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centro do estudos do patrimÓr¬io

Revista de Guimarães
Publicação da Sociedade Martins Sarmento

MATERIAIS PARA A ARQUEOLOGIA DO CONCELHO DE GUIMARÃES.


SARMENTO, Francisco Martins
Ano: 1888 | Número: 5

Como citar este documento:

SARMENTO, Francisco Martins, Materiais para a arqueologia do concelho de


Guimarães. Revista de Guimarães, 5 (3) Jul.-Set. 1888, p. 109-121

Casa de Sarmento Largo Martins Sarmento, 51


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MATERIAES

PARA A
I

ARCHEOLOGIA DO CONCELHO DE GUIMARÃES 1

. A Penha.-Tinhamos ficado nas Abhações. Uma d'ellas, S.


Thorp, estende um estreito vale agricultado por uma das do-
bras do grande massiço da Penha, em direcção 8 capela de
Santa Catharina. .
Nas diferentes direcções do vale ha umas poucas de fre-
guezias: ao poente Pinheiro, ao sul Calvos, Gerneos e Gerzedo,
ao nascente Villa Nova das lnfantas, mas de todas elias pouco
ou nada tenho que dizer, porque nem as minhas investigações
pessoaes, nem as informações que pedi, produziram nada que
valha.
Todas as igrejas doestas freguezias, a exceptuar Gerzedo,
são reconstrncções mais ou menos modernas, em que parece
ter havido todo o cuidado de sumir quanto era antigo. Assim,
em Villa Nova das Infantes apenas descobri no parapeito do
adro um velho carneiro, com o fundo para 0 ar, e duas pedras
com1 caracteres indecifraveis, e tanto mais, que pertencem a
inscrições mutiladas. Os caracteres não são romanos. Na re-
construcção da igreja de Pinheiro foi aproveitado um lanço
de parede do lado do sul, onde havia uma larga porta ogi-

1 Com. do n.° 4, vol. II.


5.° ANNO. 9
M0

val. Aflirma-se que nas aduelas do velho arco existe uma


inscrição. Existira; mas está hoje completamente sumida de-
baixo duma crosta de caliço. Pedi ao digno parocho que for-
cejasse por tornar bem visivel aquela memoria, provavel-
mente relacioNada com a historia da igreja. Parece porém que
a junta de parochia acha esquipatica de mais uma tal idéa.
A Pinheiro pertence 0 monte de Santo Antonio, um outeiro
que se destaca na encosta da Penha, voltado para o castro de
Polvoreira. 0 nome vem-lhe duma antiga capela de Santo
Antonio, demolida ha anhos para ajuda da reconstrucção da
igreja de Pinheiro. 0 cruzeiro da capela firmava-se n u m
penedo, que parece ser o mesmo que o ‹‹ Penedo da Custo-
ldia››. Não me souberam dizer a historia desta estranha de-
nominação; mas da-se corno certo que a beira do penedo tem
sido encontradas algumas moedas romanas. Pelo outeiro e im-
mediações acham-se alguns fragmentos de louça antiga, e é
bem possivel que o alto fosse aproveitado em tempos anti-
quissimos como legar de refugio; se porém alguma obra de
for tificação a l i houve, hoje é escusado procurar-lhe os vesti-
gios.
A freguezia de Calvos pertence a Lapinha. Nada ha tam-
bem a i que procurar com relação aos nossos estudos. Acerca
da legenda local, a nica coisa digna de nota é a sua obli-
teração. Quando se repara que a ponta d u m penedo foi em-
butida n u m dos angulos da capela, vê-se bem que houve 0
intento de lhe dar uma meia consagração, relacionada com 0
aparecimento da Senhora: mas em que parte precisa da Lapa
se fez o milagroso aparecimento? Ninguem 0 sabe. .
Com o cortiço doestas tradições, relativamente recentes,
contrasta singularmente a vitalidade das tradições mouriscas.
Para as encontrarmos 113. Penha, temos de seguir ao longo do
valle, de que falamos acima, e subir até Santa Gatharina. Era
por ahi que tinham a sua sede os Mouros da grande montanha
e, segundo a legenda, não eram das mais cordeaes as rela-
ções de visinhança com os Mouros de Polvoreira, pois que
em alguns montões de pedregulho, vulgares pelo cume do
monte, vê o povo os projectes de guerra, destinados a repelir
0 assalto d'aquelles invasores.
De resto, a serra, sobretudo na vertente occidental, esta
cheia de thesouros, e alguns em determinados sitios. E o que
succede, por exemplo, com os Penedos do Tambor, do Escri-
vão, do Sino, dos Quartos. Os dois primeiros ficam pouco
acima de Villar, e o Penedo do Escrivão tem demais a parti-
111

