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Eu 

me  lembro  de  tudo,  nada falha em minha memória. Até os momentos em que não tinha muito, já era 


mais do que eu poderia pedir.  
 
—  Que  bom  que  você acordou, pai, preparei o café da manhã! — Terminava de colocar os pratos na mesa 
pequena  no  centro  da  sala,  não  havia  muito  mais  do  que  alguns  poucos  pães,  um  pouco  de  geléia  fresca  e  leite. 
Meu  pai  chegava  do  quarto  com  o  olhar  cansado,  e  ao  mesmo  tempo  que  feliz  em  me  ver,  não  podia  deixar  de 
demonstrar a mesma preocupação de sempre. 
— Onde… Onde você conseguiu isso tudo?  
—  Eu…  Erh…  Ganhei.  —  Puxei  a  cadeira  para  que  ele  se  sentasse,  acreditando  que  uma  simples  ação 
conseguisse fazê-lo se distrair do assunto.  
— Você… Roubou, de novo?! Venus, eu já te falei para não roubar, você sabe o quão perigoso é? E… 
—  Eu  não  roubei!  Eu  ganhei.  Você  vive  dizendo  para  eu  tentar meios mais honestos, então eu cantei por 
alguns  trocados.  —  Dei  meia  volta  para  que  conseguisse  me  sentar  na  outra cadeira, embora meu sorriso tivesse 
sido  substituído  por  uma  cara  emburrada.  —  Não  dá  para  encontrar  um  bom emprego, se é isso o que você quer 
que eu faça. 
— Só… É mais seguro, eu me preocupo com você, ainda mais depois do que aconteceu com a sua mãe… 
A  mamãe  havia  morrido  há  três  anos,  eu  tinha  treze  na  época.  Nossa  vida  nunca  foi  muito  boa,  era  frio 
nos  subterrâneos,  a  comida  era escassa, não se podia sobreviver sem arriscar tudo o que tinha. Meu pai conseguia 
uns  bicos por aí, mesmo com problemas na coluna, dava duro para conseguir o mínimo necessário. Já minha mãe, 
Eleonor,  era  diferente.  Acho  que  foi  com  ela  que  eu  perdi  o  medo  de  conseguir  o  que  precisava  na  marra, 
roubando,  me  unindo  aos  grupos  que  saíam  para  fazer  o  mesmo…  Mas,  um  dia,  ela  não  voltou  mais.  Nos  deram 
notícias  alguns  dias  depois,  ela  havia  sido  morta  antes  de  conseguir  chegar  perto  de  casa.  A  notícia  me abalou, e 
abalou ainda mais o meu pai. Eu sei que, agora, era eu a única pessoa que ele tinha. 
— Eu sei disso… — Soltei um longo suspiro, encarando-o com bem querer.  
 
Éramos  só  meu  pai  e  eu,  agora.  Menos  boca  para  alimentar,  mas  não  tornava  o  trabalho  menos  difícil. 
Sempre  dizia  ao  meu  pai  que  tentaria  conseguir  o  dinheiro  de  forma  segura,  indo  para  tavernas  ou  lugares 
parecidos  e  conquistar  algumas  moedas  ou  comida  em  troca  de  um  pouco  de  entretenimento.  Não  era  de  todo 
mal,  eu  amava  cantar,  outra  similaridade  que  puxei  de  minha  mãe.  Meu  pai  queixava  que  era  mais  seguro  se  eu 
permanecesse  por  aqui,  conseguindo  esse  dinheiro  nos  bares,  mas  não  era  um  pouco  mais  perigoso?  Nunca  se 
sabe  os  homens que eu encontraria, e pode ter certeza de que já me livrei de muitas ameaças. De qualquer forma, 
a  recompensa  não  chegava  nem  aos  pés  do  que  se  poderia  ganhar  na  superfície,  e  toda  noite,  logo  após  ele 
dormir, me juntava com um grupo pequeno na esperança de pegar comida. 
Eu  era  amiga  desse  grupo  desde  que  eu  era  criança,  não  era  a  mais  nova,  mas também, não era a mais 
velha.  Quem  comandava  a  todos  nós  era  o  Cleve,  um  rapaz  alto  e  um  pouco  musculoso  pelo  trabalho  que  tinha 
durante  as  manhãs,  tinha  seus  dezenove  anos.  O  mais  novo era um garotinho magricela que deveria ter por volta 
de  onze.  Ao  todo,  éramos  seis,  sempre  com  planos  mais  absurdos  que  o  outro, envolvendo distrações e, sempre, 
fuga por algo ter dado errado.  
—  E  o  que  vamos  fazer  hoje?  —  Perguntei,  amarrando  o  cabelo  de  uma garota dois anos mais nova que 
eu, seus cabelos grandes sempre dificultava que corresse bem.  
—  Fiquei  sabendo  de  uma  carroça  que  está  indo  para  a  cidade, podemos chegar na estrada e fazer uma 
emboscada. Ou… Uma encenação. — Cleve coçou o queixo, enquanto revia o que tinha na mochila.  
—  Outra  encenação?  Sempre  que  você  planeja esses teatrinhos a gente se fode muito feio. — O segundo 
mais velho, Barton, comentou, irritado. Ele vivia mexendo nos próprios chifres, eles cresciam muito para os lados.  
—  Concordo,  quase  nos  pegaram  da  última  vez.  —  Concluí,  traçando  já  com  meus  olhos  o caminho que 
faríamos para o lado de fora das cavernas. — E como você sabe dessa carroça? Onde pegou essa informação?  
— … Tex…  
—  O Tex?! Porra, cara, por que não nos joga logo em praça pública durante um Pogrom? Vai acabar com a 
nossa raça mais rápido. — Barton cobriu o rosto com as mãos. 
