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Poesia completa

Emily Dickinson

Volume II
Reitora Márcia Abrahão Moura
Vice-Reitor Enrique Huelva

EDITORA

Diretora Germana Henriques Pereira

Conselho editorial Germana Henriques Pereira (Presidente)


Fernando César Lima Leite
Ana Flávia Magalhães Pinto
César Lignelli
Flávia Millena Biroli Tokarski
Liliane de Almeida Maia
Maria Lidia Bueno Fernandes
Mônica Celeida Rabelo Nogueira
Roberto Brandão Cavalcante
Sely Maria de Souza Costa
Wilsa Maria Ramos

Reitor Antonio José de Almeida Meirelles


Coordenadora Geral Maria Luiza Moretti
da Universidade

Coordenadora executiva Edwiges Maria Morato

Conselho editorial Edwiges Maria Morato (Presidente)


Alexandre da Silva Simões
Carlos Eduardo Ornelas Berriel
Carlos Raul Etulain
Cicero Romão Resende de Araujo
Dirce Djanira Pacheco e Zan
Iara Beleli
Marco Aurélio Cremasco
Pedro Cunha de Holanda
Sávio Machado Cavalcante
Poesia completa
Emily Dickinson

Volume II:
Folhas soltas e perdidas

Edição bilíngue

TRADUÇÃO, NOTAS E PREFÁCIO


Adalberto Müller
Equipe editorial

Coordenação de produção editorial


Marília Carolina de Moraes Florindo

Preparação e revisão
Denise Pimenta de Oliveira e Ana Alethéa Osório

Imagens de primeira, segunda, terceira e quarta capas


MS Am 1118.11, Houghton Library, Harvard University

Manuscrito das páginas 126, 127, 252, 342, 360, 442, 462
Courtesy of the Archives and Special Collections at Amherst College

EMILY DICKINSON’S POEMS: As She Preserved Them


Edited by Cristanne Miller
Copyright © 2016 by the President and Fellows of Harvard College. Copyright © 1998 by
the President and Fellows of Harvard College. Copyright © 1951, 1955 by the President and
Fellows of Harvard College. Copyright © renewed 1979, 1983 by the President and Fellows of
Harvard College. Copyright © 1914, 1918, 1919, 1924, 1929, 1930, 1932, 1935, 1937, 1942 by
Martha Dickinson Bianchi. Copyright © 1952, 1957, 1958, 1963, 1965 by Mary L. Hampson.
Published by arrangement with Harvard University Press

Tradução © 2019 Editora Universidade de Brasília

Direitos exclusivos para esta edição:


Editora Universidade de Brasília
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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Camila Moreira Mendes Barcelos - CRB 1/2193

D553 Dickinson, Emily.


Poesia completa / Emily Dickinson ; tradução, notas e
prefácio, Adalberto Müller. – Brasília : Editora Universidade
de Brasília ; Campinas : Editora da Unicamp, 2021.
v. ; 23 cm.

v. 2. Folhas soltas e perdidas.


ISBN 978-65-5846-141-8 (Editora UnB)
ISBN 978-65-86253-97-9 (Editora da Unicamp)

1. Dickinson, Emily, 1830-1886. 2. Poesia estadunidense.


I. Título.

CDU 820(73)

Impresso no Brasil
Sumário

Prefácio ao volume II da edição brasileira 9

Nota editorial do tradutor 33

Abreviaturas e marcas gráficas 35

Unbound Sheets 36

Folhas soltas 37

Loose poems 254

Poemas soltos 255

Poems Transcribed by Others 524

Poemas transcritos por terceiros 525

Poems Not Retained 588

Poemas não retidos 589

Cronologia 673

Glossário de correspondentes 681

Notas 685

Index of First Lines 709

Índice dos primeiros versos 735


Dickinson children painting
[Os irmãos Dickinson (Emily à esquerda),
óleo sobre tela]
OTIS ALLEN BULLARD (1816 – 1853)

