me lembro de tudo, nada falha em minha memória. Até os momentos em que não tinha muito, já era
mais do que eu poderia pedir.
— Que bom que você acordou, pai, preparei o café da manhã! — Terminava de colocar os pratos na mesa pequena no centro da sala, não havia muito mais do que alguns poucos pães, um pouco de geléia fresca e leite. Meu pai chegava do quarto com o olhar cansado, e ao mesmo tempo que feliz em me ver, não podia deixar de demonstrar a mesma preocupação de sempre. — Onde… Onde você conseguiu isso tudo? — Eu… Erh… Ganhei. — Puxei a cadeira para que ele se sentasse, acreditando que uma simples ação conseguisse fazê-lo se distrair do assunto. — Você… Roubou, de novo?! Venus, eu já te falei para não roubar, você sabe o quão perigoso é? E… — Eu não roubei! Eu ganhei. Você vive dizendo para eu tentar meios mais honestos, então eu cantei por alguns trocados. — Dei meia volta para que conseguisse me sentar na outra cadeira, embora meu sorriso tivesse sido substituído por uma cara emburrada. — Não dá para encontrar um bom emprego, se é isso o que você quer que eu faça. — Só… É mais seguro, eu me preocupo com você, ainda mais depois do que aconteceu com a sua mãe… A mamãe havia morrido há três anos, eu tinha treze na época. Nossa vida nunca foi muito boa, era frio nos subterrâneos, a comida era escassa, não se podia sobreviver sem arriscar tudo o que tinha. Meu pai conseguia uns bicos por aí, mesmo com problemas na coluna, dava duro para conseguir o mínimo necessário. Já minha mãe, Eleonor, era diferente. Acho que foi com ela que eu perdi o medo de conseguir o que precisava na marra, roubando, me unindo aos grupos que saíam para fazer o mesmo… Mas, um dia, ela não voltou mais. Nos deram notícias alguns dias depois, ela havia sido morta antes de conseguir chegar perto de casa. A notícia me abalou, e abalou ainda mais o meu pai. Eu sei que, agora, era eu a única pessoa que ele tinha. — Eu sei disso… — Soltei um longo suspiro, encarando-o com bem querer.
Éramos só meu pai e eu, agora. Menos boca para alimentar, mas não tornava o trabalho menos difícil. Sempre dizia ao meu pai que tentaria conseguir o dinheiro de forma segura, indo para tavernas ou lugares parecidos e conquistar algumas moedas ou comida em troca de um pouco de entretenimento. Não era de todo mal, eu amava cantar, outra similaridade que puxei de minha mãe. Meu pai queixava que era mais seguro se eu permanecesse por aqui, conseguindo esse dinheiro nos bares, mas não era um pouco mais perigoso? Nunca se sabe os homens que eu encontraria, e pode ter certeza de que já me livrei de muitas ameaças. De qualquer forma, a recompensa não chegava nem aos pés do que se poderia ganhar na superfície, e toda noite, logo após ele dormir, me juntava com um grupo pequeno na esperança de pegar comida. Eu era amiga desse grupo desde que eu era criança, não era a mais nova, mas também, não era a mais velha. Quem comandava a todos nós era o Cleve, um rapaz alto e um pouco musculoso pelo trabalho que tinha durante as manhãs, tinha seus dezenove anos. O mais novo era um garotinho magricela que deveria ter por volta de onze. Ao todo, éramos seis, sempre com planos mais absurdos que o outro, envolvendo distrações e, sempre, fuga por algo ter dado errado. — E o que vamos fazer hoje? — Perguntei, amarrando o cabelo de uma garota dois anos mais nova que eu, seus cabelos grandes sempre dificultava que corresse bem. — Fiquei sabendo de uma carroça que está indo para a cidade, podemos chegar na estrada e fazer uma emboscada. Ou… Uma encenação. — Cleve coçou o queixo, enquanto revia o que tinha na mochila. — Outra encenação? Sempre que você planeja esses teatrinhos a gente se fode muito feio. — O segundo mais velho, Barton, comentou, irritado. Ele vivia mexendo nos próprios chifres, eles cresciam muito para os lados. — Concordo, quase nos pegaram da última vez. — Concluí, traçando já com meus olhos o caminho que faríamos para o lado de fora das cavernas. — E como você sabe dessa carroça? Onde pegou essa informação? — … Tex… — O Tex?! Porra, cara, por que não nos joga logo em praça pública durante um Pogrom? Vai acabar com a nossa raça