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Copyright

© 2008 by Andrew Peterson



Publicado originalmente sob o título: The Wingfeather Saga: On the Edge of the Dark Sea of Darkness

Copyright da ilustração “Mapa do Oskar” © 2008 by Andrew Peterson


Copyright da ilustração “Vaca Dentada” © 2020 by Aedan Peterson
Copyright de todas as outras ilustrações do miolo © 2020 by Joe Sutphin

This translation published by arrangement with WaterBrook, an imprint of Random House, a division of Penguin Random House LLC

Tradução: Mauricio Andrade


Revisão: Cesare Turazzi
Design da Capa: Brannon McAllister
Arte da Capa: Nicholas Kole
Adaptação e Diagramação: Wirley Corrêa
Versão Ebook: Tiago Dias

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São Paulo, SP
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SUMÁRIO

Uma Breve Introdução ao Mundo de Kistamos


Uma Introdução um Pouco Menos Breve à Terra de Skree
Uma Brevíssima Introdução ao Chalé Igiby
Um | A Carruagem Vem, A Carruagem Negra
Dois | Nuggets, Martelos e Totatas
Três | Thwaps em um Saco
Quatro | Um Estranho Chamado Esben
Cinco | O Livreiro, o Homem-Meia e a Cidade de Glipwood
Seis | Um Bardo na Esmeralda de Dunn
Sete | Descalço e Mendigo
Oito | Duas Pedras Atiradas
Nove | A Trilha Glipper
Dez | Leeli e a Canção dos Dragões
Onze | Um Corvo Para a Carruagem
Doze | Nada Parecido com Navios e Tubarões
Treze | Uma Canção Para a Ilha Brilhante
Quatorze | Segredos e Caldeirada de Queijo
Quinze | Dois Sonhos e Um Pesadelo
Dezesseis | Na Livraria Livros e Vãos
Dezessete | O Diário de Bonifer Squoon
Dezoito | Tropeçando num Segredo
Dezenove | Angústia, Dor e Horror
Vinte | Na Mansão
Vinte e Um | Os Canicórneos
Vinte e Dois | Nas Covas que Abaixo Daqui Estão
Vinte e Três | O Lamurioso Fantasma de Brimney Stupe
Vinte e Quatro | A Estrada Para Casa
Vinte e Cinco | No Salão do General Khrak
Vinte e Seis | Problemas na Livraria
Vinte e Sete | Uma Armadilha Para os Igibys
Vinte e Oito | Floresta Adentro
Vinte e Nove | Murças-das-Cavernas e Verdugos-Espinhentos
Trinta | A Prematura Morte de Vop
Trinta e Um | O Medalhão de Khrak
Trinta e Dois | Preparando um Rocambole de Vermes
Trinta e Três | Pontes e Galhos
Trinta e Quatro | O Castelo de Peet
Trinta e Cinco | Fogo e Fangs

Trinta e Seis | Fogo e Fangsombrio é o Corcel com Sombrio Arreio E Sombrio


Condutor Conduzindo Tem
Trinta e Sete | Garras e Uma Funda
Trinta e Oito | Um Plano Desagradável
Trinta e Nove | Um Presente de Willie Abutre
Quarenta | Traição
Quarenta e Um | Um Estrondo e Um Grito
Quarenta e Dois | Adeus Iggyfings
Quarenta e Três | Um Fantasma ao Vento
Quarenta e Quatro | Seguindo Podo
Quarenta e Cinco | Uma Longa Noite
Quarenta e Seis | A Água do Primeiro Poço
Quarenta e Sete | Velhas Feridas
Quarenta e Oito | Abrigo
Quarenta e Nove | As Joias de Anniera
Cinquenta | Os Guardiões do Trono
Cinquenta e Um | Uma Carta de Casa

Apêndices
Sobre o Autor



Uma Breve Introdução ao Mundo de Kistamos

As antigas histórias contam que quando a primeira pessoa acordou na primeira


manhã do mundo onde se passa essa história, ela bocejou, espreguiçou-se e disse
à primeira coisa que viu: “Bom, aqui estamos”. O nome do homem era Dwayne,
e a primeira coisa que viu foi uma pedra. Perto da pedra, porém, estava uma
mulher chamada Gladys, com quem ele aprenderia a se dar muito bem. Nas
muitas épocas que se seguiram, aquela primeira frase foi ensinada aos filhos e
aos filhos dos seus filhos e aos primos dos pais de seus filhos e assim por diante,
até que, quase por acidente, todas as criaturas falantes passaram a se referir ao
mundo à sua volta pelo nome “Kistamos”.
Em Kistamos havia dois continentes principais divididos por um grande
oceano chamado Mar Sombrio da Escuridão. Na Quarta Época, a inóspita terra a
leste do mar passou a ser conhecida como Dang e tem pouco a ver com essa
história (exceto pelo Grande Mal que passou a existir lá e travou uma Grande
Guerra contra quase todo mundo).
Esse mal era um mal sem-nome, cujo nome era Gnag, o Sem-Nome. Ele
governava do alto das Montanhas Picos-da-Morte, no Castelo Throg, e de todas
as coisas que Gnag desprezava em Kistamos, o que ele mais odiava era o
Supremo Rei Wingfeather, da Ilha de Anniera. Por alguma razão que ninguém
sabia, Gnag e suas desprezíveis hordas marcharam a oeste e dizimaram a
Brilhante Ilha de Anniera, onde caíram o bom rei, sua casa e seu nobre povo.
Insatisfeito, o Mal Sem-Nome (chamado Gnag) construiu uma frota que
conduziu seu monstruoso exército rumo a oeste, através do Mar Sombrio da
Escuridão, até o continente de Skree. E ele arrasou aquela vasta terra, nove
longos anos antes de nossa aventura começar.


Uma Introdução um Pouco Menos Breve à Terra
de Skree

Toda a terra de Skree era verde e plana; exceto, claro, pelas Montanhas
Rochosas, ao norte, que não eram de forma alguma planas. Tampouco verdes.
Na verdade, eram bem brancas, por causa da neve — apesar de que se a neve
derretesse, alguma coisa verde eventualmente poderia crescer ali.
Ah, mas mais ao sul, as planícies de Palen Jabh-J cobriam o restante de Skree
com seus ondulados (e decididamente verdes) campos. Exceto, é claro, pela
Floresta Glipwood. Ao sul das planícies, os Bosques de Linnard continuavam
borda afora de todos os mapas, exceto, pode-se supor, pelos mapas feitos por
qualquer um que vivesse naquelas terras distantes.
Mas os povos que habitavam nas planícies, nas margens da floresta, no alto das
montanhas e ao longo do grande Rio Blapp, viviam em um estado de duradoura
e gloriosa paz. Quer dizer, exceto pela mencionada Grande Guerra, que eles
perderam de forma lastimável e que acabou com a vida como a conheciam.
Nos nove anos após o rei de Skree e todos os seus nobres — de fato, todos os
que poderiam reclamar o trono — terem sido executados, o povo de Skree
aprendeu a sobreviver sob a ocupação dos Fangs de Dang. Os Fangs se portavam
como os humanos e, na verdade, se pareciam exatamente com os humanos,
exceto pelas escamas esverdeadas que cobriam seus corpos e o focinho de
lagarto e as duas presas compridas e venenosas que se projetavam para baixo,
saindo de suas bocas sibilantes. Além disso, eles tinham caudas. Desde que
Gnag, o Sem-Nome conquistara as terras livres de Skree, os Fangs ocuparam
todas as cidades, cobrando impostos e sendo desagradáveis com os skreenianos
livres. Ah, sim, o povo de Skree era bastante livre, contanto que seus habitantes
estivessem cada um em sua casa até à meia-noite. E contanto que não portassem
armas e não reclamassem quando um deles fosse, ocasionalmente, levado através
do mar, para nunca mais ser visto. Apesar dos pesares, além dos cruéis Fangs e
da constante ameaça de morte e tortura, não havia muito o que temer em Skree.
Exceto, outra vez, para aqueles que se aventurassem pelas Montanhas Rochosas,
onde os peludos bambolhões se arrastavam pela terra com seus longos dentes e
suas barrigas famintas, ou pelos desertos congelados das Pradarias de Gelo, onde
os poucos que viviam ali lutavam, diariamente, contra os marbutres. Mais ao sul,
as planícies de Palen Jabh-J eram tão seguras quanto bonitas, exceto pelos
rateixugos que deslizavam pela grama alta (um fazendeiro de Torrboro do Sul
alegou ter visto um tão grande quanto um meep jovem, cujo tamanho é de,
aproximadamente, um garlinói adulto, animal cuja altura equivale à estatura de
um floelho).
Antes de bramir sobre as Cataratas Fingap, o rio Blapp era largo e pacífico,
cristalino como uma fonte pura, cujos peixes a serem pescados eram deliciosos e
dóceis, exceto pelos muitos peixes que exalavam veneno ao mais simples toque
e pelo peixe-adaga, conhecido por ser capaz de pular nos barcos e empalar
mesmo o pescador mais robusto.

Uma Brevíssima Introdução ao Chalé Igiby

Fora da cidade de Glipwood, empoleirado próximo à borda dos penhascos acima


do Mar Sombrio, ficava o pequeno chalé onde habitava a família Igiby. O chalé
era bastante simples, exceto por seu inestimável conforto e por quão bem fora
construído e quão bem era mantido, apesar das três crianças que nele moravam,
e exceto pelo amor que dele irradiava como a luz da lareira que cintilava à noite
através de suas janelas.
E quanto à família Igiby?
Bom, exceto pela maneira como sempre ficavam sentados ao lado da lareira,
até tarde da noite, contando histórias, e fora quando cantavam no jardim
enquanto juntavam a colheita, e quando o avô, Podo Helmer, sentava-se na
varanda baforando anéis de fumaça, e exceto por todas as coisas boas e calorosas
que enchiam seus dias, ali, como sidra em uma caneca numa noite de inverno,
eles eram bastante infelizes. Bastante infelizes, de fato, naquela terra onde
marchavam os Fangs de Dang.

1

A Carruagem Vem, A Carruagem Negra

Deitado em sua cama, com os olhos bem fechados, Janner Igiby tremia ouvindo
o som amedrontador da Carruagem Negra chacoalhando ao luar. Seu irmão mais
novo, Tink, roncava no beliche de cima, e ele sabia, pela respiração de sua
irmãzinha, Leeli, que ela também estava dormindo. Janner ousou abrir os olhos e
viu a lua, branca como um crânio, rindo para ele através da janela. E por mais
que Janner tentasse não pensar a respeito, a canção infantil que aterrorizara
crianças na terra de Skree por vários anos cantarolava em sua cabeça, e ele ficou
lá, sob o luar pálido — seus lábios mal se moviam...

Contempla, do rio Blapp além
A Carruagem Negra, a Carruagem vem
Sombrio é o corcel com sombrio arreio
E sombrio condutor conduzindo tem

Criança, ao Criador peça pra dormir
Quando a Carruagem sua rua subir
Pra você não sonhar com dentes
E Carruagens parando bem em frente

Pr’arrancar você do beliche e dossel
No profundo da noite e na hora mais escura
Através do mar e para a torre cruel
Onde Gnag, o Sem-Nome a você esmurra
No Castelo Throg, além da imensidão
Um mundo de distância de toda afinidade
Você chora ao pensar no início da aflição
Quando as trevas roubaram sua liberdade

Longe, sim, do rio Blapp além
A Carruagem Negra, a Carruagem veio
A Carruagem chegou pra você também
Sombrio é o corcel com sombrio arreio

Não é de admirar que Janner tivesse dificuldades para dormir após ter ouvido o
baque surdo de cascos e o tilintar de correntes. Em sua imaginação ele conseguia
ver as formas dos corvos que circundavam a Carruagem e sobre ela pousavam,
ouvir o crocitar dos bicos e o bater de asas negras. Embora repetisse a si mesmo
que os sons eram só sua imaginação, ele sabia que, em algum lugar no campo,
naquela mesma noite, a Carruagem Negra iria parar em frente à casa de uma
pobre alma, e as crianças lá seriam levadas, para nunca mais serem vistas.

Não mais que uma semana antes, Janner havia entreouvido sua mãe chorando
por causa do sequestro de uma garota de Torrboro. Sara Cobbler tinha a mesma
idade de Janner, e ele se lembrava de tê-la encontrado uma vez, enquanto sua
família passava por Glipwood. Mas agora ela se fora para sempre. Uma noite ela
esteve deitada na cama, exatamente como Janner estava naquele momento.

Ela provavelmente deu um beijo de boa noite em seus pais e fez uma oração. E
a Carruagem Negra veio atrás dela.
Naquele derradeiro instante, estaria ela acordada?
Teria ela ouvido o resfolegar dos cavalos negros do lado de fora, ou visto o
vapor saindo de suas narinas?
Os Fangs de Dang a amarraram?
Sara lutou quando a colocaram na carruagem, como se fosse alimento na boca
de um monstro?
O que quer que tenha feito, foi inútil. Ela havia sido arrancada de sua família e
ponto-final. Os pais de Sara fizeram um velório. Ser levado pela Carruagem
Negra era como morrer. Podia acontecer com qualquer pessoa, a qualquer
momento, e não havia nada a ser feito a respeito, exceto torcer para que a
Carruagem continuasse se movendo quando chacoalhasse em sua rua.
O chacoalhar, os tinidos e as batidas de cascos ecoavam pela noite. Estaria a
Carruagem Negra se aproximando? Faria ela a curva, subindo até o chalé Igiby?
Janner orou ao Criador para que aquilo não acontecesse.
Nugget, o cachorro de Leeli, ergueu a cabeça, junto ao pé da cama e rosnou
para a noite, janela afora. Janner viu um corvo pousar em um galho ossudo,
delineado pela lua. Janner tremia, agarrando sua colcha e puxando-a até o
queixo. O corvo virou a cabeça e pareceu espiar pela janela de Janner, zombando
do menino cujos olhos arregalados refletiam o luar. Janner ficou ali, aterrorizado,
desejando poder afundar-se ainda mais em sua cama, onde os olhos negros do
corvo não pudessem vê-lo. Mas o pássaro voou para longe. A lua ficou anuviada,
o baque-baque dos cascos e o rangido-chacoalhar da carruagem foram sumindo,
sumindo, finalmente até o silêncio.
Janner percebeu que estava prendendo a respiração, e expirou lentamente. Ele
ouviu o bater da cauda de Nugget contra a parede e, sabendo que o cachorrinho
também estava acordado, sentiu-se muito menos sozinho. Não demorou para que
Janner logo caísse num sono profundo, com sonhos agitados.

2

Nuggets, Martelos e Totatas

De manhã, os sonhos se foram.


O sol brilhava, o frescor da manhã perdia terreno para um dia quente de verão
e Janner imaginava poder voar. Ele estava observando as libélulas flutuando
através do pasto e imaginou-se projetando sua própria mente na mente de uma
libélula, a fim de ver o que ela via e sentir o que ela sentia. Janner imaginou o
leve giro das asas que a levavam zunindo através de um prado, girando para a
esquerda e para a direita, alçando-a pelo vento sobre as copas das árvores ou
reduzindo a queda íngreme até o Mar Sombrio. Ele imaginou que, se fosse uma
libélula, sorriria enquanto voasse (embora não tivesse certeza de que as libélulas
sorriam), porque não teria que se preocupar com o chão fazendo-o tropeçar.
Parecia a Janner que, nos últimos meses, ele havia perdido o controle de seus
membros: seus dedos estavam mais longos e seus pés maiores, e sua mãe havia
dito, recentemente, que ele era todo cotovelos e joelhos.
Janner enfiou a mão no bolso e, olhando em volta para se certificar de que
ninguém estava olhando, tirou um pedaço de papel velho, dobrado. Seu
estômago revirou, como havia acontecido uma semana antes, quando encontrou
o papel ao varrer o quarto de sua mãe. Ele o desdobrou, agora para refletir sobre
o retrato de um menino, parado na proa de um pequeno veleiro. O menino tinha
cabelos escuros e membros desajeitados, e parecia inegavelmente com Janner.
Grandes nuvens onduladas embranqueciam o céu, e o borrifar das ondas
explodia em respingos parecendo tão reais e úmidos que — pensava Janner — se
tocasse neles, mancharia a imagem. Abaixo do desenho estava escrito: “Meu
décimo segundo aniversário. Duas horas sozinho em mar aberto — o melhor dia
da minha vida, até agora”.
Não havia nome no retrato, mas Janner sabia, em seu coração, que o menino
era seu pai.
Ninguém jamais falava de seu pai — nem sua mãe, nem seu avô. Janner sabia
pouquíssimo acerca dele. Mas ver aquele retrato era como abrir uma janela em
um lugar muito escuro. Aquele sentimento confirmava sua suspeita de que a vida
era muito mais do que viver e morrer na cidadezinha de Glipwood. Janner nunca
vira um barco de perto. Ele, no máximo, os observava dos penhascos —
pequenas manchas traçando caminhos lentos como fitas, atravessando as ondas
distantes, navegadas por uma tripulação em uma ou outra missão aventureira.
Ele então se imaginava em seu próprio barco, sentindo o vento e os borrifos da
água, como o menino do retrato...
Janner despertou de seu devaneio e viu-se apoiado em um forcado, com feno
pinicante até os joelhos. Em vez de sentir o vento do oceano, ele enfrentou uma
nuvem de palha e poeira, levantada por Danny, o cavalo de carga, atrelado
impaciente a uma carroça abarrotada de feno até a metade, esperando para
atravessar o campo até o celeiro. Janner estava trabalhando desde o nascer do sol
e já fizera três viagens, ansioso por terminar suas tarefas.
Aquele dia era o Festival do Dia dos Dragões, e o único dia do ano em que
Janner ficava feliz por estar na pacata cidade de Glipwood.
A cidade inteira esperava o ano todo pelo Dia dos Dragões, quando toda a
Skree parecia vir para Glipwood. Haveria jogos e comidas, pessoas de aparência
estranha de cidades distantes e os próprios dragões, emergindo do Mar Sombrio
da Escuridão.
Pelo que sabia, Janner nunca havia deixado Glipwood, em todos os seus doze
anos. Então, o festival era o mais próximo que ele chegava de ver o resto do
mundo — e um bom motivo para acabar logo de catar todo aquele feno. Ele
enxugou o suor da testa e olhou, melancolicamente, por cima do ombro, para
uma libélula que zunia para longe. Então, com um gemido, enfiou fundo o
forcado no feno e o jogou na carroça. Com esse movimento, seu pé prendeu-se
numa pedra escondida sob o feno e ele cambaleou para a frente, caindo de cara
em uma pilha pura e fresca de “pepitas” feitas por Danny, o cavalo de carga.
Janner saltou, de pé, cuspindo e limpando o rosto com um punhado de feno.
Danny, o cavalo de carga, olhou para ele, bufou e arrancou uma boa bocada de
grama, enquanto Janner corria, rápido como uma libélula, até o cocho de água
para limpar o rosto.
Do outro lado do campo, depois da cerca, o irmão de Janner, Tink (cujo
verdadeiro nome era Kalmar) estava estendido sobre o telhado do chalé — dois
pregos entre os lábios e um martelo numa mão. Tink estava tentando consertar
uma telha solta, mas tendo dificuldade com a tentativa, porque tremia demais.
Quando mais novo, o simples fato de cavalgar nos ombros do avô o deixava
nervoso. E embora risse, seus olhos estavam sempre arregalados de pavor até
que fosse recolocado na firmeza do chão.
Podo, seu avô, sempre designava a reparação do telhado a Tink, porque
acreditava que lhe faria bem enfrentar seu medo. Mas Tink, então com onze
anos, ainda ficava tão assustado quanto antes. Tremendo igual vara verde, pegou
um prego entre seus lábios e o martelou no telhado, tão timidamente como se
estivesse martelando seu próprio rosto. Ele voltou-se ao campo e avistou Janner
correr e mergulhar a cabeça no cocho de água; Tink estava desejoso de já ter
terminado suas tarefas para poder jogar uma partida de zibzy1 com seu irmão
mais velho, nos jogos do Dia dos Dragões.
Tink era inútil no telhado, mas quando seus pés estavam em terra firme, podia
correr como um cervo.
Com a primeira pancada do martelo, o prego escapuliu de entre os dedos de
Tink. Ele tentou pegá-lo, mas falhou e acabou se jogando para baixo, abraçando
ambos os lados do telhado quente. O prego e o martelo caíram pelo telhado em
direções opostas, lançando-se da borda. Tink gemeu porque aquilo significava
ter que avançar lentamente até a borda e descer a escada outra vez. Também
significava que demoraria muito mais até que pudessem ir à cidade para o
festival.
“Perdeu alguma coisa?”
O medo de Tink se transformou em mau humor. “Basta jogá-lo de volta, pode
ser?”
Tink ouviu risos, e então o martelo voou para cima, rodopiando e pousando a
alguns metros dele. Ele reuniu toda a coragem que tinha para chegar à borda e
agarrou o martelo com uma mão trêmula, um pouco antes de deslizar de volta
para baixo.
“Obrigado, Leeli”, ele exclamou, tentando soar muito mais simpático.
Leeli sentou-se de novo nos degraus, na parte de trás do chalé e, cantarolando,
continuou descascando suas totatas. Nugget estava a seus pés, abanando a cauda,
ofegando na sombra acolhedora. Não demorou muito até que Leeli conseguiu se
levantar com uma pequena muleta de madeira e sacudir as cascas de totata da
frente do vestido. Carregando o balde, ela coxeou para dentro de casa — Nugget
colado atrás dela.
Sua perna direita torcia para dentro, num ângulo não natural abaixo do joelho,
e os dedos dos pés de sua perna ruim se arrastavam levemente ao longo do piso
de madeira. Quando ela era pouco mais que um bebê, havia aprendido a andar
com uma muleta minúscula debaixo do braço, e a cada ano, seu avô lhe fazia
uma maior, sempre mais ornamentada e resistente que a anterior. A muleta atual
era feita de teixo e tinha pequenas flores roxas gravadas ao longo de seu
comprimento.
Leeli pôs o balde de totatas descascadas sobre a mesa, atrás de Nia, sua mãe,
que estava colocando ingredientes em uma grande panela de cozido.
“Ah, obrigada, querida”. Nia limpou as mãos em seu avental, depois prendeu
para trás das orelhas algumas mechas soltas do cabelo. Ela era alta e graciosa, e
Leeli a achava tão bonita que por mais simples fosse o vestido, aos olhos da filha
a mãe sempre aparentava estar vestida em trajes reais. As mãos de Nia eram
fortes e calejadas por anos de trabalho duro, mas gentis o suficiente para trançar
o cabelo de Leeli ou acariciar o rosto de seus meninos quando ela lhes dava um
beijo de boa noite.
“Você poderia ir buscar seu avô para mim?” Perguntou ela. “Ele está no jardim
colhendo ervas há pelo menos uma hora, o que só pode significar uma coisa...”
Leeli riu. “Os thwaps voltaram?”
“Temo que sim”. Nia voltou ao seu cozido, exatamente quando outro ruído
soou acima delas. Seus olhos seguiram o som ao longo do teto até a janela, onde
ela e Leeli viram o martelo de Tink cair na grama. Um gemido abafado veio do
telhado.
“Eu pego.” Leeli coxeou pela porta dos fundos e jogou o martelo de volta para
Tink.
Janner correu até o chalé, encharcado da cintura para cima, trazendo consigo
um cheiro horroroso e um enxame de gordas moscas verdes zumbindo em torno
de sua cabeça.
Enquanto mancava até a frente da casa para encontrar seu avô, Leeli ouviu sua
mãe gritar e colocar Janner para fora de casa, onde ele foi prontamente atingido
na cabeça por um martelo em queda livre.

3

Thwaps em um Saco

O avô perneta de Leeli estava de joelhos, resmungando contra algo no jardim.


Totatas gordas e vermelhas pendiam das vinhas; cabeças redondas de alface
brotavam silenciosamente do solo em longas fileiras; brotos de verduras,
cenouras e as amoras — suas favoritas — ainda estavam viçosas e úmidas.
Como Leeli, Podo se saía bem com apenas uma perna, embora, em vez de usar
uma muleta, ele prendesse um toco de madeira abaixo do joelho. Ele nunca
falava sobre como havia perdido a perna, mas não era nenhum segredo que fora
um pirata em sua juventude selvagem, e, assim, entretinha seus netos todas as
noites com contos de suas aventuras no mar.
Como na vez em que todos os dezoito membros de sua tripulação adoeceram
por comer um lote de jebirum estragado — que haviam saqueado de um barco de
pesca perto das ilhas Phoob. Podo foi o único que não comeu e teve que pilotar o
navio sozinho durante uma tempestade, enquanto sua tripulação cambaleava ao
redor, lamuriando pelo convés.
“E essa não foi a pior parte”, dizia Podo. “Deixa eu dizer! Isso tudo com a
Marinha Skreeniana bem na minha cola, canhões disparando e flechas zunindo
pelo meu cabelo (é por isso que ele se divide em três partes, viu?). Até hoje não
consigo sentir o menor cheiro de jebirum sem ter ânsia de alçar vela e fugir o
mais rápido possível...”
As crianças Igiby gritavam de alegria, e o velho Podo se empenhava tanto que
precisava secar o suor de sua testa com um lenço.
E ele estava enxugando a testa com o lenço, agora, enquanto olhava para os
brotos de verdura.
“Vovô?” Leeli chamou por trás dele.
Podo girou a cabeça, acenando com um porrete nodoso de madeira. Seus
longos cabelos brancos estavam desgrenhados e ele parecia uma velha bruxa
maluca. “Ei! Cuidado, mocinha. Eu quase que bato na sua cabeça com esse meu
trambolho.” Suas sobrancelhas brancas e espessas se ergueram e ele levou um de
seus dedos retorcidos aos lábios. “Thwaps!” — sussurrou.
De repente, uma figura pequena e peluda saltou de debaixo de um pé de totata
e soltou um grito estridente.
Podo saltou atrás dela.
Nugget, que se queixava todo serelepe, perdeu o controle e saltou para o jardim
com um latido.
O thwap comum era um pouco maior do que um gambá — não muito mais do
que uma bola de pelo, com patas traseiras e dianteiras magras, que alcançava o
meio da única canela de Podo. O porrete do velho acertou o alvo e mandou a
criaturinha voando pelo ar, mas não antes que outra disparasse do jardim e, com
seus longos dentes amarelos, mordesse Podo ferozmente em sua perna de pau. O
primeiro thwap, arremessado, estatelou-se no tronco de uma árvore próxima e
caiu no chão, de onde imediatamente se levantou e arremessou uma pedra contra
o velho. Acertou Podo bem na testa. Ele cambaleou por um momento,
rodopiando a cabeça, enquanto batia no thwap cujos dentes estavam cravados em
sua perna de pau.
Os thwaps guincharam e lançaram-se de volta para o jardim. Reapareceram um
momento depois: um com uma totata nas patas peludas, o outro com uma
braçada de cenouras. Ambos se esquivaram de outro golpe do porrete de Podo e
dispararam para o jardim novamente.
Podo urrou e girou o porrete por cima de sua cabeça. “Basta, roedores
nojentos!”
Uma rajada de vento moveu as folhas do jardim em ondas. Os cabelos brancos
de Podo flutuaram sobre sua nuca, e ele se inclinou contra a brisa com uma
expressão feroz na mandíbula. Um thwap apareceu atrás de um pé de amoras e
jogou outra pedra. Podo brandiu seu porrete e mandou a pedra voando de volta
ao jardim, enquanto os thwaps mergulhavam para se proteger.
“Aha!”
Alguns momentos se passaram enquanto os thwaps guinchavam e chilreavam
entre si.
O rosto de Podo se enrugou ainda mais. Ele baixou o porrete e colocou a mão
em concha sobre a orelha, como se pudesse entendê-los.
De repente, uma gorda totata vermelha passou zunindo pelo ar e explodiu no
rosto de Podo.
“As totatas não!” Podo piscou com força espremendo dos olhos o suco que
escorria — e logo em seguida bateu em outra totata com seu porrete. “Não
minhas totatas!”
Assim que Leeli se virou, viu o avô mergulhar de cabeça no jardim,
vociferando o tempo todo. Ela sorriu e mancou de volta ao chalé, que estava
impregnado do aroma de café da manhã.
Nia passou por ela até o jardim sem dizer uma palavra, arrebatou duas folhas
de uma aroeira e voltou para a cozinha, ignorando os latidos de Nugget, os
berros de raiva de Podo e os thwaps voando pelo ar.
Janner, que finalmente conseguiu limpar o estrume do rosto e do cabelo, voltou
para casa, todo molhado.
Tink, magro como um ancinho, sentou-se à mesa, ao lado de Leeli. Seus olhos
estavam fixos na grande pilha de linguiças fritando no fogão — o som de seu
estômago roncando encheu a sala.
“Bom! Assim está melhor!” Nia cruzou os braços e tentou não rir para Janner.
“Achei que já começaria a ver grama fresca crescendo em seu rosto.”
Janner corou, e meneou a cabeça enquanto se sentava.
Leeli e Tink tentaram esconder o riso, enquanto Nia puxava uma cadeira e se
sentava com os cotovelos na mesa e o queixo nas mãos, observando seus filhos
comerem. Janner olhou pela janela, imerso em seus pensamentos; Tink curvou-
se sobre o prato feito um urubu, comendo as panquecas e a linguiça como se
fossem fugir; Leeli observava seus irmãos e mexia na bainha do vestido,
cantarolando e balançando a cabeça para a frente e para trás enquanto mastigava.
“Comam bem, meus queridos. Vai ser um dia agitado”, Nia aconselhou,
sorrindo.
Os olhos das crianças se arregalaram. “Os dragões-marinhos!” — gritaram em
uníssono.
Nia riu e levantou-se da mesa. “A dourada lua de verão o veranil anoitecer em
dois partiu, e a dourada melodia dos dragões todo aquele que veio ouviu!” —
ela cantou. “Eles virão exatamente como têm vindo por mil anos. Terminem seu
café e iremos para a cidade. As tarefas podem esperar.”
Com um estrondo, a porta dos fundos se abriu e lá estava Podo, encharcado de
suor e sem fôlego. “THWAPS!”, esbravejou, segurando um saco com algo se
contorcendo e gritando dentro. Podo acertou-o com seu porrete e os guinchos
pararam imediatamente.
Nugget latiu e dançou a seus pés, dando mordidas no saco.
“Há mais dois desses fedorentos por aí, mas esses três” — ele sacudiu o saco
— “não vão comer mais nenhum dos nossos vegetais e legumes, posso garantir.
Malditos, ladrõezinhos, monstrengos...” Ele notou que seus três netos e a filha o
observavam e pigarreou. “Não se preocupem. Vou jogá-los do penhasco direto
para o Mar Sombrio, após comer algumas de suas deliciosas panquecas,
querida”, acenando com a cabeça para Nia, tentando soar menos rude.
Nia ficou boquiaberta. “Como você tem coragem de jogar essas coisas no
mar?”
Podo coçou a cabeça. “Fácil. Veja, eu pego esse saco aqui e... despejo o saco...
sobre o penhasco. Simples assim.”
Leeli estava sentada com o garfo na mão e uma expressão de horror no rosto.
“Vovô, você não pode simplesmente matá-los!” Ela se afastou da mesa enquanto
os meninos reviravam os olhos. Leeli mancou com sua muleta até seu enorme
avô e olhou para ele com uma doce compaixão em seus olhos.
Podo amava sua netinha como nada mais em Kistamos, e ela sabia disso.
“Eles são coisinhas tão doces, vovô, e nunca fazem mal a ninguém.”
Podo gaguejou e apontou para os arranhões em seus braços.
Leeli não pareceu se importar. “E tudo o que eles pegam são alguns de nossos
vegetais e legumes todos os anos para alimentar seus thwapzinhos. Não consigo
acreditar que você faria uma coisa dessas. Por favor, vovô, não mate os
pequeninos.” Ela agarrou sua camisa, puxou seu rosto para o dela e o beijou na
bochecha grisalha. “Vamos, Nugget”, disse ela, e saiu da cozinha.
O saco guinchou e Podo bateu de novo, mas com menos vigor. Com um forte
resmungo, Podo jogou o saco no chão, ao lado da mesa, e enfiou uma panqueca
na boca.
“Agora, Janner, rapaz”, disse Podo sem levantar os olhos do prato, “pode ficar
tumultuado lá fora com as festividades em andamento, e você sabe que os Fangs
ficam ainda mais malvados quando parece que nós, skreenianos, estamos nos
divertindo demais.”
“Sim, senhor.” Janner olhou para seu prato e apertou as laterais da cadeira,
preparando-se para o que estava por vir.
“E você é o mais velho, o que carrega uma nobre responsabilidade.
Significa…”
“— Significa que preciso ficar de olho em Tink e Leeli, e garantir que
cheguem em casa em segurança. Ouço a mesma coisa todos os dias da minha
vida, e eu não sou burro.” Janner surpreendeu até a si mesmo. Suas bochechas
ficaram vermelhas quando ele viu a expressão de choque no rosto de sua mãe.
Ele tinha consciência de que havia ido longe demais, mas era tarde para
retroceder. Anos de frustração decidiram explodir sobre as panquecas naquela
mesma manhã. “O que isso significa é que sou uma babá, que nunca posso fazer
o que realmente quero.”
Tink bufou e tentou esconder sua risada empurrando outra garfada goela
abaixo. Janner o chutou por baixo da mesa, o que só fez Tink bufar novamente.
“Não quero passar minha vida me preocupando com Tink e Leeli, seguindo
duas crianças pequenas por todo lado, me rastejando atrás deles como uma velha
e desperdiçando minha vida!”
“Filho...” Podo começou a falar.
“Não sou seu filho! Você não é meu pai, e se meu pai estivesse vivo, ele
entenderia”. Janner já se odiava pelo que havia dito. Ofegante, desviava o olhar
para o fogão, com medo de contemplar o rosto de seu avô. Seu peito ardia e as
lágrimas estavam prestes a desabar. Ele colocou a mão no bolso e apertou o
retrato dobrado de seu pai. Como nunca antes, ele desejou estar naquele barco,
no Mar Sombrio da Escuridão, longe de Glipwood... e longe de sentir o que
estava sentindo naquele momento.
Podo mastigou e engoliu suas panquecas lentamente, encarando seu neto em
um denso silêncio. “Tink, limpe seu prato e vá se vestir, rapazinho”, disse ele
sem tirar os olhos de Janner.
Nia ficou perto do fogão, olhando para o chão e com as mãos na cintura.
O velho grisalho limpou a boca com um guardanapo e agarrou as laterais da
mesa com suas grandes mãos.
Janner estava em apuros. Ele tinha certeza disso.
4

Um Estranho Chamado Esben

A porta se fechou atrás de Tink enquanto Nia puxava uma cadeira e se sentava
entre Podo e Janner.
“Rapaz, você sabe que eu te amo, né?” — perguntou Podo.
Janner acenou com a cabeça e acrescentou: “Sim, senhor”.
“Sei bem que não sou seu pai. Ele era um bom homem. Um homem valente.
Ele lutou bem e morreu bem, na Grande Guerra, e é meu dever educar vocês,
crianças, o mais próximo possível da educação que o seu pai desejaria dar pra
vocês.”
Janner olhou de relance para a mãe. Ela lutou contra as lágrimas enquanto se
levantava e se ocupava em tirar os pratos da mesa.
“Agora, garoto, você está ficando com as pernas compridas e sua voz está
ficando mais grossa. Espero que você perceba que está se tornando um homem,
hein?” — Podo olhou para Janner, uma sobrancelha branca e espessa erguida,
um olho semicerrado fixo nele. “Fala, rapaz.”
“Bom, tenho doze anos! Eu sei que não sou adulto, mas...” — ele parou,
incapaz de pensar no que dizer.
“Às vezes você sente que seu irmão e sua irmã podem pesar sobre você como
uma âncora, é isso? Às vezes você sente que esta pequena cidade é pequena
demais pras ambições em sua cabeça?”
Janner olhou para as próprias mãos. Com um profundo suspiro puxou a
imagem do bolso. Nia parou de limpar as coisas quando Janner desdobrou o
retrato e o abriu sobre a mesa. Ele não conseguia mais conter as lágrimas;
gotejavam da ponta do nariz e caíam sobre o retrato, misturando-se aos
respingos do mar.
Nia abraçou a cabeça de Janner contra o peito e alisou seu cabelo por um longo
instante. “Eu estava imaginando onde esse retrato foi parar.”
“É ele?” Perguntou Janner.
Nia acenou com a cabeça, lentamente. “Sim.”
“Ele quem desenhou?”
“Sim.” Nia enxugou as lágrimas do retrato com o avental. “Era uma época
diferente. Um mundo diferente.” Ela ficou quieta por outro longo instante.
“Antes dos Fangs. Seu pai não ia querer nada mais do que você poder navegar
em seus próprios mares, e um dia você navegará. Mas se estivesse aqui, ele diria
a você a mesma coisa que seu avô está dizendo. Há um tempo para navegar e um
tempo para ficar parado.”
“Rapazinho, eu entendo mais do que você imagina.” A voz de Podo estava
mais suave. “Mas me escuta: eu tava lá quando seu pai morreu. Eu não vi, mas
eu tava lá do mesmo jeito.”
Janner ergueu os olhos bruscamente. “O senhor estava lá? O que aconteceu?”
“Aham.”
“Papai, não...” Nia interrompeu.
“Já é hora de Janner saber alguma coisa sobre suas origens, mocinha.” Podo
apontou para o retrato, depois para Janner. “Olha pra ele... é a mesma cara...”
“Não vejo o que isso tem a ver com nada disso. Ressuscitar a memória de
Esben dos mortos não vai adiantar nada. Nada de bom.” A voz de Nia estava
trêmula.
Janner odiava ver sua mãe tão chateada, mas queria desesperadamente ouvir
mais. “O nome dele era Esben?” Perguntou Janner, pois esperava manter Podo
falando.
Podo e Nia olharam para ele, tristes.
Nia beijou o cabelo de Janner. “Chega. Por favor” — disse ela a Podo e saiu da
sala.
Janner ficou em silêncio.
Podo ficou em silêncio.
Os thwaps no saco ficaram em silêncio.
Finalmente, Podo pigarreou. “Bom, você precisa confiar em mim. Vejo seu pai
em você. Ele foi um grande homem. Ele lutou por nós. Morreu lutando por nós.
Sua irmã e seu irmão são pequenos tesouros, assim como você, e não queremos
perder nossos tesouros.” O velho inclinou-se para frente e baixou a voz. “Sangue
foi derramado para que vocês três pudessem respirar o bom ar da vida, e se isso
significa você perder um jogo de zibzy, então que seja. Parte de ser homem é
colocar as necessidades dos outros antes das suas.”
Janner pensou em Tink e Leeli. A ideia de sempre ter que cuidar deles ainda o
irritava, mas ele os amava. Ele queria ser um homem bom e corajoso como seu
pai — cujo nome acabara de ouvir pela primeira vez. “Sim, senhor. Eu vou
tentar”, atestou ele, sem ainda conseguir olhar nos olhos do avô. Janner então
dobrou o retrato e, interrogativamente, olhou-o de lado. Podo consentiu com um
aceno de cabeça, e logo em seguida, com cuidado, Janner colocou o retrato de
volta no bolso.
“Agora, rapaz, já que está tão crescido, por que você, seu irmão e sua irmã não
vão pro festival sem sua mãe e eu, por enquanto? Ainda temos algumas coisas
pra cuidar. Você está no comando.”
“Mas mamãe disse que Leeli não podia...”
“Ei!” — Podo riu. “Eu cuido da sua mãe. Apenas mantenha sua irmã perto de
você. Sua mãe e eu iremos logo depois. Você dá conta?”
“Sim, senhor”, afirmou Janner, repentinamente inseguro, imaginando se de fato
daria.
Podo bateu com a mão na mesa. “Certo, então. Agora, há algo que preciso que
você faça por mim antes de vocês três irem pro festival.” Ele entregou o saco de
thwaps para Janner e baixou a voz. “Você se importaria de jogar esses fedorentos
no penhasco para o seu bom e velho Podo?”
Os olhos de Janner se arregalaram. “O quê?!”
“Ah, tô brincando” — lamentou Podo, frustrado. “Não consigo mais fazer isso
depois da pequena encenação de Leeli.” Então Podo, enfiando a mão no bolso e
entregando a Janner três moedas acinzentadas, abocanhou outra panqueca,
engoliu-a e arrotou. “Compre uns doces pra vocês.”

5

O Livreiro, o Homem-Meia e a Cidade de


Glipwood

As crianças Igiby correram pelo gramado do chalé, embora o passo tivesse de


acompanhar a velocidade de Leeli mancando. Janner resistiu ao impulso de
oferecer-lhe ajuda. Ele havia aprendido, há muito tempo, que sua irmãzinha era
capaz de se virar sozinha e que se quisesse ajuda, ela mesma pediria. Janner
também sabia que, embora ela fosse persistentemente independente, Leeli ia
querer persistentemente que eles a esperassem.
Mesmo com uma perna defeituosa, Leeli era incrivelmente rápida, e seus
irmãos trotavam pela estrada sombreada que levava à cidade de Glipwood.
Nugget caminhava ao lado de Leeli, abanando o rabo, e se as crianças Igiby
tivessem rabo, também o teriam abanado. Eles já podiam ouvir o som incomum
de risos vindo da direção da vila e da música alegre se elevando por cima dos
carvalhos.
Repentinamente, Janner sentiu-se satisfeito por receber a responsabilidade de
cuidar de seus dois irmãos mais novos. Achou graça ao pensar na rapidez com
que seus sentimentos mudaram. Poucos minutos atrás, ele se sentia acorrentado
por sua responsabilidade — agora, porém, estava orgulhoso. Ir até a cidade
sozinho com Tink e Leeli era muito diferente de navegar sozinho em mar aberto
como seu pai havia feito, mas teria que servir.
Janner se perguntou o que seu amigo, o velho Oskar N. Reteep da livraria, diria
quando visse os Igibys sem nenhum adulto acompanhando. Será que Oskar lhe
daria mais trabalho na loja ou o deixaria levar mais livros para casa? Talvez ele
finalmente permitisse que Janner lesse os livros reservados apenas para pessoas
mais velhas, aqueles grossos nas prateleiras superiores com encadernação antiga.
Ele sorriu para si mesmo. Afinal, a responsabilidade talvez não seja tão ruim
assim.
“Então, o que aconteceu lá?” Tink perguntou enquanto seguiam pela estrada.
“Nada.”
“O que você quer dizer com nada?” Tink parecia frustrado. “Nenhuma
palmada?”
“Não. Sem palmadas.”
“Então, quando se tem doze anos, você pode ser mal-educado e se safar?”
“É complicado”, lamuriou Janner, pensando novamente em seu pai. Ele se
perguntou quando mostraria o retrato a Tink e Leeli.
“Mal posso esperar para ter doze anos.” Tink sorriu maliciosamente enquanto
contornavam a esquina para a rua principal.
Janner sorriu de volta para seu irmão, mas, por dentro, estava preocupado.
Esben. Esben Igiby, ele pensava. Saber o nome de seu pai fez Janner pensar nele
como uma pessoa real, não apenas uma sombra feliz de seus sonhos. Havia
muitos dias em que ele não pensava tanto no pai, mas sempre que as outras
crianças em Glipwood falavam de seus pais, ou quando perguntavam a Janner
por que vivia com seu velho avô, ele se sentia uma aberração. Janner sabia que
Leeli e Tink sentiam a mesma coisa. Todos os outros em Glipwood haviam
crescido lá, ou em algum lugar nas proximidades. Mas sempre que Janner
perguntava a Podo ou Nia de onde sua família veio, a resposta era,
invariavelmente, o silêncio. Tudo o que ele sabia era que Podo havia crescido no
chalé, e que seus ta-tataravós (ta-ta-tataravós de Janner) haviam construído a
casa uns duzentos anos antes, quando Glipwood era pouco mais que um punhado
de edifícios.1
Agora, Glipwood possuía uma rua principal com vários edifícios de cada lado.
A Taverna do Crespo ficava à esquerda — seu telhado verde-escuro exibia a
imagem de um cachorro com um cachimbo pendurado na boca. Ao lado ficava o
maior edifício da cidade, a única pousada de Glipwood. No alto, uma placa dizia
a única pousada, e abaixo disso, em letras menores, “a única pousada de
Glipwood”. Os Shoosters, um gentil casal de idosos, mantinham a pousada
aconchegante e limpa, e os aromas que emanavam da cozinha deixavam toda a
cidade com água na boca. Do outro lado da rua havia uma barbearia chamada J.
Bird, onde o Sr. Bird geralmente podia ser visto dormindo em uma de suas
cadeiras. Ao lado da barbearia estava a cadeia da cidade, onde Fangs relaxavam
no alpendre e lançavam insultos aos transeuntes.
Carvalhos largos e musgosos estendiam seus galhos sobre as ruas, oferecendo
uma sombra bem-vinda ao sol de verão. Crianças com rostos pegajosos andavam
em passos largos, saboreando várias sobremesas. Para onde quer que Janner
olhasse havia homens e mulheres de diferentes estruturas e tamanhos. As
mulheres usavam vestidos longos, esvoaçantes e de cores vivas, e os homens que
lhes faziam companhia baforavam cachimbos e portavam ridículos chapéus de
topo redondo. Ocasionalmente, uma carruagem puxada por cavalos passava
rangendo — seus ocupantes espreitavam presunçosamente pela janela.
Janner, Tink e Leeli, com Nugget ao seu lado, abriram caminho pela cidade,
passaram pela Pousada (sempre cheia naquela época do ano, sendo a única
pousada de Glipwood), pela Floricultura da Ferínia e pelo edifício, velho e
frágil, que abrigava a Livros e Vãos. Havia uma placa pendurada na janela:

Oskar N. Reteep
Proprietário/Livreiro/Intelectual/Apreciador
do organizado, do estranho e/ou do saboroso

Oskar N. Reteep, um homem redondo com uma barba curta, branca e
pouquíssimo cabelo no topo da cabeça, acenou para eles de sua varanda, onde se
sentava em uma cadeira de balanço, fumando um longo cachimbo. Ele havia
penteado longas mechas de cabelo sobre sua cabeça de ovo, parda e sardenta, na
vã tentativa de esconder o fato de ser careca. A brisa agitava uma longa mecha
do cabelo, como se também estivesse acenando para as crianças.
“Olá, Janner!” Ele chamou, sorrindo e acenando para as crianças.
“Olá, senhor Reteep”, Janner gritou mais alto que o ruído da multidão.
Da janela atrás de Oskar, um homenzinho com orelhas pontudas os observava.
Zouzab Koit era um corre-crista2 que Oskar havia adotado seis anos antes,
quando abriu uma caixa que deveria estar cheia de livros vinda de Torrboro. Em
vez disso, Oskar foi surpreendido ao encontrar dentro da caixa um Zouzab
faminto, assustado e encolhido.
Corre-cristas eram um povo pequeno e pouco conhecido em Skree, mas Oskar,
um autoproclamado Apreciador do Organizado, do Estranho e/ou do Saboroso,
decidiu que Zouzab certamente se qualificava. As descrições de Zouzab de sua
terra natal e de sua vida angustiante nas Montanhas Picos-da-Morte eram muito
Organizadas, como eram seus cabelos crespos e feições pontudas. Suas vestes e
comportamento eram bastante Estranhos. Ele usava calças de couro e uma
camisa de tecidos e retalhos em vários formatos e com várias cores que
ondulavam em torno dele como uma centena de pequenas bandeiras. O mais
estranho de tudo: Zouzab não conseguia evitar escalar tudo quanto fosse mais
alto do que ele próprio — ou seja, a maioria das coisas. Quanto a ser Saboroso,
Oskar não se importou em especular.
Janner pensou em como ambos juntos pareciam bastante estranhos: Oskar
redondo como uma abóbora e Zouzab curto e fino como uma erva daninha
tosquiada.
Leeli acenou para Zouzab. Seus olhos redondos se arregalaram e ele sumiu de
vista.
“Onde está Podo?” Oskar perguntou, limpando os óculos no colete.
Janner tentou parecer indiferente. “Lá no chalé. Disse que podíamos vir
sozinhos hoje.”
“Oh-ho.” Oskar olhou para Janner através dos óculos empoleirados na
extremidade de seu nariz. Janner sorriu. “Chegue bem cedo depois de amanhã,
hein? Encontrei um verdadeiro tesouro de livros em minha última viagem a
Cavadópolis. Vou precisar de ajuda para carregá-los.”
“Sim, senhor, chegarei cedinho”. Janner começou a pensar em todos os livros
que leria em seguida.
Oskar estreitou os olhos em Tink e o olhou de cima a baixo. “E traga esse
magrela do seu irmão, também. Poderemos usar uma mãozinha extra e, pelo que
parece, o exercício lhe será útil.”
Os olhos de Tink se arregalaram. “Sério, senhor Reteep?”
“Isso mesmo, rapaz.” Oskar sorriu para Leeli. “O que você acha de toda essa
confusão, moça? Glipwood é uma cidade diferente por um dia, não é?”
Leeli olhou ao redor para o povo que passava por eles, apreendendo a vista, os
sons e os cheiros que eram tão estranhos à pacata cidadezinha. Ela sorriu. “Eu
gosto disso tudo, mas, depois de um dia tão cheio, ficarei feliz quando as coisas
voltarem ao normal.”
Janner revirou os olhos. “Bom, eu gostaria que Glipwood fosse assim todo dia.
Eu gostaria que A Única Pousada estivesse sempre cheia de viajantes e
comerciantes com novidades de Torrboro e Forte Lamendron, ou de histórias de
exploradores que foram além das fronteiras dos mapas. Você já pensou que pode
haver continentes inteiros que ninguém de Skree nunca viu? Que ninguém em
lugar nenhum viu? Nunca estivemos em Forte Lamendron, e Podo diz que fica a
não mais que um dia de viagem daqui. Todas essas pessoas ricas de Cavadópolis
e Torrboro conseguem realmente enxergar Kistamos, não apenas recolher feno o
dia todo...”
Oskar ergueu as sobrancelhas para Janner, cuja fala foi sumindo com a reação
inquisitiva do amigo. Oskar então enxugou a fronte e pressionou uma única
mecha de cabelo Reteep de volta à testa. “Então, Glipwood é muito pequena
para Janner. O que você diz, jovem Tink?”
Tink farejou o ar. “Eu quero uma torta de amora.”
“Janner”, disse Oskar, “há mais coisas no mundo do que apenas enxergá-lo. Se
não consegue encontrar paz aqui em Glipwood, você não vai encontrá-la em
lugar nenhum.” Oskar apontou para uma carruagem que passava. “Aquelas
pessoas podem parecer ricas, mas nenhuma delas mais é, de fato. Se você olhar
de perto, verá que os ternos e vestidos que essas ditas pessoas ricas vestem estão
esfarrapados e remendados. Nem brincos, nem colares adornam as mulheres.
Nenhum anel brilha nos dedos dos homens.”
Janner viu que era verdade. Por que nunca percebeu aquilo antes? Aborrecido,
acenou com a cabeça para Oskar e chutou a terra com um pé. Era seu dia de ser
corrigido pelos adultos, pensou.
“Rapaz, uma coisa é ser pobre no bolso — nada de errado com isso. Mas ser
pobre de coração não é nada bom. Olhe pra esse pessoal. Eles têm a tristeza nos
olhos, e é uma tristeza que nenhuma quantia de dinheiro pode reparar. Céus!
Eles nem se lembram mais como é rir de verdade.”
“Mas eles parecem estar felizes, não é, senhor Reteep? Pudemos ouvir as
risadas e a música lá de cima”, especulou Leeli.
“O pessoal vem a Glipwood para ver os dragões porque é uma das poucas
liberdades que restou. Claro, eles dormem sob seus próprios telhados com suas
próprias famílias, e embora esteja arrasada, esta ainda é sua própria terra. Mas
isso está muito longe da liberdade, jovens Igiby. Alguns de nós ainda se
lembram de como era passear pela cidade após escurecer, ou, sem medo, andar a
cavalo na floresta.” A voz de Oskar aumentou em irritação e pareceu a Janner
que ele não estava mais falando com eles, mas consigo mesmo. “Está
começando a parecer que os Fangs sempre estiveram aqui, e que aquele Gnag, o
Sem-Nome sempre nos governou, nos cobrou impostos e roubou nossos filhos.”
Janner olhou para os sorrisos refreados nos rostos das pessoas. Ele viu a forma
como as pessoas se esquivavam dos Fangs zombeteiros, no alpendre da cadeia.
Havia tristeza por baixo de toda aquela alegria e, pela primeira vez, Janner tinha
idade suficiente para sentir e entender tudo aquilo.
Oskar voltou a si e sorriu para as crianças. “Bom, mas está um ótimo dia, não
é, jovens Igiby? Há hora de pensar sério e hora de relaxar. Agora, vão andando.
Como escreveu sabiamente o grande Polegar do Prado da Corneta, ‘Os jogos vão
começar suficientemente em breve!’.” Oskar acenou para eles com uma
piscadela, enquanto baforava seu cachimbo e espalmava o cabelo de volta para
sua careca.
Com o coração pesado, as crianças desceram pela rua aglomerada. Janner
estava perdido em pensamentos, olhando fixamente para o Comandante Gnorm,
o Fang mais gordo e cruel em Glipwood. Os pés de Gnorm estavam apoiados em
um velho cepo, e ele estava roendo a carne de um osso de galinha — sua longa
língua roxa sorvendo ruidosamente. Gnorm jogou o osso contra um idoso que
passava e os soldados Fangs sibilaram e riram enquanto o homem se curvava e
limpava a gordura de seu rosto. Janner achava difícil acreditar que já existiu um
dia em que ninguém em Skree jamais ouvira falar dos Fangs de Dang.

Passando a cadeia, em frente ao pequeno edifício que alojava a prensa móvel,


um círculo de pessoas ria de alguma coisa. Acima das cabeças dos espectadores,
duas botas esfarrapadas davam chutes no ar.
Janner e Tink sorriram um para o outro.
“Peet, o Homem-Meia!” Tink apontou e saiu correndo. “Vamos, Leeli! Vamos
ver o que ele está aprontando.”
Os três forçaram caminho pela multidão e viram o estranho sujeito caminhando
sobre as mãos, no meio de todos. Ele cantava repetidamente a frase “asas e casas
e coisas rasas”, dando chutes com os pés, no mesmo ritmo. Tinha as bochechas
encovadas e os olhos enevoados, e as rugas ao redor deles davam-lhe a aparência
de ter acabado de chorar. Ele usava roupas esfarrapadas e estava imundo, assim
como as meias tricotadas e encardidas que usava nos braços, enfiadas até os
cotovelos.
Espectadores jogavam moedas, mas para os moradores de Glipwood, esse era o
comportamento normal de Peet. Na verdade, no início daquele verão, Peet se
chocou contra a placa de sinalização na esquina da Rua Principal com a Via
Vibbly (que foi inocentada, já que estava parada e bem à vista). Depois de
insultar a mãe da placa, Peet a desafiou para um duelo, embora a dita cuja,
estoicamente, não tivesse mostrado nenhum sinal de retaliação. Ele, então,
desferiu-lhe um golpe forte, errou, rodopiou como uma dançarina de circo de
Cavadópolis e desabou no chão, onde roncou ruidosamente a noite toda.
Janner aplaudiu com a multidão quando Peet deu um salto para trás e se pôs de
pé, ajeitou o cabelo com um floreio e se mandou com um olho fechado e uma
mão enluvada na boca, deixando as moedas na poeira. Janner sorriu olhando
para Peet, cuja espessa cabeça ia dançando pela rua empoeirada até sumir na
esquina.
“E lá se foi ele!” Constatou Janner.
“Você acha que é verdade que ele mora perto da velha floresta?” Tink
perguntou.
Janner encolheu os ombros. “Ele teria que ser louco pra viver lá.” Nos anos
anteriores à Guerra, guardiões e caçadores enfrentavam a floresta e controlavam
as feras mortais que rondavam dentro dela. Mas os Fangs confiscaram todas as
armas da terra. Cada espada e escudo, cada arco e flecha, cada adaga e lança,
cada ferramenta agrícola que poderia ser usada como arma: tudo, absolutamente
tudo estava guardado e trancafiado.3
“Bom, se alguém é louco o suficiente pra chegar perto da floresta, esse maluco
é o Peet.” Tink pausou. “Os irmãos Blaggus disseram que o viram perto da
floresta, cavalgando uma vaca-dentada como se fosse um cavalo, batendo nos
lombos dela com uma vara. Eles disseram que Peet estava cantando uma
balada.”
Janner bufou. “Sem chance! Ninguém sobrevive a uma vaca-dentada. Sem
contar que os irmãos Blaggus são medrosos demais para chegar perto da floresta.
Eles estão tirando uma com a sua cara.” Janner se virou para ir embora.
“Vamos.”
Mas ele estancou no caminho e agarrou o braço do irmão. Não conseguia ver
Leeli. Sua cabeça girou de um lado para o outro, examinando a rua
movimentada.
“Onde está Leeli?!” — gritou. “Leeli!”
Tink deu um tapinha em seu ombro. Janner se virou e viu o irmão apontando
para o chão, perto dos seus pés. Leeli estava sentada ali, coçando a barriga de
Nugget, olhando para ele, inocentemente. Janner suspirou e sentiu o interior
estremecer de alívio. No espaço de alguns segundos, ele imaginou Leeli perdida
ou ferida, e sentiu uma pequena amostra da culpa dolorosa que carregaria se
algo, algum dia, realmente acontecesse a ela. Mas nada nunca acontece, Janner
pensou consigo, amargurado. Aqui estamos, no Festival do Dia dos Dragões, e
estou uma pilha de nervos desde o minuto em que chegamos. E estou assim por
nada.
O que, em nome dos céus, poderia acontecer em apenas alguns segundos?

6

Um Bardo na Esmeralda de Dunn

Venha”, Janner resmungou, aliviado, mas irritado consigo mesmo por entrar em
pânico.
Tink se agachou para ajudar Leeli a se levantar, mas ela o ignorou e se
levantou com a ajuda de sua muleta.
De repente, o toque de uma corneta atravessou o ar de verão e a multidão
aplaudiu. Os jogos estavam começando. Durante todo o dia, os jogos seriam
disputados na Esmeralda de Dunn, o amplo gramado no lado leste da cidade. Os
participantes e espectadores ficavam lá a maior parte da tarde assistindo a
corridas de sacos, partidas de handyball,1 de zibzy e torneios de caça ao frango.
Todo mundo deitava em colchas na grama macia e assistia aos esportes,
beliscando guloseimas compradas na cidade.
E era exatamente isso que Janner tinha em mente, se eles conseguissem chegar
lá.
Janner puxou Leeli pela mão livre e pediu a Tink que o acompanhasse. “Tem
como vocês dois andarem mais devagar?” — ironizou.
Tink estava muito mais interessado nos aromas deliciosos que emanavam das
cozinhas e barracas improvisadas onde os comerciantes vendiam pastéis cozidos
de massa de manteiga e barbatanas de treixe assadas na brasa.
“Pera aí, eu quero um pãozinho de frutas vermelhas.” Tink revirou o bolso com
a mão que Janner não estava puxando.
Janner estava perdendo a paciência. “Se você quer tanto assim, mais tarde eu
compro o pãozinho de frutas pra você. Mas agora, vamos”, resmungou.
Tink cedeu, lançando de lado um olhar longo e arrependido para um homem
rechonchudo, de avental, regando um prato de pães com uma geleia vermelha e
viçosa.
Quando finalmente chegaram à Esmeralda de Dunn, as crianças Igiby
sentaram-se no gramado e assistiram às festividades durante toda a manhã e até a
tarde esquentar. Quando o sol se punha a oeste e as sombras aumentaram, as
pessoas começaram a tagarelar ainda mais. Ao anoitecer, os dragões-marinhos
chegariam e as multidões iriam se empoleirar nas falésias para vê-los dançar à
luz do luar. Janner podia sentir a expectativa no ar.
Para sua alegria, Tink avistou, logo atrás dele, um comerciante vendendo
pegajosos bolinhos de mirtilo. Ele havia usado as poucas moedas que Nia tinha
lhe dado, então Janner relutantemente compartilhou algumas das suas só para
acalmar o estômago de Tink (e sua boca, claro). Tink não tinha ideia de que seu
rosto estava então manchado de roxo escuro. Leeli se contentava em assistir aos
jogos passivamente, enquanto fazia cócegas na barriga de Nugget ou jogava um
pedaço de pau para ele buscar. Os espectadores toleraram aquilo até que ela
acidentalmente jogou o toco de madeira no campo de jogo. Quando Nugget o
perseguiu, um dos jogadores de handyball (que estava se remexendo
desajeitadamente pelo campo, tomando cuidado para não deixar seus pés
tocarem a grama) perdeu um passe de outro jogador porque Nugget entrou em
seu caminho. Todos os olhos se voltaram com raiva para Leeli, cujas bochechas
ficaram tão vermelhas quanto as de Tink estavam roxas. Mas quando os
espectadores viram a muleta de Leeli, suavizaram os olhares e o jogo continuou.
Janner ficou feliz por Leeli estar ocupada demais repreendendo Nugget para
notar a pena da multidão, ou ela teria ficado ainda mais chateada.
Janner estava tão animado com todos os rostos desconhecidos ao seu redor
quanto com os jogos. Ele se perguntava de onde era toda aquela gente, embora o
traje denunciasse algumas delas. Os cidadãos de Torrboro, por exemplo, se
vestiam da mesma forma: os homens usavam chapeuzinhos pretos, casacos com
cauda longa (apesar do calor do verão) e calças puxadas até uma altura chocante:
as fivelas dos cintos ficavam um pouco abaixo do queixo! As mulheres elegantes
usavam vestidos de babados com padrões que representavam o nariz de vários
animais; seus sapatos pretos eram grandes e pontiagudos, como se os dedos dos
pés fossem do tamanho dos próprios pés — o que fazia as mulheres darem um
salto para a frente ao caminhar. Para Janner, era como assistir a palhaços de circo
(sobre os quais ele só havia lido) tentando desesperadamente não ser engraçados.
A maioria daquelas pessoas usava luvas brancas. Então, quando um jogador de
handyball marcava um gol, o som de seus aplausos era mais parecido com umas
palmadinhas do que com palmas, e eles diziam coisas como “Bela
apresentação!”, ou “Ei-alá!-mãe-me-dá-um-plá!”, ou “U-haa!”, ou “Jogada
indiscutivelmente boa!”.
O povo de cabelos compridos de Cavadópolis não era tão estranho em seus
trajes, mas seus modos eram chocantes. Homens e mulheres falavam alto e suas
risadas soavam mais como uivos. Janner percebeu que certas palavras que eles
usavam eram inaceitáveis para o povo de Torrboro, que estava por perto, mas os
cavadopolienses nem ligavam. Eles rosnavam, grunhiam e faziam um barulho
tão alegre que era difícil não gostar deles, apesar de tudo.
Cada estranho em Glipwood, naquele dia, era um lembrete a Janner de que ele
nunca, nunca havia deixado a cidade. Eles incitavam sua imaginação e o
enchiam de vontade de ver o mundo. Mas então ele ouvia Leeli dar uma
risadinha ou Tink arrotar e lembrava, de novo, que, por enquanto, teria que
cuidar da irmã e do irmão naquela cidadezinha terrivelmente quieta — isto é,
quieta exceto no dia em que os dragões-marinhos vinham. Janner então resolveu
se divertir e afastou todos os pensamentos desagradáveis.
De repente, uma comoção em todo o campo interrompeu os pensamentos de
Janner — e o jogo de handyball. Os espectadores perto do gol oposto haviam se
virado, tentando abrir espaço para algo ou alguém. Sussurros animados
circulavam pela multidão, mas Janner não conseguia entender o que estavam
dizendo. Vozes se ergueram do aglomerado, e até mesmo os jogadores, suados e
cobertos de grama e terra (embora seus pés estivessem bem limpos), pararam e
se concentraram na confusão.
Janner e Tink se levantaram para tentar ver o que estava acontecendo, mas não
havia nada para ver além de espectadores agitados se afastando do caminho
enquanto alguém passava por eles. As sentinelas dos Fangs rosnaram e silvaram,
irritadas com a perturbação. Eles estavam encarregados de manter o povo sob
controle, e algo incomum estava acontecendo. Tanto quanto odiavam os
skreenianos elas também não estavam interessadas em ter nenhum trabalho extra
num dia quente como aquele.
Então o boato finalmente chegou aos ouvidos de Janner. Uma mulher
corpulenta à sua direita engasgou e, sem fôlego, disse ao marido corpulento que
Armulyn, o Bardo aparecera sem avisar e fora convidado a cantar pelo honorável
prefeito de Glipwood, Blaggus.2
Tink e Janner olharam um para o outro sem acreditar. Armulyn, o Bardo estava
lá, em Glipwood? Será que o mesmo homem que afirmava ter visitado a
Brilhante Ilha de Anniera,3 o mesmo Armulyn que vagara pelas terras cativas e
cantara as lendas de Kistamos,4 de grandes feitos e grandes amores, estava agora
em Glipwood, vestido em seu traje real e montado em seu majestoso cavalo?
Todos os pensamentos sobre o jogo de handyball desapareceram. Os jogadores
ficaram bastante aliviados com o fato e se levantaram, gemendo e se alongando.
Dois homens corpulentos empurraram uma carroça vazia para o centro do campo
de jogo. O prefeito Blaggus deu um gemido para subir na plataforma
improvisada e ela rangeu sob seu peso (ele havia comido pastéis com manteiga
um tanto demais, naquele dia). Ele usava calças escuras e uma camisa vermelha
brilhante. Uma pena amarela berrante brotava de seu chapéu, e ele franzia o
bigode com presunção. Blaggus estendeu as mãos para silenciar o público e
então se virou, dirigindo-se aos Fangs.
“Com a permissão de nossos oniscientes e incrivelmente bonitos, poderosos e
ágeis soldados”, declarou ele, curvando-se tão profundamente que sua barriga
tocou nos joelhos, “gostaríamos de ouvir uma ou duas canções do bardo
Armulyn. Suplicamos a Vossas Excelências este prazer banal, pelo qual lhes
renderemos eterna gratidão e servidão.”
“Fale por si mesmo”, murmurou Tink com um olhar de soslaio para os Fangs,
cujos sorrisos escamosos mostravam o quanto apreciavam a humilhação do
prefeito. Um dos Fangs acenou com a cabeça e soltou um ruído estridente que
poluiu o ar como fumaça.
“Agradecemos, amáveis mestres.” O prefeito Blaggus limpou a garganta. Seu
tom mudou abruptamente para a voz majestosa e inflada que ele havia usado por
muitos anos, antes da Grande Guerra. “Meus queridos amigos e vizinhos, uma
honra raramente concedida erigiu-se sobre nós como um sol radiante”, anunciou
o prefeito. “Armulyn, o Bardo, arauto de histórias da imaginária Ilha Brilhante
de Anniera, por acaso juntou-se a nós em Glipwood, neste belo dia. Ele aceitou
meu convite para se apresentar a nós. Por favor, deem as boas-vindas a este filho
de Skree, hoje, à beira-mar de Glipwood. Senhoras e senhores, apresento-lhes
Armulyn, o Bardo!”
Um homem enlameado subiu na carroça, portando uma harpa eólica5 já gasta
sob um dos braços. O sorriso em seu rosto rígido lembrou a Janner um menino
travesso, prestes a desobedecer. Armulyn piscou para a multidão e berrou: “Olá,
queridos skreenianos! Os Fangs são feios!”
Os aplausos cessaram abruptamente, e os quatro Fangs, parados nas
extremidades da multidão, atroaram um berro arrepiante e correram, sibilando,
em direção ao bardo.

