


Lara Ferreira Freitas
Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
Define-se como pneumonia a condição infecciosa que atinge o trato respiratório inferior,
especificamente o parênquima pulmonar, e pode ser desencadeada por diversos microrganismos
(MO), sendo o Streptococcus pneumoniae o principal agente etiológico, qualquer que seja a faixa
etária1,2. A depender dos determinantes envolvidos na gênese da patologia, ela é subdividida entre
pneumonia adquirida na comunidade (PAC), pneumonia nosocomial (PN) e pneumonia relacio-
nada à assistência à saúde (PRAS), descrita no capítulo 48. De acordo com as diretrizes brasileiras,
a PAC é aquela adquirida em ambiente diferente das unidades de saúde, embora possa se manifes-
tar em até 48 horas após a admissão do paciente no local. Essa entidade infecciosa é constituinte
de grande impacto relacionado a morbidade e é a terceira causa de morte por doenças respirató-
rias no Brasil1,3.

Apresentação clínica
Os indivíduos acometidos pela PAC, habitualmente evoluem com início agudo de sintomas
respiratórios, como tosse produtiva, dispneia e dor pleurítica ventilatório-dependente, associados
à febre, definida como a temperatura superior a 37,8 °C. Além disso, podem estar presentes outros
sintomas constitucionais, dentre os quais se incluem taquipneia (> 20 irpm), taquicardia (> 100
bpm), calafrios, sudorese, cefaleia, vômitos, artralgia e confusão mental2-5. Os achados do exame
físico, por sua vez, são condicionados à extensão da condensação pulmonar e ao surgimento de
complicações, como o derrame pleural. O mais comum de se encontrar são os estertores crepitan-
tes e a macicez à percussão torácica. Anormalidades como broncofonia, egofonia e sopro tubário
também podem ser identificadas2,5,6. Por fim, é importante salientar que, em pacientes idosos, os
sinais e os sintomas típicos podem ser ausentes e que, neles, a apresentação clínica é variável, in-
cluindo, por exemplo, quedas, confusão mental ou, inclusive, a descompensação de uma doença
estável previamente diagnosticada6.
342 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Etiopatogênese
Na maioria dos casos, a pneumonia é desencadeada por microaspiração de materiais oriun-
dos da orofaringe ou da nasofaringe. Esses materiais são, geralmente, colonizados por MO que
fazem parte da microbiota local, raramente representando um problema para indivíduos imuno-
competentes. Eventualmente, os elementos estão colonizados por MO patogênicos que, depen-
dendo da sua virulência, do número de MO inoculados e dos mecanismos de defesa do próprio
paciente, podem deflagrar um processo inflamatório alveolar2. Embora a PAC clássica seja desen-
cadeada, mais comumente, pelo pneumococo2, outros germes, como bactérias atípicas e vírus,
podem instaurá-la1,2,6, motivo pelo qual a assimilação dos agentes mais prováveis deve considerar
a epidemiologia, a sazonalidade e a modalidade de serviço de saúde6.
Segundo Kasperet et al, os pacientes com PAC menos grave, tratados ambulatorialmente, es-
tão frequentemente acometidos pelo Streptococcus pneumoniae, pelo Mycoplasma pneumoniae,
pelo Haemophilus influenzae, pelo C. pneumoniae ou pelos vírus respiratórios. Por outro lado,
em casos que exigem hospitalização fora da UTI, são isolados, além dos agentes anteriormente
citados, a Legionella spp. Finalmente, pacientes cuja internação na UTI se faz necessária, são mais
frequentemente acometidos por S. pneumoniae, por Staphylococcus aureus, por Legionella spp,
por bacilos gram-negativos, por H. influenzae e por vírus respiratórios2,4.

Diagnóstico
O diagnóstico da PAC é fundamentado na tríade: clínica, exame físico e radiografia de tórax1.
O exame clínico, em primeiro lugar, evidenciará os achados anteriormente descritos. A radiografia
de tórax, por sua vez, apesar de ter baixa sensibilidade (38-64%), é um exame extremamente útil na
identificação de infiltrados pulmonares, bem como de possíveis complicações¹,2,5. Vale salientar,
contudo, que a imagem pode ser dispensável, na hipótese de o profissional estar seguro do diag-
nóstico e que um exame sem alterações não exclui a hipótese1,2,6. Outros exames de imagem, como
a ultrassonografia (USG) e a tomografia computadorizada (TC), podem ser solicitados, quando
for necessário. A USG, quando realizada por profissionais experientes, possui sensibilidade de
94% e especificidade de 96%, tendo maior acurácia em indivíduos restritos ao leito, em gestan-
tes e no diagnóstico de derrame pleural1-3. Por outro lado, a TC é o método mais indicado para
o estudo de pacientes obesos, imunossuprimidos e daqueles cuja radiografia tenha evidenciado
alguma alteração. Ademais, ela é útil para a investigação das suspeitas de infecções fúngicas e de
complicações, como abscessos pulmonares e derrame pleural loculado1-3. No que tange à prope-
dêutica laboratorial, uma análise individualizada, de acordo com cada situação clínica, deve ser
depreendida. Nesse âmbito, de acordo com Azevedo et al, pacientes com idade inferior a 50 anos,
sem comorbidades (insuficiência cardíaca, alterações da função renal ou hepática, neoplasias e
doença cerebrovascular) e sem alterações significativas ao exame físico (confusão mental recente,
taquicardia, taquipneia, PAS < 90 mmHg, hipotermia ou febre alta), não necessitam de exames
adicionais. Nos demais casos, os estudos inicialmente realizados incluem hemograma, glicemia
e mensuração dos níveis séricos de ureia, de creatinina, de sódio e de potássio. Propedêutica adi-
cional será conduzida de acordo com a suspeição do médico assistente1-3,6. A realização de exames
para a definição etiológica da PAC, que envolvem cultura de escarro, hemocultura, antígenos uri-
nários e quantificação dos níveis séricos de proteína C reativa (PCR), não está rotineiramente in-
dicada. Porém, é recomendada para pacientes acometidos por PAC grave e para situações em que
a terapia empírica inicialmente instituída foi ineficaz1-4. Finalmente, partindo do pressuposto de
P n e u m o n i a A d q u i ri d a n a C o m u n i d a d e 343

que a pneumonia é uma das principais causas de sepse, é imprescindível a identificação dos casos
graves, que exigem antibioticoterapia e internação precoces, para evitar a ocorrência de desfechos
desfavoráveis. Nos casos críticos, uma ferramenta simples e acessível, utilizada para a avaliação do
prognóstico, é o qSOFA, discutido no Capítulo 431-3,5,6.
Os diagnósticos diferenciais da PAC incluem desde distúrbios infecciosos, até descompensa-
ção clínica de alguma doença de base. Dentre eles, os mais frequentes são tuberculose, rinossinu-
site, câncer de pulmão, embolia pulmonar, edemas pulmonares cardiogênico e não cardiogênico,
assim como bronquiectasias1-3,6.

Tratamento
Antes da instituição terapêutica, alguns pontos devem ser considerados, como o prognóstico
e o risco de mortalidade. Para isso, são utilizados os escores de avaliação de gravidade, que anali-
sam o atual estado de saúde do paciente e que, assim, auxiliam na decisão do ambiente onde será
realizado o tratamento -ambulatorial, na enfermaria ou na UTI-, sobre a necessidade de investiga-
ção etiológica e sobre o antimicrobiano mais adequado, bem como a via de administração. Outros
pontos, como fator psicossocial, capacidade funcional e condições socioeconômicas merecem ser
ponderados, na medida em que inviabilizam o tratamento ambulatorial1,2,6.
No propósito da avaliação de gravidade, os escores validados incluem o CURB-65 e o
PneumoniaSeverity Index (PSI). O CURB-65, em primeiro lugar, é de fácil aplicação e avalia cinco
variáveis: confusão mental, nível sérico de ureia (> 43 mg/dL), frequência respiratória (FR > 30
irpm), pressão arterial (sistólica < 90 mmHg e diastólica < 60 mmHg) e idade (≥ 65 anos). Apesar
de acessível, a ferramenta é limitada, por não considerar a presença de comorbidades. Em sua
versão simplificada, o CRB-65, a dosagem de ureia não é realizada e tem importante aplicabilida-
de em locais onde a realização de exames laboratoriais não está disponível1,4-6. Cada um dos cinco
tópicos equivale a um ponto e, de acordo com a pontuação obtida, os pacientes recebem reco-
mendações distintas. Segundo o CURB-65, aqueles que obtiverem pontuações 0 ou 1 devem ser
tratados ambulatorialmente, enquanto aqueles com 2, 3, 4 e 5 pontos devem receber tratamento
hospitalar. A pontuação 5 indica, ainda, a possibilidade de ser necessária a internação em UTI. Por
outro lado, segundo o CRB-65 pacientes com 0 pontos devem ser tratados em ambulatório e os
com 1 e 2 pontos em regime hospitalar. Por fim, pontuações acima de 4 indicam mortalidade alta
e requerem hospitalização urgente1,4. A segunda ferramenta, o PSI, é constituída por 20 variáveis.
Os valores são determinados para cada condição específica, podendo, o paciente, apresentar uma
ou mais variáveis com a mesma pontuação, como apresentado na Tabela 45.1. A partir do escore
resultante, o indivíduo é classificado em 5 categorias, conforme for o risco de mortalidade para os
próximos 30 dias. Nas categorias I e II (≤ 70 pontos), o tratamento pode ser realizado ambulato-
rialmente. A categoria III (71-90 pontos) evidencia a possibilidade de a terapêutica acontecer tanto
em regime ambulatorial, quanto hospitalar, dependendo do que o médico julgar necessário. Já nas
categorias IV e V (≥ 91 pontos), o local de tratamento deve ser hospitalar. Sua limitação é enfatizar a
idade e a presença de comorbidades, o que pode subestimar a gravidade da doença em jovens1,4,6.
A terapêutica antimicrobiana, por sua vez, é iniciada tão logo exista a suspeita clínica de
infecção. Ela é, habitualmente, prescrita de forma empírica, baseando-se em fatores como o MO
mais provável, as viagens realizadas recentemente, os fatores de risco apresentados pelo paciente,
a presença de comorbidades, de alergias e os efeitos colaterais da droga1. A Tabela 45.2 indica al-
gumas orientações quanto ao tratamento da PAC, condicionadas ao local onde o tratamento será
conduzido1,6.
344 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 45.1. Sistema de classificação dos pacientes, segundo o escore de gravidade do Pneumonia
Severity Index1 (PSI)
Características Escore
Idade em homens n
Idade em mulheres n-10
Procedente de asilos e/ou frequência cardíaca ≥ 125 bpm e/ouglicemia> 250 mg/L e/ou hematócrito < 30% e/ou PO2 < 60 mmHg
+10
e/ou derrame pleural e/ou insuficiência cardíaca congestiva (ICC) e/ou doença cerebrovascular e/ou doença renal
Temperatura < 35° ou > 40 °C +15
Alteração do estado mental e/ou FR > 30 irpm/min e/ou PAS < 90 mmHg e/ou doença hepática e/ou uremia > 65 mg/L +20
pH < 7,35 e/ou neoplasia +30

Autoria própria.

Tabela 45.2. Drogas de escolha, de acordo com o regime de tratamento e com as


características de cada paciente
Regime de tratamento Antimicrobianos indicados
Sem uso recente de Atb e/ou sem comorbidades e alergias
Amoxicilina com ou sem Clavulanato por 7 dias
Ambulatorial Outras opções: Azitromicina por 3-5 dias ou Claritromicina por 7 dias
Com uso recente de Atb e/ou comorbidades e alergias
Beta-lactâmico com macrolídeo por 5-7 dias
Enfermaria Cefalosporina de 3ª geração ou Ampicilina/Sulbactam com Macrolídeo por 7-10 dias
Cefalosporina de 3ª geração ou Ampicilina/Sulbactam com Macrolídeo por 7-10 dias
UTI
OU Cefalosporina de terceira geração + quinolona respiratória
Legionella sp: monoterapia com beta lactâmico
Casos especiais
PAC grave: macrolídeo associado a um beta lactâmico (endovenoso)
Adaptada de Corrêa et al, 2018 e de Metlay et al, 2019.

Algumas ponderações, como o risco de infecção por pseudomonas, por germes gram-negati-
vos, por bactérias atípicas e a resistência antimicrobiana devem ser ressaltadas, devido ao fato de
exigirem terapia alvo específica. Nesse ponto, avaliar o contato prévio com serviço de assistência à
saúde, com diálise e com casas de repouso é imperioso. Além disso, constituem também fatores de
risco o uso de antimicrobianos em até 90 dias antes do início dos sintomas, a imunossupressão, a
necessidade de dispositivos para alimentação enteral, o consumo de bloqueadores gástricos (ini-
bidores de bomba de prótons) e a colonização intestinal prévia por bactérias multirresistentes1,4.
A duração do tratamento é individualizada e varia de acordo com a gravidade da PAC.
Habitualmente, a pneumonia leve pode ser tratada por um tempo de 5 dias, enquanto a mode-
rada e a grave podem ser tratadas por 7 a 10 dias, ou até 14 dias, se a equipe julgar necessário1,4,5.

Complicações clínicas
De acordo com Kasperet et al, caso não exista melhora clínica em 24 a 72 horas após o início
da antibioticoterapia, é imprescindível que a equipe cogite possíveis complicações. Esses eventos
podem ser associados ao antimicrobiano (seleção e dose equivocadas ou não adesão ao tratamen-
P n e u m o n i a A d q u i ri d a n a C o m u n i d a d e 345

to), à bactéria (resistência bacteriana), ou ao paciente. Quanto ao paciente, as três mais impor-
tantes incluem derrame pleural, abscesso e infecções metastáticas, que podem atingir meninges,
valvas cardíacas, articulações e grupos musculares. Outras complicações comuns, não infecciosas,
são a insuficiência respiratória e a deterioração de quadros clínicos previamente existentes2,6.

Pontos-chave
• A pneumonia bacteriana está relacionada a alta morbimortalidade;
• O Streptococcus pneumoniae constitui o principal agente etiológico da PAC, em
todas as faixas etárias;
• Os principais sintomas da PAC incluem tosse produtiva, dispneia e dor pleurítica
ventilatório-dependente;
• O diagnóstico da PAC inclui a tríade: sintomatologia clínica, exame físico e
radiografia de tórax;
• O tratamento é instituído levando-se em conta os escores de avaliação de gravidade.

Leitura sugerida
1. Corrêa RA, Costa AN, Lundgrenc F, Michelim L, et al. Recomendações para o manejo da pneumonia adquirida na
comunidade 2018. J BrasPneumol. 2018;44(5):405-423.
2. Kasper, DL. et al. Harrison Medicina Interna, v.2. 20ª. Edição. Rio de Janeiro: McGrawHill, 2020.
3. Corrêa RA, Lundgren FLC, Pereira-Silva JL, Diretriz LFeS (GT. Diretrizes brasileiras para pneumonia adquirida na
comunidade em adultos imunocompetentes - 2009. J BrasPneumol. 2009;35(6):574-601.
4. Metlay JP, et al. Diagnosis and Treatment of Adults with Community-acquired Pneumonia: An Official Clinical
Practice Guideline of the American Thoracic Society and Infectious Diseases Society of America. Am J RespirCrit
Care Med Vol 200, Iss 7, pp e45–e67, Oct 1, 2019.
5. Hunton R, et al. Updated concepts in the diagnosis and management of community-acquired pneumonia. Journal
of the American Academy of Pas. 2019.
6. Azevedo LCP de, Taniguchi LU, Ladeira JP, Martins HS, Velasco IT. Medicina intensiva: abordagem prática. 2018.
Infecções do Trato Urinário 46
Comunitárias e Nosocomiais

Anna Zarife Feres Micheletti


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
As infecções do trato urinário (ITU) são caracterizadas pela invasão de patógenos ao apare-
lho urinário, que podem envolver todo o sistema, assim como podem gerar alterações anatômicas
e/ou funcionais. O acesso desses invasores ocorre, principalmente, via ascendente, sendo a via
hematogênica de raro acontecimento. A patologia acomete, preferencialmente, mulheres na idade
adulta, porém, quando afeta os homens, está relacionada aos extremos de idade, devido às altera-
ções anatômicas do trato urinário nas fases iniciais e terminais da vida.
Trata-se de uma das causas mais prevalentes dentre as infecções relacionadas à assistência à
saúde (IRAS), discutidas no Capítulo 48. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) es-
tima que as ITU’s sejam responsáveis por cerca de 35-45% das IRAS no Brasil. Porém, esses dados
são subestimados, visto que a notificação de ITU’s em unidades de terapia intensiva (UTI) se tor-
nou compulsória somente em 2016 e, ainda assim, sendo registrados apenas os casos associados
ao cateter vesical de demora (CVD). Nesse raciocínio, a doença está, provavelmente, associada a
índices ainda mais elevados na contemporaneidade.

Etiopatogenia
A etiologia pode ser dividida entre duas frentes, que se diferem principalmente pela epi-
demiologia e pelo tratamento: a ITU adquirida na comunidade e a ITU nosocomial. A primeira
consiste nas infecções adquiridas fora do ambiente hospitalar e não associadas à manipulação
do aparelho urinário. Tem como principal patógeno a bactéria Escherichia coli, responsável por
70-80% das infecções, seguida de outros agentes, dentre os quais se destacam o Staphylococcus sa-
prophyticus, o Protheus ssp, a Klebsiella ssp e o Enterococcus faecalis. Em contrapartida, a ITU no-
socomial é essencialmente associada à infecção relacionada ao uso do cateter vesical de demora
(CVD) em âmbito hospitalar, sendo essa uma das principais causas de IRAS. Em menor incidência,
pode ser desencadeada por procedimentos cirúrgicos que expõem e que manipulam o aparelho
urinário. A bactéria E. coli também consta como o principal patógeno invasor, seguida por outras
348 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

enterobactérias, por Pseudomonas e até por fungos, como a Candida ssp. Independentemente da
etiologia, seja a ITU adquirida na comunidade, seja a ITU nosocomial, ambas podem evoluir para
a ITU complicada, caracterizada pelo alto risco de agravamento e de falha terapêutica.
A infecção geralmente ocorre com a colonização e com a multiplicação de patógenos na re-
gião do meato urinário e das áreas periféricas a ele, que podem ascender progressivamente pelo
aparelho urinário com a capacidade de alcançar a bexiga e, inclusive, os rins. Se não for devida-
mente identificada e tratada, a infecção pode evoluir à sepse, tornando-se potencialmente fatal.
A infecção via hematogênica é rara, enquanto a linfática é observada apenas em modelos expe-
rimentais. Fatores como a virulência bacteriana, a exposição do meato urinário e a imunidade
do hospedeiro são peças fundamentais para o desenvolvimento e para a evolução da doença.
Indivíduos imunossuprimidos ou que se expõem a microrganismos multirresistentes cursam com
maior risco de infecção. Além disso, mecanismos que alteram o pH do aparelho urinário, como o
uso de espermicidas e de sabonetes íntimos, podem contribuir para a alteração da microbiota da
região, predispondo, então, o crescimento de patógenos. Outros agravantes incluem a obstrução
do trato urinário, a presença de corpos estranhos ou de variações anatômicas que contribuem
para o refluxo vesico-ureteral.

Apresentação clínica
A apresentação clínica está intimamente associada ao sítio anatômico de acometimento dos
patógenos, embora frequentemente existam pacientes assintomáticos. No caso da cistite, os sin-
tomas, quando presentes, são associados à afecção do trato urinário baixo, sendo eles a disúria, a
algúria, a urgência miccional, a polaciúria, a nictúria, a dor suprapúbica, bem como a presença de
urina turva e de hematúria macroscópica. A pielonefrite, por sua vez, envolve o trato urinário alto
e pode repercutir com além dos sintomas da cistite, febre alta, dor nos flancos, náuseas e vômitos.
Outras manifestações clínicas menos comuns podem estar presentes em situações específicas.
Exemplo disso são os pacientes com lesão da medula espinhal, que podem desenvolver maior
espasticidade da bexiga e da perna, além de disreflexia autonômica. Em portadores de esclerose
múltipla, por sua vez, a infecção pode repercutir com aumento da fadiga e com deterioração da
função neurológica.

Diagnóstico
O diagnóstico de ITU’s em mulheres adultas não integrantes dos grupos de risco, expostos
na Tabela 46.4, é essencialmente clínico, dependente de adequada anamnese e exame físico¹. Os
exames complementares, expostos na Tabela 46.1, são necessários apenas para auxiliar com o
diagnóstico na vigência de situações especiais, como em ITU’s complicadas e assintomáticas².
Na presença de ITU complicada, solicita-se urina rotina e urocultura como apoio à propedêutica.
Nesse caso, o hemograma, a dosagem sérica da proteína C-reativa (PCR) e a hemocultura não são
essenciais, mas auxiliam na definição prognóstica. Por outro lado, nas bacteriúrias assintomáti-
cas, o diagnóstico depende das seguintes alterações:
• Em mulheres, duas uroculturas, intervaladas pelo menos em 24 horas, devem evidenciar
a presença de > 100.000 UFC/mL;
• Em homens, uma urocultura deve evidenciar a presença de > 100.000 UFC/mL;
• Em portadores de CVD, uma urocultura deve evidenciar a presença > 100 UFC/mL².
I n f e c ç õ e s d o Tra t o U ri n á ri o C o m u n i t á ri a s e N o s o c o m i a i s 349

Tabela 46.1. Exames complementares na vigência de infecção do trato urinário


Propedêutica adicional
Analisa-se:
• Piúria: ≥ 10.000 leucócitos/mL ou ≥ 10 leucócitos/campo;
Urina rotina
• Hematúria;
(urina tipo 1/EAS)
• Fita positiva para leucócito esterase e/ou nitrito;
• A ausência de alguma dessas alterações, em apenas um estudo de urina rotina, não exclui o diagnóstico de ITU.
Analisa-se a presença de unidades de formação de colônias bacterianas, que devem estar aumentadas para
além do valor de referência em quadros positivos para ITU.
Urocultura (padrão-ouro) A urina deve ser colhida em jato médio e de maneira asséptica, antes da prescrição do antimicrobiano. O exame
é capaz de identificar a cepa bacteriana e, pelo teste de sensibilidade às drogas, indicar o tratamento mais
adequado.
A ultrassonografia, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética contribuem para o estudo do trato
urinário. Apesar do alto custo, a tomografia computadorizada tem maior sensibilidade e especificidade quando
comparada à ultrassonografia, sendo considerado o exame de imagem padrão-ouro para essa análise.
São exames necessários em ITU’s, que cursam com a suspeita de alterações anatômica e/ou funcionais em:
• Crianças e neonatos;
Imagem • Pacientes com infecções persistentes não resolvidas, após 48-72 horas de tratamento empírico;
• Mulheres com infecções de repetição: três ou mais em um período de um ano;
• Pacientes diabéticos com histórico de litíase urinária;
• Imunodeprimidos.
Além disso, podem ser úteis para afastar outras hipóteses diagnósticas, como nefrolitíase, hidronefrose, tumores
e abscessos abdominais.
Hemograma Pode existir leucocitose com desvio à esquerda.
Alterado em pacientes com infecções vigentes. Útil no monitoramento da evolução da doença e na verificação da
PCR
eficácia do antimicrobiano em curso.
Solicitada em ITU complicada para avaliar presença de bacteremia. Pode ser positiva em 25-60% dos pacientes
Hemocultura
internados.

PCR: proteína C-reativa. Dados de Bonkat G. et al², Gupta K. et al¹, Figueiredo E. et al³, Price. et al 4. Autoria própria.

Infecção do trato urinário adquirida na comunidade


As ITU’s adquiridas na comunidade estão, geralmente, associadas à patógenos menos re-
sistentes, portanto, respondem melhor ao emprego empírico de antimicrobianos. São infecções
comuns e, na maioria das vezes, com boa resolutividade em unidades básicas de saúde. Porém,
quando instaladas em indivíduos com baixa imunidade, quando associadas a outras patologias e,
também, quando não manejadas adequadamente, podem ocasionar complicações e exigir a ex-
tensão de cuidados em UTI. O tratamento consiste no uso de antimicrobianos, descritos na Tabela
46.2. Na propedêutica de ITU não complicada prescreve-se o antimicrobiano de forma empírica².
Nesse caso, se, após 48-72 horas de uso, não ocorrer alívio dos sintomas, o manejo deve ser guiado
por urocultura². Por outro lado, em infecções complicadas, solicita-se a urocultura, inicia-se o an-
timicrobiano empiricamente e, uma vez tendo acesso ao resultado de exame, analisa-se se a droga
administrada deve ser modificada². Em bacteriúrias assintomáticas, o tratamento somente é indi-
cado em condições especiais, como na gravidez e no pré-operatório de cirurgias urológicas com
implantes. Por fim, a pielonefrite não complicada pode, inicialmente, ser tratada em caráter am-
bulatorial com antimicrobianos via oral; contudo, existindo piora clínica do quadro, pode ser ne-
cessária a internação do paciente e a alteração da via do antimicrobiano para a endovenosa (EV)¹.
350 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 46.2. Tratamento das ITU’s comunitárias complicadas e não complicadas


Tipos de ITU Antimicrobiano Comentários
• Nitrofurantoína - 100 mg VO de 6/6 horas, por 5 dias;
Cistite comunitária Nitrofurantoína e sulfametoxazol +
• Sulfametoxazol + trimetoprima - 800 + 160 mg VO de 12/12 horas
não complicada em trimetoprima: uso não indicado para
por 3 dias;
imunocompetentes pacientes com insuficiência renal.
• Fosfomicina - 3 g VO em dose única.
Via oral:
• Cefuroxima - 500 mg VO de 12/12 horas por 5-10 dias;
• Ciprofloxacino - 500 mg VO de 12/12 horas por 5-7 dias;
• Norfloxacino - 400 mg VO de 12/12 horas por 5-7 dias;
• Levofloxacino - 750 mg VO de 24/24 horas por 5-7 dias; Em caso de hipersensibilidade e/
Pielonefrite comunitária • Sulfametoxazol + trimetoprima - 800 + 160 mg VO de 12/12 horas ou de resistência à cefalosporina
não complicada/complicada por 5-10 dias. e à fluoroquinolona: fazer uso de
Via parenteral: Sulfametoxazol + trimetoprima.
• Cefuroxima - 1,5 g EV de 8/8 horas, por 5-14 dias;
• Ciprofloxacino: 400 mg EV de 12/12 horas, por 5-14 dias.
Via intramuscular:
• Ceftriaxona - 1g IM de 24/24 horas por 10 dias
Cistite:
Em caso de resistência por
• Fluconazol - 200 mg VO, de 24/24 horas, por 14 dias
ITU fúngica fluconazol, preconiza-se o uso de
Pielonefrite:
Anfotericina B.
• Fluconazol - 200-400 mg VO, de 24/24 horas, por 14 dias

ITU: infecção do trato urinário; VO: via oral; EV: endovenosa; SF: soro fisiológico. Dados de Bonkat G. et al², Gupta K. et al1, Pappas G. et al5.
Autoria própria.

Infecção do trato urinário nosocomial


A ITU nosocomial é responsável por 20% das infecções em âmbito hospitalar, instalando-se,
principalmente, em pacientes que fazem uso de cateter vesical de demora (CVD). Isso ocorre pelo
fato de o dispositivo impedir a micção e, também, por agir como corpo estranho, o que favorece
a colonização e a multiplicação de patógenos na superfície do dispositivo. O diagnóstico consiste
na identificação de sintomas característicos da ITU ou, inclusive, inespecíficos, como apenas a
presença de febre, somada à urocultura positiva, cujo material tenha sido colhido antes da admi-
nistração do antimicrobiano². É necessária a presença de ≥ 100 UFC/mL, seja em uma amostra
colhida diretamente do cateter, seja em uma amostra de jato médio do paciente, cujo CVD te-
nha sido removido nas últimas 48 horas². Visto que essa condição está associada a altas taxas de
mortalidade quando associada ao cateter e que se constitui como evento adverso modificável, é
importante evitar o cateterismo desnecessário, bem como empregar método estéril na inserção
da sonda e encurtar o tempo de uso do dispositivo². O tratamento está indicado apenas para os
casos sintomáticos, com exceção das grávidas e do pré-operatório de cirurgias urológicas com
implantes, em que o manejo é preconizado mesmo que não existam sintomas. Os antimicrobia-
nos devem ser prescritos, preferencialmente, após coleta de material para estudo laboratorial².
Ressalta-se, que são empregados esquemas terapêuticos alternativos para patógenos multirresis-
tentes, de acordo com a epidemiologia da instituição¹, conforme descrito na Tabela 46.3. O tempo
de tratamento depende da resposta do organismo à terapia, sendo adequado o uso de antibiótico
por pelo menos 7 dias para pacientes que cursam com resolução rápida dos sintomas e o emprego
mais prolongado para aqueles que evoluem com resposta retardada².
I n f e c ç õ e s d o Tra t o U ri n á ri o C o m u n i t á ri a s e N o s o c o m i a i s 351

Tabela 46.3. Tratamento preconizado para as ITU’s nosocomiais


Antimicrobianos
Geralmente, inicia-se o tratamento empiricamente com cefalosporina, com aminoglicosídeo ou com fluoroquinolona respeitando-se os padrões
locais de suscetibilidade. Uma vez disponibilizado o resultado da urocultura, as drogas podem ser ajustadas, conforme necessário. Em
casos de infecções por bactérias multirresistentes, como Pseudomonas aeruginosas, Acinetobacter sp, enterobactérias produtoras de ESBL
(resistentes às cefalosporinas de terceira geração) e carbapenemases, indica-se, como primeira linha, o emprego de aminoglicosídeo ou de
ciprofloxacino.
Bactérias gram-negativas (predominantes):
• Cefepime – 1 g EV de 12/12 horas. Se Pseudomonas, de 8/8 horas;
• Ceftazidima – 1 g EV de 8/8 horas;
• Piperacilina + Tazobactam – 3,75 g EV de 8/8 horas. Se Pseudomonas, usar 4,5 g;
• Meropenem – 500 mg EV de 8/8 horas;
• Imipenem + Cilastatina – 500 mg EV de 8/8 horas;
• Aztreonam – 500 mg EV de 8/8 horas;
• Ciprofloxacino – 400 mg EV ou 500 mg VO de 12/12 horas;
• Levofloxacino – 500-750 mg VO de 24/24 horas (pacientes sem gravidade);
• Gentamicina – 5-7 mg/ kg EV de 24/24 horas;
• Ceftriaxona – 1 g EV de 24/24 horas (pacientes sem gravidade);
• Meropenem – 500 mg EV de 8/8 horas;
• Imipenem + Cilastatina – 500 mg EV de 8/8 horas.
Bactérias gram-positivas:
• Vancomicina – 15 mg/kg EV de 12/12 horas.
Se não responder com Vancomicina:
• Daptomicina – 6 mg/kg EV de 14/14 horas;
• Linezolida – 600 mg EV/VO de 12/12 horas.

ITU: infecção do trato urinário; EV: endovenosa; VO: via oral; ESBL: beta lactamase de espectro estendido (do inglês, extended spectrum beta-lac-
tamase). Dados de Saint S. et al, Bonkat G. et al², Gupta K. et al¹, Azevedo L. et al. Autoria própria.

Critérios de gravidade
Referentes a grande parcela das internações gerais, as ITU’s complicadas são caracterizadas
por infecções que cursam com alto risco de agravamento e de falha terapêutica, independente-
mente de suas etiologias, sejam comunitárias, sejam nosocomiais. O seu desenvolvimento é de-
masiadamente associado a grupos de risco, descritos na Tabela 46.4, que envolvem o gênero, a
presença de comorbidades, a resistência microbiana, a imunossupressão e o foco infeccioso man-
tido. Considerando-se que esse cenário evolui com até 10% de mortalidade, é imprescindível que
os pacientes enquadrados nessa categoria recebam atenção especial, cujo manejo deve ser indi-
vidualmente ponderado. Sinais de alerta, como a presença de febre alta persistente, de taquicar-
dia, de leucocitose, de dispneia, de taquipneia, de alteração do nível de consciência e de pressão
arterial sistólica reduzida são indicativos de atenção especial quanto à sepse, sendo recomendada
maior cautela da equipe assistencial. Esses pacientes podem, ainda, intercorrer com extremidades
frias e com cianose, evoluindo com disfunção circulatória, metabólica e celular, cujo diagnóstico é
de choque séptico: um quadro que aumenta exponencialmente os índices de mortalidade. Nessas
situações, além do diagnóstico precoce, o tratamento antimicrobiano e a restauração da perfusão
orgânica são essenciais, assim como o controle do foco infeccioso², a exemplo do que foi des-
tacado no Capítulo 43. O tratamento é caracterizado pelo emprego do antimicrobiano, baseado
em padrões locais de suscetibilidade, como evidenciado nas Tabelas 46.2 e 46.3, sendo modifica-
do segundo o resultado de urocultura, o qual também é fundamental para o diagnóstico desses
quadros¹.
352 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Os abcessos perinefréticos, por sua vez, são complicações raras e estão presentes, principal-
mente, em pacientes diabéticos, imunodeprimidos ou com uropatia obstrutiva. Esses abcessos
podem intercorrer com peritonite, com perfuração de alças intestinais ou com abscessos subfrê-
nicos, pulmonares ou do músculo psoas. Em relação ao manejo, é necessário associar oxacilina
ao esquema terapêutico empírico já estabelecido, além de realizar a drenagem da lesão7. Para a
pesquisa de foco infeccioso em pacientes com suspeita de abscessos ou em pacientes com obstru-
ções anatômicas, a tomografia computadorizada consiste no exame de imagem com maior espe-
cificidade, podendo ser substituído pela ultrassonografia, em casos de indisponibilidade, devido
ao alto custo7.
Ainda menos frequente e com elevada morbimortalidade, a pielonefrite enfisematosa nor-
malmente está associada à resposta inflamatória sistêmica exacerbada. A tomografia computado-
rizada constitui no método mais sensível para o diagnóstico, ao passo em que a abordagem inclui,
além das medidas preconizadas para o controle da sepse e do choque séptico, a drenagem guiada
por ultrassonografia7. Em casos mais graves ou na evidência de falha da drenagem, a nefrectomia
pode ser o recurso necessário7.

Tabela 46.4. Grupos de risco para o desenvolvimento de ITU complicada


• Sexo masculino; • ITU’s recorrentes;
• Presença de cateteres urinários; • Imunossuprimidos;
• Comorbidades, como diabetes mellitus e insuficiência renal; • Gestação;
• Infecções por patógenos multirresistentes; • Transplantados renais;
• Presença de alterações anatômicas e/ou funcionais do • Pós-menopausa;
aparelho urinário. • Foco infeccioso mantido.
ITU: infecção do trato urinário. Dados de Bonkat G. et al2, Figueiredo E. et al³. Autoria própria.

Pontos-chave
• A ITU é uma das causas mais prevalentes dentre as infecções relacionadas à
assistência à saúde;
• Quando a ITU é não complicada, seu diagnóstico é essencialmente clínico. Por
outro lado, na abordagem de ITU’s complicadas, os estudos de urina rotina e de
urocultura são preconizados;
• O tratamento da ITU consiste, principalmente, no emprego de antimicrobianos;
• O manejo das ITU’s nosocomiais é caracterizado pelo emprego de antimicrobianos,
baseando-se em padrões locais de suscetibilidade, e elas são causadas, geralmente,
por bactérias multirresistentes;
• ITU’s comunitárias e nosocomiais podem evoluir com quadro de sepse e de choque
séptico, cenários, estes, associados a altas taxas de mortalidade.
I n f e c ç õ e s d o Tra t o U ri n á ri o C o m u n i t á ri a s e N o s o c o m i a i s 353

Leitura sugerida
1. Gupta K, Grigoryan L, Trautner B. Urinary tract infection. Annals of internal medicine, v. 167, n. 7, p. ITC49-ITC64,
2017.
2. Bonkat G, et al. EAU guidelines on urological infections. European Association of Urology, p. 22-26, 2017.
3. Figueiredo E, et al. Manual de clínica médica: do diagnóstico ao tratamento. Edição: 2019. Salvador: Sanar, 2019.
4. Price TK, et al. The clinical urine culture: enhanced techniques improve detection of clinically relevant microorga-
nisms. Journal of clinical microbiology, v. 54, n. 5, p. 1216-1222, 2016.
5. Pappas PG, et al. Clinical practice guideline for the management of candidiasis: 2016 update by the Infectious
Diseases Society of America. Clinical Infectious Diseases, v. 62, n. 4, p. e1-e50, 2016.
6. Saint S, et al. A program to prevent catheter-associated urinary tract infection in acute care. New England Journal
of Medicine, v. 374, n. 22, p. 2111-2119, 2016.
7. Azevedo LCP, et al. Medicina Intensiva: abordagem prática. 2018.
8. Navarro DF, et al. Point-of-care tests for urinary tract infections: protocol for a systematic review and meta-analysis
of diagnostic test accuracy. BMJ Open, v. 10, n. 6, p. e033424, 2020.
9. Nicolle LE, et al. Clinical practice guideline for the management of asymptomatic bacteriuria: 2019 update by the
Infectious Diseases Society of America. Clinical Infectious Diseases, v. 68, n. 10, p. e83-e110, 2019.
10. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Boletim segurança do paciente e qualidade em serviços de saúde n°
16. Avaliação dos indicadores nacionais das infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS) e resistência
microbiana do ano de 2016. Anvisa, 2019.
11. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Critérios diagnósticos de infecções relacionadas à assistência à saúde.
Anvisa, 2017.
12. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Infeções do trato urinário e outras infecções do sistema urinário: medi-
das de prevenção de infecções relacionadas à assistência à saúde. Anvisa, 2016.
Infecções Fúngicas na UTI 47

João Pedro Pereira


Matheus Victor Pereira
Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
Infecções são entidades frequentes nas unidades de terapia intensivas (UTI’s) e associam-se
a elevada morbimortalidade, determinando custos assistenciais e econômicos elevados. As infec-
ções por fungos, especificamente, são mais prevalentes nas UTI’s do que nas enfermarias médicas
gerais1. Os fatores de risco determinantes para essa maior prevalência são a longa permanência do
paciente na unidade, a presença de comorbidades, principalmente as que determinam imunos-
supressão, como doenças malignas e síndrome de imunodeficiência adquirida, além das cirurgias
abdominais complexas, do consumo de antimicrobianos de largo espectro e dos procedimentos
invasivos, principalmente a instalação de cateteres. Embora diferentes agentes oportunistas pos-
sam instalar a infecção, como o Aspergillus spp, o Fusarium spp, o Mucorale sspp e o Cryptococcus
neoformans, as quais ocorrem em populações gravemente doentes, por exemplo, receptores de
transplante hepático, transplantados de células-tronco hematopoiéticas e pacientes com síndro-
me da imunodeficiência adquirida (AIDS), este capítulo abordará, principalmente, a candidemia
invasiva, entidade responsável por mais de 90% das infecções fúngicas invasivas2,3. A incidência de
cada espécie de cândida difere, consideravelmente, entre as instituições hospitalares, contudo, a
C. albicans é, geralmente, o principal patógeno fúngico na UTI, a qual é responsável por cerca de
45% dos episódios de candidemia, seguido pela C. glabrata, C. parapsilosis, C. tropicalis, C. krusei,
C. guilliermondiie e C. lusitaniae. Devido à maior prevalência, a C. albicans, em pacientes não neu-
tropênicos, será o alvo de discussão deste capítulo.

Etiopatogênese
Vale destacar, em primeiro lugar, que a C. albicans compõe, fisiologicamente, a flora bacte-
riana do trato gastrointestinal. Por esse motivo, infecções causadas pelo agente podem se instalar
endogenamente, seja da mucosa gastrointestinal, da pele e do trato urinário. A candidíase invasiva
(CI) ocorre, então, quando alterações na flora endógena levam ao crescimento excessivo de levedu-
ras que, na presença de comprometimento da pele ou da mucosa gastrointestinal, deslocam-se de
356 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

seu ambiente comensal para a corrente sanguínea. Ademais, a C. albicans pode ser instalada por
fontes exógenas, principalmente no ambiente da terapia intensiva, a partir de infusões contami-
nadas, de dispositivos biomédicos e pelo contato das mãos infectadas dos profissionais de saúde.

Manifestações clínicas
As infecções provocadas pelas espécies de cândida causam um espectro diverso de doen-
ças clínicas, que variam de infecções superficiais e de mucosas a doenças invasivas, associadas à
candidemia e ao envolvimento generalizados dos órgãos. Observa-se que os dados clínicos mais
prevalentes dessa patologia são idênticos aos das infecções bacterianas, cuja manifestação os-
cila entre a instalação de febre mínima a um quadro de choque séptico, discutido no Capítulo
43. Contudo, a disseminação fúngica hematogênica para as vísceras, como olhos, rins, válvulas
cardíacas e cérebro podem fornecer pistas clínicas ao exame físico, dentre as quais se incluem
as lesões oculares características (coriorretinite com ou sem vitrite), as lesões na pele e, menos
comumente, os abscessos musculares. As lesões cutâneas, especificamente, apresentam-se como
aglomerados de pústulas indolores em uma base eritematosa, e podem ocorrer em qualquer área
do corpo. Pústulas, essas, variáveis entre de tamanho diminuto a de tamanhos maiores, com vá-
rios centímetros de diâmetro e pontualmente necróticas no centro. Vale ressaltar que, em pacien-
tes gravemente neutropênicos, as lesões podem ser maculares, e não pustulares. Além disso, os
pacientes podem descrever, com menor frequência, dor em um grupo muscular discreto, causada
por microabcessos do fungo, além de apresentar sinais flogísticos na área afetada.

Diagnóstico
O diagnóstico de infecção fúngica exige do intensivista alto índice de suspeição, uma vez que
a definição diagnóstica é um grande desafio. Nesse sentido, para aumentar a probabilidade do
diagnóstico, a melhor abordagem terapêutica é baseada na presença dos fatores de risco.4 Uma
pesquisa de coorte realizada por regressão logística multivariada, na Austrália, que incluiu 6.685
pacientes, identificou 10 determinantes independentes para a candidíase, incluindo fatores bem
conhecidos, dentre os quais se incluem4:
• Prévio procedimento cirúrgico gastrointestinal/hepatobiliar de emergência, com valor
p = 0,01 e com IC 2,06 (1,17-3,63);
• Cateter venoso central não revestido, com valor p = 0,009 e com IC 1,76 (1,15-2,69);
• Instituição de nutrição parenteral total, com valor p = 0,01 e com IC 2,24 (1,4-3,58);
• Fonte de admissão na UTI da sala de operações, do pronto-socorro ou de outro hospital,
com valor p = 0,015 e com IC 1,96 (1,14-3,33); v) recebimento, em altas doses, de
corticosteroide (dose ≥ 50 mg equivalente a prednisolona), com valor p = 0,1 e com IC
1,43 (0,93-2,18); vi) transfusão de sangue, com valor p = 0,007 e com IC 1,83 (1,18-2,83);
vii) uso de carbapenem ou de tigeciclina, com valor p< 0,0001 e com IC 2,33 (1,47-3,69);
• Recebimento de cefalosporina de terceira ou quarta geração, com valor p = 0,001 e com
IC 1,94 (1,29-2,92);
• Cultura prévia de urina positiva para Candida spp, com valor p < 0,0001 e com IC 2,4
(1,58-3,63);
• Cultura positiva prévia de faringe para Candida spp, com valor p = 0,004 e com IC 2,22
(1,29–3,81)4.
I n f e c ç õ e s F ú n g i c a s n a U T I 357

Por meio desses fatores de risco, pode-se estratificar os pacientes entre baixo (≤ 2) e alto risco
(≥ 6) para o desenvolvimento de CI, sendo a conduta terapêutica fundamentada nessas notas4.
Dessa forma, os pacientes de alto risco poderiam se beneficiar do tratamento empírico, em vir-
tude de estarem mais propensos a desenvolverem a CI. Vale enfatizar, todavia, que a avaliação
dos fatores de risco apenas auxilia no diagnóstico e acelera a terapêutica, não servindo, portanto,
como diagnóstico definitivo dessa patologia. Desse modo, são necessários outros exames para
a confirmação da hipótese diagnóstica, sendo os principais deles as hemoculturas e outros tes-
tes não baseados em culturas. As hemoculturas (HC) nas CI, apesar de resultarem negativas em
um terço dos casos, devem ser coletadas em todos pacientes5. Os outros métodos clássicos, como
microscopia direta, histopatologia e cultura do sítio, têm uma sensibilidade limitada para detec-
tar CI e sua utilidade depende da possibilidade de obter amostras de tecidos profundos que, em
muitos casos, não podem ser coletadas, devido à condição do paciente. Entretanto, se possível,
essas abordagens devem ser consideradas como investigações essenciais. Vale ressaltar, porém,
que esses exames apresentam limitações referente ao trabalho técnico-especializado, ao tempo de
resultado e ao tamanho da amostra, afinal, algumas espécies levam vários dias (5 a 14 dias) para
crescer em cultura, amostras pequenas são propensas a erros de amostragem e a microscopia não
confere, então, um resultado definitivo5. Partindo do pressuposto de que a candidemia é definida
como a presença de qualquer espécie do gênero candida no sangue, as HC são imprescindíveis
para o diagnóstico5. Portanto, em casos de amostras negativas, mas com suspeita, a coleta deve
ser repetida. Nesse propósito, para a amostragem sanguínea, devem ser seguidas etapas que ga-
rantam o isolamento ideal. Por exemplo, o número de HC recomendado em uma única sessão é
de 3 (entre 2 e 4), com um volume total variando de acordo com a idade e com o peso do paciente
(40-60 mL para adultos, 2-4 mL para crianças menores de 2 kg, 6 mL entre 2 e 12 kg e 20 mL entre
12 e 36 kg)5. A frequência de coleta para HC recomendada é diária quando houver suspeita de can-
didemia e o período de incubação deve ser de, pelo menos, 5 dias5. Quando essas recomendações
são seguidas, a sensibilidade do HC para detectar candida é de 50 a 75%, embora taxas de sensibi-
lidade mais baixas em pacientes neutropênicos ou submetidos a tratamento antifúngico tenham
sido relatadas5.
Há, também, formas alternativas como métodos diagnósticos, dentre os quais se elencam
os testes baseados em reação em cadeia da polimerase (PCR), a tecnologia baseada em resso-
nância magnética miniaturizada e os testes sorológicos, conforme exposto na Tabela 47.16. Os
testes baseados em PCR, em primeiro lugar, são uma abordagem alternativa para a detecção
rápida de leveduras. Os estudos por metanálises sugerem que a maioria tem excelente desem-
penho, permitindo a detecção direta de espécies de candida no sangue6. No entanto, a falta de
padronização continua sendo uma grande limitação do método. Além disso, o papel do teste
direto por PCR de amostras de soro ou de sangue, em pacientes sem candidemia, requer uma
investigação mais aprofundada6. A tecnologia baseada em ressonância magnética miniaturiza-
da, por sua vez, foi aprovada pela FDA (Food and Drug Administration) e combina a tecnologia
de PCR com a hibridação baseada em nanopartículas. Quando comparadas às hemoculturas,
a sensibilidade e a especificidade dessa técnica foram de quase 100% para todas as espécies
testadas.6 Porém, ainda não foi investigada a capacidade dessa tecnologia em detectar espécies
de candida em pacientes falsos-negativos para hemocultura (incluindo CI em profundidade),
o que pode reduzir a sensibilidade na detecção. Ademais, vários biomarcadores estão disponí-
veis comercialmente para a detecção de fungos no soro. Eles incluem, por exemplo, o antígeno
manano (Mn-Ag), o anticorpo anti-manano (Mn-Ab), o 1,3-beta-d-glucano (BDG) e o anticorpo
do tubo germinativo da espécie Candida (CAGTA), todos propostos para a detecção precoce de
CI6. Esses testes têm sido utilizados para orientar estratégias terapêuticas preventivas, especial-
358 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

mente em pacientes com suspeita de CI profunda, mas sem candidemia6. O biomarcador mais
utilizado para a detecção de fungos em pacientes críticos é o teste BDG, que facilita a identifi-
cação dos pacientes que cursam com maior risco de infecção invasiva e que pode subsidiar a
decisão de iniciar a terapia antifúngica6. O desempenho da antigenemia BDG é superior ao dos
modelos de predição de risco e ao dos índices de colonização, para predizer a CI negativa em
hemocultura6. Ademais, o teste BDG mostra excelente valor preditivo negativo e sua utilidade é
otimizada quando empregado em combinação com modelos de previsão de risco ou com outros
biomarcadores de fungos (Mn-Ag, Mn-Ab ou CAGTA), o que permite evitar ou descontinuar a
terapia antifúngica em uma proporção significativa de pacientes6.

Tabela 47.1. Características de diferentes variáveis úteis para o diagnóstico laboratorial de candidíase
invasiva
SENS ESP VPP Notas Evidências
A baixa sensibilidade para o diagnóstico de CI deve-se,
Recomendação fraca, baixa
Manano-AG 43,3 67,3 88,7 possivelmente, devido à capacidade limitada de produzir
qualidade da evidência
anticorpos específicos na presença de imunossupressão
A baixa sensibilidade para o diagnóstico de CI deve-se,
Recomendação fraca, baixa
Manano-AB 25,8 89,0 88,6 possivelmente, devido à capacidade limitada de produzir
qualidade da evidência
anticorpos específicos na presença de imunossupressão
A especificidade desse teste pode ser aumentada ainda
mais com perda moderada de sensibilidade, usando Recomendação fraca,
β-D-Glucano 76,7% 57,2 94,1% valores de corte mais altos (200 pg/mL ou mais, em vez de qualidade moderada de
80 pg/mL) ou exigindo dois testes positivos consecutivos evidência
para um diagnóstico definitivo
A falta de padronização e validação em larga escala Recomendação fraca, baixa
C-PCR 84,0 32,9 87,5
impede seu uso clínico sem testes complementares qualidade da evidência
BDG é usado em combinação com o CAGTA, seu Recomendação fraca, baixa
CAGTA 53,3% 64,3% 90,1
desempenho diagnóstico aumenta notavelmente qualidade da evidência
A especificidade e sensibilidade são obtidas pela
comparação com a hemocultura. A falta de padronização Recomendação fraca, baixa
T2MR 100% 97,8%
e validação em larga escala impede seu uso clínico sem qualidade da evidência
testes complementares

CAGTA: Anticorpo do tubo germinativo da espécie Candida; CI: Candidíase invasiva; Esp: Especificidade; Manano-AB: Antígeno manano;
Manano-AG: Anticorpo manano; PCR: Reação da cadeia de polimerase; T2MR: T2 Ressonância magnética; Sens: Sensibilidade; VPP: Valor
preditivo positivo. Dados de León C et al9, Beyda ND et al10, Martin-Loeches I et al6. Autoria própria.

Diante disso, observa-se que os testes não baseados em cultura apresentam limitação refe-
rente à identificação e à extensão dos focos infecciosos na CI7. Dessa forma, a realização de um
exame de imagem, como tomografia computadorizada (TC), ressonância magnética (RM), ou
ultrassonografia (USG), pode ser útil para delimitar a área acometida7. Entretanto, vale ressaltar
que os achados de imagem não são específicos para infecções por Candida spp, sendo úteis,
apenas, para a definição da extensão da doença, com exceção da candidíase hepatoesplênica7,8.
Na candidíase hepatoesplênica, a TC ou a RM podem evidenciar múltiplas lesões redondas e
bem demarcadas no fígado, no baço e, por vezes, nos rins, as quais, quando relacionadas ao
cenário clínico, sugerem o diagnóstico de candidíase8. A tomografia computadorizada e a res-
sonância magnética parecem ser superiores à ultrassonografia para a identificação de lesões
relacionadas a essa síndrome8. Porém, as principais desvantagens da ressonância magnética são
I n f e c ç õ e s F ú n g i c a s n a U T I 359

seu elevado custo e sua reduzida disponibilidade8. Nesse sentido, a TC bifásica com contraste,
ou a ultrassonografia, continuam sendo modalidades de imagem credíveis para pacientes com
suspeita de candidíase hepatoesplênica8.

Tratamento
A terapia antifúngica retardada foi associada ao aumento da mortalidade em CI, em parti-
cular quando iniciado > 12-24 horas após a obtenção da cultura de sangue9. No entanto, o início
da terapia direcionada à cultura, dentro da janela de tempo recomendada, é difícil na prática
porque os sistemas de hemocultura, geralmente, sinalizam positivo para leveduras apenas de-
pois de decorridas 48 a 72 horas de incubação9. Estratégias de intervenção antifúngica precoce,
incluindo abordagens profiláticas, preventivas ou empíricas, têm sido, portanto, cada vez mais
preconizadas9. No entanto, a adequada eficiência dessas abordagens requer que a incidência
da entidade na população seja de, pelo menos, 10%, uma vez que a profilaxia generalizada está
associada a um aumento na taxa de colonização e, potencialmente, na de infecção por fungos
menos resistentes4-6,9. Como a incidência subjacente de CI, para a maioria das populações de
unidades de terapia intensiva não selecionadas, é de 1-2%, são necessários métodos clínicos e/
ou microbiológicos para prever aqueles que cursam com risco aumentado. Nesse sentido, os
pacientes estratificados, por meio dos fatores de risco descritos anteriormente, como de baixo
risco (escores de predição ≤ 2), não se submeterão à profilaxia antifúngica4,6,9. Por outro lado,
aqueles que apresentam um limiar alto (≥ 6) devem ser tratados com profilaxia antifúngica4,6,9.
Por sua vez, o grupo que pontua entre 3 e 5 tem a indicação incerta, motivo pelo qual devem ser
submetidos a testes adicionais, como β-D-glucana ou amplificação de ácidos nucleicos, e/ou ao
início de terapia antifúngica empírica4,6,9, conforme esquematizado na Figura 47.1 e exposto na
Tabela 47.2.

Sepse abdominal

Não iniciar Baixo risco (≤ 2) Análise do fator de risco para Alto risco (≥ 6) Iniciar
antifúngicos Candida spp. antifúngicos

Médio risco (3-5)

Aplicar medidas alternativas; uso do BDG

BDG > 250 pg/mL ou alteração nos outros biomarcadores

Iniciar antifúngicos

Figura 47.1. Manejo do paciente com suspeita de Candidíase Invasiva.


BDG: β-D-Glucano. Dados de Martin-Loeches I et al4 e de Formanek PF et al6. Autoria própria.
360 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 47.2. Tratamento para C. Albicans em pacientes não neutropênicos


Fármaco Posologia Administração Observações Evidência Alterações adversas
A transição de uma
equinocandina para o
Recomendação Vômitos, eosinofilia,
Equinocandina DI 70 mg fluconazol (geralmente em
Via endovenosa forte; evidência elevação de enzimas
(caspofunina) Ds 50 mg 5 a 7 dias) é recomendada
de alta qualidade hepáticas e tromboflebite
para pacientes clinicamente
estáveis.
Não deve ser dado se há Recomendação
DI 800 mg Via endovenosa
Fluconazol possibilidade de resistência forte; evidência Hepatotoxicidade
Ds 400 mg ou oral
ao fluconazol de alta qualidade
Alternativa, se houver
intolerância, disponibilidade Hepatotoxicidade,
limitada ou resistência a Nefrotoxicidade
Anfotericina outros agentes antifúngicos. Recomendação Anormalidades
3-5 mg/kg por
B (formulação Via endovenosa É recomendada após 5 a forte; evidência eletrolíticas -
dia
lipídica) 7 dias entre os pacientes de alta qualidade hipocalemia,
com isolados suscetíveis hipomagnesemia e
ao fluconazol, clinicamente acidose hiperclorêmica.
estáveis
Toxicidade cardíaca -
DI: 400 mg duas Foram relatados casos
Recomendação
vezes ao dia por de prolongamento do
Via oral e Pouca vantagem sobre o forte; evidência
Voriconazol 2 dias intervalo QT, torsades de
endovenosa fluconazol de qualidade
Ds: 200 mg duas pointes, parada cardíaca
moderada
vezes ao dia e morte súbita;
Periostite.

DI: dose inicial; Ds: dose seguinte. Dados de Pappas PG et al11, Martinez R et al12. Autoria própria.

Complicações clínicas
As complicações da CI estão associadas a quadros de candidemia com invasão decidual dis-
seminada dos órgãos, o que pode resultar em variados quadros clínicos, como endoftalmites, me-
ningites, endocardite, osteomielites, além de sepse. A sepse é definida como resposta desregulada
do organismo a uma infecção com disfunção dos órgãos alvos (este tema é discutido com maior
detalhe no Capítulo 43). Tais complicações são altamente letais ao paciente, por isso são impres-
cindíveis diagnóstico e tratamento precoces.
I n f e c ç õ e s F ú n g i c a s n a U T I 361

Pontos-chave
• C. albicans é o principal patógeno fúngico na UTI;
• A infecção por C.albicans é contraída de forma endógena e exógena;
• A forte suspeição clínica e o levantamento dos fatores de risco são fundamentais
para o adequado diagnóstico;
• As hemoculturas nas CI, apesar de resultarem negativas em até um terço dos casos,
devem ser coletadas em todos pacientes;
• Formas alternativas de diagnóstico para candidemia podem agilizar o tratamento;
• Terapia antifúngica retardada está associada ao aumento da mortalidade em CI;
• A presença de fatores de risco pode influenciar o início da profilaxia antifúngica.

Leitura sugerida
1. Vincent JL, Rello J, Marshall J, Silva E, Anzueto A, Martin CD, et al. International study of the prevalence and
outcomes of infection in intensive care units.JAMA. 2009; 302 (21): 2323-2329.
2. Hidron AI, Edwards JR, Patel J, Horan TC, Sievert DM, Pollock DA, et al. NHSN annual update: antimicrobial-
-resistant pathogens associated with healthcare-associated infections: annual summary of data reported to the
National Healthcare Safety Network at the Centers for Disease Control and Prevention, 2006-2007. Infect Control
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3. Horn DL, Neofytos D, Anaissie EJ, Fishman JA, Steinbach WJ, Olyaei AJ, et al. Epidemiology and outcomes
of candidemia in 2019 patients: data from the prospective antifungal therapy alliance registry. Clin Infect Dis.
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4. Playford EG, Lipman J, Jones M, Lau AF, Kabir M, Marriott DJ, et al. Problematic Dichotomization of Risk for
Intensive Care Unit (ICU)–Acquired Invasive Candidiasis: Results Using a Risk-Predictive Model to Categorize
3 Levels of Risk From a Multicenter Prospective Cohort of Australian ICU Patients, Clinical Infectious Diseases,
Volume 63, Issue 11, 1 December 2016, Pages 1463-1469.
5. Cornely OA, Bassetti M, Calandra T, Garbino J, Kullberg BJ, Lortholary O, et al . ESCMID* guideline for the
diagnosis and management of Candida diseases 2012: non-neutropenic adult patients. ClinMicrobiolInfect.. 2012
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7. Morad HOJ, Wild AM, Wiehr S, Davies G, Maurer A, Pichler BJ, et al. Pre-clinical Imaging of Invasive Candidiasis
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8. Katragkou A, Fisher BT, Groll AH, Roilides E, Walsh TJ, Diagnostic Imaging and Invasive Fungal Diseases in
Children, Journal of the Pediatric Infectious Diseases Society, Volume 6, Issue suppl_1, September 2017, Pages
S22-S31.
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DNA detection for the diagnosis of invasive candidiasis in ICU patients with severe abdominal conditions. Crit Care
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10. Beyda ND, Alam MJ, Garey KW. Comparison of the T2Dx instrument with T2Candida assay and automated blood
culture in the detection of Candida species using seeded blood samples. DiagnMicrobiolInfectDis. Dec;77(4):324-
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13. Fink MP, Vincent JL, Abraham E, Moore FA, Kochanek PM editors; Textbook of critical care. 7th ed. Philadelphia.
Elsevier, [2017].
Infecções Relacionadas à 48
Assistência à Saúde

Maiara Peixoto Paiva


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
A nomeação “infecções relacionadas à assistência à saúde” (IRAS) tem sido proposta em
substituição ao termo “infecções hospitalares”, sugerindo um conceito mais amplo. São definidas
como aquelas infecções adquiridas durante o processo de cuidado em um hospital ou em outra
unidade prestadora de assistência à saúde, e que, portanto, não estavam presentes ou em incu-
bação na admissão do paciente1. A Organização Mundial da Saúde (OMS) destacou as IRAS como
uma das maiores responsáveis pelo aumento da morbimortalidade entre os pacientes hospitaliza-
dos. A cada 100 pacientes internados, estima-se que pelo menos sete deles, em países desenvolvi-
dos e que dez, em países em desenvolvimento, adquirirão IRAS2.
Clinicamente, quatro síndromes são responsáveis pela maior parte das IRAS e serão os alvos
de estudo deste capítulo: a infecção de sítio cirúrgico (ISC), a infecção da corrente sanguínea rela-
cionada a cateter vascular central (ICSRC), a pneumonia relacionada à assistência à saúde (PRAS)
e a infecção do trato urinário associada a cateter vesical de demora.

Infecção de sítio cirúrgico (ISC)


A ISC é definida como aquela infecção associada a procedimentos cirúrgicos, com ou sem
colocação de implantes, seja entre pacientes internados, seja entre pacientes ambulatoriais, e são
classificadas conforme os planos anatômicos acometidos. A gênese da infecção se dá pela inocu-
lação de bactérias da pele do paciente durante a incisão cirúrgica. Assim, os cocos gram-positivos,
geralmente, são os patógenos mais envolvidos3.

Diagnóstico
Os critérios diagnósticos são baseados na presença de sinais e de sintomas, bem como na pro-
fundidade da infecção. A ISC é dividida em três categorias, conforme sua localização anatômica3:
364 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

1. ISC incisional superficial, que acomete pele e tecido subcutâneo;


2. ISC incisional profunda, que acomete fáscia e músculo;
3. ISC de órgão ou de cavidades, que acomete sítios profundos à camada muscular. Os
sinais clínicos variam desde endurecimento local com aparecimento de sinais flogísticos
e de drenagem de secreção purulenta, nas infecções superficiais, até sinais e sintomas
sistêmicos como a febre (temperatura ≥ 38 ºC), nas infecções profundas.
Nas infecções de órgão ou de cavidades, sinais e sintomas relacionados ao órgão ou ao sis-
tema envolvido poderão ser evidenciados pelo exame clínico. Além disso, o diagnóstico pode ser
corroborado pelo achado de um abscesso em exames de imagem, pelo anatomopatológico ou na
reoperação.

