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REVISTA DE FFLCH-USP

HISTÓRIA 1999

UMA ANÁLISE DO FILME DESCOBRIMENTO DO BRASIL

Eduardo Victorio Morettin


Professor da UNIP/SP

RESUMO: Este escrito analisa o filme Descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro. O filme pretendeu fidelidade
realista ao acontecimento apresentado, citando documentos de época. Estratégias narrativas demonstram conexões entre
a obra de Mauro e o universo político brasileiro dos anos 30

PALAVRAS-CHAVE: Cinema brasileiro – Humberto Mauro – Cultura na era Vargas – Brasil colonial.

ABSTRACT: This paper discusses Humberto Mauro’s movie The discovery of Brazil. The movie claimed realist fidelity
on exhibited event refering epoch documents. Narrative strategies prove links between Mauro’s work and brazilian political
universe of 30s.

KEYWORDS: Brazilian cinema – Humberto Mauro – Vargas years culture - Colonial Brazil.

Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto objetivos comuns e comandado por um líder que se
Mauro, faz parte de um amplo cenário cultural que punha acima das possíveis divergências sociais. Suas
buscava legitimar simbolicamente o regime de Getú- imagens, como a da recepção dos índios pelos portu-
lio Vargas, visto como responsável pela consolidação gueses na embarcação de Pedro Álvares Cabral,
do Estado Nacional. Apesar de não ser pura e simples- constróem uma representação harmônica de nosso
mente uma “peça de propaganda”, a obra de Mauro, passado, afinada com o período. No entanto, como já
em função do próprio tema, encaixava-se perfeitamente foi apontado, não podemos reduzir o trabalho do dire-
na idéia de formação de um corpo coeso em torno de tor mineiro a um puro reflexo de seu momento.
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Descobrimento... foi produzido pelo Instituto de da seqüência, a simples presença de Caminha repre-
Cacau da Bahia, inserindo-se num projeto mais am- sentaria o elo de ligação entre o que está descrito no
plo de discussão acerca das possibilidades do uso do documento textual e o filme, firmando a autoridade
cinema para fins educativos (MORETTIN). De acor- da tradução da fonte histórica em imagens.
do com esse projeto, era importante validar “cienti- Nesse sentido, cabe ressaltar o momento em que
ficamente” o discurso cinematográfico, adotando-se Caminha é inserido na história. De acordo com os
estratégias de autenticação com o objetivo de diferen- dados fornecidos pela narrativa, e conforme a crono-
ciar o filme educativo dos melodramas da época, nos logia da própria Carta, encontramo-nos entre os dias
quais não existia a preocupação com a chamada ver- 14 e 22 de março. No interior do navio, vemos o escri-
dade histórica. Isso pode ser percebido pelos créditos vão abrir um maço de folhas, onde se lê na capa:
iniciais de Descobrimento..., onde, além da equipe téc- “Cuaderno de Pero Vaz de Caminha/Escrivam d’El
nica, são apontados os responsáveis pela orientação his- Rei”. É importante destacar que estas páginas estão
tórica do filme, a saber, Afonso de Taunay, diretor do em branco, indicando que o trabalho de registro das
Museu Paulista, e Edgar Roquette-Pinto, dois intelec- observações está por ser feito. Isso significa que as
tuais reconhecidos em seu período. Somos informados imagens posteriores terão, direta ou indiretamente,
também da participação do renomado Heitor Villa-Lo- relação com o preenchimento daquele diário.
bos, compositor da música utilizada pelo filme, e de Estabelece-se aí um paralelo entre dois campos:
Mário de Queiroz, coreógrafo das danças indígenas. um, mais amplo, vinculado a tudo o que a narrativa
Além dos dados contidos na apresentação do fil- nos mostra; outro, mais restrito, correspondente a Ca-
me, a narrativa recorre a diversas estratégias de legi- minha e a sua história. Dado que a instância do ofici-
timação, dispostas no interior de seu próprio discur- al é aquela que confere autenticidade ao discurso, a
so. Um dos principais elementos abonadores da narrativa precisa nos fazer crer que, a partir da apre-
fidelidade histórica de Descobrimento... foi o uso da sentação do caderno, tudo aquilo que veremos será
Carta de Pero Vaz de Caminha. A idéia dos realiza- fruto da coleta de informações a ser registrada ao
dores do filme era a de colocar o documento em pri- longo da viagem. Para tanto, bastam o olhar e a pre-
meiro plano, como se a fonte e, conseqüentemente, a sença de Caminha para conferir veracidade à descri-
História falassem por si. A Carta foi empregada como ção. É por isso que voltamos ao caderno apenas no
base de elaboração de diversas seqüências. Apesar de final, depois da encenação da Primeira Missa, quan-
feito em pleno cinema sonoro, a obra recorreu aos le- do o escrivão lê os trechos finais de seu relato a Cabral
treiros, que, em sua maior parte, são transcrições lite- e a frei Henrique, entre outros, submetendo-o à apre-
rais do relato de Caminha. Estas transcrições são acom- ciação de seus superiores.