claridade de pertencer a uma especte de rochas encantadas,


que minguem poderá partir; lá está ainda parte duma broca,
quebrada nas mãos d u m cypríanista, que tentou destruil-0
com um tiro. As denominações de Penedo do Sino, do Tam-
bur, vem-lhe como noutras partes, da resonancia da rocha,
quando é percutida em certo ponto. Esta sonoridade é tanto
mais explícavel, que nenhum destes penedos esta isolado.
Pelo contrario, estão tão provimos doutros, que às vezes for-
mam corredores de pouco mais o"um metro de largo. D'alli
as condições acusticas dalgumas grutas, e numa doestas tão
sensíveis serão elias, que, por mais baixo que se falte, a voz
é repetida pelo e c o . 0 meu informador aludia a tudo isto
com uma especte de terror; mas eu percorri debalde o grupo
de penedos que ele me apontou (a pouca distancia da capela,
mas ainda na vertente occidentai) e talvez por infelicidade mi-
nha não posso confirmar o seu testemunho. O Penedo dos
Quartos deveria ter algumas pias, como é costume. Não vi
pia alguma, feita por mão de homem, nem por toda a Penha,
por mais que espreitasse, descobri gravura nenhuma em pe-
0ed0s.
Na crença popular, muitos montes do nosso pai são
atravessados por uma tão pujante veia d'agua, que a planície,
sobre que rebentasse, ficaria completamente submergida. Gui-
marães esta ameaçada por um destes diluvios locaes, se se
quebrar ou remover um certo penedo, que, a bem dizer, la-
queia a famosa veia. Vem ela, ginguem sabe donde; mas
sabe-se que passa no monte de Santa Quiteria (Felgueiras);
sobe á Penha, depois de descer por baixo do rio Vizella (ha
um sitio do Vizella, onde se ouve distinctarnente 0 susurro
da agua subterranea); vai passar no Monte Espinho (Bom Je-
sus), onde dá. algumas pernas d'agna para as fontes do San-
tuario, e continua lã para os lados do mar.
Deixemos as lendas, para entrar n u m terreno mais posi-
tivo. No alto da Penha houve sem duvida nenhuma um cas-
tro. A nascente da capela de Santa Catharina são ainda muito
visíveis os restos duma fortificação de terra, que se seguem,
mais ou menos apagados, até o monumento de Pio xá. Fra-
gmentos de ceramica antiga, alguns crnainentados, encon-
tram-se a cada passo. Afirmou-nos O chorado padre Antonio
Caldas que ao revolver a terra, para assentar os alicerces
do monumento acima referido, foram encontrados alguns
objectos de ferro, com feitio d'armas, que desappareceram,
sem se saber como.
*

