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Copyright © 2009 by Andrew Peterson

Publicado originalmente sob o título: The Wingfeather Saga: North! Or Be Eaten

Copyright das ilustrações nos Apêndices © 2009 by Andrew Peterson / Copyright das ilustrações da
Criaturapédia © 2020 by Aedan Peterson / Copyright de todas as outras ilustrações do miolo © 2020
by Joe Sutphin

This translation published by arrangement with WaterBrook, an imprint of Random House, a division
of Penguin Random House LLC

Editor: Mauricio Fonseca


Tradução: Mauricio Andrade
Preparação de Texto: Ingrid Fonseca
Revisão de Prova: Cesare Turazzi
Design da Capa: Brannon McAllister
Arte da Capa: Nicholas Kole
Adaptação e Diagramação: Wirley Corrêa
Versão eBook: Tiago Dias

PIRATARIA É PECADO E TAMBÉM UM CRIME


RESPEITE O DIREITO AUTORAL
O uso e a distribuição de livros digitais piratas ou cópias não autorizadas prejudicam o
financiamento da produção de novas obras como esta. Respeite o trabalho de ministérios como a
Editora Trinitas.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Peterson, Andrew

A saga Wingfeather : norte! ou seja devorado / Andrew Peterson ; [tradução Mauricio


Andrade]. -- São Paulo : Editora Trinitas, 2022. -- (A saga Wingfeather ; 2)

Título original: The Wingfeather saga


ISBN 978-65-89129-30-1

1. Ficção de fantasia 2. Literatura infantojuvenil - I. Andrade, Mauricio. II. Título III.


Série.

22-107647
CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura infantil 028.5


2. Ficção : Literatura infantojuvenil 028.5

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

Todos os direitos reservados à:


Editora Trinitas LTDA
São Paulo, SP
www.editoratrinitas.com.br
Endossos à
Saga Wingfeather

“Amo toda a aventura, toda essa engenhosidade selvagem e,


sobretudo, amo toda a paixão nos livros de Andrew. Ele é um
poeta, um mestre em contar histórias. Meu desejo sincero é ler tudo
que Andrew escreve.”
— Sally Lloyd-Jones, autora de best-sellers infantis no New York
Times

“Uma experiência que a sua família jamais esquecerá. Trata-se de


uma leitura que não me canso de recomendar.”
— Sarah Mackenzie, autora do livro A Família Leitora (Editora
Trinitas) e fundadora do podcast Read-Aloud Revival

“A Saga Wingfeather é espirituosa, inteligente, imaginativa e cheia


de paixão. Recomendo com entusiasmo para a faixa etária entre 6–
14 anos, ainda mais se o seu filho já leu As Crônicas de Nárnia e
está em busca de outra saga deslumbrante.”
— Anne Bogel, fundadora do blog Modern Mrs. Darcy e
apresentadora do podcast What Should I Read Next?

“Um épico bravamente imaginativo, maravilhosamente irreverente;


um épico que reluz com perspicácia e sabedoria — e, para ficar
ainda melhor, uma obra que ensina a lidar com thwaps, Fangs e,
ocasionalmente, com as estranhas vacas-dentadas.”
— Allan Heinberg, escritor, produtor na série Grey’s Anatomy
(ABC), roteirista do filme Mulher-Maravilha (WB) e um dos
criadores da HQ Jovens Vingadores (Marvel)

“Talento puro!”
— Phil Vischer, criador da série animada Os Vegetais
Para Aedan, Asher e Skye.
Lembrem-se de quem vocês são.
SUMÁRIO

Um | O Fendril Solitário
Dois | Quarto Oito de A Única Pousada (A Única Pousada de Glipwood)
Três | Dois Planos
Quatro | Palavras Apropriadas de Ubinious, O Sui Generis
Cinco | Um Traidor nas Árvores
Seis | A Ravina Circular
Sete | Monstros na Toca
Oito | Uma Pontada de Desdém
Nove | O Baratodonte Voraz
Dez | O Grande Rio Blapp
Onze | O Fim da Estrada
Doze | Trovões, Borrifos e Pedras
Treze | A Ponte Miller
Quatorze | A Última Torre
Quinze | Uma Canção para Nugget, o Valente
Dezesseis | As Joias e os Dragões
Dezessete | Um Aliado em Cavadópolis
Dezoito | Velhas Feridas e Nova Cura
Dezenove | Will Usurpador e os Primeiros Livros
Vinte | No Salão de Lamendron
Vinte e Um | O Pesadelo de Podo
Vinte e Dois | Os Marginais da Curva Oriental
Vinte e Três | Urra-Punho, O Rei Marginal
Vinte e Quatro | Mãos Rápidas e Pés Mais Rápidos Ainda
Vinte e Cinco | Ataquebol na Neblina
Vinte e Seis | Ao Longo da Estrada do Rio
Vinte e Sete | Uma Ferida Sobre a Face da Terra
Vinte e Oito | Oh! Anyara!
Vinte e Nove | T.A.N.E.G. no Covil dos Marginais
Trinta | As Últimas Palavras de Sneem
Trinta e Um | No Beco da Viúva Rechonchuda
Trinta e Dois | Ronchy McHiggins Faz uma Descoberta
Trinta e Três | A Ruptura
Trinta e Quatro | Um Observador nas Sombras
Trinta e Cinco | As Desgrenhadas e os Esfarrapados
Trinta e Seis | Um Arranjo Odioso
Trinta e Sete | Na Boca do Monstro
Trinta e Oito | Olhos Brilhantes num Lugar Escuro
Trinta e Nove | Esben Sabóvel, Ferramenta de Fábrica
Quarenta | O Caixão
Quarenta e Um | Quatro Maçãs e Um Plano
Quarenta e Dois | Uma Negociação Nefasta
Quarenta e Três | Três Dias na Escuridão
Quarenta e Quatro | Montanhas e Algemas
Quarenta e Cinco | O Destino de Sara Cobbler
Quarenta e Seis | O Covil Marginal
Quarenta e Sete | Uma Mudança de Coração
Quarenta e Oito | As Gaiolas
Quarenta e Nove | A Fortaleza das Phoob
Cinquenta | O Nariz da Bruxa
Cinquenta e Um | A Canção das Antigas Pedras
Cinquenta e Dois | O Bambolhão e o Lago de Ouro
Cinquenta e Três | Uma Revoada de Marbutres
Cinquenta e Quatro | As Pradarias de Gelo
Cinquenta e Cinco | A Rendição de Artham Wingfeather
Cinquenta e Seis | Dois Tipos de Vergonha
Cinquenta e Sete | Abelhas e Ossos Velhos
Cinquenta e Oito | A Barganha de Gammon
Cinquenta e Nove | A Transformação
Sessenta | Segredos na Neve
Sessenta e Um | A Batalha de Kimera
Sessenta e Dois | Fúria Ancestral
Sessenta e Três | O Troféu de Hulwen
Sessenta e Quatro | E o Mar Ficou Vermelho
Sessenta e Cinco | A Última Viagem de Podo Helmer

Apêndices
Sobre o Autor
Notas
1

O Fendril Solitário

Vaca-dentaaaada!” Berrou Podo enquanto batia com um pedaço de pau


contra a árvore mais próxima. Os olhos do velho pirata brilhavam, e ele
ficou na base da árvore como o capitão de um navio no mastro. “Vaca-
dentada! Rápido! Para a casa da árvore!”
Não muito longe, uma flecha passou zunindo por entre alguns cipós e
atingiu uma prancha de madeira decorada com o desenho a carvão de um
Fang rosnando. A flecha se cravou na boca do Fang, a haste ainda vibrando
com o impacto. Tink abaixou seu arco, semicerrou os olhos para ver se
havia acertado o alvo e ignorou completamente seu avô.
“Vaca — Excelente tiro, rapaz — Dentaaaada!”
Podo golpeava a árvore enquanto Nia subia apressadamente a escada de
corda que levava ao alçapão no chão da casa da árvore de Peet, o Homem-
Meia. Uma mão emeiada se abaixou e puxou Nia pela abertura.
“Obrigada, Artham”, ela agradeceu, ainda segurando sua mão. Nia o
olhou nos olhos e ergueu o queixo, esperando que ele respondesse.
Peet, o Homem-Meia, cujo nome verdadeiro era Artham P. Wingfeather,
olhou de volta para ela e engoliu em seco. Um de seus olhos estremeceu.
Ele parecia querer fugir, como sempre fazia quando ela o chamava pelo
primeiro nome, mas Nia não largou sua mão.
“D-d-d-de nada... Nia.” Cada palavra foi um esforço, especialmente o
nome dela, mas ele parecia menos louco do que costumava ser. Apenas uma
semana antes, a simples menção do nome “Artham” o lançava num frenesi
— ele gritava, deslizava pela escada de corda e desaparecia na floresta por
horas.
Nia soltou sua mão e olhou para baixo, através da abertura no chão, para
seu pai, que ainda batia na árvore e berrava sobre o ataque iminente de
vacas-dentadas.
“Vamos, Tink!” Insistiu Janner.
Uma aljava de flechas sacudia sob um de seus braços, enquanto ele
corria em direção a Leeli, que estava montada em seu cachorro. Nugget —
cujo tamanho semelhante ao de um cavalo o tornava tão perigoso quanto
qualquer vaca-dentada na floresta — ofegava e abanava o rabo. Tink largou
o arco com relutância e o seguiu, olhando a floresta em busca de sinais de
vacas-dentadas. Os irmãos ajudaram uma Leeli de olhos arregalados a
descer do cachorro, e os três correram para a escada.

“Vacas, vacas, vacas!” Podo gritava.


Janner seguiu Tink e Leeli escada acima. Quando todos estavam seguros
lá dentro, Podo se lançou pela abertura e trancou o alçapão.
“Nada mal”, comentou Podo, parecendo satisfeito consigo mesmo.
“Janner, da próxima vez, você tem que apressar seus irmãos um pouco
mais. Se houvesse mesmo uma vaca nos atacando, poderia não ter havido
tempo de levá-los à escada, antes que os dentes gotejantes começassem a
rasgar a carne macia...”
“Papai, sério?” Nia questionou.
“... arrancando-a de seus ossos”, continuou ele. “Janner, se Tink for
teimoso demais para largar o que está fazendo, cabe a você encontrar uma
maneira de persuadi-lo, ouviu?”
As bochechas de Janner queimaram, e ele lutou contra o desejo de se
defender. Os treinamentos contra vaca-dentada eram uma ocorrência diária
desde a chegada deles à casa da árvore de Peet, e as crianças gradualmente
pararam de gritar de pânico sempre que os berros de Podo perturbavam a
floresta, sempre silenciosa.
Desde que Janner soube que era um Guardião do Trono, tentou assumir
com seriedade a responsabilidade de proteger o rei. As histórias de sua mãe
sobre a reputação impetuosa de Peet como Guardião do Trono em Anniera
deixavam Janner orgulhoso da antiga tradição da qual fazia parte.1 O
problema era que ele deveria proteger seu irmão mais novo, Tink, que, por
acaso, era o Rei Supremo. Não que Janner estivesse com inveja; ele não
tinha vontade de governar coisa alguma. Mas, às vezes, parecia estranho
que seu irmão, magrelo e imprudente, fosse, de todas as coisas, um rei,
ainda mais o rei da lendária Ilha Brilhante de Anniera.
Janner olhou para a floresta pela janela, enquanto Podo continuava
falando monotonamente, contando-lhe sobre a responsabilidade de proteger
seu irmão, sobre os muitos perigos da Floresta Glipwood, sobre o que
Janner deveria ter feito de forma diferente durante o mais recente
treinamento da vaca.
Janner sentia falta de casa. Nos dias que se seguiram à fuga da cidade de
Glipwood e à chegada ao castelo de Peet, o senso de aventura de Janner
estava totalmente ligado. Ele vibrava com a ideia da longa jornada até as
Pradarias de Gelo, numa animação que mal o deixava dormir. Quando
dormia, sonhava com grandes extensões de neve sob estrelas tão nítidas e
brilhantes que, se tocadas, poderiam arranhar a pele.
Mas semanas se passaram — ele não sabia quantas — e seu senso de
aventura tinha adormecido profundamente. Janner sentia falta do ritmo de
vida no chalé. Sentia falta das refeições quentes, da lenta mudança da terra
conforme o passar das estações e da família de pássaros que se aninhava na
envergadura acima da porta, onde ele, Tink e Leeli inspecionavam os
pequenos ovos azuis toda manhã e toda noite; depois, o que viam eram os
filhotinhos e, então, um dia, olhavam com tristeza e admiração para o ninho
vazio, perguntando-se para onde os pássaros teriam ido. Mas aqueles dias
haviam passado tão certo quanto o verão, e, gostasse ou não, seu lar não era
mais o chalé. Também não era a casa da árvore de Peet. Ele não tinha mais
certeza se tinha uma casa.
Podo continuava falando, e Janner sentiu novamente aquela frustração
quente no peito de quando lhe diziam coisas de que ele já sabia. Mas
segurou a língua. Adultos não conseguiam evitar. Podo e sua mãe
martelariam a lição em sua cabeça de doze anos até que seus ouvidos
estivessem tinindo — e não adiantava lutar contra isso.
Ele sentiu a arenga de Podo chegando ao fim e se forçou a ouvir.
“... este lugar é perigoso, esta floresta. Muitos homens já foram
engolidos por alguma criatura só porque não estavam prestando atenção o
suficiente.”
“Sim, senhor”, anuiu Janner o mais respeitosamente possível. Podo
sorriu para ele e piscou, e Janner sorriu de volta, apesar de tudo. Ocorreu-
lhe que Podo sabia exatamente o que ele estivera pensando.
Podo se virou para Tink. “Um tiro realmente bom, garoto. E o desenho
do Fang naquela placa é um belo trabalho.”
“Obrigado, vovô”, agradeceu Tink. Seu estômago roncou. “Quando
podemos tomar o café da manhã?”
“Escute, rapaz”, começou Podo. Ele baixou as sobrancelhas grossas e
levantou um olhar severo para Tink. “Quando seu irmão disser para você
vir, você deixa de lado o que estiver fazendo, como se houvesse um
incêndio.” Tink engoliu em seco. “Siga aquele garoto pelos penhascos e
para o Mar Sombrio se ele lhe disser para fazê-lo. Você é o Rei Supremo, o
que significa que precisa começar a pensar em mais do que você mesmo.”
A irritação de Janner se esvaiu, assim como a cor do rosto de Tink. Ele
apreciava não ser o único com problemas, embora se sentisse um pouco
envergonhado com o prazer que sentiu ao ver Tink se contorcendo.
“Sim, senhor”, concordou Tink. Podo o olhou por tanto tempo que ele
repetiu: “Sim, senhor!”.
“Tudo bem com você, mocinha?” Podo se virou com um sorriso para
Leeli.
Ela assentiu com a cabeça e empurrou alguns de seus cabelos ondulados
para trás da orelha. “Vovô, quando iremos embora?”
Todos os olhos na casa da árvore se voltaram para ela, com surpresa. A
família tinha passado semanas em relativa paz na floresta, mas, com o
passar dos dias, essa questão ainda não discutida se mostrava cada vez mais
difícil de evitar. Eles sabiam que não poderiam ficar ali para sempre. Gnag,
o Sem-Nome, e os Fangs de Dang ainda aterrorizavam a terra de Skree, e a
sombra que lançavam cobria ainda mais de Kistamos a cada dia que
passava. Era só uma questão de tempo antes que aquela sombra caísse
novamente sobre os Igibys.
“Precisamos partir logo”, Nia afirmou, olhando na direção de Glipwood.
“Quando as folhas caírem, ficaremos expostos. Não é, Artham?”
Peet se sobressaltou ao ouvir seu nome e esfregou a nuca com uma das
mãos por um momento, antes de falar. “O inverno frio chega, as árvores
ficam nuas, as pontes são fáceis de ver, sim. Nós deveríamos irvavelmente
pro... provavelmente ir.”
“Para as Pradarias de Gelo?” Perguntou Janner.
“Sim”, respondeu Nia. “Os Fangs não gostam do frio. Todos nós já
vimos como eles são mais lentos no inverno, mesmo aqui.
Esperançosamente, em um lugar tão congelado quanto as Pradarias de Gelo,
Fangs serão escassos.”
Podo grunhiu.
“Sei o que você pensa e não é uma das nossas opções”, sentenciou Nia,
categoricamente.
“O que o vovô pensa?” Tink perguntou.
“Isso é entre mim e o seu avô.”
“O que ele pensa?” Janner pressionou, percebendo que soava mais como
um adulto do que o normal.
Nia olhou para Janner, tentando decidir se deveria lhe dar uma resposta.
Ela havia guardado tantos segredos das crianças, por tanto tempo, que ficou
claro para Janner que ela ainda achava difícil ser franca com eles. Mas as
coisas eram diferentes agora. Janner sabia quem era, quem era seu pai, e
tinha uma vaga ideia do que estava em jogo. Ele tinha até percebido que sua
opinião era importante para sua mãe e seu avô. Ser um Guardião do Trono
— ou, pelo menos, saber que era um Guardião do Trono — mudara a
maneira como eles o consideravam.
“Bem...”, Nia hesitou, ainda sem saber o quanto dizer.
Podo decidiu por ela. “Acho que precisamos fazer mais do que chegar às
Pradarias de Gelo e nos escondermos como uma família verruguenta de
sapos-toupeiras, esperando que as coisas aconteçam conosco. Se Oskar
estava certo sobre haver uma colônia inteira de pessoas, ao norte, que não
gostam de viver sob as botas dos Fangs, e se ele estiver certo sobre
quererem lutar, então eles não precisam de nós para se prepararem e
enviarem esses Fangs de volta para Dang com suas caudas em chamas. Eu
digo que as joias precisam encontrar um navio e ir para casa.” Ele se virou
para a filha. “Pense nisso, moça! Vocês poderiam navegar de volta, através
do Mar Sombrio, pra Anniera...”
“O que você quer dizer com ‘vocês’?” Tink questionou.
“Nada”, respondeu Podo com um aceno de mão. “Nia, você poderia ir
pra casa. Pense nisso!”
“Não sobrou nada lá para nós”, argumentou Nia.
“Tá bom! Esqueça Anniera. E que tal Vales? Você não vê Vales Verdes
há dez anos, e, pelo que sabemos, os Fangs nem mesmo colocaram os pés
lá! A família de sua mãe pode ainda estar lá, pensando que você morreu
com o resto de nós.”
Nia fechou os olhos e respirou fundo. Peet e as crianças ficaram olhando
para o chão. Janner não tinha pensado no fato de que ele poderia ter uma
família distante, morando nas colinas de Vales Verdes, do outro lado do
mar.
Ele concordou com a mãe que parecia tolice tentar fazer tal viagem.
Primeiro, eles teriam que passar pelos Fangs em Torrboro. Depois seguir
para o norte, pelas Montanhas Rochosas, até as Pradarias de Gelo. Mas,
agora, Podo estava falando sobre cruzar o oceano? Janner não estava
acostumado a pensar no mundo nesses termos.
Nia abriu os olhos e falou. “Papai, não há nada para fazermos agora,
exceto encontrarmos nosso caminho para o norte. Não precisamos
atravessar o mar. Não precisamos voltar para Anniera. Não precisamos ir
para Vales Verdes. Precisamos ir para o norte, longe dos Fangs. Isso é tudo.
Vamos levar essas crianças em segurança para as Pradarias e então
terminaremos essa discussão.”
Podo suspirou. “Certo, moça. Chegar lá, por si só, já causará problemas
suficientes”. Ele fixou os olhos em Peet, que estava de cabeça para baixo no
canto. “Suponho que você virá conosco, então?”
Peet engasgou e caiu no chão, depois se colocou de pé num salto e bateu
continência para Podo. Leeli riu.
“Sim, senhor”, reagiu ele, imitando o rosnado rouco de Podo. “Estou
pronto para ir quando os Featherwings estiverem prontos. Inclusive, sei
como chegar às Pradarias de Gelo. Estive lá antes, muito tempo atrás — não
há muito para ver além de gelo e pradarias e gelo todo branco e ofuscante e
frio. É muito frio lá. Gelado.” Peet respirou fundo, feliz, e bateu palmas
com suas mãos emeiadas. “Tudo bem! Então, vamos!”
Ele abriu o alçapão e saltou pela abertura antes que Podo ou os Igibys
pudessem detê-lo. As crianças correram para o alçapão e viram-no deslizar
pela escada de corda e marchar em direção ao norte. Do arco formado pelo
gigantesco sistema de raízes da árvore em que ele normalmente dormia,
Nugget levantou suas grandes orelhas molengas sem erguer a cabeça de
suas patas e assistiu a Peet desaparecer na floresta.
“Ele vai voltar quando perceber que não estamos com ele”, comentou
Leeli com um sorriso. Ela e Peet passavam horas juntos, às vezes lendo
histórias, outras com ele dançando ao redor, dando grandes golpes com suas
mãos emeiadas, enquanto ela tocava sua harpa eólica. A presença de Leeli
parecia ter um efeito medicinal em Peet. Quando estavam juntos, seus
tremores cessavam, seus olhos paravam de revirar e sua voz assumia um
tom mais profundo e menos tenso. Seu forte e agradável som ajudava
Janner a acreditar nas histórias de sua mãe sobre as façanhas de Artham P.
Wingfeather em Anniera, antes da Grande Guerra.
O único aspecto negativo da amizade entre Leeli e Peet era que deixava
Podo com ciúmes. Antes de Peet, o Homem-Meia, entrar em suas vidas,
Podo e Leeli compartilhavam um vínculo especial, em parte porque cada
um deles tinha apenas uma perna funcional, e em parte por causa da antiga
afeição que sempre existiu entre avôs e netas. Nia disse uma vez a Janner
que também era, em parte, porque Leeli se parecia muito com sua avó,
Wendolyn.
Enquanto as crianças assistiam a Peet marchar para longe, uma rápida
sombra passou sobre a casa da árvore, seguida por um alto e agradável som,
como o retinir de um enorme sino batido por um minúsculo martelo.
“O fendril solitário”,2 constatou Leeli. “Amanhã é o primeiro dia do
outono.”
“Papai”, chamou Nia.
“Hã?” Podo olhava pela janela, na direção em que Peet tinha ido.
“Acho que é hora de partirmos”, ela concluiu.
Tink e Janner se entreolharam e sorriram. Todas as saudades de casa
desapareceram. Após semanas de espera, a aventura estava de volta.
2

Quarto Oito de A Única


Pousada (A Única Pousada de
Glipwood)

Depois de voar sobre a casa da árvore de Peet, a sombra do fendril solitário


passou sobre Joe Shooster, proprietário de A Única Pousada (a única
pousada de Glipwood), no momento em que estava deitado, preso de bruços
com o rosto em terra, lutando contra as lágrimas. Da porta da frente da
pousada, a esposa de Joe, Addie, testemunhava horrorizada. Suas mãos
cobriram a boca para abafar um grito, quando o Fang enfiou a bota com
mais força nas costas de Joe.
O dia estava claro e ventoso. O vento levava folhas e ervas daninhas
pelas ruas, fazendo com que se acumulassem nos cantos dos edifícios
destruídos da cidade. Várias semanas atrás, a cidade de Glipwood havia
sido assolada por uma poderosa tempestade que desceu sobre Skree, como
uma pisada apocalíptica da bota do Criador. A Floricultura da Ferínia havia
perdido seu telhado, e a chuva inundou o prédio. Algumas estruturas foram
arrasadas, deixando partes de Glipwood em escombros. Outras, como A
Única Pousada, a Livros e Vãos e a cadeia da cidade, sobreviveram, tristes
lembranças da cidade que antes repousava tranquila e pacífica à beira dos
penhascos.
Joe fez uma careta de dor e conseguiu falar. “Não, meu senhor, eu não
sei nada deles. Eu juro.”
O Fang acertou a cabeça de Joe com a coronha de sua lança — uma
pancada forte, mas não forte o suficiente para deixá-lo inconsciente. Um
grito escapou da boca de Addie, e o Fang, girando subitamente a cabeça,
fixou nela um olhar frio. Joe sentiu a cauda úmida e fria arrastar-se sobre
ele quando o Fang passou por sobre seu corpo e subiu os degraus em frente
à porta da pousada. Addie gritou quando o Fang irrompeu pelas portas
oscilantes e a agarrou pela nuca.
“Então, você, mulher fedorenta”, o Fang rosnou, tapando o nariz
arrebitado e sentindo náusea.1 “Olhe nos olhos do velho Higgk e diga ssse
você viu ou ouviu falar dos Igibys ou daquele homem asqueroso que
cuidava da livraria, Oskar Reteep.”
Addie ficou pálida e trêmula, incapaz de falar ou tirar os olhos das
longas presas projetando-se para fora da boca da criatura, exalando veneno.
“Essa aí é inútil, Higgk”, gritou outro Fang, que assistia da rua,
entusiasmado. “Veja o que ela faz quando você a morde.”
“Sim!” Incitou outro. “É para isso que serve a gosma nos seus dentes,
não é?”
Joe Shooster ajoelhou-se e juntou as mãos. “Por favor, senhores! Não
machuquem minha Addie. Ela não sabe de nada. Nem eu. Eu juro!” Joe
tentou manter sua voz firme, mas ver o rosto pálido de sua esposa tão perto
dos dentes do Fang tornava isso impossível. “Por favor.”
Os Fangs de Dang estavam muito satisfeitos de ver Joe e sua esposa se
contorcendo e começaram a incitar Higgk para que mordesse a mulher.
Higgk sorriu e abriu a boca. Suas presas se alongaram e minúsculos jatos de
veneno esguicharam delas, atravessando a blusa de Addie com queimaduras
fumegantes e sibilantes. Os olhos de Addie rolaram para trás, suas
pálpebras tremeram, e Joe suplicou para que ela estivesse inconsciente
quando o Fang a mordesse. Ela tornou-se lânguida e cedeu às garras da
criatura.
Um longo apito veio dos fundos de A Única Pousada. Joe vagamente o
reconheceu como a chaleira no fogão da cozinha.
Os olhos de Addie piscaram. “O chá está pronto”, ela balbuciou e, num
lampejo de inspiração, Joe saltou sobre seus pés.
“Esperem!” Ele gritou.
“O quê?” Higgk ladrou. “Você, de repente, ssse lembrou do paradeiro
dos Igibysss?”
“Não, senhor, mas se minha Addie se for, quem vai cozinhar o mingau
melequento pra você? Ninguém mais em Skree consegue fazer uma panela
dele como Addie Shooster. E quanto à torta de mosquito? E caldo de goela
com lascas de unhas?”2
Higgk hesitou. Os outros Fangs pararam com a zombaria e inclinaram a
cabeça de lado, considerando Joe e Addie sob uma nova luz. Exceto pelo
apito da chaleira, havia silêncio. Joe enxugou as mãos no avental e fitou os
olhos de sua esposa. Ela encontrou alguma força nisso e disse: “M-minha
caçarola de nariz-de-bicho é terrivelmente boa, senhor.”
“Tudo bem”, resmungou Higgk.
Ele soltou Addie, e ela caiu no chão desajeitadamente. Joe correu para
ela e deu um beijo em sua testa.
“Eca”, murmurou o Fang. “Se eu não tiver um prato daquela caçarola de
nariz-de-bicho ao pôr do sol, vou terminar o que comecei.” Os Fangs
sibilaram, rosnaram e riram em concordância. “Se vocês sssouberem
alguma coisa sobre Reteep ou os Igibys e não contarem a Higgk, nenhum
tipo de comida vai sssalvar suas peles fedorentasss.”
Joe e Addie correram para a cozinha, onde começaram a criar uma
caçarola de nariz-de-bicho — nome que Addie havia inventado na hora. Ela
mandou Joe reunir tantos roedores quanto possível para que pudesse dar
início ao trabalho de remover seus pequenos narizes pretos.
Joe a beijou e agradeceu ao Criador por eles ainda estarem vivos. “Volto
em breve, amor”, avisou.
Ele pendurou o avental nas costas de uma cadeira e calçou as botas, mas
hesitou com a mão na maçaneta. Joe espiou pela janela que dava para o
quintal dos fundos: não viu nenhum Fang.
Em vez de sair, Joe subiu a escada da cozinha na ponta dos pés até o
segundo andar da pousada. Deteu-se no topo e olhou para um corredor
cheio de portas.
Escutou. Ele ouvia vagamente os barulhentos Fangs nas ruas. Ouvia o
rangido do prédio antigo e as rajadas do vento forte lá fora. Joe se esgueirou
pelo corredor até o quarto oito e empurrou a porta.
O quarto oito continha uma cama ajeitada, uma bacia sobre uma cômoda
e uma mesa; cada peça do mobiliário era simples, mas resistente. Joe foi até
a janela e fez uma pausa, olhando para os destroços de Glipwood com uma
pontada de tristeza. Abaixo da janela estava o que havia restado da Taverna
do Crespo. A chaminé de pedra parecia o tronco de uma velha árvore
petrificada, o chão estava coberto de tábuas, bancos quebrados e garrafas
estilhaçadas.
Estremecendo com o rangido de seus passos no chão de madeira, ele
rastejou até a cômoda e a afastou da parede. Atrás dela havia uma pequena
porta. Joe olhou em volta uma última vez e mergulhou para dentro, puxando
a cômoda de volta ao lugar, atrás dele.
A porta dava para um quarto apertado, iluminado apenas por uma
pequena janela no teto. A luz estava fraca, mas, depois de um momento, os
olhos de Joe se ajustaram, e ele pôde ver a roliça figura estremecendo na
cama.
“Olá, velho amigo”, Joe sussurrou.
O homem se mexeu e tentou se sentar. Uma bandagem encharcada de
sangue adornava sua grande barriga.
Joe colocou a mão em seu braço. “Não se sente. Eu tenho que me
ausentar um pouco, mas queria vê-lo primeiro. Você precisa de água?”
O homem na cama tentou em vão alisar uma mecha de cabelo branco por
sua cabeça calva. “Estou... ressecado”, balbuciou ele, “para parafrasear as
sábias palavras... de... Lou di Cicaccelliccelli.”
“Vou acreditar na sua palavra”, disse Joe com um sorriso, servindo um
copo de água de um jarro ao lado da cama. Ele o levou à boca de Oskar N.
Reteep. “Voltarei mais tarde para mudar as bandagens. Você precisa de mais
alguma coisa?”
Oskar engoliu a água com uma careta. “Mais alguns livros seriam
esplêndidos, se não for muito problema.”
Joe olhou para as pilhas de livros em cada canto da sala. “Farei o melhor
que puder”, afirmou. “Descanse. Estarei de volta à noite. É bom que você
tenha voltado a falar, Oskar.”
“Sim”, Oskar ofegou. “E, Joe, há muito que preciso lhe contar. Zouzab...
cuidado...” — ele teve um ataque de tosse.
“Está tudo bem. Haverá tempo para me informar sobre tudo, mais tarde.”
Logo Joe teria que dizer a Oskar que seu pequeno companheiro, Zouzab, se
fora. Provavelmente, morto pelos Fangs. Ele não queria sobrecarregar o
velho com mais dor.
Oskar recostou-se e adormeceu imediatamente. Por pior que parecesse,
ele vinha melhorando nas últimas semanas, desde que Joe o havia
encontrado sangrando no chão da Livros e Vãos. No dia em que a
tempestade veio, Joe e Addie passaram a maior parte da tarde esforçando-se
para levá-lo até a pousada. Nenhum reforço Fang havia chegado desde a
noite anterior à tempestade, quando Podo e os Igibys fugiram para a
Mansão Pé-de-Geleia, para escapar das centenas de Fangs que haviam ido
atrás deles. Joe ainda não tinha certeza do que havia acontecido com os
Fangs naquela noite, mas parecia que alguém — ou algo — havia matado
todos eles.
Quando os Shoosters emergiram de seu esconderijo na manhã após a
batalha, parecia que o mundo de Kistamos havia acabado. Nuvens negras
ondulavam no céu acima da cidade deserta, e as ruas estavam obstruídas
com a poeira, os ossos e as armaduras de incontáveis Fangs. Logo Crespo
saiu da taverna, e os Shoosters sentiram grande alívio ao vê-lo. Eles haviam
sido vizinhos por décadas e foram os únicos habitantes da cidade de
Glipwood que escolheram permanecer em vez de fugir para Torrboro ou
Cavadópolis na noite em que os Igibys lutaram para escapar da Carruagem
Negra.
Mas, então, o único amigo que os Shoosters tinham foi-lhes tirado.
Numa tarde, uma companhia de Fangs atravessou Glipwood, em seu
caminho para o norte, vinda do Forte Lamendron. De uma janela do
segundo andar de A Única Pousada, os Shoosters assistiram impotentes,
enquanto Crespo empurrava um carrinho de mão com lenha para o outro
lado da rua. Quando o viram, os Fangs o derrubaram no chão, e um dos
lagartos afundou suas presas na perna de Crespo.
Os Fangs partiram tão rápido quanto vieram, mas quando Joe e Addie
correram para perto de Crespo, ele já estava morto. Os Shoosters choraram
enquanto enterravam seu amigo no Cemitério Glipwood, no extremo sul da
Via Vibbly. Joe coletou a placa Taverna do Crespo em meio aos destroços
do edifício. Além do nome da taverna, ela trazia a imagem de um cachorro
fumando um cachimbo. Joe colocou-a no túmulo de Crespo como uma
lápide após esculpir, em suas letras mais finas, a inscrição: “Crespo
Bandibund, um Exemplo de Vizinho e Amigo”.
Agora, os Fangs estavam de volta, exigindo saber o paradeiro de Reteep,
Podo Helmer e da família Igiby, e Joe não tinha ideia do motivo. Durante
seu sono, Oskar havia murmurado bastante sobre as Pradarias de Gelo e as
Joias de Anniera, fossem elas o que fossem. Mas Joe Shooster era apenas o
proprietário de A Única Pousada. Ele não sabia nada sobre essas coisas e
não se importava em saber. Só queria que Oskar se recuperasse e as coisas
voltassem a ser do jeito que eram antes de os Fangs colocarem os pés em
Skree.
Se os Fangs queriam Oskar, então Joe Shooster sabia que a coisa certa a
fazer era manter Oskar escondido. Quando as feridas do velho estivessem
curadas, Joe pensaria no que fazer a seguir. Nesse ínterim, ele precisava ser
cuidadoso. Como Joe tinha acabado de presenciar com Higgk, o Fang, não
era apenas a vida de Oskar que estava em perigo, mas a sua e a da doce
Addie também. Ele odiava pensar em qualquer mal acontecendo a ela.
Joe despediu-se de Oskar com um tapinha na perna, e Oskar grunhiu em
resposta. Joe ficou ouvindo na parte de trás da cômoda por um longo tempo
antes de deslizá-la para o lado e rastejar por trás dela. Ele a colocou
rapidamente de volta no lugar e congelou.
Que som foi esse? Um movimento vindo da janela atrás dele? Um
calafrio percorreu o corpo de Joe, e sua mente disparou. O mais
casualmente possível, tirou um lenço do bolso do colete e espanou a parte
superior da cômoda. Começou a cantarolar para si mesmo, enquanto se
movia da cômoda para a mesa e arriscou uma olhada para a janela.
Um rosto o encarava de volta.
Uma pequena figura com traços delicados e uma túnica de patchwork,
empoleirada do lado de fora da janela do quarto oito. Seus olhos eram
penetrantes e frios e paralisaram Joe no meio do que fazia.
“Zouzab!” Exclamou Joe, feliz e confuso por ver o pequenino. Oskar
ficaria satisfeito por seu amigo ainda estar vivo.
Ele acenou para o corre-crista, que acenou com a cabeça em resposta. A
pequena criatura estava provavelmente preocupada com seu antigo mestre e
seria uma grande ajuda para Joe e Addie, enquanto cuidavam do
restabelecimento de Oskar. Joe colocou o lenço de volta no bolso e abriu a
janela.
“Bem-vindo, Zouzab!” Saudou-o, enquanto o corre-crista deslizava pela
janela como uma aranha. “É bom ver um rosto familiar em Glipwood.”
“Saudações, senhor Shooster”, cumprimentou-o Zouzab. Sua voz era
fina e delicada — não como de criança, mas também não como de homem.
Joe deu um tapinha na cabeça do homenzinho, sem perceber o olhar de
desgosto que se formou no rosto de Zouzab quando ele fez isso. “Suponho
que você esteja se perguntando sobre Oskar, não é?” Ele sorriu para
Zouzab, feliz com a sua boa notícia.
Os olhos de Zouzab se arregalaram quase imperceptivelmente, e ele
assentiu. “Sim, senhor Shooster, estou muito preocupado com a... saúde
dele.”
“Bem”, Joe ia começar a falar, mas logo se lembrou das palavras de
Oskar apenas alguns minutos atrás: “Zouzab... cuidado”.
Joe presumiu que Oskar queria avisar seu pequeno amigo para tomar
cuidado com os Fangs... mas, agora, não tinha tanta certeza. Ele detectou
algo sinistro na forma como o corre-crista o examinava.
“Oskar...” Joe vacilou.
Zouzab deu um passo à frente.
“Bem... eu não o vi. Não desde o dia anterior a todo esse caos que
desceu sobre Glipwood. E você?” Joe pigarreou, tirou o lenço e se ocupou
tirando o pó do resto da mobília do quarto, esticando os lençóis, e afofando
o travesseiro, perfeitamente ciente da presença de Oskar do outro lado da
parede. Ele orou para que o velho não acordasse nem roncasse.
Joe abriu a porta para o corredor e se deteve na soleira. “Você gostaria de
vir comigo? Tenho mais doze quartos para espanar, e é um trabalho
terrivelmente emocionante, garanto a você. Caso contrário, você é bem-
vindo para sair da maneira como entrou.”
Zouzab o observou em silêncio, como um gato prestes a saltar. Os dois
ficaram no quarto oito pelo que pareceu a Joe uma eternidade, antes que
Zouzab olhasse o cômodo pela última vez, se curvasse e saltasse
suavemente para o peitoril da janela.
“Adeus, senhor Shooster”, despediu-se Zouzab, e, com uma agitação de
patchwork, ele se foi.
Joe cruzou o quarto com as pernas trêmulas para fechar e trancar a
janela. Então, o silêncio foi quebrado por uma forte explosão de flatulência,
vinda do quarto secreto de Oskar.
A cabeça de Zouzab apareceu na janela.
“Desculpe!” Joe lamentou, encolhendo os ombros.
O corre-crista estreitou os olhos, franziu o nariz e foi embora.
3

Dois Planos

A empolgação de Janner e Tink havia evaporado.


Garotos às vezes esquecem que, antes de partir para uma aventura,
sempre que possível, é preciso fazer as malas. Há situações em que fazer
malas é secundário — quando se escapa de um prédio em chamas, por
exemplo. Mas, se houver tempo para planejar, organizar e discutir antes de
partir, então é um fato da vida que os adultos o farão. Quando as crianças
dizem que é hora de ir embora, elas querem dizer: “É hora de ir embora”.
Quando os adultos dizem isso, eles realmente querem dizer: “É hora de
começar a pensar em partir em algum momento num futuro próximo”.
Após o pronunciamento de Nia, ela e Podo continuaram com as tarefas
do dia como se nenhuma decisão monumental tivesse sido tomada. No dia
seguinte, as crianças cortaram lenha, lavaram roupas e cobertores, buscaram
água no riacho e prepararam a carne para ser salgada e seca, enquanto os
adultos planejavam, organizavam e discutiam.
Naquela noite, depois do jantar, Nia e Podo desenrolaram um mapa
antigo para calcular a rota até as Pradarias de Gelo. Eles concordaram em
viajar para o sul até a borda da floresta, depois para o oeste beirando a mata
até chegarem à estrada para Torrboro. Em Torrboro, eles viajariam para o
sul e para o oeste novamente, a fim de contornarem a cidade e evitarem os
Fangs concentrados ali.
“Três dias a oeste de Torrboro, o Grande Rio Blapp não é tão grande. É
largo, mas raso o suficiente para vadear”, disse Podo. “E os Fangs devem
ser escassos lá.”
“E quanto à Barreira?” Questionou Nia.
“O que é a Barreira?” Janner perguntou.
“Imaginei que você não teria ouvido falar disso. Aqui está.” Podo
respondeu, passando o dedo pelo mapa. “A Barreira é a melhor tentativa de
Gnag para impedir que os skreenianos façam exatamente o que estamos
tentando fazer. É um muro que percorre toda a extensão da fronteira sul das
Montanhas Rochosas. É patrulhada por Fangs, noite e dia. Alguns anos
depois que os Fangs assumiram o controle, algumas pessoas perceberam
que eles não se moviam tão rápido no frio, então muitos skreenianos
fugiram para o norte. Claro que a maioria deles morreu. Os Fangs são mais
lentos no frio, mas ainda podem lutar e morder. Especialmente quando
aqueles que perseguem são mulheres, crianças e homens sem armas. A
resposta de Gnag foi construir a Barreira. Não mantém todo mundo distante
— veja, é muito muro para patrulhar —, mas faz seu trabalho bem o
suficiente para que as massas não tentem fugir. Oskar me disse que, se você
estiver a oeste de Torrboro e seu grupo for pequeno o suficiente, é possível
encontrar uma brecha no muro e passar despercebido. É isso que
pretendemos fazer.”
“E Peet diz que pode nos levar através das montanhas”, lembrou Nia.
“Contanto que ele não acorde alguma manhã com sua cabeça maluca
desparafusada e nos leve até um penhasco”, complementou Podo. “Ou para
uma fenda ou um ninho de bambolhões.”1
“Nugget não tem medo de bambolhões”, bradou Leeli com orgulho. Lá
embaixo, Nugget latiu ao som de seu nome. Janner não quis dizer a Leeli
que até mesmo Nugget poderia ser uma presa fácil para um bambolhão.
“Precisaremos de suprimentos para vinte dias”, relatou Nia.
“Sim, o que significa que devemos planejar para trinta”, atestou Podo.
“Por quê?” Perguntou Janner.
“Porque, querido, você nunca sabe o que pode acontecer”, Nia
respondeu. “Jornadas como essa raramente saem conforme o planejado.”
“Mas como vocês chegaram a esse número?” Janner perguntou. “Vai
levar vinte dias para viajar até as Pradarias de Gelo?”
“Bem, são cerca de dois dias até Torrboro, depois três dias para cruzar o
Blapp — e, sabe de uma coisa, rapaz?” Podo disse gentilmente.
“Senhor?”
“Vai ser mais fácil pra mim apenas mostrar, em vez de explicar. Temos
muito que resolver, e quando você colocar os pés na estrada, aprenderá mais
do que posso dizer agora. Entendeu?”
Janner suspirou. “Sim, senhor.”
Nia e Podo levaram a discussão para a outra sala e deixaram as crianças
com uma longa lista de tarefas de seu T.A.N.E.G.2 para manter suas mentes
ocupadas até a hora de dormir.

Enquanto as crianças Igiby se acomodavam para ouvir Podo contar uma


história na hora de dormir, Oskar N. Reteep lutava para ler sob a luz fraca
que entrava pela janela do teto de seu quarto secreto. Ele apertou os olhos
atrás dos óculos para ler as últimas frases de um livro intitulado A Anatomia
de um Insulto.3
“Velha bruxa tola”, murmurou Oskar enquanto jogava o livro de lado.
Ele aterrissou sobre uma pilha de outros livros, no espaço estreito entre a
cama e a parede. “Não reconheceria um bom insulto nem que viesse de um
sapo-toupeira.”
Oskar lembrou-se de que adormeceu antes de poder avisar Joe sobre
Zouzab. Ele duvidava de que o pequeno traidor ainda estivesse por perto,
mas Joe e Addie deveriam saber que o corre-crista estava aliado aos Fangs,
só para garantir.
Oskar estava com uma fome terrível e suspeitou que tivesse dormido por
mais de um dia — embora, sem a visita de Joe, ele não pudesse ter certeza.
Ele também se sentia mais forte. Havia cruzado um limiar em sua
recuperação e agora podia falar sem tossir.
Fez uma careta ao se inclinar para frente e colocar os pés no chão —
uma das mãos apoiada cuidadosamente na bandagem enrolada em seu torso.
Mais cedo, naquela manhã, à luz de sua lanterna, Oskar percebeu que era
capaz de ficar de pé e até mesmo se mover no pequeno espaço oferecido
por seus aposentos. Ele estava animado para mostrar isso a Joe em sua
próxima visita, mas, para sua decepção e crescente preocupação, Joe nunca
apareceu. Ele não havia ouvido nenhum dos solavancos e vozes familiares
vindos da cozinha ou da sala comum. Oskar havia lido e relido livros o dia
todo, tentando acalmar o medo persistente de que algo estava errado.
Todos os dias, Joe ou Addie trocavam suas ataduras, traziam-lhe água e
comida e, quando Oskar estava lúcido o suficiente para ouvir, falavam com
ele em voz baixa sobre os Fangs, os Igibys e Podo. Oskar teve o cuidado de
não lhes contar a verdadeira identidade das crianças Igiby. Quanto menos
soubessem, melhor.
No início, sua preocupação era apenas com os Shoosters. Agora, estava
com sede, seu estômago roncava, e ele começava a considerar a seriedade
de sua própria situação. Duvidava que já pudesse cuidar de si próprio, ou
mesmo espremer-se pela pequena porta sozinho, e a ideia de passar fome ou
morrer de sede fazia seu quarto escondido parecer um túmulo. Ele se
perguntou se algum dia, dali a alguns anos, alguém descobriria seu
esqueleto deitado na cama, rodeado de livros. Perguntou-se também que
livro estaria lendo quando finalmente desse seu último suspiro e tomou a
decisão de pegar um que fosse bom tão logo sentisse que o fim estava
chegando, para que quem o descobrisse soubesse que ele tinha bom gosto
para literatura. Oskar tirou os óculos e os limpou com a ponta do lençol.
Recolocou os óculos e ajustou uma longa mecha de cabelo para que
caísse atravessada sobre sua cabeça. Oskar não estava pronto para admitir a
derrota mais do que admitir que estava careca como um seixo. Ele então
olhou para a pequena entrada na parede oposta. Seu ferimento havia parado
de sangrar, mas não estava em condições de rastejar pela pequena porta. Ele
riu com o pensamento de que sua barriga avantajada pudesse ser um
obstáculo maior do que seu ferimento à faca.
As reflexões sobre a influência de sua circunferência na fuga foram
interrompidas por um grito que atravessou as paredes de madeira da
pousada. Oskar ficou tenso. O grito diminuiu e deu lugar aos rosnados
abafados de Fangs. Os lábios do velho se moviam com orações sussurradas,
enquanto olhava desesperadamente ao redor de sua cela sombria,
perguntando-se o que fazer. Ele reuniu suas forças, respirou fundo e se
levantou. Estrelas encheram sua visão, e ele ouviu outro grito. Parecia
Addie.
Oskar caminhou até a porta, um doloroso passo de cada vez,
amaldiçoando seu peso, seu ferimento e os Fangs de Dang com insultos
fortemente influenciados por seu estudo recente do livro de Helba Grounce-
Miglatobe. Ele alcançou a porta e colocou a mão na parede para se
equilibrar, respirando pesadamente e notando com uma pontada de pânico
que sangue fresco manchava sua bandagem.
Ele se ajoelhou com grande esforço e apoiou o ombro na parte de trás da
cômoda que servia de porta. Os sons de luta vindos de fora da pousada
estavam mais claros agora, e os Fangs não estavam apenas rosnando, mas
rindo.
Oskar não tinha ideia do que faria quando saísse do quarto, mas seu
instinto exigia que fizesse alguma coisa. Ele não sabia o curso certo de
ação, mas, claramente, o errado seria ficar deitado em sua cama, ouvindo os
sons de seus amigos sendo capturados — ou mortos — pelos Fangs.
Oskar empurrou com toda a força, e a cômoda deslizou para fora do
caminho.
Estremecendo com a dor no peito, ele rastejou até a janela aberta e
engasgou. A Taverna do Crespo era uma ruína de tábuas quebradas. Do
outro lado da rua, o que restou da Floricultura da Ferínia estava quebrado e
triste como um lírio pisoteado. Ao lado dela, para seu próprio alívio, sua
Livros e Vãos ainda estava de pé, exatamente como Addie Shooster havia
lhe garantido, intacta, exceto por uma fileira de telhas de madeira faltando
no telhado.
O choque de Oskar com o estado devastado da cidade de Glipwood
transformou-se em pavor quando avistou a origem dos gritos.
Uma parelha de cavalos negros estava atrelada à Carruagem Negra.
Porém, não era a Carruagem Negra que Oskar vira na noite em que Podo
Helmer e Peet, o Homem-Meia, lutaram contra os Fangs. Essa carruagem
era mais longa, mais elegante e, para horror de Oskar, mais assustadora do
que a outra. Em vez de uma câmara, havia vários compartimentos
horizontais grandes o suficiente para um homem, como se a carruagem
fosse um coche carregando uma pilha de caixões de ferro virados de lado.
Longas pontas se erguiam do topo da carruagem, criando um recinto
semelhante a um forte, onde dois Fangs estavam empoleirados, armados
com bestas.
Joe Shooster estava estirado, imóvel na rua. Um grupo de Fangs o
cercava e golpeava com as hastes de suas lanças. Outro Fang segurava os
braços de Addie atrás de suas costas e a empurrava escada abaixo da prisão.
Um dos Fangs no topo da carruagem girou uma alavanca, e a mais baixa
das portas horizontais se abriu com estrépito. Dois Fangs arrastaram Joe
para a carruagem e o jogaram para dentro. Addie gritou quando a forçaram
a entrar na caixa acima da de Joe. Os Fangs bateram as tampas dos caixões
e riram, enquanto o cocheiro encapuzado chicoteava os cavalos e dirigia a
carruagem para fora de vista.
Então, uma conversa se ouviu através da janela.
“Isso foi divertido”, comentou um Fang parado na rua, logo abaixo.
“Sim. Nada como o contorcimento e a gritaria”, disse outro
melancolicamente. “Gostaria que houvesse maisss disso hoje em dia. Estive
parado nesta cidade por diasss sem nada para fazer a não ser cutucar minhas
escamas.”
“Não demorará muito para que tenhamos alguma ação”, reforçou o
primeiro.
“É? O que você sabe que eu não sei?”
“O corre-crista diz que os Igibysss estão na floresta.”
“Impossível.”
“Por quê?”
“Porque as vacas já os teriam devorado a essa altura.”
“Não. Eles estão com aquele sujeito-meia. O malvado. Ele não tem
medo das vacas-dentadas. O corre-crista diz que tem pontes em todas as
árvores. Diz que estão morando numa casa na árvore.”
Os olhos de Oskar se arregalaram, e ele sorriu apesar da dor. Os Igibys
estavam vivos!
“Vivendo em quê?” Questionou o Fang.
“Uma casa na árvore.”
Houve uma pausa.
“O que é uma casa na árvore?”
“Sei lá. Mas parece familiar. Algo sobre isso me deu uma espécie de
náusea estranha.”
“Bem, vamos descobrir amanhã. Hoje à noite o resto das tropas chega;
então vamos para a floresta encontrá-los. Partimos amanhã após a primeira
refeição. Vamos pegá-los de surpresa.”
“Não”, suspirou Oskar.
Então sua força se extinguiu como a chama de uma vela, desabando no
chão do quarto oito, alheio à pequena poça de sangue que se acumulava
embaixo dele.
4

Palavras Apropriadas de Ubinious,


O Sui Generis

Na manhã seguinte, após o café da manhã, Peet, o Homem-Meia, voltou


para a casa da árvore carregando sobre o ombro um murça-das-cavernas
esfolado e eviscerado. Ele mencionou casualmente que poderia haver um
bando de canicórneos bem na sua cola — momento em que Podo despertou
Nugget para que ficasse alerta. Enquanto Peet erguia a si mesmo e a carcaça
do murça-das-cavernas pelo alçapão da casa da árvore, o uivo de um
canicórneo pairou no ar, e Nugget saltou para a floresta procurando por ele.
Janner e Tink estavam sentados de pernas cruzadas no chão da casa da
árvore, tentando o seu melhor para dar conta do T.A.N.E.G., embora suas
mentes girassem de empolgação com a jornada à frente.
Tink estava ocupado desenhando o chalé Igiby, de memória, a pedido da
mãe. Nia disse que eles talvez nunca pudessem voltar para Glipwood, então
não seria bom que Tink tivesse o caderno de desenho de seu pai para
folhear e ver partes do passado de sua família? Aos onze anos, Tink não
conseguia se imaginar passando seu caderno de desenhos para ninguém,
muito menos para seus próprios filhos. Mas ele gostava de desenhar, e
Janner sabia que o irmão tinha uma vaga noção do valor de arquivar seu
trabalho e de contar sua história com os desenhos que fazia.
Janner concentrou-se em seu diário, tentando descrever a intensa
antecipação que sentia sobre a viagem iminente às Pradarias de Gelo e sua
frustração por ter que esperar, enquanto os preparativos eram feitos. Leeli
sentou-se no arco de um grosso galho da árvore, memorizando as letras de
um livro de canções.
Janner ouviu Nugget latir e olhou pela janela para ver o cachorro
voltando das profundezas da floresta, carregando o corpo inerte de um
canicórneo na boca. Nugget era tão gentil com as crianças que era difícil
imaginá-lo atacando alguma coisa, mas o cachorro gigante era capaz de
matar mais do que apenas canicórneos. Ele e Peet haviam enfrentado um
ataque de centenas de Fangs de Dang e sobrevivido sem um único
ferimento que Janner tivesse visto.
Na base da árvore, Peet estava trabalhando duro, cavando um buraco
para enterrar um baú cheio de seus diários. Havia muitos para carregar, e ele
não queria que caíssem nas mãos dos Fangs. Peet gritou quando Nugget
largou o canicórneo morto em cima da pilha de terra ao lado do buraco e
enxotou o cachorrão para longe.
“Canicórneos têm sabor ruim! Gosto ruim em seu ensopado e pior ainda
em seus livros.”
Nugget ganiu e arrastou o canicórneo de volta por entre as árvores.
Assim que Janner mergulhou sua pena no tinteiro e voltou a escrever em
seu diário, a voz de Nia chamou lá de baixo.
“Meninos, desçam. Preciso que vocês experimentem suas mochilas.”
Janner e Tink jogaram seus livros de lado e desceram a escada com
estrépito.
Nia se colocou de costas para uma pilha de bugigangas e olhou para seus
filhos com os braços cruzados. Ela havia passado as últimas semanas
trabalhando diligentemente na costura de equipamentos, usando velhos
cobertores de Peet e algumas peles de animais empilhadas num canto da
casa na árvore. E, agora, entregava a cada um dos meninos uma mochila
completa, coberta com abas, alças, botões e compartimentos.
Janner pendurou uma nas costas. Ele sabia que precisariam de comida,
mas não sabia quais outros suprimentos uma longa jornada exigia.
“Aqui está o livro que seu pai lhe deu”, disse Nia, colocando-o na
mochila de Janner. “Eu o embrulhei para mantê-lo seguro. E você vai
precisar disso...”, ela lhe entregou a espada embainhada de Tink, indicando
as amarras de couro com as quais atá-la à mochila de seu irmão.
As mochilas ficavam cada vez mais pesadas, à medida que Nia as enchia
com os itens necessários: uma caixa de fósforos, uma caixa de pólvora
oleada para o caso de os fósforos acabarem, sacolas de carne seca, pacotes
de sal, um rolo de corda, uma faca dobrável que ela havia retirado da
câmara de armas da Mansão Pé-de-Geleia e uma túnica e calções extras.
Nia amarrou o arco desencordoado de Janner e uma aljava de flechas na
lateral da mochila oposta à espada; depois fez o mesmo para Tink.
Afastando-se um pouco, Nia estreitou os olhos para a equipagem nas
costas dos filhos. “As mochilas estão boas”, disse com um aceno de cabeça.
Então seus olhos se voltaram para os filhos, e Janner gemeu. “Mas a
aparência de vocês não. Venham!”
Nia sujeitou Janner e Tink a uma esfregada dolorosa. Para Janner,
parecia que sua mãe pretendia esfregar a pele até arrancá-la de seus ossos.
Então ela começou a trabalhar nos cabelos. Usando uma das facas
dobráveis que tinha colocado nas mochilas, Nia cortou seus cabelos, com
grunhidos e repuxos, até que mechas dos cabelos desgrenhados de Janner e
Tink caíssem em tufos a seus pés.
Quando Nia ficou satisfeita, pegou um espelho e o ergueu. Janner olhou
para si mesmo com surpresa. Nas angustiantes semanas desde que
resgataram Leeli de Slarb, muita coisa havia acontecido. Janner podia vê-lo
em seus próprios olhos: uma expressão de gravidade, uma maturidade que
ele esperava que algum dia se tornasse sabedoria. Ele entregou o espelho
para Tink, imaginando se seu irmão mais novo notaria a mesma coisa em si
mesmo.
Em vez disso, Tink imediatamente fez a cara mais boba e feia que
conseguiu criar e caiu na gargalhada. Leeli o encorajou com suas próprias
risadas, e Tink continuou por vários minutos, inventando caretas bobas e
rindo até ficar sem ar. Por mais que tentasse, Janner não pôde deixar de
sorrir com as traquinices de seu irmão, e percebeu que sua mãe também
sorria.
Eis, pensou Janner, o Rei Supremo de Anniera. Que o Criador nos ajude.
Seus pensamentos foram interrompidos por um som estranho na floresta.
Janner olhou para as árvores, perguntando-se se era sua imaginação.
Depois de semanas na floresta Glipwood, ele conseguia reconhecer o
guincho do murça-das-cavernas, o grasnido do verrucoso sapo-toupeira, o
mugido horrível da vaca-dentada e o uivo do canicórneo. Peet tinha até
ensinado Janner e seus irmãos sobre os vários pássaros que cantavam nos
galhos e como saber quais eram hostis, quais eram travessos e quais
cantavam lamentos para outros pássaros que haviam sido tragados por uma
andorinha-de-goela.
Mas esse som era diferente. Era quase humano. Janner fez um rápido
balanço de sua família para ter certeza de que todos estavam presentes e,
para seu crescente alarme, todos estavam.
“Psiu!” Janner tapou a boca de Tink com a mão. “Ouviu isso?”
“Mmmf”, respondeu Tink.
O som ficou mais alto, agora acompanhado pelo leve crec-trec de galhos
quebrando e arbustos sendo pisoteados. Podo e Nia também ouviram. Todos
ficaram parados, cabeças viradas, ouvindo. Nugget choramingou e andou de
um lado para o outro até que Leeli o silenciou.
Finalmente, a voz ecoando pelos troncos aproximou-se o suficiente para
que as palavras se tornassem claras.
“Nas palavras de Ubinious, o Sui Generis, ‘Corram, Igibys! Se estiverem
por aí, corram! Eles estão vindo!’”
5

Um Traidor nas Árvores

Oskar Noss Reteep quicava e sacolejava em cima do aturdido burro como


uma gelatina em um terremoto. Ele segurava as rédeas bem alto, no ar, e há
muito perdera a esperança de que seus pés encontrassem os estribos. Seus
óculos pendiam de uma orelha e uma magnífica mecha de cabelo branco,
presa logo acima de sua orelha, erguia-se de onde ele a pressionara contra a
cabeça e voava atrás dele como uma bandeira de rendição.
Janner teve um grande sobressalto quando reconheceu seu antigo patrão.
Na última vez que vira Oskar, o velho estava morrendo no chão da Livros e
Vãos, instando-o a fugir. Naquela última e terrível noite na cidade de
Glipwood, em meio ao horror da batalha com os Fangs, à traição de Zouzab
e à fuga da família para a Mansão Pé-de-Geleia, Janner presumira que
Oskar estivesse morto. Vê-lo vivo foi um choque, mas logo se transformou
em alegria. Janner sorriu quando Reteep saltou em sua direção, fazendo um
barulho tão grande que bandos de vergadores empoleirados nas árvores
crocitaram e voaram para longe.
“Janner!” A voz de Podo encontrou seu caminho através dos
pensamentos na cabeça de Janner. “Garoto!”
Janner saiu de seu torpor e percebeu que, de todos os Igibys, era o único
que ainda estava parado. Ele engasgou quando finalmente percebeu o que
Oskar estava gritando.
“Corram, Igibys! Nas palavras de...”
Antes que ele pudesse terminar, o pobre burro — fosse de cansaço, fosse
porque não pudesse mais suportar a indignidade de um cavaleiro tão
sacolejante — caiu. Os olhos de Oskar se arregalaram, enquanto ele
disparava em direção à clareira onde Janner estava. Ele voou com uma
graça surpreendente, cabelos flutuando para trás, óculos balançando, sua
boca formando um perfeito ‘O’, enquanto as rédeas, ainda firmemente
seguras em suas mãos, esticaram-se e giraram o homem redondo, fazendo-o
aterrissar de costas, aos pés de Janner.
O burro zurrou.
Oskar ficou deitado no chão, piscando, surpreso por não estar morto.
“Janner! Meu menino, estou feliz em ver você. Vim o mais rápido que
pude.” Oskar estremeceu e colocou a mão ao lado do corpo, enquanto
Janner o ajudava a se levantar. A cintura do velho estava envolta em
bandagens manchadas de sangue.
“Não sei como você está vivo, senhor Reteep, mas estou feliz”,
comemorou Janner.
Podo desceu a escada do castelo de Peet com uma trouxa nas costas,
enquanto Nia e Leeli juntavam suprimentos de comida e os enfiavam em
vários pacotes. Tink lançou os diários encadernados em couro de Peet, um
de cada vez, da janela da casa na árvore; Peet os pegou e empilhou em cima
de um retângulo de tecido grosso aberto no chão.
“Isso é tudo, tio Peet!” Tink exclamou.
Peet assentiu, dobrou o pano sobre os livros e jogou a pilha no buraco
que havia cavado.
“Oskar! Quanto tempo nós temos?” Podo gritou.
“Oh, céus.” Oskar se limpou. “Não mais do que alguns minutos. Tentei
fugir, mas eles me viram, e há centenas deles. Centenas!”
Um novo som percorreu a floresta. Um som horrível, como nada que
Janner já tivesse ouvido. Parte gemido, parte rosnado, estava claro que
vinha de algo grande. Até Nugget choramingou. Ele saltou na direção de
Leeli e, pressionando seu grande corpo peludo contra ela, se foi para
protegê-la ou ser protegido, Janner não tinha certeza.
“E essa é a outra coisa”, relatou Oskar gravemente.
“Hã?” Podo colocou uma mochila carregada de suprimentos sobre o
ombro. “Qual é a outra coisa?”
“Trolls.” Oskar estremeceu e franziu o nariz.
Trolls? Um arrepio percorreu Janner. Ele nunca tinha visto um troll,
embora a Criaturapédia de Pembrick retratasse várias raças de trolls, todas
formidáveis e horríveis de se ver.
Seu coração quase parou de bater com o olhar de preocupação que
passou pelo rosto de Nia. Ela ficava serena nas piores circunstâncias, capaz
de manter o sangue frio mesmo quando o calor do perigo aumentava. Mas
quando o rosnado-gemido do troll soou novamente, mais perto do que
antes, seu rosto se enrugou de uma forma que a fez parecer velha e cansada,
ainda que apenas por um momento.
Podo olhou fixamente para Oskar e depois assentiu. “Bem, sejam trolls
ou Fangs ou minha bisavó Olaraye chegando, nós vamos embora daqui
voando. Janner, traga aquele burro aqui e amarre o que puder na sela dele.
Tink!”
“Sim, senhor”, respondeu Tink, atrás do avô.
“Ajude sua irmã com as coisas dela, então prepare seu arco e flecha.
Monte em Nugget com ela e atire em qualquer coisa que você tenha certeza
de que consegue acertar. Tenha certeza, entendeu? Flechas são coisas
preciosas.”
“Sim”, disse uma voz delicada logo acima deles. “Flechas são coisas
preciosas. Mas não ajudarão os Igibys em nada, infelizmente.”
Zouzab Koit empoleirava-se no alto do dossel de folhagem e olhava para
eles com um rosto inexpressivo. Oskar gaguejou, tão furioso que não
conseguia pensar em ninguém para citar.
“Você!” Esbravejou Podo, seu rosto já ficando vermelho com a torrente
de maldições prestes a explodir de sua boca.
Mas antes que ele pudesse dizer qualquer palavra, Peet, o Homem-Meia,
deu um grito estridente e saltou incrivelmente alto, balançando-se nos
galhos onde Zouzab estava agachado. Zouzab se afastou, soprando seu
apito agudo, enquanto Peet o perseguia. Numa confusão de galhos
rodopiando e folhas caindo, o Homem-Meia e o corre-crista sumiram de
vista, deixando Podo e Oskar tremendo e sem palavras. A raiva deles foi
interrompida por outra chamada de troll, e então por outro apito, não muito
longe.
“Não há tempo! Movam-se!” Podo apressou.
Enquanto Janner colocava o exausto burro de pé, Nia empurrava a terra
de volta para o buraco onde Peet havia escondido seus preciosos diários.
Ela jogou uma pilha de folhas em cima da terra fresca e espalhou-as para
escondê-lo.
“Papai, para onde vamos?” Nia gritou, enquanto Podo subia correndo a
escada da casa da árvore.
“Não sei, moça! Norte, eu acho”, ele berrou por cima do ombro. “Não
podemos ir para o sul agora, como planejamos.”
“Mas... mas não há nada ao norte além do rio. Estaremos presos!”
“Ah!” Exclamou Oskar. “Há uma ponte. Uma maneira de atravessar...”
Ele se curvou e tossiu. Janner correu para o seu lado, a fim de firmá-lo.
Podo desceu a escada a toda velocidade, carregando uma braçada de
carne seca que enfiou em sua mochila. “Somos tolos se ficarmos aqui mais
um segundo que seja. Andem!”
“Aqui”, Nia jogou a bolsa de couro de Peet para Janner. “Amarre isto ao
burro, então pegue suas coisas. Vá!”
“Mamãe, o senhor Reteep está ferido”, disse Janner. “Onde está a água
do Primeiro Poço?”
“Eu não sei, filho. Artham estava com ela. Teremos que dar um pouco a
Oskar quando estivermos longe o suficiente dos Fangs.” Ela se voltou para
Oskar. “Você consegue? Pode montar?”
Oskar anuiu, ofegante.
A espada de Janner, amarrada na lateral de sua mochila, bateu contra seu
quadril quando ele jogou a mochila sobre os ombros, lembrando-o de quão
pesadas, reais e perigosas as espadas — e as situações que as exigiam —
eram. Os rosnados-gemidos dos trolls ficaram mais altos, e Janner já podia
ouvir os baques surdos de pés marchando.
Leeli estava montada em Nugget, com as mãos agarrando os tufos de
pelo preto que se juntavam nas laterais da grande cabeça de seu cachorro,
sua mais nova muleta pendurada com um cordame por cima do ombro. Tink
estava sentado logo atrás da irmã com o arco pronto. Nia segurava as rédeas
do burro e passava a mão suavemente ao longo da mandíbula do cansado
animal para acalmá-lo. Quando Oskar tentou montar no burro, ele o encarou
com um olhar carrancudo e zurrou.
“Certo, rapazes e moças”, gritou Podo, “vamos partir num ritmo
acelerado, ouviram?”
“Mas, vovô, e o tio Peet?” Leeli perguntou.
Podo baixou a voz e falou sem olhar a neta nos olhos. “Não podemos
esperar por ele. Sem tempo. Ele nos alcança.”
“Mas...”
“Atrás deles!” Rosnou a voz débil e inconfundível de um Fang de Dang.
Janner viu um rosto verde escamoso aparecer na mata fechada, à
distância. Depois outro, e outro, e mais outro. Podo segurou a coleira de
Nugget e o conduziu em uma corrida desenfreada, cada vez mais fundo na
Floresta Glipwood.
6

A Ravina Circular

Através da floresta eles correram. Atrás deles, como uma tempestade


invisível soprando por entre as árvores, vinham os uivos, os gemidos e a
marcha do exército Fang. O burro não precisou dos estímulos de Janner
para acelerar o passo. Peet, o Homem-Meia, estava fora de vista, mas seu
grito estridente, ocasionalmente, atravessava os sons mais sombrios atrás
deles.
Podo os impulsionava para a frente e, mesmo mancando com sua perna
de pau, tinha de controlar a velocidade para permitir que os outros o
acompanhassem. Janner e sua mãe corriam, tendo o burro de olhos
esbugalhados entre eles, e Oskar bufava e resfolegava na retaguarda.
Enquanto corriam, Janner olhou por cima do ombro e viu uma fileira de
Fangs que aparecia e sumia por entre as árvores. E, entre eles, três trolls
corpulentos, que quebravam galhos grossos como se fossem gravetos.
Janner sentiu uma combinação de horror e fascínio e desejou que pudesse
de alguma forma parar a perseguição para ter uma visão melhor de um dos
brutamontes fedorentos.
“Janner, olhe para a frente”, Nia advertiu, e ele só teve tempo de
esquivar-se de uma pequena árvore. Mais adiante, Nugget trotava ao lado
de Podo, escolhendo seu caminho com cuidado para que Leeli ficasse a
salvo de galhos baixos. A cada urro de troll, as orelhas de Nugget
achatavam-se contra a cabeça e ele gemia.
“Shh, garoto”, insistia Leeli, inclinando-se para falar no ouvido de seu
cachorro.
Tink estava sentado atrás de Leeli com o arco em punho.
“Tink, consegue vê-los?” Janner bufou.
“Sim, consigo”, respondeu Tink, tentando esconder a preocupação em
sua voz. “Eles estão se aproximando. Vovô, eles estão se aproximando!”
“Sim, estou ouvindo, rapaz”, disse Podo. “Basta manter essa flecha na
corda.”
Janner tentou não olhar para trás, mas não conseguia se conter. Ele viu
ainda mais Fangs e trolls, perto o suficiente para que pudesse distinguir os
olhares de perversa alegria em seus rostos. Ele também podia sentir o cheiro
deles. Um odor forte e amargo poluía o ar, e com o cheiro vieram as
memórias de Slarb, de Gnorm e da Carruagem Negra, da carne fria e úmida
dos Fangs. Com as memórias veio um medo profundo e avassalador. Desde
que Oskar havia irrompido na clareira, Janner sentia tensão e urgência, mas,
agora que se lembrava do aperto firme de uma garra de Fang — e da
secreção venenosa de um dente de Fang —, ele estava realmente com
medo.

“Oskar!” Nia gritou.


Janner viu o velho cambalear, balançando como uma pilha de pratos
prestes a desabar. Quando Oskar estendeu a mão para se apoiar na árvore
mais próxima, Janner viu alarmado que a mão do velho estava cheia de
sangue. Os joelhos de Oskar cederam, e ele caiu no chão.
Podo correu de volta para seu amigo e o pôs de pé.
“Janner, abra espaço!” Podo ordenou. Janner empurrou os sacos de
dormir e os suprimentos nas costas do burro e, com a ajuda de Podo, jogou
Oskar sobre o pobre animal. O velho estava deitado de bruços, pendurado
na sela como um animal que acabara de ser morto. Suas pálpebras se
fecharam e seu rosto estava pálido e úmido.
“Tink!” Leeli gritou, e Janner se virou para ver uma nova razão para
temer: um canicórneo arremeteu, saído das fileiras dos Fangs, e investiu em
direção a eles. O animal usava uma coleira e tinha o focinho e o corpo
decorados com tinta preta de guerra.
Tink ficou paralisado nas costas de Nugget.
“Atire!” Podo rugiu.
Tink piscou duas vezes e voltou a si. Ele puxou o arco e disparou a
flecha — e o animal desabou com uma explosão de folhas.
Podo não precisou dar a ordem para correrem como loucos. Nugget
saltou em movimentos tão rápidos que Tink quase caiu de costas. Nia corria
ao lado do burro zurrante e firmava Oskar, que gemia enquanto era
sacudido.
O caminho era difícil. A floresta ao norte da casa da árvore de Peet subia
e descia em colinas íngremes. De vez em quando era preciso contornar
ravinas traiçoeiras, leitos de rios secos emaranhados com árvores caídas.
Do topo de uma longa encosta, Janner viu que os Fangs estavam a não
mais que um tiro de flecha, e mais dois de seus canicórneos aceleravam em
direção aos Igibys. Tink disparou outra flecha e errou. Enquanto se
apressava para tirar outra flecha da aljava, Peet arremeteu das árvores com
as garras à mostra, matou os canicórneos e desapareceu na folhagem
novamente.
Janner sabia que Peet não era páreo para tantos Fangs, mas sua presença
repentina era como uma lufada de ar fresco num dia quente — um Guardião
do Trono de Anniera se colocava entre os Igibys e seus inimigos.
A aparição de Peet também teve um efeito surpreendente sobre os Fangs.
Janner não conseguia ver muito, mas sentia que a distância entre ele e os
Fangs aumentava. Embora fossem centenas, os Fangs desaceleraram —
com os olhos cautelosos nos galhos acima.
De repente, Janner se viu derrapando em uma encosta íngreme. Podo
havia conduzido Nugget para uma ravina profunda e já estava a meio
caminho da depressão, em meio a galhos velhos, folhas amarronzadas e
troncos de árvores apodrecendo. A trincheira se estendia por uma longa
distância em ambas as direções, de modo que eles não tinham escolha a não
ser cruzá-la.
O burro parou de repente na beirada da encosta. Janner puxava as rédeas,
enquanto Nia empurrava por trás, mas o animal não se mexia. Seus olhos
estavam fixos no chão da ravina; suas narinas, expandindo-se e contraindo-
se como um coração batendo.
Se Janner não estivesse com medo, correndo para salvar sua vida,
poderia ter se lembrado do que a Criaturapédia de Pembrick tinha a dizer
sobre tais ravinas na Floresta Glipwood; poderia ter pensado em avisar sua
família antes que descessem aos trancos e barrancos ao encontro do chão
entupido de árvores. Se Janner não estivesse pensando nos Fangs e trolls
rosnando na floresta atrás dele, teria sugerido firmemente que a família
Igiby encontrasse um modo de contornar o barranco, mesmo que isso
adicionasse horas e quilômetros à jornada.
Se Peet, o Homem-Meia, tão familiarizado com os perigos da floresta,
estivesse com eles, em vez de estar afastando Fangs, trolls e canicórneos,
teria sugerido muito enfaticamente que a família Igiby não descesse ao
buraco.1
Mas eles desceram.
7

Monstros na Toca

Nugget estava no fundo da ravina com uma grande pata sobre um velho
tronco de árvore podre — Leeli e Tink em suas costas. Nia deslizou para se
juntar a eles, enquanto Podo e Janner, no meio da encosta, puxavam com
dificuldade as rédeas do burro. Janner arrastou-se até a traseira do burro e
empurrou com toda a força, mas não adiantou. A apavorada besta zurrava e
sacudia a cabeça em desafio. Não tinha nenhuma intenção de prosseguir.
“Anda logo, seu velho comedor de palha birrento!” Podo gritou.
“Precisamos que você avance só um pouquinho mais”, a voz de Leeli
chamou, docemente, do outro lado do barranco. “Isso. Venha!”
As orelhas do burro se voltaram na direção da voz de Leeli e seu zurro
cessou. Deu um passo hesitante para frente. Podo ergueu uma sobrancelha
para Leeli, que sorriu de volta. Janner arriscou outro olhar para trás
enquanto deslizava encosta abaixo.
Peet, o Homem-Meia, havia descido das árvores e parado na frente da
fileira de Fangs indecisos — os braços cruzados sobre o peito, as costas
retas, o queixo projetado para frente e os olhos fechados. Ele lembrava a
Janner do prefeito Blaggus quando regia a Orquestra da Cidade de
Glipwood.
Então, um troll emergiu da linha de frente dos Fangs. Foi a primeira vez
que Janner olhou claramente para uma dessas criaturas — e ele entendeu
por que razão Nia e Podo pareciam tão preocupados quando Oskar os
mencionou. As pernas do troll eram curtas e robustas, mas a criatura ainda
tinha o dobro da altura de um homem. Seu torso e braços eram inchados de
músculos e veias; uma cabecinha com uma mecha de cabelo grisalho
despontava por entre os ombros. Os olhos do troll estavam escondidos na
sombra de sua testa ossuda — uma testa que combinava com a mandíbula
ossuda, parecendo forte o bastante para derrubar o portão de um castelo.
A besta agarrou uma clava cravejada de ferro com um punho do tamanho
de um carrinho de mão, segurou a clava acima de sua cabeça por um
momento, então rosnou para Peet (de um jeito meio lamentoso) e esmurrou-
a contra o chão. O solo vibrou e seixos se desprenderam da encosta onde
Janner estava. O burro perdeu toda a coragem que Leeli havia despertado
nele e recuou.
“Vovô!” Janner gritou. “Temos que deixá-lo!”
Eles se arrastaram para cima, na ravina, baixaram Oskar das costas do
burro e apoiaram seus braços sobre os próprios ombros.
O troll bateu com a clava no chão novamente.
Peet ainda não havia se movido. Ele permaneceu imóvel, numa atitude
petulante, ganhando precioso tempo para os Igibys, assim como na fuga
para a Mansão Pé-de-Geleia. Quando Janner e Podo alcançaram o fundo da
ravina, onde os outros esperavam, Janner deu uma última olhada para o
burro apavorado. Sentiu pena dele e se perguntou se os Fangs o forçariam a
trabalhar ou se o comeriam.
Então ele viu, pendurada na sela do burro, a bolsa de Peet.
Janner desvencilhou-se do braço de Oskar e rastejou de volta encosta
acima. Os trolls e os Fangs haviam se aproximado de onde Peet estava,
agora pulando em círculos e assobiando para si mesmo. O homem era tão
corajoso quanto louco, e os Fangs não sabiam o que fazer com isso. Janner
tentou desamarrar as correias que prendiam a bolsa de Peet ao burro, mas,
não se soltando, abriu-a com um rasgo para pegar o que pudesse. Vasculhou
entre um monte de diários amarrados com barbante, um martelo, uma bota
velha, um rato vivo e um frasco de couro — a água do Primeiro Poço.
Janner deu um suspiro de incredulidade, enfiou o frasco no bolso lateral
da calça e saltou de volta para a ravina.
Mas algo estava errado.
Nugget já deveria ter subido pelo outro lado, mas estava imóvel no
fundo do barranco. Leeli implorava ao cachorro que despertasse de seu
transe. Tink havia desmontado e estava na frente de Nugget, com as mãos
nas laterais do rosto do imenso cachorro, chamando seu nome.
Nugget respondeu com um gemido preguiçoso.
Então Tink gritou e debateu-se com algo a seus pés. Janner arrastou-se
sobre galhos caídos até seu irmão antes que qualquer outro tivesse tempo de
reagir. Quando viu a fonte da angústia de Tink, Janner gritou também.
De um espaço entre dois galhos mortos no chão da ravina — que Janner,
agora, percebia que não era chão — emergiu uma cabeça com olhos
leitosos. Seu nariz era úmido e largo, seu focinho comprido como o de um
cavalo, porém mais robusto, e duas presas amareladas projetavam-se de
uma boca cheia de dentes tortos e afiados: uma vaca-dentada, presa abaixo
deles, numa cova de baratodonte voraz. O que eles pensavam que fosse o
chão da ravina era mais como uma grande pilha de arbustos escavada de
baixo para cima.
Dentro da boca da vaca estava o pé esquerdo de Tink, um pé que teria
sido decepado de seu corpo e ido direto para o sistema digestivo da besta, se
a vaca não estivesse entorpecida pela névoa da armadilha de gases do
baratodonte. Os olhos da vaca-dentada expeliam um fluido amarelo e
reviravam de forma sonolenta, enquanto o animal sorvia o tornozelo de
Tink mais profundamente em sua boca.
Janner puxou a perna de Tink, mas os dentes menores da vaca estavam
angulados para dentro.1 Se a vaca estivesse totalmente acordada, Janner
tinha certeza de que Tink seria mais um membro de sua família com apenas
um pé ativo.
Podo apareceu com sua espada desembainhada e golpeou o monstro,
mas a cabeça da vaca estava apenas parcialmente visível através da abertura
nos galhos, e ele não conseguia causar danos o suficiente para que ela
soltasse o pé de Tink.
A comoção tirou Nugget de seu transe. O grande cachorro latiu e
enrijeceu o corpo, apreendendo a situação como se tivesse acabado de
acordar de um sonho. Quando Nugget viu a vaca, pulou na abertura do
chão, o que quase fez Leeli voar de suas costas. Quando ele aterrissou, a
colcha de retalhos de galhos onde eles estavam deslocou-se e revelou mais
da cabeça da vaca-dentada.
Os irmãos e seu avô entreolharam-se por tempo suficiente para
compartilhar a percepção de que estavam prestes a cair — e então caíram.
Nugget se estatelou no chão. Leeli pousou na pele macia do flanco de
seu cachorro, e Janner, Tink e Podo seguiram, de ponta-cabeça, batendo no
chão frondoso da toca do baratodonte voraz.
Janner estava desorientado, mas percebeu que, na queda, o pé de Tink
havia se desvencilhado das mandíbulas da vaca. Então, viu o medo no rosto
de Podo. O velho pirata olhou para trás de Janner para algo que o congelou
como uma estátua.
A toca estava cheia de monstros.
8

Uma Pontada de Desdém

Havia quatro vacas-dentadas; uma família sibilante de murça-das-cavernas


agitando suas asas; um canicórneo, ferido de tal modo que só se apoiava em
três de suas pernas; e um verdugo-espinhento cambaleando, eriçando seus
espinhos. Pilhas de ossos de animais cobriam o chão, e crânios de todos os
tipos de criaturas da floresta encaravam os Igibys.
“Não movam um músculo, rapazes”, sussurrou Podo. A vaca-dentada
que estivera chupando o pé de Tink encostou-se na lateral do recinto,
respirando pesadamente, com um chocalhar nauseante em sua garganta. Os
animais estavam lentos, mas Janner podia ver que, sob o torpor provocado
pelo gás do baratodonte, permaneciam hostis e estavam famintos.
“Acorde, Nugget!” Leeli segurou sua pata e a balançou. “Nugget, por
favor!”
Nugget estava deitado onde havia caído: era um monte de pelo preto. O
cachorro ofegava, de olhos vidrados, como se estivesse deitado
preguiçosamente, perto do fogo, no limiar de um sono feliz. O veneno do
baratodonte era mais forte aqui. Leeli correu para a cabeça de Nugget, sem
se importar com as feras tão próximas, e chamou seu nome novamente.
Tink sentou-se no chão e quase vomitou com a baba da vaca em seu pé.
Seu sapato e a bainha da calça estavam molhados, pingando e fedorentos o
suficiente para que um bando de moscas ansiosas já zumbisse ao redor.
Nia gritou pelo buraco acima deles. “Rapazes! Leeli! Vocês estão bem?”
“Sim, moça, eles estão bem!” Podo relatou, sem tirar os olhos da
congregação de animais. Ele baixou a voz. “Rapazes, desembainhem suas
espadas e façam isso devagar.”
Janner se levantou com cuidado, puxando Tink pela alça de sua mochila.
“Ecaaa!” Tink gemeu por causa do som gosmento que fez ao colocar seu
peso no pé molhado.
Será que ele está realmente mais preocupado com o pé molhado do que
com a situação em que estamos? Janner pensou, com um lampejo de raiva.
Quando Janner desembainhou a espada, Tink superou seu nojo e
desembainhou a sua. Os dois meninos ficaram lado a lado, logo atrás de
Podo. O canicórneo balançou a cabeça e seus olhos recuperaram um pouco
de energia. Parecia estar disposto a atacar, a manter-se desperto o bastante
para causar alguma violência antes que o baratodonte acabasse com sua
vida. As vacas-dentadas mugiam e sacudiam seus poderosos flancos para
acordar de seu estupor.
O canicórneo grunhiu. Seus lábios se curvaram num rosnado e uma gota
de baba pendia de um de seus dentes mais longos. Ele deu um passo
vacilante para a frente e, por acaso, pôs a perna no caminho do verdugo-
espinhento embriagado. O verdugo sibilou e arqueou as costas. Três
espinhos do tamanho de um antebraço saltaram das costas do verdugo e se
alojaram no pescoço do canicórneo.1
O cão saltou sobre o verdugo-espinhento. Os murças-das-cavernas
guincharam e pularam, as vacas mugiram e, finalmente, Nugget voltou a si.
Ele bocejou e coçou atrás da orelha com uma de suas gigantescas patas
traseiras.
“Nugget, acorde!” Leeli gritou, e ele finalmente acordou — mas apenas
para se levantar, bocejar e se espreguiçar. As vacas e os murças-das-
cavernas circulavam em torno uns dos outros. Eles se chocavam contra as
paredes e produziam uma chuva de folhas e galhos.
“Não podemos subir sem deixar Nugget aqui para morrer”, urgiu Podo.
“Ele nunca seria capaz de passar pelo buraco que fizemos no teto. Veem
aquilo?” Podo apontou sua espada para um feixe de luz do outro lado da
ravina, atrás dos animais. “Onde o chão se inclina? Quando eu mandar,
sigam nesse caminho e façam um buraco no teto grande o bastante para
Nugget passar!”
Janner viu uma partícula de luz do sol rompendo através do telhado
ramificado. Os animais bloqueavam o caminho. Antes que Janner pudesse
se perguntar sobre o plano de Podo, seu avô gritou e saltou para dentro da
luta, girando a espada.
“Agora!” Podo gritou.
O velho pirata balançou sua espada, empurrando as vacas, o canicórneo,
os verdugos e os murças para o lado. Os animais se voltaram para Podo
como um só — mandíbulas estalando e olhos gotejando.
“Tink”, gritou Janner, “ponha Leeli no Nugget, agora!”
“O quê?”
“Agora!”
Tink estremeceu, mas obedeceu e jogou a irmã em cima de Nugget.
Janner puxou o cachorro para frente, para o caos onde Podo lutava contra as
feras.
“Tink, não fique aí parado!” Janner gritou. “Você ouviu o que o vovô
disse! Faça um buraco no teto! Se você é um rei, então aja como um!”

Tink se deteve. Ele olhou para Janner como se tivesse acabado de levar
um tapa, então correu através da briga tão rápido quanto só Tink poderia
correr, escalou a outra encosta da ravina e cortou os galhos do teto.
A hesitação de Tink não durou muito — meio batimento cardíaco —,
mas, naquele minúsculo espaço de tempo, uma multidão de pensamentos
amargos rugiu dentro de Janner, todos eles apontados como flechas para seu
irmão. Eis, ele pensou novamente, desta vez sem nenhum traço de humor, o
Rei Supremo de Anniera.
Assim que Janner arrastou Nugget e Leeli, passando por Podo e as
vacas-dentadas, a luz desceu pelo buraco no teto: Tink havia conseguido!
Ele embainhou a espada e arrancou os galhos, jogando-os longe.
Janner correu para a traseira do cão e o empurrou, tentando não pensar
no som da luta de Podo, logo atrás dele. Leeli se inclinou para a frente e
fechou os olhos quando Nugget irrompeu pelo buraco e saltou para o outro
lado da ravina.
Janner deu um tapinha nas costas de Tink. “Vá!” Tink subiu pelo buraco.
Sem hesitação desta vez, pensou Janner. Ele se virou e gritou: “Vovô,
vamos! Já saímos!”
Foi nesse momento que Peet, o Homem-Meia, saltou da borda do
barranco em alta velocidade, com os braços abertos como asas. Janner
observava seu tio com admiração.
Suas meias há muito haviam caído em tiras, cortadas em pedaços pelas
garras nas pontas de seus antebraços avermelhados. O cabelo branco de
Peet tremulava atrás dele; uma de suas sobrancelhas estava plana e baixa, a
outra arqueada, como uma espiral de fumaça; e nos olhos de Peet ardia um
único propósito: Proteger. Proteger. Proteger.
O que mais impressionou Janner sobre seu tio nesse momento não foi o
salto gracioso pelo ar ou as garras mortais e misteriosas, mas que, em meio
a todo o perigo e pânico, o olhar de Artham P. Wingfeather estava fixo nele
— com o que, Janner sabia, era um afeto profundo.
Ali, na ravina do baratodonte voraz, com vacas-dentadas embaixo e
Fangs de Dang se aproximando, Janner se sentiu seguro.
Mas apenas por um momento.
Podo gritou. Quando Peet pousou no emaranhado de galhos na beira do
buraco, Janner se virou, imaginando que as vacas-dentadas haviam
derrotado Podo, afinal. Mas as vacas tinham sumido.
Ou... quase.
A metade superior de uma vaca-dentada estava desaparecendo boca
adentro de um... o quê? Janner viu seu inabalável avô tremendo, recuando
com as pernas trêmulas em direção à abertura onde Janner estava.
Da escuridão, na parte de trás da toca, o baratodonte voraz emergiu.
9

O Baratodonte Voraz

Pernas longas e delgadas saíam de um buraco na parte de trás da toca e


balançavam como um aglomerado de vassouras pretas brilhantes. Estavam
presas ao que parecia ser um cruzamento entre um grilo, um besouro e uma
lesma.
As costas do baratodonte eram arredondadas e duras, mas em placas, de
forma que ele podia contorcer-se, dobrar-se, e a sua luminosidade dava a
impressão de estar úmido ou suado. Abaixo da cúpula de sua concha
blindada havia uma cara com quatro olhos redondos — dois grandes acima
de dois menores, todos presos à cabeça por antenas. A boca do baratodonte
parecia exatamente com uma boca humana franzida para beijar, exceto
pelas mandíbulas de aranha que cercavam os lábios e se contorciam,
estalando juntas como o som de bolinhas de vidro derramadas em chão de
madeira.
Janner levou um susto quando aquela boca se abriu e engoliu uma vaca-
dentada adulta. A vaca mugia impotente enquanto era puxada cada vez mais
para o fundo da goela do baratodonte pelas centenas de pequenas
mandíbulas pretas. Janner não suportou assistir. Ele se virou quando a
cabeça da vaca desapareceu e o mugido foi interrompido.
O canicórneo saltou sobre suas três patas boas na direção de Janner, não
para atacá-lo, mas para escapar do enorme inseto. O baratodonte voraz se
recompôs e elevou seu corpo pelo restante do caminho para fora do buraco,
revelando-se tão comprido e largo quanto uma casa. Com suas finas patas,
agarrou o canicórneo e o engoliu com um grande e sibilante chiado.
Peet, o Homem-Meia, saltou pelo buraco no teto e caiu agachado como
um felino. O baratodonte voltou seus quatro olhos negros para Peet e se
moveu em sua direção. Podo rugiu e ergueu a espada. Peet rolou para longe
das pernas delgadas e pegajosas do baratodonte no momento em que Podo
desceu sua espada sobre uma delas com toda a sua força. A espada retiniu e
ricocheteou na perna, mas o baratodonte se sobressaltou e recuou, tempo
suficiente para que Podo pudesse passar por ele, na direção de Janner.
Peet se agachou no canto mais afastado da toca, no meio de uma pilha de
ossos de animais, ergueu um osso do tamanho de um porrete e golpeou algo
na pilha. O verdugo-espinhento e a família de murças-das-cavernas saíram
cambaleando, claramente em pânico, mas morosamente, em função do
vapor venenoso do baratodonte. O baratodonte, então, jogou o verdugo-
espinhento em sua boca enrugada e viscosa.
Pensando que, agora, o baratodonte iria atrás dos murças-das-cavernas,
Peet se afastou do canto. Mas o baratodonte ignorou os murças, saltou para
a frente e barrou o caminho de Peet com as patas dianteiras.
“Rapaz, temos que sair daqui!” Podo gritou, arrastando Janner pelo
colarinho da camisa. Janner viu seu tio à sombra do baratodonte voraz,
enterrado nos ossos até os tornozelos, e imaginou os ossos do pobre Peet
caídos no chão entre eles.
“Não!” Janner gritou, livrando-se do aperto de seu avô. Sim, ele tinha
visto como a espada de Podo era inútil contra a carapaça do baratodonte.
Mas, talvez, se conseguisse chegar perto o suficiente para esfaquear a
criatura próximo à cabeça, pudesse encontrar um ponto fraco.
Janner se forçou a avançar com as pernas trêmulas, até ficar a poucos
metros do baratodonte. O monstro apoiou suas muitas pernas contra as
paredes de cada lado do Homem-Meia, prendendo-o numa espécie de
gaiola. A cara de inseto da criatura não tinha expressão, mas parecia gostar
de brincar com sua presa. A boca enrugada abria e fechava, enquanto as
mandíbulas que a rodeavam estalavam a apenas alguns centímetros do rosto
de Peet.
Janner chegou o mais perto que ousava da cabeça do baratodonte e
desembainhou a espada. Atrás das antenas que seguravam os olhos
bulbosos da criatura, viu um buraco suficientemente grande para perfurar,
uma falha na couraça onde ele poderia enterrar a lâmina em pele macia. Ele
bloqueou sua mente para o barulho dos estalidos, para os guinchos dos
murças-das-cavernas e para os gritos frenéticos de Podo atrás dele. Tudo em
que pensava era: cravar sua espada no pescoço do baratodonte voraz, para
que seu tio pudesse sobreviver.
Janner atacou. A lâmina deslizou, passando pelas juntas da pata, atrás
das antenas dos olhos e para dentro da cavidade escura, onde Janner
esperava que houvesse carne macia desprotegida — mas sua espada retiniu
em algo duro como pedra.
Não havia ponto fraco. Seu cotovelo vibrou e sua mão no punho da
espada vacilou. Uma das pernas do baratodonte lançou Janner através da
toca. Ele caiu de costas e sentiu o ar fugir de seus pulmões. Sentiu uma dor
surda no quadril, provavelmente por causa de uma pedra ou osso no chão da
toca.
O baratodonte soltou Peet e, com um grande estalido, deslizou
rapidamente em direção a Janner.
Tudo pareceu desacelerar. Janner viu Peet saltar do canto e correr em sua
direção. Os olhos negros do baratodonte voraz desviaram-se de soslaio para
Peet, mas o inseto não se desviou de seu caminho. Quando Peet passou por
baixo do buraco no teto, uma enorme mão — a mão de um troll —
afundou-se, agarrou Peet pelo cabelo e o ergueu através do buraco — seus
pés se agitando, suas garras arranhando inutilmente o punho maciço do
troll.
O baratodonte agachou-se sobre Janner, abriu suas mandíbulas horríveis
e arreganhou seus lábios negros e moles. Janner ficou surpreso por não
sentir mais pânico. Ele ficou ali, deitado de costas, observando a terrível
besta com uma espécie de fascínio — e surpreso por ser assim que ele
morreria. Ele também sentiu uma irritação silenciosa por causa da pedra
que causava grande desconforto em seu quadril.
Então, Janner percebeu, com um sorriso irônico, que não era pedra
nenhuma. Era o frasco de Peet com a água do Primeiro Poço.
Enquanto o baratodonte se regozijava sobre ele, Janner se perguntou o
que aconteceria se ele bebesse a água, embora não tivesse nenhuma ferida
real que precisasse ser curada. Em seguida, ele se perguntou o que
aconteceria se o baratodonte bebesse a água e, antes que percebesse o que
estava fazendo, Janner tirou o frasco do bolso, abriu a tampa e o jogou na
boca do baratodonte.
Filetes de vapor subiram das gotículas que se espalharam pelo rosto da
fera, enquanto o frasco girava no ar. Então, o frasco desapareceu, enterrado
nas profundezas da barriga do monstro, onde as vacas-dentadas, um
canicórneo e um verdugo-espinhento tinham desaparecido recentemente. A
besta cambaleou para trás. Suas pernas e mandíbulas giravam numa
velocidade estonteante e vapor subia de sua boca, como fumaça saindo de
uma chaminé.
Uma mão agarrou a camisa de Janner e o puxou para trás. De imediato,
os gritos de Podo explodiram nos ouvidos de Janner.
“Nunca vi tamanha tolice estúpida! Janner Wingfeather, saia já daí!”
Janner pegou sua espada e saiu pelo buraco. Depois, subiu a encosta
norte da ravina, com Podo logo atrás.
Janner e Podo alcançaram o topo para encontrar Oskar caído no chão,
inconsciente. Nia e Tink estavam ao lado de Leeli e Nugget, olhando não
para Janner, mas para o lado oposto da ravina.
Janner se virou e viu, reunidos na beira da encosta, Fangs demais para
contar. Suas espadas estavam desembainhadas, flechas apontadas e lanças
erguidas. Alguns olhavam os Igibys de forma presunçosa — enquanto
outros olhavam para o buraco no chão da ravina. Entre os Fangs havia
quatro trolls, tão altos que suas cabeças roçavam as folhas e galhos das
árvores de Glipwood. No ombro volumoso de um troll estavam montados
Zouzab Koit e outro corre-crista, os quais pareciam muito satisfeitos
consigo mesmos. Preso no punho de outro fedorento troll, Peet, o Homem-
Meia, se contorcia, gritava e balançava a cabeça em pânico.
“São eles”, reportou Zouzab.
Um Fang, na frente da fila, assentiu.
“Uma palavra minha”, gritou, “e o troll essspremerá a vida de Artham
Wingfeather para fora dele.”
10

O Grande Rio Blapp

Os Fangs e os trolls estavam reunidos de um lado da ravina; os Igibys, do


outro. “Você sabe tão bem quanto eu que Peet prefere morrer a entregar
essas crianças a você”, Podo gritou através do vão. Os Fangs de Dang
abriram passagem para que o troll, segurando Peet, pudesse ir à frente.
As mãos do troll eram enormes. Os três dedos e o polegar de cada mão
tinham o comprimento de um dos braços de Janner, e o dobro da espessura.
Com uma mão, o troll agarrou Peet pela cintura, prendendo seus braços ao
lado do corpo, e com a outra, cobriu a cabeça de Peet para que nada de seu
rosto ficasse visível. Apenas um tufo de cabelo branco aparecia por cima do
punho da fera. O troll parecia uma criança segurando uma boneca.
“Isso pode ssser verdade”, disse o Fang, “e, ssse ele preferir morrer,
quem sou eu para ficar no caminho?”
O Fang gesticulou para o troll e, com um grunhido, o troll aumentou seu
aperto. Peet enrijeceu. Suas pernas se esticaram para baixo, com os dedos
dos pés apontados para o chão da floresta.
“Pare!” Gritou Leeli.
Sua voz era um som brilhante e bonito. Ela cutucou Nugget para a
frente, de modo que ele ficasse com suas grandes patas na beira da ravina.
Suas costas estavam retas, e a Janner parecia que ela estava mais zangada
do que com medo.
“Você! Solte-o agora mesmo!” Tão séria e autoritária era sua voz que,
por um momento, os trolls e os Fangs pareceram considerar sua exigência.
“Leeli, volte para trás”, ordenou Nia.
“Você pode ser a Donzela da Canção de Anniera, minha jovem, mas não
tem nenhum poder aqui”, interrompeu Zouzab. Com a menção do corre-
crista à Ilha Brilhante, um coro de rosnados irrompeu dos Fangs.
O líder dos Fangs olhou para um dos arqueiros, que assentiu. No silêncio
da floresta, Janner ouviu um som fraco, como árvores rangendo ao vento: a
tensão nas cordas dos arcos.
Peet começou a lutar, com seus gritos abafados pela mão do troll sobre
sua cabeça. O arqueiro Fang inclinou a cabeça escamosa para um lado, ao
longo da linha de visão da flecha, e fechou um dos olhos.
A flecha estava apontada para Podo.
A mente de Janner disparou. Ele sabia que bastava uma palavra do
comandante Fang e os arqueiros mandariam uma centena de flechas através
da ravina, voando contra eles. Mas se os Fangs os quisessem mortos,
percebeu, eles já estariam mortos. Gnag queria as Joias de Anniera e as
queria vivas, embora Janner não tivesse ideia do porquê.
“Vovô, se abaixe”, disse Janner com a voz mais firme que conseguiu
fazer.
Seja porque Podo percebeu a mesma coisa que Janner, seja porque se
submeteu a alguma nova autoridade na voz de seu neto, ele se lançou no
chão atrás de Janner. Um coro de silvos furiosos atravessou a distância entre
os Fangs e os Igibys, e Janner, então, notou que mais de uma flecha havia
estado apontada para seu avô.
“Mamãe, fique atrás de mim”, exigiu ele.
“Não seja tolo,” Nia sussurrou. “É muito perigoso.”
“Acho que eles têm medo de nos matar”, sussurrou Janner. “Gnag nos
quer vivos, mas eu não acho que o mesmo vale pra você, vovô e Oskar. Por
favor, apenas fique atrás de mim.”
Nia lançou um olhar furioso para os Fangs do outro lado e abaixou-se
atrás de Janner. Tink recuou timidamente e se escondeu atrás de Nia.
“Não, Tink!” Janner disse entre os dentes. “Fique na frente. Eles não
querem atirar em nós, apenas nos adultos.”
Tink soltou uma risada nervosa e se levantou novamente. “Eu sabia
disso. De verdade.”
Janner quase desatou a rir, apesar do perigo. Mas, aí, lembrando-se da
maneira como Tink hesitou na toca do baratodonte, sua vontade de rir
sumiu.
Nugget e as crianças Igiby ficaram como uma muralha na frente dos três
adultos.
O comandante Fang os observou com interesse por um momento, então
caiu na gargalhada. Os outros Fangs se juntaram a ele, e até mesmo os trolls
explodiram no que devia ser seu próprio jeito de gargalhar. As bochechas de
Janner queimaram de humilhação.
“Para onde vocês pensam que irão, idiotas?” Arguiu o Fang. Quando ele
falou, a risada morreu. “Vocês acham que podem ficar aí para sssempre,
enquanto os velhos se encolhem atrás de vocês como gatinhos?” Com isso,
o peito de Podo retumbou. “E o que vocês farão quando essa estúpida
disssputa acabar? Em questão de minutos, estaremos do outro lado desta
ravina e vocês serão amarrados e espancados. Aonde vocês irão? Para o rio?
Vão atravessar a nado o Grande Blapp, sem serem apunhalados pelos
peixes-adagas ou se afogarem nas corredeiras?”
A pele de Janner se encrespou de vergonha. O Fang falou a verdade. Por
alguns momentos, Podo, Nia e Oskar estavam seguros atrás das crianças,
mas o que fariam quando os Fangs avançassem? Janner podia ouvir o
barulho fraco das corredeiras do rio à distância, mas o que fariam quando
chegassem lá? O Fang estava certo: eles foram apanhados e nada podia ser
feito.
“Ah!” O Fang continuou. “E quanto a esse sujeito magrelo? Vocês vão
deixar o Mooph, aqui, espremê-lo como uma fruta? Não, acho que acabou
pra vocês, Wingfeathers. Gnag, o Sem-Nome, tem coisasss pra vocês
fazerem.”
“Janner”, Tink sussurrou. “Janner, o baratodonte. Veja.”
Do buraco no fundo da ravina, um fio de vapor se ergueu e, nas sombras,
uma escuridão mais profunda se contorceu. Um tremor sacudiu o solo e fez
com que seixos e galhos caíssem na toca do baratodonte.
Se um pouco de água do Primeiro Poço tornou o Nugget tão grande
quanto um cavalo, o que uma garrafa inteira dela faria com o baratodonte?
Janner se perguntou.
Ele olhou através da ravina para o seu tio na mão do troll. O que Peet
faria? Peet era o verdadeiro Guardião do Trono de Anniera. Iria ele sugerir
que Janner, Tink e Leeli se entregassem depois de tudo o que foi feito para
mantê-los vivos e protegidos de Gnag, o Sem-Nome?
Janner acreditava que não.
Então, ele fez uma escolha.
“Recuem”, sussurrou Janner. Ele agarrou o cotovelo de Tink e a coleira
de Nugget e os puxou para trás.
“Janner, o que você está fazendo?” Podo perguntou. “Estamos sem
opções aqui, rapaz. Oskar está no fim da linha, e o Blapp é só pra onde
podemos correr.”
Oskar bocejou e se sentou. “Ao contrário”, corrigiu ele. “Tive uma
soneca revigorante. E, como disse antes, eu me lembro...” Ele ajustou os
óculos e olhou para o norte. “Podo, meu velho, você já ouviu falar da Ponte
Miller?”
“Do que você tá falando, Reteep? Não é hora de aulas de história!”
“Nas palavras de...”
“Nas palavras de Podo Helmer, estamos sem saída! O melhor é a gente
se entregar e esperar por uma saída, quando o Criador permitir.”
“O que é Ponte Miller?” Tink perguntou.
Uma memória surgiu na mente de Janner: a imagem de um mapa de
Skree num livro de história que ele havia estudado apenas um ano atrás. No
ponto onde o Grande Rio Blapp desaguava no Mar Sombrio da Escuridão,
ficavam as Cataratas Fingap. Entre parênteses, abaixo das palavras
“Cataratas Fingap”, estava escrito “Ponte Miller, Segunda Época”. Janner
piscou os olhos e a imagem desapareceu de sua mente.
“Recuem!” Ordenou ele novamente. Então, falou ao comandante Fang,
tentando manter seu nível de voz. “Estamos indo agora. Foi uma boa visita.
Por favor, dê nossos cumprimentos a Gnag, o Sem-Nome, quando encontrá-
lo.”
O comandante Fang viu os Igibys se afastando e rosnou. Janner olhou
para o tio nas garras do troll e ficou apavorado por ter acabado de sacrificar
a vida de Peet, o Homem-Meia. Pisando com raiva, o comandante Fang se
afastou da ravina e deu uma ordem ao troll. A respiração de Janner vinha
em suspiros curtos, e seus olhos se fecharam bem apertados por conta
própria. Ele não podia suportar ver o troll matar o seu tio.
Mas não ouviu nenhum grito, nenhum som de luta. Janner deu uma
espiada e viu que o troll que segurava Peet havia sumido. Mas nem teve
tempo para considerar isso porque a voz do comandante Fang soou pela
floresta.
“Atrás deles!”
“Corram!” Janner urgiu, virando-se e puxando sua mãe para colocá-la de
pé. Tink e Podo ajudaram Oskar a se levantar e puseram um dos braços do
velho nas costas de Nugget. O outro braço passou por cima do ombro de
Podo, e o cachorro e o pirata correram atrás de Tink com Oskar entre eles.
Janner e Nia ficaram na retaguarda.
Atrás deles! Os Fangs se lançaram na ravina. Janner ouviu o teto de
galhos ceder sob o peso deles, depois os gritos dos Fangs, os urros dos trolls
e, sobrepondo-se a tudo isso, um rebuliço de gelar o sangue — os estalos e
estalidos de inseto do baratodonte voraz.
Janner arriscou olhar para trás e viu um pesadelo negro e brilhante
explodindo acima da borda da ravina. O baratodonte voraz tinha triplicado
de tamanho. A carapaça abobadada do inseto gigante ergueu-se como uma
bolha dura e oleosa, e suas pernas agitadas eram como lanças com muitas
articulações, apunhalando e dilacerando os Fangs. Exatamente quando
Janner desviava os olhos da carnificina, um troll girou pelo ar e bateu
contra uma árvore como se fosse nada mais do que um brinquedo.
Eles correram e correram. Ninguém falava. Ninguém perguntava sobre a
Ponte Miller. Os únicos sons eram suas respirações pesadas, os gritos de
trolls ecoando pela floresta e o rugido constante do Grande Blapp se
aproximando a cada passo que davam.
“Não vai demorar muito para que os Fangs passem por aquela coisa”,
constatou Podo entre respirações.
Janner sabia que os Fangs logo estariam no encalço deles, mas alguns
minutos eram melhor do que nada, não? Pelo menos eles ainda estavam
livres, mesmo que estivessem correndo para salvar suas vidas.
Então ele se lembrou de Peet. Talvez na confusão do ataque do
baratodonte voraz, o tio Artham tivesse encontrado uma maneira de
escapar.
Oskar tropeçou e seus braços escorregaram de Nugget e Podo. “Estou
bem, estou bem”, insistiu ele, estremecendo quando Podo o colocou de pé.
Eles pararam. Todos, exceto Leeli, estavam sem fôlego e pálidos de tanto
correr. Nia caminhou um pouco à frente e olhou para o norte, com as mãos
na cintura.
Podo segurou o ombro de Janner e pigarreou. “Você salvou alguma coisa
daquela água do Primeiro Poço antes de jogá-la no baratodonte? O Oskar
aqui precisa de uma ou duas gotas.”
“Não, senhor”, murmurou Janner. Ele baixou a cabeça, meio arrependido
e meio zangado por estar prestes a receber um sermão sobre algo que salvou
suas vidas. Janner olhou para o chão, dolorosamente ciente de que o resto
da família estava olhando para ele.
Mas Podo não fez sermão. Ergueu o queixo de Janner e o olhou nos
olhos. “Você fez bem, rapaz. Manteve sua cabeça lá atrás. Estou orgulhoso
de você.” Ele deu um tapinha nas costas de Janner. “É como Navios e
Tubarões, né? Sempre há uma saída.”
“Nem sempre”, corrigiu Nia, que estava no topo de uma colina não
muito à frente.
Quando Janner a alcançou, viu que haviam chegado ao final da Floresta
Glipwood. Abaixo deles, contorcendo-se através de um aglomerado de
rochas molhadas, estavam as águas brancas e furiosas do Grande Rio Blapp.
11

O Fim da Estrada

Então, que negócio é esse de Ponte Miller?” Questionou Tink.