mais rápido. — Barton cobriu o rosto com as mãos. — É, tenho que concordar, a cada cinco informações que o Tex te dá, sete são furada. — Dessa vez é sério! Ele ficou sabendo disso por um colega dele que trabalha em um armazém. Se der certo, vamos ficar fartos por um tempo. Apesar de quase toda história poder ser mentirosa, não podíamos recusar a chance de conseguir mais comida. Naquela noite, eu pedi para que a garota e o garoto voltassem para casa. Estaríamos em menor número, mas a chance de duas crianças terem um destino terrível seria menor. Fizemos nossos preparativos, vestimos nossos capuzes e empunhamos nossas armas, todas em péssimo estado e parcialmente enferrujadas, mas poderia dar uma infecção caso cortássemos alguém. A noite naquele dia estava nublada, as nuvens densas não deixavam que parte da luz da lua iluminasse o caminho. Poderíamos apenas ver as luzes das tochas e lamparinas da cidade ao longe, bem ao fim da estrada. Tínhamos certa vantagem no escuro. A informação que tínhamos era que seria apenas uma carroça, talvez com duas ou três pessoas. Ninguém mais. O plano consistia em que eu ficasse parada na margem da estrada, usando o capuz para esconder meus chifres e facilitar a aproximação de quem conduzia e estava de carona. Poderiam parar para ajudar uma pobre moça, era sempre esse o plano. Assim, se distrairiam e permitiriam a emboscada. Já estava ali, impaciente, desejando que estivesse na minha cama em uma noite fria como aquela. Passei a ouvir o barulho dos cascos dos cavalos, dava para perceber que teria mais de um. Poderia ser uma carroça grande, não é? Não esperávamos, no entanto, que não seria uma simples carroça. O veículo, na verdade, era uma carruagem, acompanhada de mais quatro guardas em cavalos individuais. Olhei para o lado oposto de onde eu estava, vi apenas os meus três colegas fazendo sinais de que tinha dado merda e era melhor sair dali. Abaixei a cabeça e comecei e dei meia volta para conseguir me esconder entre a vegetação, mas foi lento minha reação para que saísse dali, e quando percebi, os cavalos já estavam do meu lado. — Ei, você! — Nesse momento, eu senti o meu corpo congelar. Tudo poderia dar errado para mim naquele momento. Poderiam me prender, poderiam me matar mesmo assim, e se vissem os meus chifres, seria pior ainda! Me virei lentamente na direção da carruagem, não era seguro correr, eles tinham cavalos! Assim que me virei e ergui minha cabeça na direção de quem havia falado comigo, percebi que não havia sido um dos guardas, mas a pessoa que estava dentro da carruagem. Era um homem de pele morena, olhos escuros, e eu prestei bastante atenção em seus olhos, pois eles encaravam os meus de volta. Senti meus dedos esquentarem por conta da força que apertava minha capa. — O que faz sozinha na estrada, é perigoso. Pode haver ladrões por aqui. — Sua voz era calma, e ele esboçava um sorriso tão gentil. — E-eu… — Limpei a garganta. — M-moro na cidade, e… Vim aqui pegar algumas ervas pro meu pai… S-sabe, as ervas só crescem aqui, e ele precisa muito. — Desviava bastante o olhar, torcendo para que ele tivesse acreditado. — Estou indo para a cidade. Deseja vir comigo para que não tenha que voltar sozinha? — N-n-não, eu estou bem, obrigada. Demorou um pouco para que eles prosseguissem com a viagem e me deixassem para trás. Assim que se afastaram, corri para perto do meu grupo e fiz questão de dar um tapão na nuca de Cleve por ter confiado no Tex mais uma vez. Quando cheguei em casa, de mãos vazias, tive sorte que meu pai ainda estava dormindo, me dando tempo o suficiente para acalmar minha cabeça. As outras vezes, quando quase fomos pegos, eram apenas comerciantes, donos de lojas, camponeses, nada parecido com algum nobre que visitava a cidade próxima. No dia seguinte, não tentamos algo tão complexo quanto um assalto na estrada, mas a boa e velha ladinagem entre as lojas nas regiões mais pobres da cidade. E apesar de tudo, não conseguia me esquecer daqueles olhos. Era uma garota, uma garota jovem e imatura, não era errado imaginar um romance onde nunca nada iria acontecer, como se fosse um conto de fadas inapropriado e impossível.