Eu desconfio muito que os penedos, apontados como ja-


zigos de thesouros encantados, já. deram o que tinham a dar.
Disse atroz que todos eles formavam grutas, ou galerias; e
que em todas ellas apparecessem, em tempos, urnas funerarias
e outros objectos que costumam acompanhar estas memorias
sepulchraes, não me surprehenderia nada. Pouco acima de
Villar, e não muito longe do Penedo do Escrivão apanhei eu
alguns fragmentos de barro ornatado, estylo de Sabroso, que
supponho serem restos diurnas, quebradas pelos afuroadores
dos thesouros. A escolha de grutas formadas por um ou
mais penedos para legar de sepultura é um facto vulgar entre
nos.
Monumento funerario bem manifesto e característico va-
mos encontral-o a nascente da capela de Santa Catharina e á.
beira da estrada que pelas Vendas da Serra leva a Pombeiro.
É uma m a m a de grande dimensões.
Como nos puzemos DO habito d'esclarecer qualquer ponto
que possa ser escuro à maioria dos leitores, vamos fazer aqui
uma das nossas costumadas digressões.
rampa, mar unha, mamoinha, rnadorra, são tudo termos
I
populares, e designam um cor foro de terra, de forma marnil~
lar. l)'ahi decerto as primeiras denominações. Quando digo
que são termos populares, não allirmo que todo o nosso povo
os conheça, nem o objecto que eles indicam. Em muita parte
uma e outra coisa cahiu no esquecimento; mas desde o Neiva
á. Povoa de Varzim, por exemplo, raro ser o homem do povo
que desconheça o nome e o monumento. O que eu não vi
ainda foi que o seu verdadeiro destino se perpetuasse no cor-
rer da tradição. Sabe-se apenas que aquilo é obra de Mou-
ros; sobre o seu prestimo phantasiam-se todas as explicações,
menos a que se aproxima da verdadeira. .
Não sofre porém a menor duvida que a mama cobria
uma sepultura; e, para não filarmos doutros povos, o seu
uso era vulgar entre a gente ariana, desde a mais remota an-
tiguidade *.

1 Reproduzimos aqui um texto do Bug-Veda, publicado nos Árgfl-


nautas: cr .Pamasse Ia Terra autour de t o , je forme ce tertre, pour
que (les ossemems) ne soient point hlessés. Que les Piares gardenfi
certe tomba. Qu'Yama creuse ici ta clemeure. ›› Na Ilíada Patroulo é
enterrado debaixo duma marra, etc.
113

Entre nós, conforme as minhas observações, a sepultura


propriamente dita ou era uma anta (dolmen), ou uma antella.
Eu chamo antella uma simples caixa formada de pedras, met-
tidas de cutelo. Outras pedras postas de través serviam-lhe
de tampa. Esta caixa pode ser de maiores ou menores dimen-
sões; mas, como a sua altura não é grande, a marnóa que as
cobria tinha tombem pequena elevação 1
Imagina-se que elevação precisava de ter a marra que
cobria uma anta, sabendo-se que a de Gontinhães (Lapa dos
Mouros) tem d'altura mais de tres metros, havendo-as ainda
maiores :.
isto com relação á altura. quanto ao diametro, dizendo-se
que o monticulo, além de cobrir a anta, tinha de cobrir uma
galeria ou corredor, que d'ella partia para a circumferencia e
que às vezes era da extensão de 6 ou mais metros, é facil de
vês que proporções poderia atingir. Assim, da inspecção
duma m a m a infere-se com grandes probabilidades d'acertar
sei e l a encobriu uma anta ou uma antena. Escusado dizer
que, em regra geral, as pedras duma e doutra foram intei-
ramente saqueadas. roeste caso esta a da Penha e quantas te-
nho encontrado no nosso concelho.
Contra a opinião dalguns archeologos tenho' muito boas
razões para sustentar que as antas e as antellas pertencem á
mesmissima civilisação, e que esta civilisação era a chamada
do bronze. As armas e objectos de pedra, que se encontram
n'ellas, machados, pontas de seita, só me provam o archaismo
dum rito funerario, que persistiu por longos seculos, sem que
uma inovação qualquer o viesse perturbar na sua rotina.
Mas não eram só as marnôas as sepulturas dessa época.
A par d'aquellas estavam em uso, e em muito mais largo uso