— É, tenho que concordar, a cada cinco informações que o Tex te dá, sete são furada. 
—  Dessa  vez  é  sério!  Ele  ficou  sabendo  disso  por  um  colega  dele  que  trabalha  em um armazém. Se der 
certo, vamos ficar fartos por um tempo.  
Apesar  de  quase  toda  história  poder  ser  mentirosa,  não  podíamos  recusar  a  chance  de  conseguir  mais 
comida.  Naquela  noite,  eu  pedi  para  que  a  garota  e  o garoto voltassem para casa. Estaríamos em menor número, 
mas  a  chance  de  duas  crianças  terem  um  destino  terrível  seria  menor.  Fizemos  nossos  preparativos,  vestimos 
nossos  capuzes  e  empunhamos  nossas  armas,  todas  em  péssimo  estado  e  parcialmente  enferrujadas,  mas 
poderia dar uma infecção caso cortássemos alguém.  
A  noite  naquele  dia  estava  nublada,  as nuvens densas não deixavam que parte da luz da lua iluminasse o 
caminho.  Poderíamos  apenas  ver  as  luzes  das  tochas  e  lamparinas  da  cidade  ao  longe,  bem  ao  fim  da  estrada. 
Tínhamos  certa  vantagem  no  escuro.  A  informação  que  tínhamos  era  que  seria  apenas  uma  carroça, talvez com 
duas  ou  três  pessoas.  Ninguém mais. O plano consistia em que eu ficasse parada na margem da estrada, usando o 
capuz  para esconder meus chifres e facilitar a aproximação de quem conduzia e estava de carona. Poderiam parar 
para  ajudar  uma  pobre  moça,  era  sempre  esse  o  plano.  Assim,  se  distrairiam  e  permitiriam  a  emboscada.  Já 
estava  ali,  impaciente,  desejando  que  estivesse  na  minha  cama  em  uma  noite  fria  como  aquela.  Passei  a  ouvir  o 
barulho  dos  cascos  dos cavalos, dava para perceber que teria mais de um. Poderia ser uma carroça grande, não é? 
Não esperávamos, no entanto, que não seria uma simples carroça. 
O  veículo,  na verdade, era uma carruagem, acompanhada de mais quatro guardas em cavalos individuais. 
Olhei  para  o  lado  oposto  de  onde  eu  estava,  vi  apenas  os  meus  três  colegas  fazendo  sinais  de  que  tinha  dado 
merda  e  era  melhor  sair  dali.  Abaixei  a  cabeça  e  comecei  e  dei  meia  volta  para  conseguir  me  esconder  entre  a 
vegetação, mas foi lento minha reação para que saísse dali, e quando percebi, os cavalos já estavam do meu lado.  
—  Ei,  você!  —  Nesse  momento,  eu  senti  o  meu  corpo  congelar.  Tudo  poderia  dar  errado  para  mim 
naquele  momento.  Poderiam  me  prender,  poderiam  me  matar  mesmo  assim,  e  se  vissem os meus chifres, seria 
pior ainda! Me virei lentamente na direção da carruagem, não era seguro correr, eles tinham cavalos! 
Assim  que  me  virei e ergui minha cabeça na direção de quem havia falado comigo, percebi que não havia 
sido  um  dos  guardas,  mas  a  pessoa  que  estava  dentro  da  carruagem.  Era  um  homem  de  pele  morena,  olhos 
escuros,  e  eu  prestei  bastante  atenção  em  seus  olhos,  pois  eles  encaravam  os  meus  de  volta.  Senti  meus  dedos 
esquentarem por conta da força que apertava minha capa.  
—  O  que  faz  sozinha  na  estrada,  é  perigoso.  Pode  haver  ladrões  por  aqui.  —  Sua  voz  era  calma,  e  ele 
esboçava um sorriso tão gentil.  
—  E-eu…  —  Limpei  a  garganta.  —  M-moro  na  cidade,  e…  Vim  aqui  pegar  algumas  ervas  pro  meu  pai… 
S-sabe,  as  ervas  só  crescem  aqui,  e  ele  precisa  muito.  — Desviava bastante o olhar, torcendo para que ele tivesse 
acreditado.  
— Estou indo para a cidade. Deseja vir comigo para que não tenha que voltar sozinha?  
— N-n-não, eu estou bem, obrigada.  
Demorou  um  pouco  para  que eles prosseguissem com a viagem e me deixassem para trás. Assim que se 
afastaram,  corri  para  perto  do  meu  grupo e fiz questão de dar um tapão na nuca de Cleve por ter confiado no Tex 
mais uma vez. 
Quando  cheguei  em  casa,  de  mãos  vazias,  tive  sorte  que  meu  pai  ainda  estava  dormindo,  me  dando 
tempo  o  suficiente  para  acalmar  minha  cabeça.  As  outras  vezes,  quando  quase  fomos  pegos,  eram  apenas 
comerciantes,  donos  de  lojas,  camponeses,  nada  parecido  com algum nobre que visitava a cidade próxima. No dia 
seguinte,  não  tentamos  algo  tão  complexo  quanto  um  assalto  na  estrada,  mas  a  boa  e  velha  ladinagem  entre as 
lojas  nas  regiões  mais  pobres  da  cidade.  E  apesar  de  tudo,  não  conseguia  me  esquecer  daqueles  olhos.  Era uma 
garota,  uma  garota  jovem  e  imatura,  não  era errado imaginar um romance onde nunca nada iria acontecer, como 
se fosse um conto de fadas inapropriado e impossível. 