Mais alguns meses haviam se passado depois da confusão com a carroça que na verdade era uma carruagem, e apesar dos dias turbulentos com paixões irreais em minha cabeça, não tinha tempo para ficar com besteira morando em minha mente. Com a chegada do inverno, tudo ficou mais difícil. Cantar em tavernas, procurar qualquer outro emprego, ajudar meu pai que ficava pior nos tempos frios, e os próprios assaltos. Com a escassez de comida, não sobravam muitos lugares para se pegar comida além das regiões mais afortunadas, por consequência, mais reforçadas na guarda. Não tínhamos opção, claro, ou era correr aquele risco, ou era morrer de fome. Em ambas as situações, a morte poderia ser certa, mas era muito mais satisfatório morrer sabendo que teríamos lutado por nossa vida. Reunimos todos, exceto a garotinha de cabelos grandes, ela havia abandonado o grupo por motivos pessoais, ninguém a julgava. Não havia um plano certo, sabíamos que em uma das tavernas, o estoque ficava nos fundos, e era possível entrar sem chamar muita atenção. Eu, o garotinho, Barton e Cleve iríamos tomar conta de conseguir arrombar o cadeado e pegar a comida, o outro ficaria perto do beco, procurando nos avisar caso um guarda chegasse perto demais. Não parecia muito difícil. A taverna cheia por todo mundo que procurava uma boa bebida para se aquecer no tempo frio nos garantiria menos atenção ao que acontecia do lado de fora. E estranhamente, sabendo da facilidade, eu tinha um pressentimento muito ruim de que algo poderia acontecer. Assim que abrimos a porta e começamos a recolher a comida, ouvimos passos se aproximando, e não pertenciam a apenas uma pessoa. Me aproximei da porta, colocando apenas um pouco da cabeça para o lado de fora. Guardas vinham se aproximando, sorrisos desdenhosos e armas preparadas em mãos. Logo atrás deles, o rapaz que tinha que ter ficado de guarda, e ele carregava uma expressão cheia de culpa. Não era difícil saber o que tinha acontecido. Estávamos cercados, não conseguiríamos sair sem que nos pegassem. Olhei para todos ali, meus amigos de longa data, uma criança, todos ali tinham família, e não roubavam por maldade. Respirei fundo, havia algo que eu poderia tentar. Sem ao menos explicar o que faria, fui para o lado de fora do pequeno armazém, com as mãos para cima e usando meu corpo para fechar a porta. Olhei para cada um dos guardas. — Hm? O que temos aqui? Parece que a ratinha está encurralada, não é? — Um guarda disse, não conseguia decifrar aquele olhar. Eu tinha puxado algumas coisas de minha mãe. O desejo incontrolável por aventura, a sensação de paz quando cantava, senso de justiça, e habilidades que me ensinara. Comecei a cantar, torcendo para que conseguisse fazer o mesmo que ela. Os guardas pareciam confusos, e alguns começaram a rir, foi quando as risadas diminuíram de volume e, aos poucos, foram ficando sonolentos. Os sete guardas já não conseguiam mais ficar de pé, foram caindo ao chão lentamente. Abri a porta, ainda cantando, e fiz sinal para que eles corressem. Deu certo, ainda tinham um pouco de comida na mão. Os três foram correndo, e eu quis ter certeza de que ninguém ficaria para trás antes que eu fosse. O garotinho, estabanado, carregando mais do que conseguia e deixando cair aos montes, tropeçou em uma das maçãs que escorregou de seus braços, caindo por cima de dois guardas que ao mesmo tempo abriram os olhos. Fui rápida, corri para ajudá-lo a se levantar e empurrá-lo para que corresse dali. Daquela fuga, eu fiquei para trás. Assim que ele correu, um desses guardas havia segurado minha perna, e era bem mais forte do que eu. Meus colegas me esperavam, não poderiam voltar, era arriscado. Parei de cantar e olhei para eles com um sorriso, que eles poderiam ir sem mim.