Tratamento
O tratamento depende de qual plano anatômico foi acometido pela ISC. As primeiras etapas,
geralmente, incluem a abertura e a inspeção da porção incisional suspeita, além da decisão quan-
to à instituição de antibioticoterapia e ao tratamento cirúrgico. Nas ISC’s incisionais superficiais,
a drenagem e o cuidado de feridas, isoladamente, são suficientes, sem que seja necessária a pres-
crição de antimicrobianos. Em casos de infecção mais profunda, a secreção de exsudato deve ser
drenada, enviada para análise e há recomendação de se prescrever antimicrobianos. Além disso,
as formas graves de infecção das partes moles necrosante são situações de emergência que neces-
sitam de intervenção cirúrgica imediata. O desbridamento extenso deve ser estabelecido, mesmo
antes da identificação do patógeno causador. As ISC’s que acometem órgãos/cavidades requerem
um procedimento de drenagem, seja aberto, seja percutâneo, além do emprego da antibioticote-
rapia, via endovenosa4.

Prevenção
O pacote de medidas preventivas, reconhecido como bundles, estabelecido pelo Institute of
Healthcare Improvement (IHI), tem sido apontado como um importante instrumento para a redu-
ção das taxas de ISC’s5. O preparo do paciente envolve banho com água e sabão antes da realização
do procedimento, na noite anterior ou na manhã da cirurgia. A degermação de membro ou de
local próximo à incisão cirúrgica deve ser conduzida e, posteriormente, a antissepsia com solu-
ção alcoólica de Polivinilpirrolidona (PVPI) ou com clorexidina é preconizada. A tricotomia deve
ser realizada somente quando necessário for, imediatamente anterior à cirurgia, evitando-se o
emprego de lâminas. A inserção dos drenos, por sua vez, de acordo com alguns estudos, provavel-
mente provoca mais infecções do que as previne, funcionando com uma porta de entrada para a
invasão de patógenos que colonizam a pele. Porém, são dispositivos ainda muito comuns e neces-
sários em diversas cirurgias, motivo pelo qual sua inserção é recomendada no momento da cirur-
gia, preferencialmente em uma incisão separada. Os sistemas de drenagens fechados devem ser
preferidos e a remoção precoce é recomendada. Medidas referentes à equipe médica englobam
antissepsia cirúrgica das mãos e dos antebraços, com escovação, em média, por cinco minutos,
utilizando-se solução degermante, visando à eliminação da microbiota transitória e à redução da
microbiota residente da pele, é imperiosa. Além disso, faz-se necessária adotar uma paramentação
cirúrgica completa, que inclui o uso de avental, de luvas estéreis, de touca, de óculos e de máscara,
para estabelecer uma barreira microbiológica. A antibioticoprofilaxia, quando indicada, deve ser
adequadamente prescrita, sendo recomendada a administração da dose efetiva em até 60 minutos
I n f e c ç õ e s R e l a c i o n a d a s à A s s i s t ê n c i a à S a ú d e 365

antes da incisão cirúrgica e a descontinuação em até 24 horas. O controle metabólico do paciente


também é fundamental. Em geral, os tópicos relevantes incluem controle glicêmico (< 180 mg/
dL), manutenção da normotermia em todo perioperatório (≥ 35,5 °C), otimização da oxigenação
tecidual, além da manutenção adequada do volume intravascular. Por fim, é necessário sistema-
tizar e gerenciar a avaliação de feridas, bem como a realização dos curativos. Nesse propósito, os
princípios para o curativo ideal contemplam manter elevada umidade entre si e a ferida, remover
o excesso de exsudação, permitir trocas gasosas da ferida com o exterior, fornecer isolamento tér-
mico, ser asséptico e impermeável a bactérias e ser removível sem traumas e sem dor.

Infecção primária da corrente sanguínea relacionada


ao cateter venoso central (ICSRC)
Os cateteres intravasculares são importantes dispositivos na prática médica e têm seu em-
prego cada vez mais frequentes, afinal, são úteis para a administração de nutrição parenteral, de
medicamentos, de quimioterápicos, bem como para a monitorização hemodinâmica e para a
execução de hemodiálise6. No entanto, apesar dos benefícios existentes, as infecções de corrente
sanguínea, secundárias aos cateteres centrais, estão associadas a importantes desfechos desfavo-
ráveis em saúde3.

Diagnóstico
A suspeita de ICSRC deve ser levantada para pacientes com cateter venoso central instalado
(CVC), na presença de sinais clínicos de infecção, sem que uma fonte infecciosa relacionada seja
evidente. Além disso, a abordagem diagnóstica requer a análise microbiológica por meio de cul-
turas. Amostras de sangue do cateter e periféricas deverão ser colhidas antes do início da antibio-
ticoterapia e comparadas quanto ao tempo de positividade ou de crescimento quantitativo. Caso
não seja possível proceder com a coleta de sangue periférico, deverão ser colhidas amostras de
diferentes lúmens do cateter, de forma que, pelo menos, duas amostras sejam analisadas. Existe a
possibilidade, também, para os casos em que se indica a retirada do dispositivo, de se fazer a cultu-
ra da ponta (5 cm distais) do próprio cateter e compará-la com a de sangue periférico3. Do material
obtido do cateter, a presença de hemocultura quantitativa demostrando contagem de colônias
maior ou igual a três vezes o valor obtido pela contagem de colônias de amostra periférica (ou do
segundo lúmen do cateter), corrobora o diagnóstico de ICSRC. Além disso, a presença de culturas
semiquantitativas > 15 UFC/mL, obtidas da ponta do cateter ou do material do seu lúmen, e que
coincidem com o agente isolado em amostra periférica, também estabelece o diagnóstico7.

Tratamento
A instituição do tratamento está condicionada ao tempo de instalação do cateter, ao estado
clínico do paciente, ao tipo de microrganismo e às características da infecção local. Na presença
de ICSRC em cateter de curta permanência, a conduta recomendada é a remoção do dispositi-
vo. Além disso, independentemente do tipo de cateter, sinais de gravidade, como sepse, choque
séptico, endocardite infecciosa, evidência de infecção metastática, sinais flogísticos locais, trom-
boflebite supurativa e persistência de bacteremia após 72 horas de terapia guiada pelo resultado
de culturas, também indicam a retirada imediata e o estabelecimento de terapia antimicrobiana
366 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

sistêmica empírica7. Por outro lado, sendo diagnosticada ICSRC não complicada, em cateteres de
longa permanência, pode ser viável a preservação do equipamento, desde que seja empregada
a terapia de selamento (lock), associada à antibioticoterapia sistêmica empírica, exceto quando
há contaminação por S. aureus, por Pseudomonas aeruginosa, por fungos ou por micobactéria7.
A terapia de selamento surgiu com o objetivo de alcançar níveis elevados de concentração dos
antimicrobianos, para combater o biofilme presente no lúmen dos cateteres. Para o emprego des-
sa técnica, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomenda o uso de produto com
propriedades antimicrobianas que não pertença à classe de antibióticos/antifúngicos, a fim de se
evitar a instalação da resistência bacteriana. Os agentes indicados são o etanol ou a tauloridina3.

Prevenção
De acordo com uma revisão sistemática recente, 65 a 70% dos casos poderiam ser prevenidos
com a adoção de medidas adequadas. Desse modo, resumidamente, estão listadas, a seguir, me-
didas preventivas (bundles), abordando intervenções para o momento de inserção e para a manu-
tenção do cateter, que quando implementadas conjuntamente, resultam em melhores desfechos5.

Bundles de inserção
Higienizar mãos; utilizar barreira máxima de precaução; promover antissepsia com solução
alcoólica (clorexidina > 0,5%); selecionar adequadamente o sítio de inserção (evitar femoral); pro-
mover inserção guiada por ultrassonografia; instalar cateteres centrais impregnados/recobertos
de minociclina/rifampicina ou clorexidina/sulfadiazina de prata de segunda geração em pacien-
tes adultos internados em UTI.

Bundles de manutenção
Verificar, diariamente, a necessidade de permanência do CVC; desinfetar o hub (conector)
antes de administrar medicamentos, higienizar as mãos antes de manipular o CVC, revisar, dia-
riamente, o local de inserção, promover assepsia da pele, trocar o curativo no tempo estabelecido.

Pneumonia relacionada à assistência à saúde


As Pneumonias Relacionadas à Assistência à Saúde (PRAS) envolvem duas entidades:
Pneumonia Adquirida no Hospital (PAH), e a Pneumonia Associada à Ventilação Mecânica (PAV).
As PAH’s são definidas como aquelas que ocorrem, pelo menos, após 48 horas do ingresso do pa-
ciente no hospital e não estão relacionadas à ventilação mecânica. Podem ser classificadas como
precoce, quando ocorre até o 4º dia de internação e como tardia, quando ocorre a partir do 5º dia.
Essa classificação é importante para a definição etiológica, terapêutica e prognóstica8. Por outro
lado, as PAV’s, apesar das variações, são definidas como aquelas que ocorrem em pacientes sub-
metidos à ventilação mecânica (VM) por um período maior que dois dias de calendário (sendo D1
o dia de início da VM), desde que, na data em que a infecção foi documentada, ou o paciente esteja
em VM, ou o ventilador tenha sido removido no dia anterior3. As PRAS são responsáveis por 15%
das IRAS e por, aproximadamente, 25% de todas as infecções adquiridas na UTI. Nesse cenário, é
importante destacar os impactos, não apenas assistenciais, com elevada morbimortalidade, como
também os econômicos, afinal, essas infecções aumentam o tempo de permanência do paciente
na UTI, e consequentemente, elevam os custos financeiros5.
I n f e c ç õ e s R e l a c i o n a d a s à A s s i s t ê n c i a à S a ú d e 367

Diagnóstico
Os critérios diagnósticos de PRAS, seja com, seja sem ventilação mecânica, são os mesmos
entre si e levam em consideração uma combinação de achados clínicos, radiológicos e microbio-
lógicos3. As PRAS devem ser suspeitadas na presença das definições citadas anteriormente, desde
que os critérios expostos na Tabela 48.1 estejam presentes.

Tabela 48.1. Critérios clínicos para o diagnóstico de pneumonia relacionada à assistência à saúde
Parâmetro Achados
Radiografia de tórax apresentando pelo menos • Infiltrado;
um dos seguintes achados (persistentes, novos • Opacificação;
ou progressivos)* • Cavitação;
Pelo menos um dos seguintes sinais e • Febre (temperatura > 38 °C), sem outra causa associada;
sintomas: • Leucopenia (< 4.000 cel/mm³) ou leucocitose (> 1.200 cel/mm³);
• Alteração no nível de consciência, sem outra causa aparente, em pacientes ≥ 70 anos;

Pelo menos dois dos seguintes sinais e • Aparecimento de secreção purulenta ou mudança nas características da secreção ou
sintomas aumento da secreção respiratória ou aumento da necessidade de aspiração;
• Piora da troca gasosa (dessaturação, como por exemplo PaO2/FiO2 < 240 ou aumento
da oferta de oxigênio ou aumento dos parâmetros ventilatórios)
• Ausculta com roncos ou estertores;
• Início ou piora da tosse ou dispneia ou taquipneia.

*Em pacientes com doença pulmonar ou cardíaca de base, é necessária a presença de alteração em duas radiografias de tórax seriadas.
Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária3. Autoria própria.

Para aumentar a especificidade do diagnóstico, foi incorporada a confirmação por meio de


critérios microbiológicos, sendo necessária a presença de pelo menos um dos seguintes resultados:
• Hemocultura positiva, sem outro foco de infecção;
• Cultura positiva do líquido pleural;
• Cultura quantitativa positiva de secreção pulmonar, obtida do lavado broncoalveolar ≥
104 UFC ou do aspirado traqueal ≥ 106 UFC;
• Cultura positiva de tecido pulmonar;
• Exame histopatológico apresentando evidência de pneumonia, como abscesso,
consolidação com infiltrado e invasão de parênquima;
• Identificação de vírus, de Bordetella, de Legionella, de Chlamydophila ou de Mycoplasma;
• Positividade de sorologias para patógenos;
• Detecção de antígeno de Legionella em urina3.
O guideline publicado no ano de 2016, pela American Thoracic Society e pela Infectious Diseases
of America, sugere que as culturas de secreção respiratória devem ser obtidas por amostragem não
invasiva (aspiração endotraqueal), ao invés de amostragem invasiva (técnicas broncoscópicas,
como lavagem broncoalveolar e escovado) e sugere o emprego de culturas quantitativas, em vez
de culturas qualitativas, a fim de melhorar a diferenciação entre colonização e infecção9.
O tratamento deve ser baseado nos patógenos, nos padrões de resistências e nas recomenda-
ções locais, estabelecidas pela Comissão de Controle Infecção Hospitalar (CCIH), minimizando ex-
cessos e efeitos indesejados, como o desenvolvimento de resistência bacteriana. O Staphylococcus
368 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

aureus sensível à meticilina, o Streptococcus pneumoniae e o Haemophilus influenzae estão comu-


mente envolvidos na patogênese da PAH, essencialmente, quando se desenvolve dentro de 4 a 7
dias de hospitalização. Por outro lado, Pseudomonas aeruginosa, Staphylococcus aureus resistente
à meticilina (MRSA) e microrganismos gram-negativos entéricos tornam-se mais comuns com a
duração crescente da intubação ou da internação9. A diretriz de 2016, publicada pela American
Thoracic Society e pela InfectiousDiseases Society of America (IDSA), sugere a inclusão de um agen-
te ativo contra MRSA para o tratamento empírico em portadores de algum dos fatores de risco
para a resistência antimicrobiana, expostos na Tabela 48.2, sendo indicadas, nesse propósito, a
vancomicina ou a linezolida. Na suspeita de infecção por gram-negativos multirresistentes, a re-
comendação é a de prescrever antimicrobianos com cobertura para Pseudomonas sp. Para os pa-
cientes que não possuem fatores de riscos e que a suspeita seja de infecção por Staphylococcus
sensível à meticilina (MSSA), recomenda-se, também, o emprego de drogas de amplo espectro.
Oxacilina, cefazolina são agentes preferenciais para o combate de MSSA, porém, acredita-se não
serem suficientes para uma terapia empírica9.

Tabela 48.2. Fatores de risco para a infecção por patógenos multirresistentes


• Uso de antimicrobianos endovenosos nos últimos 90 dias;
• Choque séptico;
• Síndrome da angústia respiratória do adulto (SDRA) anteriormente;
• Cinco ou mais dias de hospitalização antes da ocorrência da infecção;
• Terapia de substituição renal aguda anteriormente.
Adaptada de: Management of Adults With Hospital-acquired and Ventilator-associated Pneumonia: 2016 Clinical Practice
Guidelines by the Infectious Diseases Society of America and the American Thoracic9. Autoria própria.

Prevenção
Algumas medidas profiláticas contra as PRA’s são preconizadas, dentre as quais se incluem5:
• Manter decúbito elevado (30-45°);
• Adequar diariamente o nível de sedação e o teste de respiração espontânea;
• Aspirar a secreção subglótica rotineiramente e fazer a higiene oral com antissépticos;
• Fazer uso criterioso de bloqueadores neuromusculares;
• Monitorizar a pressão de cuff, visando mantê-la entre 18 e 22 mmHg;
• Preferir a intubação orotraqueal e os sistemas fechados de aspiração; e
• Incentivar a mobilização precoce.

Infecção do trato urinário associada a cateter vesical de demora


A Infecção do Trato urinário (ITU) é responsável por 35-45% das IRAS em pacientes adultos,
e, de acordo com o último Boletim de Segurança e Qualidade da Anvisa, o primeiro com dados
nacionais sobre ITU relacionada a CVD, a densidade de incidência é de 4,0/1000 cateteres/dia3,10.
I n f e c ç õ e s R e l a c i o n a d a s à A s s i s t ê n c i a à S a ú d e 369

Diagnóstico
O diagnóstico de ITU associada a CVD é concluído em pacientes que tenham CVD instalado
por um período maior que dois dias no calendário (sendo D1 o dia de instalação do cateter), desde
que, na data em que a infecção foi documentada, ou o paciente esteja com o cateter instalado,
ou ele tenha sido removido no dia anterior. Ademais, os critérios expostos na Tabela 48.3 estejam
presentes3.

Tabela 48.3. Critérios diagnósticos para ITU associada a CVD


• Febre (temperatura ≥ 38 °C);
• Dor ou desconforto supra-púbico ou lombar;
Pelo menos um dos seguintes sintomas • Urgência/miccional;
• Aumento da frequência miccional;
• Disúria*
Microbiológico Cultura positiva de urina com até duas espécies microbianas com ≥ 105 UFC/mL
Presença concomitante dos sinais/sintomas e positividade Primeira urocultura ocorrida durante o período de janela da infecção**

*Em pacientes que removeram o cateter no dia anterior à data da infecção; **A janela da infecção entende-se como um período de 7 dias em que
foi possível a identificação de todos os critérios acima, devendo-se considerar três dias antes e três dias depois da data da primeira urocultura
positiva e/ou primeiro sinal/sintoma. Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária3. Autoria própria.

A bacteriúria assintomática associada a cateter raramente induz à bacteremia, portanto, o


tratamento é indicado apenas para pacientes sintomáticos. Além disso, a antibioticoprofilaxia não
deve ser prescrita de rotina, pois não reduz mortalidade, tampouco a taxa de complicações. A
antibioticoterapia empírica, nos sintomáticos, depende da gravidade da doença no momento da
apresentação, bem como dos padrões locais de resistência e fatores específicos do hospedeiro,
como alergias. Pacientes graves devem ser tratados, inicialmente, com um regime antimicrobiano
endovenoso, como um aminoglicosídeo, com ou sem amoxicilina, uma cefalosporina de segunda
ou de terceira geração ou uma penicilina de espectro estendido, com ou sem um aminoglicosídeo,
após a coleta de material urinário para a realização da cultura e do antibiograma. Por fim, é es-
sencial a substituição ou a remoção do cateter, antes de se prescrever a terapia antimicrobiana11.

Prevenção
Estima-se que até 69% das ITU’s associadas a cateter sejam evitáveis, desde que as medidas
preventivas sejam estabelecidas5. Nesse contexto, as principais recomendações incluem:
• Evitar a instalação desnecessária de cateteres urinários;
• Instalar cateteres empregando-se técnica asséptica, mantendo-o fechado e estéril;
• Fixar adequadamente o cateter, para evitar a movimentação e a tração ureteral;
• Manter a bolsa coletora sempre abaixo do nível da bexiga;
• Manter o fluxo desobstruído;
• Esvaziar a bolsa coletora regularmente, usando um coletor separado para cada paciente e
evitando tocá-lo durante o processo;
• Revisar, diariamente, a necessidade do cateter e removê-lo tão logo quanto possível.
370 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• As IRAS são definidas como infecções adquiridas durante o processo de cuidado
em um hospital ou em uma unidade prestadora de assistência à saúde, que não
estavam presentes, tampouco estavam em incubação, na admissão do paciente;
• As principais síndromes incluem a ISC, a ICSRC, as PRA’s e a infecção do trato
urinário associada ao CVD;
• São infecções evitáveis e, por isso, os bundles, quando executados em conjunto,
resultam em melhor desfecho clínico.

Leitura sugerida
1. Horan TC, Andrus M, Dudeck MA. CDC/NHSN surveillance definition of health care-associated infection and crite-
ria for specific types of infections in the acute care setting. Am J Infect Control.2008;36(5):309-32.
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11. Bonkat G, Baroletti R, Bruyère F, Cai T et al: Urological Infections Guidelines. EAU 2020.
Síndromes Febris Hemorrágicas Agudas 49

Pedro Henrique Lodde Leal


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
Síndromes febris hemorrágicas agudas (SFHA) referem-se às doenças que se apresentam por
um conjunto variado de sinais e de sintomas, com ênfase na febre e nas manifestações hemorrá-
gicas agudas, sendo possível, ainda, a presença de icterícia durante evolução da entidade. Essa
nomenclatura foi definida com o intuito de se registrar os casos com potencial epidêmico, visando
à tomada de decisões e às ações públicas em saúde. No entanto, a definição ganhou aplicabilidade
clínica pelo fato de um grande grupo de doenças manifestarem-se de forma indistinguível e, de-
vido à virtual letalidade dessas condições, a multiplicidade de diagnósticos diferenciais deve ser
considerada com celeridade.
Os principais agravos associados à SFHA, devido às elevadas prevalência e morbimortalida-
de, incluem a dengue, a leptospirose, a febre amarela, a febre maculosa, a malária, a meningococ-
cemia e a febre tifoide. Cada uma dessas doenças tem características epidemiológicas típicas que
facilitam o raciocínio clínico e a definição diagnóstica. Por exemplo, a sazonalidade e a associação
com os ciclos de chuvas e de aumento da temperatura média, são características que aventam
o diagnóstico da dengue. Por outro lado, história de contato com águas suspeitas, com água de
alagamento ou com enxurrada, induz a suspeita de leptospirose. Ademais, história de atividades
em regiões silvestres é comum no caso da febre amarela. A circulação em regiões gramadas, com
possível presença de carrapato, ainda que ele não tenha sido visto ou capturado, favorecem o diag-
nóstico de febre maculosa. Por fim, história de viagem para a região amazônica induz ao raciocí-
nio diagnóstico da malária.

Apresentação clínica
Geralmente, os casos se apresentam em pacientes com mais de um ano de idade, cujos re-
latos incluem febre com duração de até três semanas e pelo menos um sinal de hemorragia. A
hemorragia, por sua vez, pode ser espontânea, manifestando-se como epistaxe, gengivorragia, he-
372 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

matêmese, melena, enterorragia ou petéquias, ou pode ser provocada, como ocorre na prova do
laço. Ademais, é comum a presença de sensação de mal-estar, de mialgia, de cefaleia frontal ou
retro-orbital, de artralgia e de exantema. A doença pode evoluir com icterícia, com insuficiência
respiratória, com choque ou com insuficiência renal aguda, de acordo com a etiologia e com a
gravidade do caso. Nesse contexto, durante a anamnese, o questionamento sobre a presença ou a
ausência dos sintomas supracitados leva à definição da síndrome. Naturalmente, a caracterização
das dores, bem como o entendimento sobre a cronologia dos sintomas, devem ser obtidos. Em
seguida, é imperiosa a investigação dos fatores epidemiológicos que possam direcionar o raciocí-
nio clínico. Para isso, nota-se a importância de se indagar a ocupação do paciente, o histórico de
viagens recentes, de se verificar, no cartão vacinal, a vacinação contra a febre amarela, o histórico
de atividades em parques ecológicos, de pescaria, de presença em trilhas ou em regiões silvestres,
do contato com águas suspeitas ou com alagamento e da presença de pessoas com os mesmos
sintomas em casa ou no trabalho.
Depois disso, o exame físico deve ser, minuciosamente, realizado, visando à identificação
de sinais de alerta, como taquicardia, que pode ser o primeiro sinal do choque hipovolêmico,
abordado no Capítulo 12, aumento do tempo de perfusão capilar para além de dois segundos,
hipotensão arterial, pulso fraco e filiforme, taquipneia, extremidades frias e úmidas, confusão
mental, rebaixamento do nível sensorial, mucosas pálidas, lábios secos, saliva espessa, oligúria
ou cianose. A avaliação da gravidade do caso é essencial para a decisão entre se indicar o trata-
mento ambulatorial, a internação em leito comum ou a internação em UTI, pois, ainda que as
diversas etiologias exijam diferentes terapêuticas, o tratamento suportivo instituído aos doentes
críticos é similar.

Etiopatogênese
Didaticamente, as etiologias podem ser divididas entre virais, evidenciadas na Tabela 49.1, e
não virais, destacadas na Tabela 49.2.

Tabela 49.1. Etiologias virais da síndrome febril hemorrágica


Febre hemorrágica viral
Arboviroses Não arboviroses
Vírus da febre amarela Vírus Ebola
Vírus da dengue: DENV-1,2,3 e 4 Vírus Marburg
Vírus da febre do Vale do Rift Hantavirus
Vírus da febre hemorrágica de Crimeia-Congo Vírus da febre de Lassa
Vírus da febre por carrapato do Colorado Vírus da febre do Sabiá
Dados de Hidalgo et al (2017)¹. Autoria própria.
S í n d ro m e s Fe b ri s H e m o rr á g i c a s A g u d a s 373

Tabela 49.2. Etiologias não virais da síndrome febril hemorrágica aguda


Doença Etiologia Gram Transmissão
Contato direto ou indireto com urina de animais contaminada,
Leptospirose Leptospira interrogans Negativo
principalmente de ratos
Febre tifoide Salmonella typhi Negativo Contato com água, com alimentos contaminados ou com portadores
Febre maculosa Rickettsia rickettsii Não visualizada Picada de carrapato Amblyoma sp
Malária Plasmodium sp Não se aplica Picada de mosquito Anopheles sp
Meningoccemia Neisseria meningitidis Negativo Aerossóis contaminados

Dados de Bacon et al (2008)². Autoria própria.

A patogênese da hemorragia depende da etiologia em questão, mas é, comumente, multi-


fatorial e está relacionada à diminuição da produção de fatores de coagulação dependentes de
vitamina K, devido à disfunção hepática, à coagulação intravascular disseminada, à trombopatia,
como no caso da dengue¹, ou ao dano endotelial direto, que leva ao extravasamento capilar, como
na leptospirose³. A febre, por sua vez, é associada, principalmente, aos elevados níveis séricos de
citocinas liberadas por macrófagos, ao interagirem com linfócitos T helpers ativados, dentre as
quais se incluem a interleucina-2, a interleucina-1β, o fator de necrose tumoral-α, o interferon-α
e o interferon-γ4.

Diagnóstico
Como discutido anteriormente, a gama de diagnósticos diferenciais é extensa e exige uma
investigação aprofundada. A Tabela 49.3 detalha os critérios úteis para se estabelecer os principais
diagnósticos diferenciais.
A propedêutica complementar auxilia na definição diagnóstica e na identificação de disfun-
ções orgânicas, que devem receber tratamento suportivo. Inicialmente, preconiza-se a solicita-
ção de hemograma completo, da mensuração do nível de ureia e de creatinina no sangue para a
avaliação da função renal, bem como a de velocidade de hemossedimentação, da quantificação
de albumina sérica, de aspartato aminotransferase (AST), de alanina aminotransferase (ALT), de
bilirrubina total e das suas frações, do tempo de protrombina e do tempo de ativação da trombo-
plastina, para avaliação de possíveis repercussões hepáticas. Em casos graves ou com hipovole-
mia importante, o ionograma e a gasometria venosa também auxiliam na detecção de distúrbios
ácido-base ou hidroeletrolíticos. Havendo icterícia, devem ser solicitadas, também, as sorologias
para a identificação de possíveis hepatites virais. Ademais, deve-se seguir com a propedêutica
para se definir a etiologia mais provável da doença.
374 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 49.3. Critérios e métodos diagnósticos para as principais etiologias da SFHA


Doença Caso Critérios
Febre por 2-7 dias em habitante de região acometida, além de, pelo menos um, dos seguintes sintomas:
Suspeito náuseas, vômito, mialgia, artralgia, exantema, cefaleia, dor retro-orbital, petéquias, prova do laço
Dengue positiva, leucopenia5.
Confirmado Sorologia IgM; teste rápido NS1; ELISA; isolamento viral ou PCR5.
Febre, cefaleia, mialgia e um dos seguintes critérios:
• História de contato com águas suspeitas;
Suspeito • Risco ocupacional;
Leptospirose • Presença de algum dos sintomas: sufusão conjuntival, insuficiência renal aguda, icterícia ou
hemorragia6.
ELISA e microaglutinação não reagente no primeiro momento e com título maior ou igual a 200 após 14
Confirmado
dias do início dos sintomas6.
Paciente sem vacinação para febre amarela ou vacinado há menos de 30 dias, além de ter sido exposto
Suspeito a região com surto ou a ambiente silvestre, apresentando até 7 dias de febre e, pelo menos, dois dos
Febre amarela seguintes sintomas: cefaleia, mialgia, lombalgia, mal-estar, calafrios, náuseas, icterícia ou hemorragia7.
Confirmado Sorologia positiva após o 5º dia dos sintomas, ou PCR, ou isolamento viral7.
Febre, cefaleia, mialgia e história de picada de carrapato ou ter frequentado região com histórico de
Suspeito
Febre maculosa transmissão nos últimos 15 dias8.
Confirmado Reação de imunofluorescência indireta (RIFI) positiva, do 7º ao 10º dia do início dos sintomas8.
Visita a áreas endêmicas (região amazônica), presença de febre, de mal-estar, de cefaleia, de mialgia,
Suspeito
de náuseas e de vômitos9.
Malária
Visualização do parasito em microscopia de gota espessa de sangue, colhida por punção digital e
Confirmado
corada pelo método de Walker9.
Febre súbita, mialgia, calafrios, mal-estar, prostração ou sinais meníngeos e rash maculopapular,
Suspeito
petequial ou purpúrico.
Meningoccemia
Confirmado PCR ou isolamento de N. meningitidis em sangue ou em liquido cefalorraquidiano10.

Febre persistente com um ou mais dos seguintes sintomas: cefaleia, mal-estar, dor abdominal, anorexia,
Suspeito
Febre tifoide constipação, diarreia, tosse seca, roséolas tíficas ou esplenomegalia11.
Confirmado PCR11.

Dados do Ministério da Saúde5-9,11 e de Takada et al (2015)10. Autoria própria.


S í n d ro m e s Fe b ri s H e m o rr á g i c a s A g u d a s 375

Tratamento
Nesta seção, a Tabela 49.4 sintetiza o tratamento preconizado para as principais etiologias.

Tabela 49.4. Tratamento preconizado para as principais etiologias da SFHA


Doença Tratamento
Fase precoce
Adultos:
• Amoxicilina: 500 mg, VO, 8/8h, por 5 a 7 dias ou
• Doxiciclina 100 mg, VO, 12/12h, por 5 a 7 dias
Crianças:
• Amoxicilina: 50 mg/kg/dia, VO, divididos, 8/8h, por 5 a 7 dias6*
Leptospirose Fase tardia
Adultos:
• Penicilina G Cristalina: 1,5 milhões UI, IV, de 6/6 horas ou
• Ampicilina: 1 g, IV, 6/6h ou
• Ceftriaxona: 1 a 2g, IV, 24/24h ou
• Cefotaxima: 1 g, IV, 6/6h
• Alternativa: Azitromicina 500 mg, IV, 24/24h6

Adultos:
• Hidratação: água 60 mL/kg/dia VO
Febre amarela
• Hidratação: cristaloides 10 mL/kg na 1º hora EV, se sinais de choque
• Sintomáticos: Paracetamol (dose máxima 4g/dia)7

Adultos:
• Doxiciclina: 100 mg, VO ou EV, 12/12h por 3 dias após término da febre
• Cloranfenicol: 500 mg, VO, 6/6h por 3 dias após término da febre**
Febre maculosa
Crianças:
• Doxiciclina, se peso superior a 45 kg: 2,2 mg/kg, VO ou EV, 12/12h até 3 dias após termino da febre
• Cloranfenicol: 50 a 100 mg/kg/dia, EV, 6/6h, até recuperação da consciência (dose máxima: 2g/dia)8

Plasmodium vivax ou Plasmodium oval:


• Cloroquina: 10 mg/kg no dia 1 e 7,5 mg/kg nos dias 2 e 3
• Primaquina: 0,5 mg/kg /kg/dia por 7 dias***12
Plasmodium malariae:
• Cloroquina: 10 mg/kg no dia 1 e 7,5 mg/kg nos dias 2 e 312
Malária Plasmodium falciparum e infecções mistas:
• Primaquina 0,5 mg/kg no primeiro dia VO e
• Artemeter + lumenfantrina (20 mg + 120 mg),
◦◦ Paciente ≥ 35 kg: 4 comprimidos, VO, 12/12h ou
• Artesunato + mefloquina (100 mg + 200 mg),
◦◦ Paciente ≥ 30 kg: 2 comprimidos por dia, VO12

Tratamento empírico:
• Ceftriaxona: 100 mg/kg/dia, EV, 12/12h ou 24/24h, por 7 dias (dose máxima 2g 12/12h) ou
• Cefotaxima: 200-300 mg/kg/dia, EV, 4/4h ou 6/6h, por 7 dias (dose máxima: 12g/dia) ¹3
Meningococcemia
Tratamento após confirmação etiológica:
• Penicilina G cristalina: 300.000 UI/kg/dia, EV, por 7 dias (dose máxima: 12.000.000 UI de 4/4h ou 6/6h) ou
• Ampicilina: 200-400 mg/kg/dia, EV, 6/6h, por 7 dias (dose máxima: 12 g/dia)¹3

Adultos:
• Cloranfenicol: 50 mg/kg/dia, VO ou EV, 6/6h (dose máxima: 4g/dia), até fim da febre, com redução da dose para 2 g/dia por 15 dias
Febre tifoide Crianças:
• Cloranfenicol: 30 mg/kg/dia, VO ou EV, 6/6h (dose máxima: 3g/dia), até fim da febre, com redução da dose para 30 mg/kg/dia por
15 dias11

*Doxiciclina não deve ser utilizada em crianças menores de 9 anos, gestantes, pacientes nefropatas ou hepatopatas. **Em casos graves, recomenda-se 1 g, EV,
6/6h até recuperação da consciência e melhora do quadro clínico geral, com então mudança do medicamento para dose e posologia usuais por mais 7 dias. ***Em
caso de deficiência suspeita ou confirmada de G6PD, a primaquina deverá ser usada na dose de 0,75 mg/kg, uma vez por semana, por 8 semanas. Dados de
Ministério da Saúde6-8,11,12 e de Beek et al (2016)13. Autoria própria.
376 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

A leptospirose deve ser tratada de acordo com a fase da doença. Na fase precoce, que corres-
ponde a 90% das formas clínicas, os sintomas clássicos da SFHA estão presentes e, no final dessa
fase, cerca de 30% dos pacientes apresenta sufusão conjuntival. A fase tardia apresenta-se após,
aproximadamente, uma semana, como a síndrome de Weil, cuja tríade inclui a presença de icterí-
cia, de insuficiência renal e de hemorragia, principalmente pulmonar6. A febre amarela exige tra-
tamento essencialmente sintomático e suportivo, com atenção à contraindicação da prescrição de
ácido acetilsalicílico e de anti-inflamatórios não esteroidais, devido ao risco de hemorragias acon-
tecerem. Ademais, o paracetamol não deve ser prescrito na forma grave da doença. No caso da fe-
bre maculosa, o tratamento, se instituído nas fases iniciais, pode ser realizado ambulatorialmente.
Além disso, não se recomenda a condução do tratamento profilático em pacientes assintomáticos
picados por carrapato, pois, além de existirem possíveis efeitos adversos, há, assim, a possibilida-
de de se prolongar o tempo de incubação da doença. Quanto à malária, por sua vez, a terapêutica
difere de acordo com a espécie do parasita. Condições especiais relacionadas ao tratamento de
gestantes, de puérperas e de crianças com peso inferior a 10 kg, devem ser observadas pela equipe
assistencial. Além disso, entre as doenças destacadas, a meningococcemia é uma das que podem
ter evolução mais rápida e com maior gravidade, motivo pelo qual se recomenda a prescrição do
tratamento empírico imediato, mas com redução do espectro de cobertura da antibioticoterapia
após se obter a confirmação da presença da Neisseria meningitidis. Por fim, a febre tifoide pode,
frequentemente, ser tratada ambulatorialmente, com o emprego do cloranfenicol, cuja dose é re-
duzida após a cessação da febre.
Além disso, devido à prevalência da dengue e a existência de protocolos consolidados quanto
à conduta adequada, nos seus diferentes níveis de atendimento, propõe-se o manejo de acordo
com aquele exposto na Figura 49.1, quando no atendimento dos pacientes enquadrados nas ca-
tegorias C (com sinais de alarme) e D (com sinais de gravidade), classificadas na Tabela 49.5. Em
ambos os casos, devem ser solicitados, obrigatoriamente, o hemograma completo, a dosagem de
albumina sérica e das transaminases. Recomenda-se a realização de radiografia de tórax (em per-
fil, em AP e em incidência de Laurell) e de ultrassonografia de abdome. Outras considerações in-
cluem oferecer O2 em todas as situações de choque e, havendo disfunção miocárdica, inotrópicos
podem ser empregados, a exemplo da dobutamina, na dose de 5-20 mcg/kg/min.

Tabela 49.5. Classificação da dengue entre grupos C ou D


Dengue Características
• Dor abdominal intensa (referida ou à palpação) e contínua;
• Vômitos persistentes;
• Ascite, derrame pleural, derrame pericárdica;
• Hipotensão postural ou lipotímia;
Grupo C: com sinais de alarme
• Hepatomegalia (> 2 cm abaixo do rebordo costal direito);
• Sangramento de mucosas;
• Letargia e/ou irritabilidade;
• Aumento progressivo do hematócrito.
• Extravasamento grave de plasma, levando ao choque, evidenciado por: taquicardia; extremidades
distais frias; pulso fraco e filiforme; enchimento capilar lento (> 2 segundos); pressão arterial
Grupo D: com sinais de convergente (< 20 mm Hg); taquipneia; oligúria (< 1,5 mL/kg/h); hipotensão arterial; cianose; acúmulo
gravidade de líquidos com insuficiência respiratória.
• Sangramento grave;
• Comprometimento grave de órgãos.

Dados do Ministério da Saúde5. Autoria própria.


S í n d ro m e s Fe b ri s H e m o rr á g i c a s A g u d a s 377

Dengue C Dengue D

• Reposição volêmica: 10 mL/kg de soro • Reposição volêmica rápida: 20 mL/kg de


fisiológico na primeira hora; solução salina isotônica em até 20 minutos;
• Prescrição de paracetamol e/ou dipirona • Repetir até 3 vezes;
como antipiréticos e analgésicos; • Reavaliação clínica a cada 15-30 minutos;
• Observação clínica por, no mínimo, 48 h. • Monitoração contínua;
• Reavaliar o hematócrito em 2 horas.

• Reavaliar em 1 h: pressão arterial, sinais


vitais, diurese (desejável: 1 mL/kg/h); Com melhora Sem melhora
• Manter hidratação: 10 mL/kg/h.

• Hematócrito ascendente:
Até 2h: avaliação do hematócrito Albumina 0,5-1 g/kg; solução a 5%;
• Hematócrito em queda:
Avaliar hemorragias e coagulação.
Sem melhora Com melhora

Hemorragia presente Coagulopatia presente


Realizar expansão de volume • Concentrado de • Plasma fresco: 10 mL/kg
até 3 vezes (20 mL/kg em hemácias 10-15 mL/kg/dia • Vitamina K EV
2 horas) • Trombocitopenia e RNI > • Crioprecipitado
1,5: transfundir plaquetas (1 U para cada 5-10 kg)

Com melhora
Sem
clínica e Interromper infusão de fluidos se:
melhora
laboratorial • Término do extravasamento plasmático;
• Pressão arterial, pulso e perfusão periférica normalizados;
• Diminuição do hematócrito na ausência de sangramento;
Fase de manutenção • Diurese normalizada;
• Primeira fase: 25 mL/kg em 6 horas; • Resolução dos sintomas abdominais.
• Segunda fase: 25 mL/kg em 8h, com 1/3
de soro fisiológico e 2/3 de soro glicosado

Figura 49.1. Tratamento preconizada para os casos de dengue C (com sinais de alarme) e de dengue D
(com sinais de gravidade).
Dados do Ministério da Saúde5. Autoria própria.

Complicações clínicas
Em alguns casos, o paciente evolui com gravidade importante e deve ser internado em uni-
dade de terapia intensiva. O intuito deste capítulo não é pormenorizar o atendimento do paciente
grave em cada uma dessas diversas etiologias, mas vale ressaltar em quais aspectos o médico as-
sistente deve estar atento:
• Distúrbios ácido-base e hidroeletrolíticos, descritos no Capítulo 60, devem ser monitorados
e corrigidos, notadamente hipocalemia grave, mais comum nas SFHA;
• Distúrbios de coagulação e anemia, detalhados nos Capítulos 57 e 58, também podem
estar presentes, devido à natureza da síndrome em questão;
378 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

• Lesão renal aguda, descrita no Capítulo 52, é consideravelmente frequente entre os


pacientes graves, que podem ter indicação de terapia renal substitutiva;
• Insuficiência respiratória, cujos sinais incluem frequência respiratória superior a 28 irpm,
alteração do nível de consciência, cianose e uso de musculatura respiratória acessória,
devem ter a via aérea protegida. A instalação da ventilação mecânica invasiva deve ser
considerada. Sobre esse assunto dissertam os Capítulos 21 e 25.

Pontos-chave
• As síndromes febris hemorrágicas agudas são comuns e não devem ser
negligenciadas;
• A chave para um raciocínio clínico bem direcionado está na epidemiologia, na
condução de uma anamnese completa e de um exame físico minucioso;
• Os diagnósticos diferenciais são diversos e a terapêutica é específica em muitos
casos. Por isso, o conhecimento das etiologias mais prevalentes é essencial;
• Nos casos graves, o objetivo comum é estabilizar o quadro do paciente;
• A meningococcemia deve ser tratada com celeridade e, na vigência de SFHA, deve
ser sempre suspeitada;
• A dengue tem alta prevalência, motivo pelo qual seu manejo deve ser medular para
o médico assistente.

Leitura sugerida
1. Hidalgo J, Richards GA, Jiménez JI, et al. Viral hemorrhagic fever in the tropics: Report from the task force on
tropical diseases by the World Federation of Societies of Intensive and Critical Care Medicine. Journal of Critical
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9. Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual de diagnóstico laboratorial da malária. 2nd ed. Brasília: Ministério da
Saúde; 2009. 116 p. ISBN: 978-85-334-1556-0.
10. Takada S, Fujiwara S, Inoue T, et al. Meningococcemia in Adults: A Review of the Literature. Internal Medicine.
2015 Apr 01;55:567-572.
S í n d ro m e s Fe b ri s H e m o rr á g i c a s A g u d a s 379

11. Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual integrado de vigilância e controle da febre tifoide. 1st ed. Brasília:
Ministério da Saúde; 2008. 92 p.
12. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de tratamento da malária no Brasil. 1st ed. Brasília: Ministério da Saúde;
2019. 76 p. ISBN: 978-85-334-2754-9.
13. Beek DV, Cabellos C, Dzupova O, et al. ESCMID guideline: diagnosis and treatment of acute bacterial meningitis.
Clinical Microbiology and Infection. 2016 May 22;22 Suppl 3:S37-S62.
Meningites e Encefalites 50

Carolina dos Santos Cruz


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
A meningite pode ser definida como um processo inflamatório capaz de acometer as me-
ninges pia-máter e aracnoide, além do espaço subaracnóideo1. O processo inflamatório pode ser
devido a causas infecciosas, como vírus, bactérias, fungos e parasitas ou não infecciosas, como
substâncias químicas e tumores, apesar de serem mais raras2. Dentro das etiologias de origem
infecciosa, as virais configuram-se como as mais frequentes; entretanto, as bacterianas são mais
importantes do ponto de vista de saúde pública, devido ao fato de proporcionarem rápida evolu-
ção para o óbito2,3. No Brasil, há um grande número de notificações sem identificação do agente
etiológico, o que dificulta uma análise fidedigna dessa doença no país4. É fato conhecido que a
meningite bacteriana ou doença meningocócica é a forma mais comum de infecção supurativa do
sistema nervoso central (SNC) e que, entre os anos de 2014-2016, teve uma taxa de incidência, no
país, de 1 caso para cada 100mil habitantes2. Além disso, sabe-se que a doença meningocócica é
mais prevalente em crianças menores de 5 anos de idade, sendo mais comum no primeiro ano de
vida, embora na vigência de surtos ou de epidemias ela se torne mais incidente em adolescentes e
em adultos jovens, sendo a sua letalidade estimada em 20%2,4.
Na encefalite, por outro lado, existe um processo inflamatório do encéfalo, com origem viral
ou autoimune. Diferentemente da meningite, essa resposta também estará presente no parên-
quima cerebral e não apenas limitado às meninges1,5. Todavia, pacientes com encefalite também
podem ter meningite concomitante, o que configura a meningoencefalite5. Ao se analisar os nú-
meros da encefalite no mundo ocidental, percebe-se que é uma doença incomum, afinal, sua inci-
dência, incluindo todas as etiologias, é de 0,7-12,6 casos, por 100 mil adultos e de 10,5-13,8 casos,
por 100 mil crianças6.

Apresentação clínica
Os sintomas nas meningites geralmente iniciam-se de 3 a 7 dias após a exposição ao agen-
te. Além disso, não há associação entre sintomas específicos e patógeno causador, baseando-
382 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

-se apenas na anamnese e exame físico7. Os sintomas clínicos presentes nos neonatos e nas
crianças são, geralmente, inespecíficos, podendo se evidenciar com febre ou com hipotermia,
com vômitos, com irritabilidade, com letargia e com pouca aceitação alimentar. Sinais mais es-
pecíficos são, na maioria das vezes, tardios e às vezes até raros, sendo eles a rigidez de nuca, o
abaulamento de fontanela e as convulsões1,7. Nos adultos, a tríade clássica de meningite inclui
febre, rigidez de nuca e alteração do estado mental. Entretanto, esperar por esses sintomas pode
retardar o diagnóstico, visto que apenas 44% dos pacientes apresentam a tríade. Há, também, a
presença de outras queixas associadas, como cefaleias intensas, que pioram ao movimento da
cabeça, náuseas, vômitos e fotofobia1,7. Além disso, um achado de forte possibilidade etiológica
meningocócica são as lesões cutâneas petequiais ou equimóticas1. Ao exame físico, podem estar
presentes sinais que indicam irritação meníngea, sendo eles de alta especificidade, porém, de
baixa sensibilidade7. A rigidez de nuca é vista como patognomônica e é descrita como resistên-
cia do pescoço à flexão passiva5. O sinal de Kernig, descrito pela primeira vez em 1882, consiste
em fletir a coxa do paciente em decúbito dorsal sobre o abdome, sendo positivo quando há
dor ao tentar-se estender o joelho passivamente. Já o sinal de Brudzinski, relatado em 1909,
é positivo quando há flexão espontânea dos quadris e joelhos ao se flexionar passivamente o
pescoço do paciente em decúbito dorsal5,6. Um teste adicional pode ser feito quando o paciente
apresenta cefaleia, e consiste na solicitação, ao paciente, que mova a cabeça para frente e para
trás, a uma velocidade de 2 a 3 execuções/segundo, sendo considerado positivo quando a dor é
intensificada6.
Na encefalite, geralmente vírus neurotrópicos causam lesões em regiões específicas do SNC,
levando a sinais e a sintomas neurológicos focais ou difusos. Os achados mais frequentes são ata-
xia, afasia, fraqueza dos neurônios motores superiores e inferiores, movimentos involuntários e
déficits de nervos cranianos. Ademais, lesão no eixo hipotalâmico-hipofisário pode manifestar-se
como diabetes insipidus, como síndrome da secreção inapropriada de hormônio antidiurético ou
com a desregulação da temperatura corporal. Entretanto, apesar de as associações serem clássicas
entre os vírus e os sinais e sintomas, não é seguro o estabelecimento da etiologia da encefalite sem
uma investigação específica. Além disso, há outros achados comuns, como febre e alteração do
nível de consciência5,6.

Etiopatogênese
Os agentes etiológicos mais frequentemente observados na meningite bacteriana variam
de acordo com a idade, com as comorbidades presentes, com os fatores de exposição ocupacio-
nal, com o estado vacinal e com a situação epidemiológica local. De acordo com a faixa etária,
os agentes mais comuns em recém-nascidos até um mês de idade são Streptococccus-Grupo B,
Escherichia coli e Listeria sp. Nas crianças, por sua vez, merecem destaque Neisseria meningiti-
dis, Streptococccus pneumoniae e Haemophilus influenzae. Adolescentes e adultos são mais aco-
metidos por Neisseria meningitidis e por Streptococccus pneumoniae. Os idosos permanecem
com o perfil dos adultos, mas a Listeria monocytogenes também aparece com frequência.
A fisiopatologia da meningite bacteriana deflagra-se no momento em que as bactérias colo-
nizam a nasofaringe do hospedeiro, facilitada pela presença de aderências nas células epiteliais
nasofaríngeas. O microrganismo, então, ganha o líquido cefalorraquidiano, onde, além de conse-
guir se replicar rapidamente, libera componentes bacterianos que atingem o endotélio cerebral,
estimulando a liberação de citocinas inflamatórias. As consequências da elevação de citocinas
incluem aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica, levando a um edema vasogê-
M e n i n g i t e s e E n c e f a l i t e s 383

nico e ao extravasamento de proteínas séricas para dentro do espaço subaracnóideo. Com isso, o
espaço estimula a cascata inflamatória, o que leva a um aumento da resistência ao fluxo liquórico
e ao edema intersticial. Ademais, ocorre edema citotóxico devido à degranulação de neutrófilos
instituída, resultando na liberação de metabólitos tóxicos. As combinações desses eventos resul-
tam em aumento da pressão intracraniana, em redução do fluxo cerebral e em perda da autorre-
gulação cerebrovascular2,5. As meningites virais, por sua vez, têm como agentes etiológicos, em
crianças, uma variedade de enterovírus. Já nos adultos, podem ser causadas por herpes simplex
1 ou 2, por enterovírus, pelo vírus do HIV, além de existir um possível acometimento por dengue,
por citomegalovírus e por influenza1.
As encefalites, por outro lado, podem ser causadas por diversos patógenos. Nos neonatos,
podem ocorrer pela infecção do herpes simples, do citomegalovírus, da rubéola, da Listeria mono-
cytogenes, do Treponema pallidum e do Toxoplasma gondi. Em crianças, os agentes mais frequen-
tes incluem a influenza e o herpes simples 1. Além disso, nos imunodeprimidos, a Varicela zoster
vírus, o HHV 6, o vírus do oeste do nilo, o vírus JC, a Listeria monocytogenes, a Mycobacterium
tuberculosis, o Cryptococcus neoformans, o Histoplasma capsulatum e oToxoplasma gondii confi-
guram-se como os principais causadores1.

Diagnóstico
O diagnóstico diferencial entre meningites e meningoencefalites se dá pela análise do líquido
cefalorraquidiano (LCR), obtido por meio da punção lombar (PL). As condições que contraindi-
cam a imediata realização da punção liquórica incluem a presença de sinais focais, de doença
prévia do sistema nervoso central, de convulsões, de papiledema, de condição imunossupressora
e de rebaixamento moderado a severo do nível de consciência. Caso seja necessária a realização
de exames de neuroimagem antes da punção, deverá ser iniciada a antibioticoterapia empírica
após a coleta de 2 ou 3 amostras de hemoculturas, visto que o atraso dessa prescrição é uma das
principais causas de sequelas e de morte nessa população1,5. A solicitação da análise liquórica deve
explicitar quimiocitologia completa, cultura bacteriana, pesquisa gram e prova do látex. A carac-
terística do LCR na meningite bacteriana será de uma celularidade geralmente > 1.000 células/
mm³, com predomínio de neutrófilos (80-95%), proteinorraquia maior que 50 mg/dL e glicorra-
quia diminuída, menor que 40 mg/dL. A de etiologia viral contempla uma celularidade entre 100
e 500 células/mm³, com predomínio linfomonocitário, proteinorraquia normal ou discretamente
elevada e glicorraquia normal ou pouco diminuída. Ademais, caso a neurotuberculose seja a causa
fundamental do processo, haverá uma celularidade de 5-100 células/mm³, com predomínio lin-
fomonocitário ou misto, proteinorraquia muito elevada (50-300 mg/L) e glicorraquia muito dimi-
nuída (20-40 mg/dL)1.
A ressonância magnética (RNM) de crânio é mais sensível do que a tomografia computado-
rizada de crânio no que tange às detecções de alterações precoces, alcançando níveis próximos
de 90%. O achado mais característico à RNM é a presença de edema nas superfícies orbitais dos
lobos frontais e do lobo temporal medial. Além disso, o exame permite a identificação de causas
alternativas para a encefalite. Por isso, todos os pacientes em que a suspeita for estabelecida, mas
que o diagnóstico permaneça incerto, devem ser submetidos à RNM6.
O emprego do eletroencefalograma (EEG) não acontece rotineiramente, mas pode ser
útil em algumas situações, como na detecção de alterações temporais sugestivas de etiologia
herpética1,6.
384 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tratamento
Os pacientes com meningite ou com encefalite devem ser manejados, preferencialmente,
em uma unidade de terapia intensiva ou semi-intensiva. Dessa forma, há um melhor acompa-
nhamento do padrão hemodinâmico, do nível de consciência e do aparecimento de novos sinais
neurológicos. Além disso, na suspeita de meningite bacteriana, deverá ser iniciado o protocolo
para isolamento respiratório contra gotículas, durante as primeiras 24 horas após o início da ad-
ministração da terapia antimicrobiana1. A antibioticoterapia empírica deverá ser iniciada dentro
de uma hora após a chegada dos pacientes ao pronto-socorro, cuja suspeita seja a de meningite
bacteriana. Ademais, alguns estudos mostram benefícios na prescrição concomitante de dexa-
metasona 10 mg, 4x ao dia, por 4 dias. O antimicrobiano inicial deve ser a ceftriaxona 2 g, por via
endovenosa (EV), de 12 em 12 horas. Entretanto, se o doente for idoso ou imunossuprimido, ampi-
cilina 2 g, EV, de 4 em 4 horas, com a finalidade de cobrir Listeria monocytogenes, deve ser incluída
no esquema1,5. Em locais notificados pela presença de S. pneumoniae e para pacientes cujo histó-
rico de infecção evidencia o agente, a inclusão de vancomicina 15 mg/kg, EV, de 12 em 12 horas
ou de 8 em 8 horas deve ser instituída1. Para recém-nascidos, o primeiro esquema terapêutico a
ser utilizado será a ampicilina 100 mg/kg, EV, associado a cefotaxime 50 mg, EV, de 6 em 6 horas.
Alternativo a esse esquema, poderá ser usada ampicilina 100 mg/kg, EV, de 6 em 6 horas, associada
a gentamicina 2,5 mg/kg, EV, de 8 em 8 horas1. Para cobrir a encefalite por Herpes Simplex Virus
(HSV ), principal diagnóstico diferencial das meningites, os adultos deverão receber aciclovir 30
mg/kg/dia, EV, de 8 em 8 horas. Recém-nascidos são menos responsivos ao tratamento com aci-
clovir, motivo pelo qual a dose será 20 mg/kg, com dose total de 60 mg/kg/dia, EV, de 8 em 8 horas5.
Após a confirmação bacteriológica com seu respectivo agente e antibiograma, deverá ser feito o
ajuste terapêutico mais adequado. Sendo meningite meningocócica, prescreve-se penicilina cris-
talina em altas doses ou ceftriaxone por 7 a 10 dias. Já na meningite por Haemophilus influen-
zae o tratamento se dará por 10 dias com ceftriaxone, cefotaxima ou cefepima. A meningite por
Streptococcus pneumoniae será tratada, inicialmente, com penicilina por 10 a 14 dias. Ademais, em
caso de Listeria monocytogenes o tratamento é mais prolongado, durando de 14 a 21 dias com am-
picilina. Na eventualidade de o diagnóstico ser de encefalite por HSV, o tratamento com aciclovir
deve durar 21 dias1,5. Pacientes acometidos por meningite adquirida no hospital, principalmente
aqueles submetidos a procedimentos neurocirúrgicos, o tratamento empírico deve ser feito com
vancomicina e com ceftazidima ou meropeném5.
O prognóstico das meningites bacterianas depende do nível de consciência na internação,
da ocorrência de crises convulsivas, de sinais de hipertensão intracraniana, de comorbidades, do
tempo de início do tratamento, entre outros. A taxa de mortalidade para H. influenzae fica próxima
de 3-7%, de N. meningitidis em 15% e de L. monocytogenes em 20%5.

Complicações clínicas
As sequelas podem variar de moderadas a graves e variam de acordo com o microrganismo
infectante. As complicações mais comuns incluem a redução da função intelectual, as crises con-
vulsivas, os déficits de memória, as alterações da marcha, a perda auditiva e a vertigem1.
M e n i n g i t e s e E n c e f a l i t e s 385

Pontos-chave
• A meningite bacteriana é a forma mais comum de infecção supurativa do SNC;
• Pacientes podem ter meningite concomitante com encefalite;
• A tríade clássica da meningite inclui febre, rigidez de nuca e alteração do estado
mental;
• Os agentes etiológicos mais frequentes na meningite variam de acordo a idade;
• O diagnóstico diferencial entre meningites e meningoencefalites se dá pela análise
do líquido cefalorraquidiano (LCR) obtido por meio da punção lombar (PL);
• O tratamento antimicrobiano inicial será empírico e deverá se iniciar na primeira
hora após o atendimento.

Leitura sugerida
1. Azevedo LC, Taniguchi UL, Ladeira. Medicina Intensiva: Abordagem Prática. 2ªed. São Paulo: Manole;2015.
2. Teixeira AB, Cavalvante JCV, Moreno IC, Soares IA, Holanda FOA. Meningite bacteriana: uma atualização. Revista
Brasileira de Análises Clínicas [revista em Internet] 07 de novembro de 2018; acesso 20 de abril de 2020.
3. Gonçalves HC, Mezzaroba N. Meningite no Brasil em 2015: O panorama da atualidade. Arquivos Catarinenses de
Medicina- janeiro – março de 2018.
4. Berezin EM. Epidemiologia da infecção meningocócica. Sociedade Brasileira de Pediatria. 2015.
5. Jameson LJ. Medicina Interna de Harrison 20ªed. Porto Alegre: AMGH Editora; 2020.
6. Dorsett M, Liang SY. Diagnosis and treatment of central nervous system infections in the emergency department.
EmergMedClin North Am 1 de novembro de 2017.
7. Mańdziuk J, Kuchar EP. Streptococcal Meningitis. Stat Pearls Publishing 21 de janeiro de 2020.
Avaliação do Paciente 51
com Doença Renal

Marcela Carolina Passini


Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
A doença renal é caracterizada pela alteração da função renal e pode ser dividida entre crônica
e aguda, de acordo com o tempo de evolução da doença. Vale ressaltar, porém, que a doença renal
crônica pode se complicar, instituindo-se, então, sua “agudização”. Apesar dos avanços alcançados
no tratamento da doença renal, a mortalidade da condição permanece elevada, principalmente
nos casos em que a terapia dialítica se faz necessária. Os fatores de risco para o desenvolvimento
das doenças renais incluem idade avançada, desidratação, diabetes mellitus, hipertensão arterial
sistêmica, uso de medicações nefrotóxicas, como os anti-inflamatórios não esteroidais (AINES),
insuficiência cardíaca descompensada e infusão endovenosa de contrastes.
Define-se como doença renal crônica a condição em que a taxa de filtração glomerular per-
manece inferior a 60 mL/min/1,73m2 por mais de 3 meses consecutivos e/ou aquela em que existe
albuminúria superior ou igual a 30 mg/dia, ou alterações equivalentes. De acordo com a Sociedade
Brasileira de Nefrologia, estima-se que, no Brasil, 10 milhões de pessoas sejam portadores da doen-
ça. Sua prevalência aumentou com o passar dos anos devido ao aumento da expectativa de vida e
da incidência de fatores de risco, como diabetes e hipertensão. A lesão renal aguda (LRA), por sua
vez, detalhada no capítulo 52, é caracterizada por uma súbita deterioração da função renal e está
associada a um aumento da mortalidade e a piores desfechos. Vários critérios surgiram ao longo
dos anos para definir lesão renal aguda e, em 2012, o KDIGO estabeleceu três critérios, dos quais
um é suficiente, para o diagnóstico da condição:
1. Um aumento de creatinina sérica maior ou igual a 0,3 mg/dl dentro de 48 horas;
2. Um aumento de creatinina sérica maior ou igual a 1,5x o valor de referência dentro de
uma semana;
3. Um débito urinário inferior a 0,5 mL/kg/h por mais de 6 horas consecutivas. A
LRA constitui-se como uma condição corriqueira entre pacientes hospitalizados,
principalmente em leitos de UTI, onde a prevalência pode chegar a 30%. Neste capítulo,
serão apresentadas as estratégias no que concerne à abordagem básica do paciente com
lesão renal, principalmente no contexto da terapia intensiva.
388 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Fisiologia renal
Os rins são órgãos pares responsáveis, sumariamente, pela depuração de substâncias do
organismo, pelo balanço hidroeletrolítico e acidobásico, pela secreção de hormônios e pela me-
tabolização de compostos. Macroscopicamente, podem ser divididos em porção cortical, mais
externa, e porção medular, mais interna. Microscopicamente, a unidade funcional dos rins é o né-
fron, formado pelo corpúsculo de Malpighi, conjunto entre o glomérulo e a cápsula de Bowman, e
pelo sistema tubular, cujos componentes incluem o túbulo contorcido proximal, a alça de Henle,
o túbulo contorcido distal e as porções cortical e medular do túbulo coletor. O trajeto sanguíneo
no interior do órgão, por sua vez, é de suma importância para a compreensão dos mecanismos
que lhe dizem respeito. O fluxo alcança o glomérulo por meio da arteríola aferente, cujas rami-
ficações se organizam em alças capilares enoveladas dentro da cápsula de Bowman e filtram o
plasma sanguíneo originando, então, o filtrado glomerular. Em contraposição, o sangue deixa os
rins, retornando à circulação sistêmica, por meio da arteríola eferente, responsável pela regula-
ção da pressão glomerular e responsiva à angiotensina. A arteríola aferente responde pelo con-
trole da resistência vascular do órgão, mantendo uma pressão constante, independentemente de
variações nas pressões arteriais sistêmicas, devido à presença de receptores de estiramento e de
células modificadas na camada média, logo antes de se capilarizar em glomérulo. Células estas,
por sua vez, denominadas justaglomerulares, cuja função é a de promover o feedback tubuloglo-
merular, via liberação de renina. Por meio desse mecanismo, células modificadas do túbulo con-
torcido distal, agrupadas em um conjunto denominado mácula densa, sinalizam quando existe
baixa concentração de sódio no filtrado, o que deflagra a vasodilatação da arteríola em questão
e, consequentemente, aumenta a filtração glomerular. Enfim, no que tange ao trajeto do filtrado,
vale ressaltar que, ao deixar o glomérulo, vai em direção ao sistema tubular. Na primeira porção do
sistema, o túbulo contorcido proximal, existe reabsorção da maior parte de sódio, de glicose e de
aminoácidos. A segunda porção, a alça de Henle, é responsável pelo mecanismo de contracorrente
que controla a osmolaridade urinária, e, ao final de seu trajeto, o fluido tubular encontra-se hipos-
molar, enquanto o interstício renal encontra-se hiperosmolar, características importantes para a
formação de uma urina concentrada. O terceiro trecho, túbulo contorcido distal, além de sediar a
mácula densa, é o principal ponto de reabsorção tubular de cálcio. Por fim, a última estrutura é o
túbulo coletor, responsável por ajustes finos da reabsorção e da secreção tubular.

