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Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles Massimo Canevacci

Massimo Canevacci

Título original
Culture eXtreme: mutazioni giovanili tra i corpi dcllc I11clropoli

Tradução dos subcapftulos "Cllerokee" e "K - ncardcatll c.xpcricncc"


Jaime Clasen

Prepamção de originais e revisão de provas


Daniel SeidI
Culturas eXtremas
Projeto gráfico e gerência de produção
Maria Gahriela Delgado Mutações juvenis nos corpos das metrópoles
Imagem da capa
Manikins-corpse, performance dos Autoconslrulores, Roma, 1996

Imagens
p. 6 - Ciberolho; p. 11- Mutoid Waste Company, Roma, Villaggio Globale;
p. 12 - Kerosene: Auto-retrato; p. 40 - Mutek; p. 56 - Kerosene: Cal-girl;
p. 158 - Mazinga, Roma, 1993: Rave ex Snia Viscosa;
p. 187 - Berlim: squatter descansando

CIP-Brasil. Catalogação·na·fonte Tradução


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Alba Olmi ,
'C
M369c ,":".~~.
Canevacci, Massimo, 1942- ~.

Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles I ",


Massimo Canevacci; tradução de Alba Olmi. - Rio de Janeiro: DP&A, \ !
)'JIC
2005.
20Dp.; i1.; 14 x 21cm
Tradução de: Culture eXtreme: mutazioni giovanili tra i corpi delle
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metropolL "') \ C
Inclui bibliografia
ISBN 85-7490-371-X
1. Juventude urbana -Itália. 2. Itâlia - Usos e costumes. 3. Itália-
c ,~!
/.-
.--

Condições sociais - 1994. l. Título.


CDD 305.230945
CDU 316.346.32-053.6 -.!-
DP&A
editora.
IC da tradução DP&A editora Ltda. Sumário

Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer IntroduçãolLoop - FFWD ~~ 7


meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico,
gráfico, microfilmagem etc. Estas proibições aplicam-se capitulo I Das contra culturas às culturas intcnninávcis 13
também às características gráficas e/ou editoriais. Morte da contracultura, 13 Fim das subculturas, 16 Os jovens
entre metrópole, mídia e consumo, 20 Os jovens intermináveis, 28
A violação dos direitos autorais é punível como crime
(Código Penal arl. 184 e §§; Lei 6.895/80).
Zona em trânsito 41
com busca, apreensão e indenizações diversas Do K ao X, 41 Do extremo ao eXtremo, 45
(Lei 9.610/98 - Lei dos Direitos Autorais -
arts. 122, 123, 124 e 126). capitulo II Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 57
TAZ - Rewind '4'4,57 Interzonas,60 Mercadorias tatuadas, 62
Fucking Barbies, 65 Fikafutura, 70 Corpos inorgãnieos, 73
Torctta,7S Torazine,81 Rave,90 Fluid Video Crcw, 96
LutherBlissett,100 Anarcociclistas,108 Dceodcr,l12 Link,121
Piratarias de Porta, 124 Squatters,128 Chcrokcc, 130
Brain machinc, 136 Fin*Tcehklan,138
hup://www.kyuzz.orglordanomade, 147
K - near death experienee, 153

capitulo III Conceitos líquidos 159


Aporia, 160 Skullpturc, 162 PolEitics, 163 Diáspora, 164
E-spaec, 165 Nonordcr, 168 Anomia, 170 Mcdiascapc, 171
Amnésia, 173 Liquid days, 176 Flamc-wing, 178
lnconcretc, 180 X-seapc, 181
Loop :e-space .. x-scape: '4'4 ~~, 182

Bibliografia 189
DP&A editora
Rua Joaquim Silva, 98 - 2U andar - Lapa Miscelânea 195
CEP 20241-110 - RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL
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Impresso no Brasil
2005
IntroduçãolLoop
FFWD ~~

Este ensaio nasce de uma grande insatisfação. As pesquisas jorna-


lísticas, as pesquisas quantitativas, as abordagens generalistas, as
visões prescritivas não conseguem dar, em minha opinião, o l11ultis-
sentido das perspectivas emitidas por aquelas que se definem "culturas
juvenis". Elas desenham constelações móveis, desordenadas, de faces
múltiplas. Multicodes. Trata-se de fragmentos e de fraturas cheias de
significados líquidos: um sentido fluido alterado é posto em ação por
um panorama contextual e metodológico no qual não é mais possível
organizar, com tipologias ou tabelas, um suposto "objeto" da pesquisa.
Produziu-se uma fratura disjuntiva nas narrativas dessas culturas que
aqui se tentará abordar por perspectivas atípicas, talvez pouco rigo-
rosas, por vezes euróricas, sempre delicadas-descentralizadas-dialógi-
caso E multinarrativas.
a) O contexto panorâmico pelo qual passam as culturas juvenis
assume a metrópole comunicativa e imaterial como o novo sujeito
plural, diferenciado e móvel. Um humor que corrompeu o conceito
tradicional de sociedade. Inútil e deprimido, esse conceito não con-
segue mais dar o sentido, a pulsação, o ritmo da contemporaneidade.
Como escreveu J. Shirley num romance antecipatório, City come a-
walhín' fazendo desaparecer a sociedade assim organizada, dualista,
sintética, produtiva, moderna, política. A última não consegue de-
senhar a anatomia da história presente e menos ainda a anatomia de
sua transrormação revolucionária. Enquanto o caminho da metrópole,
iniciado no século XIX, irrompe no cenário já interpretado pelo social
(com seus atores asseados, os papéis fixos, o status declarado) e ali se
inserem suas representações per formativas até deprimir qualquer
tradição.
Na metrópole - em seus módulos diferenciados e escorregadios-
difunde-se o consumo, a comunicação, a cultura; os estilos, o híbrido,
a montagem: patchwork girl e mosaic mano

DP&A editora
8
Cultllrils eXtremas Introduç5.o/Loop 9

b) O método é desafiado por esses contextos panoramáticos. É


aqui é rompido; o que resta - fragmentos líquidos - cruza-se e afasta-se
desafiado tanto na busca quanto na realização. O método é uma gaiola
sem possibilidade alguma de reconstruir o quebra-cabeça perspectiva
enferrujada que pré-criou e encerrou seus sujeitos, organizando-os em
do social.
objetos puros dos quais extrair regras, leis, previsões, tipologias, pres-
crições, tratamentos. Contra tudo isso, eu quis descentralizar o mé- ***
todo, multiplicá-lo em seu próprio agir, construÍ-lo e diferenciá_lo ao o texto é articulado em três partes:
longo de narrativas assimétricas: assumir como irredutíveis sujeitos, - A primeira busca redefinir os cenários múltiplos dentro dos
em cada seu momento, os protagonistas das culturas juvenis eXtremas. quais se colocam os fragmentos juvenis contemporâneos; contra qual-
Contrariamente à tradição socioantropológica, são as zonas limüro- quer tradição continuísta, entretecem-se os fios que eliminam todo re-
fes, os espaços vazios, os desafios panoramáticos, os atraveSSélmcntos síduo conceitual de subcultura ou de contracultura, e propõe-se o ce-
que me interessam.
nário múltiplo das culturas intermináveis. Ou melhor, eX-terminadas:
Aqui se reivindica uma espol1taneidade metodológica polifônica que condições juvenis e produções culturais e comunicacionais não são
vai de encontro a todo rigor formal monológico, a toda e qualquer tennil1áveis. Por isso elas são intermináveis, sem fim, infinitas, sem li-
moral holística pensativa, a toda e qualquer implacável estatística. Ou mites.
então, para sermos mais exatos, minha metodologia é o gozo da dife- Entretanto, nem todas as culturas juvenis são eXtremas. Aliás, gos-
rença.
taria de esclarecer logo as diferenças entre uma visão do extremo como
Recuso-me explicitamente a elaborar tipologias que serVem para a totalmente interna aos lugares do domínio e de sua reprodução territo-
banalização resumitiva e rígida. Rótulos da planície e do enquadra- rializada e seus visares do eXtremo que produzem temporárias dcsterri-
mento: a hard-techno, a bad grrrl etc. A aliança Upológica entre soció- torializações.
logos/antropólogos e jornalistas constituiu guetos conceituais contra a - A segunda paTle é um excursus multi narrativo entre um defiuir
mudança dos paradigmas, obrigados somente a "fixar" e "uniformi_ de interzonas nas quais se experimenta o eXtremo intennilIcível. Há
zar" aquilo que é plural, Ouido, cambiante. muitos anos venho freqüentando essas zonas - em primeiro lugar, para
Tipologias e taxonomias estão exauridas. Não está inscrito no esta- meu prazer. Talvez para a parte interminável de minha condição/per-
tuto de ferro das ciências sociais que se devem reproduzir essas gaio- cepção juvenil. Foi-me dada uma extraordinária possibilidade de en-
las. E se no estatuto epistemológico de sociologias/antropologias hou- contrar, ouvir, olhar e dialogar com muitos jovens estudantes que
ver a elaboração de modelos (patterns), eu não os seguirei. A viagem constituíram as bases móveis das quais aprender e satisfazer uma
aqui empreendida é de outro lipo. Não satisfará nenhum sistematiza_ minha curiosidade excessiva, talvez demasiado entusiasta, sempre par-
dor, nem classificações ou comparações. O objetivo explícito é o de cial. O menos possível institucional. Nunca "científica", instrumento
aplicar uma metodologia das diferel1ças, a fil11 de acentuar os traços de para obter financiamentos, fazer carreira, falar "em nome de".
dcsordenação das produções juvenis intermináveis. Repentinamente, encontrei-me diante de uma quantidade imensa
Não existe Uma visão unitária e global das culturas juvenis que de narrativas, saberes, fiyers, músicas, emoções, comunicações Oui-
seja passível de resumir a Um número, a um código ou a uma receita. das. E decidi que tentaria contar algumas dessas formações comunica-
A síntese é o instrumento conceitual de ordem, nascido da pólis, que cionais, utilizando estilos diferenciados e de facetas diferentes. As
10 Cultums eXtremas

narrativas englobam e envolvem apenas algumas entidades que acen-


deram minha paixão cognitiva, embora de formas diferentes, ou tal-
vez com as quais soube ou pude relacionar-me melhor. A narrativa, de
rato, dialoga com o sujeito outro, "percebe" -o.
- Na terceira parte eu poderia tcr escolhido realizar conexões, fazer
comparações, genealogias e tipologias entre as culturas eXtremas; pelo
contrário, minha escolha foi diferente: todo o texto se baseia numa
acentuação das diferenças. Conseqüentemente, pensei em desenvolver
esta última parte de forma a torná'-la estridente em relação às ante-
riores, por meio da emergência de conceitos líquidos: tensões que
conectam as interzonas eXtremas (as correntes diferenciadas entre si
das culturas intermináveis) e alguns exploradores de sentido (artistas
diaspóricos, arquitetos dissonantes, pesquisadoras pós-coloniais,
etnógrafos anêmicos, filósofos desviados etc.).
Culturas intermináveis, interzonas eXtremas, conceitos líquidos: no
decorrer dessas três diferenças, o texto se articula, se constrói e deflui.
Sem uma relação dialógica constante com as muitas subjetividades
que são aqui apresentadas, este texto não seria sequer imagináveL A
todas essas pessoas multivíduas é dedicado este livro, e de qualquer i

~
maneira a elas é dirigido meu agradecimento eXtremo. Gostaria que .
..
esta publicação pudesse favorecer um salto temporal em direção a
produções experimentais e intermináveis. .,.
I .
....... <.
Apesar de tudo, sinto o desejo de revelar duas entities que acompa-
nharam desde o início este livro, lido e inclusive criticado duramente !;
e, enfim, tornado possível. Sem elas, ele não teria nutuado. Ambas-
em sua diversidade - contribuíram para inflamar e alterar o texto. As I
chamas e as alterações se disseminaram por todo lugar, e justamente
através dessas duas entilies - que tentaram resfriar alguns entusiasmos
meus, por vezes demasiado fáceis, e certas instâncias talvez demasiado
eufóricas - o texto pôde encontrar uma solução parcial. A elas vai um
pensamento final: líquido e interminável, naturalmente. ..
capítulo I

Das contraculturas às culturas intermináveis

Morte da contracultura
Já faz tempo que a "coisa" movimenta energia,
L-------- --~---~ transforma o pensamento em ação, vive a um
metro de distãncia por interesses e objetivos co-
muns. A "coisa" entcnclida como MULTICONNI::CTlON
de pessoas que - misturando suas prôprias ex-
periências realizadas nos últimos anos com obje-
tivos como música, livre expressão criativa, au-
toproduções, performances - deram vida a uma
única força determinada cúmplice e consciente
de sua complexidade. Precisamos concentrar e
não dispersar em 7 hectares nossa força que, em
algum estranho jogo de cruzamentos, unindo-
se, cria. Esta área nos dá oxigênio e, parece-nos,
merece a vida. Nosso passo parou aqui.
FIWTECHKLAN INFlNITEK'DESIRE

\ A expressão "contracultura" nasce pelo final dos anos 1960 e mor-


re no início dos 1980. O prefixo "contra" atestava a dimensão da
oposição que as novas culturas juvenis dirigiam à cultura dominante
ou hegemônica. Ser contra significava que, antes de qualquer possi-
bilidade de falar em cultura, aliás, ainda antes de chegar ao termo
"cultura", era preciso ser antagonista, opositor. O prefixo não era Ca-
sual: enfatizava também lexicologicamente um antes que informava
tudo o que vinha depois. Por isso o duplo sentido do vocábulo. Por um
lado, era possível produzir cultura somente se se declarasse, preven-
tiva e publicamente, contra; era, pois, necessário postar-se contra a
cultura dominante, não só contra os valores, os estilos de vida, as vi-
sões de mundo ao poder, mas também contra a cultura intelectual
dominante (a filosofia, a religião, a arte ... ). Por outro lado, esse contra

T"\D.C ... A nrl;t~~n


14 Culturas eXtremas Das cOnlraculturas às culturas intermináveis 15

inicial não era mais suficiente e empurrava em direção a um para, ou é fazer passar como pertencendo à "natureza-das-coisas" ou ao "gê-
seja, em direção a projetualidades afirmativas, práticas, cotidianas, de nero-humano" interesses brutos que, ao contrário, são parciais: de
repensar a cultura em termos de total e radical diferença. urna burguesia masculina, adulta e branca. Por essa razão a função da
Dentro do conceito de contracultura transita-se, portanto, de uma universidade - e depois também a da mídia - caracteriza-se como
oposição radical contra alguma coisa dominante, em relação a pro- adestramento ao papel, como pedagogia que reproduz e atualiza essa
postas criativas) para algo totalmente distinto. Contra a cultura do po- cultura transformada em ideologia.
der e para as culturas da revolLa, para a transformação do mundo, para Todo esse modelo não funciona mais já faz tempo. Um processo ir-
acender um processo revolucionário nem tanto na estrutura socioeco- resistível, culminado nos anos 1990, dissolveu qualquer possibilidade
nõrnica, mas, sobretudo, no cruzamento de novas formas de pensar e de uma cultura dominante. A clássica dicotomia cultura hegemônica/
velhas ideologias. culturas subalternas (que fez com que antropólogos gramscianos,
As contraculturas se caracterizam por uma abordagem contrária à empenhados em contrastar qualquer inovação conflitiva nascida nos
ortodoxia marxista, hegemônica não somente na URSS ou nos partidos anos 1960, escrevessem uma infinidade de textos) exauriu-se definiti-
"irmãos", mas também em grande parte nos grupos revolucionários vamente. Fruto cultural da dialética do século xx, essa dicotomia
que nasciam na época; para os sujeitos contraculturais, não era a es- afunda como um Titanic com o fim de toda cultura - inclusive domi-
trutura econõmica que determinava o ser ou a consciência (muito me- nante - quando se apresenta como universal, quando se transfigura em
nos a do partido), mas era possível, mesmo nas condições do capita- ideologia. Ao mesmo tempo, as culturas juvenis mais inovadoras estão
lismo tardio, dar saltos diretamente entre experiências individuais e desinteressadas em contrastar os fantasmas que sobreviveram à ca-
supra-estruturais, para alcançar e acender possíveis libertações. tástrofe de todas as hegemonias culturais. Tais culturas não são mais
contra: nem contra urna cultura dominante, que justamente não existe
Praticamente isso significava depreciar os conOitos sociais (os
mais e que, de qualquer modo, diluiu-se numa série policêntrica de
conDitos de classe sobre salário, qualificações, horário de trabalho
poderes em competição entre si; nem a favor de uma cultura contra,
etc.), eliminar toda pesquisa ideológica sobre as instituições (Estado,
porquanto nada é mais desejável ou imaginável do que uma cultura de
governo, sindicatos), reCUsar a organização científica da política
oposição revolucionária.
(o partido como máquina para alcançar o poder). E, ao contrário, acen-
tuava-se a dimensão individual, geralmente descuidada em favor da Não existe mais uma contracultura, pois morreu a política como
coletiva, de classe ou de massa. utopia que transforma o mundo empenhando o futuro próximo. Não
há mais contracultura, pois não há mais o contra. O término da hege-
Essas culturas juvenis são, pois, contra "a" cultura ao poder - aque-
monia, o fim da ideologia e o fim da política enxugaram o conlra. E li-
la cultura burguesa, de classe, ou dominante, herdeira do Iluminismo
berlaram as culturas extremas ... aliás, eXtremas: lá onde esse X (como
- que tende a virar ideologia: uma falsa consciência historicamente
veremos: não tem nenhuma relação com a incógnita de uma geração.
necessária que busca afirmar sua parcialidade como se fosse universal.
A cultura burguesa se transforma em ideologia justamente neste movi- Já na citação inicial deste capítulo apresenta-se um "estranho jogo
mento "secreto", acionado particularmente pelos intelectuais: transfi- de cruzamentos" ao longo de hectares de território temporário, onde
gurar valores, instituições e filosofias de parciais (de classe, de sexo, se misturam as experiências. É aqui que a "coisa" se difunde ao longo
de geração) em gerais (da humanidade toda). A tarefa dos intelectuais de conexões múltiplas e movimenta.
Culturas eXtremas Das contraculturas às culturas intermináveis 17
16

ritorial, sexual, étnico, de geração, desviante etc. - que, por sua vez,
Fim das subculturas
Fads swept thcyouth ofthe Sprawl at lhe speed pode ser outra classe para uma outra ordem ainda menor. Por isso, a
oflight; entire subcultures could rise overnight, idéia de subcultura - em seu particular - herda todos os limites do
lhrive for a dazen weeks, and then vanish ut~ conceito de cultura mais geral do qual é parte.
terly.l
Não há, portanto, um sentido depreciativo na expressão "subcul-
William Gibson (1984, p. 74)
tura", concentrado no prefixo "sub": ele não indica algo que está
Inclusive o conceito de subcultura foi progressivamente se exau- "abaixo" e, conseqüentemente, é inferior em relação a alguma outra
rindo. Diferentemente da contracultura, que possui uma matriz mais coisa que fica "acima". N o emprego do termo permanece a instância
político-alternativa, é ligado em nó duplo ao clássico conceito antro~ cientificista de identificar, ou melhor, de recortar uma fatia compor-
pológico de cultura. E, por isso, atesta o empurrão a englobar e a uni~ tamental caracterizada por possuir estilos, ideologias, valores homo-
ficar _ em seu "complexo conjunto" - modelos, crenças, valores, de gêneos. Selecionam-se esses traços culturais, vistos como idênticos
acordo com modelos unitários. Apesar das tentativas de distinguir e de para cada estrato, e se privilegiam em relação a uma série de outros
explicitar, por parte das diversas e até demasiado opostas escolas traços que os tornariam diferentes. A história da antropologia afir-
etnoantropológicas, todo conceito de cultura acabou em posições ge- mou-se não apenas ao privilegiar as (supostas) uniformidades, mas
neralistas e homogeneizantes. Essa obsessão cientificista derivava do também na destruição sistemática e "objetiva" das diferenças.} São as
desejo de dar também à cultura o mesmo critério de objetividade diferenças que devem ser aplainadas para que seja possível fazer nuir
(e de "seriedade") epistemológica conferido à natureza por biólogos, o carro triunfante e cientificista de "a" cultura.

zoólogos, físicos etc. 2 Para contrastar o perigo das diferenças - vistas como desordem - a
Além disso, há uma estreita simetria entre um conceito de cultura antropologia (como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a arquitetu-
expresso de" modo globalizado-uniforme e um de seus êxitos mais ra) estruturou-se como apologia e defesa da identidade. Como foi dito,
infelizes: aquele "caráter nacional" que, lamentavelmente, continua a elaboração do "caráter nacional" favoreceu cada preconceito e re-
sobrevivendo inclusive além do âmbito estritamente antropológico forçou cada estereótipo, levando em consideração sociedades moder-
("os italianos" ... os alemães ... ). O caráter nacional como subcultura. nas em larga escala, com milhões de pessoas: e assim a subcultura -
Parte-se da existência do caráter nacional de "a" cultura italiana - por como sua matriz "cultura" - seleciona o homogêneo em detrimento
seu turno subcultura da cultura européia, ocidental, complexa -, da do heterogêneo, o uniforme contra o fragmentário, o singular contra o
qual nascem outras diversas subculturas (romana, juvenil, feminina, plural, o estático contra o Ouido, o holístico contra o parcial, as cone-
operária, estudantil). Em suma, a subcultura é uma classe menor den- xões contra as disjunções, a identidade contra as diferenças.
tro de uma maior - um subgrupo não apenas social, mas também ter-
3 "Os instrumentos teóricos proporcionados por Kant e Hegel, o juizo e a dinlética,
revelam-se incapazes de sustentar o impacto de uma experiência que não pode
"As modas varrem a juventude do Sprawl com a velocidade da luz; enquanto mais ser contada nem como subsunção do particular ao universal, nem como
inteiras subculturas podiam nascer numa noite, prosperar por uma dúzia ele superação da contradição 1... l. O mais originnl e o mais importante [acontecimento
semanas, para depois desaparecer completamente." filosófico 1 do século xx reside na noção de diferença, entendida como não-
2 Uma conhecida frase de Clifford Geertz diz que "a antropologia não é uma identidade, como uma dessemelhança mais ampla do conceito lógico de diversidade
ciência em busea de leis universais, mas uma ciência em busca do significndo" e do conceito dialético de distinção" (Perniob, 1997, p. 154).

(1988, p. 41).
18 Culturas eXtremas Das contraculturas às culturas intermináveis 19

o erro produzido é duplo: não só se estendem às culturas nacio- Assim, em relação às culturas juvenis, uma subcultura não é, por
nais aqueles conceitos e métodos aplicados nas pesquisas etnográficas sua natureza, uma contracultura, porque pode ser também uma cul-
em contextos restritos (aldeias), mas se acaba inclusive sustentando tura pacificada, organizada, mística etc. Por isso, é importante distin-
que nas sociedades chamadas "simples" haveria um caráter uniforme guir os dois conceitos que não coincidem ou que, de qualquer modo,
(mas não nacional) e sem indivíduos! podem não coincidir. Em todo caso, uma cultura é "sub" não porque
Assim, nas sociedades "complexas" há somente um caráter na- considerada inferior. O prefixo "sub" indica mais um conceito que as-
cional, e nas chamadas "simples" há somente um caráter individual. pira a uma maior neutralidade científica. Esse segundo prefixo, por-
Está na hora de eliminar as distinções etnocêntricas entre socieda- tanto, "fixa" (prefixa) cada segmento de cultura dentro de uma cultura
des simples e complexas, juntamente com os caracteres nacionais e as mais ampla.
várias subculturas, todas marcadas pela idéia de uniformidade e pela Não existe mais uma categoria geral que possa englobar nela uma
reproduçãO de estereótipos. É tempo de defender os fragmentos, as particular, ao longo de segmentos homogêneos (o caráter nacional). Por
parcialidades, as diferenças, como uma parte da antropologia já come- isso morreram as subculturas. Não exisle mais (se é que alguma vez
çou a fazer. existiu) um "acima", mas um "através de" - ou melhor, muitos "atra-
O problema é que o conceito de caráter nacional não consegue vés": atravessar os segmentos, as parcialidades, os fragmentos do eu e
unificar uma complexidade que não é unificável, ao contrário, é dife- do outro. Transitar entre os "cus" e os outros. Particularmente para as
renciável. Não pode conferir ordem a uma desordem que é móvel. Fe- pluralidades dos universos juvenis que não são passíveis de serem
lizmente ... O conceito de cultura como algo global e unificado, com- encerrados nas gaiolas das subculturas. São pluriversos.
plexo e identitário, que elabora leis universais, dissolveu-se seja O sucesso anglo-saxônico do termo "subcultura" deve-se sempre a
debaixo dos golpes da nova antropologia crítica, seja, ainda antes, pela uma leitura (sob alguns aspectos até providencial) de Gramsci, por
difusão de fragmentos parciais que não aspiram mais a ser unificados, isso pôde desenvolver-se um tipo de marxismo sensível à mais ou me-
mas que reivindicam, vivem e praticam parcialidades extremas, irre- nos relativa autonomia da cultura - em relação à já citada ortodoxia
dutíveis diferenças. que proclamava a centralidade da estrutura acima (e contra), toda su-
Contudo, ao longo dos fluxos móveis das culturas juvenis contem- perestrutura à qual vinha associado um sentido depreciativo de se-
porâneas - plurais, fragmentárias, disjuntivas - as identidades não são cundário, derivado. Ainda assim, esse termo "subcultura" hoje é de
mais unitárias, igualitárias, compactas, ligadas a um sistema produtivo pouca significação, pois não existe mais uma cultura geral unitária
de tipo industrial, a um sistema reprodutivo de tipo familiar, a um sis- (por exemplo, a cultura britãnica) em relação à qual uma determinada
tema sexual de tipo monossexista, a um sistema racial de tipo purista," subcultura se define como parte dela, como um "abaixo".
a um sistema geracional de tipo biologista. Se já desde o princípio era difícil definir os punks uma expressão
subcultural (Hebdige, 1983), agora a morte do caráter nacional- que
.. Em Salvador, na Bahia, vi camisetas eom o dizer "100% negro", como para ordenava uma escala hierárquica piramidal com uma ponta hegemô-
reivindicar uma "pureza" sem gotas de sangue intruso. Num país de COl1lras[es
nica até uma base subalterna, sobre cujos desníveis se organizavam
como o Brasil, é realmente uma estranha mensagem para uma estranha pureza. É
preciso lembrar que ali o termo "negro" não tem uma acepção ofensiva como nos essas "culturas-abaixo" - arrasta consigo também a morte das subcul-
EUA, enquanto e o "preto" (escuro", black) a ser considerado tal.
turas. Um hacker ou um raver se movimenta através e contra qualquer
r
20
Culturas eXtremas Das contraculturas às culturas inLermináveis 21

distinçào geopolítica nacional, e qualquer definição subcultural se metropolitana e midiática do Ocidente, particularmente por meio de
apresenta inadequada e antiquada, até um tanto ridícula.
sua visibilidade musical e fílmica.
É a própria idéia de caráter nacional que se dissolveu definitiva- Todas as premissas são antecipadas já em outubro de 1927, quando
mente no ar.
nasce o cinema sonoro com The jazz sínger [O cantor de jazz] , dirigido
A citação inicial de Gibson é interessante por sua ambigüidade por Alan Crosland, "um filme mudo com algumas inserções faladas
genial: a literatura ciberpunk - que inventa conglomerados de espaços ou cantadas" (Sadoul, 1964, p. 309). Mesmo uma breve análise do
e de tempos (o sprawl) - mantém como um achado o conceito de sub- filme pode fornecer elementos preciosos para o discurso que aqui se
culturas, mas logo a seguir insere nele os novos fluxos comunicacio- desenvolveu. Para aqueles que não se lembram, AI jolson - famo-
nais que as fazem respingar pelo espaço de não mais do que uma dúzia síssimo cantor, na época não mais jovem - interpreta o papel de um fi-
de semanas e depois desaparecer. É hora de as ciências sociais também lho que decide ser cantor contra a vontade patriarcal do pai, que vê
transitarem da subcultura ao sprawl. como imoral e degenerado o mundo do jazz em relação à música dita
"clássica". A mãe - fraca e doente, maternal e amorosa - não consegue
Os jovens entre metrópole, mídia e consumo opor-se ao marido e é obrigada a suportar a expulsão de casa do filho.
Bateria e baixo calaram, em espera dramática. Depois de alguns eventos, AI se torna um cantor [amoso~.porém, para
Os grandes olhos de ouro de Catz se abriram não ser reconhecido, pinta o rosto de Ce como) preto, camuflando-se
ainda mais. O suor lhe havia grudado na cabeça de blaclL Pela dor, a mãe adoece cada vez mais, e o pai se fecha em sua
os cabelos platinados. Seu rOSlo perdeu qualquer
cega condenação ao poder nascente da mídia. É assim que AI grava um
incerteza e anuiu ao homem de óculos, e depois
cantou: "A cidade se levanta e caminha! reclama de seus grandes sucessos mundiais da música popular: "Ma mie" .
o que ê dela! Por vezes o mundo toma a forma "How I love you, how I love you my little mamie." No espetáculo final,
dos deuses/por vezes os deuses tomam a forma de toda a elite da cidade corre para ouvi-lo a fim de decretar seu triunfo
homens/por vezes os deuses caminham sobre a no teatro, enquanto o rádio prolonga sua mensagem nos EUA Ce o cine-
terra como mortais .. .I E esta noite a Cidade se
ma em qualquer parte). A mãe morre de desgosto, o filho chora, can-
levantou, caminhou, e nós somos todos obso-
letos ... ". tando como estrela da nova mídia, o pai se desespera por ser dema-
johnShirley(l981,p.ll) siado retrô; todo mundo se comove pela morte da mãe, condena a
excessiva rigidez do pai e se alegra ainda mais por ter podido escutar
Se, como se viu, aparecem conceitualmente sempre mais contraí-
e, ao mesmo tempo, ver, pela primeira vez, um cantor de jazz, fruto
das as noções de contracultura e de subcultura, a categoria de jovem,
sincrônico do enxerto da vitrola com o cinema.
ao contrário, estende-se sem tempo CCanevacci, 1995). As tradicionais
Dessa forma se especifica o conceito de democracia visual Ce da-
distinções em faixas etárias se abrem, a idéia de jovem se dilata. Em
quela que será chamada indústria cultural): o espectador é instado a
termos sociológicos, a faixa etária chamada "jovem" é recente. Nasce,
identificar-se com o filho inovador e contra o pai autoritário e passa-
grosso modo, nos anos 1950, com um Significado totalmente distinto
dista: isto é, a favor do cinema sonoro e da nova mídia, contra a músi-
do anterior: um significado descontínuo ligado a contextos descontí-
ca tradicional pré- e antimídia.
nuos. O jovem teenager afirma-se com prepotência na comunicação
22 Culturas eXtremas Das contraculturas às culturas intermináveis 23