Eles pararam no topo de uma colina e olharam para o caos intransponível
do Grande Blapp.
O lado de Oskar havia parado de sangrar, mas o velho estava perto da
exaustão. Ele havia estado correndo desde aquela manhã, primeiro
roubando o burro dos Fangs do estábulo atrás da Floricultura da Ferínia,
depois levando o burro para o norte e para todos os perigos da floresta,
apenas para ser forçado a correr quando finalmente alcançou seus amigos.
Ele enxugou a testa com um lenço e tentou sorrir. Foi um sorriso cansado e
abatido, que fez Janner temer pela vida de seu mentor, ao mesmo tempo que
o fez amar ainda mais aquele gentil senhor.
“É tão antiga que pode ser só uma lenda”, começou Oskar. Suas pernas
se dobraram e Janner correu para apoiá-lo. “Oh, céus!”
“Acho que me lembro de ter visto isso num mapa”, complementou
Janner. “É uma ponte... nas Cataratas Fingap.”
“Cataratas Fingap!” Podo falou cuspindo. “Jiripocas e mingaus! Como
poderia haver uma ponte naquele lugar horrível? Estive lá quando era um
garoto, e não passava de nuvens e trovões, uma coisa que fazia o estômago
embrulhar e sair pela boca. Não. Absolutamente não. Não podemos ir para
o leste.”
“Por que não?” Perguntou Nia. “Não podemos ir para o oeste. A floresta
se estende por quilômetros e quilômetros, e só o Criador sabe quantas vacas
encontraremos, mesmo se os Fangs não nos pegarem.”
“Mas... mas... as Cataratas Fingap ficam muito perto do Mar Sombrio.
Podemos cair.” Podo cruzou os braços sobre o peito, como se isso
encerrasse a conversa.
“Papai, se há uma ponte, e ela fica a uma curta caminhada daqui,
podemos atravessá-la antes mesmo que os Fangs saibam que ela está lá.
Eles podem até presumir que fomos para o oeste. Acho que devemos ouvir
Oskar e Janner.”
“Ouça, moça.” Podo baixou as sobrancelhas para ela. “Há uma hora em
que você tem que escolher entre a morte e a captura. Prefiro morrer a deixar
esses ensebados me prenderem, mas temos que pensar nesses jovens aqui.
Você viu como os Fangs se contiveram quando as crianças ficaram na nossa
frente. Esses lagartos não querem matá-los. Ou querem, mas têm medo de
Gnag, o Sem-Nome. Talvez eles tenham uma chance melhor de sobreviver
se nos entregarmos. Talvez... talvez Gnag acabe não sendo tão ruim assim.”
Nia ergueu uma sobrancelha.
Podo ergueu as mãos, no ar. “Ah, não é isso que eu quero dizer. Só estou
dizendo que, se os Fangs não têm como objetivo matá-los, talvez isso seja
melhor do que ser jogado da beira das cataratas para o fundo do mar.”
Tink acenou com a cabeça. “Acho que ele está certo, mamãe. Não quero
morrer.” Ele engoliu em seco. “E eu realmente não quero morrer caindo do
penhasco.”
“Obrigado, rapaz. Que bom que você tem algum bom senso em sua
cabeça.”
Nia estava tão chateada que não conseguia falar. Janner odiava ver sua
mãe e seu avô em conflito. Quando Peet estava por perto, os dois homens
discutiam constantemente, mas era diferente. Era mais profundo do que
uma discussão. Era uma decisão que significava mais do que paz entre duas
pessoas — significava a diferença entre vida e morte para todos eles.
Janner não sabia o que pensar. Se eles se entregassem, pelo menos ainda
estariam vivos. Enquanto as Joias de Anniera existissem, o Trono da Ilha
Brilhante teria chance de ser restaurado. Mas se morressem, quaisquer
planos que Gnag tivesse para as crianças seriam frustrados, o que acabava
sendo uma coisa boa.
“Não podemos simplesmente deixá-los nos levar”, contestou Leeli. “Será
que o Rei Esben — será que papai — teria escolhido a captura em vez da
morte? Ele escolheu a morte, não escolheu? Ele poderia ter escapado do
castelo, mas escolheu arriscar sua vida por, bem, o que quer que houvesse
no castelo que ele precisava proteger.”
“Vovô, podemos conseguir”, encorajou Janner. “Talvez haja uma ponte.”
“Mas e se não houver?” Tink perguntou, mudando o peso de sua
mochila.
“Há uma ponte”, afirmou Oskar. “Tem que haver, velho amigo. Navios e
Tubarões, lembra?”
“Certo!” Podo rugiu, e então assumiu rapidamente o controle de si
mesmo. “Certo. Talvez haja uma ponte. Oskar, se você diz que há uma
ponte nas Cataratas Fingap, é pra lá que vamos. Andem! Perdemos um
tempo precioso.”
Nugget não teve problemas para pular entre os pedregulhos. Tink saltava
de pedra em pedra, tentando, em vão, acompanhar o cachorro e sua irmã. O
Grande Blapp avançava com crescente frenesi à medida que se aproximava
das cataratas. O ar estava denso com uma névoa que encharcou os Igibys e
Oskar, mas tinha um cheiro limpo e penetrante.
Todos avançaram pelas rochas à medida que a margem subia, tão
íngreme que Janner temeu que seria impossível encontrar um caminho
seguro para descer até a ponte, se é que ela existia. O outro lado do Blapp
não parecia diferente — pedras molhadas e xisto que subiam até a linha das
árvores.
Ele sabia, pelos mapas, que o rio dividia ao meio a Floresta Glipwood.
Após a floresta, ao norte, ficavam as Montanhas Rochosas e depois as
Pradarias de Gelo. Janner sempre havia sonhado em ver mais de Kistamos,
mas nunca imaginou que seria fugindo de Fangs, trolls e canicórneos.
“Vejam!” Leeli gritou.
Ela e Nugget estavam a alguns passos à frente dos demais, onde o rio
fazia uma curva acentuada para a direita e parecia correr direto para um
elevado penhasco e desaparecer.
“Estou vendo!” Leeli comemorou. “As Cataratas Fingap e depois o mar.
É lindo!”
Ao ouvir essas palavras, Podo abaixou a cabeça e fechou os olhos — se
em oração, se em preocupação, Janner não sabia dizer. A boca do velho
contraiu-se nos cantos e suas narinas dilataram-se. A juventude adquirida
com a água do Primeiro Poço se foi. Janner via agora um velho cansado,
com roupas molhadas e cabelos grisalhos pendurados em mechas pegajosas.
Os olhos de Podo se abriram e olharam diretamente para ele. Eles se
encararam por um momento, então Podo piscou, forçou um sorriso e saltou
para a próxima pedra.
Atrás deles! Janner ouviu o rugido de um troll e o uivo de um
canicórneo.
Ele puxou sua mãe para a pedra seguinte e permaneceu segurando sua
mão enquanto se apressavam. Podo ajudou Oskar, enquanto Tink se
manteve perto de Leeli e Nugget. Janner ficou satisfeito ao ver que Tink se
virava a cada poucos passos para ter certeza de que seu arco não era
necessário.
Finalmente, dobraram a curva do rio e viram, bem abaixo, uma nuvem
de névoa iluminada por um arco-íris, a nuvem chiante que se erguia das
Cataratas Fingap. O rio era dividido por penhascos altos e irregulares em
centenas de cursos ruidosos que despencavam em uma fúria branca. Muito
além e abaixo da névoa estava o amplo e silencioso prateado do Mar
Sombrio da Escuridão.
Essa visão fez o grupo parar de repente. Amontoaram-se, ensopados e
cansados. Se Janner fosse capaz de ler mentes, teria percebido que cada um
deles tinha o mesmo pensamento: com os Fangs atrás e as cachoeiras à
frente, parecia certo que o rio os mataria. Iria sugá-los e lançá-los no negro
e frio abismo.
Tink parou na frente de seu avô, tentando ser ouvido acima do rugido
das cataratas.
“Quê?!” Podo gritou perguntando.
“Eu disse: não vejo nenhuma ponte!” Tink respondeu gritando.
Tink estava certo. A ideia de que algum dia pudesse ter havido uma
ponte nas Cataratas Fingap parecia ridícula a Janner, agora que podia ver o
lugar com seus próprios olhos.
“O que faremos?” Berrou Janner.
“Avançamos!” Reafirmou Leeli. O vento chicoteava seus cabelos sobre o
rosto, e ela olhava para o mar com uma expressão familiar de feroz
determinação.
O rosto de Podo, no entanto, estava pálido. Ele estava parado com uma
mão firme no ombro de Oskar, e seus olhos se voltavam para todos os
lados, exceto para o mar. Os dois homens eram uma visão lamentável. A
barriga de Oskar estava envolta em bandagens ensanguentadas e o topo de
sua cabeça brilhava de umidade. Água e suor escorriam das sobrancelhas de
Podo. Estavam com seus ombros caídos e suas bocas abertas. Era injusto
que dois homens velhos — dois homens bons que deveriam estar sentados
perto do fogo com os pés para cima e as barrigas cheias — estivessem
agarrados um ao outro, nas margens do Grande Blapp, com morte adiante e
morte atrás.
“Vovô”, Leeli o chamou. “Posso ver o mar daqui, e não é sombrio de
forma alguma. É amplo, tremendo e bonito. Devemos seguir esse caminho.
Não sei o porquê. E sei que deveria estar com medo, mas há algo... certo
sobre isso. Algo sobre o tamanho do oceano, sobre a forma como ele se
estende eternamente e nivelado — me dá vontade de cantar.”
Parecia uma coisa boba de dizer, mas os olhos de Leeli estavam firmes.
Ela inclinou o queixo e puxou o cabelo do rosto para que o vento o soprasse
para trás. Podo sorriu para sua neta e acenou com a cabeça. Janner olhou
para além da névoa, mas viu apenas o oceano e não sentiu nada além de um
arrepio tonto no estômago por ver quão distante ele corria abaixo da
cachoeira.
Nia colocou a mão na coleira de Nugget, respirou fundo e conduziu o
cachorro e Leeli pela encosta rochosa em direção à cachoeira.
Um grande estrondo cortou o ar!
Logo atrás de Janner, uma pedra do tamanho de um cavalo explodiu em
lascas. Janner ergueu os olhos e viu um troll espiando por cima da margem
do barranco por entre as árvores. Então vários Fangs apareceram e logo a
linha de árvores acima da margem do rio fervilhava deles.
Flechas batiam nas rochas ao redor de Oskar e Podo. Janner gritou para
Tink, e eles se aproximaram dos velhos. As flechas pararam por um
momento, mas Janner viu os Fangs conversando e apontando para Nia. Ela
estava perto de Leeli, mas não o suficiente para dificultar um bom arqueiro
— que conseguiria evitar a menina e acertar a mãe.
Podo acenou e gritou para Nia ficar mais perto de Leeli. Os Igibys se
apressaram ao longo de um trecho de xisto que corria paralelamente a uma
piscina espumosa formada na beira do rio. Pelo canto do olho, Janner viu as
formas de peixes do tamanho de seu braço nadando na parte rasa.
“Afastem-se da água!” Janner gritou enquanto corriam. Ninguém ouviu
o que ele disse, mas olharam para onde ele apontava e se afastaram o
máximo possível da borda.
Janner olhou para trás e viu dois trolls escorregando pelo barranco,
chocando-se com as pedras maiores e com sorrisos tão largos, que ele viu,
em cada uma de suas bocas, dois dentes quadrados frontais com um
generoso espaço entre eles. Com muito menos graça (embora seja difícil de
imaginar), os Fangs vinham aos trambolhões, atrás dos trolls, tão
caoticamente como se tivessem sido empurrados lá de cima — o que
provavelmente aconteceu, mesmo. Os trolls se puseram de pé, sacudiram a
poeira e partiram atrás dos Igibys a trote assim que o primeiro dos Fangs
chegou ao fundo.
Quando os trolls passaram pela piscina rasa, cardumes de peixes-adagas
saltaram da água. Seus narizes pontiagudos enterravam-se profundamente
na carne áspera dos trolls. Os trolls urraram e arrancaram os peixes ao
mesmo tempo em que muitos mais saltavam da água. Janner ficou abalado
com a proximidade que ele e sua família haviam estado do mesmo destino.
Todos se aproximaram da cachoeira, exceto Tink, que parou, olhando
para as pedras.
“Tink!” Janner gritou.
Tink estava com um olho fechado e a cabeça inclinada para o lado.
Olhava para a margem acima da cachoeira da mesma forma como estudava
uma árvore antes de desenhá-la.
“O que você está fazendo?!” Janner berrou. Ele puxou o braço de Tink
com tanta força que seu irmão tropeçou e caiu.
“Ai!” Tink gritou, enquanto se levantava de um salto.
“Tink, eles estão bem atrás de nós!”
“Você acha que eu não sei disso?” Tink disse, retoricamente, com os
dentes cerrados, correndo na frente de seu irmão.
“Então o que você estava fazendo?” Janner disparou.
Tink não respondeu.
Os meninos pararam, derrapando, ao alcançarem os outros, que haviam
chegado ao fim da estrada. Estavam à beira de um penhasco. Abaixo havia
um redemoinho escuro de névoa.
À esquerda corria o rio, furioso, branco e frio.
À direita, a encosta íngreme e úmida de xisto e pedras se erguia e
desaparecia em uma névoa cinzenta.
Atrás deles, os trolls e Fangs avançavam.
“Sem ponte, né?” Questionou Janner.
“Não mais, filho”, respondeu Nia. “Se alguma vez existiu uma ponte, já
se foi.”
12

Trovões, Borrifos e Pedras

Então, esse é o fim”, lamentou Janner.


Nia sorriu e afastou uma mecha de cabelo úmido de seus olhos. “Estou
feliz por termos tentado.”
Janner apoiou a cabeça no ombro de sua mãe, surpreso por poder
encontrar algum conforto em meio a uma situação tão desoladora, e isso
porque estava perto daqueles que amava e que o amavam.
Então pensou em Tink. Janner se virou para ele e cutucou o peito do
irmão com o dedo.
“O que você estava fazendo lá trás? Estivemos em perigo o dia todo, mas
você fica parando por aí! Isso é algum jogo pra você?”
“Eu não estava parado! Eu vi alguma coisa...”
“Oh, parem com isso”, disse Leeli. “Agora não é hora pra isso.” Ela se
inclinou para a frente e apoiou a cabeça entre as orelhas de Nugget. O
cachorro ganiu e abanou o rabo. “Por que eles não estão vindo?”
“Porque sabem que estamos encurralados, moça”, concluiu Podo.
“Veja.”
Os Fangs se reuniram na base do barranco e ordenaram que os trolls se
afastassem. Os Fangs pareciam preocupados que as crianças pudessem de
alguma forma ser empurradas para a queda d’água durante a luta, caso
avançassem rápido demais. Então, procediam com cautela. Mais Fangs
apareceram e se organizaram em fileiras. Enquanto isso, os trolls se
ajoelharam como crianças à beira do rio e passavam seus dedos pela água
veloz. Quando os peixes-adagas saltavam, os risonhos trolls os estapeavam
de volta para as corredeiras.
“Para onde vamos agora?” Perguntou Oskar.
“Lugar nenhum”, observou Podo com um suspiro profundo. “Resistimos
e lutamos.” Ele puxou sua espada. “Lutamos e não desistimos até que a
água esteja batendo em nossos dedos dos pés, certo? Se algo terrível
acontecer, e nós da velha-guarda não conseguirmos ir adiante, vocês,
crianças, fiquem juntos, ouviram? Lutem com os dentes se for preciso, mas
fiquem juntos. Não sei o que o velho Gnag planejou pra vocês, mas somente
confiem no Criador e... e façam como seu pai gostaria que vocês fizessem.
Façam como eu e sua mãe gostaríamos que fizessem. Não sigam
meramente seus corações. Seus corações trairão vocês.”
“Tink, aonde você está indo?” Janner perguntou. Tink estava a cerca de
dez passos de distância, procurando um caminho em torno de uma rocha
que parecia flutuar em meio ao nevoeiro. “Tink!” Janner gritou, ficando
com raiva novamente.
“Eu já disse, pensei ter visto algo”, Tink falou sem olhar de volta. “Um
contorno nas rochas, como se alguém tivesse começado a desenhar uma
escada ou um caminho para baixo da linha de árvores, mas nunca
terminado. Veja!” Ele chutou algumas pedras soltas.
Tudo o que Janner conseguia ver eram mais pedras.
Tink revirou os olhos e limpou um pouco mais do xisto. “Degraus”,
anunciou ele.
O pedaço quadrado de rocha estava desgastado por anos de erosão, mas
era claramente feito pelo homem, tão largo quanto o comprimento de uma
espada e cortado a partir da rocha.
“Não vejo por que você está tão feliz. Como um ou dois degraus nos
ajudam a passar pelos Fangs?”
Tink apontou para baixo do penhasco, onde os outros se reuniam, e
Janner entendeu. Viu enterrado sob os seixos e a ardósia o contorno tênue
de mais degraus, cortados na face do penhasco. Mesmo agora, sabendo que
estavam lá, teve que apertar os olhos e usar sua imaginação para ver as
escadas, e ele não tinha certeza se alguém além de Tink os teria conseguido
identificar.
Janner riu e deu um tapinha nas costas de Tink. “Escadas! Tink
encontrou escadas!”
Os degraus provavelmente levavam a outro beco sem saída, mas saber
que sua resistência final não seria ali na margem, e que ela não aconteceria
por mais alguns minutos, deixou Janner eufórico.
Enquanto Podo abaixava uma sobrancelha e Oskar erguia as suas, Nia,
Leeli e Nugget pularam para onde Janner e Tink estavam. Nia viu os
degraus imediatamente. Ela suspirou, beijou a testa de Tink e guiou Nugget
para baixo. Janner, depois de dar a Tink um olhar de desculpas, seguiu seu
irmão para baixo. Podo e Oskar foram os últimos. Em instantes,
desapareceram abaixo da borda do penhasco e na névoa.
A escada era traiçoeira, não mais do que uma saliência estreita cortada
na parede de rocha. A parede se curvava para longe da margem e parecia
levar diretamente para dentro da cachoeira, enquanto à direita o chão caía e
desaparecia no vazio abaixo.
Acima do barulho das quedas, Oskar e Podo podiam ser ouvidos logo
atrás de Janner e Tink, bufando e resmungando coisas como “roupas
molhadas e destruídas” e “meus óculos estão tão embaçados que quase não
consigo ver nada” e “acelere, seu velho reclamão, eles devem estar logo
atrás”.
Bem na frente de Janner, Nugget se mantinha o mais próximo possível
da parede, com o rabo entre as pernas. A saliência os levou para trás de uma
torrente de água, uma passagem entre trovões, borrifos e pedras. Quando
emergiram, a escada desceu mais abruptamente na névoa.
Nugget parou e Janner se chocou contra o traseiro do cachorro.
“O que foi?” Ele gritou para Nia e Leeli ao se espremer para passar por
Nugget.
“Os degraus terminam aqui”, disse Tink, apontando para uma queda
d’água branca, sibilando por um espaço tão largo quanto a estradinha que
saía do chalé Igiby. Se fosse um riacho na floresta, eles poderiam ter pulado
sem muitos problemas.
Janner avançou e enfiou a mão na água corrente, que foi empurrada rio
abaixo como se alguém a tivesse esbofeteado. Não havia a menor
possibilidade de vadearem ou nadarem sem serem arrastados.
“O que está nos segurando?” Podo perguntou atrás de Nugget.
Janner se virou para responder e viu Fangs descendo os degraus atrás
deles.
“Vovô!” Ele esbravejou.
Em um movimento fluido, Podo desembainhou a espada, girou e colocou
um fim no homem-lagarto mais próximo. Demorou alguns instantes para o
segundo Fang na fila entender o que tinha acontecido, mas quando
entendeu, rosnou e brandiu sua espada para Podo.
“Andem logo!” Podo bradou, aparando um golpe e chutando o segundo
Fang para o lado. Outro vinha logo atrás.
“Tink, você consegue fazer isso?” Janner perguntou gritando.
“Fazer o quê?”
“Pular! É nossa única chance. Consegue?”
“Mas e daí? E o Oskar? E o vovô?”
O temperamento de Janner explodiu novamente. “Não sei! Mesmo que
você seja o único que consiga, é melhor do que sermos todos pegos!
Consegue?”
Sem outra palavra, Tink recuou, respirou fundo e saltou. Ele pousou do
outro lado da abertura, rolou e parou agachado.
“Leeli, você consegue fazer o Nugget pular?” Nia gritou.
“Acho que sim”, cogitou Leeli. Ela se inclinou e sussurrou no ouvido de
Nugget.
“Aqui, garoto!” Tink chamou. Bateu palmas e assobiou.
Janner viu Podo lutando com outro Fang, este empunhando uma lança.
Podo dançou para longe da ponta da lança e esbarrou no traseiro de Nugget.
Nugget ganiu e saltou para o outro lado do vão.
“Bom garoto, Nugget!” Gritou Nia.
“Mamãe, você é a próxima”, ordenou Janner. “Vá!”
Nia agarrou o cotovelo de Janner. “Não, filho, você deveria...”
“Vá!” Janner comandou, e Nia foi. Ela era magra e forte, mas seus pés
não alcançaram o outro lado. Nia caiu com a cintura na borda e as mãos se
agitando para encontrar apoio na rocha. Suas pernas desapareceram na água
e a jogaram de lado.
“Mamãe!” Leeli clamou.
Tink agarrou as mãos dela e puxou com toda a força, mas podia sentir
sua mãe se afastando. Nia não gritou. Ela apertou sua mandíbula e fixou seu
olhar em seu filho e sua filha, os olhos cravados neles, de forma que as
veias saltavam em suas têmporas.
Nugget pegou uma dobra da blusa de Nia entre os dentes, tirou-a das
corredeiras e a colocou no chão. Ela rolou de costas, ofegante.
Janner não tinha certeza do que fazer a seguir. Ele sabia que poderia
pular, mas e Oskar e Podo? Alguém teria que conter os Fangs para permitir
que os outros escapassem e, se Nia mal tinha conseguido saltar, Oskar
certamente morreria.
Janner desembainhou sua espada.
Ele queria ser forte e corajoso o suficiente para passar por Podo e afastar
os Fangs, permitindo, assim, que seu avô pudesse escapar. Mas ele sabia
que não era páreo para os Fangs. Embora tivessem se mostrado lutadores
medíocres, eles ainda eram venenosos e fortes. Muita coisa tinha acontecido
desde o Festival do Dia dos Dragões — ele havia ajudado Podo a derrotar o
Comandante Gnorm e se habituado ao peso de uma espada —, mas ainda
tinha só doze anos.
Janner disse a si mesmo que não estava sendo covarde — estava sendo
realista. Gnag queria as Joias de Anniera, não Podo ou Oskar. Não seria
certo fugir enquanto podia? Oskar e Podo não lhe diriam para fazer o
mesmo?
Ele olhou para trás através da névoa e viu Tink, Nia e Leeli observando,
nenhum deles tendo certeza do que fazer. Podo continuava enfurecido,
amaldiçoando os Fangs em meio ao clangor de espadas e ao estrondo do
Grande Blapp. Oskar pressionou com a mão o lado ferido e afundou no
chão.
Janner se posicionou entre aqueles que amava, com sua espada
desembainhada, oscilando entre duas escolhas terríveis: fugir e esperar que
Podo pudesse segurar os Fangs por tempo suficiente para ele e seus irmãos
atravessarem as cataratas — se é que havia como fazê-lo —, ou lançar-se
em uma luta que ele não poderia vencer.
Então Janner se lembrou do tio. Viu em sua mente a maneira como Peet,
o Homem-Meia, havia voado através do ar para dentro da ravina do
baratodonte, com aquela expressão feroz nos olhos injetados.
Proteger. Proteger. Proteger.
Janner não era mais apenas Janner Igiby da Cidade de Glipwood. Ele era
Janner Wingfeather, Guardião do Trono de Anniera, protetor do trono e
protetor daqueles a quem amava. Ele imaginou Peet — Artham Wingfeather
—, cabelos preto-azeviche, olhos firmes, braço forte erguendo a espada.
Artham o lembrou de que sangue real corria em suas veias, não apenas por
causa de sua ancestralidade, mas por causa do amor daqueles que existiram
antes dele e deram suas vidas por ele.
Um grito de guerra jorrou do seu interior feito uma fonte. Janner colocou
Oskar de pé e meio que o carregou até a beira da água.
Nos degraus acima, outro Fang apareceu ao lado daquele com a lança e
mirou uma besta em Podo. Pouco antes de disparar, Podo agarrou a ponta
da lança e acertou um Fang no outro, derrubando os dois por cima da borda.
A flecha se perdeu nas brumas. Antes que o velho pirata tivesse tempo de
recuperar o fôlego, mais dois Fangs emergiram da névoa. Podo gemeu.
“Tink! Ajude Leeli a descer!” Janner ordenou. “Nugget, venha aqui!
Aqui!”
Com um ganido, Nugget saltou de volta pelo vão.
“Vamos, senhor Reteep”, insistiu Janner. “Preciso que suba nas costas de
Nugget.”
“Oh, meu Deus”, ofegou Oskar. “Não acho que seja uma boa ideia,
jovem Janner. Nas palavras do poeta Shank Po: ‘Prefiro não. Tem outro
jeito?’”
Janner sorriu, apesar de como estava. “Vamos lá, senhor.”
Ele puxou a cabeça de Nugget para o chão, e o corpo do cachorro fez o
mesmo. Oskar foi mancando até o cachorro gigante e caiu sobre ele,
desajeitado. Nugget choramingou e se esforçou para ficar de pé sob o peso
do homenzarrão. Oskar passou os braços em volta do pescoço de Nugget.
Nugget, forte como era, nunca carregara ninguém tão grande quanto
Oskar. O cachorro farejou a beirada e ganiu para Leeli. Ela sorriu e bateu
palmas duas vezes.
O cachorro se agachou, flexionou os grandes músculos das pernas e
saltou. Ele caiu bem, mas Oskar perdeu o apoio e caiu no chão.
Janner virou-se para Podo.
“Rapaz, melhor você ir! Não resta muito do velho Podo. Você tem que
fugir em segurança!” Podo empurrou a lança em outro Fang. “Estou num
bom lugar. Não mais do que dois podem atacar ao mesmo tempo. Alguém
tem que ficar aqui e segurá-los.”
Janner viu a lucidez no plano de Podo. Fazia sentido.
Ele passou adiante de Podo e ergueu sua espada. Não tinha certeza de
como posicionar os pés ou segurar sua arma para o ataque iminente, mas
sabia que, se Artham Wingfeather, Guardião do Trono da Ilha Brilhante,
pudesse vê-lo agora, sorriria.
13

A Ponte Miller

Janner nunca teve a chance de brandir sua espada.


Os dois Fangs nos degraus recuaram para dentro da névoa e deixaram
Janner e Podo estupefatos.
“Vamos, rapaz!” O velho pirata, não perdendo tempo para descer os
degraus, derrapou até parar na beira da água corrente. Sem receber nenhum
comando, Nugget pulou de volta e se agachou para que Podo pudesse
escalar. O cachorro gigante latiu e o carregou.
Janner foi o último a atravessar.
Seguiram em frente, ainda incapazes de ver mais do que alguns metros à
frente. A saliência da rocha se alargou e permitiu que eles se movessem em
um ritmo mais rápido. Então, acima do estrondo das quedas, veio o som
familiar e assustador do rosnado-gemido de um troll. Acobertado por ele,
havia um trepidante tump-tump-tump, como se o coração do rio batesse.
Janner percebeu que o troll estava descendo os degraus atrás deles.
“Rápido!” Janner gritou. Ele passou à frente do grupo e encontrou Tink
dando o primeiro passo para descer outra escada estreita.
“Estou indo rápido!” Retrucou Tink. “Simplesmente não consigo ver o
que está à frente!”
Janner desceu correndo os degraus, passando por Tink, esperando que
não terminassem abruptamente como os anteriores, ou seu ímpeto o levaria
direto para além da borda. Imediatamente a névoa clareou. A luz do sol
apareceu em alguns lugares, e ele avistou o céu azul.
O coração de Janner bateu forte, no mesmo ritmo dos passos dos trolls.
“Está mais claro aqui embaixo!” Ele gritou por cima do ombro. “Podemos
estar chegando perto do outro lado!”
Os outros desceram os degraus o mais rápido que ousaram. Janner ficou
de olho na névoa atrás deles, esperando os trolls emergirem.
O ar mudou de uma neblina indefinida para filetes e espirais
trespassados por raios de sol. O céu estava totalmente visível acima, mas
abaixo havia apenas névoa, como se estivessem caminhando sobre uma
nuvem.
Então, com uma rajada de vento, a névoa se dissipou por um momento
impactante. O prateado contínuo do Mar Sombrio da Escuridão vicejava
diante deles. Aqui, o planalto de Skree tinha o dobro da altura dos
penhascos de Glipwood. As minúsculas ondas brancas eram invisíveis desta
altura, e o horizonte curvava-se para baixo ao norte e ao sul, o que fez
Janner se perguntar se, afinal, os livros que havia lido estavam corretos em
suas afirmações sobre Kistamos ser redondo como a lua.
Por fim, Janner viu a extremidade final das Cataratas Fingap e percebeu,
com um estalo de desespero, que haviam apenas começado a cruzar o rio
gigantesco. Onde o Blapp desaguava sobre a borda e no mar, o rio se
dividia em vários canais, todos tão largos como se fossem rios eles mesmos,
espalhando-se como veias espumosas, antes de mergulharem no Mar
Sombrio.
Mas as águas faziam uma última parada no caminho para baixo.
Uma plataforma rochosa projetava-se e pegava as quedas d’água como
uma mão aberta, formando um lago raso em sua palma. Na extremidade
mais distante da plataforma erguiam-se torres de pedra como dedos
gigantescos curvados para cima, e as brancas águas escorriam por eles,
fundindo-se novamente enquanto caíam. Entre cada uma das torres
alongava-se o que parecia, à distância, uma extensão de rocha da espessura
de um papel.
A Ponte Miller.
Janner podia ver que fora construída por uma civilização muito mais
grandiosa do que a dele mesmo. As torres estavam desgastadas por milhares
de anos expostas ao tempo e à água, mas estava claro que não eram
formações naturais. Alguém construiu isso, ele pensou, e se sentiu muito
pequeno. E entendeu por que a ponte era tão pouco conhecida; apenas os
suficientemente tolos para descer as escadas na névoa chegariam perto o
bastante para vê-la.
Mas, tão rapidamente quanto a névoa havia sido dissipada pela rajada de
vento, os pensamentos de Janner foram dispersos por um rugido
ensurdecedor atrás deles.
Podo se virou para encarar o troll.
A criatura elevava-se sobre eles, agachada em uma pedra do tamanho de
uma casa. Tinha vindo de outra direção, Janner percebeu, provavelmente
saltando de pedra em pedra através da névoa, para que pudesse isolar a
família ou pelo menos surpreendê-los. Enquanto Podo vigiara as escadas, o
troll viera se aproximando por cima. Após um sorriso idiota para a família
Igiby, a fera se recompôs e saltou da rocha.
“Corram!” Podo berrou.
Indiferente à altura vertiginosa, Janner agarrou a coleira de Nugget e
desceu correndo os degraus, que se afastavam da parede do penhasco e se
estreitavam.
O que antes era uma saliência, agora era uma ponte sustentada por torres
de pedra. O caminho ainda era largo o suficiente para dois andarem juntos,
mas a queda de ambos os lados tornava o avanço precário. Nugget seguiu
Janner apenas por causa do constante encorajamento de Leeli, e Janner se
perguntou mais de uma vez se a antiga ponte suportaria o peso do cachorro
gigante. Ele orava para que aguentasse, ainda que esperasse que desabasse
sob o troll.
O troll pousou na saliência com um estrondo que enviou vibrações aos
pés de Janner. Logo atrás dele, Nia lutava para descer os degraus o mais
rápido que podia com Oskar mancando ao seu lado, um braço em volta de
seu ombro. Tink ficou na retaguarda com Podo e descia lentamente as
escadas de costas com o arco apontado para o troll. Janner lembrou
novamente a si mesmo de que, se sobrevivessem, ele devia a Tink um
pedido de desculpas e muitos elogios.
O troll parou onde a saliência se tornava ponte. O bruto, inclinando a
cabeça para o lado e coçando o tufo de cabelo, deu um soco na ponte.
Seixos se soltaram e desapareceram na água abaixo, mas a ponte resistiu.
Um segundo troll juntou-se ao primeiro, e pareciam estar conversando, com
suas bocarras beiçudas se movendo nervosamente. Janner gostaria de poder
ouvir que tipo de língua falavam, e, se não estivesse correndo para salvar
sua vida, teria rido com a ideia.
Eles então alcançaram o primeiro dos dedos elevados da plataforma. O
topo era uma área plana não maior do que o jardim dos Igiby, grande o
suficiente para seis humanos e um cachorro gigante, mas não mais que isso.
Dali, Janner podia ver as Cataratas Fingap em sua totalidade, acima e atrás:
a bacia de águas fluía entre as rochas, batendo em pedras esculpidas e se
espalhando novamente; jorrando pelo ar enevoado até a palma da
plataforma rochosa, onde a água se acumulava no que parecia ser um lago
fervente, antes de deslizar entre as torres e entrar no Mar Sombrio.
A plataforma se projetava do penhasco de modo que, quando Janner
olhava para baixo, sentia que estava flutuando. Via apenas água branca e,
abaixo, o mar cinza. O mundo inteiro era água.
Cada um deles, até mesmo Nugget, estava sem fôlego. A chegada deles à
primeira torre parecia algum tipo de realização, e os trolls ainda não haviam
se aventurado na ponte, então silenciosamente concordaram em parar para
descansar um pouco. Nugget carregava Leeli no centro da aglomeração. Ela
estava sentada com as costas eretas, uma mão acariciando o pescoço de
Nugget, a outra protegendo os olhos enquanto olhava para o horizonte com
uma calma que deixava Janner perplexo. Tink segurava a mão de Nia e
havia recostado a cabeça no braço dela, parecendo o garotinho cansado que
de fato era.
Janner apertou a mandíbula. Desejou estar de volta ao chalé Igiby,
deitado no beliche abaixo de Tink, rindo com o irmão por alguma coisa
boba. Suas vidas em Glipwood não tinham sido ideais, mas estar de pé em
uma rocha em meio ao clamor das Cataratas Fingap também não era. Até os
T.A.N.E.G. pareciam melhor do que isso.
Podo pigarreou e cuspiu no Mar Sombrio. Janner viu que seu avô tremia,
encarando o mar com o que parecia ser um olhar desafiador. A espada de
Podo estava desembainhada como se o oceano, ou algo nele, estivesse
prestes a atacar.
“Não é melhor irmos?” Gritou Oskar, inclinando-se exausto contra o
flanco de Nugget. “Eles estão vindo.”
Todos os olhos se voltaram para a saliência bem atrás deles. Os dois
trolls se agarraram à parede de pedra para que a longa linha de Fangs
tivesse espaço para cruzar a ponte em fila única.
Com um suspiro profundo, Podo voltou-se do mar e balançou a cabeça
como se acordasse de um sonho. “Tink, quantas flechas você ainda tem?”
“Vinte, talvez vinte e cinco.”
Podo estreitou os olhos para os Fangs cruzando o vão. “Certo. Isso vai
ajudar, pelo menos por algum tempo. E você, Janner?”
“Senhor?”
“Flechas. Tem alguma?”
“Sim, senhor. Eu tinha trinta e duas quando saímos.” Janner soltou as
cordas que prendiam seu arco à mochila e encaixou uma flecha.
“Não percam tempo, rapazes. Eles não têm onde se esconder, e vocês
podem nos dar tempo para atravessar. Quando aqueles lagartos estiverem
perto o suficiente para deixá-los nervosos, virem-se e corram como loucos.
Eu diria que é hora de serem homens”, aconselhou Podo, “mas posso ver
que vocês já sabem disso.”
Janner puxou seu arco e mirou no Fang mais próximo.
Podo e os demais se moveram pela ponte estreita até a torre seguinte. A
ponte não era longa, mas com o Mar Sombrio vicejando milhares de metros
abaixo deles, o avanço era lento. Nia puxou a coleira de Nugget, enquanto,
tendo Podo e Oskar os seguindo, o vento açoitava seus cabelos e roupas.
Os Fangs estavam a meio caminho da plataforma onde os meninos
estavam. Tink soltou a corda do arco e lançou uma flecha zunindo pelo ar.
14

A Última Torre

O primeiro Fang da longa fila oscilou e caiu da ponte. Janner atirou em


seguida e observou com desgosto sua flecha fazer um arco no ar e
desaparecer em uma queda d’água. Quando o segundo tiro de Tink acertou
outro Fang, ele olhou de soslaio para Janner com um leve sorriso.
Janner mirou com cuidado e errou novamente. No terceiro tiro,
finalmente acertou o alvo. Restam vinte e nove flechas, pensou ele,
imaginando quantos Fangs estariam enfileirados ao longo da saliência e até
a margem do rio. Centenas?
Graças a Tink, os Fangs caíam constantemente das escadas da ponte e a
fila não avançava mais. Os Fangs estavam agitados, mas deviam saber que,
mais cedo ou mais tarde, as flechas se esgotariam, e eles não estavam
atirando de volta. Os Fangs os queriam vivos. Contanto que os lagartos não
mudassem de ideia, os meninos eram a defesa mais segura contra as
criaturas. Janner olhou para o resto do grupo e viu que haviam alcançado a
segunda torre e estavam avançando para a próxima ponte.
O arco de Tink vibrou, e outro Fang caiu na água turbulenta. Para sua
surpresa, Janner viu que a frente da linha estava mais longe do que antes.
“Está funcionando!” Tink gritou.
O Fang na frente gesticulou com a espada e gritou para a fila: tentando
fazê-los recuar, Janner presumiu. Dois Fangs tropeçaram na tentativa
desajeitada e caíram na água, aos gritos.
“Por que estão recuando?” Tink perguntou.
O Fang no comando gesticulou para os trolls, mas os trolls balançaram a
cabeça. O Fang apontou para Janner e Tink e brandiu sua espada para um
dos trolls. O troll balançou a cabeça novamente, mas com menos certeza.
Finalmente, o outro troll assentiu e se desprendeu da parede. O outro fez o
mesmo, e as duas feras foram até a borda da longa ponte que levava
diretamente aonde Janner e Tink estavam ajoelhados.
Janner engoliu em seco. Certamente a ponte era velha e frágil demais
para suportar o peso das criaturas gigantes.
Mas os antigos sabiam o que estavam fazendo quando construíram a
Ponte Miller. Os dois trolls avançavam lentamente até o centro. Janner orou
para que a ponte desabasse, mas isso não aconteceu. Quando viram que a
ponte aguentaria, os trolls sorriram estupidamente e aceleraram o passo.
Tink disparou contra o primeiro troll, mas a flecha resvalou em sua pele.
“Vamos!” Janner exclamou, puxando Tink para se levantar. Os meninos
Igiby fugiram, e os trolls correram atrás deles. As feras diminuíam a
distância a cada passo, enquanto os Fangs seguiam em seu encalço.
Bem à frente, os outros se aproximavam da ponte que levava à quinta e
última torre. E daí? Janner se perguntou. O que acontece quando não há
mais para onde correr?
Assim que os meninos alcançaram a ponte para a terceira torre, o chão
tremeu. Os trolls distavam poucos metros, e uma das feras havia batido com
o punho no chão da torre.
Tink acelerou à frente de Janner, braços e pernas balançando
desenfreadamente, mas, com o terrível som dos trolls arquejando e bufando
tão perto, Janner foi capaz de acompanhar seu irmão pela primeira vez na
vida. Podo parou na extremidade da torre mais distante e acenou
freneticamente para os meninos continuarem. Janner viu o medo no rosto de
seu avô. Podo desembainhou a espada e correu em direção a eles com um
grito entesado em seu rosto endurecido.
A distância passava zunindo num borrão de pedra escorregadia, água
branca e mar de ardósia. Janner, podendo sentir o tump-tump-tump dos
passos dos trolls logo atrás dele, teve uma sensação distante de alívio ao ver
Nia e Oskar subindo a encosta da margem norte do rio. Pelo menos eles
conseguiram. Se ao menos houvesse uma maneira de impedir os trolls e
Fangs de atravessar, estariam seguros — pelo menos por um tempo.
Podo parou no centro da última ponte quando os meninos se
aproximaram dele, mas não estava olhando para eles. Seus olhos ferozes
estavam voltados para o troll atrás deles. Podo ergueu a espada e arqueou as
costas, forçando todos os músculos de seu volumoso tórax.
“Tink, abaixe!” Janner comandou.
A meio passo, os dois meninos Igiby se agacharam e passaram por seu
avô, um de cada lado. Janner sentiu seu pé direito escorregar na borda da
ponte e viu a superfície vertiginosa do mar logo abaixo, mas seu impulso o
levou à torre, onde tropeçou e caiu. Janner se virou em tempo de ver a
espada deixar a mão de Podo e girar no ar em direção ao troll que se
aproximava.
A espada se enterrou no pescoço da fera. O troll arregalou os olhos
minúsculos, surpreso, e tombou de frente enquanto agarrava o cabo da
espada com mãos desajeitadas. Podo gingou para trás na ponte, para se
esquivar da besta enquanto ela sucumbia. Quando desabou na ponte, a
habilidade dos antigos construtores foi posta à prova final — e falhou.
Um poderoso estremecimento fez com que pedras despencassem água
abaixo. O troll jazia imóvel — a lâmina da espada projetava-se por entre
seus ombros. O outro troll, parado logo atrás de seu companheiro morto,
uivava e batia no peito. Na raiva, não percebeu o que ficou imediatamente
claro para Janner, Tink e Podo: a ponte estava prestes a cair.
Uma emoção percorreu Janner como um raio. Podemos conseguir! Se a
ponte desmoronar, talvez consigamos!
Mais pedras se soltaram da ponte trêmula. O segundo troll interrompeu
seu rugido quando finalmente percebeu o que estava acontecendo. Fangs se
reuniram na torre atrás do troll, rosnando e espiando ao redor dele para ver
o que havia de errado.
Janner se levantou e correu com Podo e Tink pela última torre. Do outro
lado, Nugget carregava Leeli escada abaixo da torre até a suave margem
norte, onde Nia e Oskar esperavam. Leeli desmoronou no abraço de Nia.
O ânimo de Janner ergueu-se ao ver sua família; e então afundou quando
se virou e viu que a ponte ainda não havia caído. O troll passou por cima de
seu companheiro morto e atravessou a ponte danificada. Ele rugia e
flexionava seus poderosos braços.
Por favor, pensou Janner. Por favor, caia.
Com um grande estalo, a ponte se moveu e cedeu alguns centímetros. Os
Fangs que se reuniam na torre ficaram mais agitados à medida que mais
pedras caíam.
Podo sacudiu o punho para o troll. “Vamos lá, seu monstro! Dê mais um
passo!”
O chão tremeu novamente, e os olhinhos do troll iam da ponte para o
mar. Mas, novamente, as rochas assentaram.

O olhar temeroso do troll se tornou um sorriso malicioso. Os Fangs


rosnaram e retiniram suas espadas. Para horror de Janner, o troll, tendo
saltado a distância final e aterrissado na torre, apenas alguns metros à frente
deles, ergueu-se completamente e rugiu tão alto que as próprias cataratas
ficaram envergonhadas.
Janner sentiu um puxão em sua mochila.
“Vou precisar disso, rapaz”, explicou Podo, enquanto desembainhava a
espada de Janner. “Embora eu não ache que meu truque de lançamento de
espadas funcione duas vezes no mesmo dia.” Ele olhou para Janner com
olhos tristes. “Agora, seja um bom homem. Conduza esta família para a
segurança, como sei que você pode.” Ele beijou Janner no topo de sua
cabeça. “Nunca pare de lutar por eles, ouviu?”
O troll deu mais um passo à frente. Com um suspiro pesado, Podo
ergueu sua espada e caminhou para enfrentá-lo.
Lágrimas encheram os olhos de Janner, e ele pensou em protestar,
unindo-se a Podo em sua resistência final — mas ele não tinha espada.
Podo a havia levado. Pensou em usar seu arco, mas sabia que não faria
nenhum dano. Tudo o que podia fazer era obedecer à ordem final de seu
avô: “Conduza esta família para a segurança.” Podo duraria apenas
alguns instantes contra o troll, mas era tudo o que ele podia dar.
Janner piscou para afastar as lágrimas e se virou. Ele tinha que honrar o
sacrifício de seu avô, afastando sua família e mantendo-os livres do perigo
por tanto tempo quanto pudesse.
Leeli berrou. Sua voz estridente cortou o ar como mil flechas de prata.
Janner mal teve tempo de pular para fora do caminho quando Nugget, não
mais carregando Leeli, subiu os degraus.
O gigante cachorro deu um latido de estalar os ossos quando alcançou a
torre, então saltou no ar, passando por um Podo aturdido e chocando-se
contra o troll como uma rocha contra a porta de um celeiro.
O troll cambaleou para trás, tentando em vão se proteger dos dentes de
Nugget, que abocanhava, mordia e rasgava os braços, pescoço e rosto da
criatura. O troll perdeu o equilíbrio e oscilou, lenta e pesadamente, como
uma árvore derrubada.
Assim, o monstro desabou sobre a ponte com tanta força que as torres de
ambos os lados tremeram, e Janner viu um dos Fangs perder o equilíbrio e
cair. A ponte que durara milhares de anos se desfez em milhares de
pedaços.
Nugget saltou do troll enquanto ele desabava e aterrissou com sua
metade superior na torre oposta onde os Fangs se reuniam. Suas pernas
traseiras arranhavam a lateral da rocha, mas não encontravam apoio,
enquanto acima dele os Fangs golpeavam seu rosto e patas dianteiras com
espadas e lanças. Nugget mordia, latia e rosnava. Fang após Fang gritava e
caía da murada enquanto o cão lutava, porém mais Fangs apareciam, com
mais armas e mais determinação para empurrar o cão para fora da torre.
Janner sentiu um soluço subir de suas entranhas e uma lágrima em seus
lábios, e então veio a voz de Leeli, de algum lugar atrás dele, gritando o
nome de Nugget. Ela havia subido os degraus da torre com uma expressão
pálida de choque no rosto.
Nugget torceu a perna de um Fang em sua boca e puxou a criatura para
fora da murada. Feridas cobriam seu rosto e patas dianteiras. Ele virou sua
enorme cabeça desgrenhada e ensanguentada e olhou para Leeli. Ela passou
por Janner, rastejando e soluçando, buscando seu amigo mais querido no
espaço vazio onde a ponte havia estado.
Nugget latiu uma última vez, um som grande e suave que ecoou nas
pedras e na água das Cataratas Fingap. Janner notou uma mudança no rosto
de Nugget ao último golpe de uma lança Fang, um olhar cansado, mas
contente, que o fez acreditar que o valente cachorro cairia feliz no mar,
sabendo que havia salvo Leeli do perigo uma última vez.
E, então, Nugget se foi.
15

Uma Canção para Nugget, o


Valente

Janner não o viu cair. Seus olhos se fecharam, de modo que a pedra
molhada sob suas mãos, o vento frio, os uivos de triunfo dos Fangs e o
lamento de sua irmã eram tudo do que ele tinha conhecimento.
Podo ergueu Leeli por cima do ombro e carregou sua neta para longe,
arrastando Janner pelo colarinho da camisa enquanto caminhava. Os olhos
de Janner se abriram, com sua visão turva pelas lágrimas. Ele desceu
correndo os degraus atrás de Podo, notando com indiferença os olhares
confusos e surpresos nos rostos de Nia, Tink e Oskar.
Em seguida, escalaram a margem lentamente, arrastando corações
pesados. Ninguém pronunciava uma palavra, ninguém olhava para trás para
ver se os Fangs haviam encontrado uma maneira de cruzar o vão.
Depois de uma longa e tortuosa escalada sobre cascalhos e pedregulhos,
os Igibys, Podo e Oskar alcançaram um terreno plano. A grama verde e
macia se estendia diante deles por uma curta distância, antes de as árvores
da floresta se ajuntarem em uma parede verde. Estavam em uma clareira
aproximadamente do tamanho da cidade de Glipwood, um oásis de espaço
aberto cercado por árvores de Glipwood.
A área estava repleta de pedras grandes, mas não eram as pedras
arredondadas das cataratas. Eram quadradas, empilhadas em alguns lugares
e cobertas de ervas daninhas. Sob a grama, a trilha que haviam seguido
desde o rio tornou-se uma estrada de paralelepípedos; as pedras, ruínas de
um aglomerado de edifícios.
Leeli caiu na grama e chorou.
“Tenho medo de dizer isso”, disse Podo com voz rouca, “mas podemos
estar seguros. Vejam.”
Janner e Tink se colocaram ao lado de Podo e olharam para baixo. De
onde estavam, viram todas as Cataratas Fingap dispostas diante deles. À
direita corria a água esbranquiçada do Grande Blapp, serpenteando pela
névoa das quedas superiores, e abaixo projetava-se a plataforma que
captava as águas em sua palma gigante. As pontes que interligavam as
cinco torres pareciam finas como fitas. Na quarta, é claro, não havia mais
uma ponte, e a superfície da torre estava entupida com os minúsculos
movimentos dos Fangs em retirada.
Janner mal podia acreditar que acabara de cruzar um espaço tão precário;
na verdade, ele mal podia acreditar que tal lugar existisse.
Virou-se e viu Oskar e Nia erguendo Leeli e levando-a até um banco de
pedra. Nia segurou a cabeça de Leeli contra o peito e balançou para a frente
e para trás enquanto Oskar dava tapinhas em suas costas. Leeli chorava.
Janner lembrou-se do dia no chalé em que ela pensou que os Fangs
haviam matado Nugget. Ela havia chorado pouco e logo ficado em silêncio.
Isso havia sido muito mais preocupante para ele do que a maneira como
Leeli chorava agora. Ela parecia mais velha! Não estava mais chocada por
que uma coisa assim pudesse acontecer no mundo, mas com o coração
partido porque tinha acontecido. Suas lágrimas pareciam a Janner o tipo
certo de lágrimas.
Tink sentou-se no chão, de costas para o banco de pedra, e,
distraidamente, puxava ervas daninhas das fendas entre os paralelepípedos.
Podo se ajoelhou na frente de Leeli sobre seu joelho bom.
“Leeli”, chamou-a gentilmente.
Cabelos grudavam-se no rosto molhado da menina. Suas bochechas
estavam vermelhas e seu queixo tremia. Ela se lançou sobre o avô e abraçou
seu pescoço, chorando mais forte do que antes. Podo a ergueu e a carregou
para longe, sussurrando e dando-lhe tapinhas nas costas com suas mãos
grandes e calejadas.
Janner jogou-se no chão ao lado de Tink e, sentindo o cansaço do dia
feito um cobertor, apoiou a cabeça na pedra e olhou para o céu. Nuvens
brancas deslizavam pela cúpula de um azul profundo, pacíficas como um
suspiro. Seus olhos se fecharam, e o vento fez cócegas em seu rosto e nos
pelos de seus antebraços. A toca do baratodonte, então os trolls, a captura
de Peet, o desespero nebuloso da planura ao lado do rio, a visão vertiginosa
do Mar Sombrio, o troll bufando nas costas de Janner — e Nugget.
Peet abriu os olhos e contemplou o céu novamente. Onde estaria Peet
agora? Janner temia por ele, mas tinha certeza de que Peet ainda estava
vivo. Ele havia sobrevivido a coisas terríveis por anos, e algo sobre a
maneira como Zouzab o observava do ombro do troll fez Janner acreditar
que Gnag queria o Homem-Meia vivo por algum motivo.
Por muito tempo eles ficaram sentados entre as ruínas. Podo e Leeli
finalmente voltaram para onde os outros descansavam, e, embora seu rosto
ainda carregasse o peso da tristeza, Janner percebeu que sua irmã estava
presente. Seus olhos não se fixavam no nada. Eles viam a situação, sofriam
por ela e a enfrentavam.
Enquanto Janner resvalava para o sono, estava ciente da ausência de
Nugget: sem risadinha de Leeli; nada de grandes e lamuriosos bocejos;
nenhuma sensação de segurança por saber que, o que quer que os estivesse
esperando nas sombras, pelo menos aquele monstro enorme e feliz estaria
ao lado deles.

Janner acordou assustado. O crepúsculo se aproximava e a clareira


repousava em uma sombra fria. Leeli dormia no colo de Nia. Oskar estava
deitado de costas, chiando de dor enquanto Podo trabalhava para remover
as ataduras do velho companheiro. Tink ajudava Podo com uma expressão
nauseada no rosto. Por um momento Janner se perguntou onde estariam
Nugget e Peet, até que se lembrou, com um arrepio, de que o dia não havia
sido algum sonho horrível.
“Aguente um pouco”, pediu Podo. “Estou quase terminando. Tink, me
dê a faca, hein?”
Tink passou uma pequena faca para seu avô, que a usou para cortar a
bandagem coagulada.
“Pronto”, disse Podo, olhando para o ferimento de Oskar. “Não está tão
ruim quanto eu pensava. Quase nenhum arranhão, seu bebezão! Vamos
embrulhar você de novo, e aposto que em alguns dias estará bom como
antes.”
“O que não era tão bom assim, se você se lembra”, disse Oskar. “Nas
palavras de Izikk, o Esbofeteado: ‘Sou redondo como a lua e tão grande
como... Ai! Isso doeu!’” Oskar riu e voltou seus olhos cansados para Janner.
“A Ponte Miller, meu rapaz! Acredita nisso? Uma lenda que provou ser
verdadeira. Tem muito disso acontecendo hoje em dia, ao que parece. Joias
perdidas, feitos heroicos. Eu lhe digo, ver o modo como vocês, Igibys, —
digo, Wingfeathers — conseguem sobreviver me faz ousar acreditar que as
velhas histórias são verdadeiras, afinal. Todas aquelas epopeias sobre
poderosas vitórias e valentes reis... Se eu viver o suficiente para sentar-me a
uma mesa novamente com uma pena e um pergaminho, contarei sobre este
dia. Registrarei para que daqui a mil anos algum rapaz leia sobre o dia em
que Janner Wingfeather atacou os Fangs de Dang ao lado de seu vigoroso
avô; ou como a habilidade do jovem Rei Kalmar com o arco levou um
exército de Fangs a recuar.”
Janner e Tink coraram.
“Não se esqueça de Nugget”, lembrou Leeli. Ela estava acordada agora,
encostada em Nia.
“Com certeza, minha querida”, disse Oskar. “Escreverei sobre o valente
Nugget, cujo latido abalou as árvores; Nugget, cujo amor por Leeli
Wingfeather o fez voar de encontro a um troll com o dobro do seu tamanho,
cuja força destruiu a Ponte Miller e salvou os Wingfeathers de uma horda
de Fangs.”
Janner se preparou para mais lágrimas de Leeli, mas ela não chorou.
Colocou-se de pé e remexeu em sua mochila em busca de sua velha harpa
eólica. “Mamãe, poderia pegar minha muleta? Quero ver o oceano.”
Leeli mancou até a beira do precipício, acima da margem, e sentou-se.
Respirou fundo e olhou para o Mar Sombrio da Escuridão com um sorriso.
O céu a leste avermelhou-se com a escuridão que se aproximava. Leeli
levou a harpa aos lábios e tocou.
Janner e Tink juntaram-se a ela e olharam para o mar, com sua música
evocando imagens de Anniera, sentimentos de casa, de fogo na lareira.
Então a música mudou: adquiriu um tom triste, tornando as notas mais
agudas, como o lamento de um pássaro solitário, e Janner soube que Leeli
estava tocando para Nugget. Ela derramou seu coração na música e a
preencheu com tudo o que sentia.
De repente, como um sonho pairando à frente de sua mente, Janner pôde
ver Nugget. A imagem rodopiou como um reflexo em um pote de água
agitada, reunindo-se em nítidas cenas que se moviam do pequeno Nugget
correndo pelo pasto, pegando uma bola, abanando o rabo enquanto Leeli se
abaixava para lhe entregar um osso de porleitão. As imagens pairavam
como fumaça de um cachimbo, uma cena bonita após outra de Nugget em
todas as fases de sua vida.
Janner balançou a cabeça e olhou para o irmão. Tink também estava
vendo. Ele sorria, maravilhado, olhando para o vazio diante dele, passando
a mão diante dos olhos para ver se a imagem se dispersaria.
Janner fechou os olhos e, ainda assim, viu as imagens filtradas na
escuridão, entrando e saindo de foco, mas sempre ali, mudando com a
melodia tocada por Leeli. Janner abriu os olhos novamente e se concentrou
nas cachoeiras por trás das cenas. Ele conseguia ver através das imagens, se
quisesse, mas, assim que prestava atenção na música novamente, elas
tornavam-se mais densas.
Então, algo mudou.
16

As Joias e os Dragões

Um som profundo sacudiu o ar, um som que Janner tinha ouvido antes, mas
não conseguia identificar. Ele olhou para a esquerda e para a direita
esperando algo emergir das árvores, perguntando-se por um momento se
estava ouvindo coisas que não estavam realmente lá. Mas não era sua
imaginação.
Oskar sentou-se e disse: “Ah!”. Nia sorriu, correu para o penhasco e
olhou para o oceano. Podo, no entanto, gemeu e balançou a cabeça, então
atravessou para o lado mais distante da clareira e entrou na floresta. Janner
não teve tempo para pensar sobre isso, porque, nesse momento, já os tinha
visto.
Os dragões-marinhos!
Bem abaixo, os dragões dançavam na superfície do oceano como
minhocas minúsculas e cintilantes em um chão cinza. Suas vozes ecoavam
pelo ar, ao longo da grande distância e acima do rugido das Cataratas
Fingap. A canção dos dragões se misturou com a de Leeli, e a música
pulsou com alegria e depois tristeza.
Janner piscou maravilhado quando se concentrou novamente nas
imagens que rodopiavam diante dele. Ele não via mais Nugget, mas um
borrifo de ondas gigantes e, então, algo vermelho e dourado — os dragões.
Ele só havia visto as criaturas do alto do penhasco, mas agora podia vê-las
como se flutuasse um pouco acima da superfície do mar, a uma curta
distância.
Eram tão bonitos quanto temíveis. Seus corpos brilhavam com escamas
metálicas que giravam em cores. O dragão mais próximo a ele cintilava de
laranja e dourado, como milhares de palitos de fósforo sendo riscados, mas
as barbatanas, parecidas com asas, alternavam entre tons de azul. Sua
cabeça era lustrosa e graciosa, perfeita para cortar a água, e seus olhos —
grandes, profundos e serenos — enviaram um calafrio que percorreu até os
dedos dos pés de Janner, porque, de repente, ficou claro que o dragão sabia
que estava sendo observado. Os olhos rolaram para trás e pálpebras
translúcidas deslizaram sobre eles enquanto o dragão abria a boca e
cantava. Dentes se alinhavam em sua boca, mas não do jeito tortuoso e
amarelado dos Fangs ou das vacas-dentadas: eram retos, brilhantes e
afiados como agulhas.
Janner forçou sua mente através da imagem e olhou novamente para seus
irmãos. Os olhos de Leeli estavam fechados e, embora ela sorrisse, lágrimas
molhavam seu rosto enquanto tocava. O vento agitava o cabelo de Tink, e
ele olhava para o ar vazio à sua frente; seus olhos se moviam focalizando
pontos à frente e atrás, como se estudasse um desenho pendurado a alguns
metros de seu rosto.
A música mudou para um murmúrio suave, e Janner voltou sua mente
novamente para a imagem flutuante. Um dragão surgiu das ondas
carregando algo preto em suas costas, aninhado entre suas nadadeiras. Era
Nugget.
Os outros dragões giraram em formação ao redor daquele que carregava
o grande cão, com seus longos e graciosos pescoços ainda arqueados
enquanto cantavam. Juntos, aproximaram seus narizes do corpo molhado e
machucado de Nugget e ergueram o cachorro no ar, de forma que ele
parecia flutuar sobre os esguichos de uma fonte, e então o levaram para
baixo da superfície.
Para a cripta de Yurgen, onde jazem os heróis, bradou uma voz na
mente de Janner. A voz sussurrava, gritava e cantava ao mesmo tempo.
A música de Leeli chegou ao fim, e Janner desejou que ela continuasse
tocando. Qualquer que tivesse sido, o poder que a música despertou nas três
crianças Wingfeather deixaria um terrível vazio quando acabasse.
Ela deve ter sentido alguma coisa nova se aproximando, porque parou
apenas por um momento. Leeli tocou outra música, grave e sombria, com
uma melodia que deu a Janner uma sensação de perigo. A imagem tornou-
se mais espessa novamente e pairou logo acima das ondas. O crepúsculo
havia se aprofundado, de forma que a figura que saiu da água era difícil de
ver. Era outro dragão, mas Janner sabia que era antigo, mesmo para os
padrões de um dragão. Os outros dragões haviam girado e dançado, mas
este estava imóvel, indiferente às ondas gigantes batendo em seus lados. Os
outros haviam brilhado, mas este era cinza e sem luz, exceto pelo brilho
pálido de seus olhos.
Ele está perto de vocês, jovens.
Janner tremia, mas não estava com medo; a voz não era má.
“Continue tocando”, sussurrou para Leeli. Ela parecia inquieta, mas
anuiu com a cabeça e continuou.
Os olhos de Tink estavam arregalados e cheios de medo, como se
estivesse olhando para um fantasma. Janner estava prestes a perguntar a
Tink o que ele havia visto que o assustara tanto, mas a voz falou
novamente.
Ele está perto de vocês. Cuidado. Ele destrói tudo o que toca e busca os
jovens para usá-los para seus próprios fins.
“Quem?” Janner sussurrou, sem ter certeza se o dragão podia ouvi-lo.
“Gnag, o Sem-Nome? Quem?”
Temos vigiado, à espera. Ele navegou pelo mar e está perto de você,
criança. Podemos sentir o cheiro dele.
O coração de Janner batia forte. Gnag, o Sem-Nome, estava perto?
Janner nunca tinha pensado em Gnag a não ser como um nome assustador,
um ser maligno sem feições definidas. Será que Gnag tinha braços e pernas
e cruzara o Mar Sombrio como qualquer um faria, em um barco? Janner
não tinha certeza se esse pensamento tornava Gnag, o Sem-Nome, mais ou
menos assustador, mas tinha certeza de que, se Gnag estivesse por perto,
eles não tinham tempo para descansar, para sentar à beira do penhasco e
ouvir os dragões. Tinham que ir para o mais longe possível.
O dragão afundou sob as ondas. A música de Leeli terminou, e ela, com
um suspiro, colocou a harpa eólica sobre o colo.
Janner esfregou os olhos e balançou a cabeça, ainda sem saber se estava
sonhando ou não. “O que acabou de acontecer?” Ele perguntou.
“Não sei”, respondeu Tink, “mas eles estão levando Nugget para uma
caverna.”
“Como você sabe disso?” Leeli perguntou em voz baixa.
“Não tenho certeza. Eles me mostraram. Eu os vi carregar seu corpo para
o fundo do mar e para dentro de uma caverna, onde colocaram Nugget
sobre uma pilha de pedras. A caverna estava cheia de ossos, e os ossos
estavam cobertos com algum tipo de marca. Escrita, eu acho.”
“Pedi que eles cuidassem de Nugget”, disse Leeli, “com minha música.
Eu lhes disse quem ele era, o que ele fez por nós.”
“Não consigo mais me lembrar de como eles eram”, disse Janner.
Tink olhou para o horizonte. “Ainda posso vê-los. Suas barbatanas —
você viu as barbatanas? Eram enormes. Oito dragões-marinhos. Três
prateados, dois de cor vermelha e dourada, um laranja e um azul. E, então,
aquele último — o mais antigo, cinza.” Ele fez uma pausa. “E eu vi outras
coisas, Janner. Coisas horríveis.” Ele estremeceu.
“O quê? O que você viu? Foi Gnag, o Sem-Nome?” Janner perguntou.
“Gnag? Não... Não sei.” Tink balançou a cabeça e fechou os olhos.
A uma curta distância, Nia gritou. “Onde está seu avô? Papai!”
Podo emergiu das árvores. O velho estava sem fôlego, mancando mais
que o normal enquanto caminhava em direção a eles. Seus olhos estavam
abatidos. “Rapazes, montem a barraca. Logo estará escuro demais pra
enxergar alguma coisa.”
“Vovô, algo estranho acabou de acontecer”, relatou Janner. “Os
dragões...”
“Barraca! Agora!” Podo disparou.
As bochechas de Janner queimaram. O que ele havia feito para merecer
isso? Se Gnag, o Sem-Nome, estivesse por perto, não faria sentido armar
uma barraca. Eles tinham que fugir ou pelo menos se esconder.
“Vovô”, disse ele, e Podo o encarou com olhos em chamas. Janner
resistiu ao desejo de se encolher e se desculpar. Ele tinha que dizer alguma
coisa. Janner se endireitou e cerrou os punhos. “Vovô, o dragão falou
comigo.”
O rosto de Podo estava endurecido. “E aí?” Ele resmungou depois de um
momento. “E o que o dragão disse, garoto?”
“Disse que Gnag, o Sem-Nome, está perto. Que ele cruzou o mar, e que
os dragões podem sentir o cheiro dele. Ele disse: ‘Cuidado’.”
“Gnag, o Sem-Nome.” Podo bufou. “Um dragão-marinho disse que o
próprio Gnag está por perto. É isso que você tá me dizendo?” O velho pirata
cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha.
Janner apontou para Tink e Leeli. “Pergunte a eles! Eles também
ouviram! Ou... eles não ouviram exatamente, mas... mas viram algo e
sentiram coisas. Não foi?”
“Sim, senhor”, confirmou Tink. “Eu os vi. Bem de perto.”
“E eu os senti, vovô”, disse Leeli.
Podo e Nia trocaram olhares, e Podo agitou uma mão no ar. “Bem, o
dragão-marinho também disse a vocês que toda a raça dele é um bando de
escamosos mentirosos? Ele disse a vocês que eles manipulam e confundem
pelo prazer que isso dá? Os dragões-marinhos observam as ações dos
homens com um olhar perverso e prefeririam ver vocês caindo do penhasco
a fugindo de Gnag, o Sem-Nome.”
O quê?! Janner pensou sobre a avalanche de emoções que sempre sentia
no Dia dos Dragões. Os dragões-marinhos eram assustadores, fascinantes,
até mesmo assombrosos — mas não eram maus. Foi a música de Leeli que
os atraiu, e Leeli certamente não era má. Além disso, havia o corpo de
Nugget. Os dragões o carregaram com tanto cuidado... não havia maldade
alguma nisso. Mas como Janner poderia discutir com um pirata? Podo sabia
mais sobre qualquer coisa do que Janner, especialmente o mar.
“Isso foi o que o dragão disse. Eu só... achei que você deveria saber”,
Janner falou baixinho, incapaz de encarar os olhos de Podo. Se ele tivesse
olhado para cima, teria visto que Podo não era capaz de encarar seus olhos
também.
“Meninos, cuidem de armar a barraca como seu avô mandou”, Nia
ordenou depois de um momento. “Podemos falar sobre os dragões-
marinhos daqui a pouco. Com Gnag, o Sem-Nome, ou sem ele, todos nós
precisamos de uma refeição e de um descanso. Só o Criador sabe quando
teremos outro.”
“Comida?” Tink perguntou.
Nia assentiu. “Vamos comer o verdugo seco que Artham fez para nós.”
“Comida!” Tink repetiu.
17

Um Aliado em Cavadópolis

A barraca demorou para ser levantada mais do que os meninos gostariam.


Janner teve dificuldade de se concentrar na tarefa porque continuava
olhando por cima do ombro em direção à parede escura de árvores, meio
que esperando que Gnag, o Sem-Nome, pulasse e devorasse a todos. O sol
estava se pondo e as estrelas tremeluziam no leste, quando terminaram. O ar
esfriou e, com o vento constante soprando dos penhascos, a família e Oskar
reuniram-se na abarrotada barraca tanto para se aquecer quanto por causa da
companhia.
“Vamos dar um trato nessa carne”, pediu Tink. “Estou com tanta fome
que poderia comer uma bota.”
“Mas, primeiro, devemos ter um pouco de luz”, declarou Oskar.
“Não podemos, senhor Reteep”, replicou Janner. “O fogo atrai as
criaturas da floresta, lembra?”
“Certíssimo, meu rapaz. Mas isso não é verdade para todo tipo de fogo.”
Reteep retirou algo de sua bolsa e pediu um fósforo a Janner. Oskar
segurava em sua mão uma vela redonda esverdeada. “Cera de meleca, meu
garoto. Não conseguimos sentir seu cheiro, mas a maioria dos animais
detesta seu odor. Veja.” Ele apontou para um inseto zumbindo loucamente
procurando a abertura na aba da barraca, então colocou a vela na grama
entre eles e sorriu.
Nia removeu várias tiras de carne seca de verdugo de sua mochila e lhes
passou. Não era muito, mas todos estavam agradecidos.
“Espero que o tio Artham esteja bem”, disse Janner entre as mordidas.
“Eu também”, Nia falou. “Mas tenho certeza de que ele já esteve em
lugares piores do que o punho de um troll. Agora, conte-me sobre o que
aconteceu com os dragões.”
“Estarei lá fora”, Podo resmungou baixinho. “Oskar, você quer vir?”
“Meu Deus, não”, retrucou Oskar. “Acho todo esse negócio muito
fascinante.”
Podo saiu da barraca murmurando, e Janner contou à mãe o que tinha
visto, ouvido e sentido.
“Você viu isso também?” Oskar perguntou a Leeli, ajustando os óculos.
“Não, senhor”, respondeu Leeli. “Não vi muita coisa. Luzes e formas
difusas, na verdade. Mas eu... senti algo. Como se meu coração tivesse um
braço invisível que se estendesse e tocasse em algo nos dragões.” As
bochechas de Leeli ficaram vermelhas. “Sei que isso não faz sentido.”
“Você sentia como se, de alguma forma, estivesse conectada? É isso?”
“Sim... conectada. Eu não conseguia ouvir as palavras exatamente, mas
podia sentir seus pensamentos, como quando você esfrega os olhos e vê
cores e formas como vaga-lumes. E as formas me diziam coisas. Eu não
conseguia entendê-las, mas Janner sim.”
“Para a cripta de Yurgen, onde jazem os heróis”, disse Janner
abruptamente. “Acabei de me lembrar, os dragões disseram isso antes de
carregarem Nugget para baixo. Deve ser a caverna que Tink viu. Algum
tipo de cemitério de dragão, eu acho.”
“Espantoso”, sussurrou Oskar. “Janner, você já leu sobre Yurgen?”
“Não, senhor. Mas parece familiar.”
“Ele era o rei dos dragões, muito tempo atrás”, disse Oskar.
Janner fechou os olhos e folheou as páginas mentalmente. “Na Primeira
Época. Eu não sabia o nome dele, mas me lembro da história. Ele afundou
as montanhas, cavando na terra para tentar encontrar... o que foi mesmo?”
“Holoré”, enunciou Oskar.1
“Isso mesmo — as pedras de cura. Precisava delas para salvar o filho
ferido, certo? Mas ele nunca encontrou as pedras e cavou tão fundo que as
montanhas desabaram...”
“As Montanhas Submersas”, declarou Tink. “Nunca soube disso.”
“É por isso que sempre digo para você ler mais”, proferiu Janner.
Tink revirou os olhos.
“Sempre achei que fosse apenas uma lenda”, admitiu Oskar.
“Não é lenda”, Podo murmurou do lado de fora da barraca.
Todos ficaram em silêncio quando a aba da barraca se abriu e Podo
rastejou de volta para dentro. Ele se acomodou no canto mais distante, no
limiar da luz das velas.
“Naveguei pelas Montanhas Submersas, e um lugar mais triste vocês
nunca verão. É... os dragões-marinhos são criaturas antigas. Um vislumbre
em seus olhos e você se sente levado para trás no tempo. Há mais neles do
que músicas bonitas e dentes compridos. Eles sabem coisas.” Podo
estremeceu e fechou os olhos. “Eles se lembram de coisas.”
“Se eles sabem tanto, por que você tem certeza de que ele mentiu sobre
Gnag, o Sem-Nome?” Janner perguntou com cuidado.
“Porque, rapaz, se Gnag estivesse por perto, estaríamos todos mortos.”
A vela tremeluziu. Ninguém se moveu. A pele de Janner se arrepiou,
formigando. Por fim, Oskar pigarreou. “Eles se lembram das coisas, não é?
Bem, eu também.” O velho forçou um sorriso, fazendo o melhor para
dissipar o clima assustador. “Lembro-me de ter lido, em um livro antigo,
que uma vez houve uma aliança entre os dragões-marinhos e os reis de
Anniera.” Janner olhou para ver se Tink estava ouvindo, mas ele estava
ocupado procurando migalhas perdidas em seu colo. “Isso foi há duas
épocas”, continuou Oskar, “então pensei que fosse apenas uma lenda.
Depois desta noite? Já não tenho tanta certeza. Talvez sua mãe saiba mais
do que eu, crianças. Afinal, ela era a rainha.”
Nia encolheu os ombros. “Esben mencionava os dragões-marinhos de
vez em quando, mas não pareciam ter tanta importância. Ouvi falar dos
velhos tempos, quando os jovens dragões eram caçados.”
Tink ergueu os olhos de sua busca por migalhas. “Eles eram caçados?”
“Foi uma coisa terrível, e foi há muito tempo”, contou Nia. “Não sei
nada sobre uma aliança.”
“Ah! Mas você também não sabia nada sobre a Ponte Miller, alteza”,
disse Oskar, feliz. “Vou ler os livros antigos com muito mais cuidado a
partir de agora, eu garanto. Nas palavras de Bimm Stack: ‘Tenho uma ideia!
Acompanhe-me de perto, e você poderá encontrar seus sapatos’.”
Todos na barraca, incluindo Podo, olharam para Oskar, muito confusos,
tentando entender o que a citação tinha a ver com livros antigos. Oskar deu
outra mordida em sua carne seca e coçou a barriga.
“Então, o que fazemos agora?” Janner perguntou a sua mãe.
“Por que não perguntamos ao seu avô?” Ela se virou para Podo. “Papai,
o que vamos fazer?” Ela perguntou em sua voz de rainha, a voz que usava
quando estava cansada de falar e pronta para a ação. Mesmo velhos piratas
teimosos endireitavam-se quando tal voz lhes era dirigida.
“Se os Fangs enviarem uma mensagem por corvo para Torrboro, acho
que temos um dia, talvez dois, antes que eles comecem a patrulhar este lado
do rio. Por enquanto, devemos nos acomodar e dormir. Amanhã iremos para
o norte, embora eu não saiba bem como. Assim que passarmos a Barreira
— se passarmos por ela —, as terras entre aqui e as Pradarias de Gelo serão
desconhecidas para mim. O louco do Homem-Meia era o único de nós que
conhecia o caminho.” Podo olhou para a noite através da aba da barraca.
“Há um aliado em Cavadópolis”, declarou Oskar.
“Que aliado?” Podo perguntou.
“O nome dele é Ronchy McHiggins. Ele é um bom sujeito e tem sido
meu contato por muitos anos. Tem uma taverna chamada A Viúva
Rechonchuda — que serve a mais fina torta de marinheiro que já tive o
prazer de degustar.”
“Hmmm”, enunciou Tink.
“Ele cozinha com um raminho de mel, e o purê em cima é copiosamente
temperado com alho e pimenta. Sete vegetais são misturados com creme de
leite de cabra e...”
“Podemos confiar nele?” Perguntou Nia.
Oskar pigarreou e olhou com desdém para sua carne de verdugo.
“Espero que sim. Foi ele quem me apresentou a Gammon.”
“Quem é Gammon?” Janner perguntou.
“Gammon é o líder da rebelião em Kimera”, explicou Podo. Ele parecia
mais vivo, agora que tinham o início de um plano.
“Kimera fica nas Pradarias de Gelo”, explicou Nia a Tink, antes que ele
pudesse perguntar.
“Gammon é quem me ajudou a contrabandear as armas para a Mansão
Pé-de-Geleia”, revelou Oskar a Janner. “Um sujeito imponente, forte e
astuto. Tinha que ser para sobreviver todos esses anos. Eu o conheci em
Torrboro, não muito depois da Grande Guerra”, continuou Oskar. “Ele viu
meu carrinho entulhado de caixas de livros e me convenceu a ajudá-lo.
Fiquei tão surpreso ao encontrar alguém com coragem para desafiar os
Fangs, mesmo secretamente, que concordei. Transportei as armas que
Gammon coletou dos escombros de Skree. Nós as escondemos em caixotes,
sob livros antigos, e logo juntamos todas as armas que você encontrou
embaixo da mansão. Gammon tem câmaras de armas como aquela por todo
o continente, esperando o dia em que os skreenianos as usarão.”
“E o que ele está esperando?” Tink perguntou. “Se as armas estão
prontas, por que não lutar agora?”
“Porque ele não está pronto. Como eu disse, ele é astuto. Seus
seguidores confiam nele implicitamente e acreditam que sabe o que está
fazendo. É bom que ele esteja do nosso lado”, observou Oskar, “porque,
com seu carisma e força, ele seria um inimigo formidável. Cada vez que o
encontrei, peguei-me agarrado a cada palavra dele. Um sujeito de
confiança, porém. Aposto meus livros nisso.”
“E você acha que esse tal McHiggins da taverna pode nos ajudar?” Podo
perguntou.
“Eu penso que sim. Ele é o principal contato de Gammon em
Cavadópolis. Se alguém pode nos encontrar um guia pelas Montanhas
Rochosas até as Pradarias de Gelo, Ronchy McHiggins é essa pessoa. A
torta de marinheiro dele, como eu disse, é deliciosa.”
Podo pensou por um momento, então assentiu com a cabeça. “Sim.
Parece nossa melhor opção. Claro, temos que pensar nos Marginais.”
“Ah. Os Marginais”, lembrou Oskar.
“O que são Marginais?” Janner perguntou.
Podo e Oskar trocaram olhares.
“É melhor nos preocuparmos com os Marginais amanhã, meu rapaz”,
aconselhou Oskar. “O dia já foi longo o suficiente.” Ele então apagou a
vela, tomando cuidado para não deixar cair a cera, e o grupo dormiu.
O último pensamento de Janner foi uma oração pela segurança de seu
tio.
Mas Peet não estava em segurança.
18

Velhas Feridas
e Nova Cura

Peet não conseguia mover nem seus braços, nem suas pernas.
O troll caminhava para o sul, arrastando Peet por um pedaço de corda
como um boi com um arado. Peet, enrolado em correntes da cabeça aos pés,
foi sacudido e golpeado por cada raiz, pedra e buraco na estrada. Alternava
entre consciência e desmaio e, toda vez que acordava, via Zouzab e o outro
corre-crista empoleirados nos ombros do troll, observando-o com prazer
perverso.
Peet lembrou-se do terrível estalo do baratodonte voraz no dia anterior.
Assim que Zouzab ordenara que o troll se retirasse da ravina, Peet teve um
vislumbre dos Igibys e Oskar fugindo para o norte. Embora ele tivesse
gritado e se debatido, o troll o segurava com força, com tanta força, que sua
visão ficou turva e tudo escureceu. Quando acordou, era noite e ele estava
enrolado em correntes como uma mariposa em uma teia de aranha.
“Você ficará feliz em saber que suas preciosas ‘joias’ escaparam mais
uma vez”, Zouzab lhe contou. Ele estava sentado de pernas cruzadas perto
do fogo, e enfiava um punhado de amoras na boca; em seguida, passou a
cesta para o outro corre-crista. As manchas vermelhas em torno de suas
bocas pareciam sangue.
Peet olhou para os corre-cristas sem falar, em parte porque a corrente
enrolada em seu rosto tornava difícil respirar, e em parte porque não
conseguia descobrir de quem o corre-crista estava falando. Sua mente
estava uma bagunça confusa.
Joias? Eu amo as joias, mas o que... eu me lembro! As crianças! Quem
escapou? As crianças, sim. Bom. Quais eram seus nomes mesmo? Não
consigo me lembrar de seus nomes. Com fome e sede. Braços doendo. Não
deveria tê-los deixado. Não tive a intenção. Não queria, mas os deixei. Oh,
Criador! O que eu fiz?
A mente de Peet se encheu de sombras e penas e um lamento que ecoava
por corredores úmidos. Ele estava vagamente ciente dos corre-cristas
observando-o perto do fogo enquanto ele se debatia e choramingava em
suas correntes, mas eles pareciam estar a um mundo de distância.
O que eu fiz? Eu os abandonei. Não!
Um farfalhar de penas, nas profundezas de sua mente, e tudo
desapareceu.
Agora era um novo dia e sua mente estava mais clara. Ele sabia o
próprio nome, os nomes das crianças Wingfeather e para onde o estavam
levando. A estrada subia e descia sobre colinas graduais e estava bem
desgastada pelos Fangs. A luz no leste sinalizava que ele estava indo para o
sul.
Para o Forte Lamendron.
Ele gritou.
Os corre-cristas riram.

Enquanto Peet gritava na estrada para Lamendron, pássaros matinais


cantavam na clareira onde os Igibys dormiam. Uma fria luz azulada
penetrava pela fresta da entrada da barraca.
Janner espreguiçou-se, forçando os olhos a se abrirem e tentando
despertar sua mente. À sua esquerda, Podo roncava tão alto, que Janner se
perguntou como isso não o tinha acordado antes. Oskar não roncava, mas,
com cada longa exalação de ar, seus lábios produziam um sonoro
fffffffiiiiiiuuuu.
Janner se apoiou em um cotovelo e esfregou os olhos. Na luz fraca, ele
podia ver Tink dormindo com a cabeça na perna de Podo e Leeli encolhida
ao lado de Nia, com sua mochila aninhada contra o peito, do jeito que
costumava segurar Nugget. Janner engatinhou para fora da barraca.
A clareira estava úmida com a névoa orvalhada. Pedaços de destroços
erguiam-se pela névoa como lápides, mas o efeito não era desagradável. Ele
já havia visto o nascer do sol muitas vezes, mas nunca tão perto dos
penhascos a ponto de ver a ardente bola se erguendo do mar. Então
caminhou pela grama molhada e sentou-se com os pés pendurados no
penhasco.
O Mar Sombrio da Escuridão não estava de forma alguma sombrio a esta
hora. Nuvens emplumadas no limiar do mundo brilhavam de laranja e
amarelo-ouro. Pássaros planavam no ar brilhante bem abaixo.
Janner pensava em sua vida apenas algumas semanas atrás, no final do
verão, quando o feno precisava ser enfardado, o porleitão ser alimentado, o
jardim ser capinado, e a vida era entediante. Tanta coisa havia acontecido
com o Janner que ele costumava ser. Sua vida havia estado em perigo
inúmeras vezes. Mais lágrimas haviam sido derramadas nessas últimas
semanas do que em toda a sua vida. Nugget estava morto, a cidade de
Glipwood estava devastada. Antes vivia sob a opressão dos Fangs de Dang,
mas agora estava fugindo deles.
Então pensou em seu pai, Esben, e se lembrou de sua foto navegando em
seu décimo segundo aniversário, uma imagem que Janner considerava a
essência da liberdade. Pensou no sangue real em suas veias e na glória de
seu reino, há muito perdida.
Estivera ocupado demais para pensar muito sobre a verdadeira Anniera.
Ela pairava na periferia de seus melhores sonhos, mas permanecia um
sonho apenas. Era difícil acreditar que realmente existisse, que, através
dessas mesmas águas, um lar o aguardava. Uma verdadeira ilha onde antes
haviam existido verdadeiras cidades, onde existia um verdadeiro castelo —
o castelo onde ele nasceu. Janner ansiava por ver isso. Ele se lembrou das
palavras na carta de seu pai: “Esta é a sua terra e nada pode mudar essa
realidade”. Ele se imaginou deitado na brisa morna de uma encosta
recoberta de urzes, de olhos fechados para sentir a pulsação de sua terra.
Janner tinha apenas doze anos, mas sabia o suficiente para perceber que
o caminho à sua frente seria difícil. Vale a pena? Ele se perguntou. Valeu a
pena perder sua antiga vida para saber a verdade sobre quem ele era e quem
estava se tornando?
Sim.
Como o dedilhar da corda de um instrumento, o primeiro raio do sol se
desprendeu e derramou luz sobre o mundo.

O resto do grupo estava acordado, grato pela promessa de um café da


manhã adequado. Podo, que havia garantido à família que acender uma
pequena fogueira à luz do dia seria bastante seguro, sentou-se em uma
pedra, reorganizando o bacon que chiava na frigideira. Com a outra mão,
distraidamente coçava o seu cotoco, abaixo de seu joelho, onde o resto de
sua perna uma vez estivera.
Janner sabia que, à noite, seu avô costumava desafivelar a correia que
prendia o toco de madeira à sua perna, mas era raro vê-lo em plena luz do
dia sem ele. Era perturbador vê-lo agora, vulnerável e...
“Você está encarando como se nunca tivesse visto meu cotoco antes,
rapaz”, disse Podo, semicerrando os olhos para Janner.
“Desculpe”, falou Janner. “É que — por que você não nos conta como a
perdeu?”
“Ah, eu vou contar, rapaz. Um destes dias.” Podo respirou fundo. “Não é
uma história divertida para seu Podo contar, mas estou começando a achar
que devo desenterrá-la mais cedo ou mais tarde. Há coisas que vocês devem
saber.”
“Que coisas?” Tink perguntou baixinho. Janner pensou ter visto Podo e
Tink trocando um olhar estranho, e as sobrancelhas do velho pirata
juntaram-se como uma nuvem na frente de sua cabeça.
“Podemos apenas tomar o café da manhã?” Leeli perguntou.
“Sim, moça. É uma ótima ideia”, concordou Podo, e Tink desviou o
olhar.
“Oskar, como está o seu ferimento?” Indagou Nia.
Oskar piscou ao ouvir seu nome. Seu olhar estava firmemente fixo no
bacon escaldante. “Está tudo bem, querida. Muito melhor depois de uma
boa noite de sono.” Ele colocou uma perna dos óculos no canto da boca.
“Sabe, desde o momento em que deitei em cima do velho Nugget a primeira
vez, senti algo acontecendo. O ferimento... foi aquecido de alguma forma,
de uma maneira bastante agradável. Esta água do Primeiro Poço — vocês
não acham que deu a Nugget algum poder de cura, não é?”
“Tomei uma dose da coisa também”, contou Podo. “A ferida parecia
diferente quando você estava se apoiando em mim?”
Oskar pensou por um momento. “Não, não me lembro disso.”
“Mas nós só demos a você uma gota, lembra?” Falou Tink. “Tio Peet
deu demais a Nugget.”
“Hum.” Oskar franziu a testa e arrancou a bandagem ensanguentada,
revelando uma cicatriz vermelha brilhante em sua barriga.
“Fechou”, declarou Leeli.
“Um último presente do querido Nugget, jovem princesa”, disse Oskar
maravilhado, e Leeli sorriu.
“Então, quando partimos?” Tink perguntou depois de engolir duas tiras
de bacon. Seus lábios e bochechas brilhavam com a gordura. “Você disse
que tínhamos um dia antes dos Fangs começarem a patrulhar a margem
norte do rio. Não deveríamos começar a nos mover?”
“É, rapaz. Deveríamos.” Podo piscou enquanto prendia a alça de seu
toco na coxa e enfiava a haste da fivela em um buraco bem gasto. “Agora
você está pensando como um rei.” Tink engoliu em seco e desviou o olhar.
Janner decidiu que era hora de se desculpar. “Tink, me, ahn..., desculpe
por ter gritado com você ontem. Você não merecia isso.”
Tink deu de ombros e cutucou o fogo com um graveto.
“Não teríamos conseguido sem você, sabe? De cerca de trinta flechas, eu
só acertei, o quê, três Fangs? Sou um péssimo atirador.”
“Você é um péssimo atirador”, declarou Tink com um sorriso malicioso.
“Eu não entendo muito”, continuou Janner, “mas, por aquilo que
importa, acho... acho que você vai ser um bom rei.”
O sorriso de Tink desapareceu. “Obrigado. Espero que sim”, disse
baixinho. Ele deixou o fogo e começou a desmontar a barraca.
Janner olhou para os outros. Ele tinha feito o que pôde para se desculpar
e até deu um passo adiante com um elogio. “O que foi tudo isso?”
Perguntou discretamente.
“Apenas deixe ele”, aconselhou Nia. “Ele vai ficar bem.”
A barraca foi enrolada e amarrada à mochila de Podo, e em minutos o
grupo estava pronto para partir. Depois de tudo o que acontecera no dia
anterior, Janner se sentia pronto para qualquer coisa. Sua mochila havia
perdido a rigidez e estava pendurada em seus ombros de uma maneira que
se ajustava ao seu corpo. Ele havia empunhado sua espada em batalha, e seu
peso não o sobrecarregava mais, mas lhe dava coragem. Lembrava-se do
peso do arco em sua mão, a tensão e a soltura ao puxar e disparar as flechas.
Os calos nas palmas lhe davam uma boa sensação, e ele imaginou suas
mãos um dia sendo tão fortes e capazes quanto as de Podo.
“Dê a ordem, Rei Kalmar”, requereu Podo com uma ligeira inclinação de
cabeça.
Tink parecia um rato em uma armadilha.
Então soltou um arroto que rivalizava com um de Podo e, com um
ataque de risos, o grupo partiu para a floresta.
19

Will Usurpador e
os Primeiros
Livros

O grupo viajou pela floresta o dia todo e, exceto pela preocupação


persistente de que atrás de cada árvore se escondesse uma vaca-dentada ou
um canicórneo, a viagem foi estranhamente agradável.
Janner relaxou pela primeira vez desde que deixaram o castelo de Peet,
como se um rio gelado dentro dele estivesse finalmente derretendo. Ainda
assim, as palavras que o velho dragão cinza havia falado o assombravam.
“Ele está perto de você. Cuidado.”
Ocorreu a ele que o dragão não tinha realmente dito que Gnag, o Sem-
Nome, estava por perto. Mas quem mais poderia ser? Quem mais iria
“buscar os jovens para usá-los para seus próprios fins”? O dragão
provavelmente se referia ao líder dos Fangs na Ponte Miller. Ou poderia
estar falando sobre Zouzab Koit — mas por que um pequeno corre-crista
preocuparia os dragões-marinhos? Podo provavelmente estava certo — o
dragão-marinho estava mentindo, manipulando Janner apenas para se
divertir. Mas, de alguma forma, isso também não parecia certo.
A cada passo que davam em direção a Cavadópolis e para longe do mar,
Janner se preocupava menos com o dragão e apreciava mais a beleza da
floresta. Não viram nenhum sinal de vacas-dentadas ou canicórneos, e
apenas avistaram um murça-das-cavernas quando este deslizou para trás de
uma árvore ao longe. Janner se perguntou por que os animais do lado norte
do rio eram tão escassos. Pensou nos velhos tempos em Skree, antes da
guerra, quando Podo e Oskar disseram que as criaturas perigosas da floresta
eram controladas por guardiões e as pessoas podiam viajar para onde
quisessem. A floresta era um lugar pacífico e adorável — claro, quando não
era para salvar a própria vida. E Janner começou a entender de uma nova
forma o que havia sido perdido quando os Fangs invadiram.
“Senhor Reteep?” Ele o chamou. “É verdade que Gnag, o Sem-Nome, só
veio para Skree por nossa causa? Por causa das Joias de Anniera?”
“Sim e não”, respondeu Oskar, após um momento. “É verdade que ele
enviou seus exércitos aqui porque pensou que vocês tivessem vindo para
esses lados, mas ele teria vindo de qualquer maneira, mais cedo ou mais
tarde. Não se culpe pelo que aconteceu em Skree.”
“Mas por que ele teria vindo, se não fosse por nós?”
“Você se lembra de suas leituras de história, não é, filho? Quantas vezes
um homem iníquo assumiu o poder e, de repente, descobriu que seu reino
era muito pequeno? Os Praxons fizeram isso na Terceira Época. Os
shrevenienses fizeram isso quando Tilmus, o Curvado, tomou o trono, e
veja o que aconteceu com os Irrigados de Shreve. Não sobrou nada além
das Desolações, um terrível desperdício, onde antes havia um jardim do
tamanho de um oceano.” Oskar pisou sobre um galho caído. “Não! Quando
um rei se esquece de quem ele é, tenta se encontrar nos escombros de
cidades conquistadas. É assombrado por um abismo sem fundo em sua
alma, e o encherá com o sangue de nações até que o abismo engula o
próprio homem.”
Janner estremeceu. Aquela escuridão profunda e faminta o assustava
porque ele também a sentia, embora tivesse descoberto que não tinha medo
de cair nela — não quando pensava em sua família. Era como se, entre ele e
aquela escuridão interior, houvesse muitos braços estendidos para segurá-lo,
braços como os galhos de uma árvore, prontos para amortecer sua queda e
servir de apoio a suas mãos e pés.
“Essa é a razão por que Anniera era forte, rapaz”, continuou Oskar. “O
Guardião do Trono protege mais do que o corpo do Rei Supremo. Ele
protege sua alma, lembrando-o, a cada passo, do que é bom, nobre e
verdadeiro no mundo. O Guardião do Trono protege não apenas o rei, mas
também o reino. É seu trabalho lembrar-se e relembrar. E, às vezes, como
você viu, é seu trabalho soar a trompa da batalha e brandir sua espada por
aqueles que ama.”
“Você acha que o tio Artham está bem?”
Oskar acenou com a cabeça. “Acho. Se ele sobreviveu por tanto tempo, é
por causa de sua astúcia ou porque Gnag, o Sem-Nome, o quer vivo —
assim como quer vocês. Talvez seja um pouco dos dois. Não, tenho certeza
de que Peet, o Homem-Meia, aparecerá novamente algum dia. Ele não é um
homem comum, você sabe.”
“Definitivamente não é comum”, concluiu Janner.
“Não é isso que quero dizer”, corrigiu Oskar. “Já foi dito que Artham P.
Wingfeather brilhava com o Fogo de Eremund.1 Os perversos fugiam
diante dele e, durante todos os anos em que ele e seu pai ocuparam o
Castelo Rysen, paz e alegria corriam fundo como um rio.”
“Lembro de minha mãe dizendo que todas as donzelas do reino estavam
de olho nele”, disse Janner.
“Isso é o que eu li. Sabia que escreviam poesia sobre ele?”
“Sério?”
“É verdade. Vamos ver... “Oskar bateu no queixo com um dedo.
Caminharam em silêncio por alguns momentos; então Oskar pigarreou e
começou.