Abordagem ao paciente com doença renal


A abordagem básica ao paciente com acometimento renal deve ser de domínio do médico
assistente. Inicialmente, uma história clínica detalhada deve ser colhida, afinal, é de suma im-
portância que a diferenciação entre acometimento crônico e agudo seja realizada, que alterações
urinárias sejam questionadas, que a exposição a agentes nefrotóxicos seja considerada, bem como
que a presença de comorbidades, de infecções recentes e de cirurgias prévias sejam constatadas1,2.
Apesar de cursar com queixas e com exame físico muitas vezes inespecíficos, é imperioso que a
avaliação do paciente com doença renal seja completa. Isso porque, pacientes urêmicos podem,
por exemplo, apresentar diferentes manifestações, dentre as quais incluem o hálito “amoniacal”,
devido à atuação da flora bacteriana local que hidrolisa a ureia o tecido cutâneo acometido por le-
sões purpúricas e equimóticas, a hipotensão ortostática, o atrito pericárdico, o derrame pleural, o
sopro diastólico, a ascite e os sopros abdominais. Ademais, portadores da forma crônica da doença
podem manifestar mucosas pálidas, devido à anemia instituída2,3. No entanto, cabe destacar que
A v a l i a ç ã o d o P a c i e n t e c o m D o e n ç a R e n a l 389

o diagnóstico de doença renal somente é concluído após a avaliação dos resultados laboratoriais.
Nesse propósito, define-se como doença renal crônica a condição em que existe:
• Taxa de filtração glomerular menor do que 60 mL/min/1,73 m2 por mais de 3 meses; ou
• Dano renal caracterizado por presença de albuminúria maior ou igual a 30 mg/dia,
ou alterações equivalentes, por mais de 3 meses4. A lesão renal aguda, por sua vez, é
caracterizada pela presença de, pelo menos, um dos seguintes critérios:
• Aumento de creatinina sérica maior ou igual a 0,3 mg/dl dentro de 48 horas;
• Aumento de creatinina sérica maior ou igual a 1,5x o valor de referência dentro de uma
semana; ou
• Débito urinário inferior a 0,5 mL/kg/h por mais de 6 horas consecutivas4. A real taxa
de filtração glomerular deve ser estimada por meio de fórmulas, como a equação
desenvolvida pela Colaboração de Epidemiologia de Doença Renal Crônica (CKD-EPI), a
mais utilizada na contemporaneidade, que considera variáveis como o sexo, a cor, o valor
da creatinina sérica e a idade do paciente5. A definição do débito urinário, por outro lado,
pode ser concluída por método direto, com a instalação de um cateter de Foley conectado
ao urômetro, ou por método indireto, utilizando-se a fórmula exposta no Quadro 51.14 .

Quadro 51.1. Fórmula para a definição indireta do débito urinário (mL/kg/h)


Débito urinário (mL/kg/h) =

Espera-se que o débito urinário de uma pessoa saudável varie, geralmente, entre 1-2 mL/kg/
hora. No entanto, quando esse débito varia entre 101-400 mL/dia, o paciente passa a ser classifica-
do como oligúrico, entidade muito comum entre pacientes internados na UTI com injúria renal4.
Avançando na gravidade da lesão, quando o débito passa a ser inferior a 100 mL/dia, o paciente é
classificado como anúrico4. Embora o débito urinário, isoladamente, seja um instrumento pobre
para a definição da função renal, ele deve ser obtido e acompanhado, afinal, oligúria e anúria são
marcadores de progressão da lesão2. A investigação desses pacientes deve abranger, também, a
análise do hemograma, a quantificação sérica dos eletrólitos, da ureia, da glicemia e dos marcado-
res inflamatórios, bem como as provas de coagulação, as provas de função hepática, a urinálise, a
urocultura, a hemocultura, se houver suspeita de infecção vigente, e a interpretação de possíveis
distúrbios ácido-base pelos níveis venosos de bicarbonato na gasometria venosa2,3. Outros exames
importantes incluem o eletrocardiograma, a radiografia de tórax e a ultrassonografia renal2.

Urinálise
O exame de urina é de extrema relevância no que tange à avaliação da doença renal. Por
meio dele são obtidas informações valiosas, como o pH urinário, a densidade urinária, a presença
de bilirrubina, de esterase leucocitária, de nitrito, de glicose, de corpos cetônicos, de hemoglobi-
na/mioglobina e de proteínas. De posse dessas informações, a equipe assistencial pode aventar
algumas hipóteses diagnósticas, por exemplo, um pH maior que 7, a presença de esterase leu-
cocitária e de nitrito podem sugerir infecção do trato urinário (ITU), enquanto o pH ácido pode
aventar a possibilidade de acidose tubular renal. Ademais, a presença de bilirrubina reflete possí-
vel estase biliar, a de glicose pode predizer glicemia superior a 210 mL/dl ou tubulopatias, e a de
corpos cetônicos podem indicar jejum prolongado ou cetoacidose, seja alcoólica, seja diabética.
Hemoglobinúria e mioglobinúria expressam, por exemplo, a presença de hemólise, ao passo em
390 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

que a densidade, fisiologicamente variável entre 1003-1030, indicam o grau de diluição da urina
e que a proteinúria retrata, por exemplo, aumento da permeabilidade capilar glomerular. No que
tange à proteinúria, valores acima de 150 mg/dia já são considerados anormais, embora somente
quando acima de 3 g/dia indique proteinúria nefrótica2. A análise do sedimento urinário, por sua
vez, auxilia, principalmente, na determinação do local acometido pela doença aguda. Por exem-
plo, havendo lesão pré-renal, são evidenciadas, no exame, a presença de cilindros hialinos e a au-
sência de células. Havendo lesão renal, podem estar presentes, no estudo, hemácias dismórficas,
cilindros granulosos, cilindros leucocitários, cilindros hemáticos, mioglobinúria, eosinofilúria,
proteinúria, entre outros. Na lesão pós-renal, podem existir hematúria e piúria2.

Ultrassonografia do aparelho urinário


As imagens ultrassonográficas auxiliam na diferenciação entre a injúria renal aguda e a crôni-
ca, afinal, rins menores que 8 cm indicam possível acometimento crônico2,6. Entretanto, em algu-
mas condições como diabetes mellitus, amiloidose e doença renal policística, os rins podem estar
com o tamanho normal, embora lesados2. A ultrassonografia também é solicitada quando existe a
suspeita de lesão pós-renal, para excluir a presença de hidronefrose6. O estudo pode ser comple-
mentado com o Doppler das artérias renais a fim de identificar pontos de estenose vascular, por
exemplo7. A Figura 51.1 demonstra a visão longitudinal de um rim normal.

Figura 51.1. Visão longitudinal de um rim normal.


Imagem de Nevit Dilmen, retirada do Wikimedia Commons.

Biópsia renal percutânea


Para pacientes selecionados, está indicada a biópsia renal, afinal, além de orientar a terapêu-
tica, ela pode revelar, por vezes, diagnósticos inesperados. A biópsia, geralmente, é realizada com
o paciente em decúbito ventral. No procedimento, inicialmente localiza-se, via ultrassonográfica,
o rim e o ponto que será biopsiado. Depois disso, realiza-se a antissepsia e a anestesia local, se-
A v a l i a ç ã o d o P a c i e n t e c o m D o e n ç a R e n a l 391

guidas da introdução da agulha na região lombar, imediatamente abaixo da última costela, guiada
pelas imagens ultrassonográficas. Uma vez acionada pelo médico, a agulha, dotada de mecanismo
automático, retira um pequeno fragmento do tecido renal. O processo é realizado duas vezes para
que se obtenha duas amostras independentes e tem uma duração variável entre 20 e 30 minutos.
Pacientes submetidos ao procedimento podem apresentar leve sangramento retroperitoneal, sem
repercussões clínicas8. Indica-se a biópsia renal nas seguintes condições:
• Proteinúria > 2 g/24h ou síndrome nefrótica em doentes com < 1 ano ou > 10 anos;
• Hemato-proteinúria persistentes;
• Lesão renal aguda que não resolve em 3-4 semanas, mesmo depois de instituída a
terapêutica
• Insuficiência renal aguda de origem não óbvia ou com cilindros hemáticos;
• Doença renal crônica com rins de dimensões conservadas.
Por outro lado, cabe ressaltar as manifestações cuja presença contraindica a propedêutica
por biópsia, representadas por:
• Proteinuria subnefrótica isolada;
• Hematúria isolada persistente;
• Rins de dimensões reduzidas;
• Obstrução das vias urinárias;
• Hipertensão descontrolada;
• Infecção urinária ativa.

Pontos-chave
• As manifestações próprias da lesão renal costumam ser inespecíficas;
• O diagnóstico da lesão renal é concluído, principalmente, pela dosagem de
creatinina sérica;
• A urinálise é de extrema importância para diferenciar as causas da lesão renal;
• A ultrassonografia do aparelho renal pode fornecer informações valiosas;
• O emprego da biópsia é indicado para casos selecionados.

Leitura sugerida
1. Nunes TF, Brunetta DM, Leal CM, Pisi PCB, Roriz-Filho JS. Insuficiência renal aguda. Medicina (Ribeirão Preto)
2010;43(3): 272-82.
2. Riella MC. Princípios de Nefrologia e distúrbios hidroeletrolíticos. 5ª ed. Guanabar Koogan. 2010.
3. Ribeiro GLH, Rosa AF, Florian PZ, Antonello, IVF. Lesão renal aguda. Acta méd. 2016: 37(6).
4. Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) Acute Kidney Injury Work Group. KDIGO Clinical Practice
Guideline for Acute Kidney Injury. Kidney inter., Suppl. 2012; 2: 1–138.
5. Ministério Da Saúde. Diretrizes Clínicas para o cuidado ao paciente com doença renal crônica – DRC no Sistema
Único de Saúde. 2014. 1-37
392 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

6. Basso J, Mattos SG, Marques, AD, Figueiredo CEP. Injúria renal aguda (IRA): a evolução de um conceito. Acta
méd.2013; 34(5).
7. Gameraddin M. Ultrasound of the Kidneys: Application of Doppler and Elastography. In: Gamie SAA, Foda EM.
Essentials of Abdominal Ultrasound. London IntechOpen. 2019.
8. Motta PC. Indicações actuais para biópsia renal. Acta Méd Port 2005; 18: 147-151.
Lesão Renal Aguda e Diálise 52

Ana Cláudia Costa Pereira


Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
Define-se como lesão renal aguda (LRA) o declínio agudo da função renal, resultado do com-
prometimento das funções de filtração e de excreção, que leva a um aumento da creatinina sérica
e/ou a uma queda no débito urinário. Antigamente conhecida como insuficiência renal aguda
(IRA), teve sua terminologia alterada para endossar que a lesão renal denota um espectro amplo
da doença, que varia de comprometimento renal leve, como alterações transitórias e assintomá-
ticas dos parâmetros laboratoriais e da taxa de filtração glomerular (TFG), até a insuficiência re-
nal grave, implicando desequilíbrios potencialmente fatais. O manejo da LRA demanda profundo
entendimento da homeostase de líquidos e de eletrólitos, assim como o adequado emprego da
terapia renal substitutiva (TRS), quando for pertinente.
A incidência da LRA é elevada e muito significativa. Em países como os Estados Unidos, es-
timativas calcularam uma incidência anual de 500 a cada 100.000 habitantes, o que a enquadra
como uma condição mais incidente que o acidente vascular encefálico (AVE). Apesar de existir
certa imprecisão nas taxas de incidência, devido às diferenças no diagnóstico, nos critérios de
definição da entidade e nos códigos de alta hospitalar, estima-se que a incidência geral entre pa-
cientes hospitalizados varie entre 13% e 22%. No ambiente da unidade de terapia intensiva (UTI)
esses números são ainda maiores e as taxas de mortalidade intra-hospitalar podem ultrapassar
50%, ao passo em que a taxa de mortalidade em longo prazo, dos pacientes que sobrevivem à hos-
pitalização, é superior à da população geral. Além disso, até 7% dos pacientes hospitalizados por
LRA necessitam de terapia renal substitutiva. Quanto ao prognóstico, variáveis como a causa, a
gravidade e a duração da lesão atuam favorecendo ou prejudicando a recuperação clínica, embora
exista uma associação independente de LRA com um maior risco de morte. A LRA pode se desen-
volver tanto no ambiente comunitário, quanto no hospitalar. Na comunidade, as causas comuns
de LRA englobam depleção de volume, insuficiência cardíaca, efeitos adversos de medicamentos,
obstrução do trato urinário e malignidade. Com relação à LRA adquirida no ambiente hospitalar,
os contextos clínicos comumente encontrados são sepse, cirurgias de grande porte, doença crítica
(envolvendo insuficiência cardíaca ou hepática) e administração de medicamentos nefrotóxicos.
394 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Apresentação clínica
A sintomatologia da LRA está intrinsecamente associada à fisiopatologia da lesão e os
pacientes podem ser assintomáticos, oligossintomáticos ou se apresentar com achados clí-
nicos inespecíficos, motivo pelo qual a condição é diagnosticada apenas por meio de exames
laboratoriais.
Na lesão pré-renal, os pacientes podem ter história de perda excessiva de fluidos (hemorra-
gia, vômitos, diarreia ou sudorese) ou, quando hospitalizados, podem ser submetidos à reposição
insuficiente, de forma que as perdas contínuas e insensíveis não são cobertas, ou podem estar
acometidos pela sepse, discutida no capítulo 43, e podem ter história de cirurgia gastrointestinal
recente ou o diagnóstico de pancreatite. Nesse contexto, os pacientes relatam sintomas associados
à hipovolemia, como sede, tontura, taquicardia, oligúria ou anúria. Ademais, sendo a insuficiência
cardíaca avançada a causa da doença, podem ocorrer ortopneia e dispneia paroxística noturna.
Por outro lado, a lesão renal intrínseca, que tem como uma das principais causas a necrose
tubular aguda (NTA), pode ocorrer devido a infecção grave, exposição a medicamentos nefrotó-
xicos ou cirurgia de grande porte. Diante disso, o paciente pode manifestar erupção cutânea, he-
matúria ou edema com hipertensão, glomerulonefrite aguda ou vasculite renal. É também muito
importante a investigação de todos os medicamentos usados pelo paciente e de possíveis exames
radiológicos a que tenha se submetido recentemente, com o intuito de estabelecer qualquer ex-
posição a potenciais nefrotoxinas. Ademais, a rabdomiólise, que promove uma LRA induzida por
pigmento, deve ser suspeitada quando existe história de sensibilidade muscular, de convulsões, de
abuso de álcool ou de drogas, de excesso de exercícios ou de isquemia em membros.
No que tange às causas pós-renais, desencadeadas por obstruções, é importante definir que
ocorre, mais comumente, em homens idosos acometidos por obstrução prostática. Nesse racio-
cínio, pode haver história de urgência miccional, de polaciúria ou de hesitação. O diagnóstico de
obstrução também pode ser associado à história de malignidade, de prostatismo, de nefrolitíase
ou de cirurgia prévia. Quando a obstrução tem como causa cálculos renais ou necrose papilar, ela
se apresenta, tipicamente, com dor nos flancos e com hematúria.
De forma geral, as manifestações mais comuns da LRA são oligúria ou anúria, vômitos, ver-
tigem, ortopneia, dispneia paroxística noturna, edema pulmonar, hipotensão, taquicardia, hipo-
tensão ortostática, hipertensão e edema periférico.

Etiopatogênese
Conforme já introduzido, a etiologia da LRA pode se fundamentar em três grupos: causas
pré-renais, causas intrínsecas e causas pós-renais.
A azotemia pré-renal é o tipo mais comum de LRA. Esse termo indica a elevação da taxa
sérica de creatinina (CrS) e/ou da ureia, como resultado do fluxo plasmático renal inadequado e
da pressão hidrostática intraglomerular insuficiente para manter a filtração glomerular normal.
Ela pode ser consequente a qualquer entidade que curse com redução da perfusão renal, como
hipovolemia, hemorragia, sepse, perda de fluido para o terceiro espaço, diurese excessiva e outras
causas, como insuficiência cardíaca e uso de fármacos, incluindo-se os anti-inflamatórios não
esteroides (AINES) e os inibidores da angiotensina II.
Quanto à LRA intrínseca, causas multifatoriais podem subsidiá-la. Dentre as etiologias mais
comuns, destacam-se a NTA, a glomerulonefrite rapidamente progressiva e a nefrite intersticial,
L e s ã o R e n a l A g u d a e D i á l i s e 395

embasadas, fundamentalmente, na sepse, na isquemia e nas nefrotoxinas, sejam endógenas ou


exógenas. As doenças vasculares (como a síndrome hemolítico-urêmica e a púrpura tromboci-
topênica trombótica), a crise renal esclerodérmica, a embolização ateromatosa e a trombose tam-
bém são potenciais causas de LRA. Ademais, dentre os medicamentos comumente associados à
NTA constam os aminoglicosídeos, os AINES, os inibidores da enzima conversora de angiotensina
(IECA), os bloqueadores do receptor da angiotensina (BRA), a anfotericina, a cisplatina, o foscar-
net, o contraste iodado, a pentamidina, o tenofovir e o ácido zoledrônico.
Por fim, a lesão pós-renal acontece quando o fluxo da urina é bloqueado de forma aguda, seja
parcial, seja completamente, o que gera um aumento da pressão hidrostática retrógrada e interfe-
re na filtração glomerular. A obstrução do fluxo no trato urinário pode ter como causa distúrbios
funcionais ou estruturais desde a pelve renal até a extremidade da uretra. Causas comuns incluem
fibrose retroperitoneal, linfoma, tumor, hiperplasia da próstata, estenoses, cálculo renal, infecção
urinária ascendente e retenção urinária.

Diagnóstico
Como discutido brevemente no capítulo 51, o diagnóstico da LRA é estabelecido pelo au-
mento agudo da ureia e/ou da creatinina ou pela instauração de oligúria persistente, de acordo
com a definição do Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO). Os critérios da KDIGO
agrupam, em uma só definição, características dos critérios RIFLE (do inglês, Risk = risco; Injury
= lesão; Failure = insuficiência; End-stage renal disease = doença renal em estágio terminal) e dos
critérios da Acute Kidney Injury Network (AKIN)¹. O diagnóstico é concluído, então, na presença de
qualquer um dos três critérios2:
1. Aumento da creatinina sérica ≥ 0,3 mg/dl em 48h;
2. Aumento da creatinina sérica para ≥ 1,5x o valor inicial, que se sabe ou se supõe ter
ocorrido nos últimos 7 dias; ou
3. Volume urinário < 0,5 mL/kg/hora por pelo menos 6 horas. Ademais, o KDIGO define
critérios classificatórios, associados à gravidade do quadro, cuja enumeração merece
destaque, veja a Tabela 52.1.

Tabela 52.1. Critérios classificatórios de gravidade na lesão renal aguda


Estágio Critérios classificatórios
• Creatinina sérica elevada 1,5 a 1,9x o valor inicial; ou
Estágio 1 • Aumento na creatinina sérica ≥ 0,3 mg/dl; ou
• Débito urinário < 0,5 mL/kg/hora, por 6 a 12 horas.
• Creatinina elevada de 2,0 a 2,9x o valor inicial; ou
Estágio 2
• Débito urinário < 0,5 mL/kg/hora por ≥ 12 horas.
• Creatinina elevada 3,0x o valor inicial; ou
• Aumento na creatinina sérica para ≥ 4,0 mg/dl; ou
Estágio 3 • Necessidade de início da terapia renal substitutiva; ou
• Idade < 18 anos com declínio na taxa de filtração glomerular estimada para < 35 mL/min por 1,73m²; ou
• Débito urinário < 0,3 mL/kg/hora por ≥ 24 horas ou anúria por ≥ 12 horas.
Dados de Kidney disease: improving global outcomes (KDIGO) Acute Kidney Injury Work Group. KDIGO clinical practice guideline for
acute kidney injury. Kidney Int Suppl. 2012. Autoria própria.
396 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

No que tange à propedêutica inicial, devem estar incluídas a mensuração sérica de ureia e
de creatinina, a gasometria venosa, o hemograma, a urinálise, a urocultura, a bioquímica da urina
(para analisar a excreção fracionada de sódio e de ureia), a ultrassonografia do sistema renal (se
estiver indicada), a radiografia torácica e o eletrocardiograma (ECG), que pode revelar arritmias,
em se tratando de hipercalemia. O cateterismo da bexiga é indicado para todos os casos de LRA em
que a obstrução infravesical não puder ser rapidamente descartada pela ultrassonografia. Pode-
se, também, realizar prova volêmica com cristaloide ou com coloide: se a função renal melhorar
rapidamente após a infusão, sugere-se valor diagnóstico e terapêutico para azotemia pré-renal¹. A
Tabela 52.2 esquematiza os primeiros exames a serem solicitados na suspeita de LRA e os possíveis
resultados encontrados.

Tabela 52.2. Exames preconizados para a propedêutica inicial da lesão renal aguda
Exame Possíveis resultados
Creatinina sérica agudamente elevada, potássio sérico elevado, acidose
Perfil metabólico básico (contendo ureia e creatinina)
metabólica
Razão entre ureia e creatinina séricas Se proporção ≥ 20:1, reforça azotemia pré-renal
Gasometria venosa Acidose metabólica
Hemograma Anemia, leucocitose, trombocitopenia
Eritrócitos, leucócitos, cilindros celulares, proteinúria, bactéria, nitrito positivo e
Urinálise
esterase leucocitária
Urocultura Pode evidenciar crescimento bacteriano ou fúngico
Excreção fracionada de sódio < 1% dá suporte à azotemia pré-renal
Excreção fracionada de ureia < 35% dá suporte à azotemia pré-renal
Pode mostrar cálices renais dilatados (sugere obstrução), diminuição da
Ultrassonografia do aparelho renal diferenciação corticomedular ou rins com aparência pequena e esclerótica (sugere
doença renal crônica)
Radiografia torácica Pode evidenciar sinais de edema pulmonar e cardiomegalia
Se hipercalemia grave, pode apresentar pico de ondas T, aumento do intervalo
Eletrocardiograma
PR, QRS ampliado, parada atrial e deterioração do padrão de onda sinusal
Pode mostrar significativo volume urinário liberado após a colocação do cateter
Cateterismo de bexiga (em casos de obstrução infravesical) ou urina residual mínima (se produção
urinária comprometida ou elevado nível de obstrução)
Prova volêmica Na azotemia pré-renal, a função renal melhora rapidamente
Dados de Lafayette RA. Acute kidney injury. BMJ Best Practice. 2019. Autoria própria.

Estudos posteriores podem incluir tomografia computadorizada (TC) ou ressonância mag-


nética (RM), se for necessária uma avaliação mais aprofundada dos casos de obstrução. Exames
de fluxo renal nuclear podem ser úteis na avaliação da perfusão e da função renal. Outros testes
diagnósticos podem ser solicitados, a depender da etiologia da LRA suspeita. Por exemplo, em ca-
sos suspeitos de doença auto-imune, de vasculite, de infecção, de doença do imunocomplexo e de
glomerulonefrite, a pesquisa inclui cistoscopia, quantificação da antiestreptolisina O, mensura-
ção da velocidade de hemossedimentação (VHS), quantificação sérica do fator antinuclear (FAN),
do anti-DNA (ácido desoxirribonucleico), dos fatores complemento, do anticorpo antimembrana
L e s ã o R e n a l A g u d a e D i á l i s e 397

basal glomerular, do anticorpo anticitoplasma de neutrófilo, perfil sorológico de hepatite aguda,


teste para o vírus da imunodeficiência humana (HIV) e pesquisa de crioglobulinas. A biópsia renal
pode ser solicitada quando a anamnese e o exame físico sugerirem uma doença sistêmica como
etiologia ou se o diagnóstico for incerto¹. A Tabela 52.3 apresenta, sucintamente, os exames com-
plementares adicionais que podem ser considerados na propedêutica da LRA.

Tabela 52.3. Possíveis exames adicionais na propedêutica da LRA


Possíveis exames complementares
Tomografia computadorizada (TC) abdominal Complemento (C3, C4 e CH50)
Ressonância magnética (RM) abdominal Anticorpo antimembrana basal glomerular
Varredura nuclear do fluxo renal Anticorpo anticitoplasma de neutrófilo
Cistoscopia Perfil sorológico de hepatite aguda
Anticorpo antiestreptolisina O Sorologia para o vírus da imunodeficiência humana (HIV)
Velocidade de hemossedimentação (VHS) Crioglobulinas
Fator antinuclear (FAN) Biópsia renal
Anti-DNA (ácido desoxirribonucleico)
Dados de Lafayette RA. Acute kidney injury. BMJ Best Practice. 2019. Autoria própria.

Tratamento
Até então, inexistem terapias farmacológicas para a prevenção ou para o tratamento especí-
fico da LRA, uma vez que, por ser uma doença heterogênea, a identificação de uma única terapia
é dificultada. O diagnóstico precoce e o tratamento com drogas atuantes em diferentes vias têm
maior probabilidade de sucesso³. A terapêutica da LRA varia de acordo com o tipo de lesão, além
de dever ser voltada, também, à causa subjacente. Em termos gerais, o manejo inclui correção
das anormalidades eletrolíticas, ácido-base e otimização da volemia, seja por reposição ou por
remoção de fluido, via diurese ou terapia renal substitutiva. É importante, também, considerar
a possível necessidade de ajustar a dose dos medicamentos e de limitar a exposição aos agentes
nefrotóxicos¹. Apesar da conclusão diagnóstica e da instituição do manejo terapêutico, a LRA é
irreversível em, aproximadamente, 5% a 7% dos adultos e em até 16% dos idosos¹.

Azotemia pré-renal
O manejo objetiva melhorar o estado hemodinâmico do paciente. Havendo contração de vo-
lume, deve ser feita a expansão com fluidos cristaloides (solução salina 0,9% ou solução de Ringer
lactato) ou com coloides, nos casos de hipoalbuminemia significativa. Além disso, existindo hipo-
tensão grave, devem ser administrados vasopressores, enquanto se otimiza a volemia do paciente.
Em ocasiões em que a hipoperfusão renal for consequência da função cardíaca comprometida,
o manejo exige a otimização do débito cardíaco e da volemia, pelo emprego de inotrópicos, de
diuréticos ou de terapia renal substitutiva, com acompanhamento da função renal e da produção
de urina durante o processo¹.
398 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Lesão renal intrínseca


Nesses casos, o manejo depende da etiologia. Em pacientes com sobrecarga de volume,
deve ser realizada a restrição da ingestão de sódio. Os diagnósticos de nefrite intersticial ou de
LRA induzidas por medicamentos exigem a remoção da droga desencadeante, ou ajustes de
doses, quando necessário. A presença de glomerulonefrite aguda e de vasculite podem suscitar
a necessidade de se prescrever corticosteroides, agentes citotóxicos ou outros medicamentos
imunomodificadores. De forma oposta, para a necrose tubular aguda são preconizados apenas
os cuidados suportivos, de forma a manter a volemia e a corrigir as anormalidades eletrolíticas
e acidobásicas,³.

Lesão pós-renal
Se a ultrassonografia não puder descartar a presença de obstrução infravesical, deve ser ins-
talado um cateter vesical. Ademais, pode ser necessária a colocação de stent ureteral, a realização
de derivação urinária e a condução de procedimentos para a citorredução¹.

Terapia renal substitutiva


De forma geral, é indicada em casos de hipercalemia refratária grave, de acidose, de sobre-
carga volumétrica ou de uremia. O momento ideal para sua instituição ainda é motivo de investi-
gação³. Alguns estudos clínicos randomizados mostraram evidências de que a TRS precoce pode
reduzir o risco de morte e pode aprimorar a recuperação da função renal em pacientes críticos,
enquanto outros apontaram que essa intervenção, se realizada precocemente, pode piorar os re-
sultados, tendo sido detectado um risco aumentado de eventos adversos com o início precoce⁴.
Geralmente, quando existe a indicação de diálise, a opção mais utilizada é a hemodiálise conven-
cional. Nesse propósito, a via mais frequentemente empregada é a venovenosa contínuo, por meio
de um grande cateter de lúmen duplo inserido no sistema venoso central, como a veia jugular
interna ou a veia femoral. Quanto ao emprego da diálise peritoneal em pacientes com LRA, con-
trovérsias ainda existem¹, embora se sugira que ela seja uma modalidade segura e efetiva. Os estu-
dos são inconclusivos, porém, quanto à sua suposta superioridade comparativamente às terapias
extracorpóreas. Baseando-se em critérios como aumento de mortalidade, recuperação da função
renal, complicações infecciosas e correção da acidose, os trabalhos mostraram haver, provavel-
mente, pouca ou nenhuma diferença entre diálise peritoneal e terapias extracorpóreas5. A decisão
de descontinuar a terapia renal substitutiva nos pacientes com LRA é tomada sob o fundamento
de um dos três cenários clínicos:
1. Melhora da função renal intrínseca, de forma a responder fisiologicamente às demandas;
2. O distúrbio que culminou na necessidade do suporte renal foi controlado;
3. A TRS contínua não é mais consistente com os objetivos do tratamento³. Nos pacientes que
precisam de TRS, as taxas de sobrevida em cinco anos variam de 15% a 35%, e dentre os
que se utilizam dessa modalidade de tratamento menos de 10% prosseguem dependendo
de diálise por tempo indefinido.
L e s ã o R e n a l A g u d a e D i á l i s e 399

Complicações clínicas
Em longo prazo, existe alta probabilidade de os pacientes acometidos pela LRA desenvolve-
rem hiperfosfatemia e média probabilidade de desenvolverem uremia. As toxinas urêmicas, quan-
do acumuladas, podem resultar em letargia, em confusão e em obnubilação. Ademais, existe alta
probabilidade de, em um período variável, ocorrerem outras complicações, como a sobrecarga
de volume, a hipercalemia e a acidose metabólica. Existe, também, o risco de a LRA evoluir como
doença renal crônica progressiva, uma vez que a recuperação renal funcional pode não retornar
ao nível basal, afinal, essa recuperação depende de alguns fatores como o mecanismo e a gravida-
de da lesão, além da presença de comorbidades clínicas subjacentes.

Pontos-chave
• A LRA é definida como um declínio agudo da função renal que leva a um aumento
na creatinina sérica e/ou a queda no débito urinário;
• A LRA pode ser adquirida no ambiente comunitário ou no hospitalar e suas causas
podem ser pré-renais, intrínsecas ou pós-renais;
• As manifestações mais comuns da condição são oligúria ou anúria, vômitos,
vertigem, ortopneia, dispneia paroxística noturna, edema pulmonar, hipotensão,
taquicardia, hipotensão ortostática, hipertensão e edema periférico;
• O tratamento da LRA varia conforme o tipo de lesão, além de a equipe também
dever se atentar ao tratamento da doença subjacente. Porém, em termos gerais, a
terapia inclui correção dos distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-base, bem como na
otimização da volemia.

Leitura sugerida
1. Lafayette RA. Acute kidney injury. BMJ Best Practice. 2019; 1-59.
2. Kidney disease: improving global outcomes (KDIGO) Acute Kidney Injury Work Group. KDIGO clinical practice
guideline for acute kidney injury. Kidney Int Suppl. 2012 Mar; 2(1): 1-138.
3. Moore PK, Hsu RK, Liu KD. Management of Acute Kidney Injury: Core Curriculum 2018. Am J Kidney Dis. 2018;
72(1): 136-48.
4. Fayad AII, Buamscha DG, Ciapponi A. Timing of renal replacement therapy initiation for acute kidney injury.
Cochrane Database of Systematic Reviews. 2018
5. Liu L, Zhang L, Liu GJ, Fu P. Peritoneal dialysis for acute kidney injury. Cochrane Database of Systematic Reviews.
2017.
6. Waikar SS, Bonventre JV. Lesão renal aguda. In: Medicina Interna de Harrison. 20ª ed. Porto Alegre (RS): Artmed,
2019.
7. Azevedo FB, Ximenes RO, Martins HS. Lesão Renal Aguda Adquirida na Comunidade. In: Medicina de Emergência:
Abordagem prática. 11ª ed. São Paulo (SP): Manole, 2016.
Tentativa de Autoextermínio 53

Lara Lobão Campos Bignoto


Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
O psicólogo e suicidólogo americano Edwin Shneidman define o suicídio como “o ato
consciente de aniquilação autoinduzida, melhor entendido como uma enfermidade multidi-
mensional em um indivíduo carente que define uma questão para a qual o ato é percebido como
a melhor solução”1. Em todo o mundo, o suicídio representa a décima principal causa de morte.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 1 milhão de pessoas morrem
em decorrência do suicídio a cada ano, alcançando estimativas de até 1,5 milhão para a atua-
lidade2. No Brasil, aproximadamente 25 suicídios ocorrem a cada dia, correspondendo a 5,6%
das mortes por causas externas. Em 2008, o Brasil ocupava a 73ª posição no grupo mundial de
países com taxas crescentes de suicídio2,3. Os comportamentos autodestrutivo e suicida são res-
ponsáveis por 15% das emergências psiquiátricas, apresentando-se, portanto, como uma grave
questão da saúde pública4.

Epidemiologia
O perfil com maior prevalência de autoextermínio é caracterizado pelo sexo masculino – a
proporção brasileira foi de 4:1, em 20062 –, idade superior a 45 anos, cor branca e estado civil di-
vorciado ou viúvo5. Homens completam o suicídio cerca de 4 vezes mais do que mulheres e, na
maioria das vezes, usam meios mais violentos e mais letais6. Todavia, em relação à tentativa de
suicídio, alguns estudos apontam prevalência feminina e idade média inferior7.
Na população geral, o método mais comum de tentativa de autoextermínio é o envenena-
mento por drogas, seguido da realização de cortes6,8,9. As overdoses relatadas mais prevalentes são
por pesticidas, por paracetamol, por antidepressivos e por benzodiazepínicos7,9. No que tange ao
envenenamento, há um aumento de 10 vezes na chance de necessidade de admissão em Unidade
de Terapia Intensiva (UTI), comparados àqueles que tentaram suicídio por outros métodos,
principalmente se há evidências de falência orgânica8. Essa emergência apresenta significativa
morbimortalidade, com taxas de mortalidade alcançando cerca de 2% nas unidades com supor-
402 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

te avançado de vida6,10. No cuidado, os fatores mais associados à mortalidade em UTI incluem a


necessidade de ventilação mecânica, a presença de falência hepática, o tempo superior a 2 horas
para chegar ao hospital e a idade avançada10. Rebaixamento de consciência ou coma são compli-
cações em cerca de metade dos pacientes intencionalmente envenenados admitidos em UTI9. As
intoxicações exógenas são abordadas mais amplamente no capítulo 65.
Cabe ressaltar ainda que, no que concerne à ideação suicida, os jovens são os que apresen-
tam a maior taxa6. O autoextermínio é a segunda maior causa de morte entre pessoas com idades
de 15 a 29 anos no mundo,11 sendo certo que, enquanto a taxa geral de suicídio cresceu 30% nos
últimos 25 anos, o referido índice apresentou crescimento de 1.900% na faixa etária de 15 a 24
anos3. As causas de admissão de jovens em UTI, relacionadas à tentativa de autoextermínio, fo-
ram analisadas em um estudo canadense, cujos resultados evidenciaram a overdose sendo a mais
prevalente entre mulheres, em comparação com o enforcamento entre homens. Os precipitantes
mais comuns ao ato foram conflitos familiares (51%), discussão com parceria amorosa (23%) e
término de namoro (23%)12.

Fatores de risco e de proteção


São importantes fatores de risco para a tentativa de autoextermínio a história pessoal de
comportamento suicida, o abuso de medicamentos, de álcool e de drogas, além da presença de
comorbidades crônicas11. Evidências atuais sugerem, ainda, que a orientação sexual e a identida-
de de gênero são associadas ao risco de suicídio aumentado quando eles são identificados como
minoria social13. No entanto, o perfil de risco mais amplamente associado ao suicídio é o de doen-
tes psiquiátricos, podendo haver, ou não, interação com os demais fatores de risco. De acordo
com a OMS, aproximadamente 98% das pessoas que completaram o suicídio tinham diagnóstico
de doença mental6. O transtorno depressivo é o diagnóstico psiquiátrico mais prevalente nos sui-
cidas6 e cerca de metade dos pacientes psiquiátricos que consumaram o ato estava clinicamente
deprimida anteriormente à ação1,5. Em relação à esquizofrenia, o maior risco de suicídio ocorre
no início do curso da doença. Essa desordem psiquiátrica apresenta cerca de 5,6% de risco de au-
toextermínio durante a vida. No que tange ao uso de substâncias, por sua vez, usuários de drogas
injetáveis apresentam 14 vezes mais chance de cometer suicídio, enquanto o alcoolismo eleva essa
chance em quase 10 vezes em relação à população geral6.
As principais razões que deflagram a tentativa de autoextermínio incluem a violência do-
méstica – havendo uma associação significativa entre mulheres –, problemas familiares, doenças
crônicas, problemas sexuais, econômicos e solidão, que constituem os fatores determinantes de
risco11. Por outro lado, apesar de relativos, existem fatores protetores contra o ato, como a presen-
ça de suporte familiar, de círculo social, de fé, a habilidade de identificar razões importantes para
viver e a responsabilidade pelo cuidado de crianças13.

Condutas autodestrutivas
De acordo com a OMS, parassuicídio corresponde a um ato ou um comportamento não fatal,
eventualmente não habitual, vindo de um indivíduo que não apresenta clara intenção de morrer.
O comportamento parassuicida é progressivamente mais comum entre os adolescentes e pode ser
um esforço para provocar alguma reação específica de outra pessoa e pode aumentar o risco de
autoextermínio13. A tentativa de suicídio, por sua vez, é definida por ato autodestrutivo delibera-
Te n t a t i v a d e A u t o e x t e rm í n i o 403

do (automutilação ou auto-envenenamento) que não resulta em morte, apesar de existir a inten-


ção5. Segundo a OMS, a taxa de mortalidade após uma tentativa de autoextermínio é de 11,4 por
100.00014 e cerca de 1 a cada 25 pessoas admitidas no hospital devido à autolesão suicidam-se nos
5 anos seguintes11. Nesse contexto, as condutas autodestrutivas que não finalizaram em morte não
devem ser subestimadas e negligenciadas, afinal, fica evidenciado o risco estatístico de as pessoas
com esse comportamento, posteriormente, consumarem o ato.

Etiopatogênese
Os mecanismos fisiopatológicos do suicídio ainda não são plenamente elucidados pela co-
munidade científica. No entanto, algumas evidências são repetidamente identificadas em pa-
cientes suicidas, tornando-se consolidadas, como as anormalidades no sistema de serotonina e a
presença de hiperatividade ao estresse do eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal5,6.
Acerca do circuito da serotonina, estudos moleculares evidenciaram que a hipofunção pré-
-frontal e a responsividade serotoninérgica prejudicada são proporcionais à letalidade do com-
portamento suicida. Estudos post mortem mostraram deficiência na expressão do transportador
de serotonina6 e diminuição dos níveis de ligação da imipramina no córtex frontal5.
Ademais, adversidades ocorridas na infância podem causar alterações epigenéticas, evi-
denciadas em estudos post mortem, que são associadas a um forte fator de risco para suicídio
completo6.
Estudos em gêmeos e em uma comunidade amish evidenciaram associação etiológica ge-
nética como predisposição ao suicídio, independentemente da presença de fatores ambientais,
familiares ou da hereditariedade dos transtornos psiquiátricos1,5.

Tratamento
Uma vez consumada a tentativa de autoextermínio, medidas devem ser tomadas para reduzir
a morbimortalidade.

Manejo não farmacológico


O desfecho mais sério no tratamento de um paciente suicida é a repetição da tentativa do ato
durante a internação. Regularmente, é observado um estado de agitação precedendo o suicídio
intra-hospitalar, devendo, ele, ser um sinal de alarme para a equipe assistencial1,6. Nesse sentido, é
recomendável a revista nos pertences do paciente, a fim de que sejam identificados e retirados ob-
jetos pontiagudos e outros itens potencialmente letais, devendo, essa busca, acontecer de forma
recorrente e também entre os itens levados pelos visitantes5,13. Ademais, as refeições servidas não
devem exigir o emprego de utensílios além de colher plástica6. Além disso, idealmente, o pacien-
te deve ser alocado em uma ala onde não haja janelas ou, se presentes, que elas tenham grades
e vidros inquebráveis, de preferência próximo ao posto de enfermagem, para que a observação
seja máxima1. Entretanto, as UTI’s possuem limitações no manejo do paciente em questão, afinal,
vários itens do setor, necessários para o trabalho diário, podem ser usados como instrumentos de
autolesão. Vale considerar, ainda, a frequente existência de desafios comunicacionais, impostos,
por exemplo, pela necessidade de intubação e de sedação6.
404 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Uma vez estabilizado o paciente, tratadas as lesões relacionadas ao acidente e garantida a sua
segurança, deve-se iniciar o tratamento da doença psiquiátrica de base5. Depois de uma tentativa
de autoextermínio mal sucedida, ao despertar na UTI, o paciente deve ser avaliado pela equipe
médica, a quem compete a análise da dicotomia entre remorso e desesperança, constituindo-se,
a desesperança, um risco iminente. Nesse ponto, cabe a instituição de medidas de segurança e de
manejo psiquiátrico proativo imediatos 6,13.
Outro aspecto que deve ser aventado é a essencialidade da comunicação interdisciplinar no
manejo do paciente suicida cujo perfil é desafiador, como é o caso dos dependentes químicos e
dos portadores de desordens da personalidade. Esses indivíduos podem conduzir um conflito en-
tre equipe médica, induzindo, então, reações negativas6.

Consulta psiquiátrica
A interconsulta psiquiátrica é fortemente recomendada, essencialmente quando a seguran-
ça de um paciente for incerta, devendo, essa equipe, colher dados detalhados como diagnósticos
psiquiátricos, uso crônico de medicamentos e disposição13. Especificamente para pacientes ad-
mitidos na UTI, é imperiosa a abordagem das intenções suicidas residuais6. Por sua vez, para os
casos de comportamento suicida, a avaliação psicológica hospitalar é uma intervenção associada
a redução de 40% do risco de um desfecho de nova tentativa de autoextermínio em até 12 meses.
Além disso, o reconhecimento de uma desordem psiquiátrica é associado a 34% menos reincidên-
cias, uma vez estabelecido, corretamente, o tratamento7.
Por sua vez, a avaliação psicológica hospitalar para os casos de comportamento suicida é as-
sociada à redução de 40% do desfecho referente à nova tentativa de suicídio em até 12 meses nos
pacientes expostos a intervenção.

Medicamentos
A habilidade de prescrever o início do tratamento psiquiátrico medicamentoso após a tenta-
tiva de suicídio é desafiador, principalmente se o método do ato foi overdose pela droga utilizada13.
Ademais, a prescrição de antidepressivos deve ser ponderada e estabelecida buscando-se um alto
índice terapêutico e uma improvável fatalidade, na ocasião de haver outra tentativa de overdose5.
É importante salientar, também, o maior risco de suicídio durante o início do tratamento instituí-
do para transtorno depressivo, devido ao aumento da energia e ao consequente restabelecimento
da força para depreender nova tentativa.
Objetivando o controle da ansiedade e da agitação na fase aguda, o emprego de benzodia-
zepínicos, de antidepressivos sedativos ou de antipsicóticos de baixa potência é indicado3.
No que tange ao tratamento das desordens psiquiátricas, algumas considerações devem ser
elencadas. Na abordagem do transtorno bipolar, por exemplo, as eficácias do lítio e do valproato são
bem estabelecidas. No manejo da esquizofrenia, por outro lado, o Food and Drug Administration
(FDA) aprovou a clozapina como agente redutor do risco de suicídio. Para o transtorno depres-
sivo, a classe medicamentosa mais implementada é a dos inibidores seletivos de recaptação de
serotonina (ISRS). No que se refere ao controle do transtorno de ansiedade, é inapropriado, para
pacientes suicidas, a prescrição de sedativos e de hipnóticos. Quanto ao dependente químico, é
aconselhada a realização da desintoxicação e o encaminhamento ao centro de reabilitação15.
Te n t a t i v a d e A u t o e x t e rm í n i o 405

Em se tratando do autoenvenenamento agudo, sabe-se que a iniciação de medidas precoces


de ressuscitação e de suporte orgânico na terapia intensiva pode reduzir a mortalidade10. Medidas
específicas como o uso de carvão ativado, de atropina, de bicarbonato e de sulfato de magnésio
são amplamente utilizadas nesses casos, além da frequente necessidade de se instituir a intubação
e a ventilação mecânica9.

Alta hospitalar
Após alcançada a estabilidade do paciente, o psiquiatra, em conjunto com a equipe intensi-
vista, deve realizar o planejamento da alta avaliando o potencial de depressão e a ideação suici-
da. Deverão decidir, então, se após a alta, o paciente segue para casa ou para alguma instituição
psiquiátrica13. Ressalta-se, ainda, que imediatamente após a alta da hospitalização psiquiátrica, o
risco de suicídio é 16 vezes maior do que na população geral. Isso significa que, analisando-se o
risco de autoextermínio em um ano, um terço dele incide sobre as duas primeiras semanas pós-
-hospitalização, o que suscita a necessidade de estabelecer um planejamento seguro para o mo-
mento pós-tratamento16.

Conclusão
A tentativa de autoextermínio responde relativamente por poucas admissões em UTI’s, o que
representa, portanto, um desafio para a equipe de terapia intensiva, uma vez que o manejo da con-
dição exige diferentes especificidades. Mostra-se fortemente recomendado o preparo, estabeleci-
do por uma rede multidisciplinar de cuidados, para acompanhamento de pacientes que tentaram
suicídio. Essa conduta está associada tanto à diminuição de novas tentativas de autoextermínio,
quanto à redução do abandono do tratamento.8
Além disso, outras medidas indicadas para o momento da alta incluem a orientação de to-
dos os pacientes suicidas quanto à existência do acesso, via telefônica, ao Centro de Valorização
da Vida (CVV), a orientação dos familiares sobre a importância de restringir o acesso do doente a
meios letais e sempre documentar, em prontuário, as decisões compartilhadas, as orientações e o
contentamento do paciente em relação ao plano de alta11.
Por fim, é recorrente e perceptível o despreparo de grande parte dos funcionários dos hos-
pitais frente ao correto manejo dos pacientes suicidas. As opiniões desfavoráveis, as reações ne-
gativas e a intolerância para com a situação afetam, desfavoravelmente, o processo terapêutico.
Considerando os índices mundiais progressivamente maiores do suicídio e as demais razões acima
expostas, deve ser destacada a atual necessidade de se conduzir treinamentos do corpo colabora-
dor do hospital, cuja rotina envolve o contato com sobreviventes da tentativa de autoextermínio,
visando à melhora do conhecimento técnico e das atitudes afirmativas que fortalecerão o cuidado
voltado ao paciente suicida6.
406 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• O método mais comum de tentativa de autoextermínio é o envenenamento por
drogas, seguido da realização de cortes;
• As desordens psiquiátricas são os principais fatores de risco para o suicídio;
• As tentativas de autoextermínio e os parassuicídios comumente precedem o suicídio
consumado;
• Anormalidades no sistema de serotonina é a teoria mais consolidada na
etiopatogênese do suicídio;
• No manejo do paciente suicida, é importante avaliar a segurança do ambiente
hospitalar e afastar itens potencialmente letais;
• A interconsulta psiquiátrica durante a internação é fortemente recomendada;
• O tratamento medicamentoso deve ser prescrito com cautela, visando controlar a
agitação aguda e estabelecer o tratamento de base;
• Um plano de segurança e de acompanhamento para o momento pós alta hospitalar
deve ser preparado por equipe multidisciplinar.

Leitura sugerida
1. Kaplan HI, Sadock BJ, Grebb JA. Compêndio de psiquiatria. 7ª edição. Porto Alegre: ArtMed, 2010. 753-761.
2. Quevedo J, Carvalho AF. Emergências psiquiátricas. 3ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2014. 165-174.
3. Moreno RA, Cordás TA. Condutas em psiquiatria: consulta rápida. 2ª Edição. Porto Alegre: Artmed, 2018. 331-349.
4. Forlenza OV, Miguel EC. Compêndio de clínica psiquiátrica. 1ª Edição. São Paulo. Editora Manole, 2012. 611-621.
5. Andreasen NC, Black DW. Introdução a psiquiatria. 4ª Edição. Porto Alegre: Artmed, 2009. 395-409.
6. Garcia RM. Psychiatric Disorders and Suicidality in the Intensive Care Unit. Crit Care Clin. 2017;33(3):635-647.
7. Kapur N, Steeg S, Turnbull P, et al. Hospital management of suicidal behaviour and subsequent mortality: a pros-
pective cohort study. Lancet Psychiatry. 2015;2(9):809-816.
8. Walker X, Lee J, Koval L, Kirkwood A, Taylor J, Gibbs J, et al. Predicting ICU admissions from attempted suici-
de presentations at an Emergency Department in Central Queensland, Australia. Australas Med J. 2013; 6(11):
536-41.
9. Sulaj Z, Prifti E, Demiraj A, Strakosha A. Early Clinical Outcome of Acute Poisoning Cases Treated in Intensive
Care Unit. Med Arch. 2015;69(6):400-4.
10. Rajbanshi LK, Arjyal B, Mandal R. Clinical Profile and Outcome of Patients with Acute Poisoning Admitted in
Intensive Care Unit of Tertiary Care Center in Eastern Nepal. Indian J Crit Care Med. 2018;22(10):691-7.
11. The Joint commission.Detecting and treating suicide ideation in all settings. Sentinel Event Alert. 2016;(56):1-7.
12. Korczak DJ, Skinner R, Dopko R. Serious self-harm requiring intensive care unit admission: Understanding near-
-fatal suicide attempts. Paediatr Child Health. 2019;24(1):58-9.
13. Irwin RS, Lilly CM, Mayo HP, Rippe MJ. Intensive Care Medicine. 8ª Edição. Carlisle Publishing Services, 2018.
4991-500.
14. Simsek BK, Sahin KS. Analysis of Suicidal Patients Admitted to The Emergency Rooms and Their Intensive Care
Requirements, A Double-Center Study in Turkey. Medical Science and Discovery, 2019; 6(10), 224-9.
15. Cole-King A, Cates A. Manejo do Risco de Suicidio. BMJ. 2019.
16. Baldessarini RJ. Epidemiology of suicide: recent developments. Epidemiology and Psychiatric Sciences. Cambridge
University Press; 2020. 29:e71.
Descompensações Psiquiátricas 54
Iatrogênicas

Camila Silveira Mota Dutra


Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
Iatrogenia pode ser definida como qualquer alteração patológica, provocada nos pacientes,
secundária a procedimentos médicos de qualquer gênero, sejam diagnósticos, sejam terapêuti-
cos1. Nesse sentido, reações adversas a drogas, negligência e imperícia deflagram, frequentemen-
te, complicações iatrogênicas. Nas UTIs, as descompensações psiquiátricas são comuns e podem
ocorrer, por exemplo, devido à interação medicamentosa entre fármacos úteis ao tratamento da
doença aguda e psicofármacos dos quais o paciente faz uso cronicamente, à necessidade, por
diferentes razões, de descontinuar o uso de drogas psiquiátricas e à intoxicação por compostos
recém-instituídos2.
Devido à frequente confusão entre termos relacionados ao estudo da iatrogenia, algumas
considerações merecem destaque. Em primeiro lugar, vale ponderar que instauração da iatroge-
nia não implica, necessariamente, o estabelecimento de erro médico. Contudo, a negligência, a
imprudência e a imperícia podem, sim, subsidiar diferentes complicações iatrogênicas, o que su-
jeita o profissional às consequências administrativas, civis e penais1. Ademais, existe grande asso-
ciação entre iatrogenia e efeitos colaterais a drogas, afinal, inexiste algum medicamento dotado
de propriedades terapêuticas que não possa desencadear efeitos adversos. Nesse sentido, para
qualquer resultado benéfico, uma gama de efeitos colaterais indesejados devem ser ponderados
e previstos1, fato que se constitui um desafio na prescrição de fármacos2. Por isso, profissionais da
saúde familiarizados com os efeitos farmacodinâmicos dos medicamentos psiquiátricos estão em
melhor posição para prevenir reações indesejadas, aliando-se, sempre, a cautela, durante a pres-
crição, com a devida orientação aos pacientes e aos seus familiares1.
Neste capítulo, as descompensações psiquiátricas iatrogênicas discutidas se limitarão ao
transtorno bipolar induzido por medicamento, aos sintomas extrapiramidais induzidos por an-
tipsicóticos, ao delirium na UTI e à desinformação, embora outras entidades possam se fazer
presentes.
408 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Transtorno bipolar induzido por medicamento


De acordo com os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5
(DSM-5), o transtorno bipolar induzido por medicamento consiste em uma perturbação acen-
tuada e persistente no humor, caracterizada por humor eufórico, expansivo ou irritável, podendo
ou não ser acompanhado de humor deprimido e de anedonia3. Além disso, deve haver evidên-
cias clínicas de que os sintomas se desenvolveram após a exposição ao medicamento e de que
o fármaco pode deflagrar esses sintomas3. Os principais figurantes entre eles, no contexto da te-
rapia intensiva, incluem os antidepressivos, alguns antimicrobianos e os corticoides. Devido ao
fato de a mania configurar, geralmente, uma emergência médica5, os médicos e os profissionais
de saúde devem estar atentos à presença de sintomas sugestivos da condição, principalmente
na vigência de algum dos fármacos potenciais, e devem antecipar a resolução descontinuando,
quando possível for, essas drogas7,8. Ademais, a literatura sugere que o haloperidol, a olanza-
pina, a risperidona e a quetiapina são particularmente eficazes, em curto prazo, na redução
dos sintomas da mania secundária5. Além disso, os benzodiazepínicos são adjuvantes úteis no
propósito de controlar a doença5. Os antipsicóticos, por sua vez, são preferíveis, em detrimento
ao carbonato de lítio, para o tratamento do episódio maníaco agudo, afinal, a terapêutica com
o lítio deve ser iniciada em baixas doses, com aumento gradual, o que atrasaria o alcance do
controle almejado5.

Antidepressivos
Evidências sugerem que esses medicamentos podem induzir a manifestação da mania em
portadores do transtorno bipolar4. A literatura enfatiza, ainda, que os antidepressivos tricícli-
cos apresentam duas vezes mais risco de produzir sintomas maníacos, quando comparados aos
inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS)5. Observou-se que os episódios eram de
intensidade mais leve, de duração mais curta e de mais fácil manejo terapêutico4. A abordagem
primária consiste na redução gradual da dose ou na interrupção do medicamento desencadea-
dor4. Ademais, pode ser necessária a reavaliação do estabilizador de humor do qual o paciente faz
uso e a associação de algum antipsicótico e/ou de algum benzodiazepínico, até resolução com-
pleta dos sintomas4.

Corticoesteroides
São os medicamentos mais comumente associados à mania secundária5. Os sintomas bi-
polares normalmente surgem após vários dias de infusão e as altas dosagens parecem estar re-
lacionadas a maior probabilidade de produzi-los3. A mania pode ser tratada, inicialmente, com
a redução ou com a suspensão do corticoide. No entanto, para os pacientes que necessitam de
tratamento crônico com o medicamento, os antipsicóticos e os estabilizadores de humor po-
dem ser prescritos6. O haloperidol, por sua versatilidade no modo de administração, tanto oral
quanto intramuscular e intravenoso, parece ser o mais utilizado e exerce atividade terapêutica
mesmo em baixas doses6.
D e s c o m p e n s a ç õ e s P s i q u i á t ri c a s I a t ro g ê n i c a s 409

Antimicrobianos
O desenvolvimento da mania, secundariamente ao uso de antimicrobianos, é uma iatroge-
nia rara7,8. A literatura sugere que o fármaco mais frequentemente envolvido no processo seja a
claritromicina7,8. Agitação, insônia e estados confusionais foram os sintomas mais relatados7, apa-
recendo, em média, três dias após o início do uso e desaparecendo em dois dias após a desconti-
nuação e/ou o emprego de algum antipsicótico ou de algum benzodiazepínico7,8.

Sintomas extrapiramidais induzidos por antipsicóticos


Drogas que exercem o bloqueio dos receptores de dopamina são as principais causadoras
dos sintomas extrapiramidais induzidos por fármacos11, representados por distúrbios do mo-
vimento do tipo acatisia, distonia e parkinsonismo. Os antipsicóticos típicos ou de 1ª geração,
cujos principais representantes incluem o haloperidol, a trifluoperazina, a clorpromazina e a le-
vomepromazina, exercem bloqueio, predominantemente, no receptor de dopamina D2 e estão
mais associados aos efeitos em questão9. Os antipsicóticos atípicos ou de 2ª geração, por outro
lado, representados pela clozapina, pela risperidona, pela olanzapina, pela quetiapina e pelo
aripiprazol, são antagonistas de serotonina e de dopamina, mas exercem maior bloqueio dos
receptores de serotonina 5-HT2, quando comparado aos receptores D2 de dopamina9. Embora
tenham surgido prometendo um melhor perfil de efeitos colaterais, os antipsicóticos atípicos
permanecem manifestando alta prevalência de sintomas extrapiramidais10,11. O emprego de
antipsicóticos de alta potência, ou em altas dosagens, está relacionado à maior ocorrência de
efeitos adversos, como sedação, constipação, hipotensão postural, prolongamento do intervalo
QTc, síndrome metabólica, ganho de peso, síndrome neuroléptica maligna e sintomas extrapi-
ramidais10. Dessa forma, é imperioso realizar uma monitorização frequente a todos os pacientes
que fazem uso dessa classe medicamentosa, por meio de avaliação clínica, de eletrocardiografia
e de exames laboratoriais10. O reconhecimento precoce desses distúrbios é essencial para que
a intervenção imediata seja realizada11. A abordagem primária consiste na supressão do medi-
camento desencadeador11. A adição de um segundo medicamento capaz de tratar os sintomas
extrapiramidais pode ser necessária, além das medidas suportivas11,12. Além disso, com o intuito
de reduzir o risco de ocorrência desses efeitos, é de grande importância que a prescrição dos
antipsicóticos seja bem indicada13.

Parkinsonismo
As reações parkinsonianas manifestam-se como tremor, rigidez muscular (“roda dentada”),
instabilidade postural, hipomimia (fácies em máscara) e bradicinesia. Embora o bloqueio do re-
ceptor de dopamina ocorra horas após a administração do medicamento antipsicótico, o parkin-
sonismo pode se desenvolver após algumas semanas3,14. O parkinsonismo também pode ocorrer
devido à introdução de um segundo antipsicótico, ao aumento da dose farmacológica ou à adição
de alguma droga que implique aumento dos níveis plasmáticos do antipsicótico. Em grande parte
dos casos, os sintomas são revertidos em dias ou em semanas; contudo, se a via empreendida para
a administração foi parenteral, eles podem durar meses14. Os principais fatores de risco associados
ao desenvolvimento do parkinsonismo estão elencados na Tabela 54.1.
410 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 54.1. Principais fatores de risco para o desenvolvimento do parkinsonismo induzido por
antipsicóticos
Sexo feminino Infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV)
Idade avançada Comprometimento cognitivo
História de reação extrapiramidal Maior potência do antipsicótico em uso
História familiar de doença de Parkinson Duração longa de tratamento com antipsicótico
Dados de Ward et al e de Caroff et al . Autoria própria.
15 16

Pode ser difícil estabelecer a distinção entre parkinsonismo induzido e doença de Parkinson,
particularmente em pacientes idosos. Porém, os tremores do parkinsonismo induzido são, geral-
mente, bilaterais, o que pode ser útil no estabelecimento etiológico15,16. O tratamento do parkinso-
nismo induzido por medicamento consiste na monitorização da condição e na redução da dose,
na supressão do fármaco ou no intercâmbio por um agente de menor potência, como é o caso da
quetiapina. Quando não é possível proceder com a troca ou com a suspensão do antipsicótico,
uma alternativa plausível é a de adicionar um medicamento anticolinérgico ao esquema, como o
biperideno14,15.

Acatisia aguda
Acatisia é o distúrbio do movimento mais comum e é caracterizada pela sensação subjetiva
de inquietação, que pode ser acompanhada pelo desejo de se movimentar repetitivamente, como
cruzar as pernas ou mudar de um pé para o outro3,17. O distúrbio pode começar alguns dias após
o início do tratamento com antipsicóticos14. O diagnóstico da acatisia, por sua vez, pode ser desa-
fiador, afinal, as queixas vagas como nervosismo, tensão interna, vontade de se mover ou incapa-
cidade de relaxar, geralmente são estabelecidas ao diagnóstico de ansiedade ou de agitação14,17. Os
principais fatores de risco associados ao desenvolvimento da acatisia estão elencados na Tabela
54.2.

Tabela 54.2. Principais fatores de risco para desenvolvimento de acatisia aguda


Sexo feminino História de acatisia
Sintomas negativos Parkinsonismo concomitante
Disfunção cognitiva Transtorno do humor
Dados de Caroff et al16. Autoria própria.