1 A maior antella que tenho visto é a da Casa da Moura, em


Villa Chã, concelho de Barcellos. A sua altura é de 2 metros; com-
Drimento 3,35, largura 1,50, mas 3! maioria das que examinei tanto
a i , como noutras partes, não chegas á metade destas dimensões.
2 Acho inutil descrever
o que seja uma anta. A descripção deixa
sempre i d a s incompletas, se não falsas. Na SOCIEDADE MARTINS SAR-
MENTO ha um modelo em gesso da anta de Gominhães, que reproduz
menos mal O original, salvo quanto á galeria. É dá"avertir que a repro-
Õucção só mostra a parte hoje apparente do monumento. Se todo ele
estivesse a descoberto, a altura de todo ele dobraria.

sem duvida, as grutas por baixo dos penedos, 0u formadas


por penedos, e é por isso que em algumas partes a matnôa é
rara. É por isso tombem que dissemos acima não deverem o
Penedo do Escrivão, do Tambor etc., a sua reputação myste-
riosa senão aos objectos que ahi foram encontrados, como
em grutas sepulchraes que eram, e que a tradição teima em
dar como existentes na profundidade da terra, ou nas entra-
nhas da rocha. A mais notavetgruta desta especte que tenho
visto é a das Coriscadas, no Marco de Canavezes, que, apesar
de ja saqueada, produziu numa exploração, a que assisti, al-
guns macliados de pedra e pontas de seta, exactissimamente
do mesmo type e meteria dos que se encontram nas escava-
ções das rampas.
Ponhamos ponto á digressão.
Não seria desarrazoado suppôr que parte da população, a
que o castro da Penha servia de refugio, foi habitar nas im-
mediações da igreja de Matança. Pelos campos a poente da
igreja não é raro encontrar fragmentos de telha com rebordo
(que não encontrei no Castro) e particularmente no legar das
Vergas os fragmentos são em tal abundancia, que fazem sus-
peitar da existencia duma povoação rornanisada, de que hoje
sÓ restam aquelles signaes.
A norte e muito perto das Vergas ha um pequeno outeiro,
cheio de bocados de telha vulgar, indício certo de ter havido
por ali uma antiga capela, ou ermida. 0 indício ainda d'es-
ta vez não falhou. Houve de facto ali uma antiga capela ;
mas o nome ja c a i u 110 esquecimento. 0 outeiro chama-se o
Monte do Vigario.
1

* F

Monte de Santo Antoninho.-A freguezia de Matara pega


pelo norte com a de Mezão-Frio. Na extrema desta freguezia,
para o lado de Fafe, encontra-se o monte de Santo Antoninho,
ou Autoinho, como o povo lhe chama. Era facilmente defensa~
vel; mas não encontrei n'elle signal algum de fortificação. No
entanto fragmentos de louça antiga não são raros por ali,
nem pelas ir mediações, e a noroeste, numa chã, por onde
passa a estrada de Fafe, ha um compro de terra, que me pa-
receu uma pequena mama. Tão desfeita porém está ela, que
não juro que o seja.

J
115

No cimo do monte ha uma capela, e porto d'ella a cha-


mada ‹‹ pedra do Santinho ››. É um calhau informe, furado
Qtlliquamente, de sorte que um dos orifícios vira para a terra,
outro para o ar. A pedra é milagrosa contra o «cauçamento
do peito ››, e aqui esta como se opera: tapa-se o orifício que
volta para o chão e tapa-se tombem o que volta para o céu,
depois que o doente bafejou n'elle. Parece que com o halito
do doente, assim encarcerado, este oca esperado do seu mal.
A pedra sO faz um milagre por anuo e precisamente quan-
do começa o dia da festa do santo, portanto ao bater a meia
noite do primeiro de Setembro. E de crer que em antigos
tempos a concorrencia dos devotos originasse alguns confli-
ctos. Hoje esse perigo desapareceu. Quem quer bafejar no
milagroso buraco mete-se com o tesoureiro da festa e uma
bandeira, içada de vespera, na cruz da capela, annuncia que
está tomada a vez para o afilhado d'aquelle magnate.