Todo filho da Ilha Brilhante: alegre-se!


Um herói galga pela areia, colina, torrão
Negros cabelos, brilhante lâmina à mão.
À voz do Guardião o perverso estremece!

Veloz sua montaria, feroz seu bando poderoso!


Justa sua palavra, aprazível seu bramido
Que de alto a baixo sobre a Ilha é erguido!
Pelo rei e pela terra arde seu amor afetuoso!

“Quem escreveu isso?” Tink perguntou.


“Não sei”, declarou Oskar. “Encontrei num livro de poemas de Anniera.
Muito valioso.”
“O nome dela era Alma Hidronimbus”,2 revelou Nia. “Era uma boa
amiga minha. Sempre pensamos que ela se casaria com seu tio.
Esperávamos que ela o fizesse. Mas ela nunca conseguiu sair do castelo.”
“Sinto muito, alteza”, lamentou Oskar. “Conheço Anniera apenas por
livros. Andar com vocês por esta floresta é como uma história de criança
que se torna realidade.”
Nia sorriu. “Você não precisa se desculpar, Oskar. Lembrar de Alma é
bom para meu coração. Você conhece mais algum poema dela?”
Oskar recitou cada verso das poesias de Anniera de que se lembrava.
O grupo parou para almoçar e, como não haviam visto animais maiores
do que um meep, Podo arriscou uma fogueira.
“Estão vendo isso?” Perguntou, indicando um carvalho com galhos que
quase alcançavam o chão. “Se o fogo atrair algo grande demais pra nós,
vamos subir naquela árvore até que seja seguro descer. Algum problema
com esse plano, Reteep?”
Oskar empurrou os óculos até à raiz do nariz e olhou para a árvore. “Ah!
Bem... Vamos ver... Não consigo pensar em nenhuma criatura da floresta
mais perigosa do que uma vaca-dentada ou um canicórneo que seja
conhecida por ser boa escaladora. Claro, pode haver cobras ou marbutres —
nós estamos mais perto das montanhas agora, embora não muito. E ainda há
os insetos. Insetos com ferrões como os...”
“Tudo bem então. Esse é o plano.”
Janner e Tink buscavam lenha, enquanto Leeli e Nia vasculhavam as
mochilas para encontrar potes e panelas e os temperos necessários para
fazer a carne seca de verdugo ficar mais parecida com um ensopado. Assim
que o fogo começou a crepitar bem, eles sentaram-se ao redor dele com
olhos nervosos em direção à floresta. Como a vegetação rasteira era
esparsa, era possível ver as árvores a um tiro de flecha ou mais de distância
— o que era bom, Janner pensou, porque seria fácil ver qualquer coisa se
aproximando. Mas isso também o fazia sentir como se estivesse sendo
observado.
Por muito tempo ficaram sentados comendo (tempo demais, Podo
insistia), e a conversa levou aos três presentes que as crianças haviam
recebido, vindos de Anniera. Leeli e Tink mostraram a Oskar a antiga harpa
eólica e o caderno de desenhos. Ele ficou eufórico com a harpa eólica, olhos
arregalados e infantis, enquanto lembrava para si mesmo de seu significado
na história de Anniera. Ficou sem palavras enquanto inclinava as páginas
do caderno de desenho do pai das crianças, buscando uma luz melhor, e as
olhava através de seus óculos. Seus olhos brilhavam de emoção.
“Anniera”, sussurrou Oskar enquanto olhava as imagens da Ilha
Brilhante desenhadas pelo próprio Rei Supremo. Era o mais perto que ele já
tinha chegado de ver aquele belo país com seus próprios olhos.
Por fim, Janner removeu o grande livro encadernado em couro de sua
mochila.
“Fascinante!” Oskar suspirou profundamente, estendendo as mãos para o
livro como uma criança pegando um monte de doce.
“O vovô disse que é um dos Primeiros Livros”, declarou Janner.
“É”, confirmou Podo. “Ouvi dizer que estava entre os tesouros de
Anniera, mas nunca havia colocado os olhos nele até a noite em que
fugimos do castelo.”
“O que são os Primeiros Livros, afinal?” Leeli perguntou.
“Existem muitas lendas, jovem princesa”, relatou Oskar. “Uma diz que o
próprio Criador os escreveu e deu a Dwayne — você sabe, ele foi o
Primeiro Companheiro — como um presente para o cuidado e a governança
de Kistamos. Os Livros ensinaram a Dwayne os caminhos da sabedoria e o
guiaram enquanto reinou durante a Primeira Época, que foi, dizem, cerca de
cinco mil anos atrás. Outra diz que, juntos, Dwayne e Gladys — esposa de
Dwayne — escreveram os Primeiros Livros, e que eles são um registro de
seu tempo quando governavam o mundo. Outra teoria diz que os Primeiros
Livros foram escritos por Will, segundo filho deles, que causou todo tipo de
problemas.”
“Problemas?” Janner perguntou.
“Ele era chamado de Will Usurpador nas histórias”, Nia respondeu.
“Aqui em Skree temos a Carruagem Negra para assustar as crianças quando
estão deitadas na cama acordadas. Quando eu era menina, em Vales Verdes,
eram as histórias de Will Usurpador que nos faziam estremecer nos lençóis.
Diziam que o fantasma de Will Usurpador fazia sua casa ranger durante a
noite, que Will Usurpador era aquele arrepio na nuca que você sentia ao
caminhar pela floresta sozinho.”
A pele de Janner arrepiou. Tink passou a mão pela nuca e estremeceu.3
“Will Usurpador está tão morto e enterrado quanto meu avozinho,
Helmer”, disse Podo bufando. “Você e suas histórias de fantasmas.”
“Não estou dizendo que acredito nelas”, redarguiu Nia. “Estou dizendo
que Will Usurpador era um homem mau — ruim o suficiente para que ainda
existam histórias assustadoras sobre ele milhares de anos depois de sua
morte. Por que você parece tão nervoso?”
Podo resmungou.
“Onde eu estava?” Oskar perguntou, dando um tapinha no grande livro
em seu colo como uma mãe dá tapinhas num bebê.
“Os Primeiros Livros”, respondeu Janner.
“Ah... Outras lendas dizem que Will Usurpador escreveu os Primeiros
Livros. Dizem que ele aprendeu muitos segredos de Kistamos, segredos que
o Criador deu a Dwayne, destinados ao rei — e apenas ao rei.”
“Que tipo de segredos?” Leeli perguntou.
“Bem, ao longo dos mil anos que Dwayne governou...”
“Mil anos?!” Os olhos de Tink se arregalaram.
“Sim. Talvez mais. E, durante seu longo reinado, ele guardou o Primeiro
Poço com cuidado. O poço ficava no centro da cidade, e Dwayne
administrava suas águas curativas aos enfermos e feridos. E o próprio
Dwayne, sem ter a intenção, viveu mais do que qualquer outro.” Oskar deu
uma olhada para Podo. “É uma longa história, que não temos tempo de
contar agora, mas é o suficiente para dizer que Will derrubou o próprio pai
— ele o matou — e roubou o trono, com a intenção de exercer o poder do
Primeiro Poço para seus próprios fins. Alguns acreditam que os Primeiros
Livros fossem os registros, feitos por Will Usurpador, dos segredos que
descobriu.”
Janner olhou para o livro no colo de Oskar com admiração e pavor. Ele
queria acreditar que o Criador o havia escrito (embora isso parecesse
impossível), ou que Dwayne, um velho gentil nos pensamentos de Janner, o
havia escrito. Estremeceu ao pensar que Will Usurpador, algum vilão das
sombras da história, fosse o autor do livro que lhe fora confiado.
Oskar estremeceu de alegria ao abrir o livro. “Esta escrita. Você sabe que
idioma é?”
“Não”, respondeu Nia. “Como papai, nunca vi o livro até o dia em que
fugimos. Concluí que Esben estava com ele, mas não sabia onde o mantinha
escondido. Ele passou muito do seu tempo com Bonifer naqueles últimos
dias.”
“Squoon”, declarou Oskar, olhando por cima dos óculos para Nia.
“Conheço esse nome.”
“Bonifer Squoon!” Janner deixou escapar. “Também me lembro desse
nome.” Ele fechou os olhos. “‘Este é o Diário de Bonifer Squoon,
Conselheiro-Chefe do Rei Supremo de Anniera, Guardião da Ilha da Luz.
Leia isso sem minha permissão e vou socar seu nariz’. Ele era o
conselheiro-chefe de Esben... digo, do papai?”
Nia e Podo trocaram um olhar. “Sim”, ela confirmou. “Como você...?”
“Seu diário estava no fundo da caixa de Dang”, contou Tink. “Aquela
que desempacotamos para o senhor Reteep, pouco antes de eu encontrar o
mapa.”
“Eu o li”, relatou Oskar. “Na verdade, eu o estava lendo quando ouvi
vocês e Peet lutando contra os Fangs na frente da prisão naquela noite.
Presumi que fosse uma falsificação ou algum tipo de ficção de Anniera, um
livro infantil talvez, feito para parecer real com o propósito de alimentar a
imaginação dos jovens. Mas você está dizendo que este Squoon era
realmente o conselheiro do rei?”
“Sim, e Squoon era do tipo que dizia que bateria no seu nariz, com
certeza”, acrescentou Podo. “Não que ele teria realmente batido alguma
vez. Ele era covarde demais para isso.”
“Então, eu estava em posse do diário do conselheiro-chefe do Rei
Supremo. Bem ali, na Livros e Vãos, mas agora... desaparecido para
sempre.” Oskar suspirou. “Nas palavras de Vilmette Oppenholm, em seu
ensaio sobre o declínio de cupcakes gratuitos, ‘Que horrível’.”
“Eu me pergunto como aquele diário acabou em Skree”, Nia falou para
si mesma. “Onde você disse que encontrou a caixa de Dang, Oskar?”
“Em Torrboro. Ao longo dos anos, encontrei vários engradados desse
tipo, provavelmente saqueados de navios que os Fangs piratearam entre
aqui e Dang. Foi uma boa surpresa, mas não inédita. O diário, é claro, se eu
soubesse que era autêntico, teria sido muito mais do que uma boa surpresa
para mim.”
“O que havia nele?” Perguntou Nia.
Oskar pensou por um momento. “Nada tão interessante. Nenhuma
menção aos primeiros nomes, que eu me lembre; apenas ‘o rei’ isso e ‘a
rainha’ aquilo. Ele escreveu sobre suas viagens indo e voltando de Dang.
Parecia fazer muito isso, supervisionando carregamentos e rotas comerciais
e coisas assim. Trabalho estranho para o conselheiro de um rei,
especialmente porque ele já era um sujeito de idade. Mas pensei pouco
nisso, pois acreditava que o diário fosse uma obra de ficção.”
“Lembro que ele passava muito tempo no exterior”, comentou Nia.
“Então ele era um velho ocupado. O que isso tem a ver com o livro?”
Podo retrucou com um traço de aborrecimento. Janner percebeu que ele
estava ansioso para seguir em frente.
“Bonifer e Esben passaram muito tempo juntos naqueles últimos dias”,
explicou Nia. “Eu os ouvi falando sobre o Primeiro Livro mais de uma vez.
Isso é tudo que sei a respeito.”
“As letras parecem valês arcaico, a antiga língua de Vales Verdes. Você
se lembra dela, do tempo de sua juventude, alteza?” Oskar perguntou a Nia.
“Estudei valês arcaico quando era menina, mas ninguém fala mais isso.”
Ela estreitou os olhos e inclinou a cabeça de um lado para o outro. “Tente
isso”, disse ela, virando o livro. “Aí está. Já faz um tempo desde a última
vez que tentei ler, mas definitivamente é valês arcaico.”
“Ah!” Oskar exclamou. “Entendi.” Ele estudou a capa e a encadernação
do livro. “Esta não é a capa original. Quem a substituiu, há sei lá quantos
anos, também não sabia o idioma e colocou a nova capa ao contrário. O que
pensávamos ser a primeira página é, na verdade, a última. Veem?”
Tudo parecia igual para Janner, mas mesmo assim era fascinante.
“Eu acho, alteza, que, com o que eu sei de línguas e o que você se
lembra do valês, podemos ser capazes de traduzir isso.” Oskar olhou
ansiosamente para Nia.
“Não sei”, hesitou ela. “Há uma razão para esses livros terem sido
escondidos. Uma razão para não terem sido traduzidos antes.”
“Mas, alteza, também deve haver uma razão para o livro ter sido
preservado todos esses anos.”
“E uma razão para que meu pai quisesse que eu o tivesse”, Janner
complementou calmamente.
“Nós realmente precisamos seguir em frente”, apressou Podo, chutando
terra sobre o fogo. “Sei que vocês gostariam de ficar sentados o dia todo e
ter uma boa discussão sobre línguas antigas que parecem estar de cabeça
pra baixo, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.”
Um barulho de galhos quebrando e estalando ecoou pela floresta.
Janner e Tink ficaram de pé num salto, desembainharam as espadas e
tomaram seus lugares, um de cada lado de Podo, formando uma forte
muralha de proteção na frente de Nia, Leeli e Oskar.
Uma vaca-dentada, maior do que qualquer outra que Janner já vira,
avançou pesadamente na direção deles.
“A árvore!” Podo gritou. “Agora!”
Segundos depois, estavam a salvo nos galhos de um carvalho de
Glipwood, olhando para a fera gigante abaixo, enquanto ela mancava ao
redor do tronco da árvore. Sangue escorria de seus dentes. Os olhos leitosos
da vaca reviravam, selvagens, incapazes de manter um foco.
“Vejam!” Leeli apontou para uma lança que pendia de seu ombro direito.
A vaca gorgolejou. Seus olhos tremularam e, com um estremecimento
ignóbil, desabou no chão e morreu. Após um momento de silêncio, o grupo
desceu da árvore.
“Ainda bem que ela estava ferida”, ressaltou Podo enquanto arrancava a
lança da lateral da vaca, “ou poderíamos não ter tido tempo de escapar.”
Tink se agachou perto da cabeça da vaca e a cutucou com um pedaço de
pau.
“Então há Fangs por perto”, afirmou Janner, olhando a lança
ensanguentada.
“Não, rapaz”, declarou Podo. “Esta não é uma lança Fang. É uma arma
refinada demais pra ser. Isso explica por que não vimos nenhuma criatura
até agora.” Ele jogou a lança para o lado e limpou a mão nas calças.
“Marginais.”
“Agora você vai nos dizer o que é um Marginal?” Tink perguntou.
“Sim”, Podo disse sombriamente. “Ladrões e assassinos. Se eles estão
por perto, precisamos nos mover, e rápido. Quanto mais cedo sairmos da
floresta, melhor.”
20

No Salão de Lamendron

Naquela noite, quando o sol se pôs em Skree, o troll jogou Peet no chão do
grande salão do Forte Lamendron. Tochas tremeluziam nas paredes. Os
Fangs, em volta da sala, sibilavam para a figura acorrentada que se
contorcia no chão em frente ao trono.
Zouzab e o outro corre-crista deslizaram silenciosamente até o pé do
trono e fizeram uma reverência. “Saudações, general Khrak”, saudou
Zouzab.
Logo atrás do corre-crista, Peet estava deitado de costas e olhava para o
teto elevado. No momento, sua mente funcionava corretamente, e ele se
lembrava de tudo. O troll o arrastara por uma noite e um dia desde a
floresta, através da cidade de Glipwood e pela longa estrada até o Forte
Lamendron. Peet sentia a dor de cada centímetro da brusca jornada.
Ele encontrou alguma satisfação no medo nos olhos dos Fangs ao
olharem-no. Eles tinham bons motivos para ter medo. Se ele estivesse livre
das correntes, poderia acabar com todas as criaturas na sala. Só para ter
certeza, Peet flexionou os músculos. Os Fangs recuaram, mas as correntes
se mantiveram firmes.
“Vejo que você capturou o Guardião do Trono”, prosseguiu Khrak.
Zouzab acenou com a cabeça.
“Excelente. Gnag ficará satisfeito. Mas eu não vejo asss crianças.”
“As joias”, declaou Zouzab, e fez uma pausa.
“Fale, verme!” Khrak sibilou.
“As joias... escaparam. Novamente.”
O rosto de Khrak estava ilegível. Peet sorriu. Zouzab olhou para as vigas
do salão e as janelas altas, provavelmente para o caso de precisar fazer uma
fuga rápida. Khrak tinha a reputação de ser mais implacável do que a média
dos Fangs, o que deveria ser levado a sério.
“Eu poderia contar todos os detalhes sobre como a incompetência do seu
Comandante Higgk levou à fuga”, continuou Zouzab, “mas o importante
não é que eles tenham escapado.”
“E o que ssseria importante?” Perguntou o general com uma voz
ameaçadora.
“O importante, General Khrak, além da captura do Guardião do Trono, é
que ouvimos enquanto a mãe e o avô planejavam e discutiam, e sabemos
para onde estão indo.”
“Ah. E onde é issso?”
“As Pradarias de Gelo.”
“Kimera?” Khrak perguntou.
“Sim, meu senhor. Eles sabem da força reunida lá, e do líder, um homem
chamado Gammon. Também sabem que os Fangs, por mais poderosos que
vocês sejam, não podem suportar o frio severo, então acreditam que lá seja
seguro.”
“Seguro, hein?” Ironizou Khrak a um Fang próximo.
“Sim, general”, disse o Fang com uma risadinha, “perfeitamente
ssseguro.”
Os Fangs no salão explodiram em gargalhadas.
Peet começou a suar. Teria Gnag descoberto uma maneira de proteger os
Fangs do frio? Ele precisava encontrar um modo de contar às crianças!
Ele se esticou e se contorceu, sentindo os olhos de Khrak nele. E, então,
sua mente ficou turva, e ele se esqueceu de onde estava, de quem ele era, de
quem eram as crianças. Ele se tornou pouco mais que um animal
acorrentado.
Quando as risadas cessaram, o Fang no trono desceu do estrado e
curvou-se sobre Peet. Sua língua se lançou para fora e serpenteou no ar a
apenas alguns centímetros do rosto de Peet.
“Sssei exatamente o que fazer com você, Artham Wingfeather”,
vociferou o Fang, e ao ouvir seu nome, a mente de Peet clareou um pouco.
“N-não me mande de volta”, gaguejou Peet. “P-por favor...”
“Voltar para Throg?” Khrak perguntou com um sorriso malicioso. “Você
não quer voltar para as Profundezas de Throg? Ora, tenho certeza de que
Gnag, o Sem-Nome, poderia encontrar um lugar para você nas masmorras.
Sua antiga cela, talvez? Aquela com uma vista excelente, pelo que me
lembro.”
Peet chorou e balançou a cabeça.
Khrak se endireitou e olhou para ele com desprezo. “Pare de
choramingar. Ilhas Phoob pra você, Wingfeather. Deixaremos os Fangs
Cinzentos tentarem... fazer algo de você. Levem-no para as docas!”
21

O Pesadelo de Podo

Quando o céu ficou escuro e a floresta mais escura ainda, Podo anunciou
uma parada para descanso. Não houvera sinal de Marginais nem de vacas-
dentadas nas seis horas desde o almoço.
“Podemos fazer outra fogueira?” Leeli perguntou docemente ao avô.
Podo suspirou. “Não, moça, receio que não. Não à noite. Se quisermos
luz, terá que ser do tipo esverdeado.”
Depois de uma refeição fria e silenciosa, à luz da vela de cera de meleca,
Podo armou a barraca perto de uma árvore fácil de escalar e ficou de vigia,
enquanto Tink e Janner se amontoavam junto ao livro antigo, posto sobre o
colo de Oskar. De vez em quando, o velho livreiro chamava Nia e segurava
a vela para que ela pudesse ver a página. Ela lhe dava seu melhor palpite
sobre o som ou o significado de uma letra, depois voltava para seu lugar ao
lado de Leeli.
Janner estava dolorido e cansado, mas sua mente se agitava com
perguntas muito tempo depois de Nia ter apagado a vela e os outros,
adormecido. Ele queria saber por que Podo, que havia parecido tão feliz
durante as semanas no castelo de Peet, estava agora tão irritado e distante.
Ele queria saber o que, a respeito do Mar Sombrio, fazia o velho pirata
hesitar. Ele queria saber o que havia acontecido com Peet, o Homem-Meia.
Ele queria saber por que seu pai havia lhe deixado esse livro gigante e
desgastado pelo tempo, escrito em uma língua da qual ninguém se
lembrava. Ele queria saber quem eram os Marginais. Ele queria saber o que
Gnag, o Sem-Nome, poderia querer com ele, seu irmão e irmã. A mente de
Janner estava tão cansada de pensar quanto suas pernas estavam de andar, e
ele finalmente se sentiu caindo no sono, flutuando no reino dos sonhos
como um menino em um barco.
“Sinto muito”, lamentou uma voz.
Janner se sentou, sem saber se estava sonhando. Depois de um momento,
a névoa em seu cérebro se dissipou e ele se lembrou de onde estava. Ouviu
os roncos e respirações profundas dos outros, grilos do lado de fora da
barraca e uma coruja em algum lugar ao longe.
“Eu sinto muito, muito mesmo”, veio a voz novamente. Era Podo.
“Vovô?” Janner sussurrou. Não houve resposta. Ele rastejou até onde
Podo estava deitado. À luz fraca da barraca, ele podia ver que os olhos de
seu avô estavam fechados e sua boca, ligeiramente aberta. “Vovô, você está
sonhando”, sussurrou Janner.
“Não há desculpa, senhores... Eu sinto muito. Eu não sabia. Precisam
acreditar em mim”, murmurou Podo, à beira das lágrimas. O que quer que
estivesse sonhando, era horrível. A coruja piou novamente, e Janner pensou
em se deitar e deixar Podo com seu sonho, mas então a boca do velho se
contraiu, e ele gemeu.
“Vovô!” Janner sussurrou novamente, desta vez com a mão no ombro de
Podo.
Os olhos de Podo se abriram. Uma de suas maciças mãos se ergueu e
agarrou Janner pela garganta, mas Podo voltou a si e o soltou com a mesma
rapidez.
“Você estava sonhando”, Janner engasgou. Os dois se entreolharam em
silêncio, enquanto a respiração de Podo desacelerava.
“Lá fora”, sussurrou o velho.
Eles saíram da barraca e permaneceram no silêncio vivo da floresta. As
estrelas eram tão brilhantes que as folhas projetavam sombras. Podo tirou o
cachimbo do bolso, carregou-o com tabaco e acendeu-o sem dizer uma
palavra. O frio no ar infiltrou-se pelas roupas de Janner e o fez tremer, mas
o cheiro da fumaça do cachimbo era quente e reconfortante e evocou
memórias do chalé Igiby e da lareira.
“Sonhando, hein?” Comentou Podo.
“Sim, senhor.”
“O que foi que eu disse?”
“Você disse que não havia desculpa, que não sabia. E que você sentia
muito.”
Podo deu uma longa tragada em seu cachimbo e soprou a fumaça
lentamente. “É”, ele disse para si mesmo. “Sinto mesmo.”
“Pelo quê?” Janner perguntou timidamente.
“Pelas coisas que fiz há muito tempo. Dívidas que ainda não foram
pagas.”
“Mas você não vai me dizer o quê.”
“Acho que não. Não agora, pelo menos.”
Janner queria pressioná-lo, mas sabia pelo tom de voz de seu avô que
seria melhor deixar para lá.
“De volta pra cama, rapaz. Tenho a sensação de que amanhã nosso
pequeno passeio de férias pela floresta chega ao fim.”
“Como você sabe?” Janner perguntou com um bocejo.
“As árvores estão mais esparsas. Não consigo mais ouvir o rio, o que
significa que ele se nivelou. E isso significa que vamos dar de cara com os
Marginais que enfiaram a lança naquela vaca-dentada. Se eles podem matar
uma daquelas criaturas, pode apostar que vão acabar com a gente
rapidamente.”
“Você já os viu antes?”
“Sim. Cresci aqui, lembra? Muito antes de Skree ser um lugar tão
perigoso. Mamãe e papai viajavam com frequência para Torrboro para
comprar sementes para a fazenda ou vender bacorins, se tivéssemos extras.
Claro que as pousadas em Torrboro eram caras demais para gente da laia
dos Helmer. Então, pegávamos a balsa para cruzar o Blapp até Cavadópolis,
onde meus pais podiam pagar um quarto. Em Cavadópolis, as coisas não
eram tão bonitas, mas eram muito mais divertidas para um fedelho como
eu.” Ele riu para si mesmo e soltou outra baforada de fumaça. “Mais de
uma vez escapei de meus pais e me vi envolvido em toda espécie de
problemas com os tipos mais decadentes de Cavadópolis. Mais de uma vez,
esses miseráveis acabavam sendo Marginais.
“Veja, rapaz, Cavadópolis é uma cidade de criminosos, mercenários,
vagabundos e aventureiros. Se é problema que você está procurando, é ali
que vai encontrar. Mas existem alguns tipos que nem mesmo os moradores
de Cavadópolis aturam. Alguns criminosos podem roubar sua cueca de
debaixo de suas roupas, mas não pensariam em machucá-lo. Já outros
roubam mais do que apenas seus pertences; atacam seu bolso e ainda
cortam sua garganta, apenas por diversão. Cavadópolis é um lugar
turbulento, mas as pessoas que vivem ali têm um senso do que é certo e
adequado, mesmo que seja algo tão traiçoeiro quanto um peixe-adaga. Se os
cavadopolienses disserem que você é inadequado para a sociedade, então
você é realmente mau.” Podo deu uma risadinha. “Você é banido da cidade
e vai ao longo do rio surrupiar pra viver, juntando migalha pra sobreviver
no meio de uma sociedade inteira de malditos assassinos. Quanto pior você
for, mais longe ao longo da margem do Blapp você vai parar.”
Janner estava bem acordado agora. “Então amanhã vamos dar de cara
com eles? Os Marginais?”
“Temo que sim. E longe, assim, serão os piores deles.”
“Parecem ser tão ruins quanto os Fangs.”
“Sim.” Podo abraçou Janner e o mandou de volta para a cama. “Piores
ainda.”
Janner voltou furtivamente para a barraca e ficou acordado até o
amanhecer. Observou seu avô pela fresta da aba da barraca, andando de um
lado para o outro e fumando seu cachimbo enquanto o céu lá fora passava
de preto para azul-escuro e, em seguida, para branco-gelo. Leeli estava
encolhida ao lado de Nia, ainda abraçando sua mochila. Seu fino cobertor
havia escorregado, então Janner o puxou de volta até o queixo dela.
Oskar se engasgou com um de seus roncos monstruosos, e os olhos de
Tink se abriram piscando. “Janner?” Ele chamou com uma voz sonolenta.
“Sim?”
“Eu não quero ser rei.”
Janner quase perguntou a Tink o que ele queria dizer com isso, mas se
conteve. Ele sabia exatamente como seu irmão mais novo se sentia. “Tudo
bem. Eu também não quero ser um Guardião do Trono.”
“Não? Mas você é tão bom nisso. Você nunca hesita. Sempre parece
saber o que fazer.”
“Não é essa a sensação que eu tenho”, retrucou Janner. “Não se
preocupe. Tenho certeza de que você vai...” Você vai o quê? Tink realmente
daria um bom rei?
“O quê?” Tink perguntou, apoiando-se em um cotovelo.
“Tenho certeza de que você se sairá bem. Não acho que nenhum de nós
esteja pronto para ser um rei ou um Guardião do Trono ainda. Acho que
deveríamos estar estudando nosso T.A.N.E.G., jogando handyball e lendo
livros. Mas se isso fosse verdade, então também seria verdade que os Fangs
não deveriam estar em Skree, nosso pai deveria estar vivo e Leeli deveria
ter duas pernas boas.”
“Mas as coisas são o que são”, concluiu Tink.
“São o que são.”
“O que vamos fazer?” Tink perguntou.
“Hoje? Vamos sair da floresta. Podo diz que provavelmente
encontraremos os Marginais”
“Não, quero dizer depois disso.”
“Bem... Cavadópolis. Depois, as Pradarias de Gelo, espero.”
“Depois disso?”
“Não sei.” Janner sentiu uma onda de irritação no peito. Normalmente
ele fazia as perguntas e se preocupava com o futuro. Pela primeira vez, pelo
menos esta manhã, Janner estava contente em deixar as coisas acontecerem
como acontecessem. “Anniera, talvez?”
“Mas parece tão... impossível, não é? Quero dizer, você realmente acha
que Gnag, o Sem-Nome, e os Fangs e os trolls vão nos deixar ficar com ela
simplesmente? Ou devo ser o rei que lidera — o quê, um exército de
rebeldes contra esses monstros? ... Janner”, Tink disse baixinho, “não acho
que consiga fazer isso. Eu só quero que me deixem em paz, como era em
Glipwood, antes de tudo isso acontecer.”
“É tarde demais pra isso, Tink. Além disso, lembra o que Oskar nos
contou sobre os skreenianos? Disse que estavam profundamente infelizes,
que suas vidas não eram mais vidas.”
“Parecia uma vida pra mim. Eu era feliz em Glipwood, contanto que
ficássemos longe dos Fangs. Quer dizer, tínhamos o chalé, o Festival do Dia
dos Dragões, zibzy com os irmãos Blaggus, histórias perto do fogo —
refeições quentes! E agora olhe pra nós!” Nia se mexeu e murmurou algo
dormindo, e Tink baixou a voz. “Estamos dormindo em uma barraca,
Nugget está morto, Peet está... quem sabe o que aconteceu com ele. Minhas
costas doem! Não gosto de carregar esta mochila o tempo todo.” Tink se
sentou e abraçou os joelhos. “Eu só não quero ser rei.”
Janner suspirou e fechou os olhos. Sentia falta de Glipwood também.
Então, pensou em Anniera. Lembrou-se da imagem de seu pai no barco.
Lembrou-se do aperto em seu coração ao ouvir o canto dos dragões, da
maneira como se sentiu na manhã anterior ao ver o sol se erguendo de sua
sepultura no Mar Sombrio.
Valeu a pena? Sim.
“Glipwood se foi, Tink.”
Tink fechou os olhos.
“Não podemos voltar.”
Tink suspirou. “Eu sei.”
“Você sabe o que eu quero? Quero uma longa sequência de dias como
ontem, quando caminhávamos pela floresta, ouvindo poemas sobre o tio
Peet, rindo juntos. Sem espadas, arcos ou Fangs. Quero descansar. Mas
receio que não seremos capazes disso por muito, muito tempo — não até
chegarmos a Anniera. Até chegarmos em casa. Se tivermos que lutar pra
chegar lá, estou disposto a fazê-lo. E mesmo que eu tenha que puxar você
pelo colarinho, você virá comigo. Veja.” Janner tirou o caderno de desenho
de Esben da mochila de Tink, abriu-o e segurou-o sob a luz que entrava
pela aba da barraca. “Vê essa imagem? O gramado abaixo da muralha do
castelo, onde as pessoas estão sentadas à sombra da árvore?”
“Sim. Já olhei para ela umas cem vezes.”
“Esse é um lugar real. E é nosso. E algum dia vou dar uma surra em
você no zibzy naquele gramado.”
Tink sorriu. “Eu vou ser o único a dar uma surra. Sempre serei mais
rápido do que você.”
Janner disse a Tink que o amava, e Tink disse que também amava
Janner, mas não da maneira que um marido e uma esposa diriam. Janner
deu um soco no ombro de Tink e Tink o socou de volta. Só para ter certeza
de que seu irmão acreditava nele, Janner golpeou Tink nas costelas, e os
dois riram forte o suficiente para acordar todos, com exceção de Oskar, que
fungou, estalou os lábios e virou para o lado.
Podo achou que seria engraçado desarmar a barraca com Oskar ainda
dormindo nela. Então, depois de um rápido café da manhã com frutas secas,
Janner e Tink ajudaram Podo a puxar as estacas e levantar a vara central
que mantinha a lona no alto. Eles riam e cochichavam enquanto a erguiam
como um guarda-chuva gigante e expunham Oskar à luz do sol, mas ele
ainda roncava. Quando a barraca foi enrolada e amarrada à mochila de
Podo, não havia mais nada a fazer a não ser despertar o senhor Reteep.
Leeli cutucou seu ombro, e sua única resposta foi uma ligeira mudança no
tom de seu ronco. Nia juntou-se a Leeli e cutucou Oskar do outro lado.
Logo elas o estavam balançando para lá e para cá com tanta força que Podo,
Tink e Janner se dobraram de tanto rir. Oskar roncou e coçou a barriga.
“Mamãe”, chamou Leeli.
Nia enxugou uma lágrima do olho, ainda rindo junto com Podo e os
meninos.
“Mamãe”, repetiu Leeli.
“O que é, querida?” Nia perguntou, tentando se conter.
“Quem é aquele?” Ela apontou para as árvores logo atrás do ombro de
Nia.
Dois olhos maldosos, presos a um rosto sujo observavam os Igibys e
Podo.
“Sou um Marginal, é isso que sou.”
22

Os Marginais da
Curva Oriental

O Marginal saiu de trás da árvore.


Era uma garota não muito mais velha do que Janner, coberta da cabeça
aos pés com uma sujeira preta que fazia seus olhos e dentes brilharem.
Roupas esfarrapadas pendiam em seu corpo magro. Em sua mão estava uma
adaga, e a maneira como ela a segurava deixava claro que sabia como usá-
la.
“Viram minha vaca?” A garota exigiu. “Acertei ela em cheio ontem, e
ela correu pra cá. Se vocês comeram minha vaca, retalho vocês e levo de
volta pro acampamento num saco.”
“Ninguém comeu sua vaca, moça — retrucou Podo, dando um passo à
frente.
A garota sibilou e brandiu a faca para o velho. “Não sou sua moça”, ela
cuspiu. “E é melhor você não dar mais nenhum passo à frente ou vou acabar
com um de vocês antes que tenham tempo de notar que eu sumi.”
Podo ergueu as mãos. “Atire essa faca e ninguém vai te dizer onde está a
vaca. Não queremos te fazer nenhum mal, então por que você não relaxa e
nos diz seu nome? O meu é Podo. Podo Helmer.”
“Não interessa quem você é. Só quero minha vaca.”
Podo e a garota fitaram-se firmemente em uma guerra de olhares que,
para a surpresa de Janner, a garota venceu.
“Tudo bem”, disse Podo. “A vaca-dentada está a meio dia de caminhada
por onde viemos. Você encontrará os restos de uma fogueira que fomos
tolos o suficiente para acender, e sua vaca — ou o que sobrou dela — estará
perto.”
A garota Marginal estreitou os olhos para Podo e considerou a
informação. “Certo.” Ela acenou com a cabeça. “Acredito em você. Agora,
larguem as armas.”
“Não se ache grande demais para suas calças, moça,” Podo bradou.
“Ninguém vai largar arma nenhuma...”
A garota arremessou a faca tão rápido que Janner mal a viu se mover. A
faca bateu em algo de madeira, e ele percebeu, chocado, que estava cravada
na perna de pau de Podo. A garota já havia sacado uma segunda faca e
estava pronta para arremessá-la em Leeli.
“Basta!” Podo urgiu com as mãos no ar. “Vamos te dar nossas armas,
certo? Não há necessidade de fazer nada drástico.”
“Ainda bem. Nós vamos levar as mochilas também.”
“Nós?”
Sem fazer nenhum som, mais crianças apareceram por trás das árvores e
desceram dos galhos, cada uma delas feroz como um canicórneo e pronta
para matar. Os Igibys se amontoaram em volta do corpo do ainda roncador
Oskar N. Reteep.
Sem avisar, Oskar sentou-se, tagarelando sons de letras do valês arcaico
e declarou que havia desvendado outra peça do quebra-cabeça linguístico.
Ele tateou os óculos, colocou-os no nariz e, quando viu a gangue de
crianças sujas, disse: “Bom dia”.
“Vamos levar vocês todos com a gente”, disse a garota. “Banikon! Leva
mais cinco e encontra a vaca. Traz de volta o máximo que puder carregar.
Anda logo!”
Sem dizer uma palavra, um dos meninos escolheu cinco crianças, e eles
entraram na floresta, silenciosos como sombras.
Os Marginais restantes — Janner contou onze — reuniram as mochilas e
armas dos Igibys e vasculharam tudo, embolsando comida, fósforos e tudo
o mais que desejassem. Para o alívio de Janner, eles mostraram pouco
interesse no Primeiro Livro, na harpa eólica e no caderno de Tink.
Quando a garota ficou satisfeita o suficiente com a pilhagem das
mochilas, jogou-as de volta para os Igibys. Então, aproximou-se de Podo
com um olhar desconfiado e arrancou a adaga de sua perna de pau. “Então,
venham. O acampamento não é longe.”
A um aceno de Podo, os Igibys e Oskar os seguiram. Se Podo estava
recebendo ordens, então essas crianças Marginais eram realmente
perigosas, pensou Janner.
Elas variavam em idade e tamanho. Alguns eram meninos e algumas
eram meninas, embora as meninas se portassem como nenhuma garota que
Janner já tivesse visto. Ele tinha certeza de que, menina ou menino, as
crianças Marginais eram todas mortalmente boas com suas adagas.
Sempre que Podo ou Nia tentavam se comunicar com as crianças Igiby, a
garota líder sibilava e agitava sua faca. Leeli aguentou como a princesa que
era, acompanhando o passo com sua muleta sem reclamar e, para o crédito
dos Marginais, eles permitiram que Podo e Janner se revezassem,
carregando-a nas costas, de vez em quando.
Passada uma hora, Janner sentiu cheiro de fumaça e avistou sinais de um
acampamento, não muito longe. Várias figuras ao redor de uma fogueira se
levantaram e espiaram em direção às árvores quando eles se aproximaram.
Estavam imundos e enlameados, e pareciam contentes com isso. Janner
podia ver o Grande Rio Blapp, não muito longe, amplo e silencioso.
“Conseguiu?” Perguntou um dos homens.
“Sim e não”, respondeu a garota. “Podemos chegar perto?”
Ninguém dizia uma palavra. Janner olhou para sua família e viu medo
em todos os rostos, exceto no de Podo, cuja mandíbula estava contraída e
cujos olhos brilhavam como metal quente. As crianças Marginais estavam
em silêncio ao redor dos Igibys, olhando para lá e para cá entre o homem ao
fogo e a garota.
“E quem tá aí com você?” Perguntou o homem.
“Não sei. Encontrei não muito longe daqui.”
“E você encontrou a carne, né?”
“Já falei que sim.”
O homem perto do fogo inclinou a cabeça; se com raiva ou admiração,
Janner não sabia dizer. “Tudo bem, então. Cheguem perto.”
As crianças Marginais esgueiraram-se entre os adultos. Se elas tinham
pais, não transparecia; nenhuma das crianças abraçou ou cumprimentou
ninguém. Elas pararam perto da fogueira com sorrisos meio escondidos e
estenderam as mãos para a chama.
“Então, onde tá a comida, Maraly?” O homem perguntou à menina.
“A caminho. Mandei Banikon com um grupo para pegar. Achei este
grupo dormindo, não muito longe daqui. Eles tinham armas.”
Outra das crianças jogou as espadas, facas, arcos e flechas no chão.
“Não pretendemos ficar muito tempo”, disse Podo. “Vocês podem ficar
com as armas e todos os suprimentos que quiserem.”
O homem se aproximou. Uma longa barba pendia de seu rosto em
mechas emaranhadas que pareciam um agrupamento de cobras marrons
mortas. Usava o cabelo amarrado para trás, revelando uma testa elevada e
suja com uma cicatriz irregular.
“Escute”, prosseguiu Podo. “Não queremos incomodá-los. Estamos indo
para Cavadópolis e gostaríamos de seguir nosso caminho.”
O homem sujo ergueu-se em toda a sua estatura, um palmo mais alto que
Podo, e olhou para o rosto do velho pirata. “Vocês vão seguir seu caminho
quando eu disser que vocês podem seguir seu caminho. Vão pra perto do
fogo e fiquem à vontade. Há muito a ser feito.”
Ele se virou e gritou para seu clã. “Amarrem-nos!”
Os outros Marginais se adiantaram. Eles empurraram e puxaram, riram e
cuspiram nos Igibys enquanto os levavam para o fogo e amarravam suas
mãos atrás das costas. Os Igibys sentaram-se em um banco perto do fogo,
enquanto os Marginais cuidavam de seus negócios: dando socos nos ombros
uns dos outros em algum tipo de jogo, afiando adagas ou fazendo caretas
horríveis para as crianças para ver se conseguiam fazê-las chorar.
Janner admirou a contenção de Tink. Ele sabia que seu irmão mais novo
poderia fazer caretas tão feias quanto o melhor deles, mas, em vez disso,
preferiu olhar para o fogo. Dois dos homens ergueram um espeto acima do
fogo, exibindo sorrisos de dentes negros para as crianças. Janner notou
centenas de ossos na terra ao redor da fogueira, alguns pequenos como
espinhas de peixe; outros do comprimento de seu braço. Isso explicava por
que os animais na floresta eram tão escassos. Viu os crânios de
verruguentos sapos-toupeiras, vacas-dentadas e peixes-adagas meio
enterrados nas cinzas e na terra. Não havia crânios humanos, mas com o
jeito faminto como os Marginais olhavam para eles, não ficaria surpreso.
“Eles não amarraram nossos tornozelos”, disse Tink baixinho, “mas acho
que não adianta tentar fugir, né?”
“Não, filho”, respondeu Nia. “Eles conhecem esses bosques. Não
teríamos a menor chance.”
“Poderíamos lutar”, replicou Leeli. “Ou vocês poderiam lutar. Eu não
seria de muita ajuda. Mas se vocês conseguissem soltar as mãos, as armas
estão bem ali.”
“Aprecio a ideia de lutar tanto quanto qualquer pessoa”, acrescentou
Podo, “mas, desde que eles não tenham a intenção de nos cozinhar no
espeto, acho que o melhor será levar as coisas com calma, por enquanto.”
Ficaram sentados assim por horas, desconfortáveis, com fome e com
sede. A presença do Blapp a uma curta distância agia como um lembrete
constante de que eles não haviam bebido nada desde o café da manhã.
Quando finalmente o sol se pôs, as crianças Marginais voltaram com a
vaca-dentada. Haviam cortado a carne dos ossos e carregado em sacos, que
despejaram sobre uma lona ao lado do fogo. Como moscas em comida
velha, os Marginais se reuniram em torno das chamas. O homem de barba
apareceu com um barril, e os Marginais aplaudiram. Os dois homens que
haviam erguido o espeto trespassaram os pedaços de carne de vaca-dentada
e os penduraram sobre o fogo, onde assaram e chiaram, produzindo um
cheiro surpreendentemente delicioso.
“É melhor dar a vocês uma mordida e um gole”, comentou uma voz logo
atrás dos Igibys. “Pode ser o último.” O líder dos Marginais libertou as
mãos de cada um e se inclinou sobre Podo. “Você parece o tipo que vai
compreender que isso é verdade: se tentarem correr, vamos matá-los e jogar
seus corpos no Blapp. Entendido?”
Podo parecia querer dar um soco no nariz do homem, mas anuiu com a
cabeça.
“Ótimo”, disse o Marginal.
A menina Maraly apareceu com uma cesta de cumbucas e copos de
tamanhos estranhos, encheu-os com o líquido do barril e passou-os adiante.
Janner cheirou a bebida em sua tigela. Tinha um cheiro doce e quente, mas
não tinha certeza se queria experimentar. Ouviu um som de goles à sua
direita, e virou-se para ver que Tink já havia terminado o seu.
“Qual é o gosto?” Janner perguntou.
“Tem gosto de molhado. Quem se importa? Eu estava com sede.” Tink
estendeu o copo, pedindo mais. Maraly olhou para o homem de barba
desgrenhada, que assentiu, e ela encheu novamente o copo de Tink.
Os Marginais estavam rindo, batendo palmas e contando histórias assim
como os cavadopolienses que iam a Glipwood no Dia dos Dragões; e, como
no Dia dos Dragões, Janner achou difícil não gostar deles, em vista disso.
Pareciam não ter nenhuma preocupação no mundo.
Quando a carne foi declarada pronta, dois homens tiraram o espeto do
fogo e a distribuíram. Os Marginais rasgavam a carne marrom e suculenta
do espeto e a devoravam como cachorros, batendo e chupando os dentes de
uma maneira que enojava Janner e o deixava com fome. Não conseguia
acreditar que carne de vaca-dentada pudesse cheirar tão bem.
Tink colocou as mãos sobre o estômago e sentou-se com a boca
entreaberta, observando enquanto o espeto fazia seu caminho ao redor do
círculo. Tink gemeu quando o espeto finalmente o alcançou, arrancou um
pedaço de carne e o devorou.
O líder voltou-se para seu clã e ergueu a voz. “Marginais!”
“Da Curva Oriental!” Bradaram em resposta.
“Mãos rápidas! Barbas compridas!” Ele gritou.
“E adagas afiadas!”
“Sem lei!” Rugiu o líder.
“Sem lei!” Eles ergueram seus copos e caíram na gargalhada.
“Agora, então, clã”, acrescentou o homem, levantando a mão, “é hora de
conhecermos nossos novos amigos. Meu nome é Claxton Ardileza. Sou
ladrão, andarilho e brandidor de aço. Não gosto de Fangs, não gosto de
estranhos e não gosto de regras. Este é o meu povo, e este é o meu
acampamento, e nós podemos tanto jogar vocês no rio como podemos lhes
dar outro pedaço de nossa carne. Então, é melhor pensarem em algo que
vocês tenham ou algo que possam fazer por mim, que me ajude a entender
por que eu deveria deixá-los continuar respirando.”
O bom humor dos Marginais desapareceu, e eles fecharam a cara para a
família. Oskar parou no meio da mastigação e ergueu os olhos para o
homem. Leeli, Nia e Janner também congelaram. O único som era dos
lábios de Tink estalando, enquanto ele comia sua carne, ciente de nada mais
além de sua barriga faminta.
Podo considerou o homem por um momento e disse: “Sim. Bem. Temos
comida. Temos armas, como você pode ver. Deixo você ficar com tudo, se
você nos deixar ir sãos e salvos, Claxton Ardileza.” Então, a voz do velho
pirata se aprofundou e suas narinas se dilataram como as de um cavalo
louco. “Mas se decidir que isso não é suficiente, então você precisa saber
que meu nome é Podo Helmer, e eu vaguei pela Margem antes de você
nascer, com gente como Urra-Punho e os Impetuosos. Não fique tão
surpreso, rapazinho. Eu me infiltrei no Reduto Ocidental com Yule Borron à
luz da Lua Suspensa. Naveguei no Grande Blapp centenas de vezes, daqui
até a borda dos mapas, e posso lutar com as mãos, os dentes e até mesmo as
sobrancelhas, se for o caso. Você entende o que estou dizendo?”
Claxton Ardileza estava pasmado, seu rosto tão miserável e alarmado
que até mesmo Tink parou de mastigar sua carne. Nia puxou Leeli para
perto. O corpo de Janner ficou tenso, e ele desejou que sua espada estivesse
à mão, porque temia que logo fosse precisar dela. Os Marginais ao redor do
fogo ficaram imóveis como pedra.
Podo se levantou e olhou nos olhos de Claxton. “Mas preste atenção,
Ardileza. Sei que você comanda esta curva do rio. Sou velho e perneta, mas
não sou idiota. Se você não gosta de estranhos, então guarde isso para os
próximos que bulirem com a sua curva. Sou tão Marginal quanto você, não
sou Fang e ofereci a você tudo o que temos. Se isso não for suficiente, então
meus garotos e eu lutaremos como dragões.” Podo deu um passo para mais
perto do homem alto. “E você é o primeiro em quem pretendo colocar os
dentes e minhas sobrancelhas espessas.”
A pele de Janner se arrepiou de orgulho, e ele fechou os dedos em
punhos. Sabia que eles não eram nada parecidos com as mãos resistentes de
Podo, mas teriam que servir.
Os olhos de Claxton passaram rapidamente para Janner e Tink, e depois
para Oskar, considerando a ameaça de Podo. “Você se infiltrou no Reduto
Ocidental?” Inquiriu. “Sério?”
“À luz da Lua Suspensa.”
Os olhos de Claxton se estreitaram e brilharam com uma luz fria. Um
olhar tão feroz passou entre os dois homens que Janner se encolheu, como
se toda a escuridão na alma de cada um se derramasse e travasse uma
grande batalha no espaço entre eles. Não ficou claro quem ganhou, mas
Claxton parecia dar-se por satisfeito que Podo fosse, pelo menos, um
inimigo à altura — quem sabe até mesmo um camarada.
A tensão desapareceu do rosto do homem barbudo, e ele sorriu. “Então,
encontrei um motivo para permitir que você viva, Podo Helmer. Você vai
nos contar uma história — um relato da Margem nos dias de sua juventude.
Meu clã e eu vamos dormir esta noite com a emoção das velhas histórias
em nossos ossos.” O sorriso de Claxton desapareceu, e ele baixou a voz.
“Mas se o que você tem para dar não for bom o suficiente, velho, então será
o Blapp ou minha lâmina para você e seu grupo. Nós, Marginais, também
podemos lutar como dragões, lembre-se. Claxton voltou-se para seu clã.
“Não podemos?”
Os Marginais mostraram os dentes e sibilaram. Em um movimento
mortal, os homens, mulheres e crianças ao redor do fogo sacaram suas
facas, prontos para saltar por cima do fogo, se Claxton ordenasse.
23

Urra-Punho,
O Rei Marginal

Podo ficou diante dos Marginais, transferindo o peso da perna boa para o
cotoco e vice-versa. Claxton estava sentado em um tronco no centro de seu
clã, de braços cruzados sobre o peito. Os Igibys e Oskar estavam atrás de
Podo. O fogo havia se reduzido a um brilho vermelho constante que dava
ao ar a cor de um pesadelo.
“Podo Helmer”, incitou Claxton, “prossiga.”
Janner olhava para o avô sob uma nova luz; parecia que o velho não
tinha fim para seus segredos. Mas por mais que Podo odiasse seu passado e
por mais que Janner odiasse imaginar seu querido avô acompanhando um
bando tão miserável, havia uma chance de isso salvar suas vidas. Ele sabia
que o avô tinha uma história em mente, mas estava com sérias dúvidas de
que Claxton e seu povo sibilante — e manejador de facas — os libertariam,
não importando o quão estimulante fosse a narrativa.
Podo fechou os olhos por um momento e respirou fundo antes de
começar.
“Marginais! Estou diante de vocês com apenas uma perna, meus cabelos
brancos pelo tempo e minha barriga cheia de sua boa carne. Este fogo aqui
queimando baixo leva meu pensamento até Urra-Punho, o Rei Marginal, na
noite em que o conheci.”
Os Marginais murmuraram e acenaram com a cabeça.
“É, conheci o sujeito, certo. Feroz ele era, e mais alto ainda do que
Claxton aqui por uma cabeça. Dizia-se que seus olhos eram tão maus que
ele poderia cozinhar um peixe só de olhar, e estou aqui para dizer que é
verdade. Vi fazer isso várias vezes.”
“Muitos anos atrás, eu estava pescando em uma curva do Blapp, não
muito longe daqui, balançando num barco com um balde cheio de
vermelhões, quando vi uma multidão sombria descendo das colinas ao
norte. Imundos eles eram, e uma nuvem de sujeira pairava sobre eles como
uma tempestade prestes a desabar. De fato, um raio faiscou da nuvem de
sujeira e um trovão lodoso ribombou. Marginais! Logo pensei, e estremeci
no barco.”
Os Marginais gargalharam de orgulho.
“Eu nunca os tinha visto de perto — não Marginais de verdade, vejam
bem. Alguns daqueles mais perto de Cavadópolis chamam a si mesmos
Marginais, mas vocês, na Curva Oriental, diferem homens de garotas, né?”
O clã rosnou, riu e bateu com os punhos nos joelhos, incluindo as
meninas, Janner notou, das quais Maraly era a mais barulhenta de todos.
“Bem, eu havia estado vagando por alguns dias. Sabia que pessoas tão
abaixo assim no rio só podiam ser perigosas e, para dizer a verdade, era por
isso que eu havia navegado para tão longe assim. O perigo não era nada
para Podo Helmer, ligeiro e jovem como eu era.”
“Então uma voz irrompeu em minha direção, vinda do homem mais alto
que já vi. Ele era o olho da tempestade de sujeira, e os Marginais ao seu
redor giravam como o vento. ‘Venha cá!’ Ele ordenou com uma voz
profunda como o rio, e meu barco remou por si só através da corrente até
onde Urra-Punho, o Rei Marginal, estava. Quanto mais perto eu chegava,
mais temível era sua aparência. Dentes como garras, mandíbula como a raiz
de uma árvore, uma barba desgrenhada tão marrom e lamacenta quanto as
patas traseiras de um sapo-toupeira verruguento.”
Mais uma vez, os Marginais murmuraram sua aprovação.
Podo continuou. “Fiquei diante de Urra-Punho sobre meus dois pés —
isso foi antes de eu perder um, vejam —, tremendo como a barriga de um
arrotão. Eu já havia visto homens altos antes, e homens sujos também, mas
não havia ninguém mais perverso do que o Rei Marginal, e eu disse isso a
ele. Ele perguntou quem me autorizou a pescar vermelhões em suas águas, e
contei francamente: ninguém. Ele se inclinou tão perto do meu rosto que eu
podia ver as pulgas em sua barba.”
“Então, fiz uma coisa tão tola e tão desesperada que não me lembro de
ter decidido fazer. Se eu parasse pra pensar, nunca teria tentado. Agora,
vocês Marginais sabem disso, mas por causa de minha família aqui, que não
conhece seus costumes, direi que os Marginais são um bando nojento.”
Janner esperava que o clã ficasse zangado com isso, mas eles
continuaram concordando como de hábito, dando-se tapinhas nas costas.
“Nojento como o fundo do Blapp!” Podo bradejou.
“Sim!” Urraram.
“E se há algo que um Marginal respeita, é alguém tão nojento, miserável
e ladrão quanto ele, hein?”
“Sim!” Esbravejaram de novo, mais alto.
“Então, vocês querem saber o que Podo Helmer fez?” Ele esgoelou.
“Sim!”
Podo baixou a voz até quase um sussurro. “Eu surrupiei o bolso de Urra-
Punho.”
Os Marginais olharam para ele boquiabertos. Até Claxton pareceu
surpreso.
“Você surrupiou o quê?!” Maraly interpelou.
“Surrupiei o bolso dele. Surrupiei ali mesmo, nas margens do Blapp,
com todo o seu clã observando, e eles não viram nada. Sou muito rápido
quando quero ser, e decidi que minha única chance era provar para Urra-
Punho, o Rei Marginal, que eu estava apto para andar em sua companhia.”
Podo deixou o silêncio pairar por alguns instantes, saboreando, como
sempre fazia, uma história bem contada.
“O que você roubou?” Alguém interrogou.
“A única coisa que meus dedos acharam. Roubei seu totem.”1
Com isso, os Marginais engasgaram.
“Na época, eu não sabia o que tinha feito, é claro. Estava bem ali, no
bolso da frente de suas calças — um pássaro dourado do tamanho do punho
de um bebê. Urra-Punho me segurou pelo colarinho com sua adaga em
minha garganta, todo o seu clã rindo e implorando pra ele acabar comigo.
Mas antes que ele o fizesse, eu disse: ‘Urra-Punho, se você me matar e me
jogar no rio, vai perder seu pequeno pássaro dourado’. O Rei Marginal
apalpou os bolsos e estreitou os olhos ardentes para mim, enquanto eu
levantava a bugiganga diante de seu rosto — e dava uma piscadela.”
“Você deu uma piscadela?” Claxton interpelou, agora tão envolvido na
história quanto o resto de seu clã.
“É. Os olhos do velho Urra-Punho se arregalaram tanto quanto sua boca,
e ele começou a rir tanto que assustou seu clã e a mim. Há algo antinatural
num homem tão perverso como o Urra-Punho rindo assim. Ele parou seu
clã abruptamente, e todos ficamos ali imaginando o que ele faria.”
Podo fez uma pausa, com as mãos estendidas, as palmas abertas para o
céu noturno. “Urra-Punho me colocou no chão, me bateu com tanta força
no rosto que eu ainda tenho a prova” — Podo virou sua bochecha direita em
direção ao brilho do fogo, para que todos pudessem ver a cicatriz do
comprimento de um dedo ao longo da maçã do rosto — “e me deu as boas-
vindas ao clã. Agarrou seu totem de volta, e como ele era o poderoso Urra-
Punho, ninguém o desafiou. Não demorou muito para que eu estivesse
correndo por aí com os Impetuosos e, não muito depois disso, Sharn, o Torr,
enviou suas tropas para tentar limpar a Margem.”
“E você se infiltrou no Reduto Ocidental”, arrematou Claxton, com a
suspeita de volta em sua voz.
“Isso mesmo.”
“Bem, meu velho, é uma boa história. Reconheço.” Claxton se levantou
e se espreguiçou. O sangue de Janner gelou, porque estava claro pela
expressão arrogante de Claxton que a história de Podo não o tinha satisfeito
— ou, se o fez, ele não estava disposto a admitir. “Mas não boa o suficiente,
Podo Helmer, porque eu não acredito em uma só palavra disso. Nenhum
homem poderia ter surrupiado o bolso de Urra-Punho, o Rei Marginal, com
todo o seu clã assistindo. Eu sou o melhor ladrão em Skree — uma vez, em
Cavadópolis, roubei os sapatos de um cara, e ele não soube disso até chegar
em casa —, mas nem mesmo eu poderia ter furtado o totem de Urra-Punho,
o Rei Marginal.”
Claxton sacou sua adaga. Assim que Podo se retesou para atacar o líder
do clã, Leeli gritou. Um Marginal colocou uma faca em sua garganta. Podo
fechou os olhos e estremeceu de fúria. O coração de Janner bateu forte. Os
Fangs eram maus até os ossos, mas, de algum modo, essas pessoas eram
piores. Tirando a aparência suja, eles não pareciam tão diferentes dos
cavadopolienses — ou do povo de Glipwood, por assim dizer. Ele estava
acostumado com os Fangs sendo maus, mas não com homens e mulheres
comuns.
“Clã!” Claxton urrou. “Podo Helmer, o homem gordo e a mulher vão
dormir profundamente no fundo do Blapp esta noite! As crianças
manteremos, é claro.”
Os Marginais avançaram com facas em punho e dentes à mostra.
Separaram Nia de Leeli. Oskar deu um suspiro profundo e baixou a cabeça
enquanto o colocavam de pé.
Mas Janner estava mais preocupado com Tink. Seu irmão olhava para
Claxton com um olhar estranho, não de medo ou preocupação, mas... era
fascinação? Admiração? Mesmo enquanto os Marginais colocavam Tink de
pé, seus olhos permaneceram no bandido alto e barbudo, e os olhos de
Janner permaneceram em Tink.
Num momento, Podo mantivera os Marginais presos com sua história;
um segundo depois, os Igibys, Podo e Oskar estavam cercados e
firmemente presos sob o domínio do clã, novamente. Sem armas, sem poder
de barganha, sem dinheiro para suborno, Janner teve a sensação de que
finalmente haviam chegado ao fim. Simplesmente havia homens, mulheres
e crianças fedorentos demais contra quem lutar e, a menos que Podo tivesse
outro truque em sua cabeça, as Joias de Anniera logo seriam engaioladas e
seus guardiões estariam nas profundezas negras e frias do Grande Blapp.
24

Mãos Rápidas e Pés


Mais Rápidos Ainda

Em meio ao tilintar de facas e às gargalhadas de homens e mulheres de


dentes escuros, Janner ouviu um som maravilhoso. Era um som que ele
conhecia desde que se entendia por gente, um que nunca deixava de trazer
sorriso a seu rosto e entusiasmo a seu peito.
Podo estava rindo.
Sua risada era como o som das árvores se curvando ao vento, o
borbulhar de um rio onde a roda do moinho gira. Toda a tensão no pescoço
e rosto de Janner se dissipou, e ele riu também. Leeli deu uma risadinha.
Nia olhou para seu pai. “E o que é tão engraçado?”
Podo lutou para se controlar. “Eu só queria agradecer a todos. Vocês têm
sido muito gentis e generosos.”
Todos, tanto Marginais quanto Igibys, estavam confusos.
“Do que você está tagarelando, velho?” Indagou Claxton.
Podo exalou o restante de seu deleite, então olhou para o rosto de
Claxton e arqueou uma sobrancelha branca e espessa. “Eu disse que queria
agradecer a todos vocês. Sua generosidade é muito grande. É tão atencioso
de sua parte me dar mais peso, para que minha viagem ao fundo do rio seja
a mais rápida possível. Não sabia que Marginais tinham tanta compaixão
por quem pretendem matar.”
Podo piscou para Janner, enfiou a mão dentro da camisa e tirou uma
xícara de ferro. Ele a pendurou em seu dedo, e a maneira como os olhos dos
Marginais seguiam seu movimento para frente e para trás, enquanto se
esforçavam para entender, pareceu a Janner uma das coisas mais engraçadas
que já tinha visto. Ele deixou escapar uma risada e cobriu a boca.
“Ei! Essa é a minha xícara”, reclamou um velho, atrás.
“É mesmo?” Podo enfiou a mão na camisa novamente e retirou uma
adaga brilhante.
Claxton a puxou bruscamente. “A qual de vocês, idiotas, isso pertence?”
Uma mulher usando um tapa-olho ergueu a mão, e Claxton jogou a
adaga no chão perto de seus pés.
Podo enfiou a mão na camisa novamente, os olhos cintilando, e tirou um
punhado de moedas, dois brincos de joias verdes, uma faca maior, uma
pulseira feita de conchas de caracol e um barco de brinquedo. Uma das
crianças correu e arrancou o último item de sua mão. E assim continuou. E,
exatamente quando Janner estava certo de que Podo não tinha mais dobras
em suas roupas para esconder as coisas que pegara, aparecia outro colar, ou
caixa de fósforos, ou uma ponta de flecha de ferro.
A cada nova revelação, os Marginais faziam “ó” e “ah” e demonstravam
cada vez mais respeito por Podo. Até mesmo o rosto de Claxton suavizou
um pouco enquanto aguardava de pé com os braços cruzados, seus olhos e
os de Podo ainda travados em competição.
“Acabou?” Ele perguntou.
Podo fez uma mise-en-scène, dando tapinhas na camisa e nas calças,
depois acenou com a cabeça. “É... é isso aí.”
“Bem, então. Esta foi uma bela exibição, Podo Helmer. Mostra o tipo de
tolos que habitam a Margem.” Ele olhou para os rostos envergonhados de
seu clã. “Devo admitir, estou inclinado a acreditar que você possa ter se
infiltrado no Reduto Ocidental e talvez até mesmo conhecido o próprio
Urra-Punho.”
Janner sorriu. Podo claramente havia superado Claxton e se mostrado
digno da estima dos Marginais, se não de sua amizade.
“Mas nenhum homem surrupiou o bolso de Urra-Punho, o Rei
Marginal”, Claxton acrescentou, com sua voz ressoando sobre o
acampamento, “e nenhum homem surrupiou o meu. Que seu último suspiro
seja um gole do rio, e que meu clã se lembre de manter a guarda quando
estranhos entrarem na Curva. Levem as crianças para as gaiolas e seus
guardiões para a cova.”
O sangue fugiu do rosto de Janner.
Mas os Marginais hesitaram. Eles podiam ser assassinos e ladrões, mas
não gostavam da ideia de afogar alguém como Podo Helmer, que os
impressionou como um Marginal — se é que algum dia alguém o tivesse
feito.
“Talvez possamos simplesmente jogar a mulher e o redondo e deixar o
perna de pau viver”, Maraly sugeriu. Os Marginais assentiram.
Claxton cerrou a mandíbula. Olhou para a garota por um longo momento
e deu a impressão de que ia bater nela, mas respirou fundo e disse: “Isso
pode parecer uma boa ideia, mas ouçam com atenção! Ele pode ter uma ou
duas histórias no bolso, mas eu digo que ele tem uma doçura muito
feminina para com essas crianças e a senhorita. Surrupiar bolsos é fácil,
mas seus olhos não são sombrios o suficiente para nossa espécie. E aqui, na
Margem, nós vivemos de sombras, clã! Vagamos pela floresta e destroçamos
Fangs e fazendeiros, roubamos e perambulamos e não deixamos nenhum
homem nos dizer aonde ir e o que fazer! Não temos lugar para velhos
mentirosos nem para seus companheiros.”
Claxton sabia como mexer com a sujeira nos corações dos Marginais.
Eles se agitaram e sibilaram novamente.
“Ficaremos com as crianças”, garantiu ele, “mas esses três só servem
para comida de peixes-adagas. Eu sou o chefe desse clã, e isso é o que eu
digo.”
Como um só, os Marginais saltaram sobre o velho pirata. Podo lutou,
mas eram muitos, e ele desapareceu sob uma pilha de punhos socando e
pernas chutando. Amarraram seus braços com uma corda e o levantaram
novamente. Fios de cabelos brancos grudavam-se em seu rosto suado, irado
e trêmulo. Era difícil acreditar que apenas alguns momentos atrás sua
gargalhada estrondosa havia preenchido o ar.
Os Marginais amarraram Nia e Oskar, ambos sem fala, e Claxton acenou
com a cabeça para Maraly. Com um grito, ela começou a marchar, e os
Marginais empurraram os adultos para longe da luz do fogo e na direção do
rio. Janner, Tink e Leeli assistiam à cena em um silêncio atordoado,
enquanto os levavam embora.
“Esperem!” Janner implorou. “Não! Só queremos passar adiante! Isso
não é justo!” Ele sentiu uma dor lancinante na lateral do rosto e se viu no
chão, enxugando as lágrimas.
“Quieto, garoto, ou eu bato em você de novo”, Claxton murmurou.
Por mais que tentasse, Janner não conseguia pensar em nenhum plano,
nenhuma ideia que pudesse impedir o que estava acontecendo. Desejou que
Peet surgisse atacando do alto para salvá-los, como havia feito tantas vezes
antes. Desejou que Nugget ainda estivesse vivo.
Deitado no chão, Janner viu a bainha do vestido de Leeli, laranja ao
brilho do fogo. Viu a sapatilha de couro em seu pé bom e a forma como seu
pé ruim se enrolava sobre si mesmo, com a ponta da sapatilha arranhada
onde se arrastava pelo chão.
Além dos pés de Leeli, viu os de Tink, e seu coração disparou. Os dedos
dos pés de Tink contorciam-se dentro de suas botas, e seu pé direito
ocasionalmente girava para frente e para trás de uma forma que fazia um
círculo na terra. Janner tinha visto seu irmão fazer isso inúmeras vezes,
sempre antes de começar uma corrida durante um jogo zibzy ou quando
jogavam Navios e Tubarões com Podo.
Tink estava prestes a correr.
Tink era rápido, é claro — provavelmente mais rápido do que qualquer
um dos Marginais —, mas, mesmo que conseguisse fugir, não tinha para
onde ir. Ao norte havia a Barreira. Ao sul, o rio. Para o leste ficava o Mar
Sombrio. Poderia correr a oeste, em direção a Cavadópolis, mas não duraria
muito sem Podo — ou Janner, por falar nisso. O que ele planejava fazer
sozinho naquela região selvagem?
Janner tinha que detê-lo. Teriam uma chance melhor juntos, e Podo e Nia
haviam sempre insistido para que as crianças ficassem juntas a todo custo.
Como sempre, Janner pensou enfurecido, pensando apenas em si mesmo.
Leeli colocou Janner de pé. “Você está bem?”
“Estou bem”, sussurrou, sacudindo a cabeça para se livrar da dor do
golpe de Claxton.
“Mas acho que Tink está prestes a... não!”
Janner tentou agarrá-lo, mas era tarde demais... Tink se desvencilhou,
trombou com Claxton e passou pelo fogo.
Janner não conseguia acreditar que seu irmão mais novo pudesse ser tão
egoísta, tão imprudente. Desejou estar livre apenas para poder lutar com
Tink no chão e lhe ensinar uma lição com os próprios punhos. Ele
realmente iria deixá-los para trás?
“Covarde!” Janner gritou, direcionando toda a raiva de seu coração para
as costas de seu irmão. Ele se sentiu bem ao dizer aquilo e esperava que
isso ecoasse nos ouvidos de Tink a cada passo que desse para longe deles.
Mas antes que a palavra se dissipasse, e antes que Claxton e os
Marginais tivessem tempo de reagir, Tink saltou para um banco do outro
lado do círculo e se virou.
“Parem!” Bradou com uma voz muito mais grave do que o normal. Seus
olhos estavam cheios de um pânico feroz, disparando de Claxton para os
Marginais, para Nia e os outros na escuridão além da luz do fogo. Por um
momento, seus olhos pousaram em Janner com uma expressão de tristeza e
confusão.
“Se...” Tink hesitou em uma voz trêmula, “se você m-matá-los, você
nunca vai...”
“Nunca o quê?” Claxton saltou sobre o fogo numa lufada de faíscas
brilhantes e agarrou a gola da camisa de Tink, que engoliu em seco e
semicerrou os olhos. “Eu nunca vou o quê?” Claxton repetiu. “Estou farto
de toda essa conversa, histórias e ameaças. Este é o meu clã, minha curva
no rio, e eu vou cravar minha lâmina em quem eu quiser.”
“C-cravar qual lâmina?” Tink perguntou com um sorriso que abriu
caminho através de todo o terror em seu rosto.
“Qual lâmina?” Claxton estreitou os olhos. “Ora, esta lâmina...” Ele
procurou sua adaga e paralisou.
“Esta lâmina?” Tink tirou uma adaga de sua manga e colocou sua ponta
logo abaixo da orelha de Claxton. Ele a segurou com uma mão firme e
olhou calmamente nos olhos do homem grande.
Os Marginais engasgaram. A mandíbula de Janner caiu. Ele acabara de
chamar seu irmão de covarde e, no entanto, lá estava ele, cara a cara com
um assassino. Janner queria esconder o rosto de vergonha.
“Ele pegou a lâmina do próprio Claxton”, ressoaram os Marginais.
“Isso não é tudo!” Prosseguiu Tink, ao que enfiou a mão na camisa e
retirou um medalhão desbotado preso em uma corrente. O medalhão
balançou em seu punho e brilhou à luz do fogo.
Mais engasgos e murmúrios emitidos pelos Marginais. “O totem! Ele
pegou o totem de Claxton!”
Rápido como um gato, Claxton torceu o pulso de Tink para que ele
largasse a adaga, jogou Tink no chão, pegou a faca e a colocou de volta na
bainha.
“E vou pegar meu medalhão de volta”, bradou ele, arrancando-o de Tink.
Sem muito o que dizer, lançou um olhar nervoso para seu clã. “Viram isso,
Curva Oriental? Nunca antes vi tanta audácia num menino. Surrupiou meu
próprio bolso, bem aqui na frente dos meus Marginais! Bem, pelo que
entendo, eu poderia esfolá-lo aqui e agora ou fazer dele um jovem aliado
que algum dia poderá encontrar grande fama ao longo da Margem. Odeio
pôr fim a um futuro tão promissor.”
Ele colocou Tink de pé e deu um tapinha nas costas dele. “Agora, como
foi mesmo a história do velho? Vamos ver. Ele pegou o pássaro dourado do
bolso de Urra-Punho, Urra-Punho riu e então... Ah sim!”
Ele acertou Tink no rosto com tanta força que o menino voou por cima
do banco e caiu nas sombras para trás dele.
“Tink!” Leeli gritou.
Claxton riu sombriamente. “Nunca tente brincar com Claxton Ardileza,
garoto.”
Então aconteceu algo sobre o qual se comentaria na Margem por cem
anos.
De onde estava deitado nas sombras, Tink arremessou uma adaga em
Claxton, e o cabo o atingiu na nuca. Janner não sabia como Tink tinha feito
isso, mas ele havia roubado a adaga uma segunda vez. Claxton, com uma
expressão de grande confusão e um galo brotando na nuca, desabou no
chão, inconsciente.
Os Marginais aplaudiram e correram para onde estava Tink. Eles o
levantaram e o ajeitaram, tagarelando sobre suas mãos rápidas e seus pés
mais rápidos ainda.
Maraly ofereceu a ele um pedaço de pano úmido para o lábio
ensanguentado e o sentou no banco. “Meu pai ‘tava pedindo por isso há
bastante tempo”, admitiu ela, e beijou Tink na bochecha.
As orelhas dele ficaram vermelhas como amoras e ele deu um sorriso tão
largo que suas bochechas ficaram assim por uma hora.
Nia, Oskar e Podo foram libertos e correram de volta para o círculo.
Abraçaram as crianças e fizeram um estardalhaço em volta de Tink; e o
estômago de Janner doeu de vergonha pelo que havia dito — e pior ainda:
pelo que havia pensado.
Uma velha encurvada, em um vestido imundo, abriu caminho pela
multidão e cutucou Tink na barriga com uma bengala. Seu rosto estava
cheio de verrugas e endurecido com lama, e ela usava o cabelo em um
coque encardido no topo da cabeça. Os Marginais ficaram em silêncio.
“Você derrubou Claxton Ardileza, chefe da Curva Oriental, garoto”,
constatou ela. “Estávamos todos ficando cansados de Claxton. O tolo é meu
filho, e isso é tudo o que ainda o mantém vivo agora. Você deveria saber
que ele estará atrás de você quando acordar, pretendendo matar. Mas não
tenha medo. Tenho uma mistura de lesma e raízes que vai manter esse velho
barba enlameada na cama por alguns dias pelo menos. Nós, Marginais, não
toleraremos um líder de clã idiota o suficiente para deixar sua adaga ser
surrupiada duas vezes em uma noite.” Ela bateu na perna de Claxton. “Se
há algo que nós, na Margem, sempre gostamos, é de uma boa história e uma
mão rápida, e você é tão rápido que nem mesmo eu vi você pegar a adaga
na segunda vez. Humm. Ele não o teve por muito tempo, mas o rapaz
conseguiu seu totem, não foi, clã?”
“Sim!” Os Marginais aplaudiram.
“Qual é o seu nome?” Ela perguntou.
“Kalmar.” Tink se endireitou. “Kalmar Wingfeather.”
“Kalmar”, disse a velha, e cuspiu. “Humm. Pois bem, você e os
seus não terão abrigo, mas o fogo é seu, se quiser.” Então, ela
mancou até Podo e o olhou bem nos olhos. “Podo Helmer”, disse
ela, cutucando-o com a bengala. “Você não é tão bonito como
costumava ser, seu velho. Mas meu coração ainda é seu, se você o
quiser.”
25

Ataquebol na Neblina

Núbia Brejeira?” Podo perguntou, pasmo.


“É. Sou eu.” A velha sorriu, e seu rosto crispado e rugoso rangeu em
protesto. Os Marginais sussurravam e apontavam como se estivessem vendo
algum animal raro pela primeira vez. “Nunca pensei que fosse te ver de
novo, mas aqui está você, tão feio quanto um sapo-toupeira com nada além
de só uma perna inteira — ainda assim, quero beijar você mil vezes.”
“Bia, querida, que bom ver você”, comentou Podo, recuando um pouco.
“Por que você não disse algo logo que nós aparecemos? Se não estava
planejando mesmo nos jogar no rio, poderia ter nos poupado muitas
preocupações.”
“Deixei amarrarem você porque metade do meu coração ficaria feliz em
ver você se debatendo no Blapp enquanto afundava! Você me deixou há
cinquenta e cinco anos sem dizer uma palavra — e isso foi quando eu ainda
tinha meus dentes!” Ela suspirou. “Mas a metade do meu coração que ainda
quer beijocas venceu, eu acho. Eu não teria deixado eles matarem meu doce
Podo.”
“Obrigado, Bia. Você está tão bonita como sempre foi.”
Ela respondeu com um golpe de sua bengala. “Não minta para mim,
velho! Sei que estou feia como tiririca do brejo! Agora escute. Nós,
Marginais da Curva Oriental, daremos a vocês alguns dias de descanso por
causa da mão rápida de Kalmar Wingfeather e por causa de sua bela
aparência há cinquenta e cinco anos — mas com uma condição.”
Podo estremeceu.
“Quero um beijo profundo e satisfatório de seus lábios grisalhos, Podo
Helmer. Esperei por isso tempo demais.”
Núbia avançou mancando, fechou os olhos, franziu os lábios e esperou.
Podo respirou fundo, inclinou-se mais perto e engoliu em seco. Era como
ver alguém prestes a comer um rato. Marginais e Igibys estavam extasiados
e quietos. Janner fechou os olhos com força e ouviu um beijo longo e
úmido, e em seguida o suspiro infantil de Núbia.
Os Marginais explodiram em aplausos enquanto Núbia Brejeira
cambaleava para longe. Podo enxugou a boca com o antebraço e a observou
partir com um olhar de afeto, tristeza e náusea. O clã se dispersou,
acenando com a cabeça para Tink ao passar por ele. Daí em diante,
prestaram tanta atenção aos Igibys quanto prestavam à sujeira que tinham
nos dentes.

Tink caminhou com um ar confiante, uma das mãos tocando o ferimento


ao lado da cabeça.
“Incrível!” Proclamou Janner. “Isso foi incrível.”
Tink encolheu os ombros.
“Ouça.” Janner segurou o irmão pelos ombros. “Sinto muito. Desculpe
ter te chamado de covarde. Desculpe ter duvidado de você.”
Tink remexeu a terra com o pé, respirou fundo e anuiu. “Tudo bem.”
O nó no estômago de Janner se desfez. Ele abraçou Tink o mais forte que
pôde e nem se importou que Tink estivesse chocado demais para retribuir.
“Então, como você fez aquilo?” Leeli perguntou. “Como você roubou o
totem?”
“Percebi que o vovô estava tirando moedas e facas dos Marginais desde
que chegamos aqui”, explicou Tink. “Dá pra saber, pelo caimento das
roupas deles, se há alguma coisa enfiada ali e se é fácil de pegar. Na
verdade, é bem simples.”
“Arrá!” Podo disse se aproximando. “Fácil como pegar uma totata do pé,
não é, rapaz? Tentei tirar algo de Claxton, mas não consegui chegar perto o
suficiente dele. Você percebe o que acabou de fazer, Tink?”
“Surrupiei o bolso do líder do clã?” Indagou.
“Sim, mas você não agarrou simplesmente uma velharia qualquer. Você
pegou o totem dele! Você sabe o que isso significa?”
“Acho que não.”
“Não deixe subir à sua cabeça, mas isso significa que, por enquanto,
você é o líder do clã. O chefe desta curva do rio.” Podo sorriu com orgulho.
“Esse é o meu neto.”
O rosto de Tink ficou pálido. “Ah não. Eu tenho que fazer alguma coisa?
O que eu deveria fazer?”
“Nadinha.” Podo deu uma risadinha. “Partiremos em breve, e eles
escolherão outro líder. Além disso, um líder de clã não é responsável por
nada. Ele faz o que lhe agrada, e o resto do clã tem que fazer o que agrada a
ele também. Ser líder de clã nada tem a ver com ter responsabilidade — tem
a ver com não ter nenhuma.”
Dois Marginais apareceram e largaram as mochilas da família no chão.
“A velha Núbia nos disse para colocar tudo de volta no lugar”, relatou
um deles.
“Nossos agradecimentos”, respondeu Podo.
Os Marginais deixaram os Igibys livres para sentar ao redor do fogo e
inspecionar suas mochilas. Janner encontrou seu livro antigo, sua caixa de
pólvora e fósforos, sua faca dobrável e seu arco, sua carne seca e espelho.
Até onde sabia, seus pertences estavam todos ali.
“Está tudo aqui”, declarou Nia. Ela se virou para o pai. “Você nunca me
disse que andava com os Marginais.”
“Por que você não nos contou?” Tink questionou.
“Porque não é algo de que me orgulhe”, respondeu Podo. “Não é porque
rendeu uma boa história, que eu não voltaria atrás e mudaria tudo, se
pudesse.” Ele olhou para Nia. “Tem muita coisa que não te contei, filha, e
muitas que não pretendo contar.”
Com isso, Podo se deitou com as mãos sob a cabeça e fechou os olhos, e
logo, ao lado de uma fogueira quente sob as estrelas frias, estavam todos
dormindo.

Janner acordou num mundo envolto em névoa.


Ela recobria o solo, erguendo-se do rio e acumulando-se em sinistros
lagos ao redor de troncos de árvores e depressões na terra, movendo-se
entre as frágeis construções que constituíam o assentamento do clã da
Curva Oriental. As estruturas eram feitas de pranchas e tábuas de madeira,
sobras da devastação de Skree no final da Grande Guerra. Faziam Janner se
lembrar da casa da árvore de Peet, mas, ao contrário do castelo de Peet,
esses edifícios eram esmolambados e malcuidados, construídos sem
imaginação nem zelo. Marginais dormiam dentro ou perto dos barracos,
tendo nada como camas, a não ser o chão, nenhum travesseiro, a não ser
seus cabelos e braços sujos. Atrás dos barracos, mais ao fundo na névoa,
escondiam-se as gaiolas.
Janner não conseguia ver nada dentro delas e as portas de ferro estavam
abertas. As crianças Marginais haviam sido muito tímidas ao se
aproximarem do acampamento na noite anterior. Podemos nos aproximar?
— a garota Maraly havia perguntado, e elas não se aproximaram até que
Claxton tivesse dado sua permissão. Por que as crianças eram tão cautelosas
com os adultos? E onde estavam seus pais?
Então ele percebeu que Tink havia sumido. O resto do grupo dormia
profundamente, próximo às cinzas do fogo, mas Tink não estava em lugar
nenhum. Janner se pôs de pé com dificuldade.
Nas árvores à sua esquerda, ouviu vozes, depois uma risadinha. Tink
apareceu trotando para fora do nevoeiro, segurando uma bola de couro
debaixo do braço. Janner deu um suspiro de alívio e acenou. Tink acenou de
volta, colocou um dedo nos lábios e desapareceu na névoa novamente.
Janner afastou-se do fogo na ponta dos pés e seguiu Tink para dentro do
nevoeiro. Antes que ele tivesse dado dois passos, Maraly se materializou
para fora da névoa como um fantasma. Janner engasgou e se preparou para
uma luta — a garota tinha uma expressão selvagem e maldosa nos olhos.
Do nevoeiro voou a bola que Tink carregava. Ela atingiu a cabeça de
Maraly, e a menina cambaleou para o lado, pegou a bola e desapareceu na
névoa novamente, sussurrando: “Kalmar! Eu vou te pegar. Você não pode
ser mais esperto que Maraly Ardileza.”
Janner balançou a cabeça em descrença.
Sons de luta vieram da esquerda, e ele os seguiu através da névoa até
encontrar Tink e Maraly, rolando no chão, lutando pela bola que estava já
fora de alcance. Janner se aproximou, pegou a bola de couro e
imediatamente se viu no meio da luta.
Maraly Ardileza jogou sujo. Arranhou e sibilou, trincou os dentes e
bateu. Deu um soco no estômago de Janner, que o fez se curvar sobre si
mesmo, ofegante e furioso por ela ter transformado um jogo amigável em
uma luta. Mas ele não estava mais em Glipwood. Esta era a Margem, e, se
ele não quisesse se machucar um pouco, não deveria jogar.
Nenhum dos garotos Igiby se comparava a Maraly em maldade, mas
logo aprenderam a se esquivar de seus ataques. Os três jogaram ataquebol
até que o nevoeiro se dissipou e o acampamento acordou. Foi a maior
diversão que Janner e Tink haviam tido desde aquele último jogo de zibzy
com os irmãos Blaggus, na manhã em que exploraram a Mansão Pé-de-
Geleia.
Podo atiçou o fogo e preparou um desjejum de mingau de aveia e tiras de
carne de verdugo. Janner se jogou sobre o toco ao lado dele, sem fôlego,
ferido e imundo da partida de ataquebol.
“Bom dia!” Oskar cumprimentou com uma baforada de seu cachimbo. O
velho livro de Janner estava aberto no colo do velho, e ao lado dele, em
outro toco, estavam alguns pedaços de pergaminho e um tinteiro. “Tenho
trabalhado nisso desde que acordei. O idioma não é tão diferente do valês
arcaico, afinal. Veja.” Estendeu um pedaço de pergaminho no qual havia
rabiscado várias linhas.
“O que está escrito?” Janner perguntou.
“Boa pergunta, rapaz, boa pergunta.” Oskar pareceu desalentado. “Terei
que perguntar à sua mãe. Não consigo me lembrar muito do valês arcaico
além da aparência das letras. Tudo o que estou fazendo é separar as novas
letras das antigas. Assim que eu concluir uma página, sua mãe e eu
começaremos a trabalhar na tradução.”
“Fizeram uma nova amizade, é?” Podo perguntou, enquanto Tink
passava correndo pela fogueira com Maraly logo atrás dele.
“Acho que sim”, cogitou Janner. “Tink, pelo menos.”
“Vamos tomar o café da manhã e depois seguir em frente. A cada dia
parados aqui, os Fangs têm mais tempo para ampliar a busca. Está
demorando mais para chegar a Cavadópolis do que eu havia imaginado, e as
Pradarias de Gelo continuam longe.”
Leeli e Nia voltaram do rio com os cabelos e o rosto pingando.
“O banco de areia estava tranquilo, então?” Perguntou Podo.
“Nenhum peixe-adaga, e estava exatamente onde sua antiga
namoradinha disse que estaria”, disse Nia.
Podo revirou os olhos. “Bia me deu isso.” Ele ergueu o medalhão-totem
de Claxton. “Disse que, se houvesse mais problemas com Marginais até
Cavadópolis, o totem nos daria passagem segura. Claxton é um homem
temido, diz ela.”
“Temido por todos, menos por Tink”, comentou Leeli.
“É, moça. Ele foi bem na noite passada, não foi?”
Tink passou dando um solavanco para a frente, abraçando a bola firme
contra o peito, enquanto Maraly se pendurava em suas costas e batia em
suas costelas.
“Se não tivermos problemas”, disse Podo, “chegaremos a Cavadópolis
ao escurecer. Bia me disse onde encontrar um covil de rio.”
“O que é isso?” Janner perguntou.
“Um esconderijo de Marginais. Podemos ficar lá enquanto tomamos
providências em Cavadópolis para passar pela Barreira e subir até às
Pradarias de Gelo. As Montanhas Rochosas serão frias demais para Fangs e
muito acidentadas para viajantes. Tudo o que teremos que evitar serão os
marbutres.”
“E os bambolhões”, complementou Oskar.
“Sim, e os bambolhões.”
“Eles são uma raça terrível”, asseverou Oskar. “Quase impossível de
matar. Lembro-me de ter lido na Criaturapédia de Pembrick que...” Ele
parou a um olhar de Podo. “Ahn... tenho certeza de que não veremos
nenhum. Provavelmente não são reais mesmo.”
Quando o cheiro de mingau e tiras de carne de verdugo atingiu o nariz de
Tink, ele largou o ataquebol sem dizer uma palavra, sentou-se ao fogo e
lambeu os lábios.
“Meninos, lavem as mãos”, Nia ordenou e contou a eles como encontrar
o banco de areia seguro.
Os irmãos se agacharam na praia arenosa e mergulharam as mãos na
água. Diante deles, o Grande Blapp passava furtivamente a caminho das
Cataratas Fingap; a margem oposta era margeada com as árvores da
Floresta Glipwood.
“Gosto muito de Maraly”, comentou Tink.
“Ela é, ahn, legal, eu acho. Um pouco rude, você não acha?” Janner
questionou.
“Não tão rude assim.”
Lavaram-se em silêncio por um momento.
“Ela me disse que eu daria um bom Marginal”, Tink mencionou.
Janner riu. “Você daria um péssimo Marginal. Você é inteligente demais
para eles. Além disso, você não é um ladrão. Também não é um assassino.
Você é o Rei Supremo de Anniera, lembra?” Eles voltaram para o
acampamento em silêncio.
26

Ao Longo da Estrada do Rio

Você precisa ir embora”, explicou Núbia Brejeira. “As coisas mudaram.”