Emily Dickinson daguerreotype


[Daguerreótipo de Emily Dickinson] –
1848 (data aproximada)
AUTOR DESCONHECIDO
Prefácio ao volume II da edição brasileira
A IMAGEM DE EMILY DICKINSON1
Adalberto Müller

Vê-la é uma Pintura –

Há apenas duas imagens reconhecidas de Emily Dickinson. A primeira é


a de um retrato a óleo, em estilo holandês, em que a vemos com seus irmãos
Austin e Lavinia aos nove anos. O retrato das crianças é mais estilizado que
realista e está longe de ser uma obra-prima, mas ao menos nele podemos con-
firmar a cor dos cabelos ruivos de Emily; e o detalhe mais significativo é que
ela trazia nas mãos seu famoso herbário. A outra imagem todos conhecem:
é um daguerreótipo tirado, provavelmente, quando ela completara 17 anos
(1847). É uma foto bem posada e preparada, na qual a futura poeta está usando
um vestido escuro e sóbrio de inverno, que deixa ver (graças à contraluz) um
corpo esbelto e que cobre seu colo até o pescoço, envolto por uma fita amar-
rada com um broche dourado. Os grandes olhos castanhos encaram fixamente
a câmera, os lábios carnudos estão fechados como um botão de rosa a ponto
de abrir-se, o cabelo está dividido exatamente ao meio e amarrado atrás do
pescoço. A pose cuidada dos braços e das mãos cria um ângulo reto, as mãos
seguram um buquê de flores (violetas?) e o cotovelo direito se apoia numa mesa
coberta por uma toalha rendada sobre a qual há apenas um livro, provavelmente
a Bíblia. É um retrato ordinário, possivelmente feito para “anunciar” à socie-
dade uma debutante que logo seria “oferecida” publicamente ao casamento,
como se fazia então.
Apesar de haver surgido recentemente um novo daguerreótipo, em que
ela apareceria 12 anos depois (1859) ao lado de uma amiga,2 não sabemos com
certeza como era, fisicamente, a mulher que escreveu os 1.800 poemas e as cen-
tenas de cartas que hoje lemos. No tempo das redes sociais, no qual a imagem
de perfil3 é tão importante, isso parece absurdo. Mas é justamente o que torna
tão fascinante a obra da autora: na ausência de outros retratos, cada leitor deve
criar uma imagem de Dickinson lendo seus poemas e suas cartas.4
Quando chegou aos 35 anos (1865), Emily Dickinson já havia vivido o sufi-
ciente para entender o amor, a doença, a guerra, a política, a miséria e a morte.
Cada vez mais afastada do mundo além dos limites da casa paterna (a Homestead,
em Amherst), Dickinson já havia realizado um opus, que são os poemas recolhidos
nos Fascículos – que publicamos no primeiro volume desta Poesia Completa.
10 POESIA COMPLETA – EMILY DICKINSON (VOLUME II)

Aliás, embora semirreclusa, entre 1860 e 1865, Dickinson vivia intensamente o


que se pode chamar de uma “vida literária”: correspondia-se com importantes crí-
ticos e editores (como T. W. Higginson e Samuel Bowles), escrevia sobre os fatos
de sua época (particularmente sobre a Guerra Civil), lia fervorosamente jornais
e livros recentes, travava intensa correspondência com um círculo importante
de amigos-leitores de sua poesia. Sabemos que o fato de não ter publicado um
livro nessa época deveu-se mais a circunstâncias externas (sobretudo à incom-
preensão de seus interlocutores) do que a uma recusa absoluta – embora uma
certa recusa houvesse, não isenta de ressentimento diante da incompreensão dos
seus contemporâneos, que, como diria Mallarmé, não a sabiam ler. Somou-se
a isso o trauma do fim do espetáculo brutal da Guerra Civil, que deixou feridas
profundas no tecido social americano. Depois de 1865, Dickinson parece come-
çar a abandonar definitivamente a ideia de publicar seus poemas em livro. E o
fato de não mais reuni-los em pequenos folhetos costurados à mão (fascículos) é
uma das provas mais eloquentes desse desinteresse pela publicação. Ao mesmo
tempo, o número de cartas (muitas com cópias de poemas) aumenta, como se
ela já quisesse se publicizar pelo meio postal.
Mais ou menos nessa época, a escrita de Dickinson também começa a sofrer
importantes modificações. A primeira delas é que os limites entre a prosa das
cartas e a poesia dos versos começam a se desfazer. Isso já estava visível, aliás, nas
famosas Master Letters, cartas que ela escreveu entre 1858 e 1861 a um “mestre”
desconhecido e as quais nunca enviou. Trata-se de três cartas bastante enigmá-
ticas, recuperadas tardiamente, e que levantaram e levantam discussões acerca
da dissolução das fronteiras do sentido e do não sentido, mas também da poesia
e da prosa, já que ela usa uma prosa metrificada, que, dependendo de como é
transcrita, pode ser lida como verso. Vejamos um trecho de uma delas seguindo
a transcrição de R. W. Franklin:5