7

Descalço e Mendigo

Janner sentiu o brilho do suor frio cobrindo-o como uma febre. Ele levou um
tempo para entender o que ouvira. Teria Armulyn acabado de insultar os Fangs?
No turbilhão daquele choque explodiu-lhe uma dúvida incessante: aquele
mendigo na plataforma seria, de fato, o famoso contador de histórias? Houve
algum erro? Certamente Armulyn, o Bardo pelo menos estaria usando sapatos,
ele imaginou. E pela aparência imunda e calejada dos pés daquele homem,
Janner podia ver que não andava a cavalo, mas, aonde quer que fosse, ia a pé.
Não fosse pela harpa eólica gasta debaixo de um dos braços e a líquida
profundidade no olhar, Janner já teria acreditado que o homem era um impostor.
Os Fangs empurraram o povo para o lado e avançaram em direção à carroça,
desembainhando suas espadas enquanto corriam. Todo o corpo de Janner se
contraiu e ele estava tentando desviar os olhos do momento em que os Fangs
alcançassem Armulyn. Muitos na multidão emergiram do choque em tempo de
gritar.
Mas o bardo simplesmente permaneceu na carroça e sorriu. No que os Fangs se
aproximaram, Armulyn dedilhou sua harpa eólica e ergueu a voz numa canção.
Os Fangs vacilaram, pararam bruscamente e agacharam-se diante de Armulyn,
tentando em vão cobrir as orelhas e, ao mesmo tempo, brandir suas espadas
contra ele.
“Sssilêncio!” — um deles sibilou.
Armulyn parou de cantar e ergueu as sobrancelhas para eles, como se
aborrecido com a interrupção.
“Pois não?”
“Cuidado, bardo”, o Fang cuspiu. “Não seria difícil pra nós cortá-lo em
pedaços e tomá-lo numa sopa.”
Armulyn, com o mesmo sorriso insolente de antes, olhou para suas caras
sinistras. “Duvido que vocês apreciariam meu gosto. Sou magro e mal
alimentado.” O único som restante era o barulho das folhas ao vento. “Isso é
tudo?” Perguntou o Bardo, depois de um momento, levantando a harpa eólica
para voltar a entoá-la.
Os Fangs estavam petrificados, mas Janner pensou ter visto seus olhos negros
se moverem de soslaio para a multidão que os rodeava no gramado.
“Desfrutem de suas canções mesquinhas” — o líder Fang rosnou, virando-se
para a multidão. “E nós desfrutaremos de matar todos assim que Gnag, o Sem-
Nome decidir que basta pra vocês. Que esse dia chegue logo.” A língua do Fang
se projetou por entre suas longas e afiadas presas, e sua boca arqueou-se para
cima, num sorriso. Ele rangeu os dentes e sibilou para uma menininha, que se
encolhia grudada aos pés dos pais, enquanto os que estavam ao redor, no campo,
olhavam para o chão ou fechavam os olhos. O Fang que falara cuspiu na grama e
se afastou, seguido de seus três companheiros que também sibilavam.
O silêncio foi quebrado pelo toque da harpa eólica. O homem barbudo
levantou a voz novamente em uma canção, e não houve mais qualquer dúvida na
mente de Janner de que era, de fato, Armulyn, o Bardo. A multidão ficou
maravilhada enquanto ele cantava “A Balada de Lanric e Rube”,1 e Janner e
Tink se viram segurando as lágrimas enquanto ouviam a trágica história. Depois
dessa, ele cantou outra para a plateia extasiada, e mais outra, até que o sol se pôs
a oeste e a luz ficou dourada, alongando as sombras no gramado.
Como se de alguma forma soubesse, o bardo encerrou sua última canção,
momentos antes do som de uma trompa baixa rasgar o ar escuro. Armulyn deu
um grande sorriso e muitos ouvintes arfaram de entusiasmo.
“Os dragões”, comemorou Janner, agarrando Tink pelos ombros. Tink sorriu de
volta para ele com suas bochechas pegajosas e roxas.
“Vamos lá”, chamou Tink. “Temos que encontrar um bom lugar.”
“Vamos, Leeli!” Janner gritou, virando-se para ir embora. As pessoas na
multidão estavam se levantando e voltando em direção à cidade. “Leeli?” —
Janner perguntou outra vez, voltando-se quando ela não respondeu.
Mas Leeli havia sumido.
Janner disse a si mesmo para se acalmar. A mesma coisa havia acontecido
antes. Ela não poderia ter ido longe. Há pouco ela estava ali no gramado,
esfregando a barriga de Nugget, certo?
“Leeli Igiby!” — ele a chamou, virando-se em todas as direções. As pessoas
estavam em todos os lugares, empurrando os meninos enquanto passavam por
eles.
“Saia da frente, garoto”, resmungou um velho com uma bengala, segurando as
calças até o queixo enquanto passava. Os vestidos largos das mulheres de
Torrboro passavam por Janner e Tink, puxando-os de um lado para o outro.
Então, um grupo turbulento de cavadopolienses apareceu como uma parede
diante deles. Janner se viu esquivando de cotovelos e mergulhando entre pernas,
e duas vezes tropeçou nos sapatos pontiagudos das mulheres de Torrboro.
Tink não podia ser visto em lugar nenhum, mas Janner sabia que ele estava
perto por causa dos gritos de surpresa e dos xingamentos vindos de sua esquerda.
Janner temia que os Fangs pudessem ser atraídos por esta nova comoção, mas
para seu alívio a multidão finalmente diminuiu e ele viu que os Fangs haviam
sumido.
“Isso foi quase divertido”, reclamou Tink, limpando-se. Janner se virou e
agarrou Tink pelo colarinho.
“Não há nada de divertido nisso, Tink. Você entende que ela pode estar
machucada? Ela pode ter sido levada por um Fang. Ou morta por um!
Precisamos encontrá-la!” Janner olhou para seu irmão. Tink era realmente tão
tolo que não percebia o quão grave era a situação deles? Tão preocupado quanto
estava com Leeli, Janner também estava pensando em sua própria pele. O que
Podo faria quando descobrisse que Janner falhou em seu dever? Como ele
viveria consigo mesmo se algo realmente acontecesse com sua irmã?
Tink tirou as mãos de Janner de sua camisa e recuou. Ele olhou ao redor, na
Esmeralda de Dunn, para as pessoas que ainda estavam lá dobrando suas colchas
e recolhendo seus pertences para a caminhada até os penhascos. Finalmente Tink
entendeu que a situação deles era terrível, e ele colocou as mãos em concha na
boca, virando-se em todas as direções, para gritar continuamente: “Leeli!”.
Podo havia lhes ensinado que, se algum dia se separassem, deveriam se
encontrar no último lugar em que todos estiveram juntos. Certamente Leeli
estaria esperando por eles inocentemente, com Nugget no colo, assim que o resto
da multidão se dispersasse.
“Ela deve estar aqui por perto, Tink. Eu sei que ela estava aqui com Nugget
apenas alguns minutos atrás.” Janner examinou o gramado com uma mão na
testa.
Tink não respondeu. Suas sobrancelhas estavam franzidas e ele estava torcendo
as mãos, chamando o nome da irmã com um tremor na voz.
“Ela vai ficar bem, você vai ver”, consolou-o Janner, tentando parecer otimista.
Tink e Janner chamaram por ela até que a multidão estava quase toda dispersa,
mas, ainda assim, Leeli continuava fora de vista. Janner perguntou aos poucos
que ainda restavam da multidão se tinham visto uma menininha, mas eles
responderam apenas com olhares irritados; estavam muito mais preocupados
com os dragões-marinhos do que com aquelas crianças irritantes. Finalmente,
Janner e Tink ficaram sozinhos no gramado, sob uma luz fraca.
A pequena Leeli Igiby havia sumido. Os irmãos se entreolharam, incapazes de
falar, sem saber o que fazer. Então, um som fraco chegou aos ouvidos deles
vindo da direção da cidade — um som que transformou seu medo em terror e
que os fez correr o mais rápido que podiam.
Um cachorro latia e alguém, uma menininha — Leeli! — estava gritando.

8

Duas Pedras Atiradas

Mais rápido, Janner!” — Tink gritou, sem olhar para trás, enquanto disparava em
direção à cidade. Janner bufava atrás dele, incapaz de acompanhá-lo. Ao
passarem pelo curral na orla da cidade, Janner ouviu um som mais profundo,
abaixo dos gritos de Leeli e dos rosnados de Nugget: os terríveis e
inconfundíveis silvos e rosnados de um Fang.
Janner olhou de um lado a outro da rua, desesperado por alguma pista de onde
vinham os gritos, mas pareciam estar em todos os lugares. Tink desembestou
pela rua principal, que estava quase deserta. Os poucos adultos que restaram se
apressavam em direção aos penhascos, pensando apenas na dança anual dos
dragões-marinhos. Se eles ouviram os gritos e rosnados, não deram nenhum
sinal. Com o canto do olho, Tink viu, em um estreito beco entre a Floricultura da
Ferínia e a Barbearia J. Bird, um Fang se debatendo com algo. Tink parou
derrapando e Janner se chocou contra ele, quase o derrubando.
Lá no beco, em uma nuvem de poeira, Nugget disparava para frente e para trás
entre as pernas do Fang, evitando os esforços furiosos do Fang para atravessá-lo
com uma lança. Leeli gritou de novo e, sem pensar duas vezes, seus irmãos
correram pelo beco para salvá-la, embora ambos soubessem que não havia nada
que dois garotos pudessem fazer para enfrentar um Fang de Dang.
O estreito beco conduzia, por uma esquina, a uma pequena área entre a parte de
trás da Floricultura e seus estábulos. Leeli estava encolhida como uma bola
enquanto um segundo Fang a mantinha no lugar com o cabo de sua lança. Um
Fang observava com prazer mórbido enquanto o outro lutava com o pequeno
cachorro preto.
Nugget estava em frenesi, saltando de um lado para o outro, rosnando e
tentando morder o Fang.
O Fang perto de Leeli estava rindo com uma voz fina e estridente: “Qual é o
problema, Slarb? Essa coisinha fedorenta é demaisss pra você?”. Slarb rosnou
enquanto golpeava Nugget novamente. A lança acertou Nugget na perna e ele
ganiu.
Leeli gritou e o Fang a golpeou com o cabo de sua lança, justo no momento em
que seus irmãos surgiram na esquina — Tink na frente. Leeli os viu e começou a
chutar o Fang com o vigor renovado.
Janner se viu nas costas de Slarb, batendo nele com toda a força em torno do
pescoço e dos ombros. Era a primeira vez que ele tocava num Fang, e ficou
levemente surpreso com o quão fria e escamosa era a pele.
Tink voou, passando pelo segundo Fang, e agarrou os braços de Leeli tentando
puxá-la para longe.
Slarb, com Janner em suas costas, sibilou e se debateu — suas longas e afiadas
presas pingavam veneno que queimava ao toque.
Nugget mordeu a perna do lagarto e não largou.
O outro Fang agarrou Tink pelo colarinho da camisa e o lançou violentamente
para trás e para o chão, onde ficou sufocando e segurando sua garganta.
Leeli agarrou sua muleta, mas o Fang a arrancou dela e a quebrou em pedaços.
Ela viu os pedaços de madeira, gravados com flores roxas, se esfarelando pelo
ar.
O Fang, então, caminhou até Slarb e chutou Nugget com força na barriga,
fazendo-o voar com um gemido. O cachorrinho se chocou contra a parede de
madeira e caiu imóvel.
Slarb pegou Janner por cima do ombro, jogou-o no chão e, curvando-se sobre o
pescoço do garoto com sua mandíbula escamosa bem aberta, expôs-lhe suas
presas gotejantes prontas para a mordida. O segundo Fang desembainhou sua
espada e a ergueu para acertar Tink. Leeli nada podia fazer, a não ser fechar os
olhos e orar.
Naquele momento, houve um baque surdo. Os olhos negros de Slarb rolaram
para trás e ele caiu inconsciente, em cima de Janner. O segundo Fang teve tempo
de ver que Slarb havia sido atingido na cabeça por uma pedra do tamanho de um
punho, antes de sentir uma pedra se chocar contra sua própria têmpora. Ele
cambaleou por um momento, depois desabou no chão.
Tink estava lá, atordoado. “De onde vieram essas pedras?” — ele se perguntou,
ofegante. As mãos de Leeli estavam cerradas com força e seus olhos ainda
estavam fechados. Ela abriu um dos olhos, surpresa de que os três ainda
estivessem vivos.
Eles ouviram a voz abafada de Janner, debaixo do Fang, e Tink saiu de seu
torpor. Depois de alguns arquejos, ele empurrou Slarb, e Janner se arrastou com
um gemido, esfregando o pescoço no lugar onde o veneno ardente do Fang havia
pingado.
Janner correu até Leeli e ajudou-a a se levantar, inspecionando-a
cuidadosamente. “Você está ferida?”
Leeli estremeceu, mas balançou a cabeça, afastando o cabelo do rosto. Ela
abraçou seus irmãos e sorriu através das lágrimas teimosas. “Nugget!” Ela
gritou, e mancou até o pequeno amontoado negro.
Um dos Fangs gemeu e se mexeu.
“Precisamos sair daqui”, exclamou Janner. “Não queremos estar aqui quando
essas coisas acordarem.”
Leeli estava chorando, acariciando a cara de Nugget.
“Leeli, temos que ir”, insistiu Janner, puxando-a para longe do cachorro.
De repente, Nugget latiu e se levantou num salto. Pelos do pescoço eriçados,
dentes à mostra, ele espreitou ameaçadoramente. Mas sua ferocidade se
desmanchou quando viu Leeli, e ele começou a lamber seu rosto e abanar o rabo
como se nada tivesse acontecido.
Leeli lutou para se levantar e apontou para sua muleta arruinada. “Não vou a
lugar nenhum com aquilo.”
“Aqui”, prontificou-se Janner, esgueirando-se para o lado dela, tomando um de
seus braços e colocando-o em volta do próprio pescoço. “Parece que você vai ter
que nos deixar ajudar, pelo menos uma vez. Vamos!” — insistiu Janner, e eles se
apressaram saindo do beco, deixando-o completamente vazio.
Exceto, é claro, pelos dois Fangs caídos no chão, as duas pedras que os
nocautearam e a figura misteriosa no telhado da barbearia de J. Bird, assistindo
às três crianças Igiby fugirem.

A Trilha Glipper

Quando voltaram para a rua aberta, duas das três crianças e Nugget se sentiram
um pouco melhor. Leeli ficou feliz demais porque Nugget estava bem, Tink
estava muito contente porque Leeli estava bem e Janner estava apavorado
porque era o mais velho e havia começado a pensar no futuro. Ele sabia que
Glipwood era uma cidade pequena e seria apenas uma questão de tempo —
talvez horas, quem sabe apenas minutos — antes que o Fang chamado Slarb e
seu companheiro se reportassem ao Comandante Gnorm. Então, coisas terríveis
aconteceriam.
“Temos que ir pra casa.”
“Ah, Janner!” Tink choramingou, já pronto para a próxima aventura. “Não
podemos ver os dragões? Todo mundo está lá, e assim que a lua nascer...”
“Quando a lua nascer, você sabe o que vai acontecer?” Janner replicou
veementemente. Leeli e Tink ficaram em silêncio enquanto caminhavam pela
principal rua de Glipwood, então vazia. Janner tentou se acalmar. “O que vai
acontecer, além da dança dos dragões-marinhos, é que aqueles dois Fangs vão
acordar. E assim que despertarem, todos os Fangs em Glipwood estarão
procurando por três crianças e um cachorrinho preto. Ah, e a garota tem uma
perna aleijada. Agora me diga, você acha que eles terão dificuldade em nos
encontrar?” Janner terminou, mais irritado do que quando começou.
“O que faremos, então?” Leeli perguntou após uma longa pausa.
“Mamãe estará nos penhascos vendo os dragões, e lá provavelmente será o
primeiro lugar onde os Fangs nos procurarão. Podo sempre fica em casa no Dia
dos Dragões. Então, é pra lá que vamos. Podo saberá o que fazer.” Janner olhou
para o caminho que levava ao chalé. “Espero que saiba.”
“Aqui.” Tink colocou o outro braço de Leeli em torno de seu pescoço e
acelerou o ritmo.
Nugget, com a feição bastante séria, trotava ao lado deles, como se também
tivesse percebido que aquela era uma situação realmente ruim.
A escuridão se aprofundava à medida que avançavam, apressados. Assim,
quando ainda estavam à distância de um tiro de flecha da casa, eles já sabiam
que seu avô não estava lá. Nenhum lampião queimava na janela, nenhuma
fumaça saía preguiçosamente da chaminé. Janner parou — e Tink com ele —
enquanto colocavam Leeli na grama, cada um se curvando para recuperar o
fôlego.
“Onde... você... supõe… que… ele está?” Tink, ofegante, perguntou
pausadamente.
“Não sei” — respondeu Janner, andando de um lado para o outro.
“Talvez ele tenha ido ver os dragões este ano.” Tink estava em dúvida.
“Mas ele nunca vai aos penhascos no Dia dos Dragões”, retrucou Leeli,
intrigada. “Por que ele iria desta vez?”
“E por que ele não estaria aqui no chalé?” Perguntou Tink. “Acho que devemos
procurá-lo nos penhascos; então poderemos ver os dragões, afinal...” Um olhar
de Janner o interrompeu. Janner olhou para o leste, na direção do mar. Talvez
Tink estivesse certo. Talvez, por alguma razão, Podo houvesse decidido ver os
dragões naquele ano. “Tudo bem” — cedeu ele. “Mas vamos pegar a trilha
Glipper. Não podemos arriscar a estrada principal. Provavelmente, há Fangs em
todos os lugares. De qualquer modo, a trilha Glipper é mais rápida.”
Tink se queixou, mas Janner já estava ajudando Leeli em direção à trilha.1
Uma antiga trilha para caminhadas passava por entre as árvores atrás do chalé
Igiby e serpenteava precariamente perto da beira dos penhascos. Nas sombras
cada vez mais profundas, as crianças abriram caminho por entre as árvores.
Quando elas emergiram, a vista era terrível e vasta. O xisto e a grama dura
cobriam a orla rochosa da terra. O horizonte era silencioso e aberto, e um vento
salgado soprava para cima, em torno de seus tornozelos e pelos cabelos. As
crianças ficaram sem falar, tontas com a pequenez que sentiram ao olhar para o
Mar Sombrio da Escuridão.
Janner olhou para a direita e pôde ver uma trilha precária serpenteando sobre
pedras e arbustos, levando para onde as pessoas estariam olhando os dragões. A
Trilha Glipper permanecia quase nivelada em uma elevação estreita, enquanto o
solo próximo à linha das árvores se elevava abruptamente acima deles. Arbustos
e raízes rijos agarravam-se à parede de rocha como se também tivessem medo de
cair.
“Janner, eu não consigo!” Exclamou Tink. Ele estava de pé com as costas
contra a rocha cinzenta — olhos cerrados.
“Você precisa”, insistiu Janner. “Os Fangs que podem nos encontrar na estrada
são mais perigosos do que esta trilha agora. Você tem que tentar, Tink.”
Usando as pedras próximas como apoio, Leeli lançou-se para perto dele e
pegou sua mão. “Vamos”, ela interveio.
Tink afastou sua mão e forçou um sorriso.
“Eu não estou tão preocupado assim comigo, sabe”, disse ele com uma bravata
repentina. “Eu só quero dizer que, ah, acho que Leeli não deveria estar aqui.”
“Ah, obrigada”, Leeli agradeceu ironicamente.
Tink suspirou e desgrudou os dedos da pedra. Ele avançou atrás de Leeli e
Janner, tomando cuidado para ficar o mais distante possível da borda. Conforme
a luz se apagava, a trilha subia e se estreitava. Leeli escolhia seu caminho, mas
Janner tinha que parar de vez em quando para que Tink reunisse coragem e
conseguisse prosseguir. Janner olhava constantemente para trás, a fim de ter
certeza de que Leeli era capaz de percorrer a trilha sem sua muleta. Com Nugget
ao seu lado e toda espécie de raízes e pedras em que se agarrar, ela parecia mais
estar dando um passeio no parque do que empoleirada sobre o Mar Sombrio.
Finalmente, eles chegaram ao topo da trilha, onde esta se alargava em uma
encosta gramada. Janner e Leeli tentaram não rir quando Tink irrompeu na frente
deles e circulou em terreno seguro. Sua camisa estava encharcada de suor e ele
se pavoneava como se tivesse acabado de ganhar uma corrida. À frente e abaixo
deles, Janner viu o brilho das tochas onde a multidão estava reunida, a fim de ver
os dragões.
“Conseguimos”, comemorou Janner. “Tink, me ajude com Leeli.”
Enquanto desciam a encosta em direção à multidão, a lua começou sua suave
ascensão. Então eles ouviram o som mais dolorosamente lindo de toda Kistamos.
10

Leeli e a Canção dos Dragões

Uma nota longa e calorosa, como o som de uma montanha bocejando, ergueu-se
no ar e ricocheteou na superfície do céu. O eco profundo foi absorvido pelas
altas árvores da Floresta Glipwood e foi respondido, um momento depois, por
um som ainda mais alto, que parecia uma chuva suave. Até Janner esqueceu de
se preocupar com os Fangs por um instante. Sentiu seu peito apertar e seus olhos
arderem de lágrimas.
“Rápido!” Apressou Tink. “Está começando!” Tink correu à frente, arriscando-
se perto do penhasco. Seu medo de altura quase desaparecera.
“Tink!” Janner chamou-o. Mas não havia como parar Tink — o som dos
dragões o mudara de alguma forma. Janner até pensou, por um momento, que ele
parecia diferente, corajosamente abrindo caminho ao longo do precipício.
Janner e Leeli moveram-se o mais rápido que ousaram, até que conseguiram
distinguir o aglomerado escuro de pessoas observando o oceano abaixo deles. A
beira dos penhascos era entulhada de pedras, entre áreas de grama alta e lugares
onde se podia sentar confortavelmente e observar o mar. O Mar Sombrio estava
tão abaixo que parecia que se alguém caísse do penhasco, teria tempo de parar
de gritar e tirar uma última e refrescante soneca antes de cair nele. Riscos
brancos, minúsculos e silenciosos na superfície eram, na verdade, ondas
caóticas, quebrando nas rochas irregulares abaixo. E o borrifo mais poderoso das
águas era apenas vagamente visível, como a nuvem de poeira de um seixo
atirado na areia.
Janner e Leeli encontraram Tink sentado em um afloramento plano de rocha
que se comprimia no centro. Eles ainda estavam a um tiro de flecha da multidão,
o suficiente para satisfazer Janner quanto a estarem bem escondidos.
À luz de uma lua agigantada, Tink inclinou-se sobre a borda, esforçando-se
para ver algo na água escura que estava abaixo deles. Como isso é possível,
pensou Janner, quando, ainda esta manhã, Tink quase se molhou de medo no
telhado de casa? De onde estavam sentados, podiam ver as imponentes
Cataratas Fingap bem ao norte, rugindo sobre os penhascos e despencando no
mar. Ao sul, os penhascos seguiam ao longe, onde por fim tornavam para trás e,
numa inclinação descendente, abraçavam o Porto Shard, lar do Forte
Lamendron, o maior posto avançado Fang em toda Skree. Era para lá que a
Carruagem Negra carregava as crianças levadas à noite.
Janner estremeceu e tentou não pensar no Forte Lamendron ou na Carruagem.
Não foi difícil, porque a canção dos dragões estava aumentando em volume e
tom. Escondido em sua fenda na rocha, Janner esqueceu-se dos Fangs. Ele se
esqueceu da necessidade desesperada de encontrar seu avô e sua mãe. E, como
Tink, ele esqueceu a precariedade das bordas altas dos penhascos enquanto se
inclinava sobre o vazio e sentia seu coração arder.
Tink foi o primeiro a enxergar os dragões-marinhos. Sua respiração ficou presa
na garganta; ele não conseguia falar. Dando um tapinha com as costas da mão no
joelho de Leeli, apontou. Ela e Janner também viram.
Nas águas brancas e turbulentas na base das Cataratas Fingap, uma forma
longa e graciosa irrompeu na superfície. Sua pele capturava e ampliava a luz da
lua. O dragão-marinho tinha facilmente o dobro da altura da mais alta árvore da
Floresta Glipwood. Seu corpo avermelhado brilhava como uma fogueira viva. A
cabeça era coroada por dois chifres curvos e suas barbatanas, abertas atrás do seu
corpo, eram como asas. Na verdade, parecia como se ele realmente pudesse voar,
mas o dragão girou no ar e se chocou com o mar, ao que deve ter gerado um som
semelhante ao de um trovão — mas foi inaudível devido ao rugido constante da
cachoeira.
Naquele momento, a canção do dragão ergueu-se no ar sobre um vento forte e
encheu a multidão nos penhascos de mil sentimentos — alguns de paz, outros de
estímulo, todos mais vivos do que o normal.
Um homem de meia-idade chamado Robesbus Genteboa, que passou sua vida
organizando os registros para o famoso comerciante de botões de Torrboro,
Osbeck Osbeckson, decidiu que não iria passar mais um dia sequer trabalhando
atrás de uma mesa; ele sempre quis velejar. O Sr. Alep Brume, que estava
sentado ao lado de Ferínia Swapleton (proprietária da Floricultura da Ferínia),
virou-se para ela e sussurrou que, secretamente, a amava por anos. O prefeito
Blaggus jurou silenciosamente que nunca mais tiraria meleca do nariz.1 Toda a
paixão, tristeza e alegria daqueles que ouviam se transformava numa rede
comum de sentimento, que para Janner era como saudade de casa, embora não
conseguisse imaginar por quê — ele estava apenas a uma curta caminhada da
única casa que já conhecera.
No entanto, os poucos Fangs azarados o suficiente para ficar de guarda nos
penhascos ouviam apenas gritos, um lamento miserável que fazia seus dentes
rangerem. Sua pele esverdeada estremecia e eles rosnavam e sibilavam para as
pessoas mais próximas.
Tink estava tão inclinado sobre a borda que parecia que poderia cair no mar.
Tinha os olhos arregalados, a mandíbula cerrada e os nós dos dedos estavam
brancos onde agarravam as rochas dos dois lados. Janner teve o estranho
pensamento de que ele parecia a estátua de um rei, empoleirado ali, rígido e
sereno demais diante da escuridão abafada.
A canção prosseguiu, e mais dragões irromperam para fora d’água. Eles
giravam no ar e ficavam lá por um instante, antes de pousarem de volta ao mar.
Dezenas de dragões-touro com chifres, cintilando âmbar e ouro, nadavam em
círculos ao redor das fêmeas, mais magras e elegantes. Estas irrompiam da água
e os sobrepassavam em um padrão intrincado. Agora, nem mesmo o rugido das
Cataratas Fingap era mais alto que o choque dos muitos dragões no Mar
Sombrio. As notas da música se entrelaçaram e seguiram umas às outras, até que
uma melodia assustadora emergiu. Janner pensou, como sempre pensava a cada
verão quando os dragões vinham, que não poderia haver nada mais bonito em
todo o mundo.
Leeli estava imóvel como uma estátua, com as mãos cruzadas no peito. Janner
ouviu um som sussurrante misturado com a canção dos dragões enquanto os
lábios dela se moviam como se estivesse tentando lembrar-se das palavras de
uma canção; ou como se estivesse orando. Seu olhar estava longe, descansando
em algum lugar além dos dragões. Uma melodia suave e doce, cuja beleza
Janner nunca ouvira antes, saía da boca de Leeli. Janner olhou para ela com
admiração. Estava tão fascinado com aquela música que mal percebeu que, após
um momento, era tudo o que ele conseguia ouvir.
Os dragões silenciaram.
Eles haviam interrompido a dança e estavam olhando para os penhascos.
Embora estivessem a léguas de distância e a escuridão dificultasse a visão,
Janner percebeu, com um estremecimento, que os dragões-marinhos estavam
olhando para eles.

Os dragões-marinhos estavam ouvindo.
Ó holoré, deita-te baixo
Holoél escuro nas Profundezas
Abaixo da terra você vai
Holoré vai rápido dormir

Rápido dormir
Rápido dormir
Escura holoré nas Profundezas

Levanta novamente holoré agora
Abundante primavera holoél
Torna verde o ramo moribundo
Levanta a rocha onde Yurgen caiu

Levanta a rocha
Levanta a rocha
Abundante primavera holoél.2

Um som arejado de suspiros e sussurros ergueu-se da multidão. Dentre todos
os anos em que os dragões vieram, aquele era um momento inédito. Tink e
Janner olhavam maravilhados para Leeli, que parecia não perceber a comoção
silenciosa que estava causando. O vento carregou a voz de Leeli ao longo dos
penhascos de modo que, para a multidão, parecia que a música vinha do próprio
ar.
Finalmente sua canção terminou. Leeli voltou a si e se concentrou nas bestas
cintilantes abaixo dela, silenciosas e observando. Por um momento, o único som
foi o vento, o mar e a cachoeira distante. Então, os dragões arquearam seus
grandes pescoços, abriram suas barbatanas e vocalizaram uma resposta que fez
Janner ranger os dentes. Ecoava a melodia de Leeli em uma triste e esperançosa
repetição.
Então parou.
Os dragões foram embora tão rapidamente quanto vieram. A última barbatana
desapareceu em um redemoinho prateado de água. Apenas o correr maçante e
uniforme das Cataratas Fingap e o grito ocasional de uma gaivota interrompia o
silêncio reverente.
O Sr. Alep Brume assoou o nariz. Sussurros tornaram-se vozes abafadas, que
finalmente se transformaram no tagarelar da multidão em pé, se espreguiçando e,
logo em seguida, seguindo para o caminho de volta à cidade.
Tinha acabado! Os dragões fariam seu caminho — assim as pessoas diziam —
de volta ao sul, para as Montanhas Submersas, onde passariam o inverno.
Tink ainda estava olhando o mar, para o lugar onde o último dragão havia
sumido. Ele piscou várias vezes e, finalmente, saiu de seu próprio transe.
Ele olhou para baixo e, com o rosto pálido, chiou como um floelho. Tink
arrastou-se para trás e ficou ofegante, ainda no chão, a um metro e meio de
distância, agarrando-se à grama como se o mundo pudesse tombar para um lado
e jogá-lo borda afora.
Leeli deu uma risadinha, a cabeça cheia de música.
“O que foi isso, Leeli?” Janner perguntou. “Quem é Yurgen?”
Ela encolheu os ombros, de rosto ruborizado. “Não sei. Acho que é uma
música que mamãe costumava cantar para mim quando eu era pequena, ou
qualquer coisa assim.” Ela franziu o rosto, pensativa. “Que estranho”, disse ela.
“O quê?”
“Não consigo mais me lembrar”, afirmou Leeli, olhando para o Mar Sombrio.
“Bom, foi... muito bonito.” Janner não sabia mais o que dizer.
Ele estava prestes a sugerir que procurassem Podo e sua mãe quando duas
mãos frias o agarraram por trás. Janner foi girado violentamente para se ver cara
a cara com Slarb, o Fang, que tinha uma ferida inchada e sangrava na têmpora
escamosa.
11

Um Corvo Para a Carruagem

As crianças Igiby ficaram congeladas. Mais quatro Fangs as cercaram com


espadas em punho. “Tentem correr se quiserem”, ironizou Slarb com um sorriso
que expôs seus dentes pontiagudos e afiados. “É uma longa descida até o mar.
Tenho certeza de que aqueles terríveis dragõessss adorariam um lanchinho
recheado após ssseu show idiota, não acham?” Dois dos Fangs agarraram Tink e
Leeli.
Com uma voz profunda e rouca, um deles disse: “O que’cê quer que façamosss
cum elesss, Slarb? Jogá-losss por cima da borda ou trancafiá-losss?”
Slarb considerou a primeira opção por um momento. Sua língua bifurcada e
arroxeada dançava sobre suas presas enquanto seus olhos frios iam das crianças
para o penhasco, a poucos metros de distância.
Janner olhou por cima do ombro de Slarb para a multidão se dissipando,
pedindo para que Podo e sua mãe os vissem, onde quer que estivessem. Mas
nenhuma das pessoas na multidão estava olhando em sua direção e, até onde
conseguia ver, nenhuma delas era Podo ou Nia. Janner ficou furioso por ter se
permitido à distração de não encontrar os dois adultos. Eles provavelmente
estariam melhor escondidos na multidão, de qualquer maneira.
“O Comandante Gnorm me disse para levá-los, mas este penhasco está tão
perto e esses humanos são tão fedidosss, hein, Brak?” Sua língua flutuava a
alguns centímetros do rosto de Janner.
Não havia saída. Seria difícil escapar de um Fang. De cinco seria impossível.
Era melhor ficar calmo e esperar que Slarb seguisse as ordens. Ser jogado na
cadeia e depois mandado embora na Carruagem Negra era horrível, mas era
melhor do que ser jogado no mar naquela hora, ali mesmo. Janner percebeu que
Nugget há muito já havia sumido.
Isso mostrou a real lealdade daquele cãozinho, ele pensava no exato momento
em que o punho de Slarb atingiu sua têmpora, jogando-o no chão. Era a primeira
vez que ele foi atingido com tanta força. Ele tinha sua cota de brigas com Tink,
mas não era nada comparado à explosão de dor que sentiu enquanto gemia e
lutava para se pôr de pé.
Slarb bufou, enfurecido. “Que isso sirva de lição, garoto. Encoste em mim de
novo e eu o devoro vivo.”
Ele foi até Leeli, agarrou um punhado de seu cabelo loiro ondulado e jogou sua
cabeça para trás. “O mesmo vale para você, garotinha fedorenta”, ameaçou ele,
empurrando-a para o chão, ao lado de Janner.
Tink se desvencilhou do Fang que o segurava e desferiu um soco contra Slarb,
mas Slarb desviou o soco e, com o joelho, atingiu o estômago de Tink. Tink se
dobrou e, ofegante, desabou no chão. Slarb curvou-se sobre ele e puxou uma
faca. Com uma mão de escamas esverdeadas, segurou a cabeça de Tink contra o
chão enquanto passava a ponta da lâmina suavemente pela bochecha de Tink. “E
você, sua coisinha esquisita”, ele rosnou. “Lembre-se de Slarb com issso.” Ele
jogou a adaga no ar, pegou-a pela lâmina e acertou a cabeça de Tink com o
punho. Janner e Leeli se encolheram com o som que fez quando Tink gritou.
Então ele cerrou os dentes e lutou contra as lágrimas quando uma pequena
mancha de sangue emergiu de seu couro cabeludo. À vista do sangue, os Fangs
ficaram agitados, sibilando e bufando como se o jantar tivesse acabado de ser
servido.
“Tragam-nos comigo”, ordenou Slarb, virando-se.
Os irmãos foram colocados de pé e empurrados para a frente. Leeli tentou se
levantar, mas sua pobre perna retorcida cedeu e ela desabou no chão. Janner
abaixou-se para ajudá-la a se levantar, mas o Fang chamado Brak se colocou
entre eles com um grunhido.
“Eu deixava a pequena fedorenta se virar sozinha, se foss’ocê”, murmurou.
“Ela não consegue andar sem ajuda!” Janner retrucou com veemência, e Brak
mostrou suas presas para ele.
“Deixe o menino ajudar essa aleijadinha, seu tolo. A menos que você queira
carregar essa coisa fedorenta todo o caminho de volta à cadeia”, Slarb sibilou.
O focinho de Brak se contraiu e seus lábios escamosos se curvaram com nojo,
enquanto olhava para Leeli. Ele cedeu e Janner ajudou-a a se levantar.
O lado do rosto de Janner estava latejando com o golpe, e acima da orelha de
Tink um galo do tamanho de um ovo estava crescendo. Leeli chorava enquanto
mancava, procurando por Nugget.
A essa altura, a maioria dos turistas ou tinha ido para A Única Pousada, para
jantar, ou para seu acampamento, na extremidade oposta da cidade, para
cozinhar algo que compraram no mercado, naquele dia. Algumas pessoas
circulavam pelas ruas iluminadas por lampiões, mas quando viam a procissão de
cinco Fangs armados, carregando tochas e empurrando as três crianças
assustadas, eles desviavam os olhos e se afastavam do caminho.
O Comandante Gnorm era uma coisa gorda e escamosa, com olhos caídos e
presas tortas, amareladas. Gostava de ficar ocioso no alpendre, na frente da
cadeia, quase o tempo todo, afiando uma adaga e comendo o que quer que
estivesse à mão.
A mente de Janner estava acelerada. Eles tinham se metido em uma enorme
confusão. As decisões do Comandante Gnorm eram tão sumárias quanto
implacáveis e, pelo que sabia, estariam na Carruagem Negra, a caminho de Forte
Lamendron, antes do nascer do sol.1 Eles foram empurrados escada acima até o
alpendre da cadeia onde o Comandante Gnorm estava recostado em uma cadeira,
nas sombras, afiando sua adaga.
“Certo, pra dentro com eles”, comandou sem levantar o olhar.
Os Igibys foram conduzidos a uma sala iluminada por lampiões e passaram por
uma mesa cheia de ossos de peixes. Na parede de frente à escrivaninha, um alvo
circular rudimentar havia sido pintado e várias adagas projetavam-se da parede.
Quem quer que as tivesse atirado era perturbadoramente preciso. Slarb empurrou
as crianças para outra sala, escura como um túmulo. A luz da tocha de Slarb
revelou três celas e o chão coberto de feno e sujeira. Ele ergueu um molho de
chaves da parede, abriu a porta gradeada e jogou as crianças numa das celas.
Com um olhar de grande satisfação, ele trancou a porta, recolocou as chaves na
parede e saiu.
Tink e Leeli aninharam-se ao lado de Janner, no chão, como se estivesse frio,
embora estivesse bem abafado.
“Deixe-me ver, Tink”, Janner pediu, tomando a cabeça do irmão entre as mãos.
Ele separou o cabelo de Tink e apertou os olhos na escuridão para ver o caroço,
embora não tivesse ideia do que estava procurando. “Não parece tão ruim”, disse
ele, tentando soar muito mais velho do que era.
“Como está essa sua cara?” Perguntou Tink.
“Vai ficar bem”, respondeu Janner, estremecendo ao tocar o hematoma que se
formava em sua bochecha.
Os irmãos se voltaram para Leeli.
“Você vai ficar bem?” Janner perguntou.
“Foi tudo culpa minha”, desculpou-se ela, limpando o nariz com o antebraço.
“Sinto muito por nos colocar nessa confusão.”
“O que aconteceu lá atrás, afinal?” Janner perguntou.
“Enquanto vocês assistiam ao jogo de handyball, eu estava jogando um pedaço
de pau para Nugget, perto do gramado, atrás da multidão. Um thwap despencou
de uma árvore, bem na frente dele, e Nugget correu atrás. Eu os segui e, antes
que percebesse, estava de volta à Rua Principal. Vi Nugget perseguir o thwap no
beco, e quando ele virou a esquina, tropeçou naquele Fang.”
“Slarb?” Perguntou Tink.
“Sim. Acho que sim. E aquela coisa — Slarb — pegou Nugget e estava prestes
a mordê-lo, então eu o chutei na canela.” Leeli disse isso como se fosse a coisa
mais natural do mundo.
“Você chutou um Fang?!” Os dois meninos perguntaram em uma só voz.
“Bom, o que eu deveria fazer?”
“Sei lá, mas é a coisa mais idiota que já vi”, constatou Janner.
“E a mais corajosa”, complementou Tink.
Leeli sentou-se com a cabeça baixa — os longos cabelos quase tocavam o chão
sujo.
“E a mais corajosa”, Janner concordou, após um momento.
Leeli fungou e enxugou o nariz.
“Shh...” Tink pôs uma mão nas costas da irmã. “Não foi sua culpa, sem chance.
Foi aquele seu cachorro”, asseverou ele, tentando ser engraçado. Tink se
arrependeu assim que disse aquilo. Leeli soluçou.
“Não é normal ele fugir assim”, ela relatou, e enterrou o rosto no peito de Tink.
“E se uma daquelas coisas horríveis o chutasse do penhasco?” “Ouça”,
continuou Janner, “fique feliz que Nugget não está aqui conosco. Somos nós que
estamos encrencados. Ou estamos prestes a ter o couro arrancado fora, ou
seremos despachados para Dang. Prefiro continuar sem ver Dang, nem o Castelo
Throg ou Gnag, o Sem-Nome, então vamos torcer pela tortura.”
Quando a porta da cela se abriu, o Comandante Gnorm cambaleou para dentro
com Slarb ao seu lado.
Janner, Tink e Leeli levantaram-se e enrijeceram, enquanto Gnorm os olhava,
tendo seus braços escamosos e esverdeados cruzados e apoiados em seu grande
estômago, como se descansassem sobre uma mesa. Ele os examinou com os
olhos negros e caídos.
“Sssim, comandante”, disse Slarb, “são somente esses.”
“E foram essas crianças que deram um jeito de deixar vocês inconscientes em
um beco.” Gnorm virou-se para Slarb com um sorriso de escárnio. “Eles devem
ser guerreiros valentes de fato, para derrotar dois Fangs de Dang armados”,
constatou ele, sua voz profunda e úmida.
Como lama borbulhante, pensou Janner.
“Bem, senhor...”
“Afinal, você seria curiosamente incompetente ssse são necessáriosss cinco de
vocês pra trazer três crianças. Eu sento no meu traseiro verde o dia todo, ficando
mais gordo a cada rato que devoro, e acredito que poderia açoitar essa ralé de
olhos fechados. Você tem presas, não tem, Slarb, seu girino? E você diz que
essas pedras vieram de lugar nenhum, não é? Uma pedrinha atinge sssua cabeça
e vocês dormem como bebêsss na sujeira? Alguma velha mamãe veio colocar
você na cama?”
Slarb tentou intervir várias vezes, mas Gnorm ganhou ímpeto enquanto falava,
até que Slarb ficou em silêncio, com as bochechas verdes inchando. Gnorm tinha
a mão no cabo de sua adaga, ansioso por uma desculpa para sacá-la e enterrá-la
na barriga macia de Slarb.
Slarb não lhe deu oportunidade, entretanto.
“Peço perdão, comandante. Minha incompetência é indesculpável”, desculpou-
se Slarb, com a cabeça baixa. Gnorm sibilou, satisfeito com a humilhação. Ele se
virou para sair, com um rosnado, sem perceber que, pelas costas, Slarb
arreganhava suas presas. “E as crianças, sssenhor?”
O gordo Fang parou na porta e virou o pescoço de costas, mirando as crianças
Igiby, no chão da cela. Ele as considerou por um momento com seus olhos
negros, caídos. “O que você gostaria de fazer com elas?”
Slarb sorriu maliciosamente. “Comandante, se for do seu agrado, gostaria de
torturá-las. Os chicotes, talvez?”
O coração de Janner bateu forte. Tink apertou Leeli com mais força.
“Você faria isso, agora?” Gnorm perguntou friamente. “Nesse caso, não toque
neles. Se você tentasse chicoteá-los, provavelmente eles acabariam derrotando
você. Vamos enviá-los para Dang, esta noite.” Ele riu enquanto se virava. “Envie
um corvo para a Carruagem.”

12

Nada Parecido com Navios e Tubarões

O portão se fechou com um baque e Janner sentiu seu coração cair como uma
pedra atirada do penhasco no mar. De repente, um rosnado encheu o ar. Slarb
arqueou as costas e abriu as mandíbulas de um modo praticamente impossível,
expondo suas presas e cerrando os punhos. Janner podia ver os músculos rosados
na boca de Slarb, a língua negra e úmida se contorcendo como um verme e, o
pior de tudo, aquelas presas amareladas gotejando. Ele estremeceu ao pensar
naqueles dentes venenosos mordendo sua pele, naquelas presas rasgando sua
carne. Era fácil ver por que se dizia que nenhum Fang jamais havia sido morto
por um humano. Carruagem Negra ou não, qualquer destino parecia melhor para
Janner do que morrer nas mãos de Slarb.
Ofegante, o Fang caminhou até o chaveiro, com um pouco de baba venenosa
escorrendo do canto da boca. Ele arrancou o molho de chaves da parede,
caminhou até o portão da cela e enfiou uma chave na fechadura, furioso quando
a primeira não funcionou. Tink e Janner deslizaram Leeli para o canto de trás da
cela, então ficaram na frente dela, imaginando o que eles poderiam fazer além de
cerrar os dentes e lutar com tudo o que havia neles quando o Fang enlouquecido
irrompesse pelo portão da cela.
Mas Slarb nunca abriu a cela. A porta atrás dele se abriu e o corpulento Fang
chamado Brak entrou pesadamente.
“Olá, Slarbizinho.”
Slarb se endireitou rapidamente e se virou, escondendo o molho de chaves
atrás das costas. “Brak”, chamou ele, “eu já disse pra você não me chamar
assim.”
“Então, vamos deportar eles, hein?”, Brak perguntou com uma pitada de
alegria. “Eu adoro ver eles se contorcendo quando colocamos na carruagem, né,
SSSlarbizinho?” Slarb estava se esforçando para usar um tom de voz normal.
“SSSim. Deportar todos eles.” Ele limpou a baba da boca com o antebraço e,
casualmente, pendurou as chaves de volta na parede. “Enfim, provavelmente é
pior pra eles no longo prazo”, debochou ele com um sorriso malicioso, voltando
seus olhos negros para as crianças. “Muito pior no longo prazo.”
Os dois Fangs deixaram a sala. Janner e Tink desabaram no chão ao lado de
Leeli.
“Temos que descobrir uma maneira de sair disso”, apressou Janner, tentando
novamente soar mais velho do que realmente era. “Se há algo que Podo me
ensinou, é que sempre há uma saída.”
“Mas aquele é o vovô, um homem de uma perna só brincando de Navios e
Tubarões1 com crianças pequenas”, disse Tink. “Agora não estamos num jogo.”
“Eu sei que não é um jogo, Tink. Mas não adianta nada discutir com alguém
maior do que você.” Janner deu um soquinho amigável no ombro de Tink.
No fundo, Janner não tinha a menor ideia de como eles sairiam daquela
enrascada — e, na verdade, ele temia que não conseguissem sair dela. Mas,
como o mais velho, ele sentia a necessidade de manter o ânimo. Pelo que Janner
já tinha ouvido falar, pessoas muito maiores e mais corajosas foram forçadas a
entrar na Carruagem Negra; então, por que eles não seriam? Essas pessoas
maiores e mais corajosas nunca mais foram vistas; então, por que justamente
eles seriam? Janner só sabia que era melhor estar numa cela da cadeia dos Fangs
com um pouco de esperança do que sem nenhuma.
Leeli adormeceu com a cabeça no colo de Tink e, logo depois, Tink também
adormeceu. Janner caminhou pela cela por horas, imaginando o que Podo e Nia
estariam fazendo. A essa hora, eles já deviam saber que as crianças tinham
desaparecido, e provavelmente souberam pelos habitantes da cidade que as
crianças estavam na cadeia. Ele se ergueu usando as barras da janela alta, mas
deu de frente para os sombrios fundos da cadeia. Não havia nada para ver. O
portão da cela estava bem trancado e as chaves, fora de alcance. Não havia nada
a fazer a não ser esperar. Tink estava certo: não se tratava de Navios e Tubarões,
e talvez não houvesse uma saída.
Janner gostaria de conseguir dormir como Tink e Leeli, mas sua ansiedade o
impedia. Ele tentou pensar em qualquer coisa que não fosse a temida Carruagem
Negra, que avançava pela colina escura e o vale estrelado até Glipwood. Pensou
em como seu café da manhã havia sido bom naquela mesma manhã e em quão
aconchegante era a lareira do chalé Igiby, aninhado sob os galhos das árvores de
Glipwood. Seu coração estava triste por Podo, seu querido avô desarrumado, que
perdera a esposa na Grande Guerra. Ele estava triste por sua mãe, a quem a
Grande Guerra havia tornado viúva. Agora teriam perdas, novamente, tudo
porque ele não conseguira cuidar de Leeli.
Janner suspirou e encostou-se na parede com a cabeça baixa, pensando em seu
pai. Ele desejou, mais do que nunca, estar velejando em um barco em mar aberto
e pensou em pegar mais uma vez o retrato de seu pai, antes de perceber que não
haveria como vê-lo no escuro. Certamente seu pai saberia como escapar daquela
cela sombria e da terrível viagem na Carruagem Negra. Ou, se ainda estivesse
vivo, certamente viria em seu socorro. Mas o jovem Janner Igiby não tinha pai
nem muita esperança, com o irmão e a irmã, naquela cela vazia e horrível.
Leeli ergueu a cabeça e olhou para a janela.
“Ouviram isso?” Perguntou ela.
Tink acordou assustado e disse: “Passa o molho”.
“Acho que é Nugget”, cogitou. “Nugget! É você, garoto?”
Três pares de olhos se voltaram para a janela. As crianças escutaram. Eles
ouviram um gemido e um som angustiado, algo entre um latido e um uivo.
Janner ficou feliz, embora não soubesse por quê. Não havia muito que um
cachorro pudesse fazer por eles naquela situação difícil, mas saber que Nugget
estava lá tornava a esperança mais plausível. Então, eles ouviram as vozes de
Fangs discutindo, na sala da frente da cadeia. Uma das vozes — talvez Slarb —
foi interrompida por um baque e um estrondo.
O Comandante Gnorm resmungou algo sobre obedecer às ordens e logo em
seguida passos soaram em direção à porta.
A porta se abriu para revelar a silhueta rechonchuda de Gnorm. Janner viu
Slarb esparramado no chão por trás do comandante. Pela segunda vez naquele
dia, por causa das crianças Igiby, a cabeça de Slarb havia se encontrado no
caminho de um objeto rombudo. Gnorm tirou as chaves da parede e destrancou o
portão da cela.
“Vocês são muito sortudas, crianças”, ele murmurou. “Alguém acha que vocês
valem alguns brilhantes.”
Ele balançou seus dedos rechonchudos na direção deles. Estavam cravejados
com quatro anéis de ouro e joias que antes não estavam lá. Braceletes brilhantes
cobriam seu antebraço e um medalhão de ouro em uma corrente de prata pendia
de seu pescoço. As joias pareciam deslocadas em uma criatura tão feia. Gnorm
abriu o portão e acenou para as crianças.
“Então... podemos ir?” Janner perguntou timidamente.
“Sim. Fora da minha vista!” Comandou impacientemente. Gnorm admirava
suas novas joias enquanto as crianças saíam. Mas quando Janner passou por ele,
o Fang o agarrou pelo rosto e o puxou para perto. O rosto largo do Fang
preencheu a visão de Janner. Ele viu seu reflexo apavorado nas poças negras e
vazias dos olhos odiosos do Fang, e sentiu suas garras cravadas em suas
bochechas.
“Toque em um dos meus soldados de novo e mil baús de ouro não vão salvar
você nem sua família”, alertou Gnorm com um sussurro ameaçador. Ele
empurrou Janner para longe com tanta violência que ele caiu. Tink o ajudou a se
levantar, sem ousar olhar para o Fang ou dizer uma palavra. Os meninos
ajudaram Leeli a passar pelos soldados, por Slarb, que a essa altura já havia se
levantado do chão e fervia de raiva enquanto observava as crianças saírem ilesas.
À luz fraca de um lampião, no meio da rua, estava sua mãe, Nia, cujo rosto
estava pálido como o luar.

13

Uma Canção Para a Ilha Brilhante

Janner, Tink e Leeli desceram os degraus de madeira para a rua empoeirada,


olhando cuidadosamente de lado para os Fangs que espreitavam no alpendre.
Janner mal podia acreditar que eles estavam livres. Seria algum tipo de truque?
O Comandante Gnorm cambaleou porta afora e se deixou cair na cadeira do
pórtico, ainda admirando as joias brilhando em sua mão. Com Leeli entre eles,
os meninos caminharam lentamente até a mãe, cujos olhos estavam marejados.
“Vamos para casa”, ordenou ela com uma voz forte enquanto colocava os
braços em volta dos filhos e se afastava cuidadosamente dos Fangs. Eles
desceram a rua em silêncio, como se tivessem tropeçado em um dragão
adormecido e relutassem em perturbá-lo. Janner queria correr, ficar o mais longe
possível dos Fangs e da cadeia o mais rápido que pudesse. Todas as crianças se
sentiam assim, mas Nia, percebendo isso, as conteve.
Ela conduziu os filhos pelas ruas vazias de Glipwood com a postura ereta e a
cabeça erguida. Uma risada baixa veio de A Única Pousada, os postes de luz
tremeluziam em amarelo; o vento levantava redemoinhos de poeira semelhantes
a fantasmas ao luar.
Quando já haviam avançado bastante ao longo da estrada e estavam fora de
vista da cadeia, Nia finalmente falou.
“Não sei o que teria feito sem vocês.”
Ao som da voz dela, Janner sentiu uma onda de alívio, como se estivesse
prendendo a respiração debaixo d’água e sua mãe o tivesse puxado para a
superfície.
“Eu simplesmente não sei o que teria feito”, repetiu. Ela se ajoelhou, juntando-
os e abraçando-os com força. Leeli ergueu os olhos e viu Nugget correndo em
sua direção. Em poucos segundos ele estava em cima dela tão rápido quanto um
raio, ganindo e abanando o rabo freneticamente, lambendo não apenas Leeli,
mas todos eles onde quer que encontrasse um pedacinho de pele descoberta.
Leeli riu e caiu para trás enquanto abraçava o pescoço de Nugget.
“Onde você estava, garoto?” Perguntou a menina, esfregando seu pescoço e os
lados do rosto. “Por que você nos deixou daquele jeito?”
“Procuramos por vocês nos penhascos”, Nia explicou. “Seu avô e eu
estávamos preocupados. Mas havia tantas pessoas lá. Esperamos até depois da
canção dos dragões e da maioria da multidão ter ido embora, mas ainda não
encontrávamos vocês. Corremos de volta para casa, pensando que talvez
tivéssemos nos desencontrado...” Nia se inclinou para o cachorrinho preto nos
braços de Leeli. “Foi quando o pequeno Nugget aqui nos encontrou. Ele me
levou até a cadeia.” Ela coçou atrás das orelhas de Nugget. “Eu fiz seu avô ficar
em casa. Ele teria feito a cadeia em pedaços e lutado com um exército de Fangs
para trazê-los de volta, mas isso teria acabado matando todos nós. Então eu vim
sozinha.”
“De onde vieram aquelas joias?”, Janner perguntou. “Aquelas nas mãos do
Gnorm.”
Nia olhou para trás em direção à cadeia. “Estavam guardadas para uma
emergência”, ela respondeu como se não fossem nada de mais e, olhando nos
olhos de Janner, afirmou solenemente: “Isso foi uma emergência”.
“Mas onde você as conseguiu?” Tink perguntou. “Tinha muito ouro.”
Nia suspirou. “Com seu pai.” Nia se virou para Janner, claramente querendo
mudar de assunto. “Seu rosto.” Ela tocou o ponto machucado e ensanguentado.
“Eles bateram em vocês?”
Janner anuiu.
Nia inclinou a cabeça de Janner em direção à luz para ver melhor, depois
beijou sua bochecha.
Janner fez uma careta e se esquivou, embora secretamente gostasse da
sensação calorosa que o beijo de sua mãe proporcionava. Ele queria fazer mais
perguntas sobre as joias de seu pai, mas sua mãe já havia se afastado.
“E você, querida?” Nia perguntou a Leeli.
“Estou bem, mamãe.”
Nugget estava deitado de costas, na poeira, com a língua para fora enquanto
Leeli esfregava sua barriga.
Tink mostrou à mãe o caroço em sua cabeça, e ela o beijou, com o rosto
consternado.
“Você viu os dragões, mãe? Você viu como eles pararam e ouviram quando
Leeli começou a cantar?” Janner perguntou.
Nia pareceu surpresa, mas se recompôs rapidamente.
“Foi você, querida?”
“Sim, senhora.”
Nia sorriu para Leeli e colocou a mão em seu cabelo. “Foi lindo.”
“Mas por que os dragões fariam aquilo?” Perguntou Janner. A resposta de Nia
foi um encolher de ombros. “E por que Gnorm simplesmente não pegou as joias
e nos matou, afinal?” Ele sentia como se cada pergunta levasse a outra, e sua
cabeça estava um turbilhão de dúvidas.
Nia segurou os ombros de Janner e o olhou diretamente nos olhos. “Porque eu
disse a ele que faço o melhor rocambole de vermes dos quatro mares e que, se
ele deixasse vocês saírem, eu o faria para ele todo terceiro dia da semana, assim
que a carne tivesse o tempo necessário para apodrecer. Eu disse a ele que tinha
uma receita secreta que envolvia suor de porleitão. O ouro era apenas para
chamar a atenção dele, entende? Fangs têm uma queda por joias.”1
“Você sabe fazer rocambole de verme?” Tink perguntou.
“Na verdade, não faço ideia. É melhor que eu aprenda”, respondeu sorrindo.
“Agora, chega de perguntas de vocês três. Janner, o que aconteceu com o seu
pescoço?” Ela o virou novamente para a luz do lampião a fim de ver a mancha
vermelha brilhante em seu pescoço, onde o veneno de Slarb pingara sobre ele.
“Veneno de Fang. Daquele chamado Slarb”, Janner respondeu, tocando o
pescoço com as pontas dos dedos. “Aquele que atacou Leeli.”
“Então foi isso que aconteceu”, Nia constatou. “Por que ele te atacou?” Nia
colocou um braço em volta da filha manca, que contou os acontecimentos, com
Janner e Tink adicionando partes enquanto os Igibys continuavam subindo a
estrada. Nia ouviu até Janner contar sobre as duas pedras que atingiram os Fangs
no beco. Ela parou de andar.
“E vocês não viram ninguém? Nenhum sinal de quem possa ter jogado as
pedras?”
“Ninguém.” Janner parecia confuso. Ele viu a testa de sua mãe franzir
enquanto continuavam andando. Sua cabeça zumbia com perguntas. Onde ela
havia escondido todas aquelas joias — o suficiente para comprar metade da
cidade de Glipwood? E por que ela escondeu o segredo da família todos esses
anos? Eles não poderiam ter usado apenas uma parte das joias para tornar suas
vidas um pouco mais fáceis? Janner nunca tinha visto tanto ouro em um só lugar,
e o pensamento de que aquelas joias estiveram em sua família todos esses anos o
fez... o quê? Bravo? Grato? Janner não sabia o que sentir, como se seu lado de
dentro estivesse tão destrambelhado quanto o de fora. Todo aquele ouro, todas
aquelas pedras preciosas, tudo estava perdido. Não, não perdido: adornando os
dedos e pulsos do Comandante Gnorm. Janner se perguntou o que sua família
precisava e não tinha, contendo-se ao perceber que não havia nada. Ele teve que
admitir para si mesmo que sua mãe e Podo forneciam tudo de que precisavam.
As joias não teriam mudado nada, exceto que, sem elas, Janner ainda estaria
sentado naquela cela com os seus irmãos. Ainda assim, ele pensou, olhando de
soslaio para a mãe, o que mais ela está escondendo?
Mas seu turbilhão de pensamentos foi interrompido pelo som de alguém
cantando.
No gramado em frente à casa do velho Charney Baimington,2 queimava uma
pequena fogueira. Várias pessoas se acomodavam ao redor dela, ouvindo
Armulyn, o Bardo cantar. O brilho laranja do fogo iluminava seu rosto e
projetava uma grande sombra na casa, atrás dele. Armulyn estava cantando uma
canção de Anniera, e seus olhos pareciam brilhar com luz própria enquanto
olhava para além da escuridão ao seu redor. Era como se ele pudesse ver, bem à
sua frente, a própria bela ilha, com seu reino de marinheiros e poetas, suas altas
montanhas verdes e vales sombreados, a brilhante cidade onde um bom rei uma
vez reinou e o povo cantou nos campos enquanto fazia a colheita. De alguma
forma, Janner sentiu que era mais do que apenas uma canção. Armulyn
transcreveu seus sonhos secretos em música. Janner se sentiu levado para
aquelas montanhas e viu a mesma coisa nos rostos ao redor da fogueira.
A canção terminou e por um momento, antes dos aplausos, o pequeno grupo de
ouvintes ficou em silêncio. Janner ergueu os olhos para ver que o rosto de sua
mãe estava molhado de lágrimas e que ela, como o bardo, estava olhando para
longe.
“Por que você está chorando?”, Janner perguntou, apertando a mão dela.
Nia teve um leve sobressalto, como se o filho tivesse acabado de acordá-la de
um cochilo. Ela sorriu para ele. “Não é nada, filho. E por que você está
chorando?”
Janner não tinha percebido, mas suas bochechas também estavam molhadas.
“Tem alguma coisa no modo como ele canta. Me faz pensar em quando neva lá
fora, o fogo está aconchegante e Podo está nos contando uma história enquanto
você está cozinhando, e não há nenhum lugar onde eu preferisse estar — mas,
por algum motivo, ainda sinto... saudades de casa.” Janner olhou para baixo,
constrangido.
Tink e Leeli ficaram em silêncio, pois Janner havia falado o que ambos
também sentiam.
Armulyn, ainda descalço, estava apertando as mãos e acenando timidamente
com a cabeça em resposta aos elogios das pessoas. Ele pegou sua harpa eólica e
se despediu, caminhando em direção a Janner e sua família. Nia respirou fundo e
rapidamente conduziu as crianças pela estrada escura.
“Mamãe, não podemos conhecê-lo?” Tink perguntou, virando o pescoço de
costas para Armulyn, que se dirigia diretamente para eles. “Não, é hora de
voltarmos para casa. O vovô vai ficar muito preocupado.” “Mamãe, por favor?”
Leeli insistiu.
“Eu disse não.” Nia acelerou o passo. Leeli, mesmo com a mão de Nia em seu
braço, perdeu o equilíbrio e caiu. Nia parou para ajudá-la a se levantar,
desculpando-se enquanto limpava a sujeira do vestido de Leeli.
“Gosto do seu cachorro”, uma voz gentil e rouca disse atrás deles.
As crianças congelaram. Nia parou de limpar o vestido de Leeli e se endireitou.
Ela deu a volta para encarar a silhueta de Armulyn, o Bardo. Ele estava curvado,
dando tapinhas na cabeça de Nugget. Janner e Tink ficaram sem palavras.
“Obrigado. O nome dele é Nugget”, disse Leeli, e se apressou até onde Nugget
estava sentado, abanando o rabo. Ela olhou para a silhueta ensombrada do bardo.
“Eu gosto do seu canto.”
“Ah, obrigado, princesinha”, Armulyn agradeceu, agachando-se na frente dela.
Nia ainda estava estranhamente calada, parada um pouco atrás deles. Armulyn
estendeu a mão para Leeli. “Meu nome é Armulyn. Não gosto daqui”, disse ele
com um sorriso que Janner mal conseguia ver no escuro.
Leeli sorriu para ele, sem se incomodar com a estranha observação. “Meu
nome é Leeli. Não consigo andar muito bem.”
Ao ouvir o nome dela, o sorriso de Armulyn desapareceu e ele se inclinou um
pouco mais perto para ver melhor seu rosto. Ele olhou para Nia e os meninos,
que ainda não haviam se movido. “E quem são vocês, pessoas gentis?”
“Nosso nome é Igiby”, Nia respondeu rispidamente. Ela se aproximou
rapidamente de Leeli e, puxando-a para longe do bardo, cortou a conversa:
“Tenha uma boa noite”. Nia conduziu as crianças mais uma vez para casa,
deixando Armulyn parado no meio da estrada, olhando para a família.
Enquanto se aproximavam de casa, aconchegantemente aninhada entre as
árvores, eles puderam ver lampiões acesos nas janelas. Vaga-lumes cintilavam
no ar noturno e Danny, o cavalo de carga, relinchou no pasto. Janner sentiu outra
onda de alegria por não estar morto ou, ainda pior, preso na Carruagem Negra.
Antes de chegarem à porta, ela se escancarou. A figura alta de uma perna só,
ou seja, de Podo, preencheu o vão. Ele tinha um porrete maciço em uma das
mãos e brandia uma colher de pau na outra. “Onde em todo esse enorme mundo
devorador de cabra vocês tavam, vagando pelas divertid’encostas enquanto eu
tava aqui roendo minhas gengivas?!?! Vocês todos marchem logo até aqui
co’esses pés encharcados antes qu’eu arranque suas tripas e cozinhe num…”
A torrente de seu avô durou pelo menos dois minutos e teria durado muito mais
tempo, mas as crianças se libertaram de Nia e dominaram o grande homem com
abraços. Tanto o porrete como a colher mortal caíram no chão, e ele quase
tombou, mas anos de prática com uma perna só haviam tornado Podo Helmer
bastante ágil.
Num instante, ele deu uma chave de braço em Tink e cutucou suas costelas
com um de seus dedos retorcidos e calejados, enquanto Janner e Leeli tentavam
derrubá-lo no chão. Finalmente, ele cedeu e caiu para trás dramaticamente,
gritando o tempo todo sobre crianças podres e seu desrespeito aos mais velhos.
Eles caíram no chão sob a luz do fogo crepitante da lareira até que a disputa
acabou e o velho se levantou com um gemido. Sem fôlego e suando, Podo sorriu
para eles e tirou uma mecha teimosa de seu longo cabelo branco dos olhos.
“Cês vão querê um pouco da minha caldeirada de queijo com pão de manteiga,
não vão, meus pequenos guerreiros?”, perguntou o avô, ofegante. “Tá fervendo a
noite toda, junto com mil orações pra que vocês voltassem pro seu Podo, seguros
e não devorados.”
À menção de comida, Tink gemeu de prazer e desapareceu cozinha adentro,
esfregando o estômago.
Podo colocou Leeli nas costas e a carregou. “Perdeu sua pequena muleta, hein?
Faremos outra pra você quando o sol raiar”, disse enquanto a porta da cozinha se
fechava por trás dele.
Janner observou Nia, cansada, fechar e trancar a porta da frente. Ela baixou a
cabeça e sussurrou uma oração de gratidão.
“Eu te amo, mãe”, declarou Janner, empurrando para baixo o nó em sua
garganta. “Lamento ter perdido a Leeli...”
“Shh. Está tudo bem”, consolou Nia. “Você se saiu bem, filho.” E com um
sorriso cansado ela o conduziu para a cozinha.

14

Segredos e Caldeirada de Queijo

Janner se juntou a Leeli e Tink à mesa para devorar a caldeirada de queijo.


Depois do dia que teve, aquela parecia a melhor refeição que ele já havia
comido. Um caldeirão de sopa fumegante encheu a cozinha com um aroma rico
e amanteigado, e um pão de manteiga fresco foi cortado e posto sobre a mesa.
Janner levantou-se para encher sua tigela (Tink já havia comido três) e ouviu um
trecho da conversa entre Nia e Podo, no cômodo ao lado.
“O que, em nome das algas fedorentas e da salada azeda, aconteceu com os
pestinhas?!” Podo demandou saber, batendo seu porrete no chão de tábuas.
“Bom, papai, sua netinha se distanciou. Eu disse que não me sentia bem em
deixá-los ir sozinhos à cidade. Janner e Tink não perceberam que ela se foi...”
“O quê?! Se eu tivesse falado só uma vez pra esse menino! Eu falei trocentas
milhões de vezes! Ele tem que tomar conta deles e...”
“Calma, papai. Eles estão seguros. Isso é o que importa, agora.”
Uma longa pausa. O rosto de Janner ardia de vergonha. “Sim, sim. Ele ainda
não passa de um garoto. Eu não devia ter deixado eles irem sozinhos para a
cidade, não em um dia como este. Mas, então, o que aconteceu?”
“Leeli tentou proteger Nugget de um Fang. Ela o chutou.”
“O cachorro?”
“O Fang.”
“Ela o quê? Minha pequena guerreirinha teve a doce ousadia de partir pra cima
de um Fang?”
Janner não podia ver Podo, mas sabia que ele estava sorrindo orgulhosamente,
com suas espessas sobrancelhas levantadas. Ele também sabia que a expressão
de sua mãe era de desaprovação.
Em segundos, Podo pigarreou e disse gravemente: “Ela fez isso, hein? Criança
imprudente. Ela devia pensar melhor”.
“E os meninos tentaram salvá-la”, Nia prosseguiu.
“Aha!” Podo trovejou e Janner abriu um sorriso. Podo pigarreou novamente e
disse em um sussurro alto: “Eu sabia que aqueles garotos tinham um fogo nas
entranhas! Dois mirradinhos lutando contra os Fangs de Dang! Tô dizendo que
eles têm o rugido e os lombos do velho Podo neles! Se o pai deles pudesse ver
seus meninos agora...”
Janner parou de sorrir, assim como Podo silenciou.
Um silêncio pesado se instalou entre eles. “Desculpe, moça”, remendou-se
Podo após um momento. Ele ficou subitamente afetuoso, de uma forma que
surpreendeu Janner. “Continue”, Podo pediu a Nia. “O que aconteceu, então?”
Nia respirou fundo. “Não tenho certeza, mas acho que tenho um palpite. As
crianças disseram que alguém atirou duas pedras que acertaram os Fangs. Eles
não viram de onde as pedras vieram. Então eles correram para nos encontrar. Foi
só depois que os dragões cantaram que eles foram capturados e levados para a
cadeia.”
Novamente, nenhum dos dois falou por um instante. Podo quebrou o silêncio.
“Bom, macacos me mordam, querida, você acha que foi... ele?”
A voz de Podo baixou repentinamente e Janner ouviu seu próprio coração
acelerar. Ela acha que foi quem?, o mais velho dos três irmãos se perguntou
enquanto se afastava do fogão e pressionava o ouvido contra a porta.
“Não sei”, respondeu Nia, “mas certamente soa como algo que ele faria.”
Houve outra longa pausa. “Quem quer que tenha sido, estou grata. As crianças
estão vivas.”
Janner percebeu pelo tom de sua mãe que o assunto havia acabado.
“Jnnmr, memnhê mais caldmmunhad” Tink murmurou, da mesa.
“Hã?” Janner retrucou, virando-se um pouco rápido demais.
Tink engoliu a bocada de comida e arrotou alto. “Viu, já que você tá de pé, me
serve mais sopa?”
Imerso em pensamentos, Janner encheu a tigela de Tink e voltou a se sentar à
mesa. Leeli estava alimentando Nugget com pedaços de comida e Tink não
percebia nada além da tigela de sopa fumegante na frente dele. Janner pensou em
cada detalhe daquela tarde, sem conseguir sequer uma pista sobre quem poderia
ter jogado aquelas pedras. O beco era tão comprido que quem quer que as tivesse
atirado, tinha que ser um excelente atirador. Apenas duas pedras foram lançadas,
e ambas acertaram na mosca seus alvos — e vieram no último segundo. Como
era possível? E como que Podo e sua mãe tinham noção de quem era o
misterioso atirador de pedras?
De repente, com um estrondo e um rosnado de pirata, Podo irrompeu na
cozinha. “O que é isso que ouvi sobre pequenos e bravos renegados tocando o
terror nos lagartos locais?!” Ele bradou. Podo mancou até Leeli e a arrebatou
com um de seus gigantescos braços tatuados, jogando-a sobre os ombros
enquanto ela gritava e batia de brincadeira em suas costas.
“Agora venham cá, rapazes e mocinha, e contem uma história que me fará
estremecer dentro das botas.” Podo chutou a porta com seu toco de madeira e
carregou Leeli para fora da cozinha como uma donzela sequestrada.
Janner e Tink sorriram um para o outro e saíram da mesa, Tink com a boca
cheia de pão de manteiga e Janner com a cabeça cheia de perguntas.