Ela estava diante de Podo, com as mãos sardentas cruzadas sobre o cabo da
bengala. Contraía e descontraía os lábios de modo que seu queixo hirsuto
balançava para cima e para baixo como uma rolha na água.
“Claxton acordou?” Podo perguntou, limpando um bocado de mingau de
aveia de sua boca.
“Não, seu tolo. Claxton está encolhido em seu barraco como um gatinho
doente. Os Fangs estão chegando.”
Podo largou a tigela e saltou de pé. “Onde? Quando?”
“Da Estrada Norte. A Barreira não fica longe daqui, e um de nossos
batedores disse que viu um bando vindo pra cá. Era pra eles levarem ainda
vários dias pra chegar, mas agora temos que acelerar e nos preparar pra eles.
Vocês precisam dar o fora. Peguem a Estrada do Rio. Vocês verão um
monte de Marginais, mas nenhum Fang. Coisas vão acontecer na Curva
Oriental que nem você, nem sua família deveriam ver.” Núbia deu um
sorriso torto. “Receio que aquele beijo na noite passada foi o mais próximo
que meu coração seco encontrou de bondade antes de eu me encontrar com
o Criador e toda a sua ira.”
Com um toque de sua bengala, Núbia Brejeira encerrou a conversa e saiu
mancando. Os Marginais estavam ocupados afivelando suas bainhas e
afiando adagas. Lançavam olhares nervosos para uma estrada que se
estendia para o norte, em direção às colinas arborizadas. Não se viam as
crianças Marginais, incluindo Maraly, em lugar nenhum.
“Algo ruim vai acontecer”, observou Leeli.
Podo percebeu isso também, descartou a gordura da frigideira e a enfiou
na mochila sem limpá-la. “Janner, Tink, preparem-se. Rápido!”
Oskar passou o livro antigo para Janner e recolheu o tinteiro e o
pergaminho, tomando cuidado para não borrar a tinta fresca. As mochilas
de Janner e Tink precisavam apenas ter as correias fechadas e ser
penduradas nos ombros. Assim que Nia terminou de juntar as tigelas e
xícaras do café da manhã, Podo deu uma última olhada ao redor do fogo e
acenou com a cabeça.
“Acelerem, rapazes e moças. Você também, Oskar. Vamos sair correndo
por um tempo, e não vai ser divertido.”
“Espere!” Pediu Tink. “Preciso me despedir de Maraly.”
“Sem tempo pra isso, rapaz”, revidou Podo.
“Mas...”
“Sem tempo!”
Podo partiu na direção do rio, e os outros fizeram o possível para segui-
lo. “Maraly!” Tink gritou por sobre o ombro. “Adeus, Maraly!”
Mas nem Maraly, nem outra das crianças Marginais estavam à vista —
apenas homens e mulheres imundos saindo do acampamento com adagas
desembainhadas e sorrisos nefastos atravessados nos rostos.
Enquanto desciam a encosta para o rio e o acampamento da Curva
Oriental ficava para trás, Janner ouviu um último grito arrepiante de Bia
Ardileza: “Preparem as gaiolas!”
Conversar seria uma perda de precioso fôlego, então moviam-se em
silêncio. Se Leeli alguma vez teve motivos para sentir falta de seu querido
Nugget, a hora era agora. Podo movia-se em um ritmo impiedoso ao longo
da estrada que seguia o rio. Ele olhava para trás ocasionalmente para ter
certeza de que as crianças estavam acompanhando, mas nunca diminuía o
ritmo. Leeli coxeava junto de sua muleta mais rápido do que Janner jamais
vira. Seu cabelo ondulado balançava para frente e para trás a cada passo, e
ela tropeçava com frequência, mas não precisava de incentivo para se
afastar do acampamento Marginal o mais rápido que podia.
Oskar não corria exatamente. Arrastava os pés com os braços oscilando e
a barriga balançando, mas seus pés nunca saíam do chão. Sua mecha de
cabelo havia desistido completamente de cobrir sua calvície e se estendia
para trás como um triste fio de fumaça. Oskar não fazia tanto exercício
havia anos, mas estava determinado a não atrasar o grupo. Arf-arf-arf-arf
fazia sua respiração, como o som de alguém varrendo o chão.
Janner estava tão perturbado com os Marginais no acampamento, com o
estranho desaparecimento das crianças e com a chegada dos Fangs, que
tinha medo de olhar para trás. O aviso do dragão-marinho veio à sua mente:
Ele está perto de você. E se Podo estivesse errado, e o dragão estivesse
dizendo a verdade? Gnag, o Sem-Nome, podia estar se movendo para a
Curva Oriental agora mesmo. Os pelos em sua nuca se arrepiaram.
Se Tink sentia o mesmo medo, Janner não conseguia perceber. Depois
que seu chamado por Maraly não foi respondido, o rosto de Tink se fechou.
Ele corria ao lado de Janner sem tirar os olhos da estrada lamacenta.
As subidas e descidas do terreno gradualmente se estabilizaram num
terreno plano e gramado, um verde vivo, em contraste com a estrada
lamacenta e o curso marrom-acinzentado do rio. Depois de horas correndo,
ajudando Leeli a se levantar, correndo novamente, escorregando na lama e
assim por diante, Podo parou tão de repente que Nia se chocou contra ele.
“Abaixem!” Ele sussurrou, gesticulando para que se agachassem. Todos
estavam cansados demais para questionar e caíram na lama como porcos
ofegantes.
Podo não parecia nem um pouco sem fôlego. “Marginais à frente”, ele
sussurrou, apontando para um grupo de árvores à distância. “Eles ainda não
nos viram, mas vão nos ver a qualquer minuto. Nia, eu esperava adiar isso o
máximo possível, mas é hora de colocar nossos disfarces.”
“Disfarces?” Ela repetiu.
“Leeli, você também. Tem que ser feito.”
Podo pegou um punhado de lama e sorriu. Os olhos de Nia passaram da
lama para o rosto de Podo e de volta para a lama, e, antes que ela pudesse
impedi-lo, ele a esfregou nos cabelos dela. Ela gaguejou e tentou achar o
que dizer, mas nenhuma palavra veio. Podo, Oskar e as crianças não se
preocuparam em esconder sua alegria enquanto a cobriam da cabeça aos pés
com lama. Leeli foi a próxima. Ela fechou os olhos com força e fez uma
careta enquanto espalhavam a sujeira nela, mas no final estava rindo.
Quando Nia e Leeli pareciam tão sujas quanto qualquer Marginal, Nia se
vingou de Podo, sorrindo selvagemente enquanto cobria o rosto e cabelos
dele.
Quando Podo ficou satisfeito com a sujeira do grupo, assentiu. “Agora
fiquem quietos. Eu sei falar como um deles e, além disso, como viram
ontem, geralmente é o líder do clã que fala. Apenas fiquem atrás de mim e
façam cara de mau.”
Eles tinham corrido metade do dia, com pouco descanso, e Janner ficou
feliz, por causa de Leeli, por Podo os conduzir em uma caminhada agora.
Saíram da estrada e cruzaram o terreno verde até as árvores, de forma que
não houvesse dúvida de que pretendiam entrar no acampamento Marginal.
Quando Podo se aproximou, três homens avançaram, rosnando e brandindo
adagas. Podo se manteve firme e segurou o totem de Claxton no ar.
Os Marginais pararam no meio do caminho, a alguns passos de distância.
“Esse é o totem do Claxton Ardileza, mas você não é Claxton Ardileza”,
atentou um deles, desconfiado.
“Não, não sou”, confirmou Podo. “Mas tenho o totem dele mesmo
assim, então, se você for esperto, vai nos deixar seguir em frente sem
problemas.”
Os três homens consideraram isso em silêncio.
“Conte como você roubou o totem de Claxton. Se acreditarmos em você,
vamos deixar você percorrer a Curva Central. Tá?”
Podo olhou para Tink. Janner se perguntou se a história de que um
menino de onze anos não só roubou o totem de Claxton Ardileza, mas, duas
vezes, roubou sua adaga e a usou para deixá-lo inconsciente seria mais
crível do que algo que Podo pudesse inventar.
“A verdade é”, começou Podo, dando um passo para o lado e apontando
para Tink, “que esse jovem o roubou. Tirou-o da túnica de Claxton ontem à
noite na Curva Oriental. Deixou Claxton tão confuso que nem percebeu que
o garoto havia surrupiado sua adaga também.”
Os Marginais ergueram as sobrancelhas sujas para Tink. “Este menino
roubou o totem?”
“É”, reforçou Podo. “Pergunte a ele se quiser.”
Um dos homens estreitou os olhos e deu um passo à frente. Tink
permaneceu parado como uma pedra.
“Você espera que acreditemos que foi você que pegou o totem, garoto?”
Tink engoliu em seco e acenou com a cabeça. Podo pegou sua adaga.
O Marginal sorriu e deu um tapinha nas costas de Tink.
“Então, acho que você não é outro, senão Kalmar Wingfeather”,
testemunhou ele. “Você pode vir aqui a qualquer hora, rapaz. Recebi uma
mensagem lá da Curva Oriental de que Claxton Ardileza havia sido
finalmente derrubado de seu pedestal. Muito bem, rapaz. Claxton estava
pedindo por isso há muito tempo. Vá em frente, então.”
Os Marginais esgueiraram-se para as árvores e sumiram.
“Tink, você é famoso!” Janner reconheceu, e Tink sorriu de uma orelha
enlameada a outra.
“Eita, nóis!” Exclamou Podo. “Agora toda a Margem sabe seu nome.”
O sorriso de Tink desapareceu. “Eu não pretendia dar a ele meu nome
real — meu verdadeiro nome real. Eu não queria dizer a ele que meu nome
era Tink, e Kalmar foi tudo o que eu consegui pensar. Desculpe.”
“Não é uma coisa tão ruim, meu garoto”, comentou Oskar. “O nome
Wingfeather pode não ser amplamente conhecido em Skree, mas existem
aqueles que conhecem o suficiente de Anniera para reconhecê-lo. Parece-
me que, se a notícia se espalhar, de que o Rei de Anniera está vivo e livre,
na Margem, os skreenianos vão adorar! E isso não deixará os Fangs muito
felizes.”
“Acho que isso é verdade”, concordou Podo, e piscou para Tink. “Que
saibam os Fangs que o Rei Supremo Kalmar surrupiou o totem de Claxton
Ardileza. Mas se a notícia está se espalhando tão rápido, temos que nos
mover. Precisamos encontrar o covil até o escurecer.”
27

Uma Ferida Sobre


a Face da Terra

Podo teve que mostrar o totem de Claxton para mais três clãs Marginais ao
longo do dia, cada um menos ameaçador do que o anterior. Apenas o
primeiro clã mostrou algum sinal de ter ouvido o rumor das mãos rápidas de
Kalmar Wingfeather, mas Podo garantiu a Tink que o conto habitaria as
línguas dos contadores de histórias por alguns anos, pelo menos, e os
detalhes dobrariam e triplicariam de tamanho. Tink riu, mas Janner
percebeu que algo o perturbava.
Quanto mais se aproximavam de Cavadópolis, pior a estrada ficava. Para
onde quer que olhasse, Janner via buracos e rodas de carroça quebradas,
barracos abandonados, cães vadios sem pernas, ou olhos, ou pelos. A lama
cobria tudo e sugava a cor do mundo; espirrava para o alto vinda das poças
na estrada e ressecava os braços e o pescoço de Janner, de modo que ele se
sentia feito de barro.
Depois que encontraram o último grupo de Marginais, a Margem mudou.
O que antes eram terras baixas e gramadas transformou-se em fazendas
deterioradas, cercas pendentes e porleitões guinchando em campos
lamacentos. Antes, viajavam sozinhos, exceto pelos ocasionais Marginais.
Mas, agora, galinhas magricelas cacarejavam do outro lado da estrada, e
homens e mulheres pobres de semblante tristonho vagueavam em silêncio,
observando com indiferença os Igibys passarem. A Margem Ocidental,
como Podo a chamava, era um lugar apático, uma fileira de barracos tão
encurvados e minguados quanto as pessoas que moravam ali. A água
arrastava-se rio abaixo, tão plana e lenta que parecia menos um rio e mais
um lago longo e estreito.
Podo acenou com a cabeça para si mesmo e anunciou que eles estavam
livres dos Marginais.
“Então, aqui é Cavadópolis?” Leeli perguntou.
“Não, moça. Mas estamos perto.” Ele baixou a voz. “Essas pobres almas
vivem ao longo da Margem, mas ainda não são más o suficiente a ponto de
se juntarem com os clãs mais ao leste. Elas se contentam em tentar dar seu
jeito plantando sementes e criando animais. Pobres demais para viver em
Torrboro, honestas demais para sobreviver em Cavadópolis e ainda não más
o suficiente para se misturarem aos Marginais. Vivem suas vidas num
sofrimento gigantesco.”
À medida que o grupo avançava, a maioria dos lavradores de lama —
como Podo os chamava, embora não sem piedade — os ignorava, mas
alguns se levantavam dos campos onde estavam retirando pedras do
caminho do arado, ou paravam de martelar uma tábua podre numa estrutura
podre com um prego enferrujado, ou espiavam pelas janelas para observar
enquanto os Igibys passavam.
“Foi sempre assim?” Leeli indagou.
“Não, moça, nem sempre”, respondeu Podo por cima do ombro.
“Mas, com certeza, já tem sido por tempo demais”, notou Oskar. Por
muitos anos, os Marginais têm criado problemas ao longo do rio. Essas
pessoas pobres e cansadas sofreram entre a indiferença da elite em
Torrboro, a hostilidade implacável em Cavadópolis e os Marginais.”1
“Alguém deveria fazer alguma coisa”, Leeli falou baixinho.
“E o que fariam?” Janner questionou. “Parece que o mundo inteiro está
tão horrível quanto aqui.”
“As coisas não estavam tão ruins assim em Glipwood”, retrucou Tink.
“Não, mas não precisou muito para virar o jogo”, treplicou Janner. “Em
poucos dias, a cidade ficou deserta, e os Fangs invadiram. Tudo em Skree
está tão ruim quanto está para esses lavradores de lama. Só que aqui dá pra
ver como de fato é.”
Com o canto do olho, Janner viu um sorriso no rosto de sua mãe. Os
olhos dela e de Podo se encontraram, e ele sentiu que havia feito algo que a
deixara orgulhosa. Lembrou-se de como se sentiu em Glipwood no Dia dos
Dragões, quando Oskar o ajudara a ver a tristeza escondida por trás da
alegria. Nenhum dos visitantes de Glipwood ria de verdade; nenhum deles
sorria, exceto como afronta à própria maneira como se sentiam. Apenas
Armulyn, o Bardo, era capaz de despertar algum sentimento real de alegria.
E Janner havia percebido que tanto para ele mesmo quanto para as pessoas
que, com atenção tão desesperada, ouviam suas canções, os sentimentos
alegres trazidos à tona pelas canções sempre vinham acompanhados de
lágrimas. O fardo deles era pesado demais para ser levantado apenas por
canções, por melhor que fossem as melodias.
“Alguém deveria fazer alguma coisa”, Leeli insistiu, desta vez num tom
determinado. Todos sabiam não fazer sentido desafiá-la. Ela estava certa.
Podo parou no topo de um declive. À direita estava outro aglomerado de
edifícios deteriorados. Galinhas cacarejavam e ciscavam a terra, e um galo
gordo empoleirava-se no telhado de uma construção. Um velho roncava na
varanda, tendo um monte de trapos como travesseiro. Atrás da casa
estendia-se um campo em pousio, limitado na parte de trás por um grupo de
arbustos. À esquerda, descendo a encosta, corria o Grande Blapp, que agora
era tudo, menos grande.
Então Janner viu por que Podo havia parado.
“O que é aquilo?” Tink perguntou ao se aproximar. “Oh.”
“É... é Cavadópolis”, complementou Podo. “Fazia muitos anos que não a
via.”
A cidade estendia-se à distância como uma ferida sobre a terra verde. Os
barracos de ambos os lados da Estrada do Rio cresciam em número e eram
absorvidos pela expansão de Cavadópolis. Janner sabia que Cavadópolis era
grande, mas sua imaginação não o havia preparado para aquilo. Seu
estômago embrulhou ao ver tantas ruas e esquinas em tal desordem. Os
edifícios eram de três e quatro andares, construídos em ângulos estranhos,
como se cada nível tivesse sido uma ideia de última hora.
A um sinal desconhecido, um ressoar de sinos irrompeu da cidade —
primeiro um, depois mais alguns, e então o que pareciam ser milhares de
sinos badalando. Eram como um enxame de morcegos metálicos invisíveis
e alvoroçados na noite. Acima dos prédios, Janner viu centenas de torres de
madeira, frágeis e finas, espalhadas pela cidade como ervas daninhas feias
brotando da grama feia. Ao som dos sinos, uma fogueira foi acesa na
plataforma no topo de cada torre. As chamas subiram até a altura de um
homem e, em cada uma das torres mais próximas, Janner avistou o vulto de
um vigia. Uma cidade iluminada por cem tochas gigantes deveria ser linda,
mas para Janner parecia algo saído de um conto assustador.
“Aquilo é Torrboro?” Leeli perguntou, apontando para o outro lado do
rio. Janner desviou os olhos da terrível visão da cidade mais próxima e
ficou aliviado ao ver as belas e elevadas paredes de Torrboro à distância. O
Palácio Torr encontrava-se perto do rio na posição de um animal gigante
agachado. A torre mais alta era a cauda, e as paredes do palácio abojavam-
se e encurvavam-se para dar a impressão das pernas e tronco do animal...”
“Um gato?” Janner perguntou.
Oskar riu por entre os dentes. “Um gatinho, para ser mais preciso. Você
verá o mesmo tema repetido com frequência na arquitetura de Torrboro.
Uma obsessão muito infeliz da Dinastia Torr, lamentavelmente. Nas
palavras de Verbichude Yay, o famoso crítico de arte, ‘Eca! Será que não
podiam ter pensado em outra coisa?’.”
Torrboro brilhava em feliz contraste com Cavadópolis. Suas ruas largas e
pavimentadas serpenteavam em curvas graciosas, e a maioria de seus
edifícios era de pálidas pedras na cor creme.2 Na orla do rio havia muitos
barcos atracados nas docas, e Janner detectou o alvoroço do que deveriam
ser milhares de pessoas movimentando-se de um lado para outro. O volume
de pessoas e atividades deixaram Janner entusiasmado. Ele não teve a
mesma sensação claustrofóbica e desanimadora diante de Torrboro como
teve de Cavadópolis.
“Por que não podemos ir para Torrboro, em vez disso?” Janner
questionou.
“Porque os Fangs são mais numerosos lá”, contou Podo. “Vê aquele
palácio? É onde mora o general Khrak. O pior de todos os Fangs.”
“Ele comandou os exércitos invasores”, complementou Oskar. “Ele é
astuto — não como um Fang bruto, ordinário. Provavelmente está sentado
no palácio agora, tentando descobrir como colocar suas garras em nós.”
“Sim, é por isso que não estamos indo naquela direção”, observou Podo.
“É fácil se perder em Cavadópolis, e isso significa que é fácil se esconder.
Os Fangs estão em Cavadópolis em abundância, mas não estão lá tanto para
patrulhar quanto para festejar. Eles gostam das tavernas, da imundície e das
sombras. Estão lá para se divertir e não costumam interferir com um
viajante na rua, a menos que seja necessário.”
Janner viu movimento na estrada à frente. “Vovô, olhe.”
“Hã?”
Janner apontou.
Podo respirou fundo. “Fangs!” Constatou. “Venham!”
Ele disparou para dentro da casa onde o velho dormia na varanda. As
galinhas debandaram. Oskar, Nia e as crianças correram atrás de Podo para
o prédio antigo e sombrio. O velho se mexeu e murmurou algumas palavras
truncadas, mas continuou dormindo.
Uma vez lá dentro, Janner não conseguia ver nada. Podia ouvir o
familiar tump-pam de Podo e sua queixa rouca: “Tanto tempo que mal
consigo me lembrar de como encontrar o...”
Janner ouviu, do lado de fora, o chacoalhar e o bater de pés de Fangs
armados em marcha. Não parecia uma unidade grande, mas era suficiente
para fazê-lo tremer.
“Papai, eles pararam”, Nia sussurrou.
Podo a ignorou, resmungando para si mesmo.
O som áspero da voz de um Fang veio lá de fora, e o velho na varanda
acordou com um resmungo.
“Vovô, eles estão ali fora”, disse Tink.
“Shh!” Fez Podo, e então, tão baixinho que Janner mal conseguiu ouvi-
lo: “Desçam. Cuidado. Isso, querida. Oskar, é melhor você fingir que é um
daqueles gatinhos de Torrboro e andar com leveza, ouviu? Muito bom. Não
tem que descer muito.” Então Janner sentiu a mão forte e firme de Podo em
seu ombro. “Pra baixo, meninos”, ele sussurrou.
Os degraus de madeira rangiam enquanto a família e Oskar desciam para
a escuridão, mas não alto o suficiente para alertar os Fangs, que
interrogavam o velho na varanda. Podo fechou o alçapão acima deles. Tirou
a mochila na escuridão, procurou um fósforo lá dentro e o acendeu.
Eles estavam parados ao pé de uma escada em um porão úmido. Fangs
não são as criaturas mais inteligentes em Kistamos, mas mesmo o mais
estúpido deles saberia que era para procurar no porão, Janner pensou. Por
alguma razão, porém, Podo não parecia preocupado. Ele correu os dedos ao
longo das juntas da parede de pedra, ainda resmungando para si mesmo. O
fósforo apagou, e o porão escureceu novamente. Passos soaram em algum
lugar da casa, acima deles. Quando o segundo fósforo ganhou vida, o rosto
de Podo apareceu no brilho amarelo, os olhos arregalados, levando um dedo
aos lábios — desnecessariamente, uma vez que os Igibys e Oskar já
estavam em silêncio e aterrorizados.
Podo rastejou até outra parede, ainda procurando algo nas pedras. Fangs
pisoteavam o chão da casa, enquanto outros insultavam o homem do lado
de fora. Então Janner ouviu um clique e, em um canto do chão do porão,
outro alçapão foi aberto, espalhando a terra que o havia coberto e revelando
os primeiros degraus de uma escada de mão feita de madeira. Podo usou os
últimos segundos da luz do fósforo para apontar para baixo. Silenciosos
como ratos, todos desceram a escada para o que Janner imaginou ser o covil
Marginal.
No topo da escada, após encaixar o alçapão de volta no lugar, Podo
puxou uma corda que pendia do degrau superior. Como explicou mais tarde,
a corda atravessava um buraco no chão de pedra, por trás de uma viga na
parede do porão e subia até o teto, onde estava presa a um mecanismo que
liberava uma bandeja de terra e detritos através de uma grade de furos.
Com um puf abafado, a terra pousou no topo do quadrado visível do
alçapão e o escondeu novamente.
Os Fangs que pularam no porão um momento seguinte estavam certos de
que sentiram o cheiro forte de um fósforo aceso recentemente, mas esse foi
um mistério que eles não conseguiram resolver, já que o velho na varanda
jurou repetidas vezes que não havia visto ninguém entrar na casa.
28

Oh! Anyara!

Janner desceu a escada na escuridão total. Não mais do que três degraus
acima, ele ouvia a bota de Podo arranhar a madeira, depois um sutil tump,
quando a perna de pau alcançava o degrau seguinte. Abaixo estava o som
da respiração pesada de Tink e abaixo disso, o grunhido sussurrante de
Oskar N. Reteep cada vez que descia um degrau: “Oh céus. Oh céus. Oh
dia. Oh céu”.
Finalmente, Janner sentiu o túnel longo e quadrado alargando-se, e a voz
de Oskar veio de não muito longe abaixo. “Ah! Nas palavras de Keeth
Yager quando consumiu um balde de sopa de carne de galinha: ‘nunca
pensei que chegaria ao fundo!’.”
O risinho de Leeli na escuridão foi tão agradável que quase lançou uma
luz própria. Quando os pés de Janner tocaram o chão, ele ficou surpreso ao
encontrar areia fofa. Podo riscou outro fósforo, e a luz amarela iluminou os
arredores.
Estavam em uma câmara do tamanho do quarto das crianças Igiby, sem
nada além de um lampião no chão ao lado da escada. As paredes eram de
uma rocha amarela esfarelenta, da mesma cor da areia no chão. Podo
acendeu o lampião e fez uma busca rápida na área antes de pressupor que,
pelo menos por enquanto, estavam seguros. A família removeu suas
mochilas e sentou-se em círculo.
“Uau! Essa passou perto.” Podo suspirou enquanto se acomodava no
chão.
“Você acha que eles estavam procurando por nós?” Janner perguntou.
“Sim.”
“Quanto tempo temos que ficar aqui?”
“Não sei.”
“Tempo suficiente para comer, espero”, comentou Tink.
“Mas não tempo bastante para essa sujeira grudar na minha pele
permanentemente”, observou Nia, tirando pedaços de lama seca de suas
bochechas. “Vocês, homens, podem ficar sentados em seu fedor o ano todo,
se quiserem, mas Leeli e eu, não.”
“Comida! Comida, agora, seria uma coisa muito boa”, disse Oskar.
“Bem dito, jovem Kalmar.” Oskar remexeu na mochila de Nia e distribuiu
tiras de carne seca de verdugo, um pedaço de pão duro e o cantil de água
potável.
Enquanto mastigava a refeição dura, Janner ansiava por uma panela
fumegante de caldeirada de queijo ou frango assado na panela e, embora
não quisesse admitir, gostaria de estar limpo do disfarce de lama também.
Leeli cantarolava enquanto mastigava a carne e arrancava distraidamente
um punhado de sujeira no cabelo, sem se preocupar com o estado da
comida ou de sua pessoa. Como sempre, Janner notou, ela sentia um
contentamento singular com a situação deles. Desde que Nugget caíra no
mar — ou, mais especificamente, desde que a sua música havia criado
aquela conexão ímpar e onírica com os dragões-marinhos, Leeli passou a
trilhar a jornada com uma estranha calma.
“Acho que deveríamos descansar”, aconselhou ela com um bocejo.
“Estou com sono. E... vovô?”
Podo resmungou e ergueu as sobrancelhas para ela.
“Obrigada por cuidar de nós.” Ela se inclinou para beijá-lo na bochecha
e franziu o nariz quando não conseguiu encontrar um lugar limpo. Podo
estava sentado quieto, os olhos grandes e brilhantes; e quando, em vez de
um beijo, ela colocou sua mãozinha no lado do rosto dele, o rosto
enlameado do velho pirata se abriu em um sorriso tão largo que pedaços de
lama seca caíram, revelando a pele limpa por baixo.
Todos concordaram que descansar seria uma coisa boa, então a família e
Oskar deitaram no chão de terra e dormiram.
De manhã, ou o que Janner presumiu que fosse manhã, ele acordou e
encontrou Oskar debruçado sobre o Primeiro Livro, à luz do lampião. Ele
cantarolava para si mesmo e parecia tão feliz quanto Janner jamais o vira.
Quando viu que Janner estava acordado, seus olhos brilharam.
“Rapaz! Venha ver isto.”
Janner bocejou, passou por cima do corpo roncante de Tink e sentou-se
ao lado de Oskar. O velho colocou o grande livro no colo de Janner.
“Fiz um grande progresso. Vê esses caracteres? Acho que são notas
musicais. Não terei certeza até que sua irmã tenha a chance de testar, mas
esta pode ser uma melodia da Primeira Época! E traduzi as primeiras
páginas. Olhe essa palavra. O diacrítico nessa letra indica uma mudança no
tempo, muito parecido com valês arcaico. Mas o valês arcaico expressa
tempo com um...” Janner deu um sorrisinho fraco, não muito interessado
em diacríticos ou línguas antigas. Oskar deu uma risadinha. “Você tem
razão. Tedioso, não? Principalmente de manhã cedo. Mas o ponto é o
seguinte.” Ele tirou os óculos e os colocou no canto da boca. “O livro é uma
narrativa, pelo que entendi. Não sei quem o escreveu, mas foi alguém que
esteve lá quando tudo aconteceu.”
“Quando aconteceu o quê?” Janner perguntou, despertando um pouco.
“Quando o Primeiro Reino — Anyara — caiu. O livro conta a história do
que aconteceu — o que realmente aconteceu à Primeira Cidade, onde
Dwayne e Gladys governaram durante a maior parte da Primeira Época.”
“Anyara? Nunca ouvi falar.”
“Nem eu, até começar a fuçar no seu livro, meu garoto.” Oskar voltou a
colocar os óculos com uma piscadela. “Mas soa muito parecido com outro
reino que nós dois conhecemos, não é?”
Janner tentou pensar além do sono ainda em seu cérebro. “Anniera?”
“Isso mesmo.”
“Então, Anniera fica onde costumava ser o Primeiro Reino?”
“Bem, esse é o meu palpite. É difícil dizer. Mas ouça este primeiro
parágrafo:

Anyara alta e verde, minha amada terra,


agora é só cinza e pó.
Meus punhos estão doloridos
de tanto bater no chão.

Anyara! Dwayne e Gladys mortos sob a montanha,


toda música silenciada e tácita, todo inimigo deleita-se e maldiz,
o mundo todo quebrado,
todo quebrado e infeliz.

Levante-se novamente, montanha, exploda novamente, fonte,


cresça novamente, grão, semente e tronco,
ame novamente, coração dentro de mim.

Ou, Criador, deixe-me morrer e não mais chorar.


Ó Anyara! Minha terra! Minha terra!
Quando Gladys deu um segundo filho à luz, o fim começou,
e se você ouvir,
eu lhe contarei.

“É terrível”, constatou Janner.


“Sim”, disse Oskar baixinho. “Mas isso não é tudo. Continua dizendo
que o reino estava... protegido. Terei que perguntar à sua mãe para ter
certeza de que estou traduzindo corretamente. O poder para salvar Anyara
descansava “sob as pedras” — seja lá o que isso signifique —, e quem
escreveu este livro foi a última alma que sobrou para contar o segredo. Não
tenho certeza, mas acredito que, em algum lugar abaixo de Anniera,
provavelmente abaixo do Castelo Rysen, onde sua família fez morada,
havia um cômodo, talvez. Uma câmara ou túnel de algum tipo, conhecido
apenas pelo Rei Supremo. Saberei melhor assim que tiver mais tempo para
traduzir. Mas se houver uma câmara, se houver algum segredo que possa
proteger Anniera...” Oskar olhou por cima dos óculos para Janner. “Essa
pode ser a razão pela qual seu pai arriscou a vida para lhe dar este livro.”
Janner olhou para a chama do lampião, com sua mente sobrecarregada
de informações. Era difícil acreditar que, além das paredes daquele covil
escuro, existisse um mundo como o descrito por Oskar, um mundo de reis,
de pedras poderosas e de inimigos sombrios. Era ainda mais difícil acreditar
que Janner estivesse emaranhado naquele mundo como uma libélula numa
teia. De repente, ele não desejava nada mais do que subir a escada e respirar
ar fresco, com Fangs ou não.
“Oskar”, chamou Podo das sombras de um dos cantos do covil. Ele era
uma forma vaga, encostada na parede de pedra ao lado da escada.
Oskar percebeu o perigo na voz do velho pirata. “Sim, velho amigo?”
“Você ouviu o que Nia disse. Só uma coisa precisa estar na mente de
Janner: chegar às Pradarias de Gelo. Nada de reinos perdidos, nem histórias
tolas sobre pedras mágicas ou segredos esquecidos. Nós dois sabemos que
essas coisas não são mais reais do que o lamurioso fantasma de Brimney
Stupe.”
“Mas o fantasma era real, Podo! Ou... a história do fantasma era real.
Minha engenhoca de vento apenas adicionou um pouco de terror à história.”
“Não estou com humor para bobagens com você. Nós dois sabemos que
não havia nenhum fantasma.”
“Não, não havia um fantasma, mas a história do fantasma era tão real
quanto você e eu. E a história do fantasma veio de algum lugar, não é? O
próprio Brimney era real, ou quem construiu a mansão Pé-de-Geleia?”
Podo resmungou.
“Tudo bem, tudo bem”, cedeu Oskar. “Nas palavras de Phinksam
Pançaroza: ‘Não vou cutucar um marbutre no papo’. Tudo o que quero é
que o jovem Janner Wingfeather aqui saiba quem ele é e de onde veio.”
“E tudo que eu quero”, enfatizou Podo, “é levar essas crianças e sua mãe
a um lugar onde possam viver seus anos em paz. Anniera está destruída e
morta. Não há Anniera mais do que há uma Mansão Pé-de-Geleia. É uma
ilha morta, tão morta quanto pele de cobra, e é isso que esses jovens Igibys
também serão se tiverem ideias em suas cabeças sobre reis, pedras e
segredos. São ideias como essas que nos colocaram neste buraco. Se você
mantivesse aquele mapa idiota escondido melhor, poderíamos estar
soprando anéis de fumaça na Taverna do Crespo agora mesmo.”
Oskar olhava para o chão. Quando falou, sua voz era pouco mais que um
sussurro.
“Você sabe quantos herdeiros ao trono de Anniera existem no mundo?
Um. E ele está roncando no chão aos seus pés. Peet, o Homem-Meia,
provavelmente está morto ou já teria nos encontrado, o que nos deixa,
exatamente, com um Guardião do Trono em toda Kistamos. Leeli aqui é a
primeira Donzela da Canção em gerações.” Reteep ergueu os olhos para
Podo. “Deixe-me dizer, velho amigo: prefiro estar preso aqui, num covil
Marginal, a ter permanecido soprando anéis de fumaça em Glipwood, onde
Fangs cospem, uivam e matam nossos espíritos. Pelo menos estamos aqui
porque escolhemos estar. Estamos aqui por bravura, e não por covardia.”
“Você navegou os mares e andou com os Marginais. E só o Criador sabe
o que mais você fez nessa sua vida turbulenta como uma tempestade
marinha. Tudo o que eu fiz foi ler sobre essas coisas. E aqui estou eu,
sentado numa caverna com tudo o que sobrou do clã Wingfeather — o
material de que são feitas as lendas, Podo! E lendas não se escondem sob o
gelo só para que possam envelhecer e morrer com uma barriga gorda e uma
cabeça careca — não que minha cabeça seja careca. Meu cabelo é cheio e
esvoaçante. Sempre me orgulhei disso.”
Podo revirou os olhos. “Onde você quer chegar?”
“Bem, é só que... aonde quer que você nos leve, sejam às Pradarias de
Gelo ou à barriga de um baratodonte voraz, essas crianças precisam saber
quem são. A todo custo, elas precisam se lembrar de quem são.”
Ouvir Oskar chamá-los de “o material de que são feitas as lendas”
deixou Janner arrepiado, mas também lhe deu um frio no estômago. Ele
havia lido o suficiente de histórias para saber que as lendas assim se
formaram por meio de grandes sofrimentos e grandiosos feitos. Janner não
queria sofrer e não tinha certeza se era corajoso ou inteligente o suficiente
para realizar algo lendário. Mas não podia negar que queria
desesperadamente saber mais. Poderia ter ficado o dia todo ouvindo as
teorias de Oskar sobre a queda de Anyara, sabendo que poderiam ser a
história de sua casa, do reino onde seu pai governou. Janner balançou a
cabeça, espantado com isso.
“Eita!” Exclamou Podo. “É hora de ir.”
Oskar fechou o semblante e o livro, enquanto o velho pirata acordava o
resto da família.
29

T.A.N.E.G. no
Covil dos Marginais

Como você saberá se os Fangs se foram?” Questionou Nia. Ela estava ao pé


da escada, olhando para cima no túnel.
“Não precisamos nos preocupar com isso ainda, moça”, lembrou Podo.
“Veja.”
Ele mancou até a escada e correu um dedo ao longo de uma fenda na
rocha. Com um clique, outra porta oculta apareceu, desta vez na parede
atrás de Janner.
“Quem fez tudo isso?” Janner inquiriu.
Podo sorriu. “Os Marginais são podres até a alma, mas isso não significa
que não sejam espertos como raposas. Antigamente eu podia ir daqui até
Torrboro por baixo do Blapp sem nunca ver a luz do dia ou uma gota
d’água. Túneis correm sob as duas cidades como raízes ocas, todos cavados
por bandidos ao longo das épocas, para que pudessem roubar e escapar sem
deixar vestígios.”
“E ninguém sabe sobre os túneis?” Tink perguntou, curvando-se para
espiar a escuridão atrás da porta. Seus olhos estavam arregalados e curiosos,
e Janner sabia que, se ele e Tink estivessem sozinhos, seu irmão já teria
desaparecido no túnel como um cachorro caçando.
“Ninguém além dos Marginais. Já faz muito tempo, mas acho que seu
Podo pode entrar fundo o suficiente em Cavadópolis para conseguir o que
precisamos.” Podo olhou para Oskar. “Você disse que esse tal de Ronchy
McHiggins mora na cidade, ao lado do rio?”
“Sim. A Taverna Viúva Rechonchuda fica perto do rio, na Estrada do
Rio, a apenas alguns quarteirões a leste da balsa. Já se passaram anos, mas
tenho certeza de que posso encontrar.”
Podo acenou com a cabeça. “O túnel deve nos deixar lá perto. As ruas de
Cavadópolis são perigosas demais pra mim em plena luz do dia. Posso ser
reconhecido. Vou levá-lo o mais perto que puder e esperar no túnel
enquanto você encontra o homem.” Podo se virou para os outros. “Vocês
quatro fiquem aqui.”
“Vovô, por favor, deixa a gente ir com você”, Tink implorou. “Vou ficar
quieto e faço exatamente o que você disser.”
“Não, rapaz. Não há muito para ver nesses túneis, exceto pedras, sujeira
e excrementos de vermes. Você estará tão seguro aqui como em qualquer
lugar, e Oskar é o único que realmente precisa ir.”
Tink suspirou. Janner também não gostou da ideia de ficar, não porque
estivesse ansioso para explorar os túneis (embora isso realmente soasse
divertido). As paredes e o teto do covil pareciam estar se fechando sobre
ele, e assim não conseguia se livrar da sensação de que estava em uma
tumba.
“Não demoraremos, Nia. Uma hora para encontrar Ronchy, e, supondo
que ele ainda esteja lá, Oskar fará os preparativos. Depois, outra hora de
volta pra cá. Se tudo correr bem — o que raramente acontece —, estaremos
de volta na hora do almoço.” Podo piscou para sua filha. “Guarde pra mim
um pouco daquele pão delicioso, hein?”
“Apenas voltem logo.” Nia forçou um sorriso. “E traga um balde d’água
com você. Talvez eu nunca consiga me livrar dessa sujeira.”
“Janner, você está no comando.”
Janner acenou com a cabeça, tentando o seu melhor para agir como um
Guardião do Trono.
Podo desapareceu na porta sem outra palavra. Oskar ajustou bem as
calças sobre a barriga, preparando-se para a viagem pelo túnel, esfregou as
mãos com entusiasmo e passou pela porta atrás de Podo.
As crianças e Nia ficaram olhando para o túnel por vários momentos,
como se Podo pudesse reaparecer, tendo mudado de ideia sobre a coisa
toda.
“T.A.N.E.G.”, comandou Nia.
As três crianças olharam para ela sem acreditar.
“Tink, trabalhe em um esboço das Cataratas Fingap e da Ponte Miller.
Leeli, provavelmente é uma má ideia fazer muito barulho aqui, mas você
pode praticar seus dedilhados na harpa eólica e tentaremos resolver as notas
do Primeiro Livro. Janner, muita coisa aconteceu nos últimos dias, que
precisa ser registrada.”
Quando as crianças perceberam que a mãe falava sério, sentaram-se no
chão e começaram a estudar à luz do lampião. Assim que Janner lembrou-se
da sensação acolhedora da pena em sua mão e ouviu o arranhar das letras
nas páginas de pergaminho de seu diário, as paredes da caverna recuaram.
Ele mergulhou na escrita e foi arrastado ao longo das águas de sua memória
dos últimos dias. A fuga do baratodonte voraz. O estranho medo que Podo
tinha do mar. A corrida ao longo dos vãos estreitos da Ponte Miller.
Nugget. Pobre e corajoso Nugget.
Os dragões-marinhos! Janner sorriu e sentiu um arrepio na barriga.
Descreveu o brilho metálico da pele dos dragões, a estrondosa sensação de
poder por trás de seus olhos, como nuvens escuras pesadas com a chuva, e,
associado a esse poder, uma espécie de conhecimento profundo. Mas, então,
havia também uma sensação estranha de... Janner não conseguia pensar na
palavra certa. Ele ergueu os olhos do papel e viu Tink debruçado sobre seu
caderno de desenho, com a ponta da língua saindo pelo canto da boca.
Fúria.
Essa era a palavra. Algo mais do que apenas raiva, algo muito mais
profundo, que jazia em silêncio por uma eternidade e esperava seu
momento para explodir. Ainda mais estranho, Janner não tinha medo da
fúria, porque parecia direcionada para outro lugar. Além disso, sentia que,
se fosse desencadeada, ele não estaria seguro, mas, pelo menos, teria uma
chance de escapar. Ele teve pena do alvo da ira ancestral dos dragões.
Ainda ouvia a voz do dragão em sua mente e se lembrava de cada
palavra. “Ele está perto de vocês, jovens. Ele está perto de vocês. Cuidado.
Ele destrói tudo o que toca e busca os jovens para usá-los para seus
próprios fins. Temos estado vigiando, esperando por ele. Ele navegou pelo
mar e está perto de você, criança. Podemos sentir o cheiro dele.”
Janner estremeceu. Agora ele tinha certeza de que ou o dragão havia
mentido, como Podo dissera, ou se referia a alguém diferente de Gnag, o
Sem-Nome. Se Gnag estivesse por perto e soubesse onde os Igibys estavam,
os Fangs já os teriam capturado há muito tempo.
Horas se passaram, e até mesmo Nia sabia que as crianças não poderiam
trabalhar em suas tarefas para sempre. Ela declarou um recesso e ordenou
que guardassem seus suprimentos. Janner e Tink tiveram grande prazer em
inspecionar seus pertences. Prepararam seus arcos, fizeram um inventário
das poucas flechas que lhes restavam, tiraram as espadas de suas bainhas e
as limparam o melhor que puderam sem ter água excedente. Leeli limpou
seu pequeno espelho, tirou o pó da harpa eólica e avaliou o estoque da
comida restante — que embrulhou cuidadosamente em um pano e depois
amarrou com barbante.
Quando tudo o que possuíam foi devolvido às mochilas, limpo, contado
e bem embalado, as crianças e Nia sentaram-se em círculo ao redor do
lampião e esperaram.
E esperaram.
Almoçaram pouquíssimo quando pensaram ser meio-dia, mastigando em
silêncio e tomando pequenos goles do que restava da água do cantil. Então
eles esperaram.
E esperaram.
Finalmente, quando o tédio começou a se transformar em preocupação
com Oskar e Podo, ouviram vozes na porta do túnel.
“Eu disse que esse era o caminho certo, seu bocó!”
“Você e eu sabemos que você escolheu a outra curva! Como declarou o
impecável cartógrafo Conrad Urbemais: ‘Ninguém me escuta!’.”
“Não é verdade, Reteep. Não tem como não ouvir você. Fica grasnando
como um ganso há horas!”
“Oh, céus.”
Quando Oskar e Podo emergiram da escuridão e se estiraram, as crianças
correram e os atacaram com abraços.
“Ronchy vai tomar as providências necessárias esta noite”, relatou
Oskar, depois que ele e Podo haviam comido um pouco. “Ele disse que
deveríamos voltar à meia-noite, e que o guia estaria esperando no beco atrás
da Viúva Rechonchuda. Disse que, se tivéssemos chegado três dias antes, o
próprio Gammon poderia ter nos contrabandeado para o norte. Ele estava
em Cavadópolis para se encontrar com outros membros de sua força.”
“Tem certeza de que pode confiar nele?” Indagou Nia.
“Minha senhora, acho difícil acreditar que um homem capaz de fazer
uma torta de marinheiro tão saborosa seja perigoso. Ah! Que torta!” Oskar
deu um tapinha em sua barriga macia.
“Não vejo que escolha temos, moça”, concluiu Podo.
“O que vocês acham, jovens Wingfeathers?” Oskar perguntou.
Janner e Tink ficaram surpresos. Oskar realmente queria saber o que eles
pensavam? A maneira como Nia, Oskar e até Podo olharam para os três
disse a Janner que sim.
“Ahn”, começou Tink.
“Bem”, prosseguiu Janner.
“Sim”, arrematou Leeli. “Aconteça o que acontecer, mesmo que o Sr.
McHiggins não seja confiável, não podemos ficar aqui, muito menos
voltar.” Ela olhou para os adultos com seus olhos grandes e inocentes.
“A Donzela da Canção de Anniera se pronunciou”, pronunciou Oskar
gravemente.
E o assunto foi resolvido.

O dia passou em ritmo de tédio.


Depois que Oskar acordou de uma soneca barulhenta, ele e Janner
começaram a traduzir mais do livro antigo, ocasionalmente pedindo a Nia
alguma ajuda que pudesse dar. Ela se surpreendeu com o tanto de valês
arcaico de que se lembrava, e página após página traduzida se empilhava ao
lado de Oskar, no chão do covil. No início, Janner ficou fascinado com o
triste relato do narrador sobre a queda de Anyara, os exércitos invasores, as
listas dos números de soldados caídos e as posições das linhas de batalha e
acampamentos. Mas, depois de várias páginas, o escritor permaneceu em
uma contabilidade agonizante de datas e números e linhagens de heróis que
caíram ou conquistaram este ou aquele inimigo. Era tudo muito confuso e
parecia excessivamente sem importância, com exceção de linhas ocasionais
de grande eufemismo.
“No quarto dia da Segunda Lua, no ano de 1235 da Primeira Época,
Boron, filho de Nam, desceu do Monte Flimkhar e lutou contra um kamaral
gigante por sete dias, derrotando o monstro com os nós dos dedos de seu
punho direito.”
“O que é um kamaral?” Janner perguntou.
Oskar encolheu os ombros. “Nia?”
“Eu não me lembro. Kamaral... soa como kamril, a palavra em valês
para “pássaro”. Um pássaro gigante, talvez?”
Leeli e Oskar fizeram o possível para decifrar as notas musicais, mas
tiveram pouca sorte. Embora ela tocasse suavemente, ao dedilhar as notas
do jeito que pensava estarem escritas, a música era tão terrível que todos
tapavam os ouvidos.
Oskar trabalhava continuamente à luz do lampião a óleo, enquanto Tink
voltava ao seu caderno de desenhos e Leeli e Podo conversavam, até que
Janner adormeceu com a cabeça apoiada no ombro do velho.
“Está na hora”, sussurrou Podo.
Janner estava sonhando com o mar, um belo sonho com um amplo céu
azul e um esquife cortando a água. Ficou triste ao acordar. O covil estava
tão escuro e monótono como sempre. Porém, a expectativa de que logo
emergiriam dos túneis para Cavadópolis sob um céu estrelado deu a Janner
um arrepio de excitação, e ele rapidamente se espreguiçou e colocou a
mochila nos ombros.
“Já era hora de vocês acordarem”, reclamou Oskar, colocando os óculos
e encostando-se na parede na tentativa de parecer ágil e robusto. Ele estava
se tornando um aventureiro e tanto, pensou Janner. O velho ajeitou a mecha
de cabelo enlameado e deu um tapinha nas costas de Podo.
Podo revirou os olhos. “Preparados?”
“Sim, senhor”, afirmou Janner.
“Feche a porta atrás de você, rapaz”, ordenou Podo.
Eles mergulharam túnel adentro.
30

As Últimas Palavras de Sneem

A porta se fechou, Janner se virou e viu o lampião de Podo balançando em


uma curva do túnel. O solo não era mais de terra, mas de pedra lisa. As
paredes do túnel eram distantes o suficiente para que Janner mal pudesse
tocá-las com a ponta dos dedos. A passagem descia suavemente e, de vez
em quando, Janner sentia outros túneis à sua esquerda e à direita. Podo dava
tantas voltas que Janner não tinha certeza se conseguiria encontrar o
caminho de volta para o covil, fosse preciso.
Depois de uma longa e bolorenta hora de caminhada, Podo parou, cara a
cara com um homem barbudo em farrapos. O homem pegou uma adaga e
apontou para o peito de Podo. Podo estava com sua própria adaga apontada
para a barriga do Marginal. O homem carregava uma bolsa sobre o ombro,
provavelmente despojos de uma investida de ladrões.
“De onde?” O homem rosnou.
“Da Curva Oriental”, Podo rosnou de volta.
“Clã de Claxton Ardileza?” O homem interrogou.
Podo puxou o totem-medalhão de Claxton de sua camisa e o balançou na
cara do homem. “Não é mais o clã de Ardileza.”
“Ah”, retocou o homem com um sorriso nervoso. Seus olhos se voltaram
para as crianças. “Então, qual desses rapazes é Kalmar? Gostaria de
conhecê-lo.”
Com um aceno de permissão de Podo, Tink deu um passo à frente
timidamente. “Eu sou Kalmar.”
O homem piscou. “Ouvi dizer que você correu em círculos ao redor de
Claxton, batendo nele com uma chibata até que seus bolsos ficassem vazios
e suas botas amarradas com nós. Muito bem.”
“Bem...” Tink começou.
“Siga em frente, então”, Podo interrompeu. O homem deu um aceno
rápido para Tink com a cabeça e sumiu na escuridão. “Todo mundo bem?”
Podo perguntou com um olhar carinhoso para Nia e Leeli. “Bom. Estamos
quase lá.”
Ele os conduziu para a passagem seguinte, à esquerda. Depois de alguns
passos, escalaram uma escada de pedra até chegarem ao que parecia ser um
beco sem saída. Mas nos túneis dos Marginais parecia não haver tal coisa
como becos sem saída. Mais uma porta escondida se abriu, e o grupo
emergiu em outro covil arredondado, com chão de terra e uma escada que
desaparecia numa abertura semelhante a uma chaminé. Por um momento
pareceu que eles haviam viajado em um grande círculo.
“Agora ouçam”, declarou Podo, “e ouçam com atenção. Esta escada
termina no porão de outra casa, mas com uma grande diferença:
cavadopolienses ainda vivem nela. Estamos bem abaixo do coração da
cidade, e o povo que vive nesta casa provavelmente não tem a menor ideia
de que há um covil em seu porão. Temos que rastejar como lesmas por esta
casa para não acordar os inquilinos, e eles berrarem aos quatro ventos. Hoje
cedo tivemos sorte de eles não estarem em casa, mas é mais provável que
agora estejam aqui, dormindo com um sono leve. Nenhum cavadopoliense
pode se dar ao luxo de dormir muito profundamente, ou provavelmente
acordariam numa casa vazia.”
“Mas, se há um caminho para o porão deles, por que os Marginais
simplesmente não aproveitam e roubam tudo?” Janner questionou.
“Algumas das pessoas nestas casas sabem sobre os túneis e deixam os
Marginais irem e virem, desde que recebam uma parte do saque. Outras
pessoas não sabem, e os Marginais preferem assim. Se eles roubarem muito
de uma das casas que usam, o proprietário pode suspeitar, encontrar a porta
e lacrá-la. Já aconteceu muito. Não sei se essas pessoas sabem sobre o túnel
ou não, mas não queremos descobrir. Nós vamos rastejar. Entenderam?
Bom.” Podo apagou o lampião. “Fiquem perto.”
Janner veio por último de novo, tateando o caminho para fora do alçapão
e para dentro do porão de chão arenoso. Tudo o que ele podia ouvir era a
respiração cuidadosa do resto do grupo. Podo fechou o alçapão com um
baque surdo, e Janner ouviu um som de raspagem quando Podo escondeu a
porta com terra solta.
“Vamos,” sussurrou Podo. “Como lesmas.”
Janner caminhava na ponta dos pés atrás de Tink, fazendo caretas no
escuro a cada toque da muleta de Leeli, a cada resvalada de pés na escada
que levava para fora do porão e para dentro da casa. Podo abriu a porta e
acenou para que passassem por uma cozinha, não muito diferente daquela
do chalé Igiby: quatro cadeiras e uma mesa no centro do cômodo, um fogão
de ferro preto colocado contra uma parede e uma prateleira com pilhas de
pratos, tigelas e latas de especiarias e óleos. Alguém morava aqui, jantava
aqui e ria durante as refeições aqui. Será que sabiam que Marginais
deslizavam pelas sombras enquanto eles dormiam?
Quando a família e Oskar se aglomeraram na porta da frente, tão quietos
e silenciosos que Janner acreditou ouvir os próprios batimentos cardíacos,
Podo colocou a mão na maçaneta e girou-a lentamente. A porta se abriu
com um rangido, e ele, apressando todos para fora, fechou-a atrás deles.
Só quando Podo deu um profundo suspiro de alívio, Janner e os outros
relaxaram.
Estavam em frente a um tipo inclassificável de casa de madeira, se é que
poderiam chamar assim. Era uma estrutura de madeira de dois andares; não
estava imunda, mas longe de estar limpa. Até onde Janner conseguia
enxergar nas duas direções, as casas dos dois lados da via eram
semelhantes. Passagens estreitas eram tudo o que havia entre cada
habitação. Nenhuma planta pendurada nos beirais, nenhuma tinta
adornando as paredes; apenas um edifício cinza após o outro. A via estava
esburacada e lamacenta. Ratos e retalhinhos deslizavam nas sombras,
tentando em vão evitar o brilho da luz alaranjada das tochas.
Janner olhou para a torre de tochas mais próxima. Bem acima, uma
figura estava agachada na plataforma, ao lado do bojo de ferro onde o fogo
ardia. Inclinava-se como um abutre na ponta de um pedestal, espreitando as
ruas — uma sombra negra contra o flamejar das chamas. Não muito longe
erguia-se outra torre, com outro fogaréu e outra figura, esta andando de um
lado para o outro.
A figura na torre mais próxima esticou-se e virou-se, e o coração de
Janner quase saiu pela boca. A silhueta na torre tinha uma cauda e a
inconfundível postura recurvada de um Fang de Dang.
“Sim, rapaz. Estou vendo”, sussurrou Podo. “Todos fiquem aqui até ele
ir para o outro lado. Então, sigam-me.”
Permaneceram de costas para a casa, onde a sombra da saliência do
telhado escondia tudo, exceto a ponta mais externa da barriga de Oskar.
Quando o Fang fez seu caminho para o outro lado do fogo, Podo começou a
correr. Mantinha-se perto das casas, tendo o cuidado de ficar sob a
cobertura das beiradas, enquanto os outros faziam o possível para segui-lo.
Podo derrapou, parando de repente na esquina de uma rua transversal larga.
Na esquina da rua de paralelepípedos havia uma placa que dizia
AVENIDA VERDE FLORESCER. Os prédios ali eram de tijolo e pedra,
com três e quatro andares de altura e amplas vitrines exibindo carnes,
queijos e ferramentas à venda.
Oskar enxugou a testa e olhou a Avenida Verde Florescer de cima a
baixo. “Viramos à esquerda aqui. Em direção ao rio.”
Mas, antes que Podo desse seu primeiro passo, uma companhia de Fangs
marchou por uma esquina a duas ruas de distância. “Voltem! Voltem!” Ele
murmurou.
No alvoroço de sete pessoas — uma delas bem volumosa — tentando
inverter a direção, Leeli perdeu o equilíbrio e caiu. Janner colocou-a de pé e
arrastou-a de volta.
“Sinto muito! Muito, mesmo!” Leeli sussurrou.
“Shh, querida! Não é sua culpa!” Podo deixou bem claro.
“Mas...” Leeli quis argumentar.
“Leeli, está tudo bem”, confirmou Janner.
“Mas...” Ela repetiu, e Podo a silenciou novamente.
Ele os empurrou para o beco estreito entre dois prédios. Tudo que Janner
conseguia ver era a camisa suada de Podo e as velhas tábuas das casas de
cada lado. O som de Fangs marchando aumentou. Janner fechou os olhos,
orando para que eles continuassem marchando e o som diminuísse até
sumir.
Mas a companhia Fang parou. Janner prendeu a respiração.
“Minha muleta”, Leeli sussurrou. “Tentei dizer a vocês.”
Podo baixou a cabeça.
Um dos Fangs proferiu bruscamente uma ordem, e um conjunto de
passos veio se aproximando. Janner esperou pelo momento em que o rosto
escamoso apareceria. Podo iria matá-lo, antes mesmo que soubesse o que
tinha visto, mas então os outros Fangs estariam na cola deles. Com tantos
Fangs nas torres de tochas e marchando pelas ruas, Janner sabia que não
escapariam por muito tempo.
“Um bassstão ou algo asssim”, o Fang esbravejou. Ele estava parado
logo após a esquina de onde se escondiam, tão perto que Janner podia sentir
o cheiro. O Fang na rua rosnou algo ininteligível, e o Fang mais próximo
respondeu: “Uma muleta? Não tenho certeza de o que seja uma muleta,
senhor. Parece que eu sssabia... Sim, senhor. Desculpe, senhor. Vou levar.”
Os Fangs retomaram sua marcha. A família esperou muito tempo antes
de sair do beco.
“Sinto muito, vovô”, lamentou Leeli com lágrimas nos olhos.
“Calma, moça.” Ele acariciou seu cabelo com a mão calejada. “Sou eu
quem lamenta. Se uma Donzela da Canção de Anniera lhe diz algo, você
ouve.” Então ele adicionou em voz mais baixa — “Não importa se ela é
uma Donzela da Canção: se sua querida neta lhe diz alguma coisa, você
também escuta. Vem cá”. Podo entregou sua mochila a Oskar e colocou
Leeli em suas costas.
Quando teve certeza de que os Fangs haviam partido, Podo conduziu o
grupo para o sul, na Avenida Verde Florescer. A rua de paralelepípedos
estava cheia de excrementos de cavalo, mas, fora isso, limpa. Prédios altos
assomavam, de janelas escuras e cobertas por uma camada de poeira e
fuligem. Nas vitrines havia vários produtos e mercadorias à venda: sacos de
grãos, brutos manequins exibindo vestidos e casacos com rígida dignidade,
gaiolas de pássaros, garfos e colheres.1 Janner avistou uma vitrine que
ostentava uma simples e bonita palavra: Livros, e a mostrou para Oskar.
O velho balançou a cabeça e fez uma careta: “Contrabandistas e
vigaristas”, reclamou. “Não distinguiriam um bom livro de um dente
podre.”
A família mantinha-se próxima aos prédios, cuidando para permanecer
fora do brilho da luz das tochas. Em cada rua transversal, Podo verificava as
torres, e então eles arrancavam em uma corrida para fora das sombras, de
um lado até o outro. Parecia que a qualquer momento outro regimento de
Fangs surgiria de trás de um prédio.
Mas finalmente Oskar sussurrou: “É aqui”.
Estavam no cruzamento da Avenida Verde Florescer com outra ampla
rua chamada Estrada do Rio. A Verde Florescer cruzava a Estrada do Rio e
descia para a extensão negra do Grande Blapp. Mais lojas altas feitas de
tijolos alinhavam-se no lado norte da Estrada do Rio, mas no sul, ao longo
da margem do rio, havia garagens de barcos feitas de madeira, cercadas por
docas e pontes. O vento mudou e um odor forte preencheu as narinas de
Janner.
“Ah, o delicioso cheiro de saltitões e vermelhões dos barcos do rio”,
celebrou Podo com um suspiro. “Faz muito tempo desde que enchi minha
barriga de peixe.”
Tink gemeu de desejo e colocou a mão na barriga, enquanto Janner
lutava contra a vontade de vomitar.
Do outro lado do rio, Torrboro estava na escuridão. Tudo o que se podia
ver do Palácio Torr ou de qualquer uma das estruturas ao redor era o
tremeluzir de uma luz de tocha refletida na superfície do rio.
“Olhe”, indicou Oskar, apontando para a direita na rua. Uma série de
placas de madeira penduradas na fileira de prédios rangia com o vento à
beira-mar: Vestimentas do Billy Botão, Tabaco para Cachimbos (sua esposa
vai adorar!), Pedras da Sorte. Outra placa retratava uma mulher
impossivelmente gorda em um vestido preto, chorando e segurando um
lenço sobre a boca e o nariz. A Viúva Rechonchuda, dizia a placa. Cerveja,
Conforto e Torta de Marinheiro. Os Igibys se amontoaram na porta de uma
loja de conserto de sapatos, e a placa acima de suas cabeças dizia: Um
Lugar para os Pés.
Do outro lado da rua, uma torre de tochas erguia-se atrás das garagens de
barcos, e Janner não precisava olhar para saber que um Fang estava no topo,
observando a rua em busca de movimento.
“É...” Podo sussurrou.
“É...” Repetiu Oskar, colocando os óculos com um floreio. “Nas palavras
do grande guerreiro Triliban Plubius, o Ferido: ‘Seja esmagado, seja
protegido pela mão do Criador, é à sombra dela que vamos, do respirar ao
morrer’.”
“Isso aí!” Exclamou Tink.
“Do lado mais distante da Viúva Rechonchuda há um beco”, sussurrou
Oskar. “Ronchy disse para encontrá-lo lá à meia-noite, e só o Criador sabe
quão atrasados estamos.”
Naquele momento, ouviram um grande tilintar que ecoou fracamente
para fora das paredes distantes de Torrboro.
“É uma hora”, assinalou Podo.
“Uma hora de atraso”, completou Nia.
“Mas ele esperaria por nós, né?” Leeli perguntou.
“Espero que sim, princesinha.” Oskar sorriu e olhou para Podo.
“Pronto?”
Podo respirou fundo e arriscou uma espiada na torre da tocha. “Nenhum
sinal do Fang. Ele deve estar do outro lado.”
Então, do pé da torre que brotava do lado do cais, veio o rosnado áspero
de um Fang, tão perto que até Podo prendeu a respiração.
“Sneem!” Bradou. “Estou subindo!”
“Glag! Já era tempo”, respondeu a voz de Sneem lá de cima. Com
muitos silvos e baforadas, o Fang chamado Sneem deslizou escada abaixo à
vista de todos, a poucos passos de distância. Quando alcançou a base da
torre, escondida atrás das garagens de barcos, os dois Fangs trocaram uma
saudação rude, e então o outro Fang apareceu acima do telhado das
garagens de barcos, subindo a escada.
Sneem emergiu de entre duas garagens de barcos, do outro lado da rua,
limpando a fuligem de seu rosto. O coração de Janner deu um pulo. O Fang
caminhava direto na direção deles. Era apenas um, mas bastava um só para
alertar os outros. Talvez o Fang não os visse. Talvez seus olhos ainda
estivessem turvos por ter ficado tanto tempo diante do fogo brilhante, e ele
passasse direto pelos Igibys. Talvez o estômago de Tink não roncasse, e
Podo não arrotasse, e eles conseguissem chegar em segurança ao beco onde
a ajuda esperava.
“Sneem!” Gritou Glag, agora na plataforma da torre.
A apenas alguns passos da porta do sapateiro, Sneem parou e se virou.
“Hã?”
“Esqueci de dizer. Dizem que ele está de volta.”
“O Espadachim Floreado?” Sneem perguntou.
“Ou qualquer que seja o seu nome. Ele foi visto no lado oeste da cidade
esta noite, então tome cuidado.”
“Miserável! Deixe ele vir. Vou espetá-lo como um peixe-adaga.”
Depois de um momento, Glag proferiu: “Você quer dizer que você é o
peixe-adaga que está espetando, ou que vai espetá-lo como se ele fosse um
peixe-adaga que você está tentando espetar no rio?”
Sneem inclinou a cabeça de lagarto para o lado para avaliar a questão.
“De qualquer maneira, o Espadachim Floreado sai espetado, não?”
“Sssuponho que sim”, cogitou Glag, “mas pode ser mais difícil espetá-lo
se ele estiver nadando na água como um peixe-adaga. Eles são rápidos. Mas
se você fosse o peixe-adaga, você simplesmente pularia do rio e o espetaria,
certo?”
Sneem pensou sobre isso por um momento, então disse: “Eu vou pegá-
lo. Como um peixe.”
Por favor continuem falando, Janner pensou. Enquanto estiverem
falando, Sneem não vai se virar e nos ver. Talvez eles fiquem assim até o
amanhecer, ou até que Peet apareça para nos resgatar, ou até que o Fang
se encolha e durma bem ali na rua.
E quem é o Espadachim Floreado?
Podo deu um tapinha no ombro de Janner e murmurou as palavras:
“Esteja pronto.” Ele deslizou Leeli de suas costas e cuidadosamente puxou
sua espada. Janner e Tink fizeram o mesmo, estremecendo a cada rangido
do couro de suas mochilas enquanto se moviam. Talvez, se eles fossem
rápidos o suficiente, Sneem não teria a chance de soar o alarme.
Os meninos Igiby e Podo moveram-se silenciosamente na frente de Nia,
Leeli e Oskar. As três lâminas brilhantes se estendiam além da sombra do
dossel, flutuando à luz das tochas, como se estivessem nas garras de
fantasmas. Janner estava com medo, mas ansioso para, ver a surpresa de
Sneem quando este se virasse e encontrasse três figuras com lâminas
brilhantes saltando — como peixes-adagas — para fora das sombras.
O Fang na torre se despediu, e Sneem acenou, expressando a coisa mais
próxima de amizade que Janner já havia testemunhado entre Fangs.
Quando Sneem se virou, deu um único passo e parou. Mas não estava
olhando para os Igibys. Seus olhos negros estavam voltados para o telhado,
acima deles.
“O Espadachim Floreado!” Sneem gritou.
Foram suas últimas palavras.
31

No Beco da
Viúva Rechonchuda

O Espadachim Floreado saltou do telhado do prédio do sapateiro,


ricocheteou no dossel, girou no ar e pousou graciosamente como um gato
atrás de Sneem. Usava uma capa preta, botas pretas, luvas pretas e tinha
cabelos pretos que caíam até os ombros. Tudo nele era preto como tinta,
incluindo sua máscara. O branco de seus olhos brilhava. Trespassou o Fang
com sua fina espada, dando-lhe um fim terrível. Janner percebeu o brilho
branco de seus dentes quando o homem sorriu.
“Para ter certeza, Sneem, ó demônio, o Espadachim Floreado trespassou-
te como um relâmpago de ferro a perfurar as aquosas profundezas do
Grande Blapp — que largo e lamacento ele corra por todos os dias de minha
própria vida! Tua derrocada por minha espada! Arrá!”
Glag gritou indignado da plataforma da torre. O Espadachim Floreado se
voltou e sua capa girou em um círculo gracioso. Retirou um arco do ombro,
encaixou uma flecha e disparou. Primeiro houve um baque, depois um
gemido, e então o som do corpo de Glag batendo contra o telhado da
garagem de barcos.
“E tu!” Exclamou o Espadachim Floreado, enquanto pendurava o arco
sobre o ombro novamente e olhava para o buraco no telhado. “Glag, o
sórdido tolo derrocado! Facínora!” Endireitou-se e sacudiu sua capa, então
arrancou sua lâmina do corpo inerte de Sneem e limpou-a em um remendo
da armadura de couro da criatura.
Podo, Tink e Janner nem chegaram a se mover. Todos os três com, os
queixos caídos. Janner distinguiu um símbolo vermelho brilhante na frente
da camisa preta do homem. Um E e um F entrelaçados como vinhas
espinhosas em seu peito.
O Espadachim Floreado fixou seu olhar brilhante nos Igibys. “E quem,
nesta noite negra encarvoada, sede vós?”
“Eu sou Podo Helmer. Esta é minha família.”
“Helmer. Família. Palavras, nada mais! E mais palavras tenho para ti.
Três delas: O Espadachim Floreado! Eu sou ele! Arrá!”
Passos de Fangs soaram à distância, cada vez mais próximos. O
Espadachim Floreado agarrou o tornozelo escamoso de Sneem com ambas
as mãos e o arrastou em direção ao rio, sem dizer outra palavra.
“O que foi tudo isso?” Tink perguntou.
“O Espadachim Floreado”, nomeou-o Podo, admirado. “Nunca ouvi
falar dele.”
“Ouvi falar de um herói que se precipita dos telhados”, relatou Oskar,
“frustrando os Marginais quando não estão fazendo nada de bom, e que tem
grande prazer em perturbar o domínio Fang nesta parte de Skree. Porém,
nunca o ouvi ser chamado de Espadachim Floreado antes.”
“Bem... quem é ele?” Interrogou Nia.
“Ninguém sabe.”
Janner se pegou sorrindo. Imaginou-se escalando edifícios, pulando de
telhado em telhado em um disfarce preto, com Fangs o perseguindo.
“Olhem”, declarou Tink.
O homem de preto mal era visível nas sombras das docas à beira do rio,
mas, depois de um som abafado de algo jogado na água, o emblema
vermelho brilhante em seu peito reapareceu, quando se aproximou dos
Igibys novamente. Janner e Tink ficaram tão extasiados com o misterioso
herói, que quase esqueceram que um regimento Fang estava se
aproximando.
“Ide-vos embora, amigos! Protegei-vos!” O Espadachim Floreado urgiu.
“É passada a meia-noite e não sereis poupados se vos emboscarem!” O
esgrimista acenou, curvou-se pomposamente e disparou pelo centro da
Avenida Verde Florescer.
Podo embainhou a espada e colocou Leeli nas costas, em seguida
apressou todos pela rua até a Viúva Rechonchuda. Exatamente como Oskar
dissera, entre a taverna e o prédio seguinte havia um beco estreito.
Janner foi o primeiro a entrar nas sombras. Caixas velhas estavam
espalhadas aqui e ali, junto com uma pilha de pratos rachados e um balde de
pregos enferrujados. Duas figuras se levantaram, assustando Janner de tal
forma que ele quase tropeçou. Ele piscou, incapaz de distinguir detalhes na
escuridão. As figuras — homens — não fizeram mais nenhum movimento e
não falaram.
Quando Podo chegou com Leeli nas costas, Oskar quebrou o silêncio
tenso.
“Não consigo ver com clareza, velho amigo. É você?”
“Sou eu”, foi a resposta. A voz gutural como um sapo-toupeira.
“Ah! Bom! Lamento o atraso.”
“Não é nada. Estou contente por você estar seguro. O Espadachim
Floreado está por aí hoje à noite. Ele deixou os Fangs em alerta e infelizes.”
Janner ouvia uma luta à distância.
Podo avançou e estendeu a mão. “Podo Helmer. Você deve ser Ronchy
McHiggins.”
O homem acenou com a cabeça. Os olhos de Janner se ajustaram à
escuridão, e ele viu que Ronchy era um homem pequeno, muito menor do
que sua voz sugeria. Usava um avental coberto de gordura e marcas de
mãos. Estava escuro demais para ver muito mais de seu rosto além do
cabelo penteado para trás e o bigode, mais largo que a cabeça, enrolado nas
pontas, como antenas de um gafanhoto.
Podo se virou para o outro homem. “E quem é você?”
“Eu sou Landers. Migg Landers. Serei seu guia para as Pradarias de
Gelo.” Ele era quase tão alto quanto Podo e, no mínimo, tão forte. Assim
como Oskar, ele era quase totalmente careca, mas, ao contrário de Oskar,
não se preocupava em tentar esconder isso. “Já estive lá muitas vezes e não
consigo imaginar por que vocês gostariam de ir. Mas Ronchy aqui diz que
você pode pagar. Você pode pagar, né?” Sua voz era suave e cautelosa; algo
sobre isso incomodou Janner.
“Sim. Podemos pagar “, declarou Podo.
Landers estendeu a mão e esperou.
Por um momento, Podo não se mexeu. Em seguida, resmungou e disse:
“Oskar, minha mochila, por favor”.
Oskar entregou a mochila a Podo, que a abriu e retirou uma bolsa, sem
tirar os olhos de Migg Landers.
“Isso deve ser suficiente.”
“Moeda skreeniana ou ouro?”
“Um pouco de ambos. Mais dourado do que prateado.”
O homem despejou algumas moedas na mão e as inspecionou, então
acenou com a cabeça e guardou a bolsa. “Muito bem. Isso é tudo, Ronchy.”
“Oskar, você ficará bem com o Migg aqui”, Ronchy afirmou. “Ele é um
dos homens de Gammon. Levará você e seus amigos a salvo para além da
Barreira.”
“Obrigado, velho amigo”, agradeceu Oskar.
Então Ronchy McHiggins olhou diretamente para Janner. Seus olhos
moveram-se para Tink, em seguida para Leeli e depois de volta para Oskar.
“É verdade?” Ele perguntou.
“Sim”, confirmou Oskar. “É verdade, que o Criador nos ajude.”
“Sim.” Ronchy se virou para ir embora. “Que o Criador nos ajude.”
Ele abriu a porta lateral da Viúva Rechonchuda e entrou. A fechadura da
porta se encaixou atrás dele.
“Retirem suas mochilas e acomodem-se. Ficaremos aqui por um tempo”,
anunciou Migg Landers.
“Por quê?” Questionou Podo.
Migg deu um passo ameaçador à frente, de modo que ele e Podo ficaram
cara a cara. “Para começar, meu velho, não questione Migg Landers. Se eu
disser pra você colocar um vestido e rodopiar, você faz, sem perguntas. Já
que você acabou de me conhecer, não vou te dar uma surra desta vez.”
Janner ficou chocado com a mudança indesejável que ocorreu com seu
guia, mas também sentiu um pouco de pena dele. Landers tinha a impressão
equivocada de que Podo Helmer era velho demais para não lhe causar
problemas.
Podo ficou tenso como uma corda de arco, com as sobrancelhas espessas
abaixadas e raivosas, mas segurou a língua. Depois de um momento, deu
um sorriso bigodudo. “Entendo, meu jovem. Faremos o que você diz.”
“Bom. Para responder à sua pergunta, vovô, não podemos ir a lugar
nenhum até o próximo badalar de sinos anunciar a mudança de guarda dos
Fangs. Isso significa que vocês têm uma hora para esperar. Então, tirem
suas mochilas, plantem-se no chão e fiquem quietos, enquanto eu verifico a
rua.”
Podo assentiu. Enquanto Landers caminhava para a abertura do beco e
espiava em uma esquina, Podo gesticulou para os meninos soltarem suas
mochilas. “Vai ser uma longa viagem, rapazes”, constatou. “Precisamos
dele, e se ele tem que se sentir o rei do pedaço, então vou manter minha
boca fedorenta bem fechada por enquanto. Essa batalha não vale a pena.
Falando em rei do pedaço”, prosseguiu Podo, removendo o totem de
Claxton do pescoço, “isso pertence a você.” Ele jogou o medalhão para
Tink.
De fora dos limites do beco, vinha o clop-clop-clop constante de marcha,
o grito de comandos e o estalar de açoites à distância. Cavadópolis é sempre
assim ou somente quando o Espadachim Floreado resolve aprontar suas
travessuras? Janner se perguntou. Teria sido melhor se o herói de capa não
tivesse escolhido esta noite em particular para farrear; no entanto, Janner
estava feliz por tê-lo visto em ação. Ele saboreava a ideia de um
cavadopoliense comum — um cozinheiro ou um lenhador, talvez —
colocando seu disfarce em alguma câmara secreta de um porão e, então,
esgueirando-se pelas ruas para lutar contra os Fangs de Dang.
“Não gosto da ideia de viajar até as Pradarias de Gelo com alguém tão
mau quanto ele”, confessou Leeli enquanto se acomodava no chão.
A família e Oskar estavam sentados em círculo, atrás de uma pilha de
caixotes, com as mochilas empilhadas ao lado da porta dos fundos da
taverna.
“Não se preocupe, moça”, consolou-a Podo. “Assim que passarmos
aquela barreira, pretendo ensinar a Migg Landers uma lição sobre como
respeitar os mais velhos.” Ele esticou o pescoço para ver por cima das
caixas. “O que ele está fazendo, afinal?”
Migg Landers estava na entrada do beco, espiando na esquina da Estrada
do Rio. Algo não estava certo. Janner tentou ignorar os calafrios em seu
estômago, uma sensação de aviso que não conseguia explicar. Migg
Landers não era um homem admirável, mas, pelo que Oskar dissera,
Cavadópolis tinha uma grande escassez de homens admiráveis. Ronchy
dissera que ele era confiável; então, o que mais eles poderiam fazer?
Tink remexia o totem para lá e para cá, mastigando alegremente um
pedaço de carne de verdugo. Os adultos falavam aos sussurros, e Janner
percebia que estavam discutindo o suprimento de comida, imaginando
quanto tempo a jornada poderia levar — coisas que ele teria achado
interessantes, não fosse por essa preocupação incômoda em sua mente.
Então percebeu que algo havia mudado. As ruas estavam silenciosas. O
estrépito de Fangs marchando, o estalo dos chicotes — tudo tinha
desaparecido.
“Vovô!” Janner sussurrou. “Algo está errado!”
Podo olhou para a entrada do beco e congelou. O olhar no rosto do velho
pirata foi o suficiente para dizer a Janner que seus sentimentos sobre Migg
Landers estavam corretos.
“Landers, seu traidor!” Podo vociferou. Essa imagem de Podo
acompanharia Janner por muito tempo: esse velho mastro robusto de um
guerreiro, olhos em chamas, músculos dos ombros e do pescoço tensos
como velas em uma tempestade.
Leeli deu um grito tão longo e tão alto que todos os Fangs e
cavadopolienses no raio de um tiro de flecha do beco devem ter escutado.
“Ronchy, não!” Oskar lamuriou. “Como você pôde?”
Janner se virou, temendo o que encontraria na entrada do beco, embora,
pelo fedor amargo em suas narinas, já soubesse.
“Agradeço gentilmente pelas moedas, meu velho”, ironizou Migg
Landers com um sorriso.
Atrás dele sibilava uma parede de Fangs: espadas à mostra, dentes
gotejando, escamas brilhando amareladas à luz das tochas.
Então, para o horror de Janner, um Fang saltou para a frente e cravou os
dentes no ombro de Migg Landers. O grandalhão gritou, estremeceu e
desabou no chão de uma vez.
“Sem saída, Igibysss”, proferiu o Fang.
32

Ronchy McHiggins
Faz uma Descoberta

Os Fangs já haviam aprendido a não dar tempo a Podo Helmer para pensar.
Avançaram, as espadas apontadas para Podo e apenas para Podo. Janner
empurrou a pilha de caixotes no caminho deles. Os Fangs golpearam e
destroçaram as caixas e seguiram em frente.
Janner tinha certeza de que Podo entraria na briga e lutaria até a morte
antes de permitir que os Fangs capturassem seus netos — e ele saltou, sim,
mas não contra os Fangs.
Podo arremeteu com o ombro contra a grossa porta lateral da Viúva
Rechonchuda. A porta se quebrou em pedaços, e o som de madeira
estilhaçada se misturou ao som de osso estilhaçado, do ombro e das costelas
de Podo que estalaram. Ele desabou no chão com um grito de dor, mas,
num movimento só, rolou, agarrou a mochila mais próxima — que, por
acaso, era sua — e desapareceu dentro da taverna, amaldiçoando Migg
Landers o tempo todo. Nia pegou Leeli nos braços e correu pela porta atrás
de Podo.
“Vá!” Janner gritou com Oskar. Ele se contorceu pela porta, arrebatando
as mochilas dos meninos enquanto corria. Janner agarrou Tink pelo braço e
lançou-se pela porta, derrapando em pedaços de madeira quebrada.
Garras arranharam suas costas e pernas. Ouvindo o estalar de dentes de
Fang, o rangido de armaduras de Fang e sentindo o calor da respiração de
Fang em seu pescoço, Janner percebeu que Gnag ainda queria as crianças
vivas, porque teria sido muito fácil para os Fangs, naquele momento,
acabarem com ele e seu irmão. Mas, na ânsia para agarrar os meninos, as
feras chocaram-se contra a porta de uma vez só e ficaram entaladas.
Janner colidiu em uma mesa e quase caiu. Enquanto corria, esforçou-se
para ver aonde o resto de sua família havia ido, mas a taverna estava escura
como breu. Tudo o que sabia era que ainda segurava o cotovelo de Tink em
suas mãos.
Levou pouco tempo para que os Fangs se reagrupassem e, em fila única,
entrassem no edifício. Mas até isso acontecer, Janner já havia tateado seu
caminho por uma porta de vaivém e entrado na sala comum da taverna.
Duas grandes janelas que davam para a Estrada do Rio iluminavam
fracamente as mesas e cadeiras espalhadas por todo o salão. Janner ouviu
sua família em algum lugar à frente e os Fangs atrás.
“Mamãe!” Ele chamou aos berros. “Vovô!”
“Aqui!” Nia respondeu, no momento em que Podo abria a porta da frente
com um chute e os outros disparavam para a rua.
“Vamos!” Janner apressou Tink.
Mas os irmãos nunca chegaram até a porta.
Da rua veio o som de batalha. Podo apareceu além da porta, um terror de
cabelos brancos brandindo sua espada, ainda que estivesse pressionando o
lado ferido com o outro braço. As sombras da batalha espalhavam-se pela
sala. Janner viu, com pavor sombrio, que os Fangs haviam cercado seu avô.
Ele e Tink estavam empacados. Se corressem para fora, encontrariam-se
no meio da luta e não tinham armas — Oskar estava com suas mochilas.
Atrás deles, mais Fangs adentravam a casa.
Janner podia ver o contorno do rosto de seu irmão mais novo, o brilho de
seus olhos arregalados e assustados olhando para Janner em busca de ajuda.
Mas ele não sabia como ajudar. Ele tinha apenas doze anos! Como poderia
saber o que um Guardião do Trono faria? Janner queria perguntar a Podo,
ou Peet, ou Nia... ou Esben.
Então, lá de fora veio a voz de Podo, intercalada pelas defesas e golpes
de sua espada: “Voltem para o Covil! Rapazes! Reúnam-se no Cov...”.
A voz de Podo foi interrompida. Mas uma voz familiar juntou-se à dele.
“Arrá! Ó brutos ofídicos fedegosos! Acautelai-vos do brilho aceiro que o
Espadachim Floreado traz em sua… ahn… espada!”
Do lado de fora da janela, a figura de capa saltou para dentro da luta.
Com uma das mãos, brandia a espada com uma velocidade assustadora,
enquanto a outra descansava casualmente em seu quadril. O aglomerado de
Fangs atacando Podo se virou de uma só vez e avançou contra o homem de
preto.
A porta de vaivém atrás dos meninos se abriu num estrondo, e Fangs
adentraram as sombras da sala comum. A única coisa que Janner conseguiu
pensar em fazer foi se abaixar. Ele e Tink arrastaram-se para debaixo de
uma mesa e rastejaram até o canto mais distante da sala. Os Fangs
dispararam em direção à porta da frente aberta, colidindo em mesas e
cadeiras enquanto corriam. Janner e Tink, apoiados sobre as mãos e joelhos,
prenderam a respiração e observaram as pernas escamosas de pelo menos
trinta Fangs passarem correndo.
“E, agora, vejo-me em necessidade de fuga”, confessou o Espadachim
Floreado, “pois vosso número extrapassa grandemente! Arrá!”
O choque de espadas cessou. Janner esperava ouvir a voz de Podo, o
grito de Leeli, qualquer sinal de sua família, mas não ouviu nada, exceto
murmúrios e gemidos de Fangs cansados e feridos.
“Foi embora?” Perguntou um dos Fangs.
“Sim, senhor. Era o Espadachim...”
“Nem messsmo diga o nome dele.”
“Sssim, sssenhor. Bem, ele veio e nos distraiu do velho — que é um bom
lutador, sim, é, para um cara com uma perna só. Derrubou sete de meus
Fangs e feriu outros cinco. E o gordo, ele sozinho agarrou uma espada e
girou em círculos, tão rápido que pensamos que ele flutuaria e voaria para
longe. Tentei passar por eles para agarrar a garota, mas antes que
pudéssemos... Como eu disse, senhor, nós os tínhamos até o Espadach...
ahn, ele aparecer.”
“Nós os perdemos de novo então”, completou o líder enquanto se
afastavam. “Khrak não ficará feliz.”
“Khrak nunca está feliz, senhor.”
Janner e Tink se entreolharam na escuridão.
“Eles escaparam”, sussurrou Tink.
“Espero que sim”, Janner falou bem baixinho.
“Mas e nós?”
“Não sei.”
“O que faremos?”
“Não sei.”
Muito depois de o último Fang ter saído, os irmãos continuavam
escondidos debaixo da mesa e abraçados, mais sozinhos do que jamais
estiveram.

Ronchy McHiggins não era um homem mau, embora gostasse de sua


vida entre os justiceiros e ladrões de Cavadópolis. Ele gostava das histórias,
da empolgação, da maneira como ninguém sabia quem poderia entrar pela
porta da frente da taverna com uma história para contar — e moedas
roubadas para gastar em um prato de torta de marinheiro.
Ronchy não falava muito, ao contrário dos outros donos de tavernas que
tagarelavam sobre problemas e rumores e a maneira como um cliente o
ludibriara há quatro anos ou o Fang que quebrara uma janela só para se
divertir. Ronchy McHiggins ouvia. Ele prestava atenção. Era por isso que
Gammon gostava dele. Gammon sabia que Ronchy poderia lhe contar o que
estava acontecendo em Cavadópolis, desde a construção de mais torres de
tochas até a descoberta de outro túnel Marginal, além da movimentação dos
Fangs de um distrito para outro.
Assim, quando Ronchy ouviu notícias de Glipwood — trazidas por um
par de corre-cristas — de que alguns herdeiros de Anniera, crianças, ao que
parecia, estavam fugindo pela floresta de Glipwood, ele resolveu contar a
Gammon, na vez seguinte que o viu.
Gammon vinha a Cavadópolis a cada poucos meses, para se informar
com Ronchy e com sabe-se lá quantos outros membros de sua força secreta,
espalhados por Torrboro e Cavadópolis. E, cada vez que vinha, apresentava-
se de um jeito diferente. Era um mestre da camuflagem, sim, e um mestre
do engano. De que outra forma ele poderia ter sobrevivido a todos esses
anos, juntando armas, reunindo companheiros rebeldes e formando um
exército nas Pradarias de Gelo que poderia, um dia, derrubar os Fangs e
bani-los de Skree para sempre? Gammon era um cara inteligente, com
certeza, ou já teria sido descoberto, como todos os outros tolos que ousaram
desafiar Gnag, o Sem-Nome, e seus Fangs de Dang.
Poucos dias antes, Gammon havia aparecido na Viúva Rechonchuda,
mancando feito um velho e imundo como um murça-das-cavernas. Foi um
disfarce tão convincente que Ronchy o acertou duas vezes com uma
vassoura, na tentativa de expulsá-lo da taverna, antes de perceber em quem
estava batendo.
Se ao menos Gammon tivesse vindo três dias depois. Então Ronchy
saberia o que fazer com o gordo Oskar N. Reteep aparecendo pela primeira
vez depois de anos, querendo levar clandestinamente três crianças e seus
tutores para as Pradarias de Gelo. Ronchy soube imediatamente que essas
crianças deveriam ser os supostos herdeiros de Anniera. Não era segredo
que Reteep era de Glipwood e acreditava nos contos sobre a ilha distante —
a Ilha Brilhante, como era chamada nas histórias.
O que Ronchy poderia fazer senão ajudar? Como ele saberia que Migg
Landers era tão podre quanto seu cheiro? Se ao menos Gammon estivesse
lá, teria dito a Ronchy o que fazer. Provavelmente o próprio Gammon os
teria levado para o norte.
Agora tudo estava uma bagunça.
A taverna estava uma bagunça, e a porta que dava para o beco estava
quebrada em pedaços. As crianças eram tão pequenas, de traços tão bonitos,
seus olhos tão esperançosos quando olharam pra ele. E o velho Reteep
provavelmente estava morto ou sangrando em uma masmorra.
Isso foi o que ele ganhou por tentar ajudar.
Ronchy ainda estava de pijamas e gorro. Ele não havia pregado o olho na
noite anterior. Havia trancado e travado a porta do beco, subido as escadas e
se deitado, tirando Reteep e todo o resto da cabeça — até ouvir o grito
terrível. O velho pirata chamou Landers de traidor, então veio um estrondo
e, aí, o som de sua amada taverna sendo destruída. Em vez de encarar toda
aquela bagunça no escuro, Ronchy ficou na cama a noite toda, temendo o
que encontraria pela manhã.
Ao primeiro sinal do amanhecer, desceu as escadas com o coração
pesado, perguntando-se o que teria acontecido com Reteep, seus amigos e
as crianças.
Ele varreu o que restava de sua porta dos fundos para uma pá de lixo e
jogou os destroços no beco. Em seguida, empurrou a porta de vaivém e
entrou no salão. Avaliou as janelas (nenhuma quebrada, o que foi uma boa
surpresa), a porta da frente (aberta, mas intacta, graças ao Criador) e os
destroços de mesas e cadeiras (sete cadeiras e três mesas quebradas). Com
um suspiro pesado, Ronchy levantou as mesas caídas e colocou as cadeiras
no lugar. Em poucas horas, seus primeiros clientes entrariam e iriam querer
um lugar para sentar. Quanto menos soubessem sobre seu envolvimento nos
eventos da noite passada, melhor.
Ronchy os encontrou no canto dos fundos da sala. Dois meninos
dormindo nos braços um do outro. Seus rostos estavam imundos,
manchados de lágrimas ou suor, a cabeça do menor repousando sobre o
peito do mais velho.
Foi uma descoberta tão inesperada que Ronchy McHiggins ficou ali,
olhando por um longo tempo, não querendo perturbar algo tão simples e
singelo. O amanhecer cantou através das janelas em grandes raios dourados
e, para sua grande confusão, lágrimas subiram de algum lugar dentro dele e
escorreram por seu rosto.
Ele decidiu ajudá-los.
33

A Ruptura

Quando Janner acordou, viu diante de seu rosto as antenas de um inseto.


Então, a névoa em sua mente se dissipou, e ele reconheceu o rosto magro
e o comprido bigode de Ronchy McHiggins. Os eventos da noite anterior
voltaram a ele junto com um pânico que o fez respirar pesadamente e
sentar-se ereto. O movimento acordou Tink, que bocejou e esfregou os
olhos.
“Café da manhã”, murmurou; então também se lembrou da situação
deles e abriu os olhos o máximo que sua sonolência permitia.
“Calma, jovens amigos”, acalmou-os Ronchy, com uma voz gutural que
se mostrava um estranho conforto para Janner. “Está tudo bem. Eu não sei
onde seus guardiões ou sua irmã estão, mas os Fangs não estão aqui. Pelo
menos, agora.” Ronchy olhou para as janelas da frente. “Porém, podem
voltar em breve para me interrogar, e vocês não podem ficar aqui. Eles
podem saquear o lugar inteiro só por prazer. Acontece o tempo todo.”
Janner balançou a cabeça, tentando assimilar tudo o que Ronchy estava
dizendo, mas o sono ainda nublava seu pensamento. “Espere um pouco...
você nos traiu! Migg Landers...”
“Me traiu, rapaz. Eu pretendia levá-los a salvo para as Pradarias de Gelo,
como imaginei que Gammon iria querer que eu o fizesse. Ou Migg Landers
é um dos homens de Gammon, e ele tem motivos para querer vocês nas
mãos dos Fangs, ou Migg Landers é um ladrão e um mentiroso. Acho que
Migg é o problema, não Gammon. Mas, ora bolas, eu sou apenas um velho
dono de taverna. O que é que eu sei?”
“O quê... para onde vamos?” Tink perguntou.
“Não tenho certeza ainda, mas vocês precisam já ter sumido quando os
clientes começarem a chegar. Crianças são uma coisa rara nesta cidade —
de Anniera então, ainda mais raras.” Ele deu uma piscadela.
Como ele sabia que eles eram de Anniera? Janner pensou. E por que
crianças eram raras em Cavadópolis?
Então, ele se lembrou do covil. A última coisa que Podo disse antes que
o Espadachim Floreado aparecesse foi que deveriam se encontrar no covil.
Ele presumiu que seu avô se referia ao covil na colina fora da cidade,
aquele onde haviam passado a noite.
Se, de fato, os outros escaparam, Podo deve ter encontrado outro túnel
Marginal, e a família poderia estar lá no covil mesmo agora, esperando a
chegada de Janner e Tink.
Janner se levantou e puxou Tink com ele.
“Não quero incomodá-lo, senhor McHiggins”, declarou Tink, “mas o
senhor teria...”
“Café da manhã? Claro que sim. Ninguém deixa a Viúva Rechonchuda
com um ronco na barriga. Os pãezinhos já devem estar prontos”. Ronchy
conduziu os meninos até a cozinha, tirou do forno uma forma com
pãezinhos quentes e amanteigados e serviu-os junto com uma tigela de
amoras amassadas numa pasta curiosa que eles comeram com colherinhas
de pau. Tink bebeu um copo de água da cisterna de Ronchy, arrotou e,
então, pediu gentilmente que o enchesse de novo.
“Senhor McHiggins, precisamos encontrar nossa família”, Janner
finalmente relatou. “Há um covil Marginal nos limites da cidade...”
“Shh! Se for falar sobre essas coisas, fale baixo, rapaz. Nunca se sabe
quando um Marginal pode estar ouvindo. Eles não pegarão leve com você,
se revelar seus segredos — e se você sabe a localização de um covil, isso é
um grande segredo. Deixe-me fora disso.”
“Desculpe, senhor”, disse Janner.
“Nós só precisamos chegar ao lado leste de Cavadópolis, no alto da
colina”, explicou Tink entre mordidas. Ele já havia terminado três
pãezinhos amanteigados e o segundo copo de água, e estava comendo as
amoras.
“A colina no lado leste de Cavadópolis”, Ronchy repetiu, girando a
ponta do bigode entre o polegar e o indicador. “Próximo ao rio?”
“Sim, senhor”, confirmou Janner.
“Ah. É uma boa caminhada até lá, mas é fácil de encontrar. Basta seguir
a Estrada do Rio até ela se afastar do rio...”
O dono da taverna passou as instruções, explicando como tomar um
atalho para evitar um trecho perigoso da Estrada do Rio.
Quanto mais ele falava, mais alto o sol se elevava e, sem aviso,
Cavadópolis acordou. Do lado de fora da Viúva Rechonchuda, carroças
passavam rangendo, pessoas murmuravam e grunhiam, e pássaros voavam
em bandos. A grande monstruosidade começou a se mover, com seus
cidadãos rastejando em suas costas como pulgas em um cachorro.
“Muito bem, rapazes, tomem cuidado. Esta cidade já era um local
terrível muito antes de os Fangs chegarem a Skree. Agora que trolls e
lagartos perambulam pelas ruas, as coisas estão piores do que nunca. Os
Fangs nos tratam como escravos. Eles não pagam por sua bebida ou comida
ou pelos danos quando brigam. Zombam e prendem, e as crianças...” A voz
gutural de Ronchy ficou embargada. “Eles levam as crianças. Quase não
sobrou nenhuma no lado sul da cidade. A Carruagem Negra vem e leva o
que quer, seja filho, seja mãe. Como eles podem sequestrar uma mãe? Até
os Marginais têm mães e evitam fazer mal a uma mulher, especialmente
uma mulher com um filho.”
Janner viu um desenho colorido na parede ao lado do armário. Nele, um
Ronchy McHiggins mais jovem e feliz estava ao lado de uma mulher bonita
que embalava um bebê.
“Sinto muito, senhor”, lamentou ele.
Ronchy respirou fundo. Ele se virou e acenou com a cabeça para os
meninos. “Vão. Tenham cuidado.” Em seguida, secou as mãos no avental e
arrastou-se pela porta de vaivém para dentro do salão, onde resmungou uma
saudação aos primeiros clientes.
Janner e Tink ficaram sozinhos na soleira da porta que dava para o beco.
A cozinha arrumada da Viúva Rechonchuda era um abrigo seguro, um
lugar onde a coisa mais próxima de um amigo que haviam conseguido os
tinha alimentado e enchido seus frascos com água limpa. Do outro lado da
porta estendia-se um mundo de Fangs, trolls e canalhas — um mundo que
teriam de atravessar para encontrar sua família novamente.
Janner deu uma olhada na esquina e no beco. Para seu alívio, o corpo de
Migg Landers se fora, provavelmente jogado no rio em algum momento da
noite.
“Pronto?” Ele perguntou, sentindo a gravidade do momento.
“Sim.” Tink coçou a axila com uma das mãos e tirou sementes de
amoras dos dentes com a outra.
Janner levou seu irmão mais novo para o beco e deixou a Viúva
Rechonchuda para trás.
Olhando do tranquilo beco para a Estrada do Rio, tudo o que Janner
conseguia pensar era nas trovejantes águas espumosas do Grande Blapp.
Carroças, cavalos, trolls, Fangs, mercadores, pescadores, capitães de barcos,
carruagens, gritos de surpresa, raiva e irritação, rodas rangendo, botas
pisoteando, potes e panelas chacoalhando, chicotes estalando — tudo
misturado a uma pressa violenta e incessante que assustava Janner.
Ele nunca tinha visto tantas pessoas em um só lugar. Janner costumava
pensar que o Festival do Dia dos Dragões era uma grande agitação — e,
para a cidade de Glipwood, era mesmo —, mas agora ele via que Glipwood
e seu humilde festival não passavam de uma diversão pitoresca num canto
tranquilo de um mundo gigante. Esta, no entanto, era apenas uma rua, em
uma cidade com centenas dessas ruas, em um continente com muitas dessas
cidades, em um mundo com — bem, ninguém sabia quantos continentes se
espalhavam por Kistamos.1 Janner assistia ao pandemônio com a sensação
de quem está prestes a pular nas águas espumosas do Grande Blapp e ser
levado para a morte certa.
“Olhe pra toda essa gente!” Tink enunciou, radiante.
“Sim. Isso vai ser mais difícil do que eu pensava”, disse Janner
gravemente.
“De acordo com as instruções de Ronchy, precisamos virar à esquerda”,
lembrou Tink. “A esquerda é o leste. Vamos.”
E antes que Janner pudesse detê-lo, Tink mergulhou no mar de gente.
Depois de vários minutos angustiantes, lutando contra a corrente, sendo
esbarrado, xingado, acotovelado e tropeçado, Janner percebeu que o tráfego
da rua, ao lado do rio, movia-se para o leste, a direção em que queriam ir.
“Tink!” Janner gritou. “Vá para o outro lado da rua! O outro lado!”
Tink atravessou no caminho de uma carruagem, e o cavalo empinou.
Tink disparou para a direita e sumiu de vista. Grandemente aborrecidos, o
cavalo e o cocheiro seguiram em frente. Janner esperou até que a carruagem
passasse e, então, mergulhou na frente de um pescador bigodudo
carregando um cordão de vermelhões no ombro.
Janner ergueu-se na ponta dos pés no estreito refúgio no centro da rua,
diante da multidão resmungando enquanto passava por ele de cada lado, em
direções diferentes. Não havia sinal de Tink. Janner queria gritar por ele,
mas receava chamar muita atenção para si. Então, a cabeça de Tink
apareceu acima da multidão, sob o toldo de uma garagem de barcos do
outro lado da rua.
Janner cerrou os dentes, esperou que um espaço se abrisse e disparou
para o tráfego. Forçou na direção do outro lado e quase caiu duas vezes.
Antes de chegar à garagem de barcos, um espaço vazio, uma espécie de
bolha na multidão, apareceu em torno de Janner, e um odor insuportável
encheu suas narinas. Ele não precisava se virar para saber que um troll
estava por perto. Janner abaixou a cabeça e forçou caminho para a beira da
estrada.
Tink estava de pé num barril, olhando com olhos arregalados para o troll
enquanto este passava ruidosamente. Os cavadopolienses, com a cara roxa,
lutavam para escapar de seu cheiro. O troll avançava com um baque surdo,
girando uma clava em torno de seu dedo em um laço de cordame. Parecia
feliz como um bebê alimentado e seu queixo brilhava de baba.
“Não faça isso!” Janner ralhou enquanto arrancava Tink do barril pelo
colarinho da camisa.
“Fazer o quê?” Tink se afastou de Janner e olhou para ele.
“Precisamos ficar juntos. Tudo o que fizemos foi atravessar a rua, e eu já
perdi você. A única maneira de ambos chegarmos ao covil é ficando
juntos.”
“Por quê? Nós dois sabemos onde fica”, asseverou Tink com veemência,
endireitando-se em toda a sua altura, que era uma cabeça mais baixa do que
seu irmão. “Eu estava lá quando McHiggins lhe deu as instruções. Você
acha que não sou inteligente o suficiente para encontrar o covil sozinho?”
“É meu trabalho proteger você.”
“E se eu não quiser ser protegido?”
“Você não tem escolha. Eu sou o Guardião do Trono. Você é o rei. É
assim que é. Eu tenho de mantê-lo seguro. Tenho que levar você para as
Pradarias de Gelo.”
“Bem, e se eu não quiser ir para as Pradarias de Gelo? E se eu quiser ir
pra casa?”
“Você tá falando sério?” Janner revirou os olhos. “Não podemos ir pra
casa. Além disso, Glipwood nunca foi realmente nossa casa. Nossa casa é
Anniera, e você é o rei.”
Tink suspirou e se virou, resmungando algo baixinho.
“O que você disse?” Janner exigiu.
“Nada.”
“Tink! O que você disse?”
Tink deu a Janner um olhar furioso. “Eu disse: ‘Não quero ser rei’. E não
me chame mais de Tink. Meu nome é Kalmar.”
A multidão passava como um borrão, ocupada demais para notar dois
meninos discutindo à sombra de uma garagem de barcos.
Janner baixou a voz. “Tudo bem, Kalmar. Mas não importa se você quer
ser rei ou não. Eu sou o Guardião do Trono e vou levá-lo a salvo para o
covil. Se você não quer ser rei, diga isso para a mamãe ou o vovô.”
Os olhos de Tink queimavam e uma carranca se espalhou por seu rosto,
uma expressão que Janner só vira quando os dois lutavam ou jogavam
Navios e Tubarões — quando Tink estava preso, imóvel, incapaz de mover
os braços ou as pernas. Era uma expressão de raiva, porém ainda mais: era
uma expressão de pânico.
Então Tink disse algo que cortou o coração de Janner.
“Eu não quero isso. Não quero nada disso. Me deixe em paz.”
E ele correu.
34

