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A Roça de Teresa revisitada – A pesquisa

Publicado em 3 set 2014


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Transcrição completa de entrevista em fita K7 com uma ex-escrava de fato

Numa noite de 1973, na quadra da Escola de Samba “GRES Arranco de Engenho


de Dentro”, localizada entre Cascadura e Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, fiz uma
entrevista impressionante, a primeira pesquisa de campo da minha vida! Comigo,
participou um grupo de amigos que estava por lá (entre os quais o radialista Rubens
Confeti, da Rádio nacional aqui do Rio de Janeiro, o poeta Lucio Flávio e o fotógrafo
José Ricardo D’Almeida).

O impressionante era que a entrevistada estava prestes a completar 117 anos


e…havia sido escrava! Quem já ouviu, ou mesmo viu, uma pessoa de 117 anos? São
pessoas raras. Muitos eventos que só conhecemos pelos livros, foram para elas
corriqueiros.
A visão clara que elas têm do passado remoto, para nós é tão desconcertante
que parece mentira. Mas juro. Não minto e repito: Isto não é ficção. Desta vez, a
história é a mais pura realidade. Os incidentes que a entrevistada nos dá conta – como
testemunha ocular (!) – são de 1874, quando ela estava com 15 anos. Aconteceram,
numa fazenda de café do Vale do Paraíba do Sul, Rio de Janeiro, chamada Santa
Teresa, num município denominado hoje Avellar (que, na época, ainda pertencia à
cidade de Paraíba do Sul).

O nome Avellar é emblemático pois o patrão, o senhor de nossa entrevistada


era, ninguém menos, que o Visconde da Paraíba, João Gomes Ribeiro de Avellar. O
nome de nossa entrevistada é Maria Teresa Bento da Silva, matriarca de uma espécie
de dinastia que, sediada no morro da Serrinha, em Madureira, não só implantou no
lugar o Jongo trazido da roça, como ajudou a criar, em 1947 a Escola de Samba
Império Serrano (Teresa foi a orgulhosa mãe de Antônio dos Santos, o Mestre Fuleiro,
histórico diretor de harmonia desta escola).
O registro foi feito num gravador K7, cuja fita, mídia fantástica que é, sobrevive
intacta em meu arquivo já digitalizada e na nuvem (o CD com a cópia reserva que fiz, já
morreu) O documento – que eu tenho um orgulho enorme de ter produzido – é um
dos mais impressionantes e raros registros históricos, que eu conheço sobre o assunto
e será posto um dia à disposição dos interessados em algum acervo público, dos
poucos que o Brasil possui.
(Dos poucos registros de relatos ou entrevistas com escravos que conhecemos,
pode-se citar alguns poucos, como os realizados por Nina Rodrigues já no fim do
século 19 e o relato de Solomon Northup, registrado no filme “12 years slave“. São
contudo relatos escritos, transcritos por terceiros. Fatos tão remotos narrados pelo
próprio ex-escravo, de viva voz, com sua opinião e visão sobre oque viveu sem
intermediações, confesso que nunca ouvi falar de outro no mundo. Se alguém souber
que nos informe)
Decidi dar a este post, que reproduz a transcrição da entrevista, um jeito
menos formal. A ideia foi deixar Teresa falar sem edição, diretamente, para nós, seus
leitores. Teresa morreu dois ou três anos depois da entrevista (entre 1975 e 1976)
Tinha, pelas contas que fazia, 120 anos. Com sua voz valendo, narrando por si mesma
os episódios, faremos um roteiro de cinema cuja produção começa agora. As locações
serão nos ambientes reais, onde tudo aconteceu.
Ao final deste post, alguns comentários se fizeram necessários, já que a
entrevista gerou uma série de questões inéditas, a serem respondidas por uma
pesquisa, de veios muito ricos, que, pelo visto não vai acabar tão cedo. Um destes
veios é sobre o Jongo, enquanto ingrediente importante do caldo de cultura que é o
Samba e que, a partir dos elementos trazidos à luz pela entrevistada, ganha contornos
muito mais nítidos, no tempo e no espaço.
Contudo e por tudo, mais uma vez afirmo, é Maria Teresa Bento da Silva, a ex-
escrava quem fala sobre o que viu em 1874. Por mais desconcertante que isto possa
parecer, é tudo verdade.

