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Emily Dickinson
Volume II
Reitora Márcia Abrahão Moura
Vice-Reitor Enrique Huelva
EDITORA
Volume II:
Folhas soltas e perdidas
Edição bilíngue
Preparação e revisão
Denise Pimenta de Oliveira e Ana Alethéa Osório
Manuscrito das páginas 126, 127, 252, 342, 360, 442, 462
Courtesy of the Archives and Special Collections at Amherst College
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou
reproduzida por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.
CDU 820(73)
Impresso no Brasil
Sumário
Unbound Sheets 36
Folhas soltas 37
Cronologia 673
Notas 685
Master. Mestre.
If you saw a bullet Se visses uma bala
hit a Bird – and he told you atingir um Pássaro – e ele te contasse
he was’nt shot – you might weep que não foi ferido – talvez chorasses
at his courtesy, but you would da sua cortesia, mas certamente
certainly doubt his word – duvidarias das palavras dele –
One drop more from the gash Uma gota a mais do corte
that stains your Daisy’s que mancha o peito da tua Margarida –
bosom – then would you believe? então será que irias crer?
Thomas’ faith in Anatomy – was A fé de Tomé na Anatomia – era
stronger than his faith in faith. mais forte que sua fé na fé.
A IMAGEM DE EMILY DICKINSON 11
Mais ou menos à época em que ainda redige essas cartas (1862), Emily
Dickinson escreve cartas similares a T. W. Higginson, pedindo que ele a aceite
como sua “aluna”, enviando-lhe uma quantia surpreendente de poemas, muitos
dos quais hoje são clássicos escolares na língua inglesa. Ora, Higginson era, então,
um crítico literário de renome e, como abolicionista e progressista, costumava
abrir espaço para a publicação de poetas mulheres em importantes revistas e jor-
nais. No entanto, apesar de sempre responder às cartas de Dickinson, Higginson
jamais moveu uma palha para publicar seus poemas. Pior do que isso, usou ideias
de Dickinson para publicar, em abril de 1862, na Atlantic Monthly, a “Carta a
um Jovem Colaborador”, em que não se poupava de dar conselhos sobre como
deveriam vir os versos que ele gentilmente acolheria! Cinco anos após a morte
de Dickinson, quando seu nome já era uma lenda, Higginson confessa seu arre-
pendimento e se transforma, oportunamente, no primeiro editor da poesia da
autora (junto com Mabel Loomis Todd,6 em 1890).
Do mesmo modo, Samuel Bowles, editor do Springfield Republican (um dos
jornais de maior circulação na costa leste dos EUA), recebeu numerosas cartas e
poemas de Dickinson, e talvez a nenhum outro ela tenha jogado tantas indire-
tas quanto à sua vontade de ver seus escritos publicados. É verdade que Bowles
acabou publicando alguns, mas nunca os que ela enviou. Publicou-os, e de forma
anônima, apenas quando enviados por Susan, a amiga e posteriormente cunhada
de Emily Dickinson.
Ao mesmo tempo em que ia sofrendo essas recusas, Dickinson enviava
mais e mais cartas com poemas a vários parentes, amigos e amigas. Muito pro-
vavelmente, tais poemas eram transcritos em outras cartas que circulavam e,
através desse correio, se tornavam conhecidos e apreciados. Não é à toa que
a mais renomada poeta contemporânea de Dickinson, Helen Hunt Jackson,
a convidaria a enviar poemas para uma antologia que estava organizando, por
volta de 1878. A princípio, Dickinson hesita e recusa, mas acaba enviando poe-
mas depois de Jackson criticar sua indecisão: “Você é uma grande poeta – e é um
12 POESIA COMPLETA – EMILY DICKINSON (VOLUME II)
erro para o tempo no qual você está vivendo que não cante mais alto”.7 Mas a
verdade é que ela cantava, embora não desejasse que fosse o “mais alto”. Num
poema de 1865 – “I was a Phebe – nothing more –” (F1009; M460) –, Dickinson
se compara a um pequeno pássaro cinzento, nativo e habitante da costa leste dos
EUA, a phebe (Sayornis phoebe).8 Seu canto é monótono e delicado e seu nome é
também associado a Febe, deusa grega (na verdade titânide associada à lua), que
regia os oráculos:9
Essa diminuição da sua persona se associa com suas recusas e com sua
“indecisão” quanto à forma final de seus textos. A verdade é que essas atitudes já
vinham se formulando no espírito de Dickinson desde a própria elaboração dos