Valle de S. Torquato. -- Este vale é limitado ao nascente


por uma cordilheira, que de Santo Antoninho vai terminar em
.Santa Marinha. Nas vertentes sobre o vale ficam as igrejas
d'AItães, Rendufe e S. Cosme. D'antes havia a maior a fregue-
zia de Cabide, que foi annexada a Atães. Da velha igreja de
Cabide resta um carneiro e algumas velharias insignificantes.
Por todo aquelle trato de montanha, sofrivelmente espera,
nada vi digno de nota, nem as informações, que tenho pe-
dido, me fazem crer que vi mal. Em Rendufe rosna-se em
Mouros e tem-se procurado algumas riquezas perto do ‹‹ Pe-
nedo da Cabeça ››. Não me souberam dizer donde lhe vinha
0 nome, que se repete noutras partes. É porque a sua forma
arredondada, que mais se destaca por assentar numa grande
lago plana, faz lembrar uma cabeça humana?
0 que tem chamado sobre elle a attençãc da gente da fre-
guezia não é decerto tanto a sua configuração, como a se-
guinte particularidade: o penedo ‹‹ fafla ››. Quer dizer que tem
UM echo, e tão sensível seria ele, que se ouvia dentro da
rocha O tinido de picos d'u0s pedreiros, que trabalhavam alli
perto, dizia o meu informador. Levou-me mesmo ao sitio, onde
eu podia verificar o extraordinario phencmenc, mas ficou ele
Dfoprio muito admirado de não verificar coisa nenhuma. É
116

bem possivel porém que numa certa direcção o penedo tenha


um e c o ; e, como em regra para o povo, um echo é a Moura
que fala, -talvez d'ahi venham as tradições mouriscas ligadas
áquelle lograr, e como consequencia a lenda de tesouros en-
cantados. Certo é que nem por ali, nem pelas ímmediações
apparecem, que eu saiba ou alguem, vestígios de povoação
antiga.
Oimesmo succede na freguezia contigua, S. Cosme. A uni-
ca curiosidade que ahi recolhi foi a lenda relativa ao legar da
Lobeira, que oca acima da igreja e não longe do cume da
montanha. É a historieta, conhecida em muitas outras partes
do paz, mas raras vezes localisada como succede aqui: Uma
mãi teve sete ilhas e a mais nova d'ellas desappareceu um
dia de repente. Foi cumprir ‹‹ asna fada.››. Se fosse rapaz, se-
ria Iobishomem; como era rapariga, teve de ser ‹‹ peeíra ›› de
lobos por sete anhos. 0 que a palavra poeira significa, minguem
m o soube dizer ainda 1, nem é facil inferil~o da occupação da
mulher fadada; porque, a julgar pelo texto da tradição, a sua
occupação é não fazer coisa nenhuma. A convivencia exclu-
siva com os lobos não será muito divertida. São eles porém
que a sustentam, sem que lhe falte nada; que a defendem
contra todos os perigos, ficando inconsolavelmente tristes,
quando a poeira, acabado o seu fadaria, se despede d'elles
para sempre. .
Na parte da montanha, que da Lobeira se estende até Santa
Marinha, e pertence á freguezia de S. Torquato e á. de Gonça,
nada ha que nos interesse.
- Um estreito valle separa Santa Marinha o`um monte inno-
minado, a nordeste da igreja de Gonça. Nas fadas deste
monte fica o legar chamado ‹‹ Valle de Mouros ››. A telha de
rebordo apparece a l i a cada passo, e em extraordinaria abun-
dancia num trato» de terreno, arroteado, ha poucos anos. Nos
primeiros tempos, em que o proprietario lavrara as lei rapas
arroteadas, deu-se um facto que o. impressionou vivamente e
o impressiona ainda, bem como às pessoas da freguezia, a
quem o tem communicado: dois anos a seguir, um sardão
‹‹lendo, mas mesmo muito lindo ››, quando o arado começava