A Roça na voz de Teresa

...”Queria dizer que naquele tempo eles sabia fazer o que agora num vejo
ninguém fazer. Faziam! Se você estava com dor de cabeça ou uma dor de barriga, eles
passavam a mão assim na tua cabeça e a dor de cabeça ia embora, passavam a mão
assim na tua barriga e dor de barriga ia embora. Agora não. Agora eles não faz nada.
Eles não sabem é nada. Eu não…Naquele tempo era bom.
Eu não. Não sabia (curar). Só o Jongo. Num podia nada. E, depois…naquele
tempo não podia aprender mais nada porque o Sr. num deixava. Nós carregava os
filhos deles. Ah!.. Deus me livre se agora fosse como naquele tempo! Nossa Senhora! Se
agora fosse como naquele tempo…O Visconde era de Paraíba. De Avellar. Visconde de
Avellar.
Num sabe aquela família Avellar? Ainda está lá. O sobradão branco, diz que tá
cheio de cobra. Num tem mais nada daquilo. Num tem mais nada daquilo, meu filho.
Fui uma vez lá depois que eu vim pra aqui, com alguém. O sobrado tá a mesma
confusão mas, o sobrado eu conheço por dentro. Um apartamento, lá no alto. Sobrado
grande. Só a fazenda! Só o pessoal que tinha!
O Visconde tinha escravo de pagode! Tinha escravo pra duas forma. Duas forma
(cerca de 300 escravos)! O visconde botava duas forma. Visconde de Avellar. Foi senhor
do meu pai….Pra quem viu o cativeiro como eu vi….É triste. Olha…se você não queria
dançar,você tinha que levar couro. Se não queria fazer qualquer coisa, tinha que
apanhar. Tinha tronco. Tinha tronco de campanha, tinha tronco de botar nos pés, tinha
tronco de botar no pescoço, tinha isso tudo.”

A fuga da fazenda

…”Meu pai era capataz da fazenda. Meu avô criador de porco, mas era porco
mesmo, num era esses porquinho de hoje não. A gente passava bem e passava mal.
Mas morreu muita gente e, depois o Dr. Avellar era muito ruim! O pai dele num era
ruim como ele não mas ele era. É brincadeira? Botar ‘bacalhau’? Não sabe o que é
‘bacalhau’?! Aqui na cidade tinha que ainda quando eu vim aqui pra cidade eu vi
‘bacalhau’, vi tronco aqui na cidade.
‘Bacalhau é aquilo que é como se diz?…Como aquilo que é couro, enroscado
assim…Um relho! Mas não era chicote não. Chicote era trançado e não era trançado
não. É. É o que fazia…Dr. Avellar. Ele era filho do Visconde…
Se fugia muita gente? Fugia! Fugia! Chamava Capitão do mato. Procurava eles.
O que procurava eles era o Capitão do Mato.
Coitados! Vinha tudo amarrado, algemado assim, tudo algemado,
heim!”(perguntada se lá tinha quilombo, não entende a pergunta):Em Paraíba tinha
tudo. Pra onde eles fugia? Era no mato virgem. Era mais na roça. Paraíba, Campo
Verde, Boa Vista, Conceição, Santa Teresa. Eu fui criada na fazenda da Santa Teresa.
Era do Visconde de Avellar. Ficavam lá no mato, coitados. As vezes eles vinham,
roubavam um porco do senhor e iam comer no mato. Fazia fogo no mato pra comer.
Ficava. No mato eles ficava escondido. Quando pegavam eles…meu senhor!
Como passavam mal, como eles passavam mal no bacalhau…Olhe! Deus soube o que
fez. Deus soube o que fez, meu filho! Eu vi isso tudo, sabe? Esse tempo eu tinha meus
15, 16 anos. Eu vi muita coisa, né? Eu era Ventre Livre, eles queriam me bater, eu disse
não! Eu sou forra! Eu sou ventre livre, não sou escrava não! Escravo é minha mãe e
meu pai! Queriam me bater? Não. Não me batem não!
Aí eu fugi. Eu fugi e fui encontrar com meu pai, aí meu pai era fugido…Que ele
vinha fugindo do serviço, ora! Que vinha fugindo da roça!…Aí meu pai me disse: O que
que ocê está fazendo aqui, minha filha?
Eu falei: Eles queriam me bater, eu fugi! Meu pai: Você não pode apanhar,
porque você é forra, minha filha. Escravo sou eu, que sou seu pai! Agora você não vai
mais pra lá!
Aí eu fui lá pela roça, com meu pai. Ia pra roça com meu pai e minha mãe. Deus
faz a verdade, o que eu vi aquele pessoal passar aquele tempo. Dava tapa na cara das
criada, dos escravo. Olha!.. Eu tinha raiva de um tal de nome Lulu. Era filho do Dr.
Avellar, de quem meu pai era escravo.
Eu não sei o que foi que meu pai fez, meu pai ia levar o… ele foi, veio de lá, e
mandou um tapa na cara de meu pai. Aí meu pai ficou revoltoso. Ai meu tio disse
assim: Vamo embora! E o meu pai, não sei se queria matar ele. Eu num sei. Foi embora.
Pra roça. Aí eu tomei raiva dele. Aí ele falou: Ô crioula! Eu falei: Crioula é a sua mãe!
Que ocê deu um tapa na cara do meu pai agora! Se eu fosse meu pai eu te
capava a barriga agora!
E ele: Ó sua negrinha! Negrinha, não. Não sou negrinha. Tava com 15 anos. Aí
eu fui indo pra roça. Aí meu pai: Mas ocê veio pra roça? Falei: Vim que eu não quero
mais ficar na fazenda. Que eles botava as crianças, as pequena, as negrinha, pra
brincar com os filhos, pra carregar os filhos dela.”