Embora a acatisia seja o distúrbio do movimento mais comum, ela ainda é pouco reconheci-
da e mal diagnosticada na prática clínica, o que implica consequências prejudiciais13,17. A condição
reduz a adesão medicamentosa, além de que, quando interpretada como um agravamento de con-
dição subjacente, a dose do antipsicótico pode ser aumentada, o que vai exacerbar o distúrbio13.
Quanto à profilaxia, inexistem dados contundentes na literatura, motivo pelo qual a observa-
ção precoce dos sinais é a melhor conduta14. O tratamento da acatisia induzida por antipsicóticos,
por sua vez, exige reavaliação da terapia em vigência, podendo haver suspensão, redução da dose,
intercâmbio para alguma droga de menor potência e/ou adição de outro fármaco12,14,17. Pode ser
realizada, também, a troca do antipsicótico típico por algum atípico, desde que não sejam risperi-
D e s c o m p e n s a ç õ e s P s i q u i á t ri c a s I a t ro g ê n i c a s 411

dona ou aripiprazol17. Quando a redução da dose ou a retirada do medicamento não for possível,
terapias adjuvantes podem ser consideradas13. Nesse sentido, anticolinérgicos, betabloqueadores,
benzodiazepínicos e mirtazapina têm sido utilizados e induzem eficácia variável12,14,17. O propra-
nolol mostrou-se eficaz em alguns estudos, embora sua prescrição seja contraindicada na vigência
de algumas situações, como hipotensão e bradicardia14,17. A mirtazapina, em doses baixas, pode
ser empregada se o betabloqueador for contraindicado ou se existir o diagnóstico de depressão
associado13. Em pacientes com acatisia acompanhada de parkinsonismo, os agentes anticolinér-
gicos, como o biperideno, são os mais utilizados14. Os benzodiazepínicos, por seus efeitos ansiolíti-
cos e sedativos, podem ser benéficos no tratamento desse distúrbio, se forem prescritos por curtos
períodos de tempo14,17.

Distonia aguda
A distonia aguda, secundária à instituição de medicamentos antipsicóticos, consiste na con-
tração anormal dos músculos esqueléticos antagônicos, especialmente da face (crise oculogírica),
que podem surgir horas ou dias após a prescrição dos fármacos, seja administrado via oral ou via
parenteral3,11,14. As reações distônicas agudas são mais comuns entre indivíduos jovens e podem
ser dolorosas ou desconfortáveis, o que resulta na menor adesão do paciente ao tratamento12,14.
As reações podem acontecer quando a dose da droga é aumentada, quando um segundo antipsi-
cótico é acrescentado ao esquema ou quando existe intercâmbio para medicação de depósito. Os
principais fatores de risco para o desenvolvimento da distonia estão evidenciados na Tabela 54.3.

Tabela 54.3. Principais fatores de risco para o desenvolvimento da distonia


Idade mais precoce Transtornos do humor
Sexo masculino Hipocalcemia
História de reação distônica Hipoparatireoidismo
História familiar de distonia Hipertireoidismo
Uso de cocaína Desidratação
Dados de Caroff et al16. Autoria própria.

A distonia aguda pode ser diagnosticada, erroneamente, como distúrbio de conversão. Por
outro lado, pacientes podem simular os sintomas para receberem droga anticolinérgica ou para
evitar o consumo de antipsicóticos14. A distonia requer diagnóstico e tratamento em seus está-
gios iniciais, a fim de que contrações mais graves, como da laringe ou dos músculos respiratórios,
sejam evitadas16. Nesse sentido, existindo a suspeita de distonia induzida por antipsicótico, está
indicada a descontinuação do medicamento ou a redução da sua dose. Ademais, em se tratando
de medicação de depósito ou de casos em que a suspensão não pode ser realizada, o a terapêutica
pode ser conduzida com terapia anticolinérgica14,16. Na prática clínica, recomenda-se administra-
ção parenteral de biperideno16.

Delirium na UTI
Embora tenha sido discutido no Capítulo 28, cabem menções a essa entidade neste capítu-
lo, por constituírem-se, iatrogenicamente, frequentemente presentes na UTI18. De acordo com
412 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM – 5), o delirium é


uma perturbação da atenção ou da consciência, que não pode ser atribuída a distúrbios neuro-
cognitivos coexistentes, tampouco à diminuição do nível de consciência, a exemplo do coma3,18.
Essa perturbação tem início agudo e curso flutuante ao longo do dia, além de prejudicar a ca-
pacidade do paciente de receber, de processar, de armazenar e de recuperar informações3,18. A
entidade manifesta-se por meio de agitação, de ansiedade, de tentativas de remover disposi-
tivos, por sonolência, por redução de resposta a estímulos, ou oscilando entre esses estados18.
Uma vez diagnosticado, é importante a realização de uma avaliação clínica abrangente para
identificar suas possíveis causas. Isso inclui o exame clínico detalhado, associado à investigação
laboratorial19.
Evidências sugerem que esse distúrbio seja uma consequência fisiológica direta de outra con-
dição médica, como intoxicação ou abstinência de droga, ou que se deva a múltiplas etiologias,
das quais as principais estão elencadas na Tabela 54.43. Os pacientes que desenvolvem delirium
têm uma duração significativamente maior de necessidade de ventilação mecânica, maior tempo
de internação na UTI, além de maior risco de mortalidade hospitalar19.

Tabela 54.4. Principais fatores de risco para o desenvolvimento de delirium na Unidade de Terapia
Intensiva
Idade avançada Uso de benzodiazepínico, de morfina, de corticoide ou de medicamento anticolinérgico
Abuso de álcool e drogas História de distúrbios neurocognitivos
Hipotensão Distúrbio do sono
Sepse Sedação profunda
Distúrbios hidroeletrolíticos e metabólicos Gravidade da doença subjacente
Manejo da dor inadequado Cirurgia de grande porte
Ventilação mecânica -
Dados de Kotfis et al 18 e de Reznik et al 19. Autoria própria.

Dentre os medicamentos utilizados na UTI, os mais associados à ocorrência de delirium in-


cluem os agentes anticolinérgicos, os benzodiazepínicos, os corticoides e os opioides. O grupo
dos benzodiazepínicos (alprazolam, lorazepam, clonazepam e diazepam) deve ter seu emprego
limitado, uma vez que todos podem induzir o delirium. Os medicamentos anticolinérgicos, por
sua vez, como a prometazina, a atropina, a metoclopramida, a amitriptilina, a clorpromazina e os
bloqueadores H2, podem implicar a condição por acarretarem prejuízos na neurotransmissão, en-
quanto a droga opioide mais fortemente associada ao delirium é a morfina18. Vale ressaltar, porém,
que a busca pela etiologia, geralmente reversível, deve preceder o tratamento sintomático, pois,
em muitos casos, a correção do fator desencadeador melhora o estado do paciente. A avaliação se-
riada por repetidas vezes durante o dia aumenta a probabilidade diagnóstica e permite um trata-
mento adequado em tempo hábil19. Essa avaliação faz parte do trabalho da equipe interdisciplinar
e requer a cooperação de médicos, da equipe de enfermagem, de fisioterapeutas e, também, da
família do paciente18.
D e s c o m p e n s a ç õ e s P s i q u i á t ri c a s I a t ro g ê n i c a s 413

Desinformação
Dentro da psiquiatria, a iatrogenia perpassa pela desinformação dos pacientes. Segundo a
legislação, é direito do doente receber informações claras e compreensíveis a respeito de suas
hipóteses diagnósticas, dos diagnósticos confirmados, dos riscos e dos benefícios de eventuais
ações terapêuticas, da existência ou da ausência de tratamentos alternativos, bem como todas
as informações sobre sua condição clínica20. Nesse raciocínio, o direito à informação concede,
ao paciente, conhecimento e poder de decisão sobre o próprio processo terapêutico, determina
melhor adesão ao plano proposto20 e atua no sentido de identificar, precocemente, possíveis
eventos adversos1.
Por outro lado, se as informações não forem adequadamente passadas aos pacientes e aos
seus familiares, elas tornam-se, potencialmente, iatrogênicas21. Isso porque, algumas das informa-
ções transmitidas podem, erroneamente, amplificar e exacerbar os sintomas do paciente, o que
resulta em descompensação do quadro clínico21 e, associadamente, em ansiedade e em preocupa-
ção com a repercussão médica de sua condição21.
Dessa forma, é prudente que os profissionais tenham atenção à escolha das palavras e ao
modo como as informações serão transmitidas21. Ademais, é imperioso que a equipe de saúde uti-
lize linguagem de fácil entendimento ao se comunicar com o paciente e com os seus familiares20,21.
Uma sugestão ética para a explanação de possíveis reações adversas é a de enfatizar a porcenta-
gem da população não acometida por elas, além de explicitar não apenas os riscos, como também
os prováveis benefícios inerentes à proposta21.

Pontos-chave
• O reconhecimento precoce das reações extrapiramidais e da mania induzidas por
drogas é essencial para o estabelecimento de intervenção imediata, que inclui a
suspensão do medicamento causador, as medidas de suporte e, se necessário for, a
terapia adjuvante;
• O paciente deve ser informado sobre sua condição, sobre as propostas terapêuticas
e sobre a possibilidade de ocorrência de efeitos colaterais, em linguagem clara e
simples.

Leitura sugerida
1. Hetem LAB. Iatrogenia farmacológica em psiquiatria. J Bras Psiq 43:11-17, 1994.
2. Fava GA, Rafanelli C. Iatrogenic Factors in Psychopathology. Psychother Psychosom. 2019;88(3):129-140.
doi:10.1159/000500151.
3. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders: DSM-5. 5th edn Arlington, VA: American Psychiatric
Publishing; 2013.
4. Tamada RS, Lafer B. (2003). Indução de mania durante o tratamento com antidepressivos no transtorno bipolar.
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5. Goodwin GM, Haddad PM, Ferrier IN, et al. Evidence-based guidelines for treating bipolar disorder: Revised
third edition recommendations from the British Association for Psychopharmacology. J Psychopharmacol.
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une antibiothérapie. L’Encéphale, 43(2), 183-86. doi:10.1016/j.encep.2015.06.008.
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Eletroconvulsoterapia na UTI 55

Fernanda Penido Gonçalves de Souza


Orientador: Lucas Lima de Carvalho

Introdução
A eletroconvulsoterapia (ECT) é um tratamento seguro e eficaz para inúmeras condições mé-
dicas. Devido ao seu mau uso no passado, associado a torturas e a aplicações indiscriminadas nas
instituições psiquiátricas, criou-se um estigma em torno do tema. Entretanto, com os avanços da
medicina, esse procedimento, na contemporaneidade, segue um rígido protocolo e oferece gran-
des vantagens ao doente.
A terapia ocorre com o paciente sob anestesia geral, por meio da aplicação de uma corren-
te elétrica no cérebro, intermediada por um equipamento sobre o couro cabeludo, com duração
e com intensidade controladas, que desencadeia convulsões. Consiste em uma técnica indicada
para os casos de doenças psiquiátricas refratárias ao tratamento medicamentoso, para as condi-
ções potencialmente letais (por ex.: catatonia), para o controle de sintomas suicidas graves, para
as condições que exigem uma melhora rápida, bem como para o controle da síndrome neurolép-
tica maligna, da mania, da esquizofrenia, da doença de Parkinson, entre outros. É considerado um
dos tratamentos mais eficazes para depressão maior grave, com eficácia global de 80%, superando
a dos antidepressivos. Dentre os resultados obtidos com o procedimento incluem-se a melhora
do humor, do padrão de sono, do apetite e da disposição geral. Previamente à realização do pro-
cedimento, é necessária a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido por parte do
paciente ou de algum familiar. Ademais, nesse momento deve ser conduzido um exame clínico
minucioso, visando à avaliação dos fatores de risco, das condições pré-existentes e à solicitação de
exames pertinentes, bem como deve ser conduzida uma consulta pré-anestésica.

Mecanismo de ação
A corrente elétrica aplicada no couro cabeludo atinge uma grande quantidade de neurônios,
que, por sua vez, propagam um potencial de ação pelo córtex e pelas estruturas profundas, de-
sencadeando uma convulsão generalizada bilateral. Nesse momento, ocorre aumento do fluxo
416 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

sanguíneo cerebral, do consumo de oxigênio e de glicose, bem como a barreira hematoencefálica


aumenta sua permeabilidade. Ademais, ocorre um efeito anticonvulsivante ao longo do tempo de
aplicação da ECT, devido ao aumento do limiar convulsivo. Naqueles pacientes que respondem
bem ao tratamento, acontece, também, um aumento da quantidade de ondas lentas no córtex
pré-frontal. Por fim, os sistemas neurotransmissores sofrem mudanças e ocorre downregulation
dos receptores beta-adrenérgicos pós-sinápticos, assim como ocorre no tratamento conduzido à
base de antidepressivos.

Indicações
Algumas condições podem se beneficiar de grande monta pela ECT, motivo pelo qual serão
abordadas em suas especificidades.

Depressão¹
Constitui-se como a indicação mais comum, tanto na depressão unipolar (transtorno de-
pressivo maior) quanto na depressão bipolar (transtorno afetivo bipolar). A ECT deve ser cogitada
nas manifestações graves que requerem resposta rápida, em condições refratárias ao tratamento
medicamentoso, e nas situações em que há impossibilidade de se conduzir o tratamento medica-
mentoso, na presença de sintomas psicóticos ou melancólicos, em pacientes com risco aumenta-
do de suicídio ou de homicídio, na presença de sintomas de agitação ou de estupor ou na presença
de recusa alimentar.

Mania¹
Nesse caso, a ECT tem eficácia comparável à do carbonato de lítio em episódios agudos. É
preconizada para as situações em que é necessária a melhora rápida ou em que existem contrain-
dicações ao tratamento farmacológico. O procedimento é contraindicado para pacientes que fa-
zem uso do lítio, pois pode haver redução do limiar convulsivo e, consequentemente, instaurar-se
uma convulsão prolongada.

Catatonia²
A catatonia é uma condição grave, de múltiplas etiologias (transtorno afetivo bipolar, es-
quizofrenia, autismo, depressão), que pode gerar complicações sérias e letais. Apresenta-se com
alterações motoras, posturais, mutismo e negativismo, cujos sinais estão descritos na Tabela
55.1. É subdiagnosticada, devido ao fato de a sua apresentação clínica ser, por vezes, confundida
com o coma. A ECT é considerada como a primeira linha de tratamento e pode ajudar a reverter
essa condição.
E l e t ro c o n v u l s o t e ra p i a n a U T I 417

Tabela 55.1. Manifestações clínicas da catatonia


Estupor Ausência de atividade psicomotora; sem relação ativa com o ambiente
Catalepsia Indução passiva a uma postura mantida contra a gravidade
Flexibilidade cerácea Resistência leve ao posicionamento pelo examinador
Resposta verbal ausente ou muito pouca.
Mutismo
(Nota: Não se aplica se houver afasia estabelecida)
Negativismo Oposição ou ausência de resposta a instruções ou a estímulos externos
Postura Manutenção espontânea e ativa de uma postura contrária à gravidade
Maneirismo Caricatura esquisita e circunstancial de ações normais
Estereotipia Movimentos repetitivos, anormalmente frequentes e não voltados a metas
Agitação Não influenciada por estímulos externos
Caretas Contração dos músculos da face
Ecolalia Imitação da fala de outra pessoa
Ecopraxia Imitação dos movimentos de outra pessoa
Dados de Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-5). Autoria própria.

Pacientes psiquiátricos, muitas vezes, sofrem de negligência médica por desconhecimento


dos profissionais da saúde sobre os impactos somáticos que uma condição psiquiátrica pode ge-
rar. Nesse sentido, a catatonia pode gerar consequências graves, como pneumonia por aspiração,
tromboembolismo pulmonar, desidratação, desnutrição, lesões de pele e o paciente pode precisar
ser submetido à intubação orotraqueal.
O diagnóstico e o tratamento da catatonia devem ocorrer rapidamente, a fim de que as
complicações sejam mitigadas. As manifestações psiquiátricas apresentam melhora rápida e sig-
nificativa após a instituição da ECT e a aparência comatosa, em alguns casos, pode se resolver
rapidamente. Contudo, antes de se concluir o diagnóstico, deve ser feita uma investigação por
possíveis diagnósticos diferenciais de origem somática, como infecções, coma metabólico, ence-
falite autoimune e lúpus eritematoso sistêmico. A terapêutica acontece de acordo com a causa de
base; entretanto, deve ser evitado o emprego de antipsicóticos. Ademais, a ECT também se mostra
eficaz no tratamento da catatonia de origem não psiquiátrica.

Outras indicações¹
Além da depressão, da mania e da catatonia, outras condições podem se beneficiar da ECT,
dentre as quais se incluem os casos das gestantes deprimidas ou com sintomas suicidas, dos
transtornos com sintomas positivos acentuados, das psicoses episódicas/ atípica, do transtorno
obsessivo-compulsivo, do delirium, da síndrome neuroléptica maligna, do hipopituitarismo, dos
transtornos convulsivos intratáveis e das flutuações motoras na doença de Parkinson. Por outro
lado, a presença dos transtornos de personalidade, do transtorno de sintomas somáticos desa-
companhado da depressão e dos transtornos de ansiedade, não se constituem indicações elegíveis
ao procedimento.
418 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Contraindicações
Não são relatadas contraindicações absolutas para a realização do procedimento, afinal, ele
é considerado seguro e é bem tolerado até mesmo em idosos e em gestantes. Porém, os fatores de
risco, expostos na Tabela 55.2, e as doenças de base devem ser avaliados e controlados antes da
realização da ECT, especialmente aqueles relacionados ao sistema cardiovascular e à anestesia.

Tabela 55.2. Fatores de risco para a realização da ECT


Doença cardiovascular grave ou instável
Lesão intracraniana ocupando espaço com evidência de aumento na pressão intracraniana
Hemorragia cerebral ou acidente vascular encefálico (AVE) recente
Aneurisma vascular com sangramento ou instável
Doença pulmonar grave
Classificação ASA (American Society of Anesthesiologists) classe 4 ou 5
Dados do Protocolo de Eletroconvulsoterapia - Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais.
Autoria própria.

Avaliação pré-tratamento
Deve ser conduzido um exame físico e uma avaliação do histórico clínico do paciente antes
de se instituir a terapia. Fatores de risco devem ser identificados e controlados. Não existem exa-
mes complementares específicos cuja solicitação é obrigatória, sendo variáveis de acordo com as
comorbidades apresentadas pelos pacientes. É importante, também, realizar a avaliação do risco
anestésico.

Interação medicamentosa
Alguns medicamentos, evidenciados na Tabela 55.3, podem interferir com a ECT, motivo pelo
qual um interrogatório sobre as drogas utilizadas pelo paciente se faz necessário.

Tabela 55.3. Interações medicamentosas na ECT


Medicamentos permitidos Medicamentos não permitidos
Antidepressivos Benzodiazepínicos*
Inibidores da monoaminoxidase (IMAO) Anticonvulsivantes
Antipsicóticos Clozapina e Bupropiona**
Anticoagulantes Lidocaína***
Lítio Teofilina****
- Reserpina*****
*Tem ação anticonvulsivante, motivo pelo qual sua dose deve ser reduzida; **Desenvolvimento de convulsões de surgimento
tardio; ***Aumenta o limiar convulsivo; ****Aumenta a duração das convulsões; *****Comprometimento dos sistemas respiratório
e cardiovascular durante a ECT. Dados de Kaplan et al- Compêndio de Psiquiatria. 11ª e de The Safety of Electroconvulsive
Therapy and Lithium in Combination: A Case Series and Review of the Literature -The journal of ECT. Autoria própria.
E l e t ro c o n v u l s o t e ra p i a n a U T I 419

Procedimento
Conforme mencionado, anteriormente à condução da eletroconvulsoterapia deve ser obtida
a assinatura, seja do paciente, seja dos seus familiares, do termo de consentimento livre e escla-
recido. Uma vez registrado o documento, o procedimento é estabelecido sob efeito de anestesia
geral, de suporte na oxigenação e com a devida monitorização. É recomendado que o paciente
mantenha jejum nas 6 horas anteriores ao tratamento, além de ser importante ter à disposição da
equipe, durante o ato, um equipamento de emergência para estabelecer via aérea, caso seja neces-
sário. Medicamentos anticolinérgicos muscarínicos, dos quais o mais comumente empregado é a
atropina, podem ajudar a reduzir a quantidade de secreções orais e respiratórias, bem como blo-
queiam a instituição de bradicardia e de assistolia. Após a indução da anestesia, é infundido um
relaxante muscular para prevenir a ocorrência de fraturas e de lesões secundárias à convulsão. O
tratamento envolve um conjunto de sessões, embora não exista um número fixo de quantas delas
são necessárias, afinal, essa definição virá da equipe especializada, que julgará condicionalmente
às manifestações clínicas e à evolução do paciente ao longo das etapas. Preconiza-se a realização
do procedimento de 2 a 3 vezes por semana, embora valha ressaltar que a frequência de 3 vezes se
associou a maiores efeitos adversos, apesar da maior eficácia alcançada em contextos emergen-
ciais. As sessões são continuadas até se alcançar a resposta terapêutica máxima, definida como
aquela em que para de haver evolução clínica com as sessões subsequentes.

Mortalidade
A mortalidade pela ECT é baixa, cuja taxa é de 0,002% por sessão e de 0,01% para cada pa-
ciente. Complicações cardiovasculares constituem a maior causa de morte, especialmente em pa-
cientes com comorbidades cardíacas prévias descompensadas. Por esse motivo, é especialmente
importante avaliar os fatores de risco de cada doente e estabilizar as condições de base existentes.
A maioria dos efeitos colaterais são benignos e transitórios e, dentre eles, os cardiovasculares
e os cognitivos são os mais frequentes. A perda de memória transitória é o efeito adverso mais
incidente. Podem ocorrer, também, cefaleia, confusão e delirium. Devido à contração muscular
inerente ao procedimento, podem existir dores quando o paciente acordar. Ademais, uma peque-
na parcela relata episódios de náuseas e de vômitos.
420 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• A eletroconvulsoterapia é segura e eficaz. Uma corrente elétrica é aplicada
no paciente sob anestesia geral, o que gera convulsões controladas. A taxa de
mortalidade pelo procedimento é de 0,002%;
• São algumas das indicações do procedimento: doenças psiquiátricas refratárias,
sintomas suicidas graves, condições que requerem uma melhora rápida, depressão
maior grave e catatonia;
• É uma ferramenta terapêutica importante para as situações de catatonia, que
podem ser fatais se não tratadas. Essa condição pode ser confundida com o coma e
deve ser diagnosticada rapidamente;
• Não existem contraindicações absolutas à ECT. Os fatores de risco devem ser
identificados e tratados antes da condução terapêutica;
• Complicações deflagradas em pacientes portadores de cardiopatias
descompensadas são a maior causa de morte secundária ao procedimento;
• Os efeitos adversos são, na maioria das vezes, benignos e passageiros. A perda
transitória de memória é o mais frequente deles.

Leitura sugerida
1. Sadock B, Sadock V, Ruiz P. Kaplan e Sadock Compêndio de Psiquiatria. 11ª ed. Artmed; 2017.
2. Bulteau S, Laforgue EJ, Chimot L, Dumont R, Loutrel O, Etcheverrigaray F, Sauvaget A. Management of emergen-
cy electroconvulsive therapy in the intensive care unit for life-threatening psychiatric conditions: a case series. The
journal of ECT. 2018; 34(1), 55-59.
3. Lauar H, Nunes H, Salgado JV. Protocolo de eletroconvulsoterapia. Belo Horizonte: Fundação Hospitalar do
Estado de Minas Gerais: 2009.
4. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5®). Washington,
DC: American Psychiatric Association; 2013.
5. American Psychiatric Association. The practice of electroconvulsive therapy: recommendations for treatment,
training, and privileging: A task force report of the American Psychiatric Association. Washington, DC: American
Psychiatric Association; 2001.
6. Dolenc TJ, Rasmussen KG. The Safety of Electroconvulsive Therapy and Lithium in Combination: A Case Series
and Review of the Literature. The journal of ECT. September 2005; 21 (3): 165-70.
Anafilaxia e Reações a Fármacos 56

Carina Gabriela Andrade Oliveira


Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
A anafilaxia é uma reação grave que pode implicar o óbito1. A etiologia da condição é diversa
e sua incidência ao longo da vida é estimada em 0,05-2% nos EUA e, aproximadamente, em 3% na
Europa2. A frequência da anafilaxia induzida por fármacos, por sua vez, foi estimada entre 0,2% e
3,1% na Europa3, podendo afetar até 20% dos pacientes hospitalizados e até 7% da população ex-
posta a drogas. Duas categorias de reações adversas a medicamentos (RAM’s) abrangem a maioria
dos casos que ocorrem na prática clínica: reações “tipo A” e “tipo B”. As reações “tipo A” referem-se
às RAM’s relativamente comuns, previsíveis e dependentes da dose, geralmente explicadas pelo
mecanismo de ação da droga. Por outro lado, as reações do “tipo B”, também chamadas de rea-
ções idiossincráticas, são menos frequentes, quase imprevisíveis e associadas a maior morbimor-
talidade, sendo responsáveis por aproximadamente 15% de todas as RAM’s e incluem as reações
decorrentes de alterações na formulação do medicamento, como decomposição, e as reações de
hipersensibilidade3. Dependendo de sua gênese, as reações de hipersensibilidade são classificadas
como reações alérgicas, quando há evidência de mecanismo imunológico subjacente, por exem-
plo, anticorpos IgE ou IgG específicos para medicamentos ou células T, ou como reações de hiper-
sensibilidade não imunológicas/não alérgicas3. Ademais, as reações de hipersensibilidade podem
ser classificadas como imediatas ou não imediatas, conforme o momento de início dos sintomas.
As reações imediatas geralmente ocorrem dentro de 1 a 6 horas após a primeira administração de
um medicamento, são mediadas ou por IgE ou por IgG, e as manifestações clínicas mais comuns
incluem urticária, angioedema, broncoespasmo, anafilaxia ou choque. As reações de hipersensi-
bilidade não imediatas ou tardias ocorrem pelo menos 1 hora após o início do tratamento medi-
camentoso, mas geralmente após várias horas ou dias. Essas reações tardias são mediadas por IgG
ou são dependentes de célula T e podem induzir a manifestação de erupções cutâneas benignas
como urticária e erupções maculopapulares ou de reações mais graves como pustulose exante-
matosa generalizada aguda (AGEP ), síndrome de Stevens-Johnson (SJS) e reação medicamentosa
com eosinofilia e sintomas sistêmicos (DRESS)3.
422 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Apresentação clínica
A anafilaxia, qualquer que seja sua gênese, pode ser diagnosticada clinicamente com o
subsídio dos sinais e sintomas descritos na Tabela 56.1. A sintomatologia dessa condição pode
apresentar-se rapidamente, evoluindo com comprometimento das vias aéreas, com desconforto
respiratório, com instabilidade hemodinâmica e, potencialmente, com óbito4.
As manifestações das RAM’s, por sua vez, quando do tipo imediato, incluem urticária isolada,
angioedema, rinite, conjuntivite, broncoespasmo, sintomas gastrointestinais ou anafilaxia, que
pode implicar o colapso cardiovascular, instaurando, então, o choque anafilático5.
Por outro lado, a sintomatologia das RAM’s do tipo não imediato costuma incluir um com-
ponente dermatológico como urticária tardia, erupções maculopapulares, vasculite ou, no caso
da síndrome de Stevens-Johnson e da necrólise epidérmica tóxica, bolhas. Os órgãos internos
podem ser afetados isoladamente, instaurando hepatite, insuficiência renal, pneumonite, ane-
mia, neutropenia e trombocitopenia ou podem ser afetados em associação aos sinais e sintomas
cutâneos5.

Etiopatogênese
Na maioria das vezes, a anafilaxia é secundária a uma resposta imunológica mediada por
imunoglobulina IgE ou a uma reação não imunológica contra certos antígenos, o que resulta em
degranulação de basófilos. Dentre os principais fatores desencadeadores destacam-se a ingestão
de determinados alimentos (responsáveis por cerca de um terço a metade das reações), picadas
de insetos, contato com látex, contato com venenos e a realização de exercício físico com ou sem
a presença de um alérgeno4.
As RAM’s do tipo imediato, por sua vez, desenvolvem-se como resultado da produção de IgE
por linfócitos B específicos contra o antígeno, fenômeno intitulado de sensibilização. Em uma ex-
posição subsequente, o antígeno associa-se à IgE, que agora está ligada aos basófilos, e estimula a
liberação de mediadores pré-formados, como histamina, triptase, citocinas e TNFα5.
Por outro lado, as RAM’s do tipo não imediatas são mediadas, principalmente, por linfóci-
tos T. Os linfócitos específicos contra o antígeno migram para os órgãos-alvo e, uma vez reex-
postos ao antígeno, eles são ativados para secretar citocinas que regulam a resposta e citotoxinas
(por ex., perforina, granzimas e granulisinas).

Diagnóstico
O diagnóstico da anafilaxia é clínico e deve ser basear no reconhecimento da instalação
súbita de um conjunto característico de sinais e sintomas, minutos a horas após a exposição a
um estímulo conhecido ou suspeito. Tipicamente, os sintomas afetam dois ou mais sistemas,
como cutaneomucoso, respiratório, gastrointestinal, cardiovascular e neurológico. A anafila-
xia é altamente provável quando qualquer um dos três critérios presentes na Tabela 56.1 for
preenchido6.
A n a f i l a x i a e R e a ç õ e s a F á rm a c o s 423

Tabela 56.1. Critérios diagnósticos para anafilaxia


Critério 01: Início agudo de uma doença (em minutos ou horas) com envolvimento da pele, das mucosas ou de ambos, associado a, pelo
menos, um dos seguintes:
• Acometimento de vias respiratórias: dispneia, sibilos, estridor ou hipoxemia;
• Hipotensão arterial ou sintomas de hipofluxo: síncope, choque ou incontinência.
Critério 02: Início rápido após a exposição de um possível alérgeno, associado a dois ou mais dos seguintes achados:
• Envolvimento de pele ou de mucosas;
• Acometimento de vias respiratórias;
• Hipotensão ou disfunção do sistema orgânico final;
• Sintomas gastrointestinais persistentes: diarreia, vômitos ou cólica abdominal.
Critério 03: Hipotensão após exposição a um alérgeno conhecido para o paciente.
Dados de Sangalho I, Barbosa MP, Ferreira MB. Anafilaxia - 8 anos de internamentos no Serviço de Imunoalergologia do Centro Hospitalar de
Lisboa Norte. Rev Port Imunoalergologia7. Autoria própria.

Estratégias laboratoriais, se utilizadas para confirmar o diagnóstico, demonstram a atividade


imunológica subjacente. A presença de IgE específica contra o antígeno comprova a sensibilização
do sistema e um nível de soro agudo de triptase total maior que o nível basal, obtido em, no míni-
mo, duas horas após o desaparecimento dos sinais e dos sintomas, evidencia a ativação prévia de
mastócitos. No propósito de outras investigações, como os testes cutâneos ou a determinação in
vitro da presença de IgE antígeno-específica, a equipe deve aguardar pelo menos duas semanas, a
fim de prevenir resultados falso-negativos7.
O diagnóstico das RAM’s, por sua vez, é baseado em uma história clinica detalhada, em testes
cutâneos e/ou na quantificação de anticorpos IgE específicos (sIgE), comercialmente disponíveis
para um número muito limitado de fármacos8. Na maioria dos casos, esses testes são insuficientes
e pouco sensíveis para um diagnóstico adequado. Ademais, tem sido repetidamente demonstrado
que o resultado do teste diagnóstico pode ser altamente dependente do intervalo de tempo decor-
rido entre a reação e a realização do teste, preconizado entre 6-12 meses. O método padrão-ouro
instituído para o diagnóstico das RAM’s é o teste de provocação, que nem sempre é realizado por
razões éticas, práticas e por ser potencialmente danoso9.

Tratamento
Os pilares do tratamento da anafilaxia estão descritos na Tabela 56.2, sendo a administra-
ção de adrenalina intramuscular preconizada para todos os pacientes acometidos pela condição.
Após a recuperação clínica, os pacientes devem ser monitorizados para prevenir possíveis reações
bifásicas, as quais são definidas como sinais recorrentes ou novos sintomas de anafilaxia sem ree-
xposição evidente ao alérgeno1.
Em algumas condições, como asma grave e persistente associada à alergia alimentar ou
anafilaxia prévia a alimentos, a látex e a aeroalérgenos, o paciente deve se equipar com um au-
toinjetor de adrenalina.
O encaminhamento ao especialista em alergia/imunologia, sempre que possível, desempe-
nha um papel essencialmente importante para a confirmação da etiologia de um episódio anafilá-
tico, para a orientação do paciente no que se refere ao autotratamento e para a educação quanto à
prevenção de exposição aos alérgenos2.
424 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Indivíduos com reações anafiláticas anteriores têm maior risco de recorrência. No entanto, a
gravidade da reação anterior não necessariamente permite prever a gravidade de uma reação sub-
sequente. O tratamento envolve a administração imediata de adrenalina intramuscular, essencial
para um desfecho favorável10.

Tabela 56.2. Pilares do tratamento da anafilaxia


Intervenções de primeira linha
• Avaliação imediata da via aérea, da respiração, da circulação, da incapacidade do paciente e da história de exposição a alérgenos;
• Recomenda-se o tratamento de primeira linha com injeção de adrenalina intramuscular (IM) na face anterolateral da coxa antes de iniciar
outras intervenções;
• A adrenalina IM (1 mg/mL) deve ser administrada na dose de 0,01 mL/kg de peso corporal até uma dose total máxima de 0,5 mL;
• A administração de adrenalina subcutânea ou inalada é preconizada para tratamento de estridor e de edema da laringe;
• A ressuscitação cardiopulmonar deve ser imediatamente instituída se ocorrer parada cardiorrespiratória.
Intervenções de segunda linha
• Remoção imediata, se possível, do provável gatilho da anafilaxia;
• Ofertar oxigênio de alto fluxo quando houver sinais de insuficiência respiratória;
• Fluidos intravenosos devem ser administrados a pacientes com instabilidade hemodinâmica, preferencialmente os cristaloides em bolus de
20 mL/kg;
• Adição ocasional de agonistas beta-2 inalados para aliviar os sintomas de broncoconstrição em pacientes com anafilaxia.
Intervenções de terceira linha
• Anti-histamínicos sistêmicos (anti-H1 e anti-H2) são recomendados apenas para o alívio dos sintomas cutâneos da anafilaxia;
• Altas doses de budesonida nebulizada podem ser eficazes para aliviar o edema das vias aéreas.
Dados de Anaphylaxis: guidelines from the European Academy of Allergy and Clinical Immunology”. Autoria própria.

No que se refere ao tratamento das RAM’s, a dessensibilização rápida é clinicamente empre-


gada quando não for possível substituir o fármaco por algum análogo. Esse procedimento consiste
na indução temporária de tolerância, que é mantida durante o período de exposição ao medica-
mento. Na prática, inicia-se a administração de uma dose baixa, 10.000 vezes menor que a tera-
pêutica, e quantidades crescentes são adicionadas a cada 15-20 minutos, durante um período de
várias horas, até que a dose terapêutica seja alcançada11. Por outro lado, muitas reações a drogas
envolvem erupções cutâneas autolimitadas que se resolvem espontaneamente após a desconti-
nuação do uso do agente desencadeador7.
No que se refere ao tratamento farmacológico das RAM’s, recomenda-se que seja guiado con-
forme as manifestações clínicas. Reações imediatas mais brandas, como urticária não extensa ou
angioedema palpebral, geralmente respondem bem a anti-histamínicos-H1 orais. Já reações mais
graves, como a anafilaxia, requerem tratamento de urgência, conforme explicitado anteriormente.
Para o tratamento das reações tardias, como os exantemas máculo-papulares, as dermati-
tes de contato e o eritema fixo, a droga de escolha é o corticosteroide, seja tópico, seja sistêmico,
conforme a extensão das lesões. O tratamento das reações graves, como a Síndrome de Stevens-
Johson (SSJ) e a Necrólise Epidérmica Tóxica (NET), envolve, geralmente, o uso de corticosteroi-
des sistêmicos, de imunossupressores e de imunoglobulina intravenosa11.

Complicações clínicas
Uma das mais graves complicações associadas à anafilaxia e às reações a fármacos é a evo-
lução para colapso cardiovascular e insuficiência respiratória, o que caracteriza o choque. Essa
A n a f i l a x i a e R e a ç õ e s a F á rm a c o s 425

manifestação costuma ser mediada por IgE quando associada a fármacos, mas pode ocorrer inde-
pendentemente da imunoglobulina, como é o caso das reações a anti-inflamatórios não esteroi-
dais e a contrastes radiológicos8. O choque é definido como uma condição grave, decorrente do
desequilíbrio entre oferta e consumo de oxigênio tecidual. Embora a hipotensão – pressão arterial
sistólica menor que 90 mmHg, pressão arterial média menor que 65 mmHg ou redução da pressão
arterial sistólica em 40 mmHg do basal – seja frequente no choque, sua presença não é obrigatória
e os marcadores de perfusão ou de oxigenação devem ser pesquisados, como lactato, saturação
venosa mista de O2 ou saturação venosa central de O212.

Pontos-chave
• A anafilaxia é uma emergência de diagnóstico clínico;
• A base primordial do tratamento da anafilaxia é a aplicação intramuscular de
adrenalina;
• O diagnóstico das RAM’s é baseado em história clínica detalhada, teste de
provocação, testes cutâneos e/ou quantificação de IgE específicos;
• A maioria dos casos de RAM’s resolve-se com a descontinuação do fármaco.

Leitura sugerida
1. Fróis AT; Cardoso T. Anaphylactic Reactions in the Emergency Department of a Portuguese Tertiary Hospital:
Clinical Characterization and Disease Notification. Acta Med Port 2019 Feb;32(2):91-100.
2. Muraro A, Roberts G, Worm M, Bilo MB, Brockow K, Fernandez Rivas M et al on behalf of the EAACI Food Allergy
and Anaphylaxis Guidelines Group. Anaphylaxis: guidelines from the European Academy of Allergy and Clinical
Immunology. Allergy 2014; 69: 1026-45.
3. Mendes D, et al. Drug- induced hypersensitivity: A 5- year retrospective study in a hospital electronic health
records.J Clin Pharm Ther. 2019; 44:54-61.
4. Sundquist BK, Jose J, Pauze D, Pauze D, Wang H, Järvinen KM. Anaphylaxis risk factors for hospitalization and
intensive care: A comparison between adults and children in an upstate New York emergency department. Allergy
Asthma Proc. 2019;40(1):41-47.
5. Demoly P, Adkinson NF, Brockow K, Castells M, Chiriac AM, Greenberger PA, et al. International Consensus on
drug allergy. Allergy 2014; 69: 420-37.
6. Sangalho I, Barbosa MP, Ferreira MB. Anafilaxia - 8 anos de internamentos no Serviço de Imunoalergologia do
Centro Hospitalar de Lisboa Norte. Rev Port Imunoalergologia. 2017; 25( 1 ): 27-38.
7. Grammer LC. Alergia a fármacos. In: LONGO, Dan L. et al. Medicina interna de Harrison. Medicina Interna de
Harrison. 19. ed. Porto Alegre: AMGH, 2017.
8. Silva CMR, Chong- Ailva DC, Ried CA, Chong- Neto HJ, Rosario-Filho. Oral challenge test rules out drug allergy.
Braz J Allergy Immunol. 2019; 3 (3): 317-21
9. Mayorga C, et al. On behalf of In vitro tests for Drug Allergy Task Force of EAACI Drug Interest Group. In vitro tests
for drug hypersensitivity reactions: an ENDA/EAACI Drug Allergy Interest Group position paper. Allergy 2016; 71:
1103-113.
10. Andreae, Doerthe Adriana; Andreae, Michael Henning. Anafilaxia Fundamentos, 1., 2019, Londres. Anafilaxia.
Londres: Bmj, 2019. 53 p
11. Ensina LF, Fernandes FR, Gesu G, Malaman MF, Chavarria ML, Bernd LAG.Drug hypersensitivity reactions Rev.
bras. alerg. imunopatol. 2009. 32 (2): 42-7
12. Azevedo LCP de, Taniguchi LU, Ladeira JP, Martins HS, Velasco IT. Medicina intensiva: abordagem prática.
2020:555-578
Distúrbios da Coagulação 57

Laura Antunes Vitral


Pedro Oertel D’amico
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
Pacientes sob cuidados intensivos, frequentemente, apresentam algum distúrbio da coagu-
lação, com grande impacto na morbimortalidade. As coagulopatias apresentam as mais diver-
sas causas, sendo as principais enumeradas na Tabela 57.1. Neste capítulo, daremos destaque às
trombocitopenias, à coagulação intravascular disseminada (CIVD) e à coagulopatia por doença
hepática.

Tabela 57.1. Causas comuns de distúrbios da hemostasia


Causas hereditárias Causas adquiridas
Hemofilia A; Defeitos plaquetários qualitativos e quantitativos;
Hemofilia B; CIVD;
Doença de Von Willebrand; Sepse;
Deficiência de fibrinogênio. Deficiência de vitamina K;
Antagonista de vitamina K;
Anticoagulantes;
Doença hepática;
Doença renal.
Dados de Lee A1. Autoria própria.

Fisiologia da coagulação
De acordo com o modelo clássico, os mecanismos de coagulação que dão origem ao com-
plexo de substâncias capaz de ativar a protrombina podem ser divididos em três vias: extrínseca,
intrínseca e comum. Todas as três envolvem uma série de proteínas plasmáticas chamadas de
fatores de coagulação. A Figura 57.1 ilustra essas vias.
428 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Via INTRÍNSECA Via EXTRÍNSECA

Ativação por contato Trauma tecidual

XII XIIa
CAPM e
pré-calicreína
Fator tecidual
XI XIa

Ca++

IX IXa

FP VIIIa VIIa VII

Ca++ Ca++
X Xa X Via COMUM

V
Ca++

Complexo ativador
de protrombina

FP Ca++

Protrombina Trombina

Fibrinogênio Monômeros de fibrina

XIIIa
Ca++

Fibrina estável Fibras de fibrina

Figura 57.1. Esquema representativo da cascata da coagulação.


FP: fosfolipídio plaquetário; CAPM: cininogênio de alto peso molecular. Dados de Guyton AC, Hall JE2. Autoria própria.

Exames laboratoriais
Os exames laboratoriais são imprescindíveis para o diagnóstico dos distúrbios circulatórios,
motivo pelo qual devem ser atrelados à história clínica e ao exame físico do paciente.
A contagem sérica de plaquetas é um exame sensível e pouco específico. É necessária a mo-
nitorização dos níveis de plaquetas (a variação no nível de plaquetas ao longo do tempo é caracte-
rística de determinados diagnósticos e pode, também, indicar a evolução do quadro), assim como
a avaliação hematoscópica, que pode auxiliar no diagnóstico de pseudotrombocitopenia, doenças
plaquetárias qualitativas, entre outras.
D i s t ú r b i o s d a C o a g u l a ç ã o 429

O tempo de protrombina (TP) reflete a função das vias extrínseca e comum da coagulação. A
razão normalizada internacional (RNI) é calculada a partir do TP e costuma ser usada para avaliar
o efeito anticoagulante da varfarina. O tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa), diferente-
mente do TP, reflete a função das vias intrínseca e comum da coagulação.
A dosagem de D-dímero e de produtos de degradação da fibrina (PDFs) pode ser útil. Deve-se
levar em conta, entretanto, que níveis aumentados de D-dímero e de PDFs são frequentes e ines-
pecíficos em pacientes críticos.
A quantificação do fibrinogênio sérico é um exame de grande importância no contexto das
coagulopatias, apesar do fato de que, por atuar como proteína de fase aguda, seu nível pode estar
normal ou mesmo aumentado em determinadas situações.
Outros exames diversos também podem ser solicitados em casos selecionados. Entre eles, o
tempo de sangramento (TS), o exame de atividade do antifator Xa, o tempo de coagulação ativado
(TCA) e o tromboelastograma (TEG).

Trombocitopenias
Define-se como trombocitopenia a condição que cursa com contagem de plaquetas <
150.000/µL. Além disso, a trombocitopenia pode ser classificada em leve, quando a contagem fica
entre 100.000-149.000/µL, em moderada, quando a contagem fica entre 50.000-99.000/µL e em
grave, quando a contagem fica < 50.000/µL. Algumas das possíveis etiologias serão abordadas a
seguir.

Trombocitopenia induzida por drogas


Medicamentos podem levar à redução da contagem plaquetária por diversos mecanismos,
porém, a causa mais comum é uma reação imune idiossincrática. A trombocitopenia induzida por
drogas é uma condição de difícil diagnóstico, afinal, centenas de medicamentos podem precipi-
tá-la e pacientes em estado crítico frequentemente fazem uso de várias drogas. Essa condição se
caracteriza, em geral, por uma contagem de plaquetas inferior a 20.000/µL, em cerca de cinco a
dez dias após a exposição ao fármaco. O diagnóstico é firmado a partir da exclusão de outras pos-
síveis causas, do tempo de evolução compatível com a condição e da resposta do paciente após a
retirada do medicamento3,4.

Trombocitopenia induzida por heparina (TIH)


É uma condição decorrente de reação imune causada por anticorpos contra complexos “fator
4 plaquetário-heparina” (PF4-heparina). Esses anticorpos se ligam ao receptor FcɣRIIA, presente
em plaquetas e em monócitos, levando à ativação plaquetária acompanhada de intensa produção
de trombina. O quadro instaurado predispõe à trombose, que, juntamente com a plaquetopenia,
caracteriza clinicamente a síndrome.
A TIH é, em geral, leve ou moderada, e surge entre cinco e quatorze dias após a exposição à
heparina. A trombose predomina no território venoso, mas, ocasionalmente, pode acometer tam-
bém artérias. É importante notar que tanto a heparina não fracionada, quanto a heparina de baixo
peso molecular pode causar TIH, mas o risco é significativamente maior com a primeira.
430 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

A partir da suspeita diagnóstica, pode-se classificar a probabilidade de TIH por meio de al-
guns escores, sendo o mais difundido deles o sistema dos “4Ts”. Entretanto, o diagnóstico é con-
cluído apenas se houver evidência laboratorial da presença de anticorpos contra o complexo
heparina-fator 4 plaquetário3-5.
Uma vez confirmada a síndrome, é preciso cessar imediatamente qualquer exposição à hepa-
rina e iniciar uma terapia anticoagulante alternativa, preferivelmente com um inibidor direto da
trombina, como a argatrobana ou a bivalirudina. O tratamento deve ser monitorado com exames
de TTPa seriados e mantido até que a contagem plaquetária se normalize. Somente a partir daí,
pode-se introduzir um agente oral como a varfarina. Pacientes com TIH sem trombose associada
devem manter a anticoagulação terapêutica por 1 mês, enquanto aqueles com trombose devem
mantê-la por 3 meses4,5.

Púrpura trombocitopênica idiopática (PTI)


Também conhecida como trombocitopenia imune ou púrpura trombocitopênica imune, a
PTI é um distúrbio imunológico adquirido, caracterizado por trombocitopenia. A fisiopatologia da
PTI não é completamente compreendida, mas a destruição imunomediada de plaquetas parece
ser o principal mecanismo envolvido.
Tipicamente, a PTI tem curso insidioso, apresentando trombocitopenia, fadiga e sangra-
mento, raramente grave. Alterações laboratoriais em outras linhagens celulares ou em exames que
avaliam os fatores de coagulação não costumam estar presentes. O diagnóstico de PTI exige que
sejam excluídas outras causas de trombocitopenia isolada4,6.
O tratamento da PTI está recomendado para pacientes que apresentam sangramento clini-
camente significativo e/ou trombocitopenia grave (contagem de plaquetas < 30.000/µL). A terapia
de primeira linha inclui corticoides ou imunoglobulina intravenosa7.

Microangiopatias trombóticas (PTT/SHU)


O termo microangiopatias trombóticas abrange a púrpura trombocitopênica trombótica
(PTT) e a síndrome hemolítico-urêmica (SHU), distúrbios caracterizados pela presença simul-
tânea de trombocitopenia, anemia hemolítica microangiopática e lesão de órgão-alvo. O meca-
nismo da doença é o acúmulo de multímeros do fator de von Willebrand (vWF), que se ligam a
plaquetas, provocando sua ativação e sua agregação. Os pacientes com PTT/SHU são frequente-
mente admitidos em UTI’s e costumam apresentar trombocitopenia grave.
O diagnóstico deve ser considerado em pacientes que apresentam trombocitopenia e ane-
mia hemolítica, devendo ser excluídas outras doenças que possam cursar com esses achados. As
evidências laboratoriais comuns nas microangiopatias trombóticas incluem trombocitopenia
grave, anemia com reticulocitose, lactato desidrogenase (LDH) elevada e a presença de esquizó-
citos no esfregaço de sangue periférico. Exames que avaliam os fatores de coagulação não sofrem
alterações3,4,6.
Pacientes com microangiopatias trombóticas que cursam com choque, acidose, distúrbios
neurológicos graves e falência renal ou respiratória devem ser admitidos em UTI. Devido à gravi-
dade da PTT, a mortalidade pode chegar a cerca de 95%, caso não seja tratada. Assim, os cuidados
terapêuticos devem ser iniciados imediatamente com plasmaferese e com corticoides, que podem
reduzir a mortalidade para menos de 20%. Por outro lado, a SHU típica (associada à enterotoxina)
D i s t ú r b i o s d a C o a g u l a ç ã o 431

não tem tratamento específico até o momento, devendo o paciente receber cuidados suportivos
(hidratação, diálise, etc), conforme sua indicação8.

Coagulação intravascular disseminada (CIVD)


A CIVD é uma síndrome de ativação sistêmica da cascata de coagulação, que promove o con-
sumo de fatores da coagulação e de plaquetas, assim como a formação de trombos na vasculatura.
Consequentemente, a CIVD resulta em lesão importante de múltiplos órgãos.
A frequência da síndrome varia a depender do distúrbio subjacente que desencadeou o pro-
cesso. Pacientes internados em UTI’s devem ser monitorados atentamente, tendo em vista a in-
cidência significativa (9% a 19%) de CIVD dentre as admissões no setor e a elevada mortalidade
associada à síndrome (45% a 78%).

Etiopatogênese
A CIVD, como descrita anteriormente, é uma síndrome secundária a diversas condições sub-
jacentes. As causas mais frequentes são sepse, malignidades, complicações obstétricas, trauma
e cirurgias. Mecanismos fisiopatológicos distintos estão presentes e atuam de forma sinérgica,
provocando a síndrome. A exposição de fator tecidual ao sangue, que desencadeia a cascata da
coagulação, é considerada a etapa inicial do processo. A inflamação sistêmica – frequentemente
presente na vigência das causas de CIVD – tem importante efeito pró-coagulante. A coagulação,
por sua vez, atua na regulação da inflamação. Na CIVD, a ativação plaquetária, assim como a ade-
são plaquetária ao endotélio, encontra-se aumentada. Ademais, os mecanismos fisiológicos de
anticoagulação (a antitrombina, a proteína C e o inibidor da via do fator tecidual), assim como o
sistema fibrinolítico endógeno, encontram-se deficientes.

Apresentação clínica
As manifestações clínicas são variadas, desde distúrbio subclínico até trombose ou sangra-
mentos extremos. É importante considerar que, quando aparentes, seja por sangramento em sí-
tios de punção, no trato gastrointestinal, seja na forma de púrpuras/petéquias, indicam maior
gravidade.

Diagnóstico
O diagnóstico da síndrome envolve os achados clínicos e laboratoriais compatíveis com a
condição, a presença de doença associada à CIVD e a exclusão de diagnósticos diferenciais4.
Tendo em vista a complexidade da CIVD, escores diagnósticos englobando múltiplos acha-
dos foram estabelecidos. Quando há suspeita de CIVD e presença de doença subjacente associa-
da, recomenda-se a aplicação do escore diagnóstico de CIVD manifesta, proposto pela Sociedade
Internacional de Trombose e Hemostasia (ISTH). Caso o escore seja ≥ 5, a condição é compatível
com CIVD. Do contrário, o escore deve ser repetido em um ou dois dias. A seguir está o escore
diagnóstico para CIVD manifesta, proposto pela ISTH (Tabela 57.2)4,9.
432 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 57.2. Escore diagnóstico de CIVD manifesta


Critério Resultado Pontuação
> 100.000/µL 0
Taxa de plaqueta sérica < 100.000/µL 1
< 50.000/µL 2
Sem elevação 0
Marcadores relacionados a fibrina Elevação < 5x o normal 2
Elevação ≥ 5x o normal 3
< 3 segundos 0
Tempo de protrombina ≥ 3 e < 6 segundos 1
≥ 6 segundos 2
> 1 g/L 0
Fibrinogênio
≤ 1 g/L 1
Dados de: Levi M, Schultz MJ9. Autoria própria.

Tratamento
O tratamento da CIVD deve ser centrado na resolução da doença subjacente que desencadeou
a síndrome. Terapia suportiva também deve ser instituída, de acordo com a situação presente4,9,10.
A transfusão de plaquetas não é realizada rotineiramente. Contudo, nas situações de sangra-
mento com repercussão hematimétrica, contagem de plaquetas < 10.000-20.000/µL ou necessi-
dade de procedimento cirúrgico imediato com contagem de plaquetas < 50.000/µL justificam a
indicação de transfusão plaquetária. A transfusão de fatores de coagulação (plasma fresco conge-
lado ou crioprecipitado), por sua vez, estará indicada quando um paciente apresentar sangramen-
to grave e alteração dos fatores de coagulação4,6,9.

Coagulopatia na doença hepática


Pacientes com doença hepática, frequentemente, apresentam distúrbios da coagulação.
Entretanto, diferentemente da visão tradicional que considerava esses pacientes “autoanticoa-
gulados”, atualmente sabe-se que a disfunção hepática leva a uma redução de fatores tanto pró
quanto anticoagulantes. Assim, não apenas o risco de hemorragia é maior nesses pacientes, como
também, paradoxalmente, o de trombose.

Etiopatogênese
O fígado é responsável por sintetizar a maioria das proteínas do sistema de coagulação, in-
cluindo fatores de coagulação e anticoagulantes endógenos. Com a instauração da disfunção hepá-
tica, há uma diminuição na produção dessas substâncias, levando a um novo equilíbrio entre elas.
Entre as alterações que favorecem o sangramento estão o comprometimento da síntese de
fatores de coagulação (exceto o fator VIII) e o aumento de t-PA. Além disso, a doença hepática
costuma levar à plaquetopenia, devido ao hiperesplenismo secundário à hipertensão portal e à
menor produção de trombopoietina pelo fígado.
D i s t ú r b i o s d a C o a g u l a ç ã o 433

Entre as alterações que favorecem a coagulação destacam-se a diminuição na síntese hepáti-


ca de anticoagulantes como a proteína C, S e a antitrombina; o aumento de fator VIII e de fator de
von Willebrand; e a redução de plasminogênio.
Além disso, a colestase pode reduzir a absorção de vitaminas lipossolúveis, como a vita-
mina K, que é essencial para a ativação de diversos fatores. Sem ela, a função coagulatória fica
comprometida.

Apresentação clínica
Muitos pacientes com cirrose hepática são admitidos aos cuidados intensivos com diáte-
se hemorrágica. A ruptura de varizes esofágicas é o tipo de hemorragia mais comum e também
o mais preocupante. Estudos sugerem que o aumento da pressão portal contribui mais para o
sangramento do que a coagulopatia em si. Pacientes com doença hepática crônica também po-
dem apresentar uma síndrome semelhante à CIVD, caracterizada clinicamente pelo sangramento
persistente na pele e em mucosas. No entanto, a contagem de plaquetas estável, a produção de
trombina preservada, o nível elevado de fator VIII e a ausência de lesão de órgãos-alvo faz com que
esses pacientes não preencham os critérios clássicos de CIVD.

Diagnóstico
Na disfunção hepática, devido ao comprometimento da síntese de fatores de coagulação,
os TP/RNI e TTPa encontram-se alargados. Entretanto, esses testes convencionais baseados no
plasma não são fidedignos para estimar o risco de sangramento no hepatopata, pois não avaliam
a presença dos anticoagulantes endógenos, que estão diminuídos na condição e, portanto, con-
trabalançam a tendência à hemorragia11. Os testes viscoelásticos, apesar de ainda serem pouco
disponíveis, têm se mostrado promissores para medir a coagulação na insuficiência hepática, uma
vez que utilizam sangue total e fornecem uma avaliação global da hemostasia12. Além disso, re-
comenda-se a dosagem de fibrinogênio e de plaquetas, já que esses dados, embora incompletos,
podem ser úteis para estimar o risco de hemorragia11.

Tratamento
Atualmente não há diretrizes ou recomendações consensuais sobre o manejo da hemostasia
em pacientes com cirrose ou com insuficiência hepática aguda. Isso se deve, em parte, à dificul-
dade de diagnosticar a disfunção coagulatória na hepatopatia12. Para pacientes com sangramento
ativo ou com trombocitopenia inferior a 20.000/μL, há indicação de transfundir concentrado de
plaquetas. Por outro lado, na vigência de condições que exigem procedimentos invasivos, as re-
comendações variam de acordo com o tipo de procedimento a ser realizado, mas, em geral, trans-
funde-se concentrado de plaquetas quando a contagem sérica é menor que 50.000/μL. Uma das
formas mais utilizadas para se corrigir o RNI é a infusão de plasma fresco congelado (PFC). Porém,
no contexto da doença hepática, o PFC corrige apenas parcial e transitoriamente as alterações
laboratoriais, além de apresentar riscos, como sobrecarga volêmica. Assim, ele é indicado apenas
para tratar pacientes que apresentem sangramento ativo ou que forem realizar procedimentos
invasivos, visando reduzir o RNI calculado para 213.
434 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• A interpretação dos exames laboratoriais deve ser realizada de modo que os
resultados sejam avaliados holisticamente;
• A trombocitopenia (contagem de plaquetas < 150.000/µL) é uma alteração frequente
em pacientes críticos e apresenta várias etiologias possíveis;
• Sepse e CIVD são as causas mais comuns de trombocitopenia na UTI;
• A CIVD é uma síndrome de ativação da cascata de coagulação que promove o
consumo de fatores da coagulação e de plaquetas. O pilar do tratamento é a
resolução da causa de base;
• Pacientes com insuficiência hepática não são “autoanticoagulados”. A deficiência
de fatores pró e anticoagulantes resulta em um novo equilíbrio da hemostasia.

Leitura sugerida
1. Lee A. Emergency management of patients with bleeding disorders: Practical points for the emergency physician.
TransfusApherSci. 2019;58(5):553-62.
2. Guyton AC, Hall JE. Textbook of Medical Physiology. 13. ed. Philadelphia: Elsevier Saunders; 2016. p 483-94.
3. Kothari J, Scully M. Thrombocytopenia in the critically ill. In: Webb A, Angus D, Finfer S, Gattinoni, Singer M,
editores. Oxford Textbook of Critical Care. 2. ed. Oxford: Oxford University Press; 2016. p. 1295-7.
4. Thomas K. Bleeding Disorders. In: Hall JB, Schmidt GA, Kress JP, editores. Principles of Critical Care. 4. ed. New
York: McGraw-Hill; 2015. p. 844-57.
5. Arepally GM. Heparin-induced thrombocytopenia. Blood. 2017;129(21):2864-2872.
6. Rezende SM. Distúrbios da hemostasia: doenças hemorrágicas. Rev. méd. Minas Gerais. 20(4)out.-dez. 2010.
7. Neunert C, Terrell DR, Arnold DM, et al. American Society of Hematology 2019 guidelines for immune thrombocyto-
penia [published correction appears in Blood Adv. 2020 Jan 28;4(2):252]. Blood Adv. 2019;3(23):3829-66.
8. Zheng XL, Mangalmurti N. TTP, HUS and Other Thrombotic Microangiopathies. In: Hall JB, Schmidt GA, Kress JP,
editores. Principles of Critical Care. 4. ed. New York: McGraw-Hill; 2015. p. 858-865.
9. Levi M, Schultz MJ. Disseminated intravascular coagulation in the critically ill. In: Webb A, Angus D, Finfer S,
Gattinoni, Singer M, editores. Oxford Textbook of Critical Care. 2. ed. Oxford: Oxford University Press; 2016. p.
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10. Hunt BJ. Bleeding and coagulopathies in critical care. N Engl J Med. 2014;370(9):847-859.
11. Intagliata NM, Davis JPE, Caldwell SH. Coagulation Pathways, Hemostasis, and Thrombosis in Liver Failure.
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12. Allison MG, Shanholtz CB, Sachdeva A. Hematological Issues in Liver Disease. Crit Care Clin. 2016;32(3):385-96.
13. Dasher K, Trotter JF. Intensive care unit management ofliver-relatedcoagulationdisorders. CritCareClin.
2012;28(3):389-vi.
14. Maciel AT, Azevedo LCP. Distúrbios de coagulação em UTI. In: Azevedo LCP, Taniguchi LU, Ladeira JP. Medicina
intensiva: abordagem prática. 1. ed. Barueri, SP: Manole, 2013. p. 569-82.
15. Levi M, Scully M. How I treat disseminated intravascular coagulation. Blood. 2018;131(8):845-54.
Terapia Transfusional 58

Alessandra Noronha da Silva


Isabella Caixeta Borges
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
A crença no poder de cura do sangue surgiu há milhares de anos. Todavia, a transfusão san-
guínea é uma técnica moderna e apenas foi cientificamente fundamentada em 1901, por meio do
trabalho de Karl Landsteiner (1868-1943). Ele foi o primeiro a descrever as propriedades do siste-
ma ABO, bem como as suas isoaglutininas correspondentes.
A transfusão de sangue e de produtos derivados do sangue tornou-se uma das medidas te-
rapêuticas mais comuns, importantes e seguras da medicina moderna. Essa técnica, progressi-
vamente, vem ganhando expressividade e é baseada no preceito racional de transfundir somente
o componente sanguíneo de que o paciente necessita, dentre os quais incluem: concentrado de
hemácias (CH), concentrado de plaquetas (CP), plasma fresco congelado (PFC), crioprecipitado
(CRIO) ou sangue total (ST).
Em todas as decisões relacionadas à transfusão, a avaliação da condição clínica do paciente é,
pelo menos, tão importante quanto os valores dos exames laboratoriais do componente em ques-
tão, ou seja, a terapia transfusional nunca deve ser decidida baseando-se apenas na propedêutica. 