 
Mais  alguns  meses  haviam  se  passado  depois  da  confusão  com  a  carroça  que  na  verdade  era  uma 
carruagem,  e  apesar  dos  dias  turbulentos  com  paixões  irreais  em  minha  cabeça,  não  tinha tempo para ficar com 
besteira  morando  em  minha  mente.  Com  a  chegada  do  inverno,  tudo  ficou  mais  difícil.  Cantar  em  tavernas, 
procurar  qualquer  outro  emprego,  ajudar  meu  pai  que  ficava  pior  nos tempos frios, e os próprios assaltos. Com a 
escassez  de  comida,  não  sobravam  muitos  lugares  para  se  pegar  comida  além das regiões mais afortunadas, por 
consequência,  mais  reforçadas  na guarda. Não tínhamos opção, claro, ou era correr aquele risco, ou era morrer de 
fome.  Em  ambas  as  situações,  a  morte  poderia  ser  certa,  mas  era  muito  mais  satisfatório  morrer  sabendo  que 
teríamos  lutado  por  nossa  vida.  Reunimos  todos,  exceto  a  garotinha  de  cabelos  grandes,  ela  havia abandonado o 
grupo  por  motivos  pessoais,  ninguém  a  julgava.  Não  havia  um  plano certo, sabíamos que em uma das tavernas, o 
estoque ficava nos fundos, e era possível entrar sem chamar muita atenção. 
Eu,  o  garotinho,  Barton  e  Cleve  iríamos  tomar conta de conseguir arrombar o cadeado e pegar a comida, 
o  outro  ficaria  perto  do  beco,  procurando  nos  avisar  caso  um  guarda  chegasse  perto  demais.  Não  parecia  muito 
difícil.  A  taverna  cheia  por  todo  mundo  que  procurava  uma  boa  bebida  para  se  aquecer  no  tempo  frio  nos 
garantiria  menos  atenção  ao  que  acontecia  do  lado  de  fora. E estranhamente, sabendo da facilidade, eu tinha um 
pressentimento  muito  ruim  de  que  algo  poderia acontecer. Assim que abrimos a porta e começamos a recolher a 
comida,  ouvimos  passos  se  aproximando,  e  não  pertenciam  a  apenas  uma  pessoa.  Me  aproximei  da  porta, 
colocando  apenas  um  pouco  da  cabeça  para  o  lado  de  fora.  Guardas  vinham  se  aproximando,  sorrisos 
desdenhosos  e  armas  preparadas  em  mãos.  Logo  atrás  deles,  o  rapaz  que  tinha  que  ter  ficado  de  guarda,  e  ele 
carregava  uma  expressão  cheia  de  culpa.  Não  era  difícil  saber  o  que  tinha  acontecido.  Estávamos  cercados,  não 
conseguiríamos  sair  sem  que  nos  pegassem.  Olhei  para  todos  ali,  meus amigos de longa data, uma criança, todos 
ali  tinham  família,  e  não  roubavam  por  maldade.  Respirei  fundo,  havia algo que eu poderia tentar. Sem ao menos 
explicar  o  que  faria,  fui  para  o  lado  de  fora  do  pequeno  armazém,  com  as  mãos  para  cima  e  usando  meu  corpo 
para fechar a porta. Olhei para cada um dos guardas. 
—  Hm?  O  que  temos  aqui?  Parece  que  a  ratinha  está  encurralada,  não  é?  —  Um  guarda  disse,  não 
conseguia decifrar aquele olhar.  
Eu  tinha  puxado  algumas  coisas  de  minha  mãe.  O  desejo  incontrolável  por  aventura,  a  sensação  de paz 
quando  cantava,  senso  de  justiça,  e  habilidades  que  me  ensinara.  Comecei  a  cantar,  torcendo  para  que 
conseguisse  fazer  o  mesmo  que  ela.  Os  guardas  pareciam  confusos,  e  alguns  começaram  a  rir,  foi  quando  as 
risadas  diminuíram  de  volume  e,  aos  poucos,  foram  ficando  sonolentos.  Os  sete guardas já não conseguiam mais 
ficar  de  pé,  foram  caindo  ao  chão  lentamente.  Abri  a  porta,  ainda  cantando,  e  fiz  sinal  para  que  eles  corressem. 
Deu  certo,  ainda  tinham  um  pouco  de  comida  na  mão.  Os  três  foram  correndo,  e  eu  quis  ter  certeza  de  que 
ninguém  ficaria  para  trás  antes  que  eu  fosse.  O  garotinho,  estabanado,  carregando  mais  do  que  conseguia  e 
deixando  cair  aos  montes,  tropeçou  em  uma  das  maçãs  que  escorregou  de  seus  braços, caindo por cima de dois 
guardas  que  ao  mesmo  tempo  abriram  os  olhos.  Fui  rápida,  corri  para  ajudá-lo  a  se  levantar  e  empurrá-lo  para 
que  corresse  dali.  Daquela  fuga,  eu  fiquei  para  trás.  Assim  que  ele  correu,  um  desses  guardas  havia  segurado 
minha  perna,  e  era  bem  mais  forte  do  que  eu.  Meus  colegas  me  esperavam,  não  poderiam  voltar,  era  arriscado. 
Parei de cantar e olhei para eles com um sorriso, que eles poderiam ir sem mim.  
