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Mistério não solucionado

O Que Causa a Gagueira?


Christian Büchel e Martin Sommer
Traduzido por Hugo Silva e revisado por Sandra Merlo

A
gagueira, com sua característica não, de sons e sílabas (figura 1). Essas após lesões em uma grande variedade
interrupção no fluxo verbal, é vacilações na fala não são prontamente de áreas cerebrais (Grant et al., 1999;
conhecida há séculos; os pri- controláveis e podem ser acompanha- Ciabarra et al., 2000).
meiros relatos datam provavelmente das por outros movimentos e por emo- A apresentação clínica da gagueira
dos tempos bíblicos de Moisés, perso- ções de natureza negativa, tais como do desenvolvimento difere daquela
nagem descrito como “lento de fala e medo, embaraço ou irritação (Wingate, verificada na gagueira adquirida. Na
pesado de língua” e que exibia um 1964). Para ser mais exato, a gagueira é primeira, a dificuldade é particular-
comportamento de evitação constante um sintoma, não uma doença; mas o mente predominante no começo da
(Êxodo 4, 10-13). A gagueira ocorre em termo gagueira normalmente é usado palavra ou do sintagma, em palavras
todas as culturas e grupos étnicos para se referir a ambos, desordem e longas ou significativas ou em enunci-
(Andrews et al., 1983; Zimmermann et sintoma. ados sintaticamente mais complexos
al., 1983), embora as taxas de prevalên- A gagueira do desenvolvimento sur- (Karniol, 1995; Natke et al., 2002), e a
cia possam diferir. Na medida em que ge antes da puberdade, geralmente ansiedade associada ao problema e os
muitos dos passos através dos quais entre dois e cinco anos de idade, sem sintomas secundários são mais pro-
produzimos linguagem ainda perma- dano cerebral aparente ou outra causa nunciados (Ringo and Dietrich, 1995).
necem um mistério, distúrbios como a conhecida (“idiopática”). É importante Além disso, em tarefas de leitura repe-
gagueira continuam sendo mal com- fazer a distinção entre esta gagueira do tida, a freqüência da gagueira tende a
preendidos. Contudo, abordagens desenvolvimento persistente (PDS, diminuir (adaptação) e a se manter nas
genéticas e neurobiológicas estão nos acrônimo do inglês persistent develop- mesmas sílabas (consistência). Entre-
fornecendo pistas importantes a respei- mental stuttering), que enfocamos aqui, tanto, a distinção entre ambos os tipos
to das causas do problema e de melho- e a gagueira adquirida. Esta última, de gagueira não é rigorosa. Em crianças
res tratamentos. também chamada de gagueira neuro- com dano cerebral perinatal ou outro
gênica, ocorre após um dano cerebral qualquer, a gagueira é mais freqüente
O que é a gagueira? bem definido, ocasionado por um do que em outras crianças da mesma
A gagueira é uma interrupção na flu- derrame, uma hemorragia intracerebral idade, e ambos os tipos de gagueira
ência verbal caracterizada por repeti- ou um traumatismo craniano. É um podem se sobrepor (Andrews et al.,
ções ou prolongamentos, audíveis ou fenômeno raro que tem sido observado 1983).

Quem é atingido?
A gagueira do desenvolvimento persis-
tente (PDS) é um distúrbio muito fre-
qüente; aproximadamente 1% da popu-

Copyright: © 2004 Büchel e Sommer. Este é um


artigo de acesso livre distribuído sob os termos
da Creative Commons Attribution License, que
permite uso irrestrito, distribuição e reprodução
em quaisquer veículos de comunicação, desde
que seja devidamente citada a fonte original do
trabalho.