Transfusão de hemácias
A transfusão de CH aumenta os níveis de hemoglobina e de ferro do paciente, incremen-
tando, progressivamente, a capacidade de transporte de oxigênio pelo corpo. O CH é obtido por
centrifugação de sangue total ou por aférese de hemácias de um doador (procedimento que retira
componentes sanguíneos específicos, com a ajuda de uma máquina extracorpórea). Esse concen-
trado pode ser armazenado de 35 a 42 dias, se for mantido entre 2-6°C.
A transfusão de CH, geralmente, é indicada para pacientes com anemia, como é o caso da-
queles com perda aguda sanguínea, com dano cardiovascular prévio, com doenças graves (sepse,
falência múltipla de órgãos, etc) ou com evidência de hipóxia1. A Tabela 58.1 apresenta as princi-
pais indicações e contraindicações para a infusão de CH.
436 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 58.1. Indicações e contraindicações para a infusão de CH


Indicações para a infusão de CH
Hemorragia aguda • Após perda volêmica maior que 25% a 30% da volemia total OU
• Quando o paciente apresentar sinais e sintomas clínicos, como: FC acima de 100 bpm a 120 bpm, redução do
DU, hipotensão arterial, aumento da FR, alteração no nível de consciência, tempo de enchimento capilar > 2
segundos.
Anemia • Quando a Hb mensurada for menor que 7 g/dL OU
normovolêmica • Quando a Hb mensurada for entre 7 e 10 g/dL, dependendo do estado clínico do paciente e das suas
comorbidades.
Contraindicações para a infusão de CH
Quando o intuito exclusivo for alguma das seguintes condições:
• Promover aumento da sensação de bem-estar;
• Melhorar a cicatrização de feridas;
• Expandir o volume vascular, sem que a capacidade de transporte de O2 esteja comprometida;
• Profilático.
CH: concentrado de hemácias; FC: frequência cardíaca; DU: débito urinário; FR: frequência respiratória; Hb: Hemoglobina. Dados retirados do
guia elaborado pelo Ministério da Saúde1. Autoria própria.

Transfusão de plaquetas
Os CP são obtidos semelhantemente ao CH. Ao contrário do CH, porém, o CP não deve ser
armazenado refrigerado. Isso se deve ao fato de que o resfriamento levaria a um processo de ativa-
ção das plaquetas e, assim, elas teriam um menor tempo de viabilidade na circulação do paciente,
após a transfusão. Por conseguinte, os CP devem ser armazenados, sempre, a 22 ± 2°C.
A transfusão de CP é empregada para aumentar o número de plaquetas funcionais e, portan-
to, em pessoas com trombocitopenia ou com disfunção plaquetária, permite estancar sangramen-
tos – tratamento terapêutico – ou prevenir sua ocorrência- tratamento profilático.
Uma unidade, ou dose, de CP deve levar a um aumento na contagem de plaquetas sérica
na faixa de 15.000 a 25.000/µL, em média. Esse aumento pode, no entanto, ser maior ou menor,
dependendo da causa subjacente da trombocitopenia, da presença de uma ou de mais doenças
concomitantes e do peso do paciente.

Transfusão plaquetária terapêutica


Existem poucos dados científicos de qualidade para orientar o emprego de transfusões de CP
no tratamento de hemorragias. No entanto, é geralmente admitido que pacientes com as seguin-
tes condições sejam beneficiados:
• Trombocitopenia não imune, concomitante a sangramento clinicamente significativo e a
contagem sérica de plaquetas inferior a 50.000 µL;
• Lesão na cabeça ou hemorragia com risco de vida, concomitante a contagem sérica de
plaquetas inferior a 100.000/µL;
• Disfunção plaquetária devido a causas congênitas ou adquiridas, por exemplo, cirurgia
de circulação extracorpórea, concomitante a sangramento clinicamente significativo;
• Trombocitopenia imunomediada concomitante a sangramento grave, bem como a uma
Te ra p i a Tra n s f u s i o n a l 437

contagem sérica de plaquetas bastante reduzida ≤ 20.000 /µL;


• Hemorragia relacionada ao trauma, desde que esteja no cenário protocolar de transfusão
maciça.
É importante levar em consideração a etiologia subjacente da trombocitopenia e considerar
a adição de agentes hemostáticos à terapia – antifibrinolíticos ou ácido tranexâmico –, conforme
necessário. A trombocitopenia pode ocorrer devido à redução na taxa de síntese de plaquetas ou
a um aumento na taxa de destruição, de consumo ou de sequestro. Em pacientes com púrpura
trombocitopênica trombótica (PTT) e com trombocitopenia induzida por heparina, as transfu-
sões de plaquetas são, geralmente, evitadas, pois podem aumentar o risco de ocorrência de even-
tos trombóticos3.

Transfusão plaquetária profilática


Estudos demonstraram que a infusão profilática de CP reduz o risco de sangramento clini-
camente significativo. Porém, em pacientes hospitalizados sem sangramento ativo e sem fatores
de risco adicionais para hemorragia, a transfusão de CP somente é indicada se a contagem sérica
de plaquetas for inferior a 10.000/µL. Por outro lado, em pacientes que apresentam fatores de ris-
co para sangramento, o limiar da contagem aumenta para 20.000/µL. Vale considerar, ainda, que
procedimentos cirúrgicos, desde que não sejam neurológicos ou oftálmicos, apenas devem ser
realizados se a contagem sérica de plaquetas for maior que 50.000/µL.

Transfusão de plasma fresco congelado (PFC)


O plasma consiste na porção acelular do sangue, composto por todos os fatores de coagula-
ção e por outras proteínas. Esse material é empregado para controlar ou prevenir sangramentos,
corrigindo distúrbios da coagulação.
Do plasma podem ser obtidos vários produtos. Contudo, o PFC, por contribuir na correção
da deficiência de todos os fatores de coagulação, é o mais solicitado na prática clínica. As princi-
pais indicações para a infusão de PFC estão na Tabela 58.2.

Tabela 58.2. Indicações para a infusão de PFC


Quando se objetiva corrigir deficiências de múltiplos fatores de coagulação, na vigência de sangramento
Doença hepática
ativo OU anteriormente a procedimentos invasivos que possuem risco de sangramento.

CIVD Quando existe sangramento ativo ou alto risco de hemorragia.

Sempre indicada, pois a hemostasia fica prejudicada pela coagulopatia dilucional. Quando for possível, a
Transfusão maciça
transfusão de PFC deverá ser guiada pelos resultados do TP e do TTPa.

Persistência do sangramento, mesmo com a reposição da vitamina K OU em situações na emergência.


Deficiência de vitamina K
Deve-se considerar que o complexo protrombínico deve ser infundido anteriormente.

Deficiência isolada de fatores


Sangramento ou profilaxia de hemorragia quando o concentrado específico não estiver disponível.
de coagulação

PTT Tratamento é feito com plasmaférese terapêutica com PFC.


PFC: plasma fresco congelado; CIVD: coagulação intravascular disseminada; TP: tempo de protrombina; TTPa: tempo de tromboplastina parcial
ativada; PTT: púrpura trombocitopênica trombótica. Dados da American Red Cross7. Autoria própria.
438 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

O PFC deve ser ABO compatível e a transfusão é realizada para atingir um nível satisfatório de
hemostasia. Para isso, administra-se de 10 a 20 mL/kg de PFC. Dependendo do contexto clínico,
pode ser necessária a infusão de quantidade maior7.
Quando o PFC é utilizado para correção de múltiplos fatores de coagulação, a transfusão
deveria ser orientada pelos testes de coagulação – TP, RNI e TTPa –, mas na eventualidade de esses
exames serem indisponíveis, a avaliação do sangramento pode ajudar na decisão clínica7.

Transfusão de crioprecipitado (CRIO)


O crioprecipitado é um componente insolúvel derivado do plasma e é abundante em fibri-
nogênio, em fibronectina, em fator VIII, em fator de von Willebrand e em fator XIII. As principais
indicações para sua infusão estão descritas na Tabela 58.3.

Tabela 58.3. Indicações para a infusão de CRIO


Hemorragia associada à deficiência Prescrição para o controle da hemorragia, como em traumas, em cirurgia cardíaca e em pacientes
de fibrinogênio obstétricos. O objetivo é manter o fibrinogênio sanguíneo > 150 mg/dL.
CIVD Quando houver hemorragia grave associada à taxa de fibrinogênio sanguíneo < 100 mg/dL.
Hemorragia urêmica Quando a hemorragia for refratária a outras alternativas terapêuticas.
Distúrbios congênitos do fibrinogênio Quando o concentrado de fibrinogênio for indisponível.
CIVD: coagulação intravascular disseminada; DvW: doença de von Willebrand. Dados da American Red Cross7. Autoria própria.

É preferível que o crioprecipitado seja ABO compatível. A Tabela 58.4 apresenta os cálculos
para a reposição do fibrinogênio com o crioprecipitado em adultos. Observe que um cálculo sem-
pre depende do anterior.

Tabela 58.4. Cálculos para a reposição do fibrinogênio com o CRIO

VS (mL) = Peso (kg) × 70 mL/kg


VP (mL) - Volume de sangue calculado (mL) × (1 – hematócrito)
VP (mL)
mg de F desejado = (F desejado – do paciente em mg/dL) ×
100
mg de F desejado
Bolsas de crioprecipitado necessárias =
250 mg
VS: volume de sangue; VP: volume plasmático; F: fibrinogênio. Dados do British Journal of Anaesthesia8. Autoria própria.

A dose, no adulto, é, geralmente, de dois pools, o que equivale a 10 unidades de criopreci-


pitado e aumenta o fibrinogênio sérico em aproximadamente 100 mg/dl8. É fundamental que se
obtenha os níveis séricos de fibrinogênio anterior e posteriormente à transfusão, para avaliar a
progressão terapêutica. Como a meia-vida do fibrinogênio varia entre 100-150 horas, recomenda-
-se que sua taxa sérica seja dosada de quatro em quatro dias7.
Te ra p i a Tra n s f u s i o n a l 439

Reações transfusionais
As reações transfusionais englobam todos os eventos adversos que ocorrem por ocasião da
transfusão sanguínea. Estima-se que a incidência de reações transfusionais agudas (RTA) seja de
6,2 a cada 1000 transfusões na faixa etária pediátrica e de 2,4 a cada 1000 transfusões nos adultos9.
Toda reação transfusional precisa ser conduzida como um quadro grave. São classificadas em
agudas quando ocorrem em até 24 horas após a transfusão e em tardias quando for ultrapassado
esse tempo. Neste capítulo, será abordada apenas as RTA’s. A Tabela 58.5 traz as condutas desejá-
veis aos pacientes acometidos pela reação em questão. A seguir, algumas RTA’s serão abordadas
individualmente.

Tabela 58.5. Abordagem inicial de uma RTA


A hemotransfusão deve ser imediatamente interrompida e, em seguida, a equipe assistencial deve:
• Providenciar um novo acesso venoso e mantê-lo com solução salina isotônica;
• Conferir a identificação do paciente e do hemocomponente infundido. Ademais, deve avaliar a presença, no hemocomponente, de sinais
sugestivos de contaminação bacteriana, como bolhas ou cor não usual;
• Monitorizar os dados vitais;
• Iniciar medidas de suporte respiratório e hemodinâmico, se necessário;
• Notificar, imediatamente, o banco de sangue do serviço.

Reação transfusional aguda. Dados de Transfusion reactions: prevention, diagnosis, and treatment10. Autoria própria.

Reação anafilática e reação urticariforme


A reação anafilática, descrita no capítulo 56, é uma condição grave. Estima-se que sua inci-
dência varie entre 1 em 20.000 a 1 em 50.000 transfusões. A reação urticariforme, por outro lado, é
a mais comum, ocorrendo em 1 a 3% dos pacientes submetidos a transfusões.
O quadro clínico da reação urticariforme inclui sintomas limitados a prurido, urticária e ru-
bor. Na reação anafilática, além do quadro clínico anterior, também há angioedema, sibilância,
dificuldade respiratória, hipotensão e choque.
Na anafilaxia, pode-se solicitar medida quantitativa de IgA e pesquisa de anticorpos anti-IgA
para auxiliar na detecção. O diagnóstico diferencial inclui outras condições que cursam com disp-
neia e com hipotensão, como esão pulmonar aguda associada à transfusão (TRALI) e sepse.
No que tange ao manejo dessas entidades, todas as medidas iniciais preconizadas para RTA,
descritas na Tabela 58.5, devem ser realizadas. Ademais, na vigência de reação anafilática, é reco-
mendada a administração de epinefrina 0,5 mL (solução 1:1000 - dose para adultos) via IM e medi-
das de suporte9. Na presença de reação urticariforme, por sua vez, recomenda-se a administração
de difenidramina 25 a 50 mg VO ou EV. Não há evidências de que profilaxia com anti-histamínicos
reduza a incidência dessas condições10.

Reação febril não hemolítica (RFNH)


É uma das reações mais comuns e tem bom prognóstico, incidindo em 0,1 a 1% dos casos de
transfusão. O paciente apresenta-se com febre – elevação de 1 a 2°C –, calafrios e tremores, sem
outros sintomas/sinais sistêmicos. A patogênese envolve a acúmulo de citocinas durante o arma-
zenamento do hemocomponente.
440 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

A RFNH é um diagnóstico de exclusão. O manejo dessa entidade inclui as medidas iniciais


para todas as RTA, expostas na Tabela 58.5, e abordagem sintomática. Ademais, a meperidina pode
ser administrada, na eventualidade de o paciente apresentar tremores ou calafrios intensos10.

Reação hemolítica aguda (RHA)


É uma reação grave e potencialmente fatal. Ocorre em 1 a cada 76.000 transfusões. O quadro
clínico pode incluir febre, calafrios, taquicardia, dor torácica e nos flancos, urina e plasma com cor
rósea ou avermelhada e hipotensão. O paciente pode desenvolver CIVD, choque e insuficiência
renal aguda (IRA). Na maioria dos casos, a patogênese da condição está relacionada à incompati-
bilidade do sistema ABO, o que leva à hemólise intravascular. Na suspeita de RHA, é fundamental
que a equipe solicite os seguintes exames para confirmar a ocorrência de hemólise:
• Teste de compatibilidade ABO;
• Hemograma completo;
• COOMBS direto;
• Lactato desidrogenase;
• Bilirrubina indireta; e
• Haptoglobina.
Para avaliar a presença de possíveis complicações, a equipe assistencial deve solicitar:
• Urina rotina;
• Função renal;
• Eletrólitos;
• Fibrinogênio;
• D-dímero;
• Tempo de protrombina (TP);
• Tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa);
• Potassemia;
• Eletrocardiografia.
O manejo inclui, além das condutas iniciais descritas na Tabela 58.5, suporte hemodinâmico
com hiper-hidratação por meio de soro fisiológico, objetivando uma diurese acima de 1 mL/Kg/h
para evitar a ocorrência de IRA5.

Lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão (do inglês, TRALI)


Trata-se de lesão pulmonar aguda potencialmente fatal, ocorrendo em 0,04 a 0,1% dos pa-
cientes hemotransfundidos. A apresentação clínica é repentina, podendo começar em até 06 ho-
ras após o início do tratamento e os sinais e sintomas podem incluir febre, calafrios, dificuldade
respiratória, hipoxemia, cianose, secreções respiratórias espumosas de cor rósea no tubo endotra-
queal e hipotensão.
O diagnóstico da condição é clínico, e a equipe deve suspeitar de sua ocorrência sempre que
o paciente desenvolver insuficiência respiratória hipoxêmica durante ou até em 6 horas após a
hemotransfusão. A radiografia de tórax pode evidenciar novo infiltrado pulmonar. O tratamento
inclui, além das medidas iniciais descritas na Tabela 58.5, suportes hemodinâmico e ventilatório10.
Te ra p i a Tra n s f u s i o n a l 441

Sobrecarga circulatória relacionada à transfusão (do inglês, TACO)


Estima-se que a TACO ocorra em cerca de 1% dos pacientes transfundidos. O quadro clínico
pode incluir hipoxemia, hipertensão, desconforto respiratório, taquicardia, distensão venosa ju-
gular, presença da terceira bulha cardíaca, estertores e sibilos pulmonares. A patogênese da condi-
ção está relacionada à sobrecarga de volume devido ao hemocomponente transfundido em curto
período de tempo, o que leva ao edema pulmonar. A radiografia de tórax é de fundamental impor-
tância no diagnóstico, pela sua capacidade de confirmar a presença do edema pulmonar e, assim,
de excluir outras causas para o quadro clínico, como pneumotórax. O tratamento da TACO inclui,
além das medidas iniciais descritas na Tabela 58.5, prescrição de diuréticos e suporte ventilatório5.

Sepse relacionada à transfusão


A sepse relacionada à transfusão é uma situação rara, mas potencialmente fatal, que ocorre
com mais frequência durante a transfusão de plaquetas. A apresentação clínica inclui febre, tre-
mores intensos, calafrios, taquicardia e hipotensão durante ou logo após a transfusão. Sua etiolo-
gia, por sua vez, fundamenta-se na contaminação bacteriana do hemocomponente.
Na suspeita da condição, é importante solicitar exames para descartar a presença de RHA,
que incluem hemograma, COOMBS direto, grupo sanguíneo, gram e cultura do hemocomponen-
te, além de cultura do sangue do paciente. A alteração da cor e a presença de bolhas no hemocom-
ponente levantam grandes suspeitas para a contaminação bacteriana. O tratamento da entidade
deve incluir, além das medidas iniciais descritas na Tabela 58.5, medidas de suporte e antibiotico-
terapia de amplo espectro, discutida em detalhes no capítulo 1810.

Pontos-chave
• A indicação da transfusão deve ser baseada, principalmente, em critérios clínicos;
• Com a evolução das técnicas de transfusão, hoje é possível transfundir apenas os
hemocomponentes necessários ao paciente;
• A reação transfusional mais comum é a urticariforme. As mais graves e
potencialmente fatais são RHA, TRALI, sepse e anafilaxia;
• A RFNH é um diagnóstico de exclusão e, desse modo, reações mais graves como
sepse, RHA e TRALI devem ser descartadas.

Leitura sugerida
1. Ministério da Saúde. Guia para o uso de hemocomponentes. 2ª ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2015.
2. The Trial to Reduce Alloimmunization to Platelets Study Group. Leukocyte Reduction and Ultraviolet B Irradiation
of Platelets to Prevent Alloimmunization and Refractoriness to Platelet Transfusions. New England Journal of
Medicine. 1997;337(26):1861-70.
3. Kaufman R, Djulbegovic B, Gernsheimer T, Kleinman S, Tinmouth A, Capocelli K et al. Platelet Transfusion: A
Clinical Practice Guideline From the AABB. Annals of Internal Medicine. 2015;162(3):205.
442 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

4. Ângulo IL. Hemoterapia moderna, práticas antigas. Rev. bras.hematol. hemoter. 2007; 29: 103-8.
5. Fung MK, Grossman BJ, Hilyer CD, Westhoff CM, eds. Technical manual of American Association of Blood Banks
(AABB). 19th ed. Bethesda. MD: AABB; 2017.
6. Covas DT, Ubiali EMA, Santis GC. Manual de medicina transfusional. São Paulo: Atheneu; 2009.
7. Fridey JL, Bachowski G, Borge D, et al. American Red Cross: A Compendium of Transfusion Practice Guidelines.
3rd ed. Washington, DC: American Red Cross; 2017.
8. Nascimento B, Goodnough L, Levy J. Cryoprecipitate therapy. British Journal of Anaesthesia. 2014;113(6):922-34.
9. Velasco IT, Brandão Neto RA, Souza HP, Marino LO, Marchini JFM, Alencar JCG. Medicina de emergência: abor-
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Nutrição na UTI 59

Bruno Vinicius Castello Branco


Lauanda Carvalho de Oliveira
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
Muitas concepções tradicionalmente adotadas na terapia nutricional (TN) de pacientes crí-
ticos provaram-se deletérias em pesquisas contemporâneas. Isso porque, pacientes graves, dado
o desequilíbrio homeostático ao qual estão impingidos, são altamente suscetíveis ao desenvol-
vimento da Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica1 (SRIS), esquematizada na Figura 59.1,
cujo metabolismo era negligenciado. Nesse contexto, diretrizes emergiram estabelecendo novos
princípios e reconhecendo a importância de infundir, na prática, cerca de 80% da dieta prescrita1,
de modo a potencializar os resultados da TN, mitigando os eventuais danos iatrogênicos. Embora
muitas das recomendações tenham um grau de evidência baixo, suscitando a necessidade da con-
dução de novos estudos, elas norteiam condutas e são imperiosas. Por fim, apesar de fugir do
escopo deste capítulo, cabe considerar a importância da TN nas respectivas fases pós-hospitalares
para a plena recuperação dos pacientes1.

Glucagon Proteólise
Cortisol Proteínas fase aguda + Gliconeogênese
TNF
Catecolaminas Lipólise
Eicosanoides
Agressão
IL-1 Proteínas fase aguda + Eicosanoides + Temperatura corporal

IL-6 Proteínas fase aguda + Função linfocitária

PAF Eicosanoides

Figura 59.1. Esquema simplificado demonstrando o papel de mediadores inflamatórios no metabolismo


energético hipercatabólico, próprio da SRIS.
TNF: fator de necrose tumoral; IL-1: interleucina- 1; IL-6: interleucina-6; PAF: fator de ativação plaquetária. Autoria própria.
444 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Avaliação nutricional do paciente gravemente enfermo


Recomenda-se que todos os pacientes sejam submetidos à triagem nutricional em até 48 ho-
ras após a internação, preferencialmente nas primeiras 24 horas2. Dentre as várias ferramentas pro-
postas para essa empreitada, merece destaque a “Risco Nutricional no Doente Crítico” (NUTRIC),
pois proporciona uma avaliação mais acurada do nível de gravidade da doença e, consequen-
temente, das condições metabólicas do paciente. Na hipótese da detecção de risco nutricional
aumentado, deve-se aplicar outros instrumentos para a constatação do eventual diagnóstico de
desnutrição. Embora não exista consenso quanto aos sinais indicativos do estado de subnutrição,
a avaliação subjetiva global (ASG) apresentou boa validade preditiva para detectá-la2. Ademais,
medidas antropométricas podem, cautelosamente, ser utilizadas como adjuvantes da ASG, assim
como a quantificação da massa muscular do reto femoral, por ultrassonografia. Por outro lado, as
dosagens de albumina, de pré-albumina e de transferrina não devem ser utilizadas no ambiente
da terapia intensiva no propósito de avaliação nutricional, por atuarem como proteínas de fase
aguda e, assim, confundirem o diagnóstico de desnutrição2.

Vias de administração
A escolha da via de administração da terapia nutricional no paciente crítico é um processo
complexo. Nesse propósito, a equipe assistencial deve considerar a viabilidade e a motilidade do
trato gastrointestinal (TGI), o estado nutricional, as comorbidades e o tempo de internação do pa-
ciente, além dos riscos inerentes à da via escolhida. A via oral deve ser preservada e indicada sem-
pre que possível, desde que ela se mostre suficiente e capaz de suprir as necessidades nutricionais.
Contudo, na vigência de situações frequentes no cenário de cuidados intensivos, como alteração
do nível de consciência e disfagia importante, a via oral torna-se contraindicada.

Via enteral
Consiste na administração de nutrientes diretamente no TGI, por meio de sondas ou de os-
tomias, de forma a superar as limitações impostas pela via oral, e deve ser iniciada precocemente
(< 48h), conforme esquematizado na Figura 59.2. Dentre as condições que, se presentes, indicam
essa via para a TN, elencam-se:
• Via oral imprópria para suprir pelo menos 60% da meta estipulada, desde que o TGI seja
pérvio;
• Disfagia orofaríngea importante;
• Pacientes em ventilação mecânica e/ou em estado comatoso;
• Fístulas digestivas altas;
• Pré e pós-operatório de cirurgias digestivas;
• Delirium e doenças neuropsiquiátricas2.
No que se refere aos acessos disponíveis para esse propósito, opta-se pela sonda nasal quando
a TNE se dará, supostamente, por curto prazo3. Habitualmente, uma sonda introduzida pelo nariz
do paciente pode ficar posicionada ou no estômago, que corresponde à posição nasogástrica, ou
no intestino (duodeno ou íleo), que condiz com a posição pós-pilórica ou nasoentérica. Após a
sondagem, recomenda-se confirmar a posição da extremidade do dispositivo por radiografia. Por
N u t ri ç ã o n a U T I 445

outro lado, quando se antecipa que a TNE será necessária por período que exceda 4 a 5 semanas, o
acesso enteral de escolha é a ostomia, que pode ser realizada ou no estômago, sendo denominada
gastrostomia, ou no intestino, sendo, então, nomeada jejunostomia. O posicionamento pós-pilóri-
co, seja pela sonda nasal, seja pela ostomia, é indicado quando houver intolerância gástrica ou alto
risco de broncoaspiração2. A indicação da TNE em detrimento da indicação da terapia de nutrição
parenteral (TNP) fundamenta-se na conservação da funcionalidade imunológica do TGI. A pas-
sagem de alimentos pelo tubo digestivo resulta na redução da virulência da microbiota local e na
manutenção da atividade dos linfócitos intraepiteliais, da placa de Peyer e da secreção de IgA4. Em
concordância com isso, estudos randomizados estabeleceram menor incidência de complicações
infecciosas na TNE em relação à TNP2. Portanto, é fato que a via enteral é mais fisiológica, além de
ser mais acessível, quando comparada à parenteral, e que seu estabelecimento tem impacto direto
na prevenção de infecções nosocomiais. Apesar de ser preconizado o início precoce da TNE, ele
deve ser postergado em pacientes instáveis hemodinamicamente, como naqueles submetidos à
ressuscitação volêmica ou à infusão crescente de drogas vasoativas.

Via parenteral
A TNP, por outro lado, consiste na administração de nutrientes, já processados, na corrente
sanguínea do paciente e se faz necessária na impossibilidade de se instituir a nutrição enteral,
condições dentre as quais se enquadram a presença de obstrução mecânica, de fístula de alto dé-
bito em delgado, de isquemia intestinal e de hemorragia no TGI2. Além disso, há indicação de se
prescrever a TNP quando a necessidade nutricional não estiver sendo suprida pelas vias gastroin-
testinais, conforme esquematizado na Figura 59.2. A Sociedade Americana de Nutrição Parenteral
e Enteral (ASPEN-2016)5 recomenda que as emulsões lipídicas incluídas na fórmula sejam, pre-
ferencialmente, bem balanceadas. Por outro lado, se emulsões de óleo de soja forem utilizadas,
um limite de 100 g/semana, dividido em 2 doses, é sugerido4. O alvo proteico para essa via tem
como limite inferior 1,3 g/kg/dia1. A prescrição de glutamina parenteral pode ser considerada
em pacientes graves, desde que não se enquadrem em uma das contraindicações ao composto4.
Vitaminas hidro e lipossolúveis, assim como os oligomentos cobre, manganês, cromo e selênio, se
não compuserem naturalmente a fórmula parenteral, devem ser administrados nas doses diárias
recomendadas, por solução endovenosa4.

Síndrome de realimentação
A síndrome de realimentação trata-se de um conjunto de distúrbios metabólicos abruptos
consequentes à realimentação em desnutridos crônicos, e costuma ocorrer nas primeiras 72 horas
após o início da TN. Na desnutrição crônica, os níveis séricos reduzidos de insulina e elevados de
glucagon estimulam a gliconeogênese e a proteólise, que são acompanhadas da depleção de ele-
trólitos e de vitaminas intracelulares. A oferta nutricional, por sua vez, resulta em incremento da
insulinemia, implicando transporte de íons para o meio intracelular, cujas concentrações séricas
reduzem bruscamente. A alteração mais descrita da síndrome de realimentação é a hipofosfate-
mia, colocada por muitos estudos como parte da definição da síndrome6. Ademais, distúrbios do
sódio e dos fluidos corporais, deficiência de tiamina, hipocalemia e/ou hipomagnesemia podem
estar presentes. As consequências clínicas incluem desde possíveis náuseas, até insuficiência res-
piratória e cardíaca, podendo ser fatal7. De acordo com o Instituto Nacional de Saúde e Cuidado
de Excelência (NICE), são alguns dos fatores de alto risco para o desenvolvimento da síndrome
446 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

de realimentação: IMC < 16 kg/m2, perda não intencional de peso > 15% nos últimos 6 meses,
ingestão alimentar reduzida ou ausente nos últimos 10 dias, níveis séricos reduzidos de fosfato,
de magnésio e de potássio anteriormente à terapia nutricional, etilismo crônico, cenários pós-
-operatórios, pacientes oncológicos e diabetes mellitus mal controlada6. A principal ferramenta
no manejo da síndrome de realimentação é a prevenção. É imprescindível, portanto, monitorar
a fosfatemia em pacientes críticos, enquanto estiverem submetidos às terapias enteral e paren-
teral, bem como realizar a reposição iônica diante de hipofosfatemia2. Além disso, é necessária a
monitorização dos outros eletrólitos e a correção de distúrbios quando detectados forem, junto à
mensuração do balanço hídrico, diariamente7.

Recomendações

Predição do gasto energético basal


A calorimetria indireta (CI) é o padrão-ouro nesse propósito e, portanto, é altamente reco-
mendada. Na ausência dessa ferramenta, a diretriz brasileira, publicada pela Sociedade Brasileira
de Nutrição Parenteral e Enteral (BRASPEN-2018)2, sugere que a regra de bolso, discutida adiante,
seja privilegiada em detrimento das equações preditivas complexas.

Início da TN
Sugere-se uma abordagem individualizada – exposta na Figura 59.2 – como definidora da via
e do momento apropriados para o início da TN.

Aporte proteico-calórico
A SRIS favorece, nos primeiros três dias, um estado catabólico com intensa produção endó-
gena de energia. Para reduzir o risco de hiperalimentação inicial, o aumento progressivo na admi-
nistração das calorias e das proteínas é recomendado. Uma revisão narrativa publicada na Critical
Care1 sugere progredir a prescrição, tanto de proteínas, quanto de calorias, na taxa de 25% ao dia,
iniciando com administração de 25% das metas e, portanto, alcançando a prescrição de 100% das
metas estipuladas no 4º dia. A progressão proteico-calórica, da forma como mencionada ante-
riormente, é usualmente recomendada aos pacientes criticamente enfermos, exceto para aqueles
de alto risco nutricional ou gravemente desnutridos, situações em que a prescrição integral das
metas de energia e de proteína deve ser alcançada dentro de 72 horas. A meta quantitativa de
proteínas, de acordo com a BRASPEN, deve ser entre 1,5 e 2,0 g/kg/dia, com base no peso atual. A
meta calórica, por sua vez, é 100% do valor aferido pela CI ou, na ausência dela, 25 kcal/kg/dia na
primeira semana e 25-30 kcal/kg/dia após os primeiros sete dias, também com base no peso atual.
A prescrição de calorias não nutricionais, advindas do soro glicosado, do propofol e do citrato, de-
vem ser mensuradas e descontadas do aporte calórico nutricional. Atenção especial merece o fato
de que as “metas” referem-se à dieta prescrita e já estão ajustadas para os valores infundidos na
prática: ocasião em que a oferta fica, por motivos operacionais da UTI, em torno de 80% da pres-
crição. Esse “erro”, portanto, já foi incluído nas fórmulas de cálculo – tanto para proteínas, quanto
para calorias – e os profissionais devem ser vigilantes quanto à infusão adequada.
N u t ri ç ã o n a U T I 447

Via oral imprópria


NÃO Nutrição parenteral
exclusiva precoce
Reversão do quadro
Estabilidade hemodinâmica?*
prevista para os SIM
TGI pérvio?**
NÃO próximos5-7 dias?
SIM Paciente desnutrido
SIM ou com alto
Drogas vasoativas com doses INSTÁVEL risco nutricional?
estáveis ou decrescentes?
NÃO
SEM DROGAS SIM

Nutrição enteral Nutrição enteral precoce*** Abordagem conservadora


precoce*** na velocidade de 10-20 mL/h,
inicialmente
Nutrição enteral foi possível
no tempo previsto?

SIM Nutrição Nutrição parenteral NÃO


Sinais de intolerância enteral?**** parenteral exclusiva tardia
NÃO exclusiva
Seguir fluxograma de SIM
Pacientes eutróficos: aporte nutrição enteral
proteico-calórico > 60% da prescrição Nutrição
NÃO
após 5-7 dias parenteral
OU suplementar
Pacientes desnutrido/alto risco
nutricional: aporte proteico- calórico SIM
Monitorar
> 60% da prescrição após 3 dias

Figura 59.2. Fluxograma para início da terapia nutricional.


*É considerada estabilidade hemodinâmica a condição cujo lactato sérico, saturação venosa central de O2, pH sanguíneo e
diferença de bases à gasometria estejam dentro dos valores de referência. **São sinais de TGI impérvio: comprometimento da
circulação esplâncnica, obstrução intestinal, sangramento gastrointestinal ativo, fístula gastrointestinal de alto débito e grande
volume residual gástrico (VRG maior que 500 mL/6h). ***Nutrição enteral precoce: iniciada em até 48 horas, preferencialmente
em até 24 horas. ****São sinais de intolerância enteral: ausência de ruídos hidroaéreos, distensão abdominal, ausência de
eliminação de flatos e de fezes, aumento do refluxo gastroesofágico e piora da acidose metabólica. Dados das Diretrizes
Brasileiras de Terapia Nutricional2. Autoria própria.
448 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Cuidados
Após o início da TN, algumas recomendações, voltadas a cuidados específicos, descritos na
Tabela 59.1, devem ser apreciadas.

Tabela 59.1. Cuidados a serem observados durante a TN e suas respectivas recomendações


Tópico Recomendações
Mensurar fosfato sérico frequentemente. Se hipofosfatemia: repor íon e manter fornecimento calórico em
25% do alvo1, até que os níveis se restabeleçam. A hipofosfatemia altera a condução nervosa e reduz a
Síndrome da realimentação
produção de compostos energéticos (reduzindo a contratilidade diafragmática e dificultando o desmame
ventilatório).
São condições que aumentam o risco de aspiração: presença de gastroparesia, idade avançada, diabetes
mellitus, refluxo gastroesofágico, nível de consciência rebaixado e história de TCE. Nesses casos,
considerar: sonda enteral em posição pós-pilórica (reduz incidência de pneumonia), pró-cinéticos
Aspiração
e dieta contínua. Clorexidina para higiene oral (02-04 vezes/dia): reduz o risco de aspiração de
secreções orofaríngeas contaminadas2. Corantes como marcadores de aspiração: contraindicados (baixa
sensibilidade, baixa especificidade e alta toxicidade)5.
Posição Cabeceira dos pacientes submetidos às terapias enteral ou oral: entre 30° e 45°2.
Glicemia alvo Deve ficar entre 140-180 mg/dL2. Corrigir com insulina NPH subcutânea2.
A infusão da solução parenteral deve ser interrompida na suspeita de bacteremia associada ao cateter.
Bacteremia
Exames microbiológicos devem ser realizados.
Reduzir o tempo de cessação das dietas. Se ocorrer em vigência da dieta parenteral, infusão de glicose a
Interrupção momentânea
10%, na velocidade usual da dieta interrompida, deve ser realizada.
Seguimento Observação clínica. Solicitar glicemia, eletrólitos, triglicerídeos e marcadores hepáticos.
Em vigência da dieta parenteral: aboli-la quando supridas, via enteral, > 60% das metas5. Em vigência da
Desmame
dieta enteral: aboli-la quando supridas, via oral, pelo menos 60% das metas, por 3 dias consecutivos.
Dieta imunomoduladora2 (arginina + óleo de peixe): não é recomendada de rotina e é contraindicada
na vigência de sepse. Fibras solúveis2: considerar apenas em pacientes com diarreia persistente (cujas
causas microbiológica e medicamentosa foram descartadas), desde que estejam hemodinamicamente
compensados e com motilidade intestinal preservada. Glutamina enteral2: não recomendada
Composições adicionais
rotineiramente. Probióticos5:podem ser recomendados para pacientes selecionados (pós-transplantados
hepáticos, pós-traumatizados, pós-pancreatectomizados ou naqueles que apresentam diarreia associada a
antimicrobianos), desde que não haja evidência de imunossupressão. Dieta oligomérica (macronutrientes
hidrolisados): não recomendadas rotineiramente1.

Adaptada das Diretrizes Brasileiras de Terapia Nutricional2 e do Guidelines for the Provision and Assessment of Nutrition Support Therapy in the
Adult Critically Ill Patient- ASPEN5, Autoria própria.

Condições especiais
Algumas situações exigem uma abordagem diferente, em algum quesito, daquela preconiza-
da à população crítica geral. A tabela 59.2 aborda essas condições.
N u t ri ç ã o n a U T I 449

Tabela 59.2. Recomendações específicas para determinadas condições clínica


Condição Especificações
Para restrição hídrica: prescrever fórmulas enterais densas. Fórmulas com alta proporção lipídio/carboidrato: não
Pneumopatia
são preconizadas atualmente. Evitar hiperalimentação.
Não reduzir o aporte proteico. Para restrição hídrica: prescrever fórmulas enterais densas. Se houver distúrbio
eletrolítico: fórmulas próprias podem ser consideradas. Em dialíticos: aumentar a suplementação de proteína para
Nefropatia/ diálise
repor perdas, até um máximo de 2,5 g/kg/dia. Se nutrição parenteral: considerar fórmulas de aminoácidos essenciais
+ histidina, para pacientes em tratamento conservador.
Não reduzir o aporte proteico. Para o cálculo das necessidades calóricas, considerar o peso corporal prévio à
Hepatopatia descompensação clínica. BCAA’s: não recomendados (seu uso em casos de encefalopatia refratários ao tratamento
de primeira linha pode ser uma opção).
Se dor ou intolerância: sonda em posição pós-pilórica pode ser considerada. Se pancreatite aguda grave:
Pancreatite aguda considerar probióticos. Dietas imunomoduladoras: promissoras na forma grave, mas não podem ser oficialmente
recomendadas até então.
Em triagem nutricional: utilizar NRS-2002. Em qualquer pós-operatório, inclusive do TGI: dieta sólida via oral
precoce pode ser prescrita, desde que haja tolerância. Dietas imunomoduladoras: iniciar cinco dias antes do
Grandes cirurgias
procedimento e manter até o 7º DPO, desde que não haja suspeita de sepse vigente. Parede abdominal sem
fechamento: administrar de 15 a 30 gramas adicionais de proteína, a cada litro de exsudato perdido.
Metas de proteína: limite superior. Metas de energia: alcançam 35 kcal/kg/dia em fases mais avançadas da
Politraumatismo/
recuperação. Considerar a prescrição de: formulações imunomoduladoras, vitaminas E e C, selênio, zinco, cobre
TCE
e glutamina (via enteral).
Grandes Início da nutrição enteral: preferencialmente até 6 horas após a lesão. Considerar a prescrição de: vitaminas E e C,
queimaduras selênio, zinco, cobre e glutamina (via enteral).
Meta calórica: 80% do valor aferido por CI ou 25 kcal/kg/dia ou utilizar equação de Harris-Benedict. Nutrição
Sepse parenteral: contraindicada no período agudo, independentemente do grau de risco nutricional do paciente.
Imunomoduladores: não devem ser utilizados.
Alvo calórico: 70% da necessidade energética aferida pela CI. Na ausência de CI: 1) Se IMC entre 30-40 kg/m2:
alvo calórico de 11 a 14 kcal/kg/dia (peso atual) e alvo proteico de 2,0 g/kg/dia (peso ideal); 2) Se IMC entre 40-
50 kg/m2: alvo calórico semelhante à população 1 e alvo proteico semelhante à população 3; 3) Se IMC maior que
Obesidade 50 kg/m2: alvo calórico de 22 a 25 kcal /kg/dia (peso ideal) e alvo proteico até 2,5 g/kg/ dia (peso ideal). Módulo
proteico: pode ser utilizado a partir do 4º dia, para suprir as necessidades de proteína. Se histórico de cirurgia
bariátrica: prescrever tiamina antes da administração de dextrose ou da terapia nutricional e investigar deficiência de
micronutrientes e de minerais.
Definição: disfunção orgânica persistente que necessita > 21 dias de cuidados intensivos. Meta proteica: limite
D. Crítica crônica
superior. Exercícios resistidos devem ser prescritos, se possível.
Não há obrigatoriedade em administrar dieta e fluidos para essa população, desde que o paciente e a família
Cuidados paliativos
compactuem com a interrupção.

BCAA: aminoácidos de cadeia ramificada; NRS-2002: Triagem de Risco Nutricional-2002; CI: calorimetria indireta; DPO: dia pós-operatório. Dados
do Guidelines for the Provision and Assessment of Nutrition Support Therapy in the Adult Critically Ill Patient- ASPEN5. Autoria própria.

Indicadores de qualidade
Com o objetivo de avaliar a qualidade do cuidado nutricional no serviço de saúde, aplicam-se
os Indicadores de Qualidade em Terapia Nutricional (IQTN). Eles são parâmetros adotados para
mensurar, no tempo, a execução das funções na terapia nutricional em cada instituição, não só na
prática clínica, como também na administrativa. São exemplos de IQTN: frequência de recupera-
450 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

ção de ingestão oral, frequência de saída inadvertida ou de obstrução de sonda enteral, frequência
de ocorrência de diarreia ou de distensão abdominal na TNE, incidência de infecção por acesso
central e de flebite por cateter venoso periférico, e assim por diante. Os indicadores dependem de
monitorização contínua e cuidadosa dos pacientes submetidos à TNE e à TNP, além de adequados
registros de dados para uma análise acurada da qualidade do cuidado nutricional. Seus percen-
tuais, quando comparados com as metas esperadas, norteiam a instituição acerca das mudanças
necessárias e é tolerada, geralmente, a oferta mínima de 70% dos valores prescritos1. Cabe aos
serviços, portanto, não apenas a aplicação dos IQTN sugeridos pelas forças-tarefa de nutrição clí-
nica, como também a adequação individualizada e gradual, conforme os resultados registrados ao
longo do tempo8.

Pontos-chave
• Pacientes críticos passam por metabolismo predominantemente catabólico e, por
isso, exigem abordagem nutricional apropriada;
• Prefere-se utilizar o TGI, sempre que for possível;
• A prescrição de calorias e de proteínas deve ser gradual e guiada por metas;
• Algumas condições clínicas exigem adaptações na TN;
• Indicadores de qualidade são úteis para avaliação e para adequação dos serviços
nutricionais.

Leitura sugerida
1. Van Zanten A, De Waele E, Wischmeyer P. Nutrition therapy and critical illness: practical guidance for the ICU,
post-ICU, and long-term convalescence phases. Critical Care. 2019;23(1).
2. Campos ACL, Matsuba CST, Van Aanholt DPJ, Nunes DSL, Toledo DO, Rocha EEM, et al. Diretrizes Brasileiras
de Terapia Nutricional. Brazilian Society of Parenteral and Enteral Nutrition Journal. 2018;33(1).
3. Junior LGT, Santos FAV, Correia MITD. Randomized Clinical Trial: Nasoenteric tube or jejunostomy as a route for
nutrition after major upper gastrointestinal operations. World Journal of Surgery. 2014;2241-46.
4. Azevedo LCP de, Taniguchi LU, Ladeira JP, Martins HS, Velasco IT. Medicina intensiva: abordagem prática.
2020:555-78.
5. McClave S, Taylor B, Martindale R, Warren M, Johnson D, Braunschweig C et al. Guidelines for the Provision
and Assessment of Nutrition Support Therapy in the Adult Critically Ill Patient. Journal of Parenteral and Enteral
Nutrition. 2016;40(2):159-211.
6. Friedli N, Stanga Z, Sobotka L, Culkin A, Kondrup J, Laviano A, et al. Revisiting the Refeeding Syndrome: Results
of a Systematic Review. Nutrition. 2016;151-60.
7. Nasir M, Zaman B, Kaleem A. What a Trainee Surgeon Should Know About Refeeding Syndrome: A Literature
Review. Cureus. 2018;(10(3):10.7759/cureus.238.
8. Filho RSO, Ribeiro LMK, Caruso L, Lima PA, Damasceno NRT, Soriano FG. Quality indicators for enteral
and parenteral nutrition therapy: application in critically ill patients “at nutritional risk”. Nutrición Hospitalaria.
2016;(33(5):1027-35.
Distúrbios Hidroeletrolíticos 60
e Distúrbios Acidobásicos

Brígida Maciel Nunes


Carolina Couy Dantas
Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
A homeostase corporal envolve balanço de água e de eletrólitos, sendo mantida pela regula-
ção hormonal, renal e do trato gastrointestinal. A desregulação desses sistemas ocorre em algumas
doenças e, muitas vezes, envolve riscos importantes ao paciente, motivo pelo qual exige adequada
preparação da equipe assistencial, para o reconhecimento e manejo dos distúrbios dispostos a
seguir.

Hiponatremia
Definida como a condição na qual a taxa de sódio plasmático se encontra abaixo de
135 mEq/L, é o distúrbio hidroeletrolítico mais prevalente na internação hospitalar. Pode ser clas-
sificada segundo sua gravidade em leve, quando os níveis de sódio ficam entre 130-134 mEq/L,
em moderada, quando os níveis ficam entre 125-129 mEq/L ou em grave quando os níveis ficam
abaixo de 125 mEq/L. Por existir uma estreita relação entre o equilíbrio corporal de Na e de H2O,
esses componentes devem ser, sempre, avaliados em conjunto. Alguns dos hormônios úteis na
regulação homeostática desses agentes estão dispostos no Tabela 60.1.

Tabela 60.1. Hormônios relacionados ao balanço corporal de Na e de H2O, bem como seus efeitos
fisiológicos esperados
• Antidiurético (ADH) – vasoconstringe + aumenta absorção renal de H2O livre;
• Peptídeo natriurético atrial – vasodilata + desloca H2O para o espaço extravascular;
• Peptídeo natriurético cerebral – antagoniza ADH + reduz a absorção renal de Na+;
• Mineralocorticoides – aumentam absorção de Na+ e de H2O e aumenta a excreção de K+ e de H+.

Autoria própria.
452 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Apresentação clínica
Na maioria das vezes é uma condição assintomática. Porém, nas hiponatremias graves
(Na+ ≤ 120 mEq/L) ou de instalação rápida, sintomas sistêmicos, como fraqueza, adinamia, ano-
rexia, vômitos, fadiga ou mal-estar, e sintomas neurológicos, dentre os quais se incluem sonolên-
cia, confusão, convulsões, herniação cerebral e coma, podem ocorrer. Essas manifestações são
decorrentes do desvio osmótico da água para dentro das células cerebrais, o que ocasiona edema.

Etiopatogênese
Para entender a etiopatogênese das hiponatremias, é necessário classificá-las em hipovolê-
micas, em euvolêmicas ou em hipervolêmicas.
Nas hiponatremias hipovolêmicas, geralmente há redução do volume sanguíneo. Suas princi-
pais causas são as perdas pelos tratos gastrointestinal ou geniturinário. Outras etiologias possíveis
incluem perda hídrica através da pele e perdas para o terceiro espaço. Nas hiponatremias euvolê-
micas não há alteração de volume sanguíneo e podem ocorrer, por exemplo, no hipotireoidismo,
na polidipsia primária, na deficiência de glicocorticoides e na síndrome da secreção inapropriada
do hormônio antidiurético (SIADH). Por fim, as hiponatremias hipervolêmicas geralmente estão
associadas a estados edematosos, como na insuficiência cardíaca, na cirrose hepática e na insufi-
ciência renal.
Ademais, as hiponatremias podem se associar a determinadas classes de medicamentos,
como anticonvulsivantes, antidepressivos, diuréticos tiazídicos e antipsicóticos. Vale considerar,
ainda, a existência das pseudo-hiponatremias, um artefato laboratorial relacionado a graves hi-
perlipidemias ou hiperproteinemias e das hiponatremias hipertônicas, normalmente secundárias
à hiperglicemia, por maior translocação de água para o meio extracelular. Nos casos de hipona-
tremias hipertônicas, é imperioso corrigir os níveis de sódio, reduzindo-se 1,6 mEq/L para cada
100 mg/dL de aumento da glicose plasmática acima dos valores recomendados.

Diagnóstico
Os exames complementares básicos para a abordagem desses pacientes incluem mensura-
ção de sódio sérico e urinário, além da osmolaridade sérica e urinária. A mensuração de Na+ uri-
nário ajuda a diferenciar as causas renais, geralmente com taxas > 20 mmol/L, das extrarenais,
geralmente com taxas < 10 mmol/L. Outros exames, como glicemia, função tireóidea e função
adrenal, podem ser necessários a depender da suspeita etiológica¹.

Tratamento na emergência
A terapia agressiva está indicada na presença de sintomas graves, de hiponatremia aguda
(que se desenvolve dentro de 48 horas) ou de hiponatremia grave (Na+ ≤ 120 mEq/L). A meta da
equipe assistencial deve ser elevar o sódio sérico em 4 a 6 mEq/L em 24 horas, sem exceder au-
mento de 8 mEq/L no mesmo período. O tratamento inicial é realizado com bolus endovenoso
(EV) de solução de cloreto de sódio hipertônico a 3%. O cálculo da dose de reposição pode ser
feito por meio da fórmula de Adrogué, exposta no Tabela 60.2. Ademais, a ingestão hídrica deve
ser limitada, bem como a equipe médica deve identificar e tratar a causa subjacente, atentando-se
para os medicamentos dos quais os pacientes fazem uso2-4.
D i s t ú r b i o s H i d ro e l e t ro l í t i c o s e D i s t ú r b i o s A c i d o b á s i c o s 453

Tabela 60.2. Fórmula de Adrogué

Água corporal total= peso (kg) x 0,6 se homem ou peso (kg) x 0,5 se mulher.
Na+ infusão – Na+ sérico
Variação de sódio estimada em 1 L de NaCl 3% =
Água corporal total + 1

Dados de Hoorn E, Zietse R. Diagnosis and Treatment of Hyponatremia: Compilation of the Guidelines.
Journal of the American Society of Nephrology. 2017;28(5):1340-13492. Autoria própria.

Complicações clínicas
A correção da hiponatremia, se exagerada, pode levar à síndrome de desmielinização osmóti-
ca, caracterizada por disartria, por disfagia e por paralisia flácida, às vezes irreversível. Acredita-se
que a síndrome esteja relacionada à desidratação cerebral excessiva. Isso porque, no processo de
adaptação à hiponatremia, o cérebro perde eletrólitos e osmólitos. Com a reposição iônica e com
a consequente elevação do Na+ plasmático, o meio extracelular torna-se hiperosmolar, levando à
desidratação neuronal. O processo pelo qual a desidratação cerebral excessiva implica a desmieli-
nização ainda não é esclarecido. É importante considerar, por fim, que maiores riscos estão corre-
lacionados à magnitude do aumento diário e não à velocidade de correção eletrolítica.

Hipernatremia
É definida como a condição na qual os níveis de sódio plasmático ficam acima de 145 mEq/L.

Apresentação clínica
A hipernatremia manifesta-se, geralmente, de forma discreta. Seus sinais e sintomas incluem
a presença de mucosas ressecadas, o aumento de sede, a hipotensão ortostática e a oligúria.
Letargia, irritabilidade e fraqueza também são sinais precoces. Ademais, a condição pode evoluir
para alterações neurológicas graves, desencadeando delirium, hipertermia, convulsões, hemorra-
gia intracraniana e coma.

Etiopatogênese
Condições que levam à intensa perda de líquidos, renais ou extra-renais, associadas a falhas
dos mecanismos compensatórios, como o de secreção de ADH e o de estímulo à sede, estão en-
volvidas nessa patologia. Como exemplo, cita-se o diabetes insipidus, a hiperglicemia com diure-
se osmótica, as perdas gastrointestinais e as perdas cutâneas, quando presentes em populações
de limitada ingestão hídrica, como ocorre em idosos restritos ao leito e em crianças pequenas.
Ademais, a hipernatremia pode ser iatrogênica, secundária à correção exagerada da hiponatremia,
ou relacionada a medicamentos, dentre os quais se incluem diuréticos de alça em altas doses,
manitol e lítio.
454 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tratamento na emergência
A abordagem da hipernatremia é diferente conforme o tempo de sua evolução, motivo pelo
qual é classificada como aguda quando teve início há menos de 48 horas, ou como crônica, quan-
do teve início há mais de 48 horas. Na hipernatremia aguda, a correção deve ser feita rapidamente
e deve finalizar-se em menos de 24 horas, o que exige a dosagem do sódio sérico a cada 1 a 2 horas.
Na hipernatremia crônica, por sua vez, deve existir uma maior cautela por parte dos profissionais,
e o objetivo passa a ser corrigir menos de 10 mEq/L 24 horas, sendo recomendado um monitora-
mento menos frequente das taxas séricas, devendo ocorrer a cada 4 a 6 horas. Nos pacientes hi-
povolêmicos, qualquer que seja a classificação temporal, a correção deve acontecer, inicialmente,
por meio de cristaloide isotônico até a normalização dos sinais vitais. Após a estabilização dos
sinais ou desde o início do tratamento em pacientes euvolêmicos, a reposição deve acontecer a
partir do cálculo do déficit de água livre, pela fórmula exposta no Tabela 60.3, com glicosada a 5%
ou com solução hipotônica a 0,45%. Ademais, deve ser estimulada a ingestão hídrica5.

Tabela 60.3. Fórmula de déficit de água livre


Na+ sérico – 140
Déficit de água livre (L) = × Água corporal
140
Água corporal total = peso (kg) x 0,6 se homem ou peso (kg) x 0,5 se mulher. Dados de Lindner G,
Funk G. Hypernatremia in critically ill patients. Journal of Critical Care. 2013;28(2):216.e11-216.e205.
Autoria própria.

Complicações clínicas
As complicações mais temidas da hipernatremia são a desmielinização osmótica e a hemor-
ragia intracraniana, potencialmente fatal. De forma geral, estão relacionadas à hipernatremia de
instalação rápida. Na hipernatremia crônica, por sua vez, se houver uma correção exagerada, exis-
te o risco de evolução para edema cerebral, com possível herniação.

Hipocalemia
A distribuição do potássio no organismo se dá 98% no intracelular e 2% no extracelular, sen-
do o tecido muscular o local de maior depósito. A hipocalemia pode ser definida como níveis de
potássio sérico abaixo de 3,5 mEq/L. Essa condição pode ser encontrada em até 20% dos pacientes
hospitalizados, mas em apenas 4 a 5% deles é clinicamente significativa, podendo levar a compli-
cações graves e potencialmente fatais.

Apresentação clínica
No sistema cardiovascular podem ocorrer palpitações, taquiarritmias e até parada cardior-
respiratória (PCR) em assistolia. No sistema gastrointestinal pode haver constipação e distensão
abdominal. No sistema respiratório, por sua vez, pode ocorrer depressão respiratória. Ademais, no
sistema muscular pode haver fadiga, cãibras, hiporreflexia, rabdomiólise e tetraparesia. Além dis-
so, pode haver manifestações da doença de base, como vômitos, diarreia, poliúria e hipertensão
decorrente do excesso de mineralocorticoides.
D i s t ú r b i o s H i d ro e l e t ro l í t i c o s e D i s t ú r b i o s A c i d o b á s i c o s 455

Etiopatogênese
A hipocalemia pode se desenvolver por insuficiente ingestão de potássio na dieta, por perdas
renais, perdas extra-renais, e por translocação de potássio do espaço extracelular para o intrace-
lular. As principais perdas renais estão relacionadas a condições que levam a um excesso de mi-
neralocorticoides circulantes, como o hiperaldosteronismo primário, o uso de diuréticos, sejam
tiazídicos, sejam de alça e de penicilina em altas doses. Já as perdas extra-renais ocorrem, princi-
palmente, por vômitos e por diarreia. A saída de potássio do espaço extracelular para o intracelular
ocorre na alcalose metabólica e no uso de insulina, de β-agonistas e de α-antagonistas.

Diagnóstico
Dentre os exames essenciais para o diagnóstico e para a avaliação da hipocalemia estão, além
da mensuração dos níveis de potássio sérico e urinário, a mensuração da glicemia, da magnesemia
e da creatinina sérica. Ademais, a gasometria arterial e o eletrocardiograma (ECG) são úteis na
abordagem desses pacientes6.

Tratamento na emergência
O tratamento tem como objetivo corrigir a causa subjacente e prevenir complicações poten-
cialmente fatais. Ao repor os níveis de potássio, deve ser priorizada a via oral, reservando a cor-
reção EV para casos selecionados, como níveis séricos abaixo de 3 mEq/L, presença de sintomas
ou indisponibilidade da via oral. É importante evitar o emprego de soluções concentradas nesse
propósito, sendo estipulada como concentração máxima 40 mEq/L se a administração acontecer
por veia periférica ou 60 mEq/L se a administração ocorrer por veia central. A velocidade ideal
preconizada para a correção é de 10 mEq/hora, não podendo ultrapassar 20 mEq/ hora. Essas
recomendações fundamentam-se na redução do risco de flebite secundária à infusão. O acompa-
nhamento dos níveis de potássio deve ser realizado a cada 3 a 6 horas, além de ser recomendado
um monitoramento contínuo do paciente por eletrocardiograma1,6.

Complicações clínicas
Os maiores riscos inerente à essa condição são o desenvolvimento de depressão respiratória,
de arritmias e de PCR. Alterações eletrocardiográficas de hipocalemia são decorrentes do atraso
da repolarização ventricular, afinal, há aumento do potencial de repouso da membrana celular,
com aumento da duração do potencial de ação e do período refratário. A tríade clássica, represen-
tativa das complicações eletrocardiograficamente evidentes, são a depressão do segmento ST, a
diminuição da amplitude da onda T e o aparecimento da onda U, vistas nas derivações precordiais
laterais V4 – V6.

Hipercalemia
É a condição definida por níveis séricos de potássio acima de 5 mEq/L. Pode ser classificada
em leve, quando os níveis ficam entre 5 e 6 mEq/L, em moderada, quando os níveis ficam entre 6,1
e 7 mEq/L, ou em grave, se os níveis ultrapassarem 7 mEq/L.
456 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Apresentação clínica
No sistema cardiovascular predominam anormalidades de condução, arritmias, fibrilação
ventricular e assistolia. No sistema muscular, por sua vez, fadiga e fraqueza muscular são frequen-
tes. Em casos raros, hipoventilação e insuficiência respiratória aguda podem acontecer.

Etiopatogênese
A hipercalemia pode ser secundária à ingestão dietética excessiva de potássio, à redução da
excreção renal ou à translocação de potássio do espaço intracelular para o extracelular. A queda
na excreção renal ocorre, por exemplo, na doença renal, seja aguda, seja crônica, no hipoaldos-
teronismo e no uso de alguns medicamentos, como inibidores da enzima conversora de angio-
tensina, bloqueadores do sistema renina angiotensina, espironolactona, heparina, ciclosporina,
trimetoprim e tacrolimus. A translocação iônica, por sua vez, acontece na acidose metabólica e
nas condições que cursam com destruição celular, como rabdomiólise, queimaduras e hemólise.

Tratamento na emergência
O tratamento da hipercalemia na emergência deve acontecer em algumas situações, como
na presença de arritmias cardiovasculares, de paralisia flácida, de hipercalemia, ou de hiperca-
lemia moderada, desde que associada a disfunção renal significativa ou a lesão tecidual vigente.
Os procedimentos baseiam-se nas terapias que promovem a translocação de potássio do espa-
ço extracelular para o intracelular, associadas àquelas que aumentam a excreção de potássio, e a
administração de cálcio EV. Dentre as ferramentas disponíveis para propiciar a translocação in-
tracelular, destacam-se a solução polarizante de glicose e insulina, o bicarbonato de sódio e os
β2 agonista inalatórios. No que se refere ao incremento da excreção iônica, o emprego de furose-
mida, de resina de troca e de diálise são úteis. A infusão de cálcio, por sua vez, aumenta o limiar de
toxicidade do K+ à célula, evitando a progressão do quadro para arritmias graves1,7.

Complicações clínicas
Alterações eletrocardiográficas ocorrem pela redução do potencial de repouso da membrana
celular, pelo atraso na condução entre cardiomiócitos e na despolarização celular. Isso porque,
com o aumento da concentração extracelular de K+, existe incremento da permeabilidade trans-
membrana e um aumento do influxo de K+ para o interior do miócito. A seguir, são explicitadas as
progressivas fases dos distúrbios eletrocardiográficos.
• 1ª fase – alterações da onda T, com aumento da amplitude e com perda da assimetria,
além da presença de base estreita e apiculada;
• 2ª fase – alargamento de PR e redução da amplitude da onda P;
• 3ª fase – alargamento do QRS com redução da amplitude;
• 4ª fase – arritmias letais.
D i s t ú r b i o s H i d ro e l e t ro l í t i c o s e D i s t ú r b i o s A c i d o b á s i c o s 457

Distúrbios acidobásicos
O equilíbrio acidobásico é mantido pelo sistema tampão, uma mistura de um ácido conjuga-
do com uma base conjugada. O tampão mais importante do corpo humano é o H2CO3 e sua equa-
ção é descrita como: CO2 + H2O ⇆ H2CO3 ⇆ HCO3- + H+. Uma vez estabelecida qualquer condição
que leva a um aumento de ácido ou de base exageradamente, o tampão não é capaz de neutralizar
o pH. Nesses casos, pelo exame da gasometria arterial é possível verificar a alteração do pH sanguí-
neo, bem como é possível depreender suas causas, dentre as quais incluem o aumento da concen-
tração sérica de HCO3- (alcalose metabólica), a redução da concentração sérica de HCO3- (acidose
metabólica), a redução da PCO2 (alcalose respiratória) e o aumento do pCO2 (acidose respiratória).
Vale ressaltar que o corpo humano é dotado de mecanismos acidobásicos compensatórios, para
se proteger das ocasiões em que esse tampão não é suficiente. Esses mecanismos são chamados,
em conjunto, de compensação fisiológica e ocorrem por meio de ações pulmonares e renais.
Por um lado, a compensação respiratória se dá ou por hipoventilação, ocasionando retenção
de CO2, ou por hiperventilação, implicando maior eliminação de CO2. Por outro lado, a compen-
sação renal ocorre pelo balanço de H+ e de HCO3-. Os distúrbios metabólicos geralmente levam à
compensação respiratória imediata. Os distúrbios respiratórios, porém, são divididos entre agu-
dos e crônicos. Enquanto os agudos têm compensação apenas pelo efeito tampão, os crônicos,
depois de 3 a 5 dias, compensam via renal. Vale considerar, ainda, a existência dos distúrbios aci-
dobásicos mistos.