 
Poderia  dizer  que  tive  sorte,  não  conhecia  muito  do  mundo  do  lado  de  fora  da  segurança  dos  buracos 
escuros.  Não  havia  sido  morta,  não  estava  presa em gaiolas o tempo todo, isso era relativamente uma notícia boa, 
não  é?  Ser  vendida  como  uma  escrava  ainda  me  garantiria  que  eu  poderia  continuar  viva,  e  talvez,  ter  uma 
oportunidade  de  fuga.  Estava  acostumada  a  viver  entre  meus  iguais,  sabia  de  toda  a  discriminação  contra  os 
tiefling  só  de  me  basear  onde  que  eu  vivi  por  toda  a  minha  vida,  mas  não  sabia  que  poderia  ser  tão  pior.  Me 
olhavam  com  nojo,  ou  me  tratavam  como  se  não  fosse  nada,  quando  os  olhos  não  eram  de  repulsa,  eram  de 
desejo,  pessoas  depravadas.  Sempre  nas  horas dos leilões, precisava ficar parada em um palco com correntes em 
minhas  mãos,  usando  trapos  como  roupas,  e  torcendo  para  que  nenhum  esquisito  resolvesse  me  comprar. 
Quando  não  desejava  minha  liberdade,  pensava  em  meu  pai.  Não  pude  ao  menos  me  despedir,  será  que  estaria 
preocupado? Quem tomaria conta dele se eu não estivesse por lá? 
Na  minha  vez,  fui  empurrada  para  a  frente  do  palco.  Não  costumava  olhar  para  as  pessoas,  não  queria 
ideia  com  quem  comprava  gente  para  serem  seus  escravos.  Por  curiosidade,  no  entanto,  resolvi  dar  uma 
oportunidade  aquela  sensação.  E  ali,  no  meio  da  multidão,  eu  consegui reconhecer os mesmos olhos que por um 
tempo  deixaram-me  inquieta  durante  as  noites  de  inverno.  Naquela noite, não havia como ter visto meus chifres, 
eram  menos  e  conseguiam  ser  facilmente  escondidos  por  um  capuz.  Ali,  eu  precisava  ser  exposta,  será  que  me 
reconheceria?  E  a  resposta  foi  sim,  não  apenas  me  reconheceu  como  havia  me  comprado.  Deveria  sentir  alívio? 
Apesar de tudo, era um estranho comprando um escravo, não sabia o que sentir.  
Fui  entregue  a  ele  ainda  em  correntes,  liberada  apenas  quando  colocada  em  sua  carruagem.  Quando 
nossos  olhares  se  cruzaram mais uma vez, vislumbrei seu sorriso gentil, e depois de tantos dias, tão longe de casa, 
eu consegui sorrir também.  
Era  uma  longa  viagem  até  Ard  Carraigh, mas nos deu tempo para que nos conhecêssemos. Me disse seu 
nome,  assim  como  eu  lhe  disse  o  meu.  Contei  o verdadeiro motivo da minha presença naquela estrada durante a 
noite,  e  apesar  de  as  intenções não terem sido boas, ele riu, e me arrancou risadas também. Apesar de tudo, disse 
que  eu  precisaria  trabalhar  para  ele,  não  seria  fácil  me  deixar  voltar  para  casa,  pois  imagina  o  que  poderia 
acontecer  se  me  encontrassem  de  novo?  Não  seria  algo  “piedoso”  como  a  era  a  escravidão,  a  gentileza  de  nos 
deixar  viver  apenas  para  arrancar  nossa  vitalidade  a  cada  dia.  Apesar  de  tudo,  não  passaria  de  uma  empregada, 
poderia viver assim por um tempo, não é? 
Sua  mansão  era  enorme,  acredito  que  um  cômodo  comum  como  uma  sala  já  poderia ser maior do que 
minha  casa  inteira.  Me  afastaram  dele  para  que  pudesse  conhecer  onde  dormiria  e  o  que  precisaria  fazer com o 
meu  novo  cargo.  Limparia,  cozinharia,  e  o  que  mais  me  pedissem.  Analisei  as  entradas  e saídas, uma casa de um 
nobre  deveria  ser  tão  difícil  de  sair  quanto  de  entrar.  Por  um  tempo,  precisaria  manter  minhas  aparências,  e  de 
qualquer  forma,  ele  havia  salvo  minha  vida.  Não  se  dá  para  saber  quem pagaria por você, e até agora, a única má 
notícia é que não teria escolha a não ser aceitar aquela vida, por enquanto.  
Não  havia  muito  mistério,  e  não  era  o  trabalho  mais  difícil  do  mundo,  talvez,  solitário.  As  outras 
empregadas  eram  humanas,  igualmente  aos  homens,  não deveria haver o costume de aceitarem na mão de obra 
um  ser  como  eu.  Os  olhares  permaneciam,  deveria  ter  a  mesma  superstição  de  um  gato  preto.  Os  únicos  olhos 
que  não  me  desmereciam  eram  os  de  Reiner.  Quando  estava  limpando  seu  escritório,  conversava  comigo,  se 
divertia  em  ouvir  minhas  histórias,  deveriam  ter  mais  aventuras  que sua vida cotidiana de pura política. E quando 
estávamos  sozinhos,  ele  aproveitava  para  tirar  do  peito  o  que  não  podia  dizer  para  outras  pessoas,  como  se 
confiasse  em  mim.  A cada dia que passava, essa confiança ia aumentando. Passava a me chamar mais para certos 
trabalhos,  mesmo  que fosse apenas para ter-me como companhia. Fora a possível curiosidade das empregadas, o 
que  poderia  ser  um  pouco  perigoso  era  sua  mulher,  Evelyn.  Uma  nobre de outro reino, e eu estava ciente de que 
isso  acontecia,  casamentos  puramente  políticos  com  a  intenção  de  fortalecer  as famílias. Era uma das coisas que 
Reiner se queixava para mim, e apenas para mim. 