o personagem do cantor AI Jo150n não resulta fundamental so- denado e intrigante desses três fatores constitui o terreno autônomo,
mente para o cinema sonoro, mas também porque esse novo meio inovador, conflituoso no qual se constrói a categoria sociológica do
apresenta a ascensão e a legitimação do jazz (ou melhor, de um jazz "jovem". Os jovens como faixa etária autônoma da modernidade nas-
branco e choroso, camuflado de blach)5 como cultura de massa expres- cem entre os fios que os ligam à escola de massa, à mídia, à metrópole.
sa pela geração dos filhos contra a geração dos pais. Mesmo que do Escola, mídia e metrópole constituem os três eixos que suportam a
ponto de vista visual AI seja tudo senão jovem (ao menos segundo constituição moderna do jovem como categoria social.
aquilo que logo depois será o modelo "tecn"), ele prevê o nexo fun-
Dos anos 1950 em diante, esse cruzamento configura o fenômeno
damental entre autonomia das culturas juvenis nas metrópoles, ascen-
da cultura juvenil que oscila desde logo entre subcultura e contracul-
são irresistível da mídia, dilatação do consumo (= imoral) contra a
tura, entre integração e conflito. O jovem é um teenager que entra na
produção (= moral), o conflito com os pais autoritários e perdedores.
escola e pode chegar à universidade, ou então se "matricula" no mundo
É esse nexo, tornado ainda mais conflituoso em termos de geração dos adultos, entrando no mundo do trabalho. O trabalho é uma espécie
do contexto do pós-guerra, que produzirá a ascensão das culturas ju- de rito de passagem que separa dolorosamente o jovem do adulto. Um
venis corno subculturas, corno contraculturas e corno mídia-culturas: rito sem mito. Não há mais uma história narrada para sublinhar de for-
as culturas expressas e veiculadas pelos meios de comunicação social ma evocativa a mudança definitiva. O trabalho como trabalho assala-
que então estavam nascendo, que terão corno principais sujeitos de riado se apresenta desde logo como um corte nítido do qual não se po-
consumo justamente os jovens. de voltar. É uma passagem uni direcional e irreversível. Ele assume a
Um elemento posterior de inovação caracterizará "os jovens" co- forma besuntada e deprimente do emprego fixo (no Estado, nas prefei-
mo traço decisivo da contemporaneidade: a escola de massa. Os jovens turas, no público etc., uma espécie de prisão perpétua com a permis-
antes não existiam como faixa etária, enquanto se transitava direta- são de fugir uma vez ao dia), ou do trabalho explorado na fábrica, alie-
mente da adolescência (entendida muito elasticamente) para o traba- nado, mas vivo, do qual é preciso tentar livrar-se de todas as maneiras.
lho. Aliás, como é amplamente sabido, tanto o trabalho agrícola (ain- Contudo, antes de tornar-se adulto, entrando no mundo sério e irre-
da pior) quanto o trabalho industrial absorveram em seguida, já desde versível do trabalho, o jovem é tal porque consome. E, pela primeira
a mais tenra adolescência, os filhos das classes popuhres; e então "jo- vez, o consumo juvenil adquire um papel central que se amplia con-
vem", em sentido estrito, podia ser o aristocrata iS('''ltO do trabalho ou, centricamente para toda a sociedade. O jovem consome - o adulto
mais adiante, o filho do burguês educado para o tr8.halho. produz. A expressão, sociológica por excelência, que nasce desse con-
Então: a escola de massa separa um segmento interclassista da po- texto é, não por acaso, "a sociedade do consumo". Na idéia da socie-
pulação da família e da produção; a mídia (discos, rádio, cinema) pro- dade do consumo, há uma espécie de horror político-conceitual, uma
duz um novo tipo de sensibilidade e de sexualidade, modo e estilo de aporia do bem e uma inflação do mal, um escãndalo da ética tanto
vida, valores e conflitos; a metrópole se difunde como cenário panora- revolucionária quanto conservadora. A sociedade só pode ser a do tra-
mático repleto de signos e sonhos (mediascape) O cruzamento desor- balho. Do conflito entre classes. Da arte científica da política e do par-
tido como sua expressão mais elevada para a tomada do poder.
S O intérprete não podia ser negro pela equivalência jazz '" blnck; porém, ao mesmo Na emergência desordenada e descomposta da sociedade do con-
tempo não podia não ser branco, a fim de decretar o sucesso mundial.
sumo, todos os olhares convergem para uma condenação sem apelo:
24 Culturas eXtremas Das contraculturas às culturas intermináveis 25

hedonismo, narcisismo, relaxamento, superficialidade. A prodUÇãO vam as mercadorias a comunicação, duplicavam os conflitos: além do
salva a alma; o consumo é sua danação. A produção é o anjo que aban- valor em sentido econômico, elas, após terem sido entro nadas como
dona os escombros da existência e que os resgata. O consumo é o anjo fantasmagoria universal, produziam valores como estilos, visões, es-
decaído que afunda na danação do prazer, do vistoso, do supérfluo. Na quemas de comportamento. Já desde a primeira metade do século XIX,
produção, o sujeito é de classe; no consumo, o indivíduo é de massa. para o capital o conflito não era somente o da produção, mas também
Na primeira, ele é alienado e revolucionário; na segunda, é homolo- o do consumo; e os novos espaços do consumo se transfiguram em es-
gado e apaziguado. petáculo a fim de capturar as consciências ou, ao menos, os comporta-
A condenação do consumo unifica pontos de vista divergentes e mentos. E mais: se nos conflitos sobre a prodUÇão o capital algumas
opostos: para o marxismo, o consumo é o momento final do processo vezes podia perder, nos conflitos com o consumo ganhava sempre e
de acumulação capitalista e é determinado pela produção. Por essa ra- recuperava tudo aquilo que havia perdido (e também muito mais) nas
zão, o conflito de classe nasce e se resolve dentro da prodUÇàO: das fá- lutas estruturais.
bricas ao Estado. Sobre essas premissas incrustam-se preconceitos de A capital do século xx é Paris - ou seja, uma metrópole vista como
ordem ética a respeito do consumo como supérfluo; no marxismo do- mercadoria luminosa e poderosa -, não suas fábricas. Suas alamedas
minante emergem somente modelos austeros e disciplinados de espar- político-militares, as caricaturas animistas de Grandville ou as pros-
tanos ou de espártacos. O mesmo é afirmado pela ética protestante, titutas, "que são mercadoria e são sonho". E é Paris, para Walter Ben-
que vê no sucesso econômico um lance mundano nunca adquirido pa- jamin, que deve ser libertada (ou redimida) de seus fetiches, não o
ra sempre pela salvação eterna. O consumo é dissipação e, sobretudo, Crédit Immobilier, a Citroen ou a Gaumonl.
danação. Sem falarmos do fascismo e de suas éticas guerreiras de legio- A mercadoria multiplicada como espetáculo, como visão - a merca-
nário romano, e de seu ódio visceral por tudo aquilo que provém das doria visual -, possui um poder dissolvente semelhante ou superior
plutocracias anglo-americanas. àquele das mercadorias "materiais" e tradicionais de tipo industrial.
Pois bem, pela primeira vez na história da humanidade, de forma Na primeira metade dos anos 1950, aparecem alguns filmes que
tão nítida e radical, os jovens provenientes de qualquer classe (burgue- justamente exemplificam esse conflito mais avançado. Na Itália, uma
sa, operária e popular) são emancipados da produção agrícola ou tradução traidora e censora transforma o título do filme Rebels Wit/lOut
industrial e podem atirar-se ao consumo. Do ponto de vista do sujeito a cause, de Nicholas Ray (1954), emJuvenlude transviada. Ray retoma
político (e adulto) produtor de riqueza (ou de consciência de classe), o tema que AIJolson deixara em 1927: a hipocrisia e a corrupção inte-
o jovem não apenas não trabalha, mas também consome! Daqui os rior da geração dos pais, contra a qual se atira a geração dos filhos,
ressentimentos ... mesmo sem uma causa clara, mas numa tensão limpa e regeneradora.
E então a crítica à sociedade do consumo envolve e arrasta toda Há uma seqüência decisiva do conflito entre pais e filhos. Mãe, pai
ideologia, eleva o desdém, faz as pessoas sentir-se boas e sofredoras. e Jim estão na escada interna da casa. Jim - que quer ir à polícia por
Sobretudo condena. A sociedade do consumo é um espetáculo indig- causa da morte de seu colega de escola - diz: "Papai, não foi você
no: aliás, é "a sociedade do espetáculo" ... quem disse que é preciso dizer sempre a verdade? Não falou assim?
Lamentavelmente, a mídia estava muito à frente de seus críticos. Já (o pai se cala). Não pode engolir isso agora, não pode!". A mãe: "Não
as exposições universais - como Benjamin percebeu primeiro - eleva- diga isso, diga que você não pode fazer o voluntário". Jim: "Isto é, dizer
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26 Culturas eXtremas Das contraculmras às culturas intermináveis 27

uma pequena mentira". O pai (apontando o indicador contra o filho transnacional, que segue com paixão e competência o que acontece de
de forma agressiva): "Vai aprender!". Jim (ele também levanta o indi- novo nos vários laboratórios juvenis. Normalmente os códigos adultos
cador, mas com delicadeza firme): "Não, eu não quero aprender a vi- de cientistas sociais ou de sindicalistas vêem nisso somente imitação,
ver dessa forma". homologação, subordinação: com efeito está emergindo algo mais
o título complexo de Nicholas Ray transforma-se na Itália numa complexo e desordenado. Difunde-se um processo de traduções legí-
apriorística condenação da juventude que queimou a si mesma como timas, de adaptações locais - um local knowledge, parafraseando uma
uma ponta de cigarro, uma ardência breve e intensa, para logo ser jo- abordagem da nova antropologia - de tímidas hibridizações, de trocas
gada fora, como um dejeto. Juventude rejeitada. Jim, que no entanto vive assimétricas, de viagens incertas, de ansiedades obscuras e vitais.
numa classe média e branca (WASP - white anglo-saxan pagan), não Política, cinema e música se entrecruzam de forma tão inextricá-
quer aprender. No ano seguinte, o diretor Richard Brooks realiza The vel quanto, com demasiada freqüência, removida ou considerada se-
blackboard jungle [Sementes da violência], filme no qual a rebelião juve- cundária (superestrutura I) em relação à desforra da tradição socio-
nil explode nas escolas-guetos, onde, também ali, não se quer apren- econômica. Poder-se-ia ler o conflito dos anos 1960 não só como o
der o mesmo modelo do saber. Não se quer repetir a mesma música. conflito externo que todos conhecemos, mas também com um confli-
"O professor, interpretado por Glenn Ford, procura encontrar um to interno, entre os muitos sujeitos que participam do movimento, en-
espaço comunicativo, levando aos rapazes seus discos de jazz, símbolo tre o poder "clássico" da política - sua organização "científica", sua
do intelectual branco progressista. Os rapazes rasgam em pedaços a ressurreição em partidos e partidos menores, sua centralidade na classe
coletânea e colocam no prato da vitrola 'Rock around the clock'" e no salário, sua anestesia no cenlralismo democrático _ e as novas for-
(Colombo, 1995, p. 73). À visão metropolitana clássica, que vê a flo- mas metropolitanas do sentir. De fato, em 1968 venceu a política e
resta na metrópole ou no quadro-negro da sala de aula, numa escola- continuou vencendo até o ano de 1977, quando se rasga definiti-
gueto socialmente degradada, corresponde a tradução de uma "semen- vamente, entre quem vê em Aldo Moro um símbolo e um ataque ao
te" quase bíblica que gera violência e caos. De fato, apesar do atraso coração do Estado e quem muda de rumo da militância e brinca com
traidor dos aparatos tradutórios do cinema nacional (públicos e parti- os sinais; entre quem está no partido e em suas variadas reformulações
culares), o conflito passa do jazz ao rock. e quem dá voltas nas metrópoles e em suas mutações/inovações. Entre
quem se fixa na sociedade e quem se movimenta na comunicação.
Só que não haverá mais invocações às mães.
Depois de 1977 não será mais possível a política, ao menos a po-
É ao redor das anarquias elétricas e das descomposturas corporais
lítica conjugada aos movimentos. Poderá continuar somente "A Po-
emitidas pelo rock que estão nascendo as culturas juvenis. Emergem
lítica", a dos partidos e a das instituições. As culturas juvenis, que se
em primeiro lugar com clareza e Com dureza nos Estados Unidos, por-
libertaram dessa política, podem finalmente abrir alas nos fluxos de-
que ali nasce a indústria cultural. E porque ali existem as metrópoles.
sordenados e polifônicos/dissonantes da comunicação metropolitana
O processo histórico-político que vai dos anos 1950 ao final dos
e dos panoramas midiáticos. Os anos 1980, em vez de continuarem
anos 1970 é conhecido, e não se deseja reconstruí-lo aqui. Somente é
sendo percebidos como os anos obscuros do yuppismo, afinnam tam-
necessário enfatizar que durante aquele período afirma-se de modo
bém um processo criativamente desagregador, que é visto como nor-
sutil, descentralizado, informal e implícito um tipo de galáxia juvenil
malizador, somente porque continuam a ser empregadas as categorias
28 Culturas eXtremas Das contraculturas às culturas intermináveis 29

tradicionais da sociologia política, já totalmente inadequadas para sentido de que são eliminados,7 pelo contrário: no sentido de que os jo-
saber ler, e ainda mais para colaborar na transformação da chamada vens não acabaram. Que podem não se acabar. Cada jovem, ou melhor,
"sociedade". De uma sociedade cada vez mais reduzida. cada ser humano, cada indivíduo pode perceber sua própria condição
Desta vez, a citação inicial se refere a um livro de ficção que troca de jovem como não-terminada e inclusive como não-terminável. Por
a percepção da metrópole. John Shirley, em Il roch della curd viventc 6 isso, assiste-se a um conjunto de atitudes que caracterizam de modo
(1981), continua dando volLas ao redor do nexo música rock-metró- absolutamente único nossa era: as dilatações juvenis. O dilatar-se da
pole, só que desta vez a relação não é somente próxima: é interna. A autopercepção enquanto jovem sem limites de idade definidos e
metrópole se torna carne e se abre ao longo das notas ácidas do rock objetivos dissolve as barreiras tradicionais, tanto sociológicas quanto
emitidas por Cats, a loura platinada de olhos dourados: "Esta noite a biológicas. Morrem as faixas etárias, morre o trabalho, morre o corpo
cidade se levantou, caminhou", canta Cats, mas não em serltido meta- natural, desmorona a demografia, multiplicam-se as identidades
fórico. A cidade se fez carne, corpo, sangue. Ela se mexe. "E todos nós móveis e nômades. E nasce a antropologia da juventude.
somos obsoletos" ... conclui assim. Obsoletos: não funciona mais
nenhuma categoria compacta que tenha a sociedade como ponto de - Fim das faixas etárias. Esta categoria, que no passado definia uma
partida, como fonte epistêmica, como projeto unificado. A metrópole geração em relação às outras, foi pré-aposentada. Ela tentava homoge-
- atroz, chocante, ensurdecedora como o rock - em seu levantar-se e neizar ritual ou estatisticamente aquele processo fluido da passagem
encaminhar-se dissolve o nós social. da geração de adolescente para adulto, de conferir uma identidade o
mais possível reconhecível e compreensível (no sentido literal de
Os jovens intermináveis compreender como circunscrever, controlar) à troca de geração, de
Eu tenho mil rostos e mil nomes. Não sou exercitar aquele controle social sobre o ciclo da natureza ou, para
ninguém sou todos. Sou eu sou tu. Sou aqueles dizê-lo melhor, sobre uma natureza reduzida a ciclo, a eterno retorno:
lá para frente para trás dentro fora. Estou em
daqui é que surge aquela obsessão filosófica e demográfica do con-
toda parte não estou em lugar nenhum. Estou
presente estou ausente. trole, aquela filosofia demográfica que executa o ato de prender sobre
William Burroughs (1985) e contra o novo que avança.
Reduzir a idade a um ciclo. O jovem a taxa demográfica. A nature-
Nesse contexto - caracterizado por culturas fragmentadas, híbri-
za a novo epílogo. Esta filosofia adulta do domínio explodiu.
das e transculturais, consumo panoramático, comunicações mass-mi-
diáticas - afirma-se uma dilatação do conceito de jovem, virando do Elemento caracterizador da contemporaneidade é a extrema incer-

avesso as categorias que fixavam faixas etárias definidas e claras passa- teza, a imprecisão, a instabilidade em definir a percepção de si e do
gens geracionais. Trata-se de uma passagem intricada e decisiva que se outro sobre o ser "jovem". A passagem da juventude ao mundo dos
buscará delinear aqui, a seguir, partindo da seguinte proposição: os jo- adultos tornou-se algo indeciso, uma espécie de zona cinzenta e lenta

vens são intermináveis. Isso não deve ser entendido - obviamente - no que se pode atravessar ou dilatar pelo sujeito. Os motivos para essa di-
latação juvenil são múltiplos. Como o eu: o multiple selJ.

6 Tradução italiana do original City come a-walkin'. (N.T.) 7 O termo usado pelo autor é "sterminati", que em italiano pode ser lido como
"exterminados" ou, a exemplo desse caso, "intermináveis". (N. T)
30 Culturas eXtremas Das contraculturas às culturas intermináveis 31

- Fim do trabalho. Um dos elementos que de forma mais determi- pelas individualidades momentâneas do sujeito-jovem. Das contra-
nante estão modificando, na raiz, os comportamentos aparentemente tações entre seus vários, heterogêneos, múltiplos eus (selves).
consolidados e dados como "naturais" diz respeito justamente ao
trabalho. Diz]eremy Rifkin: "A idéia de uma sociedade que não se - Fim do corpo. Inclusive para o corpo acontece algo semelhante ao
fundamente no trabalho é tão alheia a qualquer noção sobre as mo- trabalho. A irrupção das novas tecnologias compenetra-se não somen-
dalidades de organização de grandes massas de indivíduos, num aglo- te nos processos produtivos, mas também nas articulações corporais.
merado social, que nos obriga a enfrentar a incômoda perspectiva de As tecnologias incorporadas: os componentes naturais do corpo - afir-
ter de repensar integralmente as próprias bases do contrato social" mação de per si já ambígua, pois cada traço do corpo, assim como o
(1995, p. 37). No entanto, é justamente isso que está acontecendo: uma corpo em sua totalidade, foi sempre atravessado por poderosos signi-
"transição do trabalho humano para o seu substituto mecânico-eletrô- ficados simbólicos (e por isso nunca Se pode falar apenas de corpo
nico" (ib., p. 27). Essa idéia poderia anunciar o cenário de "um mundo biológico) - foram progressivamente subtraídos à dimensão natu-
sem trabalho que marcará o início de um novo período histórico, no ralista do século XIX, para abrir-se e desarticular-se numa miríade de
qual os seres humanos serão liberados, a longo prazo, da fadiga física micro tecnologias, microprocessadores, chips que podem ser substi-
e da repetição compulsiva de gestos automáticos" (ib., p. 37). tuídos como próteses temporárias.
A mutaçào antropológica da libertaçào do trabalho (repetitivo, As antropologias de tipo filosófico, de tipo Gehlen - que ainda defi-
alienado, fixo) pode permitir a difusão descentralizada e diferenciada niam as tecnologias como extensões de atividades corporais, conti-
de um trabalho outro (criativo, individual, temporário). Entre as mui- nuando a afirmar uma visão "humanista" e irracional do mundo-,
tas coisas que essa mutação laboral implica, existem conexôes muito manifestavam quase um terror nos processos de relativa autonomiza-
estreitas com uma condição juvenil inédita. Em sua posterior frag- ção das tecnologias tradicionais. Com as novas tecnologias tudo isso
mentação interna (por causa de uma fraca conexão com setores fortes termina decaindo. Esse falso humanismo de cunho conservador, con-
da produção, como no passado o setor agrícola, industrial e terciário), ceitualmente imobilista, procura não ver como as tecnologias incor-
os jovens presentes-futuros, encontrando-se num mundo sem traba- poradas não signifiquem extensões das capacidades tradicionais dos
lhadores, dilatam sua condição de não-mais-adolescentes e ainda-não- órgãos humanos, mas algo mais e diferente. É um processo disjuntivo
adultos. Esse rito de passagem se dilata sem tempo. E sem passagens. que se afirmou, e não um mero evolucionismo demovido do terreno
Ou seja, não existe mais aquele tempo histórico como momento certo biológico ao tecnológico. Trata-se de mutações constitutivas de corpos
no qual se passa de status: esse tempo se pluraliza e se dilata sem li- pós-orgânicos.
mites que não sejam as autopercepçôes. Quero dizer que desmoronou O salto do golem ao ciborgue é de qualidade, é justamente disjun-
a delimitação clara e fixa, determinada pelas regras sociais objetivas tivo e não meramente continuativo. No golem havia um concentrado
ou lingüísticas (teen ... ager) do ser jovem. mágico-irracional de poder autonomizado do monstro, da criatura
Não se é mais jovem de modo objetivo ou coletivo, mas sim tran- não-criada ou recriada; havia o terror cristão-judaico de ver o homem
sitivo. Transita-se ao longo de uma condição variável e indeterminável, substituir-se a Deus na criação da vida (e da imagem: fonte de ambição
atravessa-se essa condição de acordo com modalidades determinadas e perversão teológica): da argila à vida. Ainda no genial- embora de
forma figurada - Metropolis, de Fritz Lang (1927), o duplo animado é
32 Culturas eXtremas Das contraculluras às culturas intermináveis
33

marcado pelo mal, por uma aliança entre o mal do capitalista e o do ticas e irracionais, é decisivo para novos modos de explorar as muta-
maligno. Esse terror do duplo, para o simulacro, para o serial, chega çõesY Com uma biologia enxertada de tecnologias, com os neurochips,
até Baudrillard e Philip Dick, que não conseguem encontrar o corte ní· ser jovem se faz devir. O ser se torna mutante. E essas mutações não
tido entre golem e cibOl'gue. Por isso se lenta permanecer fixos no golem sâo mais marcadas pelo desafio luciferino a Deus, mas, ao contrário,
como metáfora do não-criado que desafia Deus ou a natureza ou a filo- assiste-se a uma fratura radical entre os terrores do golem e os prazeres
sofia. O duplo como golem - concentrado de um mal c de um pecado, do ciborgue.
de uma hybris como infração suprema - deveria ser debochado.
No ciborgue há um salto decisivo, um corte nítido em relação a - Desmoronamento demográfico. Sobre as motivações do desmo-
esses traços arcaicos da memória que arrastavam o artificial nos sub- ronamento demográfico no Ocideme, em particular na llália, discutiu-
terrâneos dos ínferos, entre pactos diabólicos, juventudes cternas, ri- se muito inclusive de um ponto de vista antropológico (Harris, 1983).
quezas desmedidas. Com a invasão dos pós-corpos, sorrimos relendo No entanto, essas análises parecem todas caracterizadas com base na
o terror do homem sem sombra: H agora se utilizam membros protéti- observação das características dos "jovens" - "as jovens gerações" _ a
cos, circuitos implantados, cirurgia cosmética, alterações genéticas, parlir de uma visão tradicionalista, ainda ligada às faixas etárias. Con-
ícones neuronais, antenas cerebrais, videotclefones táteis. seqüentemente, oscila-se entre complexos de Peter Pan e inexauríveis
"Roy Bakay, professor da Universidade de Emory, em Atlanla, inse- apegos maternos. Mas as mutações que estão ocorrendo não estão sob
riu no cérebro [de um paciente que sofreu um ictus cerebral, que não o signo psicanalítico do complexo - isto é, de um suposto mal-estar ou
podia respirar, falar, movimentar-se, porém ainda de posse de suas fa- anormalidade -, e sim dentro do contexto interminável de um juvenil
culdades mentais} um chip, coligando-o por um lado com o sistema "normal". O casamento perde valor, o estudo se estica na pós-gradua-
nervoso e pelo outro com um radiotransmissor" (La Repubblica, 16 out. ção, não se encontram casas. Uma pesquisa Istat-Eurostat num pri-
1998). Dessa forma, controlando os impulsos elétricos, o paciente é meiro momento define o jovem entre os 15 e os 24 anos (14%); logo
capaz de clicar num ícone colocado no monitor de um computador ao após, é jovem também quem está entre os 15 e os 29 anos de idade
qual corresponde um comando ou uma frase. É somente o último (21 %). Contudo, o fenômeno l11utante foge às estatísticas. Ficar com
exemplo das mutações tecnológico-científicas que conduzirão a um os pais não significa viver com eles. Possuir experiências etnográficas
crescente cruzamento entre orgânico e inorgânico. Ou melhor, toda a de tipo individual clareia as diferenças profundas. Basta olhar o quarto
temática do pós-orgânico, que vai dos laboratórios cirúrgicos à vi- de um jovem, sua decoraçâo interna descontínua, tão opositiva à dos
deoane, difunde uma série de comportamentos mutantes que tornarão pais. Decorar o quarto significa, para um jovem "interminável", trans-
sempre mais flexíveis os limites naturais do corpo humano. O desafio formar a tapeçaria - aqueles horríveis papéis de parede com os quais
que algumas correntes da arte contemporânea estão trazendo para as mães tecem o habitat filial - em patchworks coloridos. O espaço
dentro das cirurgias, çm vez de paralisar-se em condenações apriorís- doméstico, chato e plano, pluraliza-se num espaço mutável, cheio de
appliques e collages: uma espécie de carteira de identidade que recusa

!! Von Chamisso escreve este romance extraordinário, no qual se narra a história de


Peler Schlemil que, ao vender a alma ao diabo, fica sem sombra. E quem é sem ~ Cf. Frnnccsca Alfano Migliclli (ViniS, 1996-99), Teresa Macri (1996), Mario Perniola
sombra é o diabo, um morto-vivo. (1994).
34 Culturas eXtremas Das contraçulturas às culturas intermináveis
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qualquer congelamento identitário e que, ao contrário, expõe as mui-