Poderia dizer que tive sorte, não conhecia muito do mundo do lado de fora da segurança dos buracos escuros. Não havia sido morta, não estava presa em gaiolas o tempo todo, isso era relativamente uma notícia boa, não é? Ser vendida como uma escrava ainda me garantiria que eu poderia continuar viva, e talvez, ter uma oportunidade de fuga. Estava acostumada a viver entre meus iguais, sabia de toda a discriminação contra os tiefling só de me basear onde que eu vivi por toda a minha vida, mas não sabia que poderia ser tão pior. Me olhavam com nojo, ou me tratavam como se não fosse nada, quando os olhos não eram de repulsa, eram de desejo, pessoas depravadas. Sempre nas horas dos leilões, precisava ficar parada em um palco com correntes em minhas mãos, usando trapos como roupas, e torcendo para que nenhum esquisito resolvesse me comprar. Quando não desejava minha liberdade, pensava em meu pai. Não pude ao menos me despedir, será que estaria preocupado? Quem tomaria conta dele se eu não estivesse por lá? Na minha vez, fui empurrada para a frente do palco. Não costumava olhar para as pessoas, não queria ideia com quem comprava gente para serem seus escravos. Por curiosidade, no entanto, resolvi dar uma oportunidade aquela sensação. E ali, no meio da multidão, eu consegui reconhecer os mesmos olhos que por um tempo deixaram-me inquieta durante as noites de inverno. Naquela noite, não havia como ter visto meus chifres, eram menos e conseguiam ser facilmente escondidos por um capuz. Ali, eu precisava ser exposta, será que me reconheceria? E a resposta foi sim, não apenas me reconheceu como havia me comprado. Deveria sentir alívio? Apesar de tudo, era um estranho comprando um escravo, não sabia o que sentir. Fui entregue a ele ainda em correntes, liberada apenas quando colocada em sua carruagem. Quando nossos olhares se cruzaram mais uma vez, vislumbrei seu sorriso gentil, e depois de tantos dias, tão longe de casa, eu consegui sorrir também. Era uma longa viagem até Ard Carraigh, mas nos deu tempo para que nos conhecêssemos. Me disse seu nome, assim como eu lhe disse o meu. Contei o verdadeiro motivo da minha presença naquela estrada durante a noite, e apesar de as intenções não terem sido boas, ele riu, e me arrancou risadas também. Apesar de tudo, disse que eu precisaria trabalhar para ele, não seria fácil me deixar voltar para casa, pois imagina o que poderia acontecer se me encontrassem de novo? Não seria algo “piedoso” como a era a escravidão, a gentileza de nos deixar viver apenas para arrancar nossa vitalidade a cada dia. Apesar de tudo, não passaria de uma empregada, poderia viver assim por um tempo, não é? Sua mansão era enorme, acredito que um cômodo comum como uma sala já poderia ser maior do que minha casa inteira. Me afastaram dele para que pudesse conhecer onde dormiria e o que precisaria fazer com o meu novo cargo. Limparia, cozinharia, e o que mais me pedissem. Analisei as entradas e saídas, uma casa de um nobre deveria ser tão difícil de sair quanto de entrar. Por um tempo, precisaria manter minhas aparências, e de qualquer forma, ele havia salvo minha vida. Não se dá para saber quem pagaria por você, e até agora, a única má notícia é que não teria escolha a não ser aceitar aquela vida, por enquanto. Não havia muito mistério, e não era o trabalho mais difícil do mundo, talvez, solitário. As outras empregadas eram humanas, igualmente aos homens, não deveria haver o costume de aceitarem na mão de obra um ser como eu. Os olhares permaneciam, deveria ter a mesma superstição de um gato preto. Os únicos olhos que não me desmereciam eram os de Reiner. Quando estava limpando seu escritório, conversava comigo, se divertia em ouvir minhas histórias, deveriam ter mais aventuras que sua vida cotidiana de pura política. E quando estávamos sozinhos, ele aproveitava para tirar do peito o que não podia dizer para outras pessoas, como se confiasse em mim. A cada dia que passava, essa confiança ia aumentando. Passava a me chamar mais para certos trabalhos, mesmo que