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Copyright das ilustrações nos Apêndices © 2009 by Andrew Peterson / Copyright das ilustrações da
Criaturapédia © 2020 by Aedan Peterson / Copyright de todas as outras ilustrações do miolo © 2020
by Joe Sutphin
This translation published by arrangement with WaterBrook, an imprint of Random House, a division
of Penguin Random House LLC
22-107647
CDD-028.5
“Talento puro!”
— Phil Vischer, criador da série animada Os Vegetais
Para Aedan, Asher e Skye.
Lembrem-se de quem vocês são.
SUMÁRIO
Um | O Fendril Solitário
Dois | Quarto Oito de A Única Pousada (A Única Pousada de Glipwood)
Três | Dois Planos
Quatro | Palavras Apropriadas de Ubinious, O Sui Generis
Cinco | Um Traidor nas Árvores
Seis | A Ravina Circular
Sete | Monstros na Toca
Oito | Uma Pontada de Desdém
Nove | O Baratodonte Voraz
Dez | O Grande Rio Blapp
Onze | O Fim da Estrada
Doze | Trovões, Borrifos e Pedras
Treze | A Ponte Miller
Quatorze | A Última Torre
Quinze | Uma Canção para Nugget, o Valente
Dezesseis | As Joias e os Dragões
Dezessete | Um Aliado em Cavadópolis
Dezoito | Velhas Feridas e Nova Cura
Dezenove | Will Usurpador e os Primeiros Livros
Vinte | No Salão de Lamendron
Vinte e Um | O Pesadelo de Podo
Vinte e Dois | Os Marginais da Curva Oriental
Vinte e Três | Urra-Punho, O Rei Marginal
Vinte e Quatro | Mãos Rápidas e Pés Mais Rápidos Ainda
Vinte e Cinco | Ataquebol na Neblina
Vinte e Seis | Ao Longo da Estrada do Rio
Vinte e Sete | Uma Ferida Sobre a Face da Terra
Vinte e Oito | Oh! Anyara!
Vinte e Nove | T.A.N.E.G. no Covil dos Marginais
Trinta | As Últimas Palavras de Sneem
Trinta e Um | No Beco da Viúva Rechonchuda
Trinta e Dois | Ronchy McHiggins Faz uma Descoberta
Trinta e Três | A Ruptura
Trinta e Quatro | Um Observador nas Sombras
Trinta e Cinco | As Desgrenhadas e os Esfarrapados
Trinta e Seis | Um Arranjo Odioso
Trinta e Sete | Na Boca do Monstro
Trinta e Oito | Olhos Brilhantes num Lugar Escuro
Trinta e Nove | Esben Sabóvel, Ferramenta de Fábrica
Quarenta | O Caixão
Quarenta e Um | Quatro Maçãs e Um Plano
Quarenta e Dois | Uma Negociação Nefasta
Quarenta e Três | Três Dias na Escuridão
Quarenta e Quatro | Montanhas e Algemas
Quarenta e Cinco | O Destino de Sara Cobbler
Quarenta e Seis | O Covil Marginal
Quarenta e Sete | Uma Mudança de Coração
Quarenta e Oito | As Gaiolas
Quarenta e Nove | A Fortaleza das Phoob
Cinquenta | O Nariz da Bruxa
Cinquenta e Um | A Canção das Antigas Pedras
Cinquenta e Dois | O Bambolhão e o Lago de Ouro
Cinquenta e Três | Uma Revoada de Marbutres
Cinquenta e Quatro | As Pradarias de Gelo
Cinquenta e Cinco | A Rendição de Artham Wingfeather
Cinquenta e Seis | Dois Tipos de Vergonha
Cinquenta e Sete | Abelhas e Ossos Velhos
Cinquenta e Oito | A Barganha de Gammon
Cinquenta e Nove | A Transformação
Sessenta | Segredos na Neve
Sessenta e Um | A Batalha de Kimera
Sessenta e Dois | Fúria Ancestral
Sessenta e Três | O Troféu de Hulwen
Sessenta e Quatro | E o Mar Ficou Vermelho
Sessenta e Cinco | A Última Viagem de Podo Helmer
Apêndices
Sobre o Autor
Notas
1
O Fendril Solitário
Dois Planos
A Ravina Circular
Monstros na Toca
Nugget estava no fundo da ravina com uma grande pata sobre um velho
tronco de árvore podre — Leeli e Tink em suas costas. Nia deslizou para se
juntar a eles, enquanto Podo e Janner, no meio da encosta, puxavam com
dificuldade as rédeas do burro. Janner arrastou-se até a traseira do burro e
empurrou com toda a força, mas não adiantou. A apavorada besta zurrava e
sacudia a cabeça em desafio. Não tinha nenhuma intenção de prosseguir.
“Anda logo, seu velho comedor de palha birrento!” Podo gritou.
“Precisamos que você avance só um pouquinho mais”, a voz de Leeli
chamou, docemente, do outro lado do barranco. “Isso. Venha!”
As orelhas do burro se voltaram na direção da voz de Leeli e seu zurro
cessou. Deu um passo hesitante para frente. Podo ergueu uma sobrancelha
para Leeli, que sorriu de volta. Janner arriscou outro olhar para trás
enquanto deslizava encosta abaixo.
Peet, o Homem-Meia, havia descido das árvores e parado na frente da
fileira de Fangs indecisos — os braços cruzados sobre o peito, as costas
retas, o queixo projetado para frente e os olhos fechados. Ele lembrava a
Janner do prefeito Blaggus quando regia a Orquestra da Cidade de
Glipwood.
Então, um troll emergiu da linha de frente dos Fangs. Foi a primeira vez
que Janner olhou claramente para uma dessas criaturas — e ele entendeu
por que razão Nia e Podo pareciam tão preocupados quando Oskar os
mencionou. As pernas do troll eram curtas e robustas, mas a criatura ainda
tinha o dobro da altura de um homem. Seu torso e braços eram inchados de
músculos e veias; uma cabecinha com uma mecha de cabelo grisalho
despontava por entre os ombros. Os olhos do troll estavam escondidos na
sombra de sua testa ossuda — uma testa que combinava com a mandíbula
ossuda, parecendo forte o bastante para derrubar o portão de um castelo.
A besta agarrou uma clava cravejada de ferro com um punho do tamanho
de um carrinho de mão, segurou a clava acima de sua cabeça por um
momento, então rosnou para Peet (de um jeito meio lamentoso) e esmurrou-
a contra o chão. O solo vibrou e seixos se desprenderam da encosta onde
Janner estava. O burro perdeu toda a coragem que Leeli havia despertado
nele e recuou.
“Vovô!” Janner gritou. “Temos que deixá-lo!”
Eles se arrastaram para cima, na ravina, baixaram Oskar das costas do
burro e apoiaram seus braços sobre os próprios ombros.
O troll bateu com a clava no chão novamente.
Peet ainda não havia se movido. Ele permaneceu imóvel, numa atitude
petulante, ganhando precioso tempo para os Igibys, assim como na fuga
para a Mansão Pé-de-Geleia. Quando Janner e Podo alcançaram o fundo da
ravina, onde os outros esperavam, Janner deu uma última olhada para o
burro apavorado. Sentiu pena dele e se perguntou se os Fangs o forçariam a
trabalhar ou se o comeriam.
Então ele viu, pendurada na sela do burro, a bolsa de Peet.
Janner desvencilhou-se do braço de Oskar e rastejou de volta encosta
acima. Os trolls e os Fangs haviam se aproximado de onde Peet estava,
agora pulando em círculos e assobiando para si mesmo. O homem era tão
corajoso quanto louco, e os Fangs não sabiam o que fazer com isso. Janner
tentou desamarrar as correias que prendiam a bolsa de Peet ao burro, mas,
não se soltando, abriu-a com um rasgo para pegar o que pudesse. Vasculhou
entre um monte de diários amarrados com barbante, um martelo, uma bota
velha, um rato vivo e um frasco de couro — a água do Primeiro Poço.
Janner deu um suspiro de incredulidade, enfiou o frasco no bolso lateral
da calça e saltou de volta para a ravina.
Mas algo estava errado.
Nugget já deveria ter subido pelo outro lado, mas estava imóvel no
fundo do barranco. Leeli implorava ao cachorro que despertasse de seu
transe. Tink havia desmontado e estava na frente de Nugget, com as mãos
nas laterais do rosto do imenso cachorro, chamando seu nome.
Nugget respondeu com um gemido preguiçoso.
Então Tink gritou e debateu-se com algo a seus pés. Janner arrastou-se
sobre galhos caídos até seu irmão antes que qualquer outro tivesse tempo de
reagir. Quando viu a fonte da angústia de Tink, Janner gritou também.
De um espaço entre dois galhos mortos no chão da ravina — que Janner,
agora, percebia que não era chão — emergiu uma cabeça com olhos
leitosos. Seu nariz era úmido e largo, seu focinho comprido como o de um
cavalo, porém mais robusto, e duas presas amareladas projetavam-se de
uma boca cheia de dentes tortos e afiados: uma vaca-dentada, presa abaixo
deles, numa cova de baratodonte voraz. O que eles pensavam que fosse o
chão da ravina era mais como uma grande pilha de arbustos escavada de
baixo para cima.
Dentro da boca da vaca estava o pé esquerdo de Tink, um pé que teria
sido decepado de seu corpo e ido direto para o sistema digestivo da besta, se
a vaca não estivesse entorpecida pela névoa da armadilha de gases do
baratodonte. Os olhos da vaca-dentada expeliam um fluido amarelo e
reviravam de forma sonolenta, enquanto o animal sorvia o tornozelo de
Tink mais profundamente em sua boca.
Janner puxou a perna de Tink, mas os dentes menores da vaca estavam
angulados para dentro.1 Se a vaca estivesse totalmente acordada, Janner
tinha certeza de que Tink seria mais um membro de sua família com apenas
um pé ativo.
Podo apareceu com sua espada desembainhada e golpeou o monstro,
mas a cabeça da vaca estava apenas parcialmente visível através da abertura
nos galhos, e ele não conseguia causar danos o suficiente para que ela
soltasse o pé de Tink.
A comoção tirou Nugget de seu transe. O grande cachorro latiu e
enrijeceu o corpo, apreendendo a situação como se tivesse acabado de
acordar de um sonho. Quando Nugget viu a vaca, pulou na abertura do
chão, o que quase fez Leeli voar de suas costas. Quando ele aterrissou, a
colcha de retalhos de galhos onde eles estavam deslocou-se e revelou mais
da cabeça da vaca-dentada.
Os irmãos e seu avô entreolharam-se por tempo suficiente para
compartilhar a percepção de que estavam prestes a cair — e então caíram.
Nugget se estatelou no chão. Leeli pousou na pele macia do flanco de
seu cachorro, e Janner, Tink e Podo seguiram, de ponta-cabeça, batendo no
chão frondoso da toca do baratodonte voraz.
Janner estava desorientado, mas percebeu que, na queda, o pé de Tink
havia se desvencilhado das mandíbulas da vaca. Então, viu o medo no rosto
de Podo. O velho pirata olhou para trás de Janner para algo que o congelou
como uma estátua.
A toca estava cheia de monstros.
8
Tink se deteve. Ele olhou para Janner como se tivesse acabado de levar
um tapa, então correu através da briga tão rápido quanto só Tink poderia
correr, escalou a outra encosta da ravina e cortou os galhos do teto.
A hesitação de Tink não durou muito — meio batimento cardíaco —,
mas, naquele minúsculo espaço de tempo, uma multidão de pensamentos
amargos rugiu dentro de Janner, todos eles apontados como flechas para seu
irmão. Eis, ele pensou novamente, desta vez sem nenhum traço de humor, o
Rei Supremo de Anniera.
Assim que Janner arrastou Nugget e Leeli, passando por Podo e as
vacas-dentadas, a luz desceu pelo buraco no teto: Tink havia conseguido!
Ele embainhou a espada e arrancou os galhos, jogando-os longe.
Janner correu para a traseira do cão e o empurrou, tentando não pensar
no som da luta de Podo, logo atrás dele. Leeli se inclinou para a frente e
fechou os olhos quando Nugget irrompeu pelo buraco e saltou para o outro
lado da ravina.
Janner deu um tapinha nas costas de Tink. “Vá!” Tink subiu pelo buraco.
Sem hesitação desta vez, pensou Janner. Ele se virou e gritou: “Vovô,
vamos! Já saímos!”
Foi nesse momento que Peet, o Homem-Meia, saltou da borda do
barranco em alta velocidade, com os braços abertos como asas. Janner
observava seu tio com admiração.
Suas meias há muito haviam caído em tiras, cortadas em pedaços pelas
garras nas pontas de seus antebraços avermelhados. O cabelo branco de
Peet tremulava atrás dele; uma de suas sobrancelhas estava plana e baixa, a
outra arqueada, como uma espiral de fumaça; e nos olhos de Peet ardia um
único propósito: Proteger. Proteger. Proteger.
O que mais impressionou Janner sobre seu tio nesse momento não foi o
salto gracioso pelo ar ou as garras mortais e misteriosas, mas que, em meio
a todo o perigo e pânico, o olhar de Artham P. Wingfeather estava fixo nele
— com o que, Janner sabia, era um afeto profundo.
Ali, na ravina do baratodonte voraz, com vacas-dentadas embaixo e
Fangs de Dang se aproximando, Janner se sentiu seguro.
Mas apenas por um momento.
Podo gritou. Quando Peet pousou no emaranhado de galhos na beira do
buraco, Janner se virou, imaginando que as vacas-dentadas haviam
derrotado Podo, afinal. Mas as vacas tinham sumido.
Ou... quase.
A metade superior de uma vaca-dentada estava desaparecendo boca
adentro de um... o quê? Janner viu seu inabalável avô tremendo, recuando
com as pernas trêmulas em direção à abertura onde Janner estava.
Da escuridão, na parte de trás da toca, o baratodonte voraz emergiu.
9
O Baratodonte Voraz
O Fim da Estrada
A Ponte Miller
A Última Torre
Janner não o viu cair. Seus olhos se fecharam, de modo que a pedra
molhada sob suas mãos, o vento frio, os uivos de triunfo dos Fangs e o
lamento de sua irmã eram tudo do que ele tinha conhecimento.
Podo ergueu Leeli por cima do ombro e carregou sua neta para longe,
arrastando Janner pelo colarinho da camisa enquanto caminhava. Os olhos
de Janner se abriram, com sua visão turva pelas lágrimas. Ele desceu
correndo os degraus atrás de Podo, notando com indiferença os olhares
confusos e surpresos nos rostos de Nia, Tink e Oskar.
Em seguida, escalaram a margem lentamente, arrastando corações
pesados. Ninguém pronunciava uma palavra, ninguém olhava para trás para
ver se os Fangs haviam encontrado uma maneira de cruzar o vão.
Depois de uma longa e tortuosa escalada sobre cascalhos e pedregulhos,
os Igibys, Podo e Oskar alcançaram um terreno plano. A grama verde e
macia se estendia diante deles por uma curta distância, antes de as árvores
da floresta se ajuntarem em uma parede verde. Estavam em uma clareira
aproximadamente do tamanho da cidade de Glipwood, um oásis de espaço
aberto cercado por árvores de Glipwood.
A área estava repleta de pedras grandes, mas não eram as pedras
arredondadas das cataratas. Eram quadradas, empilhadas em alguns lugares
e cobertas de ervas daninhas. Sob a grama, a trilha que haviam seguido
desde o rio tornou-se uma estrada de paralelepípedos; as pedras, ruínas de
um aglomerado de edifícios.
Leeli caiu na grama e chorou.
“Tenho medo de dizer isso”, disse Podo com voz rouca, “mas podemos
estar seguros. Vejam.”
Janner e Tink se colocaram ao lado de Podo e olharam para baixo. De
onde estavam, viram todas as Cataratas Fingap dispostas diante deles. À
direita corria a água esbranquiçada do Grande Blapp, serpenteando pela
névoa das quedas superiores, e abaixo projetava-se a plataforma que
captava as águas em sua palma gigante. As pontes que interligavam as
cinco torres pareciam finas como fitas. Na quarta, é claro, não havia mais
uma ponte, e a superfície da torre estava entupida com os minúsculos
movimentos dos Fangs em retirada.
Janner mal podia acreditar que acabara de cruzar um espaço tão precário;
na verdade, ele mal podia acreditar que tal lugar existisse.
Virou-se e viu Oskar e Nia erguendo Leeli e levando-a até um banco de
pedra. Nia segurou a cabeça de Leeli contra o peito e balançou para a frente
e para trás enquanto Oskar dava tapinhas em suas costas. Leeli chorava.
Janner lembrou-se do dia no chalé em que ela pensou que os Fangs
haviam matado Nugget. Ela havia chorado pouco e logo ficado em silêncio.
Isso havia sido muito mais preocupante para ele do que a maneira como
Leeli chorava agora. Ela parecia mais velha! Não estava mais chocada por
que uma coisa assim pudesse acontecer no mundo, mas com o coração
partido porque tinha acontecido. Suas lágrimas pareciam a Janner o tipo
certo de lágrimas.
Tink sentou-se no chão, de costas para o banco de pedra, e,
distraidamente, puxava ervas daninhas das fendas entre os paralelepípedos.
Podo se ajoelhou na frente de Leeli sobre seu joelho bom.
“Leeli”, chamou-a gentilmente.
Cabelos grudavam-se no rosto molhado da menina. Suas bochechas
estavam vermelhas e seu queixo tremia. Ela se lançou sobre o avô e abraçou
seu pescoço, chorando mais forte do que antes. Podo a ergueu e a carregou
para longe, sussurrando e dando-lhe tapinhas nas costas com suas mãos
grandes e calejadas.
Janner jogou-se no chão ao lado de Tink e, sentindo o cansaço do dia
feito um cobertor, apoiou a cabeça na pedra e olhou para o céu. Nuvens
brancas deslizavam pela cúpula de um azul profundo, pacíficas como um
suspiro. Seus olhos se fecharam, e o vento fez cócegas em seu rosto e nos
pelos de seus antebraços. A toca do baratodonte, então os trolls, a captura
de Peet, o desespero nebuloso da planura ao lado do rio, a visão vertiginosa
do Mar Sombrio, o troll bufando nas costas de Janner — e Nugget.
Peet abriu os olhos e contemplou o céu novamente. Onde estaria Peet
agora? Janner temia por ele, mas tinha certeza de que Peet ainda estava
vivo. Ele havia sobrevivido a coisas terríveis por anos, e algo sobre a
maneira como Zouzab o observava do ombro do troll fez Janner acreditar
que Gnag queria o Homem-Meia vivo por algum motivo.
Por muito tempo eles ficaram sentados entre as ruínas. Podo e Leeli
finalmente voltaram para onde os outros descansavam, e, embora seu rosto
ainda carregasse o peso da tristeza, Janner percebeu que sua irmã estava
presente. Seus olhos não se fixavam no nada. Eles viam a situação, sofriam
por ela e a enfrentavam.
Enquanto Janner resvalava para o sono, estava ciente da ausência de
Nugget: sem risadinha de Leeli; nada de grandes e lamuriosos bocejos;
nenhuma sensação de segurança por saber que, o que quer que os estivesse
esperando nas sombras, pelo menos aquele monstro enorme e feliz estaria
ao lado deles.
As Joias e os Dragões
Um som profundo sacudiu o ar, um som que Janner tinha ouvido antes, mas
não conseguia identificar. Ele olhou para a esquerda e para a direita
esperando algo emergir das árvores, perguntando-se por um momento se
estava ouvindo coisas que não estavam realmente lá. Mas não era sua
imaginação.
Oskar sentou-se e disse: “Ah!”. Nia sorriu, correu para o penhasco e
olhou para o oceano. Podo, no entanto, gemeu e balançou a cabeça, então
atravessou para o lado mais distante da clareira e entrou na floresta. Janner
não teve tempo para pensar sobre isso, porque, nesse momento, já os tinha
visto.
Os dragões-marinhos!
Bem abaixo, os dragões dançavam na superfície do oceano como
minhocas minúsculas e cintilantes em um chão cinza. Suas vozes ecoavam
pelo ar, ao longo da grande distância e acima do rugido das Cataratas
Fingap. A canção dos dragões se misturou com a de Leeli, e a música
pulsou com alegria e depois tristeza.
Janner piscou maravilhado quando se concentrou novamente nas
imagens que rodopiavam diante dele. Ele não via mais Nugget, mas um
borrifo de ondas gigantes e, então, algo vermelho e dourado — os dragões.
Ele só havia visto as criaturas do alto do penhasco, mas agora podia vê-las
como se flutuasse um pouco acima da superfície do mar, a uma curta
distância.
Eram tão bonitos quanto temíveis. Seus corpos brilhavam com escamas
metálicas que giravam em cores. O dragão mais próximo a ele cintilava de
laranja e dourado, como milhares de palitos de fósforo sendo riscados, mas
as barbatanas, parecidas com asas, alternavam entre tons de azul. Sua
cabeça era lustrosa e graciosa, perfeita para cortar a água, e seus olhos —
grandes, profundos e serenos — enviaram um calafrio que percorreu até os
dedos dos pés de Janner, porque, de repente, ficou claro que o dragão sabia
que estava sendo observado. Os olhos rolaram para trás e pálpebras
translúcidas deslizaram sobre eles enquanto o dragão abria a boca e
cantava. Dentes se alinhavam em sua boca, mas não do jeito tortuoso e
amarelado dos Fangs ou das vacas-dentadas: eram retos, brilhantes e
afiados como agulhas.
Janner forçou sua mente através da imagem e olhou novamente para seus
irmãos. Os olhos de Leeli estavam fechados e, embora ela sorrisse, lágrimas
molhavam seu rosto enquanto tocava. O vento agitava o cabelo de Tink, e
ele olhava para o ar vazio à sua frente; seus olhos se moviam focalizando
pontos à frente e atrás, como se estudasse um desenho pendurado a alguns
metros de seu rosto.
A música mudou para um murmúrio suave, e Janner voltou sua mente
novamente para a imagem flutuante. Um dragão surgiu das ondas
carregando algo preto em suas costas, aninhado entre suas nadadeiras. Era
Nugget.
Os outros dragões giraram em formação ao redor daquele que carregava
o grande cão, com seus longos e graciosos pescoços ainda arqueados
enquanto cantavam. Juntos, aproximaram seus narizes do corpo molhado e
machucado de Nugget e ergueram o cachorro no ar, de forma que ele
parecia flutuar sobre os esguichos de uma fonte, e então o levaram para
baixo da superfície.
Para a cripta de Yurgen, onde jazem os heróis, bradou uma voz na
mente de Janner. A voz sussurrava, gritava e cantava ao mesmo tempo.
A música de Leeli chegou ao fim, e Janner desejou que ela continuasse
tocando. Qualquer que tivesse sido, o poder que a música despertou nas três
crianças Wingfeather deixaria um terrível vazio quando acabasse.
Ela deve ter sentido alguma coisa nova se aproximando, porque parou
apenas por um momento. Leeli tocou outra música, grave e sombria, com
uma melodia que deu a Janner uma sensação de perigo. A imagem tornou-
se mais espessa novamente e pairou logo acima das ondas. O crepúsculo
havia se aprofundado, de forma que a figura que saiu da água era difícil de
ver. Era outro dragão, mas Janner sabia que era antigo, mesmo para os
padrões de um dragão. Os outros dragões haviam girado e dançado, mas
este estava imóvel, indiferente às ondas gigantes batendo em seus lados. Os
outros haviam brilhado, mas este era cinza e sem luz, exceto pelo brilho
pálido de seus olhos.
Ele está perto de vocês, jovens.
Janner tremia, mas não estava com medo; a voz não era má.
“Continue tocando”, sussurrou para Leeli. Ela parecia inquieta, mas
anuiu com a cabeça e continuou.
Os olhos de Tink estavam arregalados e cheios de medo, como se
estivesse olhando para um fantasma. Janner estava prestes a perguntar a
Tink o que ele havia visto que o assustara tanto, mas a voz falou
novamente.
Ele está perto de vocês. Cuidado. Ele destrói tudo o que toca e busca os
jovens para usá-los para seus próprios fins.
“Quem?” Janner sussurrou, sem ter certeza se o dragão podia ouvi-lo.
“Gnag, o Sem-Nome? Quem?”
Temos vigiado, à espera. Ele navegou pelo mar e está perto de você,
criança. Podemos sentir o cheiro dele.
O coração de Janner batia forte. Gnag, o Sem-Nome, estava perto?
Janner nunca tinha pensado em Gnag a não ser como um nome assustador,
um ser maligno sem feições definidas. Será que Gnag tinha braços e pernas
e cruzara o Mar Sombrio como qualquer um faria, em um barco? Janner
não tinha certeza se esse pensamento tornava Gnag, o Sem-Nome, mais ou
menos assustador, mas tinha certeza de que, se Gnag estivesse por perto,
eles não tinham tempo para descansar, para sentar à beira do penhasco e
ouvir os dragões. Tinham que ir para o mais longe possível.
O dragão afundou sob as ondas. A música de Leeli terminou, e ela, com
um suspiro, colocou a harpa eólica sobre o colo.
Janner esfregou os olhos e balançou a cabeça, ainda sem saber se estava
sonhando ou não. “O que acabou de acontecer?” Ele perguntou.
“Não sei”, respondeu Tink, “mas eles estão levando Nugget para uma
caverna.”
“Como você sabe disso?” Leeli perguntou em voz baixa.
“Não tenho certeza. Eles me mostraram. Eu os vi carregar seu corpo para
o fundo do mar e para dentro de uma caverna, onde colocaram Nugget
sobre uma pilha de pedras. A caverna estava cheia de ossos, e os ossos
estavam cobertos com algum tipo de marca. Escrita, eu acho.”
“Pedi que eles cuidassem de Nugget”, disse Leeli, “com minha música.
Eu lhes disse quem ele era, o que ele fez por nós.”
“Não consigo mais me lembrar de como eles eram”, disse Janner.
Tink olhou para o horizonte. “Ainda posso vê-los. Suas barbatanas —
você viu as barbatanas? Eram enormes. Oito dragões-marinhos. Três
prateados, dois de cor vermelha e dourada, um laranja e um azul. E, então,
aquele último — o mais antigo, cinza.” Ele fez uma pausa. “E eu vi outras
coisas, Janner. Coisas horríveis.” Ele estremeceu.
“O quê? O que você viu? Foi Gnag, o Sem-Nome?” Janner perguntou.
“Gnag? Não... Não sei.” Tink balançou a cabeça e fechou os olhos.
A uma curta distância, Nia gritou. “Onde está seu avô? Papai!”
Podo emergiu das árvores. O velho estava sem fôlego, mancando mais
que o normal enquanto caminhava em direção a eles. Seus olhos estavam
abatidos. “Rapazes, montem a barraca. Logo estará escuro demais pra
enxergar alguma coisa.”
“Vovô, algo estranho acabou de acontecer”, relatou Janner. “Os
dragões...”
“Barraca! Agora!” Podo disparou.
As bochechas de Janner queimaram. O que ele havia feito para merecer
isso? Se Gnag, o Sem-Nome, estivesse por perto, não faria sentido armar
uma barraca. Eles tinham que fugir ou pelo menos se esconder.
“Vovô”, disse ele, e Podo o encarou com olhos em chamas. Janner
resistiu ao desejo de se encolher e se desculpar. Ele tinha que dizer alguma
coisa. Janner se endireitou e cerrou os punhos. “Vovô, o dragão falou
comigo.”
O rosto de Podo estava endurecido. “E aí?” Ele resmungou depois de um
momento. “E o que o dragão disse, garoto?”
“Disse que Gnag, o Sem-Nome, está perto. Que ele cruzou o mar, e que
os dragões podem sentir o cheiro dele. Ele disse: ‘Cuidado’.”
“Gnag, o Sem-Nome.” Podo bufou. “Um dragão-marinho disse que o
próprio Gnag está por perto. É isso que você tá me dizendo?” O velho pirata
cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha.
Janner apontou para Tink e Leeli. “Pergunte a eles! Eles também
ouviram! Ou... eles não ouviram exatamente, mas... mas viram algo e
sentiram coisas. Não foi?”
“Sim, senhor”, confirmou Tink. “Eu os vi. Bem de perto.”
“E eu os senti, vovô”, disse Leeli.
Podo e Nia trocaram olhares, e Podo agitou uma mão no ar. “Bem, o
dragão-marinho também disse a vocês que toda a raça dele é um bando de
escamosos mentirosos? Ele disse a vocês que eles manipulam e confundem
pelo prazer que isso dá? Os dragões-marinhos observam as ações dos
homens com um olhar perverso e prefeririam ver vocês caindo do penhasco
a fugindo de Gnag, o Sem-Nome.”
O quê?! Janner pensou sobre a avalanche de emoções que sempre sentia
no Dia dos Dragões. Os dragões-marinhos eram assustadores, fascinantes,
até mesmo assombrosos — mas não eram maus. Foi a música de Leeli que
os atraiu, e Leeli certamente não era má. Além disso, havia o corpo de
Nugget. Os dragões o carregaram com tanto cuidado... não havia maldade
alguma nisso. Mas como Janner poderia discutir com um pirata? Podo sabia
mais sobre qualquer coisa do que Janner, especialmente o mar.
“Isso foi o que o dragão disse. Eu só... achei que você deveria saber”,
Janner falou baixinho, incapaz de encarar os olhos de Podo. Se ele tivesse
olhado para cima, teria visto que Podo não era capaz de encarar seus olhos
também.