Master. Mestre.
If you saw a bullet Se visses uma bala
hit a Bird – and he told you atingir um Pássaro – e ele te contasse
he was’nt shot – you might weep que não foi ferido – talvez chorasses
at his courtesy, but you would da sua cortesia, mas certamente
certainly doubt his word – duvidarias das palavras dele –
One drop more from the gash Uma gota a mais do corte
that stains your Daisy’s que mancha o peito da tua Margarida –
bosom – then would you believe? então será que irias crer?
Thomas’ faith in Anatomy – was A fé de Tomé na Anatomia – era
stronger than his faith in faith. mais forte que sua fé na fé.
A IMAGEM DE EMILY DICKINSON 11

God made me – <Sir> – Master – I did’nt Deus me fez – <Senhor> – Mestre – Eu


be – myself. <He> I dont know how não sendo – eu – <Ele> Eu não sei como
it was done. He built the foi feito – Ele construiu o
heart in me – Bye and bye coração em mim – Pouco a pouco
it outgrew me – and like este me excedeu – e como
the little mother – with the a jovem mãe – com o
big child – I got tired filho grande – fiquei cansada
holding him – I heard of a de o suster – Ouvi uma
thing called “Redemption” – which coisa chamada “Redenção” – que
rested men and women – consolou homens e mulheres –

Mais ou menos à época em que ainda redige essas cartas (1862), Emily
Dickinson escreve cartas similares a T. W. Higginson, pedindo que ele a aceite
como sua “aluna”, enviando-lhe uma quantia surpreendente de poemas, muitos
dos quais hoje são clássicos escolares na língua inglesa. Ora, Higginson era, então,
um crítico literário de renome e, como abolicionista e progressista, costumava
abrir espaço para a publicação de poetas mulheres em importantes revistas e jor-
nais. No entanto, apesar de sempre responder às cartas de Dickinson, Higginson
jamais moveu uma palha para publicar seus poemas. Pior do que isso, usou ideias
de Dickinson para publicar, em abril de 1862, na Atlantic Monthly, a “Carta a
um Jovem Colaborador”, em que não se poupava de dar conselhos sobre como
deveriam vir os versos que ele gentilmente acolheria! Cinco anos após a morte
de Dickinson, quando seu nome já era uma lenda, Higginson confessa seu arre-
pendimento e se transforma, oportunamente, no primeiro editor da poesia da
autora (junto com Mabel Loomis Todd,6 em 1890).
Do mesmo modo, Samuel Bowles, editor do Springfield Republican (um dos
jornais de maior circulação na costa leste dos EUA), recebeu numerosas cartas e
poemas de Dickinson, e talvez a nenhum outro ela tenha jogado tantas indire-
tas quanto à sua vontade de ver seus escritos publicados. É verdade que Bowles
acabou publicando alguns, mas nunca os que ela enviou. Publicou-os, e de forma
anônima, apenas quando enviados por Susan, a amiga e posteriormente cunhada
de Emily Dickinson.
Ao mesmo tempo em que ia sofrendo essas recusas, Dickinson enviava
mais e mais cartas com poemas a vários parentes, amigos e amigas. Muito pro-
vavelmente, tais poemas eram transcritos em outras cartas que circulavam e,
através desse correio, se tornavam conhecidos e apreciados. Não é à toa que
a mais renomada poeta contemporânea de Dickinson, Helen Hunt Jackson,
a convidaria a enviar poemas para uma antologia que estava organizando, por
volta de 1878. A princípio, Dickinson hesita e recusa, mas acaba enviando poe-
mas depois de Jackson criticar sua indecisão: “Você é uma grande poeta – e é um
12 POESIA COMPLETA – EMILY DICKINSON (VOLUME II)