Abreviações: SNC, sistema nervoso central; DTI,


imageamento vetorial por tensor de difusão
(diffusion tensor imaging); fMRI, imageamento
por ressonância magnética funcional (functional
magnetic resonance imaging); MEG, magnetoen-
cefalografia; MRI, imageamento por ressonância
magnética; PDS, gagueira do desenvolvimento
persistente (persistent developmental stutte-
ring); PET, tomografia por emissão de pósitrons
(positron emission tomography)

Christian Büchel trabalha no laboratório NeuroI-


Figura 1. Formas de onda e espectrograma da fala de um mesmo indivíduo do sexo mas- mage Nord no Departmento de Neurologia da
culino ao pronunciar “PLoS Biology” com e sem gagueira. A coluna da esquerda mostra as Universidade de Hamburgo, em Hamburgo,
formas de onda (amplitude em função do tempo); a coluna da direita mostra a plotagem tempo- Alemanha. Martin Sommer trabalha no Depart-
mento de Neurofisiologia Clínica da Universidade
freqüência utilizando uma decomposição de ondaletas desses dados. Na parte de cima, a fala é
de Göttingen, em Göttingen, Alemanha. E-mail:
fluente; na parte de baixo, as típicas repetições da gagueira ocorrem na letra “B” de “Biologia”. buechel@uke.uni-hamburg.de (CB)
Quatro repetições podem ser claramente identificadas (setas) no espectrograma (embaixo à
direita). DOI: 10.1371/journal.pbio.0020046

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Figura 2. Dois diferentes aparelhos destinados à prevenção e cura da gagueira [N.T.: numa época em que as causas do distúrbio ainda
eram atribuídas a anormalidades do aparelho fonador]. À esquerda, um dispositivo desenvolvido por Gardner, em 1899, para adicionar
artificialmente mais peso sobre a língua (número de patente nos EUA: 625.879). À direita, um aparato mais complexo inventado por Peate, em
1912 (número de patente nos EUA: 1.030.964).

lação sofre desta condição. Uma quan- de 3 ou 4 homens para cada mulher causa do distúrbio foi atribuída a anor-
tidade estimada em 3 milhões de pes- afetada na idade adulta. Não está claro malidades no aparelho fonador. Assim,
soas, só nos EUA, e 55 milhões, em até que ponto esta recuperação é es- o tratamento estava baseado em uma
todo o mundo, possuem o problema. A pontânea ou induzida por terapias extensa cirurgia “plástica” de remode-
taxa de prevalência é similar em todas precoces de fala. Também não existe lação do aparelho fonador (boca e
as classes sociais. Em muitos casos, a nenhum método confiável que nos garganta), levando freqüentemente a
gagueira prejudica severamente a permita prever se uma criança afetada mutilações e incapacidades adicionais.
capacidade de o indivíduo se comuni- irá melhorar (Yairi and Ambrose, Outras opções de tratamento eram
car, levando a conseqüências socioeco- 1999). pesos amarrados à língua ou a coloca-
nômicas devastadoras. Contudo, há A presença de diversos membros afe- ção de próteses ajustáveis à boca (Katz,
também muitos gagos que, a despeito tados na mesma família sugere a exis- 1977) (figura 2). No século 20, acredi-
de seu distúrbio, tornam-se pessoas tência de um componente hereditário. tou-se inicialmente que a gagueira era
bem-sucedidas e até famosas. Por A taxa de concordância é de cerca de uma desordem de natureza psicogêni-
exemplo, Winston Churchill tinha de 70% para gêmeos monozigóticos (An- ca. Como conseqüência, abordagens
ensaiar todos os seus discursos públi- drews et al., 1983; Felsenfeld et al., psicoanalíticas e terapias comporta-
cos até a perfeição e ainda ensaiava 2000), cerca de 30% para gêmeos dizi- mentais foram aplicadas para solucio-
respostas para possíveis perguntas e góticos (Andrews et al., 1983; Felsen- nar os possíveis conflitos neuróticos
críticas, a fim de evitar a gagueira. feld et al., 2000), e 18% para irmãos do (Plankers, 1999). Contudo, estudos
Charles Darwin também gaguejava; mesmo sexo (Andrews et al., 1983). baseados na análise de traços de perso-
curiosamente, seu avô, Erasmus Dar- Dada a alta taxa de remissão, é bem nalidade e das interações entre pais e
win, sofria do mesmo problema, refor- possível que o conjunto de anormali- filhos não detectaram padrões psicoló-
çando a suspeita de que a gagueira se dades observadas em adultos reflita na gicos consistentes que pudessem ser
concentra em determinadas famílias e verdade um processo prejudicado de associados à gagueira (Andrews et al.,
provavelmente possui uma base gené- recuperação, ao invés de serem as 1983).
tica. causas primitivas do problema (An- Outras teorias consideram a gagueira
A incidência da PDS está em torno de drews et al., 1983). como um comportamento aprendido,
5%, e sua taxa de recuperação é de até resultante de estímulos externos desfa-
80%, resultando, portanto, em uma A mudança nas teorias voráveis, normalmente reações paren-
prevalência de 1% na população adul- Ao longo dos séculos, uma variedade tais negativas a episódios normais de
ta. Como a taxa de recuperação é con- de teorias sobre a origem da gagueira, disfluência na criança (Johnson, 1955).
sideravelmente maior em meninas do e suas respectivas abordagens terapêu- Apesar de este modelo ter falhado na
que em meninos, a razão homem / ticas, têm sido propostas. Na Grécia tentativa de explicar os sintomas essen-
mulher aumenta durante a infância e Antiga, as teorias referiam-se à aspere- ciais da gagueira (Zimmermann et al.,
adolescência até alcançar a proporção za ou secura da língua. No século 19, a 1983), pode ser útil para explicar os