Para  ele,  eu  parecia  ser  a  confidente  perfeita,  uma  amiga  para  quem  poderia  confiar  suas  aflições,  e 
gradualmente,  me  fazia  cair  em  seus  gestos  gentis  e  lábia  suave.  Uma  moça jovem, imatura, e um príncipe que a 
resgatou  do  fim  do  mundo,  era  o  mais  comum  clichê.  Os  encontros  se  tornavam  cada  vez  mais  secretos.  Não  ia 
mais  ao  seu  escritório  apenas  para  tirar  o  pó  das  estantes  ou  organizar  seus  documentos,  mas  para  lhe  dar  a 
satisfação que um casamento arranjado não lhe trazia. 
Eu  estava  apaixonada,  e  acreditava  que  o  sentimento  era  mútuo,  porque  naquele  momento,  era.  Pelas 
noites,  nos  encontrávamos  às  escondidas  nos  jardins.  Lembro-me  do  meu  primeiro  beijo,  lembro-me  da  minha 
primeira  vez.  Reiner havia descoberto também como encontrava a minha paz, sempre que fazia alguma tarefa, eu 
cantava,  e  ele  se  encantou.  Quando  não  nos  encontrávamos  em  momentos  mais  íntimos,  ele  estava  com  sua 
cabeça  em  meu  colo,  adormecendo  enquanto  cantava  para  ele.  Era  romântico,  não  era?  Um  amor  proibido, 
escondido  debaixo  dos  tapetes como o pó. Em todos os nossos encontros, me dizia que seu desejo era poder dizer 
não  a  tudo  que  era  forçado  para  ficar  comigo,  para  me  ter  ao  seu  lado  por  toda  a  eternidade.  Eu  acreditava  em 
cada  palavra,  e  entendia,  não  poderia  ficar  comigo  porque não tinha títulos, não tinha terras, não tinha dinheiro. O 
que era eu se não sua empregada? 
Soube  que  era  especial  para  ele  quando,  em  uma  festa  organizada  para outros nobres, Reiner havia me 
pedido  para  cantar.  Cantava  em  tavernas,  bares,  uma  vez  em  um  bordel,  mas  nunca  em  um  lugar  como aquele. 
Me  vestiram  como  se  fosse  alguém  importante,  e  apesar  dos  muitos  olhares  interessados,  ali,  o  que  mais  me 
importava, era o olhar de Reiner.  
Infelizmente,  nunca  se  dura  o  que  é  bom. As paredes têm ouvidos, e nossas histórias circulavam por sua 
mansão.  Entre  as  empregadas,  eu  era  uma  sedutora,  uma  succubus,  trazida  para  causar  discórdia,  por  isso,  me 
repudiavam.  Para  os  guardas,  eu  era  fácil,  uma  vadia,  poderiam  se  aproveitar,  por  isso,  tentavam  se  aproveitar. 
Mas  quando  as  histórias  chegam  aos  ouvidos  de  pessoas  que  não deveriam, eu era a maior vilã que existiria. Para 
Evelyn,  em  um  ano,  eu  era  a  pessoa  que  arruinaria  seu  casamento.  Não  fiquei  sabendo de quão longe as fofocas 
chegaram,  tudo  o  que  sabia  é  que  certas  pessoas  desconfiavam,  mas  a  desconfiança  não  chegaria  a  lugar 
nenhum.  Certa  noite,  deixando  o  escritório  de  Reiner  como  se  ali  não  tivesse  ninguém,  traçava  meu  caminho de 
volta  para  meus  aposentos.  Arrumava  meus  cabelos  bagunçados  e  arrumava  as  alças  soltas  de  meu  vestido, 
quando o mundo se desfez em sombras. 
Acordei,  mais  tarde,  com  uma  dor  de  cabeça  infeliz.  Estava  em  uma  sala  pequena,  paredes  de  pedras 
úmidas  e  sem  janelas  trazendo  a  luz  da  lua  para  dentro.  Não  que  a  escuridão  fosse  um problema. Olhei para um 
lado  e  olhei  para  o  outro,  tentei  me  recordar  de  um  lugar  que  nunca  vi.  Na  minha  frente,  uma  figura começou a 
entrar  em  foco.  Vestido  longo,  seda  cara,  mas  negra  como  uma  noite  sem  estrelas.  Ao erguer minha cabeça, vi o 
rosto  enojado  de  Evelyn,  me  encarando  como  se  fosse  uma  barata.  Tentei me mexer, mas estava presa à parede 
com correntes grossas.  
—  Não  vai  conseguir  sair  daí,  querida.  O  que  foi?  Não  está  confortável?  —  Sua  voz  tinha  um  tom 
desprezível.  
—  O  que  você  quer  comigo?  —  Me  fingi  de sonsa, claro. Não sabia o que ela sabia, não iria confirmar algo 
até saber até onde escutou sobre o que acontecia entre quatro paredes e uma porta trancada.  
—  Não  se  faça  de  desentendida,  Venus.  Já  sei  do  seu  caso  com  meu marido. Afinal, o que esperava que 
iria  acontecer,  huh?  —  Ela  se  abaixou  em  minha  frente,  segurando meu queixo com seus dedos para erguer meu 
rosto  em  sua  direção.  —  Achou  mesmo  que  iria  acabar  com  meu  casamento?  Uma  ninguém  como  você?  Uma 
escória  da  sociedade?  O  que  queria  com  meu  marido,  afinal?  Suspeitava  que  tinha  algo  de  errado  com  você  no 
momento em que seus pés imundos pisaram em minha casa.  
—  Evelyn,  a  culpa  não  é  minha  se  Reiner  me  prefere  a  ti.  —  Abri  um  sorriso,  esboçando  os  caninos 
suavemente  pontudos.  —  Acha  que  eu  o  seduzi?  Não  acha  melhor  rever  o  que  há  de  errado  com  você  antes  de 
tudo?  