erro para o tempo no qual você está vivendo que não cante mais alto”.7 Mas a
verdade é que ela cantava, embora não desejasse que fosse o “mais alto”. Num
poema de 1865 – “I was a Phebe – nothing more –” (F1009; M460) –, Dickinson
se compara a um pequeno pássaro cinzento, nativo e habitante da costa leste dos
EUA, a phebe (Sayornis phoebe).8 Seu canto é monótono e delicado e seu nome é
também associado a Febe, deusa grega (na verdade titânide associada à lua), que
regia os oráculos:9

I was a Phebe – nothing more – Fui uma Phebe – nada mais –


A Phebe – nothing less – Uma Phebe – nada menos –
The little note that others dropt A notinha que outros largavam
I fitted into place – Eu arranjava –

I dwelt too low that any seek – Escondida, ninguém nota –


Too shy, that any blame – Tímida, ninguém chama –
A Phebe makes a little print Uma Phebe nem deixa marca
Upon the Floors of Fame – Na Calçada da Fama –

Essa diminuição da sua persona se associa com suas recusas e com sua
“indecisão” quanto à forma final de seus textos. A verdade é que essas atitudes já
vinham se formulando no espírito de Dickinson desde a própria elaboração dos
fascículos. Daí o número crescente de variantes dos poemas e de alternativas que
ela vai acrescentando à margem ou abaixo dos textos, mesmo quando passados
a limpo em cópias. Num poema como “A little madness in the Spring” (F1356,
M686), a quantidade de alternativas a um dos versos se transforma numa espécie
de abscesso poético:

A little madness in the Spring


Is wholesome even for the King
But God be with the Clown
Who ponders this Tremendous scene
This sudden legacy of Green
As if it were his own –

line 5: [This] gay • bright • quick • whole • swift – • fleet • sweet • whole [legacy of
Green]
[This] fair Apocalypse of Green – • This whole Apocalypse of Green – • [This whole]
Experience – • Astonishment – • Periphery – • Experiment • wild Experiment
[of Green]

-
A IMAGEM DE EMILY DICKINSON 13

Uma folia na Primavera


Mesmo a um Rei regenera
Mas Deus proteja o Bobo
Que essa Tremenda cena pondera –
Esse súbito Legado de Verde –
Como se ele é que fosse o dono –

verso 5: [Esse] alegre • brilhante • súbito • inteiro • rápido – inteiro [legado de Verde]
[Esse] justo Apocalipse de Verde – • Essa saudável
Experiência – • Esse Espanto – • Periferia – Experimento – selvagem Experimento
[de Verde]

Em alguns casos, há poemas que têm uma versão retida nos fascículos e
outra versão retida posteriormente. Nessas ocasiões, fica mais clara a relação
entre os fascículos e os poemas soltos, pois, quase sempre, a versão dos fascículos
parece mais “limpa”, indicando uma consciência editorial. Isso não faz os poemas
serem melhores ou piores: apenas aponta para o “método” de Dickinson. Um caso
bastante ilustrativo é o poema “Two Butterflies went out at Noon” (F561, J533,
M260; M610), que consta no fascículo 25 (c. 1863), mas que foi retomado 15 anos
depois (1878) numa versão com inúmeras alternativas. Reproduzo aqui as duas
versões e suas respectivas traduções, chamando atenção também para a questão
da tradução das alternativas, que implica outras questões semânticas:10

(Fs 25, 1863, M260)

Two Butterflies went out at Noon –


And waltzed upon a Farm –
Then stepped straight through the Firmament
And rested, on a Beam –