Um Observador nas Sombras

Janner permaneceu imóvel, olhando para o espaço vazio onde Tink havia
acabado de estar. Sua pele ficou úmida, e ele percebeu, num estalo, que
estava sozinho.
Não era só porque Tink havia fugido; Janner compreendeu, embora o
pensamento o deixasse com tanta raiva que lhe dava a vontade de dar um
soco no nariz do irmão, que Tink o havia abandonado.
O mar de cavadopolienses parecia crescer em velocidade, tamanho e
hostilidade. O covil, onde ele tinha a expectativa desesperada de que o resto
de sua família o aguardasse, de repente parecia impossivelmente distante,
um destino tão inalcançável quanto a própria lua.
Por que Tink — Janner se recusava a pensar nele como Kalmar — faria
uma coisa dessas? Ele sabia que seu irmão mais novo não se sentia
confortável com a ideia de ser rei, mas Janner não estava preparado para
isso.
Talvez essa fosse a maneira que Tinha tinha de se autenticar para seu
irmão mais velho. Janner lembrou-se das muitas vezes que havia pensado o
pior de Tink, mas foi obrigado a admitir que estava errado. Era verdade que
ele tinha sido duro com seu irmão mais novo, provavelmente muito duro.
Mas sumir desse jeito?
Tudo bem, ele pensou amargamente. Deixe-o encontrar seu próprio
caminho para o covil.
Janner retesou os nervos, esfregou as mãos, baixou a cabeça e juntou-se
ao fluxo louco do tráfego na Estrada do Rio.
Ele tropeçava, saltava e se abaixava, esforçando-se para, ao passar, ler as
placas das ruas por cima de inúmeras cabeças. Ronchy disse que, se virasse
à esquerda na Via Crempshaw e depois à direita na Rua Tilling, ele acabaria
por desembocar na Estrada do Rio novamente. Também disse que era a
melhor maneira de contornar o trecho mais movimentado e perigoso, onde
os Fangs eram transportados por balsa, atravessando o Blapp até Torrboro.
Janner procurava por Tink, esticando o pescoço em todas as direções
enquanto se apressava, mas não viu nenhum vestígio. Teria sido difícil
encontrar qualquer um num caos daqueles, especialmente alguém tão
pequeno e rápido como Tink. Janner começou a planejar as muitas coisas
que gritaria com seu irmão mais novo quando estivessem seguros no covil
novamente.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo vislumbre de uma placa de
rua: Via Crempshaw. Um corvo empoleirava-se no topo do poste. Janner
passou zunindo por entre pescadores, costureiras e burros atrelados a
carroças carregadas de peixe, até que ficou sem fôlego, com as mãos
apoiadas nos joelhos, apenas a algumas portas de entrar na Via Crempshaw.
A porta atrás dele se abriu e quatro Fangs de Dang saíram. Eles riam e
cambaleavam escada abaixo até à calçada onde Janner estava. Ele congelou
e olhou para os próprios pés. Os Fangs arrotaram, gargalharam e, em
seguida, desapareceram na multidão. Janner disparou, passando por uma
loja que vendia redes de pesca e virando na esquina da Via Crempshaw. A
Crempshaw estendia-se do rio até o coração de Cavadópolis.
Por mais zangado que estivesse com Tink, Janner esperava alcançá-lo
aqui. Disse a si mesmo que estava preocupado principalmente com a
segurança de Tink, porém estava igualmente preocupado consigo mesmo.
Tentou não imaginar o que poderia acontecer, caso se perdesse naquele
labirinto de ruas.
Uma mulher de rosto gentil carregava uma cesta rua abaixo, em direção
a Janner.
“Com licença, senhora?” Ele a chamou timidamente. “Estou procurando
meu irmão. Você viu um garotinho, um pouco mais baixo do que eu...?”
Ela olhou para ele com tristeza, e então seguiu sem dizer uma palavra,
entrando no tráfego da Estrada do Rio. O mesmo aconteceu com todos que
o viram — olhavam para ele com grande tristeza, não diziam nada e
seguiam em frente.
Janner seguiu a Crempshaw por várias ruas transversais, estradas de terra
ladeadas por casas cinzentas, muito parecidas com aquela de onde
emergiram na noite anterior, até que, balbuciando graças a Ronchy
McHiggins e suas boas instruções, Janner finalmente viu a palavra Tilling
em uma placa de rua.
A rua estendia-se em ambas as direções, mais uma ruela cinza, cheia de
galinhas cacarejando, cacos de cerâmica e velhas tábuas quebradas. Não
ostentava casas, apenas vitrines desertas com janelas quebradas, as portas
há muito roubadas e usadas em outros lugares. Atrás de Janner, homens e
mulheres subiam e desciam a Crempshaw em um silêncio desesperador,
mas a Tilling estava vazia como um cemitério. Janner ficou feliz por ainda
ser de manhã, porque não tinha certeza se teria coragem de andar por uma
rua tão morta na escuridão da noite.
Passou por um prédio vazio após o outro, olhando para trás com saudade
da Crempshaw, onde pelo menos não estava sozinho. Quando a rua morta
fez uma curva para a direita, e a Crempshaw desapareceu completamente,
ele chamou em uma voz que era quase um sussurro: “Tink?”.
Não havia eco. As janelas e portas vazias pareciam engolir o som. Vidros
quebrados estalavam sob seus pés. Ratos corriam pelas paredes dos prédios
antigos. Corvos praguejavam e agitavam-se empoleirados nas janelas dos
cômodos superiores e nas grades das sacadas tortas.
“Tink!” Chamou novamente, mais alto.
Janner imaginou olhos observando-o das sombras, olhos de trolls, Fangs
ou Marginais, esperando o momento certo para irromper na rua e prendê-lo.
Então, fez o que qualquer menino normal de doze anos faria: correu o
mais rápido que pôde.
Saltava sobre pilhas de lixo e serpenteava entre tijolos e barris podres
que cobriam a rua, ansioso por chegar ao fim da Rua Tilling que, como
Ronchy havia prometido, desembocaria novamente na Estrada do Rio. Ele
não se importava mais com a quantidade de barulho que fazia. Se alguém
ou alguma coisa ouvisse sua respiração ofegante, teria que ser realmente
rápido para pegá-lo, assustado como estava.
Mas a estrada chegou a um fim abrupto. Janner derrapou até parar diante
de uma parede de pedra tão alta e plana quanto os velhos prédios de tijolo
de cada lado. Não havia outra saída, senão o caminho pelo qual havia
vindo.
Por que Ronchy o mandaria por aquele caminho? Ele parecera tão gentil,
tão prestativo, e o homenzinho dera certeza de que aquele era o caminho
mais seguro e mais curto para o lado leste de Cavadópolis.
Janner deu as costas para a parede para que pudesse ver a rua que
acabara de percorrer. Nada mudou. Isso era bom. Se algo estivesse
escondido nas sombras, já teria atacado. À distância, Janner ouvia os sons
abafados de uma rua movimentada. Se ele pudesse simplesmente pular o
muro, poderia encontrar o caminho para a Estrada do Rio sem ter que
enfrentar o vazio assustador da Rua Tilling novamente.
Arrastou-se até o beco entre os dois edifícios mais próximos, mas a parte
de trás estava bloqueada por outra parede. Depois de inspecionar mais
alguns becos, descobriu que a parede se estendia continuamente por trás de
cada prédio, dos dois lados da rua. Ele estava bem no final do que poderia
ser uma excelente armadilha.
O que mais o preocupava — mais até do que as instruções equivocadas
de Ronchy — era que Tink também não estava ali.
Janner suspirou. Que belo Guardião do Trono ele estava sendo. Tinha
que encontrar Tink, e não poderia fazer isso se encolhendo no final da Rua
Tilling.
Respirou fundo e correu de volta por onde viera, não temendo por si
mesmo desta vez, mas porque estava desesperado para encontrar seu irmão
mais novo.
No meio do caminho, ouviu vozes. Sem pensar duas vezes, Janner entrou
pela porta do prédio mais próximo. O chão estava coberto de poeira e
pedaços de vidro quebrado. Os fundos do edifício estavam envoltos em
sombras e, apoiada contra a parede à direita, uma escada de madeira frágil
subia além do teto. As vozes se aproximaram. Janner se esgueirou para trás
da escada e espiou pelo espaço entre dois degraus.
Três homens apareceram na rua. Seus longos cabelos eram pretos e
emaranhados, usavam roupas escuras e falavam com um sotaque
cavadopoliense tão forte que Janner tinha dificuldades em entender o que
diziam. Ouviu a palavra “garfos”, que soava mais como “gærrfos”. Os
olhos dos homens se moviam de um jeito que lembrava os thwaps do jardim
de sua casa. Mais de uma vez, teve certeza de que um dos homens
desgrenhados olhou diretamente para ele, mas toda vez os olhos do homem
passavam adiante, imperturbáveis.
Estava tão quieto no prédio decrépito que Janner podia ouvir seu próprio
coração batendo. Uma aranha deslizou rapidamente pelo degrau para matar
uma mosca presa em sua teia, e ele ouviu isso também. O silêncio mortal da
Rua Tilling tornava cada pequeno som perceptível, desde o barulho da
sujeira sob a bota de Janner até as vozes ásperas dos homens do lado de
fora. Assim, após apenas alguns momentos em seu esconderijo, Janner
percebeu outro som, muito próximo.
Em algum lugar, logo atrás dele, nas sombras mais profundas, algo
estava respirando.
Ele fechou os olhos e implorou ao Criador que deixasse isso ser sua
imaginação. Lentamente, muito lentamente, ele se virou e viu, no canto do
vão embaixo da escada, o brilho inconfundível de dois olhos a observá-lo.
Janner não conseguia se mover. Se um baratodonte voraz ou uma vaca-
dentada tivesse aparecido, ele não teria ficado com tanto medo. Quem quer
que fosse — ou o que quer que fosse — estava olhando para ele com uma
satisfação tão maliciosa que Janner se sentiu como a mosca na teia de
aranha.
A figura atacou.
35

As Desgrenhadas
e os Esfarrapados

Mãos sujas agarraram o pescoço e o rosto de Janner. Uma respiração quente


e rançosa o sufocava.
Uma velha desgrenhada, com mechas castanho-acinzentadas e cabelo
emaranhado, olhos vermelhos e um dente preto muito comprido, estendia os
braços no escuro em sua direção.
Janner gritou. A velha recuou e tapou os ouvidos com as mãos sujas,
apenas o tempo suficiente para que ele escapulisse.
Os homens do lado de fora viram-no irromper pela porta, de rosto tão
branco quanto a lua, com um grito tão prolongado e alto que mendigos e
desgrenhadas emergiram de cada prédio esfacelado na rua. Quando viram
Janner, todas as almas esfarrapadas da Rua Tilling cambalearam, galoparam
ou saltaram atrás do menino que gritava.
A rua abandonada parecia se estender para sempre. A Crempshaw
deveria estar bem à frente, mas a Tilling continuava a fazer curvas e mais
curvas indefinidamente. Ele realmente tinha vindo de tão longe? Janner
arriscou olhar para trás. O que ele viu produziu em suas pernas uma
velocidade que rivalizava até com Tink.
A rua Tilling era tudo, menos abandonada. Estava cheia de homens e
mulheres ainda mais destruídos e esquecidos do que os prédios onde
moravam, e eles estavam fazendo o possível para impedir que Janner
fugisse.
Finalmente, um pouco à frente, ele viu um cavalo e uma carroça
descendo a colina em direção à Estrada do Rio. Via Crempshaw!
Mas entre ele e a outra via estavam mais mendigos e desgrenhadas.
Janner pensou por um momento em abaixar a cabeça e disparar por entre as
pessoas, exatamente como Podo havia empurrado a porta no beco na noite
anterior, mas eram muitos.
Um homem em farrapos saiu mancando de uma porta à esquerda, e
Janner fez a única coisa que pôde: correu direto para o homem, cerrou os
maxilares, fechou os olhos e se chocou contra ele.
O homem voou para trás e caiu de costas. Janner tropeçou nele,
reergueu-se sobre os próprios pés e acelerou para dentro do prédio antigo.
Achou a escada e subiu dois degraus de cada vez, tentando ignorar os gritos
logo atrás dele, enquanto a multidão o perseguia.
O topo da escada dava para um patamar com três portas. Trapos,
cobertores, maços de papel e pedaços de madeira carbonizada cobriam o
chão e transvazavam de cada quarto. Era difícil acreditar que alguém
escolheria um lugar assim para morar. Por outro lado, esses edifícios já
haviam antes abrigado empresas, escritórios, oficinas, lares. Terá sido
somente depois que os Fangs chegaram que as coisas ficaram tão ruins?
Quem eram essas pessoas?
Janner congelou no patamar, sem saber que caminho seguir. O que ele
havia pensado para subir as escadas? Sentiu-se novamente como a mosca na
teia de aranha, lutando em vão contra o predador no seu encalço. A escada
havia sido um erro. Talvez ele ainda tivesse tempo de descer e encontrar
outra maneira de sair do prédio...
“Conseguimos ouvir você, criança”, veio uma voz arruinada ao pé da
escada. “Você não tem saída. Vamos pegar você. Precisamos pegar.”
Janner correu para a sala à sua esquerda, escorregando no lixo que cobria
o chão. No meio da parede à direita havia uma janela, e ele a escalou e se
agachou no parapeito. Abaixo havia um beco e, em frente a Janner, havia
outro prédio com outra janela. As velhas e os mendigos iriam vê-lo a
qualquer momento. À direita, o beco estava bloqueado pela enorme parede
de pedra. Sua única esperança era pular para a outra janela, antes que eles
pensassem em olhar para o beco.
Atrás dele uma voz chamou: “Nós ouvimos você, criança. Pare de fugir.”
Janner se firmou, tentando se imaginar voando por sobre o beco para
agarrar o peitoril da janela oposta, mas sabia que era impossível sem tomar
distância.
“Croac.”
Olhou para cima e viu um corvo estudando-o de uma calha que
sobressaía da linha do telhado, baixa o suficiente para que ele conseguisse
alcançá-la, se ficasse de pé. Havia muitos vãos de tijolos soltos em que
apoiar os pés. Assim, se a calha aguentasse, poderia conseguir chegar ao
telhado.
Ele se esticou em toda a sua estatura, segurando com uma das mãos o
lado de dentro da janela e com a outra tentando alcançar a calha meio solta.
Suas pernas tremiam. Se a situação tivesse sido diferente, e ele e Tink
tivessem descoberto essa parede num dia preguiçoso de verão,
provavelmente teriam gastado horas escalando-a. Janner manteve essa
imagem em mente enquanto se esticava. A parede podia ser escalada. Ele
tinha que fazer aquilo. Eles estavam chegando.
As pontas de seus dedos roçaram a calha no momento em que uma voz
no topo da escada disse: “Conseguimos ouvir você, criança. Vamos pegá-
lo.”
Janner saltou. Agarrou a calha com as duas mãos e balançou, afastando-
se da janela, com seus pés arranhando a parede de tijolos em busca de
apoio. A ponta da bota encontrou uma fenda, de onde um tijolo havia caído.
Ele então segurou a calha com uma única mão e estendeu a outra para uma
emenda na parede, ignorando a dor nas mãos e os gritos, que agora vinham
do beco abaixo dele.
Braços brotaram da janela de onde ele havia acabado de sair, agarrando o
ar, e rostos carrancudos olhavam-no com a mesma malícia dos Fangs de
Dang.
“Venha aqui, criança!” Eles sibilavam.
Janner ergueu-se, um tijolo por vez, cada vez mais alto, até que o teto
ficou diretamente sobre sua cabeça, e ele encontrou um apoio firme, longe o
suficiente da janela para que pudesse descansar por um momento. O beco
abaixo era uma massa de rostos sujos e zangados, e a janela um conjunto do
mesmo tipo, como se do prédio houvessem crescido braços e cabeças.
Janner ficou surpreso ao descobrir que sentia pena dessas pobres almas. O
que as havia levado a isso?
Cerrou os dentes, encontrou um apoio para a mão na linha do telhado e
pendurou-se. A multidão abaixo ofegava e resmungava avidamente. Era
estranhamente reconfortante saber que, se ele caísse, a multidão o pegaria.
Eles talvez o carregassem e o assassem no fogo mais tarde, mas, no
momento, parecia melhor do que se espatifar na rua de paralelepípedos
como uma totata.
Ele ergueu uma perna, deslizou para a frente e rolou de costas, ofegante.
Por mais que quisesse ficar deitado ali por horas, ele estava sem tempo.
A calha rangeu quando mãos sujas começaram a escalar exatamente como
Janner havia feito. Ele correu por telhas soltas até o topo do telhado, saltou
sobre a parede que o retivera e aterrissou no prédio do lado oposto.
Imediatamente o ar mudou. Ele não tinha certeza se era sua imaginação,
mas o ar parecia mais fresco e mais saudável. O clamor da multidão do
outro lado da parede estava abafado e distante. Janner queria descansar, mas
obrigou-se a continuar até que o horror atrás dele sumisse de uma vez por
todas.
Rastejou até a beirada e olhou para baixo. Outro beco cheio de destroços,
mas aqui os edifícios estavam mais próximos — próximos o suficiente para
que Janner tivesse certeza de que conseguiria pular de um para o outro.
Antes que pudesse se convencer do contrário, ele trotou até o ápice do
telhado, virou-se e correu para a beirada.
Quando aterrissou no outro telhado, um sorriso apareceu em seu rosto.
Ele cambaleou para o outro lado, encontrou outro beco estreito e saltou
novamente.
Janner saltou de telhado em telhado, ágil como um esquilo, sorrindo
triunfante a cada aterrissagem e desejando que Tink estivesse lá para vê-lo.
Assim que pensou em Tink, porém, o sorriso desapareceu. Se o seu
irmão tivesse sido agarrado por uma das velhas enlouquecidas, certamente
teria havido algum distúrbio na Rua Tilling, mas Janner a achou tão
silenciosa quanto uma tumba.
Então, onde ele estaria?
Por fim, Janner parou de correr. O sol estava alto, o ar estava quente e o
cheiro de peixe sufocava o ar. Ele podia estar perdido, mas sabia que estava
perto do rio, e o rio seria fácil de encontrar — ele só teria que descer o
morro e se afastar da parede entre ele e a Rua Tilling.
Mas primeiro tinha que achar uma maneira de sair do telhado. Ele não
tinha visto nenhum alçapão, nem claraboias, nem escadas. As paredes dos
edifícios que o cercavam eram mais lisas do que as da Rua Tilling, então ele
não podia descer por ali.
Foi quando notou um cano de calha que dava para o beco. Parecia
robusto o suficiente para aguentar uma criança de doze anos, pensou.
Apenas seria necessário lançar-se sobre ele e descer, mas, agora que não
havia nenhum louco em seu encalço, Janner achou extremamente difícil
reunir coragem para fazê-lo. Sentou-se com as pernas penduradas no beiral,
imaginando o simples ato de inclinar-se, agarrar o cano da calha e
abandonar o telhado. Mas simplesmente não conseguia fazer aquilo.
Uma confusão começou na rua, em frente ao prédio. Ele rastejou para o
outro lado do telhado, deitou-se de bruços e espiou a rua. Não era muito
diferente da Rua Tilling, com velhos prédios de tijolos de dois andares
voltados para a rua de paralelepípedos. Mas aqui as janelas estavam
intactas, as calçadas relativamente limpas, e as pessoas comuns passeavam
e empurravam carrinhos e conversavam entre si. Parecia bastante seguro.
Então, viu a causa da comoção.
Um Fang montava guarda na frente de um dos edifícios do outro lado da
rua. Ele zombava dos transeuntes, que baixavam a cabeça e seguiam em
frente. Outro Fang batia numa porta.
“Abra!” Ele rosnava.
Quando ninguém respondeu, o Fang tirou a porta das dobradiças com um
chute, e os dois deslizaram para dentro. Os cavadopolienses passavam
como se nada fora do comum estivesse acontecendo.
Logo abaixo, Janner ouviu vozes.
“Qual é o problema aí?” Indagou um homem.
“Pode ser o Espadachim Floreado. Soube que ele esteve por aqui ontem
à noite.”
“Também ouvi isso”, falou uma voz de mulher. “E que havia uma
família que os Fangs queriam encontrar.”
“Sim. Migg Landers me disse ontem que eles eram de Anniera ou algo
assim.”
“Anniera? Rapaz!”
“Estou apenas repetindo o que ele disse.”
“Diga, onde está o velho Migg? Não o vi hoje.”
“Eu também não.”
“Bem, espero que encontrem a família logo. As coisas já estão ruins o
suficiente por aqui sem o Espadachim Floreado fazendo das suas.”
“E gente de Anniera.”
“Aff!”
“Só estou dizendo o que ouvi.”
“Xiu. Eles estão voltando”, alertou a mulher.
Os dois Fangs emergiram e seguiram para o prédio seguinte, onde as
batidas começaram novamente.
Janner se afastou da beirada. Ele tinha que sair de Cavadópolis. Tinha
que ir para o covil. Ele orava para que Tink estivesse lá quando chegasse.
O cano da calha. Não havia outra maneira de descer.
Com um suspiro, Janner voltou, na ponta dos pés, até a beira do telhado
perto da parede, inclinou-se e escorregou até a rua, antes que pudesse se
convencer do contrário. Depois, olhou para cima, em direção à linha do
telhado onde estivera, impressionado consigo mesmo.
Então, algo se interpôs entre ele e o sol do meio-dia. A silhueta da
cabeça e ombros de alguém pairou onde ele estivera. Janner ouviu uma
risada seca, como o som de um fogo crepitante, e, em apenas um
movimento, a silhueta saltou para a calha, escorregou e pousou quase em
cima dele.
“Vamos pegá-lo, criança”, ameaçou o que parecia um esqueleto de
homem. Seus dedos longos e cobertos de lama envolveram os braços de
Janner e o seguraram fortemente.
Janner estava assustado demais para gritar e, se gritasse, apenas atrairia
os Fangs mais rápido. De toda forma, ele foi pego. Era melhor estar nas
garras de um mendigo velho e louco ou nas garras dos Fangs de Dang?
Antes que ele tivesse tempo de decidir, o homem assobiou e uma corda
foi jogada, vinda do outro lado da parede. Em instantes, a corda foi
amarrada em volta de seus braços e peito, e Janner foi puxado para cima. O
esfarrapado escalou a calha passando por ele, subiu até o telhado e
desapareceu. Janner subia, tão cansado de correr que foi um alívio estranho
finalmente ter sido pego.
Em segundos ele foi arrastado até o topo da parede, e então mais
daquelas mãos horríveis e sujas o ergueram.
Janner caiu de costas no telhado de uma casa com os olhos bem
fechados.
O som de muitas pessoas respirando, resmungando e sussurrando era tão
assustador que levou alguns momentos até que Janner abrisse uma pálpebra.
Pernas em todos os lugares, como troncos de árvore em uma floresta,
exceto que as raízes dessas árvores possuíam unhas amareladas e feias, tão
longas quanto os próprios dedos, enrolando-se para cima e para baixo, feito
laços monstruosos.
“O quê... o que vocês querem?” Janner queria saber.
Ao som de sua voz, a multidão se sobressaltou e gargalhou de
contentamento.
“Eu quero o que é meu”, determinou uma mulher.
“Sim, Gorah é a próxima da fila”, ordenou um homem.
“Gorah sortuda”, o resto murmurou.
Então, as desgrenhadas e os esfarrapados levantaram Janner e o
carregaram.
36

Um Arranjo Odioso

Janner foi carregado acima de suas cabeças, uma rolha flutuando na


superfície de um rio sujo. Os homens e mulheres estavam em silêncio.
Quando havia algum som, era o de choro. Os braços de Janner ainda
estavam amarrados ao lado do corpo, e ele permanecia imóvel, embalado
pela sensação de flutuação. Eles o levaram de volta para a Rua Tilling. As
desgrenhadas e os esfarrapados carregaram-no para dentro de um prédio
antigo e colocaram-no gentilmente no chão, para sua surpresa. A mulher,
Gorah, deu um passo à frente e cutucou-o no peito.
“Quieto aí, garoto. Nós o encontraremos onde quer que você vá, assim
como encontramos todos os outros.” Ela baixou a voz. “Quando a escuridão
chegar, terei o que é meu. Você vai ver.”
Ela gargalhou e bateu palmas como uma garotinha, pulando de um pé
nodoso para o outro. Os outros começaram a dar gritos de lamentação e a
dançar também. Janner fechou os olhos e tentou bloquear o som.
Depois de vários minutos, a maioria das pessoas saiu da sala. Gorah e
seis outros permaneceram. Eles estavam agachados contra a parede,
balançando para frente e para trás, olhando para Janner como cães famintos.
Janner pensou em sua família. Ele tinha certeza de que, com Podo no
comando, eles já deviam estar de volta em segurança no covil agora. Janner
os havia conduzido através de grandes perigos antes. Mas e Tink? Não
havia como saber onde Tink poderia estar.
A tristeza tomou os olhos de Janner. Gorah cantarolava uma melodia que
devia ter a intenção de ser uma canção de ninar, e por mais terrível que
parecesse, a música fez seu trabalho. Ele dormiu.
Estava escuro quando acordou.
Um único lampião iluminava a sala. Gorah ainda estava agachada no
canto, olhando ameaçadoramente para Janner, exatamente como estava
quando ele adormeceu.
“Está quase na hora, criança”, anunciou ela, mudando de posição.
“Hora de quê, senhora?”
Gorah riu tanto que caiu para a frente e rolou de costas, batendo os pés
no ar. “‘Senhora!’ Ele me chamou de ‘senhora!’” Ela riu até que seus olhos
marejaram de lágrimas, e Janner percebeu que ela não estava mais rindo,
mas chorando. Mais uma vez ele estava perplexo com o comportamento
dessa gente estranha. Tudo que ele havia feito foi tentar ser educado, e
agora ela estava chorando.
“Senhora?” Ele a chamou.
“Chega de conversa.” Ela enxugou o rosto com um trapo que estava no
chão. “E se me chamar de ‘senhora’ de novo, você não vai gostar de mim
nem a metade do que gosta agora.”
Um dos esfarrapados apareceu na porta com um olhar animado. “Está na
hora, Gorah.”
Gorah foi até Janner, agarrou a ponta da corda que o prendia e puxou-o
para ficar de pé. “Vamos, criança. O Supervisor tá esperando.”
Ela levou Janner para a rua. Uma multidão, segurando tochas, estava
parada no meio da estrada. No centro, erguendo-se acima deles como um rei
em um trono, um homem de rosto redondo usando uma cartola de veludo
preto estava sentado no topo de uma carruagem, e esta era tão parecida com
a Carruagem Negra, que Janner teve de olhar duas vezes. O homem usava
luvas sem dedos e um terno esfarrapado com cauda e lapelas roxas; com
uma das mãos segurava as rédeas, enquanto com a outra acenava
presunçosamente para os mendigos reunidos em volta. Ao sorrir, seu rosto
liso se dobrava em inúmeras rugas, e um amplo conjunto de dentes marrons
amanteigados cintilavam.
Quando Gorah apareceu, puxando Janner pela corda, a multidão abriu
caminho e os deixou passar. O Supervisor se levantou e abriu os braços.
“Uma criança!” Ele saltou de seu poleiro e olhou os olhos de Janner. “E
saudável também! Onde você o encontrou?” Ele se endireitou e pôs as mãos
na cintura. “Se eu soubesse onde encontrar crianças tão saudáveis, não os
incomodaria mais, queridos cidadãos!”
“Ele veio até nós, Supervisor”, contou-lhe Gorah. “Hoje ele apareceu na
Tilling, um presente do Criador.”
“Um presente do...? Ah. Sim, claro. O Criador.” O Supervisor acenou
desdenhosamente. “E você tem outro?”
A multidão abriu espaço, e um homem apareceu, levando um menino
com um saco na cabeça.
“Tink!” Janner gritou.
Um dos homens deu um tapa na cara de Janner. “Quieto, você.”
Janner ficou tão aliviado ao ver o irmão, que mal sentiu a dor na
bochecha. Em seguida, retiraram o saco da cabeça do menino, e o coração
de Janner afundou. O menino era mais jovem e muito mais magro do que
Tink. Quem quer que fosse, estava apavorado.
“Outro para você, Supervisor”, pronunciou Gorah.
“Ótimo, ótimo”, agradeceu o homem de chapéu, avaliando o menino
magro. “Mobrik! O livro-razão!”
Ele bateu palmas e a porta lateral da carruagem se abriu. Um corre-crista
saiu com um livro fino de capa de couro nos braços. A pequena criatura
estava vestida como o Supervisor, com um terno preto esfarrapado e cartola,
e estava claro que se sentia desconfortável em roupas humanas. O
Supervisor arrancou o livro-razão dele com uma demonstração de grande
impaciência.
“Obrigado, Mobrik”, enunciou monotonamente enquanto folheava as
páginas do livro-razão. “Nome?”
“Barnswaller”, disse Gorah mansamente.
“Barnswaller... Barnswaller...” O homem passou o dedo pela página.
“Ah. O nome dele era Jairy Barnswaller?”
Gorah engasgou. “Sim! Jairy!”
“Sinto muito.” O Supervisor deu de ombros. “Diz aqui que ele tentou
escapar e foi levado para Throg. Quem é o próximo?”
A mulher chorou. Seu grito cortou o coração de Janner. Ela desabou no
chão e se debateu, e ele sentiu lágrimas em seus próprios olhos. A multidão
passou por cima dela e se aproximou da carruagem.
Acima do som da dor de Gorah, um homem disse: “Eu sou o próximo. O
nome é Mykel Bolpin. O nome dela era Jasmim. Como a flor.”
“Como a flor”, zombou o Supervisor. Ele folheou as páginas novamente.
“Alguém pode fazer a mulher ficar quieta, por favor?” Um dos esfarrapados
agarrou Gorah pelo pulso e arrastou-a para longe. “Obrigado. É difícil
pensar por aqui com toda essa algazarra. Agora, vejamos. Sim! Temos uma
Jasmim Bolpin. Você gostaria de sua filha, senhor?”
O homem estava chocado demais para falar.
“Senhor?” O Supervisor pressionou.
“S-sim, senhor. Por favor, senhor.” O homem juntou as mãos para evitar
que tremessem.
“Muito bem, então. Vou levar esses dois. Ela estará aqui ao amanhecer.”
O homem caiu de joelhos e olhou para o céu; os olhos brilhavam no
rosto sujo como joias em um buraco de lama.
“Mobrik! Pegue-os!” Ordenou o Supervisor.
O corre-crista pegou o livro-razão e puxou a corda com tanta força que
Janner quase caiu. Janner estava olhando para Gorah Barnswaller, que
chorava na sarjeta, ao lado da estrada. O corre-crista subiu na carruagem e
puxou a corda novamente. Janner havia enfrentado a própria Carruagem
Negra, então entrar na carruagem do Supervisor não era uma grande
façanha. Ele subiu, sentou-se no banco ao lado de Mobrik, o corre-crista, e
agradeceu ao Criador porque havia pelo menos uma chance de Tink ter
chegado ao covil.
O outro garoto, no entanto, não se saiu tão bem. Ele chorou, debateu-se e
lutou bravamente contra suas amarras até que o Supervisor ordenou que ele
fosse nocauteado. Jogaram a pobre criança na carruagem, aos pés de Janner,
mole como uma boneca. Pela janela estreita, Janner viu Gorah ainda
chorando. Viu a multidão esfarrapada se dispersando na escuridão da Rua
Tilling. E viu o homem, Mykel Bolpin, ainda ajoelhado na estrada, com
uma expressão de absoluta alegria no rosto.
“S-senhor?” Bolpin chamou o Supervisor.
“O quê?” A voz do Supervisor era monótona e fria.
“Quantos anos ela tem agora?”
Depois de um momento, o homem disse: “Mobrik! O livro-razão!”
Mobrik saltou da carruagem novamente e entregou o livro-razão ao
Supervisor. Páginas foram viradas. “Ela tinha doze anos quando chegou à
fábrica. Esse foi o ano após a Grande Guerra. Então, quando foi isso, oito
anos atrás? Agora ela tem vinte. Vinte anos.”
Vinte? Em oito anos, Jasmim Bolpin, quem quer que ela fosse, não foi
capaz de escapar do Supervisor, quem quer que ele fosse? Janner sentiu um
pavor percorrer seu corpo. Talvez o que Podo sempre dizia fosse verdade.
Talvez sempre houvesse uma saída, como em Navios e Tubarões. Mas e se
essa saída não surgisse por oito anos? E se Janner tivesse vinte anos antes
de escapar da “fábrica”?
“Obrigado, senhor. Obrigado”, o homem chorou ruidosamente.
Mobrik reapareceu e fechou a porta atrás de si. Com um estalo das
rédeas, o triste cavalo marrom puxou a carruagem. A última vez que Janner
viu Mykel Bolpin, ele estava sentado na rua olhando para o céu, parecendo
menos um mendigo e mais um pai, a cada momento.
O corre-crista estava agachado nas sombras, no canto mais distante da
carruagem, sem prestar atenção a Janner. De qualquer modo, haja vista sua
história com corre-cristas, Janner não queria mesmo falar com a criaturinha
sorrateira. Depois de puxar as cordas novamente e achá-las tão firmes como
antes, recostou-se na parede e olhou pela janela para Cavadópolis, enquanto
passavam por ela. Viu a Via Crempshaw se aproximando, a colina descendo
para o rio à esquerda.
Quando a carruagem virou à direita, e o cavalo subiu a colina, afastando-
se do rio e entrando cada vez mais em Cavadópolis, Janner avistou a placa
da rua na esquina. O que ele viu fez suas bochechas queimarem e uma fúria
chiar em seu peito.
A placa dizia Beco Tilling. Não Rua Tilling.
Momentos depois, apareceu outra placa que dizia Rua Tilling, uma
estrada que, comparada com aquela onde ele havia acabado de passar,
parecia tão segura e agradável quanto o caminho para o chalé Igiby.
Estendia-se para o leste, exatamente como Ronchy McHiggins havia dito e,
à distância, Janner viu onde ela se cruzava com a Estrada do Rio.
Ele havia tomado o caminho errado. Simples assim.
Foi por isso que ele nunca vira Tink. Tink era inteligente o suficiente
para ler as placas das ruas. Idiota! Ele pensou.
“Para onde você está me levando?” Janner perguntou ao corre-crista.
O corre-crista olhou para ele com surpresa. “Ora”, replicou ele, “para a
Fábrica de Garfos”.
37

Na Boca
do Monstro

Cavadópolis era uma cidade muito maior do que Janner imaginava. O


barulho de cascos e o rangido da carruagem se transformaram em um
zumbido eterno, quebrado apenas pelo estalo ocasional do chicote do
Supervisor. Janner encostou a testa apaticamente nas barras da janela e
olhou para as ruas iluminadas por tochas.
A maneira como os cavadopolienses se apressavam lhe mostraram que o
toque de recolher se aproximava rapidamente. O Supervisor não parecia se
importar, mesmo quando passavam por grupos de Fangs. Eles prestavam
pouca atenção à carruagem. O cavalo arrastava-se no mesmo ritmo lento,
mesmo quando os sinos deram o toque de recolher. Imediatamente a
movimentada cidade adormeceu. De vez em quando, um Fang passava pela
carruagem com um grunhido de saudação, e o Supervisor podia ser ouvido
dizendo: “Meu senhor”, em resposta.
Finalmente, a carruagem parou com um rangido. O triste cavalo marrom
bufou. Janner piscou, saindo de seu torpor, e esforçou-se para ver à frente,
pela janela lateral. O corre-crista passou por Janner e por cima do garoto
inconsciente no chão da carruagem, abriu a porta e saltou para o chão.
Janner começou a segui-lo para fora, mas o corre-crista bateu a porta em
sua cara. “Você fica”, ele ordenou.
Mobrik aproximou-se de um portão levadiço enferrujado, no centro de
um imenso edifício de tijolos. Com um grande barulho, o portão de ferro
subiu lentamente. As barras verticais do portão terminavam em pontas, o
que dava ao prédio a aparência de um monstro abrindo a boca para engolir
o cavalo e a carruagem inteiros. Acima do portão, uma grande placa de
metal trazia a inscrição, em letras grandes e enferrujadas: Fábrica! Garfos!
Janner ficou tão perturbado pelo uso excessivo de pontos de exclamação
quanto pelo semblante sombrio do lugar. Com outro estalo de chicote, a
carruagem avançou para dentro da boca do monstro de tijolo. Escondidas
nas sombras, logo após o portão, havia duas crianças. Suas roupas estavam
esfarrapadas; seus rostos, inexpressivos. Olharam para Janner quando ele
passou, depois se viraram e, segurando uma grossa corrente, baixaram o
portão levadiço sob o olhar atento de Mobrik, o corre-crista.
A carruagem locomoveu-se por uma passagem estreita e, em seguida,
para uma grande câmara arejada. Mobrik abriu a porta e puxou Janner com
tanta força, que ele caiu no chão. Muito acima, vigas e tábuas cruzavam o
teto. Correntes e cordas pendiam sob a luz de lampiões nas paredes
inferiores. Exceto pela carruagem, o assoalho da vasta sala estava vazio.
O Supervisor, ainda usando sua cartola, apareceu acima de Janner. Ele
sorriu maliciosamente e beliscou a bochecha de Janner com o polegar e o
indicador.
“Bem-vindo, garoto!” Enunciou. “Você tem um rosto saudável. Mobrik,
desamarre-o. Quero ver os braços e mãos dele. Acho que temos alguém
para substituir aquela garota preguiçosa, Knubis, na estação de aparas.”
Mobrik desamarrou Janner. “Sim. Bons braços. Boas mãos. Permita-me
cumprimentá-lo apropriadamente, criança.” Ele se apoiou sobre um joelho e
tirou o chapéu, passando os dedos pelo cabelo oleoso. “Sou o Supervisor.
Você é uma ferramenta em minha fábrica, não diferente de um martelo ou
um ancinho. A diferença é que, ao contrário de um martelo, preciso
alimentar sua cara gulosa para mantê-lo vivo. Você gostou do passeio até
aqui?”
“Sim, senhor”, respondeu Janner. Mobrik deu uma risadinha.
“O que você disse?” Questionou o Supervisor.
“Eu disse: ‘Sim senhor’.”
O Supervisor deu um soco no estômago de Janner. Estrelas encheram sua
visão e lágrimas brotaram, enquanto ele lutava para respirar.
“Conte a ele”, comandou o Supervisor a Mobrik, enquanto se levantava
e colocava a cartola com muito cuidado.
Mobrik curvou-se sobre Janner e sorriu. “Ferramentas não falam. Elas
acenam com a cabeça, assim.” Mobrik acenou com a cabeça para cima e
para baixo. “Ou assim.” Ele acenou novamente, virando a cabeça de um
lado para o outro.
O Supervisor estreitou os olhos para Janner. “Então, criança. Você
gostou do seu passeio?”
Janner considerou responder em voz alta novamente, apenas para ver a
expressão no rosto do Supervisor. Mas, particularmente, não queria levar
um soco de novo, e com o portão levadiço fechado, tinha certeza de que não
havia para onde correr, por maior que aquele prédio pudesse ser. Ele
suspirou e acenou com a cabeça.
“Bom. Um aprendiz rápido. As melhores ferramentas aprendem
rapidamente.” O Supervisor sorriu, revelando cada um de seus dentes
amarelos e marrons. “Fico feliz que você tenha gostado da viagem.
Provavelmente foi a última vez que você viu a cidade. Esta é a sua nova
casa. A menos, é claro, que seus pais consigam capturar duas outras
crianças para substituí-lo. Sou um homem muito generoso. Tenho uma cota
a cumprir e não me importo como vou cumpri-la, se é com você ou algum
outro idiota na estação de aparas. Você entende?”
Janner não entendia, mas acenou com a cabeça estupidamente. Eles
poderiam chamá-lo de ferramenta o dia todo, mas isso não funcionaria.
Sempre há uma saída, persistia Janner. E assim que a encontrasse, ele
escaparia para o covil onde sua família esperava. Se ele pudesse escapar
pela manhã, teriam perdido apenas um dia. Então, poderiam encontrar outro
caminho para além da Barreira, e uma curta caminhada através das
Montanhas Rochosas os levaria para a segurança das Pradarias de Gelo. A
ideia de um mundo sem Fangs fez Janner sorrir.
“Por que você está sorrindo?” Interpelou o Supervisor, desconfiado.
Janner ia começar a responder, mas parou abruptamente. Ele não disse
nada, mas, com o mesmo sorriso nos lábios, apenas olhou para o
Supervisor. Era divertido ver aquele homem ridículo perturbado. Ele
poderia socá-lo no estômago novamente, se quisesse. Poderia chamá-lo de
ferramenta e enviá-lo para fazer garfos, supondo que fosse isso que a
Fábrica de Garfos produzia. Mas Janner sabia que ele era um Guardião do
Trono, e isso lhe dava uma espécie de liberdade, embora estivesse, no
momento, cativo.
O Supervisor riu.
“Mobrik! Leve-o para a estação de trabalho. Certifique-se de que ele não
tenha descanso até de manhã. Vamos ver se estará sorrindo então. Quando
você voltar, cuidaremos do outro garoto.”
Janner seguiu Mobrik, imaginando, entre muitas outras coisas, quando
teria permissão para comer algo. A última vez que havia comido foi naquela
manhã, na Viúva Rechonchuda. Os rostos das crianças no portão levadiço o
assombravam. Elas pareciam bastante saudáveis, ou, pelo menos, não
pareciam fisicamente feridas de forma alguma. Mas seus olhos vazios e
desesperançados deixaram-no inquieto. Pareciam resignadas com seu
destino, como se tivessem tentado tantas vezes encontrar a liberdade, porém
falhado, que já não se preocupavam em ter esperança. Mas certamente
havia alguma saída, mesmo que isso significasse lutar. Afinal, o Supervisor
não era um Fang. Ele não tinha dentes venenosos ou força anormal e, pelo
que Janner podia ver, nem mesmo uma arma, além do chicote com que
fustigava o triste cavalo marrom.
O Supervisor desapareceu por uma porta na parede oposta da câmara e
deixou o cavalo atrelado à carruagem. Mobrik conduziu Janner a um
conjunto de portas duplas nos fundos da sala.
“Posso falar com você ou ainda tenho que mexer a cabeça?” Janner
perguntou com cuidado.
Mobrik olhou para ele. “Fale se quiser. Mas não espere uma resposta —
a menos que você esteja com um saco de maçãs, e eu não o esteja vendo. O
Supervisor gosta de me ter por perto para mandar, mas ele e eu sabemos que
a única razão de eu estar aqui é pelas maçãs amarelas e doces que ele obtém
rio acima.”
“Sem maçãs. Desculpe.”
“Então, sem respostas.”
Mobrik empurrou as portas duplas e conduziu Janner por um longo
corredor escuro. Na outra extremidade, havia mais um conjunto de portas
com duas janelas quadradas que refletiam um brilho amarelo. Ao se
aproximarem, Janner ouviu um terrível barulho, e a temperatura subiu.
Mobrik empurrou Janner através das portas e para dentro de um mundo
de pesadelos.
38

Olhos Brilhantes
num Lugar Escuro

O fogo rugia.
Chamas saíam de canos e chaminés, rugiam em fornos negros e
espiralavam em tonéis de ferro fundido. O nariz de Janner ardia com o
fedor de suor e fumaça. No centro da imensa sala estava uma enorme
fornalha preta. Tubos em brasa subiam dela e serpenteavam pela sala em
um emaranhado sem sentido. Alguns dos canos expeliam fumaça de juntas
rompidas e outros gotejavam um líquido negro e fumegante. A fumaça se
acumulava no teto como uma nuvem de tempestade.
Ao lado da fornalha havia uma engenhoca que estremecia e retinia como
nada que Janner já tivesse visto. Glipwood tinha sua cota de esquisitices,
mas nada parecido com aquilo — aquilo era uma máquina, algo sobre o
qual Janner só havia lido. Não estava claro o que a máquina fazia, além do
estrondo terrível, mas o giro de suas engrenagens e a estabilidade de seu
barulho deixavam claro que ela estava fazendo algo.
Em frente à boca da fornalha, havia três pilhas de carvão. Depois que os
olhos de Janner se ajustaram, ele viu figuras com pás percorrendo a
distância entre o carvão e a fornalha. A princípio, pensou que eram mais
corre-cristas. Então percebeu que eram crianças.
No lado esquerdo da grande sala havia sete corredores divididos por
longas bancadas estreitas. Canais abertos no centro das bancadas
capturavam o líquido brilhante que escorria das calhas pendurados no teto.
Crianças manipulavam o aço fundido com bastões e tenazes. Janner viu
ainda mais crianças, centenas delas, reunidas em torno das bancadas,
bigornas e grandes recipientes de pedra, martelando, carregando baldes de
água de um lado para outro e mexendo o líquido incandescente com bastões
de ferro. Para onde quer que olhasse, havia movimento.
Considerou correr de volta pelo longo corredor. Talvez se ele os
surpreendesse com uma fuga repentina, pudesse encontrar uma saída perto
do portão levadiço — aliás, talvez ele pudesse fazer as duas crianças abri-lo
novamente. Poderia até levá-las com ele, mas... e depois? Ele não iria muito
longe pelas ruas de Cavadópolis com duas crianças cansadas a reboque,
especialmente à noite, quando apenas os Fangs e trolls estavam por perto.
“Eu não faria isso, se fosse você.”
Janner piscou. Mobrik havia tirado sua pequena cartola e olhava para ele
de soslaio, com uma sugestão de sorriso nos lábios.
“As crianças sempre tentam, quando chegam. A verdade é que o
Supervisor espera que você tente escapar. Isso lhe dá a chance de praticar
tiro ao alvo com seu chicote. Confie em mim. Você está melhor na estação
de aparas, garoto.”
“O-o que é a estação de aparas?”
Mobrik, o corre-crista, recolocou o chapéu e desceu os degraus. Ficou lá
embaixo, esperando.
“Corra se quiser. Você vai acabar aqui de qualquer maneira. Mas, se vier
agora, não acabará sangrando e dolorido pelo chicote do chefe.”
Janner deu uma última olhada para a porta. Com um suspiro, desceu os
degraus e seguiu o corre-crista. À medida que se aproximava da máquina, a
temperatura aumentava. Os olhos de Janner lacrimejavam, e ele se viu
incapaz de parar de piscar o tempo todo. Mobrik parecia não ter problemas
com o calor.
Passaram por barris de ferro preto da altura de uma casa. Ao redor deles,
chamas irrompiam de canos e chaminés, e engrenagens de ferro retiniam.
Para onde quer que olhasse, Janner via crianças. Algumas tinham idade
suficiente para serem jovens adultos, mas a maioria era pouco mais velha
do que Janner. Uns poucos olhavam quando ele passava, o branco dos olhos
sendo os únicos pontos limpos na fábrica, mas a maioria mantinha a cabeça
baixa, removendo carvão com uma pá, martelando uma folha de metal
quente, arrastando fragmentos de escória para um barril com rodas ou
empurrando carrinhos com pilhas pesadas de pedaços de aço...
Espadas, Janner pensou. Ele reconheceu a curvatura sem graça de uma
lâmina Fang, embora o cabo ainda não tivesse sido colocado. Ele nunca se
perguntara onde os Fangs conseguiam suas armas. É claro que tinham que
ser feitas por alguém. Mas crianças? Isso explicava por que o Supervisor
tinha permissão para se mover pela cidade após o toque de recolher e por
que havia tão poucas crianças em Cavadópolis. Qualquer criança que não
tivesse sido levada, provavelmente vivia seus dias dentro de casa, sob os
olhos vigilantes dos pais. Então Janner se lembrou da foto na parede de
Ronchy McHiggins. Eles também haviam levado seu filho.
Quando Janner fez a curva seguinte no labirinto da fábrica, olhou para a
direita e viu um par de olhos brilhantes olhando diretamente para ele. Eram
lindas janelas redondas de céu azul. Embora ele pudesse ver pouco do rosto
da criança, coberto de fuligem como estava, uma memória formigou no
fundo de sua mente.
“Vamos!” Mobrik chutou Janner na canela. Janner resistiu ao impulso de
lutar com o pequeno corre-crista no chão e socá-lo. Quando Janner olhou
novamente, a criança de olhos azuis havia sumido.
Mobrik o conduziu por várias outras curvas antes de parar em uma
bancada comprida. Uma garota estava em frente à bancada, segurando uma
tesoura gigante enferrujada. Na mesa diante dela estava o que parecia ser
uma espada Fang, mas tinha o formato errado.
“Ela está aparando a espada, viu?” Mobrik comentou. “Cortando o
pedaço de metal que não deveria estar lá. A máquina acerta na maioria das
vezes, mas, de vez em quando, ocorre um corte ruim. Daí de serem
necessárias ferramentas como essa aí, para consertar o que não está certo.”
Mobrik apontou o polegar para a garota. O rosto dela estava coberto de
camadas de sujeira. Ela usava um avental e tinha o cabelo preso em um
coque, no topo da cabeça. Cortava mais um centímetro do metal em meio a
grunhidos. Seus dentes estavam à mostra e, embora parecesse tão cansada
quanto qualquer pessoa que Janner já vira, ela estava fazendo progressos.
Quando se aproximaram, ela parou e se endireitou sem dizer uma palavra.
Janner sorriu para ela. A garota retribuiu o olhar, sem expressão.
“Knubis! O Supervisor diz que você deve ser movida para as pilhas de
carvão — ou é a Carruagem Negra para você. Acha que pode dar conta das
pilhas de carvão, garota?”
À menção da Carruagem Negra, os olhos da garota Knubis se
arregalaram e ela redobrou seus esforços com a tesoura.
“Tarde demais para isso, garota. As pilhas de carvão ou a Carruagem.”
Mobrik estava se divertindo.
O interior de Janner fervia. Seus dedos se fecharam em punhos, e ele
respirou fundo, pronto para atacar Mobrik, agarrar a pobre garota e correr
dali. Então, o bom senso mais uma vez interrompeu sua raiva. Para onde
iria? Ele encontrou os olhos da garota Knubis, e ela balançou a cabeça.
“Não faça isso”, ela pediu, olhando para Mobrik, mas Janner percebeu
que estava falando com ele. Ela não queria que fizesse nada precipitado.
“O quê?!” Mobrik retrucou.
“Não faça isso... não chame a Carruagem Negra. Eu vou para as pilhas
de carvão e vou trabalhar mais rápido. É só que... minhas mãos...” Ela
estendeu as mãos. Estavam cobertas de bolhas que escorriam.
“Mais luvas chegando amanhã.” Mobrik encolheu os ombros. “É uma
pena que você seja tratada assim. Difícil trabalhar se suas mãos estiverem
desgastadas. O Supervisor deveria cuidar melhor de suas ferramentas.”
“Ela não é uma ferramenta”, interrompeu Janner, incapaz de se conter.
“Não faça isso!” Ela clamou, desta vez olhando para Janner.
Janner a ignorou, ergueu o punho para trás e o lançou direto no rosto de
Mobrik.
O soco nunca o atingiu.
Vultos surgiram das sombras e cantos e de debaixo das mesas, baixaram
de correntes penduradas no teto e correram para Janner. Jogaram-no no
chão e o socaram, chutaram-no e bateram nele com todos os tipos de armas
contundentes. Janner se encolheu em uma bola, cerrou os dentes e esperou
que o tormento parasse. Estrelas inundavam sua visão e uma dor aguda
crepitava por sua coluna e pescoço. Finalmente os golpes diminuíram.
Janner estava deitado de costas, olhando para o teto, e as correntes acima
balançavam e pendiam para a frente e para trás como o pêndulo de um
relógio. Seu nariz e boca estavam sangrando, um dente estava solto e suas
costelas doíam a cada respiração irregular que dava.
Um rosto apareceu acima dele. Ele esperava que fosse o Supervisor
novamente, sorrindo seu sorriso de dentes amarelos sob a cartola ridícula,
mas era um menino. Com a expressão maldosa nos olhos, o rosto sujo e o
sorriso malicioso nos lábios, ele parecia tanto com um Marginal que Janner
meio que esperou ver uma adaga numa das mãos e um pedaço de carne de
vaca-dentada na outra. Mas, em vez de uma adaga, o menino segurava a
extensão de uma corrente.
“Estamos sempre de olho, ferramenta”, avisou o menino. “Então, faça o
que lhe foi dito, deixe o Mestre Mobrik em paz e vá às aparas. Entendeu?”
“Não sou uma ferramenta”, asseverou Janner.
O menino deixou a corrente voar. Atingiu o chão ao lado da cabeça de
Janner com tanta força, que faíscas feriram suas bochechas.
“Você é uma ferramenta!” Insistiu o menino. Ele gesticulou para os
outros meninos e meninas parados, todos olhando para Janner com ódio.
“Todos nós somos. Agora levante-se e comece a trabalhar.”
Mobrik estava atrás das crianças com os braços cruzados. “O Supervisor
disse que o garoto novo deve trabalhar até de manhã, sem descanso.”
As crianças sorriram.
“Vamos, Knubis”, disse Mobrik para a menina que estava aparando, e ela
o seguiu até as pilhas de carvão.
“Levante-se, garoto. Qual o seu nome?”
Janner levantou-se devagar, seguindo os ossos das costas e ombros
estalando em protesto. Ele enxugou o lábio ensanguentado com a manga da
camisa. “Meu nome é... Esben.”
O garoto com a corrente deu um passo à frente até ficar cara a cara com
Janner.
“Seu nome é Ferramenta. Lembre-se disso. Meu nome, caso você esteja
se perguntando, é Gerente de Manutenção. Estes são os nomes de todos
nós.” Ele acenou com a corrente para os outros enquanto eles se
esgueiravam para as sombras. “Fazemos a manutenção da máquina e das
ferramentas que a operam. Se você trabalhar bastante, poderá se tornar um
gerente de manutenção também. A comida é melhor, os beliches são
melhores e você poderá receber as novas ferramentas quando elas chegam.”
Janner encarou o menino com olhos firmes, embora pudesse sentir um
deles inchando a cada pulsação. Escolheu não dizer nada. Não demoraria
muito para que ele encontrasse uma saída desse lugar, e aquela ferramenta
poderia continuar fazendo a manutenção de sua máquina pelo resto de sua
vida, se quisesse.
Mas, agora, ele tinha aparas a fazer.
39

Esben Sabóvel,
Ferramenta de
Fábrica

Durante toda a noite, Janner permaneceu junto à bancada comprida e cortou


metal. Sempre que olhava para cima, avistava formas balançando em
correntes, de viga em viga, como insetos. Os Gerentes de Manutenção
estavam por toda parte, supervisionando as “ferramentas” enquanto
trabalhavam.
Às vezes, um garfo de verdade chegava à estação de aparas, o que o
lembrava de que não comia havia horas, nem bebido nada. O ar quente do
chão da fábrica sugava o líquido de todos os poros e deixava sua língua
seca feito uma folha morta.
As mãos de Janner doíam. Ele havia tido sua cota no trabalho com
ancinhos e pás e conhecia bem a sensação de uma bolha se formando sob a
pele. Se suas mãos não estivessem cobertas de fuligem, teria visto as
manchas vermelhas que logo inchariam e se encheriam de fluido. Ele estava
feliz por Tink ter sido poupado desse destino.
Sempre que seus olhos fechavam, ele balançava a cabeça e se beliscava
para se manter acordado. Enquanto lutava para fechar a tesoura em uma
lasca de metal teimoso, pensou em sua doce mãe, seu jeito firme e forte de
dar-lhe afeto e conforto. Enquanto apertava o cabo de uma lâmina, pensou
na voz estrondosa de Podo, nas falhas de cabelo de Oskar. Quando jogou as
peças retrabalhadas em um barril, pensou na curiosa calma de Leeli e na
magia em suas canções. E quando dobrou os garfos, pensou no apetite
insaciável de Tink. Ainda que as memórias de sua família lhe fizessem
companhia, tornavam seu coração pesado e solitário.
Foi uma noite horrível.
Ao amanhecer, Mobrik apareceu. Janner olhou sem expressão para a
pequena criatura, percebendo que, em poucas horas, ele já parecia e agia
como as outras crianças exaustas da fábrica. Ele tinha que escapar, e logo,
mas, por enquanto, tudo o que queria era uma cama e algo para comer.
“Siga-me, criança. O Supervisor precisa lhe fazer algumas perguntas.”
Mobrik conduziu Janner de volta pelo longo corredor até a grande sala
vazia. Atravessaram-na até a porta na parede oposta, e Mobrik bateu.
Entraram em um escritório com uma grande mesa, onde o Supervisor estava
sentado, ainda usando sua cartola preta. Ele sorriu, bocejou e deu um
tapinha no chicote que estava enrolado na mesa.
“Perdoe-me”, disse ele. “Acabei de acordar de uma noite de sono
agradável. Minha cama é tão macia e grande. Imagino que você tenha
achado seu trabalho agradável. A estação de aparas oferece muito
movimento e variedade, acredito.”
Janner estava agora totalmente acordado. Ele queria pular sobre a mesa e
arrancar o chapéu idiota da cabeça do Supervisor. Queria puxar o homem
escada abaixo e fazer com que ele aparasse as lâminas ruins por uma hora.
Mas, acima de tudo, queria que o homem abrisse o portão levadiço e o
deixasse ir embora. Deixasse todos irem embora.
“Agora”, prosseguiu o Supervisor, mergulhando uma pena em um frasco
de tinta, “preciso do seu nome completo. No caso de seus pais encontrarem
substitutos para você.” Janner fez uma pausa, lembrando-se do soco no
estômago da última vez em que falara com o Supervisor. “Oh, está tudo
bem”, garantiu o homem. “Você tem permissão para me dizer seu nome.”
Janner pigarreou. “Meu nome é Esben... Esben Sabóvel.”
O Supervisor o rabiscou em seu livro-razão, sem se preocupar em
perguntar como era escrito. “Pronto. Mobrik, mostre à ferramenta o beliche
dele.”
Abaixo do piso principal da fábrica, onde as fornalhas rugiam, ficava um
dormitório. Beliches cobriam as paredes. Janner viu centenas de crianças ou
roncando em um sono profundo, ou saindo exaustas da cama para enfrentar
mais um dia na fábrica. Ninguém falava, nem ria, tampouco fazia contato
visual. Mobrik permitiu que Janner bebesse água de uma cisterna, depois
indicou um beliche vazio e saiu.
O colchão era irregular, porém muito mais confortável do que o chão
arenoso do covil. Janner percebeu, enquanto embarcava no sono, que não
dormia em uma cama adequada desde o dia em que os Fangs saquearam o
chalé Igiby. No castelo de Peet, ele havia ficado bastante confortável sobre
a pilha de cobertores e peles de animais espalhadas pelo chão, mas não era
uma cama. Desde então, ele dormira no chão duro todas as noites. Ao
adormecer, sentiu com a língua o interior do lábio inchado e se perguntou se
seu dente ainda estaria mole pela manhã.
Quando acordou, sentiu o cheiro de comida.
Mas não foi o cheiro que o acordou. Um sino soava, soava e soava, e
bastante tempo passou até que Janner estivesse desperto o suficiente para
perceber que um menino ao lado de sua cama estava fazendo todo o
barulho. O menino tinha bochechas rechonchudas e usava um boné
vermelho esfarrapado que parecia prestes a escorregar da nuca.
“Tá bom, tá bom!” Janner rebateu, afastando o sino da orelha e
sentando-se.
“Café da manhã, ferramenta”, anunciou o menino e saiu marchando para
irritar outra pessoa.
O dormitório estava mais movimentado do que naquela manhã, quando
Janner desabou na cama. As crianças calçavam botas, lavavam o rosto com
água de um cocho e sentavam-se a uma longa mesa de madeira, levando um
caldo aguado à boca. O tocador de sinos fazia suas rondas, mas, fora isso,
pouco se falava. O espírito dessas crianças havia sido quebrado. Quem sabe
há quanto tempo elas trabalhavam na fábrica? Algumas tinham idade
suficiente para ter uma penugem no queixo, e outros tinham quase a idade
de Leeli. Janner não conseguia entender por que o Supervisor usava apenas
crianças para o trabalho. Um adulto não poderia trabalhar por mais tempo e
mais rápido?
Janner sentou-se à mesa, e um menino colocou uma tigela e uma colher
diante dele, junto com um copo d’água. Ninguém olhava para ele. Ninguém
falava. O único som era o coro de goles famintos das cerca de vinte crianças
à mesa.
Janner pigarreou. “Olá.” Ele esperou por uma resposta. Algumas das
crianças olharam para ele, mas continuaram comendo sem dizer uma
palavra. “Meu nome é Esben. Esben... anh... Sabóvel. Acabei de chegar.”
“Dá pra notar”, constatou o menino bem em frente a ele. O menino levou
a tigela à boca e sugou as últimas gotas da sopa. “Você vai ver que não há
muito sobre o que falar depois de um tempo.”
“Qual o seu nome?”
“Não importa. Sou uma ferramenta, assim como você.”
Janner revirou os olhos. “Eu não sou uma ferramenta.”
O menino deu de ombros e saiu da mesa.
Janner voltou sua atenção para sua sopa. Não parecia muito apetitosa,
mas sua boca encheu de água. Pegou a colher, mas uma dor ardente
percorreu sua mão, e ele sugou o ar por entre os dentes. Bolhas. Elas
racharam e gotejavam por cada dedo e pelas palmas das mãos.
Cuidadosamente, ele pegou a colher novamente e tomou a sopa em silêncio,
surpreso ao descobrir que estava deliciosa. Também ficou surpreso ao ver
que, quando terminou a sopa, o menino que servia apareceu com uma nova
tigela e retirou a vazia. Janner devorou a segunda tigela e depois a terceira,
tão faminto que esqueceu a dor nas mãos. Quando terminou, levantou-se da
mesa, sem saber direito o que fazer ou para onde ir.
“De volta à estação de aparas, ferramenta,” anunciou uma voz atrás dele.
Mobrik, o corre-crista, estava colado a seu lado. Janner ficou estranhamente
feliz em vê-lo. “É meu trabalho garantir que os novos implementos
aprendam o sistema. Você toma sopa, lava o rosto e depois retorna ao piso
da fábrica para fazer o seu trabalho. Entendeu?”
“Acho que sim.”
“Então, vá”, comandou Mobrik, virando-se. De súbito, parou e disse:
“Quase esqueci. Isso deve servir em você.” Ele enfiou a mão no bolso do
paletó e jogou um par de luvas grossas de couro para Janner.
“Mobrik... espere. Obrigado. Preciso te perguntar uma coisa.”
“Você tem alguma fruta?” Mobrik perguntou.
“Não.”
O corre-crista foi embora.
Janner viu vários gerentes de manutenção encostados na parede,
observando-o, e respirou fundo. Ele iria escapar. Apenas tinha que esperar
até que não o estivessem observando tão de perto. Talvez mais tarde,
naquele dia, quando vissem que conseguia trabalhar rápido, eles o
esquecessem por tempo suficiente para que pudesse sair e fugir.
“A estação de aparas, então”, pensou Janner consigo. “Espero que Tink
esteja se saindo melhor do que eu.”
Outra noite quente e miserável seguia o seu caminho no piso da fábrica.
Outra noite de forte calor, chamas rugindo, engrenagens rangendo e mãos
doloridas.
Janner gastou as primeiras horas pensando em sua família, mas isso se
mostrou triste demais. Então, pensou em seu T.A.N.E.G. e sobre os livros
que havia lido recentemente. Relembrou os personagens das histórias, os
cenários, os temas dos livros. Mas sua mente continuava desacelerando em
direção a uma imundície medíocre, um mundo onde tudo o que importava
era o rangido das máquinas e o corte do metal. Sempre que sua bancada de
lâminas e garfos deformados estava quase vazia — embora nunca
completamente vazia, para sua grande frustração —, uma criança aparecia
com outro carrinho de mão cheio. Sempre que Janner tentava conversar
com as crianças, elas nunca respondiam, nem o encaravam. Ele queria
agarrar seus rostos e forçá-las a olhar para ele, reconhecer sua presença,
agir como se ainda fossem humanos.
Por fim, uma luz amarela pura penetrou pelas janelas próximas ao teto.
Ela tornou difuso o brilho laranja-avermelhado da fornalha e das tochas,
alterando o sufocante ar quente da fábrica. O amanhecer.
Um gerente de manutenção apareceu e disse: “Fim do turno,
ferramenta”.
Janner, coberto de suor e fuligem, largou a tesoura no chão. Cambaleou,
passando pelas máquinas até a escada do dormitório, empurrou as portas
duplas, passou pelo bando de crianças de olhos sonolentos a caminho de
seus postos e desabou em seu beliche sem se preocupar em comer.
Acordou com o tilintar do sino ao lado de seu ouvido. Era o mesmo
garoto com o mesmo sorriso satisfeito no rosto. Janner comeu duas tigelas
de sopa, calçou com cuidado as luvas sobre as mãos cheias de bolhas, saiu
pelas portas e subiu as escadas para a estação de aparas.
Ele não conseguia se ver passando mais outro dia na fábrica. Suas mãos
doíam, suas costas estavam cansadas, ele não via o sol há dias, sentia muita
falta de sua família e, acima de tudo, podia sentir que sua mente estava
encolhendo. Não havia nada sobre o que falar, do que rir ou sobre o que
pensar, exceto nas máquinas. Cada criança que cruzava seu caminho
apavorava Janner ainda mais, porque ele sabia que, se ficasse muito mais
tempo na Fábrica de Garfos, também esqueceria quem era. Seus olhos
ficariam vidrados, ele passaria seus dias em uma estúpida repetição, nunca
pensando, jamais sonhando, esquecendo que um mundo amplo e brilhante
existia lá fora.
Na terceira noite do cativeiro de Janner, ele tomou uma decisão.
Chegou ao seu posto, pegou a tesoura pesada e procurou ao redor pelos
gerentes de manutenção. Viu um andando por uma plataforma que pendia
do teto. O menino parou e se inclinou para gritar uma ordem para alguma
criança do outro lado das máquinas mais próximas.
Quando Janner teve certeza de que o gerente de manutenção não estava
olhando, respirou fundo, olhou em volta uma última vez e correu para
salvar a própria vida.
40

O Caixão

Janner estava ciente de algum movimento atrás dele, provavelmente um


gerente de manutenção pedindo ajuda, mas, desde que ficassem para trás,
ele não se importava. Disparou entre as máquinas, notando com alguma
satisfação os olhares de surpresa nos rostos das crianças enquanto passava.
Era o mais próximo de parecer vivo que ele tinha visto qualquer um deles
chegar.
O piso da fábrica era um labirinto de metal e fogo e, depois de apenas
alguns momentos, Janner percebeu que estava perdido. Pensara que seria
fácil encontrar a escada que levava às portas duplas que conduziam à
liberdade, mas as máquinas e os corredores de bancadas e caixotes
desorientaram-no. Ele ouvia mais gritos, de todas as direções agora.
Janner sentiu um aumento abrupto na temperatura e dobrou uma esquina
para se ver cara a cara com a face negra e sombria da fornalha principal.
Um menino a vários metros de distância usava uma longa haste de metal
com um gancho numa das extremidades para abrir a grelha quente,
enquanto outra criança enfiava uma porção de carvão em sua barriga; o
fogo ardia e rugia em faminto agradecimento. As duas crianças, confusas,
olharam para Janner.
Mas ele finalmente se orientou. Lembrou-se de ter visto a fornalha e as
pilhas de carvão quando ele e Mobrik emergiram do longo corredor. Janner
girou e viu as portas duplas e a escada que levava a elas, não muito longe.
Com o calor da fornalha reluzindo em suas costas, correu o mais direto que
pôde pelas escadas, ziguezagueando entre o maquinário, mas sempre
mirando nas portas.
Por fim, alcançou a escada e arriscou olhar para trás. Cinco garotos, mais
altos e mais velhos do que Janner, abriam caminho em sua direção, sem
muita pressa. E dois meninos se balançavam nas correntes penduradas ao
teto.
Janner não tinha ideia do que estava fazendo. Ele sabia que no final
daquele longo corredor estava a grande câmara vazia onde a carruagem
esperava. Sabia que o Supervisor tinha um chicote, e Mobrik disse que ele
não tinha medo de usá-lo. Sabia que a única saída certa do edifício era
através de um portão levadiço pesado que ele não conseguiria abrir sozinho.
Mas ele também sabia que não aguentaria mais um dia na estação de
aparas sem fazer alguma coisa. Ele não era uma ferramenta. Era o Guardião
do Trono de Anniera, o que significava que, embora pudessem capturá-lo,
ele não se entregaria facilmente.
Enquanto subia a escada, ouviu algo que o assustou tanto que ele quase
caiu.
“Janner Igiby. Não.”
Uma garota estava parada ao pé da escada. Ela estava suja, mas seus
olhos eram como pérolas na lama, grandes e luminescentes. Era a mesma
criança que ele vira no dia em que chegou, aquela que ele pensou ter
reconhecido.
“Como você sabe meu nome?” Janner perguntou. A cada momento os
gerentes de manutenção se aproximavam, mas ele não conseguia se mover.
“Quem é você?”
Os brilhantes olhos da menina se encheram de lágrimas, que riscaram
seu rosto como tinta branca em uma tela preta. Ele tinha que ir. Se fosse
rápido o suficiente, poderia ter alguns minutos para procurar uma saída
antes que o Supervisor fosse alertado.
“Janner, você não tem como sair”, alertou a garota. “Por favor, não fuja.”
Sua voz era doce, desesperada e bela, um riacho prateado em uma
floresta escura. Só uma voz assim poderia tê-lo impedido de correr. Janner
olhou para as portas atrás dele, depois para a gangue de gerentes de
manutenção avançando em sua direção, depois para a garota de olhos
brilhantes, e desistiu. Parte dele gritava: Fuja! Saia daqui! Mas algo o
deteve.
O primeiro dos garotos altos chegou ao pé da escada, empurrou a garota
para o lado e subiu. Janner não tirou os olhos dela, mesmo quando os
gerentes de manutenção o socaram no estômago ou torceram seu braço atrás
das costas. Seus olhos eram como estrelas numa noite de tempestade,
lampejos cintilando por uma fenda nas nuvens.
Janner sentiu um joelho nas costas e tombou escada abaixo, de ponta-
cabeça, perguntando-se vagamente como seria o som de ossos se
quebrando. Estatelou-se no chão, tonto de dor. Então, encontrou os olhos
dela novamente.
“Quem... é você?” Ele suspirou.
Antes que os gerentes de manutenção o arrastassem, ela se aproximou.
“Sara Cobbler.”1
Então alguém deu um soco em Janner, e as estrelas se apagaram.

Quando Janner acordou, pensou por um momento que estava morto.


Seus olhos estavam abertos, mas não conseguia ver nada. Seu corpo doía e
suas mãos estavam tão cheias de bolhas, que não conseguia mover os
dedos. Passou a língua pelo lábio inchado e sentiu o gosto de sangue. Ele
estava em mau estado.
Mas onde? Estava deitado em uma superfície dura, porém suas mãos e
pés não estavam amarrados, o que foi um alívio. Tentou se sentar, e sua
testa se chocou contra algo duro.
“Ai!” Ele levou a mão à testa, esquecendo-se das bolhas nos dedos e nas
palmas das mãos. “Ai!” Resmungou novamente.
Quando a dor diminuiu, descobriu que estava numa caixa não muito
mais larga que seus ombros e não muito mais alta que seu peito. Sentiu-se à
beira do pânico. Janner sempre teve medo de situações de aperto, mesmo
quando era apenas ele e Podo lutando. Às vezes, quando Podo prendia seus
braços junto ao corpo, esse mesmo pânico explodia. Em um momento
Janner estava rindo; no seguinte, perdia todo o controle e se debatia como
se estivesse em um pesadelo. Fechou os olhos novamente e forçou-se a
respirar devagar.
Mas não resistiu à vontade de empurrar o teto, só para ver se cederia.
Empurrou, encontrou-o sólido e forte, e então perdeu a cabeça.
Janner gritou e arranhou os lados e a tampa da caixa, sem se importar
com a dor nas mãos ou nas unhas que se partiam. Estava preso em uma
escuridão tão profunda que a própria luz parecia nunca ter existido. Ele
perdeu toda noção do tempo. Chutou e arranhou até que suas forças se
esgotaram e, então, permaneceu soluçando. Chorou por muito tempo, até
que finalmente o sono veio, mas ele sonhou com um nada gigante, um
buraco vazio no qual caiu e desapareceu.
Quando acordou novamente, descobriu que a caixa não era um sonho
terrível, mas uma realidade negra. Entrou em pânico novamente. Ficou
ofegante na escuridão, falando consigo mesmo, orando em voz alta para o
Criador, acusando, implorando, gritando coisas que, embora ninguém
pudesse culpar o pobre Janner por dizê-las, não serão repetidas aqui.
E a resposta do Criador foi um silêncio vazio.
Horas e horas se passaram. Janner chorou de novo, um choro diferente
do anterior. Essas lágrimas não eram de medo, mas de cansaço e de uma
imensa solidão. Ele queria sentir o toque da mão de Nia em sua nuca.
Queria ouvir a voz de Leeli, a risada de Tink. Queria o cheiro acolhedor do
hálito de Podo após fumar seu cachimbo. Queria ver os olhos de Peet, o
Homem-Meia, porque as mesmas coisas que forjaram seu pai estavam
presentes neles. Esses pensamentos flutuavam em sua mente como
sementes de dente-de-leão ao vento quente.
E, em sua mente, Janner se viu sentado no campo ao lado do chalé Igiby.
O longo inverno havia passado. Novos brotos verdes erguiam-se dos sulcos
do jardim. Folhas brilhantes, macias como pés de bebê, cintilavam nas
árvores. Então, tão gentil quanto o beijo de sua mãe, o sol aparecia e
derramava luz sobre sua pele.
No caixão preto, com as mãos cortadas e sangrando, o rosto machucado
pelos punhos dos gerentes de manutenção, Janner dormia. Seu sono era
profundo, imperturbado por sonhos com Fangs, ou Gnag, o Sem-Nome, ou
pela terrível escuridão circundante.
Na vez seguinte em que acordou, ficou ciente de sua fome e sede.
Mesmo em meio ao terror de suas primeiras horas naquela caixa, havia
presumido que fosse um castigo, não uma longa execução. Mas agora se
perguntava se eles pretendiam matá-lo de fome ou se o haviam enterrado
vivo. Talvez ele não estivesse na fábrica, mas num cemitério em algum
lugar, debaixo do solo.
Estava cansado demais para chorar, cansado demais para entrar em
pânico. Então ficou lá e pensou em Sara Cobbler e seus lindos olhos.
“Sara Cobbler”, nomeou-a em voz alta, apreciando o som de seu nome.
Por que soava tão familiar?
Ela sabia o nome dele, mas ele nunca havia estado em Cavadópolis.
Como ela poderia saber? Então se lembrou: Sara Cobbler, a garota que
havia sido levada pela Carruagem Negra. Janner balançou a cabeça na
escuridão, tentando se lembrar. Ele havia conhecido uma família no Festival
do Dia dos Dragões no ano anterior, e eles tinham uma menina da mesma
idade que ele. Foi apenas um breve encontro, mas Janner cometeu o erro de
dizer a Tink que a achou bonita. Tink zombou dele pelo resto do dia. Mais
tarde, Nia disse a Janner e Tink que ela havia sido levada pela Carruagem.
Mas a Carruagem Negra levava as crianças para o Forte Lamendron e
depois para o Castelo Throg, como dizia a canção infantil. “No Castelo
Throg, além da imensidão... Você chora ao pensar no início da aflição... A
Carruagem chegou pra você também.” Por que ela estava aqui? Quantas
dessas crianças haviam sido levadas pela Carruagem? Quantos de seus pais
presumiam que elas estavam perdidas para sempre, quando estavam a
apenas uns poucos quilômetros de distância, em Cavadópolis? Se
soubessem que seus filhos estavam aqui, guardados apenas pelo Supervisor,
certamente não parariam por nada até derrubar as paredes e levá-los para
casa.
Então ele se lembrou das desgrenhadas e dos esfarrapados do Beco
Tilling. Muitos dos pais sabiam exatamente onde seus filhos estavam, e isso
os havia enlouquecido.
Janner queria mais do que nunca estar nas Pradarias de Gelo, entre
homens e mulheres corajosos, que não se contentavam em viver sob o
domínio dos Fangs. Ansiava por viver em um mundo onde os Fangs não
ousassem entrar. Talvez, quando fosse mais velho, ele se juntasse à força de
Gammon e fizesse parte da resistência. Empunharia sua espada e lutaria ao
lado dos skreenianos quando chegasse a hora; e se conseguissem expulsar
os Fangs de Skree, então por que não de Anniera? E se conseguissem
expulsá-los da Ilha Brilhante e restaurar o reino de seu pai — bem, o reino
de seu irmão —, então por que não atacar o próprio Throg? Por que não
acabar com Gnag e os trolls e os Fangs e todo inimigo capaz de espancar
um menino de doze anos e trancafiá-lo num caixão?
Janner riu. Era fácil sonhar acordado sobre conquistar o mundo para o
bem de Kistamos; outra coisa era fazer isso. Ele não conseguia nem mesmo
ir de Glipwood a Cavadópolis sem quase morrer, sabe lá o Criador quantas
vezes. Eles haviam perdido Peet, haviam perdido Nugget, haviam sido
capturados por Marginais, perseguidos por Fangs, traídos, espancados, se
perdido.
E ele não tinha ideia do que havia acontecido com Tink e os outros. O
estômago de Janner se contraiu. Quanto tempo eles esperariam no covil?
Quanto tempo antes que desistissem dele e fossem para as Pradarias de
Gelo? Como eles poderiam sequer encontrá-lo?
Então, expulsou esses pensamentos de sua mente. Ele tinha que fugir.
Essa era a única coisa a ser feita.
A mente de Janner trabalhou assim por horas antes de perceber, com um
sorriso, que ele não tinha mais medo nem da escuridão, nem do caixão. Ele
tinha medo de morrer de fome, mas duvidava que o deixassem morrer, não
depois de todas as dificuldades que o Supervisor passara para encontrar
crianças que colocar em sua fábrica.
Como se em resposta a este último pensamento, um som veio de fora da
caixa — a primeira coisa que Janner ouviu além de sua própria voz, desde
que se encontrara ali.
Passos se aproximaram. Um som de clique. Então, a parte superior da
caixa se abriu e a luz ardeu em seus olhos.
“Fora, Esben Sabóvel. O Supervisor quer ver você.”
“Olá, Mobrik”, Janner murmurou.
Incapaz de acreditar que estava fazendo isso, Janner sentou-se e voltou
ao mundo.
Janner forçou seu corpo rígido para fora da caixa. O cômodo era
pequeno e semelhante a uma masmorra, com paredes de pedra e um teto
atarracado. Correntes pendiam de ganchos na parede e ossos estavam
empilhados nos cantos. Dois caixões estavam lado a lado, abertos e
aguardando seus próximos ocupantes.
Um dia não haveria mais ocupantes, Janner pensou. Gammon e seu
exército saqueariam Cavadópolis e todos os outros lugares malignos em
Skree, e quando o fizessem, Janner jurou encontrar este lugar e destruí-lo
para sempre. Nada mais de crianças em caixões, nem em fábricas,
tampouco em Carruagens Negras. Nunca mais.
Janner olhou para Mobrik com fogo nos olhos. O corre-crista deu um
passo para trás e olhou para a porta, claramente não acostumado a crianças
invictas emergindo do caixão. Janner Wingfeather havia entrado ali
inconsciente e saía agora mais acordado do que nunca.
Considerou agarrar o corre-crista e jogá-lo no caixão. Sabia que poderia
fazê-lo, se quisesse, mas não lhe pareceu certo ainda. Ele tinha que ser
cuidadoso sobre quando e como agir. Nada de correr às cegas pela fábrica.
Ele iria esperar, observar e planejar.
“Vamos!”, apressou Janner. “O Supervisor está esperando.”
41

Quatro Maçãs e Um Plano

O Supervisor estava sentado à sua mesa, usando seu chapéu ridículo e


fazendo o possível para parecer zangado.
Janner não se importou. Resolveu se fazer de bobo e fingir estar
debilitado. Acenou com a cabeça e esperou que o homem terminasse de
falar sobre “obedecer” e de como não havia “nenhuma chance de fuga” e
que Janner era “apenas uma ferramenta agora”. Neste último, tudo o que
Janner conseguiu fazer foi ficar quieto. O Supervisor o avisou que, da
próxima vez que tentasse escapar, passaria três dias no caixão, não apenas
dois.
Dois dias? Janner pensou, com um estremecimento. Pareceu uma vida
inteira. Ele não conseguia imaginar um terceiro dia no caixão.
Enquanto Mobrik o conduzia de volta pela câmara vazia, onde a
carruagem se encontrava, Janner sentiu um cheiro doce. Contra a parede,
perto da porta, havia três cestos de maçãs, frutas vermelhas e melões.
Mobrik inspirou fundo e deu uma risadinha.
“Depressa, ferramenta”, comandou Mobrik. “Tenho umas frutas pra
comer, assim que você voltar ao trabalho.”
“Não poderia comer uma agora?” Questionou Janner, na esperança de
distrair o corre-crista, mas ainda sem saber exatamente por quê. Ele tinha
que ser cuidadoso de agora em diante. Mas esta poderia ser a última vez que
estaria tão perto da saída. “Você poderia levar uma maçã com você. É uma
longa caminhada até ir e voltar da estação de aparas.”
Mobrik fez uma pausa. “Sim... É uma longa caminhada.”
“E as frutas têm um gosto melhor quando estão frescas. ‘Quanto mais
tempo passa, pior fica’, minha mãe costumava dizer.” Janner forçou uma
risada. Mobrik olhou para as cestas com desejo.
“Rápido”, comandou o corre-crista, olhando para a porta do Supervisor.
Seus passos ecoavam enquanto cruzavam a sala em direção às cestas de
frutas. Janner deu uma olhada para o portão levadiço, no fim do corredor,
atrás da carruagem. Perguntou-se se as duas crianças encarregadas de abri-
lo permaneciam lá, ou se ficavam ali apenas quando o Supervisor estava
fora e seu retorno era esperado.
Mobrik correu à frente de Janner para as cestas, tendo as pontas de sua
pequena casaca voando para trás. Passou os pequenos dedos pelas frutas,
acariciando-as e testando sua firmeza. Janner olhou de volta para a porta do
Supervisor. Ainda estava fechada.
“Quanto mais tempo passa, pior fica! Uma coisa verdadeira para um
menino dizer!” Mobrik comentou, extasiado com as frutas.
Ainda sem ter certeza do que estava fazendo, Janner tirou da cesta um
melão do tamanho de uma cabeça.
Mobrik engasgou. “Ponha isso de volta! Essa fruta é minha! Minha!”
“Desculpe”, disse Janner. Quando pôs o melão de volta, ele caiu da
cesta, bateu no chão com um baque úmido e rolou para longe. Mobrik
gritou e correu atrás dele. Quando a pequena criatura estava de costas,
Janner enfiou quatro maçãs nos bolsos de suas calças, pensando, enquanto o
fazia, que as mãos rápidas de Tink provavelmente poderiam ter agarrado o
dobro disso na metade do tempo.
“Terrível ideia!” Lamuriou Mobrik, recolocando o melão com muito
cuidado. “Eu nunca deveria ter deixado você chegar perto da minha fruta.
Nunca. Vamos.” Ele jogou uma amora para dentro da boca e estremeceu de
prazer. Em seguida, empurrou Janner em direção às portas duplas que
levavam à fábrica, desatento à forma como os bolsos de Janner estavam
inchados.
Janner foi enviado diretamente para a estação de aparas. Procurou por
Sara Cobbler enquanto serpenteava pelos corredores da fábrica, mas não a
viu. Todas as crianças por quem ele passava ignoravam-no intensamente;
meninas e meninos com pás olhavam para o chão como se fosse a coisa
mais fascinante que já haviam visto. Apenas os gerentes de manutenção
prestavam atenção nele — e sua atenção era do tipo risonho e malicioso.
Olhavam para ele de seus poleiros nas paredes.
Janner esperava que Sara Cobbler não tivesse sido punida por falar com
ele. Os gerentes de manutenção não pareceram notá-la momentos antes de
deixá-lo inconsciente. O outro caixão na masmorra estava vazio, então pelo
menos ela não estava lá.
Ele não tinha certeza do que havia acontecido dentro dele ao ver os
cintilantes olhos da menina naqueles momentos na escada, mas gostou. E o
som de seu nome nos lábios dela, as lágrimas em seus olhos, a pele
brilhante aparecendo através das manchas de sujeira em suas bochechas —
tudo isso produziu em Janner uma urgência de vê-la novamente, de falar
com ela.
Com um suspiro, Janner pôs as luvas, surpreso ao descobrir que suas
bolhas não doíam mais. Trabalhou em um ritmo lento e constante, perdido
em seus pensamentos, achando o trabalho quase reconfortante. De alguma
forma, isso o ajudou a pensar, a reter os rostos de sua família, de Oskar, a
pensar no que teria de fazer para escapar.
Antes que percebesse, o dia havia passado. Ele estava diante de uma
pilha de espadas e garfos aparados, e o menino com o boné vermelho e o
sino passou, batendo nele com um martelo e dizendo: “O turno acabou. O
turno acabou. O turno acabou, ferramentas.”
Janner comeu duas tigelas de sopa e bebeu um copo de água atrás do
outro antes de encontrar seu beliche. Quando teve certeza de que ninguém
estava olhando, tirou as maçãs dos bolsos e escondeu-as dentro do
travesseiro. Deitou-se de costas, grato por não estar mais preso naquele
caixão horrível. Esticou os braços o máximo que pôde, jurando nunca mais
ter como garantido qualquer cômodo maior do que um armário.
Ao adormecer, ele tinha em mente o início de um plano.
No dia seguinte, Janner acordou antes da chegada do tocador de sinos.
Ele tinha que descobrir o que fazer com as maçãs. Quanto mais tempo
passa, ele pensou revirando os olhos, piores ficam. Era óbvio que deveria
usá-las para subornar o corre-crista, mas suborná-lo para fazer o quê? Para
deixá-lo ir? Janner não achava que Mobrik iria tão longe, não importava
quantas frutas Janner oferecesse. O quê, então? Ele poderia usar a fruta para
obter respostas a suas perguntas. Ele queria saber por que o Supervisor
usava crianças na fábrica em vez de adultos. Queria saber se todas as
crianças que a Carruagem Negra trazia vinham para a fábrica, ou se,
algumas vezes, ela realmente as levava para o Forte Lamendron, a fim de
serem transportadas para Dang. Mas nenhuma dessas perguntas parecia
valer uma preciosa maçã.
Ele precisava de uma saída e, pelo que podia ver, a única saída era pelo
portão levadiço. Porém, mesmo que descobrisse uma maneira de atravessar
o longo corredor até o andar vazio, não teria como abrir o portão. Ele vira a
maneira como duas crianças tiveram que se esforçar para fazê-lo. Não havia
como ele ser forte ou rápido o suficiente para fazer aquilo sozinho.
Mas... e se ele não estivesse sozinho?
Sara Cobbler o ajudara uma vez. Talvez ela o fizesse de novo.
Janner sorriu. Ele sabia o que fazer. Apenas tinha que encontrar Sara.
Ele examinou os rostos ao redor da mesa com cuidado. Das quarenta ou
cinquenta crianças tomando sopa em silêncio, nenhuma era Sara Cobbler.
Estudou as crianças que serviam a sopa, as que mexiam os caldeirões de
sopa, mas nenhuma era Sara Cobbler. Ao longo de seu primeiro turno, ele a
procurou nos rostos de quem passava, nos daqueles que lhe traziam
carrinhos de espadas defeituosas, nos que estavam nos altos passadiços e
até entre os gerentes de manutenção. Mas Sara não estava em lugar
nenhum. Ele começou a se perguntar se ela havia sido um sonho.
Quando voltou para a sala de jantar após seu turno, finalmente a
encontrou.
Ela estava sentada à mesa no lado oposto da sala, mexendo sua tigela
mecanicamente. Seu rosto ainda estava sujo, seu cabelo ainda emaranhado,
mas Janner sabia que era ela, antes mesmo que a menina levantasse os
olhos e os pousasse sobre ele. Estrelas numa tempestade, Janner pensou
novamente, e sorriu para ela do outro lado da sala. Quase
imperceptivelmente, como o farfalhar da barbatana de um vermelhão sob a
superfície do rio, ela sorriu de volta.
As entranhas de Janner se reviraram. E antes que tivesse tempo de
pensar sobre o que estava fazendo, caminhou em linha reta na direção dela.
Os olhos da menina se arregalaram, e ela olhou para a sopa novamente,
mexendo-a um pouco rápido demais. Janner sentou-se em frente a ela e
baixou a voz.
“Obrigado”, agradeceu. “Eu me lembro de você... do Festival do Dia dos
Dragões do ano passado.”
Ela não respondeu.
Um gerente de manutenção passou, e Janner baixou os olhos
rapidamente, bebendo uma colher de sopa. “Preciso de sua ajuda”. Contou-
lhe depois de um momento. “Nós vamos sair daqui, e vou levar você de
volta para seus pais. Mas não consigo fazer isso sozinho. Pode me ajudar?”
“Não posso”, ela sussurrou. “Eles vão me colocar no caixão novamente.”
“Você já esteve no...?” Janner sentiu o coração doer por ela. Ele se
perguntou quantas crianças da fábrica haviam passado por aquele lugar
horrível. “Ouça. Eu posso nos tirar daqui. Você vai me ajudar?”
Ela meneou a cabeça novamente.
“Sara”, insistiu Janner, e então fez uma pausa enquanto outro gerente
passava. “Eu não posso ficar aqui. Há algo que devo fazer. Não sei o que é
ainda, mas meu irmão, minha irmã e eu...”
“Também me lembro deles”, contou ela, olhando para a tigela. “Embora
seja difícil lembrar de qualquer coisa antes de vir pra cá. O nome dela era
Leeli, certo? E Tink. Tink era engraçado.”
Janner sorriu tristemente. “Sim. Ele ainda é. E tenho de encontrá-los.
Temos que chegar às Pradarias de Gelo.”
“As Pradarias de Gelo? Por quê?”
“Não posso dizer.” Ele queria contar a ela. Queria dizer a todos ali que
seu pai havia sido o Rei Supremo da Ilha Brilhante, embora a maioria
dessas crianças nem mesmo acreditasse que o lugar fosse real. Queria
contar à Sara Cobbler, porque achava que ela ficaria impressionada. Ao
invés disso, ele pediu: “Você tem que confiar em mim, por favor”.
Ela fez uma pausa. “O que você quer que eu faça?”
Janner sorriu. “Eu sabia que você é corajosa. Eu sabia.”
Sara Cobbler sorriu.
Janner ficou feliz por tê-la feito sorrir. Sabia que precisaria disso para
aguentar os próximos três dias e noites no caixão.
42

Uma Negociação Nefasta

Assim que o General Khrak chegou a seu palácio em Torrboro e se sentou


em seus aposentos para comer, foi interrompido. Ele estava cansado de
perseguir as Joias de Anniera, cansado de enviar mensagens decepcionantes
para Gnag, o Sem-Nome. Não entendia por que Gnag queria as crianças e
não se importava — só queria comer seu mingau em paz. Limpou o canto
da boca com o antebraço e disse: “O quê?”
Uma velha nervosa entrou na sala e fez uma reverência. “Meu senhor,
um visitante para vê-lo.”
“Quem essstá aí?” Ele sibilou enquanto brincava com um rabo de rato
que guarnecia seu mingau. “Estou comendo.”
“Minhas desculpas, senhor”, clamou ela. “Um homem chegou a
Torrboro vindo das Pradarias de Gelo e deseja falar com o senhor. Ele diz
que seu nome é Gammon.”
Khrak olhou para a mulher. Ele a detestava, mas ela preparava sua
comida com tanto cuidado, tanta devoção a seus desejos, que muitas vezes
já havia se contido de acabar com ela. E agora ela havia interrompido sua
refeição para anunciar a chegada do que com certeza seria um impostor.
Gammon jamais mostraria seu rosto na presença de Khrak.
Mas, de curiosidade aguçada, ele afastou-se da mesa e saiu da sala,
resistindo à vontade de empurrar a velha para o chão ao passar.
O General Khrak sentou-se em seu trono e fez sua expressão mais feroz,
com dentes à mostra, antes de acenar para o soldado Fang e permitir a
entrada do homem que alegava ser Gammon. A porta se abriu e um homem
de cabelo preto cruzou o corredor. Estava vestido com peles da cabeça aos
pés e olhou para Khrak com uma ousadia que o surpreendeu. Khrak estava
acostumado com a bajulação de Fangs como o Comandante Gnorm ou
Plube, Fangs a quem faltava coragem de olhá-lo nos olhos — e com razão.
Khrak havia matado Fangs o suficiente — e por muito menos —, de forma
que todos se encolhiam em sua presença. Mas este homem o encarou e não
se retraiu. Khrak ficou intrigado.
“O que você quer?” Ele interrogou.
“Você é o General Khrak?” Interpelou o homem.
“Sou.”
“Meu nome é Gammon.”
“É?” Perguntou o Fang. Ele poderia, numa fração de segundo, deslizar
para fora de seu trono e afundar suas presas naquele tolo arrogante. E o
homem devia saber disso. No entanto, lá estava ele, sem medo. Khrak ficou
surpreso ao descobrir que respeitava o homem por isso. “Se é verdade que
você é Gammon, então deve ser um idiota de verdade para vir aqui, onde
poderia ser morto facilmente. Sabemos sobre você e seu mesquinho
ajuntamento nas Pradarias de Gelo. Kimera, não é? Gnag sabe tudo sobre
seus planos para iniciar uma rebelião e nos expulsar de Skree. Você acha
que é tão fácil assim? Acha que Gnag não tomou providências para a
destruição de seu pequeno exército?”
Gammon abriu os braços. “Sim, Khrak. E são esses arranjos que eu
gostaria de discutir. Como você disse, sabe que montei um exército. Sabe
que não quero vocês em Skree. Sabe também que não vou descansar até que
você e cada um de seus irmãos escamosos estejam do outro lado do Mar
Sombrio — ou no fundo dele”, Gammon expôs calmamente.
Khrak agitou sua língua bifurcada e esperou. Manteve seus gélidos olhos
negros fixos em Gammon até que percebeu um pequeno estremecimento
em um de seus olhos. Bom, ele pensou. Afinal, o homem conhece o medo.
“Depois de todos esses anos”, Gammon continuou, “finalmente entendi
por que vocês vieram para cá.”
“Oh? E por que você acha que foi?” A conversa foi muito mais
interessante do que Khrak esperava que fosse.
“As Joias de Anniera. Três crianças. Vocês não vieram aqui para nos
destruir. Não vieram para conquistar nossa terra. Vieram porque Gnag
queria essas três malditas crianças, e ele suspeitou que eles tivessem fugido
para cá. Estou certo?”
Khrak recostou-se em seu trono e brincou com a ponta de sua cauda.
“Sssim. Está correto. No começo, nosso Gnag nem pensava em Skree.
Eram as joias que ele buscava, não suas colinas e bosques. Ele não se
importa com essas coisasss.”
“Sei sobre a fortaleza nas Phoobs”, Gammon informou. “Sei o que está
acontecendo lá. E também sei que não temos muito tempo.”
Khrak se perguntou como Gammon havia descoberto sobre a operação
nas Phoobs. Ele havia feito tudo para manter aquilo em segredo, para que,
quando chegasse a hora de revelar seu plano, pudesse ter a vantagem da
surpresa. Mas não importava que Gammon soubesse. Não mudava nada.
Quanto mais o homem falava, mais Khrak queria ouvi-lo clamar por
misericórdia.
“O que você quer, então?” Khrak demandou com um estalo de suas
presas enquanto se inclinava para frente. Gammon engoliu em seco, e
Khrak saboreou seu medo.
“Quero”, Gammon confessou após um suspiro, “fazer uma barganha.”
Os olhos de Khrak se arregalaram de surpresa. Ele não esperava por isso.
“Que tipo de barganha?”
“Sei onde estão as Joias de Anniera. Sei para onde estão indo”, informou
Gammon. “E sei que você ainda não as pegou. Como é que, com todas as
suas espadas, presas e trolls, vocês não conseguem capturar três crianças
pequenas? Não posso imaginar que Gnag esteja feliz com isso, né?”
Khrak sibilou, e a ponta de sua cauda tremulou em advertência.
“Proponho entregar a você as Joias de Anniera, sãs e salvas. E, se eu
fizer isso, você reúne seu exército e sai do meu continente. Se os Fangs —
qualquer tipo de Fangs — erguerem uma única lâmina contra meu exército,
acabo com as joias de uma vez por todas. O que Gnag acharia disso? O que
ele acharia se, depois de todos esses anos, o tesouro que tanto buscou
estivesse finalmente ao seu alcance e, de repente, se perdesse para sempre?”
Os dois se encararam. Khrak se perguntou se Gnag ficaria mais furioso
por ter perdido Skree ou pelas joias terem sido mortas. Ele já sabia a
resposta. Já havia nove anos que o Sem-Nome estava obcecado em
encontrar essas joias amaldiçoadas. Se elas fossem mortas, Khrak sabia que
receberia a culpa. Ele era um dos soldados mais antigos e leais de Gnag,
mas não era tolo. Khrak seria poeira ao vento no momento em que as joias
estivessem perdidas.
“Eu concordo.”
Os olhos de Gammon se arregalaram. “Você o quê?!”
“Eu concordo, idiota. Se você me entregar as três crianças Wingfeather,
então deixaremos essas terras. Há muito pouco aqui que nos interessa, de
qualquer maneira.” Claro, Khrak pensou, nós, Fangs, nunca iremos
embora. Se Gammon acredita nisso, então ele não é tão esperto quanto eu
pensava.
“Tenho sua palavra? Vocês irão embora, simples assim?” Indagou
Gammon.
“Sssim”, Khrak confirmou, tentando manter o rosto sério. Será assim tão
fácil?
“Certo, então tudo bem. Tudo bem.” Gammon anuiu. “Meus batedores
me disseram onde elas estão. Em duas semanas, envie quantos Fangs quiser
para as Pradarias de Gelo, e nós entregaremos as crianças. Sugiro que você
traga o exército todo. Ouvi dizer que essas crianças têm sempre um jeito de
escapar.” Gammon estreitou os olhos. “Tenho sua palavra?”
“Claro”, afirmou Khrak. A palavra de um Fang.
“Porque, do contrário, vamos matá-los”, alertou Gammon. “Falo sério. E
há o suficiente de nós para lutar, então não planeje nenhum truque.”
“Claro”, repetiu Khrak. “Sssem truques. Isso é tudo?”
“Sim. Isso é tudo. Duas semanas.” Gammon se endireitou e saiu da sala
do trono.
Assim que a porta se fechou atrás dele, Khrak caiu na gargalhada. Ele
sabia que os humanos eram fracos e covardes, mas havia acreditado que
pelo menos uns poucos tivessem alguma inteligência. Gammon, por
exemplo, era famoso. Ele havia trabalhado corajosamente contra os Fangs
por tanto tempo que Khrak passara a respeitá-lo. A maneira como ele havia
entrado na sala minutos atrás solidificara esse respeito. Mas agora isso?
Gammon acreditava que os Fangs iriam fazer as malas e sair de Skree tão
fácil assim? Tolo crédulo!
Assim que Khrak tivesse as crianças em sua posse, os Fangs eliminariam
o pequeno exército de Gammon, sem mais dificuldades do que esmagar
uma barata. Gammon era tão tolo quanto a velha que preparava seu mingau.
“E os tolos”, zombou Khrak para si mesmo, “merecem o punho de ferro
dos Fangs de Dang.” Ele bateu no braço do trono. “Mulher! Traga minha
salada!”
43