15

Dois Sonhos e Um Pesadelo

Naquela noite, depois de contar quatro vezes a história para Podo, as crianças
dormiram. Tink sonhou com dragões-marinhos e torta. Leeli sonhou com
dragões-marinhos e cães. Janner sonhou com dragões-marinhos e seu pai.
Janner teve um dos pesadelos que costumava ter com o pai, e tudo que
conseguia lembrar pela manhã eram um barco e o fogo. Havia outro sonho, no
qual ele quase podia ver o rosto de seu pai, um sonho cheio de luz dourada e
campos verdes. Esse sonho brilhante o enchia com os mesmos sentimentos que a
música de Armulyn havia produzido na noite anterior, sentimentos que, de
alguma forma, doíam e eram bons, tudo ao mesmo tempo.
Mas naquela noite em específico ele havia se debatido na cama com o calor do
fogo do sonho ao seu redor, rugindo em seus ouvidos.
Quando Janner acordou, estava suando, mas os pássaros cantavam e a luz
dourada do amanhecer entrava pelas janelas. Parecia que os eventos do dia
anterior eram parte de seu pesadelo, e o mundo de sua cama quente e do velho e
robusto chalé, tão cheio de vida, era o único real. Os Fangs pareciam tão
perigosos quanto as cobras daninhas.
Janner espreguiçou-se e se sentou na beira da cama. Alegres raios de sol
tocavam o chão e espalhavam as sombras. Encostada na cama de Leeli estava
uma pequena muleta, recém-feita, que Podo devia ter passado a maior parte da
noite preparando. Gravada no encaixe do apoio, em letras pequenas e elegantes,
estava a inscrição Leeli Igiby: A Chuta-Lagartos.
Janner podia ouvir o barulho de Nia preparando o café da manhã na cozinha,
cantarolando em tons abafados. Ele sorriu para si mesmo, espreguiçou-se outra
vez e entrou vagarosamente no cômodo principal, onde se deitou no sofá
almofadado, bocejando enquanto coçava a cabeça. Ele estava olhando para as
vigas no teto, deixando o recente fogo na lareira aquecê-lo, quando ouviu o
familiar tump-pam, tump-pam, tump-pam de Podo se aproximando da frente da
casa. Janner o ouviu resmungar para si mesmo antes de a porta se abrir.
“Roedores podres e fedorentos... onde já se viu tocarem meus pés de totatas...
sorte deles eu só ter uma perna, esses, esses comedores de minhocas,
mordedores de tornozelo...”
Janner espiou por cima do encosto do sofá para ver Podo mancando porta
adentro com um saco cheio de vegetais sobre o ombro, com a bota e a perna de
pau molhadas de orvalho. O resmungo recomeçou quando Podo passou pela
porta da cozinha. Janner mal foi capaz de conter o riso. Quando a porta se
fechou, o cheiro de ovos com bacon invadiu a sala e o estômago de Janner
roncou. Assim que se levantou do sofá, ele ouviu a batida de Tink pulando de
seu beliche para o chão, bem sincronizado com o café da manhã.
Quando Janner entrou na cozinha, sua boca estava salivando. Sobre a mesa
havia três pratos de comida quente. Sua mãe sorriu para ele do fogão, onde
estava fritando mais ovos com bacon.
“Bom dia, engaiolado.” A porta dos fundos estava entreaberta e Podo já estava
cambaleando pelo campo em direção ao jardim, resmungando algo indecifrável.
Janner sentou-se à mesa e mergulhou em sua comida no momento em que Tink
passou cambaleando pela porta da cozinha e foi direto para sua cadeira.
Nia deu uma beijoca na bochecha de cada um.
“Leeli vem?” Ela perguntou. Tink assentiu, com a boca cheia de bacon.
Leeli entrou pela porta e esticou-se tanto que a camisola subiu até às canelas.
Nugget passou trotando por ela para sair pela porta dos fundos, ansioso para
ajudar Podo na perseguição furiosa aos thwaps.
Leeli cumprimentou seus irmãos com um leve tapinha nos ombros de cada um,
enquanto passava com a Chuta-Lagartos de Podo. Tink e Janner resmungaram,
com a boca cheia de bacon.
“Vejo que você tem uma nova muleta, querida”, Nia observou.
Janner e Tink repentinamente notaram a irmã e a elogiaram, entre goles de
leite.
“Vocês três dormiram tarde, então comam rápido e se vistam. O Festival do
Dia dos Dragões acabou e a vida volta ao normal hoje”, asseverou Nia,
colocando um prato de comida na frente de Leeli. “Suas tarefas e estudos estão
esperando.”
Janner achou que sua mãe parecia cansada, o que era estranho, já que sempre
tinha a sensação de que ela estava acordada por horas antes de ele entrar para
tomar café. Havia algo em seus olhos — seria preocupação? — e ela parecia se
mover um pouco mais devagar. Mas quando ela colocou mais duas fatias de
bacon quentinho em seu prato e bagunçou seu cabelo, ele decidiu que
provavelmente não passava de sua imaginação.
Desde que eles podiam se lembrar, Nia ensinou às crianças o que ela chamava
de T.A.N.E.G.1 Janner estudava escrita e poesia. Tink passava seu tempo
pintando e desenhando. Leeli aprendia a cantar e a tocar a harpa eólica. Tink
perguntou à mãe, certa vez, o que havia de tão tradicional em aprender o
T.A.N.E.G., sendo que nenhuma outra criança em Glipwood era forçada a passar
horas e horas desenhando repetidas vezes a mesma árvore, de ângulos diferentes.
“Você é um Igiby”, respondeu ela, como se isso respondesse à pergunta.
Nenhum outro garoto em Glipwood teve que ler tantos livros antigos ou
escrever tantas páginas quanto Janner, e nenhuma outra garota na cidade sabia
tocar um instrumento. Todas as três crianças tinham alguma proficiência em
cada um dos T.A.N.E.G., mas passavam a maior parte do tempo aperfeiçoando
apenas um.
Janner lembrou-se com uma pontada de pânico que, mais tarde naquele dia, ele
e Tink deveriam ajudar Oskar N. Reteep na livraria — que ficava em frente à
cadeia, do outro lado da rua. E se o Comandante Gnorm o visse e mudasse de
ideia? Ele poderia mandar buscar a Carruagem Negra, afinal. E se Slarb os
atacasse outra vez? Então ele pensou na Livros e Vãos, em todas as histórias nas
prateleiras da loja, e a emoção de estar lá sobrepujou seu medo. Janner engoliu o
resto de seu café da manhã. “O senhor Reteep pediu a mim e a Tink para ajudá-
lo com uma grande remessa hoje. Tudo bem ir para a cidade?”
Nia não teve pressa para virar os ovos e o bacon na frigideira enquanto
esperavam por uma resposta. “Não, realmente não. Não está tudo bem. Nunca é
seguro pra vocês irem à cidade, especialmente depois do que aconteceu ontem.”
Os ombros de Janner caíram. “Mas não podemos viver com medo”, prosseguiu
Nia. “Nós não vamos viver com medo.” Ela se virou e olhou fixamente para os
meninos, enxugando as mãos no avental. “Basta ter cuidado e ficar longe
daquele Slurp horrível.”
“Slarb”, corrigiu Tink.
“E não se esqueça de devolver os livros emprestados, Janner. Você os
terminou, não terminou?” Perguntou Nia.
“Sim, senhora.”
“O que achou?”
“Eu li Na Era dos Floelhos Domesticados.2 Foi bom. Mas o outro era melhor”,
emendou Janner, tirando os pratos da mesa. Ele havia devorado um segundo
livro, dessa vez sobre dragões que realmente voam e batalhas e um grupo de
companheiros. Era cheio de grandes aventuras e Janner ficou triste quando
acabou, principalmente porque sua vida em Glipwood era monótona demais em
comparação àquela história.
Nia se voltou para o fogão. “Seu pai adorava essa história.”
Janner sorriu ao pensar em seu pai, quem quer que fosse, desfrutando do
mesmo livro. Com grande comoção, Podo tump-pou com estrondo a porta dos
fundos e a abriu com um chute. Ele estava sem fôlego, segurando dois thwaps
peludos em um punho estendido para o mundo ver.
“Dois!” Ele bradou, e enfiou os thwaps no mesmo saco que usara na manhã
anterior. O velho curvou-se sobre Nugget e esfregou sua cabeça com força,
depois entrou. “Não temam, não temam, senhoras. Não vou jogá-los do
penhasco”, assegurou ele com uma piscadela para Janner.
Quando Podo viu Leeli, seu rosto se iluminou, como sempre. “Aí está minha
pequena chuta-lagartos, Leeli, a Valente!” Ele apertou a nuca de Tink. “E você!
Tink, o Ligeiro, que pulou na briga — sem armas — e arrancou essa senhorita
do homem-cobra! Agora, onde...” Podo esquadrinhou a sala por Janner, que
estava parado na porta da cozinha, sem perceber o sorriso em seu próprio rosto.
“Ah! Janner, o Forte! Quebra-Costas, que saltou sobre o Fang como uma vaca-
dentada e viveu para contar a história!”
“Ei, papai, pare com isso”, interrompeu Nia, enchendo o prato de Podo.
“Agora, crianças, vão se vestir”, concluiu Nia, acenando para eles e colocando o
café da manhã de Podo na mesa. Enquanto as crianças saíam sorridentes da
cozinha, ele grunhiu com um brilho nos olhos e arrebatou Nia no ar e por cima
dos ombros. A última coisa que Janner viu ao sair do cômodo foi sua mãe
exigindo ser “colocada de volta no chão neste instante”.
Depois de alimentar Danny, o cavalo de carga e o porleitão, os meninos
tiveram que ajudar Podo a coletar fertilizante (com os cumprimentos do
porleitão) e espalhá-lo na horta de verão (alimento que seria, por fim, comido
por todos eles, incluindo o porleitão). Isso fez com que Janner tivesse toda
espécie de pensamentos sobre vida, morte e fertilizantes.
Leeli permaneceu dentro de casa com Nia, preparando a comida, costurando
um rasgo em um par de calças de Podo e limpando as cinzas da lareira. Quando
terminou, sentou-se na sala da frente praticando uma nova música em sua harpa
eólica e memorizando a letra do clássico festivo, “Rodeando o Berimum Bailava
um Meep”.
Cada um deles realizou suas tarefas com alegria, até mesmo Tink e Janner
quando jogaram o excremento do porleitão no carrinho de mão.3 Era difícil
reclamar com aquele sol quente e de barriga cheia, sem mencionar o fato de que
haviam escapado da morte e da tortura três vezes no dia anterior. Mas se
estivesse mais atento naquela manhã, Janner teria visto quantas vezes sua mãe
espiou pela janela em direção à cidade, e poderia ter notado a expressão
preocupada em seus olhos. Se tivesse pensado nisso, Janner poderia ter se
perguntado por que Podo tinha ficado tão perto dos dois meninos durante toda a
manhã e por que seu confiável porrete permanecia ao seu lado.

16

Na Livraria Livros e Vãos

Janner, Tink e Podo caminharam até a cidade depois de almoçarem maçãs e pão
de manteiga. Podo havia insistido em acompanhá-los, o que fez Janner e Tink se
sentirem mais seguros. Quanto mais perto ficavam da Rua Principal, mais
ansiosos ficavam sobre serem vistos por Slarb ou Gnorm ou qualquer um dos
Fangs que tiveram a infelicidade de encontrar na noite anterior.
Glipwood estava estranhamente quieta, já que os muitos visitantes haviam
guardado seus pertences e deixado a cidade por mais um longo e triste ano na
Skree infestada de Fangs. A forma esguia de J. Bird podia ser vista dentro de sua
barbearia; ele estava varrendo. A Floricultura de Ferínia tinha uma placa de
Fechado pendurada na janela. As janelas e portas de A Única Pousada estavam
abertas, e Podo acenou para o Sr. e a Sra. Shooster, os proprietários, ocupados
em trocar a roupa de cama e sacudindo os tapetes. Crespo roncava em um banco
do lado de fora de sua taverna.
Sem virar a cabeça, Janner deu uma olhada rápida na cadeia. O Comandante
Gnorm, para seu alívio, estava cochilando em sua cadeira de balanço no
alpendre, as mãos esverdeadas, rechonchudas, cruzadas sobre o peito. Os anéis
em seus dedos brilhavam, mesmo na sombra. Janner desviou os olhos e se
apressou para mais perto de Podo.
“Vocês, rapazes, corram para a livraria do Oskar”, mandou Podo. “Estarei
olhando vocês da taverna. Sinto a necessidade de acordar o velho Crespo e
molhar minha goela”.
Janner começaria a protestar, mas se conteve. Embora não quisesse passar nem
um minuto sozinho tão perto da cadeia, também queria que Podo soubesse que
ele conseguia ser corajoso e responsável. “Sim, senhor”, concordou ele,
endireitando as costas em postura ereta. “Vamos, Tink.”
Os irmãos passaram cuidadosamente pela cadeia, indo para a Livros e Vãos,
onde Zouzab estava empoleirado como um abutre, no topo do telhado, com sua
camisa de remendos e bordados balançando como bandeira ao vento.
Janner acenou para o corre-crista.
“E olá para os homens Igiby”, cumprimentou Zouzab. Sua voz era suave e
delicada. “Acredito que seu tempo no festival foi agradável...”
Janner ficou surpreso por Zouzab parecer nada saber sobre sua experiência de
quase morte na noite anterior. “Sim”, respondeu ele. “Foi um dia agitado.”
“O senhor Reteep está lá dentro?”, perguntou Tink.
“Lá dentro, sim. Muitas são as caixas que chegaram de carroça, há menos de
uma hora. Muitos livros novos para você ler, Janner Igiby.” Zouzab era cortês,
mas Janner sempre sentia que havia muito mais acontecendo por trás de seus
olhinhos do que sua boca jamais falava.
Zouzab não disse mais nada e os observou entrarem na livraria.
A Livros e Vãos era um lugar maravilhoso. Fileiras e mais fileiras de livros,
muitos deles esfarrapados, carbonizados e de aparência antiga, enchiam todas as
prateleiras e cantos praticamente até o teto. Livros altos, livros magros, livros
sobre peixe-adaga, livros sobre a linhagem dos reis de Skree, livros sobre a
ascensão e queda do uso de amoras em bolo, livros de lendas sobre Anniera,
livros sobre livros sobre outros livros, todos organizados de acordo com o
assunto em um labirinto de prateleiras.
Mas não eram apenas livros. Rolos de mapas e contingências e confins e
surpresas surpreendentes estavam espalhados aqui e ali entre os muitos volumes,
à vista de todos, mas fáceis de perder em meio à miscelânea. Não importava
quantas vezes Janner entrasse na loja de Oskar, ele ainda conseguia se perder
pelo menos uma vez antes de conseguir chegar ao escritório, nos fundos do
edifício.
Quando a porta se fechou por trás deles, Janner sorriu e respirou fundo. Ele
amava o cheiro envelhecido do lugar. Tink havia feito poucas visitas rápidas,
então seus olhos iam e vinham tentando assimilar tudo o que havia para ver.
Enquanto caminhavam em direção aos fundos da loja, viram um recipiente de
madeira cheio de óculos velhos empoeirados. Ao lado dos óculos havia um
minúsculo crânio, com bico e três órbitas oculares.
“Veja!” Tink sussurrou.
Janner sorriu, gostando da empolgação de Tink. Em outra prateleira havia uma
jarra com insetos alaranjados, brilhantes e mortos e, ainda em outra, um castelo
de madeira em miniatura com um rato observando-os da janela do pináculo.
Janner chegou a um beco e parou em frente a uma estante rotulada Livros Sobre
Ferraria e/ou Tortas, e Tink, muito concentrado em tentar ler a lombada de cada
livro que passava, colidiu com ele. Os pés de Janner se enroscaram e ele caiu
para frente. Caiu no chão, derrubando da prateleira uma vela grande e redonda.
Olhando para Tink, Janner pegou a vela esverdeada e oleosa, e a colocou de
volta no lugar. Uma etiqueta escrita à mão, na vela, dizia Cera de Meleca. Janner
quase vomitou, limpando as mãos na parte da frente de sua túnica.1
“Ei? Quem está aí?” Surgiu uma voz abafada de algum lugar próximo. De
repente, vários livros na estante à direita deles deslizaram para trás e
desapareceram — substituídos pelo rosto e óculos de Oskar, olhando para eles
do outro lado. “Ah! Janner, Tink, não ouvi vocês entrarem”, disse ele com um
sorriso. “Há muito trabalho a ser feito. Então, nada de corpo mole. Mais tarde
haverá tempo para explorar por aí. Sigam-me.”
Os livros voltaram ao lugar e os passos de Oskar soaram ao fundo da loja.
Depois de mais três becos, Janner e Tink encontraram o dono da Livros e Vãos
andando de um lado para o outro em seu depósito, com um cachimbo na boca.
“Muito bem, rapazes, eu pensava que seu Podo lhes ensinara melhor do que
ficar vagando por aí enquanto um velho como eu precisa de sua ajuda. O que,
em Kistamos, vocês dois estavam fazendo?” Questionou.

“Pegamos o corredor errado em História de Skree”, respondeu Janner, “e


depois outro em Poemas sem Sentido, e...”
“Não importa”, interrompeu ele com um aceno de mão. “Acredito que foi o
grande Chorton quem escreveu: ‘Não vale a pena se preocupar com irmãos
desnorteados quando um grande carregamento acaba de chegar’. Ou algo com o
mesmo efeito.”
A ampla escrivaninha de Oskar estava abarrotada de pilhas de pergaminhos,
diversos modelos de cachimbos, penas e frascos de tinta. Uma vela quase gasta
crepitava em um castiçal de latão e iluminava um mapa de aparência antiga que
estava desenrolado no centro da mesa. Tink se aproximou para examiná-lo.
“Calma, jovem Igiby”, alertou Oskar, escapulindo para trás da mesa e virando
o mapa. “Certamente seu irmão mais velho lhe disse que nem tudo aqui é
permitido para olhos jovens. Existem mistérios no mundo que devem
permanecer mistérios para os jovens.”
Tink enrubesceu, envergonhado por já estar em apuros. Janner olhou para ele e
deu-lhe uma piscadela encorajadora.
“De onde vieram todos esses livros, senhor?” Perguntou Tink.
Os olhos de Oskar brilhavam quando contemplavam, com orgulho, sua loja.
Era fácil fazer Oskar falar sobre seus livros. “A verdadeira questão, jovem Tink,
é de onde esses livros não vieram. Eu viajei por todo Skree após a Grande
Guerra, resgatando o que poderia ser recuperado. Vocês não acreditariam nos
escombros. Esses Fangs podres queimaram nossas casas e cidades até o chão.
Mas como sempre acontece, a poeira baixou. Quando os skreenianos começaram
a desenterrar outra vez a própria vida, eles também desenterraram esses tesouros.
Livros! Só que eles não eram mais tesouros. Não para todos. Então eu soube que
precisava juntá-los, preservá-los.”
À menção da Grande Guerra, os pensamentos de Janner mais uma vez
voltaram-se para seu pai. Ele nunca perguntou a Oskar se conhecia seu pai, ou se
sabia de algum detalhe acerca de sua morte. Até recentemente, o assunto era
cuidadosamente evitado no chalé Igiby. Quando ele encontrou o retrato no
quarto de sua mãe, foi como se uma rachadura se formasse na represa que
retinha a memória de seu pai; Esben Igiby estava se infiltrando nos pensamentos
de Janner e não havia maneira de estancar o vazamento.
Janner queria perguntar a Oskar o que ele poderia saber, mas Oskar estava
ocupado demais espanando pilhas de livros e divagando. “A maioria das pessoas
estava trabalhando tão duro para reconstruir e se ajustar à vida com esses
perversos homens-cobras fungando em seus pescoços que não tinham tempo
para os livros”, murmurou o livreiro. “Eles me foram dados ou vendidos por
centavos. Como o infame Bweesley, o Ladrão de Folhas, disse em suas
memórias, ‘Barato é quase de graça’. Olhem ao seu redor, rapazes. Isso é o
melhor da antiga Skree. Ou, pelo menos, o que sobrou dela.”
Janner e Tink refletiam no silêncio do escritório. De repente, as pilhas de livros
e prateleiras desordenadas eram, de alguma forma, mais do que simples
prateleiras cheias de livros. O que Oskar preservou foi a memória de um mundo
que já havia morrido — tão certo quanto Esben Igiby havia morrido. Oskar
também parecia perdido em pensamentos sobre o passado. Ele embalava
ternamente uma pilha de livros em suas mãos. “No Dia dos Dragões”, começou
a contar, “as pessoas que me visitam vêm para se lembrarem de quem eram. Elas
sempre saem tristes.”
Janner visualizou em sua mente os rostos das pessoas da cidade com seus
sorrisos refreados e risadas vazias.
“Agora, então”, disse Oskar, interrompendo os pensamentos de Janner, “aqui
está o que eu preciso de vocês dois. Vou sentar aqui na mesa e anotar o registro
dos livros e suas categorias — muito desgastante para a mente, eu garanto a
vocês — e vocês dois descarreguem as caixas e empilhem-nas onde o velho
Oskar Noss Reteep lhes disser. Apenas gritem o título e o autor. Vocês dão
conta?”
Os acenos de Janner e de Tink pararam quando Oskar abriu a grande porta
dupla para revelar uma pilha de dezoito caixotes de madeira de vários tamanhos
no gramado, empilhados de forma precária. No topo do caixote mais alto estava
Zouzab, que sorriu com o choque no rosto dos meninos.
“Muito bem! Temos muito que fazer, eu diria!” Oskar riu enquanto se sentava à
sua mesa e acendia o cachimbo. “O que foi que o grande poeta Shank Po
escreveu?”
“Hã?” Perguntou Tink.
“Ah, sim”, disse Oskar com uma baforada de fumaça. “‘Mantenha-te
ocupado’.”
17

O Diário de Bonifer Squoon

Janner e Tink trabalharam por horas enquanto Zouzab deslizava daqui para ali,
dando conselhos indesejados sobre como deveriam proceder e, ocasionalmente,
fazendo serenatas para eles, com canções tristes e assustadoras em sua pequena e
estranha flauta.
Oskar N. Reteep sentou-se à sua escrivaninha com alegria, seus óculos na
ponta do nariz, registrando os títulos e autores em um grande volume
encadernado em couro enquanto orientava os meninos sobre onde empilhar cada
livro de acordo com o assunto.
“O Som de Sidgebaw, por... Riva Twotoe”, leu Tink.
“Ah, uma excelente obra. Muito rara. Arquive embaixo de Utensílios de
Assentamento, ali no canto, vê?” Oskar apontou um lugar acima da cabeça de
Tink.
“Eu Vim e Chorei Como a Mariquinha que Sou, de Lothar Sweeb”, leu Janner,
em outra lombada.
“Sweeb? Ah, sim, um talento medíocre, mas muito prolífico. Arquive sob
Canções Sobre Bacon, logo atrás do candelabro ali.”
“Fatigado, de Phinksam Ponkbelly.”
“Jardinagem. Excelente livro.”
Horas depois disso, os meninos estavam suados e exaustos. O estômago de
Tink roncava constantemente. Por duas vezes, Oskar pediu a Zouzab que
trouxesse água para eles, o que ele fez sem reclamar antes de lançar-se de volta
sobre a pilha de caixotes e saltar para o telhado do edifício como um esquilo.
Podo apareceu, vindo da frente do edifício, anunciando sua chegada com um
arroto retumbante. “Não é falta de educação, apenas boa cerveja”, afirmou com
uma piscadela. “Vejo que o velho Oskar está fazendo bom uso de vocês dois.”
Janner e Tink ficaram gratos por uma desculpa para descansar um pouco. “Sim,
senhor”, concordou Janner. “Estamos quase terminando, e então o senhor Reteep
vai nos deixar levar alguns livros para casa.”
“Sim, é gentileza da parte dele”, disse Podo com um aceno de cabeça. “Se
estiver tudo certo com vocês, rapazes, vou até o chalé buscar a pá. Preciso
devolvê-la aos malditos Fangs antes do pôr do sol. Tudo bem voltarem pra casa
sem mim?”
Janner e Tink se entreolharam. Janner ainda estava ansioso por estar tão perto
dos Fangs, mas estava determinado a mostrar ao avô que era confiável. “Sim,
senhor, ficaremos bem.”
“Se alguma coisa acontecer”, disse Tink, “vamos chamar Leeli e ela virá
chutando tudo”.
Isso provocou uma gargalhada do velho pirata. “Ho! Que os lagartos tomem
cuidado com Leeli Igiby e seu cão mortal!” Podo olhou os dois nos olhos.
“Vocês, rapazes, fiquem na de vocês e venham imediatamente pra casa, hein?” E
com uma palmada no ombro de Janner — que quase o derrubou — Podo se foi.
A última caixa era menor que as outras. Parecia ser muito mais velha também.
Na tampa havia uma palavra horrível: Dang.
Janner e Tink engasgaram. Até Zouzab, que assistia a tudo tão tranquilamente
o dia todo, engasgou.
“Aha! Esperei o dia todo para dar uma olhada nessa aí, meus garotos”, disse
Oskar, aparecendo atrás deles. Ele olhou para um lado e para o outro e sussurrou:
“É de Dang.”
“Mas... como? Quem... quem você conhece em Dang?”, perguntou Tink.
“Shh!” Oskar levou um dedo aos lábios e tornou a olhar em volta. “Há Fangs
circulando em Skree, se você não percebeu. Você quer ser jogado na cadeia de
novo?”
Era a primeira vez que ele dava qualquer sinal de saber sobre os problemas dos
Igibys na noite anterior, e Janner percebeu isso.
Tink baixou a voz, “Desculpe, senhor Reteep. Quem você conhece em...”
“Eu não conheço ninguém em Dang. Encontrei esta velha caixa junto das
outras, mas não queria chamar atenção para ela, então a coloquei no fundo da
carroça. Eu a abri por tempo suficiente para ver que estava cheia de livros. Isso é
tudo que sei.” Ele esfregou as mãos como uma criança feliz prestes a comer um
pedaço de bolo, depois levantou a tampa. Os irmãos deram um passo para mais
perto da caixa e olharam dentro. Pareciam livros comuns, mas saber que eram de
uma terra distante, de perigo e mistério, os tornava fascinantes de contemplar.
“Basta trazer um de cada vez para que eu possa registrá-los corretamente.”
Oskar sorriu e olhou para os livros com ansiedade. “Pretendo ler todos eles esta
noite.” Ele voltou a si, limpou a garganta e ergueu as sobrancelhas. “A tarde está
quase acabando, meninos. Esses podem ser de vocês sabem onde, mas, afinal,
ainda são apenas livros. Como disse o grande explorador Jinto Qweb, ‘Corram!
Ler é divertido!’” Oskar acendeu o cachimbo e voltou para a mesa, cantarolando
enquanto caminhava.
Janner puxou o primeiro livro da caixa. Estava gasto e era pesado, a capa
decorada com laços e nós intrincados. No centro, letras fluidas diziam Rimas
Corre-Cristas: Poesia da Montanha.1
Zouzab deu um grito de alegria e saltou para o chão. Ele estava de volta ao
telhado do edifício em um piscar de olhos e deixou Janner parado ali, de mãos
vazias. O livro já estava aberto e os lábios do pequeno corre-crista se moviam
enquanto ele lia.
“Vocês estão dormindo aí fora?”, Oskar chamou, de sua mesa.
Enquanto Janner e Tink corriam para trazer a Oskar livro após livro, ele
sentou-se à mesa com a fumaça do cachimbo flutuando sobre sua cabeça,
rabiscando notas em seus registros e resmungando.
“Hmm. Fascinante! Disfunção Nasal nas Aflições de Shreve...”
Janner fez o possível para inspecionar cada um dos livros enquanto os
carregava, e acidentalmente deixou só quatro caírem. Alguns deles eram escritos
em runas estranhas. Outros continham mapas de terras das quais ele nunca
ouvira falar. Um livro era intitulado Os Contos Mais Verdadeiros dos Piratas de
Symia. Janner pensou em seu avô e o abriu. Na primeira página, havia uma
imagem de um reluzente navio erguendo-se sobre uma onda gigante. Seu convés
estava cheio de piratas em roupas extravagantes, empunhando espadas e adagas.
Ele mal conseguia esconder o prazer que sentia ao segurar aquele livro nas mãos,
imaginando mares salgados e ousados marujos. Ele o entregou a Oskar com
relutância.
“Tudo a seu tempo, rapaz”, disse Oskar, pegando o livro com uma das mãos e
pressionando duas longas mechas de seu cabelo branco sobre a testa.
Tink encontrou um livro com desenhos de criaturas que ele jamais teria
imaginado; pequenas criaturas semelhantes a dragões com selas e homens
montados nelas, cavalos com asas e garras nos pés, grandes animais peludos que
caminhavam eretos e tinham dentes do tamanho do braço de um homem. Ao
lado de cada imagem havia notas e detalhes sobre os pontos fortes e fracos da
criatura. Tink caminhou lentamente até a mesa do Sr. Reteep, encantado com as
ilustrações. Oskar sorriu e estendeu a mão.
“Criaturapédia de Pembrick,2 filho. Não se preocupe, esse é um dos que você
pode olhar. Haverá tempo suficiente para examinar tudo o que quiser.”
Com isso, Tink acelerou o passo e logo Janner estava pegando o último livro
do monte, na caixa. Menor do que o resto, sua capa de couro gasto era decorada
com a imagem de um dragão, asas estendidas.
Janner abriu o livro da mesma forma que fizera com todos os outros, mas por
dentro era diferente. Ele ficou surpreso ao perceber que era escrito à mão, e não
impresso:

Este é o diário do Bonifer Squoon
Conselheiro-Chefe do Supremo Rei de Anniera
Guardião da Ilha da Luz.
Leia isso sem minha permissão
e vou socar seu nariz.

A respiração de Janner ficou entalada na garganta. Supremo Rei de Anniera?
Aquilo seria verdade? Todo mundo havia sonhado com os encantos do litoral de
Anniera pelo menos uma vez, mesmo os que negavam sua existência. No
entanto, lá estava Janner, segurando nas mãos os genuínos pensamentos do
conselheiro do rei. Claro, o diário poderia ser uma farsa, mas como todos em
Skree, Janner queria acreditar que tal lugar existia — ou havia existido, antes de
Gnag, o Sem-Nome destruí-lo. Janner mostrou o livro aberto para Tink, cujos
olhos se arregalaram. Mas logo que Janner começou a virar a página, o livro foi
arrancado de suas mãos.
“Zouzab!” Janner murmurou e se virou para dar de cara não com Zouzab, mas
com o Sr. Reteep, cujo rosto estava fechado.
“Isso é tudo por hoje, jovens Igiby.” Oskar colocou o livro debaixo do braço e
apontou para as caixas com o cachimbo. “Amontoem-nas junto à pilha de lenha
e vocês poderão entrar e explorar o resto dos meus livros o quanto quiserem.
Cada um de vocês pode levar três volumes para casa, mas eu preciso aprová-los
antes de irem.”
Janner e Tink pararam, sentindo o peso do olhar de Oskar. Janner queria
desesperadamente saber o que havia no diário e se perguntava por que o Sr.
Reteep estaria sendo tão reservado a respeito.
“Tink”, disse Oskar. “Você gosta de desenhar, não é? Venha comigo. Pelo que
me lembro, tenho uma extensa coleção de livros de arte que você pode achar
útil.” E começou a vaguear pelo labirinto de estantes de livros.
Quando alcançaram Oskar, a luz estava diminuindo e ele se encontrava
remexendo em lampiões para cada um deles carregar pela loja.
As lombadas dos livros pareciam, de alguma forma, mais ricas com o brilho do
lampião e Janner pensou nas palavras de Oskar, no início do dia: “Olhem ao seu
redor, rapazes. Isso é o melhor da antiga Skree. Ou, pelo menos, o que sobrou
dela.” Ele estava ansioso para vagar pela loja, agonizando ao pensar sobre quais
três livros pegar emprestados.
“Por aqui, jovem Tink”, chamou Oskar. “Vou mostrar por onde começar e
depois você se vira.” Com um olhar desamparado para Janner, Tink ergueu o
lampião e seguiu Oskar pelo corredor, desaparecendo de vista.
Por duas vezes, Janner e Tink viraram uma esquina e quase se chocaram, mas
acabaram tomando seus próprios rumos, no labirinto de prateleiras.
Tink encontrou dois livros de arte. Um de paisagens fantásticas como nunca
havia sonhado; e o outro, um livro de anatomia que ensinava a desenhar um
garlinói em um sem-número de posições.3 Ele ainda estava procurando o livro
número três quando seu pé bateu em alguma coisa. Tink viu a vela de cera de
meleca na prateleira e percebeu que estava exatamente onde Janner havia
tropeçado antes. Ele baixou o lampião até o chão para olhar mais de perto.
Um painel estreito havia se soltado na parte inferior da prateleira, onde se
encontrava com o chão. O pé de Janner deve ter batido nele. Tink se curvou para
colocar o painel no lugar, mas seus olhos encontraram algo nas sombras da
cavidade, logo abaixo. Ele enfiou a mão e puxou-o apenas o suficiente para ver
que era um pergaminho enrolado, amarelado pelo tempo e empoeirado.
O coração de Tink disparou. Ele olhou de volta para o corredor, desejando que
Janner estivesse por perto. Nada. Então ele examinou os corredores na outra
direção, mas tudo o que viu foram fileiras de livros desaparecendo nas sombras.
“Janner!” Sussurrou.
Silêncio. Não há como dizer onde ele está, Tink pensou. Ele examinou os
corredores novamente. Era seu primeiro dia ajudando na Livros e Vãos, e ele
sentia que já havia esgotado a paciência do Sr. Reteep. Tink não queria
incomodar mais o proprietário, mas sua curiosidade era enlouquecedora.
Ele deu uma última olhada em cada direção, colocou o lampião em cima de
seus livros de arte e cuidadosamente puxou o resto do pergaminho para fora.
Com os dedos tremendo, Tink o desenrolou.
18

Tropeçando num Segredo

O mapa era cuidadosamente desenhado à mão e extremamente detalhado,


embora crivado de pequenos orifícios. Tink reconheceu o Mar Sombrio da
Escuridão, preenchido com o desenho de pequenas embarcações à vela. Ele viu
uma estrada que ia de alguns penhascos a um pequeno aglomerado de prédios,
todos ordenadamente desenhados e rotulados. Tink se abaixou para ler sob o
brilho amarelo do lampião: Floricultura da Ferínia, Cadeia e Minha Livraria.
Ele percebeu, espantado, que estava olhando para um mapa de Glipwood,
desenhado pelo próprio Oskar N. Reteep.1 Com o dedo, traçou a estrada
principal em direção aos penhascos, até o caminho que levava ao chalé Igiby e,
com certeza, lá estava. Estava até etiquetado como Igiby.
No topo do mapa estava rabiscado, “Nas palavras imortais de Loshain P’stane,
‘Se alguém ler isso sem permissão, será certa e brutalmente morto. Ou pelo
menos arrancarei um ou dois dedos. Ou três’”.
Tink torceu as mãos enquanto seu coração murchava de medo e o pergaminho
começou a se enroscar. Com dedos trêmulos, ele o estendeu novamente.
Perto do topo do mapa, na orla da floresta, havia uma casa com o rótulo
Mansão Pé-de-Geleia. Sobre a casa havia um grande X e, abaixo dele, estava
escrito:

Seja você inimigo ou amigo
Cuidado com todos os que têm ido
Pois nas covas que abaixo daqui estão
Se encontra escondido no grande vão
Um caminho que leva à angústia e dor
Sofrimento, tristeza e grande horror
De Brimney Stupe, o fantasma faminto
Espera seus ossos ir engolindo
Então pense muito bem antes de ir
E o local, amanhã, aqui descobrir.

Tink deu um pulo quando o terrível som dos passos pesados de Oskar N.
Reteep veio em sua direção. Em pânico, ele enrolou o mapa, enfiou-o na manga
da camisa, agarrou o lampião e seus livros de arte, e pegou um livro aleatório da
estante à sua frente.
A figura arredondada do Sr. Reteep virou a esquina e flutuou para a luz do
lampião no momento em que Tink puxava o livro de seu lugar, na estante.
“Ah, jovem Tink! Vejo que você encontrou seus livros. O que você tem aí?”
Ele olhou para os dois livros de arte e depois para o terceiro. Tink ficou imóvel
como uma pedra, implorando para que Oskar não notasse a forma engraçada
como a manga de sua camisa estava saliente.
“A Arte da Coceira”, Oskar leu. Com os óculos na ponta do nariz, ele olhou
por cima deles para Tink e ergueu uma sobrancelha.
Tink sabia que havia sido apanhado. Ele se perguntou se o Sr. Reteep iria
realmente trucidá-lo ou se teria misericórdia e apenas cortaria um dedo. Mas
qual dedo? Ele se perguntou. E que tipo de instrumento o velho usaria?
“Algo errado?” Oskar perguntou, estreitando os olhos em Tink. “Você está
escondendo algo.”
O rosto de Tink ficou pálido e ele sentiu como se fosse desmaiar.
“Eu entendo, garoto”, disse Oskar. “É assunto particular, né? E, pra falar a
verdade, não é da minha conta, certo?” Oskar baixou a voz e se inclinou na
direção de Tink, com a mão no canto da boca. “Mas se você tiver alguma espécie
de erupção na pele, existem livros muito mais extensos sobre o assunto do que A
Arte da Coceira. Pode acreditar, eu li todos eles.” Oskar pigarreou. “Se você
entende o que quero dizer.”
Tink estava tão aliviado que mal conseguia falar. Ele forçou uma risada, largou
o livro que tinha acabado de pegar da estante e coçou a barriga e as axilas com a
mão livre. “Ah, sim, eu entendo bem o que quer dizer, senhor. Ai... arre... ui...”
Janner veio pela esquina com três livros grandes debaixo do braço, franzindo a
testa ao notar o comportamento estranho de Tink.
Tink parou de coçar quando Oskar se virou e aprovou as seleções de Janner, e
antes que Tink percebesse, ele se viu saindo da loja com seu irmão — mapa na
manga — e grato por ainda ter todos os dez dedos.
Já estava quase escuro quando Janner e Tink começaram sua curta caminhada
para casa, e Tink mal conseguia se conter. Ele esperou apenas até que estivessem
fora do alcance de voz da Livros e Vãos e deixou escapar: “Roubei um mapa!”
Janner parou no meio da rua. “Você o quê?!”
“Eu não queria. Está na minha manga agora, quer dizer, eu roubei, mas não era
minha intenção, eu juro”, Tink gaguejou, olhando ao redor.
Janner olhou para seu irmão em choque. “Continue andando, tenha certeza de
manter isso escondido e me diga o que aconteceu.”
Eles caminharam rapidamente pela Rua Principal, passando pela cadeia onde
uma dúzia de Fangs espreitava, mas não sentiram medo. Tink estava muito
animado para contar o que havia encontrado e Janner muito absorto pela história
para notar o Fang Slarb observando-os atentamente, do alpendre da cadeia, com
ódio no olhar.
O Comandante Gnorm estava atrás de Slarb, mas ele olhava para a rua como se
esperasse por algo.
“E eu tinha acabado de ler que quem olhasse o mapa sem permissão teria seus
dedos cortados quando ouvi Oskar chegando”, contou Tink, ofegante.
“Deve haver algum engano”, disse Janner. “Você consegue imaginar o velho
senhor Reteep cortando os dedos de alguém?”
Foi a vez de Tink parar no meio da rua. “Sim”, disse ele, olhos arregalados,
assentindo com a cabeça.
“Bom, eu não”, disse Janner. “Ele é um velho gentil demais para isso.”
“Você não viu o mapa”, disse Tink, balançando a cabeça. “Quando chegarmos
em casa, você verá com seus próprios olhos.”
Um pocotó-pocotó-pocotó repentino e constante de cascos e rédeas e arreios
paralisou os Igibys — um som que gelou o sangue dos garotos. Um chicote
estalou no ar escuro, e os irmãos se viraram para ver uma carruagem sombria
fazendo a curva na Esmeralda de Dunn, conduzida por uma figura trajada em
uma túnica preta.
Janner agarrou o braço de Tink e ambos contornaram A Única Pousada, se
espremendo contra a parede. Janner fechou os olhos esperando afastar o terror,
mas sua cabeça ecoava com o som da carruagem se aproximando. Em sua
mente, ele podia ver as barras de ferro e o braço pálido do condutor, de manto
preto, descendo para agarrá-los e trancá-los na gaiola.
Ele abriu um olho e deu com Tink espiando na esquina.
“O que você está fazendo?” Janner cochichou com força.
“Veja! Ela parou na frente da cadeia” Tink sussurrou sem olhar para o irmão.
Janner continuou imóvel. “O que está acontecendo? É a Carruagem Negra?”
“Não sei dizer... Péra aí... Comandante Gnorm está falando com o condutor...”
Janner não se aguentou mais. Ele espiou pela esquina e viu os dois cavalos
cavoucando o chão e bufando. O condutor encapuzado se dirigiu a Gnorm e,
então, deslizou do assento e abriu a porta da carruagem.
Janner suspirou. A porta não era feita de ferro, mas de madeira escura polida.
Nenhum corvo estava empoleirado no teto da carruagem ou circulando acima
dela. Não era a Carruagem Negra, afinal.
Gnorm ergueu-se até o coche e se acomodou. A porta se fechou e, com outro
estalo do chicote, os corcéis empinaram. A carruagem deu uma guinada para a
frente, virou-se e partiu exatamente como viera, enquanto o resto dos Fangs,
situados na rua, assistiam à partida.
Mas nem todos os Fangs.
“E como essstá sua irmãzinha manca e aquele vira-latas dela?” Uma voz
familiar sibilou nos ouvidos de Tink e Janner.
19

Angústia, Dor e Horror

Tink e Janner se viraram para dar de cara com Slarb nas sombras — seus olhos
negros como dois poços vazios. Quando ele emergiu da escuridão, os dentes à
mostra, os dois gritaram e recuaram para a rua.
“É hora de terminar o que comecei ontem, garotosss.” Slarb rangeu os dentes
com avidez. Ele inclinou a cabeça para um lado e considerou Janner e Tink por
um longo momento.
Janner achou que ele se parecia com a cobra-de-focinho-alto que ele vira uma
vez no pasto. Ela empinou o pescoço para trás e inclinou a cabeça para o lado
antes de desferir o bote contra um infeliz rato-do-campo. Então, esse é o fim,
imaginou Janner.
Com ou sem Comandante Gnorm, Slarb iria matá-los ali mesmo.
“Slarb! Esses são os meninos da mulher Igiby?” Gritou outro Fang do alpendre
da cadeia. “Gnorm vai cozinhar você vivo se ficar entre ele e seu rocambole de
vermes!”
Slarb zombou do Fang no alpendre e hesitou. Então ele cuspiu nos pés de
Janner. Pequenos tentáculos de fumaça subiram da ponta de uma das botas onde
o veneno caiu.
Janner resistiu à vontade de gritar e arrancar sua bota.
Slarb rosnou e pareceu prestes a atacar, mas, ao invés disso, com um olhar
taciturno para os outros Fangs, esgueirou-se para as sombras atrás de A Única
Pousada.
Janner e Tink se viraram e correram para casa.
O mapa misterioso de Oskar parecia de pouca importância. Viver numa terra
infestada de Fangs já era ruim o suficiente; mas agora, um deles tinha se tornado
um inimigo pessoal — e a única coisa que impedia Slarb de matá-los era a
esperança de que Gnorm se agradasse do rocambole de vermes de Nia.
Janner e Tink, porém, sentiram seu ânimo melhorar quando chegaram ao chalé.
O fogo estava crepitando, os lampiões acesos, e o aroma de carne assada enchia
o ar. Podo estava cochilando no sofá ao lado da lareira, roncando tão alto que as
janelas chacoalhavam.
Tink deslizou silenciosamente para seu quarto e escondeu o mapa embaixo do
travesseiro, justo no momento em que Nia chamava para o jantar.
Quando Janner e Tink se sentaram à mesa repleta de comida, perceberam o
quanto estavam cansados. Eles contaram sobre seu dia, a caixa de Dang e o
diário de Anniera. Janner achou estranho que Nia e Podo estivessem tão
interessados em tudo que os meninos tinham a dizer até mencionarem o diário.
Janner os viu trocar olhares e então sua mãe mudou abruptamente de assunto.
O que isso poderia significar? Janner se perguntava se sua mãe e seu avô, de
repente, estavam escondendo segredos deles, ou se ele, apenas agora, estava
começando a notar algo que sempre acontecia.
Leeli interrompeu seus pensamentos. “Você viu algum livro de música
escondido na Livros de Vãos? Eu gostaria muito mesmo de ver um.”
Janner riu. “Se Oskar não tiver uns cem livros de música, eu como um verme.”
Quando eles falaram sobre o encontro com Slarb, Podo fez várias promessas de
matar o Fang de várias maneiras diferentes.
Nia os lembrou de que, a cada poucos meses, os regimentos de Fangs eram
substituídos. “Não será assim para sempre. Precisamos apenas passar
desapercebidos e torcer para que meu rocambole de verme seja realmente
horrível.”
“Talvez você devesse deixar o vovô fazer esse rocambole, então”, disse Tink,
colocando mais carne assada em seu prato. “Seu mingau de totata deixa minhas
entranhas em frangalhos.” Todos, exceto Podo, caíram na gargalhada.
“Qual é o problema com meu mingau de totata? Soberbo!” Suas sobrancelhas
estavam tão altas que se misturavam ao resto do cabelo. “Uma pitada de raiz
fermentada, uma pitada de pimenta de milho — e ainda tem coragem de falar em
frangalhos!” Quanto mais Podo protestava, mais o resto da família ria.
“Soberbo!” Podo disse novamente com indignação. Ele cruzou os braços sobre
o peito largo e empinou o nariz. Mas mesmo Podo não conseguiu conter o riso.
Seus lábios tremeram como geleia, então um sorriso se espalhou por seu rosto, e
logo ele estava batendo nos joelhos e gargalhando com o resto deles.
Janner não conseguia se lembrar da última vez que a família riu tanto, e ele
sabia, como todos os demais, que não estavam rindo tanto do comentário de
Tink, mas porque seus espíritos, cansados e apreensivos, precisavam daquelas
risadas como remédio.
Finalmente, como uma pancada de chuva que vem e vai e deixa tudo úmido e
brilhante, as risadas pararam.
“Vocês trouxeram para casa alguma coisa interessante da Livros e Vãos?” Nia
perguntou, enxugando os cantos dos olhos.
O sorriso de Tink desapareceu. Ele deu a Janner um olhar tenso e suplicante,
implorando que não contasse sobre o mapa roubado.
“Tink”, disse Janner, com um olhar inocente para o irmão. “Há algo que você
queira dizer?” Tink olhou feio para Janner, balançando a cabeça o mais
sutilmente que conseguiu. Quando não respondeu, todos voltaram os olhos dos
pratos para Tink. Todos os olhos estavam nele.
“Tink, o que foi?”, perguntou Nia. As bochechas de Tink coraram e ele olhou
carrancudo para Janner.
“Fale, rapaz! Sua carne está esfriando”, exclamou Podo.
“Bom, vejam, eu encontrei... Eu encontrei...”, ele gaguejou e baixou tanto a
cabeça que seu cabelo quase mergulhou no prato de carne assada.
“Ele encontrou uma erupção na pele, com coceira”, disse Janner, rindo
enquanto enchia seu copo com a água da jarra. “Já se espalhou para suas axilas?”
A cabeça de Tink levantou, num pulo. “O quê? Não, ainda não.”
Janner piscou para ele, mas Tink não estava rindo.
Podo exigiu dar uma olhada na erupção cutânea de Tink ali mesmo, à mesa de
jantar, e para a alegria de Janner, o interrogatório sobre a erupção durou o resto
da refeição.
Convencido de que Tink estava bem, de que a erupção provavelmente era
apenas sua imaginação — algo causado pelo estresse, Podo permitiu que Tink
fosse para seu quarto.
“É um pouco estressante saber que seus dedos podem ser cortados”, Tink
murmurou para si mesmo uma vez a salvo em seu beliche.
“Talvez um deles pudesse ir para o rocambole de verme”, disse Janner, rindo.
“Você sabe, seus dedos sujos podem ser um excelente complemento para a
receita.”
“Isso não tem graça”, replicou Tink.
Uma melodia da harpa eólica de Leeli veio da sala principal, onde ela tocava
uma vibrante música de marinheiros a pedido de Podo.
Janner e Tink escalaram o beliche de cima e abriram o mapa. Eles leram e
releram a inscrição ao lado do prédio com o rótulo Mansão Pé-de-Geleia,
tentando imaginar o que poderia estar escondido ali para fazer Oskar manter um
mapa secreto.
Tink estremeceu com a linha do poema sobre o fantasma de Brimney Stupe.
“Não gosto de fantasmas”, disse ele.
“Qual é, Tink. Fantasmas não existem.”
“Isso é o que você diz. Podo disse que viu fantasmas.”
“Bom, ele nos disse que viu um navio abandonado no Mar Sombrio da
Escuridão, com uma tripulação de piratas fantasmas”, relembrou Janner, “e
também disse que estava acordado há três dias seguidos. Você vê coisas
estranhas quando não dorme.” Ele balançou sua cabeça. “Fantasmas não são
reais.”
“O que você acha que são todos esses pequenos orifícios espalhados pelo
mapa?”, perguntou Tink.
“Sei lá.” Janner encolheu os ombros. “Provavelmente ratos. Ou insetos. Veja!”
Janner apontou para a imagem de um dragão no canto inferior direito do mapa.
“Isso te lembra alguma coisa?”
Tink balançou a cabeça.
“Lembra do diário de Anniera, na caixa de Dang? Parece o mesmo dragão.”
Tink apontou para uma inscrição acima do dragão. “As Joias de Anniera”, ele
leu, com o rosto perplexo. “O que são as Joias de Anniera?” Janner encolheu os
ombros.
“Não sei, mas tenho certeza de que o senhor Reteep tem um bom motivo para
manter o mapa escondido. E para esconder as Joias de Anniera, ou o que quer
que esteja na Mansão Pé-de-Geleia. Uma coisa é certa. Eu não quero descobrir.
É muito perto da floresta, e mesmo antes da Guerra aquele lugar era assustador.
Está abandonado há anos.”
“Por quê?”
“Não sei. Li sobre isso em um livro sobre a história de Glipwood,1 e Podo
disse que o lugar era mal-assombrado, que as pessoas ouviam barulhos vindos de
dentro. Tem sido evitado por tanto tempo que ninguém se lembra de quem o
construiu, ou mesmo quem foi Pé-de-Geleia. Eu mesmo nunca vi o lugar. De
acordo com o mapa, fica bem ao norte da cidade, na orla da floresta.”
Tink olhou, pela janela, a noite lá fora. “Se saíssemos logo depois do almoço,
amanhã, teríamos tempo para...”
“Você tá maluco?” Janner interrompeu.
Tink olhou fixamente para o irmão, que olhou para a porta e baixou a voz.
“De jeito nenhum.” Janner balançou a cabeça.
Os olhos de Tink piscaram. “Você que é o louco. Como pode encontrar um
mapa do tesouro e não querer encontrar o tesouro?”
“Não está escrito ‘tesouro’ em nenhum lugar deste mapa! Em dois dias
estivemos em brigas com dois Fangs, fomos jogados na cadeia e quase
ganhamos uma carona na Carruagem Negra. Aí, você rouba um mapa, e Slarb
nos informa que pretende nos matar! E agora, você quer seguir um mapa para
uma casa mal-assombrada, perto da floresta, por causa de um enigma que diz
que isso leva à angústia, dor e horror?!” Tink sorriu. “Sim.”
Janner soltou um gemido.
“Affe!” Tink fez uma careta. “Só estou dizendo que há muito mais nesta
pequena cidade do que pensávamos. Nossa mãe tem um esconderijo de joias que
não conhecíamos. O senhor Reteep recebe um diário de Anniera em uma caixa
de Dang. Ele tem um mapa escondido. E uma pessoa misteriosa com pontaria
perfeita salvou nossas vidas ontem.”
Janner inclinou a cabeça. “Você está certo”, admitiu. “Eu também ouvi Podo e
mamãe dizerem que acham que sabem quem salvou nossas vidas”. A testa de
Tink franziu.
Janner olhou bem nos olhos de Tink. “E há outra coisa. Algo sobre nosso pai.”
Tink ficou em silêncio.
“O nome dele era Esben.”
“Quem te disse isso?”, Tink perguntou suavemente.
“Eu ouvi mamãe dizer isso ontem. Eu não acho que ela pretendia.”
“Esben”, Tink repetiu o nome para si mesmo.
Os irmãos sentaram-se na cama com o peso da ausência do pai sobre eles até
que Leeli abriu a porta. “O que vocês dois estão fazendo na cama de cima?”, ela
perguntou, sorrindo e subindo em sua própria cama, com Nugget bem ao lado
dela.
“Nada”, disseram Janner e Tink em uníssono — e um pouco rápido demais.
Mas Leeli não percebeu e logo ela e Nugget estavam dormindo.
Janner desceu para seu beliche, onde ficou acordado até tarde da noite — sua
cabeça girando, cheia de perguntas, e seu coração cheio de preocupação. O olhar
de ódio nos olhos de Slarb queimava em sua memória. Ele podia ouvir a voz
sibilante do Fang, cheirar o hálito podre e sentir novamente a fisgada do veneno
pingando em seu pescoço; ele estava por demais consciente da responsabilidade
que tinha de cuidar do irmão e da irmã.
A cabeça de Tink apareceu, pendurada, no beliche de cima.
“Acordado?”, Tink sussurrou.
“Sim.”
“Saímos logo depois do almoço”, afirmou Tink, e desapareceu novamente.
“Não!” Janner sussurrou, mas Tink estava roncando alto, fingindo estar
dormindo.

20

Na Mansão

Mesmo enquanto seguiam para o norte, em direção à propriedade Blaggus para


um breve jogo de zibzy, Janner sabia que eles visitariam a Mansão Pé-de-Geleia
naquela tarde. Durante as tarefas daquela manhã, ele havia discutido com seu
teimoso irmão em sussurros acalorados, mas logo ficou claro que, para Tink,
medo e bom senso não eram páreos para sua curiosidade.
Nem para a de Janner. Ele não conseguia parar de pensar naquele aviso
misterioso no mapa, bem ao lado do X sedutor. Além disso, disse a si mesmo,
Tink iria com ou sem ele. Quem mais protegeria seu irmão mais novo?
Então, no calor do início da tarde, os irmãos Blaggus ganharam o jogo como de
costume, e Janner e Tink se despediram deles. Quando tiveram certeza de que
não estavam sendo mais vistos, começaram a correr através do mato alto da
velha estrada, fazendo a curva e subindo uma colina, até que estivessem bem
fora da vista da propriedade.
A estrada ao norte da propriedade Blaggus estava coberta de mato. Poucos
viajavam por ela desde que as fazendas além das terras da família Blaggus foram
queimadas e abandonadas durante a Guerra. Não demorou muito para que Janner
se dobrasse, com as mãos nos joelhos, ofegando por ar. Tink o ultrapassara e
estava esperando vários metros à frente, olhando para o campo, tentando não
parecer ele mesmo sem fôlego. Os carvalhos que sombreavam a estrada estavam
escassos e o terreno gramado subia para longe da cidade e dos penhascos, em
direção à orla escura da floresta Glipwood.
Janner se levantou com grande esforço e enxugou a testa com a frente da
camisa. Tink apontou para baixo, mostrando o telhado inclinado da casa dos
Blaggus, visível entre as árvores abaixo deles. Mais além ficava o centro de
Glipwood, uma pequena fileira de edifícios à distância. A Única Pousada podia
ser vista facilmente, uma vez que ficava um andar mais alto do que os outros
edifícios, mas a leste a terra desaparecia numa extensão cinza. O Mar Sombrio
da Escuridão.
Em algum lugar, cada irmão pensava consigo mesmo, na beira do mar, sob a
sombra das árvores de Glipwood, ficava o chalé Igiby.
Por uma hora, Janner e Tink seguiram a antiga estrada o melhor que puderam.
Cada vez que a estrada começava a se misturar com trechos altos de urze e a
desaparecer, eles tornavam a procurar pela leve depressão do caminho, diante da
grama esvoaçante. A fronteira da floresta se aproximava cada vez mais, e logo
Janner estava apontando para a forma do que devia ser a estrutura em ruínas da
Mansão Pé-de-Geleia.

Tink acelerou o passo e logo eles pararam diante da mansão, cujos fundos
deteriorados davam para a floresta. As duas janelas escancaradas do segundo
andar fizeram Janner pensar nas órbitas de uma caveira observando sua
aproximação. Ele parou na frente de um portão de ferro enferrujado, pendurado
triste e torto em dobradiças antigas. Nenhum dos irmãos falou nada, não
querendo admitir que estavam com medo e se perguntando que tolice havia feito
a ideia de ir até lá parecer sensata.
Estava claro que a mansão já fora um lugar bonito. Várias estátuas altas e
mofadas, de pessoas em várias poses, pontilhavam o pátio. Uma era de um
homem gordo comendo uma costeleta de cordeiro (a visão fez o estômago de
Tink roncar alto, som que fez Janner pular alguns centímetros do chão). Outra
estátua, mais próxima da casa, representava uma mulher rindo e balançando um
gato apavorado pelas patas traseiras. Ainda outra estátua, coberta de vinhas, era
de um homem chorando, coçando sua grande barriga com um ancinho.
Pendurado no cabo do ancinho estava um cacho de uvas de pedra.
O telhado da mansão desabara há muito tempo, e em todos os lugares ervas
daninhas e vinhas haviam começado o lento trabalho de puxar as pedras e as
madeiras envelhecidas de volta à terra.
Janner se virou e olhou para trás — a longa encosta que declinava até a cidade
distante.
“Viemos até aqui, não viemos?” Perguntando-se incerto, respirou fundo e
passou pelo portão.
O ar estava quieto feito um túmulo. Nenhum pássaro cantava. Nenhum vento
soprava.
Janner estremeceu ao pensar nas muitas feras que vagavam pela floresta. Ele se
perguntou quantas vezes aquelas feras se aventuravam para além das árvores e
em lugares como a Mansão Pé-de-Geleia. Ou os animais também tinham medo
de fantasmas?
Tink seguiu o irmão mais velho, passando por um antigo banco de pedra no
lugar que parecia ser um jardim de flores cercado de pedras, então coberto por
um emaranhado de ervas daninhas. A frente do banco tinha uma inscrição.
Janner afastou as vinhas e leu: Brimney Stupe Gosta de Sua Sopa.
O estômago de Tink rugiu. “Trouxemos alguma coisa pra comer?” Ele
perguntou, sabendo que não.
Janner o ignorou. “Vamos dar outra olhada no mapa”, ele pediu.
Eles se sentaram no banco e Janner examinou o mapa, tentando ao máximo
ignorar o terrível aviso sobre entrar no lugar em que estavam prestes a entrar.
A borda da floresta atrás da casa era uma parede verde emaranhada, silenciosa
e sombria, e enquanto Tink olhava para ela, não conseguia se livrar da sensação
de que a floresta o encarava de volta.
“Há alguma coisa aqui que nos diga exatamente para onde ir?” Perguntou
Janner. “Diz: ‘Nas covas que abaixo daqui estão se encontra escondido no
grande vão...’. Acho que isso significa que precisamos encontrar um caminho
para baixo.” Ele apontou para a fundação da Mansão. “Lá embaixo.”
Tink olhou por um longo tempo para o olhar caveiroso da mansão e
estremeceu. “Por que estamos aqui mesmo?”
“Porque você me convenceu, esse é o motivo.”
“Sabe, um lanche cairia bem agora”, ponderou Tink. “Talvez devêssemos
voltar e...”
“Nem vem”, retrucou Janner com firmeza. “Viemos até aqui e você não vai
desistir.”
“Foi apenas uma sugestão”, respondeu Tink, forçando uma risada. O som de
sua risada não era natural ali, nas ruínas.
Janner disse a si mesmo que não havia fantasmas na mansão e que as
advertências no mapa só existiam para o caso de cair em mãos erradas. Tudo
bem que tivesse caído, ele argumentou consigo mesmo. Mas se esse fosse
realmente o caso, Oskar não havia previsto que dois garotos o encontrassem. Ele
deve ter esquecido que, na mente de um menino, uma advertência não é muito
diferente de um convite.
“Vamos”, chamou Janner decidido, e Tink o seguiu.
Eles esmagaram os arbustos espessos que cercavam a mansão de pedra,
procurando por qualquer sinal da entrada de um porão. Janner sentia o cheiro
mofado de coisas velhas e, dentro de cada janela por que passavam, via pedras
tombadas e vigas caídas na penumbra. Dos fundos da mansão, ele e Tink
espiaram por uma porta de serviço que levava ao que devia ter sido a cozinha.
Videiras cobriam um balcão comprido e rachado com lavatórios cortados em
mármore. O teto do primeiro andar desabara sobre a cozinha, permitindo que
finos raios de sol cruzassem um emaranhado de madeira velha, potes e pedras
caídas no chão.
Eles seguiram em frente pelo mato, ao redor da mansão, e passaram por uma
fonte seca que, no gramado dos fundos, abrigava uma roseira espinhosa. Além
da fonte, a floresta os encarava.
Janner ficou todo arrepiado. “Vamos voltar lá pra frente”, ele sussurrou.
Tink assentiu gravemente e rodeou a casa seguindo seu irmão de volta.
Nenhum dos irmãos admitiria, mas cada um se sentia melhor com algo entre eles
e as árvores.
Isto é, até que dobraram um dos cantos. Os dois irmãos pararam na entrada
principal da casa, olhando para as sombras. O ar estava parado e pesado com o
calor da tarde.
“Um lampião seria bom”, confirmou Janner, olhando para a entrada sombria.
Em seguida, cada um deles respirou fundo e, lado a lado, atravessaram a
soleira, entrando nas ruínas da Mansão Pé-de-Geleia.
21

Os Canicórneos

Assim que entraram, Janner e Tink não conseguiam enxergar nada além de
escuridão. Então eles perceberam que estavam em uma sala ampla e vazia, com
paredes de pedra. Uma escada outrora elegante conduzia para cima, em direção à
luz do andar superior, sem telhado. Escombros, velhas vigas de madeira e ervas
daninhas cobriam o chão. Tudo de valor há muito havia sido saqueado, mas a
desvanecida glória da mansão era aparente. Não era difícil imaginar jantares,
muito tempo atrás, com homens e mulheres bem vestidos subindo e descendo a
ampla escadaria, ou risadas misteriosas ecoando nos quartos enormes e vazios —
ou Brimney Stupe, quem quer que fosse, passeando pelos corredores da mansão,
à noite, segurando uma vela acima de sua cabeça.
Em outras palavras, não era difícil imaginar que fantasmas existem.
“Você disse algo?” Janner perguntou, sua voz nervosa ecoando pela sala.
“Não, você ouviu alguma coisa?” Tink sussurrou.
“Não. Você ouviu?”
“Só você, perguntando se eu disse alguma coisa.”
“Então, por que você perguntou?”
“Porque você perguntou.”
Janner caminhava cuidadosamente entre os escombros da sala principal,
espiando pelas portas que levavam para o interior de outros cômodos. Ele seguiu
o caminho de volta para a área da cozinha, onde o teto havia sumido e a luz do
sol os deixava muito mais confortáveis. Tink vasculhou os armários vazios
enquanto Janner olhava sob as vigas caídas, na esperança de encontrar alguma
pista do tesouro que Oskar havia mapeado.
Logo quando Janner começava a relaxar e Tink havia começado a pensar que
gostaria de visitar o lugar com mais frequência, um estalar soou do lado de fora
da janela da cozinha.
Os irmãos Igiby congelaram.
Era o mesmo som que eles próprios fizeram enquanto caminhavam entre os
arbustos ao redor da casa. Alguma coisa estava lá fora e estava se aproximando.
Janner prendeu a respiração e levou um dedo aos lábios. Ele acenou para que
Tink o seguisse. Silenciosos como ratos, eles voltaram na ponta dos pés até a
entrada da frente da mansão e espiaram pela porta.
Do outro lado do quintal, uma criatura cinza estava farejando o banco onde
eles haviam se sentado. Parecia exatamente com um cachorro — exceto por duas
presas projetando-se acima do focinho, um chifre de aparência perigosa que
coroava sua cabeça, e o fato de que era pelo menos tão alto quanto Janner.
Um canicórneo, Janner observou e, sussurrando, advertiu o irmão: “Não se
mova”.
Tink ficou perfeitamente imóvel. Mas há horas não comia. Nós realmente
deveríamos ter trazido algo para comer, ele pensou. A visão do banco de pedra
lembrou a Tink a inscrição nele, que o lembrou de Brimney Stupe saboreando
sua sopa, o que lembrou a Tink que ele não tinha comido nada desde que saíram
do chalé, naquele mesmo dia. Seu estômago roncou. Alto.
Janner paralisou de horror quando aquela fera olhou diretamente para os
meninos parados dentro da casa. Ele ergueu sua cabeça chifruda e uivou um uivo
lancinante e faminto. Em seguida, virou-se e avançou direto para eles.
“Rápido!” Janner exclamou, disparando por uma porta à esquerda. À distância,
um terrível coro de uivos respondeu ao primeiro. Janner não conseguiu pensar
em nada a não ser adentrar mais a mansão e esperar encontrar um lugar para se
esconder dos bichos.
A porta levava a um longo corredor, onde orifícios ocasionais no teto
permitiam a entrada de raios solares. O corredor era cheio de portas, de ambos os
lados, então Janner escolheu uma ao acaso e puxou Tink logo em seguida. Lá
fora, os uivos aumentavam em volume e número.
“Psiu! Tem outra porta!” Relatou Tink. No fundo da sala havia uma porta,
menor que a primeira, levando a uma escuridão ainda mais profunda.
“Vamos! Está escuro, então fique perto”, asseverou Janner, correndo para a
porta. Ele atravessou para — o ar vazio. Tink agarrou Janner pela camisa e o
puxou de volta. Janner engasgou e firmou-se no batente da porta. Tink se pôs de
joelhos e se abaixou pela abertura, esperando encontrar degraus ou outro tipo de
escada.
Não havia nada.
“Estamos num beco sem saída”, constatou Janner. “Vamos!”
Mas seu caminho estava barrado. Parado à porta por onde eles tinham passado
estava a forma indistinta de um canicórneo. O único som na sala era a respiração
ofegante da criatura. Seus olhos famintos brilhavam na escuridão e um rosnado
baixo encheu a sala. A fera deu um passo à frente e mais duas bestas com chifres
apareceram à porta atrás dele.
“Então era isso que o mapa queria dizer com angústia e dor, hein?” Tink
concluiu, de voz trêmula tal qual vara verde numa tempestade.
Janner pensou em sua obrigação como o mais velho. Poucos dias atrás, Leeli
quase morrera nas mãos de um Fang porque ele não estava atento. Agora isso.
Por que não posso ser como nosso pai?!, Janner se questionou. Ele morreu na
Grande Guerra, tentando proteger aqueles que amava. Por um momento
vergonhoso, Janner sentiu um lampejo de raiva de Tink, por tê-lo convencido a ir
até a Mansão Pé-de-Geleia. Por que eu é que tenho que arriscar a vida pelo meu
irmão mais novo, quando é culpa dele estarmos aqui, pra começo de conversa?
Janner estava cansado de assumir a responsabilidade pelas loucuras de seu
irmão, e queria esquecer Tink e fugir para salvar sua vida. Talvez ele pudesse
abrir caminho entre as feras e encontrar um lugar melhor para se esconder na
mansão. Talvez...
A ideia de fugir foi apenas um breve pensamento. Janner sabia que não iria —
não poderia — deixar seu irmão mais novo para trás. Ele já conseguia ouvir a
voz áspera de Podo em sua mente. “Parte de ser homem é cuidar muito bem de
quem você ama.”
O primeiro canicórneo na porta se enrijeceu.
Janner sentiu mais do que viu, e soube que o ataque era iminente. Sem
pestanejar, ele se colocou entre Tink e as feras, girou seu irmão mais novo e o
empurrou pela porta.
Tink gritou ao cair, e Janner ouviu as feras avançando, cujo hálito quente
baforou querendo alcançar sua nuca enquanto ele também pulava na escuridão.
22

