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Meditações
no Evangelho
de João

J.C.RYLE

EDITORA FIEL da
MISSÃO EVANGÉLICA LITERÁRIA
MEDITAÇÕES NO EVANGELHO
DE JOÃO

Traduzido do original em inglês:


Expository Thoughts on the Gospels
JOHN

Copyright ® (Typesetting) Editora Fiel 2000

Primeira edição em inglês - 1879


Primeira edição em português - 2000

Todos os direitos reservados. É proibida


a reprodução deste livro, no todo ou em parte,
sem a permissão escrita dos Editores.

EDITORA FIEL da
Missão Evangélica Literária
Caixa Postal 81
12201-970 - São José dos Campos, SP
Prefácio

As Meditações no Evangelho de João, de J. C. Ryle, têm sido amadas


e compartilhadas por várias gerações de crentes, desde sua primeira edição
em 1879. Elas contêm uma simplicidade e uma espiritualidade que têm feito
delas o comentário devocional clássico sobre os evangelhos, na opinião de
grande número de leitores.
Procurando pôr à disposição do leitor moderno uma forma mais po­
pular dessa obra, foram removidos os textos bíblicos (antes impressos na
íntegra), embora o leitor seja encorajado a ler cada passagem selecionada do
começo ao fim, antes de iniciar a leitura das próprias meditações de Ryle.
Também omitimos as notas de rodapé, nas quais Ryle tratava a respeito de
questões textuais de uma maneira mais crítica, embora sem qualquer conexão
direta com a exposição propriamente dita. O texto usado é o da Edição Revista
Atualizada no Brasil, da Sociedade Bíblica do Brasil.
Os publicadores confiam que esta nova edição das meditações
devocionais de Ryle alcançará os mesmos alvos que o autor se aplicou
pessoalmente, a fim de que, “com uma oração fervorosa, possa promover a
religião pura e sem mácula, ampliar o conhecimento de muitos sobre a pessoa
de Cristo Jesus, e ser um humilde instrumento na gloriosa tarefa de converter
e de edificar almas imortais”.

Os Publicadores
Cristo, o Eterno, Distinto da Pessoa do Pai, o
Próprio Deus, o Criador de Todas as Coisas,
a Fonte de Toda Luz e Vida
Leia João 1.1-5

O Evangelho de João, que começa com esses versículos, em muitos


aspectos difere dos outros três evangelhos. Contém muitos fatos que os
outros omitem, e omite muitos que os outros contêm. Facilmente poderíamos
apresentar boas razões para existirem estas diferenças, mas é suficiente
lembrar que Mateus, Marcos, Lucas e João escreveram sob a>inspiração
direta de Deus. No plano geral e nos detalhes particulares de seus respectivos
evangelhos (tudo quanto registraram ou deixaram de registrar), todos os
quatro foram igual e completamente guiados pelo Espírito Santo.
Quanto aos fatos que o apóstolo João foi especialmente inspirado a
relatar, basta fazer uma observação: os assuntos que são peculiares a esse
evangelho estão entre as possessões mais preciosas da igreja de Cristo.
Nenhum dos outros evangelistas faz declarações tão completas como as
que vemos nesse evangelho, sobre a divindade de Cristo, a justificação
pela fé, os ofícios de Cristo, a operação do Espírito Santo e os privilégios
dos que crêem. Sem dúvida, Mateus, Marcos e Lucas não silenciaram
sobre estes grandes ensinamentos. Mas, no Evangelho de João, eles se
destacam de forma tão proeminente, que podem ser percebidos mesmo por
aqueles que lêm-no com rapidez.
Os cinco primeiros versículos contêm uma declaração de incomparável
sublimidade a respeito da natureza divina do nosso Senhor Jesus Cristo.
Acima de qualquer dúvida, quando João menciona “o Verbo” está se
referindo a Cristo. Com toda certeza, há grande profundidade nesta
declaração, cuja compreensão está muito além do entendimento do homem.
Ainda assim, há claros ensinamentos na passagem, os quais todo crente
deveria guardar como tesouro no coração.
6 João 1.1-5

Primeiro, aprendemos que o Senhor Jesus Cristo é eterno. João diz


que “no princípio era o Verbo” . Ele não começou a existir quando os céus
e a terra foram formados e, muito menos, quando o evangelho foi trazido
ao mundo. Ele tinha a glória com o Pai “antes que houvesse mundo” (Jo
17.5). Existia quando a matéria foi criada e antes que começassem os
tempos. “Ele é antes de todas as coisas” (Cl 1.17); existe desde toda a
eternidade.
Segundo, aprendemos que o nosso Senhor Jesus Cristo é uma pessoa
distinta de Deus, o Pai; e, ainda assim, é um com Ele. João diz que “o
Verbo estava com Deus” . O Pai e o Verbo, embora sejam duas pessoas,
são ligados por uma união inefável. Desde a eternidade, onde quer que
Deus Pai estivesse, ali também estava o Verbo, o Deus Filho — iguais em
glória, co-etemos em majestade, mas uma só Divindade. Este é um grande
mistério. Feliz aquele que o recebe com a atitude de uma criança, sem
tentar explicá-lo!
Terceiro, aprendemos que o Senhor Jesus Cristo é o próprio Deus.
João diz que “o Verbo era Deus” . Ele não é meramente um anjo criado ou
um ser inferior a Deus, o Pai, investido de poder, da parte do Pai, para
redimir os pecadores. Não é menos que o Deus perfeito; é igual ao Pai, no
que concerne à sua divindade; Ele é Deus, possuindo a mesma natureza
que o Pai e existindo antes da fundação do mundo.
Quarto, aprendemos que o Senhor Jesus Cristo é o Criador de todas
as coisas. João diz que “todas as coisas foram feitas por intermédio dele,
e sem ele nada do que foi feito se fez” . Longe de ser uma criatura de Deus,
como alguns hereges têm falsamente afirmado, Ele é o Ser que fez o universo
e tudo o que nele há. “Mandou ele, e foram criados” (SI 148.5).
Por último, aprendemos que o Senhor Jesus Cristo é a fonte de toda
luz e vida espiritual. João diz que “a vida estava nele, e a vida era a luz dos
homens” . Ele é a fonte eterna, e somente dela os filhos dos homens têm
recebido vida. Eram provenientes de Cristo toda luz e vida espiritual que
Adão e Eva possuíam antes da Queda. Era inteiramente procedente de
Cristo toda e qualquer libertação de pecado e morte espiritual, expe­
rimentada por qualquer filho de Adão, desde a Queda; também, qualquer
iluminação de consciência ou entendimento obtida desde então. Em todos
os tempos, a maior parte da humanidade tem-se recusado a conhecê-Lo,
esquecendo-se da Queda e da necessidade de um Salvador pessoal. A luz
tem constantemente resplandecido “nas trevas”, e a maioria dos homens
não a tem compreendido. Mas, se qualquer dos incontáveis seres humanos,
homens e mulheres, já receberam luz e vida espiritual, devem tudo isso a
Cristo.
Este é um breve sumário das lições principais que parecem estar
contidas nessa maravilhosa passagem. Todos temos de concordar que nesses
João 1.1-5 7

versículos há muitas coisas que estão acima de nossa compreensão, mas


nenhuma delas sem sentido. No texto há muitas coisas que não podemos
explicar, mas em que devemos crer e nos alegrar, com humildade de
coração. Contudo, não esqueçamos que do texto emanam aplicações claras
e práticas, que nunca poderão se esgotar nem serem conhecidas demais.
Se desejamos conhecer o quanto o pecado é excessivamente abo­
minável, devemos ler com freqüência esses cinco versículos do Evangelho
de João. Notemos o tipo de pessoa que o Redentor da humanidade precisou
ser, a fim de providenciar redenção eterna aos pecadores. Se, para tirar o
pecado do mundo, foi preciso de ninguém menos que o próprio Deus
eterno, é porque aos olhos de Deus o pecado é muito mais abominável que
a maioria dos homens pode supor. A medida exata da malignidade do
pecado é reconhecida quando consideramos a dignidade dAquele que veio
ao mundo para salvar os pecadores. Se Cristo é tão excelso, então o pecado
é realmente abominável!
Se desejamos conhecer o fundamento da esperança do verdadeiro
crente, devemos ler com freqüência os cinco primeiros versículos do Evan­
gelho de João. Notemos que o Salvador, no qual o crente é convidado a
confiar, é nada menos que o Deus eterno, capaz de salvar cabalmente a
todos os que, por seu intermédio, vêm ao Pai. Ele, que “estava com Deus”
e “era Deus” , é também “Emanuel” , Deus conosco. Demos graças a Deus
por nossa esperança estar firmada nAquele que é poderoso (SI 89.19). Em
nós mesmos somos grandes pecadores, mas em Jesus Cristo temos um
grande Salvador. Ele é a sólida pedra fundamental, capaz de suportar o
peso do pecado do mundo. Aquele que nEle crê não será de modo algum
envergonhado (1 Pe 2.6).

O Ofício do Ministro de Cristo;


Jesus, A Luz do Mundo;
A Impiedade do Homem;
Os Privilégios dos que Crêem
Leia João 1.6-13

O apóstolo João, depois de começar o seu evangelho com uma


afirmação sobre a natureza divina do Senhor Jesus Cristo, passa a falar do
antecessor de Cristo, João Batista. Devemos notar o contraste entre a
linguagem que o apóstolo usou, ao falar do Salvador e do seu antecessor.
Sobre Jesus ele diz que é o Deus eterno, o Criador de todas as coisas, a
8 João 1.6-13

fonte de luz e vida. Sobre João Batista ele diz simplesmente: “Houve um
homem enviado por Deus cujo nome era João” .
Primeiro, vemos nesses versículos a verdadeira natureza do ofício
de ministro de Cristo. Podemos observá-la na descrição de João Batista:
“Este veio como testemunha para que testificasse a respeito da luz, a fim
de todos virem a crer por intermédio dele” .
Os ministros de Cristo não são sacerdotes nem mediadores entre
Deus e o homem. Não são agentes em cujas mãos o homem pode entregar
sua alma e deixar sua vida espiritual aos seus cuidados. Eles são testemunhas.
Existem para dar testemunho da verdade de Deus, especialmente da verdade
de que Cristo é o único salvador e a luz do mundo. Foi este o ministério do
apóstolo Pedro, no dia de Pentecostes: “Com muitas outras palavras deu
testemunho” (At 2.40). A isto se resumia também o ministério de Paulo:
“Testificando tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com
Deus e a fé em nosso Senhor Jesus” (At 20.21). O ministro cristão não
será fiel ao seu oficio, a menos que dê um testemunho completo acerca de
Cristo. E, se realmente testifica de Cristo, estará fazendo sua parte e receberá
seu galardão, mesmo que seus ouvintes descreiam seu testemunho. Até
que seus ouvintes creiam no Cristo que lhes está sendo pregado, nenhum
beneficio receberão daquilo que lhes está sendo ministrado. Poderão até
mesmo sentirem-se satisfeitos e interessados, mas, enquanto não crerem,
não serão beneficiados. A grande finalidade do testemunho de um ministro
é que, através dele, os homens venham a crer (Jo 1.7).
Segundo, vemos nesses versículos a principal posição ocupada pelo
Senhor Jesus Cristo em relação à humanidade. Notamos isto ao ler que
Ele é “a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem” .
Cristo é para as almas o que o sol é para o mundo. Ele é o centro e a
fonte de toda vida, saúde, crescimento, beleza, ardor e progresso espiritual.
Assim como o sol, Ele brilha para o benefício de toda a humanidade — o
rico e o pobre, o de alta e o de baixa posição, para o judeu e para o grego.
Assim como o sol, Ele está ao acesso de todos. Todos podem olhar para
Ele e sorver da saúde que procede de sua luz. Se milhões de pessoas
fossem insanas ao ponto de habitar em cavernas subterrâneas ou se
vendassem os próprios olhos, a escuridão seria a de sua própria culpa e
não a da ausência do sol. Da mesma maneira, se milhões de homens e mu­
lheres amam “mais as trevas do que a luz” , a culpa recai sobre seus corações
obscurecidos, e não sobre Cristo. Estes se “tomaram nulos em seus próprios
raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato” (Rm 1.21). Quer o
homem veja, quer não, Cristo é o verdadeiro sol e a luz do mundo. Não há
outra luz para os pecadores, a não ser o Senhor Jesus Cristo.
Terceiro, vemos nesses versículos a grande impiedade do coração
natural do homem. Nós o notamos nestas palavras: Cristo “estava no mundo,
João 1.6-13 9

o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu. Veio
para o que era seu, e os seus não o receberam”.
Cristo estava de forma invisível no mundo, muito antes de nascer da
virgem M aria. Ele estava, desde o princípio, reinando, dispondo e
governando toda a criação. Através dele, tudo veio a subsistir (Cl 1.17). A
todos Ele concedeu vida e respiração, a chuva do céu e as colheitas
abundantes. Por Ele reinaram os reis, e as nações foram exaltadas ou
humilhadas. Contudo, os homens não O conheceram e não O honraram.
Pois adoraram e serviram “a criatura, em lugar do Criador” (Rm 1.25).
Com razão o coração natural do homem é chamado de “corrupto” !
Cristo veio visivelmente ao mundo quando nasceu em Belém, mas
foi tratado com a mesma indiferença. Veio para o povo que Ele mesmo
havia tirado do Egito e comprado para si. Veio para os judeus, a quem
havia separado dentre as nações e revelado a si mesmo, através dos profetas.
Veio para aqueles judeus que liam a seu respeito no Antigo Testamento,
viam-No através de símbolos e figuras nos cultos realizados no templo e
professavam estar aguardando sua vinda. Todavia, quando Ele veio, estes
mesmos judeus não O receberam . Na verdade, eles O rejeitaram ,
desprezaram e O mataram. Com razão o coração natural é chamado de
“desesperadamente corrupto” (Jr 17.9).
Por último, vemos nesses versículos os muitos privilégios de todos os
que recebem a Cristo e nEle crêem. Lemos que “a todos quantos o
receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos
que crêem no seu nome” .
Cristo jamais deixará de ter servos. Se a grande maioria dos judeus
não o recebeu como o Messias, houve pelo menos alguns que não o
rejeitaram. A estes Ele deu o privilégio de serem filhos de Deus e os
adotou como membros da família do Pai. Reconheceu-os como seus irmãos
e irmãs, ossos de seus ossos e carne de sua carne. Conferiu-lhes um estado
digno, que foi uma ampla recompensa pela cruz que teriam de carregar
por amor a Ele. Tornou-os filhos e filhas do Senhor todo-poderoso.
Tais privilégios, devemos lembrar, são possessões de todos os que,
em todos os tempos, pela fé recebem a Cristo como Salvador e o seguem.
Estes são “filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus” (G1 3.26). São
nascidos de novo, mediante um novo e celestial nascimento, e adotados na
família do Rei dos reis. Poucos em número e desprezados pelo mundo, são
cuidados e amados pelo Pai celeste, com infinito amor. E, por causa de seu
Filho, o Pai se compraz neles. No tempo certo lhes providencia as coisas
que cooperam para o seu bem. E na eternidade lhes dará a coroa de glória,
que jamais fenece. Estas coisas são grandiosas! A fé em Cristo é que
concede ao homem o direito de desfrutá-las todas. Os bons senhores cuidam
de seus servos, assim também Cristo cuida dos seus.
10 João 1.6-13

E nós, somos filhos de Deus? Já nascemos de novo? Temos as marcas


que acompanham o novo nascimento — senso do pecado, fé em Cristo,
amor ao próximo, vida de retidão e separação do mundo? Enquanto não
dermos respostas satisfatórias a estas perguntas, não estejamos contentes.
Desejamos realmente ser filhos de Deus? Então, recebamos a Cristo
como nosso Salvador e creiamos nEle de coração. A todo aquele que O
recebe desta forma Ele dá o privilégio de se tomar filho de Deus.

A Realidade da Encarnação de Cristo


Leia João 1.14

O versículo das Escrituras que agora consideramos é bastante curto,


se medido pela quantidade de palavras. Mas, se o avaliarmos pela natureza
de seu conteúdo, veremos que é bastante extenso. Seu conteúdo possui tão
grande importância, que faremos bem em considerá-lo separadamente.
Esse único versículo contém assunto mais do que suficiente para uma
exposição completa.
A principal verdade ensinada nesse versículo é a realidade da en­
carnação do nosso Senhor Jesus Cristo, ou seja, ter-se tornado homem. O
apóstolo João diz que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” . O sentido
claro destas palavras é que nosso divino Salvador tomou realmente sobre
si a natureza humana, a fim de salvar os pecadores. Ele de fato se tomou
homem como nós, em relação a todas as coisas, menos quanto ao pecado.
Assim como nós, nasceu de uma mulher, embora de uma maneira mira­
culosa. Como nós, passou da infância à adolescência, e desta, à maturidade,
tanto em estatura quanto em sabedoria (Lc 2.52). Como nós, também se
alimentou, bebeu, dormiu, cansou-se, chorou, regozijou-se, maravilhou-
se, sentiu fome, sede, dor, foi movido pela ira e pela compaixão. Por se
tom ar carne e possuir um corpo, pôde orar, ler as Escrituras, sofrer, ao
ser tentado, e submeter sua vontade humana à vontade de Deus, o Pai. E,
finalmente, nesse mesmo corpo ele veio a sofrer intensamente e derramar
seu sangue; realmente foi morto, sepultado, ressuscitou e ascendeu ao céu.
Contudo, em todos os instantes, Ele era Deus e ao mesmo tempo homem!
A união de duas naturezas na pessoa de Cristo é um dos grandes
mistérios do cristianismo. É um assunto que deve ser falado com todo o
cuidado. Assim como outras, esta é uma grande verdade que deve ser
crida reverentemente e não ser alvo de especulações inúteis. Talvez, em
nenhum outro lugar achemos uma declaração mais sábia e criteriosa do
que a encontrada no segundo artigo da Igreja Anglicana: “O Filho, que é o
João 1.14 11

verbo do Pai e dEle gerado desde a eternidade, o próprio Deus eterno,


sendo um com o Pai, assumiu a natureza humana no ventre da bendita
virgem; de modo que duas naturezas perfeitas e completas — a divina e a
humana — uniram-se indivisivelmente em uma pessoa: Jesus Cristo,
verdadeiro Deus e verdadeiro homem” . Esta declaração é de grande valor;
é uma “linguagem sadia e irrepreensível” (Tt 2.8).
Não temos a pretensão de explicar a união das duas naturezas de nos­
so Senhor Jesus Cristo, mas nem por isso deixamos de delinear alguns
cuidados específicos sobre o assunto. Se, por um lado, expomos com
precisão aquilo que cremos, por outro lado, não podemos deixar de declarar
com ousadia o que não cremos. Não devemos esquecer que, embora nosso
Senhor fosse Deus e homem ao mesmo tempo, a natureza divina e a humana
nunca se confundiam. Uma natureza não sufocava a outra; as duas
permaneciam perfeitas e distintas uma da outra. Nem por um só momento
a divindade de Cristo foi posta de lado, embora às vezes ficasse encoberta.
A natureza humana de Cristo, durante toda a sua vida, nem por um momento
foi diferente da nossa, ainda que fosse grandemente honrada por causa da
união com a natureza divina. Embora seja perfeitamente Deus, Cristo é
perfeitamente homem, desde o primeiro momento de sua encarnação. Aquele
que subiu ao céu e está assentado à direita de Deus, para interceder pelos
pecadores, é homem e, ao mesmo tempo, Deus. Apesar de ser perfeitamente
homem, Ele nunca deixou de ser perfeitamente Deus. Aquele que sofreu
na cruz pelo pecado, e se fez pecado por nós, era o Deus “manifestado na
carne” (1 Tm 3.16). O sangue com o qual a igreja foi comprada é chamado
o sangue “de Deus” (At 20.28). Embora Ele tenha se tomado “carne”, em
um sentido mais amplo, quando nasceu da virgem Maria, por nenhum
momento deixou de ser o Verbo etemo. Seria obviamente contrário aos
fatos dizer que, durante seu ministério terreno, Cristo manifestou cons­
tantemente sua natureza divina. Tentar explicar o por quê de sua divindade
estar às vezes encoberta e outras vezes não, enquanto Ele viveu aqui, seria
aventurar-nos em um terreno que não nos convém. No entanto, afirmar
que em qualquer instante de sua vida Ele deixou de ser plena e com­
pletamente Deus seria nada menos que dizer uma heresia.
As admoestações dadas até aqui podem parecer, à primeira vista,
desnecessárias, enfadonhas e excessivamente minuciosas. Mas é pre­
cisamente por negligenciar essas advertências que muitas almas têm sido
levadas à ruína. A união indivisível e constante das duas naturezas da pes­
soa de Cristo é exatamente o que atribui infinito valor à sua mediação e
que também O qualifica a ser o Mediador que os pecadores carecem. Nosso
Mediador é alguém que pode identificar-se conosco, porque é perfeitamente
homem. E, ao mesmo tempo, pode interceder por nós, junto ao Pai, em
um relacionamento de igualdade, porque é perfeitamente Deus. Essa é a
12 João 1.14

mesma união que atribui infinito valor à justiça de Cristo, quando imputada
aos que crêem; a justiça dAquele que é Deus e, ao mesmo tempo, homem.
E a mesma união que valoriza infinitamente o sangue da expiação,
derramado na cruz pelos pecadores; o sangue dAquele que é Deus e, ao
mesmo tempo, homem. E a mesma união que valoriza imensamente sua
ressurreição. Ao ressuscitar, sendo Ele o cabeça do corpo dos que crêem,
ressuscitou não como um simples homem, mas como o próprio Deus.
Procuremos guardar estas coisas de modo indelével em nossos corações.
O segundo Adão é muito mais grandioso que o primeiro. O primeiro Adão
era meramente um homem e caiu. O segundo era, ao mesmo tempo, Deus
e homem; por isso, foi completamente vitorioso.
Ao concluir, recebamos essas verdades com um sentimento de
profunda gratidão, pois nelas existem abundância de consolação para todos
os que vêm a conhecer Cristo pela fé.
O Verbo realmente se fez carne? Então, Ele é alguém sensível às
aflições de seu povo, pois Ele mesmo experimentou o sofrimento, ao ser
tentado. Ele é todo-poderoso, porque é Deus; assim mesmo, identifica-se
conosco, porque é homem.
O Verbo realmente se fez carne? Então, Ele pode ser um exemplo
perfeito para nossa vida diária. Se tivesse andado entre nós como um anjo
ou espírito, jamais poderíamos imitá-Lo. Mas, por ter vivido entre nós
como homem, sabemos que o verdadeiro padrão de santidade é “andar
assim como ele andou” (1 Jo 2.6). Ele é um modelo perfeito, porque é
Deus; mas, também, um modelo que corresponde perfeitamente às nossas
necessidades, porque é homem.
Por último, o Verbo realmente se fez carne? Então, procuremos ver
em nosso corpo m ortal uma dignidade real e verdadeira, e não o
corrompamos pelo pecado. Fraco e vil como pode parecer, é um corpo
que o eterno Filho de Deus não se envergonhou de assumir e levá-lo ao
céu. Este simples fato é uma garantia de que Ele ressuscitará os nossos
corpos, no dia final, e os glorificará junto com o seu próprio corpo.

A Plenitude de Cristo;
Sua Superioridade a Moisés;
Cristo, Aquele que Revelou o Pai
Leia João 1.15-18

Essa passagem contém três grandes declarações sobre o Senhor Jesus


Cristo. Todas estão entre os principais fundamentos do cristianismo.
João 1.15-18 13

Primeiro, aprendemos que é Cristo, somente, quem supre todas as


necessidades espirituais do crente. Está escrito que “todos nós temos
recebido da sua plenitude e graça sobre graça” . Em Jesus Cristo há uma
plenitude imensurável. Como disse Paulo: “Aprouve a Deus que nele
residisse toda a plenitude” ; “Em quem todos os tesouros da sabedoria e do
conhecimento estão ocultos” (Cl 1.19; 2.3). NEle está guardado, como na
casa do tesouro, um suprimento ilimitado de tudo quanto o pecador necessita,
no tempo presente e na eternidade. Sua dádiva especial à igreja é o Espírito
de vida, o qual, assim como uma grande raiz, transporta a seiva e o vigor
espiritual de Cristo a todos os ramos que nEle crêem. Jesus Cristo é rico
em misericórdia, graça, sabedoria, justiça, santificação e redenção. Todos
os crentes, em todos os séculos, têm sido supridos pela plenitude de Cristo.
No tempo do Antigo Testamento, os crentes não entendiam com clareza a
fonte de onde tiravam seu suprimento. Os santos do Antigo Testamento
viram a Cristo de um modo distante, não face a face. Mas, desde o tempo
de Abel, todos os benefícios desfrutados pelos salvos, foram recebidos
exclusivamente através de Jesus Cristo. Todos os santos, na glória,
finalmente reconhecerão que devem a Cristo tudo o que são. Jesus provará
que Ele é tudo em todos.
Segundo, aprendemos sobre a grande superioridade de Cristo em
relação a Moisés e do evangelho à lei. Está escrito: “A lei foi dada por
intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” .
Moisés foi usado por Deus “como servo” , para entregar a Israel a lei
cerimonial e a lei moral (Hb 3.5). Como servo, foi fiel Àquele que o
chamou, mas era apenas um servo. A lei moral, que ele trouxe do monte
Sinai, era santa, justa e boa; porém, não era capaz de justificar. Não tinha
o poder de curar. Podia ferir, mas não curar. Ela suscitava “a ira” (Rm
4.15). Decretava a maldição contra qualquer desobediência.
A lei cerimonial, imposta por Moisés ao povo, segundo a ordenança
divina, tinha profundo significado e estava repleta de instruções simbólicas.
Suas ordenanças e cerimônias tornaram-na um excelente mestre, para
conduzir os homens a Cristo (G1 3.24), mas servia apenas de mestre. No
tocante à consciência, não podia aperfeiçoar aquele que a cumprisse (Hb
9.9). Colocava sobre os corações dos homens um jugo doloroso e
insuportável. Era um ministério de morte e condenação (2 Co 3.7-9). A
luz que os homens obtiveram de Moisés e da lei não é mais intensa do que
a luz de uma estrela comparada à luz do sol ao meio-dia.
Cristo, porém, veio ao mundo “como Filho” (Hb 3.6), tendo
inteiramente em suas mãos as chaves do tesouro de Deus, que deram acesso
à graça e à verdade. A graça veio por intermédio dEle, ao fazer plenamente
conhecido o plano gracioso de Deus para a salvação, através da fé em seu
sangue, e ao abrir a fonte da misericórdia a todos os povos. A verdade veio
14 João 1.15-18

por seu intermédio, ao cumprir em sua própria pessoa os símbolos do


Antigo Testamento e revelar-se como o verdadeiro sacrifício, o verdadeiro
propiciatório e o verdadeiro sacerdote. Não há dúvida de que havia alguma
“verdade e graça” na lei de Moisés; mas a graça de Deus, em sua pleni­
tude, e toda a verdade sobre a redenção não foram conhecidas até Jesus vir
ao mundo e morrer pelos pecadores.
Terceiro, aprendemos que somente Cristo revelou Deus, o Pai, aos
homens. Lemos que “ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigénito, que
está no seio do Pai, é quem o revelou” . Os olhos de qualquer mortal jamais
contemplaram o Pai. Nenhum homem suportaria contemplá-Lo. Mesmo a
Moisés foi dito: “Não me poderás ver a face, porquanto homem nenhum
verá a minha face e viverá” (Êx 33.20). No entanto, tudo o que o homem
mortal pode conhecer sobre Deus Pai é completamente revelado por Deus
Filho. Aquele que desde a eternidade estava no seio do Pai agradou-se em
tomar sobre si a nossa natureza; e, estando na forma de homem, revelou-
nos tudo o que nossa mente podia compreender sobre a perfeição do Pai.
Através das palavras, dos atos, da vida e da morte de Cristo, aprendemos
a respeito do Pai o máximo que nossas mentes falhas podem no momento
suportar. A sabedoria perfeita de Deus, seu grande poder, seu amor indizível
pelos pecadores, sua santidade incomparável e seu ódio pelo pecado não
poderiam ser demonstrados aos nossos olhos com mais clareza do que
através da vida e da morte de Cristo. Na verdade, Deus “foi manifestado
na carne” quando o Verbo assumiu um corpo (1 Tm 3.16). Ele é “o
resplendor da glória” do Pai “e a expressão exata do seu Ser” (Hb 1.3).
Ele mesmo disse: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30); “Quem vê a mim vê
o Pai” (Jo 14.9). “Porquanto nele habita corporalmente toda a plenitude da
Divindade” (Cl 2.9). Estas coisas são profundas e misteriosas, mas
verdadeiras.
Agora, após a leitura desses versículos, será possível honrarmos de­
mais a Cristo? Ou pensar sobre Ele coisas por demais elevadas? Devemos
banir de nossas mentes estes pensamentos indignos, para sempre. Apren­
damos a exaltá-Lo mais, em nossos corações, e a entregar com maior
confiança em suas mãos tudo o que aflige a nossa alma. Os homens fa­
cilmente cometerão erros, ao falar sobre as três pessoas da Trindade, se
não se apegarem cuidadosamente ao ensino das Escrituras. Porém, homem
algum jamais errará por honrar em demasia o Deus Filho. Cristo é o ponto
de convergência entre a Trindade e a alma do pecador. “Quem não honra
o Filho não honra o Pai que o enviou” (Jo 5.23).
João 1.19-28 15

A Humildade de João Batista;


A Cegueira dos Judeus Não-convertidos
Leia João 1.19-28

Os versículos que acabamos de ler iniciam a parte histórica do


Evangelho de João. Até aqui lemos declarações profundas e significativas
sobre a natureza divina de Cristo, sua encarnação e dignidade. Chegamos
agora à plena narrativa do ministério terreno de Cristo, dos atos e das
palavras que Ele dirigiu aos homens. Assim como os escritores dos demais
evangelhos, João inicia relatando o testemunho de João Batista.
Temos nesses versículos um exemplo de humildade verdadeira. Ele é
fornecido pelo próprio João Batista, que era um homem de notável santidade.
Poucos nomes se destacam mais do que o dele, entre os bons e grandes
homens dos registros bíblicos. O próprio Senhor Jesus declarou: “Entre os
nascidos de mulher, ninguém apareceu maior do que João Batista” (Mt
11.11); e: “Ele era a lâmpada que ardia e alumiava” (Jo 5.35). No entanto,
aqui este homem notável é visto em atitude de total modéstia e auto-
humilhação. Ele afasta de si mesmo a honra que os judeus de Jerusalém
queriam lhe prestar. Dispensa todos os títulos lisonjeiros que lhe atribuíram.
Fala de si mesmo como sendo apenas a “voz do que clama no deserto” e
aquele que “batiza com água” . Em alta voz proclama que entre os judeus
há Alguém que é maior do que ele, cujas correias das sandálias não é digno
de desatar. Não busca a própria glória, mas a de Cristo. Sua missão é
exaltar a Cristo, e a esta missão ele se atém firmemente.
Em toda a história da igreja, os homens de Deus mais notáveis foram
os que tiveram o espírito semelhante ao de João Batista. Foram bem
diferentes quanto aos dons, conhecimento e caráter, de maneira geral;
mas, em um aspecto, bem semelhantes — foram homens que se cingiram
de “humildade” (1 Pe 5.5). Estes não buscavam a sua própria honra.
Pensavam com modéstia a respeito de si mesmos. Estavam sempre prontos
a diminuírem, para que somente Cristo crescesse; a serem nada, para que
Cristo fosse tudo. E por isso receberam de Deus a honra. “O que se humilha
será exaltado” (Lc 14.11).
Se professamos ser cristãos verdadeiros, procuremos ter um espírito
semelhante ao de João Batista. Atentemos para a humildade, que é a virtude
imprescindível à vida cristã. Não desfrutaremos uma verdadeira religião
pessoal até lançarmos fora os conceitos elevados sobre nós mesmos e
reconhecermos que somos pecadores. A humildade é a virtude que deve
ser cultivada na vida dos santos, os quais são indesculpáveis por negligenciá-
la. Nem todos os filhos de Deus possuem dons, dinheiro, tempo e
16 João 1.19-28

oportunidades para influenciar muitas pessoas; mas todos devem ser


humildes. Esta é a virtude que está acima das outras e se destacará com
mais beleza, ao final de nossas vidas. Nunca sentiremos tanto a necessidade
de humildade quanto no dia em que estivermos no leito de morte ou diante
do trono de Cristo, para o julgamento. Então, nossa vida se parecerá com
uma grande lista de imperfeições; nós mesmos seremos nada, mas Cristo
será tudo.
Podemos observar nesses versículos um exemplo lamentável da
cegueira do homem não-convertido. Esse exemplo é visto nos judeus que
vieram interrogar João Batista. Eles professavam estar aguardando o
Messias. E, assim como os fariseus, orgulhavam-se de ser filhos de Abraão
e o alvo das alianças. Sentiam-se seguros por possuírem a lei e se
vangloriavam de terem a Deus. Diziam conhecer a vontade dEle e crer em
suas promessas. Confiavam em ser guias dos cegos e luz para os que se
assentavam nas trevas (Rm 2.17-19). Mas, ao mesmo tempo, suas almas
se encontravam em trevas profundas. No meio deles, como disse João
Batista, estava Alguém que não conheciam. O próprio Cristo, o Messias
prometido, estava entre eles; contudo, não O viam, não O recebiam, não
O reconheciam nem criam nEle. E, pior ainda, a grande maioria daqueles
homens jamais chegaria a conhecê-Lo! As palavras de João Batista foram
uma descrição profética de uma situação que perdurou por todo o ministério
terreno do Senhor Jesus Cristo. Ele estava no meio dos judeus, mas estes
não O conheceram, e a maioria deles morreu em seus pecados.
É algo sério pensar que, em nossos dias, essas palavras de João
Batista se aplicam da mesma maneira a milhares de pessoas. Cristo ainda
está no meio de tantos que não O vêem, nem O conhecem, nem crêem
nEle. Cristo está passando por muitas igrejas e por muitas congregações; a
grande maioria não tem olhos para vê-Lo nem ouvidos para ouvi-Lo. Parece
pairar sobre eles um espírito de dormência. Conhecem prazeres, dinheiro
e o mundo, mas não a Cristo. O reino de Deus está próximo a eles, mas
estão dormindo. A salvação está ao seu alcance, porém eles dormem. A
misericórdia, a graça, a paz e a vida eterna encontram-se tão próximas
deles, que podem ser tocadas; contudo, dormem. Cristo está no meio deles,
mas não O conhecem. E triste descrevermos estas coisas, mas todo fiel mi­
nistro de Cristo, assim como João Batista, testificará que são verdadeiras.
E nós, o que temos feito? Afinal de contas, esta é a grande questão
que nos preocupa. Conhecemos a extensão dos nossos privilégios espirituais,
em nosso país e em nossos dias? Estamos conscientes de que Cristo está
passando por todos os cantos de nossa terra, convidando almas a virem a
Ele e tornarem-se seus discípulos? Sabemos que o tempo é curto e que a
porta de misericórdia em breve se fechará para sempre? Porventura, reco­
nhecemos que o Cristo agora rejeitado logo será inacessível? Felizes os
João 1.19-28 17

que podem dar boas respostas a estas perguntas e reconhecem a oportuni­


dade de sua “visitação” (Lc 19.44). No último dia, será melhor nunca
haver nascido do que ter Jesus Cristo presente entre nós e não tê-Lo
conhecido.

Cristo, o Cordeiro de Deus;


Aquele que Tira o Pecado e
Batiza com o Espírito Santo
Leia João 1.29-34

Essa passagem contém um versículo que deveria estar gravado em


grandes letras na memória de todo leitor da Bíblia. Todas as estrelas do
céu são lindas e brilhantes, porém a glória de uma estrela excede à de
outra. Da mesma maneira, todos os textos das Escrituras são inspirados e
úteis; contudo, alguns são mais valiosos que outros. Dentre os mais valiosos,
destaca-se o primeiro versículo da passagem que acabamos de ler. Jamais
foi dado, sobre a face da terra, um testemunho mais completo a respeito de
Cristo do que esse de João Batista.
Primeiro, notemos nessa passagem o nome peculiar que ele atribui a
Cristo. João O chama de “o Cordeiro de Deus” . Ao contrário do que
alguns supõem, por este nome não se compreende simplesmente que Cristo
era manso e gentil como um cordeiro. Sem dúvida, isto é verdadeiro, mas
seria apenas uma pequena parcela da verdade. Há razões mais grandiosas
para Cristo ser chamado assim. Compreendemos por este nome que Cristo
foi o grande sacrifício pelo pecado; Aquele que veio para fazer a expiação
pela culpa do pecado, através de sua morte na cruz. Ele era o Cordeiro
verdadeiro que Deus haveria de prover, mencionado por Abraão a Isaque
no monte Moriá (Gn 22.8). Era o Cordeiro verdadeiro, para o qual apontava
cada sacrifício feito no templo, de manhã e à noite. Era o Cordeiro sobre
o qual Isaías profetizou que seria “levado ao matadouro” (Is 53.7). Era o
Cordeiro verdadeiro simbolizado de maneira vívida pelo cordeiro pascal,
no Egito. Enfim, Cristo era a grande propiciação pelo pecado, a qual Deus
prometera enviar ao mundo, desde a eternidade. Ele era o Cordeiro de
Deus.
Fiquemos atentos para que, ao pensarmos em Cristo, sempre o faça­
mos conforme João Batista o apresentou nesse texto. Sirvamos a Cristo
fielmente, como nosso Mestre. Obedeçamos-Lhe lealmente, como nosso
Rei. Atentemos aos seus ensinos, como nosso Profeta. Sigamos diligen­
temente os seus passos, tendo-0 como exemplo. Aguardemos intensamente
18 João 1.29-34

a sua vinda, como Aquele que há de redimir nosso corpo e nossa alma.
Acima de tudo, prezemo-Lo como o que foi sacrificado por nós e
descansemos todo o nosso fardo em sua morte, oferecida como expiação
pelo pecado. Que o seu sangue seja mais precioso para nós, cada dia que
vivermos! Em todas as coisas que nos gloriamos a respeito de Cristo,
gloriemo-nos, acima de tudo, em sua cruz. Esta é a pedra angular, este é o
lugar seguro, este é o fundamento da verdadeira teologia cristã. Não
estaremos certos de qualquer coisa acerca de Cristo, até que O vejamos
pela perspectiva de João Batista e nos regozijemos nEle como o “Cordeiro
que foi morto”.
Segundo, notemos nessa passagem a obra peculiar que Cristo realiza,
na descrição de João Batista. João diz que Cristo “tira o pecado do mundo” .
Cristo é o Salvador. Ele não veio ao mundo para ser um conquistador, um
filósofo ou um mero professor de moralidade. Veio para salvar pecadores.
Veio para fazer o que o homem jamais poderia fazer por si mesmo; para
conceder o que o dinheiro e a cultura jamais poderiam obter; para realizar
o que é essencial à felicidade do homem; enfim, veio para “tirar o pecado” .
Cristo é um salvador completo. Ele “tira o pecado” . Não fez apenas
uma vaga proclamação de perdão e misericórdia. Ele levou sobre si os
nossos pecados e os afastou de nós. Consentiu em tomar e carregar “ele
mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados” (1 Pe 2.24).
Os pecados de todo aquele que crê em Jesus tornam-se como se nunca
tivessem sido cometidos. O Cordeiro de Deus os removeu completamente.
Cristo é um Salvador poderoso, um Salvador para toda a humanidade.
Ele “tira o pecado do mundo”; não morreu apenas para os judeus, mas
também para os gentios; não sofreu somente por algumas pessoas, mas por
toda a raça humana. O pagamento que efetuou na cruz é mais que suficiente
para saldar os débitos de todos. O sangue que derramou foi precioso o
suficiente para lavar os pecados de todos. A expiação feita na cruz foi
suficiente para toda a humanidade, embora seja eficaz apenas para os que
crêem. O pecado que Ele tomou e carregou, sobre a cruz, era o pecado do
mundo todo.
Cristo é um Salvador perpétuo e incansável. Ele “tira” o pecado
daqueles que nEle crêem. A cada dia purifica, limpa e lava as almas de seu
povo; a cada dia concede e renova sobre eles a sua misericórdia. Não
cessou de trabalhar por seus santos, quando morreu por eles na cruz. Ele
vive no céu como um sacerdote, apresentando continuamente o seu sacrifício
perante Deus. Cristo ainda trabalha ao dispensar a sua graça e providência
ao seu povo. Ele tira continuamente o pecado.
Estas verdades são realmente preciosas. Se todos os que as conhecem
aplicassem-nas em suas vidas, a igreja de Cristo seria sobremodo abençoada!
A própria familiaridade que temos com textos como esses é um dos maiores
João 1.29-34 19

perigos que enfrentamos. Felizes os que não somente memorizam esses


textos, mas também deles se alimentam, em seus corações!
Por último, notemos nessa passagem o ofício atribuído a Cristo, por
João Batista. João iala sobre Ele como “o que batiza com o Espírito Santo” .
O batismo aqui referido não é o batismo com água. Não se trata de imersão
ou aspersão. Não é um batismo que pertence exclusivamente às crianças
ou aos adultos. Não pode ser ministrado por homens, sejam episcopais,
presbiterianos, independentes ou metodistas, leigos ou ministros. É o
batismo que o grande Cabeça da igreja guarda, com exclusividade, em
suas próprias mãos e consiste em implantar a graça no homem interior. É
o mesmo que o novo nascimento. É o batismo do coração, não do corpo.
É o batismo que o ladrão arrependido recebeu, embora não tenha sido
aspergido ou submerso em água por mãos humanas. É o batismo que Ananias
e Safira não receberam, embora tenham sido admitidos na comunhão da
igreja, por mãos de apóstolos.
Devemos estabelecer, como uma verdade fundamenta] de nossa fé,
que João Batista se refere ao batismo que é absolutamente essencial para a
salvação. E ótimo ser batizado na igreja visível, porém é mais grandioso
ser batizado na igreja que é formada somente de crentes genuínos. O batismo
nas águas é uma ordenança que traz grandes bênçãos e benefícios;
negligenciá-lo é um grande pecado. Mas o batismo do Espírito Santo é de
importância extremamente superior. O homem que morre sem ter o coração
batizado por Cristo nunca poderá ser salvo.
Ao terminar essa passagem, perguntemos a nós mesmos se somos
batizados com o Espírito Santo e se temos um interesse genuíno no Cordeiro
de Deus. Infelizm ente, m ilhares de pessoas gastam o tempo com
controvérsias sobre o batismo nas águas e negligenciam o batismo do
coração. Outras milhares ou se contentam com um conhecimento intelectual
acerca do Cordeiro de Deus ou nunca O buscaram pela fé, para que os seus
pecados fossem realmente tirados. Estejamos atentos para que tenhamos fé
e um coração novo, para a salvação de nossas almas.

O bem Produzido pelo Testemunhar de Cristo;


O bem que os Crentes Podem
Proporcionar a Outros
Leia João 1.35-42

Esses versículos deveriam constituir um interesse especial para todo


cristão verdadeiro. Eles descrevem os primórdios da igreja de Cristo. A
20 João 1.35-42

igreja, que hoje é constituída de inúmeros membros, no princípio consistia


somente de dois fracos membros. O chamado feito a esses dois membros
encontra-se na passagem que acabamos de ler.
Vemos nesses versículos o bem produzido quando testemunhamos de
Cristo continuamente. Parece não ter havido qualquer resultado na primeira
vez que João Batista clamou: “Eis o Cordeiro de Deus” . Não somos in­
formados que alguém tenha ouvido, questionado a respeito e crido. Mas,
no dia seguinte, quando João repetiu estas mesmas palavras, dois de seus
“discípulos, ouvindo-o dizer isto, seguiram Jesus” . E foram recebidos
com grande graça por Aquele a quem passaram a seguir. “Foram, pois, e
viram onde Jesus estava morando; e ficaram com ele aquele dia” . Certa­
mente, aquele foi o dia mais feliz e abençoado de suas vidas. Desse dia em
diante, tomaram-se discípulos leais ao Messias, que acabaram de conhecer.
Tomaram a cruz; continuaram ao lado de Cristo nas tentações por Ele
enfrentadas; seguiram-No, por onde quer que ia. Ao menos um deles, se
não os dois, tomou-se um apóstolo escolhido e um dos principais edi­
ficadores da igreja cristã. E tudo isso aconteceu devido ao testemunho de
João Batista: “Eis o Cordeiro de Deus!” Esse testemunho foi uma pequena
semente, mas produziu grandes frutos.
Este simples acontecimento nps oferecé um exemplo de como as
almas têm recebido benefícios da igreja cristã, em qualquer época. Por um
testemunho como esse, sem ouvir outro, mulheres e homens têm sido
convertidos e salvos. É por exaltar a Cristo — não a igreja, as ordenanças
ou o ministério — que os corações têm sido movidos e se voltado para
Deus. Aos olhos do mundo esse testemunho pode parecer uma fraqueza e
uma grande tolice. Mas, assim como as trombetas cujo som fez ruir os
muros de Jerico, esse testemunho é poderoso para derrubar fortalezas. Em
todos os séculos, a história do Cordeiro de Deus, o qual foi crucificado,
tem provado ser o poder de Deus para a salvação. Os que mais têm feito
pela causa de Cristo, em toda parte do mundo, são os homens semelhantes
a João Batista. Estes não têm clamado: “Eis-me aqui!” , “Eis a igreja!” ,
ou: “Eis as ordenanças! ” . Antes, o seu clamor tem sido: “Eis o Cordeiro! ”
Se almas devem ser salvas, então os homens devem ser guiados diretamente
a Cristo.
Contudo, há algo que nunca deve ser esquecido: é necessário haver
uma paciente constância na pregação e no ensino da verdade, se queremos
ver o bem sendo realizado. Cristo deve ser apresentado continuamente
como o “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” . A história da
graça divina deve ser contada repetidamente, linha após linha, preceito
após preceito. É o gotejar contínuo que desgasta a pedra. Jamais falhará a
promessa de Deus: “Assim será a palavra que sair da minha boca: não
voltará para mim vazia” (Is 55.11). Em nenhum lugar está escrito que a
João 1.35-42 21

palavra efetuará o bem na primeira vez que for pregada. Não foi a primeira,
mas a segunda proclamação de João Batista que levou André e seu
companheiro a seguirem a Jesus.
Vemos, ainda, o bem que o crente pode proporcionar a outros, ao
lhes falar a respeito de Cristo. André acabara de se tomar um discípulo e
foi contar sua grande descoberta a Simão, seu irmão. Assim como alguém
que inesperadamente ouve uma boa notícia, ele se apressa a comunicá-la
àquele que lhe era mais querido e chegado. Disse ao irmão: “Achamos o
Messias” , e “o levou a Jesus” . Quem pode dizer o que teria acontecido se
André tivesse um espírito não comunicativo, reservado e calado, como
muitos crentes nos dias atuais? Talvez seu irmão teria continuado a viver
como um pescador, no lago da Galiléia, até o fim da vida. Mas, para a
felicidade de Simão, André não era este tipo de pessoa. Ele era um homem
cujo coração estava tão repleto de bênçãos, que não podia ficar calado. O
grande apóstolo Pedro devia ao testemunho sincero dado por André o
primeiro facho de luz derramado em sua alma.
Este fato que está diante de nós é impressionante e pode muito nos
ensinar. Dos três primeiros membros da igreja de Cristo, pelo menos um
foi levado a Jesus através de uma palavra dada em particular por um parente.
Parece que Pedro não tinha ouvido qualquer pregação pública nem visto
qualquer milagre. Ele não foi convencido por nenhuma argumentação vee­
mente; apenas ouviu seu irmão lhe dizer que encontrara o Salvador, e ime­
diatamente o Espírito começou a operar em sua alma. O simples testemu­
nho de um coração ardoroso serviu como o primeiro elo da corrente que o
resgatou e o ligou a Cristo. As palavras de André — “achamos o Messias”
— iniciaram em Pedro a grande obra que o tomaria um pilar da igreja.
Seria uma grande bênção para a igreja de Cristo, se todos os crentes
fossem semelhantes a André! Seria uma grande bênção para as almas
perdidas, se todos os homens e mulheres convertidos falassem com seus
amigos e parentes sobre as coisas espirituais e contassem aquilo que
encontraram! Quanto bem haveria de ser feito! Quantos dos que agora
vivem e morrem na incredulidade seriam levados a Jesus! A tarefa de
testificar do evangelho da graça de Deus não deveria ser relegada aos
ministros somente. Todos os que receberam misericórdia devem procurar
declarar com os lábios aquilo que Deus fez por suas almas. Os que foram
libertos do poder do diabo devem ir para casa e anunciar aos seus “tudo o
que o Senhor” lhes fez. Humanamente falando, há milhares de pessoas
que não ouviriam um sermão, mas dariam ouvidos a um amigo. Cada
crente deve ser um missionário para seus filhos, família, empregados,
vizinhos e amigos. Com toda a certeza, se nada temos a dizer aos outros a
respeito de Jesus, faremos bem em duvidar que O conhecemos como nosso
Salvador pessoal.
22 João 1.35-42

Devemos procurar estar entre os que realmente seguem a Cristo e


nEle permanecem. Não é o suficiente ouvir a pregação de sua Palavra,
vinda do púlpito, ou ler o que sobre Ele está escrito nos livros. Na verdade,
devemos segui-Lo, derramar os corações em sua presença e manter com
Ele uma comunhão pessoal. Somente assim nos sentiremos constrangidos
a falar de Cristo a outros. Aquele que O conhece apenas pelo ouvir nunca
fará muito para a expansão da causa de Cristo na terra.

Almas Conduzidas a Cristo de Várias Maneiras;


Cristo no Antigo Testamento;
O Conselho de Filipe a Natanael;
O Nobre Caráter de Natanael
Leia João 1.43-51

Nesses versículos, observemos quão variados são os modos pelos


quais as almas são conduzidas ao estreito caminho da vida. Somos
informados sobre um homem chamado Filipe, que foi acrescido ao pequeno
grupo dos discípulos de Cristo. Ele não foi atraído pelo testemunho de
João Batista, assim como André e seus companheiros, ou pela declaração
sincera de um irmão, tal como Simão Pedro. Foi chamado pelo próprio
Cristo; em sua chamada não foi utilizado homem algum. No entanto,
demonstrou o mesmo tipo de vida e fé que os outros, os quais eram discípulos
antes dele. Embora tenham vindo por maneiras diferentes, todos tomaram
o mesmo caminho, abraçaram as mesmas verdades, serviram ao mesmo
Mestre; e, ao final, alcançaram o mesmo lar.
Este fato é extremamente importante. Explica a história do povo de
Deus, vindos de todas as línguas e de todas as épocas. Há diversidades de
operações na salvação de almas. Todos os crentes verdadeiros são
conduzidos por um só Espírito, lavados em um só sangue, servem a um só
Senhor, descansam em um só Salvador, crêem na Verdade e vivem por
uma mesma regra. Mas nem todos são convertidos de uma única manei­
ra. Nem todos passam pela mesma experiência. O Espírito Santo age como
soberano na conversão; chama a cada um, individualmente, de acordo
com a sua vontade.
Uma cuidadosa ponderação sobre a questão nos poupará muitos
problemas. Devemos ter cautela para não avaliarmos a nossa própria
experiência pela experiência de outros crentes. Precisamos, também, tomar
cuidado ao negar que alguém possui a graça de Deus, apenas porque foi
João 1.43-51 23

conduzido a ela de uma maneira diferente da nossa. Tal pessoa recebeu a


graça verdadeira, que vem de Deus? Esta é a questão que deve nos
preocupar. É uma pessoa arrependida? É crente? Vive uma vida santa? Se
as respostas a estas indagações são satisfatórias, estejamos contentes. Não
importa a experiência pela qual a pessoa tenha passado, se, ao final, foi
conduzida ao caminho certo.
Observemos, também, o quanto Cristo está presente no Antigo
Testamento. Lemos que, quando Filipe descreveu Cristo a Natanael, disse-
lhe: “Achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei, e a quem se referiram
os profetas” .
A pessoa de Cristo é a essência do Antigo Testamento. A Ele apontam
as promessas dos dias de Adão, Enoque, Noé, Abraão, Isaque e Jacó. A
Ele também aponta cada sacrifício do culto cerimonial, entregue no Monte
Sinai. Cada sacerdote, cada parte do tabernáculo, cada juiz e cada libertador
de Israel eram figuras da pessoa Cristo. Ele era o profeta semelhante a
Moisés, o qual Deus prometera enviar; era o rei da casa de Davi, que veio
para ser Senhor de Davi, bem como seu filho. Era o filho da virgem e o
cordeiro, preditos por Isaías; o ramo de justiça, mencionado por Jeremias;
o verdadeiro pastor, antevisto por Ezequiel; o mensageiro da aliança,
prometido por Malaquias; e o Messias que, de acordo com Daniel, haveria
de ser morto, embora não em favor de Si mesmo. Quanto mais lemos o
Antigo Testamento, tanto mais claro se torna o testemunho que ali
encontramos acerca de Cristo. A iluminação da qual gozavam os inspirados
escritores do passado não é mais do que uma fraca luz, se comparada à luz
do evangelho. Mas a Pessoa que de longe aguardavam e na qual fixavam
os olhos era apenas uma. O Espírito que neles estava testificava de Cristo
(1 Pe 1.11).
Será que tropeçamos nestas declarações? Achamos difícil ver Jesus
nas páginas do Antigo Testamento, porque não encontramos lá o seu nome?
Devemos estar certos de que a falta é toda nossa. E a nossa visão espiritual
que deve receber a culpa, não as Escrituras. Os olhos do nosso entendimento
precisam ser iluminados. O véu ainda tem de ser retirado. Oremos para
que tenhamos um espírito mais humilde, como de uma criança, pronto a
aprender. Leiamos, novamente, o que Moisés e os profetas escreveram.
Cristo está presente nesses escritos, embora talvez nossos olhos ainda não
O tenham visto. Não descansemos até que estejamos de acordo com a
afirmação do Senhor Jesus a respeito das Escrituras: “São elas mesmas
que testificam de mim” (Jo 5.39).
Notemos, por último, o bom conselho dado por Filipe a Natanael.
Natanael estava cheio de dúvidas sobre o Salvador anunciado por Filipe.
“De Nazaré pode sair alguma coisa boa?” , perguntou Natanael. E qual foi
a resposta de Filipe? “Vem, e vê.”
24 João 1.43-51

Seria impossível pensar em um conselho mais sábio. Se Filipe tivesse


reprovado a descrença de Natanael, provavelmente teria feito com que ele
recuasse e se ofendesse. Se tivesse argumentado com ele, talvez teria falhado
em convencê-lo ou confirmado suas dúvidas. Mas, ao convidá-lo a verificar
por si mesmo, demonstrou inteira confiança na verdade que estava afirmando
e sua disposição de colocá-la à prova. O resultado deste conselho mostra a
sabedoria das palavras de Filipe. Foi devido ao convite franco — “Vem, e
vê” — que bem cedo Natanael conheceu a Cristo.
Se nos consideramos crentes verdadeiros, jamais devemos temer falar
às pessoas sobre suas almas, assim como Filipe o fez a Natanael. Sejamos
ousados em convidá-las a provar o cristianismo que professamos. Com
confiança digamos que não podem saber o real valor do que cremos, até
que experimentem por si mesmas. E procuremos assegurá-las de que o
verdadeiro cristianismo tem resposta a qualquer inquirição. Não há nele
segredos, nem coisa alguma a ocultar. A fé e a prática da vida cristã são
combatidas simplesmente por causa da ignorância que existe a respeito
delas. Seus inimigos proferem palavras de maldade sobre coisas que
desconhecem. Eles não compreendem o que dizem nem o que afirmam. A
forma com que Filipe agiu é a maneira principal de promovermos o bem;
disto podemos estar certos. Poucas pessoas são persuadidas por argu­
mentações. Menos ainda são levadas ao arrependimento por sentirem medo.
De modo geral, o crente que promove maior bem às almas é aquele que,
com simplicidade, diz aos seus amigos: “Encontrei o Salvador; venham e
vejam-No!”
Observemos, por último, a descrição feita por Jesus a respeito do
caráter de Natanael. Ele o chama de “um verdadeiro israelita, em quem
não há dolo” . Sem dúvida, Natanael era um verdadeiro filho de Deus; um
filho que estava passando por tempos difíceis. Ele fazia parte de um rebanho
bem pequeno. Quando o nosso Senhor iniciou seu ministério, Natanael
vivia por fé e esperava contritamente o Redentor prometido, assim como
Simeão, Ana e outros judeus piedosos. Era possuidor de uma virtude que
pode ser concedida somente pela graça — um coração honesto e sem dolo.
Provavelmente seu conhecimento era pequeno, e a luz de sua visão espiritual
era fraca. Mas era um homem que procurava viver de acordo com o que
podia compreender. Usava com diligência o conhecimento que possuía.
Seu propósito era firme, apesar de não ter uma visão tão ampla. O seu
discernimento espiritual era sincero, apesar de não ser muito profundo. O
que ele pôde enxergar nas Escrituras, a isso se apegou firmemente, apesar
dos fariseus, dos saduceus e de toda a religiosidade em voga naqueles dias.
Natanael era um crente sincero, que seguia o padrão do Antigo Testamento
e se conservava firme. E nisto está o segredo do elogio que Jesus fez. Ele
declarou que ali estava um verdadeiro filho de Abraão, um judeu
João 1.43-51 25

interiormente, circuncidado no espírito, como também segundo a letra da


lei; um israelita de coração e um filho de Jacó por nascimento.
Oremos para que sejamos semelhantes a Natanael. É de um valor
incalculável possuirmos um coração sincero, sem preconceitos; uma
disposição de seguir a verdade, aonde quer que ela nos conduza; um desejo
puro e ardente de sermos ensinados e conduzidos pelo Espírito; e uma total
determinação para pôr em prática cada conhecimento que temos. Um homem
que tem um espírito assim poderá viver em meio a trevas profundas e estar
rodeado por toda sorte de coisas que trazem prejuízos à alma; mas Jesus
cuidará para que este homem não erre o caminho para o céu. O Senhor
“guia os humildes na justiça e ensina aos mansos o seu caminho” (SI
25.9).

Matrimônio — Uma Condição de Honra;


A Legitimidade da Alegria e do Regozijo;
O Infinito Poder de Cristo
Leia João 2.1-11

O milagre descrito nesses versículos possui interesse especial aos


olhos do crente verdadeiro. É o primeiro dos muitos milagres realizados
por Jesus, durante sua vida na terra. Somos informados que “com este,
deu Jesus princípio a seus sinais, em Caná da Galiléia” . Como os outros
milagres que João foi inspirado a registrar, este foi relatado com muitos
detalhes e pormenores. E, também como os demais milagres no Evangelho
de João, este se encontra repleto de lições espirituais.
Primeiramente, vemos através desses versículos o quanto é digno de
honra o matrimônio, aos olhos de Cristo. Estar presente em um “casamento”
foi basicamente o primeiro ato público no ministério do nosso Senhor.
O casamento não é um sacramento, como afirma a Igreja de Roma. E
simplesmente algo ordenado por Deus, para o benefício do homem. Mas é
uma instituição que nunca deve ser tratada com leviandade ou vista com
desrespeito. O culto de casamento celebrado nas igrejas evangélicas refere-
se apropriadamente ao matrimônio como “uma condição de honra, instituído
por Deus na época da inocência do homem, simbolizando para nós a união
mística entre Cristo e sua igreja” . No lugar onde o laço matrimonial é
pouco valorizado, a condição moral da sociedade nunca é saudável e a
vida espiritual verdadeira jamais floresce. Os que menosprezam o casamento
não têm a mente de Cristo. Aquele que, com o seu primeiro milagre em
Caná, embelezou o ato matrimonial e com a sua presença o adornou con­
26 João 2.1-11

tinua o mesmo hoje. O Espírito Santo inspirou o escritor da carta aos


Hebreus a escrever: “Digno de honra entre todos seja o matrimônio” (Hb
13.4).
Uma coisa, entretanto, não deve ser esquecida. O casamento é um
passo que influi imensamente na felicidade e no bem-estar espiritual de
duas almas imortais; por isso, nunca deveria ser assumido de maneira
“irrefletida, leviana e sem a devida consideração” . Para um casamento ser
verdadeiramente feliz, é preciso ser assumido com “reverência, prudência,
sobriedade e no temor a Deus” . A presença e a bênção de Cristo são
essenciais para um casamento feliz. Não se espera que venha a progredir a
união que não dá lugar para Cristo e seus seguidores.
Aprendemos ainda, nesses versículos, que há ocasiões em que a
alegria e o regozijo são legitimamente apropriados. O Senhor Jesus Cristo
sancionou com a sua presença a legitimidade de uma festa de casamento.
Ele não recusou o convite para o “casamento em Caná da Galiléia” .
Eclesiastes 10.19, diz: “O festim faz-se para rir, o vinho alegra a vida” . O
texto de João nos mostra que Jesus deu sua aprovação a este tipo de festa.
O verdadeiro cristianismo nunca pretendeu tomar o homem um ser
melancólico. Ao contrário, seu objetivo foi sempre o de promover gozo
genuíno e felicidade entre os homens. É inquestionável que o servo de
Cristo nada tem a ver com shows, bailes, teatros e outras diversões
semelhantes, que tendem à frivolidade, ao desregramento e a uma vida de
pecado. Por outro lado, o servo de Cristo não tem o direito de entregar a
Satanás e ao mundo as recreações inofensivas e atividades que promovem
a reunião da família. O crente que se retrai completamente de outras
amizades e vive sobre a terra com um rosto triste, como se estivesse sempre
diante de um funeral, causa realmente um prejuízo ao evangelho. Ter um
espírito jovial e bondoso é bastante recomendável para o crente. É uma
grande infelicidade para o cristianismo quando o crente não pode sorrir.
Um coração alegre e uma prontidão em participar de toda recreação saudável
são atitudes de valor inestimável e de grande proveito para amenizar os
preconceitos, remover do caminho os empecilhos e preparar o coração
para o evangelho e para Cristo.
Sem dúvida, o assunto que estou abordando é delicado. Em nenhum
outro aspecto da prática cristã é tão difícil manter o equilíbrio entre o
legítimo e o ilegítimo, entre o correto e o incorreto. De fato, é difícil ser ao
mesmo tempo alegre e prudente. Um espírito jovial cai facilmente em
frivolidades. Aceitar muitos convites para festas conduz ao desperdício de
tempo e empobrece a alma. Comer e beber com freqüência em companhia
de incrédulos e estar com eles constantemente enfraquece e se toma um
grande prejuízo à vida espiritual. Nesta área, assim como em todas as
outras, o crente precisa estar alerta. Cada crente deve conhecer suas próprias
João 2.1-11 27

limitações e seu temperamento natural e agir de modo apropriado. Alguns


crentes podem ir, sem risco pessoal, a certos lugares que outros devem
evitar. Feliz o que pode usar sua liberdade cristã sem abusá-la! É possível
alguém ficar com a alma profundamente ferida, ao participar de uma festa
de casamento e banquetear-se com amigos.
Quanto a este assunto podemos estabelecer uma regra áurea, cuja
aplicação nos poupará muitos problemas. Cuidemos em freqüentar as festas
sempre no mesmo espírito do nosso Mestre divino e jamais estejamos em
lugares que Ele não aceitaria estar. Assim como Cristo, procuremos estar
sempre tratando dos “negócios” do nosso Pai (Lc 2.49 - ARC). Assim
como Ele, de boa vontade promovamos a alegria e o regozijo. Mas,
esforcemo-nos para que seja uma alegria isenta de pecado e, melhor ainda,
que constitua a alegria do Senhor. Empenhemo-nos em ser como o sal da
graça para as nossas amizades e dar uma palavra apropriada a cada pessoa
com quem falamos. A sociedade em que vivemos recebe imensos benefícios
quando mantemos um tom saudável em nossas conversações. Jamais nos
envergonhemos de mostrar o que realmente somos e de fazer que os homens
saibam a quem pertencemos e a quem servimos. Poderemos dizer: “Quem,
porém, é suficiente para estas coisas?” Entretanto, se Cristo foi a uma
festa de casamento em Caná, certamente há coisas que os crentes podem
fazer em ocasiões semelhantes. Devem apenas lembrar que, se tiverem de
ir a um lugar onde seu Mestre também iria, deverão ir no mesmo espírito
que Ele foi.
Por último, aprendemos sobre o infinito poder do nosso Senhor Jesus
Cristo. Tomamos conhecimento de um milagre que Jesus fez, quando acabou
o vinho naquele casamento. Por um simples ato de sua vontade, Ele trans­
formou a água em vinho; e assim supriu a necessidade de todos os con­
vidados.
Merece atenção especial a maneira como o milagre ocorreu. Não
somos informados de qualquer ação exterior que tenha precedido ou
acompanhado a realização do milagre. Não é dito que Cristo tocou os
jarros com a água que seria transformada em vinho. Não lemos que tenha
ordenado à água para que mudasse suas propriedades ou que tenha orado
ao Pai Celestial. Ele simplesmente desejou que houvesse a mudança, e ela
ocorreu. Em nenhuma parte da Bíblia lemos sobre qualquer profeta ou
apóstolo que tenha operado um milagre seguindo estes mesmos padrões.
Jesus Cristo, que pôde fazer de tal forma uma obra tão poderosa, era o
próprio Deus.
É maravilhoso pensar que o mesmo infinito poder de vontade,
demonstrado ali pelo nosso Senhor ainda é exercido em favor daqueles que
crêem nEle. Não necessitam da presença física de Cristo para advogar a
causa deles. Não há razão de ficarem deprimidos, porque não vêem Cristo
28 João 2.1-11

a interceder por eles ou por não poderem tocá-Lo e abraçá-Lo, à procura


de proteção. Se Cristo deseja a salvação e o suprimento diário de todas as
necessidades espirituais dos que Lhe pertencem, estes se encontram seguros
e bem cuidados, como se O estivessem vendo de perto. A vontade de
Cristo é tão poderosa e efetiva quanto os atos executados por Ele. A vontade
dAquele que disse ao Pai: “A minha vontade é que onde eu estou, estejam
também comigo os que me deste” é uma vontade que tem todo o poder,
nos céus e na terra, e que prevalece (Jo 17.24).
Felizes os que, assim como os discípulos, crêem nAquele que realizou
esse milagre. Algum dia haverá uma festa muito maior do que a de Caná,
quando o próprio Cristo será o noivo e os crentes, a noiva. Uma glória
mais intensa se manifestará, quando Jesus reinar com seu grande poder.
“Bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do Cordei­
ro ” (Ap 19.9).

Uso Irreverente de Lugares Santos é Reprovado;


Palavras de Cristo Relembradas;
Cristo Conhece Perfeitamente
o Coração Humano
Leia João 2.12-25

Esses versículos nos chamam a atenção ao segundo milagre realizado


pelo Senhor Jesus. Como o primeiro milagre em Caná, este é uma figura
significativa das coisas que estão por vir. Participar de uma festa de
casamento e purificar a profanação do templo estiveram entre os primeiros
atos do ministério do Senhor, em sua primeira vinda. Purificar toda igreja
invisível e oferecer uma festa de casamento estarão entre os primeiros atos
da segunda vinda de Jesus.
Nesse texto, vemos o quanto Jesus Cristo desaprova qualquer com­
portamento irreverente na casa de Deus. Lemos que expulsou do templo
os que vendiam bois, ovelhas e pombas, derramou pelo chão o dinheiro
dos cambistas, virou suas mesas e disse aos que vendiam as pombas: “Tirai
daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai casa de negócio” . Em ne­
nhuma outra ocasião de seu ministério O vemos agindo tão energicamente
e demonstrando tão justa indignação. Nada parece ter instigado nEle uma
manifestação tão marcante de sua ira santa como esta grave irreverência no
templo, permitida pelos sacerdotes, apesar de todo zelo pela lei de Deus
que se ufanavam em possuir. Devemos lembrar que, no espaço de três
João 2.12-25 29

anos, Ele encontrou por duas vezes o mesmo tipo de profanação na casa do
Pai: no início e no fim de seu ministério. E nas duas ocasiões O vemos a
expressar com os termos mais fortes o seu desprazer. O fato se repetiu
para que a lição ficasse marcada de modo profundo em nossas mentes.
Essa passagem deveria levar as pessoas a sondar prolundamente seus
corações. Não existem aqueles que professam ser cristãos mas agem,
domingo após domingo, de forma tão perversa quanto aqueles judeus?
Não existem os que em seu íntimo trazem à casa de Deus a preocupação
com seu dinheiro, terras, casas, gado e uma série de interesses mundanos
e aqueles que estão presentes apenas fisicamente no culto de adoração,
permitindo que seus corações vagueiem para longe? Não há os que estão
prestes a pecar, mesmo estando entre os da congregação? (Pv 5.14)
Estas questões são bastante sérias! Receio que muitos não podem
respondê-las satisfatoriamente. Sem dúvida, os templos e as igrejas cristãs
são bem diferentes do templo judeu. Não são construídas de acordo com
um modelo dado por Deus; não possuem altares e lugares sagrados, nem
suas mobílias têm qualquer significado simbólico. Mas são lugares onde a
Palavra de Deus é lida e onde Cristo está especialmente presente. Aquele
que presta adoração a Deus nesses recintos deve portar-se com reverência
e respeito. Todo aquele que traz consigo seus cuidados pelas coisas terrenas,
ao vir adorar, está fazendo o que evidentemente é mais ofensivo a Cristo.
As palavras que o Espírito Santo inspirou Salomão a escrever são aplicáveis
em qualquer época: “Guarda o teu pé, quando entrares na Casa de Deus”
(Ec 5.1).
Nesse texto do evangelho, vemos que as pessoas podem se lembrar
de verdades espirituais, mesmo que tenham sido aprendidas há muito tempo;
e, talvez, algum dia descubram nessas verdades um significado que antes
não entendiam. Somos informados que nosso Senhor disse aos judeus:
“Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei”. João esclarece que
Jesus “se referia ao santuário do seu corpo” e falava de sua própria
ressurreição. Porém, estas palavras não foram compreendidas pelos
discípulos, quando Jesus as pronunciou. Somente depois que Ele “res­
suscitou dentre os mortos”, três anos após os acontecimentos aqui descritos,
é que seus corações foram iluminados para compreender inteiramente o
significado delas. Por três anos essa afirmação foi obscura e inútil para
eles, permanecendo adormecida em seus corações, como uma semente sob
a terra, sem produzir qualquer fruto. Mas, ao fim desse período, a obs­
curidade se foi. Puderam compreender o que Jesus estava falando e, assim,
foram confirmados na fé. “Lembraram-se os seus discípulos de que ele
dissera isto; e creram na Escritura e na palavra de Jesus” .
Saber que a mesma coisa que aconteceu com os discípulos também
ocorre com freqüência em nossos dias nos traz ânimo e consolação. Não
30 João 2.12-25

são totalmente perdidos e inúteis os sermões pregados a ouvintes apa­


rentemente desinteressados, em nossas igrejas. As orientações dadas em
estudos e visitas pastorais não são totalmente desperdiçadas e esquecidas.
Os textos ensinados pelos pais aos filhos não são, em seu todo, ministrados
em vão. Após um intervalo de muitos anos, freqüentemente voltam à
lembrança as orientações, textos e sermões. A boa semente, às vezes, ger­
mina quando quem a semeou já faleceu há muito tempo. Que os pregadores
continuem a pregar, e os professores prossigam em ministrar, e os pais
persistam em ensinar os filhos no caminho em que devem andar! Que
todos estes semeiem a boa semente da verdade bíblica, com fé e paciência.
Não é vão no Senhor o trabalho que realizam. Suas palavras serão lembradas
mais do que podem imaginar, e ainda frutificarão “depois de muitos dias”
(1 Co 15.58; Ec 11.1).
Por último, vemos como Jesus conhece perfeitamente o coração
humano. Somos informados que, estando em Jerusalém, “Jesus não se
confiava” àqueles que professavam crer nEle. Sabia que não eram pessoas
em quem podia confiar. Estavam atônitos pelos milagres que viram ser
operados. Ficaram convencidos “intelectualmente” de que ali estava o
Messias, que há muito esperavam. Mas não eram discípulos verdadeiros
(Jo 8.31). Não eram convertidos e crentes genuínos. Seus corações não
eram retos aos olhos de Deus, embora estivessem entusiasmados. O “homem
in terior” de cada um deles não fora renovado, apesar daquilo que
professavam com os lábios. O Senhor Jesus sabia que quase todos eram
ouvintes de corações empedernidos (Lc 8.13). Assim que a tribulação ou a
perseguição por causa da Palavra os atingissem, definharia a suposta fé
que diziam possuir. Se outros ao redor não puderam ver, Jesus viu tudo
isso claramente. André, Pedro, João, Filipe e Natanael talvez se admiraram
de que o M estre não tenha recebido de braços abertos aqueles que
aparentemente haviam crido. Isso porque podiam julgar apenas pelas
aparências. Mas o Mestre podia ver o coração, “porque ele mesmo sabia o
que era a natureza humana” .
Esta verdade deve fazer os hipócritas e falsos mestres tremerem.
Eles podem enganar os homens, mas não enganam a Cristo. Podem usar
uma vestimenta de religiosidade e serem como sepulcros caiados, belos
aos olhos dos homens. Mas Cristo enxerga a podridão interior e certamente
os trará a juízo, a menos que se arrependam. Cristo vê os seus corações e
sente um grande desprazer. Se a falsidade de tais pessoas não é conhecida
na terra, é conhecida no céu; e, se morrerem sem experimentar a trans­
formação, eles serão finalmente conhecidos e envergonhados diante de
todos, no Dia do Juízo. “Conheço as tuas obras, que tens nome de que
vives e estás m orto” (Ap 3.1).
Entretanto, a verdade que está diante de nós tem dois lados, assim
João 2.12-25 31

como a coluna de nuvem e a coluna de fogo, no Mar Vermelho (Êx 14.20).


Se para os hipócritas ela parece obscura, para os verdadeiros crentes é
bastante clara. Se traz a ameaça da ira divina aos falsos mestres, concede
palavras de paz a todos os que em sinceridade amam o Senhor Jesus Cristo.
O cristão verdadeiro pode ser fraco, mas é autêntico. Há uma coisa que, a
qualquer custo, o servo de Cristo pode dizer, quando se encontra prostrado
pelo senso de sua própria fraqueza ou perturbado pela calúnia proferida
por um mundo mentiroso. Ele pode dizer: “Senhor, sou um pobre pecador,
mas estou sendo sincero e verdadeiro. Tu sabes todas as coisas; sabes que
eu te amo. Conheces todos os corações; sabes que, embora eu seja fraco,
meu coração se apega a ti” . O falso cristão foge do olhar dAquele que tudo
vê. O crente verdadeiro anseia pelo olhar do seu Senhor de manhã, à tarde
e à noite; e nada tem a ocultar.

O Início Bastante Frágil de Alguns Crentes;


A Necessidade do Novo Nascimento;
A Operação do Espírito Comparada ao Vento
Leia João 3.1-8

Essa passagem, que começa relatando a conversa entre Cristo e


Nicodemos, é uma das mais importantes de toda a Bíblia. Em nenhuma
outra parte encontramos declarações mais contundentes sobre o novo
nascimento e a salvação pela fé no Filho de Deus. Aquele que é servo de
Cristo procurará conhecer profundamente esse capítulo do evangelho. O
homem pode ignorar muitas coisas na vida espiritual e ainda ser salvo; mas
ignorar os assuntos tratados nesse capítulo significa estar no caminho largo,
que conduz à perdição.
Observemos, em primeiro lugar, como o homem pode ter um início
frágil e insignificante na vida espiritual e, depois, tornar-se um crente
maduro. Lemos sobre um certo fariseu chamado Nicodemos, que, por
estar preocupado com sua alma, “de noite, foi ter com Jesus” .
Há pouca dúvida de que, nessa ocasião, Nicodemos tenha agido dessa
maneira por medo dos homens. Estava com medo do que as pessoas
pudessem dizer ou fazer, se tomasse conhecida essa visita a Jesus. Ele foi
“de noite” porque não tinha fé nem coragem suficiente para vir durante o
dia. Contudo, mais tarde veio o tempo em que esse mesmo Nicodemos
tomou posição em favor de Cristo à plena luz do dia, ao participar do
conselho dos judeus. “Acaso, a nossa lei julga um homem, sem primeiro
ouvi-lo e saber o que ele fez?” (Jo 7.51). E não parou nisso. Veio o tempo
32 João 3.1-8

em que esse mesmo Nicodemos e mais outro homem foram os únicos a


honrar o corpo sem vida do Senhor Jesus. Ele ajudou José de Arimatéia a
sepultar Jesus, quando os apóstolos abandonaram o Mestre e fugiram. Se­
us últimos atos foram maiores que os primeiros. Embora tenha começado
de modo imperfeito, terminou bem.
A história de Nicodemos nos ensina que na vida espiritual nunca
devemos desprezar “o dia dos humildes começos” (Zc 4.10). Não devemos
considerar ninguém como pessoa destituída da graça somente porque seus
primeiros passos em direção a Deus são tímidos e vacilantes e porque no
início sua alma se move em direção ao Senhor de maneira incerta, hesitante,
marcada por muita imperfeição. Precisamos nos lembrar do modo como
Jesus recepcionou Nicodemos. Ele não esmagou “a cana quebrada” nem
apagou a cana “torcida” que estava diante de seus olhos (Mt 12.20). Assim
como Ele, também devemos dar assistência aos que estão iniciando na fé e
tratá-los gentil e amavelmente. Para tudo há um princípio. Nem sempre os
que primeiro professam mui ardorosamente a sua vida de fé são os que
resistem às mais intensas provações e demonstram mais firmeza. Judas
Iscariotes já era um apóstolo, quando Nicodemos estava apenas começando
a andar em direção da plena luz. No entanto, tempos depois, quando
Nicodemos com ousadia ajudava a sepultar o seu Salvador crucificado,
Judas Iscariotes já havia praticado a traição e se enforcado. Este é um fato
que não deve ser esquecido.
Vejamos, em segundo lugar, a grande mudança que o Senhor mostra
ser necessária para a salvação e que figura notável usou para descrever
tal mudança. Ele falou sobre novo nascimento. “Se alguém não nascer de
novo, não pode ver o reino de Deus” , disse a Nicodemos. E para que
ficasse mais claro ao seu ouvinte, Jesus falou a mesma verdade com outras
palavras: “Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no
reino de Deus” . Ao usar esta figura, era o seu desejo que Nicodemos
entendesse que ninguém pode tomar-se seu discípulo, a menos que o homem
interior seja inteiramente purificado e renovado pelo Espírito, assim como
o homem exterior é lavado pela água. Para possuir os privilégios do
judaísmo, era necessário apenas nascer da semente de Abraão, segundo a
carne. Mas para possuir os privilégios do reino de Cristo, o homem precisa
nascer de novo, pelo Espírito Santo.
Evidentemente, a mudança que o Senhor afirma ser necessária para a
salvação não é leviana e superficial. Não se trata de uma simples reforma,
melhoria, transformação moral ou mudanças de comportamento. Trata-se
de uma profunda mudança de coração, de vontade e de caráter. É uma
ressurreição espiritual, uma nova criação. Significa passar da morte para a
vida. E a instauração de uma nova vida celestial em nossos corações inertes.
E o surgimento de uma nova criatura, com uma nova natureza, que possui
João 3.1-8 33

novos hábitos, interesses, desejos, apetites, discernimentos, pensamentos,


esperanças e temores. Tudo isso, e não menos do que isso, é o que está
envolvido na declaração que o Senhor fez sobre a necessidade que todos
temos: “Importa-vos nascer de novo” .
Para que haja salvação, esta mudança interior é absolutamente
necessária, devido a natureza corrompida com que todos nós, sem exceção,
somos nascidos. “O que é nascido da carne é carne” . Nossa natureza é
inteiramente decaída. “O pendor da carne é inimizade contra Deus” (Rm
8.7). A este mundo viemos sem fé, sem amor e sem temor a Deus. Não
temos qualquer inclinação natural para servi-Lo ou obedecê-Lo, nem
qualquer prazer natural em fazer a sua vontade. Nenhum filho de Adão se
voltaria para Deus, se fosse deixado à sua própria conta. A expressão
“novo nascimento” é a figura mais adequada para descrever a mudança
que todos precisamos, a fim de sermos crentes verdadeiros.
Nunca esqueçamos que não podemos proporcionar a nós mesmos tão
grande mudança. O nome que o Senhor atribuiu a esse acontecimento —
nascer de novo — é uma prova convincente do que acabamos de afirmar.
Nenhum homem é o autor de sua própria existência, tampouco pode dar
vida à sua própria alma. É tão impossível um cadáver dar vida a si mesmo
quanto um homem natural tornar-se espiritual por suas próprias forças.
Para isso, é preciso ser posto em ação o mesmo poder que criou o mundo
(2 Co 4.6). O homem pode realizar muitas coisas, mas não pode dar vida
a si mesmo nem a outros. Conceder vida é uma prerrogativa peculiar de
Deus. Com razão, o Senhor declarou que precisamos “nascer de novo” .
Acima de tudo, devemos lembrar que sem esta grande mudança não
entraríamos no céu; e, se entrássemos, não sentiríamos prazer em estar ali.
Quanto a este assunto, Jesus foi claro e objetivo ao dizer que, se alguém
não nascer de novo, “não pode ver” nem “entrar no reino de Deus” (vv.
3,5). O céu pode ser alcançado sem dinheiro, posição ou conhecimento
humano; mas fica absolutamente claro que sem o novo nascimento ninguém
entrará no céu.
Vejamos, por último, a instrutiva comparação que o Senhor usou
para explicar o novo nascimento. Ele viu que Nicodemos ficara perplexo
e admirado pelas coisas que acabara de ouvir. E, de bom grado, esclareceu
a contusão que estava em sua mente, utilizando a ilustração sobre o vento.
Seria impossível conceber uma ilustração mais bela e adequada em referência
à obra do Espírito.
Muitas coisas a respeito do vento são misteriosas e inexplicáveis.
“Não sabes donde vem, nem para onde vai” , disse o Senhor. Não podemos
vê-lo ou segurá-lo em nossas mãos. Quando o vento sopra não somos
capazes de apontar o lugar exato onde seu primeiro fôlego foi percebido,
nem prever a que distância se estenderá. Mas, apesar de tudo isso, não
34 João 3.1 -8

negamos sua presença. O mesmo acontece quanto à obra realizada pelo


Espírito no homem, na ocasião do novo nascimento. É uma operação mis­
teriosa, soberana e incompreensível a nós, em muitos aspectos. Mas é
tolice tropeçarmos neste assunto por haver nele muitas coisas que não po­
demos entender.
Por mais que existam mistérios em relação ao vento, sua presença
pode ser notada pelo som que produz e por seus efeitos. “Ouves a sua
voz”, disse Jesus. Quando ouvimos o seu barulho, ao soprar pela janela, e
vemos as nuvens sendo empurradas por ele, costumamos dizer: “Está
ventando hoje!” Ocorre o mesmo na operação do Espírito Santo no novo
nascimento efetuado no homem. Por mais admirável e incompreensível
que seja esta obra, ela pode sempre ser vista e notada. O novo nascimento
é algo que não pode ser ocultado. Sempre haverá frutos visíveis do Espírito,
naquele que dEle é nascido.
Porventura sabemos quais são as marcas do novo nascimento? Para o
nosso aprendizado, podemos encontrá-las na primeira carta de João. O
que é nascido de Deus “crê que Jesus é o Cristo” (1 Jo 5.1); “não vive na
prática do pecado” (3.9); “pratica a justiça” (2.29); ama “os irmãos” (3.14);
“vence o mundo” (5,4); Cristo “o guarda, e o Maligno não lhe toca”
(5.18). Assim é o homem nascido do Espírito! Na vida onde estes frutos
podem ser vistos, houve o novo nascimento do qual o Senhor Jesus falou.
Aquele que não possui estas marcas está ainda morto em delitos e pecados.
Perguntemos com seriedade a nós mesmos se já experimentamos essa
grande mudança sobre a qual estivemos lendo. Já nascemos de novo? Podem
ser vistos em nós os sinais do novo nascimento? A voz do Espírito Santo
pode ser ouvida através das nossas conversas no dia-a-dia? Podem ser
notadas em nossas vidas as marcas da presença do Espírito? Feliz é o
homem que pode dar respostas satisfatórias a estas questões! Virá o dia em
que aqueles que não nasceram de novo desejarão nunca ter nascido.

A Ignorância Espiritual;
O Amor de Deus — Fonte da Salvação;
A Morte de Cristo — o Meio
para Prover a Salvação;
Fé — Instrumento para Obter a Salvação
Leia João 3.9-21

Temos nesses versículos a segunda parte da conversa entre o Senhor


João 3.9-21 35

Jesus Cristo e Nicodemos. Logo após o ensino sobre a regeneração, o


Senhor apresenta ensinos a respeito da justificação. Toda essa passagem
deve sempre ser lida com grande reverência. Nela estão contidas palavras
que têm concedido vida eterna a um incontável número de pessoas.
Primeiramente, observamos como os homens importantes e eruditos
podem possuir grande ignorância espiritual. Vemos aqui um “mestre em
Israel” que desconhecia os elementos básicos da fé salvadora. Ao ser
informado sobre o novo nascimento, imediatamente Nicodemos exclama:
“Como pode suceder isto?” Se o entendimento de um mestre dos judeus
estava assim obscurecido, como deveria estar a condição do povo judeu?
Era realmente o tempo apropriado para a vinda de Cristo! Os pastores de
Israel haviam cessado de alimentar com conhecimento o povo. Um cego
guiava outro cego, e ambos caíam no barranco (Mt 15.14).
Infelizmente, ignorância como a de Nicodemos é muito comum na
igreja de Cristo. Não devemos ficar surpresos, se encontrarmos a mesma
espécie de ignorância em muitos daqueles em quem esperávamos encontrar
conhecimento. A erudição e a posição eclesiástica não são provas de que o
ministro de Cristo é instruído pelo Espírito. Em todas as épocas, os
sucessores de Nicodemos têm sido muito mais numerosos do que os
sucessores de Pedro. Em nenhum outro ponto é tão comum haver ignorân­
cia espiritual do que no assunto relacionado à obra do Espírito Santo. Essa
antiga pedra, na qual Nicodemos tropeçou, tem servido de tropeço a milha­
res de pessoas nos dias de hoje, assim como nos dias de Cristo. “Ora, o
homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus” (1 Co 2.14).
Feliz é aquele que sabe julgar todas as coisas segundo as Escrituras e a
ninguém sobre a terra chama de mestre (1 Ts 5.21; Mt 23.9).
Em segundo, a passagem nos indica a fonte natural de onde procede
a salvação do homem. Essa fonte é o amor de Deus, o Pai. Nosso Senhor
disse a Nicodemos: “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu
seu Filho unigénito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a
vida eterna” .
Foi com razão que Lutero chamou de “Bíblia em miniatura” esse
versículo maravilhoso. As primeiras palavras talvez sejam as mais im­
portantes: “Deus amou ao mundo de tal maneira”. O amor aqui mencionado
não se refere àquele amor especial com que o Pai contempla os seus
escolhidos, e sim à grande compaixão e misericórdia com que Ele olha
para toda a raça humana. O alvo desse amor não é somente o pequeno
rebanho, que desde a eternidade Ele concedeu a Cristo, mas também o
“mundo” constituído por todos os pecadores, sem exceção. Em certo
sentido, Deus ama profundamente este mundo. Com misericórdia e
compaixão contempla todos os que por Ele foram criados. Deus não ama
os pecados dos homens, e sim as suas almas. “ O S e n h o r é bom para todos,
36 João 3.9-21

e as suas temas misericórdias permeiam todas as suas obras” (SI 145.9).