“Meninos, cuidem de armar a barraca como seu avô mandou”, Nia
ordenou depois de um momento. “Podemos falar sobre os dragões-
marinhos daqui a pouco. Com Gnag, o Sem-Nome, ou sem ele, todos nós
precisamos de uma refeição e de um descanso. Só o Criador sabe quando
teremos outro.”
“Comida?” Tink perguntou.
Nia assentiu. “Vamos comer o verdugo seco que Artham fez para nós.”
“Comida!” Tink repetiu.
17
Um Aliado em Cavadópolis
Velhas Feridas
e Nova Cura
Peet não conseguia mover nem seus braços, nem suas pernas.
O troll caminhava para o sul, arrastando Peet por um pedaço de corda
como um boi com um arado. Peet, enrolado em correntes da cabeça aos pés,
foi sacudido e golpeado por cada raiz, pedra e buraco na estrada. Alternava
entre consciência e desmaio e, toda vez que acordava, via Zouzab e o outro
corre-crista empoleirados nos ombros do troll, observando-o com prazer
perverso.
Peet lembrou-se do terrível estalo do baratodonte voraz no dia anterior.
Assim que Zouzab ordenara que o troll se retirasse da ravina, Peet teve um
vislumbre dos Igibys e Oskar fugindo para o norte. Embora ele tivesse
gritado e se debatido, o troll o segurava com força, com tanta força, que sua
visão ficou turva e tudo escureceu. Quando acordou, era noite e ele estava
enrolado em correntes como uma mariposa em uma teia de aranha.
“Você ficará feliz em saber que suas preciosas ‘joias’ escaparam mais
uma vez”, Zouzab lhe contou. Ele estava sentado de pernas cruzadas perto
do fogo, e enfiava um punhado de amoras na boca; em seguida, passou a
cesta para o outro corre-crista. As manchas vermelhas em torno de suas
bocas pareciam sangue.
Peet olhou para os corre-cristas sem falar, em parte porque a corrente
enrolada em seu rosto tornava difícil respirar, e em parte porque não
conseguia descobrir de quem o corre-crista estava falando. Sua mente
estava uma bagunça confusa.
Joias? Eu amo as joias, mas o que... eu me lembro! As crianças! Quem
escapou? As crianças, sim. Bom. Quais eram seus nomes mesmo? Não
consigo me lembrar de seus nomes. Com fome e sede. Braços doendo. Não
deveria tê-los deixado. Não tive a intenção. Não queria, mas os deixei. Oh,
Criador! O que eu fiz?
A mente de Peet se encheu de sombras e penas e um lamento que ecoava
por corredores úmidos. Ele estava vagamente ciente dos corre-cristas
observando-o perto do fogo enquanto ele se debatia e choramingava em
suas correntes, mas eles pareciam estar a um mundo de distância.
O que eu fiz? Eu os abandonei. Não!
Um farfalhar de penas, nas profundezas de sua mente, e tudo
desapareceu.
Agora era um novo dia e sua mente estava mais clara. Ele sabia o
próprio nome, os nomes das crianças Wingfeather e para onde o estavam
levando. A estrada subia e descia sobre colinas graduais e estava bem
desgastada pelos Fangs. A luz no leste sinalizava que ele estava indo para o
sul.
Para o Forte Lamendron.
Ele gritou.
Os corre-cristas riram.
Will Usurpador e
os Primeiros
Livros
No Salão de Lamendron
Naquela noite, quando o sol se pôs em Skree, o troll jogou Peet no chão do
grande salão do Forte Lamendron. Tochas tremeluziam nas paredes. Os
Fangs, em volta da sala, sibilavam para a figura acorrentada que se
contorcia no chão em frente ao trono.
Zouzab e o outro corre-crista deslizaram silenciosamente até o pé do
trono e fizeram uma reverência. “Saudações, general Khrak”, saudou
Zouzab.
Logo atrás do corre-crista, Peet estava deitado de costas e olhava para o
teto elevado. No momento, sua mente funcionava corretamente, e ele se
lembrava de tudo. O troll o arrastara por uma noite e um dia desde a
floresta, através da cidade de Glipwood e pela longa estrada até o Forte
Lamendron. Peet sentia a dor de cada centímetro da brusca jornada.
Ele encontrou alguma satisfação no medo nos olhos dos Fangs ao
olharem-no. Eles tinham bons motivos para ter medo. Se ele estivesse livre
das correntes, poderia acabar com todas as criaturas na sala. Só para ter
certeza, Peet flexionou os músculos. Os Fangs recuaram, mas as correntes
se mantiveram firmes.
“Vejo que você capturou o Guardião do Trono”, prosseguiu Khrak.
Zouzab acenou com a cabeça.
“Excelente. Gnag ficará satisfeito. Mas eu não vejo asss crianças.”
“As joias”, declaou Zouzab, e fez uma pausa.
“Fale, verme!” Khrak sibilou.
“As joias... escaparam. Novamente.”
O rosto de Khrak estava ilegível. Peet sorriu. Zouzab olhou para as vigas
do salão e as janelas altas, provavelmente para o caso de precisar fazer uma
fuga rápida. Khrak tinha a reputação de ser mais implacável do que a média
dos Fangs, o que deveria ser levado a sério.
“Eu poderia contar todos os detalhes sobre como a incompetência do seu
Comandante Higgk levou à fuga”, continuou Zouzab, “mas o importante
não é que eles tenham escapado.”
“E o que ssseria importante?” Perguntou o general com uma voz
ameaçadora.
“O importante, General Khrak, além da captura do Guardião do Trono, é
que ouvimos enquanto a mãe e o avô planejavam e discutiam, e sabemos
para onde estão indo.”
“Ah. E onde é issso?”
“As Pradarias de Gelo.”
“Kimera?” Khrak perguntou.
“Sim, meu senhor. Eles sabem da força reunida lá, e do líder, um homem
chamado Gammon. Também sabem que os Fangs, por mais poderosos que
vocês sejam, não podem suportar o frio severo, então acreditam que lá seja
seguro.”
“Seguro, hein?” Ironizou Khrak a um Fang próximo.
“Sim, general”, disse o Fang com uma risadinha, “perfeitamente
ssseguro.”
Os Fangs no salão explodiram em gargalhadas.
Peet começou a suar. Teria Gnag descoberto uma maneira de proteger os
Fangs do frio? Ele precisava encontrar um modo de contar às crianças!
Ele se esticou e se contorceu, sentindo os olhos de Khrak nele. E, então,
sua mente ficou turva, e ele se esqueceu de onde estava, de quem ele era, de
quem eram as crianças. Ele se tornou pouco mais que um animal
acorrentado.
Quando as risadas cessaram, o Fang no trono desceu do estrado e
curvou-se sobre Peet. Sua língua se lançou para fora e serpenteou no ar a
apenas alguns centímetros do rosto de Peet.
“Sssei exatamente o que fazer com você, Artham Wingfeather”,
vociferou o Fang, e ao ouvir seu nome, a mente de Peet clareou um pouco.
“N-não me mande de volta”, gaguejou Peet. “P-por favor...”
“Voltar para Throg?” Khrak perguntou com um sorriso malicioso. “Você
não quer voltar para as Profundezas de Throg? Ora, tenho certeza de que
Gnag, o Sem-Nome, poderia encontrar um lugar para você nas masmorras.
Sua antiga cela, talvez? Aquela com uma vista excelente, pelo que me
lembro.”
Peet chorou e balançou a cabeça.
Khrak se endireitou e olhou para ele com desprezo. “Pare de
choramingar. Ilhas Phoob pra você, Wingfeather. Deixaremos os Fangs
Cinzentos tentarem... fazer algo de você. Levem-no para as docas!”
21
O Pesadelo de Podo
Quando o céu ficou escuro e a floresta mais escura ainda, Podo anunciou
uma parada para descanso. Não houvera sinal de Marginais nem de vacas-
dentadas nas seis horas desde o almoço.
“Podemos fazer outra fogueira?” Leeli perguntou docemente ao avô.
Podo suspirou. “Não, moça, receio que não. Não à noite. Se quisermos
luz, terá que ser do tipo esverdeado.”
Depois de uma refeição fria e silenciosa, à luz da vela de cera de meleca,
Podo armou a barraca perto de uma árvore fácil de escalar e ficou de vigia,
enquanto Tink e Janner se amontoavam junto ao livro antigo, posto sobre o
colo de Oskar. De vez em quando, o velho livreiro chamava Nia e segurava
a vela para que ela pudesse ver a página. Ela lhe dava seu melhor palpite
sobre o som ou o significado de uma letra, depois voltava para seu lugar ao
lado de Leeli.
Janner estava dolorido e cansado, mas sua mente se agitava com
perguntas muito tempo depois de Nia ter apagado a vela e os outros,
adormecido. Ele queria saber por que Podo, que havia parecido tão feliz
durante as semanas no castelo de Peet, estava agora tão irritado e distante.
Ele queria saber o que, a respeito do Mar Sombrio, fazia o velho pirata
hesitar. Ele queria saber o que havia acontecido com Peet, o Homem-Meia.
Ele queria saber por que seu pai havia lhe deixado esse livro gigante e
desgastado pelo tempo, escrito em uma língua da qual ninguém se
lembrava. Ele queria saber quem eram os Marginais. Ele queria saber o que
Gnag, o Sem-Nome, poderia querer com ele, seu irmão e irmã. A mente de
Janner estava tão cansada de pensar quanto suas pernas estavam de andar, e
ele finalmente se sentiu caindo no sono, flutuando no reino dos sonhos
como um menino em um barco.
“Sinto muito”, lamentou uma voz.
Janner se sentou, sem saber se estava sonhando. Depois de um momento,
a névoa em seu cérebro se dissipou e ele se lembrou de onde estava. Ouviu
os roncos e respirações profundas dos outros, grilos do lado de fora da
barraca e uma coruja em algum lugar ao longe.
“Eu sinto muito, muito mesmo”, veio a voz novamente. Era Podo.
“Vovô?” Janner sussurrou. Não houve resposta. Ele rastejou até onde
Podo estava deitado. À luz fraca da barraca, ele podia ver que os olhos de
seu avô estavam fechados e sua boca, ligeiramente aberta. “Vovô, você está
sonhando”, sussurrou Janner.
“Não há desculpa, senhores... Eu sinto muito. Eu não sabia. Precisam
acreditar em mim”, murmurou Podo, à beira das lágrimas. O que quer que
estivesse sonhando, era horrível. A coruja piou novamente, e Janner pensou
em se deitar e deixar Podo com seu sonho, mas então a boca do velho se
contraiu, e ele gemeu.
“Vovô!” Janner sussurrou novamente, desta vez com a mão no ombro de
Podo.
Os olhos de Podo se abriram. Uma de suas maciças mãos se ergueu e
agarrou Janner pela garganta, mas Podo voltou a si e o soltou com a mesma
rapidez.
“Você estava sonhando”, Janner engasgou. Os dois se entreolharam em
silêncio, enquanto a respiração de Podo desacelerava.
“Lá fora”, sussurrou o velho.
Eles saíram da barraca e permaneceram no silêncio vivo da floresta. As
estrelas eram tão brilhantes que as folhas projetavam sombras. Podo tirou o
cachimbo do bolso, carregou-o com tabaco e acendeu-o sem dizer uma
palavra. O frio no ar infiltrou-se pelas roupas de Janner e o fez tremer, mas
o cheiro da fumaça do cachimbo era quente e reconfortante e evocou
memórias do chalé Igiby e da lareira.
“Sonhando, hein?” Comentou Podo.
“Sim, senhor.”
“O que foi que eu disse?”
“Você disse que não havia desculpa, que não sabia. E que você sentia
muito.”
Podo deu uma longa tragada em seu cachimbo e soprou a fumaça
lentamente. “É”, ele disse para si mesmo. “Sinto mesmo.”
“Pelo quê?” Janner perguntou timidamente.
“Pelas coisas que fiz há muito tempo. Dívidas que ainda não foram
pagas.”
“Mas você não vai me dizer o quê.”
“Acho que não. Não agora, pelo menos.”
Janner queria pressioná-lo, mas sabia pelo tom de voz de seu avô que
seria melhor deixar para lá.
“De volta pra cama, rapaz. Tenho a sensação de que amanhã nosso
pequeno passeio de férias pela floresta chega ao fim.”
“Como você sabe?” Janner perguntou com um bocejo.
“As árvores estão mais esparsas. Não consigo mais ouvir o rio, o que
significa que ele se nivelou. E isso significa que vamos dar de cara com os
Marginais que enfiaram a lança naquela vaca-dentada. Se eles podem matar
uma daquelas criaturas, pode apostar que vão acabar com a gente
rapidamente.”
“Você já os viu antes?”
“Sim. Cresci aqui, lembra? Muito antes de Skree ser um lugar tão
perigoso. Mamãe e papai viajavam com frequência para Torrboro para
comprar sementes para a fazenda ou vender bacorins, se tivéssemos extras.
Claro que as pousadas em Torrboro eram caras demais para gente da laia
dos Helmer. Então, pegávamos a balsa para cruzar o Blapp até Cavadópolis,
onde meus pais podiam pagar um quarto. Em Cavadópolis, as coisas não
eram tão bonitas, mas eram muito mais divertidas para um fedelho como
eu.” Ele riu para si mesmo e soltou outra baforada de fumaça. “Mais de
uma vez escapei de meus pais e me vi envolvido em toda espécie de
problemas com os tipos mais decadentes de Cavadópolis. Mais de uma vez,
esses miseráveis acabavam sendo Marginais.
“Veja, rapaz, Cavadópolis é uma cidade de criminosos, mercenários,
vagabundos e aventureiros. Se é problema que você está procurando, é ali
que vai encontrar. Mas existem alguns tipos que nem mesmo os moradores
de Cavadópolis aturam. Alguns criminosos podem roubar sua cueca de
debaixo de suas roupas, mas não pensariam em machucá-lo. Já outros
roubam mais do que apenas seus pertences; atacam seu bolso e ainda
cortam sua garganta, apenas por diversão. Cavadópolis é um lugar
turbulento, mas as pessoas que vivem ali têm um senso do que é certo e
adequado, mesmo que seja algo tão traiçoeiro quanto um peixe-adaga. Se os
cavadopolienses disserem que você é inadequado para a sociedade, então
você é realmente mau.” Podo deu uma risadinha. “Você é banido da cidade
e vai ao longo do rio surrupiar pra viver, juntando migalha pra sobreviver
no meio de uma sociedade inteira de malditos assassinos. Quanto pior você
for, mais longe ao longo da margem do Blapp você vai parar.”
Janner estava bem acordado agora. “Então amanhã vamos dar de cara
com eles? Os Marginais?”
“Temo que sim. E longe, assim, serão os piores deles.”
“Parecem ser tão ruins quanto os Fangs.”
“Sim.” Podo abraçou Janner e o mandou de volta para a cama. “Piores
ainda.”
Janner voltou furtivamente para a barraca e ficou acordado até o
amanhecer. Observou seu avô pela fresta da aba da barraca, andando de um
lado para o outro e fumando seu cachimbo enquanto o céu lá fora passava
de preto para azul-escuro e, em seguida, para branco-gelo. Leeli estava
encolhida ao lado de Nia, ainda abraçando sua mochila. Seu fino cobertor
havia escorregado, então Janner o puxou de volta até o queixo dela.
Oskar se engasgou com um de seus roncos monstruosos, e os olhos de
Tink se abriram piscando. “Janner?” Ele chamou com uma voz sonolenta.
“Sim?”
“Eu não quero ser rei.”
Janner quase perguntou a Tink o que ele queria dizer com isso, mas se
conteve. Ele sabia exatamente como seu irmão mais novo se sentia. “Tudo
bem. Eu também não quero ser um Guardião do Trono.”
“Não? Mas você é tão bom nisso. Você nunca hesita. Sempre parece
saber o que fazer.”
“Não é essa a sensação que eu tenho”, retrucou Janner. “Não se
preocupe. Tenho certeza de que você vai...” Você vai o quê? Tink realmente
daria um bom rei?
“O quê?” Tink perguntou, apoiando-se em um cotovelo.
“Tenho certeza de que você se sairá bem. Não acho que nenhum de nós
esteja pronto para ser um rei ou um Guardião do Trono ainda. Acho que
deveríamos estar estudando nosso T.A.N.E.G., jogando handyball e lendo
livros. Mas se isso fosse verdade, então também seria verdade que os Fangs
não deveriam estar em Skree, nosso pai deveria estar vivo e Leeli deveria
ter duas pernas boas.”
“Mas as coisas são o que são”, concluiu Tink.
“São o que são.”
“O que vamos fazer?” Tink perguntou.
“Hoje? Vamos sair da floresta. Podo diz que provavelmente
encontraremos os Marginais”
“Não, quero dizer depois disso.”
“Bem... Cavadópolis. Depois, as Pradarias de Gelo, espero.”
“Depois disso?”
“Não sei.” Janner sentiu uma onda de irritação no peito. Normalmente
ele fazia as perguntas e se preocupava com o futuro. Pela primeira vez, pelo
menos esta manhã, Janner estava contente em deixar as coisas acontecerem
como acontecessem. “Anniera, talvez?”
“Mas parece tão... impossível, não é? Quero dizer, você realmente acha
que Gnag, o Sem-Nome, e os Fangs e os trolls vão nos deixar ficar com ela
simplesmente? Ou devo ser o rei que lidera — o quê, um exército de
rebeldes contra esses monstros? ... Janner”, Tink disse baixinho, “não acho
que consiga fazer isso. Eu só quero que me deixem em paz, como era em
Glipwood, antes de tudo isso acontecer.”
“É tarde demais pra isso, Tink. Além disso, lembra o que Oskar nos
contou sobre os skreenianos? Disse que estavam profundamente infelizes,
que suas vidas não eram mais vidas.”
“Parecia uma vida pra mim. Eu era feliz em Glipwood, contanto que
ficássemos longe dos Fangs. Quer dizer, tínhamos o chalé, o Festival do Dia
dos Dragões, zibzy com os irmãos Blaggus, histórias perto do fogo —
refeições quentes! E agora olhe pra nós!” Nia se mexeu e murmurou algo
dormindo, e Tink baixou a voz. “Estamos dormindo em uma barraca,
Nugget está morto, Peet está... quem sabe o que aconteceu com ele. Minhas
costas doem! Não gosto de carregar esta mochila o tempo todo.” Tink se
sentou e abraçou os joelhos. “Eu só não quero ser rei.”
Janner suspirou e fechou os olhos. Sentia falta de Glipwood também.
Então, pensou em Anniera. Lembrou-se da imagem de seu pai no barco.
Lembrou-se do aperto em seu coração ao ouvir o canto dos dragões, da
maneira como se sentiu na manhã anterior ao ver o sol se erguendo de sua
sepultura no Mar Sombrio.
Valeu a pena? Sim.
“Glipwood se foi, Tink.”
Tink fechou os olhos.
“Não podemos voltar.”
Tink suspirou. “Eu sei.”
“Você sabe o que eu quero? Quero uma longa sequência de dias como
ontem, quando caminhávamos pela floresta, ouvindo poemas sobre o tio
Peet, rindo juntos. Sem espadas, arcos ou Fangs. Quero descansar. Mas
receio que não seremos capazes disso por muito, muito tempo — não até
chegarmos a Anniera. Até chegarmos em casa. Se tivermos que lutar pra
chegar lá, estou disposto a fazê-lo. E mesmo que eu tenha que puxar você
pelo colarinho, você virá comigo. Veja.” Janner tirou o caderno de desenho
de Esben da mochila de Tink, abriu-o e segurou-o sob a luz que entrava
pela aba da barraca. “Vê essa imagem? O gramado abaixo da muralha do
castelo, onde as pessoas estão sentadas à sombra da árvore?”
“Sim. Já olhei para ela umas cem vezes.”
“Esse é um lugar real. E é nosso. E algum dia vou dar uma surra em
você no zibzy naquele gramado.”
Tink sorriu. “Eu vou ser o único a dar uma surra. Sempre serei mais
rápido do que você.”
Janner disse a Tink que o amava, e Tink disse que também amava
Janner, mas não da maneira que um marido e uma esposa diriam. Janner
deu um soco no ombro de Tink e Tink o socou de volta. Só para ter certeza
de que seu irmão acreditava nele, Janner golpeou Tink nas costelas, e os
dois riram forte o suficiente para acordar todos, com exceção de Oskar, que
fungou, estalou os lábios e virou para o lado.
Podo achou que seria engraçado desarmar a barraca com Oskar ainda
dormindo nela. Então, depois de um rápido café da manhã com frutas secas,
Janner e Tink ajudaram Podo a puxar as estacas e levantar a vara central
que mantinha a lona no alto. Eles riam e cochichavam enquanto a erguiam
como um guarda-chuva gigante e expunham Oskar à luz do sol, mas ele
ainda roncava. Quando a barraca foi enrolada e amarrada à mochila de
Podo, não havia mais nada a fazer a não ser despertar o senhor Reteep.
Leeli cutucou seu ombro, e sua única resposta foi uma ligeira mudança no
tom de seu ronco. Nia juntou-se a Leeli e cutucou Oskar do outro lado.
Logo elas o estavam balançando para lá e para cá com tanta força que Podo,
Tink e Janner se dobraram de tanto rir. Oskar roncou e coçou a barriga.
“Mamãe”, chamou Leeli.
Nia enxugou uma lágrima do olho, ainda rindo junto com Podo e os
meninos.
“Mamãe”, repetiu Leeli.
“O que é, querida?” Nia perguntou, tentando se conter.
“Quem é aquele?” Ela apontou para as árvores logo atrás do ombro de
Nia.
Dois olhos maldosos, presos a um rosto sujo observavam os Igibys e
Podo.
“Sou um Marginal, é isso que sou.”
22
Os Marginais da
Curva Oriental
Urra-Punho,
O Rei Marginal
Podo ficou diante dos Marginais, transferindo o peso da perna boa para o
cotoco e vice-versa. Claxton estava sentado em um tronco no centro de seu
clã, de braços cruzados sobre o peito. Os Igibys e Oskar estavam atrás de
Podo. O fogo havia se reduzido a um brilho vermelho constante que dava
ao ar a cor de um pesadelo.
“Podo Helmer”, incitou Claxton, “prossiga.”
Janner olhava para o avô sob uma nova luz; parecia que o velho não
tinha fim para seus segredos. Mas por mais que Podo odiasse seu passado e
por mais que Janner odiasse imaginar seu querido avô acompanhando um
bando tão miserável, havia uma chance de isso salvar suas vidas. Ele sabia
que o avô tinha uma história em mente, mas estava com sérias dúvidas de
que Claxton e seu povo sibilante — e manejador de facas — os libertariam,
não importando o quão estimulante fosse a narrativa.
Podo fechou os olhos por um momento e respirou fundo antes de
começar.
“Marginais! Estou diante de vocês com apenas uma perna, meus cabelos
brancos pelo tempo e minha barriga cheia de sua boa carne. Este fogo aqui
queimando baixo leva meu pensamento até Urra-Punho, o Rei Marginal, na
noite em que o conheci.”
Os Marginais murmuraram e acenaram com a cabeça.
“É, conheci o sujeito, certo. Feroz ele era, e mais alto ainda do que
Claxton aqui por uma cabeça. Dizia-se que seus olhos eram tão maus que
ele poderia cozinhar um peixe só de olhar, e estou aqui para dizer que é
verdade. Vi fazer isso várias vezes.”
“Muitos anos atrás, eu estava pescando em uma curva do Blapp, não
muito longe daqui, balançando num barco com um balde cheio de
vermelhões, quando vi uma multidão sombria descendo das colinas ao
norte. Imundos eles eram, e uma nuvem de sujeira pairava sobre eles como
uma tempestade prestes a desabar. De fato, um raio faiscou da nuvem de
sujeira e um trovão lodoso ribombou. Marginais! Logo pensei, e estremeci
no barco.”
Os Marginais gargalharam de orgulho.
“Eu nunca os tinha visto de perto — não Marginais de verdade, vejam
bem. Alguns daqueles mais perto de Cavadópolis chamam a si mesmos
Marginais, mas vocês, na Curva Oriental, diferem homens de garotas, né?”
O clã rosnou, riu e bateu com os punhos nos joelhos, incluindo as
meninas, Janner notou, das quais Maraly era a mais barulhenta de todos.
“Bem, eu havia estado vagando por alguns dias. Sabia que pessoas tão
abaixo assim no rio só podiam ser perigosas e, para dizer a verdade, era por
isso que eu havia navegado para tão longe assim. O perigo não era nada
para Podo Helmer, ligeiro e jovem como eu era.”
“Então uma voz irrompeu em minha direção, vinda do homem mais alto
que já vi. Ele era o olho da tempestade de sujeira, e os Marginais ao seu
redor giravam como o vento. ‘Venha cá!’ Ele ordenou com uma voz
profunda como o rio, e meu barco remou por si só através da corrente até
onde Urra-Punho, o Rei Marginal, estava. Quanto mais perto eu chegava,
mais temível era sua aparência. Dentes como garras, mandíbula como a raiz
de uma árvore, uma barba desgrenhada tão marrom e lamacenta quanto as
patas traseiras de um sapo-toupeira verruguento.”
Mais uma vez, os Marginais murmuraram sua aprovação.
Podo continuou. “Fiquei diante de Urra-Punho sobre meus dois pés —
isso foi antes de eu perder um, vejam —, tremendo como a barriga de um
arrotão. Eu já havia visto homens altos antes, e homens sujos também, mas
não havia ninguém mais perverso do que o Rei Marginal, e eu disse isso a
ele. Ele perguntou quem me autorizou a pescar vermelhões em suas águas, e
contei francamente: ninguém. Ele se inclinou tão perto do meu rosto que eu
podia ver as pulgas em sua barba.”
“Então, fiz uma coisa tão tola e tão desesperada que não me lembro de
ter decidido fazer. Se eu parasse pra pensar, nunca teria tentado. Agora,
vocês Marginais sabem disso, mas por causa de minha família aqui, que não
conhece seus costumes, direi que os Marginais são um bando nojento.”
Janner esperava que o clã ficasse zangado com isso, mas eles
continuaram concordando como de hábito, dando-se tapinhas nas costas.
“Nojento como o fundo do Blapp!” Podo bradejou.
“Sim!” Urraram.
“E se há algo que um Marginal respeita, é alguém tão nojento, miserável
e ladrão quanto ele, hein?”
“Sim!” Esbravejaram de novo, mais alto.
“Então, vocês querem saber o que Podo Helmer fez?” Ele esgoelou.
“Sim!”
Podo baixou a voz até quase um sussurro. “Eu surrupiei o bolso de Urra-
Punho.”
Os Marginais olharam para ele boquiabertos. Até Claxton pareceu
surpreso.
“Você surrupiou o quê?!” Maraly interpelou.
“Surrupiei o bolso dele. Surrupiei ali mesmo, nas margens do Blapp,
com todo o seu clã observando, e eles não viram nada. Sou muito rápido
quando quero ser, e decidi que minha única chance era provar para Urra-
Punho, o Rei Marginal, que eu estava apto para andar em sua companhia.”
Podo deixou o silêncio pairar por alguns instantes, saboreando, como
sempre fazia, uma história bem contada.
“O que você roubou?” Alguém interrogou.
“A única coisa que meus dedos acharam. Roubei seu totem.”1
Com isso, os Marginais engasgaram.
“Na época, eu não sabia o que tinha feito, é claro. Estava bem ali, no
bolso da frente de suas calças — um pássaro dourado do tamanho do punho
de um bebê. Urra-Punho me segurou pelo colarinho com sua adaga em
minha garganta, todo o seu clã rindo e implorando pra ele acabar comigo.
Mas antes que ele o fizesse, eu disse: ‘Urra-Punho, se você me matar e me
jogar no rio, vai perder seu pequeno pássaro dourado’. O Rei Marginal
apalpou os bolsos e estreitou os olhos ardentes para mim, enquanto eu
levantava a bugiganga diante de seu rosto — e dava uma piscadela.”
“Você deu uma piscadela?” Claxton interpelou, agora tão envolvido na
história quanto o resto de seu clã.
“É. Os olhos do velho Urra-Punho se arregalaram tanto quanto sua boca,
e ele começou a rir tanto que assustou seu clã e a mim. Há algo antinatural
num homem tão perverso como o Urra-Punho rindo assim. Ele parou seu
clã abruptamente, e todos ficamos ali imaginando o que ele faria.”
Podo fez uma pausa, com as mãos estendidas, as palmas abertas para o
céu noturno. “Urra-Punho me colocou no chão, me bateu com tanta força
no rosto que eu ainda tenho a prova” — Podo virou sua bochecha direita em
direção ao brilho do fogo, para que todos pudessem ver a cicatriz do
comprimento de um dedo ao longo da maçã do rosto — “e me deu as boas-
vindas ao clã. Agarrou seu totem de volta, e como ele era o poderoso Urra-
Punho, ninguém o desafiou. Não demorou muito para que eu estivesse
correndo por aí com os Impetuosos e, não muito depois disso, Sharn, o Torr,
enviou suas tropas para tentar limpar a Margem.”
“E você se infiltrou no Reduto Ocidental”, arrematou Claxton, com a
suspeita de volta em sua voz.
“Isso mesmo.”