O Munhambano…

“Tinha festa. Eles davam muita festa pros escravos. Muito. Eles davam S.João,
Santo Antônio, tudo. Eles davam…Natal. Tudo eles davam festa. No Natal eles davam
roupa…Os fazendeiros é que dava. Dava tudo. Graças á Deus! Dava tudo mas…era
aquilo. Mas, era ali, ó!
Minha avó era lavadeira dos escravos. Meu avô era tratador de porco. Minha
avó era Benta! Benta da Silva e meu avô também era Bento. Antônio Bento da Silva.
Ela era Munhambana.
Ele também era. É. Todos dois eram Munhambanos. Ah…Eles num contaro
como era de onde eles vinham não. Eles num contaro que a gente era criança naquele
tempo…Meu avô num era preto não. Meu avô, o cabelo dele era aqui (mostra abaixo
do ombro) Minha avó também. Meu pai era mulato mas casou com a minha mãe que
era preta.
E as outras minhas irmãs eram tudo mulata. Eu e meu irmão saiu da cor da
minha mãe. Mas, meu avô? Meu avô o cabelo dele parava aqui (mostra de novo o
ponto). Nós penteava o cabelo:(imitando avô:)’Ara! Ara eu! Ara eu pega ocê!’ Tudo
assim que ele falava. (imita de novo:) ‘Oça o tutra!” Sei lá, colher que ele pedia, a gente
não sabia, se era uma coisa que ele pedia e a gente não sabia. (imita de novo:) ‘ Mim
dá essa coisa aí o ningrinha!’: Nós pidia a ele.
Aí ele sabia o que era. Meu avô Antônio. Ele não era preto. Era mulato. Se era
mulato de cabelo liso? Era mulato de cabelo liso. É. Veio da África. Meu avô, minha avó
contava, porque na fazenda tinha muita gente africana, tinha…Angola,
isso…D’Angola… isso tudo tinha.
Os português trazia ele pra aí. Tudo era assim.(Se irritando com a desconfiança
dos entrevistadores reticentes com a descrição do avô): Meu avô era africano! Meu
avô, minha avó, era tudo africano….(de novo irritada com a insistência da pergunta
sobre o estranho biotipo de seu avô): É. Africano. Gente africano. Pois ele era africano!
Munhambano é África!
É África. meu avô era africano! Quantas vezes quer que eu falo? (mais irritada
ainda): Não! É África! Lugar na África (se acalmando:)… Aqui não tem Madureira? É
como assim. É África. É mesmo que lugar da África. Aqui não tem cidade? Num tem
Paraíba do Sul? Então? É como a África. É assim.
Aquele tempo…A gente morria de medo de fazer filho.
De que jeito que a gente vivia? O filho lá….Um dia chegava, tirava o filho da
gente pra vender. Hum! Minha mãe num foi vendida? Minha mãe num era daqui.
Minha mãe era lá da Bahia. Foi. Vendero aí pra um vendedor aí, ó! Meu avô num foi
vendido? Meu avô era africano e foi vendido. Então? Foi vendido, num é? Foi o
Visconde! Minha avó foi vendida. Isso tudo foi vendido. Agora vai vender quem é? Vão
vender quem é? Vai vender ocê?…(Solta uma gargalhada) Vão vender quem é?”
Teresa e a República