Cristo é a graciosa dádiva de Deus para o mundo inteiro.
Vigiemos para que nossa compreensão do amor de Deus seja es-
criturística e bem definida. Existem erros abundantes quanto a esta questão.
Por um lado, devemos ter cuidado com opiniões vagas e exageradas.
Precisamos afirmar, com segurança, que Deus odeia a impiedade e que o
fim de todos os que nela persistem será a destruição. Não é certo dizer que
o amor de Deus toma o infemo desnecessário; bem como não é correto
dizer que Deus amou o mundo de tal maneira que todos os seres humanos
acabarão sendo salvos. É correto afirmar que amou o mundo de tal maneira
que deu seu Filho para ser o Salvador de todos os que crêem. Seu amor é
oferecido de maneira gratuita, inteira, sincera e irrestrita; mas unicamente
através da redenção que há em Cristo. Aquele que rejeita a Cristo exclui a
si mesmo do amor de Deus e perecerá eternamente.
Por outro lado, precisamos ter cuidado em não assumir uma posição
extremista quanto a isso. Não devemos hesitar em dizer a qualquer pecador
que Deus o ama. Não é verdade que Deus se importa apenas com seus
eleitos ou que Cristo é oferecido somente aos que estão ordenados à vida
eterna. Em Deus existe “bondade e amor” para todos os homens. Foi por
causa deste amor que Cristo veio ao mundo e morreu na cruz. Não pro­
curemos ser sábios além do que está escrito, nem mais sistemáticos em
nossas afirmativas do que a própria Escritura. Deus não tem prazer na
morte do ímpio. Não deseja que qualquer um deles pereça, antes, que
sejam salvos. Deus ama o mundo (Jo 6.33; Tt 3.4; Jo 4.10; 2 Pe 3.9; 1 Tm
2.4; Ez 33.11).
Em terceiro, vemos o plano através do qual o amor de Deus trouxe
salvação aos pecadores. Este plano foi a morte expiatória de Cristo, na
cruz. Jesus disse a Nicodemos: “E do modo por que Moisés levantou a
serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado,
para que todo o que nele crê tenha a vida eterna” .
Por “seja levantado” o nosso Senhor se referia a nada menos que sua
morte sobre a cruz. Ele nos fez saber que sua morte estava designada por
Deus para ser a “vida do mundo” (Jo 6.51). Foi ordenada, desde a
eternidade, para ser a propiciação pelo pecado do homem e a satisfação da
justiça divina. Era o pagamento efetuado pelo sublime substituto e re­
presentante do enorme débito que o homem tinha para com Deus. Quando
Cristo morreu na cruz, os nossos muitos pecados foram colocados sobre
Ele, que foi feito “pecado” (2 Co 5.21) e “maldição” por nós (G1 3.13).
Por sua morte Ele obteve o perdão e completa redenção para os pecadores.
A serpente de bronze levantada no acampamento de Israel trouxe saúde e
cura, ao alcance de todos os que haviam sido picados pelas serpentes. Da
mesma maneira, Cristo crucificado trouxe vida eterna, que está ao alcance
João 3.9-21 37

da humanidade perdida. Ele foi levantado na cruz; e o homem é salvo ao


contemplá-Lo pela fé.
Esta verdade que acabamos de considerar é a pedra fundamental do
cristianismo. A morte de Cristo é a vida do crente. A cruz de Cristo confere
ao crente o direito ao céu. O Cristo “levantado” e submetido à vergonha,
no Calvário é o acesso pelo qual os crentes adentram o “Santo dos Santos”
e chegam finalmente à glória. É verdade que somos pecadores, mas Cristo
sofreu por nós. É verdade que merecemos a morte, mas Cristo morreu por
nós. É também verdade que somos devedores e culpados, mas Cristo pagou
nossos débitos com seu próprio sangue. Este é o evangelho autêntico!
Estas são as boas-novas! Enquanto vivermos, dependamos destas verdades
e a elas nos apeguemos na morte. Cristo foi “levantado” na cruz e abriu
completamente os portões do céu a todos os que crêem.
Em quarto, notamos a maneira pela qual os benefícios de Cristo se
tornam nossos. Para isso, é simplesmente necessário colocar em Cristo
nossa fé e confiança. Ter fé significa crer. Por três vezes o Senhor repetiu
esta gloriosa verdade a Nicodemos. Por duas vezes Ele disse: “Para que
todo o que nele crê não pereça” ; e também uma vez afirmou: “Quem nele
crê não é julgado” .
Ter fé em Cristo é a chave para a salvação. Aquele que tem fé em
Cristo tem a vida eterna e o que não crê nEle não a tem. Nada mais é
necessário, além desta fé, para a nossa completa justificação; porém, nada
mais nos dará direito aos benefícios de Cristo, a não ser esta fé. Podemos
jejuar e nos lamentar pelo nosso pecado, fazer muitas coisas corretas,
cumprir ordenanças religiosas, dar todos os nossos mantimentos para ali­
mentar os pobres e, apesar disso, não sermos perdoados e perdermos nossa
alma. Mas, se tão-somente viermos a Cristo como pecadores culpados e
nEle crermos, seremos imediatamente perdoados e nossas iniqüidades serão
inteiramente tiradas. Sem fé não há salvação; todavia, através da fé em
Jesus Cristo, o mais vil dos pecadores pode ser salvo.
Se queremos possuir uma consciência em paz, no que se refere à vida
espiritual, cuidemos para que a nossa compreensão sobre a fé salvadora
seja clara e bem definida. Devemos tomar cuidado para não considerarmos
a fé que traz justificação como nada mais que uma simples confiança do
pecador no Salvador, assim como um homem que está se afogando segura
na mão que se estende em seu auxílio. No assunto da justificação, tenhamos
cautela para'não mesclarmos a fé com nenhuma outra coisa. Quanto a isto,
devemos sempre lembrar que somente a fé é necessária. Não há dúvida de
que o homem justificado será sempre um homem santo. A verdadeira fé
sempre será acompanhada por uma vida santa.
Mas o que desperta no homem o desejo pelas coisas de Cristo não é
a vida do homem e sim a sua fé. Se queremos saber se nossa fé é genuína,
38 João 3.9-21

fazemos bem em ver como estamos vivendo. Mas, se queremos nos certificar
de que somos justificados por Cristo, há somente uma pergunta a ser feita:
“Cremos realmente em Cristo?”
Por último, vemos nesses versículos qual a causa verdadeira para a
alma do homem se perder. Nosso Senhor disse a Nicodemos: “O julgamento
é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do
que a luz; porque as suas obras eram más” .
Estas palavras formam uma conclusão adequada para o assunto
grandioso que estivemos considerando. Através delas, vemos que não há
qualquer injustiça da parte de Deus quanto à condenação dos pecadores.
Em termos simples e inconfundíveis, esse versículo mostra que, embora a
salvação do homem dependa inteiramente de Deus, a ruína do homem,
caso este se perca, depende inteiramente dele mesmo. O homem colherá o
fruto de sua própria semeadura.
A doutrina aqui exposta deve ser cuidadosamente lembrada. Nela há
resposta para uma objeção comum feita pelos inimigos da verdade divina.
Não existe um decreto de rejeição, que exclua do céu a quem quer que
seja. “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo,
mas para que o mundo fosse salvo por ele.” Não há falta de vontade, da
parte de Deus, em receber qualquer pecador, seja qual for a gravidade dos
pecados cometidos. Deus enviou “luz” ao mundo, e, se o homem não vem
para a luz, a ele pertence toda a culpa. Seu sangue cairá sobre sua própria
cabeça, caso leve sua alma à perdição. Sua culpa estará diante de si mesmo,
se errar o caminho do céu. A miséria eterna que lhe sobrevirá será o re­
sultado de sua própria escolha. Sua destruição será fruto do trabalho de
suas próprias mãos. Deus o amou e estava pronto a salvá-lo, mas ele amou
“mais as trevas” ; portanto, as trevas deverão ser a sua porção eterna. Ele
não quis vir a Cristo, portanto não pôde ter a vida (Jo 5.40).
As verdades que estamos considerando são solenes e significativas.
Porventura, demonstramos em nosso viver que cremos desta maneira?
Hoje, está próxima de nós a salvação pela morte de Cristo. Temos nós
abraçado esta salvação e nos apropriado dela? Não descansemos, enquanto
não conhecermos a Cristo como nosso Salvador. Sem demora, busquemos
nEle o perdão e a paz, se ainda não o fizemos. Continuemos a crer em
Cristo, se nEle já confiamos. “Para que todo o que nele crê” , conforme
graciosamente Ele afirmou, “não pereça, mas tenha a vida eterna” .
João 3.22-36 39

Inveja e Partidarismo;
Verdadeira Humildade;
A Dignidade de Cristo Sendo Declarada;
Salvação — Algo Imediato
Leia João 3.22-36

De certa forma, essa passagem merece atenção especial daqueles que


amam a leitura da Bíblia. Temos aqui o último testemunho que João Batista
deu a respeito do Senhor Jesus Cristo. No final de seu ministério, João
Batista, fiel ministro de Deus, foi o mesmo que era no início. Não mudou
o que pensava sobre si mesmo, nem a respeito de Cristo. Feliz é a igreja
cujo ministro é firme, ousado e constante como João Batista!
Vemos, inicialmente, um marcante exemplo de inveja epartidarismo
que pode haver entre os que professam o cristianismo. Lemos que os
discípulos de João Batista ficaram ofendidos, porque o ministério de Jesus
começou a atrair mais a atenção do que o de seu mestre. “Foram ter com
João e lhe disseram; Mestre, aquele que estava contigo além do Jordão, do
qual tens dado testemunho, está batizando, e todos lhe saem ao encontro.”
Infelizmente, a atitude demonstrada nesta reclamação é muito comum
nas igrejas de Cristo. Tais queixosos jamais deixaram de ter sucessores.
Não têm faltado seguidores que se importam mais com o aumento do seu
próprio grupo do que com o desenvolvimento do verdadeiro cristianismo.
Estes não conseguem se regozijar com o crescimento da igreja, a não ser
que isso ocorra no seu próprio grupo. Muitos não conseguem ver boas
coisas sendo realizadas, a não ser em suas próprias congregações. Tais
homens parecem dispostos a deixar outros fora do céu, se não procurarem
entrar através de sua denominação.
O crente verdadeiro deve orar e guardar-se dessa atitude manifestada
pelos discípulos de João. É uma atitude insidiosa, contagiosa e prejudicial
à causa do evangelho. Nenhuma outra coisa, mais do que a inveja e o
partidarismo entre os crentes, causa tanta desonra ao cristianismo e leva os
inimigos da verdade a blasfemarem. Estando presente a verdadeira graça
divina, devemos estar prontos e dispostos a reconhecê-la, mesmo que seja
fora do nosso campo de trabalho. E esforçemo-nos em dizer como o
apóstolo: “Uma vez que Cristo... está sendo pregado... também com isto
me regozijo, sim, sempre me regozijarei” (Fp 1.18). Se o bem está sendo
praticado, devemos ser gratos; mesmo que não esteja sendo feito da maneira
que pensamos ser a melhor. Se almas estão sendo salvas, devemos nos
alegrar, qualquer seja o meio que Deus ache apropriado utilizar.
40 João 3,22-36

Vemos também, nesses versículos, um esplêndido modelo de ver­


dadeira e piedosa humildade. Notamos na vida de João Batista uma atitude
bastante diferente daquela demonstrada por seus discípulos. Ele inicia a
sua argumentação apresentando o grande princípio de que a aceitação diante
dos homens é um dom de Deus; portanto, não devemos presumir que
acharemos falta em outros, quando forem mais aceitos do que nós. “O ho­
mem não pode receber coisa alguma, se do céu não lhe for dada.” Pros­
seguindo, relembra os seus seguidores de ter declarado anteriormente que
alguém maior que ele mesmo estava para vir: “Vós mesmos sois testemunhas
de que vos disse: Eu não sou o Cristo” . Esclarece que seu ofício, em re­
lação a Cristo, é o ofício do amigo do noivo em relação a este. Finalmente,
com solenidade afirmou que Cristo haveria de crescer mais e mais e que
ele se tomaria cada vez menos importante; assim como o brilho da estrela
é ofuscado pelo sol nascente, gradualmente ele desapareceria.
Uma atitude semelhante a de João Batista é o mais elevado nível de
graça que o homem mortal pode obter. Aos olhos de Deus, o homem mais
santo é aquele que mais se reveste de humildade (1 Pe 5.5). Sabemos qual
o segredo para sermos homens da qualidade de Abraão, Moisés, Jó, Davi,
Daniel, Paulo e João Batista? Eles eram, acima de tudo, homens humildes.
Viveram em épocas diferentes e experimentaram diferentes graus de
iluminação espiritual; mas, pelo menos no aspecto da humildade, tinham
a mesma característica. Nada viam em si mesmos, além de pecado e
fraqueza. A Deus rendiam toda a glória por aquilo que eram. Andemos em
seus passos. Busquemos com zelo os melhores dons, mas, acima de tudo,
procuremos ser humildes. A honra verdadeira é alcançada através da
humildade. Nenhum outro foi tão honrado por Cristo quanto o homem
humilde que disse: “Convém que ele cresça e que eu diminua” .
Vemos, ainda, a instrutiva declaração quanto à honra e dignidade
de Cristo. Uma vez mais, João Batista ensinou aos seus discípulos sobre a
grandeza dAquele cuja crescente popularidade lhes servira como ofensa. E
novamente, talvez pela última vez, ele declarou que Jesus era digno de
toda honra e louvor. Usou várias expressões marcantes para transmitir a
idéia correta a respeito da majestade de Cristo. Referiu-se a Ele como “o
noivo” da igreja; Aquele que veio “das alturas”; “o enviado de Deus” ; a
quem Deus não concedeu “o Espírito por medida” ; o que é “amado do
Pai” , em cujas mãos todas as coisas foram confiadas; aquele que nEle crê
obtém a vida eterna, o que o rejeita sofre eterna destruição. Cada uma
destas afirmações tem um profundo significado e forneceria assunto para
um longo sermão. Todas elas demonstram a profundidade e a altura da
compreensão espiritual de João Batista. Não há registradas, em qualquer
outra parte das Escrituras, palavras que dêem mais honra a Cristo do que
estas proferidas por João.
João 3.22-36 41

Na vida ou na morte, esforcemo-nos para ter a mesma compreensão


demonstrada por João Batista a respeito do Senhor Jesus. Jamais seremos
capazes de exaltar a Cristo acima do que convém. Nossos pensamentos
acerca da igreja, do ministério e das ordenanças podem facilmente ser
muito elevados e exagerados. Mas, acerca de Cristo, nunca chegaremos a
pensar de uma forma demais elevada, ou amá-Lo de um modo exagerado,
ou nEle confiar de modo excessivo, ou louvá-Lo mais do que é conveniente.
Ele é digno de toda a honra que Lhe podemos oferecer. Nos céus Ele é
tudo. Vigiemos para que, na terra, Ele seja tudo em nossos corações.
Por último, nessa passagem vemos que João Batista fa z uma grande
declaração sobre a salvação que os verdadeiros crentes desfrutam no
presente. Ele afirmou: “Quem crê no Filho tem a vida eterna” . O que nEle
crê não precisa anelar por um privilégio que ainda está muito distante. No
momento em que crê “tem a vida eterna” . O perdão, a paz e o total direito
ao céu tornam-se sua possessão imediata, no instante em que deposita a fé
em Cristo. E esta possessão não se tomará mais completa do que agora é,
mesmo que o crente viva tanto quanto Matusalém.
Esta verdade contém um dos mais gloriosos privilégios do evangelho.
Para que o pecador seja aceito por Deus não há obras a serem realizadas,
nenhuma condição a cumprir, nenhum preço a ser pago ou a necessidade
de passar por desgastantes anos de provação. Aquele que tão-somente crê
em Cristo é imediatamente perdoado. A salvação está próxima ao pior dos
pecadores; este precisa apenas arrepender-se e crer, e, a partir desse
momento, será salvo. Através de Cristo, os que crêem são inteiramente
justificados, de uma vez por todas.
Na conclusão dessa passagem, devemos ponderar seriamente estas
verdades: se a fé em Cristo traz consigo privilégios imediatos, permanecer
na incredulidade significa estar em condição de tremendo perigo, se o céu
está tão próximo do que crê, o inferno também deve estar muito próximo
do que não crê. Quanto maior é a misericórdia oferecida pelo Senhor
Jesus, tanto maior é a culpa dos que a negligenciam e rejeitam. Quem “se
mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece
a ira de Deus”.

O Batismo e sua Verdadeira Posição;


A Natureza Humana de Nosso Senhor
Leia João 4.1-6

Há duas afirmações nesses versículos que merecem atenção especial.


42 João 4.1-6

Elas esclarecem dois assuntos da vida espiritual, sobre os quais é muito


importante termos opinião bem definida.
Devemos observar, inicialmente, a afirmação sobre o batismo. Lemos
que “Jesus mesmo não batizava, e sim os seus discípulos” . É bastante
notável a expressão aqui utilizada. Lendo-a, aprendemos muito com as
conclusões a que chegamos: o batismo não é a parte principal do cris­
tianismo, e batizar não é a missão mais importante dada aos ministros.
Lemos freqüentemente que o Senhor se dedicava à pregação e à oração, e
uma vez administrou a ceia do Senhor. Mas não existe um só registro de
que tenha batizado alguém. Aqui somos informados de que èste era um
trabalho que Jesus delegava a outrós. Ele “mesmo não batizava, e sim os
seus discípulos”.
Esta lição é muito importante para os dias de hoje. O batismo, como
uma ordenança dada pelo próprio Senhor Jesus, é honrável e jamais deve
ser subestimado pelas igrejas. Não pode ser negligenciado sem que se
esteja com isso cometendo grande pecado. Quando é usado de maneira
correta, em fé e oração, traz grandes bênçãos. Porém, jamais houve a
intenção de se dar ao batismo a posição que muitos lhe conferem hoje em
dia.
O batismo não proporciona benefícios místicos; não traz, neces­
sariamente, a graça do Espírito Santo. Os benefícios que dele procedem
dependem grandemente da maneira como é utilizado. Em muitas igrejas, a
doutrina ensinada e a linguagem empregada sobre o batismo são incoe­
rentes com o que lemos nesse texto. Se o batismo possuísse toda a im­
portância que alguns lhe atribuem, jamais seríamos informados que “Jesus
mesmo não batizava” .
Devemos estabelecer com firmeza em nossas mentes que a primeira
e mais importante missão da igreja de Cristo é pregar o evangelho. As
palavras do apóstolo Paulo precisam ser lembradas: “Não me enviou Cristo
para batizar, mas para pregar o evangelho” (1 Co 1.17). Quando o evange­
lho de Cristo é pregado com fidelidade e inteireza, não precisamos ter
receio de que as ordenanças sejam menosprezadas. O batismo e a ceia do
Senhor serão sempre honrados da forma mais sublime nas igrejas onde a
verdade que está em Cristo é ensinada e conhecida de maneira mais
completa.
Devemos também observar a afirmação sobre a natureza humana de
nosso Senhor. Lemos que Jesus estava “cansado da viagem” . Através desta
e de outras expressões no evangelho, aprendemos que Jesus possuía um
corpo exatamente como o nosso. Quando o “Verbo se fez carne”, tomou
sobre si uma natureza semelhante a nossa em todas as coisas, menos em
relação ao pecado. Assim como nós, Jesus passou da infância à juventude,
e da juventude, à vida adulta; sentiu fome, sede, dor e necessidade de
João 4.1-6 43

dormir. Estava sujeito às mesmas necessidades que nós. Em todos os


aspectos, seu corpo era semelhante ao nosso, mas sem pecado.
Esta verdade traz pleno conforto aos verdadeiros crentes. Aquele em
quem os pecadores são convidados a buscar perdão e paz é perfeitamente
homem e Deus. Possuía uma natureza verdadeiramente humana quando
esteve sobre a terra. E levou consigo essa natureza quando subiu ao céu. À
direita de Deus, temos um Sumo Sacerdote que pode compadecer-se das
nossas fraquezas, pois Ele mesmo sofreu ao ser tentado. Ao clamarmos a
Ele, nos momentos de dores e fraquezas físicas, compreende perfeitamen­
te o que Lhe dizemos. Quando nossas orações e louvores estão enfraqueci­
dos por causa do cansaço físico, Ele compreende a nossa condição. Conhece
a nossa estrutura. Sabe por experiência própria o que significa ser homem.
Além de blasfêmia, é ignorância afirmar que a virgem Maria ou qualquer
pessoa pode sentir mais compaixão por nós do que Cristo. Visto que Jesus
possui a natureza humana, Ele pode entender completamente tudo o que
diz respeito à natureza do homem. Os pobres, os enfermos e os que sofrem
têm, no céu, Alguém que não somente é um poderoso Salvador, mas também
um amigo que se compadece.
O servo de Cristo deve se apegar firmemente à verdade da existência
dessas duas naturezas, perfeitas e completas, presentes nAquele a quem
ele serve. Sem dúvida, o Senhor Jesus Cristo, em quem o evangelho nos
convida a crer, é o Deus todo-poderoso e em tudo igual ao Pai, capaz de
salvar completamente todo aquele que por seu intermédio se achega a Deus.
E, visto que conhece por Si mesmo todos os sofrimentos físicos dos homens,
Jesus, sendo perfeitamente homem, é capaz de simpatizar com eles.
Poder e compaixão estão combinados de forma maravilhosa nAquele
que por nós morreu na cruz. Visto que Ele é Deus, podemos descansar
nEle o fardo de nossas almas, com total confiança. Ele é poderoso para
salvar. Devido ao fato de que Ele é homem, temos liberdade para falar-
Lhe sobre as várias provações herdadas por nossa carne. Ele conhece o
coração do homem. Nesta verdade há descanso para o cansado! Estas são
as boas-novas! Nosso Redentor é perfeitamente homem e Deus. Aquele
que nEle crê possui tudo o que um filho de Adão precisa para sentir-se
seguro e em paz.
44 João 4.7-26

A Habilidade e a Condescendência de Cristo;


Sua Prontidão em Perdoar;
A Excelência de seus Dons;
A Necessidade de Estar Convicto de Pecados;
A Inutilidade da Religião Formal;
A Bondade de Cristo para
com Grandes Pecadores
Leia João 4.7-26

A história da mulher samaritana é uma das mais interessantes e


instrutivas no Evangelho de João. O evangelista nos mostrou, no caso de
Nicodemos, como o nosso Senhor abordou um homem formalista e cheio
de justiça própria. Agora nos mostra como o Senhor lidou com uma mulher
a quem faltava conhecimento e possuía uma mente carnal, uma mulher
cujo caráter era péssimo. Nessa passagem há lições que devem ser
ponderadas pelos ministros e ensinadores do evangelho.
Destaquemos, em primeiro lugar, a condescendência de Cristo ao
lidar com uma pecadora indiferente. O Senhor estava assentado junto à
fonte de Jacó, quando uma mulher de Samaria veio em busca de água.
Imediatamente Jesus lhe disse: “Dá-me de beber” . Ele não esperou ser
abordado por ela, não iniciou repreendendo-a por seus pecados, embora
os conhecesse muito bem. Jesus abriu o canal de comunicação, fazendo-
lhe um pedido. Ele aproximou-se da mulher, falando a respeito de “água” ,
que era, naturalmente, a maior preocupação para ela naquele momento.
Este pedido pode parecer simples, mas abriu as portas para uma conversa
espiritual, serviu de ponte para ligar a distância que havia entre Ele e ela e
culminou na conversão daquela alma.
A conduta do Senhor Jesus, demonstrada naquela oportunidade, deve
ser relembrada com especial atenção por todos os que desejam levar
benefícios aos ignorantes e indiferentes às coisas espirituais. É inútil esperar
que as pessoas venham a nós em busca de conhecimento. Somos nós que
devemos abordá-las, chegando-nos a elas com um espírito cortês e amigável,
sendo ao mesmo tempo firmes e ousados. É inútil pensar que estarão
preparadas para receber nossa instrução e que entenderão e reconhecerão
de imediato a sabedoria que há em tudo o que fazemos. É preciso agir com
prudência. Devemos considerar qual a melhor maneira para atingir seus
corações e atrair-lhes a atenção. Cada pessoa tem uma chave que dá acesso
aos seus pensamentos; nosso objetivo principal deve ser lançar mão dessa
João 4.7-26 45

chave. E, acima de tudo, devemos ser amáveis e cautelosos para não


demonstrar que somos conscientes de ter um conhecimento superior. Se as
pessoas sem entendimento espiritual pensarem que, ao lhes anunciarmos o
evangelho, achamos que com isto lhes prestamos um grande favor, haverá
pouca esperança de estarmos fazendo bem às suas almas.
Notemos, em segundo lugar, a prontidão de Cristo em demonstrar
misericórdia a pecadores indiferentes. Ele disse à mulher samaritana que
lhe daria “água viva” , se ela Lhe pedisse. Jesus conhecia perfeitamente o
caráter daquela pessoa que estava diante dEle. Assim mesmo, afirmou que
daria a água viva de sua graça, misericórdia e paz, se ela Lhe pedisse.
A infinita disposição de Cristo em receber os pecadores é uma precio­
sa verdade, que deve ser guardada como tesouro em nossos corações e
transmitida com diligência aos outros. O Senhor Jesus está sempre mais
disposto a nos ouvir do que nós a orar; e sempre mais pronto a conceder-
nos seu favor do que nós a pedir-Lhe. Continuamente estende suas mãos
ao desobediente e rebelde. Seus pensamentos são de amor e compaixão
para com os mais vis pecadores, mesmo que estes sequer O considerem.
Ele está pronto a conceder misericórdia e graça ao pior e mais indigno dos
homens, se tão-somente clamar a Ele. Jamais deixará de cumprir a promessa
que bem conhecemos: “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis”. No último
dia, os homens perdidos descobrirão que nada tiveram porque nada pediram.
Devemos destacar, em terceiro lugar, o valor incalculável da ex­
celência dos dons de Cristo, quando comparado às coisas deste mundo.
Jesus disse à samaritana: “Quem beber desta água tomará a ter sede; aquele,
porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede”.
A verdade contida neste princípio pode ser vista claramente por todos
os que não estão cegos pelo preconceito e pelo amor a este mundo. Milhares
de pessoas possuem todas as coisas passageiras que seus corações desejam;
mas, assim mesmo, estão cansadas e insatisfeitas. No tempo presente,
sucede o mesmo que no tempo de Davi: “Há muitos que dizem: Quem nos
dará a conhecer o bem?” (SI 4.6). Riquezas, posições, prestígio, cultura e
diversões são totalmente incapazes de satisfazer a alma. Certamente, a
pessoa que toma apenas deste tipo de água voltará a ter sede. Todo aquele
que é semelhante a Acabe encontra, perto de seu palácio, uma vinha difícil
de ser adquirida. Todo o que é como Hamã vê um Mordecai junto ao
portão de entrada. Neste mundo não se pode encontrar satisfação no coração,
a não ser através da fé em Cristo. Somente Jesus Cristo pode preencher os
espaços vazios em nosso homem interior. Somente Ele pode dar felicidade
real e duradoura. A paz concedida por Ele é como uma fonte que, começando
a jorrar na alma, jorra por toda a eternidade. As águas desta fonte poderão
diminuir ou aumentar ocasionalmente; mas são águas vivas e nunca secarão
por completo.
46 João 4.7-26

Em quarto lugar, destacamos a absoluta necessidade de haver na


alma a convicção de pecados, para que ela seja convertida a Deus. Parece
que a mulher samaritana permaneceu inabalada, até que o nosso Senhor
mostrou-lhe que estava transgredindo o sétimo mandamento. “Vai, chama
o teu marido” — estas palavras penetrantes de Jesus transpassaram, como
uma flecha, a consciência daquela mulher. Daquele momento em diante,
embora fosse uma pessoa sem conhecimento, passou a inquirir como alguém
que buscava sinceramente a verdade. E a razão era óbvia: pela primeira
vez, em sua vida, ela enxergou a si mesma como realmente era.
Levar pessoas a esta condição deve ser o principal objetivo de prega­
dores do evangelho. Estes precisam imitar o exemplo dado pelo Mestre
naquela ocasião. Bem algum será ministrado a qualquer homem ou mulher,
até que sejam levados a sentir seu pecado e sua necessidade. A menos que
o pecador veja a si mesmo como Deus o vê, continuará indiferente, frívolo
e insensível. Devemos procurar convencê-lo quanto ao seu pecado, aguçar
sua consciência, abrir seus olhos e mostrar-lhe o que ele realmente é. Com
este alvo em mente precisamos mostrar-lhe a extensão e a amplitude da
santa lei de Deus; e denunciar toda prática contrária a esta lei, mesmo que
sejam práticas costumeiras à sociedade. Este é o único meio de se promover
o bem. Ninguém poderá valorizar a cura que há no evangelho até que sinta
sua própria enfermidade. Homem algum pode entender a beleza que há em
Cristo, como Salvador que Ele é, a menos que enxergue a si mesmo como
um pecador perdido e corrompido. A rejeição da pessoa de Cristo está
inevitavelmente vinculada à ignorância quanto ao pecado.
Vemos, em quinto lugar, como é inútil qualquer religião que consiste
apenas de formalidades. Ao ser despertada para os assuntos espirituais, a
mulher samaritana interrogou sobre os méritos da adoração prestada pelos
samaritanos, comparando-a ao modo como os judeus adoravam. Jesus lhe
disse que a adoração verdadeira e aceitável não depende do lugar em que é
prestada, mas do coração daquele que adora. Ele declarou: “A hora vem,
quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai” . E acrescen­
tou: “Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” .
O princípio contido nesses versículos jamais será assimilado por com­
pleto pelos que professam fé em Cristo. Somos naturalmente inclinados a
transformar a religião em uma simples questão de cerimônia e formalidade
exterior, atribuindo excessiva importância à maneira como adoramos a
Deus. Devemos ter cuidado com essa atitude, especialmente quando pensa­
mos com seriedade sobre nossas almas. O coração é o aspecto principal em
toda a nossa aproximação a Deus. O Senhor olha para o coração (1 Sm
16.7). O culto prestado na mais suntuosa catedral será ofensivo aos olhos
de Deus, se tudo for feito de maneira fria, insensível e inexpressiva. Uma
simples reunião de três ou quatro crentes humildes em uma choupana, a
João 4.7-26 47

fim de ler a Bíblia e orar, é mais aceitável aos olhos dAquele que sonda os
corações do que uma grande multidão reunida numa catedral idólatra.
Por último, notemos a graciosa disposição de Cristo em revelar-se
aos mais desprezíveis pecadores. Jesus concluiu sua conversa com a mulher
samaritana, dizendo-lhe abertamente e sem reservas que era o Salvador do
mundo. “Eu o sou, eu que falo contigo.” Em nenhuma outra parte dos
evangelhos encontramos nosso Senhor fazendo uma declaração mais
completa sobre sua natureza e seu ofício do que nesta ocasião. É bom
lembrar que tal declaração não foi feita aos escribas eruditos ou aos fariseus
moralistas, mas a alguém que até aquele dia havia sido uma pessoa imoral,
indiferente e sem conhecimento espiritual!
A maneira de abordar pecadores, assim como vemos aqui, constitui
uma das grandes peculiaridades do evangelho. Qualquer que tenha sido o
passado de alguém, em Cristo há esperança e solução, se essa pessoa tão-
somente ouvir a voz de Cristo e segui-Lo. Jesus está pronto a recebê-lo
como amigo e derramar-lhe a mais rica porção de sua misericórdia e graça.
A mulher samaritana, o ladrão arrependido, o carcereiro de Filipos, Zaqueu,
o publicano, todos são exemplos da prontidão de Cristo em demonstrar sua
misericórdia e conferir perdão imediato e total. Neste sentido, a grande
glória de Cristo é que, assim como um grande médico, Ele traz cura aos
que aparentemente são incuráveis. Aos olhos dEle não há ninguém tão
mau que Ele não possa amar e curar. Deixemos estas coisas penetrar em
nossos corações. Por mais que tenhamos dúvidas, nunca duvidemos que o
amor de Cristo pelos pecadores ultrapassa nosso entendimento e que Ele
está tão disposto a recebê-los quanto é poderoso para salvá-los.
E nós, o que somos? Esta é a pergunta que chama a nossa atenção.
Talvez até agora tenhamos vivido de modo descuidado, indiferente e
pecaminoso, assim como a mulher da história que lemos. Aquele que
conversou com a mulher samaritana junto à fonte continua vivo e imutável,
à direita de Deus. Se Lhe pedirmos, Ele nos dará “água viva” .

O Modo Maravilhoso de Cristo Lidar com os


Pecadores; Graça — Um Poder Cativante;
Os Verdadeiros Convertidos têm Zelo
em Praticar o bem
Leia João 4.27-30

Esses versículos continuam a bem-conhecida história sobre a conversão


48 João 4.27-30

da mulher samaritana. Embora a passagem seja curta, contém pontos de


profundo significado e interesse. O homem mundano, que não se importa
em absoluto com sua vida espiritual, nada vê de especial nesses versículos.
Mas todos que desejam experimentar uma conversão pessoal encontram
farto material para alimentar seus corações.
Inicialmente, observamos o quanto é maravilhoso aos nossos olhos o
modo de Cristo lidar com as almas dos homens. Somos informados que os
discípulos de Cristo “se admiraram de que estivesse falando com uma
mulher” . O fato de que Jesus se importou em conversar com uma mulher
samaritana, uma estrangeira junto ao poço, estando Ele cansado pela jornada,
foi admirável para os onze discípulos. Era algo com que não contavam,
contrário ao que esperavam que um líder religioso fizesse. Isto os deixou
perplexos e surpresos.
O sentimento demostrado pelos discípulos nessa ocasião não é um
caso único na Bíblia. Quando o Senhor Jesus permitiu que os publicanos e
pecadores se achegassem a Ele e estivessem em sua companhia, os fariseus
se maravilharam. Exclamaram: “Este recebe pecadores e come com eles”
(Lc 15.2). Quando Saulo retomou de Damasco como uma pessoa convertida
e uma nova criatura, os crentes de Jerusalém ficaram atônitos. “Todos,
porém, o temiam, não acreditando que fosse discípulo” (At 9.26). Quando
Pedro foi liberto da prisão de Herodes pelo anjo e conduzido à porta da
casa onde os discípulos oravam por sua libertação, estes ficaram de tal
maneira surpresos, que não podiam acreditar que fosse Pedro. Quando
“abriram, viram-no e ficaram atônitos” (At 12.16).
Não precisamos nos deter somente nos exemplos bíblicos. O crente
verdadeiro precisa apenas olhar ao redor, no mundo que o cerca, e verá
inúmeras ilustrações desta verdade. Quanta admiração é suscitada a cada
nova conversão! Quanta surpresa é causada pela mudança ocorrida no
coração, vida, costumes e gostos do novo convertido! Quanta admiração
diante do poder, graça, misericórdia, paciência e compaixão de Cristo!
Hoje ocorre o mesmo que ocorreu há quase dois mil anos. A maneira de
Cristo lidar com os pecadores ainda é algo maravilhoso para a igreja e para
o mundo.
Se houvesse mais fé genuína sobre a terra, haveria menos surpresa
quando as almas se convertessem. Se os crentes cressem mais, teriam uma
expectativa maior; se compreendessem melhor a Cristo, ficariam menos
admirados e atônitos ao verem-No chamar e salvar o pior dos pecadores.
Não deveríamos considerar nada como impossível, nem imaginar que
qualquer pecador esteja fora do alcance da graça de Deus. A admiração
demonstrada diante das conversões é prova de enfraquecimento da fé e da
falta de conhecimento que existe nestes últimos dias. O que nos deveria
causar admiração é a incredulidade obstinada do ímpio e sua determinação
João 4.27-30 49

em perseverar no caminho da destruição. Foi este o pensamento de Cristo.


Está escrito que Ele agradeceu ao Pai pelas conversões (Mt 11.25), mas
admirou-se por causa da incredulidade do povo (Mc 6.6).
Vemos também, nessa passagem, o poder da graça em cativar pro­
fundamente o coração daquele que vem a crer. Após nosso Senhor
apresentar-se à mulher como o Messias, ela deixou “o seu cântaro, foi à
cidade e disse àqueles homens: Vinde comigo e vede um homem que me
disse tudo quanto tenho feito” . Ela havia deixado a sua casa com o objetivo
expresso de buscar água, levando um grande jarro à fonte, com a intenção
de trazê-lo bem cheio. Mas encontrou, junto àquela fonte, um novo coração
e novos valores para a sua vida. Tomou-se nova criatura; as coisas velhas
se passaram. Tudo se fez novo. E, por um momento, todas as outras coisas
ficaram esquecidas. Não conseguia pensar em mais nada, a não ser nas
verdades que ouvira e no Salvador que encontrara. Com todo coração, ela
deixou o cântaro e apressou-se a dizer aos outros o que estava sentindo.
Vemos nesse fato o poder purificador da graça do Espírito Santo.
Uma vez que a graça é derramada no coração do homem, ela expulsa os
velhos hábitos e interesses. A pessoa convertida não se importa mais com
o que antes se importava. Um novo morador passa a habitar a casa. Um
novo piloto assume o leme. O mundo inteiro parece diferente. Todas as
coisas se fizeram novas. Foi isto o que aconteceu com Mateus, o publicano.
No momento em que a graça foi derramada em seu coração, ele deixou a
coletoria (Mt 9.9). Ocorreu o mesmo a Pedro, Tiago, João e André. No
instante em que foram convertidos, deixaram suas redes e barcos de pesca
(Mc 1.18). Aconteceu o mesmo com Saulo, o fariseu: logo que se tomou
um crente, abandonou todos os brilhantes projetos que tinha como judeu,
a fim de pregar a fé que antes havia desprezado (At 9.20). A conduta da
mulher samaritana foi exatamente a mesma. Naquele momento, a salvação
que encontrou preencheu completamente seu coração. Dizer que ela nunca
retornou, para buscar seu cântaro, seria ir além do que podemos afirmar.
Mas o fato é que, sob as primeiras impressões da nova vida espiritual, ela
retirou-se e deixou para trás aquele cântaro.
Contudo, esse fato é, sem dúvida, incomum em nossos dias. Raramente
vemos uma pessoa que esteja tão inteiramente voltada para os assuntos
espirituais, a ponto de considerar os negócios deste mundo como coisa
secundária ou adiável. Por que isto é assim? Simplesmente porque não é
comum haver conversões verdadeiras a Deus. Poucos são os que realmente
sentem seus pecados e, pela fé, correm para Jesus; poucos são os que de
fato passam da morte para a vida e se tornam novas criaturas. Todavia,
estes poucos são os crentes genuínos deste mundo.
Assim como a mulher samaritana, estas são as pessoas cujas vidas
espirituais transmitem algo aos outros. Felizes os que, em certa medida,
50 João 4.27-30

experimentam o mesmo que aquela mulher experimentou e podem dizer


como Paulo: “Considero tudo como perda, por causa da sublimidade do
conhecimento de Cristo Jesus” (Fp 3.8). Felizes os que deixaram tudo pela
causa de Cristo ou que, pelo menos, têm as coisas espirituais como priorida­
de em suas vidas. “Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será lu­
minoso” (Mt 6.22).
Por último, vemos o zelo que o verdadeiro convertido deve demonstrar
em fazer o bem a outros. A mulher samaritana “foi à cidade e disse àqueles
homens: Vinde comigo e vede um homem que me disse tudo quanto tenho
feito. Será este, porventura, o Cristo?!” No mesmo dia de sua conversão
ela se tomou uma missionária. Sentiu tão profundamente o maravilhoso
benefício que recebera de Cristo, que não podia deixar de anunciar a paz
encontrada nEle. Assim como André falou a seu irmão, Pedro, a respeito
de Jesus e Filipe disse a Natanael que achara o Messias; e Saulo, ao
converter-se, sem demora pregou o evangelho de Cristo, assim também a
mulher samaritana anunciou: “Vinde comigo e vede” a Cristo. Ela não uti­
lizou palavras obscuras, nem procurou emitir argumentos profundos sobre
Cristo ter afirmado que era o Messias. Simplesmente disse: “Vinde... e
vede” . Do que havia em abundância no seu coração falaram os seus lábios.
Todo o crente verdadeiro deveria proceder da mesma maneira que á
mulher samaritana. É disto que a igreja necessita. É isto que a situação
deste mundo requer. O bom senso indica que isto é o correto. Todo aquele
que recebeu a graça de Deus e provou que Cristo é gracioso deve encontrar
palavras para testificar de Cristo às outras pessoas. Se sabemos que as
almas ao nosso redor estão perecendo e que somente Cristo pode salvá-las,
mas, mesmo assim, deixamos de lhes ânunciar a paz que encontramos,
onde está a nossa fé? E, onde está o nosso amor, se, vendo pessoas
caminhando para o inferno, nada lhes dizemos a respeito de Cristo e da
salvação? Faremos bem em duvidar que temos amor por Cristo, se nossos
corações não são movidos a falar dEle. E, se não nos preocupamos com a
salvação de outros, é bom que duvidemos da segurança de nossas próprias
almas.
O que somos nós? Afinal de contas, esta é a pergunta que exige a
nossa atenção. Será que percebemos a importância crucial das coisas
espirituais e a futilidade das coisas deste mundo? Falamos com os outros a
respeito de Deus, de Cristo, da eternidade, de suas almas, do céu e do
inferno? Se não fazemos isto, qual o valor de nossa fé? Onde está a realidade
do cristianismo que professamos? Atentemos para estas coisas, para que
não venhamos a acordar muito tarde e compreendamos que estamos perdidos
eternamente, o que seria uma surpresa para os anjos e para os demônios e,
acima de tudo, surpresa para nós mesmos, por causa de nossa loucura e
cegueira obstinada.
João 4.31-42 51

O Zelo de Cristo em Fazer o bem;


Encorajamento aos que Labutam por Cristo;
Homens são Conduzidos a Cristo
de Várias Maneiras
Leia João 4.31-42

Inicialmente, notamos nesses versículos um exemplo deixado por


Cristo, quanto ao zelo em fazer o bem a outros. O Senhor declarou: “A
minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar
a sua obra” . Fazer o bem não era considerado por Ele apenas uma questão
de dever e prazer. Considerava isto a sua comida e bebida. Jó, um dos
homens mais santos do Antigo Testamento, disse que prezava a Palavra de
Deus mais do que o seu alimento (Jó 23.12 - a r c ) . Cristo, o Cabeça da
igreja neotestamentária, foi ainda além. Ele fez a mesma afirmação sobre
a obra de Deus.
Fazemos nós qualquer trabalho para Deus? Procuramos, embora com
fragilidade, promover sua causa na terra, reprimir o mal e fomentar o
bem? Caso estejamos procedendo assim, nunca devemos nos envergo­
nhar de fazê-lo com todo o coração, com toda a nossa alma, entendimento
e força. Tudo o que vier às nossas mãos para fazer pelas almas, façamos
com toda a nossa força (Ec 9.10). O mundo poderá zombar, escarnecer e
nos chamar de fanáticos. A humanidade admira o zelo em qualquer tipo
de serviço, menos no serviço de Deus; e exalta o entusiasmo que alguém
sente por qualquer assunto, menos pela vida espiritual. Prossigamos
inabaláveis em nosso trabalho. O que quer que os homens pensem ou
digam, estamos andando nos passos do nosso Senhor Jesus Cristo.
Além disso, podemos sentir conforto em lembrar que o Senhor Jesus
nunca muda. É imutável em seus pensamentos Aquele que, assentado jun­
to à fonte de Samaria, considerou como “comida” o fazer o bem a uma
alma que vivia na ignorância. Ele está exaltado no céu, à direita de Deus;
ainda se deleita em salvar pecadores e aprova o zelo e o labor na causa de
Deus. O trabalho de missionário e evangelista pode ser ridicularizado por
muitos. Mas, enquanto os homens escarnecem, Cristo se agrada deste traba­
lho. Graças sejam dadas a Deus! Jesus é o mesmo ontem, hoje e eternamente.
Notamos também, nessa passagem, o grande encorajamento de Cristo
aos que se aplicam em fazer o bem às almas. Nosso Senhor descreveu o
mundo como campos que “já branquejam para a ceifa” . E disse também
52 João 4.31-42

aos discípulos: “O ceifeiro recebe desde já a recompensa e entesoura o seu


fruto para a vida eterna” .
O trabalho realizado em prol das almas é acompanhado, sem dúvida,
por grande desencorajamento. O coração do homem natural é muito
endurecido e incrédulo. É indescritível a cegueira da maioria dos homens
quanto a situação de perigo, perdição e ruína em que se encontram. “O
pendor da carne é inimizade contra Deus” (Rm 8.7). E impossível descrever
com exatidão a dureza do coração humano, até que se procure fazer-lhe o
bem. Ninguém pode ter uma concepção clara sobre o número reduzido dos
que se arrependem e crêem, até que pessoalmente procure “salvar alguns”
(1 Co 9.22). É infantilidade supor que se converterão todos os que ouvem
falar de Cristo e são convidados a crer. “Estreita é a porta, e apertado, o
caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela”
(Mt 7.14). Os que trabalham na obra de Cristo verão que, por mais que
façam, a grande maioria permanece incrédula e sem arrependimento. São
“muitos” os que não se voltam para Cristo. Estes fatos são desanimadores,
mas são uma realidade e devem ser conhecidos.
O verdadeiro antídoto para o desânimo na obra de Deus está em
constantemente relembrar promessas como a que vimos nessa passagem.
Há “recompensas” reservadas para os ceifeiros fiéis. Estes receberão, no
último dia, uma recompensa que excede a qualquer coisa que tenham feito
por Cristo; uma recompensa proporcional não ao sucesso que alcançaram,
mas à quantidade de serviço que prestaram. Eles estão agora ajuntando
“frutos” que permanecerão quando este mundo passar. Frutos vistos em
algumas almas salvas, sendo que não são muitos os que crêem; e frutos
evidenciados pela fidelidade que demonstraram, que serão apresentados
diante de todo o mundo reunido. Se nossas mãos afrouxarem e os joelhos
enfraquecerem, se formos inclinados a dizer: “Meu trabalho é vão e minhas
palavras nada valem ” , apoiem o-nos nesta gloriosa prom essa. Há
“recompensas” a serem recebidas, há “fruto” a ser revelado. “Porque nós
somos para com Deus o bom perfume de Cristo, tanto nos que são salvos
como nos que se perdem” (2 Co 2.15). Prossigamos no trabalho! “Quem
sai andando e chorando, enquanto semeia, voltará com júbilo, trazendo os
seus feixes” (SI 126.6). Uma única alma salva tem mais valor e permanência
que todos os reinos deste mundo.
Por último, temos nesses versículos um exemplo esclarecedor sobre
os diversos modos pelos quais os homens são levados a crer em Cristo.
“Muitos samaritanos... creram nele, em virtude do testemunho da mu­
lher.” Mas isto não é tudo. Lemos, ainda, que muito outros creram nele
por causa de sua própria palavra. Em suma, alguns foram convertidos
através do testemunho dado pela mulher, e outros, por ouvir o próprio
Cristo falar.
João 4.31-42 53

As palavras de Paulo não deveriam ser esquecidas: “Há diversidade


nas realizações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos” (1 Co
12.6). A maneira como o Espírito conduz os filhos de Deus é sempre a
mesma. Mas os meios utilizados para trazer-lhes ao caminho de Cristo
são, na maioria das vezes, diversos. Em alguns casos, a obra de conversão
é repentina e instantânea. Em outros, a conversão acontece lenta e
calmamente, em graus quase imperceptíveis. Alguns têm os corações
abertos, como Lídia. Outros se despertam com algo alarmante, como o
carcereiro de Filipos. Todos são finalmente trazidos ao arrependimento
para com Deus, à fé no Senhor Jesus Cristo e à santidade no viver. Mas
nem todos iniciam pela mesma experiência. O instrumento utilizado para
infundir a convicção de pecados em alguns não é o mesmo que, a princípio,
penetra os corações de outros. As flechas usadas pelo Espírito são todas
retiradas da mesma aljava; porém, às vezes, Ele utiliza uma e, às vezes,
outra, de acordo com sua vontade soberana.
Somos realmente convertidos? Este é o assunto para o qual nossa
atenção deve estar direcionada. Nossa experiência pode não corresponder
à de outros crentes. Mas não é esta a questão. Sentimos o pecado, odiamos
e fugimos dele? Amamos a Cristo e dependemos unicamente dEle para a
salvação? Estamos produzindo os frutos do Espírito, em retidão e verdadeira
santidade? Se tais coisas são realidade em nosso viver, podemos ser gratos
a Deus, sentindo-nos encorajados.

Os Ricos têm Aflições;


Os Jovens Adoecem e Morrem;
A Aflição traz Bênçãos;
A Palavra de Cristo Exerce o Mesmo Poder
que a sua Presença
Leici João 4.43-54

Quatro lições se destacam grandemente nessa passagem. Devemos


fixá-las em nossas memórias e usá-las continuamente em nossa caminhada
pela vida.
Aprendemos inicialmente que os ricos têm aflições, assim cornos os
pobres. Acabamos de ler sobre um homem nobre que se encontrava em
grande ansiedade, porque o filho estava doente. Podemos ter certeza de
que foi usado todo o dinheiro necessário para a recuperação daquele jovem,
54 João 4.43-54

mas o dinheiro não tem todo o poder. A enfermidade aumentou, e o filho


daquele homem rico chegou à beira da morte.
Não há erro mais comum ou enganoso do que supor que os ricos não
têm preocupações. Eles estão sujeitos às enfermidades, tanto quanto os
pobres, e, além disso, experimentam centenas de outras preocupações, das
quais os pobres não têm conhecimento. Roupas finas geralmente cobrem
pessoas de corações sofridos. Os que habitam em palácios muitas vezes
dormem menos tranqüilos do que aqueles que habitam em casebres. Ouro
e prata não livram o homem de problemas. Podem afastá-lo de dívidas e da
pobreza, mas não conseguem livrá-lo de preocupações, de enfermidades e
da morte. Quanto mais alta é a árvore, mais agitada será pela tempestade.
Quanto maiores forem os galhos, maior será a área exposta aos ventos.
Davi era mais feliz quando guardava o rebanho de ovelhas de seu pai, em
Jerusalém, do que quando habitava um palácio, na posição de rei, e
governava as doze tribos de Israel.
O servo de Cristo deve ter cautela quanto ao desejo de possuir riquezas.
Nelas há preocupações certas e confortos incertos. O crente precisa orar
pelos ricos, ao invés de invejá-los. Quão dificilmente entrará o rico no
reino de Deus! E, acima de tudo, o servo do Senhor precisa aprender a
estar contente com o que possui. Somente aquele que possui um tesouro no
céu é verdadeiramente rico.
Aprendemos, em segundo lugar, que a enfermidade e a morte atingem
tanto o jovem quanto o idoso. Lemos a respeito de um filho enfermo, à
beira da morte, e de um pai preocupado com ele. Vemos, aqui, a ordem
natural das coisas sendo invertida. O idoso está ministrando ao jovem, não
o jovem ao idoso. O filho está à caminho da sepultura antes do pai, e não
o pai antes do filho.
Aqui está uma lição a respeito da qual somos todos vagarosos em
aprender. Somos hábeis em fechar os olhos para a clareza dos fatos, falamos
e agimos como se fosse natural que os jovens jamais morressem enquanto
são jovens. Entretanto, os epitáfios nas sepulturas nos mostram que, entre
uma centena de pessoas, não são muitos os que passam de cinqüenta anos;
e alguns nem mesmo chegam à idade adulta. A primeira sepultura cavada
neste mundo foi para um jovem. O primeiro a morrer não foi um pai, e sim
um filho. Arão perdeu dois filhos de uma só vez. Davi, o homem segundo
o coração de Deus, viveu o suficiente para ver três de seus filhos serem
sepultados. Jó ficou destituído de todos os seus filhos em um só dia. Estas
coisas foram cuidadosamente registradas, para que aprendêssemos com
elas.
Aquele que é sábio não confia que viverá uma vida longa. Não
podemos prever o que nos reserva o dia de amanhã. Vemos, com freqüência,
que os mais fortes e vigorosos são cortados e desaparecem em pouco tempo,
João 4.43-54 55

enquanto os mais velhos e fracos duram por muitos anos. A única sabedoria
verdadeira consiste em estar sempre preparado para encontrar-se com Deus,
não colocando de lado as coisas concernentes à eternidade e vivendo de
forma a estar pronto, a qualquer momento, para partir desta vida. Se assim
vivemos, não há grande importância em morrermos quando jovens ou
velhos. Unidos ao Senhor Jesus Cristo, estaremos seguros em qualquer
circunstância.
Em terceiro lugar, aprendemos que as aflições podem trazer benefícios
à alma. A ansiedade pela doença do filho conduziu aquele homem a Cristo,
em busca de ajuda em tempos de necessidade. Uma vez que foi levado à
presença de Cristo, pôde aprender uma lição de valor incalculável. O
resultado é que “creu ele e toda a sua casa” . É bom lembrar que tudo isso
aconteceu por causa da enfermidade. Se o filho não houvesse adoecido,
talvez aquele homem nobre continuasse a viver em seus pecados, vindo a
morrer neles.
A aflição é um instrumento usado por Deus. Através dela, Ele
geralmente ensina coisas que não poderiam ser ensinadas de outra forma;
afasta do pecado e do mundo almas que, se não fosse por causa da
enfermidade, pereceriam eternamente. A saúde é uma grande bênção, mas
a enfermidade que leva a buscar a santificação é uma bênção ainda maior.
Naturalmente, o que todos desejam neste mundo é a prosperidade e o con­
forto; mas as perdas e os infortúnios da vida serão mais valiosos para nós,
se nos conduzirem a Cristo. No dia final, milhares de pessoas testificarão,
juntamente com Davi e esse oficial do rei: “Foi-me bom ter eu passado
pela aflição” (SI 119.71).
Precisamos ter cuidado em não murmurar quando passamos por tem­
pos de aflição. Devemos conservar em nossas mentes o fato de que, em
cada tristeza que nos sobrevem, há um significado, uma razão e um recado
de Deus para nós. Não há lições mais úteis do que as aprendidas na escola
da aflição. Não há comentário bíblico que tome a Bíblia mais clara para
nós do que a enfermidade e a tristeza. “Toda disciplina, com efeito, no
momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois,
entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados,
fruto de justiça” (Hb 12.11). A manhã da ressurreição mostrará que muitas
das perdas sofridas pelo povo de Deus foram, na verdade, ganhos etemos.
Por último, aprendemos com essa passagem que a palavra falada
por Cristo exerce o mesmo poder que a sua presença. Jesus não desceu a
Cafamaum para ver o jovem enfermo; apenas pronunciou estas palavras:
“Teu filho vive” . Um grande poder acompanhou esta curta sentença. Na
mesma hora o paciente começou a melhorar. Jesus tão-somente falou, e a
cura foi realizada. Ele apenas ordenou, e a enfermidade mortal se retirou.
Esse acontecimento nos traz um conforto singular. Faz que tributemos
56 João 4.43-54

enorme valor a cada uma das promessas de misericórdia, graça e paz


procedentes dos lábios de Cristo. Tem os seus pés firmados sobre a rocha
todo aquele que, através da fé, apropria-se de alguma palavra proferida
por Cristo. Ele fará aquilo disse ecompletará a obra que iniciou. O peca­
dor que descansa sua alma nas palavras de Jesus está seguro por toda a
eternidade. E não estaria mais seguro, se visse o livro da vida e o seu nome
ali escrito. Se Cristo disse: “O que vem a mim, de maneira nenhuma o
lançarei fora” , e, se o nosso coração pode testificar: “Senhor, eu vim a
ti!” , não precisamos duvidar que estamos salvos. Em relação às coisas
deste mundo, dizemos que para crer é preciso ver, mas, no que concerne
ao evangelho, crer equivale a ver. Uma simples palavra proferida por
Cristo tem o mesmo valor que contemplar uma obra já realizada. Estará
vivo, para sempre, e jamais morrerá aquele a respeito de quem Jesus diz
no evangelho: ele vive.
Lembremo-nos de que são comuns aflições como a desse oficial.
Provavelmente passaremos por isso, algum dia. Sabemos o que significa
suportar a aflição? Sabemos para onde nos voltarmos, em busca de socorro
e consolo, quando a nossa vez chegar? Devemos encher nossas mentes
com as palavras de Cristo. Elas não são apenas palavras de um homem,
são as palavras de Deus. As palavras que Ele fala “são espírito e são vida”
(Jo 6.63).

A Miséria Causada Pelo Pecado;


A Compaixão de Cristo;
A Lição Aprendida da Cura
de uma Enfermidade
L eia João 5.1-15

Nessa passagem, encontramos um dos poucos milagres de Cristo


registrados por João. Assim como outros milagres relatados nesse evangelho,
este foi descrito com minúcia e riqueza de detalhes. Este milagre, assim
como alguns outros, levou Cristo a pronunciar um discurso singularmente
profundo e instrutivo.
Nessa passagem, aprendemos quanta miséria o pecado traz ao mundo.
O texto nos fala sobre um homem que estava enfermo por trinta e oito
anos. Por trinta e oito longos invernos de sofrimento, aquele homem
suportou a dor e a enfermidade. Presenciara outros serem curados nas
águas de Betesda e voltarem regozijando-se aos seus lares. Mas para ele
João 5.1-15 57

não havia cura. Sem amigos, ajuda e esperança, ficava próximo das águas,
mas delas não recebia qualquer benefício. Anos e anos se passavam, e ele
permanecia enfermo. Nada parecia trazer-lhe alívio ou melhora, senão a
morte.
Quando lemos sobre casos de enfermidade semelhantes a este,
devemos pensar em quão profundamente temos de odiar o pecado! Ele é a
origem e a causa de toda enfermidade neste mundo. Deus não criou o ho­
mem para ser assolado por dores, sofrimentos e doenças. Estas coisas são
frutos da Queda. Não haveria enfermidades, se não existisse o pecado.
A maior prova da incredulidade natural do homem é a sua indiferença
quanto ao pecado. O sábio escritor afirmou: “Os loucos zombam do pecado”
(Pv 14.9). Milhares de pessoas deleitam-se em coisas obviamente malignas
e correm, de maneira voraz, atrás daquilo que é claramente venenoso.
Tais pessoas amam o que Deus abomina e desprezam aquilo que Ele aprecia.
Assemelham-se ao homem insensato que ama os seus inimigos e odeia os
amigos. Os seus olhos estão cegos. Com toda a certeza, se os homens
olhassem os hospitais e enfermarias, para considerar quanta destruição o
pecado tem causado nessa terra, não brincariam com ele.
Com razão, somos ensinados a orar pela vinda do reino de Deus e a
ansiar pela segunda vinda de Jesus Cristo! Somente naquela época, e não
antes, a terra ficará livre de qualquer maldição, sofrimento, tristeza e pecado.
Quando o Senhor retomar, enxugará as lágrimas das faces de todos os que
amam sua vinda. As enfermidades e fraquezas passarão. A esperança adia­
da não mais desanimará o coração. Quando Cristo renovar esta terra, não
mais haverá doentes crônicos ou casos incuráveis.
Nessa passagem também aprendemos quão grandiosa é a compaixão
e a misericórdia de Cristo. Ele viu aquele pobre sofredor, deitado entre a
multidão. Embora desprezado e esquecido entre a multidão, aquele homem
não deixou de ser observado pelos olhos de Cristo, que vêem todas as coi­
sas. Por intermédio de seu conhecimento divino, Jesus sabia muito bem há
quanto tempo ele se encontrava naquela situação e condoeu-se dele. De
forma inesperada, Jesus dirigiu àquele homem palavras de graça e com­
paixão. Por meio de seu poder miraculoso, curou-o imediatamente, sem
qualquer fatigante demora, e enviou-o regozijando para casa.
Este é apenas um dos exemplos do Senhor Jesus concernentes à sua
bondade e compaixão. Em Cristo existe plenitude de amor inesperado,
abundante e imerecido para com o homem. Ele “tem prazer na misericór­
dia” (Mq 7.18). Está mais disposto a salvar o homem do que este a ser sal­
vo; e mais desejoso de conceder bênçãos ao homem do que este a recebê-
las.
Ninguém deve ter receios de tomar-se um cristão genuíno, se estiver
disposto a isso; não deve se retrair ou demorar, sob a falsa idéia que Cristo
58 João 5.1-15

não deseja recebê-lo. Antes, deve achegar-se a Ele com ousadia e confiança.
Aquele que curou o paralítico de Betesda ainda é o mesmo.
Por último, nessa passagem aprendemos a lição ministrada na cura
da enfermidade. Essa lição está contida nas solenes palavras que nosso
Salvador dirigiu ao homem curado por Ele: “Não peques mais, para que
não te suceda coisa pior” .
Cada enfermidade e tristeza manifesta a voz de Deus falando conosco.
Cada uma delas tem sua mensagem peculiar. Felizes são os que possuem
ouvidos e olhos abertos, para ver a mão de Deus e ouvir sua voz em tudo
o que lhes sucede. Neste mundo, nada acontece por acaso.
Assim como a enfermidade, a restauração da saúde também nos traz
ensinamentos. A saúde renovada deve nos levar de volta às atividades
neste mundo, fazendo-nos demonstrar um ódio ainda maior ao pecado,
uma mais intensa vigilância sobre nossa vida e uma decisão mais firme de
viver constantemente para Deus. Freqüentemente, o entusiasmo e o frescor
do retomo da saúde nos inclinam a esquecer os votos e os propósitos esta­
belecidos no leito da enfermidade. A restauração da saúde é acompanhada
por perigos espirituais. Bom seria para todos se, após uma enfermidade,
gravássemos em nossos corações estas palavras: “Não devo mais pecar,
para que não me suceda coisa pior!”
Encerremos esta meditação com os corações gratos, bendizendo a
Deus, por revelar-nos que, em sua Palavra, temos um precioso evangelho
e um sublime Salvador. Contraímos enfermidades? Lembremos que Cristo
vê e conhece tudo; e, se Ele achar apropriado, pode nos curar. Entramos
em dificuldades? Em tempos como estes, ouçamos a voz de Deus e apren­
damos a odiar mais o pecado.

Algumas Obras Legítimas Realizadas


no Dia do Senhor;
A Dignidade e a Majestade de Cristo
L eia João 5.16-23

Esses versículos introduzem um dos trechos mais solenes e sig­


nificativos dos quatro evangelhos. Nessa passagem, vemos o Senhor Jesus
declarando sua natureza divina, sua unidade com Deus, o Pai, e a sublime
dignidade de seu ofício. Em nenhum outro lugar, exceto neste capítulo,
encontramos o Senhor abordando tão detalhadamente tais assuntos. E temos
de confessar que, em nenhuma outra passagem das Escrituras, observamos
de maneira tão ampla a fraqueza de compreensão da parte do homem.
João 5.16-23 59

Devemos admitir que, nessas palavras de Cristo referentes a Si mesmo, há


muitas coisas que estão acima de nossa compreensão. “Tal conhecimento é
maravilhoso demais para mim: é sobremodo elevado, não o posso atingir”
(SI 139.6). Com freqüência, os homens afirmam que desejam explicações
mais claras sobre doutrinas como a da Trindade. No entanto, vemos aqui o
Senhor abordando um assunto sobre a sua própria pessoa e não O com­
preendemos! Parece que não conseguimos fazer mais do que tatear com a
ponta de nossos dedos o significado de suas palavras.
Primeiramente, esses versículos nos ensinam que há algumas obras
legítimas a serem realizadas no Dia do Senhor. Assim como em muitas
outras ocasiões, os judeus criticaram Jesus, porque no sábado havia curado
um homem que estivera doente por trinta e oito anos. Acusaram-No de
estar quebrando o quarto mandamento.
A resposta de Cristo aos judeus é notável: “Meu Pai trabalha até
agora, e eu trabalho também” . E como se Ele dissesse: “Embora o meu
Pai tenha descansado no sétimo dia da criação, Ele nunca descansou, por
um momento sequer, no que concerne ao seu governo providencial do
mundo e à sua obra de misericórdia em suprir as necessidades diárias de
todas as suas criaturas. Se Ele tivesse descansado de tais serviços, toda a
natureza ficaria paralisada. Da mesma forma, Eu também realizo obras de
misericórdia no Dia do Senhor. Não transgrido o quarto mandamento, ao
curar o enfermo no sábado, assim como o meu Pai não o transgride quando,
nesse dia, faz o sol nascer e a grama crescer” .
Precisamos entender, com clareza, que o Senhor Jesus, aqui ou em
qualquer outro lugar das Escrituras, não anulou a obrigação do quarto
mandamento. Não há, nesses versículos e em quaisquer outros, palavra
alguma que justifique as vagas declarações de alguns ensinadores modernos
afirmando que “os cristãos não precisam guardar um dia de descanso” ,
porque isto é uma “instituição judaica pertencente ao passado” . O Senhor
Jesus estabeleceu a perspectiva correta para as reivindicações a respeito de
guardar o dia de descanso. Eliminou desse dia o falso e supersticioso ensino
dos judeus sobre a maneira correta de observá-lo. E, com muita clareza,
mostrou-nos que as obras de socorro e misericórdia não implicam na quebra
do quarto mandamento.
Além disso, em nossos dias, os erros cometidos pelos cristãos a res­
peito deste assunto são bem diferentes dos erros daqueles judeus. E pequeno
o risco de haver quem guarde de maneira rigorosa demais o Dia do Senhor.
O que devemos temer é a inclinação do homem em observá-lo leviana e
parcialmente ou não fazê-lo em absoluto. A tendência desta geração não é
a de exagerar na observância do quarto mandamento, e sim a de eliminá-lo
do Decálogo e desprezá-lo por completo. Precisamos estar alertas contra
esta tendência. Levando em conta todos os séculos passados, encontramos
60 João 5.16-23

provas abundantes de que a vida espiritual genuína jamais floresce, quando


o Dia do Senhor não é adequadamente observado.
Esses versículos também nos ensinam a dignidade e a grandeza do
nosso Senhor Jesus Cristo. Somos informados que os judeus procuravam
matar Jesus, por ter dito que “Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a
Deus” . Em resposta, Jesus abordou com proftmdidade a questão de sua
natureza divina. Enquanto lemos suas palavras, temos de perceber que
estamos considerando assuntos misteriosos e pisando em terra santa. Ainda
que não entendamos com clareza, devemos sentir profunda convicção de
que as coisas afirmadas por Cristo jamais seriam ditas por alguém que era
apenas um homem. Porém, Aquele que nos fala não é menos do que o
próprio Deus “manifestado na carne” (1 Tm 3.16).
Ele declarou sua própria unidade com Deus, o Pai. Não podemos dar
um outro significado plausível às expressões: “O Filho nada pode fazer de
si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este
fizer, o Filho também semelhantemente o faz... O Pai ama o Filho, e lhe
mostra tudo o que faz” . Tal linguagem, embora profunda e elevada, parece
significar que, em realizações, conhecimento, propósito e vontade, o Pai e
o Filho estão unidos — duas pessoas, mas um só Deus. Certamente, verdades
como essas vão além do que o homem consegue explicar. Para nós, o su­
ficiente é crer e descansar nelas.
Logo a seguir, Jesus declarou o seu divino poder em conceder vida.
Ele disse: “O Filho vivifica aqueles a quem quer” . A vida é a maior e mais
sublime dádiva que pode ser outorgada, sendo ela mesma aquilo que o
homem, com toda a sua habilidade, não pode conceder com suas próprias
mãos, nem restaurar quando tirada. Mas, conforme lemos, a vida está nas
mãos do Senhor Jesus, que a outorga de acordo com seu critério. Tanto os
cadáveres quanto as almas espiritualmente mortas estão sob seu domínio.
Ele tem as chaves da morte e do inferno (Ap 1.18); nEle está a vida — Ele
é a vida (Jo 1.4).
Por último, Ele declarou sua autoridade em julgar o mundo, afirmando
que o Pai “ao Filho confiou todo o julgamento” . Todo o poder e autoridade
sobre o mundo foi entregue nas mãos de Cristo. Ele é o Rei e o Juiz da
humanidade. Em sua presença, todo joelho se dobrará e toda língua
confessará que Ele é o Senhor. Aquele que uma vez foi desprezado e
rejeitado pelos homens, condenado e crucificado como um malfeitor, um
dia reunirá a todos em um grande tribunal e julgará o mundo. “Deus, por
meio de Cristo Jesus” , julgará “os segredos dos homens” (Rm 2.16).
Agora, consideremos se há possibilidade de exagerarmos a respeito
da importância de Cristo para a nossa vida espiritual! Caso isto já nos
tenha ocorrido, lancemos fora tais pensamentos. Cristo é digno de toda a
honra, por sua natureza divina e pelo seu ofício de Mediador enviado ao
João 5.16-23 61

mundo. Jamais será exaltado acima do que convém, Aquele que é um com
o Pai, o doador da vida, o Rei dos reis, o Juiz que há de vir. “Quem não
honra o Filho não honra o Pai que o enviou. ”
Se desejamos ser salvos, lancemos todo o nosso fardo sobre este
poderoso Salvador. Fazendo isto, nunca temeremos. Cristo é a rocha eterna.
Aquele que sobre Ele edifica a sua vida jamais será confundido, na enfer­
midade, na morte ou no Dia do Juízo. A mão que foi cravada na cruz
possui muito poder. O Salvador dos pecadores é “poderoso para salvar”
(Is 63.1).

Ouvir a Cristo Para ser Salvo;


Os Privilégios dos que Crêem;
O Poder de Cristo em dar Vida;
A Ressurreição Final
L eia João 5.24-29

O texto que acabamos de ler é singularmente rico em verdades


profundas. Essas palavras causaram um grande impacto nas mentes dos
judeus, que estavam familiarizados com os escritos de Moisés e de Daniel.
Ao ouvirem esse pronunciamento de Cristo, não deixariam de perceber o
apelo que Ele fazia para ser aceito como o Messias prometido.
Vemos, primeiramente, que a salvação de nossas almas depende de
ouvirmos a Cristo. Aquele que ouve as palavras de Cristo e crê que Deus,
o Pai, o enviou para salvar os pecadores “tem a vida eterna” . Este “ouvir”
implica em algo mais do que simplesmente escutar. Significa ouvir com
atitude de humildade, assim como um discípulo submisso, com fé, amor e
um coração disposto a fazer a vontade de Cristo — este é o ouvir que
salva. Foi este tipo de ouvir que Deus mencionou na famosa predição
sobre o profeta semelhante a Moisés: “A ele ouvirás... De todo aquele que
não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, disso lhe pedirei
contas” (Dt 18.15-19).
Não devemos esquecer que, em nossos dias, “ouvir” a Cristo com
esta atitude é tão necessário quanto o foi nos séculos passados. Não basta
ouvir sermões e correr em busca de pregadores, embora alguns pensem
que nisso se resume a vida cristã. Precisamos ir muito além dessa maneira
de pensar; temos de “ouvir a Cristo”. O caminho para o céu está em sub­
meter nossos corações aos ensinos de Cristo; em sentar-nos humildemente
a seus pés, pela fé, e aprender dEle; em demonstrar verdadeiro arrepen­
62 João 5.24-29

dimento e fé genuína; em ouvir a voz de Cristo e segui-Lo. Enquanto não


experimentamos estas coisas, não há vida em nós.
Em segundo, vemos nesses versículos quão ricos e abundantes são
os privilégios daquele que ouve e crê verdadeiramente. Este usufrui a
salvação já no presente. Mesmo agora, em seus dias terrenos, “tem a vida
eterna” . Está completamente justificado e perdoado. Para ele não há mais
condenação. Seus pecados são lançados fora; ele “não entra em juízo” .
Tal pessoa se encontra em uma posição inteiramente nova diante de Deus;
assemelha-se a alguém que passou de um lado do abismo para o outro:
“Passou da morte para a vida” .
Os privilégios do crente verdadeiro são grandemente subestimados
por muitos. Estes, principalmente por possuírem uma deplorável ignorância
das Escrituras, não fazem idéia dos tesouros espirituais de todo crente em
Jesus. Se considerarmos com atenção, veremos esses tesouros aqui reunidos
em harmoniosa disposição. Um dos tesouros do crente é a “realidade
presente” da salvação. Não é algo distante, que ele receberá no futuro, se
cumprir seu dever e for uma boa pessoa. No momento em que crê, a
salvação lhe pertence por direito. Ele está, de fato, perdoado e salvo,
embora ainda não esteja no céu. Outro tesouro do crente é a plenitude de
sua justificação. Por intermédio do sangue de Jesus, seus pecados são
inteiramente perdoados, removidos e apagados do livro de Deus. O crente
pode olhar sem temor para o julgamento futuro e dizer: Quem me condenará?
(Rm 8.34). Ele se apresentará sem culpa, diante do trono de Deus.
O último, mas não o menos importante tesouro do verdadeiro crente,
é a completa mudança em sua posição e relacionamento com Deus. Aos
olhos de Deus, ele já não é alguém morto em seu espírito e legalmente
sentenciado à morte. Ele está vivo “para Deus, em Cristo Jesus” (Rm
6.11). “É nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram
novas” (2 Co 5.17). Bom seria para os crentes, se esses tesouros fossem
melhor conhecidos! Em muitos casos, a ausência de paz resulta da falta de
conhecimento.
Em terceiro, nesses versículos encontramos uma declaração impres­
sionante a respeito do poder de Cristo em dar vida a almas mortas. O
Senhor nos diz: “Vem a hora e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz
do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão” . Parece improvável que
estas palavras se restringiam à ressurreição de mortos e se cumpriram em
milagres semelhantes à ressurreição de Lázaro. É mais provável que nosso
Senhor tinha em vista o despertamento, a ressurreição e a conversão de
almas (Ef 2.1; Cl 2.13).
Estas palavras se cumpriram em muitas ocasiões, durante o ministério
do próprio Senhor Jesus e, de maneira mais abrangente, após o dia de
Pentecostes, através do ministério dos apóstolos. As inúmeras conversões,
João 5.24-29 63

em Jerusalém, Antioquia, Éfeso, Corinto e outros lugares, comprovam a


realização delas. Em todos esses casos, “a voz do Filho de Deus” despertou
à vida espiritual corações que estavam mortos e os fez sentir a necessidade
de salvação, arrependimento e fé. Estas palavras se cumprem, ainda hoje,
em cada instância que ocorre uma conversão genuína. Sempre que alguém
entre nós é despertado para reconhecer o valor de sua alma e se torna vivo
para Deus, esta afirmativa de Jesus se cumpre diante de nossos olhos. É
Cristo que lhes fala ao coração, através do seu Espírito. Os mortos ouvem
“a voz do Filho de Deus” e vivem.
Por último, esses versículos nos apresentam a profecia mais solene a
respeito da ressurreição final de todos os mortos. Nosso Senhor declarou:
“Vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz
e sairão; os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que
tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo” .
Esta passagem deveria arraigar-se profundamente em nossos corações
e jamais ser esquecida. Quando os homens morrem, não está tudo acabado.
Quer eles queiram, quer não, terão de sair do túmulo, no último dia, e
comparecer diante do tribunal de Cristo. Ninguém escapará à chamada de
Cristo. Quando sua voz os convocar à sua presença, todos obedecerão. E,
ao ressuscitarem, os homens não ressurgirão todos na mesma condição.
Haverá duas classes de pessoas, dois partidos, dois grupos. Nem todos
irão ao céu e serão salvos. Alguns ressuscitarão para herdar a vida eterna,
mas outros ressurgirão apenas para serem condenados. Estas verdades são
terríveis! Mas as palavras de Cristo são claras e inconfundíveis. Está escrito
e assim acontecerá.
Procuremos nos certificar de que estamos ouvindo agora a voz de
Cristo a nos despertar e de que estamos alistados entres os seus verdadeiros
discípulos. Conheçamos os privilégios do crente genuíno, enquanto temos
vida e saúde. E, quando sua voz abalar os céus e a terra e chamar das
sepulturas os mortos, sentiremos confiança e dEle não nos envergonharemos
“na sua vinda” (1 Jo 2.28).

A Honra que Cristo Outorga aos seus Servos,


aos Milagres e às Escrituras
L eia João 5.30-39

Nesses versículos vemos, de forma suscinta, sendo exposta aos judeus


a comprovação de que Jesus era o Messias prometido. Quatro diferentes
testemunhas e quatro tipos de evidências são apresentadas. O Pai celestial,
64 João 5.30-39

João Batista, o antecessor de Cristo, os milagres realizados e as Escrituras,


que os judeus professavam honrar — todos estes foram mencionados por
nosso Senhor como testemunhas de que Ele era o Cristo, o Filho de Deus.
Empedernidos devem ter sido os corações daqueles que, ouvindo estas
testemunhas, permaneceram insensíveis. Mas isto apenas comprova a
veracidade de um antigo ditado: a incredulidade provém mais da falta de
disposição em crer do que da falta de evidências.
Notemos, primeiramente, a honra que Cristo outorga aos seus ser­
vos fiéis. Ele falou a respeito de João Batista: “Ele deu testemunho da
verdade” ; “Era a lâmpada que ardia e alumiava”. Quando Jesus pronunciou
estas palavras, talvez João Batista já houvesse cessado seus labores na
terra. Fora perseguido, encarcerado e levado à morte por Herodes, sem
que ninguém interferisse ou tentasse evitar que fosse morto. Porém, este
discípulo assassinado não foi esquecido por seu Mestre divino. Jesus se
lembrava dele, embora muitos já o houvessem deixado no esquecimento.
João Batista havia honrado a Cristo, que, por sua vez, também o honrou.
Estes fatos não devem ser ignorados. Foram escritos para nos ensinar
que Jesus cuida de todos os que nEle crêem e jamais os esquece. Os crentes
talvez sejam esquecidos e desprezados pelo mundo, mas nunca pelo Salva­
dor de suas almas. Cristo conhece a situação e as provações que enfrentam.
Diante do Senhor, há um memorial escrito para eles (Ml 3.16). Suas lágrimas
estão recolhidas num odre (SI 56.8); seus nomes, escritos nas palmas das
santas mãos do Senhor. Ele observa tudo que seus servos fazem por seu
reino, neste mundo pecaminoso, embora estes pensem que não sejam coisas
dignas de serem notadas. Um dia, Cristo os confessará publicamente, diante
do Pai e de seus anjos. Aquele que testemunhou estes fatos sobre João
Batista é imutável. Os crentes devem lembrar isso. Ao enfrentarem a pior
ocasião, podem dizer com ousadia, assim como Davi: “Eu sou pobre e
necessitado, porém o Senhor cuida de mim” (SI 40.17).
Notemos, em segundo lugar, a honra que Cristo atribuiu aos milagres,
por evidenciarem ser Ele o Messias. Ele disse: “As obras que meu Pai me
confiou para que eu as realizasse, essas que eu faço testemunham a meu
respeito de que o Pai me enviou”.
Hoje, os milagres realizados pelo Senhor, os quais comprovam a sua
missão divina, não recebem a devida atenção. Muitas pessoas olham para
esses milagres com uma silenciosa incredulidade. Elas pensam que, por
não terem presenciado tais acontecimentos, não lhes deve ser exigido que
se importem com eles. Grande número de pessoas abertamente reconhecem
que não crêem na possibilidade de terem ocorrido tais milagres. E, por
considerá-los histórias fictícias, de bom grado as eliminariam da Bíblia,
assim como o marinheiro lança fora o excesso de carga, para aliviar o
navio.
João 5.30-39 65

Afinal de contas, fica bastante claro que os milagres do Senhor Jesus


exerceram um grande efeito nas mentes das pessoas, quando Ele estava
sobre a terra. Os milagres despertavam a atenção para Aquele que os
realizava. Incitavam questionamentos, se não levavam à conversão. Os
milagres eram tantos, realizados de maneira pública e inexplicável, que os
inimigos do nosso Senhor podiam apenas dizer que eram operados por
influência satânica. Todavia, eles não podiam negar que os milagres
realmente aconteciam. Os principais sacerdotes e fariseus disseram: “Este
homem opera muitos sinais” (Jo 11.47). Ninguém pretendia negar, há
séculos atrás, os fatos que os sábios dos nossos dias desejam contestar.
Se forem capazes, que os inimigos da Bíblia tentem provar que não
ocorreu o maior e último milagre do Senhor Jesus — sua ressurreição
dentre os mortos! Quando conseguirem fazer isso, será tempo de considerar
o que têm a dizer a respeito de todos os milagres. Eles ainda não encontraram
respostas às evidências da ressurreição e jamais encontrarão. Os que amam
a Bíblia não devem se abalar com as objeções a respeito dos milagres, até
que haja provas satisfatórias contra o milagre da ressurreição. Se este foi
comprovado de forma incontestável, os crentes não devem se preocupar
com argumentos insignificantes sobre os demais. Se, por seu próprio poder,
Cristo verdadeiramente ressuscitou dentre os mortos, o homem não precisa
hesitar em crer em quaisquer de suas obras poderosas.
Notemos, por último, a honra que Cristo atribui às Escrituras. Falou
sobre elas, ao concluir sua lista de evidências, como aquelas que prestam
grande testemunho a respeito dEle — “Examinais as Escrituras, porque
julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de m im ” .
“As Escrituras” , mencionadas por Jesus, referem-se obviamente ao
Antigo Testamento. E essas palavras de Cristo mostram uma importante
verdade que muitos tendem a ignorar: cada parte da Bíblia tem o propósito
de nos ensinar a respeito dEle. Cristo não está presente apenas nos
evangelhos e epístolas; pode ser encontrado, de forma direta ou indireta,
na Lei, nos Salmos e nos Profetas. Jesus Cristo, o Messias, está presente
nas promessas feitas a Adão, Abraão, Moisés e Davi, nas figuras e
simbologia da lei cerimonial, nas predições de Isaías e de outros profetas.
Como podem os homens possuir tão pouca compreensão dessas coisas?
A resposta é clara: eles não examinam as Escrituras; não se aprofundam
neste maravilhoso tesouro de sabedoria e conhecimento, nem buscam se
familiarizar com seu conteúdo. A leitura da Bíblia, com regularidade e
sinceridade, é o grande segredo para alguém permanecer firme na fé. Ignorar
as Escrituras é a causa de todo tipo de erro.
Afinal, em que pode o homem acreditar, se não crê na missão divina
do Senhor Jesus Cristo? De fato, grande é a obstinação da incredulidade.
Uma nuvem de testemunhas testifica que Jesus é o Filho de Deus.
66 João 5.30-39

Argumentar quanto à falta de evidências eqüivale a uma tolice infantil. A


verdade óbvia é que a incredulidade faz do coração o seu trono principal.
São muitos os que não desejam crer e, portanto, permanecem incrédulos.

O Motivo de Muitos Estarem Perdidos;


Uma das Principais Causas da Incredulidade;
O Testemunho de Cristo Sobre Moisés
L eia João 5 .4 0 -4 7

Essa passagem conclui a maravilhosa defesa do Senhor Jesus Cristo


concernente à sua missão divina. É uma conclusão rica em ensinamentos
verdadeiros e profundos, repleta de apelos às consciências dos seus inimigos,
para que estes perscrutassem seus corações. Vemos aqui um poderoso
sermão seguido por uma enérgica aplicação.
Primeiramente, devemos observar, nestes versículos, a razão pela
qual muitos estão perdidos. O Senhor Jesus disse aos judeus que não criam
nEle: “Não quereis vir a mim para terdes vida” .
Estas são palavras valiosas, que devem ficar gravadas em nossas
mentes e entesouradas em nossos çorações. No último dia, ficará evidente
que a falta de desejo para vir a Cristo, a fim de ser salvo, é o motivo por
que muitos serão deixados fora do céu. O motivo não será o pecado dos
homens. Todo e qualquer pecado pode ser perdoado. A condenação não
ocorre por qualquer decreto da parte de Deus. Em nenhum lugar das
Escrituras, aprendemos que alguém foi criado por Deus somente para ser
destruído. O motivo não será por haver qualquer limite na obra redentora
realizada por Cristo. Ele pagou o preço suficiente para a salvação de toda
a humanidade. A causa da perdição reside na indisposição natural para vir
a Cristo, arrepender-se e crer. Quer por negligência, quer por orgulho,
quer por amor ao pecado ou amor ao mundo, é grande o número dos que
não têm desejo, disposição e interesse em buscar vida em Cristo. “Deus
nos deu a vida eterna; e esta vida está no seu Filho” (1 Jo 5.11). Mas os
homens resistem e não fazem qualquer esforço para adquirir a vida. Esse é
o motivo de muitos perdidos não serem salvos.
Esta é uma triste e solene verdade, que não podemos entender
completamente; contém um princípio fundamental da teologia cristã. Em
todas as épocas, há milhares que labutam com insistência para retirar de si
mesmos a culpa de viverem na condição em que se encontram. Tais pessoas
falam sobre sua incapacidade de mudar. Afirmam, complacentemente, que
não podem evitar serem o que são! Sabem que estão errados, mas não
João 5.40-47 67

conseguem ser diferentes. É fraca essa argumentação; não resiste diante da


Palavra de Cristo que acabamos de ler. Os não-convertidos são o que são
porque não desejam ser melhores. “A luz veio ao mundo, e os homens
amaram mais as trevas do que a luz” (Jo 3.19). As palavras do Senhor
Jesus silenciarão muitos: “Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos,
como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o qui­
sestes!” (Mt 23.37).
Em segundo, podemos observar nesses versículos a principal causa
da incredulidade. O Senhor Jesus disse aos judeus: “Como podeis crer,
vós os que aceitais glória uns dos outros e, contudo, não procurais a glória
que vem do Deus único?” Com isso Ele pretendia afirmar que não estavam
sendo sinceros em sua vida religiosa. Apesar de aparentemente desejarem
ouvir e aprender, preocupavam-se, na verdade, mais em agradar os homens
do que a Deus. Com tal disposição em suas mentes, nunca chegariam a
crer.
Nessas palavras de Cristo, encontramos um profundo ensinamento,
que merece uma atenção especial. A fé verdadeira não depende simplesmente
da condição de raciocínio e entendimento do homem, e sim do estado de
seu coração. O seu intelecto pode ser convencido e sua consciência afligida;
mas, havendo qualquer coisa secretamente mais amada do que Deus, não
existirá a fé verdadeira. O próprio homem pode ficar perplexo e questionar
por que não crê. Porém, não percebe que é como uma criança assentada
sobre a tampa de uma caixa, desejando abri-la, mas não considerando que
o seu próprio peso a mantém fechada. O que ele deve fazer é certificar-se
de que verdadeira e sinceramente deseja, em primeiro lugar, a glória de
Deus. A falta de sinceridade no coração faz que muitos se apeguem à sua
religião durante toda a vida e terminem morrendo sem paz. Os que se
queixam de que ouvem, aprovam e aceitam a verdade, mas não conseguem
apegar-se a Cristo, deveriam fazer a si mesmos esta simples pergunta:
“Estou sendo honesto e sincero? De fato, quero glorificar a Deus em pri­
meiro lugar?”
Por último, observamos nesses versículos, a maneira como o Senhor
Jesus falou sobre Moisés. Assim, Ele se dirigiu aos judeus: “Se... crêsseis
em Moisés, também crer íeis em mim; porquanto ele escreveu a meu res­
peito” . Estas palavras exigem atenção especial, em nossos dias. Ao dizer:
“Ele escreveu a meu respeito”, nosso Senhor testemunhou de forma clara
que realmente existiu um personagem chamado Moisés, que na verdade
era o autor dos escritos comumente atribuídos a ele. Poderíamos imaginar
que o Senhor estava apenas se identificando com os pontos de vista e
tradições dos seus ouvintes? Ou se referia a Moisés como um escritor,
embora em seu íntimo soubesse que ele nunca o fora? Tais pensamentos
são profanos e tomariam nosso Senhor uma pessoa desonesta. Seria possível
68 João 5.40-47

imaginar, por um momento, que nosso Senhor era ignorante a respeito de


Moisés e não estava ciente das grandes descobertas que seriam feitas, na
época moderna, pelos falsamente chamados homens eruditos? Tal idéia é
uma ridícula blasfêmia. Imaginar que o Senhor Jesus tenha falado com
ignorância, nesse capítulo, significa destruir os fundamentos do cristianismo.
Existe apenas uma conclusão sobre este assunto: Moisés realmente existiu;
os escritos atribuídos a ele foram realmente sua obra, e os acontecimentos
neles relatados são dignos de toda confiança. O testemunho dado por nosso
Senhor é um argumento irrefutável. Erram grandemente os que escrevem
de modo céptico contra Moisés e o Pentateuco.
Tenhamos cuidado em não utilizar o Antigo Testamento de forma
irreverente, permitindo que nossas mentes duvidem da veracidade de
qualquer parte dele, por causa de supostas dificuldades. Qualquer dúvida
de nossa parte deveria ser silenciada pelo simples fato de que os escritores
do Novo Testamento fazem contínua referência ao Antigo e citam, como
incontestavelmente verdadeiros, os miraculosos eventos nele registrados.
Haveria possibilidade de sermos nós, do século atual, melhor informados
sobre Moisés do que Jesus e seus apóstolos? Deus nos livre de pensarmos
assim! Antes, permaneçamos firmes, não duvidando que cada palavra do
Antigo Testamento, assim como do Novo, foi dada por inspiração divina.

O Supremo Poder de Cristo;


O Ofício dos Ministros do Evangelho;
A Suficiência do Evangelho Para a Humanidade
L eia João 6.1-14

Esses versículos descrevem um dos mais notáveis milagres de nosso


Senhor. De todas as suas grandes obras, nenhuma foi realizada de maneira
tão pública quanto esta, diante de muitíssimas testemunhas. De todos os
milagres relatados nos evangelhos, este é o único registrado pelos quatro
evangelistas. Este fato por si mesmo (assim como a repetição, por quatro
vezes, do relato da crucificação e ressurreição) é suficiente para mostrar
que esse milagre requer atenção especial.
Inicialmente, aprendemos uma lição sobre o supremo poder de Cristo.
Vemos o Senhor alimentando cinco mil homens com apenas “cinco pães
de cevada e dois peixinhos” . Os “doze cestos de pedaços” que sobraram,
após todos comerem, comprovam que um evento miraculoso se realizou.
Um poder criativo foi manifestamente exercido, e o alimento que antes
não existia foi chamado à existência. Na cura de enfermos e na ressurreição
João 6.1-14 69

de mortos, algo já existente era curado ou restaurado. Mas, para alimentar


cinco mil homens com cinco pães, algo que antes não existia teve de ser
criado.
Uma história como essa deve trazer ensino e encorajamento a todos
os que se empenham em fazer o bem às almas. Ela nos mostra que o
Senhor Jesus pode “salvar totalmente”, visto que possui todo o poder sobre
os corações mortos. E pode não somente restaurar o que está quebrado,
edificar o que está em ruínas, curar o que está enfermo, fortalecer o que
está fraco, mas também realizar obras mais elevadas do que essas. Ele tem
a capacidade de chamar, do nada, à existência coisas que antes não existiam.
Não devemos nos desesperar pela salvação de qualquer pessoa. Enquanto
há vida, há esperança. A lógica e a percepção podem nos dizer que
determinado pecador é muito insensível ou muito idoso para ser convertido.
Mas, a fé dirá: “O nosso Mestre tanto pode criar quanto renovar; nada é
impossível para um Salvador que, com seu Espírito, pode criar um novo
coração” .
Em segundo, nesse milagre, aprendemos a respeito do ofício dos
ministros do evangelho. Vemos os apóstolos receberem o pão das mãos do
Senhor, após tê-lo abençoado, e distribuírem-no à multidão. Não foram as
mãos deles que o fizeram aumentar e multiplicar, e sim as do Mestre. Foi
o supremo poder de Cristo que providenciou um suprimento infalível. A
tarefa dos apóstolos consistiu em receber com humildade e distribuir com
fidelidade.
Neste acontecimento há uma figura vívida sobre o trabalho que deve
ser realizado pelo verdadeiro ministro do Novo Testamento. Ele não é um
mediador entre Deus e os homens. Não tem qualquer poder de remover
pecados ou conceder a graça divina. O que lhe cabe é receber o pão da
vida, providenciado pelo Mestre, e distribuí-lo às almas entre as quais ele
trabalha. Não está ao seu alcance fazer que os homens valorizem ou recebam
o pão ou que este conceda salvação e vida a quem quer que seja. Este não
é trabalho do ministro do evangelho. Por esta tarefa ele não é responsável.
Toda a sua tarefa consiste em distribuir com fidelidade o alimento
providenciado por seu divino Mestre; ao fazer isso, seu ofício está cumprido.
Por último, aprendemos nesse milagre uma lição sobre a suficiência
do evangelho em suprir as necessidades de toda a humanidade. Vemos o
Senhor Jesus suprindo alimento para uma multidão de cinco mil homens.
À prim eira vista, a provisão tinha a aparência de ser extremamente
inadequada à ocasião. Parecia impossível satisfazer tantas bocas suplicantes
com um alimento tão escasso, naquele deserto. Mas os acontecimentos
demonstraram que havia o suficiente, a ponto de sobrar. Nenhuma pessoà
reclamou por ter ficado insatisfeita.
Não pode haver dúvidas de que este acontecimento visava ensinar-
70 João 6.1-14

nos a suficiência do evangelho em suprir as necessidades de todos os homens.


Ainda que pareça insignificante e tola aos olhos dos homens, a simples
mensagem da cruz é suficiente para todos os filhos de Adão espalhados
pela face da terra. A mensagem sobre a morte de Cristo pelos pecadores e
sobre a expiação consumada por essa morte é capaz de satisfazer os corações
e as consciências dos homens de todas as nações, raças e línguas. Ao ser
transmitida por mensageiros fiéis, ela alimenta e supre as necessidades de
pessoas de toda classe e posição. “A palavra da cruz é loucura para os que
se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus” (1 Co 1.18).
Cinco pães de cevada e dois pequenos peixes pareciam uma provisão escassa
para uma multidão faminta; porém, abençoada por Cristo e distribuída por
seus discípulos, foram mais do que suficiente.
Jamais duvidemos que a pregação de Cristo crucificado — a antiga
história de seu sangue, sua justiça e substituição — é suficiente para as
necessidades espirituais de toda a humanidade. Essa pregação não está
desgastada; não se tomou obsoleta ou perdeu seu poder. Não queremos
nada mais novo, mais abrangente e generoso, mais intelectual e eficaz.
Não desejamos qualquer outra coisa, exceto o verdadeiro pão da vida, que
Cristo nos dá para distribuirmos fielmente às almas famintas. Os homens
podem escarnecer e ridicularizar, como quiserem; no entanto, além da
pregação da cruz, nada pode realizar o bem neste mundo pecaminoso. Ne­
nhum outro ensinamento é capaz de satisfazer as consciências e dar-lhes
paz. Estamos todos em um deserto. Precisamos nos alimentar de Cristo
crucificado e da expiação feita por sua morte ou, então, morreremos em
nossos pecados.