fosse apenas para ter-me como companhia. Fora a possível curiosidade das empregadas, o que poderia ser um pouco perigoso era sua mulher, Evelyn. Uma nobre de outro reino, e eu estava ciente de que isso acontecia, casamentos puramente políticos com a intenção de fortalecer as famílias. Era uma das coisas que Reiner se queixava para mim, e apenas para mim. Para ele, eu parecia ser a confidente perfeita, uma amiga para quem poderia confiar suas aflições, e gradualmente, me fazia cair em seus gestos gentis e lábia suave. Uma moça jovem, imatura, e um príncipe que a resgatou do fim do mundo, era o mais comum clichê. Os encontros se tornavam cada vez mais secretos. Não ia mais ao seu escritório apenas para tirar o pó das estantes ou organizar seus documentos, mas para lhe dar a satisfação que um casamento arranjado não lhe trazia. Eu estava apaixonada, e acreditava que o sentimento era mútuo, porque naquele momento, era. Pelas noites, nos encontrávamos às escondidas nos jardins. Lembro-me do meu primeiro beijo, lembro-me da minha primeira vez. Reiner havia descoberto também como encontrava a minha paz, sempre que fazia alguma tarefa, eu cantava, e ele se encantou. Quando não nos encontrávamos em momentos mais íntimos, ele estava com sua cabeça em meu colo, adormecendo enquanto cantava para ele. Era romântico, não era? Um amor proibido, escondido debaixo dos tapetes como o pó. Em todos os nossos encontros, me dizia que seu desejo era poder dizer não a tudo que era forçado para ficar comigo, para me ter ao seu lado por toda a eternidade. Eu acreditava em cada palavra, e entendia, não poderia ficar comigo porque não tinha títulos, não tinha terras, não tinha dinheiro. O que era eu se não sua empregada? Soube que era especial para ele quando, em uma festa organizada para outros nobres, Reiner havia me pedido para cantar. Cantava em tavernas, bares, uma vez em um bordel, mas nunca em um lugar como aquele. Me vestiram como se fosse alguém importante, e apesar dos muitos olhares interessados, ali, o que mais me importava, era o olhar de Reiner. Infelizmente, nunca se dura o que é bom. As paredes têm ouvidos, e nossas histórias circulavam por sua mansão. Entre as empregadas, eu era uma sedutora, uma succubus, trazida para causar discórdia, por isso, me repudiavam. Para os guardas, eu era fácil, uma vadia, poderiam se aproveitar, por isso, tentavam se aproveitar. Mas quando as histórias chegam aos ouvidos de pessoas que não deveriam, eu era a maior vilã que existiria. Para Evelyn, em um ano, eu era a pessoa que arruinaria seu casamento. Não fiquei sabendo de quão longe as fofocas chegaram, tudo o que sabia é que certas pessoas desconfiavam, mas a desconfiança não chegaria a lugar nenhum. Certa noite, deixando o escritório de Reiner como se ali não tivesse ninguém, traçava meu caminho de volta para meus aposentos. Arrumava meus cabelos bagunçados e arrumava as alças soltas de meu vestido, quando o mundo se desfez em sombras. Acordei, mais tarde, com uma dor de cabeça infeliz. Estava em uma sala pequena, paredes de pedras úmidas e sem janelas trazendo a luz da lua para dentro. Não que a escuridão fosse um problema. Olhei para um lado e olhei para o outro, tentei me recordar de um lugar que nunca vi. Na minha frente, uma figura começou a entrar em foco. Vestido longo, seda cara, mas negra como uma noite sem estrelas. Ao erguer minha cabeça, vi o rosto enojado de Evelyn, me encarando como se fosse uma barata. Tentei me mexer, mas estava presa à parede com correntes grossas. — Não vai conseguir sair daí, querida. O que foi? Não está confortável? — Sua voz tinha um tom desprezível. — O que você quer comigo? — Me fingi de sonsa, claro. Não sabia o que ela sabia, não iria confirmar algo até saber até onde escutou sobre o que acontecia entre quatro paredes e uma porta trancada. — Não se faça de desentendida, Venus. Já sei do seu caso com meu marido. Afinal, o que esperava que iria acontecer, huh? — Ela se abaixou em minha frente, segurando meu queixo com seus dedos para erguer meu