“Bem, meu velho, é uma boa história. Reconheço.” Claxton se levantou
e se espreguiçou. O sangue de Janner gelou, porque estava claro pela
expressão arrogante de Claxton que a história de Podo não o tinha satisfeito
— ou, se o fez, ele não estava disposto a admitir. “Mas não boa o suficiente,
Podo Helmer, porque eu não acredito em uma só palavra disso. Nenhum
homem poderia ter surrupiado o bolso de Urra-Punho, o Rei Marginal, com
todo o seu clã assistindo. Eu sou o melhor ladrão em Skree — uma vez, em
Cavadópolis, roubei os sapatos de um cara, e ele não soube disso até chegar
em casa —, mas nem mesmo eu poderia ter furtado o totem de Urra-Punho,
o Rei Marginal.”
Claxton sacou sua adaga. Assim que Podo se retesou para atacar o líder
do clã, Leeli gritou. Um Marginal colocou uma faca em sua garganta. Podo
fechou os olhos e estremeceu de fúria. O coração de Janner bateu forte. Os
Fangs eram maus até os ossos, mas, de algum modo, essas pessoas eram
piores. Tirando a aparência suja, eles não pareciam tão diferentes dos
cavadopolienses — ou do povo de Glipwood, por assim dizer. Ele estava
acostumado com os Fangs sendo maus, mas não com homens e mulheres
comuns.
“Clã!” Claxton urrou. “Podo Helmer, o homem gordo e a mulher vão
dormir profundamente no fundo do Blapp esta noite! As crianças
manteremos, é claro.”
Os Marginais avançaram com facas em punho e dentes à mostra.
Separaram Nia de Leeli. Oskar deu um suspiro profundo e baixou a cabeça
enquanto o colocavam de pé.
Mas Janner estava mais preocupado com Tink. Seu irmão olhava para
Claxton com um olhar estranho, não de medo ou preocupação, mas... era
fascinação? Admiração? Mesmo enquanto os Marginais colocavam Tink de
pé, seus olhos permaneceram no bandido alto e barbudo, e os olhos de
Janner permaneceram em Tink.
Num momento, Podo mantivera os Marginais presos com sua história;
um segundo depois, os Igibys, Podo e Oskar estavam cercados e
firmemente presos sob o domínio do clã, novamente. Sem armas, sem poder
de barganha, sem dinheiro para suborno, Janner teve a sensação de que
finalmente haviam chegado ao fim. Simplesmente havia homens, mulheres
e crianças fedorentos demais contra quem lutar e, a menos que Podo tivesse
outro truque em sua cabeça, as Joias de Anniera logo seriam engaioladas e
seus guardiões estariam nas profundezas negras e frias do Grande Blapp.
24
Ataquebol na Neblina
Podo teve que mostrar o totem de Claxton para mais três clãs Marginais ao
longo do dia, cada um menos ameaçador do que o anterior. Apenas o
primeiro clã mostrou algum sinal de ter ouvido o rumor das mãos rápidas de
Kalmar Wingfeather, mas Podo garantiu a Tink que o conto habitaria as
línguas dos contadores de histórias por alguns anos, pelo menos, e os
detalhes dobrariam e triplicariam de tamanho. Tink riu, mas Janner
percebeu que algo o perturbava.
Quanto mais se aproximavam de Cavadópolis, pior a estrada ficava. Para
onde quer que olhasse, Janner via buracos e rodas de carroça quebradas,
barracos abandonados, cães vadios sem pernas, ou olhos, ou pelos. A lama
cobria tudo e sugava a cor do mundo; espirrava para o alto vinda das poças
na estrada e ressecava os braços e o pescoço de Janner, de modo que ele se
sentia feito de barro.
Depois que encontraram o último grupo de Marginais, a Margem mudou.
O que antes eram terras baixas e gramadas transformou-se em fazendas
deterioradas, cercas pendentes e porleitões guinchando em campos
lamacentos. Antes, viajavam sozinhos, exceto pelos ocasionais Marginais.
Mas, agora, galinhas magricelas cacarejavam do outro lado da estrada, e
homens e mulheres pobres de semblante tristonho vagueavam em silêncio,
observando com indiferença os Igibys passarem. A Margem Ocidental,
como Podo a chamava, era um lugar apático, uma fileira de barracos tão
encurvados e minguados quanto as pessoas que moravam ali. A água
arrastava-se rio abaixo, tão plana e lenta que parecia menos um rio e mais
um lago longo e estreito.
Podo acenou com a cabeça para si mesmo e anunciou que eles estavam
livres dos Marginais.
“Então, aqui é Cavadópolis?” Leeli perguntou.
“Não, moça. Mas estamos perto.” Ele baixou a voz. “Essas pobres almas
vivem ao longo da Margem, mas ainda não são más o suficiente a ponto de
se juntarem com os clãs mais ao leste. Elas se contentam em tentar dar seu
jeito plantando sementes e criando animais. Pobres demais para viver em
Torrboro, honestas demais para sobreviver em Cavadópolis e ainda não más
o suficiente para se misturarem aos Marginais. Vivem suas vidas num
sofrimento gigantesco.”
À medida que o grupo avançava, a maioria dos lavradores de lama —
como Podo os chamava, embora não sem piedade — os ignorava, mas
alguns se levantavam dos campos onde estavam retirando pedras do
caminho do arado, ou paravam de martelar uma tábua podre numa estrutura
podre com um prego enferrujado, ou espiavam pelas janelas para observar
enquanto os Igibys passavam.
“Foi sempre assim?” Leeli indagou.
“Não, moça, nem sempre”, respondeu Podo por cima do ombro.
“Mas, com certeza, já tem sido por tempo demais”, notou Oskar. Por
muitos anos, os Marginais têm criado problemas ao longo do rio. Essas
pessoas pobres e cansadas sofreram entre a indiferença da elite em
Torrboro, a hostilidade implacável em Cavadópolis e os Marginais.”1
“Alguém deveria fazer alguma coisa”, Leeli falou baixinho.
“E o que fariam?” Janner questionou. “Parece que o mundo inteiro está
tão horrível quanto aqui.”
“As coisas não estavam tão ruins assim em Glipwood”, retrucou Tink.
“Não, mas não precisou muito para virar o jogo”, treplicou Janner. “Em
poucos dias, a cidade ficou deserta, e os Fangs invadiram. Tudo em Skree
está tão ruim quanto está para esses lavradores de lama. Só que aqui dá pra
ver como de fato é.”
Com o canto do olho, Janner viu um sorriso no rosto de sua mãe. Os
olhos dela e de Podo se encontraram, e ele sentiu que havia feito algo que a
deixara orgulhosa. Lembrou-se de como se sentiu em Glipwood no Dia dos
Dragões, quando Oskar o ajudara a ver a tristeza escondida por trás da
alegria. Nenhum dos visitantes de Glipwood ria de verdade; nenhum deles
sorria, exceto como afronta à própria maneira como se sentiam. Apenas
Armulyn, o Bardo, era capaz de despertar algum sentimento real de alegria.
E Janner havia percebido que tanto para ele mesmo quanto para as pessoas
que, com atenção tão desesperada, ouviam suas canções, os sentimentos
alegres trazidos à tona pelas canções sempre vinham acompanhados de
lágrimas. O fardo deles era pesado demais para ser levantado apenas por
canções, por melhor que fossem as melodias.
“Alguém deveria fazer alguma coisa”, Leeli insistiu, desta vez num tom
determinado. Todos sabiam não fazer sentido desafiá-la. Ela estava certa.
Podo parou no topo de um declive. À direita estava outro aglomerado de
edifícios deteriorados. Galinhas cacarejavam e ciscavam a terra, e um galo
gordo empoleirava-se no telhado de uma construção. Um velho roncava na
varanda, tendo um monte de trapos como travesseiro. Atrás da casa
estendia-se um campo em pousio, limitado na parte de trás por um grupo de
arbustos. À esquerda, descendo a encosta, corria o Grande Blapp, que agora
era tudo, menos grande.
Então Janner viu por que Podo havia parado.
“O que é aquilo?” Tink perguntou ao se aproximar. “Oh.”
“É... é Cavadópolis”, complementou Podo. “Fazia muitos anos que não a
via.”
A cidade estendia-se à distância como uma ferida sobre a terra verde. Os
barracos de ambos os lados da Estrada do Rio cresciam em número e eram
absorvidos pela expansão de Cavadópolis. Janner sabia que Cavadópolis era
grande, mas sua imaginação não o havia preparado para aquilo. Seu
estômago embrulhou ao ver tantas ruas e esquinas em tal desordem. Os
edifícios eram de três e quatro andares, construídos em ângulos estranhos,
como se cada nível tivesse sido uma ideia de última hora.
A um sinal desconhecido, um ressoar de sinos irrompeu da cidade —
primeiro um, depois mais alguns, e então o que pareciam ser milhares de
sinos badalando. Eram como um enxame de morcegos metálicos invisíveis
e alvoroçados na noite. Acima dos prédios, Janner viu centenas de torres de
madeira, frágeis e finas, espalhadas pela cidade como ervas daninhas feias
brotando da grama feia. Ao som dos sinos, uma fogueira foi acesa na
plataforma no topo de cada torre. As chamas subiram até a altura de um
homem e, em cada uma das torres mais próximas, Janner avistou o vulto de
um vigia. Uma cidade iluminada por cem tochas gigantes deveria ser linda,
mas para Janner parecia algo saído de um conto assustador.
“Aquilo é Torrboro?” Leeli perguntou, apontando para o outro lado do
rio. Janner desviou os olhos da terrível visão da cidade mais próxima e
ficou aliviado ao ver as belas e elevadas paredes de Torrboro à distância. O
Palácio Torr encontrava-se perto do rio na posição de um animal gigante
agachado. A torre mais alta era a cauda, e as paredes do palácio abojavam-
se e encurvavam-se para dar a impressão das pernas e tronco do animal...”
“Um gato?” Janner perguntou.
Oskar riu por entre os dentes. “Um gatinho, para ser mais preciso. Você
verá o mesmo tema repetido com frequência na arquitetura de Torrboro.
Uma obsessão muito infeliz da Dinastia Torr, lamentavelmente. Nas
palavras de Verbichude Yay, o famoso crítico de arte, ‘Eca! Será que não
podiam ter pensado em outra coisa?’.”
Torrboro brilhava em feliz contraste com Cavadópolis. Suas ruas largas e
pavimentadas serpenteavam em curvas graciosas, e a maioria de seus
edifícios era de pálidas pedras na cor creme.2 Na orla do rio havia muitos
barcos atracados nas docas, e Janner detectou o alvoroço do que deveriam
ser milhares de pessoas movimentando-se de um lado para outro. O volume
de pessoas e atividades deixaram Janner entusiasmado. Ele não teve a
mesma sensação claustrofóbica e desanimadora diante de Torrboro como
teve de Cavadópolis.
“Por que não podemos ir para Torrboro, em vez disso?” Janner
questionou.
“Porque os Fangs são mais numerosos lá”, contou Podo. “Vê aquele
palácio? É onde mora o general Khrak. O pior de todos os Fangs.”
“Ele comandou os exércitos invasores”, complementou Oskar. “Ele é
astuto — não como um Fang bruto, ordinário. Provavelmente está sentado
no palácio agora, tentando descobrir como colocar suas garras em nós.”
“Sim, é por isso que não estamos indo naquela direção”, observou Podo.
“É fácil se perder em Cavadópolis, e isso significa que é fácil se esconder.
Os Fangs estão em Cavadópolis em abundância, mas não estão lá tanto para
patrulhar quanto para festejar. Eles gostam das tavernas, da imundície e das
sombras. Estão lá para se divertir e não costumam interferir com um
viajante na rua, a menos que seja necessário.”
Janner viu movimento na estrada à frente. “Vovô, olhe.”
“Hã?”
Janner apontou.
Podo respirou fundo. “Fangs!” Constatou. “Venham!”
Ele disparou para dentro da casa onde o velho dormia na varanda. As
galinhas debandaram. Oskar, Nia e as crianças correram atrás de Podo para
o prédio antigo e sombrio. O velho se mexeu e murmurou algumas palavras
truncadas, mas continuou dormindo.
Uma vez lá dentro, Janner não conseguia ver nada. Podia ouvir o
familiar tump-pam de Podo e sua queixa rouca: “Tanto tempo que mal
consigo me lembrar de como encontrar o...”
Janner ouviu, do lado de fora, o chacoalhar e o bater de pés de Fangs
armados em marcha. Não parecia uma unidade grande, mas era suficiente
para fazê-lo tremer.
“Papai, eles pararam”, Nia sussurrou.
Podo a ignorou, resmungando para si mesmo.
O som áspero da voz de um Fang veio lá de fora, e o velho na varanda
acordou com um resmungo.
“Vovô, eles estão ali fora”, disse Tink.
“Shh!” Fez Podo, e então, tão baixinho que Janner mal conseguiu ouvi-
lo: “Desçam. Cuidado. Isso, querida. Oskar, é melhor você fingir que é um
daqueles gatinhos de Torrboro e andar com leveza, ouviu? Muito bom. Não
tem que descer muito.” Então Janner sentiu a mão forte e firme de Podo em
seu ombro. “Pra baixo, meninos”, ele sussurrou.
Os degraus de madeira rangiam enquanto a família e Oskar desciam para
a escuridão, mas não alto o suficiente para alertar os Fangs, que
interrogavam o velho na varanda. Podo fechou o alçapão acima deles. Tirou
a mochila na escuridão, procurou um fósforo lá dentro e o acendeu.
Eles estavam parados ao pé de uma escada em um porão úmido. Fangs
não são as criaturas mais inteligentes em Kistamos, mas mesmo o mais
estúpido deles saberia que era para procurar no porão, Janner pensou. Por
alguma razão, porém, Podo não parecia preocupado. Ele correu os dedos ao
longo das juntas da parede de pedra, ainda resmungando para si mesmo. O
fósforo apagou, e o porão escureceu novamente. Passos soaram em algum
lugar da casa, acima deles. Quando o segundo fósforo ganhou vida, o rosto
de Podo apareceu no brilho amarelo, os olhos arregalados, levando um dedo
aos lábios — desnecessariamente, uma vez que os Igibys e Oskar já
estavam em silêncio e aterrorizados.
Podo rastejou até outra parede, ainda procurando algo nas pedras. Fangs
pisoteavam o chão da casa, enquanto outros insultavam o homem do lado
de fora. Então Janner ouviu um clique e, em um canto do chão do porão,
outro alçapão foi aberto, espalhando a terra que o havia coberto e revelando
os primeiros degraus de uma escada de mão feita de madeira. Podo usou os
últimos segundos da luz do fósforo para apontar para baixo. Silenciosos
como ratos, todos desceram a escada para o que Janner imaginou ser o covil
Marginal.
No topo da escada, após encaixar o alçapão de volta no lugar, Podo
puxou uma corda que pendia do degrau superior. Como explicou mais tarde,
a corda atravessava um buraco no chão de pedra, por trás de uma viga na
parede do porão e subia até o teto, onde estava presa a um mecanismo que
liberava uma bandeja de terra e detritos através de uma grade de furos.
Com um puf abafado, a terra pousou no topo do quadrado visível do
alçapão e o escondeu novamente.
Os Fangs que pularam no porão um momento seguinte estavam certos de
que sentiram o cheiro forte de um fósforo aceso recentemente, mas esse foi
um mistério que eles não conseguiram resolver, já que o velho na varanda
jurou repetidas vezes que não havia visto ninguém entrar na casa.
28
Oh! Anyara!
Janner desceu a escada na escuridão total. Não mais do que três degraus
acima, ele ouvia a bota de Podo arranhar a madeira, depois um sutil tump,
quando a perna de pau alcançava o degrau seguinte. Abaixo estava o som
da respiração pesada de Tink e abaixo disso, o grunhido sussurrante de
Oskar N. Reteep cada vez que descia um degrau: “Oh céus. Oh céus. Oh
dia. Oh céu”.
Finalmente, Janner sentiu o túnel longo e quadrado alargando-se, e a voz
de Oskar veio de não muito longe abaixo. “Ah! Nas palavras de Keeth
Yager quando consumiu um balde de sopa de carne de galinha: ‘nunca
pensei que chegaria ao fundo!’.”
O risinho de Leeli na escuridão foi tão agradável que quase lançou uma
luz própria. Quando os pés de Janner tocaram o chão, ele ficou surpreso ao
encontrar areia fofa. Podo riscou outro fósforo, e a luz amarela iluminou os
arredores.
Estavam em uma câmara do tamanho do quarto das crianças Igiby, sem
nada além de um lampião no chão ao lado da escada. As paredes eram de
uma rocha amarela esfarelenta, da mesma cor da areia no chão. Podo
acendeu o lampião e fez uma busca rápida na área antes de pressupor que,
pelo menos por enquanto, estavam seguros. A família removeu suas
mochilas e sentou-se em círculo.
“Uau! Essa passou perto.” Podo suspirou enquanto se acomodava no
chão.
“Você acha que eles estavam procurando por nós?” Janner perguntou.
“Sim.”
“Quanto tempo temos que ficar aqui?”
“Não sei.”
“Tempo suficiente para comer, espero”, comentou Tink.
“Mas não tempo bastante para essa sujeira grudar na minha pele
permanentemente”, observou Nia, tirando pedaços de lama seca de suas
bochechas. “Vocês, homens, podem ficar sentados em seu fedor o ano todo,
se quiserem, mas Leeli e eu, não.”
“Comida! Comida, agora, seria uma coisa muito boa”, disse Oskar.
“Bem dito, jovem Kalmar.” Oskar remexeu na mochila de Nia e distribuiu
tiras de carne seca de verdugo, um pedaço de pão duro e o cantil de água
potável.
Enquanto mastigava a refeição dura, Janner ansiava por uma panela
fumegante de caldeirada de queijo ou frango assado na panela e, embora
não quisesse admitir, gostaria de estar limpo do disfarce de lama também.
Leeli cantarolava enquanto mastigava a carne e arrancava distraidamente
um punhado de sujeira no cabelo, sem se preocupar com o estado da
comida ou de sua pessoa. Como sempre, Janner notou, ela sentia um
contentamento singular com a situação deles. Desde que Nugget caíra no
mar — ou, mais especificamente, desde que a sua música havia criado
aquela conexão ímpar e onírica com os dragões-marinhos, Leeli passou a
trilhar a jornada com uma estranha calma.
“Acho que deveríamos descansar”, aconselhou ela com um bocejo.
“Estou com sono. E... vovô?”
Podo resmungou e ergueu as sobrancelhas para ela.
“Obrigada por cuidar de nós.” Ela se inclinou para beijá-lo na bochecha
e franziu o nariz quando não conseguiu encontrar um lugar limpo. Podo
estava sentado quieto, os olhos grandes e brilhantes; e quando, em vez de
um beijo, ela colocou sua mãozinha no lado do rosto dele, o rosto
enlameado do velho pirata se abriu em um sorriso tão largo que pedaços de
lama seca caíram, revelando a pele limpa por baixo.
Todos concordaram que descansar seria uma coisa boa, então a família e
Oskar deitaram no chão de terra e dormiram.
De manhã, ou o que Janner presumiu que fosse manhã, ele acordou e
encontrou Oskar debruçado sobre o Primeiro Livro, à luz do lampião. Ele
cantarolava para si mesmo e parecia tão feliz quanto Janner jamais o vira.
Quando viu que Janner estava acordado, seus olhos brilharam.
“Rapaz! Venha ver isto.”
Janner bocejou, passou por cima do corpo roncante de Tink e sentou-se
ao lado de Oskar. O velho colocou o grande livro no colo de Janner.
“Fiz um grande progresso. Vê esses caracteres? Acho que são notas
musicais. Não terei certeza até que sua irmã tenha a chance de testar, mas
esta pode ser uma melodia da Primeira Época! E traduzi as primeiras
páginas. Olhe essa palavra. O diacrítico nessa letra indica uma mudança no
tempo, muito parecido com valês arcaico. Mas o valês arcaico expressa
tempo com um...” Janner deu um sorrisinho fraco, não muito interessado
em diacríticos ou línguas antigas. Oskar deu uma risadinha. “Você tem
razão. Tedioso, não? Principalmente de manhã cedo. Mas o ponto é o
seguinte.” Ele tirou os óculos e os colocou no canto da boca. “O livro é uma
narrativa, pelo que entendi. Não sei quem o escreveu, mas foi alguém que
esteve lá quando tudo aconteceu.”
“Quando aconteceu o quê?” Janner perguntou, despertando um pouco.
“Quando o Primeiro Reino — Anyara — caiu. O livro conta a história do
que aconteceu — o que realmente aconteceu à Primeira Cidade, onde
Dwayne e Gladys governaram durante a maior parte da Primeira Época.”
“Anyara? Nunca ouvi falar.”
“Nem eu, até começar a fuçar no seu livro, meu garoto.” Oskar voltou a
colocar os óculos com uma piscadela. “Mas soa muito parecido com outro
reino que nós dois conhecemos, não é?”
Janner tentou pensar além do sono ainda em seu cérebro. “Anniera?”
“Isso mesmo.”
“Então, Anniera fica onde costumava ser o Primeiro Reino?”
“Bem, esse é o meu palpite. É difícil dizer. Mas ouça este primeiro
parágrafo:
T.A.N.E.G. no
Covil dos Marginais
No Beco da
Viúva Rechonchuda
Ronchy McHiggins
Faz uma Descoberta
Os Fangs já haviam aprendido a não dar tempo a Podo Helmer para pensar.
Avançaram, as espadas apontadas para Podo e apenas para Podo. Janner
empurrou a pilha de caixotes no caminho deles. Os Fangs golpearam e
destroçaram as caixas e seguiram em frente.
Janner tinha certeza de que Podo entraria na briga e lutaria até a morte
antes de permitir que os Fangs capturassem seus netos — e ele saltou, sim,
mas não contra os Fangs.
Podo arremeteu com o ombro contra a grossa porta lateral da Viúva
Rechonchuda. A porta se quebrou em pedaços, e o som de madeira
estilhaçada se misturou ao som de osso estilhaçado, do ombro e das costelas
de Podo que estalaram. Ele desabou no chão com um grito de dor, mas,
num movimento só, rolou, agarrou a mochila mais próxima — que, por
acaso, era sua — e desapareceu dentro da taverna, amaldiçoando Migg
Landers o tempo todo. Nia pegou Leeli nos braços e correu pela porta atrás
de Podo.
“Vá!” Janner gritou com Oskar. Ele se contorceu pela porta, arrebatando
as mochilas dos meninos enquanto corria. Janner agarrou Tink pelo braço e
lançou-se pela porta, derrapando em pedaços de madeira quebrada.
Garras arranharam suas costas e pernas. Ouvindo o estalar de dentes de
Fang, o rangido de armaduras de Fang e sentindo o calor da respiração de
Fang em seu pescoço, Janner percebeu que Gnag ainda queria as crianças
vivas, porque teria sido muito fácil para os Fangs, naquele momento,
acabarem com ele e seu irmão. Mas, na ânsia para agarrar os meninos, as
feras chocaram-se contra a porta de uma vez só e ficaram entaladas.
Janner colidiu em uma mesa e quase caiu. Enquanto corria, esforçou-se
para ver aonde o resto de sua família havia ido, mas a taverna estava escura
como breu. Tudo o que sabia era que ainda segurava o cotovelo de Tink em
suas mãos.
Levou pouco tempo para que os Fangs se reagrupassem e, em fila única,
entrassem no edifício. Mas até isso acontecer, Janner já havia tateado seu
caminho por uma porta de vaivém e entrado na sala comum da taverna.
Duas grandes janelas que davam para a Estrada do Rio iluminavam
fracamente as mesas e cadeiras espalhadas por todo o salão. Janner ouviu
sua família em algum lugar à frente e os Fangs atrás.
“Mamãe!” Ele chamou aos berros. “Vovô!”
“Aqui!” Nia respondeu, no momento em que Podo abria a porta da frente
com um chute e os outros disparavam para a rua.
“Vamos!” Janner apressou Tink.
Mas os irmãos nunca chegaram até a porta.
Da rua veio o som de batalha. Podo apareceu além da porta, um terror de
cabelos brancos brandindo sua espada, ainda que estivesse pressionando o
lado ferido com o outro braço. As sombras da batalha espalhavam-se pela
sala. Janner viu, com pavor sombrio, que os Fangs haviam cercado seu avô.
Ele e Tink estavam empacados. Se corressem para fora, encontrariam-se
no meio da luta e não tinham armas — Oskar estava com suas mochilas.
Atrás deles, mais Fangs adentravam a casa.
Janner podia ver o contorno do rosto de seu irmão mais novo, o brilho de
seus olhos arregalados e assustados olhando para Janner em busca de ajuda.
Mas ele não sabia como ajudar. Ele tinha apenas doze anos! Como poderia
saber o que um Guardião do Trono faria? Janner queria perguntar a Podo,
ou Peet, ou Nia... ou Esben.
Então, lá de fora veio a voz de Podo, intercalada pelas defesas e golpes
de sua espada: “Voltem para o Covil! Rapazes! Reúnam-se no Cov...”.
A voz de Podo foi interrompida. Mas uma voz familiar juntou-se à dele.
“Arrá! Ó brutos ofídicos fedegosos! Acautelai-vos do brilho aceiro que o
Espadachim Floreado traz em sua… ahn… espada!”
Do lado de fora da janela, a figura de capa saltou para dentro da luta.
Com uma das mãos, brandia a espada com uma velocidade assustadora,
enquanto a outra descansava casualmente em seu quadril. O aglomerado de
Fangs atacando Podo se virou de uma só vez e avançou contra o homem de
preto.
A porta de vaivém atrás dos meninos se abriu num estrondo, e Fangs
adentraram as sombras da sala comum. A única coisa que Janner conseguiu
pensar em fazer foi se abaixar. Ele e Tink arrastaram-se para debaixo de
uma mesa e rastejaram até o canto mais distante da sala. Os Fangs
dispararam em direção à porta da frente aberta, colidindo em mesas e
cadeiras enquanto corriam. Janner e Tink, apoiados sobre as mãos e joelhos,
prenderam a respiração e observaram as pernas escamosas de pelo menos
trinta Fangs passarem correndo.
“E, agora, vejo-me em necessidade de fuga”, confessou o Espadachim
Floreado, “pois vosso número extrapassa grandemente! Arrá!”
O choque de espadas cessou. Janner esperava ouvir a voz de Podo, o
grito de Leeli, qualquer sinal de sua família, mas não ouviu nada, exceto
murmúrios e gemidos de Fangs cansados e feridos.
“Foi embora?” Perguntou um dos Fangs.
“Sim, senhor. Era o Espadachim...”
“Nem messsmo diga o nome dele.”
“Sssim, sssenhor. Bem, ele veio e nos distraiu do velho — que é um bom
lutador, sim, é, para um cara com uma perna só. Derrubou sete de meus
Fangs e feriu outros cinco. E o gordo, ele sozinho agarrou uma espada e
girou em círculos, tão rápido que pensamos que ele flutuaria e voaria para
longe. Tentei passar por eles para agarrar a garota, mas antes que
pudéssemos... Como eu disse, senhor, nós os tínhamos até o Espadach...
ahn, ele aparecer.”
“Nós os perdemos de novo então”, completou o líder enquanto se
afastavam. “Khrak não ficará feliz.”
“Khrak nunca está feliz, senhor.”
Janner e Tink se entreolharam na escuridão.
“Eles escaparam”, sussurrou Tink.
“Espero que sim”, Janner falou bem baixinho.
“Mas e nós?”
“Não sei.”
“O que faremos?”
“Não sei.”
Muito depois de o último Fang ter saído, os irmãos continuavam
escondidos debaixo da mesa e abraçados, mais sozinhos do que jamais
estiveram.
A Ruptura
Janner permaneceu imóvel, olhando para o espaço vazio onde Tink havia
acabado de estar. Sua pele ficou úmida, e ele percebeu, num estalo, que
estava sozinho.
Não era só porque Tink havia fugido; Janner compreendeu, embora o
pensamento o deixasse com tanta raiva que lhe dava a vontade de dar um
soco no nariz do irmão, que Tink o havia abandonado.
O mar de cavadopolienses parecia crescer em velocidade, tamanho e
hostilidade. O covil, onde ele tinha a expectativa desesperada de que o resto
de sua família o aguardasse, de repente parecia impossivelmente distante,
um destino tão inalcançável quanto a própria lua.
Por que Tink — Janner se recusava a pensar nele como Kalmar — faria
uma coisa dessas? Ele sabia que seu irmão mais novo não se sentia
confortável com a ideia de ser rei, mas Janner não estava preparado para
isso.
Talvez essa fosse a maneira que Tinha tinha de se autenticar para seu
irmão mais velho. Janner lembrou-se das muitas vezes que havia pensado o
pior de Tink, mas foi obrigado a admitir que estava errado. Era verdade que
ele tinha sido duro com seu irmão mais novo, provavelmente muito duro.
Mas sumir desse jeito?
Tudo bem, ele pensou amargamente. Deixe-o encontrar seu próprio
caminho para o covil.
Janner retesou os nervos, esfregou as mãos, baixou a cabeça e juntou-se
ao fluxo louco do tráfego na Estrada do Rio.
Ele tropeçava, saltava e se abaixava, esforçando-se para, ao passar, ler as
placas das ruas por cima de inúmeras cabeças. Ronchy disse que, se virasse
à esquerda na Via Crempshaw e depois à direita na Rua Tilling, ele acabaria
por desembocar na Estrada do Rio novamente. Também disse que era a
melhor maneira de contornar o trecho mais movimentado e perigoso, onde
os Fangs eram transportados por balsa, atravessando o Blapp até Torrboro.