And then – together bore away


Upon a shining Sea –
Though never yet, in any Port –
Their coming, mentioned – be –

If spoken by the distant Bird –


If met in Ether Sea
By Frigate, or by Merchantman –
No notice – was – to me – Report was not – to me –

-
14 POESIA COMPLETA – EMILY DICKINSON (VOLUME II)

Duas Borboletas passeando à tarde –


Valsaram sobre o Curral –
Pisaram firme o Firmamento
E pousaram na Luz do Sol –
E logo – juntas se foram
Rumo ao Mar de Cristal –
Mas nunca se ouviu falar
Se chegaram – afinal –
Não me informa nem um Pássaro
Do seu Rumo no Mar Salso –
Nem Fragatas, nem Mercantes –
Sabem se é verdadeiro, ou falso – Reportam se [é]

(PS, 1878, M610)


Two Butterflies went out at Noon
And waltzed upon a Farm
And then espied Circumference Then overtook – [Circumference]
And caught a ride with him – and took a Bout with him –
Then lost themselves and found themselves
In eddies of the sun
Till Rapture missed Peninsula –
And Both were wrecked in Noon – [were] Drowned – • quenched – • Whelmed –
To all surviving Butterflies
Be this Fatuity [Be] this Biography –
Example – and monition
To entomology –

line 5: Then chased themselves and caught themselves


lines 5–6: Then staked themselves and lost themselves in Gambols with the sun –
line 6: [in] Frenzy • [in Fren]zies • for Frenzy of the Sun • [for] gambols [of] • antics in
the sun • [antics] with [the sun] • In Rapids of the Sun • [In] Fathoms in [the sun]
line 7: [Till Rapture] missed her footing – • Until a Zephyr pushed them • chased • flung
• spurned [them] • Till Gravitation foundered • grumbled • [Till] Gravitation [missed]
them • chased [them]
lines 7–8: Until a Zephyr scourged them / And they were hurled from noon
Till Gravitation humbled – ejected them from noon –

c. 1878

-
A IMAGEM DE EMILY DICKINSON 15

Duas Borboletas passeando à tarde


Valsaram sobre a Fazenda
E espiaram a Circunferência Depois passaram – [a Circunferência]
E apostaram corrida com ela – E lutaram com ela –
E se perderam e se acharam
Em turbilhões do sol
Até o Arroubo passar a Península –
E Ambas naufragaram na Tarde – se afogaram – sumiram – • Submersas
Seja esta Biografia [esta] Fatuidade –
Um exemplo – e um aviso
À entomologia –

v. 5: E caçaram a si mesmas e pegaram a si mesmas


v. 5-6: E miraram em si mesmas e se perderam em Brincadeiras com o sol –
v. 6: [Em] Frenesi • [Em Frene]sis • Por Frenesi do Sol • [por] Jogos [com] • burlas com o
sol • [burlas] com [o sol] • Nas Correntes do Sol • [por] Sondar [o sol]
v. 7: [Até o Arroubo] perder o passo – Até que um Zéfiro as empurrou • mandou embora
• arremessou • desprezou • Até a Gravitação as afundar • ribombar • Até a Gravitação
perdê-las • mandá-las embora •
v. 7-8: Até um Zéfiro as açoitar / E foram lançadas da tarde
Até a Gravitação humilhá-las – ejetá-las da tarde.