A Humildade de Cristo;
A Provação de Seus Discípulos;
O seu Poder Sobre as Águas
L eia João 6.15-21

Devemos observar, nessa passagem, a humildade de nosso Senhor


Jesus Cristo. Somos informados que, após alimentar a multidão, Jesus
sabia “que estavam para vir com o intuito de arrebatá-lo para o proclamarem
rei” . Imediatamente, Ele se retirou e os deixou. Não queria ser honrado
dessa maneira, pois tinha vindo não “para ser servido, mas para servir e
dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.28).
Vemos a mesma atitude e disposição de espírito em todo o ministério
terreno de nosso Senhor. Desde o berço até à sepultura, Ele foi revestido
João 6.15-21 71

de humildade (1 Pe 5.5). Nasceu de uma mulher pobre e gastou os trinta


anos iniciais de sua vida em uma carpintaria de Nazaré. Foi seguido por
companheiros pobres; muitos deles eram apenas pescadores. Seu estilo de
vida era pobre: “As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos; mas
o Filho de Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8.20). Quando
viajou pelo mar da Galiléia, utilizou um barco emprestado. Para entrar em
Jerusalém, serviu-se de um jumento que pertencia a outrem. Ao ser
sepultado, foi posto em um sepulcro alheio. Ele “sendo rico, se fez pobre
por amor de vós” (2 Co 8.9).
Este exemplo de nosso Senhor deveria ser mais lembrado. Orgulho,
ambição e mente altiva são atitudes comuns; a humildade e a simplicidade
de espírito são raras. Quão poucos recusam a fama, ao ser-lhes oferecida!
São muitos os que continuamente buscam grandezas para si e se esquecem
da exortação: “Não as procures” (Jr 45.5). Certamente, não foi sem motivo
que nosso Senhor, depois de lavar os pés dos discípulos, afirmou: “Eu vos
dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também” (Jo 13.15).
Devemos nos preocupar porque existe pouco dessa atitude de lavar os pés
entre os cristãos. Quer os homens ouçam, quer não, a humildade é uma
virtude sobremodo excelente. E, assim como alguém disse: “Quanto maior
a humildade de uma pessoa, tanto maior a sua espiritualidade” . A humildade
é o primeiro passo em direção ao céu e o caminho certo em direção à
honra. “O que se humilha será exaltado” (Lc 18.14).
Devemos observar também, nestes versículos, as provações pelas
quais passaram os discípulos de Cristo. Somos informados que eles
desceram para atravessar o mar, enquanto o Mestre permanecia ali por
mais algum tempo. Depois, os vemos sozinhos, na escuridão da noite,
sendo jogados de um lado para outro por um grande vento que soprava
sobre as águas, e, o que era pior, Cristo não estava com eles. Após tes­
temunharem um milagre tão grande, servindo como instrumentos para
uma multidão admirada, estavam agora sozinhos e experimentavam a
escuridão da noite, os ventos, as ondas, a tempestade, a ansiedade e o
perigo. A mudança era tamanha! Mas Cristo conhecia esta situação. Ele
mesmo lhes ordenou que atravessassem o mar; isso estava cooperando
para o bem dos discípulos.
Precisamos compreender claramente que a provação é algo que deve
ser esperado por todo cristão verdadeiro. Através dela, nossa fé é provada
e descobrimos o que temos em nosso íntimo. Inverno e verão, frio e calor,
nuvens e raios solares são igualmente necessários para trazer o fruto do
Espírito à maturidade. Naturalmente, não gostamos de passar por essas
coisas. Antes, nosso desejo é atravessar o mar com tempo bom e vento
favorável, tendo Cristo sempre ao nosso lado e o sol brilhando em nossas
faces. Mas nem sempre é assim. Se fosse, os filhos de Deus nunca se
72 João 6.15-21

tomariam “participantes da sua santidade” (Hb 12.10). Abraão, Jacó,


Moisés, Davi e Jó.foram homens que passaram por muitas provações.
Estejamos contentes por seguirmos seus passos e bebermos do mesmo
cálice. Em horas difíceis, talvez pareça que fomos deixados sozinhos; mas,
na verdade, nunca estamos sós.
Por último, devemos observar o poder de nosso Senhor sobre as
ondas do mar. Enquanto os discípulos remavam em meio à tempestade,
Jesus foi ao encontro deles “andando por sobre o m ar” . Andava sobre as
águas tão facilmente quanto sobre a terra seca. As águas O sustentaram
com firmeza semelhante à do assoalho do templo ou à dos montes que
circundavam Nazaré. Aquilo que é totalmente contrário à razão era
inteiramente possível a Cristo.
Devemos lembrar que Jesus não é apenas o Senhor, mas também o
Criador de toda a natureza. “Todas as coisas foram feitas por intermédio
dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez” (Jo 1.3). Para Ele foi tão
simples andar sobre o mar quanto formá-lo no princípio da criação; tão
simples suspender as leis da natureza, conforme as chamamos, quanto
estabelecê-las no princípio. Às vezes, os eruditos dizem bobagens sobre a
imutabilidade perpétua das “leis da natureza” , como se estas fossem
superiores ao próprio Deus e não pudessem ser interrompidas. De quando
em quando, é bom que um milagre como esse nos faça recordar que as
“leis da natureza” não são imutáveis ou eternas. Tiveram um princípio e,
um dia, terão seu fim.
Todos os verdadeiros crentes devem achar conforto ao pensar que o
Salvador é o Senhor dos ventos, das ondas e das tempestades, capaz de ir
ao encontro de seus discípulos, na hora mais escura, “andando por sobre o
m ar” . Existem ondas de tribulação imensamente mais difíceis do que as do
lago da Galiléia. Há dias sombrios, que provam a fé até mesmo do crente
mais santificado. Contudo, se Cristo é o nosso Amigo, jamais nos deses­
peremos. Ele pode vir em nosso auxílio quando menos esperamos, usando
meios que não imaginamos. E, quando Ele vem, tudo fica tranqüilo.

Cristo Conhece o Coração do Homem;


O que Cristo Proíbe, Aconselha e Promete
L eia João 6.22-27

Primeiramente, esses versículos nos ensinam o quanto Jesus conhece


o coração do homem. Nesse trecho, nós O vemos denunciando os falsos
motivos daqueles que o seguiam por causa dos pães e dos peixes.
João 6.22-27 73

Atravessaram o mar da Galiléia à sua procura. À primeira vista, pareciam


estar prontos a crer nEle e a honrá-Lo. Mas Jesus conhecia os motivos
mais íntimos da conduta daquele povo e não se deixou enganar. Afirmou-
lhes: “Vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes
dos pães e vos fartastes”.
O Senhor Jesus é sempre o mesmo; isso não devemos esquecer. Ele
nunca muda. Conhece os motivos secretos de todos os que dizem crer nEle
e declaram-se cristãos. Sabe exatamente o que os impulsiona em tudo que
fazem em sua vida religiosa. Conhece os motivos que os levam a freqüentar
a igreja, obedecer as ordenanças, manter as devoções familiares e ter o
domingo como um dia separado para o Senhor. Todas essas coisas estão
nuas e patentes ao olhos dAquele que é o Cabeça da igreja. Ele vê e julga
as nossas ações. “O homem vê o exterior, porém o S e n h o r , o coração” (1
Sm 16.7).
Sejamos sinceros e verdadeiros em nossa vida espiritual, seja qual
for a nossa posição na vida. É grande a pecaminosidade da hipocrisia, mas
a loucura que existe nela é ainda maior. Não é difícil enganar os pastores,
parentes e amigos. Uma aparente moralidade com freqüência é convincen­
te. Mas é impossível enganar a Cristo. Os seus olhos são “como chama de
fogo” (Ap 1.14). Ele nos vê de forma completa. Felizes os que podem di­
zer: “Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo” (Jo 21.17).
Em segundo, esses versículos nos ensinam o que Cristo proíbe. Às
multidões que O seguiam tão diligentemente, por causa dos pães e dos
peixes, Ele disse: “Trabalhai, não pela comida que perece” . Esta sentença
é notável e requer explicação.
Podemos estar certos de que o nosso Senhor não encorajava a ocio­
sidade. Seria um grande erro supor tal coisa. O trabalho foi a porção
entregue a Adão no paraíso. Após a Queda, foi ordenado ao homem que se
ocupasse com o trabalho. Este é algo honroso para todos os homens.
Ninguém deve se envergonhar de pertencer à “classe operária” . O próprio
Senhor Jesus trabalhou na carpintaria de Nazaré. O apóstolo Paulo trabalhou
como fazedor de tendas.
O que o Senhor Jesus desejava realmente censurar era o trabalho
excessivo em benefício do corpo, enquanto a alma é negligenciada. Essa
atitude prevalece em toda parte do mundo. O que Ele reprovou foi o hábito
comum de trabalhar apenas pelas coisas do presente, deixando de lado o
que concerne à eternidade — o hábito de preocupar-se somente com as
coisas desta vida e negligenciar a que está por vir. Cristo deixou um solene
alerta contra essa atitude.
Certamente, todos devemos entender que o Senhor Jesus tinha um
bom motivo para falar essas palavras. Elas constituem um grande alerta,
que deve soar nos ouvidos de muitos nesses últimos dias. São muitos os
74 João 6.22-27

que, em todas as esferas da vida, estão fazendo exatamente aquilo sobre o


que Jesus nos advertiu. Trabalham noite e dia “pela comida que perece” e
nada fazem por suas almas imortais. Felizes os que aprendem a tempo os
respectivos valores da alma e do corpo e cujos pensamentos se ocupam
prioritariamente com a salvação. Aquele que busca o reino de Deus em
primeiro lugar nunca deixará de ter, acrescentadas em sua vida, todas as
demais coisas (Mt 6.33).
Em terceiro, esses versículos nos ensinam o que Cristo nos aconselha.
Ele nos adverte a trabalhar pela comida “que subsiste para a vida eterna” .
Deseja que nos esforcemos para encontrar alimento e satisfação para nossas
almas; e nEle este alimento pode ser encontrado em grande abundância.
Mas aquele que O busca deve fazê-lo com diligência.
Como, então, devemos trabalhar? Existe apenas uma resposta.
Devemos nos esforçar a fim de utilizar todos os meios designados por Ele.
Precisamos ler nossas Bíblias como quem procura um tesouro escondido e
lutar com sinceridade em oração, como alguém que luta pela vida contra
um inimigo mortal. Temos de ir à casa do Senhor com um coração sincero,
para adorá-Lo e ouvir sua Palavra, como alguém que ouve a leitura de um
testamento. Devemos lutar diariamente contra o pecado, o mundo e o
diabo, como alguém que luta pela liberdade e precisa vencer, pois, do
contrário, será escravizado. E assim que devemos viver, se queremos
encontrar Cristo e ser achados por Ele. É isto que significa “trabalhai” .
Este é o segredo de sermos vitoriosos quanto à nossa alma.
Esse “trabalhai” é muito incomum. Os homens nos oferecerão pouco
encorajamento para o realizarmos; e ouviremos com freqüência que somos
“fanáticos” e exagerados. Por mais estranho e absurdo que pareça, o homem
natural está sempre manifestando a idéia de que nos preocupamos demais
com a vida espiritual; ele se recusa a entender que somos mais propensos
a nos preocupar com as coisas do mundo. Mas, não importa o que o homem
diz, a alma jamais obterá alimento espiritual sem que trabalhe para isso.
Precisamos nos esforçar, apressar, lutar e aplicar todo o nosso coração
às questões de nossa alma. “Os que se esforçam” são os que se apoderam
do reino dos céus (Mt 11.12).
Por último, esses versículos nos ensinam o que Cristo nos promete.
Sua promessa é que Ele mesmo dará a comida que permanece eternamente
a todos os que a procuram: “Trabalhai, não pela comida que perece, mas
pela que subsiste para a vida eterna, a qual o Filho do Homem vos dará” .
Estas são palavras de graça e encorajamento! Cristo está pronto e
desejoso a suprir tudo que precisamos para saciar a fome de nossas almas.
O Filho do Homem nos concederá, de forma graciosa, imediata, abundante
e por toda a eternidade, a graça, a misericórdia, a paz e a força que ne­
cessitamos. Para este propósito, Ele foi selado, designado e comissionado
João 6.22-27 75

por Deus, o Pai. Assim como José, na ocasião da fome no Egito, é ofício
de Cristo ser o amigo, o provedor e o lenitivo para esse mundo pecaminoso.
Ele está muito mais disposto a dar do que o homem a receber. Quanto mais
os pecadores O buscam, tanto mais satisfação Ele experimenta.
Agora, ao concluir a meditação nessa passagem, indaguemos a nós
mesmos o que ela significa para nossas vidas. Com que finalidade estamos
trabalhando? O que sabemos a respeito da comida que permanece e da
satisfação para nosso hom em interior? Não descansem os, até nos
alimentarmos do pão que somente Cristo pode nos dar. Cedo ou tarde, os
que se contentam com qualquer outro tipo de alimento espiritual se deitarão
“em tormentas” (Is 50.11).

A Ignorância do Homem Natural;


Cristo Honra a Fé;
Os Ouvintes de Cristo têm Maior
Privilégio do que os de Moisés
L eia João 6.28-34

Esses versículos iniciam uma das passagens mais notáveis dos


evangelhos. Talvez nenhum outro discurso do Senhor Jesus tenha ocasionado
mais controvérsias ou sido mais incompreendido do que este, encontrado
em João 6.
Primeiramente, notamos a ignorância espiritual e a incredulidade
do homem natural. Por duas vezes, nós as vemos sendo mostradas e
exemplificadas. Quando o Senhor Jesus exortou seus ouvintes a trabalharem
pela comida “que subsiste para a vida eterna” , eles pensaram imediatamente
nas obras que deveriam fazer e na bondade pessoal que precisariam
demonstrar: “Que faremos para realizar as obras de Deus?”
Obras, obras, obras! Essa era a única idéia que tinham a respeito da
maneira de chegar ao céu. E, novamente, quando o Senhor Jesus se referiu
a Si mesmo como um enviado de Deus e à necessidade de crerem nEle sem
demora, eles retrucaram perguntando: “Que sinal fazes para que O vejamos
e creiamos em ti? Quais são os teus feitos?” Visto que eles haviam acabado
de presenciar o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, poderíamos
imaginar que tinham visto um sinal convincente. Além disso, por haverem
recebido ensinos diretamente do Senhor Jesus Cristo, deveríamos esperar
que mostrariam grande disposição para crer. Mas, infelizmente, não há
limite para a tolice, o preconceito e a incredulidade do homem, no que se
76 João 6.28-34

refere aos assuntos espirituais. É marcante o fato de que a incredulidade


do homem foi a única coisa da qual o Senhor Jesus se admirou, durante seu
ministério na terra (Mc 6.6).
Será bom lembrar isso, ao procurarmos fazer o bem a outros, no que
concerne à vida espiritual. Não devemos ficar abatidos, se não derem crédito
às nossas palavras e nossos esforços parecerem desprezados. Não nos quei­
xemos, como se isto fosse algo estranho; nem pensemos que estamos lidando
com pessoas teimosas e difíceis. Antes, precisamos considerar que este foi
o próprio cálice que o Senhor bebeu; e, assim como Ele, devemos persistir
com paciência. Se os homens não creram até mesmo no Senhor Jesus, um
Mestre por excelência e tão perfeito, que direito temos nós de ficar admirados
por não nos darem crédito? Felizes os pastores, missionários e mestres que
guardam em mente estas coisas; serão poupados de amarga decepção. Ao
trabalhar para o Senhor, é primordial compreender o que temos de esperar
da parte do homem. Mais do que qualquer outra coisa, é difícil avaliar
corretamente quanta incredulidade há no coração do homem.
Em segundo, notamos a sublime honra que Cristo atribui à f é nEle
mesmo. Os judeus Lhe perguntaram: “Que faremos para realizar as obras
de Deus?” Ele respondeu: “A obra de Deus é esta: que creiais naquele que
por ele foi enviado” . Esta é, na verdade, uma expressão notável! Há duas
coisas que se contrastam fortemente no Novo Testamento: a fé e as obras.
Não por obras, mas por f é é um conceito familiar a todos os que lêem a
Bíblia com cuidado. Todavia, o supremo Cabeça da igreja declara que crer
nEle é a maior e mais elevada de todas as “obras” ! É a “obra de Deus” .
Sem dúvida, nosso Senhor não quis dizer que existe qualquer mérito
no ato de crer. A fé que há no homem, por melhor que seja, é frágil e
imperfeita. Se for considerada como “obra”, não resistirá a severidade do
julgamento divino, nem merecerá perdão ou entrada nos céus. Porém, o
Senhor realmente pretendia dizer que a primeira atitude requerida por Deus,
da parte do pecador, é crer em Cristo como seu único Salvador. O homem
não é nada, até que, em seu estado de pecado e perdição, creia em Jesus e
nEle confie. Jesus disse que crer nEle é a atitude, da parte do homem, que
especialmente agrada a Deus. Ele fica satisfeito quando vê o pecador
abandonando sua justiça própria e colocando a confiança em seu Filho
amado. Sem fé é impossível agradar a Deus. O Senhor realmente pretendia
dizer que a fé depositada nEle é o fundamento da verdadeira religião. Não
há vida espiritual no homem, até que ele venha a crer. E, acima de tudo, o
Senhor, na verdade, estava afirmando que crer nEle é a mais difícil das
atitudes espirituais para o homem natural. Os judeus manifestavam qualquer
desejo pela religião verdadeira? Eles precisavam saber que tinham de lançar
fora o orgulho, confessar sua culpa, reconhecer sua necessidade e crer hu­
mildemente.
João 6.28-34 77

Regozijem-se e dêem graças a Deus todos os que conhecem algo da


fé verdadeira. Bem-aventurados os que crêem! Esses chegaram a um ponto
que muitos dos sábios deste mundo nunca alcançaram. Podemos nos sentir
pobres e fracos pecadores; mas, cremos realmente? Podemos falhar e
fracassar em muitas coisas; porém, cremos, de fato? Aquele que reconhece
os seus pecados e confia em Cristo, como Salvador, aprendeu as duas
maiores e mais difíceis lições do cristianismo e freqüentou a melhor das
escolas, pois foi ensinado pelo Espírito Santo.
Por último, notamos os superiores privilégios dos ouvintes de Cristo,
comparados aos dos que viveram no tempo de Moisés. Embora tenha sido
muitíssimo admirável e miraculoso o maná que caiu do céu, nada significava,
se comparado ao verdadeiro pão que Cristo outorga aos seus discípulos.
Ele mesmo era o pão de Deus, vindo do céu para dar vida ao mundo. O
pão que caía do céu, nos dias de Moisés, podia apenas alimentar e satisfazer
o corpo. O Filho do Homem veio para alimentar a alma do homem. O pão
que caiu no deserto serviu apenas para beneficiar Israel. O Filho do Homem
veio para oferecer ao mundo a vida eterna. Os que comeram o maná já
morreram e foram sepultados, e muitos deles se perderam eternamente.
Mas os que se alimentaram do pão concedido pelo Filho do Homem estão
salvos eternamente.
Agora, estejamos atentos no que concerne a nós mesmos e veri­
fiquemos se estamos entre os que se alimentam do pão de Deus e vivem
eternamente. Não nos contentemos em esperar ociosos, mas acheguemo-
nos verdadeiramente a Cristo, comamos do pão da vida e creiamos nEle,
para a salvação das nossas almas. Os judeus disseram: “Dá-nos sempre
desse pão”; mas não foram além disso. Não descansemos até que, pela fé,
tenhamos comido desse pão e sejamos capazes de afirmar: “Cristo é meu,
pois tenho provado que o Senhor é gracioso. Sei e reconheço que pertenço
a Ele” .

Cristo, o Pão da Vida;


Nenhum dos Seus é Lançado Fora;
A Vontade do Pai
Para Aqueles que Vêem a Cristo
L eia João 6.35-40

Nesses versículos, três dos mais significativos pronunciamentos do


78 João 6.35-40

Senhor Jesus Cristo se encontram lado a lado, como pérolas em um colar.


Cada um deles deveria ser muito precioso para o verdadeiro cristão.
Colocados juntos, constituem uma mina de preciosas verdades, na qual
todo o que busca por elas não o fará em vão.
Encontramos, inicialmente, o que Cristo asseverou a respeito de si
mesmo\ “Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que
crê em mim jamais terá sede.”
O Senhor Jesus está nos dizendo que Ele mesmo é o alimento designado
para o homem. As almas dos homens estão naturalmente perecendo de
fome por causa do pecado. Cristo foi enviado por Deus, o Pai, para satis­
fazer, aliviar e atender as necessidades espirituais do homem. Somente em
Cristo — em seu ofício de mediador e sacerdote; em sua morte redentora;
em sua graça, amor e poder — somente nEle as almas vazias têm suas
necessidades supridas. Em Cristo, há vida. Ele é “o pão da vida” !
Esse nome foi escolhido com grande e perfeita sabedoria divina. O
pão é um alimento essencial. Podemos viver razoavelmente sem muitos
tipos de alimentos em nossa mesa, mas não sem o pão. O mesmo acontece
em relação a Cristo. Ou temos a Cristo, ou morreremos em nossos pecados.
O pão é um alimento adequado a todas as pessoas. Alguns não comem
carne; outros, vegetais, mas o pão é apreciado por todos. É um alimento
tanto para o rei quanto para o mendigo. Isto também é verdade em relação
a Cristo. Ele é o Salvador que supre as necessidades de todas as classes de
pessoas. O pão é necessário todos os dias. Outros tipos de alimento talvez
comamos ocasionalmente; porém, manhã após manhã desejamos ter o pão.
Assim também carecemos de Cristo. A cada dia de nossas vidas, precisamos
de seu sangue, sua justiça, sua intercessão e sua graça. Com razão Ele é
chamado “o pão da vida” !
Sabemos realmente o que significa ter fome espiritual? Sentimos, de
fato, o vazio e o anseio que há em nosso coração, sentimentos e consciência?
Entendamos com clareza que somente Ele pode satisfazer nossas carências
e que seu ofício consiste em nos dar alívio. Temos de vir a Cristo pela fé;
precisamos crer nEle e depositar em suas mãos as nossas almas. Ao fazermos
isso, Ele nõs concede sua promessa real de que encontraremos satisfação
agora e eternamente. Está escrito: “O que vem a mim jamais terá fome; e
o que vem a mim jamais terá sede”.
Encontramos também, nesses versículos, o que Jesus disse a respeito
dos que vêm a Ele: “O que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora” .
O que significa “vir” a Cristo? É a atitude da alma realizada quando
a pessoa, ao sentir os seus pecados e compreender que não pode ser salva
por si mesma, dá ouvidos à voz de Cristo, apega-se, confia e apropria-se
dEle, entregando-Lhe todo o seu fardo, para receber a salvação. Se isso
acontece, a linguagem bíblica assegura que tal pessoa “veio” a Cristo.
João 6.35-40 79

O que o Senhor ensinou, ao dizer: “De modo nenhum o lançarei


fora”? Ensinou que não se recusa a salvar qualquer pessoa que vem a Ele,
não importando a vida que tenha levado. Mesmo que, no passado, tenha
cometido pecados terríveis, e, no presente, sua vida se caracterize por
fraqueza e imperfeição, o importante é que venha a Cristo pela fé. Assim
fazendo, Cristo o receberá e o perdoará graciosamente; inscreverá seu
nome entre seus filhos queridos e lhe dará a vida eterna.
Essas palavras são imensamente preciosas! Têm acalentado a muitos,
em suas horas finais, e acalmado muitas consciências perturbadas. Devemos
permitir que elas fiquem profundamente gravadas em nossas memórias,
para sempre. Virá o dia em que nossa carne definhará e não mais
encontraremos ajuda da parte do homem. Felizes seremos, nesse dia, se o
Espírito Santo testificar com nosso espírito que realmente viemos a Cristo!
Em último lugar, lemos nesses versículos o que Cristo afirmou sobre
a vontade do Pai. Por duas vezes, ouvimos suas palavras solenes a respeito
da vontade do Pai: “A vontade daquele que me enviou é esta: que nenhum
eu perca de todos os que me deu” ; e: “A vontade de meu Pai é que todo
homem que vir o Filho e nele crer tenha a vida eterna” .
Por essas palavras, aprendemos que Cristo veio ao mundo para
oferecer a todos uma salvação gratuita. Nosso Senhor retratou esta verdade,
ao referir-se ao episódio da serpente de bronze no deserto, pela qual eram
curados os israelitas mordidos pelas serpentes abrasadoras (Nm 21.6).
Todo aquele que resolvesse olhar para a serpente viveria. De maneira
semelhante, todo aquele que almeja a vida eterna deve olhar para Cristo,
pela fé, e recebê-la gratuitamente. Para isso não há barreiras, limites ou
restrições. Os termos usados no evangelho são simples e abrangentes: Todos
podem olhar para Cristo e viver.
Além disso, aprendemos que Cristo jamais permitirá que uma alma
dedicada a Ele se perca e seja lançada fora. Ele a preservará, desde o
momento da sua salvação até à chegada na glória, apesar do mundo, da
carne e do diabo militarem contra ela. Nenhum osso de seu corpo místico
se quebrará. Nenhuma ovelha de seu aprisco será abandonada no deserto.
No último dia, Ele ressuscitará, levando à glória, todo o rebanho que Lhe
foi confiado; nenhuma ovelha faltará.
Ó crente verdadeiro deve ser grato a Deus por esses versículos e
nutrir-se das verdades contidas neles: Cristo é o pão da vida; Ele preserva
todos os crentes; veio para todo aquele que almeja crer em seu nome; é a
possessão eterna de todos os que assim crêem. Certamente, estas palavras
contêm boas-novas repletas de alegria!
80 João 6.41-51

A Humildade de Cristo — Ofensa Para Alguns;


A Incapacidade do Homem Natural;
Salvação — Algo para o Presente
Leia João 6.41-51

Verdades de singular importância sucedem-se, uma após a outra, no


capítulo que estamos examinando. Provavelmente, em poucas partes da
Bíblia encontram-se reunidas tantas “verdades profundas” como as de João
6. A passagem que lemos é um exemplo disso.
Nesses versículos, aprendemos que a condição de humildade assumida
por Cristo, durante sua vida na terra, fo i uma pedra de tropeço para o
homem natural. Lemos: “Murmuravam, pois, dele os judeus, porque
dissera: Eu sou o pão que desceu do céu. E diziam: Não é este Jesus, o
filho de José? Acaso, não lhe conhecemos o pai e a mãe? Como, pois,
agora diz: Desci do céu?” Se o Senhor tivesse vindo como um rei conquis­
tador, com riquezas e honras para conceder aos seus seguidores e com
exércitos poderosos ao seu comando, aqueles homens estariam dispostos a
recebê-Lo. No entanto, um Messias pobre e humilde era uma ofensa para
eles. O orgulho de seus corações os impediu de crer que ali estava o enviado
de Deus.
Esse fato em nada nos surpreende. Com isso, vemos a natureza humana
mostrando seu verdadeiro caráter. O mesmo também ocorreu nos dias dos
apóstolos. Cristo crucificado era “escândalo para os judeus, loucura para
os gentios” (1 Co 1.23). A cruz era uma ofensa para muitos, onde quer
que o evangelho fosse pregado. Em nossos dias, podemos observar o mesmo
acontecendo. Ao nosso redor há muitos que odeiam as evidentes doutrinas
do evangelho, por causa do caráter de humildade que elas apresentam.
Tais pessoas não podem suportar a verdade da expiação, do sacrifício e da
substituição realizada por Cristo. Aprovam os ensinamentos morais e
admiram o exemplo de abnegação dado por Ele. Mas, fale sobre o sangue
de Jesus, sobre o ter sido feito pecado por nós; diga-lhes que a morte de
Cristo é a pedra angular da nossa esperança e que a pobreza do Senhor
Jesus se tomou a nossa riqueza; faça isso e verá como abominam essas
verdades com ódio mortal. A ofensa da cruz certamente ainda não cessou!
Também aprendemos, nesses versículos, a falta de capacidade e poder
do homem natural para arrepender-se ou crer. Encontramos aqui o Senhor
Jesus dizendo: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o
trouxer” . Enquanto o coração não for atraído pela graça de Deus, o homem
não poderá crer.
A solene verdade contida nessas palavras deve ser considerada com
João 6.41-51 81

especial atenção. É inútil contestar que sem a graça de Deus alguém pode
se tom ar um cristão verdadeiro. Estamos espiritualmente mortos e não
temos qualquer capacidade para dar vida a nós mesmos. Precisamos que
uma nova vida seja implantada em nós, vinda do alto. Os fatos comprovam,
e os pregadores o reconhecem. O décimo artigo da Igreja Anglicana declara
expressamente: “Após a queda de Adão, a condição do homem é tal que,
por sua força natural e bbas obras, não pode mudar sua condição e preparar-
se para crer ou clamar por Deus” . Esse testemunho é verdadeiro.
Mas, afinal de contas, em que consiste essa incapacidade do homem?
Em que parte de nossa natureza interior está a deficiência? Esse é um
ponto sobre o qual surgem muitos erros. De uma vez por todas, lembremos
que a vontade do homem é a parte onde se encontra a incapacidade. Sua
falta de capacidade não é física, e sim moral. Não seria verdadeiro afirmar
que o homem tem um desejo sincero e uma vontade autêntica de vir a
Cristo, mas não possui forças para isso. Seria mais verdadeiro dizer que o
homem não tem poder para vir a Cristo porque não tem desejo ou vontade
de fazer isso. Não é verdade que ele desejaria vir a Deus, se pudesse. O
correto é declarar que ele viria a Deus, se o desejasse. A vontade cor­
rompida, as inclinações secretas e a necessidade do coração são as ver­
dadeiras causas da incredulidade. É nesse aspecto que reside o engano. A
capacidade que necessitamos é, na verdade, uma nova vontade. É exatamente
nesse ponto que precisamos ser “trazidos” .
Sem dúvida, estes assuntos são profundos e misteriosos. Através de
verdades como essas, Deus prova a fé e a paciência de seu povo. Podem os
seus filhos realmente crer nEle e esperar por uma explanação mais completa
no último dia? O que não compreendem agora compreenderão mais tarde.
De qualquer maneira, permanece bastante clara a responsabilidade do ho­
mem por sua alma. São realidades tanto a sua incapacidade quanto a sua
responsabilidade. A incapacidade de vir a Cristo não o isenta de prestar
contas. Se ele se perder, ficará provado que foi por sua própria culpa. O
seu sangue recairá sobre a sua cabeça. Cristo o teria salvado, mas ele não
quis ser salvo; não quis vir a Cristo para obter vida.
Por último, aprendemos que a salvação daquele que crê é algo
presente. O Senhor Jesus Cristo assegurou: “Em verdade, em verdade vos
digo: quem crê em mim tem a vida eterna” . Devemos notar que a vida
eterna é uma possessão presente. Jesus não disse que aquele que crê a re­
ceberá no último dia, por ocasião do julgamento final. Agora, no tempo
presente e nesse mundo, essa vida se toma uma propriedade do crente, que
possui a vida eterna desde o momento em que crê.
Este é um assunto que nos inquieta sobremaneira e a respeito do qual
são cometidos inúmeros erros. Muitos pensam não ser possível receber­
mos, nesta vida, o perdão e a aceitação da parte de Deus. Essas coisas,
82 João 6.41-51

dizem eles, são conseguidas ao longo de uma vida de arrependimento, fé e


santidade; poderão ser recebidas apenas diante do tribunal de Deus, no
último dia. Afirmam também que nem mesmo devemos ter a pretensão de
obtê-las, enquanto vivemos neste mundo! Pensar assim é estar com­
pletamente enganado. O pecador é justificado e aceito por Deus no exato
momento em que crê em Cristo. Para ele não há mais condenação. Ele
desfruta de paz com Deus, imediatamente, sem qualquer demora. Seu nome
está escrito no livro da vida, ainda que tenha pouca consciência disso. Pas­
sa a ter direito ao céu, direito este que nem a morte, nem o inferno, nem
Satanás podem anular. Felizes os que conhecem essa verdade! Esta é uma
parte essencial das boas-novas do evangelho.
Finalmente, o assunto fundamental que devemos considerar é se
cremos realmente. Que ganharemos com o fato de ter Cristo morrido em
favor dos pecadores, se não cremos nEle? “Quem crê no Filho tem a vida
eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida,
mas sobre ele permanece a ira de Deus” (Jo 3.36).

O que Realmente Significa Comer a Carne


e Beber o Sangue de Cristo
L eia João 6.52-59

Poucas passagens das Escrituras têm sido tão severamente adulteradas


e distorcidas quanto essa que acabamos de ler. Os judeus não foram os
únicos que encontraram dificuldade para entender o significado dessas
palavras. Elas nunca tiveram o propósito de transmitir o significado que
lhes foi atribuído. Ao interpretar a Bíblia, o homem caído no pecado
demonstra uma infeliz tendência de transformar o alimento em veneno. As
coisas que estão escritas para o seu benefício, ele freqüentemente as usa
como ocasião para cometer pecado.
Primeiramente, consideremos com atenção o que esses versículos
não pretendem ensinar. O “comer” e o “beber” referidos por Jesus não
possuem qualquer significado literal. Além disso, essas palavras não fo­
ram pronunciadas em referência à Ceia do Senhor. É possível tomarmos a
Ceia e, apesar disso, não comermos o corpo e bebermos o sangue de
Cristo. Também é possível comermos e bebermos do seu corpo e do seu
sangue, sem participarmos da Ceia do Senhor. Não devemos esquecer
isto.
Essa opinião pode surpreender alguém que não tenha considerado
atentamente o assunto; todavia, ela está baseada em três fortes razões.
João 6.52-59 83

Primeiro, comer e beber literalmente o corpo e o sangue de Cristo seria


uma idéia extremamente revoltante para todos os judeus e diretamente
contrária a um preceito repetido com freqüência em sua lei. Segundo,
adotar um ponto de vista literal sobre o comer e o beber significaria interpor
um ato físico entre a alma do homem e a salvação. Isto não tem qualquer
fundamento nas Escrituras. A fé e o arrependimento são as únicas coisas
sem as quais não podemos ser salvos. Terceiro, adotar o ponto de vista
literal sobre o comer e o beber envolveria grande blasfêmia e conseqüências
profanas. Se assim fora, o ladrão arrependido não teria entrado no céu.
Morreu tempos depois de serem proferidas essas palavras, sem ter lite­
ralmente comido ou bebido do sangue e do corpo de Cristo. Quem ousará
dizer que ele não obteve a “vida” em Jesus? O comer e o beber no sentido
literal introduziriam no céu milhares de pessoas ignorantes e ímpias que
participam da ordenança da Ceia em nossos dias. Não há dúvida de que
esses comem e bebem, no sentido literal! Mas não têm a vida eterna,
tampouco serão levados à glória, no último dia. Essas três razões devem
ser cuidadosamente ponderadas.
A verdade é que no homem caído existe uma doentia ansiedade de
atribuir, sempre que possível, um sentido carnal a expressões bíblicas. Ele
se esforça ao máximo para transformar a religião em uma questão de
formalidades e cerimônias, obras e realizações, sacramentos e ordenanças,
restritas ao que podemos ver e sentir. Em seu íntimo, ele não gosta da
ênfase do cristianismo que reputa como prioridade a condição do coração
do homem e labuta para conservar em segundo plano a obediência às
ordenanças. Feliz o crente que se lembra dessas coisas e se mantém alerta!
Sem dúvida, o batismo e a Ceia do Senhor são ordenanças santas e ricas
em bênçãos, quando ministradas corretamente. Porém, é inútil tentar vê-
las em todas as passagens da Palavra de Deus.
Agora consideremos atentamente o verdadeiro significado dessas
palavras. Sem dúvida, é bastante notável a idéia que elas contêm.
Procuremos obter um conceito mais claro a respeito de seu significado.
O “sangue e a carne do Filho do Homem” referem-se ao sacrifício
do próprio corpo de Cristo, oferecido por Ele ao morrer na cruz em favor
dos pecadores. A expiação feita através de sua morte; a satisfação realizada
por meio de seus sofrimentos como nosso substituto; a redenção que Ele
consumou, por levar em seu próprio corpo, no madeiro, a penalidade dos
nossos pecados — tudo isto parece ser a verdadeira idéia que devemos ter
em nossas mentes.
Comer e beber, sem os quais não haveria vida em nós, significam
receber o sacrifício de Cristo; isto acontece quando o homem crê em “Cristo
crucificado”, palra sua salvação. Este é um ato íntimo e espiritual, procedente
do coração; em nada se relaciona com o corpo físico. Em qualquer momento
84 João 6.52-59

que o homem, ao sentir sua culpa e pecaminosidade, busca a Cristo e


confia na expiação realizada por Ele na cruz, nesse mesmo instante tal
homem come e bebe o corpo e o sangue do Filho do Homem. Pela fé, sua
alma se alimenta do sacrifício de Cristo, assim como na vida física nosso
corpo se alimenta de pão. O crer em Cristo significa comer do seu corpo e
beber do seu sangue. A expiação dos pecados, realizada pela morte de
Cristo, na cruz, é a principal coisa da qual o crente come, bebe e obtém
benefícios.
As lições práticas que podemos retirar desse trecho bíblico são valiosas
e importantes. Após ficar claro que a carne e o sangue mencionados referem-
se ao sacrifício de Cristo e que comer e beber significam crer em Jesus,
podemos ver nesses versículos grandes verdades fundamentais do cris­
tianismo.
1. Aprendemos que a fé na expiação realizada por Cristo é essencial
à salvação. Assim como no Egito não havia segurança para o israelita que
deixasse de comer o cordeiro pascal na noite da morte dos primogênitos,
assim também não há vida para o pecador que não comer a carne de Cristo
e beber o seu sangue.
2. Aprendemos que a fé na expiação realizada por Cristo nos une ao
Salvador, nos mais íntimos vínculos possíveis, outorgando-nos o direito
aos privilégios mais elevados. Nossas almas encontrarão a plena satisfação
de suas necessidades, pois a carne de Cristo é “verdadeira comida” e o seu
sangue “verdadeira bebida” . Ele nos garante tudo que precisamos, no pre­
sente e na eternidade. “Quem comer a minha carne e beber o meu sangue
tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia.”
3. Aprendemos que o ato de crer na expiação consumada por Cristo
é um ato pessoal, a ser praticado e desfrutado a cada dia. Ninguém pode
comer e beber por nós, assim como nenhuma outra pessoa pode crer por
nós. Precisamos de comida diariamente, não apenas uma vez por semana
ou por mês; de maneira semelhante, devemos exercitar a fé todos os dias.
Quando comemos e bebemos o alimento físico, sentimos os benefícios que
recebemos, somos fortalecidos, nutridos e revigorados. Por igual modo,
quando cremos verdadeiramente, sentimos os grandiosos benefícios de
esperança e paz em nosso homem interior.
Procuremos não apenas conhecer essas verdades, mas também aplicá-
las. O alimento fornecido por este mundo, com o que tantos se preocupam,
perece pelo uso e não pode alimentar nossas almas. Somente aquele que se
alimenta do pão que desceu do céu viverá eternamente.
João 6.60-65 85

Um Severo Discurso de Cristo;


O Perigo de Atribuir um Significado Carnal a
Palavras Espirituais;
Cristo Conhece Perfeitamente
o Coração do Homem
Leia João 6.60-65

Esses versículos nos ensinam que alguns dos discursos de Cristo


foram difíceis para o homem ouvir. Somos informados que “muitos” dos
que há algum tempo seguiam a Jesus ficaram ofendidos, quando Ele falou
sobre “comer” e “beber” seu corpo e seu sangue. Murmurando, disseram:
“Duro é este discurso; quem o pode ouvir?”
Murmúrios e queixas desse tipo são muito comuns. Não devemos
ficar surpresos por ouvi-los; pois existiram, existem e existirão enquanto
houver mundo. Para alguns, as palavras de Cristo parecem difíceis de ser
entendidas. Para outros, como neste caso, parecem difíceis de ser cridas e,
mais ainda, de serem obedecidas. Esta é apenas uma das maneiras em que
se manifesta a corrupção natural do homem. Enquanto o coração do homem
for orgulhoso, mundano, incrédulo, inclinado a justificar-se por seus atos
e mesmo por seus pecados, sempre existirá pessoas que, ao ouvir as doutrinas
e ensinamentos cristãos, dizem: “Duro é este discurso; quem o pode ouvir?”
Se não queremos ficar ofendidos com estes ensinos, devemos buscar
e orar por uma atitude de humildade. Se achamos difícil entender quaisquer
dos ensinamentos de Cristo, precisamos lembrar, com humildade, nosso
estado de ignorância no presente e crer que saberemos mais, em breve. Se
achamos difícil obedecer alguma de suas palavras, devemos também
humildemente recordar que Ele nunca exigirá de nós algo impossível; Ele
concede-nos força para realizar o que nos ordena.
Outra lição que esses versículos nos ensinam é o dever de vigiarmos
para não atribuir um significado carnal a palavras espirituais. Aos judeus
murmurantes, que tropeçavam na idéia de comer sua carne e beber o seu
sangue, nosso Senhor afirmou: “O espírito é o que vivifica; a carne para
nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida” .
E inútil contestar que esse versículo é complexo. Contém expressões
que são difíceis de ser entendidas. E mais fácil compreendermos o
significado de toda a passagem do que a explicarmos palavra por palavra.
No entanto, algumas coisas podemos entender com clareza, das quais
devemos nos apropriar com firmeza. Passemos a considerá-las.
86 João 6.60-65

Nosso Senhor disse: “O espírito é o que vivifica” . Com isto Ele es­
tava afirmando que o Espírito Santo, em especial, é o Autor da vida espiritual
na alma do homem. Por meio da atividade do Espírito Santo, esta vida é
concedida ao homem e, posteriormente, nutrida e preservada nele. Se os
judeus pensavam haver Jesus afirmado que o homem pode ter vida espiritual
através do ato físico de comer e beber, estavam enganados.
O Senhor Jesus disse: “A carne para nada aproveita” . Essas palavras
significam que, se literalmente ingerida, a carne do próprio Senhor Jesus
ou qualquer outra não fará bem à alma. Visto que a alma é imaterial, não
pode ser nutrida com alimento físico.
O Senhor também disse: “As palavras que eu vos tenho dito são
espírito e são vida” . Ele pretendia asseverar que, aplicados ao coração
pelo Espírito Santo, suas palavras e ensinos são os meios apropriados para
despertar o interesse pelas coisas de Deus e conceder vida espiritual. Por
meio das palavras de Cristo a mente e consciência são estimuladas. As
palavras de Cristo, em especial, concedem vida e despertam o espírito.
Ainda que entendamos vagamente o significado desse versículo, as
verdades nele contidas merecem atenção especial, em nossos dias. Em
muitos corações, existe a tendência de atribuir excessiva importância ao
que é externo e visível, ou seja, às atividades religiosas. Estas pessoas
imaginam que a essência do cristianismo consiste do batismo, da Ceia do
Senhor, das cerimônias públicas e formais, das coisas que servem de apelo
aos olhos e ouvidos ou ainda daquilo que traz satisfação ao corpo. Com
certeza, esquecem que “o espírito é o que vivifica” e que “a carne para
nada aproveita” . A causa de Deus prospera mais pela atividade constante e
serena do Espírito Santo do que por fazer alardes no intuito de tomar
públicas as coisas espirituais. As palavras de Cristo, ao penetrar nas
consciências dos homens, são “espírito e vida” .
Por últim o, esses versículos nos ensinam que Cristo conhece
perfeitamente os corações dos homens. Vemos que “Jesus sabia, desde o
princípio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair” .
Afirmativas semelhantes a esta encontram-se nos evangelhos com
tanta freqüência, que somos inclinados a subestimar sua importância. No
entanto, há poucas verdades tão importantes quanto essa, que para nossa
alma é bom recordar. O Salvador, com quem nos relacionamos, conhece
todas as coisas!
Isto esclarece a admirável paciência demonstrada pelo Senhor, durante
seu ministério terreno. Ele conhecia a tristeza e a humilhação que estavam
diante dEle e o tipo de morte que enfrentaria. Conhecia a incredulidade e
a traição de alguns que diziam ser amigos íntimos dEle. Mas, “em troca da
alegria que lhe estava proposta”, suportou todas essas coisas (Hb 12.2).
Isto também esclarece a loucura da hipocrisia e da religiosidade de
João 6.60-65 87

alguém que apenas professa ser crente. Os que são culpados de cometer
tais erros devem lembrar qne não podem enganar a Cristo. Ele os vê e os
conhece. E, no último dia, mostrará quem eles são, a menos que se
arrependam. Não importa a condição de nossa vida cristã, (mesmo que
sejamos fracos) precisamos ser sinceros e verdadeiros.
Finalmente, isto fortalece os verdadeiros crentes em sua peregrinação
diária. Eles devem sentir conforto ao pensar que seu Mestre os conhece.
Embora sintam-se estranhos e sejam mal compreendidos pelo mundo, seu
Mestre os conhece e os consolará no porvir. Feliz é aquele que, apesar de
suas muitas fraquezas, pode dizer, assim como Pedro: “Senhor, tu sabes
todas as coisas, tu sabes que eu te amo” (Jo 21.17).

O Antigo Pecado de Apostasia;


A Nobre Declaração de Pedro;
Alguns Obtêm Pouco Benefício
dos Privilégios Espirituais
Leia João 6.66-71

Esses versículos fazem parte da triste conclusão do famoso discurso


de Cristo, em João 6, e fornecem uma lamentável prova da corrupção e
dureza do coração humano. Ainda que o pregador era o próprio Filho de
Deus, muitos parecem tê-Lo ouvido em vão.
Primeiramente, podemos observar nessa passagem que o pecado da
apostasia é antigo. Após o Senhor Jesus ter explicado o que significava
comer a sua carne e beber o seu sangue, “à vista disso, muitos dos seus
discípulos o abandonaram e já não andavam com ele”.
Sem dúvida, a graça de Deus é uma possessão eterna. Depois de tê-
la recebido, o homem jamais se afastará dela. “O firme fundamento de
Deus permanece” (2 Tm 2.19). “As minhas ovelhas...jamais perecerão”
(Jo 10.27,28). Mas, na igreja onde existe a graça, também encontramos a
falsa espiritualidade e a graça não-genuína; e desta os homens realmente se
apartam. Assim como os ouvintes cujos corações são comparados ao solo
rochoso, na parábola do semeador, muitos não “têm raiz, crêem apenas
por algum tempo e, na hora da provação, se desviam” . Nem tudo que
reluz é ouro. Nem toda flor torna-se um fruto maduro. Nem todos os de
Israel são, de fato, israelitas. Os homens são capazes de seguir uma religião
e manifestar bons sentimentos, desejos, convicções, esperanças, alegrias,
remorsos e, apesar disso, não experimentar a verdadeira graça de Deus.
88 João 6.66-71

Durante certo tempo, podem andar bem na vida cristã, pensando que
alcançarão o céu; mas, posteriormente, acabam voltando para o mundo,
como Demas, Judas Iscariotes e a mulher de Ló.
Não devemos ficar surpresos, ao ver e ouvir a respeito de casos se­
melhantes em nossos dias. Se isto aconteceu nos dias do Senhor Jesus a
pessoas que receberam seu ensino, podemos esperar que ocorra muito
mais em nossos dias. Acima de tudo, estas coisas não devem abalar nossa
fé ou desencorajar-nos na jornada. Antes, temos de conservar em nosso
coração o fato de que na igreja sempre haverá pessoas se afastando, enquanto
ela permanecer neste mundo. A pessoa infiel e escarnecedora, que defende
sua incredulidade, apontando-nos os que se afastaram, precisa encontrar
um argumento mais convincente do que o mau exemplo destes. O incrédulo
esquece que sempre haverá moedas falsas no meio das verdadeiras.
Também podemos observar nessa passagem a nobre declaração de
Pedro. Quando muitos dos discípulos de nosso Senhor O abandonaram,
Ele perguntou aos doze: “Quereis... vós outros retirar-vos?” Imediatamente,
Pedro respondeu com seu zelo e fervor característicos: “Senhor, para quem
iremos? Tu tens a palavra da vida eterna; e nós temos crido e conhecido
que tu és o Santo de Deus” .
É notável a afirmação contida nessas palavras. Vivendo em um país
que professa ser cristão e rodeados pelos privilégios outorgados aos crentes,
dificilmente formaremos uma idéia adequada sobre o real valor desta
afirmação. Mas, considerando que os escribas, os fariseus e os saduceus
rejeitaram a Jesus, esta declaração de um humilde judeu foi um grande ato
de fé: “Tu tens as palavras da vida eterna... tu és o santo de Deus” . Não
admiramos que o Senhor Jesus tenha dito, em outra ocasião: “Bem-
aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue quem to
revelaram, mas meu Pai, que está nos céus” (Mt 16.17).
A pergunta do apóstolo Pedro foi tão notável quanto a sua afirmação.
“Senhor, para quem iremos?” , indagou o apóstolo que possuía um coração
sincero. Com isso, ele estava dizendo: A quem seguiremos? A que Mestre
nos submeteremos? Onde encontraremos outro semelhante a ti, que nos
guie ao céu? O que ganharemos em abandonar-te? Que escriba, fariseu,
saduceu, sacerdote ou rabino pode nos revelar as palavras de vida eterna,
assim como tu o fazes?
Todo crente verdadeiro deve fazer essa mesma indagação, quando
tentado e pressionado a abandonar a vida cristã e voltar para o mundo.
Para os que odeiam a religião é fácil apontar defeitos em nossa conduta,
fazer objeções às nossas doutrinas e mostrar erros em nossos atos. Toma-
se difícil, às vezes, dar-lhes qualquer resposta. Mas, afinal de contas,
“Para quem iremos?” , se desistirmos de seguir a Jesus? Onde encontraremos
paz, esperança e firme consolação, tais como as que encontramos no serviço
João 6.66-71 89

de Cristo, mesmo que O sirvamos de maneira tão imperfeita? Porventura


nos tomaremos pessoas melhores, se O abandonarmos e voltarmos para os
nossos velhos caminhos? É óbvio que não! Portanto, permaneçamos firmes
e perseveremos no caminho em que estamos.
Por último, podemos observar nesta passagem que alguns obtêm pouco
beneficio de seus privilégios espirituais. Lemos que o Senhor disse: “Não
vos escolhi eu em número de doze? Contudo, um de vós é diabo” . E a pas­
sagem continua: “Referia-se ele a Judas, filho de Simão Iscariotes” .
Se já houve um homem que desfrutou de grandes privilégios e
oportunidades, este foi Judas Iscariotes. Ele foi um discípulo escolhido,
andou constantemente na companhia de Cristo, testemunhou os milagres
que Ele realizou, ouviu suas mensagens, foi comissionado a pregar o reino
de Cristo e teve a Pedro, Tiago e João por amigos. Seria impossível imaginar
para qualquer alma uma posição mais favorável do que a de Judas Iscariotes.
Todavia, se já houve um homem que se lançou desesperadamente no in­
ferno e sucumbiu por toda a eternidade, este homem foi Judas. Seu caráter
deve ter sido realmente corrupto, ao ponto do Senhor Jesus dizer a respeito
dele: “Um de vós é diabo” .
Estejamos inteiramente certos de que apenas possuir privilégios
espirituais não é motivo suficiente para termos nossa alma salva. O lugar,
as companhias e as oportunidades não são as coisas imprescindíveis para o
homem tomar-se um crente, e sim a graça de Deus. Com essa graça,
podemos servir a Deus nas circunstâncias mais difíceis, assim como Daniel,
em Babilônia; Obadias, na corte do rei Acabe, e os santos que viviam no
palácio de Nero. Sem essa graça verdadeira, podemos viver diante da
glória do Senhor Jesus e, assim como Judas, ser miseravelmente rejeitados.
Não descansemos enquanto a graça de Deus não estiver reinando em nossas
almas. Ela é concedida ao que busca. À direita de Deus está Aquele que
disse: “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis” (Mt 7.7). O Senhor Jesus
está sempre mais disposto a concedê-la ao homem do que este a buscá-la.
Se os homens não a possuem, é porque não a buscam.

A Dureza de Coração e a Incredulidade


do Homem;
O Motivo Pelo Qual Muitos Odeiam a Cristo;
Diversas Opiniões Sobre a Pessoa de Cristo
Leia João 7.1-13

O capítulo que agora consideramos separa-se do anterior por um


90 João 7.1-13

longo período de tempo. João mantém certo silêncio a respeito dos milagres
que o Senhor realizou, enquanto “andava pela Galiléia” . Os fatos que João
estava especialmente inspirado a registrar foram os que ocorreram em
Jerusalém ou nas proximidades.
Primeiramente, devemos observar nessa passagem a intensa dureza
de coração e a incredulidade da natureza humana. Somos informados que
“nem mesmo os seus irmãos criam nele” . Jesus era manso, imaculado e
santo, mas alguns de seus parentes mais achegados não O receberam como
o Messias. “Os judeus procuravam matá-lo” , e isso era triste. Porém, pior
ainda era a incredulidade de seus irmãos.
Nesse acontecimento destaca-se, de maneira evidente, a grande
doutrina bíblica sobre a necessidade do homem receber a graça divina, que
o leva a converter-se e resguardar-se do pecado. Os que questionam essa
doutrina devem ler essa passagem e refletir sobre ela: devem observar que
ver os milagres de Cristo, ouvir seus ensinos e viver em sua companhia
não foram suficientes para converter os homens. O simples fato de desfrutar
privilégios espirituais não transforma ninguém em um filho de Deus. Tu­
do isso é inútil, sem a operação eficaz do Espírito Santo de Deus. Não
admiramos que o Senhor tenha afirmado: “Ninguém pode vir a mim se o
Pai, que me enviou, não o trouxer” (Jo 6.44).
Os verdadeiros servos de Cristo farão bem se recordarem essa verdade.
Eles geralmente se vêem surpresos e perplexos por notarem que permanecem
sozinhos servindo a Cristo. São tendentes a pensar que por sua culpa muitos
não experimentam a mesma conversão que eles. Estão prontos a culparem
a si mesmos pelo fato de que familiares permanecem incrédulos e mundanos.
Tais servos devem observar a passagem que estamos examinando. O Senhor
Jesus não cometeu qualquer falta, quer em palavras, quer em ações.
Contudo, nem mesmo os seus irmãos “criam nele” .
Nosso Mestre bendito sabe realmente o que significa compadecer-se
dos filhos que permanecem sozinhos. Nessa verdade há abundante doçura,
satisfação e indizível consolo. Ele conhece o íntimo de cada um de seus
filhos e deles se compadece por causa das provações que enfrentam. Cristo
já experimentou este cálice de amargor e estas chamas de aflição. Os que
se sentem fracos e rejeitados, porque seus parentes desprezam seu
relacionamento com Deus, devem buscar conforto em Cristo, derramando
perante Ele seus corações. Pois, de modo semelhante, Ele mesmo “sofreu,
tendo sido tentado” e mostra-se capaz de sentir nossas aflições e socorrer-
nos (Hb 2.18).
Também devemos observar o motivo principal por que muitos odeiam
a Cristo. A passagem nos informa que o Senhor disse aos seus irmãos
incrédulos: “Não pode o mundo odiar-vos, mas a mim me odeia, porque
eu dou testemunho a seu respeito de que as suas obras são más” .
João 7.1-13 91

Estas palavras revelam um dos princípios que influenciam a maneira


do homem considerar a vida espiritual. Elas explicam a razão da inimizade
mortal que muitos demonstraram para com Cristo e seu evangelho, durante
seu ministério na terra. O que ofendia os ouvintes não era tanto a sã doutrina
pregada, mas o elevado padrão de vida que Ele proclamava. Tampouco
era a atitude de Jesus em declarar-se o Messias que realmente desagradava
os homens, e sim o testemunho dado por Ele contra a impiedade de suas
vidas. Em resumo, se Cristo tão-somente houvesse deixado de apontar os
pecados dos homens, estes teriam suportado os ensinos dEle.
Podemos estar certos de que esse princípio tem aplicação universal.
O que acontece agora é o mesmo que acontecia nos tempos de Cristo. A
verdadeira causa de muitos não gostarem do evangelho é a santidade de
vida que ele requer. Quando apenas ensinamos doutrinas abstratas, poucos
encontram dificuldades para aceitá-las. Mas, se denunciamos os pecados
cometidos no dia-a-dia e chamamos os homens ao arrependimento e a uma
vida de comunhão com Deus, milhares de pessoas se ofendem.
A verdadeira razão por que muitos afirmam não crer no cristianismo
e até o criticam é que ele testemunha contra o mau proceder de tais pessoas.
De modo semelhante a Acabe, odeiam o cristianismo porque este nunca
profetiza a respeito delas “o que é bom, mas somente o que é mau” (1 Rs
22 . 8).
Por último, devemos observar nessa passagem a diversidade de
opiniões que, desde aquele tempo, existe sobre a pessoa de Cristo. O texto
nos informa que “havia grande murmuração a seu respeito entre as
multidões. Uns diziam: Ele é bom. E outros: Não, antes, engana o povo.”
A predição que Simeão pronunciara há trinta anos agora se cumpria de
maneira surpreendente. Ele dissera à mãe de Jesus: “Eis que este menino
está destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Is­
rael e para ser alvo de contradição... para que se manifestem os pensamentos
de muitos corações” (Lc 2.34-35). Na diversidade de opiniões levantadas
entre os judeus a respeito do Senhor Jesus, vemos o cumprimento das
palavras daquele bom ancião.
Diante de uma passagem como essa, não devemos ficar surpresos
pelas inúmeras divergências e divisões, concernentes à religião, vistas com
abundância em nossos dias. O ódio sincero que alguns demonstram por
Cristo; os que criticam, procuram falhas e têm o espírito preconceituoso;
os poucos fiéis que testemunham corajosamente de sua fé; o grande número
de crentes que temem os homens; e a incessante guerra de palavras e troca
de ofensas — todas essas são coisas familiares à igreja e sintomas modernos
de uma enfermidade bastante antiga. A corrupção da natureza humana
possui tal caráter, que, onde Cristo é anunciado, Ele se toma motivo de
divisão entre os homens, Enquanto este mundo existir, alguns que ouvirem
92 João 7.1-13

a respeito de Jesus O amarão, e outros O odiarão; alguns crerão nEle, e


outros não. Essa profunda declaração profética de nosso Senhor
continuamente se cumprirá: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não
vim trazer paz, mas espada” (Mt 10.34).
O que pensamos sobre a pessoa de Cristo? Esta é a única indagação
que deve nos preocupar. Jamais nos envergonhemos de pertencer ao pequeno
grupo dos que seguem a Cristo, crêem nEle, ouvem a sua voz e O confessam
perante os homens. Enquanto alguns desperdiçam o tempo em discussões
e controvérsias inúteis, tomemos a cruz e procuremos diligentemente
confirmar nossa eleição e chamada. Os filhos deste mundo podem nos
odiar, assim como o fizeram a nosso Mestre, porque nossa vida espiritual
é uma firme testemunha contra eles. Porém, o último dia mostrará que
fizemos a escolha certa: nada perdemos e ganhamos uma “imarcescível
coroa da glória” .

A Obediência Sincera Leva


ao Conhecimento Espiritual;
A Censura ao Ministro que Exalta a Si Mesmo;
O Perigo de Julgamentos Precipitados
L eia João 7.14-24

Em primeiro lugar, essa passagem nos ensina que a sincera obediência


à vontade de Deus é um dos meios para obtermos um nítido conhecimento
espiritual. O Senhor disse: “Se alguém fizer a vontade dele, conhecerá a
respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se falo por mim mesmo” .
A dificuldade em saber “o que é a verdade” , no que concerne à vida
espiritual, é algo de que os homens comumente se queixam. Eles apontam
às muitas divergências que há entre os crentes, nas questões doutrinárias,
e declaram-se incapazes de decidir sobre quem está certo. Na maioria dos
casos, essa alegada incapacidade de discernir a verdade se toma uma
desculpa para viverem sem qualquer preocupação com as coisas espirituais.
As palavras ditas pelo Senhor, na passagem que lemos, exigem espe­
cial atenção dos que possuem esta maneira de pensar. Tais pessoas
encontrarão dificuldade para esquivarem-se do argumento contundente
encontrado nesses versículos. Eles nos ensinam que o segredo para obter­
mos a chave do conhecimento é praticar com sinceridade o que já
conhecemos. E se, conscientemente, usarmos a luz que já possuímos, em
pouco tempo nossas mentes serão mais iluminadas. Em resumo, existe
João 7.14-24 93

certo sentido em que é verdadeiro afirmar que pela obediência chegamos


ao conhecimento.
Essa verdade possui grande valor. Bom seria para os homens, se eles
agissem de acordo com esse princípio. Ao invés de afirmarem: “Antes,
preciso entender claramente todas as coisas e, depois, agirei” , deveriam
falar: “Usarei diligentemente o conhecimento que possuo; e creio que, ao
fazer isso, um novo conhecimento me será concedido” . Quanto mistério
seria resolvido por este plano simples! Quantos assuntos complexos seriam
entendidos, se os homens vivessem em sinceridade, com a luz que lhes foi
dada, e prosseguissem “em conhecer ao S e n h o r ! ” ( O s 6.3).
Jamais devemos esquecer que Deus nos trata como seres morais, e
não como irracionais ou inanimados. Ele nos encoraja a nos esforçarmos e
usarmos com diligência os meios que temos em nossas mãos. Sem dúvida,
são muitas as verdades incontestáveis na vida espiritual. Os homens devem
buscá-las com sinceridade e aprenderão as coisas profundas de Deus.
Em bora alguns afirmem serem incapazes de descobrir a verdade,
dificilmente encontraremos entre eles um que não conheça mais do que
pratica. Se tal pessoa é sincera, ponha logo isso em prática, usando com
humildade o pouco conhecimento que adquiriu; e, brevemente, Deus lhe
dará mais. “Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso”
(Mt 6.22).
Em segundo, essa passagem nos ensina que, na vida dos ministros do
evangelho, a auto-exaltação é inteiramente contrária ao caráter de Jesus.
Nosso Senhor afirmou: “Quem fala por si mesmo está procurando a sua
própria glória; mas o que procura a glória de quem o enviou, esse é
verdadeiro, e nele não há injustiça” .
A sabedoria e a verdade contidas nessas palavras ficam evidentes
para aquele que nelas medita. O ministro do evangelho realmente chamado
por Deus se mostrará sensível à majestade do seu Mestre e à sua própria
insignificância, não vendo em si mesmo nada além de sua indignidade. Por
outro lado, aquele que reconhece não ser impulsionado pelo Espírito Santo,
em seu homem interior, esse tentará encobrir os seus defeitos, através da
exaltação de si mesmo e de seu serviço. O desejo de buscar a nossa própria
exaltação é um péssimo sintoma; é uma evidência segura de que algo está
errado em nosso interior.
Se alguém deseja ilustrações práticas dessas atitudes, basta observar
a vida de Paulo e a dos escribas e dos fariseus. Estes últimos eram homens
infelizes, que se destacaram, mais do que por qualquer outra coisa, pelo
desejo de obter glória para si mesmos. Mas pode ser notada uma grande
diferença no caráter do apóstolo Paulo. A tônica de todas as suas cartas é
a humildade pessoal e o zelo pela glória de Cristo. Ele se considerou “o
menor de todos os santos” (Ef 3.8), “o menor dos apóstolos” (1 Co 15.9),
94 João 7.14-24

e “o principal” dos pecadores (1 Tm 1.15). E disse ainda: “Não nos


pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor e a nós mesmos
como vossos servos por amor de Jesus” (2 Co 4.5).
Se alguém procura um critério para discernir entre o verdadeiro homem
de Deus e o falso ministrodo evangelho, dève lembrar essas significativas
palavras ditas por Cristo, observando com cuidado o que esse ou aquele
ministro gosta de exaltar. O pastor segundo o coração de Deus não é
aquele que diz: “Eis a igreja! Eis as ordenanças! Eis meu ministério!” , e
sim o que clama: “Eis o Cordeiro! ” De fato, feliz é o ministro do evangelho
que, ao pregar, esquece de si mesmo e procura esconder-se atrás da cruz.
Esse é o homem que será abençoado em seu ministério e será uma bênção
para muitos.
Por último, essa passagem nos ensina o perigo de alguém fazer um
julgamento precipitado. Os habitantes de Jerusalém estavam prestes a
condenar o Senhor Jesus como transgressor da lei de Moisés, visto que
realizara uma cura em dia de sábado. Em sua cegueira e inimizade,
ignoraram o fato de que o mandamento referente ao sábado não foi escrito
para se evitar a realização de obras de misericórdia. Sem dúvida, nosso
Senhor havia praticado uma obra nesse dia, mas fizera algo que não era
proibido pela Lei. Por conseguinte, os judeus atraíram para si a reprimenda
de Cristo: “Não julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça” .
Esta é uma lição de grande valor prático. Em nossa jornada pela
vida, será útil lembrar esse ensino e, à sua luz, corrigir nossa maneira de
avaliar os fatos e as pessoas.
Com freqüência, tendemos a ser enganados por aquilo que aparenta
ser bom. Corremos o perigo de reputar alguns homens como excelentes
cristãos, porque demonstram um pouco de espiritualidade, observam as
formalidades do domingo, usam um linguajar cristão e aparentam ser
peregrinos. Esquecemos que manifestar boa aparência não significa ser
realmente bom e que nem tudo que reluz é ouro. Por igual modo,
esquecemos que o procedimento diário, as escolhas, as preferências, os
hábitos e o caráter pessoal evidenciam o que o homem é. Em suma,
facilmente ignoramos as palavras do Senhor Jesus: “Não julgueis segundo
a aparência e sim pela reta justiça” .
Por outro lado, também demonstramos a tendência de ser enganados
por aquilo que aparenta ser mau. Corremos o perigo de considerar alguns
homens como crentes falsos, devido a algumas falhas ou incoerências da
parte deles; assim, nos incluímos entre os que “por causa de uma palavra
condenam um homem” (Is 29.21). Precisamos lembrar que ainda o melhor
dos crentes continua sendo um homem imperfeito. O santo mais eminente
pode ser vencido pela tentação e, apesar disso, permanecer santo em seu
coração. Não sejamos precipitados em achar que, onde há alguma aparência
João 7.14-24 95

de maldade, tudo ali seja realmente mau. 0 melhor dos santos pode cometer
um grave pecado, em determinada ocasião; todavia, a graça divina
continuará em seu íntimo e o conduzirá à vitória. De um modo geral, o
caráter de um homem é íntegro? Então não o julguemos quando ele cai
mas preserva a esperança. Antes, julguemos de acordo com a “reta justiça” .
Em qualquer que seja o caso, tenhamos cuidado em fazer um
julgamento apropriado sobre nós mesmos. Seja o que for que pensemos
acerca dos outros, estejamos atentos a fim de não errarmos a respeito de
nosso próprio caráter. Procuremos ser justos, sinceros e imparciais. Não
nos enganemos, pensando que tudo vai bem em nossa vida, somente porque,
diante dos homens, tudo parece estar em ordem. Devemos lembrar que “o
homem vê o exterior, porém o S e n h o r , o coração” (1 Sm 16.7). Portanto,
julguemos a nós mesmos com reto juízo e condenemos nossas atitudes
enquanto vivemos, para que não sejamos julgados e definitivamente
condenados pelo Senhor, no último dia (1 Co 11.31).

A Cegueira dos Judeus Incrédulos;


A Mão de Deus Prevalece Sobre Seus Inimigos;
O Terrível Destino dos ímpios
L eia João 7.25-36

Vemos nesses versículos a obstinada cegueira dos judeus incrédulos.


Negavam que Jesus era o Messias, dizendo: “Sabemos donde este é; quando,
porém, vier o Cristo, ninguém saberá donde ele é” . No entanto, estavam
errados nessas duas afirmativas!
Estavam enganados ao declarar que sabiam de onde nosso Senhor
procedia. Sem dúvida, queriam dizer que Jesus nascera em Nazaré e,
conseqüentemente, era galileu. Porém, o fato é que nosso Senhor havia
nascido em Belém, pertencia legalmente à tribo de Judá, e Maria e José
faziam parte da linhagem de Davi. Seria espantoso imaginar que os judeus
não teriam descoberto estas coisas, se procurassem com sinceridade. Além
disso, é evidente que os judeus preservavam com muito cuidado as
genealogias e o histórico das famílias judaicas. Portanto, tal ignorância era
inescusável.
Os judeus também estavam errados ao afirmar que ninguém saberia
de onde o Cristo viria. Havia uma profecia bem conhecida por toda a
nação, segundo a qual o Cristo viria da cidade de Belém (Mq 5.2; M t 2.5;
Jo 7.42). Seria absurdo pensar que haviam esquecido essa profecia. Mas,
96 João 7.25-36

ao que parece, acharam inconveniente lembrar-se dela na ocasião. É triste


observar que, com freqüência, a memória dos homens depende do que
lhes convém.
Em uma de suas cartas, o apóstolo Pedro mencionou aqueles que
“deliberadamente esquecem” (2 Pe 3.5). E possuía bom motivo para usar
esta expressão. Trata-se de uma enfermidade espiritual muito grave e
bastante comum entre os homens. Em nossos dias, inúmeras pessoas
mostram-se tão cegas, em sua maneira de viver, quanto os judeus. São
pessoas que fecham os olhos para os fatos mais óbvios e as doutrinas do
cristianismo. Fingem que não compreendem e, por isso, não podem crer
nas coisas que lhes expomos como necessárias à salvação. Infelizmente,
dezenove dentre vinte destas pessoas desejam continuar ignorando os fatos!
Elas não crêem naquilo que não gostam de crer. Jamais procurarão ler,
ouvir, examinar, pensar ou inquirir sinceramente a respeito da verdade.
Podemos nos admirar de que tais pessoas permaneçam ignorantes? Fiel e
verdadeiro é esse antigo provérbio: “O pior cego é aquele que não quer
ver” .
Vemos também, nesses versículos, que a mão de Deus prevalece
sobre seus inimigos. O texto nos informa que os judeus incrédulos
procuravam prender nosso Senhor, “mas ninguém lhe pôs a mão, porque
ainda não era chegada a sua hora” . Tinham a intenção deliberada de ferir
o Senhor Jesus; todavia, por causa de uma invisível restrição, vinda do
alto, não tinham poder para isso.
São preciosas as verdades contidas nesse versículo e merecem uma
análise cuidadosa. Mostram nitidamente que tudo quanto Cristo sofreu foi
por sua própria e livre vontade. Foi crucificado não porque era incapaz de
evitá-lo. Ele morreu não porque a sua morte era inevitável. Judeus, gentios,
fariseus, saduceus, Caifás, Anás, Herodes e Pôncio Pilatos — ninguém
poderia ferir o Senhor Jesus, a menos que do alto lhes fosse concedido
poder para isso. Tudo o que eles fizeram estava sob o controle e a permissão
do Pai. A crucificação fazia parte dos eternos conselhos da Trindade. A
paixão de nosso Senhor não poderia ter o seu início antes do momento
designado por Deus. É um grande mistério, mas é verdadeiro.
Os servos de Cristo, em todas as épocas, devem guardar em seus
corações este ensinamento e relembrá-lo nos momentos de necessidade. É
um ensino que traz conforto indizível, pleno e sublime aos servos de Deus.
Estes jamais devem esquecer que habitam em um mundo onde Deus governa
sobre os acontecimentos e as épocas; onde nada acontece sem que Ele o
permita. Até os fios de cabelo de seus servos estão todos contados. Tristeza,
enfermidade, pobreza ou perseguição nunca poderão atingi-los, a menos
que Deus ache conveniente. Portanto, diante de qualquer cruz que tenham
que carregar, podem dizer com firmeza: “Nenhuma autoridade terias sobre
João 7.25-36 97

mim, se de cima não te fosse dada” (Jo 19.11). E, assim, devem prosseguir
no serviço com toda a confiança. São imortais, até que sua obra seja
terminada. Se necessário, sofram pacientemente. Seus dias estão nas mãos
de Deus (SI 31.15). Essas mãos governam todas as coisas neste mundo e
não cometem enganos.
Por último, vemos nesses versículos o terrível destino que sobrevirá
aos incrédulos. Assim falou nosso Senhor aos seus inimigos: “Haveis de
procurar-me e não me achareis; também aonde eu estou, vós não podeis
ir” .
Sem dúvida, este pronunciamento tinha um significado profético.
Não podemos ter certeza quanto aos dois aspectos: se, ao dizer isto, o
Senhor se referia aos casos de incredulidade existentes entre os seus ouvintes
ou se estava prevendo o remorso nacional, que muitos sentiriam tarde
demais na época do cerco final de Jerusalém. Todavia, podemos estar
certos de que muitos judeus se lembraram das palavras de Cristo, muito
tempo após sua ascensão e, de alguma forma, O procuraram quando já era
muito tarde para isso.
Com muita freqüência, o homem esquece que a verdade pode,
realmente, ser descoberta muito tarde. Pode haver convicção de pecados,
reconhecimento de sua ignorância, anseio por paz, inquietações sobre o
céu, temores quanto ao inferno, mas tudo isso quando já for tarde demais.
O ensino das Escrituras a esse respeito é claro e objetivo. O Livro de
Provérbios afirma: “Então, me invocarão, mas eu não responderei;
procurar-me-ão, porém não me hão de achar” (Pv 1.28). A parábola das
virgens nos mostra que as néscias encontraram a porta fechada e bateram
em vão, clamando: “Senhor, senhor, abre-nos a porta!” (Mt 25.11). Por
mais horrível que pareça, é possível chegar ao ponto de perder a própria
alma, por rejeitar continuamente a luz e as exortações do evangelho. Isso
é terrível, mas verdadeiro.
Apliquemos estas lições a nossas vidas para que não venhamos a
pecar, seguindo o exemplo dos judeus incrédulos. Tampouco deixemos
para buscar o Senhor Jesus, como nosso Salvador, apenas quando for
muito tarde. As portas da misericórdia ainda se encontram abertas. O tro­
no da graça continua aguardando por nós. No dia que se chama hoje,
procuremos nos certificar de que somos salvos. É melhor nunca ter nascido
do que ouvir o Filho de Deus afirmar: “Aonde eu estou, vós não podeis
ir” .
98 João 7.37-39

Uma Condição, uma Solução e uma Promessa


Apresentadas por Cristo
Leia João 7.37-39

Alguns têm afirmado que certas passagens bíblicas deveriam ser


impressas com letras de ouro. Os versículos que lemos constituem uma
delas; contêm um convite amplo, completo e gratuito à raça humana, um
convite que transforma eminentemente o evangelho de Cristo nas “boas-
novas” de Deus. Consideremos seus detalhes.
Em primeiro lugar, Jesus apresentou uma condição aos seus ouvintes.
Ele disse; “Se alguém tem sede” . Sem dúvida, estas palavras tinham um
sentido espiritual. A sede a que Ele se referiu era completamente de natureza
espiritual. Significa ter anseio na alma, convicção de pecados, desejo de
ser perdoado, anelo por uma consciência em paz. O homem que reconhece
ser um pecador e busca o perdão; aquele que é profundamente sensível às
necessidades de sua alma e com sinceridade deseja obter ajuda e consolo
— esse é o que demonstra possuir a disposição que o Senhor tinha em men­
te, ao dizer: “Se alguém tem sede” . O verdadeiro significado dessa expressão
pode ser visto na atitude dos judeus que ouviram a pregação de Pedro, no
dia de Pentecostes, e tiveram os seus corações compungidos; também na
atitude do carcereiro de Filipos, que clamou a Paulo e Silas: “Que devo fa­
zer para que seja salvo?” Em ambos os casos, havia “sede” nas pessoas.
Infelizmente, esta “sede” é desconhecida por muitos. Todos os homens
deveriam senti-la, se fossem realmente sábios. Não existe na terra, entre
homens ou mulheres, quem não precise dessa “sede” pela salvação, pois
todos somos criaturas mortais, caídas e pecadoras. Um dia nossas almas
serão julgadas, e passaremos a eternidade no céu ou no inferno. Apesar
disso, são inúmeros os que têm sede por muitas coisas, exceto por salvação.
Dinheiro, prazer, honra, posições — são estas as coisas que desejam. A
indiferença da maioria das pessoas, em relação à sua própria alma, é a
prova mais clara da Queda do homem e da extrema corrupção da natureza
humana. Não devemos admirar que a Bíblia refere-se ao homem natural
como “cego” , alguém que “dorme” e está “morto”, quando poucos se
encontram entre os despertados, vivos e sedentos pela salvação.
Feliz é aquele que tem experimentado esta “sede” espiritual. A
verdadeira vida cristã inicia ao reconhecermos que somos pecadores
culpados, vazios e necessitados. Enquanto não entendermos que estamos
perdidos, permaneceremos longe do caminho da salvação. O primeiro passo
em direção ao céu consiste em sermos inteiramente convencidos de que
João 7.37-39 99

merecemos o inferno. O sentimento de pecado é um bom sinal que às


vezes assusta o homem e o faz pensar na condição de sua alma. De fato,
este é um sintoma de vida espiritual: “Bem-aventurados os que têm fome e
sede de justiça, porque serão fartos” (Mt 5.6).
Em segundo, o Senhor Jesus apresentou uma solução. Ele disse: “Se
alguém tem sede, venha a mim e beba”. Declarou ser a verdadeira fonte de
vida e Aquele que supre todas as necessidades espirituais. Ele convida
todos os que carregam o intenso peso do pecado a vir a Ele e tê-Lo como
ajudador.
As palavras “venha a mim" são poucas e simples. Mas solucionam
uma questão fundamental, que toda a sabedoria grega e os filósofos romanos
eram incapazes de responder. Elas mostram como o homem pode ter paz
com Deus. Indicam que a paz é obtida em Cristo, ao confiarmos nEle
como mediador e substituto; em outras palavras, obtemos a paz através da
fé em Jesus. Vir a Cristo significa crer nEle. A solução parece simples
demais para ser verdade, mas não há outra além dessa. Toda a sabedoria
do mundo jamais encontrará nela qualquer falha ou achará outra melhor.
Aplicar a si mesmo esta grande solução prescrita pelo Senhor Jesus é
o segredo para sermos salvos. Os santos homens de Deus, que vivem ou
que já viveram antes de nós, foram pessoas que pela fé beberam dessa
fonte e encontraram alívio. Sentiram sua culpa, reconheceram o vazio de
suas vidas e tiveram sede por libertação. Ouviram falar que em Cristo
crucificado há completo perdão, misericórdia e graça para todos os que se
arrependem e crêem. Creram nas boas novas e passaram a viver de
conformidade com elas. Desprezaram toda a confiança em sua própria
bondade e dignidade e, pela fé, vieram a Cristo como pecadores. Agindo
deste modo, encontraram consolo e receberam vida espiritual. De fato,
sentir quanto o pecado é abominável, ter sede e verdadeiramente vir a
Cristo são os passos que conduzem ao céu; mas são passos grandiosos!
Milhares demonstram excessivo orgulho e desinteresse em dar esses passos.
Infelizmente, poucos são os que pensam nisto, e menor ainda, o número
dos que crêem!
Por último, o Senhor Jesus fez uma promessa. Ele disse: “Quem crer
em m im ... do seu interior fluirão rios de água viva” . Certamente, essas
palavras possuíam um sentido figurado. Tinham dupla aplicação. Por um
lado, ensinam que todos os que pela fé vêm a Cristo encontrarão nEle
satisfação abundante. Por outro lado, mostram que os crentes não apenas
encontram nEle o suficiente para satisfazer sua própria alma, mas também
se tomam uma fonte de bênçãos para outros.
O cumprimento da parte inicial da promessa pode ser testificado por
milhares de crentes que vivem em nossos dias. Caso fossem buscadas em
suas vidas as evidências, eles diriam que, ao vir a Cristo pela fé, encontraram
100 João 7.37-39

nEle mais do que esperavam. Quando creram, experimentaram paz,


esperança e consolo, os quais não trocariam por nada desse mundo. Acharam
graça à proporção de suas necessidades e força à medida que careciam em
seu viver. Em si mesmos, em seus próprios corações, acham freqüentes
decepções; mas, em Cristo, jamais se desapontaram.
O cumprimento da outra parte da promessa não se cumprirá totalmente
até ao Dia do Juízo. Somente esse dia revelará o bem que todo crente,
como um instrumento, realizou em favor de outros, desde a sua conversão.
Durante suas vidas, alguns promovem o bem através de seus lábios, assim
como os apóstolos e os primeiros pregadores do evangelho. Outros o fazem
através de sua morte, como Estevão, o ladrão arrependido e os mártires da
Reforma. Ainda outros o praticam até mesmo depois de sua morte, pelos
seus escritos, como Baxter, Bunnyan e M ’Cheyne. Mas, de um jeito ou de
outro, ao longo de sua vida, provavelmente quase todo crente será uma
fonte de bênçãos. Por meio de palavras ou atos, princípios ou exemplo,
direta ou indiretamente, eles sempre deixam marcas nos que os cercam.
Eles podem não estar cientes disso agora, mas naquele Dia reconhecerão
que é verdadeiro. O que Cristo prometeu se cumprirá.
Sabemos, por experiência, o que significa vir a Cristo? Essa é a
questão que deve surgir em nossas mentes, ao findarmos as considerações
sobre esta passagem. A pior de todas as condições para uma alma é não se
importar ou se preocupar com a eternidade, é não possuir a “sede”
mencionada pelo Senhor Jesus. O maior de todos os equívocos é procurar
alívio através de qualquer outro meio, além deste “vir a Cristo” . Uma
coisa é ir à igreja, ouvir aos ministros do evangelho e participar das
ordenanças de Cristo; outra bem diferente é vir ao próprio Senhor Jesus
Cristo. Feliz é aquele que não apenas conhece, mas também vive de acordo
com esses fatòs.

A Inutilidade do Conhecimento
Meramente Intelectual;
A Singular Excelência do Dom
de Cristo Como Mestre;
A Atividade Gradativa da Graça
de Deus no Coração
L eia João 7.40-53

Esses versículos nos mostram quão inútil é o conhecimento para a


João 7.40-53 101

vida espiritual, se não fo r acompanhado da obra da graça divina no


coração. O texto nos informa que alguns dos ouvintes sabiam exatamente
onde Cristo nasceria. Eram pessoas familiarizadas com o conteúdo das
Escrituras — “Não diz a Escritura que o Cristo vem da descendência de
Davi e da aldeia de Belém, donde era Davi?” Apesar disso, os olhos de seu
entendimento não estavam iluminados. O próprio M essias, a quem
esperavam, estava diante deles, mas não O receberam, nem creram nEle,
nein O obedeceram.
Sem dúvida, é muito importante possuir certo grau de conhecimento
das coisas espirituais. A ignorância, com certeza, não é a fonte da verdadeira
devoção, tampouco ajuda alguém a chegar ao céu. Um “Deus desconhecido”
jam ais poderá ser objeto da verdadeira adoração. De fato, seria
extraordinário para os cristãos se todos eles conhecessem as Escrituras tão
bem quanto os judeus pareciam conhecer, quando o Senhor viveu na terra.
Entretanto, se por um lado valorizamos o conhecimento dos fatos
espirituais, por outro, devemos cuidar para não atribuir-lhe um valor
excessivo. Não devemos pensar que é suficiente conhecer os fatos e as
doutrinas de nossa fé, a menos que nossos corações e vidas sejam
inteiramente influenciados por esse conhecimento. Os próprios demônios
possuem conhecimento intelectual; eles “crêem e tremem” , mas continuam
sendo demônios (Tg 2.19). É possível estar familiarizado com a letra das
Escrituras, ser capaz de citá-la corretamente, discutir sobre as doutrinas
do cristianismo e, assim mesmo, permanecer morto em delitos e pecados.
À semelhança de muitos da geração à qual Jesus pregava, também podemos
ter bom conhecimento da Bíblia, mas continuar incrédulos e sem conversão.
Devemos estar sempre lembrados que conhecer de coração é a coisa
realmente necessária. É algo que os seminários e as faculdades não podem
nos dar. É um dom de Deus. Reconhecer o mal que existe em nossos
corações, odiar o pecado, familiarizar-se com o-trono da graça e com a
fonte do sangue de Cristo, sentar diariamente aos pés de Cristo, para, com
humildade, aprender dEle — este é o grau mais elevado que o homem
mortal pode atingir. Dê graças ao Senhor todo aquele que compreende
essas verdades; mesmo que não conheça grego, latim ou hebraico, ele
será salvo.
Esses versículos também nos mostram quão excelente fo i o dom do
Senhor como Mestre, para ensinar o povo. Os próprios oficiais dos principais
sacerdotes, mandados para prender Jesus, ficaram tocados e admirados.
Certamente, eles não mostrariam uma disposição favorável para com o
Mestre; todavia, afirmaram: “Jamais alguém falou como este homem” .
Quanto à maneira como o Senhor Jesus falava em público, podemos
formar uma idéia restrita. Os gestos, o tom de voz e o modo de falar são
coisas que devem ser presenciadas, a fim de serem apreciadas. Não temos
102 João 7.40-53

dúvida de que seu modo de falar ao público era solene, peculiar, arrebatador
e impressionante. Talvez era algo muito diferente do que os oficias judeus
estavam acostumados a ouvir. Outra passagem das Escrituras nos diz mais:
“Ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mt
7.29).
Quanto aos assuntos abordados nas mensagens públicas de nosso
Senhor, podemos formar alguns conceitos a partir dos discursos registrados
nos quatro evangelhos. As características principais desses discursos são
claras e inconfundíveis. O mundo jamais viu algo semelhante a eles, desde
que ao homem foi dado o dom da fala. São discursos que geralmente
contêm verdades profundas, as quais não temos recursos para sondar. Ao
mesmo tempo, possuem uma simplicidade que até as crianças podem
entender. São palavras fortes e francas ao denunciar os pecados nacionais
e eclesiásticos, mas sábias e discretas em jam ais causar ofensas
desnecessárias. São firmes e objetivas em seu papel de alertar, porém
amáveis e gentis em seu apelo. Ao vermos tal combinação de poder e
simplicidade, de coragem e prudência, de firmeza e ternura, podemos
certamente afirmar: “Jamais alguém falou como este homem! ”
Muito lucraria a igreja de Cristo, se ministros e mestres procurassem
falar mais dedicadamente segundo o padrão que podem ver em Cristo. É
bom que se lembrem de que o linguajar impetuoso e o estilo sensacionalista
e dramático são totalmente diferentes do modo com que seu Mestre falava.
É bom reconhecerem que o falar com simplicidade e fervor é o mais elevado
objetivo ao dirigirem-se ao público. Disto o Mestre lhes deixou grandioso
exemplo. Certamente, eles não precisam envergonhar-se de seguir os passos
do seu Senhor.
Por último, esses versículos nos mostram como pode ser lenta e
gradativa a obra da graça em certos corações. Nicodemos levantou-se na
reunião do conselho dos inimigos do Senhor e, com mansidão, pleiteou
que Ele merecia um tratamento justo. Perguntou ele: “Acaso, a nossa lei
julga um homem, sem primeiro ouvi-lo e saber o que ele fez?”
Este Nicodemos, devemos lembrar, é o mesmo que dezoito meses
antes havia em sua ignorância procurado o Mestre, à noite, para interrogá-
lo. Evidentemente, àquela altura ele possuía pouco conhecimento e não
ousava ir a Cristo em pleno dia. Porém, depois de um ano e meio, ele
progrediu tanto, que ousou dizer algo a favor de Cristo. Sem dúvida, Ele
não falou muito; contudo, foi melhor do que permanecer calado. Além
disso, aproximava-se o dia em que ele avançaria mais ainda, pois auxiliaria
José de Arimatéia a honrar o cadáver do Senhor Jesus, quando, os próprios
discípulos O haviam abandonado e fugido.
O exemplo de Nicodemos está repleto de instruções úteis, ensinando-
nos que há diversidade nas realizações do Espírito Santo. Ele conduz pessoas
João 7.40-53 103

ao mesmo Salvador, mas nem todas são levadas a Cristo de maneira


semelhante. A história de Nicodemos nos ensina que a atividade do Espírito
Santo não se realiza com a mesma intensidade nos corações dos homens.
Às vezes, pode ser bastante lenta e, apesar disso, profunda e verdadeira.

O Poder da Consciência;
A Natureza do Arrependimento
Leia João 8.1-11

A história que inicia o capítulo 8 deste evangelho possui um caráter


peculiar. Em alguns aspectos, é singular. Não existe algo semelhante em
toda a narrativa dos evangelhos. Durante os séculos, pessoas de mentalidade
escrupulosa têm tropeçado nessa passagem, duvidando se realmente foi
escrita pelo apóstolo João. No entanto, a validade de tais escrúpulos não
pode ser facilmente comprovada.
É um grave erro supor, como alguns têm feito, que essa história
ameniza a severidade do pecado de adultério, demonstrando que nosso
Senhor não deu importância ao sétimo mandamento. Nessa passagem, nada
justifica tal afirmativa. Nenhuma dessas palavras nos autoriza a dizer
qualquer coisa deste tipo. Com calma, averiguemos o assunto, examinando
o conteúdo da passagem.
Os inimigos de nosso Senhor trouxeram-Lhe uma mulher culpada de
adultério e indagaram que punição ela merecia. De maneira evidente, o
relato nos informa que eles fizeram esta indagação com o propósito de
tentá-Lo. Esperavam apanhar nosso Senhor dizendo algo de que O pudessem
acusar. Provavelmente imaginaram que Ele, tendo pregado salvação e
perdão aos publicanos e meretrizes, seria induzido a afirmar algo contrário
à lei de Moisés ou às suas próprias palavras.
Nosso Senhor conhecia os corações daqueles homens maliciosos que
estavam diante dEle e respondeu-lhes com a perfeita sabedoria demonstrada
no caso do tributo de César (Mt 22.17). O Senhor Jesus recusou ser um
juiz e legislador entre eles, especialmente em um caso que a própria lei
deles já havia decidido. A princípio, Jesus não lhes deu qualquer resposta.
Mas, visto que insistiam na pergunta, Ele os silenciou com uma
resposta fulminante, que lhes perscrutou o coração: “Aquele que dentre
vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra” ; não disse que
a mulher não havia adulterado ou que seu pecado era insignificante e
desculpável. Porém, lembrou seus acusadores que, de maneira alguma,
eles eram as pessoas que deveriam trazer acusação contra ela. Seus motivos
104 João 8.1-11

e suas vidas eram impuros. Eles mesmos não estavam com as mãos limpas,
ao lidarem com aquele caso. O que realmente desejavam não era vindicar
a pureza da lei de Deus, e sim descarregar sua malícia contra Jesus.
Além disso, quando trouxeram aquela infeliz mulher perante o Senhor,
retiraram-se “acusados pela própria consciência” . Com estas solenes
palavras, Ele despediu a pecadora culpada: “Nem eu tampouco te condeno;
vai e não peques mais” . Jesus não afirmou que ela desmerecia a punição;
mas Ele não viera para ser juiz. Assim, na falta de testemunhas e acusadores,
nada havia contra ela diante dEle. Embora fosse realmente culpada, nosso
Senhor a despediu como alguém cuja acusação não fora provada, declarando-
lhe: “Vai e não peques mais” .
À luz desses simples fatos, é incorreto dizer que o Senhor não deu
importância ao pecado de adultério. Em toda essa passagem, nada existe
que comprove isto. Em toda a Bíblia, ninguém falou tão severamente contra
a quebra do sétimo mandamento quanto nosso divino Senhor. Ele mesmo
ensinou que este mandamento pode ser transgredido por meio de um olhar,
um pensamento ou um ato visível (M t 5.28). Foi Ele quem mais
vigorosamente falou sobre a santidade do relacionamento conjugal (Mt
19.5). Em tudo que foi relatado nessa passagem, nada encontramos que
seja incoerente com o restante de seus ensinos. Ele apenas evitou usurpar
o ofício de juiz e pronunciar condenação sobre uma mulher culpada, para
satisfazer seus inimigos mortais.
Ainda, não devemos esquecer que a passagem contém duas lições de
grande importância. Quaisquer que sejam as dificuldades apresentadas por
esses versículos, estas duas lições permanecem evidentes e inconfundíveis.
Por um lado, o texto nos fala sobre o poder da consciência. Somos
informados que os acusadores da adúltera, ao ouvirem a resposta de nosso
Senhor, “acusados pela própria consciência, foram-se retirando um por
um, a começar pelos mais velhos até aos últimos” . Embora empedernidos
e ímpios, sentiram algo em seu íntimo que os deixou temerosos. Ainda que
a natureza humana seja corrompida, Deus cuida para que cada homem
tenha, em seu íntimo, uma testemunha que será ouvida.
A consciência é um dos mais importantes elementos de nosso homem
interior e desempenha uma função proeminente em nossa história espiritual.
Ela não pode nos salvar e jamais é capaz de, sozinha, nos conduzir a
Cristo. Está cega e sujeita a receber uma orientação errônea. Está aleijada
e impotente, não sendo capaz de conduzir-nos ao céu. Entretanto, a
consciência não deve ser desprezada. É o melhor amigo do ministro do
evangelho, quando este, do púlpito, se levanta para reprovar o pecado. É
a melhor amiga das mães, quando estas procuram restringir seus filhos a
praticarem o mal e impulsioná-los a fazerem o bem. É o melhor amigo do
professor, quando este incute nas mentes dos rapazes e moças seus deveres
João 8.1-11 105

morais. Feliz é aquela pessoa que não abafa sua consciência, mas esforça-
se por conservá-la sensível! Ainda mais feliz é aquele que ora para que ela
seja iluminada pelo Espírito Santo e lavada pelo sangue de Cristo.
Por outro lado, o texto nos fala sobre a natureza do verdadeiro
arrependimento. Quando nosso Senhor disse à mulher adúltera: “Nem eu
tampouco te condeno” , despediu-a com as solenes palavras “vai e não
peques mais” . Ele não apenas disse: “Vá para casa e arrependa-se” ; mos­
trou-lhe a principal coisa que o seu caso exigia — a necessidade de abandonar
imediatamente seu pecado.
Jamais esqueçamos esta lição. Abandonar o pecado é a própria essência
do verdadeiro arrependimento. O arrependimento que consiste apenas em
sentimentos, confissão verbal, desejos, significado, esperança e decisão é
indigno aos olhos de Deus. Atos constituem a essência do “arrependimento
para a salvação, que a ninguém traz pesar” . Até que um homem cesse de
fazer o mal e abandone seus pecados, ele não se arrependeu. Se queremos
saber se realmente somos convertidos a Deus e se experimentamos tristeza
pelo pecado e o arrependimento que causa “júbilo nos céus”, examinemo-
nos e vejamos se, na verdade, abandonamos o pecado. Não descansemos
até que sejamos capazes de dizer, como se estivéssemos na presença de
Deus: “Odeio o pecado e desejo não pecar mais” .