Nas Covas que Abaixo Daqui Estão

A cabeça de Janner latejava. O mundo girou e ele sentiu como se estivesse


dormindo há dias. Quando conseguiu abrir os olhos, viu um retângulo de luz
fraca acima dele e as formas dos frenéticos animais preenchendo o vão da porta,
rosnando e latindo. Um deles ganiu e recuou. Janner olhou para a direita e ainda
conseguiu ver Tink arremessando uma pedra nos canicórneos.
A pedra errou o alvo e pipocou através do teto de madeira podre como se fosse
nada mais do que papel. Um raio de sol penetrou no cômodo. Janner afastou a
tontura e cambaleou para ajudar o irmão.
Pedra após pedra, muitas voaram em direção aos canicórneos que, quando
atingidos, ganiam como filhotinhos e recuavam. Os irmãos começaram a se
divertir como só meninos conseguem fazer quando estão atirando pedras, e
iniciou-se uma disputa para ver quem acertaria a última fera.
A maior de todas as bestas, um canicórneo tão alto quanto Janner, rosnava e
arreganhava as presas, ameaçando, jazendo à porta. Tink avaliou o peso de uma
pedra em sua mão, recuou e com um enorme brado a fez voar. A pedra atingiu o
último animal bem no olho, que desabou no chão, com a cabeça pendendo sobre
a borda.
Os irmãos se dobraram com as mãos nos joelhos, ofegantes.
Janner sorriu para o seu irmão. “Bom arremesso.”
Tink sorriu de volta. “Você está bem?”
Janner colocou a mão no lado da cabeça. “Eu... acho que sim. A queda não
machucou você?”
“Não, mas se alguma vez você planejar me empurrar pela borda de algo outra
vez, me avise primeiro. Eu quase molhei as calças.”
Janner olhou ao redor da sala, mas não conseguia enxergar muita coisa com
aquela luz fraca. Ele pegou outra pedra.
“O que vai fazer?” Perguntou Tink.
Janner atirou a pedra através do teto quebradiço, deixando entrar outro raio de
sol, depois atirou várias outras pedras até que pudessem enxergar claramente os
arredores.
O lado do porão oposto à porta alta estava entulhado com uma pilha de
caixotes velhos e madeira seca, mas o resto do cômodo estava vazio. A única
saída era por onde haviam entrado; a entrada tinha o dobro da altura de Janner e
as paredes eram lisas demais para escalar. Janner cutucou a pilha de madeira, na
esperança de encontrar algo que pudesse encostar na parede e escalar. Mas todas
as tábuas suficientemente compridas eram frágeis demais para sustentá-lo. A
maior parte da madeira, já antiga, estava podre e consumida.
“Tink, suba nos meus ombros. Talvez você consiga alcançar a porta.”
“Ah, não sei, não, viu?” Duvidou Tink, olhando para a porta acima deles.
“Estamos bem longe.”
“Sou mais alto do que você, e você não consegue me aguentar. Além disso,
você caiu lá de cima e está bem. Agora, vamos, anda.”
Janner se abaixou e com um forte gemido conseguiu se levantar com os pés de
Tink em seus ombros. Tink tremia e se esforçava, mas ainda não conseguia
alcançar a porta. Mesmo se ele puder alcançá-la, Janner pensou, aquele
canicórneo ainda pode estar acordado. Tink desceu e Janner andou de um lado
para o outro no porão, tentando pensar no que fazer, e quanto mais pensava, mais
frustrado ficava consigo mesmo por estar ali. Esse negócio de caça ao tesouro
era uma tolice, e Janner precisava levar seu irmão mais novo para casa. Se os
dois não voltassem logo, Podo e Nia seriam, no mínimo, tão aterrorizantes
quanto os canicórneos.
Tink estava do outro lado do cômodo, cutucando com os pés uma pilha de
madeira.
“Janner!” Ele chamou. “Uma escada!”
Graças ao Criador, pensou Janner. Podemos sair daqui. Ele cruzou a sala e
olhou — e seus ombros murcharam.
Tink estava sorrindo, apontando para uma passagem estreita que descia para as
sombras.
“Não, Tink”, retrucou Janner.
“O que você quer dizer?”
“O que você quer dizer com ‘o que você quer dizer?’”
“Estamos tão perto, é isso que quero dizer. Não podemos simplesmente ir pra
casa!”
Janner estava sem palavras. Como esperam que eu cuide de meu irmão se ele
não tem a menor noção do perigo que corremos? Apenas alguns momentos atrás
eles quase foram comidos por uma matilha de canicórneos e, agora, Tink estava
mais preocupado em bisbilhotar um porão do que com sua própria vida.
Tink deu os primeiros passos, descendo na passagem, para ver melhor. “Aha!”
Exclamou, parecendo muito com seu avô. Ressurgiu com um lampião a óleo e
uma caixa de fósforos coberta com teias de aranha. Soprando a poeira do
lampião, Tink o acendeu e começou a descer a escada sem dizer mais nada.
Janner olhou ao redor da sala novamente, desejando desesperadamente que
outra porta aparecesse, mas não havia nenhuma. Ele não tinha escolha e, com um
suspiro, seguiu seu irmão mais novo para as entranhas da Mansão Pé-de-Geleia,
tentando não pensar na advertência do mapa: Pois, nas covas que abaixo daqui
estão, se encontra escondido no grande vão um caminho que leva à angústia e
dor, sofrimento, tristeza e grande horror.
Quanto mais a descida se aprofundava, mais o ar ficava frio e pesado. Teias de
aranha pendiam do teto baixo da passagem, e os ouvidos de Janner estavam
tomados pelo som de sua própria respiração e o eco de passos no chão de pedra.
Depois de vários degraus rachados e quebrados, Tink e Janner chegaram ao pé
da escada. A passagem parecia mais uma caverna do que um túnel — as paredes
ásperas e úmidas. O chão estava úmido o suficiente para que nem Janner, nem
Tink quisessem rastejar, mas o teto era baixo demais para permitir que andassem
sem se abaixar.
Eles prosseguiram desconfortavelmente curvados — Tink segurando o lampião
e espiando a escuridão além do alcance da luz; Janner mal conseguia ver nada
além da nuca de Tink.
Nenhum dos meninos havia pensado na possibilidade de fantasmas depois de
escaparem, por um triz, dos canicórneos de carne e osso, e Janner estava
sorrindo, a despeito de si mesmo. Ele não podia negar a empolgação de se
arrastar por uma passagem secreta no porão de uma casa antiga, e sabia que Tink
também estava sorrindo. Janner quebrou o silêncio com um sussurro.
“Como está aí na frente?”
“Nada ainda — péra aí, a passagem tá se virando um pouco...”
O caminho se torceu à direita e o teto elevou-se o suficiente para que os
garotos conseguissem ficar em pé. Eles gemeram de alívio e esticaram as costas.
Sua tensão, medo e excitação borbulharam à superfície como risos nervosos.
Eles caminharam mais alguns metros, lentamente, e o caminho se alargou o
suficiente para que os dois pudessem andar lado a lado. Nenhum deles falava
enquanto avançavam cada vez mais para o fundo do corredor.
Por fim, Janner e Tink chegaram ao fim da passagem, onde uma porta de ferro
enferrujado bloqueava seu caminho. Suas dobradiças estavam embutidas na
parede rochosa do túnel e eram tão quadradas e sólidas como se estivessem
cravadas lá desde sempre. Quem quer que tenha colocado a porta ali, pretendia
impedir a entrada de intrusos. No centro da porta havia uma placa de metal com
várias fileiras bem alinhadas de botões metálicos redondos, do tamanho de juntas
de dedos. Não havia buraco de fechadura.
Tink experimentou a maçaneta e a encontrou trancada.
“Claro”, disse Janner, frustrado.
Um momento se passou — os garotos estudavam a porta.
“Pera aí”, exclamou Tink. Ele apertou um dos botões enferrujados. Com um
clique alto, o botão afundou na porta. “Janner, olha. Acho que é uma fechadura.
Só precisamos descobrir a combinação certa de botões para apertar e a porta se
abrirá. Vê?” Ele apertou outro botão. “Tem... dez filas de... oito botões cada. Isso
dá apenas oitenta botões.”
“Isso é ridículo.” Janner balançou a cabeça. “Não temos ideia de quantos
botões precisam ser pressionados ou em que ordem. Ficaríamos aqui pelo resto
da vida — que não pretendo gastar aqui.” Ele fez uma pausa. “Além disso, pode
ser uma armadilha.”
Tink respirou fundo e colocou a mão na maçaneta.
Janner sentiu um momento de pânico. “Não!...”
Tink piscou para Janner e tentou a maçaneta da porta novamente. A porta não
se moveu, mas os botões que Tink pressionara voltaram ao lugar após um clique,
alinhando-se aos demais.
Janner preparou-se para algo terrível, mas nada aconteceu. Ele tentou mais uma
vez convencer Tink a desistir, mas seu irmão mais novo continuou a ignorá-lo
enquanto Janner se enterrava no chão e esperava. Certamente Tink ficaria
entediado logo e desistiria por conta própria.
Mas ele não desistia.
Em vez disso, Tink desenrolou o mapa e o examinou à luz do lampião. “Deve
haver algo aqui...”
“Tink.” Janner suspirou, exasperado. “Se houver uma fechadura na porta,
talvez ela deva permanecer trancada.”
Tink ignorou seu irmão, atento ao mapa. Ele murmurava: “Algum tipo de
código...” Ele estendeu o mapa com uma mão e levantou o lampião com a outra,
projetando a sombra do mapa na parede do túnel.
Pouco antes de Tink desistir e começar a enrolar o pergaminho, Janner os viu
— pontos de luz em um padrão irregular, formados pelos minúsculos orifícios no
mapa. A frustração de Janner desapareceu. “Tink, desenrole o mapa.”
Tink olhou confuso enquanto Janner iluminava o mapa com o lampião e guiava
cuidadosamente as mãos de Tink para posicionar o mapa na frente dos botões da
porta. Os pontos de luz estavam agrupados e quase grudados no início, então
Janner deu alguns passos para trás. Então Tink também enxergou, claro como a
luz do dia: quatro dos pontos de luz alinhados com os quatro cantos das fileiras
de botões, e o resto iluminava mais sete, aproximadamente no formato da letra
W.
Janner segurou o mapa e o lampião com firmeza, enquanto Tink pressionava
cada um dos botões correspondentes. Tink segurou a maçaneta novamente.
“Espere...” Janner alertou, colocando uma mão no antebraço de Tink.
Tink olhou para Janner como se estivesse fora de si.
“Você tem certeza disso?” Janner perguntou.
Tink revirou os olhos.
“Bom, pelo menos abra a porta devagar”, concluiu Janner.
Respirando fundo, Tink girou a maçaneta e, com um clique, ela destravou. Em
seguida, o irmão mais novo empurrou a porta, que se abriu com um rangido alto.
23

O Lamurioso Fantasma de Brimney Stupe

Janner e Tink se viram em uma grande sala do tamanho de seu chalé inteiro. Ao
redor havia pilhas de objetos com formatos estranhos cobertos por uma espessa
camada de poeira. A princípio, nenhum dos dois sabia dizer em que consistiam
aquelas pilhas, então Janner caminhou até a mais próxima, alguns metros à
direita da porta, para ver melhor, e, inclinando-se perto de uma das formas
empoeiradas, acabou espirrando inesperada e violentamente.
A erupção espalhou a poeira numa nuvem, e a luz do lampião foi refletida por
uma peça plana de metal polido.
Janner jamais vira um machado de batalha. Podo costumava voltar da cidade
com um machado de lenha emprestado, mas não era nada parecido com aquele.
A arma tinha dois gumes, e as duas lâminas combinadas eram tão largas quanto o
peito de Janner.
Tink estava ao lado dele com a boca aberta. “O que é isso?” Tink perguntou em
voz baixa.
Janner não respondeu, mas passou o dedo ao longo do gume brilhante da
lâmina.
Tink soprou a poeira de outra coisa com algum formato ao lado dele, revelando
uma espada. Rubis e pedras preciosas brilharam no punho, e uma inscrição em
um idioma que nenhum dos dois reconheceu corria por toda a extensão da
lâmina.
Janner encontrou outra espada, mais robusta e menos ornamentada, mas polida
e fina. Lentamente os dois se olharam — seus olhos arregalados de admiração.
Ao redor deles havia pilhas sobre pilhas de espadas, machados, escudos e
adagas. Trajes de armadura pareciam sentinelas ao longo da parede. Havia armas
suficientes para um pequeno exército, escondidas no porão da Mansão Pé-de-
Geleia por sabe-se lá quantos anos.
Após o choque inicial, ambos correram pelo cômodo, soprando e limpando a
poeira das armas. Tink encontrou uma espada curta e embraçou um pequeno
escudo de madeira. Janner tentou puxar o machado da pilha, mas era tão pesado
que, assim que a cabeça ficou livre, caiu retinindo no chão. Ele se perguntou se
qualquer homem poderia erguê-lo, quanto mais brandi-lo em uma luta, e logo em
seguida encontrou uma adaga que lhe convinha. Janner amarrou a bainha ao
cinto e desembainhou a lâmina várias vezes, golpeando o ar. Tink colocou um
capacete com pontas que era grande demais para sua cabeça; assim que o viu, o
irmão mais velho caiu na gargalhada.
“Olha isso!” Tink o chamou, jogando o capacete de lado. Ele havia encontrado
centenas de flechas com ponta de aço e, ao lado delas, uma pilha de arcos sem
corda encostada em um canto.
Janner descobriu um rolo de corda, que o lembrou de que eles estavam presos.
Os dois irmãos estavam tão fascinados com as armas que ele havia se esquecido
dos canicórneos e a porta inacessível do porão. Janner deu uma boa olhada ao
seu redor no arsenal. São estas as Joias de Anniera?, ele se perguntou. O que o
querido Oskar N. Reteep tinha a ver com aquelas armas, afinal? Ele estremeceu
ao pensar no que os Fangs fariam com eles se descobrissem aquele segredo.
Oskar havia viajado por toda a Skree colecionando livros e curiosidades. Ele
deve ter pegado as armas ao mesmo tempo e as escondeu. Mas por quê? A
cabeça de Janner girava com todas as perguntas sem resposta que recentemente
tinham feito um ninho em seus pensamentos. Mas ele teria tempo para pensar
sobre tudo aquilo mais tarde — no momento, sabia que ele e Tink tinham que
chegar em casa em segurança.
“Tink, temos que ir.”
Tink ergueu os olhos do peitoral enorme que estava tentando afivelar e, depois
de pensar um momento, assentiu. Até mesmo Tink percebeu que eles não
podiam ficar naquele porão para sempre.
Janner ergueu a corda. “Talvez isso ajude.”
“Boa. Estou faminto. Talvez o vovô faça mais daquela caldeirada de queijo.”
Janner ficou aliviado porque, pela primeira vez, Tink não discutiu. “Deixe tudo
aqui. A última coisa de que precisamos é ser capturados por um Fang...”
“... ou mamãe”, completou Tink.
“... com uma arma.”
Eles riram juntos, deram uma última olhada na sala cintilante e fecharam a
porta com um estrondo. Todos os botões pressionados voltaram à posição inicial,
vedando a câmara para qualquer pessoa sem o mapa. Eles correram de volta pelo
túnel baixo — Janner com a corda pendurada no ombro, imaginando como a
usaria para escapar.
De repente, da escuridão atrás deles, veio um som que gelou o sangue dos dois.
Saindo da câmara de armas, veio um gemido incognoscível e ameaçador.
Eles haviam despertado o fantasma de Brimney Stupe.

24

A Estrada Para Casa

Janner e Tink pararam de andar e começaram a olhar para trás, mas além da luz
do lampião — nada! O gemido flutuou para eles outra vez, e as mãos de Tink
tremeram tão violentamente que ele deixou cair o lampião no chão úmido, onde
se apagou.
Isso foi o limite para Tink, que, gritando como um meep, saiu aos tropeções
pelo túnel.
Janner se apressou atrás dele — um medo frio percorria suas veias. Ele
imaginava mil dedos ossudos arranhando suas costas e voou escada acima em
dois saltos.
Tink já estava no topo, empunhando perigosamente uma das velhas tábuas.
Janner se perguntou o que Tink pensava fazer com a prancha, se o fantasma de
Brimney Stupe realmente viesse assombrá-lo, mas admirou as intenções do
irmão — e pegou sua própria prancha curta e resistente da pilha de tábuas.
O longo gemido veio da boca da passagem novamente enquanto Janner
amarrava freneticamente a corda no centro da tábua. Por favor, por favor,
funcione, pensava. Ele mirou e arremessou a tábua pela porta, percebendo
vagamente que o canicórneo não estava mais lá. Ele puxou a corda, mas a
prancha estatelou-se no chão. Na segunda tentativa, Janner sacudiu a corda para
que a prancha se alinhasse com o chão, contra o batente da porta. Torcendo para
que os animais já tivessem ido embora e que a prancha aguentasse, ele escalou a
parede e passou pela porta.
Janner abaixou-se pela abertura. “Tink, anda logo!” Ele gritou sobrepondo o
gemido que ecoava na sala escura.
Tink desgrudou os olhos da abertura do túnel e percebeu que estava sozinho no
porão. “Aiiii!” Gritou enquanto jogava a prancha de lado e trepava pela corda
como um esquilo maluco. Ele ignorou a mão de Janner e desembestou para cima
e através da porta, onde os dois desabaram no chão, ofegantes.
Janner chutou a prancha e a corda de volta para o porão, pensando que seria
melhor remover o máximo possível de vestígios da presença deles. O simples
fato de estar fora do porão escuro fazia Brimney Stupe parecer menos
assustador, mas agora eles tinham que lutar contra os canicórneos.
Os irmãos se arrastaram de volta pela casa e espiaram pela porta da frente,
semicerrando os olhos por causa da claridade. O sol do fim da tarde era tão
quente e bem-vindo quanto a própria vida.
Janner examinou a borda da floresta em busca de qualquer sinal de movimento.
“Eu não os vejo”, o irmão mais velho sussurrou. O rosto de Tink estava pálido.
Outro gemido gelado chegou até eles, das entranhas da Mansão Pé-de-Geleia.
“Pronto?”
“Nunca estive tão pronto”, Tink se arquejou.
“Corre!”
Os irmãos Igiby passaram correndo pelo banco de pedra, pelo portão de ferro,
descendo a longa estrada que se afastava da Mansão Pé-de-Geleia e da fronteira
da floresta, e não pararam até chegar ao campo, logo atrás da propriedade
Blaggus.
Incapazes de dar outro passo, os dois deitaram suando na grama alta até que
pudessem respirar novamente. Em seguida, levantaram-se para voltar para casa,
incapazes de acreditar que ainda estavam vivos e fazendo juramentos solenes de
nunca mais colocar os pés naquele lugar horrível e incrível.
Janner e Tink aproximaram-se do chalé no final da tarde, no momento em que
Podo estava descendo o caminho com um saco se contorcendo no ombro.
“Rapazes! Parece que os véios irmãos Blaggus surraram vocês de novo, não é
mesmo?” Podo olhou para suas roupas sujas e suadas.
Janner e Tink forçaram uma risada.
“Aonde você vai?” Janner perguntou, mudando de assunto.
Podo se inclinou mais perto e colocou a mão no canto da boca.
“Não diga pra sua mãe — a menos que ela pergunte, é claro —, mas sabe todos
esses thwaps que eu tenho catado? Bom, eu pego e jogo tudo no quintal do velho
Willie Abutre, do outro lado da cidade. Uh-hu!” Podo riu, batendo no joelho.
“Aquele patife nunca me deu um momento de paz quando éramos garotinhos,
aqui em Glipwood, sem mencionar como ele cortejou a doce Merna Bidgeholler,
bem debaixo do meu nariz. E, além disso”, as sobrancelhas brancas de Podo se
juntaram, “seus pés de totatas e amoras são sempre mais viçosos que os meus”.
Ele coçou os cabelos rebeldes e murmurou: “Não sei como ele faz isso.” Podo
estendeu o saco e bateu nele, feliz, produzindo um coro de tagarelice lá dentro.
“Então, vejo vocês na janta, rapazes!”
Podo mancou em direção à casa de Willie Abutre, assobiando e girando o saco
enquanto caminhava.
Janner e Tink ficaram lado a lado por um momento para observar Podo, até que
ele saísse de vista. Em seguida, retomaram seu caminho para o chalé, gratos por
estarem em casa novamente.
Mas eles não eram os únicos olhando. Atrás de uma das árvores de Glipwood,
no gramado dos fundos, Slarb, o Fang, observava Janner e Tink entrando em sua
casa. Slarb tinha se esgueirado furtivamente, o dia todo, em torno da casa da
família Igiby, tomando todo o cuidado para não ser visto. Ele observou em
agonia, apertando as mãos contra as laterais da cabeça, enquanto Leeli praticava
harpa eólica na varanda da frente. O Fang acompanhou com ódio Nia lavando as
roupas do lado de fora da porta dos fundos. E várias vezes, quando Leeli atirava
uma vareta para Nugget buscar, foi necessária toda a força de vontade de Slarb
para não arrebatar o cachorro de uma vez para sempre.
Mesmo depois de tudo aquilo, cerrando os dentes à sombra de uma árvore, ele
ansiava por afundá-los em qualquer Igiby infeliz o suficiente para se aproximar.
25

No Salão do General Khrak

Enquanto isso, na cidade de Torrboro, o Comandante Gnorm estava chegando ao


Palácio Torr depois de viajar durante a noite e a maior parte do dia. Segundo os
mapas antigos, Torrboro ficava a dois dias de viagem de Glipwood quando pela
estrada principal, mas os Fangs não paravam nem para descansar, nem para
comer enquanto dirigiam impiedosamente seus cavalos pelas pradarias áridas até
a cidade.
A cidade de Torrboro se espalhava na margem sul do rio Blapp e fervilhava de
atividade. Ninguém que morava lá parecia saber para onde os outros estavam
indo ou por quê, e muitos tinham pouquíssima noção de para onde eles próprios
estavam indo. As pessoas caminhavam, empurravam carroças, conduziam
carruagens, pastoreavam ovelhas, transportavam sacos de totatas, carregavam
carroças com peixes; vendiam, compravam, gritavam, conversavam — tudo sem
sorrir ou pensar muito.
Espreitando entre a multidão estavam Fangs armados, de vários tamanhos e
formas.
Espreitando entre os Fangs estavam trols, e um único trol fedia mais do que
cem Fangs. Se um trol esbarrasse em algum transeunte infeliz, o pobre sujeito
deixaria sua casa fedida por semanas; então, aonde quer que os trols fossem, as
pessoas se espalhavam como folhas sopradas pelo vento.
Os cidadãos de Torrboro mal conseguiam se lembrar dos dias antes da Guerra,
quando Fangs e trols eram apenas rumores do outro lado do Mar Sombrio da
Escuridão. Agora, a visão de monstros caminhando entre eles parecia tão normal
quanto as gaivotas que voavam e cantavam no ar, acima da cidade.
O Comandante Gnorm começou a abrir a porta da carruagem, mas parou
quando viu as joias brilhando em seus braços e dedos gordos. Ele rapidamente
removeu as pulseiras e anéis e os colocou em sua bolsa, aliviado por ter se
lembrado de escondê-los. Ele não queria nenhuma briga por causa de seus
brilhantes recém-adquiridos.
Gnorm se espremeu para fora da carruagem com um longo gemido e cutucou
os pedaços de floelho entre os dentes. Ele havia lanchado no caminho. Os
cavalos exaustos resfolegavam e cambaleavam enquanto o gordo comandante
subia a longa escadaria que levava à entrada em forma de boca, do Palácio
Torr.1 O outrora belo castelo erguia-se alto e nítido contra o céu cinza — as
janelas escuras de suas torres, seus estandartes esfarrapados e brandindo
frouxamente no ar denso, como se estivessem de luto por sua antiga glória. Dois
soldados trols estavam de guarda na porta principal, olhando para Gnorm e o
condutor.
“Que negócios você tem com o general?” Questionou um deles com uma voz
estrondosa que sacudiu a armadura de Gnorm.
“O mesmo negócio que tive da última vez, e na vez antes daquela, e na vez
antes daquela, verme de cavalo.” Gnorm torceu a cara. O trol arrotou e se
afastou, gesticulando para que o outro trol abrisse a grande porta de madeira.
“Idiota”, Gnorm sibilou ao passar pela soleira e entrar no palácio.
O corredor principal estava cheio de ossos e lixo. O fedor deixaria um humano
doente, mas para Gnorm cheirava a jantar. Fangs descansavam aqui e ali,
dormindo no chão ou encostados nas paredes. Trols se amontoavam em torno de
um jogo de dados no canto; alguns deles ergueram os olhos quando Gnorm
entrou e então voltaram ao que lhes interessava.
Sorrindo, Gnorm olhou em volta por um momento. É sempre bom estar de
volta a tudo isso, pensou o comandante. Ele desceu — pisadas pesadas — pelo
centro do corredor até as sentinelas Fangs, a postos do lado de fora da sala do
trono.
“Saudaçõesss, Comandante Gnorm”, cumprimentou um dos Fangs, levantando
sua lança para que ele pudesse passar.
“Bleah”, desprezou Gnorm, e entrou na sala do trono do Fang mais poderoso
de toda Skree.
Ao contrário do salão principal, a sala do trono estava vazia, exceto pelo
General Khrak e um servo Fang que estava enchendo sua taça com uma gosma
negra. Gnorm curvou-se tão baixo que sua pança escamosa quase tocou o chão,
esperando por um longo tempo. Ele sabia que muitos comandantes haviam
perdido a cabeça ao se levantarem sem permissão. Finalmente, ele ouviu o
general grunhir e Gnorm ergueu-se de sua posição prostrada, com grande
dificuldade.
“Gnorm”, Khrak o chamou — sua voz ecoou no salão vazio. Ele sorveu um
gole em sua taça. O teto era alto e uma luz pálida entrava pelas janelas estreitas.
A sala estava vazia de móveis, exceto pelo trono dourado, então coberto de
sujeira. O general era um dos servos mais antigos de Gnag, o Sem-Nome. Foi
Khrak quem liderou o exército que destruiu Anniera e quem conduziu a horda
Fang até Skree através do Mar Sombrio. Khrak, cujas ordens enviavam a
Carruagem Negra por toda a terra para sequestrar as crianças skreenianas, era,
sim, temido até mesmo pelos Fangs.

Seu torso e abdômen eram longos e flexíveis e, embora seus braços e pernas
fossem mais curtos e finos do que os da maioria dos Fangs, nenhum outro era
páreo para as proezas de Khrak. Seus dentes eram mais longos e afiados que os
de Gnorm, e dizia-se que seu veneno era capaz de matar um dragão-marinho.
“Que novidadesss você traz de Glipwood?” Perguntou o general.
“Sem novidades, senhor. Uma briga no dia em que os dragões-marinhos
vieram, mas foi resolvida rapidamente.” Distraído, Gnorm coçou a barriga.
Normalmente as reuniões com o General Khrak eram curtas, e ele estava faminto
por algumas das famosas entranhas de peixes de Cavadópolis, em uma taverna
chamada O Gargarejo e o Arroto. A cidade de Cavadópolis ficava numa baixada,
na margem norte do rio Blapp e era a vizinha suja de Torrboro, um labirinto de
edifícios decrépitos, fervilhando de ladrões e mendigos. Gnorm odiava ter que
viajar tão longe para uma conversa tão curta, mas pelo menos conseguia dar uma
escapada até Cavadópolis por alguns dias.
“Aproxime-se, Comandante Gnorm. Eu tenho novidades do castelo Throg.”
Gnorm aproximou-se, esperando que o general não demorasse muito. Ele
visualizava, em sua mente, as ruas baixas de Cavadópolis, gloriosamente sujas,
onde logo estaria devorando pequenos vermes contorcidos durante um jogo de
dados.
“O Sssem-Nome enviou uma mensagem”, relatou Khrak, saboreando a notícia,
“de que está reunindo outro exército. Ele diz que será um exército maior do que
qualquer um que Kistamos já conheceu.” Khrak fez uma pausa e deixou a notícia
pairar no ar.
“E o que nosso Mestre planeja fazer com este grande exército, senhor?”
“O Sssem-Nome manteve seus propósitos ocultos de mim, mas acredito que
ele planeja marchar para o oeste, rumo às terras desconhecidas. Como você sabe,
o Mestre ainda busca as Joiasss de Anniera. Ele duvida que estejam em Skree,
mas que agora se encontram além dela, além dos limites de todos os mapas.”
“Senhor, por que o Sem-Nome procura essas joias?” Perguntou Gnorm e,
curvando-se depressa, arrematou: “Claro, se me for permitido perguntar,
senhor”.
A cauda do general enroscou-se no braço do trono. Ele brincou com a ponta
dela enquanto falava. Uma gorda e amarela centopeia se contorceu para fora da
gosma, em uma tentativa desesperada de escapar do cálice, mas a língua de
Khrak chicoteou para fora e recolheu a criatura em sua boca. O Fang fechou os
olhos e deglutiu com vagar.
“Quando nós saqueamos... Anniera” — o general regurgitou a palavra como se
tivesse um gosto horrível na boca —, “foram encontrados muitos escritos do Rei
Wingfeather. Neles, ele falava das Joias de Anniera e do antigo poder que elas
detêm, um poder que poderia destruir o Sem-Nome e restaurar Anniera à sua
glória.”
Gnorm imaginou isso. Por anos Gnag se consumiu em encontrar as joias,
embora o comandante sempre se perguntasse como eles localizariam algo que
podia ser escondido tão facilmente. Além disso, que poder poderia sobrepujar o
poderoso Gnag e seu exército?
“Ele acredita que as joiasss estão escondidas... além dos mapas?” Gnorm
perguntou, embora estivesse perdendo rapidamente o interesse. Cada momento
passado ali era um momento que ele não passaria no Gargarejo e o Arroto,
jantando cérebros de garlinói.
“Ele as procurou em Skree todos esses anos”, relatou Khrak, “e sua
impaciência aumenta. Os skreenianos não sabem o que está a oeste das planícies,
mas se houver povos para conquistar, tenho certeza de que ele pretende fazê-lo.
Não é nosso trabalho saber o que a grande mente de nosso mestre pretende”,
disse ele com um aceno de mão. Khrak se inclinou para a frente. “Mas ele exige
algo de você, Comandante Gnorm.”
“Qualquer coisa, meu senhor”, respondeu Gnorm com uma leve reverência. Ele
podia sentir o gosto das caudas de rato, senti-las deslizando deliciosamente por
sua garganta.
“O Sem-Nome precisa de mais prisioneiros enviados para Dang. Estou
ordenando aos comandantes de todos os setores de Skree que dobrem suas
prisões. Não somente as crianças, mas famílias inteiras. Vamos encher a
Carruagem Negra com skreenianos e enviá-los de navio para nosso senhor Gnag,
Aquele Que Não Tem Nome.” Khrak deu outra longa sorvida na gosma e sorriu.
“Creio que você achará esse pedido agradável, certo?”
“Ah, sim, senhor. Muito agradável.” Gnorm sorriu, pensando em que pessoas
de Glipwood ele pegaria primeiro. Então pensou novamente nas tavernas de
Cavadópolis e perguntou: “Isso é tudo, General?”
Khrak acariciou sua cauda e olhou para Gnorm.
“Sim, comandante. Vá.”
Gnorm curvou-se novamente e, ao fazê-lo, um medalhão de ouro em uma
corrente de prata escorregou de onde ele o havia enfiado em seu peitoral. O colar
brilhou na luz e balançou em seu pescoço de forma sedutora.
“Espere”, ordenou o general, deslizando para fora do trono e descendo os
degraus. O ruído de suas garras no chão de mármore ecoou por toda a câmara.
“E onde você adquiriu esta bugiganga?”
Gnorm sentiu o suor úmido escorrendo de suas escamas. Ele não ousava se
mover.
“De um dos habitantes da cidade, senhor. Uma mulher. É ssseu, se o agradar”,
ele gaguejou.
O general arrancou o medalhão do pescoço de Gnorm com um silvo e
serpenteou de volta para o trono, com um murmúrio de dispensa. Ele olhou para
o medalhão com satisfação.
“Gosssto da maneira como brilha”, disse o general para si mesmo enquanto o
fazia deslizar pela mão. “Agora vá.” Gnorm levantou-se e saiu da sala do trono.
Ele irrompeu pelo corredor, onde trols e Fangs continuavam relaxando e subiu
de volta na carruagem.
“Leve-me para Cavadópolis!” Esbravejou. “Agora!”
O condutor precipitou-se para a carruagem e conduziu o desgostoso
comandante pelas ruas de paralelepípedos até a balsa para Cavadópolis, onde ele
se banquetearia com vísceras e afogaria a raiva por perder sua peça favorita da
pilhagem.
26

Problemas na Livraria

Na manhã seguinte, Podo ficou satisfeito ao encontrar mais thwaps no jardim, e


tinha tanto prazer em ouvir Willie Abutre reclamar deles, na taverna, que passou
a ansiar acordar todas as manhãs, ao nascer do sol, para pegar os pequenos
ladrões com a mão na massa; parte de sua rotina diária era entrar furtivamente no
quintal de Willie Abutre, despejar sacos cheios de thwaps e vê-los se
espalharem. Para ser justo, depois de soltar os thwaps, Podo se esgueirava até a
porta da frente e entregava a Willie uma cesta de vegetais, com os cumprimentos
do florescente jardim Igiby.
Janner, Tink e Leeli fizeram suas tarefas matinais e estudaram seu T.A.N.E.G.
Tink estava animado com o fato de os dois livros de arte que ele havia
emprestado de Oskar terem sido úteis e repletos de belas imagens. Leeli passou o
tempo memorizando as palavras e melodias de várias músicas antigas que Nia
conhecia desde a infância. Mas Janner estava sentado nos degraus da frente com
o diário no colo, olhando para além das árvores. Nia havia lhe pedido para
escrever um relatório sobre o livro Na Era dos Floelhos Domesticados, mas por
mais que tentasse, Janner não conseguia passar das primeiras palavras sem
pensar no mapa de Oskar.
Oskar N. Reteep era um homem bem diferente do que Janner imaginava,
escondendo mapas secretos e acumulando armas em uma mansão mal-
assombrada. Janner balançou a cabeça e sorriu ironicamente, pensando em todas
as joias que sua mãe mantinha em segredo. Ela também não era, exatamente,
quem ele imaginava que fosse. Será que todos os adultos escondem alguma
coisa?
“Janner, você já está terminando?” A voz de Nia o surpreendeu. Ela parou atrás
dele, franzindo a testa para a página quase toda em branco, em seu colo.
As bochechas de Janner ficaram vermelhas. Ele ficou sentado lá durante a
maior parte da manhã e não tinha nada para mostrar. “É só que eu tenho... muita
coisa abarrotando minha cabeça pra escrever sobre floelhos e as Selvas de
Plontst”, ele gaguejou. Janner então olhou para o chão, perguntando-se por que
de repente sentia a necessidade de chorar. Esperou por algum tipo de repreensão,
mas em vez disso sentiu sua mãe apertar seu ombro.
“Então escreva sobre isso. Vai fazer bem a você”, aconselhou ela, virando-se
para ir embora.
“E prometo que não vou ler.”
Ele olhou para a pena em sua mão e lembrou-se da sensação da espada que
havia empunhado, na câmara de armas. Foi bom, como se não fosse mais um
menino impotente em uma cidade chata, mas alguém cuja vida poderia significar
algo, como a de seu pai. Todas as lágrimas que tinham se acumulado nele,
momentos antes, transformaram-se em palavras e ele começou a rabiscá-las em
seu diário.
Quando terminou de relatar os detalhes das aventuras dos últimos dois dias —
a cabeça cheia de perguntas que ele e o irmão levantaram e o coração cheio de
emoções que ambos despertaram —, sua mão doía e o tinteiro estava quase seco.
Nia chamou para um almoço de galinhada e broa, e Janner fechou seu diário
com uma sensação de leveza no peito, como se estivesse carregando um saco de
ração nos ombros por dois dias e o tivesse jogado no chão do celeiro. Mas sua
cabeça ainda girava.
Tink apareceu e tentou empurrar a porta da cozinha, mas Janner agarrou seu
cotovelo.
“Galinhada e broa”, comemorou Tink todo esbaforido, dando um tapinha no
estômago. “Que foi?”
Janner baixou a voz. “Temos que devolver aquele mapa.”
O rosto de Tink ficou sério e ele escondeu as mãos atrás das costas, pensando
no quanto queria manter os dedos presos a elas. “Temos? E se o senhor Reteep
descobrir?”
“Ele vai descobrir em breve, se perceber o sumiço daquele mapa, e tenho
certeza de que vai suspeitar que o pegamos. Acho que a opção mais segura é
tentar recolocá-lo quando ele não estiver olhando. Confie em mim. Faremos isso
hoje, quando formos à livraria.”
Eles devoraram o almoço e partiram, com Leeli e Nugget logo atrás. Mais uma
vez, Podo os acompanhou até a cidade — até à Taverna do Crespo, pelo menos.
“Depois de bater um pouco de papo com Crespo, vou pra casa cuidar do
jardim. Voltarei para buscá-los ao pôr do sol.” Com um aviso para serem
cautelosos e ficarem juntos, o avô os liberou, queixando-se em voz alta de sua
sede esmagadora.
Leeli ainda não tinha se aventurado na cidade desde o Festival dos Dragões-
Marinhos e estava ansiosa. Mas o sol estava forte e as pessoas da cidade
pareciam como sempre, então seu ânimo logo se iluminou e ela começou a
cantarolar enquanto mancava atrás dos irmãos. Eles acenaram para os irmãos
Blaggus que empurravam um carrinho de mão, cheio de ferramentas de jardim
que haviam acabado de pegar, depois de passarem a manhã preenchendo uma
pilha de Formulários de Uso de Ferramentas.
Os Fangs estavam em seu lugar de costume, na frente da cadeia, rindo
maliciosamente de um e de outro, e zombando do povo de Glipwood que
passava.
Janner ficou aliviado por não ver nenhum sinal de Slarb ou do Comandante
Gnorm.
Zouzab estava sentado no telhado da Livros e Vãos com as pernas cruzadas,
fazendo malabarismos com três pedras e observando as crianças se
aproximarem.
“Olá, crianças”, cumprimentou-os com sua voz baixa. “Vocês vieram para...
devolver algo?” Janner e Tink se olharam furtivamente. Saberia Zouzab que eles
pegaram o mapa? Janner disse a si mesmo que era só sua consciência culpada.
Eles acenaram para ele — Janner tentando ser o mais agradável possível com o
estranho corre-crista, embora sempre achasse difícil ser agradável com ele. Os
olhos de Zouzab pareciam estudá-lo de uma forma familiar a Janner, embora não
conseguisse entender o motivo.
“Viemos ver se a Leeli consegue pegar alguns livros emprestados”, explicou
Janner.
“Tenho certeza de que ela conseguirá, sim”, Zouzab respondeu
agradavelmente, enquanto se esgueirava para trás, fora de vista.
Janner observou o corre-crista desaparecer e se lembrou de Nícolas, o gato de
Ferínia Swapleton. Normalmente, o bichano era visto se espreguiçando e
lambendo as patas na penumbra da varanda da frente da floricultura. Mas, às
vezes, quando uma borboleta batia as asas à sua frente, o gato se punha de pé,
num salto, e olhava o inseto com uma intensidade fria e calculada. Janner
percebeu que, quando Zouzab o observava, ele próprio se sentia como uma
borboleta. Estremecendo-se todo, apressou-se livraria adentro, onde encontrou
Oskar em seu escritório, curvado sobre um enorme volume em sua mesa.
“Os três Igibys! Entrem, entrem.” Ele abriu bem os braços e acenou para que
entrassem. Sua feição, porém, ficou horrorizada quando viu Nugget andando ao
lado de Leeli. “Ah, não! Sem cachorros, mocinha. A primeira coisa, como você
sabe: já já ele estará mordendo algum livro antigo e raro.” Ele enxotou Nugget
pela porta dos fundos, para a decepção de Leeli. Percebendo isso, a expressão de
Oskar suavizou, mas nem tanto. “Como o grande treinador de animais, Yakev
Brrz, escreveu, hã, deixe-me ver... como era...” Oskar fechou os olhos, um dedo
no ar. “Ah! Ele fala assim: ‘Goste ou não, o cachorro fica do lado de fora’.” Um
homem sábio, esse Yakev.1
Leeli fez sinal para que Nugget a esperasse ao lado da porta de carregamento,
nos fundos, onde antes haviam estado as caixas cheias de livros.
Oskar, então, acompanhou Leeli pela loja para encontrar a seção de música.
Janner e Tink vagaram pelo labirinto de prateleiras por meia hora antes de Tink
encontrar o painel solto, logo abaixo da prateleira com o rótulo Remédios e
Anedotas Para Erupções Cutâneas. A vela de cera de meleca ainda estava em seu
lugar.
“Ele está por perto?” Tink perguntou, olhando para um lado e para o outro, no
corredor. Janner caminhou até o final, espiou por entre um corredor e outro e
balançou a cabeça negativamente.
Tink soltou o painel, puxou o mapa da manga e deslizou-o para baixo da
prateleira. Quando recolocou o painel, os dois ouviram uma voz baixa acima
deles.
“Deixaram cair alguma coisa?” Perguntou-lhes Zouzab. Ele estava
empoleirado no topo da prateleira mais alta, acima deles, sorrindo.
Janner e Tink tentaram sorrir de volta. Tink disse a ele que havia visto um rato-
do-campo e estava tentando pegá-lo antes que arruinasse qualquer um dos livros
de Oskar.
“Ah, sim, vejo ratos-do-campo aqui o tempo todo”, afirmou Zouzab. “Só que
eu” — rápido como um raio, Zouzab correu pela prateleira e fingiu agarrar algo
— “me esgueiro e os agarro antes que eles saibam o que aconteceu.”
Tink e Janner sorriram desconfortavelmente, ainda sem saber o que pensar de
Zouzab Koit.
Zouzab correu de volta para a prateleira e desapareceu novamente.
Janner deu uma cotovelada em Tink e acenou com a cabeça em direção à
entrada. Por mais quinze minutos, erraram corredor após corredor, tentando
encontrar Leeli e Oskar.
Por fim, encontraram Oskar, muito satisfeito consigo mesmo, segurando uma
pilha de pelo menos dez volumes grandes, todos sobre o assunto harpa eólica.
“Onde está Leeli?” Janner perguntou.
“Hã?” Resmungou Oskar, olhando para eles através dos óculos. “Ah! Ela foi
dar uma olhada naquele cachorrinho dela um tempo atrás.”
O coração de Janner deu um pulo. A primeira vez na cidade desde o incidente
que quase os matou, e ele já não sabia onde ela estava. Disse a si mesmo que
estava exagerando, mas a sensação de mal-estar no estômago o fez correr e
chamar o nome dela, deixando Tink e Oskar parados, sem fala.
Janner disparou de um lado para outro através das voltas e mais voltas
enlouquecedoras dos corredores estreitos, tentando encontrar o caminho de volta
para o escritório. Ele dobrou uma esquina e derrapou até parar bem na frente de
Oskar e Tink, que não haviam se mexido. Ele estava de volta ao ponto de
partida.
“Eu tenho que encontrar Leeli!” Janner exclamou.
Oskar piscou, chocado com o tom de voz de Janner, mas deixou cair os livros
no chão em uma pilha e começou a seguir em frente, indicando o caminho o
mais rápido possível, com Tink na retaguarda. Janner o ultrapassou quando viu o
escritório à frente e irrompeu pela porta dos fundos, orando para que Leeli
estivesse sentada na grama coçando a barriga de Nugget.
Mas ela não estava em lugar nenhum.
A área atrás da Livros e Vãos estava vazia, exceto pela pilha de caixotes
antigos, empilhados ali dois dias antes. Ao lado das caixas estava a nova muleta
Chuta-lagartos, de Leeli.
Janner sentiu seu interior estremecer. Ele não conseguia acreditar que já tinha
falhado em proteger sua irmã e tinha a sensação de que desta vez os dois irmãos
não sairiam ilesos. O mais velho estava vagamente ciente de Tink gritando o
nome de Leeli o mais alto que podia e de Oskar correndo pela esquina do
edifício, chamando por Leeli também.
Janner caiu de joelhos, à beira das lágrimas. Ele estava passando por
sentimentos de raiva por Leeli ter saído sozinha, raiva de Oskar por deixá-la,
mesmo por um momento, e culpa por falhar mais uma vez com Podo, Nia e,
principalmente, com Leeli.
Oskar voltou virando a esquina. “Ela não está aqui”, constatou ele, ajustando
os óculos com preocupação.
De repente, Nugget apareceu, arrastando uma pata e choramingando.
“Nugget!” Tink gritou e correu para o cachorrinho. “Onde está Leeli, garoto?
Leeli?!” Nugget apontou o nariz para o campo atrás da loja de Oskar e latiu.
“Lá!” Indicou Zouzab, acima deles. Ele estava de pé no telhado, novamente,
apontando para o norte, em direção a um grupo de árvores. “Eu consigo ver algo
se movendo... lá.”
“É ela?” Janner demandou, lutando para ficar de pé.
“Parece ser um Fang... e... sim, está carregando algo. Acredito que seja ela”,
concluiu Zouzab, com uma nota de tristeza na voz.
Com um brado, Janner saltou e correu o mais rápido que pôde para casa. Seu
único pensamento era que ele tinha que encontrar Podo, porque seu avô saberia o
que fazer.
Janner e Tink gritaram pelo nome do avô por todo o caminho que levava até o
chalé; Podo, que estivera capinando no jardim, largou a enxada e correu, com
perna de pau e tudo, para ir ao encontro dos netos.
“Onde que tá minha neta?” Ele demandou saber.
Entre arfadas, Janner contou o que havia acontecido e, no meio da história,
começou a chorar. Ele se sentiu bobo por começar a chorar, mas não conseguiu
conter as lágrimas por mais tempo.
Tink, sem jeito, ficou ao lado dele, olhando para o chão e torcendo para que
Podo não fosse duro demais com seu irmão mais velho.
Sem dizer uma palavra, Podo virou-se e correu para o celeiro.
“Vovô, o que vamos fazer?!” Tink perguntou.
De repente, Podo emergiu do celeiro, montado em seu velho cavalo de carga,
Danny — mas tanto Podo como Danny pareciam diferentes. Danny galopava
como um cavalo de guerra; sua crina girava como se estivesse pegando fogo, e
ali estava Podo, montando em pelo, com o cabelo branco esvoaçando, as costas
inclinadas para frente enquanto impelia o cavalo.
Janner achou que o avô parecia dez anos mais jovem e duas vezes mais forte.
“Fiquem aqui!” Vociferou Podo.
“Mas...” Janner começou a querer retrucar.
“Fiquem aqui!” Podo bradou. As veias saltavam em seu pescoço e seu rosto
estava vermelho como uma ameixa. Podo partiu a galope pela estrada em
direção à cidade, deixando seus netos olhando para o avô com admiração.
27

Uma Armadilha Para os Igibys

Leeli estava tendo um péssimo dia. Ela havia sido pendurada no ombro de Slarb
como um saco de raízes de trulhas. Naquela posição, de cabeça para baixo, ela
era capaz de ver pouco mais do que seu próprio cabelo loiro saltando em seu
rosto e as escamas verdes com matizes cinzas do ombro e das costas do Fang.
A pele fria de Slarb era lisa e úmida, como folhas cobertas de sereno, exceto
pelo fato de que a umidade em suas escamas certamente não era nada agradável
quanto o orvalho da manhã. Ele fedia, um cheiro forte que lembrava Leeli da
pilha de compostagem ao lado do jardim, para onde ela costumava ser enviada
com cascas de vegetais e restos de comida.
Por mais improvável que parecesse, Leeli, na verdade, sentia pena de Slarb. O
Fang provavelmente não tinha amigos, a menininha pensou, e não importava
aonde fosse, ele tinha que sentir seu próprio cheiro — a menos que tivesse se
acostumado, mas ela descartou essa ideia como impossível.
Qualquer compaixão que ela sentia pelo Fang desapareceu, porém, assim que
ela falou com ele.
“Você — nunca — vai — escapar — dessa”, protestava ela entre os
solavancos. “Meus — irmãos — e — vovô — irão —...”
Slarb rosnou e apertou suas garras com mais força em torno das pernas da
pequena Igiby, até que ela gritou. Leeli não disse mais nada.
Os meninos logo perceberiam que ela estava desaparecida e Nugget jamais a
decepcionara.
Depois de um tempo, ela começou a pensar que seria preferível morrer àquele
fedor terrível.
Ela conseguia perceber que eles haviam subido gradualmente, na direção de
Floresta Glipwood, mas não havia nada que pudesse fazer. Mesmo que Leeli, de
alguma forma, se libertasse, não conseguiria fugir; ela havia deixado cair sua
muleta quando Slarb a agarrou e, mesmo se a tivesse, não havia chance de
superar um Fang numa corrida.
Finalmente eles pararam. Slarb estivera avançando pelos campos havia meia
hora e o único som que ele fez foi o rosnado para Leeli, quando ela tentou
contatá-lo. O Fang parou em um aglomerado de árvores no início da floresta,
farejando o ar.
Leeli ficou quieta e esperou para ver o que Slarb faria. Certamente ele não
estava planejando levá-la para a floresta. Até Fangs sabiam que entrar na
Floresta Glipwood significava uma morte estúpida.
Slarb deu uma risadinha, um som nauseante, e jogou Leeli no chão. A queda a
sacudiu e ela mordeu a língua com força suficiente para arrancar sangue. Ela
podia sentir o gosto em sua boca enquanto lutava contra as lágrimas. Mas Leeli
afastou o cabelo dos olhos e olhou ferozmente para Slarb.
A ponta de sua cauda esvoaçava e farfalhava no solo frondoso, o único som
que Leeli ouvia além de sua respiração irregular. Seus olhos negros viraram para
ela, sem emoção.
“Eu acho que seusss irmãosss vão chegar em breve”, ele ponderou e se
esgueirou até uma árvore próxima, encostando-se nela, com um sorriso
malicioso no rosto escamoso.
Leeli ficou deitada no chão, pensando mil coisas. Ela sabia que Slarb estava
certo, pois conhecia seus irmãos e sabia que eles viriam atrás dela. Mas, desta
vez, ela não queria que fossem ao seu socorro. Se Slarb não os matasse, então
havia uma boa chance de que as criaturas da floresta os tragassem. Leeli não
queria que seus irmãos caíssem numa armadilha; olhando ao redor, viu uma
grande árvore de tronco nodoso, alguns metros atrás dela, e então recuou para
encostar-se nele.
Slarb ouviu seu movimento, virou a cabeça em sua direção e sibilou. Sua longa
língua bifurcada deslizou para fora de sua boca e sobre suas presas.
Leeli recostou-se na árvore. Ela sabia que Slarb não precisava de muitos
motivos para matá-la, então se movia com cuidado. “Eu não vou a lugar
nenhum, Seu Fang, digo, senhor. Estou apenas encostada no...”
“Silêncio!” Ele gritou. “A única coisa pior do que o cheiro de vocês, humanos,
é essa sua voz estridente.”
Leeli acenou com a cabeça — o coração disparado.
Durante os vários minutos que se passaram, Slarb ficou em silêncio, ouvindo.
O Fang estava encostado em uma árvore, aparentemente preparado para esperar
dias, se necessário.
A cabeça de Leeli ainda estava a mil, mas por mais que tentasse, não conseguia
pensar em nada que pudesse fazer. Um pensamento continuava vindo à sua
mente. Saia daqui. Movimente-se o mais rápido que sua perna torta permitir.
Não se sente aqui e espere para ver seus irmãos morrerem. Era inútil, mas era
insuportável não fazer nada.
Leeli se inclinou, lentamente. Slarb não notou. Ele virou a cabeça para o lado,
ouvindo algo. Justamente quando Leeli reuniu coragem para se virar e tentar
fugir, ela ouviu uma batida na vegetação rasteira, à sua direita.
Não!, ela pensou. Leeli tinha certeza de que eram Janner e Tink ao resgate.
Slarb esgueirou-se para o bosque na direção do som. Usando o tronco da árvore
como apoio, ela se levantou o mais rápido que pôde.
“Corram!” Leeli gritou. “É uma armadilha! Corram!” Então ela se virou e
cambaleou pelo mato, saltando o mais rápido que podia, esperando ouvir os
gritos de seus irmãos ao seu encontro. Talvez eles tenham me ouvido em tempo,
ela pensou. Talvez tenham escapado, ou conseguiram se esconder por tempo
suficiente para fazer Slarb vaguear na direção errada. Mas, talvez, eles já
estivessem mortos.
Leeli irrompeu do aglomerado de árvores e mancou para o sul, na direção de
onde Slarb a carregara. Ela ouviu, atrás de si, um rosnado frustrado e, então, o
som de Slarb vindo em perseguição, batendo o mato. Ela prosseguiu, pensando
apenas que tinha que se afastar da criatura bestial atrás dela. A pequena Igiby
amaldiçoou sua perna torta e os Fangs e a grama alta que a retardava. Seu
vestido prendeu-se no galho de um arbusto de flor-de-pato e a fez parar.
Freneticamente, Leeli se apressou a fim de desfazer o emaranhado e olhou para
trás em tempo de ver Slarb voando em sua direção com as presas amareladas à
mostra. Ela se enroscou como uma bola, apertou os olhos com força e orou ao
Criador para que tudo acabasse rapidamente.
28

Floresta Adentro

Os meninos correram para o chalé sem dizer uma palavra. Nia escancarou a
porta da frente e correu para encontrá-los.
“Onde está o seu avô? Onde está Leeli?” Ela exigiu.
Entre arfadas, os dois contaram o que havia acontecido. Por um instante, Nia
olhou decepcionada para o filho mais velho, olhar que cortou seu coração.
Janner sentiu seu estômago oco e frio; não havia nada a fazer a não ser esperar.
Foi o que Nia disse. Janner podia ver que ela estava preocupada com a própria
postura, com as costas eretas e os ombros alinhados. Quanto mais assustada a
mãe ficava, mais durona parecia.
Nia levou os meninos para dentro de casa — as mãos em seus ombros. Os
irmãos sentaram-se no sofá em frente à lareira vazia, sem falar, por muito tempo.
Os olhos de Janner percorreram a sala, e tudo o que via lembrava sua irmãzinha
— o caixote de Nugget no chão, perto da lareira, a harpa eólica de Leeli
pendurada com seu manto. Ele pensou, com vergonha, nas muitas vezes em que
havia ficado frustrado com a irmã por atrasá-lo, como se fosse uma escolha dela
ter nascido com uma perna torta. Janner pensou nas vezes em que a provocou
por fazer tanto alvoroço por causa de Nugget — o cachorro que havia feito um
trabalho melhor que o dele na hora de cuidar da própria irmã. Ele imaginou sua
linda voz enchendo a casa de música, e sentiu falta dela.
Janner recostou-se no sofá e olhou para o teto de madeira, tentando ao máximo
não chorar.
Slarb voou em direção à Leeli, com as presas à mostra em um rosnado cruel.
Assustada demais para se mover, Leeli se esforçou intentando afastar de sua
mente a imagem dos longos dentes do Fang cravando-se nela, o veneno correndo
por suas veias; em meio aos batimentos de seu coração, ela pensou no chalé
aconchegante, o único lar que ela já havia conhecido. A pequena estava triste
porque nunca mais o veria.
Leeli imaginou Janner, Tink, Podo e Nia, parados no gramado da frente,
acenando para ela; pensou em Nugget. Leeli esperava que Janner e Tink se
lembrassem de alimentá-lo e de fazer carinho em sua barriga de vez em quando.
De repente, o rosnado de Slarb foi interrompido. Tremendo, Leeli abriu os
olhos e viu as garras do Fang agarrando, desesperadamente, um braço fechado
ao redor de sua garganta.
Ela não conseguia ver o rosto da pessoa, apenas um tufo de cabelo branco
saindo de trás do ombro de Slarb — mas o braço em volta do pescoço de Slarb
tinha uma meia de tricô suja puxada até o cotovelo.
Os olhos negros de Slarb giravam nas órbitas enquanto ele arranhava e cravava
o braço vestido de meia, mas sem êxito. O braço manteve-se firme. O Fang
cambaleou para trás e se afastou de Leeli, revelando o esguio Peet, o Homem-
Meia, que era corajoso ou tolo o suficiente (e talvez ambos) para atacar um Fang
com as mãos nuas — ou com as mãos emeiadas, como se via.
Os olhos de Peet estavam apertados com força, enquanto ele se agarrava
desesperadamente ao Fang que se debatia. Os dentes de Slarb estavam à mostra e
escorrendo um veneno amarelado, mas seus movimentos estavam diminuindo.
Leeli começou a ter esperanças de que, talvez, vivesse para ver novamente sua
família e Nugget. Peet gemia, esforçando-se para manter o controle sobre a besta
que se retorcia; embora o sangue estivesse ensopando a meia, onde as garras de
Slarb se cravavam no antebraço de Peet, ele não mostrou nenhum sinal de dor.
Slarb girou tão rápido que os pés de Peet voaram atrás dele. O Fang balançou
para um lado e para outro — sua cauda chicoteava a vegetação rasteira. Por fim,
o Fang caiu; primeiro sobre um joelho, e depois no chão, inconsciente.
Peet, ofegando por ar, estava deitado por cima de Slarb. Depois de um
momento, ele afrouxou o aperto e, cuidadosamente, deslizou seu braço de
debaixo do pescoço da criatura. Quando Peet viu Leeli, ele relaxou e se levantou,
limpando o corpo como se estivesse envergonhado. Leeli ainda estava agachada
no mato, à beira das árvores, olhando atentamente para seu salvador.
“Obrigada”, agradeceu timidamente. “Isso foi muito corajoso.”
Peet a observou sem falar, ainda sem fôlego por causa da luta.
Leeli se sentia como se falasse com um animal assustado, e seu coração se
compadeceu dele, da mesma forma como havia se compadecido de Nugget
quando ela o encontrou, ainda filhote. Algo em seu rosto parecia familiar — um
pensamento que jamais lhe ocorrera. Ela costumava vê-lo saltitando pela cidade,
mas sem nunca ter, de fato, parado e olhado para aquele homem. Leeli sabia que
ele costumava falar coisas sem sentido para postes de luz e atacar placas de rua,
mas nunca havia conversado com ele. Ninguém havia. A cidade de Glipwood o
ignorava como a um cachorro vira-lata.
Leeli sentia que deveria estar com medo, mas não estava. Não apenas havia ali
um Fang que ainda estava vivo, deitado a apenas alguns metros de distância, mas
ela estava na borda da Floresta Glipwood. Sem contar que Leeli estava na
presença de um homem que, embora tivesse acabado de salvar sua vida, era
considerado tão louco quanto o Mar da Escuridão era escuro.1 De alguma forma,
a pequena Igiby sentia uma paz que a surpreendeu. Finalmente, Leeli saiu
mancando, de trás do mato. Peet deu um grito e cambaleou para trás.
“Está tudo bem”, Leeli o acalmou, novamente sentindo como se estivesse
acalmando um cachorrinho assustado. Os olhos de Peet disparavam de um lado
para o outro, como um animal encurralado. A menininha parou na frente dele e
sorriu para o homem alto e esfarrapado. “Seu nome é realmente Peet?”
Seus olhos ariscos finalmente pousaram nos dela. Leeli viu o medo nervoso ir
embora por um momento e detectou uma tristeza em seus olhos que não tinha
notado antes. Ele estendeu a mão com meia para tocar seu cabelo rebelde, e
Leeli, de repente, sentiu medo novamente. Ela deu um passo para trás, tropeçou
na cauda de Slarb e caiu com força no chão. Peet retraiu a mão e engasgou como
se tivesse tocado em uma brasa. A inquietação voltou a seus olhos.
Slarb gemeu e fez esforço para se levantar do chão. Um de seus olhos negros
se abriu e focou em Leeli.
Ela gritou e se arrastou para longe, mas Slarb ainda não iria a lugar nenhum.
Peet o chutou com força, jogando seu rosto escamoso de volta ao chão e
deixando o Fang inconsciente outra vez. Então, com passos largos, Peet foi até
Leeli e a ergueu pelos braços. Para o horror da pequena Igiby, porém, Peet, o
Homem-Meia, não a carregava para casa. Ele a estava levando mata adentro na
Floresta Glipwood.
Podo freou seu cavalo na beira das árvores. Ele não entrava na Floresta
Glipwood desde que era menino, quando caçadores e guardiões mantinham os
animais perigosos sob controle. Agora, lá estava ele: um homem velho, perneta e
sem armas, podia-se dizer, e a floresta fervilhando com toda espécie de animais
famintos. Nugget estava ofegante, olhando ferozmente para a floresta sombria.
A trilha de Slarb foi fácil de achar. Ela saía da cidade, passando por várias
casas e fazendas. Quanto mais Podo, Danny e Nugget se aproximavam da
fronteira da floresta, mais as propriedades estavam destruídas e abandonadas.
Velhas cercas sem cuidados. Tristes fachadas de casas estavam carbonizadas e
abandonadas nos campos, onde outrora famílias trabalharam, viveram e amaram.
Essas casas abandonadas pareciam lápides espalhadas pela pradaria. Enquanto
conduzia Danny para o norte, Podo pensou em seus bons anos de glória quando
menino, em Glipwood, muito antes que alguém tivesse ouvido falar de Gnag, o
Sem-Nome.
As memórias o alfinetaram e o encheram de raiva.
“Sim, Nugget, Leeli está lá.” Podo acenou com a cabeça na direção das árvores
escuras e deu um tapinha no pescoço de Danny, o cavalo de carga. “Presumo que
teremos que ir buscar nossa garota.” Ele estalou a língua e Danny saiu a galope.
Embora o crepúsculo já tivesse caído sobre o chalé Igiby, não havia fogo na
lareira. Nenhum lampião foi aceso. Janner, Tink e Nia estavam sentados sem
falar, na casa escura, esperando, por horas.
“Mamãe?” Janner finalmente perguntou. Nia olhou para ele da cadeira onde
estava sentada com a cabeça baixa. “Eu sinto muito. Sinto muito, mesmo.
Lamento ter perdido Leeli de novo.” Janner não conseguia continuar sem chorar,
então desviou o olhar.
Nia cruzou a sala e acendeu um lampião; e, colocando-o no parapeito da janela,
sentou-se ao lado do filho mais velho.
“Calma, filho. Vai ficar tudo bem. Não adianta se preocupar com o que já
aconteceu. O que importa é agora. O passado e o futuro estão fora do nosso
alcance.”
“Tenho medo que ela não volte”, lamentou Tink.
“Você precisa se concentrar naquilo que está bem diante de você, querido.
Nada mais. Pensar demais no que pode acontecer é coisa de tolo. No momento,
para o seu Podo, o que está diante dele é encontrar Leeli, não pensar em como
isso aconteceu ou de quem é a culpa. E o que está diante de nós é esperar, neste
velho chalé, sem perder as esperanças. Mesmo que a esperança seja apenas uma
brasa fumegante diante da noite escura, pela manhã ainda podemos reacender o
fogo.”
Janner não conseguiu conter a língua. “É por isso que a senhora e o vovô nunca
falam sobre o nosso pai? Por que ‘o passado está fora do nosso alcance?’”
Lágrimas enchiam seus olhos. “Se Leeli nunca mais voltar, vamos apenas fingir
que ela nunca existiu, como vocês fazem com... Esben?”
Nia se enrijeceu.
Janner olhou para o chão e mexeu na bainha da camisa. Ele odiava a tensão
que sentia na sala, mas não podia se desculpar. O filho mais velho sabia que Nia
estava certa sobre a esperança. Ele sentia aquela certeza em seus ossos. Mas não
conseguia suportar a maneira como sua mãe e Podo haviam enterrado as
memórias de seu pai, fosse ele quem fosse.
“Janner.”
Ele olhou para sua mãe. Nia era uma imagem de força. Sua elegante mandíbula
estava rígida, sua cabeça ereta e sua postura, firme. Mas seus olhos agitavam-se
com emoções conflitantes. Parecia que ela poderia explodir em lágrimas a
qualquer momento, de tristeza ou raiva. “Eu sei que é difícil, mas você precisa
confiar em mim”, assegurou ela. “Há coisas que você não entende.”
Janner revirou os olhos e desviou o olhar, mas ela segurou seu queixo com a
mão firme e voltou seu rosto para o dela. “Um dia você saberá por que não
falamos de seu pai. Vocês dois saberão — acrescentou, olhando para Tink. “Mas
ele está morto há muitos anos, e sua irmã ainda vive... eu acredito nisso.” Nia
olhou pela janela para a escuridão que se adensava e colocou a mão na boca.
“Alguém está vindo.”
Janner levantou-se de um salto e escancarou a porta. Ele viu um vulto
indistinto a cavalo, subindo o caminho da casa. Ninguém se atrevia a respirar.
Finalmente, Janner viu que era, de fato, Podo nas costas do velho Danny e
Nugget trotando ao lado deles, mas sem conseguir dizer se Leeli estava com
eles. Janner teve a terrível sensação de que, mais cedo naquele dia, na livraria de
Oskar, era a última vez que veria sua irmã.
Tink correu para encontrar seu avô e os demais o seguiram. Ainda a alguns
passos de distância, ouviram a voz de Podo na luz fraca. “Estou com ela”,
declarou Podo. “Leeli está bem.”
Tink gritou de alegria e correu para ajudar Leeli a descer do cavalo cansado.
Janner quase desmaiou de alívio, e voltou os olhos para sua mãe, que estava
parada à porta com as mãos apertadas, cruzadas contra o peito. Seus olhos
captavam a última luz antes do anoitecer, brilhando como brasas ardentes, noite
adentro.
29