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sintomas secundários do problema sensório-motora não produziram resul- uma primeira linha de tratamento para
(Andrews et al., 1983); nesse sentido, tados consistentes (Andrews et al., a gagueira.
intervenções precoces dirigidas aos 1983). Alterações no feedback auditivo
pais podem ajudar a prevenir a persis- (p.ex., retroalimentação auditiva atra- Lições tiradas a partir de técnicas
tência do problema na idade adulta sada ou com alteração de freqüência), de imageamento cerebral
(Onslow et al., 2001). A severidade da várias outras formas de estimulação Dada a existência de relatos sobre
PDS é claramente modulada pelo esta- auditiva (p.ex., leitura em coro) e mu- gagueira adquirida após trauma cere-
do de excitação, nervosismo e outros danças do ritmo da fala (p.ex., fala bral (Grant et al., 1999; Ciabarra et al.,
fatores (Andrews et al., 1983). Isto tem silabada) produzem uma redução 2000), é possível cogitar que a simples
levado a um modelo bifatorial da ga- imediata e significativa na freqüência análise das lesões (isto é, investigar o
gueira. Acredita-se que o primeiro fator da gagueira, o que tem suscitado sus- ponto comum de todas essas lesões que
seja a causa basilar da desordem, con- peitas de um processamento sensório- levaram à gagueira) pudesse ajudar na
sistindo muito provavelmente numa auditivo prejudicado ou da falta de um localização de uma anormalidade
anormalidade estrutural ou funcional mecanismo eficiente de sincronização específica responsável pelo problema.
do sistema nervoso central (SNC), interna em indivíduos gagos (Lee, 1951; Infelizmente, as lesões que levam à
enquanto o segundo fator reforça o Brady and Berson, 1975; Hall and Jer- gagueira neurogênica são difusas e não
primeiro, especialmente através da ger, 1978; Salmelin et al., 1998). Outros parecem seguir um padrão evidente de
aprendizagem de rituais de antecipa- grupos de pesquisa também reporta- sobreposição. Até mesmo o contrário
ção e evitação. Contudo, deve-se ter ram um início atrasado ou descoorde- tem sido observado: “cura” da gaguei-
cuidado ao afirmar que este último nado em padrões articulatórios com- ra após derrame talâmico em um paci-
fator é de natureza “psicogênica” ou plexos em indivíduos gagos (Caruso et ente (Muroi et al., 1999).
“psicológica”, porque a neurociência al., 1988; van Lieshout et al., 1993). A Em pessoas fluentes, o hemisfério
tem mostrado que a aprendizagem não suposição de que a gagueira poderia esquerdo, normalmente dominante
é um processo simplesmente “psicogê- ser uma forma de distonia – contrações para funções lingüísticas, fica mais
nico”, mas sim algo que leva a mudan- musculares involuntárias produzidas ativo durante tarefas que envolvam
ças estruturais mensuráveis na arquite- pelo SNC –, específica para a produção fala e linguagem. Em contrapartida,
tura cerebral (Kandel and O’Dell, 1992). de linguagem (Kiziltan and Akalin, estudos pioneiros sobre lateralização
Em alguns casos, as situações de aler- 1996), não foi corroborada por um através de EEG já sugeriam um padrão
ta na verdade atuam como estímulos estudo sobre excitabilidade do córtex anormal de dominância hemisférica em
capazes de atenuar a gagueira, ao invés motor (Sommer et al., 2003). gagos (Moore and Haynes, 1980). Com
de torná-la pior. Conseqüentemente, A neuroquímica, por outro lado, po- o advento de outras técnicas não-
alguns gagos famosos têm “tratado” de estabelecer relações entre a gagueira invasivas de imageamento cerebral,
sua gagueira por meio da exposição e desordens relacionadas a uma rede tais como a tomografia por emissão de
proposital a essas situações. É o caso do de estruturas cerebrais envolvidas no pósitrons (PET) e a ressonância magné-