ção definitiva e de nossa morte torna-se absolutamente insustentável e
tas caras-signos temporárias por meio das quais deseja constituir-se.
produz tentativas de abolir a velhice e de prolongar a vida indefini-
É uma constituição individual. Uma constituição musical e visual-
damente". E conclui assim: "Quando os homens se descobrem incapa-
mente interminável.
zes de experimentar algum interesse por aquilo que acontecerá no
Existem outras analogias singulares - chamamentos, tensões mundo após sua morte, desejam permanecer eternamente jovens e,
dialógicas - entre o modo juvenil de vestir-se e o de "vestir" o próprio pela mesma razão, não desejam mais reproduzir-se" 0981, p. 234).
quarto. Entre a decoração pública (uma roupa) e a particular (um Reproduzir-se significa autodestruir-se. Porém, essa análise é decisiva-
pôster) estabelecem-se conexões e citaçôes. É uma forma pela qual o mente voltada a um passado protestante-fundamentalista em cada sua
sujeito-jovem estabelece não apenas módulos de aceitação, mas tam- passagem. A decadência do fascinio pelo futuro em favor do fluir no
bém de prodUÇãO do seu eu. O que aparentemente pode parecer um presente, aliás, nos presentes, reclama - ao invés da protelação cons-
amontoado de códigos de massa sem significado, na verdade, torna-se tante em direção a um imaginário utópico - uma libertação aqui e
um conjunto pleno de sentido para seu idealizador e portador, e para agora. Isto é, aquela lenta "morte da utopia", já iniciada a partir do fi-
as relações com amigos/que. Assim, o eu se prolonga e se amplia ao nal dos anos 1960, está definitivamente trespassada nas heterotopias.
longo desses códigos que são fixos na parede e móveis no corpo. Ao mesmo tempo, os processos de remoção da morte - do mo-
Como foi visto, a distinção dicotômica orgânicolinorgânico se mento mori - libertaram-se de Uma presença opressiva da morte (pen-
exaure nesses espaços intermináveis. Tanto a pele quanto as paredes semos nos funerais públicos que atravessavam as ruas de minha juven-
são parte integrante e interna/externa do corpo. Ambas são pós-or- tude): de uma excedência da morte que oprimiu e comprimiu toda e
gânicas. Por isso todas as coisas vestidas sobre a pele ou penduradas qualquer desordem vital, proclamou a sabedoria do luto, expressou a
nas paredes - mas também se poderia dizer exatamente o contrário: vitória da política cadavérica. Com freqÜência se confunde remoção
coisas grudadas na pele e vestidas nas paredes - contribuem para fazer com atenuação, ou libertação daquele excesso de morte emanado pe-
parte de um novo sentido de identidade: uma identidade móvel, flui- los símbolos do domínio que paralisavam qualquer diversão ou per-
da, que incorporou os muitos fragmentos que - no espaço temporário versão. Ou seja, passar da remoção à coabitação não significa enfra-
de suas relações possíveis com o seu eu ou com o outro - se "veste" ou quecer a filosofia, mas exatamente o oposto: desagregar aqueles
se "traveste" de acordo com as circunstâncias. Lá onde o olhar adulto caracteres mortuários presentes em tanto pensar a filosofia e a política
só vê uniformidade, para os olhares intermináveis do jovem dilatam- da modernidade. Ter um bom relacionamento com a possível vizi-
se diferenças vitais, pequenas minúcias apaixonantes, identidades nhança da morte - contra as remoções, mas ainda mais contra as
micro lógicas. apologias obscurantistas - não deve ressignificar a presença obsessiva
De acordo com uma impostaçâo, tão conhecida quanto datada, da morte, mas, ao contrário, sua presença possível e descentralizada.
elaborada por Cristopher Lasch - de caráter psicossociológico gene- Em lugar de um narcisismo generalizado e simplificador, que blo-
ralista -, a chamada personalidade narcisista emergente em nossa so- quearia a relação eu-outro (em termos mais do que pulsionais, genera-
ciedade expressaria uma estrutura de caráter "que perdeu interesse listicamente psicoculturais), está se produzindo algo absolutamente
pelo futuro", auspícios do crescimento zero da população, recusa da inédito que não quer ser enjaulado nos aparatos conceituais do pas-
paternidade-maternidade. E então "o pensamento de nossa substitui- sado. É a percepção do ser e do sentir que mudou: aqui dentro o jo-
36 Culturas eXtremas Das contracu!lUras às culturas intermináveis 37

vem, em vez de remover a morte, recusando os filhos e o envelheci- demográficas, desmoronamento das hegemonias, aumento da idade
mento, dissolve os enfaixados de idade nos quais estava envolvido no universitária (bolsas, aperfeiçoamentos, mestrados, doutorados),
passado e ultrapassa fronteiras. Esse ultrapassar as fronteiras das coa- valores descentralizados, identidades múltiplas exigem indivíduos
ções do passado até tornar-se adulto - termo que geralmente significa diferentes entre si a remodelar-se em continuidade, de acordo com
normativizar-se, parar, repetir o mesmo até a aposentadoria, fixar-se aqueles padrões in progress com os quais as pessoas se definem jovens
ao trabalho imóvel, bloquear as polifonias da afetividade - permite a cada vez. Mas é ainda adequado este termo - "indivíduo" _ para de-
alongar a fase mais móvel e criativa do sentir-se jovem: tornar-se um signar o sentido heterogêneo e heterotópico do sujeito?
jovem interminável. Esse módulo, que se choca com os inúmeros códi-
gos incorporados pelos diversos segmentos juvenis, chega até aquelas
- Entity. Quando se fala da força invasiva da comunicação, como
que eram as faixas posteriores - misturando-as. É o biológico dica to-
fluxo que dissolve o conceito tradicional de sociedade e faz emergir
mizado do cultural que entra em colapso.
outro ainda nebuloso e sprawl, um conceito-dimensão aglomerado,
"Sou um rapaz de 30 anos, estudante da Faculdade de Engenharia não se pode deixar de enfrentar o modo pelo qual a internet e as tecno-
Aeroespacial", escreve Marco, de Roma, à coluna "Questione di cuore" logias visuais estão constituindo novos visores e novas visões per-
I Coisas do coração], que Natalia Aspesi assina no Venerdt de La
ceptivas e auto perceptivas. Inclusive a inovação terminológica é o
Repubblica (30 out. 1998), extraordinário indicador de como as pes- indicador de mudanças profundas. No entanto, nas cartas ao Venerdl,
soas diferentes se autopercebem como jovens atemporais. Somente ainda se utiliza uma linguagem que, embora seja estranho que um jo-
poucas décadas atrás, aos 30 anos nos considerávamos homens ma- vem de 30 ou de 40 anos se defina "rapaz", continua o filão das distin-
duros. Ou solteironas de idade avançada. ções clássicas do pensamento ocidental, enquanto a profunda alteração
"Sou um rapaz de 40 anos", escreve Giancarlo, de Turim, em feve- mutóide se define quando se pula (se dica) nas novas formas comuni-
reiro de 1993, sempre para Aspesi, com o título "Se ele é perfeito e ne- cacionais tecnovisuais.
nhuma o quer", "aparento menos da idade que tenho, trabalho como E então no sprawI do ciberespaço é inútil ou indiferente definir-se
técnico, tenho um diploma em Psicologia, falo línguas, viajei pelo ainda "jovem", "hornem", "estudante", "heterossexual", "noivo", "traí-
mundo, pratico diversos esportes, sei dançar, agrado. No entanto. do" etc. (a "correspondência do coração"!). Ou seja, não significa
O crescendo não tem mais limites. As distinções modernas entre as mais nada, no sentido de que não comunica nada certo ou que possa
faixas etárias não funcionam mais. Os jovens são atemporais no sen- ser compartilhado em parâmetros acenados. Inclusive aquele termo
tido de que ninguém pode sentir-se como excluído desse horizonte ge- "indivíduo" - depois daquele mais filosoficamente nobre, "sujeito" _
racional. Evidentemente há profundas e diversificadas pressões cultu- foi arquivado. É obsoleto.
rais e comunicacionais que empurram, ou melhor, auxiliam pessoas "Todos nós somos obsoletos.
normais a sentir-se ainda (para sempre?) dentro de uma condição que
Agora, "entity" -literalmente "entidade" - é o pós-conceito com o
não é mais determinada - para utilizar exatamente uma palavra anglo-
qual se torna quase impossível classificar, ao menos segundo os parâ-
saxõnica - pela teenage.
metros duais ou sintéticos da modernidade, mas que, entretanto, ou
Fim do trabalho fordista, estilos móveis de vida, tratamentos e
melhor, justamente em virtude dessa impossibilidade ou inutilidade
modificações do corpo, cirurgias estéticas, práxis estáticas, quedas
38 Culturas eXtremas Das contraculturas às culturas intermináveis 39

de classificar, de tipologizar, de tipificar, produz e comunica sentido. se como "jovem". Quem entrou na entidade compreendeu que é so-
Entidade fica além de qualquer definição possíveL não mais vade retro, mente artificial, é uma autoconstruçâo relacional e híbrida. Contra os
mas vade ultra. Um ir além da compreensão como ato de circunscrever homologadores de signos (Baudrillard) ou os temerosos da velocida-
o conhecido, de traçar o círculo de uma ratio que defende e conjuga a de (Virilio), as novas formas de autopercepção e de multicomunicação
extrema mutabilidade do empírico: compreender como "prender libertam das opressões modernistas embasadas na divisão do trabalho,
com" a fixidez de um conceito, para recompactar o heterogêneo em sexo, idade, raça e ainda de espaço-tempo: em suma, do político. 11
homogêneo c, assim, controlá-lo. Entity entre visores e visões, sprawls conceituais, descompreen-
Entidade está além de qualquer faixa etária possível, além do sões, pós-corpos. Vade ultra ... Não somente os jovens são interminá-
dualismo macho-fêmea, jovem-velho, público-privado, individual-co- veis, deslocados, infinitos, desemoldurados. Não somente "eu", mas o
letivo, Estado-sociedade. Entidade dilui como potência do espectrovi- eu tem mil caras e mil nomes. Mil idades. A citação inicial de William
sar as fixações binárias até dissolvê-las no ar, aliás, no espaço: no ci- Burroughs nos insere numa alteração que não é somente da experiên-
berespaço.10 Entidade é o além-orgânica-inorgânico. Desvinculado de cia e do sensível, do conceito e do político, mas num exílio do eu. A di-
qualquer resíduo místico-arcaico, agora enLidade se configura e con- ferença é que as multiperspectivas baseadas no interminável, infinito,
figura novas espacialidades pós-corporais que comunicam e, portanto, deslocado, exilado, desemoldurado podem ser percebidas de muitas
existem através de canais invasivos. Com entidade é totalmente inútil mane'iras: porém aqui são explicitamente reivindicadas como territó-
perguntar se aquilo que era um sujeito agora é um site, um grupo de rios espaciais, metropolitanos, comunicacionais, do conflito e da ino-
amigos, a seçâo de um indivíduo, um coletivo estudantil, uma tribo vação, da experimentação e do desejo. São ex-saltados [exaltados]:
metropolitana, uma multinacional glocal. Se entramos na entidade, entity, vade ultra ...
ela/eles ri de quem continua utilizando distinções úteis no passado,
mesmo que de um passado, diga-se de passagem, recente, do passado
industrial; nâo há nada de natural no modo de ser, sentir-se, classificar-

11 Note-se que há bem outra espessura interminável neste anúnciolbiografia que


10 "Specialized guest ofhonour: General GoH:John Shirley, Raymond Fedennan. An
encontrei num sile, no Forte Prenestino: "Nome e Sobrenome (Rome _ ) is
Annual Convergence of the Bleak & Absurd in Arts & Media. Cyberspace, the
known as Macchina, a digital entity who was bom inAvAnA Bbs (an activist radical
pixellated environment where the material we recontextualize into new forms of
Bulletin Board System of Rome), working as sysop (system operator) in ir and
potential meaning is in many ways 'immaterial'. Whereas the use of junkyard
animating areas free from any kind of moderation: lhe 'Debate Cyberpunk' and
detritus from the post-industrial ruins of everyday !ife has beco me almost
'Nomadism' areas. The Bulletin Board Systems were the spaces of the mutation in
commonplace in the garage-sale poetics of the contemporary art world [ ... I to
aet ofhuman pereeption, through the connection of tools bodies and mind" (em
create para-media construclS that assault the banal procluction values inherent in
<http://www.kyuzz.orglordanomade>). ("[ ... 1é conhecido como Macchina, uma
mainstream culture" (Acker, Web). ("Convidado de honra especializado: [ ... J.
entidade digital que nasceu em AvAnA Bbs (um Bulletin Board System ativista
Uma Convergência Anual do Deserto & Absurdo nas Artes e Mídias. Ciberespaço,
radical de Roma), trabalhando nele como sysop (operador de sistema) e estimulando
o ambiente pixelizado onde o material que recontextualizamos em novas formas
áreas livres de qualquer tipo de moderação: as áreas do 'Debate Ciberpunk' e do
de significado potencial é de vários modos 'imaterial'. Enquanto o uso de detritos
'Nomadismo'. Os Bulletin Board Systems eram os espaços de mutação no ato da
do ferro-velho das ruínas pós-industriais do dia-a-dia tornou-se quase usual na
percepção humana, por meio da conexão das ferramentas corpos e mentes. ")
poética da liquidação de garagem na arte contemporânea do mundo [ ... ] para
Auto-renomear-se Maccltina e definir-se uma digital entity significa que ela/ele/este/
criar construtos paramidiáticos que investem contra a produção banal de valores
eles está realmente ultra.
inerentes à cultura mainstream. ")
Zona em trânsito

Do KaoX
Das ruínas de um bairro de Nápoles, ao calar das
sombras, na antevéspera do melaverso solar, um
grito de aço se levanta, evocando uma era que
passou. Os cibernautas vão a galope, orgulhosos
do milênio vencido. As catedrais do deserto in-
dustrial estão ocupadas durante uma noite por
criaturas biodigitais e fenômenos psicoacús-
ticos. Nas primeiras luzes do alvorecer a luz in-
discreta revelará os semblantes desfigurados do
presente futurável.
[urlo deU'acciaieria
Rave Parly, 19 dejulho de 1997
ltalsider - Bagnoli (NA)

Para um trânsito multi narrativo pelas interzonas das culturas


juvenis, poder-se-iam assumir, como indicadores, duas letras: o K e o
X. A letra K é um indicador das contraculturas juvenis de tipo antagô-
nico que se desenvolveram nos anos 1970. Nela, enfatizava-se alguma
coisa lexicamente estranha ao patrimônio lingüístico nacional e, ao
mesmo tempo, engrossava-se - sobre esse K - um conjunto de alusões
autoritárias que tinham uma matriz americana. K como algo alheio,
que vem de fora e que fixa esse fora num léxico anglo-saxônico. No K,
portanto, concentravam-se cachos de significados que caracterizavam
seu sujeito como alguém portador de domínio. Assim "Kultura" signi-
ficava que a cultura - como forma livre e expressiva do saber - havia
se transformado em algo oposto: na transmissão de valores autoritá-
rios. Ou então "Kossiga" definia aquilo que se tornaria presidente da
República, e que na época era ministro de assuntos internos, como
uma pessoa que exercia um poder policial autoritário contra os movi-
mentos juvenis de oposição. Particularmente contra o movimento de
1977. Nesse sentido, o K de Kissinger - secretário de Estado de Nixon

OP&A editora
42 Culturas eXtremas Zona em trânsito 43

e até dos Kennedy - exercia uma poderosa atração semântica que de- Panthers e coincide com uma pantera livre "verdadeira", que foge pela
terminava seu significado na política dominante. campanha romana. O fato de que tenham sido dois "ex-77", na época pu-
blicitários criativos que enviaram, via fax (era o primeiro viés antagônico
Já nos anos 1980, a partir do movimento da Pantera, essa equipa-
desse meio), o logotipo da pantera a "A Sabedoria okkupada", intro-
ração "K = domínio" se perdeu. Grande foi minha surpresa quando as
duz uma outra inovação nas mudanças semi óticas e também socioló-
primeiras ocupações de escolas, centros sociais e até faculdades ins-
gicas. Importância crescente da comunicação (fax) e dos códigos
creveram em seu léxico um K duplo: tipo "okkupações" ou "Virgílio
(pantera) como ato político-comunicacional. Dois antagonistas do
okkupado". De forma silenciosa - porém eloqüentíssima - assistia-se
movimento de 1977, que se tornaram publicitários, remetem via fax
a um deslizamento de significados exemplificativos da transição para
um símbolo de 1968 (Black Panther), que se torna O logotipo de 1989
os anos 1990. O K perdia seu caráter de domínio autoritário e adquiria
(a Pantera).
ou apenas herdava o sentido do poder: do poder à potência. Essa era a
Para o X, ao revés, o processo é totalmente distinto. Ele não peflen-
transição semântica. Então se produziu uma catástrofe simbólica tão
ce em nada aos panoramas político-comunicacionais dos anos 1960-80.
lenta quanto estranha.
Nunca o X emergiu como algo significativo durante aqueles trinta anos,
Se no passado a pura e nua letra K atestava, em nível simbólico, a
a não ser como sobrenome - escolhido voluntariamente e desconhecido
vontade de reunificar o portador do K para um significado maior ins-
- de Malcolm, para afirmar sua recusa diante de uma paternidade ligada
crito, como já foi dito, no horizonte semântico do domínio (K como
a um sistema classificatório de cunho branco. Um parentesco assimi-
significante do domínio), agora, ao contrário, o K se dessimboliza,
lador que marcha através do signo mais identitário possível, que é o
produz-se uma sua ressemantização e ele se torna signo para algo
nome.
alheio e poderoso. Quem veste o K é, por isso, alguém que é alheio, no
O X como concentrado de um significado supradeterminado co-
sentido de que é estranho ao poder da sociedade, está fora das normas
meça a emergir no movimento punk, com o grupo Generation X: do
dos partidos, é outro em relação às instituições, pouco controlável e
desconhecido à incógnita, mas sempre contra a geração dos pais. Para
quase inexplicável; e, ao mesmo tempo, é também poderoso, não se
afirmar-se nos sites da internet (nas pegadas dos locais pornôs), Em
deixa aquietar nem dominar, mas, ao contrário, sabe exercer seu poder
muitos sites, especialmente de origem norte-americana, a letra aparece
conflitual, sabe praticar novos conflitos. Quem se inscreve no K é,
como código que indica possíveis infrações excessivas. Por outro lado,
portanto, o jovem que okkupa e preokkupa. 12
o X se associa ao extraterrestre, ao outro radical ou paranormal. Nave-
Toda essa, apenas aparentemente inocente, mutação de sentido é gando via internet - onde o léxico utilizado geralmente é do inglês-,
um denso indicador para outras complexas mutações. Por exemplo, o X se conjuga ao excesso, ao irregular, ao alheio, ao pornô. X como
durante aquele movimento estudantil que usou seu nome, sempre no "versus", XXX como luzes vermelhas, XL como "extra large",13 como
final dos anos 1980, também a pantera inclui um deslizamento de "X-file", Mas, sobretudo, o grande X como signo do exstasy, a nova
significado. Ela se dessimboliza, perde o poder afro ligado às Black substância empatógena que irrompe nas culturas juvenis, misturando-
se com a música techno e as raves.
12 Outros Kssignificativos são os de "cK" CCalvin Klein) e da "ShaKe". Para ambos não
é por acaso que o K é maiúsculo: trata-se de um ideograma supradeterminado por J3 5, M, L, XL é o tilulo de um livro já excessivo no formato, de Rem Koolhaas,
um forte poder comunicativo. arquire[O holandêS entre os mais experimentais e irregulares CPuglisi. 1997).
44 Culturas eXtremas Zona em trânsito 4S

Além dessa carga semântica de "contra" e de "proibido", o X assu- da pesquisa pura. Tentar atravessar o eXtremo irá significar, de minha
me outrOs concentrados de sentido: escrevendo x-s, por exemplo, um parte, aceitar o irregular, entrar no incontível, explicitar o incompre-
público avisado compreende que se encontra diante de algo excessivo ensível. 15
(ex-cess). E a publicidade de um perfume utilizou só essas consoantes
ambíguas para sugerir outras tantas ambíguas atmosferas perfumadas. Do extremo ao eXtremo
Em suma, o X, pouco a pouco, tornou-se uma espécie de ideograma Atualmente o conceito de extremo abarca uma série demasiado
que, em virtude da fonética inglesa eX = ecs), acabou por incorporar o compósita de comportamentos, para continuar sendo utilizado de
timbre sonoro do irregular. A medida "extra extra large" como inca- maneira indiferenciada. Ê necessário, pois, definir o âmbito da pes-
paz de conter, a música hardcore como impossível de ouvir, as ima- quisa e o sentido dado aqui ao extremo. Esse termo, de fato, transpa-
gens-grafite como insuportáveis, o pornô XXX como invisível. Muitas rece da publicidade mais inócua, porém agressiva (x-s), ao filme fe-
formas da comunicação juvenil de oposição assumem o X como có- minino de sexo explícito (Romance X), 16 ao político mais ambíguo e
digo (lema) que explode os limites e fica contra os limites. E nisso se vira-casaca ("Vote em Giorgio Fanfani: o centro extremo", lia-se nos
encontram - e não pela primeira vez - próximos, demasiado próxi- cartazes eleitorais em Roma, para as eleições regionais, que passou da
mos, aos léxicos dos publicitários, seriais, websites. E o jogo lingüís- centrista UDR - União Democrática para a República - para a direita),
tico se torna duro. Aliás, X-treme. li às discotecas de tendência, à torcida de futebol mais banal ("bare-
Concluindo, o trânsito do K ao X atesta (de maneira densa de estra- sidade extrema" é o que encontrei num muro de Bari). Das modifica-
tificações de significados) de que forma a oposição juvenil passou do ções do corpo (tatuagens, piercings, cicatrizes, brandings, cf. Bodhipat
conflito político-social, próprio dos anos 1968-77-89 (que assume o K A-rá, 1999) á arte radical (Miglietti, 1999; Savoca, 1999); dos esportes
como concentrado de poder ou de potência, para desmascarar ou rei- radicais que deslocam a competição tradicional com o outro lado
vindicar, K como domínio do imperialismo ou como controle no pró- contra si mesmos e seu corpo, para superar os limites da autoper-
prio território), aos conflitos não-políticos, comunicacionais, metro- cepção e auto-suportaçâo, indo ao encontro de recordes apenas indivi-
politanos, conferidos ao X, que incorpora atravessamentos corporais, duais, ao sexo extremo e sem limites (Reverendo William Cooper,
espaciais, lingüísticos caracterizados pelo irregular, pelo incontível, 1995; Sellers, 1996), até os comportamentos fora dos códigos das es-
pelo imaterial, pelo extra como além e como anomalia. O extremo tradas (pedras jogadas dos elevados, cruzamentos nonstop).
como eXtremo procura ultrapassar esses códigos e esses sentidos.
X não mais o inominável, a recusa explícita do nome, o homem !5 No conhecido livro sobre a X-Generation (invertendo o nome do grupo punk
sem nome (porque o que lhe foi imposto não somente não é o dele, para enfatizar a precedência do X), esse X significa a incógnita, uma letra-incógnita
para uma geração desconhecida (Coupland, 1992). Para mim o X ligado i\ geração
mas é o nome do escravagista de seus antepassados) e sem origens: X é
significa "ex" (à latina), ou seja, que não há mais gerações, que as faixas etúrias
agora o interminável e, por isso, é eXtremo. E o eXtremo não se pode tradicionais estão desaparecendo.
"compreender", não se movimenta na lógica férrea da ratio, não pode I h "Um X enorme atravessa o sexo feminino que domina o cartaz de Romance, de

Catherine Breillar. A diretora-escândalo o explica assim: 'Não é uma classificação


mais ser encerrado nos lugares fechados do conceito, da escritura ou
pornográfica como sugeriram muitos jornais, mas sim um ideograma japonês ou
o símbolo comum à fórmula cromossômica do homem e da mulher'" (Tajé, 1999,
14 "X é a letra do cruzamento, do board crossing, da interzona da membrana osmótica.
p. 33). X cromossômico num M de "mulher".
X é múltiplo sem raízes, identidade sem identidade" (De Giovanni, 1999, p. 97).
46 Culturas eXtremas Zona em trânsito 47

A intenção deste texto é diferente: quer-se transitar ao longo de O partido, assim como o conhecemos, acabou porque se exauriu o
uma determinada multiplicidade de espaços - recortados e fluidos - contexto produtivo e social no qual ele crescia. Aliás, acabou tout
dentro dos quais se experimentam as novas linguagens da comuni- court o social como contexto central para a articulação da forma-par-
cação juvenil metropolitana. Particularmente, aquele tipo de comu- tido e da inovação lingüística. Nenhum segmento social pode aspirar
nicação fortemente inovadora que sai das lógicas tradicionais, dos es- a representar interesses gerais. Esta é a hipótese da pesquisa: diante da
paços institucionais, das práticas sociais, de objetivos universais: e que dissipação social, afinna-se, cresce e se difunde - se fragmenta e se junta
empurra na direção de novos espaços imateriais das metrópoles di- - a metrópole comunicacional. Essa fragmentação - ao invés de ser vista
fusas. Metrópoles comunicacionais. com horror, desgraça e lamentaçãO, por sua "extrema" diferença com
A comunicação juvenil, que me interessa, recusa-se a permanecer o compacto unitário e identitário do social- é percebida como uma
restrita ao âmbito das políticas tradicionais, aquelas políticas nascidas trama decisiva de libertações possíveis, por experimentações nas e
nas órbitas dos partidos de massa pós-fascistas, de rituais obsoletos, entre as linguagens, por mutações dos paradigmas.
retóricas inúteis, organogramas rígidos, congressos superprevistos Esta pesquisa quer focalizar aquelas lascas líquidas das culturas
(o secretário que faz a introdução e a conclusão! Degeneração extre- juvenis metropolitanas que conseguem expressar conflitos e ino-
mada da dialética sintética). Esses partidos nasceram e proliferaram vações entre os fluxos da comunicação móvel. Por isso elas são eXtre-
no tecido da cidade, com as seções difusas territorialmente, com ini- mas. Delimito o campo das culturas extremas juvenis àquelas que se
ciativas públicas para serem desenvolvidas com mediações, entre as movimentam desordenadamente nos espaços comunicacionais metro-
instâncias de vértice do partido e as de base. A metrópole contem- politanos e escolhem inovar os códigos de forma conOitiva. Remover
porânea - que se caracteriza pelas produções pós-industriais, culturas os significados estáticos. Produzir significados alterados. Livrar signos
de consumo, comunicações imateriais - varreu tudo isso. Nenhum lu- fluidos dos símbolos sólidos. É esse fluxo que, para diferenciá-lo de
gar pode ser uma "seção" de alguma coisa maior: uma antecipaçao da um emprego genérico de extremo (esporte-sexo-política-arte), deno-
utopia. Uma "pré-visão". O partido não pode ser "secionado", porque mino eXtremo. Culturas eXtremas são aquelas que, ao longo de sua au-
não se articula mais entre os blocos compactos e identitários da pro- toprodução, se constroem de acordo com os módulos espaciais do
dução e da sociedade. Por isso, ele se dilui socialmente e se concentra intenninável. As culturas eXtremas são inlennináveis: eX-tenninadas: no
de forma personalizada: figuras-ícones em competição pop entre si. sentido de que conduzem a não ser tenninadas, a sentir-se como inter-
Minha proposta é muito simples: considerando inútil e conser- mináveis, a recusar qualquer termo à sua construção-difusão proces-
vador utilizar metodologias extraídas do social, para "classificar" essas sual. Culturas intermináveis enquanto recusam sentar-se entre as
culturas juvenis, escolhi utilizar conceitos oblíquos, visares-indica- paredes da síntese e da identidade, que enquadram e tranqüilizam.
dores, módulos das muitas facetas que emergem da metrópole. Sair do Normajzam e sedentarizam. 17
social e entrar na metrópole significa, para mim, perceber as culturas
17 Interminável aqui não é sinônimo de eterno, pelo contrário: as culturas inter-
eXtremas (X-terminadas) de formas móveis, irrequietas, opositoras. mináveis contêm em seu interior um fluir líquido que não as torna nunca acabadas
Contra toda tipologia, que agrupa estereótipos, procurarei narrar teci- e nunca compreensíveis (fixas). Não há nenhuma referência ao tempo-de-duração,
mas sim a espaços liquidos que também podem durar pouco, mas que contêm em
dos comunicacionais imateriais feitos de fragmentos, estilos, códigos,
scu âmago visões e visores processuais. Cf. o conceito de "líquido" dado no
corpos, techno: teKnologias. terceiro capílulo.
48 Culturas eXtremas Zona em trânsi.to 49