Três Dias na Escuridão

Por mais difícil que fosse de acreditar, havia algo de positivo em ficar preso
no caixão por três longos dias: Janner teve bastante tempo para pensar no
que fizera para chegar lá e no que faria quando saísse. Estava deitado no
caixão e repassava suas ações várias vezes, questionando a si mesmo e
preparando seus nervos para o próximo estágio do plano, imaginando se
Mobrik suspeitava de alguma coisa.
Encontrar o corre-crista havia sido bastante fácil. Ele estava sempre
zanzando por aqui e por ali, escalando correntes, saltando da pilha de
carvão para a caixa de engrenagens e para a bancada, uma espécie de
gerente de manutenção dos gerentes de manutenção. Quando Mobrik se
aproximou durante o segundo turno, Janner chamou seu nome.
“O que você quer?” O corre-crista perguntou.
“Preciso de um favor”, confessou Janner.
“Você tem alguma fruta?”
E com grande satisfação, Janner proferiu: “Sim”.
“O que você quer dizer?” Os olhos de Mobrik se estreitaram. “Onde
você conseguiu frutas?”
“Não é da sua conta. Talvez estivessem comigo quando cheguei aqui.
Talvez eu saiba coisas sobre esta fábrica que você não saiba. Talvez haja
uma árvore frutífera no topo do prédio que despeje maçãs pela calha e para
dentro dos meus bolsos.”
Mobrik olhou para o teto e ergueu uma sobrancelha para Janner. “Você tá
tentando fazer graça. Está tentando ser engraçado.”
“Não”, continuou Janner, e tirou uma maçã do bolso.
Os olhos de Mobrik ficaram tão grandes quanto a própria maçã. A
criaturinha a agarrou rapidamente e em seguida golpeou Janner na cabeça.
“Isso é por tentar se fazer de engraçado comigo. Não sei onde você
conseguiu a maçã, mas pode ter certeza de que irei relatar isso ao
Supervisor. Agora, volte ao trabalho.” Ele se virou para ir embora.
“Mas ainda preciso de um favor”, insistiu Janner.
Mobrik parou. “O quê?”
“Preciso de um favor.”
“Você tem mais frutas?” Mobrik perguntou, desta vez menos seguro de
si.
“Sim. Tenho mais frutas, mas estão escondidas. Se você fizer o favor,
direi onde estão. Duas maçãs mais.”
Mobrik avançou e apalpou os bolsos de Janner. “Idiota. Se for verdade
que você tem essas frutas, contarei ao Supervisor e faremos uma busca na
fábrica até que sejam encontradas. Então você será jogado no caixão
novamente. Você não quer isso, quer?” O corre-crista sorriu
maliciosamente. “Eu ouvi você lá dentro, chorando e gritando. Foi
patético.”
Janner o ignorou. “É verdade, você pode encontrar as maçãs. Mas
acredite em mim quando digo que as escondi bem. Pode levar dias e mais
dias para encontrá-las, e aí? Quanto mais tempo passa...”
Mobrik fechou a cara. “Pior fica.” Assim como Janner esperava, o corre-
crista não suportava a ideia de deixar maçãs perfeitamente doces
apodrecerem. “Quantas você disse? Duas?”
“Duas maçãs vermelhas, doces e brilhantes.”
Mobrik, tendo mordido a maçã em sua mão, fechou os olhos e mastigou-
a em um silêncio extático. “Muito bem. Se eu fizer este favor, você vai me
dizer a localização das maçãs?”
“Assim que você me provar que o favor foi feito, e se jurar pelos frutos
de Vales Verdes e pelas Cavernas nas Montanhas que não me trairá, direi
onde encontrar as maçãs.”
“Os Vales! As Cavernas!” Mobrik arfou. “Como você sabe dessas
coisas?”
“Apenas sei. Você tem minha palavra de que lhe darei as maçãs, se você
jurar sobre os Vales e as Cavernas que fará o que eu pedir.”
“Não posso ajudar você a escapar, se é isso que você quer.”
“Não é isso. Quero que você faça algo por outra das... ferramentas.”
Mobrik inclinou a cabeça e pensou por um momento. “Muito bem. O
que você quer? Rápido, ou as maçãs vão piorar!”
Janner havia comido duas tigelas de caldo na noite após sua conversa
com Sara Cobbler, sabendo que ficaria preso no caixão por três dias. Depois
do terceiro turno, quando estava acomodando seus ossos cansados na cama,
o corre-crista apareceu novamente.
“Está feito, garoto.”
“Começando quando?”
“Amanhã, primeiro turno.”
“Você jura sobre os Vales e as Cavernas?”
Mobrik endireitou-se e ajeitou o casaco, ofendido por sua honra estar em
questão. “Juro. Pelas frutas de Vales Verdes e pelas Cavernas nas
Montanhas.”
“Obrigado, Mobrik.”
“Onde estão as maçãs?” Ele demandou.
“Que maçãs?”
Mobrik parecia tão chocado que poderia desmaiar.
“Estou brincando”, completou Janner. “Estão bem ali. Debaixo do
travesseiro, naquele beliche vazio.”
O corre-crista correu para o beliche e removeu as maçãs. Segurou-as
acima da cabeça em triunfo, em seguida pressionou uma maçã contra cada
narina e inalou profundamente.
Janner sorriu enquanto Mobrik se afastava, embora soubesse que o
caixão o esperava. Essa seria sua última noite em um beliche por muito
tempo, caso tudo corresse conforme o planejado. Ele estava determinado a
aproveitá-la.
Isso havia acontecido dias atrás, pelo que Janner conseguia imaginar.
Agora, na escuridão daquela caixa, suas costas doíam. Queria virar de lado,
mas não havia espaço. Ele havia pensado que sua primeira vez no caixão
tornaria essa vez mais fácil. Havia tornado o início mais fácil, porque ele
não teve que passar pela terrível experiência de descobrir que estava preso,
mas saber que teria que suportar três dias, em vez de dois, era
enlouquecedor.
O estômago de Janner roncou novamente, e ele pensou na última maçã.
Ele havia tirado quatro da cesta, perdido uma para Mobrik no início, depois
dado a ele duas em troca do favor. Escondera a última em sua grande luva
até sua segunda disparada pela fábrica.
Ele havia esperado até encontrar Sara Cobbler na hora do almoço, e ela
confirmar que Mobrik realmente mantivera sua palavra. Assim que Janner
voltou à estação de aparas, preparou-se para outra corrida. Largou sua
tesoura gigante, colocou a maçã no bolso, esperou até que os gerentes de
manutenção estivessem olhando para outro lugar e saiu correndo.
Desta vez, ele correu pelos corredores em direção à escada com
facilidade. Na verdade, preocupou-se por um instante que sua fuga estivesse
indo bem demais. Não ouviu nenhum grito de alarme desta vez, nenhum
sinal de perseguição dos gerentes. Subiu os degraus um pouco frustrado
porque desta vez queria ser pego.
Então, chocou-se contra alguém. Alguém maior que uma criança.
Alguém com uma cartola ridícula.
“Outra tentativa de fuga, criança?” O Supervisor indagou com um
sorriso maligno.
Janner encolheu os ombros e sorriu.
O Supervisor empurrou Janner para o chão e desenrolou o chicote. “Você
não vai sorrir por muito tempo.”
A pior parte de estar preso no caixão desta vez era que ele não tinha
como cuidar de seus ferimentos. Vergões cobriam seus braços, costas e
coxas. O Supervisor o havia chicoteado até que Janner implorasse para
parar. Até mesmo os gerentes de manutenção desviaram o olhar,
provavelmente porque isso os lembrava de suas próprias surras com o
mesmo chicote.
“Levem-no”, ordenou o Supervisor. “Três dias no caixão.”
Assim, Janner estava deitado no escuro, pensando novamente em sua
família, em suas feridas, em Tink, onde quer que ele estivesse. Pensou na
neve limpa das Pradarias de Gelo, nos abraços acolhedores do pessoal de
Gammon. Seu estômago roncou novamente, e ele decidiu que era hora de
comer a maçã. Acabou muito rápido, mas pelo menos estava úmida o
suficiente para atenuar sua sede, e acalmou as pontadas de fome por um
tempo.
Ele dormia aos trancos. Caiu num transe entorpecido, no qual suas
memórias giravam diante de seus olhos como fumaça. Cada pensamento
amargo que ele já tivera, cada palavra cruel que havia dito a seu irmão ou
irmã, cada ação egoísta que já fizera emergiu da escuridão como um
fantasma a zombar dele. Ele repassava discussões, desejando ter dito
algumas coisas, desejando não ter dito outras.
Estava preso em um lugar onde tudo o que tinha era ele mesmo e,
embora nunca tivesse se considerado uma pessoa má, todas as motivações,
pensamentos e ações que desfilavam pela escuridão lhe diziam o contrário.
Até mesmo sua aliança com Sara Cobbler foi motivada pelo egoísmo. Era
verdade que ele esperava ajudá-la a escapar, que queria muito que ela fosse
livre. Mas estaria ele disposto a libertá-la se isso significasse que ele teria
que ficar? Envergonhou-se da resposta. Todas as suas justificativas — de
que era um Guardião do Trono, que tinha que manter Tink seguro, que de
alguma forma ele e seu irmão e irmã poderiam ajudar a manter o sonho de
Anniera vivo —, tudo isso perderia sentido se ele se achasse, de alguma
forma, mais digno de ser posto em liberdade do que qualquer uma das
outras crianças da fábrica, especialmente a bela Sara Cobbler.
Após o terceiro longo dia, a porta do caixão finalmente se abriu. Como
antes, a luz feriu os olhos de Janner. Ele gemeu e saiu do caixão com
dificuldade.
“Fora, Sabóvel. Vejo que você consegue encontrar frutas até mesmo na
caixa”, comentou Mobrik ao ver o miolo amarronzado da maçã no caixão.
“Ele é um menino sorrateiro, ele é. Vamos. O Supervisor quer falar com
você.”
Apesar de estar cansado até os ossos, de ter seu corpo machucado pelo
chicote, de estar com fome, sede e coberto de sujeira, Janner sorriu. Mal
podia esperar para visitar o Supervisor
44

Montanhas e Algemas

Janner subiu os degraus da masmorra lentamente, determinado a fazer suas


pernas rígidas funcionarem. Ele precisaria delas muito em breve.
Assim como da última vez, Mobrik o levou para a grande sala vazia
onde a carruagem estava. Nenhuma luz do sol brilhava através das janelas
altas, o que significava que era noite. Perfeito. Contanto que Mobrik não
tivesse mudado a programação, as coisas estavam acontecendo exatamente
como Janner esperava.
No centro da sala, o triste cavalo marrom estava atrelado à carruagem,
assim como antes, exceto por estar de frente para o portão levadiço, como
se o Supervisor estivesse se preparando para partir, talvez em uma de suas
viagens ao Beco Tilling para pegar mais crianças sequestradas.
A mente de Janner fervilhava, mas ele estava cansado e rígido demais
para decidir se essa mudança inesperada afetaria ou não sua fuga. Antes que
pudesse se preocupar mais com isso, Mobrik empurrou Janner pela porta do
escritório do Supervisor.
O Supervisor estava sentado em frente à sua mesa, com um livro-razão
aberto diante dele. A cartola, para surpresa de Janner, não estava em sua
cabeça, mas em um gancho ao lado da porta. O chicote pendia de um
gancho ao lado do chapéu.
“Olhos em mim, ferramenta.”
Janner assentiu, tentando parecer mais exausto do que realmente estava.
Queria que o Supervisor e Mobrik acreditassem que ele finalmente fora
derrotado.
“Pois bem... Chegou ao meu conhecimento que você é uma... ferramenta
engenhosa. Mobrik, aqui, me informou que você foi capaz de conseguir três
maçãs.”
“Quatro, senhor”, emendou Mobrik, segurando o miolo da maçã do
caixão.
O coração de Janner acelerou. Ele tinha certeza de que, de alguma
forma, eles o haviam descoberto. Baixou a cabeça e fechou os olhos,
pedindo para que Sara Cobbler não tivesse sido punida.
“Quatro?” Disse o Supervisor. “Então... você conseguiu levar comida
para a caixa com você. Como eu disse, engenhoso. Concorda, Mobrik?”
“Sim, senhor.”
“Agora, ferramenta, é óbvio que você conseguiu enganar Mobrik, aqui.
Você tirou as maçãs de sua cesta de frutas quando ele não estava olhando e
as guardou para lanches posteriores. Mobrik me disse que pegou você
tentando comê-las em seu beliche.”
“Isso mesmo, senhor”, concordou o corre-crista, com um olhar nervoso
para Janner. “Peguei a ferramenta mastigando em sua cama. Tomei as
maçãs e as comi eu mesmo. Não podia deixá-las apodrecer, senhor. Sabe o
que dizem: ‘Quanto mais tempo passa, pior fica’.”
O Supervisor ergueu uma sobrancelha, e a esperança cintilou no coração
de Janner. O corre-crista havia mentido sobre as maçãs. Talvez isso
significasse que ele havia mantido a transferência de Sara em segredo,
afinal. Talvez o corre-crista realmente tivesse honrado seu juramento.
“Sim, sabemos que você é apaixonado por frutas, Mobrik. Obrigado.
Agora, cale a boca.” O Supervisor voltou sua atenção para Janner
novamente. “Portanto, proponho a você, ferramenta, que aceite uma
promoção probatória ao posto de Aprendiz de Gerente de Manutenção. Eu
mantenho meus olhos abertos para meninos e meninas engenhosos. Você
não seria mais forçado a aparar as lâminas. Você teria certas... liberdades.
Um novo beliche, por exemplo. Nada tão duro e desconfortável como
aquele em que você está. E, com o tempo, você trabalharia menos horas —
contanto que desempenhe bem sua função.”
Janner tentou parecer grato.
“O melhor de tudo é que você vai receber pão com sua sopa. Que tal
isso?”
Janner acenou com a cabeça novamente, de repente inseguro de si. A
ideia de uma cama mais macia, pão com sua refeição e, acima de tudo,
nunca mais ter de erguer a tesoura de metal novamente o fez hesitar. Estaria
ele agindo cedo demais? Estava na fábrica há apenas uma semana e já
estava sendo promovido. Se ficasse mais tempo, talvez descobrisse outras
oportunidades de fuga, oportunidades que não fossem tão arriscadas.
Afinal, se seu plano atual não funcionasse, ele seria chicoteado e jogado no
caixão novamente. Ele engoliu em seco. Quatro dias na caixa, sem comida
nem água, sem luz, sem espaço para se mover e, desta vez, sem nem mesmo
uma maçã para sustentá-lo, seria demais para suportar.
“Muito bem”, prosseguiu o Supervisor. “Termine seu turno atual na
estação de aparas. Amanhã vamos designar um Treinador Gerencial para
você. Que tal o Gimbleton, Mobrik?”
“Ahn... senhor?” Perguntou Mobrik, que estava mordiscando os últimos
pedaços de maçã no miolo.
“Eu disse: você acha que Gimbleton seria um bom treinador para nossa
ferramenta aqui?”
“Sim, senhor. Gimbleton é engenhoso também. E maldoso. A ferramenta
já o encontrou antes. Lembra do garoto que você conheceu no primeiro dia
aqui? Aquele com a corrente?”
Janner se lembrava, e a ideia de trabalhar com aquele garoto podre lhe
dava ânsia. Ele não queria aprender nada com Gimbleton, nem Mobrik,
muito menos com o Supervisor. Ele queria encontrar sua família.
O Supervisor se levantou e fechou seu livro-razão. “Escolte a ferramenta
até sua estação, Mobrik, depois volte rapidamente. Vamos para o Beco
Tilling novamente.” O Supervisor tirou o chapéu e o chicote da parede.
“Chegou a notícia de que os enlutados coletaram mais ferramentas para
troca. E, Mobrik?”
“Senhor?”
“Fique de olho em suas frutas desta vez. A ferramenta aqui é sorrateira.”
Mobrik fez uma reverência e empurrou Janner para fora do escritório
atrás do Supervisor.
“Gostaria que você conduzisse esta noite, Mobrik. Estarei na
carruagem”, enunciou o Supervisor enquanto cruzava a grande sala com seu
chapéu e chicote nas mãos. Mobrik empurrou Janner em direção às portas
duplas que levavam à fábrica.
O momento havia chegado. Janner tinha que decidir. Ficar quieto,
obedecer ao Supervisor e aprender a se tornar um gerente de manutenção ou
correr como um louco e orar para que a jovem Sara Cobbler fosse tão
corajosa quanto seus olhos eram bonitos. Mas ele não contava com a saída
do Supervisor. Era para ele estar em sua mesa no escritório, como da última
vez. O coração de Janner disparou como um cavalo a galope. Se algo desse
errado, seria o caixão novamente, e não apenas para ele, mas também para
Sara Cobbler.
Ele não conseguiria fazer isso. Mesmo se estivesse disposto a encarar a
caixa novamente, não poderia suportar a ideia de Sara no caixão, tudo por
causa de seu plano tolo e apressado para escapar.
Ao se aproximar das portas duplas, ele cerrou os punhos e a mandíbula
em frustração. Odiava a ideia, mas talvez fosse melhor passar um tempo
como gerente de manutenção e aprender melhor as rotinas da fábrica para
encontrar seus pontos fracos. Então encontraria uma saída que não
colocasse Sara em risco. É claro que ele teria de tratar as crianças com tanta
crueldade quanto os outros gerentes, ou o rebaixariam novamente para a
estação de aparas.
Janner olhou para suas mãos. As bolhas haviam cicatrizado e deixado
calosidades nodosas endurecidas nas palmas das mãos e dedos. Elas o
lembraram das mãos de Podo, e Janner parou no meio do caminho.
Ao pensar em seu avô, alguma força oculta e impulsiva que corria no
sangue de Janner ganhou vida e explodiu como um raio. Uma energia ardeu
em suas juntas e aprumou seus ossos. Se Mobrik estivesse observando
Janner em vez de olhar para o chão, teria visto o garoto crescer cinco
centímetros diante de seus olhos.
Em sua mente, Janner teve a percepção de um redemoinho de cor e calor
que girou como um moinho de água por um momento e então se compôs
em uma imagem. Viu sua irmã, tão real quanto as portas duplas à sua frente.
Leeli estava sentada em um lugar iluminado, cercado por montanhas
nevadas, segurando sua harpa eólica contra os lábios. Janner viu figuras
borradas ao fundo, mas não tinha certeza de quem eram. Então, uma das
figuras passou mancando, inconfundivelmente Podo envolto em peles.
Mas onde estava Tink? A imagem girou novamente e o deixou tão tonto,
que ele cambaleou.
Como se viesse de um lugar muito distante, ele ouviu Mobrik interpelar:
“O que há de errado, ferramenta? Muito tempo na caixa desta vez?”.
A imagem se estabilizou novamente, desta vez no rosto de Tink. Ele
parecia com medo; seus olhos estavam machucados e inchados. Onde está
ele? Janner pensou. Como se respondesse, a imagem se ampliou, e ele viu
que seu irmão estava em uma gaiola. Algemas prendiam seus tornozelos e
pulsos e, nas bordas nebulosas da imagem, Janner enxergou várias figuras,
tão sujas e enlameadas que só podiam ser Marginais. O mais próximo deles
se curvou sobre a gaiola e falou com Tink. Janner não conseguia ouvir a
voz, mas soube, mesmo antes de o Marginal na imagem se virar, que era
Claxton Ardileza. A imagem girou novamente e desapareceu tão rápido
quanto havia aparecido.
Janner piscou e balançou a cabeça, tentando entender o que acabara de
ver. Sentiu uma onda de emoção: alegria ao ver sua irmã no pico gelado e
medo por Tink na gaiola. Mas estaria isso acontecendo agora? Seria apenas
um sonho, ou outra visão, como a que Leeli provocara nos penhascos,
quando os dragões-marinhos haviam falado?
Não importava. Todas as incertezas se foram. Janner sentia como se
pudesse irromper pelo portão levadiço com as próprias mãos e correr até o
covil tão rápido quanto um cavalo.
“Ferramenta!” Mobrik gritou.
“O quê? De-desculpe”, gaguejou Janner, fingindo ainda estar tonto.
“Qual é o problema?” Gritou o Supervisor. Janner se virou e o viu
inclinado para fora da porta da carruagem, chapéu na mão.
“A ferramenta parou de andar, senhor. Quase caiu”, informou o corre-
crista por cima do ombro.
“Você precisa da aguilhoada do chicote para acordá-lo, ferramenta?” O
Supervisor perguntou gritando.
Janner meneou a cabeça.
“Então se apresse. Já é tarde, Mobrik.” O Supervisor desapareceu
novamente na carruagem.
Janner passou pelas portas duplas e entrou no longo corredor escuro que
levava ao piso da fábrica. Mobrik cutucava Janner nas costas vez após vez,
ansioso para entregá-lo aos gerentes de manutenção e retornar à carruagem,
onde o Supervisor aguardava.
Mas, no meio do corredor escuro, Janner parou. Se houvesse mais luz,
Mobrik teria visto que os olhos de Janner estavam tão ardentes quanto as
janelas próximas. Teria visto que seus punhos estavam cerrados e sua
mandíbula firme. Na verdade, o pequeno corre-crista provavelmente teria
fugido.
Janner agarrou Mobrik pelo colarinho da camisa, ergueu a criaturinha e a
prendeu contra a parede, tapando sua boca com a mão antes que tivesse
tempo de gritar por socorro. Janner se inclinou sobre ele.
“Não pretendo ficar aqui nem mais um momento, corre-crista. Há muito
a fazer e muito longe para ir. Agora, estou feliz por você ter cumprido seu
juramento pelos Vales e pelas Cavernas, e estou oferecendo a você outra
chance de deixar sua raça orgulhosa.”
Os olhos de Mobrik se arregalaram.
Ótimo! Pensou Janner. Ele tem motivos para ter medo.
Vigor, como um vento fresco, sobejava dele, como se fosse mais que um
menino de doze anos, ou estivesse sendo transformado em mais do que isso
a cada fluxo de sangue real em suas veias.
“Se você jurar ficar quieto e me der tempo para escapar, então
deixaremos por isso mesmo. Acho que você preferiria que o Supervisor não
o fizesse vestir esse terno ridículo, nem lhe desse ordens como ele faz.
Acho que você gostaria de estar ainda nas Montanhas Picos-da-Morte,
tentando, junto de seu pessoal, distrair de seus frutos os cidadãos de Vales.
Estou certo? Então você se lembra de como era antes de Gnag e seus Fangs
estragarem tudo. Se eu conseguir sair daqui, há uma chance de que... de que
as coisas voltem a ser como eram. Você e seu povo poderiam voltar para
casa. Entendeu?”
Janner mal se entendeu, mas Mobrik assentiu.
“Então você vai ficar quieto? Eu só preciso de dez minutos. Você pode
fazer isso?”
Mobrik anuiu com a cabeça novamente.
“Bom. Agora vou soltar você. Fique aqui no corredor por dez minutos, e
o Supervisor não saberá que você me ajudou. Diga a ele que... diga que dei
um soco em você e o deixei inconsciente ou qualquer coisa assim.” Mobrik
acenou com a cabeça novamente. Janner soltou a boca de Mobrik, embora
mantivesse o punho cerrado e pronto para atacar, caso o homenzinho
tentasse dar o alarme.
Em vez disso, Mobrik perguntou: “Quem é você?”
Janner respirou fundo. “Meu nome é Janner Wingfeather, Guardião do
Trono de Anniera.”
Mobrik teve um sobressalto. “Você é uma das joias!”
“Isso mesmo. Agora jure pelas Cavernas e pelos Vales.”
“Certamente, criança. Não tenho amor algum por Gnag ou pelo
Supervisor. Vá e faça o que quer que seja de tão importante.” Janner
estudou o rosto sombrio do homenzinho. Teria que confiar nele.
“Tudo bem. Dez minutos, e então soe o alarme que desejar. Já estarei
bem longe.”
Janner o soltou.
E tão repentinamente que Janner levou um momento para entender o que
estava por acontecer: o corre-crista correu em direção às portas que
levavam à carruagem, gritando a plenos pulmões.
45

O Destino de Sara Cobbler

Não!” Janner gritou. Ele correu atrás de Mobrik tão rápido quanto suas
pernas doloridas podiam levá-lo, mas poucos homens conseguiriam
ultrapassar um corre-crista. Assim que Mobrik bateu nas portas duplas de
vaivém, Janner reuniu todas as suas forças e mergulhou atrás dele. Seus
dedos prenderam apenas o suficiente da bota de Mobrik para derrubá-lo, e
os dois lutaram na porta. Janner o arrastou de volta para o corredor escuro,
notando, enquanto o fazia, que a porta da carruagem se abriu.
Pegar um corre-crista é quase impossível. No entanto, subjugar um, uma
vez capturado, embora não seja uma experiência agradável, é bastante fácil.
Por mais que odiasse fazer isso, Janner fechou os olhos, ergueu o punho
para trás e socou Mobrik no rosto com toda a força.
Janner havia lutado com Tink muitas vezes, mas eles tinham uma regra
tácita de que socar ou estapear o rosto era inaceitável. Essa era a primeira
vez que Janner empregava seu punho dessa forma. Ele sentiu uma dor surda
nos nós dos dedos, e o corre-crista ficou mole. Os passos do Supervisor se
aproximavam da porta.
Janner arrastou Mobrik até a parede e olhou em volta freneticamente,
imaginando o que fazer. O Supervisor não era um homem grande, mas era
muito maior do que Janner e tinha o chicote. Mobrik não tinha arma; Janner
não tinha arma. Sua única vantagem era a velocidade.
Era isso, então. Assim que o Supervisor abrisse a porta, Janner correria o
mais rápido que pudesse.
Afastou-se das portas, agachou-se numa posição de largada e esperou.
O Supervisor parou do outro lado da porta. “Mobrik?” Ele o chamou.
“Você está aí?”
Janner esperou. Através da janela suja, ele podia ver a cartola se
inclinando, enquanto o homem tentava ouvir.
O Supervisor mudou de posição e deu um passo para mais perto da
porta. “Mobrik?”
Janner não aguentou mais. Ele correu com toda a força que conseguiu
reunir. Fechou os olhos, mostrou os dentes e bateu com o ombro na porta de
vaivém. Ela atingiu o Supervisor no rosto, jogando-o para trás, que caiu
com força de costas.
Os pés de Janner mal tocavam o chão enquanto corria. Com o canto do
olho, ele viu dor e confusão no rosto do Supervisor e, sem pensar ou saber
por quê, Janner agarrou a cartola de onde ela havia caído.
“Sara!” Janner gritou. “Abra o portão! Agora!” Janner correu direto para
o portão, orando a cada passo para que Sara fosse uma das duas crianças no
vão e que ela encontrasse coragem para seguir com o plano.
“Ferramenta!” Esbravejou o Supervisor.
Janner olhou para trás e viu o Supervisor se levantar e mancar até onde
estava seu chicote.
“Sara!” Ele gritou novamente.
O portão levadiço não estava se movendo. E se Sara não estivesse neste
turno ou não tivesse conseguido fazer com que a outra criança a ajudasse?
“Sara, por favor!” Ele ofegava, falando quase para si mesmo. Sua
explosão de força estava diminuindo. Ele havia passado três dias em uma
caixa com nada além de uma maçã para comer e estava começando a sentir
isso.
“Ferramenta!” O Supervisor enfureceu-se novamente. “Não há como
escapar da fábrica!”
Então Janner viu uma fresta entre a rua de paralelepípedos e os dentes do
portão levadiço. Ele estava subindo.
Ao passar pelo cavalo e pela carruagem, uma ideia lhe ocorreu. Ele deu
um salto da roda dianteira da carruagem até o assento do condutor, agarrou
as rédeas e as agitou.
“Vamos! Vamos, garoto!” Ele bradou, e o triste cavalo abaixou a cabeça
e fez força. Janner olhou para trás e viu o Supervisor se aproximando,
estalando o chicote violentamente. Mas estava ferido. Suas costas estavam
arqueadas, e o homem puxava uma das pernas atrás de si.
O Supervisor gritava repetidamente, mas Janner havia parado de ouvir.
Se Sara abrisse a porta em tempo — já estava quase totalmente aberta —
ele se abaixaria e a pegaria pela mão. Janner a puxaria para o assento da
carruagem e galopariam pelas ruas vazias de Cavadópolis até terem certeza
de que haviam deixado seus perseguidores para trás.
O cavalo trotava. Janner abaixou a cabeça quando a carruagem passou
pelo corredor de entrada. Através da abertura do portão levadiço, ele
conseguia ver as ruas escuras de Cavadópolis.
Ele parou o cavalo no portão e olhou para o canto escuro onde Sara
estava. Ela e um menino seguravam a corrente que mantinha o portão
levadiço aberto. Seus olhos estavam arregalados de medo.
“Sara, vamos. Não temos tempo.”
Ela meneou a cabeça.
“Sara! O Supervisor está vindo. Temos que ir.” Janner estendeu a mão
para ela, exatamente como havia planejado.
Mas Sara meneou a cabeça novamente. “Não tenho para onde ir, Janner.
Vou morrer lá fora.”
“Não, você não vai! Vou levar você para seus pais. Não quer ver seus
pais de novo?”
“Os Fangs vão nos encontrar. Eles vão me colocar na Carruagem Negra
novamente. Não vou aguentar. Não vou. Pelo menos aqui há comida e água
e uma cama para dormir.”
“Sara, por favor. Você tem que vir comigo. O Supervisor... ele sabe que
você me ajudou. Ele me ouviu chamar seu nome.”
A voz enfurecida do Supervisor ecoou atrás deles. O menino ao lado de
Sara começou a chorar.
“Shhh...” Interrompeu ela. “Vai ficar tudo bem. Janner, vá.”
Janner estava determinado a não deixá-la. Ele não queria deixar
nenhuma das crianças na fábrica. Queria amarrar os braços do Supervisor,
trancá-lo em seu escritório, escancarar as portas da fábrica e libertar as
crianças. Mas para onde elas iriam? Talvez Sara estivesse certa. Elas
invadiriam as ruas escuras de Cavadópolis e tentariam encontrar seus pais,
mas muitas dessas crianças nem eram de Cavadópolis. Como Sara, elas
haviam sido capturadas pela Carruagem Negra e trazidas para cá, em vez de
Dang. Parecia não haver nenhum lugar seguro no mundo inteiro para
crianças — nenhum lugar seguro, exceto as Pradarias de Gelo.
“Sara, ouça”, pediu Janner. “Se você ficar, o Supervisor vai jogá-la no
caixão novamente. Ele talvez mande você embora na Carruagem Negra de
qualquer modo. Pelo menos comigo você tem uma chance. Por favor.”
Sara respirou fundo. Janner estendeu a mão novamente. Ela meneou a
cabeça e, com a mão trêmula, tentou alcançar o mecanismo que prendia o
portão levadiço.
“Ferramentas”, veio a voz perversa do Supervisor. Ele estava na parte
traseira da carruagem, encostando-se na roda para se apoiar. Estalou o
chicote e deu um sorriso zombeteiro para Janner.
Sara gritou! O menino que estava com ela largou a corrente e cobriu os
olhos com as mãos. Ele se espremeu em um canto e se encolheu como uma
bola. O portão levadiço desceu um entalhe.
“Janner, vá! Não consigo segurar!” Sara gritou, olhando não para Janner,
mas para o Supervisor, que avançava lentamente entre a carruagem e a
parede de tijolos.
Janner poderia detê-lo. Tinha feito isso uma vez, e agora o homem
enlouquecido estava ferido. Ele teria que ser rápido, mas poderia fazê-lo.
Pouco antes de ele saltar até o chão para confrontar o Supervisor, Mobrik
apareceu. Ele se moveu rapidamente, passou pela carruagem e entrou no
vão onde Sara estava. O corre-crista puxou os cabelos dela e agarrou suas
mãos, tentando forçá-la a soltar a corrente que segurava o portão levadiço.
O portão desceu mais um entalhe. Um a mais e a carruagem não passaria.
“Vá!” Sara gritou novamente.
Já queimando de culpa, já dolorido pela tristeza que sabia que sentiria,
Janner agitou as rédeas. A carruagem avançou, quicando enquanto passava
por sobre o pé do Supervisor, arrastando-o para o chão. Mobrik finalmente
venceu Sara Cobbler, e o portão levadiço desceu. A parte traseira da
carruagem ultrapassou o portão em queda por centímetros.
Janner se virou, com lágrimas ardendo em seus olhos, e teve um último
vislumbre do letreiro Fábrica! Garfos! Ver abaixo dele, através das barras
do portão, ele viu o Supervisor rolando no chão, gritando. Viu o rosto de
Mobrik, com os lábios curvados de ódio enquanto assistia a Janner escapar.
E ouviu Sara Cobbler chorando.
Por vários minutos, Janner não ouviu nada, exceto aquele som. Ele
encheu sua cabeça e se tornou não apenas a voz de Sara, mas a voz de todas
as crianças em Skree, todos os pais em Skree cujas vidas haviam sido
rasgadas e destruídas como papel velho.
46

O Covil Marginal

A carruagem cambaleou pelas ruas de Cavadópolis, e logo Janner percebeu


que chorava e que estava tão cansado a ponto de adormecer no oscilante
banco do condutor. Fechou os olhos e deixou o cavalo correr.
Ele não tinha certeza de quanto tempo havia passado, quando o cavalo
finalmente parou. Janner abriu os olhos e descobriu que a carruagem havia
parado no meio do cruzamento de duas vias: Avenida Verde Florescer e
Avenida do Vinhedo. Parecia quase igual às outras vias que ele vira: prédios
altos com janelas escuras, adormecidos sob o brilho das torres de tochas, e
com lixo que cobria as calhas. Nada se movia.
“E aí! Supervisor!” Veio uma voz de cima.
Janner congelou. Ele estreitou os olhos para a torre de tocha mais
próxima. Um Fang estava agachado na beirada da plataforma — a silhueta
recortada contra o fogo. A mente de Janner paralisou de terror.
“Para onde você vai esta noite, hein?” O Fang gritou.
A cartola. Estava no assento, ao lado de Janner. O mais casualmente que
pôde, ele a colocou na cabeça.
“Ahn... Beco Tilling, senhor”, informou rispidamente.
“Mais crianças para trocar, então. Bom. O chefe vai gostar disso.”
“Sim. Ahn... vai, sim.”
“Bem, então”, disse o Fang, “vá em frente.”
Janner acenou com a cabeça e se afastou o mais rápido que ousou. Virou
a carruagem na Avenida Verde Florescer. Se ele se lembrava corretamente,
a Verde Florescer cruzava com a Estrada do Rio e, sendo assim, ao chegar
lá, bastaria virar à esquerda e segui-la para fora de Cavadópolis.
Poucos minutos depois de ter virado na larga via, um regimento de
Fangs passou marchando. Janner lutou contra todo o instinto de seu corpo
de pular da carruagem e fugir. Em vez disso, abaixou o chapéu e conduziu a
carruagem sem olhar para os Fangs, que passaram marchando sem nem um
olhar sequer.
Vários minutos depois, Janner alcançou a esquina onde o Espadachim
Floreado havia lidado com os Fangs. Duas portas abaixo pendia a placa da
Viúva Rechonchuda. Janner engoliu em seco ao passar com a carruagem,
esperando que Ronchy McHiggins estivesse são e salvo, dormindo
profundamente em seu quarto solitário. Ele olhou tristemente para o beco
atrás da taverna. Foi lá que ele havia estado pela última vez com sua família
e Oskar. Foi lá que as coisas haviam saído terrivelmente de controle, graças
a Migg Landers.
Então se lembrou com um sobressalto de que o Supervisor e Mobrik
certamente soariam um alarme. Eles avisariam os Fangs de que ele havia
escapado — e Mobrik lhes diria quem ele era. Eles não estariam apenas
procurando por um garoto, mas por uma das Joias de Anniera.
A carruagem passou por garagens de barcos, pelo lugar onde ele vira
Tink pela última vez, por Crempshaw e pelo atalho que enviara Janner ao
Beco Tilling. Enquanto passava, as torres de tocha sibilavam e estalavam
acima, mas nenhum dos Fangs de vigia disse nem uma só palavra, embora
Janner sentisse seus olhos nele. À sua direita, mais escuro que o céu
noturno, estava o Grande Blapp. Janner estava ciente do rio apenas como
uma extensão da escuridão com um odor de peixe e, de vez em quando,
ouvia barulhos de respingos na água ou o casco de um barco contra a doca.
Nos limites de Cavadópolis, os edifícios se tornaram mais esparsos e as
estradas, mais acidentadas. Pedras soltas sacudiram a carruagem repetidas
vezes, até que Janner se viu sacolejando por uma estrada lamacenta e
esburacada.
Janner freou o cavalo e olhou para trás, para a cidade. Vinha subindo
gradativamente havia algum tempo, e o rio agora batia no fundo de uma
encosta íngreme que corria para a direita. Ele havia passado pela última das
torres de tochas e se sentia muito mais seguro na escuridão dos arredores da
cidade.
A julgar pela vista da cidade abaixo dele, a casa com o covil Marginal
deveria estar perto. Pela primeira vez desde sua fuga, Janner acreditou que
poderia realmente ver sua família de novo. Tentou não pensar na imagem
que vira de Leeli nas montanhas nevadas. Se isso fosse verdade, significava
que sua família o havia deixado para trás. Eles o haviam abandonado. Fazia
dias — não tinha certeza de quantos — desde a separação na Viúva
Rechonchuda, e a parte racional dele sabia que não poderiam esperar para
sempre. Podo precisava pensar em Leeli, sem falar em Nia e Oskar.
Mas como podiam ter simplesmente partido? Não, eles ainda estariam lá,
esperando.
Janner imaginou o abraço caloroso de sua mãe e a expressão no rosto de
Leeli quando ele aparecesse no covil. Podo daria tapinhas em suas costas e
bramaria sua aprovação por Janner ter encontrado um caminho de volta.
Mas e quanto a Tink?
A imagem de Tink na gaiola acabava com todos os pensamentos de
alegria e de um feliz reencontro. Se a visão de Tink na gaiola fosse
verdadeira, não haveria tempo para se alegrar.
Janner afastou esses pensamentos e desceu da carruagem. Não havia
nada a fazer, a não ser encontrar o covil e desejar que sua família ainda
estivesse lá.
Ele desafivelou o arreio do cavalo, deu um tapa em seu traseiro e ficou
olhando enquanto ele galopava para longe.
Em seguida, Janner correu também. Ele saltou sobre buracos enquanto
trotava morro acima, mantendo um olhar atento aos prédios à sua esquerda.
Estava preocupado em não se lembrar de como era a velha casa, mas então
ele a viu.
Parou na frente da casa, imaginando onde o velho roncador poderia estar,
e ficou escutando. Ouviu o grande silêncio do rio atrás dele. Cabras e
galinhas alvoroçavam-se, dormindo nas proximidades. Sapos coaxavam. E
um sino tocou.
A pele de Janner ficou gelada. Ele olhou encosta abaixo, para
Cavadópolis, e viu movimento. O sino retinia e retinia, e então mais sinos
se juntaram a ele. O som irrompeu colina acima como uma onda invisível.
De repente, o fogo nas torres de tochas se intensificou. Primeiro um, depois
outro e mais outro, até que todos eles arderam duas vezes mais
intensamente do que antes. Mesmo à distância, Janner se sentiu exposto.
Então, como uma longa serpente de muitos olhos, uma hoste de Fangs
carregando tochas se moveu pelas ruas e se ajuntou na Estrada do Rio.
Ele havia visto Fangs reunirem-se dessa forma na noite em que entraram
em Glipwood, vindos do Forte Lamendron. Estavam em movimento e
vindo direto para ele. Já dava para ouvir o tump-tump-tump da marcha.
Janner se atirou na casa às escuras.
Os Fangs já estavam perto o suficiente para que ele pudesse ouvir os
marcadores da marcha berrando uma cantilena e batendo tambores. Era
difícil de acreditar que ele fosse a causa de todo esse problema. Eles
realmente precisam de todo um exército de Fangs para encontrar um
menino? Pensou consigo.
Seu pé bateu no anel de ferro do alçapão que levava ao porão. Ele o
abriu, desceu e fechou a portinhola. Depois, tateou seu caminho na
escuridão até a parede onde Podo acionara o mecanismo que abria a porta
secreta. Então, apalpou as rachaduras na parede, assim como Podo havia
feito, encolhendo-se ao pensar nos insetos que poderia perturbar.
Por favor, suplicou Janner, que eles ainda estejam aqui. Se os Fangs
fossem finalmente pegá-lo, então ele não queria estar sozinho. Ficou cada
vez mais frenético, à beira das lágrimas, à medida que o mecanismo lhe
escapava, implorando ao Criador que permitisse encontrar seus queridos ali
no covil. Finalmente, sentiu um minúsculo fio de metal com um laço na
extremidade. Enfiou o dedo no laço e puxou. Ouviu um clique e, então, o
rangido do alçapão se abrindo em algum lugar atrás dele.
Pôs-se de quatro e rastejou até a abertura no chão. Não havia brilho de
lâmpada, nenhum som de respiração. Um silêncio negro e vazio o esperava
no covil. O coração de Janner pesou. Talvez tenham apagado a vela, ou
talvez estejam escondidos no túnel, pensou ele, sabendo que era uma
esperança tola.
Com um suspiro pesado, Janner enfiou os pés pelo buraco e desceu.
Fechou o segundo alçapão e desceu na escuridão tão densa quanto o caixão
do Supervisor. Depois de um momento de busca, encontrou a lanterna ao
lado da escada e a caixa de fósforos com ela.
Quando a luz amarela do fósforo encheu a câmara, Janner ficou tão
chocado com o que viu, que não teria ficado surpreso se seu coração subisse
pela garganta, saltasse pela boca e aterrissasse com um baque empapado no
chão de terra.
Alguém estava sentado contra a parede oposta, olhando para ele.
Estava vestida com trapos; sua pele mostrava-se nodosa e coberta de
sujeira endurecida, e seus olhos eram poços sem fundo na paisagem
enrugada de seu rosto. A figura lhe parecia familiar, o que dizia a Janner
que ela devia ser uma das desgrenhadas do Beco Tilling.
Ele deixou cair o fósforo e tudo ficou escuro.
Ela riu. Foi uma risada seca como papel, um estalo morto.
“Criança”, ela sussurrou.
Janner estava apavorado demais para se mover. Ele a imaginou
rastejando em sua direção com movimentos bruscos, aqueles olhos grandes,
negros, aracnídeos, capazes de, por algum meio, vê-lo no escuro. Os Fangs
batiam e rosnavam na casa acima. Ele se perguntou o que era pior: a captura
pelos Fangs ou o fedor úmido da desgrenhada no porão.
“Criança”, ela sussurrou novamente, mais alto.
Janner fechou os olhos e tentou calar o mundo. Quando ouviu a mulher
grunhir e se arrastar pelo chão em sua direção, sua respiração começou a vir
em suspiros curtos e desesperados. Sua cabeça pareceu inchar; pontos
brilhantes de luz dançavam em suas pálpebras.
A mão dela tocou o pé de Janner, ele tentou gritar, mas sua voz não fez
nenhum som. As estrelas explodiram em cores ardentes, e ele teve a
sensação de cair lentamente para cima e para dentro do terrível e silencioso
vazio do espaço.
47

Uma Mudança de Coração

A próxima coisa que Janner soube foi que estava tossindo. Havia terra em
sua boca. Ele salivou e cuspiu, ansiando por um copo de água para lavar a
areia granulosa de seus dentes e língua. Quando abriu os olhos, ficou
surpreso ao descobrir que havia luz. Então ele se lembrou da desgrenhada,
dos Fangs, da mão em seu pé...
Ele se sentou.
A mulher estava sentada contra a parede, com uma lanterna ao seu lado.
“Criança, você se esqueceu de cobrir seus rastros.” Ele não sabia do que
a mulher estava falando, então ela apontou. “A cordinha, criança. Sempre
puxe a cordinha.”
Janner olhou para a escada e viu uma cordinha pendurada perto da
parede. Ele se lembrou de que Podo a havia puxado para liberar terra do
teto e esconder o alçapão.
“Desculpe, ahn... eu esqueci. Os Fangs”, disse ele, “já se foram?”
“Oh, eles estão sempre por perto, rastejando ao redor de seu trabalho
assassino.” Ela fez uma pausa. “Você não se lembra de mim, lembra?”
Ele meneou a cabeça. O rosto era familiar, mas o sotaque era muito mais
forte do que o de Gorah, a desgrenhada. Ela estava tão suja que podia muito
bem estar usando uma máscara.
“Eu conhecia seu avô, lembra?”
“Núbia Brejeira?”
“Sim.” Ela suspirou.
“Mas... o que você está fazendo aqui? O que houve?”
“Devagar com as perguntas, rapaz. Primeiro as coisas mais importantes.
Você quer saber onde está sua família, não quer?”
“Você sabe onde eles estão?”
Núbia anuiu com a cabeça. “Primeiro as coisas mais importantes, rapaz.”
Ela tossiu e Janner viu que sua respiração estava superficial e aquosa.
“O que há de errado?” Ele perguntou.
“Claxton. Ele está louco como um murça.” Seu queixo estremeceu.
“Machucou a própria mãe; sim, fez isso.” Ela afastou o pensamento
acenando com a mão. “Não importa. Eu preciso agora é de água e preciso
que você me ajude a trocar o curativo em minhas feridas.”
Ela ergueu a lanterna para que ele pudesse ver sua lateral. Sangue
encharcava seu vestido esfarrapado.
“Claxton fez isso?” Janner perguntou baixinho.
“Sim. Agora corra escada acima e encontre um copo ou balde. Desça até
o rio e traga um pouco de água. Todos os suprimentos aqui se foram —
foram com sua família.”
“Por favor, me diga onde eles estão”, clamou Janner.
“Se você não me der água, posso desmaiar e nunca mais acordar. Já se
passaram dias, rapaz. Vá. Não deve ser difícil encontrar um recipiente em
todo esse lixo. E atenção com os Fangs. Não ouvi nada deles desde que
você tirou sua soneca.” Ela riu de novo, aquela risada fraca e quebradiça
que a fez tossir tanto que ela tombou de lado no chão.
Janner não esperou ouvir de novo. Escalou a escada. No topo, procurou
ouvir algum movimento, mas não havia nenhum. Quando empurrou o
alçapão, ele não abriu. Empurrou novamente, mas teve medo de quebrar a
trava.
“Ahn... Núbia?”
“Está atrás... da escada”, ela gemeu.
Ele encontrou outro arame enrolado atrás do degrau superior da escada,
puxou-o e a porta se abriu com um clique, espalhando sujeira no poço.
Quando saiu de casa, Janner percebeu que o amanhecer se aproximava
rapidamente. Nenhum Fang estava marchando e nenhum velho roncava na
varanda.
Na luz rosada e dourada do céu, pouco antes do nascer do sol, Janner
remexeu os destroços ao redor da casa até encontrar um grande pote de
barro. Não havia sinal de Fangs, então ele correu pela estrada e deslizou
pela margem até a beira da água. A superfície era vítrea, sem perturbações,
exceto por ondulações ocasionais onde insetos aquáticos pousavam. De
repente, um peixe rompeu a superfície, com muitos respingos, e ficou
suspenso no ar por um momento, antes de apontar seu focinho pontiagudo
de volta para a água e afundar.
“Um peixe-adaga!” Janner exclamou maravilhado. Então, mais
seriamente: “Um peixe-adaga”. Ele encheu o pote e se afastou da beira da
água.
Núbia Brejeira estava inconsciente quando Janner voltou. Ele a cutucou
e a ajudou a se sentar. Ela cheirava mal e a aparência era ainda pior, mas
Janner sentiu uma afeição surpreendente por ela. Núbia havia conhecido e
até mesmo amado Podo quando era mais jovem, o que a tornava menos
como uma desgrenhada ou uma Marginal e mais como uma avó há muito
perdida.
“Bem melhor”, constatou ela, depois de tomar um longo gole. “Agora
arranque um pedaço dessa camisa que está usando e limpe bem.”
Janner odiava estragar sua única camisa, mas fez o que lhe foi dito e
começou a trocar a bandagem de Núbia. O ferimento em sua lateral
lembrou Janner de Podo, na noite em que ele quase morreu na câmara de
armas da Mansão Pé-de-Geleia. Se ao menos ele tivesse o frasco de água do
Primeiro Poço. A velha Núbia certamente precisava disso mais do que o
baratodonte voraz.
“Melhor”, ela afirmou quando eles terminaram. Seus olhos estavam mais
límpidos. “Eu não queria que você fugisse sem cuidar da velha Núbia
Brejeira antes. Não posso confiar em alma alguma na Margem.”
“Você pode confiar em mim”, assegurou Janner.
Núbia estudou os olhos dele por um momento e sorriu. “Sim. Acredito
que posso.”
“Onde está minha família? Onde está Tink?”
“Tink?”
“Kalmar, quero dizer. Onde eles estão?”
“Bem, rapaz”, prosseguiu Núbia cuidadosamente. “Você não vai gostar
da resposta. E lembre-se, tudo o que estou prestes a dizer veio de vários
Marginais, de vários clãs. As notícias correm, você sabe.
Janner anuiu com a cabeça.
“Sua família partiu há três dias. Sua mãe estava aflita com uma grande
dor por você e seu irmão. Eles nunca a ouviram dizer uma palavra, mas ela
chorava muito. Chorava como se o sol tivesse se posto para sempre, me
disseram. Mas Podo continuava dizendo a ela que vocês, meninos, ficariam
bem. Disse que vocês sabiam cuidar de si mesmos e — que não permita o
Criador —, caso não soubessem, não havia nada que ele pudesse fazer a
respeito. Eles tinham a garota, sabe.”
“Leeli”, complementou Janner. Seu coração ficava mais pesado com
cada palavra que Núbia falava.
“Sim. E ele disse que, com vocês, garotos, desaparecidos e não tendo
sido pegos pelos Fangs, era responsabilidade deles agora mantê-la segura.
Esperaram o quanto puderam arriscar, e então partiram para as Pradarias de
Gelo, em meio a muitas orações e lágrimas por vocês, rapazes.”
Janner abaixou a cabeça.
“Podo estava certo quando disse que não havia mais nada que pudesse
fazer”, ela avaliou. “Ele teria vindo atrás de você, rapaz. Acredite nisso.
Mas ele não sabia onde você estava e, mesmo que soubesse, não teria como
invadir o Forte Lamendron ou o Palácio Torr tendo uma garotinha, um
velho livreiro e uma mãe enlutada para cuidar. Talvez em sua juventude —
ah, rapaz! Você deveria tê-lo visto quando era mais jovem.” Núbia exibia
um sorriso desdentado e um olhar distante.
“Eles me deixaram”, Janner concluiu em lamento, empurrando para
baixo o caroço que se desenvolvia em sua garganta.
Núbia concordou com a cabeça. “Sim. Deixaram. Sinto muito, garoto.”
“Espere.” Janner ergueu a cabeça. “E quanto a Tink? Kalmar? Você não
o mencionou. Ele está com eles, certo?”
Núbia suspirou e negou com a cabeça.
“Então, onde ele está?”
“Ele fez uma escolha, rapaz.”
“O que isso quer dizer?”
“Ele seguiu a estrada até aqui, assim como você.” Ela fez uma pausa.
“Mas continuou andando.”
“Isso não faz sentido”, protestou Janner.
“Nunca nem parou para ver se eles ainda estavam aqui”, ela continuou.
“E a pior parte disso? Eles estavam. Sua família inteira, sentada aqui na
terra e no escuro, enviando orações ao grande e silencioso Criador para que
vocês dois aparecessem seguros e inteiros. E Kalmar Wingfeather passou
direto sem nem olhar para trás, há quatro dias.”
Janner sentiu um nó na garganta. “Por quê? Por que ele faria isso?”
“Porque, seja o que for que exista dentro de um homem que o convoque
até o limite das coisas, que o chame para as sombras e para longe da luz,
deve ter soado poderosamente alto aos ouvidos dele. Seu irmão agora é um
Marginal, rapaz. Era isso que ele queria. Ele apareceu na Curva Oriental
com fogo nos olhos, ostentando o totem de Claxton como se fosse o dono
do lugar.”
Foi difícil para Janner ouvir qualquer coisa que Núbia Brejeira disse
depois dessas palavras. Parecia que suas entranhas estavam fervendo.
Raiva, depois descrença, depois confusão, depois tristeza, depois culpa —
as lágrimas de Janner encharcaram o solo do covil dos Marginais.
Por que Tink faria uma coisa dessas? Os Marginais eram vilões, ladrões
e assassinos — como Fangs sem escamas. Por que ele escolheria se juntar a
essas pessoas? O Rei Supremo de Anniera. Janner ficou contente por seu
pai não estar vivo para ver seu filho trair o reino assim. Ele sabia que Tink
estava com medo, que ele não queria ser rei. Mas isso? Um Marginal?
Então, tá! Pensou Janner, enxugando as lágrimas dos olhos. Deixe os
Marginais ficarem com ele.
Ele se levantou e olhou para Núbia Brejeira friamente. “Como faço para
chegar às Pradarias de Gelo?”
“Hein?”
“Tenho um longo caminho a percorrer”, declarou ele.
Núbia o encarou com uma expressão triste nos olhos. “Então, você o está
deixando para trás?”
“Você disse que ele fez uma escolha”, disparou Janner. “Não vou arriscar
minha vida para tentar convencê-lo a fazer algo que ele deveria querer
fazer. Estou cansado de ir atrás dele, cansado de suas piadas e seu egoísmo.
Estou cansado dele. Se ele quer ser um Marginal, não posso impedi-lo. Ele
teria sido um péssimo rei de qualquer maneira.”
Núbia não disse nada.
“E então?” Janner exigiu.
“Ao norte daqui”, ela respondeu depois de um momento. “Após cerca de
um dia de caminhada, você chegará à Barreira. Vá para o leste até encontrar
uma árvore velha e morta. Trinta passos depois, você encontrará uma
brecha na parede. A árvore morta é um poleiro de marbutres, então tome
cuidado. Mova-se rápido, ou eles provavelmente farão você de comida. É
fácil atravessar quando os Fangs estão procurando em outro lugar,
especialmente agora que as patrulhas são tão poucas.”
“Por que as patrulhas são menos numerosas?” Janner perguntou
enquanto cruzava a sala em direção à escada.
“Não sei. Mas os Fangs parecem cada vez menos preocupados com
skreenianos escapando para as Pradarias de Gelo, o que me deixa um pouco
preocupada com o que o velho Gnag, o Sem-Nome, pode estar fazendo sem
que saibamos.”
“Obrigado pela ajuda”, agradeceu Janner. “O que você vai fazer?”
“A velha Núbia Brejeira ficará bem, rapaz.” Ela sorriu novamente. “Mas
obrigado por se preocupar.” Ela fez uma pausa, olhando para Janner como
se quisesse dizer mais.
“O quê?”
“Eu tenho um argumento poderoso chutando em minha cabeça, rapaz.”
Ele esperou.
“Não sei muito sobre Anniera. Nem tenho certeza se tal lugar existe. Não
presto muita atenção ao que está acontecendo no grande mundo e que não
me afeta. Deixo as coisas acontecerem como quiserem”, explicou ela. “Mas
seu Podo fez algo por mim que ninguém mais faria. Eu me importo com
ele, sabe? O que quer dizer que me importo com o que ele se importa. Sei
que ele se importa com você e seu irmão, então agora tenho que me
perguntar se ele gostaria que você chegasse seguro, mas sozinho, às
Pradarias de Gelo, ou que você fizesse o que é certo — e talvez nem você,
nem seu irmão estejam fazendo isso.”
“Não entendo”, confessou Janner.
“Você não quer saber o que aconteceu comigo? Não é todo dia que sou
apunhalada pelo meu próprio filho.”
Janner ficou envergonhado de não se preocupar em perguntar sobre o
ferimento de Núbia. “Sinto muito”, desculpou-se ele. “O que aconteceu?”
“Seu irmão pode ter mãos rápidas, mais rápidas do que qualquer
Marginal que já vi, mas o velho Claxton também tem talentos. Não
demorou muito para descobrir que Kalmar Wingfeather estava de volta à
Margem. Mãos rápidas não tornam um menino invencível, não é?”
A raiva de Janner por Tink esfriou um pouco, e ele sentiu uma pontada
de medo. “O que aconteceu?”
“É a Carruagem Negra, rapaz.”
“O que tem a Carruagem Negra?”
“Os Fangs aparecem uma vez por semana, graças a um acordo que
Claxton fez com eles. Veja, ele queria que os Marginais da Curva Oriental
governassem mais do que apenas nossa pequena seção do rio. Não estava
contente com a forma como as coisas sempre foram. Você pode não saber,
mas os Fangs estão sob ordens pesadas de coletar mais e mais crianças, e as
crianças estão ficando cada vez mais difíceis de encontrar. Os Fangs
permitem que nós, na Curva Oriental, carreguemos adagas e fiquemos em
paz — contanto que tenhamos pra eles algumas crianças novas a cada
semana, para a Carruagem Negra.”
“O que isso tem a ver com Kalmar?”
“Claxton está com ele numa gaiola agora mesmo, esperando pela
Carruagem Negra. Kalmar pensou que seria bem-vindo na Curva Oriental,
como um filho perdido há muito tempo. Mas, como eu disse, você não pode
confiar em alma alguma na Margem. Assim que seu irmão apareceu na
Curva Oriental, Claxton bateu nele quase até a morte e pegou de volta seu
totem.”
“Não!” Queixou-se Janner.
“Sim. É verdade. E a velha Núbia Brejeira aqui tentou impedi-lo. Não
queria que o netinho de minha antiga paixão fosse levado embora. Mas,
como eu disse, Claxton está louco como um murça. Me apunhalou no
estômago e me chutou para o rio. Sua própria mãe.” Núbia cobriu o rosto
com as mãos.
Janner sabia que os Marginais eram um bando do mal, mas isso era pior
do que ele havia imaginado. E Tink queria se juntar a eles. Isso deixou
Janner enjoado.
“Eu sobrevivi, é claro”, prosseguiu Núbia, após uma fungada. “Soube
que Podo estava escondido neste covil, então vim o mais rápido que pude.
Tarde demais, como você vê. Eles já haviam partido quando cheguei. E seu
irmão terá partido após esta noite, quando a Carruagem Negra chegar.
Janner não sabia o que fazer.
“Então”, prosseguiu Núbia, “você percebe meu dilema. Se eu ficasse
quieta, você escaparia pela Barreira e teria pelo menos a chance de
reencontrar sua família. Mas agora que lhe contei que Kalmar está numa
gaiola, você vai fazer o que qualquer bom irmão faria. Vai tentar salvá-lo. E
você será pego e ambos serão levados embora.” Ela suspirou. “Acabei
condenando não um, mas dois meninos às Profundezas de Throg. Claro que
você poderia esquecer o que eu disse, fugir para as Pradarias de Gelo e
deixar Kalmar entregue a qualquer que seja o destino que o Criador tenha
para ele, como você disse que faria.”
Janner estava ao pé da escada, de cabeça baixa. Ele não podia deixar seu
irmão.
“Obrigado, Núbia”, agradeceu. “Estou contente por você ter me contado
tudo.”
“Então você vai tentar salvá-lo?”
“Sim, senhora. Eu preciso. Sou um Guardião do Trono.”
“Então você vai precisar disso.”
Ela acionou outra tranca escondida na parede e uma pequena porta
quadrada se abriu. Janner se assustou. Dentro havia duas mochilas de couro
— as que Nia havia feito para ele e Tink, completas, com espadas e arcos.
“Acho que Podo as deixou para você. Prova que o velho acreditava que
você chegaria aqui mais cedo ou mais tarde. A carne seca de verdugo
acabou. Eu comi. Queira me desculpar.” Ela lhe deu um sorriso pegajoso.
Em sua mochila, Janner encontrou um pergaminho dobrado com seu
nome, escrito na caligrafia de sua mãe. Ele deslizou para o chão e abriu a
carta, sem se importar com a maneira triste como Núbia Brejeira o
observava.

Meu querido Janner,


Em minha vida fui forçada a tomar muitas decisões difíceis. A decisão
de me casar com seu pai, ainda que isso significasse deixar Vales
Verdes e a maior parte da minha família. A decisão de deixar seu pai
enquanto o castelo ardia em chamas. A decisão de manter a memória
dele escondida de você e de seus irmãos. E agora parece que sou
forçada a tomar a decisão mais difícil de todas.
Não podemos ficar aqui para sempre. Os Fangs rondam, e os Marginais
são um bando ignóbil. Seus lábios se agitam como bandeiras em uma
tempestade, espalhando notícias de nossa fuga daqui até as bordas dos
mapas. É apenas uma questão de tempo até que os Fangs descubram
este covil. Precisamos, embora seja mais doloroso do que eu consiga
suportar, deixar vocês.
Seu avô me garante que você e seu irmão são mais capazes do que
muitos homens ao lado de quem ele lutou e que vocês encontrarão seu
caminho. Minhas lágrimas molharam o chão, e eu me opus a ele, mas
perdi essa luta. Sua irmã precisa ficar segura. Temos que seguir em
frente. Minha mão treme enquanto escrevo isto, tão grande é o meu
medo por vocês. Mantenha seu irmão seguro. Mantenha-se seguro. E
encontre seu caminho. Saiba que uma lareira de boas-vindas está acesa
para vocês nas Pradarias de Gelo. Que o Criador os ajude.
Com amor,
Sua mãe

Janner fungou e enxugou os olhos. No final da página, escrita com uma


caligrafia muito menos refinada, havia uma nota de Podo.
Rapaz,
Fique longe das estradas. Você e seu irmão precisam encontrar uma
brecha na Barreira e, em seguida, avançar para as montanhas. Ouvi de
um velho Marginal que as Montanhas Rochosas parecem mais
tranquilas a oeste, mas que isso é mentira. A única maneira de passar é
pelo leste, entrando nos penhascos. Encontre a trilha sinuosa que passa
pela encosta direita do pico mais alto. É chamado de Mog-Balgrik.
Oskar me disse que significa “O Nariz da Bruxa”.
Uma vez que passe por Mog-Balgrik, a encosta desce para as Pradarias
de Gelo. Depois disso, seu palpite é tão bom quanto o meu. Mantenha-
se longe de bambolhões e marbutres e penhascos. O bom é que você
não verá Fangs. Mantenha seu irmão mais novo seguro. Ele precisa de
você.
Podo

Abaixo da assinatura de Podo havia uma linha escrita em uma caligrafia


cuidadosa e fluida:

Janner, estou com seu livro. Vou mantê-lo seguro até você chegar. Nas
palavras de Bronwyn Pé Argênteo, “Espero que você não se importe.”

Oskar N. Reteep,
Apreciador do Organizado, do Estranho e/ou do Saboroso

Janner jogou as mochilas por cima do ombro e abraçou Núbia (tendo o


cuidado de não respirar pelo nariz enquanto o fazia). Ela beliscou sua
bochecha e lhe disse onde encontrar a alavanca para abrir as gaiolas, então
Janner escalou a escada para resgatar o Rei Supremo de Anniera.
48

As Gaiolas

Assim que saiu da casa, Janner avistou Fangs.


Uma companhia marchava para o oeste, descendo a colina até
Cavadópolis e, ao longe, mais deles se aproximavam da parte leste da
Margem. Janner voltou para a casa e espiou pela janela. O vento mudou de
direção, e Janner sentiu cheiro de fogo misturado com o fedor do rio e dos
Fangs. Então viu que casas, ao longo de todo o Blapp, estavam pegando
fogo. Isso provavelmente significava que em breve incendiariam a casa
onde ele estava escondido.
Seu primeiro pensamento mirou a Núbia Brejeira. Mas, mesmo que a
casa fosse totalmente queimada, o covil permaneceria escondido sob as
cinzas. Ele não tinha dúvidas de que ela conseguiria encontrar uma saída
por uma das passagens secretas. Mas como ele faria todo o caminho até a
Curva Oriental da Margem em plena luz do dia? Já seria difícil mesmo sem
os Fangs procurando, de todas as almas em Kistamos, o próprio Janner.
Ele respirou fundo. Não havia nada a fazer, a não ser correr e evitar a
estrada.
Janner pulou a cerca atrás da casa, pisoteou a lama do que costumava ser
um chiqueiro e disparou pelo campo de moitas até um grupo de árvores que
havia avançado sobre a cerca. Enquanto corria, as duas mochilas quicavam
e chacoalhavam, lembrando-o de Tink a cada solavanco. Nas árvores,
Janner recuperou a respiração e procurou por seu próximo ponto de
cobertura. Avistou um emaranhado de arbustos e espinhos no lado oposto
de outro pasto e correu.
Desse modo, Janner avançava para o leste, irrompendo de celeiros
decadentes, atravessando campos, por riachos rasos e cheios de ervas
daninhas, subindo colinas e assim por diante, até ficar coberto de cardos e
cortado por espinhos.
Ele não se permitia pensar em Sara Cobbler, nem em Núbia Brejeira,
tampouco em si próprio. Não pensava em nada além da visão de Tink na
gaiola. Em sua visão, ele estava assustado, com frio, sozinho e indefeso.
Janner ainda queria agarrá-lo pelos ombros e colocar algum juízo nele, mas
haveria tempo para isso depois que estivesse seguro.
Não demorou muito para que Janner visse sinais de um clã Marginal.
Fumaça subia de uma pequena fogueira na extremidade oposta do campo.
Figuras se moviam ao redor. Risadas chegavam até onde Janner estava
agachado no mato. Depois de vários minutos, ele rastejou pela grama alta
até ter certeza de que estava longe o suficiente para passar despercebido;
então, seguiu em frente, torcendo para que o restante dos clãs fosse tão fácil
de evitar quanto este.
Algumas horas após o sol começar a descer a oeste, Janner parou para
descansar. O odre de água estava vazio. Encostado nas pedras cobertas de
hera de um velho poço seco, ele comeu as últimas sete nozes salgadas que
havia em sua bolsa. Depois de vasculhar as duas mochilas, finalmente se
convenceu de que havia comido toda a comida e bebido toda a água. Olhou
para dentro do poço, como se água limpa pudesse brotar da lama enquanto
observava.
Janner não havia tido uma refeição adequada desde as tigelas de sopa,
cinco dias antes — isso se aquela sopa pudesse ser considerada uma
refeição adequada. Então lembrou-se da maçã no caixão. Talvez tivesse sido
a melhor maçã de sua vida. Apesar do calor, da preocupação e da fome que
o atormentavam, Janner sorriu ao pensar no Supervisor e em Mobrik,
completamente enlouquecidos porque, talvez pela primeira vez, um menino
conseguira escapar da Fábrica de Garfos. Mas seu sorriso desapareceu
quando se lembrou dos lindos olhos de Sara Cobbler brilhando através da
fuligem em seu rosto.
Janner se levantou e suspirou. Não havia tempo para sentar e pensar
sobre comida e amigos que ele havia deixado para trás. Não quando Tink
estava em perigo.
Quando Podo os conduziu do acampamento Marginal na Curva Oriental
a Cavadópolis, a jornada havia durado um dia inteiro. Mas eles haviam se
movido em um ritmo lento em comparação com Janner agora. Mesmo
tendo que passar furtivamente por mais cinco acampamentos Marginais, ele
ainda estava fazendo um bom tempo. Achou que não demoraria muito,
antes de chegar à Curva Oriental — embora não tivesse ideia do que faria
quando chegasse lá. O fato de ter conseguido se esquivar dos Marginais
com tanta facilidade lhe deu esperança. Havia vantagens em ser pequeno e
estar sozinho.

Mas também havia desvantagens.


Por exemplo, quando o vento norte soprava sobre ele, trazendo consigo o
uivo aterrador de um canicórneo, Janner ansiava pela mão forte e firme de
seu avô. Quando seu estômago reclamava de fome, Janner ansiava pelo
conforto do chalé Igiby impregnado com o aroma do ensopado de sua mãe.
Quando uma andorinha-de-goela voava no alto e empoleirava-se em um
galho de bétula para cantar sua canção, Janner pensava em Leeli e na
música que pairava ao seu redor como pólen de primavera em um raio de
sol.
Ele não queria ser pequeno e estar sozinho por um segundo a mais do
que o necessário.
Quando o sol se pôs e as cores do mundo desvaneceram, Janner atingiu
uma elevação no terreno que dava para o grande rio. Sentou-se em uma
pedra musgosa, com os joelhos dobrados sob o queixo, e sentiu o dia dar
seu último suspiro. O rio estreitava nesse ponto, sua superfície vítrea era
esculpida com redemoinhos e uma agitação silenciosa surgia das correntes
ocultas que brincavam abaixo. Para além do Blapp, a terra pontilhada de
árvores inclinava-se para o sul. Em algum lugar nessa direção ficava a
estrada que levava, a leste, para Glipwood, e a oeste, para Torrboro. Ao
longo da margem mais próxima, Janner podia ver a estrada lamacenta que
ele e sua família haviam percorrido quando deixaram a Curva Oriental. Ao
leste, ajuntava-se a Floresta Glipwood, selvagem e antiga, uma sombra
sedenta que abria sua boca para engolir o Grande Blapp.
Ele estava perto. O acampamento Marginal ficava onde o rio, a estrada e
a floresta convergiam. Janner olhou novamente para o céu a oeste. O
dourado se fora: o céu azul escuro avançou do leste apagando-o, a fim de
que as estrelas pudessem acordar.
Em algum lugar próximo, se Núbia Brejeira estivesse certa, Tink estava
sentado em uma gaiola. Em algum lugar ao norte, a Carruagem Negra se
aproximava cada vez mais, e corvos cruéis giravam acima dela. Janner a
imaginava como uma escuridão ainda mais profunda, rastejando em direção
ao sul, ao longo da orla da floresta.
Ele tinha de libertar Tink antes que a Carruagem chegasse. Quando
chegasse aos limites do acampamento, já seria noite plena. Na cobertura da
escuridão, ele ficaria mais uma vez contente por ser pequeno e estar
sozinho.
Era hora de ir.

Janner engatinhou tão silenciosamente, colocou tão cuidadosamente cada


mão e joelho sobre as pedras e a grama, com uma respiração tão lenta e
intencional, que, quando ficou cara a cara com o coelho no arbusto, este não
fugiu. O coelho o considerou por um momento, de bigodes se agitando, e
então se afastou, como se o menino fosse um de seus filhotes.
À distância de um tiro de pedra à sua direita, brilhava a fogueira onde os
Marginais se reuniam. Eles riam, cuspiam e brigavam por causa de pedaços
de carne de vaca-dentada, arrancados enquanto chiavam no espeto. A
barriga vazia de Janner clamou por atenção, mas ele a ignorou,
concentrando-se nas gaiolas que prendiam Tink.
Os edifícios em ruínas e as pilhas de lenha forneciam uma boa cobertura
contra a luz do fogo. Depois de descer a colina e esgueirar-se por entre
aglomerados de arbustos e espinhos, ele avistou o brilho da fogueira e ouviu
os brutos barulhentos ao redor. Retirou as mochilas e escondeu-as dentro do
mato. Seria mais silencioso sem elas, e ele e Tink poderiam pegá-las no
caminho de volta.
Avançou lentamente para as sombras atrás de uma cabana, e foi quando
ele viu as gaiolas. Estavam numa plataforma depois de um gramado alto
cortado por trilhas. Não era muita cobertura, mas era o suficiente para
alguém pequeno e sozinho.
Foi aí que Janner encontrou o coelho.
Ele fez uma pausa para ouvir qualquer sinal de algum membro do clã
que não estivesse junto ao fogo por qual fosse o motivo. Mas Janner estava
sozinho — exceto por Tink e quaisquer outras crianças que Claxton tivesse
posto nas gaiolas. Janner esgueirou-se por uma trilha e parou na grama;
então cruzou outra trilha e parou novamente. As gaiolas — quatro delas —
estavam a apenas alguns passos de distância.
Janner engatinhou até o pé da plataforma, tateando-o no escuro até
encontrar a alavanca de liberação exatamente onde Núbia disse que estaria.
Abaixou a alavanca até ouvir um clique. Janner prendeu a respiração,
pedindo ao Criador que os Marginais não o tivessem ouvido.
Finalmente, Janner se levantou e espiou dentro, já pressionando um dedo
contra os lábios para silenciar quem quer que ele pudesse ver ali.
A primeira gaiola estava vazia. Uma desconfiança surgiu na mente de
Janner. Núbia Brejeira o havia enviado nessa missão de resgate idiota, para
que ele fosse pego como um thwap numa armadilha. Janner olhou dentro da
gaiola seguinte e encontrou-a vazia também. Com as bochechas queimando
de vergonha e raiva, ele olhou para dentro da terceira gaiola e viu dois olhos
encarando-o fixamente.
“Tink!” Ele sussurrou, mais alto do que pretendia.
A figura nas sombras se aproximou.
“Tink?” Janner repetiu suavemente.
“Não sou Tink”, soou uma voz de menina. “Sou Maraly. Não conheço
nenhum Tink.”
“Kalmar, quero dizer”, corrigiu Janner. “Ele está aqui?”
“Kalmar Wingfeather? Ah, eu me lembro de você. Você é irmão dele,
não é?”
Janner acenou com a cabeça. “Onde ele está? Onde está Kalmar? Preciso
tirá-lo daqui antes que a Carruagem Negra chegue.”
Maraly meneou a cabeça e se acomodou na parte traseira da gaiola. “Ele
não está aqui.”
“O quê?! Onde ele está?” Janner perguntou, pressionando o rosto contra
as barras.
“Você chegou tarde. A Carruagem Negra chegou mais cedo desta vez.
Apareceu ontem à noite, algumas horas antes do amanhecer. Um bando de
Fangs veio com ela, procurando por um garoto fugindo de Cavadópolis.
Aposto que era você, né?”
Janner sentiu o sangue sumir de seu rosto.
“Claxton entregou a eles Kalmar e as outras crianças que havia
recolhido. Os Fangs os jogaram na Carruagem e as levaram gritando, como
sempre.”
“Mas... mas... e você? Por que não foi levada também?”
Maraly bufou. “Não estou aqui para a Carruagem. Mesmo Claxton não é
tão perverso a ponto de mandar sua própria filha. Estou aqui como castigo.”
Janner estava chocado demais para falar.
“Castigo”, complementou Maraly, “por tentar ajudar Kalmar a escapar.
Não adiantou muito, infelizmente. Sinto muito. Ele está a caminho de Dang
agora.”
Tink se fora.
Janner não conseguia pensar. Ficou ali, na gaiola, olhando para o nada,
vendo em sua mente a imagem do pobre Tink sentado na gaiola – mas agora
não era mais uma gaiola. Ele estava na barriga desagradavelmente úmida da
Carruagem Negra, onde a morte era um sonho bom.
“O que eu faço?” Janner se ouviu dizer em voz alta.
“A primeira coisa que eu faria, fosse você”, aconselhou Maraly, após
uma risadinha, “seria correr. Eles viram você.”
Janner despertou de sua dor e viu Claxton Ardileza junto ao fogo,
olhando diretamente para ele, com uma adaga brilhante em seu punho.
“Vamos!”
Janner escancarou a porta da gaiola e puxou Maraly para fora. Os olhos
dela estavam arregalados e ferozes, e Janner pensou, por um momento, que
ela iria pular sobre ele. Em vez disso, ela olhou para Claxton, e então para
Janner e, em seguida, para Claxton novamente.
“Maraly!” Claxton bradou com um indício de advertência na voz.
Em seguida, ela cuspiu na direção dele, deu de ombros e disse a Janner:
“Me segue!”.
Ela desapareceu tão completamente no mato atrás das gaiolas, que, a
princípio, Janner não teve certeza de para onde ela tinha ido. Então ele
ouviu a voz dela não muito longe: “Depressa!”.
Janner correu para a escuridão, tentando ignorar os rugidos de raiva no
acampamento dos Marginais. Todo o clã, com Claxton à frente, correu atrás
das duas crianças como um enxame de vespas. Maraly correu para o norte,
cortando à esquerda e à direita ao redor de arbustos e pequenas árvores, sem
um único olhar para trás. Janner arfava e ofegava atrás dela, mal
conseguindo acompanhar.
“Maraly, espere!” Ele arquejou. “As mochilas! Preciso pegar as
mochilas!”
Ela não parecia ouvi-lo a princípio, mas depois se afastou para a
esquerda e mergulhou em um arbusto espinhoso. Janner fechou os olhos
com força e a seguiu, sem se importar com a dor nos locais onde as sarças
cortavam seu rosto e braços.
“Fica quieto”, ela sussurrou, e Janner ficou quieto.
Claxton passou rugindo, amaldiçoando sua filha Maraly com palavras
que Janner nunca ouvira, nem mesmo de Podo. O resto do clã o seguiu,
num desfile de adagas, lama e raiva — cego às duas crianças sangrando no
escuro.
Quando os Marginais se foram, Maraly questionou: “Então, onde estão
essas mochilas?”.
Eles se contorceram para fora do arbusto espinhoso e passaram correndo
pelo acampamento vazio até o lugar onde Janner havia escondido as duas
mochilas. Ele deu a ela a de Tink, colocou a dele no ombro, e partiram.
Maraly conhecia todos os cantos e buracos da Curva Oriental, e mais de
uma vez Janner se perguntou como ele teria encontrado o caminho sem ela.
Maraly o guiou para longe dos muitos Marginais perambulando pela noite,
rosnando o nome de Maraly e descrevendo as coisas terríveis que fariam
com ela quando a pegassem. Ela, no entanto, não mostrou nenhuma
preocupação. Deslizava de árvore em árvore sem dizer uma palavra,
conferindo de vez em quando para ter certeza de que Janner estava por
perto.
À medida que as árvores se adensavam, os sons dos Marginais iam se
dissipando, e Janner começou a se preocupar mais com as vacas-dentadas
que poderiam encontrar. Mas ele lembrou a si mesmo que Maraly havia
morado ali por muitos anos; se houvesse vacas-dentadas, ela saberia.
Viajaram para o norte por horas. Nenhuma das crianças falou.
Por fim, quando o ar mudou, ao primeiro sinal do amanhecer, Maraly
parou. Ela saltou para os galhos de uma árvore e moveu-se sem dificuldades
para cima, até sua altura oscilante. Janner esticou o pescoço e viu a silhueta
dela contra as estrelas prateadas. Ele não tinha certeza se deveria segui-la,
mas ela disse: “Anda logo”. Então ele escalou.
Ela se acomodou na curva de dois galhos e fechou os olhos.
“Maraly?” Ele insinuou.
Ela não respondeu.
Janner acomodou-se e recostou-se com a mochila abraçada ao peito. O
balanço da árvore trouxe à mente boas memórias da casa na árvore de Peet,
e ele dormiu.
Seus sonhos eram sobre seu irmão.
Neles, Tink estava gritando.
49

A Fortaleza
das Phoobs

Peet, o Homem-Meia, acordou sentindo-se nauseado.


Seus braços estavam acorrentados ao lado do corpo, como haviam estado
desde sua captura após a ravina do baratodonte. Durante dias, sua mente
havia variado da loucura para a tristeza e, finalmente, para uma
compreensão medonha de exatamente quem ele era e onde estava. Ele
estava ciente de um rangido, de cheiro de sal e do som de choro.
Então piscou e olhou ao redor. Estava sentado no porão úmido de um
navio, e água imunda esparrinhava em volta de seus pés. Por todo lado
havia pessoas acorrentadas. Elas não estavam amarradas da cabeça aos pés
como Peet, mas seus pulsos e tornozelos estavam algemados nas paredes do
porão. A maioria dos prisioneiros eram crianças. Luz adentrava pelas ripas
do teto e caía sobre elas como grades de uma prisão. Peet lutou contra suas
correntes pela milésima vez, mas os Fangs haviam feito bem o seu trabalho.
Ele não conseguia se mover um centímetro.
Nesses momentos em que sua mente estava lúcida, ele sabia quem era.
Sabia que era o Guardião do Trono de Anniera. Sabia que havia sido
separado de sua incumbência, seus sobrinhos e sobrinha, a esperança da
Ilha Brilhante. Sua mente fervilhava com palavras, histórias e pensamentos
que ele ansiava por perseguir até o fim e capturar com uma pena e um
pergaminho. Já havia passado tempo demais desde a última vez que
segurara uma pena. As garras no lugar onde suas mãos costumavam estar
serviam apenas para a batalha.
Procurou Janner, Tink e Leeli entre as crianças e ficou aliviado por não
os encontrar. Mas o que viu o deixou furioso: tantas crianças arrancadas de
suas famílias, forçadas a entrar na Carruagem Negra e, depois, acorrentadas
e jogadas na barriga de um navio Fang.
Ficou de coração apertado. Ele sabia que isso não era nem mesmo o pior
de tudo. O navio seria sacudido por tempestades nas semanas que levariam
para cruzar o Mar Sombrio da Escuridão. As crianças que sobrevivessem à
jornada seriam arrastadas do porão do navio para a severa luz do deserto
das Desolações de Shreve. Depois, viajariam por vários dias no calor mortal
das Desolações, até o sopé das Montanhas Picos-da-Morte. E mesmo isso,
pensou Peet com tristeza, não seria o pior. O pior viria depois que elas
fossem arrastadas para as entranhas geladas de Throg, a fortaleza de Gnag.
Lá, Gnag, o Sem-Nome, os enviaria para as profundezas das masmorras,
onde executaria seu maligno trabalho nelas.
A mente de Peet ficou nebulosa, e aquela loucura familiar desacelerou
seus pensamentos. Ele conhecia as Profundezas de Throg. Já estivera lá e
não iria — não conseguiria — voltar. Era um pensamento terrível demais.
Mas o navio o estava levando para lá, e ele não tinha como pará-lo. As
correntes o seguravam com firmeza, e o vento, constante, soprava. Não
havia nada que ele pudesse fazer.
Ao pensar nisso, a respiração de Peet começou a vir em suspiros curtos.
Ele se ouviu soluçar, e muitas crianças olharam para ele com olhos grandes
e vazios. A loucura avançou ainda mais, e, desta vez, ele sabia que não iria
recuar. Ele se perderia, e uma parte dele ficou feliz, pois não queria se
lembrar de quem era. Não queria se lembrar de que havia falhado com sua
família novamente ou de que estava indo para o lugar mais sombrio do
mundo pela segunda vez.
Então a proa do navio bateu em alguma coisa.
Ele ouviu gritos vindos de cima, depois muitos passos no convés. Por um
longo tempo, os prisioneiros permaneceram olhando para o teto. Peet sabia
que não haviam chegado a Dang. Eles haviam deixado o Forte Lamendron
havia apenas um dia, e ele não sabia por que já estariam parando, exceto,
talvez, para reunir suprimentos. Mas não teriam feito isso em Lamendron?
Então a porta no teto se abriu, e um lobo saltou para o porão.
Peet gritou, não de medo por si mesmo, mas pelas crianças acorrentadas.
Ele havia encontrado muitos lobos ao longo dos anos e sabia o que podiam
fazer. Todos os seus instintos exigiam que ele protegesse as crianças
daquela fera. Peet se preparou para os gritos, e os gritos vieram — mas não
gritos de dor. Peet forçou-se a abrir os olhos e viu uma coisa terrível.
O lobo estava sobre duas pernas.
O lobo usava uma armadura e segurava um molho de chaves em uma de
suas garras.
O lobo olhava para ele com olhos vermelhos e malignos e exibia um
sorriso nefasto.
Ele patinhou na água até Peet e colocou o focinho em seu rosto. Ele o
farejou, rosnou e estreitou os olhos. E então falou.
“Então, você é aquele de quem eles têm tanto medo.” Sua voz era
profunda, seus modos comedidos e calmos — não como os Fangs, que
faziam algazarra e vangloriavam-se, agindo como crianças indisciplinadas.
Peet olhou em seus olhos e viu algo que o deixou preocupado: inteligência.
“Você não será tão temível depois que terminarmos com você, homem-
pássaro. Bem-vindo às Ilhas Phoob.”
O lobo se virou e pôs mãos à obra, soltando as crianças e conduzindo-as
escada acima para o convés.
Ilhas Phoob? Peet se perguntou em pensamento. Então ele se lembrou.
“São as Ilhas Phoob pra você”, Khrak havia dito no Forte Lamendron. As
Phoobs ficavam ao norte, entre as Cataratas Fingap e as Pradarias de Gelo,
uma dispersão de pequenas ilhas, algumas das quais ostentavam cidades
portuárias repletas de piratas, marinheiros e mercadores — ou assim havia
ouvido falar. Ele nunca estivera lá, mas já havia visto as ilhas, dos
penhascos. Eram protuberâncias marrons e pedregosas na superfície do mar,
como um bando de tartarugas gigantes descansando ao longo da costa.
Peet não conseguia entender por que eles estavam ali e não a caminho de
Dang, mas entendia muito bem de onde o lobo bípede havia vindo, e isso o
encheu de pavor.
O lobo arrastou Peet para fora do porão e, com uma das mãos, jogou-o
ao mar. Ele afundou rapidamente na água gelada. Não achou que eles o
deixariam se afogar, mas, mesmo assim, estava se debatendo em pânico
quando o lobo finalmente o puxou pela corrente, como um pescador
puxando sua presa. Peet ficou tremendo sobre uma rocha e olhava para um
gélido céu azul. Acima e à sua esquerda, crianças de olhos tristes
caminhavam acorrentadas pela prancha de desembarque do navio para o
píer, sob o olhar atento do lobo bípede.
A criatura estava com um pé apoiado numa caixa e olhava para Peet
enquanto comandava as crianças. Quando a última criança passou, o lobo
levou Peet para o píer e o colocou onde ele pudesse ver o Mar Sombrio.
“Gnag não precisa mais enviá-las para Dang, está vendo? Ele mudou sua
operação para cá e fez muitas... melhorias.” O lobo respirou fundo e sorriu.
“Ah, o ar frio. Você sente? É bom para um Fang Cinzento.”
O lobo girou Peet. Bem acima, erguiam-se os penhascos nos limites de
Skree. À beira dos penhascos, ele viu, em vez de árvores, o brilho da neve e
do gelo. No sopé dos penhascos, uma estrada estreita conduzia a uma
travessia de balsa. A própria balsa estava atravessando o canal, em direção
à ilha. Peet não conseguia distinguir o que havia na balsa, mas via
movimento e talvez alguns cavalos. No final do cais onde se encontrava,
começava um caminho que conduzia a uma fortaleza esculpida na pedra
castanha da ilha. As paredes eram grossas e cobertas de líquen, desgastadas
por mil anos de intempéries e batalhas. Ao longo do topo de cada parede,
em cada torre e ao longo de cada estrada havia mais lobos bípedes — Fangs
Cinzentos.
Milhares deles.
“Na verdade”, acrescentou o Fang Cinzento, “amamos tanto o ar frio que
estamos planejando uma visita às Pradarias de Gelo. Talvez você já tenha
estado lá. Dizem que é lindo e que muitos skreenianos completaram essa
jornada ao longo dos anos. Você não tem alguns parentes nas Pradarias de
Gelo, Wingfeather? Posso garantir que vamos cumprimentá-los por você,
quando chegarmos lá.”
Peet mal podia acreditar, mas parecia que Podo havia conduzido as
crianças e Nia às Pradarias de Gelo. Eles haviam sobrevivido.
Mas não estavam seguros. Eles não tinham ideia da existência dos Fangs
Cinzentos. Peet lutou e tentou falar através da corrente estirada sobre sua
boca.
O Fang Cinzento não riu nem insultou o Homem-Meia. Apenas o
observou com aqueles olhos inteligentes e malignos, e sorriu.
50

O Nariz da Bruxa

Quando Janner acordou na manhã seguinte, a primeira coisa que viu foi
uma pomba-travessa. A ave estava empoleirada num galho, logo depois de
seus pés, olhando-o com grande irritação. Maraly não podia ser vista em
lugar nenhum, mas Janner não ficou surpreso. Ela era uma Marginal, ou
seja, não era confiável. Um pouco antes de adormecer, na noite anterior, ele
havia decidido que, se estivesse sozinho ao acordar, avançaria para a
Barreira e não pensaria mais na menina. Ele havia sobrevivido à Fábrica de
Garfos, à Ponte Miller e a incontáveis Fangs. Sabia que a jornada para as
Pradarias de Gelo seria difícil, mas acreditava que seria capaz de fazê-la
sozinho.
A pomba-travessa arrulhou seu crruu-crruu-crruu e voou para longe.
Janner espreguiçou-se e se sentou. O ar estava frio o suficiente para que ele
pudesse ver sua respiração subindo pelas folhas amarelas da árvore. Em
seguida, um cheiro agradável chegou ao seu nariz. Ele olhou para baixo, por
entre os galhos, e viu Maraly cutucando uma pequena fogueira perto do
tronco da árvore.
“Ei”, Janner a chamou.
“Ei”, ela respondeu.
Ele desceu. Maraly estava sentada sobre as pernas, palitando os dentes
com um pequeno osso. Ao redor da fogueira havia penas cinzas e brancas
de pomba-travessa. Maraly apontou para uma pedra plana ao lado do fogo,
onde o resto do pássaro jazia.
“Obrigado”, agradeceu Janner com sinceridade. A carne estava quente e
suculenta, mas havia muito pouco dela. “Tem mais?” Ele perguntou depois
de limpar os ossinhos.
“Você pode pegar uma sozinho, se quiser. Mas pode demorar um pouco
pra você.”
“Ah...” Ele não comia bem há dias, e isso só o deixou com mais fome.
“Tem água?”
Maraly levantou-se e enxugou os dedos gordurosos na blusa. “Sim. Há
um riacho a cerca de uma hora ao norte. Perto da Barreira. Vejo que é pra
onde você está indo”, ela acrescentou, quando o rosto de Janner se
iluminou.
“Sim. Você conhece um caminho?”
Maraly bufou. “Passar é bastante fácil. Especialmente agora que os
Fangs estão escassos. É depois da Barreira que vem a parte difícil. Aonde
você pretende ir, afinal?”
Janner hesitou. Não tinha certeza de se queria contar à filha de Claxton
Ardileza sobre seus planos, mesmo que ela tivesse tentado salvar Tink. Mas
que diferença isso faria? Ele não achava que ela voltaria para o
acampamento dos Marginais tão cedo, não depois da maneira como Claxton
rosnou e a xingou durante a perseguição.
“Não posso dizer”, Janner admitiu.
Ela ergueu uma sobrancelha. “Você não pode dizer.”
“Bem... não sei se posso confiar em você.”
Maraly bufou novamente. “Então não me diga. Acho que é aqui que nos
separamos.” Ela chutou terra sobre o fogo e entrou na floresta antes que
Janner tivesse tempo de impedi-la.
“Vá em frente, então”, ele disse baixinho, quando ela desapareceu na
floresta. “Não preciso de você.”
Janner certificou-se de que o fogo estava apagado e, em seguida, colocou
as duas mochilas nos ombros, deu uma olhada ao redor e percebeu que não
sabia qual direção era o norte. O céu estava nublado e, por mais que
tentasse, não conseguia ver nenhuma sombra nítida. Tentou se lembrar de
onde eles haviam vindo, mas todas as direções pareciam iguais.
Algo se moveu na floresta, não muito longe.
“Maraly?” Janner perguntou timidamente.
Janner ouviu o barulho novamente, um estalo de gravetos.
“É você?” Ele perguntou.
Um verdugo-espinhento chiou e irrompeu de trás de uma árvore
próxima. O animal deslizou em direção a ele e se virou para atirar seus
espinhos.
Janner tateou, buscando a espada, mas a segunda mochila sobre seu
ombro rebateu o punho para longe de seu alcance. Os espinhos vibraram, e
o verdugo fez um estalido com a boca, um sinal de que estava prestes a
atacar. Janner deixou a espada para lá e se encolheu atrás da árvore,
justamente no momento em que os espinhos voaram. Centenas deles
perfuraram o tronco, mas quatro cravaram-se em sua panturrilha.
“Ai!”
O verdugo grunhia do outro lado do tronco. Então, correu ao redor da
árvore e se virou para atacar novamente. Janner correu de volta para sua
mochila, desembainhou a espada e se virou.
Mas o verdugo já estava morto.
Maraly estava recostada na árvore, ainda palitando os dentes com o osso
do pássaro, segurando o verdugo morto pela perna. Sua adaga projetava-se
da garganta da fera.
“Eu teria matado”, Janner balbuciou.
“Claro que teria.”
“Só me pegou de surpresa, só isso.”
“Claro que pegou.” Ela apontou para a perna dele. “É melhor tirar isso
daí rápido, ou vai ficar doente igual um cachorro morto.”
“Ah.” Repentinamente nauseado, Janner cambaleou para trás, tropeçou e
caiu sentado.
Maraly removeu os espinhos — o que doeu muito mais do que Janner
havia imaginado — e colocou um cataplasma de cuspe e cinzas sobre as
feridas. Ela o colocou de pé.
“Então, para onde você está indo?”
“Às Pradarias de Gelo.” Suas bochechas enrubesceram.
“Tudo bem.”
E foram embora.
Viajaram para o norte por uma hora. Duas vezes Maraly disse
calmamente a Janner que subisse na árvore mais próxima, e logo uma vaca-
dentada passava correndo. Janner nunca as ouvia chegando e, cada uma
dessas vezes, pensou em como estava feliz por Maraly estar ali. Ele nunca
teria chegado tão longe sozinho.
Quando alcançaram o riacho, caíram de quatro e beberam
abundantemente de água límpida. Depois de encherem os odres de água,
Maraly limpou e inspecionou as feridas causadas pelo verdugo em Janner.
“Você vai ficar bem”, garantiu ela. “Agora, escute. A Barreira está logo
após a próxima elevação. Não sei a última vez que vi uma patrulha Fang
neste extremo leste, mas fique atento de qualquer maneira. Não há brecha,
mas há árvores suficientes que podemos escalar. Depois de ultrapassar o
muro, a caminhada deve ser fácil o suficiente. Até chegarmos às
montanhas, claro. Você tem um mapa ou algo assim?”
Janner mostrou-lhe as instruções da carta, e ela assentiu.
Logo após a elevação seguinte, ele teve seu primeiro vislumbre da
Barreira.
Janner não tinha certeza do que esperava, mas estava longe de ficar
impressionado. Janner tinha apenas doze anos e achava que poderia ter feito
um trabalho melhor do que os Fangs. As toras que compunham a Barreira
foram cortadas rudemente, e algumas ainda tinham galhos destacando-se
em ângulos estranhos. Eram de comprimentos irregulares, de diferentes
circunferências e tipos de árvores. Parecia que os Fangs haviam construído
o muro em um dia, com os olhos vendados.
No entanto, ainda era um muro. Estava entre eles e o sopé das
Montanhas Rochosas e, de fato, tornava muito mais difícil viajar por ali,
cumprindo exatamente o que os Fangs pretendiam.
Se o muro não fosse tão instável e alto, poderia ter sido fácil subir de um
lado e descer do outro. Mas, como Maraly havia dito, a Barreira
serpenteava pela Floresta de Glipwood, então eles seguiram para as árvores.
Escalaram um carvalho, escorregaram ao longo de um galho grosso que
pendia sobre o muro e, então, desceram por outra árvore. E, simples assim,
eles chegaram ao outro lado.
Não havia Fangs à vista.
Janner e Maraly sentaram-se de costas contra a Barreira e descansaram.
“Você já esteve neste lado antes?” Ele perguntou.
“Não. É território novo pra mim.”
“Você não tem que vir comigo, você sabe.”
Maraly acenou com a cabeça. “Sei que não. Mas o que mais vou fazer?”
“Você não poderia voltar?”
“Poderia.”
“Mas você não quer.”
“Não.”
Ambos permaneceram sentados em silêncio.
“Sinto muito por Kalmar”, lamentou Maraly.
Janner não disse nada. Estava tentando não pensar em seu irmão. Estava
com raiva de si mesmo por ter falhado com ele. Janner havia falhado com
todos. Se ele e Maraly chegassem em segurança às Pradarias de Gelo, como
iria encarar sua mãe? Podo? Leeli? Como explicaria a eles que havia
perdido Tink para a Carruagem?
Então sua raiva voltou-se para Tink — Tink, que havia passado direto
pelo covil Marginal e ido em direção aos canalhas da Curva Oriental. Direto
para Claxton Ardileza!
“Vamos”, Janner rosnou e saiu de perto de Maraly.
Caminharam em silêncio durante toda a manhã e à tarde. As colinas
ficaram mais íngremes e as árvores, mais esparsas. Um vento norte
serpenteava sobre a terra e uivava para as crianças, como se as avisasse de
que não eram bem-vindas. O ar ficava mais frio a cada passo, e Janner
começou a se preocupar em manter-se aquecido. O céu cinza indicava o
inverno que se aproximava, para não mencionar o frio do norte. Eles teriam
que encontrar peles ou roupas mais grossas se quisessem sobreviver. No
entanto, Maraly não parecia preocupada, o que deu a Janner a esperança de
que, talvez, ela soubesse de algo que ele não sabia acerca de encontrar
vestimentas quentes. Ela parecia saber muitas coisas que Janner não sabia.
Sua adaga providenciava comida. Sempre que um floelho ou thwap ou
verdugo atravessava seu caminho, ela arremessava sua lâmina antes mesmo
que Janner pudesse piscar. A cada vez, eles paravam para que ela pudesse
limpar a carne e guardá-la em uma bolsa, até que parassem para passar a
noite.
Uma vez, ela puxou Janner pelo cotovelo para detê-lo. Levou um dedo
aos lábios e apontou para uma sutil depressão no chão, menor do que a
circunferência de uma roda de carroça. Arrastou-se até a borda do círculo,
deslizou os dedos sob uma espécie de cobertura e a abriu rapidamente. Com
grandes coaxos e arrotos, um enorme e verruguento sapo-toupeira saltou de
seu ninho e deslizou para dentro da floresta. Maraly caiu de costas, gritando
de tanto rir ao ver a expressão de surpresa no rosto de Janner.
Perto do final do dia, Janner e Maraly escalaram uma encosta que
parecia não ter fim. A colina era árida, exceto por um olmo sem folhas no
topo. Maraly apontou para a árvore.
“É um marbutre”, ela comentou.
Janner não tinha certeza se acreditava nela de início. Nada na árvore se
movia. Então, uma forma negra no topo abriu suas asas e ajustou sua
posição.
“É perigoso?” Perguntou Janner.
“Sim”, confirmou, “mas é só um.” E ela avançou em sua direção,
correndo.
Janner assistiu impotente à cena de um marbutre lançando-se sobre a
garota. Ela gritava enquanto corria. Quando o pássaro mergulhou, ela se
atirou no chão com uma cambalhota, e as garras do marbutre não a
acertaram. Maraly se virou e arremessou sua adaga. O pássaro grasnou,
tombou no chão e permaneceu imóvel.
Maraly sacudiu a poeira de si, arrastou o marbutre até a árvore e juntou
galhos para uma fogueira. Janner balançou a cabeça e subiu a colina,
imaginando que outras surpresas Maraly Ardileza teria para ele.
Quando atingiu o topo da elevação, Janner congelou.
Diante dele estendiam-se os magníficos penhascos das Montanhas
Rochosas. Os picos nevados projetavam-se para o céu como cacos de vidro.
Nuvens ajuntavam-se e dispersavam-se por entre os desfiladeiros como uma
cachoeira lenta.
Janner nunca havia visto nada tão grande. Ele se sentiu pequeno, fraco e
um pouco tonto.
A oeste, as montanhas eram menores e via-se a suave ondulação de
colinas em suas bases. No leste, para onde o bilhete de Podo lhe dizia para
ir, o caminho parecia intransitável. Janner não via nada entre ele e aqueles
picos, exceto rachaduras, fissuras e penhascos irregulares. No centro da
Cordilheira Oriental erguia-se o Nariz da Bruxa, Mog-Balgrik. Erguia-se
acima dos outros picos e realmente parecia o nariz adunco de uma bruxa
das histórias assustadoras de crianças.
Uma vez que passe por Mog-Balgrik, a encosta desce para as Pradarias
de Gelo. Depois disso, seu palpite é tão bom quanto o meu, dizia o bilhete
de Podo.
Janner apertou os olhos para a passagem à esquerda do Nariz da Bruxa.
“Que o Criador nos ajude”, ele desejou. “É para lá que estamos indo.”
“O quê?” Disse Maraly atrás dele. Ela havia removido a cabeça do
marbutre e estava ocupada depenando-o ao lado de uma fogueira crepitante.
“Veja”, indicou Janner.
Ela se levantou e olhou para o norte pela primeira vez. “Ah”, ela
sussurrou.
Uma rajada de vento gelado atingiu o topo da colina onde eles se
encontravam.
51