rosto em sua direção. — Achou mesmo que iria acabar com meu casamento? Uma ninguém como você? Uma escória da sociedade? O que queria com meu marido, afinal? Suspeitava que tinha algo de errado com você no momento em que seus pés imundos pisaram em minha casa. — Evelyn, a culpa não é minha se Reiner me prefere a ti. — Abri um sorriso, esboçando os caninos suavemente pontudos. — Acha que eu o seduzi? Não acha melhor rever o que há de errado com você antes de tudo? É, eu sabia que minhas palavras tinham um peso maior do que eu poderia carregar. Um tapa na minha cara não era tudo o que ela poderia fazer comigo. — Você me enoja. — Ela se ergueu, limpando a mão que havia usado para me golpear a bochecha no próprio vestido. — Mas não se preocupe, tomarei as precauções para que não só não chegue perto de Reiner de novo, como não tenha mais tantos encantos para cima dele. — Oh, então concorda que sou encantadora? — Precisava aprender a hora de ficar calada. Com um estalar de dedos, uma figura que esteve esse momento todo atrás de mim conseguiu chamar minha atenção. Uma mão grande, áspera, tocou meu pescoço e escorreu até que estivesse com minha cabeça encarando o teto e o pescoço erguido. Senti um arrepio com o toque de uma lâmina contra minha pele, já sendo pressionada a ponto de doer. Procurei encarar Evelyn, ela planejava me matar? — Veremos o que mais conseguirá dizer. — Evelyn fez um gesto positivo para quem quer que estivesse atrás de mim antes de se retirar da sala. Foi muito rápido o que aconteceu, senti perfeitamente minha garganta sendo rasgada de uma vez, senti o sangue jorrar para fora de meu corpo, senti a impossibilidade de gritar de dor, de gritar por ajuda, de gritar por Reiner. Seria aquela a minha morte? Uma morte desesperadora em que nem poderia tentar reter o sangue que me escapava? Não poderia pedir aos deuses para que me dessem uma outra chance? A dor era absurda, insuportável. Não consegui ficar acordada por muito mais tempo. Quando acordei, tremia de frio, suava de calor. Procurava um alívio, mas não tinha para onde ir. O mundo se locomovia, estava novamente presa, engaiolada. Estaria no inferno? A sensação era a mesma. Toquei minha garganta, e me arrependi na hora. Doía tanto, como se tocasse com sal uma ferida recém aberta. Olhei para frente, parecia estar em uma carroça. Abri a boca para tentar perguntar ao carroceiro para onde estávamos indo, mas nenhuma palavra saiu de meus lábios. Balancei a cabeça, poderia ser do machucado, e assim que melhorasse, eu poderia perguntar. Acabei adormecendo mais uma vez, a única forma de aguentar a dor infernal que sentia, era estando inconsciente. Acordei mais uma vez acorrentada, presa, eu conhecia como funcionava esse lugar, conhecia o motivo de cada uma daquelas criaturas diferentes dos humanos estarem ali, igualmente a mim. Escravos, mercadoria, por quanto dinheiro sua vida valia nas mãos daquelas pessoas. Ao meu lado, estava sentado um cara, ele tinha algumas escamas no corpo, me olhava com a mesma compaixão de todos que estavam ali. — Você está bem? Parece… Muito ferida… — Não havia motivo nenhum para que ele se preocupasse comigo, éramos desconhecidos, prestes a sermos separados dependendo de quem estivesse em nos comprar. Mas, na mistura de sensações dolorosas que eu sentia, o frio, o calor, a queimação na garganta, a fraqueza, um pouco de gentileza me fazia bem. Abri um sorriso pequeno para ele, iria lhe responder, mas de mim, nenhum som saía. Meu sorriso sumiu, minha expressão ficou desolada. — Você… Não sabe falar? Encarei-o com certo desespero. Eu sabia falar, mas eu não conseguia. Tentei mais uma vez, e outra, e todas as tentativas eram em vão. Desviei o olhar, não sabia se conseguiria continuar me forçando a soltar um som de minha garganta já tendo a total certeza de que isso não aconteceria. Fui a última das últimas a ser levada para o palco, vi cada uma das criaturas ali serem levadas e não voltarem mais. Nesse momento, para mim, tudo o que me restava era a dúvida. O que Evelyn fez comigo?