…”Hoje é tudo diferente, meu filho. Óia…Porque que eles tiraram o Deodoro da
Fonseca?
Porque Deodoro sabia governar! Inda outro dia (imitando o questionamento
dos filhos)… Aí, oh mãe…Ó mãe, a Sra…(como se a interromper os filhos)…O que??
Deodoro sabia governar!! Assim que acabou o cativeiro, foi Deodoro que tomou conta.
Deodoro botava tudo ali, na linha. Agora não. A mulher dele era boa. Ele era muito
bom. A gente comia bem, bebia bem. Aquelas coisa que ficava ruim nas venda…ele
mandava jogar tudo fora. Aí…Óia a gente panhando na rua!
Que é de que tá assim agora? Que é de? Que é de?.. Peixeiro, que chegava aí,
da praia, lá do lado de lá, da praia de Niterói,…Chegava os peixeiros ? Dava tudo pro
home. Ah…! Ele botava aqueles peixes tudo fora. A gente panhava aqueles peixes
grandes. Ficava bem bom. Óia a gente se espanando nos peixes. Mas, agora?
Trabalhei pra Deodoro da Fonseca! Eu que tô aqui! Não me incomoda. Aqueles
soldados (imitando o soldado lhe fazendo a corte:) ..Ih! De adonde ocê é, heim? E eu:
Num tem conversa! Subia. Levando a roupa que minha tia lavava, eu ajudava ela a
lavar, ajudava a engomar, viu? E tô aí, com a graça de Deus! Eu agora nem sei o que é
soldado!? Soldado hoje é porcaria, não vale nada, não vejo nada. Eu ando na rua e
num sei quem é soldado! Porque, aquele tempo…era SOLDADO!
Aquele tempo ocê conhecia GENERAL! Hoje em dia num sabe quem é general,
não sabe quem é doutor, num sabe nada nesta vida!…Aquela época tinha (imitando
marcha:) báu, báu, báu, báu! Aquelas fardas, que a gente passava, as fardas
alumiando o sol, assim…ninguém podia. Agora, hoje em dia num se vê nada. Num vê
nada. Anda de calça arregaçada. Aquele tempo, ocê via isso aqui do general, dos
soldado…
Você dizia: Ih!, fulano, eles vem lá! Hoje em dia ocê até empurra eles
assim…Soldado muito bem vestido, a roupa bem engomada. Quando era gala, a roupa
branca…a coisa ali, ó! Eu tinha (respeito)! Eu tinha! Tanto que as vezes até tomava
benção.
Ocês sabe que general naquele tempo era General. Hoje eu não sei quem é
general! General assim, com estrela, (imitando marcha de novo:)…Táu, táu, táu, táu,
chega só…só naquele pisar dele eu sentia medo. Soldado que ocê tem aí? As vezes eu
fico assim oiando. Lá perto de mim mora um soldado. Eu falo (desalentada:)… Isso é
soldado?! Ah…Eu tinha respeito de soldado. Hoje em dia não tenho respeito de
soldado. Tinha”.