Por outro lado, os seus escritos vão adquirindo cada vez mais uma propensão
para o “indecidível” e “aberto”, sobretudo a partir de 1870, como demonstrou Marta
Werner na sua edição dos open folios (e, mais recentemente, dos envelope poems).11
Werner chega inclusive a destacar o caráter de visualidade dos poemas de Dickinson,
sugerindo uma ruptura com o verso e a metrificação em prol de uma forma que se
valeria do jogo entre a escrita e o espaço da página. De fato, a diferença entre os poe-
mas dos fascículos, mais estruturados formalmente em torno das noções de verso e
estrofe, e os últimos poemas é marcante, sobretudo quando olhamos para os manus-
critos. Isso gera todo um debate, ainda em curso, sobre se a poesia de Dickinson seria
mais “visual” ou “sonora”, o que define as opções de edição de seus manuscritos.12
Nesse sentido, se tomarmos o famoso poema “A Route of Evanescence” [“Uma
Rota de Evanescência”] (c. 1879, F1489, M619), encontraremos sete versões (uma delas
enviada a Helen H. Jackson), das quais restam cinco cópias manuscritas e duas transcri-
ções. Nas referências que Dickinson faz aos poemas em suas cartas, aparece constante-
mente o termo “Humming Bird”, o que levou as primeiras edições a atribuírem ao poema
o título “Beija-Flor”, embora Dickinson jamais tenha usado títulos para seus poemas
(como se vê nos fascículos). Na carta enviada a Jackson, em resposta ao pedido desta
para que Dickinson escrevesse sobre o pássaro papa-figos (“oriole”), lemos, em transcrição
diplomática, a versão F1489B, que inclui um fragmento da carta em que o poema aparece:
16 POESIA COMPLETA – EMILY DICKINSON (VOLUME II)

[RECTO] [FRENTE]

Dear Friend, Cara amiga,


To the Oriole Ao Papa-Figos
you suggested que você sugeriu
I add a Humming Eu acrescento um Beija
Bird and hope Flor e espero
they are not Untrue – Que eles não sejam Inverdades –

A Route of Uma Rota de


Evanescence Evanescência
With a revolving Com uma roda
Wheel giratória
A Resonance of Um Ressoar de
Emerald Esmeralda
A Rush of Um Ruflo de
Cochineal Cochonilha

- -

[VERSO] [VERSO]

And every E cada


Blossom on the Flor em seu
Bush Arbusto
Adjusts it’s Ajusta a
tumbled Head – Cabeça franzina –
The Mail from Quiçá, vem
Tunis, probably, Carta de Túnis
An easy Morning’s A boa Viagem
Ride – Matutina –

Anos depois, Dickinson envia esse poema a Thomas Niles, que estava pla-
nejando uma edição da seguinte forma (versão F1489G), adicionando “probably”
na entrelinha superior, separado em duas partes (“prob-ably”):
A IMAGEM DE EMILY DICKINSON 17

[FRENTE] [FRENTE]

A Route Uma Rota de


of Evanescence, Evanescência,
With a revolving Com uma Roda
Wheel – giratória –
A Resonance Um Ressoar de
of Emerald Esmeralda
A Rush of Um Ruflo de
Cochineal – Cochonilha
And every E cada
Blossom on the Flor em seu
Bush Arbusto
Adjusts it’s Ajusta a
tumbled Head – Cabeça franzina –
The Mail Quiçá – vem
from Tunis – prob- Carta
ably, de Túnis

- -
[VERSO] [VERSO]

An easy A boa Viagem


Morning’s Ride – Matutina –

Em que pese essa forma gráfica do manuscrito, todos os editores de


Dickinson (Higginson, Mabel Todd, Johnson e Franklin) entenderam que a forma
gráfica era uma contingência do espaço do papel e que o poema deveria ser devol-
vido à sua forma métrica original, levando em consideração a predominância do
common metre em sua poesia e o uso de maiúsculas para iniciar um novo verso.
Assim, na edição de Cristanne Miller, lê-se:

A Route of Evanescence
With a delusive wheel [a] dissembling • renewing • dissolving wheel –
A Resonance of Emerald
A Rush of Cochineal
And every Blossom on the Bush
Adjusts it’s tumbled Head –
The Mail from Tunis – probably –
An easy morning’s ride –
-
18 POESIA COMPLETA – EMILY DICKINSON (VOLUME II)

Uma Rota de Evanescência


Com uma roda ilusória – [roda] dissimulada – • renovada – • dissoluta –
Um Ressoar de Esmeralda
Um Ruflo de Cochonilha
E cada Flor em seu Arbusto
Ajusta a Cabeça franzina –
Quiçá – vem Carta de Túnis –
A boa viagem matutina –