Cristo, a Luz do Mundo;


Promessa aos Seguidores de Cristo;
Jesus Revela a Ignorância de seus Inimigos
L eia João 8.12-20

A conversa entre nosso Senhor e os judeus relatada nesses versículos


apresenta muitas dificuldades. A conexão de uma parte com a outra e o
exato significado de algumas expressões pronunciadas pelo Senhor são
coisas “difíceis de entender” . Em passagens semelhantes a essa, a verdadeira
sabedoria está em reconhecer a grande imperfeição de nosso entendimento
espiritual e ser grato porque somos capazes de assimilar algumas verdades.
Primeiramente, observemos nesses versículos o que nosso Senhor
disse a respeito de si mesmo. Ele proclamou: “Eu sou a luz do mundo” .
Estas palavras subentendem que o mundo necessita de luz e, naturalmente,
está em trevas. Isto ocorre tanto no sentido moral quanto no espiritual; e
tem sido assim desde a queda do homem no pecado. No antigo Egito,
Grécia, Roma, França, Alemanha, Inglaterra e outros países modernos, a
notícia é a mesma. A grande m aioria dos homens não vêem nem
106 João 8.12-20

compreendem o valor de suas almas, a verdadeira natureza de Deus e a


realidade do mundo vindouro. Apesar de todas as descobertas científicas,
ainda as “trevas cobrem a terra, e a escuridão, os povos” (Is 60.2).
Jesus afirmou ser a única solução para esse tipo de situação. Ele
surgiu no mundo, assim como o sol, para difundir luz, vida e paz em um
mundo de trevas. Ele convida todo o que deseja ajuda e orientação espiritu­
al a converter-se a Ele e tomá-Lo seu líder. Assim como o sol é o centro de
todo o sistema solar — o centro de luz, vida e fertilidade —, o Senhor
Jesus tomou-se o centro de luz, vida e paz para o mundo de pecadores.
Permitamos que essas afirmativas arraiguem-se em nossos corações,
pois são valiosas e plenas de significado. Luzes falsas, por todos os lados,
atraem a atenção do homem contemporâneo. A inteligência, a filosofia, o
zelo, o liberalismo, a consciência e a voz da igreja mundana são vozes
que, de várias maneiras, estão clamando, em grandes brados, que en­
contraram uma “luz” para nos mostrar. Seus advogados não sabem o que
estão dizendo. Infelizes são os que acreditam nas coisas que eles afirmam!
Jesus é a única luz verdadeira, que veio ao mundo para salvar os pecadores;
morreu na cruz e assentou-se à destra de Deus para ser nosso amigo. “Pois
em ti está o manancial da vida; na tua luz, vemos a luz” (SI 36.9).
Em segundo, observemos o que o Senhor Jesus fala a respeito daqueles
que o seguem. Ele prometeu: “Quem me segue não andará nas trevas; pelo
contrário, terá a luz da vida” .
Seguir a Cristo significa comprometer-nos completa e integralmente
com Ele, como nosso Senhor e Salvador, submetendo-nos a Ele em todos
os assuntos, tanto os de doutrina quanto os de vida prática. “Seguir” é
outro vocábulo que expressa a idéia de “crer” , referindo-se à mesma atitude
da alma, mas considerada sob outro ponto de vista. Assim como Israel
seguia a coluna de nuvens e de fogo, durante sua viagem pelo deserto —
avançando quando esta se movia e não caminhando quando estacionava
em determinado lugar, do mesmo modo devemos agir em nosso re­
lacionamento com Cristo. Temos de seguir o “Cordeiro por onde quer que
vá” (Ap 14.4).
Aquele que segue a Cristo “não andará nas trevas” , tampouco será
deixado na ignorância, assim como muitos ao seu redor. Ele não andará
em dúvidas e incertezas, mas verá o caminho que conduz ao céu e saberá
para onde está indo, pois “terá a luz da vida” . Desfrutará a luz da presença
de Deus brilhando em seu íntimo. Perceberá em seu entendimento e sua
consciência uma luz viva, que nada poderá apagar. As luzes com que
muitos iluminam suas vidas desaparecerão no vale da sombra da morte,
mostrando-se inúteis. No entanto, a luz que Cristo dá a todos os seus
seguidores jamais falhará.
Observemos, por último, as palavras do Senhor Jesus a respeito de
João 8.12-20 107

seus inimigos. Ele declarou aos fariseus que, com toda a sua aparente
sabedoria, eles eram ignorantes no que concerne a Deus — “Não me
conheceis a mim nem a meu Pai; se conhecêsseis a mim, também co­
nheceríeis a meu Pai” .
Este tipo de ignorância é muito comum. Há milhares de pessoas que
sabem o bastante sobre os diversos ramos do conhecimento humano, sendo
capazes até de argumentar ou pensar sobre assuntos espirituais; contudo,
não sabem coisa alguma a respeito de Deus. Todas admitem que Ele existe.
Todavia, seu caráter e atributos revelados nas Escrituras, sua santidade,
pureza, justiça, perfeito conhecimento e imutabilidade são verdades com
as quais estas pessoas não estão familiarizadas. De fato, o assunto con­
cernente à natureza e o caráter de Deus faz que sintam-se inconfortáveis;
por conseguinte, não gostam de conversar demoradamente sobre tal assun­
to.
O grande segredo para conhecer Deus é aproximar-se dEle através
de Jesus Cristo. Se nos aproximarmos desta maneira, não haverá nada que
nos tome temerosos. Considerando deste ponto de vista, Deus é o Amigo
do pecador. Sem Cristo, poderíamos nos sentir completamente alarmados.
Como ousaríamos olhar para um Ser tão puro e exaltado? No entanto, em
Cristo, Deus se mostra pleno de misericórdia, graça e paz. Agora, não
temos mais receio da santidade dEle. Cristo é o caminho e a porta através
da qual temos de nos achegar a Deus. Conheceremos o Pai, se conhecermos
a Cristo. Ele mesmo disse: “Ninguém vem ao Pai, senão por mim” (Jo
14.6). A falta de conhecimento a respeito dEle equivale a ignorância acer­
ca de Deus, o Pai. Quando há erro no ponto de partida, a totalidade da
religião de um homem estará cheia de erros.
Qual a nossa situação? Conhecemos a Deus? Muitos estão vivendo e
morrendo nas trevas. Para onde estamos indo? Podemos responder isto
corretamente? Milhares de pessoas partem desta vida sem qualquer certeza.
Não deixemos nada incerto no que concerne à nossa salvação eterna. Cristo,
a luz do mundo, beneficia tanto a nós quanto aos outros, se o seguirmos
com humildade, Lhe confiarmos nossas almas e nos tomarmos seus
discípulos. Não devemos desperdiçar nossas vidas, assim como o fazem
tantas pessoas, duvidando, argumentando e questionando; temos apenas
de segui-Lo. A criança que afirma: “Nego-me a aprender qualquer coisa
sobre este assunto até que eu saiba algo a respeito dele” jamais aprenderá.
Morrerá em seus pecados o homem que declara: “Antes que eu me tome
um cristão, preciso entender tudo”. Temos de começar pela atitude de
“seguir” , depois receberemos mais entendimento.
108 João 8.21-30

Cristo Pode ser Procurado em Vão;


A Diferença entre Cristo e os Homens ímpios;
O Terrível Fim da Incredulidade
L eia João 8.21-30

Essa passagem fala sobre coisas tão profundas que não temos meios
para exam iná-las plenam ente. Enquanto lem os esses versículos,
relembramos as palavras do salmista: “Quão grandes, S e n h o r , são as tuas
obras! Os teus pensamentos, que profundosV' Mas essa passagem contém,
em seu início, verdades que são evidentes e inconfundíveis. Estejamos
atentos a elas e procuremos enraizá-las com firmeza em nossos corações.
Primeiramente, aprendemos que épossível alguém procurar a Cristo
em vão. O Senhor Jesus disse aos judeus incrédulos: “Vós me procurareis,
mas perecereis no vosso pecado”. Com estas palavras, Ele estava mostrando
que, em algum tempo, os judeus O procurariam em vão.
Este é um ensino muito doloroso. O fato de que o Senhor Jesus, tão
repleto de amor e disposto a salvar, pode ser buscado em vão é uma reali­
dade que causa bastante tristeza. Apesar disso, é verdadeiro! Qualquer
pessoa pode ter sentimentos espirituais a respeito de Cristo e não possuir a
salvação. A doença, a aflição repentina, o temor da morte, a falta de confor­
to para a alma — tudo isto pode causar em alguém uma grande medida de
religiosidade. Pressionada por tais situações, uma pessoa é capaz de orar
com fervor, demonstrar fortes sentimentos espirituais e, por algum tempo,
professar que está buscando a Cristo e ser diferente. No entanto, seu coração
jamais foi regenerado. Se as circunstâncias não a afligirem, provavelmente
ela retomará aos seus antigos caminhos; procurou a Cristo em vão, porque
O buscava com falsos motivos e não com todo o seu coração.
Infelizmente, isso não é tudo. Existe uma coisa chamada de “hábito
de resistir à luz e ao conhecimento” , até chegar ao ponto de buscar a
Cristo “em vão” . As Escrituras e a experiência comprovam que os homens
podem rejeitar a Deus, até que Ele os rejeite e não ouça as suas orações;
eles podem continuar abafando suas convicções morais, suprimindo a luz
da consciência e lutando contra o possuírem um melhor conhecimento de
Deus, até que Ele seja provocado a abandoná-los e deixá-los sozinhos.
Não foi sem motivo que estas palavras foram escritas: “Então, me invoca­
rão, mas eu não responderei; procurar-me-ão, porém não me hão de achar.
Porquanto aborreceram o conhecimento e não preferiram o temor do
S e n h o r ” (Pv 1 . 2 8 - 2 9 ) . Casos como estes são menos freqüentes, mas
possíveis, e, às vezes, nos deparamos com eles. Alguns pastores podem
João 8.21-30 109

testemunhar que visitaram pessoas, em seu leito de morte, que pareciam


ter procurado a Cristo, mas o fizeram em vão.
Não há qualquer segurança, exceto no buscar a Cristo, enquanto Ele
pode ser achado, e no invocá-Lo, enquanto está perto, fazendo-o com um
verdadeiro coração e um espírito sincero. Estejamos certos de que esta
busca não será inútil. Jamais será dito a respeito daqueles que buscam a
Cristo: “Eles morreram em seus pecados” . Aquele que realmente vem a
Cristo nunca “será lançado fora” . O Senhor mesmo declarou, de modo
solene, que não tem “prazer na morte de ninguém” (Ez 18.32) e se deleita
“na misericórdia” (Mq 7.18).
Em segundo, aprendemos quão ampla diferença existe entre Cristo e
os homens ímpios. Nosso Senhor afirmou: “Vós sois cá de baixo, eu sou lá
de cima; vós sois deste mundo, eu deste mundo não sou” .
Sem dúvida, tais palavras aplicavam-se em especial a nosso Senhor.
No sentido mais completo e literal, jamais existiu alguém que pôde afirmar:
“Eu sou lá de cima... deste mundo não sou” .
Existe um sentido em que essas palavras podem ser aplicadas a todos
os membros do Corpo de Cristo, a igreja. Comparados aos milhares de
pessoas que vivem ao seu redor, eles são “de cima” e não “deste mundo” ,
assim como seu Mestre. Os pensamentos dos ímpios estão voltados para as
coisas deste mundo; as afeições dos verdadeiros crentes centralizam-se nas
coisas “do alto” . As coisas deste mundo dominam o coração do incrédu­
lo; a sua atenção é absorvida pelas preocupações, benefícios e prazeres
terrenos. O verdadeiro cristão, embora esteja no mundo, não pertence a
ele; sua cidadania está no céu, e as melhores coisas que lhe pertencem
estão por vir.
O verdadeiro cristão fará bem em jamais esquecer está linha de
separação. Se ama a sua alma e deseja servir a Deus, precisa contentar-se
em permanecer separado de muitos ao seu redor, separado por uma barreira
que ele não pode transpor. Isto resulta da graça que reina em seu coração.
Ele perceberá que essa separação lhe trará ódio, escárnio e palavras
desagradáveis; contudo, este foi o cálice que seu Mestre bebeu e sobre o
qual advertiu antecipadamente seus discípulos — “Se vós fôsseis do mundo,
o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo
contrário, dele vos escolhi, por isso, o mundo vos odeia” (Jo 15.19). Por­
tanto, o cristão jamais deve sentir-se envergonhado de permanecer firme e
mostrar seu caráter. Ele tem de levar a cruz, se deseja receber a coroa. Se
já recebeu uma nova vida, proveniente “do alto” , esta precisa ser vista.
Por último, aprendemos quão terrível é o destino ao qual a incre­
dulidade conduz. Nosso Senhor declarou aos seus inimigos: “Se não crerdes
que Eu Sou, morrereis nos vossos pecados” .
Essas solenes palavras estão revestidas de peculiar importância, quan­
110 João 8.21-30

do pensamos nAquele que as proferiu. Quem falou sobre os homens


morrerem em seus pecados, sem perdão e despreparados, para encontrarem-
se com Deus? Quem falou sobre os homens partirem ao outro mundo le­
vando consigo toda a culpa de seus pecados? Essas verdades foram ditas
pelo próprio Salvador da humanidade, Aquele que entregou sua vida em
favor das ovelhas, o amável, gracioso, compassivo, misericordioso Amigo
dos pecadores. Foi o Senhor Jesus Cristo! Jamais esqueçamos isto.
Estão profundamente enganados os que julgam ser falta de cortesia e
severidade o falarmos sobre o inferno e a condenação futura. Como reagem
tais pessoas diante da linguagem apresentada nessa passagem? O que dizem
a respeito de expressões como as que nosso Senhor utilizou ao referir-se
ao lugar “onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga” (Mc 9.48).
Não podem responder essas perguntas. Enganados por falsa caridade e
mórbida amabilidade, condenam o evidente ensino das Escrituras e mostram-
se mais sábios do que as verdades afirmadas na Palavra de Deus.
Gravemos em nossas mentes, como uma das verdades fundamentais
de nossa fé, que o inferno é uma realidade. Visto que acreditamos
firmemente na existência do céu como uma morada eterna para os salvos,
também devemos crer, com toda certeza, no inferno como um lugar de
condenação para os ímpios. Nunca imaginemos que demonstramos qualquer
falta de amor quando falamos a respeito do inferno. Pelo contrário,
afirmemos que advertir os homens sobre o perigo e exortá-los a “fugir da
ira vindoura” (Mt 3.7) é uma sublime demonstração de amor. Foi Satanás,
o enganador, mentiroso e assassino, quem disse a Eva, no princípio: “E
certo que não morrereis” (Gn 3.4). Agradamos a Satanás quando evitamos
contar aos homens que, se não crerem, perecerão em seus pecados; se
deixarmos de proclamar esta verdade, estaremos desagradando a Deus.
Finalmente, não esqueçamos: a incredulidade é o pecado que causa a
ruína dos homens. Houvessem os judeus crido em Jesus, todas as suas
blasfêmias e pecados teriam sido perdoados. Porém a incredulidade fecha
a porta à misericórdia e elimina a esperança. Vigiemos e oremos contra a
incredulidade. O pecado de imoralidade tem vitimado os seus milhares,
mas a incredulidade, os seus dez milhares. “Quem crer e for batizado será
salvo; quem, porém, não crer será condenado” (Mc 16.16) foi uma das
mais fortes declarações de nosso Senhor.
João 8.31-36 111

A Importância da Perseverança na Vida Cristã;


A Natureza da Verdadeira Escravidão;
O Caráter da Liberdade Genuína
Leia João 8.31-36

Esses versículos nos mostram, primeiramente, a importância da


perseverança na vida cristã. Naquela época, muitos professaram crer no
Senhor Jesus e expressaram desejo de tomarem-se seus discípulos. Contudo,
nada indica que possuíam a verdadeira fé. Parecem ter agido sob a influência
das emoções do momento, sem ponderarem o que estavam fazendo. O
Senhor pronunciou a instrutiva advertência: “Se vós permanecerdes na
minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos” .
Estas palavras contêm um tesouro de sabedoria. Iniciar no cristianismo
é relativamente fácil. Há diversos motivos que nos impulsionam. O amor
pelas coisas novas, a admiração de crentes bem-intencionados mas pouco
sábios, a satisfação íntima de sentir “quão bom eu sou” , a empolgação
natural de estar em uma nova situação — todas estas coisas se combinam
para auxiliar o principiante. Motivado por elas, ele começa a percorrer a
jornada que conduz ao céu, abandona maus hábitos e adquire novos, possui
novos pensamentos e sentimentos e, por um tempo, prossegue às mil
maravilhas. Mas, quando o frescor desses sentimentos se desvanece e se
perde, quando o mundo e o diabo começam a pressioná-lo, quando as
fraquezas de seu coração aparecem, então percebe as reais dificuldades do
verdadeiro cristianismo. Descobre a profunda sabedoria das palavras de
nosso Senhor. O continuar e não o começar no cristianismo é o teste da
verdadeira graça de Deus.
Devemos lembrar destas coisas ao formarmos nossa estimativa a
respeito do cristianismo de outras pessoas. Sem dúvida, temos de ser gratos
a Deus quando vemos uma pessoa abandonando o mal e aprendendo a
fazer o bem. Não podemos desprezar “o dia dos humildes começos’” (Zc
4.10). Porém, devemos lembrar que começar é uma atitude simples e
continuar é outra bem diferente. Perseverança contínua em fazer o bem é
a única evidência segura de que recebemos a graça. Quem corre de tal
maneira que pode alcançar “o prêmio” (1 Co 9.24) não é o que no início o
faz de maneira rápida e apressada, e sim o que corre com velocidade
constante. Tenhamos esperança quando vemos algo parecido com a
conversão. No entanto, não nos asseguremos de haver ocorrido uma
verdadeira conversão, até que o tempo estampe o seu selo. O tempo e o
uso provam se os metais são frágeis ou resistentes. De modo semelhante,
provam a veracidade da vida espiritual de um homem. Onde há vida
112 João 8.31-36

espiritual, ali também existe contínua perseverança. O verdadeiro discípulo


de Cristo é aquele que continua tão bem quanto começou a sua vida cristã.
Esses versículos também nos mostram a natureza da verdadeira
escravidão. Os judeus amavam vangloriar-se, embora não tivessem
fundamento correto, de que eram politicamente livres e de que não eram
escravos de qualquer poder estrangeiro. Nosso Senhor recordou-lhes que
havia outra escravidão à qual eles não davam a mínima atenção, ainda que
estavam subjugados por ela.
Quão profunda é esta verdade! Quantas pessoas, em todo o mundo,
são escravas do pecado, embora não o admitam! Tomaram-se cativos de
suas habituais fraquezas e corrupções e mostram-se incapazes de serem
libertos. Ambição, amor ao dinheiro, paixão por bebidas, desejo por
prazeres e divertimento, jogos de azar, glutonaria, relações ilícitas — todas
estas coisas dominam os homens. Todas elas possuem multidões de infelizes
prisioneiros, acorrentados pelas mãos e os pés. Os miseráveis prisioneiros
não admitem sua escravidão. Às vezes, orgulham-se de serem emi­
nentemente livres. No entanto, há ocasiões em que o fogo da aflição pe­
netra-lhes a alma e percebem amargamente que, de fato, são escravos.
Não existe escravidão semelhante a esta. O pecado realmente é o ma­
is severo de todos os senhores. Miséria e infelicidade nesta vida; desespero
e inferno no porvir — estes são os únicos salários que o pecado paga aos
seus súditos. Libertar o homem desta escravidão é o grande objetivo do
evangelho. Despertar as pessoas a fim de que percebam sua degradação,
mostrar-lhes as correntes em que estão presas, fazer que acordem e lutem
por serem livres — este é o grande alvo por que Cristo enviou seus ministros.
Feliz é a pessoa que teve seus olhos abertos e descobriu o perigo. Saber
que estamos cativos é o primeiro passo em direção a liberdade.
Por último, esses versículos nos mostram a natureza da verdadeira
liberdade. Nosso Senhor declarou-a ao judeus, utilizando uma sentença
abrangente: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” .
A liberdade, todos sabemos, é reputada como uma das mais sublimes
bênçãos temporais. Ser liberto da dominação estrangeira, Constituição,
comércio e impressa livre, liberdade civil e religiosa — quantos significados
encontram-se nestas expressões! A fim de manter os conceitos representados
por elas, muitas pessoas já sacrificaram suas vidas e bens. Contudo, apesar
de toda a nossa vanglória, os supostos homens livres não passam de escravos.
Existem muitos que ignoram completamente a mais sublime e pura forma
de liberdade. Essa liberdade é uma propriedade do verdadeiro cristão. As
pessoas perfeitamente livres são apenas aquelas que o “Filho” liberta. Todas
as demais, cedo ou tarde, descobrirão que são escravas.
Em que consiste a liberdade dos verdadeiros cristãos? Eles se tornam
livres da culpa e das conseqüências do pecado, por intermédio do sangue
João 8.31-36 113

de Cristo. Sendo justificados, perdoados e purificados, podem olhar com


ousadia para o Dia do Julgamento e afirmar: “Quem intentará acusação
contra nós? Quem nos condenará?” Pelo Espírito de Cristo, eles são libertos
do poder do pecado, que não tem mais domínio sobre eles. Visto que
foram regenerados, convertidos e santificados, eles mortificam e vencem
o pecado, não sendo mais levados cativos por ele. Esta liberdade pertence
a todos os verdadeiros cristãos desde o momento em que vieram a Cristo e
entregaram-Lhe suas almas. Naquela ocasião, tomaram-se livres e possuem
esta liberdade para sempre. A morte não os destruirá. Mesmo o sepulcro
não poderá reter seus corpos por muito tempo. Aqueles que Cristo libertou
estão libertos para toda a eternidade.
Jamais descansemos até que, por experiência própria, tenhamos esta
liberdade. Sem ela, qualquer outra liberdade é apenas um privilégio inútil.
Liberdade política, comercial, nacional — todas elas não podem confortar
alguém em seus últimos dias, ou mesmo anular o aguilhão da morte, ou
conceder paz à nossa consciência. Somente a liberdade que Cristo outorga
pode fazer isto. Ele a oferece gratuitamente a todos aqueles que a buscarem
com humildade. Por conseguinte, não descansemos até que ela nos pertença.

A Ignorante Justiça Própria do Homem Natural;


As Verdadeiras Evidências
da Adoração Espiritual;
A Realidade e o Caráter de Satanás
Leia João 8.37-47

As verdades ensinadas nessa passagem são peculiares a todas as


épocas. A igreja e os crentes se beneficiarão em meditar cuidadosamente
nestes assuntos.
Em primeiro lugar, somos instruídos sobre a ignorante justiça própria
do homem natural. Vemos os judeus vangloriando-se de sua descendência
natural de Abraão, como se isto cobrisse toda a imperfeição deles: “Nosso
pai é Abraão” . E, além disso, reivindicaram ser os favoritos de Deus,
pertencentes à sua família: “Temos um pai, que é Deus” . Eles esqueceram
que o relacionamento carnal com Abraão era inútil, a menos que des­
frutassem da graça que o salvou. Esqueceram que o fato de haver Deus
escolhido Abraão para ser o cabeça de uma nação favorecida jamais tinha
o propósito de trazer salvação aos descendentes, a menos que andassem
nos mesmos passos de seu progenitor. Por causa de seu iludido conceito a
114 João 8.37-47

respeito de si mesmos, os judeus recusaram-se a perceber tudo isso. “Somos


judeus, somos filhos de Deus” era o argumento deles!
Por mais estranho que pareça, há milhares de pessoas que se declaram
cristãos e agem exatamente como aqueles judeus. A religião delas consiste
apenas em alguns conceitos não melhores e mais sábios do que estes
propostos pelos inimigos de nosso Senhor. Confessam que vão regularmente
à igreja, já foram batizados e participam da Ceia do Senhor; todavia, não
podem dizer-nos nada mais além disso. Ignoram todas as doutrinas essenciais
do evangelho. Não conhecem coisa alguma acerca da graça divina, do
arrependimento, da santidade e de um espírito de humildade. Porém são
pessoas que freqüentam a igreja e esperam ir ao céu! Existem milhares
nesta condição. Parece triste, mas infelizmente é verdade.
Gravemos em nossas mentes o fato de que o participar de uma boa
igreja e o ser nascido em uma família de crentes não constitui uma prova
de que nós mesmos estamos no caminho da salvação. Precisamos mais do
que isso; é necessário que sejamos unidos ao próprio Cristo por meio de
uma fé viva. Temos de conhecer pessoalmente a obra do Espírito em nossos
corações. “Os princípios da igreja” e “ser bom membro de igreja” parecem
rótulos excelentes; todavia, não livrarão nossas almas da ira vindoura,
tampouco nos darão ousadia no Dia do Juízo.
Em segundo, somos instruídos sobre as verdadeiras marcas da filiação
espiritual. Nosso Senhor tomou isso evidente através de duas poderosas
afirmativas. Quando os judeus disseram; “Nosso pai é Abraão” , Jesus
respondeu: “Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão”. Quando
os judeus afirmaram: “Temos um pai, que é Deus”, Jesus replicou-lhes:
“Se Deus fosse, de fato, vosso pai, certamente, me havíeis de am ar” .
Permitamos que estas palavra de nosso Senhor aprofundem-se em
nossos corações. Elas respondem a dois dos mais enganosos e comuns
erros da atualidade. Existe outro assunto mais comum do que o ensino
sobre a paternidade universal de Deus? “Todos os homens”, nos dizem,
“são filhos de Deus, não importando sua crença ou sua religião; por fim,
todos obterão um lugar na casa do Pai, onde há muitas moradas” . Existe
também outro assunto mais comum do que o ensino sobre a eficiência do
batismo e do ser membro de igreja? “Através do batismo” , alguns afirmam
com segurança, “todas as pessoas tornam-se filhos de Deus; todos os mem­
bros de igreja, sem distinção, têm o direito de ser chamados filhos e filhas
do Senhor todo-poderoso” .
Afirmações como estas jamais podem ser harmonizadas com o evidente
ensino de nosso Senhor, na passagem que estamos considerando. Se as
palavras expressam algum significado, nenhum homem que não ama a
Jesus é realmente um filho de Deus. As amáveis palavras proferidas no
culto de batismo ou a esperançosa afirmativa de uma declaração doutrinária
João 8.37-47 115

podem dizer-lhe que pertence à família de Deus. No entanto, a realidade


da filiação a esta família e todas as bênçãos que a acompanham são possuídas
somente por aquele que com sinceridade ama a Jesus (Ef 6.24). Em assuntos
semelhantes a este, não devemos nos deixar abalar por meras alegações.
Temos condições de rejeitar a acusação de menosprezar a importância das
ordenanças. Precisamos apenas indagar: “O que está escrito na Bíblia? O
que disse o Senhor?” E, com estas palavras de Jesus em mente, podemos
somente concluir: “Se alguém não ama a Cristo, também não pertence à
família de Deus” .
Por último, esses versículos nos instruem sobre a realidade e o caráter
de Satanás. Nosso Senhor falou a respeito dele como alguém cuja existência
e personalidade são inquestionáveis. Em palavras solenes de severa
repreensão, Ele declarou aos seus inimigos incrédulos: “Vós sois do diabo,
que é vosso pai” , sendo guiados por ele e infelizmente mostrando que sois
semelhantes a ele. Em seguida, o Senhor Jesus retratou o diabo em cores
drásticas, descrevendo-o como “homicida desde o princípio” , “mentiroso
e pai da mentira” .
O diabo é uma realidade! Temos um inimigo invisível sempre ao
nosso redor, alguém que jamais cochila ou dorme, que segue nossos passos
e está próximo às nossas camas, espionando nossos caminhos até à morte.
Ele é um homicida! Seu grande objetivo é arruinar-nos para sempre e
destruir nossas almas. Destruir, roubar-nos a vida eterna e levar-nos à
segunda m orte no inferno são coisas em favor das quais ele está
constantemente trabalhando. Ele está sempre procurando alguém para
devorar. Satanás é mentiroso! Está continuamente procurando enganar-
nos por meio de falsos conceitos, assim como iludiu Eva, no princípio.
Está sempre ensinando que o bom é mau e o mau, bom; a verdade é
mentira e esta, a verdade; o caminho largo é excelente e o estreito, ruim.
Milhares são levados cativos pelos enganos de Satanás e o seguem, tanto
ricos quanto pobres, cultos e iletrados. Mentiras são as suas armas prediletas;
através delas, ele destrói muitos.
Esses fatos são terríveis, mas verdadeiros. Vivamos como pessoas
que acreditam neles. Não sejamos semelhantes àqueles que escarnecem e
zombam da existência do próprio ser que invisivelmente os leva ao in­
ferno. Creiamos que Satanás é uma realidade e lutemos contra as suas
tentações. Ainda que ele é poderoso, há outro maior do que ele, Aquele
que disse a Pedro: “Eu... roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça”
(Lc 22.32). Diante da existência de um ser como o diabo, que vive à solta
pelo mundo, jamais devemos nos admirar de ver o mal ser tão abundante
entre nós. Mas, tendo Cristo ao nosso lado, não precisamos temer. Maior
é Aquele que está conosco do que aquele que está contra nós. A Palavra de
Deus afirma: “Sujeitai-vos, portanto, a Deus; mas resisti ao diabo, e ele
116 João 8.37-47

fiigirá de vós” (Tg 4.7); “E o Deus da paz, em breve, esmagará debaixo


dos vossos pés a Satanás” (Rm 16.20).

Linguagem Blasfema Contra Nosso Senhor;


Encorajamento aos Crentes;
Abraão Conhecia a Cristo;
A Pré-existência de Cristo
Leia João 8.48-59

Devemos observar inicialmente, nessa passagem, a linguagem


blasfema e depreciativa que os inimigos de nosso Senhor utilizaram contra
Ele. Somos informados que os judeus falaram ao Senhor Jesus: “Porventura,
não temos razão em dizer que és samaritano e tens demônio?” Silenciados
em seus argumentos, estes ímpios recorreram à ofensa pessoal. Perder o
controle e utilizar palavras depreciativas são evidências de causa perdida.
Apelidos, insultos e linguagem violenta são armas favoritas de Satanás.
Quando falham os outros recursos para levar avante seus planos, ele estimula
seus súditos a vituperar com a língua. Severas, de fato, são as ofensas que
os santos de Deus têm suportado em todas as épocas. O caráter deles tem
sido injuriado; calúnias foram transmitidas a seu respeito; histórias men­
tirosas acerca de sua conduta, diligentemente inventadas e aceitas com
avidez. Não devemos nos admirar das palavras de Davi: “ S e n h o r , livra-
me dos lábios mentirosos, da língua enganadora” (SI 120.2).
O verdadeiro cristão, em nossos dias, não deve surpreender-se, ao
perceber que há muitas provações para ele suportar, neste mundo. A natureza
humana nunca se altera. Se o crente serve o mundo e anda de acordo com
o caminho largo, pouco será dito contra ele. No entanto, uma vez que o
verdadeiro cristão toma a sua cruz e segue a Cristo, mentiras e histórias
absurdas serão contadas contra ele, a fim de que os outros acreditem.
Porém ele deve consolar-se em pensar que está apenas bebendo o cálice
que seu próprio Senhor bebeu. Não importa o que as mentiras de seus
inimigos lhe causem na terra, elas não lhe causam qualquer injúria nos
céus. Devem suportá-las com paciência, não se irritando ou perdendo o
controle de seus sentimentos. Quando Cristo era ultrajado, “não revidava
com ultraje” (1 Pe 2.23).
Em segundo, devemos observar que glorioso encorajamento nosso
Senhor ministrou àqueles que crêem nEle. Ele disse: “Em verdade, em
verdade vos digo: se alguém guardar a minha palavra, não verá a morte,
eternamente” .
João 8.48-59 117

Estas palavras não significam que os verdadeiros cristãos nunca


morrerão. Pelo contrário, sabemos que eles terão de passar pelo sepulcro
e atravessar o rio da morte, assim como todos os demais. Porém estas
palavras significam que eles não experimentarão o sofrimento da segunda
morte, a ruína final dos ímpios no inferno, do que a primeira morte é
apenas uma figura (Ap 21.8). Também significam que o aguilhão da morte
física será removido do verdadeiro cristão. Sua carne definha e seus ossos
são afligidos por intensas dores; todavia, o amargo senso de pecados não-
perdoados não o atormentará. Este é o pior aspecto da morte, e nisto eles
obterão a “vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Co
15.57).
Esta bendita promessa, temos de observar, é uma propriedade pecu­
liar do homem que “guarda a palavra” de Cristo, uma expressão que não
deve ser aplicada àqueles que apenas declaram ser cristãos mas não
conhecem ou se preocupam com o evangelho. Esta promessa pertence
somente àquele que recebe em seu coração e pratica em seu viver os ensinos
que o Senhor Jesus trouxe dos céus. Em palavras simples, pertence àqueles
que são crentes, não apenas de nome e na aparência, mas em atos e em
verdade. Está escrito: “O vencedor de nenhum modo sofrerá dano da
segunda morte” (Ap 2.11).
Em terceiro, observamos que nítido conhecimento Abraão possuía a
respeito de Cristo. Jesus declarou aos judeus: “Abraão, vosso pai, alegrou-
se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se” (Jo 8.56). Quando o Senhor
pronunciou estas notáveis palavras, Abraão já estava morto havia pelo
menos 1850 anos! Contudo, Jesus afirmou que Abraão tinha visto o seu
dia! Quão maravilhosas e muitíssimo verdadeiras são estas palavras! Abraão
não apenas “viu” o Senhor e conversou com Ele, quando lhe apareceu nos
carvalhais de Manre, naquela noite que antecedeu a destruição de Sodoma
e Gomorra, mas também, pela fé, Abraão contemplou o dia da encarnação
do Senhor, que estava por vir, e, quando o contemplou, “regozijou-se” .
Sem dúvida, Abraão viu estas coisas como que através de um espelho
obscuro. Não precisamos imaginar que ele era capaz de explicar todas as
circunstâncias e a maneira como nosso Senhor morreria no Calvário. Mas
não evitemos acreditar que Abraão viu, à distância, um Redentor cuja
vinda faria toda a terra se alegrar. E, ao vê-Lo, Abraão “regozijou-se” .
A verdade evidente é que somos mui propensos a esquecer que jamais
houve outro caminho de salvação, outro Salvador e esperança para os
pecadores. Abraão e todos os santos do Antigo Testamento olharam para o
mesmo Cristo que nós contemplamos. É bom citarmos o sétimo artigo da
Igreja Anglicana: “O Antigo Testamento não contradiz o Novo, pois em
ambos a vida eterna é oferecida através de Cristo, que é o único Mediador
entre Deus e os homens, sendo Ele mesmo Deus e homem. Portanto, não
118 João 8.48-59

devemos dar crédito àqueles que im aginam os antigos pais terem


contemplado apenas promessas transitórias” . Esta é uma verdade que nunca
podemos esquecer, quando lemos o Antigo Testamento. Isto é sã doutrina
e não pode ser contestado.
Por último, nesta profecia observamos que o Senhor Jesus declarou
sua pré-existência com bastante clareza. Ele disse aos judeus: “Antes que
Abraão existisse, Eu Sou” .
Sem dúvida, estas notáveis palavras revelam uma profunda verdade.
Afirmam coisas que os olhos não viram nem a inteligência pode conceber.
Mas, se as palavras realmente têm significado, esta afirmativa do Senhor
Jesus nos ensina que Ele existia antes mesmo de vir ao mundo, existia
antes de criar o mundo ou de Abraão nascer. Em outras palavras, esta
afirmativa nos ensina que o Senhor Jesus não era apenas um simples homem,
tal como Moisés ou Davi. Era Alguém que subsistia desde à eternidade, o
mesmo ontem, hoje e para sempre, o verdadeiro e eterno Deus.
Estas palavras são profundas e produzem conforto em nosso viver
diário. Revelam-nos a profundidade, a largura, a altura e a amplitude
dAquela grande rocha sobre a qual os pecadores são convidados a
descansarem suas almas. Aquele a quem o evangelho nos ordena vir com
nossos pecados e crer, a fim de recebermos perdão e paz, não é um simples
homem. Ele é o próprio Deus e, “por isso, também pode salvar totalmente
os que por ele se chegam a Deus” (Hb 7.25). Então, venhamos com
confiança e continuemos a descansar nEle, sem temor. O Senhor Jesus é o
verdadeiro Deus; nossa vida eterna está assegurada.

Pecado — A Causa de Tristeza Neste Mundo;


A Importância de Aproveitar as Oportunidades;
Diferentes Recursos Utilizados por Cristo ao
Realizar Milagres;
O Supremo Poder de Cristo
Leia João 9.1-12

Esse capítulo do Evangelho de João relata um dos grandes milagres


de Cristo. Mostra-nos como Jesus restaurou a vista de um homem que era
“cego de nascença” . Nesse relato, assim como em outros do evangelho, as
circunstâncias a respeito do milagre são completa e minuciosamente
descritas. À semelhança de muitas outras, essa narrativa está repleta de
lições espirituais.
João 9.1-12 119

Primeiramente, devemos notar que o pecado trouxe bastante tristeza


a este mundo. João nos apresenta o triste caso de um homem “cego de
nascença” . Dificilmente podemos imaginar uma doença mais grave do que
esta. De todas as cruzes que o homem carrega, exceto a morte, nenhuma é
maior do que a perda da visão. A cegueira impede-nos de desfrutar as
coisas boas da vida; restringe nossa vida e nos toma lamentavelmente
desamparados e dependentes dos outros. De fato, os homens só compre­
endem totalmente o valor de sua vista quando a perdem.
A cegueira, assim como outras enfermidades, é um dos frutos do
pecado. Se Adão não houvesse pecado, os homens jamais se tomariam
cegos, mudos ou surdos. As muitas doenças que nos alcançam, as in­
contáveis dores, enfermidades e defeitos físicos a que estamos sujeitos sur­
giram juntamente com a maldição que veio sobre a terra. “Assim como
por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte,
assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”
(Rm 5.12).
Aprendamos a odiar o pecado, demonstrando-lhe ódio santo, con­
siderando-o a raiz da maior parte de nossas inquietações e tristezas. Lutemos
contra o pecado, esforcemo-nos para mortificá-lo, crucificá-lo e odiá-lo,
tanto em nós mesmos quanto nos outros. O fato de que a raça humana ama
o pecado e nele se deleita é a prova mais evidente de que os homens são
criaturas caídas.
Em segundo, devemos notar a solene lição que Cristo ministrou a
respeito de aproveitar as oportunidades. Ele respondeu aos discípulos que
Lhe perguntaram sobre o homem cego: “É necessário que façamos as
obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém
pode trabalhar” .
Esta declaração era completamente verdadeira, quando aplicada ao
próprio Senhor Jesus. Ele estava ciente de que todo o seu ministério terreno
acabaria ao final de três anos; por isso, diligentemente remiu o tempo.
Não deixou escapar oportunidades de realizar obras de misericórdia e atender
aos negócios do Pai. Pela manhã, à tarde e à noite, Ele estava sempre
fazendo a obra que o Pai Lhe confiara. Sua comida e bebida consistia em
realizar a vontade do Pai e concluir sua obra. A vida de Cristo transpirava
um sentimento: “Preciso trabalhar; a noite vem, quando ninguém pode
trabalhar” .
Esta afirmativa deve ser relembrada por todos os que se declaram
cristãos. A vida que agora desfrutamos na carne é o nosso dia de opor­
tunidade. Tenhamos cuidado em usá-lo a fim de glorificar a Deus e praticar
o bem em favor de nossas almas. Desenvolvamos nossa salvação, com
temor e tremor, enquanto é dia. Não há qualquer obra no sepulcro para
onde todos nós apressadamente estamos indo. Oremos, leiamos a Bíblia e
120 João 9.1-12

honremos o Dia do Senhor, ouvindo a Palavra de Deus e fazendo o bem


em nossa geração, como homens que jamais esquecem: “A noite vem” .
Nosso tempo é curto. A luz do dia logo acabará. Oportunidades perdidas
jamais poderão ser recuperadas. Nenhum homem terá de volta um segundo
de tempo perdido. Então, resistamos à procrastinação, assim como
resistimos ao diabo. Sempre que estiver ao nosso alcance realizar algo,
devemos fazê-lo com todas as nossas forças. “A noite vem, quando ninguém
pode trabalhar.”
Em terceiro, devemos notar os diferentes recursos utilizados por Cristo
ao realizar milagres. Ao curar este homem, ele poderia, se achasse
conveniente, apenas tê-lo tocado com seu dedo ou proferido uma ordem
com seus lábios. Mas Ele não se contentou em fazer isso. Somos informados
que Ele “cuspiu na terra e, tendo feito lodo com a saliva, aplicou-o aos
olhos do cego” . Em todos esses recursos não havia qualquer virtude inerente.
Mas, por razões sábias, o Senhor agradou-se em utilizá-los.
Não precisamos duvidar que nesta, assim como em outras atitudes de
nosso Senhor, há uma lição instrutiva. Este milagre nos ensina que o Senhor
dos céus e da terra não está limitado a utilizar sempre os mesmos recursos
ou instrumentos. Quando outorga suas bênçãos aos homens, Ele age como
quer e não permite que alguém lhe prescreva como fazê-lo. Acima de
tudo, esse milagre ensina àqueles que recebem algo de Cristo a serem
cuidadosos ao avaliar o que acontece a outros, quando se fundamentam em
sua própria experiência. Foram curados por Cristo, recebendo visão e vida
nova? Agradeçamos a Deus por isso e sejamos humildes. Mas tenhamos
cuidado em afirmar que somente foram trazidos à vida espiritual aqueles
que tiveram exatamente as experiências pelas quais passamos. A grande
questão é: os olhos de nosso entendimento foram abertos? Nós vemos?
Temos vida espiritual? Para nós é suficiente ter a cura realizada e a saúde
restaurada. Se isto acontecer, deixemos que o grande Médico escolha os
instrumentos e recursos — o lodo, o toque e a ordem.
Por último, devemos notar o imenso poder de Cristo. Nós O vemos
a realizar algo que, em si mesmo, era impossível. Sem remédios, Ele
sarou uma enfermidade incurável e deu vista a um homem cego de nascença.
Este milagre destinava-se a ensinar a antiga verdade que jamais
chegaremos a entender completamente — Jesus, o Salvador dos pecadores,
possui todo poder nos céus e na terra. Tais obras poderosas nunca teriam
sido realizadas por alguém que era apenas um homem. Na cura deste cego
vemos a mão do próprio Deus.
Acima de tudo, este milagre tem o propósito de nos deixar espe­
rançosos quanto às nossas próprias almas e às de outros. Por que desespe­
rar da salvação de alguém, quando possuímos um Salvador tão poderoso?
Que enfermidade espiritual Ele não pode curar? O Senhor Jesus é capaz de
João 9.1-12 121

abrir os olhos dos homens mais pecadores e ignorantes, fazendo-os ver


coisas que jamais viram. Ele pode trazer luz aos mais entenebrecidos
corações, removendo a cegueira e o preconceito.
Com certeza, se não formos salvos, a culpa será de nós mesmos. À
direita de Deus está Aquele que pode nos curar, se recorrermos a Ele.
Estejamos atentos para que estas solenes palavras não sejam verdadeiras a
nosso respeito: “O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens
amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram m ás”;
“Contudo, não quereis vir a mim para terdes vida” (Jo 3.19; 5.40).

A Ignorância dos Judeus


Quanto ao uso Correto do Sábado;
Os Terríveis Extremos que o Preconceito
Causa nos Homens;
Vendo e Percebendo uma Evidência Irresistível
Leia João 9.13-25

Esses versículos nos mostram quão pouco os judeus da época de


Jesus entendiam sobre o correto uso do dia de descanso. Lemos que alguns
dos fariseus acharam falta em Jesus, porque um cego foi miraculosamente
curado no sábado. Eles disseram: “Esse homem não é de Deus, porque
não guarda o sábado” . Uma boa obra havia sido evidentemente realizada
em favor de uma criatura desamparada. Uma grave enfermidade fora curada
e um poderoso ato de misericórdia, realizado. Os inimigos de Cristo, que
possuíam corações cegos, não podiam contemplar qualquer beleza nesse
ato e chamaram-no de transgressão do quarto mandamento!
Aqueles homens, que se julgavam sábios, entenderam de maneira
completamente errada o intuito do dia de descanso. Não compreenderam
que o sábado foi criado por causa do homem, tendo em vista o bem de seu
corpo, mente e alma. Sem dúvida, era um dia separado dos outros, para
ser santificado e mantido como santo. Mas a santificação do sábado não
impedia a realização de obras de necessidade e atos de misericórdia. Curar
um homem cego não constituía uma quebra do quarto mandamento. Ao
atribuírem falta ao nosso Senhor, por ter curado o homem, os judeus apenas
revelaram sua ignorância no que concerne à sua própria lei. Esqueceram
que acrescentar algo a um mandamento é um pecado tão grande quanto o
desobedecê-lo.
Nessa passagem, assim como em outras, precisamos ter cuidado para
122 João 9.13-25

não atribuir um significado errado à conduta de nosso Senhor. Em momen­


to algum, devemos imaginar que o dia de descanso não é mais um dever
para o crente e que eles não precisam mais observar o quarto mandamento.
Este é um terrível engano e raiz de grandes males. Nenhum dos dez
mandamentos foram ab-rogados e cancelados. Nosso Senhor jamais teve a
intenção de que o domingo se tomasse um dia de prazer, negócios, viagens
e dissipações fúteis. Ele pretendia que o dia de descanso fosse conservado
“santo” , enquanto durar o mundo. Uma coisa é utilizar o dia de descanso
em obras de misericórdia, em serviço aos enfermos, em fazer o bem aos
atribulados. Outra coisa totalmente diferente é utilizá-lo em diversões, festas
e satisfação pessoal. Não importa o que os homens digam; a verdade é que
a maneira como utilizamos o dia de descanso é a mais segura confirmação
do estado de nossa vida espiritual. Por meio desse dia, podemos descobrir
se amamos a comunhão com Deus e estamos em harmonia com os céus.
Em resumo, por meio do dia de descanso os segredos de muitos corações
são revelados. Há muitos a respeito dos quais podemos dizer: estes não
pertencem a Deus, pois não observam o dia do Senhor.
Esses versículos também nos mostram os terríveis extremos aos quais
o preconceito leva o homem ímpio. O texto nos conta que os “judeus...
haviam assentado que, se alguém confessasse ser Jesus o Cristo, fosse
expulso da sinagoga” . Eles estavam decididos a não crer em Jesus; haviam
determinado que nenhuma evidência mudaria sua mente e prova alguma
influenciaria sua vontade. Eram semelhantes a homens que fecham seus
olhos, colocam sobre eles uma venda e recusam-se a tirá-la. Assim como
em ocasiões posteriores, eles fecharam seus ouvidos para não escutarem a
pregação de Estevão e recusaram-se a ouvir o apóstolo Paulo, quando este
apresentava sua defesa, assim também eles se comportaram nesta ocasião
do ministério do Senhor Jesus.
Dentre todos os estados mentais em que o homem incrédulo pode ser
envolvido, este é o mais perigoso à alma. Enquanto a pessoa se mostra
franca, sincera e honesta, há esperança para ela, ainda que tenha pouquíssimo
conhecimento das coisas espirituais. Talvez ela esteja nas trevas agora.
Mas quem sabe está disposta a seguir a luz, se esta lhe for apresentada? É
possível que com toda as suas forças esteja andando no caminho largo.
Porém, está disposta a ouvir aqueles que podem lhe mostrar um caminho
mais excelente? Em resumo, ela é uma pessoa ensinável, que possui o
caráter de uma criança e não está agrilhoada ao preconceito? Se estas
perguntas podem ser respondidas satisfatoriamente, não precisamos ficar
desesperados quanto a alma desta pessoa.
O estado mental que devemos sempre desejar é aquele que possuíam
os nobres bereanos. Eles demonstraram bastante atenção, quando ouviram
a pregação do apóstolo Paulo. “Receberam a palavra com toda a avidez,
João 9.13-25 123

examinando as Escrituras” e comparando se o que tinham ouvido har­


monizava-se com a Palavra de Deus. E, somos informados, “com isso,
muitos deles creram” (At 17.11-12).
Por último, esses versículos nos mostram que nada é tão convincente
ao homem quanto suas próprias afeições e pensamentos. O apóstolo João
nos revela que os judeus incrédulos tentaram em vão persuadir o cego,
curado por Jesus, de que nada havia sido realizado em favor dele.
Conseguiram apenas a resposta: “Uma coisa sei: eu era cego e agora vejo” .
Ele não procurou explicar como o milagre aconteceu. Se o homem que
fizera o milagre era pecador, isto ele não sabia. Mas resolutamente afirmou
que algo havia sido realizado em seu favor. Não podia ser considerado
louco; apesar do que os judeus poderiam imaginar, ele estava certo de que
dois fatos ocorreram: “Eu era cego e agora vejo” .
Para um verdadeiro cristão não existe um tipo de evidência mais
satisfatória do que esta. Sua fé talvez seja fraca e seu entendimento
doutrinário, ainda indistinto e obscuro; mas, se Cristo realmente fez uma
obra de graça em seu coração, em seu íntimo ele sente algo que não pode
ser destruído — “Eu estava nas trevas, agora tenho luz. Receava aproximar-
me de Deus, agora eu O amo. Gostava muito do pecado, agora o odeio. Eu
era cego, agora vejo” . Jamais estejamos tranqüilos enquanto não sentirmos
em nosso íntimo a obra do Espírito Santo. Não estejamos apenas com o
nome e a aparência do cristianismo. Almejemos possuir uma familiaridade
experimental com Ele. Os sentimentos, com certeza, são enganosos e de
pouco valor na vida espiritual. Mas, se não temos sentimentos íntimos a
respeito dos assuntos espirituais, isto é um péssimo sinal. O homem faminto
alimenta-se e sente-se fortalecido; o sedento bebe e sente-se reanimado.
Com certeza, o homem que em seu coração tem a graça de Deus será
capaz de afirmar: “Eu sinto o seu poder” .

Homens Pobres às Vezes são Mais Sábios


do que os Ricos;
A Perversidade dos Incrédulos;
O Perigo do Conhecimento Mal Utilizado
Leia João 9.26-41

Vemos nesses versículos que homens pobres às vezes são mais sábios
do que os ricos. O homem curado por nosso Senhor evidentemente era
uma pessoa de condição humilde, O apóstolo afirmou que ele “estava
124 João 9.26-41

assentado pedindo esmolas” (v. 8). Entretanto, percebeu coisas que os


orgulhosos líderes religiosos não puderam compreender ou aceitar. Ele
viu no milagre de nosso Senhor uma irrefutável prova de sua comissão
divina, pois declarou: “Se este homem não fosse de Deus, nada poderia ter
feito” . De fato, desde o dia em que Jesus realizou a cura, a posição desse
homem foi alterada. Ele podia ver, enquanto os fariseus permaneciam
cegos.
O mesmo pode ser encontrado em outros lugares da Escritura. Os
servos de Faraó reconheceram o “dedo de Deus” nas pragas do Egito,
quando o coração de seu monarca ficou endurecido. Os servos de Naamã
perceberam a sabedoria do conselho de Elias, enquanto seu senhor estava
retornando para casa irado. As pessoas de posição elevada, os grandes e os
nobres freqüentemente são os últimos a aprender lições espirituais. Suas
riquezas e posição quase sempre cegam os olhos de seu entendimento e os
mantêm longe do reino de Deus. Está escrito que “não foram chamados
muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de
nobre nascimento” (1 Co 1.26).
O cristão pobre jamais deve sentir-se envergonhado de sua pobreza.
Ser orgulhoso, incrédulo e voltado às coisas do mundo é um pecado, mas
não o ser pobre. As próprias riquezas que muitos desejam possuir são
vendas que tapam os olhos das almas dos homens e os impedem de ver
Cristo. O ensino ministrado pelo Espírito Santo é mais encontrado entre os
simples e menos entre os ricos e cultos. As palavras de nosso Senhor são
freqüentemente confirmadas como verdadeiras: “Quão dificilmente entrarão
no reino de Deus os que têm riquezas!” (Mc 10.23); “Ocultaste estas
coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11.25).
Em segundo, vemos nesses versículos a crueldade e a injustiça com
as quais os homens incrédulos às vezes tratam aqueles que não admitem
suas opiniões. Quando os fariseus não puderam atemorizar o cego que
fora curado, expulsaram -no da com unhão judaica. Visto que ele
ousadamente recusou-se a negar a evidência de seus próprios sentimentos,
os fariseus excluíram-no de sua comunhão religiosa e o sujeitaram à
vergonha pública. Eles o expulsaram como um gentio e publicano.
A injúria temporal que esse tratamento causou àquele homem foi
realmente grande. Ele ficou privado dos privilégios visíveis da religião
judaica, tornou-se objeto de escárnio e suspeita entre todos os verdadeiros
israelitas. No entanto, essa injúria não poderia lhe causar danos à alma.
Aquilo que os ímpios ligam na terra não é ligado no céu. “A maldição sem
causa não se cumpre” (Pv 26.2).
Os filhos de Deus, em cada época, têm constantemente enfrentado
esse tipo de atitude. Excomunhão, perseguição, aprisionamento têm sido
as armas favoritas dos tiranos eclesiásticos. Sendo incapazes, assim como
João 9.26-41 125

os fariseus, de responder os argumentos, eles têm recorrido à violência e à


injustiça. Os filhos de Deus devem consolar-se com o pensamento de que
existe uma verdadeira igreja da qual nenhum homem poderá expulsá-los e
uma membresia eclesiástica da qual nenhum poder terreno seria capaz de
excluí-los. Abençoado é somente aquele que Cristo abençoa e amaldiçoado,
apenas aquele sobre quem Cristo pronunciará maldição, no último dia.
Em terceiro, vemos nesses versículos a grande bondade e con­
descendência do Senhor. Logo que este homem foi expulso da comunhão
religiosa dos judeus, Jesus o encontrou e transmitiu-lhe palavras de conforto.
Ele sabia o quanto a excomunhão do judaísmo causava tristeza a um israelita
e logo consolou aquele homem com palavras amáveis. Ele se revelou mais
plenamente a este homem do que o fizera à mulher samaritana. Quando o
homem perguntou a Jesus quem era o Filho de Deus, Ele prontamente lhe
respondeu: “Já o tens visto, e é o que fala contigo” .
Temos aqui uma das muitas ilustrações da mentalidade do Senhor
Jesus. Ele vê as aflições pelas quais os seus filhos passam por sua causa e
se compadece de todos, desde o mais simples ao mais elevado. Jesus está
ciente de todas as perdas, sofrimentos e perseguições de seu povo. “Não
estão elas inscritas no teu livro?” (SI 56.8). Ele sabe como alcançar o
coração de seus discípulos com palavras de consolo, no tempo de ne­
cessidade, e transmitir-lhes paz quando todos os homens parecem odiá-los.
Quando os homens nos abandonam, Cristo se aproxima de nós, dizendo:
“Não temas, porque eu sou contigo; não te assombres, porque eu sou o teu
Deus; eu te fortaleço, e te ajudo, e te sustento com minha destra fiel” (Is
41.10).
Por último, vemos nesses versículos quão perigoso é ter conhecimento
e não utilizá-lo corretamente. Os líderes religiosos dos judeus estavam
persuadidos de que sabiam todas as verdades religiosas. Ficaram indignados
ante à idéia de que eram ignorantes e destituídos de percepção espiritual.
“Também nós somos cegos?”, eles indagaram. Então, veio a poderosa
resposta: “Se fôsseis cegos, não teríeis pecado algum; mas, porque agora
dizeis: Nós vemos, subsiste o vosso pecado” .
Conhecimento sem dúvida é uma grande bênção. O homem que não
pode ler, vivendo em completa ignorância das Escrituras, encontra-se numa
situação deplorável. Está à mercê dos falsos ensinadores, que o assediam;
talvez aprenda crenças absurdas e siga práticas corruptas. Qualquer educação
é melhor do que nenhuma.
Mas, quando o conhecimento serve apenas para confundir a mente
do homem e não influencia sua vida e coração, toma-se um bem perigoso.
E, quando aquele que o possui mostra-se exaltado e satisfeito consigo
mesmo, imaginando que sabe tudo, o resultado será um dos piores estados
de espírito que uma pessoa pode cair. Há mais esperança para aquele que
126 João 9.26-41

diz: “Sou um pobre pecador, desejo que Deus me ensine” , do que para a
pessoa que está sempre declarando: “Eu sei, eu sei, não sou ignorante”,
mas continua apegado aos seus pecados. O pecado de tal homem “subsiste” .
Utilizemos diligentemente o conhecimento espiritual que possuímos
e supliquemos sempre que Deus nos conceda mais. Nunca esqueçamos
que o próprio diabo é uma criatura que tem amplo conhecimento; no entanto,
tal conhecimento para nada serve, pois não é utilizado corretamente. A
nossa constante súplica deve ser a mesma que Davi, com freqüência,
pronunciava: “Ensina-me, S e n h o r , o teu caminho, e andarei na tua verdade;
dispõe-me o coração para só temer o teu nome” (SI 86.11).

Ilustração de um Falso Ensinador;


Retrato de um Verdadeiro Cristão;
Uma Instrutiva Figura de Cristo
L eia João 10.1-9

O capítulo que agora consideramos está intimamente relacionado ao


anterior. A parábola foi proferida com uma referência direta aos falsos
ensinadores da religião judaica. Os escribas e os fariseus eram as pessoas
que o Senhor tinha em vista quando descreveu o falso pastor. Os próprios
homens que haviam dito: “Nós vemos” foram denunciados, com santa
ousadia, como “ladrões e salteadores” .
Em primeiro lugar, temos nesses versículos um retrato nítido de um
falso ensinador das coisas espirituais. Nosso Senhor disse que o falso
ensinador é aquele que “não entra pela porta no aprisco das ovelhas, mas
sobe por outra parte” .
O verdadeiro sentido do vocábulo “porta” tem de ser encontrado na
interpretação dada por nosso Senhor. Ele mesmo é a “porta” . O verdadeiro
pastor das almas é aquele que entra no ministério olhando para Cristo,
desejando glorificá-Lo, fazendo tudo no poder que Ele outorga, pregando
sua doutrina, andando em seus passos e se esforçando para trazer homens
e mulheres a Cristo.
O falso pastor de almas é alguém que entra no ministério com pouco
ou nenhum pensamento a respeito de Cristo, motivado por interesses
mundanos e pela auto-exaltação, mas não pelo desejo de exaltar a Jesus e
sua grandiosa salvação. Cristo é o grande fundamento do ministro do
evangelho. O homem que possui uma elevada reverência ao Senhor Jesus
é um pastor segundo o coração de Deus, que se deleita em honrá-lo. O
homem que faz pouco caso do Senhor Jesus é um impostor, alguém que
João 10.1-9 127

não entrou pela porta, mas entrou por outro caminho, no sagrado ofício.
Esta afirmação de Jesus é humilhante e embaraçadora. Todos somos
capazes de perceber que Ele estava condenando os ensinadores israelitas
de sua época. Não havia qualquer “porta” no ministério deles. Não
ensinavam qualquer coisa correta sobre o Messias. Rejeitaram o próprio
Cristo, quando Ele veio ao mundo. Mas nem todos percebem que a
afirmativa de Jesus condena milhares de supostos ensinadores cristãos,
assim como censurou os líderes e mestres religiosos dos judeus. Muitos
dos pastores, no presente, não sabem nada a respeito de Cristo, exceto o
seu nome. Não entraram pela “porta” e são incapazes de mostrá-la aos
outros. Seria bom para o cristianismo se este fato se tomasse mais conhecido
e os crentes o considerassem com maior seriedade! Pastores não-convertidos
são a mina da igreja. Quando um cego guia outro cego, ambos caem no
barranco. Se desejarmos conhecer o valor do ministério de um pastor,
perguntemos: “Onde está o Cordeiro? Onde está a porta? Esse pastor revela
a Cristo e dá-lhe o lugar correto?”
Em segundo, temos nesses versículos uma singular figura dos
verdadeiros cristãos. Nosso Senhor os descreveu como ovelhas que ouvem
e reconhecem a voz do verdadeiro pastor e “de modo nenhum seguirão o
estranho; antes, fugirão dele, porque não conhecem a voz dos estranhos” .
O ensino que encontramos nestas palavras é muito curioso e talvez
pareça “loucura” para o mundo. Na maioria dos cristãos genuínos há um
instinto espiritual que os capacita a distinguir entre o verdadeiro e o falso
ensino. Quando ouvem lições espirituais incorretas, algo em seu íntimo
lhes diz: “Isso está errado” . Ao ouvirem a autêntica verdade de Jesus, em
seu espírito algo responde: “Isso está correto” . O descuidado homem mun­
dano pode não ver qualquer diferença entre um pastor e outro, entre um
sermão e outro. Em geral, a mais simples ovelha de Cristo fará a distinção,
embora não seja capaz de explicar por quê.
Estejamos atentos para não desprezarmos esse instinto espiritual. Não
importa o que diga o mundo escarnecedor, esse instinto é uma das
características especiais da habitação do Espírito Santo. O apóstolo João se
referiu de maneira especial a esse instinto, quando afirmou: “E vós possuís
a unção que vem do Santo e todos tendes conhecimento” (1 Jo 2.20).
Oremos para que esta unção se manifeste diariamente, a fim de sermos
protegidos da influência de falsos pastores. Perder toda a capacidade de
distinção entre o amargo e o doce é um dos piores sintomas de enfermidade
física. Ser incapaz de perceber a diferença entre a lei e o evangelho, a
verdade e o erro, o protestantismo e o papismo, a doutrina de Cristo e o
ensino do homem é uma prova segura de que ainda estamos mortos e
precisamos de conversão.
Por último, nesses versículos, temos a mais instrutiva figura da pessoa
128 João 10.1-9

de Cristo. Ele pronunciou uma das mais preciosas frases, que deve ser
amada por todos os verdadeiros crentes. Aplica-se tanto ao povo como aos
ministros do evangelho: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será
salvo; entrará, e sairá, e achará pastagem” .
Por natureza, estamos separados e distantes de Deus. O pecado, tal
como uma elevada muralha, se ergue entre nós e o Criador. O sentimento
de culpa nos deixa com medo dEle. A percepção da santidade de Deus nos
mantém à distância dEle. Nascidos com um coração que está em inimizade
contra Ele, nos tomamos mais e mais alienados de Deus por causa das
práticas em que vivemos. A primeira questão que precisamos responder é
esta: “Como poderei me aproximar de Deus? De que modo poderei ser
justificado? Como é possível a um pecador como eu ser reconciliado com
meu Criador?”
O Senhor Jesus Cristo providenciou a resposta para todas estas
importantes perguntas. Por meio de seu sacrifício na cruz, em nosso favor,
Ele abriu uma passagem através daquela grande muralha de separação,
conseguindo perdão e paz para os pecadores. O Senhor Jesus “morreu,
uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos” , para conduzir-nos a
Deus. Ele abriu o caminho para o Santo dos Santos, através de seu sangue,
pelo qual podemos nos aproximar de Deus, com ousadia e sem temor.
Agora Ele é poderoso para salvar até ao fim todos aqueles que por intermédio
dEle se achegam a Deus. Em sentido mais amplo, Ele é a “porta”. Ninguém
pode vir ao Pai senão por meio de Jesus.
Estejamos atentos para que entremos p e h porta e não apenas
permaneçamos do lado de fora, olhando para ela. É uma porta gratuita e
aberta ao maior dos pecadores. Se alguém entrar por ela, será salvo. É a
porta que, ao entrar, encontraremos pleno e constante suprimento para
cada necessidade de nossas almas. Descobriremos que podemos entrar e
sair, desfrutando liberdade e paz. Chegará o dia em que esta porta será
fechada, e os homens se esforçarão para entrar, mas serão incapazes.
Portanto, estejamos seguros de nossa própria salvação. Não demoremos
do lado de fora, hesitando entre duas opiniões. Entremos e sejamos salvos.

A Razão por que Cristo Veio ao Mundo;


O Ofício de Jesus Como Pastor;
A Morte Voluntária de Cristo
Leia João 10.10-18

Essa passagem nos mostra, primeiramente, o grande motivo por que


João 10.10-18 129

Cristo veio ao mundo. Ele disse: “Eu vim para que tenham vida e a tenham
em abundância” .
A verdade contida nestas palavras é sobremodo importante. Elas forne­
cem um antídoto para muitas das incorretas e grosseiras idéias que se pro­
pagam no mundo. Cristo não veio apenas para ensinar uma nova moralidade,
ou ser um exemplo de santidade e autonegação, ou o fundador de novas
cerimônias, assim como alguns têm afirmado. Ele deixou os céus e habitou
durante trinta e três anos na terra tendo em vista um propósito mais sublime
do que estes. O Senhor Jesus veio para obter a vida eterna ao custo de sua
própria morte vicária na cruz e para tomar-se uma inesgotável fonte de
vida espiritual para todos os homens, da qual os pecadores podem beber
pela fé e, bebendo, viver para sempre. Por intermédio de Moisés, vieram
a lei, as ordenanças, as regras e as cerimônias. Por meio de Cristo, vieram
a graça, a verdade e a vida eterna.
Esta doutrina é importantíssima; por isso, precisa ser reforçada com
uma palavra de cautela. Não podemos exagerar o significado das palavras
de nosso Senhor. Não devemos imaginar que a vida etema era inteiramente
desconhecida até que Cristo veio ou que os santos do Antigo Testamento
estavam nas trevas acerca do mundo por vir. O caminho de vida pela fé em
um Salvador era bem conhecido por Abraão, Moisés e Davi. Um Redentor
e um sacrifício eram a esperança de todos os filhos de Deus, desde Abel
até João Batista. No entanto, a maneira como eles viam essas coisas era
necessariamente imperfeita. Eles as viam ao longe, sem clareza; apenas
como em esboço e não em sua inteireza. A vinda do Messias esclareceu
todas as coisas e fez as sombras desaparecerem. A vida e a imortalidade
foram trazidas à luz por meio do evangelho. Em resumo, usando as palavras
de nosso Senhor, mesmo aqueles que tinham vida desfrutaram-na mais
abundantemente, quando Cristo veio ao mundo.
Em segundo, essa passagem nos mostra um dos principais ofícios
que nosso Senhor realizou em favor dos verdadeiros crentes. Duas vezes
Ele usou uma expressão que, para os ouvintes do Oriente, seria plena de
significado. Ele disse enfaticamente: “Eu sou o bom pastor” . É uma
declaração repleta de instrução e consolo.
À semelhança do bom pastor, Cristo sabe tudo a respeito de seu
povo. Seus nomes, famílias, residências, circunstâncias, vida particular,
experiências e provações — Cristo está familiarizado com tudo isso. Não
existe uma coisa sequer, na vida da mais simples de suas ovelhas, que Ele
não saiba. Os filhos deste mundo conhecem os crentes e consideram suas
vidas uma tolice; mas o bom Pastor os conhece completamente e, embora
os conheça, não os rejeita (e isto é maravilhoso!).
Assim como o bom Pastor, o Senhor Jesus cuida amavelmente de
todo o seu povo. Ele supre todas as suas necessidades no deserto deste
130 João 10.10-18

mundo e os conduz pelo reto caminho à cidade em que habitarão. Suporta


pacientemente as muitas fraquezas e imperfeições de suas ovelhas e não as
rejeita por serem geniosas, frágeis, errantes e aleijadas. Ele as guarda e
protege contra todos os seus inimigos, assim como Jacó fez ao rebanho de
Labão. O Senhor Jesus verá que de todos os que o Pai Lhe deu nenhum se
perdeu afinal.
Assim como um bom pastor, Cristo deu a sua vida pelas ovelhas. Ele
fez isso de uma vez por todas, quando foi crucificado em favor delas. Ao
ver que nada poderia livrá-las do inferno e de Satanás, exceto o seu próprio
sangue, o Senhor Jesus voluntariamente ofereceu-se como oferta pelos
pecados das ovelhas. O mérito daquele sacrifício Ele agora está apresentando
no trono do Pai. As ovelhas estão salvas para sempre porque o bom Pastor
morreu por elas. Isto sem dúvida revela um amor que excede todo
entendimento! “Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a
própria vida em favor dos seus amigos” (Jo 15.13).
Estejamos atentos para que este ofício de Cristo não se torne inútil
para nós. No último dia, nenhum proveito haverá em Jesus ser Pastor, se
durante nossa vida jamais ouvimos sua voz e O seguimos. Se amamos a
vida, juntemo-nos ao seu rebanho, sem demora, A menos que façamos
isso, ficaremos à esquerda do trono de Jesus, no Dia do Juízo, e estaremos
perdidos para sempre.
Por último, esses versículos nos mostram que Cristo morreu por sua
própria e espontânea vontade. Ele usou uma notável expressão para nos
ensinar isso: “Eu dou a minha vida para a reassumir. Ninguém a tira de
mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a
entregar e também para reavê-la” .
Esta verdade é muitíssimo importante. Em qualquer momento, jamais
devemos imaginar que nosso Senhor não tinha poder para evitar seus
sofrimentos e que foi entregue a seus inimigos e crucificado porque não
podia impedi-lo. Nada poderia estar mais longe da verdade. A traição de
Judas, os soldados dos sacerdotes, a inimizade dos escribas e fariseus, a
injustiça de Pôncio Pilatos, o rude tratamento dos soldados romanos, o
açoitamento, os cravos e a lança — todas essas coisas não poderiam ter
causado qualquer mal ao Senhor Jesus, se Ele não as houvesse permitido.
Com certeza, Ele podia afirmar: “Acaso, pensas que não posso rogar a
meu Pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos?”
(Mt 26.53).
A verdade evidente é que nosso Senhor submeteu-se à morte por sua
própria e livre vontade, pois sabia que sua morte era o único meio de fazer
expiação pelos pecados do homem. Ele derramou sua alma na morte com
todo o desejo de seu coração, porque estava determinado a pagar a nossa
dívida com Deus e nos redimir do inferno. Por causa da alegria que Lhe
João 10.10-18 131

estava proposta, Ele voluntariamente suportou a cruz e entregou sua vida,


a fim de que nós, através de sua morte, tenhamos a vida eterna. A morte de
Cristo não foi a de um mártir que sucumbiu vencido por seus inimigos, e
sim a de um conquistador triunfante, ciente de que, mesmo ao morrer,
ganharia para Si mesmo e seu povo um reino e uma coroa de glória.
Façamos nossas almas descansar nestas poderosas verdades e sejamos
agradecidos a Deus. Um Salvador disposto e amável, que veio ao mundo
especialmente para trazer vida ao homem é o Salvador que todos precisamos.
Se ouvirmos a sua voz, arrependermo-nos e crermos, Ele será nosso
Redentor.

Cristo, Motivo de Contendas e Controvérsias;


O Nome que Ele deu aos Verdadeiros Cristãos;
Os Grandes Privilégios que Estes Possuem
Leia João 10.19-30

Nessa passagem observamos inicialmente as contendas e controvérsias


que nosso Senhor causou enquanto estava na terra. Somos informados
que houve nova dissensão entre os judeus por causa das palavras de Jesus
e “muitos deles diziam: Ele tem demônio e enlouqueceu” , enquanto outros
tinham uma opinião contrária. A princípio, parece estranho que Ele veio
anunciar paz entre Deus e o homem e se tomou motivo de contenda. No
entanto, nesta ocasião, suas palavras se cumpriram literalmente: “Não vim
trazer paz, mas espada” (Mt 10.34). A culpa não estava em Cristo e sua
doutrina, e sim na mentalidade carnal de seus ouvintes.
Não fiquemos surpresos, se vemos isto acontecendo hoje. A natureza
humana é sempre a mesma. Enquanto o coração do homem não possui a
graça de Deus, devemos esperar que ele continuamente despreze o evangelho
de Cristo. Assim como o óleo e a água, os ácidos e os álcalis não se
combinam, assim também a pessoa não-convertida é realmente incapaz de
gostar do povo de Deus. “O pendor da carne é inimizade contra Deus”
(Rm 8.7); “O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus” (1
Co 2.14).
O servo de Cristo não deve achar estranho se tiver de enfrentar a
mesma experiência pela qual seu Mestre passou. Freqüentemente, o crente
descobrirá que suas atitudes e opiniões sobre a vida espiritual causam
dissensão em sua própria família. Ele terá de suportar o ridículo, palavras
ofensivas e perseguição da parte dos filhos deste mundo; e ainda perceberá
que é considerado um tolo ou louco por causa do seu cristianismo. Nenhuma
132 João 10.19-30

destas coisas devem fazê-lo mudar. O pensamento de que ele é participante


dos sofrimentos de Cristo deve fortalecê-lo contra toda provação. “Se
chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos?”
(Mt 10.25).
Jamais devemos esquecer o seguinte: não precisamos imaginar o pior
a respeito das coisas espirituais porque elas suscitam contendas e discórdias.
Não temos de encontrar falhas no glorioso evangelho, se ele desperta as
corrupções dos homens e manifesta “os pensamentos de muitos corações”
(Lc 2.35).
Em segundo, observamos o nome que Cristo deu aos verdadeiros
cristãos. Ele usou uma expressão figurada, que, como toda a sua linguagem,
tem profundo significado; chamou-os de “minhas ovelhas” .
A palavra “ovelha” sem dúvida indica algo no caráter e atitudes dos
verdadeiros discípulos de Cristo. Seria fácil demonstrar que fraqueza,
desamparo, inutilidade são aspectos de semelhança entre a ovelha e o crente.
Entretanto, a idéia principal na mente de nosso Senhor era a completa
dependência que as ovelhas manifestam em relação ao pastor. Assim como
as ovelhas escutam a voz de seu próprio pastor e o seguem, assim também
o crente segue a Cristo. Pela fé, ele ouve a chamada, submete-se à orientação
e descansa nEle, entregando sua alma implicitamente à orientação dEle.
As atitudes do pastor e de suas ovelhas são a mais vívida ilustração do
relacionamento entre Cristo e os verdadeiros crentes.
A expressão “minhas ovelhas” indica a mais íntima relação que existe
entre Cristo e os crentes. Estes pertencem a Ele, porque são uma dádiva do
Pai, foram comprados, chamados e escolhidos, e porque voluntária e
conscientemente submeteram-se a Ele. No sentido mais elevado, os
verdadeiros crentes são propriedade de Cristo; e, assim como o homem
sente especial interesse naquilo que ele mesmo comprou por grande preço
e se tomou sua propriedade, assim também o Senhor Jesus demonstra um
peculiar interesse por seu povo.
Expressões como estas devem ser cuidadosamente entesouradas nas
mentes dos verdadeiros crentes. Estes descobrirão que elas são animadoras
e fortalecem o coração em tempos de provação. O mundo não vê qualquer
beleza no comportamento de um homem piedoso e, com freqüência, o
despreza. Mas esse homem, que é uma das ovelhas de Cristo, não tem
motivos para sentir-se envergonhado. Em seu íntimo, ele tem “uma fonte
a jorrar para a vida eterna” (Jo 4.14).
Por último, devemos observar os amplos privilégios que o Senhor
Jesus Cristo outorga aos verdadeiros crentes. A respeito destes Ele em­
pregou palavras de singular excelência e vigor: “Eu as conheço... Eu lhes
dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da mi­
nha mão” . Estas afirmativas assemelham-se ao cacho de uvas que os
João 10.19-30 133

israelitas colheram em Escol. Dificilmente encontraremos uma mais inten­


sa forma de discurso em toda a Bíblia.
O Senhor Jesus “conhece” seu povo com um especial conhecimento
de aprovação, interesse e afeição. Eles são comparativamente desconhecidos
pelo mundo ao seu redor, bem como desprezados e rejeitados. No entanto,
jamais são esquecidos por Cristo.
Cristo dá “vida eterna” ao seu povo. Ele lhes outorga gratuitamente
o direito de entrarem no céu, perdoando seus muitos pecados e vestindo-os
com sua perfeita justiça. Com freqüência, Ele sabiamente lhes impede de
possuir riquezas e prosperidade mundana. Mas nunca falha em lhes con­
ceder graça, paz e misericórdia.
O Senhor Jesus declara que suas ovelhas “jamais perecerão” . Embora
sejam fracas, serão salvas. Nenhuma delas se perderá ou será lançada
fora; nenhuma deixará de entrar no céu. Se pecarem, serão reconduzidas
ao caminho da santidade. Se caírem, serão levantadas. Os inimigos de suas
almas são fortes e poderosos; todavia, o Salvador delas é mais poderoso, e
ninguém as arrebatará de sua mão.
Esta promessa merece atenção especial. Se as palavras realmente
têm significado, esta promessa contém a grande doutrina da perseverança
ou da continuação na graça dos verdadeiros crentes. Esta doutrina é
literalmente odiada pelos ímpios. Sem dúvida, assim como outras verdades
das Escrituras, ela está sujeita a abusos. Mas as palavras de Cristo são
muito claras, para que nos esquivemos delas. Ele disse e cumprirá: “Minhas
ovelhas... jamais perecerão” .
Não importa o que homens sejam capazes de afirmar sobre esta
doutrina, o filho de Deus tem de apegar-se a ela e defendê-la com todas as
suas forças. Para todos os que desfrutam em seu íntimo do ministério do
Espírito Santo, essa doutrina está repleta de encorajamento e consolação.
Uma vez que estejam dentro da arca, eles não mais serão lançados fora. Se
foram unidos a Cristo e se converteram, nunca serão cortados de seu corpo
místico. Os hipócritas e falsos ensinadores naufragarão eternamente, a
menos que se arrependam. Mas as verdadeiras “ovelhas” jamais serão
confundidas. Cristo afirmou e não pode mentir: “Minhas ovelhas... jamais
perecerão” .
Temos nos beneficiado dessa gloriosa promessa? Estejamos certos
de que pertencemos ao rebanho de Cristo. Ouçamos a voz de Cristo e O
sigamos. O homem que, sob o intenso peso do pecado, refugia-se e confia
nEle jamais será arrebatado de suas mãos.
134 João 10.31-42

A Impiedade da Natureza Humana;


Cristo Honra as Escrituras e Atribui
Importância aos Seus Milagres
Leia João 10.31-42

Inicialmente devemos observar nesses versículos a extrema impiedade


da natureza humana. Os judeus incrédulos, de Jerusalém, não foram tocados
quer pelos milagres de nosso Senhor, quer por sua pregação. Estavam
determinados a não O receberem como seu Messias. Novamente, o
evangelho diz que “pegaram os judeus em pedras para lhe atirar” .
Nosso Senhor não havia cometido qualquer injúria contra eles; não
era ladrão, assassino ou rebelde às leis de Israel. Era alguém cuja vida se
caracterizava pelo amor e que “andou por toda parte, fazendo o bem ” (At
10.38). Não podia ser acusado de nenhum crime. Um homem tão perfeito
e imaculado como Ele jamais andara sobre a face da terra. No entanto, os
judeus O odiavam e desejavam matá-Lo. Quão verdadeiras são as palavras
da Bíblia: “Odiaram-me sem motivo” (Jo 15.25). E muitíssimo corretas
são as palavras de um antigo teólogo: “Os homens incrédulos matariam a
Deus, se apenas pudessem alcançá-Lo” .
O verdadeiro cristão, com certeza, não tem qualquer direito de se
admirar, ao enfrentar o mesmo tipo de tratamento demonstrado ao nosso
bendito Senhor. De fato, quanto mais ele se assemelha ao seu Mestre e
mais santo e espiritual se toma sua vida, tanto mais provável é que ele te­
rá de suportar ódio e perseguição. O verdadeiro crente não deve supor que
qualquer grau de firmeza o livrará de sua cruz. As suas virtudes, e não
suas falhas, despertam a inimizade dos homens. O mundo detesta ver uma
pessoa refletindo a imagem de Deus. Os filhos do mundo ficam com suas
consciências atormentadas e perplexas, quando vêem outros melhores do
que eles mesmos. Por que Caim odiou a seu irmão e o matou? O apóstolo
João responde: “Porque as suas obras eram más, e as de seu irmão, justas”
(1 Jo 3.12). Por que os judeus odiaram a Cristo? Porque denunciava os
pecados e as falsas doutrinas deles, e em seu íntimo sabiam que Jesus
estava certo e eles, errados. “O mundo”, disse Jesus, “me odeia, porque
eu dou testemunho a seu respeito de que suas obras são más” (Jo 7.7). Os
crentes devem estar dispostos a beber, com paciência e sem admiração,
este mesmo cálice. No céu existe Alguém que disse: “Se o mundo vos
odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim” (Jo
15.18).
Lembrem-se os crentes de ganhar coragem. O tempo é curto. Estamos
caminhando rumo ao dia em que tudo será corrigido e todo homem receberá
João 10.31-42 135

de acordo com suas obras. “Porque deveras haverá bom futuro; não será
frustrada a tua esperança” (Pv 23.18).
Devemos observar também, nesses versículos, a sublime honra que
o Senhor Jesus deu às Escrituras. Nós O vemos citando um texto dos
Salmos como argumento contra seus inimigos; na citação, todo o argumento
se concentra na simples palavra “deuses” . E, após utilizar o texto de Salmos,
Jesus enunciou o grande princípio: “A Escritura não pode falhar”. É como
se Ele tivesse dito: “Tudo o que a Bíblia fala com clareza sobre algum
assunto não deixa dúvidas sobre ele. O caso é resolvido e o ensino,
estabelecido. Todo ‘i’ e ‘til’ das Escrituras são verdadeiros e têm de ser
recebidos como conclusivos” .
O princípio delineado por nosso Senhor, neste incidente, possui vasta
importância. Devemos assimilá-lo com firmeza em nossos corações e jamais
esquecê-lo. Defendamos com ousadia a completa inspiração das Escrituras
originais, em hebraico e grego. Creiamos que não apenas cada livro, mas
todo capítulo, e não apenas cada capítulo, mas cada versículo, e não apenas
cada versículo, mas cada palavra foi originalmente dada por inspiração
divina. A inspiração, nunca deixemos de afirmá-lo, estende-se não somente
aos pensamentos e idéias das Escrituras, mas também às mais simples pa­
lavras.
Este princípio, sem dúvida, tem sido severamente perseguido em
nossos dias. Nenhum crente deve sentir-se desanimado por causa de tal
perseguição. Mantenhamos nossa posição e, com toda varonilidade,
defendamos o princípio da inspiração plenária das Escrituras, como se
fosse a menina de nossos olhos. Há dificuldades nas Escrituras, e não
precisamos nos esquivar de admitir isso; existem passagens bíblicas difíceis
de explicar, harm onizar e entender. Porém , em quase todas essas
dificuldades, a falha (podemos afirmar com certeza) não está nas Escrituras
e sim na imperfeição de nossas mentes. Em todos os casos, podemos esperar
por adquirir maior compreensão e crer que, finalmente, tudo será escla­
recido. Devemos estar certos de uma coisa: se as dificuldades da inspiração
plenária das Escrituras são milhares, as dificuldades referentes a qualquer
outro conceito de inspiração das Escrituras são dezenas de milhares. A
atitude mais sábia a praticar é andar no velho caminho, da fé e da humildade,
e dizer: “Não posso desprezar uma palavra sequer da Bíblia. Toda Escritura
foi dada por inspiração divina. A Escritura não pode falhar” .
Devemos, ainda, observar nesses versículos a importância que nosso
Senhor atribuiu aos seus milagres. Ele utilizou os milagres como a melhor
evidência de sua missão divina. Ele ordenou os judeus a olharem os milagres
e os negarem, se pudessem. “Se não faço as obras de meu Pai, não me
acrediteis; mas, se faço, e não me credes, crede nas obras.”
Os homens de nossos dias não pensam tanto quanto deveriam nos
136 João 10.31-42

poderosos milagres que nosso Senhor realizou durante os três anos de seu
ministério terreno. Os milagres não foram poucos. Quarenta vezes ou mais
lemos nos evangelhos a respeito de Jesus estar fazendo coisas totalmente
contrárias ao curso da natureza — curar pessoas em certas ocasiões,
ressuscitar mortos utilizando apenas uma palavra de ordem, acalmar as
ondas e o vento rapidamente, andar sobre o mar como se estivesse pisando
em terra firme. Esses milagres não foram todos realizados apenas diante
de amigos particulares. Jesus fez muitos de seus milagres na presença de
multidões, diante de seus próprios inimigos. Estamos tão familiarizados
com estas coisas, que tendemos a esquecer as grandes lições que elas nos
ensinam. Estes fatos nos mostram que o Realizador destes milagres não foi
outro senão o próprio Deus. Os milagres estamparam nas doutrinas e
preceitos de Jesus a marca da autoridade divina. Somente Aquele que no
princípio criou todas as coisas poderia suspender as leis da natureza quando
quisesse. E Aquele que restringiu as leis da natureza tinha de ser Alguém
que as pessoas deveriam obedecer implicitamente e crer sem reservas.
Rejeitar Aquele cuja missão fora confirmada por obras tão poderosas é o
cúmulo da tolice e loucura.
Milhões de pessoas incrédulas, sem dúvida, em todas as épocas, têm
procurado lançar desprezo sobre os milagres de Cristo, negando que jamais
foram realizad o s. M as elas trabalham em vão. E xistem provas
inquestionáveis de que o ministério de nosso Senhor foi acompanhado por
milagres, e os que viveram na época de Jesus reconheceram este fato.
Aqueles que se opõem farão bem a si mesmos se apenas tomarem o simples
milagre da ressurreição de nosso Senhor e tentarem demonstrar que isto
não aconteceu. Se não conseguirem, devem confessar, como homens
sinceros, que os milagres são possíveis. E, se seus corações forem
verdadeiramente humildes, terão de admitir que a Pessoa cuja missão foi
confirmada por tais evidências era o próprio Deus.
Sejamos gratos a Deus, ao findarmos nossas considerações sobre
esta passagem, pois o cristianismo tem abundantes provas de ser uma religião
proveniente de Deus. Se recorrermos à evidência interna da Bíblia ou às
vidas dos primeiros cristãos, às profecias, aos milagres, à história, obteremos
a mesma resposta. Todos dizem a uma voz: Jesus é o Filho de Deus e os
crentes possuem a vida eterna por meio de seu nome.
João 11.1-6 137

A Doença Também Atinge


os Verdadeiros Cristãos;
Cristo, o Melhor Amigo
em Tempos de Necessidades;
Ele Ama Todos os Seus Verdadeiros
Seguidores e
Sabe qual o Melhor Tempo de Oferecer Ajuda
Leia João 11.1-6

Esse capítulo é um dos mais notáveis do Novo Testamento. No que


se refere à solenidade, grandeza e simplicidade, jamais foi escrito algo
semelhante a essa passagem. Ela descreve um milagre que não foi relatado
em nenhum outro evangelho — a ressurreição de Lázaro. Em nenhum
outro texto das Escrituras, podemos encontrar tão convincente prova do
poder divino de nosso Senhor. Em seu caráter divino, Ele fez a própria
morte libertar seu inquilino; não encontramos outra ilustração tão marcante
da capacidade de nosso Senhor simpatizar com seu povo. Em sua natureza
humana, Ele pode sentir-se entristecido por causa de nossas enfermidades.
Este milagre marcou o fim do ministério terreno de Cristo; a vitória em
Betânia ocorreu logo antes de sua crucificação no Calvário.
Esses versículos nos ensinam que os verdadeiros discípulos podem
ficar doentes, assim como as outras pessoas. Somos informados que Lázaro
era alguém que Jesus amava e irmão de duas bem-conhecidas mulheres
piedosas. Todavia, ele ficou doente, até à morte! O Senhor Jesus, que
tinha poder sobre todas as enfermidades, poderia ter impedido esta doença,
se achasse conveniente. Ele permitiu Lázaro ficar doente, em dores e fadiga,
debilitado e em sofrimento, assim como qualquer outra pessoa.
Esta lição tem de ser gravada profundamente em nossas mentes.
Vivendo em um mundo repleto de enfermidades e morte, com certeza
precisaremos desta lição algum dia. A enfermidade, conforme a natureza
das coisas, é apenas um instrumento de prova para nossa carne e sangue.
Nosso corpo e nossa alma encontram-se intrinsecamente ligados um ao
outro, e aquilo que abate nosso corpo e o deixa enfraquecido pode fazer
que nossa mente e nossa alma fiquem perplexas. Entretanto, a doença,
devemos sempre recordar, não é um sinal de que Deus está insatisfeito
conosco e, geralmente, é enviada para o bem de nossas almas. A enfermidade
tende a afastar nossas afeições das coisas deste mundo e dirigi-las às coisas
do alto. Ela nos impulsiona a ler a Bíblia e nos ensina a orar melhor,
138 João 11.1-6

ajudando-nos a testar a fé e a paciência e mostrando-nos o genuíno valor


de nossa esperança em Cristo. A doença nos recorda que não viveremos
para sempre neste mundo; molda e treina nosso coração para nossa grande
transformação. Portanto, sejamos pacientes e satisfeitos, quando ficarmos
abatidos por causa de enfermidades. Creiamos que o Senhor Jesus nos ama
tanto na saúde quanto na doença.
Em segundo, esses versículos nos ensinam que o Senhor Jesus é o
melhor amigo dos crentes em tempos de necessidade. Quando Lázaro
adoeceu, suas irmãs enviaram um recado a Jesus, apresentando-Lhe o
assunto. Simples, bela e tocante foi a mensagem que elas enviaram. Não
pediram que Ele viesse imediatamente, ou realizasse um milagre, ou
ordenasse que a doença se retirasse de Lázaro. Apenas disseram: “Senhor,
está enfermo aquele a quem amas” e deixaram o assunto ali, na plena
confiança de que Ele faria o melhor. Nisto consiste a verdadeira fé e
humildade dos santos! Esta foi uma graciosa submissão da,vontade!
Os servos de Cristo, de todas as idades e lugares, serão abençoados
ao recordar este excelente exemplo. Sem dúvida, quando aqueles que
amamos ficam doentes, devemos utilizar com diligência todos os mèios
para sua recuperação. Não podemos medir os esforços para obter o melhor
recurso médico. Precisamos ajudar nossos corpos, com todos os recursos
naturais disponíveis, a travar um bom combate contra seus inimigos. No
entanto, em tudo que fizermos, jamais devemos esquecer que o melhor e
mais capaz Auxiliador está nos céus, à direita de Deus. Assim como Jó,
quando ficou doente, nossa primeira atitude deve ser a de ajoelhar-nos e
adorar a Deus. Assim como Ezequias, temos de derramar nossas lágrimas
diante do Senhor. E, à semelhança das irmãs de Lázaro, precisamos
apresentar nossa súplica ao Senhor Jesus. Na inquietação e ansiedade de
nossos sentimentos, nunca esqueçamos que ninguém pode nos ajudar de
maneira semelhante Àquele que é misericordioso, amável e gracioso.
Em terceiro, esses versículos nos ensinam que Cristo ama todos os
verdadeiros crentes. Somos informados que “amava Jesus a Marta, e a sua
irmã, e a Lázaro” . Aparentemente, esses três irmãos possuíam tem­
peramentos diferentes. Certa passagem dos evangelhos nos diz que Marta
estava inquieta e se preocupava com muitas coisas, enquanto Maria as-
sentara-se aos pés de Jesus e Lhe ouvia os ensinos. A Bíblia não apresenta
uma característica peculiar de Lázaro. Entretanto, todos eram amados por
nosso Senhor; pertenciam à família de Deus, e Ele os amava.
Devemos ter isso em nosso coração, ao formular opiniões sobre os
outros crentes. Não podemos esquecer que existe variedade em nossos
temperamentos, e a graça não coloca os crentes em um único molde.
Admitindo plenamente que os fundamentos do caráter cristão são os mesmos
sempre e que todos os filhos de Deus se arrependeram e creram, tornaram-
João 11.1-6 139

se santos e amam a oração e as Escrituras, temos de reconhecer a ampla


variedade de temperamentos e maneira de pensar deles. Não podemos
menosprezar os outros porque eles não demonstram ter um caráter
semelhante ao nosso. As flores de um jardim são muito diferentes, mas o
jardineiro se interessa por todas elas. As crianças de uma família podem
demonstrar bastante diferença uma da outra; no entanto, os pais se
preocupam com todas. O mesmo acontece na igreja de Cristo. Há graus e
variedade no crescimento da graça, mas, sem dúvida, até os mais fracos e
insignificantes discípulos são amados por Ele. Por isso, nenhum crente
deve sentir-se desanimado por causa de suas enfermidades; e nenhum crente
deve ter a audácia de menosprezar e subestimar seus irmãos.
Por último, esses versículos nos ensinam que Cristo sabe qual a
melhor ocasião para fazer o bem ao seu povo. O texto bíblico nos diz que
Jesus, ao saber “que Lázaro estava doente, ainda se demorou dois dias no
lugar onde estava” . Na verdade, Ele propositadamente retardou sua viagem
e chegou a Betânia somente depois de Lázaro estar no sepulcro há quatro
dias. Sem dúvida, o Senhor Jesus sabia muito bem o que aconteceria, mas
não viajou até chegar a ocasião que Ele julgou conveniente. Em benefício
de sua igreja e do mundo, de seus bons amigos e de seus inimigos, Jesus
demorou a ir para Betânia.
Os filhos de Deus precisam com freqüência treinar suas mentes para
aprender esta grande lição. Nada nos ajuda tanto a suportar as provações
da vida quanto uma firme convicção da perfeita sabedoria que conduz
todos os acontecimentos ao nosso redor. Esforcemo-nos para crer não
somente que todos esses acontecimentos são bem realizados, mas também
que ocorrem da melhor maneira possível, através do melhor instrumento e
na melhor ocasião. Naturalmente, todos nós somos impacientes no dia da
provação. Estamos prontos a dizer, assim como Moisés, quando nossos
amados ficam doentes: “Ó Deus, rogo-te que a cures” (Nm 12.13).
Esquecemos que Cristo é um médico extremamente sábio para cometer
erros. A fé deve afirmar: “Os meus dias estão em tuas mãos. Faze comigo
o que desejares, como e quando Tu quiseres. Não se cumpra a minha e sim
a tua vontade” . O mais elevado nível de fé é o de ser capaz de esperar,
permanecer quieto e não queixar-se.
Deixemos as considerações sobre essa passagem com a firme resolução
de confiar totalmente em Cristo, no que concerne aos interesses terrenos,
tanto públicos quanto particulares. Creiamos que Ele, por meio de quem
todas as coisas foram criadas, é o que está controlando tudo por meio de
sua perfeita sabedoria. Os negócios dos governos, das famílias e das pessoas
são controlados por Ele. O Senhor Jesus determina os acontecimentos de
seu povo. Quando estamos doentes, isto acontece porque Ele sabe que é
para o nosso bem. Quando demora em socorrer-nos, é pela mesma razão.
140 João 11.1-6

A mão que foi cravada na cruz é bastante sábia para agir sem um motivo
necessário ou para fazer-nos esperar por alívio sem uma razão adequada.