ator americano Bruce Willis, que come- controle do movimento, os núcleos da tica funcional (fMRI), tornou-se possí-
çou a gaguejar aos oito anos de idade. base. Um aumento na concentração do vel visualizar a atividade cerebral de
Ele relata que, ao entrar para um grupo neurotransmissor dopamina tem sido gagos e comparar os padrões obtidos
de teatro no ensino médio, sua gaguei- associado a distúrbios de movimento, àqueles de indivíduos fluentes do
ra subitamente desapareceu diante da tais como a síndrome de Tourette (Co- grupo controle. Seguindo a pista dei-
platéia. mings et al., 1996; Abwender et al., xada por teorias consagradas que rela-
1998), que é uma desordem neurológi- cionavam a gagueira a um desequilí-
A gagueira é um distúrbio ca caracterizada por emissões vocais e brio na assimetria hemisférica normal
sensorial, motor, ou cognitivo? movimentos corporais involuntários e (Travis, 1978; Moore and Haynes,
Pessoas que gaguejam, como grupo, repetitivos (tiques vocais e motores). 1980), um importante estudo baseado
diferem dos seus pares fluentes por Em conformidade com essa hipótese, em PET (Fox et al., 1996) constatou
apresentarem, na média, uma pontua- assim como acontece com a síndrome uma ativação aumentada do hemisfério
ção levemente mais baixa em testes de de Tourette, a gagueira também é direito quando portadores de PDS
inteligência, tanto em tarefas verbais suavizada com a administração de eram solicitados a realizar uma deter-
quanto em tarefas não-verbais, e por medicação antidopaminérgica, ou seja, minada tarefa de linguagem. Outro
apresentarem um certo atraso no de- neurolépticos como o haloperidol, a estudo também utilizando PET (Braun
senvolvimento da fala (Andrews et al., risperidona e a olanzapina (Brady, et al., 1997) confirmou este resultado,
1983; Paden et al., 1999). Contudo, as 1991; Lavid et al., 1999; Maguire et al., mas adicionou um importante detalhe
desvantagens nos escores de inteligên- 2000). Ao mesmo tempo, relatos suge- ao estudo prévio: Braun e seus parcei-
cia precisam ser interpretadas cuidado- rem que os sintomas da gagueira são ros de pesquisa descobriram que o
samente, haja vista que os gagos ge- acentuados ou até mesmo surgem a hemisfério esquerdo estava mais ativo
ralmente enfrentam dificuldades para partir de um tratamento que envolva durante os momentos de produção de
se ajustar ao ambiente escolar, o que medicação dopaminérgica (Koller, fala gaguejada, enquanto a ativação do
pode resultar numa defasagem de 1983; Anderson et al., 1999; Shahed and hemisfério direito estava mais correla-
vários meses (Andrews et al., 1983). Os Jankovic, 2001). Conseqüentemente, cionada aos momentos de fala fluente.
sintomas associados incluem atrasos uma hiperatividade no sistema neuro- Assim, os autores concluíram que a
nas tarefas que requerem resposta transmissor dopaminérgico tem sido disfunção primária está localizada no
vocal (Peters et al., 1989) e também em correlacionada à gagueira e parece hemisfério esquerdo e que a hiperati-
tarefas cronometradas de habilidade contribuir para sua manifestação. Em- vação do hemisfério direito pode não
bimanual relativamente complexas, bora os antagonistas da dopamina ser a causa da gagueira, mas na verda-
como inserir uma linha no buraco de tenham um efeito positivo sobre a de um mecanismo compensatório. Um
uma agulha (Vaughn and Webster, gagueira, todos eles também possuem processo compensatório similar tem
1989), ao mesmo tempo em que muitos o risco de efeitos colaterais, o que ainda sido observado após derrames cere-
outros estudos sobre tempos de reação os impede de serem utilizados como brais que resultam em afasia, quando o