É provável que no meio dessas inovações lingüísticas, entre essas Entre os fluxos multilingüísticos das metrópoles comunicacionais
oposições comunicacionais, entre esses conflitos sígnicos, esteja ge- (imateriais), o fluir dos plurais difunde o prazer sob as fonnas eXtremas
rando-se um novo modo de sentir o político. O conceito sólido por das diferenças.
c:>::celência de político, com efeito, é circunscrito aos lugares da cidade.
Entre os espaços da metrópole, ao contrário, produz-se o não-político
- Extremo estável. Uma primeira inferência empírica para uma plu-
metropolitano (ou o pós-político); algo que não pertence sequer etimo-
ralidade heterogênea do extremo identifica o extremo sedentário - ele
logicamente ao campo da pólis.
também plural e diferenciado - como uma das matrizes apologéticas
O não-político metropolitano é um conceito-montagem que mani- dominantes. O extremo estável é uma prática desconexa que reproduz
festa tensões paradoxais na direção de soluções impensadas, de defini- um modelo sedentário, estático, fortemente identitário (o ultra é uma
ções impossíveis segundo a lógica tradicional, de instâncias explora- fé: seguir o time fora da sede significa ficar bloqueado num espaço
doras através de lógicas antiidentitárias, de conceitos desordenados. imóvel: o estádio, o trem, a curva, a camiseta do time, os slogans).
Através de conceitos intermináveis.
Esse extremo estável e identitário - do qual o hooligan pode re-
Na segunda parte, atravessando espaços móveis e intermináveis, presentar o estereótipo - é o oposto do eXtremo entendido aqui como
utilizo estilos narrativos diferentes, buscando assimilar/assimilá-los a multiidentitário e desterritorializado. É um extremo (mais do que an-
esse fluxo fluido, a essas oscilações paradoxais e até aporéticas. Uma tagonista) "irredutível", auto-encerrado nos recintos do domínio. Em
escritura que, ao explorar esses inner spaces, explora por seu turno a lugar de eXtremo interminável, pode ser um extremo exterminador
escritura, suas ferrugens mono lógicas: e as possibilidades híbridas e em sentido literal, isto é, que difunde a morte sem sentido. É o extremo
polifônicas. do torcedor ainda colado à forma da cidade moderna e até pré-mo-
Para delinear uma etnografia comunicacional aplicada à metró- derna, ultraterritorializado, que reproduz o próprio território circuns-
pole, os conceitos devem ser forçados a abrir significados e leituras crito, gradeado e holístico. O bairro. O quarteirão. É isso, o quarteirão
plurais. Forçar os conceitos significa distorcer suas muitas pluralidades como edifício confere o léxico ao quarteirão como torcedor. Sem iro-
sensoriais. De timbre, mais do que filológicas. nias, metrópoles, fugas. A camiseta do time é realmente uma prisão
Essa distorção assume o singular (isto é, o unitário, o totalizante, o identitária "irredutivel" à fluida comunicação metropolitana desler-
homogêneo) como forma lingüística da simplificação dominante que ritorializada. A moral do torcedor levou às extremas conseqüências
reproduz e dilata qualquer estereótipo; por isso gostaria aqui de sus- lógicas as formas binárias do pensamento.
tentar tramas de múltiplas perspectivas do conceito - antes de chegar O extremo estável é uma normalidade imobilizada num microcos-
aos conceitos líquidos no capítulo final - com o objetivo explícito de mo todo Iocalista. A regra grudenta do vizinho.
atacar o poder lingüístico-político do singular, para afirmar as possí- O extremo estável é um extremo do horror. Ele escolhe os pontos
veis subversões e distorçôes do plural: dos muitos plurais polifônicos, nevrálgicos do atravessamento e da mobilidade - ferrovias, pontes,
heterogêneos e sincréticos que se podem extrair da comunicação elevados, túneis, galerias - e, ao invés de vivê-los como espaços cor-
metropolitana. porais do trânsito e do erotismo, como sexualidade inorgânica, como
50 Culturas eXtremas Zona em trânsito 51

aberturas sexuadas de cimento, como seduções ligadas ao movimento, o prazer de atravessar aqui se transforma no contrário: no horror
transforma esse prazer potencial em horror. de permanecer. Os confins entre prazer e horror se tornam justamente
"Os elevados se sucediam Uns aos outros, como gigantes no coito, sempre mais extremos: quem é obrigado a ficar parado em seu mundo
as pernas imensas de uns cavalgando as costas dos outros" (Ballard, circunscrito e bem-localizado transforma o prazer - que liberta os
1996, p. 81). dons do atravessar móvel- em avançar, amassar, pregar com pedras.
São os jovens estáveis do extremo que ainda não aprenderam (que re-
As rodovias como formas sexuadas pré-históricas e ao mesmo
cusam, que não podem ou não conseguem) a viajar, atravessar, movi-
tempo futuráveis. A viagem como um perder-se diante da emergência de
mentar-se.
coisas-sujeitos imprevistos. Perceber o outro não somente entre indiví-
duos orgânicos ou blocos de cimento inorgânico, mas também entre as
entidades pós-orgânicas. 18 - Sentidos proibidos. Existem outros extremos difusos em outros
Um extremo estável, ao contrário, é irredutível ao cimento sexuado lugares das metrópoles. Enfrentar o cruzamento, violar o vermelho,
do atravessamento: precisa bloquear o carro em movimento, precisa ignorar o código. Vão-se legitimando comportamentos (que os estran-
inserir profundamente o sujeito que transita embaixo. Por isso a mão geiros ou os ingênuos vêem como agressivos) que assimilam as vespas
dele amarra, em nó duplo, elevado, pedra, lance, carros abaixo, corpos e também os carros aos pedestres. Por exemplo, aquele direito de ir na
viajantes. Para esses filhos legítimos da apologia estável, a passagem do contramão, com o qual muitos jovens intermináveis (aqui, no sentido
prazer orgânico aos prazeres inorgânicos e nômades não consegue banal de que brincam com o extermínio deles e dos outros) desafiam
funcionar. Sâo intérpretes insuficientes do gozo possível vivenciado no a sinaleira ou o cruzamento sem controle. É um prazer do "sentido
atravessar os nós corporais dos viadutos, os prazeres físicos da mobi- proibido" exercido contra os muitos sentidos proibidos possíveis: quero
lidade, as contigüidades possíveis entre corpos de carne e corpos de ci- dizer que nesses comportamentos extremos é o prazer dos sentidos
mento abertos, abertos para fora e penetráveis (o erotismo dissoluto que é proibido. O que se deseja e que se introjeta é a proibiçãO dos sen-
de cada desvio rodOViário). São os inimigos pré-políticos da viagem, tidos, sua mutilaçâo. Dessa forma, a estrada torna-se metáfora distor-
também em sua forma banal de deslocamento. cida do corpo: pois não se pode distorcer o corpo deles; em não se
conseguindo explorar módulos infratores ou irregulares, a estrada tor-
na-se o prolongamento do eu, toma-se asfalto do eu, um eu-asfaltado.!''!
18 "Crash é um livro assim concebido: uma metáfora extrema para uma situação
Os sentidos são proibidos não porque se produz uma mobilidade
extrema, um conjunto de medidas desesperadas às quais recorrer somente em
momentos de crise extrema" (Ballard, 1996, p. XIX). James G. Ballard escreveu eXtrema diferente, mas, ao contrário, porque são justamente os sen-
Crash em 1973. Como outros livros dele, em sua escritura se antecipam, ao longo tidos do corpo - sentir-se corpo-sentido - que se bloqueiam, que se
de decênios, sensibilidades, mutações, hibridizações que depois se tomaram lugar-
proíbem, que se multam. Proibição de corpo.
comum. Com ele se afunda num inner space, aquele espaço interno no qual a
narrativa, ao invés de desenvolver-se linearmente, interseciona "percepções
simultãneas" que se misturam constantemente, como um estranho telecomando
que vai para frente e para trás, aquilo que antigamente se denominava particular- I <I Também no amor pode-se desenvolver o enxerto eu-asfalto. Adriana Calcanhoto,
público-fantástico. É como se uma libido ambígua se tivesse cruzado com a em sua extraordinária canção-poema "Uns versos" (no disco Público), diz: "Eu
tecnologia, uma libido-cataclismo que prossegue e alonga as instãncias surrealistas me despeço em pedaço [ ... 1, eu sou pelo avesso sua pele, o seu casaco, se você vai
mais arrojadas. sair o seu asfalto, se você vai sair ... ".

"fi! G! ••
IIBUGTECA SflDRlAl DE fDUCACA~
52 Culturas eXtremas Zona em trânsito 53

Essa infração do código da estrada na verdade restabelece sempre recusa a serem catalogados segundo a lógica sintética da moder-
a autoridade e a legitimação. É em nome da ordem que se "passa". nidade.
Não há desvio ou fuga, mas bloqueio e estase. Aqui o extremo é lite-
ralmente sentido único. É produção de um sentido coagido, que se - o eXtremo extrapola qualquer dicotomia, toda simplificaçãO re-
pode percorrer sempre e somente naquela direção, para ir sempre e de dutora, qualquer holismo que esteja ressurgindo. A multiplicaçãO dos
qualquer maneira àquele "lugar". Cruza-se, para não atravessar. espaços ou interzonas contra a fixidez dos lugares é este outro lado que
Na segunda parte, gostaria de falar daqueles trânsitos comunicacio- está nascendo da metrópole contemporãnea - lado móvel e transitivo
nais de algumas culturas juvenis que fiuem do extremo ao eXtremo. Que - sobre o qual se envolve o olhar. A metrópole comunicacional e ima-
percorrem o eXtremo como margem: e a margem é uma pOrLa que se terial representa uma radical descontinuidade em relação ao modo
abre e se fecha não uma ou duas ou três vezes numa vida, como para tradicional- isto é, sintético-moderno - de ler a cidade. O conceito
os riLOS de passagem étnicos e folclóricos, mas é um abrir-se conti- dialético de sociedade morreu entre os vórtices da nova forma-me-
nuado e um também continuado fechar-se. Ou melhor: a porta como trópole. Sua Grande Coligação Aneliforme - seu loop, sua marginal- é
metáfora da passagem, do transitar ou do atravessar - a porta como li- uma margem eXtrema, uma margem que não fecha, uma margem de
miar -, parece inadequada em relação a uma condição vivendal e lin- Escher que conecta corpos urbanos, corpos high-tech, tecnocorpos e
2o
güística profundamente modificada e em mutação. corpos de carne. Entre os espaços imateriais, existe uma metrópole
inteiramente global e inteiramente local. A nova metrópole transita
nas margens glocais, estende-se ao longo dessas infinitas margens
- o eXtremo transitar metropolitano nunca é existencial, dura-
móveis como GRA 11 individuais, arriscando continuamente o inquieto
douro, modificador de uma vez por todas da identidade coletiva ou
do escorrer, praticando a impossibilidade de diferenciar o exterior do
geracional: nem classes sociais nem faixas etárias dão mais o sentido
interior.
das passagens múltiplas e fragmentárias. O que resta dos rituais faz-se
individual, descentralizado, assimétrico. Configura novas tipologias de
individualidades todas a serem exploradas (as entidades). É a comu- - eXtremos são os espaços imateriais e comunicacionais, não
nicação metropolitana que constrói essa figura polimórfica e sin- porque ali se praticam tabus sexuais anti demográficos datados, mas
crética de espaços pan-urbanos reciclados e recicláveis, espaços-em- porque qualquer distinção urbana dicotômica terminou, e entre um
trânsito e em atravessamento, onde gira um moedor assimétrico que corpo, uma tecnologia, um edifício há cada vez mais estreitas afini-
tudo rompe, desune, dissolve, uma condiçâo panjuvenil que já ex- dades: apaixonadas diferenças que se entrelaçam. A epiderme sexuada
perimenta passagens e fugas impensáveis e incontroláveis entre tran- escorre na pele que difunde a carne, na corrente de música eletrônica
setnias, transgêneros, transcorpos, transdivíduos. Eles praticam a que movimenta os corpos ao longo da pintura descascada de uma ex-
fábrica que muda por um dia inteiro sua identidade e viaja na margem
20 ViclOr Turner, que retomou de Van Gennep o rito de passagem (para as sociedades alterada de uma rave. A música é pele sexuada. Uma tela (Kino, PC, TV,
étnicas) e de Durkheim a visão ordenada do social (para as sociedades
tape, digital diary etc.) é pele visual. Uma parede é pele hardcore.
contemporâneas), embora prevendo a mudança - que chama de antiestrutura
(1986) -, também fica circunscrito, em sua proposta de liminar, a uma visão
demasiado unitária e unificada (cf. a crítica de Rosaldo, 1989). 21 Grande Raccordo Anulare, a marginal de Roma. (N.E.)
54 Culturas eXtremas Zona em trânsito 55

o inorgânico transita no orgânico, a idéia de "vice-versa" não é deter- fordistas. A rave é a morte da pólis. A rave ganha da metrópole. A rave
minada pela reciprocidade, pelo presente ou por outra coisa que res- faz pulsar os corpos-metrópoles.
tabeleça a paridade e o equilíbrio. É desejo de deslocar que se desloca.
São as extremidades do eXtremo. Música-de-carne, pintura-de-pele,
_ eXtremo é o código que dança: é possível realizar o colapso dos
sentidos e sensores, margens que transbordam e que transitam. As
símbolos não mais sob o signo de uma catástrofe de época, mas, ao
extremidades do eXtremo - pelos panoramas mulantes da metrópole
contrário, brincando contra seu poder totalizante e reunificador, pelo
- transitam entre e levantam os novos conflitos comunicacionais
qual o significante é obrigado a arrastar consigo, sempre e de qualquer
metropolitanos. Esses são conflitos policêntricos que - finalmente-
maneira, seu significado, e ali se aquietar sem mais distinções ou se-
não têm "o" projeto (urbano, político ou antropológico), desconec-
parações. A percepção de estar separado gera angústia também nos
tam as leis universais, as normas gerais, qualquer subjetividade da
pensadores mais arrojados (Debord, 1990), e boa parte da filosofia
história ou do ser, qualquer arquétipo do passado que relaciona e
radical contemporânea continua perseguindo a anulação da separação
imobiliza todos os futuros possíveis. As tangentes da identidade são
e a ânsia do apaziguamento com o todo. Por outro lado, o chorismos
arqueologia urbanística.
(a separação como estímulo sexuado para a diferença) pode levar os
símbolos ao exílio e à proliferação jocosa e desrespeitosa dos signos.
- eXtrema é uma subjetividade listrada pelo código de barras que De signos jocosos e desrespeitosos. A dança dos códigos permite afas-
cita, brinca e incorpora a subjetividade outra das mercadorias. Ele ins- tar-se, deslizar, com todas as parcialidades plurais dos "eus", por sobre
creve nome e sobrenome das mercadorias just-in-time em consumo qualquer aventura significativa, jazer sobre cada identidade parcial,
global. A biografia e até a biologia das novas mercadorias-visuais estão negar qualquer poder fundador à conexão lugar-símbolo, descons-
inscritas nessas linhas pretas verticais de espessuras diversas, alfabeto truindo parcialidades duras e móveis, alterando aquela "coisa" que é o
de tipo diferente que só os leitores especiais - prótese no olho, pinças panorama epidérmico do corpo, sem mais respeito por alguma coe-
óticas - retiram, para memorizar a "história" da mercadoria-comu- rência significativa ou simbólica, atravessando o poder sociedade-
nicação e transmiti-la às memórias centrais: as memórias-mundo. identidade-símbolo. Os espaços da metrópole desvinculam-se do
Códigos de barras tatuados sobre peles-visores que, a~similando-se ao poder imobilista dos símbolos, para utilizar zonas alteradas e dan-
valor comunicacional das novas mercadorias, dis.:;olvem seu poder çadas.
reificado. Este ensaio procurará explorar, através de multinarrativas, os pos-
síveis inner spaces do eXtremo e não as práticas de um extremo iden-
- eXtrema é uma música que transita. A música que altera. A mú- titário e territorializado: onde se estendem, se dissolvem e se inovam
sica de novos transes, não mais homologáveis - de acordo com meto- prdticas fetichistas, identidades múltiplas, músicas-em-trânsito, corpos-
dologias passadistas empoeiradas - aos transes folclóricos e menos pós-humanos, danças-de-códigos.
ainda aos transes étnicos. Os novos movimentos techno da música
constroem um corpo que se altera e que é atravessado por sons, por
BPM (batidas por minuto), por ruídos pós-indv.stri:lis e orquestras pós-
capítulo II

Excursus sobre as culturas juvenis intennináveis

1 \l - Rcwind '44

A Internacional Situacionista representou a


última vanguarda histórica do século xx. Toda-
via, ela foi também a primeira manifestação de
uma estratégia cultural que força os limites do
existente e do possível, sem perder-se na utopia.
Mario Perniola (1998, p. 5)

H~lkill1 lky C 1l11l~1 pessoa pálida de óculos grossos, silenciosa, que


parece fora-de-Iugar e que atravessou, mais ou menos, minha geração.
Penso que seu físico colide com a imagem que temos de ele lendo seus
textos. Um desses - Temporal} Autol1omous ZOllC - assinalou uma virada
para compreender os Ou idos riachos do eXtremo. Suas referências cru-
zam elementos de antropologia alusiva, comunicação virtual, resíduos
contraculturais (entre piratas e adivinhos). Aparecem não poucas su-
perficialidades. No entanto, neSSJS TAZ há uma perspectiva entre as mais
relevantes surgidas nos anos 1990. Certamente decisiva para compreen-
der o sentido de eXtremo, da forma como se procura fazê-lo aqui.
Acredito que as referências, do ponto de vista político-comunica-
cionaI, sejam William S. Burroughs ("o legítimo padrinho do avant-
pop", McCaffery, 1998, p. 385) e o ciberpunk. Porém, uma vez mais, é
do situacionismo que partem os interstícios do eXtremo.
As TAZ são exatamente o oposto da utopia. Por seu trâmite se chega
aos novos territórios conceitualmente móveis e líquidos do eX-terminado.
A utopia, com efeito, tem se caracterizado inicialmente como um
deslocamento para um lugar diferente da busca da feliCidade, do go-

DP&A editora
58
Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 59

verno justo; sucessivamente, com elaborações em grande parte de Por outro lado, as inserçôes nas temáticas ciberpunks em geral são
matriz marxista, a utopia deslocou-se no tempo. O tempo futuro. A interessantes. O TAz-nomadismo é deslocado numa contra-rede do ci-
objetividade das contradições estruturais teria impulsionado na dire- berespaço por ele denominada tela ("uma estrutura aberta, alterna-
ção da utopia concreta da sociedade sem classes, como começo da tiva, horizontal, não-hierárquica"), contra toda mediação e "para expe-
história, da história verdadeira, construída conscientemente pelos ho- rimentar sua existência como imediata" por parte do Quinto Estado
mens. E a utopia é universal no sentido de que unifica todo o gênero Neopaleolílico. Em suma, neo-evolucionismo e paleodevoluçãO unidos
humano, é objetiva no sentido de que as escolhas do sujeito são se- na luta.
cundárias, é igualitária no sentido de que se afirma somente uma
O projeto TAl tem uma extraordinária força evocativa que deriva
identidade e se assimilam todas as diferenças.
da junção da Zona (Z como espaço materiaVimaterial, de todo modo
Embora nem tudo seja explicitado, na idéia de TAZ - de modo alu- móvel e psíquico, aberto às novas tecnologias); da Autonomia (A como
sivo e elíptico - não há nenhuma possibilidade de fixar os lugares e en- dimensão individual que conduz a uma recusa radical de toda instân-
tregá-los do futuro a um presente universal e estável, do qual iniciar cia jurídica heterônima: "Somente quem for Autônomo pode projetar
finalmente "a" história universal. autonomia"); do Temporário (T como inicial de sucesso da sigla, en-
Entretanto, como diz um anarcociclista, a TAl é a única coisa origi- quanto enfatiza a importância estratégica do nomadismo contra todo
nal elaborada por Hakim Bey. O resto é uma mistura pop à qual se su- sedentarismo veterano-revolucionário que continua buscando a toma-
cedem, de acordo com formas diferenciadas, leves ironias, paródias cár- da do poder e, portanto, a imobilizar-se no político: T como encrave
micas, utopias piratas, práticas satori, retornos taumatúrgicos, artes móvel, transitivo, oblíquo, sem fronteiras, incógnito, mapa fractal e
rabdomânticas, bandas paleolíticas seminômades, gastrosofias à Fourier, reticular).
saturnais insurrecionistas, reuniões tribais do tipo anos 1960, ecos- Nessa zona temporária, Hakim Bey encrava tudo, com uma indife-
sabotadores anos 1980, festins-potlatch, apaches do consenso, sufi- rença - talvez paródica, certamente pop ou avant-pop - em relação a
ludismos. Estendendo-se na tradição anárquica - porém sem mais nos- cada referência, por assim dizer, "histórica" ou, ao menos, interna à
talgias pela tomada do poder ou pela destruição do Estado (todas as cultura de pertença. Acredito que esse método seja semelhante à tecla
formas do político já emurchecidas) -, para Hakim Bey "a TAl é como do gravador "rewind" •• : um voltar para trás na velocidade máxima,
uma revolta que não se choca diretamente com o Estado, uma operação para tocar-de-novo-ouvir-de-novo-citar-de-novo todo traço etno/filosó-
de guerrilha que libera uma área (de tempo, de terra, de imaginação) e fico-alquímico/religioso-ou-outra-coisa-qualquer epidennicamente evo-
depois Se dilui, para recriar-se num outro onde, num outro tempo, antes cativa de seduções temporárias-autônomas-zonais.
que o Estado a possa esmagar" (1993, p. 14) - um "acampamento de
TAZ como cibergnose, paleologismo psíquico, cabalas noturnas, alqui-
guerrilheiros ontológicos" com toda a tribo em movimento. Citando
mias virgin-ais, santarronices célticas, maroon-cherokee, Mandelbrot-
Deleuze e Guattari, uma TAZ é uma máquina de guerra nômade; e, sem
set fractais.
citar o "neoísmo", é uma psicopatologia em busca do jantar e da festa
O final, estranhamente ignorado, removido ou perdoado pelas
("piqueniques libertadores"); ou então são, com ênfase decadente,
leituras alternativas, é por demais decadente: identifica no empreendi-
"campos de tendas pretas sob as estrelas do deserto" Cib., p. 22).
mento de D'Annunzio, em Fiume, "a última das utopias piratas - a
primeira TAZ moderna" (ib., p. 42) ... Hakim Bey, apesar da invenção da
60
Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 61

sigla TAZ (cujo significado, de qualquer modo, transitava e continua entre espaços mentais e espaços geográficos. A interzona é uma di-
transitando nos âmbitos mais atentos da comunicação ex-terminada), mensão psicogeográfica - uma margem psicogeográfica - na qual é a
é uma fita que se enrola em si mesma, para voltar a enrolar, na velo- percepção psíquica dessa cartografia flutuante que transporta o vi-
cidade máxima, cada diferença passada, e para tocar essas "árias" de venciado para zonas diferentes. É a interconexão do mental e do geo-
modo sincronizado. Em vez de autonomia contra as mediações, a im- gráfico. Num certo sentido não existe mais diferença entre esses dois
postação de fundo é uma aceleração reversc. espaços. Para Burroughs a dicotomia cartesiana entre mente e corpo
Com esse método "rewind" ~.. , podem ser colocadas muitas das não é somente banal: para ele é também obsoleta, incerta, ou melhor,
justaposições apressadas que se difundirão pelos fluidos das culturas flutuante, a dicotomia entre ZOnas geográficas e zonas mentais.
eX-terminadas. Para quem que, como eu, ama o pastiche e o cut-up, é Por isso sua refeiçao é nua, a mais extraordinária metáfora líquida
doloroso admitir que aqui - ao lado de pesquisa e inovação - há depois de Flores do mal, de Baudelaire: porque ela desliza continua-
demasiado reversc. mente entre substâncias aparentemente distintas, mas na verdade en-
trelaçadas como por um zíper. Interconectadas ou, como se dirá mais
Illtcrzonas tarde, interfaciadas. Porém, a interzona não é somente essa margem in
:\s fotografias de Witkin parecem movimentar- between atravessada pela oposição existencial; pode ser também uma
se no universo do perverso e do sacrílego, porque construção violenta do domínio. É preciso lembrar sempre que tam-
lOcam tudo o que é tabu [ ... 1 Enfrenta as proi-
bém o poder pode fixar-se nas interzonas para o controle.
bições que se baseiam no princípio da separação
dos sexos e das crenças, para produzir uns A interzona expressa uma visão alucinada, psicogeográfica do
lableaux fotográficos nos quais convivem freaks espaço. Nos tramados das interzonas os lugares não existem. Eles estão
c mulheres grávidas, lransexuais c animais, dissolvidos. As zonas são nômades, são percorridas, atravessadas. Não
anões e esqueletos, fetos e cães secionados que,
é possível fixar-se, não há sedimentação nas interzonas. Uma zona-
cOl11binando-se com objetos c na lU rezas, ceno-
grafias e panos de fun"do, dão origem a um uni- entre: cris-cross. As determinações espaciais pertencem aos lugares,
verso extremo. onde as certezas identitárias são fixas e institucionais, onde as dicoto-
Germano Cclant (1995, p. 9) mias reinaram e procuram continuar a reinar, onde a política do-
minou. Colocar o prefixo "inter" num conceito de per si já mutante
Uma das referências de Hakim Bey, do ponto de vista tanto literário acentua suas características transversais, ao longo do limite, entre as
quanto político-comunicacional, ê Burroughs. No entanto, uma outra margens liminares, contra e entre as fronteiras.
espessura x-terminada continua fluindo das interzonas, um de seus
Enfatizar todo esse aspecto móvel e líquido no zonal significa as-
conceitos mais intermináveis e incontíveis para a comunicação metro-
sumir também o tempo como algo que não legitima uma apropriação
politana inovadora (além do cut-up).
definitiva - um "estado", em seu significado de condição estável, fixa,
Esse conceito de interzonas foi definido em TI pasto nudo. 2l A estática e, por extensão geográfica, jurídica e política, de Estado -, mas
interzona ê uma sêrie de espaços que se movem in between, isto ê, algo que antecipa e projeta e convive constantemente com seu próprio
automodificar-se, automobilizar-se, autodeslocar-se.
22 Referência ao livro de Burroughs Tl1e nakcd /uncl1 (1959), traduzido no Brasil
como O almoço nu (1984). (N.T.)
62 Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 63
Culturas eXtremas

o tempo é temporário. assim como o espaço. "Genius" era o estudante mais desorganizado e esperto do ano. Vi-
E o espaço é interzonal, assim como o tempo. vaz e atento, alternava-se entre tocar saxofone, ser ator improvisado,
perseguir toda inovação tecnológica, especialmente do computador.
O recife não é mais a metáfora sobre a qual se ergue a cidade fu-
Tinha uma facilidade lúdica em aprender com a web. Estudava pouco
tura: as interzonas navegam ao longo das metrópoles líquidas compos-
e nos limites. Nascido judeu-romano, entrou num grupo de música
tas apenas de presente. Um presente esmigalhado e esmigalháveL
eletrônica, reciclando imagens informatizadas durante os shows.
Agora se podem especificar as diferenças conceituais e de perspec-
Havíamos realizado um seminário experimental sobre a antropo-
tiva, a partir de um ponto de vista do interminável como contexto
logia do corpo tecnológico, sobre os fetichismos visuais e as conexões
fluido da comunicação contemporânea:
com os códigos de barras. Esse código de barras eu apresentei como
os lugares são identitário$, políticos, urbanos, institucionais, sinté- sendo o nome e o sobrenome da mercadoria. Mas também como o in-
ticos, industriais, dicotômicos, sólidos; dicador mais interessante para entender a transição da sociedade
os espaços são plurais, apolíticos, desordenantes e desordenados industrial ao nexo comunicação-consumo pós-industrial. As infor-
sincréticos, metropolitanos, nômades, antiestadistas, móveis; mações que o código de barras dava em tempo real (sobre o tipo de
as zonas são imateriais, pós-duais, anômicas, tecno-híbridas e tec- mercadoria vendida, o tamanho, a cor, o gênero, a área geográfica, os
nocomunicacionais, ciberpsycho, pós-estadistas, intersticiais, li- horários, os cartões de crédito etc.) na matriz da loja inseriam-se dire-
quidas. Intermináveis. tamente no novo processo de valorização da mercadoria-comunicação.
A comunicação pós-industrial assumia uma nova forma de valor agre-
Mercadorias tatuadas gado. E os lugares do consumo (como os shopping centers) tornavam-
se também lugares de prodUÇão de valor.
Este ampliar-se da imagem a pomo de ela tomar-
se irreconhecÍvel é um leitmotiv de La mostra Mas não só isso ... O código de barras emanava também valores
delle atrocirà [The atrocity exhibition]. Isto é o fetichistas. Se era o nome e o sobrenome da mercadoria, sua carteira
que no campo da arte faz Bõb Rauschenberg: faz de identidade na qual estava inscrita sua história de vida, ele assumia
a imagem literalmente pular para cima (blowing
up), aumentando-a.
códigos que normalmente eram próprios das pessoas. As mercadorias
- as novas mercadorias visuais - aproximavam-se de forma perturba-
William Burroughs 0991, p. 4)
dora e animada (neo-animista) dos mundos orgânicos. Mas essa assi-
milação semiótica logo produziu também um processo inverso. Entre
os segmentos mais conflitantes e experimentais das gerações intermi-
náveis, difundiram-se iniciativas múltiplas que utilizavam esse código
de barras, modificando seu significado, fazendo deslizar os códigos
nele incorporados ... incorporando-o. Para dissolver a identidade es-
pectral das novas mercadorias visuais podiam-se inscrever no próprio
corpo aquelas linhas verticais de espessura variada. Assumir a iden-
tidade - tornar-se mercadoria - para destruir seu poder comunicacio-
nal e visual. Poder fetichista. Metodologia fetichista.
64 Cultums cXlrcm~s ExcursuS sobre as culturas juvenis intermináveis 65

"Genius" está prestes a graduar-se. Uma etnografia no ciberespaço: pos transgressores. O fetichismo imaterial como espectro comunica-
uma tese inteligente e apressada. Após ter-me entregue o último capí- cional no qual entrar tecnoludicamente para acabar com qualquer
tulo, sorri para mim ironicamente, vira-se, enfia o dedo na gola, aper- tipo de controle lingüístico e informativo. Uma matriz que irmana de
tando-a para baixo: mandou tatuar um código de barras no pescoço, forma pós-humana e que, ao mesmo tempo, anomiza. Desvincula-se
no começo dos ombros. Embora a tese dele pudesse ter sido escrita das regras férreas do nomos.
com maior cuidado e calma, compreendo que - ao menos para mim- Por meio desse deslizamento de códigos, o nível máximo de mer-
ele entendeu tudo. Abraço-o como se aperla um corpo inorgânico per- cantilização seriada e imaterial transforma-se no seu oposto: em
turbador. Daqui a uma semana haverá a defesa da tese e certamente ele subjetividade anônima e animada. A mercadoria-tatuada torna-se irmã
está mais do que preparado. Incorporou o fetiche-mercadoria, para de corpos jovens ou de obras visuais que expressam e praticam a
dissolver seu poder. Penso também em outros números tatuados nos dissolução da forma-mercadoria por meio de sua imitação incorpo-
antebraços. "Genius" está realmente além .. ou de lado. Parcialmente rada. O código mais extremo de anonimato transforma-se numa des-
fora do domínio. construção de sua própria identidade, incluída desde o nascimento
É contra os rótulos - aos quais agora se reduziu o poder dos velhos Ce portanto compacta e estática), a fim de praticar, subverter e multi-
símbolos - que alguns setores transgressores do conDito juvenil apli- plicar as identidades orgânico-inorgânicas.
cado à comunicação e às artes visuais (lúdicos e tecnológicos) le- Em vez de precipitar-se no indiferenciado e no homologado, nos
vantam o signo do código de barras: um código, por assim dizer, "des- l1uxos comunicacionais do novo anonimato há conflito e inovação: é
naturado". Incorporado, tatuado, armazenado. Um código emigrado um del1uir nos miasmas das metrópoles, sem mais lugares a serem
de sua adesão "natural" às mercadorias-sujeito, para sujeitos-corpos delimitados, nos interstícios das molduras comunicacionais e espa-
que brincam de tornar-se mercadorias, para dissolver o poder feti- ciais, no trash dos códigos imaginários, nas tags digitais.
chista.
Se nas mercadorias foi tatuado o código individual- o código de Fucking Barbies
barras como nome e sobrenome da mercadoria de alto valor com uni- Quero preparar um terreno estéril na qual
noresça uma vegetaçâo pestilenciaL
cacional agregado -, esse mesmO código de mercadorias-tatuadas foi
Tcrence Sellers (1996, p. 13)
extrapolado, descontcxtualizado c selecionado como nível de subjeti-
vidade adequado ao mundo das mercadorias-tatuadas c inscrito em
seus corpos ou montado com o cut-up em fotografias ou instalações
visuais.
o código de barras é agora uma matriz. Uma espécie de mãe
Cmater) seriada e alterada que transmite - em lugar do sangue - núme-
ros em forma de linhas horizontais de várias espessuras e distâncias,
que assinalam o "nome": uma descendência artificial e informatizada
das mercadorias que não é nem da linha materna nem da paterna, mas
da linha-matriz. Que irmana mercadorias-tatuadas, anes-vivel1les, cor-
66 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis interminâveis 67