Etiopatogênese
Acidose metabólica
Pode ser dividida em dois grupos. O primeiro deles é formado pelas acidoses metabólicas de
ânion gap normal, como ocorre na diarreia, nas fístulas pós-pilóricas, na acidose tubular renal,
na doença renal e na ressuscitação volêmica com solução salina. O segundo é constituído pelas
acidoses metabólicas de ânion gap aumentado, como ocorre na cetoacidose diabética, na acidose
lática, na insuficiência renal, na rabdomiólise e na intoxicação exógena. Nas acidoses metabólicas
de ânion gap normal, há retenção de H+ ou perda de HCO3-. Nas acidoses de ânion gap aumenta-
do, por outro lado, há retenção de ácido, com aumento consequente de ânions.

Alcalose metabólica
As causas de alcalose metabólica são categorizadas quanto à origem, se renal ou se extrarre-
nal, e quanto à responsividade ao cloreto. A avaliação do paciente com alcalose metabólica deve
incluir pesquisa do uso de medicações como diuréticos, corticoides e NaHCO3, além da solicita-
ção de exames laboratoriais como cloro, tanto urinário, quanto sérico, para avaliação da etiologia
subjacente.8

Acidose e alcalose respiratória


São secundárias a situações clínicas que levam, respectivamente, à retenção e à eliminação de
CO2. Exemplos de causas para acidose respiratória incluem depressão do centro respiratório cen-
458 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

tral por dano cerebral, uso de drogas, obstrução das vias aéreas, doença neuromuscular e doença
pulmonar obstrutiva crônica. A alcalose respiratória, por sua vez, está relacionada a condições
que cursam com hiperventilação, como dor, ansiedade, febre, trauma, anemia grave, pneumonia
e embolia pulmonar.

Diagnóstico
Baseia-se, principalmente, no resultado da gasometria arterial. Uma vez com ele em mãos,
seguir os passos descritos a seguir é necessário para a adequada interpretação8.
• Passo 1: O primeiro parâmetro a ser avaliado é o pH: existe uma acidemia (pH < 7,35),
uma alcalemia (pH > 7,45) ou um pH normal (7,35 – 7,45)?
• Passo 2: Determinar a natureza do distúrbio: secundário à variação dos níveis de HCO3-
ou de CO2?
• Passo 3: Existe alguma compensação fisiológica ou trata-se de um distúrbio misto?
• Passo 4: Cálculo do Ânion Gap para acidose metabólica
É importante verificar se há algum distúrbio metabólico associado ou se há compensação
fisiológica. Na eventualidade de ocorrerem alterações nos valores de CO2 e de HCO3-, mas com va-
lores de pH normal, suspeita-se de distúrbio misto. A Tabela 60.1 explica como calcular a resposta
compensatória esperada.

Tabela 60.1. Fórmulas para calcular as compensações secundárias esperadas aos distúrbios primários
Distúrbio primário Compensanção secundária
Acidose respiratória aguda A cada ↑ 10 pCO2 ↑ 1 HCO3- ± 2
Alcalose respiratória aguda A cada ↓ 10 pCO2 ↑ 2 HCO3- ± 2
Acidose respiratória crônica A cada ↑ 10 pCO2 ↑ 4 HCO3- ± 2
Alcalose respiratória crônica A cada ↓ 10 pCO2 ↑ 5 HCO3- ± 2
Acidose metabólica pCO2 = 1,5 × (HCO3-) + 8 ± 2

Alcalose metabólica pCO2 = 0,7 × (HCO3- – 24) + 40 ± 2


Dados de Berend K, de Vries AP, Gans RO. Physiological approach to assessment of acid-base disturbances. New England Journal of Medicine,
371(20), pp.1948-19488. Autoria própria.

Em todas as acidoses metabólicas, deve-se calcular o ânion gap para classificar o distúrbio
em acidose metabólica de ânion gap normal ou aumentado. O principal cátion do líquido extra-
celular é o Sódio (Na+) e os principais ânions são o bicarbonato (HCO3-) e o cloreto (Cl-). Existem
outros cátions e ânions, mas como a concentração deles individualmente é pequena, eles serão
representados por “cátions não medidos” e “ânions não medidos”. O Ânion gap é a diferença
entre os ânions não medidos e os cátions não medidos9. Fazemos o seu cálculo pela fórmula
AG = Na+ – (HCO3- + Cl-).
D i s t ú r b i o s H i d ro e l e t ro l í t i c o s e D i s t ú r b i o s A c i d o b á s i c o s 459

Pontos-chave
• Os distúrbios hidroeletrolíticos são variados, bem como as etiologias, os métodos
diagnósticos, as alternativas terapêuticas e as complicações clínicas;
• Nos distúrbios acidobásicos, a gasometria é um exame confirmatório;
• O tratamento dos distúrbios acidobásicos consiste em abordar a causa subjacente
e, apenas em casos muito graves de acidose metabólica, a reposição de bicarbonato
é preconizada.

Leitura sugerida
1. Papadakis M, McPhee S, Rabow M. Current medical diagnosis & treatment. New York: Lange Medical Books;
2020.
2. Hoorn E, Zietse R. Diagnosis and Treatment of Hyponatremia: Compilation of the Guidelines. Journal of the
American Society of Nephrology. 2017;28(5):1340-9.
3. Peri A. Management of hyponatremia: causes, clinical aspects, differential diagnosis and treatment. Expert Review
of Endocrinology & Metabolism. 2018;14(1):13-21.
4. Sterns R. Treatment of severe hyponatremia. Clinical Journal of the American Society of Nephrology.
2018;13(4):641-9.
5. Lindner G, Funk G. Hypernatremia in critically ill patients. Journal of Critical Care. 2013;28(2):216.e11-216.e20.
6. Kardalas E, Paschou S, Anagnostis P, Muscogiuri G, Siasos G, Vryonidou A. 2018. Hypokalemia: a clinical update.
Endocrine Connections, 7(4), pp.R135-R146.
7. Montford J, Linas S. 2017. How Dangerous Is Hyperkalemia? Journal of the American Society of Nephrology,
28(11), pp.3155-65.
8. Berend K, de Vries AP, Gans RO. Physiological approach to assessment of acid-base disturbances. N Engl J Med.
2014 Oct 9;371(15):1434-45. doi: 10.1056/NEJMra1003327. Erratum in: N Engl J Med. 2014 Nov 13;371(20):1948.
PMID: 25295502. pp.1948-1948.
9. Lee S, Kang K, Kang S. Clinical Usefulness of the Serum Anion Gap. Electrolyte & Blood Pressure. 2006;4(1):44.
10. Jaber S, Paugam C, Futier E, et al. Sodium bicarbonate therapy for patients with severe metabolic acidaemia in
the intensive care unit (BICAR-ICU): a multicentre, open-label, randomised controlled, phase 3 trial. Lancet 2018;
392:31.
11. Goldman L, Schafer A. Cecil Tratado de medicina Interna. Rio de Janeiro, Elsevier, 2018.
12. Department of Medicine Washington University School of Medicine St. Louis, Missouri. Washington Manual de
Terapêutica Clínica 33ª edição. Editora Guanabara Koogan, 2012.
13. Clausen T. 2010. Hormonal and pharmacological modification of plasma potassium homeostasis. Fundamental &
Clinical Pharmacology, 24(5), pp.595-605.
14. Kraft MD, Btaiche IF, Sacks GS, Kudsk KA. Treatment of electrolyte disorders in adult patients in the intensive care
unit. Am J Health Syst Pharm 2005; 62:1663.
Descompensações Graves 61
do Diabetes Mellitus

Bruna Lopes Santiago


Orientador: Christiano Altamiro Coli Nogueira

Introdução
A cetoacidose diabética (CAD) e o estado hiperglicêmico hiperosmolar (EHH) são as com-
plicações mais incidentes e de maior gravidade do diabetes mellitus (DM). Há maior incidência
da cetoacidose diabética em DM1 e do estado hiperglicêmico hiperosmolar em DM2. Elas podem
ocorrer tanto em pacientes com diagnóstico prévio da doença, quanto como a manifestação ini-
cial do DM. Ambas estão relacionadas ao metabolismo da glicose, com déficit total ou parcial de
insulina sérica e apresentam semelhanças no que tange à clínica e ao tratamento. No entanto,
vale destacar que, devido às suas particularidades, o manejo do paciente deve sempre ocorrer de
forma individualizada e rápida, tendo como preceito uma avaliação clínica e laboratorial criterio-
sa, visando o melhor prognóstico. A ocorrência dessas condições está associada à má adesão ao
tratamento do DM, a intercorrências médicas, a doenças subjacentes e ao uso de medicamentos,
como corticoides e antipsicóticos.

Apresentação clínica

Cetoacidose diabética
É mais prevalente entre indivíduos com DM1, em crianças, em adolescentes, em adultos jo-
vens e possui instalação rápida, variando de horas a poucos dias. Podem estar presentes sintomas
como poliúria, polidipsia e diminuição do peso, além de fadiga, de taquicardia, de hipotensão, de
taquipneia, de padrão respiratório tipo Kussmaul, de desidratação, de hálito cetônico (odor de
frutas), de náuseas, de vômitos, de dor abdominal (presente em 46% dos casos), de visão turva/
borrada, de sonolência e de confusão mental.
462 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Síndrome hiperglicêmica hiperosmolar


Menos frequente que a CAD, é associada a maior morbimortalidade. Sua prevalência é maior
em indivíduos de meia-idade e idosos, em obesos, em portadores de DM2 e de doenças intercor-
rentes, como afecções cardiológicas e renais. Apresenta quadro progressivo, com instalação de
dias a semanas, e são comuns os relatos de polidipsia, de poliúria, de desidratação intensa, que
pode acarretar taquicardia e hipotensão, de rebaixamento do nível de consciência, de padrão res-
piratório tipo Kussmaul, de fadiga, de visão borrada e de febre, motivo pelo qual se faz necessária
a investigação de processos infecciosos.

Fatores precipitantes
Dentre os fatores precipitantes da CAD e de EHH, enquadram-se os processos infecciosos,
sendo a pneumonia e as infecções do trato urinário as mais frequentes, a má adesão ao tratamento
do DM e o uso irregular da insulina. Além disso, outros fatores interferem no sucesso terapêutico
do DM, o que aumenta o risco de CAD e de EHH, como a irregularidade nos horários das refei-
ções e a presença de transtornos alimentares, frequente em pacientes jovens do sexo feminino.
Ademais, a desidratação, frequente em pacientes dialíticos e em idosos, nos quais a percepção da
sede pode estar alterada ocasionando ingesta hídrica inadequada, além de os quadros de uremia
e de diarreia serem frequentes, pode desencadear as complicações em questão. Vale ressaltar, ain-
da, que alguns medicamentos podem interferir na ação da insulina, como antipsicóticos atípicos,
glicocorticoides e tiazídicos. Nesse mesmo sentido, a ingesta dos inibidores do cotransportador
sódio-glicose 2 (SGLT-2) implica a inibição da reabsorção tubular renal de glicose, o que aumenta
a glicosúria e a secreção de glucagon, além de reduzir a supressão da lipólise, desencadeando ce-
togênese e diminuindo a excreção de cetonas. Por esses efeitos, seu uso foi relacionado a maiores
incidências de CAD e de EHH euglicêmicos. Outras condições precipitantes de CAD e de EHH
incluem a utilização de bombas de infusão subcutânea rápida de insulina, pela possível obstrução
do cateter, que dificultaria a administração adequada da insulina, a pancreatite aguda, o infarto
agudo do miocárdio (IAM), o acidente vascular encefálico (AVE), os traumas e as queimaduras
além do uso de drogas e de álcool, evidenciados na Tabela 61.1.

Tabela 61.1. Fatores desencadeantes da cetoacidose diabética e do estado hiperglicêmico hiperosmolar


Processos infecciosos: pneumonia, infecção do trato urinário
Desidratação: baixa ingesta hídrica, diarreia, diálise, uremia
Medicamentos: glicocorticoides, antipsicóticos atípicos (clozapina, olanzapina), tiazídicos, SGLT-2
Drogas: uso de cocaína, de maconha e de álcool. Causa comum entre jovens
Má adesão ao tratamento do DM: omissão de doses de insulina, irregularidade nos horários das refeições, transtornos alimentares
Uso de bombas de infusão subcutânea de insulina: obstrução do cateter
Outros: pancreatite aguda, IAM, AVE, trauma, queimaduras

Dados da American Diabetes Association¹. Autoria própria.


D e s c o m p e n s a ç õ e s G ra v e s d o D i a b e t e s M e l l i t u s 463

Etiopatogênese
A etiopatogênese de ambas as condições abordadas neste capítulo envolve o metabolismo
da glicose, tendo origem em um déficit absoluto de insulina na CAD e em um déficit relativo no
EHH, associado ao aumento excessivo dos hormônios contrarreguladores, dentre eles o gluca-
gon, o cortisol, as catecolaminas e o hormônio do crescimento. Consequentemente, um quadro
de hiperglicemia é estabelecido, o que, por sua vez, acarretará glicosúria, aumento da diurese os-
mótica, perda de fluidos e de eletrólitos e, por fim, desidratação. Ademais, no tecido adiposo há
aumento da lipólise, o que promove a liberação de ácidos graxos livres, com consequente oxidação
mitocondrial, resultando em corpos cetônicos (acetoacetato, acetona e beta-hidroxibutirato) que
provocam cetonemia e acidose. No estado hiperglicêmico hiperosmolar, há ausência de cetose
e de acidose, o que é explicado pelos níveis de insulina presentes, afinal, ainda que baixos, são
superiores aos encontrados na cetoacidose diabética e são suficientes para inibir a produção de
corpos cetônicos, mas não para impedir a glicogenólise e a gliconeogênese. Ademais, vale ressaltar
a desidratação como o sinal mais evidente na EHH, ocasionada pela hiperglicemia que, por sua
vez, induz a glicosúria e, assim, a depleção de volume intracelular.

Diagnóstico
A CAD é classificada em leve, moderada ou grave, de acordo com o grau de acidose instaura-
do e com a análise de parâmetros laboratoriais, como glicemia, níveis de bicarbonato, ânion GAP
e presença de corpos cetônicos na urina e sangue. Para realizar o diagnóstico de CAD, deve-se,
também, estar atento aos sinais e aos sintomas já descritos neste capítulo. Os achados que apon-
tam para a CAD incluem:
• Hiperglicemia igual ou superior a 250 mg/dl;
• Bicarbonato < 18 mEq/L, Ph < 7,3;
• Níveis de ânion GAP > 12 mmol/L, calculado por [Na+ – (Cl- + HCO3-)];
• Presença de corpos cetônicos na urina ou no sangue; e
• Aumento da osmolaridade plasmática, com diminuição dos níveis de eletrólitos.
• Já no EHH, os achados incluem:
• Glicemia > 600 mg/dL;
• ph arterial < 7,3;
• HCO3 sérico > 18 mEq/L;
• Corpos cetônicos ausentes na urina;
• Osmolaridade plasmática > 320 mmol/kg; e
• Alterações de sensório, como estupor ou coma¹,².
Os critérios laboratoriais estão expressos na Tabela 61.2. O mais importante método diag-
nóstico para CAD é a dosagem de β-hidroxibutirato sérico, principal metabólito da cetoacidose.
No entanto, esse exame encontra-se disponível, na maioria das vezes, apenas em grandes centros
de referência. Por isso, é muito utilizado, também, o teste do nitroprussiato de sódio, que, apesar
de ser altamente sensível aos níveis de acetoacetato e de cetonas, pode subestimar a gravidade
da cetoacidose por não quantificar os níveis do β-hidroxibutirato²,³. Ademais, outros achados fre-
quentemente encontrados são:
464 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

• Leucocitose com desvio para a esquerda;


• Aumento no hematócrito devido à desidratação;
• Alterações nos níveis de sódio corrigido {Sódio corrigido = sódio medido + [1,6 (glicemia
-100)] ÷ 100}, sendo o seu aumento proporcional ao nível de desidratação, e se os níveis
forem muito baixos, hipertrigliceridemia deve ser investigada;
• Hipercalemia;
• Hipercloremia;
• Aumento das dosagens de ureia e de creatinina, também em função da desidratação;
• Osmolaridade plasmática aumentada, sendo, em EHH, maior que 320 mOsm/kg1-3,5.
Dentre os diagnósticos diferenciais dessas condições vale aventar a cetoacidose alcoólica, a
acidose lática e a insuficiência renal crônica, que são facilmente descartadas após exames labora-
toriais e um bom exame clínico.

Tabela 61.2. Critérios laboratoriais para o diagnóstico de CAD e de EHH


CAD: glicemia > 250 + pH ≤ 7,3 + bicarbonato < 15 + cetonúria ou cetonemia
EHH: glicemia > 600 + pH > 7,3 + osmolaridade > 320 Osm/kg
Dados da American Diabetes Association1. Autoria própria.

Tratamento
A base para o tratamento da cetoacidose diabética e do estado hiperglicêmico hiperosmo-
lar consiste na correção da hipovolemia, na correção dos distúrbios eletrolíticos, no controle da
hiperglicemia e da osmolaridade e na identificação do evento precipitante. Há diversos proto-
colos para garantir a eficácia do tratamento. De acordo com a maioria deles, casos leves de CAD
podem ser tratados em unidade intermediária, sendo a terapia intensiva necessária apenas para
os casos moderados e graves de CAD, além de todos os casos de EHH. É importante destacar que
o pilar para o tratamento da CAD é a insulinoterapia, enquanto no EHH esse papel é assumido
pela reposição volêmica, que, quando realizada, frequentemente resulta na redução dos níveis
séricos de glicose4. Os critérios utilizados para o diagnóstico do controle da CAD incluem gli-
cemias ≤ 200 mg/dL, bicarbonato sérico ≥ 15 mEq/L, pH arterial ≥ 7,3 e ânion gap ≤ 12. No que
tange ao controle do EHH, os critérios consistem no retorno da osmolaridade aos níveis normais
e na recuperação do estado mental habitual¹,². Veja os passos preconizados no Figura 61.1.

Reposição volêmica
A administração de líquidos é a chave para a correção volêmica. Na maioria dos casos, é
iniciada com solução salina ou fisiológica a 0,9% de 500 a 1.000 mL/hr nas primeiras 2-4 horas de
tratamento. Depois disso, é preconizada a avaliação dos níveis corrigidos, pela fórmula, de sódio
sérico, afinal, se a taxa for normal ou elevada, a infusão de solução salina deve ser reduzida para
250 mL/hr ou alterada para 0,45% de cloreto de sódio a 250-500 mL/hora. Além disso, quando a
glicemia sérica for menor ou igual a 200 mg/dL, deve-se adicionar, à reposição volêmica, dextrose
a 5% para evitar a ocorrência de hipoglicemia, possibilitando a continuidade da infusão de insuli-
na a fim de corrigir a cetonemia¹,³.
D e s c o m p e n s a ç õ e s G ra v e s d o D i a b e t e s M e l l i t u s 465

Tratamento da
CAD e do EHH

Reposição volêmica Insulinoterapia Eletrólitos

Solução salina ou fisiológica Iniciar somente se Potássio deve


a 0,9% de 500 a 1.000 mL/hora nas potássio sérico estiver manter-se entre
primeiras 2-4h de tratamento superior a 3 mEq/L 4-3 mEq/L

Desordens de grau leve ou Desordens de grau grave: infusão


moderado: infusão IM insulina a IV contínua de insulina. Dose 0,14
cada hora ou análogos ultrarrápidos UI/kg/h ou dose fixa de 0,1 UI/kg/h
via SC a cada 1 ou 2 horas após um bolus de 0,1UI/kg

Se glicemia alcançar Se glicemia alcançar Se glicemia


níveis < 200 mg/dL, níveis 200-250 mg/dL, não reduzir 50-
ajustar dextrose a 5% iniciar soro glicosado a 75 mg/dL na
e insulina 0,02-0,05 5% e insulina IV primeira hora,
UI/kg/hr contínua ou SC a cada aumentar a dose
4 horas até a resolução de insulina a
completa cada hora

Figura 61.1. Tratamento preconizado para CAD e para EHH.


Dados de American Diabetes Association1. Autoria própria.

Insulinoterapia
A insulinoterapia só deve ser iniciada após a instauração da reposição volêmica e se a dosa-
gem de potássio sérico for superior a 3,0 mEq/L, devido ao maior risco de arritmias quando existe
hipopotassemia. A via de administração e o tipo de insulina dependem da intensidade do quadro
apresentado¹. Em casos leves ou moderados, é recomendada a prescrição de insulina regular via
intramuscular, a cada hora, ou de análogos ultrarrápidos, via subcutânea, a cada uma ou duas
horas. Por outro lado, em casos mais graves o tratamento de escolha é a infusão intravenosa contí-
nua de insulina regular, sendo preconizada a dose de 0,14 UI/kg/h ou de uma dose de 0,1 UI/ kg/h
após um bolus de 0,1 UI/kg. Na eventualidade de a glicemia plasmática não reduzir aproximada-
mente 50-75 mg/dL do valor inicial na primeira hora, a infusão de insulina deve ser aumentada
a cada hora. Na CAD, quando a glicemia atingir níveis inferiores a 200 mg/dl, a dose de dextrose
deve ser ajustada a 5% e a de insulina a 0,02-0,05 UI/kg/h, objetivando manter a glicemia entre 150
e 200 mg/dL, até que o quadro seja solucionado. No EHH, por outro lado, a insulinoterapia deve
ser suspensa quando a glicemia for menor que 250 mg/dl¹,³.
466 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Reposição de potássio
A maioria dos pacientes apresentam hipocalemia ao longo do tratamento e precisam de
reposição. Os níveis séricos devem ser monitorados a cada 2-4 horas e a dose deve ser ajustada
para manter os níveis séricos entre 4-5 mEq/L. Vale ressaltar que, caso os valores estejam abaixo
de 3,0 mEq/L, a insulinoterapia não deve ser iniciada1,3,5.

Reposição de fosfato
A redução das concentrações séricas de fosfato é um achado comum durante o tratamento
de CAD e de EHH. Geralmente, os níveis do íon são normais na apresentação inicial, mas decres-
cem com o tempo, secundariamente à depleção intracelular, consequente à diurese osmótica. A
hipofosfatemia costuma ser assintomática e autolimitada, e sua reposição não é indicada roti-
neiramente, pois não há evidências de melhoras clínicas e existe maior risco de hipocalcemia. A
reposição deve ser considerada apenas em pacientes com disfunção cardíaca, com anemia, com
depressão respiratória e naqueles com fosfato sérico < 1,0 mg/dL²,³.

Administração de bicarbonato
A administração de bicarbonato na CAD e na EHH não é recomendada na grande maioria dos
casos, reservando-se apenas aos casos graves, em adultos, com pH arterial menor que 6,9. Sua pres-
crição para pacientes que apresentam pH arterial acima desse valor está relacionada a efeitos adver-
sos, como alcalose metabólica, hipocalemia, agravamento da anóxia tecidual, redução mais lenta da
cetonemia e aumento no risco de edema cerebral. Na eventualidade de a administração ser preco-
nizada, a dose deve ser de 50 a 100 mmol, diluída em solução isotônica de 400 mL e a infusão deve
ocorrer na velocidade de 200 mL/h durante 2 horas ou até que o pH arterial exceda o valor de 7,0¹-³.

Manutenção
Após a total remissão da CAD ou do EHH, a insulinoterapia deve ser instituída. Nesse
sentido, os pacientes já previamente diagnosticados com diabetes mellitus devem retomar às
medicações utilizadas anteriormente, com possíveis reajustes, enquanto os pacientes que não
realizavam tratamento prévio, devem ser orientados a utilizar insulina de ação lenta uma vez
ao dia e insulina de ação rápida nas principais refeições (café da manhã, almoço e jantar), com
dose total de 0,5-0,6 UI/kg/dia1,3,4.

Complicações clínicas
Considerada como a complicação mais grave, o edema cerebral é comum em crianças e em
adolescentes e é rara entre os adultos. Sinais como cefaleia progressiva, rebaixamento do nível de
consciência, irritabilidade, vômitos em jato e sinais de alteração no padrão respiratório devem
ser sempre observados, pois podem evidenciar indícios da complicação. Na vigência de suspei-
ta, o tratamento deve ser iniciado imediatamente com infusão intravenosa de manitol 0,5-1 g/kg
durante 20 minutos, com redução da velocidade da reposição volêmica e da infusão de insulina5.
Uma segunda complicação comum é a hipoglicemia iatrogênica, devido à insulinoterapia instituí-
D e s c o m p e n s a ç õ e s G ra v e s d o D i a b e t e s M e l l i t u s 467

da, e sua ocorrência tem íntima relação com as doses de insulina administradas, motivo pelo qual
o monitoramento a cada 2-4 horas de tratamento é obrigatório e é muito efetivo para evitar esses
quadros. Ademais, podem ser citadas a hipopotassemia, a hiperglicemia devido à redução das
doses de insulina, a hipoxemia, a acidose hiperclorêmica, a falência renal e a trombose vascular5.

Pontos-chave
• A CAD e o EHH são as complicações mais incidentes do diabetes mellitus e estão
relacionadas à má adesão ao tratamento, a falhas terapêuticas, a intercorrências
médicas, a doenças subjacentes e ao uso de medicamentos como corticoides e
antipsicóticos;
• A CAD tem instalação rápida, variando de horas a alguns dias. Por outro lado, o EHH
apresenta um quadro progressivo, com instalação de dias a semanas;
• Critérios laboratoriais para o diagnóstico de CAD incluem glicemia > 250 mg/dL,
pH ≤ 7,3, bicarbonato < 15 mEq/L, cetonúria ou cetonemia, enquanto para o de
EHH incluem glicemia > 600 mg/dL, pH > 7,3 e osmolaridade > 320m Osm/kg;
• A base para o tratamento da cetoacidose diabética e do estado hiperglicêmico
hiperosmolar consiste na correção da hipovolemia, dos distúrbios eletrolíticos, da
glicemia e da osmolaridade, além da identificação do evento precipitante;
• Os critérios utilizados para o diagnóstico do controle da CAD incluem glicemias
≤ 200 mg/dL, bicarbonato sérico ≥ 15 mEq/L e pH ≥ 7,3 e ânion gap ≤ 12. Para EHH, os
critérios consistem no retorno aos níveis usuais de osmolaridade e na recuperação
do estado mental do paciente.

Leitura sugerida
1. American Diabetes Association. 15. Diabetes care in the hospital: Standards of Medical Care in Diabetes 2020.
Diabetes Care 2020; 43(Suppl. 1):S193-S202.
2. Karslioglu French E, Donihi AC, Korytkowski MT. Diabetic ketoacidosis and hyperosmolar hyperglycemic syndrome:
review of acute decompensated diabetes in adult patients. BMJ. 2019 May 29;365:l1114. doi: 10.1136/bmj.l1114.
3. Fayfman M, Pasquel FJ, Umpierrez GE. Management of Hyperglycemic Crises. Medical Clinics Of North America,
2017 maio; 101(3) 587-606.
4. Golbert A, Vasques ACJ, Geloneze B, et al. Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes 2019-2020. Soc Bras
diabetes. Sao Paulo: Clannad; 2019.
5. Dhatariya KK, Glaser NS, Codner E, et al. Diabetic ketoacidosis. Nature Rev Dis Primers 6, 40 (2020).
6. Vilar L, Naves LA, Kater CE, et al. Endocrinologia Clínica. 6 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2016.
7. Fayfman M, Pasquel FJ, Umpierrez GE. Management of Hyperglycemic Crises. Medical Clinics Of North America,
2017 maio; 101(3) 587-606.
8. French EK, Donihi AC, Korytkowski MT. Diabetic ketoacidosis and hyperosmolar hyperglycemic syndrome: review
of acute decompensated diabetes in adult patients. Bmj 2019 maio; 365 :l1114.
9. Gallego R, Caldeira J. Complicações Agudas da Diabetes Mellitus. Rev PortClin.2007;23:565-75.
10. Kearney T, Dang C. Diabetic and endocrine emergencies. Postgraduate Medical Journal 2007 fev; 83 (976): 79-86.
11. Pasquel FJ, Umpierrez GE. Hyperosmolar Hyperglycemic State: a historic review of the clinical presentation,
diagnosis, and treatment: A Historic Review of the Clinical Presentation, Diagnosis, and Treatment. Diabetes Care
2014 out; 37(11): 3124-31.
Distúrbios Endocrinológicos na UTI 62

Adriana Rassilan Vilanova


Carlúcio Freire Martins Filho
Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
As manifestações clínicas de emergências endócrinas podem envolver múltiplos órgãos, o
sistema nervoso e o imunológico. Dessa forma, é preciso que o médico intensivista tenha sempre
um olhar clínico de suspeição, associando sinais e sintomas à história familiar, história socioe-
conômica com fatores precipitantes, e medicação atual em uso. A definição do mecanismo do
distúrbio endócrino é de suma importância para sua abordagem terapêutica, podendo envolver
reposição hormonal, inibição farmacológica de receptores-alvo, ou intervenção cirúrgica. Na hipó-
tese da vigência de um distúrbio endocrinológico de emergência, além de solicitar testes laborato-
riais, pode ser necessário o início imediato de terapia empírica visando à redução da mortalidade.
Exames de imagem devem ser realizados na vigência de alterações nos testes bioquímicos.
As principais emergências endocrinológicas estão relacionadas às alterações glicêmicas em
pacientes diabéticos, cujas definições e abordagens foram descritas no capítulo 61. Outros distúr-
bios endocrinológicos são menos frequentes, porém, estão associados a altas taxas de mortalidade
e, portanto, devem ser conhecidos. Considerando que os distúrbios do cálcio são apresentados no
capítulo 60, o escopo deste capítulo limita-se à abordagem dos distúrbios tireóideos e adrenais.

Coma mixedematoso
O coma mixedematoso é uma extrema, porém rara, forma de hipotireoidismo, que, por des-
compensações neurovasculares, culmina em severo desequilíbrio da homeostasia corporal, carac-
terizando-se como uma emergência médica potencialmente fatal.

Apresentação clínica
O coma mixedematoso não tem apresentação clínica característica, sendo imperioso que o
médico intensivista esteja atento à hipótese dessa condição, sobretudo na vigência de fatores de-
470 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

sencadeantes, listados na Tabela 62.1, na presença de alteração do estado mental, de hipotermia


(temperatura corporal ≤ 35°C) ou de ausência de febre no estado infeccioso grave.

Tabela 62.1. Fatores precipitantes do coma mixedematoso


Exposição ao frio ou hipotermia AVE ou trauma ou queimaduras
Pneumonia ou infecções/sepse Hemorragias digestivas
Distúrbios metabólicos (acidose, hiperglicemia hiponatremia) Evento cardiovascular (ICC, infarto miocárdico)
Cirurgias de longa duração Uso de anestésicos, drogas depressoras do SNC
amiodarona, β-bloqueadores, lítio e narcóticos
Dados de Ylli et al7, Jacobi et al2, e Rizzo et al5. Autoria própria.

A anamnese deve investigar ainda diagnóstico prévio e histórico familiar de hipotireoidismo,


de descontinuidade ou de má adesão à hormonioterapia, de histórico de câncer de tireoide e de
realização de tireoidectomia/radioiodoterapia. Ao exame físico, o paciente pode apresentar ma-
nifestações clínicas típicas do hipotireoidismo, como pele fria e seca, edema periorbital (mixede-
ma), alopecia, e sobrepeso. A Tabela 62.2 condensa as alterações descritas, divididas por sistemas
e topografias.

Tabela 62.2. Manifestações clínicas do coma mixedematoso


Sistema/topografia Alterações
Fácies Hipotireoidismo; bócio; edema periorbitário; macroglossia.
Pele e fâneros Pele fria e seca; temperatura corporal ≤ 35°C; mixedema; alopecia; unhas quebradiças.
Alteração do estado mental (Glasgow < 15); confusão mental (desorientação e alteração cognitiva); letargia;
Neurológico
sonolência; fala arrastada; hiporreflexia; convulsões.
Cardiovascular Bradicardia; redução do DC; pulsos arteriais reduzidos; PA reduzida; edemas.
Respiratório FR aumentada; dispneia; congestão; derrame pleural; insuficiência respiratória.
Gastrointestinal Dor abdominal; náuseas/vômitos; anorexia/hiporexia; constipação; íleo paralítico.
Renal Insuficiência renal.
Musculoesquelético Miastenia.

DC: Débito cardíaco; FR: Frequência respiratória; PA: Pressão arterial. Dados de Ylli et al7, Jacobi et al2, e Rizzo et al5. Autoria própria.

Diagnóstico
Na vigência da suspeita clínica, devem ser solicitar exames complementares, conforme des-
crito na Tabela 62.3. Solicita-se, ainda, hemocultura e culturas de foco quando houver suspeita de
infecção como fator desencadeante do quadro2-5,7,9.
Em 2014, Popoveniuc et al, após estudo retrospectivo analítico, propôs um algoritmo para
a diferenciação entre os quadros de hipotireoidismo severo e coma mixedematoso. O escore é
sugerido como ferramenta de triagem. Pontuação ≥ 60 pontos é bastante indicativa de coma
mixedematoso, com sensibilidade de 100% e especificidade de 85,7%, enquanto pontuação en-
tre 45 e 59 está atrelada a um hipotireoidismo severo com alto risco de evolução para o coma
mixedematoso, com sensibilidade de 100% e especificidade de 42,9%. A Tabela 62.4 apresenta o
escore proposto10.
D i s t ú r b i o s E n d o c ri n o l ó g i c o s n a U T I 471

Tabela 62.3. Propedêutica em pacientes com coma mixedematoso


Propedêutica Resultado
TSH Elevado (hipotireoidismo primário) ou próximo da normalidade (hipopituitarismo)
T4 e T3 livres Bastante reduzidos
Hemograma Anemia normocítica e normocrômica (hematócrito reduzido); leucopenia
Gasometria arterial Hipoxemia; hipercapnia
TFG Reduzida
Creatinina sérica Elevada
Glicemia Hipoglicemia
Na+ Hiponatremia
ACTH Normal ou reduzido (hipopituitarismo)
Cortisol Elevado, normal ou reduzido (hipopituitarismo)
Lactato Elevado
LDH e CK Elevadas
Eletrocardiograma Prolongamento de PR e QT, QRS de baixa voltagem, alterações do segmento ST, bloqueios de ramo
Radiografia de tórax Cardiomegalia; áreas de congestão e/ou consolidação pulmonar; derrame pleural
ACTH: Hormônio adrenocorticotrófico; CK: Creatina Quinase; LDH: Lactato desidrogenase; Na+: Íon sódio; T3: Tri-iodotironina; T4: Tetraiodotironi-
na; TSH: Hormônio estimulante da tireoide; TFG: Taxa de filtração glomerular. Dados de Ylli et al7, Jacobi et al2, Rizzo et al5, Kwaku et al4 e Savage
et al3. Autoria própria.

Tabela 62.4. Escore diagnóstico de coma mixedematoso*


Temperatura corporal (°C) Sistema nervoso Sistema cardiovascular
> 35 0 Sem Alterações 0 FC sem alterações 0
32-35 10 Letargia/Sonolência 10 FC 50-59 bpm 10
< 32 20 Obnubilação 15 FC 40-49 bpm 20
Distúrbios metabólicos Estupor 20 FC < 40 30
Hiponatremia 10 Coma 30 Alterações ao ECG** 10
Hipoglicemia 10 Convulsão 30 Derrame pericárdico 10
Hipoxemia 10 Sintomas gastrointestinais Derrame pleural 10
Hipercapnia 10 Anorexia 5 Congestão pulmonar 15
TFG reduzida 10 Dor abdominal 5 Cardiomegalia 15
Fator precipitante Constipação 5 Hipotensão*** 20
Ausente 0 Motilidade intestinal reduzida 15
Presente 10 Íleo paralítico 20

*A somatória de pontuações das manifestações clínicas deve ser interpretada da seguinte maneira: ≥ 60: Diagnóstico de coma mixedematoso; 45-
59: alto risco de evolução para coma mixedematoso; < 45: diagnóstico pouco provável de coma mixedematoso. **Alterações observáveis ao ECG:
prolongamento do intervalo PR, prolongamento do intervalo QT, complexo QRS de baixa voltagem, bloqueios de ramo, alterações de segmento ST
e de curva T não específicas. ***PA < 90/60 mmHg. ECG: Eletrocardiograma; TFG: Taxa de filtração glomerular; FC: Frequência cardíaca. Dados
de Popoveniuc et al: A Diagnostic Scoring System for Myxedema Coma. Autoria própria.
472 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tratamento
O manejo básico consiste em administração de hormônios tireoidianos, em reestabeleci-
mento da temperatura corporal e do metabolismo fisiológico, e em remoção ou resolução dos
fatores precipitantes. A Tabela 62.5 reúne as principais abordagens a serem adotadas no coma
mixedematoso7,9,11.

Tabela 62.5. Manejo do coma mixedematoso


Fator precipitante Remoção. Suspeita de infecção: antibioticoterapia empírica de amplo espectro
Inicialmente: Levotiroxina, 200-400 µg, IV + liotironina, 5-20 µg, IV
Hipotireoidismo Manutenção: Levotiroxina, 1,6 µg/kg/dia, IV/VO + liotironina, 2,5-10 µg 8/8 horas, IV (a ser suspensa com a
melhora clínica)
Insuf. adrenal aguda Hidrocortisona, 100 µg, a cada 8 horas, IV
Hipovolemia/hipotensão Reposição volêmica com solução salina; dopamina
Hiponatremia Solução salina hipertônica; administração de conivaptan (IV)/tolvaptan (VO)
Hipotermia Cobertores
Hipoglicemia Administração de glicose
Hipoxemia/hipercapnia Ventilação mecânica e monitoramento de gasometria arterial
IV: intravenosa; VO: Via oral. Dados de Ylli et al7, NHS9 e ATA Guidelines 11, e Wiersinga 12. Autoria própria.

A American Thyroid Association (ATA) recomenda a administração intravenosa inicial de 200


a 400 µg de levotiroxina (T4), à qual pode se associar a administração de 5 a 20 µg de liotironina
(T3), com seguimento de 2,5 a 10 µg a cada 8 horas, preferindo-se sempre menores dosagens para
pacientes mais idosos, de menor peso e/ou com histórico de cardiopatias. Há associação de maior
mortalidade quando as doses iniciais de T4 são superiores a 500 µg, e T3 maiores que 75 µg. As do-
sagens de manutenção de T4 devem ser incialmente por via intravenosa e, com a melhora clínica
do paciente (retomada de consciência, por exemplo), pode-se administrar via oral, devendo a ad-
ministração de T3 ser descontinuada com a evolução satisfatória dos parâmetros clínicos. Como
a administração dos hormônios tireoidianos pode se associar à insuficiência adrenal aguda, a ATA
também recomenda a administração prévia, intravenosa, de glicocorticoide. O protocolo do NHS
(National Health System, Reino Unido) indica doses de 100 µg de hidrocortisona a cada 8 horas
até que a insuficiência adrenal possa ser descartada. A ausência de febre ou de leucocitose pode
mascarar a presença de infecção ou de sepse, cuja abordagem com antibioticoterapia é melhor
descrita no capítulo 43. A hiponatremia, discutida no capítulo 51, deve ser abordada por meio de
solução salina hipertônica7,9,11.

Complicações clínicas
As principais complicações do coma mixedematoso estão relacionadas à insuficiência car-
díaca (IC), com evolução para o choque cardiogênico, coma, insuficiência respiratória e/ou renal,
e falência multiorgânica. Em caso de infecções precipitantes, a evolução para quadro séptico está
associada à alta mortalidade.
D i s t ú r b i o s E n d o c ri n o l ó g i c o s n a U T I 473

Crise tireotóxica
A crise tireotóxica, também chamada de tempestade tireoidiana, consiste em um grave es-
tado de tireotoxicose, que pode ser ocasionado por exacerbação de hipertireoidismo devido a um
fator precipitante, resultando em alteração da termorregulação e em distúrbios sistêmicos, so-
bretudo cardiovasculares e neurológicos. Trata-se de uma emergência médica incomum, porém
com alta taxa de mortalidade, entre 10% a 30%, requerendo, portanto, diagnóstico e tratamento
intensivo precoces.

Apresentação clínica
A suspeita de crise tireotóxica pelo médico intensivista deve ser sempre levantada, sobretudo
na presença de fatores precipitantes, descritos na Tabela 62.6, frente a um paciente com sinais
e sintomas característicos de tireotoxicose, a qual consiste em excesso de hormônios tireoidia-
nos. Sinais importantes de uma possível exacerbação da tireotoxicose, que pode evoluir para crise
tireotóxica, são febre alta (≥ 38°C), levando a uma sudorese com importante perda de fluidos e
taquicardia elevada (≥ 130 bpm), não justificada por doença ou por condição clínica subjacente.

Tabela 62.6. Fatores precipitantes de crise tireotóxica


Não associados diretamente à tireoide Associados diretamente à tireoide
• Infecções/sepse ou distúrbios metabólicos • Má adesão a fármacos antitireoidianos
• Cirurgias ou trauma ou queimaduras • Radioiodoterapia
• Estresse emocional, psicose ou doença aguda • Excesso de iodo, tiroxina ou contrastes iodados
• Evento cardiovascular ou tromboembolia pulmonar • Cirurgia (tireoidectomia)
• Parto ou tumor trofoblástico gestacional • Metástase de câncer de tireoide diferenciado
• Uso de anestésicos, salicilatos, pseudoefedrina amiodarona ou • Tireoidite subaguda
intoxicação por organofosfatos ou quimioterápicos • Lesão (infarto glandular/adenoma)
• Manipulação intensa da glândula
Dados de Ylli et al7, Chiha et al 13, Nayak e Burman16. Autoria própria.

A Tabela 62.7 reúne as manifestações clínicas expostas em cada sistema ou topografia


orgânica.

Tabela 62.7. Manifestações clínicas da crise tireotóxica


Sistema Alterações
Fácies Hipertireoidismo; bócio; exoftalmia; congestão conjuntival
Pele e fâneros Pele quente e úmida; hipertermia (≥ 38°C); mixedema pré-tibial; alopecia; hipocratismo digital
Alteração do estado mental (Glasgow < 15); confusão mental (desorientação e alteração cognitiva); coma; ansiedade
Neurológico
e humor instável; tremores; hiperreflexia
Palpitações e taquicardia (≥ 130 bpm); dor toráxica; sopro sistólico; fibrilação atrial; ICC; pulsos arteriais
Cardiovascular
intensificados; PA elevada; hipotensão postural; edemas
Respiratório FR aumentada; dispneia; congestão pulmonar; derrame pleural; insuficiência respiratória
Dor abdominal; náuseas e vômitos; hiperfagia; constipação intestinal; diarreia; esteatorreia; hepatomegalia;
Gastrointestinal
hipertensão portal; ascite; icterícia
Geniturinário Insuficiência renal; oligomenorreia; ginecomastia
Musculoesquelético Miastenia

DC: Débito cardíaco; FR: Frequência respiratória; ICC: Insuficiência cardíaca congestiva; PA: Pressão arterial. Dados de Ylli et al7, Chiha et al 13,
Nayak e Burman16. Autoria própria.
474 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Diagnóstico
O diagnóstico é clínico, considerando achados laboratoriais, de imagem, e, sobretudo, sinto-
matologia. Há quase três décadas, utiliza-se o escore de Burch-Wartofsky para a diferenciação en-
tre um quadro de crise tireotóxica muito provável ou improvável. Achados laboratoriais e o escore
diagnóstico são apresentados nas Tabelas 62.8 e 62.9, respectivamente7,12,15,17-19.

Tabela 62.8. Propedêutica em pacientes com crise tireotóxica


Propedêutica Resultado
TSH Indetectável
T4 Total/T4 Livre Elevado/bastante elevado
T3 Total/T3 Livre Levemente elevado ou próximo da normalidade/baixo ou próximo do limite inferior da normalidade
Hemograma Anemia normocítica e normocrômica; leucocitose com leve desvio à esquerda
Glicemia Hiperglicemia
Na , K
+ +
Normais
Ca2+ Hipercalcemia
Função hepática Elevação de AST, de ALT e de bilirrubina
Lactato Elevado
Eletrocardiograma Taquicardia sinusal, fibrilação atrial
Ca2+: Íon cálcio; K+: Íon potássio; Na+: Íon sódio; T3: Tri-iodotironina; T4: Tetraiodotironina; TSH: Hormônio estimulante da tireoide.
Dados de Ylli et al7, Chiha et al 13, Nayak e Burman16. Autoria própria.

Tabela 62.9. Escore diagnóstico para risco de crise tireotóxica*


Temperatura corporal (°C) Sistema cardiovascular Insuficiência cardíaca
37,2-37,7 5 Taquicardia (bpm) Manifestação
37,8-38,3 10 90-109 5 Ausente 0
38,4-38,8 15 110-119 10 Leve 5
38,9-39,3 20 120-129 15 Moderada (crepitação) 10
39,4-39,9 25 130-139 20 Severa (congestão pulmonar) 15
≥ 40,0 30 ≥ 140 25 Sistema nervoso
Sistema gastrointestinal Fibrilação Atrial Manifestação
Manifestação Ausente 0 Ausente 0
Ausente 0 Presente 10 Leve (agitação) 10
Moderada (diarreia, vômitos, dor 10 Fator precipitante Moderada (delirium, psicose, 20
abdominal) letargia)
Ausente 0
Severa (icterícia) 20 Presente 10 Severa (convulsão, coma) 30

*A somatória de pontuações das manifestações clínicas deve ser interpretada da seguinte maneira: ≥45: Diagnóstico de crise tireotóxica; 25-44:
alto risco de evolução para crise tireotóxica; < 25: diagnóstico pouco provável de crise tireotóxica. Dados de Burch et al Life-threatening Thyrotoxi-
cosis. Thyroid Storm19. Autoria própria.
D i s t ú r b i o s E n d o c ri n o l ó g i c o s n a U T I 475

Tratamento
Baseia-se na inibição farmacológica dos hormônios tireoidianos, tanto em sua produção/li-
beração, quanto em suas ações. Consiste, ainda, em manejar os efeitos adrenérgicos exacerbados e
em fornecer medidas de suporte para os distúrbios instalados. Na ausência de resposta satisfatória
do paciente à farmacoterapia, deve-se considerar a realização da plasmaférese ou de intervenções
cirúrgicas, por meio de tireoidectomia, com o adequado preparo prévio por até uma semana. Se o
fator precipitante for identificado, deve ser abordado. A Tabela 62.10 apresenta o manejo terapêu-
tico recomendado para abordagem da crise tireotóxica7,12,15,17,18,20.

Tabela 62.10. Manejo terapêutico da crise tireotóxica*


Eliminação do fator precipitante. Infecção: tratar com antibioticoterapia de amplo espectro após
Fator precipitante
coleta de amostra para hemocultura e urocultura
Inicialmente: propiltiouracil 600-1000 mg/dia, VO
Inibição da síntese hormonal Manutenção: propiltiouracil 200-300 mg, VO, de Metimazol: 60-80 mg/dia, VO.
4/4 horas ou 6/6 horas
Solução de Lugol: 4-10 gotas, VO, de 6/6
SSKI: 5 gotas, VO, de 6/6 horas
Inibição da liberação hormonal horas ou 8/8 horas
Iodato de Sódio: 1,0-3,0 g/dia, VO
Lítio: 300 mg, VO, de 8/8 horas**
Inicialmente: hidrocortisona:300 mg, IV
Inibição da conversão periférica Dexametasona: 2 mg, IV, de 6/6 horas
Manutenção: 100 mg, IV, de 8/8 horas
Depuração enterohepática Colestiramina: 1,0-4,0 g, VO, de 12/12 horas
Propranolol: 60-80 mg, VO, de 4/4 horas ou 6/6 horas; OU, Propranolol: 0,5-1,0 mg, IV, em 10
minutos, seguido de 1,0-2,0 mg de 10/10 minutos
Bloqueio adrenérgico*** Esmolol: Dose inicial de 250-500 mcg/Kg, seguida de infusão de 50-100 mcg/Kg/min
Atenolol: 50-200 mg/dia, VO
Metoprolol: 200-200 mg/dia, VO
Hipertermia Acetaminofeno: 500 mg, VO, de 8/8 horas + cobertor de resfriamento
Hipovolemia Solução dextrose-salina (5% a 10%) + multivitamínicos
Medidas de suporte Insuficiência respiratória: ventilação mecânica; monitorização cardíaca
Observações Falha farmacológica: considerar plasmaférese e tireoidectomia

*Para cada parâmetro considerado, recomenda-se a adoção de uma opção farmacológica, cuja escolha deve ser baseada também na disponibi-
lidade do medicamento na UTI. A administração nasogástrica ou nasoentérica pode ser realizada no lugar de via oral. **Lítio é opção em caso de
paciente alérgico ao iodo, devendo haver monitoração constante para evitar toxicidade. ***A escolha de fármaco para bloqueio adrenérgico deve
considerar as contraindicações para cada paciente. ****A reposição volêmica com solução dextrose-salina deve ser preferida, incluindo multivitamí-
nicos, para abordar as deficiências nutricionais que podem acompanhar o quadro. IV: Intravenosa; SSKI: Solução saturada de iodeto de potássio;
VO: Via oral. Dados de Ylli et al7, ATA21 e JTA-JES19 Guidelines, Tintinalli et al6, e Consenso da SBEM17.

Os fármacos utilizados para inibir a produção de T3 e T4 são as tionamidas, como o propil-


tioracil (PTU) e o metimazol. O PTU é administrado via oral, tendo início de ação após uma hora
da administração e possui a vantagem, em comparação ao metimazol, de atuar com ação dupla,
inibindo a enzima tireoperoxidase (TPO), o que impede a produção dos hormônios tireoidianos
e das enzimas desiodases. Assim, a conversão tecidual de T4 em T3 fica impossibilitada. A fim de
impedir a liberação dos hormônios já formados, deve-se administrar iodo inorgânico sob a forma
de Lugol, de iodeto de potássio ou de contrastes iodados (ex: ácido iopanoico). Contrastes, esses,
que também auxiliam na inibição da conversão periférica. É fundamental que a administração das
soluções ou dos contrastes seja feita após a administração de alguma tionamidante, afinal, caso
476 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

contrário, o iodo inorgânico atuará como substrato da produção hormonal e a crise poderá ser
agravada7,12,15,17,18,20.
As ações dos hormônios tireoidianos nos tecidos podem ser minimizadas com a remoção
desses agentes da circulação periférica, seja com plasmaférese, seja com bloqueio adrenérgico.
Farmacoterapia é realizada com altas doses de propranolol, via oral ou intravenosa. Em pacien-
tes com restrições ao seu uso (asmáticos), β-bloqueadores seletivos, como atenolol, metopro-
lol e esmolol (meia-vida mais curta), estão indicados. As Sociedades Brasileira e Japonesa de
Endocrinologia, bem como a American Thyroid Association (ATA), recomendam corticoterapia em
altas doses para auxiliar na inibição dos hormônios tireoidianos e da conversão tecidual. Essas
entidades descrevem, ainda, a importância da prescrição de colestiramina para a depuração de
hormônios tireoidianos pela circulação enterohepática e para a diminuição da sintomatologia
hepática7,12,15,17,18,20.

Complicações clínicas
Consistem em arritmias, em insuficiência cardíaca (IC), em coagulação intravascular disse-
minada (CID), em choque cardiogênico, em hipóxia encefálica, e em falência multiorgânica.

Distúrbios das adrenais


Os principais distúrbios emergenciais relacionados às glândulas adrenais são apresentados
nas Tabelas 62.11 e 62.12.

Tabela 62.11. Crise por feocromocitoma


Rara emergência hipertensiva decorrente de grande liberação de catecolaminas por células tumorais na medula
Definição adrenal (feocromocitoma), gerando instabilidades hemodinâmicas com possível evolução para infarto miocárdico e/
ou AVE.
Hipertensão, taquicardia, sudorese, hipertermia, alterações do estado mental, ansiedade, diaforese, cefaleia, edema
Sinais e sintomas
pulmonar, dores abdominais, vômitos.
Propedêutica Elevação de catecolaminas e metanefrina (sérico e urina 24hs).
Clínico. Suspeitar de crise por feocromocitoma em pacientes sintomáticos com importante elevação ou labilidade
Diagnóstico3,6 dos níveis pressóricos, sobretudo em se tratando de jovem e se houver histórico de hipertensão arterial de difícil
manejo.
Primeira escolha: Bloqueador α-adrenérgico - Fentolamina, IV ou IM;
Segunda escolha: Clevidipina ou nicardipina (bloqueadores de canal de cálcio);
Tratamento3,6
Observação: Fenoxibenzamina (bloqueador α-adrenérgico oral de longa duração) é utilizada para manejo da
hipertensão por feocromocitoma, mas não deve ser empregada durante a crise. Excisão cirúrgica é medida curativa.

AVE: Acidente vascular encefálico, IM: Intramuscular, IV: Intravenosa. Dados de Tintinalli et al6, e Savage et al3.
D i s t ú r b i o s E n d o c ri n o l ó g i c o s n a U T I 477

Tabela 62.12. Insuficiência adrenal aguda (crise adrenal)

Consiste, em geral, na exacerbação de um estado de insuficiência adrenal (IA) prévio (hipocortisolismo),


Definição desencadeada por evento precipitante (ex: infecção, trauma, cirurgia). Maior taxa de mortalidade é observada em
idosos, em diabéticos, e em pacientes com alterações do nível de consciência.

IA primária (de origem principalmente autoimune, com deficiência geral de hormônios esteroides) ou secundária
Etiopatogênese
(distúrbio do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, com deficiência restrita ao cortisol).

Hipovolemia/hipotensão acentuada e refratária ao uso de vasopressores; dor abdominal difusa, vômitos; alterações
Sinais e sintomas
do estado mental.
Hipocortisolismo; ACTH: elevado (IA primária)/normal ou reduzido (IA secundária); hiponatremia; hipoglicemia;
Propedêutica
potassemia: hipercalemia (IA primária)/hipocalemia (IA secundária); eosinofilia.
Clínico. Suspeitar de crise adrenal sempre que houver hipovolemia/ hipotensão de origem não esclarecida em
Diagnóstico3,6 paciente com histórico de uso prolongado de glicocorticoides, doença autoimune, tuberculose, trauma craniano e
AIDS, sobretudo na vigência de fator precipitante.
Inicialmente: Hidrocortisona, 100 mg, IV ou IM.
Manutenção: Hidrocortisona, 200 mg/24hs ou 100 mg/6 em 6hs, IV, por 24-48hs.
Medidas de suporte: reposição volêmica com solução dextrose-salina. Considerar o uso de vasopressores
Tratamento3,6
(noradrenalina, dopamina).
Observações: Eliminar fatores precipitantes (ex: antibioticoterapia empírica de amplo espectro na suspeita de
infecção/ sepse).

AIDS: Síndrome da imunodeficiência adquirida; IM: Intramuscular; IV: Intravenosa. Dados de Tintinalli et al6, Jacobi et al2, e Savage et al3. Autoria
própria

Pontos-chave
• Os distúrbios da tireoide (CM e CT) são emergências médicas raras com alta taxa de
mortalidade, cujos diagnósticos são clínicos. Ocorrem em pacientes com doenças
da tireoide submetidos a um fator precipitante (ex: infecção);
• Manifestações clínicas importantes da CM incluem alteração neurológica,
hipotermia, bradicardia, hiponatremia, hipoxemia/hipercapnia. Por outro lado,
manifestações típicas da CT são hipertermia, sudorese excessiva, taquicardia,
arritmias, alterações neurológicas;
• O tratamento da CM e da CT requer hormonioterapia imediata e medidas de
suporte, sendo a restauração da pressão arterial e da perfusão por meio da reposição
volêmica inicial, associada ou não a vasopressor, elemento imprescindível na
abordagem inicial;
• Os distúrbios das adrenais raramente ocorrem e envolvem alterações hemodinâmicas,
cujas principais abordagens terapêuticas devem ser hormonioterapia e medidas de
suporte.
478 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Leitura sugerida
1. Jameson JL, et al. Medicina Interna de Harrison. 20. ed. Porto Alegre: AMGH Editora Ltda.; 2020. 2 v.
2. Jacobi J. Management of Endocrine Emergencies in the ICU. Journal of Pharmacy Practice. 2019;32(3):314-26.
3. Savage M. Endocrine emergencies. Postgraduate Medical Journal. 2004;80(947):506-515.
4. Kwaku M, Burman K. Myxedema Coma. Journal of Intensive Care Medicine. 2007;22(4):224-231.
5. Rizzo L, Mana D, Bruno O, Wartofsky L. Coma Mixedematoso. Medicina (Buenos Aires). 2017;77:321-328.
6. Tintinalli JE et al. Tintinalli’s Emergency Medicine: A Comprehensive Study Guide. 9. ed. New York: Mcgraw-hill
Education; 2019.
7. Ylli D, Klubo-Gwiezdzinska J, Wartofsky L. Thyroid emergencies. Polish Archives of Internal Medicine.
2019;129(7-8):526-34.
8. Mathew V, Misgar R, Ghosh S, Mukhopadhyay P, Roychowdhury P, Pandit K, et al. Myxedema Coma: A New Look
into an Old Crisis. Journal of Thyroid Research. 2011;2011:1-7.
9. NHS Foundation Trust. Trust Guideline for the Management of Suspected Thyroid Emergencies. A Clinical
Guideline. 2018 p. 1-11.
10. Popoveniuc G, Chandra T, Sud A, Sharma M, Blackman M, Burman K, et al. A Diagnostic Scoring System for
Myxedema Coma. Endocrine Practice. 2014;20(8):808-17.
11. Jonklaas J, Bianco A, Bauer A, Burman K, Cappola A, Celi F, et al. Guidelines for the Treatment of Hypothyroidism:
Prepared by the American Thyroid Association Task Force on Thyroid Hormone Replacement. Thyroid.
2014;24(12):1670-751.
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14. Akamizu T, Satoh T, Isozaki O, Suzuki A, Wakino S, Iburi T et al. Diagnostic Criteria, Clinical Features, and Incidence
of Thyroid Storm Based on Nationwide Surveys. Thyroid. 2012;22(7):661-79.
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and Clinical Outcomes of Patients Hospitalized for Thyrotoxicosis With and Without Thyroid Storm in the United
States, 2004–2013. Thyroid. 2019;29(1):36-43.
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2006;35(4):663-86.
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Brief observations over the recent decade. QJM. 2008;101(12):943-7.
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tratamento do hipertireoidismo: recomendações do Departamento de Tireoide da Sociedade Brasileira de
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19. Satoh T, Isozaki O, Suzuki A, Wakino S, Iburi T, Tsuboi K, et al. 2016 Guidelines for the management of thyroid
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2016;63(12):1025-1064.
20. Burch H, Wartofsky L. Life-Threatening Thyrotoxicosis: Thyroid Storm. Endocrinology and Metabolism Clinics of
North America. 1993;22(2):263-277.
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Guidelines for Diagnosis and Management of Hyperthyroidism and Other Causes of Thyrotoxicosis. Thyroid.
2016;26(10):1343-14.
Hemorragias Digestivas Alta e Baixa 63

Ana Carolina Mathias Santa Rita


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
A hemorragia digestiva consiste no sangramento intraluminal do trato gastrointestinal (TGI),
sendo uma das emergências médicas mais comuns e uma complicação grave em pacientes inter-
nados. As hemorragias de lesões proximais ao ângulo de Treitz (ligamento duodenojejunal) são
consideradas hemorragias digestivas altas e correspondem a 85% dos casos. Lesões distais ao liga-
mento de Treitz são as hemorragias digestivas baixas1-3.

Hemorragia digestiva alta


Hemorragia digestiva alta (HDA) é definida como o sangramento de lesões no TGI superior
(esôfago, estômago e duodeno), proximal ao ligamento de Treitz. Tem uma incidência de 100 casos
por 100.000 pessoas/ano, sendo duas vezes maior no sexo masculino. A condição possui significa-
tiva morbimortalidade, geralmente leva à internação hospitalar, sobretudo em idosos e a taxa de
mortalidade fica entre 10 e 14%1-4.

Apresentação clínica
A HDA, de forma geral, manifesta-se agudamente com hematêmese e/ou com melena, en-
quanto que, cronicamente, cursa com anemia ferropriva (Tabela 63.1). Porém, mesmo em 11% dos
pacientes com hematoquezia, a fonte de sangramento é proximal ao ligamento de Treitz, como
ocorre nos casos de sangramentos maciços e de instabilidade hemodinâmica. Apesar de a HDA,
em 80 % das vezes, ser autolimitada, ela pode tornar-se grave se for associada à idade avançada, às
comorbidades, ao uso prévio de medicamentos lesivos à mucosa ou de anticoagulantes. Choque
ou hipotensão ortostática, coagulopatias, hemorragia hospitalar, múltiplas transfusões, imunos-
supressão e hemorragia grave são sinais de mau prognóstico. Sintomas como tontura, confusão
mental, angina e extremidades frias sugerem um quadro severo2,5.
480 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 63.1. Definição dos principais conceitos em HDA


Definição de conceitos
Hematêmese: vômito de sangue. Se vermelho-vivo, sugere sangramento recente. Se escuro, sugere conversão da hematina no estômago.
Melena: evacuação de fezes negras, semelhantes a “borra de café”, pastosas e de odor fétido com sangue digerido. Pode ser vista com
volumes > 50 mL de sangue.
Hematoquezia ou enterorragia: eliminação de sangue vermelho-vivo pelo reto, com ou sem fezes.
Autoria própria.