Janner procurava por Tink, esticando o pescoço em todas as direções
enquanto se apressava, mas não viu nenhum vestígio. Teria sido difícil
encontrar qualquer um num caos daqueles, especialmente alguém tão
pequeno e rápido como Tink. Janner começou a planejar as muitas coisas
que gritaria com seu irmão mais novo quando estivessem seguros no covil
novamente.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo vislumbre de uma placa de
rua: Via Crempshaw. Um corvo empoleirava-se no topo do poste. Janner
passou zunindo por entre pescadores, costureiras e burros atrelados a
carroças carregadas de peixe, até que ficou sem fôlego, com as mãos
apoiadas nos joelhos, apenas a algumas portas de entrar na Via Crempshaw.
A porta atrás dele se abriu e quatro Fangs de Dang saíram. Eles riam e
cambaleavam escada abaixo até à calçada onde Janner estava. Ele congelou
e olhou para os próprios pés. Os Fangs arrotaram, gargalharam e, em
seguida, desapareceram na multidão. Janner disparou, passando por uma
loja que vendia redes de pesca e virando na esquina da Via Crempshaw. A
Crempshaw estendia-se do rio até o coração de Cavadópolis.
Por mais zangado que estivesse com Tink, Janner esperava alcançá-lo
aqui. Disse a si mesmo que estava preocupado principalmente com a
segurança de Tink, porém estava igualmente preocupado consigo mesmo.
Tentou não imaginar o que poderia acontecer, caso se perdesse naquele
labirinto de ruas.
Uma mulher de rosto gentil carregava uma cesta rua abaixo, em direção
a Janner.
“Com licença, senhora?” Ele a chamou timidamente. “Estou procurando
meu irmão. Você viu um garotinho, um pouco mais baixo do que eu...?”
Ela olhou para ele com tristeza, e então seguiu sem dizer uma palavra,
entrando no tráfego da Estrada do Rio. O mesmo aconteceu com todos que
o viram — olhavam para ele com grande tristeza, não diziam nada e
seguiam em frente.
Janner seguiu a Crempshaw por várias ruas transversais, estradas de terra
ladeadas por casas cinzentas, muito parecidas com aquela de onde
emergiram na noite anterior, até que, balbuciando graças a Ronchy
McHiggins e suas boas instruções, Janner finalmente viu a palavra Tilling
em uma placa de rua.
A rua estendia-se em ambas as direções, mais uma ruela cinza, cheia de
galinhas cacarejando, cacos de cerâmica e velhas tábuas quebradas. Não
ostentava casas, apenas vitrines desertas com janelas quebradas, as portas
há muito roubadas e usadas em outros lugares. Atrás de Janner, homens e
mulheres subiam e desciam a Crempshaw em um silêncio desesperador,
mas a Tilling estava vazia como um cemitério. Janner ficou feliz por ainda
ser de manhã, porque não tinha certeza se teria coragem de andar por uma
rua tão morta na escuridão da noite.
Passou por um prédio vazio após o outro, olhando para trás com saudade
da Crempshaw, onde pelo menos não estava sozinho. Quando a rua morta
fez uma curva para a direita, e a Crempshaw desapareceu completamente,
ele chamou em uma voz que era quase um sussurro: “Tink?”.
Não havia eco. As janelas e portas vazias pareciam engolir o som. Vidros
quebrados estalavam sob seus pés. Ratos corriam pelas paredes dos prédios
antigos. Corvos praguejavam e agitavam-se empoleirados nas janelas dos
cômodos superiores e nas grades das sacadas tortas.
“Tink!” Chamou novamente, mais alto.
Janner imaginou olhos observando-o das sombras, olhos de trolls, Fangs
ou Marginais, esperando o momento certo para irromper na rua e prendê-lo.
Então, fez o que qualquer menino normal de doze anos faria: correu o
mais rápido que pôde.
Saltava sobre pilhas de lixo e serpenteava entre tijolos e barris podres
que cobriam a rua, ansioso por chegar ao fim da Rua Tilling que, como
Ronchy havia prometido, desembocaria novamente na Estrada do Rio. Ele
não se importava mais com a quantidade de barulho que fazia. Se alguém
ou alguma coisa ouvisse sua respiração ofegante, teria que ser realmente
rápido para pegá-lo, assustado como estava.
Mas a estrada chegou a um fim abrupto. Janner derrapou até parar diante
de uma parede de pedra tão alta e plana quanto os velhos prédios de tijolo
de cada lado. Não havia outra saída, senão o caminho pelo qual havia
vindo.
Por que Ronchy o mandaria por aquele caminho? Ele parecera tão gentil,
tão prestativo, e o homenzinho dera certeza de que aquele era o caminho
mais seguro e mais curto para o lado leste de Cavadópolis.
Janner deu as costas para a parede para que pudesse ver a rua que
acabara de percorrer. Nada mudou. Isso era bom. Se algo estivesse
escondido nas sombras, já teria atacado. À distância, Janner ouvia os sons
abafados de uma rua movimentada. Se ele pudesse simplesmente pular o
muro, poderia encontrar o caminho para a Estrada do Rio sem ter que
enfrentar o vazio assustador da Rua Tilling novamente.
Arrastou-se até o beco entre os dois edifícios mais próximos, mas a parte
de trás estava bloqueada por outra parede. Depois de inspecionar mais
alguns becos, descobriu que a parede se estendia continuamente por trás de
cada prédio, dos dois lados da rua. Ele estava bem no final do que poderia
ser uma excelente armadilha.
O que mais o preocupava — mais até do que as instruções equivocadas
de Ronchy — era que Tink também não estava ali.
Janner suspirou. Que belo Guardião do Trono ele estava sendo. Tinha
que encontrar Tink, e não poderia fazer isso se encolhendo no final da Rua
Tilling.
Respirou fundo e correu de volta por onde viera, não temendo por si
mesmo desta vez, mas porque estava desesperado para encontrar seu irmão
mais novo.
No meio do caminho, ouviu vozes. Sem pensar duas vezes, Janner entrou
pela porta do prédio mais próximo. O chão estava coberto de poeira e
pedaços de vidro quebrado. Os fundos do edifício estavam envoltos em
sombras e, apoiada contra a parede à direita, uma escada de madeira frágil
subia além do teto. As vozes se aproximaram. Janner se esgueirou para trás
da escada e espiou pelo espaço entre dois degraus.
Três homens apareceram na rua. Seus longos cabelos eram pretos e
emaranhados, usavam roupas escuras e falavam com um sotaque
cavadopoliense tão forte que Janner tinha dificuldades em entender o que
diziam. Ouviu a palavra “garfos”, que soava mais como “gærrfos”. Os
olhos dos homens se moviam de um jeito que lembrava os thwaps do jardim
de sua casa. Mais de uma vez, teve certeza de que um dos homens
desgrenhados olhou diretamente para ele, mas toda vez os olhos do homem
passavam adiante, imperturbáveis.
Estava tão quieto no prédio decrépito que Janner podia ouvir seu próprio
coração batendo. Uma aranha deslizou rapidamente pelo degrau para matar
uma mosca presa em sua teia, e ele ouviu isso também. O silêncio mortal da
Rua Tilling tornava cada pequeno som perceptível, desde o barulho da
sujeira sob a bota de Janner até as vozes ásperas dos homens do lado de
fora. Assim, após apenas alguns momentos em seu esconderijo, Janner
percebeu outro som, muito próximo.
Em algum lugar, logo atrás dele, nas sombras mais profundas, algo
estava respirando.
Ele fechou os olhos e implorou ao Criador que deixasse isso ser sua
imaginação. Lentamente, muito lentamente, ele se virou e viu, no canto do
vão embaixo da escada, o brilho inconfundível de dois olhos a observá-lo.
Janner não conseguia se mover. Se um baratodonte voraz ou uma vaca-
dentada tivesse aparecido, ele não teria ficado com tanto medo. Quem quer
que fosse — ou o que quer que fosse — estava olhando para ele com uma
satisfação tão maliciosa que Janner se sentiu como a mosca na teia de
aranha.
A figura atacou.
35
As Desgrenhadas
e os Esfarrapados
Um Arranjo Odioso
Na Boca
do Monstro
Olhos Brilhantes
num Lugar Escuro
O fogo rugia.
Chamas saíam de canos e chaminés, rugiam em fornos negros e
espiralavam em tonéis de ferro fundido. O nariz de Janner ardia com o
fedor de suor e fumaça. No centro da imensa sala estava uma enorme
fornalha preta. Tubos em brasa subiam dela e serpenteavam pela sala em
um emaranhado sem sentido. Alguns dos canos expeliam fumaça de juntas
rompidas e outros gotejavam um líquido negro e fumegante. A fumaça se
acumulava no teto como uma nuvem de tempestade.
Ao lado da fornalha havia uma engenhoca que estremecia e retinia como
nada que Janner já tivesse visto. Glipwood tinha sua cota de esquisitices,
mas nada parecido com aquilo — aquilo era uma máquina, algo sobre o
qual Janner só havia lido. Não estava claro o que a máquina fazia, além do
estrondo terrível, mas o giro de suas engrenagens e a estabilidade de seu
barulho deixavam claro que ela estava fazendo algo.
Em frente à boca da fornalha, havia três pilhas de carvão. Depois que os
olhos de Janner se ajustaram, ele viu figuras com pás percorrendo a
distância entre o carvão e a fornalha. A princípio, pensou que eram mais
corre-cristas. Então percebeu que eram crianças.
No lado esquerdo da grande sala havia sete corredores divididos por
longas bancadas estreitas. Canais abertos no centro das bancadas
capturavam o líquido brilhante que escorria das calhas pendurados no teto.
Crianças manipulavam o aço fundido com bastões e tenazes. Janner viu
ainda mais crianças, centenas delas, reunidas em torno das bancadas,
bigornas e grandes recipientes de pedra, martelando, carregando baldes de
água de um lado para outro e mexendo o líquido incandescente com bastões
de ferro. Para onde quer que olhasse, havia movimento.
Considerou correr de volta pelo longo corredor. Talvez se ele os
surpreendesse com uma fuga repentina, pudesse encontrar uma saída perto
do portão levadiço — aliás, talvez ele pudesse fazer as duas crianças abri-lo
novamente. Poderia até levá-las com ele, mas... e depois? Ele não iria muito
longe pelas ruas de Cavadópolis com duas crianças cansadas a reboque,
especialmente à noite, quando apenas os Fangs e trolls estavam por perto.
“Eu não faria isso, se fosse você.”
Janner piscou. Mobrik havia tirado sua pequena cartola e olhava para ele
de soslaio, com uma sugestão de sorriso nos lábios.
“As crianças sempre tentam, quando chegam. A verdade é que o
Supervisor espera que você tente escapar. Isso lhe dá a chance de praticar
tiro ao alvo com seu chicote. Confie em mim. Você está melhor na estação
de aparas, garoto.”
“O-o que é a estação de aparas?”
Mobrik, o corre-crista, recolocou o chapéu e desceu os degraus. Ficou lá
embaixo, esperando.
“Corra se quiser. Você vai acabar aqui de qualquer maneira. Mas, se vier
agora, não acabará sangrando e dolorido pelo chicote do chefe.”
Janner deu uma última olhada para a porta. Com um suspiro, desceu os
degraus e seguiu o corre-crista. À medida que se aproximava da máquina, a
temperatura aumentava. Os olhos de Janner lacrimejavam, e ele se viu
incapaz de parar de piscar o tempo todo. Mobrik parecia não ter problemas
com o calor.
Passaram por barris de ferro preto da altura de uma casa. Ao redor deles,
chamas irrompiam de canos e chaminés, e engrenagens de ferro retiniam.
Para onde quer que olhasse, Janner via crianças. Algumas tinham idade
suficiente para serem jovens adultos, mas a maioria era pouco mais velha
do que Janner. Uns poucos olhavam quando ele passava, o branco dos olhos
sendo os únicos pontos limpos na fábrica, mas a maioria mantinha a cabeça
baixa, removendo carvão com uma pá, martelando uma folha de metal
quente, arrastando fragmentos de escória para um barril com rodas ou
empurrando carrinhos com pilhas pesadas de pedaços de aço...
Espadas, Janner pensou. Ele reconheceu a curvatura sem graça de uma
lâmina Fang, embora o cabo ainda não tivesse sido colocado. Ele nunca se
perguntara onde os Fangs conseguiam suas armas. É claro que tinham que
ser feitas por alguém. Mas crianças? Isso explicava por que o Supervisor
tinha permissão para se mover pela cidade após o toque de recolher e por
que havia tão poucas crianças em Cavadópolis. Qualquer criança que não
tivesse sido levada, provavelmente vivia seus dias dentro de casa, sob os
olhos vigilantes dos pais. Então Janner se lembrou da foto na parede de
Ronchy McHiggins. Eles também haviam levado seu filho.
Quando Janner fez a curva seguinte no labirinto da fábrica, olhou para a
direita e viu um par de olhos brilhantes olhando diretamente para ele. Eram
lindas janelas redondas de céu azul. Embora ele pudesse ver pouco do rosto
da criança, coberto de fuligem como estava, uma memória formigou no
fundo de sua mente.
“Vamos!” Mobrik chutou Janner na canela. Janner resistiu ao impulso de
lutar com o pequeno corre-crista no chão e socá-lo. Quando Janner olhou
novamente, a criança de olhos azuis havia sumido.
Mobrik o conduziu por várias outras curvas antes de parar em uma
bancada comprida. Uma garota estava em frente à bancada, segurando uma
tesoura gigante enferrujada. Na mesa diante dela estava o que parecia ser
uma espada Fang, mas tinha o formato errado.
“Ela está aparando a espada, viu?” Mobrik comentou. “Cortando o
pedaço de metal que não deveria estar lá. A máquina acerta na maioria das
vezes, mas, de vez em quando, ocorre um corte ruim. Daí de serem
necessárias ferramentas como essa aí, para consertar o que não está certo.”
Mobrik apontou o polegar para a garota. O rosto dela estava coberto de
camadas de sujeira. Ela usava um avental e tinha o cabelo preso em um
coque, no topo da cabeça. Cortava mais um centímetro do metal em meio a
grunhidos. Seus dentes estavam à mostra e, embora parecesse tão cansada
quanto qualquer pessoa que Janner já vira, ela estava fazendo progressos.
Quando se aproximaram, ela parou e se endireitou sem dizer uma palavra.
Janner sorriu para ela. A garota retribuiu o olhar, sem expressão.
“Knubis! O Supervisor diz que você deve ser movida para as pilhas de
carvão — ou é a Carruagem Negra para você. Acha que pode dar conta das
pilhas de carvão, garota?”
À menção da Carruagem Negra, os olhos da garota Knubis se
arregalaram e ela redobrou seus esforços com a tesoura.
“Tarde demais para isso, garota. As pilhas de carvão ou a Carruagem.”
Mobrik estava se divertindo.
O interior de Janner fervia. Seus dedos se fecharam em punhos, e ele
respirou fundo, pronto para atacar Mobrik, agarrar a pobre garota e correr
dali. Então, o bom senso mais uma vez interrompeu sua raiva. Para onde
iria? Ele encontrou os olhos da garota Knubis, e ela balançou a cabeça.
“Não faça isso”, ela pediu, olhando para Mobrik, mas Janner percebeu
que estava falando com ele. Ela não queria que fizesse nada precipitado.
“O quê?!” Mobrik retrucou.
“Não faça isso... não chame a Carruagem Negra. Eu vou para as pilhas
de carvão e vou trabalhar mais rápido. É só que... minhas mãos...” Ela
estendeu as mãos. Estavam cobertas de bolhas que escorriam.
“Mais luvas chegando amanhã.” Mobrik encolheu os ombros. “É uma
pena que você seja tratada assim. Difícil trabalhar se suas mãos estiverem
desgastadas. O Supervisor deveria cuidar melhor de suas ferramentas.”
“Ela não é uma ferramenta”, interrompeu Janner, incapaz de se conter.
“Não faça isso!” Ela clamou, desta vez olhando para Janner.
Janner a ignorou, ergueu o punho para trás e o lançou direto no rosto de
Mobrik.
O soco nunca o atingiu.
Vultos surgiram das sombras e cantos e de debaixo das mesas, baixaram
de correntes penduradas no teto e correram para Janner. Jogaram-no no
chão e o socaram, chutaram-no e bateram nele com todos os tipos de armas
contundentes. Janner se encolheu em uma bola, cerrou os dentes e esperou
que o tormento parasse. Estrelas inundavam sua visão e uma dor aguda
crepitava por sua coluna e pescoço. Finalmente os golpes diminuíram.
Janner estava deitado de costas, olhando para o teto, e as correntes acima
balançavam e pendiam para a frente e para trás como o pêndulo de um
relógio. Seu nariz e boca estavam sangrando, um dente estava solto e suas
costelas doíam a cada respiração irregular que dava.
Um rosto apareceu acima dele. Ele esperava que fosse o Supervisor
novamente, sorrindo seu sorriso de dentes amarelos sob a cartola ridícula,
mas era um menino. Com a expressão maldosa nos olhos, o rosto sujo e o
sorriso malicioso nos lábios, ele parecia tanto com um Marginal que Janner
meio que esperou ver uma adaga numa das mãos e um pedaço de carne de
vaca-dentada na outra. Mas, em vez de uma adaga, o menino segurava a
extensão de uma corrente.
“Estamos sempre de olho, ferramenta”, avisou o menino. “Então, faça o
que lhe foi dito, deixe o Mestre Mobrik em paz e vá às aparas. Entendeu?”
“Não sou uma ferramenta”, asseverou Janner.
O menino deixou a corrente voar. Atingiu o chão ao lado da cabeça de
Janner com tanta força, que faíscas feriram suas bochechas.
“Você é uma ferramenta!” Insistiu o menino. Ele gesticulou para os
outros meninos e meninas parados, todos olhando para Janner com ódio.
“Todos nós somos. Agora levante-se e comece a trabalhar.”
Mobrik estava atrás das crianças com os braços cruzados. “O Supervisor
disse que o garoto novo deve trabalhar até de manhã, sem descanso.”
As crianças sorriram.
“Vamos, Knubis”, disse Mobrik para a menina que estava aparando, e ela
o seguiu até as pilhas de carvão.
“Levante-se, garoto. Qual o seu nome?”
Janner levantou-se devagar, seguindo os ossos das costas e ombros
estalando em protesto. Ele enxugou o lábio ensanguentado com a manga da
camisa. “Meu nome é... Esben.”
O garoto com a corrente deu um passo à frente até ficar cara a cara com
Janner.
“Seu nome é Ferramenta. Lembre-se disso. Meu nome, caso você esteja
se perguntando, é Gerente de Manutenção. Estes são os nomes de todos
nós.” Ele acenou com a corrente para os outros enquanto eles se
esgueiravam para as sombras. “Fazemos a manutenção da máquina e das
ferramentas que a operam. Se você trabalhar bastante, poderá se tornar um
gerente de manutenção também. A comida é melhor, os beliches são
melhores e você poderá receber as novas ferramentas quando elas chegam.”
Janner encarou o menino com olhos firmes, embora pudesse sentir um
deles inchando a cada pulsação. Escolheu não dizer nada. Não demoraria
muito para que ele encontrasse uma saída desse lugar, e aquela ferramenta
poderia continuar fazendo a manutenção de sua máquina pelo resto de sua
vida, se quisesse.
Mas, agora, ele tinha aparas a fazer.
39
Esben Sabóvel,
Ferramenta de
Fábrica
O Caixão
Por mais difícil que fosse de acreditar, havia algo de positivo em ficar preso
no caixão por três longos dias: Janner teve bastante tempo para pensar no
que fizera para chegar lá e no que faria quando saísse. Estava deitado no
caixão e repassava suas ações várias vezes, questionando a si mesmo e
preparando seus nervos para o próximo estágio do plano, imaginando se
Mobrik suspeitava de alguma coisa.
Encontrar o corre-crista havia sido bastante fácil. Ele estava sempre
zanzando por aqui e por ali, escalando correntes, saltando da pilha de
carvão para a caixa de engrenagens e para a bancada, uma espécie de
gerente de manutenção dos gerentes de manutenção. Quando Mobrik se
aproximou durante o segundo turno, Janner chamou seu nome.
“O que você quer?” O corre-crista perguntou.
“Preciso de um favor”, confessou Janner.
“Você tem alguma fruta?”
E com grande satisfação, Janner proferiu: “Sim”.
“O que você quer dizer?” Os olhos de Mobrik se estreitaram. “Onde
você conseguiu frutas?”
“Não é da sua conta. Talvez estivessem comigo quando cheguei aqui.
Talvez eu saiba coisas sobre esta fábrica que você não saiba. Talvez haja
uma árvore frutífera no topo do prédio que despeje maçãs pela calha e para
dentro dos meus bolsos.”
Mobrik olhou para o teto e ergueu uma sobrancelha para Janner. “Você tá
tentando fazer graça. Está tentando ser engraçado.”
“Não”, continuou Janner, e tirou uma maçã do bolso.
Os olhos de Mobrik ficaram tão grandes quanto a própria maçã. A
criaturinha a agarrou rapidamente e em seguida golpeou Janner na cabeça.
“Isso é por tentar se fazer de engraçado comigo. Não sei onde você
conseguiu a maçã, mas pode ter certeza de que irei relatar isso ao
Supervisor. Agora, volte ao trabalho.” Ele se virou para ir embora.
“Mas ainda preciso de um favor”, insistiu Janner.
Mobrik parou. “O quê?”
“Preciso de um favor.”
“Você tem mais frutas?” Mobrik perguntou, desta vez menos seguro de
si.
“Sim. Tenho mais frutas, mas estão escondidas. Se você fizer o favor,
direi onde estão. Duas maçãs mais.”
Mobrik avançou e apalpou os bolsos de Janner. “Idiota. Se for verdade
que você tem essas frutas, contarei ao Supervisor e faremos uma busca na
fábrica até que sejam encontradas. Então você será jogado no caixão
novamente. Você não quer isso, quer?” O corre-crista sorriu
maliciosamente. “Eu ouvi você lá dentro, chorando e gritando. Foi
patético.”
Janner o ignorou. “É verdade, você pode encontrar as maçãs. Mas
acredite em mim quando digo que as escondi bem. Pode levar dias e mais
dias para encontrá-las, e aí? Quanto mais tempo passa...”
Mobrik fechou a cara. “Pior fica.” Assim como Janner esperava, o corre-
crista não suportava a ideia de deixar maçãs perfeitamente doces
apodrecerem. “Quantas você disse? Duas?”
“Duas maçãs vermelhas, doces e brilhantes.”
Mobrik, tendo mordido a maçã em sua mão, fechou os olhos e mastigou-
a em um silêncio extático. “Muito bem. Se eu fizer este favor, você vai me
dizer a localização das maçãs?”
“Assim que você me provar que o favor foi feito, e se jurar pelos frutos
de Vales Verdes e pelas Cavernas nas Montanhas que não me trairá, direi
onde encontrar as maçãs.”
“Os Vales! As Cavernas!” Mobrik arfou. “Como você sabe dessas
coisas?”
“Apenas sei. Você tem minha palavra de que lhe darei as maçãs, se você
jurar sobre os Vales e as Cavernas que fará o que eu pedir.”
“Não posso ajudar você a escapar, se é isso que você quer.”
“Não é isso. Quero que você faça algo por outra das... ferramentas.”
Mobrik inclinou a cabeça e pensou por um momento. “Muito bem. O
que você quer? Rápido, ou as maçãs vão piorar!”
Janner havia comido duas tigelas de caldo na noite após sua conversa
com Sara Cobbler, sabendo que ficaria preso no caixão por três dias. Depois
do terceiro turno, quando estava acomodando seus ossos cansados na cama,
o corre-crista apareceu novamente.
“Está feito, garoto.”
“Começando quando?”
“Amanhã, primeiro turno.”
“Você jura sobre os Vales e as Cavernas?”
Mobrik endireitou-se e ajeitou o casaco, ofendido por sua honra estar em
questão. “Juro. Pelas frutas de Vales Verdes e pelas Cavernas nas
Montanhas.”
“Obrigado, Mobrik.”
“Onde estão as maçãs?” Ele demandou.
“Que maçãs?”
Mobrik parecia tão chocado que poderia desmaiar.
“Estou brincando”, completou Janner. “Estão bem ali. Debaixo do
travesseiro, naquele beliche vazio.”
O corre-crista correu para o beliche e removeu as maçãs. Segurou-as
acima da cabeça em triunfo, em seguida pressionou uma maçã contra cada
narina e inalou profundamente.
Janner sorriu enquanto Mobrik se afastava, embora soubesse que o
caixão o esperava. Essa seria sua última noite em um beliche por muito
tempo, caso tudo corresse conforme o planejado. Ele estava determinado a
aproveitá-la.
Isso havia acontecido dias atrás, pelo que Janner conseguia imaginar.
Agora, na escuridão daquela caixa, suas costas doíam. Queria virar de lado,
mas não havia espaço. Ele havia pensado que sua primeira vez no caixão
tornaria essa vez mais fácil. Havia tornado o início mais fácil, porque ele
não teve que passar pela terrível experiência de descobrir que estava preso,
mas saber que teria que suportar três dias, em vez de dois, era
enlouquecedor.
O estômago de Janner roncou novamente, e ele pensou na última maçã.
Ele havia tirado quatro da cesta, perdido uma para Mobrik no início, depois
dado a ele duas em troca do favor. Escondera a última em sua grande luva
até sua segunda disparada pela fábrica.
Ele havia esperado até encontrar Sara Cobbler na hora do almoço, e ela
confirmar que Mobrik realmente mantivera sua palavra. Assim que Janner
voltou à estação de aparas, preparou-se para outra corrida. Largou sua
tesoura gigante, colocou a maçã no bolso, esperou até que os gerentes de
manutenção estivessem olhando para outro lugar e saiu correndo.
Desta vez, ele correu pelos corredores em direção à escada com
facilidade. Na verdade, preocupou-se por um instante que sua fuga estivesse
indo bem demais. Não ouviu nenhum grito de alarme desta vez, nenhum
sinal de perseguição dos gerentes. Subiu os degraus um pouco frustrado
porque desta vez queria ser pego.
Então, chocou-se contra alguém. Alguém maior que uma criança.
Alguém com uma cartola ridícula.
“Outra tentativa de fuga, criança?” O Supervisor indagou com um
sorriso maligno.
Janner encolheu os ombros e sorriu.
O Supervisor empurrou Janner para o chão e desenrolou o chicote. “Você
não vai sorrir por muito tempo.”
A pior parte de estar preso no caixão desta vez era que ele não tinha
como cuidar de seus ferimentos. Vergões cobriam seus braços, costas e
coxas. O Supervisor o havia chicoteado até que Janner implorasse para
parar. Até mesmo os gerentes de manutenção desviaram o olhar,
provavelmente porque isso os lembrava de suas próprias surras com o
mesmo chicote.
“Levem-no”, ordenou o Supervisor. “Três dias no caixão.”
Assim, Janner estava deitado no escuro, pensando novamente em sua
família, em suas feridas, em Tink, onde quer que ele estivesse. Pensou na
neve limpa das Pradarias de Gelo, nos abraços acolhedores do pessoal de
Gammon. Seu estômago roncou novamente, e ele decidiu que era hora de
comer a maçã. Acabou muito rápido, mas pelo menos estava úmida o
suficiente para atenuar sua sede, e acalmou as pontadas de fome por um
tempo.
Ele dormia aos trancos. Caiu num transe entorpecido, no qual suas
memórias giravam diante de seus olhos como fumaça. Cada pensamento
amargo que ele já tivera, cada palavra cruel que havia dito a seu irmão ou
irmã, cada ação egoísta que já fizera emergiu da escuridão como um
fantasma a zombar dele. Ele repassava discussões, desejando ter dito
algumas coisas, desejando não ter dito outras.
Estava preso em um lugar onde tudo o que tinha era ele mesmo e,
embora nunca tivesse se considerado uma pessoa má, todas as motivações,
pensamentos e ações que desfilavam pela escuridão lhe diziam o contrário.
Até mesmo sua aliança com Sara Cobbler foi motivada pelo egoísmo. Era
verdade que ele esperava ajudá-la a escapar, que queria muito que ela fosse
livre. Mas estaria ele disposto a libertá-la se isso significasse que ele teria
que ficar? Envergonhou-se da resposta. Todas as suas justificativas — de
que era um Guardião do Trono, que tinha que manter Tink seguro, que de
alguma forma ele e seu irmão e irmã poderiam ajudar a manter o sonho de
Anniera vivo —, tudo isso perderia sentido se ele se achasse, de alguma
forma, mais digno de ser posto em liberdade do que qualquer uma das
outras crianças da fábrica, especialmente a bela Sara Cobbler.
Após o terceiro longo dia, a porta do caixão finalmente se abriu. Como
antes, a luz feriu os olhos de Janner. Ele gemeu e saiu do caixão com
dificuldade.
“Fora, Sabóvel. Vejo que você consegue encontrar frutas até mesmo na
caixa”, comentou Mobrik ao ver o miolo amarronzado da maçã no caixão.
“Ele é um menino sorrateiro, ele é. Vamos. O Supervisor quer falar com
você.”