II

1 Apenas uma rapariga, um pouco rahina, explicava que « peei›


ra » queria dizer: ‹‹ andar ao pé dos lobos ».
.
117

a sulcar a terra, vinha colocar-se atroz d'elle e acompanha-


va-o em todos OS seus movimentos. Passados'os dois anhos,
o sardão nunca mais appareceu.
Era algum Mouro encantado, que sob a forma de sardão
vinha espreitar se a rolha do arado poria a descoberto os seus
preciosos thesouros? É o que se deve inferir; mas até hoje,
além da telha, pedra lavrada, e alguma pia grosseria, nada
se tem encontrado. Diz-se que pelos campos proximos têm
apparecido alicerces de casas; e isso é possivel; as informa-
ções porém são muito vagas, e quanto a tradições sobre a po-
voação que por ali existiu, não ha nenhuma.
Percorri o outeiro proximo, que já chamei innominado,
pois é conhecido por Tapada de Valle de Mouros, sem nada
descobrir que auctorisasse a suposição d'haver sido ali a
sede primitiva da povoação.
. Já perto da igreja de Gonça, no sitio das cruzes,por mais
duma vez se tem feito escavações, mas os thesouros procu-
rados não são mouriscas. O que se procura é a caixa militar,
que os Francezes aqui deixaram enterrada, 00 desastroso dia,
em que passaram por estes legares.
Duvida-se se alguem enriqueceu com o achado. Não falta
porém quem pense que com uma descoberta casual, feita pe-
los mesmos sities, enriqueceu um jornaleiro que trabalhava na
estrada de mas*-dam. Foi ele que descobriu uma sepultura,
aberta no saiba e tampada com pedras atravessadas, podendo
encohril~a aos companheiros e vindo explora!-a de noite.
Afirmou-me o digno abbade da freguezia que dentro da
sepultura appareceram umas ossadas, uma vasilha e alguns
cacos, que ele viu. Foram estas as riquezas que o jornaleiro
com certeza encontrou tombem.
A igreja de Gonça oca nas fadas dum monte (0 S. Si-
mão), opposto ao de Santa Marinha. D'ahi segue a cordilheira
que limita pelo poente o vale de S.‹Torquato, e onde, além
de Gonça e S. Torquato, se contam as freguezias de Gominhães
e de S. Lourenço de Selho.,
Acima da actual igreja de Gonça ha um sitio chamado
‹‹ igreja velha ››, DO qual têm sido encontradas algumas se-
pulturas, e numa d'ellas uma moeda portugueza. 0 achado
de moedas dentro de sepulturas christãs é coisa muito fre-
quente, e não resta duvida nenhuma que 0'eSta costumeira
ha persistencia do uso pagão respectivo a Charonte. Ainda não
ha muitos anos, em Ruivães, contava-me o actual abbade de
Sobreposta, collocava-se uma moeda na tumba do defunto,
M8

com a expressa intenção de o habilitar a ‹‹ pagar a passagem


da lagoa Stygia 1_ ››
Da velha igreja de Gonça nada escapou senão um capitel,
d'ordem corinthia, igual aos que se encontraram no campo
do Cruito, e de que faltei no meu segundo ar tigo. No mesmo
local vê-se uma gravura furna age, que me parece muito
antiga e que tem uma analogia tal qual com outras, que des-
cobri em Moledo, não longe duma mama. É de forma qua-
drada. ,
Dentro do passei' haveria uma inscrição gothica, inscul-
pida n u m penedo. A inscripção é um todos nature, como se
encontra em centenas doutros penedos.
A sul de Gonça soa s. Torquato. 0 morro, onde foi c0ns-
truido o velho mosteiro, poderia muito bem ter sido um pe-
queno castro , mas nem ha dá"ísso tradição, nem é facil procu-
rar-lhe os vestígios, porque quasi todos os terrenos estão em
mão de particulares e vedados. A sudoeste do morro, no si-
tio chamado Amado, fragmentos de louça e telha com rebordo
não faltam. Segundo um informador, houve por a l i uma ba-
talha de Mouros; mas o meu ultimo cicerone ignorava esta
tradição e só sabia que pelas proximidades da Fonte da Greta
tinha havido um antigo mosteiro, de que era prova a grande
quantidade de tijolo, que por lá. se via. 0 tijolo é telha de re-
bordo, e aparece em grande quantidade, mas só até meia
costa do monte. Houve com certeza por a l i uma antiga po-
voação e olha-se sempre para o morro do mosteiro, como o
local mais apropriado para a sua primitiva sede.
Para 0 lado da fonte ha tombem uma ‹‹ Pedra que Íalla ›› ;
não m a soube porém mostrar o meu guia. A Fonte da Greta
tem de curioso que rebentava d'aotes DO meio do plano d u m
grande penedo, por uma fenda, quasi dissimulada em toda a
sua extensão. Eu disse -rebentava dantes--porque um
proprietario do sitio, querendo apanhar a agua num ponto
inferior, lembrou-se de captal-a a tiro, e a fonte desappareceu.
Nos tempos que já ia vão diriam os devotos que a Nympha
d'aquelles lograres abandonara uma gente que tão brutalmente
a tratava.

