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      A cor da Romã (1969), provavelmente o filme mais emblemático da obra de Sergei Parajanov, é

um filme-poema (inevitável conotação), que nos induz ao inebriamento sensorial, muito além dos 79
minutos da sua metragem.
Num imaginário singular, este filme    perscruta a vida do trovador do séc. XVIII, Harutyun Sayatyan,
conhecido por Sayat-Nova que, traduzido do arménio, significa o rei da canção.
    “Sayat-Nova” era aliás, o título que Parajanov atribuíra originalmente a este filme. Segundo alguma
bibliografia, “A cor da romã” é a tradução do russo “Nran Guyne”, título que a censura russa
considerou mais adequado, por discordar que Sayat Nova estivesse fielmente representado no filme,
devido ao excesso de subjetividade que Parajanov lhe dedicara.   
Ora, não é sem sátira jocosa que me atrevo a cogitar quanto ao título que, com o passar dos anos e
à força da censura se popularizou. A cor da Romã, ao contrário do ímpeto que o designou, nem lhe
fica nada mal! E não parece que Parajanov alguma vez se tivesse predisposto a vergar a sua obra ao
estado da representação, que lhe fora implicitamente exigido…
    
Infelizmente, a censura não é um patíbulo que se aplique apenas ao título e à exibição deste filme. A
repressão foi vivida por Parajanov, acusado, preso, exilado; assim como por Sayat-Nova, que fora
banido pela corte e tornado monge, por sentença real. Parajanov decide irromper o filme com uma
citação do poeta-frade: "Eu sou o homem cuja vida e alma são tortura”. É portanto, neste
desdobramento secular de opressões e distorções políticas que este filme se concebe e, apesar de
tudo, com copiosa doçura e generosidade. Distante do que seria uma representação biográfica, é,
sem qualquer presunção, um filme que não narra mas opera. A métrica dos enquadramentos
cuidadosamente fixos e compostos, aproxima-o tanto do verso quanto da minudência da iluminura
religiosa, de fundos planos e figuras recortadas. Parajanov parece querer desviar o ponto de fuga da
imagem e conceder assim uma nova perspectiva à iconografia etnográfica, com um rasgo
contemporâneo semelhante à do ready-made.    Esse desfasamento temporal permite entrelaçar
signos, imagens e sons sem, no entanto, dilacerar as personagens, em nenhum dos seus planos.
Diria que Parajanov respeita as figuras como se fossem sagradas, oferecendo uma lição sobre a
beleza perene do mundo.

Não é por isso com originalidade, que nos referimos a este filme enquanto poema ou cântico, porque
é notória a inteligibilidade do seu vocabulário, sejamos mais, ou menos, conhecedores da cultura
tradicional do Cáucaso.
    Por ser difícil referir-me a este filme em tom de análise, resta-me transcrever o Canto IX (1981), do
poeta italiano Tonino Guerra, que me interpela com a dúvida se terá sido sido escrito em referência
ao Sayat-Nova - trovador ou ao Sayat-Nova -    filme. Estarão os três em diálogo, cada um a seu
tempo e julgo que não haverá melhor comentário a um filme sobre um poeta, do que um poema de
outro poeta:

CANTO IX
Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.

Quando tornou o bom tempo,


Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.

Um mês de boa estação passou


e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.

Tonino Guerra
em O Mel
Tradução de Mário Rui de Oliveira,
Assírio e Alvim, 2004

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