Jongo em 1874

“O Jongo é dos africanos. É do meu avô…Meu avô era do cativeiro. Chamava


Antônio Munhambano, africano. Eu sou de Paraíba do Sul. Ele primeiro era do Dr.
Avellar. Ele era escravo do Dr. Avellar, num sabe? Ele era escravo do Visconde e do
Visconde ele foi para o Dr. Avellar. O Visconde era o pai do Dr. Avellar. Não sei
Visconde de quê. Só sei que é visconde, seu conde…naquele tempo, num é ? Foi lá em
Paraíba do Sul, na fazenda de Avellar, num sabe?
Meu avô era africano. Foi achado. A parte da África eu não lembro. Só sei que
ele era africano. Era ‘munhambano’. Era de Munhambá (sic) e quem trouxe ele pra
aqui foi o português, né? Foi quem trouxe ele. O meu avô.
Ele tinha raiva de português porque trouxeram ele pra aqui. Diz que abanavam
lenço encarnado e eles vinham chegando. Eles não sabiam naquele tempo quem eram
e aí, trouxeram ele….O Jongo representa pra mim a mesma coisa que é: Negócio da
gente africana. O Jongo era festa dos cativos. Era Caxambu, viola…Tinha viola. Meu pai
era tocador de viola. Antônio Bento da Silva. Tocava viola…e meu avô, tocava
urucungo.
Não…cantado mesmo em…O Jongo era a festa dos pretos. Se era dos preto
velho? Não. Era festa dos pretos. Pros brancos vê a gente dançar.
Era um terreiro grande, tocava o caxambu e os brancos vinham e a gente
cantava pra eles vê a gente cantar e dançar. Era só pra eles vê. Que a gente era
escravo, tava na fazenda. O que é que ia fazer? E se não dançasse, ó…!Era sábado e
domingo. As vezes fazia na festa de São João. Foi meu avô quem trouxe o Jongo da
África e botou na fazenda pra todo mundo.
Até hoje eu danço, canto o Jongo.Os instrumentos? O que eu sei era
caxambu…É aquele de bater: caxambu. A viola era de tocar e o pandeiro acompanhava
a viola e o meu avô tocava urucungo, sabe o que é não é ? Botava na barriga …O
senhor não sabe o que é urucungo?!
Pois então!? É igual a berimbau. Só que naquele tempo não era berimbau. Era
urucungo. Botava aqui, ó (mostra a barriga). Botava no umbigo a cuia e batia.
Eu achava o Jongo daquela época mais bonito. Agora eu faço o desse tempo
mesmo. Deixa eu lembrar…Um bom…Jongo dele mesmo, do meu avô. Quando ficou
forro e a gente cantava. ‘Carolina‘. Cantava assim:”(cantando)

(Áudio e partitura: Arquivo grupo Vissungo, RJ)

Oh, pra que pente carorina?


Num tem cabelo
Pra que pente Carorina?
Sem cabelo
Pra que pente Carorina?
Ê pra que pente Carorina?
Sem cabelo, pra que pente Carorina?
Ê pra que pente Carorina?
Não tem cabelo,
pra que pente Carorina?”

…”Mas era eles que cantavam e a gente respondia…Era língua africana sim,
uai?! Assim. A gente até caçoava deles (zombando): Canta assim, num é ? (enfática):
Era língua sim! (repete a letra do ponto de Jongo sem explicar)…essa era na língua
deles (canta mais) …mas a gente não respondia assim. Respondia depois.”
Jongo 100 anos depois
…”Hoje num tem mais nada. De primeiro, na casa dessa só tinha Jongo (se
referindo á Madureira) . Todos os sábados nós dançava mas…o pessoal morreu. Num
ficou ninguém. Cada casa tinha Jongo. Cada casa tinha Jongo. Era todo sábado.
Ah… Quem canta o Jongo sou eu…tem essa outra aqui mais…as outra
precisa…Pode aprender. Nós aprendemo, num é? Elas pode aprender, vê a gente
dançar, cantar e elas aprende também….Tem. Tem. Em Madureira tem muito. Tem
muito, oh!.. A Maria (se referindo á Maria Joana, mãe de Darcy do Império, já falecido
e hoje conhecido como Darcy do Jongo) quando deu o Caxambu teve gente lá assim, ó!
Na casa dela. Agora eu não. Se ocês for lá vê. Eu nunca mais dei. Eu não. Meu marido
morreu, eu fiquei eu com meus filhos, sabe. Graças a Deus.
Fiz Jongo! Óia…Ainda hoje eu soube que lá na minha terra tem Jongo quase
todo sábado. Diz que tem Jongo. Naquela casa que ocês….diz que eu vou lá. Ela disse
que qualquer tempo ela vai me levar lá. Diz que o Jongo, que o bagúio lá é assim! O
Caxambu lá é de arromba. (para Joana):..Ocê tem num vontade de pular no Caxambu
de lá não, Maria? O Caxambu lá é de fato.
E a gente sabe cantar aqui? Num sabe cantar. Num tem voz! Essa gente aqui
num tem voz pra cantar. Quem vai cantar o Caxambu sou eu…Aquela pequenazinha
hoje num sei se vem, é só. E lá não…todo mundo à cantar, todo mundo à dançar! Lá em
minha terra. Graças a Deus!
Óia…Todo mundo fala: A Sra., já tá com essa idade e ainda dança? Danço! Inda
pulo o meu Caxambu! Graças á Deus!”