É,  eu  sabia  que  minhas  palavras  tinham  um  peso  maior  do  que  eu  poderia  carregar.  Um  tapa na minha 
cara não era tudo o que ela poderia fazer comigo.  
—  Você  me  enoja.  —  Ela  se  ergueu,  limpando  a  mão  que  havia  usado  para  me  golpear  a  bochecha  no 
próprio  vestido.  —  Mas  não  se  preocupe,  tomarei  as  precauções  para  que  não  só  não  chegue  perto  de Reiner de 
novo, como não tenha mais tantos encantos para cima dele.  
— Oh, então concorda que sou encantadora? — Precisava aprender a hora de ficar calada.  
Com  um  estalar  de  dedos,  uma  figura  que  esteve  esse  momento  todo  atrás  de  mim conseguiu chamar 
minha  atenção.  Uma  mão  grande,  áspera,  tocou  meu  pescoço  e  escorreu  até  que  estivesse  com  minha  cabeça 
encarando  o  teto  e  o  pescoço  erguido.  Senti  um  arrepio  com  o  toque  de uma lâmina contra minha pele, já sendo 
pressionada a ponto de doer. Procurei encarar Evelyn, ela planejava me matar? 
—  Veremos  o  que  mais  conseguirá  dizer.  —  Evelyn  fez  um  gesto  positivo para quem quer que estivesse 
atrás de mim antes de se retirar da sala.  
Foi  muito  rápido  o  que  aconteceu,  senti  perfeitamente  minha garganta sendo rasgada de uma vez, senti 
o  sangue  jorrar  para  fora  de  meu  corpo,  senti  a  impossibilidade  de  gritar  de  dor, de gritar por ajuda, de gritar por 
Reiner.  Seria  aquela  a  minha  morte?  Uma  morte  desesperadora  em  que  nem  poderia  tentar  reter  o  sangue que 
me  escapava?  Não  poderia  pedir  aos  deuses  para  que  me  dessem  uma  outra  chance?  A  dor  era  absurda, 
insuportável. Não consegui ficar acordada por muito mais tempo. 
Quando  acordei,  tremia  de  frio, suava de calor. Procurava um alívio, mas não tinha para onde ir. O mundo 
se  locomovia,  estava  novamente  presa,  engaiolada.  Estaria  no  inferno?  A  sensação  era  a  mesma.  Toquei  minha 
garganta, e me arrependi na hora. Doía tanto, como se tocasse com sal uma ferida recém aberta. Olhei para frente, 
parecia  estar  em  uma  carroça.  Abri  a  boca  para  tentar  perguntar  ao  carroceiro  para  onde  estávamos  indo,  mas 
nenhuma  palavra  saiu  de  meus  lábios.  Balancei  a  cabeça, poderia ser do machucado, e assim que melhorasse, eu 
poderia  perguntar.  Acabei  adormecendo  mais  uma  vez,  a  única  forma  de  aguentar  a  dor  infernal  que  sentia, era 
estando inconsciente.  
Acordei mais uma vez acorrentada, presa, eu conhecia como funcionava esse lugar, conhecia o motivo de 
cada  uma  daquelas  criaturas  diferentes  dos  humanos  estarem  ali,  igualmente  a  mim.  Escravos,  mercadoria,  por 
quanto  dinheiro  sua  vida  valia  nas  mãos  daquelas  pessoas.  Ao  meu  lado,  estava  sentado  um  cara,  ele  tinha 
algumas escamas no corpo, me olhava com a mesma compaixão de todos que estavam ali.  
—  Você  está  bem?  Parece…  Muito  ferida…  —  Não  havia  motivo  nenhum  para  que  ele  se  preocupasse 
comigo,  éramos  desconhecidos,  prestes  a  sermos  separados  dependendo  de  quem  estivesse  em  nos  comprar. 
Mas,  na  mistura  de  sensações  dolorosas  que  eu  sentia,  o  frio,  o  calor,  a  queimação  na  garganta,  a  fraqueza,  um 
pouco de gentileza me fazia bem.  
Abri  um  sorriso  pequeno  para  ele,  iria lhe responder, mas de mim, nenhum som saía. Meu sorriso sumiu, 
minha expressão ficou desolada. 
— Você… Não sabe falar?  
Encarei-o  com  certo  desespero.  Eu  sabia  falar,  mas  eu  não  conseguia.  Tentei  mais  uma  vez,  e  outra,  e 
todas  as  tentativas  eram  em  vão. Desviei o olhar, não sabia se conseguiria continuar me forçando a soltar um som 
de minha garganta já tendo a total certeza de que isso não aconteceria. Fui a última das últimas a ser levada para o 
palco,  vi cada uma das criaturas ali serem levadas e não voltarem mais. Nesse momento, para mim, tudo o que me 
restava era a dúvida. O que Evelyn fez comigo?  
 
A  primeira  vez  que  me  levaram  ao  leilão,  eu  desejei  tanto  para  que  nada  de  ruim acontecesse. Daquela 
vez,  absorta  na  própria  confusão,  não  repeti  as  preces.  Colocaram  em  meu  pescoço uma fita negra, não queriam 
que  uma  cicatriz  tão  feia  como  aquela  ficasse exposta, diminuiria o valor. Meu pescoço doía, mal tinha forças para 
ficar  em  pé.  Não  encarei  a  multidão,  porque  eu  sabia  muito bem que não encontraria os olhos de Reiner para me 
salvar.  Ouvi  os  lances,  um  ali,  dois  ali,  e  mais  tantos  outros.  Desci  pelas  escadas,  puxada  pela  corrente  até  meu 
novo dono. Era um homem estranho, acima do peso, usava um terno marrom. Seu sorriso não era nada gentil. 