A Maneira Misteriosa de Cristo


Lidar com os Seus;
A Amável Linguagem de Jesus Sobre seu Povo;
O Temperamento Natural Manifesta-se
em Todos os Crentes
Leia João 11.7-16

Devemos observar, primeiramente, nesses versículos a maneira


misteriosa como o Senhor Jesus guia o seu povo. Quando Ele chamou seus
discípulos a retomarem para a Judéia, estes ficaram perplexos. Era o mesmo
lugar onde os judeus tentaram apedrejá-Lo. Retomar para lá significava
expor-se ao perigo. Esses tímidos galileus não podiam ver a necessidade
ou a prudência deste passo. Eles clamaram: “Mestre, ainda agora os judeus
procuravam apedrejar-te, e voltas para lá?”
Atitudes como esta sempre vemos ao nosso redor. Os servos de Cristo
freqüentemente são colocados diante de circunstâncias tão constrangedoras
quanto aquela que os discípulos enfrentaram. São guiados por situações
das quais não podem ver o objetivo ou o propósito; são chamados a assumir
posições que naturalmente evitariam e que jamais escolheriam por si
mesmos. Milhares de crentes de todas as idades estão constantemente
aprendendo por sua própria experiência. O caminho pelo qual têm de seguir
não foi escolhido por eles mesmos. No presente, não podem ver a utilidade
e a sabedoria de tal caminho.
Em tempos como os nossos, o crente precisa exercitar sua fé e sua
paciência. Ele tem de crer que seu Mestre sabe melhor por onde seu servo
deve andar e o está guiando pelo caminho certo à cidade celestial. O crente
pode descansar seguro de que as circunstâncias em que foi colocado são
exatamente aquelas que mais promovem suas virtudes e corrigem seus
pecados habituais. Ele não precisa duvidar que mais tarde entenderá as
circunstâncias que não pode compreender agora. Um dia, o crente descobrirá
que houve sabedoria em cada passo de sua jornada, embora, estando na
carne e no sangue, não fosse capaz de percebê-lo. Se os discípulos não
houvessem retomado à Judéia, não teriam visto o glorioso milagre em
Betânia. Se aos crentes fosse permitido escolher as circunstâncias de sua
própria vida, nunca aprenderiam abundantes lições sobre Cristo e sua graça,
João 11.7-16 141

que agora lhes são ensinadas nos caminhos de Deus. Recordemos sempre
este fato. Virá a ocasião em que seremos chamados a trilhar em nossa vida
uma jornada que não apreciamos. Quando isso acontecer, com alegria
sigamos adiante, crendo que tudo está certo.
Em segundo, devemos observar nessa passagem a ternura de Cristo
ao falar sobre a morte de seus discípulos. Ele anunciou a morte de Lázaro
utilizando uma linguagem de singular beleza e cordialidade: “Nosso amigo
Lázaro adormeceu” .
Todo verdadeiro crente tem um Amigo no céu, todo-poderoso e
ilimitado em amor. O eterno Filho de Deus cuida, supre as necessidades,
protege e se preocupa com o crente. Este possui um infalível Protetor, que
jamais cochila ou dorme e que continuamente zela por seus interesses. O
mundo pode desprezar o crente, mas este não tem qualquer motivo para
sentir-se envergonhado. O pai e a mãe talvez o rejeitem, mas Cristo, que o
recebeu, nunca o abandonará. O crente é amigo de Cristo mesmo depois
de sua morte! As amizades deste mundo freqüentemente permanecem apenas
em tempos de prosperidade e nos decepcionam, assim como fontes sem
água, quando estamos extremamente sedentos; porém, a amizade do Filho
de Deus é mais forte do que a morte e vai além da sepultura. O Amigo dos
pecadores é alguém mais achegado do que um irmão.
A morte do verdadeiro cristão é “dormir” e não uma aniquilação.
Sem dúvida, é uma miraculosa e solene mudança, que não precisa ser
considerada com inquietação. Os crentes não têm o que temer em relação
a suas almas na ocasião da morte, pois seus pecados foram lavados no
sangue de Cristo. O mais afiado aguilhão da morte é o sentimento de
pecado não-perdoado. Os verdadeiros cristãos não devem recear coisa
alguma em referência a seus corpos nessa mudança; eles ressuscitarão e
serão transformados à imagem do Senhor Jesus. O sepulcro é um inimigo
vencido, pois devolverá seus habitantes, com segurança e saudáveis, no
momento que Cristo os chamar no último dia.
Recordemos estas verdades quando os nossos queridos dormirem em
Cristo ou quando recebermos a notícia de que deixaremos este mundo.
Nesta hora, lembremo-nos de que nosso grande Amigo se preocupa por
nossas almas, assim como por nossos corpos, e não permitirá que se perca
nenhum dos fios de nosso cabelo. Nunca esqueçamos que o sepulcro é o
lugar onde nosso próprio Senhor esteve e que, assim como Ele ressuscitou
triunfante do túmulo, também seu povo fará o mesmo. Para o homem
mundano, a morte tem de ser algo terrível, mas o crente pode afirmar com
ousadia, quando estiver deixando esta vida: “Eu me deitarei em paz e
descansarei, pois Tu, Senhor, me fazes habitar em segurança” .
Por último, devemos observar nesses versículos quanto do tem­
peramento natural ainda permanece no crente após sua conversão. Ao
142 João 11.7-16

saber que Lázaro estava morto e que, apesar do perigo, Jesus determinara
retomar à Judéia, Tomé disse: “Vamos nós também para morrermos com
ele” . Pode haver somente um significado nesta declaração: era uma
linguagem de desespero e desânimo, que, nestas circunstâncias, não podia
ver nada além de escuridão. Este mesmo homem, que mais tarde não foi
capaz de crer que seu Senhor havia ressuscitado e pensou que a notícia era
muito boa para ser verdade, era um dos doze apóstolos e imaginava que,
se retomassem à Judéia, todos morreriam!
Coisas assim são profundamente instrutivas e foram relatadas para
nosso ensino. Mostram que a graça de Deus na conversão não transforma
tanto um homem ao ponto de remover todas as características naturais de
seu caráter. Quando passam da morte para a vida, tomando-se verdadeiros
cristãos, o sangüíneo não deixa de ser completamente sangüíneo e o
desanimado ainda permanece mostrando desânimo. Este relato de João
nos ensina que devemos levar em conta o temperamento natural, ao fazer
nossa estimativa de um crente. Não temos de esperar que todos os filhos de
Deus sejam iguais. Cada árvore, em uma floresta, tem suas peculiaridades
de formato e crescimento, porém à distância parecem uma mesma porção
de folhas e verdura. Cada membro do corpo de Cristo tem suas caracte­
rísticas distintivas; no entanto, todos são guiados pelo mesmo Espírito e
amam o mesmo Senhor. As duas irmãs, Marta e Maria, os apóstolos Pedro,
João e Tomé com certeza eram diferentes um do outro em muitos aspectos,
mais tinham algo em comum: amavam a Cristo e eram amigos dEle.
Estejamos certos de que realmente pertencemos a Cristo: esta é a
única coisa verdadeiramente necessária. Se estamos certos disso, seremos
guiados pelo caminho correto e bem-aventurados no final. Talvez não
tenhamos a mesma animação que caracteriza determinado irmão, ou o
ardente zelo, ou a gentileza de outros. Mas, se a graça reina em nosso
íntimo e por experiência própria conhecemos o arrependimento e a fé,
permaneceremos no lado direito do trono naquele grande dia de juízo.
Feliz é o homem sobre o qual, apesar de seus defeitos, Cristo declara aos
anjos: “Este é meu amigo”.

Mistura de Graça e Fraqueza nos Crentes;


Necessidade de Opiniões Claras Sobre a Pessoa,
o Ofício e o Poder de Cristo
Leia João 11.17-29

Nessa passagem existe uma grande simplicidade quase sempre


João 11.17-29 143

esquecida pelos expositores da Bíblia. Comentá-la assemelha-se a dourar


ouro ou embranquecer lírios. Entretanto, tal simplicidade esclarece um
assunto que nunca podemos entender bem — o verdadeiro caráter do povo
de Deus. As figuras que retratam o crente na Bíblia são fiéis, apresentando-
o como ele realmente é.
Primeiramente, aprendemos que existe uma estranha mistura de graça
e fra q u e za nos corações dos verdadeiros cren tes. V em os isto
admiravelmente ilustrado na linguagem utilizada por Marta e Maria. Estas
duas mulheres crentes demonstraram possuir fé suficiente para dizer:
“Senhor, se estiveras aqui, não teria morrido meu irmão” . Mas nenhuma
delas pareceu recordar que a morte de Lázaro não dependeu da ausência de
Cristo e que nosso Senhor, se achasse conveniente, poderia ter impedido
aquela morte, servindo-se apenas de uma palavra, sem viajar até Betânia.
Marta tinha conhecimento suficiente para dizer: “Sei que, mesmo agora,
tudo quanto pedires a Deus, Deus to concederá... que ele há de ressurgir
na ressurreição, no último dia... eu tenho crido que tu és o Cristo, o Filho
de Deus” . Porém, ela não pôde ir adiante. Seus olhos turvos e suas mãos
trêmulas não eram capazes de assimilar a grande verdade de que ali, diante
dela, estava Aquele que tem as chaves da vida e da morte e de que nEle
“habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade” (Cl 2.9). Ela viu
realmente, porém com lentes obscuras; sabia, mas apenas em parte. Ela
creu, todavia, sua fé estava misturada com incredulidade. No entanto,
tanto Marta quanto Maria eram autênticas filhas de Deus e verdadeiras
crentes.
Esses fatos foram graciosamente escritos para nosso aprendizado. É
bom lembrar o que os verdadeiros crentes realmente são. Diversos e grandes
são os erros em que as pessoas caem por formularem estimativas erradas a
respeito do caráter do crente. Muitas foram as coisas amargas já escritas
contra os crentes, por imaginarem que eles não podem cometer erros,
neste lado da vida. Gravemos em nossas mentes o fato de que os santos na
terra não são anjos perfeitos, e sim pecadores convertidos. Sem dúvida,
são pecadores renovados, transformados, santificados, mas ainda são
pecadores e o serão até ao dia de sua morte. Assim como Marta e Maria,
a fé dos verdadeiros cristãos freqüentemente está mesclada com in­
credulidade, e sua graça, cercada por bastante deficiência. Feliz é o filho
de Deus que entende estas coisas e aprendeu a julgar corretamente tanto a
si mesmo quanto aos outros. Na verdade, é raro encontrarmos um crente
que não precisa orar: “Senhor, eu creio. Ajuda-me em minha incre­
dulidade” .
Em segundo, aprendemos que muitos crentes têm necessidade de
possuir opiniões claras a respeito da pessoa, do ofício e do poder de
Cristo. Este assunto foi obrigatoriamente ressaltado na famosa sentença
144 João 11.17-29

que nosso Senhor proferiu a Marta. Em sua resposta à vaga e insegura


afirmação de crença na ressurreição do último dia, Jesus proclamou essa
gloriosa verdade: “Eu sou a ressurreição e a vida. Eu mesmo, teu Senhor,
sou Aquele que possui em suas mãos as chaves da morte e da vida” . Em
seguida, ensinou-lhe de novo a antiga lição que ela já ouvira tantas vezes e
nunca compreendera totalmente: “Quem crê em mim, ainda que morra,
viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente” .
Há aqui determinado assunto que exige consideração especial da parte
de todos os verdadeiros crentes. Muitos reclamam de sua falta de sensível
consolo em sua vida espiritual. Não sentem a paz interior que desejam.
Saibam eles que vagas e imprecisas opiniões a respeito de Cristo são
freqüentemente a causa de sua perplexidade. Precisam esforçar-se para
ver com mais clareza o grande objeto sobre o qual descansa sua fé. Precisam
assimilar com maior firmeza o amor e poder de Cristo para com eles, que
crêem, e as riquezas espirituais que nesta vida Ele entesoura para os
verdadeiros crentes. Infelizmente, muitos de nós somos semelhantes a Marta.
Um simples conhecimento geral da pessoa de Cristo como Salvador é tudo
que possuímos. No entanto, temos experimentado nada ou pouco da
plenitude, da ressurreição, do sacerdócio, da intercessão e da infalível
compaixão de Cristo. Há muitos crentes para os quais o Senhor poderia
indagar, assim como o fez a Marta: “Crês isto?”
Jamais nos envergonhemos de confessar o nome de Cristo, ainda que
saibamos pouco a respeito dEle. Que direito temos de nos admirar ao
desfrutarmos pouco consolo em nosso cristianismo? Nosso superficial e
im perfeito conhecim ento de Cristo é a verdadeira causa de nosso
desconforto. Já passamos bastante tempo como alunos negligentes na escola
de Cristo; nos dias vindouros sejamos mais diligentes em procurar conhecê-
Lo “e o poder da sua ressurreição” (Fp 3.10). Se os verdadeiros crentes se
esforçarem, assim como Paulo recomenda, para “compreender, com todos
os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade...
e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento” , ficarão
admirados das descobertas que farão. Logo descobrirão, assim como Hagar
no deserto, que existem fontes de água bem próximas a eles, acerca das
quais não tinham qualquer conhecimento. Descobrirão que na terra há
mais para desfrutar do céu, mais do que podiam imaginar. A raiz de toda
vida espiritual feliz é um claro, evidente e bem definido conhecimento de
Jesus Cristo. Um maior conhecimento dEle teria poupado Marta de muitas
lágrimas e murmúrios. Sem dúvida, apenas o conhecimento, se não for
santificado, “ensoberbece” (1 Co 8.1). Entretanto, sem um entendimento
claro da pessoa de Cristo, em todos os seus ofícios, não esperemos
permanecer firmes na fé e perseverantes em tempos de necessidade.
João 11.30-37 145

Bênção Atribuída à Simpatia;


A Profunda Compaixão de Cristo por seu Povo
Leia João 11.30-37

O Novo Testamento apresenta poucas passagens tão maravilhosas


quanto a simples narrativa contida nestes oito versículos. O simpático caráter
de nosso Senhor Jesus Cristo é ressaltado de maneira bela e adequada.
Mostra-nos que Ele é poderoso tanto para “salvar totalmente os que por
ele se chegam a Deus” quanto para demonstrar compaixão por eles. Esta
narrativa nos apresenta Cristo, Aquele que é um com o Pai e Criador de
todas as coisas, participando das tristezas e derramando lágrimas humanas.
Inicialmente esses versículos nos ensinam que grande bênção Deus,
às vezes, atribui a atos de bondade e simpatia. Parece que a casa de Marta
e Maria, em Betânia, estava repleta de pessoas que choravam, quando o
Senhor Jesus ali chegou. Muitas delas com certeza não sabiam nada a
respeito da vida espiritual das irmãs. A fé, a esperança, o discipulado e o
amor delas por Cristo eram coisas que os lamentadores ignoravam
completamente. Mas sentiram compaixão de Marta e Maria, por causa de
sua aflição, e bondosamente vieram oferecer-lhes o consolo que precisavam.
Ao fazerem isso, colheram uma abundante e inesperada recompensa:
contemplaram o grandioso milagre que Jesus realizou. Foram testemunhas
oculares de que Lázaro saíra do sepulcro. Para muitas delas, podemos
acreditar, aquele foi o dia de seu nascimento espiritual. A ressurreição de
Lázaro os levou à ressurreição de suas almas. Quão insignificantes são as
circunstâncias das quais, às vezes, a vida eterna parece depender! Se estas
pessoas não tivessem dem onstrado sim patia para M arta e M aria
possivelmente não teriam sido salvas.
Não precisamos duvidar que estas coisas foram escritas para nosso
aprendizado. Demonstrar simpatia e bondade aos aflitos é bom para nossas
almas, quer saibamos, quer não. Visitar órfãos e viúvas em suas aflições,
chorar com os que choram, procurar levar os fardos uns dos outros e
amenizar suas preocupações — todas essas atitudes não podem expiar nossos
pecados, tampouco nos abrirão as portas do céu. Entretanto, são realizações
benéficas às nossas almas, realizações que ninguém será capaz de desprezar.
Talvez poucos estejam cientes de que um dos grandes segredos para sermos
miseráveis é viver somente para nós mesmos e que um dos segredos para
sermos felizes é procurarmos fazer os outros felizes e realizar o bem no
mundo. Estas palavras não foram escritas em vão pelo sábio rei de Israel:
“Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, pois
146 João 11.30-37

naquela se vê o fim de todos os homens; e os vivos que o tomem em


consideração. O coração dos sábios está na casa do luto, mas o dos
insensatos, na casa da alegria” (Ec 7.2,4). As palavras de nosso Senhor
são esquecidas com muita freqüência: “E quem der a beber, ainda que se­
ja um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser este meu discípulo,
em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão” (Mt
10.42). Os amigos de Marta e Maria comprovaram esta maravilhosa
promessa. Em uma época caracterizada por egoísmo e auto-satisfação,
bom seria se eles tivessem mais imitadores.
Esses versículos também nos ensinam que profunda simpatia existe
no coração de Cristo para com seu povo. Somos informados que, ao ver
Marta chorando e os judeus, juntamente com ela, nosso Senhor “agitou-se
em espírito e comoveu-se” . E, além disso, expressando visivelmente seus
sentimentos, “Jesus chorou” . Ele sabia que a aflição da família de Betânia
em breve se tomaria em regozijo e que em alguns minutos Lázaro seria
restituído a suas irmãs. Mas, embora estivesse ciente destes fatos, Ele
“chorou” .
O choro do Senhor Jesus é profundamente instrutivo. Revela-nos
que chorar não é pecado. Lamentar e entristecer-se constituem fortes
tentações para a came e o sangue, fazendo-nos perceber a fraqueza de
nossa existência; porém não são atitudes erradas em si mesmas. O próprio
Filho de Deus chorou. Isso nos mostra que um profundo sentimento é algo
que não deve nos causar vergonha. Ser frio, insensível e passivo na hora
da tristeza não é uma evidência de que possuímos a graça de Deus em
nosso coração. Não existe indignidade em um filho de Deus derramar
lágrimas. O próprio Senhor Jesus chorou, mostrando que nosso Salvador é
bastante compassivo e amável. É alguém que demonstra simpatia para com
as nossas enfermidades. Quando O buscamos na hora da aflição e Lhe
contamos nossos sentimentos, Ele sabe pelo que estamos passando e tem
compaixão de nós. O Senhor é alguém que nunca muda; embora esteja no
céu, sentado à direita de Deus, seu coração ainda é o mesmo que foi
enquanto esteve na terra. Temos um Advogado junto ao Pai, um Advogado
que, ao estar na terra, foi capaz de chorar.
Lembremo-nos dessas verdades em nossa vida diária e jamais nos
envergonhemos de andar nos passos de nosso Senhor, Esforcemo-nos para
ser homens e mulheres de corações sensíveis e espíritos repletos de simpatia.
Nunca fiquemos envergonhados de chorar com os que choram e alegrar-
nos com os que se alegram, Seria bom para a igreja e o mundo se houvesse
mais crentes dessa natureza e caráter! A igreja seria mais bela e o mundo,
mais feliz.
João 11.38-46 147

As Palavras de Cristo Sobre


a Pedra do Sepulcro;
Sua Mensagem a Marta, Quando Esta Duvidou;
A Oração de Cristo ao Pai;
A Ordem dEle a Lázaro
Leia João 11.38-46

Esses versículos relatam um dos maravilhosos milagres que o Senhor


Jesus realizou e fornecem uma incontestável prova de sua divindade. Aquele
cuja voz pôde retirar do sepulcro alguém que estivera morto por quatro
dias tem de ser o próprio Deus! O milagre, em si mesmo, é descrito em tal
linguagem, que não precisa de nenhum comentário humano para esclarecê-
lo melhor. Mas as afirmações de nosso Senhor, nesta ocasião, são
especialmente interessantes e demandam observações.
Primeiramente, devemos observar as palavras de Jesus sobre a pedra
que fechava o sepulcro de Lázaro. Ele disse aos que estavam ao seu redor,
quando veio à sepultura: “Tirai a pedra” .
Ora, por que nosso Senhor ordenou isso? Sem dúvida, era fácil para
Ele ordenar que a pedra rolasse sozinha, para que chamasse do sepulcro o
cadáver. Todavia, este não foi seu modo de agir. Como em outras ocasiões,
Ele decidiu dar aos homens algo para fazer. Assim como em outros
acontecimentos, Jesus ensinou a grande lição de que seu infinito poder não
se destinava a anular a responsabilidade do homem. Mesmo quando estava
disposto e pronto para ressuscitar um morto, Ele não desejava que os
homens ficassem completamente ociosos.
Guardemos esta verdade em nossos corações; ela é muito significativa
para nós. Ao fazer o bem aos outros, ao preparar nossos filhos para o céu
e seguir a santidade em nosso viver diário — em todas essas atitudes é
indubitavelmente verdadeiro que somos fracos e inúteis. Sem Cristo nada
podemos fazer. Entretanto, devemos lembrar que Ele nos ordena a agir.
“Retirai a pedra” é a ordem diária que Ele nos dá. Tenhamos cuidado para
não ficarmos ociosos devido ao pretexto de humildade. Procuremos dia
após dia fazer aquilo que podemos e, agindo assim, Cristo nos assistirá e
concederá a sua bênção.
Em segundo, devemos observar as palavras que nosso Senhor dirigiu
a Marta, quando esta se opôs à retirada da pedra que fechava o sepulcro.
A fé desta piedosa mulher abalou-se totalmente, quando o lugar em que se
148 João 11.38-46

encontrava o corpo de seu irmão estava para ser aberto. Ela não acreditava
que isso teria algum proveito. “Senhor”, ela exclamou, “já cheira mal” .
Então veio a solene reprovação de Jesus: “Não te disse eu que, se creres,
verás a glória de Deus?”
Esta sentença é rica em significado. Ela contém uma referência à
primeira mensagem que fora enviada às irmãs, Marta e Maria, quando elas
comunicaram ao Senhor que Lázaro estava enfermo. Talvez esta solene
resposta tencionasse relem brar-lhes que o Senhor havia dito: “Esta
enfermidade não é para morte, e sim para a glória de Deus, a fim de que o
Filho de Deus seja por ela glorificado” . Todavia, é mais provável que o
Senhor Jesus desejava recordar a Marta a antiga lição que Ele lhe ensinara
durante todo o seu ministério — o dever de confiar nEle sempre. Era como
se Jesus estivesse dizendo: “Marta, Marta, estás esquecendo a grande
doutrina da fé, que eu já te ensinei. Crê, e tudo sairá bem. Não temas,
apenas crê” .
Esta lição jamais poderemos aprender por completo. Quão rapidamente
nossa fé desfalece em tempo de aflição! Em dias de saúde e prosperidade,
conversamos com facilidade sobre as coisas espirituais; mas o faremos
com dificuldade em épocas sombrias, quando não aparecem o sol, a lua ou
as estrelas. Guardemos em nosso coração o que Jesus disse a Marta nesta
ocasião. Oremos para que tenhamos em nosso íntimo reservas de fé
semelhante a esta, para que, ao vir o sofrimento, suportemos pacientemente
e creiamos que tudo está em ordem. O crente que parou de afirmar: “Tenho
de ver para crer” e aprendeu a dizer: “Eu creio e, por isso, verei” alcançou
um grau elevado na escola de Cristo.
Em terceiro, podemos observar as palavras de nosso Senhor dirigidas
a Deus, o Pai, quando a pedra fo i removida do sepulcro. Ele disse: “Pai,
graças te dou porque me ouviste. Aliás, eu sabia que sempre me ouves,
mas assim falei por causa da multidão presente, para que creiam que tu me
enviaste” .
Esta maravilhosa linguagem é totalmente diferente de qualquer coisa
proclamada através dos apóstolos ou dos profetas, quando realizavam
milagres. De fato, não constitui uma oração e sim louvor. Evidentemente,
essa linguagem transmite a idéia de uma constante e misteriosa comunicação
entre o Filho e o Pai, uma comunicação que ultrapassa a capacidade dos
homens explicarem ou entenderem. Não precisamos nutrir dúvidas de que,
nessa passagem, assim como em outras de seu evangelho, o apóstolo João
pretendia ensinar a completa e total unidade que existia entre Jesus e seu
Pai, em tudo que Ele fazia e ensinava. Uma vez mais, somos relembrados
que o Senhor Jesus não viera apenas como profeta, mas como o Messias
enviado pelo Pai e que era um com Ele. Novamente, o Senhor Jesus desejava
que aquelas pessoas soubessem que, assim como as palavras faladas por
João 11.38-46 149

Ele eram as próprias palavras que o Pai Lhe dera para transmitir, assim
também as obras que Jesus realizava eram as obras que o Pai lhe havia
dado para realizar. Em resumo, Ele era o Messias prometido, a quem o
Pai sempre ouve, porque Ele e o Pai são um.
Esta verdade é profunda e elevada; para desfrutarmos de paz em
nossas almas precisamos crer e aceitá-la plena e firmemente. Devemos ter
como um inabalável princípio de nossa religião o fato de que o Salvador
em quem confiamos não é outro senão o próprio Deus eterno, a Quem o
Pai sempre ouve, Aquele que é realmente o verdadeiro amigo de Deus.
Uma opinião clara a respeito da dignidade de nosso Mediador é um dos
segredos de consolo em nosso íntimo. Feliz é a pessoa que pode dizer:
“Sei em quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar
o meu depósito até aquele Dia” (2 Tm 1.12).
Por último, devemos observar as palavras de nosso Senhor dirigidas
a Lázaro, quando o ressuscitou dentre os mortos. O Senhor clamou em
alta voz: “Lázaro, vem para fora! ” Ao som daquelas palavras, de imediato
o rei dos terrores deu liberdade ao seu cativo, e a insaciável morte soltou
sua presa. Instantaneamente “saiu aquele que estivera morto, tendo os pés
e as mãos ligados com ataduras” .
Não podemos exagerar a grandeza deste milagre. A mente humana
raramente pode entender a amplitude da obra realizada nesta ocasião. Neste
evento, em pleno dia e diante de muitas testemunhas hostis, um homem
que estava morto havia quatro dias foi trazido de volta à vida, em um
instante. Esta foi uma demonstração pública do absoluto poder de nosso
Senhor sobre o mundo físico. Um cadáver já deteriorado recebeu vida!
Esta foi uma demonstração pública do absoluto poder de nosso Senhor
sobre o mundo dos espíritos! Uma alma que havia deixado sua habitação
terrena foi chamada de volta do paraíso e uniu-se novamente ao seu corpo
físico. A igreja de Cristo deve afirmar com certeza: Aquele que realizou
tal obra era o “Deus bendito para todo o sempre" (Rm 9.5).
Finalizemos nossas considerações sobre essa passagem obtendo
pensamentos de ânimo e consolo. O amável Salvador dos pecadores, do
qual nossas almas dependem plenamente para receber misericórdia, é Aquele
que possui todo poder no céu e na terra e pode salvar-nos — este pensamento
é reconfortante. Recebemos consolo ao saber que não existe pecador tão
aprofundado no lamaçal do pecado, que o Senhor Jesus Cristo não possa
ressuscitá-lo e transformá-lo. Aquele que se colocou diante do sepulcro de
Lázaro tem poder para dizer ao mais vil dos homens: “Sai para fora...
Desatai-o e deixai-o ir” . A voz que chamou Lázaro para fora do sepulcro
um dia penetrará nossos sepulcros e ordenará que nossas almas e corpos se
unam novamente. “A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis,
e nós seremos transformados” (1 Co 15.52).
150 João 11.47-57

A Impiedade Natural do Homem;


A Ignorância dos Inimigos de Deus;
A Importância Erroneamente
Atribuída a Cerimônias
Leia João 11.47-57

Esses últimos versículos contêm um melancólico retrato da natureza


humana. Ao focalizar as autoridades dos judeus em Jerusalém, deixando
de lado o Senhor Jesus e a ressurreição em Betânia, podemos muito bem
indagar: “Senhor, que é o homem?”
Nesses versículos, percebemos a desesperada impiedade do homem
natural. Um poderoso milagre fora realizado nas proxim idades de
Jerusalém. Um homem morto havia quatro dias fora ressuscitado à vista de
muitas testemunhas. O acontecimento era inquestionável e não podia ser
negado; contudo, os principais sacerdotes e os fariseus não acreditavam
que o realizador desse milagre deveria ser recebido como o Messias. Em
face de evidências tão convincentes, eles fecharam seus olhos e se recusaram
a ser convencidos. “Este homem” , eles admitiram, “opera muitos sinais” .
No entanto, ao invés de se renderem a esse reconhecimento, apenas levaram
adiante sua impiedade e “resolveram matá-lo” . Grande, realmente, é o
poder da incredulidade.
Guardemo-nos de pensar que os milagres têm o poder de converter
as almas dos homens e tomá-los cristãos. Essa idéia é uma completa ilusão.
Imaginar, como algumas pessoas fazem, que, se virem algo extraordinário
sendo realizado ante os seus olhos, em confirmação do evangelho, elas
imediatamente abandonarão toda indecisão e servirão a Cristo é um sonho
inútil. As nossas almas precisam da graça do Espírito em nossos corações,
e não de milagres. Os judeus da época de nosso Senhor constituem uma
permanente prova à raça humana de que as pessoas podem ver sinais e
maravilhas e ainda permanecer endurecidas como pedras. Esta é uma
verdade profunda e genuína: “Se não ouvem a Moisés e aos Profetas,
tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os
mortos” (Lc 16.31).
Jamais fiquemos admirados por ver tanta incredulidade em nossos
dias, entre aqueles que vivem ao nosso redor. A princípio, parece
inexplicável como os homens não percebem a verdade que é tão clara para
nós e não recebem o evangelho que se mostra tão digno de aceitação.
Entretanto, a verdade é que a incredulidade do homem é uma doença mais
profunda do que é constantemente reconhecida; é uma prova contra a lógica
João 11.47-57 151

dos fatos, o raciocínio, os argumentos e a persuasão moral. Nada pode


desintegrá-la exceto a graça de Deus. Se cremos, jamais poderemos ser
suficientemente gratos por isso. Mas não devemos achar estranho se vemos
muitos de nossos amigos tão endurecidos e incrédulos quanto os judeus.
Em segundo, devemos perceber nesses versículos a ignorância com
que os inimigos de Deus freqüentemente agem e raciocinam. Essas au­
toridades dos judeus disseram entre si: “Se o deixarmos assim, todos cre­
rão nele; depois, virão os romanos e tomarão não só o nosso lugar, mas a
própria nação” (Jo 11.48). Nunca, os acontecim entos posteriores
comprovaram, houve um julgamento mais errôneo e impreciso do que
este. Eles precipitaram-se loucamente no caminho que haviam escolhido, e
a única coisa que temiam veio a acontecer. Não deixaram o Senhor Jesus
permanecer vivo, crucificaram e mataram-No. O que lhes aconteceu? Após
alguns anos, a calamidade que eles temiam se realizou: os exércitos romanos
vieram, destruíram Jerusalém, incendiaram o templo e levaram toda a
nação em cativeiro.
O crente instruído não precisa ser recordado de coisas semelhantes
na história da igreja cristã. Os imperadores romanos perseguiram os crentes
nos primeiros três séculos e consideraram um dever não os deixarem
perseverar. Porém, quanto mais perseguiam os crentes, tanto mais estes
aumentavam em número. O sangue dos mártires tomou-se a semente da
igreja. Os papistas ingleses, nos dias da rainha Maria, perseguiram os
protestantes e imaginaram que a verdade estava em perigo se os deixassem
vivos. No entanto, quanto mais eles perseguiam nossos antepassados, tanto
mais confirmavam as mentes do homens em resoluto apego às doutrinas da
Reforma. Em resumo, as palavras do salmista se comprovam neste mundo:
“Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o S e n h o r e
contra o seu Ungido” ; mas “ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor
zomba deles” (SI 2.2,4). Deus pode fazer os desígnios de seus inimigos
cooperarem para o bem de seu povo e levar a ira do homem a louvá-Lo.
Em dias de tribulação, rejeição e blasfêmia, os crentes podem descansar
tranqüilamente no Senhor. As coisas que, em certa época, parece prejudicá-
los no final serão confirmadas como proveitosas para eles.
Por último, nesses versículos devemos perceber que importância os
homens, às vezes, atribuem a cerimônias, enquanto seus corações estão
repletos de pecado. Somos informados que muitos judeus “daquela região
subiram para Jerusalém antes da Páscoa, para se purificarem”. A maioria
deles, devemos recear, não sabiam nada e tampouco se preocupavam com
a pureza de seus corações. Eles deram grande ênfase às purificações, festas
e práticas ascéticas que constituíam a essência da religião popular dos
judeus na época de nosso Senhor e, apesar disso, estavam dispostos, em
alguns dias posteriores, a derramar sangue inocente. Ainda que pareça
152 João 11.47-57

estranho, estes obstinados defensores da santificação exterior estavam


prontos para fazer a vontade dos fariseus e trazerem o Messias a uma
morte violenta.
Extremos como estes na mesma pessoa, infelizmente, são muito
comuns. A experiência mostra que uma má consciência freqüentemente
satisfará a si mesma por mostrar-se zelosa em favor de uma religião,
enquanto as coisas “mais im portantes” da fé são com pletam ente
negligenciadas. O mesmo homem que se acha disposto a atravessar a terra
e o mar a fim de participar de um cerimonial de purificação é também
aquele que, se tiver oportunidade, não se esquivará de ajudar os outros a
crucificarem a Cristo. Estas afirmações parecem causar perplexidade, mas
são abundantemente comprovadas pelos fatos. As cidades em que a quaresma
é observada com a mais extravagante rigidez são as mesmas onde o carnaval,
após a quaresma, é uma época de deslumbrantes excessos e imoralidade.
As pessoas que, em algumas partes do cristianismo nominal, fazem muito
no que se refere a jejuns e a absolvição do sacerdote são as mesmas que, na
semana seguinte, não se importarão em matar! Essas coisas são realidades.
A abominável inconsistência dos judeus dos tempos de nosso Senhor jamais
deixou de ter seguidores.
Guardem os firm em ente em nossos corações o fato de que a
espiritualidade demonstrada em zelo por formalidades é completamente
sem valor diante de Deus. A pureza que Deus deseja ver não é a pureza de
lavagem de partes do corpo e de jejuar, ou a pureza do uso de água benta
ou de ascetismo que alguém impõe a si mesmo, mas a pureza de coração.
Adoração falsa e cerimonialismo podem satisfazer a carne, mas não
promovem a verdadeira piedade. O padrão do reino de Cristo tem de ser
encontrado no Sermão do Monte: “Bem-aventurados os limpos de coração,
porque verão a Deus” (Mt 5.8; Cl 2.23).

Abundantes Provas da Veracidade


dos Milagres de Cristo;
O Desânimo que os Amigos de Cristo
Recebem da Parte dos Homens;
A Incredulidade e Dureza dos Homens
Leia João 12.1-11

Esse capítulo finaliza uma importante divisão no Evangelho de João.


A mensagem pública de nosso Senhor aos judeus incrédulos, em Jerusalém,
João 12.1-11 153

chega ao fim. Após esse capítulo, o apóstolo relata apenas o que foi dito
em particular aos discípulos.
Vemos, primeiramente, nessa passagem, que houve abundantes provas
da veracidade dos grandes milagres de Cristo. Lemos a respeito de um
jantar em Betânia, onde Lázaro era “um dos que estavam com ele à mesa”
— Lázaro fora publicamente ressuscitado dentre os mortos, após quatro
dias no sepulcro. Ninguém pretenderia dizer que a ressurreição de Lázaro
fora uma ilusão óptica e que os olhos dos que a contemplaram foram enga­
nados por um fantasma ou uma visão. Ali estava aquele mesmo Lázaro,
após várias semanas, sentado entre seus amigos, em um corpo físico genuíno,
comendo e bebendo alimentos verdadeiros. É difícil entender que evidência
maior deste fato poderia ser apresentada. Aquele que não for convencido
por tal evidência pode afirmar que está decidido a não crer em nada.
Um pensamento confortante é saber que as provas da ressurreição de
Lázaro são as mesmas que comprovam aquele fato ainda mais notável, a
ressurreição de Cristo. Lázaro foi visto durante várias semanas pelos
habitantes de Betânia, entrando e saindo entre eles? Assim também o foi o
Senhor Jesus pelos seus discípulos. Lázaro comeu alimento físico ante os
olhos de seus amigos? O Senhor Jesus também comeu e bebeu antes de sua
ascensão. Ninguém, em seu bom senso, que viu a Jesus tomar o peixe
assado e o mel e comê-los diante de várias testemunhas duvidaria que ele
tinha um corpo físico (Lc 24.42).
Faremos bem em recordar esta verdade. Em uma época de abundante
incredulidade e ceticismo, descobriremos que a ressurreição de Cristo
suportará qualquer fardo que sobre ela lançarmos. Assim como Jesus
removeu toda incerteza quanto à ressurreição de um discípulo amado nos
arredores de Jerusalém; em poucas semanas, Ele fez o mesmo em relação
à sua própria vitória sobre a morte. Se cremos que Lázaro ressurgiu dentre
os mortos, podemos estar certos de que isso também aconteceu a Jesus. Se
cremos que Ele ressuscitou, não precisamos ter dúvidas de que Ele é o
Messias ou questionar sua aceitação como Mediador e a certeza de nossa
própria ressurreição. Cristo realmente ressurgiu dentre os mortos; os crentes
devem se regozijar, e os ímpios, tremer.
Ainda, nessa passagem, vemos a falta de bondade e o desânimo que
os amigos de Cristo às vezes recebem dos homens incrédulos. Durante o
jantar em Betânia, Maria, a irmã de Lázaro, ungiu com precioso bálsamo
os pés de Jesus e os enxugou com seus cabelos. Esta unção não foi realizada
com mesquinhez. Ela o fez com tanta liberalidade e abundância, que
“encheu-se toda a casa com o perfume do bálsamo” . Maria ungiu os pés
de Jesus sob a influência de um coração repleto de amor e gratidão. Ela
imaginou que nada seria demasiadamente grande e bom para dar ao Salva­
dor. Assentar-se aos pés dEle e ouvir-Lhe os ensinos, em dias anteriores,
154 João 12.1-11

levou-a a encontrar paz para sua consciência e perdão para seus pecados.
Naquele momento, estava contemplando Lázaro vivo e saudável, ao lado
de seu Senhor — seu próprio irmão Lázaro, que Jesus ressuscitara e trouxera
de volta ao convívio delas. Sendo tão amada, Maria concluiu que não seria
capaz de retribuir tanto amor. De graça recebeu, por isso de graça ela ofe­
receu o bálsamo ao Senhor.
Mas havia algumas pessoas ali que acharam falta na atitude de Maria
e culparam-na de desperdício e extravagância. Em especial um dos apóstolos,
de quem deveríamos esperar coisas melhores, declarou que aquele bálsamo
teria sido melhor utilizado se o houvessem vendido e o dinheiro, dado
“aos pobres” . O coração que concebeu tais pensamentos devia ter opiniões
superficiais sobre a dignidade de Cristo e pontos de vista insignificantes a
respeito de nossos deveres. Coração insensível e mãos avarentas andam
sempre juntos.
Há muitos cristãos professos que possuem espírito semelhante em
nossos dias. Milhares de pessoas batizadas não podem entender qualquer
tipo de zelo em favor da honra do Senhor Jesus Cristo. Aconselhe-os a
gastarem seu dinheiro no desenvolvimento do comércio e investirem no
progresso da ciência, e eles aprovarão este conselho, reputando-o correto
e sábio. Conte-lhes sobre qualquer despesa realizada na pregação do
evangelho, em nosso país ou no exterior, a fim de propagar a Palavra de
Deus e o conhecimento de Cristo na terra, e eles dirão francamente que
consideram isso um desperdício. Eles jamais darão um centavo sequer
para tais empreendimentos e reputarão como tolos aqueles que o fazem. E,
o pior de tudo, com freqüência tais pessoas encobrem sua própria recusa
em ajudar objetivos verdadeiramente cristãos por meio de uma pretensa
preocupação com os pobres. Por isso, acham conveniente esquecer este
notável fato: os que fazem mais pela causa de Cristo são os mesmos que
fazem mais em favor dos pobres.
Jamais permitamos que pessoas de tal caráter nos afastem da
perseverança na prática do bem. Se um homem não possui qualquer
sentimento de dívida para com Cristo, em vão esperamos que esse homem
faça muito por Ele. Precisamos ter compaixão da cegueira de nossos
impiedosos críticos e continuar trabalhando. Aquele que pleiteou a causa
de Maria, dizendo: “Deixai-a” , está assentado à direita de Deus e possui
um livro de recordações. Virá o dia quando o mundo espantado verá que
cada copo de água oferecido em nome de Cristo, bem como aquele precioso
ungüento, foi registrado no céu e terá suas recompensas. Naquele grande
dia, os que pensavam que alguém pode dar coisas em excesso a Cristo
reconhecerão que seria melhor não haver nascido.
Por último, nessa passagem vemos a profunda dureza e incredulidade
que existe no coração do ser humano. A incredulidade se manifestou nos
João 12.1-11 155

principais sacerdotes, que “resolveram matar também Lázaro”. Eles não


podiam negar que Lázaro havia sido ressuscitado. Vivendo, andando,
comendo e bebendo ali perto de Jerusalém, após ter passado quatro dias no
sepulcro, Lázaro era uma testemunha da verdade de que Cristo é o Messias.
E os principais sacerdotes não poderiam argumentar contra ou silenciá-lo.
Esses homens orgulhosos não desistiriam; pelo contrário, ao invés de
deporem as armas de rebeldia e confessarem seu erro, eles cometeriam um
assassinato. Não fiquemos surpresos com o fato de que o Senhor Jesus, em
certa ocasião, “admirou-se da incredulidade deles” . Poderíamos dizer,
utilizando uma história bem-conhecida: “Se não ouvem a Moisés e aos
Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém
dentre os mortos” (Lc 16.31).
Dureza de coração manifestou-se em Judas Iscariotes, que, depois de
ser um apóstolo escolhido e um pregador do reino dos céus, por fim tomou-
se um ladrão e traidor. Enquanto existir esse relato, aquele infeliz será
uma constante prova da profimdidade da corrupção humana. Uma pessoa,
na qualidade de discípulo, seguiu a Cristo durante três anos, viu todos os
milagres realizados por Ele, ouviu todos os seus ensinos, recebeu constante
bondade de suas mãos, foi contado entre os apóstolos e, no final, provou
que seu coração estava corrompido — tudo isto parece inacreditável e im­
possível à primeira vista! Todavia, Judas Iscariotes revelou claramente
que isso pode acontecer. É provável que existam poucas coisas tão mal
compreendidas quanto a extensão da queda do homem.
Sejamos gratos a Deus, se já conhecemos a fé verdadeira e podemos
dizer, apesar de todo nosso senso de fraqueza e imperfeição: “Eu creio” .
Oremos para que nossa fé seja genuína, verdadeira e sincera e não apenas
uma impressão temporária, tal como uma nuvem matutina e o orvalho da
manhã. Vigiemos e oremos contra o amor ao mundo. Este amor arruinou
aquele que desfrutou de todos os privilégios e ouviu o próprio Cristo
ensinando a cada dia. Então, “aquele, pois, que pensa estar em pé veja que
não caia” (1 Co 10.12).

Os Sofrimentos de Cristo, Completamente


Voluntários;
Profecias Sobre a Vinda de Cristo
Cumpriram-se Minuciosamente
Leia João 12.12-19

Uma cuidadosa leitura dos evangelhos jamais deixará de nos mostrar


156 João 12.12-19

que a conduta de nosso Senhor Jesus Cristo, nesta etapa de seu ministério
terreno, é bastante peculiar. Não há algo semelhante relatado a respeito
dEle no Novo Testamento. Até essa altura, nós O vimos evitando, enquanto
podia, aparecer em público, retirando-se para o deserto e impedindo todos
os que desejavam levá-Lo e constituí-Lo rei. Em geral, Ele não cortejava
a atenção do povo. Ele cumpriu a profecia: “Não contenderá, nem gritará,
nem alguém ouvirá nas praças a sua voz” (Mt 12.19). Nesta ocasião, ao
contrário disso, nós o vemos realizando uma aparição pública em Jerusalém,
cercado por imensa multidão de povo, levando os próprios fariseus a
declararem: “Eis aí vai o mundo após ele (Jo 12.19) .
Não é difícil encontrarmos a explicação para essa aparente incoerência.
Finalmente chegara o tempo em que Cristo deveria morrer pelos pecados
do mundo, o tempo em que o verdadeiro Cordeiro Pascal deveria ser
imolado, o verdadeiro sangue da expiação seria derramado e o Messias
seria morto, de acordo com a profecia (Dn 9.26). Chegara o tempo em que
o caminho para o Santo dos Santos seria aberto pelo verdadeiro sumo
sacerdote de toda a humanidade. Sabendo tudo isso, nosso Senhor colocou-
se publicamente diante de toda a nação de Israel. Era correto e adequado
que isto não se passasse “em algum lugar escondido” (At 26.26). Se houve
algo que se realizou publicamente no ministério terreno de nosso Senhor,
isto foi o sacrifício que Ele ofereceu sobre a cruz do Calvário. Ele morreu
em uma época do ano na qual todas as tribos de Israel estavam reunidas
para a festa da Páscoa. E isto não foi tudo. Ele morreu em uma semana em
que, por causa de sua notável entrada pública em Jerusalém, levou os
olhos de todo o Israel a fixarem-se nEle.
Inicialmente, nesses versículos, aprendemos quão voluntários foram
os sofrimentos de Cristo. É possível não percebermos nessa história que o
Senhor Jesus exercia uma misteriosa influência sobre as mentes e vontades
de todos que estavam ao seu redor, sempre que Ele achava conveniente
servir-se de tal influência. Nenhuma outra coisa pode explicar o efeito que
sua chegada a Jerusalém teve sobre as multidões que o acompanhavam.
Parece que foram conduzidas por um secreto poder constrangedor, que as
impulsionava a obedecer, apesar de toda a censura dos líderes religiosos
da nação. Em resumo, assim como nosso Senhor era capaz de fazer que
ondas e ventos, enfermidades e demônios O obedecessem, Ele também
podia, quando Lhe agradasse, dispor as mentes e corações dos homens de
acordo com sua vontade.
Este não é o único caso. Os homens de Nazaré não puderam segurá-
Lo, quando Ele decidiu passar por entre eles e retirar-se (Lc 4.30). O ódio
dos judeus de Jerusalém não pôde impedi-Lo, quando no templo levantaram
mãos violentas contra Ele, pois “Jesus se ocultou e saiu” dali (Jo 8.59).
Acima de tudo, os próprios soldados que O prenderam no jardim a princípio
João 12.12-19 157

“recuaram e caíram por terra” (Jo 18.6). Em todas essas ocasiões, há


apenas uma explicação — uma divina influência foi demonstrada. Durante
o ministério terreno de nosso Senhor, houve uma misteriosa ocultação de
“seu poder” (Hc 3.4). Mas Ele demonstrava seu infinito poder sempre que
achava conveniente usá-lo.
Por que, então, o Senhor Jesus não resistiu seus inimigos no final de
seu ministério? Por que Ele não dispersou, assim como a palha ao léu do
vento, o destacamento de soldados que vieram prendê-Lo? Há apenas uma
resposta: Ele voluntariamente sofreria para assegurar a redenção de almas
perdidas e arruinadas. Havia determinado oferecer sua própria vida como
resgate, a fim de que pudéssemos viver para sempre; e a entregou na cruz
com todo o desejo de seu coração. Ele não derramou seu sangue, sofreu e
morreu por que foi constrangido por força superior e não podia socorrer a Si
mesmo, e sim porque nos amou e regozijou-se em entregar-se como nosso
substituto. Ele não morreu porque não podia evitar a morte, e sim porque
com todo o seu coração desejava apresentar sua alma como oferta pelo pecado.
Os nossos corações devem sempre descansar neste pensamento. Temos
um Salvador disposto e amável. Ele se deleitou em fazer a vontade do Pai
e preparar o caminho para que o homem perdido e culpado se aproxime de
Deus, em paz; o Senhor Jesus Cristo amava a obra que tinha para realizar
e o mundo pecador ao qual veio salvar. Portanto, jamais alimentemos o
indigno pensamento de que nosso Salvador não tem satisfação em ver os
pecadores dirigem-se a Ele e não se regozija em salvá-los. Ele, que se tor­
nou um sacrifício voluntário na cruz, é também um Salvador voluntário
que está à direita de Deus. Ele se mostra tão disposto a receber os pecadores
que O buscam para obter paz quanto voluntariamente se ofereceu para
morrer em favor dos pecadores, quando reteve seu poder e com espon­
taneidade sofreu no Calvário.
Em segundo, nesses versículos, aprendemos quão minuciosamente
se cumpriram as profecias sobre a vinda de Cristo. O entrar em Jerusalém
assentado sobre um jumento, relatado nessa passagem, pode ter parecido,
à prim eira vista, uma atitude comum e insignificante. M as, quando
recordamos o Antigo Testamento, descobrimos que isto havia sido pro­
fetizado por Zacarias, quinhentos anos antes (Zc 9.9). Verificamos que a
vinda futura de um Redentor não era a única coisa que o Espírito Santo
revelara aos profetas, mas também que os próprios detalhes sobre a vida
terrena desse Redentor foram vaticinados e descritos com exatidão.
O cumprimento de profecias como esta merece atenção especial da
parte de todos os que amam a Bíblia e lêem-na com reverência. Mostra-
nos que toda palavra das sagradas Escrituras foi dada por inspiração divina
e nos ensina que devemos ser cuidadosos para não cairmos na enganosa
prática de espiritualizar e explicar erroneamente a linguagem da Palavra
158 João 12.12-19

de Deus. Temos de conservar em mente o fato de que o significado evidente


e literal das Escrituras é geralmente o verdadeiro e correto. Nessa passagem,
temos uma profecia de Zacarias que se cumpriu exata e literalmente. Nosso
Senhor não era apenas uma pessoa humilde, assim como alguns intérpretes
espiritualizadores explicam as palavras de Zacarias; Ele realmente entrou
em Jerusalém montado em um jumento. Além disso, o cumprimento das
Escrituras nos ensina que temos de esperar uma realização literal das
profecias referente à segunda vinda de Cristo, e não uma realização espiritual
e figurada. Sempre afirmemos este princípio. Feliz é o leitor que acredita
significarem as palavras da Bíblia exatamente o que parecem significar.
Tal pessoa possui a verdadeira chave do conhecimento a respeito de aguardar
as coisas por vir. Saber que as predições sobre a segunda vinda de Cristo
se cumprirão literalmente, assim como as profecias referentes ao seu
primeiro advento, é o passo inicial em direção a um correto entendimento
de profecias que ainda não se consumaram.

Morte, o Caminho à Vida Espiritual;


Os Servos de Cristo Têm de Segui-Lo
L eia João 12.20-26

Há muito mais coisas passando pela mente de certas pessoas do que


podemos imaginar. Os gregos desta passagem constituem uma notável pro­
va deste fato. Quem poderia ter imaginado, durante o tempo em que Jesus
esteve na terra, que estrangeiros de um país distante viriam a Jerusalém e
diriam: “Senhor, queremos ver Jesus”? Quem eram esses homens, o que
pretendiam, por que desejavam vê-Lo, quais eram seus motivos interiores
— estas são perguntas que não podemos responder. Assim como Zaqueu,
eles podem ter sido influenciados pela curiosidade. Assim como os sábios
do Oriente, esses gregos podem ter concluído que Jesus era o Rei prometido
que todo o mundo oriental esperava. E suficiente saber que eles de­
monstraram mais interesse por Cristo do que por Caifás e seus com­
panheiros. Basta apenas estarmos cientes de que eles extraíram dos lábios
de nosso Senhor afirmações que estão sendo lidas em milhares de idiomas,
desde aqueles dias até ao fim do mundo.
Primeiramente, aprendemos das palavras de nosso Senhor que a morte
é o caminho para a vida e a glória espiritual. “Se o grão de trigo, caindo
em terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto” .
Esta sentença tinha o propósito inicial de ensinar àqueles gregos a verdadeira
natureza do reino do Messias. Se eles imaginavam que veriam um rei
João 12.20-26 159

semelhante aos deste mundo, cometeram um grande erro. Nosso Senhor


desejava que soubessem que Ele viera para carregar uma cruz e não usar
uma coroa. Ele não viera para desfrutar uma vida de honra, tranqüila e
magnificente, mas para sofrer uma vergonhosa e triste morte. O reino que
Ele viera estabelecer começaria com uma crucificação, e não com uma
coroação. A glória deste reino não consistia em vitórias conquistadas pela
espada, nem de tesouros em ouro e prata, e sim na morte de seu Rei.
Mas esta declaração também tinha o propósito de ensinar uma lição
ainda mais ampla e abrangente. Ela revelou, através de uma admirável fi­
gura, a poderosa e fundamental verdade de que a morte de Cristo seria
fonte de vida espiritual para o mundo. A paixão e morte de Cristo resultaria
em uma imensa colheita de benefícios para toda a humanidade. Sua morte,
semelhante a de um grão de trigo, seria a raiz de bênçãos e misericórdias
para incontáveis milhões de almas imortais. Em resumo, o grande princípio
do evangelho uma vez mais estava sendo exposto — a morte vicária de
Cristo (não a sua vida, seus milagres ou ensinos, mas sua morte) produziria
frutos para a glória de Deus e proveria redenção para um mundo perdido.
Esta profunda e vigorosa declaração foi seguida por uma aplicação
prática, que se refere a nós mesmos: “Aquele que odeia a sua vida neste
mundo preservá-la-á para a vida eterna” . Aquele que deseja ser salvo precisa
estar disposto a rejeitar sua própria vida, se necessário, a fim de obter a
salvação. Tem de mortificar seu amor ao mundo, com suas riquezas, honras,
prazeres e recompensas, crendo plenamente que, ao fazer isso, desfrutará
de uma colheita melhor, tanto nesta quanto na vida futura. Aquele que ama
esta vida ao ponto de ser incapaz de negar para si mesmo qualquer coisa
por amor à sua alma descobrirá, no final, que perdeu tudo. Ao contrário,
aquele que está pronto a desprezar as coisas mais queridas desta vida,
quando atrapalham o bem-estar de sua alma, e crucificar a carne com suas
paixões e concupiscências descobrirá que nada perdeu. No mundo, suas
perdas nada significam, se comparadas aos seus ganhos.
Estas verdades devem arraigar-se em nossos corações e constranger-
nos a auto-exame. Isto é tão verdadeiro a respeito de Cristo quanto dos
verdadeiros cristãos — não pode existir vida se não houver morte; não
pode existir doçura, se não houver amargor; não receberemos a coroa, se
não passarmos pela cruz. Sem a morte de Cristo, não haveria vida para o
mundo. A menos que estejamos dispostos a morrer para o pecado e crucificar
tudo o que é mais querido à carne, não devemos esperar qualquer benefício
da morte de Cristo. Recordemos essas verdades e tomemos diariamente
nossa cruz. Por causa da alegria proposta a nós, suportemos a cruz e
desprezemos a vergonha; por fim, sentaremos com nosso Senhor à direita
de Deus. O caminho da crucificação de nós mesmos e da santificação pode
parecer tolice e desperdício para o mundo, assim como o plantar um grão
160 João 12.20-26

de trigo parece inútil a uma criança e ao tolo. No entanto, jamais existiu


um homem que não descobrisse que pelo semear do Espírito ele obteve a
colheita da vida eterna.
Aprendemos também que, se professamos servir a Cristo, temos de
segui-Lo. Ele afirmou: “Se alguém me serve, siga-me”.
O vocábulo “seguir” é bastante significativo e traz às nossas mentes
conceitos familiares. Assim como o soldado segue seu general; o servo,
seu senhor; o aluno, seu Mestre; as ovelhas, seu pastor, assim também
devem seguir a Cristo os que se declaram cristãos. A fé e a obediência são
marcas características dos seguidores autênticos e sempre se encontrarão
nos verdadeiros crentes. O conhecimento deles talvez seja pequeno e suas
fraquezas, muito grandes; sua graça, bem frágil e sua esperança, ainda
obscura. Mas crêem no que Cristo diz e se esforçam para fazer o que Ele
ordena. A respeito destes, Cristo afirma: “Eles me servem; são meus” .
Esse tipo de cristianismo causa pouco interesse nos homens. É muito
abrangente, decidido, intenso e real. Servir a Cristo apenas de nome e apa­
rência é fácil e satisfaz muitas pessoas; porém, segui-Lo com fé durante toda
a vida exige mais do que os homens estão dispostos a fazer por suas almas.
Zombaria, oposição, perseguição freqüentemente são as únicas recompensas
que os seguidores de Cristo recebem deste mundo. Possuem uma religião
“cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus” (Rm 2.29).
Para aqueles que O seguem, não esqueçamos, o Senhor Jesus assegura
abundante encorajamento: “Onde eu estou, ali estará também o meu servo.
E, se alguém me servir, o Pai o honrará” . Guardemos em nossos corações
estas promessas animadoras e prossigamos sem temor no caminho estreito.
O mundo pode desprezar o servo de Cristo, reputando-o vil, e excluí-lo da
sociedade; mas, quando habitarmos com Cristo na glória, teremos uma
casa da qual jamais seremos expulsos. O mundo pode escarnecer de nossa
religião e zombar de nosso cristianismo, mas, quando no último dia o Pai
honrar-nos, diante da assembléia de anjos e homens, reconheceremos que
o louvor dEle compensa todas as perdas.

O Pecado do Homem Imputado a Cristo;


O Conflito Intimo do Senhor Jesus;
A Voz de Deus Ouvida dos Céus;
Profecia de Cristo Sobre a sua Morte
L eia João 12.27-33

Esses versículos nos mostram o que Pedro pretendia dizer, ao afirmar


João 12.27-33 161

que “há certas coisas difíceis de entender” nas Escrituras (2 Pe 3.16).


Nessa passagem, encontramos verdades profundas que não podemos sondar
completamente. Isso não deve nos surpreender ou abalar nossa fé. A Bíblia
não seria um livro “inspirado por Deus” , se não tivesse muitas coisas que
ultrapassam a finita capacidade de entendimento do homem. Apesar disso,
ela contém muitas passagens que a pessoa menos instruída pode facilmente
compreender. Nesses versículos, se os considerarmos com bastante atenção,
podemos aprender lições importantes.
Primeiramente, encontramos uma grande doutrina comprovada de
maneira indireta. Essa doutrina é a imputação do pecado do homem a
Cristo. Aqui vemos o Salvador, o eterno Filho de Deus aflito e preocupado
em sua mente: “Agora está angustiada a minha alma” . Aquele que pôde
curar enfermidades apenas com o toque de sua mão, expulsar demônios
com uma palavra e ordenar aos ventos e ondas que O obedecessem, nós O
vemos aqui em intensa agonia e conflito de espírito. Como podemos explicar
isso?
Afirmar, como alguns o fazem, que a única causa da aflição de nosso
Senhor foi a contemplação antecipada de sua dolorosa morte na cruz é uma
explicação insatisfatória. Diante dessa explicação, alguém poderia afirmar
que alguns mártires demonstraram mais paciência e coragem do que o
próprio Filho de Deus. Esta conclusão é, no mínimo, revoltante. Contudo,
é a conclusão a que os homens são levados, se aceitam o moderno conceito
de que a morte de Cristo foi apenas um grande exemplo de auto-sacrifício.
Nada jamais pode explicar essa angústia de nosso Senhor, tanto aqui
quanto no Getsêmani, exceto a antiga doutrina de que Ele sentiu o fardo
dos pecados do homens causando-Lhe aflição. O intenso peso da culpa do
mundo estava sendo imputado e colocado sobre Ele, fazendo-O agonizar e
clamar: “Agora está angustiada a minha alma” . Sempre abracemos esta
doutrina, não apenas para compreendermos esta passagem bíblica, mas
também como a única base de vigoroso conforto para a alma do crente.
Nossos pecados realmente foram lançados sobre Ele e levados pelo nosso
divino Substituto; a justiça dEle é imputada em nosso favor — estas são as
verdadeiras garantias da paz que o crente desfruta. E, se alguém nos pergunta
como sabemos que nossos pecados foram colocados sobre Cristo, re­
comendamos que leia passagens como esta que estamos considerando e, se
puder, explique-a de conformidade com algum outro princípio. Cristo levou,
suportou e gemeu sob o fardo de nossos pecados, sendo “angustiado” por
causa do peso deles; o Senhor Jesus realmente pagou o preço pelos nossos
pecados. Estejamos certos: isto é sã doutrina e teologia bíblica.
Em segundo, nesses versículos encontramos um grande mistério
desvendado. O mistério é a possibilidade de existir um intenso conflito
íntimo sem a ocorrência de pecado. Não podemos deixar de perceber no
162 João 12.27-33

relato uma forte luta no coração de nosso Senhor. Provavelmente temos


uma vaga idéia referente à profundidade e dimensão dessa luta. No entanto,
o agonizante clamor: “Agora está angustiada a minha alma” , a solene
pergunta: “E que direi eu?” , a súplica de alguém que estava sofrendo:
“Pai, salva-me desta hora”; a humilde confissão: “Precisamente com este
propósito vim para esta hora” ; a petição característica de uma vontade
perfeitamente submissa: “Pai, glorifica o teu nome” — o que tudo isso
significa? Com certeza, existe apenas uma resposta: estas frases nos revelam
uma luta no íntimo de nosso Senhor, uma luta que surgiu dos sentimentos
naturais dAquele que era um homem completo e, nesta condição, podia
sofrer tudo o que os homens sofrem.
Mas esta angústia aconteceu nAquele que era o Filho de Deus, e “ne­
le não existe pecado” (1 Jo 3.5). Para todos os genuínos servos de Cristo,
há uma inesgotável fonte de consolo nesta verdade, que jamais deve ser
esquecida. Eles devem aprender, do exemplo de seu Senhor, que conflitos
interiores não são necessariamente algo pecaminoso. Acreditamos que
muitos, por não entenderem esse fato, sofrem durante todos os dias em
que estão peregrinando rumo ao céu. Imaginam que não possuem a graça
divina, visto que percebem esta luta em seus corações. Eles se negam a
receber conforto do evangelho, porque sentem a batalha entre a carne e o
Espírito. Estes devem observar a experiência de seu Senhor e Mestre e
deixar de lado todos os seus temores. Estudem a experiência dos crentes
de todas as épocas, desde o apóstolo Paulo em diante, a fim de entenderem
que, assim como o Senhor Jesus teve conflitos interiores, assim também os
crentes devem passar por tais conflitos. Dar lugar à dúvida e à incredulidade
é incorreto e nos impede de gozar paz. Inquestionavelmente, existe um
desânimo que traz vergonha e precisa ser rejeitado, necessita de arre­
pendimento e ser trazido à fonte de pureza para todo pecado, a fim de que
o Senhor o perdoe. Entretanto, a simples presença de conflito em nosso
coração não é, em si mesma, pecado. O crente é reconhecido tanto por sua
paz quanto por suas lutas interiores.
Em terceiro, nesses versículos, encontramos um grande milagre
realizado. O milagre foi a voz celestial descrita nessa passagem, uma voz
que foi ouvida com tanta nitidez, que as pessoas imaginaram ter sido um
trovão. A voz proclamou: “Eu já o glorifiquei e ainda o glorificarei” .
Aquela maravilhosa voz manifestou-se três vezes durante o ministério
terreno de nosso Senhor. A primeira ocorreu em seu batismo, quando os
céus se abriram e o Espírito Santo desceu sobre Ele. A segunda, na
transfiguração, na ocasião em que Moisés e Elias apareceram por um
momento juntos com o Senhor, diante de Pedro, Tiago e João. A terceira,
nesta época em Jerusalém, em meio a uma grande multidão de seus
discípulos e de judeus incrédulos. Em todas as vezes, sabemos que era a
João 12.27-33 163

voz de Deus, o Pai. Entretanto, para saber o motivo por que esta voz foi
ouvida apenas nessas três ocasiões, precisamos especular. Isto é um mistério
profundo, e não pretendemos falar especificamente sobre ele.
Para nós deve ser o bastante crer que este milagre tinha o propósito
de mostrar a íntima e permanente relação entre o Pai e o Filho, durante
todo o ministério terreno do Filho. Em nenhuma ocasião de seu ministério
o Pai deixou de estar bem perto do Filho, embora isto não fosse perceptível
aos homens. Também devemos reconhecer que este milagre tinha o objetivo
de demonstrar aos que ali estavam a plena aprovação do Pai ao Filho como
Messias, o Redentor e Salvador dos homens. A aprovação veio do Pai
através das três oportunidades em que Ele falou audivelmente e através
dos milagres e poderosos feitos realizados pelo Senhor Jesus. Com certeza,
podemos crer em todas estas coisas. Porém, apesar de termos dito tudo
isso, devemos ainda confessar: esta voz foi um mistério. Com admiração e
temor lemos a seu respeito, mas somos incapazes de explicá-la.
Por último, nesses versículos, encontramos o pronunciamento de uma
grande profecia. O Senhor Jesus declarou: “E eu, quando for levantado da
terra, atrairei todos a mim mesmo” .
No que se refere ao significado destas palavras, pode haver somente
uma idéia na mente de qualquer pessoa esclarecida. Elas não significam
que, se a doutrina de Cristo crucificado for exaltada e proclamada pelos
ministros e ensinadores do evangelho, terá um efeito de atração nos que a
ouvirem. Simplesmente significam que a morte de Cristo, na cruz, teria
um efeito de atração em toda a raça humana. Sua morte, como nosso Subs­
tituto e como sacrifício pelos nossos pecados atrairia multidões, de todas
as nações, a crerem nEle e receberem-No como seu Salvador. Por ser
crucificado em nosso favor, e não por assumir um trono temporário, o
Senhor Jesus estabeleceria um reino no mundo e reuniria a Si mesmo os
súditos.
Esta profecia tem se cumprido na íntegra até agora, e a história da
igreja o comprova sobremaneira. Em todos os lugares do mundo, onde
quer que a história do Cristo crucificado tenha sido plenamente anunciada,
almas têm sido convertidas e atraídas a Ele, assim como o ferro é atraído
ao imã. Além da verdade sobre o Cristo crucificado, nenhuma outra satisfaz
tão exatamente as necessidades dos filhos de Adão, de todas as raças,
línguas e nações.
E esta profecia ainda não se exauriu; ainda terá uma realização mais
completa. Virá o dia em que todo o joelho se dobrará diante do Cordeiro,
que foi morto, e confessará que Ele é o Senhor, para a glória de Deus, o
Pai. Aquele que foi morto na cruz ainda se assentará no trono de glória e
diante dEle serão “atraídas” todas as nações. Amigos e inimigos, todos em
sua própria ordem, serão “atraídos” de seus sepulcros e comparecerão
164 João 12.27-33

diante do trono de julgamento do Senhor Jesus. Estejamos atentos para que


naquele dia nos encontremos entre os que ficarão à sua direita!

O Dever de Utilizar as Oportunidades;


A Dureza do Coração Humano;
O Poder do Amor Deste Mundo
Leia João 12.34-43

Desses versículos inicialmente aprendemos sobre o dever de utilizar


as oportunidades. O Senhor Jesus diz a todos: “Ainda por um pouco a luz
está convosco. Andai enquanto tendes a luz, para que as trevas não vos
apanhem... Enquanto tendes a luz, crede na luz” . Não pensemos que estas
coisas foram ditas apenas para abençoar os judeus, mas igualmente para
nós, sobre quem os fins dos tempos já chegaram.
A lição ensinada por estas palavras se aplica a todos os que se declaram
crentes em Jesus. O tempo para fazermos o bem neste mundo é breve e
limitado. O trono da graça não permanecerá para sempre; um dia ele será
removido, e o trono de juízo será estabelecido em seu lugar. A porta da
salvação pela fé não ficará sempre aberta; será fechada para sempre, e o
número dos eleitos estará completo. A fonte de purificação para todo pecado
e impureza não estará sempre acessível. O caminho que conduz a esta
fonte um dia será obstruído, e restará apenas o lago que arde em fogo e
enxofre. Estes são pensamentos solenes e verdadeiros; alertam os indolentes
membros de igreja e congregações entorpecidas e devem conduzir-nos a
examinar profundamente nossos próprios corações. Já fizemos tudo a fim
de propagar o evangelho em nosso país e no exterior? Todos os recursos já
foram utilizados para divulgar o conhecimento de Cristo crucificado?
Podemos ficar tranqüilos em nossas consciências e dizer que as igrejas não
deixaram nada a ser feito no que se refere a missões? Podemos aguardar a
segunda vinda de Cristo com sentimentos de humildade, afirmando que
nossos talentos de riqueza, influência e oportunidades não foram enterrados?
Estas perguntas podem nos humilhar, quando consideramos, por um lado,
o estado da igreja de hoje e, por outro, a situação do mundo sem Cristo.
Temos de confessar, com vergonha, que a igreja não está andando de
acordo com a luz que possui.
Mas a lição ministrada por estas palavras aplica-se de maneira espe­
cial a nós mesmos. O tempo para fazermos o bem é curto e limitado;
estejamos atentos para que o utilizemos com sabedoria. Andemos enquanto
temos a luz. Possuímos bíblias, não sejamos negligentes em sua leitura.
João 12.34-43 165

Conhecemos o evangelho? Não duvidemos de seus ensinos, mas creiamos


para a salvação de nossas almas. O dia de descanso é um de nossos
privilégios? Não o desperdicemos ociosamente, com descuido e indiferença,
mas dediquemo-nos, com todo o coração, a sagradas realizações, con­
siderando-as sublimes. A luz está ao redor e perto de nós, por todos os
lados. Devemos resolver andar nela, enquanto a temos, para que, ao final,
não sejamos lançados fora, nas trevas exteriores, para sempre. São ver­
dadeiras as palavras de um falecido teólogo: “A recordação de oportunidades
perdidas e mal utilizadas será a própria essência do inferno” .
Em segundo, nesses versículos aprendemos sobre a profunda dureza
do coração humano. Está escrito a respeito dos moradores de Jerusalém:
“Embora tivesse feito tantos sinais na sua presença, não creram nele” .
Cometemos um grande erro ao supor que o contemplar a realização
de milagres converte os pecadores. Milhares de pessoas vivem e morrem
nesta ilusão. Imaginam que, se testemunharem algum milagre espetacular
ou alguma manifestação sobrenatural da graça de Deus, suas dúvidas serão
removidas e se tomarão crentes resolutos. Esta é uma grande ilusão. Somen­
te uma nova natureza e um novo coração implantados em nós pelo Espíri­
to Santo nos tomarão verdadeiros discípulos de Cristo. Sem isto, um
poderoso milagre pode criar uma empolgação temporária, mas, logo que
este sentimento passar, nos encontraremos tão frios e incrédulos quantos
os judeus.
A predominância de incredulidade e indiferença em nossos dias não
deve causar-nos surpresa. Apenas evidencia a fundamental doutrina da
completa depravação e queda do homem. Nossa fraca compreensão desta
doutrina é comprovada por nossa surpresa diante da incredulidade humana.
Leiamos nossas bíblias com mais atenção, examinando mais cuidadosamente
seu conteúdo. Mesmo quando Cristo realizava milagres e pregava sermões,
muitos de seus ouvintes permaneciam completamente inalterados. Que
direito temos de admirar-nos se os ouvintes modernos, em muitas ocasiões,
permanecem incrédulos? “O discípulo não está acima do seu M estre.” Se
os próprios ouvintes de Cristo não creram, quanto maior incredulidade
devemos encontrar entre aqueles que ouvem os ministros do evangelho?
Devemos testemunhar e confessar a verdade! A obstinada incredulidade
do homem é uma das provas de que a Bíblia é verdadeira. A famosa profecia
de Isaías começa com estas solenes palavras: “Quem creu em nossa
pregação?” (Is 53.1).
Por último, aprendemos sobre o admirável poder que o amor ao
mundo exerce no homem. Somos informados que “muitos dentre as próprias
autoridades creram nele, mas, por causa dos fariseus, não o confessavam,
para não serem expulsos da sinagoga; porque amaram mais a glória dos
homens do que a glória de Deus” .
166 João 12.34-43

Evidentemente, esses infelizes estavam convencidos de que Jesus era


o Messias. A consciência, a mente e o raciocínio deles os obrigava a
admitirem, em oculto, que ninguém poderia realizar aqueles milagres se
Deus não estivesse com Ele e que Jesus de Nazaré era o Cristo de Deus.
Mas eles não tiveram coragem de confessar isso. Não se arriscaram a
enfrentar o ridículo e, talvez, a perseguição envolvidos em tal confissão.
Desta maneira, covardemente ficaram quietos e guardaram consigo mesmos
as suas convicções.
Casos semelhantes a estes infelizmente são muito comuns. Há milhões
de pessoas que sabem muito mais a respeito do cristianismo do que colocam
em prática. Sabem que deveriam tornar-se crentes resolutos e que não
estão vivendo de acordo com a luz que possuem. Mas o temor dos homens
os impede de abandonar seu caminho. Têm receio de serem zombados,
escarnecidos e desprezados pelo mundo. Odeiam perder a boa reputação
da sociedade e o julgamento favorável de homens e mulheres semelhantes
a eles. E, assim, eles passam os anos, ocultamente intranqüilos e insatisfeitos
consigo mesmos, sabendo demais acerca de religião, para serem felizes no
mundo, e apegando-se demais ao mundo, para apreciarem o verdadeiro
cristianismo.
A fé é o único remédio para uma doença como esta. Uma crença fir­
me em Deus, em Cristo, em um céu invisível e na certeza do Dia do Juízo
— este é o grande segredo para alguém vencer o temor do homem. O
expulsivo poder de um novo princípio de vida é necessário para que esta
doença seja curada. “Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1 Jo
5.4). Oremos suplicando por fé, se desejamos vencer o inimigo mortal de
nossas almas, o temor do homem e o amor ao louvor dele. Se tivermos fé,
oremos mais ainda. Clamemos diariamente: “Senhor, aumenta-nos a fé” .
Com facilidade, podemos ter muito dinheiro e prosperidade mundana;
todavia, jamais possuiremos muitíssima fé.

A Dignidade de Cristo;
A Certeza do Juízo Vindouro
Leia João 12.44-50

Esses versículos esclarecem dois assuntos que nunca chegaremos a


entender totalmente. A paz que desfrutamos e a vigilância que demonstramos
em nossa vida diária estão intimamente vinculadas a um nítido entendimento
destes assuntos.
Primeiramente, esses versículos nos falam sobre a dignidade do Senhor
João 12.44-50 167

Jesus. Nós O encontramos afirmando: “Quem me vê a mim vê aquele que


me enviou. Eu vim como luz para o mundo, a fim de que todo aquele que
crê em mim não permaneça nas trevas”. A união de Cristo com o Pai e o
ofício de Cristo são claramente apresentados nestas palavras.
No que se refere à união existente entre o Pai e o Filho, temos de nos
alegrar em crer com reverência naquilo que somos incapazes de assimilar
em nossas m entes ou explicar plenam ente. Deve nos satisfazer o
conhecimento de que nosso Salvador não era semelhante aos patriarcas e
aos profetas, alguém enviado por Deus, o Pai, um amigo e testemunha
dEle. O Senhor Jesus era mais sublime e elevado do que isto. Em sua
natureza divina, Ele era essencialmente um com o Pai; se alguém via a
Jesus, estava vendo o Pai, que O enviara. Este é um grande mistério, uma
verdade muitíssimo importante para as nossas almas. Aquele que pela fé
lança seus pecados sobre o Senhor Jesus está edificando sua casa sobre a
rocha. Crer em Jesus significa crer não apenas nEle, mas também nAquele
que O enviou.
No que se refere ao ofício de Cristo, não há dúvida de que Ele compara
a si mesmo com o sol. Assim como o sol, o Senhor Jesus surgiu neste
mundo entenebrecido pelo pecado, trouxe salvação e resplandece em
benefício de todos os homens. Assim como o sol, o Senhor Jesus é a fonte
e a essência de toda vida, conforto e frutificação espiritual. Assim como o
sol, o Senhor Jesus ilumina toda a terra, de modo que ninguém erre o
caminho que conduz ao céu, se tão-somente utilizar a luz que Ele oferece.
Permitamos que Cristo ocupe uma posição sublime em nossa vida
espiritual. Nunca poderemos confiar excessivamente nEle, segui-Lo com
plena intimidade e ter suficiente comunhão com Ele. Cristo possui todo
poder nos céus e na terra, sendo poderoso para salvar totalmente aqueles
que por intermédio dEle se achegam a Deus. Ninguém será capaz de nos
tirar das mãos dAquele que é um com o Pai. Jesus torna alegre, simples e
estimulante toda a nossa jornada em direção ao céu, assim como o sol traz
estímulo para o peregrino continuar sua viagem. Olhando para Jesus,
acharemos luz para o nosso entendimento e para o caminho pelo qual
devemos andar; sentiremos essa luz em nossos corações e os dias de trevas,
que às vezes surgirão, se tornarão resplandecentes. Somente devemos
permanecer nEle, contem plando-0 com determinação. Encontramos
profundo significado nestas palavras de Jesus: “São os olhos a lâmpada do
corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso” (Mt
6 .22).
Outra verdade mostrada nesses versículos é a certeza do julgamento
vindouro. Vemos nosso senhor dizendo: “Quem me rejeita e não recebe as
minhas palavras tem quem o julgue; a própria palavra que tenho proferido,
essa o julgará no último dia” .
168 João 12.44-50

Haverá um último dia! O mundo não permanecerá sempre da mesma


maneira. Comprar e vender, semear e colher, planejar e construir, casar-
se e dar-se em casamento — tudo isto terá um fim. O Pai designou um dia
em que todo o ciclo da criação há de parar, e a época presente será removida,
dando lugar a outra. A criação teve um início; portanto, terá um fim. O
comércio e os bancos cessarão para sempre suas atividades. Os parlamentos
serão dissolvidos. O próprio sol, que desde a época do dilúvio tem realizado
fielmente seu trabalho, despontará e nunca desaparecerá no ocaso. Seríamos
beneficiados se pensássemos mais nesse dia! Nascimentos, aniversários,
casamentos freqüentemente são considerados dias de interesse especial,
mas nada significam quando comparados ao último dia.
O julgamento virá! Assim como os homens têm seus dias de ajuste de
contas, também Deus terá o seu. A trombeta soará, os mortos ressuscitarão
incorruptíveis, os vivos serão transformados. E todas as pessoas, de cada
nação, tribo e idioma, comparecerão diante do trono de Cristo, para serem
julgadas. Os livros serão abertos e as evidências, demonstradas. Nosso
verdadeiro caráter será revelado diante de todos. Ninguém escapará daquele
dia, não haverá dissimulação e fingimentos. Todos prestarão contas de si
mesmos a Deus, serão julgados de acordo com suas obras. Os ímpios
serão lançados na condenação eterna, e os justos gozarão a vida eterna.
Estas são verdades que nos causam medo, mas que precisam ser
proclamadas. Não devemos ficar admirados com o fato de que Félix, o
governador romano, ficou amedrontado quando o apóstolo Paulo discorreu
“acerca da justiça, do domínio próprio e do juízo vindouro” (At 24.25).
Apesar disso, o crente no Senhor Jesus não tem motivo para sentir-se
temeroso. Para o crente não há qualquer condenação; portanto, naquele
grande julgamento ele não precisará ficar aterrorizado. As vicissitudes de
sua vida testemunharão em seu favor, ao passo que suas imperfeições não
o condenarão. O homem que rejeita a Cristo, não atende sua chamada e
não se arrepende terá motivos para, no julgamento do último dia, ficar
desanimado e temeroso.
Este pensamento deve ter um efeito prático em nosso cristianismo.
Julguemo-nos diariamente com reta justiça, a fim de que não sejamos
julgados e condenados pelo Senhor. Temos de falar e agir como homens
que serão julgados pela lei da liberdade. Estejamos atentos a tudo que
fazemos diariamente e jamais esqueçamos de que daremos conta de cada
palavra ociosa no Dia do Juízo. Em resumo, precisamos viver como pessoas
que crêem na verdade acerca do juízo vindouro, do céu e do inferno.
Vivendo desta maneira, seremos verdadeiros crentes e teremos ousadia no
dia em que Cristo se manifestar.
O crente deve utilizar o Dia do Juízo como resposta, quando os
incrédulos o ridicularizarem, considerando-o demasiadamente correto,
João 12.44-50 169

preciso e cuidadoso em sua religião. Durante algum tempo, a incredulidade


talvez pareça ser algo bom, enquanto o homem está desfrutando de boa
saúde, prosperidade e pensa somente nas coisas do mundo. Mas aquele
que acredita que terá de prestar contas ao Juiz de vivos e mortos, em sua
manifestação e no seu reino, jamais ficará contente em viver na impiedade.
Ele dirá: “Haverá um julgamento. Não posso deixar de servir a Deus.
Cristo morreu por mim. Não serei capaz de servi-Lo com tanta intensidade
quanto Ele merece” .

A Paciência e o Constante Amor de Cristo;


A Profunda Corrupção de Alguns Religiosos
Leia João 13.1-5

Esses versículos iniciam uma das mais interessantes partes do


Evangelho de João. Em cinco capítulos seguidos, o apóstolo relata
acontecimentos não mencionados por Mateus, Marcos e Lucas. Jamais
poderemos ser gratos em medida suficiente pelo fato de que o Espírito
Santo os escreveu para o nosso aprendizado. Em todos os séculos da era
cristã, o conteúdo destes capítulos tem sido corretamente considerado como
uma das partes mais preciosas da Palavra de Deus. São comida e bebida,
fortaleza e conforto para todos os verdadeiros crentes. Sempre os leiamos
e estudemos com muita reverência. O solo que estamos pisando é terra
santa.
Inicialmente, aprendemos desses versículos que o Senhor Jesus possui
um constante e paciente amor por seu povo. Está escrito: “Jesus... tendo
amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” . Sabendo per­
feitamente que seus discípulos estavam para abandoná-lo, de maneira
vergonhosa, em alguns momentos mais tarde, e contemplando a vindoura
demonstração de fraqueza e imperfeição da parte deles, nosso bendito Senhor
não deixou de nutrir pensamentos amáveis a respeito de seus discípulos.
Jesus não se cansou deles; e os amou até ao fim.
O amor de Cristo para com os pecadores é a própria essência do
evangelho. Ele nos amou e se preocupou conosco, antes mesmo de O co­
nhecermos, e nos amou ao ponto de vir ao mundo para salvar-nos, assumir
a natureza humana, levar sobre Si os nossos pecados e morrer em nosso
favor, na cruz — tudo isto é realmente maravilhoso! O intenso egoísmo da
raça humana não pode compreender plenamente esta verdade. É um dos
assuntos sobre os quais os anjos de Deus “anelam perscrutar” . Esta é uma
170 João 13.1-5

verdade que os pastores e ensinadores cristãos devem proclamar inces­


santemente e nunca sentirem-se cansados.
O amor de Cristo para com os crentes não é menos maravilhoso do
que o amor dEle para com os pecadores, embora estes não valorizem o
amor dEle. O Senhor Jesus levou todas as inumeráveis iniqüidades dos
pecadores; não desanimou diante das intermináveis inconsistências e
provocações deles; perdoou e esqueceu constantemente, não sendo em
momento algum motivado a rejeitá-los ou a desistir deles — todos esses
fatos são realmente maravilhosos! Não encontramos qualquer mãe que,
lidando com a teimosia de seu filho na infância, demonstre possuir uma
paciência tão completa quanto a de Cristo, ao ser provado por seus
discípulos. A longanimidade dEle é infinita. Sua compaixão assemelha-se
a uma fonte inesgotável. Seu amor “excede todo entendimento” .
Nenhuma pessoa deve ter receio de vir a Cristo, se deseja ser salva.
O pior dos pecadores pode vir a Jesus e, com segurança, confiar nEle para
obter perdão. Este amável Salvador se deleita em receber os pecadores (Lc
15.2). Devemos nós, que já viemos a Ele e cremos, continuar andando
com Ele, sem temor. Ninguém deve imaginar que Jesus o abandonará por
causa de suas falhas. Ele nunca rejeitará um servo por causa de seu deficiente
e imperfeito serviço. Os que são recebidos por Cristo são preservados por
Ele. Os que são amados por Ele a princípio serão amados até ao fim. Sua
promessa jamais falhará, servindo aos santos e aos pecadores: “Todo aquele
que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o
lançarei fora” (Jo 6.37).
Também aprendemos desses versículos que podemos encontrar
profunda corrupção no íntimo daqueles que professam ser cristãos. Somos
informados que “o diabo” pôs “no coração de Judas Iscariotes, filho de
Simão, que traísse a Jesus” .
Judas, devemos recordar, era um dos doze apóstolos. Havia sido
escolhido pelo próprio Senhor Jesus, ao mesmo tempo que Pedro, Tiago,
João e os outros apóstolos. Durante três anos em que andou com Cristo,
Judas contemplou os milagres, ouviu as mensagens e viu muitas provas da
amável bondade de nosso Senhor. Judas sem dúvida foi um daqueles que
pregou e realizou milagres em nome de Cristo, quando Ele mandou seus
discípulos dois a dois. Contudo, aqui nós o vemos possuído por Satanás,
caminhando para a destruição.
Em todos os lugares litorâneos existem faróis para avisar os
marinheiros sobre o perigo, assim como Judas serve de alerta a todos os
crentes. Ele nos mostra que alguém pode declarar que tem uma profunda
experiência religiosa e, apesar disso, tornar-se um terrível hipócrita,
demonstrando ao final que jamais se converteu. Ele nos mostra a inutilidade
de possuir elevados privilégios sem que a pessoa os valorize e os utilize
João 13.1-5 171

para o seu próprio bem. Desfrutar privilégios sem possuir a graça divina
não salva qualquer pessoa e, além disso, tomará mais intensa a condenação.
Judas nos mostra a inutilidade do conhecimento apenas intelectual. Saber
as coisas em nossas mentes e sermos capazes de falar e pregar aos outros
não prova que estamos no caminho da paz. Estas são lições terríveis, mas
são verdadeiras.
Jamais nos surpreendamos ao ver a hipocrisia e a falsa confissão de
alguns crentes de nossos dias. Isto não é algo novo ou especial; já aconteceu
entre os próprios apóstolos de Cristo. O dinheiro falso é uma grande con­
firmação de que existe o verdadeiro em algum lugar. A hipocrisia religiosa
é uma evidência indireta de que existe a vida espiritual genuína.
Acima de tudo, devemos orar diariamente para que nosso cristianismo
seja verdadeiro, sincero e puro. Talvez tenhamos uma fé sem muito vigor,
nossa esperança ainda não seja bem definida, nossas falhas constantes e
muitas; mas, em todos esses casos, sejamos genuínos, sinceros. Devemos
ter a capacidade de confessar, assim como o temeroso, frágil e vacilante
apóstolo Pedro: “Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo”(Jo
21.17).

A Ignorância de Pedro;
Lições Práticas e Evidentes;
Profundas Verdades Espirituais
L eia João 13.6-15

Os versículos que agora abordamos concluem a história da lavagem


dos pés dos discípulos realizada por nosso Senhor, naquela noite que
antecedeu a sua crucificação. Esta história está repleta de cativante influência
para os crentes; por algum motivo os outros evangelistas não a relataram.
A admirável condescendência de nosso Senhor em realizar um ato tão
servil com facilidade pode atingir as emoções de qualquer leitor. O simples
fato de que o Senhor Jesus lavou os pés de seus servos causa-nos bastante
surpresa. Mas as circunstâncias e as afirmações que resultam dessa atitude
mostram-se tão interessantes quanto o próprio ato de lavar os pés.
Devemos observar inicialmente a precipitada ignorância do apóstolo
Pedro. Em um momento, nós o vemos recusando-se permitir que seu Mestre
realizasse aquele humilde serviço de lavar seus pés: “Senhor, tu me lavas
os pés a mim? Nunca me lavarás os pés” . Logo em seguida, vemo-lo
demonstrar sua característica impetuosidade no outro extremo: “Senhor,
não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça” . Porém, durante
172 João 13.6-15

toda a lavagem do pés, percebemos que Pedro não compreendeu o


verdadeiro significado do que estava sendo realizado. Ele viu mas não
compreendeu.
Dessa atitude do apóstolo Pedro devemos aprender que alguém pode
ter abundância de fé e amor, mas infelizmente estar destituído de um co­
nhecimento nítido. Não devemos reputar tais pessoas como incrédulas e
ímpias, somente porque não agem com inteligência, sensibilidade e cuidado
em sua vida espiritual. É necessário que sejamos tolerantes às deficiências
de entendimento, bem como às imperfeições da vontade. Não fiquemos
surpresos se percebermos que a capacidade de entendimento, assim como
as afeições, de alguns dos filhos de Adão tem sido corrompida pela Queda.
É uma lição que nos humilha e que só aprendemos completamente após
longas experiências. No entanto, quanto mais prosseguimos em nossa jor­
nada cristã, tanto mais perceberemos que um cristão, tal como Pedro, tal­
vez cometa muitos erros e demonstre falta de compreensão, mas, apesar
disso, esse cristão possui um coração reto diante de Deus e, no final,
também irá ao céu.
Ainda que estejamos no melhor de nossa vida espiritual, perceberemos
que às vezes é difícil entendermos a maneira do Senhor Jesus lidar conosco.
O “porquê” de muitas providências freqüentemente nos deixará perplexo e
admirados, assim como o lavar dos pés causou perplexidade no apóstolo
Pedro. A sabedoria, a conveniência e a necessidade de muitas coisas cons­
tantemente permanecerá oculta ao nosso entendimento. Em ocasiões assim,
devemos recordar as palavras de Jesus e nelas descansar: “O que eu faço
não o sabes agora; compreendê-lo-ás depois” . Algum tempo depois da
morte do Senhor Jesus, Pedro compreendeu o pleno significado de tudo
que aconteceu naquela memorável noite que antecedeu a crucificação. De
modo semelhante, haverá um dia em que todos os dias obscuros da história
de nossa vida serão explicados e, quando estivermos com Cristo na glória,
saberemos tudo a respeito deles.
Em segundo, devemos observar que nessa passagem encontramos
uma lição prática e evidente, transmitida pelo próprio Senhor Jesus. Ele
afirmou: “Eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós
também” .
Sem dúvida, a humildade é um dos aspectos desta lição. Se o unigénito
Filho de Deus, o Rei dos reis, pensou que não seria indigno para Ele rea­
lizar o humilde serviço de escravo, não existe coisa alguma que seus dis­
cípulos possam reputar menos importante ou digna para eles fazerem.
Nenhum pecado é tão ofensivo e prejudicial à alma quanto o orgulho.
Nenhuma virtude é tão recomendada, por exemplo e preceito, como a
humildade. “Cingi-vos todos de humildade” (1 Pe 5.5). “O que se humilha
será exaltado” (Lc 18.14). “Tende em vós o mesmo sentimento que houve
João 13.6-15 173

também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não


julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou,
assumindo a forma de servo, tomando-se em semelhança de homens; e,
reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tomando-se
obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2.5-8). Seria bom se a igreja
recordasse mais esta verdade e a humildade não fosse tão escassa entre
seus membros. Talvez não exista pessoa tão desagradável aos olhos de
Deus quanto a que professa o cristianismo e, ao mesmo tempo, pensa de
maneira elevada a respeito de si mesma, demonstrando auto-exaltação,
contentamento consigo mesma e orgulho. Infelizmente esse tipo de pessoa
é muito comum na igreja contemporânea. No entanto, as palavras que João
registrou jamais foram revogadas; pelo contrário, elas se tomarão uma
testemunha contra muitos no último dia, a menos que se arrependam.
O amor é a outra parte evidente desta grande e prática lição. Nosso
Senhor deseja que amemos aos outros de tal modo que nos deleitemos em
fazer coisas que promovem a felicidade deles. Temos de nos regozijar em
fazer o bem, mesmo nas pequenas coisas. Devemos reconhecer como um
prazer a atitude de amenizar o sofrimento dos outros e multiplicar-lhes a
alegria, ainda que isto exija de nós algum sacrifício e abnegação. Precisamos
amar cada pessoa de tal maneira que, se ela estiver na menor aflição,
sejamos capazes de fazer algo que a tomará mais feliz e consolada. Devemos
alegrar-nos em agir assim. Esta foi a mentalidade do Senhor Jesus e o
princípio que governava sua vida na terra. Existem apenas alguns que
andam nos passos dele, e estes são homens e mulheres que vivem em
harmonia com Ele.
Esta lição parece bem simples, porém é importante e nunca deve ser
menosprezada. Humildade e amor são exatamente as virtudes que os homens
do mundo entendem, ainda que não compreendam as doutrinas cristãs. Há
virtudes sobre as quais não existe mistério, virtudes encontradas em pessoas
de todas as classes sociais. O crente mais simples e menos instruído pode
a cada dia descobrir ocasiões em que praticará o amor e a humildade. Para
tom ar cada vez mais firme nossa vocação e eleição e fazer o bem ao
mundo, não devemos esquecer este exemplo de nosso Senhor. Assim como
Ele, devemos nos humilhar e amar a todos.
Por último, devemos observar que essa passagem nos ensina três
verdades profundas e espirituais. Estas verdades constituem a base da
verdadeira religião, embora as consideraremos apenas de maneira abreviada.
Por um lado, aprendemos que todos precisam ser lavados por Cristo.
“Se eu não te lavar, não tens parte comigo” . Nenhuma pessoa será salva a
menos que seus pecados sejam lavados no precioso sangue de Cristo.
Somente este sangue é capaz de purificar-nos e fazer-nos aceitáveis diante
de Deus. Precisamos ser lavados, santificados e justificados em “nome do
174 João 13.6-15

Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus” (1 Co 6.11). É necessário


que o Senhor Jesus nos lave, para que nos assentemos na glória juntamente
com os santos. Portanto, asseguremo-nos de que já viemos a Ele pela fé,
para nos lavar e tomar puros. Somente aqueles que crêem nEle são realmente
lavados.
Por outro lado, aprendemos que mesmo os que já foram lavados e
perdoados necessitam diariamente do sangue de Cristo para serem
purificados. Não podemos viver neste mundo impuro e permanecer in-
contaminados. Não existe um dia de nossas vidas em que não falhamos e
pecamos em pequenas coisas, necessitando de renovada misericórdia da
parte do Senhor. “Quem já se banhou não necessita lavar senão os pés” , e
precisa lavá-los na mesma fonte onde, quando creu, encontrou paz para
sua consciência. Por conseguinte, devemos começar e prosseguir na vida
cristã servindo-nos do mesmo sangue.
Finalmente, aprendemos que nem todos os que andavam na companhia
de Cristo e haviam sido batizados como discípulos haviam sido “limpos”
de seus pecados. Estas são palavras solenes: “Vós estais limpos, mas não
todos” . Estejamos atentos quanto a nós mesmos e certos de que não somos
falsos discípulos. Se alguns que professam seguir a Cristo ainda não foram
purificados e justificados, temos razão para ficarmos alertas a respeito de
nós mesmos. O batismo e o ser membro de uma igreja não provam que
fomos justificados diante de Deus.