Notas finais
(Trechos de pesquisa suplementar)

Maria Teresa teria nascido em 1859. Os fatos dos quais nos dá conta são de
quando ela estava com cerca de 15 anos (não exatamente um ano determinado, mas
uma faixa de tempo entre os 10 e os 17 anos, por exemplo) Logo, o Jongo que
descreve é, portanto, aquilo que sobre a manifestação poderia saber uma adolescente.
São preciosas no entanto as descrições sobre uso no Jongo da época, de instrumentos
como o Uruc-ungo (a raiz ‘Ungo” diz respeito a um arco musical tipicamente Bantu,
angolano mais precisamente) e a viola.
Em 1874, já com o processo de decadência das fazendas da região se aguçando,
sabe-se que foi hábito comum entre os ‘Barões do Café‘ demonstrar, ostensivamente,
os resquícios de fausto que lhes restavam, forçando seus escravos a se exibir para
visitas, vindas, não raro, da Corte.
Foram, certamente, a partir destas viagens, que danças como o Lundu, por
exemplo, migraram para a os salões da Corte. São importantíssimas as informações
que presta, no sentido de que seu avô, africano de nação ‘Munhambano‘, foi quem
trouxe a prática do Jongo para o local (não o seu avô, pessoalmente, é claro, podemos
deduzir, mas africanos bantu, trazidos para aquela região, de cultura similar a dele). O
fato curioso dela falar e insistir que seus avós eram mulatos de cabelo liso, pode ser,
definitivamente, explicado pelos dados a seguir, colhidos posteriormente quando
pesquisava para o livro “Do Samba ao Funk do Jorjão” no qual reproduzo a entrevista
de Teresa.
Inhambane de fato se refere a uma vasta região ao norte de Maputo, em
Moçambique, no litoral do país, habitada por um povo de fenótipo muito
característico, já que foi exposto, durante muito tempo, às influências gerais das
históricas relações entre Ásia e África, ocorridas na costa africana do Oceano Índico,
relações estas que produziram, entre outros efeitos, alguma mestiçagem de negros
com árabes (cujos interesses comerciais penetraram ali antes dos portugueses) e
indianos (que marcaram fortemente o perfil étnico da população do Madagascar, por
exemplo, ilha muito próxima à costa a Moçambique).
Num gráfico sobre a demografia escrava na região de Vassouras, RJ, está
demonstrada a existência na região da própria Vassouras e de Paraíba do Sul de
indivíduos da etnia Inhambane, associação evidente com o ‘Mu-nhambano‘ citado por
Maria Teresa, mais conhecidos na bibliografia, genericamente como “moçambiques”
Por esta hipótese quase cabal, os avós de Maria Teresa foram pegos no
território Inhambane e postos num navio que, atravessando o cabo da Boa Esperança,
deu no oceano Atlântico, seguindo para o Brasil, onde estas pessoas desembarcaram
no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, seguindo a pé, serra acima para as fazendas de
café do

Vale do Paraíba do Sul.