Eu  me  lembro  de  tudo,  nada  falha  na  minha  memória.  Mas  aqueles  meses  que  passei  sendo  a  escrava 
desse  senhor,  eu  queria  tanto  conseguir  tirar da minha cabeça. Não podia pedir para que parasse, não podia gritar 
por  ajuda,  não  podia  cantar  para  buscar  minha  paz.  Era  uma solidão silenciosa, uma tortura onde a única voz que 
escutava era de meus gemidos e de meus choros.  
Havia  perdido  a  conta  do  tempo,  os  minutos pareciam horas, e as horas pareciam dias. Pensava em meu 
pai,  pensava  em  Reiner,  pensava  também  no  draconata  gentil  que  havia  falado  comigo.  Mas,  um  dia  se  tornou 
diferente.  Ele  teria  uma  visita,  mas  eu  não  seria  convidada  a  cantar  para  ela.  Ele  já tinha recebido outros amigos, 
eu  me  lembrava  não de seus nomes, mas de seus olhares, de seus toques. Seria outro assim? Eu esperava em um 
quarto,  encarava  minha  imagem  em  um  espelho.  Não  parecia  eu,  e  era  algo  tão  triste  de  se  perceber. Ao ouvir a 
porta  se  abrindo,  me  apressei  para  colocar  a  fita negra em meu pescoço. Me virei na direção de quem poderia ser 
e…  Seus  olhos  iluminaram  o  meu  dia.  Reiner  estava  ali,  perante  a  mim.  Eu  me  levantei,  incrédula.  Foi  ver  o  seu 
sorriso  que  eu  percebi  que  era  mesmo  ele.  Corri  para  o  seu  abraço,  e  apesar  de  demorar  um  pouco,  ele  me 
abraçou  de  volta.  Havia  vindo  me buscar, foi o que disse. Pagou uma boa quantia para o homem do terno marrom 
antes  de  me  levar  embora.  Não  sabia quanto dinheiro tinha sido gasto, sabia o que eu significava ali, mas nada me 
importava mais.  
Em  sua  carruagem,  me contou que pressionou Evelyn a dizer o que tinha feito, mas demorou muito para 
que  ela  abrisse  a  boca. Contou que tudo havia sido planejado, e que já tinha se decidido que fugiria comigo. Depois 
de  muito  tempo  falando,  perguntou  como  eu  estava.  Ainda  sorrindo,  apontei  para  minha  garganta  e  fiz  um  não 
com  a  cabeça.  Ele  não  entendeu, e quando tentei lhe responder, sua expressão mudou um pouco. Não podia mais 
contar  minhas  histórias,  não  poderia  mais  cantar  para  ele  quando  quisesse,  mas  estava  tudo  bem,  não  é?  Sua 
preocupação por minha falta de voz era compreensível, mas não teria problema.  
Não  fomos  para  Ard  Carraigh,  mas  para  um lugar sem nome. Havia, no meio de um campo, uma cabana. 
Era  pequena,  suja,  esburacada.  Ali,  ele  me  deixou e pediu para que eu esperasse. Ele precisava retornar à mansão 
para  buscar  um  pouco  de  dinheiro,  talvez  algumas  roupas,  mas  que  ele  voltaria.  Fiz  um  gesto  positivo  com  a 
cabeça,  e  ali,  eu  esperei.  Um  dia  talvez  fosse  o  necessário,  mas  demorou  mais do que isso. Pude descongelar um 
pouco  da  neve  que  caía  das  nuvens  para  ter  água,  procurar  o  que  tinha  naquela  cabana  para  comer,  aguentar o 
frio, mas Reinei nunca chegava. Depois de mais três dias, me perguntava o que teria acontecido.  
Com  a  capa  que  tinha  e  a determinação de colocar um final feliz na minha história, caminhei durante dia 
e  noite até a mansão de Reiner, não me importando com todos os limites que meu corpo estava ultrapassando. Ao 
chegar,  encontrei  uma  forma  de  me  esgueirar  para  dentro  dos  muros,  para perto da janela de seu escritório, não 
seria  bem  vinda  naquele  lugar.  Para  o  segundo  andar  eu  escalei,  precisava  ver  se  ele  estaria  ali,  talvez 
preenchendo  rios  de  documentos  antes  de  partir  para  me  encontrar.  Talvez  precisou  enrolar  Evelyn  para  que 
conseguisse  sair  depois.  Tantos  motivos  para  me  ajudar  a  aceitar  sua  demora,  nada me preparou para encontrar 
outra mulher em seu colo, outra empregada. Tinha cabelos loiros, sardas nas bochechas, pele rosada. Era humana, 
como  ele,  mas  não  era  isso  que  me  importava.  Por  mais  alguns  segundos,  eu  fiquei  ali,  me  punindo  a  observar 
aquilo enquanto sentia meu coração se partindo em pedaços. Por quanto tempo isso acontecia?  
Desci  da  janela  e  pulei  de  volta  o  muro  para  o  lado  de  fora.  No  meio  da  rua,  escondida  por  minha  capa 
fina,  me  sentei  no chão. Me encolhi, mas não para me proteger do frio, foi em tentativa de impedir que os pedaços 
do  meu  coração  caíssem  para  fora  de  meu  peito.  Foi  doloroso.  Não  era  única  para  ele?  O  amor  que  ele  não 
conseguiria  ter  em  um  casamento  arranjado?  Será que foi por isso que ele se preocupou tanto por minha falta de 
voz? Sem canto, não tinha como se beneficiar comigo?  