fascículos. Daí o número crescente de variantes dos poemas e de alternativas que
ela vai acrescentando à margem ou abaixo dos textos, mesmo quando passados
a limpo em cópias. Num poema como “A little madness in the Spring” (F1356,
M686), a quantidade de alternativas a um dos versos se transforma numa espécie
de abscesso poético:
line 5: [This] gay • bright • quick • whole • swift – • fleet • sweet • whole [legacy of
Green]
[This] fair Apocalypse of Green – • This whole Apocalypse of Green – • [This whole]
Experience – • Astonishment – • Periphery – • Experiment • wild Experiment
[of Green]
-
A IMAGEM DE EMILY DICKINSON 13
verso 5: [Esse] alegre • brilhante • súbito • inteiro • rápido – inteiro [legado de Verde]
[Esse] justo Apocalipse de Verde – • Essa saudável
Experiência – • Esse Espanto – • Periferia – Experimento – selvagem Experimento
[de Verde]
Em alguns casos, há poemas que têm uma versão retida nos fascículos e
outra versão retida posteriormente. Nessas ocasiões, fica mais clara a relação
entre os fascículos e os poemas soltos, pois, quase sempre, a versão dos fascículos
parece mais “limpa”, indicando uma consciência editorial. Isso não faz os poemas
serem melhores ou piores: apenas aponta para o “método” de Dickinson. Um caso
bastante ilustrativo é o poema “Two Butterflies went out at Noon” (F561, J533,
M260; M610), que consta no fascículo 25 (c. 1863), mas que foi retomado 15 anos
depois (1878) numa versão com inúmeras alternativas. Reproduzo aqui as duas
versões e suas respectivas traduções, chamando atenção também para a questão
da tradução das alternativas, que implica outras questões semânticas:10
-
14 POESIA COMPLETA – EMILY DICKINSON (VOLUME II)
c. 1878
-
A IMAGEM DE EMILY DICKINSON 15
Por outro lado, os seus escritos vão adquirindo cada vez mais uma propensão
para o “indecidível” e “aberto”, sobretudo a partir de 1870, como demonstrou Marta
Werner na sua edição dos open folios (e, mais recentemente, dos envelope poems).11
Werner chega inclusive a destacar o caráter de visualidade dos poemas de Dickinson,
sugerindo uma ruptura com o verso e a metrificação em prol de uma forma que se
valeria do jogo entre a escrita e o espaço da página. De fato, a diferença entre os poe-
mas dos fascículos, mais estruturados formalmente em torno das noções de verso e
estrofe, e os últimos poemas é marcante, sobretudo quando olhamos para os manus-
critos. Isso gera todo um debate, ainda em curso, sobre se a poesia de Dickinson seria
mais “visual” ou “sonora”, o que define as opções de edição de seus manuscritos.12
Nesse sentido, se tomarmos o famoso poema “A Route of Evanescence” [“Uma
Rota de Evanescência”] (c. 1879, F1489, M619), encontraremos sete versões (uma delas
enviada a Helen H. Jackson), das quais restam cinco cópias manuscritas e duas transcri-
ções. Nas referências que Dickinson faz aos poemas em suas cartas, aparece constante-
mente o termo “Humming Bird”, o que levou as primeiras edições a atribuírem ao poema
o título “Beija-Flor”, embora Dickinson jamais tenha usado títulos para seus poemas
(como se vê nos fascículos). Na carta enviada a Jackson, em resposta ao pedido desta
para que Dickinson escrevesse sobre o pássaro papa-figos (“oriole”), lemos, em transcrição
diplomática, a versão F1489B, que inclui um fragmento da carta em que o poema aparece:
16 POESIA COMPLETA – EMILY DICKINSON (VOLUME II)
[RECTO] [FRENTE]
- -
[VERSO] [VERSO]
Anos depois, Dickinson envia esse poema a Thomas Niles, que estava pla-
nejando uma edição da seguinte forma (versão F1489G), adicionando “probably”
na entrelinha superior, separado em duas partes (“prob-ably”):
A IMAGEM DE EMILY DICKINSON 17
[FRENTE] [FRENTE]
- -
[VERSO] [VERSO]
A Route of Evanescence
With a delusive wheel [a] dissembling • renewing • dissolving wheel –
A Resonance of Emerald
A Rush of Cochineal
And every Blossom on the Bush
Adjusts it’s tumbled Head –
The Mail from Tunis – probably –
An easy morning’s ride –
-
18 POESIA COMPLETA – EMILY DICKINSON (VOLUME II)
Essa é a única das sete versões em que o segundo verso difere: em todas as
outras edições (inclusive as de Johnson e de Franklin), lê-se “With a revolving Wheel”