Na anamnese devem ser pesquisados sintomas associados. Se a etiologia da HDA for úlcera
péptica, haverá, também, dor epigástrica e a esofagite cursa com odinofagia, pirose e disfagia, sin-
tomas da doença de refluxo gastroesofágico. A Síndrome de Mallory-Weiss, por sua vez, evolui com
vômito ou com tosse antes da hematêmese, enquanto as angiodisplasias não cursam com dor ab-
dominal. Na história pregressa, é necessário investigar o consumo de anti-inflamatório não este-
roidal (AINE), a acidez gástrica e a infecção por H. pilory, que podem indicar a presença de úlcera
péptica. O uso de anticoagulantes e de agentes antiplaquetários (AAS) predispõem sangramentos.
Medicamentos para reposição de ferro ou com bismuto, que deixam as fezes pretas, podem ser
confundidos com melena. É preciso avaliar, também, história prévia de sangramento gastroin-
testinal, de aneurisma de aorta abdominal, que indica possível fístula aortoentérica e de doença
hepática crônica, como cirrose, que pode sugerir varizes esofágicas. Pesquisar o consumo exces-
sivo de álcool, de tabaco, a presença de coagulopatias, de quadro dispéptico prévio e de síndrome
consuptiva com emagrecimento e comprometimento do estado geral também é essencial2,5.
No exame físico, por sua vez, é preciso avaliar os dados vitais, a presença de palidez cutânea
e o nível de consciência. Taquicardia e hipotensão postural sugerem instabilidade hemodinâmica
e indica hemorragia maciça com choque hipovolêmico. No exame abdominal, a dor à palpação e
a irritação peritoneal sugerem perfuração de víscera, que deve ser excluída antes da realização de
endoscopia digestiva alta. Neoplasia é suspeitada na presença de massa intra-abdominal ou de
linfonodo supraclavicular palpável. A detecção de ascite, de icterícia, de telangiectasias, de erite-
ma palmar, de ginecomastia e de “aranha vascular” são sinais que indicam possível cirrose. O to-
que retal avalia a cor das fezes e indica determinadas etiologias. Por fim, no exame clínico também
são avaliadas as características do aspirado da sonda nasogástrica: sangue vermelho-vivo ou tipo
“borra de café” confirmam o diagnóstico de HDA2,5.

Etiopatogênese
A HDA tem sua etiologia classificada como não varicosa e varicosa. A hemorragia varicosa é
consequente, sobretudo, da ruptura de varizes esofágicas, como uma das complicações de uma
hipertensão portal, a qual se caracteriza como um aumento do gradiente venoso portossistêmico
e representa 90% das complicações de cirrose hepática (Tabela 63.2). No entanto, 80-90% dos ca-
sos são de origem não varicosa, cuja maior representante é a úlcera péptica, a causa mais frequen-
te de hemorragia digestiva aguda3.
H e m o rra g i a s D i g e s t i v a s A l t a e B a i x a 481

Tabela 63.2. Principais etiologias da HDA e suas respectivas incidências


Principais etiologias da HDA e suas incidências
Úlceras pépticas: 28 a 59%
Doença erosiva das mucosas do esôfago (esofagite-DRGI) / estômago (gastrite)/duodeno (duodenite): 1 a 47%
Varizes esofagogástricas: 14%
Síndrome de Mallory-Weiss: 4 a 7%
Malformações arteriovenosas: 6%
Malignidade do TGI: 2 a 4%
Dados de Azevedo LCP et al2. Autoria própria.

Diagnóstico e manejo
Em pacientes graves com sintomas de vertigem, de confusão mental, de angina e de extremi-
dades frias e úmidas, a abordagem inicia-se com a realização do ABCDE do trauma e com a devida
monitorização. Posteriormente são realizados os exames laboratoriais, que incluem hemograma
completo para avaliar necessidade de transfusão, bioquímica sérica, testes hepáticos, provas de
coagulação e avaliação renal com ureia e creatinina. São obtidos, também, o eletrocardiograma
(ECG) e os marcadores de necrose miocárdica a fim de descartar a ocorrência de infarto agudo do
miocárdio1,3,4,6.
A lavagem nasogástrica é indicada com o objetivo de remover partículas, coágulos de sangue
e sangue fresco do estômago para facilitar a visão endoscópica e, assim, esclarecer a origem do
sangramento. A presença de sangue vermelho-vivo ou escuro ratifica o diagnóstico e sinaliza que
a lesão possui risco elevado de sangramento contínuo ou recorrente2,6,7,9. A American College of
Gastroenterology sugere a obtenção do escore de Glasgow Blatchford, evidenciado na Tabela 63.3,
para determinar o risco de morte e a intervenção médica. Pacientes com GBS ≥ 1 são de alto risco
e devem ser submetidos à endoscopia precocemente. Pacientes com GBS = 0 são de baixo risco
e podem ter alta com o esclarecimento de que uma endoscopia ambulatorial posterior deve ser
performada1,3,4,6.

Tabela 63.3. Escore de Glasgow Blatchford


Fatores de risco Resultados e pontuação
Ureia (mg/dL) ≥ 39 e <48 = 2pts / ≥ 48 e < 60 = 3 pts/≥ 60 e < 150 = 4 pts/≥ 60 e < 150 = 6 pts
Homens ≥ 12 e < 13 = 1pt/Homens ≥ 10 e < 12 =3 pts/ Mulheres ≥ 10 e < 12 = 1 pt/
Hemoglobina (g/dL)
Homens ou Mulheres < 10 = 6 pts
Pressão arterial sistólica (mmHg) 100 a 109 = 1 pt/90 a 99 = 2 pts/< 90 = 3 pts
Frequência cardíaca ≥ 100 bpm 1pt
Melena 1pt
Síncope 2pts
Doença hepática 2pts
Insuficiência cardíaca 2pts
Adaptada de Martins et al3. Autoria própria.
482 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

A endoscopia digestiva alta (EDA) é o método de escolha para o diagnóstico etiológico e para
a terapêutica da HDA. Além disso, deve ser realizada nas primeiras 24 horas, com o doente hemo-
dinamicamente estável. Se o paciente apresentar sangramento grave com instabilidade hemodi-
nâmica, deve ser realizada endoscopia urgente após a ressuscitação volêmica. Caso a EDA não seja
possível ou o paciente não consiga ser estabilizado, cirurgia ou intervenção radiológica devem ser
considerados2,6,7,9. Por meio da EDA pode ser identificado o local de origem do sangramento, os
sinais de hemorragia recente ou a detecção de outros locais com potencial de sangramento, além
de também ser possível realizar o tratamento. A classificação endoscópica de Forrest avalia a pro-
babilidade de recidiva hemorrágica na úlcera péptica (Tabela 63.4). Os achados endoscópicos IA,
IB, IIA e IIB, segundo a classificação de Forrest, englobam o grupo de alto risco de ressangramento,
enquanto que Forrest IIC e Forrest III são agrupadas como de baixo risco1,3,4,6.

Tabela 63.4. Classificação endoscópica de Forrest


Classificação Ressangramento (%)
IA - Sangramento em jato
90
Hemorragia ativa IB - Sangramento lento
10 a 20
(escorrendo)
IIA - Vaso visível sem sangramento 50
Hemorragia recente IIB - Coágulo aderido 25 a 30
IIC - Mancha de hematina plana 7 a 10
Sem sangramento III- Base limpa de úlcera 3a5
Adaptada de Martins et al3. Autoria própria.

Outro método de relevância é a cintilografia com hemácias marcadas com tecnécio-99m,


que identifica sangramentos ≥ 0,1 mL/min. A angiografia, por sua vez, é válida quando os demais
métodos diagnósticos não foram resolutivos, mas apenas consegue detectar sangramentos que
ocorrem a uma velocidade de, pelo menos, 0,5 mL/min3.

Tratamento
A avaliação inicial do paciente com HDA requer medidas básicas de suporte, como a reposi-
ção volêmica e o controle do sangramento, bem como a terapêutica farmacológica e/ou endoscó-
pica. A endoscopia, associada aos inibidores de bomba de prótons (IBPs), é o método terapêutico
de escolha na HDA. Existem dois tipos principais de terapia endoscópica nas varizes esofagia-
nas: escleroterapia endoscópica (EST) e ligadura endoscópica de varizes (EVL)3,4,6. Contudo, ante-
riormente ao procedimento e depois dele alguns cuidados, elencados na Tabela 63.5, devem ser
tomados.
H e m o rra g i a s D i g e s t i v a s A l t a e B a i x a 483

Tabela 63.5. Tratamento pré e pós-endoscópico para HDA


Tratamento pré-endoscópico Tratamento pós-endoscópico
Avaliar o paciente hemodinamicamente. Se instável ou com Portadores de úlceras pépticas com lesões de alto risco
sangramento ativo, deve ser internado em UTI e deve ser submetido (sangramento ativo, vaso visível, coágulo aderente) devem receber
à ressuscitação volêmica com cristaloides (ringer lactato) ou à inibidores da bomba de prótons em altas doses por 72 h.
transfusão de hemoconcentrados, se necessário.
HDA varicosa deve ser tratada com drogas vasoativas por até
É realizada transfusão de concentrado de hemácias (CH) se cinco dias para a redução do sangramento e do risco de recidiva.
hemoglobina (Hb) alcançar valores próximos de 7-8 g/L. Em caso de Recomenda-se o uso de Octreotide via IV em bolus procedido de
sangramento grave com hipotensão, a transfusão deve iniciar mesmo infusão contínua, ambos na dose de 20 a 50 mcg. Vasopressina
com valores mais altos de Hb. e somatostatina devem ser utilizadas nos pacientes instáveis ou
visando-se reduzir o fluxo sanguíneo varicoso.
Transfusão de concentrado de plaquetas deve ser realizada se Pacientes com cirrose devem iniciar no momento da admissão
plaquetopenia < 50.000/ μL. hospitalar o uso profilático de antimicrobianos por sete dias.
São usados IBP’s, em doses elevadas (80 mg em bolus, seguidos As drogas antifibrinolíticas, como o ácido tranexânico, possuem
por 8 mg/h por 72 horas), para reduzir as taxas de ressangramentos. ação na redução do sangramento local e devem ser consideradas.
Quando usada para prevenção secundária, a aspirina deve ser
Pacientes com cirrose devem receber drogas vasoativas que
continuada ou reintroduzida logo após a hemostasia ser alcançada.
promovem vasoconstrição esplâncnica, como octreotide, terlipressina
Também é recomendada a reintrodução precoce de outras drogas
e somatostatina, e antibióticos para evitar peritonite bacteriana
antitrombóticas após a hemostasia, para reduzir a incidência de
espontânea.
eventos trombóticos e de morte.
Dados de Diagnosis and management of acute lower gastrointestinal bleeding: guidelines from the British Society of Gastroenterology7.
Autoria própria.

Em situações em que a escleroterapia endoscópica de primeira linha para varizes esofágicas


falha, pode-se utilizar o balão de Sengstaken-Blakemore, que se constitui como uma medida pa-
liativa no controle da hemorragia. Essa técnica de tamponamento também pode ser empregada
temporariamente para o controle imediato do sangramento varicoso instável na emergência, até
que a endoscopia esteja disponível. O dispositivo consiste em uma sonda com uma porção gás-
trica e outra esofágica que objetiva realizar hemostasia por compressão das veias quando é insu-
flado. Vale ressaltar, porém, que o tratamento com o balão é provisório e que ele deve permanecer
no corpo por, no máximo, 24 horas. Ademais, ele deve ser desinflado, a cada 8 horas, e permanecer
assim por 15 minutos para que lesões isquêmicas da mucosa esofagogástrica sejam evitadas7.

Prevenção de úlcera de estresse


Pacientes internados em UTI correm o risco de desenvolver úlceras por estresse. A profila-
xia é recomendada na presença de fatores de risco maiores, como: pacientes com coagulopatia e
pacientes que necessitam de ventilação mecânica por mais de 48 horas independemente. Além
disso, também é feita a prevenção em pacientes com ≥ 2 dos seguintes critérios: internação em
UTI por mais de uma semana; sepse ou hipotensão; insuficiência hepática ou renal; úlcera pépti-
ca prévia; uso de esteroides em altas doses (> 250 mg/dia de hidrocortisona, por exemplo); quei-
madura extensa; após transplantes; traumatismo craniano com Glasgow < 10; trauma múltiplo; e
sangramento oculto ≥ 6 dias. Geralmente, a profilaxia é realizada com bloqueadores H2, como a
ranitidina ou com inibidores da bomba de prótons, como o omeprazol5.
484 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Hemorragia digestiva baixa


A hemorragia digestiva baixa (HDB) é definida como sangramento por lesão distal ao ligamen-
to de Treitz, incluindo intestino delgado e grosso. Tem uma incidência estimada de 33-87/100.000
e representa 3% dos casos de emergências cirúrgicas. Possui mortalidade de 2,5% a 3,9% e índice
de ressangramento de 13% a 19%. Sua prevalência tem aumentado devido ao envelhecimento po-
pulacional e ao uso recorrente de anticoagulantes1,8,9.

Apresentação clínica
Os pacientes queixam-se de hematoquezia ou de enterorragia, apesar de a hematoquezia
também ser possível na vigência de hemorragia digestiva alta maciça, motivo pelo qual é essen-
cial excluir essa condição em pacientes hemodinamicamente instáveis. Na anamnese, investigar
sintomas como dor abdominal e diarreia, que podem sugerir colite, é imperioso. Perda de peso e
alterações dos hábitos intestinais ocorrem no câncer colorretal e constipação crônica pode indi-
car doença diverticular ou hemorroida. Além disso, angiodisplasia e divertículos cursam sem dor
abdominal. É necessária, também, a investigação de episódios anteriores de hemorragia digestiva
baixa e o uso de medicamentos, principalmente de anti-inflamatórios, de anticoagulantes e de
aspirina, pela suspeita de HDA maciça por úlcera péptica. A presença de sintomas indicativos de
confusão mental, de taquicardia, de hipoxemia e de hipotensão sugerem instabilidade hemodinâ-
mica, com necessidade de ressuscitação volêmica urgente. No que tange à estimativa do grau de
hemorragia, taquicardia ao repouso fala a favor de hipovolemia leve a moderada, hipotensão or-
tostática pode indicar perda de 15% da volemia, enquanto hipotensão arterial e choque ocorrem,
geralmente, na perda volêmica > 40%2,5.
Ao exame físico, a realização de toque retal e de anoscopia é imprescindível para excluir pos-
síveis doenças anorretais. Hemorroidas podem ser palpáveis e massas em reto distal podem indi-
car câncer colorretal. Sangue vivo ao toque sugere origem no retossigmoide ou no cólon esquerdo
e sangue coagulado orienta origem alta ou de intestino delgado2,5.

Etiologia
Algumas condições podem estar associadas à ocorrência de HDB. As principais entre elas,
bem como suas incidências estimadas, estão elencadas na Tabela 63.6.

Tabela 63.6. Principais etiologias da HDB e suas incidências


Principais etiologias da HDB e suas incidências
Diverticulose: 42-47%
Vascular: hemorroidas com incidência entre 3-5% e angiodisplasia com incidência entre 3-12%. Vale considerar que, em
pacientes ≥ 65 anos, angiodisplasia é a causa mais frequente.
Inflamatória: colite isquêmica: 9%; doença inflamatória intestinal: 2-4% (doença de Crohn e Retocolite ulcerativa); colite
infecciosa: 2%
Neoplasia colorretal: 9-10%
Iatrogenia: hemorragia pós-polipectomia: 4-6%
Dados de Martins HS et al5. Autoria própria.
H e m o rra g i a s D i g e s t i v a s A l t a e B a i x a 485

Diagnóstico
Assim como ocorre na HDA, em pacientes graves a abordagem inicia-se com a realização
do ABCDE do trauma e com a monitorização. Ademais, é necessário solicitar alguns exames la-
boratoriais, dentre os quais se incluem hemograma completo para identificar sangue oculto com
anemia, bioquímicas séricas, provas de função hepática e provas de coagulação5,8,9.
Segue-se, então, com a estratificação dos casos em instáveis ou estáveis (shock index < 1)
e com a determinação de quais são os pacientes de alto risco. Pacientes instáveis hemodinami-
camente, com hipotensão, com síncope, com taquicardia, com taquipneia, com sangramento
persistente, com idade avançada e com comorbidades devem ser hospitalizados em UTI. Nessa
população, e/ou na presença de sangramento ativo, angiotomografia computadorizada (angioTC)
é o mais rápido e menos invasivo método para localizar o local da perda de sangue, a fim de plane-
jar uma terapia endoscópica ou radiológica. Ressalta-se, ainda, que a instabilidade hemodinâmica
pode ser indicativa de um distúrbio gastrointestinal superior, sendo recomendada, então, a reali-
zação de uma endoscopia digestiva alta (EDA) se nenhuma fonte for identificada pela angioTC5,8,9.
A angiografia com cateter para embolização deve ser realizada após uma angioTC positiva, visan-
do controlar graves sangramentos sem preparação intestinal. Ela é recomendada em pacientes
de sangramento rápido e contínuo, que não responde adequadamente à ressuscitação volêmica
e que não tolerem a preparação para colonoscopia. Se, após todos os esforços, a localização do
sangramento não for evidenciada, é feita uma laparotomia de emergência5,8,9 com objetivos diag-
nósticos e terapêuticos.
Sangramentos estáveis, por outro lado, devem ser categorizados como maior ou menor, usan-
do a pontuação de Oakland. Se um pequeno sangramento for detectado (pontuação de Oakland
≤ 8 pontos), podem receber alta para posterior investigação ambulatorial5,8,9. Os pacientes com
sangramento maior devem ser hospitalizados para a execução de colonoscopia em até 24 horas.
O procedimento é fundamental para o diagnóstico, pois identifica a origem do sangramento, per-
mite a coleta de amostras patológicas e é capaz de realizar intervenção terapêutica hemostática
endoscópica. Vale considerar, porém, que ela deve ser realizada após a ressuscitação e após uma
preparação intestinal adequada que exige, geralmente, de 4 a 6 litros de polietilenoglicol5,8,9.

Tratamento
A maioria dos casos (85%) de HDB soluciona-se espontaneamente com tratamento conser-
vador. No entanto, nos casos de hemorragia severa persistente ou recorrente, é preciso realizar
intervenção hemostática e transfusão sanguínea. Em primeiro lugar, é imperiosa a instituição das
medidas de suporte, como monitorização, oferta de oxigênio por cateter nasal ou suporte ven-
tilatório, quando indicado e a realização de dois acessos venosos para a ressuscitação volêmica
adequada com cristaloide. É recomendada a transfusão de hemoderivados em pacientes com san-
gramento maciço ou em portadores de doença cardiovascular. Pacientes com sangramento ativo
com coagulopatia (tempo prolongado de protrombina com RNI maior que 1,5) ou baixa contagem
de plaquetas (menos de 50.000/μL) devem ser transfundidos com plasma fresco congelado e com
plaquetas, respectivamente. Algumas condições indicam cirurgia, como instabilidade hemodinâ-
mica, sangramento persistente por mais de 72h, sangramento recorrente e elevada quantidade de
transfusões5,8,9.
486 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Complicações clínicas das hemorragias digestivas


As hemorragias digestivas agudas maciças podem cursar com choque hipovolêmico, insta-
bilidade hemodinâmica e anemia por perda significativa de sangue. A hemorragia digestiva alta
não varicosa pode cursar, em 50% dos casos, com anemia carencial de ferro, cujo tratamento de
escolha é a administração oral de sulfato ferroso. Além disso, a HDA varicosa pode precipitar uma
encefalopatia hepática e gerar infecções, principalmente a peritonite bacteriana espontânea. No
que tange à hemorragia digestiva baixa, pode existir ressangramento e choque hipovolêmico, se a
perda sanguínea for maciça1,2,10.

Pontos-chave
• Apesar de a maioria das hemorragias digestivas serem autolimitadas, é necessária
a identificação de sinais de instabilidade hemodinâmica, como hipotensão e
taquicardia;
• A hemorragia digestiva alta (HDA) manifesta-se, geralmente, com hematêmese e
melena, enquanto a hemorragia digestiva baixa (HDB) comumente apresenta-se
com hematoquezia;
• O exame diagnóstico de escolha para HDA é a endoscopia digestiva alta, ao passo
que, para a HDB, é a colonoscopia;
• As principais etiologias da HDA e da HDB são a doença ulcerosa péptica e a doença
diverticular, respectivamente.

Leitura sugerida
1. Associação Médica Brasileira. Hemorragias Digestivas.São Paulo; 2008. (Projeto diretrizes).
2. Azevedo LCP, et al. Medicina intensiva abordagem prática. 3ª ed. Barueri: Manole; 2018.
3. Martins AAL, et al. Hemorragia digestiva alta diagnóstico e tratamento: uma revisão de literatura. Pará research
medical journal. 2019;3(2):1-7.
4. Management of acute upper gastrointestinal bleeding. Connecticut: BMJ- Nutrition, Prevention and Health. 2019.
5. Martins HS, Neto RAB, Velasco IT. Medicina de emergência abordagem prática. 11ª ed. Barueri: Manole; 2016.
6. Jiang M, Chen P, Gao Q. Systematic review and net-work metanalysis of upper gastrointestinal hemorrhage inter-
ventions. Cellular Physiology and Biochemistry. 2016; 39 (6): 2477-91.
7. Franchi-Teixeira AR, Mitssushi GN, Fraga GA, Nunes DKVS, de Souza AV, Coelho GVBF, et al. Aspectos técnicos
da utilização do balão de Sengstaken-Blakemore. Perspectivas Médicas. 2008;19(1):42-46. Recuperado de: ht-
tps://www.redalyc.org/articulo.oa?id=243217737011.
8. Diagnosis and management of acute lower gastrointestinal bleeding: guidelines from the British Society of
Gastroenterology. London: BMJ- Nutrition, Prevention and Health. 2019.
9. Aoki T, Hirata Y, Yamada A, Koike K. Initial management for acute lower gastrointestinal bleeding. World Journal of
Gastroenterology. 2018;25(1):69-84.
10. Barceló LF et al. Randomised clinical trial: intravenous vs oral iron for the treatment of anaemia after acute gas-
trointestinal bleeding. Alimentary Pharmacology and Therapeutics. 2019; 50 (3): 258-268.
Pancreatite Aguda 64

Catarina Depieri Michels


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
A pancreatite aguda é uma condição inflamatória do pâncreas exócrino, com destruição das
células acinares, que pode causar lesão local e afetar vários sistemas orgânicos1. Varia de uma
doença leve, com baixa morbimortalidade, que requer apenas medidas de suporte a uma doença
grave, com significativas complicações2. A letalidade da condição, quando leve, é menor que 1%,
enquanto a variante grave da doença tem a letalidade estimada entre 10 e 30%3. Essa condição é,
geralmente, autolimitada, mas entre 15 e 20% dos pacientes evoluem com inflamação grave, sen-
do, então, associada à falência de órgãos ou à necrose pancreática, o que exige uma transferência
urgente para a UTI. Por conseguinte, é importante que o diagnóstico precoce seja realizado e que
o adequado seguimento seja depreendido4-6.

Classificação
A pancreatite aguda, de acordo com o sistema de classificação revisado de Atlanta, pode ser
dividida de duas formas diferentes. A primeira possibilidade é categorizá-la entre pancreatite agu-
da edematosa intersticial (inflamação parenquimatosa e peripancreática, sem necrose tecidual
reconhecível) ou pancreatite aguda necrosante (presença de necrose parenquimatosa e/ou peri-
pancreática). A segunda possibilidade, por sua vez, diz respeito à gravidade da inflamação. Nesse
sentido, a pancreatite aguda leve é diagnosticada quando não existe falência de órgãos ou com-
plicações; a pancreatite aguda moderadamente grave é caracterizada por falência transitória de
órgãos (resolução em 48 horas) e/ou complicações sem falência persistente de órgãos; enquanto
a pancreatite aguda grave é definida quando existe insuficiência orgânica persistente (> 48 horas),
podendo envolver um ou mais órgãos5,6.
488 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Etiologia
As causas mais frequentes desta condição incluem cálculos biliares e consumo excessivo de
álcool, que, juntas, respondem por cerca de 80 a 90% de todos os casos. Outras etiologias incluem
disfunções metabólicas, autoimunes, mecânicas (trauma abdominal contuso e pós-operatório),
obstrução (devido a parasitas como Ascaris Lumbricoides ou a tumores) e induzidas por colan-
giopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE). Ademais, medicamentos, infecções, toxinas,
componentes hereditários e a forma idiopática podem ser responsáveis pelo processo. Em pa-
cientes pediátricos, o trauma abdominal contuso e as doenças sistêmicas são causas frequentes
de pancreatite.
A pancreatite biliar é a causa mais comum da inflamação e responde por 40% dos casos.
Entre 3 e 8% dos portadores de cálculos biliares sintomáticos evoluem com a condição, que é mais
frequente em mulheres com idade entre 50 e 70 anos. A lesão induzida por álcool, por sua vez,
ocorre entre 5 e 10% dos etilistas e é mais frequente em homens jovens3,5,7.

Etiopatogênese
O mecanismo que desencadeia a lesão pancreática não é totalmente compreendido. Contudo,
é sabido que a ativação precoce do tripsinogênio, dentro das células acinares, resulta em ativação
anormal de enzimas pancreáticas, o que induz a autólise do parênquima. Em razão dessa lesão,
as células acinares liberam citocinas pró-inflamatórias, que deflagram o início da resposta imune,
aumentam a permeabilidade vascular e danificam a microcirculação pancreática. Entre 10 e 20%
dos pacientes desenvolvem um círculo vicioso de lesão, em que os neutrófilos ativos provocam
danos agudos nos pulmões e, consequentemente, a síndrome do desconforto respiratório agudo
é instaurada.
No que se refere à pancreatite biliar, duas principais teorias são aventadas. De acordo com
a primeira delas, a teoria obstrutiva, a passagem do cálculo pelas vias biliares gera um edema na
papila duodenal, o que dificulta o escoamento do conteúdo do ducto pancreático principal para
o duodeno, gerando uma pressão excessiva e a lesão pancreática. A segunda, por sua vez, deno-
minada teoria do refluxo, defende que os cálculos são retidos na ampola de Vater, um conduto é
formado, permitindo o refluxo dos sais biliares ao pâncreas, o que aumenta a concentração de
cálcio no citoplasma acinar. Esse processo, então, potencializa a ativação de zimogênio e a lesão
tecidual é instituída.
Por outro lado, a pancreatite induzida por álcool ocorre secundariamente à ativação das vias
pró-inflamatórias. Nesse raciocínio, a atividade das caspases, compostos que mediam a apoptose,
torna-se aumentada, o esfíncter de Oddi sofre espasmos, a perfusão pancreática fica reduzida e
proteínas precipitam-se, o que causa obstrução dos ductos pancreáticos. A Figura 64.1 esquema-
tiza a fisiopatologia3,5,9.
P a n c re a t i t e A g u d a 489

Cálculo biliar

Retorno de Formação de Retenção na Edema na papila


sais biliares conduto comum papila de Vater duodenal

Aumento de Ca2
no citoplasma Lesão
Ativação de Obstrução do ducto
Autólise do pancreática
enzimas
parênquima
pancreáticas
Ativação do Aumento de pressão
zimogênio Liberação de
citocinas pró-
Ativação
Pancreatite -inflamatórias
das vias
aguda inflamatórias
Ativação do
tripsinogênio Local
Resposta
inflamatória
Álcool
Lesão pulmonar
Sistêmica
aguda/SDRA

Figura 64.1. Esquema da fisiopatologia da pancreatite aguda com suas duas principais etiologias.
Dados de Townsend CM, et al, Felga GEG et al e Rompianesi G et al3,5,9. Autoria própria.

Manifestações clínicas
O principal sintoma é a dor constante localizada na região do epigástrio ou do mesogástrio
que, em até 50% dos pacientes, irradia para o dorso. Náusea ou vômito aparecem em até 90% dos
casos, sem alívio de dor. Redução do apetite, desidratação, taquicardia e turgor cutâneo diminuído
são comuns. Devido à desidratação, hipotensão pode ocorrer e idosos podem apresentar altera-
ções no estado mental.
Em pacientes com pancreatite leve, o exame físico do abdome pode ser normal ou evidenciar
apenas uma leve dor à palpação epigástrica. Na inflamação grave, distensão e rigidez abdominais
são sinais possíveis. Sinais de hemorragia retroperitoneal ocorrem em 3% dos casos e incluem
Grey-Turner (equimose em flancos) e Cullen (equimose periumbilical). Ademais, na presença
concomitante de coledocolitíase, pode existir icterícia. A Tabela 64.1 evidencia, resumidamente,
os sinais e os sintomas possíveis3,5.
490 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 64.1. Sinais e sintomas da pancreatite aguda


Dor epigástrica ou periumbilical
Náusea
Vômitos
Desidratação
Turgor cutâneo reduzido
Taquicardia
Hipotensão
Icterícia
Sinal de Grey-Turner
Sinal de Cullen
Dados de Sabiston . Autoria própria.
3

Diagnóstico
O diagnóstico de pancreatite aguda requer a presença de, no mínimo, dois dos três critérios
a seguir:
1. Dor abdominal consistente com a doença;
2. Amilase e/ou lipase séricas maior que três vezes o limite superior da normalidade, afinal,
pacientes que se apresentam nas primeiras 24 horas à emergência têm, com sensibilidade
de 98%, esses níveis aumentados ao primeiro exame. A lipase é um indicador mais
sensível, pois tem a meia-vida maior, além de ser mais específica. Vale considerar, ainda,
que os níveis séricos da amilase podem estar elevados em outros distúrbios, como úlcera
péptica, salpingite e isquemia mesentérica. Por fim, cabe ressaltar que a mensuração
da lipase sérica se normaliza em, aproximadamente, 14 dias, enquanto a da amilase em
5 dias8;
3. Achados de imagem consistentes com a suspeita. Nesse propósito, a ultrassonografia
abdominal deve ser solicitada inicialmente, devido à sua sensibilidade de 98% no
diagnóstico de litíase biliar12. A tomografia computadorizada com contraste é considerada
como o exame padrão-ouro, entretanto, é indicada apenas para os casos em que houver
dúvida diagnóstica ou na suspeita de pancreatite aguda grave. Exceto nos casos de suspeita
de gravidade, a TC do abdome não é indicada nas primeiras 48 horas após o início dos
sintomas, uma vez que as complicações costumam aparecer depois de três dias do início
da dor abdominal. Os achados, exemplificados na Figura 64.2, podem incluir aumento do
volume pancreático, contorno irregular, obliteração da gordura peripancreática, necrose
ou pseudocisto. As radiografias abdominal e torácica podem ser úteis no propósito de
excluir outras condições, como úlcera perfurada. A ressonância magnética, por sua vez,
tem a aplicação limitada na prática devido ao seu alto custo e baixa disponibilidade. No
que se refere à ultrassonografia endoscópica, o método é considerado sensível para a
identificação de coledocolitíase, não existindo risco significativo de piorar a pancreatite.
Por fim, a colangiopancreatografia por ressonância magnética (CPRM) exerce um
papel importante na pancreatite inexplicável ou recorrente, uma vez que permite uma
visualização completa da anatomia do ducto biliar e do pâncreas3,13,14.
P a n c re a t i t e A g u d a 491

Estudos bioquímicos complementares podem ser realizados, como a mensuração da alanina


aminotransferase (ALT) sérica que, se estiver três vezes superior ao limite de referência indica,
em 95% dos casos, a causa como sendo litíase biliar. Ademais, a quantificação sérica da proteína-
-C-reativa maior que 150 mg/L e do hematócrito (Ht) maior que 44%, podem ser indicadores da
gravidade e do mau prognóstico quando realizados nas primeiras 48 horas, afinal, quando esses
achados estão presentes, a necrose pancreática está, mais frequentemente, associada. A quantifi-
cação da procalcitonina sérica, por sua vez, quando superior a 0,4 ng/mL, nas primeiras 24 horas
desde o início dos sintomas, pode sugerir insuficiência orgânica e um nível de 1,8 ng/mL nos pri-
meiros dias foi considerado significativo na previsão de necrose infectada. Por fim, cabe ressaltar
que outros marcadores foram associados com maior gravidade, além de que leucocitose, hipocal-
cemia, hiperglicemia e hipoglicemia podem ocorrer6,8,10,11.

Figura 64.2. Tomografia computadorizada de abdome


evidenciando pancreatite aguda exsudativa, com
líquido pericancreático.
Imagem retirada de Wikimedia Commons.

Critérios de gravidade
São importantes para a definição da conduta. Nesse propósito avaliam-se, inicialmente, a
presença das seguintes condições:
• Características clínicas do paciente como idade > 55 anos, obesidade, alteração do estado
mental, doença mórbida;
• Síndrome da resposta inflamatória sistêmica, diagnosticada pela presença de ≥ 2 entre
FC > 90 bpm, taquipneia com > 20 irpm, PaCO2 < 32 mmHg, temperatura > 38 ou < 36°C,
contagem de leucócitos > 12.000 ou <4.000 células/mm3 ou > 10% de neutrófilos imaturos;
• Resultados laboratoriais alterados, como ureia > 40 mg/dL ou em elevação, hematócrito
> 44% ou em elevação e creatinina sérica elevada;
• Achados radiológicos, dentro os quais se incluem derrames pleurais, infiltrados pulmonares,
coleções extra pancreáticas múltiplas ou extensas. Uma vez detectada a possibilidade de
maior gravidade, há diferentes ferramentas que se propõem à avaliação mais acurada,
como os critérios de Ranson, os critérios tomográficos de Baltazar e o escore APACHE II.
Vale considerar, porém, que, na UTI, geralmente, utiliza-se o escore APACHE II. O escore
de Ranson foi o primeiro sistema de pontuação para avaliar a gravidade da pancreatite
aguda. Tem como base 11 parâmetros obtidos na admissão ou em até 48 horas depois dela.
Nessa ferramenta, a mortalidade está diretamente relacionada ao número de parâmetros
positivos. Se três ou mais critérios, explicitados na Tabela 64.2, forem observados, a
pancreatite grave é diagnosticada. É usado, principalmente, para excluir pancreatite grave
ou para prever o risco de mortalidade. Os critérios tomográficos de Balthazar, por sua
492 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

vez, classificam a pancreatite com base no grau de inflamação, na presença de coleções


de fluidos e na extensão da necrose. Um escore de 7 a 10 pontos está associado a uma
morbidade de 92% e a uma mortalidade de 17%. O APACHE II (Acute Physiology and
Chronic Health Evaluation), por sua vez, tem como base 12 medidas fisiológicas, ilustradas
na Tabela 64.3, e considera a idade e o estado de saúde prévio do paciente. Uma pontuação
de 8 ou mais nesse escore define pancreatite grave. O índice APACHE tem como principal
vantagem o fato de poder ser utilizado na admissão e de poder ser repetido a qualquer
momento. Contudo, é um escore complexo e inespecífico para pancreatite aguda, fatores
que se constituem como suas maiores desvantagens1,13,15-17.

Tabela 64.2. Critérios de Ranson para o diagnóstico de gravidade da


pancreatite aguda, sendo positiva quando três ou mais itens forem observados
Pancreatite biliar Pancreatite não biliar
Idade > 70 anos Idade > 55 anos
Leucócitos > 18.000/mm3 Leucócitos > 16.000/mm3
Admissão Glicemia > 220 mg/dL Glicemia > 200 mg/dL
LDH > 400 UI/L LDH > 350 UI/lL
TGO > 250 UI/L TGO > 250 UI/L
Queda do hematócrito > 10% Queda do hematócrito > 10 %
Ureia > 5 mg/dL Ureia > 10 mg/dL
Cálcio < 8 mg/dL Cálcio < 8 md/dL
48 horas de evolução
PaO2 < 60 mm Hg PaO2 < 60 mm Hg
Déficit de bases > 5 mEq/L Déficit de base > 4 mEq/L
Perda de líquidos > 4 L Perda de líquidos > 6 L
Dados de Ranson JH, et al. Prognostic signs and the role of operative management in acute pancreatitis.
Surg Gynecol Obstet. 1974 Jul;139(1):69-81. Autoria própria.

Tabela 64.3. Escore APACHE II como preditor de pancreatite aguda


grave, sendo positiva na presença de, pelo menos, oito itens
Escore APACHE II
• Temperatura retal
• PAM
• FR
• FC
• pH arterial ou nível de HCO3-
• FiO2
• Na+ sérico
• K+ sérico
• Creatinina
• Hematócrito
• Leucócitos globais
• Escala de coma de Glasgow
• Idade
• Doença crônica prévia
Dados de Ferreira AF, et al. Fatores preditivos de gravidade da pancreatite aguda: quais e
quando utilizar? ABCD, Arq Bras Cir Dig. 2015 Sep; 28(3): 207-211. Autoria própria.
P a n c re a t i t e A g u d a 493

Tratamento
O prognóstico dos pacientes que não necessitam de internação na UTI é bom e melhoram,
em sua maioria, dentro de 3 a 7 dias de manejo conservador. Por outro lado, alguns critérios, se
presentes, indicam a internação em UTI’s, como o diagnóstico da forma grave da pancreatite agu-
da ou o diagnóstico da forma leve da doença, associada a um ou mais dos parâmetros evidencia-
dos na Tabela 64.45,10.

Tabela 64.4. Parâmetros que, se associados à pancreatite


leve, indicam admissão do paciente em UTI
Sinais de alerta
Frequência cardíaca < 40 ou > 150 bpm
PA sistólica < 80 mmHg ou PA diastólica > 120 mmHg ou PAM < 60 mmHg
FR > 35 irpm
Sódio sérico < 110 ou > 170 mmol/L
Potássio sérico < 2 ou > 7 mmol/L
PaO2 < 50 mmHg
pH sangue arterial < 7,1 ou > 7,7
Glicemia sérica > 200 mg/dL
Cálcio sérico > 15 mg/dL
Anúria
Coma
Dados de Working Group IAP/APA Acute Pancreatitis Guidelines10, de Johnson C,
Charnley R, Rowlands B, et al. UK guidelines for the management of acute pancrea-
titis. 2005;54 Suppl 3:1 e de Guidelines for intensive care unit admission, discharge,
and triage. Crit Care Med. 1999 Mar;27(3):633-8. Autoria própria.

O tratamento da pancreatite baseia-se nos seguintes pilares: reposição volêmica, controle da


dor e suporte nutricional. Abordagens adjuvantes podem ser depreendidas e devem ser indicadas
individualmente.

Reposição intensiva de fluidos intravenosos


É indicada a infusão de cristaloides – solução salina 0,9% ou solução de Ringer-lactato –, a fim
de se alcançar um ajuste micro e macro circulatório, evitando a ocorrência de complicações gra-
ves. A velocidade de administração deve ser individualizada. Em geral, recomenda-se 5-10 mL/kg
por hora ou bolus de 200 a 300 mL, dependendo das condições clínicas e da presença de comorbi-
dades, como insuficiência cardíaca e insuficiência renal. A reavaliação sistemática d e laboratorial
deve ser realizada e a hipervolemia deve ser evitada6.
494 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Controle da dor
Os opioides, especialmente a morfina, geralmente são preferidos, por administração em bo-
lus intravenoso, analgesia epidural ou analgesia controlada pelo paciente1.

Nutrição
Na pancreatite leve, recomenda-se alimentação via oral em 24 horas, conforme tolerado pelo
paciente. Em condições graves, as principais opções são alimentação enteral ou nutrição parente-
ral total. Porém, a nutrição enteral é associada e menores taxas de complicações, motivo pelo qual
deve ser preferida.

Colecistectomia
É recomendada após a melhora do quadro clínico em pacientes com pancreatite leve cau-
sada por cálculos biliares. Isso porque a coledocolitíase persistente pode obstruir o ducto colé-
doco, levando à pancreatite aguda grave e/ou à colangite, manifestada pela presença da tríade de
Charcot, com icterícia, febre e dor. Nesses casos, a colangiopancreatografia percutânea retrógrada
endoscópica (CPRE) está indicada previamente à colecistectomia12,18,19.

Antimicrobianos
Quando existe suspeita de infecção, a abordagem clínica e laboratorial para a pesquisa do
foco deve ser instituída e os antimicrobianos devem ser indicados, de acordo com os protocolos
institucionais e com a CCIH.

Tratamento farmacológico
Nenhum tratamento farmacológico eficaz foi encontrado no que se refere ao tratamento des-
ta condição.

Monitorização
A equipe deve monitorar os sinais vitais, incluindo a saturação de oxigênio, que deve ser
mantida entre 94% e 96%, se o paciente não for portador de doença pulmonar obstrutiva crônica,
condição na qual níveis mais baixos de saturação são tolerados. A taquipneia, definida como FR
> 22 irpm é um parâmetro isolado de gravidade e deve ser corretamente avaliada. A pressão arterial
sistólica deve ser mantida > 90 mmHg ou a pressão arterial média > 65 mmHg e o início de drogas
vasoativas, como a norepinefrina em infusão contínua, associada à reposição volêmica, deve ser
deflagrada rapidamente para alcançar o objetivo. Uma sonda vesical de demora deve ser instalada
e o débito urinário deve ser medido a cada hora. Os líquidos infundidos devem ser titulados para
manter o débito urinário > 0,5 a 1 mL/kg/hora. Amostras para a monitorização dos gases arteriais
e do lactato sérico também devem ser obtidas frequentemente, visando à adequada condução da
P a n c re a t i t e A g u d a 495

reposição volêmica, pois a presença de acidose metabólica e de hiperlactatemia relacionam-se,


respectivamente, a maior gravidade e a pior prognóstico. Os eletrólitos, principalmente potássio,
sódio, cálcio e magnésio, também devem ser monitorados com frequência nas primeiras 48 a 72
horas, e seus níveis mantidos dentro dos valores normais. Os níveis séricos de glicose devem ser
monitorados a cada hora em pacientes com pancreatite grave, objetivando glicemias entre 120
e 180 mg/dL, afinal, a hiperglicemia pode aumentar o risco de infecções pancreáticas secundá-
rias6,13,18. Exames adicionais de acompanhamento durante a hospitalização são recomendados de
acordo com as manifestações clínicas e laboratoriais de piora do paciente.

Complicações
A pancreatite aguda pode evoluir com algumas importantes complicações, motivo pelo qual
a equipe médica deve estar preparada para identificar e abordar cada uma das situações.

Coleções líquidas peripancreáticas estéril e infectada


A presença de líquido abdominal agudo durante um episódio de pancreatite foi descrita em
30 a 57% dos pacientes. O prognóstico é favorável, uma vez que a maioria do líquido será reabsor-
vido espontaneamente. Febre, leucocitose e dor abdominal sugerem infecção do material e, nesse
caso, a administração intravenosa de antimicrobiano é preconizada.

Necrose pancreática e necrose infectada


Até 20% dos pacientes acometidos por esta condição evoluem com necrose pancreática. A
TC com contraste é uma técnica confiável para a identificação da necrose. Na eventualidade da
presença de necrose, se houver suspeita de infecção associada, antimicrobianos com cobertura
também contra anaeróbios (por exemplo, meropenem ou de acordo com as recomendações da
CCIH) devem ser instituídos. Ainda assim, se o paciente não evoluir satisfatoriamente, é indicada
a drenagem ou o debridamento10.

Pseudocistos pancreáticos
São coleções líquidas peripancreáticas, que permanecem por mais de 4 semanas e que ocorre
em 5 a 15% dos pacientes que mantêm acúmulo de líquido peripancreático. Caso os pseudocistos
persistam por mais de 6 a 8 semanas, um manejo cirúrgico é indicado. A Figura 64.3 exemplifica
esta situação11,19.

Complicações vasculares
São raras e o vaso mais afetado é a artéria esplênica. As manifestações clínicas incluem o
início abrupto de dor abdominal, taquicardia e hipotensão. Deve-se tentar embolização arterial
para controlar o sangramento.
496 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Figura 64.3. Tomografia computadorizada abdominal


evidenciando, na seta, grande pseudocisto pancreático.
Imagem retirada do Wikimedia Commons.

Ascites pancreáticas
A ruptura de um pseudocisto ou do ducto pancreático pode levar a um acúmulo significativo
de líquidos na cavidade. São ocorrências raras, mas importantes.

Fístula pancreático-cutânea
Apenas 0,4% dos pacientes apresentam essa complicação. No entanto, a incidência é maior
em pacientes que apresentam alguma das outras complicações anteriormente descritas.

Síndrome do compartimento abdominal


É definida como a presença de pressão intra-abdominal > 20 mmHg, sustentada e avaliada
indiretamente pela medida da pressão intravesical. Seu reconhecimento e tratamento precoces
são fundamentais para uma evolução favorável5,10.

Pontos-chave
• A pancreatite aguda com indicação para internação em UTI é uma doença grave,
que pode progredir para falência de vários órgãos, geralmente nas primeiras 48
horas;
• As principais manifestações clínicas da pancreatite aguda incluem dor epigástrica,
náuseas e vômitos;
• A restauração da pressão arterial e da perfusão por meio da reposição volêmica
inicial, associada ou não a vasopressor, é elemento-chave no tratamento.
P a n c re a t i t e A g u d a 497

Leitura sugerida
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Intoxicações Exógenas 65

Thayná Gonçalves Gouveia


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
Intoxicação exógena (IE) é um fenômeno decorrente da exposição a algum agente químico
nocivo e exige, frequentemente, assistência de urgência e/ou de emergência para o manejo dos
distúrbios bioquímicos e funcionais decorrentes. Essas intoxicações podem ser agudas ou crôni-
cas e as taxas de morbimortalidade são variáveis, a depender da quantidade da substância quími-
ca absorvida, do motivo do evento (acidental ou intencional), do consumo simultâneo de mais de
uma substância, do tempo de absorção da droga, da toxicidade do produto, da suscetibilidade do
organismo e do tempo decorrido entre a exposição e o atendimento médico¹. Em grande parte das
vezes, a substância é de fácil acesso, como é o caso dos fármacos, dos produtos industriais e domi-
ciliares, bem como o dos pesticidas. Ademais, compostos lesivos podem estar presentes, também,
em alimentos, no ar atmosférico, na água, em plantas e no organismo de determinados animais2.
A condição é considerada um problema de saúde pública mundial, responde por cerca de 5 a
10% dos atendimentos nos serviços de emergência e por mais de 5% das internações em terapia
intensiva de adultos. No Brasil, os casos de IE acometem mais frequentemente as faixas etárias
entre 20 a 39 anos e tem predominância no sexo masculino (60% dos casos). Apesar desses dados,
estima-se que a dimensão do problema não seja conhecida totalmente, devido ao subdiagnóstico
e aos casos não notificados, mesmo depois da publicação da Portaria GM/MS nº 104, de 25 de ja-
neiro de 2011, que incluiu a IE na lista de agravos de notificação compulsória³. Embora a IE possa
ser fundamentada em diferentes etiologias, ela ocorre, principalmente, por tentativas de suicídio
e por superdosagem de medicamentos justificada pela tentativa de alcançar, mais precocemente,
o efeito terapêutico. Nesse contexto, e considerando que a mortalidade pode ter elevada taxa de
mortalidade1, é imprescindível que a equipe assistencial domine o assunto e esteja preparada para
o adequado manejo.
500 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Apresentação clínica
A apresentação clínica da IE, na emergência, é diversa e deve ser avaliada sob o protocolo
“ABCDE”. A história clínica e o exame físico são extremamente importantes para a à avaliação da
gravidade, a identificação do possível agente causador e da síndrome tóxica, descrita na Tabela
65.1. Durante a anamnese, deve ser coletada a história do paciente, no que se refere ao consumo
diário de medicamentos, comorbidades, uso de drogas ilícitas, ocupação profissional, exposição
e acesso a substâncias e o relato da intoxicação, incluindo a motivação, data, horário e local onde
essa ocorreu. Ademais, no local do evento devem ser procurados frascos, cartelas de comprimidos
e seringas que possam ajudar na identificação do composto. Vale ressaltar a importância de se co-
nhecer os diagnósticos prévios do paciente, afinal, condições como insuficiência renal, hepática
e alcoolismo podem potencializar a nocividade da intoxicação ou exigir ajustes na conduta3,4. O
exame físico, por sua vez, visa a identificação de sinais e de sintomas que possam estar justificados
por alguma das síndromes tóxicas e, assim, o manejo apropriado pode ser preparado. Merecem
atenção especial os exames dos sistemas cardiovascular (SCV), neurológico (SN) e respiratório
(SR), motivo pelo qual o nível de consciência, os sinais vitais e a situação das pupilas devem ser
obtidos de todos os pacientes4,5.
Por fim, vale ressaltar o fato de existirem compostos cujo início de ação é retardado, seja
por possuírem liberação prolongada, seja pela necessidade intrínseca de metabolização, antes de
produzirem sinais e sintomas. Nessas situações o diagnóstico pode ser difícil e ocorre elevada taxa
de mortalidade, pela evolução rápida após a instauração. Alguns dos exemplos que necessitam
de metabolização incluem paracetamol, digoxina, metanol, salicilatos, etilenoglicol, agentes an-
titumorais, colchicina, metais pesados. Por outro lado, algumas das drogas de ação lenta são a
carbamazepina, o lítio e a fenitoína2,3.

Tabela 65.1
Síndrome Tóxica Estado mental Pupilas Sinais vitais Outros sinais Exemplos de agentes
Sudorese (pele úmida)
Hipertensão Tremores Cocaína, anfetamina,
Agitação cafeína, IMAO, hormônios
Adrenérgica/ Hipertermia Convulsão
Confusão Midríase tireoidianos, efedrina,
simpaticomimética Taquicardia Arritmias
Ansiedade pseudoefedrina, derivados
Taquipneia Dor precordial de ergotamina
Rabdomiólise
Pele e mucosas secas
Pele avermelhada Antidepressivos tricíclicos,
Confusão
Hipertensão e quente anti-histamínicos H1,
Delirium
Hipertermia Retenção urinária aguda antiparkinsonianos,
Anticolinérgica Hipervigilância Midríase
Taquicardia Redução/Abolição dos ruídos antiespasmódicos,
Alucinações fenotiazina, ciclobenzaprina,
Taquipneia intestinais
Coma atropina, alguns cogumelos
Mioclonia
Convulsões (raro)

Continua
I n t o x i c a ç õ e s E x ó g e n a s 501

Continuação

Tabela 65.1
Síndrome Tóxica Estado mental Pupilas Sinais vitais Outros sinais Exemplos de agentes
Sialorréia intensa
Broncorreia
Bradicardia
Broncoespasmo
Hipertensão
Lacrimejamento Carbamato,
Confusão ou
Colinérgica Miose Vômitos organofosforado,
Coma Hipotensão
Diarreia fisostigmina, pilocarpina
Taqui ou
Fasciculações
Bradipneia
Fraqueza
Incontinência fecal e urinária
Agitação
Desorientação Hipertermia
Dissociativa Alucinações Taquicardia Tremor LSD, anfetaminas, êxtase,
Midríase
(alucinógeno) Sinestesias Hipertensão Nistagmo fenciclidina
Labilidade de Taquipneia
humor
Alfa e beta bloqueadores,
Rebaixamento
Isocóricas Hipotensão bloqueadores dos canais de
Bradicárdica do nível de Vômitos
Miose Bradicardia cálcio, amiodarona, digital,
consciência
carbamato, organofosforado
Miose: Hipotermia
Rebaixamento apenas com
Bradicardia Opióides,
Sedativo hipnótica do nível de opióides
Hipotensão Hiporreflexia benzodiazepínicos, álcool,
(hipoatividade) consciência Outras
Bradipneia anticonvulsivantes
Coma etiologias:
Isocóricas Apneia

Cefaleia
Confusão, Dispneia Náuseas
Pupilas não
Labilidade Cianeto, inalantes, gases,
Asfixiante (inalantes) específicas Taquipneia Vômitos
emocional monóxido de carbono
Papiledema Hipotensão Edema Pulmonar
Coma
Arritmias
Sangramentos em pele,
em mucosas, no TGI, no
Antagonistas da vitamina K
Manifestada com SNC, em cavidades e em
(alguns venenos para rato)
sangramento articulações
e varfarina sódica
Alterações de TP/INR - 24-
72h

Agitação Sudorese
Álcool, cocaína,
Ansiedade Taquicardia Tremores
Abstinência Midríase fenobarbital, opioides,
Confusão Taquipneia Convulsões
antidepressivos
Alucinações Arritmias (casos graves)
Taquipneia AAS, acetona, ácido
Manifestada com intensa valpróico, formaldeído,
acidose metabólica Dispneia etilenoglicol, metformina,
grave e persistente Bradicardia cianeto, etanol, monóxido
Hipotensão de carbono, salicilatos
502 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Diagnóstico
O diagnóstico baseia-se na história clínica e no exame físico, para se identificar qual sín-
drome tóxica manifesta-se daquela forma. Ademais, exames complementares, como hemograma,
mensuração da glicemia, dos eletrólitos e o estudo gasométrico podem ser solicitados se existir
alguma comorbidade importante, quando a substância é desconhecida ou quando a ingesta é
intencional. Embora esteja disponível a dosagem corporal de algumas substâncias tóxicas, qua-
litativa ou quantitativamente (screening toxicológico), o estudo é de valor limitado, por não ter
impacto na evolução desses pacientes1,3. O estudo eletrocardiográfico seriado, por fim, é indicado
em algumas situações, como na IE por antidepressivos tricíclicos, por antiarrítmicos, por betablo-
queadores ou quando a gravidade da intoxicação for grave. Nesse ponto, atenção especial deve
ser dirigida à duração do complexo QRS e ao intervalo Qtc, afinal, essas drogas podem prolongar
o intervalo e predispor a arritmias fatais. A radiografia de tórax é útil na suspeita de complicações
da IE, como aspiração, edema pulmonar não cardiogênico e pneumomediastino, secundário à
ruptura de esôfago, por exemplo1,3,4.

Tratamento
O manejo adequado deve ser instituído. Como a IE é uma emergência, o paciente deve ser
abordado seguindo o protocolo “ABCDE”, sumarizado a seguir.
A. Abertura de via aérea: Avaliar se via aérea está pérvia. Realizar intubação orotraqueal
(IOT) caso exista rebaixamento do nível de consciência.
B. Boa respiração: Avaliar padrão respiratório, frequência, saturação periférica de O2 SpO2, e
garantir oxigenoterapia, se necessária.
C. Circulação: Verificar pulso, pressão arterial e perfusão. Se não houver pulso central, ini-
ciar medidas de reanimação. Acesso venoso periférico calibroso é desejável.
D. Disfunção neurológica: Avaliar as pupilas e o nível de consciência, pela Escala de Glas-
gow. Controlar a agitação e as convulsões, se presentes.
E. Exposição e ambiente: Realizar exposição do paciente e controle térmico. Retirar as rou-
pas se existir contaminação cutânea.
A terapêutica da IE tem alguns princípios gerais, dentre os quais se incluem reconhecer uma
intoxicação, avaliar o risco e a gravidade da situação, estabilizar clinicamente o paciente, reduzir a
absorção e aumentar a eliminação do tóxico, tentar identificar o agente causador, avaliar se existe
algum antídoto disponível, bem como se está indicado e prevenir nova exposição, por meio de
avaliação psiquiátrica, por exemplo1,7. Medidas como descontaminação, lavagem intestinal, pres-
crições de medicamentos e de antídotos, e a instauração de medidas que facilitem a eliminação
podem ser utilizadas e serão descritas a seguir.

Descontaminação
A descontaminação visa a remoção do agente tóxico ou a redução de sua absorção e as medi-
das preconizadas dependem da via de exposição. Quando o agente estiver em contato com a pele,
devem ser retiradas as roupas que contenham o irritante, além de ser lavada com água, exausti-
vamente, a região acometida. Existindo contaminação ocular, podem ser utilizados colírio anes-
tésico, bem como o olho afetado deve ser lavado com solução salina (NaCl) 0,9% e uma avaliação
I n t o x i c a ç õ e s E x ó g e n a s 503

oftalmológica emergencial deve ser solicitada. No caso de contaminação respiratória, importante


que a vítima seja retirada do local, que O2 suplementar seja instalado e que sinais de edema do tra-
to respiratório sejam observados, como rouquidão e estridor, pois esses pacientes podem evoluir
rapidamente para uma obstrução de via aérea. Por fim, a equipe deve ter atenção ao uso correto
dos aparelhos de proteção individual (EPIs), a fim de que o contato com as substâncias nocivas
seja prevenido3,4,7.

Descontaminação gastrointestinal
Consiste na remoção do agente tóxico do trato gastrointestinal (TGI), com o intuito de evitar
ou de reduzir sua absorção. Algumas variáveis devem ser consideradas ao indicar o procedimento,
dentro os quais se elencam as características da substância ingerida, o tempo decorrido da inges-
tão, os sintomas apresentados e o potencial de gravidade do caso3,6. Além disso, recomenda-se
uma avaliação criteriosa do nível de consciência do paciente antes de iniciar a conduta, visando à
previsão da necessidade de se instituir via aérea avançada3. A descontaminação é benéfica na au-
sência de fatores de risco para complicações e se as quantidades ingeridas forem potencialmente
tóxicas, em tempo de até 2 horas após o consumo. Porém, em se tratando de agentes que redu-
zem a peristalse intestinal, como anticolinérgicos e fenobarbital, a indicação de descontaminação
pode acontecer mais tardiamente. Por outro lado, o procedimento é contraindicado para os pa-
cientes que ingeriram substâncias há mais de duas horas, com exceção das drogas anteriormente
citadas. Por fim, pacientes que não têm condições de manter via aérea pérvia têm risco aumen-
tado de broncoaspiração, motivo pelo qual não devem ser submetidos a esses procedimentos8.
Geralmente, a descontaminação gastrointestinal divide-se em duas etapas: a realização da lava-
gem gástrica, seguida pela administração do carvão ativado6,7.
A lavagem gástrica (LG), é indicada em situações específicas das emergências, sendo inci-
pientes as evidências clínicas que a suportam7. Entretanto, havendo a necessidade é realizada
por meio da infusão e, posteriormente, da aspiração de NaCl 0,9%, via sonda nasogástrica (SNG)
ou orogástrica, com o objetivo de retirar, a substância ingerida³. O procedimento pode remover
grandes quantidades do composto ingerido, com eficácia satisfatória quando realizado entre 30
e 60 minutos após a intoxicação. Porém, é contraindicado para pacientes prostrados, comatosos
e convulsivos, para aqueles que ingeriram cáusticos/solventes ou quando há risco de perfuração
e de sangramento dos locais manipulados7. Quando recomendando, a sonda deve ser de grande
calibre e o paciente deve ser mantido em decúbito lateral esquerdo durante o processo. O procedi-
mento finaliza quando tiver sido infundido o volume total recomendado (6-8 L no adulto e 10 mg/
kg na criança), ou até que se obtenha retorno límpido do líquido³.
O carvão ativado (CA), é um pó adsorvente, feito a partir da destilação da polpa de madei-
ra. Sua ação é fundamentada na elevada área superficial, o que garante eficácia na adsorção de
substâncias, quando está na proporção correta de 10:17. Vale considerar que o carvão ativado é
igual ou superiormente eficaz aos procedimentos que induzem êmese ou a LG, no que se refere à
redução da absorção do fármaco. Contudo, apesar de esse resultado ser animador, os estudos que
chegaram a essa conclusão foram realizados em voluntários, o que suscita a necessidade de com-
provação posterior, por meio de pesquisa em pacientes intoxicados6,7. O CA pode ser utilizado por
via oral, sem que exista a necessidade de se instalar a SNG. Quando em dose única, preconiza-se
para crianças, a posologia de 1g/kg, com NaCl 0,9% na proporção 4-8 mL/ e, para adultos a de 50
g em 250 mL de NaCl 0,9%. Caso sejam necessárias múltiplas doses, prescrevê-las em intervalos
de 4/4 horas, associadas aos catárticos, preferencialmente na forma salina. Constipação e impac-
tação intestinal podem acontecer como efeito adverso, principalmente quando empregado em
504 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

múltiplas doses. Por fim, o uso do carvão é contraindicado em RN, em gestantes, em pacientes
com diminuição do nível de consciência, na ingestão de cáusticos ou de solventes e na presença
de história recente de obstrução intestinal ou de cirurgia abdominal3,6.
Nos casos em que ocorreu a ingestão de pacotes contendo drogas ou de substâncias em ní-
veis tóxicos, não absorvíveis pelo CA, pode ser indicada a lavagem intestinal. O procedimento
consiste na administração de polietilenoglicol, via sonda nasoentérica (SNE), visando facilitar a
eliminação do agente pelas fezes. Porém, sendo diagnosticado íleo paralítico, perfuração gastroin-
testinal, hemorragia digestiva e instabilidade hemodinâmica, o procedimento é contraindicado3,6.

Medidas de eliminação
Embora seja desejável que as substâncias tóxicas sejam rapidamente eliminadas do organis-
mo, as medidas de eliminação, geralmente, têm execução não prática e podem não ser seguras.
Exatamente por isso, o manual de toxicologia clínica lista 3 perguntas que devem ser respondidas,
antes que o procedimento seja recomendado7. A primeira delas é “o paciente precisa forçar a eli-
minação?”. Em seguida, “o fármaco ou a toxina está acessível para o procedimento de remoção?”.
Por fim, “o método será, provavelmente, útil?”. Uma vez respondidas e sendo indicada a conduta,
a equipe deve escolher entre a administração de múltiplas doses de CA, a alcalinização urinária
e a hemodiálise. As múltiplas doses de CA são preconizadas para a eliminação de fármacos como
fenobarbital, dapsona e carbamazepina. Por outro lado, a alcalinização urinária potencializa a
excreção de alguns agentes, como fenobarbital e salicilatos, embora seja contraindicada para pa-
cientes acometidos por insuficiência renal, edema pulmonar ou cerebral e doenças cardíacas. Por
último a hemodiálise é raramente utilizada, mas é benéfica a situações em que a velocidade de de-
puração da substância será maior com o seu emprego, quando comparado ao clearance endógeno.
Ela é eficaz quando a intoxicação se dá pelo fenobarbital, pela teofilina, pelo lítio, pelos salicilatos
e pelos álcoois tóxicos3,6,7.

Antídotos
São substâncias que agem no organismo atenuando ou neutralizando ações ou efeitos de
outras substâncias químicas. A prescrição de antídotos não é a primeira conduta no atendimento
das IE, afinal, a maior parte delas pode ser tratada com medidas de suporte e com sintomáticos³.
Entretanto, em algumas situações, como aquelas exemplificadas na Tabela 65.2, a administração é
imprescindível para a melhora clínica do doente.
I n t o x i c a ç õ e s E x ó g e n a s 505

Tabela 65.2. Exemplos de drogas cujos antídotos


são empregados na prática clínica
Agente tóxico Antídotos
Acetaminofeno N-acetilcisteína
Antidepressivo tricíclico Bicarbonato de sódio
Benzodiazepínicos Flumazenil
Cianeto Hidroxicobalamina (B12)
Chumbo, arsênico Dimercaptopropanol
Inibidores de colinesterase Atropina/oximas
Metanol Etanol
Metemoglobinizantes Azul de metileno
Opioides Naloxone
Sais de ferro Desferoxamina
Varfarina Vitamina K
Dados de Hernandez EMM et al³.