Apesar de estar cansado até os ossos, de ter seu corpo machucado pelo
chicote, de estar com fome, sede e coberto de sujeira, Janner sorriu. Mal
podia esperar para visitar o Supervisor
44
Montanhas e Algemas
Não!” Janner gritou. Ele correu atrás de Mobrik tão rápido quanto suas
pernas doloridas podiam levá-lo, mas poucos homens conseguiriam
ultrapassar um corre-crista. Assim que Mobrik bateu nas portas duplas de
vaivém, Janner reuniu todas as suas forças e mergulhou atrás dele. Seus
dedos prenderam apenas o suficiente da bota de Mobrik para derrubá-lo, e
os dois lutaram na porta. Janner o arrastou de volta para o corredor escuro,
notando, enquanto o fazia, que a porta da carruagem se abriu.
Pegar um corre-crista é quase impossível. No entanto, subjugar um, uma
vez capturado, embora não seja uma experiência agradável, é bastante fácil.
Por mais que odiasse fazer isso, Janner fechou os olhos, ergueu o punho
para trás e socou Mobrik no rosto com toda a força.
Janner havia lutado com Tink muitas vezes, mas eles tinham uma regra
tácita de que socar ou estapear o rosto era inaceitável. Essa era a primeira
vez que Janner empregava seu punho dessa forma. Ele sentiu uma dor surda
nos nós dos dedos, e o corre-crista ficou mole. Os passos do Supervisor se
aproximavam da porta.
Janner arrastou Mobrik até a parede e olhou em volta freneticamente,
imaginando o que fazer. O Supervisor não era um homem grande, mas era
muito maior do que Janner e tinha o chicote. Mobrik não tinha arma; Janner
não tinha arma. Sua única vantagem era a velocidade.
Era isso, então. Assim que o Supervisor abrisse a porta, Janner correria o
mais rápido que pudesse.
Afastou-se das portas, agachou-se numa posição de largada e esperou.
O Supervisor parou do outro lado da porta. “Mobrik?” Ele o chamou.
“Você está aí?”
Janner esperou. Através da janela suja, ele podia ver a cartola se
inclinando, enquanto o homem tentava ouvir.
O Supervisor mudou de posição e deu um passo para mais perto da
porta. “Mobrik?”
Janner não aguentou mais. Ele correu com toda a força que conseguiu
reunir. Fechou os olhos, mostrou os dentes e bateu com o ombro na porta de
vaivém. Ela atingiu o Supervisor no rosto, jogando-o para trás, que caiu
com força de costas.
Os pés de Janner mal tocavam o chão enquanto corria. Com o canto do
olho, ele viu dor e confusão no rosto do Supervisor e, sem pensar ou saber
por quê, Janner agarrou a cartola de onde ela havia caído.
“Sara!” Janner gritou. “Abra o portão! Agora!” Janner correu direto para
o portão, orando a cada passo para que Sara fosse uma das duas crianças no
vão e que ela encontrasse coragem para seguir com o plano.
“Ferramenta!” Esbravejou o Supervisor.
Janner olhou para trás e viu o Supervisor se levantar e mancar até onde
estava seu chicote.
“Sara!” Ele gritou novamente.
O portão levadiço não estava se movendo. E se Sara não estivesse neste
turno ou não tivesse conseguido fazer com que a outra criança a ajudasse?
“Sara, por favor!” Ele ofegava, falando quase para si mesmo. Sua
explosão de força estava diminuindo. Ele havia passado três dias em uma
caixa com nada além de uma maçã para comer e estava começando a sentir
isso.
“Ferramenta!” O Supervisor enfureceu-se novamente. “Não há como
escapar da fábrica!”
Então Janner viu uma fresta entre a rua de paralelepípedos e os dentes do
portão levadiço. Ele estava subindo.
Ao passar pelo cavalo e pela carruagem, uma ideia lhe ocorreu. Ele deu
um salto da roda dianteira da carruagem até o assento do condutor, agarrou
as rédeas e as agitou.
“Vamos! Vamos, garoto!” Ele bradou, e o triste cavalo abaixou a cabeça
e fez força. Janner olhou para trás e viu o Supervisor se aproximando,
estalando o chicote violentamente. Mas estava ferido. Suas costas estavam
arqueadas, e o homem puxava uma das pernas atrás de si.
O Supervisor gritava repetidamente, mas Janner havia parado de ouvir.
Se Sara abrisse a porta em tempo — já estava quase totalmente aberta —
ele se abaixaria e a pegaria pela mão. Janner a puxaria para o assento da
carruagem e galopariam pelas ruas vazias de Cavadópolis até terem certeza
de que haviam deixado seus perseguidores para trás.
O cavalo trotava. Janner abaixou a cabeça quando a carruagem passou
pelo corredor de entrada. Através da abertura do portão levadiço, ele
conseguia ver as ruas escuras de Cavadópolis.
Ele parou o cavalo no portão e olhou para o canto escuro onde Sara
estava. Ela e um menino seguravam a corrente que mantinha o portão
levadiço aberto. Seus olhos estavam arregalados de medo.
“Sara, vamos. Não temos tempo.”
Ela meneou a cabeça.
“Sara! O Supervisor está vindo. Temos que ir.” Janner estendeu a mão
para ela, exatamente como havia planejado.
Mas Sara meneou a cabeça novamente. “Não tenho para onde ir, Janner.
Vou morrer lá fora.”
“Não, você não vai! Vou levar você para seus pais. Não quer ver seus
pais de novo?”
“Os Fangs vão nos encontrar. Eles vão me colocar na Carruagem Negra
novamente. Não vou aguentar. Não vou. Pelo menos aqui há comida e água
e uma cama para dormir.”
“Sara, por favor. Você tem que vir comigo. O Supervisor... ele sabe que
você me ajudou. Ele me ouviu chamar seu nome.”
A voz enfurecida do Supervisor ecoou atrás deles. O menino ao lado de
Sara começou a chorar.
“Shhh...” Interrompeu ela. “Vai ficar tudo bem. Janner, vá.”
Janner estava determinado a não deixá-la. Ele não queria deixar
nenhuma das crianças na fábrica. Queria amarrar os braços do Supervisor,
trancá-lo em seu escritório, escancarar as portas da fábrica e libertar as
crianças. Mas para onde elas iriam? Talvez Sara estivesse certa. Elas
invadiriam as ruas escuras de Cavadópolis e tentariam encontrar seus pais,
mas muitas dessas crianças nem eram de Cavadópolis. Como Sara, elas
haviam sido capturadas pela Carruagem Negra e trazidas para cá, em vez de
Dang. Parecia não haver nenhum lugar seguro no mundo inteiro para
crianças — nenhum lugar seguro, exceto as Pradarias de Gelo.
“Sara, ouça”, pediu Janner. “Se você ficar, o Supervisor vai jogá-la no
caixão novamente. Ele talvez mande você embora na Carruagem Negra de
qualquer modo. Pelo menos comigo você tem uma chance. Por favor.”
Sara respirou fundo. Janner estendeu a mão novamente. Ela meneou a
cabeça e, com a mão trêmula, tentou alcançar o mecanismo que prendia o
portão levadiço.
“Ferramentas”, veio a voz perversa do Supervisor. Ele estava na parte
traseira da carruagem, encostando-se na roda para se apoiar. Estalou o
chicote e deu um sorriso zombeteiro para Janner.
Sara gritou! O menino que estava com ela largou a corrente e cobriu os
olhos com as mãos. Ele se espremeu em um canto e se encolheu como uma
bola. O portão levadiço desceu um entalhe.
“Janner, vá! Não consigo segurar!” Sara gritou, olhando não para Janner,
mas para o Supervisor, que avançava lentamente entre a carruagem e a
parede de tijolos.
Janner poderia detê-lo. Tinha feito isso uma vez, e agora o homem
enlouquecido estava ferido. Ele teria que ser rápido, mas poderia fazê-lo.
Pouco antes de ele saltar até o chão para confrontar o Supervisor, Mobrik
apareceu. Ele se moveu rapidamente, passou pela carruagem e entrou no
vão onde Sara estava. O corre-crista puxou os cabelos dela e agarrou suas
mãos, tentando forçá-la a soltar a corrente que segurava o portão levadiço.
O portão desceu mais um entalhe. Um a mais e a carruagem não passaria.
“Vá!” Sara gritou novamente.
Já queimando de culpa, já dolorido pela tristeza que sabia que sentiria,
Janner agitou as rédeas. A carruagem avançou, quicando enquanto passava
por sobre o pé do Supervisor, arrastando-o para o chão. Mobrik finalmente
venceu Sara Cobbler, e o portão levadiço desceu. A parte traseira da
carruagem ultrapassou o portão em queda por centímetros.
Janner se virou, com lágrimas ardendo em seus olhos, e teve um último
vislumbre do letreiro Fábrica! Garfos! Ver abaixo dele, através das barras
do portão, ele viu o Supervisor rolando no chão, gritando. Viu o rosto de
Mobrik, com os lábios curvados de ódio enquanto assistia a Janner escapar.
E ouviu Sara Cobbler chorando.
Por vários minutos, Janner não ouviu nada, exceto aquele som. Ele
encheu sua cabeça e se tornou não apenas a voz de Sara, mas a voz de todas
as crianças em Skree, todos os pais em Skree cujas vidas haviam sido
rasgadas e destruídas como papel velho.
46
O Covil Marginal
A próxima coisa que Janner soube foi que estava tossindo. Havia terra em
sua boca. Ele salivou e cuspiu, ansiando por um copo de água para lavar a
areia granulosa de seus dentes e língua. Quando abriu os olhos, ficou
surpreso ao descobrir que havia luz. Então ele se lembrou da desgrenhada,
dos Fangs, da mão em seu pé...
Ele se sentou.
A mulher estava sentada contra a parede, com uma lanterna ao seu lado.
“Criança, você se esqueceu de cobrir seus rastros.” Ele não sabia do que
a mulher estava falando, então ela apontou. “A cordinha, criança. Sempre
puxe a cordinha.”
Janner olhou para a escada e viu uma cordinha pendurada perto da
parede. Ele se lembrou de que Podo a havia puxado para liberar terra do
teto e esconder o alçapão.
“Desculpe, ahn... eu esqueci. Os Fangs”, disse ele, “já se foram?”
“Oh, eles estão sempre por perto, rastejando ao redor de seu trabalho
assassino.” Ela fez uma pausa. “Você não se lembra de mim, lembra?”
Ele meneou a cabeça. O rosto era familiar, mas o sotaque era muito mais
forte do que o de Gorah, a desgrenhada. Ela estava tão suja que podia muito
bem estar usando uma máscara.
“Eu conhecia seu avô, lembra?”
“Núbia Brejeira?”
“Sim.” Ela suspirou.
“Mas... o que você está fazendo aqui? O que houve?”
“Devagar com as perguntas, rapaz. Primeiro as coisas mais importantes.
Você quer saber onde está sua família, não quer?”
“Você sabe onde eles estão?”
Núbia anuiu com a cabeça. “Primeiro as coisas mais importantes, rapaz.”
Ela tossiu e Janner viu que sua respiração estava superficial e aquosa.
“O que há de errado?” Ele perguntou.
“Claxton. Ele está louco como um murça.” Seu queixo estremeceu.
“Machucou a própria mãe; sim, fez isso.” Ela afastou o pensamento
acenando com a mão. “Não importa. Eu preciso agora é de água e preciso
que você me ajude a trocar o curativo em minhas feridas.”
Ela ergueu a lanterna para que ele pudesse ver sua lateral. Sangue
encharcava seu vestido esfarrapado.
“Claxton fez isso?” Janner perguntou baixinho.
“Sim. Agora corra escada acima e encontre um copo ou balde. Desça até
o rio e traga um pouco de água. Todos os suprimentos aqui se foram —
foram com sua família.”
“Por favor, me diga onde eles estão”, clamou Janner.
“Se você não me der água, posso desmaiar e nunca mais acordar. Já se
passaram dias, rapaz. Vá. Não deve ser difícil encontrar um recipiente em
todo esse lixo. E atenção com os Fangs. Não ouvi nada deles desde que
você tirou sua soneca.” Ela riu de novo, aquela risada fraca e quebradiça
que a fez tossir tanto que ela tombou de lado no chão.
Janner não esperou ouvir de novo. Escalou a escada. No topo, procurou
ouvir algum movimento, mas não havia nenhum. Quando empurrou o
alçapão, ele não abriu. Empurrou novamente, mas teve medo de quebrar a
trava.
“Ahn... Núbia?”
“Está atrás... da escada”, ela gemeu.
Ele encontrou outro arame enrolado atrás do degrau superior da escada,
puxou-o e a porta se abriu com um clique, espalhando sujeira no poço.
Quando saiu de casa, Janner percebeu que o amanhecer se aproximava
rapidamente. Nenhum Fang estava marchando e nenhum velho roncava na
varanda.
Na luz rosada e dourada do céu, pouco antes do nascer do sol, Janner
remexeu os destroços ao redor da casa até encontrar um grande pote de
barro. Não havia sinal de Fangs, então ele correu pela estrada e deslizou
pela margem até a beira da água. A superfície era vítrea, sem perturbações,
exceto por ondulações ocasionais onde insetos aquáticos pousavam. De
repente, um peixe rompeu a superfície, com muitos respingos, e ficou
suspenso no ar por um momento, antes de apontar seu focinho pontiagudo
de volta para a água e afundar.
“Um peixe-adaga!” Janner exclamou maravilhado. Então, mais
seriamente: “Um peixe-adaga”. Ele encheu o pote e se afastou da beira da
água.
Núbia Brejeira estava inconsciente quando Janner voltou. Ele a cutucou
e a ajudou a se sentar. Ela cheirava mal e a aparência era ainda pior, mas
Janner sentiu uma afeição surpreendente por ela. Núbia havia conhecido e
até mesmo amado Podo quando era mais jovem, o que a tornava menos
como uma desgrenhada ou uma Marginal e mais como uma avó há muito
perdida.
“Bem melhor”, constatou ela, depois de tomar um longo gole. “Agora
arranque um pedaço dessa camisa que está usando e limpe bem.”
Janner odiava estragar sua única camisa, mas fez o que lhe foi dito e
começou a trocar a bandagem de Núbia. O ferimento em sua lateral
lembrou Janner de Podo, na noite em que ele quase morreu na câmara de
armas da Mansão Pé-de-Geleia. Se ao menos ele tivesse o frasco de água do
Primeiro Poço. A velha Núbia certamente precisava disso mais do que o
baratodonte voraz.
“Melhor”, ela afirmou quando eles terminaram. Seus olhos estavam mais
límpidos. “Eu não queria que você fugisse sem cuidar da velha Núbia
Brejeira antes. Não posso confiar em alma alguma na Margem.”
“Você pode confiar em mim”, assegurou Janner.
Núbia estudou os olhos dele por um momento e sorriu. “Sim. Acredito
que posso.”
“Onde está minha família? Onde está Tink?”
“Tink?”
“Kalmar, quero dizer. Onde eles estão?”
“Bem, rapaz”, prosseguiu Núbia cuidadosamente. “Você não vai gostar
da resposta. E lembre-se, tudo o que estou prestes a dizer veio de vários
Marginais, de vários clãs. As notícias correm, você sabe.
Janner anuiu com a cabeça.
“Sua família partiu há três dias. Sua mãe estava aflita com uma grande
dor por você e seu irmão. Eles nunca a ouviram dizer uma palavra, mas ela
chorava muito. Chorava como se o sol tivesse se posto para sempre, me
disseram. Mas Podo continuava dizendo a ela que vocês, meninos, ficariam
bem. Disse que vocês sabiam cuidar de si mesmos e — que não permita o
Criador —, caso não soubessem, não havia nada que ele pudesse fazer a
respeito. Eles tinham a garota, sabe.”
“Leeli”, complementou Janner. Seu coração ficava mais pesado com
cada palavra que Núbia falava.
“Sim. E ele disse que, com vocês, garotos, desaparecidos e não tendo
sido pegos pelos Fangs, era responsabilidade deles agora mantê-la segura.
Esperaram o quanto puderam arriscar, e então partiram para as Pradarias de
Gelo, em meio a muitas orações e lágrimas por vocês, rapazes.”
Janner abaixou a cabeça.
“Podo estava certo quando disse que não havia mais nada que pudesse
fazer”, ela avaliou. “Ele teria vindo atrás de você, rapaz. Acredite nisso.
Mas ele não sabia onde você estava e, mesmo que soubesse, não teria como
invadir o Forte Lamendron ou o Palácio Torr tendo uma garotinha, um
velho livreiro e uma mãe enlutada para cuidar. Talvez em sua juventude —
ah, rapaz! Você deveria tê-lo visto quando era mais jovem.” Núbia exibia
um sorriso desdentado e um olhar distante.
“Eles me deixaram”, Janner concluiu em lamento, empurrando para
baixo o caroço que se desenvolvia em sua garganta.
Núbia concordou com a cabeça. “Sim. Deixaram. Sinto muito, garoto.”
“Espere.” Janner ergueu a cabeça. “E quanto a Tink? Kalmar? Você não
o mencionou. Ele está com eles, certo?”
Núbia suspirou e negou com a cabeça.
“Então, onde ele está?”
“Ele fez uma escolha, rapaz.”
“O que isso quer dizer?”
“Ele seguiu a estrada até aqui, assim como você.” Ela fez uma pausa.
“Mas continuou andando.”
“Isso não faz sentido”, protestou Janner.
“Nunca nem parou para ver se eles ainda estavam aqui”, ela continuou.
“E a pior parte disso? Eles estavam. Sua família inteira, sentada aqui na
terra e no escuro, enviando orações ao grande e silencioso Criador para que
vocês dois aparecessem seguros e inteiros. E Kalmar Wingfeather passou
direto sem nem olhar para trás, há quatro dias.”
Janner sentiu um nó na garganta. “Por quê? Por que ele faria isso?”
“Porque, seja o que for que exista dentro de um homem que o convoque
até o limite das coisas, que o chame para as sombras e para longe da luz,
deve ter soado poderosamente alto aos ouvidos dele. Seu irmão agora é um
Marginal, rapaz. Era isso que ele queria. Ele apareceu na Curva Oriental
com fogo nos olhos, ostentando o totem de Claxton como se fosse o dono
do lugar.”
Foi difícil para Janner ouvir qualquer coisa que Núbia Brejeira disse
depois dessas palavras. Parecia que suas entranhas estavam fervendo.
Raiva, depois descrença, depois confusão, depois tristeza, depois culpa —
as lágrimas de Janner encharcaram o solo do covil dos Marginais.
Por que Tink faria uma coisa dessas? Os Marginais eram vilões, ladrões
e assassinos — como Fangs sem escamas. Por que ele escolheria se juntar a
essas pessoas? O Rei Supremo de Anniera. Janner ficou contente por seu
pai não estar vivo para ver seu filho trair o reino assim. Ele sabia que Tink
estava com medo, que ele não queria ser rei. Mas isso? Um Marginal?
Então, tá! Pensou Janner, enxugando as lágrimas dos olhos. Deixe os
Marginais ficarem com ele.
Ele se levantou e olhou para Núbia Brejeira friamente. “Como faço para
chegar às Pradarias de Gelo?”
“Hein?”
“Tenho um longo caminho a percorrer”, declarou ele.
Núbia o encarou com uma expressão triste nos olhos. “Então, você o está
deixando para trás?”
“Você disse que ele fez uma escolha”, disparou Janner. “Não vou arriscar
minha vida para tentar convencê-lo a fazer algo que ele deveria querer
fazer. Estou cansado de ir atrás dele, cansado de suas piadas e seu egoísmo.
Estou cansado dele. Se ele quer ser um Marginal, não posso impedi-lo. Ele
teria sido um péssimo rei de qualquer maneira.”
Núbia não disse nada.
“E então?” Janner exigiu.
“Ao norte daqui”, ela respondeu depois de um momento. “Após cerca de
um dia de caminhada, você chegará à Barreira. Vá para o leste até encontrar
uma árvore velha e morta. Trinta passos depois, você encontrará uma
brecha na parede. A árvore morta é um poleiro de marbutres, então tome
cuidado. Mova-se rápido, ou eles provavelmente farão você de comida. É
fácil atravessar quando os Fangs estão procurando em outro lugar,
especialmente agora que as patrulhas são tão poucas.”
“Por que as patrulhas são menos numerosas?” Janner perguntou
enquanto cruzava a sala em direção à escada.
“Não sei. Mas os Fangs parecem cada vez menos preocupados com
skreenianos escapando para as Pradarias de Gelo, o que me deixa um pouco
preocupada com o que o velho Gnag, o Sem-Nome, pode estar fazendo sem
que saibamos.”
“Obrigado pela ajuda”, agradeceu Janner. “O que você vai fazer?”
“A velha Núbia Brejeira ficará bem, rapaz.” Ela sorriu novamente. “Mas
obrigado por se preocupar.” Ela fez uma pausa, olhando para Janner como
se quisesse dizer mais.
“O quê?”
“Eu tenho um argumento poderoso chutando em minha cabeça, rapaz.”
Ele esperou.
“Não sei muito sobre Anniera. Nem tenho certeza se tal lugar existe. Não
presto muita atenção ao que está acontecendo no grande mundo e que não
me afeta. Deixo as coisas acontecerem como quiserem”, explicou ela. “Mas
seu Podo fez algo por mim que ninguém mais faria. Eu me importo com
ele, sabe? O que quer dizer que me importo com o que ele se importa. Sei
que ele se importa com você e seu irmão, então agora tenho que me
perguntar se ele gostaria que você chegasse seguro, mas sozinho, às
Pradarias de Gelo, ou que você fizesse o que é certo — e talvez nem você,
nem seu irmão estejam fazendo isso.”
“Não entendo”, confessou Janner.
“Você não quer saber o que aconteceu comigo? Não é todo dia que sou
apunhalada pelo meu próprio filho.”
Janner ficou envergonhado de não se preocupar em perguntar sobre o
ferimento de Núbia. “Sinto muito”, desculpou-se ele. “O que aconteceu?”
“Seu irmão pode ter mãos rápidas, mais rápidas do que qualquer
Marginal que já vi, mas o velho Claxton também tem talentos. Não
demorou muito para descobrir que Kalmar Wingfeather estava de volta à
Margem. Mãos rápidas não tornam um menino invencível, não é?”
A raiva de Janner por Tink esfriou um pouco, e ele sentiu uma pontada
de medo. “O que aconteceu?”
“É a Carruagem Negra, rapaz.”
“O que tem a Carruagem Negra?”
“Os Fangs aparecem uma vez por semana, graças a um acordo que
Claxton fez com eles. Veja, ele queria que os Marginais da Curva Oriental
governassem mais do que apenas nossa pequena seção do rio. Não estava
contente com a forma como as coisas sempre foram. Você pode não saber,
mas os Fangs estão sob ordens pesadas de coletar mais e mais crianças, e as
crianças estão ficando cada vez mais difíceis de encontrar. Os Fangs
permitem que nós, na Curva Oriental, carreguemos adagas e fiquemos em
paz — contanto que tenhamos pra eles algumas crianças novas a cada
semana, para a Carruagem Negra.”
“O que isso tem a ver com Kalmar?”
“Claxton está com ele numa gaiola agora mesmo, esperando pela
Carruagem Negra. Kalmar pensou que seria bem-vindo na Curva Oriental,
como um filho perdido há muito tempo. Mas, como eu disse, você não pode
confiar em alma alguma na Margem. Assim que seu irmão apareceu na
Curva Oriental, Claxton bateu nele quase até a morte e pegou de volta seu
totem.”
“Não!” Queixou-se Janner.
“Sim. É verdade. E a velha Núbia Brejeira aqui tentou impedi-lo. Não
queria que o netinho de minha antiga paixão fosse levado embora. Mas,
como eu disse, Claxton está louco como um murça. Me apunhalou no
estômago e me chutou para o rio. Sua própria mãe.” Núbia cobriu o rosto
com as mãos.
Janner sabia que os Marginais eram um bando do mal, mas isso era pior
do que ele havia imaginado. E Tink queria se juntar a eles. Isso deixou
Janner enjoado.
“Eu sobrevivi, é claro”, prosseguiu Núbia, após uma fungada. “Soube
que Podo estava escondido neste covil, então vim o mais rápido que pude.
Tarde demais, como você vê. Eles já haviam partido quando cheguei. E seu
irmão terá partido após esta noite, quando a Carruagem Negra chegar.
Janner não sabia o que fazer.
“Então”, prosseguiu Núbia, “você percebe meu dilema. Se eu ficasse
quieta, você escaparia pela Barreira e teria pelo menos a chance de
reencontrar sua família. Mas agora que lhe contei que Kalmar está numa
gaiola, você vai fazer o que qualquer bom irmão faria. Vai tentar salvá-lo. E
você será pego e ambos serão levados embora.” Ela suspirou. “Acabei
condenando não um, mas dois meninos às Profundezas de Throg. Claro que
você poderia esquecer o que eu disse, fugir para as Pradarias de Gelo e
deixar Kalmar entregue a qualquer que seja o destino que o Criador tenha
para ele, como você disse que faria.”
Janner estava ao pé da escada, de cabeça baixa. Ele não podia deixar seu
irmão.
“Obrigado, Núbia”, agradeceu. “Estou contente por você ter me contado
tudo.”
“Então você vai tentar salvá-lo?”
“Sim, senhora. Eu preciso. Sou um Guardião do Trono.”
“Então você vai precisar disso.”
Ela acionou outra tranca escondida na parede e uma pequena porta
quadrada se abriu. Janner se assustou. Dentro havia duas mochilas de couro
— as que Nia havia feito para ele e Tink, completas, com espadas e arcos.
“Acho que Podo as deixou para você. Prova que o velho acreditava que
você chegaria aqui mais cedo ou mais tarde. A carne seca de verdugo
acabou. Eu comi. Queira me desculpar.” Ela lhe deu um sorriso pegajoso.
Em sua mochila, Janner encontrou um pergaminho dobrado com seu
nome, escrito na caligrafia de sua mãe. Ele deslizou para o chão e abriu a
carta, sem se importar com a maneira triste como Núbia Brejeira o
observava.
Janner, estou com seu livro. Vou mantê-lo seguro até você chegar. Nas
palavras de Bronwyn Pé Argênteo, “Espero que você não se importe.”
Oskar N. Reteep,
Apreciador do Organizado, do Estranho e/ou do Saboroso
As Gaiolas
A Fortaleza
das Phoobs
O Nariz da Bruxa
Quando Janner acordou na manhã seguinte, a primeira coisa que viu foi
uma pomba-travessa. A ave estava empoleirada num galho, logo depois de
seus pés, olhando-o com grande irritação. Maraly não podia ser vista em
lugar nenhum, mas Janner não ficou surpreso. Ela era uma Marginal, ou
seja, não era confiável. Um pouco antes de adormecer, na noite anterior, ele
havia decidido que, se estivesse sozinho ao acordar, avançaria para a
Barreira e não pensaria mais na menina. Ele havia sobrevivido à Fábrica de
Garfos, à Ponte Miller e a incontáveis Fangs. Sabia que a jornada para as
Pradarias de Gelo seria difícil, mas acreditava que seria capaz de fazê-la
sozinho.
A pomba-travessa arrulhou seu crruu-crruu-crruu e voou para longe.
Janner espreguiçou-se e se sentou. O ar estava frio o suficiente para que ele
pudesse ver sua respiração subindo pelas folhas amarelas da árvore. Em
seguida, um cheiro agradável chegou ao seu nariz. Ele olhou para baixo, por
entre os galhos, e viu Maraly cutucando uma pequena fogueira perto do
tronco da árvore.
“Ei”, Janner a chamou.
“Ei”, ela respondeu.
Ele desceu. Maraly estava sentada sobre as pernas, palitando os dentes
com um pequeno osso. Ao redor da fogueira havia penas cinzas e brancas
de pomba-travessa. Maraly apontou para uma pedra plana ao lado do fogo,
onde o resto do pássaro jazia.
“Obrigado”, agradeceu Janner com sinceridade. A carne estava quente e
suculenta, mas havia muito pouco dela. “Tem mais?” Ele perguntou depois
de limpar os ossinhos.
“Você pode pegar uma sozinho, se quiser. Mas pode demorar um pouco
pra você.”
“Ah...” Ele não comia bem há dias, e isso só o deixou com mais fome.
“Tem água?”
Maraly levantou-se e enxugou os dedos gordurosos na blusa. “Sim. Há
um riacho a cerca de uma hora ao norte. Perto da Barreira. Vejo que é pra
onde você está indo”, ela acrescentou, quando o rosto de Janner se
iluminou.
“Sim. Você conhece um caminho?”
Maraly bufou. “Passar é bastante fácil. Especialmente agora que os
Fangs estão escassos. É depois da Barreira que vem a parte difícil. Aonde
você pretende ir, afinal?”
Janner hesitou. Não tinha certeza de se queria contar à filha de Claxton
Ardileza sobre seus planos, mesmo que ela tivesse tentado salvar Tink. Mas
que diferença isso faria? Ele não achava que ela voltaria para o
acampamento dos Marginais tão cedo, não depois da maneira como Claxton
rosnou e a xingou durante a perseguição.
“Não posso dizer”, Janner admitiu.
Ela ergueu uma sobrancelha. “Você não pode dizer.”
“Bem... não sei se posso confiar em você.”