panhadas das devidas aspas, indicando a preocupação A maneira pela qual essas questões se apresentam
com a referência às fontes, procedimento do fazer his- reflete uma opção da narrativa, além de marcar a
tórico transposto para a narrativa cinematográfica. especificidade do próprio cinema. Uma primeira ques-
A recorrência ao documento completa-se com a tão diz respeito à cronologia, tão prezada por historia-
tentativa de conduzir a narrativa pelo olhar do escri- dores como Taunay. Certamente, era de seu conhecimen-
vão, como se a identidade entre o seu ponto de vista to, por intermédio de Capistrano de Abreu, que a carta
e aquilo que a câmera nos mostra fosse suficiente para fora escrita após a chegada ao Brasil, muito provavel-
atestar a autenticidade do relato fílmico. Mesmo nas mente a partir da noite de 26 de abril (CAPISTRANO
cenas onde o seu olhar não conduz o ponto de vista DE ABREU), e não antes. Descobrimento..., confor-
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me indicado acima, antecipa o início do trabalho de car-se pelo ambiente, mostra-nos um marinheiro to-
registro a fim de que possamos acompanhar o relato cando o instrumento que produz a música por nós
com a testemunha daquele momento histórico. Den- ouvida. Este sutil movimento de internalização de um
tro do campo de competências desses intelectuais, há dado a priori externo confere à música de Villa-Lo-
aí um curioso sacrifício da chamada verdade históri- bos um tônus de autenticidade, pois ela é representa-
ca em detrimento da composição fílmica. Em relação da como se fosse de época.
à primeira parte da obra, obedecer à discussão histo- A trilha sonora da versão em vídeo, lançada em 1997
riográfica traria um problema de difícil resolução para pela Funarte, foi completamente adulterada. No lugar
o narrador: como conciliar o caráter testemunhal dos da trilha original, os “restauradores” usaram a gravação
fatos observados e o apego à objetividade científica de 1993 de Descobrimento..., feita por Roberto Duarte,
sem que as cenas fossem permeadas pela presença/ com o Coro e Orquestra da Rádio de Bratislava. Entre
olhar de Caminha? outras perdas – como sabemos, cada regente tem a sua
A solução dada pela narrativa parece resolver o visão sobre a obra que conduz -, destaco a modificação
problema, e essa resolução aponta para a singulari- feita nesta seqüência, na qual, ao invés do instrumento
dade do cinema. O meio adotado para se contar a his- desenvolvendo o seu tema em solo, ouvimos a música
tória do descobrimento é diverso dos outros suportes orquestrada. O sentido original, conforme apontado
até então utilizados, quer a história, quer as artes plás- acima, perde-se completamente.
ticas, solicitando arranjos diferentes dos conhecidos Aquela pequena seqüência nos coloca algumas
até então. Assim, cabe ressaltar mais uma vez, que indagações. Qual seria o estatuto do narrador nesses
nem tudo corresponde ao olhar de Caminha ou é trans- momentos iniciais? Se os olhos de Caminha confe-
posição de sua carta, bastando para isso indicar, por rem ao discurso o tom de testemunho verídico, quem
exemplo, todas as imagens que se encontram antes da nos apresenta as primeiras cenas? Se a Carta inspira
apresentação do escrivão e depois da partida da es- a verdade histórica sobre a qual se assenta o discurso
quadra de Cabral rumo às Índias. fílmico, quais seriam as bases que garantiriam o grau
Dentre essas imagens, destaco uma seqüência de cientificidade aos primeiros momentos da obra?
anterior à da apresentação do oficial. No interior de Essas questões podem ser aplicadas para outras se-
um navio, à noite, percorremos, entre outros ambi- qüências também. Claro está que há uma narração que
entes, o alojamento dos marinheiros. Preside a se- engloba o ponto de vista de Caminha, superando-a na
qüência um tom, que se não é sombrio ou melancóli- construção de um olhar sobre o novo mundo. Identificá-
co, certamente está distante da euforia enunciada la a partir do exame do específico fílmico é uma das
pelos planos antecedentes. A música de Villa-Lobos tarefas que ainda nos cabe neste momento, a fim de que
é empregada com o intuito de corroborar esse senti- possamos analisar a adequação ou não do filme aos pro-
do. Um dado importante reside no fato de que desde jetos ideológicos que se encontram em sua origem.
o início da seqüência, somos levados a acreditar que Trata-se de um convite à reflexão em meio a tan-
a música é um elemento externo à ação das persona- tos festejos, quer sobre os 500 anos, quer sobre o pró-
gens apresentadas. No entanto, a camêra, ao deslo- prio Humberto Mauro.
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Bibliografia

CAPISTRANO DE ABREU, João. Descobrimento do Brasil. Sem brasileiro (1907/ 1949), in Anais do Museu Paulista (Histó-
local, Sociedade Capistrano de Abreu, 1929. ria e Cultura Material). São Paulo, Nova série. v. 5: p. 249/
MORETTIN, Eduardo. A representação da história no cinema 271, janeiro/dezembro de 1997.

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