Nada  me  sobrava  nesse  reino,  nada  me  sobrava  ali,  nem  mesmo  eu  estava  aqui  para  me  fazer 
companhia.  Juntei  as  poucas  peças  de  dignidade  que  tinha  e  parti  para  casa.  Encontrei  caronas  em  carroças, 
poderia pagar de outra forma, tudo o que eu queria era meu pai de volta.  
 
Perante  minha  casa,  abandonada,  aos  pedaços,  eu  fiquei  parada,  em  pé.  Me  recusava  a  entrar  ali  e  não 
encontrar  mais  nada,  embora  estivesse  mais  que  certa  de  que  era  justamente  isso  que  me  aguardava.  A  porta 
rangia,  nem  conseguia  se  sustentar mais com o próprio peso. O cheiro de mofo era irritante, tudo estava tão sujo… 
Fui  caminhando  pelos  poucos  e  apertados  cômodos  até  chegar  no  quarto  de  meu  pai.  Ele  já  não  estava mais ali, 
não  havia  um  sinal  dele.  Sei  que  não  poderia  ter  ido  embora,  sei o que lhe aconteceu, mas não queria aceitar. Fui 
até  meu  quarto,  a  cama  estava  preparada  para quando eu voltasse. Os lençóis devorados por traças, o travesseiro 
sujo  pelo  tempo.  Caminhei  na  direção  da  cama,  tropeçando em uma tábua solta. Olhei para baixo, parecia ter sido 
movida.  Me  abaixei,  tirando-a  do  lugar  para  ver  o  que tinha. Escondido no chão, encontrei um baú pequeno. Nele, 
encontrei  alguns  pequenos  tesouros.  Encontrei  meu primeiro dente de leite, encontrei as economias que meu pai 
se  esforçou  tanto  para  juntar,  encontrei minha primeira boneca de pano e encontrei cartas, muitas cartas. Abri e li 
cada  uma  delas.  Uma  carta  escrita  para  cada  dia  que  meu  pai  sentiu  minha falta, cartas que escreveu esperando 
que  um  dia  eu  fosse  encontrá-las. Apesar da visão turva das lágrimas que tinha em meus olhos, eu não conseguia 
parar de ler.  
“Onde  quer  que  você  esteja,  Venus, o papai te ama e vai fazer o possível para que você 
fique bem. Por favor, volte logo para mim…” 
Abri  um  sorriso,  entre  soluços.  Eu  pensava  para  mim  mesma,  “mentiroso…”.  Abracei  as  cartas,  no  meu 
silêncio,  na  minha  paz.  Era  aquilo  que  havia  sobrado  de  mim, sobrado de um clichê de contos de fadas onde uma 
pobre garota é resgatada por um príncipe encantado.  
Meu  luto  se  estendeu  por  alguns  dias.  Eu  me  perguntava porque era tão estúpida, me perguntava como 
poderia  ter  deixado  meu  pai  para  trás  por  conta de alguma paixão que não deu e nunca daria certo. Me culpei por 
cada  dia  que  estive  naquela  casa,  deitada  no  chão  de  meu  quarto,  relendo  as  cartas várias e várias vezes. É difícil 
se  recompor  de  um  baque  daqueles,  quando  todas  as  suas  decisões  te  atingem  com  força  e  sem  piedade.  Me 
afundava  em  meu próprio fracasso. Sentia frio, fome, e uma dor que conseguia se tornar mais sufocante que ter a 
própria  garganta  cortada.  Me  custou  ter  forças  para  ficar  de  pé,  e  só  tomei  a  coragem  de  decidir  não  morrer 
quando  me  lembrei  de  meu  pai  mais  uma  vez.  Depois  da  morte  da  minha  mãe,  ele  não  parou,  e  ela  não  teria 
parado  também.  A  única  forma  que  eu  tinha  para lutar contra tudo e todos, era mostrar o quanto eu queria viver. 
Apesar  de  tudo  o  que  me  aconteceu,  eu  estava  viva,  e  não  poderia  deixar  que  o  único  poder  que  me  restava  se 
esvaísse de vez.  
Fiquei  ali  por  mais  algumas  semanas,  não  me  colocando  em  uma  bolha  negra  que  reafirmava a pessoa 
horrível  que  era,  mas reformando a minha casa. Limpei toda a sujeira, consertei chão, portas, janelas e telhado. Fiz 
questão  de  que  a  última  coisa  que era de meu passado não ficasse parada no tempo, não ficasse esquecida como 
eu  havia  ficado.  No  último  dia,  antes  de  ir  embora  das  cavernas  escuras, antes de deixar minha casa para trás, eu 
cantei.  Minha  voz  não  saía,  mas  eu  cantei  em  meu  coração,  usei a dança como notas, lembrei de quando meu pai 
deixava  eu  pisar  em  seu  pés  para  que  conseguisse  me  conduzir  em  dança.  E  no  ​grand  finale​,  em  cima  da  mesa 
onde  comíamos  todas  as  refeições  juntos,  coloquei  um  vaso  no  centro, com uma única flor, uma iris branca. Esse 
era meu adeus.  
 
De  taberna  em  taberna,  salões  de  nobres  ou  na  rua,  eu  me  apresentava do meu jeito. Não cantava, mas 
atuava,  dançava.  Minha  paz  estava  na  emoção  de  tudo  o  que  eu  senti  e  sentirei.  Eu  não  tenho  um  objetivo,  não 
busco  recuperar  minha voz, não busco me vingar de Evelyn ou de Reiner, o que me mantém de pé é o meu desejo 
de continuar vivendo esse caótico e belo espetáculo que é a vida.  

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