Murças-das-Cavernas e Verdugos-
Espinhentos

Dentro do chalé, cada Igiby agitava-se em torno de Leeli e a ajudava a se sentar,


com um Nugget muito feliz. Janner começou a acender o fogo. Ele e Tink
enchiam Podo e Leeli — que ria sem parar — de perguntas sobre os detalhes.
Mas Nia disse aos dois que dessem um tempo para que seu pobre avô e sua irmã
descansassem.
Podo, dando um gemido, acomodou-se em sua cadeira e apoiou uma perna no
banquinho, enquanto Nia conduzia os meninos para a cozinha a fim de ajudá-la a
preparar o jantar.
Em pouco tempo, trouxeram uma bandeja com tigelas fumegantes de canja de
galinha. Eles se sentaram próximos ao fogo e começaram a sorver a canja, com
os meninos angustiados por terem que esperar tanto pela história. Podo pigarreou
e a sala ficou em silêncio, exceto pelo crepitar do fogo.
“Não consegui encontrar o Fang sugador de tripas que pegou ela”, Podo
começou com um suspiro. Ele saboreou a antecipação criada e sorveu sua sopa,
grunhindo de prazer e acenando com a cabeça em agradecimento para Nia. “Mas
o pequeno Nugget, aqui, sim.” Ele deu um tapinha na cabeça de Nugget.
“Nugget encontrou os rastros do fedorento, né, garoto?” Nugget abanou o rabo e
latiu.
“Foi Slarb”, contou Leeli, e todos os olhos se voltaram para ela. “Ele me
arrancou dos fundos da livraria do senhor Oskar e me levou para a floresta,
esperando que todos viessem atrás de mim.”
Nia olhou incisivamente para Podo, que contou como havia chegado à borda
da floresta e encontrado sinais de uma briga, e dois conjuntos de trilhas se
afastando um do outro. Ele escolheu seguir os rastros humanos, e eles o
conduziram mais para o interior da floresta do que ele jamais estivera.
Janner pensou nos canicórneos e estremeceu.
Tink perguntou se Podo tinha visto alguma vaca-dentada. “Não, rapaz, e graças
ao Criador que não trombei nenhuma. Mas um murça-das-cavernas me atacou.
Alto como uma árvore, ou mais ou menos isso”, Podo declarou, “com garras
feito facas. Mas o véio Danny, o cavalo de carga, coiceou bem na mandíbula da
fera, e o murça ganiu e saiu em disparada.”
Tink perguntou como algo tão alto quanto uma árvore poderia “sair em
disparada”, mas Podo continuou como se não tivesse ouvido.1
“O caminho ficava pior quanto mais eu avançava. No início, eram apenas
algumas ravinas e o velho Danny podia descer sem muitos problemas, mas
depois de um tempo comecei a pensar duas vezes antes de esporear o velho
garanhão trilha abaixo. Elas eram profundas, e eu só tenho uma perna, ‘cês
sabem”, continuou ele com um golpe frustrado em seu cotoco. “E então ouvi um
barulho”, ele contou em um sussurro. Eles se inclinaram, aproximando-se, até
mesmo Nia.
“Estávamos...” Leeli começou, mas Podo a silenciou.
“Espere, querida; ‘cê tem que construir suspense, sabe?” Ele fez uma pausa
para causar efeito e Leeli tentou não rir.
“Ah, anda logo com isso”, interrompeu Nia.
“Será que eu posso contar essa história, aqui?” Podo retrucou, ofendido.
“Bom, já não sei mais”, respondeu Nia. “Consegue?”
“Consigo, se eu não tiver mais interrupções”, reclamou Podo, murmurando
algo sobre as pessoas, hoje em dia, não perceberem uma boa história mesmo se
estiverem sendo quase mordidas por ela. “Enfim, ouvi alguém cantando — mas
não era a nossa Leeli aqui. Foi o suficiente para assustar um velho até a morte,
ouvir uma música nas entranhas de um bosque escuro, quando a única coisa que
ouviu na última hora foi o bufar de um cavalo e seus próprios bufos.”
Nia revirou os olhos e escondeu o rosto nas mãos.
“Então, começo a olhar ao redor, pensando que devo ter ouvido errado, quando
acontece de novo: uma voz cantando. De repente, Nugget late furiosamente, e eu
olho pra ele, e ele tá latindo pra uma árvore. No começo eu penso, agora não é
hora de ficar acossando thwaps! Mas, naquele exato momento, um verdugo-
espinhento, do tamanho d’uma cabra, surge do nada e começa a mostrar as
presas e a circundar. Ele eriçou seus espinhos e começou a crocitar como um
falcão, e eu pensei, É, que bom que eu trouxe meu forcado de casa, caso
contrário não teria nada com que lutar. Portanto, eu sabia que não tinha muito
tempo antes que os espinhos do verdugo voassem, então joguei meu forcado
com toda a minha força...” Podo parou, baixando os olhos dramaticamente.
“E...?” Janner perguntou, pegando a deixa.
Podo olhou para cima, saboreando o suspense. “E... eu errei”, constatou ele
com um encolher de ombros, recostando-se na cadeira. “A coisa idiota cravou-se
no chão uns trinta centímetros na frente da criatura. ‘Brilhante’, digo eu,
pensando no que fazer depois. Aquele bicho sibilou e saltou pra trás e se virou
pra lançar seus espinhos. Mas pouco antes daquilo, vi a última coisa que
esperava ver.”
Podo tomou um longo e barulhento gole de sidra, enquanto os Igibys
aguardavam, na ponta de seus assentos. “Balançando num cipó, veio de algum
lugar aquele tipo maluco, da cidade, Peet, o Homem-Meia.” Janner percebeu que
os olhos de Nia e Podo se encontraram com a menção de Peet, como se tivessem
tido uma conversa inteira naquele momento.
“Ele me salvou”, interrompeu Leeli, falando rápido. “Ele lutou contra Slarb e
me levou para sua casa na floresta. Foi maravilhoso, embora ele cheirasse a
cebola podre.”
“Então, voltando ao verdugo-espinhento”, prosseguiu Podo, impaciente. “Peet,
o Homem-Meia, saltou com um bastão e acertou aquele espinhento com tanta
força que a criatura virou do avesso, e enquanto saía em disparada, Peet tirou
uma pedra de um saco e atirou, a pelo menos um quilômetro e meio, e acertou
bem na cabeça do bicho.”
O queixo de Janner caiu. “Foi Peet!” Exclamou. “Foi Peet quem jogou as
pedras nos Fangs que atacaram Leeli antes, não foi?” Todos olharam para ele.
“Bom, pode ter sido”, respondeu Nia, “mas ninguém o viu, então não podemos
saber com certeza, podemos?”
“Bom, não, mas quem mais...”
“O que aconteceu depois, papai?” Nia voltou-se a Podo, secamente.
Podo pigarreou. “Então, como eu dizia, estávamos bem debaixo de uma casa
na árvore, bem no alto de um carvalho de Glipwood e, sem nenhuma dúvida, lá
estava a pequena Leeli, sã e salva, acenando para o véio Podo como se estivesse
de férias.”
“Então o Homem-Meia não tentou machucar você?” Perguntou Tink. “Ele
sempre me causa estranheza.”
“Não!” Leeli exclamou. “Ele lutou contra aquele Fang sozinho e me levou para
sua casa na árvore. Ele tem muitos livros e uma escada de corda e só precisa de
alguns amigos. Mamãe, podemos levar comida pra ele? Tudo o que ele come são
animais da floresta. Ele guardou o verdugo e disse que iria comê-lo mais tarde
— e não estava, realmente, do avesso, a propósito —, mas pensei que, talvez,
pudéssemos ajudá-lo...”
“Veremos”, respondeu Nia, com um aceno de mão. “Chega de falar sobre esse
personagem, Homem-Meia. Estou feliz que tenha salvado você, querida, mas
está claro que ele não bate bem da cabeça. Agora é hora de vocês, crianças, se
prepararem para dormir. Vocês precisam descansar.”
Nia, espreitando pela porta do quarto das crianças, ouviu por um momento e
escutou a respiração profunda de sono, vinda de todos os três. Apenas Nugget se
mexeu. Aconchegado firmemente ao lado de Leeli, ergueu a cabeça, inclinou-a
para um lado e balançou o rabo lentamente, para Nia. Acenando para Nugget, ela
sorriu e fechou a porta.
Podo estava quase dormindo em sua cadeira, com a perna apoiada no
banquinho. Ele havia soltado a perna de pau e o toco de madeira estava no chão,
ao lado dele.
“O fogo está diminuindo, moça”, disse ele com um bocejo.
Nia sentou-se no sofá e bocejou também. Ela olhou para as chamas e pensou
muito, antes de falar.
“Ele não pode chegar perto deles, papai.”
“Hã?” Resmungou ele, coçando a cabeça e abafando outro bocejo.
“Peet.”
“Ah.” Podo levantou-se um pouco e olhou para o fogo. Eles ficaram em
silêncio por um longo tempo novamente.
“Amanhã de manhã terei uma conversa com as crianças”, emendou Nia. “Vou
proibi-las de falar com ele.” Ela suspirou e soltou o cabelo do coque. “Estes
últimos dias foram os mais longos que vivi desde que chegamos aqui, papai, e
oro ao Criador para que o perigo passe logo. Se meu rocambole de verme for
bom, e se pudermos resistir até aquele Fang, Sloop...”
“Slarb.”
“... for transferido para outra vila, acho que vai ficar tudo bem. Pelo menos
estaremos juntos. E estaremos vivos.”2
“Hum, mas isso não é vida, moça!” Podo a corrigiu. “Não como deveria ser.
Você vê a forma como as cabeças das pessoas se curvam? Você vê o medo que
vaza delas e cobre esta cidade como uma névoa no mar? Bah! Eles já se
esqueceram mesmo do que é viver. Mas seu Podo não.” Ele sorriu para o fogo e
fechou os olhos. “Hoje, quando cavalgava pela floresta, lembrei de como era ter
o vento no cabelo e o mundo se desenrolando diante dos meus olhos.” Podo
encarou Nia. “Se Esben ainda estivesse quebrando o pau, ele teria uma ou duas
coisas a dizer sobre esses Fangs exalando seu veneno em nossos pescoços. Ele
teria algo a dizer sobre aquela Carruagem chacoalhando colina acima pra levar a
juventude...”
“Chega, papai. Ele não está aqui. E essa audácia foi exatamente o que o
matou.”
“Não, moça”, retrucou Podo. “Foram os Fangs que o mataram.”
“Mas se ele tivesse fugido, se ele tivesse vindo conosco e se escondido, então
ele estaria aqui agora...” Nia se interrompeu, à beira das lágrimas. “... Ele estaria
aqui agora”, repetiu para si mesma.
Podo colocou uma de suas encanecidas e velhas mãos no braço dela.
“Tudo bem, moça. E não se preocupe em ter uma longa conversa com os
pequenos sobre o velho Peet, o Homem-Meia. Você sabe tão bem quanto eu que,
para os rapazes, uma advertência é quase o mesmo que um convite. Eles não
serão capazes de parar de pensar nele se você fizer isso. Ouça o que eu digo:
deixa pra lá.” Sua voz ficou ameaçadora. “E eu vou cuidar do velho Peet. Não se
preocupe com ele chegando perto das crianças novamente. Eu diria que ele já
deu o que tinha pra dar.”
Nia não disse nada enquanto olhava tristemente para o fogo morrendo, lutando
para queimar.
30

A Prematura Morte de Vop

Enquanto Nia e Podo diziam boa noite um ao outro, Slarb voltava mancando
para a cadeia, com o rosto inchado e um grande ferimento sangrento na perna.
Ele tinha acordado na clareira da floresta com uma terrível dor de cabeça e um
rateixugo mordendo sua perna. Slarb o agarrou, afundou as presas em seu
pescoço com um grunhido, e jogou a criatura inerte entre as árvores. Vários
segundos se passaram antes que ele se lembrasse do que estivera fazendo na
floresta. Mas enquanto caminhava de volta para a cidade, Slarb se imaginou
comendo as crianças Igiby, uma por uma, junto de seu cachorrinho.
O po-co-tó de cascos vindo em sua direção interrompeu o devaneio. Slarb
mergulhou na grama alta a tempo de ver Podo Helmer trotando na direção de
onde ele acabara de vir. Quando viu Nugget ao lado do cavalo, Slarb quase
saltou de seu esconderijo. A essa altura, seu ódio pelo indestrutível cachorrinho
era igual ao ódio pelas crianças que o haviam humilhado tanto.
Mas a humilhação para Slarb, o Fang, estava apenas começando.
Os Fangs de Dang, todo mundo sabia, raramente eram feridos. Eles certamente
não eram muito ameaçados pelos skreenianos, que não tinham armas e que
pareciam ter pouca coragem. A única ocasião em que um Fang podia se ferir era
quando um de seus próprios colegas infligia o ferimento, durante uma
escaramuça por uma pulseira de ouro ou por uma tigela de mingau melequento.1
Slarb subiu mancando os degraus da cadeia, na esperança de encontrar um
curativo para seu ferimento. Os outros Fangs pararam o que estavam fazendo e
ficaram boquiabertos quando ele passou. O rosto de Slarb estava terrivelmente
inchado, seu corpo coberto de terra e sua perna sangrando constantemente por
causa das mordidas do rateixugo. Os Fangs explodiram em gargalhadas e
perguntaram-lhe o que tinha acontecido.
Slarb, o Fang sentou-se na sala da frente da cadeia e enfaixou o ferimento sob
uma chuva de zombaria dos seus companheiros Fangs. Ele, porém, já havia
aturado escárnio suficiente para aquele dia. Terminou de colocar a bandagem em
sua perna e, sem aviso, atacou o Fang mais próximo, um bruto chamado Vop.
Ambos caíram, rosnaram e quebraram cada peça dos poucos móveis que havia
na sala da frente da cadeia. Rolaram no chão, esmurrando, arranhando e
mordendo um ao outro, enquanto os outros olhavam e torciam por Vop.
Com um grito, Vop girou Slarb sobre sua cabeça e o lançou contra a parede, no
alvo onde as muitas adagas arremessadas estavam cravadas. Várias adagas
caíram no chão.
Slarb se levantou, louco de raiva, e agarrou uma das adagas. Ele a arremessou
contra Vop, que estava sendo parabenizado pelos outros soldados por ter vencido
a briga. Com um corte nauseante, a faca se enterrou nas costas de Vop. Os Fangs
pararam de rir e observaram, chocados, enquanto ele caía sem vida.
Slarb, em pé, sozinho, respirava com dificuldade e tinha um sorriso malicioso
no rosto.
Os Fangs já não gostavam de Slarb. Agora, ele havia esfaqueado um deles nas
costas.
“Ele matou o véio Vop, matou”, constatou um deles, olhando para Vop com
espanto.
“Vop era um bom Fang pra se ter por perto, pra dar uma boa risada”, disse um
outro.
“E num foi exatamente ele que começou a briga”, disse Brak, que estreitou os
olhos para Slarb. “Foi Slarb que começou, e o véio Slarb aí foi e pegou ele
quando ele num tava olhando”.
“Eu conhecia Vop desde que viemos de Dang”, relatou outro Fang fungando.
“Nós queimamosss um monte de vilarejos juntosss, eu e ele. Joguei minha
primeira criança aos berros, dentro da Carruagem, com ele, eu joguei”.
“O Comandante Gnorm tinha uma sssimpatia especial pelo véio Vop. Disse que
era como o sobrinho que ele nunca teve”, comentou outro Fang, tirando a espada
da bainha.
Quanto mais eles encaravam Slarb, mais ele encarava a porta. Quando Slarb
saltou na direção da porta, a gangue de Fangs furiosos deu um passo coletivo em
direção a ele — mãos estendidas, armas em punho. Porém, era tarde demais. Os
Fangs tentaram agarrá-lo, mas Slarb se contorceu, gritou e, em um piscar de
olhos, ficou surpreso ao se ver descendo os degraus da cadeia em meio a uma
saraivada de insultos e xingamentos.
Slarb correu e correu mais, para fora de Glipwood, subindo a longa estrada em
direção a Torrboro, embora não soubesse para onde estava indo. Não sentia mais
o ferimento em sua perna ou o galo na têmpora, onde Peet, o Homem-Meia o
tinha chutado. Ele sabia que o Comandante Gnorm ordenaria sua execução
quando voltasse e encontrasse Vop esfaqueado nas costas. Mas Slarb também
não se importava mais com tudo aquilo.
A lua fria e branca brilhava com desdém enquanto Slarb corria — sorriso louco
na cara, sem nada em sua mente distorcida.
Exceto, é claro, seu ódio pelos Igibys.
31

O Medalhão de Khrak

Na manhã seguinte, durante um café da manhã de bacon com totatas fritas,


Janner, pela primeira vez em uma semana, teve a sensação de que tudo ficaria
bem. O café da manhã estava bom, o sol raiava, ninguém havia se machucado e
ele tinha três novos livros para ler. Quem sabe, Slarb tivesse entendido que se
meter com as crianças Igiby não era uma boa ideia. Nos últimos poucos dias, até
onde Janner sabia, Slarb fora nocauteado por uma pedra, golpeado pelo
Comandante Gnorm e quase estrangulado por Peet, o Homem-Meia. Quem sabe
não tenha sido comido inteiro por algum animal faminto da floresta.
Ainda assim, Podo e Nia decidiram que todos deveriam ficar perto de casa, por
alguns dias, até que a poeira baixasse. Fora uma semana agitada, mas nem Podo,
Nia ou Leeli sabiam sobre o encontro de Janner e Tink com os canicórneos e
sobre as armas no porão da Mansão Pé-de-Geleia.
Podo estava satisfeito por ter coletado e entregado mais cinco thwaps de jardim
para seu antigo rival, Willie Abutre. Era como se o pirata tivesse encontrado um
novo propósito, ao coletar e realocar thwaps, em sua velhice. Embora tivesse se
arrependido de seus dias de selvageria no mar, ele cantarejava de alegria
enquanto se esgueirava até o jardim de Willie para soltar os thwaps.
As crianças, sob a tutela de Nia, estavam trabalhando duro em seus T.A.N.E.G.
Janner estava labutando em um poema que Nia o instruiu a compor. O assunto
era o Festival dos Dragões-Marinhos, e ele tentava pensar em algo além de
“fenomenal” para rimar com “festival”.
Tink, descalço e descansando encostado contra uma velha árvore, fazia o
esboço de uma pomba-travessa, que se aninhara no oco de um carvalho próximo.
Era sua terceira tentativa de captá-la do jeito certo, e ele olhava o desenho
inclinando a cabeça de um lado para o outro.
Do lado de fora da porta dos fundos do chalé, Leeli praticava sua harpa eólica,
enquanto Nugget cochilava a seus pés.
A vida no chalé Igiby parecia estar voltando ao normal.
“Ah, ‘Balada para Dougan’,1 uma antiga melodia dos habitantes dos Vales
Verdes”, Oskar N. Reteep teve o prazer de informar Leeli, chegando por um dos
cantos da casa. “Esplêndido.”
Ele havia vindo para ver se estava tudo bem com Leeli e oferecer desculpas
profusas por tê-la perdido de vista. Estava carregando a pequena muleta dela,
debaixo do braço.
“Nas palavras do famoso ladrão de sapatos Hanwyt Moor, ‘Sinto muito. Não
vai acontecer de novo’.” Ele estendeu a muleta. “E você deve ser a Chuta-
Lagartos, pressuponho eu.”
Leeli abraçou o Sr. Reteep em torno de sua considerável cintura.
“Ainda posso ir e pegar livros emprestados, de vez em quando, senhor?” Ela
perguntou.
“Claro! Claro, jovem princesa! Agora mais do que nunca.”
Nia sorriu e convidou Oskar para uma taça de cidra.
Justamente quando eles estavam se sentando, Podo voltou de sua missão no
jardim de Willie Abutre e cumprimentou Oskar friamente.
Oskar se encolheu sob o olhar de Podo.
“Podo, você deve saber o quanto eu lamento”, disse Oskar, com os olhos
baixos. Ele pressionava nervosamente uma mecha de cabelo branco solta, na
testa. “Se eu soubesse... se soubesse que o Fang estava por perto, nunca teria...”
Ele parou, tentando pensar em algum autor para citar.
Podo suavizou e deu de ombros, com um aceno de mão, enquanto se sentava à
mesa ao lado de Nia. “Nenhum prejuízo feito”, disse ele, dando o que acreditava
ser um leve soco no ombro de Oskar. Isso sacudiu Oskar de tal modo que seus
óculos ficaram pendurados em uma orelha só. Podo não percebeu.
“A conversa, na taverna do Crespo, é que o Comandante Gnorm voltou de
Torrboro e não está nada contente”, comentou Podo. “Blaggus disse que o ouviu
gritando, com toda a força de seus pulmões de lagarto, algo relacionado com
Slarb. Disse que ouviu que Slarb matou outro Fang.”
Oskar esfregou o ombro e endireitou os óculos. “Um Fang morto? Eu não
acredito que já tenha visto um desses.”
“Não tem muito o que ver”, disse Podo. “Só poeira e ossos.”
Oskar ergueu uma sobrancelha.
“Pelo menos foi o que ouvi dizer”, acrescentou Podo.
“E Slomp?” Perguntou Nia.
“Slarb, querida”, corrigiu Oskar.
“Bem, essa é a parte estranha”, emendou Podo. “Crespo diz que ele não é visto
desde que matou o outro cara. Disse que fugiu e nunca mais voltou. Acho que se
ele voltasse, Gnorm o deixaria tão morto quanto o outro.” Podo olhou pela
janela. “Tenho a sensação de que podemos estar livres daquele fedorento de uma
vez por todas.”
“Até termos certeza, não quero as crianças indo sozinhas para a cidade”,
asseverou Nia.
“Sim, vamos ficar quietos por uns dias”, concordou Podo. “Mas não faz
sentido nos escondermos como murças-das-cavernas pelo resto de nossas vidas,
moça. Além disso, agora que o festival acabou, todos, exceto uns poucos, estarão
voltando para Torrboro. As coisas vão voltar ao normal em breve.”
“E eu lhes asseguro”, disse Oskar assertivamente, “as crianças estarão seguras
na Livros e Vãos — caso vocês decidam confiá-las a mim novamente”. Ele
olhou para as próprias mãos.
“Meu velhote, não ouviu o que eu disse? Nenhum prejuízo foi feito! Não
falemos mais nisso.” Podo se inclinou com um sorriso e bateu de brincadeira no
ombro de Oskar, novamente, desta vez fazendo seus óculos voarem no chão.
Na esperança de evitar novas demonstrações de amizade da parte de Podo,
Oskar despediu-se. Saindo do chalé, encontrou Tink encostado na árvore,
desenhando em um pergaminho. Oskar acenou para Tink e sussurrou, “E isto é
para você, rapaz. Eu mesmo achei muito útil.”
Ele entregou um livrinho para Tink, pigarreou e, com um tapinha amistoso na
cabeça do garoto, foi-se caminho abaixo.
Tink olhou para o livro em suas mãos. Remédios caseiros para erupções
cutâneas: um estudo sobre o desconforto.
O General Khrak estava cansado de se reunir com comandantes Fangs. Durante
toda a semana ele havia sofrido com a impudência, com as reclamações e
bajulações deles, embora as adulações o agradassem e aliviassem
consideravelmente seu sofrimento. O sol estava se pondo em Torrboro e ele
olhava para a chuva, pela janela alta do Castelo Torr, ignorando o Comandante
Plube, um Fang que tinha o hábito de rir de suas próprias piadas. Khrak estava
considerando executá-lo por seu péssimo senso de humor.
“Então, esse humano entra numa taverna e diz ao porleitão de duas cabeças:
‘Quem soltou as cabras?’ E o porleitão, ele diz: ‘Eu soltei, e daí?’ ‘Ah, nada’, e
ele pega o porleitão pela cauda e...”
Plube parou no meio da frase quando Khrak se levantou de seu trono e desceu
os degraus, encarando-o com um olhar alarmante. O salão estava vazio, exceto
pelo General Khrak e por Plube. O sorriso asqueroso em seu rosto se
desvaneceu, quando Khrak se aproximou até que seus narizes estivessem quase
se tocando. Plube tremia em sua armadura. Nunca antes, durante qualquer de
suas reuniões, Khrak havia deixado seu trono, muito menos descido os degraus.
Plube fechou os olhos e esperou pela morte que certamente viria. Ele sempre
achou que Khrak gostava de suas piadas e anedotas. Em sua opinião, elas
tornavam os relatórios sobre seu entediante recinto de Skree muito menos
monótonos, e Khrak sempre parecia tão sem humor. Ele estava apenas tentando
ajudar.
O General Khrak não falou nada. Ele apenas ficou olhando, esperando que
Plube abrisse os olhos. Uma pálpebra se abriu, timidamente, depois a outra.
Plube relaxou um pouco, rindo com cautela.
“Vá. E nunca mais quero ouvir outra história sobre um porleitão em uma
taverna. Nunca.”
“S-sim, senhor”, Plube gaguejou debilmente enquanto se afastava. O Fang
tropeçou em si mesmo, na pressa de sair e, quando caiu, o General Khrak riu
pela primeira vez naquela semana. A porta então se fechou e Khrak bocejou. Ele
estava com fome.
“Esssscrava!” Ele gritou, e uma velha com roupas esfarrapadas entrou na sala,
fazendo mesuras o tempo todo. “Leve uma tigela de salada de rabo de rateixugo
para meus aposentos. E certifique-sssse de que a alface está perfeitamente
marrom desta vez!” Ela saiu da sala, ainda cheia de mesuras e balbuciando
resmungos e desculpas, e o Fang abriu caminho pelos corredores sujos até seus
aposentos.
Ele se esgueirou para uma cadeira e esperou sua refeição. Khrak partiria na
próxima lua nova para o Castelo Throg, e sempre tinha que preparar sua mente
para essa jornada. Gnag o havia convocado, o que significava que ele passaria
quatro semanas cruzando o Mar Sombrio da Escuridão; em seguida, uma longa e
seca jornada através das áridas Desolações de Shreve até as Montanhas Picos-
da-Morte, onde O Sem-Nome erigiu seu lar. Ele temia a viagem. Em Skree ele
era o General Khrak, governante da terra; mas no Castelo Throg, tornava-se o
bajulador, o escravo. Não importava. Era um pequeno preço a pagar pelo poder
que exercia em Skree.
Gnag tinha planos de expandir seu reino, construir um exército maior; se Gnag
permanecesse satisfeito com seu serviço, então seria ele, General Khrak, quem
lideraria o grande exército rumo ao Oeste Distante. Ele fechou os olhos e se
deleitou com a destruição que traria às pessoas além dos mapas. Ele queria esse
comando. Khrak era um Fang de Dang, forjado para a batalha, mas lá estava ele,
em Torrboro, desperdiçando seus dias com tolos como Plube.
Verdade que ele gostava da comida e da excelente sujeira do lugar, e gostava
da bajulação que recebia, mas também sentia que se fosse obrigado a passar
muito mais tempo ouvindo comandantes de distrito falando sobre os humanos
em suas cidades miseráveis, ele roeria fora o próprio pé. Khrak se levantou e
começou a andar de um lado para o outro. Se ao menos conseguisse encontrar as
Joias de Anniera. Encontrá-las mudaria tudo. Gnag o deixaria fazer o que
quisesse.
A velha entrou com uma tigela de rabos de rateixugo, ainda se contorcendo,
sobre uma camada de alface marrom e pegajosa. As caudas de rateixugo eram
como macarrão vivo e peludo, tão gordas quanto dedos. Khrak agarrou a tigela,
segurou-a perto do rosto e aspirou o forte odor.
“E seu molho de suor favorito, senhor”, disse a mulher, com a voz ligeiramente
trêmula. O fato de Khrak tê-la deixado ir sem ferimentos era um sinal de que
estava satisfeito com a refeição.
Khrak sentou-se, sorveu o primeiro rabo de rateixugo e suspirou, recostando-se
novamente na cadeira.
Por hábito, sua mão vagueou até o medalhão pendurado em seu pescoço. Sua
mais nova joia, cortesia de... quem, mesmo? Ah. Comandante Gnorm, um gordo,
alguns dias atrás. De Glipwood.
Khrak mergulhou outro rabo no molho de suor e o mastigou, pensativamente,
enquanto brincava com o medalhão. Ele o olhou atentamente pela primeira vez,
admirando os rubis que adornavam suas bordas, acariciando-o com seus dedos
escamosos. Ele engoliu outro rabo enquanto virava o medalhão e examinava a
parte de trás: e, de repente, engasgou.
Khrak saltou de sua cadeira e cuspiu o rabo de rateixugo no chão. Ele
atravessou a sala até um lampião que queimava em uma arandela, na parede, e
segurou o medalhão contra a luz. Lá, gravado na parte de trás do medalhão,
estava um dragão com asas.
O Brasão de Anniera.
Poderia ser?, o general se perguntou; a cabeça girava. Em Glipwood? Depois
de todos esses anos?
O General Khrak riu pela segunda vez naquele dia.
32

Preparando um Rocambole de Vermes

Com o agravamento dos problemas com os Fangs, Nia sabia que era hora de
voltar sua atenção para a preparação do rocambole de vermes para Gnorm. Ela
colocou duas bandejas de carne de galinha na pilha de compostagem, onde era
certo que os insetos poderiam encontrá-las. Quando verificou no dia seguinte, a
carne estava pútrida e exsudando. Satisfeita consigo mesma, ela tentou pensar
em outros ingredientes repulsivos.
No jantar, ela anunciou que todos os membros do clã Igiby deveriam cortar
suas unhas e colocá-las em uma tigela junto à porta da cozinha, pelo resto de
suas vidas (ou até que Gnorm fosse transferido para outra cidade). Nugget
farejou um ninho de percevejos na base de uma árvore, e Nia fez deles uma pasta
grossa, enchendo uma tigela com os insetos, depois de macerá-los com uma
pedra. Ela nunca admitiria, mas estava gostando de tentar fazer uma refeição tão
nojenta quanto fosse possível.
Depois, choveu durante dois dias. A chuva manteve as crianças dentro de casa,
tristonhas, de modo que não tiveram outra escolha a não ser trabalhar em seus
T.A.N.E.G. durante horas a fio. Mas a mãe das crianças ficou contente com a
chuva porque ela trouxe larvas do solo. Nia mandou Tink e Janner coletarem
uma tigela cheia desses seres rastejantes e as acrescentou à pasta de percevejos.
No terceiro dia, a chuva foi soprada para longe e o sol quente voltou a raiar.
Nia pôs um par de luvas, enrolou um lenço do nariz ao queixo e recolheu a carne
de galinha estragada da pilha de compostagem. A carne estava esbranquiçada,
úmida e, para o alívio de Nia, repleta de larvas. Ela assou tudo em um rocambole
gordo e úmido e o guarneceu salpicando um pouco de pelo do Nugget.
Nia colocou o exsudante rocambole em uma travessa e o cobriu com um trapo;
depois, ela e as crianças se puseram a caminho da cidade. Um odor desagradável
os acompanhava como uma nuvem negra e atraía moscas que os seguiam. As
crianças deveriam esperar na livraria de Oskar enquanto ela entregava o
rocambole a Gnorm na cadeia.
“Se... e somente se eu descobrir que Slarb não voltou, vocês poderão ficar no
Oskar durante a tarde”, afirmou Nia, segurando o rocambole de vermes o mais
longe possível do rosto. “O que quer que vocês façam, fiquem longe dos Fangs.
E fiquem juntos.”
A mãe olhou para o filho mais velho, que assentiu com a cabeça. Ele não
perderia outra vez Leeli ou Tink de vista, não importando o que acontecesse.
Eles andaram o resto do caminho sem falar, o único som sendo o zumbido das
moscas que flutuavam por baixo do pano.
Uma vez na cidade, Janner impeliu Tink e Leeli para dentro da Livros e Vãos,
de onde ficaram olhando da janela. Zouzab estava pendurado, de cabeça para
baixo, como uma aranha, em uma viga, e também espiava lá fora.
Corajosamente, Nia subiu os degraus da cadeia e com a mais tênue reverência
apresentou sua sórdida refeição ao Comandante Gnorm.
Janner, Tink e Leeli se deslocaram para ver mais claramente. Nia estava de
costas para eles e tudo o que conseguiam enxergar era Gnorm sentado em sua
cadeira de balanço, afiando sua adaga, de botas escoradas na grade do alpendre.
Nia ficou diante dele durante o que pareceram horas, enquanto as crianças e
Zouzab observavam num silêncio tenso. Finalmente, Nia virou-se e foi embora.
Ela olhou diretamente para a janela da Livros e Vãos e acenou com um sorriso
discreto. Janner, Tink e Leeli suspiraram em uníssono, com alívio. Eles podiam
ver Gnorm empanturrando-se em meio a uma nuvem de moscas; a cara já estava
enterrada no rocambole de vermes.
“O que parece é que sua mãe agradou ao Fang”, comentou Zouzab. Ele subiu
nas vigas, saltou para uma prateleira alta e sorriu para as crianças. “Quem sabe
agora vocês não nos visitem mais vezes, né?”, o corre-crista cogitou e, sem
esperar por uma resposta, desapareceu.
Janner sentiu uma onda de alívio sobrevir-lhe. O aceno de Nia significava que
Slarb tinha desaparecido. Talvez a vida pudesse voltar ao seu ritmo lento e
normal, e, para surpresa de Janner, ele próprio estava contente. Mas o irmão
mais velho tinha perguntas, e muitas delas sobre o sujeito magrelo, com as meias
nos braços, agora passeando de ponta-cabeça pela rua empoeirada, diante deles.
Janner estudou Peet como nunca antes. Peet costumava vir à sua mente somente
enquanto passava pela cidade com um bastão na boca ou fazendo malabarismos
junto aos penhascos. Agora, Janner não conseguia deixar de procurá-lo, nem de
se questionar a seu respeito.
“Conte-nos sobre a casa dele, a casa na árvore”, Janner pediu a Leeli, com o
olhar ainda em Peet.
“E sobre o cheiro dele”, acrescentou Tink.
“E seus livros”, arrematou Janner.
Leeli parecia impaciente com os irmãos.
Janner a puxou, junto com Tink, para o chão, perto da janela, onde eles podiam
se agachar, observando Peet à distância. Lá fora, Nugget abanava o rabo e olhava
fixamente para a porta, esperando pacientemente por Leeli.
“Ele disse alguma coisa enquanto você esteve com ele?” Tink quis saber entre
mordidas num pedaço de gulomelo.
“Não, eu já falei”, respondeu Leeli. A maneira defensiva com a qual tratava
Peet lembrou Janner de como ela era com Nugget, antes que ele aprendesse a
não levantar a pata dentro de casa. “Quando me subiu pela escada de cordas e
me colocou dentro da casa da árvore, ele disse que eu estava a salvo. Fora isso,
ele apenas sentou num canto como se tivesse medo de mim. Eu tentei puxar
assunto, mas ele ficou lá sentado, enrolando e desenrolando um pedaço de fio
em torno de seu pulso. Ele começou a balançar para frente e para trás e a
cantarolar algo, e eu achei que era a música mais bonita que já ouvi. Me deixou
sonolenta, então grudei na parede. Acho que adormeci. Como eu já disse, a
próxima coisa que ouvi foi um som estridente horrível.”
“O verdugo-espinhento”, disse Tink.
“Sim. E isso é tudo. Chamei o vovô quando o vi, e Peet me desceu. Vovô não
parece gostar muito de Peet, mas agradeceu. Então saímos da floresta o mais
rápido que pudemos.” “Mas que tipo de livros ele tinha?” Janner insistiu.
Leeli bufou. “Sei lá. Eles tinham capas de couro com desenhos. Havia um baú
antigo no canto e um monte de bugigangas. Não fiquei muito tempo lá, antes de
adormecer.” Ela sorriu para si mesma. “E depois, quando acordei, percebi que
ele tinha colocado um cobertor em mim.”
Após um momento, Tink sussurrou: “Você acha que consegue se lembrar de
como chegar à casa da árvore de novo?”. Leeli olhou para ele como se o irmão
fosse louco. “Mesmo se eu conseguisse, não contaria a você. Vovô estava a
cavalo e ainda assim foi atacado por um murça e um verdugo. E se ele tivesse
sido atacado por uma vaca-dentada? São quilômetros e quilômetros dentro da
floresta. Não seja bobo.”
“Eu não disse que ia lá”, afirmou Tink, dando outra mordida no gulomelo.
“Mas então por que perguntou, hein?”
Tink deu de ombros.
Janner estava quieto, olhando na direção da floresta.
“No que você está pensando, Janner?” Leeli perguntou.
Janner pensou por um momento antes de falar. “Essa já é a segunda vez que
Peet veio nos socorrer: primeiro, com as pedras no beco; depois, com você na
floresta. Acho que ele está cuidando de nós.”
“Você não sabe se foi Peet quem jogou aquelas pedras”, corrigiu Leeli, dando
uma olhada para o teto. Ela baixou a voz. “Pode ter sido Zouzab. Poderia ter sido
qualquer um.”
Janner olhou pela janela para ver Peet virando a esquina da barbearia de J.
Bird. “Tudo o que estou dizendo é que é um pouco estranho.”
“Leeli, a que distância estava aquele verdugo-espinhento quando Peet jogou a
pedra nele?” Perguntou Tink.
“Não sei, talvez... daqui até...” Leeli semicerrou os olhos em direção ao
edifício do outro lado da rua. “Daqui até a cadeia.”
“Eu não contei pra vocês dois uma coisa”, confessou Janner, com a voz baixa.
“Na noite em que saímos da cadeia, ouvi mamãe e vovô conversando e falando
como se soubessem quem jogou as pedras, e os dois não queriam que
soubéssemos.”
“Olhem.” Leeli apontou pela janela para o avô subindo a Rua Principal.
Podo avançava com um passo determinado: seus braços balançavam, havia
uma carranca desagradável na face. Ele parou e olhou rua acima e rua abaixo,
antes de entrar no beco estreito da J. Bird, o mesmo beco onde Peet acabara de
entrar.
“O que ele está fazendo?” Janner questionou enquanto espiava por cima de
Tink e Leeli.
Poucos momentos depois, Peet, o Homem-Meia, voou pela esquina, chorando
como uma criança e com o lábio sangrando. Ele estava correndo como um
animal assustado e o coração de Leeli se partiu ao vê-lo daquele jeito.
Podo reapareceu na esquina e se limpou, antes de retornar na direção do chalé.
“O que foi tudo isso?” Janner perguntou em voz alta. “Vovô simplesmente
bateu nele?”
“Eu vou atrás dele”, disse Tink, olhando na direção para onde Peet havia
corrido.
“Não!” Exclamou Leeli.
“Vou atrás do Peet”, Tink repetiu, limpando as mãos meladas na frente da
camisa. “Vocês podem ficar aqui se quiserem, mas eu quero saber para onde ele
está indo.” Antes que alguém pudesse impedi-lo, Tink saiu da janela, abriu a
porta da frente e começou a descer a rua.
“Tink”, gritou Janner. “Tink!”
Mas Tink continuou andando.
“Vamos lá”, resmungou Janner. “Precisamos alcançá-lo.”
“E o senhor Reteep?” Leeli perguntou.
Janner parou. “Espere aqui.” Ele disparou pelo corredor que achou que poderia
levar à mesa de Oskar e voltou alguns minutos depois, sem fôlego. “Vamos. Eu
só falei que terminamos e que vamos embora. Ele nem mesmo tirou os olhos dos
livros.”
“Mas...”
“Eu sei que é ridículo, mas não posso simplesmente deixar Tink ir sozinho.
Temos que ficar juntos.” Janner entregou a muleta à Leeli e segurou a porta para
a irmã. “Sinta-se à vontade para tentar dissuadi-lo, mas você conhece Tink. Ele
vai seguir Peet, indo ou não com ele.”
Quando o alcançaram, Tink estava espiando na esquina de A Única Pousada.
“Achei que vocês não chegariam nunca”, ironizou ele com uma piscadinha.
“Essa não é uma boa ideia”, repreendeu Leeli. “Mamãe disse...”
“Lá vai ele”, sussurrou Tink, olhando por cima do ombro de Leeli, e se foi.
Leeli observou Tink correr na direção norte, subindo a Via Vibbly.
Nugget choramingou, ansioso por correr.
Com um suspiro de resignação, Janner estendeu o braço para a irmã. “Depois
de você.”
33

Pontes e Galhos

Tink subiu com pressa a pequena encosta, passou pelas últimas casas de
Glipwood, com Janner, Leeli e Nugget a apenas alguns passos atrás. De vez em
quando, Tink tinha um vislumbre dos cabelos brancos de Peet disparando pelo
campo e acelerava o passo para manter o Homem-Meia à vista.
Janner não gostava do quão perto eles estavam da floresta. Não estavam tão
longe da cidade quanto a Mansão Pé-de-Geleia, onde a floresta era mais antiga e
selvagem, mas as árvores, desde aquele trecho, estavam ficando mais encorpadas
e deixando Janner nervoso.
Depois de vários minutos, Tink parou ao lado de uma casa em ruínas, sem
telhado e carbonizada, em meio a um aglomerado de carvalhos musgosos. Janner
e Leeli o alcançaram e os três ficaram parados, ofegantes, no meio da estrada
empoeirada.
“Consegue vê-lo?” Janner perguntou, torcendo para que eles o tivessem
perdido de vista.
Os três Igibys espiaram através dos galhos que cobriam o caminho até a casa.
“Nós devíamos voltar.” Janner olhou nervoso para a floresta. “Acho que você
está esquecendo nosso pequeno incidente com o você-sabe-o-quê em você-sabe-
onde.”
“Do que vocês estão falando?”, Leeli perguntou.
“Na mansão?” Tink perguntou, examinando o quintal em busca de sinais do
Homem-Meia. “Ah, nada a ver com aquilo. Além disso”, ele olhou para Janner,
“se você tem tanta certeza de que Peet está cuidando de nós, não precisamos nos
preocupar, certo?” Leeli bateu com a muleta no chão. “Que mansão?”
“Eu conto mais tarde”, disse Janner, e ela bufou, cruzando os braços sobre o
peito.
“Olhem!” Exclamou Tink. A uma curta distância, à direita, Peet estava
correndo por entre as árvores atrás da velha casa. Mas, tão súbito quanto eles o
tinham visto, Peet desapareceu.
“Sério, como ele fez isso?” Tink se perguntou em voz alta.
Silêncio, exceto pelo cantar de alguns pássaros estranhos e o ronco ocasional
do estômago de Tink.
“Vamos embora”, sussurrou Janner, embora ele também estivesse procurando
Peet na área. “Não há como saber para onde ele foi. Vamos!”
Tink olhava fixamente para as copas das árvores, sem dar atenção a Janner.
“Tudo bem, então”, concluiu Janner. “Venha, Leeli. Vamos pra casa.” Leeli não
discutiu.
Janner pegou a mão dela e eles se viraram para ir embora, esperando que Tink
desistisse e os seguisse, quando visse que eles pretendiam realmente partir. Mas
depois de dez passos, Janner percebeu que a ameaça de deixar Tink sozinho não
estava funcionando.
Tink ainda estava examinando as árvores, procurando por Peet.
“Tink, estou falando sério”, disse Janner.
“Não seja tão bobo”, repreendeu Tink sem olhar para trás, mirando fixamente
as árvores. “Eu só quero ver se consigo descobrir como ele desapareceu. Ele
deve ter um túnel ou algo assim. Já volto.”
E sem dizer uma palavra, Tink estava correndo. De novo.
“Tink, não!” Janner gritou.
Janner observava, parado ao lado da velha casa, Tink andar na ponta dos pés
entre as raízes e os troncos nodosos das árvores. Ele se virou e acenou para Leeli
com um largo sorriso enquanto Janner balançava a cabeça e gesticulava para que
ele voltasse. Tink moveu-se em direção às árvores, mais perto dos limites da
floresta.
Com um suspiro de frustração, Leeli se sentou ao lado de Nugget.
De repente, Nugget ficou tenso e eriçou os pelos do pescoço. Ele olhava para a
floresta e rosnava.
“Ah, não”, Janner lamentou.
Algo estava vindo e, pelo som que fazia, era algo grande.
Janner e Leeli acenaram freneticamente, tentando não fazer barulho ao chamar
a atenção de Tink. Janner queria correr e agarrá-lo, mas estava com medo de sair
e deixar Leeli sozinha.
Tink, agachado, não deu atenção aos irmãos. Enquanto investigava alguma
coisa no chão, ele, de repente, também ouviu.
Um barulho estrondoso veio da floresta, o som de algo grande e que se movia
rapidamente. Leeli e Janner estavam apavorados demais para se mexer. Os dois
viram, através das árvores entrelaçadas, uma criatura escura, do tamanho de um
cavalo, correndo diretamente para cima de Tink.
Janner já tinha ouvido Podo falar de vacas-dentadas e lido a descrição de uma
delas, em um dos livros de Oskar.1 Janner sabia, pelo tamanho e velocidade da
criatura, que a besta, agora a apenas alguns metros de seu irmão mais novo,
condizia com os relatos.
Tink não tinha como escapar dela.
Ele girou a cabeça em tempo de ver a temível vaca se lançando sobre ele —
seus longos dentes à mostra, seu corpanzil tremendo.
Janner, Leeli e Nugget ficaram paralisados de medo, incapazes de se mover,
mas também incapazes de tirar os olhos do que era, certamente, a morte iminente
de Tink. Leeli começou a gritar, mas Janner tapou a sua boca com a mão,
puxando-a para a grama, para trás da parede da casa. Ele não queria que a irmã
visse aquilo, e Tink estava simplesmente muito longe para receber ajuda. Se ela
gritasse, a vaca-dentada faria um trabalho rápido em acabar com os três. Nem
mesmo Nugget voltaria para casa.
Então, eles deitaram na grama alta — os corações batiam forte, esperando com
pavor o grito final de Tink.
Mas esse grito nunca veio.
Eles ouviram a vaca derrapar e parar, seguido de um arranhar e um bufar.
Então veio um resmungo baixo que certamente não era o som que alguém
esperaria de um monstro se deliciando com um menino. Janner fechou os olhos e
tentou compreender o que estava ouvindo. Ele não queria correr o risco de ser
visto pela criatura, mas uma leve esperança de que Tink pudesse estar vivo se
acendeu em seu coração. Ele não podia mais aguentar. Janner levou um dedo aos
lábios e moveu-se lentamente para espiar por trás da parede.
A besta estava de pé nas patas traseiras, arranhando e farejando a árvore.
Parecia que vacas-dentadas não eram boas escaladoras.
Janner deu um longo suspiro de alívio. “Ele está bem”, sussurrou. “Não sei
como fez isso, mas ele está bem. Tink subiu na árvore antes que a vaca-dentada
o pegasse.” Leeli suspirou e sorriu para Nugget, que lambeu seu rosto e abanou o
rabo. “Fique quieta”, sussurrou Janner. “Temos que esperar até que ela vá
embora.”
Janner espiou novamente e viu a vaca-dentada dar um último golpe no tronco
da árvore antes de voltar, a passos pesados, para a floresta, com um mugido de
descontentamento. Um longo momento se passou. Janner examinou a linha das
árvores, pedindo ao Criador que Tink estivesse ileso.
De repente, a cabeça de Tink apareceu. Ele estava de ponta-cabeça, nos ramos
superiores da árvore. Ele acenou para Janner, que acenou de volta, incapaz de
reprimir um sorriso.
“Ele está bem, Leeli. Veja.”
Leeli explodiu em sorrisos ao ver Tink pendurado na árvore. Era difícil ficar
bravo com Tink por muito tempo.
“Acho que seu medo de altura não é tão forte quando algo está prestes a comê-
lo”, constatou Janner. Ele acenou para que Tink descesse, mas, para seu espanto,
Tink balançou negativamente a cabeça invertida.
“O que ele está fazendo?” Janner murmurou, lembrando-se de como ele estava
com raiva de seu irmão apenas alguns momentos antes. “Ele quase foi morto e
ainda está agindo como um idiota.”
“Talvez ele tenha encontrado algo para comer lá em cima”, sugeriu Leeli.
“Aquela vaca ainda pode estar por aí. Precisamos sair daqui enquanto
podemos.” Janner olhou para as árvores com desconfiança.
Tink assobiou, da árvore, e acenou novamente para que os irmãos se juntassem
a ele.
Incapaz de acreditar que não estava correndo como um louco para casa, Janner
colocou Leeli de pé e ambos se moveram com cuidado em direção às árvores. O
irmão mais velho ficou maravilhado com a habilidade de Tink de coagi-lo a se
meter em encrencas. Janner e Leeli ficaram ao pé da árvore, olhando para Tink,
mas a copa estava tão escura que eles mal distinguiam sua figura nos galhos
acima.
“Olhem do outro lado”, sussurrou Tink, transbordando de animação.
No início, Janner não viu nada além de um tronco de árvore coberto de videira.
Então, ele percebeu que as folhas e vinhas estavam escondendo uma escada de
corda, pendurada contra o tronco da árvore. O estômago de Janner vibrou com a
descoberta, e novamente ele ficou dividido entre sua responsabilidade e seu
desejo inegável de descobrir o que havia no topo da escada, escondido nos
galhos frondosos. Ele olhou, preocupado, para Leeli.
“Acha que consegue escalar?”
Leeli não replicou. Como resposta, encostou a muleta na árvore e afagou a
cabeça de Nugget. Ela subiu a escada como se tivesse seis pernas boas, ao invés
de uma só.
“Volto em um minuto, garoto”, ela sussurrou quando alcançou o galho onde
Tink agora estava.
Janner foi atrás, murmurando para si mesmo. “Sempre causando problemas...
só uma vez... queria... que ele usasse o cérebro...”
Tink estava encantado, de pé sobre um galho suspenso a cerca de dez metros
no ar, completamente despreocupado com a altura.
“Tink, você não está com medo?” Leeli perguntou.
“Por quê?”
“Você está no topo de uma árvore!”, alertou Janner.
Tink piscou para o irmão, olhou para baixo e ficou branco feito uma nuvem.
Ele agarrou o galho mais próximo e fechou os olhos com força.
Leeli balançou a cabeça. “Parabéns, Janner.”
Imediatamente, cheio de arrependimento, Janner tentou acalmar os nervos em
frangalhos de seu irmão. “Tink, tá tudo bem. Você escalou tudo até aqui em cima
sem nenhum problema. Nós apenas temos que descer de volta. Lembra dos
penhascos na semana passada? Lembra quando você ouviu a canção dos dragões
e não teve medo? Seja corajoso daquele mesmo jeito. Vamos.”
À menção da canção dos dragões, uma ligeira mudança ocorreu em Tink — e
Janner vislumbrou um Tink mais forte e diferente, como aquele nos penhascos.
Tink se desgrudou da árvore e respirou fundo. Ele até olhou para o chão e forçou
uma risada.
Leeli e Janner trocaram olhares.
“Tudo bem”, repetiu Janner. “Tenho certeza de que você está orgulhoso de sua
descoberta. Agora vamos descer daqui e ir para casa.”
Janner se virou para descer a escada.
“Espera!” Tink sorriu novamente. Antes que Janner pudesse protestar, Tink se
distanciou ainda mais, indo para um galho grosso e empurrando um ramo cheio
de folhas para fora do caminho.
“Dá uma olhada nisso”, pediu ele enquanto se afastava.
Para além das folhas balançava uma ponte de pranchas de madeira, suspensa
por cordas, que se estendia até a próxima árvore. Através dos galhos, eles
podiam ver mais uma ponte que conduzia daquela árvore para a seguinte, e
assim por diante, se aprofundando na sombria folhagem da Floresta Glipwood.
“É assim que Peet chega à sua casa na árvore, sem ter que se preocupar com as
criaturas da floresta”, disse Leeli.
“Isso deve ter levado anos”, comentou Janner lentamente, com admiração.
Janner e Tink olharam para as pontes, desejando explorar a floresta do topo das
árvores. Mas não com Leeli. Janner não via como ela poderia cruzar as pontes
com uma muleta, mesmo se quisesse ir, o que ele duvidava.
“Leeli...” Janner ia começar a falar, mas ela o interrompeu.
“Vou precisar da minha muleta.”
Seus irmãos olharam para ela com surpresa. “Bom, não posso sair
perambulando pela floresta sem ela, posso?”
Abrindo um sorriso, Tink desceu correndo a escada, pegou a muleta e subiu
novamente.
Janner não gostou, mas estava mais uma vez tão curioso quanto o irmão. Por
que isso continua acontecendo? — pensou consigo.
Agarrando as cordas que se estendiam pelo que parecia ser um mar de folhas e
galhos — a terra distava deles, muito abaixo —, Tink avançou lentamente ao
longo da ponte. Ele alcançou o meio, que estava inclinado, balançou um pouco e
acenou com a cabeça. Janner fez Leeli passar na sua frente, e ela foi
surpreendentemente ágil e capaz. Em pouco tempo, os três Igibys estavam
caminhando de ponte em ponte, escalando com confiança, através dos galhos das
árvores entre elas.
De vez em quando, viam pombas-travessas observando-os passar. Abaixo, a
vaca-dentada, ou outra igual a ela, caminhava por entre as árvores de Glipwood,
com um murça morto em sua boca. A floresta estava cheia de vida, tanto abaixo
como acima deles. Janner, de repente, sentiu-se um intruso, um hóspede rude que
havia entrado sem permissão.
As pontes ziguezaguearam pelo que pareceram quilômetros, antes de chegarem
a uma bifurcação. Duas pontes se separavam de uma copa frondosa, em
diferentes direções. Tink parou no topo dos galhos de um enorme carvalho, e
Leeli e Janner sentaram-se por um momento para descansar.
Janner estava prestes a sugerir que voltassem. Quem sabia o quão longe ficava
a casa da árvore de Peet, no interior da floresta? E, mesmo se os três a
encontrassem, Janner estava começando a se perguntar como Peet se sentiria em
relação a invasores.
“Leeli, tem certeza de que podemos confiar nele?” Janner não estava tão
confiante. É verdade que Peet havia salvado Leeli e, provavelmente, todos eles,
dos Fangs, mesmo antes do último acontecimento. Mas ele ainda parecia louco.
“Você não acha que ele ficará chateado conosco se nos encontrar... ou se nós o
encontrarmos?”
“Eu vi os olhos dele.” Ela sorriu, lembrando-se daquela memória. “Ele não vai
nos machucar; você vai ver.”
“Ainda assim, acho que já viemos longe o suficiente. Nós nem deveríamos
estar aqui”, Janner confessou.
“Vocês não têm nada pra comer, têm?”, perguntou Tink.
Uma voz atrás deles assustou os três irmãos, desviando-os de sua conversa:
“Que tal virem comigo para comer um bom filé grelhado de verdugo?”.
Lá, no meio da ponte, com as meias de malha surradas puxadas até os
cotovelos, estava Peet, o Homem-Meia. Pendurada em uma das mãos tinha ele
uma carcaça de verdugo-espinhento esfolada.
Ele se curvou e sorriu para as crianças.
“Vocês gostariam de conhecer meu castelo?”
34

O Castelo de Peet

Os meninos ficaram imóveis como pedras, mas Leeli deu um passo à frente. Ela
saiu mancando sobre a ponte e parou na frente de Peet. Cabelo branco selvagem,
rosto manchado de sujeira, ele ficou ali, imóvel, olhando para ela. Seus olhos
eram profundos e azuis, e brilhavam como joias.
Imediatamente, Janner soube que, de alguma forma, por trás do fedor e da
estranheza, Peet, o Homem-Meia, era cheio de bondade. Seus olhos eram tão
profundos e tão pacíficos que Janner até começou a acreditar que, talvez, Peet
não fosse nem mesmo louco.
A ponte de cordas rangeu no silêncio enquanto eles se olhavam.
“Olá, senhor Peet”, cumprimentou-o Leeli, após um momento. “Eu adoraria ir
ao seu castelo de novo.” Ela estendeu a mão para o rosto dele e o homem ficou
petrificado, como um animal nervoso prestes a saltar. “Aconteceu alguma coisa
com o seu lábio? Está inchado.”
Peet balançou a cabeça lentamente, olhando fixamente para ela.
Janner pigarreou.
Peet piscou e ergueu os olhos com surpresa. “Sim, bom, então. Olá. Sigam-me
pati-ti-ti.” Ele se virou e se afastou, sem deixar nenhuma escolha aos Igibys a
não ser segui-lo em um silêncio aturdido.
Após mais seis pontes rangentes, eles viram a casa da árvore onde Podo havia
encontrado Leeli, quatro dias atrás. Ela ficava aninhada nos ramos da maior
árvore que eles já haviam visto, elevando-se seis metros a mais do que a ponte
que os conduzia até lá. A estrutura parecia ter sido feita de madeira velha das
casas abandonadas que cobriam os prados perto de Glipwood. As tábuas eram de
veios e formas incompatíveis, mas perfeitamente organizadas e pregadas.
Galhos com folhas esverdeadas projetavam sombras silenciosas nas laterais da
pequena construção, dando a Janner a impressão de ser tão robusta e acolhedora
quanto A Única Pousada. Havia até janelas no castelo da árvore de Peet.
A última ponte levava a um galho, largo e sinuoso, desgastado por muito uso, e
não tinha corrimão de corda. Peet caminhou pelo galho sem pensar, mas era
muito precário para Leeli atravessar com sua muleta.
Peet se virou e percebeu a situação, arfando. Ele saltou para trás, pegou Leeli
no colo, carregando-a em um movimento fluido. Nem Tink, nem Janner
receberam o mesmo serviço, mas, ainda assim, atravessaram sem problemas.
Uma escada de corda do outro lado do tronco levava a um alçapão, no chão da
casa da árvore, através do qual Peet já conduzia Leeli. Os meninos escalaram e
entraram no castelo de Peet, nas árvores.
Peet estava cantarolando enquanto trinchava a carcaça do verdugo e ia
jogando-a numa panela.

Leeli se sentia em casa, e sentou-se de pernas cruzadas no chão, contra a


parede.
“Entrem, rapazes, entrem. Verdugo cozinhando, crispado comendo, verdugo,
verdugo, comida é lombo”, ele deu sequência numa voz cantante.
Tink e Janner entraram na casa da árvore e sentaram-se ao lado de Leeli, que
tinha uma expressão muito satisfeita no rosto. Ela olhou para Peet e gesticulou
para seus irmãos. “Senhor Peet, estes são os meus irm...”
“Janner e Tink, Tanner e Jink, Jinker e Tan, Janker e Teeeeen”, Peet cantarolou
sem tirar os olhos da panela.
“Mas... como você sabia nossos nomes?” Janner perguntou.
“Cidade pequena, meninos. Gente louca ouve muita coisa, Wigybi”, Peet
contou.
“É Igiby”, corrigiu Tink.
Peet encolheu os ombros e acendeu um pequeno feixe de gravetos e musgo que
estava numa lareira rústica, sob a panela. A lareira era forrada com pedras, e
acima dela o homem havia criado uma espécie de chaminé, de algum tipo de
couro costurado para formar um tubo.
Janner ficou impressionado com a engenhosidade de Peet — isto é, até a casa
da árvore se encher de fumaça. Peet não pareceu notar.
Tink tossiu. “Senhor, hã, Peet Homem-Meia, senhor, você não está preocupado
com que sua casa pegue fogo?”
Peet pescou uma bolsa de couro de uma pequena caixa ao lado dele e borrifou
parte de seu conteúdo na panela. Um aroma delicioso subiu da vasilha e se
misturou à fumaça.
“Preocupado? De forma alguma, jovem Wingiby.” Ele apontou para a janela
mais próxima e as crianças puderam ver três árvores cujos galhos estavam
carbonizados e sem folhas, em diversos lugares. “Já queimei meu castelo três
vezes, e sempre sobrevivi. Eu não estou neocupado com pada. Preocupado com
nada.” Ele voltou a mexer a panela. “Mas desta vez acho que descobri o
problema, veja, problema, veja, problema, veja”, ele cantarolou com uma
piscadela. “Pedras. Vê essas pedras? Elas não pegam fogo. Neca.” Ele tossiu e
pela primeira vez percebeu a fumaça enchendo o cômodo. “Iiih!”, ele gemeu.
Peet puxou um pedaço de cordame que pendia do tubo da chaminé e a fumaça
lentamente se dissipou. “Abra a chaminé, abra a chaminé, abra a chaminé pra
mim e pro mané.”
Janner começou a repensar sua opinião sobre Peet. Ele era tão louco quanto
uma ave lunar.
Peet desviou a atenção de sua panela para encarar as crianças. Ele avaliou os
três, especialmente os meninos. Seus lábios estavam se movendo, e ele estava
alisando distraidamente uma mecha de cabelo com uma das mãos emeiadas. A
panela começou a ferver e o estômago de Tink roncou.
Peet olhou para ele e um flash de dor passou pelo seu rosto. “Faminto, está
você, Tink?” Ele murmurou. “Claro que você está.”
Janner podia ver a pilha de livros encadernados em couro que Leeli havia
mencionado, ao lado de um velho baú encostado na parede oposta. Alguma coisa
a respeito dos livros acendeu uma luzinha no fundo de sua mente.
“Então... podemos chamar você de Peet?”, Janner perguntou, procurando por
mais respostas para suas crescentes perguntas. “Esse é seu verdadeiro nome?”
O Homem-Meia mexeu o conteúdo da panela fervente com uma longa colher
de pau e não respondeu.
Os Igibys o encararam em um silêncio constrangedor.
“O que é um nome verdadeiro?”, Peet finalmente falou. Ele apontou a colher
para Janner. “Janner Igiby é o seu nome verdadeiro?”
“Sim, senhor.”
“Tem certeza?” Peet questionou, voltando a cozinhar.
Tink não conseguia pensar em nada além da comida. Depois de vários minutos
assistindo a Peet se ocupando de seu ensopado, ele pigarreou. “Está ficando
pronto, senhor?”
Peet levou a colher aos lábios e provou o caldo. Ele acenou com a cabeça e
então tirou quatro tigelas de madeira de uma caixa e despejou o guisado nelas,
estalando os lábios. Eles comeram num silêncio marcado apenas pelo grunhido
ocasional de prazer expressado por Tink e Peet. Janner ficou surpreso ao se dar
conta de que um verdugo-espinhento poderia ser tão delicioso.
“Agora, pequenos Vingugofigs...”
“Igibys”, Tink o corrigiu novamente, com a boca cheia de carne.
“... Iggyfeathers, tanto faz.” Peet ficou sério e endireitou o corpo. “Agradeço
vocês por tanta gentileza e pela visita.” Seu rosto escureceu. “No entanto, devo
pedir que vocês nunca, nunca, jamais voltem aqui.” A voz dele falhou e ele caiu
no chão. “Vocês não podem me visitar. Eu heiro chorrível. Eu cheiro horrível.
Vocês, pássaros doces, poderiam ter sido comidos por um erdugo vespinhento,
um verdugo espinhento, flerdugo flinhento, Igibys. Ou uma vaca-dentada! Ah,
que horror. E eu posso ser perigoso — mosso pachucá-los — posso machucá-los
sem querer, sabe. Eu...”
Peet estancou e inclinou a cabeça para um lado, ouvindo. Ele deu um grito
agudo e saltou de pé, mas sua cabeça bateu no teto baixo. Instável com o golpe,
ele cambaleou, levando uma das mãos emeiadas à cabeça.
“Alguma coisa... lá fora!” Ele respirou fundo e caiu estatelado no chão. As
crianças olharam em choque para a figura caída — um emaranhado de membros
magrelos e cabelos brancos. Então eles ouviram um ganido abaixo deles.
“Nugget!” Leeli gritou e correu para o alçapão. Nugget estava abanando o rabo
e olhando para ela do pé da árvore. “Ele nos encontrou!” Leeli exclamou e então
entrou em pânico. Uma criatura da floresta poderia tê-lo devorado! “Temos que
trazê-lo aqui pra cima!” Ela insistiu.
Examinando cuidadosamente a floresta abaixo, Janner desceu pela escada e
conseguiu trazer o cachorrinho debaixo do braço.
Peet ainda estava inconsciente, mas não parecia ferido. Na verdade, ele parecia
estar tirando uma feliz soneca da tarde.
“Deixe-o dormir”, disse Tink. “Ele queria que a gente fosse embora mesmo.”
Tink sorveu o resto de sua tigela. “Guisado de verdugo-espinhento”, declarou
ele. “Quem poderia imaginar que seria tão bom?”1
Janner passou cuidadosamente por Peet e foi até a pilha de livros, no canto.
“Não sei se isso é uma boa ideia”, aconselhou Leeli.
Janner sinalizou para que ela fizesse silêncio. “Eu só quero dar uma
olhadinha.”
Ele se arrastou até a pilha e retirou um volume. Ele o abriu e Tink e Leeli o
viram suspirar e olhar para Peet com espanto.
Peet se mexeu.
Rapidamente, Janner colocou o livro de volta no lugar e se apressou para onde
estava sentado antes.
Tink e Leeli questionaram Janner com os olhos, mas ele balançou a cabeça;
então pigarreou e disse em voz alta: “É melhor a gente partir.”
O Homem-Meia gemeu e se sentou, esfregando a cabeça.
“Tchau, senhor Peet”, Janner exagerou no tom cortês. “Obrigado pela comida.”
“É o quê? O que é? Comida?” Os olhos de Peet se arregalaram. “Algo está lá
fora!”, ele gritou e, saltando em pé, bateu no teto novamente.
“Ai!” Ele cambaleou, com uma das mãos emeiadas sobre a cabeça.
“Está tudo bem, senhor Peet”, disse Leeli. “Era apenas meu cachorro, Nugget.
Lembra do pequeno Nugget?” Leeli afagou o queixo do cachorro.
“Nembra do pequeno Lugget”, emulou ele, estremecendo e olhando para o cão,
confuso.
“Precisamos ir”, repetiu Janner.
“Sim, vocês precisam”, constatou Peet, voltando a se sentar. “E não voltem.
Fico muito triste em dizer isso, mas não voltem.” Ele tocou o lábio inchado.
“Vocês não devem voltar.” Ficou cabisbaixo. “Adeus, Wingiby Igifeathers.”
Peet carregou Leeli pelo galho alto e a colocou delicadamente na ponte
enquanto os meninos o seguiam. Depois de cruzarem a segunda ponte, Janner
virou-se para acenar um adeus. Peet estava de volta ao seu castelo, observando-
os da janela. Janner não tinha certeza, mas parecia que Peet estava chorando.
Janner não falou durante todo o caminho de volta. Várias vezes Tink
perguntou-lhe o que ele havia visto no livro, mas Janner não respondeu. As
crianças Igiby ziguezaguearam seu longo caminho sobre as pontes até que as
árvores começaram a ficar mais finas outra vez.
O único som que se ouvia era o de Nugget choramingando enquanto andava
através das pontes, com mais medo de cair do que de dar de cara com uma
manada de vacas-dentadas. Janner ficou maravilhado de ver Tink tentando
tranquilizar Nugget, assegurando-o de que ele não tinha que ter medo de lugares
altos.
Na metade do caminho, Janner e Tink ouviram uivos assustadores e familiares
que fizeram os três ficarem paralisados. Várias formas escuras emergiram do
emaranhado de arbustos abaixo deles.
Da posição em que estavam, na ponte da árvore, os Igibys observaram em
silêncio uma matilha de canicórneos passar pelas árvores abaixo, como uma
névoa acinzentada. Quando os cães foram embora, as folhas no chão da floresta,
diretamente abaixo da ponte, farfalharam. Então, o chão tremeu como uma
panela de caldeirada de queijo fervendo. Saindo de sua toca, um sapo-toupeira
marrom e verrucoso, do tamanho de uma cabra, apareceu.2 Ao mesmo tempo,
para o horror de Leeli e o fascínio de seus irmãos, uma desatenta pomba-travessa
pousou no chão, não muito longe, bicando minhocas na terra. Sem nenhum
aviso, a língua do sapo-toupeira disparou e subtraiu o pássaro para sua boca,
deixando uma nuvem de penas cinzentas flutuando no ar, onde o pássaro
estivera.
Leeli gritou e, imediatamente, cobriu a boca. O sapo-toupeira dilatou seus
olhos pretos bulbosos e olhou para as crianças por um longo e terrível momento.
Finalmente, ele soltou um grasnido alto e, meio que caminhando, meio que
pulando, foi para longe. Assim que o sapo-toupeira desapareceu, uma criatura
menor, com pelo preto emaranhado, deslizou para a área.
“Um rateixugo”, sussurrou Janner para Tink e Leeli.
O rateixugo torceu suas orelhas grandes e pontudas e farejou o chão da floresta
até encontrar a toca oculta do sapo-toupeira, onde entrou furtivamente, sem fazer
barulho. Um momento depois, o grande roedor apareceu com um ovo amarelado
sendo cuidadosamente carregado em sua boca.3
Com o que Janner supôs ser um grasnido zangado, o sapo-toupeira voltou —
sua língua chicoteava enquanto perseguia o rateixugo em fuga.
Em segundos, tudo estava quieto novamente. Janner ficou maravilhado com a
forma como a floresta podia esconder coisas. Ela podia parecer inocente e
inofensiva, até bonita, enquanto, na verdade, sob essa aparência pacífica,
estavam criaturas cruéis e mortais. Por que tanta coisa no mundo de Janner não
era o que parecia? Ele pensou sobre sua mãe, sobre Oskar, depois sobre Peet, o
Homem-Meia. Todos eles tinham segredos.
“Era um diário”, descreveu Janner, quebrando o silêncio.
“E...?” Perguntou Tink.
Janner olhou para Tink e Leeli. “Na frente havia uma gravura.” Janner olhou
atentamente para Tink. “Uma gravura que já vimos antes.”
“O que era?”
“Um dragão com asas.”
Os olhos de Tink se arregalaram. “O mesmo que vimos no diário de Anniera?
Que encontramos na livraria de Oskar?”
Janner assentiu. “E havia muitos deles na casa da árvore. Pelo menos uns
vinte! Como poderia Peet pôr as mãos em diários de Anniera?”
“Talvez sejam dele”, cogitou Leeli.
“Acho que não. A primeira página dizia: ‘Este é o diário de Artham P.
Wingfeather, Guardião do Trono de Anniera.’”
Tink franziu a testa. “O que é um Guardião do Trono?”
“Olha, não faço ideia.” Janner encolheu os ombros. “Não li muito sobre
Anniera ou sua história. Oskar não tem muitos livros sobre o assunto.”
“Parece importante”, Tink comentou, olhando para o leste através da folhagem
escura da floresta.
“Anniera.” Janner repetiu o nome para si mesmo. A palavra era doce em seus
lábios, como uma risada ou uma bela canção. De pé, no meio da ponte oscilante,
de repente, ele se perdeu em pensamentos de longínquas terras verdes, de
dragões com asas, e do novo amigo misterioso com as mãos de meia que eles
arranjaram. Nem Tink, nem Leeli disseram nada, mas Janner sabia que eles
também estavam pensando em Anniera.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo grasnir estralejante de um murça-
das-cavernas se arrastando desajeitadamente no chão da floresta abaixo deles.
Sem dizer mais nada, os Igibys retomaram seu caminho para os limites da
floresta.
Janner fez uma pausa para se certificar de que nenhuma vaca-dentada, murça-
das-cavernas, verdugo-espinhento, canicórneo ou qualquer outra espécie de besta
estivesse ali por perto. Em seguida, apanhou Nugget, descendo-o pela escada de
corda. Ao pé da escada, ele colocou o cãozinho agradecido no solo da floresta e
esperou por Leeli. Tink veio por último, com a muleta de Leeli sob o braço. Com
uma última olhada para a ponte oscilante, bem acima deles, os três irmãos
voltaram para a cidade o mais rápido possível.
Mas, de volta a Glipwood, arfando, Janner foi atingido por uma sensação de
que algo estava errado. As ruas estavam vazias. Um vento quente soprava e
lambia a poeira e as folhas. Onde o Comandante Gnorm costumava ficar,
preguiçosamente, no alpendre em frente à cadeia, havia agora uma cadeira de
balanço vazia, rangendo de forma sinistra com o vento.
Janner se virou na direção nordeste, e seu estômago deu um nó e o pavor
infiltrou-se em seus ossos.
Uma nuvem de fumaça raivosa subia das árvores, na direção do Chalé Igiby.
35