A Canção das
Antigas Pedras

Os Fangs Cinzentos enfileirados ao longo do corredor observavam Peet em


silêncio. Alguns empunhavam tochas, e todos empunhavam armas. Lâminas
e olhos brilhavam na luz fraca. Um Fang Cinzento o carregou para baixo
por vários lances de escada e virou à esquerda e à direita tantas vezes que
Peet perdeu todo o senso de direção. Ele só sabia que estava nas
profundezas da terra, onde água escorria através das pedras. O lugar
assemelhava-se e dava tanto a sensação de serem as Profundezas de Throg,
que ele se perguntou se, afinal, aquela travessia do Mar Sombrio não teria
sido um sonho. Mas os Fangs Cinzentos não eram um sonho. Nem as
crianças.
Em cada lado da passagem havia muitas portas de ferro, atrás das quais
crianças choravam na escuridão. O coração de Peet se partia por elas,
mesmo enquanto se espantava com o fato de haver tantas. Durante anos, a
Carruagem Negra fizera um trabalho moroso, roubando umas poucas
crianças, todas as noites.
Gnag havia estado ocupado.
No final do corredor havia uma porta grossa. Quando se aproximaram, a
porta se abriu, revelando uma enorme sala. Fogo ardia em seus cantos, e
tochas alinhavam-se nas paredes.
Do outro lado da sala ficava a boca de um túnel muito mais alto e largo
do que o corredor por onde Peet havia passado. Enquanto ele observava, um
brilho laranja cintilou de suas profundezas. Os Fangs Cinzentos também
viram e esperaram em silêncio enquanto o brilho se intensificava. Algo
estava vindo. Em instantes, quatro corcéis pretos emergiram, atrelados à
Carruagem Negra. Uma figura em um manto preto esvoaçante estava
sentada no topo da carruagem, com uma tocha numa das mãos. Corvos
seguiam a carruagem até mesmo ali; eles grasnavam e batiam as asas em
volta do condutor, e um deles empoleirava-se em seu ombro.
“Você vai querer assistir isso”, disse o Fang enquanto baixava Peet para
o chão.
O condutor parou a carruagem e soltou as crianças que estavam nas seis
gaiolas em formato de caixão. Elas rastejaram para fora e se amontoaram.
Mesmo à distância, Peet podia ver que elas estavam tremendo.
Dois Fangs Cinzentos acorrentaram as mãos e os pés das crianças e
conduziram-nas a uma plataforma no centro da câmara. Na plataforma
havia uma estrutura de ferro do tamanho de uma casa. Uma porta se abriu, e
uma figura alta, vestida com um manto emergiu. A figura estendeu a mão e
falou algumas palavras para uma menina pequena. A menina respondeu, e
um Fang Cinzento ao lado da plataforma rabiscou algo em um livro. Ela
acenou com a cabeça, pegou a mão da figura e adentraram juntas pela porta.
“É melhor fazer isso assim que elas chegam”, comentou o Fang Cinzento
para Artham. “O medo e o cansaço tornam mais fácil argumentar com elas.
As que já estão aqui há algum tempo começam a ter ideias em suas cabeças
e nos causam todo tipo de problema. Nós as dobramos, eventualmente.
Claro, você sabe do que estou falando, não é?”
Artham tentou ignorar a besta.
Outro Fang Cinzento apareceu no lado oposto da câmara, com um lobo
na coleira. O Fang falava com ele e acariciava seu pelo. O lobo caminhava
ao lado do Fang, como um filhote com seu dono, até a plataforma.
Artham sentiu a loucura espreitando nos cantos de sua mente. Lembrou-
se de uma câmara semelhante e de uma caixa de ferro similar; de pedras
molhadas, gritos e fogo ardente, e de uma música horrenda que o havia
enlouquecido. Ele balançou a cabeça e fechou os olhos, desejando
permanecer presente e consciente. Mas quando o Fang Cinzento abriu a
porta de ferro da caixa e conduziu o lobo para dentro com a garota, Artham
sentiu que se perdia.
A porta de ferro se fechou. Artham ouviu uma melodia gutural vinda lá
de dentro, um som que encheu sua mente de terror abjeto. Ele se agitou com
tanta violência que as correntes chacoalharam. Um momento depois, uma
luz vermelha preencheu a caixa de ferro e disparou pelas frestas da porta.
Em seguida, a luz se apagou.
Um dos Fangs Cinzentos abriu a porta da caixa de ferro e se afastou da
plataforma. Uma névoa saiu e se espalhou pelo chão da grande sala,
acumulando-se ao redor dos tornozelos das outras crianças, enquanto
olhavam. Logo, a figura vestida em manto emergiu, conduzindo a garotinha
que não era mais apenas uma garotinha. Ela tinha focinho, dentes longos e
pelo cinza.
“Contemplem”, proclamou, numa voz fina, a figura vestida, “uma nova
criatura! Seu nome é Scavra!”
A pequena Fang flexionou suas garras, arqueou as costas e uivou.
“Cante a canção das antigas pedras”, incentivou o Fang Cinzento no
ouvido de Artham, “e seus ossos encharcam com o sangue das feras.”
Artham fechou os olhos novamente.
“Claro, você já ouviu isso muitas vezes antes, não é? Disseram que você
começou a cantar a melodia, mas nunca terminou. O que era, um falcão?
Uma águia? Pense, você podia ter planado ao redor dos picos das
montanhas. Em vez disso, você é pouco mais do que um rato com meias
nos braços. Patético.”
O recém-nascido Fang Cinzento foi ajudado a descer da plataforma com
suas pernas bambas e levado embora. Então, um menino foi forçado a subir
os degraus da caixa de ferro, enquanto outro Fang Cinzento aparecia com
outro lobo. O menino lutava e gritava, mas a figura com o manto
novamente falou algumas palavras, e ele parou de lutar e respondeu. O
Fang ao lado da plataforma escreveu algo no livro. O menino assentiu,
pegou a mão da figura, entrou na caixa, e a porta se fechou.
Após uma espera maior desta vez, a melodia foi cantada. Então veio a
luz vermelha, a porta se abriu, e a figura vestida em manto emergiu com um
jovem Fang Cinzento deitado em seus braços.
“O nome dele é Ghrool”, proclamou a figura vestida.
Peet soltou seu grito de pássaro e desmaiou.
Quando Peet acordou, achou-se oscilando novamente, imaginando qual
seria seu próprio nome. Ele se sentou e ficou surpreso ao descobrir que seus
braços e pernas estavam livres; as correntes que o haviam prendido por
tanto tempo se foram. Então, como uma bolha flutuando até a superfície de
um lago, sua memória voltou.
Artham não estava em outro navio, mas em uma gaiola. Ele balançava
no teto da caverna, para a frente e para trás. As barras eram tão grossas
quanto os pulsos de Artham, e a fechadura ainda mais grossa. Ele tentou em
vão se espremer entre as barras, mas não era nem magro nem forte o
suficiente para escapar. Sentou-se arfando com raiva e examinou a sala
abaixo.
A Carruagem Negra havia sumido. Uma longa fila de homens, mulheres
e algumas crianças descia os degraus do corredor e esperava sua vez de
subir a plataforma e entrar na câmara de ferro, onde se entregavam ao lobo.
Artham foi forçado a observar com horror enquanto, um após o outro, os
prisioneiros assentiam para os Fangs Cinzentos, pegavam a mão da figura
de manto e entravam sem lutar. Alguns dos prisioneiros até sorriam.
Artham estreitou os olhos e viu expressões ansiosas e conversa mole entre
os que estavam na fila, especialmente quando um prisioneiro reaparecia
com pelo cinza e orelhas pontudas. Maravilhada, a multidão gesticulava e
balançava a cabeça.
Era sempre o mesmo: um lobo e um prisioneiro entravam na caixa, a luz
vermelha brilhava, enquanto a música horrível tocava, e um novo Fang
Cinzento saia tropeçando ou sendo carregado. A cada vez, a figura vestida
em manto anunciava o novo nome da criatura aos espectadores. Por mais
que tentasse, Artham não conseguia ver mais da figura do que o manto
negro. Seus movimentos eram ágeis e até fantasmagóricos. O que quer que
fosse a figura — um humano ou alguma criação de Gnag, o Sem-Nome —,
possuía grande poder.
Enquanto Artham observava, uma das voluntárias mudou de ideia e
fugiu escada abaixo, mas um dos Fangs Cinzentos — e até mesmo alguns
dos outros prisioneiros na fila — a agarrou. A pobre mulher balançou a
cabeça e se debateu, mas, quando a figura vestida de manto estendeu a mão
e falou com uma voz baixa demais para Artham ouvir, logo se acalmou. Ela
assentiu, alisou seu vestido esfarrapado e pegou a mão da guardiã da caixa.
Minutos depois, ela era metade animal.
Artham se perguntava onde eles haviam encontrado todos aqueles lobos.
E para onde os novos Fangs Cinzentos eram levados, e como Gnag havia
convencido tantos skreenianos a se voluntariarem para essa transformação
terrível.
Ele olhou para suas garras. Sentia falta das mãos. Sentia falta da
sensação do punho de uma espada, da sensação da pele de outra pessoa sob
seus dedos. Tudo o que lhe restava eram aquelas garras — coisas negras,
brilhantes e inumanas nas extremidades de seus braços, para lembrá-lo de
sua fraqueza. Para lembrá-lo de que eles o haviam dobrado, e que ele havia
fugido. Perguntou-se se teria sido melhor se tivesse simplesmente cantado a
canção das antigas pedras há muito tempo. Em vez disso, ele havia
suportado um ano após o outro de tortura e solidão, ano após ano ouvindo
aquela melodia repugnante acompanhada de gritos nas Profundezas de
Throg.
“Homem-pássaro”, uma voz o chamou.
Artham se virou e viu uma pequena janela na parede mais próxima. Um
Fang Cinzento se inclinava para fora, lambendo uma de suas patas com uma
longa língua negra.
“Gosta de seus aposentos? Você é um ótimo animal de estimação. Ela
disse que gosta de ver você aqui em cima.”
Ela? Artham se perguntou.
“Ela me pediu para lhe entregar uma mensagem.”
“Eem é quela? Quero dizer, quem é ela?” Perguntou Artham.
“A Guardiã da Pedra. Lá embaixo.”
A figura de manto preto estava olhando para ele. Peet estremeceu.
“A Guardiã diz que, se você permitir que termine o que Gnag começou
— deixá-la transformar você em um marbutre ou um falcão, ou o que quer
que tenha essas garras —, ela libertará essas crianças. Disse que, se alguém
tão forte como você fizesse parte do Exército de Gnag, ele não precisaria de
mais soldados. Acho que ela é uma tola, mas o que sei eu? Sou apenas um
Fang. Ela está aqui desde o início.”
“Quem é ela?”
“Não sei. Ela é a Guardiã da Pedra. Isso é tudo.”
“E ela vai deixar essas crianças livres se eu cantar a música?”
“Sim. Isso é o que ela diz. Embora eu não saiba por que ela iria querer
isso. Ela está fazendo um grande favor às crianças. Torná-las mais do que
são. Dar-lhes poder e propósito. É por isso que elas se alinham como fazem
— estão tão fartas de suas vidas que farão qualquer coisa por uma chance
de causar medo, em vez de senti-lo. Nenhuma delas tem que cantar, você
sabe.
“Não acredito nela. Não creio que ela esteja dizendo a verdade. Ela
nunca as deixaria livres-vre-vre.”
O Fang torceu o nariz para Artham e encolheu os ombros. “Tudo bem,
então. Aqui está o seu jantar.”
O Fang fisgou a gaiola com uma longa vara e puxou-a perto o suficiente
para jogar vários pedaços de carne crua e um frasco de água. Quando o
Fang soltou a gaiola, Artham balançou como um pêndulo, muito acima
daqueles que esperavam para entrar na caixa. Alguns deles ergueram os
olhos, curiosos sobre o que havia captado a atenção da Guardiã da Pedra. A
mulher de manto preto observou a jaula de Artham por vários momentos,
depois se virou e deu as boas-vindas à próxima pessoa da fila, um sujeito
corpulento esfregando as mãos com entusiasmo.
Artham abraçou os joelhos contra o peito e apoiou a testa nos braços
vermelhos. Se a Guardiã da Pedra, quem quer que fosse, mantivesse sua
palavra, tudo o que ele tinha a fazer era cantar a música e se entregar à
loucura de uma vez por todas. Ele esqueceria o que havia feito. Esqueceria
que havia falhado com seu irmão. Ele se perderia, mas pelo menos as
crianças estariam livres desse lugar. Então, lembrou-se das joias e soube
que não podia. Por mais que quisesse desistir de sua luta e deixar Gnag
fazer com ele o que quisesse, Artham não poderia abandonar Janner, Tink e
Leeli. Ele não podia abandonar Anniera.
Quando o último da fila de voluntários foi transformado e levado
embora, outra porta se abriu, e as crianças da masmorra foram conduzidas
para a plataforma. Artham pressionou o rosto contra as barras e observou
com agonia enquanto um Fang Cinzento soltava-as das correntes, uma de
cada vez, e as arrastava até a Guardiã da Pedra.
Eu posso parar isso, ele pensou.
Então se encolheu no chão da gaiola e chorou porque não sabia o que
fazer. Ao colocar as mãos nos ouvidos para bloquear os uivos lá de baixo,
sentiu suas garras frias contra a pele.
52

O Bambolhão e o
Lago de Ouro

Janner e Maraly caminharam por dois dias sobre uma paisagem irregular. A
grama não era mais verde, mas seca e áspera. As pedras eram gigantescos
ovos marrons, arredondados e lisos por causa dos anos de vento e chuva;
algumas eram grandes como casas, e tornavam-se maiores à medida que
eles avançavam. Às vezes, as pedras cobriam tanto as encostas que as
crianças eram forçadas a ziguezaguear entre elas ou escalar e pular de pedra
em pedra. Mas, na maior parte da jornada, caminhavam por longas encostas
áridas de grama amarela, com as Montanhas Rochosas agigantando-se,
brancas e pontiagudas, à distância.
Eles falavam pouco, mas o silêncio não era desagradável. Janner estava
contente por ter uma companhia, Marginal ou não. Maraly parecia mais
feliz quanto mais se distanciavam da Curva Oriental e de seu pai.
O vento penetrava pela camisa e calças de Janner, e ele começou a se
preocupar cada vez mais sobre como sobreviveriam à neve e ao gelo. Ele
estava desconfortavelmente com frio, mas, visto que Maraly não reclamava,
também não o fazia. Os únicos animais que viam eram criaturas parecidas
com esquilos, que Maraly chamava de pardozinhos. Eles chiavam e
desapareciam em buracos na terra sempre que as duas crianças passavam. A
habilidade de Maraly com sua adaga foi posta à prova, mas ela foi capaz de
pegar e limpar três deles, à medida que avançavam. Sua bolsa estava cheia
de carne e, como o tempo estava muito frio, não havia moscas.
No meio do segundo longo dia, chegaram ao sopé das montanhas. As
colinas íngremes transformaram-se em penhascos, como se tivessem sido
cortadas em duas e o lado norte removido. Janner e Maraly desceram as
encostas de seixos e várias vezes tiveram que refazer seus passos e
encontrar outro caminho. O tempo todo, o vento ficava mais forte.
“Você já está com frio?” Maraly perguntou por cima do ombro.
“Eu tenho permanecido com frio.”
“Entendi.” Ela saltou de uma pedra para a seguinte.
“O que vamos fazer?” Janner perguntou depois que deslizaram para o
chão novamente.
“Não sei. Esperava que você tivesse uma ideia.”
“Bem, não podemos voltar. É longe e perigoso demais. Temos comida e
muita água. Apenas não temos nada para nos manter aquecidos.”
“Existem os bambolhões”, afirmou ela.
Janner esperou que ela falasse mais, mas silenciou.
“Eu sei o que é um bambolhão”, ele garantiu. “O que isso tem a ver?”
“Poderíamos pegar um. Eu nunca vi, mas já ouvi a vó Núbia Brejeira
falar sobre eles. Disse que são grandes como uma árvore e peludos como os
cabelos nos dedos dos pés dela.”
“Não podemos matar um bambolhão”, alertou Janner. “Mesmo os
guardiões mal conseguiam matá-los nos velhos tempos. Os guardiões
tentaram se livrar deles para tornar a viagem nas Montanhas Rochosas mais
segura, mas perderam tantos homens que desistiram. E acabaram alegando
que, apesar de tudo, os bambolhões eram escassos demais para serem uma
ameaça.”
“O que te faz pensar que sabe tanto sobre bambolhões?” Maraly
retrucou, revirando os olhos.
“Livros.”
“O quê?”
“Livros. Eu li sobre eles em um chamado Criaturapédia de Pembrick.”
“Livros, hein?” Ela estancou no meio do caminho. “Shh!” Arremessou a
adaga em um pardozinho que estava ao pé de uma pedra próxima, mas
errou. Praguejou baixinho e foi recuperar a arma. “Bem, seu precioso livro
lhe disse como encontrar um?”
“Um bambolhão?”
“Sim.”
“Não, não que eu me lembre. Dizia que eles viviam em cavernas nas
Montanhas Rochosas, só isso.”
“Bem, vó Núbia me disse como encontrar um.”
“Maraly, é muito perigoso. Não podemos...”
“Shh!” Ela repetiu, mas, desta vez, não jogou a adaga. Semicerrou um
olho e apontou para a encosta mais próxima. No sopé da montanha estava
um aglomerado do que parecia serem arbustos verde-escuros — agora
Janner sabia que, na verdade, eram árvores diminuídas pela distância e pela
enormidade da montanha. Acima das árvores, a face da montanha estava
coberta com o que pareciam ser seixos, mas, na verdade, eram grandes
rochas que haviam deslizado encosta abaixo.
“Está vendo a neve?” Maraly perguntou.
Janner viu a neve, logo acima da linha de árvores, envolvendo as pedras
como pinceladas de tinta branca.
“Olhe ali para a esquerda”, ela pediu.
No início, Janner não viu nada além de mais neve. Então algo mudou.
Um ponto branco-acinzentado desceu do campo de neve até a linha das
árvores. Mesmo à distância, o estômago de Janner formigou de medo. Ele
sabia que o bambolhão não podia vê-los
(a Criaturapédia de Pembrick dizia que os monstros tinham visão ruim),
mas, ainda assim, sentia-se vulnerável. Se o bambolhão decidisse tê-los
como jantar, pouco poderiam fazer; a criatura conhecia essas montanhas
muito melhor do que as crianças.
“Precisamos sair daqui”, alertou Janner.
Maraly riu e puxou sua adaga. “Núbia Brejeira me disse que suas
cavernas geralmente ficam em pequenas florestas como aquela. Tenho
procurado por um desde que vi as árvores. Sem dúvida, a velha Núbia
estava certa. Vamos lá.”
“Maraly, espere!” Janner chiou, mas ela o ignorou.
Janner a observou partir, sentindo uma raiva familiar. Ela não pensou nas
consequências. Não se importou com o que Janner dissera. Ela era
imprudente e tola. Ela era, pensou Janner, uma versão feminina de Tink. E,
como acontecia quando ao lado de Tink, Janner descobriu que não
conseguia resistir ao impulso de segui-la.
Esgueiraram-se de pedra em pedra até chegarem ao leito seco de um
riacho que fornecia cobertura por várias centenas de metros. Maraly
rastejava em silêncio, e cada vez que o pé de Janner escorregava e enviava
um pedregulho ruidoso para longe, ela o olhava com grande aborrecimento.
Logo o grupo de árvores estava à distância de um tiro de flecha, perto o
suficiente para bloquear a visão dos campos de neve acima, onde haviam
visto a fera.
Maraly agachou-se no leito do riacho e puxou a adaga. “E então? Você
vai sacar sua espada ou o quê?”
“Maraly, isso é tolice!” Janner sussurrou. “Você precisa me ouvir. Isso
não é tão fácil quanto matar um pardozinho. Você já viu um bambolhão de
perto?”
“Não. E você?” Ela sorriu com ironia.
“Bem, não, mas eu vi imagens. Eles têm o dobro da altura de um homem
e são cruéis como o fogo.”
“Ah, eles não podem ser assim tão difíceis de matar. Além disso,
precisamos de algo para nos manter aquecidos, né?”
Janner teve que admitir que sim.
Logo acima da borda do leito do riacho veio um grunhido. Janner e
Maraly congelaram. O bambolhão bufava e estalava as mandíbulas, tão
perto que as duas crianças ficaram com medo de respirar. Depois de vários
momentos, a criatura se afastou. Maraly deu um sorrisinho e espiou por
cima da borda, apesar dos gestos frenéticos de Janner para ela se manter
escondida.
Quando a cabeça de Maraly não foi arrancada, Janner engoliu em seco e
deu a primeira olhada em um bambolhão de verdade, nas áreas selvagens
das Montanhas Rochosas.
A apenas um tiro de pedra de distância, numa pequena clareira entre as
árvores, estava a fera, de costas voltadas para as crianças. Era ainda mais
alto do que Janner havia imaginado e coberto com uma bela camada de
pelos brancos, tão compridos que balançavam com o vento. Suas pernas
eram curtas e robustas, mas seus braços eram enormes e grossos como uma
árvore. Suas costas e ombros ondulavam com músculos, visíveis até mesmo
através do pelo. O bambolhão estava comendo alguma coisa e parecia estar
se divertindo.
Logo depois da fera, no lado mais alto da clareira, ficava a entrada de
uma caverna.
O rosto de Maraly estava pálido. Janner não estava acostumado a vê-la
com medo e sentiu um pouco de pena dela. Mas, para sua surpresa, ela
respirou fundo, piscou para ele e murmurou a palavra: “Pronto?”.
Um uivo ecoou pela clareira.
O bambolhão se esticou em toda sua altura e girou o suficiente para que
Janner pudesse ver seu temível rosto. Seus olhos estavam escondidos em
mechas de pelo branco, seu nariz era pequeno e preto, mas sua boca era
enorme e brilhava com o sangue de sua refeição. Dois dentes, do tamanho
do antebraço de Janner, curvavam-se para cima, a partir de sua mandíbula.
Eles ouviram outro uivo, e o bambolhão saltou para a entrada de sua
caverna, jogando a carcaça lá dentro. Em seguida, a fera escalou a encosta
da montanha e sumiu de vista.
“Droga!” Maraly reclamou. Ela se jogou no chão com os braços
cruzados, fazendo beicinho como uma criança de dois anos. “Nós teríamos
conseguido!”
Janner se levantou, olhando para a boca escura da caverna. “Maraly,
você viu o que ele estava comendo?”
“Não,” ela respondeu, mal-humorada.
“Era um lobo.”
“E daí?”
“Eu tenho uma ideia.”
Ele saltou do leito do riacho e disparou para a clareira, deleitando-se,
pela primeira vez, no fato de ser ele quem estava tomando a frente.
“Espere!” Maraly exclamou, e Janner sorriu.
Ele derrapou até parar na entrada da caverna e ficou ouvindo. Maraly o
alcançou um momento depois, e os dois se inclinaram e olharam para
dentro. O cheiro que emanava da escuridão era insuportável. Janner se
sentiu prestes a vomitar, mas forçou-se a entrar na caverna.
No chão estava a carcaça mutilada do lobo. Seu pelo pendia em farrapos.
“Ahh!” Maraly exclamou. “Agora você tá pensando como um
Marginal.”
Janner fez uma careta e puxou a pele do lobo de seus ossos. No fundo da
caverna, encontraram os restos de animais sobre os quais Janner nunca
havia lido, alguns com vestígios de pele escamosa, alguns com
exosqueletos ósseos e alguns, para seu alívio, com espessas camadas de
pele. A maioria deles havia se decomposto além de qualquer utilidade, mas
vários tinham sido mortos recentemente, e as crianças emergiram da
caverna, minutos depois, com braçadas de peles fedorentas — mas
maravilhosamente quentes.
Ambos correram de volta para o leito do riacho e esconderam-se bem no
momento em que o bambolhão saltava para a clareira novamente,
arrastando atrás de si outro lobo enorme, como um brinquedo. O monstro
grunhiu ao entrar na caverna e ficou lá, até as crianças já estarem bem
longe.
Naquela noite, na encosta da montanha, Maraly preparou uma bela
refeição com carne de verdugo e de pardozinho. Quando as nuvens
esconderam as estrelas brilhantes e a neve caiu, as crianças dormiram em
um monte de peles. Maraly admitiu que foi muito mais fácil limpar as peles
do que lutar contra o bambolhão, e Janner adormeceu com um sorriso
orgulhoso no rosto.
Os dois passaram a maior parte da manhã seguinte transformando as
peles em algo que cada um pudesse vestir. Maraly fazia furos nas peles com
sua adaga e Janner as costurava com barbante de sua mochila. Quando o sol
começou a descer, Maraly e Janner estavam envoltos em peles. Eles
próprios pareciam pequenos e ferozes bambolhões e se sentiam capazes de
viver felizes nas Montanhas Rochosas por anos, se necessário.
Mais tarde, naquele dia, descobriram um lago tão redondo e azul, que
mais parecia uma joia cortada do céu. Ele repousava entre os ombros de
dois picos de pontas brancas que bloqueavam o vento constante e deixavam
a superfície da água lisa como vidro. Maraly e Janner ajoelharam-se, à beira
da água, em silêncio. Havia uma grande paz no lugar, que eles não queriam
perturbar. Então, largaram suas mochilas, encheram os odres de água e
sentaram-se em uma pedra a uma curta distância da borda.
Diante deles, entre o V das encostas que envolviam o lago, erguia-se
Mog-Balgrik. O Nariz da Bruxa apontava para o céu e dividia as nuvens. O
cume, à esquerda do nariz, apresentava uma depressão que assemelhava-se
a uma órbita ocular sombreada, e à direita do nariz havia um corte na
montanha, que formava uma boca curvada em uma carranca irregular.
A nota de Podo dizia que eles deveriam encontrar uma trilha que
serpenteava ao redor da encosta direita do pico — bem sobre a boca
recortada. Janner estremeceu. Era muito fácil imaginar a grande bruxa
adormecida devorando-os, quando passassem.
“Então é pra lá que estamos indo, hein?” Perguntou Maraly enquanto
tirava o capuz.
“Sim. De alguma forma, temos que atravessar aquela montanha.
Supostamente há uma trilha. Acho que, se continuarmos naquela direção,
vamos cruzar com ela eventualmente.”
“Certo.” Maraly suspirou. “Quer acampar aqui esta noite?”
A cavidade onde estavam parecia segura o suficiente. Era o primeiro
local tranquilo que encontravam nas Montanhas Rochosas, e ele odiava ter
que partir. Juntaram gravetos e galhos suficientes para fazer uma fogueira e
assentaram-se para preparar a refeição.
O sol poente rompeu as nuvens e lançou um raio dourado em Mog-
Balgrik. A luz transformou a horrível semelhança a um rosto e revelou a
beleza que o pico tinha por si mesmo desde tempos ancestrais.
“Olhe!” Maraly exclamou.
Janner desviou o olhar da montanha brilhante e viu o que parecia ser
uma nuvem de pétalas de flores amarelas, flutuando das encostas até o lago.
Então eles ouviram o ruflar de asas e o canto de pássaros. Milhares de
pássaros amarelos pousaram na superfície do lago, tantos que parecia que a
própria água havia se transformado em ouro. Eles cantavam e arrumavam
suas asas no crepúsculo e permaneceram visíveis muito depois do anoitecer.
“Hum”, foi tudo o que Maraly disse, mas Janner percebeu que ela
enxugou os olhos.
As crianças adormeceram com a diversão agradável dos pássaros na
água. Janner acordou mais de uma vez naquela noite e via as criaturas
iluminadas pelas estrelas, ainda flutuando no lago, e então voltava a dormir,
de coração maravilhado.
De manhã, o lago estava cristalino e plácido, e os pássaros amarelos
haviam se retirado. O Nariz da Bruxa estava sombrio como sempre. Janner
rastejou para fora de seu cobertor de peles e caminhou um pouco ao longo
da borda. Assim, bebeu bastante água da beirada do lago, antes de ver um
homem com espada. Ele estava a poucos metros de distância, encostado em
uma pedra. Seu cabelo era preto, e ele usava um pesado casaco forrado de
pele, que ia até os tornozelos.
“Os Fangs estão vindo”, ele alertou.
Depois de tantos dias sozinho com Maraly, a presença do homem
assustou Janner de tal modo que ele cambaleou para trás, tropeçou em uma
pedra e quase caiu. Janner não sabia dizer, pelo sorriso do homem, se era
amigo ou inimigo. Poderia ser um dos rebeldes? Um dos homens de
Gammon?
Maraly ainda dormia sob uma pilha de peles no acampamento, a poucos
passos de distância. Janner olhou para sua mochila, onde estava sua espada.
“Não faça isso, garoto. Eu sou rápido. Mais rápido do que um
bambolhão. “
O homem levantou o casaco e lançou algo grande, branco e peludo. A
coisa caiu no chão e rolou até os pés de Janner. A medonha cabeça de um
bambolhão olhava para ele com olhos mortos.
“Ele estava no encalço de vocês”, relatou o homem. “Pegou o cheiro de
vocês após fugirem com as peles.”
O rosto de Janner enrubesceu.
“Não se sinta mal, garoto. Foi uma boa ideia, e muito valente de vocês
dois entrarem na gruta de um bambolhão. Mas vocês tiveram sorte de não
haver outro dormindo no fundo da caverna.”
“Quem é você?” Perguntou Janner.
“Alguém que tem observado vocês.”
Janner não disse nada, mas o aviso do dragão-marinho vibrou em sua
mente: Ele está perto de você. Cuidado.
“Vocês estão fazendo um bom progresso, se for para as Pradarias de
Gelo que pretendem ir. É para lá que pretendem ir, não é?” O homem
interpelou com outro de seus sorrisos misteriosos e por demais amigáveis.
“Talvez”, respondeu Janner, e ele se sentiu um idiota quando o homem
se dobrou de tanto rir.
“Bem, talvez vocês queiram se juntar a mim. É para lá que estou indo
também; e já fiz essa viagem várias vezes. Além disso, essas montanhas
estão cheias de Fangs, que vocês provavelmente não querem encontrar.”
“Fangs? Você está mentindo. Eles não sobrevivem ao frio”, Janner
retrucou.
“Esse costumava ser o caso”, explicou o homem, ficando sério. “Não é
mais. Esses Fangs ficam bem nas regiões frias. Bem demais. Tão bem, na
verdade, que tudo pelo que trabalhei está em perigo. Meu exército, minhas
armas, minhas esperanças de derrotar os Fangs e bani-los de minha terra —
tudo isso estará perdido, a menos que eu encontre uma maneira de deter os
Fangs.”
“Gammon?” Perguntou Janner.
“Sim”, confirmou o homem. “E seu nome é Janner Wingfeather. Estou
aqui para ajudá-lo a chegar a Kimera. O resto da sua família está
esperando.”
“O quê? Como você sabe?”
“Recebi notícia de um de meus homens de que um pirata perna de pau,
uma menina, sua mãe e um velho redondo com óculos chegaram a Kimera
há poucos dias. Disseram que seus dois meninos estavam desaparecidos.
Então, tenho procurado por vocês. Por que você e seu irmão não vêm
comigo? Normalmente eu não estaria com tanta pressa, mas tenho que
atender a um compromisso.”
Os ombros de Janner se afundaram. “Não é meu irmão. Essa é Maraly —
ela é uma Marginal. Meu irmão foi levado pela Carruagem Negra.”
Os olhos de Gammon piscaram de... alguma coisa. Janner presumiu que
fosse decepção e baixou a cabeça.
“Lamento ouvir isso, Janner”, disse Gammon calmamente. “Então Gnag,
o Sem-Nome, pegou sua presa. Só o Criador sabe o que fará com ele.”
“Gnag não sabe quem ele é”, retrucou Janner. “Eles acham que é apenas
mais um garoto da Margem.”
Gammon pensou por um momento. “Bem, pode não haver muita
esperança para o seu irmão, mas, se os Fangs não perceberem quem
capturaram, pode haver alguma esperança para o restante de nós.” Gammon
deu um passo à frente e estendeu a mão. “Você teve uma jornada difícil,
rapaz. Por que não seguimos em frente? Se nos apressarmos, estaremos
seguros em Kimera ao pôr do sol, e você poderá descansar na companhia
daqueles que amam você.”
Janner sentiu uma onda de alívio e todas as suas suspeitas sobre aquele
homem de preto desapareceram. Ele assentiu com a cabeça para Gammon e
apertou sua mão.
53

Uma Revoada de Marbutres

Quando Maraly acordou e deu de cara com um homem em sua companhia,


ela gritou, levantou-se de um salto e teria atirado sua adaga nele, se ele não
tivesse se adiantado e agarrado seu pulso. Só após Janner lhe garantir que
ele era um amigo, ela parou de rosnar, e Gammon a soltou.
“Você é forte para uma menina”, admitiu Gammon.
“Menina ou menino não faz diferença para um Marginal”, retrucou
rispidamente enquanto colocava a adaga em sua bainha. Mas estava claro
que o elogio a deixara orgulhosa.
“Poderíamos usar mais gente como você em Kimera. Forte, rápida e
disposta a lutar quando chegar a hora. Afinal, é por isso que Skree está
nessa bagunça.”
“Por que ninguém lutou quando os Fangs chegaram?” Janner quis saber.
“Sim. Meus compatriotas se espalharam como galinhas em um
galinheiro.” Ele piscou para Janner. “Mas, em alguns dias, veremos outro
tipo de dispersão. Tenho um plano que pode salvar a todos nós.”
“Qual plano?” Perguntou Janner.
Gammon fez uma pausa, e Janner novamente pensou ter visto uma
sombra passar por seu rosto.
“Não posso dizer exatamente. Nove anos entrando e saindo da baixa
Skree, evitando Fangs e trolls a cada passo, fazem um homem manter seus
segredos em sua própria cabeça. Migg Landers é um bom exemplo disso.
Ele foi leal a mim durante anos, mas os homens têm um jeito estranho de se
cansarem e desistirem. Traiu você, Ronchy e a mim também. Acabou
conseguindo uma mordida de Fang por suas próprias complicações. Não
fique tão surpreso. Sei tudo o que acontece em Cavadópolis, garoto.
Dificilmente um troll arrota sem que eu não descubra por meio de um dos
meus homens. Seja qual for o plano que eu tenha, pretendo mantê-lo para
mim. Mas você pode confiar em mim — isso vale para você também,
moça”, declarou com um aceno de cabeça para Maraly, cuja desconfiança
era evidente no rosto. “Você não encontrará outro cara mais ansioso para
tirar esses Fangs de Skree, nem um homem mais leal às suas terras.”
Janner estava convencido e, mesmo se não estivesse, ainda teria se
juntado a Gammon, que fosse só para atravessar as montanhas em
segurança e chegar à sua família.
“Pela maneira como vocês estão se olhando, posso ver que precisam
conversar”, constatou Gammon. “Vou seguir para o lado norte do lago e
esperar por vocês lá. Mas não demorem muito. A encosta mais distante do
Nariz da Bruxa é um péssimo lugar depois de escurecer.”
Gammon se afastou até que as peles em suas costas lhe dessem a
aparência de um urso se movendo ao longo da linha de água.
“Você está preocupada?” Perguntou Janner. Ele confiava em Gammon,
mas se importava muito com o que Maraly pensava. Ela era astuta e tinha
muito mais experiência com homens desonestos.
“Sim. Estou preocupada”, ela confessou enquanto chutava terra sobre as
brasas. “A questão é: o que é mais perigoso, as montanhas ou o homem?”
Janner olhou para Gammon, no outro lado do lago, visível como uma
pequena mancha marrom entre as rochas. Além, à distância, erguia-se Mog-
Balgrik com seus dentes brancos. A montanha parecia muito mais perigosa
do que o homem.
“Eu só quero chegar às Pradarias de Gelo”, insistiu Janner. “Vamos com
ele, beleza?”
Maraly suspirou. “Certo. Mas manterei minha adaga à mão.”
“Ótimo!” Comentou Gammon, quando eles se aproximaram alguns
minutos depois, com as mochilas nas costas, e peles cobrindo cada
centímetro de seus corpos.
Os três deixaram o lago e caminharam contra o vento cortante. Tudo o
que restou de seu acampamento foi a cabeça do bambolhão, sobre a qual
um pequeno pássaro amarelo pousou e cantou.
O dia estava claro e frio.
O coração de Janner acelerava com o pensamento de poder ver sua mãe
ainda naquela mesma noite, de poder abraçar Leeli e sentir os bigodes de
Podo contra sua bochecha. Mas entre ele e sua família havia o que parecia
uma extensão eterna de pedra, neve e vento.
Logo após romperem através do desfiladeiro, o chão baixava
repentinamente, revelando uma magnífica garganta na terra. Os três ficaram
parados por alguns minutos, boquiabertos com o vazio arejado diante deles.
Muito, muito abaixo, um rio esverdeado serpenteava através do
desfiladeiro, parecendo, daquela altura, tão estreito quanto um barbante. As
paredes do cânion eram tão íngremes e lisas que nem mesmo a neve
encontrava apoio. À esquerda e à direita, as Montanhas Rochosas se
separavam, de modo que Janner sentia estar olhando para a borda do
universo. Do outro lado do cânion, as montanhas continuavam, e Mog-
Balgrik era a campeã. Embora o céu estivesse insuportavelmente azul e sem
um único fragmento de nuvem, o pico do Nariz da Bruxa aprisionava uma
faixa de névoa fantasmagórica no céu.
“Eu paro aqui todas as vezes”, contou Gammon. O vento chicoteava
mechas de cabelo preto em seu rosto, e ele ergueu uma das mãos enluvadas
para proteger os olhos da luz. Janner tinha a sensação de que já havia visto
aquele homem antes, mas não conseguia saber onde. Algo no contorno de
sua mandíbula ou no tom de sua voz fazia cócegas na memória de Janner.
“Grandioso, não?”
Janner e Maraly estavam sem palavras.
Gammon apontou para Mog-Balgrik e deu um meio-sorriso. “É para lá
que estamos indo. Sei que parece que nunca chegaremos, mas o caminho é
fácil até chegarmos ao pé dela. Aí, é subir contornando sua encosta e descer
para as Pradarias de Gelo.”
Janner sorriu, mas Maraly não.
“Você está bem?” Perguntou e, então, imediatamente se arrependeu.
Claro que ela não estava bem. A cada passo, Janner estava mais perto
daqueles que o amavam, mas Maraly estava mais longe da única família
que conhecia. E o fato de que eles a queriam morta só piorava as coisas.
Maraly deu de ombros. “Bem, nós vamos ou não?” Ela disse e então
cuspiu. O vento levou o cuspe, e os três ficaram olhando a pequena bola de
saliva flutuar para dentro do cânion.
Gammon conduziu as crianças por uma trilha que mal se via, mas
suficientemente fácil de seguir, e o grupo caminhou a leste, ao redor da
borda do cânion, para chegar ao lado norte. A escarpa estava sempre à
esquerda, e Janner pensou muitas vezes nos penhascos de Glipwood e na
Trilha Glipper, logo atrás do chalé Igiby.
Se alguém tivesse dito a Janner, no início daquele verão, que teria visto
as coisas que viu, ele teria zombado. Janner havia desbravado as Cataratas
Fingap, abatido Fangs (embora não muitos) com seu arco e flechas,
sobrevivido à Fábrica de Garfos, cruzado as ruas vazias de Cavadópolis sob
a luz das torres de tochas, e agora estava nos confins das Montanhas
Rochosas, envolto em peles de lobo. Mog-Balgrik era uma visão terrível,
mas não mais do que muitas das coisas que seus olhos jovens já haviam
visto. Mais do que nunca, porém, ele ansiava não por terras longínquas nem
aventuras radicais, mas pelo fogo de uma lareira e o som de risadas — ou
uma cama! Mesmo só uma cama já estaria bom, Janner pensou. Algo em
que deitar a cabeça, em vez de uma pele de lobo fedorenta e o chão gelado.
O sol viajou pelo céu claro e deslizou por trás de uma montanha.
Por fim, o desfiladeiro ficou pra trás deles, e eles ziguezaguearam pela
face do Nariz da Bruxa. Até Gammon estava sem fôlego e fazia paradas a
cada poucos minutos para permitir que as crianças o alcançassem e
recuperassem o fôlego. A trilha estava cheia de xisto e seixos, e quanto
mais alto subiam, mais neve se amontoava acima e abaixo.
“Temos que... nos apressar”, Gammon alertou entre arquejos. “Não está
longe agora.” Ele apontou para um aglomerado de rochedos acima e à
direita. “Nós temos apenas que chegar lá; então, circulamos a montanha e...
bem, vocês verão. Acho que gostarão da última parte de nossa jornada.
Rápido, agora! O sol está se pondo!”
Aí está, outra vez, pensou Janner. Aquelas cócegas de reconhecimento.
Ele sabia que já havia visto Gammon antes... mas onde?
Gammon saltou para a encosta da montanha em direção aos rochedos.
Seixos quicaram e caíram nos montes de neve abaixo. Janner respirou
fundo e o seguiu, Maraly logo atrás dele. O ar estava rarefeito, o vento
cortante, e as primeiras estrelas tremeluziam no céu, acima do grande pico.
Por fim, alcançaram os rochedos. Uma trilha muito percorrida
serpenteava por entre eles, e Janner encontrou Gammon descansando ali.
As rochas protegiam do vento e, depois de tanto tempo no espaço aberto da
cordilheira, a fenda era um recanto de proteção.
“Está escuro, rapaz. Os marbutres estarão circulando.”
Janner pareceu desanimado. Maraly puxou sua adaga e cerrou os dentes.
Gammon acenou para ela com admiração. Janner se atrapalhou para
encontrar sua espada e só aos trancos conseguiu sacá-la em meio às peles
penduradas em sua mochila.
“O que fazemos?” Perguntou, odiando o quão assustado parecia.
“O crepúsculo ainda não acabou, então podemos ter sorte e encontrar
apenas uns poucos pássaros. Ouçam com atenção.” Gammon se curvou e
olhou as crianças nos olhos. “Fiquem o mais perto de mim que puderem ao
rodearmos a montanha. A distância não é curta, mas nem tão longa que não
dê para correr sem descansar. Conseguem acompanhar?”
“Sim, senhor”, confirmou Janner. Maraly acenou com a cabeça e cuspiu
novamente.
“Assim que estivermos no lado leste da montanha, estaremos
praticamente em casa. Só precisaremos montar no bogã e deslizar para um
lugar seguro. Mas, como eu disse, os marbutres estarão circulando. Se
estivesse sozinho, eu dormiria aqui durante a noite e continuaria pela
manhã. Mas o tempo é precioso, e com dois guerreiros como vocês em
guarda, acho que faremos isso sem nenhum arranhão. Entendido?”
“Ahn”, disse Janner, “o que é um bogã?”
Gammon riu. “Não se preocupe com isso. Você verá em breve. Fiquem
atrás de mim e tenham suas lâminas desembainhadas. Quando os marbutres
mergulharem, decepem.”
“Decepar”, repetiu Janner, engolindo em seco.
“Decepar”, Gammon reiterou, dando um tapinha no ombro de Janner.
“Você está pronta, mocinha?”
Maraly estreitou os olhos. “Pronta. Matei mais marbutres que você,
velho. Comi mais também, aposto.”
Gammon se endireitou com uma risada. “Isso eu admito, moça. Com
toda a certeza.” Ele os conduziu pelo corredor por entre os rochedos e parou
na saída. “Prontos pra correr, vocês dois? Se tivermos sorte, terão sopa no
fogão pra nós. Sempre há uma grande recepção para skreenianos em
Kimera.”
“Pronto”, garantiram Janner e Maraly.
“Agora!” Gammon gritou, e eles irromperam de seu esconderijo.
Correram pela neve na face da montanha por tanto tempo que o peito de
Janner queimava como se tivesse engolido carvão em brasa. Sua garganta se
estreitou, e ele ofegou como um homem idoso. Maraly passou por ele
exatamente como Tink teria feito, e Janner amaldiçoou suas pernas lentas e
esguias enquanto seus dois companheiros corriam à frente.
Tudo o que restava da luz do dia era uma mancha amarela pálida atrás
dos três. Diante deles, além da montanha, as estrelas brilhavam como
diamantes, e demorou muito para Janner perceber que o céu não estava
obstruído por mais montanhas. Enquanto contornavam Mog-Balgrik, a lua
apareceu, amarela como o olho de um lobo, lançando uma luz forte sobre a
vasta extensão das Pradarias de Gelo.
A visão de Janner ficou turva e suas pernas tremeram. Ele não
conseguiria correr por muito mais tempo. Teria que parar para respirar, e se
os marbutres viessem atrás dele, que viessem. Momentos antes de sua
vontade se extinguir, ele colidiu com Maraly, e ambos caíram na neve.
Ambos reapareceram cuspindo, cobertos de neve e lama.
“Levantem-se!” Gammon gritou. “Eles estão vindo!”
Janner se levantou e puxou Maraly com ele. Gammon lutava com um
objeto enterrado na neve, lançando olhares nervosos para o céu. Janner
esticou o pescoço e viu, recortada contra o céu preto-azulado, apagando
estrela após estrela, uma nuvem descendente de marbutres.
Os três estavam de pé na grande montanha, no pináculo do mundo, com
neve até os joelhos, lâminas brilhando ao luar, esperando os pássaros
atacarem. Janner teve somente um pensamento quando o primeiro marbutre
mergulhou ao alcance de sua lâmina: O que, em Kistamos, é um bogã?
54

As Pradarias de Gelo

Zuum!
O pássaro se dividiu em dois e chocou-se contra o solo, ao lado de
Janner, em um esguicho de neve e penas. Maraly rosnou e atirou sua adaga
no marbutre seguinte, quando este ainda estava a quatro metros acima deles.
O pássaro grasnou e despencou aos seus pés. Ela arrancou a adaga de seu
peito e se preparou para o próximo ataque.
Janner via um marbutre após o outro, voando em círculos no céu, faixas
pretas contra o azul da noite. Exceto pelo som que faziam quando as
crianças os atingiam, os pássaros eram estranhamente silenciosos enquanto
circulavam.
Quando o marbutre seguinte mergulhou sobre Janner, ele golpeou tarde
demais. Matou o pássaro, mas suas garras encontraram seu ombro e
rasgaram sua cobertura de peles como uma faca num papel. Ele pôs a dor de
lado e se preparou para o próximo ataque, tentando não dar atenção ao
modo como seu braço esquerdo tremia.
Maraly matou outro pássaro e gritou: “Depressa, Gam—”
“Consegui!” Ele gritou, antes que ela terminasse a frase. “Subam!
Rápido!”
Janner desviou os olhos do céu e viu Gammon ajoelhado na frente de
uma espécie de trenó. Era longo e plano, sem as laterais, mas cordas
corriam da parte traseira do bogã, passando por polias e buracos na frente
recurvada, formando o que devia ser algum tipo de mecanismo de direção.
Gammon segurava as extremidades das duas cordas com uma das mãos e
acenava para as crianças com a outra.
Janner dividiu outro marbutre ao meio e saltou depois de Maraly no
bogã. Maraly ajoelhou-se atrás de Gammon e Janner ficou na retaguarda.
“Janner! Puxe a âncora!”
“O quê? Onde?”
“Anda!”
Maraly rosnou novamente, e Janner soube, sem olhar, que ela havia
atirado sua adaga. Um marbutre morto se chocou contra Janner e o jogou no
chão. Por baixo da pilha fedorenta de penas, ele viu Gammon pular para a
parte traseira do bogã e puxar um pedaço de pau de um buraco no deque.
Imediatamente, o bogã deslizou para frente.
Janner retirou o pássaro morto de cima de si mesmo e ergueu a espada
no instante em que outra ave mergulhava. Um segundo depois, o bogã
carregava Gammon e as crianças encosta abaixo com tanta rapidez que os
marbutres já não mergulhavam, mas planavam bem ao lado do trenó. Janner
viu, à luz da lua, seus olhos negros alocados em órbitas carnudas; os bicos
duros e curvos; os pescoços sem penas; as asas de morcego. Uma fileira de
pássaros batia as asas atrás do bogã como uma fumaça emplumada, de
modo que, sempre que Janner ou Maraly matava um, outro tomava seu
lugar. A cada instante, o bogã ganhava velocidade, e os marbutres ficavam
menos interessados em sua presa, até que, finalmente, os pássaros se foram.
Janner e Maraly gritaram, apesar da exaustão. Eles se abraçaram e riram
junto com Gammon, enquanto o bogã descia voando pela longa encosta.
“Bom trabalho, pequenos guerreiros!” Ele os saudou.
Janner e Maraly embainharam suas lâminas e avistaram as Pradarias de
Gelo pela primeira vez. A encosta oeste de Mog-Balgrik era formidável,
uma sentinela íngreme alertando que, se fraco, o viajante mantivesse
distância; se, porém, enfrentasse sua face gelada, a recompensa era doce.
Uma descida longa e suave para o deserto congelado das Pradarias de Gelo
estava em suas costas; e, para aqueles como Gammon, que sabiam onde
encontrá-los, bogãs permaneciam escondidos na neve para levá-los para
casa.
Os olhos de Janner lacrimejavam, e o vento nos ouvidos o ensurdeciam,
mas ele sorria tanto que os músculos de suas bochechas latejavam. A lua se
tornava um branco frio à medida que subia, e iluminava os campos de gelo
de tal modo, que Janner podia ver tão claramente como se fosse dia. Por
horas, os três deslizaram montanha abaixo, mais rápidos do que o cavalo
mais veloz, com uma espuma de neve formando um arco atrás deles, como
um jato de água. O luar atingia a neve que voava, lançando prismas
coloridos na superfície da pradaria, à medida que passavam. Ratos brancos
e raposas da neve, enterrados sob a neve durante a noite, torciam as orelhas
quando o bogã passava zunindo, pensando que talvez o Criador tivesse se
curvado até a terra e sussurrado: “Shh”.
Janner dormiu um pouco e, quando acordou, a lua olhava diretamente
para ele. Quando não viu Maraly, sobressaltou-se e sentou-se, pensando que
ela tivesse caído em algum momento da noite. Então ouviu murmúrios na
frente do trenó. Ela estava ajoelhada, ao lado de Gammon, segurando as
cordas, enquanto ele a instruía em voz baixa.
“Não puxe com tanta força agora”, orientou-a. “Isso. Está vendo o banco
de neve à frente? Desvie para o lado esquerdo. Muito bom.”
“Estamos perto?” Janner perguntou, com um estremecimento. Seu braço
ferido estava rígido e ardia quando ele se mexia. Gammon e Maraly se
viraram, e Janner ficou surpreso ao vê-la sorrindo.
“Sim”, respondeu Gammon. “Muito perto, na verdade. Vê aquela
elevação, à distância? Mais à direita, logo abaixo de Tirium?”
“O que é Tirium?” Perguntou Janner. Ele só conseguia ver a pradaria
iluminada pela lua, que se estendia para sempre.
“É uma constelação, logo acima do horizonte. Como um triângulo... está
vendo?”
Janner via. Três estrelas brilhantes, um triângulo perfeito, inclinado e
deslizando em direção ao horizonte. E, logo abaixo delas, uma suave
inclinação na neve.
“Eu vejo. Aquilo é Kimera?” Perguntou Maraly. Sua voz havia perdido
um pouco do tom. Ela parecia mais uma garota comum do que uma
Marginal atiradora de adagas.
“Aquilo é Kimera”, confirmou Gammon.
Janner mal conseguia se conter. Ele estava com fome, com frio, cansado
e tinha tanta saudade de sua família que sentiu como se fosse chorar.
Por fim, Gammon pegou as cordas e puxou-as como se estivesse
puxando as rédeas de um cavalo. Algo na parte de trás do bogã se alterou, e
o trenó desacelerou suavemente até parar, bem no sopé da elevação que
Gammon havia apontado.
“Aqui estamos”, anunciou ele com um sorriso. “Kimera.”
Janner saltou do bogã para a neve que chegava até seus tornozelos. Ele
esperava ver uma aldeia, fumaça subindo das chaminés, lamparinas
amarelas emanando luz pelas janelas, mas não viu nada além de neve. Para
onde quer que se virasse, havia neve, de horizonte a horizonte. Nem mesmo
as montanhas eram mais visíveis. Seria isso um truque? Seria essa a sombra
que havia passado pelo rosto de Gammon? De que não havia Kimera
alguma, afinal? E se fosse mentira que Podo, Nia, Leeli e Oskar tivessem
encontrado Kimera? Janner não podia acreditar que houvesse se permitido
crer que algo de bom poderia acontecer a ele, que alguém pudesse ser digno
de sua confiança. Ele sentiu lágrimas quentes subirem em seu peito. Tinha
certeza de que nunca mais veria sua família novamente e que Gammon
havia planejado entregá-lo aos Fangs o tempo todo.
“Janner?” Uma voz o chamou.
Janner congelou.
“Filho?”
Ele se virou lentamente.
Um grande alçapão erguia-se do leito de neve. Luz amarela fluía para
fora da abertura, e uma figura subia por uma escada longa e curva. Era Nia.
Ela usava um vestido verde de mangas compridas, pulsos e gola adornados
com peles brancas e delicadas, e um colar de ouro pendia de seu pescoço.
Após tantas horas sob as estrelas brancas e frias, navegando em um manto
de neve branco-azulada, o amarelo e o dourado que cercavam sua mãe eram
as cores mais mágicas que Janner já vira. E sua mãe! Ela estava limpa. Seu
cabelo estava trançado em belas e intrincadas mechas, que caíam em
cascata sobre seus ombros, como uma cachoeira dourada. Ela era uma
rainha. Se alguma vez Janner duvidara, agora ele sabia.
“Mamãe?” Janner sussurrou.
A respiração de Nia ficou presa na garganta e uma mão foi à sua boca.
Um momento depois, os dois correram — um menino envolto em peles
de animais, ferido e dolorido, magro como um galho de árvore, e a Rainha
de Anniera, envolta em ouro e luz. Eles se abraçaram, e Janner só faltou se
derreter de alegria.
55

A Rendição de
Artham Wingfeather

Por dias, Artham oscilou entre sanidade e loucura. Ele estava deitado de
costas na gaiola, com o brilho de uma baba escorrendo pelo canto da boca
em direção à orelha. Olhava para o teto de pedra e balbuciava palavras que
não tinham significado. Mas, às vezes, sentava-se ereto, como se tivesse
acabado de acordar de um pesadelo, e ficava consciente de si mesmo e de
onde estava.
O tempo todo ele ansiava por se entregar, aceitar a oferta da Guardiã da
Pedra e permitir que ela o transformasse em uma fera alada. Seria tão fácil
cantar a canção e esquecer tudo. Havia muito que ele queria esquecer. Ele
havia quebrado seu juramento mais profundo e, mesmo em seus momentos
mais sãos, era incapaz de pensar nesse fato sem tremer.
Eu o abandonei!
Sua mente havia gritado essas palavras tantas vezes ao longo dos anos,
que elas haviam ficado marcadas a fogo em seu âmago. Não importava o
quanto tentasse, ele não conseguia escapar daquele único fato, daquela
única decisão que o havia assombrado todos esses anos. Não importava o
quanto fugisse, o quanto lutasse para proteger as joias, Peet, no mais
profundo de seu coração, estava apodrecendo e morrendo por causa
daquelas três palavras brutais.
Só o que precisava fazer era desistir, e tudo estaria acabado. Ele poderia
acenar para o Fang Cinzento na janela, a Guardiã da Pedra pegaria sua mão
e trocaria sua tristeza pelo nada inconsciente da caixa de ferro. A luz
vermelha brilharia, e tudo o que restasse de Artham Wingfeather
desapareceria.
Por dias, os Fangs Cinzentos entregaram mais crianças assustadas à
Guardiã da Pedra, e ela as acalmava, dava-lhes as boas-vindas e as matava.
Isso mesmo, pensou Artham, matava-as. Ela tirava suas vidas. Ainda
assim, ele sentia uma pontada de culpa pelos Fangs que havia matado —
teriam sido crianças como essas?
Não, esses Fangs eram pessoas tanto quanto o cabo de um machado era
uma árvore. Era Gnag quem os matava. Ele matava o que estava vivo e
fazia algo diferente daquilo, dando-lhe uma meia vida. Era por isso que os
Fangs viravam pó e se dissipavam quando morriam.
Artham estava tão cansado, solitário e cheio de pesar que tudo o que
queria no mundo era virar pó e ser carregado pelo vento.
No quinto dia na jaula, ele desistiu.
Não conseguia mais suportar o olhar fantasmagórico da Guardiã da
Pedra, nem a excitação doentia dos voluntários de Skree ao entrarem na
caixa, muito menos as lágrimas das crianças. Tantas crianças tiradas da
Carruagem Negra ou trazidas da masmorra, indefesas em um lugar que elas
jamais deveriam ter visto. Ele duvidava que os Fangs mantivessem sua
palavra e libertassem as crianças. Esperava que sim.
Mas pior do que o horror do mundo em que vivia era o mundo dentro
dele. Peet não conseguia parar de lembrar. Estava pendurado em uma gaiola
acima dessa masmorra, tão parecida com aquela da qual havia escapado, e
as vozes em sua cabeça e a amarga lembrança de tudo o que acontecera nas
Profundezas de Throg consumiam-no. Era uma tortura ainda maior do que a
que ele havia suportado de Gnag.
Quando o Fang Cinzento, trazendo a carne, puxou a gaiola para perto,
Artham enunciou: “Estou acabado”.
“Que quer dizer?” Perguntou o Fang.
“Se for verdade que a Guardiã da Pedra vai libertar as crianças, então ela
pode ficar comigo. Faça comigo o que ela quiser.”
O Fang encarou Artham, acenou com a cabeça e desapareceu pela janela.
Artham ficou sentado de cabeça baixa na gaiola, enrolando uma mecha
de seu cabelo branco em uma de suas garras. Poucos minutos depois, a
gaiola balançou e, então, começou a baixar até o chão da masmorra, com
um estalido de cada vez. Uma porta na parede oposta se abriu, e uma hoste
de Fangs Cinzentos saiu por ela. Eles cercaram a jaula com espadas em
punho.
Artham olhava para o chão. As vozes rugiam em sua mente. Ele ouviu a
velha e conhecida voz gritar: Eu o abandonei, mas agora havia mais.
Covarde, vociferavam as vozes. Fraco.
Artham ficou sentado com os olhos fechados e se fechou para tudo.
“Está quase acabando”, ele murmurava repetidas vezes. “Está quase
acabando.”
Os Fangs se afastaram. A Guardiã da Pedra entrou no recinto. Ela se
aproximou da gaiola, uma figura alta, esguia e encapuzada em um manto
preto esvoaçante. Artham abriu um olho, depois o outro, e olhou para ela.
Seu rosto estava invisível sob o capuz, mas ele não sentiu nada do ódio ou
da maldade que esperava.
“Está quase acabando”, repetiu.
“Sim,” ela concordou, em uma voz tão bonita, que Artham parou de
tremer. “Tudo ficará bem, Artham Wingfeather. Você não tem nada a
temer.”
Ela se abaixou perto da gaiola e retirou o capuz.
Seu rosto era pálido, seu cabelo negro como penas de corvo. Seus olhos
eram joias escuras em um campo de neve. Ela era bela, mas de uma beleza
terrível. Artham teve medo de desviar o olhar; nem desejava fazê-lo.
Imediatamente ele entendeu por que as crianças se acalmavam quando ela
lhes falava. Ele sentiu que faria tudo o que ela pedisse, não importava o
quão errado pudesse ser.
“Pobre Artham. Há quanto tempo você está fugindo? Nove anos? E
agora”, prosseguiu ela, de voz tão baixa quanto um ronronar, “você pode
descansar. A Carruagem Negra está chegando com mais gente quebrada,
mais gente cansada como você. Mas eu as libertarei se você cantar a
canção. É isso que você quer?”
Artham assentiu com a cabeça.
“Tudo bem. Mas, primeiro, eles assistirão a você. Vou deixá-los ver a
coisa magnífica em que você terá se tornado quando sair pela porta. E,
então, vou deixá-los escolher. Se eles quiserem ser libertados, eu os
libertarei. Vou devolvê-los às regiões selvagens de Skree, impotentes e
sozinhos, como você quiser — ou eles poderão se entregar ao serviço de
Gnag. Posso torná-los fortes e dar-lhes um exército de camaradas.” Ela se
endireitou e ergueu a voz para os Fangs. “Não posso?”
Eles uivaram, latiram e rangeram os dentes.
Do fundo do túnel veio o chacoalhar e o rangido da Carruagem Negra.
Artham viu a lanterna balançando de um lado para o outro, maior e mais
brilhante a cada segundo. Os quatro cavalos negros apareceram, e os
corvos, o condutor em seu manto, e então, a própria coisa — um cemitério
sobre rodas.
A Guardiã da Pedra recolocou o capuz e subiu na plataforma.
O condutor abriu os caixões, e as crianças desceram, piscando
fragilizadas.
“Alinhe-os!” Ordenou a Guardiã da Pedra.
Os Fangs Cinzentos colocaram as crianças em uma linha ao pé da
plataforma. Todas tremiam e se encolhiam ao ver os lobos bípedes.
Todas menos uma.
Uma das crianças não tremia. Apenas olhava para o chão.
Ele era magro como um ancinho, de cabelos castanho-claros. A
expressão em seu rosto machucado e inchado não era de medo, mas de
vergonha. Ele apenas olhou para os Fangs, as crianças e a caixa de ferro, e
suspirou. Então, abaixou a cabeça e fechou os olhos — da mesma forma
que Artham havia feito quando desistiu de todas as esperanças.
Assim que Artham pôs os olhos no menino, levantou-se de um salto. Sua
cabeça bateu no topo da gaiola, mas não se importou. Ele grasniu, agitou os
braços e gritou, tentando com tudo o que havia nele gritar o nome: “Tink!”.
Antes que Artham pudesse chamar a atenção de Tink, os Fangs
Cinzentos se aproximaram e bloquearam sua visão.
56

Dois Tipos de Vergonha

Segundos depois de Nia passar os braços em torno de Janner, a culpa


borbulhou no estômago dele e enfraqueceu seus joelhos. Ele temia a
pergunta que sabia que viria. Temia tanto que sentiu o mundo ao seu redor
pinotear como um pônei e sua cabeça girar. Como se viesse de uma grande
distância, ele ouviu Nia soluçar, o som fraco e acolhedor de seus beijos em
sua testa, o farfalhar de suas roupas contra suas peles e, por fim, as palavras
que o fizeram perder completamente os sentidos: “Janner, onde está Tink?
Onde está seu irmão?”.
Enquanto desacordado, Janner sonhou com a Carruagem Negra e com o
Supervisor e, por fim, com a caixa onde passara tantos dias sozinho com
seus pensamentos. No sonho, ele ficou deitado na escuridão profunda da
caixa por dias, antes de perceber que alguma coisa perversa estava ali
dentro com ele, observando-o na escuridão. Novamente ele ouviu a voz do
dragão-marinho em sua cabeça. “Ele está perto de você. Cuidado.”
Janner acordou em pânico. Ele se debateu, jogando os cobertores
empilhados sobre ele no chão, e sentou-se suando frio. Levou um tempo
para entender onde estava e, então, a memória lhe sobreveio como um raio:
Kimera. Ele havia conseguido! Sua alegria estava maculada pela vergonha
que sentia por causa de Tink, mas a percepção de que havia viajado uma
distância tão terrível e alcançado seu destino trouxe um sorriso a seu rosto.
Ele estava deitado em uma cama de peles brancas e macias. As cobertas
eram de pele também, mas nada como as peles fedorentas e rígidas de lobo
que ele e Maraly haviam recolhido de sobras. Essas eram macias como
penas, e quentes. Alguém havia substituído suas roupas por um pijama feito
de um tecido felpudo. O chão era de paralelepípedos, mas as paredes eram
vítreas e brancas, e foi só quando as tocou, que Janner percebeu que eram
feitas de gelo. Seu dedo ficou preso na parede e, quando o puxou, um
pequeno fio de vapor subiu no momento em que sua impressão digital
desapareceu.
Alguém bateu na porta.
“Entre”, ele disse, e a porta de madeira se abriu, revelando uma menina
em uma muleta. Ela usava um vestido branco simples, e seu cabelo estava
preso em uma longa trança.
“Leeli!” Janner gritou, envolvendo-a então em um abraço apertado.
“Ainda bem que você desmaiou”, ela riu. “Eles tiveram que costurar seu
ombro.”
Ele havia se esquecido do ferimento causado pelo marbutre. Janner
puxou a gola do pijama e ficou surpreso ao ver uma bandagem enrolada em
seu braço.
“Não está doendo”, afirmou ele, movendo o ombro em círculos.
“Eles untaram com óleo de chovadim”, ela informou. “É uma espécie de
peixe — e também o que mais comemos por aqui. Não acelera a cura, mas
tira a dor por um tempo.”
“Há quanto tempo vocês estão aqui?” Janner perguntou enquanto se
sentava ao pé da cama.
“Chegamos há dez dias.” Leeli olhou para o chão. “Sinto muito por
termos deixado você. Eu não queria. Nenhum de nós queria. Mas os
Fangs...”
“Shhh”, proferiu Janner. “Está tudo bem. Tive muito tempo para pensar
sobre isso e compreendi. Era a única coisa que poderia ser feita para mantê-
la segura. Onde está Maraly — a garota Marginal?”
“Ela está com Gammon. Não acho que ela queria se limpar, mas mamãe
a obrigou. Você sabe como ela é.”
“E quanto ao vovô e Oskar?”
Leeli revirou os olhos. “Eles se cansaram de esperar você acordar, então
estão na taberna jogando cartas. É onde o vovô passa a maior parte do
tempo.”
“Tem uma taberna? Debaixo da terra?”
“Um tipo de... Na verdade, não estamos debaixo da terra. Estamos sob a
neve. Neve profunda. Depois de um tempo, parece uma cidade comum,
com ruas, casas e lugares para brincar. O que foi?”
Janner abaixou a cabeça, pensando em seu irmão mais novo e no quanto
ele teria amado Kimera. Janner não suportava pronunciar seu nome.
“Não é sua culpa”, disse Leeli. Ela mancou pelo quarto e sentou-se ao
lado de Janner na cama. “Ninguém acha que é sua culpa.”
“Mas eu sou um Guardião do Trono!” Janner disparou. “Meu único
trabalho no mundo é protegê-lo, e eu não consegui fazer isso!”
Leeli ficou em silêncio.
Janner sentiu um soluço subindo pela garganta. Ele havia passado dias e
dias fugindo. Havia pensado em Tink muitas vezes, mas sempre à frente de
sua mente estava sua missão de alcançar as Pradarias de Gelo. Ele havia
sonhado com o abraço de sua mãe. Havia sonhado com descanso, comida e
segurança. Espreitando por trás de tudo estava a imagem horrível de Tink
na Carruagem Negra, com olhos arregalados e cheios de terror. Todo esse
tempo, Janner havia sido capaz de afastar a culpa porque não tinha certeza
de estar numa situação muito melhor.
Mas agora que estava em uma cama macia num quarto quente, com sua
família tão perto, parecia injusto. Ele não merecia tanto conforto, enquanto
seu irmão estava... onde quer que estivesse. Janner queria arrancar o pijama
felpudo, envolver-se novamente em peles de lobo e marchar de volta pelas
Montanhas Rochosas até Cavadópolis. Ele marcharia até o Fang mais
próximo e se entregaria. A Carruagem Negra parecia um destino melhor do
que essa culpa insuportável.
“Arrá!” Exclamou uma voz rouca.
Podo irrompeu na sala. Ele parecia com o Podo de sempre, com suas
sobrancelhas brancas espessas e seu cabelo branco desgrenhado, mas um de
seus braços estava pendurado em uma tipoia. Janner lembrou-se de que, na
noite que se separaram, quando Podo arrombou a porta da taverna de
Ronchy McHiggins, ele ouviu o barulho de ossos se quebrando. Mas, ainda
que a ferida de Podo doesse, não era perceptível. Ele correu e jogou Janner
na cama. Cheirava a fumaça de cachimbo e cerveja. Podo cutucava as
costelas de Janner com seus dedos velhos e nodosos e ria, mas Janner
apenas ficou deitado de costas, imóvel.
A alegria de Podo desapareceu. Ele se deixou cair na cama, ao lado de
Leeli, com um suspiro pesado e colocou a mão na perna de Janner. Nia e
Oskar apareceram na porta e perceberam a situação imediatamente. As
bochechas de Oskar estavam rosadas, sua mecha de cabelo estava
cuidadosamente pressionada no topo de sua cabeça e suas mãos
repousavam cruzadas sobre sua barriga. Nia usava um vestido diferente,
mas não parecia menos régia.
Sem dizer uma palavra, eles cruzaram o quarto e se sentaram na cama,
de modo que Janner se viu cercado por sua família. Ele estava em um
ninho, com paredes feitas daqueles que o amavam. Ficaram em silêncio.
Janner olhava para o teto.
“Nós amamos você”, Nia finalmente declarou, colocando a mão no rosto
de Janner.
O soluço subiu por sua garganta e se derramou.
“Eu o perdi”, ele lamentou. “Eu tentei encontrá-lo, mas ele havia
sumido. Sinto muito. Muito mesmo.” Lágrimas jorravam por seu rosto.
Janner chorava tanto que mal conseguia respirar. Repetidamente dizia:
“Sinto muito, sinto muito.” E Nia continuava repetindo: “Nós amamos
você, nós amamos você”.
Quando as lágrimas de Janner finalmente diminuíram, Podo o envolveu
com seus grandes braços e o apertou firmemente. Os olhos de Janner se
fecharam. Ele sentia a mão de sua mãe em seu cabelo, a cabeça de Leeli
apoiada em seu braço e a mão de Oskar em seu pé.
Então o silêncio foi quebrado. Leeli orou em voz alta ao Criador por
proteção para Kalmar Wingfeather. Quando ela terminou, o choro de Janner
havia parado. Ele não tinha mais lágrimas para chorar, e sua maior
esperança era de que o Criador realmente tivesse ouvido o nome Kalmar
Wingfeather e descesse até Kistamos para ajudá-lo.
Leeli levou a harpa eólica aos lábios e tocou. Era uma nova melodia,
algo que estava improvisando, assim como quando tocara a canção para
Nugget acima das águas do Mar Sombrio. Os olhos de Janner estavam
fechados, mas, em segundos, a escuridão girou e tomou forma, e ele podia
ver coisas muito, muito distantes.
“Continue tocando!” Clamou Janner, saltando para o chão. Os adultos o
olharam com preocupação, mas ele não se importou. Leeli parecia confusa,
mas continuou tocando. Janner girou lentamente, com a mão estendida,
desejando que as imagens em sua mente se solidificassem. Ele não sabia,
mas, quando parou de girar, estava voltado em direção ao sudeste e, se ele
fosse um pássaro indo naquela direção, teria voado sobre as Pradarias de
Gelo, através das águas de um estreito, e até uma ilha rochosa onde Peet, o
Homem-Meia, lutava numa gaiola.
Mas Janner não via nada disso. Via somente imagens borradas e
escuridão.
Porém, então, ele percebeu que a escuridão era mesmo o que ele deveria
ver, e que as imagens borradas não estavam borradas de forma alguma.
Eram feixes de luz deslizando por rachaduras. Sua cabeça girou com a
melodia de Leeli e, finalmente, ele viu o que estava procurando: dois pontos
de luz, nas profundezas das sombras, e o contorno de um rosto sujo e
inchado.
Uma luz vermelha explodiu na escuridão, e o rosto de Tink preencheu a
visão de Janner. Seus lábios se moviam. Seus olhos estavam vazios e
profundamente tristes. Quando a luz ficou mais forte, os olhos de Tink
fecharam-se, cansados, e ele desapareceu.
O coração de Janner batia tão forte, que ele colocou a mão no peito. “Eu
o vi!” Janner gritou. “Ele está vivo!”

“Façam com que se cale”, urgiu a Guardiã da Pedra, acenando com a


mão em direção a Artham. “Ele está assustando as crianças.”
“Quieto, homem-pássaro”, rosnou um dos Fangs Cinzentos, “ou iremos
acabar com você.”
Artham sabia que não iriam, não depois de todo o trabalho que haviam
tido para levá-lo até ali, então ele grasnou ainda mais alto.
“Eu disse para silenciá-lo!” A Guardiã da Pedra comandou.
Dois dos Fangs seguraram suas garras e puxaram seus braços pela
gaiola. Seu rosto bateu nas barras, e eles o prenderam ali. Um dos Fangs
colocou a pata sobre o rosto de Artham, o que não fez parar o grito, mas o
abafou. Por mais que tentasse ver Tink, não adiantava; Fangs cercavam a
gaiola.
Artham percebeu que nem a Guardiã da Pedra, nem os Fangs tinham o
conhecimento de que o Rei Supremo de Anniera estava em suas mãos.
Pensavam que fosse apenas mais um menino. Artham parou de lutar. Talvez
fosse melhor se eles não soubessem quem era Tink. Mas se eles
soubessem... se eles soubessem, talvez não o enviassem para a caixa.
“O que é isso, afinal? Primeiro você diz que vai obedecer, e agora luta”,
indagou a Guardiã da Pedra para Artham. “Você se acha mais valioso do
que essas crianças? Muito bem. Vamos fazer você assistir. Traga um lobo!”
Através do aglomerado de Fangs, Artham teve um vislumbre da Guardiã
da Pedra estendendo sua mão.
“Você, garotinho,” ela disse com uma voz suave. “Aproxime-se.”
Ele ouviu cada passo enquanto Tink subia as escadas.
“Tmmmmk!” Artham gritava na pata do Fang. “Tmmmmmk!” O Fang
deu um soco no rosto de Artham com tanta força, que sua visão ficou turva.
“Não preste atenção neles, criança”, ele ouviu a Guardiã da Pedra bradar.
“Mantenha seus olhos em mim.”
“Tudo bem”, anuiu Tink.
“Qual é o seu nome, criança?” Perguntou a Guardiã da Pedra.
Artham congelou. Ele se perguntou o que a mulher faria quando Tink
dissesse a ela seu nome. Ela o reconheceria?
“Ahn, Ardileza”, Tink disse em voz baixa.
“De onde você é, Ardileza?” Indagou a mulher. Tink ficou em silêncio.
Artham ouviu o rabiscar do Fang ao lado da plataforma, anotando as
respostas de Tink no livro. “Está tudo bem. Foi uma jornada terrível, não
foi, garoto? Mas a jornada acabou. Em breve você terá uma nova casa, um
novo nome e uma força enorme. Isso agradaria você?”
“Sim”, Tink respondeu calmamente.
“Não”, Artham falou, abafado pela pata do Fang. Não! Sua voz interior
gritou.
“Entre comigo e não tema mais”, prometeu a Guardiã da Pedra.
Tink suspirou. “Sim, senhora.”
Artham ouviu a porta de ferro se abrir. Ele ouviu Tink caminhar para
dentro. Ouviu a porta se fechar atrás dele.
E então ele ouviu as primeiras notas da terrível canção das antigas
pedras.
57

Abelhas e Ossos Velhos

Leeli baixou a harpa eólica de seus lábios e a imagem na mente de Janner


desapareceu.
“O que você vê quando Leeli toca?” Perguntou Nia, inclinando-se para
frente.
“Imagens”, respondeu Janner, encolhendo os ombros. “Mas não acontece
toda vez que ela toca, e todas as três vezes foi uma música diferente.”
“Três vezes?” Leeli perguntou. “Eu só me lembro disso acontecendo
com os dragões-marinhos.”
“Aconteceu de novo quando vocês estavam nas montanhas”, prosseguiu
Janner, sorrindo com a surpresa no rosto de Leeli. “Eu vi todos vocês. Eu
não entendia o que estava vendo e não queria acreditar, mas vi vocês na
neve, no alto das montanhas. Ao mesmo tempo, vi Tink na gaiola
Marginal.”
“Na gaiola Marginal?” Podo rosnou. “Foram eles que o entregaram à
maldita Carruagem?”
“Sim, senhor”, disse Janner baixinho, e o peito de Podo roncou. “Mãe,
por que a música da Leeli faz isso? Ela é mágica?”
Nia sorriu. “O que é mágica, afinal? Se você perguntasse a um gatinho:
‘Como uma abelha voa?’, a resposta provavelmente seria ‘Mágica’.
Kistamos é cheio de maravilhas, e alguns chamam isso de mágica. Isso é
um dom do Criador... não é algo que Leeli criou ou que pretendia fazer,
nem você pretendia ver essas imagens. Você não tentou dobrar os caminhos
do mundo à sua vontade. Você tropeçou nisso, como um gatinho encontra
inesperadamente uma flor onde uma abelha pousou. É como a água do
Primeiro Poço. A música que Leeli faz tem grande poder, mas é claro que o
Criador colocou o poder ali quando teceu o mundo. Se parece que
descobrimos algum segredo, é apenas porque as guerras dos séculos
ocultaram o que antes era tão comum quanto a grama.”
“Sim”, concordou Oskar. “Aprendi muito com o seu Primeiro Livro,
rapaz. Muito sobre Kistamos e a causa de sua queda. Anyara — Anniera —
era uma cidade tão resplandecente, meu garoto. Justiça e alegria eram as
joias de sua coroa.” Ele tirou os óculos e enxugou o canto do olho. “Mas
Will Usurpador destruiu tudo. Ele viu os dons que o Criador havia dado,
corrompeu-os e dobrou-os à sua própria vontade. Mas isso foi muito mais
tarde”, contou ele enquanto recolocava os óculos. “Quando a cidade era
viva, as crianças cantavam músicas que faziam as flores mudarem de cor
durante a noite. Outras crianças escreviam poesias que, dizem, erguiam os
grandes arcos de pedra dos portões da cidade. Outras, ainda, pintavam
imagens que, quando a criança certa cantava a música certa ou lia a história
certa, se moviam.”
“As imagens se moviam?” Leeli perguntou sem fôlego.
“Isso é o que se dizia”, Oskar lhes disse em um sussurro, “e eu acredito.”
Ele olhou de Janner para Leeli com olhos brilhantes. “Toda a minha vida eu
quis acreditar que as histórias eram verdadeiras. Nunca fui capaz de
acalmar a dor prazerosa entre meu coração e meu estômago que sentia
quando menino ao ler esses contos. E agora que estou envolvido na saga
Wingfeather, essa dor cresceu tanto, que mal posso suportar. Aqui estou eu,
na presença de rainhas, heróis e mágica. Sim, mágica. Só quando ficamos
velhos demais é que deixamos de ver que o mundo do Criador está repleto
de magia — ela se esconde à vista de todos na música, na água e até mesmo
nas abelhas.”
“Eu vi muitas coisas, criança”, relatou Nia, e um olhar distante surgiu
em seus olhos. “Coisas maravilhosas. As antigas histórias podem chamar de
mágica, mas eu chamo de beleza. Poderia até chamar de amor.” Ela piscou
e voltou a si. “Que você seja capaz de ver que essas coisas quando ela toca
são um dom. Nunca tente se tornar seu mestre, mas as sirva. Permita que
isso seja o que o Criador pretendia que fosse.”
A mente de Janner girava com mil perguntas. Por que a música de Leeli
só funcionava algumas vezes? Por que Oskar disse que apenas canções,
poemas e pinturas de crianças tinham poder? Tink estava na Carruagem
Negra? O que eles fariam a seguir?
“Vamos sentar aqui e tagarelar sobre gatinhos o dia todo?” Podo
perguntou impaciente. “Viemos aqui para buscar Janner para o jantar, se
bem me lembro.”
“Sim, sim”, concordou Oskar, esfregando as mãos rechonchudas.
“Podemos continuar essa discussão ao lado de cidra e sopa de chovadim?
Tenho muito a lhe contar sobre o seu Primeiro Livro, Janner! Na página
vinte e sete, sua mãe e eu traduzimos uma antiga música para harpa eólica
— uma melodia chamada ‘Canção de Yurgen’, pelo que pudemos ver.
Imagine nossa surpresa quando Leeli a tocou e parecia uma velha melodia
infantil que sua mãe costumava cantar como acalento para você. Pense
nisso!” Oskar estremecia de empolgação. “E, claro, precisamos nos
informar sobre o que aconteceu com você e planejar o que vamos fazer.
‘Informe-se e planeje durante a refeição, sempre que puder’, aconselhou o
grande R. T. Crunk. Estou inclinado a concordar.”
Todos riram, mas o estômago de Janner roncou com a menção à comida,
o que os fez pensar em Tink novamente. Eles saíram da sala em silêncio.
Kimera era um labirinto de túneis arredondados. Como muitas das
paredes eram feitas de gelo e neve compactada, a luz das lanternas
enfileiradas nos corredores fragmentava-se e espalhava-se, dando a
impressão de que a cidade se localizava nas alturas do céu, atravessada por
nuvens e luz do sol, e não nas profundezas da neve. Janner estava com frio,
mas não tanto quanto teria imaginado. Não havia vento. Ele percebeu que
durante dias havia dormido e caminhado em espaço aberto, lutando com um
vento contínuo e cortante que penetrava em cada camada de pele de lobo
que ele usava. Kimera era quente em comparação.
Um cheiro delicioso pairava pelo túnel brilhante e ficava mais forte a
cada passo. Eles passaram por várias portas de madeira, incrustadas no gelo
duro da mesma forma que teriam sido incrustadas num batente de madeira.
“Oi”, cumprimentou Podo enquanto conduzia o grupo, ao passar por dois
homens com baldes de água. Eles usavam calças, mas não camisas. Seus
tóraxes eram peludos e largos como o de um bambolhão, maiores ainda do
que o de Podo. Seus cabelos eram longos, mas suas barbas eram ainda mais
longas e, embora seus rostos fossem duros e frios, abriram-se em belos
sorrisos com a saudação de Podo.
“Oi pra você também, meu velho”, devolveu um dos homens enquanto
jogava um balde inteiro de água na parede. A água estalou e se transformou
em gelo antes de atingir o chão. O outro homem mergulhou um pano em
seu balde e alisou a parede.
“Eles obtêm água potável de um poço bem profundo. Fica mais quente
quanto mais fundo você vai. Fantástico, não?” Podo explicou. Enquanto
caminhavam, ele explicou como os kimerianos consertavam as paredes de
gelo e como conseguiam comida, caçando ou pescando.
“Pescando? Estamos perto do Mar Sombrio?” Perguntou Janner.
“Sim e não”, respondeu. “Esses chovadins são de um rio que dizem que
corre sob o gelo, perto da cidade. É de onde eles obtêm a maior parte de sua
comida. Quanto ao mar, se caminhássemos pela superfície, levaria dias, mas
isso só porque o gelo se estende por quilômetros sobre a água.
“No entanto, os kimerianos são mais espertos do que isso. Muitas eras
atrás, abriram túneis que levavam ao Mar Sombrio, grandes cavernas no
gelo, onde as ondas batiam em uma costa congelada. Na verdade,
costumava haver um porto kimeriano antes da guerra. Os marinheiros
podiam conduzir seus navios direto para um corredor de gelo, largo o
suficiente para os remos, e, em seguida, remar por quilômetros através de
um desfiladeiro branco.” A voz de Podo mudou, e Janner não precisou
perguntar se o velho pirata havia estado lá. “No final do desfiladeiro se
encontra a boca de um túnel, e os capitães mais insanos esperavam até a
maré baixa e navegavam direto pra dentro dele. O túnel seguia por
quilômetros, direto para o porto de Kimera, onde sempre havia bom
comércio e sopa de chovadim para aquecer os ossos.”
“Falando em sopa”, complementou Oskar, e eles viraram uma curva no
calçamento congelado e pararam diante de um conjunto de portas de
madeira gigantescas.
Podo as empurrou, e os sentidos de Janner foram agredidos. Centenas de
pessoas estavam sentadas em longas mesas à luz de velas, rindo, gritando,
cantando e conversando. O teto abobadado era liso como vidro e
transparente o suficiente para que Janner pudesse ver o brilho alaranjado do
sol poente na borda oeste. A luz do sol dava a todos os kimerianos uma
luminosidade feliz, que se aprofundava ainda mais enquanto Janner
observava. As paredes de pedra cintilavam com a água que derretia da
cúpula gelada e gotejava em uma calha que contornava todo o perímetro do
chão, enviando o escoamento para longe através de um bueiro.
O ar estava denso com o rico aroma de sopa de chovadim, mas ele
também sentia o cheiro de pão quente e o agradável aroma de fogo. No lado
oposto da sala estava a maior lareira que ele já havia visto. A abertura era
alta como um homem e larga como a porta de um celeiro, e árvores inteiras
crepitavam em um fogo tão quente, que Janner conseguiu senti-lo em seu
rosto, do lado oposto da sala. Era feita de pedras polidas pelo mar, cinzas e
pretas, cobertas com tons padronizados. A chaminé erguia-se para o alto,
atravessando o gelo. Acima da lareira havia uma enorme cornija, sobre a
qual estava um arranjo dos ossos de uma grande criatura que Janner não
conseguiu identificar.
“O que é aquilo?” Ele perguntou. “Quero dizer, aqueles ossos.”
“Um dragão-marinho”, respondeu Oskar.
“É muito pequeno”, continuou Janner. “Os dragões são enormes.”
“Isso porque”, disse Oskar com tristeza, “era um dos seus filhotes. Não
tinha mais do que alguns anos. Muitos anos atrás, bebês dragões-marinhos
rendiam um preço alto. Eles eram quase impossíveis de pegar, mas suas
peles valiam mais do que muitas joias. A carne de um jovem dragão-
marinho era uma das melhores iguarias de Skree. Só os mais ricos podiam
pagar.”
“Isso é terrível”, comentou Leeli.
“Foi, querida”, concordou Nia. “Os reis de Anniera, dizem, já tiveram
uma aliança com os dragões-marinhos. Por épocas, os annierenses tentaram
renovar a antiga aliança, mas não sabiam como se comunicar com as feras.
Ainda assim, nosso povo sempre acreditou que, de todas as criaturas do
Criador, os dragões-marinhos eram sagrados.” A voz dela ficou sombria.
“Mas para os caçadores de dragões não havia nada sagrado além de
riquezas. Homens maus farão qualquer coisa por dinheiro. O povo de
Anniera desprezava os caçadores de dragões e estava certo em fazê-lo.”
Janner estremeceu. Os dragões eram criaturas de uma beleza terrível. Ele
não conseguia considerar matar um, muito menos um de seus filhotes.
“Esta é a parte mais antiga da cidade”, disse uma voz familiar vinda de
dentro da sala. Vestido de preto, Gammon encostava-se à parede com os
braços cruzados, sorrindo para Janner. “É o único cômodo, em toda a
cidade, onde podemos queimar a madeira o mais quente que quisermos,
sem nos preocuparmos com o derretimento das paredes.” Ele apontou para
o teto. “Nós bombeamos água do poço para um reservatório que transborda
sobre a cúpula vítrea, noite e dia. O ar lá fora é tão frio que ela permanece
espessa e clara, não importa quão quente esteja aqui embaixo.”
“Gammon”, disse Podo em saudação, “você fez um ótimo trabalho aqui.
Não consigo expressar o quão bom é viver em uma cidade sem Fangs.
Skree tem sorte de ter alguém como você.”
Janner não estava acostumado com Podo falando com outro homem
dessa maneira. O velho pirata realmente gostava dele. Janner estava feliz,
porque gostava de Gammon também. Nas Montanhas Rochosas, ele havia
depositado sua confiança no homem e ficou aliviado ao ver que Podo teria
aprovado.
“Obrigado, Podo. Estou feliz por vocês estarem aqui. Fiquem à vontade.
Kimera é uma cidade livre, tão livre quanto Skree antes da guerra, e tão
livre quanto Skree será um dia novamente. Janner, você provavelmente está
se perguntando sobre Maraly. Ela está ali, à mesa perto da parede.”
Janner ficou chocado ao ver uma garota de vestido vermelho. Seu cabelo
ainda era infantil e curto, mas estava limpo e adornado com uma corrente
de pérolas. Se Gammon não a tivesse apontado, ele nunca a teria
reconhecido. Por baixo de toda a sujeira e ardileza, Maraly era muito
bonita. Aí, ela se inclinou, fungou e cuspiu no chão, ao lado da mesa.
Enxugou a boca com a manga e enfiou goela abaixo uma colher abarrotada
da granulosa sopa na boca. Uma pelota caiu em seu colo, e ela passou os
dedos por cima, em seguida lambendo-os para limpá-los. Então,
distraidamente, esfregou-os na frente do vestido enquanto pegava outra
colherada. Janner sorriu.
Nia ergueu uma sobrancelha. “Vejo que teremos muito trabalho a fazer
com ela.”
A família Igiby sentou-se à mesa com Maraly, e três mulheres
kimerianas apareceram com tigelas fumegantes de sopa de chovadim e
canecas de cidra.
Foi a melhor refeição que Janner já havia comido. Se ele não estivesse
sentado ao lado de sua mãe, teria devorado a comida como Maraly, mas se
obrigou a manter as costas retas e dar mordidas modestas. Diversas vezes,
durante a refeição, vários homens, mulheres e crianças pararam à mesa para
dar as boas-vindas a Janner e Maraly. Eles eram gentis e respeitosos,
especialmente com Nia, que era mais visivelmente algum tipo de realeza.
Maraly falou pouco e comeu tão ruidosamente quanto Podo durante a
refeição. Quando terminou sua cidra, ela arrotou e deu tapinhas em seu
estômago. Podo teria rido se Nia não o tivesse encarado com um olhar
feroz. Janner percebeu que ela estava se esforçando ao máximo para não
demonstrar sua desaprovação.
“Então, conte-nos a história, rapaz”, pediu Podo. “O que aconteceu?”
Todos os olhos se voltaram para Janner.
Ele sabia que isso ia acontecer. Janner sempre amara as histórias de Podo
e havia sonhado com o dia em que teria sua própria história. Mas, agora que
tinha uma para contar, achou difícil contá-la. Tanta coisa havia acontecido.
Como conseguiria contar tudo? Ele tinha medo de reviver certas partes e
vergonha de outras. Podo acenou com a cabeça para ele.
“Sei que é difícil, rapaz, mas é algo seu. Você encontrará cura nisso,
gostando ou não. Comece do início: na casa de Ronchy. O que aconteceu
depois que arrombei a porta?”
Janner respirou fundo e começou.
Ele contou tudo a eles. Contou sobre sua raiva de Tink. Sobre os
horrores no Beco Tilling, sobre a terrível escuridão da caixa do Supervisor e
a paz que encontrou lá. Contou a eles sobre Sara Cobbler, Núbia Brejeira e
Maraly.
Eles ouviram com olhos arregalados. De vez em quando faziam
perguntas e, mais de uma vez, os olhos de Nia se encheram de lágrimas.
Mas o que Podo havia dito era verdade: contar a história doía e ajudava ao
mesmo tempo. Ele já conseguia ver modos como a história o havia mudado
e como continuaria a fazê-lo.
“Adormeci no bogã”, continuou ele, “e, quando acordei, estava aqui”.
Oskar recostou-se na cadeira e enxugou a testa com um guardanapo.
“Bem, isso, sim, é uma história”, confessou Podo.
Nia colocou um braço em volta de Janner e o apertou.
“Mas precisamos fazer algo quanto a Tink”, pediu Leeli. “Se Janner o
viu durante a música, significa que ele está vivo, não é? E se ele está vivo,
então precisamos encontrá-lo.”
“Como?” Perguntou Janner. “Tudo o que pude ver foi que ele estava em
uma caixa. Isso pode significar que ele está na Carruagem Negra, ou em
uma masmorra, ou... ou mesmo em um navio. Não seria mais fácil de
encontrá-lo do que teria sido para vocês de me encontrarem quando eu
estava em Cavadópolis.”
“Não há esperança para Kalmar”, proferiu Maraly. Foi a primeira vez
que ela falou desde o início da história de Janner.
“Não diga isso”, revidou Nia.
Maraly estreitou os olhos para Nia, e a Marginal reapareceu. “É verdade.
Ninguém que é levado pela Carruagem volta. Meu pai mandou não sei
quantas crianças — algumas delas do nosso próprio clã! — para as gaiolas,
e elas nunca mais voltaram. Amigos meus também. Meninos que podiam
lutar muito melhor do que Kalmar jamais conseguiria e que conheciam a
floresta melhor do que eu. Eles prometeram que encontrariam um caminho
de volta, e nunca o fizeram. Nenhuma vez. O que te faz pensar que Kalmar
é diferente?”
Muitos dos kimerianos sentados próximos ergueram os olhos de sua sopa
quando a voz de Maraly se ergueu. Gammon pediu licença de sua mesa no
lado oposto da sala e caminhou a passos largos até eles.
“Calma, moça”, pediu a Maraly, que sorriu para ele. Gammon abriu as
mãos e olhou para os Igibys. “Durante anos, temos feito nossas refeições
em paz, e assim que vocês, boas pessoas, chegam, temos esse tumulto.”
O sorriso de Maraly desapareceu, e ela fez uma careta para Nia. “Ela
está tumultuando.”
“Minhas desculpas, Gammon”, disse Podo. “Você sabe como as
mulheres podem ser” — e o queixo de Nia caiu ao ouvir isso —, “sempre
discutindo entre si. Vamos manter o silêncio. Não é, filha?” Podo lançou um
olhar duro para Nia, que revidou com um olhar fumegante.
“Bom”, disse Gammon. “Qual foi a origem da discussão? Talvez eu
possa ajudar.”
“Estávamos discutindo sobre o que fazer para encontrar Kalmar”,
informou Oskar.
“Oh? Pensei que ele tivesse sido levado pela Carruagem Negra.”
“Ele foi”, confirmou Janner.
“Então temo que não haja como recuperá-lo”, Gammon concluiu
gravemente.
“Foi isso que eu disse a eles”, disse Maraly, sem erguer os olhos.
Nia jogou o guardanapo na mesa e saiu da sala.
“Ouça, senhor”, começou Podo. “Somos convidados aqui. Sei que
devemos muito a você por ter trazido Janner até aqui em segurança. Mas
você tem que entender uma coisa.”
“O quê?” Perguntou Gammon.
“Kalmar é filho dela. Temos motivos para pensar que ele ainda pode
estar respirando e, enquanto isso for verdade, não planejamos esquecê-lo ou
desistir. Vamos... manter a vela acesa, assim como fizemos com Janner
aqui.”
“Entendo o que você quer dizer, Podo, mas há algo que você precisa
entender também. Ninguém escapa da carruagem. Há Fangs demais.”
Podo zombou. “Nós dois sabemos que os Fangs não são tão
problemáticos quanto uma cobra na grama, se você souber como usar uma
lâmina. Poeira e ossos são tudo o que são.”
“Não mais”, Gammon revidou.
“O que você quer dizer?”
“Quero dizer que eles estão mais fortes, mais rápidos e mais perigosos
do que costumavam ser. E, agora que eles vêm das Phoobs, podem chegar
aqui mais rápido...”
“As Ilhas Phoob? O que tem elas? “
“Nada.”
Podo olhou para ele e esperou por uma resposta.
Gammon suspirou e olhou ao redor para ter certeza de que nenhum dos
kimerianos estava ouvindo, então se aproximou. Ele abriu a boca para falar,
então balançou a cabeça. “Não posso dizer a vocês. Muitos ouvidos.”
Podo revirou os olhos. “O quê? Você não pode confiar nos seus?”
“Não. Não posso. Lembra do Migg Landers?” Perguntou Gammon. Podo
rosnou. “Ele era um dos meus, e não pude confiar nele, não é? Eu tenho um
plano, mas não é minha intenção contar a ninguém até que chegue a hora
certa. Enquanto isso, você e sua família apenas fiquem por aqui. Kimera
lhes dá as boas-vindas. Aproveitem o resto.” Ele se levantou da mesa.
“Mais uma coisa. Sei que você amava seu neto e sei que ele era importante
em Anniera. Mas se ele foi levado pela Carruagem, é melhor deixar suas
esperanças de lado. Mesmo que ainda esteja vivo, o Kalmar que vocês
conheciam se foi. Lamento profundamente.”
Janner não entendeu o que ele quis dizer, mas os olhos de Gammon eram
sinceros e tristes. Podo estudou o rosto do outro homem por um momento,
então acenou com a cabeça rigidamente, e Gammon saiu.
O grupo sentou-se à mesa em silêncio. O crepitar da grande lareira, as
risadas e a conversa das mesas próximas, o tilintar de colher nas tigelas —
tudo zombava da coisa terrível que Gammon havia dito: Tink se fora.
Janner sentiu-se um tolo por se permitir ter esperança de que seu irmão
pudesse ser salvo. Ele abaixou a cabeça.
“Sei algo sobre as Phoobs”, comentou Maraly.
“O que poderia ser, querida?” Perguntou Oskar.
“O que você sabe?” Leeli perguntou, parecendo sua mãe.
“Ouvi meu pai dizer que, às vezes, a Carruagem Negra ia para lá, em vez
de Lamendron. Disse que os Fangs tinham um novo plano. Pode ser que
Kalmar esteja lá. Ainda digo que ninguém poderia escapar da Carruagem,
mas...” Ela fez uma pausa e inclinou a cabeça para o lado.
“Mas o quê?” Leeli indagou.
“Ninguém nunca escapou antes, mas também ninguém nunca teve
ajuda.” Ela encolheu os ombros. “Talvez pudéssemos ir buscá-lo. Não me
importaria de terminar aquele jogo de ataquebol que começamos na Curva
Oriental.”
Podo sorriu. E, como uma nuvem deslizando para o lado para permitir a
luz do sol passar, a sombra das palavras de Gammon se dissipou, e a
esperança voltou.
“Vamos achar Nia”, disse Podo. “Não sei o que faremos ou como
faremos, mas vamos trazer de volta o meu garoto, com ou sem a ajuda de
Gammon.”
58