Pontos-chave
• A IE é frequente na prática clínica e, por isso, é de suma importância que o
reconhecimento precoce aconteça;
• É imprescindível reconhecer a IE como uma emergência e instituir o manejo
conforme o ABCDE;
• É fundamental o domínio das técnicas de descontaminação, bem como estar ciente
das drogas cujos antídotos estão disponíveis

Leitura sugerida
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2017.
2. Carvalho FSA, Mororó WMD, Alencar YCA, Sette RBT, Sousa MNA. Intoxicação Exógena no Estado de Minas
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lância das intoxicações agudas. 1° ed. São Paulo: Secretaria Municipal de Saúde; 2017.
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506 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

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Toxicologia Clínica. 6º. ed. Porto Alegre: AMGH, 2014. v. 1, p. 1-68.
8. Velasco Irineu Tadeu. Medicina de Emergência: Abordagem Prática. 13th ed. Barueri: Manole; 2019. 108, Medicina
de Emergência: Abordagem Prática; p. 1118-26.
Emergências Obstétricas 66

Camila Gabriela Rodrigues Alves


Laís Leão Calumby
Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
No período gestacional e no pós-parto, algumas intercorrências podem ameaçar a vida da
mulher e configuram-se como situações de emergência que exigem internação em Unidade de
Terapia Intensiva (UTI). Considerando-se que a maioria dos óbitos maternos no Brasil seria evitá-
vel, desde que existisse participação ativa do sistema de saúde, a atuação eficiente dos profissio-
nais na identificação das condições de risco é de extrema importância1. O objetivo deste capítulo é
apresentar as situações emergenciais mais frequentes no contexto obstétrico da terapia intensiva.

Ressuscitação cardiopulmonar (RCP) em obstetrícia


De acordo com a American Heart Association (AHA), a prevalência de parada cardiorrespirató-
ria (PCR) em gestantes varia de 1/20.000 a 1/50.000 e o prognóstico é desfavorável, com alta taxa de
morbimortalidade2,3. As causas mais frequentes de PCR em obstetrícia incluem tromboembolismo
pulmonar (29%), hemorragia (17%), sepse (13%), cardiomiopatia periparto (8%), acidente vascu-
lar encefálico (5%), pré-eclâmpsia e eclâmpsia (2,8%), além de complicações inerentes à anestesia
infarto agudo do miocárdio, doença cardíaca pré-existente e trauma4. O êxito da ressuscitação de-
pende de reconhecimento, com a identificação de ausência de pulso arterial central ou de gasping
associado à inconsciência, e da intervenção precoce5. A RCP em obstetrícia segue as mesmas di-
retrizes das outras populações, mas alguns aspectos específicos da gestante merecem destaque.
Nesse cenário, dois pacientes devem ser considerados: a gestante e, eventualmente, o feto. A con-
duta na gestante pode ser simplificada pelo mnemônico CABD5:
• Checar responsividade, pulsos e respiração e, caso necessário, chamar por ajuda e iniciar
imediatamente as compressões cardíacas;
• Abertura de vias aéreas;
• Boa ventilação, na proporção de 30 compressões para 2 ventilações;
• Desfibrilação precoce quando indicado.
508 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

A abordagem deve ser interdisciplinar, com a presença idealmente do emergencista/intensi-


vista adulto, neonatal e do obstetra.
Vale ressaltar que alterações fisiológicas hemodinâmicas da gestação podem dificultar o
manejo da PCR. Isso porque, após a 20ª semana de gestação, o útero gravídico comprime a veia
cava inferior e a aorta, o que dificulta o retorno venoso e consequentemente, impede o retorno a
circulação espontânea (RCE). Nesse ponto fundamenta-se a recomendação de manter a pacien-
te em semidecúbito lateral esquerdo ou de deslocar, manualmente, o útero, durante a RCP, para
descomprimir a veia cava inferior. A massagem cardíaca é conduzida um pouco acima do cen-
tro do esterno, pois o útero aumentado desloca superiormente todas as estruturas abdominais.
Diferentemente de outras populações, a via aérea avançada precoce deve ser instituída, pois a re-
serva de oxigênio da gestante é baixa e há risco aumentado de aspiração gástrica. Por fim, o parto
deve ser realizado dentro dos primeiros 4 a 5 minutos do início do atendimento, para melhorar o
estado circulatório materno6-8.

Sepse materna e choque séptico


Trata-se de disfunção orgânica com risco de vida, caracterizada por resposta inflamatória
sistêmica desregulada a uma infecção documentada ou presumida, durante a gravidez ou no
pós-parto. O choque séptico, por sua vez, ocorre quando anormalidades celulares, circulatórias e
metabólicas graves são deflagradas e aumenta, substancialmente, a mortalidade. Estima-se que,
aproximadamente, 70% das mortes maternas por sepse são evitáveis quando há reconhecimento
imediato e tratamento precoce9 e o agente etiológico mais comum de infecção bacteriana materna
é a Escherichia coli10.Destaca-se a importância de existirem protocolos padronizados para a assis-
tência dessas pacientes. As principais causas de sepse materna são divididas conforme o período
e incluem9:
1. Período pré-natal: aborto séptico, corioamnionite, pielonefrite, pneumonia e apendicite;
2. Período intraparto ou pós-parto imediato: corioamnionite, endometrite, pneumonia,
pielonefrite, fasceíte necrotizante e infecção de ferida operatória;
3. Período pós-alta: pneumonia, pielonefrite, fasceíte necrotizante, infecção de ferida ope-
ratória, mastite e colecistite.

Apresentação clínica e etiopatogênese


A apresentação clínica da sepse é bastante inespecífica e varia conforme o tipo de agente en-
volvido e o sítio primário de infecção, sendo semelhante à da população geral, conforme descrito
no Capítulo 43. De forma simplificada, ocorre um desequilíbrio entre mediadores pró-inflamató-
rios e anti-inflamatórios na resposta orgânica a uma infecção, com liberação sistêmica excessiva
de mediadores pró-inflamatórios e com consequente lesão celular.

Diagnóstico
Alterações fisiológicas características da gestação e do puerpério, como aumento da fre-
quência cardíaca, redução da pressão arterial e leucocitose, podem mascarar sepse, além de
diminuírem a capacidade de resposta do organismo à infecção. Além das alterações fisiológicas
da gravidez, o trabalho de parto pode ter maior impacto nos parâmetros fisiológicos, como é o
E m e rg ê n c i a s O b s t é t ri c a s 509

caso do aumento dos níveis séricos de ácido láctico. Por isso, os critérios gerais para diagnóstico
de sepse não são satisfatórios para essa população10. Protocolos direcionados a esse perfil de
paciente têm sido estudados para aumentar a sensibilidade e a especificidade do diagnóstico de
sepse materna e da disfunção orgânica secundária. Nesse propósito, a Sociedade de Medicina
Obstétrica da Austrália e Nova Zelândia (SOMANZ) sugere o escore omqSOFA (obstetrically mo-
dified quick Sequential Organ Failure Assessment), para um reconhecimento rápido de pacientes
com suspeita de sepse, seguido da pontuação omSOFA (obstetrically modified Sequential Organ
Failure Assessment), exposto na Tabela 66.1, para uma avaliação completa da disfunção de ór-
gãos-alvo10. O manejo adequado dos casos suspeitos é esquematizado na Figura 66.1. Os cri-
térios clínicos usados para choque séptico na população materna não foram modificados em
comparação aos demais pacientes (consulte Capítulo 20). É importante ressaltar que, no caso da
gestante, faz-se necessária a avaliação da vitalidade fetal, durante todo o manejo clínico.

Tabela 66.1. Escore omSOFA


Pontuação 0 1 2
PaO2/FiO2 > 400 300-400 < 300
Plaquetas (x106/L) > 150 100-150 < 100
Bilirrubinas (µmol/L) < 20 20-32 > 32
Pressão arterial média (mmHg) > 70 < 70 Necessidade de vasopressores
Estado mental Alerta Responde ao chamado Responde à dor
Creatinina (µmol/L) < 90 90-120 > 120

Dados de Bowyer L, et al10. Autoria própria.

Tratamento
É semelhante ao dos demais pacientes, discutido no Capítulo 43. As prioridades na aborda-
gem imediata incluem:
• Proteger a via aérea, suplementando oxigênio;
• Obter acesso venoso para a administração de fluidos;
• Solicitar cultura dos possíveis focos infecciosos, além de hemoculturas;
• Instituir antibioticoterapia empírica, idealmente na primeira hora da suspeita de sepse;
• Solicitar exames complementares, como gasometria arterial, lactatemia e os demais;
• Suporte hemodinâmico.
Contudo, especificações obstétricas da sepse materna devem ser consideradas9,10, como:
• Intervalos de referência específicos da gravidez devem ser usados para interpretar as
investigações laboratoriais;
• O tempo de parto em uma paciente grávida séptica deve ser individualizado, considerando
a idade gestacional e o estado materno-fetal;
• A prevenção de procedimentos neuroaxiais deve ser considerada na avaliação de risco
dessas pacientes;
• À alta hospitalar, a mulher e um acompanhante devem ser instruídos sobre possíveis
sinais de infecção e de sepse no pós-parto;
510 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

• Quando clinicamente indicados, exames de imagem não devem ser evitados pelo fato de
a paciente estar grávida ou amamentando;
• Sempre considerar a possibilidade de parto, em se tratando de sepse de foco intrauterino,
independentemente da gestação;
• Na sepse de foco extrauterino, em gestações pré-termo, devem ser considerados esforços
para tratar a condição, prolongando, assim a gestação, enquanto, em gestações à termo,
deve ser considerado o parto, visando melhorar a resposta materna ao tratamento.

Suspeita de Infecção

omqSOFA > 2 ?
FR >25 irpm ........................1
PAS <90 mmHg .................1
Estado mental alterado...1

Sim Não
Avaliar disfunção orgânica Sepse ainda suspeita?
Sim Não
omSOFA > 2? Monitorização clínica
Sim Não
Sepse

Não
Necessidade de
vasopressor
ou Lactato?
Sim
Choque séptico

Figura 66.1. Manejo clínico na suspeita de sepse pelos critérios omqSOFA e omSOFA.
Dados de Bowyer, L et al10. Autoria própria.

Distúrbios hipertensivos da gravidez


Constituem-se uma das principais causas de mortalidade materna e perinatal em todo o
mundo. O Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia define hipertensão arterial a condição
que cursa com pressão sistólica > 140 mmHg, com diastólica > 90 mmHg, ou com ambas. É con-
siderada grave quando a sistólica é > 160 mmHg, e/ou a diastólica é > 100 mmHg. Para se instituir
o diagnóstico e o tratamento adequados, deve-se considerar a Idade Gestacional (IG), conforme
descrito na Tabela 66.3.
E m e rg ê n c i a s O b s t é t ri c a s 511

Diagnóstico e tratamento
A Tabela 66.2 explicita condutas adequadas para se concluir o diagnóstico e a terapêutica
geral das situações abordadas.

Tabela 66.2. Critérios diagnósticos e manejo terapêutico dos distúrbios hipertensivos da gravidez
Distúrbios hipertensivos da gravidez Diagnóstico Tratamento
PA ≥ 140/90 mmHg sem histórico de HAS
1. Pré-eclâmpsia associado a proteinúria ou distúrbios Internação na unidade de gestação de alto
hipertensivos risco ou na UTI

PA ≥ 140/90 mmHg com histórico de HAS Controle da PA:


2. Superimposição de pré-eclâmpsia em
associado a proteinúria ou distúrbios
hipertensão crônica Nifedipina (inicial: 10 mg VO; repetir se
hipertensivos
necessário) ou Hidralazina (inicial: 5 mg
Uma ou mais alterações a seguir em EV; repetir 5 a 10 mg a cada 20 minutos, se
gestante com hipertensão: hemólise, necessário, até máx. 20 mg).
3. Síndrome HELLP
elevação das enzimas hepáticas e queda das Nitroprussiato de Sódio: casos
plaquetas. não responsivos às drogas acima ou
encefalopatia hipertensiva (inicial: 0,25 mcg/
Convulsão tônico clônica em paciente kg/min até dose máx. 5 mcg/kg/min).
4. Eclâmpsia hipertensa associado a sintomas de
eclâmpsia
Anticonvulsivante (sulfato de magnésio
PA ≥ 140/90 após a 20ª semana de gestação preventivo): vide síndrome HELLP
5. Hipertensão gestacional sem sinais e sintomas que caracterizem pré-
eclâmpsia Corticoterapia:
Hipertensão prévia ou até a 20ª semana da Betametasona (12mg IM de 24 em 24h) ou
6. Hipertensão crônica Dexametasona (6mg IM de 12 em 12h X 4
gestação
doses) se IG entre 24 e 34 semanas.
PA ≥ 160/110 aguda e rápida, por no mínimo
7. Crise hipertensiva 15 minutos, acompanhada de sinais e Considerar parto
sintomas.

IG: Idade gestacional; IV: Intravenosa; SC: Subcutânea; IM: Intramuscular; mg: miligramas; SG: soro glicosado; VO: Via oral; BID: Duas vezes ao
dia; Dados do Ministério da Saúde1, FEBRASGO11 e Tanure et al12. Autoria própria.

Complicações clínicas
Incluem edema agudo de pulmão, descolamento prematuro de placenta, rotura prematura
de membranas, restrição de crescimento intrauterino, acidente vascular hemorrágico, ruptura he-
pática, trabalho de parto espontâneo e óbito materno e/ou fetal1.

Hemorragia em obstetrícia
Hemorragias ocorrem entre 10 a 15% das gestações e podem corresponder a complicação
gestacional ou a agravo de doença ginecológica, ocorrida no período gestacional1.

Apresentação clínica, diagnóstico e tratamento


Conforme é a IG específica, determinadas condições são mais incidentes. Por isso, as tabelas
66.3 e 66.4 evidenciam, separadamente, as hemorragias mais comuns de cada período.
512 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Tabela 66.3. Apresentação clínica, critérios diagnósticos e condutas para as hemorragias da 1ª metade da
gestação
Doença trofoblástica
Descolamento
Abortamento Gravidez ectópica gestacional (mola
subcoriônico
hidatiforme)
Variável: dor, Dor e sangramento Dores lateralizadas, Dores abdominais e
Sinais e sintomas sangramento, febre (se vaginal após atraso associadas a lombares, anemia,
infectado) menstrual sangramento vaginal náuseas e vômitos
β-HCG e β-HCG, Ultrassonografia
Ultrassonografia TV TV e histopatológico do
β-HCG e β-HCG e
Diagnóstico (β-HCG ≥ 1.500 mUI/mL) material retirado do útero
Ultrassonografia TV Ultrassonografia TV
sem visualização de saco durante curetagem ou por
gestacional intra uterino) aspiração (AMIU)

Acompanhamento e Maioria tem remissão


Tratamento cirúrgico ou
repouso, esvaziamento espontânea.
Conduta Conduta conservadora medicamentoso com
uterino, antimicrobiano Considerar quimioterapia
metotrexato
(se infectado) e histerectomia

β-HCG: Hormônio gonadotrofina coriônica humana; TV: transvaginal; RX: radiografia. Dados do Ministério da Saúde1, de Rios et al13 e de Braga et
al14. Autoria própria.

Tabela 66.4. Apresentação clínica, critérios diagnósticos e condutas para as hemorragias da 2ª metade da
gestação
Descolamento
Placenta prévia Rotura uterina Ruptura de vasa prévia
prematura de placenta
Dor súbita e intensa, Dor intensa e súbita em
Sangramento vaginal podendo apresentar hipogástrio, hemorragia,
Sinais e sintomas indolor intermitente de sangramento vaginal sinal de irritação Hemorragia abundante
coloração vermelho-vivo associado à hipertonia peritoneal e parada de
uterina contrações
USG com doppler
(preferível), exame
Diagnóstico USG TV Essencialmente clínico Laparotomia
especular ou
amnioscopia
Parto e, caso o
Importante não realizar o feto esteja morto, Aguardar maturidade
Conduta Parto imediato
toque vaginal estabilização materna e fetal e realizar o parto
amniotomia

USG TV: ultrassonografia transvaginal. Dados do Ministério da Saúde1e de Braga et al14. Autoria própria.

As hemorragias pós-parto podem ser identificadas pelo mnemônico “4T’s”, que descreve as
principais causas15:
• Tônus: atonia uterina (70% dos casos);
• Trauma: lacerações, hematomas, inversão e rotura uterina (19%);
• Tecido: retenção de tecido placentário, coágulos, acretismo placentário (10%); e
• Trombina: coagulopatias congênitas/adquiridas ou uso de medicamentos anticoagulantes
(1%).
E m e rg ê n c i a s O b s t é t ri c a s 513

Sinais de hipovolemia aparecem tardiamente, mas o reconhecimento e o tratamento preco-


ces, ainda no centro cirúrgico, são cruciais para a evolução favorável. O tratamento inclui ressusci-
tação com fluidos, transfusão de hemoderivados, manejo clínico da atonia uterina (uterotônicos,
massagem uterina bimanual), balão de tamponamento intratuterino, embolização, tratamento
específico de coagulopatias, suturas compressivas e vasculares ou histerectomia16.

Tromboembolismo venoso (TEV)


Trombose venosa profunda (TVP) e tromboembolismo pulmonar (TEP), detalhados na
Tabela 66.5, são os dois principais componentes do TEV1.

Tabela 66.5. Apresentação clínica, critérios diagnósticos e condutas para a trombose venosa profunda
(TVP) e para o tromboembolismo pulmonar (TEP)
TVP TEP
Dor e edema unilateral de membro inferior, palpação de Dispneia súbita, dor torácica, hemoptise, síncope, taquipneia,
Sinais e
cordão endurecido no membro afetado, dispneia ou dor taquicardia, febre, hipotensão sinais de insuficiência cardíaca
sintomas
torácica súbitas congestiva direita
D-dímero e TC;
USG com doppler; Gasometria arterial, radiografia de tórax e eletrocardiograma
Diagnóstico
TC e RNM (complementares) podem ser úteis;
Angiografia, cintilografia pulmonar e RNM são opções
Suplementação de oxigênio, suporte ventilatório, administração de volume, de morfina, de drogas vasoativas e início de
anticoagulação
Enoxaparina (1 mg/kg a cada 12h - via SC)
Conduta Deltaparina (90-100U/kg a cada 12h - via SC)
- Heparina não fracionada EV ou SC. Endovenosa: 5000 UI em bolus; 1.300 U/h com dosagem de TTPa a cada 6h nas
primeiras 24h. Manter TTPa entre 1,5 e 2,5 vezes o valor pré-anticoagulação, controle diário. Subcutânea:5000 UI em bolus;
15.000-20.000 U/dia (em duas doses). Manter TTPa entre 1,5 e 2,5 vezes o valor pré-anticoagulação, controle diário

TC: Tomografia computadorizada; RNM: Ressonância magnética; TTPa: Tempo de Tromboplastina parcial ativada; h: Hora. Dados do Ministério da
Saúde1. Autoria própria.

Miocardiopatia periparto
É uma entidade rara, mas associada a alta mortalidade materna. Apresenta-se como insu-
ficiência cardíaca (IC) no período do final da gestação até o sexto mês pós-parto e o diagnóstico
é confirmado quando outras causas de IC não forem identificadas. O parto de urgência pode ser
necessário, preferencialmente cesariano, caso a paciente apresente IC avançada refratária, com
instabilidade hemodinâmica. Na eventualidade de a paciente estar hemodinamicamente com-
pensada, o parto vaginal é preferível, caso não exista indicação obstétrica de cesárea. O tratamen-
to da IC não difere de outras populações e podem ser utilizados betabloqueadores β-1 seletivos,
especialmente o metoprolol. Após o parto, o recém-nascido deve ser monitorado por 24 a 48 horas,
devido ao risco de hipoglicemia, de depressão respiratória e de bradicardia neonatais. A prescrição
de diuréticos deve ser feita apenas se houver congestão pulmonar, ao passo que a prescrição de
digoxina parece ser segura na gestação. A terapia padrão de IC deve ser instituída após o parto. No
período pré-parto, considerar terapia de anticoagulação com heparina de baixo peso molecular.
Anticoagulante oral é recomendado apenas após o parto. O uso de bromoprida tem apresentado
514 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

resultados positivos quanto à melhora da fração de ejeção (FE) e de incremento nos desfechos clí-
nicos em pacientes com miocardiopatia periparto. Portanto, a conduta consiste em estabilização
hemodinâmica, tratamento da IC e terapia anticoagulante, para prevenir o tromboembolismo17.

Pontos-chave
• As alterações fisiológicas da gestação e do puerpério devem ser consideradas em
todos os parâmetros diagnósticos e terapêuticos nas emergências obstétricas;
• O manejo clínico na sepse materna, bem como a identificação da disfunção
orgânica secundária, é guiado pelos critérios omqSOFA e omSOFA, com parâmetros
ajustados para a obstetrícia;
• Os distúrbios hipertensivos na gravidez constituem-se uma das principais causas
de mortalidade materna e perinatal;
• As hemorragias na gestação ocorrem em, aproximadamente, 10 a 15% das gestantes.

Leitura sugerida
1. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas.
Gestação de alto risco: manual técnico – 5. ed. – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2012. 302 p. – (Série
A. Normas e Manuais Técnicos).
2. American heart association, et al. Guidelines CPR ECC. Destaques das diretrizes da American Heart Association,
2010.
3. American heart associationet, et al. Destaques das atualizações direcionadas nas diretrizes de 2019 da American
Heart Association para Ressuscitação Cardiopulmonar e Atendimento Cardiovascular de Emergência, 2019.
4. Atualização da Diretriz de Ressuscitação Cardiopulmonar e Cuidados Cardiovasculares de Emergência da
Sociedade Brasileira de Cardiologia – 2019. ArqBrasCardiol. 2019; 113(3):449-663.
5. I Diretriz de Ressuscitação Cardiopulmonar e Cuidados Cardiovasculares de Emergência da Sociedade Brasileira
de Cardiologia. Arq. Bras. Cardiol. vol.101 no.2 supl.3 São Paulo Aug, 2013.
6. Carvalho RC, Fonseca NM, Ruzi RA. Parada cardíaca e ressuscitação cardiopulmonar. Academia Nacional de
Medicina. Artigo de Revisão: Parada cardíaca na gestação. RevMed Minas Gerais 2009; 19(4 Supl 1): S63-S67.
7. Carvajal JA, Ramos I, Kusanovic JP, Escobar MF. Damage-control resuscitation in obstetrics, The Journal of
Maternal-Fetal & Neonatal, 2020.
8. Jain, Venu et al. Guidelines for the management of a pregnant trauma patient. Journal of Obstetrics and Gynaecology
Canada, v. 37, n. 6, p. 553-71, 2015.
9. Gibbs, R.; et al. Improving Diagnosis and Treatment of Maternal Sepsis: A QualityImprovement Toolkit. Stanford,
CA: California Maternal QualityCare Collaborative, 2020
10. Bowyer, L.; et al. SOMANZ guidelines for the investigation and management of sepsis in pregnancy 2017
11. Pré-eclâmpsia nos seus diversos aspectos. - São Paulo: Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e
Obstetrícia (FEBRASGO), 2017
12. Tanure LM, Leite HV, Ferreira CRC, Cabral ACV, Brandão AHF. Manejo da crise hipertensiva em gestantes.
Femina,Julho/Agosto 2014, vol 42, nº 4
13. Rios Lívia Teresa Moreira, Oliveira Ricardo Villar Barbosa de, Martins Marília da Glória, Bandeira Kemuel Pinto,
Leitão Olga Maria Ribeiro, Santos Graciete Helena Nascimento et al . Anormalidades do primeiro trimestre da
gravidez: ensaio iconográfico. RadiolBras . 2010Apr; 43 (2): 125-32)
E m e rg ê n c i a s O b s t é t ri c a s 515

14. Braga Neto AR, Grillo BM, Silveira E, Uberti EMH, Maestá I, Madi JM, Andrade JM, Viggiano MGC, Costa OLN,
Sun SY. Doença Trofoblástica Gestacional. In: Ginecologia e Obstetrícia – Febrasgo para o médico residente.
Urbanetz AA (Coordenador). São Paulo: Editora Manole, 2016. pp. 907-42
15. De Andrade, Jadelson Pinheiro et al. Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia para gravidez na mulher
portadora de cardiopatia. ArqBrasCardiol, v. 93, n. 6 supl 1, p. e110-e178, 2009
16. Organização Pan-Americana da Saúde. Recomendações assistenciais para prevenção, diagnóstico e tratamento
da hemorragia obstétrica. Brasília: OPAS, 2018
17. Diretriz Brasileira de Insuficiência Cardíaca Crônica e Aguda -2019. ArqBrasCardiol. 2019; 113(3):436-539
Doenças Autoimunes na UTI 67

Amanda Perpetuo de Oliveira


Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
As doenças autoimunes têm origem em uma resposta imune anormal, com a formação de
autoanticorpos ou de imunocomplexos contra substâncias e tecidos próprios do organismo, o que
desencadeia uma subsequente resposta inflamatória local ou sistêmica1,2. Doenças autoimunes já
foram consideradas raras, mas com os avanços dos estudos epidemiológicos e do diagnóstico pre-
coce, na contemporaneidade se reconhece que afetam de 3 a 5% da população1. Existem cerca de
100 condições associadas à autoimunidade, dentre as quais as mais comuns acometem a tireoide,
abordadas no capítulo 62, e o diabetes tipo I, discutido no capítulo 611,3. Porém, mesmo condições
autoimunes de menor prevalência populacional possuem potencial de cursar com complicações
graves, que podem levar o doente ao estado crítico. Grande parte das doenças autoimunes são
capazes de afetar o corpo humano de forma sistêmica, incluindo o sistema endócrino, o tecido
conjuntivo, o trato gastrointestinal, o coração, a pele e os rins3. Além disso, a mortalidade de pa-
cientes reumatológicos internados em unidades de terapia intensiva é maior quando comparada
a dos outros, ainda que apresentem quadro clínico semelhante4. Sendo assim, a compreensão das
complicações e do adequado manejo da doença autoimune no contexto da terapia intensiva é de
fundamental importância. Este capítulo objetiva, portanto, abordar algumas dessas patologias,
como o lúpus eritematoso sistêmico, a síndrome do anticorpo antifosfolípide, as vasculites do
sistema nervoso central (SNC) e a crise renal esclerodérmica, com destaque para as complicações
de maior gravidade e para o manejo dentro da unidade de terapia intensiva.

Lúpus eritematoso sistêmico


O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença reumatológica com múltiplas manifesta-
ções e que acomete diversos órgãos, caracterizada por períodos de exacerbações e de remissões5.
Na exacerbação, dita doença ativa, o doente fica mais predisposto a infecções, com potencial risco
de vida2,5. Outro ponto peculiar é o próprio tratamento imunossupressor, que implica maior risco
de complicações sistêmicas5. O diagnóstico é concluído por meio da associação entre as mani-
518 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

festações clínicas e as alterações laboratoriais. Os critérios classificatórios do Colégio Americano


de Reumatologia (ACR) e da Liga Europeia Contra o Reumatismo (EULAR-2019) podem auxiliar
no diagnóstico, apesar de terem sido criados com o objetivo de padronizar os estudos científi-
cos. Para ser classificado como lupídico, o paciente deve apresentar o critério de entrada, que é
o fator antinuclear (FAN) positivo > 1:80, associado a critérios aditivos ≥ 10 pontos (sendo pelo
menos 1 clínico) ou FAN positivo associado à nefrite lúpica classe IV, identificada à biopsia renal.
Entre os critérios aditivos estão determinados anticorpos, descritos na Tabela 67.1, e o sistema
complemento5,6. O LES tem manifestações amplas e variáveis, que podem variar desde alterações
articulares e lesões cutâneas leves até acometimento de órgãos e de sistemas nobres, como rins,
pulmões, sistema cardiovascular, sistema nervoso central e oftalmológico, sendo, o acometimento
da topografia nobre, demandante de cuidados intensivos e, portanto, responsáveis por interna-
ções em UTI’s5.

Tabela 67.1. Anticorpos das doenças autoimunes e diagnóstico diferencial


Anticorpos das doenças autoimunes
Doença FAN Anticorpos específicos Outros anticorpos
• Anticorpo antifosfolípide
• Anti- RO
• Anti- LA
Lúpus eritematoso • Anti- Sm
Positivo • Anti-RNP
sistêmico • Anti- DNA dupla hélice
• Anti- P
• Anti-histona
• Anti-DNA hélice simples

Síndrome do anticorpo • Anticardiolipina (IgM/IgG)


_ _
antifosfolípide • Anti βglicoproteína e Anticoagulante lúpico

Esclerodermia-forma Pode ser • Anticentrometro


Antitopoisomerase (anti-Scl-70)
difusa positivo • Antinucleolares
Dados de Aringer et al5, de Tunnicliffe et al6, de Vassalo et al11 e de Guillevin et al15. Autoria própria.

Nefrite lúpica
A nefrite lúpica (NL) é uma complicação potencialmente grave do LES7. Atenção especial
deve ser dirigida aos pacientes de alto risco de comprometimento renal, principalmente aos do
sexo masculino, com sorologia ativa, tendo o LES manifestado precocemente, e com positividade
para Anti-DNA dupla hélice7. Clinicamente, os pacientes podem apresentar síndrome nefrítica ou
síndrome nefrótica, cursando com edema de membros inferiores, com anasarca e/ou com eleva-
ção da pressão arterial8. Pacientes com LES devem ser avaliados anualmente quanto à presença de
alterações sugestivas de acometimento renal e o rastreio inclui urinálise e aferição da função re-
nal, geralmente com creatinina sérica e com cálculo da taxa de filtração glomerular (TFG)8. Outras
alterações laboratoriais podem estar presentes, como elevação dos títulos de anti-DNA dupla hé-
lice, consumo de fatores do complemento, hematúria e elevação de colesterol LDL. É importante
a realização da biópsia renal se a proteinúria for persistentemente ≥ 500 mg/24h, com ou sem
outras anormalidades clínicas, ou se existir qualquer nível de proteinúria ou de hematúria, des-
de que associados à função renal comprometida, que não possa ser atribuída a outra causa8. A
biópsia renal possibilita a classificação patológica, baseada no local em que os complexos imunes
D o e n ç a s A u t o i m u n e s n a U T I 519

se acumulam nos glomérulos, na presença ou na ausência de proliferação mesangial ou endo-


capilar, na extensão do envolvimento glomerular (focal ou difuso), na lesão glomerular (global
ou segmentar) e no nível de atividade da lesão glomerular, podendo ser ativa (inflamatória) ou
crônica (esclerótica). Assim, o acometimento renal é dividido em 6 classes, sendo que as classes
proliferativas (3 e 4) têm melhor resposta à imunossupressão potente8. O tratamento objetiva pre-
venir a evolução para a doença renal crônica. Todos os pacientes devem ser tratados com antima-
lárico8. A abordagem terapêutica deve incluir corticoesteroides na dose de 1 mg/kg e um agente
imunossupressor potente, para interromper as vias autoimunes e para bloquear um novo surto
de lesão renal8. Atualmente, o regime de tratamento mais aceito inclui corticoesteroides em altas
doses e micofenolato de mofetila (MFF) ou ciclofosfamida8. Portanto, se a NL proliferativa severa
é diagnosticada, o tratamento deve ser realizado com pulsoterapia de metilprednisolona 0,25-1 g/
dia EV por 1 a 3 dias, acrescentado de ciclofosfamida 0,5g-1 g/m² por 6 meses ou de MFF. Na fase
seguinte, preconiza-se a prescrição de prednisona via oral, na dose de 1 mg/kg/dia (máx. 80 mg),
com redução progressiva8. Para os pacientes com NL classe V, a terapia de primeira linha também
é glicocorticoide associado ao MFF9. O doente pode evoluir para doença renal terminal, necessi-
tando de terapia dialítica, o que estende a permanência em unidades de terapia intensiva9.

Manifestações cardiovasculares
Em pacientes graves com LES que necessitam de internação na unidade de terapia intensiva
(UTI), a insuficiência cardiovascular continua sendo um dos principais fatores de morbimortali-
dade5. A manifestação cardiovascular mais frequente é a pericardite, cuja frequência é de 20-50%.
O tratamento de pericardite segue a sequência de acordo com a resposta do paciente e com gravi-
dade do quadro, na seguinte ordem:
1. Anti-inflamatórios não esteroidais (AINES);
2. Glicocorticoides com ou sem hidroxicloroquina;
3. Azatioprina;
4. Micofenolato ou metotrexato; e
5. Belimumabe ou rituximabe9.
Também é descrita, em pacientes com LES, a presença de endocardite e de vegetações valva-
res, sendo a endocardite mais característica a de Liebman-Sacks, cuja incidência tende a aumentar
com a duração e com a atividade da doença10. Por isso, a ausculta cardíaca é indispensável, diri-
gindo especial atenção a sopros de início recente. Na suspeita, o exame de escolha é o ecocardio-
grama transtorácico10, porém se não evidenciar alterações, deve ser solicitado o ecocardiograma
transesofágico. Há ainda, uma possível correlação entre a gravidade do acometimento valvar e o
nível dos anticorpos anticardiolipina. Distúrbios do ritmo e da condução podem ocorrer com me-
nor gravidade, sendo, os da condução, associados à vasculite de pequenos vasos e à infiltração de
tecido fibroso ou de granulação10.

Disfunções neurológicas
Estudos demonstram que pacientes com LES e com comprometimento neurológico também
apresentam alta taxa de mortalidade5. São diversas as manifestações neurológicas possíveis, den-
tre as quais incluem convulsões, cefaleia, acidente vascular isquêmico e hemorrágico, meningite
e neuropatias. Ademais, distúrbios psiquiátricos podem acontecer. Doenças cerebrovasculares
520 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

trombóticas com frequência estão associadas à positividade de anticorpos antifosfolípides, moti-


vo pelo qual os pacientes com esses anticorpos positivos podem se beneficiar da terapia trombo-
lítica. Outro mecanismo envolvido na manifestação neurológica é o próprio contexto inflamatório
sistêmico, e a diferenciação entre os dois cenários não é fácil7, fazendo-se necessária a propedêu-
tica complementar, como a tomografia computadorizada de crânio (TCC) e a análise do líquor
cefalorraquidiano. Na fase aguda, as doenças cerebrovasculares devem ser tratadas como o são
habitualmente7. A terapia com glicocorticoides e com imunossupressores pode ser considerada,
visando ao controle da atividade da doença inflamatória, principalmente quando os anticorpos
antifosfolípides são ausentes7.

Síndrome do anticorpo antifosfolípide catastrófica


A síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAAF) é caracterizada pela presença de evento
trombótico ou morbidade gestacional, associada à presença de, ao menos, um anticorpo, como
a anticardiolipina (aCL), o anticoagulante lúpico (ACL) ou o anti- B2GLP1. Anticorpos, esses, que
devem se fazer presentes, pelo menos, em duas medidas, com um intervalo de 12 semanas entre
as dosagens, vide Tabela 67.111. A SAAF é responsável por um maior risco de doenças arteriais,
venosas e tromboses microvasculares, fundamentados no comprometimento sistêmico de fatores
inflamatórios, homeostáticos e imunológicos. Pode, ainda, apresentar-se sob a forma grave, deno-
minada SAAF Catastrófica, uma condição que, apesar de rara, tem potencial de causar disfunção
de múltiplos órgãos e, portanto, requer cuidados intensivos11. Nessa manifestação, ocorre envol-
vimento trombótico rápido (por volta de 7 dias) de três ou mais órgãos, associado à presença de
anticorpo antifosfolípide11. Os critérios diagnósticos incluem:
• Evidência de envolvimento de 3 ou mais órgãos/sistemas ou tecidos;
• Manifestações em menos de uma semana;
• Confirmação histopatológica da oclusão de pequenos vasos em pelo menos um local; e
• Confirmação laboratorial da presença de anticorpo antifosfolípide11.
As principais manifestações clínicas iniciais na SAAF Catastrófica são distúrbios respirató-
rios e síndrome do desconforto respiratório agudo. Nos exames laboratoriais é comum existirem
sinais de anemia hemolítica e de trombocitopenia11. Devido à sua ampla associação com o lúpus,
pacientes com suspeita de SAAF devem ser investigados para essa doença11. Pela sua gravidade, a
SAAF catastrófica exige tratamento imediato. Fatores desencadeantes, como infecções e traumas,
devem ser identificados e precocemente abordados. A terapêutica contempla 3 eixos:
1. Anticoagulação plena com heparina;
2. Corticoterapia em doses altas;
3. Plasmaférese e/ou imunoglobulina intravenosa12.

Vasculites
As vasculites são caracterizadas por um processo inflamatório, desencadeado por uma res-
posta autoimune, que acomete a parede dos vasos sanguíneos. As manifestações clínicas variam
de acordo com o tamanho, o tipo e a localização dos vasos acometidos13.
D o e n ç a s A u t o i m u n e s n a U T I 521

Sistema nervoso central


As manifestações no sistema nervoso central são comuns a diversas vasculites e doenças do
colágeno13. A vasculite primária limitada ao SNC e à medula espinhal é rara, mas, geralmente, tem
sintomas graves. Por outro lado, mais comumente, as manifestações neurológicas são secundárias
a uma vasculite sistêmica. O diagnóstico é concluído pela identificação de um déficit neurológico
sem explicação, de uma angiografia evidenciando vasculite e por uma amostra de biópsia do SNC,
pouco utilizada devido ao caráter invasivo, mas fundamental para a confirmação diagnóstica13. É
importante a exclusão de outras causas, principalmente infecciosas e autoimunes, motivo pelo
qual a propedêutica inicial deve incluir imagens de ressonância magnética, exame do líquor, pes-
quisa por anticorpos específicos de outras doenças autoimunes e sorologias para a exclusão de
outros possíveis diagnósticos13. Em pacientes graves é considerável realizar um tratamento mais
agressivo com prednisona associada à ciclofosfamida, pois a taxa de resposta é elevada13. O reco-
nhecimento e O tratamento precoce são fundamentais para o aumento da sobrevida.

Síndrome pulmão-rim
As vasculites, assim como outras doenças autoimunes sistêmicas, podem provocar a sín-
drome pulmão-rim. Nessa síndrome, associam-se a glomerulonefrite e a hemorragia alveolar14.
A apresentação clínica é, frequentemente, súbita, com hemoptises, queda dos níveis do hema-
tócrito, palidez, tosse, febre, dispneia, hematúria e proteinúria não nefrótica. A identificação da
síndrome pulmão-rim deve ser seguida por investigação da entidade etiológica responsável pela
manifestação, com exames laboratoriais e com biópsia renal14.

Crise renal esclerodérmica


A esclerose sistêmica (ES) é uma patologia do tecido conjuntivo multissistêmica, caracteri-
zada por um maior depósito de colágeno, associado a fatores de autoimunidade, a hiperativida-
de vascular e a disfunções microvasculares obliterantes, com evolução para fibrose15,16. A doença,
portanto, afeta a pele, os vasos sanguíneos, o coração, os pulmões, o trato gastrointestinal, o siste-
ma muscular e o renal15. A crise renal esclerodérmica (CRE) é uma manifestação rara, mas grave da
ES, caracterizada por hipertensão arterial, oligúria/anúria e hemólise, com evolução para insufi-
ciência renal aguda16. A forma cutânea difusa da ES está mais associada a CRE com o anticorpo an-
titopoisomerase-1 positivo. Os pacientes com ES tratados com glicocorticoides apresentam maior
risco de evoluir para CRE e, portanto, devem ser continuamente monitorados quanto à função
renal. O tratamento da CRE deve ser precoce, com inibidor da enzima conversora da angiotensina
(IECA), em altas doses16. Essa abordagem é fundamental para melhorar o prognóstico do pacien-
te16. Casos graves evoluem para diálise e precisam de cuidados intensivos, podendo ou não ter a
função renal recuperada.
522 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Pontos-chave
• Grande parte das doenças autoimunes são capazes de afetar, sistematicamente,
o corpo humano, incluindo o sistema endócrino, o tecido conjuntivo, o trato
gastrointestinal, o coração, a pele e os rins;
• Na nefrite lúpica, o regime de tratamento mais aceito inclui os corticoesteroides em
altas doses, associados à ciclofosfamida ou ao micofenolato de mofetila (MFF);
• Na síndrome do anticorpo antifosfolípide catastrófica ocorre envolvimento
trombótico rápido de três ou mais órgão, associado à presença de anticorpo
antifosfolípide;
• O diagnóstico da Vasculite do SNC é concluído pela identificação de um déficit
neurológico sem explicação, uma angiografia evidenciando vasculite e uma amostra
de biópsia do SNC;
• A crise renal esclerodérmica (CRE) é caracterizada por hipertensão arterial, oligúria/
anúria e hemólise, com evolução para insuficiência renal aguda. O tratamento com
IECA deve ser feito o mais precocemente possível

Leitura sugerida
1. Sener AG, Afsar I. Infection and autoimmune disease. RheumatolInt2012;32:3331-3338.
2. Razani OT, Battaini LC, Moraes CE, Prada LFL, Pinaffi JV, Giannini FP et al.Outcomes and organ dysfunctions
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intensive care unit. GacMedMex 2018; 154:394-398.
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Infecções Viróticas na UTI 68

Ingrid Isabel Lucindo Soares Almeida


Letícia Almeida Honorato
Orientadora: Maria Aparecida Braga

Introdução
As infecções viróticas são uma importante causa de internação na Unidade Terapia Intensiva
(UTI). Nesse capítulo abordaremos as principais doenças virais que na atualidade contribuem
para a ocupação dos leitos de UTI no Brasil. Pacientes que apresentam a manifestação grave do
Covid-19, complicações da imunodeficiência humana adquirida e a hepatite fulminante deman-
dam cuidados intensivos o mais precocemente possível para um melhor prognóstico. Em 2020
devido a pandemia do SARS-COV19 a demanda por leito de UTI se elevou, sendo abertos 21 mil
leitos até o mês de agosto, apesar da taxa de ocupação em diversas cidades brasileiras se mante-
rem acima de 80% provocando receio na comunidade médica por falta de leitos nas unidades de
terapia intensiva.

SARS, MERS e Covid-19


A síndrome respiratória aguda grave (SARS) foi descrita primeiramente em Guandong, na
China, em 2002, e disseminou-se para cerca de 30 países. A infecção é causada pelo vírus SARS-
CoV, é transmitida por gotículas respiratórias e, desde 2004, não são relatados novos casos da
doença. A síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS), por outro lado, foi inicialmente des-
crita em setembro de 2012, na Arábia Saudita e é causada pelo MERS-CoV. Acredita-se que o reser-
vatório do vírus sejam os dromedários e, desde então, foram registrados 2.494 casos e 858 mortes
em 27 diferentes países1. Covid-19, por sua vez, foi o nome adotado pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) para designar a nova doença causada por um tipo de coronavírus, o SARS-CoV-2.
Assim como as condições anteriormente citadas, ela é uma zoonose e foi retratada, inicialmen-
te, como uma pneumonia desconhecida que acometeu 27 pacientes na província de Wuhan, na
China. Todos os primeiros casos foram associados a um mercado de animais vivos, motivo pelo
qual se suspeita que os reservatórios do vírus incluam morcegos e cobras. Ademais, sua transmis-
são acontece por meio de partículas respiratórias e de superfícies contaminadas. A doença foi de-
clarada como pandemia em 11 de março de 2020 pela OMS e tornou-se uma grande preocupação
526 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

mundial, contando com cerca de 5 milhões de casos e de 322 mil mortes notificadas no mundo, até
o momento da edição deste capítulo2. Nos próximos tópicos, serão destacados os aspectos afetos
à Covid-19.

Apresentação clínica
A Covid-19 engloba uma série de manifestações clínicas, incluindo tosse, febre, calafrios,
mal-estar, mialgia, sintomas gastrointestinais e anosmia. Esses sintomas variam com a evolução
da doença, conforme a gravidade da condição e conforme for a resposta imunológica individual.
Sintomas, esses, fundamentados na fisiopatologia da entidade, que inclui, classicamente, três está-
gios: o inicial, o pulmonar e o de hiperinflamação4. Nesse ponto, contudo, vale considerar que um
número significativo de pacientes pode ser assintomático, embora sejam potenciais disseminado-
res da doença, cujo período de incubação é estimado entre 2 e 14 dias. Cerca de 81% dos casos de
Covid-19 são leves, apresentando sintomas autolimitados e recuperação em torno de duas sema-
nas. Entretanto, a forma grave da condição pode acontecer, da qual os pacientes mais suscetíveis
incluem homens, com idade avançada, portadores de doenças crônicas de base (como diabetes
mellitus, hipertensão arterial sistêmica e doenças cardiocerebrovasculares), obesos e tabagistas,3.
A OMS sugere que sejam suspeitos os pacientes que se enquadrarem em um dos grupos,3:
• Apresente quadro respiratório agudo, com sensação febril ou febre, acompanhada de
tosse, ou de dor de garganta, ou de coriza, ou de dispneia, o que é chamado de síndrome
gripal;
• Apresente dispneia, ou pressão persistente no tórax, ou saturação de oxigênio menor do
que 95% em ar ambiente, ou cianose, o que é chamado de síndrome respiratória aguda
grave (SRAG);
• Todo paciente com afecção respiratória aguda que viajou ou que reside em uma área com
transmissão comunitária; ou teve contato com caso provável ou confirmado de Covid-19
em 14 dias; ou que necessite de hospitalização sem que haja outra alternativa diagnóstica
que explique completamente a apresentação clínica3.

Diagnóstico
O diagnóstico laboratorial dos casos suspeitos é baseado no teste de reação em cadeia da
polimerase com transcrição reversa (RT-PCR) para SARS-CoV-2, geralmente no Swab de conteúdo
da nasofaringe, mas também de outras secreções, como saliva ou aspirado traqueal, se o paciente
estiver intubado4. Ademais, elevação do nível de sedimentação de eritrócitos, da concentração
sérica de proteína-C-reativa, de procalcitonina, de lactato, de ferritina, de D-dímero, de creatini-
na e tempo de protrombina prolongado são alterações laboratoriais comuns e a avaliação deve
ser realizada individualmente, por meio da curva de evolução dos resultados. Achados radioló-
gicos da doença são compatíveis com pneumonia, podendo apresentar imagens com opacidade
bilateral. Achados comuns na tomografia computadorizada (TC) incluem padrão de vidro fosco e
consolidação3,4.
I n f e c ç õ e s V i r ó t i c a s n a U T I 527

Tratamento
A avaliação e o manejo da doença dependem da sua gravidade. Pacientes com doença leve,
geralmente, recuperam-se em casa. Na presença de manifestação moderada ou grave, os pacien-
tes devem ser encaminhados, respectivamente, para unidades de internação e para a UTI. São
consideradas manifestações graves a SRAG, a sepse e o choque séptico. Os doentes e os seus fami-
liares devem ser orientados quanto às etapas e às possibilidades do tratamento, bem como quanto
ao prognóstico. Ademais, todos os procedimentos de prevenção e de controle de infecção devem
ser acionados desde o início do atendimento.
Na abordagem inicial, deve-se ofertar, imediatamente, a oxigenoterapia suplementar, obje-
tivando manter a saturação de O2 maior ou igual a 94%, mas não superior a 96%. Além disso, se
as condições clínicas do paciente permitirem, técnicas de posicionamento, como decúbito lateral
e posição prona, vias aéreas abertas e livres de secreções, devem ser consideradas4. Isso porque
a pronação precoce de pacientes acordados e não intubados melhora a saturação de oxigênio e
pode atrasar ou reduzir a necessidade de medidas mais invasivas, dentre as quais se incluem a in-
ternação em terapia intensiva5,6. A monitorização dever ser sistematizada visando, principalmen-
te, ao diagnóstico precoce de possível insuficiência respiratória hipoxêmica aguda progressiva3.
Um paciente é considerado crítico quando apresenta dispneia, frequência respiratória igual
ou maior que 30 irpm, saturação de O2 menor ou igual a 93%, relação PaO2/FiO2 < 300 mmHg e
aumento de infiltrados pulmonares > 50% dentro de 24-48 horas. Os principais fatores levados em
consideração ao admitir um paciente em UTI envolvem a idade (> 65 anos), a fragilidade, avaliada
por meio da Clinical Frailty Scale (CFS), e a presença de comorbidades. O manejo do paciente em
cuidado intensivo envolve as medidas expostas na Tabela 68.16.

Tabela 68.1. Manejo em cuidado intensivo


Ventilação não invasiva (VNI)
É recomendada a realização de um teste de oxigênio nasal de alto fluxo (HFNO) ou de ventilação não
e oxigênio nasal de alto
invasiva. Se o paciente não responder adequadamente, intubação endotraqueal urgente é recomendada3.
fluxo (HNFNO)
O limiar para a intubação endotraqueal deve ser baixo em caso de deterioração do quadro do paciente. A
Intubação endotraqueal OMS recomenda que a intubação seja feita por um profissional experiente usando os devidos equipamentos
de proteção individual3,6.
Casos graves que exijam ventilação mecânica invasiva podem se beneficiar de ventilação protetora, de
acordo com os parâmetros relacionados a seguir:3
• Uso de baixos volumes correntes (4-8 mL/kg) e pressão de platô alvo < 30 cmH20;
Ventilação mecânica
invasiva • A titulação da pressão expiratória final positiva (PEEP) deve ser guiada pela fração de oxigênio inspirado
(Fi02) necessária para atingir a saturação arterial de oxigênio (Sp02) desejada. O paciente deve ser
monitorado quanto a efeitos benéficos ou prejudiciais, considerando os riscos e benefícios da titulação da
PEEP4,7. A PEEP alta pode ter um efeito prejudicial em pacientes com complacência normal8.
Membrana de oxigenação Casos de pacientes com Covid-19 apresentando hipoxemia refratária podem se beneficiar de membrana de
extracorpórea oxigenação extracorpórea quando esta for disponível no serviço de saúde3,8.
Ressuscitação com fluidos e
Observar as orientações descritas no capítulo 43
vasopressores
Vasodilatador pulmonar O óxido nítrico inalatório pode ser indicado nos casos de pacientes adultos com SARA com manutenção de
inalatório hipoxemia a despeito de todo ajuste ventilatório8
Profilaxia de
A heparina de baixo peso molecular ou heparina não fracionada são as opções indicadas9
tromboembolismo venoso

Continua
528 D e s c o m p l i c a n d o a Te ra p i a I n t e n s i v a

Continuação

Tabela 68.1. Manejo em cuidado intensivo


As diretrizes do Surviving Sepsis Campaign indicam corticosteroides para pacientes com síndrome do
desconforto respiratório agudo que estejam recebendo ventilação mecânica e adultos com choque refratário
Corticosteroides (evidências fracas).7 O estudo randomizado recovery, que utilizou dexametasona 10 mg/dia por 10 dias,
observou redução da mortalidade (em 28 dias) de 33% em pacientes portadores de Covid-19, em ventilação
mecânica, e de 20% naqueles que não necessitaram ventilação mecânica10.
Até o término da edição deste capítulo, não foi encontrado nenhuma vacina ou tratamento antiviral
Tratamento específico específico para Covid-19. Novas drogas terapêuticas estão surgindo e outras existentes já estão sendo
testadas, entre elas Remdesivir, Cloroquina e Hidroxicloroquina e o plasma convalescente 3,6.
Para casos graves sugere-se que as precauções, incluindo isolamento, sejam interrompidas 14 dias após o
Interrupção das medidas de início dos sintomas e pelo menos dois testes RT-PCR negativos em amostras respiratórias coletadas com 24
precaução e isolamento horas de intervalo antes do término do isolamento.11 As orientações sobre quando interromper o isolamento
dependem de circunstâncias locais e podem diferir entre instituições.

Autoria própria.

Síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS)


A terapêutica das infecções oportunistas secundárias à AIDS, na UTI, depende do protoco-
lo de cada hospital. Entretanto, a primeira linha de tratamento para a pneumonia causada por
Pneumocystis jirovecii é a trimetoprima-sulfametoxazol, durante três semanas. Por outro lado, o
tratamento para tuberculose é o mesmo daquele preconizado para a população geral, sendo a
duração de 12 meses em caso de acometimento do sistema nervoso central (SNC). A toxoplasmo-
se cerebral é tratada com pirimetamina 200 mg, seguida de pirimetamina 50-75mg/dia + sulfa-
diazina 1.000-1.500mg 6/6h +ácido fólico 10-25 mg durante, no mínimo, 6 semanas12,13. Todos os
pacientes admitidos na UTI que fazem uso da terapia antirretroviral combinada (TARVc) devem
ter a medicação mantida, sempre que possível for (Figura 68.1). Aqueles que não fazem uso serão
avaliados pela equipe e, nesse ponto, algumas considerações se fazem pertinentes. Em primeiro
lugar, devem iniciar o uso de TARVc, imediatamente, os pacientes com infecção aguda severa pelo
vírus da imunodeficiência humana (HIV), aqueles com encefalite pelo HIV e aqueles com encefa-
lopatia multifocal progressiva. Por outro lado, existindo o diagnóstico de tuberculose ou de cripto-
cocose no SNC, é recomendado o adiamento do início da TARVc, devido ao risco de se desenvolver
a síndrome inflamatória de reconstituição imune. Em se tratando de outras infecções oportunistas
ou de outros acometimetos do SNC, deve ser iniciada a terapia antirretroviral combinada em até
duas semanas. Por fim, se a causa da internação for algum acometimento não relacionado ao HIV,
a prescrição da TARVc deve acontecer após a alta da UTI12,13.
I n f e c ç õ e s V i r ó t i c a s n a U T I 529

Admissão por Admissão por


infecção respiratória aguda desordem neurológica

Infecão aguda pelo HIV Encefalite aguda pelo HIV (raro)

IO pulmonares comuns: IO comum no SNC:


Pneumonia por CD4 < 200-250 toxoplasmose, tuberculose
Pneumocystis jirovecii e criptococose

Sindrome inflamatória Sindrome inflamatória


Inicio recente de TARVc
de reconstituição imune de reconstituição imune

Pneumonia bacteriana, Meningite bacteriana


Todos os estágios de HIV
tuberculose (S. Pneumoniae)

DPOC, bronquiectasias,
Derrame, epilepsia,
câncer de pulmão,
encefalite não infecciosa,
hipertensão pulmonar,
CD4 > 200-250 abcesso cerebral bacteriano,
fibrose pulmonar, falência
doença sistêmica com
cardíaca, doenças não
envolvimento do SNC
relacionadas ao HIV

Figura 68.1. Espectro etiológico das admissões de pacientes HIV positivos em unidade de terapia
intensiva.
IO: infecção oportunista, SNC: sistema nervoso central. Dados de Management of HIV ‑ infected patients in the intensive care unit.13.
Autoria própria.

Hepatites virais
Dentre as hepatites virais, as dos tipos A, B e C são as mais prevalentes. A transmissão da he-
patite A, em primeiro lugar, se dá por contato fecal-oral, seja por ingestão de água contaminada,
seja por ingestão de alimento com o vírus, embora a infecção por meio do sexo anal tenha cresci-
do progressivamente. A hepatite B, por outro lado, é transmitida a partir do contato com fluidos
contaminados, sendo, o sangue, o mais importante deles. Por último, a transmissão da hepatite C
acontece por meio do contato percutâneo repetido ou por grandes quantidades de sangue con-
taminado. A transmissão sexual é mais comum na hepatite B, enquanto a hepatite C tem a sua
transmissão potencializada se o paciente é portador de infecção sexualmente transmissível (IST/
HIV)14,15.

Apresentação clínica
A manifestação da hepatite A acontece de forma aguda e dentro do intervalo de 15 a 50 dias
após o contágio. Os sinais e os sintomas iniciais incluem febre baixa, fadiga, inapetência, descon-
forto abdominal, náuseas e vômitos. Posteriormente, pode surgir icterícia, colúria e acolia fecal,
que, geralmente, desaparecem em dois meses, sem o desenvolvimento da doença hepática crôni-
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ca ou do estado de portador. Por outro lado, as hepatites B e C costumam ser assintomáticas, fato
que implica o atraso diagnóstico em vários anos. A hepatite B, em sua forma crônica, manifesta-se
com sintomas inespecíficos de doença hepática, como icterícia, cansaço, vertigem, dor abdomi-
nal, enjoo e vômitos. A hepatite C se torna crônica em 20% a 30% dos doentes, manifestando-se
assim como na hepatite B, sendo que 20% desses desenvolvem cirrose e entre 1% e 5% desenvol-
vem hepatocarcinoma,16.

Diagnóstico
O diagnóstico das hepatites virais é concluído por meio de marcadores presentes no sangue,
no soro, no plasma ou no fluido oral da pessoa infectada. A realização de testes rápidos para a de-
tecção das hepatites B e C tem facilitado o diagnóstico dessas doenças, embora, após o resultado
positivo ser obtido de um teste rápido, a dosagem da carga viral deva ser conduzida, tanto para
a hepatite B (HBV-DNA), quanto para a hepatite C (HCV-PCR)15. Quando acometido por hepatite
fulminante, secundária à infecção pelo HBV, a equipe deve se empenhar na diferenciação entre
injúria hepática aguda (hepatite B primária) e reativação do vírus, que estava latente. Embora seja
um desafio estabelecer a diferenciação, a reativação costuma cursar com hepatoesplenomegalia,
enquanto a presença, no sangue, de anti-HBc IgM em título superior a 1:1000, associada à carga
reduzida de DNA viral, sugira infecção recente16.

Tratamento
A hepatite fulminante causada pelo vírus B, apesar de ser rara, exige a internação do pacien-
te na UTI, caso contrário, a taxa de mortalidade alcança 80%. O tratamento da hepatite fulmi-
nante secundária à reativação é diferente daquele preconizado para infecção recente. Nos casos
de reativação, é empregado o análogo de nucleotídeo, Entecavir, enquanto, em se tratando de
hepatite primária, a droga não é recomendada, afinal, a maioria dos pacientes recuperados ex-
pressa o anticorpo anti-HbsAg, sem que a medicação se faça necessária. Ademais, a prescrição de
N-acetilcisteína é recomendada para ambos os casos, assim como é recomendado o controle das
complicações pulmonares, cerebrais, cardiovasculares, metabólicas e sepse, quando forem exis-
tentes16. Por fim, embora os pacientes dependentes do transplante hepático sejam enquadrados
na lista de espera, cuja prioridade é estabelecida por meio da escala MELD (Model for End-Stage
Liver Disease), a hepatite fulminante, devido ao seu elevado potencial de mortalidade, tem priori-
dade absoluta na fila, o que favorece a execução do procedimento em tempo hábil17.
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Pontos-chave
• Até o término da edição deste capítulo, não foi encontrada nenhuma vacina,
tampouco algum tratamento antiviral específico contra a Covid-19;
• As formas graves da Covid-19 manifestam-se por insuficiência respiratória aguda
hipoxêmica decorrente de SARA, por choque, por disfunção miocárdica e por lesão
renal aguda;
• Pacientes que não fazem uso da TARVc, mas que apresentam infecção aguda severa
pelo HIV, encefalite pelo HIV, encefalopatia multifocal progressiva, tuberculose ou
criptococose no SNC, devem ter a Terapia Antiretroviral combinada adiada;
• As hepatites causadas pelos vírus B e C têm elevadas taxas de incidência no Brasil;
• Hepatite fulminante causada pelo vírus B deve ser diferenciada entre aquela oriunda
de reativação, daquela oriunda de infecção primária, afinal, o entecavir é prescrito
apenas para os pacientes do primeiro grupo.

Leitura sugerida
1. Organização Mundial da Saúde. Middle East Respiratory Syndrome Coronavirus (MERS-Cov).
2. World Health Organization. Clinical management of Covid-19: interim guidance. 2020.
3. Nicola M, O’Neill N, Sohrabi C, Khan M, Agha M, Agha R. Evidence based management guideline for the COVID-19
pandemic - Review article. Int J of Sur. 2020 Apr. 77: 206-16.
4. National Institute for Health and Care Excellence. Covid-19 rapid guideline: managing symptoms (including at the
end of life) in the community. 2020.
5. Golestani-Eraghi M, Mahmoodpoor A. Early application of prone position for management of Covid-19 patients. J
Clin Anesth. 2020 May 26;66:109917.
6. Phua J, Weng L, Ling L, Egi M, Lim C, Divatia J, et al. Intensive care management of coronavirus disease 2019
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9. Moores LK, Tritschler T, Brosnahan S, et al. Prevention, diagnosis and treatment of venous thromboembolism in
patients with Covid-19: CHEST guideline and expert panel report. Chest. 2020 Jun 2 [Epub ahead of print].
10. Horby P, Lim WS, Emberson JR, Mafham M, Bell JL, Linsell L, Staplin N, et al. Dexamethasone in Hospitalized
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ahead of print] trial. Diponível em: www.recoverytrial.net.
11. Centers for Disease Control and Prevention. Discontinuation of transmission-based precautions and disposition of
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12. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle
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Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/
Aids e das Hepatites Virais. – Brasília: Ministério da Saúde, 2018.
13. Barbier F, Mer M, Szychowiak P, Miller RF, Mariotte E, Galicier L,et al. Management of HIV-infected patients in the
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14. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Doenças de Condições Crônicas
e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às
Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST)/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em
Saúde, Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. – Brasília:
Ministério da Saúde, 2020.
15. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e
Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo Clínico e
Diretrizes Terapêuticas para Hepatite C e Coinfecções / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde,
Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das
Hepatites Virais. – Brasília: Ministério da Saúde, 2019.
16. Ichai P, Samuel D. Management of Fulminant Hepatitis B. Curr Infect Dis Rep. 2019;21(7):25. Published 2019 Jun 4.
17. Sociedade Brasileira de Hepatologia, Associação de Medicina Intensiva Brasileira. Manual de cuidados intensivos
em hepatologia. São Paulo; Manole, 2014.

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