A festa interminável ironiza e trespassa o poder arcaico dos secretas, de estratégias recombinatórias, de desmascaramentos parado-
símbolos. E o derrete. Ao invés de as partes separadas serem reunidas xais e fetish.
ao todo halístico, são vivenciadas e representadas em sua parcialidade O significado de Barbie não está circunscrito na jaula de sua repro-
eXtrema. Durante esta festa, no Forte Prenestino tocam as Fucking dução seriado-global, mas pode explodir e sair com toda uma carga
Barbies para uma revista nova - Torazine - que se realiza no limite e desviada e irreverente.
contra os limites, além das zonas de controle e da norma frontal. A São muitas as experimentadoras de vanguarda ou da mídia que uti-
festa é oblíqua como os olhares de quem a vivenda. Durante sua rea- lizam os ícones pop para entrar neles, vesti-los e fazer-se vestir deles,
lização, atuam-se novos e improvisos signos indisciplinados. Signos para vestir aqueles códigos como se veste uma máscara de carnaval:
apolíticos e inquietos. Os fluxos das novas formas para uma pós- mudar o sentido, mudar a identidade, alterar os vínculos comunica-
política comunicacional estão no corpo performado desses signos. donais. Barbie é um desses ícones. Se houvesse um tipo de classi-
Signos opositivos. Signos lúdicos e citacionistas: extrapolados de toda ficação geral, talvez a boneca-das-bonecas alcançaria uma das maiores
estação da comunicação midiática. Uma espécie de ultramodernariato pontuações nas imitações, citações e descontextualizações. Barbie
performativo da mídia. atrai porque é conhecidíssima. Porque é ícone global. I'm a Barbie girl
O espaço da festa pratica a explosão em raios dos significados. A in a Barbie world. Uma sutil atração fetish provoca aproximações con-
cultura nacional-comunista é deglutida como pop. Avant-pop. A revis- flitantes para "brincar com": o que não foi possível quando menina é
ta é avant-pop e também as que festejam o são, embora com estilos possível agora na idade adulta, de forma libertadora. Usar o fetichismo
diferentes. da boneca como método para atravessar/sentir/incorporar seu sex
"O avant-pop associa a atenção da pop art para bens de consumo e appeal inorgânico.
mass media ao espírito subversivo e às radicais inovações formais da Também Barbie é interminável.
vanguarda" (McCaffery, 1998, p. 371). Nesse sentido, as imagens-chave As Fucking Barbies entram nesse contexto. Trata-se de um núcleo
da cultura popular difundidas pela mídia - "já isoladas de seu típico de garotas muito jovens que é difícil definir em termos tradicionais.
conteúdo comercial" (ib.) - podem revelar um fascínio e~tético que, Num certo sentido, é um grupo musical. Mas não apenas isso. Pode-
no mesmo momento em que foi encenado, mudou radicalmente de riam ser vistas também como feministas; porém, estou certo disto, as
sentido. Um extremo deslizamento dos códigos que - conjuntamente primeiras coisas que acontecem no palco fariam empalidecer de nos-
- expõe e dissolve fetichisticamente os fetiches pop. Diferentemente da talgia qualquer feminista bem-estruturada. Elas representam e prati-
pop art (que "se inclinava a apropriar-se dos materiais da cultura pop, cam uma das formas possíveis da política instável. São pós-feministas.
com a finalidade de uma reprodução fiel sem fazer transformações"),
As novas tecnologias estão presentes na sala: o computador é um
o avant-pop se entrega a estratégias comunicacionais muito mais
instrumento musical como uma bateria enlouquecida e as duas guitar-
flexíveis contra a representação neutra dos materiais originais. Ou,
ras elétricas. As vozes se alternam no palco - não existe, de fato, ne-
melhor, as produções da mídia tornam-se uma espécie de matéria-
nhuma voz solista -, brincam irônicas e destrutivas com todos os
prima a ser explorada, manipulada e transformada de modo criativo:
códigos no "feminino". Triunfa o artificial mais sujo, a citação mais
elas não são imutáveis ou confinadas nos limites de seu significado; ao
kitsch, o estereótipo mais plastificado. Depois - improvisadamente,
contrário, podem tornar-se uma fonte inexaurível de ressonãncias
68 Culturas eXtremas Excursus sobre as cultums jllvcnis intermináveis 69

sem um crescendo, mas pela fratura - o jogo se torna duro: uma identidade fixa. O nomadismo midiático à moda Barbie é duro, é eX-
explosãO de violência musical, textual, corporal. Tudo se move por tremo, sem regras nem ordens, sem tradições nem símbolos. É eXtre-
códigos duplos, triplos, por níveis metacomunicativos complexos. mamente desrespeitoso. As novas Barbies não se importam. Estão fo-
Todo o sentido se desloca continuamente de seu significante instável e didas. No sentido de que são espertas, maliciosas, fortes.
móvel. Aqui o prazer de perder-se reside na prática ácida dos códigos, Não há mais continentes a descobrir (multi étnicos e multicultu-
sem piedade nem respeito por ninguém. O significante perdido: e os rais) ou utopias a serem procuradas: aqui se desvelam constantemente
corpos descoloridos e recoloridos passam de frame em frame como espaços em pedaços, pedaços-de-espaço, espaços de corpos, de roupas,
as páginas do Pc. Corpos como os hipertextos que viajam sem ordens de signos, de cimento, de somY
continuativas. Sem fim e sem ordem. O interminável é irredutível a Elas praticam um fetichismo metodológico espontâneo: uma for-
qualquer instância sintética, dentro da qual uma esquerda cheia de ma inapreensível que dissolve o poder do fetiche-barbie, incorpo-
bom senso antigo continua prosperando, carregada de ressentimento rando-o. Elas desestruturam seu poder midiático, brincando em seus
pelos incompreensíveis sentidos dos outros e de legitimação para sua territórios instáveis e apoliticos. O apolítico que experimentam e
ética. transgridem desloca-se entre espaços midiatizados e corporificados.
Seus corpos-barbies aparecem como um cenário panoramático, Transformam o fetiche visual de símbolo todo-poderoso a signo apolí-
como bodyscape: uma forma complexa e plural de códigos que desa- tico, signo entre os signos, sem mais valor nem poder. Como um feti-
fiam a compreensão e que transitam instáveis ao longo de linhas de che transportado longe de seus territórios locais.
separação sempre mais incertas, entre corpos e panos, entre peles e Diante dessa reviravolta dos códigos, a política - como continua a
plásticas, entre natural e artificial. Subitamente todas se transformam ser emitida nas totalidades dos partidos que sobreviveram e a dos
em CharlieS angels, com revólveres espaciais, trejeitos e perucas como jornais televisivos - parece uma curiosa arqueologia do poder. Essa
mídia-citações. O avant-pop transita de op cit a mídia cir. Porém, no política já está reduzida a um pan-óptico cego, que movimenta conti-
momento seguinte - o jogo irônico, uma carnavalização midiática, em nuamente seu monóculo apagado entre quartos vazios: um visor alar-
que param felizes por algum frame - derrama uma dureza sonora gado em 360 0 que não é somente não-vidente, mas que, mesmo que
eXtrema, irredutível e in audível. Um som-grito interminável. conseguisse voltar a ver, descobriria que em suas celas a serem contro-
Como dizendo: agora vomitamos em vocês aquelas que vocês de- ladas não há mais ninguém, porque faz tempo que suas habitantes
sejavam que fôssemos e que por um instante fizemos vocês acredita- saíram e estão experimentando uma maneira instável e inaudível de
rem que viríamos a ser. Porque não nos deixamos enganar por elas: so- comunicar as tramas da mixagem do pós-político.
mos nós que as enganamos.
Cada um, na sala do Forte Prenestino, pode entender o "fucking" 23 Encontrei boas afinidades entre as Fucking Barbies e Pau/lwork girl, de Shelley
Jackson. Cito algumas reflexões de George Landow a respeito do digital collage:
como lhe parece e agrada. Não é tanto que a Barbie desapareça e se "O brilhante hipertexto de Shelley Jackson, Patchwor/, girl- parábola de escritura c
deixe foder, mas que cada uma, por um instante (ou pelos instantes de identidade -, gera tanto temáticas quanto técnicas de um tipo de escritura-collage
intrínseco ao hipertexto.Jackson, cujo livro foi por ela editado como ilustradora e
que queira), possa ser a Barbie que os outros imaginam que ela seja autora, cria um collage digital para além de suas próprias palavras e imagens,
(ou que gostaria de ter sido) e fature tudo e todas. A corporalidade se- quando narra acerca da companheira feminina do monstro Frankenstein" (Web).
xuada não está mais dirigida e bloqueada num gênero fixo ou numa Para Landow, esse hipertexto é uma aplicaçào da mu\rivocidade de M. Bakhtin.
70 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intcnninávcis 71

Fikafutura" própria estrutura do pensamento. Interessa-nos porque não quer ter


"É fácil sofrer nos ossos ou na casca! Mas os razão, aceita as diferenças, talvez pudéssemos chamá-lo, na Itália, de fe-
vazadores nos nervos! Desrroçam de forma mais
minismo das diferenças. Não existe um simbólico feminino de refe-
tcrrivel e deliciosa" (Emily Dickinson) ... E o
que é um sofrimento delicioso? A casca contra- rência. Qualquer purismo é aliado do poder, agora é o tempo da conta-
posta aos ossos é a pele humana. Geralmente só minação, da indeterminação, da incerteza, da anti/identidade". Não há
têm casca as frutas ou o queijo. Se o corpo em mais um inimigo definido, bem como não há mais o outro uniforme.
Dickinson tem uma casca, significa que pode
ser descascado.
"O sujeito do ciberfeminismo é o sujeito queer. Queer é uma cate-
I>;I{RFU~~ Camille Paglia (1993, p. 835) goria que não define, porque se atém às identidades flutuantes, que
subentende a idéia de um eu não mais vivenciado como estável, imó-
Fikafutura é uma revista ciberfeminista da qual saíram dois nú- vel, mas de um eu como processo." Esse eu flutuante (um eu-queer),
meros e alguns ensaios em Decoder (1997-1998). Inclusive o subtítulo para poder arranhar o poder histórico dos dualismos, "deve produzir
é bem explícito: "Secreções Ácidas Ciberfeministas & Queer", tendo mudança, fazendo-se seduzir pela mudança". Fihafutura vai "investigar
ao lado o ícone de uma "bad grrrl". Sua linguagem é influenciada pe- os interstícios, as fraturas, o imundo, o abjeto. Arte radical, sexo ex-
las correntes mais inovadoras do pós-feminismo dos EUA, em primeiro tremo, pornografia, esquizofrenia, emprego viral da linguagem". So-
lugar Donna Haraway, depois Sandie Stone, Kathy Acker: "O movimento mente após ter atravessado o orgasmo, uma nova linguagem possível

do meu clitóris é como um andar/ Este movimento aquieta a onda! se apresenta, uma linguagem outra. Tudo isso se liga às tecnologias

Não há nada! E aqui se insere a linguagem" .25 corporais da comunicação, pelas quais a linguagem toma-se mercado-
ria de alto valor agregado e levanta-se o corpo imaterial, um corpo
No editorial, o ciberfeminismo "antes de mais nada foi um desejo.
"evanescente" que "de invólucro físico torna-se código". E por isso a
Não estaciona nas questões especificamente e historicamente femi-
necessidade de novas categorias para descrever "novos corpos".
ninas/feministas I ... ]. Será somente com o surgimento de um gênero
Fika incorpora um shift de linguagem: dirige-se para o gender e não
indiferenciado, multiforme, flutuante: como construto tecnolingüís-
para o sexo - ela inclui, não exclui. Todos os sujeitos-entidade podem
tico". Ele parte de uma posiÇão pós-moderna, no sentido de que co-
ter uma fika. Fiha é corpo-ciborgue. Por isso, citando Sandy Stone, ela
loca "em discussão as próprias raízes do pensar humano", para buscar
implica "uma reescritura radical do conceito de indivíduo deli-
"uma ruptura completa com as categorias com as quais pensamos o
mitado".
mundo. Não se trata mais de mudar alguma coisa, mas de desmontar a
Um outro aspecto analisado em profundidade aborda a diferença
entre erotismo e pornografia, posicionando-se favoravelmente à se-
24 No jargão popular italiano, "fika" significa "vagina". (N.T.)
gunda, de modo eXtremo: "Combat porn" - pornografia política poli-
25 "A coisa mais feliz, ao se ter uma conversação com a magnífica escritora americana
pós-punk, pós-feminista, com piercings e tatuagens, Kathy Acker, está no fato de ticamente incorreta. Em primeiro lugar, atacam-se as várias posições
que suas respostas às perguntas de uma entrcvista assumem uma qualidade elíptica. mainstream (decentes, católicas, feministas, marxistas ou feminazis-
Como se, em suas narrativas, o leitor fosse privado dc qualquer equilíbrio c, ao tas) que se posicionam higienicamente a favor do erotismo; depois se
mesmo tempo, fosse concentrado, sem nunca mais saber se ele está dando uma
resposta exata ou então sai por uma tangente bizarra, mas, de alguma forma, explicita a escolha de uma terminologia hardcore por ser "eticamente
concctada" O. Webster, 1996, Web). Uma multisequentiaJ narrative. correta" .
Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 73
72 Culturas eXtremas

Mas então o que dizer de Nina Hartley, atriz de mais de trezentos filmes hard Emily Dickinson é uma fikafutura. Sua auto-reclusão foi um protes-
e envolvida há muitos anos numa estimulante relação sentimental de três to contra as exclusões formais e implícitas às quais muitas mulheres
(duas mulheres + um homem), que se define uma pornostar feminista e eram obrigadas. Camille Paglia - entre as primeiras a perceber no por-
sustenta que fazer "pornô" deu·lhe a opo[mnidade de emergir e definir-se nõ infrações desejantes extra familiares - reivindica sua eversão poéti-
como mulher, de iniciar um nOVO modelo relacional com os homens, muito
co-política e a cruza com um corpo-casca. A poesia é como um corpo
mais paritário, de aprender a comunicar c conviver com seu próprio corpo?
feito de signos a serem descascados. Algumas de suas criações poéticas
Citando Nadine Strossen: "O fato de que a pornografia sempre se - o delicioso sofrimento, os trespassamentos, o corpo porta-agulhas, o cé-
rebelou às construções convencionais é a razão pela qual sempre pro- rebro deslocado - podem mudar de signo e proliferar não mais como
vocou preocupações entre os moralistas e os políticos conservadores". suplício, mas como brincadeiras lascivas para nervos expostos.
E, além disso, Fanny Fatale e Shannon Bell "ensinam às mulheres co- "Dickinson se encontra em sua fase sadeana, como uma lua sangüínea
mo encontrar seu ponto G e como ejacular" .26 ao zênite de seus apetites sexuais" (1993, p. 838). No ciberfeminismo,
A revista reivindica uma "sexualidade feminina explícita e não-re- que dissolve os dualismos, podem incrustar-se aquelas que Camille
produtora, mas também como proponente da dissolução dos códigos Paglia define como técnicas de au(o-hennajroditizaçoes.
binários de controle, em harmonia sísmica com o pensamento trans- Enfim, nas páginas centrais em cores, não podia faltar O título se-
gender [ ... J. O hard não reforça os estereótipos heterossexuais nem a riado SBARBlES ADVENTURES cuja história se intitula "O Mamaezão", com
lógica monogâmica, mas propõe uma infinidade de variantes - combi- uma ciber-Medusa que diz "Bem-vindas ao pesadelo" às bad grrrls e a
nações - possibilidades em correspondência com a infinidade de pos- chegada dele, o Mamaezão Italiano Campeão Eurostat de convivência
sibilidades de in/definiçâo da identidade de gênero ou na forma de ex- com a família que culmina com o "mamaezãocídio scum".
pressão da própria preferência sexual". Citando Paula Webster: "A
pornografia implica que nós poderíamos achar sexualmente interes- Corpos inorgânicos
santes todas as raças, os gêneros, as idades e as formas, mesmo que Sempre gostei de trabalhar com os refugos.
apenas em nossa mente". Coisas que são jogadas fora, que não são boas e
todos o sabem: sempre pensei que elas têm um
26 Anos atrás, num encontro nos EUA, algumas sociólogas feministas exibiram um grande potencial de diversão. É um trabalho de
vídeo militante no qual se mostrava didaticamente como é que uma mulher pode reciclagem.
alcançar sozinha (masturbando-se) a ejaculação. Para mim foi uma surpresa
Andy Warhol (1983, p. 79)
enorme, pois ignorava essa possibilidade Ce n5.o era o único ... ). Num manual de
ginecologia, do qual perdi algumas referências bibliográficas (o título é As bases
biológicas da função reprodutiva, um manual para o pessoal paramédico), encontrei
a seguinte citação: "Todavia, a recente teoria dos dois orgasmos, clitoridiano e
vaginal, encontrou uma nova sustentação na hipótese da existência, na vagina, de
uma área de Grãfenberg CG) extremamente sensível à pressão profunda. Essa área
estaria situada na parede anterior da vagina, aproximadamente na metade, entre a
sínfise pubiana e a cervice próxima do colo vesical. Todas as mulheres possuiriam
essa área, que seria constituída de tecido glandular, semelhante ao prostático, que
secreta ácido prostático fosfatásico na uretra, através de uma série de finos canais.
A estimulação continuada da zona G leva à ejaculação, a panir da uretra, de um
líqUido semelhante ao prostático" Cp. 305).
,

74 Culturas eXtremas Excursus sobre as cul turas juvenis intermináveis 75

Em Bolonha, no viés dos Mutoid Waste Company, um grupo per- Esses autoconstrutores-autoconstruídos realizam collages inespe-
formativo interminável- os Autoconstrutores - elaborou algumas ex- rados através de elementos incôngruos que deslizam do erótico ao
periências significativas para um discurso que assiste a progressivas exótico. Alguns manequins femininos são secionados e encapsulados
aproximações entre corpos e muros, orgânico e inorgânico, paisagens num furgãO, como cadáveres vivos; uma montagem de pedaços de
de carne e panoramas visuais. Em 1996 (antes de desfazer-se como gru- corpos e de pedaços de furgão, cadáveres incorporados pelo furgão
po), eles realizaram uma experiência numa extrema periferia de Ro- como depois de um crash rodoviário, um quebra-cabeça de humano,
ma, Tor BeBa Monaca, onde - como é comum para eles - recolheram de falso-humano, de quase-humano, de ainda-não-humano, um corpo-
objetos abandonados ao longo das estradas, para reuni-los de acordo coisa que corre cheio de cadáveres mutilados. Esses cadáveres-mane-
com uma nova ordem e, finalmente, produzir uma obra de arte lúdica quins (manikins-corpse) são sedutores, são um resultado em mutação
e descontextualizada. Uma espécie de deriva para eletrodomésticos produzido por um sex appeal inorgânico. Como para o fotógrafo ex-
abandonados, aparelhos sem mais valor de troca, nem valores de uso, tremo Witkin - ou Andreas Serrano, que realizou um portfólio sobre
tecnologias perdidas como cães abandonados. uma morgue sensual, onde cadáveres inorgânicos são erotizados.
Esses autoconstrutores praticam uma estetização de coisas rejeita- Realiza-se uma continuidade lingüística e narrativa entre os auto-
das, descartadas, abandonadas. De mercadorias mortas. Pelo corte e construtores que sentam em cima e dentro do veículo, o próprio fur-
montagem, voltam a viver novas biologias e novas biografias como al- gão e os manequins secionados e cadaverizados: é uma corrente se-
teridades alheias que incomodam. Dessa forma, TVs-mortas, esquele- miótica estetizante. Mediante esse deslizamento de códigos, toda
tos de mercadorias, tomam forma em novas subjetividades imprevis- borderline entre o sujeito e o objeto, o vivo e o morto, o corpo (body) e
tas, por meio de revestimentos de aço enrolado-enferrujado. o cadáver (corpse), o orgânico e o inorgânico, a biology e a ironlogy
Também o ferro é incorporado através do piercing: em qualquer aparece como uma arqueologia lingüístico-industrial.
parte de seus corpos. O metal conecta o orgânico com o inorgânico, Finalmente, o furgão vivo pode continuar sua corrida-performance
construindo corpos novos, bodyscapes, nos quais a diferença entre o ao longo da periferia de Ior Bella Monaca. Um furgão estetizado cheio
artificial e o natural pertence a arqueologias anatômicas. Os Autocons- de seres reunidos: contemporaneamente todos vivos e todos mortos.
trutores autoconstroem também seus corpos como novos panoramas Corpos mutóides que vão de encontro à ordem vigente de uma estéti-
visuais. Suas músicas pós-industriais são emitidas por instrumentos ca enfaixada, a favor de uma estética do sentir e do sentir-se.
ferrosos extraídos de cadeias de montagem já inexistentes, como de
oficinas de um deus Vulcano-toyotista. Durante as atuações passam Torctta
tecnologias comunicacionais em circuito fechado do tipo lV-monitoring, Os plagiários reconhecem o papel que a mídia
que exibem ao vivo piercings aplicados nas partes mais impensadas, desempenha no mascaramento dos mecanismos
de Poder e procuram desagregar essa atividade.

.,
tattooings exagerados, cicatrizes extremas. O corpo deles é autocons-
Stewart Home (1997, p. 51)
truído de modo semelhante à junção de suas máquinas biológicas: o
resultado é um estado alterado das mercadorias, isomorfo ao estado
alterado do corpo. •• ••
'~!l THUÊt~'MAmt~'
Ambos são mutóides. ,;~
~il
4.},,,,,.. , ,~J: LuzyL_",,=--~=~
ftliS
IIBUOIUA SflOR/AI jjr [;;!i:',.I.
76 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 77

Nos primeiros anos da década de 1990, realizou-se uma festa na Tudo isso significa trash e produz a Toretta. Aliás, Toretta style, por-
entrada da Faculdade de Sociologia. Não foi uma festa "normal", em- que com ela o estilo-de-vida se torna mais importante do que a políti-
bora se apresentasse assim: uma festa de primavera. Vieram alguns rapa- ca tradicional. A palavra - que se escreve rigorosamente com um R só,
zes do centro social mais antigo e prestigioso de Roma - o Forte Pre- mas que se pronuncia com dois e que deriva da Lorre do Forte Prenes-
nestino 27 - e instalaram aparelhagens não só muito dispendiosas, mas tino, onde foi inventada - introduziu numa certa comunicação juvenil
também adequadas à reprodução interminável de música, de lTIodo a uma inovação lingüística ligada à sensibilidade e também a algo mais
impedir o desenvolvimento normal das aulas. A entrada se encheu de complexo que dever ser entendido. Do contrário, como ocorre com
muitos estudantes que começaram a dançar com alegria e libertação. qualquer turma de estudantes que atravessa as metrópoles, os jorna-
Mas a novidade surpreendente estava justamente no tipo de música listas e comentaristas políticos, privados dos códigos para interpretar
para aquele tipo de conjunto de jovens. o que está acontecendo, confundem com pobres rapazes manipulados
e homologados pela mídia esses jovens intérpretes desconstrutores
Os organizadores, com efeito, participavam das experiências mais
que, pelo contrário, brincam com níveis múltiplos de significado, de
radicais em todas as linhas (política-indumentária-alimentar e, natu-
modo extremamente refinado. Daria vontade de dizer que a homolo-
ralmente, musical) de seus estilos de vida. No entanto ... a música dis-
gação está somente no olhar incerto e chato de jornalistas e poli-
parada dos alto-falantes parecia a mais tradicional e massificada. Ou
tólogos.
melhor, não era só música, mas também alguma coisa mais que, entre-
tanto, sempre pertencia à área da música, ao menos de alguma ma- "Goldrake" e "Jeeg robot" não eram cantados e dançados para
neira, e de acordo com uma certa medida. Siglas de seriados televisi- regulamentar a submissão ao poder centralizador da mídia, por parte
vos eram mixadas com jingles de propagandas conhecidíssimas e com dos jovens" antagonistas". Ao contrário, os espaços liberados para as
os maiores hits: só que todos eram rigorosamente de uma dezena de festas noturnas ou zonas temporárias - como a entrada de uma facul-
anos aLrás. Eram os contextos sonoros - os soundscapes - que tinham dade - eram percorridos por soundscapes ritmados pelo cut-up. Cor-
acompanhado o crescimento juvenil na transição da adolescência da tar e costurar fragmentos musicais diferentes (pop, jingle, serial, clipe
qual tinham escapado. Mas tudo isso significava e significa ainda hoje etc.), encaixar um dentro do outro produzia um jogo semiótico que
algo mais. pulsava em planos múltiplos: brincava-se com tudo aquilo com que
eles teriam gostado de "brincar" - eles meninos ou adolescentes - para
27 "O Forte Prenestino, Centro Social Ocupado e Autogerenciado (CSOA) de Roma,
inseri-los nos quadrinhos culturalmente comunicativos, normativi-
foi ocupado no dia 11.' de maio de 1986. Tem uma estrutura de aproximadamente
treze hectares, composta de muitos quartos e amplos espaços verdes que, pela zados e tranqüilos, enquanto agora era a vez deles de tratá-los como
aUlogeslão e pela autoprodução, experimentou, projetou e realizou inúmeros simples citações. A brincadeira das citações musicais de massa (ou da
eventos culturais e político-sociais, mediante o auto financiamento. Em seu interior
funcionam infoshops (livros, revistas, fanzines e música do universo da au- mídia). Mass cit.
toprodução), salas de cinema, salas de concerto, salões de chá, choperia, cozinha, A sociologia era ensinada (antes de saírem os livros sobre o assun-
ginásio, laboratório de desenho, serigrafia, tanoo studio, sala dos circenses,
laboratório de gráfica, estética e piercing. Ao mesmo tempo, continuam os trabalhos to) trash ao vivo, com DJ do Forte e estudantes dançantes, aplicando
para a realização dos pontos de acesso públicos e gratuitos à internet, por meio de uma série de inovações sociologicamente incompreensíveis:
cabos em toda a estrutura e da realização de abrigos informatizados que operam
com free software. As páginas da web do Forte estão em continua atualização; fragmentava-se o poder musical-sonoro da mídia e recompunha-se
aconselhamos a dar uma olhada ao menos duas vezes por semana. By courtesy of o mesmo ao bel-prazer;
AvAnA" (Web).
78 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 79

faziam-se as contas com um passado visto como opressivo e pode- Algum tempo depois, telefonei-lhe para dizer que desejava levar ao
roso e do qual nos havíamos libertado (ou tentávamos nos libertar), Forte os estudantes do primeiro ano, pedindo-lhe que apresentasse o
brincando com ele; esse passado não era mais todo-poderoso e por- centro social e que fosse, por assim dizer, seu guia. Naquela noite,
tanto podia ser debochado, podia-se brincar com ele; aproximadamente cem estudantes entraram pela primeira vez no Forte
finalmente se podia rir das e dançar com aquelas potências sonoras Prenestino, um espaço realmente especial e, de qualquer modo, per-
que haviam sido julgadas normalizadoras e que, ao contrário, era turbador, para quem proviesse de contextos diferentes. Os estudantes
possível vestir como símbolos mortos para transformá-los em sig- ficavam muito unidos, como para proteger-se diante de um ambiente
nos lúdicos; estranho. Mas Luciano chegou pontualmente e explicou como o Forte
significava expressar a capacidade de subtrair o poder dos símbolos havia nascido, sua ocupação, na época fazia quase dez anos, sua bio-
que buscam e reclamam reunificações totalizantes entre partes se- grafia conectada com essa experiência. Estava orgulhoso e tranqüilo.
paradas (significantes e significados). Agora esses significantes (as Na noite úmida do Forte, no meio de um dos cruzamentos mais
partes ascensionais dos símbolos) não tinham mais poder e gruda- cheios de grafites e poças d'água, Luciano explicava o sentido da ocu-
vam-se a seus significados para revelar o que eram: tentativas falhas pação a estudantes do primeiro ano: alguns filmavam, outros gravavam
____ de agregação unitária e identitária, homogênea e totalizante. E re- ou tomavam notas.
duzidos a simples jogos citacionistas sem poder algum. Dessim- Um pouco por ironia pessoal, pela capacidade de perceber proces-
bo lizan tes ... sos subterrâneos, por descobrir fluxos dissolventes e fluxos constru-
Toretta significa, por isso, construir e difundir o trash, a partir dos tivos na direção de estilos comportamentais trash: por tudo isso e muito
setores mais antagônicos e conflitantes das culturas juvenis. mais ainda, Luciano - juntamente com Corrado - inventou a Toretta e
Pelo final dos anos 1980, Luciano era um dos primeiros jovens a assim ambos se tornaram os DJS Luzy L & Corry X. Em muitos centros
usar piercings nas orelhas e no nariz. Apresentou-se, com uma amiga sociais, as noitadas Toretta enchiam cada espaço, favoreciam as co-
dele, ao Instituto da Resistência, em Roma, onde estavam lançando um letas, multiplicavam as ironias pessoais e as possibilidades de acelerar
livro sobre os centros sociais. Luciano ficou silencioso por todo o os processos descritos antes sobre o citacionismo libertador descons-
tempo. No final, quando o lançamento, presenciado por poucas pes- truído pela mídia-mix-messages. No Forte organizaram também um
soas bastante distraídas, tinha terminado, tomou O livro com dois encontro sobre "Toretta e o trash", com uma iniciativa espontânea de
dedos, o fez ondular e perguntou quem tinha autorizado a escritora a lançamento de peixe em cima dos relatores (entre os quais eu): as deri-
tirar aquelas fotografias no Forte. E disse que ele não gostava das vas alternativas nem sempre brincam só com citações.
pessoas que criavam suas fortunas pessoais escrevendo sobre os cen-
Agcra Toretta se afirmou também em ambientes "normais", com
tros sociais, aos quais não pertenciam por sensibilidade e cultura. Lu-
grande difusão de gente que afina cada VeZ mais a descontextualização
ciano tinha um bocado de razão, apesar de seu discurso apresentar
e engrossa uma diversão leve. Porém, esses andares em círculos con-
uma desconfiança em relação a todas aquelas pessoas que falam dos
cêntricos (da inovação à repetição) são normais na comunicação em
CSOA como "externos", sendo assim incapazes de saber compreender e
geral e ainda mais na juvenil. São quase fisiológicos. Creio que esse fe-
representar o "interior". Com efeito, aquele livro era jornalístico no
nômeno deva ser relacionado a outros fenômenos afins que, em
pior sentido da palavra.
r
80 Cultur<ls eXtremos Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 81

contextos diferentes, como as artes visuais, produziram verdadeiras De acordo com uma crítica aguda, assim é possível interpretar
viradas na arte contemporânea sensível aos mediascapes. Cindy Sherman e, em parte, também o fenômeno Toretta:
Cindy Sherman é uma dessas artistas, entre as mais inovadoras e Juntamente com nossos pais, a mídia nos criou, socializou, divertiu, confor-
transgressoras, que se fotografam em muitas identidades estereotipa- tou, nos decidiu, disciplinou, nos disseram o que podíamos fazer e o que
das e seriadas, com o objetivo de dissolver justamente o poder dos es- não podíamos. Ela teve um papel preponderante, ao tornar cada uma de nós
tereótipos, multiplicando ao invés de homologar suas identidades. não uma única mulher, mas muitas mulheres - um pasticl1e de todas
aquelas mulheres boas e más que chegaram até nós através da imprensa, do
"Sherman's work implicates lhe viewer in lhe construction af these
cinema e das airwaives da América. Este foi um dos reconhecimentos mais
identities while gazing at lhe images, bUl, hy offering 50 many characters, importantes por parte da mídia para a consciência feminina: a erosão de
Sherman undermines this attempt to fix her image according to Qur qualquer coisa que possa parecer-se com um eu unificado (Douglas, 1994,
desire" (Williamson, 1986, p. 92)." p.13).