Maraly bufou novamente. “Então não me diga. Acho que é aqui que nos
separamos.” Ela chutou terra sobre o fogo e entrou na floresta antes que
Janner tivesse tempo de impedi-la.
“Vá em frente, então”, ele disse baixinho, quando ela desapareceu na
floresta. “Não preciso de você.”
Janner certificou-se de que o fogo estava apagado e, em seguida, colocou
as duas mochilas nos ombros, deu uma olhada ao redor e percebeu que não
sabia qual direção era o norte. O céu estava nublado e, por mais que
tentasse, não conseguia ver nenhuma sombra nítida. Tentou se lembrar de
onde eles haviam vindo, mas todas as direções pareciam iguais.
Algo se moveu na floresta, não muito longe.
“Maraly?” Janner perguntou timidamente.
Janner ouviu o barulho novamente, um estalo de gravetos.
“É você?” Ele perguntou.
Um verdugo-espinhento chiou e irrompeu de trás de uma árvore
próxima. O animal deslizou em direção a ele e se virou para atirar seus
espinhos.
Janner tateou, buscando a espada, mas a segunda mochila sobre seu
ombro rebateu o punho para longe de seu alcance. Os espinhos vibraram, e
o verdugo fez um estalido com a boca, um sinal de que estava prestes a
atacar. Janner deixou a espada para lá e se encolheu atrás da árvore,
justamente no momento em que os espinhos voaram. Centenas deles
perfuraram o tronco, mas quatro cravaram-se em sua panturrilha.
“Ai!”
O verdugo grunhia do outro lado do tronco. Então, correu ao redor da
árvore e se virou para atacar novamente. Janner correu de volta para sua
mochila, desembainhou a espada e se virou.
Mas o verdugo já estava morto.
Maraly estava recostada na árvore, ainda palitando os dentes com o osso
do pássaro, segurando o verdugo morto pela perna. Sua adaga projetava-se
da garganta da fera.
“Eu teria matado”, Janner balbuciou.
“Claro que teria.”
“Só me pegou de surpresa, só isso.”
“Claro que pegou.” Ela apontou para a perna dele. “É melhor tirar isso
daí rápido, ou vai ficar doente igual um cachorro morto.”
“Ah.” Repentinamente nauseado, Janner cambaleou para trás, tropeçou e
caiu sentado.
Maraly removeu os espinhos — o que doeu muito mais do que Janner
havia imaginado — e colocou um cataplasma de cuspe e cinzas sobre as
feridas. Ela o colocou de pé.
“Então, para onde você está indo?”
“Às Pradarias de Gelo.” Suas bochechas enrubesceram.
“Tudo bem.”
E foram embora.
Viajaram para o norte por uma hora. Duas vezes Maraly disse
calmamente a Janner que subisse na árvore mais próxima, e logo uma vaca-
dentada passava correndo. Janner nunca as ouvia chegando e, cada uma
dessas vezes, pensou em como estava feliz por Maraly estar ali. Ele nunca
teria chegado tão longe sozinho.
Quando alcançaram o riacho, caíram de quatro e beberam
abundantemente de água límpida. Depois de encherem os odres de água,
Maraly limpou e inspecionou as feridas causadas pelo verdugo em Janner.
“Você vai ficar bem”, garantiu ela. “Agora, escute. A Barreira está logo
após a próxima elevação. Não sei a última vez que vi uma patrulha Fang
neste extremo leste, mas fique atento de qualquer maneira. Não há brecha,
mas há árvores suficientes que podemos escalar. Depois de ultrapassar o
muro, a caminhada deve ser fácil o suficiente. Até chegarmos às
montanhas, claro. Você tem um mapa ou algo assim?”
Janner mostrou-lhe as instruções da carta, e ela assentiu.
Logo após a elevação seguinte, ele teve seu primeiro vislumbre da
Barreira.
Janner não tinha certeza do que esperava, mas estava longe de ficar
impressionado. Janner tinha apenas doze anos e achava que poderia ter feito
um trabalho melhor do que os Fangs. As toras que compunham a Barreira
foram cortadas rudemente, e algumas ainda tinham galhos destacando-se
em ângulos estranhos. Eram de comprimentos irregulares, de diferentes
circunferências e tipos de árvores. Parecia que os Fangs haviam construído
o muro em um dia, com os olhos vendados.
No entanto, ainda era um muro. Estava entre eles e o sopé das
Montanhas Rochosas e, de fato, tornava muito mais difícil viajar por ali,
cumprindo exatamente o que os Fangs pretendiam.
Se o muro não fosse tão instável e alto, poderia ter sido fácil subir de um
lado e descer do outro. Mas, como Maraly havia dito, a Barreira
serpenteava pela Floresta de Glipwood, então eles seguiram para as árvores.
Escalaram um carvalho, escorregaram ao longo de um galho grosso que
pendia sobre o muro e, então, desceram por outra árvore. E, simples assim,
eles chegaram ao outro lado.
Não havia Fangs à vista.
Janner e Maraly sentaram-se de costas contra a Barreira e descansaram.
“Você já esteve neste lado antes?” Ele perguntou.
“Não. É território novo pra mim.”
“Você não tem que vir comigo, você sabe.”
Maraly acenou com a cabeça. “Sei que não. Mas o que mais vou fazer?”
“Você não poderia voltar?”
“Poderia.”
“Mas você não quer.”
“Não.”
Ambos permaneceram sentados em silêncio.
“Sinto muito por Kalmar”, lamentou Maraly.
Janner não disse nada. Estava tentando não pensar em seu irmão. Estava
com raiva de si mesmo por ter falhado com ele. Janner havia falhado com
todos. Se ele e Maraly chegassem em segurança às Pradarias de Gelo, como
iria encarar sua mãe? Podo? Leeli? Como explicaria a eles que havia
perdido Tink para a Carruagem?
Então sua raiva voltou-se para Tink — Tink, que havia passado direto
pelo covil Marginal e ido em direção aos canalhas da Curva Oriental. Direto
para Claxton Ardileza!
“Vamos”, Janner rosnou e saiu de perto de Maraly.
Caminharam em silêncio durante toda a manhã e à tarde. As colinas
ficaram mais íngremes e as árvores, mais esparsas. Um vento norte
serpenteava sobre a terra e uivava para as crianças, como se as avisasse de
que não eram bem-vindas. O ar ficava mais frio a cada passo, e Janner
começou a se preocupar em manter-se aquecido. O céu cinza indicava o
inverno que se aproximava, para não mencionar o frio do norte. Eles teriam
que encontrar peles ou roupas mais grossas se quisessem sobreviver. No
entanto, Maraly não parecia preocupada, o que deu a Janner a esperança de
que, talvez, ela soubesse de algo que ele não sabia acerca de encontrar
vestimentas quentes. Ela parecia saber muitas coisas que Janner não sabia.
Sua adaga providenciava comida. Sempre que um floelho ou thwap ou
verdugo atravessava seu caminho, ela arremessava sua lâmina antes mesmo
que Janner pudesse piscar. A cada vez, eles paravam para que ela pudesse
limpar a carne e guardá-la em uma bolsa, até que parassem para passar a
noite.
Uma vez, ela puxou Janner pelo cotovelo para detê-lo. Levou um dedo
aos lábios e apontou para uma sutil depressão no chão, menor do que a
circunferência de uma roda de carroça. Arrastou-se até a borda do círculo,
deslizou os dedos sob uma espécie de cobertura e a abriu rapidamente. Com
grandes coaxos e arrotos, um enorme e verruguento sapo-toupeira saltou de
seu ninho e deslizou para dentro da floresta. Maraly caiu de costas, gritando
de tanto rir ao ver a expressão de surpresa no rosto de Janner.
Perto do final do dia, Janner e Maraly escalaram uma encosta que
parecia não ter fim. A colina era árida, exceto por um olmo sem folhas no
topo. Maraly apontou para a árvore.
“É um marbutre”, ela comentou.
Janner não tinha certeza se acreditava nela de início. Nada na árvore se
movia. Então, uma forma negra no topo abriu suas asas e ajustou sua
posição.
“É perigoso?” Perguntou Janner.
“Sim”, confirmou, “mas é só um.” E ela avançou em sua direção,
correndo.
Janner assistiu impotente à cena de um marbutre lançando-se sobre a
garota. Ela gritava enquanto corria. Quando o pássaro mergulhou, ela se
atirou no chão com uma cambalhota, e as garras do marbutre não a
acertaram. Maraly se virou e arremessou sua adaga. O pássaro grasnou,
tombou no chão e permaneceu imóvel.
Maraly sacudiu a poeira de si, arrastou o marbutre até a árvore e juntou
galhos para uma fogueira. Janner balançou a cabeça e subiu a colina,
imaginando que outras surpresas Maraly Ardileza teria para ele.
Quando atingiu o topo da elevação, Janner congelou.
Diante dele estendiam-se os magníficos penhascos das Montanhas
Rochosas. Os picos nevados projetavam-se para o céu como cacos de vidro.
Nuvens ajuntavam-se e dispersavam-se por entre os desfiladeiros como uma
cachoeira lenta.
Janner nunca havia visto nada tão grande. Ele se sentiu pequeno, fraco e
um pouco tonto.
A oeste, as montanhas eram menores e via-se a suave ondulação de
colinas em suas bases. No leste, para onde o bilhete de Podo lhe dizia para
ir, o caminho parecia intransitável. Janner não via nada entre ele e aqueles
picos, exceto rachaduras, fissuras e penhascos irregulares. No centro da
Cordilheira Oriental erguia-se o Nariz da Bruxa, Mog-Balgrik. Erguia-se
acima dos outros picos e realmente parecia o nariz adunco de uma bruxa
das histórias assustadoras de crianças.
Uma vez que passe por Mog-Balgrik, a encosta desce para as Pradarias
de Gelo. Depois disso, seu palpite é tão bom quanto o meu, dizia o bilhete
de Podo.
Janner apertou os olhos para a passagem à esquerda do Nariz da Bruxa.
“Que o Criador nos ajude”, ele desejou. “É para lá que estamos indo.”
“O quê?” Disse Maraly atrás dele. Ela havia removido a cabeça do
marbutre e estava ocupada depenando-o ao lado de uma fogueira crepitante.
“Veja”, indicou Janner.
Ela se levantou e olhou para o norte pela primeira vez. “Ah”, ela
sussurrou.
Uma rajada de vento gelado atingiu o topo da colina onde eles se
encontravam.
51
A Canção das
Antigas Pedras
O Bambolhão e o
Lago de Ouro
Janner e Maraly caminharam por dois dias sobre uma paisagem irregular. A
grama não era mais verde, mas seca e áspera. As pedras eram gigantescos
ovos marrons, arredondados e lisos por causa dos anos de vento e chuva;
algumas eram grandes como casas, e tornavam-se maiores à medida que
eles avançavam. Às vezes, as pedras cobriam tanto as encostas que as
crianças eram forçadas a ziguezaguear entre elas ou escalar e pular de pedra
em pedra. Mas, na maior parte da jornada, caminhavam por longas encostas
áridas de grama amarela, com as Montanhas Rochosas agigantando-se,
brancas e pontiagudas, à distância.
Eles falavam pouco, mas o silêncio não era desagradável. Janner estava
contente por ter uma companhia, Marginal ou não. Maraly parecia mais
feliz quanto mais se distanciavam da Curva Oriental e de seu pai.
O vento penetrava pela camisa e calças de Janner, e ele começou a se
preocupar cada vez mais sobre como sobreviveriam à neve e ao gelo. Ele
estava desconfortavelmente com frio, mas, visto que Maraly não reclamava,
também não o fazia. Os únicos animais que viam eram criaturas parecidas
com esquilos, que Maraly chamava de pardozinhos. Eles chiavam e
desapareciam em buracos na terra sempre que as duas crianças passavam. A
habilidade de Maraly com sua adaga foi posta à prova, mas ela foi capaz de
pegar e limpar três deles, à medida que avançavam. Sua bolsa estava cheia
de carne e, como o tempo estava muito frio, não havia moscas.
No meio do segundo longo dia, chegaram ao sopé das montanhas. As
colinas íngremes transformaram-se em penhascos, como se tivessem sido
cortadas em duas e o lado norte removido. Janner e Maraly desceram as
encostas de seixos e várias vezes tiveram que refazer seus passos e
encontrar outro caminho. O tempo todo, o vento ficava mais forte.
“Você já está com frio?” Maraly perguntou por cima do ombro.
“Eu tenho permanecido com frio.”
“Entendi.” Ela saltou de uma pedra para a seguinte.
“O que vamos fazer?” Janner perguntou depois que deslizaram para o
chão novamente.
“Não sei. Esperava que você tivesse uma ideia.”
“Bem, não podemos voltar. É longe e perigoso demais. Temos comida e
muita água. Apenas não temos nada para nos manter aquecidos.”
“Existem os bambolhões”, afirmou ela.
Janner esperou que ela falasse mais, mas silenciou.
“Eu sei o que é um bambolhão”, ele garantiu. “O que isso tem a ver?”
“Poderíamos pegar um. Eu nunca vi, mas já ouvi a vó Núbia Brejeira
falar sobre eles. Disse que são grandes como uma árvore e peludos como os
cabelos nos dedos dos pés dela.”
“Não podemos matar um bambolhão”, alertou Janner. “Mesmo os
guardiões mal conseguiam matá-los nos velhos tempos. Os guardiões
tentaram se livrar deles para tornar a viagem nas Montanhas Rochosas mais
segura, mas perderam tantos homens que desistiram. E acabaram alegando
que, apesar de tudo, os bambolhões eram escassos demais para serem uma
ameaça.”
“O que te faz pensar que sabe tanto sobre bambolhões?” Maraly
retrucou, revirando os olhos.
“Livros.”
“O quê?”
“Livros. Eu li sobre eles em um chamado Criaturapédia de Pembrick.”
“Livros, hein?” Ela estancou no meio do caminho. “Shh!” Arremessou a
adaga em um pardozinho que estava ao pé de uma pedra próxima, mas
errou. Praguejou baixinho e foi recuperar a arma. “Bem, seu precioso livro
lhe disse como encontrar um?”
“Um bambolhão?”
“Sim.”
“Não, não que eu me lembre. Dizia que eles viviam em cavernas nas
Montanhas Rochosas, só isso.”
“Bem, vó Núbia me disse como encontrar um.”
“Maraly, é muito perigoso. Não podemos...”
“Shh!” Ela repetiu, mas, desta vez, não jogou a adaga. Semicerrou um
olho e apontou para a encosta mais próxima. No sopé da montanha estava
um aglomerado do que parecia serem arbustos verde-escuros — agora
Janner sabia que, na verdade, eram árvores diminuídas pela distância e pela
enormidade da montanha. Acima das árvores, a face da montanha estava
coberta com o que pareciam ser seixos, mas, na verdade, eram grandes
rochas que haviam deslizado encosta abaixo.
“Está vendo a neve?” Maraly perguntou.
Janner viu a neve, logo acima da linha de árvores, envolvendo as pedras
como pinceladas de tinta branca.
“Olhe ali para a esquerda”, ela pediu.
No início, Janner não viu nada além de mais neve. Então algo mudou.
Um ponto branco-acinzentado desceu do campo de neve até a linha das
árvores. Mesmo à distância, o estômago de Janner formigou de medo. Ele
sabia que o bambolhão não podia vê-los
(a Criaturapédia de Pembrick dizia que os monstros tinham visão ruim),
mas, ainda assim, sentia-se vulnerável. Se o bambolhão decidisse tê-los
como jantar, pouco poderiam fazer; a criatura conhecia essas montanhas
muito melhor do que as crianças.
“Precisamos sair daqui”, alertou Janner.
Maraly riu e puxou sua adaga. “Núbia Brejeira me disse que suas
cavernas geralmente ficam em pequenas florestas como aquela. Tenho
procurado por um desde que vi as árvores. Sem dúvida, a velha Núbia
estava certa. Vamos lá.”
“Maraly, espere!” Janner chiou, mas ela o ignorou.
Janner a observou partir, sentindo uma raiva familiar. Ela não pensou nas
consequências. Não se importou com o que Janner dissera. Ela era
imprudente e tola. Ela era, pensou Janner, uma versão feminina de Tink. E,
como acontecia quando ao lado de Tink, Janner descobriu que não
conseguia resistir ao impulso de segui-la.
Esgueiraram-se de pedra em pedra até chegarem ao leito seco de um
riacho que fornecia cobertura por várias centenas de metros. Maraly
rastejava em silêncio, e cada vez que o pé de Janner escorregava e enviava
um pedregulho ruidoso para longe, ela o olhava com grande aborrecimento.
Logo o grupo de árvores estava à distância de um tiro de flecha, perto o
suficiente para bloquear a visão dos campos de neve acima, onde haviam
visto a fera.
Maraly agachou-se no leito do riacho e puxou a adaga. “E então? Você
vai sacar sua espada ou o quê?”
“Maraly, isso é tolice!” Janner sussurrou. “Você precisa me ouvir. Isso
não é tão fácil quanto matar um pardozinho. Você já viu um bambolhão de
perto?”
“Não. E você?” Ela sorriu com ironia.
“Bem, não, mas eu vi imagens. Eles têm o dobro da altura de um homem
e são cruéis como o fogo.”
“Ah, eles não podem ser assim tão difíceis de matar. Além disso,
precisamos de algo para nos manter aquecidos, né?”
Janner teve que admitir que sim.
Logo acima da borda do leito do riacho veio um grunhido. Janner e
Maraly congelaram. O bambolhão bufava e estalava as mandíbulas, tão
perto que as duas crianças ficaram com medo de respirar. Depois de vários
momentos, a criatura se afastou. Maraly deu um sorrisinho e espiou por
cima da borda, apesar dos gestos frenéticos de Janner para ela se manter
escondida.
Quando a cabeça de Maraly não foi arrancada, Janner engoliu em seco e
deu a primeira olhada em um bambolhão de verdade, nas áreas selvagens
das Montanhas Rochosas.
A apenas um tiro de pedra de distância, numa pequena clareira entre as
árvores, estava a fera, de costas voltadas para as crianças. Era ainda mais
alto do que Janner havia imaginado e coberto com uma bela camada de
pelos brancos, tão compridos que balançavam com o vento. Suas pernas
eram curtas e robustas, mas seus braços eram enormes e grossos como uma
árvore. Suas costas e ombros ondulavam com músculos, visíveis até mesmo
através do pelo. O bambolhão estava comendo alguma coisa e parecia estar
se divertindo.
Logo depois da fera, no lado mais alto da clareira, ficava a entrada de
uma caverna.
O rosto de Maraly estava pálido. Janner não estava acostumado a vê-la
com medo e sentiu um pouco de pena dela. Mas, para sua surpresa, ela
respirou fundo, piscou para ele e murmurou a palavra: “Pronto?”.
Um uivo ecoou pela clareira.
O bambolhão se esticou em toda sua altura e girou o suficiente para que
Janner pudesse ver seu temível rosto. Seus olhos estavam escondidos em
mechas de pelo branco, seu nariz era pequeno e preto, mas sua boca era
enorme e brilhava com o sangue de sua refeição. Dois dentes, do tamanho
do antebraço de Janner, curvavam-se para cima, a partir de sua mandíbula.
Eles ouviram outro uivo, e o bambolhão saltou para a entrada de sua
caverna, jogando a carcaça lá dentro. Em seguida, a fera escalou a encosta
da montanha e sumiu de vista.
“Droga!” Maraly reclamou. Ela se jogou no chão com os braços
cruzados, fazendo beicinho como uma criança de dois anos. “Nós teríamos
conseguido!”
Janner se levantou, olhando para a boca escura da caverna. “Maraly,
você viu o que ele estava comendo?”
“Não,” ela respondeu, mal-humorada.
“Era um lobo.”
“E daí?”
“Eu tenho uma ideia.”
Ele saltou do leito do riacho e disparou para a clareira, deleitando-se,
pela primeira vez, no fato de ser ele quem estava tomando a frente.
“Espere!” Maraly exclamou, e Janner sorriu.
Ele derrapou até parar na entrada da caverna e ficou ouvindo. Maraly o
alcançou um momento depois, e os dois se inclinaram e olharam para
dentro. O cheiro que emanava da escuridão era insuportável. Janner se
sentiu prestes a vomitar, mas forçou-se a entrar na caverna.
No chão estava a carcaça mutilada do lobo. Seu pelo pendia em farrapos.
“Ahh!” Maraly exclamou. “Agora você tá pensando como um
Marginal.”
Janner fez uma careta e puxou a pele do lobo de seus ossos. No fundo da
caverna, encontraram os restos de animais sobre os quais Janner nunca
havia lido, alguns com vestígios de pele escamosa, alguns com
exosqueletos ósseos e alguns, para seu alívio, com espessas camadas de
pele. A maioria deles havia se decomposto além de qualquer utilidade, mas
vários tinham sido mortos recentemente, e as crianças emergiram da
caverna, minutos depois, com braçadas de peles fedorentas — mas
maravilhosamente quentes.
Ambos correram de volta para o leito do riacho e esconderam-se bem no
momento em que o bambolhão saltava para a clareira novamente,
arrastando atrás de si outro lobo enorme, como um brinquedo. O monstro
grunhiu ao entrar na caverna e ficou lá, até as crianças já estarem bem
longe.
Naquela noite, na encosta da montanha, Maraly preparou uma bela
refeição com carne de verdugo e de pardozinho. Quando as nuvens
esconderam as estrelas brilhantes e a neve caiu, as crianças dormiram em
um monte de peles. Maraly admitiu que foi muito mais fácil limpar as peles
do que lutar contra o bambolhão, e Janner adormeceu com um sorriso
orgulhoso no rosto.
Os dois passaram a maior parte da manhã seguinte transformando as
peles em algo que cada um pudesse vestir. Maraly fazia furos nas peles com
sua adaga e Janner as costurava com barbante de sua mochila. Quando o sol
começou a descer, Maraly e Janner estavam envoltos em peles. Eles
próprios pareciam pequenos e ferozes bambolhões e se sentiam capazes de
viver felizes nas Montanhas Rochosas por anos, se necessário.
Mais tarde, naquele dia, descobriram um lago tão redondo e azul, que
mais parecia uma joia cortada do céu. Ele repousava entre os ombros de
dois picos de pontas brancas que bloqueavam o vento constante e deixavam
a superfície da água lisa como vidro. Maraly e Janner ajoelharam-se, à beira
da água, em silêncio. Havia uma grande paz no lugar, que eles não queriam
perturbar. Então, largaram suas mochilas, encheram os odres de água e
sentaram-se em uma pedra a uma curta distância da borda.
Diante deles, entre o V das encostas que envolviam o lago, erguia-se
Mog-Balgrik. O Nariz da Bruxa apontava para o céu e dividia as nuvens. O
cume, à esquerda do nariz, apresentava uma depressão que assemelhava-se
a uma órbita ocular sombreada, e à direita do nariz havia um corte na
montanha, que formava uma boca curvada em uma carranca irregular.
A nota de Podo dizia que eles deveriam encontrar uma trilha que
serpenteava ao redor da encosta direita do pico — bem sobre a boca
recortada. Janner estremeceu. Era muito fácil imaginar a grande bruxa
adormecida devorando-os, quando passassem.
“Então é pra lá que estamos indo, hein?” Perguntou Maraly enquanto
tirava o capuz.
“Sim. De alguma forma, temos que atravessar aquela montanha.
Supostamente há uma trilha. Acho que, se continuarmos naquela direção,
vamos cruzar com ela eventualmente.”
“Certo.” Maraly suspirou. “Quer acampar aqui esta noite?”
A cavidade onde estavam parecia segura o suficiente. Era o primeiro
local tranquilo que encontravam nas Montanhas Rochosas, e ele odiava ter
que partir. Juntaram gravetos e galhos suficientes para fazer uma fogueira e
assentaram-se para preparar a refeição.
O sol poente rompeu as nuvens e lançou um raio dourado em Mog-
Balgrik. A luz transformou a horrível semelhança a um rosto e revelou a
beleza que o pico tinha por si mesmo desde tempos ancestrais.
“Olhe!” Maraly exclamou.
Janner desviou o olhar da montanha brilhante e viu o que parecia ser
uma nuvem de pétalas de flores amarelas, flutuando das encostas até o lago.
Então eles ouviram o ruflar de asas e o canto de pássaros. Milhares de
pássaros amarelos pousaram na superfície do lago, tantos que parecia que a
própria água havia se transformado em ouro. Eles cantavam e arrumavam
suas asas no crepúsculo e permaneceram visíveis muito depois do anoitecer.
“Hum”, foi tudo o que Maraly disse, mas Janner percebeu que ela
enxugou os olhos.
As crianças adormeceram com a diversão agradável dos pássaros na
água. Janner acordou mais de uma vez naquela noite e via as criaturas
iluminadas pelas estrelas, ainda flutuando no lago, e então voltava a dormir,
de coração maravilhado.
De manhã, o lago estava cristalino e plácido, e os pássaros amarelos
haviam se retirado. O Nariz da Bruxa estava sombrio como sempre. Janner
rastejou para fora de seu cobertor de peles e caminhou um pouco ao longo
da borda. Assim, bebeu bastante água da beirada do lago, antes de ver um
homem com espada. Ele estava a poucos metros de distância, encostado em
uma pedra. Seu cabelo era preto, e ele usava um pesado casaco forrado de
pele, que ia até os tornozelos.
“Os Fangs estão vindo”, ele alertou.
Depois de tantos dias sozinho com Maraly, a presença do homem
assustou Janner de tal modo que ele cambaleou para trás, tropeçou em uma
pedra e quase caiu. Janner não sabia dizer, pelo sorriso do homem, se era
amigo ou inimigo. Poderia ser um dos rebeldes? Um dos homens de
Gammon?
Maraly ainda dormia sob uma pilha de peles no acampamento, a poucos
passos de distância. Janner olhou para sua mochila, onde estava sua espada.
“Não faça isso, garoto. Eu sou rápido. Mais rápido do que um
bambolhão. “
O homem levantou o casaco e lançou algo grande, branco e peludo. A
coisa caiu no chão e rolou até os pés de Janner. A medonha cabeça de um
bambolhão olhava para ele com olhos mortos.
“Ele estava no encalço de vocês”, relatou o homem. “Pegou o cheiro de
vocês após fugirem com as peles.”
O rosto de Janner enrubesceu.
“Não se sinta mal, garoto. Foi uma boa ideia, e muito valente de vocês
dois entrarem na gruta de um bambolhão. Mas vocês tiveram sorte de não
haver outro dormindo no fundo da caverna.”
“Quem é você?” Perguntou Janner.
“Alguém que tem observado vocês.”
Janner não disse nada, mas o aviso do dragão-marinho vibrou em sua
mente: Ele está perto de você. Cuidado.
“Vocês estão fazendo um bom progresso, se for para as Pradarias de
Gelo que pretendem ir. É para lá que pretendem ir, não é?” O homem
interpelou com outro de seus sorrisos misteriosos e por demais amigáveis.
“Talvez”, respondeu Janner, e ele se sentiu um idiota quando o homem
se dobrou de tanto rir.
“Bem, talvez vocês queiram se juntar a mim. É para lá que estou indo
também; e já fiz essa viagem várias vezes. Além disso, essas montanhas
estão cheias de Fangs, que vocês provavelmente não querem encontrar.”
“Fangs? Você está mentindo. Eles não sobrevivem ao frio”, Janner
retrucou.
“Esse costumava ser o caso”, explicou o homem, ficando sério. “Não é
mais. Esses Fangs ficam bem nas regiões frias. Bem demais. Tão bem, na
verdade, que tudo pelo que trabalhei está em perigo. Meu exército, minhas
armas, minhas esperanças de derrotar os Fangs e bani-los de minha terra —
tudo isso estará perdido, a menos que eu encontre uma maneira de deter os
Fangs.”
“Gammon?” Perguntou Janner.
“Sim”, confirmou o homem. “E seu nome é Janner Wingfeather. Estou
aqui para ajudá-lo a chegar a Kimera. O resto da sua família está
esperando.”
“O quê? Como você sabe?”
“Recebi notícia de um de meus homens de que um pirata perna de pau,
uma menina, sua mãe e um velho redondo com óculos chegaram a Kimera
há poucos dias. Disseram que seus dois meninos estavam desaparecidos.
Então, tenho procurado por vocês. Por que você e seu irmão não vêm
comigo? Normalmente eu não estaria com tanta pressa, mas tenho que
atender a um compromisso.”
Os ombros de Janner se afundaram. “Não é meu irmão. Essa é Maraly —
ela é uma Marginal. Meu irmão foi levado pela Carruagem Negra.”
Os olhos de Gammon piscaram de... alguma coisa. Janner presumiu que
fosse decepção e baixou a cabeça.
“Lamento ouvir isso, Janner”, disse Gammon calmamente. “Então Gnag,
o Sem-Nome, pegou sua presa. Só o Criador sabe o que fará com ele.”
“Gnag não sabe quem ele é”, retrucou Janner. “Eles acham que é apenas
mais um garoto da Margem.”
Gammon pensou por um momento. “Bem, pode não haver muita
esperança para o seu irmão, mas, se os Fangs não perceberem quem
capturaram, pode haver alguma esperança para o restante de nós.” Gammon
deu um passo à frente e estendeu a mão. “Você teve uma jornada difícil,
rapaz. Por que não seguimos em frente? Se nos apressarmos, estaremos
seguros em Kimera ao pôr do sol, e você poderá descansar na companhia
daqueles que amam você.”