A primeira vez que me levaram ao leilão, eu desejei tanto para que nada de ruim acontecesse. Daquela vez, absorta na própria confusão, não repeti as preces. Colocaram em meu pescoço uma fita negra, não queriam que uma cicatriz tão feia como aquela ficasse exposta, diminuiria o valor. Meu pescoço doía, mal tinha forças para ficar em pé. Não encarei a multidão, porque eu sabia muito bem que não encontraria os olhos de Reiner para me salvar. Ouvi os lances, um ali, dois ali, e mais tantos outros. Desci pelas escadas, puxada pela corrente até meu novo dono. Era um homem estranho, acima do peso, usava um terno marrom. Seu sorriso não era nada gentil. Eu me lembro de tudo, nada falha na minha memória. Mas aqueles meses que passei sendo a escrava desse senhor, eu queria tanto conseguir tirar da minha cabeça. Não podia pedir para que parasse, não podia gritar por ajuda, não podia cantar para buscar minha paz. Era uma solidão silenciosa, uma tortura onde a única voz que escutava era de meus gemidos e de meus choros. Havia perdido a conta do tempo, os minutos pareciam horas, e as horas pareciam dias. Pensava em meu pai, pensava em Reiner, pensava também no draconata gentil que havia falado comigo. Mas, um dia se tornou diferente. Ele teria uma visita, mas eu não seria convidada a cantar para ela. Ele já tinha recebido outros amigos, eu me lembrava não de seus nomes, mas de seus olhares, de seus toques. Seria outro assim? Eu esperava em um quarto, encarava minha imagem em um espelho. Não parecia eu, e era algo tão triste de se perceber. Ao ouvir a porta se abrindo, me apressei para colocar a fita negra em meu pescoço. Me virei na direção de quem poderia ser e… Seus olhos iluminaram o meu dia. Reiner estava ali, perante a mim. Eu me levantei, incrédula. Foi ver o seu sorriso que eu percebi que era mesmo ele. Corri para o seu abraço, e apesar de demorar um pouco, ele me abraçou de volta. Havia vindo me buscar, foi o que disse. Pagou uma boa quantia para o homem do terno marrom antes de me levar embora. Não sabia quanto dinheiro tinha sido gasto, sabia o que eu significava ali, mas nada me importava mais. Em sua carruagem, me contou que pressionou Evelyn a dizer o que tinha feito, mas demorou muito para que ela abrisse a boca. Contou que tudo havia sido planejado, e que já tinha se decidido que fugiria comigo. Depois de muito tempo falando, perguntou como eu estava. Ainda sorrindo, apontei para minha garganta e fiz um não com a cabeça. Ele não entendeu, e quando tentei lhe responder, sua expressão mudou um pouco. Não podia mais contar minhas histórias, não poderia mais cantar para ele quando quisesse, mas estava tudo bem, não é? Sua preocupação por minha falta de voz era compreensível, mas não teria problema. Não fomos para Ard Carraigh, mas para um lugar sem nome. Havia, no meio de um campo, uma cabana. Era pequena, suja, esburacada. Ali, ele me deixou e pediu para que eu esperasse. Ele precisava retornar à mansão para buscar um pouco de dinheiro, talvez algumas roupas, mas que ele voltaria. Fiz um gesto positivo com a cabeça, e ali, eu esperei. Um dia talvez fosse o necessário, mas demorou mais do que isso. Pude descongelar um pouco da neve que caía das nuvens para ter água, procurar o que tinha naquela cabana para comer, aguentar o frio, mas Reinei nunca chegava. Depois de mais três dias, me perguntava o que teria acontecido. Com a capa que tinha e a determinação de colocar um final feliz na minha história, caminhei durante dia e noite até a mansão de Reiner, não me importando com todos os limites que meu corpo estava ultrapassando. Ao chegar, encontrei uma forma de me esgueirar para dentro dos muros, para perto da janela de seu escritório, não seria bem vinda naquele lugar. Para o segundo andar eu escalei, precisava ver se ele estaria ali, talvez preenchendo rios de documentos antes de partir para me encontrar. Talvez precisou enrolar Evelyn para que conseguisse sair depois. Tantos motivos para me ajudar a aceitar sua demora, nada me preparou para encontrar outra mulher em seu colo, outra empregada. Tinha cabelos loiros, sardas nas bochechas, pele rosada. Era humana, como ele, mas não era isso que me importava. Por mais alguns segundos, eu fiquei ali, me punindo a observar aquilo enquanto sentia meu coração se partindo em pedaços. Por quanto tempo isso acontecia? Desci da janela e pulei de volta o muro para o lado de fora. No meio da rua, escondida por minha capa fina, me sentei no chão. Me encolhi, mas não para me proteger do frio, foi em tentativa de impedir que os pedaços do meu coração caíssem para fora de meu peito. Foi doloroso. Não era única para ele? O amor que ele não conseguiria ter em um casamento arranjado? Será que foi por isso que ele se preocupou tanto por minha falta de voz? Sem canto, não tinha como se beneficiar comigo? Nada me sobrava nesse reino, nada me sobrava ali, nem mesmo eu estava aqui para me fazer companhia. Juntei as poucas peças de dignidade que tinha e parti para casa. Encontrei caronas em carroças, poderia pagar de outra forma, tudo o que eu queria era meu pai de volta.