Fogo e Fangs

Tink!” Janner apontou para casa, e Tink apertou os olhos para ver mais longe e
gemeu.
Leeli já estava manquejando ao longo da estrada — seus cachos loiros
chicoteavam ao vento. Nugget soltou uma série de latidos desesperados e
disparou pela estrada acima, rumo ao chalé Igiby.
Sem nada dizer, Janner e Tink correram. A mente de Janner corria mais rápido
do que seus pés, imaginando mil coisas insanas que os Fangs poderiam estar
fazendo com sua mãe e seu avô. O rocambole de vermes não foi nojento o
suficiente para o gosto de Gnorm? Slarb havia retornado? No limite de seus
medos, espreitava a possibilidade de que a Carruagem Negra tivesse vindo e
parado no chalé Igiby — na qual Podo, com certeza, não teria entrado
calmamente.
Logo, Janner não conseguia pensar em nada senão na pontada em suas costelas
e no ar que não conseguia respirar. Estava colado aos calcanhares de Tink,
gemendo com cada respiração desesperada. A fumaça que eles viram da cidade
encheu suas narinas.
Os meninos correram depressa colina acima, por entre as árvores e deram de
cara com o celeiro, atrás do chalé, envolto numa tempestade de fogo rodopiante.
Janner sentiu o calor em seu rosto mesmo antes de passar pelo portão da cerca.
Através do ar cinzento, ele viu uma companhia completa de Fangs de Glipwood
se arrastando, alguns com tochas, outros com espadas em punho. Um grupo
deles estava curvado sobre algo, dando estocadas com os cabos de suas lanças, e
Janner viu com horror que era Podo. O velho não se movia. Janner ouviu um
brado e se virou em tempo de ver Tink correndo para cima dos Fangs que
estavam sobre Podo.
“Tink, não!” Janner gritou.
Tink voou para o amontoado de Fangs no mesmo instante em que o ar se
encheu com o som dos gritos de Leeli. Um Fang se materializou da fumaça e a
agarrou por trás. Por todos os cantos ao redor de Janner havia fumaça e gritos,
fogo e Fangs. Podo estava sangrando e inconsciente, Leeli estava sendo
arrastada pelo braço para onde o Comandante Gnorm estava parado,
supervisionando o caos com um olhar presunçoso em seu rosto.
Nugget saltou na perna de Gnorm, e Janner observou, impotente, o momento
em que o pequeno cachorro foi traspassado por uma lança. Nugget gritou e caiu,
inerte, enquanto o Fang que o perfurou colocava um pé em seu flanco para puxar
a lança. Nugget permaneceu imóvel, sangrando.
Janner orou para que, em meio à fumaça e confusão, Leeli não visse aquela
cena. Mas ele se sentiu mal e, por um momento, considerou correr, embora não
soubesse para onde. Ele poderia ir até Oskar ou Peet, o Homem-Meia, mas não
conseguia imaginar como algum deles poderia ajudar sua família.
Foi então que dois Fangs apareceram, dos fundos da casa, arrastando Nia, que
tinha as mãos amarradas. Janner sentiu uma onda de alívio em meio ao pânico
— pelo menos estamos todos vivos, ainda.
Seus olhos encontraram os de Nia, através da névoa de fumaça. Ela franziu os
lábios e balançou a cabeça, indicando que ele não deveria lutar nem fugir. Era
tarde demais, de qualquer maneira — Janner fora visto.
Três Fangs, espadas em punho, marchavam em sua direção. Sem tirar os olhos
de sua mãe, ele ergueu as mãos e se deixou levar.
Os Fangs reuniram os Igibys na grama, onde foram alinhados, postos de
joelhos, com as mãos amarradas nas costas. O celeiro foi completamente
queimado e uma mortalha pairava no ar, ardendo em seus olhos. Podo estava
delirando por causa de um ferimento na cabeça, mas consciente o suficiente para
amaldiçoar e insultar os Fangs que os cercavam.
“Melhor amarrarem o véio Podo mais forte do que isso, se quiserem salvar sua
pele podre de cobra”, esbravejou ele de maneira incompreensível — seu cabelo
grisalho emaranhava-se com o sangue.
“Papai, quieto”, protestou Nia com os dentes cerrados, encarando Gnorm.
Tink bufava, seus olhos fritavam os Fangs. Leeli estava parada e em silêncio,
olhando para o monte de pelo preto no chão, atrás de Gnorm. Nugget não se
movia.
Janner perguntava-se, com amargor, o que teria causado aquilo tudo. Desde o
Festival do Dia dos Dragões suas vidas foram viradas de cabeça para baixo.
“Meu rocambole de vermes não foi satisfatório, comandante?” Nia perguntou
com uma voz calma e firme.
Gnorm sorriu seu sorriso horrível e coçou a papada. “Ao contrário”, declarou
ele, dando um passo mais perto, “aquele rocambole de vermes é o que está
mantendo vocês vivos.” Gnorm abanou sua mão diante do rosto de Nia, exibindo
os anéis de ouro e a pulseira que ela lhe tinha dado em troca da liberdade dos
filhos. “Eu estava disposto a ignorar o fato de que você escondeu essas joias de
Gnag, o Sem-Nome, porque você jurou que não tinha mais nada escondido. Isso,
e a promessa do rocambole de vermes, é claro.” Ele arrotou e uma mosca voou
para fora de sua boca. “Mas acabei de receber uma mensagem interessante do
General Khrak, em Torrboro.”
Gnorm desembainhou sua longa adaga e brincou com ela enquanto falava.
“Você sabe, há um tesouro que o Sem-Nome tem procurado todos esses anos, um
tesouro além da imaginação. E o General Khrak, meu superior, acaba de enviar
uma mensagem dizendo acreditar que você sabe onde esse tesouro está. Ele está
esperando por nós no Forte Lamendron. Agora, eu tenho me perguntado, ‘Por
que a mulher Igiby mentiria pra mim, quando ela sabe que eu poderia comer
todas as suas três crianças esqueléticas?’. Hein? Por que você faria isso?” Gnorm
se inclinou, sua barriga esbranquiçada balançava sobre o cinto. Ele segurou o
rosto de Nia com sua mão escamosa. Com seu focinho a poucos centímetros do
olhar inflexível de Nia, ele sibilou: “Onde estão as Joiasss de Anniera?”
As Joias de Anniera? Janner olhou furtivamente para Tink. Talvez a mãe deles
não soubesse de nada, mas ele e Tink sabiam sobre as armas na Mansão Pé-de-
Geleia. O mapa dizia algo sobre as Joias de Anniera. O que quer que fossem
essas joias misteriosas, elas deviam ter algo a ver com a sala de armas. Mas o
que havia de tão especial nessas joias que levaria o próprio Gnag, O Sem-Nome
a se dar tanto trabalho para encontrá-las?
Nia sacudiu sua cabeça livrando-a das mãos de Gnorm e olhou para ele
desafiadoramente. “Eu juro que dei a você todo o ouro e joias que eu tinha”, ela
asseverou, de voz neutra e fria.
Gnorm a encarou por um momento. “Certo. Você vai tornar isso difícil, não é?”
Ele deu um tapa em Nia, com as costas da mão, derrubando-a.
Podo lançou-se para a frente, forçando as cordas que prendiam suas mãos,
amaldiçoando Gnorm com todo o ar em seus pulmões.
Nia conseguiu se pôr de joelhos, enquanto Gnorm sorria sarcasticamente para
Podo e embainhava a adaga com vigor. “Fangs”, ordenou o comandante,
“vasculhem a casa!”
Avidamente, os Fangs desapareceram chalé adentro, dilacerando tudo em que
podiam colocar as mãos.
Janner estremeceu ao som de vidro e móveis se quebrando. Ele conseguia ver
os Fangs se movendo dentro da casa, rosnando suas risadas enquanto babavam
veneno, viravam cadeiras, chutavam armários, arrancavam as gavetas da cômoda
e rasgavam almofadas. Nia, sangrando no canto da boca, olhou friamente para
Gnorm até o último Fang sair da casa, de mãos vazias.
“Nada aqui, senhor”, reportou um deles.
Gnorm retornou o olhar de Nia. “Tragam-nos.”
Os Fangs forçaram os Igibys a se levantarem e andarem. Todos menos Leeli,
que foi jogada sobre o ombro de um Fang, assim como Slarb havia feito.
De repente, Janner se sentiu cansado como nunca antes. Seus pés se arrastavam
enquanto ele caminhava atrás de seu avô que, apenas alguns dias atrás, parecia
um guerreiro nas costas de Danny, o cavalo de carga. Agora, Podo estava
mancando junto a eles, curvado como o velho que era. Tink não dizia nada, mas
estava carrancudo de ódio. O coração de Janner estava pesado de pavor. Poucos
dias antes, quando ele, seu irmão e sua irmã estavam na cadeia, sua única
salvação tinha sido Nugget, Nia e Podo, e o ouro que Nia havia escondido.
Agora, não havia mais ouro, não havia mais Nugget, e Podo e Nia estavam para
ser trancafiados junto deles. Desta vez, não haveria como parar a Carruagem
Negra. Ela se arrastaria pela cidade em sua sombria missão e os devoraria,
levando-os para encontrar fosse qual fosse o terrível destino que Gnag, o Sem-
Nome tivesse planejado para a sua família.
No entanto, a força de Nia ainda emanava dela como uma vela em um quarto
escuro. Janner percebeu que ela estava firme e graciosa, e mesmo com o sangue
seco no canto da boca e os cabelos desalinhados, estava linda.
Perguntas e mais perguntas o incomodavam. Por que minha mãe teria um
tesouro que Gnag desejava? Janner não achava que era uma possibilidade.
Certamente houve algum erro, e com a sorte que os Igbys tinham, esse erro
levou Gnorm até eles.
O dia parecia mais quente do que nunca enquanto os Igibys eram conduzidos,
como participantes de algum desfile sombrio, através de Glipwood até a cadeia
da cidade. Ninguém caminhava nas ruas. As portas e as janelas estavam
fechadas. Os Igibys foram jogados em uma cela, e a grade trancada. Podo
afastou o cabelo branco, tirando-o dos olhos e encarou o comandante.
“Gnorm!”, gritou. “Vou esfolar você como uma cobra se tocar na minha
família! Vou rasgar você com os dentes se for preciso!” Ele lutou com suas
amarras, rosnou, e se jogou contra a porta da cela, enquanto um coro de risadas
irrompia dos Fangs, que voltavam para a sala da frente da cadeia.
O Comandante Gnorm olhou pela porta e arreganhou seus dentes amarelos
num largo sorriso. “A Carruagem Negra em breve esssstará aqui. Então é melhor
você fazer logo isso, velhote”, ironizou Gnorm com uma risada e fechou a porta.
Nia se ajoelhou ao lado de Leeli e sussurrou o nome dela. Leeli ainda não tinha
falado. Podo andava de um lado para o outro, torcendo as amarras sem nenhum
resultado. Tink, no entanto, soltou um gemido de satisfação e estendeu as mãos à
sua frente. Seus pulsos estavam esfolados e doloridos, mas a corda que antes os
prendia caiu no chão.
“Estava trabalhando nelas”, disse ele enquanto desamarrava Podo.
“Bom trabalho, rapaz”, disse Podo.
Em instantes, Tink desamarrou as mãos de todos.
Leeli enterrou a cabeça na mãe, aninhada em seus braços.
“Mãe?” Perguntou Janner. “De que tesouro é esse que estão falando? Que
joias? Você sabe do que esse Gnorm está falando?”
Nia e Podo se entreolharam em silêncio. Moscas zumbiam em torno de seus
rostos cansados.
“Como eu disse ao Fang”, Nia falou depois de um momento, olhando para
Janner, “Eu dei a eles todo o ouro e joias que tinha. Não há mais nada escondido
naquela casa.” Ela mudou seu tom abruptamente. “Agora, temos coisas mais
importantes com que nos preocupar.”
“Sim”, anuiu Podo. “Tipo, como vamos sair daqui. A meu ver, não há nada que
possamos fazer até que eles tentem nos mover para a...” — ele estremeceu — “...
a Carruagem.” Ele sacudiu a porta da cela. “Nós só temos que esperar aqui, e
orar ao Criador pra que tenhamos a chance de que precisamos.” Ele se sentou ao
lado de Nia e Leeli e acariciou o cabelo da neta com sua mão grande e calejada.
“Está tudo bem, mocinha.”
Tink e Janner deslizaram para o chão, e, sentada, a família Igiby esperou.
36

Sombrio é o Corcel com Sombrio Arreio E


Sombrio Condutor Conduzindo Tem

O sol se pôs sobre Glipwood e a cela começou a se encher de sombras. Janner


acordou assustado. Ele olhou em volta, invadido por uma onda de decepção ao
perceber que a situação deles não fazia parte de outro pesadelo. Janner pensou
no chalé, em sua cama, na cadeira ao lado da lareira, onde Podo sempre
cochilava.
Podo estava acordado, com as cabeças de Nia e Leeli repousando sobre seu
peito, ambas dormindo. Tink estava enrolado no canto, de frente para a parede.
Janner não sabia se ele estava dormindo ou não. As moscas,
misericordiosamente, se dissiparam, e agora a cela mofada tinha a inquieta paz
da bonança que precede a tempestade.
“Janner”, chamou Podo. Seus olhos brilhavam na luz fraca.
Janner olhou para o avô e forçou um sorriso.
“Seu avô, aqui, já esteve em piores apuros do que este. Vamos sair dessa, não
tenha medo.”
Algo na seriedade da voz de Podo transmitiu a Janner que o velho pirata estava
tentando se convencer, e Janner, de repente, sentiu uma tristeza profunda. Ele
estava triste por que nunca mais veria o jardim verdejante, ou o amplo e solitário
oceano, sob as falésias, nem riria durante uma refeição quente com sua família, à
luz dos lampiões. Ele podia sentir sua esperança se esvaindo, e era a Carruagem
Negra que a estava afugentando.
“Vovô, o que os Fangs querem? Por que eles achariam que nós sabemos
alguma coisa sobre um tesouro?”
Podo baixou os olhos.
“Filho, os Fangs não precisam de muitos motivos pra nos aterrorizar. Se há
tesouro ou não, parece que o destino está decidido a nos arruinar. Maldito seja o
destino, eu digo. Chegamos até aqui, não é?” O espírito de Podo crescia quanto
mais ele falava. “Eles podem nos jogar na cadeia, eles podem fazer a casa em
pedaços. Eles podem até tentar levar minha pequenina Leeli, aqui. Mas enquanto
o velho Podo tiver fôlego em seus pulmões e batidas em seu coração, não há
destino, nem Fang, nem Gnag que possam despedaçar esta família”.
Janner desviou o olhar e meneou a cabeça.
“Olhe pra mim, garoto!” Podo exclamou. “Quando chega a hora de lutar, você
luta. Mesmo se esses Fangs nos partirem em pedaços, encontraremos o Criador
sabendo que lutamos com todas as nossas forças por algo bom. Portanto, não
balance a cabeça como se estivesse desistindo.”
As bochechas de Janner queimaram com a reprimenda. Ainda assim, ele não
conseguia parar de pensar sobre estar trancado naquela jaula escura, sendo
levado para uma morte certa e terrível. Ele estava com raiva porque a única vida
que havia conhecido era uma com Fangs e Carruagens Negras e um medo diário
tão profundo que engolia sua alegria.
Então Tink o ouviu.
Ele se endireitou e olhou para a janela alta.
Nas sombras, Janner podia ver o pavor no rosto de seu irmão.
Leeli gritou e Podo abraçou-a firmemente, junto de Nia.
Ao longe, e chegando cada vez mais perto, se ouvia o som de cascos e o estalo
de um chicote. Janner sentiu que seu coração ia explodir dentro do peito. Os
Fangs do lado de fora gritaram e gargalharam. Ao som de cascos e chicotes uniu-
se o barulho de arreios, o rangido de rodas de ferro, o bater de asas negras e o
crocitar de corvos.
A Carruagem Negra havia chegado.
Podo ficou de pé em um salto, puxando Leeli e Nia para o seu lado.
“Agora, escutem”, Podo vociferou. “Eles não sabem que nossas mãos não
estão amarradas. Então, enrolem as cordas em volta dos pulsos e estejam prontos
para correr quando vocês me virem agir. Meu objetivo é conseguir uma de suas
espadas e não pretendo preencher um formulário pra isso. Leeli, você fica com
Janner, e ele vai carregá-la nas costas. Segure firme e te carregará em segurança.
Todos vocês corram insanamente pro chalé. Se eu não aparecer logo, então vão
pra Trilha Glipper. Nia, querida, você lembra do recanto escondido que te
mostrei anos atrás? Vamos nos esconder lá até descobrir o que fazer.”
Nia concordou.
Tink pegou as cordas do chão e as distribuiu.
“Vou tentar conseguir uma espada também”, afirmou Tink.
“Não, rapaz. Sei que você quer ajudar, mas preciso que todos vocês corram.
Não se preocupem com o seu Podo. Estas velhas patas ainda se lembram de
como brandir uma espada”, ele afirmou com uma piscadela. Janner novamente
teve a terrível sensação de que Podo estava tentando convencer a si mesmo e a
todos de que a situação não era tão ruim quanto deixava transparecer.
“Ouça o seu avô, filho”, ordenou Nia, desta vez com um tremor em sua voz.
Leeli ainda não proferia palavra.
“Leeli, você está pronta?” Ela acenou com a cabeça de forma apática no
instante em que a porta do escritório da cadeia se abria, deixando a luz inundar o
ambiente.
Um Fang caminhou até a porta — um enorme chaveiro tilintava em suas
garras. Ele sorriu com desdém para eles enquanto destrancava a cela. “A carona
de vocêssss está esperando.”
Podo foi o primeiro e os outros seguiram atrás dele, com as mãos nas costas.
Todos os Fangs estavam do lado de fora, alinhados em duas fileiras formando
uma espécie de corredor que levava à porta aberta da Carruagem Negra. Mesmo
Podo estremeceu ao ver a cena.
Quatro lustrosos cavalos negros estavam atrelados à carruagem — seus olhos
como sepulturas vazias. As narinas dos corcéis dilatavam-se enquanto com seus
cascos cavoucavam o chão, chicoteando crinas e caudas. Sentada no topo da
carruagem estava uma figura fantasmagórica, encapuzada em uma longa túnica
preta, que balançava lentamente como uma bandeira ao vento. Um corvo estava
empoleirado em seu ombro. O Fang, ou homem, ou fantasma, ou o que quer que
fosse, sentava-se olhando para a frente, com as rédeas em suas mãos
esbranquiçadas e ossudas. As entranhas da carruagem eram insondáveis, e ao
redor da porta havia manchas pretas escorregadias que corriam como sangue
seco. Um coro de moscas zumbia dentro e fora da porta da carruagem e,
ocasionalmente, vermes esbranquiçados se contorciam, caíam no chão e eram
engolidos por um dos muitos corvos que se agitavam pelo recinto.
O Comandante Gnorm estava parado perto da porta de ferro — posto estava
um sorriso malicioso em sua cara flácida. Os Fangs zombavam e sibilavam
enquanto a família Igiby avançava em direção à porta aberta.
Janner mal conseguia sentir seus pés enquanto seguia Podo de perto, cada vez
mais próximo da carruagem. Janner tocava os laços frouxamente enrolados em
torno de seus pulsos, antecipando com pavor o momento em que Podo avançaria
contra um deles. Ele podia ouvir Leeli atrás dele, choramingando enquanto
mancava, apoiando-se em Nia.
Quando Podo se aproximou do Comandante Gnorm e da Carruagem, ele
comemorou em alta voz: “Ah! Um bom dia pra dar um passeio pelo país, hein,
rapazes?”
Por uma fração de segundo, Gnorm perdeu o sorriso. A maior parte dos
prisioneiros estava inconsciente ou histérica e tinha que ser forçada a entrar na
carruagem. Ele não estava acostumado a prisioneiros que faziam piadas ao se
aproximarem dela.
Num piscar de olhos, Podo libertou suas mãos, arremeteu e agarrou Gnorm
pela armadura. Podo o girou e o lançou contra a fila de Fangs, ao mesmo tempo
agarrando a adaga em seu cinto.
“Corram...”, berrou Podo, e os Igibys, a um só grito, abriram caminho contra a
fila de Fangs assustados. Nia segurou Leeli com um braço, e meio que a
arrastou, enquanto fugia com os meninos. Mas o grito de Podo foi interrompido.
Um dos Fangs o acertou na cabeça com o punho da espada, e ele desabou no
chão.
Em questão de segundos, Janner, Tink, Leeli e Nia foram subjugados e
amarrados novamente. Podo estava caído no chão, inconsciente.
Os silvos e xingamentos dos Fangs irritados foram silenciados pela risada
áspera de Gnorm. “Tolos”, debochou ele, agachando-se e pegando sua adaga da
mão desfalecida de Podo. “Peguem-no e joguem-no lá dentro.”
Foram necessários quatro Fangs para levantar Podo e atirá-lo na boca da
Carruagem, que estava à espera; ele aterrissou com um baque úmido.
Gnorm fez sinal para que Janner o seguisse. Tremendo, Janner caminhou
lentamente para a porta aberta. Um cheiro nauseante, de coisas mortas e podres,
exalava da carruagem, e Janner podia ouvir Podo lá dentro, gemendo e
nauseado. Com um último olhar para Tink, Leeli e sua mãe, que estavam todos
pálidos e trêmulos, Janner entrou na escuridão.
“Espere”, ordenou Gnorm, agarrando o braço de Janner.
O Fang sorriu para Nia — suas presas amarelas brilhando à luz das tochas.
“Darei a você uma última chance, mulher. Diga-me onde estão as joias, e eu
poupo seus preciosos filhos. O velho morre de qualquer maneira, é claro.”
Nia olhou de Janner para Tink e para Leeli, com lágrimas nos olhos.
Da barriga da Carruagem, Podo gemeu, “Nia, não... diga nada a eles...”
“Mas, papai, eu não sei o que fazer!”, ela clamou, tremendo. “Eu não sei mais
o que fazer!”
A voz fraca de Podo ecoou da carruagem, novamente, “Filha, não diga nada a
eles! Não podemos deixá-los...”
Gnorm e os Fangs assistiam a tudo isso com sorriso posto na cara.
Finalmente, Nia se pôs de pé, cambaleando, o peito ainda ofegante. Ela se
levantou e afastou o cabelo dos olhos. Olhando de coração partido para seus
filhos, pronunciou com uma voz firme: “Nós vamos viajar em sua carruagem,
comandante. Juntos.”
Ela deu um olhar carrancudo para Gnorm, levantou a bainha do vestido e
entrou na carruagem de maneira tão nobre como se fosse a carruagem de uma
rainha. Das sombras da porta, sua mão longa e esguia emergiu, gesticulando para
que as crianças entrassem.
Janner pegou sua mão e, mais uma vez, aproximou-se da carruagem com as
pernas trêmulas. Não havia mais volta agora. A carruagem iria levá-los embora
para seu destino sombrio.
Incapaz de respirar, ele deu o primeiro passo.
De repente, um grito agudo cortou o ar. Para Janner, parecia uma águia gigante,
ou cem águias gigantes, todas gritando ao mesmo tempo. Vendo o olhar confuso
no rosto de Gnorm, Janner se virou da carruagem bem a tempo de visualizar um
borrão de cabelo branco correndo em direção a eles vindo de Via Vibbly.
37

Garras e Uma Funda

Correndo mais rápido do que Janner acreditava ser possível, Peet, o Homem-
Meia, veio sobre eles — a boca aberta num grito feroz, selvageria nos olhos.
Os Fangs viram-no chegar, incapazes de entender ao que estavam assistindo,
chocados demais para reagir. Peet saltou no ar com a graciosidade de um animal
e abriu bem os braços emeiados — seu grito ainda enchendo os ouvidos dos
Fangs, os corvos afugentados diante dele.
Peet caiu sobre três dos Fangs mais próximos a ele numa fúria de garras e
gritos. As garras, Janner viu, eram de Peet — quatro garras longas, que, na
verdade, rompiam as meias em ambos os braços e as despedaçavam. Os restos
das meias flutuaram para o chão como penas. A companhia de Fangs ficou
imóvel enquanto seus colegas caíram no chão, mutilados e sangrando de
centenas de feridas. Peet não perdeu tempo. Cortando e girando, suas garras
agora cobertas de sangue verde, derrubou mais dois Fangs, antes que qualquer
um deles tivesse o bom senso de sacar uma arma.
Tink e Leeli mergulharam sob a Carruagem Negra. Janner os seguiu, incapaz
de acreditar no que via.
O Comandante Gnorm gaguejou e rosnou enquanto observava seus soldados
caírem, um a um, pelas garras rápidas de Peet, o Homem-Meia. Mais da metade
dos Fangs estava morta ou morrendo. O restante caiu em si e estava avançando
num semicírculo contra Peet, que ficou encurralado entre eles e a parede da
cadeia.
Peet gritava com eles — os golpes de suas garras os mantinham à distância.
“Matem esse homem!” Gnorm berrou de uma distância segura.
Os Fangs se aproximaram, golpeando Peet com lanças.
Janner fechou os olhos, esperando o lamento final de Peet, mas ele nunca veio.
Janner ouviu Gnorm grunhir de surpresa.
Podo, coberto de fuligem, havia disparado da carruagem e estava lutando com
Gnorm por sua espada. As presas de Gnorm estavam expostas e destilando
veneno. Ele rosnava e esmurrava Podo, que tentava mantê-lo no chão, evitar
suas presas e sacar a espada de Gnorm de sua bainha. Eles lutavam na sujeira
enquanto Peet afastava os Fangs ao redor.
“Venham, rápido!” Nia ordenou às crianças. Ela saiu da carruagem, também
coberta de fuligem negra, e empurrou-os para longe da luta, indo para as
sombras do outro lado da rua, ao lado da Livros e Vãos. Janner sabia que nem
Peet, nem Podo durariam muito mais tempo, então, com uma oração ao Criador,
ele escapuliu de Nia.
Gnorm estava tão absorto pela luta com Podo que não percebeu Janner atrás
dele, investindo para pegar sua adaga. Janner agarrou o punho, gélido em sua
mão suada, puxou-o e enterrou na lateral de Gnorm. O gordo Fang virou-se, seus
olhos negros arregalados de surpresa e raiva.
“Um menino!” Gnorm gritou, horrorizado. Com a própria espada do Fang,
Podo acabou com ele.
Janner ficou em estado de choque diante do cadáver do Comandante Gnorm.
De repente, acima dos sons da batalha, um assobio alto e constante rasgou o ar.
Fangs e humanos pararam e cobriram suas orelhas, mas, assim como começou, o
ruído estranho cessou. Eles não tinham tempo para se perguntar sobre isso. Podo
esbravejou e enfrentou os Fangs que se recuperaram do ruído e se aproximavam
de Peet.
O brado de Podo, o grito de Peet e os rosnados dos Fangs se misturavam ao
retinir de aço colidindo.
Em questão de segundos, apenas Peet e Podo estavam de pé — o pirata e o
Homem-Meia, cobertos de sangue verde e ofegantes, atolados até o joelho numa
pilha de cadáveres escamosos. Os dois guerreiros se olharam sem falar por um
longo momento.
“E aí? Você está bem?” Podo perguntou secamente.
Peet aquiesceu. Ele estava sem fôlego, mas altivo. A tristeza em seus olhos fora
substituída por um olhar penetrante, quase nobre, embora Janner tenha notado
que Peet parecia incapaz de olhar diretamente para os olhos de Podo.
Ambos voltaram sua atenção para a Carruagem Negra e os corpos de Fangs
espalhados pela rua, ao redor dela. O condutor fantasmagórico, esquecido
durante a batalha, ainda estava sentado na carruagem, segurando as rédeas. A
cabeça encapuzada virou-se lentamente na direção deles e um arrepio atravessou
Janner.
Podo deu um passo ameaçador em direção ao condutor, segurando uma espada
Fang.
“Averno!” Vociferou o cocheiro e chicoteou os cavalos negros ao galope.
“Averno!” Bramiu o condutor, enquanto a carruagem acelerava.
“Não!” Podo gritou. “Temos que parar a carruagem, ou aquela criatura
conduzindo buscará reforços!”
Podo arrancou atrás da carruagem, mas ela estava quase fora de vista.
Janner ouviu um estranho ruído sibilante em algum lugar acima dele e,
virando-se, conseguiu ver, ainda em tempo, Zouzab Koit, no telhado da cadeia,
girando uma funda. A pedra voou da funda e zuniu no ar, atingindo o condutor
fantasmagórico com um baque surdo.
O condutor da Carruagem Negra caiu estatelado de seu poleiro e os cavalos
negros pararam, bufando e cavoucando o chão nos limites da cidade.
“Foi você!” Janner exclamou, surpreso. “Você atirou, naquele dia, as pedras
nos Fangs, no beco!”
Zouzab deu seu sorriso tênue e curvou a cabeça. “Sim, jovem Janner. Os corre-
cristas veem muitas coisas. Não seria bom deixar as crianças Igiby se
machucarem, não é?” Com isso, contudo, ele desapareceu nas sombras.
“Foi ele, foi ele, foi”, murmurou Peet. “Eu tava lá, também, virando a esquina,
mas Zou-corre Crista-zab atirou suas pedras primeiro, primeiro...” As palavras
de Peet minguaram-se em murmúrios quando ele percebeu que os Igibys o
observavam. Os olhos de Peet já estavam tristes e abatidos novamente, e Janner
se perguntou se ele havia imaginado o fogo que percebera naquele olhar,
momentos atrás.
Uma leve brisa soprava pelas ruas de Glipwood, onde dezesseis Fangs de Dang
jaziam mortos, e, de alguma forma, os Igibys ainda estavam de pé. Tink escapou
de Nia, correu para Podo e o abraçou com força. Nia, Janner e Leeli o seguiram.
Eles se amontoaram em um longo abraço enquanto Peet se mantinha à distância,
escondendo as mãos com garras atrás das costas, arrastando os pés.
Finalmente, Nia olhou para ele. “Está tudo bem, Peet”, afirmou ela.
Ele parou de se remexer e olhou para o grupo de Igibys. Lágrimas encheram
seus olhos e ele olhou para suas garras, cobertas com sangue de Fang. Ele as
enxugou na camisa, como se isso o tornasse mais apresentável.
“Peet, está tudo bem”, disse Nia gentilmente, chamando-o para mais perto.
Peet, o Homem-Meia, de olhos arregalados e reluzentes, olhou para ela e,
tentando ajeitar seu selvagem cabelo branco, pôs-se ereto enquanto se
aproximava da família. Peet estendeu-se para abraçá-los, ainda inseguro.
Olhando para baixo outra vez, para suas mãos estranhas, com garras, Janner viu
uma expressão de angústia passar por seu rosto. Seu olhar encontrou o de Janner.
Aqueles olhos grandes e marejados passaram de Janner para Tink, em quem
também permaneceram por bastante tempo. O Homem-Meia ajoelhou-se e olhou
com amor para Leeli, que pela primeira vez, desde que havia contemplado o
corpo ensanguentado de Nugget, sorriu.
Peet desfez-se em lágrimas e começou a beijar os pés das crianças, cada uma
por sua vez, apalpando seus pés e murmurando entre soluços. “Seguros!
Joiabyfeathers! Eles estão seguros, graças ao Criador.”
“Basta”, resmungou Podo, afastando Peet das crianças. Podo olhou para o
Homem-Meia. A expressão no rosto do velho pirata era uma mistura confusa de
raiva e pena.
De repente, uma porta rangeu, abrindo-se nas sombras, do outro lado da rua.
Na penumbra, eles puderam distinguir uma figura emergindo da entrada da
Livros e Vãos. Podo deu um passo ameaçador em direção à loja e ergueu a
espada rústica que estava portando.
“Quem está aí?” Ele demandou saber — sua voz ecoou na rua deserta. “Psiu!
Venham, rápido!” Era Oskar N. Reteep.
Podo suspirou aliviado. “Sim, vamos, crianças. Nada bom ficar aqui, ao ar
livre, com toda essa imundície espalhada. Pulem logo pra dentro!”
Mas Leeli soltou um soluço e saltou na direção do distante chalé, onde ela
sabia que o corpo de Nugget estava.
“Mocinha!” Podo já foi a chamando. “Não é hora de...”
Mas Nia o interrompeu com um olhar duro, foi até Leeli e colocou um braço
reconfortante ao redor dela. Janner não conseguiu ouvir o que sua mãe estava
sussurrando para Leeli, mas viu sua irmã assentir com a cabeça, endireitar-se e
respirar fundo, enquanto ambas retornavam na direção da Livros e Vãos.
Os Igibys atravessaram a rua apressadamente. Peet acelerou, atrás deles,
cuidando de manter uma distância segura de Podo. Oskar, com os olhos
arregalados, os observava — seus óculos reluziam ao luar. O livreiro acenou
para que todos entrassem e abriu a porta quando se aproximaram.
“Isso, agora. Pra dentro, pra dentro! O que diabos você está fazendo, seu velho
pirata?!” Oskar o questionou com uma risada e um tapa no joelho. “Eu bem que
ouvi uma comoção e cheguei em tempo de ver o último lagarto cair! Ora, nada
perto disso aconteceu desde a Grande Guerra! Pensando bem, nada perto disso
aconteceu neste continente, mesmo durante a Guerra. Esse pode ser o maior
número de Fangs que Gnag já perdeu em Skree.1 E o jovem Janner aqui! E
Peet!” O pouco que podiam ver do rosto de Oskar mostrava que ele estava mais
feliz do que nunca.
“Ora, nas palavras do Sábio de Brivshap, ‘Exatamente!’” Oskar riu, batendo
palmas. “Exatamente, eu digo! Zouzab! Pegue um pouco d’água da cisterna para
esses guerreiros, por obséquio. Zouzab!” ele chamou.
Não houve resposta.
Oskar coçou a cabeça. “Agora, me pergunto para onde esse sujeitinho foi...”
“Lá pra fora”, Podo informou. “Ele arrancou o cocheiro da carruagem com
uma pedra e uma funda.”
“Arrancou, agora?” Perguntou Oskar, olhando surpreso para Podo. “Não
importa. Sigam-me, todos.”
Peet, que estava parado perto da porta remexendo o cabelo, espirrou,
lembrando a todos de sua presença.
“Você”, Podo dirigiu-lhe a palavra rispidamente, apontando a espada de Gnorm
para ele. “Você espera lá fora.”
“Mas, vovô!” Leeli interveio. “Ele acabou de salvar nossas vidas!”
“O que foi aquilo de se curvar e beijar nossos pés?” Tink queria saber. “Ele
disse algo sobre joias?”
“Tink”, mencionou-o Podo, “você sabe que o cara é doido da cabeça. Um
velho tolo louco, só isso.” Janner estremeceu com a amargura que ouviu na voz
de seu avô. Uma fungada veio da direção de Peet.
Oskar tossiu. “Vamos, não adianta continuar no escuro. Sigam-me. Peet, você
também”, concluiu ele, virando-se para ir embora.
“Não!” Retrucou Podo com uma voz ameaçadora. Seu rosto estava duro feito
pedra.
Ignorando o avô, Leeli moveu-se até Peet e pegou uma de suas estranhas e
avermelhadas garras, puxando-o para passar por Podo.
Com um movimento rápido e terrível, Podo empurrou Leeli para longe do
Homem-Meia, agarrou-o pelos ombros e o empurrou porta afora. “Eu disse não!
Fique longe dessas crianças, está ouvindo?! Longe!”
Peet estava esparramado no chão. O olhar em seu rosto, na penumbra, era de
tortura, como se doesse demais até para chorar. Podo bateu na porta e encostou a
cabeça nela, ofegante. Ninguém falou uma palavra. Leeli fungou, tentando
esconder os soluços. Janner ficou esperando que Nia fizesse algo, para trazer
algum bom senso sobre o tratamento injusto de Podo contra Peet, mas ela
permaneceu em silêncio — sua expressão ilegível, no escuro.
“Agora, vamos”, Podo ordenou, enquanto se endireitava e se virava para eles.
Ninguém se moveu.
“Oskar!” Podo exclamou. Oskar voltou a si e acenou para que o seguissem.
Por entre a janela da frente da Livros e Vãos, Janner teve um vislumbre da
silhueta de Peet, iluminada pelos lampiões da rua, afastando-se cabisbaixo. O
coração de Janner doía pelo pobre homem.
Oskar os conduziu por estantes cambaleantes até que detectaram o brilho
amarelo da iluminação do escritório, à frente deles. Oskar desapareceu por um
momento e voltou com uma jarra de água e cinco pequenos copos de barro.
Janner ficou surpreso com a sede que sentia. Seu estômago roncou, e ele
percebeu que eles não haviam comido nem bebido nada, desde o guisado de
verdugo-espinhento, na casa da árvore de Peet.
Janner também pensou nas garras estranhas de Peet — ele jamais vira nem
ouvira falar de nada parecido com elas. E, caso tivesse dúvidas se Peet estava
cuidando deles ou não, agora sabia com certeza, mesmo se estivesse errado sobre
as pedras no beco. Mas por quê? Por que Peet escolheu cuidar das crianças Igiby
entre todas as outras pessoas em Glipwood? Janner ficou ainda mais
incomodado com o tratamento estranho que sua mãe e seu avô davam ao
Homem-Meia. Por que Podo está tão zangado com Peet?
Porém, medos mais imediatos afastaram esses pensamentos da mente de
Janner. Sua família inteira estava em perigo. Sua casa havia sido saqueada, seu
celeiro queimado e eles haviam acabado de matar uma companhia inteira de
Fangs. Todos ali presentes precisavam bolar um plano sobre onde se esconder e
onde morar.
Com uma pontada de tristeza, Janner percebeu que havia uma chance muito
boa de que eles tivessem que deixar Glipwood — possivelmente para sempre.
Como eles poderiam ficar, diante de tudo o que havia acontecido? Obviamente,
Gnag, o Sem-Nome procuraria as joias, onde quer que estivessem, e ele pensava
que os Igibys as estavam escondendo.
Os adultos se amontoaram sobre a mesa de Oskar e falavam em voz baixa.
Leeli estava em um canto, sentada em uma caixa vazia, olhando para nada em
particular.
Tink, no entanto, estava inquieto, movendo-se como um arbusto ao vento. Seu
rosto estava vermelho e ele parecia zangado. “Alguém vai me dizer o que está
acontecendo?”, ele explodiu. Os adultos olharam para ele com surpresa.
“Agora não, filho”, respondeu Nia.
“Por que não?” Tink insistiu. Janner, tentando salvar seu inflamado irmão mais
novo de problemas, colocou a mão em seu braço. Tink se afastou. “Por que não
agora? Por que vovô expulsou o homem que acabou de salvar nossas vidas? Eu
quero saber onde estão as joias e por que Gnag, o Sem-Nome acha que nós as
escondemos. E, afinal, o que há de tão especial nessas joias? E quem é Artham P.
Wingfeather, e por que Peet, o Homem-Meia, tem diários dele na sua casa na
árvore?”
“O quê?!”,Podo e Nia bradaram ao mesmo tempo.
Oskar olhou para Tink com os olhos arregalados.
A cabeça de Tink baixou e seus olhos encontraram os de Janner, se
desculpando.
Nia cruzou os braços e olhou para Tink. “Como você sabe o que está dentro da
casa da árvore de Peet?”
Tink não ergueu os olhos nem respondeu à pergunta, então Janner falou.
“Seguimos Peet até a casa dele, hoje. Nós não, hã, pretendíamos, mas...” A voz
de Janner sumiu.
“Foi minha culpa”, Tink respondeu bem baixinho.
“Rapaz”, Podo esbravejou, “fique feliz por haver coisas mais urgentes em
andamento, ou eu arrancaria seu couro. O que você estava pensando, indo pra
floresta sozinho? Nunca ouviu falar das vacas-dentadas? Dos canicórneos, dos
verdugos-espinhentos e dos murças-das-cavernas? Agora, já que você mostrou
que não é responsável o suficiente para ser tratado como um homem, você vai
ficar quieto e deixar os mais velhos na sala pensarem no que fazer. E isso vale
para todos vocês”, ele terminou, olhando decepcionado para os três.
Uma batida forte, na porta dos fundos da loja de Oskar, assustou todo mundo.
Oskar encolheu os ombros para Podo, que levou um dedo aos lábios. Podo
agarrou a espada curva de Gnorm e foi até a porta.
O barulho veio de novo, mais alto dessa vez.
Podo respirou fundo, ergueu a espada e abriu a porta com força.
38

Um Plano Desagradável

O que você quer dizer com trazer esse problema pra nós?”
“Vocês, Igibys, serão a nossa ruína!”
“O que você acha que vai acontecer com esta cidade, agora que vocês foram e
mataram um bando de Fangs?”
Uma multidão de Glipwood se reunia na porta dos fundos da livraria de Oskar,
e ninguém parecia feliz. Podo escondeu a espada atrás das costas e estendeu uma
mão sinalizando calma, mas as pessoas estavam ameaçando entrar e aumentando
o estardalhaço.
“Vamos com calma, Alep. Vamos pensar em algu...”
“Movediço como uma torta lodosa de duas toneladas!” Charney Baimington
declarou, e vários cidadãos concordaram.
“Só me diga uma coisa: o que você planeja fazer com dezesseis Fangs mortos,
senhor Igiby? Responda!” Gritou uma mulher gorda, brandindo uma vassoura.
“Ferínia, acalme-se. Exatamente o que estamos fazendo é bolar um plano.”
“Um plano! Eu tenho um plano! Deveríamos enxotar os Igibys para o Mar
Sombrio da Escuridão, isso é um plano!”, o prefeito Blaggus gritou, na parte de
trás.
Mas aquele era o limite da paciência de Podo. “Chega!”, ele esbravejou, e os
habitantes da cidade ficaram imóveis e silenciosos como estátuas. “A única coisa
que vai para o Mar Sombrio da Escuridão esta noite são excrementos de
pássaros. Agora, me escutem, gente. Não pedimos que isso acontecesse, mas
aconteceu. É o que é, e nós vamos planejar algo. Agora, se vocês fizerem a
gentileza de deixar que eu e Oskar aqui tenhamos alguns minutos pra pensar,
vamos resolver isso e estar com vocês em seguida.” Sob o olhar de Podo, o
pessoal resmungou e murmurou, mas finalmente se dispersou. Ele fechou a porta
e suspirou. “Agora, aos negócios.”
Janner e Tink afundaram no chão e escutavam, enquanto Podo e Oskar se
curvavam sobre a mesa e conversavam seriamente.
“A cidade vai ser incendiada”, constatou Podo gravemente.
Oskar ajustou os óculos e pensou por um momento antes de assentir. “Verdade.
Há pouco a ser feito sobre a querida Glipwood, temo. É apenas questão de tempo
antes que os Fangs no Forte Lamendron percebam que algo está errado.”
“Sim, e Gnorm disse que estava sob as ordens do próprio General Khrak. Ele
estará esperando Gnorm e a carruagem em algumas horas. Quando não
aparecerem, eles enviarão reforços pra cá.”
“Ouvi dizer que os Fangs podem correr como um raio quando querem — mais
rápido do que um cavalo”, acrescentou Oskar, empurrando uma mecha de cabelo
atrás da orelha. “Se isso for verdade, não temos nem até a manhã antes que mais
Fangs cheguem. Só no Forte Lamendron tem centenas, talvez até milhares
dessas bestas. Eles virão aqui com raiva. Eles precisam de poucos motivos para
nos aterrorizar.” Oskar suspirou. “Essa situação não é coisa pequena.”
“Malditos sejam”, praguejou Podo, cravando o punho na mesa. “Não há muito
que o povo de Glipwood possa fazer. Ou lutam, ou fogem. Mesmo se eles
tivessem armas, os habitantes da cidade não teriam a menor chance contra um
regimento de Fangs. Eles terão que fugir. As estradas para Torrboro ainda devem
estar seguras o suficiente. Eles podem se esconder lá e, pela manhã, os Fangs
encontrarão Glipwood tão vazia quanto uma cidade fantasma. Talvez então haja
uma chance de não ser queimada. E, depois que estivermos fora por um tempo e
a poeira baixar, os habitantes da cidade podem ter chance de voltar.”
“Alguns ficarão, você sabe.”
“É”, Podo concordou após um longo instante. “Alguns se recusarão a sair.” Ele
socou a mesa novamente. “Meus ossos querem ficar e lutar contra aqueles
malditos lagartos!” Ele olhou para as crianças e Nia. “Mas não temos escolha.
Vamos fugir, e fugir pra longe.”
“As Pradarias de Gelo?” Oskar parecia sério.
“Sim. É o único lugar onde as joias ainda estarão seguras.”
Janner e Tink se entreolharam com os olhos arregalados. Ambos tinham
perguntas, mas estavam com medo de incorrer outra vez na ira de Podo. Então,
eles se sentaram em um silêncio atordoado. Realmente havia joias, e Podo e Nia
as possuíam.
“Não temos tempo a perder”, constatou Podo. “Eu tenho que ir ao chalé e
juntar o que puder para a jornada. Não vamos voltar por um longo tempo.” Podo
deu um suspiro cansado e acrescentou: “Se é que ainda voltaremos.”
Janner e Tink se entreolharam novamente com os olhos arregalados. Estamos
indo para as Pradarias de Gelo?1
“Vamos precisar de suprimentos, velho amigo.” Podo olhou para Oskar.
“Armas reais, não essas coisas frágeis.” Podo olhou com desgosto para a lâmina
do Gnorm.
“Mansão Pé-de-Geleia, é claro”, citou Oskar, com um aceno de cabeça.
Janner sentiu suas bochechas ficarem vermelhas.
“Você encontrará mais do que o suficiente para o que precisa”, Oskar
acrescentou.
“Boa. Vou levar os meninos comigo até o chalé, para pegar o que precisamos.
Pode manter Nia e Leeli seguras até voltarmos?”
Oskar deu uma piscadela e correu até um dos cantos do escritório, onde se
abaixou e puxou uma ponta do tapete. Abaixo estava um alçapão. “Há lampiões,
cobertores e alimento desidratado suficiente para durar um bom tempo, lá
embaixo, só para garantir. Nas palavras de Aman Putan, ‘Vamos escondê-las lá
até que você volte, momento em que vocês sairão para um alojamento mais
seguro.’ Estarei com o mapa e a chave para a câmara de armas quando vocês
voltarem.”
“Meninos, venham comigo”, ordenou Podo, e eles se levantaram em um salto.
Enquanto Nia e Leeli desciam para o porão secreto de Oskar, Janner e Tink
seguiram o avô para fora, onde a pequena multidão de Glipwood esperava,
impaciente.
Podo limpou a garganta e a conversa cessou. “Nós consideramos nossas
opções, amigos, e nenhuma é fácil.” Podo olhou atentamente para os cidadãos de
Glipwood — pessoas com quem havia trabalhado durante anos, algumas que
conhecia desde menino. Ele respirou fundo, relutante em dizer o que tinha a
dizer. “Teremos que fugir.” Ninguém falou mais nada.
“Vocês podem ficar aqui e queimar com a cidade, ou podem fugir. Um
regimento de Fangs do Forte Lamendron virá para cá assim que sentirem o
cheiro do que aconteceu aqui esta noite. Imaginamos que eles estarão aqui antes
do amanhecer. Quando eles chegarem, provavelmente destruirão o lugar por
rancor e destruirão vocês com a cidade. Então, se quiserem evitar uma morte
cruel, devem pegar o necessário e seguirem para o norte, para Cavadópolis ou
Torrboro. Pela manhã, temo que Glipwood não existirá mais.”
O vento gemia nas copas das árvores. Podo esperou por uma contestação ao
seu veredito, mas nada veio. O povo via a verdade do que Podo havia dito. Sem
palavras, eles se dispersaram, lançando olhares ressentidos para Podo e também
para os meninos.
Janner sentia o desprezo das pessoas que, até àquele momento, eram só
sorrisos para ele; e não queria nada mais do que consertar as coisas. Mas como?
O que foi feito, foi feito e não havia como desfazer.
Crespo, o dono da taverna, sentou-se em uma cadeira de balanço, em seu
alpendre e acendeu um cachimbo. Estava claro que ele pretendia ficar. Um velho
desgrenhado se aproximou, lágrimas profusas escorriam pelo rosto e caíam na
barba branca desalinhada.
“Willie Abutre...” Podo acenou com a cabeça, em saudação.
“Oi, velho companheiro. Eu nunca disse, apropriadamente, que sinto muito ter
roubado Merna Bidgeholler de você quando éramos meninos. Estou querendo
dizer isso há anos, seu malandro.” Ele fungou.
Podo sorriu desconfortavelmente e apertou o ombro de seu amigo,
envergonhado pelos muitos, muitos thwaps de jardim que ele havia jogado no
quintal de Willie.
“Merna? Deixa eu dizer, Willie: me esqueci disso. Quase totalmente, pelo
menos.” E acrescentou, baixinho: “Águas passadas, é só isso. Águas passadas.
Agora, vá pra Cavadópolis e fique com seus netos, hein? Te vejo qualquer dia
desses, velho amigo.”
Willie Abutre acenou e passou a manga da camisa pelo rosto choroso. “Ah, e
sinto muito sobre o seu celeiro queimando. Parecia que aqueles Fangs realmente
fizeram a festa. Estive lá mais cedo para dar a vocês algo do meu jardim,
cortesia minha. Deixei na sua varanda. Um presente, por conta de Merna.”
“Ah, Butre, agora...” lamentou Podo. Mas seu velho amigo já estava
atravessando a rua em direção à sua casa para pegar a esposa e seus pertences.
Podo olhou para seus netos. “Bom, rapazes”, comentou o avô, mudando de
assunto, “foi melhor do que eu esperava. Parece que estão todos indo embora.
Todos menos Crespo e os Shoosters, claro.” Ele disse isso com uma pitada de
orgulho por seus amigos, que estavam sentados na varanda de A Única Pousada,
fazendo um brinde à sua cidade e dando adeus a vizinhos e amigos. Os
moradores que estavam saindo tinham amigos e familiares em outros lugares e
corriam para chegar em segurança ao refúgio, sem serem pegos.2 Mas para
alguns, como Crespo e os Shoosters, tudo o que eles tinham e tudo que sempre
quiseram estava ali, em Glipwood. Eles não tinham para onde ir e pretendiam
morrer lutando por seu lar.
“Vamos, garotos”, chamou Podo, e eles o seguiram até a cadeia onde os
cadáveres de Fang estavam espalhados, enrugados e secos como se estivessem
apodrecendo por anos, não minutos. Tudo o que restava eram peles de cobra
fendidas, ossos empoeirados e armaduras.
Podo puxou a espada de um deles e a mão em garras se desfez em uma pilha de
poeira, que foi levada pelo vento.
“Vão em frente e peguem mais duas espadas”, Podo falou, enquanto recolhia
algumas adagas, incluindo a que Janner havia enterrado no torso de Gnorm.
Podo soprou a poeira das armas, foi até a taverna e as ofereceu sombriamente a
Crespo e aos Shoosters. Janner e Tink ouviram algumas palavras murmuradas
entre eles, antes de seu avô abraçar seus velhos amigos, um por vez.
Então, em silêncio, Podo e os meninos saíram rapidamente da cidade de
Glipwood, onde por mil anos as pessoas compareceram ao Festival do Dia dos
Dragões e se alegraram. Janner mal podia acreditar que, em questão de horas,
tudo ali seria escombros.
“Isso, jovem Leeli”, estimulou Oskar, enquanto ajudava uma Leeli Igiby
apática a descer os degraus de madeira, até o porão úmido. “Para baixo vocês
vão!”
Ele a sentou no chão de terra, ao lado de Nia. Acendeu um lampião que
iluminou uma pequena sala, com algumas caixas contra a parede oposta. Oskar
se ocupou em arrumar as caixas e verificar os suprimentos e, quando achou que
tudo estava bem, voltou sua atenção para a mãe e a filha. Ele as olhou pelos
óculos.
“Eu sei que não é a acomodação mais confortável, queridas. Nas palavras de
Burley, o Pancada, ‘Este lugar é resistente. E úmido’. Mas vocês não devem ficar
aqui por muito tempo, dependendo de quanto tempo Podo leve para buscar os
suprimentos. É melhor mantermos vocês escondidas, caso algo dê errado.”
Oskar lançou um olhar saudoso para a luz aconchegante de seu escritório.
“Temo que não haverá tempo para salvar meus livros. Todos os meus mapas e
tomos e volumes e volumes de tradições: todos perdidos para sempre. E este
lugar era o último da espécie, queridas. Todos os livros que sobraram em Skree
foram mantidos em segurança aqui. Mas não mais. Não mais.” Ele piscou os
olhos e voltou a si.
“Ah, mas as joias. Para que servem os livros se as joias de Anniera se
perderem para nós?” Ele voltou os olhos para Leeli. “Vou embalar o pouco que
for capaz de levar. E onde está aquele pequeno corre-crista? Eu poderia usar a
ajuda dele”, disse consigo mesmo.
“Vou fechar isso até a hora de irmos. Nas palavras de Adeline, a Poetisa,
‘Descansem um pouquinho. É sempre um bom caminho’.”
Nia apertou a mão dele. “Obrigado, Oskar. Você é um bom amigo.”
Oskar fechou o alçapão, e elas ficaram no escuro, exceto pelo único lampião
em cima de uma caixa. Leeli aninhou-se bem perto da mãe, que sentia a filha
tremer.
O celeiro atrás do chalé Igiby havia se reduzido em fumaça e cinzas, mas a
estrutura do chalé ainda estava de pé. Janner tentava assimilar o fato de que
estava vendo sua casa pela última vez e, por mais que o entristecesse, sentia uma
empolgação inegável. Repetidas vezes ele sonhara em ver o que havia além das
grandes árvores de Glipwood, mas sempre achou que teria que esperar até ser
muito mais velho para conseguir. E lá estava ele, com doze anos e a caminho das
Pradarias de Gelo, um lugar que ele só conhecia pelo nome em um mapa antigo.
“Vocês, meninos, entrem e comecem a pegar as coisas”, ordenou Podo. “Não
muito. Basta pegar algumas túnicas e calças para cada um e amarrá-las em um
saco de dormir. Façam o mesmo para sua irmã. Vou sair pra buscar Danny, no
campo norte, onde o pobre animal ficou atrelado à carroça desde que os Fangs
apareceram. Eu só espero que ele ainda tenha energia pra nos rebocar longe o
suficiente, ainda esta noite. Estarei de volta em um minuto pra pegar o que mais
precisarmos.” Podo caminhou escuridão adentro, para o pasto.
“Não consigo acreditar que estamos realmente indo embora”, lamentou Tink
enquanto ele e Janner se aproximavam da casa, sob uma lua brilhante. “Onde
ficam as Pradarias de Gelo, afinal?”
“Tudo que sei é que ficam ao norte, além das Montanhas Rochosas. Muito
longe daqui.”
Janner encontrou, no escuro, o lampião e os fósforos guardados na varanda,
perto da porta. Ele acendeu o lampião e os dois irmãos empurraram a porta da
frente, e ficaram olhando para a bagunça feita na casa durante a desenfreada
busca de Gnorm pelas joias.
Se não fosse o cheiro de fumaça no ar, talvez eles tivessem detectado o odor vil
e persistente de Fang. E se eles não estivessem pensando na longa jornada à
frente, conseguiriam ter notado o som de uma respiração, ou visto a longa língua
serpenteante esvoaçando, avidamente, atrás da porta.
39

Um Presente de Willie Abutre

Leeli e Nia olharam para o teto de seu esconderijo, alarmadas com a comoção
que ouviam.
Passos. Muitos passos correndo, batendo, arrastando os pés.
Uma briga, seguida por uma batida alta, fez entrar poeira por entre os vãos de
onde elas estavam. Leeli ameaçou espirrar, mas Nia tapou a boca da filha com a
mão. Nia só podia imaginar o que estaria acontecendo acima delas, e não devia
ser nada bom. Ela se sentia como um animal preso. Não havia para onde se virar
e ela não tinha armas com que lutar. Nia agarrou-se a Leeli, e ambas recuaram o
máximo que puderam, para um canto, e esperaram, orando. Os passos se
arrastaram lentamente em direção ao alçapão, e Nia deu um suspiro de alívio
porque parecia Oskar quando foi se ocupar de seu escritório, mais cedo. Talvez
ele tenha, acidentalmente, derrubado uma prateleira em sua pressa para salvar
alguns livros importantes.
Mas, então, ela ouviu uma voz, e não era a de Oskar.
Nia apertou Leeli com força.
O alçapão foi lentamente aberto, e elas olharam para a luz que entrava.
Os olhos de Nia se ajustaram e ela viu a silhueta esguia de Zouzab, girando sua
pequena e estranha flauta entre os dedos.
“Ufa...” Nia suspirou, “Zouzab, é você. Oskar estava mesmo...”
A respiração de Nia ficou presa na garganta quando, ao lado dele, outra figura
esguia apareceu — outro corre-crista. Os dois sorriram para ela de uma forma
que fez seu sangue gelar.
“Aqui estão elas, sargento”, relatou Zouzab, e um Fang saltou para o porão,
enquanto Zouzab e o outro corre-crista se apressavam para o topo de uma
estante.
A porta do chalé bateu atrás de Janner e Tink, quando Slarb, o Fang surgiu à
luz do lampião e os empurrou para o outro lado da sala. Os meninos se chocaram
e se estatelaram no chão, em cima do tapete de pele de bolhado. O ar foi expulso
dos pulmões de Janner e ele se dobrou — a água escorria de seus olhos. Ele
estava vagamente ciente de que Tink se movia por baixo dele. Quando
finalmente conseguiu abrir os olhos, mediante o borrão e as luzes em sua visão,
ele viu Slarb movendo-se lentamente em sua direção — uma espada longa e
curva em seu punho escamoso.
Slarb estava em frangalhos, e mais magro do que antes; havia lodo endurecido
entre suas escamas. E sua pele, em vez do verde frio de sempre, tinha uma
palidez fantasmagórica, como uma alface velha caída na sarjeta. Um fedor
envolvia o Fang como uma nuvem de insetos. Para Janner, era cheiro de loucura,
de assassinato. A pele escamosa de Slarb pendia de seu corpo como uma fantasia
toda esfarrapada. Seu tempo na selva transformara a criatura maligna, e ainda
para pior, se é que fosse possível.
“Igibysss”, Slarb murmurou. “Indo para as Pradarias de Gelo, né? Vão tentar
escapar com as joias? Ah, sim, não fiquem tão surpresos. Eu vejo e escuto. Eu
me escondo nas sombrasss. Eu sei que os Igibys têm as joias, e agora que Gnorm
falhou, farei o trabalho que ele não conseguiu fazer. Vou levar as joias para
Gnag, o Sem-Nome, certo?” Slarb apontou a espada para Tink e olhou para
Janner. “Porque, se você não me disser onde estão as joias, garoto, vou pensar
em algo horrível para fazer com o seu querido irmão, entende? Eu sei que vocês
vieram aqui para buscá-las, e eu sei para onde vocês estão planejando fugir.” A
voz de Slarb rangia como pedra sobre pedra, enquanto ele observava os meninos
de olhos reluzentes e famintos.
Tink se recuperou do golpe e ficou de pé, enquanto Slarb dava outro passo
ameaçador para mais perto. Janner matutava uma saída. Slarb estava bloqueando
a porta da frente, e o caminho para a cozinha ficava à direita do Fang. À
esquerda havia uma janela. Era possível que um deles conseguisse passar antes
que Slarb pudesse atacar, Janner pensou, mas apenas um deles. E mesmo que, de
alguma forma, os dois conseguissem passar, Slarb os alcançaria em questão de
segundos. Janner não conseguia ver nada próximo que pudesse ser usado como
arma, a menos que os Fangs tivessem um medo desconhecido de tapetes de pele
de bolhado. Não havia nada que os garotos pudessem fazer. As pernas de Janner
tremiam como varas verdes numa ventania. Onde está o vovô?, ele pensou,
desesperadamente. Quanto tempo poderia levar para pegar a carroça?
Ágil como um gato, Slarb lançou-se à frente, agarrou o cabelo de Tink e o
jogou de volta no chão. No mesmo movimento, ele agarrou o braço de Janner e o
puxou para perto, apontando a ponta da espada entre os olhos do menino. Tink
gritava e lutava para se mover, mas Slarb tinha uma de suas patas com garras
sobre suas costas, prendendo-o no chão. Janner se esforçava para não respirar o
odor forte que envolvia a criatura.
“Onde essstão as joias de Anniera?” Slarb sussurrou, respirando tão perto do
rosto de Janner que seu cabelo se moveu. Janner não conseguiu mais segurar a
respiração e engasgou. Slarb torceu sua pata nas costas de Tink, que mais uma
vez gritou de dor “Se você quer que seu irmão viva, me diga onde as joias estão
escondidas, garoto!”
Janner olhou freneticamente ao redor da sala, com medo demais para orar, lutar
ou pensar.
Então, surgiu o barulho da carroça se aproximando do chalé. Janner puxou o ar
para gritar, mas Slarb tapou sua boca com a mão fria e úmida.
“Nenhum barulho”, ordenou o Fang, baixando a ponta da espada para
descansar na nuca de Tink. Janner esperou em agonia quando ouviu Podo gemer
enquanto descia da carroça e fazia o costumeiro tump-pam em direção à porta da
frente. Os passos pararam. Eles ouviram um som arrastado do lado de fora, e
então Podo gemeu, como se estivesse levantando algo.
“Janner? Tink?” Podo os chamou, entrando no chalé com um grande baú de
madeira nos braços. Ele parou no meio do caminho, petrificado, quando viu
Slarb parado sobre Tink.
“Se você se mover, velho, mato os dois”, ameaçou Slarb, olhando para o baú
com avidez. Sua cauda esvoaçava no chão, ao lado de Tink. O Fang sibilou e
gotas fumegantes de veneno pingaram, chiando, no chão. Tink choramingava.
Podo estava congelado. E, mesmo diante da névoa de medo e do fedor da mão
de Slarb sobre sua boca, Janner conseguia se perguntar, vagamente, de onde o
baú nos braços de Podo teria vindo.
Com um só movimento, Slarb arrebatou Janner para sua frente e enlaçou um
braço em volta de seu pescoço, usando Janner como escudo contra Podo.
“O que há no baú, velho?”
“Não sei”, confessou Podo, nivelando sua voz. “Agora, deixe os rapazes em
paz e nós resolveremos isso, você e eu.”
Slarb riu e apertou Janner com mais força. “A única maneira de resolver isso é
você me dar as joias, velho. Então, vou perguntar de novo. O que há no baú?”
“É um presente do Willie Abutre, lá da cidade. Não tenho a menor ideia do que
seja, lagarto.”
“Você é um péssimo mentiroso, velho.”
Podo baixou a voz. “Você não vai passar dessa noite se machucar um dos meus
rapazes. Você não viu minha ira quando ela é suficientemente provocada, e nem
quer ver.” Podo deu um passo à frente.
Slarb rosnou e torceu a cabeça de Janner para o lado, expondo a lateral de seu
pescoço. O Fang abriu bem as mandíbulas e aproximou suas presas gotejantes.
Uma expressão de derrota surgiu no rosto de Podo e ele deu um passo para trás.
“Por favor, não. Eu imploro”, suplicou Podo. “Não faça isso.” Slarb deu um
sorriso pavoroso.
“Bom. Agora coloque o baú no chão e vá embora.”
Podo obedeceu e Slarb atravessou a sala, ainda segurando Janner por trás.
Tink se levantou e ele e Podo assistiram, impotentes, enquanto Slarb se
agachava para destravar o baú. Janner estava se perguntando o que Slarb faria
quando não encontrasse as joias no baú. A expressão de preocupação no rosto de
Podo foi o que mais o assustou. Se Podo não sabia o que fazer, o que poderia ser
feito? A trava do baú se abriu e Janner se esforçou para olhar.
“E agora, veremos essas joias que causaram tanta confusão.” Slarb deu um
sorriso largo e doentio enquanto levantava a tampa.
Trinta dos mais raivosos e famintos thwaps de jardim que já respiraram o ar de
Kistamos saíram da caixa como uma praga peluda. Janner se desvencilhou e caiu
no chão. Os thwaps cobriram Slarb da cabeça aos pés, tagarelando e gritando em
cacofonia tal que Janner e Tink taparam seus ouvidos. Slarb parecia um boneco
bolhado gigante e peludo, cambaleando, chocando-se contra as paredes, pulando
de um lado para o outro. Podo agarrou a lâmina de Slarb e conduziu o Fang pela
porta, cozinha adentro. Os irmãos ouviam, ansiosos, os sons tumultuados do
grito de guerra de Podo, os berros de Slarb e os guinchos dos thwaps.
Por fim, Podo emergiu, sem fôlego e respingado novamente com o sangue
verde de Fang. Ele viu que Janner e Tink estavam ilesos e sorriu — suas
sobrancelhas se ergueram de uma forma feliz que deu a Janner esperança de que
eles conseguiriam sair vivos de Glipwood. Um dos thwaps furiosos saiu
correndo da cozinha, mas Podo deu um berro e o chutou de volta.
“Lembrem-me de agradecer ao velho Willie Abutre, hein? Aquele patife.”
Podo desapareceu em seu quarto enquanto os meninos se ocupavam, juntando
roupas extras e enrolando-as em um cobertor. Janner estava feliz por não
precisar de nada da cozinha, pois não queria ver o cadáver ossudo de Slarb no
cômodo onde ele havia feito tantas refeições alegres com sua família. Os
meninos fizeram sacos de dormir para Leeli e Nia e os carregaram, junto dos
seus, para a carroça.
Imediatamente, Janner sentiu algo errado — um cheiro no ar ou algum som
sutil no vento que ele não conseguia identificar. Ele olhou para a estrada em
direção à cidade e viu, de relance, o brilho alaranjado de centenas de tochas na
borda da cidade de Glipwood.
“Vovô!” Ele gritou. “Venha rápido!”
Podo saiu de casa com uma trouxa sobre os ombros. “O que é?”
Janner apontou. Agora ele podia distinguir centenas, talvez milhares de tochas
em duas colunas, serpenteando na distância escura, movendo-se em direção a
Glipwood, vindas do leste — vindas do Forte Lamendron.
“Mas já?” Podo sussurrou. “Criador, ajuda-nos.”
40

Traição

Com um olhar feroz, Podo jogou a trouxa na parte de trás da carroça e subiu,
sem esperar pelos meninos. Eles pularam para dentro assim que Podo começou a
gritar “Hya!” para Danny, o cavalo de carga, que relinchou e avançou na direção
de Glipwood.
Os olhos de Janner lacrimejavam com o vento, enquanto observava os galhos
oscilantes das árvores de Glipwood voarem. Ele orou ao Criador para que Leeli e
Nia ainda estivessem em segurança. Janner se perguntava de que maneira eles
escapariam com Nia e Leeli se, de fato, os Fangs tivessem invadido a cidade. Ele
olhou para Podo, para o cabelo branco esvoaçando, agora azulado, ao luar, e se
sentiu melhor. Talvez Podo não tivesse um plano, mas saber que seu avô estava
com ele, mesmo em face dos Fangs de Dang, fazia Janner sentir que poderia
manifestar mais do seu próprio potencial. Ele extraía força do velho avô, como
água de um poço, e descansava nisso. E ele olhou com admiração para Tink, que
encontrara uma espada Fang entre os pertences, na carroça, e a segurava com os
dois punhos — os dentes cerrados.
Podo freou o cavalo quando eles conseguiram ver as luzes das tochas, entre os
prédios, à distância. “Ei, Danny, garoto. Calma, agora”, sussurrou. Ele fez sinal
para que Tink e Janner o seguissem e desapareceu no mato ao lado da estrada,
rápido como um thwap.
De onde pararam, podiam ver vagamente os postes de luz na Rua Principal, e
ouvir uma mistura de tagarelice, risadas e movimentos que era estranhamente
familiar. Janner percebeu, com um estremecimento, que a última vez que ele
havia ouvido tão volumoso ruído foi quando a cidade estava cheia de centenas e
centenas de visitantes, para o Festival do Dia dos Dragões. Será que realmente
poderia haver tantos Fangs em Glipwood? Janner pegou sua própria espada da
carroça. Como as armas na Mansão Pé-de-Geleia, era mais pesada do que ele
esperava. Janner sentiu sua juventude no peso daquela arma. Ele tentou parecer
confiante para Tink, mas seu irmão mais novo já estava se movendo nas
sombras, ao lado da estrada, atrás de Podo.
“Tudo bem, rapazes”, Podo sussurrou sob uma cobertura de folhas. “Escutem.
Eu preciso que vocês sejam homens, estão ouvindo?” Ambos concordaram. “Há
sangue forte em suas veias, e se confiarem em mim e deixarem o Criador guiá-
los, podemos viver para ver o sol nascer esta manhã. Estou arquitetando o que
fazer enquanto vamos, então vocês me sigam de perto e façam o que eu digo.
Sem perguntas. Se nos separarmos, nos encontraremos em um lugar chamado
Mansão Pé-de-Geleia.”
Janner e Tink instintivamente olharam para o norte.
Podo arqueou uma sobrancelha. “Vejo que vocês sabem de onde estou falando.
E vocês, provavelmente, já estiveram lá, pelo jeito.” Janner olhou para baixo.
“Humph. Precisamos conversar sobre muitas coisas quando tudo isso acabar,
eu acho. Mas não esquentem com isso agora. Vocês sabem que amo vocês,
meninos. E também amo sua mãe e sua irmã. Além disso, elas são um pouco
mais bonitas do que vocês, piolhos. Então, temos que resgatá-las, ouviram?
Vamos pegá-las e sair como loucos para a Mansão Pé-de-Geleia. Fora isso,
agimos de acordo com o que vier. Está claro?”
“Sim, senhor”, os irmãos consentiram em uníssono.
Sem uma palavra, Podo novamente desapareceu nas sombras.
Janner e Tink seguiram pelos jardins e campos atrás dos edifícios voltados para
a Rua Principal. Eles pularam uma cerca e Janner ficou novamente surpreso com
a ágil velocidade de Podo.
Os três pararam entre dois edifícios e tiveram o primeiro vislumbre nítido da
rua.
Fangs por toda parte. Alguns permaneciam em formação, enquanto um oficial
berrava ordens. Outros circulavam ao redor como bêbados, rindo ou brigando
uns com os outros. Alguns se sentaram e cochilavam, exatamente no beco pelo
qual eles olhavam, a poucos passos de distância. Estava claro que os Fangs
tinham acabado de chegar e estavam fora de serviço.
A pulsação de Janner acelerou e ele sentia o perigo de novo. Um ruído, um
Fang olhando na direção errada na hora errada, e eles seriam encontrados,
apanhados como floelhos em uma armadilha. Duas cercas à frente ficava o
campo atrás da loja de Oskar. Podo saltou outra cerca e chamou os meninos.
Com uma última olhada no beco, para ter certeza de que nenhum Fang estava
olhando, Tink e Janner o seguiram.
Eles chegaram ao quintal de Oskar sem incidentes e se agacharam de costas
para o tronco grosso de uma árvore. Podo espiou ao redor da árvore, enquanto os
irmãos lutavam para recuperar o fôlego e acalmar os nervos.
“A porta do Oskar ‘tá aberta e o lampião ainda aceso lá dentro”, ele sussurrou.
“Não consigo ver mais nada. Precisamos correr pra parte de trás da loja. Aí, é só
questão de esgueirar pela esquina e passar pela porta. Prontos, meninos?”
A lua brilhante tornava arriscada a distância aberta, até o prédio. Havia ainda
mais Fangs vagando na frente e entre a Floricultura da Ferínia e a Livros e Vãos
do que no primeiro beco.
Podo não esperou. Com outro olhar para o beco, ele disparou em direção ao
prédio. Janner respirou fundo e se preparou para ir. Mas, assim que deu o
primeiro passo, Tink o puxou de volta para trás da árvore. Um Fang avançava a
passos largos na direção deles, ao longo da lateral do prédio. Janner e Tink
prenderam a respiração e agarraram as espadas, de costas para a árvore. Mas o
Fang perdeu o interesse no que quer que estivesse fazendo e seus passos se
afastaram. Janner deu outra espiada e viu que o caminho estava livre.
Eles correram para a segurança das sombras, na parte de trás da Livros e Vãos.
Podo acenou com a cabeça para os netos, com uma piscadela orgulhosa. Ele
olhou ao redor da esquina e para o beco. Após alguns segundos, acenou para que
os meninos o seguissem. Com uma última respiração profunda, os dois dobraram
a esquina e dispararam pela porta dos fundos de Oskar.
O gemido de Podo transpareceu a Janner que sua mãe e irmã haviam sido
capturadas. O alçapão estava aberto e escuro como uma cova vazia. Podo ficou
parado perto do buraco, respirando pesadamente e bufando de uma maneira que
fez Janner temer que ele pudesse explodir.
“Sinto muito”, veio uma voz fraca atrás deles. Eles se viraram para ver Oskar
N. Reteep, caído no chão ao lado de sua mesa, com um ferimento sangrando no
peito. Ele estava pálido e fraco, os óculos pendurados, tortos, no rosto redondo.
Ele tossiu.
Podo se ajoelhou ao lado de Oskar e segurou sua mão inerte. “O que
aconteceu?” Podo gentilmente afastou uma mecha úmida do cabelo pegajoso de
Oskar, dos olhos do velho.
“Zouzab... nos traiu. Nas palavras de Chonk”, Oskar suspirou, ‘Eu já deveria
saber’.”
Podo baixou a cabeça, num misto de raiva e tristeza.
“Ele sinalizou para Lamendron... com sua flauta... durante a batalha...”
Janner se lembrou do som estridente que ouviram, logo após a morte do
Comandante Gnorm.
Oskar estremeceu e tossiu novamente. “Somente outro corre-crista poderia tê-
lo ouvido a essa distância. Todos esses anos, ele esteve observando, espionando.
Ele parou a Carruagem Negra com sua funda, apenas para que pensássemos que
tínhamos mais tempo.”
“Mas ele nos salvou com as pedras, no beco”, lembrou Tink.
“Sim, ele salvou... porque ele suspeitou...” Os olhos de Oskar caíram e sua voz
falhou.
“Suspeitou do quê?” Janner pensou.
“Como você sabe de tudo isso?” Podo perguntou, sua raiva levando a melhor
sobre sua tristeza.
“Zouzab... me contou”, Oskar murmurou. “Ele me disse depois dos Fangs...
levarem Nia e Leeli. Ele se ajoelhou exatamente onde você está ajoelhado
agora... e me contou tudo.” Oskar desaparecia a cada respiração. “Sinto muito,
velho amigo. As joias... mantenha-as com você. Guarde-as bem com você!”
“Guardarei. Pelo Criador, eu guardarei”, asseverou Podo, apertando a mão
inerte de Oskar.
Os olhos de Oskar se arregalaram e focaram em algo acima e por trás de Podo.
Janner ergueu os olhos em tempo de ver Zouzab desaparecer no labirinto de
estantes.
“É ele!” Janner gritou.
Com um berro, Podo saltou atrás de Zouzab — os livros tombando em todas as
direções.
“Janner, Tink. Escutem”, sussurrou Oskar, debilmente. Eles se curvaram sobre
o velho companheiro e se esforçaram para ouvi-lo, em meio à louca busca de
Podo, pelos corredores. Oskar agarrou o braço de Janner. “É tarde demais. Ele é
muito rápido... em questão de segundos Zouzab já terá informado aos Fangs que
vocês estão aqui. Vocês têm que ir agora. Fujam! Fujam!”
O coração de Janner se partia por seu mentor. Ele não conseguia se imaginar
deixando-o à morte, deixando Podo para ser capturado pelos Fangs, ou deixando
Leeli e sua mãe entregues a qualquer destino que Gnag tivesse para elas. Sua
mente era uma enxurrada de memórias sobre o velho Sr. Reteep, que o ensinou a
amar os livros, que lhe dera seu primeiro diário. Tink ficou em silêncio atrás de
Janner e baixou a cabeça.
“Fujam!” Oskar respirou fundo, seus olhos fracos implorando.
Sufocando as lágrimas, Janner se virou para ir — e colidiu com o corpo pesado
e fedorento de um Fang.