Essa é a única das sete versões em que o segundo verso difere: em todas as
outras edições (inclusive as de Johnson e de Franklin), lê-se “With a revolving Wheel”
(“uma roda a rodopiar”, na tradução de Aíla de Oliveira Gomes).13 No manuscrito
“A”, transcrito por Miller, a opção por um adjetivo mais abstrato – “delusive” – vai
justamente na contramão de uma associação direta com o pássaro, que aparece nos
manuscritos seguintes e que encanta a maioria dos críticos, os quais veem no poema
toda uma imageria relacionada ao pássaro. Na verdade, tanto quanto o pássaro,
é importante pensar no que significam “cochonilha” e “Túnis” aqui.14 Como procuro
mostrar no meu artigo15 sobre a “geografia imaginária” de Dickinson, o beija-flor
talvez seja apenas mais um elemento na paleta com que Dickinson descreve as
cores da manhã nesse poema, passando pelo esmeralda, pelo carmim (extraído
da cochonilha mexicana) e pelo púrpura (extraído desde a antiguidade do múrex
tunisiano). Em “The pedigree of Honey” (F1650, J1627), a poeta afirma que a abelha
e a borboleta não estão interessadas no “pedigree do Mel”, nem na “linhagem do
Êxtase”, mas no caminho que leva direto a Trípoli, outra cidade fenícia antiga que
produzia o corante púrpura usado na toga picta (e também na toga praetexta) dos
césares, o qual se tornou símbolo de poder e esplendor (aqui associado às cores
rubras do amanhecer e do entardecer). É possível que ela pense simultaneamente
nas cores da manhã e no irisado das penas do beija-flor, mas é bem mais interes-
sante considerar que o poema nos conduz a essa zona de indeterminação em que
as coisas são evanescentes, em que as sensações se confundem. Por isso, a impor-
tância da sinestesia (“Resonance of Emerald” [“Um Ressoar de Esmeralda”], “Rush of
Cochineal” [“Um Ruflo de Cochonilha”]), que faz de Dickinson uma contemporânea
de Rimbaud e dos simbolistas franceses – o que explica o valor que lhe devotaram
os poetas imagistas, influenciados por aqueles. Além do mais, na cópia retida por
Dickinson (todas as demais cópias foram enviadas em cartas), que é a que Miller
estampa em sua edição, Dickinson anota três “alternativas”, que tornam a imagem
menos óbvia, para o verso 2: “dissembling Wheel” [“roda dissimulada”]; “renewing
Wheel” [“roda renovada”]; “dissolving Wheel” [“roda dissoluta”].
Há que se observar aqui dois critérios de edição. O primeiro é o que leva
em consideração o ritmo metrificado e refaz a forma “sonora” do poema, inde-
pendentemente da sua apresentação gráfica. Essa postura se assegura não apenas
A IMAGEM DE EMILY DICKINSON 19

pela predominância do common meter, mas também das rimas (wheel/Cochineal;