No ato de sua auto-representação enquanto fetiche, a autora fa-


vorece o próprio desaparecimento do poder arcano dos novos fetiches TorazÍne
visuais. Duplicar os estereótipos significa - ou pode significar - a entre- - Aonde vamos? - perguntei.
ga dos estereótipos: eles não podem mais nada contra um sujeito mó- - Não sei - disse. - Dar uma volta.
vel e plural, anômico e antidualista. O estereótipo seriado pode jogar - Mas essa estrada não vai para lugar nenhum-

contra a máquina midiática e sua guerra.


O fetiche dissolve seu poder entrando nele. É isso que Sherman co-
meçou a fazer nos anos 1980, e não foram apenas Luzy L & Corry X
WMitYH
~T"DTr ~, UN"NrANl'"

:4;\ -', iTia2e21a~e


",,"'~n~~
disse eu.
- Não importa.
- Mas então o que é que importa? - perguntei
~lpÓS um tempo.
10lmA sTILt
que o descobriram autonomamente, mas milhares de jove~s descons- - Andar, meu querido, andar- disse.

trutores nas noitadas Toretta. E depois Strange Music,Jet Set, Bikini &i I1rc(( E.1S(On Ellis (ll)96. p. 174)

Beat. . . ..:::..!u..?L1 ~t
---~--

A apropriação da mídia - seu incorporar musical ou visual - di-


funde construções disjuntivas em relação à repetição dos saberes. E na
r.;.,. .....,,OlC.
"SABATO 20
:~;:,~"-",~-,",- ._ ...... ~ CAP5UlE POt/CROME (11 CONTROCULTURA POP *
mídia se produzem os muitos, possíveis mediascapes que flutuam em
Lm torno dessa revista, gira um grupo de trabalho caracterizado
nosso imaginário multissubjetivo e constituem o cenário panoramá-
pelo subtítulo: "cápsulas poli cromas de contracultura pop". Torazine
tico das novas desordenações anômicas e híbridas. Expor o artificial,
pode, pois, ser lida em diversos níveis: o primeiro relaciona-se com
realizar o artificial significa entrar no artificial, nos novos fetiches vi-
cápsulas policromas, isto é, substãncias de cores diversas que se tomam
suais, e transformá-los - de símbolos poderosos - em signos polifôni-
e que influenciam estados alterados. Ou então torazina como "um
cos inócuos, jocosos.
medicamento utilizado para o tratamento de graves patologias
psicológicas"; num nível mais metafórico, trata-se de artigos, imagens,
2H "O trabalho de Sherman implica um observador da construção dessas identidades
enquanto observa as imagens; porém, ao oferecer tantos personagens, Sherman ícones, desenhos e seus mix que assumem as metaformas (morphing)
subverte essa tentativa de fixar sua imagem de acordo com nosso desejo." dessas cápsulas poli cromas, a serem alteradas por meio dos códigos.
82 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 83

A revista pretende referir-se à cultura transformada em alguma prio alter, a alteridade interior -, mas também como sugestão mais li-
coisa contra e ao mesmo tempo em algo pop: uma contracultura pop. teral de um "alter-eight", para alterar oito vezes o próprio múltiplo in-
Pela maneira como é interpretado o pop, a revista coloca suas cápsulas terior. A maré de alteridade assume os movimentos descompostos do
mais interessantes; Torazine pode significar também uma citação, oceano como uma ondulação interminável dos outros interiores. Um
justamente pop, do famoso filme Tora! Tora l Tora I - um filme de ata- autoproduzir-se interior por alter-ações.
que-surpresa que confunde e atropela o inimigo -, transformado pelo Projeto-Torazine: "cut-up, mosaico, latrocínio, agrupamento, patch-
sufixo "zine" em revista-fanzine. Uma fanzine para ataques não-decla- work, pirataria, amostragem, reciclagem, pulp fiction, polimorfismo".
rados: Tora-zine ... E, ainda, pode estar presente também a Tará como Dois conceitos são fixados como bóias: pontos firmes sacudidos por
ensinamento religioso antecipado por "um conjunto de idiotas disfar- ondas e, portanto, sempre móveis; bóias que servem de ponto de re-
çados de iluminados dissidentes". ferência durante a navegação, mas nas quais não se pode descer; bóias
A capa do primeiro número cita aquele santarrão japonês - cujos para as derivas e contra as ancoragens: o conflito e o pop. Conflito em
adeptos colocavam gases de efeito moral no metrô de Tóquio - em relação aos códigos culturais dominantes, porém, ao mesmo tempo, em
atitude meditativa; o segundo, uma figura de Kali que semeia a morte formas muito populares. Agora, interpretar o pop como reconheci-
e usa um colar de cabeças decepadas; o terceiro produz um mix iden- mento popular pode representar um atraso em relação aos significados
titário entre Che Guevara e Charles Manson, figuras pop por excelên- decididamente mais sofisticados e fetish dos mestres estado-unidenses.
cia ... Os artigos anunciados misturam assuntos seriados nos quais o E, de resto, todo o trabalho da revista vai para direções opostas: sexo,
único traço comum é uma presença citacional difusa de temáticas alterações de consciência, mau gosto, political incorrect. "O agrupa-
lúdico-esotéricas, metacontextualizadas em estilo pop. mento deve focalizar a parcialidade, o não-homogêneo, o subjetivo" - e
O primeiro editorial - assinado por Alter8 - antecipa algumas a verdade flutua ao longo de uma "estética da dispersão". O que se diz
linhas de desenvolvimento da revista: uma estética da dispersão, de ao sentir (a estética) cruza-se com o perder-se e disperder-se contra toda
modo que, com "o nascimento da nova mídia não assujeitada às regras forma de acumulação de experiência, de fixaçâo de conceitos. Bóias.
do imperialismo internacional, se criem formas de contra poder na "Vamos dar uma chance ao desvio", conclui ironicamente, mas nem
destruição de dinâmicas comunicacionais piramidais". A revista não tanto, Alter8, substituindo uma peace impossível de ser encontrada, para
segue uma linearidade subjugada à lógica de "modelos mofados", mas não ficarmos encalhados num "conceito conservador de agir político".
se revolta para explodir em todas as suas formas e cores: "A recusa da A expressão "riot" tem como subcódigo o logotipo da Nike; o artigo
interpretação única, da harmonia, do que é consentido deixa espaço a reciclado de Mike Davies sobre Los Angeles junta uma mão budista à
uma maré irrefreável de alteridades co-presentes". publiCidade de filmes das décadas de 1950 e 1960 (Hot rod gang- "crazy
Uma maré de alteridades: essa visão parece mais do que uma me- kids ... living to a wild rock'n roll beat!" -, Hot rods to hell). Uma entrevista
táfora. Parece uma visão projetiva ou um projeto visionário no qual a com o Reverendo Korda da Igreja da Eutanásia (suicídio, aborto,
alteração se multiplica por oito, como o próprio heterônimo quer nos canibalismo, sodomia) tendo ao lado a foto de um grafite "wild style". A
sugerir. Alter8. Eight não apenas como assonância alusiva que mo- apresentação de um cineasta muito popular no Brasil, mas desconhecido
difica, com o timbre, uma condição alterate - uma espécie de piercing na Itália: o famoso Zé do Caixão, uma espécie de Dario Argento dos anos
entre palavras e números, um 8 de piercing sobre o alter, sobre o pró- 1970, orientado em sentido satânico ("o lado obscuro que habita em

l
84 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 85

todos nós"). Uma seção para a "Necroloversnetworkerassociation", com Na chamada de capa, na parte inferior, a revista explícita sua
a fotografia de Laura Palmer de David Lynch em estilo tumular, e para colocação - primeiro grupo na Itália - no avant-pop, definido assim
uma associação de amantes de corpos não-vivos, cedendo à rede o corpo por X-S (1999):
post mortem. Finalmente, realmente extremo, um artigo dedicado ao KISS
Sentindo-se filho ilegítimo de um novo filão de literatura radical americana,
OF FIRE - o ABC do branding -, ou seja, o beijo de fogo "metal incan-
Toraz.ine se mistura, em parte, à corrente avant-pop. A atuação da nova
descente que queima e chia na carne viva. A marca impressa pelo fogo corrente está voltada ao sincretismo da carga experimental-subversiva van-
que - de forma de submissão e de infâmia para rejeitados, ou para marcar guardista histórica européia com as linguagens pop americanas, radica-
animais - tornou-se símbolo de coragem e de status, expressão artística, lizando seus aspectos desafinados, exaltados, forçados, desajeitados, kitsch.
enfeite: é Fakir Musafar - nome pop por excelência -, que descreve bio- Utilizar o registro pop como cavalo-de-tróia infectado pela desordem,
graficamente sua aproximação do branding desde os anos 1950". Mar- jogando-o de encontro à pobre cultura comum de um moderno esterto-
rante e de um pós-moderno morto prematuro [ .. ] sua estética politicamen-
cações como enfeites ou ritos de iniciação nas partes mais planas do
te incorreta gosta de copular com as imagens mais sórdidas da cultura
corpo. "O impacto emocional produzido pelo praticar e pelo submeter-se
mundializada, trazendo à luz seus lados obscuros, morbidameme pro-
a um branding - uma queimadura - tem efeitos curiosos sobre a mente, duzidos e hipocritamente negados. Nesse frame, o desvio torna-se espelho
sobre o corpo e sobre as emoções." E ainda citações e reciclagens de corrosivo das sintaxes lingúísticas dominantes.
Hakim Bey, William Burroughs, Reverendo Moon.
As linhas favorecem uma page-surfing; os textos definem o labo-
O segundo número aproxima - além das costumeiras excursões
ratório de experimentação patológico-cultural, através do qual "fazer
pop-citacionistas sobre esoterismos, canibalismos, alquimias, tan-
adoecer os processos comunicacionais de globalização". A técnica do
trismos misteriosos, numerologias - elementos irônicos pornõs, sobre
percurso é o fastJorwarding, uma velocidade expositiva que "enlouque-
os quais, porém, não se fazem reflexôes de cunho pós-feminista,
ce a válvula mitral, quebrando espaços e tempos para chegar à simul-
como em FikaJutura, mas se iconiza e se reorganiza tudo sem lógica,
taneidade e à iconoclastia". Na Torazine "cada componente é auspi-
porque "aquilo que não se gasta apodrece" - escreve Rota Masada,
cioso e deprecativo, porque não possui linha ideológica. Nenhum
aposentando Marx, Bakunin e Debord. Os elementos ravers que, em-
espaço para a neutralidade. Nenhum espaço para a passividade. Cada
bora pertençam todos ao grupo, são tratados apenas lateralmente. Com
espaço dedicado à ofensa e à carícia" (X-S, 1999).
The Morphing Cullure está concentrado um projeto que não é somente
Para compreender o debate que atravessa também a rede (e, por-
musical, visual ou dançante: é realmente um criar e exterminar tudo:
tanto, o contexto tecnocomunicacional de referência para o grupo To-
uma música de sinais que induz, em seu próprio beat, à transformação,
razine), pode ser interessante inserir nessas visões - tão abertas em re-
transe hipnótico, um break beat metálico e arrastado que se amalgama
lação às práticas do sentir, às vezes demasiado configuradas em sentido
"com uma caixa hard acid até criar um híbrido" de 40.000 watts.
esotérico-pop - os autores com os quais se afirmou uma prática expe-
"Não existem discos declaradamente morpho beat, cabe ao DJ encon-
rimental reflexiva:
trá-los. Juntando toda uma série de sons, estruturas, polirritmos e
gêneros diferentes, cria-se um painel sonoro que tem um objetivo bem Avant-Pop artists have had to resist the avant-garde sensibility that stubbornly
específico: o de fazer OUVIR quem escuta ou dança." Morphil1g de cor- denies the existence of a popular media culture and its dominant infiuence over
pos intermináveis. the way we use our imaginations to process experience. At the same time,
A-r artisLS have had to work hard at not becoming so enamored of the false
C ulturas eX tremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 87
86

consciousness Df the Mass Media itself that they lose sight of their creative Em 1997, Torazine pede-me que apresente a revista ao Livello 57, um
directive5. The single most important creative directive of the new wave Df A-P centro social de Bolonha muito bonito, próximo da estação, espalhado ao
artists is to cnter the mainstream culture as a parasite would sucking out alI the longo de uma quantidade de fábricas abandonadas e coloridas por grafites
bad blood (Sukenick, Web).20 entre os mais inovadores da Itália. A noitada prevê uma rave antes da apre-
Introduzindo-se nas escolhas das vanguardas demasiado caracte- sentação. Um grupo de artistas semelhantes aos Autoconstrutores e aos
rizadas, seja no sentido da recusa elitista da popular media, seja como Mutoid realiza uma série de instalações sobre o tema de insetos alados gi-
excesso subordinado ao emprego da própria mídia, a escolha A-P é de tipo gantescos, todos construídos com pedaços de metal fora de uso. Metal mu-
viral: tornar-se vírus, levar o ataque viral para os circuitos mainstream tóide. Uma garota de calças largas descidas nos quadris, com o elástico da
da cultura de massa, de modo que os "A-P artists are turning into Mutant calcinha à vista, precisa fazer a coisa mais difícil, prender uns balões em
Fictioneers". Digital collages. fonna de asas sobre esses insetos. Cheguei cedo para os horários dos centros
Após a outra tentativa fracassada por parte do Postmodernism, que sociais, horários ou tempos que são "indiretos" ou "implícitos", no sentido
não conseguiu encontrar a chave para acelerar a decomposição do de que não estão relacionados àquilo que "normalmente" se relaciona ao
"inimigo", tudo isso está mudando: uma "emerging youth culture, relógio: numa certa hora, por motivos subterrdneos, compreende-se que a
with its deep-rooted cynicism and nomadic movement within the "coisa" está por começar.
'dance of biz', now has the power to make or break the economic O grupo dos Torazine chegou pontualmente e logo procurou organizar
future of decrepit late-capitalism" (Sukenick, Web). 30 um espaço onde fosse possível fazer a apresentação. Coisa difícil. Em
primeiro lugar não era fácil encontrar um segmento de espaço, em parte
29 "Os artistas A-P tiveram de resistir à sensibilidade da vanguarda que nega
obstinadamente a existência de uma cultura popular da mídia e sua influência acusticamente isolado do resto, e além disso não havia nenhum tipo de
dominante sobre a maneira pela qual utilizamos nossas imaginações para uma mesa, cadeiras e todo o resto. Não obstante os aspectos, justamente um tan-
experiência processual. Ao mesmo tempo, os artislas A-P precisaram trabalhar
to misteriosos, que rodeavam essas coisas, em certo momento (lá pela
duro para não se apaixonar pela falsa consciência da mídia enquanto tal e para
não perder de vista suas diretivas criativas. A única diretiva mais importame e meia-noite) tudo estava organizado. Somente não havia ninguém disponí-
criativa de artistas A-P new wave está no fato de entrar na cultura mainstream como vel para ouvir uma apresentação, porque, nesse meio-tempo, a música co-
um parasita que quisesse sugar todo o seu sangue ruim [... , os artistas A-P estão se
tomando Mutantcs construcionistas [... 1cultura juvenil emergente, com seu cinismo
bem arraigado, e o movimento nômade na 'dança do biz' :biznrro I, agora tem o
... Postmodernism found itself overtaken by the popular media engine thateventually
poder de romper o futuro econômico do capitalismo tardi~1" (Sl,lkenick, Web).
killed ir and fram its remains Avant-Pop is now born" (Sukenick, Web). ("Embora
30 E cominua assim: "Whereas it's true that certain strains of Postmodernism,
seja verdade que o pós-modernismo, o modernismo, o estruturalismo e O pós-
Modernism, Structuralism and Post-Structuralism, Surrealism, Dadaism, Futurism,
estruturalismo, o surrealismo, o dadaísmo, o futurismo, o capitalismo e inclusive
Capitalism and even Marxism pervade the new sensibility, the major diffcrence is
o marxismo estejam invadindo a nova sensibilidade, a maior diferença é que os
that the artists who aeate Avant-Pop art are the Children ofMass Media (e\'en more
artistas que criam arte A-P são os Filhos da Mídia (muito mais do que filhos de seus
than being the children of their parems who have much less influence over them).
pais, que têm sobre eles muito menos influência). Muitos dos primeiras praticantes
Most of the early practitioners of Postmodernism, who came into aclive adult
do pós-modernismo, que chegaram a uma consciência ativa adulta nos anos
consciousness in the fifties, sixties and early seventies, tried desperately lO keep
1950, 1960 e começo dos anos 1970, procuraram desesperadamente ficar longe
themselves away from the forefront of the newly powerful Mediagenic Reality that
da vanguarda incipiente da nova Realidade Midiagênica, que estava rapidamente
was rapidty becoming lhe place where most of our soc;al exchange was taking
se tornando o lugar onde muito de nossa troca social estava acontecendo [ ... l. O
place. Despite its early insistence on remaining caught ~p in the academic and
pós-modernismo se viu superado pela máquina da mídia popular que finalmente
elitist art world's pressuppositions of self-institutionalization and incestuality,'"
o assassinou e de cujas ruínas nasceu agora o A-r. ")
88 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 89

meçou e os BPM da techno espalhavam-se no meio de insetos mecânico- musicais breahate e compulse. Pela madrugada, percebo que chega alguém
mutóides. Cheechy - que mais do que os outros tinha se empenhado em por causa de um estranho barulho de correntes que se mexem. É Cheecky
organizar as coisas - estava desesperado e furioso. Eu lamentava por ele c, que chega como um salvador no meio destas tempestades sonoras mixadas
secretamente, estava feliz por mim: estava pouco à vontade porque ainda por pesadelos em semivigilia. Está transtornado: pede desculpas de modo
não sabia exatamente o que dizer e, além disso, a atmosfera excessiva- excessivo, assim que tenho dificuldade em entender. Aliás, não entendo
mente enJumaçada me deixava nervoso, pela minha dificuldade de falar mesmo. Após diversas tentativas tudo se esclarece: a certa altura, enquanto
em ambientes desse tipo. A revista me agradava mais por suas potencialida- se achava no meio da rave, ficou sabendo que haviam fechado o "depósito"
des do que por suas linhas concretamente escolhidas. Havia, para mim, onde eu me encontrava, por causa dos objetos de valor ali guardados.
uma tendência demasiado satânica e anticlerícal, para minhas sensibi- Desesperou-se, num estado já musicalmente alterado, pensando que, se eu
lidades materialistas. Parecia-me que a vontade de escandalizar a qualquer tivesse procurado sair, eu me daria conta de estar aprisionado: porém, coisa
preço fosse - mais do que avant-pop - um tanto retrô. E, também, o sata- ainda pior, não encontrou naquele "core" a pessoa que deveria ter a chave.
nismo anticatólico sempre me pareceu chato, como se estivesse preso nas Inicia-se para ele uma busca desesperada da chave que o leva longe da rave
redes de uma anti-religiosidade pegajosa pouco significativa para mim. em busca de uma pessoa e de uma chave que não se acham, enquanto me
Perto da uma, já submersos pela techno e novamente emergidos iso- imagina procurando desesperadamente a saída, como num filme de horror.
lados (quase lodos tinham preferido a música), decidimos cancelar a apre- Finalmente Cheecky encontra a chave e volta para me "libertar", justa-
sentação e innos à rave. Mas uma rave legal, da qual participavam moços mente quando - já saturado de pesadelos hip-llOP -linha decidido levan-
e moças de diferente composiçãO sígnica, uma rave aberta também à gente tar-me, sem perceber que estava preso numa armadilha.
de Bolonha. Fiquei mais um tempo dando voltas pelo Livello, enquanto continuava
Após um espaço de tempo indefinido, decidi que precisava descansar. chegando gente. Decidi ir embora a pé até a estação, a fim de tomar o pri-
Tinha feito uma viagem complicada com o trem de Roma, num período de meira trem para Roma. Após ter atravessado todo o caminho, descubro que
trabalho extra. Precisava pelo menOS deitar. Assim, Cheechy me levou a o primeiro trem sai muito tarde, que na estação é simplesmente impossível
outra parte da rave, cedida, ao menos ele me disse, aos meninos do hip-hop, tentar descansar e que a entrada está cheia de mulheres senegalesas com
onde fazem música rap e podem ir e vir com os shates. Separado apenas por sapatos incríveis, que aguardam um trem que só Deus sabe para onde vai.
uma cortina da sala hip-hop (a zona-dopa), há uma espécie de ambienle- Deslocamentos eróticos. O resto da madrugada passei observando como
depósito, onde estão amontoados vários instrumentos, inclusive de valor. falavam e como passeavam até a chegada do trem. A última imagem da
Atiro-me num tapete de casacos acolchoados e procuro descansar, utilizando noitada, que devia ter por base Torazine, é delas. A maneira como se vestem
um meu sistema doe, para tapar sem esforço os ouvidos com os dedos. Mas e se disfarçam essas mulheres senegalesas faz-me pensar realmente nas
o ruído é realmente muito forte e me parece estar flutuando entre um mar cápsulas poli cromas da cultura pop. Nos nomadismos idenLitários e tam-
oscilante de pó e de sons que me agarram e me arrastam para meus mean- bém nos nomadismos ferroviários. A prostituição não joga só em nívels/M,
dros mais obscuros. Tentar descansar nessas condições foi realmente uma mas também em nível trash e pop.
tentativa eXtrema, terminada dentro de limiares flutuantes de sombras
Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 91
90 Culturas eXtremas

Rave mais extraordinário e claro que decreta a morte do social e a mul-


Imagino um movimento e uma excitação hu- tiplicação exploradora de comunicações polifõnicas radicais.
manos de possibilidades sem limites: este movi- A rave é a política interminável. Uma não-política inovadora e sen-
mento e esta excitação não podem ser acalmados
sorial que se desafia cada vez e de novo, que se arrisca, mas que, pela
a não ser pela morte.
forma tradicional de uma política construída no social, permanece to-
Gcorgcs n"",i 11 c (1993::1, p. R0i
talmente invisível e incompreensível. Porque representa sua morte. Na
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verdade, essas raves deveriam ser ilegais não para as forças da ordem
ou para a magistratura (que, pelo contrário, deveria favorecê-las e pre-
ROMA ~ r _"";;. __
miá-las), mas pela forma-partido hoje representada. A era das foscas
fábricas tayloristas morreu: e que os trabalhadores sobreviventes
As raves constituem a confluência rIuieb, c, por excelência, em aprendam a viajar nas raves!
movimento, impossível de fixar e situar. Tentar compreender uma das Um intérprete agudo das raves é, não por acaso, um de seus cons-
mais criativas e também dramáticas condições juvenis intermináveis - trutores etnopop, de linguagem nômade e anõmica, um múltiplo no
que se fluiclificam desordenadamente entre metrópoles e comu- eu, sem os elementos lúdicos de Luther Blissett, mas com aqueles ele-
nicação - auxilia-nos a compreender a crise irreversível do político. mentos tensos e dramáticos de quem se sente sempre deslizando na lâ-
Político como universo fixado no contexto teórico e social do moder- mina enferrujada de um barbeador. Arriscar-se e raspar-se. E que, ao
no. Agora, esse político e esse moderno - com suas categorias univer- longo desse deslizar, transite seU prazer desesperado, mas irredutível e
sais, suas dialéticas sintéticas, suas organizações verticais, suas sim- tenro. Mesmo quando se camufla de durezas cruéis e insuportáveis.
bólicas holísticas, suas utopias totalitárias, suas dicotomias sociais, Cada crueza com que trata o outro ele a experimentou em si mesmo, e
sexuais, geracionais, públicas/privadas - tiveram um final paralelo às quem não compreende isso não consegue aproximar-se de uma pessoa
fábricas tayloristas: tornaram-se áreas inutilizadas. Áreas inutilizadas que, justamente por meio de suas múltiplas idas e vindas, arrisca no
pelo pensamento e pela práxis. corpo as instãncias anãmicas e intermináveis mais surpreendentes.
A rave ilegal expressa um alto nível conflitante e disso lu tório da
A rave é o terreno fecundo da desobediência identitário-estética em relação
política-partido: nele se pratica o estado alterado do corpo dentro de
às linhas existenciais impostas. A estética é ato político, potência comuni-
um contêiner - a fábrica taylorista abandonada - transformado apenas cativa, condutor icônico de criatividade da desordenação e da reciclagem,
por uma noite num sem-lugar irrepetíveL A ex-fábrica está descontex- desejo de provocar arritmia desestabilizadora nas pulsações da co-
tualizada e modificada em interzona do prazer. Um pedaço moderno municação visual, através da centrifugação de cada código simbólico
da metrópole, nascido para funções produtivistas e colapsado, é lavado (Damian, 1996, p. 50).
e sujado de novo com códigos arranhados dos Mazinga-trash, por
É por esses processos autoprodutivos e auto-sensitivos que o su-
baixo de uma música techno compulsiva que fragmenta qualquer uni-
jeito-raver se toma entidade sincrética feita de confusões anticomuni-
dade do eu (ou do coletivo) e o faz viajar num quase-espaço destinado
tárias mutantes e instáveis, sem pontos firmes ou fixos, unitários, ho-
a viver uma única longa noite. A transformação dessas fábricas aban-
mogêneos, como com demasiada freqüência proposições políticas,
donadas em heterotopias para corpos alterados em viagem é o evento
mesmo extremas ou antagonistas, procuram elaborar, repropondo
92 Culturas eXtremas Excursus sobrc as culturas juvenis intermináveis 93

obsessivamente o conceito tão obsoleto de comunidade, fonte de todo Para AS, produz-se uma dificuldade de perceber como campos
identitarismo antiplagiário. cognitivos separados tanto a ficção como a realidade: por isso se abre
"A identidade fixa dando vida a suas mil caras, a suas infinitas para uma "geografia da alteridade".
nuanças em mutação contínua" (ib.). Dessa forma, o "desmembramen- Geografia da alteridade: é um conceito relevante, porque desloca a
to do conceito do eu único" percorre um trançado feito de cus-múl- fixidez nacional e estática da disciplina espacial para algo que não se
tiplos e linguagens-múltiplas. Esta é uma passagem a ser enfatizada: a pode enquadrar, a não ser utilizando um outro tipo de cartografia. Um
ruptura do eu identitário compacto favorece a ruptura simétrica da saber estético-cognitivo que tenta transportar as emoções nos mapas
linguagem mono lógica e, por isso - by reverse -, multiple sei f e lin- da geografia. Cartografar as emoções. Mapas sensitivos para territórios
guagens múltiplas encontram-se interconectados. Essa desordenação corporais alterados. Geografia da alteridade significa produzir uma
comunicacional e expressiva é assim do ponto de vista de um eu orga- geografia também alterada: que não aceita como natural - como um
nizado. Porém fixo e bloqueado. Congelado. A rave degela. E altera: é destino de terras e águas - a descrição-aceitação do mundo, mas, ao
o outro interior, os muitos outros interiores. contrário, que afina o desequilíbrio, a alteração, o desemoldurar do