41

Um Estrondo e Um Grito

Foi como se Janner estivesse envolvido por um borrão de silvos, garras, presas e
dor. Ele se sentiu de mãos atadas e, então, o mundo virou de cabeça para baixo
quando, primeiro, foi jogado no chão e, depois, agarrado pelos braços e pés por
mãos frias. Janner podia ouvir Tink gritando, mas tudo o que via era um mar de
caras escamosas e olhos negros com bordas vermelhas. Ele sentia o estalar de
línguas bifurcadas e o cheiro podre de carne de Fang.
O ar estava cheio de uivos e rosnados.
Então ele percebeu que o som não vinha apenas dos Fangs, mas de outra
pessoa também. Ele esticou o pescoço para ver pela janela da frente da Livros e
Vãos, onde o cabelo branco de seu avô esvoaçava no centro de um círculo de
Fangs. Podo estava no meio da rua, brandindo uma espada e mantendo à
distância uma hoste de Fangs, ao redor. Os Fangs pareciam estar gostando,
vangloriando-se e golpeando-o com os cabos de suas lanças.
Janner foi carregado para fora e jogado no chão, aliviado ao encontrar Tink,
Leeli e Nia deitados ao lado dele. A sensação de conforto com a presença dos
três, mesmo em um mar de maldade, era mais do que seu coração podia suportar,
e ele chorou. Janner desejou que suas mãos estivessem desamarradas, não para
que ele pudesse correr, mas para que pudesse abraçar aqueles que amava.
Então, sem aviso, Nia foi arrebatada do chão.
“Basta! Ou a mulher morre!”, ordenou um Fang ágil que parecia estar no
comando. Ele levantou Nia pela cintura e puxou sua espada. A fúria de Podo
desapareceu como o apagar de uma vela. Ele olhou ao longo do mar de cabeças
escamosas para sua filha e suas sobrancelhas espessas tremeram. O único som
era da respiração pesada do velho pirata. A seus pés estavam vários Fangs
mortos, já em decomposição.
“Não”, Podo suspirou — sua voz falhava.
“Então, abaixe a espada, velho, ou diga adeus à mulher.”
Podo, cheio de tristeza, olhou longamente para a filha. Nia estava em silêncio
— sua mandíbula cerrada, seus olhos fechados.
“General Khrak”, chamou um dos Fangs.
“Agora não, seu tolo”, repreendeu Khrak, baixando a voz. “Não vê que estou
subjugando esse humano? Esse é maisss durão do que parece.”
“Nia, garota? Você tá bem?” Podo a chamou.
“General Khrak”, o Fang inferior repetiu.
“Silêncio, verme!” Khrak rosnou.
“Sim, papai”, Nia respondeu. Podo suavizou o rosto. Ele ergueu a espada
acima da cabeça em um gesto de submissão, prestes a depor a arma.
“General Khrak.”
“O quê?!” Khrak esbravejou, virando-se para o soldado enquanto jogava Nia
no chão.
“Algo está vindo, senhor.”
“Hã?”
“Algo vindo nesta direção. Olhe.” O Fang apontou.
Khrak olhou, e todos os olhos em Glipwood o imitaram. Alguma coisa, com
certeza, estava chegando — uma sombra veloz e saltitante atravessava o campo,
e ninguém tinha a menor ideia do que era — mas era grande. E, à luz da lua
cheia, eles conseguiram discernir que alguém estava montando na coisa.
Dois ruídos laceraram o ar e lançaram um arrepio de pânico por todo o
regimento de Fangs. Um estrondo — como a explosão de um trovão próximo —
junto ao grito crescente de uma ave de rapina abateram-se sobre os Fangs de
Dang, cobrindo-os feito uma onda poderosa.
O queixo de Podo caiu com a visão diante dele.
Peet, o Homem-Meia, com os braços abertos e as garras à mostra, cavalgava
nas costas de um cão preto gigante, do tamanho de um cavalo.
“O que, pelas barbas de...?” Podo balbuciou.
A última visão que Podo tivera de Nugget foi a de um monte de pelo inerte,
com uma lança atravessada em seu flanco, perto do chalé, quando foram
capturados pela primeira vez. A besta que saltava em sua direção, no entanto,
diferia de tudo que ele já vira.
Trinta Fangs foram achatados no chão, como ervas daninhas ao vento, quando
Peet e a criatura Nugget gigante se chocaram contra eles. Os Fangs ficaram tão
paralisados com a enorme coisa negra em seu meio, que Podo foi capaz de abrir
caminho num instante, até as crianças e Nia.
Até Khrak estava imóvel, olhando estupefato para o Homem-Meia, de cabelo
selvagem, que atacava seu exército com garras e um cachorro gigante.
“Rastejem!” Podo ordenou. “Solto vocês quando estivermos livres dos Fangs!”
Eles se contorceram como vermes e abriram caminho entre centenas de pernas
de Fangs, enquanto os soldados emergiam do pavor e começavam um ataque à
besta e seu cavaleiro. Quando o General Khrak percebeu que eles haviam
partido, os Igibys já estavam subindo na carroça, na borda da cidade, tontos com
a própria respiração em seus pulmões.
Podo virou a carroça para o norte, em direção à Mansão Pé-de-Geleia, e incitou
Danny, o cavalo de carga: “Como um raio, Danny, meu garoto!”.
“O que foi aquilo, vovô?” Janner perguntou, enquanto se acotovelavam para o
norte, passando pela propriedade Blaggus.
“Era Peet fazendo toda aquela gritaria?” Perguntou Tink.
“Sim!” Podo gritou, da frente da carroça.
“E o que era o outro ruído?” Janner perguntou. “O rosnado, quero dizer.”
Podo assoviou e bateu no joelho. “Leeli, garota”, ele a chamou de costas.
“Preparada pra isso?” Podo se virou e aproximou o rosto de Leeli. Ele segurou o
queixo dela com sua velha mão enrugada. “Era Nugget. Aquele seu cachorrinho
está vivo. Sim, e ele pode ser mais do que parece.”
O rosto de Leeli era a imagem perfeita da admiração. Lágrimas brotavam de
seus olhos arregalados e sua boca se abria, implorando para sorrir. “Mas...
como? Todos aqueles Fangs! Como você pode ter tanta certeza de que ele está
vivo?” Ela perguntou, sentindo, lá no fundo, que o que Podo dizia era verdade. O
rugido grave que ela ouvira tinha-lhe soado maravilhosamente familiar.
Janner sorriu, feliz em ouvir que a voz forte de Leeli havia voltado.
“Ah, tenho certeza de que Nugget está bem”, garantiu Podo, rindo. “Não há
muito que um Fang possa fazer com ele agora, eu garanto. Espere e veja, moça.
Acho que Nugget seguirá nossa trilha e estará com você em breve.”
Enquanto Danny, o cavalo de carga puxava a carroça a trote, as crianças Igiby
começaram a sentir a canseira de seus sufocos. Tanta coisa aconteceu desde que
eles seguiram Peet, o Homem-Meia, até sua casa na árvore, na floresta, e não
parecia haver qualquer descanso à vista.
Leeli se apoiou em Janner e logo adormeceu. Ele colocou um braço ao redor
dela, então sentiu um peso em seu outro ombro. Tink também tinha adormecido
— a cabeça pousada inconscientemente no irmão. Janner pensou, com um
sorriso, em como Tink ficaria horrorizado ao saber que se aninhara junto a seu
irmão mais velho.
Nia se inclinou e beijou Janner na cabeça.
Enquanto subiam a longa e regular encosta ao norte, longe de Glipwood e dos
penhascos sobre o Mar Sombrio da Escuridão, eles podiam ver as luzes
aconchegantes dos postes da cidade, piscando à distância — uma ironia, à luz do
mal que infestava as ruas de lá.
Janner fez uma oração silenciosa por Oskar, depois por Peet, que mais uma vez
emergiu da escuridão e salvou suas vidas quando tudo estava perdido. Janner se
perguntava por que Podo o odiava tanto. Que história secreta tinham eles, e
como Podo não conseguia substituir aquela raiva por gratidão, sendo que Peet os
resgatou não uma, mas três vezes?
“Mãe?” Janner não aguentava mais o silêncio.
“Hum?”
“Pra onde estamos indo?”
Nia parecia apreensiva. Ela esfregou o vestido e olhou para a lua. “Eu
realmente não sei, filho. As Pradarias de Gelo, por enquanto. Oskar nos disse
que os Fangs são letárgicos no frio e o evitam quando podem. Ele disse que há
um posto avançado de rebeldes lá, gente que arrastaria os Fangs de volta pelo
mar, até as terras de Dang. Oskar disse que conhecia alguns deles, então seu avô
planeja se refugiar lá. Mas chegando lá...”
“É longe?”
“Muito longe. Mas primeiro precisamos viver esta noite. Não se preocupe. Seu
avô tem um plano.” Nia riu, um som bem-vindo na escuridão. “Ou pelo menos
ele está no processo de matutar um.” Nia acariciou a cabeça de Janner. “Você
deveria descansar seus olhos agora. Ainda vai levar um tempo pra chegarmos
lá.” A voz de sua mãe acalmou Janner e seus olhos se fecharam.
Um baque surdo na escuridão, atrás da carroça, despertou Janner. Ele se
preveniu quando uma forma escura se aproximou da carroça, movendo-se mais
rápido do que um cavalo a galope.
Podo, ouvindo o suspiro de Janner, ergueu a espada com uma das mãos e
segurou as rédeas com a outra. Mas quando ele viu, à luz da lua, o que se
aproximava, sua atitude se iluminou e, para a surpresa de Janner, ele freou
Danny, o cavalo de carga.
A carroça parou e Leeli e Tink se espreguiçaram e esfregaram os olhos. Uma
sombra negra saltou na direção deles — uma sombra estranhamente familiar
para Janner. Montada nela, e coberto por manchas escuras de sangue verde de
Fang, estava a figura esguia e de cabelos brancos de Peet, o Homem-Meia.
Com olhos sonolentos, Leeli perscrutou a noite enluarada, tentando entender o
que estava diante de seus olhos. Ela se inclinou sobre a borda da carroça
enquanto a criatura negra se aproximava e Podo descia de braços abertos.
A criatura deixou escapar um ruído profundo e feliz — como um latido, só que
muito, muito maior.
“Nugget, garotão!” Exclamou Podo, esticando o braço para coçar a criatura
atrás de uma grande orelha mole.
Os olhos de Leeli se arregalaram, sem acreditar.
Peet escorregou das costas de Nugget, afastando-se de Podo, que nem mesmo
notou a presença do Homem-Meia.
“Nugget?” Leeli arriscou-se, timidamente, com medo de acreditar que fosse
realmente ele.
O cachorro gigante latiu, se é que se pode chamar assim, pois foi um som que
sacudiu o ar e fez os pássaros esvoaçarem a mais de meio quilômetro de
distância. Leeli soltou um grito alegre e tombou para fora da carroça. Ela caiu no
chão, esquecendo, em sua euforia, que tinha apenas uma perna boa.
Nugget se aproximou dela e começou a lambê-la com uma língua quase tão
grande quanto ela própria. Leeli gritou de alegria e descrença. Tinha certeza de
ter visto um Fang matar seu melhor companheiro e, agora, ele estava vivo e tão
grande quanto um cavalo. Nugget agachou seu corpo no chão e Leeli riu
enquanto subia em suas costas. Ela sentou-se, montada em seu cachorro,
enterrando as mãos profundamente em seu pelo macio. Nugget ficou ali,
ofegante — a cauda tão longa quanto um cabo de vassoura e balançando
perigosamente.
Da grama alta, a vários passos de distância, Peet, o Homem-Meia, pigarreou.
Janner queria correr para o homem estranho e abraçá-lo, mas ele estava
inseguro quanto a isso. Podo havia deixado claro que Peet deveria ficar longe
das crianças, e Janner estava com medo de trazer mais da ira de seu avô sobre o
pobre homem. Ele também não tinha certeza quanto às garras letais que serviam
de mãos para Peet.
Se Leeli não tivesse ficado tão extasiada com Nugget, ela teria estendido a mão
para ele com sua típica compaixão e indiferença à rudeza de Podo. Mas do jeito
que as coisas aconteceram, a família se agrupou em volta do cachorro gigante e
Peet ficou sozinho.
“Peet”, perguntou Janner com um olhar cauteloso para Podo, “como Nugget
ficou tão grande? Como foi que ele voltou à vida?”
“Nuggetinho e eu conseguimos escapar”, relatou Peet, ignorando a pergunta.
“Mas por pouco, quase nos ossos. As cobras. Elas estão vindo. Vindo rápido.
Você tem que esconder as poias, Jodo. Joias, Podo. Você não pode deixá-las cair
nas mãos dos Fangs.”
“Não me diga o que tenho que fazer”, esbravejou Podo. As crianças ficaram
espantadas. Até Nugget choramingou e escondeu o rosto sob as patas gigantes.
“Acho que sei como manter as coisas seguras melhor do que você.”
“Pai”, Nia o chamou, colocando a mão no braço de Podo. Ele olhou para a
filha e parecia prestes a responder, mas com muita força de vontade segurou a
língua e saiu pisando com força, rumo à carroça.
Então as joias estão por aqui em algum lugar, pensou Janner. Tentou imaginar
o que eram as joias e se estavam ou não embrulhadas na trouxa que Podo
carregara com ele para fora do chalé — o embrulho na carroça, logo atrás de seu
avô.
“De volta à carroça”, ordenou Podo, tentando falar com calma. “Alguém
conduziu os Fangs diretamente até nós.” Ele parecia envergonhado com a
injustiça de sua própria observação. “De qualquer forma, temos que seguir
adiante. A mansão está logo à frente, e é nossa única esperança de ver o
amanhecer chegar. Agora escutem. Vocês, crianças, vão esperar lá dentro
enquanto eu tento encontrar as armas de que Oskar me falou. Ele nunca teve a
chance de me dar o mapa.” Ele olhou de volta para o reluzir da cidade onde vira
seu velho amigo pela última vez.
“Nós sabemos onde elas estão, vovô”, confessou Tink.
“Vocês sabem?” Podo questionou, mirando os meninos. “Vocês estiveram
muito ocupados, eu diria.” Tink começou a responder, mas Podo o interrompeu
com um aceno rápido de mão.
Uma silhueta de Fang surgira ao luar, sobre uma elevação, a não mais que um
tiro de flecha.
“Lá estão eles!” Gritou o Fang.
Peet, o Homem-Meia, não perdeu tempo, gritando em disparada pela campina
em direção ao lagarto maligno.
O Fang saiu correndo, agitando os braços e gritando para o resto dos soldados
que havia encontrado sua presa.
“Para a carroça! Agora!” Podo comandou.
Nia e os meninos subiram na parte de trás, e Podo pôs Danny em movimento.
Leeli agarrou-se ao pescoço de Nugget enquanto ele galopava ao lado de
Danny, o cavalo de carga — que não estava lá tão seguro quanto ao imenso
animal feliz que seguia a seu lado.
42

Adeus Iggyfings

O semblante sinistro e parecido com uma caveira da Mansão Pé-de-Geleia se


materializou na escuridão, quando eles se aproximaram. Iluminada pelo luar
fantasmagórico e emoldurada pelo paredão escuro formado pela Floresta
Glipwood, a visão da antiga mansão causou um arrepio que desceu direto para os
dedos dos pés de Janner e o fez suar. Ele tentou não pensar nos canicórneos ou
no gemido fantasmagórico que escapava do túnel que levava às armas.
Atrás deles, outro grito de Peet ecoou pela ampla campina. Ele corria em
direção a eles e para longe dos Fangs a toda velocidade — centenas de soldados
corriam atrás dele pelo campo. Podo conduziu a carroça através dos portões
dilapidados, passando pelas estátuas estranhas e a fonte coberta de mato, até que
os paralelepípedos e os destroços revirados foram demais para Danny.
Podo saltou para o chão e rapidamente soltou o arnês e o arreio. Assim que
Danny estava livre, Podo deu um tapa nas ancas do cavalo. “Agora vá! Vá!”
Danny relinchou e partiu, galopando ao longo da borda da floresta e para longe
da batalha que se aproximava.
A Mansão Pé-de-Geleia era assustadora o suficiente durante o dia. Porém, o
que pairava naquele momento era a noite profunda, com uma horda de Fangs se
aproximando rapidamente. A borda da floresta aparecia a um tiro de flecha,
repleta de criaturas invisíveis que dariam medo até mesmo em um Fang.
Pareceu a Janner que não havia para onde correr — nenhuma das opções
parecia segura, fosse correr para a floresta, fosse para os Fangs, fosse para a
Mansão Pé-de-Geleia.
Pelo menos, na mansão eles teriam acesso ao armamento militar. O que
algumas espadas poderiam fazer ele não sabia, não contra um exército de Fangs.
Mas, pelo menos, eles tinham Peet e Nugget. Mesmo assim, aliados formidáveis
que eram, Peet e Nugget não conseguiriam derrotar centenas de Fangs.
Janner começou a se desesperar. Mesmo que seu avô tivesse talento para
improvisar em situações perigosas, mais cedo ou mais tarde ele certamente
ficaria sem ideias. Essa hora parecia ter chegado. Ele observou Podo ajudando
Nia a descer da carroça, enquanto a apenas alguns minutos de distância
vociferava uma horda de Fangs.
“Janner!” Podo exclamou. “Você sabe onde estão as armas?”
“Sim, senhor! Tink e eu sabemos!” Relatou Janner. “Lá dentro, debaixo do
porão.”
Podo assentiu. “Boa. Janner, você mostra o caminho. Temos que descer lá e
rápido.”
“Mas, vovô, ficaremos presos!” Contestou Janner. “Há um longo túnel, e há
canicórneos, e há um fantasma lá embaixo, e...”
“Um fantasma, hein?” Podo debochou, jogando a trouxa do chalé por cima do
ombro. “Bom, você prefere enfrentar sua imaginação ou uma espada Fang?”
“Mas, nós ouvimos!” Tink insistiu. “Ouvimos o fantasma e ele nos perseguiu
pra fora do túnel!”
“Esse som nada mais é do que o vento. É apenas algo que Oskar armou em um
eixo para assustar as pessoas que não deveriam estar lá — como você e seu
irmão, por exemplo. Agora, vocês precisam confiar em seu Podo e chegar logo
lá.”
“O que você planeja fazer com mais armas, afinal? Ainda seremos apenas nós
cinco!” Retrucou Janner.
“Janner!” Podo berrou.
A boca de Janner se fechou.
“Leeli, desça daí”, Podo requeriu gentilmente. “Nugget vai ter que cuidar de si
mesmo agora. Não há muito em Kistamos que ele precise mais temer, e ele não
pode ir para onde estamos indo. Ele vai estar bem ao nascer do sol, você vai
ver.” Leeli protestou e abraçou Nugget com força, enquanto Podo a puxava para
baixo. O cachorro ganiu e acariciou-a suavemente.
“Tink, ajude sua irmã”, Podo ordenou.
De repente, Peet se materializou na escuridão. Sua respiração estava irregular e
ele cambaleava, cansado.
“Eu queria dizer adeus, jovens Iggyfings. Lutarei por vocês enquanto eu
puder.” Peet olhou para Podo com uma nova ousadia. “Lutarei por eles.”
Mas, sem sequer uma palavra de agradecimento ou mesmo um olhar, Podo
subiu as escadas de pedra e entrou na boca negra da mansão.
“Eu não seguirei”, Peet gritou para o velho. “Vou ficar longe de todos vocês,
como você mandou. Mas eu vou lutar por eles”. Peet se virou para as crianças e
fez uma reverência. “Adeus, Iggyfings”, ele os cumprimentou, e então se virou e
caminhou através do portão em direção ao oceano de Fangs — braços abertos e
garras à mostra.
Desviando os olhos de seu protetor, Janner respirou fundo e seguiu Podo para a
escuridão da mansão.
“Nugget”, Leeli gritou por cima do ombro. “Vá para algum lugar seguro.
Encontre-me quando tudo isso acabar. Vá!”
Mas Nugget ficou lá — sua cabeça gigante inclinada para o lado, orelhas em
expectativa.
“Senhor Peet! Poderia tomar conta dele?!”
“Sim, princesa”, respondeu Peet do outro lado do gramado iluminado pela lua.
Nugget ganiu outra vez enquanto Leeli era conduzida por Tink pela porta,
engolida pela escuridão.
Nia foi a última, e assim que ela entrou, o primeiro dos Fangs se lançou pelos
portões da Mansão Pé-de-Geleia — uma turba sibilante de serpenteios e
rosnados.
43

Um Fantasma ao Vento

Tudo jazia na escuridão.


Janner tentava lembrar qual porta levava à sala com as escadas faltantes. Da
última vez que eles estiveram na mansão dilapidada, já fora escuro o suficiente,
e, na ocasião, era de dia. Mas dessa vez era noite e Janner estava morrendo de
medo.
Seus olhos se ajustaram e Janner foi capaz de detectar sinais do luar azulado
entrando furtivamente por rachaduras no teto e se dispersando pelo chão. Ele só
conseguia divisar a ampla escada que levava aos andares superiores. A mão de
Podo estava no ombro de Janner, e Tink, que estava ajudando Leeli, colocou a
mão nas costas de Podo. Nia segurava o cotovelo de Leeli.
Janner virou à esquerda e o trem de Igibys entrou num corredor escuro.
“Rapaz, não quero apressá-lo”, sussurrou Podo. “Mas aquele barulho que você
ouve do lado de fora são Fangs vindo com rapidez.”
Janner não tinha certeza, mas aquele parecia ser o corredor certo, o que tinha
portas de cada lado. Fosse o caso, ele apenas teria que encontrar a terceira porta
à esquerda. Ele deslizava os pés para frente com cuidado, com as mãos
estendidas, até sentir a primeira porta. A fila de pessoas atrás dele ficava mais
frenética a cada segundo.
“Eu gostaria de ter um pouco de luz”, ele murmurou.
“Sim, filho. Eu também. Mas mesmo se tivéssemos algum fogo, não há nada
que canicórneos gostem mais do que uma boa chama. Eles e um grande número
de outras criaturas na floresta são atraídos por ela, especialmente à noite. Não
precisamos de vacas-dentadas e Fangs atrás de nós, precisamos?”
“Não, senhor.”
“Você consegue, rapaz.”
“Eles estão se aproximando”, alertou Nia, na parte de trás.
Janner tateou o caminho até a segunda, depois até a terceira porta. “É essa.”
Como uma rajada de vento, o medo do fantasma de Brimney Stupe invadiu o
coração de Janner. Todos os outros horrores que então os visitavam pareciam
inofensivos. Lá estava ele, prestes a descer para o porão escuro e sem escadas, e
rastejar por um túnel vigiado por um fantasma. Podo havia dito que o som não
era nada além do vento, mas a imaginação de Janner era forte e trabalhava com
afinco. Morrer nas mãos dos Fangs parecia melhor do que enfrentar o fantasma
de Brimney Stupe, imaginário ou não.
Sentindo a urgência silenciosa de sua família, atrás dele, Janner avançou,
chutando pedrinhas e escombros enquanto seguiam em frente. Ele esperava ver a
forma medonha de Brimney Stupe erguer-se da porta do porão e começar a
comer seu cérebro diretamente de sua cabeça.
Então, ele alcançou a porta escura que dava para o porão.
“Chegamos”, ele suspirou. Janner balançou a cabeça, frustrado consigo mesmo
por chutar a corda e a tábua de volta para o porão, quando ele e Tink escaparam,
da última vez. “Não há escadas, então temos que pular lá pra baixo.” Ele tentou
esconder o tremor em sua voz.
“Você primeiro, então”, disse Podo. “Eu vou ajudar a baixar sua mãe e sua
irmã.”
Janner pensou em protestar, mas ficou em silêncio. Em sua mente, ele viu uma
figura sem rosto, parada no fundo do porão, esperando para envolvê-lo com seus
braços frios e devorá-lo.
Não é real, Janner disse a si mesmo. É apenas o vento. Apenas o vento. Não
existe fantasma de Brimney Stupe. Ele se sentou na soleira, virou-se de bruços,
deslizou-se até ficar pendurado pelos dedos, contra a parede do porão, e,
fechando os olhos, reuniu toda sua força de vontade. Apenas o vento. Confie em
Podo. Com uma oração ao Criador, ele se deixou ir.
O solo não pareceu tão chocante dessa vez, agora que ele sabia o que esperar e
não estava caindo da altura completa. Ele se levantou.
“Estou bem. Não é tão alto assim”, assegurou ele.
“Muito bem, rapaz”, parabenizou-o Podo.
Então, vindo da escuridão, Janner ouviu o gemido.
AAAAAAAAAAAAhhhhhhh…
O gemido saiu do túnel e contornava o salão. Janner tapou os ouvidos com as
mãos e fechou os olhos com força. Sua mente ficou entorpecida de pânico
enquanto tentava se convencer de que, se abrisse os olhos, não veria os olhos
brilhantes de um fantasma faminto. Ele se sentiu ridículo por ter acreditado em
Podo de que um som tão horrível poderia ser o vento.
“Janner!” Ele podia ouvir a voz de Podo fracamente, cortando o gemido
fantasmagórico. “É o vento, rapaz! Não existe nenhum fantasma!” O velho
gritou.
AAAAAAAAAAAAAhhhhhhhhhhh…
Já por diversas vezes, Podo havia provado ser confiável, Janner disse a si
mesmo. Por que não deveria confiar nele agora? Janner cerrou os maxilares e
preparou-se para ver Brimney Stupe e, depois, o Criador.
Finalmente, Janner abriu os olhos. Trevas.
Podo bateu no chão, ao lado dele, e tirou as mãos de Janner de seus ouvidos.
Na escuridão, Janner sentiu o rosto de seu avô perto do seu, e sentiu seu hálito
quente quando ele falou.
“Está tudo bem, rapaz. Apenas o vento. Sinta minhas mãos. Elas são reais.”
Janner assentiu. Ao toque dos grandes dedos calejados de Podo, o gemido
encolheu em sua mente e foi substituído por vergonha. Ele estava grato porque
na escuridão seu rosto estava oculto.
“Desculpa”, Janner emendou.
“Sem tempo pra isso”, apressou Podo, bagunçando o cabelo de Janner. Assim
que ele estendeu a mão e chamou Leeli, o barulho de passos e um rosnado
flutuaram pela casa, acima deles.
Os Fangs estavam lá dentro.
Sombras se moviam sobre sombras na mansão, enquanto os Fangs se
espalhavam como fumaça pela casa. Janner não ouvia mais lutas do lado de fora,
o que significava que Peet e Nugget ou estavam mortos, ou finalmente haviam
fugido. Janner estava com raiva de si mesmo por ter tido mais medo do fantasma
imaginário do que dos Fangs. Ele lhes custou um tempo precioso.
“Nia! Passe Leeli aqui pra baixo!” Podo sussurrou.
Nia pegou Leeli pelas mãos e a desceu até os braços dele. Ela fez o mesmo
com Tink e, logo em seguida, jogou a trouxa de Podo e, por último, também
desceu. Quando ela escorregou e tocou o chão, surgiu um sibilar de surpresa, da
sala acima deles. De repente, o contorno vago de um Fang apareceu na porta,
olhando para baixo.
Os Igibys congelaram. Um momento sem respirar se passou, durante o qual
Janner teve certeza de que Podo cometera um grave erro ao levá-los até ali.
Embora eles não pudessem ver, um sorriso lento se espalhou pelo rosto do Fang.
“Eu posso sentir o cheiro de vocêsss”, o Fang sibilou. “General Khrak!” O
soldado Fang o chamou, desaparecendo da porta, e eles o ouviram chamar
novamente: “General Khrak! Eu os encontrei!”.
44

Seguindo Podo

Tink!” Podo não perdeu tempo. “Onde fica o túnel?!”


Tink se lembrou dos fósforos e do lampião que ele e Janner descobriram na
última vez em que estiveram lá. Ele tateou o caminho até o canto da sala, perto
da pilha de tábuas de madeira, e agarrou a caixa de fósforos, mas... o lampião
tinha desaparecido. Ele sentiu o peito apertar, até que ele se lembrou de que o
havia deixado cair ao pé da escada, em seu terror com o gemido de Brimney
Stupe.
Respirando fundo, Tink se apressou escada abaixo. Seu pé atingiu o lampião e
ele o agarrou e subiu os degraus. Uma batida de fósforo e o porão se encheu de
luz amarela, iluminando a boca do túnel e as escadas que desciam para as
sombras. Tink acendeu o lampião a óleo e ergueu-o.
“Tink, não!” Janner gritou. “A luz atrai...”
Mas Podo o interrompeu. “Tarde demais pra isso. Pra dentro, rápido!” Podo
empurrou Leeli e Nia escada abaixo. O ar ficou úmido e fechado e, de repente, a
mansão acima deles parecia muito, muito distante. Foi difícil para Janner
conduzir Leeli pela passagem de teto baixo, mas, depois que ela se abriu, ambos
conseguiram se mover rapidamente.
“Tink, eles estão vindo!” Gritou Podo, da retaguarda. Janner virou um canto e
viu Tink olhando para a velha porta. Ao ver o rosto de Tink, Janner sentiu um
baque de desespero. Como puderam esquecer? O mapa era a chave para abrir a
porta e ainda estava na loja de Oskar.
“Por que a demora?” Podo questionou, ao virar a esquina com Nia.
“O mapa... ele tinha uma chave. Orifícios que mostravam qual desses botões
apertar. Tink, você se lembra de quais?”
“Tinha a forma de um W”, descreveu Tink, apertando os botões. Ele girou a
trava... a porta não se mexeu. Tink sacudiu a maçaneta freneticamente. Agora
eles podiam ouvir os Fangs atrás deles, provavelmente no porão. “Eu não sei o
que está errado!” ele gritou. “Janner! Não era assim?!”
“Depressa, rapazes!”
Janner olhou para as fileiras de botões na porta.
Podo olhou pela esquina do túnel. “Eles estão no túnel!” Sua voz era urgente.
“Conseguiram?!”
Janner fechou os olhos e repassou várias vezes em sua cabeça. Os botões
tinham a forma de um W, centrado na porta. Ele tinha certeza de que estava
certo. Por que a porta não abriu? Tink apertou todos os botões novamente, com
firmeza, e experimentou a maçaneta. Mesmo assim, a porta não se mexia.
“Espere... os cantos!” Lembrou Janner. “Pressione os cantos!”
“É isso aí!” Em um frenesi, Tink clicou nos botões novamente, desta vez com
os quatro cantos pressionados. A porta se abriu e os Igibys entraram na sala
cheia de armas empoeiradas.
Podo não perdeu tempo em escolher um escudo e uma lança de uma pilha.
“Não haverá espaço para brandir uma espada naquele túnel”, disse a si mesmo,
às pressas, enquanto voltava para a porta de ferro.
“Vovô, você não pode voltar lá!” Leeli exclamou.
Podo não pareceu ouvi-la. Ele parou e olhou para Tink, que estava usando o
lampião a fim de acender uma tocha na parede.
“Janner, encontre uma lâmina e me siga com aquele lampião. Tink, você se
arma e fica aqui com Nia e Leeli. Se cairmos, você mantém esta porta fechada
até que esses Fangs morram de velhice, ouviu?” Então ele se virou e reentrou na
passagem.
Janner parou no vão pelo qual seu avô acabara de sair, pensando que estava
vendo o tipo de coragem sobre a qual apenas havia lido. Quem sabe quantos
Fangs armados infestavam a mesma passagem na qual seu velho avô, de uma
perna só, tinha acabado de entrar? Janner não queria nada mais do que possuir
esse tipo de coragem, mas lá estava ele, tremendo, de pelos arrepiados, sentindo-
se tão inútil quanto um tronco de árvore.
Ele ouviu um barulho atrás de si e se virou, encontrando Tink remexendo nas
armas e armaduras. Nia ergueu uma espada curta da pilha, deu a Leeli uma longa
adaga e puxou-a para perto. Eles ficaram no centro da sala; Tink permaneceu na
frente de sua mãe e irmã com escudo e espada.
Janner respirou fundo, agarrou a espada mais próxima e seguiu Podo para
dentro do túnel, com o lampião, mal conseguindo manter as pernas sob si. O som
de aço contra aço que ecoava da passagem era quase abafado pelos brados de
Podo.
Janner não conseguia ver nada além das paredes de pedras úmidas, a ponta de
sua espada e as costas de Podo. Além de Podo, ele ouvia os Fangs enfurecidos e
vislumbrava punhos escamosos e dentes à mostra. Podo se mantinha firme no
túnel baixo, bloqueando o caminho com um grande escudo brilhante. Sempre
que via uma abertura, ele cravava a lança com toda a força. Os Fangs gemiam e
rosnavam, e Podo conseguiu dar alguns passos à frente. Janner quase tropeçou
em algo e viu, com desgosto, que estava pisando no corpo de um Fang que Podo
acabara de matar.
Ele se perguntava o que deveria estar fazendo. Janner não conseguia lutar de
sua posição, atrás de Podo; e, para melhorar ainda mais as coisas, mesmo que
conseguisse lutar, ele não seria lá de grande ajuda. Se Podo caísse, Janner não
duraria um minuto. E por que ele trouxe o lampião? Podo estava bloqueando
toda a luz que pudesse ser de alguma ajuda para ele mesmo. Janner pensou em
colocar o lampião no chão, para que talvez pudesse se espremer ao lado de Podo
e dar uma ou duas investidas. Mas então ele ouviu a voz de Podo em sua cabeça.
Apenas confie em mim, garoto, e faça o que eu digo.
Podo queria que ele trouxesse o lampião. Ponto-final. Janner fez uma careta ao
passar por cima de mais um Fang morto. Por que eles estavam forçando o
caminho de volta pelo túnel? Para ele, fazia muito mais sentido se Podo fizesse
sua resistência na sala das armaduras. Eles poderiam trancar a porta e mantê-la
fechada; e se a porta fosse arrombada, eles poderiam, pelo menos, matar os
Fangs um de cada vez, quando estes entrassem na câmara. De qualquer maneira,
Janner percebeu que eles pareciam irremediavelmente encurralados.
Confie em mim, garoto.
Podo matou mais dois Fangs e forçou seu caminho mais adiante, no túnel.
Janner percebeu que eles estavam se aproximando cada vez mais do porão. E, aí,
o que fariam? Ele não sabia, mas seu pânico aumentava mais e mais à medida
que se aproximavam. Talvez Podo planejasse morrer gloriosamente com Janner,
no porão, fazendo sua resistência final nas pilhas de madeira...
As pilhas de madeira. “Nada atrai mais as feras da floresta do que uma boa
chama.” Podo garantiu.
Janner de repente entendeu. E as perspectivas o apavoraram.
Podo avançou novamente e, de repente, ele e Janner estavam escalando mais
Fangs mortos e subindo os degraus para o porão. Ambos irromperam na sala
escura para dar de cara com mais dois lagartos, prontos para atacar. Um terceiro
Fang saltou da porta alta, e mais estavam vindo. Podo começou a agitar sua
lança freneticamente, forçando-os a recuar.
“Janner!” Ele bradou, golpeando um Fang que havia avançado.
“Eu sei! A pilha de madeira!”
Janner caminhou ao lado da parede em direção à pilha de madeira velha,
mantendo um olhar atento sobre os Fangs, embora estivessem preocupados
demais com o pirata louco, de uma perna só, berrando contra as feras. Janner
segurou o lampião sobre a cabeça, cerrou os olhos com força e jogou-o sobre a
pilha de madeira velha e seca. O óleo do lampião respingou na madeira,
manchando-a com fogo líquido que se espalhou pelas tábuas secas. Em questão
de segundos, o incêndio disparou acima e além da cabeça de Janner e avançou
para a madeira antiga do teto do porão, o mesmo teto contra o qual ele e Tink
haviam atirado pedras, para fazer entrar a luz.
Podo arriscou um olhar para as chamas e pagou por isso com o primeiro
ferimento real que recebeu em muitos anos. Um dos Fangs o feriu na barriga. Os
outros ficaram tão surpresos com o fato de o velho guerreiro ter realmente se
machucado, que pararam em choque, por um momento. Com um brado, Podo
transpassou o Fang e arremessou sua lança contra os outros. A lança cravou-se
em um deles e, antes mesmo de seu corpo desabar no chão, Podo havia arrastado
Janner à sua frente e saltava de volta, descendo os degraus de pedra.
Os outros Fangs, indiferentes às chamas crescentes, despertaram do choque e
começaram a persegui-los.
Janner correu com todas as suas forças. Ele irrompeu na sala de armas,
encontrando um Tink surpreso, pronto para atacar a primeira coisa que passasse
pela porta.
“Vovô está vindo, e os Fangs estão atrás dele!” Janner acudiu sem fôlego,
derrapando no chão. Tink correu, ficou de costas para a parede ao lado da porta
e, agarrando sua espada com as duas mãos, cerrou os dentes.
Com um berro, Podo tombou porta adentro e desabou na soleira: seu sangue
reluzia cobrindo-lhe as mãos e a frente de sua túnica.
Dois Fangs vinham logo atrás. Eles pisotearam seu corpo como se já estivesse
morto, uivando em sinal de vitória. Tink girou a espada com toda a força quando
o primeiro irrompeu câmara adentro. A lâmina cortou a criatura em duas partes,
embora continuasse correndo em direção a Leeli e Nia, enquanto sua metade
inferior e a metade superior se separavam e desabavam no chão, a centímetros
delas.
O segundo Fang recebeu um impacto menor do mesmo golpe, mas ainda
devastador. Ele vociferou diante do ferimento em seu torso, mas ainda avançou
em direção dos Igibys, tendo sua lâmina apontada diretamente para Leeli.
Janner recobrou sua confiança e, com sua espada, golpeou a lâmina do Fang
para cima. O Fang, contudo, avançou para cima de Leeli e Nia, e os três caíram
embolados, no chão.
Em uníssono, Janner e Tink gritaram e correram para aquele emaranhado, para
descobrir a ponta da espada de Nia projetando-se das costas do Fang.
“Vovô!” Leeli gritou, contorcendo-se de debaixo da criatura.
Todos os olhos se voltaram para Podo, enquanto Leeli se aproximava dele.
Gemendo, de costas, no vão da porta, Podo estava prestes a perder a consciência.
Mais Fangs estavam prestes a entrar no salão e, com eles, calor e cheiro de
fumaça.
45

Uma Longa Noite

Rápido!” Janner chamou Tink, e tiraram Podo da soleira da porta. Eles bateram e
trancaram a pesada porta, no momento em que os perseguidores Fangs se
chocavam contra ela. Janner e Tink escoraram a porta com os ombros, enquanto
aqueles lagartos se lançavam com força contra sua estrutura.
Tink olhou para o irmão. “Não sei por quanto tempo podemos segurá-los.”
Antes que Janner pudesse responder, o som de pânico infiltrou-se nas raivosas
vozes dos monstros, e a luz alaranjada do fogo tremeluziu pela fresta, sob a
porta.
Janner e Tink ficaram escorando a porta, exaustos por causa dos Fangs que
arranhavam e batiam do outro lado.
Podo estava deitado de costas e gemia. Leeli segurava a cabeça dele no colo
enquanto Nia pressionava um pedaço de sua túnica no ferimento.
“Você ouviu isso?” Janner perguntou, inclinando a cabeça para o lado.
“Além dos Fangs lá fora?” Tink questionou, o suor escorrendo de sua testa.
“Canicórneos”, esclareceu Janner.
Um uivo de gelar os ossos abriu caminho através da rocha e do fogo. Em
seguida, outro uivo, e mais outro.
Podo estava certo mais uma vez. A luz do fogo havia atraído os cães, do seio
da Floresta Glipwood.
Por horas eles ficaram assim, Janner e Tink de costas para a porta, segurando-a
firmemente contra o que quer que estivesse do outro lado. Os uivos penetrantes
dos canicórneos misturavam-se aos rosnados dos Fangs, que lutavam cada vez
mais violentamente para entrar. Janner pensou várias vezes que a velha porta de
ferro certamente se soltaria das dobradiças e a câmara de armas se tornaria a
sepultura, sem epitáfio, de todos eles.
Mas a porta aguentou, firme. Por fim, as batidas cessaram, embora muito
acima deles continuassem os uivos e, em seguida, sons diferentes: gemidos
terríveis, sons gorgolejantes.
A respiração de Podo se tornou cada vez mais áspera e superficial. Seu rosto
estava suado e pálido, e ele ficou inconsciente. Leeli deitou a cabeça em seu
ombro e adormeceu. Nia se sentou ao lado do pai e segurou sua mão. Seus olhos
estavam fechados e ela cantarolava uma velha melodia da harpa eólica, que
ecoava pela câmara. Janner sentiu seus olhos se fecharem. Muito tempo se
passou sem quaisquer sinais de perturbação do outro lado da porta. Tudo o que
ele conseguia ouvir era o rugido das chamas e o ruído ocasional de madeiras
caindo.
“Você deveria descansar”, Janner aconselhou o irmão.
Tink enxugou a testa e meneou a cabeça. “Estou bem.”
Sua família havia sobrevivido muito mais tempo do que Janner pensava ser
possível. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, teriam que sair da câmara. E o
que encontrariam? Fangs? Canicórneos? Paredes e pisos da mansão queimados
até o chão, deixando-os com ainda menos lugares para se esconder?
Embora sua cabeça girasse com preocupação, as pálpebras de Janner se
fechavam. Quanto mais sonolento ficava, menos se preocupava com os Fangs,
ou quaisquer monstros que estivessem tentando pegá-los. Ele balançou a cabeça
para se manter acordado, mas ver as formas adormecidas de Nia e Leeli, à luz
fraca da tocha, tornava tudo difícil.
“Não sei quanto tempo mais eu consigo... ficar acordado”, murmurou para
Tink, cuja resposta foi um ronco longo e alto.
Tink tinha escorregado para o chão com as costas contra a porta, num sono
profundo.
A última coisa que Janner percebeu ao adormecer foi o gemido baixo do
fantasma de Brimney Stupe. Ele encheu a câmara e fez tremular a chama da
tocha, com uma brisa invisível.
Nada além do vento, pensou Janner, e então adormeceu.
Janner acordou assustado e pôs-se de pé num salto. A câmara estava
completamente escura. Ele pensou, por um momento, que estava na Carruagem
Negra, que ainda podia ouvir o crocitar dos corvos, os restos de um sonho
sombrio agarrado a ele como teias de aranha. O ronco familiar de Tink o trouxe
de volta à câmara subterrânea. A tocha deve ter acabado, ele pensou — mas os
Fangs! As matilhas! Janner encostou o ouvido na porta de ferro frio e escutou.
Silêncio.
Nenhum canicórneo uivava. Nenhum Fang rosnava ou sibilava. Tudo estava
quieto.
Janner cutucou Tink — sem sucesso. Ele tateou no escuro e podia sentir a
figura de Tink, encolhida e dormindo a poucos metros da porta.
Ele pensou em abrir a porta sem acordar os outros. Poderia fazer isso
silenciosamente, apenas para ver se o sol já havia nascido e se, por algum
milagre do Criador, os Fangs haviam sumido ou, pelo menos, estavam ocupados.
Janner posicionou a mão suada na maçaneta da porta, hesitou por um instante e a
girou. A fechadura ecoou pela sala e Janner estremeceu, com medo de ter
alertado os monstros lá fora e acima deles.
Respirando fundo, ele puxou a grande porta e ela se abriu, rangendo. Seus
olhos tinham se acostumado tanto à escuridão que mesmo a fraca luz escorrendo
pelo túnel os fazia doer. Enquanto Janner protegia os olhos, seu queixo caiu ante
o que estava diante dele.
Uma pilha de cadáveres enrugados de Fangs obstruía a passagem. Eles estavam
tão decompostos que era impossível dizer o que os matou, mas por suas posições
emaranhadas, Janner sabia que suas mortes haviam sido horríveis.
Ele ultrapassou a soleira e passou pela pilha de esqueletos com armaduras,
tentando em vão evitar tocá-los. Ele tocou um dos Fangs mortos. A armadura de
couro fez pouco barulho, quando os ossos desmoronaram numa nuvem de
poeira. Janner virou a esquina e apertou os olhos novamente, quando uma luz
mais forte brilhou sobre ele, descendo a passagem do porão.
Mesmo assim, ele não ouviu nenhum som, mas enquanto subia na ponta dos
pés os degraus do túnel, o cheiro de fumaça aumentava e ele podia ver, pela
entrada, focos de chamas agitando-se fracamente em pedaços de madeira
carbonizada.
Janner emergiu para espiar um céu tão azul e plácido que seu peito deixou
escapar um soluço sem lágrimas. A Mansão Pé-de-Geleia havia queimado e sido
reduzida a destroços, e muitos Fangs queimaram com ela. Pedaços de armadura
carbonizada jaziam espalhados pelo chão do porão. O teto se foi, as paredes se
foram, e grande parte da construção de pedra desabou, quando o madeiramento
antigo tombou. Ele não conseguia ver muito acima da borda do porão, que agora
era apenas um buraco retangular no chão, mas, de algum modo, sabia que os
Fangs haviam sumido. Também sumiram os canicórneos e toda espécie de bestas
atraídas pelas chamas. O vento soprou, as brasas crepitaram e Janner se viu
sorrindo ao ouvir o som límpido de pombas-travessas arrulhando.
Um lamento lacerou o ar.
Janner quase tropeçou em si mesmo ao tentar se lançar de volta para o túnel.
Seu coração disparava enquanto o lamento aumentava, a cada segundo. Era
algum tipo de armadilha, ele pensou amargamente. Ele deveria saber que era
bom demais para ser verdade que seus inimigos tivessem sido destruídos.
Então ele parou.

Ele reconheceu algo no som e sentiu vontade de rir. Só Peet, o Homem-Meia


conseguiria produzir um ruído tão lamurioso. Janner voltou ao espaço aberto.
“Peet?”, ele chamou, ainda tímido e com medo de fazer barulho demais.
“Peet!”
O choro parou abruptamente e Janner sorriu. Ele ouviu um som embaralhado,
seguido pelo súbito aparecimento de uma nuvem de cabelo branco na borda do
porão.
Ao ver Janner, os olhos vermelhos e lacrimejantes de Peet se arregalaram de
descrença, depois alegria, riso e, por fim, descrença novamente.
Um latido estrondoso soou, e a cabeça gigante de Nugget apareceu ao lado da
de Peet.
“Igiby! Louvado seja o Criador, é um Igiby!” Peet sorriu e saltou para o porão.
Ele passou os braços ao redor do menino, levantou-o e o girou.
Janner percebeu que Peet estava usando novas meias de tricô nos braços. Os
dois riram juntos sob o céu azul de anil.
Peet o colocou no chão e segurou os ombros de Janner, com as testas quase se
tocando. “Leeliby? Tinkifeather? Eles estão seguros? Seguros?”
Janner acenou com a cabeça, ansiosamente.
Nugget ganiu na beirada do porão, querendo pular, mas com medo da queda.
Janner estendeu a mão e disse-lhe para ficar, temendo que, se Nugget entrasse,
teriam trabalho demais para retirá-lo.
“Venha”, chamou Janner, levando Peet pelo túnel.
Janner escancarou a porta da câmara e a luz caiu sobre sua família. Eles
pareciam tão em paz que preferiria não os acordar. Mas quando os olhos de Peet
pousaram em Leeli e depois em Tink, ele engasgou-se de alegria e disse: “Eiiii!”
De uma só vez, Leeli, Tink e Nia se espreguiçaram, concentraram o olhar e
bocejaram, confusos com o que ou quem os havia acordado. Tudo o que
conseguiam ver eram as silhuetas de Janner e Peet, no vão da porta.
“Janner?” Nia chamou. “É você? Os Fangs... se foram?”
“Todos mortos, mortos, escente e dama, dente e escama”, relatou Peet.
“Sim, mamãe”, respondeu Janner com um sorriso. “O Amanhecer chegou.”
“Vovô?” Leeli perguntou, correndo até onde ele estava deitado no chão.
O sangue encharcara o pano que cobria a ferida de Podo, e tinha se acumulado
no chão, numa poça ao redor dele. Nia segurou seu rosto e chamou seu nome,
com uma voz trêmula. A respiração do velho pirata era superficial e aquosa. Por
mais que tentassem, eles não conseguiam acordá-lo.
Podo estava prestes a morrer.
46

A Água do Primeiro Poço

A luz estava mais forte na câmara de armas, e uma leve brisa movia as longas
teias de aranha que pendiam das armas e armaduras. O gemido do vento
continuava, mas à luz do dia, havia perdido seu teor fantasmagórico. A família se
punha, de pé ou de joelhos, ao redor de Podo, sem saber o que fazer. O velho
pirata sempre esteve no comando, e eles se sentiam desamparados sem tê-lo
gritando as ordens. Nia respirou fundo e, graciosamente, assumiu essa função.
“Janner, Tink. Ajudem-me a colocá-lo em uma luz melhor. Preciso ver a cor de
seu rosto.” Podo gemeu enquanto o arrastavam para mais perto da porta. O rosto
de Nia estava sério quando ela olhou para seu pai.
“Peet”, ela o chamou. “É hora de você nos contar o que aconteceu com
Nugget.” Peet desviou o olhar e ficou remexendo a frente de sua camisa.
“Peet”, Nia insistiu. “Meu pai vai morrer, e tenho a sensação de que você pode
ajudá-lo. Eu sei que vocês dois têm... um histórico”, rememorou com um olhar
para Leeli, “mas ele precisa de você agora. Todos nós precisamos.”
Peet assentiu, mas sem a olhar nos olhos.
“Como você curou Nugget?” Perguntou Nia. “Já li sobre coisas assim nos
livros antigos, mas nunca vi nada parecido antes.”
Peet lançou olhares ansiosos para a porta e mudou seu peso de um pé para o
outro, como se quisesse fugir. Depois de um longo momento, ele falou.
“Água do primeiro poço”.
Os olhos de Nia se arregalaram. “O quê?” Ela sussurrou.
“Eu curei cugget, o não — Nugget, o cão — com água... do Primeiro Poço.”
“Mas... onde você, digo...”
“O que é o Primeiro Poço?” Leeli perguntou. Ela estava sentada ao lado de
Podo, segurando uma de suas grandes mãos retorcidas entre suas mãozinhas.
“O Primeiro Poço”, Nia respondeu, ainda olhando atentamente para Peet, “é,
é... o primeiro poço do mundo. O primeiro poço em Kistamos. Um presente do
Criador para Dwayne e Gladys.”1
“Os primeiros companheiros?” Janner perguntou.
“Sim. Os antigos contos dizem que a água foi derramada na boca do poço pelo
próprio Criador. Ela corre sob o solo e é a força vital de Kistamos. Sem ela as
árvores nunca floresceriam e a grama jamais cresceria. Toda a vida arrefeceria
até finalmente desaparecer. O Criador nos deu o poço como um presente, que,
por muito tempo, foi guardado e usado para curar e restaurar.”
“E o poço se perdeu?” Tink questionou.
“Sim, se perdeu. Muito tempo atrás. Antes mesmo de Anniera ter um nome.”
Nia observou Peet. “Até agora.”
Peet estava fungando, grandes lágrimas mais uma vez enchiam seus olhos
cansados. “Anos atrás, antes de vir pra cá, eu o encontrei.” Peet estremeceu com
alguma memória terrível. “Encontrei o Primeiro Poço e trouxe um pouco da
água pra cá. Quando vi o pequeno Mugget norrendo — Nugget morrendo —,
peguei um pouco, lá do meu castelo, e dei ao cão uma gota pra beber.” Peet
sorriu para Leeli em meio às lágrimas. “E funcionou.”
“Onde está a água agora?” Nia perguntou com tanta paciência quanto
conseguia reunir. “Você pode pegar um pouco e trazer aqui?”
Peet assentiu, limpou o nariz com uma das meias e partiu.
Janner olhou para seu querido avô, que lutou tanto por eles, e sorriu ao pensar
nele ficando um metro mais alto — e mais largo — com um gole da água
ancestral. Podo já era a maior alma que ele conhecia. Mas naquele momento,
Janner pensou, seu avô parecia estar encolhendo e seu rosto avançara do pálido
para o cinza.
“Por favor, se apresse, Peet”, Nia implorou com um sussurro, acariciando o
rosto de seu pai.
Janner e Tink puxaram Leeli do lado de Podo e ajudaram-na a sair do túnel
para ver seu amado cachorro. Os Fangs que morreram no túnel não passavam de
poeira e armaduras, e as crianças passaram facilmente por eles.
Nugget estava deitado, com o focinho pendurado na borda do porão. A visão
de Leeli o fez latir, abanar o rabo e correr o mais rápido que podia, em círculos
de tremer o solo.
Leeli deu uma risadinha e bateu palmas. Ela acenou para seu cachorro-cavalo,
e reclamou que ainda não havia como chegar até o amigo. Mas seu ânimo estava
mais leve, e isso deixou o coração de Janner feliz.
“Não acredito que conseguimos”, comemorou Tink consigo mesmo. Ele
estreitou os olhos para o céu, da mesma forma que Janner havia feito,
apreciando, talvez pela primeira vez, como o céu era maravilhoso de se ver.
“Devíamos ficar com a mamãe”, ele aconselhou. “Ela não deveria estar sozinha
se vovô...”
“Você está certo. Vamos, Leeli”, chamou Janner.
“Nós voltaremos”, assegurou Leeli a Nugget, que gemeu em resposta.
Nia parecia pequena, sozinha com Podo na câmara. Ela estava com a cabeça do
pai deitada em seu colo e orava por ele, balançando suavemente de um lado para
o outro. Ela parecia desesperada.
Até onde Janner podia conjecturar, Podo não tinha chances de sobreviver. O
mais velho dos irmãos Igiby sentia o coração afundar no peito, pesaroso de
tristeza e endurecido de raiva. Ele estava com raiva dos Fangs por terem
colocado os pés em Skree. Janner estava com raiva de Zouzab por tê-los traído.
Ele estava até começando a sentir raiva do Criador, por criar um mundo onde
coisas como aquelas podiam acontecer.
Podo havia lutado bravamente, incansavelmente, para proteger aqueles que
amava, por liberdade e pelo que é bom, e ali estava ele, morrendo.
“Seu pai era um bom homem. Um homem valente. Ele lutou bem e morreu
bem, na Grande Guerra.”
Janner podia ouvir Podo dizendo isso sobre seu pai, Esben, e agora estava
acontecendo o mesmo com o velho guerreiro. Ele certamente lutou bem, e logo
morreria bem, embora não na Grande Guerra. E era tudo por eles, pensou Janner,
por sua filha e seus três netos, que sobreviveram para ver o amplo céu azul
naquela manhã.
Então Janner se lembrou das Joias de Anniera. Nada daquilo teria acontecido
se não fosse por aquelas malditas joias que Gnag e todos os seus asseclas
estavam tão empenhados em encontrar. E nada daquilo teria acontecido se Podo
e Nia não estivessem tentando mantê-las escondidas. Janner sentiu sua raiva
voltando-se para Podo e sua mãe, por se importarem mais com as Joias de
Anniera do que com ele e seus irmãos. Por que eles simplesmente não desistiram
das joias? Será que aquelas joias realmente valiam o preço de perder sua casa?
Valia a pena morrer por elas? Janner sentia as lágrimas querendo emergir, sentia
o nó na garganta, e se virou para que Tink não o visse chorar.
Mas a cabeça de Tink estava enterrada em seu braço; ele estava encostado na
parede — soluços abafados vinham dele, em ondas.
A espera parecia uma eternidade, enquanto Podo gemia e Nia orava e as três
crianças choravam pelo avô.
E então Janner ouviu um farfalhar.
Peet, o Homem-Meia apareceu na porta da câmara. Com uma mão emeiada
estendida, ele oferecia um pequeno frasco de couro.
Leeli empurrou Peet na direção de Nia, que segurava a cabeça de Podo. Tink e
Janner juntaram-se a eles, reunidos em torno de Podo, enquanto Peet removia a
tampa do frasco.
Nia ergueu a cabeça de Podo e abriu sua boca para que Peet pudesse derramar
um pouco da água. Mas Peet balançou a cabeça e, em vez disso, puxou a tira da
bandagem improvisada, expondo a ferida. A abertura era mais profunda e pior do
que eles imaginavam, e Leeli cobriu os olhos.
Peet derramou um fio d’água sobre o ferimento, assentiu com a cabeça e tapou
novamente o recipiente.
“Tem certeza de que é tudo o que ele precisa?” Nia fitava o rosto de Peet. “Ele
mal respira.”
“Eu usei um pouco demais no Nugget, você não acha? Não precisamos de um
Podo gigante, precisamos?” Peet riu nervosamente. “Eu não, certamente.” Vendo
que ninguém ria com ele, o rosto de Peet se endireitou. “A água é forte. Pode
curar feridas mais profundas do que essa.” Peet olhou para suas mãos com meias
e a velha tristeza voltou ao seu rosto. Ele suspirou, enxugando as mãos na túnica,
como se pudesse limpar as garras que estavam escondidas sob o tricô.
“Estarei lá fora”, avisou. “Não quero ser a crimeira poisa que ele veja quando
acordar.”
Peet saiu do cômodo.
“O que eu não daria por uma panela de floelho ensopado, agora”, resmungou
uma voz calorosa e cheia de brio.
Podo estava deitado no chão olhando nos olhos de sua filha e sorrindo. Muito
felizes, as crianças correram até o avô, com cuidado para não esbarrarem na
ferida. Apenas uma cicatriz rosada permanecia sob o sangue seco, cristalizado
pela água do Primeiro Poço.
Podo se sentou e bocejou como se estivesse cochilando em sua cadeira
favorita. Ele sorriu para Janner, Tink e Leeli com olhos que pareciam mais
jovens do que deveriam ser, e os Igibys choraram, riram e o apertaram como se
ele tivesse acabado de voltar de uma longa jornada.
Depois de se esticar bem, Podo levantou-se e pegou sua trouxa. Havia uma
ginga de menino em seus passos, enquanto passava, com sua família, pela porta
de ferro.
Eles pisavam sobre pilhas empoeiradas e armaduras, enquanto Janner e Tink
contavam os eventos da longa noite: o incêndio da mansão, os uivos das matilhas
e os gritos dos Fangs, e sobre a água de Peet, do Primeiro Poço.
Nia ouvia com orgulho, enquanto seus filhos regalavam o velho pirata com
uma história que rivalizava com as dele mesmo. Podo ouvia tudo, abaixando e
levantando suas sobrancelhas a cada passo da história.
Leeli, mancando, aninhou-se sob o braço do avô. Seu rosto se iluminou quando
eles alcançaram a borda da parede do porão.
Peet estava lá, sentado na beira do porão, ao lado de Nugget. Sem falar ou
olhar para Podo, Peet jogou uma corda. Ele ergueu Podo primeiro, e então, com
outra de suas silenciosas e intensas trocas de olhares, Peet recuou, deixando que
Podo puxasse para a luz do dia o resto de sua família.
47