Janner sentiu uma onda de alívio e todas as suas suspeitas sobre aquele
homem de preto desapareceram. Ele assentiu com a cabeça para Gammon e
apertou sua mão.
53
As Pradarias de Gelo
Zuum!
O pássaro se dividiu em dois e chocou-se contra o solo, ao lado de
Janner, em um esguicho de neve e penas. Maraly rosnou e atirou sua adaga
no marbutre seguinte, quando este ainda estava a quatro metros acima deles.
O pássaro grasnou e despencou aos seus pés. Ela arrancou a adaga de seu
peito e se preparou para o próximo ataque.
Janner via um marbutre após o outro, voando em círculos no céu, faixas
pretas contra o azul da noite. Exceto pelo som que faziam quando as
crianças os atingiam, os pássaros eram estranhamente silenciosos enquanto
circulavam.
Quando o marbutre seguinte mergulhou sobre Janner, ele golpeou tarde
demais. Matou o pássaro, mas suas garras encontraram seu ombro e
rasgaram sua cobertura de peles como uma faca num papel. Ele pôs a dor de
lado e se preparou para o próximo ataque, tentando não dar atenção ao
modo como seu braço esquerdo tremia.
Maraly matou outro pássaro e gritou: “Depressa, Gam—”
“Consegui!” Ele gritou, antes que ela terminasse a frase. “Subam!
Rápido!”
Janner desviou os olhos do céu e viu Gammon ajoelhado na frente de
uma espécie de trenó. Era longo e plano, sem as laterais, mas cordas
corriam da parte traseira do bogã, passando por polias e buracos na frente
recurvada, formando o que devia ser algum tipo de mecanismo de direção.
Gammon segurava as extremidades das duas cordas com uma das mãos e
acenava para as crianças com a outra.
Janner dividiu outro marbutre ao meio e saltou depois de Maraly no
bogã. Maraly ajoelhou-se atrás de Gammon e Janner ficou na retaguarda.
“Janner! Puxe a âncora!”
“O quê? Onde?”
“Anda!”
Maraly rosnou novamente, e Janner soube, sem olhar, que ela havia
atirado sua adaga. Um marbutre morto se chocou contra Janner e o jogou no
chão. Por baixo da pilha fedorenta de penas, ele viu Gammon pular para a
parte traseira do bogã e puxar um pedaço de pau de um buraco no deque.
Imediatamente, o bogã deslizou para frente.
Janner retirou o pássaro morto de cima de si mesmo e ergueu a espada
no instante em que outra ave mergulhava. Um segundo depois, o bogã
carregava Gammon e as crianças encosta abaixo com tanta rapidez que os
marbutres já não mergulhavam, mas planavam bem ao lado do trenó. Janner
viu, à luz da lua, seus olhos negros alocados em órbitas carnudas; os bicos
duros e curvos; os pescoços sem penas; as asas de morcego. Uma fileira de
pássaros batia as asas atrás do bogã como uma fumaça emplumada, de
modo que, sempre que Janner ou Maraly matava um, outro tomava seu
lugar. A cada instante, o bogã ganhava velocidade, e os marbutres ficavam
menos interessados em sua presa, até que, finalmente, os pássaros se foram.
Janner e Maraly gritaram, apesar da exaustão. Eles se abraçaram e riram
junto com Gammon, enquanto o bogã descia voando pela longa encosta.
“Bom trabalho, pequenos guerreiros!” Ele os saudou.
Janner e Maraly embainharam suas lâminas e avistaram as Pradarias de
Gelo pela primeira vez. A encosta oeste de Mog-Balgrik era formidável,
uma sentinela íngreme alertando que, se fraco, o viajante mantivesse
distância; se, porém, enfrentasse sua face gelada, a recompensa era doce.
Uma descida longa e suave para o deserto congelado das Pradarias de Gelo
estava em suas costas; e, para aqueles como Gammon, que sabiam onde
encontrá-los, bogãs permaneciam escondidos na neve para levá-los para
casa.
Os olhos de Janner lacrimejavam, e o vento nos ouvidos o ensurdeciam,
mas ele sorria tanto que os músculos de suas bochechas latejavam. A lua se
tornava um branco frio à medida que subia, e iluminava os campos de gelo
de tal modo, que Janner podia ver tão claramente como se fosse dia. Por
horas, os três deslizaram montanha abaixo, mais rápidos do que o cavalo
mais veloz, com uma espuma de neve formando um arco atrás deles, como
um jato de água. O luar atingia a neve que voava, lançando prismas
coloridos na superfície da pradaria, à medida que passavam. Ratos brancos
e raposas da neve, enterrados sob a neve durante a noite, torciam as orelhas
quando o bogã passava zunindo, pensando que talvez o Criador tivesse se
curvado até a terra e sussurrado: “Shh”.
Janner dormiu um pouco e, quando acordou, a lua olhava diretamente
para ele. Quando não viu Maraly, sobressaltou-se e sentou-se, pensando que
ela tivesse caído em algum momento da noite. Então ouviu murmúrios na
frente do trenó. Ela estava ajoelhada, ao lado de Gammon, segurando as
cordas, enquanto ele a instruía em voz baixa.
“Não puxe com tanta força agora”, orientou-a. “Isso. Está vendo o banco
de neve à frente? Desvie para o lado esquerdo. Muito bom.”
“Estamos perto?” Janner perguntou, com um estremecimento. Seu braço
ferido estava rígido e ardia quando ele se mexia. Gammon e Maraly se
viraram, e Janner ficou surpreso ao vê-la sorrindo.
“Sim”, respondeu Gammon. “Muito perto, na verdade. Vê aquela
elevação, à distância? Mais à direita, logo abaixo de Tirium?”
“O que é Tirium?” Perguntou Janner. Ele só conseguia ver a pradaria
iluminada pela lua, que se estendia para sempre.
“É uma constelação, logo acima do horizonte. Como um triângulo... está
vendo?”
Janner via. Três estrelas brilhantes, um triângulo perfeito, inclinado e
deslizando em direção ao horizonte. E, logo abaixo delas, uma suave
inclinação na neve.
“Eu vejo. Aquilo é Kimera?” Perguntou Maraly. Sua voz havia perdido
um pouco do tom. Ela parecia mais uma garota comum do que uma
Marginal atiradora de adagas.
“Aquilo é Kimera”, confirmou Gammon.
Janner mal conseguia se conter. Ele estava com fome, com frio, cansado
e tinha tanta saudade de sua família que sentiu como se fosse chorar.
Por fim, Gammon pegou as cordas e puxou-as como se estivesse
puxando as rédeas de um cavalo. Algo na parte de trás do bogã se alterou, e
o trenó desacelerou suavemente até parar, bem no sopé da elevação que
Gammon havia apontado.
“Aqui estamos”, anunciou ele com um sorriso. “Kimera.”
Janner saltou do bogã para a neve que chegava até seus tornozelos. Ele
esperava ver uma aldeia, fumaça subindo das chaminés, lamparinas
amarelas emanando luz pelas janelas, mas não viu nada além de neve. Para
onde quer que se virasse, havia neve, de horizonte a horizonte. Nem mesmo
as montanhas eram mais visíveis. Seria isso um truque? Seria essa a sombra
que havia passado pelo rosto de Gammon? De que não havia Kimera
alguma, afinal? E se fosse mentira que Podo, Nia, Leeli e Oskar tivessem
encontrado Kimera? Janner não podia acreditar que houvesse se permitido
crer que algo de bom poderia acontecer a ele, que alguém pudesse ser digno
de sua confiança. Ele sentiu lágrimas quentes subirem em seu peito. Tinha
certeza de que nunca mais veria sua família novamente e que Gammon
havia planejado entregá-lo aos Fangs o tempo todo.
“Janner?” Uma voz o chamou.
Janner congelou.
“Filho?”
Ele se virou lentamente.
Um grande alçapão erguia-se do leito de neve. Luz amarela fluía para
fora da abertura, e uma figura subia por uma escada longa e curva. Era Nia.
Ela usava um vestido verde de mangas compridas, pulsos e gola adornados
com peles brancas e delicadas, e um colar de ouro pendia de seu pescoço.
Após tantas horas sob as estrelas brancas e frias, navegando em um manto
de neve branco-azulada, o amarelo e o dourado que cercavam sua mãe eram
as cores mais mágicas que Janner já vira. E sua mãe! Ela estava limpa. Seu
cabelo estava trançado em belas e intrincadas mechas, que caíam em
cascata sobre seus ombros, como uma cachoeira dourada. Ela era uma
rainha. Se alguma vez Janner duvidara, agora ele sabia.
“Mamãe?” Janner sussurrou.
A respiração de Nia ficou presa na garganta e uma mão foi à sua boca.
Um momento depois, os dois correram — um menino envolto em peles
de animais, ferido e dolorido, magro como um galho de árvore, e a Rainha
de Anniera, envolta em ouro e luz. Eles se abraçaram, e Janner só faltou se
derreter de alegria.
55
A Rendição de
Artham Wingfeather
Por dias, Artham oscilou entre sanidade e loucura. Ele estava deitado de
costas na gaiola, com o brilho de uma baba escorrendo pelo canto da boca
em direção à orelha. Olhava para o teto de pedra e balbuciava palavras que
não tinham significado. Mas, às vezes, sentava-se ereto, como se tivesse
acabado de acordar de um pesadelo, e ficava consciente de si mesmo e de
onde estava.
O tempo todo ele ansiava por se entregar, aceitar a oferta da Guardiã da
Pedra e permitir que ela o transformasse em uma fera alada. Seria tão fácil
cantar a canção e esquecer tudo. Havia muito que ele queria esquecer. Ele
havia quebrado seu juramento mais profundo e, mesmo em seus momentos
mais sãos, era incapaz de pensar nesse fato sem tremer.
Eu o abandonei!
Sua mente havia gritado essas palavras tantas vezes ao longo dos anos,
que elas haviam ficado marcadas a fogo em seu âmago. Não importava o
quanto tentasse, ele não conseguia escapar daquele único fato, daquela
única decisão que o havia assombrado todos esses anos. Não importava o
quanto fugisse, o quanto lutasse para proteger as joias, Peet, no mais
profundo de seu coração, estava apodrecendo e morrendo por causa
daquelas três palavras brutais.
Só o que precisava fazer era desistir, e tudo estaria acabado. Ele poderia
acenar para o Fang Cinzento na janela, a Guardiã da Pedra pegaria sua mão
e trocaria sua tristeza pelo nada inconsciente da caixa de ferro. A luz
vermelha brilharia, e tudo o que restasse de Artham Wingfeather
desapareceria.
Por dias, os Fangs Cinzentos entregaram mais crianças assustadas à
Guardiã da Pedra, e ela as acalmava, dava-lhes as boas-vindas e as matava.
Isso mesmo, pensou Artham, matava-as. Ela tirava suas vidas. Ainda
assim, ele sentia uma pontada de culpa pelos Fangs que havia matado —
teriam sido crianças como essas?
Não, esses Fangs eram pessoas tanto quanto o cabo de um machado era
uma árvore. Era Gnag quem os matava. Ele matava o que estava vivo e
fazia algo diferente daquilo, dando-lhe uma meia vida. Era por isso que os
Fangs viravam pó e se dissipavam quando morriam.
Artham estava tão cansado, solitário e cheio de pesar que tudo o que
queria no mundo era virar pó e ser carregado pelo vento.
No quinto dia na jaula, ele desistiu.
Não conseguia mais suportar o olhar fantasmagórico da Guardiã da
Pedra, nem a excitação doentia dos voluntários de Skree ao entrarem na
caixa, muito menos as lágrimas das crianças. Tantas crianças tiradas da
Carruagem Negra ou trazidas da masmorra, indefesas em um lugar que elas
jamais deveriam ter visto. Ele duvidava que os Fangs mantivessem sua
palavra e libertassem as crianças. Esperava que sim.
Mas pior do que o horror do mundo em que vivia era o mundo dentro
dele. Peet não conseguia parar de lembrar. Estava pendurado em uma gaiola
acima dessa masmorra, tão parecida com aquela da qual havia escapado, e
as vozes em sua cabeça e a amarga lembrança de tudo o que acontecera nas
Profundezas de Throg consumiam-no. Era uma tortura ainda maior do que a
que ele havia suportado de Gnag.
Quando o Fang Cinzento, trazendo a carne, puxou a gaiola para perto,
Artham enunciou: “Estou acabado”.
“Que quer dizer?” Perguntou o Fang.
“Se for verdade que a Guardiã da Pedra vai libertar as crianças, então ela
pode ficar comigo. Faça comigo o que ela quiser.”
O Fang encarou Artham, acenou com a cabeça e desapareceu pela janela.
Artham ficou sentado de cabeça baixa na gaiola, enrolando uma mecha
de seu cabelo branco em uma de suas garras. Poucos minutos depois, a
gaiola balançou e, então, começou a baixar até o chão da masmorra, com
um estalido de cada vez. Uma porta na parede oposta se abriu, e uma hoste
de Fangs Cinzentos saiu por ela. Eles cercaram a jaula com espadas em
punho.
Artham olhava para o chão. As vozes rugiam em sua mente. Ele ouviu a
velha e conhecida voz gritar: Eu o abandonei, mas agora havia mais.
Covarde, vociferavam as vozes. Fraco.
Artham ficou sentado com os olhos fechados e se fechou para tudo.
“Está quase acabando”, ele murmurava repetidas vezes. “Está quase
acabando.”
Os Fangs se afastaram. A Guardiã da Pedra entrou no recinto. Ela se
aproximou da gaiola, uma figura alta, esguia e encapuzada em um manto
preto esvoaçante. Artham abriu um olho, depois o outro, e olhou para ela.
Seu rosto estava invisível sob o capuz, mas ele não sentiu nada do ódio ou
da maldade que esperava.
“Está quase acabando”, repetiu.
“Sim,” ela concordou, em uma voz tão bonita, que Artham parou de
tremer. “Tudo ficará bem, Artham Wingfeather. Você não tem nada a
temer.”
Ela se abaixou perto da gaiola e retirou o capuz.
Seu rosto era pálido, seu cabelo negro como penas de corvo. Seus olhos
eram joias escuras em um campo de neve. Ela era bela, mas de uma beleza
terrível. Artham teve medo de desviar o olhar; nem desejava fazê-lo.
Imediatamente ele entendeu por que as crianças se acalmavam quando ela
lhes falava. Ele sentiu que faria tudo o que ela pedisse, não importava o
quão errado pudesse ser.
“Pobre Artham. Há quanto tempo você está fugindo? Nove anos? E
agora”, prosseguiu ela, de voz tão baixa quanto um ronronar, “você pode
descansar. A Carruagem Negra está chegando com mais gente quebrada,
mais gente cansada como você. Mas eu as libertarei se você cantar a
canção. É isso que você quer?”
Artham assentiu com a cabeça.
“Tudo bem. Mas, primeiro, eles assistirão a você. Vou deixá-los ver a
coisa magnífica em que você terá se tornado quando sair pela porta. E,
então, vou deixá-los escolher. Se eles quiserem ser libertados, eu os
libertarei. Vou devolvê-los às regiões selvagens de Skree, impotentes e
sozinhos, como você quiser — ou eles poderão se entregar ao serviço de
Gnag. Posso torná-los fortes e dar-lhes um exército de camaradas.” Ela se
endireitou e ergueu a voz para os Fangs. “Não posso?”
Eles uivaram, latiram e rangeram os dentes.
Do fundo do túnel veio o chacoalhar e o rangido da Carruagem Negra.
Artham viu a lanterna balançando de um lado para o outro, maior e mais
brilhante a cada segundo. Os quatro cavalos negros apareceram, e os
corvos, o condutor em seu manto, e então, a própria coisa — um cemitério
sobre rodas.
A Guardiã da Pedra recolocou o capuz e subiu na plataforma.
O condutor abriu os caixões, e as crianças desceram, piscando
fragilizadas.
“Alinhe-os!” Ordenou a Guardiã da Pedra.
Os Fangs Cinzentos colocaram as crianças em uma linha ao pé da
plataforma. Todas tremiam e se encolhiam ao ver os lobos bípedes.
Todas menos uma.
Uma das crianças não tremia. Apenas olhava para o chão.
Ele era magro como um ancinho, de cabelos castanho-claros. A
expressão em seu rosto machucado e inchado não era de medo, mas de
vergonha. Ele apenas olhou para os Fangs, as crianças e a caixa de ferro, e
suspirou. Então, abaixou a cabeça e fechou os olhos — da mesma forma
que Artham havia feito quando desistiu de todas as esperanças.
Assim que Artham pôs os olhos no menino, levantou-se de um salto. Sua
cabeça bateu no topo da gaiola, mas não se importou. Ele grasniu, agitou os
braços e gritou, tentando com tudo o que havia nele gritar o nome: “Tink!”.
Antes que Artham pudesse chamar a atenção de Tink, os Fangs
Cinzentos se aproximaram e bloquearam sua visão.
56
A Barganha de Gammon
A primeira vez que ela tentou, eles estavam no quarto de Podo. Maraly,
Oskar e os Igibys estavam sentados em círculo, sobre um tapete no meio do
chão. Leeli levou a harpa eólica aos lábios e tocou uma balada chamada
“Joeirem o Feno, é Comida de Burro”. Janner fechou os olhos com força e
pensou em Tink. Na escuridão de sua visão, ele viu formas geométricas
vagando e florescendo, mas nada de especial aconteceu. Quando Leeli
acabou de tocar a música pela terceira vez, ele desistiu.
“Nada”, constatou.
“Talvez eu não esteja tocando bem o suficiente”, ponderou Leeli.
“Não, você está tocando muito bem”, Nia corrigiu a filha.
“Perfeitamente.”
“Talvez tenha que ser uma música específica”, sugeriu Oskar. “E aquela
do Primeiro Livro?”
“Ou a que você tocou para o Nugget. Lembra dela?” Perguntou Janner.
“Eu me lembro exatamente”, respondeu Leeli.
“Experimente, querida”, Nia lhe pediu.
Mais uma vez ela tocou e, embora tenha trazido à mente de Janner todas
as memórias daquele dia nos penhascos em que ouviu os dragões-marinhos
pela primeira vez em sua cabeça, ele não viu nada.
Abriu os olhos e viu todos voltados para ele. “Desculpe”, ao que todos
baixaram a cabeça em frustração.
“Talvez devêssemos deixar vocês dois sozinhos”, sugeriu Nia.
Eles saíram do quarto um após o outro, deixando Leeli e Janner frente a
frente no tapete. Leeli tocou música após música, e Janner pensou tanto que
sua cabeça doeu. Mas nada aconteceu. Juntaram-se aos outros no quarto de
Oskar, e todos levantaram-se num sobressalto quando Janner e Leeli
entraram.
“Não está funcionando”, concluiu Janner. “Eu sinto muito.”
“Nós conversamos, rapaz”, afirmou Podo, “e não faz diferença de
qualquer maneira. Nós vamos buscá-lo. Todos nós.”
“Todos nós?”
“Sim. Parece-me que, toda vez que essa família se divide, coisas ruins
acontecem. Iremos para o sul novamente, então descobriremos o que fazer a
seguir. Talvez a gente vá para as Ilhas Phoob.” Podo pigarreou e levantou o
olhar, pensativo. “Lembro de haver um forte lá. Deve ser onde está o posto
Fang avançado — embora não faça muito sentido. Da última vez que estive
lá, estava coberto de neve e da espuma do mar. Não é o tipo de lugar onde
os homens-lagartos seriam capazes de sobreviver, mas Gammon disse que
esses eram diferentes, que Gnag alistou outra raça de Fangs, que então
conseguem suportar o frio. A questão é: não podemos ficar sentados aqui e
não fazer nada. Vamos buscar seu irmão.”
“Sim, senhor”, concordou Janner, correndo em seguida para Podo e o
abraçando com força.
“Quando partimos?” Leeli perguntou.
“Logo cedo pela manhã”, Nia disse. “Precisamos combinar com
Gammon o uso de alguns bogãs e uma equipe de galinóis.”
“Galinóis?” Indagou Janner.
Os olhos de Leeli brilharam. “Eu tenho que te mostrar! Eles são lindos,
com as penas mais macias que há. Os tratadores me deixam alimentá-los, às
vezes.”
“Haverá tempo para isso pela manhã”, disse Nia. “Vocês, crianças,
deveriam ir para a cama. Vou abastecer as mochilas e prepará-las para que
possamos partir bem cedo pela manhã.”
Janner deu boa noite a Maraly e Leeli e foi para seu quarto, onde se
deitou sob as cobertas e olhou para o teto de gelo. A frustração com a
música se foi. O pesar por, tão cedo, deixar o conforto de Kimera se foi. Seu
coração cantava com a esperança de que pudesse mesmo haver a mínima
chance de rever seu irmão mais novo.
Por fim, ele dormiu.
Uma batida na porta o acordou. Janner sentou-se e esfregou os olhos,
lembrando-se imediatamente de que a jornada o esperava. Ele se vestiu
rapidamente, agarrou o casaco de pele do cabide e escancarou a porta. Seu
sorriso desapareceu.
Um kimeriano estava diante dele, com sua longa barba coberta de gelo.
Ele estava sem fôlego e usava um robusto casaco de pele cinza que se
estendia até o chão.
“O que foi?” Perguntou Janner.
“Desculpe”, disse o homem, lançando-se para a frente e amarrando os
braços de Janner atrás de suas costas, antes que o menino soubesse o que
estava acontecendo.
Ele empurrou Janner à sua frente, passando pelo quarto vazio de Leeli,
depois pelo quarto de Nia e depois pelo de Podo. Estavam todos vazios. A
porta de Podo pendia torta e sua cama havia sido revirada em uma luta.
“O que está acontecendo? Onde está minha família? Onde está
Gammon?” Janner interpelou, mas o homem não disse nada.
Atravessaram as grandes portas do refeitório e serpentearam pelos
pavimentos de gelo de Kimera, passando em frente a mostruários de lojas
cortados no gelo, de cozinhas e residências onde crianças brincavam.
Sempre que encontravam kimerianos, eles pareciam confusos e recuavam
contra a parede para que Janner e seu captor pudessem passar. Finalmente,
eles dobraram uma esquina, e Janner o viu, acompanhado por uma pequena
companhia de kimerianos armados.
“Gammon!” Ele gritou. “O que está acontecendo? Onde está minha
família?”
“Está tudo bem, rapaz. Vai ficar tudo bem. Apenas não posso deixar
vocês partirem.” Ele se virou para o homem atrás de Janner. “Obrigado,
Errol. Já é seguro entrar.”
“Sim, senhor”, anuiu Errol, e havia preocupação em sua voz.
Ele conduziu Janner para um pequeno recinto. Oskar, Podo, Nia, Leeli e
Maraly estavam sentados, amordaçados e amarrados a um longo banco no
centro da sala. Janner notou que Maraly não usava mais um vestido, mas
calças e um casaco, assim como Janner. As paredes eram feitas de pedra,
em vez de gelo, e uma tocha crepitava na parede. Quando Podo viu Janner,
o velho grunhiu e lutou para se livrar das amarras, e Errol ficou tenso.
“Foram precisos quatro de nós para amarrá-lo, rapaz”, confessou o
kimeriano.
“Quase matou um de nós, mesmo com o ombro ruim”, disse outro
guerreiro do lado de fora da porta. “Ele é forte, seu avô.”
“Por que vocês...?” Começou Janner, mas o homem amarrou um pano
em volta de sua boca e, em instantes, ele se viu amarrado ao banco ao lado
dos outros.
“Isso é tudo, Errol”, disse Gammon. “Certifique-se de que Elmer e Olsin
sejam bem assistidos. Eles levaram uma boa surra.” Ele baixou a voz. “E aí,
preparem-se, como planejamos.”
“Você tem certeza?” Errol indagou baixinho.
“Sim. Mais do que nunca. Obrigado, amigo. Esteja pronto.”
“Sim, senhor”, anuiu Errol, e os homens apertaram as mãos.
“Eu não queria que chegasse a esse ponto”, confessou Gammon aos
Igibys. “Eu disse para vocês ficarem e descansarem. Disse para se sentirem
em casa. Disse para vocês desistirem de Kalmar. Mas não quiseram ouvir, e
aí está. Meus homens aprenderam que é bom me ouvir. Não é, homens?”
“Sim, senhor”, disseram eles do corredor.
“Vocês devem entender que eu faria qualquer coisa para proteger Skree.
Não posso simplesmente deixar vocês irem, não quando os Fangs estão
esperando que eu entregue vocês. Se eu achasse que existisse qualquer
outra maneira, fora entregá-los, eu os libertaria. Mas são vocês que Gnag
quer, não Skree. Tudo o que tenho a fazer é entregá-los, e ele concordou em
deixar essas terras. Chamem-me de mau, se quiserem, mas o mal maior é o
sofrimento que vocês trouxeram ao meu país. Precisam que eu os
convença?” Gammon colocou um pé sobre o banco onde eles se sentavam.
“Olfin, Urland, venham aqui!”
Dois dos grandalhões do corredor entraram no recinto.
“Olfin perdeu seus pais para a invasão Fang. Queimaram sua casa,
mataram todo o seu gado. Urland tem uma história semelhante. Não é,
Urland?”
“Sim, senhor. Minha aldeia inteira foi arrasada. Ficarei muito feliz
quando o senhor entregar este grupo aos Fangs, senhor.”
Gammon estendeu as mãos e sorriu. “Mandei avisar por corvo assim que
chegamos que as Joias de Anniera haviam sido finalmente capturadas.”
Podo, Janner e Maraly rosnaram e lutaram. Janner estava cansado de
traição. Ele estava começando a acreditar que ninguém em Kistamos era
confiável. Quanto mais velho ficava, mais o mundo se mostrava um lugar
tortuoso.
Cuidado, disse o dragão-marinho, e agora Janner sabia. Tinha sido
Gammon o tempo todo; Gammon que queria usar os jovens para seus
próprios fins. E Janner havia sido tolo demais para enxergar isso. Ele havia
seguido o homem direto para Kimera.
“Eu tinha uma fazenda”, contou-lhes Gammon. Janner ficou em silêncio.
Ele tentou imaginar Gammon sem suas roupas pretas e presença marcante.
Ele o imaginou com uma enxada e um chapéu de palha, mas era tão
ridículo, que ele bufou.
Gammon lançou um olhar para Janner. “Engraçado, não é?” Perguntou, e
Janner temeu que o homem o golpeasse. Mas Gammon deu uma risadinha.
“Suponho que seja. Devo dizer: sou um soldado muito melhor do que era
fazendeiro. Dificilmente conseguia fazer crescer uma totata maior do que
uma uva. Mas minha esposa, Yona, ela podia transformar até mesmo as
menores totatas em uma refeição requintada. Quando os Fangs chegaram,
minha pobre Yona foi morta. Eles me deixaram minha filha”, ele contou,
olhando para Maraly, “que teria mais ou menos a sua idade, moça. Mas, um
ano depois, a Carruagem Negra veio e arrancou-a dos meus braços. Naquele
dia, jurei que serviria a Skree. Eu faria o que fosse preciso para libertar
minha terra. Vocês entendem? Eu farei o que for preciso.”
Janner olhou para ele com uma mistura confusa de simpatia e
indignação.
“Não sei por que Gnag, o Sem-Nome, quer vocês.” Gammon encolheu
os ombros. “E realmente não me importo. Eu nem acreditava que Anniera
fosse real até vocês aparecerem por aqui. Mas se eu puder usá-los para
banir esse mal de meu país, então o farei. Pelo menos assim sua captura
significará algo. Animem-se com isso.”
Ele se ajoelhou na frente de Maraly. “Sinto muito, moça, mas, às vezes,
as coisas devem ser feitas, quer você goste ou não. Você terá que se passar
pelo outro menino.” Gammon colocou a mão em seu ombro. Ela se debateu
como um animal selvagem, e Gammon recuou. Ele se endireitou e disse
“Isso é tudo. Mandarei buscá-los quando chegar a hora. Os Fangs estarão
aqui em breve.”
Eles ficaram sentados por um longo tempo, ouvindo o crepitar da tocha e
a respiração uns dos outros. Cada um deles girou os braços, tentando
afrouxar as amarras, mas era inútil. Logo o silêncio foi quebrado por
fungadas, e Janner viu que Leeli estava chorando. Nia tentou falar com ela
através da mordaça, mas não adiantou.
Quando as lágrimas de Leeli diminuíram, ela começou a cantarolar. Ela
não tinha a harpa eólica e não conseguia formar palavras, mas a melodia
que emergia destilava exaustão e tristeza. A música encheu o recinto, e o
coração de todos — mesmo o de Maraly — ressoou com ela. Janner olhou
para cada um deles e viu que seus rostos estavam molhados. Janner fechou
seus olhos... e viu cores brilhantes.
Sua mente estava vívida com redemoinhos e rajadas de movimento. Ele
voou pelas encostas das Montanhas Rochosas, tão perto de uma revoada de
marbutres que viu as minúsculas penas em seus pescoços enrugados. Em
seguida, mergulhou pelo ar, passando por um bambolhão em busca de
alimentos, pelo sopé das montanhas e ao sul da Barreira até o Grande Rio
Blapp. Ele sentiu a visão se dirigindo para o sul, em direção a Glipwood,
mas lembrou-se, pelos mapas, de onde ficavam as Ilhas Phoob e forçou sua
mente em direção ao leste. A imagem respondeu, e sua visão oscilou para a
esquerda. Ele passou os olhos pelas copas das árvores de Glipwood e
avistou partes do rio abaixo, até que a terra sumiu, e ele viu o caos das
Cataratas Fingap.