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hemisfério direito intacto tenta com-
pensar no mínimo parcialmente a
perda de função do hemisfério oposto
(Weiller et al., 1995). A hiperativação
do hemisfério direito durante produção
de fala fluente tem sido confirmada
mais recentemente por meio de fMRI
(Neumann et al., 2003).
PET e fMRI têm alta resolução espa-
cial; porém, em razão de determinarem
apenas de forma indireta a taxa de
atividade cerebral através do fluxo
sangüíneo, a precisão de seus dados
com relação ao instante exato de ocor-
rência do fenômeno investigado é mais
limitada. A magnetoencefalografia
(MEG) é um método mais apropriado
quando se trata de examinar uma
seqüência de respostas cerebrais de
curta duração e minimamente espaça-
das no tempo. Conseqüentemente, a
MEG foi usada para investigar gagos e
Figura 3. Diminuição da coesão de feixes nervosos corticais na região do opérculo
indivíduos fluentes do grupo controle
rolândico esquerdo. As características de difusão do grupo com gagueira do desenvolvimen-
durante uma tarefa de leitura de pala- to persistente e do grupo controle foram analisadas e comparadas através da técnica de
vras isoladas (Salmelin et al., 2000). Um imageamento chamada DTI. Um ponto vermelho indica a localização da máxima diferença
importante resultado obtido a partir em planos de secção coronal (canto superior esquerdo), axial (canto superior direito) e sagital
deste estudo foi que os sujeitos gagos (embaixo).
conseguiram ler a maioria das palavras
isoladas fluentemente. Contudo, os adição a esses dados, os pesquisadores ze a rápida integração sensório-motora
dados mostraram também uma dife- também relataram a presença de ano- necessária para a produção de fala
rença bastante evidente entre os dois malias no padrão de girificação do fluente. Esta teoria também explica a
grupos: enquanto os indivíduos fluen- cérebro. A girificação é um procedi- razão pela qual o padrão temporal
tes ativaram áreas frontais do hemisfé- mento bastante complexo de desenvol- normal de ativação entre o córtex pré-
rio esquerdo relacionadas ao planeja- vimento cerebral, e a ocorrência de motor e o motor está dessincronizado
mento da linguagem antes de aciona- anormalidades neste processo é um em indivíduos gagos (Salmelin et al.,
rem as áreas centrais envolvidas na indício da presença de distúrbios do 2000) e por que, como conseqüência, as
execução da fala, este padrão estava desenvolvimento. áreas de linguagem do hemisfério
ausente, ou até mesmo invertido, em Outro estudo recente investigou a direito tentam intervir para compensar
gagos. Este foi o primeiro estudo a hipótese de que uma conexão cortical esta deficiência (Fox et al., 1996).
mostrar diretamente uma correlação deficiente poderia ser a razão subjacen- Esses novos dados também fornecem
neuronal da hipotética dificuldade de te às perturbações no sincronismo entre uma teoria para explicar o mecanismo
temporalização em gagos (Van Riper, as regiões frontal e central observadas pelo qual as manobras comuns de
1982). nos estudos de MEG (figura 3). Usando indução de fluência – tais como ler em
Desse modo, os estudos de neuroi- uma nova técnica de imageamento por coro, cantar ou ler com o auxílio de um
magística funcional revelaram dois ressonância magnética, a DTI (image- metrônomo – conseguem reduzir a
importantes fatos: (i) em gagos, o he- amento vetorial por tensor de difusão), gagueira instantaneamente. Todos
misfério direito parece estar hiperati- que permite avaliar a estrutura íntima esses procedimentos envolvem um
vado; e (ii) parece haver um problema da substância branca cerebral (análise sinal externo (isto é, outros leitores
de temporalização entre as regiões ultraestrutural de feixes nervosos), os lendo em uníssono, a melodia da músi-
corticais frontal e central no hemisfério pesquisadores depararam com uma ca que está sendo entoada, e o ritmo
esquerdo. O último fato também se área que exibia uma coesão nitidamen- constante do metrônomo). Todos esses
ajusta a várias outras observações que te diminuída na constituição das fibras sinais externos alimentam o “sistema
dão conta de que indivíduos gagos nervosas do opérculo rolândico es- de produção de fala” através do córtex
possuem pequenas anormalidades em querdo (Sommer et al., 2002). Esta auditivo. É possível, portanto, que este
tarefas de coordenação com um certo estrutura é adjacente à representação sinal de disparo exterior alcance as
grau de complexidade, sugerindo que motora primária da língua, da laringe e áreas cerebrais centrais responsáveis
o problema subjacente está localizado da faringe (Martin et al., 2001) e ao pela produção da fala, contornando a
em torno de áreas cerebrais motoras e feixe arqueado inferior; ela liga áreas desconexão frontocentral e reabilitando
áreas pré-motoras associadas. do córtex frontal e temporal encarrega- a sincronização dos centros de proces-
Há anomalias estruturais paralelas às das do processamento da linguagem, samento cujas atividades estavam mal
anomalias funcionais descritas? O integrando-as numa espécie de sistema integradas. Em termos simples, esses
primeiro estudo anatômico a investigar de linguagem têmporo-frontal respon- estímulos externos podem ser vistos
esta questão usou aparelhos de resso- sável pela produção e percepção de como uma espécie de marca-passo.
nância magnética de alta resolução que palavras (Price et al., 1996). É portanto
detectaram anormalidades em áreas concebível admitir que uma transmis- Os rumos futuros da pesquisa
cerebrais relacionadas às funções de são perturbada de impulsos nervosos Há numerosas questões que precisam
fala e linguagem (áreas de Broca e através das fibras que atravessam a ser melhor esclarecidas na gagueira. Se
Wernicke) (Foundas et al., 2001). Em região do opérculo rolândico inviabili- mudanças estruturais no cérebro cau-