O Crente não Deve Envergonhar-se


de Seguir o seu Senhor;
A Inutilidade do Conhecimento
Destituído da Prática;
Cristo Conhece Perfeitamente Todo o seu Povo;
A Dignidade do Discipulado
L eia João 13.16-20

Se desejamos entender o significado completo desses versículos,


devemos observar com cuidado sua posição no contexto do capítulo. Eles
seguem imediatamente o notável relato sobre Jesus lavando os pés dos
discípulos. Estão em íntima conexão com a solene ordem de Cristo, ao
dizer a seus discípulos que O imitassem fazendo como Ele havia feito.
Após esta ordem, temos os cinco versículos que agora consideramos.
Nesses versículos somos instruídos que os crentes nunca devem se
João 13.16-20 175

envergonhar de fazer qualquer coisa que seu Mestre fez. Ele disse: “Em
verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que seu senhor,
nem o enviado, maior do que aquele que o enviou”.
Sem dúvida nosso Senhor, que vê todas as coisas, percebeu em seus
discípulos uma crescente indisposição para fazer coisas triviais semelhantes
a que Ele acabara de realizar. Ensoberbecidos por sua expectativa referentes
a tronos e um reino neste mundo, intimamente satisfeitos com sua posição
como amigos de nosso Senhor, esses galileus ficaram chocados com a
idéia de lavar os pés de outras pessoas! Eles não podiam acreditar que
servir ao Messias envolvia uma tarefa como esta. Não eram ainda capazes
de admitir a sublime verdade de que a grandeza do verdadeiro crente consiste
em fazer o bem aos outros. Por conseguinte, precisavam de uma advertência
da parte do Senhor. Se Ele não tivesse se humilhado ao ponto de realizar
serviços humildes, seus discípulos teriam hesitado em imitá-Lo neste
aspecto.
Precisamos sempre recordar esta lição. Manifestamos grande tendência
para rejeitar qualquer atividade que parece envolver dificuldade, renúncia
e o descer ao nível de nossos inferiores. Estamos sempre prontos a delegar
aos outros esse tipo de serviço, desculpando-nos: “Não tenho condições
de fazer isso” . Quando surgem atitudes desse tipo em nosso coração,
devemos recordar as palavras e o exemplo de nosso Senhor nesta ocasião.
Jamais devemos pensar que demonstrar bondade às mais insignificantes
pessoas é algo que nos humilha. Não devemos fechar nossas mãos
simplesmente por que os objetos de nossa amabilidade são ingratos ou
indignos. Esta não foi a maneira de pensar de nosso Senhor, que tanto
lavou os pés de Judas Iscariotes como os de Pedro., Aquele que não pode
humilhar-se para andar no exemplo de seu Senhor demonstra pouca
evidência de possuir a humildade e o amor verdadeiros.
Também aprendemos nesses versículos que o conhecimento das coisas
espirituais destituído de sua prática é inútil. O Senhor Jesus disse: “Ora,
se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as praticardes” . Estas
palavras soam como uma advertência de nosso Senhor aos seus discípulos,
notificando-os que nunca seriam realmente felizes, no serviço dEle, se
ficassem contentes em possuir um conhecimento infrutífero de seus deveres
e não vivessem de acordo com tal conhecimento.
Esta lição merece ser constantemente recordada por todo verdadeiro
crente. É muito comum as pessoas afirmarem a respeito das doutrinas e de
seus deveres: “Nós a conhecemos; nós os sabemos” , ao mesmo tempo
que demonstram desobediência e incredulidade. Estes parecem iludir a si
mesmos com a idéia de que o conhecimento é digno de confiança e traz
redenção, ainda que não resulte em qualquer fruto na vida e no caráter. No
entanto, a verdade é exatamente o contrário. Saber o que devemos crer e
176 João 13.16-20

fazer e, ainda, não sermos afetados por tal conhecimento apenas aumenta
nossa culpa diante de Deus. Estar ciente do fato que os crentes devem ser
humildes e amáveis, mas, apesar disso, continuar demonstrando orgulho e
egoísm o apenas intensifica nossa condenação, a m enos que nos
arrependamos. A prática é a própria essência da vida espiritual. “Portanto,
aquele que sabe que deve fazer o bem e não o faz nisso está pecando” (Tg
4.17).
É lógico que jamais devemos desprezar o conhecimento. Em certo
aspecto, o conhecimento é o início do cristianismo na alma. Enquanto não
sabemos qualquer coisa a respeito do pecado, de Cristo, da graça de Deus,
do arrependimento, da fé ou da consciência, não somos, obviamente,
melhores do que os pagãos. Entretanto, não podemos tributar excessiva
importância ao conhecimento, pois este será inútil, a menos que produza
resultados em nossa conduta, influencie nossas vidas e transforme nossa
vontade. Na verdade, o conhecimento sem a prática mantêm-nos no estado
de criaturas ímpias. Os demônios disseram a Jesus: “Ah! Que temos nós
contigo, Jesus Nazareno? Vieste para perder-nos? Bem sei quem és: o
Santo de Deus!” . E Tiago afirmou que “os demônios crêem e tremem”
(Tg 2.19). Satanás conhece a verdade, porém não mostra qualquer
disposição em obedecê-la; por isso, é uma criatura miserável. Aquele que
deseja ser bem-sucedido no serviço de Cristo deve não apenas conhecer,
mas também praticar.
Esses versículos ainda nos ensinam o perfeito conhecimento que Cristo
possui a respeito de seu povo. Ele distingue entre a falsa confissão e a
verdadeira graça no coração. A igreja pode ser enganada e reputar como
ministros de Cristo homens que assemelham-se a Judas Iscariotes. No
entanto, Jesus nunca foi enganado, pois é capaz de sondar os corações. E,
nesta passagem, Ele declarou: “Eu conheço aqueles que escolhi” .
Este perfeito conhecimento de nosso Senhor constitui um pensamento
solene e aplica-se de duas maneiras. Primeiramente, deve alarmar o hipócrita
e conduzi-lo ao arrependimento. Ele deve lembrar que o onisciente Juiz já
perscrutou completamente seu coração e detectou a falta das vestes nupciais.
Se o hipócrita não deseja ser envergonhado quando todos estiverem reunidos
no dia do Juízo final, ele precisa abandonar sua falsa afirmação de ser
crente e confessar seu pecado, antes que seja tarde. Por outro lado, os
verdadeiros crentes devem pensar com tranqüilidade sobre o Salvador que
sabe todas as coisas. Ao serem mal compreendidos e difamados pelo mundo
corrupto, podem recordar que seu Senhor está ciente de todas as coisas. O
Senhor Jesus sabe que, embora fracos e imperfeitos, eles são verdadeiros
e sinceros. Virá o tempo em que Ele os confessará diante de seu Pai e
aperfeiçoará o caráter deles, tomando-os mais puros e mais resplandecentes
do que o sol de verão ao meio-dia.
João 13.16-20 177

Por último, aprendemos nesses versículos a verdadeira dignidade


dos discípulos de Cristo. O mundo talvez despreze e ridicularize os
seguidores de Cristo porque estes se preocupam mais com manifestações
de amor e humildade do que com o ganhar o mundo. Mas o Senhor os
ordena a lem brar sua comissão e não sentirem vergonha. Eles são
embaixadores de Deus e nenhuma de suas questões será rejeitada. O Senhor
Jesus declarou: “Em verdade, em verdade vos digo: quem recebe aquele
que eu enviar, a mim me recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me
enviou” .
Essa doutrina é uma fonte de encorajamento. Deve fortalecer e
revigorar todos os que se dedicam a fazer o bem, em especial, aos tristes e
necessitados. Esse tipo de atividade recebe pouca apreciação da parte dos
homens, e aqueles que a ela se dedicam freqüentemente são reputados
como entusiastas e enfrentam muita oposição. Mas eles devem continuar
neste serviço, fortalecendo-se nas palavras de Cristo. Gastar-se e deixar-se
gastar na tentativa de fazer o bem nos toma mais dignos de honra, aos
olhos de Cristo, do que comandar um exército ou acumular grandes riquezas.
As poucas pessoas que servem a Cristo desta maneira não têm motivo para
sentirem-se envergonhadas. Não devem desanimar se forem zombadas,
escarnecidas e desprezadas pelos filhos do mundo. Virá o dia em que
ouvirão estas palavras: “Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do
reino que vos está preparado desde a íúndação do mundo” (Mt 35.34).

As Aflições que Cristo Suportou;


O Poder e a Malignidade de Satanás;
A Iniquidade dos que Abandonam a Cristo
Leia João 13.21-30

O assunto dessa passagem é bastante doloroso. Descreve o último


diálogo entre Jesus e Judas Iscariotes, o falso apóstolo. Contêm as últimas
palavras de um para o outro, antes que ambos partissem deste mundo.
Parece que eles não se encontraram mais na terra, exceto no jardim do
Getsêmani, quando nosso Senhor foi levado preso. Pouco tempo depois,
tanto o Senhor quanto seu traiçoeiro servo estariam mortos. Jamais se
encontrariam novamente na vida física, até que a trombeta soe, os mortos
sejam ressuscitados, o tribunal de juízo seja estabelecido e os livros sejam
abertos. Que terrível encontro será aquele!
Primeiramente, devemos observar que grande aflição nosso Senhor
enfrentou por amor a nossas almas. Somos informados que, logo após
178 João 13.21-30

lavar os pés dos discípulos, “angustiou-se Jesus em espírito e afirmou: Em


verdade, em verdade vos digo que um dentre vós me trairá” .
Toda a amplitude das aflições de nosso Mestre, durante seu ministério
terreno, está muito além da compreensão da maioria das pessoas. Sua
morte, seus sofrimentos na cruz foram apenas o clímax, a consumação de
suas aflições. Durante toda a sua vida, em parte por causa da incredulidade
geral dos judeus, por causa do ódio dos fariseus e saduceus e por causa da
fraqueza e imperfeição de seus próprios discípulos, Ele foi um “homem de
dores e que sabe o que é padecer” (Is 53.3).
A angústia descrita nessa passagem foi excepcional, singular. Foi a
profunda tristeza de ver um dos apóstolos escolhidos tornar-se
voluntariamente um apóstata, um grande traidor. Sem dúvida esta foi uma
angústia que nosso Senhor havia previsto; entretanto, a angústia não se
tomou menos dolorosa apenas porque já era conhecida de antemão. É
evidente que esta foi uma angústia lancinante, pois nada é tão insuportável
para nós como a ingratidão. Um poeta contemporâneo afirmou que “nada
é mais doloroso do que ter um filho ingrato”. A rebeldia de Absalão parece
ter sido a maior das aflições de Davi; e a traição de Judas, a maior das
aflições do Filho de Davi. Quando percebeu aproxim ar-se aquele
acontecimento, “angustiou-se Jesus em espírito” .
Através de passagens como essa devemos perceber o admirável amor
de Cristo pelos pecadores. Quantos cálices de angústia Ele bebeu a fim de
consumar a obra de salvação, além do imenso cálice de levar sobre Si os
nossos pecados! Tais passagens nos mostram que temos poucos motivos
para murmurar quando nossos amigos falham para conosco e os homens
nos desapontam. Se bebemos do cálice de nosso Senhor, não precisamos
ficar surpresos. Acima de tudo, passagens como essa nos mostram a perfeita
capacitação de Cristo como nosso Salvador. Ele simpatiza conosco. Ele
mesmo sofreu e, por isso, pode entender os sentimentos daquele que são
maltratados e se vêem abandonados.
Em segundo, devemos observar nesses versículos o poder e a
malignidade de nosso grande inimigo, Satanás. No início do capítulo, o
apóstolo dissera que o diabo havia “posto no coração de Judas Iscariotes,
filho de Simão, que traísse a Jesus”. Agora, João revela que Satanás
“entrou” em Judas Iscariotes. Primeiro, Satanás sugere; depois, ele dá
ordens à pessoa. Primeiro, ele bate à porta e solicita permissão para entrar;
depois que está na casa, ele se apossa completamente e, à semelhança de
um tirano, controla todo o íntimo do homem.
Tenhamos cuidado para que não sejamos ignorantes quanto aos
desígnios de Satanás (2 Co 2.11). Ele ainda está passeando pela terra,
procurando alguém para devorar. Ele está seguindo nossos passos, próximo
à nossa cama, investigando todos os nossos atos. Nossa segurança está em
João 13.21-30 179

resisti-lo logo no início e não dar atenção à sua primeira investida, pois
somos responsáveis por isso. Ainda que ele é fortíssimo, não tem poder
para causar mal aos crentes, se estes clamarem Àquele que é todo-poderoso
e está nos céus, utilizando todos os meios que Ele designou. Um dos
permanentes princípios do cristianismo, um princípio do qual sempre
podemos comprovar a veracidade, é este: “Resisti ao diabo, e ele fugirá de
vós” (Tg 4.7).
Se uma pessoa começa a intrometer-se com o diabo, não saberá até
que ponto se aprofundará no pecado. Brincar com os primeiros pensamentos
de pecado, reputar como insignificantes as idéias más que surgem em nossos
corações, permitir que Satanás fale conosco, nos engane e introduza falsos
conceitos em nosso íntimo — muitas pessoas talvez considerem tudo isso
como uma tolice. É exatamente neste ponto que se inicia o caminho para a
ruína eterna. Aquele que permite Satanás semear pensamentos injuriosos
logo encontrará em seu coração uma seara de hábitos maus. Feliz é aquele
que realmente acredita que o diabo existe; bem-aventurado é aquele que
vigia e ora todos os dias para ser guardado das tentações de Satanás.
Por último, devemos observar nesses versículos a extrema dureza de
coração que existe naqueles que professam ser discípulos de Cristo e
apartam-se dEle. Esta situação é tristemente ressaltada na vida de Judas
Iscariotes. Poderíamos ter imaginado que, ao contemplar a angústia de
nosso Senhor e a solene advertência: “Um de vós me trairá” , a consciência
daquele infeliz teria sido aguçada. Mas isto não aconteceu. Pensaríamos
que as palavras de Jesus: “O que pretendes fazer, faze-o depressa”
impressionariam Judas Iscariotes e o envergonhariam quanto à sua intenção
de trair Jesus. No entanto, nada mudou o seu propósito. Com a consciência
morta, cauterizada, insensível, Judas se levantou e retirou-se para consumar
sua obra maligna, abandonou o Senhor para sempre.
Um dos mais terríveis fatos de nosso caráter é a extensão em que
podemos endurecer nossos corações, por resistirmos a luz e o conhecimento
espiritual. Podemos nos tomar completamente insensíveis, tal como alguém
cujos membros de seu corpo não reagem mais, embora tal pessoa ainda
esteja viva. Podemos perder todos os sentimentos de vergonha, temor e
remorso, possuindo corações tão endurecidos quanto o mármore, cegos e
surdos a todos os avisos e apelos. Esta é uma enfermidade terrível, mas
infelizmente muito comum entre os que professam ser cristãos. Nenhuma
outra pessoa se toma tão culpada deste mal quanto aquele que, recebendo
bastante luz e privilégios espirituais, voluntariamente vira suas costas para
Cristo e retorna ao mundo. Provavelmente nada conseguirá inquietar esse
tipo de pessoa, somente a voz do arcanjo e a trombeta de Deus.
Vigiemos com intenso zelo os nossos corações e tenhamos cuidado
para que não cedamos às primeiras tentações do pecado. Feliz é aquele que
180 João 13.21-30

sempre teme e anda humildemente com seu Deus (Pv 28.14). Os crentes
mais fortes são aqueles que constantemente percebem sua fraqueza e com
freqüência clamam: “Sustenta-me, e serei salvo, e sempre atentarei para
os teus decretos” (SI 119.117).

A Crucificação Glorifica o Pai e o Filho;


A Importância do Amor Fraternal;
A Ignorância que Pode Existir no Crente
Leia João 13.31-38

Aqui vemos o Senhor Jesus sozinho com seus onze discípulos. O


traidor, Judas Iscariotes, havia se retirado para realizar sua ímpia obra das
trevas. Livre do perverso companheiro, nosso Senhor abre o coração ao
seu pequeno rebanho, fazendo-o de um modo mais amplo do que em
qualquer outra ocasião. Dirigindo-se aos discípulos pela última vez antes
de sua morte, Ele profere um discurso que, em interesse, ultrapassa qualquer
outra porção das Escrituras.
Esses versículos nos mostram a glória que a crucificação traria ao
Pai e ao Filho. Parece impossível evitar a conclusão de que o Senhor
pensava nisto quando afirmou: “Agora, foi glorificado o Filho do Homem,
e Deus foi glorificado nele” . Estas palavras transmitem a idéia de que
Jesus estava dizendo: “O tempo de minha crucificação está chegando.
Meu serviço na terra está acabado. Amanhã acontecerá algo que, embora
resulte em tristeza para os que me amam, na realidade muito glorificará
tanto a mim quanto a meu Pai” .
Esta afirmativa de Jesus foi misteriosa e obscura para os onze
discípulos; acreditamos que eles não a compreenderam. E não devemos
ficar admirados! A agonia da morte na cruz, a ignomínia e as afrontas que
Ele antecipadamente contemplou e ouviu no dia seguinte, o ficar pendurado
na cruz durante seis horas entre dois ladrões — tudo isso não demonstrava
qualquer aparência de glória. Pelo contrário, estes acontecimentos encheriam
os corações dos apóstolos com vergonha, desapontamento e desânimo.
Apesar disso, as palavras de nosso Senhor eram verdadeiras.
A crucificação redundou em glória para Deus, o Pai, exaltando sua
sabedoria, fidelidade, santidade e amor. Demonstrou que Ele foi sábio em
realizar um plano por meio do qual se mostrasse justo e se tornasse o
justifícador do ímpio. A crucificação revelou a fidelidade do Pai em cumprir
sua" promessa de que o descendente da mulher esmagaria a cabeça da
serpente. Também comprovou a santidade do Pai em exigir que as
João 13.31-38 181

reivindicações da lei fossem satisfeitas por nosso grande Substituto. A


crucificação mostrou o amor do Pai em providenciar seu co-etemo Filho
para ser o Mediador, Redentor e Amigo do pecador.
A crucificação glorificou o Filho, exaltando sua compaixão, paciência
e poder. Demonstrou sua profunda compaixão, ao morrer pòr nós, sofren­
do em nosso lugar, tornando-se pecado e maldição em nosso favor,
adquirindo nossa redenção ao preço de seu próprio sangue. A crucificação
revelou sua imensa paciência, que não Lhe permitiu experimentar a morte
comum à maioria das pessoas, mas fazendo-0 voluntariamente submeter-
se aos horrores e às indescritíveis agonias que não podemos imaginar, em­
bora com apenas uma palavra Ele pudesse ordenar a seus anjos que O
livrassem. A crucificação mostrou seu tremendo poder, ao suportar o fardo
de todos os pecados dos homens e vencer Satanás, despojando-o de suas
vítimas.
Devem os sem pre apegar-nos a estas verdades a respeito da
crucificação. Não esqueçamos que os quadros e as esculturas não podem
contar-nos nem um décimo do que aconteceu na cruz. Os crucifixos e as
pinturas no máximo nos revelam apenas que um ser humano agonizou na
cruz, sofrendo um dolorosa morte. Entretanto, nada podem nos dizer sobre
a transação que realizou-se na cruz, a satisfação da lei de Deus, o pecado
dos homens sendo carregado por Cristo, a vindicação do pecado assumida
por nosso Substituto e a salvação gratuita obtida para o homem. Tudo isto
está envolvido na crucificação. Não admiramos que o apóstolo Paulo tenha
clamado: “Mas longe esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso
Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu,
para o mundo” (G1 6.14).
Esses versículos também nos mostram a grande importância que o
Senhor Jesus atribui ao amor fraternal. Logo após o falso apóstolo ter se
retirado de entre os onze fiéis, o Senhor disse: “Novo mandamento vos
dou: que vos ameis uns aos outros” . Ele o chamou de “novo mandamento”
não porque não havia sido dado anteriormente, mas porque seria mais
honrado (ou seja, ocuparia uma posição mais elevada) se fosse alicerçado
em melhor exemplo do que o fora antes. Acima de tudo, este mandamento
serviria de teste para autenticar o cristianismo diante dos homens — “Nisto
conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros” .
Estejamos atentos para que esta tão bem conhecida virtude cristã não
seja apenas um conceito em nossas mentes, e sim uma prática em nosso
viver. De todas os mandamentos de nosso Senhor, este é o mais abordado,
porém o menos praticado. No entanto, se pretendemos dizer algo quando
afirmamos que somos crentes, isto será percebido em nossa conduta e
palavras, nossa tolerância e realizações, nosso comportamento dentro e
fora de casa e atitudes relacionadas à vida. Em especial, isto se evidenciará
182 João 13.31-38

em nossa maneira de lidar com os outros crentes. Devemos considerá-los


irmãos em Cristo, alegrando-nos em fazer qualquer coisa que promova a
felicidade deles. Temos de abominar a inveja, a malícia e os ciúmes em
relação a um membro do corpo de Cristo, considerando pecado esse tipo
de atitude. Isto é o que o Senhor pretendia dizer ao mandar-nos amar uns
aos outros.
A obra de Cristo no mundo prosperaria mais rapidamente se este
mandamento fosse mais obedecido. Não existe outra coisa que o mundo
entenda e valorize mais do que o verdadeiro amor. Os homens que são
incapazes de compreender doutrinas e nada sabem a respeito da teologia
podem apreciar o amor. Este atrai a atenção dos homens, fazendo-os refletir.
Por amor aos incrédulos, se não por qualquer outro motivo, sigamos cada
vez mais o amor.
Por último, esses versículos nos mostram quanta ignorância pode
existir no coração de um verdadeiro crente. Simão Pedro declarou que
estava pronto para morrer por seu mestre. Mas o Senhor disse que naquela
mesma noite Pedro O negaria “três vezes” . E sabemos que de fato isto
aconteceu. O Senhor estava certo, e Pedro, errado.
Devemos aceitar como um grande princípio de nossa vida espiritual
o fato de que existe muita fraqueza em nossos corações; e não temos uma
idéia adequada a respeito dessa fraqueza, não sabendo até que ponto podemos
cair, se formos tentados. Às vezes, imaginamos, assim como o apóstolo
Pedro, existirem coisas que provavelmente não faremos. Afinal de contas,
não sabemos nada! A semente de todos os pecados encontra-se dormente
em nosso coração e, quando despertada, precisa apenas de uma ocasião,
um descuido ou do retraimento da graça de Deus, por um instante, a fim
de que produza abundantes frutos. Assim como Pedro, é possível pensar
que podemos realizar coisas maravilhosas para Cristo e aprender, através
de experiências amargas, que não temos capacidade e poder algum.
Os servos de Cristo demonstrarão sabedoria ao recordarem estas
coisas. “Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia” (1 Co
10.12). O humilde reconhecimento de nossa própria fraqueza íntima, uma
constante dependência do Senhor para nos tomar fortes, uma vida de oração
diária, porque não somos capazes de permanecer firmes — estes são os
segredos da verdadeira segurança. O grande apóstolo dos gentios afirmou:
“Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas
perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco,
então, é que sou forte” (2 Co 12.10).
João 14.1-3 183

Remédio Para um Coração Atribulado;


Uma Descrição do Céu;
Motivo Para Esperarmos Coisas Boas
Leia João 14.1-3

Esses três versículos apresentam preciosas verdades espirituais.


Durante todos os séculos, elas têm sido amadas pelos servos de Cristo, no
mundo inteiro. Muitas são as pessoas enfermas que esses versículos já
confortaram! Já revigoraram muitos corações desanimados! Vejamos o
que eles contêm,
Primeiramente encontramos neles um precioso remédio contra uma
velha doença. Este remédio é a fé. Coração turbado é algo comum neste
mundo. Nós o encontramos em todas as classes sociais, e nada pode mantê-
lo distante de nós. Às vezes por motivos externos ou íntimos; em parte
devido à nossa mente ou ao nosso corpo; talvez por causa de amor ou
ainda de temor, a jornada da vida está repleta de problemas. O melhor dos
seguidores de Cristo pode ter muitos cálices amargos para beber, durante
sua peregrinação da graça à glória. Mesmo o mais santo dos crentes
perceberá que o mundo é um vale de lágrimas.
A fé no Senhor Jesus é o único remédio para corações turbados. Crer
mais profundamente, descansar sem restrições, apegar-nos com mais fir­
meza, depender mais completamente — esta é a receita que nosso Senhor
prescreve a todos os seus discípulos. Sem dúvida, o pequeno grupo que se
assentara à mesa para aquela última ceia havia crido e provado a realidade
de sua fé, ao desistirem de tudo por amor a Cristo. No entanto, o que o
Senhor lhes disse? Novamente lhes incutiu a antiga lição, com a qual eles
iniciaram a vida cristã: “Creiam! Creiam ainda mais! Creiam em mim!”
Jamais devemos esquecer: a fé apresenta-se em níveis, e existe ampla
diferença entre os crentes fracos e os fortes. Os crentes fracos possuem fé
suficiente para lhes outorgar um interesse salvífico por Cristo, por isso
não devem ser desprezados; mas esse tipo de fé não confortará seus corações,
assim como o faz a fé exercida pelos crentes mais fortes. Falta de exatidão
e dificuldade na percepção — estes são os defeitos dos crentes fracos. Eles
não entendem com clareza as verdades em que crêem e não sabem explicar
porque crêem; precisam de mais fé. À semelhança de Pedro, quando andou
sobre o mar, estes precisam olhar com mais determinação para o Senhor
Jesus e menos para as águas e os ventos. Não está escrito: “Tu, S e n h o r ,
conservarás em perfeita paz aquele cujo propósito é firme; porque ele
confia em ti”? (Is 26.3.)
Nesses versículos também encontramos uma estimulante descrição
184 João 14.1-3

do céu, ou seja, a habitação dos santos. Enquanto estamos neste corpo en­
tendemos poucas coisas a respeito do céu; e este pouco aprendemos da Bí­
blia mais pela exclusão dos aspectos negativos do que pelo ensino dos
aspectos positivos. Nessa passagem há algumas verdades evidentes sobre
aquele lugar.
O céu é a “casa do Pai” , sobre a qual Jesus disse: “Vou para o meu
Deus e o vosso Deus” . Em poucas palavras, o céu é um lar: o lar de Cristo
e de seus seguidores. Esta é uma afirmação agradável e emocionante. O
lar, como todos nós sabemos, é um lugar onde geralmente somos amados
pelo que somos, independentemente de nossas capacidades e bens; o lugar
onde somos amados até ao fim, onde jamais somos esquecidos e sempre
bem-vindos. Esta é uma idéia sobre o céu. Os crentes se encontram em
uma terra estranha e na escola da vida. No porvir, eles estarão em casa.
O céu é um lugar de “moradas”, eternas e permanentes. Estar neste
corpo para nós significa viver em tendas, tabernáculos e pousadas; pre­
cisamos nos sujeitar a muitas mudanças. No céu, estaremos acomodados
para sempre e de lá nunca mais sairemos. “Na verdade, não temos aqui ci­
dade permanente, mas buscamos a que há de vir” (Hb 13.14). Nossa cidade,
não feita por mãos humanas, jamais será destruída.
O céu é um lugar de “muitas moradas”. Haverá lugar para todos os
crentes e espaço para todos os tipos de pessoas, tanto para os mais nobres
quanto para os mais insignificantes dos crentes, para os fortes bem como
para os fracos. O mais débil filho de Deus não precisa temer que não haja
lugar para ele no céu. Ninguém será lançado fora, exceto os pecadores
impenitentes e incrédulos.
O céu é um lugar onde o próprio Cristo estará presente. Ele não fica­
rá contente em viver ali sozinho: “Para que, onde eu estou, estejais vós
também” . Não devemos pensar que estaremos sozinhos e seremos negli­
genciados. Nosso Redentor, nosso Irmão mais velho, nosso Salvador, que
nos amou e a Si mesmo se entregou por nós estará conosco para sempre.
Não podemos imaginar completamente o que veremos no céu, enquanto
estivermos no corpo. Porém, uma coisa é certa: nós veremos a Cristo.
Guardemos essas verdades em nossas mentes. Para a pessoa mundana
e descuidada com sua alma tais verdades podem não ser importantes. Mas,
para todos que estão cientes do ministério do Espírito Santo em seu íntimo,
estão repletas de indizível consolação. Se almejamos estar no céu,
precisamos conhecer algumas de suas características.
Por último, nesses versículos encontramos uma firm e certeza de
esperarmos as coisas boas por vir. Nosso coração maligno está propenso
a privar-nos de nosso consolo a respeito do céu. Gostaríamos de acreditar
que tudo isso é verdade. Temos receio de que não seremos aceitos no céu.
Ouçamos o que Jesus disse, a fim de encorajar-nos.
João 14.1-3 185

A primeira mensagem de estímulo foi esta: “Vou preparar-vos lugar” .


O céu é um lugar preparado para um povo especial, o lugar que Cristo
mesmo preparou para os verdadeiros crentes. Ele o preparou ao assegurar
a todo pecador que nEle crê o direito de entrar ali. Ninguém pode impedir-
nos de entrar no céu. Ele o preparou ao entrar ali antes de nós, na qualidade
de nosso Redentor e Representante, apossando-se do céu em favor de todos
os membros de seu corpo místico. Jesus, exercendo a função de nosso
Precursor, marchou ao céu, levando cativo o cativeiro e fincando sua
bandeira na glória. Ele preparou o céu por levar consigo ao Santo dos
Santos, na qualidade de Sumo Sacerdote, os nomes de seus seguidores e
por tomar os anjos dispostos a receberem seu povo. Aqueles que vão para
o céu descobrem ali que eram bem conhecidos e esperados.
Outra mensagem de estímulo foi esta: “E, quando eu for e vos preparar
lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo” . Cristo não esperará que
os crentes subam ao céu para encontrá-Lo, mas virá ao encontro deles;
ressuscitará os mortos e os conduzirá à sua morada celestial. Assim como
José foi ao encontro de Jacó, assim também o Senhor Jesus virá ao encontro
de seu povo, a fim de reuni-lo e levá-lo à sua herança. Jamais devemos nos
esquecer do segundo advento de Cristo. Recebemos grande bênção em
meditar na primeira vinda de Cristo para sofrer em nosso lugar; no entanto,
bênção ainda maior recebemos ao pensar sobre a segunda vinda de Cristo,
para ressuscitar e recompensar seus santos.
Ao deixar essa passagem, tenhamos solenes e sérios sentimentos de
auto-exame. Perdem grandes bênçãos aqueles que vivem neste mundo
perverso e não conhecem a Deus como seu Pai e a Cristo como seu Salva­
dor pessoal! Quanta riqueza espiritual possuem aqueles que vivem pela fé
no Filho de Deus e crêem em Jesus! Apesar de todas as suas imperfeições
e lutas, eles têm algo que o mundo não lhes pode dar ou mesmo retirar.
Eles têm um verdadeiro Amigo, enquanto viverem neste mundo, e uma
verdadeira casa, quando morrerem.

Cristo Fala a Respeito dos Crentes de uma


Maneira Melhor do que Estes Mesmos Falam;
Gloriosos Nomes do Senhor Jesus;
O Único Caminho;
íntima União do Pai com o Filho
Leia João 14.4-11

Em primeiro lugar, devemos observar nessa passagem que Cristo


186 João 14.4-11

fala sobre os crentes de uma maneira melhor do que estes falam a respeito
de si mesmos. Ele disse aos seus discípulos: “E vós sabeis o caminho para
onde eu vou” . Mas Tomé replicou com esta observação: “Senhor, não sa­
bemos para onde vais; como saber o caminho?” Esta contradição, aparente
e não real, demanda esclarecimento.
Considerado de certo ponto de vista, o conhecimento dos discípulos
era limitado. Eles sabiam pouco a respeito da crucificação e da ressurreição,
se compararmos ao conhecimento que deveriam possuir e ao que chegaram
a saber depois do dia de Pentecostes. No que se refere ao propósito da
vinda de nosso Senhor ao mundo, à sua morte sacrificial e vicária na cruz
em nosso favor, a ignorância dos discípulos era grande e evidente. Poderia
ser dito com segurança que eles sabiam apenas “em parte” , sendo crianças
em seu entendimento das coisas espirituais.
Mas, considerado de acordo com outro ponto de vista, o conhecimento
dos discípulos era imenso. Eles sabiam mais do que a maioria dos judeus e
assimilaram verdades que os escribas e fariseus rejeitaram completamente.
Se comparados às pessoas do mundo ao seu redor, eles eram “iluminados”
no sentido mais amplo da palavra. Acreditavam e sabiam que seu Senhor
era o Messias prometido, o Filho do Deus vivo; reconheciam que segui-Lo
era o primeiro passo em direção ao céu. Fatos se esclarecem por meio de
comparações. Antes de os reputarmos como superficiais por causa de sua
ignorância, tenhamos cuidado para não subestimar o conhecimento que
possuíam. Conheciam mais verdades do que eles mesmos estavam cônscios.
Seus corações eram melhores do que suas mentes.
A verdade é que muitos crentes mostram-se propensos a menosprezar
o ministério do Espírito em suas almas, imaginando que não sabem nada,
porque não conhecem todas as verdades. Nos céus, o que Deus pensa a
respeito de muitos crentes é melhor do que eles imaginam acerca de si
mesmos, enquanto vivem na terra; e no último dia descobrirão, surpresos,
este fato. No céu existe Alguém que leva mais em conta o conhecimento de
coração do que o conhecimento intelectual. Muitos deles passam toda a
sua peregrinação até ao céu reclamando, porque sabem tão pouco e
imaginam que se afastarão do caminho, durante a jornada. No entanto,
possuem corações que agradam a Deus.
Em segundo, devemos observar nesses versículos os gloriosos nomes
com os quais o Senhor Jesus designou a Si mesmo. Ele disse: “Eu sou o
caminho, e a verdade, e a vida” . Todo o significado destas preciosas palavras
jamais será compreendido pelos homens. Aquele que tenta explicá-las está
apenas escavando superficialmente um solo fertilíssimo.
Jesus é o caminho, o caminho para o céu e a paz com Deus. À se­
melhança de Moisés, Jesus é o único que guia, instrui e outorga a sua lei.
Ele mesmo é a porta, a escada e o caminho pelo qual devemos nos achegar
João 14.4-11 187

a Deus. Através da satisfação que realizou na cruz, o Senhor Jesus abriu o


caminho à arvore da vida; caminho que havia sido fechado quando Adão e
Eva caíram em pecado. Por intermédio do sangue de Cristo, podemos ter
acesso à presença de Deus e nos aproximar dEle com confiança.
Jesus é a verdade, a essência da verdadeira religião, que o coração
do homem requer. Sem Ele, o mais sábio incrédulo tateia em densas trevas
e nada sabe a respeito de Deus. Antes de Jesus vir ao mundo, mesmo os
judeus viam obscuramente, “como por espelho”, e não distinguiam com
clareza os tipos, figuras e cerimônias da lei mosaica. Cristo é a verdade
completa e satisfaz todas as necessidades do coração humano.
Jesus é a vida, o perdão e a vida eterna do pecador, a fonte da vida
espiritual e da santidade, a certeza da ressurreição do crente. Aquele que
crê em Jesus tem a vida eterna. Aquele que permanece em Jesus, à
semelhança do ramo da videira, produz fruto em abundância. Aquele que
crê em Jesus, ainda que morra, viverá. Jesus é a fonte de toda a vida, da
alma e do corpo.
Sempre aceitemos e defendamos estas doutrinas. Estar a cada dia
andando em Cristo, sendo Ele o nosso caminho, crer permanentemente
nEle como a verdade, viver em Jesus todos os dias como nossa vida — isto
é o que significa ser um crente bem informado e completamente preparado,
um crente firme.
Em terceiro, devemos observar nesses versículos: o Senhor Jesus
afirmou que Ele é o único caminho de salvação. Ele disse: “Ninguém vem
ao Pai senão por mim” .
Não há qualquer vantagem em ser esperto, erudito, superdotado,
amável, caridoso, benigno e zeloso em alguma forma de religião. Nenhuma
destas coisas salvará a alma de alguém, se este não se achegar a Deus por
intermédio da expiação realizada por Cristo e apropriar-se do próprio Filho
de Deus como Mediador e Salvador. Deus é imensamente santo, e todos os
homens são devedores e culpados diante dEle. A pecaminosidade do pecado
é tão extensa, que nenhum homem pode expiá-lo. Tem de haver um
mediador, alguém que pague a dívida, um redentor entre nós mesmos e
Deus, ou jamais seremos salvos. Existe somente uma porta, um acesso,
uma escada entre a terra e o céu — o Filho de Deus crucificado. Quem
entrar por essa porta será salvo; mas para aqueles que se recusam a adentrá-
la a Bíblia não oferece qualquer esperança. Sem derramamento de sangue,
não há remissão de pecados.
Se amamos nossas almas, estejamos atentos para não imaginar que a
sinceridade levará alguém para o céu, mesmo que tal pessoa nada saiba a
respeito de Cristo. Esta idéia é um erro terrível e fatal. A sinceridade
jamais cancelará os nossos pecados. Não é verdade que todas as pessoas
são salvas por intermédio de sua própria religião, não importando o que
188 João 14.4-11

elas crêem, contanto que sejam zelosas e sinceras. Não sejamos pretensiosos,
desejando ser mais sábios do que Deus. O Senhor Jesus disse e permanecerá
fiel à sua palavra: “Ninguém vem ao Pai senão por mim” .
Por último, devemos observar nesses versículos a intima união que
existe entre o Pai e o Filho. Quatro vezes o Senhor Jesus nos revela esta
preciosa verdade, utilizando uma linguagem inconfundível: “Se vós me
tivésseis conhecido, conheceríeis também a meu Pai” ; “Quem me vê a
mim vê o Pai” ; “Eu estou no Pai e ... o Pai está em mim” ; “ ... o Pai, que
permanece em mim, faz as suas obras” .
Afirmações tais como estas estão repletas de mistérios profundos.
Não podemos entender seu completo significado; somos incapazes de
esquadrinhá-lo; não temos palavras para descrevê-lo ou mentes capazes de
assimilá-lo. Precisamos nos alegrar em crer, quando não podemos explicar,
e adorar com reverência, quando somos incapazes de interpretar. Isto deve
ser suficiente para nós: saber e afirmar que o Filho, bem como o Pai, é
Deus e que, embora sejam pessoas distintas, os dois são apenas um em
essência — inefavelmente, um; porém, inefavelmente, distintos. Estas são
verdades sublimes; não temos capacidade para atingir uma plena com­
preensão delas.
Apesar disso, nos confortemos na simples verdade de que Cristo é
verdadeiramente Deus, igual ao Pai em todas as coisas, sendo um com o
Pai. Aquele que nos amou, e na cruz derramou seu sangue em favor de
nossos pecados, e nos ordena a confiar nEle mesmo para recebermos o
perdão não é apenas um homem, é o “Deus bendito para todo o sempre” ,
poderoso para salvar totalmente o pior dos pecadores. Ainda que nossos
pecados sejam como a escarlate, Ele pode tomá-los brancos como a neve.
Aquele que confia a sua alma a Cristo possui um Amigo todo-poderoso, o
próprio Deus, um Amigo que é um com o Pai.

Obras que o Crente Pode Realizar;


Coisas Obtidas Através da Oração;
A Promessa do Consolador
Leia João 14.12-17

Esta passagem exemplifica a tema consideração de nosso Senhor em


relação à fraqueza de seus discípulos. Jesus percebeu a perturbação e o
desânimo de seus corações, ante a perspectiva de ficarem sozinhos no
mundo, e os fortaleceu com três promessas especialmente adequadas às
circunstâncias deles. “A palavra, a seu tempo, quão boa é!” (Pv 15.23.)
João 14.12-17 189

Prim eiram ente nesses versículos encontram os uma admirável


promessa sobre as obras que os crentes podem realizar. Nosso Senhor
disse: “Aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras
maiores fará, porque eu vou para junto do Pai” . O pleno significado destas
palavras não se encontra nos milagres que os apóstolos fizeram, após a
ascensão de Cristo. Esta idéia dificilmente pode ser comprovada pelos
fatos. Não temos qualquer informação referente a um apóstolo andando
sobre as águas ou ressuscitando uma pessoa que estava morta havia quatro
dias, assim como Lázaro. Com estas palavras, nosso Senhor parecia estar
se referindo ao maior número de convertidos e à maior propagação do
evangelho que aconteceria através do ministério dos apóstolos. E o livro
de Atos dos Apóstolos nos mostra que isto de fato ocorreu. Não lemos nos
evangelhos a respeito de qualquer sermão pregado por Jesus que resultasse
na conversão de três mil pessoas em apenas um dia, tal como aconteceu no
dia de Pentecostes. Em poucas palavras, “maiores obras” significa mais
conversões. Não existe obra maior do que a conversão de um pecador.
Admiremos a condescendência de nosso Senhor ao permitir que o
ministério de seus frágeis servos fosse mais frutífero do que o dEle mesmo.
Devemos reconhecer que a presença física de Jesus não é absolutamente
necessária ao progresso de seu reino. Mesmo estando assentado à direita
do Pai, Ele pode fazer sua obra expandir-se na terra através da atividade
do Espírito Santo, de maneira semelhante à que fez quando esteve entre os
homens neste mundo. Não existe coisa demasiadamente difícil ou árdua
para os crentes realizarem, enquanto o Senhor intercede por eles diante de
Deus. Trabalhemos com fé, na expectativa de grandes coisas, embora, à
semelhança dos discípulos, sejamos fracos e estejamos sem a presença
física do Senhor Jesus. Ele está agindo em e por nós, ainda que não o
percebamos. A vitória de Josué sobre Amaleque foi conquistada pela espada,
mas também pela intercessão de Moisés (Êx 17.11).
Em segundo, nesses versículos encontramos uma notável promessa a
respeito de coisas que podemos esperar em resposta às nossas orações.
Nosso Senhor disse: “Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o
farei” . Estas palavras constituem um encorajamento ao simples mas
importante dever de orarmos. Todos os que diariamente buscam a presença
de Deus e, de coração, apresentam-Lhe suas petições podem confortar-se
nestas palavras. Ainda que sejam imperfeitas e fracas, se pertencemos a
Cristo e as apresentamos em nome dEle, elas serão eficazes. Temos um
Amigo na corte celestial, um Advogado junto ao Pai, e, se O honramos
entregando ao Pai em nome de Cristo todas as nossas súplicas, temos sua
promessa de que serão respondidas. Mas precisamos estar seguros de que
as coisas que Lhe pedimos têm em vista o bem de nossas almas e não os
benefícios temporários.
190 João 14.12-17

“Alguma coisa” não envolve riquezas, possessões e prosperidade


material. Estas coisas nem sempre trazem benefícios para nossas almas; e
o Senhor Jesus, que nos ama intensamente, não permite que as tenhamos.
Porém, tudo que for bom para nossa alma, estejamos certos de que o
teremos, se pedimos em nome dEle. Como explicamos o fato de que muitos
crentes possuem tão poucas bênçãos espirituais? Por que eles passam sua
peregrinação cristã manquejando e lamentando, enquanto desfrutam de
pequena paz e demonstram pouco vigor no serviço cristão? A resposta é
simples e clara: “Eles nada têm porque não pedem” . Desfrutam de poucas
bênçãos devido ao fato de que pedem pouco. Não possuem melhores virtudes
porque não pedem que o Senhor os transforme cada vez mais. Nossos
frágeis desejos são a causa de nossa mórbida performance na vida cristã.
Não confiamos exclusivamente no Senhor, e sim em nós mesmos. Felizes
são aqueles que jamais esquecem esta promessa: “Abre bem a tua boca, e
a encherei” (SI 81.10). Os que fazem muito em favor de Cristo neste
mundo sempre demonstram ser pessoas que oram bastante.
Por último, nesses versículos encontramos a promessa sobre o Espírito
Santo. Nosso Senhor disse: “Eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro
Consolador... o Espírito da verdade” . Esta é a primeira vez que o Senhor
Jesus menciona o Espírito Santo como uma dádiva especial de Cristo ao
seu povo. De fato, não precisamos supor que o Espírito Santo não habitava
os santos do Antigo Testamento. No entanto, Ele foi dado com singular
influência e poder aos crentes na dispensação do Novo Testamento; esta é
a promessa especial que temos nesses versículos. Descobrimos o proveito
desta verdade ao considerar em detalhes aquilo que o Senhor Jesus afirmou
sobre o Espírito Santo.
Ele se referiu ao Espírito Santo como uma pessoa. Aplicar a uma
mera influência ou sentimento interior a linguagem utilizada por Jesus é
uma maneira ilógica de entender suas palavras.
Ele O chamou de o “Espírito da verdade” . Este é seu ofício particu­
lar: aplicar a verdade aos corações dos crentes, a fim de guiá-los em toda
a verdade e santificá-los por intermédio da verdade.
Jesus disse que o Espírito Santo é alguém que “o mundo não pode
receber... nem o conhece” . As atividades dEle, no sentido mais amplo,
são loucura para os homens incrédulos. O arrependimento, a fé, o temor,
a esperança e o amor, os quais o Espírito Santo produz, são os aspectos da
vida espiritual que o mundo não pode entender.
Jesus afirmou que o Espírito Santo habitaria para sempre nos crentes
e seria conhecido por estes. Os verdadeiros crentes conhecem os sentimentos
que o Espírito Santo motiva em seus corações e os frutos que Ele produz,
embora não sejam capazes de explicar como Ele faz isso ou não percebam
quando surgem pela primeira vez. Mas todos eles, se comparados às pessoas
João 14.12-17 191

incrédulas, são novas criaturas, luzes e sal da terra, por serem habitados
pelo Espírito Santo.
Jesus mostrou que o Espírito Santo é outorgado à “igreja dos eleitos” ,
a fim de permanecer nos crentes até que Ele venha novamente a este mundo.
O Espírito Santo foi dado à igreja para suprir cada necessidade dos crentes
e enchê-los com tudo que carecem, enquanto Cristo não está visivelmente
presente entre eles. O Espírito Santo foi enviado para habitar nos crentes
até que Cristo volte.
Estas verdades são importantíssimas. Cuidemos em assimilá-las com
firmeza e não as abandonemos. Juntamente com toda a verdade referente à
pessoa de Cristo, para desfrutarmos de paz e segurança é necessário que
conheçamos toda a verdade referente à pessoa do Espírito Santo. Devemos
rejeitar como erro quaisquer doutrinas a respeito da igreja, das ordenanças
e do ministério cristão que obscurecem a obra do Espírito Santo, em nosso
íntimo, ou transformam-na em algo superficial. Jamais descansemos en­
quanto não estivermos certos de que o Espírito Santo habita em nós. “E, se
alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9).

A Segunda Vinda de Cristo;


A Vida de Cristo, a Vida de seu Povo;
Perfeito Conhecimento, Somente
no Segundo Advento
Leia João 14.18-20

Essa pequena passagem está repleta de preciosas promessas. Nosso


Senhor falou sobre duas coisas que faria em benefício dos crentes e sobre
três que aconteceriam a estes.
Primeiramente aprendemos que a segunda vinda de Cristo será fonte
de consolo para os crentes. Ele disse: “Não vos deixarei órfãos, voltarei
para vós outros” .
A respeito de que o vocábulo “voltarei” está falando nessa passagem?
Não precisamos dizer que esse é assunto de debates entre os crentes. Alguns
acham que se refere à aparição de nosso Senhor aos discípulos, após a
ressurreição. Outros ensinam que Jesus estava falando de sua vinda aos
corações de seu povo pela virtude do Espírito Santo. Outros, ainda, que o
Senhor estava se referindo ao derramamento do Espírito, no dia de
Pentecostes. Entretanto, podemos duvidar que alguma destas opiniões
192 João 14.18-20

expressam o completo significado das palavras de nosso Senhor: “Voltarei


para vós outros” .
O verdadeiro significado desta expressão parece ser a segunda vinda
pessoal de Cristo, no fim do mundo. É uma promessa ampla, abrangente,
majestosa para todos os crentes, em todas as épocas, e não somente para os
apóstolos: “Não permanecerei sempre no céu; um dia, Eu voltarei para
vocês” . É semelhante à mensagem que os anjos transmitiram aos apóstolos
após a ascensão de Jesus: “Esse Jesus que dentre vós foi assunto ao céu
virá do modo como o vistes subir” (At 1.11). Corresponde à última promessa
com a qual conclui-se o livro de Apocalipse: “Certamente, venho sem
demora” (Ap 22.20).
Guardemos em nossos corações o fato de que, até a segunda vinda de
Cristo, todos os crentes assemelham-se a órfãos e a pessoas em sua
menoridade. Nossas melhores coisas ainda estão por vir. A fé precisa ser
trocada pela realidade e a esperança, pela certeza. A paz e a alegria que
possuímos no presente são imperfeitas. São nada diante do que teremos
quando o Senhor Jesus retornar. Oremos e esperemos com intenso desejo
a segunda vinda de Cristo. Coloquemos esta doutrina no topo de toda
nossa teologia, ao lado da doutrina da expiação e da intercessão de nosso
Senhor. Os crentes mais nobres são aqueles que aguardam e amam a
manifestação de Cristo (2 Tm 4.8).
Em segundo, aprendemos que a vida de Cristo assegura a vida de
seus seguidores. Ele disse: “Porque eu vivo, vós também vivereis” . Existe
uma misteriosa e indissolúvel união entre o Senhor Jesus e o verdadeiro
crente. O homem que, mediante a fé, uniu-se a Cristo está tão intimamente
ligado a Ele quanto a cabeça está ao corpo. Porquanto Cristo vive, o qual
é o Cabeça do verdadeiro crente, este igualmente vive. O crente não morre,
a menos que Cristo seja destronado do céu e a vida dEle, destruída. Mas,
visto que Ele é Deus, isto é totalmente impossível! “Havendo Cristo
ressuscitado dentre os mortos, já não morre; a morte já não tem domínio
sobre ele” (Rm 6.9).
A vida de Cristo assegura a preservação da vida espiritual de seu
povo. Eles jamais perecerão. Serão preservados até ao fim. A natureza
divina, da qual eles são partícipes, jamais se extinguirá. A semente
incorruptível que está neles jamais será destruída por Satanás ou pelo mundo.
Embora sejam fracos em si mesmos, os crentes estão intimamente ligados
à Cabeça imortal, e nenhum membro do corpo místico de Cristo jamais pe­
recerá.
A vida de Cristo assegura a vida ressurreta de se povo. Assim como
o Senhor Jesus ressuscitou dentre os mortos, visto que a morte não podia
retê-Lo após o momento determinado, assim também todos os crentes
ressuscitarão no dia em que Ele os chamar dos sepulcros. A vitória obtida
João 14.18-20 193

por Jesus, quando a pedra de seu sepulcro foi removida, não foi conquistada
somente para Ele mesmo, e sim para todo o seu povo. Se a Cabeça ressurgiu
dentre os mortos, com certeza os membros também ressurgirão.
Os crentes genuínos devem sempre meditar em verdades como esta.
O mundo incrédulo pouco sabe a respeito dos privilégios do seguidor de
Cristo. Percebe alguns desses privilégios, mas apenas os visíveis. O mundo
não compreende o segredo do vigor que o crente desfruta no presente e de
sua esperança das coisas por vir. E qual é este segredo? A união invisível
com um Salvador invisível, que está nos céus! Todo filho de Deus está
invisivelmente ligado ao trono de Cristo, a Rocha dos Séculos. Se aquele
trono pudesse ser abalado, somente então poderíamos ficar desesperados.
Cristo vive, nós também viveremos.
Por último aprendemos que o pleno conhecimento das coisas
espirituais jamais será atingido antes da segunda vinda de Cristo. Nosso
Senhor disse: “Naquele dia, vós conhecereis que eu estou em meu Pai, e
vós, em mim, e eu, em vós” . O melhor dos crentes não conhece muito
enquanto está neste corpo. A queda de Adão corrompeu nosso entendimento,
bem como nossa consciência, coração e vontade. Mesmo após a conversão,
vemos obscuramente; e nenhum outro assunto entendemos com tanta falta
de clareza quanto o de nossa união com Cristo e com o Pai. Estes são
assuntos sobre os quais temos de nos contentar em crer com humildade e,
assim como uma criança, receber pela fé as coisas que não somos capazes
de explicar.
No entanto, o pensamento de que, quando o Senhor Jesus retornar,
os resquícios de nossa ignorância serão removidos é algo que nos conforta
e abençoa. Ressuscitados dentre os mortos, libertos das trevas deste mundo,
não mais sendo tentados pelo diabo e pelas concupiscências da carne, os
crentes verão como foram vistos e conhecerão como também foram
conhecidos. Teremos abundância de luz naquele dia; o que agora não en­
tendemos, haveremos de entender naquele tempo.
Nossas almas devem descansar neste reconfortante pensamento,
quando vemos lamentáveis divisões no seio da igreja de Cristo. Re­
lembremos que grande parte de tais divisões surgiram por causa da falta de
melhor conhecimento. Agora conhecemos em parte e, conseqüentemente,
entendemos mal uns aos outros. O dia virá em que os crentes não
contenderão uns com os outros; isto ocorrerá na segunda vinda de Cristo.
Somente então a promessa alcançará plena realização: “Naquele dia, vós
conhecereis” .
194 João 14.21-26

Maior Prova de Amor:


Guardar os Mandamentos de Cristo;
Conforto Para os que O amam;
O Ensino e a Recordação Realizados
Pelo Espírito Santo
Leia João 14.21-26

Esses versículos nos ensinam que guardar os mandamentos de Cristo


é a maior prova de amor a Ele. Está lição é muitíssimo importante e
precisa ser continuamente repetida aos crentes. A prova de que somos
verdadeiros crentes não é conversar com freqüência, sabedoria e fluência
sobre coisas espirituais, mas praticar com diligência o que Ele ordenou e
andar em seus caminhos. Bons sentimentos e desejos são inúteis, se não
estiveram acompanhados de ações. Podem até ser enganosos para a alma,
induzindo-a ao endurecimento do coração, causando-lhe terrível dano.
Impressões passivas que não impulsionam a ação gradualmente paralisam
e mortificam o coração. Viver e praticar são as únicas evidências da graça.
Onde o Espírito Santo habita, ali existe um vida santificada. Uma vigilância
diligente sobre os sentimentos, palavras e atos, um constante esforço por
viver de acordo com o padrão apresentado no Sermão do Monte — estas
são as melhores provas de que realmente amamos a Cristo.
Na verdade, máximas como esta não podem ser mal entendidas ou
pervertidas. Em momento algum, devemos supor que “guardar os
mandamentos de Cristo” pode salvar-nos. Nossas melhores obras estão
repletas de imperfeição. Quando fizermos tudo que somos capazes, ainda
nos mostraremos servos fracos e inúteis. “Porque pela graça sois salvos,
mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para
que ninguém se glorie” (Ef 2.8-9). Porém, enquanto afirmamos um lado
dessa verdade, não devemos esquecer o outro. A fé no Senhor Jesus deve
estar sempre acompanhada de amável obediência à vontade dEle. O que o
Senhor uniu os seus seguidores não devem separar. Professamos amar a
Cristo? Então, precisamos demonstrar isso por meio de nossas vidas. O
apóstolo que disse: “Tu sabes que eu te amo” foi o mesmo quê recebeu a
incumbência: “Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21.17).
Em segundo, esses versículos nos ensinam que há consolações es­
peciais para aqueles que amam a Cristo e evidenciam-no pela obediência
às suas palavras. Este parece ser o sentido das palavras de nosso Senhor:
“Aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me
manifestarei a ele” . Esta promessa apresenta um significado muito profundo.
João 14.21-26 195

Não temos capacidade de esquadrinhá-la. Não podemos explicá-la com­


pletamente. É uma verdade que nenhum homem pode compreender, exceto
aquele que a recebe e experimenta. Porém devemos crer que uma sublime
verdade resulta em um indizível conforto e que nenhum outro homem
possui tão sensível alegria em sua vida espiritual quanto aqueles que, à
semelhança de Enoque e Abraão, andam em intimidade com Deus. Podemos
desfrutar mais do céu em nossa vida terrena do que muitos crentes imaginam.
“A intimidade do S e n h o r é para os que o temem, aos quais ele dará a
conhecer a sua aliança” (SI 25.14). “Eis que estou à porta e bato; se alguém
ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e
ele, comigo” (Ap 3.20). Estejamos certos de que promessas como estas
têm significado; não foram escritas em vão.
Alguns perguntam: por que muitos crentes professos gozam pou­
quíssima alegria em sua vida espiritual? E de que maneira se explica que
poucos deles conhecem “alegria e paz” em seu crer, vivendo a lamentar,
com seus corações sobrecarregados, enquanto peregrinam em direção ao
céu? A resposta a estas perguntas é bastante desagradável, mas tem de ser
apresentada. Poucos crentes obedecem estritamente, tanto quanto deveri­
am, às palavras e ensinos práticos de nosso Senhor. Há muita negligência
e leviana obediência aos mandamentos de Cristo. Existe abundante esque­
cimento do fato de que, embora as boas obras sejam incapazes de salvar-
nos, elas não podem ser desprezadas. Permitamos que estas considerações
assentem-se profundamente em nossos corações. Se desejamos ser inten­
samente felizes, temos de nos esforçar para, com eminência, viver em
santidade.
Por último, esses versículos nos ensinam que um dos ministérios do
Espírito Santo é ensinar e fazer-nos lembrar os ensinos de Jesus. Está
escrito: “O Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu
nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que
vos tenho dito” .
Limitar aos onze apóstolos a aplicação desta promessa, assim como
alguns o fazem, parece ser uma maneira restrita e insatisfatória de interpretar
as Escrituras. Esta promessa tem um alcance que vai além do dia de
Pentecostes e da capacidade para escrever os livros inspirados das Escrituras.
É mais correto, sábio e consistente com todo o assunto do último discurso
de nosso Senhor considerar esta promessa como uma propriedade comum
a todos os crentes de cada época da história da igreja. O Senhor Jesus co­
nhecia a ignorância e o esquecimento caraterísticos de nossa natureza, em
relação às coisas espirituais. Ele graciosamente estava declarando que, ao
deixar este mundo, seu povo teria um ensinador e recordador.
Estamos cientes de nossa ignorância espiritual? Reconhecemos que,
no melhor de nossas capacidades, conhecemos e entendemos “em parte”?
196 João 14.21-26

Desejamos compreender com mais clareza as doutrinas do evangelho?


Oremos diariamente para que o Espírito Santo nos auxilie com seu ensino.
O ministério dEle consiste em iluminar nossas almas, abrir os olhos de
nosso entendimento e guiar-nos em toda a verdade. O Espírito Santo pode
trazer luz aos corações entenebrecidos e amabilidade aos insensíveis.
Percebemos que nossa lembrança das coisas espirituais é deficiente?
Inquietamo-nos ante o fato de que, embora estejamos lendo e ouvindo, nos
esquecemos tão rápido quanto aprendemos? Oremos diariamente pelo auxílio
do Espírito Santo. Ele pode nos fazer recordar os ensinos, as “coisas no­
vas e velhas” ; é capaz de preservar nossas mentes em todo o escopo da
verdade e dos deveres, tomando-nos preparados para toda boa obra e
palavra.

O Último Legado de Cristo ao seu Povo;


A Perfeita Santidade do Senhor Jesus
Leia João 14.27-31

Não devemos terminar nossas considerações sobre este maravilhoso


capítulo sem observar uma notável característica — a freqüência com que
nosso Senhor utiliza as expressões “meu Pai” e “o Pai” . Nos últimos cinco
versículos, nós as encontramos pelo menos quatro vezes. Em todo o capítulo,
elas ocorrem no mínimo vinte e duas vezes. Neste aspecto, João 14 é sin­
gular em toda a Bíblia.
A razão para o freqüente uso destas expressões constitui um assunto
profiindo. Talvez o melhor seja especular e dogmatizar pouco a respeito
dele. Nosso Senhor jamais pronunciou uma palavra sem significado, e sem
dúvida há significado no fato de ter Ele utilizado estas expressões no final
desse capítulo. Não devemos, com reverência, imaginar que o Senhor
pretendia incutir na mente de seus discípulos uma grandiosa impressão
sobre a unidade existente entre Ele e o Pai? Exceto neste discurso, há
poucas passagens bíblicas em que vemos nosso Senhor reivindicando tão
sublime dignidade e poder de outorgar e providenciar conforto à sua igreja.
Não era conveniente, em seu constante ensino aos discípulos, recordar-
lhes que, em todas as suas dádivas, Ele era um com o Pai? Mas isto é
apenas uma hipótese.
Por um lado, devemos observar o último legado de Cristo ao seu po­
vo. Ele disse: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como
a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize” .
A paz de Cristo é um dom especial, superior a riquezas, vida tranqüila
João 14.27-31 197

e prosperidade. Na melhor das hipóteses, estas possessões são bastante


questionáveis. Freqüentemente, causam mais danos do que benefícios à
alma, agindo como fardos e obstáculos à nossa vida espiritual. A paz interior,
na consciência, proveniente do sentimento de perdão dos pecados e da
reconciliação com Deus, é uma bênção extremamente superior. Esta paz é
um patrimônio de todos os verdadeiros crentes, quer sejam estes de classe
alta ou baixa, ricos ou pobres.
A paz que o Senhor Jesus outorga, Ele a chama de “minha paz” .
Pertence de maneira especial a Ele, porque a comprou com seu próprio
sangue, por meio de seu sacrifício vicário, e porque o Pai determinou que
Ele a conceda ao mundo que está a perecer. Assim como José foi ungido e
comissionado para alimentar os famintos egípcios, assim também o Senhor
Jesus foi especialmente designado, nos eternos conselhos da Divindade,
para outorgar paz à humanidade.
Cristo não concede sua paz da mesma maneira que o mundo a dá. O
que o Senhor Jesus dá o mundo jamais pode dar; e Ele o faz espontânea,
abundante e permanentemente. Cristo está mais disposto a conceder sua
paz do que o mundo se mostra disposto a recebê-la. As suas dádivas são
outorgadas para todo o sempre; Ele nunca as toma de volta. O Senhor
Jesus está disposto a dar muito mais abundantemente do que tudo que
pedimos ou pensamos. Ele disse: “Abre bem a tua boca, e a encherei” (SI
81.10).
Devemos admirar-nos de que este legado foi apresentado tendo por
trás de si a enfática exortação: “Não se turbe o vosso coração”? Cristo
pode suprir toda a nossa falta de consolo, se tão-somente viermos a Ele,
crendo e recebendo-O. O maior dos pecadores não tem motivos para ficar
temeroso. Se apenas olharmos para o verdadeiro Salvador, encontraremos
alívio para todas as aflições de nossos corações. Metade dos temores e
dúvidas que temos surgem da imperfeita compreensão sobre a verdadeira
natureza do evangelho de Cristo.
Por outro lado, devemos observar a perfeita santidade de Cristo. Ele
disse: “Aí vem o príncipe do mundo; e ele nada tem em mim” . Estas
palavras notáveis admitem apenas uma interpretação. Nosso Senhor desejava
que seus discípulos soubessem que Satanás, “o príncipe do mundo”, estava
para fazer seu último e mais cruel ataque contra Ele. Satanás estava reunindo
todas as suas forças para uma investida mais violenta. Ele viria com sua
extrema malícia para tentar o segundo Adão, no jardim de Getsêmani e na
cruz do Calvário. Todavia, nosso Senhor declarou: “Ele nada tem em
mim” . “Satanás não pode conseguir nada comigo, pois não há erro ou
pecado em mim. Tenho guardado os mandamentos de meu Pai, consumei
a obra que Ele me confiou. Portanto, Satanás não pode vencer-me, lançar
qualquer acusação contra mim ou condenar-me. Sairei da tentação como
198 João 14.27-31

alguém mais do que vencedor” . Devemos notar a diferença entre Cristo e


qualquer outro ser humano. Ele foi o único em quem Satanás não encontrou
nenhuma culpa. Ao abordar Adão e Eva, o diabo encontrou fraqueza. Ao
tentar Noé, Moisés, Davi e todos os demais santos, ele encontrou im­
perfeição. Ele veio a Jesus e não conseguiu “nada” . O Senhor Jesus era o
cordeiro “sem defeito e sem mácula”, o sacrifício adequado para os pe­
cadores, o Cabeça para uma raça redimida.
Sejamos gratos a Deus porque temos um Salvador perfeito e ima­
culado, que possui uma justiça íntegra e uma vida pura. Em nós mesmos e
em nossos atos, encontramos apenas imperfeição; e, se não tivermos qual­
quer outra esperança, além de nossa própria bondade, devemos ficar
realmente desesperados. Entretanto, em Cristo temos um perfeito, imacula­
do Representante e Substituto. Podemos declarar, juntamente com o
triunfante apóstolo: “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus”
(Rm 8.33). O Senhor Jesus morreu e sofreu em nosso lugar. Estamos
escondidos nEle. Embora sejamos indignos, O Pai nos vê em Cristo e, por
amor a Ele, fica satisfeito.

A íntima União Entre Cristo e o Crente;


Falsos Crentes;
Fruto, a Evidência Segura da Vida Espiritual;
Crescemos em Santidade
Mediante a Disciplina Divina
L eia João 15.1-6

Esses versículos, precisamos lembrar com atenção, contêm uma


parábola. Ao interpretá-la, não podemos esquecer a grande regra que se
aplica a todas as parábolas de Cristo. O ensino geral de todas elas é a
primeira verdade a ser observada. Não precisamos insistir sobre os pequenos
detalhes, interpretando-os em excesso, ao ponto de achar um significado
para todos eles. São muitos e imensos os erros em que os crentes têm caído
por negligenciar esta regra.
Primeiramente, esses versículos nos ensinam que existe íntima união
entre Cristo e o crente. Ele é a “videira”, os crentes são os “ramos” . A
união entre os ramos e o caule principal de uma videira é a mais íntima que
podemos imaginar. Nisso consiste o segredo de toda a vida, beleza, vigor
e fertilidade do ramo. Se for desligado do caule, o ramo não possui vida
João 15.1-6 199

em si mesmo. A seiva que flui através do caule é a fonte e o poder que


mantém todas as folhas, botões, flores e frutos. Arrancado do caule, logo
o ramo há de secar e morrer.
A união entre Cristo e o crente tanto é íntima quanto verdadeira. Em
si mesmos, os crentes não possuem vida, poder e vigor espiritual. Tudo
que possuem em sua vida espiritual procede de Cristo. Eles são pessoas
que vivem, se comportam e agem como crentes, porque recebem de Cristo
um contínuo suprimento de graça, auxílio e capacidade. Unidos pela fé ao
Senhor Jesus, em uma misteriosa união realizada pelo Espírito Santo, os
crentes permanecem firmes, andam e percorrem a jornada da vida cristã.
Mas qualquer sinal de bondade existente neles procede de seu Cabeça, o
Senhor Jesus Cristo.
Este pensamento produz conforto e instrução. Os crentes não têm
motivo para sentirem-se desesperados quanto à sua salvação, imaginando
que nunca chegarão ao céu. Devem meditar sobre o fato de que não foram
deixados a viver por si mesmos, na dependência de seu próprio poder. Sua
raiz é Cristo; tudo que existe na raiz tem em vista o benefício dos ramos.
Se Cristo vive, eles também viverão. Os incrédulos não devem se admirar
da perseverança e firmeza dos crentes. Embora sejam fracos, a raiz dos
crentes está nos céus e jamais morrerá. “Quando sou fraco”, disse o apóstolo
Paulo, “então é que sou forte” (2 Co 12.10).
Em segundo, esses versículos nos ensinam que existem tantos os
falsos quanto os verdadeiros crentes. Existem ramos na videira que parecem
estar unidos ao caule principal, mas não produzem qualquer fruto. São
homens e mulheres que aparentam ser membros do corpo de Cristo, porém
no último dia ficará comprovado que não possuíam qualquer união com
Ele.
Nas igrejas, há miríades de pessoas que professam ser crentes, mas
sua união com Cristo é apenas exterior e formal. Alguns deles pensam
estar unidos a Cristo por causa do batismo ou por serem membros de
igreja. Alguns deles vão muito além disso, tornando-se membros que
participam da Ceia do Senhor e conversam com entusiasmo sobre as coisas
espirituais. Mas falta-lhes algo necessário. Apesar de participarem dos
cultos, ouvirem os sermões, terem sido batizados e participarem da Ceia
do Senhor, não possuem a fé, a graça divina e a obra do Espírito Santo em
seus corações. Não estão unidos a Cristo, e Ele não está nestas pessoas.
Sua união com Cristo é apenas nominal e não verdadeira. Tais pessoas têm
nome de que vivem mas, aos olhos de Deus, estão mortas.
Este tipo de crente está apresentado na figura dos ramos da videira
que não produzem fruto. Inúteis e desagradáveis, estes ramos servem ape
nas para serem cortados e queimados, pois nada recebem da seiva do caule
e não produzem resultado em troca do lugar que ocupam na videira. Assim
200 João 15.1-6

ocorrerá no último dia aos crentes falsos, que apenas professam o nome de
Cristo. Se não se arrependerem, seu fim será a eterna condenação. Ficarão
eternamente separados da companhia dos verdadeiros crentes e, à seme­
lhança dos ramos secos e inúteis, serão lançados no fogo eterno. Por fim,
descobrirão que, não importando o que eles pensam neste mundo, existe o
verme que não morre e o fogo inextinguível.
Em terceiro, esses versículos nos ensinam que os frutos do Espírito
são a única evidência satisfatória de alguém ser um verdadeiro crente. O
discípulo que “permanece” em Cristo, assim como o ramo que permanece
na videira, produz muito fruto.
Aquele que deseja saber o significado do vocábulo “fruto” logo achará
a resposta. Arrependimento para com Deus, fé em nosso Senhor Jesus
Cristo, santidade de vida e de conduta — isto é o que o Novo Testamento
chama de fruto. Estas marcas caracterizam a pessoa que vive como genuíno
ramo da “videira verdadeira” . Se não tivermos estas coisas, em vão
confessaremos que possuímos a graça divina e vida espiritual. Não existe
vida onde não há frutos. Aquele que não possui estas virtudes, embora es­
teja vivo, encontra-se morto.
A verdadeira graça, não podemos esquecer, jamais é infrutífera. Não
dorme, nem cochila. Em vão supomos que somos membros do corpo de
Cristo, se o exemplo dEle é a única evidência satisfatória da união salvado­
ra que existe entre nossa alma e o Senhor Jesus. Não existe a verdadeira
vida espiritual no coração em que não podemos ver o fruto do Espírito. O
Espírito de vida em Cristo Jesus sempre se manifestará na vida e conduta
diária daqueles em quem Ele habita. O próprio Senhor Jesus declarou:
“Cada árvore é conhecida pelo seu próprio fruto” (Lc 6.44).
Por último, esses versículos nos ensinam que Deus freqüentemente
levará o crente a progredir em santidade através das providências que
utiliza em seu lidar com ele. Está escrito: “Todo o que dá fruto limpa, para
que produza mais fruto ainda” .
O significado destas palavras é evidente. Assim como o viticultor po­
da e apara os ramos de uma vinha frutífera, a fim de tomá-la mais frutífera,
assim também Deus purifica e santifica os crentes através das circunstâncias
da vida em que Ele os coloca.
Falando sinceramente, as provações são o instrumento pelo qual nosso
Pai celestial toma o crente mais santificado. Por meio destas, Ele desperta
nos crentes suas virtudes passivas e comprova se eles são capazes de suportar
a vontade dEle, tão bem quanto o fazê-la. Por meio das provações, Deus
os afasta do mundo, atraindo-os a Cristo, aproximando-os da Bíblia e da
oração, fazendo-os conhecer seus próprios corações e tomando-os humildes.
Este é o processo pelo qual Deus “limpa” os crentes e os toma mais fru­
tíferos. As vidas dos santos de todas as épocas são o melhor e mais
João 15.1-6 201

verdadeiro comentário desse texto. Raramente encontramos um crente, do


Antigo ou do Novo Testamento, que não foi purificado por meio de sofri­
mentos e, à semelhança de seu Mestre, não foi “um homem de dores” .
Aprendamos a ser pacientes nos dias de trevas, se realmente conhe­
cemos a união vital com Cristo. Sempre lembremos a doutrina ensinada
nessa passagem, para que não murmuremos e queixemos por causa das
aflições. Nossas provações visam fazer-nos o bem. Deus “nos disciplina
para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade” (Hb
12.10). Fruto é algo que nosso Senhor deseja ver em nós; por isso, se
achar necessário, utilizará a podadeira.

Promessas Relacionadas à Oração;


Fidelidade, a Melhor Evidência;
Obediência, o Segredo da Consolação
Leia João 15.7-11

Existem grandes diferenças entre um crente e outro. Em alguns


aspectos, todos eles são iguais. Todos reconhecem seus pecados, confiam
em Cristo, arrependem-se e esforçam-se por santidade. Todos possuem a
graça de Deus, a fé e novos corações. No entanto, eles diferem amplamente
em suas conquistas. Alguns são mais felizes e possuem mais santidade do
que outros, exercendo maior influência sobre o mundo.
Quais são os incentivos do Senhor Jesus para que seu povo tenha a
santificação como seu alvo? Esta pergunta tem de ser profundamente inte­
ressante para os piedosos. Qual o crente que não deseja tomar-se um feliz
e útil servo de Cristo?
Inicialmente, observamos que esses versículos esclarecem este assunto
em três aspectos.
1. Nosso Senhor declarou: “Se permanecerdes em mim, e as minhas
palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito” .
Esta é uma nítida promessa de eficácia e sucesso na oração. E qual o
âmago desta promessa? Temos de “permanecer” em Cristo e as palavras
dEle, em nós.
Permanecer em Cristo significa manter o hábito de constante comunhão
íntima com Ele, estar sempre confiando e descansando nEle, abrindo-Lhe
nossos corações, buscando-0 como nossa fonte de vida e poder, nosso
grande Capitão e melhor Amigo. Ter as suas palavras permanecendo em
nós significa manter suas mensagens e preceitos constantemente na memória
202 João 15.7-11

e no coração, permitindo que sejam o guia de nossas atitudes e nos governem


a conduta e o comportamento diário.
Crentes deste tipo nunca hão de orar inutilmente. O que pedirem
receberão, desde que o façam de acordo com a vontade de Deus. Nenhum
serviço será considerado excessivamente difícil e nenhum problema,
insuperável. Pedindo, receberão; buscando, acharão. Já tivemos muitos
crentes desta qualidade, tais como Martinho Lutero, o grande reformador
alemão, e o bispo Latimer, o mártir inglês. Assim também o foi John
Knox, a respeito de quem a rainha Maria, a sanguinária, disse que mais
temia suas orações do que um exército de vinte mil homens. A Bíblia
afirma: “Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo” (Tg 5.16).
Por que há tão pouco poder nas orações de nossa época? Simplesmente
porque falta mais comunhão íntima com o Senhor Jesus e mais rigorosa
conformidade com a vontade dEle. Os homens não “permanecem” em
Cristo; portanto, oram em vão. As palavras do Senhor Jesus não “per­
manecem” neles como seu padrão de conduta; por conseguinte, suas orações
não podem ser atendidas. Pedem e não recebem, porque pedem em vão.
Estas verdades devem ser guardadas profundamente em nossos corações.
Aquele que deseja respostas para suas orações precisa relembrar com atenção
estas orientações de Cristo. Se desejamos que nossas orações sejam bem-
sucedidas, precisamos manter amizade íntima com o grande Advogado
dos céus.
2, Nosso Senhor também disse: “Nisto é glorificado meu Pai, em
que deis muito fruto; e assim vos tomareis meus discípulos” (Jo 15.8).
Esta promessa parece significar que produzirfruto na vida cristã não somente
traz glória para Deus, mas também é a melhor evidência, para nós mesmos,
de que somos verdadeiros discípulos de Cristo. Certeza de nosso próprio
interesse por Cristo e nossa conseqüente segurança de vida etema são os
mais sublimes privilégios da vida espiritual. Estar sempre com dúvidas e
temores corresponde a viver na infelicidade. Não existe coisa pior do que
a incerteza em qualquer assunto de importância vital e, acima de tudo, nas
questões referentes à nossa alma. Se alguém deseja saber qual a melhor
maneira de obter segurança, deve estudar com diligência estas palavras de
Cristo; tem de se esforçar para produzir muito fruto em sua vida, hábitos,
sentimentos, palavras e obras. Agindo deste modo, tal pessoa perceberá
“o testemunho do Espírito” em seu coração e obterá abundantes provas de
ser um ramo da videira verdadeira. Encontrará em sua própria alma
evidências de que pertence à família de Deus, demonstrará às pessoas
incrédulas evidências exteriores incontestáveis e não alimentará duvidas
de que é um discípulo de Cristo.
Desejamos saber por que muitos crentes não desfrutam de consolação
em sua vida espiritual e permanecem com dúvidas e temores em sua jornada
João 15.7-11 203

ao céu? Estas palavras do Senhor Jesus oferecem resposta a esta pergunta.


Os crentes se contentam com um cristianismo superficial e não se esforçam
para serem santos em todas as suas conversas. Não devem se admirar de
terem pouca esperança e paz e manifestarem pequenas evidências. A culpa
é deles mesmos. Deus uniu a felicidade à santidade; o que Ele uniu não
devemos pensar em separar.
3. O Senhor Jesus declarou: “Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor” (Jo 15.10). O significado destas palavras
assemelha-se ao das anteriores: a pessoa que tem consciência de estar
diligentemente obedecendo os preceitos de Cristo com freqüência gozará o
sentimento do amor de Cristo em sua alma. É lógico que não podemos
entender de maneira errada as palavras de nosso Senhor, quando falou
sobre guardar seus mandamentos. Existe um sentido em que ninguém é
capaz de guardá-los. Nossas melhores obras são imperfeitas e deficientes;
e, quando tivermos feito o melhor de nós mesmos, certamente poderemos
clamar: “Senhor, seja propício a mim, pecador” .
Contudo, não devemos ir ao outro extremo e dar lugar à ociosa idéia
de que nós não podemos fazer nada afinal. Pela graça de Deus, podere­
mos tornar as leis de Cristo nossa regra de conduta e mostrar diariamente
que desejamos agradá-Lo. Agindo assim, nosso gracioso Senhor nos dará
um constante senso de sua graça e nos fará sentir sua face sorrindo para
nós como o sol brilhando em um dia bonito. “A intimidade do S e n h o r é
para os que o temem, aos quais ele dará a conhecer a sua aliança” ( SI
25.14).
Lições como estas podem parecer legalistas para alguns e trazer culpa
para aqueles que as defendem. Assim é a limitação da natureza humana
que não pode ver nada mais além de um lado da verdade! O servo de
Cristo não deve chamar ninguém de seu senhor; deve persistir em seu
caminho e nunca se envergonhar de ser diligente, frutífero e vigilante em
obedecer os mandamentos de Cristo. Estas coisas são perfeitamente con­
sistentes com a salvação pela graça e a justificação pela fé, mesmo que
outros afirmem o contrário.
Atentemos à conclusão de nosso assunto. O cristão cauteloso em suas
palavras, temperamento e obras geralmente será o cristão mais feliz.
“Alegria e paz no crer” jamais virão acompanhadas de uma vida cristã
inconsistente. Não foi sem motivo que o Senhor conclui esta passagem
dizendo: “Estas coisas vos tenho dito para que o vosso gozo seja completo” .
204 João 15.12-16

Amor Fraternal;
A Relação Entre Cristo e os Crentes;
Eleição
Leia João 15.12-16

Três assuntos importantes demandam nossa atenção nesta passagem.


Em cada um deles a linguagem de nosso Senhor está cheia de instruções
surpreendentes.
Primeiramente devemos observar a maneira como Jesus fala sobre a
virtude do amor fraternal. Ele retoma a este assunto pela segunda vez,
embora já tivesse falado sobre isto na parte anterior de seu discurso. Ele
nos fez saber que nunca poderemos pensar de maneira sobremodo elevada
sobre o amor, nunca poderemos acrescentar-lhe maior valor ou nos es­
forçarmos excessivamente para praticá-lo. As verdades que nosso Senhor
julgou necessário repetir são verdades que devemos considerar como as
mais importantes.
Ele nos ordena amar uns aos outros: “Este é o meu mandamento” .
Praticar esta virtude é uma obrigação positiva imposta às nossas cons­
ciências.
Não temos direito de negligenciar este mandamento, mais do que
teríamos em relação a qualquer outro dos mandamentos entregues no Monte
Sinai.
Ele nos fornece o mais elevado padrão de amor: “Ameis uns aos
outros, assim como eu vos amei”. Não devemos ficar satisfeitos com nada
que seja inferior a este amor. O mais fraco, o menor, o mais ignorante, o
mais imperfeito discípulo não poderá ser desprezado. Todos devem ser
amados com um amor ativo, sacrificial, que nega a si mesmo. Aquele que
não pode fazer isto ou não procura praticar este amor está desobedecendo
ao mandamento de seu mestre.
Preceitos semelhantes a este deveriam estimular-nos a examinar nossos
próprios corações. Este mandamento condena totalmente o espírito egoísta,
impertinente e invejoso de muitos que professam ser crentes. Pontos de
vista corretos sobre as doutrinas cristãs e o conhecimento de controvérsias
para nada servirão no último dia, se nada sabemos a respeito do verdadeiro
amor. Sem demonstrá-lo, talvez até sejamos aprovados como bons membros
de igreja. No entanto, o apóstolo Paulo disse que, se não temos amor,
somos “como o bronze que soa ou como o címbalo que retine” (1 Co
13.1). Onde não existe o amor de Cristo, ali também não existe a graça
divina, a obra do Espírito Santo e a genuinidade na vida espiritual. Felizes
João 15.12-16 205

são aqueles que não esquecem este mandamento de Cristo! Terão direito à
arvore da vida e entrarão na cidade celestial. O crente que não ama está
desqualificado para o reino celestial.
Em segundo lugar, devemos observar nesta passagem a maneira como
nosso Senhor fala sobre o relacionamento que existe entre Ele e seus dis­
cípulos. Ele disse: “Já não vos chamo servos... mas tenho-vos chamado
amigos” .
Este é sem dúvida um grande privilégio. Conhecer, servir, obedecer,
seguir a Cristo, trabalhar em sua vinha e lutar em favor dEle — tudo isto é
deveras importante. Entretanto, o fato de que homens e mulheres pecadores
como nós são chamados de amigos de Cristo é algo que nossas mentes
imperfeitas dificilmente podem entender e assimilar. O Rei dos reis e Senhor
dos senhores não apenas teve piedade e se compadeceu de todos os que
crêem nEle, mas agora os chama de “amigos” . Não devemos admirar que,
diante de uma linguagem como esta, o apóstolo Paulo tenha dito que “o
amor de Cristo... excede todo entendimento” (Ef 3.19).
Esta expressão deve nos encorajar a intensificar nossa familiaridade
com Cristo, através da oração. Por que nos sentimos receosos de abrir-
Lhe nossos corações e contar nossos segredos para Aquele que nos chama
seus amigos? Permitamos que esta expressão nos fortaleça em todos os
problemas e tristezas de nossas vidas e faça crescer nossa confiança no
Senhor Jesus. Salomão disse: “O homem que tem muitos amigos sai
perdendo; mas há amigo mais chegado do que um irmão” (Pv 18.24).
Com certeza, nosso sublime Senhor, que está no céu, nunca esquecerá
seus amigos. Embora sejamos pecadores e indignos, Ele jamais nos
abandonará, mas permanecerá ao nosso lado, preservando-nos até ao fim.
Davi nunca esqueceu Jônatas; e o Filho de Davi fará o mesmo em relação
ao seu povo. Nenhuma pessoa é tão rica, tão forte, tão independente, tão
bem-sucedida e tão completamente suprida quanto aquela a respeito de
quem o Senhor afirmou: “Este é meu amigo” .
Por último, devemos observar nessa passagem a maneira como nosso
Senhor se referiu à doutrina da eleição. Ele disse: “Não fostes vós que me
escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi... para que vades e deis
fruto” . A escolha aqui mencionada evidentemente tem dois aspectos. Não
somente inclui a escolha para o ministério apostólico, que era peculiar aos
onze, mas também a eleição para a vida eterna, o privilégio de todos os
crentes. A este segundo aspecto da escolha proveitosamente voltaremos
nossa atenção, visto que se refere a todos nós.
A eleição para a vida eterna é uma verdade das Escrituras que temos
de aceitar e crer com humildade. Por que o Senhor Jesus chamou alguns e
outros não, vivificou alguns e deixou outros permanecerem em seus
pecados? Estas são perguntas que não podemos explicar. Para nós o
206 João 15.12-16

suficiente é reconhecer esse fato. Deus tem de começar a obra de salvação


na alma das pessoas, pois, de outro modo, ninguém será salvo. É necessário
que, primeiramente, Cristo nos escolha e chame por intermédio de seu
Espírito, ou jamais seremos salvos. Sem dúvida, se não somos pessoas
salvas, a culpa pertence a nós mesmos. Mas, se já somos salvos, com
certeza reconhecemos que nossa salvação teve seu início na eletiva graça
de Deus. Nosso cântico, durante toda a eternidade, será aquele pronunciado
pelos lábios de Jonas: “Ao S e n h o r pertence a salvação!” (Jn 2.9).
A eleição sempre tem em vista a santificação. Aqueles a quem Cristo
escolheu dentre a raça humana, Ele os escolheu não somente para que
sejam salvos, mas para que produzam frutos que podem ser vistos. Qualquer
eleição que não manifesta essa característica é mera ilusão, uma fútil
invenção dos homens. A fé, o amor e a esperança dos tessalonicenses
levaram o apóstolo a afirmar: “Reconhecendo, irmãos, amados de Deus, a
vossa eleição” (1 Ts 1.4). Onde não existe o fruto visível da santificação,
podemos estar certos de que ali também não existe eleição.
Assimilando princípios como este, não há motivo para termos receio
da doutrina da eleição. Assim como outras verdades apresentadas no
evangelho, ela está sujeita à perversão e abusos. Todavia, para um crente
maduro, assim como corretamente afirma o artigo 17 do credo da Igreja
Anglicana, está é uma doutrina “repleta de ânimo, satisfação e indizível
conforto” .

O que os Crentes Devem Esperar do Mundo;


Motivos para Manifestarmos Paciência
Leia João 15.17-21

Esta passagem começa com uma reiterada ordem referente ao amor


fraternal. Pela terceira vez, o Senhor achou necessário chamar a atenção
dos discípulos a esta preciosa virtude. O verdadeiro amor cristão deve ser
algo raro, visto que novamente o Senhor o mencionou. Devemos observar
com cuidado a conexão em que ele se encontra nesta ocasião. O amor
cristão é contrastado com o ódio do mundo.
Essa passagem primeiramente nos mostra o que os verdadeiros crentes
devem esperar deste mundo — ódio e perseguição. Se os discípulos
aguardavam bondade e gratidão da parte dos homens, ficariam pro­
fundamente decepcionados. Deveriam imaginar que seriam maltratados,
assim como o seu Senhor. “O mundo vos odeia. Não fiqueis desanimados
ou surpresos. Se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós outros;
João 15.17-21 207

se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa” .