Ele conduziu a imagem para o norte e leste sobre o Mar Sombrio da
Escuridão, até que viu um aglomerado de ilhas marrons, próximo à costa de
Skree. Voou cada vez para mais perto das ilhas, até que pôde distinguir os
mastros dos navios e formas cinzentas movendo-se em seus conveses. Ele
queria se aproximar mais e pressionou sua mente nessa direção, mas a
imagem parecia resistir, e ele se lembrou das palavras de sua mãe: “Que
você seja capaz de ver que essas coisas quando ela toca são um dom.
Nunca tente se tornar seu mestre, mas as sirva. Permita que isso seja o que
o Criador pretendia que fosse.”
Janner abrandou e permitiu que a imagem fosse para onde quisesse. Ele
ouvia vagamente as notas da música de Leeli e suplicava para que ela
continuasse cantarolando. Ele sentia que estava perto de algo.
A imagem passou velozmente pelas ilhas, em direção ao norte, ao longo
da costa, onde as Montanhas Rochosas despejavam seus gigantescos
penhascos no mar, até que a terra embranqueceu com a neve. A imensidão
plana das Pradarias de Gelo se estendia até o horizonte, e Janner se
perguntava o que ele deveria ver.
Então ele detectou uma mancha no horizonte. A imagem se aproximava
a cada nota da música de Leeli, e a mancha crescia em tamanho até que
Janner viu o que era. Foi uma visão tão chocante e desconcertante, que ele
gritou e, quando o fez, a canção de Leeli foi interrompida e o encanto foi
quebrado.
Janner abriu os olhos e viu apenas as pedras cinzentas da cela, mas o que
havia visto em sua visão estava gravado em sua mente. Aquilo enviou um
arrepio violento por seu corpo e um grito de júbilo saiu de sua boca. Ele se
sentou no banco com suas amarras, balançando para cima e para baixo,
como uma criança pequena tendo um ataque de felicidade.
“Mmmt!” ele disse através da mordaça. “Mmmk! Mmmt!”
Eles olharam para ele como se fosse louco, meio preocupados e meio
divertidos com a alegria em seu rosto.
“Mmmk!” Ele repetia de novo e de novo. Eles não conseguiam entendê-
lo, mas ele não se importava. Janner ria, gritava e balançava a cabeça
maravilhado. Cada vez que ele se acalmava o suficiente para ver os olhares
nos rostos de sua família, a confusão deles era tão agradável que o remetia a
outro acesso de alegria.
O que foi? Seus rostos perguntavam. O que você viu?
Ele mal podia esperar para contar a eles.
59
A Transformação
Segredos na Neve
As muitas horas que Janner passou amarrado e amordaçado na cela com sua
família foram enlouquecedoras. Ele empurrava a mordaça com a língua,
mas ela permanecia firme, não importando o quanto tentasse. Todos
olhavam para ele com confusão e lampejos de esperança, mas não
conseguiam entender seus grunhidos, e ele não conseguia entender os deles.
Janner ainda não tinha certeza de como as imagens funcionavam. Será
que havia visto as coisas como realmente eram, ou imagens que apenas
sugeriam a verdade? Quando, na Fábrica de Garfos, ele teve a visão de
Leeli nas montanhas, teria sido aquilo uma imagem de onde ela realmente
estava ou seria apenas uma representação de seu entorno, como num sonho?
As imagens giravam e se moviam, mas sempre pareciam com as ilustrações
bem emolduradas em um de seus livros.
Isso poderia explicar a coisa inacreditável que ele acabara de ver?
Era Peet, mas... não era Peet. O Peet em sua visão tinha grandes asas
emplumadas e voava como um fendril solitário através de grandes montes
de neve. Seu rosto era bonito e ousado, diferente do ansioso e abatido
Homem-Meia que Janner conhecia. Talvez fosse uma metáfora. Talvez Peet
estivesse correndo — voando — para as Pradarias de Gelo, e a mente de
Janner tivesse adicionado as asas.
Janner havia enxergado algo nos braços de Peet também e, embora não
tivesse visto com clareza, tinha certeza de que era Tink. Repetidamente,
Janner fechou os olhos e reconstruiu a visão, desejando captar cada detalhe,
mas só via um borrão difuso nos braços de Peet. Apesar disso, no fundo de
seu coração, ele sabia que era Tink.
Depois de muitos grunhidos e acenos com a cabeça, Janner comunicou a
Leeli que deveria cantarolar novamente. Ela tentou várias vezes, mas, como
antes, nada aconteceu.
A emoção da visão de Janner desapareceu, e as horas se arrastaram, até
que cabeças tombaram e algumas cochilaram.
Por fim, a porta se abriu e Gammon os examinou.
“Brogman, solte-os do banco, mas mantenha as mãos amarradas. E
deixe-os amordaçados.”
Outro homem-montanha barbudo entrou na sala e desfez as amarras do
banco. Com uma corda, amarrou os sete juntos num comboio, com Podo à
frente. Deixou um dos braços de Leeli livre para que ela pudesse andar com
a muleta e amarrou o outro pulso à procissão.
“Aperte bem o nó, Brogman”, ordenou Gammon. Quando Brogman
terminou, Gammon olhou a corda e inspecionou cada um dos nós. Quando
ficou satisfeito, ele os liderou em fila única por Kimera. A cidade de neve
estava quieta como uma tumba; todos os quartos, vazios.
Eles pararam ao pé de uma escada elegante que se curvava para cima até
um teto elevado, a mesma escada que Nia havia subido na noite em que
Janner chegara. Uma pilha de peles estava ao pé da escada. Os dois homens
que guardavam a escada colocaram belos casacos de pele sobre os ombros
do grupo e até enrolaram lenços no pescoço das mulheres.
“Está frio lá fora”, comentou Gammon com um sorriso.
Atrás da barba amarela de Brogman, seu rosto se contraiu de apreensão.
“Não tenha medo, Brogman”, tranquilizou-o Gammon, colocando a mão
em seu ombro.
“Não estou com medo, senhor. Apenas ansioso.” O sorriso de Brogman
era cruel.
Gammon olhou para os Igibys uma última vez, e seu olhar se fixou em
Maraly. “Lamento ter chegado a este ponto, amigos.”
Janner olhou para ele. Como podia chamá-los de amigos, enquanto
estava prestes a fazer essa coisa terrível? Maraly olhava para Gammon com
o mais profundo ódio, e a cabeça de Janner rodopiava com essa traição. Não
conseguia acreditar que ele iria sacrificá-la junto com o resto deles. Ela não
tinha nada a ver com Anniera! E Gammon havia falado com ela tão
gentilmente antes.
“O exército está reunido, e eles aguardam a entrega das joias. Brogman,
certifique-se de conduzi-los exatamente para o lugar que lhe mostrei. É
onde os Fangs Cinzentos estão esperando por eles, entendeu?”
Brogman acenou com a cabeça e disse: “Tudo bem, então, subam”.
Gammon ficou ao pé da escada e os observou. Janner o encarou, com a
intenção de entregar-lhe um olhar de repugnância que ele nunca esqueceria
— mas Gammon deu uma piscadela. A raiva de Janner transformou-se em
confusão. Ele estudou o rosto de Gammon, mas não viu nada além da
mesma indiferença fria e se perguntou se a piscadela não havia sido nada
além de um tique nervoso.
Luz inundou a escada quando o alçapão subiu. Podo caminhou
orgulhosamente para o brilho daquele dia de traição. Da parte de trás da
fila, tudo que Janner conseguia ver era a luz. Pedaços de neve espalharam-
se pelo túnel e pousaram sobre os degraus. A luz do sol o cegou, mas, com
suas mãos amarradas à corda da procissão, não conseguia proteger os olhos.
Ele ouviu o vento uivar e o esmagar de seus passos, enquanto Brogman os
conduzia pela neve até o lugar que Gammon havia designado.
Quando finalmente Janner pôde ver, desejou não poder. Estendido diante
deles como um tapete cinza gigante estava um exército de lobos.
Em Glipwood, quando Janner era mais jovem, Nugget e um cachorro
vira-lata haviam se encontrado e brigado por um osso de porleitão. Janner
tentou separá-los e foi mordido. Ele nunca esqueceu a maneira como o vira-
lata mostrou seus dentes longos, a forma como seus lábios se curvaram para
trás e seu focinho reluziu. Milhares de Fangs Cinzentos mostravam seus
dentes da mesma maneira selvagem.
E, se isso não bastasse, eles também carregavam espadas.
Os Fangs Cinzentos estavam organizados em fileiras. Não eram os Fangs
insubordinados e indisciplinados a que Janner estava acostumado. Tinham
olhos calmos e inteligentes, e, diante de cada companhia, havia um Fang
Cinzento claramente no comando. Em direção ao sudeste, serpenteava uma
ampla faixa de trilhas que o exército havia feito ao atravessar as Pradarias
de Gelo, vindo das Ilhas Phoob.
Entre os Igibys e os Fangs havia não mais do que vinte guerreiros
kimerianos. Janner reconheceu Olfin e Urland, os dois homens que haviam
perdido suas famílias. Suas armas reluziam e suas barbas ricocheteavam
com o vento. Por mais ferozes que parecessem, os kimerianos eram tão
poucos que Janner teve pena deles, ainda que pretendessem entregar a ele e
sua família. Gammon realmente acreditava que os Fangs evacuariam Skree?
Até Janner sabia que não se podia confiar nas feras. Assim que as Joias de
Anniera estivessem sob a guarda dos Fangs Cinzentos, os lobos se
voltariam contra os kimerianos e a rebelião seria esmagada. Qualquer
esperança que restasse para Skree — e para Anniera, nesse caso — estaria
extinta.
Janner esquadrinhou o horizonte branco em busca de qualquer sinal de
Peet e Tink, mas só via neve cegante. Sua visão havia sido clara: Peet
estava vindo. Mas quando? Ele viria para salvá-los, como havia feito tantas
vezes? Não com tantos Fangs tão perto; não se essas novas feras fossem tão
capazes quanto pareciam. Seria melhor se Peet e Tink ficassem longe,
muito longe, até que a batalha terminasse. Pelo menos assim eles
permaneceriam livres. No entanto, Janner ansiava por ver o tio e o irmão
novamente. Ele não conseguia tirar os olhos das colinas nevadas.
“Nós os pegamos!” Bradou Brogman. “Aos cuidados de quem
entregamos as Joias de Anniera?”
Onde está Gammon? Janner se perguntou. Por que esse homem,
Brogman, é quem está conduzindo a troca?
“Meus!” Gritou em resposta um dos Fangs Cinzentos, enquanto
avançava com uma figura encapuzada ao lado, lutando para acompanhá-lo.
Eles passaram por entre os homens de Kimera sem ao menos olhar para eles
e se aproximaram de Janner e dos outros. A voz do Fang Cinzento era
profunda e gutural, não o estalar seco dos homens-cobras, e seu rosto era
uma coisa terrível, com olhos amarelos e antinaturais. O nariz, na ponta do
focinho curto, era preto e brilhante; as orelhas se mantinham em atenção.
“Meu nome é Timber”, enunciou a Brogman. “Eu comando essas
tropas.” Farejou o ar ao redor de Janner, Leeli e Maraly. “Estas são as
crianças, então?”
Maraly balançou a cabeça e grunhiu.
O Fang se voltou para a figura encapuzada. “São eles, Zigrit?”
A figura ergueu os braços trêmulos e puxou o capuz. Dois olhos negros,
presos a um rosto verde escamoso, fitaram as crianças. Gelo revestia sua
boca e suas longas presas amarelas tremiam com o frio.
“Sssi-si-simm”, ele respondeu sem olhar duas vezes para Maraly. A
criatura estava miserável, e Janner viu que, de fato, Fangs comuns nunca
teriam sobrevivido a uma batalha nas Pradarias de Gelo.
“As Joias de Anniera”, anunciou Brogman, “sãs e salvas, como Gammon
prometeu.” Os dedos de Brogman se contraíram, e Janner pensou em um
gato prestes a dar um bote. O que estava acontecendo?
“E quanto à garota?” Questionou Timber, estreitando os olhos.
“Ahn, garota?” Brogman vacilou.
“Essa aqui”, apontou Timber. O Fang colocou uma pata na nuca de
Maraly e virou o rosto dela em direção a Brogman. “Essa não é Kalmar
Wingfeather, como prometido.”
Os olhos de Brogman voltaram-se nervosamente para o alçapão.
“Não é tão fácil quanto você imagina enganar os Fangs Cinzentos”,
esclareceu Timber. “Recebi notícias esta manhã, via corvo, de que Gammon
tinha apenas duas das joias. Obrigado, Urland.”
O homem chamado Urland afastou-se dos outros kimerianos. Os homens
rosnaram para ele como se eles mesmos fossem Fangs.
“Você?” Brogman cuspiu. “Gammon sabia que havia espiões, mas
você?”
Urland parecia um rato encurralado.
“Não é apenas Urland”, afirmou Timber. “Existem vários. Gnag conhece
os detalhes de sua rebelião há anos. Gammon não é um líder tão astuto
quanto pensa que é.”
Timber rosnou e mostrou os dentes para o guerreiro, depois virou-se e
comandou: “Triffin! Traga dois soldados e leve esses prisioneiros”.
Três Fangs Cinzentos forçaram passagem entre os kimerianos.
Janner esperou que Podo quebrasse suas amarras, ou que Peet
aparecesse, ou mesmo que uma revoada de marbutres esbravejasse e criasse
a distração de que eles precisavam para fazer alguma coisa. Mas, desta vez,
não haveria salvador. Desta vez, eles foram pegos — não apenas por um
inimigo, mas dois.
Leeli encostou a cabeça em Nia. Podo se virou e olhou para sua família.
Ele acenou com a cabeça para Oskar e Maraly e encolheu os ombros. Não
parecia triste, mas também não parecia pronto para lutar. O velho pirata
podia ver, Janner imaginou, que não havia opções e era melhor irem sem
contestação. O fato de Tink, pelo menos, estar livre trouxe alguma alegria a
Janner.
Três Fangs Cinzentos marcharam direto para Podo e jogaram um saco
sobre sua cabeça, então fizeram o mesmo com Oskar e Nia. O coração de
Janner disparou. Toda a corrida, toda a luta e o apego desesperado à
esperança de que um dia pudessem escapar — tudo acabou chegando a esse
ponto. Estavam amarrados, amordaçados e sendo encapuzados na
companhia daqueles que deveriam protegê-los.
“Paralisa-te, digo eu!” Ordenou uma voz vinda da escada. “Não persistas
em tuas peludas transações! Célere!”
O Fang Cinzento prestes a colocar o saco sobre a cabeça de Leeli parou
de repente. Suas orelhas se achataram, e ele rosnou.
Janner se virou e viu uma figura de capa pular da escada do túnel. Ele
estava vestido de preto da cabeça aos pés e brandia uma espada no ar como
se estivesse espantando moscas.
“O Espa-pa-padachim Flo-flo-floreado!” Gaguejou o Fang escamado.
Brogman puxou uma tira de couro que pendia dos pulsos de Podo e suas
amarras caíram na neve. Janner sentiu que suas próprias amarras também
caíram, e viu que cada um dos nós que os prendiam foi solto pela mesma
tira de couro. Ele e os outros libertaram as mãos e arrancaram as mordaças.
“Arrá!” Bradou o Espadachim Floreado. “Sou eu, sou eu! Maisquereria
eu que, em mim, germinassem pelos e presas antes de permitir que esta tua
cútis afligida por pulgas mal fizesse a tais seres, as Joias da Ilha Brilhante!
Hoje é o tempo de nosso poderoso triunfo! Hoje dá-se a fruição de nossas
mui cintilantes esperanças à luz amarelada do sol deste brilhante e nevado
dia nas planuradas Pradarias de Gelo! Basta!”
Quando ele terminou de discursar, não havia nenhum som nas Pradarias
de Gelo, exceto o assobio do vento. Milhares de Fangs Cinzentos, um
punhado de guerreiros kimerianos e os Igibys tentavam decifrar em suas
mentes o que raios o Espadachim Floreado acabara de dizer.
“Gammon?” Janner perguntou, hesitante.
“Arrá!” O Espadachim Floreado sorriu.
“Quem é esse idiota?” Timber exigiu saber. “O que está acontecendo?”
“Kimerianos!” Berrou o Espadachim Floreado. “À guerra! Libertem o
rio!”
Um trovejante estrondo soou e o chão tremeu. Timber girou ao redor,
exaurido demais para decidir se deveria atacar Gammon, apreender as Joias
de Anniera ou comandar suas tropas.
Janner observou enquanto as muitas colunas de Fangs Cinzentos saíam
de formação e se espalhavam. Blocos enormes e irregulares de gelo
explodiram, fazendo os lobos voarem pelo ar, centenas deles desaparecendo
sob a superfície. Quando as enormes porções de gelo caíam, grandes jatos
de água explodiam e rompiam ainda mais partes do gelo. Fendas
ensurdecedoras apareceram ao redor deles, e logo Janner viu a forma do
grande rio serpenteando, em uma curva fechada e graciosa, ao redor de
Kimera.
Vários alçapões se abriram, alguns diretamente abaixo dos Fangs
Cinzentos mais próximos da cidade. Saindo da neve e adentrando para o
meio das fileiras de lobos bípedes fluíam milhares de skreenianos gritando,
homens e mulheres jovens, vestidos com armaduras de prata brilhante e
empunhando espadas. Entre eles apareceram galinóis, atrelados a bogãs,
quatro de cada vez. Guerreiros estavam abaixados nos bogãs, com rédeas
numa das mãos e espadas na outra, enquanto os grandes pássaros puxavam-
nos para a luta, atacando os Fangs Cinzentos ao correrem.
O choque de aço cortou o ar, e a Batalha de Kimera começou.
Timber rosnou para Gammon e apontou sua espada para ele. Vários
guerreiros kimerianos próximos correram para o lado de seu líder e
apontaram suas lâminas para o Fang Cinzento. Urland ficou entre os Fangs
e os kimerianos, com sua espada desembainhada, tremendo de medo. Ele
parecia tão surpreso quanto os demais com o fato de Gammon e o
Espadachim Floreado serem a mesma pessoa.
Timber olhou para o caos de seu exército, uivou e saiu correndo,
berrando ordens, enquanto os kimerianos lutavam para lançar seus Fangs
nas águas geladas. Muitos dos Fangs Cinzentos já haviam se recuperado do
choque inicial, e estava claro que, em pouco tempo, Timber os teria sob
controle para contra-atacar.
“Dê-me uma espada!” Podo bradou. A febre da guerra estava sobre ele.
“Não! Deveis apressar-vos!” Ordenou o Espadachim Floreado.
“Procedei, amigos, para o vosso ancoradouro!”
“Fale claramente, Gammon!” Nia retrucou. “Não temos tempo!”
“Desculpe”, disse Gammon com certo embaraço. Ele se ajoelhou diante
de Janner e tirou a máscara. “Desculpe-me por todos os segredos, rapaz. Eu
sabia que havia espiões e precisava que os Fangs acreditassem que
pretendia entregá-lo. Não sabia em quem confiar, e muita coisa poderia dar
errado se eles me descobrissem. Maraly, lamento especialmente por você.
Se ainda quiser ficar, gostaria que ficasse comigo. Há lugar para você aqui.”
Os olhos de Maraly eram adagas. “Se não, desejo-lhe uma boa jornada
através do Mar Sombrio da Escuridão.”
“O quê?” Ela perguntou, surpresa.
“É para lá que vocês estão indo. Um navio está esperando. Esses
annierenses não podem ficar aqui. Eles só me trariam mais problemas, e
tenho a sensação de que, assim que forem embora, a preocupação de Gnag
com Skree irá com eles. Não acho que os Fangs irão embora sem lutar, mas
não acho que lutarão com tanto empenho se as Joias de Anniera tiverem
partido. Então providenciei uma tripulação e passagem para onde o velho
marinheiro quiser ir.”
“Há suprimentos suficientes para chegar a Vales Verdes?” Interpelou
Nia.
“O navio está bem abastecido. Todas as suas coisas também estão lá.
Não sei como essa batalha terminará, minha senhora. Então, eu já teria
partido, fosse vocês. Decidam para onde ir depois de entrar na água.”
“Nós vamos ficar e lutar, Gammon!” Podo rosnou.
“Não, ele está certo, papai”, disse Nia. “Este não é o lugar para as
crianças.”
Uivos preenchiam o ar. Timber e uma companhia de Fangs avançavam a
toda velocidade para o pequeno bando de guerreiros que cercava os Igibys.
“Não há tempo”, urgiu Gammon com uma piscadela para Janner.
“Tenham uma boa viagem. Confio que você ainda se lembre de como
velejar, meu velho.”
Um guerreiro avançou, ajoelhou-se atrás dos Igibys e pescou duas tiras
de couro para fora da neve. “Serei seu condutor”, afirmou. Era Errol, o
kimeriano que levara Janner para a cela.
“Condutor?! Condutor de quê?!” Berrou Podo. “Não! Eu não posso!”
“Agora!” Gritou Gammon, e um baque soou aos pés de Janner.
“Maraly?” Gammon estendeu a mão. Ela hesitou por uma fração de
segundo, mas a pegou. Janner sorriu para ela, e quando ela sorriu de volta,
ele viu não uma Marginal, mas uma garota que havia encontrado um lar.
“Gammon, dê-me uma espada! Eu não posso ir para o mar!” Bradou
Podo, com verdadeiro medo em sua voz.
“Nas palavras de...” começou Oskar.
Então o chão caiu.
O nariz do bogã escondido na neve sob os pés deles mergulhou para
dentro de um buraco escuro. Oskar desabou, levando os Igibys com ele, e
todos caíram em um emaranhado de braços e pernas no bogã, atrás de Errol,
enquanto este disparava por um túnel escorregadio em direção ao mar.
61
A Batalha de Kimera
Fúria Ancestral
O Troféu de Hulwen
A Última Viagem
de Podo Helmer
Will Usurpador
Will Usurpador, Will Usurpador
Debaixo de sua cama, nos seus pés a respirar,
Espera seu sono vir pra em sua mente se esgueirar;
Assombra, então, os seus sonhos até morrer você desejar,
Na colina do cemitério sob o solo de terror
Capítulo 1
1 Em Anniera, o segundo filho nascido, não o primeiro, é o herdeiro do trono. O filho mais velho é
um Guardião do Trono, encarregado da honra e responsabilidade de proteger o rei acima de todos
os outros. Embora isso crie muita confusão entre crianças comuns que um dia descobrem que são,
na verdade, a família real vivendo no exílio (veja Nos Limites do Mar Sombrio da Escuridão),
por muitas eras o povo de Anniera achou que era um bom sistema. O rei nunca ficava sem um
protetor, e o Guardião do Trono ocupava um lugar de grande honra no reino.
2 Em Kistamos, o último dia oficial do verão é anunciado pela passagem do fendril solitário, um
pássaro dourado gigante, cuja envergadura lança cidades inteiras em uma emocionante cintilação
de sombra, enquanto circunda o planeta em uma longa espiral ascendente. Quando atinge o polo
norte de Kistamos, hiberna até a primavera e, em seguida, inverte sua jornada.
Capítulo 2
1 Addie Shooster era, de fato, bastante perfumada, pelos padrões humanos. Sua culinária era elogiada
em Glipwood como a melhor de Skree, e quando não cheirava a assado e totatas ou caldeirada de
queijo, tinha o cuidado de aplicar perfume de pétalas de flores em abundantes quantidades ao
pescoço e aos braços. Esse perfume é, provavelmente, a essência à qual o Fang se referia.
2 Joe se lembrou da barganha de Nia Igiby com o falecido Comandante Gnorm, de preparar-lhe
semanalmente um rocambole de vermes. Isso não apenas havia resgatado seus filhos da prisão da
cidade e da Carruagem Negra, mas também lhes dado um certo grau de imunidade perante os
Fangs — que eram preguiçosos demais para cozinhar e que valorizavam essas refeições quase
tanto quanto ouro, joias e assassinatos.
Capítulo 3
1 . Bambolhões! Ai!
2 . Três Assuntos Nobres e Grandiosos: Palavra, Forma e Canção. Algumas pessoas
tolas acreditam que existe um quarto Assunto Nobre e Grandioso, mas esses cientistas estão
terrivelmente enganados.
3 . De Helba Grounce-Miglatobe, uma bem conhecida psicóloga que alegou ter sido
ridicularizada excessivamente quando criança e, como tal, era uma especialista — segundo seu
próprio livro — no campo da “malvadeza e desacatos”.
Capítulo 6
1 Da Criaturapédia de Pembrick: “Evite as ravinas e sorvedouros da Floresta Glipwood a todo custo.
É geralmente sabido que o baratodonte voraz põe sua armadilha em tais lugares. Mas o
baratodonte voraz à espreita, sob as folhas e galhos reunidos no fundo da depressão, é apenas um
dos perigos para os imprudentes exploradores de ravinas. O doce perfume emanado pelo
baratodonte voraz fêmea remete alguns animais a um transe temperbólico e leva-os
irresistivelmente ao baratodonte, à espreita. Não é incomum encontrar, reunida no barranco, uma
considerável quantidade de criaturas letais presas, aguardando o retorno do baratodonte voraz das
profundezas da terra, onde cuida de seus filhotes”.
Capítulo 7
1 Para evitar que a presa escape. Essa é apenas uma das muitas características mortais da vaca-
dentada skreeniana. Veja a ilustração em Nos Limites do Mar Sombrio da Escuridão, página 284.
Capítulo 8
1 Os espinhos do verdugo-espinhento têm pouco veneno. Sua principal função é a de defesa, embora
os verdugos sejam conhecidos por atacar em bando para conseguirem derrubar animais maiores.
O verdugo-espinhento tem, é claro, dentes muito afiados.
Capítulo 17
1 Ó holoré, deita-te baixo
Holoél escuro nas Profundezas
Abaixo da terra você vai
Holoré vai rápido dormir
Levanta novamente holoré agora
Abundante primavera holoél
Torna verde o ramo moribundo
Levanta a rocha onde Yurgen caiu
(Veja o Livro 1, p. 53)
Capítulo 19
1 Eremund foi um Guardião do Trono em 54 da Terceira Época. Quando a Rainha Suprema Nayani,
sua irmã mais nova, foi sequestrada por piratas de Symia, ele passou por muitas provações para
trazê-la de volta. Navegou pelos limites de todos os mapas em busca dos piratas e, anos depois,
retornou com a rainha ao seu lado. Sua coragem era rara, mesmo entre annierenses, e dizia-se que
seus olhos eram dourados e brilhavam no escuro como velas. Vários livros detalhando suas
façanhas estão preservados na Grande Biblioteca do Castelo Rysen. Veja A Eremíada, traduzido
por Hureman Perdus (Symar House Publicações), p. 345.
2 Embora pouco conhecida fora da Ilha Brilhante, Alma Hidronimbo foi uma dos muitos poetas
annierenses cujo trabalho era aclamado como revolucionário porque rimava e seguia uma rígida
forma chamada pentâmetro ba-dum-ba-dum.
3 Para uma amostra de um poema em valês sobre o temido Will Usurpador, veja Apêndices, p. 330.
Capítulo 23
1 Na cultura Marginal, o líder do clã sempre carrega um pequeno item significativo para ele ou ela,
chamado de totem. Se outro Marginal conseguir roubar o totem, ele ou ela torna-se o novo líder
do clã, enquanto permanecer em sua posse. Claro, se um Marginal falhar em uma tentativa de
roubar o totem, o líder do clã é livre para aplicar qualquer punição que julgar apropriada ou
aprazível.
Capítulo 27
1 Muito antes da Grande Guerra, os Marginais e os cavadopolienses haviam feito uma enorme
bagunça, principalmente porque a Dinastia Torr optou por ignorá-los. Sharn, o Torr, fez uma
tentativa de limpar e restaurar a ordem na Margem, mas os Marginais eram lutadores ferozes e,
sem a honra dos soldados, quase impossíveis de derrotar em batalha. Durante anos a guerra foi
travada. Sharn e Urra-Punho, o Rei Marginal, concordaram com uma trégua temporária durante a
Batalha da Curva Ocidental. Pouco depois, Urra-Punho e seus Impetuosos romperam a muralha
do Reduto Ocidental no meio da noite e assassinaram os mais altos escalões do exército Torr —
uma ação desonrosa até mesmo pelos padrões Marginais, mas eficaz. Embora Urra-Punho tenha
perdido a maioria de seus homens, a perda para Sharn e seus soldados foi maior. O Exército de
Torrboro recuou e deixou os cidadãos de Cavadópolis lidarem com a Margem por conta própria.
Veja Uma História do Blapp (Sórdido), de Grindenwuld Hollisra
(Rio Blapp Impressões), p. 401.
Capítulo 30
1 Facas, é claro, eram proibidas.
Capítulo 33
1 Os mapas traziam grandes faixas em branco no extremo oeste de Skree, e ninguém sabia o que
havia à leste das Montanhas Picos-da-Morte. Essas áreas desconhecidas além das bordas dos
mapas eram chamadas de “os lugares além das bordas dos mapas”.
Capítulo 40
1 Veja Livro 1, p. 9.
Capítulo 64
1 Veja Livro 1, p. 53, em que Leeli canta junto com os dragões-marinhos.