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sam a PDS, a questão chave é saber meninas a não se recuperar espontane- simples de herança. Atualmente, um
quando esta lesão surge. Embora os amente da gagueira infantil, é tentador modelo multifatorial para a transmis-
sintomas possam diferir um pouco, especular que todos aqueles que mani- são genética é mais admissível. Além
seria interessante descobrir até que festam gagueira nesta fase desenvol- disso, está pouco claro se um determi-
ponto a gagueira transitória (que afeta vam uma leve anormalidade estrutural, nado genótipo leva inevitavelmente à
cerca de 3% a 5% das crianças) está mas apenas os que conseguem utilizar gagueira ou se apenas representa um
relacionada à gagueira do desenvolvi- o hemisfério direito para as funções de fator de risco, e que outros fatores
mento persistente. É possível que todas linguagem tornam-se fluentes. A late- ambientais são necessários para desen-
as crianças que apresentem sinais de ralização da linguagem é menos pro- volver PDS. Outra vez, esta questão
gagueira desenvolvam nesse estágio nunciada nas mulheres (McGlone, pode ser respondida num futuro bem
uma anormalidade estrutural, mas ela 1980) e pode, portanto, estar relaciona- próximo, pois o Instituto Nacional de
é de caráter apenas provisório naqueles da ao fato de as mulheres apresentarem Saúde nos EUA (NIH – National Institu-
que se tornam indivíduos fluentes. Se uma taxa de incidência significativa- tes of Health) completou recentemente a
este for o caso, é ainda mais importante mente mais baixa de PDS. Mais uma fase de coleta de dados de uma ampla
que a intervenção terapêutica comece vez, um estudo que acompanhe o amostra de indivíduos acometidos para
tão cedo quanto possível, a fim de que desenvolvimento de crianças que ga- análise de linkage genético. J
ela seja mais efetiva. A resposta a esta guejam comparando-o ao desenvolvi-
questão pode vir através da metodolo- mento de outras crianças fluentes e,
gia atual já disponível, isto é, por meio ainda mais importante, estudos longi-
de técnicas de imageamento não inva- tudinais dentro desse grupo poderiam
sivo do cérebro, usando MRI. responder essas questões.
© PLoS Biology. Traduzido por Hugo Silva e revisado
Uma vez que garotos são cerca de É pouco provável que a gagueira seja por Sandra Merlo, com a devida permissão.
quatro vezes mais propensos do que transmitida por meio de um padrão Disponível on-line em www.gagueira.org.br

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