Perante minha casa, abandonada, aos pedaços, eu fiquei parada, em pé. Me recusava a entrar ali e não encontrar mais nada, embora estivesse mais que certa de que era justamente isso que me aguardava. A porta rangia, nem conseguia se sustentar mais com o próprio peso. O cheiro de mofo era irritante, tudo estava tão sujo… Fui caminhando pelos poucos e apertados cômodos até chegar no quarto de meu pai. Ele já não estava mais ali, não havia um sinal dele. Sei que não poderia ter ido embora, sei o que lhe aconteceu, mas não queria aceitar. Fui até meu quarto, a cama estava preparada para quando eu voltasse. Os lençóis devorados por traças, o travesseiro sujo pelo tempo. Caminhei na direção da cama, tropeçando em uma tábua solta. Olhei para baixo, parecia ter sido movida. Me abaixei, tirando-a do lugar para ver o que tinha. Escondido no chão, encontrei um baú pequeno. Nele, encontrei alguns pequenos tesouros. Encontrei meu primeiro dente de leite, encontrei as economias que meu pai se esforçou tanto para juntar, encontrei minha primeira boneca de pano e encontrei cartas, muitas cartas. Abri e li cada uma delas. Uma carta escrita para cada dia que meu pai sentiu minha falta, cartas que escreveu esperando que um dia eu fosse encontrá-las. Apesar da visão turva das lágrimas que tinha em meus olhos, eu não conseguia parar de ler. “Onde quer que você esteja, Venus, o papai te ama e vai fazer o possível para que você fique bem. Por favor, volte logo para mim…” Abri um sorriso, entre soluços. Eu pensava para mim mesma, “mentiroso…”. Abracei as cartas, no meu silêncio, na minha paz. Era aquilo que havia sobrado de mim, sobrado de um clichê de contos de fadas onde uma pobre garota é resgatada por um príncipe encantado. Meu luto se estendeu por alguns dias. Eu me perguntava porque era tão estúpida, me perguntava como poderia ter deixado meu pai para trás por conta de alguma paixão que não deu e nunca daria certo. Me culpei por cada dia que estive naquela casa, deitada no chão de meu quarto, relendo as cartas várias e várias vezes. É difícil se recompor de um baque daqueles, quando todas as suas decisões te atingem com força e sem piedade. Me afundava em meu próprio fracasso. Sentia frio, fome, e uma dor que conseguia se tornar mais sufocante que ter a própria garganta cortada. Me custou ter forças para ficar de pé, e só tomei a coragem de decidir não morrer quando me lembrei de meu pai mais uma vez. Depois da morte da minha mãe, ele não parou, e ela não teria parado também. A única forma que eu tinha para lutar contra tudo e todos, era mostrar o quanto eu queria viver. Apesar de tudo o que me aconteceu, eu estava viva, e não poderia deixar que o único poder que me restava se esvaísse de vez. Fiquei ali por mais algumas semanas, não me colocando em uma bolha negra que reafirmava a pessoa horrível que era, mas reformando a minha casa. Limpei toda a sujeira, consertei chão, portas, janelas e telhado. Fiz questão de que a última coisa que era de meu passado não ficasse parada no tempo, não ficasse esquecida como eu havia ficado. No último dia, antes de ir embora das cavernas escuras, antes de deixar minha casa para trás, eu cantei. Minha voz não saía, mas eu cantei em meu coração, usei a dança como notas, lembrei de quando meu pai deixava eu pisar em seu pés para que conseguisse me conduzir em dança. E no grand finale, em cima da mesa onde comíamos todas as refeições juntos, coloquei um vaso no centro, com uma única flor, uma iris branca. Esse era meu adeus.
De taberna em taberna, salões de nobres ou na rua, eu me apresentava do meu jeito. Não cantava, mas atuava, dançava. Minha paz estava na emoção de tudo o que eu senti e sentirei. Eu não tenho um objetivo, não busco recuperar minha voz, não busco me vingar de Evelyn ou de Reiner, o que me mantém de pé é o meu desejo de continuar vivendo esse caótico e belo espetáculo que é a vida.