Head/ride). O segundo diz respeito a qual das sete versões manter. O critério de
Cristanne Miller vem estampado no título de sua edição: Poems as She Preserved
Them [Poemas tal como ela os preservou]. Nesse, como em muitos casos, Miller
deu preferência à “cópia retida” por Dickinson em seu “escritório”. Em muitos
casos, essas são as cópias que mais evidenciam as hesitações contidas nas alter-
nativas e nas rasuras. Poderiam, inclusive, ser chamadas de “cópias de trabalho”,
uma vez que nelas se vê uma autora que parece estar em constante processo de
criação de uma obra que não se fecha nunca – e que, evidentemente, só teria
chegado a uma forma definitiva com a publicação. Assim, se por um lado Miller
parece violentar o que seria a “forma visual” dos poemas, ao refazer os versos
de acordo com a escansão, ela não deixa de situar seu leitor no torvelinho das
dúvidas e das hesitações de Dickinson. Este me parece ser o mérito de sua edição.16
Durante e depois do trabalho com os “fascículos”, Dickinson começou a
organizar e copiar seus poemas em sets – folhas dobradas escritas nas quatro faces
que provavelmente seriam costuradas para formar novos fascículos. No entanto,
por alguma razão, Dickinson não chegou a fazê-lo. Esses sets são apresentados
aqui (seguindo a edição de Miller) como folhas soltas. Ao contrário das edições de
Johnson e Franklin, nas quais os fascículos foram desmembrados, os poemas das
folhas soltas foram separados e submetidos a uma numeração relativa à datação
dos poemas. Cristanne Miller buscou preservar a integridade material do modo
como Dickinson organizava seus escritos. Para o leitor daquelas edições, acostu-
mado a localizar os poemas por seus números, o trabalho elaborado por Miller
pode parecer estranho. No entanto, não é menos estranho submeter os poemas
a uma numeração que nada tem a ver com eles.
Além das folhas soltas, o restante da produção de Dickinson foi dividido
por Miller em poemas soltos (ou seja, aqueles que não estavam em sets, que têm
em geral datação mais imprecisa), poemas transcritos por terceiros (aqueles que
não provêm diretamente dos manuscritos de Dickinson, mas sim de seus cor-
respondentes) e poemas não retidos (dentre os quais os poemas da juventude, que
foram recuperados postumamente por amigos e parentes, além dos poemas
enviados em cartas).17 Desse modo, quanto mais nos afastamos dos fascículos,
mais a contextualização dos poemas se torna problemática – embora Miller siga
em grande parte a cronologia dos poemas estabelecida por Johnson e revista
por Franklin em todas as seções de sua edição. Por outro lado, fica patente que
Dickinson opta cada vez mais por poemas mais breves, alguns com apenas dois
versos, outros em forma bastante fragmentada ou elíptica.
Entre os anos 1870 e 1880, até sua morte, também é visível uma alteração
sensível da caligrafia de Dickinson: as letras se tornam maiores, os versos passam
a não caber nas margens, as frases são cada vez mais elípticas. Há muitas hipóteses
para isso. A mais evidente é que Dickinson teria sofrido com a perda progressiva
20 POESIA COMPLETA – EMILY DICKINSON (VOLUME II)

da visão (há vários poemas que tratam direta ou indiretamente do assunto, entre
os quais “What I see not, I better see –” (F869; M424). Por outro lado, sabemos
que sua vida pessoal vai sendo crescentemente afetada pela doença. Não apenas
a sua, mas sobretudo as doenças dos pais, de quem ela passa a ocupar-se cada
vez mais. Com a perda do pai e em seguida da mãe, a casa desaba sobre a poeta.
E, além disso, sempre lhe pesa o afastamento constante da sua querida Susan
(que perde um dos filhos e vive uma crise conjugal na década de 1870). Mas é
nessa fase que a poesia de Dickinson chega aos píncaros, com poemas que mais
se parecem ruínas antigas. É justamente a esses poemas que Deleuze e Guattari se
referem ao dizer que são pequenos monumentos que se constroem da criação de
“blocos de perceptos e de afectos”, mas que não são necessariamente gigantescos
e pesados, nem necessariamente “retos” ou “rígidos”. O importante é que esses
monumentos sejam criados de tal forma que se mantenham “de pé”, ou seja,
consigam ser um mundo em si mesmos, um “bloco de sensações”: “Um monu-
mento, mas o monumento pode sustentar-se em alguns traços ou em algumas
linhas, como um poema de Emily Dickinson”, dizem os filósofos.18 Um desses
pequenos monumentos (e vale a pena olhar o manuscrito!) é o poema “Of whom
so dear” (F1533, M628):

Of whom so dear
The name to hear
illumines with a Glow Suffuses [with]
as intimate – as fugitive [As] magical
As Sunset on the snow –

c. 1880

De quem tão querido


O nome no ouvido
Ilumina tão breve Esparge [tão]
E íntimo – Brilho [E] mágico
Como Poente na neve –

c. 1880

Olhar para esses manuscritos finais e esses poemas inacabados talvez seja,
afinal de contas, o melhor retrato dos últimos anos de vida de Dickinson, porque
através deles podemos ver o que ela estava querendo que víssemos, algo como

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