A Barganha de Gammon

A primeira vez que ela tentou, eles estavam no quarto de Podo. Maraly,
Oskar e os Igibys estavam sentados em círculo, sobre um tapete no meio do
chão. Leeli levou a harpa eólica aos lábios e tocou uma balada chamada
“Joeirem o Feno, é Comida de Burro”. Janner fechou os olhos com força e
pensou em Tink. Na escuridão de sua visão, ele viu formas geométricas
vagando e florescendo, mas nada de especial aconteceu. Quando Leeli
acabou de tocar a música pela terceira vez, ele desistiu.
“Nada”, constatou.
“Talvez eu não esteja tocando bem o suficiente”, ponderou Leeli.
“Não, você está tocando muito bem”, Nia corrigiu a filha.
“Perfeitamente.”
“Talvez tenha que ser uma música específica”, sugeriu Oskar. “E aquela
do Primeiro Livro?”
“Ou a que você tocou para o Nugget. Lembra dela?” Perguntou Janner.
“Eu me lembro exatamente”, respondeu Leeli.
“Experimente, querida”, Nia lhe pediu.
Mais uma vez ela tocou e, embora tenha trazido à mente de Janner todas
as memórias daquele dia nos penhascos em que ouviu os dragões-marinhos
pela primeira vez em sua cabeça, ele não viu nada.
Abriu os olhos e viu todos voltados para ele. “Desculpe”, ao que todos
baixaram a cabeça em frustração.
“Talvez devêssemos deixar vocês dois sozinhos”, sugeriu Nia.
Eles saíram do quarto um após o outro, deixando Leeli e Janner frente a
frente no tapete. Leeli tocou música após música, e Janner pensou tanto que
sua cabeça doeu. Mas nada aconteceu. Juntaram-se aos outros no quarto de
Oskar, e todos levantaram-se num sobressalto quando Janner e Leeli
entraram.
“Não está funcionando”, concluiu Janner. “Eu sinto muito.”
“Nós conversamos, rapaz”, afirmou Podo, “e não faz diferença de
qualquer maneira. Nós vamos buscá-lo. Todos nós.”
“Todos nós?”
“Sim. Parece-me que, toda vez que essa família se divide, coisas ruins
acontecem. Iremos para o sul novamente, então descobriremos o que fazer a
seguir. Talvez a gente vá para as Ilhas Phoob.” Podo pigarreou e levantou o
olhar, pensativo. “Lembro de haver um forte lá. Deve ser onde está o posto
Fang avançado — embora não faça muito sentido. Da última vez que estive
lá, estava coberto de neve e da espuma do mar. Não é o tipo de lugar onde
os homens-lagartos seriam capazes de sobreviver, mas Gammon disse que
esses eram diferentes, que Gnag alistou outra raça de Fangs, que então
conseguem suportar o frio. A questão é: não podemos ficar sentados aqui e
não fazer nada. Vamos buscar seu irmão.”
“Sim, senhor”, concordou Janner, correndo em seguida para Podo e o
abraçando com força.
“Quando partimos?” Leeli perguntou.
“Logo cedo pela manhã”, Nia disse. “Precisamos combinar com
Gammon o uso de alguns bogãs e uma equipe de galinóis.”
“Galinóis?” Indagou Janner.
Os olhos de Leeli brilharam. “Eu tenho que te mostrar! Eles são lindos,
com as penas mais macias que há. Os tratadores me deixam alimentá-los, às
vezes.”
“Haverá tempo para isso pela manhã”, disse Nia. “Vocês, crianças,
deveriam ir para a cama. Vou abastecer as mochilas e prepará-las para que
possamos partir bem cedo pela manhã.”
Janner deu boa noite a Maraly e Leeli e foi para seu quarto, onde se
deitou sob as cobertas e olhou para o teto de gelo. A frustração com a
música se foi. O pesar por, tão cedo, deixar o conforto de Kimera se foi. Seu
coração cantava com a esperança de que pudesse mesmo haver a mínima
chance de rever seu irmão mais novo.
Por fim, ele dormiu.
Uma batida na porta o acordou. Janner sentou-se e esfregou os olhos,
lembrando-se imediatamente de que a jornada o esperava. Ele se vestiu
rapidamente, agarrou o casaco de pele do cabide e escancarou a porta. Seu
sorriso desapareceu.
Um kimeriano estava diante dele, com sua longa barba coberta de gelo.
Ele estava sem fôlego e usava um robusto casaco de pele cinza que se
estendia até o chão.
“O que foi?” Perguntou Janner.
“Desculpe”, disse o homem, lançando-se para a frente e amarrando os
braços de Janner atrás de suas costas, antes que o menino soubesse o que
estava acontecendo.
Ele empurrou Janner à sua frente, passando pelo quarto vazio de Leeli,
depois pelo quarto de Nia e depois pelo de Podo. Estavam todos vazios. A
porta de Podo pendia torta e sua cama havia sido revirada em uma luta.
“O que está acontecendo? Onde está minha família? Onde está
Gammon?” Janner interpelou, mas o homem não disse nada.
Atravessaram as grandes portas do refeitório e serpentearam pelos
pavimentos de gelo de Kimera, passando em frente a mostruários de lojas
cortados no gelo, de cozinhas e residências onde crianças brincavam.
Sempre que encontravam kimerianos, eles pareciam confusos e recuavam
contra a parede para que Janner e seu captor pudessem passar. Finalmente,
eles dobraram uma esquina, e Janner o viu, acompanhado por uma pequena
companhia de kimerianos armados.
“Gammon!” Ele gritou. “O que está acontecendo? Onde está minha
família?”
“Está tudo bem, rapaz. Vai ficar tudo bem. Apenas não posso deixar
vocês partirem.” Ele se virou para o homem atrás de Janner. “Obrigado,
Errol. Já é seguro entrar.”
“Sim, senhor”, anuiu Errol, e havia preocupação em sua voz.
Ele conduziu Janner para um pequeno recinto. Oskar, Podo, Nia, Leeli e
Maraly estavam sentados, amordaçados e amarrados a um longo banco no
centro da sala. Janner notou que Maraly não usava mais um vestido, mas
calças e um casaco, assim como Janner. As paredes eram feitas de pedra,
em vez de gelo, e uma tocha crepitava na parede. Quando Podo viu Janner,
o velho grunhiu e lutou para se livrar das amarras, e Errol ficou tenso.
“Foram precisos quatro de nós para amarrá-lo, rapaz”, confessou o
kimeriano.
“Quase matou um de nós, mesmo com o ombro ruim”, disse outro
guerreiro do lado de fora da porta. “Ele é forte, seu avô.”
“Por que vocês...?” Começou Janner, mas o homem amarrou um pano
em volta de sua boca e, em instantes, ele se viu amarrado ao banco ao lado
dos outros.
“Isso é tudo, Errol”, disse Gammon. “Certifique-se de que Elmer e Olsin
sejam bem assistidos. Eles levaram uma boa surra.” Ele baixou a voz. “E aí,
preparem-se, como planejamos.”
“Você tem certeza?” Errol indagou baixinho.
“Sim. Mais do que nunca. Obrigado, amigo. Esteja pronto.”
“Sim, senhor”, anuiu Errol, e os homens apertaram as mãos.
“Eu não queria que chegasse a esse ponto”, confessou Gammon aos
Igibys. “Eu disse para vocês ficarem e descansarem. Disse para se sentirem
em casa. Disse para vocês desistirem de Kalmar. Mas não quiseram ouvir, e
aí está. Meus homens aprenderam que é bom me ouvir. Não é, homens?”
“Sim, senhor”, disseram eles do corredor.
“Vocês devem entender que eu faria qualquer coisa para proteger Skree.
Não posso simplesmente deixar vocês irem, não quando os Fangs estão
esperando que eu entregue vocês. Se eu achasse que existisse qualquer
outra maneira, fora entregá-los, eu os libertaria. Mas são vocês que Gnag
quer, não Skree. Tudo o que tenho a fazer é entregá-los, e ele concordou em
deixar essas terras. Chamem-me de mau, se quiserem, mas o mal maior é o
sofrimento que vocês trouxeram ao meu país. Precisam que eu os
convença?” Gammon colocou um pé sobre o banco onde eles se sentavam.
“Olfin, Urland, venham aqui!”
Dois dos grandalhões do corredor entraram no recinto.
“Olfin perdeu seus pais para a invasão Fang. Queimaram sua casa,
mataram todo o seu gado. Urland tem uma história semelhante. Não é,
Urland?”
“Sim, senhor. Minha aldeia inteira foi arrasada. Ficarei muito feliz
quando o senhor entregar este grupo aos Fangs, senhor.”
Gammon estendeu as mãos e sorriu. “Mandei avisar por corvo assim que
chegamos que as Joias de Anniera haviam sido finalmente capturadas.”
Podo, Janner e Maraly rosnaram e lutaram. Janner estava cansado de
traição. Ele estava começando a acreditar que ninguém em Kistamos era
confiável. Quanto mais velho ficava, mais o mundo se mostrava um lugar
tortuoso.
Cuidado, disse o dragão-marinho, e agora Janner sabia. Tinha sido
Gammon o tempo todo; Gammon que queria usar os jovens para seus
próprios fins. E Janner havia sido tolo demais para enxergar isso. Ele havia
seguido o homem direto para Kimera.
“Eu tinha uma fazenda”, contou-lhes Gammon. Janner ficou em silêncio.
Ele tentou imaginar Gammon sem suas roupas pretas e presença marcante.
Ele o imaginou com uma enxada e um chapéu de palha, mas era tão
ridículo, que ele bufou.
Gammon lançou um olhar para Janner. “Engraçado, não é?” Perguntou, e
Janner temeu que o homem o golpeasse. Mas Gammon deu uma risadinha.
“Suponho que seja. Devo dizer: sou um soldado muito melhor do que era
fazendeiro. Dificilmente conseguia fazer crescer uma totata maior do que
uma uva. Mas minha esposa, Yona, ela podia transformar até mesmo as
menores totatas em uma refeição requintada. Quando os Fangs chegaram,
minha pobre Yona foi morta. Eles me deixaram minha filha”, ele contou,
olhando para Maraly, “que teria mais ou menos a sua idade, moça. Mas, um
ano depois, a Carruagem Negra veio e arrancou-a dos meus braços. Naquele
dia, jurei que serviria a Skree. Eu faria o que fosse preciso para libertar
minha terra. Vocês entendem? Eu farei o que for preciso.”
Janner olhou para ele com uma mistura confusa de simpatia e
indignação.
“Não sei por que Gnag, o Sem-Nome, quer vocês.” Gammon encolheu
os ombros. “E realmente não me importo. Eu nem acreditava que Anniera
fosse real até vocês aparecerem por aqui. Mas se eu puder usá-los para
banir esse mal de meu país, então o farei. Pelo menos assim sua captura
significará algo. Animem-se com isso.”
Ele se ajoelhou na frente de Maraly. “Sinto muito, moça, mas, às vezes,
as coisas devem ser feitas, quer você goste ou não. Você terá que se passar
pelo outro menino.” Gammon colocou a mão em seu ombro. Ela se debateu
como um animal selvagem, e Gammon recuou. Ele se endireitou e disse
“Isso é tudo. Mandarei buscá-los quando chegar a hora. Os Fangs estarão
aqui em breve.”
Eles ficaram sentados por um longo tempo, ouvindo o crepitar da tocha e
a respiração uns dos outros. Cada um deles girou os braços, tentando
afrouxar as amarras, mas era inútil. Logo o silêncio foi quebrado por
fungadas, e Janner viu que Leeli estava chorando. Nia tentou falar com ela
através da mordaça, mas não adiantou.
Quando as lágrimas de Leeli diminuíram, ela começou a cantarolar. Ela
não tinha a harpa eólica e não conseguia formar palavras, mas a melodia
que emergia destilava exaustão e tristeza. A música encheu o recinto, e o
coração de todos — mesmo o de Maraly — ressoou com ela. Janner olhou
para cada um deles e viu que seus rostos estavam molhados. Janner fechou
seus olhos... e viu cores brilhantes.
Sua mente estava vívida com redemoinhos e rajadas de movimento. Ele
voou pelas encostas das Montanhas Rochosas, tão perto de uma revoada de
marbutres que viu as minúsculas penas em seus pescoços enrugados. Em
seguida, mergulhou pelo ar, passando por um bambolhão em busca de
alimentos, pelo sopé das montanhas e ao sul da Barreira até o Grande Rio
Blapp. Ele sentiu a visão se dirigindo para o sul, em direção a Glipwood,
mas lembrou-se, pelos mapas, de onde ficavam as Ilhas Phoob e forçou sua
mente em direção ao leste. A imagem respondeu, e sua visão oscilou para a
esquerda. Ele passou os olhos pelas copas das árvores de Glipwood e
avistou partes do rio abaixo, até que a terra sumiu, e ele viu o caos das
Cataratas Fingap.
Ele conduziu a imagem para o norte e leste sobre o Mar Sombrio da
Escuridão, até que viu um aglomerado de ilhas marrons, próximo à costa de
Skree. Voou cada vez para mais perto das ilhas, até que pôde distinguir os
mastros dos navios e formas cinzentas movendo-se em seus conveses. Ele
queria se aproximar mais e pressionou sua mente nessa direção, mas a
imagem parecia resistir, e ele se lembrou das palavras de sua mãe: “Que
você seja capaz de ver que essas coisas quando ela toca são um dom.
Nunca tente se tornar seu mestre, mas as sirva. Permita que isso seja o que
o Criador pretendia que fosse.”
Janner abrandou e permitiu que a imagem fosse para onde quisesse. Ele
ouvia vagamente as notas da música de Leeli e suplicava para que ela
continuasse cantarolando. Ele sentia que estava perto de algo.
A imagem passou velozmente pelas ilhas, em direção ao norte, ao longo
da costa, onde as Montanhas Rochosas despejavam seus gigantescos
penhascos no mar, até que a terra embranqueceu com a neve. A imensidão
plana das Pradarias de Gelo se estendia até o horizonte, e Janner se
perguntava o que ele deveria ver.
Então ele detectou uma mancha no horizonte. A imagem se aproximava
a cada nota da música de Leeli, e a mancha crescia em tamanho até que
Janner viu o que era. Foi uma visão tão chocante e desconcertante, que ele
gritou e, quando o fez, a canção de Leeli foi interrompida e o encanto foi
quebrado.
Janner abriu os olhos e viu apenas as pedras cinzentas da cela, mas o que
havia visto em sua visão estava gravado em sua mente. Aquilo enviou um
arrepio violento por seu corpo e um grito de júbilo saiu de sua boca. Ele se
sentou no banco com suas amarras, balançando para cima e para baixo,
como uma criança pequena tendo um ataque de felicidade.
“Mmmt!” ele disse através da mordaça. “Mmmk! Mmmt!”
Eles olharam para ele como se fosse louco, meio preocupados e meio
divertidos com a alegria em seu rosto.
“Mmmk!” Ele repetia de novo e de novo. Eles não conseguiam entendê-
lo, mas ele não se importava. Janner ria, gritava e balançava a cabeça
maravilhado. Cada vez que ele se acalmava o suficiente para ver os olhares
nos rostos de sua família, a confusão deles era tão agradável que o remetia a
outro acesso de alegria.
O que foi? Seus rostos perguntavam. O que você viu?
Ele mal podia esperar para contar a eles.
59

A Transformação

Artham pressionou os pés contra a porta da gaiola e as costas contra as


barras traseiras. Ele cerrou os dentes, fechou firmemente os olhos e
empurrou com toda a força em seu coração. A sinistra melodia enchia seus
ouvidos, e, acima dela, ele ouviu um dos Fangs Cinzentos gritar: “Olho no
homem-pássaro! Ele está tentando quebrar a gaiola!”.
Artham sentiu patas peludas em seus braços e pernas, e mais de uma vez
a coronha de uma lança acertou seu rosto, mas ele reuniu sua força
novamente e pressionou. As barras da gaiola eram grossas, mas Artham
sentiu-as ceder um mínimo e isso renovou suas forças. Vez após vez a dor
florescia em seu rosto, à medida que os Fangs tentavam detê-lo. Os ossos de
seus joelhos e costas latejavam e ameaçavam quebrar, caso ele pressionasse
com mais força. A melodia da câmara aumentou e, mesmo com os olhos
fechados, ele viu o relampejo de luz brilhante.
“Esben!” Ele bradou e, em alta voz, cantou junto com a melodia que
vinha de dentro da caixa, a melodia que ele havia tentado silenciar durante
tantos anos. Ele não podia mais fugir de sua própria escuridão.
As vozes em sua cabeça que gritavam covarde e fraco recuaram para as
sombras. Ele sabia ser ambas as coisas, mas não as temia mais. Então, outra
voz falou. Chamava-o de guardião do trono, protetor e tio, e, finalmente,
ele acreditou nela.
Uma onda de poder percorreu seus ossos. Com um empurrão final, a
gaiola se estilhaçou. Fangs Cinzentos caíram para trás. Aço retorcido se
espalhou pelo chão.
Artham P. Wingfeather estava no centro dos escombros, ensanguentado e
ofegante, de olhos em chamas.
Ele estava ciente de uma sensação estranha nas costas e perguntou-se se
havia quebrado algumas de suas costelas. Crianças vindas na Carruagem
dispersaram-se pelos cantos da caverna, enquanto os Fangs Cinzentos
recuavam e gemiam como cachorrinhos.
Artham respirou fundo, abriu os braços e libertou um brado vitorioso.
Ao fazê-lo, duas asas graciosas se abriram em suas costas, com as penas
lustrosas e brilhantes. Eram cinza-escuras, com manchas brancas e círculos
salpicados do carmesim mais brilhante. Embora ainda fossem afiadas como
facas, suas garras se estreitaram e alongaram o suficiente a ponto de
parecerem mais com mãos do que garras.
Artham se sentia mais leve e mais forte e, pela primeira vez em nove
anos, sua mente estava clara e segura. As palavras de uma centena de seus
próprios poemas atravessaram sua memória; ele viu rostos de velhos
amigos, batalhas que havia travado e até os momentos mais terríveis de sua
vida — e, ainda assim, permaneceu ele mesmo. O animal selvagem dentro
dele que ele havia lutado por tanto tempo para matar pulsava com vigor,
mas já não era mais seu mestre. Ele cavalgava a dor como um cavaleiro
sobre um cavalo.
Artham abriu as asas e saltou seis metros no ar, acima das cabeças de
Fangs encolhidos, em direção à plataforma. Pousou com pés firmes e
despedaçou a porta de ferro.
“Tink! Kalmar!” Ele gritou na escuridão.
Fumaça veio para fora. Artham dobrou as asas e entrou na câmara.
“Kalmar!” Ele sussurrou.
Foi respondido por um ganido vindo de algum lugar no canto. Artham
apalpou na escuridão esfumaçada até sentir um braço peludo, que tremia,
úmido e quente ao toque. A criatura ganiu novamente.
“Calma, rapaz”, Artham pediu. “Estou com você. Seu tio Artham está
com você. Essa história vai acabar bem. Não sei como, mas as coisas vão se
acertar. Vamos.”
Artham ergueu a coisa trêmula e segurou-a nos braços. Ele foi até a porta
e olhou atentamente para fora. Os Fangs Cinzentos haviam se levantado,
mas nenhum parecia disposto a atacar o homem selvagem que havia
acabado de quebrar uma gaiola em pedaços. Então uma voz veio do fundo
da caixa.
“Você chegou tarde, Guardião do Trono. O menino se foi, e uma coisa
nova surgiu”, proclamou a Guardiã da Pedra. “Cante a canção das antigas
pedras e seus ossos encharcarão com o sangue das feras.”
Artham parou na porta, flexionou o pescoço, agitou as penas de suas
poderosas asas e virou-se para a mulher, quase invisível no fundo da caixa.
“Você chama isso de poesia?” Ele questionou.
Com Tink inconsciente em seus braços, Artham andou até a beira da
plataforma e saltou. Suas grandes asas agitaram o ar e carregaram os dois
acima das cabeças dos espantados Fangs Cinzentos, mesmo quando a
Guardiã da Pedra emergiu e ordenou que os Fangs os perseguissem. Ele
pousou suavemente na boca do túnel de onde a Carruagem Negra viera,
dobrou as asas e disparou em direção à superfície.
Muitos Fangs Cinzentos haviam se reunido na boca do túnel ao ouvirem
a voz frenética da Guardiã da Pedra, vinda de dentro. Artham avistou suas
silhuetas obstruindo a saída, viu suas orelhas de lobo se contorcendo. Ele
abaixou a cabeça e se chocou contra eles antes que soubessem o que
estavam vendo. Corria tão rápido que só precisou abrir as asas para se
elevar sobre a balsa, sobrevoando o estreito e planando em um círculo lento
acima da ilha.
As minúsculas figuras da Guardiã da Pedra e seus Fangs Cinzentos
emergiram da caverna e agruparam-se rapidamente em companhias. Artham
percebeu que sua visão estava mais clara e precisa do que nunca. Ele podia
ver os olhos amarelos dos Fangs Cinzentos, as manchas de conchas
incrustadas nas paredes de pedra do forte, as torres repletas de feras
cinzentas, organizando-se muito mais rápido do que quaisquer Fangs de
escamas verdes que Artham já vira. Uma flecha passou zunindo, e ele viu,
alarmado, que um regimento de arqueiros o tinha sob sua mira.
Ele então apertou o corpo peludo e trêmulo de Tink perto de seu peito.
“Vamos encontrar sua família, alteza”, enunciou Artham com um sorriso.
Ele retraiu suas asas e mergulhou como um falcão, direto para o forte. O
rosto alarmado dos Fangs Cinzentos valia o risco. Abrindo as asas no
último instante, deslizou acima de suas cabeças rapidamente, como um
borrão. Os Fangs Cinzentos se encolheram, dispersando-se.
O ímpeto de Artham o levou em um arco gracioso acima do estreito em
direção à costa rochosa de Skree. Seguiu a costa montanhosa até o terreno
tornar-se plano, branco com a neve das Pradarias de Gelo.
Uma armada de navios de guerra alinhava-se na costa gelada — pelo
menos uns cem. A neve pisoteada ao redor dos navios transformava-se em
um amplo caminho que marcava a superfície perfeita das Pradarias de Gelo.
O caminho levava ao nordeste, e ele sabia que os Fangs Cinzentos
marchavam para Kimera. Ele planou numa descendente até estar voando a
apenas alguns metros acima da neve, seguindo o contorno da pradaria que
se elevava e descendia em ondulações suaves e imaculadas.
Os olhos de Artham lacrimejavam com o vento, a velocidade e a beleza
magnífica da terra abaixo dele. Água escorria dos cantos de seus olhos em
direção às orelhas e, no frio cruel, solidificava-se em gemas prateadas.
Ele teria que escrever um poema sobre isso.
60

Segredos na Neve

As muitas horas que Janner passou amarrado e amordaçado na cela com sua
família foram enlouquecedoras. Ele empurrava a mordaça com a língua,
mas ela permanecia firme, não importando o quanto tentasse. Todos
olhavam para ele com confusão e lampejos de esperança, mas não
conseguiam entender seus grunhidos, e ele não conseguia entender os deles.
Janner ainda não tinha certeza de como as imagens funcionavam. Será
que havia visto as coisas como realmente eram, ou imagens que apenas
sugeriam a verdade? Quando, na Fábrica de Garfos, ele teve a visão de
Leeli nas montanhas, teria sido aquilo uma imagem de onde ela realmente
estava ou seria apenas uma representação de seu entorno, como num sonho?
As imagens giravam e se moviam, mas sempre pareciam com as ilustrações
bem emolduradas em um de seus livros.
Isso poderia explicar a coisa inacreditável que ele acabara de ver?
Era Peet, mas... não era Peet. O Peet em sua visão tinha grandes asas
emplumadas e voava como um fendril solitário através de grandes montes
de neve. Seu rosto era bonito e ousado, diferente do ansioso e abatido
Homem-Meia que Janner conhecia. Talvez fosse uma metáfora. Talvez Peet
estivesse correndo — voando — para as Pradarias de Gelo, e a mente de
Janner tivesse adicionado as asas.
Janner havia enxergado algo nos braços de Peet também e, embora não
tivesse visto com clareza, tinha certeza de que era Tink. Repetidamente,
Janner fechou os olhos e reconstruiu a visão, desejando captar cada detalhe,
mas só via um borrão difuso nos braços de Peet. Apesar disso, no fundo de
seu coração, ele sabia que era Tink.
Depois de muitos grunhidos e acenos com a cabeça, Janner comunicou a
Leeli que deveria cantarolar novamente. Ela tentou várias vezes, mas, como
antes, nada aconteceu.
A emoção da visão de Janner desapareceu, e as horas se arrastaram, até
que cabeças tombaram e algumas cochilaram.
Por fim, a porta se abriu e Gammon os examinou.
“Brogman, solte-os do banco, mas mantenha as mãos amarradas. E
deixe-os amordaçados.”
Outro homem-montanha barbudo entrou na sala e desfez as amarras do
banco. Com uma corda, amarrou os sete juntos num comboio, com Podo à
frente. Deixou um dos braços de Leeli livre para que ela pudesse andar com
a muleta e amarrou o outro pulso à procissão.
“Aperte bem o nó, Brogman”, ordenou Gammon. Quando Brogman
terminou, Gammon olhou a corda e inspecionou cada um dos nós. Quando
ficou satisfeito, ele os liderou em fila única por Kimera. A cidade de neve
estava quieta como uma tumba; todos os quartos, vazios.
Eles pararam ao pé de uma escada elegante que se curvava para cima até
um teto elevado, a mesma escada que Nia havia subido na noite em que
Janner chegara. Uma pilha de peles estava ao pé da escada. Os dois homens
que guardavam a escada colocaram belos casacos de pele sobre os ombros
do grupo e até enrolaram lenços no pescoço das mulheres.
“Está frio lá fora”, comentou Gammon com um sorriso.
Atrás da barba amarela de Brogman, seu rosto se contraiu de apreensão.
“Não tenha medo, Brogman”, tranquilizou-o Gammon, colocando a mão
em seu ombro.
“Não estou com medo, senhor. Apenas ansioso.” O sorriso de Brogman
era cruel.
Gammon olhou para os Igibys uma última vez, e seu olhar se fixou em
Maraly. “Lamento ter chegado a este ponto, amigos.”
Janner olhou para ele. Como podia chamá-los de amigos, enquanto
estava prestes a fazer essa coisa terrível? Maraly olhava para Gammon com
o mais profundo ódio, e a cabeça de Janner rodopiava com essa traição. Não
conseguia acreditar que ele iria sacrificá-la junto com o resto deles. Ela não
tinha nada a ver com Anniera! E Gammon havia falado com ela tão
gentilmente antes.
“O exército está reunido, e eles aguardam a entrega das joias. Brogman,
certifique-se de conduzi-los exatamente para o lugar que lhe mostrei. É
onde os Fangs Cinzentos estão esperando por eles, entendeu?”
Brogman acenou com a cabeça e disse: “Tudo bem, então, subam”.
Gammon ficou ao pé da escada e os observou. Janner o encarou, com a
intenção de entregar-lhe um olhar de repugnância que ele nunca esqueceria
— mas Gammon deu uma piscadela. A raiva de Janner transformou-se em
confusão. Ele estudou o rosto de Gammon, mas não viu nada além da
mesma indiferença fria e se perguntou se a piscadela não havia sido nada
além de um tique nervoso.
Luz inundou a escada quando o alçapão subiu. Podo caminhou
orgulhosamente para o brilho daquele dia de traição. Da parte de trás da
fila, tudo que Janner conseguia ver era a luz. Pedaços de neve espalharam-
se pelo túnel e pousaram sobre os degraus. A luz do sol o cegou, mas, com
suas mãos amarradas à corda da procissão, não conseguia proteger os olhos.
Ele ouviu o vento uivar e o esmagar de seus passos, enquanto Brogman os
conduzia pela neve até o lugar que Gammon havia designado.
Quando finalmente Janner pôde ver, desejou não poder. Estendido diante
deles como um tapete cinza gigante estava um exército de lobos.
Em Glipwood, quando Janner era mais jovem, Nugget e um cachorro
vira-lata haviam se encontrado e brigado por um osso de porleitão. Janner
tentou separá-los e foi mordido. Ele nunca esqueceu a maneira como o vira-
lata mostrou seus dentes longos, a forma como seus lábios se curvaram para
trás e seu focinho reluziu. Milhares de Fangs Cinzentos mostravam seus
dentes da mesma maneira selvagem.
E, se isso não bastasse, eles também carregavam espadas.
Os Fangs Cinzentos estavam organizados em fileiras. Não eram os Fangs
insubordinados e indisciplinados a que Janner estava acostumado. Tinham
olhos calmos e inteligentes, e, diante de cada companhia, havia um Fang
Cinzento claramente no comando. Em direção ao sudeste, serpenteava uma
ampla faixa de trilhas que o exército havia feito ao atravessar as Pradarias
de Gelo, vindo das Ilhas Phoob.
Entre os Igibys e os Fangs havia não mais do que vinte guerreiros
kimerianos. Janner reconheceu Olfin e Urland, os dois homens que haviam
perdido suas famílias. Suas armas reluziam e suas barbas ricocheteavam
com o vento. Por mais ferozes que parecessem, os kimerianos eram tão
poucos que Janner teve pena deles, ainda que pretendessem entregar a ele e
sua família. Gammon realmente acreditava que os Fangs evacuariam Skree?
Até Janner sabia que não se podia confiar nas feras. Assim que as Joias de
Anniera estivessem sob a guarda dos Fangs Cinzentos, os lobos se
voltariam contra os kimerianos e a rebelião seria esmagada. Qualquer
esperança que restasse para Skree — e para Anniera, nesse caso — estaria
extinta.
Janner esquadrinhou o horizonte branco em busca de qualquer sinal de
Peet e Tink, mas só via neve cegante. Sua visão havia sido clara: Peet
estava vindo. Mas quando? Ele viria para salvá-los, como havia feito tantas
vezes? Não com tantos Fangs tão perto; não se essas novas feras fossem tão
capazes quanto pareciam. Seria melhor se Peet e Tink ficassem longe,
muito longe, até que a batalha terminasse. Pelo menos assim eles
permaneceriam livres. No entanto, Janner ansiava por ver o tio e o irmão
novamente. Ele não conseguia tirar os olhos das colinas nevadas.
“Nós os pegamos!” Bradou Brogman. “Aos cuidados de quem
entregamos as Joias de Anniera?”
Onde está Gammon? Janner se perguntou. Por que esse homem,
Brogman, é quem está conduzindo a troca?
“Meus!” Gritou em resposta um dos Fangs Cinzentos, enquanto
avançava com uma figura encapuzada ao lado, lutando para acompanhá-lo.
Eles passaram por entre os homens de Kimera sem ao menos olhar para eles
e se aproximaram de Janner e dos outros. A voz do Fang Cinzento era
profunda e gutural, não o estalar seco dos homens-cobras, e seu rosto era
uma coisa terrível, com olhos amarelos e antinaturais. O nariz, na ponta do
focinho curto, era preto e brilhante; as orelhas se mantinham em atenção.
“Meu nome é Timber”, enunciou a Brogman. “Eu comando essas
tropas.” Farejou o ar ao redor de Janner, Leeli e Maraly. “Estas são as
crianças, então?”
Maraly balançou a cabeça e grunhiu.
O Fang se voltou para a figura encapuzada. “São eles, Zigrit?”
A figura ergueu os braços trêmulos e puxou o capuz. Dois olhos negros,
presos a um rosto verde escamoso, fitaram as crianças. Gelo revestia sua
boca e suas longas presas amarelas tremiam com o frio.
“Sssi-si-simm”, ele respondeu sem olhar duas vezes para Maraly. A
criatura estava miserável, e Janner viu que, de fato, Fangs comuns nunca
teriam sobrevivido a uma batalha nas Pradarias de Gelo.
“As Joias de Anniera”, anunciou Brogman, “sãs e salvas, como Gammon
prometeu.” Os dedos de Brogman se contraíram, e Janner pensou em um
gato prestes a dar um bote. O que estava acontecendo?
“E quanto à garota?” Questionou Timber, estreitando os olhos.
“Ahn, garota?” Brogman vacilou.
“Essa aqui”, apontou Timber. O Fang colocou uma pata na nuca de
Maraly e virou o rosto dela em direção a Brogman. “Essa não é Kalmar
Wingfeather, como prometido.”
Os olhos de Brogman voltaram-se nervosamente para o alçapão.
“Não é tão fácil quanto você imagina enganar os Fangs Cinzentos”,
esclareceu Timber. “Recebi notícias esta manhã, via corvo, de que Gammon
tinha apenas duas das joias. Obrigado, Urland.”
O homem chamado Urland afastou-se dos outros kimerianos. Os homens
rosnaram para ele como se eles mesmos fossem Fangs.
“Você?” Brogman cuspiu. “Gammon sabia que havia espiões, mas
você?”
Urland parecia um rato encurralado.
“Não é apenas Urland”, afirmou Timber. “Existem vários. Gnag conhece
os detalhes de sua rebelião há anos. Gammon não é um líder tão astuto
quanto pensa que é.”
Timber rosnou e mostrou os dentes para o guerreiro, depois virou-se e
comandou: “Triffin! Traga dois soldados e leve esses prisioneiros”.
Três Fangs Cinzentos forçaram passagem entre os kimerianos.
Janner esperou que Podo quebrasse suas amarras, ou que Peet
aparecesse, ou mesmo que uma revoada de marbutres esbravejasse e criasse
a distração de que eles precisavam para fazer alguma coisa. Mas, desta vez,
não haveria salvador. Desta vez, eles foram pegos — não apenas por um
inimigo, mas dois.
Leeli encostou a cabeça em Nia. Podo se virou e olhou para sua família.
Ele acenou com a cabeça para Oskar e Maraly e encolheu os ombros. Não
parecia triste, mas também não parecia pronto para lutar. O velho pirata
podia ver, Janner imaginou, que não havia opções e era melhor irem sem
contestação. O fato de Tink, pelo menos, estar livre trouxe alguma alegria a
Janner.
Três Fangs Cinzentos marcharam direto para Podo e jogaram um saco
sobre sua cabeça, então fizeram o mesmo com Oskar e Nia. O coração de
Janner disparou. Toda a corrida, toda a luta e o apego desesperado à
esperança de que um dia pudessem escapar — tudo acabou chegando a esse
ponto. Estavam amarrados, amordaçados e sendo encapuzados na
companhia daqueles que deveriam protegê-los.
“Paralisa-te, digo eu!” Ordenou uma voz vinda da escada. “Não persistas
em tuas peludas transações! Célere!”
O Fang Cinzento prestes a colocar o saco sobre a cabeça de Leeli parou
de repente. Suas orelhas se achataram, e ele rosnou.
Janner se virou e viu uma figura de capa pular da escada do túnel. Ele
estava vestido de preto da cabeça aos pés e brandia uma espada no ar como
se estivesse espantando moscas.
“O Espa-pa-padachim Flo-flo-floreado!” Gaguejou o Fang escamado.
Brogman puxou uma tira de couro que pendia dos pulsos de Podo e suas
amarras caíram na neve. Janner sentiu que suas próprias amarras também
caíram, e viu que cada um dos nós que os prendiam foi solto pela mesma
tira de couro. Ele e os outros libertaram as mãos e arrancaram as mordaças.
“Arrá!” Bradou o Espadachim Floreado. “Sou eu, sou eu! Maisquereria
eu que, em mim, germinassem pelos e presas antes de permitir que esta tua
cútis afligida por pulgas mal fizesse a tais seres, as Joias da Ilha Brilhante!
Hoje é o tempo de nosso poderoso triunfo! Hoje dá-se a fruição de nossas
mui cintilantes esperanças à luz amarelada do sol deste brilhante e nevado
dia nas planuradas Pradarias de Gelo! Basta!”
Quando ele terminou de discursar, não havia nenhum som nas Pradarias
de Gelo, exceto o assobio do vento. Milhares de Fangs Cinzentos, um
punhado de guerreiros kimerianos e os Igibys tentavam decifrar em suas
mentes o que raios o Espadachim Floreado acabara de dizer.
“Gammon?” Janner perguntou, hesitante.
“Arrá!” O Espadachim Floreado sorriu.
“Quem é esse idiota?” Timber exigiu saber. “O que está acontecendo?”
“Kimerianos!” Berrou o Espadachim Floreado. “À guerra! Libertem o
rio!”
Um trovejante estrondo soou e o chão tremeu. Timber girou ao redor,
exaurido demais para decidir se deveria atacar Gammon, apreender as Joias
de Anniera ou comandar suas tropas.
Janner observou enquanto as muitas colunas de Fangs Cinzentos saíam
de formação e se espalhavam. Blocos enormes e irregulares de gelo
explodiram, fazendo os lobos voarem pelo ar, centenas deles desaparecendo
sob a superfície. Quando as enormes porções de gelo caíam, grandes jatos
de água explodiam e rompiam ainda mais partes do gelo. Fendas
ensurdecedoras apareceram ao redor deles, e logo Janner viu a forma do
grande rio serpenteando, em uma curva fechada e graciosa, ao redor de
Kimera.
Vários alçapões se abriram, alguns diretamente abaixo dos Fangs
Cinzentos mais próximos da cidade. Saindo da neve e adentrando para o
meio das fileiras de lobos bípedes fluíam milhares de skreenianos gritando,
homens e mulheres jovens, vestidos com armaduras de prata brilhante e
empunhando espadas. Entre eles apareceram galinóis, atrelados a bogãs,
quatro de cada vez. Guerreiros estavam abaixados nos bogãs, com rédeas
numa das mãos e espadas na outra, enquanto os grandes pássaros puxavam-
nos para a luta, atacando os Fangs Cinzentos ao correrem.
O choque de aço cortou o ar, e a Batalha de Kimera começou.
Timber rosnou para Gammon e apontou sua espada para ele. Vários
guerreiros kimerianos próximos correram para o lado de seu líder e
apontaram suas lâminas para o Fang Cinzento. Urland ficou entre os Fangs
e os kimerianos, com sua espada desembainhada, tremendo de medo. Ele
parecia tão surpreso quanto os demais com o fato de Gammon e o
Espadachim Floreado serem a mesma pessoa.
Timber olhou para o caos de seu exército, uivou e saiu correndo,
berrando ordens, enquanto os kimerianos lutavam para lançar seus Fangs
nas águas geladas. Muitos dos Fangs Cinzentos já haviam se recuperado do
choque inicial, e estava claro que, em pouco tempo, Timber os teria sob
controle para contra-atacar.
“Dê-me uma espada!” Podo bradou. A febre da guerra estava sobre ele.
“Não! Deveis apressar-vos!” Ordenou o Espadachim Floreado.
“Procedei, amigos, para o vosso ancoradouro!”
“Fale claramente, Gammon!” Nia retrucou. “Não temos tempo!”
“Desculpe”, disse Gammon com certo embaraço. Ele se ajoelhou diante
de Janner e tirou a máscara. “Desculpe-me por todos os segredos, rapaz. Eu
sabia que havia espiões e precisava que os Fangs acreditassem que
pretendia entregá-lo. Não sabia em quem confiar, e muita coisa poderia dar
errado se eles me descobrissem. Maraly, lamento especialmente por você.
Se ainda quiser ficar, gostaria que ficasse comigo. Há lugar para você aqui.”
Os olhos de Maraly eram adagas. “Se não, desejo-lhe uma boa jornada
através do Mar Sombrio da Escuridão.”
“O quê?” Ela perguntou, surpresa.
“É para lá que vocês estão indo. Um navio está esperando. Esses
annierenses não podem ficar aqui. Eles só me trariam mais problemas, e
tenho a sensação de que, assim que forem embora, a preocupação de Gnag
com Skree irá com eles. Não acho que os Fangs irão embora sem lutar, mas
não acho que lutarão com tanto empenho se as Joias de Anniera tiverem
partido. Então providenciei uma tripulação e passagem para onde o velho
marinheiro quiser ir.”
“Há suprimentos suficientes para chegar a Vales Verdes?” Interpelou
Nia.
“O navio está bem abastecido. Todas as suas coisas também estão lá.
Não sei como essa batalha terminará, minha senhora. Então, eu já teria
partido, fosse vocês. Decidam para onde ir depois de entrar na água.”
“Nós vamos ficar e lutar, Gammon!” Podo rosnou.
“Não, ele está certo, papai”, disse Nia. “Este não é o lugar para as
crianças.”
Uivos preenchiam o ar. Timber e uma companhia de Fangs avançavam a
toda velocidade para o pequeno bando de guerreiros que cercava os Igibys.
“Não há tempo”, urgiu Gammon com uma piscadela para Janner.
“Tenham uma boa viagem. Confio que você ainda se lembre de como
velejar, meu velho.”
Um guerreiro avançou, ajoelhou-se atrás dos Igibys e pescou duas tiras
de couro para fora da neve. “Serei seu condutor”, afirmou. Era Errol, o
kimeriano que levara Janner para a cela.
“Condutor?! Condutor de quê?!” Berrou Podo. “Não! Eu não posso!”
“Agora!” Gritou Gammon, e um baque soou aos pés de Janner.
“Maraly?” Gammon estendeu a mão. Ela hesitou por uma fração de
segundo, mas a pegou. Janner sorriu para ela, e quando ela sorriu de volta,
ele viu não uma Marginal, mas uma garota que havia encontrado um lar.
“Gammon, dê-me uma espada! Eu não posso ir para o mar!” Bradou
Podo, com verdadeiro medo em sua voz.
“Nas palavras de...” começou Oskar.
Então o chão caiu.
O nariz do bogã escondido na neve sob os pés deles mergulhou para
dentro de um buraco escuro. Oskar desabou, levando os Igibys com ele, e
todos caíram em um emaranhado de braços e pernas no bogã, atrás de Errol,
enquanto este disparava por um túnel escorregadio em direção ao mar.
61

A Batalha de Kimera

Muito antes de Artham ver a batalha, ele a ouviu. O choque do aço e o


estrondo do gelo do rio atravessaram a pradaria até seus ouvidos e fizeram-
no bater suas novas asas com ainda mais força. Tink nunca se moveu. Ele
dormia tão quieto e tranquilo quanto um bebê. Sempre que Artham olhava
para o menino em seus braços, seu coração quase se partia de amor e
compaixão. Ele conhecia bem a jornada que seu sobrinho teria pela frente,
mas não sabia como poupá-lo dela.
À distância, Artham detectou uma ligeira elevação, a coisa mais próxima
de uma colina que vira durante o voo. Ao redor da colina, a batalha estava
sendo travada. Artham direcionou suas asas e disparou alto no céu frio, para
que pudesse observar a situação.
Como uma fita preta ondulada no chão branco, um rio repleto de gelo
curvava-se ao redor da elevação da colina e, em seguida, desaparecia
novamente sob a neve. Ele separava a maioria dos Fangs Cinzentos da
batalha, e aqueles deixados do lado de dentro do circuito estavam presos em
combate com os kimerianos. Ele viu restos de poeira e pelo girando no ar,
onde Fangs Cinzentos haviam caído, e viu muitos kimerianos caídos
também. O rio estava congestionado com centenas de lobos agarrando
blocos de gelo e lutando para nadar sob o peso de suas armaduras. Galinóis
montados separavam as fileiras de Fangs e, onde quer que a linha fosse
rompida, os kimerianos apareciam com espada e lança, para levar o inimigo
de volta às águas mortais. Os Fangs Cinzentos do outro lado do rio não
tinham como atravessar, mas seus arqueiros enviavam saraivadas de flechas
batalha adentro.
Artham admirou a estratégia dos kimerianos. Os guerreiros nunca teriam
derrotado todo o Exército Fang, mas o rio dividiu sua força pela metade.
Estava claro que os kimerianos ganhariam o dia.
Mas onde estavam Janner e Leeli?
Artham ficou parado no vendaval e vasculhou a área em busca de Podo.
Para encontrar o velho, só precisava procurar uma pilha de Fangs mortos.
Ele viu um homem com uma capa preta que parecia dançar sobre as cabeças
dos lobos, balançando sua espada tão rápido que parecia mais uma vespa
pungente do que um guerreiro. Artham se perguntou quem ele era e desejou
poder conhecer tal guerreiro.
Mas não havia sinal de sua família.
De sua grande altura, ele conseguia ver, a leste, na linha do horizonte, o
Mar Sombrio da Escuridão. Artham sabia, por suas muitas andanças, que os
kimerianos eram um povo que fazia túneis e se lembrou de que faziam rotas
que levavam ao mar.
Aquilo era um movimento? Ele estreitou seus novos olhos e
esquadrinhou as águas. Então, viu algo terrível. Algo se movendo mais
rápido do que qualquer navio.
Em um instante, Artham entendeu. Ele sabia onde sua família estava. Ele
sabia onde Podo estava, e sua fúria explodiu em um grasnado agudo. Tink
se mexeu em seus braços e ganiu.
Havia muitos anos que Artham não pensava no passado de Podo Helmer.
Muito tempo atrás, ele confrontara Podo sobre seus dias de pirataria, e o
velho o repudiava desde então, por medo de que velhos segredos fossem
revelados. Agora o passado de Podo estava prestes a alcançá-lo,
literalmente, e Artham temia que isso acabasse com o sonho de Anniera
para sempre.
“Aguente, rapaz”, pediu Artham, puxando o corpo peludo de Tink para
perto.
Com um último olhar para a batalha abaixo, ele reuniu suas forças e
voou em direção ao Mar Sombrio da Escuridão, direto para o lugar onde as
águas se agitavam.

O bogã sibilou pelo túnel de gelo abaixo, em um ângulo agudo. O


alçapão se fechou com força, e a abertura brilhante acima desapareceu. Eles
ganharam tanta velocidade tão rapidamente que Janner sentiu que poderia
engasgar com o estômago. Ninguém falava. Segundos antes, eles estavam
na neve sob o sol, em meio à batalha barulhenta, e agora o mundo estava
escuro e silencioso, exceto pelo silvo do bogã no gelo.
Janner pensou na foto de seu pai, quando menino, sorrindo na proa de
um veleiro, e um arrepio de excitação percorreu seu corpo. Finalmente ele
saberia a sensação de um navio sob seus pés. Sentiria o gosto do borrifo de
sal sobre o qual só havia lido. No final daquele túnel, um de seus sonhos
mais radicais se tornaria realidade.
Então ele se lembrou de Peet e Tink. Onde estariam? O que fariam
quando chegassem a Kimera e encontrassem uma batalha violenta e
descobrissem que seus entes queridos haviam partido? Mas quando pensou
na expressão calma e corajosa no rosto de Peet e na maneira como ele
segurava Tink em segurança nos braços, Janner relaxou. Provavelmente
Tink estava mais seguro agora do que o restante deles.
O ângulo da encosta diminuiu. Errol acendeu um lampião e o enfiou
embaixo da curvatura frontal do bogã. Janner contou os rostos para ter
certeza de que todos ainda estavam ali. As laterais do veículo curvavam-se
para cima, o suficiente para casar com o formato do túnel, mas não havia
trilhos. O que fariam se alguém caísse? Oskar, por exemplo, que por causa
da barriga ainda se debatia, não conseguia sentar-se corretamente.
A pergunta de Janner foi respondida quando Podo se recuperou do
choque e gritou: “Pare!”.
Errol olhou para ele e encolheu os ombros, em seguida puxou uma corda
perto de sua perna direita e um rangido veio da parte traseira do bogã. Gelo
espirrou em seu rastro, e o trenó lentamente parou. À frente e atrás deles
estava a escuridão. Estavam sentados numa bolha de luz amarela, refletida
na superfície lisa do túnel.
“Estamos parados, senhor. O que é?” Errol perguntou.
“O que é?!” Podo disparou. “Você não me ouviu?! Não podemos ir para
o mar. Não podemos, entendeu?”
“Vovô, o que há de errado?” Leeli quis entender.
Os olhos do velho estavam sombrios e ansiosos. A última vez que Janner
o vira daquele jeito foi naquela noite na tenda quando Podo acordara de um
pesadelo. “Há coisas que fiz há muito tempo”, relatou ele. “Dívidas que
não foram pagas.”
“Leeli, não tenho coragem de contar pra você”, disse o avô após uma
pausa. “Só saiba que não posso ir pro mar.”
“Isso é um problema, senhor”, disse Errol.
“O que você quer dizer?” Podo perguntou.
“Não há como voltar. Não há como subir de volta. Estamos a mais de um
quilômetro e meio abaixo da superfície agora, e é muito íngreme. Se você
tentasse rastejar para fora, mais cedo ou mais tarde escorregaria. Todos
neste túnel chegarão ao final dele, de uma forma ou de outra.”
“Então, quando chegarmos ao porto, deixe-me sair, e rápido”, urgiu.
“Existem outras formas de voltar para Kimera. Temos uma chance se eu for
rápido o suficiente.”
“Isso também é um problema”, informou Errol.
“Que problema?” Podo rosnou. “Já estive muitas vezes no porto de
Kimera.”
“Este túnel não vai para o porto. É uma rota de fuga. E ela deságua no
convés de um navio em uma enseada de gelo escondida. É o que os antigos
senhores de Kimera usavam para escapar, sempre que a cidade estava sob
cerco. Gammon imaginou que, como você é um velho marinheiro, ficaria
feliz com a situação. Receio, senhor”, continuou Errol, engolindo em seco,
“que você não tenha muita escolha nessa questão. É para o mar que vamos,
queira você ou não. Na verdade”, acrescentou, “a essa altura já estamos
sobre o mar de qualquer maneira.”
Podo olhou para baixo instintivamente, depois de volta para Errol com
olhos arregalados. “O que foi que você fez?” Berrou. Ele se lançou à frente
e agarrou Errol pela barba.
Nia deu um tapa na mão de Podo. “Papai, já chega! Este homem está
tentando nos ajudar.”
Podo largou Errol e se virou para Nia. “Estou tentando ajudar vocês
também! Não consegue ver isso? Eu não posso voltar. Nunca mais. Essa é a
minha punição, moça! Se algum dia eles sentirem meu cheiro perto da água,
é o fim, pra mim e pra cada pobre criatura que estiver comigo.”
“Do que você está falando?” Nia o questionou.
“Podo”, disse Oskar. “Se você tem algo a dizer, agora é a hora.”
Podo olhou de Janner para Leeli e Nia, mexendo a boca, mas não saia
nada. Olhou para Nia como um cachorrinho assustado e balançou a cabeça.
“Não posso”, repetiu, “não posso ir pro mar.”
Sem desviar seu olhar duro do pai, Nia concluiu: “Errol, continue. É para
o navio que vamos”.
Errol anuiu com a cabeça e soltou o freio.
Podo saltou do bogã quando eles deslizaram.
“Vovô, não!” Leeli gritou.
“Não se preocupe, madame”, Errol a tranquilizou. “Veja.”
Ele puxou o freio novamente e o bogã parou. Segundos depois, da
escuridão atrás deles, Podo deslizou de volta para a luz do lampião,
arranhando o gelo em vão. Ele encostou na traseira do bogã e permaneceu
olhando para o teto. Leeli rastejou por cima de Oskar, pegou Podo pela mão
e puxou-o de volta para o veículo.
“Continue”, Nia ordenou a Errol, e o bogã desceu.
Ninguém falou uma palavra.
Podo tremia, e Janner sabia que não era por causa do frio.
62

Fúria Ancestral

Um brilho fraco apareceu à distância.


“Quase lá”, exclamou Errol, e apagou o lampião.
Os olhos de Janner se ajustavam conforme a luz ficava mais forte. Os
outros se sentaram — todos menos Podo — e olharam por cima do ombro
de Errol. Momentos depois, viram um círculo azul claro que crescia, à
medida que se aproximavam.
“Segurem-se”, Errol pediu a todos.
O bogã disparou para fora do túnel, voou pelo ar por um pavoroso
momento e se chocou contra um monte de neve macia. Janner não
conseguia ver nada além de branco. Neve fria e úmida invadiu todas as
aberturas de suas roupas, e ele não sabia qual lado era o de cima.
“Oh, bem haja! Bem haja!” Exclamou Oskar em algum lugar próximo.
Em seguida, mãos fortes puxaram Janner, que cuspia neve, para fora do
monte. Vários outros kimerianos barbudos ajudaram Nia e Leeli a se
levantarem. Podo rastejou para fora do monte e correu para o convés
superior do navio sem dizer uma palavra.
“Bem-vindo, Errol”, saudou-o um dos membros da tripulação. “Está
tudo indo de acordo com o planejado?”
“Até agora”, disse Errol enquanto descia da neve. “Gammon quer que
saiamos para o mar o mais rápido possível, para o caso de as coisas
correrem mal. Limpem a neve do convés! Soltem as amarras!”
A tripulação entrou em ação.
Janner estava emocionado demais para se perguntar o que havia de
errado com seu avô. Ele estava em um navio! Ouviu o barulho abafado de
água e, em seguida, o estalar maravilhoso de madeira. De cada lado do
navio erguiam-se paredes altas e lisas de gelo. Se o barco não estivesse lá, o
bogã teria mergulhado na água. Não havia margem, nem mesmo um bloco
de gelo solto. Além da proa, o canal se abria para o mar selvagem. Ondas
explodiam contra os penhascos de gelo e lançavam espuma para o alto.
As velas se desenrolavam, a tripulação puxava as grossas cordas, os
remos se agitavam, e o navio guinava em direção ao mar aberto. Janner
esticou o pescoço e estreitou os olhos para cima, para a bela visão do
mastro e da vela principal se desenrolando em um lampejo de luz solar.
Então ele viu algo que fez seu rosto se abrir em um largo sorriso. Muito
acima do mastro, uma criatura alada se aproximava. Duas pernas humanas
balançavam no encalço das asas e, embora parecesse impossível, Janner
sabia que era seu tio.
O grasnado familiar de Peet cortou o céu, e Janner gritou de alegria.
“Olhem!” Ele comemorava enquanto o navio avançava lentamente, e a
proa encontrava as primeiras ondas do mar. “É o tio Peet! E Tink! Eles
conseguiram!”
Janner acenou para eles e ficou emocionado ao ver Peet acenar de volta.
Mas, à medida que seu tio se aproximava do mastro do navio, Janner
percebeu que ele não estava acenando em saudação, mas em advertência.
Um poderoso trovão sacudiu o ar, e água gelada choveu sobre o navio.
Nia gritou. Até mesmo alguns dos bravos guerreiros kimerianos gritaram.
A voz forte de Podo soou acima de todo o barulho.
“Senhores do mar! Eu sou podo helmer! Destruidor de escamas, como
me chamam! Vocês sabem meu nome, e vocês o amaldiçoaram, com justiça,
por muitos anos! Eu imploro a vocês! Deixem que sua ira caia sobre mim e
sobre mim somente!”
Janner desviou os olhos do céu e se virou.
Dragões-marinhos emergiram das ondas e elevaram-se sobre o navio.
Seus olhos estavam vermelhos como brasas e seus poderosos flancos
tremulavam. As feras faziam o navio parecer minúsculo; suas barbatanas
agitavam-se sob a água e balançavam o barco como se fosse um brinquedo.
Podo estava na proa, com os braços levantados. O dragão mais próximo
— o antigo, que Janner vira em sua primeira visão, aquele que falara em
sua mente — esticou a cabeça para a frente, mostrou uma boca cheia de
dentes prateados para Podo e soltou um rugido que arrancou o casaco do
velho de seus ombros, além de fazer com que o navio adernasse em direção
ao porto. Podo permaneceu firme, molhado com a espuma do mar e o suor.
Um baque veio da parte traseira do navio, e Janner se virou, esperando
ver outro dragão marinho. Mas não era um dragão. Um Fang Cinzento se
levantava de onde havia aterrissado, após deslizar pelo convés traseiro e se
chocar contra a amurada da popa. Ele desembainhou a espada e rosnou,
enquanto mais dois Fangs Cinzentos eram arremessados para fora do
buraco, na parede de gelo, e chocavam-se contra o convés do navio. Seja
como for que os kimerianos estivessem se saindo na batalha muito acima,
os Fangs haviam descoberto o túnel de fuga. Mais três Fangs Cinzentos
bateram contra o deque traseiro, em um emaranhado de pelos e armas, e
logo se puseram de pé.
“Mais rápido!” Vociferou Errol. “Afastem o navio do túnel!”
No momento em que, finalmente, a proa do navio embicava para o mar
aberto — e para o grupo de dragões — e a popa ficava livre da boca do
túnel, pelo menos quinze Fangs Cinzentos infestaram o convés com dentes
à mostra, brandindo espadas. Errol e os sete membros da tripulação que não
estavam ocupados puxando cordas e manejando remos encarregaram-se dos
Fangs com gritos e muita bravura. Atrás do navio, mais Fangs Cinzentos
estabacavam-se na água e, embora fossem inimigos ferrenhos, Janner sentiu
pena deles enquanto se debatiam no mar e arranhavam inutilmente as
paredes lisas da enseada.
Então a voz do dragão encheu a mente de Janner. Dizia as mesmas
palavras que falara naquele dia nos penhascos, mas agora ele sabia a quem
se referia.
Ele está perto de vocês, jovens. Cuidado. Ele destrói tudo o que toca e
busca os jovens para usá-los para seus próprios fins. Nós o temos vigiado,
esperado por ele. Ele navegou pelo mar e está perto de você, criança.
Podemos sentir o cheiro dele.
Não era Gnag. Não era Gammon.
O aviso do dragão sempre foi sobre Podo Helmer.
Eram jovens dragões que estavam em perigo, não ele e seus irmãos.
Janner estava pasmo. Ele sabia que Podo havia sido um pirata e, antes
disso, um Marginal. Mas ele nunca havia parado para considerar as coisas
horríveis que seu avô pudesse ter feito — coisas horríveis que não eram
apenas parte de alguma história, mas que realmente haviam acontecido.
Mas matar os filhotes dessas criaturas magníficas? Nia estava certa.
Pessoas más fariam qualquer coisa por dinheiro. Ele não queria pensar em
Podo dessa forma, mas não havia como escapar do fato brutal de que seu
avô havia feito essa coisa terrível.
O dragão rugiu.
A tripulação lutava contra os Fangs, mas estava perdendo. Vários
homens de Errol já jaziam imóveis sobre o convés do navio. Os Fangs
Cinzentos, ao contrário de seus irmãos escamosos, lutavam em silêncio,
com precisão e grande habilidade. O restante da tripulação se espalhou para
proteger o navio das paredes de gelo, perigosamente próximas; outros
pegaram arcos e apontaram-nos em direção aos dragões-marinhos, embora
fosse óbvio que as flechas seriam inúteis.
Oskar perdeu o equilíbrio e caiu esparramado no convés, escorregando
de um lado para o outro como um peixe morto. A boca de Nia se abriu em
um grito silencioso. Leeli, entretanto, colocou a muleta debaixo do braço,
subiu as escadas e correu pelo convés superior, direto em direção ao dragão.
Janner arrancou uma espada das mãos de um dos kimerianos caídos e
ponderava se deveria esconder-se, entrar na batalha contra os Fangs
Cinzentos ou seguir Leeli até o castelo de proa, onde Podo encarava os
dragões.
O velho dragão se contorceu em um triunfo furioso, e seu frenesi
contagiou os muitos dragões atrás dele. Eles rugiram e agitaram as águas a
ponto de geleiras se partirem e avalanches tombarem das encostas das
Montanhas Rochosas.
Podo permanecia como uma estátua na proa, esperando sua morte.
Asas escuras, de repente, bloquearam a visão de Janner, e ele se viu
olhando nos olhos de Artham.
“Janner”, chamou-o.
Sua voz era forte e segura, e atravessava todo aquele clamor. Seu rosto
era o mesmo, embora agora colorido com o mesmo tom avermelhado de
seus antebraços, e, em vez do cabelo branco desgrenhado, penas finas
sombreadas com desenhos e cores sutis cobriam sua cabeça e ombros. Ele
estava lindo.
“Tio Artham... como você... o que aconteceu?”
“Não tenho certeza se posso explicar sozinho”, respondeu Artham.
“Janner, não há tempo. Leve o seu irmão.”
Nos braços de Artham estava um Fang Cinzento, pequeno e imóvel. Ele
não usava roupas, mas seu corpo estava coberto por longos e cinzentos
pelos. Janner não conseguiu esconder a aversão em seu rosto. Aquilo não
era Tink. Aquilo era um terrível engano.
Então o Fang se mexeu e virou a cabeça.
O sangue de Janner gelou. Nem mesmo o pelo, as orelhas pontudas, o
nariz preto, os dentes afiados, nada conseguia esconder o fato de que se
tratava mesmo de Tink. Janner não queria tocá-lo. Não queria acreditar que
aquilo era seu irmão mais novo.
“Largue a espada e pegue-o”, comandou Artham. “Ele precisa de você
agora mais do que nunca, Guardião do Trono. Os dragões vão matar todos
nós se não fizermos algo.”
Janner acenou com a cabeça e pegou seu irmão nos braços. “O que você
vai fazer?” Ele perguntou.
“Vou começar lidando com esses lobos.”
Artham agarrou a espada que Janner havia largado; em seguida, abriu as
asas e saltou no ar. Ele aterrissou no centro da luta e matou três Fangs
Cinzentos antes que seus pés tocassem o convés. Em segundos, os
kimerianos levaram vantagem e encurralaram os seis Fangs Cinzentos
restantes.
Destruam-nos, comandou a voz do dragão na cabeça de Janner. Ele
estava conversando com os outros dragões-marinhos. Destruam todos eles.
“Sei que vocês estão irados! Poupem os outros! Fui eu quem levou seus
filhos!” Podo berrou. Ele se ajoelhou na proa e cerrou os punhos, e sua voz,
poderosa e abatida, ergueu-se acima do caos. “Por favor!”
Os dragões-marinhos iriam esmagar o navio e engolir cada um deles.
Tudo por causa de Podo. Tudo por causa das coisas perversas que ele havia
feito. Era tão inútil tentar parar os dragões quanto tentar parar uma massa
de nuvens negras no céu. Nada em toda Kistamos poderia deter uma
vingança tão amarga.
Mais rápido do que Janner teria acreditado possível, o velho dragão
atacou. Como um chicote, a cabeça da fera recuou e disparou para a frente,
direto para Podo e...
“Leeli!” Nia gritou.
A menina alcançou o avô e se pôs entre ele e o dragão.
63

O Troféu de Hulwen

Pare!” Leeli implorou, e o dragão parou.


Ele parou, tão perto de Leeli que ela poderia ter estendido a mão e
tocado a ponta de seu nariz.
E ela o fez.
Pela primeira vez em uma era, alguém tocava em um dragão vivo.
Água do mar escorria pelas laterais do rosto escorregadio do dragão e
acumulava-se no convés. Sua boca, cheia de dentes maiores do que Leeli,
escancarava-se para devorar Podo inteiro. O velho pirata estava ajoelhado,
com os olhos fechados.
Janner percebeu que o dragão havia ficado sem reação, surpreso por essa
pequena criatura de cabelos ondulados ter tanta coragem. As pontas de seus
delicados dedos repousavam sobre o nariz do dragão. Ela olhava
calmamente em seus olhos, embora fossem tão grandes quanto as rodas de
uma carroça e profundos como o mar. Uma pequena rajada de ar de seu
nariz soprou o cabelo dela para trás.
Foi sua canção que desceu dos penhascos.
“Sim! Foi a canção dela!” Reforçou Artham, e Janner percebeu que seu
tio também podia ouvir a voz. Artham afastou-se dos kimerianos, na popa,
voou para a proa e pousou onde Podo estava ajoelhado. “Senhores do mar”,
saudou-os com uma reverência, “perante vocês encontra-se a Donzela da
Canção de Anniera.”
O dragão piscou e novamente seus pensamentos soaram na mente de
Janner.
Impossível.
“É verdade, senhores”, afirmou Artham.
Anniera caiu. O sonho findou, e o mundo está em trevas.
“Se o sonho findou”, disse Artham com um agitar de suas asas, “como
você explica essas penas? Como explica a coragem de Leeli? De que outra
forma eu conseguiria ouvir suas palavras, não fosse um Guardião do Trono?
É verdade que a Ilha Brilhante é fumaça e cinzas e que a escuridão se
espalha por toda a terra. Mas sua longa memória falhou com vocês. De
todas as criaturas, vocês deveriam saber que a escuridão raramente é
completa e, mesmo quando o é, uma faísca de luz não demora a chegar — e
ainda mais deslumbrante, em função da imensa mortalha que a rodeia.”
O dragão ficou em silêncio.
Artham acenou para Nia e Janner se aproximarem. Nia tomou Tink dos
braços de Janner e descansou a cabeça peluda dele em seu ombro,
segurando-o perto, como havia feito milhares de vezes quando ele era mais
novo.
Janner tinha vergonha de admitir que estava feliz por ela tê-lo pegado.
Ele não gostava da sensação do pelo de Fang ou da mudança assustadora
nas feições de seu irmão; era um lembrete de que o Guardião do Trono
havia falhado. Não importava o que dissessem, embora soubesse que não
era verdade, Janner nunca escaparia do sentimento de ser responsável pelo
que havia acontecido com seu irmão. E então ele começou a entender algo
sobre seu tio: foi a culpa que havia deixado Artham P. Wingfeather louco.
Nia subiu os degraus com Tink nos braços, e Janner a seguiu. Ficaram de
pé ao lado de Podo e Leeli, todos molhados e com frio, tremendo com o
vento forte do mar.
“O coração do reino está diante de vocês. Vejam”, Artham anunciou com
um movimento de suas mãos, “a faísca de luz.”
O dragão baixou a cabeça e estudou cada um deles. Quando os olhos
gigantescos pousaram sobre Janner, ele lutou contra a vontade de ajoelhar-
se, como Podo havia feito. A fera era tão antiga quanto as montanhas, e seu
olhar tinha peso. Quando olhou para Leeli, ela sorriu e fez uma reverência,
e ele curvou a cabeça em resposta.
Os olhos do dragão caíram sobre Podo novamente, e um estrondo saiu de
seu peito. Nossa fúria é profunda. No entanto, em nome da antiga amizade
com a Ilha Brilhante e pelo espírito da Donzela da Canção, o navio pode
seguir.
“Nossa gratidão, senhor do mar!” Louvou Artham, com um suspiro de
alívio. Ele apertou o ombro de Podo e sussurrou para os outros: “Eles nos
deixarão ir. Agradeçam ao Criador, eles nos deixarão ir!”
O navio pode seguir, o dragão continuou, mas o Destruidor de Escamas
é nosso. Sua ofensa é grande, e não vamos deixá-lo trilhar nossas águas
com tanta facilidade. Há tempos desejo profanar sua carne.
“Não!” Janner murmurou.
“Por favor”, implorou Artham.
“O que ele disse? Digam-me!” Nia exigiu.
“Shh, moça”, retrucou Podo. Ele olhou para Nia com um sorriso gentil.
“Minha viagem acabou. Eu sabia que o mar não reservava nada além de
morte e vergonha pra mim. Não suportei colocar os olhos nele todos esses
anos. Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, as águas me arrastariam de
volta e haveria um acerto de contas.”
“Quieto!” Gritou Nia. “Estou muito zangada com você para deixá-lo
morrer. Esse acerto de contas não é nada comparado ao que mamãe teria
dito! Ter mantido isso escondido de nós, ter feito essas coisas...”
“Ela sabia”, revelou Podo calmamente.
“O quê?! Mamãe desprezava os caçadores de dragões! E-ela... odiava o
que eles faziam!” Nia gaguejou.
“Sim”, concordou Podo. “E eu também. Odeio mais do que você jamais
poderia. Muitas vezes desejei poder voltar e consertar tudo, desfazer as
coisas que fiz na Margem e no mar. Mas quando sua mãe me deu seu
coração, deixei o velho Podo pra trás e disse adeus ao mar. Nunca pensei
que veria o oceano novamente depois de me casar com sua mãe em Vales
Verdes, mas então Esben escolheu você como sua rainha. Lembra de como
enviei você e sua mãe na frente e esperei até o inverno antes de cruzar o
estreito para Anniera?”
“Sim, eu me lembro”, Nia respondeu.
“Eu estava ridiculamente apavorado de que os dragões se levantassem
como agora. Os dragões levaram minha perna e conheciam meu cheiro. Foi
um milagre ter conseguido cruzar o estreito até Anniera, e eu me conformei
com a ideia de nunca mais voltar a pisar em um navio. Quebrou meu
coração, mas eu havia quebrado muitos outros e vi isso como uma
penitência justa. Então Gnag, o Sem-Nome, atacou, e aquela tempestade
nos levou até Skree. Pensei que os dragões nos devorariam no caminho,
mas acho que o Criador tinha planos diferentes. Todos esses anos permaneci
no chalé no Dia dos Dragões, porque não suportava olhar para aquele
horizonte amplo e saber que nunca navegaria novamente.
“Escute, filha. Estou mais feliz do que consigo expressar em saber que é
somente a mim que eles querem. Quando saímos daquele túnel, tinha a
certeza de que minhas ações também causariam o fim de vocês. Mas eles
estão deixando vocês irem. Nia, querida, irei feliz para o Abismo, sabendo
disso.”
“Basta!” Ordenou Nia. Ela se voltou para Artham. “Você! Diga a esses
dragões que eu sou a Rainha Mãe, este é meu pai, e eu lhe perdoo por esses
crimes. Eles devem deixá-lo passar!”
Artham hesitou.
“Diga a eles!” Nia persistiu.
O peito do dragão retumbou novamente, e seus olhos se estreitaram.
Janner teve a sensação perturbadora de que a paciência deles estava se
esgotando.
“Eu não tenho que dizer a eles”, disse Artham calmamente. “Você
acabou de fazer. Eles entendem você.”
“Nia, não”, retrucou Podo. “Fiz coisas pelas quais não paguei e é hora de
parar de fugir disso.”
Ouça o velho, aconselhou o dragão.
“Ele diz... diz que você deve ouvir Podo, Nia”, revelou Artham.
“Não!” Bradou ela com toda a autoridade que conseguiu reunir,
agarrando Tink com tanta força que ele ganiu.
A disposição do dragão de dar atenção a Nia acabou. Ele ergueu a
cabeça e sibilou. Os outros dragões se contorceram, o navio balançou, e
parecia que eles iriam partir a embarcação em pedaços e engolir tudo.
“Por favor, senhor”, implorou Leeli ao dragão, “não há algo que possa
ser feito?”
A resposta do dragão foi um nome.
Hulwen! Bradou. Venha, filha! Deixe esses aduladores verem o que
Destruidor de Escamas fez.
Um dragão vermelho-rubi surgiu das águas ao lado do dragão antigo.
Tinha a metade do tamanho dos outros e nadava com uma guinada
desajeitada. Ao se aproximar, o dragão cinza recuou para dar-lhe espaço.
Um de seus olhos estava faltando. Uma longa cicatriz retorcida ia do topo
da cabeça, passando pelo olho que faltava, até o canto da boca. Uma de suas
barbatanas pendia murcha, cortada em pedaços, e em vários lugares suas
escamas estavam retorcidas e danificadas onde, imaginou Janner, arpões a
haviam perfurado, muito tempo atrás. Em vez de uma fileira de belas presas
cintilantes, faltavam dentes — ou projetavam-se em ângulos estranhos.
Podo sacudiu a cabeça como uma criança. “Eu imploro, mestres, por
favor, não. Eu não consigo suportar isso.”
A criatura estendeu a cabeça mutilada sobre o convés do navio, voltou o
olho bom para Podo e grunhiu. Janner esperou que as palavras
preenchessem sua mente, mas nenhuma veio. Leeli e Nia desviaram os
olhos.
Minha filha, explicou o dragão antigo, que uma vez já foi tão linda
quanto a lua nascente. Minha filha, cujas muitas cicatrizes vieram da
lâmina do Destruidor de Escamas e das lanças de seus capangas.
Janner se sentiu mal. Uma coisa era saber que seu avô havia feito coisas
terríveis. Outra era ver aquelas coisas terríveis com seus próprios olhos. E
este era apenas um dos dragões que ele havia atacado. Janner tentou olhar
para Podo, mas não conseguiu.
Você se lembra dela, velho?
“Ele quer saber se... se você se lembra dela”, revelou Artham. “É a filha
do antigo.”
Podo sacudiu a cabeça.
Então, lembre-se disso! Ordenou o velho dragão. Mostre a ele, Hulwen.
O dragão vermelho-rubi suspirou.
Mostre a ele!
O dragão menor mergulhou a cabeça na água. Quando emergiu, cuspiu
algo neles. Um osso limpo e branco caiu no convés, onde Podo estava
ajoelhado.
“Minha perna”, sussurrou. Ele olhou para o dragão vermelho. “Foi você.
Eu me lembro. Ó Criador, eu sinto tanto.”
Hulwen, a vingança é sua, vociferou o velho dragão cinza. Mate aquele
que matou tantos.
64

E o Mar Ficou Vermelho

Não!” Janner esbravejou.


O dragão rubi grunhiu, recuou... e hesitou.
Faça! Ordenou o dragão antigo.
Mas o olho da jovem dragoa pousou em Leeli e em sua perna torcida.
Ela olhou para Podo, parado ali, tremendo sobre seus joelhos.
Não, recusou-se Hulwen, uma voz jovem e cansada na mente de Janner.
O quê?! Questionou o ancião.
Deixe-os ir, intercedeu Hulwen. As cicatrizes dele são mais profundas
do que as minhas.
Em seguida, ela afundou sob as ondas.
A fúria da antiga fera cinza sacudiu o ar. Seus flancos ondulavam como
uma bandeira em uma tempestade de vento. O grito sem palavras do dragão
apunhalou a mente de Janner, e ele fechou os olhos com força e pressionou
as duas mãos contra a testa. Os outros dragões compartilharam a ira do
antigo até que a água ao redor do navio espumar como as Cataratas Fingap.
Artham lançou-se no ar e brandiu a espada para a grande fera enquanto
descia. Com uma chicotada de seu nariz, o dragão jogou Artham contra a
geleira com tanta força, que pedaços de gelo se espatifaram no mar. Artham
ficou atordoado, mas suas asas agitaram o ar enquanto ele caía. As pontas
de seus pés chegaram a tocar na água no momento em que ele arremeteu e
voltou a circular o dragão.
Janner não ouviu mais palavras em sua mente. A criatura tornara-se
selvagem. Ele sabia que, se Artham não o tivesse distraído, o dragão já teria
estilhaçado o navio e todos estariam mortos.
“Janner!” Leeli chamou-o. “Pegue o Primeiro Livro. Rápido!”
“Por quê? Eu não sei onde está!”
“Pergunte a Errol. Gammon disse que nossas coisas estão no barco. Vá!”
Janner não tinha ideia do que Leeli tinha em mente, mas ficou feliz em
fazer outra coisa além de esperar ser devorado. Ele desceu do castelo de
proa com um único salto. Com o canto do olho, viu Oskar ainda se
debatendo de costas, incapaz de manter o equilíbrio no barco que
balançava. Errol e o resto da tripulação haviam subjugado os Fangs
Cinzentos e mantinham-nos contra a amurada do navio, à ponta da espada.
“Errol! Onde estão nossas mochilas?” Janner gritou.
“Nos aposentos do capitão, por aquela porta!”
Janner irrompeu pelo quarto e viu sua mochila sobre uma pilha de sacos
de dormir e peles, ao lado de uma grande escrivaninha. Ele remexeu nela e
puxou o livro antigo, perguntando-se o que Leeli planejava fazer.
Quando emergiu da cabine, viu o grande dragão girando, estalando os
dentes para Artham, enquanto este voava ao redor de sua cabeça como um
mosquito. O som das mandíbulas do dragão fechando-se no ar vazio era
como um relâmpago partindo um carvalho em dois. Janner se perguntou por
que Podo e os outros não haviam procurado cobertura, mas ele sabia tão
bem quanto eles que isso seria inútil. Se o dragão queria Podo, o dragão o
teria. Mesmo se o velho se escondesse no porão do navio, a criatura teria
poucos problemas para esmagar o navio com uma mordida.
Janner subiu os degraus e derrapou até parar na frente de Leeli. Ela
folheou as páginas freneticamente, empurrou o livro para Janner e disse:
“Segure-o aberto, onde eu possa ver!”.
Janner olhou para a página, mas não viu nada além de letras e linhas
estranhas.
Leeli enfiou a mão dentro do casaco e tirou a harpa eólica. A luz refletiu
nela e brilhou no rosto do dragão. O dragão parou.
De mãos trêmulas, Leeli levou a harpa eólica aos lábios e analisou as
marcas no papel antigo. Um grande silêncio pareceu descer sobre o mundo.
Os kimerianos, Artham e até mesmo os Fangs Cinzentos esperaram para ver
o que aconteceria.
Então a melodia lhes sobreveio como o nascer do sol.
Após as primeiras notas, o dragão inspirou, lenta e profundamente, e
fechou os olhos. A música de Leeli cresceu em força, tensão e beleza, e,
quando alcançou o primeiro refrão, o dragão-marinho exalou uma nota
quente e montanhosa. Sua voz era arredondada e abundante e, de alguma
forma, perfumada, como a canção que uma árvore poderia cantar ao
florescer durante a primavera.
“A Canção de Yurgen”, reconheceu Oskar, que parou de se debater e
estava recostado no convés com um grande sorriso no rosto. “Boa moça,
Leeli.”
O dragão ergueu o rosto para o céu com graça cuidadosa até que suas
escamas reluzentes captassem o sol, e a fera se ergueu, acima deles, como
um cetro dourado gigante. Logo os outros dragões juntaram-se a ele na
canção, e Janner sentiu que seu coração poderia explodir. Ouviu o tilintar
das espadas escorregando das mãos inertes dos kimerianos, enquanto os
imensos homens ficavam pasmos. Artham abriu bem os braços e as asas e
deleitou-se com a música como se fosse luz do sol.
Podo estava ajoelhado atrás de Leeli, imóvel como uma estátua, sem
vontade ou incapaz de erguer os olhos para ela ou para os dragões. Em seu
rosto havia uma expressão de vergonha insuportável, tanto pela morte de
jovens dragões quanto pela forma como sua perfídia quase matara aqueles
que amava.
Leeli baixou a harpa eólica, quando havia tocado tudo o que podia da
“Canção de Yurgen”, mas os dragões continuaram.
“Vovô”, Leeli disse gentilmente. Podo ergueu os olhos como se
pesassem mil quilos. “Levante-se”, sua neta lhe pediu. Ela pegou a mão
velha e enrugada na sua pequena e elegante mão e o ergueu. Janner
acreditava que nenhuma outra força em toda Kistamos, nem as melhores
palavras, nem o aperto mais forte, teriam sido capazes de levantar o velho
pirata quebrado — exceto a voz e a terna mão de Leeli.
Os Fangs Cinzentos cobriam suas orelhas. Eles uivavam de dor, mas o
som era fraco e distante e não tinha poder de interromper a música dos
dragões. Tink se contorceu nos braços de Nia. Seus olhos permaneciam
fechados, mas suas garras se cravaram na pele dela e tiraram sangue. Ela o
segurou com mais força e beijou seu pelo.
“Levem essas feras para baixo do convés”, ordenou Errol. “E cuidem
dos feridos.” Ele e seus homens amarraram os braços dos seis Fangs
restantes. As criaturas, grogues e desorientadas, foram levadas ao porão do
navio sem protestar. Os Fangs mortos já haviam virado pó. Pedaços de pelo
se acumulavam nos cantos e eram levados com a brisa.
Janner esperava que, quando a música terminasse, os dragões
afundassem e fossem embora, como ele os vira fazer tantas vezes antes,
mas isso não aconteceu. Em vez disso, o antigo dragão cinza arqueou o
pescoço e olhou para eles com uma imobilidade feroz.
Finalmente, proferiu o dragão, aparece quem pode aliviar nossa tristeza
com música. Pensamos que nunca mais ouviríamos essa música. Como,
pequenina, você aprendeu essa melodia? Você tinha cantado algo parecido
quando a meia-lua surgiu, mas já faz muito tempo que não a ouvíamos
como foi escrita.1
“Ela aprendeu com este livro”, explicou Janner. “É um dos Primeiros
Livros.”
Os Primeiros Livros? Perguntou o dragão. Eles estiveram perdidos por
eras.
“Sim, mas”, interrompeu Artham, “a Donzela da Canção acabou de tocar
a ‘Canção de Yurgen’. De que outra forma ela poderia ter aprendido?”
Janner sentiu o dragão se lembrando de coisas de muito tempo atrás,
coisas que os dragões-marinhos haviam esquecido que sabiam, como se a
harpa eólica de Leeli fosse uma chave que destrancava uma câmara secreta
na mente do dragão. Ele viu as eras passarem como páginas de um livro
ilustrado. O antigo dragão cinza flutuava para trás, através das águas do
tempo, com barbatanas semelhantes a asas, parecendo um dia mais jovem a
cada cem anos, e conduzindo seu bando mil vezes das Cataratas Fingap até
às profundas cavernas das Montanhas Submersas, onde pedras forneciam
luz e as paredes giravam com imagens.
Viu os dragões perseguindo navios piratas, jovens dragões amarrados e
puxados para o convés. Viu que, nos dias dos piratas, jovens dragões
viajavam pelas águas sozinhos e eram vulneráveis. Somente quando
andavam em bandos, os piratas os temiam e a caça cessava.
Então Janner sentiu o dragão nadando de volta para uma época mais
antiga, quando o próprio mundo parecia mais jovem, quando o sol era mais
brilhante e as águas quentes. O antigo dragão viu a si mesmo destruindo
navios, esmagando marinheiros indefesos e suas famílias. Lembrou-se de ir
rastejando até a costa para arrasar aldeias e ferir a terra enquanto as pessoas
lamuriavam. Havia terror em seus olhos — e o dragão então lembrou-se de
que seus próprios feitos já foram sombrios.
O dragão forçou ainda mais fundo dentro da memória, mas encontrou
um nada cinza. Nenhuma explicação para sua fúria, nenhuma causa para a
matança. Seria necessária outra música para abrir essas câmaras. Janner
sentiu uma nova emoção surgir na mente do dragão: contrição. O dragão
havia feito seus próprios males e se arrependia deles.
Hulwen, a dragoa rubi, ergueu a cabeça desfigurada da água. O dragão
cinza fechou os olhos e a acariciou. Janner podia dizer que eles falavam um
com o outro, mas eles o haviam deixado de fora. Janner não conseguia
ouvir nada do que diziam e se perguntou se o mesmo acontecia com
Artham. Quando os dragões terminaram, Hulwen olhou nos olhos de Janner
e acenou com a cabeça.
Uma última travessia, ela disse, e afundou novamente.
Janner e Artham se entreolharam com surpresa.
Não há mal na justiça, proclamou o dragão cinza. O próprio velho sabe
disso. Embora a “Canção de Yurgen” tenha despertado piedade em meu
velho coração, o sangue de nossos filhos clama por justiça. Nós
permitiremos a ele a misericórdia de uma última travessia pelo mar. O
Destruidor de Escamas pode viver seus últimos dias em paz.
Mas se ele entrar nessas águas novamente, o dragão avisou, seus dias
em Kistamos se findarão. Sem ira, sem aviso, subiremos das profundezas e
o engoliremos. Assim, nossos mortos serão honrados. Entenderam?
Janner e Artham assentiram gravemente.
“Sim, senhores”, confirmou Artham. “Nós agradecemos.”
“Eles o estão deixando passar!” Janner correu até Podo e o abraçou pela
cintura. “Vovô, eles estão deixando você ir!”
“Ahn?” O olhar no rosto de Podo alternou entre descrença e alegria, o
que fez com que suas sobrancelhas espessas subissem e descessem como
ondas espumosas. Nia ergueu a cabeça para os céus e murmurou uma
oração, enquanto Leeli gritava e pulava nos braços grossos de Podo.
Quando as risadas e as lágrimas de felicidade diminuíram, os dragões se
foram. O navio balançava sobre as ondas, com os penhascos das Pradarias
de Gelo atrás e o amplo horizonte à frente.
Então soou uma voz que matou o sorriso em todos os rostos.
“Me coloca no chão!” Ordenou. Era uma voz estranha, tão gutural e
profunda quanto jovem.
Tink estava acordado e rosnava.
Ele deu uma mordida em Nia e arranhou os braços dela. Sua mãe gritou
e o soltou, e o pequeno Fang disparou assim que suas patas tocaram o
convés.
Ele se agachou em um canto e arquejou como um cachorro. Seus olhos
saltavam de sua família para a tripulação do navio e para o borrifo de água
do mar que espirrava no convés — e foram seus olhos que causaram um
arrepio na espinha de Janner.
Seu irmão não era mais alto do que antes e, mesmo com as feições de
lobo, ainda se parecia com Tink. Mas seus olhos eram amarelos e
selvagens. Não havia profundidade ou reconhecimento, apenas um vazio
superficial e raso que Janner já havia visto antes. Ele havia visto isso
quando Slarb olhou para ele na cela da prisão em Glipwood; ele havia visto
isso quando o Comandante Gnorm sacudiu para ele seus dedos enfeitados
com joias; ele havia visto isso nos olhos de Timber, o líder dos Fangs
Cinzentos.
Esta criatura podia se parecer com Tink, mas não era mais Tink. Era um
Fang, de cabo a rabo.
“Filho”, Nia o chamou, com a voz cheia de tristeza. Estrias de sangue
coloriam sua pele onde ele a havia arranhado. “Sou eu. Sua mãe.”
Tink rosnou.
Ela deu mais um passo, mas o menino lobo agitou uma pata no ar e
arreganhou os lábios.
“Não chegue mais perto”, ele avisou. “Onde estou?” Ele olhou em volta,
desesperado para escapar. Virou-se e espiou por cima da amurada para as
ondas, como se fosse pular no mar, e Janner percebeu pela primeira vez que
seu irmão tinha uma cauda. O estômago de Janner se contorceu e ele temeu
que pudesse vomitar ou chorar. Não sabia o que viria primeiro.
“Não o assuste”, Leeli pediu com a voz que usava quando colocava sua
afeição em um animal. “Está tudo bem. Não queremos machucar você.” O
lobo a ignorou e caminhou pela amurada, ansioso por um lugar para onde
fugir.
“Qual o seu nome?” Interrogou Artham.
Ao ouvir isso, Tink ficou imóvel. Ele inclinou a cabeça para o lado,
como um cachorro. “Eu não sei. Não sei meu nome.”
“Devo dizer a você?” Artham perguntou cuidadosamente. “Você pode
não gostar.”
Tink estudou o homem avermelhado e com asas. Ele mudou a posição
dos pés, lambeu seus beiços e ganiu. “Pode dizer”, disse ele em voz baixa.
“Seu nome verdadeiro é Kalmar Wingfeather.”
As orelhas do menino lobo se achataram contra sua cabeça, e ele uivou
para o céu. Num acesso de raiva, disparou pelo convés, tentando arranhar e
morder sua família. Nia e Leeli gritaram. Janner e Podo se colocaram entre
as mulheres e o animal selvagem, enquanto Artham lutava para subjugá-lo.
Cada vez que ele colocava a mão no lobo, os dentes da fera afundavam em
sua pele.
Os kimerianos pegaram em armas e correram para a proa com a
comoção. Vários deles apontaram seus arcos para Tink e se posicionaram
para atirar.
“Abaixem suas armas!” Artham ordenou. “Ele não é um Fang!” Ele
voou pelo convés e, no último instante, desviou um dos arcos para cima, de
modo que a flecha zuniu inofensivamente no ar.
Mas assim que Artham deu as costas, Tink saltou sobre a amurada, para
o mar gelado.
Foi nesse momento que Janner realmente se tornou um Guardião do
Trono.
Sem pensar, Janner arrancou seu casaco e saiu correndo. O instinto mais
profundo de seu coração o levou a avançar sobre a amurada do navio para
salvar seu irmão.
Assim que ele atingiu a água, o mundo tornou-se uma escuridão fria e
sem ar. Sentindo frio demais para pensar, ele agarrou um punhado de pelos
e puxou para perto de si. Garras arranharam sua pele. Ele sentiu os dentes
de Tink vez após vez, mas manteve seu irmão junto a si. Sempre que cada
suspiro desesperado trazia água para seus pulmões, ele abraçava o Fang
com todas as suas forças. O mar ficou vermelho com o sangue de Janner.
A última coisa que ele percebeu foram as fortes mãos com garras de
Artham. Sentiu ser erguido por poderosas asas da escuridão para a luz, do
silêncio para o som. E, embora suas feridas fossem profundas e sangrassem
bastante, mesmo com Tink ainda lutando para escapar de seu abraço, no
coração de Janner ardia uma imensa alegria.
65

A Última Viagem
de Podo Helmer

E então, Podo Helmer navegou no Mar Sombrio da Escuridão pela última


vez.
Os Wingfeathers viajavam para o leste, em direção aos Vales Verdes,
onde, muitos anos antes, um pirata turbulento havia sido domesticado pelo
terno amor de uma mulher chamada Wendolyn Igiby. Podo era
frequentemente visto no convés do navio tarde da noite, enquanto a maioria
da tripulação dormia. Ele olhava para o céu estrelado e respirava fundo o ar
salgado, pois sabia que a noite tinha uma beleza especial quando se estava
longe da terra. Ele carregava o osso da perna aonde quer que fosse, e sentia
grande prazer em batê-lo no mastro para sinalizar a hora das refeições.
Passava os dias maravilhado e em paz, pois toda a sua história havia sido
contada pela primeira vez, e ele descobriu que continuava sendo amado.
Durante dias, Oskar N. Reteep ficou desesperadamente mareado. Seu
rosto era pálido e, a cada poucos minutos, cambaleava como um bêbado até
a amurada do navio e fornecia aos peixes uma comida bastante
desagradável. Mas logo a careca do velho ficou bronzeada e endurecida.
Passou a conhecer as cordas com interesse e logo tornou-se tão marinheiro
quanto qualquer outro membro da tripulação. Os kimerianos o convenceram
a raspar a cabeça e, em um acesso de imprudência, permitiu até mesmo que
tatuassem seu braço com a inscrição um tanto inexpressiva: “Eu Gosto de
Livros”. Embora comesse pouco e trabalhasse muito, no final da viagem,
permaneceu tão redondo e flácido como sempre.
Nia e Leeli cuidaram dos irmãos.
Quando Janner acordava, sentia dor da cabeça aos pés. Ele sabia que
seus ferimentos eram graves por causa da expressão no rosto de sua mãe,
quando trocava suas bandagens. Ficou deitado na cama por dias, ouvindo o
ranger do navio e o barulho de passos acima. Toda sua vida havia sonhado
em navegar e, agora que finalmente estava em mar aberto, permanecia
confinado a uma cama. Mas teve muito tempo para refletir sobre sua
jornada de Glipwood a Cavadópolis e às Pradarias de Gelo, até a cama onde
agora estava deitado — e, no final, ficou grato.
Também teve muito tempo para falar com Tink.
O lobo estava deitado na cama, ao lado de Janner, amarrado com cordas
de couro. Ele se recusava a tomar sopa ou mesmo peixe cozido, mas
devorava pedaços de carne crua que Nia e Leeli jogavam em sua boca.
Atacava qualquer um que se aproximasse e gritava e rosnava, sempre que
tentavam falar com ele.
No início, Nia cuidou dele com uma expressão de tristeza estampada no
rosto. Mas logo uma mudança ocorreu, e ela manteve as costas retas e o
queixo erguido. Passou a falar com ele com firmeza, dizendo: “Amo você,
Kalmar”, rosnasse ou não para ela. E todos os dias, quando chegava e antes
de sair, olhava-o nos olhos e perguntava o nome dele.
Sua resposta era sempre violenta: “Não sei”, murmurava, ou “Não tenho
nome”. Seus uivos sacudiam as janelas.
Mas, à noite, quando o luar atravessava a pequena janela redonda e
deslizava pelo chão, Janner sussurrava histórias para Kalmar, e Kalmar
ouvia.
“Você era rápido”, Janner lhe contava. “Você conseguia me ultrapassar,
indo e voltando, se quisesse. No verão, quando os dias eram longos,
subíamos correndo a colina até a casa dos irmãos Blaggus e brincávamos de
zibzy até ficar escuro demais para ver.”
“O que é zibzy?” Tink sussurrou, e Janner lhe contou.
“Uma vez, você escondeu um thwap na gaveta de cuecas do vovô”, disse
Janner com um silvo de dor, porque doía rir.
“E o que aconteceu?” Perguntou o lobo.
“Vovô pulou tão alto, que sua cabeça fez um buraco no teto. Você ficou
de castigo, sem poder jogar zibzy por uma semana, mas dava para ver que o
vovô tinha achado graça.”
De manhã, quando Nia e Leeli chegavam com o café da manhã, Nia
perguntava ao Fang Cinzento o nome dele, e Tink era só dentes e uivos
novamente. Seus olhos permaneciam com aquele amarelo horrível e vazio.
Janner começou a ansiar pela noite, para que não tivesse que ver aqueles
olhos de lobo observando-o. À noite, podia olhar para a lua e contar
histórias para o irmão e fingir, por um momento, que o animal havia
sumido.
Mais de uma vez, Artham entrou na cabine e falou com Tink, mas,
sempre que aparecia, o lobo ficava feroz.
“Seu nome é Kalmar”, insistia Artham com impaciência, e Kalmar
uivava de dor. Logo, Artham parou de vir.
Então, uma noite, algo mudou.
Janner contou ao irmão sobre a Fábrica de Garfos e sua fuga pelas ruas
de Cavadópolis. Contou sobre sua decisão de resgatar Tink da gaiola de
Claxton Ardileza e sobre o desespero que sentiu quando chegou tarde
demais. Não havia lua naquela noite, então tudo que Janner conseguia ver
de seu irmão era um contorno perto da janelinha.
O lobo falou, interrompendo Janner no meio de uma frase.
“Eu me lembro”, Tink sussurrou.
Janner não sabia o que dizer, então ficou deitado no escuro por um longo
tempo, mal ousando respirar. O mar estava calmo e as ondas faziam pouco
barulho contra o casco. Então Janner ouviu, tão baixo que pensou ser
apenas sua imaginação: o Fang Cinzento estava chorando no escuro.
Janner adormeceu com esperança no coração.
De manhã, quando Nia e Leeli entraram no cômodo, Janner permaneceu
imóvel, com medo de abrir os olhos e descobrir que as lágrimas de Tink
haviam sido apenas um sonho, que o pequeno Fang Cinzento continuava
tão selvagem e cruel como sempre. Janner implorou ao Criador para
responder às suas orações.
E o Criador respondeu
“Bom dia, Janner”, disse Nia. Ela se sentou em sua cama e beijou sua
testa. “Seu avô avistou terra esta manhã. Ele disse que estamos a apenas
dois dias de Vales Verdes. E bom dia para você”, disse a Kalmar. A criatura
peluda se esticou. “Qual é o seu nome?”
“Meu nome”, respondeu a criatura com os olhos ainda fechados, “é
Kalmar. Meu pai era Esben Wingfeather, e eu sou filho dele, o Rei Supremo
de Anniera.”
Se um artista fosse convidado a retratar num quadro a perfeita alegria e
fascínio, seria exatamente como o rosto de Nia naquele momento. Ela
chorou. Leeli cobriu a boca com as duas mãos e gritou. Janner saltou da
cama e correu para o lado do irmão, apesar da dor que percorreu seu corpo.
“Tink?” Ele o chamou.
Kalmar abriu os olhos, e eles estavam claros e azuis.
Apêndices
Uma passagem do Primeiro Livro, traduzida em Kimera por Oskar N.
Reteep e Nia Igiby Wingfeather:
Uma tradicional rima infantil valeense sobre o infame Will, filho de
Dwayne, em Contos Horripilantes e Fantasmagóricos, de Fencher:

Will Usurpador
Will Usurpador, Will Usurpador
Debaixo de sua cama, nos seus pés a respirar,
Espera seu sono vir pra em sua mente se esgueirar;
Assombra, então, os seus sonhos até morrer você desejar,
Na colina do cemitério sob o solo de terror

Com Will Usurpador, Will Usurpador.


Arrepia sua nuca como aranha a deslizar,
Cheirando como um porco que acabaram de matar,
Seus ossos estremecem, sua espinha a chacoalhar,
Enquanto sorri no escuro, aproveitando sua dor.

É Will Usurpador, Will Usurpador!


Abra bem as cortinas e acenda o lampião!
Acorde todo mundo e traga luz de montão!
Sua testa umedecida, em pânico seu coração!
Escondido ele assusta, quer dar fim à sua dor...

Levanta o reposteiro, o escuro é um terror.


Você procura ao redor pelo sorriso malvado
Na pilha de roupa usada, pelo vulto endiabrado,
Pela forma sombria do vilão mal-encarado.
Sua voz é penetrante: “Ó Will Usurpador!”.

Mas é só um calafrio, não Will Usurpador!


É a sombra d’uma árvore projetada na parede
E o rangido da madeira sustentando alguma rede
E o correr de um ratinho, ligeiro porque tem sede.
Fique em paz, fique tranquilo. Não é Will Usurpador.

Castelo de Peet, do caderno de desenho de Kalmar Wingfeather.


Uma renderização da harpa eólica que pertencia a Madia, Rainha de
Anniera. A mesma harpa eólica mais tarde passou para a posse de Leeli
Wingfeather, Donzela da Canção da Ilha Brilhante.
Do caderno de desenho de Kalmar Wingfeather.
Sobre o Autor
Andrew Peterson é um artista e compositor aclamado pela crítica, bem
como autor da premiada Saga Wingfeather. Ele também é o fundador da
The Rabbit Room, uma organização que promove o desenvolvimento de
comunidades por meio de histórias, da arte e da música. Ele e sua esposa,
Jamie, moram em Nashville.

Visite www.andrew-peterson.com para obter mais informações sobre


Andrew, ou www.wingfeathersaga.com para obter mais informações sobre
Kistamos e suas criaturas terrivelmente perigosas.
Notas

Capítulo 1
1 Em Anniera, o segundo filho nascido, não o primeiro, é o herdeiro do trono. O filho mais velho é
um Guardião do Trono, encarregado da honra e responsabilidade de proteger o rei acima de todos
os outros. Embora isso crie muita confusão entre crianças comuns que um dia descobrem que são,
na verdade, a família real vivendo no exílio (veja Nos Limites do Mar Sombrio da Escuridão),
por muitas eras o povo de Anniera achou que era um bom sistema. O rei nunca ficava sem um
protetor, e o Guardião do Trono ocupava um lugar de grande honra no reino.

2 Em Kistamos, o último dia oficial do verão é anunciado pela passagem do fendril solitário, um
pássaro dourado gigante, cuja envergadura lança cidades inteiras em uma emocionante cintilação
de sombra, enquanto circunda o planeta em uma longa espiral ascendente. Quando atinge o polo
norte de Kistamos, hiberna até a primavera e, em seguida, inverte sua jornada.

Capítulo 2
1 Addie Shooster era, de fato, bastante perfumada, pelos padrões humanos. Sua culinária era elogiada
em Glipwood como a melhor de Skree, e quando não cheirava a assado e totatas ou caldeirada de
queijo, tinha o cuidado de aplicar perfume de pétalas de flores em abundantes quantidades ao
pescoço e aos braços. Esse perfume é, provavelmente, a essência à qual o Fang se referia.

2 Joe se lembrou da barganha de Nia Igiby com o falecido Comandante Gnorm, de preparar-lhe
semanalmente um rocambole de vermes. Isso não apenas havia resgatado seus filhos da prisão da
cidade e da Carruagem Negra, mas também lhes dado um certo grau de imunidade perante os
Fangs — que eram preguiçosos demais para cozinhar e que valorizavam essas refeições quase
tanto quanto ouro, joias e assassinatos.

Capítulo 3
1 . Bambolhões! Ai!
2 . Três Assuntos Nobres e Grandiosos: Palavra, Forma e Canção. Algumas pessoas
tolas acreditam que existe um quarto Assunto Nobre e Grandioso, mas esses cientistas estão
terrivelmente enganados.

3 . De Helba Grounce-Miglatobe, uma bem conhecida psicóloga que alegou ter sido
ridicularizada excessivamente quando criança e, como tal, era uma especialista — segundo seu
próprio livro — no campo da “malvadeza e desacatos”.

Capítulo 6
1 Da Criaturapédia de Pembrick: “Evite as ravinas e sorvedouros da Floresta Glipwood a todo custo.
É geralmente sabido que o baratodonte voraz põe sua armadilha em tais lugares. Mas o
baratodonte voraz à espreita, sob as folhas e galhos reunidos no fundo da depressão, é apenas um
dos perigos para os imprudentes exploradores de ravinas. O doce perfume emanado pelo
baratodonte voraz fêmea remete alguns animais a um transe temperbólico e leva-os
irresistivelmente ao baratodonte, à espreita. Não é incomum encontrar, reunida no barranco, uma
considerável quantidade de criaturas letais presas, aguardando o retorno do baratodonte voraz das
profundezas da terra, onde cuida de seus filhotes”.

Capítulo 7
1 Para evitar que a presa escape. Essa é apenas uma das muitas características mortais da vaca-
dentada skreeniana. Veja a ilustração em Nos Limites do Mar Sombrio da Escuridão, página 284.

Capítulo 8
1 Os espinhos do verdugo-espinhento têm pouco veneno. Sua principal função é a de defesa, embora
os verdugos sejam conhecidos por atacar em bando para conseguirem derrubar animais maiores.
O verdugo-espinhento tem, é claro, dentes muito afiados.

Capítulo 17
1 Ó holoré, deita-te baixo
Holoél escuro nas Profundezas
Abaixo da terra você vai
Holoré vai rápido dormir
Levanta novamente holoré agora
Abundante primavera holoél
Torna verde o ramo moribundo
Levanta a rocha onde Yurgen caiu
(Veja o Livro 1, p. 53)

Capítulo 19
1 Eremund foi um Guardião do Trono em 54 da Terceira Época. Quando a Rainha Suprema Nayani,
sua irmã mais nova, foi sequestrada por piratas de Symia, ele passou por muitas provações para
trazê-la de volta. Navegou pelos limites de todos os mapas em busca dos piratas e, anos depois,
retornou com a rainha ao seu lado. Sua coragem era rara, mesmo entre annierenses, e dizia-se que
seus olhos eram dourados e brilhavam no escuro como velas. Vários livros detalhando suas
façanhas estão preservados na Grande Biblioteca do Castelo Rysen. Veja A Eremíada, traduzido
por Hureman Perdus (Symar House Publicações), p. 345.

2 Embora pouco conhecida fora da Ilha Brilhante, Alma Hidronimbo foi uma dos muitos poetas
annierenses cujo trabalho era aclamado como revolucionário porque rimava e seguia uma rígida
forma chamada pentâmetro ba-dum-ba-dum.

3 Para uma amostra de um poema em valês sobre o temido Will Usurpador, veja Apêndices, p. 330.

Capítulo 23
1 Na cultura Marginal, o líder do clã sempre carrega um pequeno item significativo para ele ou ela,
chamado de totem. Se outro Marginal conseguir roubar o totem, ele ou ela torna-se o novo líder
do clã, enquanto permanecer em sua posse. Claro, se um Marginal falhar em uma tentativa de
roubar o totem, o líder do clã é livre para aplicar qualquer punição que julgar apropriada ou
aprazível.

Capítulo 27
1 Muito antes da Grande Guerra, os Marginais e os cavadopolienses haviam feito uma enorme
bagunça, principalmente porque a Dinastia Torr optou por ignorá-los. Sharn, o Torr, fez uma
tentativa de limpar e restaurar a ordem na Margem, mas os Marginais eram lutadores ferozes e,
sem a honra dos soldados, quase impossíveis de derrotar em batalha. Durante anos a guerra foi
travada. Sharn e Urra-Punho, o Rei Marginal, concordaram com uma trégua temporária durante a
Batalha da Curva Ocidental. Pouco depois, Urra-Punho e seus Impetuosos romperam a muralha
do Reduto Ocidental no meio da noite e assassinaram os mais altos escalões do exército Torr —
uma ação desonrosa até mesmo pelos padrões Marginais, mas eficaz. Embora Urra-Punho tenha
perdido a maioria de seus homens, a perda para Sharn e seus soldados foi maior. O Exército de
Torrboro recuou e deixou os cidadãos de Cavadópolis lidarem com a Margem por conta própria.
Veja Uma História do Blapp (Sórdido), de Grindenwuld Hollisra
(Rio Blapp Impressões), p. 401.

2 A cor do leitelho, uma das bebidas favoritas de gatinhos.

Capítulo 30
1 Facas, é claro, eram proibidas.

Capítulo 33
1 Os mapas traziam grandes faixas em branco no extremo oeste de Skree, e ninguém sabia o que
havia à leste das Montanhas Picos-da-Morte. Essas áreas desconhecidas além das bordas dos
mapas eram chamadas de “os lugares além das bordas dos mapas”.

Capítulo 40
1 Veja Livro 1, p. 9.

Capítulo 64
1 Veja Livro 1, p. 53, em que Leeli canta junto com os dragões-marinhos.

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