Os acontecimentos tristes, dolorosos, de todas as épocas da história
da igreja, fornecem abundantes provas da veracidade desta advertência de
nosso Senhor. Perseguição foi a parte que coube aos apóstolos e todos seus
companheiros de ministério, onde quer que foram. Talvez apenas um ou
dois, dentre eles, morreram tranqüilamente em suas casas. Perseguição
também foi o quinhão dos verdadeiros crentes durante os séculos de história
cristã. As atrocidades dos imperadores romanos, dos papas, da Inquisição,
dos martírios fomentados durante o reinado de Maria, a sanguinária —
todos demonstram o mesmo fato. Até hoje, a perseguição é a parte que
cabe a todo o verdadeiro povo de Deus. Ridículo, zombaria, desprezo, má
compreensão ainda revelam o sentimento dos incrédulos contra o verdadeiro
crente. O que ocorreu nos dias do apóstolo Paulo também ocorre agora.
Em público ou em particular, na escola ou na universidade, em casa ou na
rua, “todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão
perseguidos” (2 Tm 3.12). O simples fato de pertencer à membresia de
uma igreja e o fazer confissão verbal de ser crente constituem um
cristianismo sem valor e nada custam ao homem. O verdadeiro cristianismo
sempre traz consigo uma cruz.
Conhecer e entender essas verdades é extremamente importante para
nossa consolação. Nada é tão prejudicial quanto o hábito de nutrir falsas
esperanças. Devemos reconhecer que a natureza humana é sempre a mesma
e que “o pendor da carne é inimizade contra Deus” e contra a imagem
dEle em seu povo. Sempre tenhamos em mente que a santidade no cará­
ter e na conduta jamais impedirá que sejamos perseguidos, assim como
ocorreu ao nosso imaculado Senhor. Recordemos esses fatos; con­
seqüentemente, não seremos desapontados.
Em segundo, esta passagem nos mostra duas razões para ma­
nifestarmos paciência ao enfrentar as perseguições deste mundo. Ambas
são importantes e motivo de intensa meditação.
Por um lado, a perseguição foi o cálice que o próprio Senhor bebeu.
Ele era imaculado em todos os aspectos, seu caráter, suas palavras e atos;
era incansável em obras de bondade, fazendo sempre o bem; no entanto,
nenhuma outra pessoa foi tão odiada quanto Jesus nos últimos dias de seu
ministério terreno. Escribas, sumos sacerdotes, fariseus, saduceus, judeus
e gentios uniram-se a fim de lançar sobre Jesus o seu desprezo e oporem-
se a Ele, não descansando até levá-lo à morte.
Com certeza, este simples fato deve revigorar nossos espíritos e
guardar-nos do desânimo por causa do ódio dos homens. Devemos lembrar
que estamos apenas seguindo os passos de nosso Senhor e bebendo o seu
cálice. Mereceremos ser tratados de maneira melhor? Somos melhores do
que Ele? Lutemos contra esse tipo de pensamento. Bebamos com paciência
208 João 15.17-21

o cálice que nosso Deus nos outorgou. Acima de tudo, sempre recordemos:
“Não é o servo maior do que seu senhor” .
Por outro lado, a perseguição serve para comprovar que somos filhos
de Deus e temos um tesouro no céu. Ela evidencia que realmente somos
nascidos de novo, temos a graça de Deus em nossos corações e somos
herdeiros da glória eterna — “Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o
que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário, dele vos
escolhi, por isso, o mundo vos odeia” . Em resumo, a perseguição assemelha-
se à marca de genuinidade estampada sobre um barra de ouro: é um dos
sinais de que somos pessoas convertidas.
Fortaleçamos nossas mentes com este revigorante pensamento, quando
nos sentimos desanimados e estamos dispostos a desistir por causa do ódio
das pessoas incrédulas. Sem dúvida, a perseguição é algo difícil de suportar,
especialmente quando estamos cônscios de que somos inocentes. Porém
jamais esqueçamos que a perseguição contribui para o nosso bem; é uma
indicação da obra que o Espírito Santo começou em nosso coração, uma
obra que nunca poderá ser frustrada. Na perseguição, podemos recordar
aquela preciosa promessa: “Bem-aventurados sois quando, por minha causa,
vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra
vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus;
pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós” (Mt 5.12).
Terminemos este importante assunto com um sentimento de profunda
compaixão por aqueles que nos perseguem por causa do cristianismo.
Conforme nosso Senhor mesmo afirmou, com freqüência os perseguidores
fazem isto por falta de melhor conhecimento — “Não conhecem aquele
que me enviou”. Assim como nosso divino Senhor e como Estêvão, seu
servo, oremos por aqueles que com injúria nos afrontam e perseguem. A
perseguição proveniente deles raramente nos causa danos e com freqüência
nos aproxima do Senhor, nos leva a buscar mais as Escrituras e o trono da
graça. Nossa intercessão, se for ouvida nos céus, trará bênçãos sobre as
almas dos perseguidores.

A má Utilização de Privilégios;
O Espírito Santo;
O Ofício dos Apóstolos
L eia João 15.22-27

Nesses versículos, nosso Senhor aborda três assuntos de grande


João 15.22-27 209

importância. Sem dúvida, são assuntos difíceis, em relação aos quais


facilmente nos enganamos. No entanto, as palavras de Jesus nessa passagem
os esclarecem.
Primeiramente, devemos observar como nosso Senhórfala a respeito
da má utilização de privilégios espirituais. Essa atitude intensifica a culpa
e agrava a condenação do homem. Jesus disse a seus discípulos que, se não
tivesse “falado” e realizado entre os judeus coisas que jamais haviam sido
faladas e realizadas, eles “não teriam” pecado. Com estas palavras, o Se­
nhor Jesus pretendia dizer: “Eles nunca foram tão culpados quanto agora” .
Tomaram-se completamente indesculpáveis. Ouviram e viram as mensagens
e as realizações de Cristo, mas permaneceram na incredulidade. O que
poderia ser feito por eles? Nada, absolutamente nada! Voluntariamente
pecaram contra a mais resplandecente luz que tiveram e tornaram-se os
mais culpados dos homens.
Estabeleçamos como um dos grandes princípios de nossa vida espiri­
tual o fato de que os privilégios espirituais, em certo sentido, são muito
perigosos. Se não servirem para levar-nos ao céu, eles nos lançarão nas
profundezas do infemo. Aumentam nossa responsabilidade. “Àquele a quem
muito foi dado, muito lhe será exigido; e àquele a quem muito se confia,
muito mais lhe pedirão” (Lc 12.48). Está horrivelmente iludida a pessoa
que, vivendo em um país onde a Bíblia é proclamada com liberdade, pensa
que no Dia do Juízo receberá o mesmo julgamento pronunciado àqueles
que não ouviram falar do evangelho. A menos que se converta, descobrirá
com muitas dores que seu julgamento será de acordo com a luz que possuía.
O simples fato de que tal pessoa tinha conhecimento e deste não se beneficiou
comprovará um de seus grandes pecados. “Aquele servo, porém, que
conheceu a vontade de seu senhor e não se aprontou, nem fez segundo a
sua vontade será punido com muitos açoites” (Lc 12.47).
Meditar mais demoradamente sobre este assunto seria bom para todos
os que professam seguir a Jesus. É muito comum os homens se consolarem
com a idéia de que sabem o que é certo, enquanto, ao mesmo tempo,
demonstram que ainda são incrédulos e estão despreparados para morrer.
Descansam naquela infeliz afirmação: “Já sabemos isso... já sabemos” .
Pensam que o conhecimento pode cancelar seus pecados, esquecendo-se
de que o diabo possui mais conhecimento do que qualquer um de nós.
Permitamos que estas pungentes palavras do Senhor Jesus aprofundem-se
em nossos corações e jamais sejam esquecidas: “Se eu não viera, nem lhes
houvera falado, pecado não teriam; mas, agora, não têm desculpa do seu
pecado” . Possuir luz e não utilizá-la corretamente, ter conhecimento e
desprezá-lo, ser capaz de asseverar: “Eu sei” e não dizer: “Eu creio” —
estas atitudes colocarão os homens no mais desprezível lugar, à esquerda
de Cristo, no grande Dia do Juízo.
210 João 15.22-27

Em segundo, devemos observar nesses versículos o que nosso Senhor


fala a respeito do Espírito Santo. Ele se referiu ao Espírito como uma
pessoa, chamando-0 de “Consolador” , que viria. Jesus afirmou que o
Espírito Santo seria enviado e procederia do Pai. Seu ofício seria tes­
temunhar. Estas coisas não podem ser ditas a respeito de uma mera influência
ou de um sentimento interior. Interpretá-las deste modo é contradizer o
sentido básico e distorcer o significado evidente da linguagem. A lógica e
a imparcialidade exigem que entendamos estas afirmações como referênci­
as a um ser pessoal, Aquele que adoramos como a terceira pessoa da
bendita Divindade.
Também nosso Senhor referiu-se ao Espírito Santo como Aquele que
Ele enviaria e procederia da parte do Pai. Sem dúvida, estas verdades são
profundas, tão profundas que não podemos esquadrinhá-las. O fato de que
igrejas do Oriente e do Ocidente estão divididas por causa do significado
destas palavras deve nos ensinar que precisamos abordá-las com humildade
e reverência. Acima de tudo, uma verdade permanece evidente: existe um
íntimo relacionamento entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Não podemos
explicar porque o Espírito Santo seria enviado pelo Filho e procederia do
Pai. Mas podemos sossegar nossas mentes com o pensamento expresso em
um credo antigo: “Na Trindade, nenhuma das Pessoas está à frente ou
atrás da Outra; Nenhuma é maior ou menor do que a Outra” . “O Pai é
semelhante ao Filho, que é igual ao Espírito Santo.” Além disso, podemos
descansar tranqüilos na certeza de que, na salvação de nossas almas, to­
das as pessoas da Trindade cooperam igualmente. Foi o Deus triúno quem
disse: “Façamos o homem” ; também foi o Deus triúno quem disse:
“Salvemos o homem” .
Tenhamos sempre cuidado em apresentar a doutrina sobre o Espírito
Santo. Estejamos certos de que sustentamos pontos de vista corretos e
bíblicos a respeito da natureza, pessoa e atividade do Espírito Santo.
Religiosidade que não tem lugar para o Espírito Santo e rejeita sua atividade
é muito comum em nossos dias. Estejamos atentos para que este não seja a
nosso tipo de vida espiritual. “O que representa para mim o Cordeiro, o
Senhor Jesus Cristo?” deve ser a primeira indagação de nosso cristianismo.
“Qual o lugar do Espírito Santo?” dever ser a segunda. Estejamos bem
atentos para que a obra do Espírito Santo não se encontre de tal maneira
sepultada em opiniões extravagantes sobre a igreja, sobre o ministério
cristão e sobre as ordenanças, que o verdadeiro Espírito Santo das Escrituras
esteja ausente de nosso cristianismo. “Se alguém não tem o Espírito de
Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9). Nenhuma religião merece ser chamada
de apostólica ou bíblica, se a obra do Espírito não estiver em proeminência
e ocupar um lugar de prioridade.
Por último, devemos observar nesses versículos a maneira como nosso
João 15.22-27 211

Senhor fala sobre o ofício dos apóstolos. Eles deveriam testemunhar ao


mundo: “Vós também testemunhareis” .
Esta expressão é bastante instrutiva e abundante em significado.
Mostrava aos onze o que deveriam fazer enquanto vivessem — deveriam
testemunhar sobre fatos em que muitos não creriam e anunciar verdades
que muitos não apreciariam. Com freqüência estariam sozinhos, poucos
contra muitos, um pequeno rebanho contra uma grande multidão. Nenhuma
destas coisas haveria de impedi-los. Não deveriam estranhar a perseguição,
o ódio, a oposição, o descrédito. Tudo isto não poderia inquietá-los. Sua
grande obrigação era falar, quer os homens cressem, quer não. Teste­
munhando deste modo, seus feitos estariam registrados nos céus, no livro
das recordações de Deus, e, mais cedo ou mais tarde, o Juiz de todos lhes
daria a incorruptível coroa de glória.
Ao concluir essa passagem, jamais esqueçamos que o ofício dos
apóstolos assemelha-se ao que, em certo sentido, todo verdadeiro crente
deve realizar, enquanto vive neste mundo. É necessário que sejamos
testemunhas de Cristo. Não devemos nos envergonhar de permanecer firmes
em favor dEle, anunciando solenemente e persistindo em sustentar a verdade
do evangelho de Cristo. Onde vivemos, na capital ou no interior, indi­
vidual ou publicamente, em nosso país ou no exterior, temos de confessar
com ousadia nosso Senhor, em cada oportunidade. Fazendo isto, seguiremos
os passos dos apóstolos, agradaremos nosso bendito Senhor e podemos
esperar que, no final, receberemos a recompensa dos apóstolos.

Uma Notável Profecia;


Advertência Contra a Ofensa nas Aflições;
Por que Cristo Retornaria ao Céu?
Leia João 16.1-7

Os versículos iniciais desse capítulo apresentam três declarações do


Senhor Jesus que merecem atenção especial.
Primeiramente, vemos nosso Senhor proclamando uma notável
profecia, ao afirmar que os discípulos seriam rejeitados, perseguidos e
mortos pelos líderes judeus — “Eles vos expulsarão das sinagogas; mas
vem a hora em que todo o que vos matar julgará com isso tributar culto a
Deus” .
À primeira vista, esta afirmação parece bem estranha. Exclusão,
sofrimento e morte foram as coisas que o Príncipe da Paz antecipou aos
seus discípulos. Aos invés de serem aceitos com gratidão e as pessoas
212 João 16.1-7

darem crédito à sua mensagem, os discípulos seriam odiados, maltratados


com desprezo e mortos pelo mundo. E, pior do que tudo isso, seus per­
seguidores convenceriam a si mesmos de que era correto persegui-los e
infligir-lhes as mais cruéis afrontas, em nome da religião.
Esta profecia se realizou com toda veracidade. Assim como todas as
demais profecias das Escrituras, esta se cumpriu palavra por palavra. Os
Atos dos Apóstolos nos mostram como os judeus incrédulos perseguiram a
igreja primitiva. As páginas da história revelam os terríveis crimes praticados
pela Inquisição. As crônicas da Europa mostram como os piedosos refor­
madores foram queimados, devido às suas convicções espirituais, por ho­
mens que declaravam fazer tudo que podiam, motivados por seu zelo em
favor da pureza do cristianismo. Ainda que parecia impossível e ina­
creditável naquela ocasião, o grande Profeta da igreja comprovou sua au­
tenticidade no fato de que, assim como em todas as suas outras afirmações,
Ele predisse nada mais do que a verdade.
Não devemos ficar surpresos ao ouvir que os crentes são perseguidos,
de uma maneira ou de outra, em nossos dias. A natureza humana continua
a mesma. A graça divina nunca foi realmente popular. Se os verdadeiros
filhos de Deus confessam a Jesus como Senhor, a intensidade de perseguição
que eles têm de sofrer mesmo agora, nas diversas áreas de suas vidas, é
maior do que as pessoas do mundo imaginam. Somente conhecem a natureza
da perseguição aqueles que a vivenciam, na escola, no trabalho, em casa,
etc. “Todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão
perseguidos” (2 Tm 3.12).
Nunca esqueçamos: a sinceridade em coisas espirituais não comprova
que uma pessoa é um verdadeiro cristão. O zelo sem conhecimento é in­
correto. Ninguém é tão iludido quanto a pessoa zelosa que não possui ver­
dadeiro conhecimento. Nem toda sinceridade é digna de confiança. Sem a
orientação do Espírito Santo, a sinceridade pode conduzir uma pessoa para
tão longe de Deus, que, assim como Saulo de Tarso, perseguirá o próprio
Senhor Jesus Cristo. Algumas pessoas sinceras e dedicadas imaginam que
estão fazendo a obra de Deus, quando na realidade estão lutando contra a
verdade e perseguindo o povo dEle. Oremos para que sejamos zelosos,
mas igualmente tenhamos discernimento.
Em segundo, vemos nosso Senhor explicando seu motivo especial
para anunciar não somente esta profecia mas todo o seu discurso. Ele afir­
mou: “Tenho-vos dito estas coisas para que não vos escandalizeis” .
Nosso Senhor sabia que nada é mais prejudicial ao nosso crescimento
espiritual do que nutrir falsas esperanças. Por isso, preparou seus discípulos
para o que teriam de enfrentar ao servirem-No. Os discípulos foram equi­
pados e avisados de antemão! Não poderiam esperar tranqüilidade e quietude
em sua jornada. Precisavam estar decididos a passar por conflitos, adver-
João 16.1-7 213

sidades, oposição, perseguições e, talvez, morte. À semelhança de um


sábio general, o Senhor Jesus não ocultou de seus soldados a natureza da
campanha que estavam começando. Com fidelidade e amor, mostrou-lhes
tudo que os aguardava, para que, ao defrontarem-se com a perseguição,
lembrassem suas palavras e não desanimassem e se escandalizassem. Com
sabedoria, Ele lhes avisou de antemão que a cruz era o caminho para a
coroa.
Em todas as épocas, um dos primeiros deveres do crente é calcular o
custo de seguir a Cristo. Não existe qualquer bondade em retratar com
falsas cores aos novos convertidos o cristianismo e ocultar-lhes a verdade:
“Através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus” .
Pregar doutrinas agradáveis e clamar: “Paz, paz!” pode trazer para as
fileiras do exército de Cristo muitos soldados falsos. Mas estes são apenas
soldados que, à semelhança dos ouvintes comparados ao solo rochoso,
retrocederão no dia da batalha. Não se encontra em um estado espiritual
saudável o crente que não está preparado para enfrentar tribulações e
perseguição. Se alguém espera atravessar as águas turbulentas deste mundo
e chegar ao céu, tendo a maré e o vento sempre a seu favor, tal pessoa
realmente não sabe tanto quanto deveria saber. Nunca podemos afirmar
com certeza aquilo que nos espera nos dias por vir. No entanto, disso
podemos estar certos: temos de levar a cruz, se desejamos receber a coroa.
Guardemos firmemente em nossos corações este princípio e nunca o
esqueçamos. Então, quando as provações nos alcançarem, não ficaremos
escandalizados.
Por último, vemos nosso Senhor explicando por que convinha que
deixasse seus discípulos. Ele declarou-lhes: “Se eu não for, o Consolador
não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo enviarei” . Com ra­
zão, podemos imaginar que nosso gracioso Senhor percebeu ficarem
perturbadas as mentes de seus discípulos ante a idéia de que Ele os deixaria.
Embora não tenham compreendido todo o significado das palavras de Jesus,
tal como em outras ocasiões, evidentemente eles tiveram uma vaga noção
de que seu todo-poderoso Amigo estava para deixá-los, assim como órfãos,
em um mundo insensível e cruel. Seus corações esmoreceram e desa­
nimaram. Com bastante graça, nosso Senhor os fortaleceu com palavras
que transmitiam um significado profundo e complexo. Jesus lhes disse que
sua partida, embora parecesse resultar em tristeza, era bom para eles e não
ruim. Descobririam que não haveria perda, e sim ganho. A ausência física
do Senhor Jesus seria mais benéfica do que sua presença.
Não podemos negar que está é uma afirmação difícil de ser assimilada.
À primeira vista, parece incompreensível como, em certo sentido, seria
bom que Jesus deixasse seus discípulos. Porém, um pouco de reflexão
pode mostrar que, assim como outras palavras de Jesus, esta notável ex­
214 João 16.1-7

plicação era correta e verdadeira. De qualquer maneira, as seguintes


observações merecem nossa atenção:
Se Cristo não tivesse sido morto, ressuscitado e ascendido ao céus, é
claro que o Espírito Santo não poderia ter vindo com poder especial sobre
os discípulos, no dia de Pentecostes, para outorgar diferentes dons à igreja.
Ainda que este fato seja misterioso, nos eternos conselhos de Deus existe
uma conexão entre a ascensão de Cristo e o derramamento do Espírito.
Se Cristo tivesse permanecido fisicamente com seus discípulos, Ele
não poderia ficar em muitos lugares ao mesmo tempo. A presença do Espí­
rito, que Jesus enviaria, encheria todos os lugares onde os crentes estivessem
reunidos em seu nome, em todas as partes do mundo.
Se Cristo tivesse permanecido na terra e não ascendesse aos céus,
não poderia ter se tomado Sumo Sacerdote para seu povo de uma maneira
tão plena e completa quanto após sua ascensão. Em sua natureza humana
glorificada, o Senhor Jesus subiu ao céu e assentou-se à direita de Deus,
para estar diante dEle como nosso Advogado.
E, se Cristo tivesse permanecido fisicamente com seus discípulos,
não haveria muito exercício da fé, esperança e confiança, tal como houve
desde que Ele ascendeu à glória. As virtudes dos discípulos não teriam
sido tão exercitadas, e poucas oportunidades eles teriam desfrutado para
glorificar a Deus e manifestar seu poder.no mundo.
Acima de tudo, permanece o fato de que o Senhor Jesus subiu aos
céus e o Espírito Santo foi enviado no dia de Pentecostes; a partir de então,
a vida espiritual dos discípulos se tornou completamente nova. O conhe­
cimento deles foi ampliado; sua fé, esperança, zelo e coragem mostraram-se
superiores às de suas vidas antes daquele dia. Fizeram mais por Cristo,
estando Ele ausente, do que enquanto esteve presente entre eles na terra.
Que prova maior podemos desejar de que era conveniente que seu Senhor
os deixasse?
Devemos concluir nossas considerações sobre esta passagem com
uma profunda convicção de que a presença do Espírito Santo em nossos
corações é essencial para desfrutarmos de um elevado nível de vida cristã,
mais essencial do que a própria presença física de Jesus entre nós. Todos
devemos ter intenso desejo não por sua presença física, para O tocarmos e
conversarmos com Ele, e sim por sua habitação em nossos corações pela
virtude do Espírito Santo.
João 16.8-15 215

A Obra do Espírito Santo


em Favor dos Judeus e do Mundo
Leia João 16.8-15

Quando consideramos o que nosso Senhor falou sobre a vinda do


Espírito Santo, nessa passagem, precisamos ter cuidado para não entender
de maneira errônea o significado de suas palavras. Por um lado, temos de
recordar que o Espírito Santo habitou todos os crentes do Antigo Testamento,
desde o início da história. Nenhum homem jamais foi salvo do poder do
pecado e transformado em um santo, sem que houvesse a operação
regeneradora do Espírito Santo. Abraão, Isaque, Samuel, Davi e os profetas
foram o que a Bíblia nos conta somente por causa da obra do Espírito San­
to neles. Por outro lado, não podemos esquecer que, após a ascensão de
Cristo, o Espírito Santo foi derramado com maior poder sobre as pessoas
e houve mais ampla influência sobre as nações do que em épocas anteriores.
Nos versículos que agora consideramos, nosso Senhor finita em mente este
mais intenso poder e esta mais vigorosa influência. Ele queria dizer que,
após sua ascensão, o Espírito Santo viria ao mundo com um poder tão
amplamente intenso, que pareceria como se Ele estivesse vindo pela primeira
vez.
A dificuldade de explicar com exatidão as maravilhosas afirmativas
de nosso Senhor nestes versículos é extremamente grande. Poderíamos
questionar se o significado destas palavras já foi completamente assimilado
por alguma pessoa e se ainda não existe algo que não foi totalmente
esclarecido. A interpretação comum e superficial propõe que estas afir­
mativas de nosso Senhor apenas significam que a obra do Espírito Santo
em salvar os crentes implica em convencê-los de seus próprios pecados,
deixá-los convictos da justiça de Cristo e da certeza do julgamento final;
essa interpretação dificilmente satisfará aqueles que se dedicam a meditar
nas Escrituras. É uma maneira simples e superficial de fugir das dificuldades
apresentadas na Bíblia. Contém boa e excelente doutrina, sem dúvida, mas
não satisfaz o pleno significado das palavras de nosso Senhor. Expressa a
verdade, mas não a verdade desse texto. O Senhor Jesus disse que o Espírito
Santo convenceria o mundo e não as pessoas que se encontram em diferentes
lugares. Vejamos se podemos encontrar uma interpretação mais completa
e satisfatória.
Primeiro, nosso Senhor provavelmente pretendia mostrar-nos o que
o Espírito Santo faria ao mundo dos judeus incrédulos. Ele os convenceria
“do pecado, da justiça e do juízo” .
216 João 16.8-15

O Espírito Santo convenceria “do pecado” os judeus, constrangendo-


os a sentirem e reconhecerem, em seus corações, que, ao rejeitarem Jesus
de Nazaré, haviam cometido grave pecado e se tomaram culpados de grande
incredulidade.
O Espírito Santo os convenceria da “justiça” . Ele impressionaria
suas consciências com o fato de que Jesus de Nazaré não era um impostor
ou enganador, e sim uma pessoa santa, pura e justa, a quem Deus aprovara
ao recebê-Lo no céu.
O Espírito Santo os convenceria do “juízo” . Ele os constrangeria a
perceber que Jesus de Nazaré havia conquistado, vencido e julgado Satanás
e todas as suas hostes, sendo exaltado a Príncipe e Salvador, assentando-se
à direita de Deus.
O livro de Atos dos Apóstolos claramente demonstra que o Espírito
Santo realmente convenceu deste modo os judeus. Foi Ele quem outorgou
àqueles humildes pescadores tanta graça e poder para testificarem sobre
Cristo, que seus adversários ficaram em silêncio. Foi o convincente e
reprovador poder do Espírito que os capacitou a encher Jerusalém com sua
doutrina. Muitos judeus, nós o sabemos, foram convencidos para salvação,
assim como Paulo, e “muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé” . E temos
motivos para imaginar que milhares de outras pessoas daquela nação fo­
ram convencidos em suas mentes, ainda que não tiveram coragem de vir a
Jesus e tomar a sua cruz. A atitude dos judeus no final do relato do Livro
de Atos se mostrou diferente da que tiveram no início. Uma ampla influência
trazendo convencimento e reprovação, embora não tenha conduzido à
salvação, parece ter vindo sobre os corações dos judeus. Com certeza, isto
corresponde a parte do que Jesus tinha em mente quando afirmou sobre o
Espírito Santo: “Ele convencerá” .
Por outro lado, nosso Senhor provavelmente pretendia revelar com
antecedência o que o Espírito Santo realizaria em fa vo r de toda a
humanidade, tanto judeus quanto gentios. Ele condenaria, em todos os
lugares do mundo, as idéias que os homens tinham sobre o pecado, a
justiça e o juízo; também os convenceria trazendo-lhes conceitos mais
elevados do que aqueles que possuíam no tocante a estes assuntos. O Espírito
Santo os faria perceber com mais clareza o caráter do pecado, a necessidade
de justiça e a certeza do julgamento. Em resumo, Ele se tornaria um
advogado imparcial e um convincente pleiteador em favor da Divindade e
estabeleceria, em todo o mundo, um padrão de moralidade, pureza e
conhecimento que os homens não possuíam antes.
Os fatos comprovam que o Espírito Santo realmente fez isso em
muitos lugares do mundo. Aqueles humildes e indoutos judeus que Ele
fortaleceu e enviou a pregar o evangelho, após a ascensão de nosso Senhor,
transtornaram “o mundo” e, no espaço de dois ou três séculos, mudaram
João 16.8-15 217

os hábitos, interesses e comportamento de todos os povos civilizados.


Satanás foi violentamente atacado. Nem mesmo os incrédulos ousaram ne­
gar que as doutrinas do cristianismo produziram um enorme efeito sobre a
vida, o comportamento e as idéias das pessoas, quando foram inicialmente
proclamadas por homens em quem não havia qualquer virtude ou eloqüência
especial que justificaria tal efeito. Na verdade, apesar de seu estado, o
mundo foi convencido, e mesmo aquelas pessoas que não se converteram
tomaram-se melhores. Com certeza, isso também faz parte do que o Senhor
tinha em mente quando disse aos seus discípulos: “Quando Ele vier,
convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo” .
Findemos as considerações sobre essa passagem, difícil e profunda
em significado, com uma grata lembrança da animadora promessa que ela
contém. “O Espírito da verdade” , disse nosso Senhor aos seus frágeis e
mal instruídos discípulos, “ele vos guiará a toda verdade”. Esta promessa
tinha em vista o nosso benefício, bem como o deles. O Espírito Santo está
disposto a nos ensinar tudo que precisamos saber para termos paz e
santificação no presente.

A Ausência de Cristo, Tristeza Para os Crentes;


A Segunda Vinda, Regozijo Para Eles;
O Dever de Orar Enquanto Cristo Está Ausente
Leia João 16.16-24

Os discípulos não compreenderam todas as declarações do Senhor


Jesus. A passagem que agora consideramos deixa-o bastante evidente —
“Que vem a ser esse - um pouco? Não compreendemos o que quer dizer” .
Nenhuma outra pessoa falou com tanta clareza quanto Jesus, e somente os
apóstolos estavam suficientemente acostumados com sua maneira de ensinar.
Entretanto, mesmo os apóstolos nem sempre entenderam o significado das
palavras de seu Senhor. Há muitas verdades tão profundas que somos
incapazes de perscrutá-las. Mas sejamos gratos a Deus porque na Bíblia
existem muitas afirmações de nosso Senhor que nenhum homem pode deixar
de entender. Usemos com diligência a luz que possuímos, e, sem dúvida,
“ao que tem se lhe dará” .
Primeiramente, esses versículos nos ensinam que a ausência de Cristo
será uma ocasião de tristeza para os crentes e alegria para o mundo. Está
escrito: “Em verdade, em verdade eu vos digo que chorareis e vos
lamentareis, e o mundo se alegrará” . Estaremos restringindo o significado
destas palavras, se o limitarmos apenas ao assunto da aproximação da
218 João 16.16-24

morte e sepultamento de Cristo. À semelhança de muitos dos ensinos de


nosso Senhor, na última noite de seu ministério terreno, o ensino dessa
passagem parece referir-se a todo o período de tempo entre o primeiro e o
segundo advento.
A ausência de Cristo deve ser um motivo de tristeza para todo
verdadeiro crente. “Podem acaso estar tristes os convidados para o
casamento, enquanto o noivo está com eles? Dias virão, contudo, em que
lhes será tirado o noivo, e nesses dias hão de jejuar” (Mt 9.15). A fé exclui
o ver; e a esperança, o experimentar. Ler e ouvir não é o mesmo que
comtemplar. Orar não equivale a conversar face a face. Existe algo nos
crentes, mesmo nos mais eminentes, que jamais será satisfeito enquanto
eles estão na terra e Cristo, nos céus. Vivendo em corpos corruptíveis,
vendo “como por espelho” , contemplando a criação gemer sob o poder do
pecado e todas as coisas ainda não colocadas debaixo da autoridade de
Cristo, os crentes não podem ter paz e felicidade completas. Isto é o que o
apóstolo Paulo pretendia dizer, quando declarou: “Também nós, que temos
as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando
a adoção de filhos, a redenção de nosso corpo” (Rm 8.23).
Entretanto, a ausência pessoal de Cristo não é um motivo de tristeza
para os filhos deste mundo, assim como não o foi para os judeus incrédulos;
podemos estar certos disso. Quando Cristo foi condenado e crucificado,
eles se alegraram e rejubilaram. Pensaram que haviam silenciado para
sempre o grande censurador de seus pecados e falsos ensinos. Também
podemos estar certos de que a ausência pessoal de Cristo é um motivo de
alegria para os incrédulos e ímpios de nossos dias. Quanto mais tempo o
Senhor Jesus permanecer ausente desta terra, deixando-os sozinhos, tanto
mais eles hão de sentir-se contentes. “Não queremos que Cristo reine sobre
nós” é o sentimento característico do mundo. A ausência dEle não lhes
causa qualquer tristeza. A suposta felicidade destas pessoas está completa
sem a presença de Cristo. Podemos achar tudo isso alarmante e desagradável;
mas alguém que lê meditativamente a Bíblia pode negar que isto é verdade?
O mundo não deseja que Cristo volte e pensa que está vivendo muito bem
sem Ele. Que terrível surpresa terão estas pessoas!
Esses versículos também nos ensinam que o retorno pessoal de Cristo
será uma fonte de incalculável alegria para todos os crentes. Está escrito:
“Outra vez vos verei; o vosso coração se alegrará, e a vossa alegria ninguém
poderá tirar” . Novamente, precisamos ter cuidado para não restringirmos
o significado destas palavras, ao procurar aplicá-las somente à ressurreição
de Cristo. Elas têm um alcance maior do que este acontecimento. A alegria
que os discípulos sentiram por terem visto o Senhor Jesus ressuscitado
logo foi obscurecida pela sua ascensão e retomo ao céu. O verdadeiro e
perfeito regozijo, que jamais pode ser destruído, será o regozijo que o
João 16.16-24 219

povo de Deus desfrutará quando Cristo retomar, no final deste mundo.


Falando com sinceridade, os crentes devem fixar seus olhos na segunda
vinda pessoal de Cristo, segundo é ensinado por nosso Senhor, tanto aqui
quanto em outras passagens. Precisamos estar sempre aguardando e amando
a “manifestação” dEle como aquilo que trará a perfeição de nossa felicidade
e a consumação de nossas esperanças (2 Pe 3.12; 2 Tm 4.8). O mesmo
Jesus que ascendeu de maneira visível aos céus virá novamente do mesmo
modo como subiu. Os olhos da fé devem estar sempre contemplando esta
vinda. Não é suficiente olharmos para trás e nos regozijarmos com sua
morte na cruz em favor de nossos pecados e olharmos para o alto,
contemplando o Senhor Jesus assentado à direita de Deus e nos alegrando
com sua intercessão em nosso favor. Temos de ir mais além e olhar para
frente, contemplando a volta de Cristo, a fim de abençoar seu povo e
consumar a obra de redenção. Somente então a súplica de muitos séculos
terá resposta completa: “Venha o teu reino, faça-se a tua vontade, assim
na terra como no céu” . Com certeza Ele pôde dizer que, no dia da
ressurreição e reunião de todos os crentes, nosso coração se encherá de
alegria. Ressuscitaremos na semelhança do Senhor Jesus e ficaremos
satisfeitos (ver Salmo 17.15).
Por último, esses versículos nos ensinam que a ausência de Cristo
deve levar os crentes a suplicarem muitas coisas em oração. Está escrito:
“Até agora, nada tendes pedido em meu nome; pedi e recebereis, para que
a vossa alegria seja completa” .
Podemos muito bem acreditar que até este momento os discípulos
não tinham compreendido toda a dignidade de seu Senhor. Ainda não haviam
entendido que Jesus era o único Mediador entre Deus e o homem e que
deveriam apresentar-Lhe suas orações por amor e em nome dEle. Nesta
ocasião, os discípulos foram ensinados que doravante deveriam pedir em
nome de Jesus. Não podemos duvidar que nosso Senhor pretendia que seu
povo, em todas as épocas, entendesse: permanecer em constante oração é
o segredo para receberem consolação durante a ausência dEle. O Senhor
Jesus deseja fazer-nos saber que, se não podemos vê-Lo com nossos olhos
físicos, podemos conversar com Ele e, através dEle, ter acesso a Deus.
Cristo disse a todo o seu povo, em todas as épocas: “Pedi e recebereis,
para que a vossa alegria seja completa” .
Guardemos esta lição profundamente em nossos corações. Entre os
deveres cristãos, não existe qualquer outro que recebe tanto encorajamento
quanto a oração. É um dever de todos os crentes. Ricos e pobres, cultos e
indoutos — todos devem orar. A oração é um dever pelo qual todos eles
são responsáveis. Alguns não sabem ler ou não podem ouvir e cantar; mas
todos os que possuem o Espírito de adoção têm de orar. Acima de tudo,
este é um dever que depende da atitude e dos motivos de nosso coração.
220 João 16.16-24

Talvez usemos palavras simples ou mal escolhidas e nossa linguagem po­


bre, sem concordância gramatical e sem valor para ser escrita; mas, se
nosso coração estiver correto diante de Deus, a questão da linguagem não
é importante. Aquele que está assentado nos céus pode entender cada uma
das petições feitas em nome de Jesus e fazer o suplicante estar certo de que
Ele as aceitou.
“Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as praticardes” (Jo
13.17) . A oração em nome de Jesus precisa tomar-se um hábito de cada
manhã e noite de nossas vidas. Mantendo-o sempre, acharemos consolo na
aflição, força para os deveres cristãos, orientação na perplexidade, esperança
na enfermidade e amparo na hora da morte. Fiel é a promessa: “A vossa
alegria será completa” ; e o Senhor Jesus honrará sua Palavra, se pedirmos
em oração.

A Importância de Conhecer o Pai;


A Bondade de Cristo Para Com os Fracos;
Os Crentes Desconhecem Seus
Próprios Corações;
Cristo, a Verdadeira Fonte de Paz
Leia João 16.25-33

Por duas razões, essa passagem é uma das mais notáveis porções das
Escrituras. Ela constitui uma adequada conclusão do longo discurso de
nosso Senhor aos seus discípulos e contém a mais abrangente e unânime
declaração de fé que os apóstolos fizeram: “Agora vemos que sabes todas
as coisas... por isso, cremos que, de fato, vieste de Deus” .
Não podemos negar que esses versículos apresentam verdades difíceis
de ser entendidas. Mas neles encontramos três lições claras e úteis, que
podemos considerar com proveito.
Primeiramente, a passagem nos ensina que o conhecimento de Deus,
o Pai, é um dos fundamentos do cristianismo. Nosso Senhor disse aos seus
discípulos: “Vem a hora em que... vos falarei claramente a respeito do
Pai” . Devemos observar que Jesus não falou: “Eu vos falarei claramente a
respeito de mim mesmo” . Ele prometeu mostrar-nos o Pai.
A sabedoria desta notável afirmativa é bastante profunda. O assunto
do caráter e atributos de Deus é um dos assuntos sobre os quais os homens
sabem quase nada. Não foi em vão que o Senhor Jesus declarou: “Ninguém
João 16.25-33 221

conhece o Pai senão o filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt
11.27); e: “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigénito, que está no
seio do Pai, é quem o revelou” (Jo 1.18). Milhões de pessoas imaginam
que conhecem a Deus, porque pensam que Ele é sábio, grande, todo-
poderoso, eterno e sabe todas as coisas; contudo, não sabem mais nada
sobre Ele. Pensar que Deus é justo e justifica o pecador que crê em Jesus;
saber que Ele enviou seu Filho para sofrer e morrer, a fim de reconciliar
consigo mesmo o mundo e pensar que Deus satisfez-se plenamente com o
sacrifício expiatório de seu Filho, por meio do qual sua lei foi cumprida —
esta maneira de pensar sobre Deus não é outorgada a todos os filhos dos
homens. Não devemos ficar admirados que nosso Senhor disse: “Vos falarei
claramente a respeito do Pai” .
Em nossas orações, devemos suplicar diariamente que conheçamos
melhor o “único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo” , a quem Ele enviou.
Também estejamos cônscios dos erros que alguns cometem, ao falar sobre
Deus como se Cristo não existisse, e do enganos de outros que falam sobre
Cristo como se o Pai não existisse. Procuremos conhecer igualmente as
três pessoas da bendita Trindade, tributando a cada Pessoa a honra devida.
Guardemos firmemente em nossos corações a grande verdade de que o
evangelho de nossa salvação resulta dos eternos conselhos do Pai, do Filho
e do Espírito Santo; e que somos completamente devedores ao amor do
Pai, do Filho e do Espírito Santo. Somente tem sido profundamente instruído
por Cristo aquele homem que sempre se aproxima do Pai através do Filho,
intensificando cada vez mais, tal como uma criança, sua confiança nEle e
constantemente entendendo com mais abrangência que em Cristo Deus
não se mostra um Juiz severo, e sim um Amigo e Pai amável.
Em segundo, essa passagem nos ensina que nosso Senhor Jesus Cristo
valoriza as pequenas virtudes efala com bondade a respeito daqueles que
as possuem. Ele disse aos seus discípulos: “O próprio Pai vos ama, visto
que me tendes amado e tendes crido que eu vim da parte de Deus” .
Quão frágeis eram o amor e a fé daqueles apóstolos! Em breve, em
poucas horas, eles seriam envolvidos por uma nuvem de incredulidade e
covardia. Estes mesmos homens que Jesus elogiou por causa de seu amor
e sua fé, antes que o sol despontasse abandonariam a Cristo e fugiriam.
Entretanto, apesar de fracas, as virtudes espirituais deles eram autênticas,
verdadeiras. Eram virtudes que milhares de eruditos fariseus, escribas e
sacerdotes jamais obtiveram e, por isso mesmo, pereceram horrivelmente
em seus pecados.
Sejamos intensamente fortalecidos por meio desta bendita verdade.
O Salvador dos pecadores não lançará fora nenhum dos que crêem nEle,
ainda que estes sejam bebês na fé e no conhecimento de Deus. Ele não
“esmagará a cana quebrada, nem apagará a torcida que fumega” . Por trás
222 João 16.25-33

da imperfeição e fraqueza, o Senhor Jesus vê a realidade e, onde a percebe,


Ele se mostra graciosamente satisfeito. Os seguidores de um Salvador como
este podem sentir-se ousados e confiantes; têm um Amigo que não despreza
o mais insignificante membro de seu rebanho e não despreza aqueles que
vêm a Ele, embora imperfeitos e fracos, mas que O buscam em verdade.
Também aprendemos nessa passagem que o melhor dos crentes
conhece pouco o seu próprio coração. Vemos que os discípulos afirmaram
em alta voz: “Agora é que falas claramente e não empregas nenhuma
figura. Agora vemos que sabes todas as coisas e não precisas de que alguém
te pergunte; por isso, cremos que, de fato, vieste de Deus” . Que palavras
ousadas! Porém, os mesmos homens que as pronunciaram em breve seriam
dispersos como ovelhas tímidas e abandonariam seu Senhor, deixando-0
sozinho.
Não precisamos duvidar que os onze apóstolos eram sinceros e
verdadeiros. Estavam sendo honestos naquilo que afirmaram, mas não
conheciam a si mesmos; não sabiam o que seriam capazes de fazer sob as
pressões do temor dos homens e de grande tentação. Eles não avaliaram
corretamente a fraqueza de sua própria carne, a fragilidade de sua resolução,
a superficialidade de sua fé e o poder de Satanás. Tudo isto eles ainda
teriam de aprender através de dolorosas experiências. Assim como os re­
crutas de um exército, uma coisa é receber o treinamento e vestir o uniforme
de soldado, outra coisa bem diferente é permanecer firme no dia da batalha.
Estejamos atentos a estas verdades e aprendamos sabedoria. Profunda
humildade e não confiar em si mesmo constituem o verdadeiro segredo do
poder espiritual. Um grande servo de Deus afirmou: “Quando sou fraco,
então é que sou forte” (2 Co 12.10). Talvez nenhum de nós tenha a menor
idéia de até que ponto poderemos cair, se repentinamente formos colocados
diante de fortes tentações. Feliz é aquele que jamais esquece estas palavras:
“Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia” (1 Co 10.12), e,
recordando os discípulos de Cristo, suplica diariamente: “Sustenta-me, e
serei salvo” (SI 119.117).
Por ultimo, aprendemos que Cristo é a verdadeira fonte de paz. Nosso
Senhor conclui seu discurso com estas afáveis palavras: “Estas coisas vos
tenho dito para que tenhais paz em mim” . O objetivo e o alcance desta
afirmativa, desejava o Senhor que soubéssemos, eram atrair-nos para Ele
mesmo como única fonte de consolação. Ele disse que neste mundo pas­
saremos por aflições; não fez qualquer prom essa de isentar-nos de
tribulações, enquanto estivermos neste corpo. Mas nos ordenou descansar
no pensamento de que lutou e conquistou a vitória por nós. Embora afligidos,
tentados e perturbados pelas coisas desta vida, não seremos destruídos.
“Tende bom ânimo; eu venci o mundo” foram as palavras concludentes
deste discurso de Jesus.
João 16.25-33 223

Nossas almas precisam descansar nestas revigorantes verdades e serem


fortalecidas. Os ventos de aflição e perseguição podem ocasionalmente
soprar com furor sobre nós; no entanto, somente permitamos que eles
sirvam para nos aproximarem mais de Cristo. As tristezas, dificuldades,
perdas e desapontamentos desta vida podem fazer-nos sentir profundamente
abatidos; porém, devemos permitir que estas coisas tomem mais intensa
nossa dependência de Cristo. Apegando-nos a esta promessa, acheguemo-
nos com ousadia, em meio a cada provação, junto ao trono da graça, a fim
de obtermos misericórdia e graça em ocasião oportuna. Sempre digamos:
“Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de
mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus
meu” (SI 42.5); e confessemos ao nosso gracioso Jesus: “Senhor, não
disseste: ‘Tende bom ânimo’? Senhor, faze como disseste e concede-nos
bom ânimo até ao final” .

O Ofício e a Dignidade de Cristo;


A Graciosa Apreciação de Jesus
a Respeito de Seus Discípulos
Leia João 17.1-8

Esses versículos iniciam um dos mais admiráveis capítulos das


Escrituras, no qual vemos o Senhor Jesus dirigindo uma longa oração a
Deus, o Pai. É maravilhoso como um exemplo da comunhão que sempre
existiu entre o Pai e o Filho, durante seu ministério terreno; é um
maravilhoso modelo da intercessão que o Filho, como Sumo Sacerdote,
realiza nos céus em nosso favor; e, ao mesmo tempo, é um admirável
exemplo de assuntos que o crente pode mencionar em suas orações. Aquilo
que nesta ocasião Cristo pediu para seu povo, este pode suplicá-lo para si
mesmo. Foi corretamente dito por um antigo teólogo: “O melhor e mais
completo sermão já pregado foi acompanhado da melhor de todas as
orações” .
Não precisamos dizer que esse capítulo dos evangelhos contém muitas
verdades profundas. Não poderia ser de outra maneira. Quem lê as palavras
do Filho, uma das pessoas da bendita Trindade, dirigidas ao Pai, o qual é
outra destas pessoas, com certeza precisa estar preparado para deparar-se
com muitas verdades que não poderá entender completamente e não será
capaz de explicar. Nos vinte e seis versículos desse capítulo existem
sentenças, palavra e expressões que jamais foram interpretadas totalmente.
Nossas mentes são incapazes de fazê-lo e de entender os assuntos apresen­
224 João 17.1-8

tados nessa passagem. Mas em João 17 há grandes verdades que perma­


necem claras e evidentes; faremos bem em considerá-las, dirigindo-lhes
nossa melhor atenção.
Primeiramente, devemos observar a gloriosa descrição do ofício e
da dignidade de nosso Senhor. Somos informados que o Pai Lhe deu
“autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele conceda a vida eterna” . A
salvação das almas dos homens está nas mãos de Jesus. Além disso, Ele
declarou que “a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” . O simples conhecimento
de Deus não é suficiente para salvar qualquer pessoa. Temos de conhecer
o Filho e também o Pai. Conhecer a Deus sem o conhecimento de Cristo
equivale a conhecermos um Ser que devemos apenas temer e do qual não
ousamos nos aproximar. Somente Deus, em Cristo, “reconciliando consigo
o mundo”, é Aquele que pode conceder paz e vida às nossas almas. Além
disso, o texto bíblico também nos diz que Cristo consumou a obra que o
Pai lhe dera para fazer. Ele concluiu a obra de redenção e concretizou uma
perfeita justiça para seu povo. O primeiro Adão falhou em cumprir a vonta­
de de Deus e trouxe o pecado para a raça humana, mas o segundo Adão fez
tudo e, do que Ele veio fazer, nada deixou incompleto. Ainda lemos que
Cristo possuía glória com o Pai, “antes que houvesse mundo” . O Senhor
Jesus existia desde a eternidade, mesmo antes que o mundo fosse criado,
e, antes de se tornar carne e nascer da virgem Maria, compartilhava da
glória do Pai.
Todas estas afirmativas maravilhosas contêm assuntos que nossas
frágeis mentes jamais poderão compreender plenamente. Devemos nos
contentar em admirar e reverenciar aquilo que não somos capazes de as­
similar e explicar por completo. Porém, isto é bastante evidente: afirmativas
como estas podem ser ditas apenas por Alguém que é o próprio Deus. A
Escritura jamais aplicou este tipo de linguagem a qualquer apóstolo, profeta,
patriarca ou rei. Ela pertence exclusivamente a Deus.
Sejamos sempre gratos a Deus, pois a esperança do crente descansa
sobre um fundamento seguro, o Salvador divino. O Salvador, ao qual so­
mos ordenados buscar para recebermos perdão e no qual somos ordenados
a descansar para termos paz em nossas almas, é Deus e homem. Para todos
aqueles que realmente se preocupam com suas almas, não são descuidados
e mundanos, este pensamento está repleto de consolação. Tais pessoas re­
conhecem e sentem que grandes pecadores necessitam de um poderoso
Salvador, também sabem que um redentor apenas humano não satisfaria
suas necessidades. Então, regozijem-se eles em Cristo e descansem confiante
nEle. Cristo possui todo o poder, sendo capaz de salvar até ao fim, porque
Ele é divino. Ofício, poder e pré-existência — tudo isso se combina para
comprovar que Ele é Deus.
João 17.1-8 225

Em segundo, devemos observar nesses versículos a graciosa apre­


ciação de nosso Senhor a respeito de seus discípulos. Jesus disse: “Eles
têm guardado a tua palavra... reconhecem que todas as coisas que me tens
dado provêm de ti; porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me
deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e
creram que tu me enviaste” .
Podemos considerar maravilhosas estas palavras, quando pensamos
sobre o caráter dos homens aos quais elas se aplicavam. Quão frágil era
sua fé, pequeno seu conhecimento, superficiais suas realizações espiritu­
ais! Seus corações se mostraram débeis na hora do perigo! Logo depois de
Jesus ter pronunciado estes elogios, todos eles O abandonaram, fugindo; e
um deles, com juramento, O negou por três vezes. Em resumo, ninguém
pode ler os evangelhos e deixar de perceber que os onze apóstolos eram
servos de Jesus que possuíam muitas imperfeições. No entanto, nessa pas­
sagem o amável Cabeça da igreja utilizou termos elevados para falar a res­
peito destes mesmos servos.
Esta lição está repleta de conforto e instrução. É evidente que Jesus
contemplava nos crentes mais do que eles mesmos ou outras pessoas são
capazes de ver. A fé, ainda que frágil, é bastante preciosa aos olhos do
Senhor. Ainda que não seja maior do que uma semente de mostarda, é uma
planta de crescimento celestial e causará uma grande diferença entre aquele
que a possui e o incrédulo. Naquele em que o gracioso Salvador dos pe­
cadores contempla a fé, ainda que esta seja pequena, Ele contempla com
misericórdia as muitas imperfeições de tal pessoa e cobre suas falhas.
Assim aconteceu aos onze apóstolos. Eles eram instáveis e inconsistentes
como a água, mas criam e amavam seu Senhor, ao passo que milhões de
pessoas recusaram-se a aceitá-Lo. E a linguagem do Senhor Jesus, afirmando
que não perderia sua recompensa aquele que desse um copo de água a um
de seus discípulos, demonstra que a consistência dos apóstolos não foi
esquecida pelo Senhor.
O verdadeiro servo de Deus deve prestar bastante atenção aos traços
do caráter de Cristo apresentados nesta passagem e neles descansar sua al­
ma. O melhor de todos os crentes precisa sempre ver em si mesmo uma
grande quantidade de defeitos e imperfeições e envergonhar-se de suas
insignificantes realizações na vida espiritual. Nós realmente cremos em
Jesus? Nos achegamos a Ele e Lhe entregamos nosso fardo? Podemos afir­
mar com sinceridade e certeza o mesmo que o apóstolo Pedro disse: “Senhor,
tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo” . Então, fortaleçamo-nos
nestas palavras de Cristo e não fiquemos desanimados. Ele não desprezou
os onze por causa de suas fraquezas, mas suportou-os e salvou-os, somente
porque eles creram. O Senhor Jesus é sempre o mesmo, não muda jamais.
Aquilo que Ele fez pelos onze fará também por nós.
226 João 17.9-16

A Obra Especial de Cristo


em Favor dos Crentes;
Os Crentes, Deixados e Preservados no Mundo
Leia João 17.9-16

Esses versículos, assim como as outras partes desse maravilhoso


capítulo, contêm verdades profundas, “difíceis de entender” . Mas há dois
assuntos claros que se sobressaem na passagem e merecem atenção espe­
cial da parte de todos os verdadeiros crentes. Observemos com cuidado os
dois assuntos, deixando de lado todos os demais.
Primeiramente, aprendemos que o Senhor Jesus fa z pelos seus
discípulos algo que não faz em favor dos incrédulos e ímpios. Ele assiste às
almas dos crentes com uma intercessão especial: “É por eles que eu rogo;
não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste” .
Esta doutrina é particularmente odiada pelo mundo. Nada causa tanta
ofensa e desperta tantos sentimentos de rancor aos incrédulos quanto a
idéia de que Deus faz diferença entre os homens e ama algumas pessoas
mais do que a outras. Contudo, os argumentos do mundo contra este ensino
são inconsistentes e sem lógica. Com certeza, um pouco de reflexão
demonstra que um Deus que utiliza igual complacência e favor para lidar
com o bem e o mal, a santidade e a impiedade, a justiça e injustiça seria um
Deus muitíssimo estranho! A intercessão de Cristo em favor de seu povo
se harmoniza com o bom senso e a lógica.
Naturalmente, assim como outras verdades do evangelho, essa doutrina
requer esclarecimento especial e salvaguarda das Escrituras. Por um lado,
não podemos minimizar o amor de Cristo para com os pecadores; por
outro, não podemos tomá-lo muito amplo. É verdade que Ele ama todos os
pecadores e os convida a serem salvos; entretanto, também é verdade que
Ele ama de maneira especial todos os crentes, os quais Ele santificou e
glorificou. É verdade que Cristo realizou uma redenção suficiente para
todos os homens e a oferece gratuitamente a todos, mas também é verdade
que essa redenção é eficaz somente para aqueles que crêem. Assim como é
verdade que Jesus é o Mediador entre Deus e os homens, também é verdade
que Ele intercede ativamente somente por aqueles que por intermédio dEle
se achegam a Deus. Por esta razão, está escrito: “É por eles que eu rogo;
não rogo pelo mundo” .
Esta intercessão especial do Senhor Jesus é um dos grandes segredos
da segurança do crente, que diariamente desfruta do constante interesse,
João 17.9-16 227

provisão e cuidado dAquele que não cochila e não dorme. Jesus “pode
salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para
interceder por eles” (Hb7.25). Os crentes jamais perecem porque o Senhor
Jesus nunca deixa de orar por eles, e as orações de Jesus sempre prevalecem.
Os crentes permanecem firmes e perseveram até ao fim, não por causa de
suas próprias forças e bondade, mas porque Jesus intercede por eles. Quando
Judas caiu, sem jamais levantar-se; quando Pedro caiu, mas arrependeu-se
e foi restaurado, a razão para essa diferença estava nas palavras de Cristo
ditas a este: “Eu, porém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça”
(Lc 22.32).
O verdadeiro servo de Cristo pode descansar sua alma nesta verdade
e fortalecer-se nela. Este é um dos peculiares tesouros e privilégios do
crente e precisa ser bem conhecido. Embora os falsos ensinadores e
hipócritas lutem contra e abusem desta verdade, ela é sustentada com firmeza
por todos aqueles que reconhecem a obra do Espírito em seus corações.
Com certeza, disse o sábio Hooker: “A condição dos homens não é tão
segura quanto a nossa; a intercessão de Cristo, é suficiente tanto para nos
fortalecer, para que não sejamos fracos, quanto para vencer todo poder do
inimigo, para que este não seja poderoso e capaz” .
Em segundo, aprendemos que Cristo não deseja que seu povo retire-
se do mundo, mas que seja protegido do mal. Podemos estar certos de que
a onisciência do Senhor detectou nos corações de seus discípulos um
impaciente desejo de retirarem-se deste mundo conturbado. Poucos em
número e fracos em poder, rodeados por inimigos e perseguidores, os
discípulos com razão poderiam desejar serem livres deste ambiente de
conflito e irem para o lar. O próprio Davi em certa ocasião clamou: “Q
uem me dera asas como de pomba! Voaria e acharia pouso” (SI 55.6).
Levando em conta todas estas coisas, nosso Senhor com sabedoria colocou
estas palavras em sua oração, para benefício perpétuo de sua igreja. Ele
nos ensinou a grande lição de que julga melhor, para seu povo, ser mantido
no mundo e preservado nele do que ser retirado do mundo e da presença
de todo mal.
Meditando neste fato, não é difícil perceber a sabedoria de nosso
Senhor tanto neste quanto em outros assuntos relacionados a seu povo.
Ainda que seja agradável à carne e ao sangue ser removido do conflito e da
tentação, facilmente podemos compreender que isto não seria proveitoso.
Como poderia o povo de Cristo fazer qualquer bem ao mundo, se dele
fosse retirado imediatamente após se converterem? Como poderiam
demonstrar o poder da graça divina e comprovar sua fé, coragem e paciência,
como bons soldados de um Senhor crucificado? Como poderiam ser
adequadamente treinados para a eternidade e aprender o valor do sangue,
da intercessão e paciência de seu Redentor, a menos que aprendessem tudo
228 João 17.9-16

isso por meio de experiências de sofrimento? Estas perguntas admitem


somente um tipo de resposta. Habitar neste vale de lágrimas, sendo tentados,
provados e afligidos, mas, apesar disso, ser preservado é a maneira mais
segura de promover a santificação do crente e de glorificar a Cristo. Ir
para o céu imediatamente após a conversão seria um caminho fácil e nos
pouparia muitos problemas. No entanto, o caminho mais fácil não é o
caminho do dever. Aquele que deseja ganhar a coroa precisa carregar a
cruz e mostrar-se como uma luz no meio das trevas e sal no meio de um
mundo corrompido. “Fiel é esta palavra: Se já morremos com ele, também
viveremos com ele (2 Tm 2.11).
Se realmente somos discípulos de Cristo, fiquemos contentes em
admitir que Ele sabe melhor do que nós aquilo que contribui para o nosso
bem. Deixemos nossas circunstâncias aos cuidados dEle e nos contentemos
em permanecer onde estamos, não importa qual seja a nossa posição,
enquanto o Senhor Jesus nos guarda do mal. Não tenhamos dúvida de que
seremos guardados, pois Ele mesmo orou por isto. Podemos estar certos
de que nada exalta tanto a graça divina quanto o fato de que, assim como
Daniel na Babilônia e os crentes da casa do imperador romano, vivemos
no mundo, mas não somos do mundo; somos tentados por todos os lados,
mas vencemos as tentações; não fomos retirados do alcance e poder do
Maligno, porém somos guardados e preservados de seu poder.

A Súplica de Cristo em Favor da Santificação;


A Unidade e a Glorificação de Seu Povo
L eia João 17.17-26

Essas palavras maravilhosas constituem uma conclusão adequada para


a mais admirável oração já pronunciada na terra, a última oração do Senhor
após a última ceia. Contêm os três mais importantes pedidos que nosso
Senhor fez em benefício de seus discípulos. Consideraremos agora esses
três pedidos, deixando de lado todos os outros assuntos da passagem.
Primeiramente, devemos observar nesses versículos que o Senhor
Jesus orou em favor da santificação de seus discípulos. Ele disse: “Santifica-
os na verdade; a tua palavra é a verdade” . Sem dúvida, aqui, a palavra
“santificar” significa “tomar santo”. Jesus estava pedindo que o Pai tomasse
seus discípulos mais santos, espirituais, puros, em pensamentos, palavras,
obras, vida e caráter. A graça divina já os havia chamado, convertido,
regenerado e transformado. Agora o grande Cabeça da igreja ora para que
a obra da graça seja levada adiante e seu povo seja santificado de maneira
João 17.17-26 229

mais completa, em corpo, alma e espírito — em outras palavras, mais


semelhantes a Ele mesmo.
Com certeza, não precisamos de muitos argumentos para demonstrar
a incomparável sabedoria de tais palavras. Mais santificação é aquilo que
deseja todo verdadeiro servo de Cristo. Viver em santidade é a grande
prova da realidade do cristianismo. Pessoas podem recusar-se a reconhecer
a veracidade de nossos argumentos, mas não podem esquivar-se da evidência
de um viver em santidade. Esse tipo de vida adorna a vida espiritual,
tomando-a sublime, e às vezes conquista aqueles que não foram ganhos
“através da Palavra” . Viver em santidade treina o crente para o céu. Quanto
mais nos achegamos a Deus, enquanto vivemos neste mundo, tanto mais
preparados estaremos para viver nos céus, quando morrermos. Nossa
admissão no céu será totalmente pela graça de Deus e não por causa de
nossas obras; todavia, o próprio céu não será céu para nós, se entrarmos
ali possuindo um caráter destituído de santidade. Nossos corações devem
estar em sintonia com os céus, se queremos desfrutá-lo. Precisa existir
uma idoneidade moral para a “herança dos santos na luz” . Somente o san­
gue de Cristo pode nos outorgar o direito de possuir aquela herança. A
santificação precisa nos capacitar para desfrutá-la.
À luz desses fatos, quem se admira de ter sido a santificação uma das
primeiras coisas que nosso Senhor suplicou para seu povo? Dentre os que
são ensinados por Deus, quem deixaria de reconhecer que santidade significa
felicidade e que os que andam em intimidade com Deus são aqueles que
vivem com mais tranqüilidade neste mundo? Ninguém deve nos enganar
com palavras vãs no que concerne a este assunto. Aquele que despreza a
santidade e negligencia as boas obras, tendo o inútil pretexto de honrar a
justificação pela fé, demonstra com clareza que não possui a mente de
Cristo.
Em segundo, devemos observar esses versículos que o Senhor Jesus
orou em favor da unidade de seu povo. “A fim de que todos sejam um; e
como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que
o mundo creia que tu me enviaste” — esta foi a principal súplica de nosso
Senhor, em sua oração ao Pai.
A grande proeminência que nosso Senhor tributou à unidade de seu
povo constitui a maior prova da importância deste assunto e da peca-
minosidade das divisões entre seu povo. Infelizmente é verdade que as di­
visões, em todas as épocas da história da igreja, têm sido um escândalo e
causado o enfraquecimento da igreja de Cristo. Com freqüência, os crentes
têm desperdiçado seu tempo contendendo com seus irmãos, ao invés de
contenderem contra o pecado e o mal! Por diversas vezes, eles têm dado
oportunidade para que os incrédulos digam: “Quando vocês resolverem
suas divergências internas, nós creremos”. Sem dúvida, tudo isso nosso
230 João 17.17-26

Senhor viu com olhos proféticos. E sua visão antecipada desses fatos o fez
orar intensamente em favor da unidade dos crentes.
A recordação dessa parte da oração de Cristo deve permanecer cons­
tantemente em nossos corações e influenciar nosso comportamento cristão.
Nenhum de nós deve pensar com leviandade, como alguns às vezes o fa­
zem, a respeito de divisões e imaginar que a atitude de sectarismo, de par­
tidarismo e de criar novas denominações é algo insignificante. Podemos
estar certos de que estas coisas apenas servem de ajuda ao diabo e prejudicam
a causa de Cristo. “Se possível, quanto depender de vós, tende paz com
todos os homens” (Rm 12.18). Antes de nos entregarmos à divisão, devemos
suportar, ceder e agüentar muito. Há movimentos em que freqüentemente
existe muito fogo enganoso. Os zelosos fanáticos que se deleitam em criar
divisões e partidos na igreja podem nos vituperar, se desejarem. Não
devemos nos preocupar com eles. Enquanto tivermos o Senhor Jesus Cristo
e uma boa consciência, com paciência permaneçamos onde estamos, se­
guindo aquilo que conduz à paz, esforçando-nos para promover a unidade.
Não foi em vão que o Senhor Jesus suplicou intensamente que seu povo
seja “um ” .
Por último, observamos nesses versículos que o Senhor Jesus orou
para que seu povo, ao final de tudo, esteja com Ele e desfrute de sua gló­
ria. Ele disse: “Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam também
comigo os que me deste, para que vejam a minha glória” .
Esta é uma pungente conclusão para a notável oração de nosso Senhor.
Tenhamos certeza de que estas palavras tinham o propósito de animar e
trazer conforto para aqueles que as ouviram, fortalecendo-os para os acon­
tecimentos finais, que se aproximavam rapidamente. Entretanto, para todos
aqueles que lêem-na, até hoje, essa parte da oração de Cristo está repleta
de indizível consolo e refrigério.
Agora não podemos ver a Cristo. Lemos a respeito dEle, ouvimos a
sua voz, cremos em sua Pessoa e descansamos nossas almas em sua obra
consumada. No entanto, mesmo os melhores dentre nós, no melhor de nós
mesmos, andamos por fé e não pelo que vemos; e nossa pobre e vacilante
fé com freqüência nos faz andar com dificuldade no caminho para o céu.
Mas haverá um final para todo esse estado de coisas que temos hoje. Naquele
dia, veremos a Cristo assim como Ele é e conheceremos da maneira como
agora somos conhecidos. Nós O contemplaremos face a face e não mais
como por espelho. Estaremos definitivamente na presença e na companhia
de Cristo, para nunca mais sairmos. Se a fé nos tem sido agradável, quanto
mais será vê-Lo com nossos próprios olhos; se a esperança nos tem pro­
duzido refrigério, quanto mais consolo obteremos ao estar pessoalmente
com Ele. Não devemos admirar que, depois de ter escrito: “Estaremos
para sempre com o Senhor” , o apóstolo Paulo acrescentou: “Consolai-
João 17.17-26 231

vos, pois, uns aos outros com estas palavras” (1 Ts 4.17-18).


Agora sabemos pouco a respeito do céu. Nossos pensamentos tomam-
se confusos, quando procuramos formar uma idéia de um futuro estado em
que pecadores redimidos serão perfeitamente felizes. “Ainda não se ma­
nifestou o que haveremos de ser” (1 Jo 3.2). Todavia, podemos descansar
no bendito pensamento de que, após a morte, estaremos com Cristo. Se
antes da ressurreição do corpo estaremos no paraíso ou, após a ressurreição,
desfrutaremos da glória final, a perspectiva é a mesma. Os verdadeiros
cristãos estarão “para sempre com o Senhor” . Não precisamos de mais
informações. Onde está Aquela bendita pessoa, que veio a este mundo e
morreu e ressuscitou em favor de nossos pecados, ali não falta coisa alguma.
Davi pôde afirmar com segurança: “Na tua presença há plenitude de alegria,
na tua destra, delícias perpetuamente” (SI 16,11).
Terminemos nossas considerações sobre esta maravilhosa oração,
recordando-nos solenemente das três grandes petições que ela contém. A
santificação e a unidade, na jornada cristã, e a presença de Cristo, no fu­
turo, devem ser assuntos que jamais se afastem de nossos pensamentos e
estejam distante de nossas mentes. Feliz é o crente que se preocupa pri­
mordialmente em ser, nesta vida, tão amável e santo quanto seu Senhor e
em estar, após a morte, na presença dEle.

A Dureza de um Coração ímpio;


A Voluntariedade dos Sofrimentos de Cristo;
O Cuidado de Cristo Pela Segurança
de seu Povo;
A Submissão dEle à Vontade do Pai
Leia João 18.1-11

Esses versículos iniciam o relato do apóstolo João acerca dos


sofrimentos e crucificação de nosso Senhor. Contemplamos agora as cenas
finais do ministério terreno de Cristo, passando imediatamente de sua
intercessão ao seu sofrimento. Perceberemos que, assim como os outros
evangelistas, o discípulo amado relata em detalhes a história da crucificação.
Mas veremos também, se lermos com atenção, que o apóstolo João menciona
vários assuntos interessantes, não referidos por Mateus, Marcos e Lucas.
Em primeiro lugar, vemos nesses versículos a excessiva dureza de
coração que pode tomar conta do coração de uma pessoa ímpia. Somos
232 João 18.1-11

informados que Judas, um dos apóstolos, tomou-se o guia daqueles que


prenderam a Jesus. Judas utilizou o conhecimento que possuía sobre o
lugar para o qual Jesus costumava se retirar e trouxe os terríveis inimigos
do Senhor. João nos conta que “Judas, o traidor, estava também com” o
grupo de oficiais e soldados que se aproximaram de Jesus, para O prender.
Mas este foi o homem que durante três anos esteve na companhia de Jesus,
viu seus milagres, ouviu seus sermões, desfrutou dos benefícios de sua
instrução particular, professava ser crente, trabalhou e pregou em nome de
Cristo! Com razão, poderíamos indagar: “Senhor, que é o homem?” Para
alguém cair do mais elevado grau de privilégio para as profundezas do
pecado, são necessários apenas alguns passos. Um privilégio mal utilizado
é capaz de paralisar a consciência. O mesmo fogo que derrete a cera endurece
a argila.
Tenhamos cuidado para não fundamentarmos nossa esperança de sal­
vação em conhecimento religioso, embora o tenhamos em abundância, ou
em vantagens espirituais, ainda que sejam muitas. Talvez conheçamos todas
as verdades doutrinárias e sejamos capazes de ensiná-las aos outros, mas,
apesar disso, estas coisas podem mostrar-se inúteis, e nós sejamos lançados
na condenação eterna assim como Judas Iscariotes. Podemos nos aquecer
em todo o resplendor dos privilégios espirituais, ouvir os melhores ensinos
de Cristo e não produzir fruto para a glória de Deus; por conseguinte, se­
remos contados como varas murchas e lançados no fogo. “Aquele, pois,
que pensa estar em pé veja que não caia” (1 Co 10.12). Acima de tudo, te­
nhamos cuidado para não alimentar em nossos corações qualquer pecado
oculto e habitual, tal como o amor ao dinheiro ou ao mundo. Um elo que
falta na corrente da âncora de um navio pode causar um naufrágio. Um
pequeno vazamento pode afundar um barco. Um pecado não mortificado
pode arruinar um crente professo. Aquela pessoa tentada a ser negligente
no que se refere à sua vida espiritual deve meditar nessas coisas e tomar
cuidado. Lembre-se de Judas Iscariotes, cuja história é uma lição.
Em segundo, vemos nesses versículos a completa voluntariedade
dos sofrimentos de Cristo. Quando, pela primeira vez, o Senhor Jesus
disse aos soldados: “Sou eu” , eles recuaram e caíram por terra (Jo 18.6).
Sem dúvida, um poder invisível e secreto acompanhou as palavras de Jesus.
Esta é a única maneira de explicar como um destacamento de soldados
romanos caiu por terra diante de um homem desarmado e sozinho. O mes­
mo poder invisível que fez os sacerdotes e fariseus permanecerem quietos
diante da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém e reteve toda oposição
quando Ele purificou o templo, expulsando os vendedores e cambistas;
esse mesmo poder estava presente agora. Um verdadeiro milagre aconteceu,
embora poucos o viram. No momento em que o Senhor parecia fraco, de­
monstrou que era forte.
João 18.1-11 233

Sempre lembremos que nosso Senhor sofreu e morreu por sua própria
vontade e não porque Ele não podia impedi-lo. Ele não sofreu por ser in­
capaz de evitá-lo. Todo o exército de Herodes não poderia prendê-Lo, se
Ele não estivesse disposto a ser preso. Não Lhe teriam machucado a cabeça,
se Ele não lhes tivesse permitido. Nesta ocasião, como em todo o seu mi­
nistério terreno, Jesus foi um sofredor voluntário; havia decidido realizar
a obra de redenção. Ele nos amou e entregou-se a Si mesmo alegre e es­
pontaneamente, a fim de propiciar expiação para os nossos pecados. Foi a
“alegria que lhe estava proposta” que o fez suportar a cruz e não fazer caso
da ignomínia, entregando-se sem relutância aos seus inimigos. Este pen­
samento deve estar sempre em nossos corações e refrigerar nossas almas.
Temos um Salvador que está mais disposto a salvar-nos do que nós a ser­
mos salvos. Se ainda não estamos salvos a culpa é nossa. Jesus se mostra
tão disposto a receber e perdoar as pessoas quanto Ele esteve disposto a ser
preso, crucificado e morto.
Em terceiro, vemos nesses versículos a tema misericórdia do Senhor
Jesus demonstrada em sua preocupação com a segurança dos discípulos.
Nestes momentos críticos, quando seus sofrimentos estavam para começar,
Ele não esqueceu o pequeno grupo de discípulos que estivera com Ele. O
Senhor Jesus recordou a imperfeição deles. Sabia que seus discípulos ainda
não estavam prontos para enfrentar a fornalha de aflição na casa do sumo
sacerdote e no tribunal de Herodes. Ele misericordiosamente providenciou-
lhes um escape — “Se é a mim, pois, que buscais, deixai ir estes” . Parece
mais provável que uma miraculosa influência acompanhou estas palavras.
De qualquer maneira, nenhum cabelo de seus discípulos foram tocados.
Enquanto o pastor estava sendo preso, as ovelhas tiveram permissão de
fugir sem qualquer dano.
Não devemos hesitar em ver neste incidente uma ilustração da maneira
como Jesus lida com seus discípulos até hoje. Ele não permitirá que sejam
tentados além de suas forças. Haverá de controlar os ventos e tempestades,
não permitindo que os crentes, embora fustigados, sejam completamente
destruídos. Ele cuida com ternura de cada um de seus filhos e, à semelhança
de um médico sábio, dispensa com prudente habilidade a correta medida
de provações que eles necessitam. “Eu lhes dou a vida eterna; jamais
perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo 10.28). Sempre
devemos descansar nesta preciosa verdade. Em nossas horas mais difíceis,
os olhos do Senhor estão sobre nós, e, com certeza, ao final estaremos
seguros.
Por último, vemos nesses versículos a perfeita submissão de nosso
Senhor à vontade do Pai. Antes, no Jardim do Getsêmani, Ele havia dito:
“Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice! Todavia, não seja como
eu quero, e sim como tu queres” . E, de novo, Ele orou: “Meu Pai, se não
234 João 18.1-11

é possível passar de mim este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua
vontade” (Mt 26.39-42). Agora, entretanto, Jesus demonstra mais uma
porção de alegre aquiescência: “Não beberei, porventura, o cálice que o
Pai me deu?”
Vejamos esta bendita atitude de nosso Senhor como um exemplo
para todos os que confessam ser crentes. Ainda que fiquemos aquém do
padrão do Senhor Jesus para as nossas vidas, o exemplo que Ele nos deu
deve ser sempre o nosso alvo. A determinação de seguir o nosso próprio
caminho e fazermos o que gostamos causa muita infelicidade. O hábito de
apresentar ao Senhor todos os nossos assuntos, em oração, pedindo-Lhe
que escolha o nosso caminho, é o grande segredo para desfrutarmos de
paz. O homem verdadeiramente sábio é aquele que aprendeu a dizer em
todas as circunstâncias de sua vida: “Dá-me o que Tu quiseres, coloque-
me onde desejares, faça comigo o que for do teu agrado. Faça-se a tua
vontade e não a minha” . Este é o homem que tem a mente de Cristo. Por
causa da vontade própria, Adão e Eva caíram, trazendo o pecado e miséria
para o mundo. Completa submissão à vontade de Deus é a melhor preparação
para o céu, onde Deus será tudo.

A Terrível Impiedade dos Incrédulos;


A Condescendência de Cristo;
A Fraqueza de Alguns Verdadeiros Crentes
L eia João 18.12-27

Nessa parte da narrativa dos sofrimentos de Cristo, três coisas


maravilhosas se destacam. Vamos considerá-las.
Primeiramente, devemos observar a admirável dureza de coração
das pessoas incrédulas. Nós a percebemos na atitude dos homens que
prenderam nosso Senhor. Alguns deles eram soldados romanos, mas outros
eram judeus que serviam aos sacerdotes e fariseus. Em um aspecto eles
eram semelhantes: todos contemplaram uma demonstração do divino poder
de nosso Senhor, quando “recuaram e caíram por terra”. De acordo com o
evangelho de Lucas, todos viram um milagre, quando Jesus tocou a orelha
de Malco e o curou. Apesar disso, todos continuaram na mesma situação:
frios, indiferentes e insensíveis, como se não tivessem visto qualquer coisa
fora do comum. Continuaram com frieza em sua odiosa realização — “A
escolta, o comandante e os guardas dos judeus prenderam Jesus, manietaram-
n o ...”
É terrível e estarrecedor o grau de insensibilidade e dureza de
João 18.12-27 235

consciência que os homens podem atingir, quando vivem muitos anos sem
o menor contato com as verdades espirituais. Deus e as coisas espirituais
parecem fugir e desaparecer do entendimento de tais homens. Toda a atenção
deles parece concentra-se no mundo e suas coisas. Nestes casos, podemos
estar certos de que milagres não produzirão qualquer resultado, assim como
no caso dos homens que prenderam a Jesus. Sem qualquer impressão em
seus corações, os olhos de tais pessoas contemplarão tais milagres, assim
como um animal selvagem contempla uma paisagem romântica. Se alguém
imagina que um milagre o tomará um verdadeiro cristão, esta pessoa tem
muito a aprender.
Não fiquemos admirados se, em nossa própria geração, encontramos
pessoas que manifestam dureza de coração e incredulidade. Elas sempre
existirão entre aqueles que, por causa de sua posição e daquilo que professam
ser, estão completamente destituídos dos meios da graça. Vinte ou trinta
anos sem a influência do culto dominical, da Bíblia e de seus ensinos farão
que o coração de um homem se tome tão duro quanto a pedra inferior de
um moinho.
Em segundo, devemos observar nesses versículos a admirável
condescendência de nosso Senhor Jesus Cristo. Vemos o Senhor Jesus
sendo preso, levado como um malfeitor, conduzido à presença de juizes
ímpios e injustos, insultado e tratado com desprezo. Mas, se este prisioneiro
tivesse desejado, imediatamente seria liberto. Precisaria apenas ordenar, e
seus inimigos logo ficariam confusos. Além disso, Ele sabia que um dia
Anás e Caifás e todos os seus companheiros estarão diante de seu trono de
juízo e receberão a eterna condenação. Ele sabia de tudo isso, mas aceitou
ser tratado como um malfeitor, sem resistir.
Um fato é bastante claro neste acontecimento. O amor de Cristo
pelos pecadores “excede todo entendimento” (Ef 3.19). Sofrer por aqueles
que amamos e, em algum aspecto, são dignos de nossas afeições é um tipo
de sofrimento que podemos entender. Submeter-nos passivamente aos maus
tratos, quando não temos poder para resistir-lhes, é uma submissão sábia e
graciosa. No entanto, sofrer voluntariamente, quando temos poder para
impedi-lo, em favor de homens incrédulos e ímpios, que não pediram tal
coisa e não demonstram gratidão — esta é uma atitude que ultrapassa o
entendimento humano. Ao lermos a maravilhosa história da paixão e morte
de Cristo, jamais esqueçamos que isto constitui a glória de seus sofrimentos:
Ele foi levado preso e apresentado diante do tribunal de julgamento do
sumo sacerdote, não porque era incapaz de impedi-lo, mas porque todo o
seu coração estava determinado a salvar pecadores, por meio de levar os
seus pecados, ser tratado como um pecador e punido em lugar deles. Ele
tomou-se um prisioneiro voluntário, para que nós fôssemos libertos. Foi
voluntariamente preso e condenado, para que fôssemos absolvidos e
236 João 18.12-27

declarados inocentes. “Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos
pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus” (1 Pe 3.18).
“Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se
fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tomásseis
ricos” (2 Co 8.9); “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por
nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Co 5.21). Com
certeza, a substituição voluntária de Cristo é uma doutrina que precisa ser
conhecida com toda clareza. Ele sofreu e morreu voluntariamente, sem
resistir, porque sabia que viera para ser nosso Substituto e, por meio da
substituição, adquirir nossa salvação.
Por último, devemos observar nesses versículos o admirável grau de
fraqueza que pode ser encontrado em um verdadeiro cristão. Isto se encontra
ilustrado de maneira notável na conduta do apóstolo Pedro. Vemos este
famoso discípulo abandonando seu Senhor e agindo como um covarde;
fugindo, quando deveria permanecer ao lado dEle; envergonhado-se de
pertencer a Ele, quando deveria tê-Lo confessado, e, por fim, negando
três vezes que O conhecia. E isto aconteceu logo depois de Pedro ter
participado da Ceia do Senhor, ter ouvido o mais comovente sermão e a
mais profunda oração que algum mortal já ouviu e ter sido claramente
avisado, não estando sob a pressão de qualquer tentação muitíssimo grave.
“Senhor”, com certeza poderíamos indagar, “que é o homem, que dele te
lembres?” (SI 8.4). “Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não
caia” (1 Co 10.12).
Esta queda de Pedro sem dúvida constitui uma lição para toda a
igreja de Cristo. Foi narrada para o nosso ensino, a fim de que sejamos
guardados de tropeços infelizes, semelhantes a este. É um alerta colocado
nas Escrituras para que outros não cometam o mesmo erro; nos mostra o
perigo do orgulho e da autoconfiança. Se Pedro não houvesse demonstrado
tanta segurança de que, embora outros viessem a negar Jesus, ele não o
faria, provavelmente jamais teria caído. Este acontecimento nos revela o
perigo da indolência. Se Pedro tivesse orado e vigiado, quando nosso Senhor
o ordenou, teria achado graça e socorro em ocasião oportuna. Este acon­
tecimento nos mostra, pelo menos, a dolorosa influência do temor dos
homens. Talvez poucos estejam cientes de que temem mais aos homens,
que eles vêem, do que a Deus, a quem não podem ver. Estas coisas foram
escritas para nossa advertência. Recordemo-nos de Pedro e sejamos sábios.
Acima de tudo, devemos concluir nossas considerações sobre essa
passagem com o revigorante pensamento de que temos um misericordioso
e compassivo Sumo Sacerdote, que se comove por nossas fraquezas e “não
esmagará a cana quebrada” .
Sem dúvida, Pedro sentiu-se envergonhado e levantou-se somente
depois de ter se arrependido com todo o coração e derramado muitas lá-
João 18.12-27 237

grimas. Mas ele levantou-se; não teve de colher as conseqüências de seu


pecado e ser rejeitado para sempre. A mão compassiva que o salvou de
afundar nas águas do mar foi uma vez mais estendida para erguê-lo, quan­
do caiu no pátio da casa do sumo sacerdote. Podemos duvidar que Pedro
levantou como um homem melhor e mais sábio? Se a queda de Pedro faz
que os crentes vejam com maior clareza sua própria imperfeição e a gran­
de compaixão de Cristo, esta queda não foi narrada em vão.

A Falsa Escrupulosidade dos Hipócritas;


A Natureza do Reino de Cristo;
A Missão de Cristo;
A Indagação de Pilatos
L eia João 18.28-40

Esses versículos contêm quatro notáveis assuntos que se encontram


somente nessa narrativa da paixão de Cristo. Sem dúvida, há bons motivos
por que Mateus, Marcos e Lucas não foram inspirados a relatar tais assun­
tos. Mas estes são profundamente interessantes, e devemos ser gratos a
Deus por terem sido narrados por João.
O primeiro assunto que notamos é a falsa consciência dos perversos
inimigos de nosso Senhor. Somos informados que os judeus, depois de
levarem Jesus a Pilatos, não entraram na sala do julgamento “para não se
contaminarem, mas poderem comer a Páscoa” . De fato, isto revelava
escrupulosidade! Estes homens de corações endurecidos estavam envolvidos
na prática da maior impiedade que os homens mortais já cometeram.
Queriam assassinar seu próprio Messias. Contudo, nesta mesma ocasião,
falavam sobre contaminarem-se e, em especial, sobre comer a Páscoa!
A consciência de uma pessoa não-convertida é um aspecto muito
curioso de sua natureza moral. Enquanto em alguns casos ela se toma
endurecida, cauterizada e morta, ao ponto de não sentir mais nada, em
outros, ela se toma escrupulosa acerca de coisas espirituais menores. E
comum encontrarmos pessoas que são excessivamente zelosas a respeito
de observar procedimentos insignificantes e cerimônias exteriores, enquanto
são escravas de pecados degradantes e detestável imoralidade. Ladrões e
assassinos de alguns países são extremamente zelosos no que se refere à
confissão, absolvição e rezas aos santos. Jejum e proibições que as pessoas
impõem sobre si mesmas, durante a quaresma, geralmente seguem-se de
238 João 18.28-40

excessos de impiedade, quando acaba-se a Páscoa. Da quaresma ao carnaval,


há apenas um passo. Aqueles que assistem as missas pela manhã fre­
qüentemente são responsáveis por bailes e festas à noite. Todos estes são
sintomas de enfermidade espiritual e de um coração profundamente
insatisfeito. Os homens que sabem estarem errados em um aspecto de suas
vidas esforçam-se para fazer coisas certas, com excesso de zelo, em outro
aspecto de suas vidas. Esse tipo de zelo resulta na própria condenação
deles.
Oremos para que nossas mentes sejam sempre iluminadas pelo Espírito
Santo e sejamos guardados de um cristianismo deformado, que se expressa
apenas em um determinado aspecto. É bastante suspeita uma religião que
leva o homem a negligenciar os assuntos mais importantes da santidade
diária e da separação do mundo e a concentrar toda sua atenção em formas,
sacramentos, cerimônias públicas. Este tipo de religião pode ser acom­
panhada de intenso zelo e dedicação, mas não é correta aos olhos de Deus.
Os fariseus davam o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas ne­
gligenciavam os preceitos mais importantes da Lei: “a justiça, a misericórdia
e a fé” (Mt 23.23). Os mesmos judeus que anelavam matar o Senhor Jesus
temiam contaminar-se na sala de julgamento de uma autoridade romana e
esforçaram-se muito para observar a Páscoa! Enquanto estamos neste
mundo, a conduta destes homens deve servir de alerta para os verdadeiros
crentes. É indigna a religião que não nos leva a dizer: “Tenho por, em
tudo, retos os teus preceitos todos e aborreço todo caminho de falsidade”
(SI 119.128). E indigno o cristianismo que impulsiona as pessoas a fazerem
acordos que desprezam a essência da doutrina cristã e a prática da santidade,
por causa de extravagantes cerimônias ou ritos exteriores estabelecidos
por homens.
O segundo assunto que devemos notar nesses versículos é a descrição
que o Senhor Jesus fez de seu próprio reino. Ele disse: “O meu reino não
é deste mundo” . Estas famosas palavras têm sido pervertidas e espoliadas
de seu verdadeiro sentido, e seu significado está quase sepultado sob um
monte de falsas interpretações. Estejamos certos de que sabemos o seu
verdadeiro significado.
O principal objetivo de nosso Senhor, ao dizer: “O meu reino não é
deste mundo” , era informar a Pilatos a verdadeira natureza de seu reino e
corrigir qualquer falsa impressão que ele poderia ter recebido dos judeus.
Jesus disse a Pilatos que não viera para estabelecer um reino que interferisse
no governo romano. Ele não almejava o estabelecimento de um domínio
temporal, que seria preservado por meio de soldados e mantido por impostos.
Seu único domínio seria nos corações dos homens, e as armas de seus
súditos seriam espirituais. Um reino que não exigiria dinheiro ou soldados
para mantê-lo era um reino que as autoridades romanas não precisavam
João 18.28-40 239

temer; em sentido mais amplo, não era “deste mundo” .


Entretanto, nosso Senhor não tencionava ensinar que os reis deste
mundo devem manter-se afastados de assuntos religiosos, ignorando Deus
completamente em suas atividades governamentais. Esta idéia, podemos
ter certeza, não estava na mente de Jesus. Ele sabia com exatidão: “Por
meu intermédio, reinam os reis” (Pv 8.15) e que se exige dos reis, mais do
que de seus súditos, que usem sua influência para promover as coisas de
Deus. Jesus sabia que a prosperidade de um reino terreno depende
completamente da bênção de Deus e que as autoridades governamentais
têm a obrigação de encorajar seus compatriotas à justiça e à piedade, assim
como têm o dever de punir a injustiça e a imoralidade. É absurdo supor
que Ele pretendia dizer a Pilatos que, em sua avaliação, um incrédulo pode
ser tão bom governante quanto um cristão e que homens como Gálio podem
ser tão bons administradores quanto Davi e Salomão.
Nestes últimos dias, devemos afirm ar com bastante cuidado o
verdadeiro significado destas palavras de nosso Senhor. Jamais nos en­
vergonhemos de proclamar que nenhum governo deve esperar prosperidade,
se não reconhece a vida espiritual, lida com seus súditos como se estes não
tivessem alma e não se preocupa se eles servem a Deus, a Baal ou a algum
outro deus. Tal governo descobrirá, mais cedo ou mais tarde, que este tipo
de política é suicida e prejudicial aos seus melhores interesses. Sem dúvida,
os governantes deste mundo não podem fazer que pessoas se tomem cristãos
por meio de leis e regimentos; todavia, podem encorajar e apoiar o
cristianismo, e o farão, se forem sábios. O país onde existe muito trabalho,
temperança, verdade e honestidade será o mais próspero de todos. O governo
que deseja ver estas coisas em abundância entre seus cidadãos deveria
empenhar-se ao máximo para promover o verdadeiro cristianismo.
O terceiro assunto que devemos notar nesses versículos é a maneira
como o Senhor Jesus descreveu sua missão. Ele disse: “Eu para isso nasci
e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade” .
Evidentemente, não devemos supor que este era o único objetivo da
missão de nosso Senhor. Sem dúvida, Ele se referia de maneira especial ao
que estava se passando na mente de Pilatos. Ele não viera para conquistar
um reino por meio de espada e conseguir adeptos e seguidores por meio da
força. Sua única arma era a “verdade” . O grande propósito do ministério de
Jesus era testificar aos pecadores a verdade sobre Deus, o pecado, a ne­
cessidade de um Redentor e a natureza da santificação. Ele veio para ser
uma testemunha de Deus a um mundo corrupto e perdido; não evitou declarar
ao orgulhoso governador romano que o mundo necessitava desse testemunho.
Isso também Paulo tinha em mente, quando escreveu a Timóteo que “Cristo
Jesus... diante de Pôncio Pilatos, fez a boa confissão” (1 Tm 6.13).
Os servos de Cristo constantemente têm de lembrar que a atitude de
240 João 18.28-40

nosso Senhor, nesta ocasião, destinava-se a servir de exemplo para eles.


Assim como Jesus, somos testemunhas da verdade de Deus, o sal no meio
da corrupção, a luz no meio das trevas, homens e mulheres que não temem
permanecer sozinhos, por amor a Deus, falando contra o caminho de pecado
dos homens e contra o mundo. Fazer isto pode nos colocar em muitas di­
ficuldades e mesmo perseguição. Mas é nosso inquestionável dever. Se
amamos a vida, se desejamos ter boa consciência e ser reconhecidos por
Cristo no último dia, nosso dever é ser testemunhas. Está escrito: “Qualquer
que, nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das
minhas palavras, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando
vier na glória de seu Pai com os santos anjos” (Mc 8.38).
O último assunto que devemos notar nesses versículos é a indagação
de Pôncio Pilatos dirigida a nosso Senhor. Somos informados que, após
nosso Senhor ter falado sobre a verdade, Pilatos indagou: “Que é a
verdade?” Não sabemos por que ele fez esta pergunta, e a narrativa não
deixa claro se ele esperava uma resposta. É mais provável que estas palavras
constituíam uma sarcástica e desdenhosa exclamação de que ele não
acreditava existir tal coisa como “a verdade” . Parecem a linguagem de
alguém que, desde a sua juventude, ouvira tantas especulações vazias dos
filósofos gregos e romanos sobre “a verdade” , ao ponto de duvidar que
esta realmente existia — “Que é a verdade?”
Ainda que isto pareça melancólico, há muitas pessoas em países
chamados cristãos cuja situação espiritual é semelhante à de Pilatos.
Receamos que existam milhares de pessoas, entre as classes mais
esclarecidas, que estão constantemente se desculpando de sua irreligiosidade
por argumentarem, à semelhança de Pilatos, não serem capazes de descobrir
o “que é a verdade” . Eles mencionam a interminável controvérsia entre
católicos e evangélicos, eclesiásticos e leigos, leigos e dissidentes, pretendo
dizer com isso que não entendem quem está certo e quem está errado.
Refugiados nesta falsa desculpa, eles passam toda a sua vida e, nesta infeliz
e desagradável situação, morrem.
E realm ente correto que a verdade não pode ser conhecida?
Absolutamente, não! Deus jamais deixou sem luz qualquer pessoa que
com sinceridade e diligência busca a verdade. O orgulho é um dos motivos
por que muitos não conseguem descobri-la, pois não se prostram e suplicam
que Deus lhes ensine a verdade. A negligência é outro motivo. Eles re­
almente não se esforçam nem examinam a Bíblia. Os infelizes seguidores
de Pilatos geralmente não utilizam sinceridade e retidão ao lidar com suas
consciências. A pergunta favorita deles — “Que é a verdade?” — é apenas
um pretexto e desculpa. As palavras de Salomão sempre serão comprovadas
como verdadeiras: “Se buscares a sabedoria como a prata e como a tesouros
escondidos a procurares, então, entenderás o temor do S e n h o r e acharás o
João 18.28-40 241

conhecimento de Deus” (Pv 2.4-5). Nenhum homem que seguiu este


conselho errou o caminho do céu.