1 Um homem de Buivães, legar do Zebral, apertado para explí-


car o que entendia por esta phrase, respondia: ‹‹ para pagar a passa-
gem para outra vida››.

A
M9

Na biographia de S. Torquato ha uma particularidade, que


não resistimos à tentação de commentar. Explica-se bem que
um phantasista 0 fizesse bispo da Citaria; mas ha alguma
coisa de malevolo na invenção-de dar como seus algozes os
habitantes de Vieira. E todavia parece certo que os Vieirenses
aceitaram a patranha, como verdade historica a mais incon-
testavel, vindo por muito tempo a0 mosteiro do santo, ata-
dos com sagas e tamoeiros, por ser com sogras e tamoeiros
que ataram a sua suposta victima, antes de a matar. A tra-
dição popular junta mais um traço, que os chroniqueiros en-
tenderam decerto dever omitir: a penitencia dos de Vieira,
com as sogras ao pescoço, teve por em remir a maldição
do santo, lançada sobre as mulheres d'aquella terra, e em
consequencia da qual a honestidade entre elias se tornara
uma palavra vã.
Se estas abulas não foram engelhadas por algum frade
THDCOTOSO, que tinha contas a ajustar com os Vieirenses, não
percebemos nada.
A hiographia do santo deu ainda origem a uma etimologia
popular. Os de Vieira vinham correndo traz da sua victima e
apanharamma N'um sitio, hoje da freguezía de Prazins. Ahi
um d'elles atirou-lhe uma cutilada, que lhe decepou uma ore-
lha, gritando: ‹‹ Aqui é que te eu marco ››. E aqui esta por-
que em Prazins ha hoje um sitio, chamado Marco;
É um pouco singular que o auotor da descrição de Entre
Douro e Minho ponha em duvida o nome de S. Torquato.
‹< Parece-diz ele--que este vocabulo anda corrupto, que
se devia dizer S. Donato 1. ››

1 Ainda mais singular ea seguinte noticia, que se lê nas Memo-


rias resucitadas da antiga Guimarães do padre Torquato Peixoto d°Aze-
vedo: ‹‹ No anua de 1538 chegou á. real Collegiada de Nossa Senhora
da Oliveira um Monge. prelado na Hespanha, homem d'auotoridade, e
se oíiereeeu para pregar na dita igreja o primeiro de Maio, e vendo
que toda a gente concorria para a igreja de S. Torquato, por ser sua
festa nesse dia, e estar distante da vila só meia lagoa: disse então do
Dulpito para (que ?) aquela gente estava enganada em cuidar que S.
Torquato estava enterrado nesta terra, ao que os assistentes fizeram
grande rumor' acudo o chantre Matheus Peixoto, que estava no
` e chegando ao pulpito disse : ‹‹ Reverendo padre, nesse legar
caro,
nao se pregam mentiras, descei-vos d'ahi, e não digaes mais palavra u
e ele desceu mal reputado ››.
120