Sendo o umbundo e o kimbundo angolanos as línguas de uso predominante


entre os escravos da região na época, usava-se o prefixo (adjetivo coletivo) ‘Mu” antes
do local de origem das pessoas, para identificá-las mesmo que esta origem não fosse
Angola (‘Mu-Kongo‘: Congolês, ‘Mu-brasil’: brasileiro).
Por esta hipótese etimológica evidente, Mu-inhanbane (ou ‘munhanbano‘
como quase vernacularmente falava Teresa) eram pessoas oriundas do Inhambane,
Moçambique, região com alguma miscigenação entre africanos negros e asiáticos
oriundos em tempos mais remotos das ilhas do Oceano Índico e da costa do continente
asiático, razão também cabal do fenótipo do avô de Teresa ser ‘mulato de cabelo liso’.
Segundo o gráfico acima citado (de Flávio G. dos Santos), haviam apenas 8
indivíduos de origem Inhambane na região de Vassouras entre 1837 e 1840, seis deles
residindo em fazendas nas quais pode ser incluída a Santa Teresa, citada por Maria
Teresa. Alguns destes indivíduos são citados nos autos do processo de condenação de
Manoel Kongo à forca em 1839. A hipótese de, pelo menos, dois destes seis escravos
serem parentes (os dois seriam os próprios avós ‘Munhambanos‘ de Maria Teresa) é
de todo modo, impressionantemente plausível.
Precioso é, do mesmo modo, seu testemunho pessoal – e ocular- de que eram
comuns na região as torturas, as fugas e os ‘aquilombamentos‘. Os locais descritos por
ela, correspondem a onde está circunscrito hoje parte do Município de Avellar, vizinho
de Paraíba do Sul.
Na crônica da insurreição de escravos conhecida como ‘Quilombo do Manoel
Congo‘ (sobre o qual este autor escreveu o espetáculo o ‘Auto do Manoel Kongo’ que
pode ser lido neste link“), ocorrida em 1838 nesta região), tem papel importante nos
conflitos a fazenda de Santa Teresa, já pertencente naquela época a João Gomes
Ribeiro de Avellar, o Visconde do Paraíba (chamado de Visconde de Avellar por Maria
Teresa).
Não foi possível ainda identificar, exatamente o homem que Teresa descreve
como filho do visconde, o tal que era detestado pela entrevistada por ter batido na
cara de seu pai e que é chamado por ela de ‘Lulu’, apelido comum para “Luiz” ou
“Paulo” (“Pau…Lulu”).
Na crônica da rebelião de Manoel Kongo há um Paulo Ribeiro Gomes de Avellar
(que não era filho de João Gomes de Avellar, irmão, presumo) dono da Fazenda Pau
Grande, da família Avellar, citado no processo que condenou Manoel Congo à morte,
como dono do escravo descrito como sendo o próprio ‘Vice Rei‘ do quilombo, um tal
de Epifânio Moçambique, provavelmente um “munhambano“, morto na refrega. A
grande distancia no tempo entre os dois incidentes (mais de trinta anos) e a confusa
genealogia da família Avellar disponível deixa muitas dúvidas ainda sobre este aspecto.
Não tendo feito qualquer comentário sobre o retorno de seu pai, de sua mãe
ou dela mesma para a fazenda, depois da fuga narrada, fato que, por sua relevância
dramática, com certeza teria sido citado na entrevista, pode-se deduzir que Maria
Teresa (e toda a sua família), viveu na condição de quilombola a partir de 1874 em
diante.
A afirmação que faz de que ainda viu instrumentos de tortura na Corte, atesta o
fato surpreendente de que ela já estava residindo no Rio de Janeiro, na proclamação
da República, havendo ficado livre, portanto, cerca de 14 anos antes da Abolição. A
este respeito, o fato da família já estar estabelecida no Rio de Janeiro ao tempo de
Deodoro da Fonseca, corrobora em parte esta hipótese de sua chegada á corte antes
de 1888.

Nota final

Num ano destes aí – já na década de 2000- esta entrevista apareceu transcrita,


desautorizadamente, sem crédito algum à sua fonte que é o Grupo Vissungo (grupo
musical e de pesquisa o qual coirdeno, que teve a iniciativa de entrevistar Teresa em
1973 – com a participação dos entrevistadores citados, entre eles este que vos
escreve) num site do departamento de História de uma importante Universidade
Federal aqui do Rio de janeiro.
Advertidos os responsáveis por email, a transcrição foi deletada do site.
Informamos aos leitores por causa deste fortuito, antiético e algo recorrente incidente,
que a transcrição de documentos e fontes orais, do mesmo modo que qualquer
documento histórico, precisam ter os créditos dos autores devidamente informados,
como aliás adverte a licença Criative Commons que inserimos no topo desta matéria.
Esta eletrizante entrevista é um dos eixos temáticos principais do meu livro
(veja no link) ‘Do Samba ao Funk do Jorjão‘ que saiu em versões papel e e.book.
S P ÍRIT O S A N T O
(Atualizado em setembro 2014)
Disponível em https://spiritosanto.wordpress.com/2014/09/03/a-roca-de-
teresa-revisitada/
Acesso em 03-12-2020.

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