Um Retrato de Cristo, de Pilatos e dos Judeus


Leia 19.1-16

Esses versículos nos apresentam uma cena maravilhosa, que deve ser
profundamente interessante para todos aqueles que professam ser crentes.
Parecendo um imenso painel histórico, esse texto nos mostra em especial
três retratos, nos quais convém fixar nossa atenção. Revelam três pessoas
que servem de exemplos para nossas vidas, e será proveitoso examiná-los
em ordem.
O primeiro retrato que encontramos nessa passagem é o do próprio
Senhor Jesus Cristo. Vemos o Salvador dos homens sendo chicoteado,
coroado com espinhos, escarnecido, esbofeteado, rejeitado por seu povo,
injustamente condenado ao mais doloroso tipo de morte. No entanto, Ele
era o eterno Filho de Deus, Aquele a quem os incontáveis anjos do Pai se
deleitavam em honrar. Foi Ele quem veio ao mundo para salvar os pecadores
e, após viver de maneira imaculada durante trinta anos, passou seus últimos
três anos de vida andando por toda parte, fazendo o bem e pregando o
evangelho. Com certeza, desde o dia de sua criação, o sol jamais brilhou
com tanta intensidade!
Admiremos o amor de Cristo, sobre o qual o apóstolo Paulo disse:
“Excede todo entendimento” , e vejamos que esta expressão está repleta de
profundo significado. Não existe amor terreno com o qual possamos
compará-lo e nenhum padrão capaz de avaliá-lo. É um amor inigualável.
Ao meditar sobre esta história de sofrimentos, jamais esqueçamos que
Jesus sofreu por causa de nossos pecados, o justo pelos injustos, e que Ele
foi traspassado por causa de nossas transgressões e ferido por causa de
nossas iniqüidades, a fim de que por meio de seus sofrimentos fôssemos
salvos.
Com diligência, devemos seguir o exemplo de paciência dado por
nosso Senhor, em todas as provas e aflições de nossas vidas, especialmente
aquelas que nos alcançam por motivos espirituais. Quando foi ultrajado, o
Senhor Jesus não revidou com ultraje; ao ser maltratado, não fez ameaças,
mas entregou-se Àquele que julga retamente. Revistamo-nos destas mesmas
atitudes. Olhemos atentamente para Aquele que, sem murmurar, suportou
tamanha oposição da parte dos pecadores e esforcemo-nos para glorificá-
Lo através do sofrimento, bem como da prática do bem.
242 João 19.1-16

O segundo retrato que encontramos na passagem é o dos judeus


incrédulos que favoreceram a morte de Jesus. Nós os vemos por três ou
quatro horas rejeitando a oferta de Pilatos referente à liberdade de nosso
Senhor, exigindo com ferocidade a sua crucificação, clamando agres­
sivamente por sua condenação à morte, recusando-se com persistência a
reconhecê-Lo como seu rei, declarando que não tinham outro rei, exceto
César, e acumulando sobre suas próprias cabeças grande parte da culpa
pela morte de Cristo. Apesar disso, eram filhos de Israel e descendentes
de Abraão; a eles pertenciam as promessas, os cerimoniais da lei de Moisés,
os sacrifícios e o templo. Estes foram os homens que professavam aguardar
um profeta maior do que Moisés, um descendente de Davi, que estabeleceria
um reino como Messias. Desde a queda de Adão, nunca houve tão grande
demonstração da profunda impiedade do coração humano.
Com temor e tremor, estejamos atentos ao imenso perigo de uma
contínua rejeição da luz e do conhecimento. Realmente existe um julgamento
imposto na forma de cegueira espiritual; e este é o pior dos juízos que
Deus pode enviar sobre uma pessoa. Aquele que, à semelhança de Faraó e
Acabe, é constantemente repreendido por Deus e recusa-se a aceitar tal
repreensão, por fim endurecerá seu coração, mais do que uma rocha
inquebrável, e terá uma consciência insensível e cauterizada. Esta era a
situação dos judeus durante a época do ministério terreno de nosso Senhor,
e o clímax de seus pecados foi sua deliberada rejeição de Jesus, quando
Pilatos desejava soltá-Lo. Devemos orar para que sejamos isentos de tal
cegueira espiritual! Não existe pior julgamento da parte de Deus do que
sermos entregues a nós mesmos, ou à impiedade de nossos próprios
corações, ou ao maligno. Não existe uma maneira mais segura de trazermos
juízo sobre nós mesmos do que persistirmos em rejeitar os avisos e
continuarmos pecando contra a luz. As palavras de Salomão devem causar-
nos bastante pavor: “Mas, porque clamei, e vós recusastes; porque estendi
a mão, e não houve quem atendesse; antes, rejeitastes todo o meu conselho
e não quisestes a minha repreensão; também eu me rirei na vossa desventu­
ra, e, em vindo o vosso terror, eu zombarei” (Pv 1.24-26). Jamais nos es­
queçamos de que, assim como os judeus, podemos ser entregues a grande
ilusão, de modo que creiamos na mentira e pensemos estar servindo a
Deus, quando na realidade estamos pecando (2 Ts 2.11).
O terceiro e último retrato que encontramos nesta passagem é o de
Pôncio Pilatos. Vemos o governador romano, um homem de status elevado,
representante do mais poderoso império daquela época, um homem que
deveria ser fonte de justiça e equidade; nós o vemos hesitando entre dois
pensamentos em um caso tão claro quanto a luz do sol ao meio-dia. Ele
sabia o que era correto, mas estava com medo de agir de acordo com este
conhecimento; estava convicto de que deveria libertar o prisioneiro que
João 19.1-16 243

tinha diante de si, mas estava receoso de fazê-lo, para que não desagradas­
se aqueles que O acusavam. Assim, com base no temor dos homens, ele
sacrificaria as exigências da justiça; motivado por covardia, aprovaria um
crime gravíssimo; e finalmente, por amar a opinião dos homens, Pilatos
apoiaria o assassinato de um inocente. A natureza humana jamais cometeu
um ato tão desprezível quanto este. Nenhum outro nome tem sido tão
desprezado pelo mundo quanto o de Pôncio Pilatos.
Aprendemos dessa passagem que os seres humanos são criaturas
miseráveis, quando não possuem princípios elevados em seus corações e a
fé na existência de um Deus que está acima deles. O homem mais humilde
que possui a graça e o temor a Deus é mais nobre aos olhos do Criador do
que um rei, um presidente ou um político cujo alvo primário é agradar o
povo. Ter uma consciência para si mesmo e outra diante do público; possuir
uma regra de deveres para nós mesmos e outra para as atividades públicas;
ver claramente o que é correto aos olhos de Deus e, apesar disso, fazer o
que é errado, por causa da popularidade — tudo isso pode parecer correto,
sábio e diplomático. Porém, revela um tipo de caráter que nenhum cristão
deve considerar respeitoso.
Oremos para que sempre tenhamos em nosso país homens de Estado
que possuam graça para pensarem corretamente e coragem para procederem
com sabedoria, não se sujeitando às opiniões dos homens. Aqueles que
temem mais a Deus do que aos homens e se preocupam mais em agradá-Lo
do que aos homens são os melhores governantes de um povo e, no final
das contas, freqüentemente são os mais respeitados. Homens como Pôncio
Pilatos, que estão sempre hesitando e se comprometendo, deixando-se levar
pela opinião popular, ao invés de exercerem controle sobre ela, temendo
fazer o que é certo, porque isto ofende as pessoas, e estando dispostos a
fazer o que é errado, em troca de popularidade — tais homens são os
piores governantes que um a nação pode ter. Com freqüência são
instrumentos do juízo de Deus sobre uma nação por causa de seus pecados.

Cristo, Depois de Levar a Cruz,


é Crucificado Como Rei;
O Cuidado de Cristo por sua Mãe
Leia João 19.17-27

A pessoa que lê essa passagem sem demonstrar um profundo


sentimento de sua própria dívida para com Cristo deve ser alguém que
244 João 19.17-27

possui um coração insensato e endurecido. Grande foi o amor de Cristo


pelos pecadores, quando voluntariamente Ele suportou estes sofrimentos
em favor deles. Imensa é a pecaminosidade do pecado que exigiu tanto so­
frimento vicário a fim de proporcionar sua expiação.
Primeiramente, devemos observar na passagem que nosso Senhor
teve de levar sua cruz, quando dirigiu-se da cidade para o Gólgota. Sem
dúvida, há um significado profundo em todas estas circunstâncias. Por um
lado, elas faziam parte da humilhação à qual nosso Senhor teve de sujeitar-
se como nosso Substituto. Um dos castigos infligidos aos mais vis criminosos
era que eles deviam levar sua própria cruz, ao caminharem para a execução;
e isto foi imposto ao nosso Senhor. Em sentido completo, Ele foi reputado
como pecador e considerado como maldição em nosso benefício. Por outro
lado, estes acontecimentos eram um cumprimento da figura apresentada
na grande oferta pelo pecado instituída na lei mosaica. Estava escrito: “O
novilho e o bode da oferta pelo pecado, cujo sangue foi trazido para fazer
expiação no santuário, serão levados fora do arraial” (Lv 16.27). Aqueles
cegos judeus não imaginavam que, ao instigar furiosamente os romanos a
crucificarem Jesus fora de Jerusalém, estavam de maneira inconsciente
cumprindo a grandiosa oferta pelo pecado. Está escrito: “Por isso, foi que
também Jesus, para santificar o povo, pelo seu próprio sangue, sofreu fora
da porta” (Hb 13.12).
Todos os crentes devem sempre recordar a lição prática que apren­
demos deste fato. Assim como nosso Senhor, precisamos estar contentes
em nos retirarmos para “fora da porta”, levando o vitupério de Cristo. De­
vemos nos retirar do mundo, tomando-nos separados e dispostos, se for
necessário, a permanecer sozinhos. À semelhança de nosso Senhor, devemos
estar prontos para levar nossa cruz todos os dias e sermos perseguidos,
tanto por causa da doutrina quanto de nosso viver. Seria bom para a igreja
se mais da verdadeira cruz fosse visto entre os crentes! Usar uma cruz de
madeira ou de outro material como adomo, colocar cruzes em igrejas ou
sepulturas — tudo isto é fácil e não envolve qualquer dificuldade. Mas ter
a cruz de Cristo em nossos corações, carregar a cruz em nosso viver diário,
conhecer a comunhão dos sofrimentos de Cristo, ser conformado à sua
morte, crucificando nossas afeições e viver — tudo isto exige abnegação, e
crentes deste tipo não encontramos com facilidade. No entanto, podemos
estar certos, este é o único carregar a cruz que abençoa o mundo.
Em segundo, devemos observar que nosso Senhor fo i crucificado
como um rei. O título colocado acima da cabeça de nosso Senhor demonstra-
o com clareza. As pessoas capazes de ler o latim, o grego ou o hebraico
não deixariam de ver que na cruz central estava Alguém que tinha acima
de sua cabeça o título de rei. A mão de Deus controlou as coisas de tal ma­
neira, que a poderosa vontade de Pilatos sobrepujou, pelo menos uma vez,
João 19.17-27 245

o desejo dos perversos judeus. Apesar da insistência dos principais


sacerdotes, nosso Senhor foi crucificado como “Rei dos Judeus”.
Era conveniente e certo que assim acontecesse. Mesmo antes do nas­
cimento de nosso Senhor, o anjo Gabriel dissera a Maria: “Este será grande
e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de
Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado
não terá fim” (Lc 1.32-33). Logo após o seu nascimento, vieram os sábios,
indagando: “Onde está o recém-nascido Rei dos judeus? Porque vimos a
sua estrela no Oriente e viemos para adorá-Lo” (Mt 2.2). Uma semana
antes da crucificação de nosso Senhor, a multidão que O acompanhou em
sua entrada triunfal clamou: “Hosana! Bendito o que vem em nome do Se­
nhor e que é Rei de Israel!” (Jo 12.13). A crença de todos os judeus da
época era que o Messias, o filho de Davi, viria como um rei. O reino de
Deus e dos céus foi constantemente proclamado por Jesus durante seu mi­
nistério terreno. Na verdade, Ele era rei, tal como dissera a Pilatos, rei de
um domínio diferente dos reinos deste mundo; porém, era um verdadeiro
rei, de um reinado e súditos autênticos. Na qualidade de Rei, Ele nasceu,
viveu, foi crucificado; e voltará para governar sobre toda a terra, como
Rei dos reis e Senhor dos senhores.
Estejamos certos de que conhecemos Jesus como nosso Rei e de que
seu domínio já foi estabelecido em nossos corações. Somente O encontrarão
como Salvador no último dia aqueles que O obedecem como Rei neste
mundo. Tributemos-Lhe com alegria o amor, a obediência e a fé que Ele
valoriza mais do que ouro. Sobretudo, jamais tenhamos medo de ser fiéis
servos, soldados e seguidores dEle, ainda que sejamos muito desprezados
pelo mundo. Em breve chegará o dia em que o Nazareno rejeitado, que foi
pendurado na cruz, demonstrará seu grande poder e reinará, colocando
debaixo de seus pés todos os inimigos. Os reinos deste mundo, conforme
Daniel profetizou, serão aniquilados e surgirá o reino de nosso Deus e de
seu Cristo. Por fim, todo joelho se dobrará e toda língua confessará que
Jesus Cristo é o Senhor.
Por último, devemos observar nessa passagem a ternura com que
Jesus se preocupou por Maria, sua mãe. Somos informados que, embora
estivesse suportando agonias no corpo e na mente, Ele não esqueceu aquela
de quem havia nascido. De maneira misericordiosa, o Senhor Jesus lembrou-
se da desolação de Maria e do comovente efeito das coisas que ela estava
contemplando. Ele sabia que, embora fosse uma mulher santa, Maria era
apenas uma mulher e, por isso mesmo, sentira profundamente a morte de
um filho como Jesus. Portanto, entregou-a aos cuidados do discípulo que
Ele mais amava e que também mais O amava, pronunciando estas
comoventes palavras: “Mulher, eis aí teu filho” . Depois, Jesus disse ao
discípulo: “Eis aí tua mãe. Dessa hora em diante, o discípulo a tomou para
246 João 19.17-27

casa” . Sem dúvida, não precisam os de prova m aior do que esta


demonstrando que Jesus nunca tencionou que Maria, sua mãe, fosse honrada
como Deus, ou que orações fossem dirigidas a ela, ou que as pessoas a
adorassem e confiassem nela como padroeira dos pecadores. O bom senso
nos mostra que, se alguém precisa receber os cuidados e proteção de outrem,
tal pessoa jamais pode ajudar homens e mulheres a chegarem ao céu ou
ser, em qualquer sentido, mediadora entre Deus e os homens. Não é exagero
afirmar, embora seja desagradável para alguns, que dentre todas as invenções
da Igreja de Roma não existe outra tão destituída de fundamento bíblico
quanto a doutrina da adoração de Maria.
Voltemo-nos agora para um assunto mais relevante. Sejamos for­
talecidos através do pensamento de que temos um Salvador que possui
incomparável ternura, simpatia e consideração pelo estado de seu povo.
Jamais esqueçamos estas palavras de Jesus: “Qualquer que fizer a vontade
de Deus, esse é meu irmão, irmã e m ãe” (Mc 3.35). Aquele que, na cruz,
condoeu-se por Maria é o mesmo sempre. O Senhor Jesus nunca esquece
aqueles que O amam e, mesmo quando estes passam por momentos difíceis,
recorda-se de suas necessidades. Não devemos admirar que Pedro tenha
dito: “Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado
de vós” (1 Pe 5.7).

As Escrituras Cumpriram-se em Todos os


Aspectos da Crucificação;
Está Consumado;
A Realidade da Morte de Cristo
Leia 19.28-37

Essa parte da narrativa do evangelho de João contém assuntos de


profundo interesse que foram deixados de lado por Mateus, Marcos e
Lucas. Não sabemos o motivo. Basta apenas lembrar, tanto no que eles
relataram quanto no que deixaram de narrar: todos os quatro evangelhos
foram escritos por inspiração divina.
Inicialm ente, devemos observar nesses versículos o freqüente
cumprimento das Escrituras proféticas em todos os aspectos da crucificação
de nosso Senhor. Três profecias em particular são mencionadas (Êxodo,
Salmos e Zacarias) e tiveram sua realização na cruz. Conforme qualquer
leitor bem informado percebe, outras profecias podem ser facilmente
identificadas. Todas estas profecias se combinam para comprovar a mesma
João 19.28-37 247

coisa. Demonstram que a morte de nosso Senhor Jesus Cristo no Gólgota


foi algo previsto e predeterminado por Deus. Centenas de anos antes da
crucificação, todos os aspectos daquela solene transação foram dispostos
no conselho divino, e os detalhes foram revelados aos profetas. Do início
ao fim, a crucificação era conhecida antecipadamente, e todos os seus as­
pectos estavam de acordo com um plano e desígnio já determinado. Em
sentido mais amplo e profundo, “Cristo morreu pelos nossos pecados,
segundo as Escrituras” (1 Co 15.3).
Não podemos duvidar que tal cumprimento das Escrituras constitui
uma grande evidência da autoridade divina da Palavra de Deus. Os profetas
anunciaram antecipadamente não apenas a morte de Cristo mas também os
detalhes relacionados à sua morte. É impossível explicar com base em
teorias a realização de tantas circunstâncias profetizadas. Falar sobre acaso,
sorte, coincidências como explicações satisfatórias é presunção e absurdo.
A única explicação racional é a inspiração divina. Os profetas que
predisseram os detalhes da crucificação foram inspirados por Aquele que,
com antecedência, vê o fim desde o começo; e os livros que os profetas
escreveram não devem ser lidos como obras humanas, e sim divinas. Sem
dúvida, aqueles que procuram negar a inspiração da Bíblia encontram muitas
dificuldades. Uma pessoa necessita de mais fé para ser um incrédulo do
que para ser um verdadeiro cristão. Com certeza, é bastante ingênua a
pessoa que considera como resultado do acaso e não de um plano de­
terminado os minuciosos cumprimentos de profecias a respeito da morte
de Cristo, tais como as referentes às suas vestes, sua sede, seu lado
traspassado e seus ossos.
Em segundo, devemos observar nos versículos a solene declaração
proveniente dos lábios de nosso Senhor, antes de morrer. O apóstolo João
relata que, após tomar o vinagre, Jesus disse: “Está consumado! E,
inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (Jo 19.30). Não é exagero afirmar
que das sete famosas declarações de Jesus na cruz nenhuma é mais notável
do que esta; e somente João a relatou.
O significado exato da maravilhosa expressão “Está consumado” é
algo que o Espírito Santo achou melhor não revelar. Todos devemos
perceber instintivamente que existe nesta expressão um significado tão
profundo, que aos homens faltam palavras para explicá-lo. Entretanto, não
demonstramos irreverência ao imaginar os pensamentos que estavam na
mente de nosso Senhor, quando pronunciou estas palavras. A consumação
de todos os sofrimentos que conhecemos e desconhecemos, os quais Ele
suportou como nosso Substituto; a consumação da lei mosaica, que Ele
viera cumprir, tomando-se o verdadeiro sacrifício pelos nossos pecados; a
consumação de muitas profecias, que Ele viera concretizar; a consumação
da grande obra de redenção do homem, a qual estava agora quase concluída
248 João 19.28-37

— tudo isto, sem dúvida, nosso Senhor tinha em mente, quando disse:
“Está consumado!” Havia algo mais, nós o sabemos. No entanto, ao
considerar estas palavras de Alguém como nosso Senhor, em uma ocasião
como esta, diante de uma crise tão misteriosa de sua vida, é melhor sermos
cautelosos. O lugar em que estamos pisando “é terra santa” .
Em todos os casos, um estimulante pensamento se destaca com clareza
nesta famosa expressão. Nossas almas repousam sobre uma obra consumada,
se confiamos na obra de Jesus Cristo, nosso Senhor. Não precisaremos
temer se Satanás ou a lei procurarem nos condenar no último dia. Podemos
descansar no pensamento de que temos um Salvador que fez, pagou e
consumou tudo que é necessário para nossa salvação; e apropriar-nos das
desafiadoras palavras do apóstolo: “Quem os condenará? É Cristo Jesus
quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e
também intercede por nós” (Rm 8.34). Quando consideramos nossas
próprias obras, certamente podemos nos sentir envergonhados por causa
de suas imperfeições. Mas, quando consideramos a obra consumada de
Cristo, sentimos paz. Se cremos, estamos aperfeiçoados nEle (Cl 2.10).
Por último, devemos observar nesses versículos a veracidade e a
realidade da morte de Cristo. O texto bíblico nos diz: “Mas um dos soldados
lhe abriu o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água” . Este incidente,
embora à princípio pareça insignificante, fornece provas concretas de que
o coração de nosso bendito Senhor havia parado e, conseqüentemente, sua
vida terminara. Ele não apenas desmaiara, perdera todos os sentidos ou
entrara em coma, assim como alguns têm ousado insinuar. Seu coração
realmente cessou de bater, e Ele, de fato, morreu. Sem dúvida, a importância
deste acontecimento é imensa. Refletindo por breve momento, devemos
todos perceber que sem uma verdadeira morte não haveria um genuíno
sacrifício e uma autêntica ressurreição; por conseguinte, sem uma verdadeira
morte e ressurreição, todo o cristianismo seria uma casa edificada sobre a
areia, sem qualquer alicerce. Certamente, aquele imprudente soldado
romano não tinha qualquer idéia de que se tornaria um poderoso auxílio
para o verdadeiro cristianismo, quando ele com a lança traspassou o lado
de nosso Senhor.
“Sangue e água” , mencionados na passagem, têm um profundo
significado espiritual. O próprio apóstolo João, em sua primeira epístola,
parece referir-se a estes vocábulos como possuindo uma denotação bastante
significativa: “Este é aquele que veio por meio de água e sangue, Jesus
Cristo” (1 Jo 5.6). Durante toda a sua existência, a igreja tem se mostrado
unânime em manter a idéia de que estas palavra são figuras de significados
espirituais. Entretanto, o significado exato de “sangue e água” é um assunto
sobre o qual os cristãos jamais concordaram e sobre o qual nunca chegarão
a um acordo até à volta do Senhor.
João 19.28-37 249

A teoria de que “sangue e água” significam as duas ordenanças,


embora seja plausível e muito popular, pode ser corretamente considerada
como destituída de fundamento sólido. O batismo e a Ceia do Senhor eram
ordenanças já instituídas quando Jesus morreu; por isso, não precisavam
ser designadas novamente. Não precisamos encontrar em cada passagem
bíblica onde encontramos o número “dois” uma referência a estas benditas
ordenanças (como se o texto possuísse um significado oculto) e insistir em
que as pessoas acreditem nisso. Esse tipo de aplicação obstinada de passagens
difíceis das Escrituras não favorece ou traz qualquer honra às ordenanças.
Podemos questionar se esta aplicação não tende a vulgarizá-las, trazendo-
lhes desprezo.
O verdadeiro significado de “sangue e água” deve ser procurado na
famosa profecia de Zacarias, que disse: “Naquele dia, haverá uma fonte
aberta para a casa de Davi e para os habitantes de Jerusalém, para remover
o pecado e a impureza” (Zc 13.1). Esta fonte não foi realmente aberta na
hora em que Cristo morreu? O sangue e a água não eram reconhecidos
pelos judeus como símbolos de expiação e purificação? Por que devemos
hesitar em crer que “sangue e água”, derramados do lado do Senhor Jesus,
constituíram uma significativa declaração para o povo judeu de que a
verdadeira fonte para a purificação dos pecados já estava aberta e que os
pecadores poderiam vir ousadamente a Cristo, a fim de serem perdoados,
lavados e purificados? Entretanto, esta interpretação merece de nossa parte
uma meditação séria.
Qualquer que seja a nossa opinião a respeito de “sangue e água” ,
estejamos certos de que já fomos lavados “no sangue do Cordeiro” (Ap
7.14). Ter conceitos elevados a respeito das ordenanças não trará qualquer
proveito para nós no último dia, se nunca viemos a Cristo pela fé e não
tivemos um relacionamento pessoal com Ele. A fé em Cristo é a única
coisa necessária. “Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem
o Filho de Deus não tem a vida” (1 Jo 5.12).

Crentes Pouco Conhecidos;


Alguns Terminam Melhor do que Começam
Leia João 19.38-42

Existe algo particularmente interessante nesses versículos da Bíblia.


Eles nos apresentam um estranho, a respeito do qual não ouvimos antes
neste evangelho; mencionam um velho amigo, cujo nome é conhecido em
250 João 19.38-42

todos os lugares onde se lê as Escrituras. A passagem descreve o funeral


mais importante já realizado neste mundo. Desses três interessantes assuntos
podemos extrair lições proveitosas.
Primeiramente, aprendemos desses versículos que no mundo existem
alguns crentes a respeito dos quais pouco conhecemos. José de Arimatéia
nos ensina isto com bastante clareza. Ele foi citado entre os amigos de
Cristo; não encontramos seu nome em qualquer outra passagem do Novo
Testamento; sua história anterior e posterior a este acontecimento não foi
revelada à igreja. Ele surgiu para honrar a Cristo, quando os apóstolos O
haviam abandonado e fugido. Ele se preocupou com Jesus e O serviu,
mesmo quando estava morto, não por causa de qualquer milagre que tenha
visto Jesus realizar, e sim motivado por seu amor livre e gratuito. José de
Arimatéia não hesitou em revelar-se como amigo de Cristo numa ocasião
em que judeus e romanos O haviam condenado e sentenciado à morte.
Com certeza, o homem que fez estas coisas possuía grande fé! Podemos
nos admirar de que, em qualquer lugar onde o evangelho é pregado em
todo o mundo, esta piedosa ação de José seja contada como um memorial
para ele?
Tenhamos esperança e creiamos que em todas as épocas existem
cristãos que, à semelhança de José de Arimatéia, são servos do Senhor
Jesus, desconhecidos para a igreja e o mundo, mas bem conhecidos por
Deus. Na época de Elias, havia em Israel sete mil pessoas que jamais
tinham se curvado diante de Baal, embora o desanimado profeta nada
soubesse a respeito delas. Talvez em nossos próprios dias existam servos
de Jesus nos lugares mais desconhecidos das grandes cidades ou nos lugares
mais insignificantes de nosso grande país, servos que não fazem alarde de
sua vida espiritual, mas amam a Cristo e são amados por Ele. A falta de
saúde, a pobreza ou a preocupação diária com os trabalhos seculares tomam
impossível sua vinda ao culto público; portanto, vivem e morrem de maneira
relativamente desconhecida. Porém, o último dia causará admiração ao
mundo por causa destas pessoas que, tal como José de Arimatéia, honraram
a Cristo na mesma proporção que muitos outros, e seus nomes estão escritos
nos céus. Acima de tudo, circunstâncias especiais revelam cristãos especiais.
Nem sempre os mais dispostos amigos de Cristo são aqueles que fazem
grandes obras na igreja.
Também aprendemos desses versículos que existem alguns servos de
Cristo que terminam melhor do que começaram. Nicodemos nos mostra
isso com clareza. O único homem que ousou ajudar José de Arimatéia a
sepultar o corpo de nosso Senhor foi aquele que no início de sua vida cristã
procurou a Jesus “de noite” e, na ocasião, não era mais do que um inquiridor
em busca da verdade. Algum tempo depois, no ministério terreno de nosso
senhor, encontramos Nicodemos com mais ousadia no conselho dos fariseus
João 19,38-42 251

levantando a seguinte pergunta: “Acaso, a nossa lei julga um homem, sem


primeiro ouvi-lo e saber o que ele fez?” (Jo 7.51). Finalmente, nós o
vemos neste acontecimento, ministrando ao corpo de nosso Senhor e não
se envergonhando de ter parte ativa em dar ao desprezado Nazareno um
sepultamento de honra. Que grande contraste entre o homem que com
timidez anteriormente viera ter com Jesus à noite e o homem que trouxe
cerca de trinta e dois quilos de um composto de mirra e aloés, para ungir o
corpo de nosso Senhor! Porém, era o mesmo Nicodemos. Até que ponto
um homem pode crescer na graça, na fé, no conhecimento e na ousadia
em apenas três anos!
Faremos bem se guardarmos estes fatos em nossos corações e
recordarmos Nicodemos, quando formularmos nossa opinião sobre a vida
espiritual de outros crentes. Não podemos reputar os outros como pessoas
incrédulas e destituídas da graça divina, apenas porque não compreendem
toda a verdade imediatamente e alcançam um caráter resoluto somente
após muitos passos lentos. O Espírito Santo sempre guia os crentes às
mesmas verdades fundamentais e ao mesmo caminho que conduz ao céu.
Nesta atividade do Espírito existe uniformidade invariável. No entanto,
Ele não os guia utilizando as mesmas experiências e a mesma rapidez.
Neste aspecto do guiar do Espírito, há muita diversidade. Vivem em grande
ilusão os que afirmar a inutilidade da conversão e afirmam que os não-
convertidos também serão salvos. Todavia, vivem em ilusão semelhante
os que promovem o ensino de que são convertidos apenas aqueles que
rapidamente se tornam crentes maduros e firmes. Não sejamos apressados
e precipitados em julgar os outros. Creiamos que um homem pode ter um
começo insignificante em sua vida cristã e mais tarde crescer intensamente.
Ele desfruta da verdadeira graça divina e da genuína obra do Espírito em
seu coração? Isto é o que realmente importa. Se as possui, podemos esperar
com tranqüilidade que ele crescerá na graça e demonstrar-lhe gentileza e
amabilidade, embora no presente ele seja apenas um bebê em suas rea­
lizações espirituais. A vida que existe em uma criança é tão real e verdadeira
quanto a de um homem maduro; a diferença é apenas uma questão de grau.
Quem despreza o dia dos humildes começos? (Zc 4.10.) Aquele que começa
a vida cristã com timidez e pouco conhecimento pode, mais tarde, per­
manecer firme, confessando sozinho e com ousadia o Senhor Jesus Cristo
aos olhos de todos.
Por último, aprendemos desses versículos que o sepultamento do
corpo de Jesus fo i um ato que Deus aprovou. Sem dúvida essa passagem
tinha o propósito de nos transmitir esta lição. Na verdade, ela nos fornece
inquestionável evidência de que nosso Senhor realmente morreu e res­
suscitou, mas também nos ensina que é conveniente e adequado sepultar
com honra e decência o corpo do cristão. Não foi inutilmente que a Bíblia
252 João 19.38-42

relatou detalhadamente o sepultamento do corpo de Abraão, Isaque, Jacó,


José e Moisés. Não foi em vão que as Escrituras nos informaram que o
corpo de João Batista foi colocado em uma sepultura e que “alguns homens
piedosos sepultaram Estêvão e fizeram grande pranto sobre ele” (At 8.2).
Tampouco foi em vão que Deus nos falou sobre o sepultamento de Cristo.
O verdadeiro cristão nunca deve se envergonhar de considerar um
funeral com peculiar reverência e solenidade. O corpo deve ser reputado
como o instrumento através do qual cometemos grande pecados ou
glorificamos a Deus. O Filho de Deus honrou o corpo ao habitar nele
durante trinta e três anos e, por fim, morrer em nosso lugar. Foi no corpo
que Ele ressuscitou dentre os mortos, ascendeu ao céu e assentou-se à
destra de Deus, representando-nos agora diante de Deus como nosso
Advogado e Sacerdote. O corpo será ressuscitado, quando soar a última
trombeta, e, unido novamente à alma, viverá toda a eternidade no céu.
Com certeza, diante de fatos como estes, não devemos supor que reverenciar
o corpo é algo inútil.
Terminemos estas considerações com uma palavra de cautela.
Tenhamos cuidado para não julgar um suntuoso funeral como uma
compensação para alguém que viveu na impiedade e no pecado. Podemos
sepultar um homem com muito luxo e gastar bastante dinheiro durante as
lamentações por ele. Podemos colocar sobre seu sepulcro uma pedra de
mármore caríssimo, escrevendo sobre ela um epitáfio lisonjeador. Mas
tudo isto não salvará aquela alma. No último dia, o fato mais importante
não será a maneira como fomos sepultados, mas se fomos “sepultados”
com Cristo, cremos e nos arrependemos. É melhor morrer a morte do
justo e ter um sepultamento humilde, depois de um funeral simples, do que
morrer sem a graça de Deus e jazer em uma sepultura de mármore!

Aqueles que Mais Amam a Cristo São os que


Mais Recebem dEle;
Os Diferentes Temperamentos dos Discípulos;
A Ignorância Permanece
no Coração dos Crentes
Leia João 20.1-10

O capítulo que agora iniciamos nos leva da morte à ressurreição de


Cristo. Assim como Mateus, Marcos e Lucas, o apóstolo João fala sobre
estes dois acontecimentos com especial particularidade. E não devemos
João 20.1-10 253

ficar admirados. Todo o cristianismo centraliza-se nestes dois fatos: Cristo


morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação. Este
último merece atenção especial. De todos os evangelistas, o discípulo a
quem Jesus amava foi aquele que mais forneceu evidências tão profundas
e interessantes da ressurreição de Cristo.
Essa passagem nos ensina que recebem as maiores bênçãos de Cristo
aqueles que mais O amam. O evangelista menciona Maria Madalena entre
as primeiras pessoas que vieram ao sepulcro. A história desta mulher, sem
dúvida, está marcada por muitos fatos que não sabemos. Bastante difamação
tem sido lançada contra a memória dela, como se ela fosse uma habitual
transgressora do sétimo mandamento. Entretanto, não existem evidências
de que ela tenha feito qualquer coisa desse tipo! E somos claramente
informados que ela foi uma pessoa de quem o Senhor Jesus expeliu sete
demônios (Mc 16.9; Lc 8.2) — uma mulher que de maneira especial estivera
em sujeição à possessão de Satanás; uma mulher que, por causa de sua
libertação, possuía uma irrestrita gratidão ao Senhor. Em outras palavras,
de todos os seguidores de nosso Senhor, enquanto Ele esteve na terra,
parece que ninguém o amou tanto quanto Maria Madalena. Nenhum outro
sentiu tanto a intensidade de sua dívida para com Ele. Por conseguinte, nas
belas palavras do bispo Andrews: “Maria Madalena foi a última a se retirar
de perto da cruz e a primeira a dirigir-se ao sepulcro; portanto, foi a que
mais permaneceu diante da cruz e a que mais rapidamente veio ao sepulcro.
Maria Madalena não descansaria enquanto não achasse o Senhor. Ela O
procurou enquanto ainda estava escuro, mesmo antes que tivesse claridade
suficiente para começar sua busca” . Resumindo, ela havia recebido grandes
bênçãos; por isso, amou muito ao Senhor. E, amando-O deste modo,
realizou muito para demonstrar a genuinidade de seu amor.
O exemplo de Maria Madalena fornece bastante esclarecimento sobre
uma questão que deve ser interessante para todo verdadeiro servo de Cristo.
Por que muitos daqueles que se declaram cristãos fazem tão pouco pelo
Salvador, cujo nome eles confessam? Por que muitos, cuja a graça divina
e a fé não podemos negar, fazem, contribuem, falam e sofrem tão pouco,
a fim de promover a obra de Cristo e glorificá-Lo neste mundo? Estas
perguntas admitem somente uma resposta. Tais pessoas agem assim porque
falta-lhes senso de dívida e obrigação para com Cristo. Onde não há senso
do pecado, nada se faz para resolvê-lo; onde existe pouco senso de pecado,
pouco se faz. O homem que está profundamente cônscio de sua própria
culpa e corrupção e profundamente convicto de que, sem o sangue e a
intercessão de Cristo, ele deve, por merecimento, ser lançado nas
profundezas do inferno — este é o homem que gastará sua vida em favor
de Cristo, pensando que jamais fará o bastante para expressar seu louvor.
Todos os dias devemos orar para que percebamos com mais clareza a
254 João 20.1-10

pecaminosidade do pecado e a maravilhosa graça de Cristo. Somente então


deixaremos de ser indiferentes, relaxados e insensíveis em nosso trabalho
para o Senhor Jesus, entenderemos o intenso zelo de Maria Madalena e
compreenderemos as palavras do apóstolo Paulo, ao dizer: “Pois o amor
de Cristo nos constrange, julgando nós isto: um morreu por todos; logo,
todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não
vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e
ressuscitou” (2 Co 5.14-15).
Essa passagem também nos ensina que existe ampla diferença de
temperamento entre os seguidores de Cristo. Isto é curiosamente ressaltado
pela atitude de Pedro e João, quando Maria Madalena lhes contou que o
corpo do Senhor havia sido tirado do sepulcro (Jo 20.2). O texto bíblico
nos informa que ambos correram ao sepulcro, mas João, o discípulo a
quem Jesus amava correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro
ao sepulcro vazio. Em seguida, percebemos a diferença de temperamento
nestes dois homens. João, o mais gentil, calmo, moderado, cauteloso,
retraído e profundamente sensível, abaixou-se, viu os lençóis de linho,
mas não entrou. Pedro, o mais ativo, zeloso, impulsivo, veemente e
precipitado, satisfez-se somente quando entrou no sepulcro e viu com seus
próprios olhos. Os dois discípulos eram bem achegados ao Senhor Jesus,
podemos estar certos disso. Os seus corações, nesse momento crítico,
estavam repletos de esperança, temores e ansiedade. No entanto, cada um
deles se comportou de acordo com suas próprias características. Sem dúvida,
estas coisas foram escritas para nosso aprendizado.
Através deste incidente devemos aprender a levar em conta a grande
variedade no caráter dos discípulos de Cristo. Fazer isso nos poupará muitos
problem as na jornada da vida cristã e evitará muitos pensamentos
impiedosos. Não julguemos com severidade nossos irmãos, desprezando-
os somente porque eles não entendem e percebem as coisas exatamente
como nós a entendemos e percebemos ou porque as coisas não os afeta e os
impressiona assim como nos afeta e impressiona. As flores do jardim do
Senhor não possuem as mesmas cores e aroma, embora tenham sido
plantadas pelo mesmo Espírito. Os súditos do reino não possuem exatamente
a mesma índole e temperamento, embora todos amem o mesmo Senhor e
seus nomes estejam escritos no livro da vida. A igreja de Cristo tem em
sua membresia algumas pessoas cujos temperamentos são iguais ao de
Pedro e outros, ao de João, mas nela existe lugar e serviço para todos.
Devemos amar todos que com sinceridade amam a Cristo e agradeçamos a
Deus porque eles realmente O amam. A coisa mais importante é amar a
Jesus.
Por último, essa passagem nos ensina que pode haver muita ignorância
mesmo nos discípulos de Cristo. Este fato é ressaltado com singular in­
João 20.1-10 255

tensidade e clareza. O próprio João, o escritor deste evangelho, relatou


que ele mesmo e Pedro, seu companheiro, “ainda não tinham compreendido
a Escritura, que era necessário ressuscitar ele dentre os mortos”. Isto não
parece realmente estranho? ! Durante três anos, esses dois importantes
apóstolos ouviram o Senhor Jesus falar sobre a sua ressurreição, mas,
apesar disso, não O compreenderam. Em muitas ocasiões, o Senhor Jesus
havia fundamentado a verdade a respeito de seu messiado em sua res­
surreição dentre os mortos, e, apesar disso, os discípulos não entenderam
o significado das palavras de Jesus. Não sabemos muito sobre o poder que
age na mente de uma pessoa que, na infância, foi exercitada em ensinos
errados e em preconceitos assimilados na juventude. Com certeza, o ministro
do evangelho tem pouco direito de queixar-se da ignorância no meio de
seu povo, quando ele encontra ignorância similar à de Pedro e João, os
quais receberam o ensino do próprio Senhor Jesus.
Acima de tudo, temos de lembrar que a verdadeira graça, e não um
cabedal de conhecimento, é a única coisa necessária. Estamos nas mãos de
um Salvador misericordioso e compassivo, que perdoa toda ignorância,
quando vê um coração reto aos olhos de Deus. Algumas coisas precisa­
mos realmente saber, e, se não as soubermos, não seremos salvos. Nossa
própria pecaminosidade e culpa, o ofício de Cristo como Salvador, a
necessidade de arrependimento e fé — estas coisas são essenciais à salvação.
Entretanto, um dos mistérios da vida cristã, o qual será revelado somente
no último dia, é este: um homem pode ter uma elevada medida da graça
divina, ao mesmo tempo que não possui muito conhecimento; e outro,
pode ter muito conhecimento e, ao mesmo tempo, não desfrutar qualquer
medida da graça divina. Procuremos conhecimento e nos envergonhemos
da ignorância. Mas, acima de tudo, estejamos certos de que, assim como
Pedro e João, temos a graça divina e corações retos diante de Deus.

O Amor Desfruta de Muitos Privilégios;


Temor e Tristeza, Muitas Vezes, Desnecessários;
Os Crentes às Vezes têm Pensamentos Mundanos
L eia João 20.11-18

Esses versículos descrevem algo peculiar ao evangelho de João: a


conversa de nosso Senhor com Maria Madalena, uma conversa que ocorreu
logo após a sua ressurreição. Os outros evangelistas não foram inspirados
a escrevê-la. De todos os relatos de aparição de nosso Senhor, após sua
ressurreição dentre os mortos, nenhum outro talvez seja tão comovente
256 João 20.11-18

como este. Se o lemos sem achá-lo interessante, talvez sejamos pessoas


que têm um coração insensível e apático.
Primeiramente, esses versículos nos mostram que desfrutam de muitos
privilégios da parte de Cristo aqueles que O amam com bastante
perseverança e diligência. Um fato emocionante, que podemos observar
com cuidado, foi a atitude de Maria Madalena em não se retirar de perto
do sepulcro, quando Pedro e João retomaram para casa. O amor por seu
gracioso Senhor não permitiria que ela abandonasse o lugar onde O haviam
colocado. Onde Ele estava e o que Lhe havia acontecido, ela não sabia.
Porém, o amor a fez demorar-se no lugar onde Nicodemos e José de
Arimatéia O haviam colocado. O amor levou-a a honrar o último lugar
onde o precioso corpo de seu Senhor havia sido visto por olhos humanos.
Maria Madalena fora a primeira a vê-Lo, após ter ressuscitado dentre os
mortos. Seu amor colheu uma grande recompensa. Ela viu os anjos que
não foram observados por João e Pedro. Foi a primeira a contemplar nosso
Senhor ressuscitado, a ouvir a sua voz e conversar com Ele. Alguém duvida
que isto foi escrito para o nosso ensino? Onde quer que o evangelho tem
sido pregado, em todo o mundo, este pequeno incidente testifica: os que
honram a Cristo serão honrados por Ele.
Assim como aconteceu na manhã do primeiro domingo da Páscoa,
assim acontecerá durante toda a história da igreja: o grande princípio contido
nesta passagem continuará nos provendo o bem, até que o Senhor retorne.
Todos os crentes não possuem o m esm o grau de fé, esperança,
conhecimento, sabedoria e coragem; e em vão esperamos que assim seja.
Porém, este é um fato inquestionável: aqueles que amam a Cristo com
mais fervor e se achegam a Ele com mais intimidade desfrutarão de maior
comunhão com Ele e perceberão mais o testemunho do Espírito em seus
corações. Será àqueles que esperam no Senhor, da mesma maneira que
Maria Madalena, que Ele se revelará mais plenamente, fazendo-os saber e
perceber mais do que outros. Conhecer a Cristo é algo muito bom; no
entanto, “ter certeza de que O conhecemos” é muitíssimo melhor.
Em segundo, esses versículos nos mostram que os temores e as tristezas
dos crentes freqüentemente são desnecessários. Somos informados que Maria
Madalena “permanecia junto à entrada do túmulo, chorando”, como se não
houvesse consolo para ela. Enquanto chorava, os anjos lhe perguntaram:
“Mulher, por que choras?” E ainda continuava, quando o Senhor também
lhe perguntou: “Mulher, por que choras?” A sua queixa era a mesma: “Le­
varam o meu Senhor, e não sei onde o puseram” . Todavia, em todo esse
tempo, o seu Senhor ressurreto estava ali, em carne, ossos e em todos os
aspectos que se referem a plenitude da natureza humana. As lágrimas e a
ansiedade de Maria Madalena eram desnecessárias. Assim como Hagar no
deserto, ela tinha uma fonte de água ao seu lado, mas não podia vê-la.
João 20.11-18 257

Qual o crente que não percebe neste incidente uma figura da


experiência de muitos crentes? Quantas vezes ficamos ansiosos quando
não existe qualquer motivo para a ansiedade! E freqüentemente lamentamos
pela falta de coisas que, na realidade, já possuímos ou temos bem perto de
nós. Dois terços de tudo que tememos jamais acontece, e dois terços de
nossas lágrimas são desperdiçadas ou derramadas em vão. Oremos para
que tenhamos mais fé e paciência, permitindo que haja mais tempo para o
completo desenvolvimento dos propósitos de Deus. Creiamos que existem
coisas que freqüentemente estão cooperando para a nossa paz e nossa
satisfação, coisas que parecem constituir-se apenas de aflição e tristeza.
Jacó disse em certo momento de sua vida: “Todas estas coisas me sobrevêm”
(Gn 42.36). No entanto, ele viveu o suficiente para ver José novamente,
em prosperidade e riqueza, e agradecer a Deus por tudo que havia
acontecido. Se Maria Madalena tivesse encontrado o sepulcro ainda fechado
com o selo e, no interior, o corpo de seu Senhor, com certeza poderia
chorar! A ausência do corpo que a fez chorar era uma prova de bondade e
um motivo de alegria para ela e toda a humanidade.
Em terceiro, esses versículos nos mostram que as mentes dos discípulos
de Cristo podem nutrir pensamentos insignificantes e terrenos a respeito
dEle. Parece impossível não extrair esta lição das palavras que Maria
Madalena ouviu de nosso Senhor, ao dizer: “Não me detenhas; porque
ainda não subi para meu Pai” . Sem dúvida, essa linguagem é um pouco
misteriosa e precisa ser considerada com cuidado e reverência. Porém, é
razoável supor que a surpresa inicial e a mudança de grande tristeza para
intensa alegria era mais do que Maria Madalena poderia suportar. Ela era
apenas uma mulher, embora santa e piedosa. É muito provável que em seu
prim eiro ímpeto de alegria ela se atirou aos pés do Senhor e fez
demonstrações de sentimentos, mais do que eram convenientes. Talvez ela
tenha se comportado como alguém que imaginava que tudo estaria bem, se
tivesse a presença física de seu Senhor, e errado, se não tivesse aquela
presença. Ela não demonstrou o mais elevado tipo de fé. Em resumo,
Maria Madalena agiu como quem esquecera que seu Senhor era Deus e, ao
mesmo tempo, homem. Ela subestimou a divindade de Jesus e valorizou
em excesso a sua humanidade; por isso, despertou a gentil repreensão de
nosso Senhor: “Não me toques; esta excessiva demonstração de sentimentos
é desnecessária. Em quarenta dias, eu subirei ao Pai. Seu dever agora não
é demorar-se aos meus pés, e sim procurar meus irmãos e contar-lhes que
eu ressuscitei. Pense nos sentimentos dos outros, bem como nos seus
próprios” .
Antes de mais nada, devemos confessar que os crentes estão sempre
propensos a cometer a mesma falta cometida por esta mulher piedosa. Em
todas as épocas tem havido, no coração de muitos crentes, essa tendência
258 João 20.11-18

de valorizar excessivamente a presença física de Cristo, esquecendo que


Ele não é apenas um amigo terreno, mas também o “Deus bendito, para
sempre” . A pertinácia com que os romanistas e seus aliados se apegam à
doutrina da presença real de Cristo na ceia é apenas outra demonstração de
sentimentos iguais ao de Maria Madalena, quando ela desejava a presença
física de Cristo e não o próprio Cristo. Oremos suplicando um discernimento
correto a respeito deste assunto, bem como de todos os demais sobre a sua
pessoa. Estejamos contentes em possuir Cristo habitando pela fé em nosso
coração, e presente quando dois ou três estiverem reunidos em seu nome,
e satisfeitos em esperar a verdadeira presença física de Cristo quando Ele
retomar. Não foi sem motivo que o Espírito escreveu: “O espírito é o que
vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são
espírito e são vida” (Jo 6.63); “Assim que, nós, daqui por diante, a ninguém
conhecemos segundo a came; e, se antes conhecemos Cristo segundo a
came, já agora não o conhecemos deste modo” (2 Co 5.16).
Por último, esses versículos nos mostram a maneira graciosa e gentil
de nosso Senhor ao falar sobre seus discípulos. Ele ordenou que Maria
Madalena levasse a mensagem aos “seus irmãos” . Disse que lhes contasse
que seu Pai e Deus era igualmente o Pai e Deus de seus discípulos. Três
dias antes, eles o haviam abandonado vergonhosamente e fugido. Apesar
disso, este misericordioso Senhor falou como se tudo estivesse perdoado e
esquecido. Seu primeiro pensamento foi restaurar os errantes, sarar as
feridas de suas consciências, revigorar a sua coragem e restaurá-los à posição
anterior. Este é sem dúvida um amor que excede todo entendimento. Confiar
em pessoas que O abandonaram e mostrar confiança aos errantes foi uma
demonstração de compaixão que dificilmente podemos entender. Muitíssimo
verdadeiras são as palavras de Davi: “Como um pai se compadece de seus
filhos, assim o S e n h o r se compadece dos que o temem. Pois ele conhece a
nossa estrutura e sabe que somos pó” (SI 103.13-14).
Terminemos nossas considerações sobre essa passagem com o
estimulante pensamento de que o Senhor nunca muda. Ele é o mesmo,
ontem, hoje e para sempre. De maneira semelhante à que utilizou para
lidar com seus discípulos errantes na manhã da ressurreição, o Senhor
Jesus lidará com todos os que O amam e confiam nEle. Quando nos afas­
tamos do caminho, Ele nos traz de volta. Se caímos, Ele nos levanta
novamente; pois jamais deixará de cumprir sua palavra fiel: “Todo aquele
que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o
lançarei fora” (Jo 6.37). De todo o coração, os santos na glória terão um
hino para cantar em uníssono: “Não nos trata segundo os nossos pecados,
nem nos retribui consoante as nossas iniqiiidades” (SI 103.10).
João 20.19-23 259

A Amável Saudação de Cristo;


Uma Evidência da Ressurreição;
A Comissão dos Apóstolos
Leia João 20.19-23

Esses versículos contêm verdades difíceis de ser entendidas. Assim


como todos os eventos que seguiram a ressurreição de nosso Senhor, há
muitos assuntos misteriosos nos fatos relatados neles, assuntos que exi­
gem reverência de nossa parte, ao considerá-los. As atitudes do Senhor
Jesus, ao aparecer repentinamente entre os discípulos quando estavam a
portas fechadas e ao soprar sobre eles, podem nos levar imediatamente a
especulações inúteis. Em tais passagens, é fácil obscurecer o significa­
do com palavras que não revelam entendimento. Acharemos mais sábio
e prudente restringir nossa atenção aos fatos que são evidentes e instru­
tivos.
Devemos observar inicialmente a admirável linguagem com a qual
nosso Senhor saudou os apóstolos, ao encontrá-los pela primeira vez após
a ressurreição. Duas vezes Ele se dirigiu aos apóstolos utilizando as amáveis
palavras: “Paz seja convosco!” Devemos rejeitar como insustentável, em
todas as probabilidades, a insensível e cautelosa sugestão de que tais palavras
não eram mais do que uma insignificante frase de cortesia. Aquele que
falava como nenhum outro homem jamais disse algo sem significado. Po­
demos estar certos de que Ele falou com especial referência ao estado psi­
cológico de seus apóstolos, aos acontecimentos dos últimos dias e ao futu­
ro ministério deles. “Paz” e não culpa, “paz” e não uma denúncia das
falhas, “paz” e não reprimenda foi a primeira palavra que aquele pequeno
grupo de apóstolos ouviu dos lábios de nosso Senhor, após a ressurreição.
Era conveniente, justo e adequado que assim fosse e estava em plena
harmonia com os acontecimentos anteriores. “Paz na terra” foi o cântico
das hostes celestiais, quando Cristo nasceu. Paz e descanso para a alma foi
o assunto geral da pregação do Senhor Jesus durante os três anos de seu
ministério. Paz e não riqueza havia sido o legado que Cristo deixara aos
seus discípulos, naquela noite que antecedeu a crucificação. Com certeza,
o fato de que “paz” foi a primeira palavra de nosso Senhor, quando visitou
novamente seu pequeno grupo de discípulos, está em completa harmonia
com sua maneira de lidar com eles. “Paz” tinha o objetivo de acalmar e
confortar as mentes dos apóstolos.
Podemos ainda afirmar: o Senhor Jesus tencionava que “paz” seria a
palavra-chave do ministério cristão. Esta mesma paz, que estava cons­
260 João 20.19-23

tantemente nos lábios do Senhor, deveria ser o grande assunto do ensino


de seus apóstolos. Paz entre Deus e os homens, por intermédio do precioso
sangue da expiação, paz entre os homens por meio da infusão de graça e
amor — propagar esta paz seria a obra da igreja. Qualquer religião, tal
como o islamismo, que faz adeptos através da espada não procede dos céus
e sim da terra. Qualquer tipo de cristianismo que mata os homens em fo­
gueiras, a fim de promover seu próprio sucesso, traz consigo a estampa de
apostasia. O verdadeiro cristianismo é aquele que se esforça ao máximo a
fim de propagar a verdadeira paz, a paz de Cristo.
Também devemos observar a notável evidência deixada por nosso
Senhor em referência à sua própria ressurreição. Ele graciosamente apelou
aos sentidos de seus temerosos discípulos, mostrando-lhes “as mãos e o
lado” . Ordenou que, com seus próprios olhos, vissem que Ele tinha um
verdadeiro corpo físico e não era um fantasma ou um espírito. De acordo
com Lucas, Jesus disse: “Apalpai-me e verificai, porque um espírito não
tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho” . Sem dúvida, grande foi
a condescendência de nosso bendito Senhor, em humilhar-se perante a
inconsistente fé manifestada pelos onze apóstolos! Porém, grande também
foi o princípio que Ele estabeleceu para sua igreja utilizar em todas as
épocas, até que Ele volte — nosso Senhor não exige que creiamos em na­
da contrário aos nossos sentidos. Coisas que estão acima de nossa capaci­
dade de entender temos de encontrar em uma religião que procede das
alturas, mas não coisas que são contrárias ao nosso raciocínio.
Devemos sustentar com firmeza este grande princípio e nunca esquecer
de utilizá-lo. Em especial, tenhamos cuidado em aplicá-lo à maneira como
avaliamos os efeitos das ordenanças e da obra do Espírito Santo. Exigir
que as pessoas acreditem que certos homens possuem o poder de vivificar
exclusivo do Espírito Santo, quando nossos olhos nos mostram que tais
homens estão vivendo em constante indolência e pecado ou crêem que o
pão e o vinho, na Ceia do Senhor, tomam-se o verdadeiro corpo e sangue
de Cristo — isto equivale a exigir mais crença do que o próprio Senhor
Jesus exigiu de seus discípulos; corresponde a exigir aquilo que é contrário
à razão e ao bom senso. Cristo jamais fez tais exigências. Não procuremos
ser mais sábios do que nosso Senhor.
Por último, devemos observar nesses versículos a maravilhosa
comissão que nosso Senhor outorgou aos seus onze apóstolos. Ele lhes
disse: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. E, havendo
dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo. Se de
alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são
retidos” .
Não podemos negar que o verdadeiro significado destas solenes
palavras tem sido, durante séculos, motivo de controvérsia e discórdia. É
João 20.19-23 261

inútil esperar que acabaremos a controvérsia. O que almejamos é apresentar


uma razoável explicação dessa passagem.
Parece bastante provável que nosso Senhor, nesta ocasião, comissionou
solenemente seus apóstolos a irem por todo o mundo e proclamarem o
evangelho que Ele mesmo havia pregado. Também conferiu-lhes poder ao
declarar, com peculiar autoridade: “Se de alguns perdoardes os pecados,
são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são retidos” . Foi exatamente isso
que os apóstolos fizeram, conforme pode-se verificar na leitura de Atos
dos Apóstolos. Quando Pedro proclamou aos judeus: “Arrependei-vos,
pois, e convertei-vos para serem cancelados os vossos pecados” (At 3.19),
e Paulo declarou em Antioquia: “A nós nos foi enviada a palavra desta
salvação... Tomai, pois, irmãos, conhecimento de que se vos anuncia
remissão de pecados por intermédio deste” (At 13.26,38), eles estavam
obedecendo o que Jesus, nessa passagem, comissionou aos apóstolos. Com
autoridade, Pedro e Paulo estavam abrindo aporta de salvação e convidando
os pecadores a adentrarem-na para serem salvos.
Por outro lado, parece improvável que, através destas palavras, nosso
Senhor tencionava sancionar a prática de absolvição dos pecados após a
confissão auricular. Apesar do que muitos se deleitam em afirmar sobre
esta prática, no livro de Atos não existe qualquer ocasião em que achamos
um apóstolo servindo-se desse tipo de absolvição. Acima de tudo, não há
qualquer indício nas epístolas pastorais (escritas a Timóteo e Tito)
recomendando tal confissão e absolvição. Em resumo, não importa o que
os homens dizem a respeito da absolvição realizada em particular por um
sacerdote, para ela não encontramos na Palavra de Deus qualquer
precedente.
Devemos concluir nossas considerações sobre a passagem com um
profundo senso da importância do ofício de um ministro do evangelho,
quando este ofício é realizado de acordo com a mentalidade do Senhor
Jesus. Não existe honra maior do que sermos embaixadores de Cristo e
proclamar em nome dEle o perdão dos pecados a mundo perdido. Mas
tenhamos cuidado para não tributar ao ministério cristão mais autoridade
do que o próprio Senhor Jesus lhe conferiu. Tratar os ministros do evangelho
como intermediários entre Deus e o homem equivale a roubar de Cristo a
sua prerrogativa, a ocultar dos pecadores a verdade da salvação e a exaltar
homens ordenados ao m inistério a uma posição para a qual estão
completamente desqualificados.
262 João 20.24-31

O Perigo de Não Assistir às Reuniões Cristãs;


A Bondade de Cristo Para com Discípulos
Negligentes;
A Gloriosa Confissão de Tomé
Leia João 20.24-31

A história da incredulidade de Tomé, relatada nesses versículos, é


característica do evangelho de João. Por sábias e boas razões, ela não foi
mencionada por Mateus, Marcos e Lucas; e provavelmente tomou-se
conhecida para o mundo cristão somente depois que Tomé já havia morrido.
Esta é uma das narrativas bíblicas que fornece enorme evidência intema
concernente à sinceridade dos autores das Escrituras. Se impostores e enga­
nadores tivessem escrito a Bíblia em busca de vantagens pessoais, jamais
teriam contado à humanidade que um dos fundadores da nova religião se
comportou da maneira como Tomé agiu nesta ocasião.
Primeiramente, devemos notar que os crentes perdem muito em não
assistir regularmente as reuniões do povo de Deus. Tomé estava ausente
quando pela primeira vez o Senhor Jesus apareceu aos discípulos, após sua
ressurreição; por causa disso, Tomé perdeu uma grande bênção. Evi­
dentemente, não temos uma prova concreta que justificasse a ausência
desse apóstolo. Entretanto, naquele momento de grande aflição na vida
dos onze apóstolos, parece improvável que ele tinha algum bom motivo
para não estar junto a seus irmãos; é provável que, de alguma maneira, ele
tinha culpa. Uma coisa é certa e evidente; por estar ausente, ele foi mantido
em incredulidade e suspense durante uma semana, enquanto todos os outros
se regozijavam em pensar no Senhor já ressuscitado. É difícil supor que as
coisas teriam sido diferentes, se não houvesse alguma culpa da parte de
Tomé. Não podemos deixar de pensar que ele estava ausente, quando po­
deria estar presente.
Todos devemos sempre lembrar a exortação do autor sagrado: “Não
deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns” (Hb 10.25). Jamais
estar ausente da casa de Deus aos domingos, sem ter um motivo justo;
nunca faltar à participação na Ceia do Senhor, quando ministrada na igreja,
e jamais desprezar os meios da graça — este é o único meio de nos tomarmos
crentes saudáveis e fortes. Os sermões que desnecessariamente perdemos
podem conter uma palavra preciosa em ocasiões oportunas para as nossas
almas. Os cultos e as reuniões de oração das quais nos mantemos distantes
talvez sejam as reuniões que poderiam confortar, fortalecer e vivificar
nossos corações. Pouco imaginamos o quanto nossa saúde espiritual depende
João 20.24-31 263

destes pequenos, regulares e habituais recursos e o quanto sofremos se não


os aproveitamos. O crente deve rejeitar o perverso argumento de que servir-
se dos meios da graça não traz qualquer benefício para aqueles que deles
se utilizam. Esse argumento pode satisfazer os que estão cegos quanto à
sua própria situação e não possuem a graça divina; porém, jamais deve
contentar um verdadeiro servo de Cristo. Este precisa recordar as pala­
vras de Salomão: “Feliz o homem que me dá ouvidos, velando dia a dia às
minhas portas, esperando às ombreiras da minha entrada” (Pv 8.34). Acima
de tudo, o crente deve arraigar-se à promessa do Senhor Jesus: “Porque,
onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio
deles” (Mt 18.20). Um homem assim raramente passará por uma experiência
semelhante à de Tomé, sentindo frio na desagradável câmara da incre­
dulidade, enquanto os outros estavam aquecidos e felizes.
Em segundo, devemos notar quão amável e misericordioso é o Senhor
Jesus Cristo para com os crentes insensíveis e lentos. Em nenhuma outra
parte dos quatro evangelhos, encontramos este aspecto do caráter de nosso
Senhor tão bem ilustrado quanto no incidente agora relatado. Não podemos
imaginar uma atitude tão provocante e desagradável quanto a de Tomé,
quando nem mesmo o testemunho de dez fiéis irmãos surtiu qualquer efeito
e com pertinácia ele declarou: “Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos
cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo
algum acreditarei” . Porém, é difícil pensarmos em uma atitude mais com­
passiva e paciente do que a de nosso Senhor ao lidar com este frágil discípulo.
Ele não o rejeitou, desprezou ou excomungou. Ao final da semana, Jesus
aparece de novo e, em especial, para benefício de Tomé. O Senhor aborda-
o de acordo com sua fragilidade, assim como um médico trata uma criança
voluntariosa — “E logo disse a Tomé: Põe aqui o dedo e vê as minhas
mãos; chega também a mão e põe-na no meu lado” . Se nenhuma outra
coisa o satisfaria, exceto a mais gritante e simples evidência física, esta lhe
seria dada. Certamente esta foi uma demonstração do amor que excede
todo entendimento e da paciência que ultrapassa qualquer compreensão.
Podemos ter certeza de que uma passagem como esta foi escrita pa­
ra fornecer consolo a todos os verdadeiros crentes. O Espírito Santo sabia
muito bem que o tipo mais comum de crente que existe neste mundo perverso
são os fracos, indolentes e duvidosos. Ele cuidou em providenciar abun­
dantes provas de que Jesus é riquíssimo em paciência e compaixão e de
que suporta as fraquezas de seu povo. Esforcemo-nos para demonstrar a
mesma atitude de nosso Senhor e seguir o seu exemplo. Jamais menos­
prezemos pessoas, considerando-as perdidas e sem a graça divina, porque
o seu amor não é intenso e sua fé, inconsistente. Lembremo-nos de como
Ele lidou com Tomé e sejamos compassivos e misericordiosos. Nosso
Senhor tem muitos filhos deficientes em sua família, muitos soldados
264 João 20.24-31

inexperientes em seu exército e muitas ovelhas mancas em seu rebanho.


No entanto, Ele suporta todas elas e não as lança fora. Feliz é o crente que
aprendeu a lidar de maneira semelhante com seus irmãos. Na igreja, existem
muitos que, à semelhança de Tomé, são indolentes, e demorados; mas,
apesar disso, são verdadeiros servos de Cristo.
Por último, devemos notar que o Senhor Jesus não proibiu ou rejeitou
a atitude de um de seus discípulos ao chamá-Lo "Deus”. A nobre ex­
clamação proveniente dos lábios de Tomé, ao ficar convencido de o Senhor
realmente ressurgira dentre os mortos: “Senhor meu e Deus meu! ” , admite
apenas um significado. Era um evidente testemunho sobre a bendita di­
vindade de nosso Senhor; uma inconfundível e nítida afirmativa de que
Tomé acreditava ser não apenas homem mas também Deus a Pessoa que
ele havia tocado e visto naquele dia. Antes de tudo foi um testemunho que
nosso Senhor recebeu, sem proibir, e uma declaração sobre a qual Ele não
pronunciou qualquer palavra de censura. Quando Comélio se prostrou
diante de Pedro e quis adorá-lo, o apóstolo imediatamente recusou esta
honra, “dizendo: Ergue-te, que eu também sou homem” (At 10.26). Quando
as pessoas de Listra quiseram oferecer sacrifícios ao apóstolo Paulo e
Bamabé, estes, “rasgando as suas vestes, saltaram para o meio da multidão,
clamando: Senhores, por que fazeis isto? Nós também somos homens como
vós, sujeitos aos mesmos sentimentos” (At 14.14-15). Porém, quando Tomé
declarou a Jesus: “Senhor meu e Deus meu”, não recebeu qualquer palavra
de reprovação da parte de nosso Senhor, que é santo e ama a verdade.
Temos dúvida de que estas coisas foram escritas para nosso ensino?
Gravemos com firmeza em nossas mentes o fato de que a divindade
de Cristo é um das grandes verdades fundamentais do cristianismo; estejamos
dispostos a morrer, ao invés de renunciá-la. Visto que o Senhor Jesus é o
próprio Deus, existe um propósito para a expiação, a advocacia, a mediação,
o sacerdócio e toda a obra de redenção realizada por Ele. Estas gloriosas
doutrinas seriam blasfêmias inúteis, se Cristo não fosse divino. Devemos
sempre louvar a Deus porque a divindade de nosso Senhor está ensinada
em toda a Escritura e permanece com evidências que não podem ser
desprezadas. Acima de tudo, precisamos com toda confiança fazer nossas
almas descansarem diariamente em Cristo, como Aquele que é Deus e
homem perfeito. Ele é homem; por conseguinte, é capaz de comover-se
por sentir nossas fraquezas. Ele é Deus; “por isso, também pode salvar
totalmente os que por ele se chegam a Deus” (Hb 7.25). Não tem qualquer
motivo de temor o crente que, pela fé, olha para Jesus e, assim como
Tomé, afirma: “Senhor meu e Deus meu”. Possuindo um Salvador como
Jesus, não precisamos ter medo de começar a genuína vida cristã, pois,
com Ele, prosseguiremos ousadamente.
João 21.1-14 265

A Pobreza e a Diferença de Caráter dos


Primeiros Discípulos;
Abundantes Evidências da Ressurreição de
Cristo
Leia João 21.1-14

A manifestação de Jesus aos seus discípulos descrita nesses versículos


é um a parte interessante da história narrada nos evangelhos. As
circunstâncias que cercaram esta manifestação têm sido consideradas como
amplamente alegóricas e figurativas, em todas as épocas da existência da
igreja. Entretanto, com razão podemos questionar se os comentadores e
intérpretes não foram muito longe em suas opiniões sobre este assunto. É
possível espiritualizar e destilar os relatos do evangelho até que percamos
completamente o pleno significado de suas palavras. Nesta manifestação
de Jesus aos discípulos, após a ressurreição, demonstraremos sabedoria
em nos restringirmos às grandes e simples lições que indubitavelmente
esta passagem contém.
Inicialmente, devemos observar nesses versículos a pobreza dos
primeiros discípulos de Cristo. Nós os encontramos envolvidos no trabalho
de suas próprias mãos, a fim suprirem suas necessidades diárias, de­
sempenhando uma atividade bem simples — estavam pescando. Eles não
tinham ouro ou prata, terras ou investimentos; por isso, não se en­
vergonharam de retomar à sua antiga profissão, na qual muitos deles haviam
sido treinados. É interessante o fato de que alguns deles estavam pescando,
quando o Senhor os chamou para ser apóstolos, e novamente estavam pes­
cando, quando Ele lhes apareceu quase pela última vez. Podemos ter certeza
de que Pedro e João receberam esta coincidência com especial significado.
A pobreza dos apóstolos serve de instrumento para comprovar a
origem divina do cristianismo. Estes homens, que labutaram durante toda
a noite em um barco, puxando suas redes e nada apanhando; estes homens,
que sentiram a necessidade de trabalhar arduamente para obter alimento;
eles foram os principais fundadores da poderosa igreja de Cristo, que se
espalhou por grande parte do mundo. Eles foram os homens que saíram de
um lugarzinho obscuro do mundo e, em algum tempo depois, o reviraram
de cabeça para baixo. Eles foram os homens sem cultura e ignorantes que
com ousadia confrontaram os sutis sistemas da filosofia antiga e silenciaram
seus defensores, ao pregarem sobre a cruz de Cristo. Eles foram os homens
que em Éfeso, Atenas e Roma esvaziaram os templos pagãos e converteram
266 João 21.1-14

multidões a uma nova e melhor fé. Se alguém é capaz de explicar estes


fatos, sem admitir que o cristianismo procede dos céus, é uma pessoa nota­
velmente incrédula. A razão e o bom senso nos levam a apenas uma con­
clusão neste assunto. Nada pode explicar a expansão do cristianismo, exceto
a intervenção divina.
Em segundo lugar, devemos observar nesses versículos o diferente
caráter dos vários discípulos de Cristo. De novo, nesta ocasião profun­
damente interessante, vemos Pedro e João lado a lado no mesmo barco. E,
uma vez mais, assim como no sepulcro, nós os observamos comportando-
se de maneira diferente. Estando Jesus na praia, durante o ofuscado ama­
nhecer do dia, João foi o primeiro a rèconhecer e disse: “É o Senhor!” ;
mas Pedro foi o primeiro a lançar-se ao mar, esforçando-se para chegar
perto do Senhor. Em resumo, João foi o primeiro a ver; Pedro, o primeiro
a agir. O espírito gentil e amável de João foi mais rápido para discernir;
porém, a natureza impulsiva de Pedro foi mais rápida para impulsioná-lo à
ação. Os dois eram verdadeiros discípulos, amavam o Senhor em suas vi­
das e mostraram-se fiéis a Ele até à morte; mas o temperamento natural de­
les não era o mesmo.
Jamais esqueçamos esta lição prática. Enquanto vivermos, devemos
utilizá-la com diligência ao formular opiniões a respeito de outros crentes.
Não devemos condenar os outros como pessoas incrédulas e destituídas da
graça divina, somente porque não têm as mesmas opiniões que nós temos
no que se refere aos deveres cristãos e não expressam sentimentos iguais
aos nossos. “Ora, os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo” (1 Co
12.4).
Os dons dos filhos de Deus não são outorgados exatamente na mesma
proporção e medida. Alguns possuem maior medida de um dom; outros
têm mais de outro dom. Alguns dons brilham com mais intensidade, quando
utilizados em público; outros, em particular. Alguns crentes brilham mais
em sua vida de passividade; outros, em uma vida de atividade; mas todos
os membros da família de Deus, de acordo com seu dom e no devido tem­
po, glorificam a Deus. Marta era uma mulher agitada que se preocupava
com muitos afazeres, enquanto sua irmã, Maria, assentava-se aos pés do
Senhor, para ouvir sua Palavra (Lc 10.39-40). Todavia, chegou o dia em
que Maria ficou abatida e prostrada por causa de muita tristeza, enquanto
a fé exercida por Marta resplandeceu mais do que a de sua irmã (Jo 11.20-
28). Ambas eram amadas por nosso Senhor. A única coisa realmente
necessária é ter a graça do Espírito e amar a Cristo. Amemos a todos
aqueles que possuem esta graça e amam o Senhor, embora não vejam as
coisas com os nossos olhos. A igreja de Cristo precisa de todos os tipos de
servos e instrumentos — facas e espadas, machados e martelos, formões e
serrotes, Marta e Maria, Pedro e João. A nossa regra áurea deve ser: “A
João 21.1-14 267

graça seja com todos os que amam sinceramente a nosso Senhor Jesus
Cristo” (Ef 6.24).
Por último, devemos observar nesses versículos a abundante evidência
que as Escrituras fornecem sobre a ressurreição do Senhor Jesus. Nesta,
assim como em outras passagens bíblicas, achamos uma incontestável prova
de que nosso Senhor ressuscitou em um corpo físico, uma prova que um
grupo de homens maduros viram com seus próprios olhos, ao mesmo tempo.
Este relato nos mostra o Senhor Jesus comendo e bebendo na praia do mar
da Galiléia, por um considerável período de tempo. O sol matutino da pri­
mavera brilhava sobre o pequeno grupo. Estavam sozinhos à beira do fa­
moso lago da Galiléia, bem distantes do barulho e das multidões de Jeru­
salém. Em seu meio, tendo os espetos em suas mãos, assentava-se o Senhor,
o próprio Senhor, a quem eles haviam seguido por três anos e que pelo
menos um deles vira na cruz. Não podiam estar enganados. Alguém ousaria
afirmar que precisaria ser apresentada uma prova ainda maior do fato que
Jesus ressuscitou dos mortos? Sabemos que Pedro ficou satisfeito e con­
vencido, pois disse: “N ós... comemos e bebemos com ele, depois que res­
surgiu dentre os mortos” (At 10.41). Aqueles que, em nossa época, dizem
não estarem convencidos também podem afirmar que estão determinados a
não acreditar em qualquer evidência.
Devemos agradecer a Deus porque temos uma grande nuvem de
testemunhas, para comprovar que nosso Senhor ressuscitou. A ressurreição
de Cristo é uma das grandes provas de sua missão divina. Ele disse aos
judeus que não precisavam acreditar que Ele era o Messias, se não res­
suscitasse ao terceiro dia. Â ressurreição de Cristo é o clímax da obra de
redenção. Ela comprovou que Cristo terminou a obra que viera realizar e,
como nosso Substituto, venceu a morte. A ressureição é um milagre que
nenhum homem pode explicar. Se quiserem, os homens podem contestar e
criticar, os relatos sobre Balaão em seu jumento e Jonas no ventre do
grande peixe; mas, até provarem que Cristo não ressuscitou, perma­
neceremos inabaláveis. Acima de tudo, a ressurreição de Cristo é a garantia
de nossa própria ressurreição. Assim como a sepultura não podia deter a
Cabeça, assim também não deterá os membros do corpo.Com certeza,
podemos afirmar juntamente com Pedro: “Bendito o Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou
para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre
os mortos” (1 Pe 1.3).
268 João 21.15-17

A Pergunta do Senhor Jesus a Pedro;


A Resposta Deste;
A Ordem que Cristo lhe Deu
Leia João 21.15-17

Esses versículos descrevem a notável conversa entre nosso Senhor,


Jesus Cristo, e o apóstolo Pedro. Para o leitor atento, que recorda ter
Pedro negado o Senhor por três vezes, essa passagem constitui uma porção
profundamente interessante das Escrituras. Seria bom para a igreja de Cristo
se todas as conversas vespertinas entre os crentes fossem tão edificantes e
úteis quanto esta.
Primeiramente, devemos notar a pergunta do Senhor Jesus dirigida
a Pedro\ “Simão, filho de João, amas-me mais do que estes outros?” Por
três vezes, o Senhor fez a mesma pergunta. Parece mais provável que essa
tripla repetição tinha o objetivo de recordar ao apóstolo as três vezes em
que ele negara o Senhor. Pelo menos na primeira ocasião encontramos um
acréscimo à pergunta: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes
outros! É razoável supor que as três palavras “mais do que” tinha o propósito
de recordar a Simão Pedro sua confiante declaração: “Ainda que todos se
escandalizem, eu, jamais” . Era como se nosso Senhor estivesse dizendo-
lhe: “Agora você se exaltará acima dos outros? Você ainda não aprendeu
a sua própria fraqueza?”
“Tu me amas?” talvez pareça uma simples indagação. Em certo
sentido, realmente é. No entanto, “Tu me amas?” é, na verdade, uma
pergunta prescrutadora. Podemos fazer, declarar, saber, falar, dar, progredir
e demonstrar muitas coisas em nossa vida religiosa, mas, apesar de tudo
isso, estarmos mortos para Deus, faltando em nós o amor para com Ele, e,
por fim, seremos lançados na condenação eterna. Amamos a Cristo? Esta
é a grande questão. Sem isto não há vitalidade em nosso cristianismo; não
somos melhores do que estátuas de cera e animais empalhados de um
museu ou do que o bronze que ressoa e o címbalo que retine. Não existe
vida onde não existe amor.
Estejamos atentos para que haja sentimentos em nossa vida espiritual.
Conhecimento, ortodoxia, opiniões corretas, uso regular de formalidades
e uma vida moral respeitável — tudo isto não produz um verdadeiro cristão.
Temos de manifestar um verdadeiro amor por Cristo. Sem dúvida, os
sentimentos, quando sozinhos, são coisas inúteis e sem valor; podem estar
presente num dia e não no outro. Porém, a completa ausência de sentimentos
em nossa vida espiritual é um péssimo sintoma e denuncia o mau estado da
João 21.15-17 269

alma de uma pessoa. Os homens e as mulheres para os quais o apóstolo


Paulo escreveu suas epístolas tinham sentim entos e deles não se
envergonhavam. Havia Alguém nos céus a quem eles amavam; era Jesus
Cristo, o Filho de Deus. Esforcemo-nos para que sejamos semelhantes a
eles e tenhamos verdadeiro sentimentos em nosso cristianismo, se temos
esperança de compartilhar desta recompensa.
Em segundo, devemos notar a resposta de Pedro à indagação do
Senhor Jesus. Três vezes o apóstolo disse: “Senhor, tu sabes que te amo” .
E uma vez ele afirmou: “Senhor, tu sabes todas as coisas” . Também uma
vez encontramos a comovente observação de que Pedro “entristeceu-se
por ele lhe ter dito, pela terceira vez: Tu me amas?” Não duvidemos de
que nosso Senhor, à semelhança de um habilidoso médico, intencionalmen­
te provocou essa tristeza. Ele desejava tocar a consciência do apóstolo e
ensinar-lhe uma solene lição. Se Pedro ficou triste por ter sido questionado,
quanto mais deve ter se entristecido nosso Senhor por ter sido negado!
A resposta que o humilde apóstolo deu é uma explicação que os
verdadeiros servos de Cristo podem oferecer, em todas as ocasiões, no que
se refere à sua vida espiritual. Um servo de Cristo pode ser fraco, instável,
temeroso, ignorante e falho em diversas coisas, mas afinal de contas ele é
sincero e verdadeiro. Pergunte-lhe se é convertido, se é um crente, se
desfruta de graça, se está justificado, se é um eleito ou um filho de Deus —
faça-lhe qualquer destas perguntas, e talvez ele responda que não sabe
muito bem. Mas pergunte-lhe se ama a Cristo, e ele responderá: “Sim, eu
O amo” . Provavelmente acrescentará que não O ama tanto quanto deveria;
no entanto, jamais dirá que não O ama de maneira alguma. Este princípio
se mostrará verdadeiro com poucas exceções. Onde existe a verdadeira
graça de Deus, ali há também um consciente amor a Cristo.
Afinal de contas, qual é o grande segredo de amar a Cristo? É um
sentimento íntimo de haver recebido dEle o perdão dos pecados. Amam
intensamente a Cristo aqueles que se sentem muitíssimo perdoados. Aquele
que com todos os seus pecados veio a Jesus, experimentou a bênção do
perdão gratuito e completo, este é o homem que terá um coração repleto de
amor para com seu Salvador. Quanto mais compreendemos que Cristo
sofreu por nós e pagou nosso débito diante de Deus e que somos justificados
e lavados por meio do sangue de Cristo, tanto mais O amaremos por nos
ter amado e entregue sua própria vida por nós. Podemos ter um imperfeito
conhecimento das doutrinas; nossa habilidade para defender nossas opiniões
através de argumentos pode ser insignificante. Mas não podemos ser
impedidos de ter nossos sentimentos; e estes podem ser semelhantes aos do
apóstolo Pedro: “Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te am o” .
Por último, devemos notar a ordem que o Senhor Jesus deu a Pedro.
Por três vezes encontramos o Senhor ordenando a Pedro: “Apascenta as
270 João 21.15-17

minhas ovelhas” . Podemos duvidar que este encargo, repetido por três
vezes, estava repleto de significado? Tinha o objetivo de novamente
comissionar Pedro a realizar a obra de um apóstolo, apesar de seu recente
tropeço. Mas isto era apenas uma parte do significado, que tinha como
alvo ensinar a Pedro e a toda a igreja a majestosa lição de que ser útil aos
outros é a grande prova de amor e de que trabalhar para Cristo é a grande
comprovação de que realmente O amamos. A evidência de que alguém é
um verdadeiro discípulo de Cristo não é o falar com entusiasmo ou a
simples afirmação de que cremos nEle, nem o zelo impetuoso e ocasional,
nem a prontidão de pegar a espada e lutar; é o persistente, árduo e paciente
esforço para fazer o bem às ovelhas de Cristo espalhadas por este mundo
pecaminoso. Este é o genuíno segredo da grandeza de um cristão. Está
escrito: “Quem quiser tomar-se grande entre vós, será esse o que vos
sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o
Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a
sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.26-28).
Este último encargo entregue por nosso bendito Senhor deve perma­
necer em nossas consciências e tomar-se uma prática de nossas vidas diárias.
Podemos estar certos de que não foi em vão que essas coisas foram relatadas
para nosso ensino, um poucos antes de nosso Senhor ter deixado o mundo.
Devemos almejar uma religião repleta de amor, realização, utilidade, serviço
árduo, altruísmo e bondade despretensiosa. Nosso desejo diário deve ser
pensar nos outros, cuidar deles, fazer-lhes o bem, para amenizar a tristeza
e aumentar a alegria deste mundo pecaminoso. Agir desse modo equivale
a cumprir o grande princípio que nosso Senhor, através desta ordem, ten­
cionava ensinar a Pedro. Trabalhando e procurando conduzir nossas vidas
desse modo, descobriremos que são abundantemente verdadeiras as pa­
lavras: “Mais bem-aventurado é dar que receber” (At 20.35).

O Futuro dos Crentes Conhecido de Antemão


por Cristo;
A Morte do Crente Glorifica a Deus;
Nossa Obrigação Deve Ocupar os Nossos
Principais Pensamentos;
A Quantidade e Grandeza das Obras de Cristo
Leia João 21.18-25

Esses versículos constituem a conclusão do Evangelho de João e


João 21.18-25 271

trazem-nos ao final do mais precioso livro da Bíblia. Precisamos ter


compaixão daquela pessoa que não lê essa passagem com pensamentos
sérios e solenes. Ler esses versículos assemelha-se a ouvir as palavras
finais de um amigo que provavelmente não ouviremos outra vez.
Primeiramente, aprendemos deles que a futura história dos crentes,
tanto na vida quanto na morte, é conhecida de antemão por Cristo. O
Senhor Jesus disse a Simão Pedro: “Em verdade, em verdade te digo que,
quando eras mais moço, tu te cingias a ti mesmo e andavas por onde
querias; quando, porém, fores velho, estenderás as mãos, e outro te cingirá
e te levará para onde não queres” . Estas palavras, sem controvérsia, foram
uma predição referente à maneira como o apóstolo morreria. Comumente
supõe-se que elas se cumpriram nos anos posteriores, quando Pedro, como
mártir, foi crucificado por amor a Cristo. A época, a maneira, as agonias
da morte daquele discípulo — tudo foi visto antecipadamente por nosso
Senhor.
Esta verdade está repleta de consolo para o verdadeiro cristão. Saber
com antecedência coisas que acontecerão, em muitos casos, pode ser um
triste legado. Estar ciente de fatos que nos acontecerão e ser incapaz de
evitá-los apenas nos tornaria infelizes. No entanto, é uma indizível
consolação lem b rar que todo o nosso futuro é conhecido e foi
antecipadamente disposto por Cristo. Não existe sorte, acaso ou acidente
na jornada de nossas vidas. Desde o início até ao final, tudo está previsto
e disposto por Aquele que é infinitamente sábio para cometer algum erro e
muitíssimo amável para nos causar qualquer mal.
Entesouremos esta verdade em nossos corações, aplicando-a com
diligência em todos os dias de sofrimentos que ainda teremos de viver. Em
tais dias, devemos descansar neste pensamento: “Cristo está ciente e sabia
desta circunstância, quando me chamou para ser seu discípulo”. É tolice
lamentar e queixar-se dos problemas daqueles que amamos. Antes, devemos
descansar no pensamento de que tudo está sendo bem feito pelo Senhor. É
inútil irritar-se ou rebelar-se, quando nós mesmos temos cálices amargos
para beber. Pelo contrário, deveríamos dizer: “Isto também procede do
Senhor; Ele o viu com antecedência e poderia tê-lo impedido, se não con­
tribuísse para o meu benefício” . Felizes são aqueles que demonstram a
mesma atitude do crente que, em certa ocasião, disse: “Fiz uma aliança
com meu Senhor; jamais considerarei errada qualquer coisa que Ele faz
por mim” . Às vezes, temos de andar por lugares escarpados, em nossa
jornada para o céu. Com certeza, este é um pensamento que nos tranqüiliza
e acalenta: “Todos os passos de minha jornada eram conhecidos de antemão
por Cristo” .
Em segundo, aprendemos desses versículos que a morte de um crente
tem por objetivo glorificar a Deus. O Espírito Santos nos revela esta verda­
272 João 21.18-25

de em linguagem clara. Ele graciosamente interpretou as difíceis palavras


que proferiram os lábios de nosso Senhor, mostrando-nos que Jesus falou
aquilo “para significar com que gênero de morte Pedro havia de glorificar
a Deus” .
Este fato não recebe a devida consideração de nossa parte. Estamos
propensos a considerar nosso viver como a única maneira de glorificar a
Cristo e nossas obras como o único meio de demonstrar que temos vida
espiritual; e esquecemos a morte, reputando-a um doloroso final sem
utilidade. Mas isto não deveria ser assim. Podemos viver e morrer para o
Senhor; ser sofredores pacientes ou trabalhadores ativos. Assim como
Sansão, talvez façamos mais para Deus em nossa morte do que fizemos em
nossa vida. É provável que o paciente sofrimento dos mártires reformadores
tenha mais efeito sobre as mentes das pessoas do que todos os sermões que
eles pregaram e todos os livros que escreveram. Uma coisa é certa: o
sangue dos mártires é a semente da igreja.
Podemos glorificar a Deus em nossa morte estando preparados para
a sua chegada. O crente que está sempre alerta, com seus lombos cingidos,
sua lâmpada acesa e seu coração preparado para partir; o homem para o
qual a morte repentina, no consenso de todos os seus conhecidos, significa
glória imediata — este é o homem cuja morte glorifica a Deus. Podemos
glorificar a Deus em nossa morte, ao suportar com paciência suas aflições.
Podemos glorificá-Lo na morte por testificarmos aos outros o conforto e
amparo que encontramos na graça de Cristo. E uma atitude sublime alguém
ser capaz de afirmar, assim como Davi: “Ainda que eu ande pelo vale da
sombra da morte, não temerei mal nenhum” (SI 23.4). O crente que, à
semelhança do personagem Perseverança (em O Peregrino, de John
Bunyan), é capaz de permanecer firme enquanto atravessa o rio e cal­
mamente pode dizer aos seus companheiros: “Meu pé está pisando em
terra firme; meus dias de labores acabaram” — este é o homem cuja morte
traz glória para Deus. Mortes desse tipo deixam marcas sobre os que con­
tinuam vivendo e demoram a ser esquecidas.
Oremos, enquanto estamos vivendo com saúde, para que glorifiquemos
a Deus em nossa morte. Permitamos que Deus escolha a época e a maneira
pela qual deixaremos esta vida. Apenas supliquemos que nossa partida
glorifique a Deus. O homem sábio é aquele que aceita o conselho de John
Bunyan e preserva constantemente em seus pensamentos a ocasião da morte,
tomando-a um amigo inseparável. Quando alguém apontou erros e falhas
nas doutrinas metodistas, John Wesley afirmou com muita dignidade:
“Apesar disso, as pessoas de nosso grupo morrem muito bem ” .
Em terceiro, aprendemos desses versículos que, antes de nos preo­
cuparmos com a condição espiritual dos outros, devemos pensar a respeito
de nossa própria condição. Quando Pedro indagou curiosa e ansiosamente
João 21.18-25 273

sobre o futuro do apóstolo João, recebeu de nosso Senhor uma resposta de


profundo significado: “Se eu quero que ele permaneça até que eu venha,
que te importa? Quanto a ti, segue-me” . Ainda que alguma parte desta
afirmativa seja difícil de entender, ela contém uma lição prática que não
podemos menosprezar. Estas palavras de Jesus ordenam que todo cren­
te primeiramente examine seu próprio coração e pense em sua própria
família.
É claro que nosso bendito Senhor não deseja que sejamos negligentes
em nos preocuparmos com as almas dos outros ou não demonstremos
interesse na condição espiritual deles. Tal atitude equivaleria a insensível
egoísmo e evidentemente comprovaria que não possuímos a graça divina.
O servo de Cristo demonstrará que possui um coração tão amável e sensível
quanto o de seu próprio Senhor e desejará tanto a felicidade presente quanto
a eterna daqueles que o cercam. Ele almejará e se esforçará para amenizar
as tristezas e aumentar a alegria de todos que estiverem ao seu alcance. O
amor e verdadeira religião precisam ser demonstrados inicialmente aos
nossos familiares.
É inútil negar que esta solene advertência de nosso Senhor ao seu
impetuoso discípulo é bastante necessária em nossos dias. A fraqueza do
caráter humano é tão profunda, que mesmo os verdadeiros crentes estão
constantemente sujeitos a caírem em extremos. Alguns parecem estar tão
completamente absorvidos em suas próprias experiências e nos conflitos
de seus corações, que esquecem o mundo ao seu redor. Outros se mostram
tão ocupados em fazer o bem ao mundo, que não se lembram de suas
próprias almas. Ambos estão errados e precisam enxergar um caminho
mais excelente. No entanto, ninguém causa tanto dano a sua própria alma
quanto a pessoa que está muitíssimo preocupada com a salvação dos outros
e negligencia sua própria alma.
Que estas palavras de nosso Senhor nos guardem de tal armadilha!
Não importa o que fazemos em benefício dos outros (e podemos fazer
bastante), jamais nos esqueçamos de nosso homem interior. Infelizmente,
a noiva do Cântico dos Cânticos não é a única que tinha motivos para
lamentar: “Me puseram por guarda de vinhas; a vinha, porém, que me
pertence, não a guardei” (Ct 1.6).
Por último, aprendemos desses versículos a quantidade e a grandeza
das obras do Senhor Jesus, durante seu ministério terreno. O apóstolo
João concluiu seu evangelho com estas notáveis palavras: “Há, porém,
ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas
uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que
seriam escritos”. É lógico que não devemos torcer estas palavras ao atribuir-
lhes uma sentido excessivamente literal. Supor que o evangelista pretendia
afirmar não conteria o mundo os volumes escritos narrando as obras de
274 João 21.18-25

Cristo é irracional e absurdo. A única interpretação correta tem de ser


espiritual e figurada.
Somente foram relatas as obras e palavras de Cristo que as mentes
dos homens podem assimilar. Não seria bom para o mundo ter mais
narrativas sobre Ele. A mente humana, assim como o corpo, pode digerir
apenas certas quantidades de informações. O mundo não poderia conter
mais, porque não conseguiria assimilar. Foram relatados tantos milagres,
parábolas, sermões, diálogos, palavras bondosas, atos de misericórdia,
encontros, orações, advertências e promessas quantos o mundo poderia
exigir. Se mais tivesse sido narrado, com certeza teria sido jogado fora.
Existem suficientes relatos para tornar o incrédulo indesculpável, para
mostrar o caminho do céu àquele que o procura, para satisfazer o coração
de todo crente sincero, para glorificar a Deus e condenar todo aquele que
não se arrepender e crer. Os maiores vasos podem conter apenas certa
quantidade de líquido. A mente de todos os homens não apreciaria saber
mais a respeito de Cristo, se tivesse sido escrito. Temos o bastante e ainda
sobra. Esse testemunho é verdadeiro. Neguemo-lo, se pudermos.
Agora devemos terminar nossas considerações sobre esse evangelho
demonstrando sentimentos de profunda humildade e gratidão. Com certeza,
nos tomamos humildes quando pensamos o quanto somos ignorantes e
quão pouco compreendemos sobre os tesouros que este evangelho contém.
Seremos gratos a Deus quando refletirmos sobre a clareza e a nitidez dos
ensinos que o apóstolo nos dá, em seu evangelho, sobre o caminho da
salvação. A pessoa que o lê de maneira proveitosa é aquela que, lendo-o,
crê que Jesus é o Cristo e, crendo, tem “vida em seu nome” . Nós realmente
cremos? Jamais descansemos até que sejamos capazes de responder
corretamente esta pergunta!

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A s M editações no E vangelho de João fazem parte de
um a série de quatro com entários devocionais sobre os
evangelhos, que tem sido am ada e com partilhada por
gerações de cristãos, desde 1879. Estas leituras diárias
contêm m editações de um a sim plicidade e espiritualidade
que as tornaram o com entário devocional clássico sobre
os e v an g elh o s, na op in ião de inúm eros leitores.

N esta nova edição, especialm ente preparada para o leitor


m oderno, esta grande obra aparece em um form ato m ais
popular. O texto foi reform ulado, seguindo um estilo
m ais atual de apresentação, m as as exposições perm ane­
cem com pletas, provendo um a visão geral do m inistério
de nosso Senhor Jesus C risto na terra, com riqueza e
m aestria.

J.C .R y le (1 8 1 6 -1 9 0 0 ) é c o n h ec id o com o o p rim eiro


B ispo de L iverpool, Inglaterra e fam oso p o r seus e s­
critos desafiadores. E ntre suas obras em português estão
M editações no Evangelho de M ateus, M editações no Evan­
gelho de M arcos, Santidade Sem a Q ual N inguém Verá o
Senhor, V ivo ou M orto? e U m a P a la v ra aos M o ço s,
p u b lic a d a s p e la E d ito ra l F ie l. 1= = ,

SFIEL

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