Velhas Feridas

Nugget latiu (um latido alto e denso) e Leeli subiu em suas costas novamente.
Montada em Nugget, ela brilhava como a luz do sol.
Em direção ao oriente, o céu começava a nublar sobre o Mar Sombrio da
Escuridão, onde se formava uma densa tempestade. A grama alta da planície
ondulava feito o mar, e, perto de sua borda âmbar, havia incontáveis corpos de
canicórneos. As feras estavam espalhadas pelo campo e ao redor da Mansão Pé-
de-Geleia em grupos, a maioria ao lado de pilhas reveladoras de armaduras
Fang, cujos restos brancos e empoeirados eram soprados pelo constante vento
leste.
Perto da floresta, Janner avistou seis vacas-dentadas mortas, do tamanho de
Nugget, e ao redor delas havia um denso agrupamento de armaduras e armas
Fang. Uma poderosa batalha fora travada enquanto os Igibys dormiam nas
entranhas da mansão. Agora, apenas as moscas zumbiam em torno dos
cadáveres, enquanto onde eles se encontravam o sol batia cada vez mais alto e
mais forte.
Podo mandou Janner e Tink de volta à sala de armas várias vezes, para pegar
espadas, escudos e arcos com um bom suprimento de flechas. Após vasculharem
as pilhas de armas, Tink e Janner escolheram as espadas que haviam usado na
noite anterior. Com uma última olhada para o arsenal secreto de Oskar, eles
fecharam a porta de ferro e puxaram a maçaneta para se certificar de que estava
bem trancada. Os meninos passaram as armas para Podo e escalaram a corda.
“Certo, então”, constatou Podo. “Temos um longo caminho a percorrer até as
Pradarias de Gelo. E não demorará muito para que alguém descubra o que
aconteceu aqui esta noite. Com certeza, teremos toda espécie de bestas e feras
atrás de nós, procurando as Joias de Anniera.”
Janner se irritou, cansado de ouvir sobre as joias que haviam arruinado a vida
deles. Cansado de não saber o que elas eram e por que Gnag, o Sem-Nome as
queria tanto. Janner estava farto de adultos e de seus segredos, e embora
estivesse feliz por seu avô estar vivo e feliz por todos terem sobrevivido à noite,
ele tinha uma rajada de ressentimento em seu peito que estava se transformando
em uma tempestade — uma tempestade que ele não conseguia mais conter.
“Vocês ficam falando dessas joias preciosas! Tudo o que nos aconteceu foi por
causa delas, mas ninguém vai nos dizer onde estão! Perdemos nossa casa, nossos
amigos — e quase perdemos o senhor, vovô — tudo porque Gnag, o Sem-Nome
quer essas joias. Por alguma razão, vocês acham que essas ‘joias preciosas’ são
mais preciosas do que nós, ou, pra começo de conversa, vocês não as
guardariam, não é? Por que não podemos simplesmente pegá-las e jogá-las no
Mar Sombrio para que parem de destruir tudo ao nosso redor? E, agora, o que
estamos fazendo? Agora estamos fugindo, para as Pradarias de Gelo, onde quer
que isso seja, e ainda assim vocês não nos dirão o que está acontecendo!”
Podo esperou pacientemente que Janner terminasse.
Janner respirou fundo e deixou escapar: “Então, o que está acontecendo?” Para
sua surpresa, Podo não estava zangado e Nia estava até sorrindo. “Sim!” Tink
acrescentou, cruzando os braços. “O que está acontecendo?”
Agora foi Podo quem sorriu. Ele olhou para Nia e eles riram.
Janner não conseguia entender, e nem Podo, nem sua mãe tentaram ajudar.
“Vamos contar a vocês tudo sobre isso, esta noite”, afirmou Podo, virando-se
em direção à estrada, “assim que encontrarmos um lugar seguro para descansar.”
O velho jogou a trouxa por cima do ombro e respirou fundo, com alegria, o ar
salgado. “Sigam o velho Podo!”, e então bradou com gosto e marchou na direção
sudoeste, para longe da floresta.
“Papai”, Nia o chamou.
“Oi?” Podo respondeu, parando a alguns passos de distância.
“Acho que devemos ir para a casa da árvore de Peet. Ele tem comida e...”
“Comida?” Perguntou Tink.
Peet, o Homem-Meia animou-se e olhou para Nia, com um brilho de esperança
nos olhos.
“Nós não vamos pra lá”, asseverou Podo, com as sobrancelhas espessas
franzidas. “Estamos indo pra Torrboro, depois subindo a Estrada Norte, até
encontrarmos uma passagem segura pras Pradarias de Gelo.” Ele virou a cabeça
e saiu novamente, mas Nia não se moveu. Podo se virou outra vez, com o rosto
vermelho. “Vamos, eu disse!”
“Não.” As costas de Nia se endireitaram.
“O quê?!” Podo deu um passo de volta, em direção à filha.
“Eu disse não.” Nia deu um passo à frente. “Você tem carregado sua raiva por
tempo suficiente, papai, e agora essa raiva está se tornando um fardo que você
não carrega mais sozinho. Isso está nos fazendo sofrer com você — seu velho
tolo teimoso.” Podo ficou pasmo.
“Peet salvou as vidas de todos nós”, Nia emendou, “e mais recentemente, a
sua. Você pode se sentir bem agora, mas há menos de meia hora, a morte jazia à
porta. E você sabe a quem deveria estar agradecendo pela respiração em seus
pulmões?”
Peet estava recuando, timidamente, mas Nia agarrou seu braço e o puxou para
frente. “A este homem”, afirmou ela. “Ele tem mantimentos e abrigo na floresta,
onde nenhum Fang vai querer se aventurar por muito tempo, depois do que
aconteceu aqui. Agora, eu amo você, papai, mas sou a mãe dessas crianças e
minha intenção é colocar comida em suas barrigas e travesseiros sob suas
cabeças. Vamos para a casa da árvore de Peet, e ponto-final.”
Olhares misturados de perplexidade, vergonha e raiva brilharam no rosto de
Podo. Janner teve vontade de rir. Podo gaguejou e formou o início das palavras
com a boca, mas não encontrou nada para dizer.
“Peet, mostre o caminho”, Nia ordenou.
Peet obedeceu à ordem de Nia com os olhos arregalados e um sorriso nervoso,
marchando na direção oposta à de Podo. Nia e os meninos o seguiram.
Leeli cavalgou Nugget até onde Podo estava, sozinho e estupefato, e,
aproximando-se dele, inclinou-se e beijou-o na bochecha barbuda. Nugget fez o
mesmo, arrastando uma língua rosa desleixada pelo braço de Podo, ensopando
sua camisa. Então, eles também se afastaram de Podo e seguiram Peet,
movendo-se para o norte e para o oeste, na direção da floresta.
Podo olhou para os restos fumegantes da Mansão Pé-de-Geleia.
“Humf”, finalmente resmungou, marchando atrás de sua família.
48

Abrigo

O céu cinza havia se tornado um rio de nuvens agitadas, voando baixo,


movendo-se tão pesadas e próximas que pareciam raspar as copas das árvores.
Os Igibys, um cachorro gigante e Peet, o Homem-Meia caminharam ao longo da
borda da floresta por uma hora.
Janner manteve um olhar cuidadoso nas árvores, à direita, mas Peet não dava
sinais de preocupação. Ele caminhava sem falar — seu cabelo branco era
chicoteado pelo vento forte. Janner se consolava com a confiança do estranho
homem. Ele tinha provado ser um bom amigo e um guerreiro capaz.
Atrás deles, outro homem de cabelos brancos caminhava em silêncio.
Podo não havia dito uma palavra desde que saíram para a casa da árvore, de
Peet, mas seus olhos mostravam que seu espírito estava mais leve. Ele não
parecia mais tão zangado e aparentava estar considerando algum assunto que
exigia cuidadosa reflexão.
Leeli cavalgava ereta, como uma rainha em um cavalo real — o sorriso não
cessava de seu rosto. Ela tinha sua família e seu cachorro, e não precisava mais
da muleta enquanto Nugget estivesse por perto. Suas patas peludas eram grandes
como travessas, mas faziam pouco barulho enquanto caminhava.
O braço de Nia estava em torno de Tink, cujo corpo magro mostrava sinais de
fadiga. Ele se apoiava na mãe e descansava a cabeça em seu ombro.
Janner olhou para trás, na direção de Glipwood, mas não conseguiu ver nada
da cidade. Eles passaram por algumas fazendas abandonadas, mas, fora isso, não
viram nenhum sinal, fosse de humano, fosse de Fang. Janner pensou no chalé da
família, no fim terrível de Slarb com os thwaps e com a espada rápida de Podo.
Ele estremeceu ao pensar o quão perto ele e Tink estiveram de morrer nas mãos
daquela criatura enlouquecida. Mas não morreram. Mesmo com um oceano de
Fangs em perseguição, eles, de alguma forma, graças ao Criador, permaneceram
vivos e inteiros.
Mas nem todos sobreviveram. A última vez que Janner o vira, Oskar estava
deitado no chão de sua querida livraria, instando os Igibys a fugirem. Com seu
último suspiro ele tentou salvá-los. Foi Oskar quem lhes proveu refúgio sob a
Mansão Pé-de-Geleia, que perdera a vida tentando proteger Leeli e Nia. Mas por
que Oskar escondeu as armas? Janner se perguntava. E como ele chegou até
elas? Janner lembrava que Oskar havia passado muitos anos, desde a guerra,
viajando por Skree, reunindo livros e curiosidades. Mas armas? Será que ele
estava, na verdade, procurando pelas Joias de Anniera? Seria isso o que Podo
estava carregando na trouxa sobre seus ombros? Por que seu avô desprezava
tanto Peet, o Homem-Meia? E o maior questionamento de todos: por que os
Igibys estavam na posse de algo que Gnag, o Sem-Nome desejava tão
implacavelmente encontrar?
Janner estava consumido por tantas perguntas que quase não ouviu o anúncio
de Peet.
“Aqui estamos.” Peet parou em frente ao maior carvalho à vista.
O carvalho se projetava para além das outras árvores da floresta e estendia seus
densos e pesados galhos acima e ao redor deles, como uma galinha protegendo
seus pintinhos. “Rugget estará seguro aqui”, garantiu Peet enquanto se lançava
para os galhos mais baixos e estendia a mão para ajudar Nia a subir. Muito acima
deles, quase invisível por trás das folhas, estava uma das pontes de corda e tábua
de Peet, pendurada entre as árvores.
“Pra cima nós vamos”, declarou, ainda sem olhar para Podo. Ele puxou todos,
exceto o velho, nem ofereceu ajuda, mas se afastou de Podo e abriu caminho
pelos galhos até a ponte.
Podo passou a trouxa para Janner e subiu, com muito menos graciosidade, na
árvore.
Janner sentiu um respingo de chuva e ergueu os olhos.
O céu havia escurecido e as pontes de corda começaram a balançar com o
vento de uma tempestade crescente.
Peet, Podo e os Igibys correram ao longo das pontes, enquanto a tempestade
precipitava sua forte chuva; eles já estavam encharcados quando finalmente
subiram pelo alçapão, gratos por entrarem no castelo de Peet.
Para Janner, com a tempestade soprando lá fora, a casa da árvore era a melhor
acomodação em todo o país. Ele ajudou Peet a acender depressa três lampiões, e
saboreou a reconfortante luz amarela e laranja que lançavam nas paredes e no
teto. Peet fechou a porta e o uivo do vento quase desapareceu. Leeli encontrou
um lugar e se sentou com as costas contra a parede — cobertor seco sob o
queixo. Peet apontou para uma pilha de colchas velhas ao lado dela.
“Muitos cobertores secos para vocês. Fica muito frio aqui no inverno, viu,
viu?”
“Senhor Peet, e quanto ao fogo?”
“Hãn? Ah, o fogo. Estou aqui há tempo suficiente para que os canicórneos me
deixem em paz, Jangiby. Além disso, a maioria das feras não consegue escalar. O
pastelo de Ceet é seguro.”
“Humf”, resmungou Podo, inspecionando a casa da árvore e se esforçando ao
máximo para não ficar impressionado.
Nia deu uma cotovelada nele. “Peet, é adorável. Posso ajudar você em alguma
coisa?”
Peet estava radiante. Ele se ocupou com potes e panelas, vasculhando sacos de
grãos e carnes secas e vegetais, minúsculas garrafas de especiarias e ervas.
Enquanto Peet preparava a refeição, cada um dos outros encontrou um recanto e
uma colcha e se acomodou. Podo recusou um cobertor e encostou-se na parede,
olhando para as mãos.
A chuva batia nas janelas e nas laterais da casa, mas Peet havia selado bem a
estrutura. Nem uma gota d’água vazava. A casa da árvore balançava e rangia em
seu poleiro, e o cheiro de ensopado encheu a narina de todos. Janner, como todos
os Igibys, adormeceu, agradecendo ao Criador por estarem seguros e secos no
castelo de Peet.
Inclusive Podo.
49

As Joias de Anniera

Janner acordou muito antes de seus olhos se abrirem. Ele estava deitado sob um
cobertor quente, sentindo o movimento de vaivém da casa da árvore, ouvindo o
murmúrio de conversa suave e a chuva nas janelas. Ele ainda não queria acordar.
O uivo do vento e o estrondo dos trovões intensificavam sua alegria, ali no
abrigo.
Nia percebeu que ele se mexeu e beijou sua bochecha.
“Olá, querido”, cumprimentou-o.
Ele sorriu, espreguiçou-se e forçou-se a sentar. Tink e Leeli estavam acordados
e sorrindo para ele. O alçapão se abriu e Podo entrou no cômodo, com as roupas
ensopadas.
“O velho Nugget tem um lugar seco, agora”, assegurou ele alegremente.
“Obrigada, vovô”, agradeceu Leeli, abraçando a perna do avô. Ela olhou pelo
alçapão para o abrigo improvisado que Podo havia montado, com madeira e
peles de animais que Peet havia providenciado.
“Sim, moça. Seu cachorro está seco como um osso e satisfeito por estar por
perto”, tranquilizou-a Podo. “Ele enviou uma mensagem pra você, também.”
Leeli parecia confusa, e Podo a ergueu para fungar em volta do queixo e
ombros, como um cachorro. Ela gritava de alegria e todos se juntaram às risadas.
Peet pigarreou e declarou que o guisado estava pronto.
No alto dos galhos de um carvalho de Glipwood, no meio da tempestade mais
violenta que Skree viu em mil anos, os Igibys, Podo Helmer e Peet, o Homem-
Meia compartilhavam uma refeição juntos. Embora Peet ficasse em silêncio e, às
vezes, soturno, havia muitas risadas e ações de graças pela provisão e bondade
do Criador, enquanto eles comiam e bebiam até que suas barrigas estivessem
cheias.
Janner viu a trouxa de Podo caída no canto e decidiu que era hora de respostas.
Ele não era o único. Sem uma palavra, uma sensação de gravidade se abateu
sobre todos eles, e ficaram em silêncio, enquanto mastigavam a comida.
Finalmente, Janner colocou sua tigela vazia no chão, ao lado dele. “As Joias de
Anniera”, começou ele, cruzando os braços. “Onde estão elas?” Nia e Podo
olharam um para o outro, depois para Peet.
Tink e Leeli mal respiravam, tão ansiosos quanto Janner para saber a verdade.
Nia assentiu para Podo e colocou a mão no antebraço emeiado de Peet,
enquanto Podo apanhava sua trouxa, da porta. O velho pirata tinha um brilho nos
olhos novamente, e uma expectativa crepitante se movia como faíscas invisíveis
entre as crianças. Podo fez uma pausa, saboreando o momento, e então disse,
com as sobrancelhas espessas erguidas: “Para começar, você não está fazendo a
pergunta certa.” Sua declaração ficou suspensa no ar por um momento.
Tink semicerrou os olhos para o avô. “É... então, o que o senhor tem na
trouxa?”
“Não. A verdadeira questão é...” Podo fez uma pausa dramática. “O que são as
Joias de Anniera?”
Janner sentiu seus braços formigarem. Havia algo estranho na maneira como os
três adultos os observavam, sorrindo.
“As joias de Anniera”, Nia emendou, “têm sido procuradas por Gnag, o Sem-
Nome desde que a Grande Guerra se abateu sobre o litoral da Ilha Brilhante e a
sobrepujou. Gnag destruiu tudo o que havia de bom e belo naquele lugar...
exceto as joias. E ele as tem procurado desde então. Gnag ficou obcecado por
elas e arruinou nações em sua busca porque acredita que as Joias de Anniera
detêm um poder oculto. Sua busca pelas joias é o que o trouxe a Skree. Se ele
não acreditasse que vieram pra cá, acho que ele não teria se incomodado em
cruzar o Mar Sombrio da Escuridão.”
“Mas ele veio”, emendou Podo gravemente.
“Alguém deu as joias ao senhor?” Tink deixou escapar. “Como você acabou
com as joias se eram de Anniera? Você concordou em esconder as joias?”
Janner podia sentir suas emoções crescendo novamente. “Como você pôde
fazer isso quando sabia que nos colocaria — e a todos em Glipwood — em
perigo? E por que, pra começo de conversa, você daria algumas das joias para o
Gnorm, se sabia que elas poderiam trazer Gnag até aqui?”
“Janner, as joias que dei a Gnorm não tinham valor para mim”, Nia respondeu
gentilmente. “Antes, elas podem ter significado algo, mas foram mantidas
escondidas para um momento como aquele. Gnag não daria a mínima para
aquelas joias. Deve ter havido algo que não notei nelas que as identificaram
como sendo de Anniera.”
“Anniera?” Leeli perguntou. “Como você conseguiu ouro e joias de Anniera?”
Nia fez uma pausa. “Porque eu as trouxe pra cá. De Anniera.”
A confusão das crianças era tão evidente que Podo riu. “Minhas crianças,
viemos pra cá de Anniera pra escapar de Gnag e seu exército, durante a Grande
Guerra.”
“Mas, vovô, o senhor é de Glipwood! E mamãe também!” Leeli foi ficando
cada vez mais confusa.
“Não, querida”, Nia corrigiu a filha. “Seu avô é de Glipwood. Mas eu nasci em
Vales Verdes, do outro lado do Mar Sombrio, onde ele conheceu sua avó.
Quando me casei com seu pai, todos nós fomos morar em Anniera. Mas quando
a guerra nos alcançou, fugimos.”
“Tínhamos que proteger as joias, viu?” Observou Podo.
“Então, onde elas estão?” Tink demandou.
“Eu disse a você, rapaz. Essa é a pergunta errada.”
“Tá bom, tá bom. O que são as Joias de Anniera, então?”
A pergunta pairou no ar como fumaça, ou como partículas de poeira capturadas
por um feixe brilhante de luz. Os três adultos sentados e olhando para as três
crianças. As crianças olhando de volta para os adultos. O estômago de Janner
deu uma cambalhota e sua cabeça ficou tonta. Ele não sabia qual era a resposta,
mas sentia em seus ossos que, qualquer que fosse, mudaria tudo.
Tudo.
Peet, o Homem-Meia pigarreou e se inclinou para frente. Seus grandes olhos
carregavam menos tristeza do que Janner jamais vira, e ele sorriu para os rostos
das crianças Igiby — primeiro Janner, depois Tink, depois Leeli, e depois Janner
novamente.
“Vocês”, revelou ele. “Vocês são as Joias de Anniera.”
Ninguém falou. Nenhuma das crianças respirava. Seus corações vibravam com
a verdade do que havia sido dito. O ar em torno das palavras de Peet teria
brilhado, fosse possível ver tal coisa, e as crianças sabiam que aquilo era
verdade.
Janner engoliu em seco.
“O que... O que você quer dizer?”
“O pai de vocês...” Nia explicou lentamente — lágrimas lhe sufocavam as
palavras e começaram a transbordar de seus olhos. “O pai de vocês era o Rei
Supremo da Ilha Brilhante.”
50

Os Guardiões do Trono

Eu era a rainha”, Nia revelou. “Vocês três”, ela deixou escapar um longo e
melancólico suspiro, “são tudo o que resta do grande reino de além-mar.”
“As joias de Anniera”, Peet sussurrou, e se curvou tão baixo que sua testa
tocou o chão.
Podo, para surpresa deles, fez o mesmo.
Janner pensou no retrato de seu pai na proa do barco, com os braços tão abertos
quanto seu sorriso. Um rei? E não qualquer rei, mas o rei de Anniera?
Janner mal conseguia acreditar no que estava acontecendo. Na verdade, ele não
acreditava. Mas ele sabia. E agora ele percebia que sempre soube, mas o
pensamento o atingiu tanto com medo quanto com admiração.
“Então, se meu pai está morto, isso significa... Eu sou... rei?” Janner gaguejou.
Nia o fitou. “Não, filho. Não, você não é.” As bochechas de Janner coraram.
“Está tudo bem, querido”, consolou-o, colocando a mão em seu braço. “Veja,
em Anniera, a realeza é preterida ao filho mais velho. Desde os primórdios do
governo de Anniera, a posição de maior distinção é a de protetor. Muitos reinos
caíram por causa da inveja, ganância e desejo de poder. Então, o segundo filho
herda a coroa.” Ela olhou para Tink. “Seu irmão é o legítimo herdeiro do trono.”
Tink corou e desviou o olhar dos olhos plácidos de sua mãe.
Janner sentiu um arrepio indesejado de inveja em seu estômago.
“Mas uma grande honra é concedida ao mais velho”, Nia continuou, tomando a
mão de Janner. “O filho mais velho, com o nascimento do mais novo, torna-se o
protetor do rei. É o dever de sua vida servir ao irmão mais novo e defendê-lo de
todos os perigos. Ele é forjado para a batalha, e seu nome é honrado em todas as
casas do reino.”
Janner pensou em toda a pressão que sua mãe e Podo haviam colocado sobre
ele para cuidar de Tink e Leeli. Não se passava um dia sem que tivessem lhe dito
que era seu dever, como irmão mais velho, cuidar deles. Era sempre tão
sufocante, e agora ele imaginava seu futuro como um velho rebaixado,
acorrentado ao irmão para sempre, incapaz de fazer qualquer coisa por si mesmo
— uma vida inteira se preocupando com seu imprudente irmão caçula e irmã
aleijada, enquanto Tink haveria de reinar e Leeli faria — bom, o que ela
quisesse.
Nia pressentiu os pensamentos do filho. Ela pegou o rosto de Janner nas mãos
e fixou seus olhos nos dele. “Não é pouca coisa ser um Guardião do Trono de
Anniera. Eles têm sido louvados por bardos por mil anos e recebido um lugar de
honra como em nenhum outro reino — como nenhum outro rei no mundo —,
não porque são senhores, mas porque são servos. Houve muitos dias em que seu
pai desejou ser um Guardião do Trono, e não o Rei Supremo.
Mas Janner havia parado de ouvir. A inveja ardente em seu peito esfriou
quando ele se lembrou de algo que vira em um dos diários de Peet.
“Guardião do Trono?” Questionou Janner.
“Sim, é o nome para...”
“Artham P. Wingfeather, Guardião do Trono de Anniera”, adiantou Janner.
Peet ergueu a cabeça do chão.
“Sim, meu senhor”, respondeu a Janner.
Tink engasgou. “Mas, isso faria de você...”
“Nosso tio!” Leeli concluiu.
“Sim, Senhora Leeli”, anuiu Peet, curvando-se ao chão outra vez. Podo estava
observando Peet com um olhar carrancudo. Seu bom humor estava
desaparecendo.
“Já é o suficiente, Artham”, Podo interrompeu, tentando, por causa de Nia, não
soar tão rude.
“Mas o que aconteceu com você? Com seus braços?” Janner perguntou.
“Isso é algo que eu mesma queria perguntar a ele”, emendou Nia, virando-se
para Peet.
Mas Peet balançou a cabeça violentamente. Ele recuou contra a parede da casa
da árvore e fixou-os com um olhar de tal terror, que Janner ficou de pé. Peet
arfava, respirando rápido e estava coberto de suor.
“Para trás!” Podo disse para as crianças. Elas se amontoaram na parede da casa
da árvore e Podo se colocou entre elas e Peet. Nia colocou a mão no braço de
Podo e caminhou lentamente até o Homem-Meia.
“Shh...” Ela sussurrou para ele. “Artham. Artham, sou eu, Nia. Você está
seguro.” Sua voz parecia ter um efeito calmante até sobre o vento que batia lá
fora. E, por um tempo, a chuva caiu mais devagar. Peet olhou para Nia e sua
respiração começou a suavizar, a cada inspiração. Ela se sentou ao lado dele e o
aconchegou junto a si. Abraçando-o como uma mãe que acalma uma criança que
acorda de um pesadelo, Peet, tal qual uma criança, deixou seus olhos finalmente
se fecharem. Ele logo adormeceu. Os olhos de Nia cintilavam de tristeza
enquanto ela o segurava.
“Vocês deveriam tê-lo visto em Anniera, quando ele era o Guardião do Trono”,
Nia relatou calmamente. “Seu cabelo era negro como a meia-noite, e ele estava
na mira de todas as donzelas do reino. Ele compunha a mais bela poesia.
Escrevia grandes contos e poemas bobos e os lia para vocês, Janner e Tink,
enquanto deitados em seus berços, à noite. Seu pai costumava dizer que não
havia melhor homem no reino do que seu irmão, Artham.” Peet choramingou em
seu sono.
“Shh...” Nia o acalmou novamente.
As crianças se afastaram dos cantos da casa.
Podo sentou-se bufando, meneando a cabeça. “Ele é perigoso, Nia.”
“Ele morreria antes de machucar essas crianças, papai.”
“Mas o que aconteceu com ele?” Janner perguntou.
“Não sabemos”, Nia respondeu. “Quando Gnag e seu exército atacaram
Anniera, eles nos levaram para o Castelo Rysen, em Dorminey, no centro do
reino. Foi lá que fizemos nossa casa.” Nia olhou para a chuva escorrendo pelo
vidro da janela da casa da árvore. “Os Fangs, os trols e outras feras nojentas, que
nunca tínhamos visto antes, romperam os muros — Leeli, você havia acabado de
nascer. Janner, você tinha três anos; Tink, você tinha dois. Seu pai disse a Peet
para nos pegar e ir embora. Havia uma rota de fuga antiga, uma saída secreta do
palácio que levava ao Rio Rysen e, depois, ao Mar Sombrio. Mas seu pai não iria
em seguida. Ele disse que lutaria o quanto pudesse e então nos encontraria no
rio.”
“Seu pai”, continuou Podo, “insistiu que fôssemos. Ele disse que havia algo no
palácio que precisava pegar. Algo que devia manter longe das garras de Gnag.”
“E você não sabe o que era?” Perguntou Janner.
“Não faço ideia”, respondeu Podo.
“Vejam, crianças”, explicou Nia, “proteger o irmão estava no sangue e nos
ossos de Peet. É a própria respiração de um Guardião do Trono.” Janner e Tink
olharam um para o outro, sem jeito.
“Mas seu pai ordenou que ele nos levasse a salvo até o rio. Peet não sabia o
que fazer. Ele amava a todos nós e queria nos ajudar, mas não suportava a ideia
de deixar seu irmão para trás. Os monstros estavam no palácio e procuravam por
nós. Artham — Peet — deixou seu pai, mas apenas para nos ajudar.” Nia
acariciou o rosto de Peet. “Pode ter sido a coisa mais difícil que ele já fez.”
Ela ficou em silêncio por um instante, o único som sendo o tamborilar da
chuva contra as janelas.
“Ele jurou voltar assim que estivéssemos seguros”, Nia rememorou, perdida na
memória. “Peet enfrentou os Fangs e nos conduziu à saída secreta, onde seu avô
ficou de nos encontrar com um barco. Eu carregava você, Leeli. Janner, você
tinha idade suficiente para segurar minha mão e acompanhar. Tink, minha mãe
carregava você.”
Podo olhou para o lado de fora.
“Nossa avó?” Leeli ficou repentinamente com os olhos arregalados. “Ela nos
conheceu?”
“Sim”, revelou Podo — sua voz densa de tristeza. “E ela ainda os conheceria,
se não fosse por esse seu tio.” Podo cuspiu.
“Papai, chega!”
Podo enxugou uma lágrima do rosto.
Janner nunca o tinha visto chorar.
“Chegamos à margem do rio antes do seu avô”, Nia continuou. “Fangs e trols
surgiram do nada e nos atacaram. Peet era o melhor espadachim do reino, mas
mesmo ele não poderia lutar contra tantos.” Ela fez uma pausa para engolir o nó
na garganta. “Mamãe — sua avó — foi morta.”
“Mas por que culpar Peet por isso?” Questionou Janner. “Sendo que você
acabou de dizer que havia Fangs demais.”
Podo tremia as sobrancelhas. Seguiu-se um silêncio desconfortável. Seu olhar
voltado a Peet era de rancor.
“O que aconteceu com ela não foi culpa de ninguém”, asseverou Nia com
firmeza. “Isso é tudo o que precisa ser dito.” Podo transpareceu o começo de um
protesto, mas o olhar no rosto de Nia o silenciou. Ela se virou para Leeli e
colocou a mão em seu rosto. “Peet os segurou o melhor que pôde enquanto
embarcávamos, mas... um dos Fangs agarrou você, querida.” Ela pegou a mão de
Leeli. “Ele tentou arrancar você de meus braços, e...”
“Minha perna”, Leeli concluiu com um suspiro.
“Sinto muito”, Nia sussurrou. Ela cobriu os olhos e lutou para manter a
compostura. Leeli se aproximou dela.
“Está tudo bem, mamãe”, retocou Leeli. “Eu tenho Nugget, agora.” Nia
respirou fundo e abraçou Leeli, com força.
“Descemos o rio”, Nia prosseguiu seu relato depois de um momento. “Peet
correu de volta, passando pelos Fangs e pra dentro do palácio, tentando
encontrar seu pai, mesmo enquanto tudo queimava. A última coisa que vi de
Anniera foi fogo e morte. Navegamos o rio por horas até o estuário do Mar
Sombrio e não vimos nada além de chamas altas em cada lado do rio.”
“Não conseguia ver nada”, comentou Podo, olhando para a tempestade. “Eu
estava navegando em um rio negro, entre paredes de fogo. Percorremos o rio
Rysen até o Mar Sombrio. Gnag havia saqueado cada aldeia por onde passamos,
e eu vi coisas que nunca esquecerei, embora o Criador saiba que eu tentei.” Ele
ficou em silêncio por um momento. “Quando chegamos ao mar, pedimos ao
Criador que nos guiasse, que protegesse as Joias de Anniera, e eu lhes digo, ele
protegeu. Ele enviou uma forte tempestade que quase despedaçou aquele
pequeno barco. As ondas eram altas montanhas e criaturas marinhas como eu
nunca tinha visto surgiram das profundezas e nos observavam passar com olhos
tão grandes quanto uma casa. Nunca tive tanto medo, e digo a vocês que senti
como se o Criador nos tivesse amaldiçoado, com certeza. Mas quando a
tempestade passou, vi que estávamos melhor do que antes — estávamos nas
ilhas Phoob, ao norte e a leste daqui, do outro lado das Cataratas Fingap.
Cruzamos o Mar Sombrio em cinco dias. Isso é algo que eu nunca disse a
ninguém, por me preocupar que eles pensassem que eu fosse louco. Além disso,
estávamos em um pequeno esquife com nada além de uma vela. É impossível, eu
digo.” Podo estendeu as mãos. “Mas aqui estamos.”
Ele mirou atentamente os netos. “O nome de sua avó era Wendolyn Igiby”,
revelou ele. “Vocês adotaram o nome Igiby quando viemos pra cá, e deixamos o
nome Wingfeather pra trás...”
“Então, como Peet nos encontrou?” Janner perguntou.
Nia parecia confusa. “Ainda não sabemos. Cerca de cinco anos depois de nos
estabelecermos aqui, nós o vimos na cidade. Mal o reconhecemos e, quando
percebemos que era ele, ficamos assustados. Tínhamos certeza de que, de
alguma forma, ele traria Gnag até nós. Por tudo que sabíamos, Gnag o tinha
transformado num dos seus. Podo disse a ele para ficar longe de vocês, de nós. E
ele ficou, por um tempo. Então ele apareceu de volta à cidade, agora fazendo um
espetáculo de si mesmo, por algum motivo. Isso eu não consigo explicar.”
Nia prosseguiu, meneando a cabeça.
“Antes de ontem à noite eu não entendia por que ele usava as meias. Achei que
o velho Artham estava perdido para sempre. Mas ele está aí dentro.” Ela
acariciou seu cabelo selvagem. “O que quer que tenha acontecido com você”, ela
sussurrou para Peet, “estou feliz por você reter, em sua mente, a proteção de
meus filhos da mesma forma como teria protegido Esben.” Nia olhou para
Janner. “E deixe-me dizer, você pode ficar tranquilo quando sabe que um
Guardião do Trono de Anniera está vigiando.” Janner sentiu uma onda de
orgulho.
Nia sorriu para ele.
“Vovô, o que o senhor tem na trouxa?” Perguntou Tink.
“Ah, sim”, reagiu Podo, colocando o cobertor no chão, entre eles, e
desdobrando as pontas.
51

Uma Carta de Casa

Pra você, rapazinho”, anunciou Podo a Janner, entregando um antigo livro com
capa de couro. “É um dos livros mais antigos do mundo, um dos Primeiros
Livros, de acordo com alguns.”
Janner olhou maravilhado para o avô.
“Ao longo das eras, entre os tesouros de Anniera estavam vários livros antigos,
que eram passados para os Guardiões do Trono”, explicou Podo. “É dito que este
dá ‘sabedoria aos sábios’, seja o que for que essa profundidade signifique. Eu
nunca comecei a ler. Artham aqui, se não estiver louco demais, conseguirá
contar mais a respeito. Seu pai me deu antes de sairmos do palácio. Disse-me
que, não importando o que acontecesse, eu tivesse certeza de que ele chegaria
até você.”
Janner segurou o grande livro com cuidado, mas não o abriu.
“E pra você, jovem Tink. Supremo Rei Kalmar, devo dizer. Afinal, é o seu
verdadeiro nome.”
“Você não pode apenas me chamar de Tink?” Perguntou, corando.
“Como quiser. Tink, então. Isto é pra você.” Podo entregou a Tink um caderno
velho e esfarrapado.
“O caderno de desenho do seu pai”, revelou Nia. “Ele era um artista, assim
como você. Ele encheu este livro com desenhos e retratos de Anniera, e junto
deles seus próprios escritos. Eu queria que você tivesse algo para lembrá-lo de
sua terra natal. É um lugar mais bonito do que qualquer retrato poderia mostrar,
mas seu pai amava sua terra, e você pode ver esse amor nessas imagens. Eu o
peguei para ele, no meu caminho para fora do palácio, porque ele nunca o
deixaria pra trás. Achei que ele iria querê-lo, assim que estivéssemos todos
seguros e longe. Mas agora é seu.”
Os olhos de Tink brilharam quando ele aceitou o presente.
“E pra você, minha moça.” Podo ergueu a última dobra do cobertor e entregou
a Leeli uma harpa eólica de prata. “Isso pertenceu à sua bisavó, Mádia, Rainha
de Anniera, e está no reino há mais tempo do que isso. Veja, sempre que um
terceiro filho nasce, essa criança, de acordo com as tradições de Anniera, deve
aprender a cantar e compor música. É por isso que ensinamos a você todas essas
músicas antigas ao longo dos anos. A lenda diz que há um poder para proteger
Anniera na música de uma rainha que conhece as canções certas. Ninguém
acredita mais nisso, veja bem, mas esta mesma harpa eólica está em Anniera
desde o início da Segunda Época.”
“Isso foi há três mil anos”, revelou Janner com espanto.
“Sim”, Podo anuiu.
Leeli levou a brilhante harpa eólica aos lábios e hesitou.
“Vá em frente”, incentivou-a Podo, sorrindo.
Leeli tocou “O Cotovelo do Pescador”, uma das músicas favoritas de Podo, e a
música alegre encheu seus corações.
Peet acordou com a canção familiar de sua terra natal. Ele parecia mais um
homem e menos um animal ali, no brilho da melodia. Espreguiçando-se, ele se
levantou para atiçar o fogo, afastando ainda mais o frio úmido.
A noite havia chegado e a tempestade ainda rugia fora de seu refúgio.
As crianças Igiby riram umas com as outras e sentiram o vínculo de seu sangue
ficar mais forte do que nunca. Nia e Podo, livres de segredos carregados por
tantos anos, recostaram-se entre devaneios da memória e da música.
Janner achava que Tink não se parecia tanto assim com um rei, mas, quem
sabe, em alguns anos. Afinal, ele tinha só onze anos.
Tink abriu a primeira página do caderno de seu pai e viu o esboço de uma ilha
surgindo de um mar agitado. No centro da imagem, erguendo-se entre as árvores,
estavam as altas torres de um castelo. Ao lado, sob o desenho de uma nuvem
macia, estava escrita uma palavra pela mão de seu pai: Lar.
Enquanto Tink se maravilhava com os desenhos de seu pai, Janner abriu o
antigo livro em seu colo. As páginas estavam amareladas e esfarrapadas. As
palavras, escritas à mão, estavam em outro idioma, mas era bonito de se ver,
mesmo assim. Janner sentiu um formigamento na barriga enquanto virava as
páginas de um livro que ainda não havia lido. Para sua surpresa, um pedaço de
papel dobrado caiu do livro, em seu colo. O papel era branco e nítido em
comparação com as folhas velhas do livro, mas Janner ainda foi cuidadoso ao
desdobrá-lo.

Janner,
Você tem apenas dois anos agora. Todos dizem que você se parece com
seu pai, e eu considero isso um grande elogio. Um lindo menino você é!
Não sou poeta como o seu tio Artham, mas vendo você dormir, aqui, esta
noite inspirou-me a sentar e escrever algumas palavras para você ler um
dia. Sua mãe ama muito você e seu irmão. E ela está com um barrigão
com outro pequeno prestes a sair! Inimigos deste reino, cuidado! Esses
três pequenos Wingfeathers manterão esta ilha boa e segura. Eu sei disso.
Você tem sangue real em suas veias, não importa qual seja seu nome ou
lugar neste mundo. O Criador fez de você o Guardião do Trono, para o
seu irmão mais novo, e eu não desejaria mais ninguém, além de você,
para mantê-lo seguro. Há rumores de guerra e, embora eu mal acredite
na metade deles, caso Anniera caia (e tenho certeza que não vai!),
lembre-se de sua terra natal. Segredos antigos jazem sob estas pedras e
cidades. Eles se perderam para nós, mas, ainda assim, não devemos
deixá-los para o mal.
Ocorre-me como é bobo escrever isso para um bebê de dois anos. Mas
talvez um dia, quando estiver sozinho, inseguro e duvidando de si mesmo,
você precise dessas palavras. Lembre-se disto: você pertence à Anniera.
Seu pai é um rei. Você é filho do rei. Esta é a sua terra e nada pode mudar
essa realidade. Nada.
Ah, e ninguém consegue trocar suas roupas de baixo, exceto eu. Posso
sentir, pelo cheiro, que você as sujou, outra vez. Se eu cair morto por
causa do fedor de suas ceroulas saiba, quando ler isso, que seu pai o ama
como nenhum outro.
Seu Papai
No final da carta, havia o esboço de um bebê dormindo pacificamente, em um
berço cercado por flores que haviam murchado com o cheiro das roupas de baixo
sujas do bebê.
O coração de Janner parecia grande e cheio. Ele se deitou na casa da árvore e
olhou para uma janela escura e golpeada pela chuva, pensando em seu pai.
Esben.
Ele podia ouvir Nia e Podo no outro cômodo, conversando baixinho, mas
ouviu o suficiente para entender que ambos concordavam que seria melhor ficar
na casa da árvore, com Peet, por várias semanas, talvez mais. Peet lhes garantiu
que havia aprendido a viver com segurança entre as criaturas da Floresta
Glipwood, e os Fangs não se aproximariam da floresta por muito tempo, depois
que vissem os restos da batalha na Mansão Pé-de-Geleia.
Skree, entretanto, estava envolta em trevas. A tempestade negra agitava-se no
céu e mesmo a lua reluzente não conseguia penetrá-la.
O Mar Sombrio da Escuridão gemia e se erguia sob a expansão trovejante.
Entre as árvores de Glipwood, premelinhos e thwaps e vacas-dentadas, todas as
feras igualmente procuravam abrigo da forte ventania e da tempestade, e a
cidade de Glipwood estava tão árida e devastada pelo vento quanto uma cidade
fantasma. Naquela noite, enquanto se remexiam e se reviravam em leitos
lúgubres, o coração das pessoas e dos trols e dos Fangs, em toda Skree,
permanecia sombrio.
A escuridão habitava em toda parte.
Exceto, é claro, em uma casa na árvore, bem no escuro coração da Floresta
Glipwood, onde as Joias de Anniera reluziam como o sol.
Apêndices
A Lenda das Montanhas Submersas
Tradicional
(Extraído de Uma História Abrangente de Canções Tristes, Muito Tristes, de
Fencher)

Venha da montanha submersa: chama a meia-lua de verão!
No gemido pesaroso a melodia já se fez ouvir do rei dragão
Os salões que às nuvens subiam agora jazem sob as ondas
Em tumbas rochosas no mar o reino caído de Yurgen ressona

O filho de Yurgen, o justo dragão, Omer, filho de Dwayne, vai encontrar
E então o cavaleiro e o herdeiro de Yurgen decidem na chuva lutar
E, vejam, ferido caiu o dragão, vindo de Omer o golpe fatal.
O cavaleiro, em angústia, sai a correr pra salvar seu inimigo mortal

E Omer, de tristeza curvado, perante Yurgen, na montanha, se prostrou
E como seu único herdeiro caiu, Omer ao antigo dragão informou
Então, do topo de sua fortaleza, Yurgen, poderoso rei-dragão,
Em pedaços rasgou a brilhante e íngreme montanha até o chão

Todos os dragões ele convocou para através do solo cavar
E o mítico minério com o som mutilado finalmente encontrar
Mas, enquanto o herdeiro de Yurgen estava frio e morto, no monte enterrado,
Dragões túneis mais profundos abaixo das fontes do oceano haviam cavado

Finalmente, com trovejante estrondo, a elevação da enevoada montanha
Desmoronou sobre as feras na escuridão das minas, suas entranhas.
Do oceano, então, Yurgen para procurar seu moribundo filho surgiu
Mas onde sua montanha uma vez ornou, apenas uma meia-lua dourada viu
Seu herdeiro-dragão morreu, seu reino-dragão mofou
A tristeza do Rei Yurgen ardeu e ele novamente afundou
Os salões que às nuvens se erguiam agora jazem sob as ondas
Em turvas tumbas no mar o reino caído de Yurgen ressona

A dourada lua de verão o veranil anoitecer em dois partiu,
e a solitária melodia dos dragões todo aquele que veio ouviu!

Sobre o Autor
Andrew Peterson é um artista e compositor aclamado pela crítica, bem como
autor da premiada Saga Wingfeather. Ele também é o fundador da The Rabbit
Room, uma organização que promove o desenvolvimento de comunidades por
meio de histórias, da arte e da música. Ele e sua esposa, Jamie, moram em
Nashville.

Visite www.andrew-peterson.com para obter mais informações sobre Andrew, ou
www.wingfeathersaga.com para obter mais informações sobre Kistamos e suas
criaturas terrivelmente perigosas.

Notas

Capítulo 2

1 O jogo zibzy ganhou grande popularidade em Skree, no ano 356 da Terceira Época. Um jogo de gramado
jogado com dardos gigantes (jogados alto no ar pela equipe ofensiva), um trambolho (uma tábua plana com
um cabo) e três pedras. As lesões abundavam, porém, e por causa do clamor do público, o jogo foi proibido.
Em 372, descobriu-se que se podia jogar uma versão pacífica do jogo substituindo os dardos gigantes por
vassouras. Para regras completas e um olhar mais profundo sobre a fascinante e sangrenta história do zibzy,
veja Nós Jogamos, Nós Sangramos, Nós Varremos, de Vintch Trizbeck (Três Forquilhas Publicações,
Valberg, 3/423).

Capítulo 3

1 Bip Thwainbly. A Mastigação do Gambá (Editor e data desconhecidos).


2 De A Lenda das Montanhas Submersas, poema tradicional de Skree. Uma versão posterior do conto foi
impressa em Uma História Abrangente de Canções Tristes, Muito Tristes, de Eezak Fencher. Veja as
páginas 279–280, nos Apêndices.

Capítulo 5

1 Glipwood havia prosperado muito ao longo dos anos e agora era um aglomerado ligeiramente
maior de edifícios, em parte graças ao turismo gerado pelo Festival do Dia do Dragão. Willibur Smalls.
Aconteceu em Skree (Torrboro, Skree: Blapp River Press, 3/402).
2 Corre-Cristas são uma raça reclusa que, desde os seus primórdios, habitam as montanhas de Dang. Sua
grande fraqueza são as frutas de qualquer espécie, em qualquer forma, sejam colhidas da árvore ou assadas
em uma torta crocante. Por causa disso, os corre-cristas são os principais inimigos do povo de Vales Verdes,
que cultivam frutas de vários tipos. A cada ano, enxames de corre-cristas descem as encostas ao norte dos
Picos-da-Morte e roubam as frutas de Vales. Reza a lenda que, desde que você não seja uma fruta, um
corre-crista não o comerá. Como não havia frutas diretamente envolvidas na Grande Guerra, os corre-cristas
permaneceram neutros, é claro. Padovan A’Mally. O Flagelo de Vales (Ban Rona, Vales Verdes: The
Iphreny Group, 3/111).
3 Para que Podo pudesse capinar o jardim, ele precisava preencher o Formulário de Permissão
Para Capinar Jardim e, em seguida, O Formulário de Permissão Para Uso de Enxada, para tomar
emprestada a enxada. Se a ferramenta não fosse devolvida até o pôr do sol do prazo de uso, a pena era
severa demais para ser mencionada nesta parte feliz da história. Veja as páginas 281–282, nos Apêndices.

Capítulo 6

1 Um esporte delicioso em que cada equipe tenta colocar a bola num gol sem usar os pés de forma alguma,
nem mesmo para se mover. B’funerous Hwerq. Preparar, Apontar, Despontar! Uma Vida na Jogada (Três
Forcados, Skree: Vanntz-Delue Publishers, 3/400).
2 As funções de Blaggus como prefeito incluíam cuidar da prensa móvel da cidade, que agora imprimia
vários formulários de permissão ao uso de ferramentas, ordenados pelo Comandante Gnorm. Sendo uma
pessoa obcecada por papelada e regras de ordem, a incumbência convinha bem a Blaggus. Ele também
escalava qual cidadão prepararia refeições para os Fangs, quem limparia seus alojamentos governamentais e
quem faria pedidos formais ao Comandante Gnorm pelos cidadãos que desejavam viajar para Torrboro.
Blaggus havia perdido sua filha mais nova para a Carruagem Negra, seis anos antes, e Gnorm o manteve em
seu emprego sob a ameaça de levar seus outros dois filhos. Compreensivelmente, por causa disso, o povo de
Glipwood não mostrava má vontade para com o prefeito.
3 Muitos skreenianos duvidavam que a lendária Ilha de Anniera existisse. É triste que algumas pessoas só
acreditem que algo existe se puderem ver com seus próprios olhos. Por essa razão, Bandy Travinquieto, por
exemplo, argumentou por horas, uma noite na Taverna do Crespo, que não existia essa coisa chamada
Vento. Seu telhado foi arrancado durante uma tempestade naquele mesmo inverno. O pensamento de Bandy,
no entanto, permaneceu inalterado.
4 As Lendas de Kistamos são uma coleção de histórias sobre o Criador e os Primórdios das Coisas. A
saudação de Dwayne e Gladys, Os Primeiros Companheiros, por exemplo, é conhecida em todas as terras
de Kistamos. As lendas também incluem a tragédia de “Will e a Receita Perdida”, “As Holorés Enterradas”
(pedras de cura que o Criador enterrou na terra), e uma versão primitiva de “A Queda de Yurgen”. As lendas
já estavam contidas em livros antigos cuja autoria afirmava ser proveniente do próprio Criador, obras dadas
a Dwayne para guardá-los. Mas os livros antigos — junto das Holorés, da famosa receita de sopa de creme
de galinha de Will, e das montanhas de Yurgen — estão perdidos.
5 Não está claro onde se originou a harpa eólica. Cada cultura em Kistamos afirma ter inventado o
instrumento, e cada cultura tem boas evidências para apoiar suas reivindicações. Melodias de harpa eólica
são referenciadas nos escritos de Hzyknah, que datam do final da Primeira Época.

Capítulo 7

1 De acordo com a obra Uma História Abrangente de Canções Tristes, Muito Tristes, de Eezak Fencher
(Torrboro, Skree: Rio Blapp Impressões, 3/113), Lanric e Rube cresceram mais unidos que irmãos, mas
ambos se apaixonaram pela mesma moça, uma donzela chamada Illia. Armulyn cantou sobre como eles
lutaram como amargos inimigos por sua mão antes de, finalmente, resolverem cavalgar até sua casa, nas
colinas verdes, e pedirem-lhe para apontar qual homem ela preferia. Quando lá chegaram, encontraram-na
já casada com seu primo Doug — e os irmãos foram embora chorando sua própria loucura.

Capítulo 9

1 A trilha Glipper já existia antes de Podo nascer. Os pais de Podo, Edd e Yamsa Helmer, planejaram tirar
proveito da proximidade da casa com os penhascos, fazendo sua pesca de lá. Após abrir caminho, Edd
comprou uma caixa de linha de pesca de um comerciante em Lamendron (que mais tarde se tornaria Forte
Lamendron), amarrou um anzol à linha, colocou um verme aterrorizado no anzol, e baixou a linha até o Mar
Sombrio da Escuridão. Só para colocar o anzol na água levou a maior parte da manhã e, é claro, Edd não
tinha como saber, daquela grande altura, se a isca e o anzol estavam ou não submersos. Perto do anoitecer,
naquela noite, Edd sentiu um puxão em sua linha e começou a puxar sua presa. Algum tempo depois da
meia-noite, Edd finalmente recolheu um pequeno peixe saltitão. Yamsa não ficou nada feliz ao ser acordada
pelo brado de vitória de Edd, nem com o fato de, na calada da noite, ele ter limpado, cozinhado e comido
seu peixinho. Edd decidiu, no dia seguinte, que apesar de todos os problemas que teve para pegar aquele
peixe, ele bem poderia ter pescado vários. Então, comprou um carretel de corda do mesmo comerciante em
Lamendron, prendeu-o a uma rede e, mais uma vez, passou a manhã inteira descendo a rede até o mar.
Desta vez, ele prendeu a corda a uma parelha de bois e fez com que puxassem a presa. Ao pôr do sol, os
bois estavam exaustos e a pesca estava apenas na metade do penhasco. Edd amarrou a corda e a deixou
pendurada lá, durante a noite. Na manhã seguinte, ele pôs os bois para trabalhar novamente. Ao meio-dia, a
rede cheia de saltitões, pequenos tubarões, cavalinhas e lulas foi puxada sobre a borda e posta em terra
firme. Até Yamsa teve que admitir que fora uma boa pesca, e eles comeram apenas peixe, nas três semanas
seguintes. Bolinhos de peixe no café da manhã, sanduíches de peixe para o almoço, peixe frito no jantar.
Eles comeram tanto peixe que tanto Edd quanto Yamsa ficaram doentes e nunca mais conseguiram comer
peixe sem engasgar. Edd nunca mais pescou nos penhascos, mas o caminho pelo qual seus bois puxaram a
pesada rede permanece lá.

Capítulo 10

1 O prefeito Blaggus quebrou sua promessa na caminhada de volta à cidade.


2 Embora seja impossível ter certeza, a maioria dos eruditos concorda que esta é, provavelmente, a canção
que Leeli Igiby cantou nos penhascos naquela noite. Holoré é uma palavra antiga com vários significados.
Sua definição mais comum é “a sensação de esquecer-se de fazer algo sem saber o que é essa coisa”. Por
exemplo: Foom foi perturbado com holoré durante toda a viagem, mas quando voltou para casa e encontrou
sua esposa ainda esperando na escada da frente, percebeu o que havia esquecido. A palavra holoré também
é usada para descrever o cheiro de biscoitos queimados e é frequentemente aplicada a qualquer coisa
potencialmente boa que se tornou inesperadamente ruim. Por exemplo: Quando Foom percebeu que tinha
esquecido de trazer sua esposa nas férias de três dias, o feriado foi holoré. O significado antigo da palavra,
que é como provavelmente está sendo usado na canção, refere-se às pedras enterradas nas profundezas da
terra pelo Criador na criação de Kistamos. As pedras, de acordo com As Lendas de Kistamos, são imbuídas
de poder para manter o mundo vivo e repleto de vigor, funcionando quase da mesma forma, presume-se,
como a Água do Primeiro Poço. O significado de holoél é incerto, mas provavelmente também tem a ver
com biscoitos.

Capítulo 11

1 Quando os habitantes da cidade infringiam a lei ou, sem motivo nenhum, eram escolhidos pelos Fangs, às
vezes, eram levados para a prisão, onde eram espancados por Gnorm e seus soldados. Se isso acontecesse, o
povo da cidade considerava uma ventura maravilhosa, e após a liberação do prisioneiro (se ele estivesse
consciente), sua família e amigos o parabenizavam e seguiam a vida como se ele tivesse acabado de ganhar
um prêmio importante. Se alguém não tivesse a sorte de receber prisão e tortura, Gnorm enviava um corvo
mensageiro para convocar a Carruagem Negra.

Capítulo 12

1 Navios e Tubarões é um jogo de gramado apresentado aos skreenianos por mercadores de Vales Verdes.
Normalmente, as crianças desempenham o papel de Navios e os adultos são os Tubarões. O jogo começa
quando o Tubarão grita aos Navios “Gwaaaaah!”, onomatopeia aceita como o som que o tubarão produziria
se não fosse uma criatura do mar. Os Navios, então, correm como loucos para escapar do Tubarão. Se um
navio é dominado por um Tubarão, o Navio é rolado na terra e recebe cócegas graves e severas. Esta
simplicidade brutal é típica dos jogos inventados pelo povo de Vales. Outro jogo popular de Vales Verdes é
chamado, simplesmente, de Surra.

Capítulo 13

1 As mulheres de Skree tinham uma queda semelhante por joias, mas eram menos inclinadas ao assassinato
para as obter.
2 Dos Baimingtons de Torrboro, que se orgulhavam de ter um ancestral que cunhou a frase “Movediço
como uma torta lodosa de duas toneladas”. Os Baimingtons tinham o cuidado de inserir a frase em todas as
conversas das quais participavam.

Capítulo 15

1 Três Assuntos Nobres e Grandiosos: Palavra, Forma e Canção. Algumas pessoas tolas acreditam que
existe um quarto Assunto Nobre e Grandioso, mas esses matemáticos estão terrivelmente enganados.
2 Por Jonathid Tchontio Brownman, o explorador conhecido por ter sido o primeiro a encontrar uma
passagem pelas Selvas de Plontst. Embora ninguém contestasse o sucesso da expedição em si, as pessoas
questionavam a veracidade de muitas das afirmações de Brownman acerca de suas descobertas. Quando
suas memórias de viagem foram publicadas, em 421, a maior parte foi considerada uma invenção. Isso se
deveu, em parte, à insistência de Brownman de que, enquanto estava na selva, ele viveu por um tempo entre
uma comunidade de floelhos. Brownman insistia que eles eram dóceis, ao contrário dos floelhos carnívoros
de Skree. Escandalizados, seus leitores o desafiaram a ir buscar em Plontst um dos assim chamados floelhos
domesticados, e Brownman concordou. Foi a última vez que alguém viu Jonathid Tchontio Brownman,
embora as pessoas ainda gostem de dizer seu nome do meio.
3 Essa atitude foi executada com uma pá que Podo havia retirado com o prefeito Blaggus, naquela manhã,
preenchendo o Formulário de Permissão Para Remoção de Excrementos de Porleitão. Consulte a página
283, nos Apêndices.

Capítulo 16

1 A Cera de Meleca é algo repulsivo demais para merecer uma nota de rodapé apropriada.

Capítulo 17

1 De acordo com O Flagelo de Vales, de Padovan A’Mally (Ban Rona, Vales Verdes: Grupo Iphreny,
3/111), “Corre-cristas gostam particularmente de versos artísticos, embora seu tema de apreciação seja
quase exclusivamente frutas. Um corre-crista, livre pensador, chamado Tizrak Rzt, escandalizou a cultura
corre-crista quando compôs um poema intitulado ‘Amor, Amor, Amor Sem Fim’ e, notoriamente, não fez
menção a frutas”.
2 Veja, nos Apêndices, a página 284, para uma amostra do trabalho seminal de Pembrick. Criaturapédia de
Pembrick, de Bahbert Pembrick (Ban Rona, Vales Verdes: Graff Publicações, 3/221).
3 Garlinóis são grandes aves que não voam e habitam sobretudo os climas frios. O assentamento de Kimera,
nas pradarias de gelo, gaba-se de possuir um rancho de garlinóis, onde os grandes pássaros são selados,
arreados e treinados para uso como os cavalos, no sul de Skree. Os pés espalmados de um garlinói possuem
um aglomerado de farpas retráteis que permitem ao pássaro fixar o pé no gelo e na neve profunda. Em raras
ocasiões, garlinóis machos nascem com asas grandes o suficiente para sustentar voos curtos, embora não se
considere prudente montá-los quando isso acontece.

Capítulo 18

1 Veja o mapa (provavelmente duvidoso) de Oskar, na página 285.


Capítulo 19

1 Janner provavelmente está se referindo a Entre o Blapp e a Baía: Uma Cidade Chamada Glipwood, de
Randolt Mynerqua (Cavadópolis, Skree: Ribeiro D’Água Impressões, 3/404). Era uma leitura popular entre
o povo de Glipwood, em parte porque tinha apenas dezessete páginas.

Capítulo 25

1 Thorn, o Torr, o rei guerreiro que construiu o palácio no início da Terceira Época, gostava de gatinhos.
Em cada torre do Palácio Torr havia estátuas de gatinhos em posturas variadas. De um penhasco na margem
norte do Blapp, ficava claro que o próprio palácio fora construído para se parecer com um gatinho feliz,
agachado. A espiral superior era a cauda, o pórtico lembrava dentes e a ponte levadiça era, inegavelmente,
semelhante a uma língua. Durante séculos, a Dinastia Torr nutriu uma afeição perturbadora por tudo
relacionado a gatinhos. Então, veio a Grande Guerra, quando Fangs capturaram o Rei Oliman, o Torr e o
forçaram a assistir enquanto as estátuas de gatinhos eram demolidas e destruídas, uma por uma. Quando
todos os gatinhos do reino foram colocados em uma jangada e deixados à deriva, no rio Blapp, Oliman, o
Torr desfaleceu morto de tristeza. Para os cidadãos de Torrboro, entretanto, foi a única coisa boa que os
Fangs fizeram.

Capítulo 26

1 Yakev Brrz abominava todo abuso de animais, principalmente o hábito de se referir a animais de
estimação como “bebês” e atribuir a eles características humanas. A primeira esposa de Yakev, Zaga,
estimava tanto seus dois Beckitt Terriers que insistia em que eles se sentassem à mesa com eles no jantar e
que dormissem ao pé da cama. Yakev, cujas habilidades de comunicação com todos os tipos de animais
eram incomparáveis, não conseguiu convencer Zaga de que seus “bebês” detestavam as práticas alimentares
dos humanos e preferiam não usar o pijama de renda lilás combinando para dormir em sua cama humana.
Tarde, numa noite fatídica, quando Zaga estava profundamente adormecida, Yakev foi na ponta dos pés até
o pé da cama, pegou Schpoontzy e Kiki cuidadosamente em seus braços, carregou-os para fora, puxou de
sua manga uma faca afiada e os livrou de seu sofrimento. O que quer dizer que ele cortou fora o pijama de
renda lilás dos cães oprimidos e os deixou fugir livres, ao luar, para nunca mais voltarem. Diz-se que, uma
vez que a notícia da libertação dos cães, pelas mãos do poderoso Yakev Brrz, se espalhou entre os outros
caninos, onde quer que Yakev passasse, todas as raças de cães uivavam e respeitosamente rolavam de
costas. Nada mais se sabe sobre Zaga.

Capítulo 28

1 De As Terras Imensas, de Stawburn: “O Mar Sombrio da Escuridão não era mais escuro do que qualquer
outro oceano que já naveguei. Assim, não tenho certeza de onde vem seu nome, a menos que, talvez, seja
por causa da sensação que se tem quando está lá, no meio dele. Você se sente como podendo ser engolido
por qualquer uma das gigantes criaturas que vivem sob a superfície. Ele pode ter esse nome devido a todas
as tempestades que surgem dele e chutam você e seu navio como uma criança chuta uma bola. Todas as
noites, há uma névoa que engole as estrelas e deixa você flutuando cego, lá fora, na escuridão. Você começa
a sentir que nunca mais vai voltar para casa, e que mesmo seus melhores amigos no navio não o conhecem
ou querem conhecer, como se eles nunca fossem notar se você tombasse sobre a amurada e caísse direto na
água. Pensando bem, talvez a água fosse mais escura do que o normal”.

Capítulo 29

1 A presença de murças-das-cavernas na Floresta Glipwood pode surpreender o leitor diligente, em razão da


usual ausência de cavernas em uma típica floresta. Os murças-das-cavernas receberam seus nomes porque
seus grandes olhos cinzentos e semblantes queixosos são tão desagradáveis de se ver que é comum, ao ver
um, pensar: “Gostaria que aquele murça estivesse numa caverna em algum lugar, para que eu não tivesse
que olhar para ele”.
2 Embora os skreenianos não tivessem certeza do motivo, os soldados Fangs faziam um rodízio regular, de
cidade em cidade, e cada regimento navegava de Forte Lamendron de volta a Dang, por algumas semanas, a
cada ano. Fangs que voltavam para Skree gabavam-se de ter “descansado bastante” e se mostravam mais
perversos do que o normal, nos primeiros meses após o retorno.

Capítulo 30

1 De acordo com fontes em Cavadópolis, a receita de mingau melequento é simples: duas xícaras de
farinha, uma colher de chá de manjericão esmagado e um galão de matéria nasal viscosa de qualquer animal
disponível. Mexa em fogo baixo até engrossar. (O método de coleta do referido muco não é muito claro).

Capítulo 31

1 Dougan dol Rona, de Vales Verdes. Os cidadãos de Vales são conhecidos sobretudo por duas coisas: frutas
e luta. Vales Verdes é um país de vales ondulantes e vinhas, cuidados com carinho pelos seus cidadãos. As
frutas de Vales são mais graúdas, suculentas e saborosas do que qualquer outra em Kistamos, em parte
porque o solo é muito fértil, em parte por causa de milhares de anos de tradição de fruticultura, conhecida
apenas pelos seus cidadãos. Vales Verdes também é conhecido por seu festival anual de jogos, chamado
Fynneg Durga. Os homens de Vales são notoriamente turbulentos, dispostos a lutar tão facilmente quanto a
rir, e consideram uma competição de socos um entretenimento da mais alta ordem, especialmente se isso
significar um dente perdido ou um nariz quebrado. As mulheres de Vales são famosas por sua beleza e
sabedoria, a provável causa primária da cultura de luta entre os homens. Qualquer forasteiro que desejasse
casar-se com uma mulher de Vales Verdes era submetido a uma violenta (mas bem-humorada) zombaria e
obrigado a participar de uma versão especialmente brutal dos jogos, o Banick Durga, para ganhar a mão da
mulher. Passasse ou não no teste, o competidor seria premiado com frutos copiosos. Dougan dol Rona pediu
a mão de Meirabel Lannerty, de Vales, e foi forçado a competir por ela no Banick Durga.
Surpreendentemente, ele superou os homens de Vales em todas as dez lutas, mas, acidentalmente, matou o
irmão de Meirabel em uma luta de boxe, com um golpe mal dado, na têmpora. A melodia “Balada Para
Dougan” (compositor desconhecido) captura, na música, a tristeza de Dougan por nunca ter se casado com
Meirabel e a velocidade com que ele fugiu dos homens de Vales para salvar a própria vida.

Capítulo 33

1 Rumpole Bloge. Domando a Floresta Assustadora (Torrboro, Skree: Phute & Phute & Cia., 3/112), uma
autobiografia fascinante, detalhando seus anos como guardião na Floresta Glipwood, nos primeiros dias da
Terceira Época. Nele, Bloge descreve as vacas como sendo “quadráticas na estrutura, com um focinho
úmido e olhos que, a princípio, parecem opacos como uma tigela de lama. Mas ai daquele que não
considerar o potencial letal naquele trambolho bovino! Naqueles sabres amarelados que se projetam de sua
boca beiçuda! Como eu gostaria que minha querida Molly não tivesse rejeitado meus avisos sobre a astúcia
da vaca-dentada, antes que aquela brutamontes dentada a devorasse!” Consulte a página 284, nos
Apêndices.

Capítulo 34

1 Durante a Segunda Época, Tombilly, chefe de Ban Rona, em Vales Verdes, adoeceu com uma enfermidade
para a qual os médicos de Vales não encontravam cura. O chefe estava definhando e não conseguia comer,
embora sua esposa lhe preparasse uma refeição fresca todos os dias. Os sábios vasculharam a terra em
busca de uma refeição que pudesse curar sua doença. Quando a velha Ma Vorba, a apanhadora de sementes,
sugeriu ensopar um verdugo espinhento, ela foi ridicularizada como uma tola. Mas ela cozinhou o verdugo
com cebolinhas e totatas, e serviu para o chefe Tombilly, quando sua esposa estava fora. A saúde do chefe
voltou. Por anos, acreditou-se que o verdugo tinha poderes de cura, até que foi descoberto que a pobre
esposa do chefe era apenas a pior cozinheira que Kistamos já vira, e Tombilly preferia morrer de fome a
comer mais uma vez de sua comida. Até o dia de hoje, um viajante comendo uma boa refeição em Vales
Verdes corre o risco de ouvir alguém dizendo: “Ma Vorba, estava uma delícia!”.
2 O instável sapo-toupeira é conhecido por atacar humanos, embora não haja notícias de nenhum ataque
fatal. Vítimas de um ataque de sapo-toupeira queixam-se da “sensação macia e gosmenta” de ser
violentamente atacado por uma língua pegajosa. Visto que o sapo-toupeira não tem dentes, diz-se que suas
vítimas se sentem como “empadas sendo mastigadas na boca de um velho”.
3 O rateixugo é perigoso não só por causa de suas garras longas ou dentes irregulares, ou mesmo por causa
de seu temperamento agressivo. A maior arma do rateixugo é sua flatulência com odor de ovos.

Capítulo 37

1 Era verdade. Antes da Grande Guerra, os skreenianos ouviam rumores de Gnag, o Sem-Nome, rumores de
que criaturas como cobras e trols e outros monstros imaginários, dos contos assustadores de crianças,
haviam conquistado as terras de Dang, do outro lado do mar, mas eles não conseguiam acreditar que a
própria Skree corresse qualquer perigo. No 442.º ano da Terceira Época, mil navios carregados com tais
criaturas infestaram o Mar Sombrio da Escuridão, na costa de Skree. É dito que o grito de guerra dos
invasores Fangs podia ser ouvido de tanta distância quanto Torrboro distava daquelas terras, continente
adentro. Com poucas exceções, os skreenianos se renderam sem lutar.

Capítulo 38

1 As Pradarias de Gelo ficam ao norte das Montanhas Rochosas. Poucos humanos se estabeleceram lá, e
que vilas possam existir é difícil de saber, porque não há estradas. De fato, alguns que moravam nas
Pradarias de Gelo visitaram os climas quentes da baixa Skree, nas férias, e nunca mais foram capazes de
encontrar suas casas novamente.
2 A estrada para Torrboro era bastante percorrida, tanto por humanos quanto por Fangs. As tropas Fangs,
viajando de e para Forte Lamendron, marchavam para o norte e para o leste, a partir da costa, através de
Glipwood, e seguiam a estrada ao longo da borda da Floresta Glipwood, até onde ela se encontrava com o
Rio Blapp. O toque de recolher noturno era devidamente aplicado, de modo que os Fangs faziam pouco
para patrulhar a estrada à noite. Pessoas de Glipwood, portanto, viajando durante a noite para Torrboro,
tinham pouco com que se preocupar até chegarem à cidade. Mas, então, de toda a forma, a manhã já teria
chegado e eles não levantariam suspeitas. Claro que a proximidade da estrada com a floresta apresentava
suas próprias dificuldades, e vários dos viajantes provavelmente seriam atacados pela habitual gama de
criaturas noturnas de Skree.

Capítulo 46

1 De acordo com O Declínio da Primeira Época, de Frobentine, a Mamne, o Primeiro Poço ficava
escondido perto da cidade sem muros de Ulambria, onde Dwayne e Gladys governaram seu povo com paz,
sabedoria e uma abundância de alimentos com queijo. Frobentine situa a localização de Ulambria em algum
lugar ao norte e a leste das Montanhas Picos-da-Morte, no coração do que hoje é a Floresta Byg’oal. Outras
fontes discordam, alegando que Ulambria ficava nas selvas de Plontst, no reino dos trols. Todos os
estudiosos concordam, entretanto, que Ulambria é um nome que soa bem para uma cidade.

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