(“uma roda a rodopiar”, na tradução de Aíla de Oliveira Gomes).13 No manuscrito
“A”, transcrito por Miller, a opção por um adjetivo mais abstrato – “delusive” – vai
justamente na contramão de uma associação direta com o pássaro, que aparece nos
manuscritos seguintes e que encanta a maioria dos críticos, os quais veem no poema
toda uma imageria relacionada ao pássaro. Na verdade, tanto quanto o pássaro,
é importante pensar no que significam “cochonilha” e “Túnis” aqui.14 Como procuro
mostrar no meu artigo15 sobre a “geografia imaginária” de Dickinson, o beija-flor
talvez seja apenas mais um elemento na paleta com que Dickinson descreve as
cores da manhã nesse poema, passando pelo esmeralda, pelo carmim (extraído
da cochonilha mexicana) e pelo púrpura (extraído desde a antiguidade do múrex
tunisiano). Em “The pedigree of Honey” (F1650, J1627), a poeta afirma que a abelha
e a borboleta não estão interessadas no “pedigree do Mel”, nem na “linhagem do
Êxtase”, mas no caminho que leva direto a Trípoli, outra cidade fenícia antiga que
produzia o corante púrpura usado na toga picta (e também na toga praetexta) dos
césares, o qual se tornou símbolo de poder e esplendor (aqui associado às cores
rubras do amanhecer e do entardecer). É possível que ela pense simultaneamente
nas cores da manhã e no irisado das penas do beija-flor, mas é bem mais interes-
sante considerar que o poema nos conduz a essa zona de indeterminação em que
as coisas são evanescentes, em que as sensações se confundem. Por isso, a impor-
tância da sinestesia (“Resonance of Emerald” [“Um Ressoar de Esmeralda”], “Rush of
Cochineal” [“Um Ruflo de Cochonilha”]), que faz de Dickinson uma contemporânea
de Rimbaud e dos simbolistas franceses – o que explica o valor que lhe devotaram
os poetas imagistas, influenciados por aqueles. Além do mais, na cópia retida por
Dickinson (todas as demais cópias foram enviadas em cartas), que é a que Miller
estampa em sua edição, Dickinson anota três “alternativas”, que tornam a imagem
menos óbvia, para o verso 2: “dissembling Wheel” [“roda dissimulada”]; “renewing
Wheel” [“roda renovada”]; “dissolving Wheel” [“roda dissoluta”].
Há que se observar aqui dois critérios de edição. O primeiro é o que leva
em consideração o ritmo metrificado e refaz a forma “sonora” do poema, inde-
pendentemente da sua apresentação gráfica. Essa postura se assegura não apenas
A IMAGEM DE EMILY DICKINSON 19
da visão (há vários poemas que tratam direta ou indiretamente do assunto, entre
os quais “What I see not, I better see –” (F869; M424). Por outro lado, sabemos
que sua vida pessoal vai sendo crescentemente afetada pela doença. Não apenas
a sua, mas sobretudo as doenças dos pais, de quem ela passa a ocupar-se cada
vez mais. Com a perda do pai e em seguida da mãe, a casa desaba sobre a poeta.
E, além disso, sempre lhe pesa o afastamento constante da sua querida Susan
(que perde um dos filhos e vive uma crise conjugal na década de 1870). Mas é
nessa fase que a poesia de Dickinson chega aos píncaros, com poemas que mais
se parecem ruínas antigas. É justamente a esses poemas que Deleuze e Guattari se
referem ao dizer que são pequenos monumentos que se constroem da criação de
“blocos de perceptos e de afectos”, mas que não são necessariamente gigantescos
e pesados, nem necessariamente “retos” ou “rígidos”. O importante é que esses
monumentos sejam criados de tal forma que se mantenham “de pé”, ou seja,
consigam ser um mundo em si mesmos, um “bloco de sensações”: “Um monu-
mento, mas o monumento pode sustentar-se em alguns traços ou em algumas
linhas, como um poema de Emily Dickinson”, dizem os filósofos.18 Um desses
pequenos monumentos (e vale a pena olhar o manuscrito!) é o poema “Of whom
so dear” (F1533, M628):
Of whom so dear
The name to hear
illumines with a Glow Suffuses [with]
as intimate – as fugitive [As] magical
As Sunset on the snow –
c. 1880
c. 1880
Olhar para esses manuscritos finais e esses poemas inacabados talvez seja,
afinal de contas, o melhor retrato dos últimos anos de vida de Dickinson, porque
através deles podemos ver o que ela estava querendo que víssemos, algo como