A verdade é que o some de S. Torquato appareee já numa


inseripção, em belos caracteres gothicos, encontrada ao pé
do mosteiro, dando noticia do falecimento d u m Pelagio Joa-
nes, DO ultimo quartel do seculo iii.
A sul da freguezia de S. Torquato encontra-se a de Gomi-
nhães e ahi a capela de Nossa Senhora do Soccorro. Perto
d'ella foram desenterrados, ha poucos anhos, alguns capiteis,
um d'elles d'ordem corinthia, muito similhante ao de Gonça.
Pelas proximidades da capela acha-se telha de rebordo
com abundancia, e tambem~não.é rara pelos campos que lhe
ficam a sul e ainda no outeiro fronteiro. A norte da capela e
muito proximo d'ella, levanta-se outro monte e ahi, até pouco
menos de meia costa, fragmentos de telha e de louça antiga
encontram-se sem grande trabalho. Para o alto os vestígios
€63Sam. 0 monte pega com outro que tem o nome significa-
tivo de Castello, mas, por mais attentarnente que o exarninei,
nada descobri que correspondesse as esperanças que me dava
e seu DOÍUB.
Tradições absolutamente nenhumas. 0 tempo obliterou
tudo o que podia esclarecer a nossa antiga historia, elo nosso
desmazelo quasi selvagem pelas memorias do passado aju-
dou-o poderosamente. Uma prova que não pode ser mais es-
magadora: devia ficar a pouca distancia de Gominhães O thea-
tro da celebre batalha de S. Mamede. Ide perguntar á gente
d'aquelles sítios onde se feriu a famosa escararnuça? A grande
maioria nem sabe O que isso é ; excepcionalmente encontra-
reis algum informador que vos faltará vagamente dos loga-
'TGS do Gil de. . I . .
Segue à de Gominhães a fregueziade s. Lourenço de Se-
lho. Nada ha ahi que mereça attençãe, a não ser a ‹( Lapa de
Bouro ››, no cimo dum pequeno outeiro, do mesmo nome,
salvo erro, e que se descobre facilmente do vale. Compõe-se
d u m grande lascão, encostado obliquamente a um penedo e
formando uma bonita gruta, que podia muito bem ter sido
aproveitada para abrigo dalgumas urnas funerarias. Fragmen-
tos muito mudos de louça antiga que alli encontrei e pelas
immediações tornam esta supposição mais que aceitavel.
Dou-a porém, já se vê, como mera supposíção.
É na freguezia de S. Lourenço que fecha pelo sul o Halle
de S. Torquato. Por este lado as suas barreiras são a ramifi-
cação da Penha, que da Cruz da Argola se estende para
s. Lourenço, ficando entre as duas freguezias a estreita que-
brada, por onde corre 0 Selho. A freguezia de S. Mamede
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d'Aldão interpõe-se aos dois pontos acima nomeados. Nada


tem de notavel.
0 Selho é formado de pequenos riachos anonymos que
cortam o vale de S. Torquato, e que já vão reunidos na
quebrada de que falamos. Vai desaguar no Ave perto de Ger-
zedello. Servir-nos-ha de limite para os estudos seguintes,
que compreenderão as freguezias da sua margem esquerda.
0 nome do rio tem uma etymologia popular, tão imagi-
DOS3. corno quasi todas as etymologias populares. Os Castelha-
nos estavam acampados nas margens do rio, esperando occa-
sião d'atacar Guimarães, quando os habitantes da Villa os
foram surpreender. Descoucertados pela subia arrernettida,
não se ouviu mais que O brado d'alarfoe: salta! seita ! e
apanhando-se sobre as selas os Hispanhoes fugiram a unhas
de cavallo; Do grito d e - s e l l a ! - - é que veio 0 nome do
rio.
É mais que provavel que O nome seja tão antigo como
o do Ave, Douro, Tejo etc., e que venha duma raiz que si-
gnifica - correr.
Guimarães, 15, 6, 88.

F. MARTINS SARMENTO.
+

ERRATA

. A inscrição romana, publicada na pag. 84 do numero passado,


safou errada e deve emendar-se assim :

IMP. CAESARI DIVI F.


AVG etc.
O I de Caesari, bem que muito obliterado no original, é todavia
certo.

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