"Vivemos nos desequilíbrios como urtigas nascidas do cimento" cimento-urtiga em "metaversos sincréticos". Ou seja, alguma coisa

(AlterS, 1996, p. 227). que vai além de qualquer verso possível e qualquer síntese possíveL
À palavra "verso" deve ser dado um duplo significado: um, relativo ao
o cimento é o contexto "natural" da artificialidade extrema das verso como discurso poético, e o outro, como advérbio de direção. 3l
metrópoles, e as urtigas como seu fruto representam uma espécie de
Ambos constituem os sentidos do verso. Uma multi direção poético-po-
fiar do mal contemporâneo, uma fiar irascível que espeta e injeta uma
lítica. Um encaminhar-se, um navegar, um desorientar-se pluriverso,
substância irritante, uma comunicação viral. O cimento como terreno
que se expande ao cimento e ao som. Geografia corporal desinstitucio-
desequilibra: insere as perspectivas do desequilíbrio contra toda tenta-
nalizada. 32
tiva de estabelecer qualquer equilíbrio. O desequilíbrio como paixâo
"No ventre de cruzamentos transorgânicos tumultuados, entre ci-
e como sofrimento. Esse é o começo do ensaio mais nômade sobre as ar-
mento e multidões em revolta, nasce a rave ilegal" (AS, ib., p. 231). A
ritmias das raves: "filhos espúrios de uma sociedade midiática flu-
"mancha metropolitana" torna-se - em seus detritos - aliado podero-
tuante" (ib.).
so de uma technodesordem nômade e temporária como as zonas au-
"A absorçào de ketamina é um processo de cibernética alterada" tônomas escolhidas. O não-político não busca mais - como lamenta-
(AS, 1995, p. 90-91). Esse anestésico introduz "perspectivas de velmente procurava fazer o político - "o choque direto versus soluçôes
Escher" entre ketamina e ciberespaço: o próprio William Gibson, em finais, [que] só conseguiu produzir rios de dor, sangue e repressão
Neuromancer, fala em "brick of ketamine", aproximando o conceito de
rede telemática e fluxos do pensamento descondicionados ao dos es- 3l Em italiano, "verso" significa também "em direção a", do latim "versus". (N.T.)
3~ "A percepção interior, antes de transfonnar-se em sensação de carne fria, define um
tados alterados de consciência induzidos pelo anestésico em questão.
estado gasoso multiforme, da corda luz, que se interseciona, através de freak visions
Ketamina e ciberespaço "como instrumentos de libertaçào das jaulas internas de dcath channcls gibsonianos, com um coágulo cada vez mais restringcnte
do controle de registro, do gênero, da geografia político-institucional". de membros c frações mecânicas que agem desenvolvendo práxis separadas" (A8,
1998, p. 91). Muito da arte contemporânea atravessa esses frcak channc\s ou dcath
visions.
Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 95
94

através de organizações que eram o espelho simétrico de hierarquias e refugos. Refugos: outro conceito decisivo para compreender os fios
autoritarismo estatal" (ih., p. 232). Por isso, "a única maneira de fluidos do interminável. Como já havia percebido Walter Benjamin,
evadir (das celas culturais do Estado) é levantar-se, realizar um caótico justamente aquilo que é jogado fora, sem valor de uso, além de sem
movimento polidirecional, funcional só para si mesmo, enquanto valor de troca, os restos, o inútil - livrar os objetos da maldição da
cada forma revolucionária (pressupondo a romântica superação da utilidade -, atrai fantasmagoricamente para o despertar do inacabado.
utopia) cria uma enésima estase repressiva [ ... ]. A inimizade para com Os restos descartados da produção tecnológica, juntamente com os
as instituições se expressa de modo oblíquo e policêntrico, libertando- restos da produção fordista (as fábricas), e com os restos das normas
se em mil danças de vida, para expressar suas próprias pulsações alie- institucionais, criam possibilidades de inventivas sonoras intermi-
nadas. É por isso que o hábito da festa é o que há de mais subversivo e náveis e de baixíssimo custo.
incisivo" (ib., p. 233). "A reciclagem assume caráter político no momento em que, me-
"A rave ilegal é a experimentaçãO de linguagens para uma comuni- diante a amostragem, vai romper os tetos legislativo-repressivos da pro-
cação livre e imediata em seu duplo significado temporal e de não- priedade privada do som." A rave também é um ataque ao copyright.
mediação" (ib.). Latrocínio sonoro. Distorção e re-cycle. "Os ravers expressam, em seu
fazer-se som, a beleza encantadora desta flor do mal que murcha de-
Aqui se insere um tipo de pesquisa/autopesquisa na qual a alteração
pois do alvorecer, acendendo novos pontos de fuga" (A8, ib., p. 236).
obriga a "observar-se participante", no sentido de que se podem "mul-
As raves brotam ao acaso e no além: entre as street parades, antes nas
tiplicar as reflexões sobre si mesmo, como figura móvel", interconec-
Villette e depois nos Unter der Linden - e entre os teknivals, agrupa-
tado com uma "rede de significados que ele mesmo ajuda a produzir".
mentos tribais entre nuanças psicodélicas e ketamínicas, que arran-
Mirror-shade. Por isso, a "epilepsia metodológica se faz realidade com
cam o território e criam geografias híbridas do desejo polimorfo (Ma-
um pesquisador desobjetivado que extrai conhecimento de um pro-
carone-Palmieri,1999b).
cesso metropolitano que entra em si e o faz sacudir, agora não mais nu
e cândido, mas desenraizado pela dor de um desequilíbrio inscrito em A primeira abertura é um buraco numa rede. Depois de ter passado o morro,
sua pureza estuprada" (Macarone-Palmieri, 1999a, p. 80-81). caminho por uma estrada asfaltada. No final da estrada se revela às minhas
pupilas, ainda dilatadas pelo dia anterior, uma imagem espetacular: a
A rave se configura como experiência do limite mais interminável
estrutura industrial Snia Viscosa. Os muros comunicam cor através de gra-
_ o sutil coração das trevas que separa a vida da morte - que termina fites lisérgicos desenhados pelos ETC, grandes devastadores da metrópole.
numa cândida dor. Sua forma dá quase a idéia de que os arquitetos a tivessem estruturado
"A techno é música espacial: cria ambientações nas quais se respi- com a premonição de que, num futuro próximo, aconteceria um free festival.
A sala da rave fica ao lado da sala do sound system "One Love Hi Power".
ra emotividade" (A8, 1998, p. 234). "Techno é abreviatura de technologic:
Mais para frente, à esquerda, há o espaço toretta gerenciado pelo Leprone. À
isso significa que a produção de música acontece através de uma in-
direita se abre uma área totalmente devastada. O líqUido da tinta spray de
terface tecnológica" (ib.). E, para A8, essa música sem palavras rompe neve artificial, no passado ali produzida, criou um minilago ácido, corrosivo
uma visão elitista de arte através de vórtices sonoros que se irradiam e sem fundo [... ]. Entram os furgões e a "L\Z começa a viver [... 1. A flor do mal
pelos ossos: música pop por excelência, popular. A tecnologia não é brotou no centro de Roma (Alter8, 1995a, p. 270).
mais percebida como glacial, algo que se impõe de cima para baixo, "Sound systems are weapons"
Dag - Spiral Tribe
"mas quente e maleável", tecnologia desejante e desejosa por meio dos
r
i
96 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvcnis intcrmináveis 97

rJuid VidC'o CrC'w


aqui apresentada: o grupo é uma crew, ou seja, uma espécie de bando
"Can I ger through?"
que anda pelos fluxos da metrópole, os mais ácidos e inquietantes; tra-
única frase de Unnekar antes de explodir. balha com o vídeo, e portanto assume a comunicação ágil, descentrali-
Orson Welles, Touc/t Df evil [A marca da zada, móvel, como momento decisivo para a pesquisa, e o conflito nes-
maldade]
se terreno, sem nenhuma satisfação, mas também sem ideologismos
passadistas para os centros institucionais do poder; enfim, a identi-
dade da crew e o emprego do vídeo são jluid, rejeitam toda solidez dog-
mática, Ou em nos interstícios da metrópole, não se coagulam diante de
"As imagens nau lnminam com o vídeo no qual estão inseridas, nenhuma certeza ou autoridade, mas as atravessam todas em sua
porque se você as põe num outro vídeo, representado noutro contexto, porosidade.
com outras músicas e outros dispara-conceitos, provocam emoções Essa reivindicação de um conceito líquido como traço de discor-
diferentes. A mesma mixagem é influenciada por minhas particulares dância e de fluidez está estritamente relacionada a outra inovação da
emoções naquele momento e naquele lugar", diz Davide. crew: a linguagem. Diante de uma nítida recusa a qualquer realismo
"Nesse sentido, nossos vídeos nunca terminam", continua Loren- narrativo, que desbarata a militãncia e a transforma em apologia, seus
zo. "Normalmente na TV ou no cinema as imagens realizadas são um vídeos impressionam imediatamente pelo impacto visual. Cada ima-
produto acabado, e os custos de realização são altíssimos. No passado, gem, mesmo a mais independente, não cumpriu seu destino em sua
foram utilizados os restos, mas também nesse caso logo tudo acabou inserção numa determinada seqüência, num produto definido em si e
no produto final.]ustamente: final." definitivo. Pelo contrário: tudo pode ser reutilizado num contexto di-

"Hoje, com o surgimento das novas redes de satélites (não somen- ferente, justamente numa fluidez antropológica da comunicação. Atra-
te Rai Sat), a fome de imagens tornou-se ainda mais ilimitada, a de- vessa-se a perspectiva de uma comunicação in-terminável. Os vídeos
manda de 'documentários', de 'pequenos serviços', de novas transmis- são intermináveis para a crew, porque tudo e todos são/somos fluidos.
sões para objetivos 'juvenis' (a televisão via satélite não é generalista, É algo mais do que a reciclagem tradicional. É levar o máximo da
mas de mira certa) ampliou-se sempre mais. Os cérebros do novo 'ca- fluidez possível para dentro da noção de montagem. As sobreposiçoes
pital' buscam força produtiva, na maior parte das vezes, nos tanques assumem a multiplicação infinita e indefinida das seqüências e in-
do underground ou coisa desse tipo; nós, juntamen~e com muitas clusive dos frames. Embora recusando a definição de VJ (ou seja, con-
outras pessoas, estamos começando a formar um novo e grande exér- ferir ao V de "vídeo" a tarefa que no passado era do D de "disco": DJ),
cito de 'operários visuais'. Esse é o contexto no qual nos movimen- os Fluidos obtêm um efeito visual afinado com o scratch sonoro, ma-
tamos. Constituir uma pequena casa de produção como a nossa é nipulando, com sua central de montagem, as fitas como um vinil. O rit-
poder iludir-se de criar uma represa para esse mar em cheia, iludir-se mo do rap se torna linguagem visual. E mais: sua linguagem pode pro-
de permanecer independentes no grande negócio da comunicação duzir videozine: as mesmas funções informativas e perceptivas dos
visual, talvez seja esse o nosso projeto" (Davide e Lorenzo). fanzines, porém, nesse caso, em forma de vídeo. "Nenhum de nossos

Entrar no sentido líquido do nome desse grupo romano permite vídeos", dizem Davide e Lorenzo, "chega a uma versão definitiva, tudo
é provisório e passível de reelaboração ao infinito."
esclarecer melhor algumas linhas móveis da pesquisa/atravessamento
98 Culturas eXtremas Exeursus sobre as culturas juvenis intermináveis 99

As linguagens se misturam, os limites se desfazem, as descargas en- as distâncias ou as amplifica, vê através de, exibe. O cinema da dis-
volvem qualquer gênero, as imagens sólidas podem ser fluidificadas a solvência como dissolução do cinema único".
gosto, indo de um limite a outro. Indo além dos confins. Cinema independente como substância que altera, testemunho de
Utilizadores do analógico, os Fluidos constituem - durante sua multiplicidade, hibridização de espaços-de-visões e estados-alterados,
atuação - um live sei, onde as câmeras espalhadas num determinado criação de policromias na assunção ativa de imagens.
contexto (por exemplo, o Forte Prenestino) veiculam imagens para um Tudo isso se visualiza em produtos líquidos intermináveis que con-
mixer e são submetidas ao vivo a "misturas de suportes, repassagens tinuam sendo esmigalhados, reciclados e remixados. Os trabalhos flui-
contínuas, sujeiras". O frame torna-se quase transparente. As diversas dos começam, não por acaso, naquele grande laboratório do Salento
estratificações visuais podem ser vistas em suas acelerações, retornos, onde nasceu o Sud Sound System. O vídeo Uma imagem do Che (aquela
fixações. As percepções, bem como as interpretações, descentralizam- famosíssima e dessimbolizada realizada por Korda e universalizada
se ao máximo, liberando tanto qualquer potencialidade do fruidor por Feltrinelli), filmada no "Che"-ntro Sociale lar BeUa Monaca;"
quanto a hierarquia dos significados. Outro aspecto positivo: as dis- Shqiperia (Albânia), filmado durante o dramático desembarque dos
tinções tradicionais entre espectadores, produtor, atores são obsoletas. albaneses em Brindisi em 1997; um delicioso documentário sobre os
AutO-TV: outro neologismo obrigatório, para tentar conferir o sentido muito jovens de Morena, na extrema periferia romana, utilizado pela
de sua obra. A autoprodução está direcionada para a nova maneira de iteração do nome Franko, acompanhado por um movimento do ante-
fazer vídeo. De fazer-se vídeo. braço de cima para baixo; os fragmentos fluidos de Roma, filmados
Os Fluidos "recolocam em movimento um fluxo contínuo de ma- em cada espaço metropolitano, com encontros com Flaminio Mafia.
teriais, de experiências, de conhecimentos" - "Em suas mãos, a cãme- O emprego do dispara-conceitos por parte de Macchina: palavras, fra-
ra é uma arma branca com a qual espetar a realidade, e o console de ses, sugestões jogadas na tela para multiplicar as percepções e as narra-
montagem, uma máquina que injeta emoções, centrifugando imagens ções; e ainda músicas de Pol G, um dos Bruto Pop.
e sons em ritmos de supervoltagem" (Martina, 1999); "é um sujeito in- Para os Fluidos, os territórios da comunicação em vídeo não são
terno da narrativa" que proporciona espontaneidade visual e emotiva. achatados sobre a homologação, mas estendem-se entre globalização
e localização: é justamente a esta última que se dirigem seus interes-
Em 1997 e 1998, os Fluidos participam dos "quatro dias de desor-
dem visual no Forte Prenestino, com sua mistura de filmagem ao vivo ses. A comunicação fluida é glocal.

e representação através de uma TV a cabo de circuito fechado (Off-Line "O Forte Prenestino tomou-se laboratório ativo de um novo modelo
TV), em que o público é, ao mesmo tempo, espectador, intérprete e au- de TV possível. Na área do centro social, em dez pontos escolhidos,
tor" (ib.). OFF 999 (Overdose Fiction Festival) tem como programa Vi- foram colocados monitor e pequenas instalações, todos interligados
sões alterate - viagens visuais nos estados de consciência: "Visões do com uma sala de direção aparelhada para visionar, montar e projetar ao
múltiplo, expressão dos modos infinitos de ser e de tornar-se, comu- vivo qualquer tipo de contribuição. Conta-me teu filme. Cada um de nós
nicando. OFF 999 é o monitor que reflete conjuntos de diferenças ao fez sua própria TV: além dos gêneros e da censura, exportável e sempre
criar/perceber imagens-sons-ambientes. Ótica deformante que aumen- diferente, tecnológica, eletrodoméstica e auto gerenciada. "
ta, distorce, anula, destrói, troca as medidas, inverte a perspectiva, zera
33 "Che" na pronúncia do espanhol é igual à pronúncia de "ce" em italiano. (N.T.)
IDO Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 101

Concluindo, Lorenzo e Davide dizem: "Dois são os pressupostos de No trem noturno 30, transformado em Bus neoista, desenrolou-se
um trabalho fluido Com os vídeos: a reciclagem que constitui uma fi- uma espécie de carnaval improvisado, com cantos, danças, algumas
losofia decisiva de nossa estética visual: e a possibilidade infinita de bebidas e talvez uma tragada que divertiram o motorista pouco
reutilizar cada imagem". A reciclagem das imagens é realmente inter- acostumado a poucos passageiros semi-adormecidos. Infelizmente,
mináveL durante a troca da direção, um policial à paisana (sem possuir os có-
"Gostaríamos que nossos fluxos de imagens nunca acabadas se fi- digos de interpretação do que estava ocorrendo) interveio para sustar
xassem pelo menos por um instante na mente e nos olhos de quem os o espetáculo ludoneoísta, disparando no ar, "no meio das pessoas,
olha. Auto-TV." dois tiros de pistola, enviados via rádio, ao vivo, criando uma com-
preensível situação de pãnico e agitaçãO". Chegaram outros policiais
Luther Blissett que seguraram alguns performers e, ao pedirem suas identidades, ou-
o espetáculo acabou. viram a mesma resposta de todos: Lulher Blissett. Os policiais, pensan-
O publico começa a sair. do estarem sendo debochados, levaram quatro jovens até a delegacia e
O tempo de apanhar os capotes e ir para casa.
os indiciaram. Ajuntamento sedicioso, ultraje, resistência. 34
A geme olha em volta .. A tentativa do espetáculo e da transmissão radiofônica "era exibir,
... Não há mais capotes! por intermédio do jogo coletivo no território, a invisibilidade dos es-
.Náo há mais casas! paços urbanos. Conectando os corpos dos participantes numa trama
"lt'\\'~lrt J 101l1e (1997,]1.26) espessa de fluxos comunicativos, no plano nômade e no plano técnico-
midiático, redefinia-se criativamente o espaço, a cidade se transforma-
va na mesa de jogo da sociedade onde se produzia um novo 'ambiente
LUTHER BLl88ETT
COM IL MULTIPLE NAHE AUMENTA LA
ecológico' e uma crítica prática à esqualidez metropolitana".
POTENZA S~S!U~L_E ,Ç9:NOIVIDUAI.E
Creio que as diversas experiências que se concentram por trás de
Luther Blissett sejam as coisas mais criativas e inovadoras - intermi-
No dia 13 de março J.e 1996, realizou-se um processo inusitado no náveis - que aconteceram por volta da metade dos anos 1990, entre Bo-
tribunal de Roma, e eu fui o "primeiro a assinar o apelo para a liber- lonha e Roma, e que continuam ainda, embora com grandes diversi-
tação de Luther Blissett", lançado na véspera durante uma também inu-
ficações internas. Repensar a política, tarefa para a qual não poucos
sitada entrevista coletiva à imprensa na An Gallery Internet. Eis os indivíduos, grupos e centros juvenis se voltaram, geralmente produziu
fatos: em 17 de junho do ano anterior, antes das 3 horas da manhã, resultados tediosos e já vistos; enquanto nesse caso os resultados são
aconteceu o espetáculo Bus neoísla, "que consistia em atravessar psi- (foram) surpreendentes e originalíssimos.
cogeograficamente a cidade de Roma com o ônibus da linha 30 no-
turna, em coligação interativa (por meio de telefones celulares e rá-
H "O único indivíduo de carne e osso que foi registrado no cartório como Luther
dios portáteis) com a emissora Radio Città Futura, na qual estava Blissett é um jogador de futebol do Watford Football Class", que mais tarde jogou
acontecendo a transmissão experimental Luther Blissett" (Blissett, (de forma medíocre) também no Milan. "Oebord e llaudrillard ficaram repetindo
1996). que nào se pode fazer nada. Nós dizemos o contrário: tudo pode ser feito"
(Blissett, 1996).
Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 103
102 Culturas eXtremas

Segundo as palavras deles, Luther Blissett é uma "antiidentidade lidade (como o mais alto nivel de abstração filosófica que autoproduz
múltipla adotada por milhares de artistas, videomakers, grupos musi- o próprio domíniol·
cais, revistas, transmissões de rádio, programadores de informática, Contudo, a difusão da metrópole interminável, em sua forma ca-
militantes das culturas urbanas, reuniões políticas, intelectuais, racterizada por comunicações aceleradas e transformações em escala
escritores etc." .35 global e local, a crise do trabalho, a modificação radical do sistema
Dessa forma, a que ainda se chama "política" - termo já obsoleto por produtivo imaterial, as transformações das faixas etárias: tudo produz
suas matrizes societárias e partidárias (a pélis) - é arrancada dos mo- módulos fluidos e disjuntivos (que mais adiante serão tratados na
delos institucionais de gestão do conflito e empurrada para os terri- parte dedicada aos conceitos líquidos). E isso favorece a libertação das
tórios, em grande parte inexplorados, por essaS perspectivas da identidades de acordo com modalidades antes desconhecidas. Já faz
comunicação e da metrópole. Principalmente da identidade. A identi- tempo que o multiple self é âmbito de pesquisas que envolvem dife-
dade, com efeito, seja como carteira de identidade, seja como filosofia rentes abordagens das ciências sociais: em vez de serem marcadas pelo
ou psicologia, ou antropologia da identidade, constitui o próprio âma- selo de uma esquizocisãO, as identidades móveis, plurais, líquidas
36
go do domínio do Ocidente, assim como se constituiu a partir da Gré- experimentam novos territórios de libertações possíveis.
cia clássica em diante. O sujeito é tal porque se constitui com sua Ao invés de síntese, o híbrido - como coágulo sincrético de traços
identidade forte, fixa, compacta. "Ser idênticos nas situações diferen- comunicacionais fluidos e dissonantes co-presentes - emerge como
tes", disse Malinowski (1992). O eu identitário permite às diferenças perspectiva que permite a mobilização do eu. Ou, então, a liqUidação
internas sobreviver somente como angústias esquizóides, nos estreita- do eu é um trãnsito em direção ao eu líquido, contra o processo secular
mentos noturnos (sonhos, desejos), nas escrituras obscuras (diários de civilização que construiu um eu sólido, estável, fixo. Sintético.
secretos), nas catarses artísticas. Mas a identidade do eu se constitui Esses jovens blissettianos se amarraram novamente às tradições de
eliminando ou controlando, removendo ou sublimando os múltiplos vanguarda, constituídas pelo eixo situacionismo-fluxus-neoísmo 37
"eus" que transitam nos móveis territórios psíquicos. As cidades pos-
36 Blissett viveu certamente também nas previsões de Pirandello e, em particular, em
suem uma identidade (continuamente evocada nostálgica e tediosa-
seu personagem mais blissettiano, o falecido Mattia Pascal que, cansado de sua
mente por arquitetos e politólogos); os partidos possuem uma identi- identidade adquirida, decide fingir o suicídio e começar a viver, pela primeira vez,
dade (já cada vez mais obrigada a mutações nominalistas: pensemos com outra idenLidade.
37 Neoísmo é um "movimento cultural influenciado pelo futurismo, pelo dadaismo,
nos nomes dos partidos que mudam a cada turno eleitoral); o cidadão
por Fluxus, pelo punk, nascido da network da mai! art, no final dos anos 1970"
possui uma identidade (de classe, de sindicato, de partido: todas enca- (Home, 1997) _ "Os plagiários reconhecem o papel desempenhado pela mídia no
deadas ao trabalho estável que arrasta e enjaula qualquer outra iden- mascaramento dos mecanismos do Poder e procuram ativamente desagregar essa
atividade" (ih., p. 51) - "O neoismo é um prefixo internacional mais do que um
tidade possível: fazer o mesmo trabalho por toda a vida é segurar-se a sufixo, sem nada nO meio" (ib., p. 5) - "O neoísmo tem por objetivo inverter a
uma identidade-prisão perpétua); a síntese possui e confere uma iden- lógica patriarcal, impondo que aquele que vem antes seja sempre o primeiro a
nomear quem vem depois". Contra "o arLista que se mimetiza covardemente com
prefixos e sufixos, a retirada de afixos (único e último gesto estético do movimento
35 A primeira manifestação pública de tipo psicogeográfico foi trazida por luther neoísta) revela por subtração que prefere nascer do final de tudo: a afirmação
Blissett contra o cartório de registros na rua Petroselli: aqui foi desfechado o rescindida de estar além de qualquer'ismo', tendo sido já antes, antecipadamente,
ataque contra a central pública que, mais do que qualquer outra, instrui e enrijece o novo". "A ausência de afixos significa realizar a arte através de seu total desapa-
a identidade numa "carteira". recimento" (Blisselt, 1996).
104
Culturas cXtrcl11;;J.s Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis
r
105

A mídia é vista como um contexto ean tra o qual desenvolver um tipo Multivíduo: gosto de sublinhar essa expressão formidável. Ela
de guerrilha semiótica e escarnecedora. Daqui nasce a idéia de difundir, apanha a pluralidade versátil do prefixo "multi" a um "víduo" trans-
no famoso programa "Quem o viu?", o rosto de luther Blissett, que fez formado em sufixo, quando destituído de sua matriz singularizante
correr investigadores e advogados em busca de uma personagem múl- "indi". Não só isso: "víduo", como sufixo, parece brincar tão lúdica
tipla: escárnio genial, pois o programa se baseia justamente na busca
quão sutilmente com a palavra afim "vídeo", isto é, o âmago do ataque
da iden tidade de pessoas desaparecidas, para destruir exatamente esse irônico ao poder da mídia. Por isso, a identidade fictícia (como Jiction,
conceito de identidade.
ou seja, construída e modelada, não certamente como falsa. O falso
"Blissett é um espectro que atormenta os sonhos dos operadores da como opositivo ao verdadeiro não tem sentido algum na fraseologia
informação. Utilizo, não por acaso, a palavra 'espectro': qualquer um blissettiana insurgente) é uma foto-visual, um vídeo-rosto, um víduo-
pode escolher chamar-se Luther Blissett" (Blissett, 1996).'" vídeo. Contra o atentado que anula qualquer indiVidualidade, Blissett
Nesse sentido, "não é o primeiro nome múltiplo da história e não não defende o conceito dado de indivíduo; ele cria facetas em seu sen-
será o último" (ib.) - "luther Blissett pôe o dedo nas chagas midiáti- tido histórico, engastado e incrustado em seu significado que, portan-
cas, mistura realidades imaginárias e ficções reais sem soluções de to, desnaturaliza sua individualidade; ele a faz saltar de uma suposta
continuidade I. .. ]' Plagia uma cultura já blobizada até a medula. Éa natureza anistórica e a empurra para as possíveis mutações culturais,
vingança do cotidiano maravilhoso e anônimo contra o odioso espetá- comunic.acionais e lingüísticas. A linguagem é parte do conflito: ainda
culo das celebridades, é o multivíduo, é a possibilidade de viver muitas não venceu, através da mídia. Por isso a invenção do multivíduo na
vidas a distância e de sermos vividos por muitos numa única existên- esteira de um pensamento de Nietzsche que já havia eliminado o prefixo
cia" (ib.). negativo "in" em "divíduo" (que recordo ser a tradução latina do grego
"atomon", o indivisível) na gaia ciência de uma divisibilidade e, por-
3tlPara compreender as mensagens fluidas em senrido interminável, que convergem tanto, de uma multiplicação do eu. Co-divíduo como um multiple self
e escorrem nesse furor blisseniano, cf. uma referência internacional como Rc:Actioll, que transita fluidamente e pluralisticamente dentro e fora do sujeito
Ncwslcttcrofthc Ncoist Allial1cc. Aqui se infundem, na perspectiva de umaAlchcrnical
InsurrcctiOIl, Amedeo Bordiga e o gnosticismo! Em Psychcdelic Bordiguism, afinna- singular.
se que não se alude lanto "to the doctrine of organic cenrralism promulgated by De acordo com Perniola, os situacionistas se religam, em parte, às
lhe Italian left-communist Atnedco Bordiga Porém, "according to Bordiga, the
M

Party should consist solely of lheoretical coherenr militants". Praticamenre, o temáticas dos surrealistas com o projeto de psicogeografia e deriva ur-
partido como cérebro que governa o corpo humano. O artigo oscila entre paródia, bana. J9 No entanto, enquanto para Breton a deambulação era um ato
insurreições semióticas, desvios de sentido (gnosticismo e marxismo): "The Ncoisl
meramente arbitrário (Nadja), a psicogeografia era "o estudo dos efei-
Ai/iance seeks a higher levei of social disilllegration", interligando vanguarda e
ocultismo ("à doutrina do centralismo orgãnico promulgada pelo comunista italiano tos precisos que o ambiente geográfico, conscientemente organizado
Amedeo Bordiga [ ... J de acordo com Bordiga, o Partido deveria consistir unica- ou não, exerce diretamente sobre o comportamento afetivo dos indiví-
mente em militantes teóricos coerellles [... J A Aliança Ncoísla procura um nível
maior de desintegração social"). Talvez se possa definir tudo isso como um ataque duos" (1998, p. 15). A psicogeografia estava ligada à Internacional
psiquico às categorias políticas da modernidade, ou seja, são testemunhos pós-
modernos de símbolos colapsados (ocultismo!bordiguismo). Quem sabe o que
pensaria Amcdco Bordiga (revolucionário comunista incorruptivel e imutável) 3<1 Psicogeografia: o estudo de efeitos específicos do ambiente geográfico, conscien-
vendo-se relacionado ao ncoismo: paródia ou reviva!? temente organizado ou não, nas emoções e comportamentos individuais. Deriva:
uma forma de comportamento experimental ligado às condições da sociedade
urbana.
107
106 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis

Letrista, que "tinha levantado a hipótese de uma nova abordagem dos deambulação, prossegue com a deriva, recomeça com as TAZ e, final-
fenômenos urbanos, fundada na experiência vivenciada do espaço" mente, conflui nas raves: "A rave ilegal enriquece o conceito de TAZ,
(ib.);+o Então, a deriva é "o instrumento fundamental do qual se vale a impregnando-o de significados não-situacionistas" (A8, 1998), um
42
pesquisa psicogeográfica" (ib., p. 16), que a Internacional Situacionis- dos pontos mais altos da psicogeografia extrema.
ta define como "o tipo de comportamento experimental ligado às Só que, diferentemente das problemáticas situacionistas - que osci-
condições da sociedade urbana", "a técnica da passagem rápida por lavam entre projetos de construçôes para novas metrópoles (a New
diversos ambientes)). Sempre de acordo com Perniola, ela é "algo qua- Babylon de Constant, como projeto de uma cidade coberta, periodica-
litativamente diferente da viagem e do passeio, porque objetiva o reco- mente transformada por "grupos de criadores especializados") e uma
nhecimento dos efeitos psíquicos do contexto urbano" (ib.). A deriva, crítica teórica radical da urbanística de Debord, que não pode prever
portanto, comporta tanto a renúncia a metas prefixadas e o abandono projetos liberatórios antecipados (Perniola, 1998, p. 18) -, as áreas es-
às solicitações do território quanto o controle das variações psico- paciais das raves desenvolvem-se em locais abandonados, são a cele-
lógicas.4! braçãO eufórica da crise da civilização industrial e o desvio dos es-
"Na base de todas essas pesquisas reside a tentativa de superar a combros-de-cimento para cimento-em-revolta. Cimento de carne, de
geometria euclidiana, a qual fundamenta uma visão exclusivamente música, de fluidos. Cimento alterado.
quantitativa do espaço" (ib.). A característica vital de Luther Blissett, como conclusão parcial,

Todas essas temáticas foram em parte retomadas por Hakim Bey no situa-se na negação prática de uma arte imobilizada na obra, no retirar
conceito TAZ. Essa área temporariamente autônoma pode ser configu- de sua moldura (frame) a obra, para dançá-la nos fluxos techno e es-

rada como o espaço móvel de uma deriva, onde o sujeito experimenta combros revoltantes, na busca continua e "crossing" do desejo, no ex-
o atravessamento psíquico de uma geografia tão liberada quanto tem- perimentar sensações múltiplas, dilatadas, nem coletivas nem isoladas.
4J
porária. Parece mais do que compartilhável, portanto, um tipo de ge- Sensações-sensores multivíduas.
nealogia estética e antagônica (interminável) que se inicia com a
H Détoumcment: segundo oS situacionistas, signi.flca "a perda de importância do
significado originário de todo elemento singular autônomo e a organização de um
40 Transcrevo esta "ficha" sobre o letrismo: "Lettristlnternalional (1945-1957) was outro conjunto significante" (Pemiola. 1998, p. 2I), como o collage e o ready-
founded in 1945 in Paris by lhe romanianJean-lsidon:: Isou. It was mainly a made, porém sem dar à obra um valor autônomo e conclusivo; ao conlrârio. para
reacrion againslAndré Breton's dictawriaI controI of surrealism [... 1. The lcttrists anunciar a negação da arte.
worked on the levei of the type as the heart of a visual Ianguage, which was the base 43 A melhor crítica ao horror do retomo de novas/velhas BR IBrigate Rosse '" Brigadas
of their new cuIture. A group of lettrists took an aclive part at the First World Vennelhasl foi feita por Luther Blissett, em resposta a um pedido de intervenção na
Congress ofLiberated ArLists in 1956 at Alba (ltaly). They published in the time Micro Mega, por parte de Flores O'Arcais, visto como "profissional da emergência
fromJune 1954 to November 195729 numbers of their journal POllalch" (Web). infinita" das instâncias censórias: "Prezado Flores D'Arcais, tendo em vista o prazo
("A Internacional Letrista foi fundada em 1945 em Paris pelo romeno Jean- tão próximo, talvez não teríamos, de qualquer maneira, conseguido respeitar as
lsidore Isou. Foi principalmente uma reação contra o controle ditatorial de André datas de entrega. Nossa peça se intitularia ToM, Pcppino e le Brigate Rosse: note su un
Breton sobre o surrealismo [... 1. Os letristas trabalharam em nível de imprensa funerale d'emcrgenza [Totó, Peppino c as Brigadas Vermelhas: notas sobre um
como o coração da linguagem visual, que era a base de sua nova cultura. Um funeral de emergência], e se deteria sobre o real 'desastre semiótico' representado
grupo de letristas tomou parte ativa do Primeiro Congresso Mundial dos Artistas pelo reaparecimento da sigla e da empresa de publicidade BR (desastre comparável
Liberados em 1956, em Alba (Itália). Eles publicaram, entre junho de 1954 e a uma autêntica catástrofe ecológica), mas, sobretudo, teria lançado novamente as
novembro de 1957, 29 números de sua revista Potlalch.") 'loucas' consideraçôes sobre a nocividade e o eterno retorno da Emergência [... 1.
41 Inclusive Benjamin havia praticado algo semelhante sob o efeito de haxixe em Cordiais Saudaçôes, Luther B1issett" (Web).
Marselha.
108
Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 109

Anarcociclistas
"lencinho contendo imagens de nós como máquina (ou seja, sempre
A história da vanguarda é uma história da pa- bicicletas): iconofilia iconoclasta?"; um gravador com "música de
lhaçada, portanto os que tentam levar a sério
quarto de despejo ou própria para uma instalação na privada": execu-
essa tradição acabam parecendo idiotas.
tam Divino Buthangas (motores orgânicos e não-orgânicos), Ramarro
Stewart Home (1997, p. lIl)
(percussões saborosas), Anarco2 (+ digeridoo). A sigla - uma citação
do movimento Provos (holandeses alternativos pré-1968 de bicicletas

w
brancas): PROVOTAR1AT - poder-se-ia interpretar como uma provocação
em relação ao proletariado em vez de como contigüidade entre provos
e proletariado.
Entre os vários documentos anexos na Antológica, n. 1, PsykoZygo
- um anarcociclista - diz que será rigorosamente praticado "o anoni-
Faz alguns meses que cOlllcl.;aram a aparecer, em minha faculdade, mato total", que "nos orgulhamos em manter inclusive com os amigos
estranhos adesivos, alguns colocados também em meu armário, no qual mais chegados et familiares et partners", sendo "um dos elementos-
um desses ainda permanece colado. Até que um dia encontro em minha chave do nosso movimento". Como é evidente, existe uma conexão e,
caixa de correio, que fica no primeiro andar da Sociologia, um envelope talvez, até uma superposição com Luther Blissett (os "anarcoburlôes")
muito estranho. Há um carimbo-selo COm o impresso "anarcociclismo", ao longo da "área obscura e indecente" do anonimato. PsykoZygo em
no meio meu nome, atrás o desenho de uma bicicleta vermelha e em- Chiapas: "Os zapatistas representam, além de si mesmos - em seus
baixo os dizeres: "É um presente". Dentro encontro, com grande sur- muitos eus realizados e virtuais -, também os sem-rosto da margi-
presa, mensagens diversas: uma série múltipla de verdadeiros docu- nalidade cotidiana, os intelectuais que não se contentam com o rosto
mentos com o logotipo parecendo uma variação do anel de Moebius e a único no qual se tenta encerrá-los e todos aqueles que desejam multi-
escrita grande MOVIMENTO EM MOVIMENTO - ANARCOClCLlSMO. Etiquetas plicar-se" (Montezemolo, 1999, p. 85). Os anarcociclistas são zapatistas
adesivas - semelhantes àquelas das alterações - "bicicletas anárquicas" metropolitanos, com ironias mais fáceis e desconstruçôes lúdicas em
- com o pedido de grudá-las no armário, ou com avisos sobre o si te da relação aos zapatistas da Selva Lacandona, e no entanto expressam um
internet "caímos na rede - <dadaciclo@hotmaiLcom> _ é somente um problema poderoso dentro da comunicação contemporânea. Os sér-
maldito complô" - "boletim descentralizado anarcociclista" _ <http:// vios de Milosevich arrancaram e queimaram as carteiras de identidade
www.kyuzz.org!YouthAgainstlnternet (TM)lBri>. Colagens de mangás dos habitantes de Kosovo, para apagar sua presença não só jurídica,
eróticos com dizeres do tipo: "Sim ao sexo experimental" (uma garo- mas também biográfica e política. Eles são a mão armada da restaura-
ta penetrada por entidades transorgânicas) - "Fode a censura" (um ção de qualquer identidade: religiosa, étnica, territorial, histórica,
bico de luz sobre a vagina) - "Começa o pânico" (uma garota que ar- psicológica. Nesse sentido, sua ação - entre as muitas ações horríveis
ranca suas roupas). Num outro envelope que chegou mais tarde, que há tempo se praticam nos Bá1cãs - hiperidentitária é uma confir-
encontraria "um saquinho com neuroamaciantes esoplanetários" mação das características reacionárias de sua queda político-militar.
(cápsulas policromas e vazias); uma dose de quick wax for ski, para E é estranhamente semelhante (ou secretamente aliada) aos bom-
"amaciar os assentos das bicicletas ou para orgasmos de grupo"; bardeios da OTAN: também estes obrigam a uma identidade imposta.

I
110
Culturas eXtremas Excursus sobre as cu\tura.s juvenis intermináveis III

E assim também os sérvios anti-Milosevich tornam-se, antes de mais


nada, sérvios. deslocar-se (psykozíguico) é um valor contra todos "os miseráveis
conservadores" .
Limpar as etnias é sempre, também, limpar as identidades.
"À diferença da escolha de Luther, ou seja, a que reúne sob um
Como se sabe, também os zapatistas constituem um movimento único nome uma multiplicidade de indivíduos, o Anarcociclismo pre-
em movimento, que usa a internet para informar seus apoiadores glo- fere criar novas identidades em continuação, com novos nomes c no-
bais. Não andam de bicicleta, mas muitas vezes o subcomandante vas histórias pessoais" (PsykoZygo).
Marcos utiliza - apesar das terríveis condições de subsistência _ uma Orgon, um anarcociclista: "Devolver à linguagem sua função ge-
linguagem carregada de ironias tristes e desejos lúdicos escorregadios. radora de vida: usar em vossas ações uma linguagem desconexa, suja,
São sorrisos sem rosto e sem lábios que, mesmo assim, chegam até abastardada, injetada daqueles vírus sintáticos que dançam em vossos
nossos teclados e até nossos monitores-pc. "A máscara zapatista de crânios" - "Uma linguagem mutante para um mundo mutante".
múltiplas formas e transformação protéica dos maias insurgentes"
PsykoZygo: "Kara Mtv, te odeio e te amaldiçôo. Exemplo mais no-
(Montezemolo, ib., p. 84).
jento de homologação cultural juvenil. 44
Os anarcociclistas dirigem sua guerrilha semiótica contra toda es-
Divino Buthangas: "Embora, em grandes linhas, o movimento em
tratégia identitária: "A coisa que mais nos agrada, e pela quallevan-
movimento conhecesse a existência dos provos e do plano das bici-
tamos toda esta barraca, é debochar do Sistema (oh, yeah!), da mídia, cletas brancas I ... }, cavoucando nas livrarias de Milão, dois anarcoci-
das instituições e do onicompreensivo e sufocante life style autocên- distas encontraram Provas, de Matlco Guarnaccia. Os provas eram agi-
trico da Klassemédia, e também da Halta, Peqquena etc. etc." _ ''Já faz tadores anárquicos dadaístas, completamente loucos, que entre 1965
bastante tempo estamos ocupando TAZ, zanzando pelas ruas, deixando e 1967 enlouqueceram a policia de Amsterdã [ ... [. Improvisadamente
eloqüentes (delirantes) explicações dos acontecimentos. Nos metrôs nos encontramos com uma espécie (ah! ah!) de herança histórica!
de Roma, Milão, Berlim, Paris torna-se cada vez mais insistente e Agitadores agitados de todos os tempos!".
insidiosa nOSsa presença, por meio de escritos, pôsteres, etiquetas au-
Ração para Cães: "Hakim Bey é uma merda. Nâo agüentamos
to-adesivas e atuações de diversos tipos" (Pãniko nas Ruas, n. I). A bi-
mais! Os 4 volumes que saíram na Itália para os tipos imundos da
cicleta é apresentada como um vírus da informática sempre em movi-
ShaKe são um trabalho malfeito de restos das reviravoltas exótico-
mento, que consegue penetrar em todos os monitores do planeta:
esotéricas dos anos 1970, anarquismo miúdo, frase de efeito para es-
"Gozamos levando o pânico e a descompensação nas cinzentas certe- candalizar os aposentados. O único conceito realmente interessante
zas das cotidianidades dos Motoristas-Consumidores_ Telespectadores_ que soube criar, ou seja, o TAZ, foi abundantemente retomado por
Paroquianos-Contribuintes_Empregados". A "alegria de viver" é rei- qualquer cabana da aldeia global: os Assaltos Frontais o reamassaram
vindicada como Uma arma contra os Alternativos do underground. com sua retórica extraparlamentarista. Os ravers o repetem a 180
Segundo o Dr. Molotov (que confessa matrizes marxistas irresol- batidas p.Jr minuto. Os anárquicos enlouquecem ... Agrada aos freaks
vidas), o movimento Cicuco das rodas c da corrente simboliza o movi- e aos punkx". Ao mesmo tempo, sempre segundo Ração para Cães, a
mento contínuo da mente do anarcocidista. Nunca parar, em viagem
perene entre ancoradouros mentais e reais. A viagem, o mover-se, o 44 Acho essa posição - expressa com a fórmula" Anátema sobre vocês", ou seja, um
"ataque via imprensa" contra a MTV - um tanto anarcossedentária em relação ao
desconstrucionismo interminável avant-pop.
,.
112 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis interminávcis 113

TAZ é um "extraordinário meio de terrorismo cultural, que é o de con- extraordinariamente híbrido: autênticas transfusões de punk no ciber.
fundir e subverter o status quo. Uma janela aberta em nosso cérebro Embora se defina "Revista Internacional Underground", alguns de
insano pela qual despejamos o merecido lixo sobre o resto do mundo. seus fundadores tanto dirigem séries particulares (ShaKe Edições,
Nosso projeto é o de Ocupação Sistemática do Território Urbano me- para sacudir o mundo editorial alternativo) como trabalham junto a
diante os seguintes sistemas: 'Afixação selvagem de cartazes em amplo editoras "normais" (Feltrinelli), com a tarefa meritória de divulgar
espectro' - 'A invasão sistemática do solo urbano' - 'O superblefe' temáticas sobre as tecnoculturas contemporâneas, evitando a dupla
(massacrar a mídia)". armadilha de apologias neutralistas e preconceitos anticientistas.
Lagartixa, Saurídio Anarcocic1ista - O amigo Alienígena, um Anar- Assistir ao conflito e à inovação nas tecnologias intermináveis que
cocic1ista - Mr. Wheels - Tira Fixo & Cabra que Fala - croo2-2n, Anarco- cada vez mais são literalmente incorporadas, assim como nos corpos
ciclista - Tích Fix, Anarcociclista - Luther Blissett, um Anarcociclista. onde se enxerta o ciborgue.

Numa entrevista ao jornal La Repubblica, Piero Moscardini, diretor Decoder também organizou uma BBS45 e a rede telemática rizomá-
do campo italiano de Kavaje, diz ao jornalista Fabrizio Ravelli: "Por tica Cybernet, definidas como "um acampamento de guerrilheiros on-
enquanto, dar um documento de identidade aos prófugos serve so- tológicos [ ... l. Mas, para que a BBS alcance o potencial pleno, precisa
mente para nós, por problemas de segurança. Para eles, creio eu, é um tornar-se menos uma questão de combustão espontânea e mais uma
momento importante no plano dos símbolos". questão de 'ilhas na rede' - Assinado DecoderlHakim Bey".

A reconstrução temporária das carteiras de identidade consegue "Há quem diga que o ciberpunk é uma moda. Nós, pelo contrário,
dois resultados assustadores: a segurança policialesca e o poder dos afirmamos que o ciberpunk é uma diferença que faz a diferença.'· Não
símbolos. O oposto do interminável. Ordenações ... sei qual é sua referência, mas certamente, para mim - citando uma fa-
mosa definição daquilo que deveria ser a comunicação -, é Gregory
Decoder Bateson que, justamente sobre a temática epistemológico-ecológico-
No ciborgue não é a pulsão que produz uma comunicacional da diferença, elaborou sua antropologia neofetichista
teoria total, mas existe uma íntima experiência e neo-animista. "Para ele, a informação é uma diferença que comunica
\1, '" Ii 111 itcs, de sua construção e desconstrução. uma diferença." Grande antropólogo agarrado às academias e só re-
Donna Haraway (1995) centemente redescoberto por uma nova antropologia radical, Gregory
Bateson, não por acaso, colaborou com Wiener para o próprio nasci-

E.ID,,: mento da cibernética. Nesse sentido, é um ponto de referência ade-


quado que deve ser retirado da apropriação reducionista dos ambien-

EI talistas. Antes de Burroughs e sem influências surrealistas, Bateson


sustentou que o método está na junção dos dados: um cut-up episte-
mológico.
Na Itália, Dccoder é a reviSla fundamental do ciberpunk, mas não só
isso. O grupo que com maior audácia e desregramento introduziu e iS Bulletin Board System, ou seja, "um banco de dados independente aberto a todos
reelaborou de forma criativa os conflitos lingüísticos, a partir do aqueles que desejam que a informação seja cnergia aplicada e redistribuída ... e
movimento punk milanês, do qual Decoder é um cruzamento viral grátis".
114 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 115

Para Decoder, o ciberpunk insere (também na biologia de alguns de nável, pois tudo se enrosca em seqüências de tecnocorpos e tecnogra-
seus fundadores) o deslocamento conflitante e criativo do ciber na phics, entre as refeições nuas de Burroughs e os homens de aço de
mais fluida corrente contracultural eXtrema dos anos 1970: o punk. Tsukamoto; suas histórias estão inscritas exatamente como numa trip
Grande projeto da diferença e, portanto, do híbrido; aproximação lin- que foi muito malsucedida, de hackeragens independentes (aqui tam-
güística de duas correntes que mantêm sua diferença justamente na bém há um kafkiano "Mister X"). São frames que dão um sentido de
troca líquida de sentido. Contraculturas e contra tecnologias. clausura insuportável e libertadora (libertadora justamente porque
Ciberpunk como sensor que produz sentido. Como mistura de ar- insuportável), desenho concentracionário para intestinos labirínticos
tificial e corporal, de orgânico e inorgânico. Como práticas antidua- como uma web intestinal.
listas que atravessam e desorganizam gêneros, etnicidades, gerações. Cachos de agrupamentos híbridos representam o filão inspirador
Como contexto hipercomunicativo imerso nas metrópoles fluidas de de Bad Trip: tecnofetichismos pré-colombianos. Amarrações entre os
alta tecnologia distorcida e interminável. "Queremos a energia da ex- movimentos mais fetichistas, encenados pelas possibilidades tec-
periência e estamos cansados dos simples dados. Info como energia." nológicas e gozados num jogo sutil siM. Mergulhos em contextos his-
Contra a difusão de ideais Iocalistas e entrópicos, contra a defesa das tóricos pré-ocidentais, como a citação dedicada à deusa das flores
raízes, a imposição de "ordens": para o crescimento das consciências, Xochipilli, cuja estátua exposta no Museu de Antropologia da Cidade
a proliferação do caos e da mutação, para a difusão do espírito nôma- do México tem tatuadas no corpo flores de matriz psicodélica. Uma
de. Os artigos divulgam escritores como Bruce Sterling, juntamente Bad Trip-Xochipilli, portanto. Alianças antiindustriais entre pretéritos
com Gibson, entre os fundadores do ciberpunk, performers como sem Ocidente e futuros do presente hipertech sem-lugares, tendo no
Stelarc ("da body à technoprothesis, duríssimo, põe em discussão os li- meio fetichismos de tecnocarne que servem como veículos para atra-
mites do corpo, também isso pós-McLuhan"), Tom Jenkins, punk cali- vessar o presente.
forniano homossexual, criador de bancos informatizados amadoristas; - Muito semelhante a esse desenho, há um artigo de Anônimo, do
Mondo 2000, "a revista ciber mais conhecida no globo", neo-situacio- mítico título MORTE AO VIDEODROME: VIDA LONGA Â NOVA CARNE (1990),
nistas ingleses, desenhos underground, zyppy ("os hippies technopa- citação do filme mais antecipador dos anos 1980 e autêntico tratado
gãos), ravers como filósofos da contemporaneidade, Cromossoma X de antropologia fetichista-visual: Videodrome, de Cronenberg (1982).
(mulheres ciborgues para além da separabilidade veterofeminista, que "A doença principal do ser humano é sua antiga carne, seu espírito é
darão vida à Fikafutura). corrompido pelas vísceras [como no desenho citado de Bad Trip]: es-
Agora gostaria de reconstruir, por intermédio de alguns autores, um quartejamento, descarnar até chegar aos ossos é a terapia salvadora",
mapa aproximado dos territórios extremamente móveis como os dos afirma Anônimo, relacionando uma vez mais as supostas terapias dos
ciber: xamãs para suas viagens iniciáticas (trip sadomasô). Aqui o objetivo é
- Bad Trip: se for possível encontrar um desenhista-pintor como o enxerto de carne (mais do que de tecnologias) para uma trip coleti-
coágulo errante de um conjunto tão rasgado e fluido para os comix va, através da qual modificar as sensações e construir, justamente, uma
que não remetem a um genérico underground, mas ao contato especí- nova carne: contra "a lógica binária informatizada que foi eliminando
fico entre arte gráfica e cultura ciborgue: pois bem, esse é o Professor a possibilidade de olhar para o abismo, para as tonalidades gementes
Bad Trip. Suas figuras todas cheias de traços onde o vazio é inimagi- e ambáricas da própria interioridade". Contrapor à "violência da
116 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 117

mídia" a ex-terminação de todos os valores. A fonte citada é, nova- culo". Tudo isso tem o seguinte quadro de referência intenninável: "Is-
mente, a deriva situacionista, para eliminar os objetivos simbólicos e so porque nós da Fura tentamos juntar o que há de mais primitivo, o
colocar-se no processo: "Ciberpunk é o olhar dentro de nós mesmos, ritual, o sangue, comer a carne crua, com a idéia cibernética". Define-
no universo de nossa própria dor induzida pelo estranhamento face ao se seu sentir o interminável: nada terminou nem é terminável para
Espetáculo". E ainda Dehord e Sade: "A transgressão sexual situa-se uma abordagem que relaciona as tramas arcaicas com o ciborgue.
dentro da ordem", diz, parafraseando uma famosa regra da antropo- - Semelhantes à Fura são os transumantes Mutoid Waste Company,
logia, "os tabus foram criados para serem quebrados", que, desde herdeiros dos wanderers e agora travellers, com uma experiência
Mareei Mauss, influenciou toda a obra de Georges Bataille. Portanto, punx londrina. Definem-se "provocadores, mecânicos artistas e artistas
fusão de sexo e amor para criar "o indiferenciado, a confusão dos ori- mecânicos: em virtude da mutação do mundo circundante mudam o
fícios na orgia". E conclui assim, de forma muito eXtrema: ambiente onde vivem: escultura dub, ritmos tribais transitam da mú-

Nós não somos bonitos porque estamos além do simulacro, somos o vene-
sica aos desempenhos, das exposições às paradas". Sua característica é
no na máquina, somos flores nauseabundas; nós não opomos resistência a mobilidade no espaço, com estranhos ônibus mutantes (um ônibus
alguma ao VIDEODROME: é ele que conduz, por ele nos fazemos conduzir. pode ser um apartamento ou tornar-se um ateliê, pintado ou decorado
Estreitamente abraçados ao VlDEODROME, à espera do escorrer de devastação e pode tornar-se uma obra de arte, suas peças podem ser recicladas para
alegria no terror e no amor livre, na morte do corpo marcado e inciso, deste criar novas máquinas) construídos por eles, que se chocam sensitiva-
cadáver ambulante, não mais carne e sangue, mas carniçaria de signos
mente durante os road shows. Numa memorável atuação no Villaggio
referenciais, para o nascimento de um Novo Corpo, para a construção da
Globale, em Roma, em 1995, durante um encontro sobre as culturas do
Nova Carne.
co~Jlito, os Mutoid literalmente assaram um Fiat 500, com espetos
Carniçaria de signos contra o poder holístico dos símbolos. introduzidos em suas carnes de metal e viravam seu corpo sobre o
- La Fura deI Baus - grupo performativo catalão - é apresentado fogo que ardia por baixo. Ao redor, milhares de jovens, sérios e mudos,
com o nome de CYBERPRIMITlVES, no qual continua o nexo entre arcaico diante dessa alucinação interminável. Onde terminava o metal e onde
e tecnológico. Durante os espetáculos, a Fura constrói "máquinas mu- começava a carne?
tantes" que servem para "amplificar a força de nossas ações", máqui- "Homens e coisas devem mudar fisicamente, e as mudanças, num
nas chamadas também "automatics", de inspiração futurista; que po- desastre ou num pós-apocalipse, devem ser profundas se queremos so-
dem funcionar para a música (com chuva artificial, ar comprimido, breviver." Essa frase apresenta uma autêntica filosofia da mutação que
cheiros de carne podre, martelos pneumáticos, lavadoras soantes); que envolve homens e coisas. Aqui também trabalha uma espécie de feti-
interagem com o comportamento do público (máquinas que cospem, chismo metodológico, por meio do qual o lixo das mercadorias é dissol-
que dão choques de pequena voltagem, emitem cheiros). Tudo isso é vido graças à sua entrega neo-animista. O lixo se faz carne, carne de
realizado com material reciclado: "Gostamos mais, é mais interes- metal extremo e interminável e, ao longo dessa mutaçâo, redime-se da
sante, não é normal para o teatro tradicional" e, também por isso, di- mercantilizaçâo. Mudar e deixar-se mudar.
zem: "Preferimos tocar nas fábricas. Recuperamos materiais nos rea- O termo "mutóide" significa que está acontecendo alguma coisa
tores nucleares, nos estaleiros, nas empresas funerárias". Mas, em semelhante à mutaçâo, mas que igual não é, em sentido tradicional-
geral, o material é coletado "no lugar onde apresentamos o espetá- mente genético. O sufixo "óide", de origem grega, significa, justamen-
r IIS Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intenninávcis 119

te, que é semelhante, mas não idêntico. A mutaçào-mutóide desloca de Stelarc é uma espécie de nova carne, para voltar às visões anteriores
seu processo transformacional das "leis da natureza", ainda de matriz de Anônimo, de modo que as distinções "modernas" entre orgânico e
darwiniana e, portanto, relativas ao mundo orgânico, aos sujeitos inorgânico, entre carne e tecnologias não tenham sentido: "O artista
inorgânicos. Mutóide é uma mutação da própria mutação que, em sua pode tomar-se um arquiteto dos espaços corporais internos, reestrutu-
perversão genética, descentraliza o valor humanista que ainda perma- rando o território humano. Alcançando uma condição pós-humana, o
nece nessa palavra (genética), por ser demasiado antropocêntrica. Con- artista pode ser um agente pós-evolucionista que traça novas traje-
ferir subjetividade às coisas, ouvir as histórias de vida das mercado- tórias, focaliza desejos alienígenas [ ... [. O que é filosoficamente rele-
rias, ver biologias, biografias, identidades múltiplas também no lixo, vante não é mais o dilema mente-corpo, mas uma divisão corpo-es-
nos restos. Uma genética mutóide dos restos inorgânicos. pécie" - "Tenho a impressão de que chegamos aos limites da filosofia,
"Estamos plenamente conscientes de uma escolha, isto é, de não não porque chegamos aos limites da linguagem, mas devido à obso-
sermos mais políticos." Denominar-se fora daquela que foi a política- lescência de nossa fisiologia" eStelarc, 1993, p. 633). É o nexo percep-
talvez a categoria mais "alta" do pensamento ocidental, em sua con- ção, sensação, compreensão cerebral que muda a arquitetura lógica do
tinuidade greco-romana e cristão-burguesa - e que agora não é mais corpo. Obsolescência da filosofia como limite da fisiologia.
adequada à compreensão-transformação do existente. Porque esse - Spiral Tribe: o conceito de nomadismo foi fundamental nos anos
existente é mutóide. Para apanhar o óbito da política, é preciso apren- 1990. Ele tem diversas matrizes muitas vezes independentes entre si.
der a ouvir sua música: "uma música industrial, quase um blues de Uma dessas teve como laboratório a Grã-Bretanha thatcheriana e in-
trilho ferroviário misturado com neanderthal gospels". Mutóide é o ar- ventou as raves. No meio dos travellers - nômades que vivem entre
caico mais remoto - os traços mnêmicos de neanderthal- com O con- caminhões, microônibus, picapes - existem origens diversas, e muitas
temporâneo mais avançado, o trilho que canta o blues ou o chip que vezes suas histórias biográficas são conflitantes. Digamos que os
toca o pós-industrial. Walter Benjamin definia essa relação como ima- travellers participem de fases diferentes do nomadismo, um mais tra-
gem dialética. dicionalmente hippy, o outro, mais renovado, dará vida aos ravers. Os
- Também Stelarc - body-performer e body-mutoid australiano de Spiral Tribes são um grupo que, a partir do solstício de 1991, irão con-
origem grega - está presente justamente por suas i.ntcrconexões cor- tribuir de forma decisiva para transformar os velhos agrupamentos
porais entre hipertecno e hipoetno. Embora sendo um body-artista que hippy, instalando uma nova fonte sonora: o sound system. Eles "não
não tem uma matriz diferente dos Mutoid ou da Fur~~, Stelarc se coloca são organizaçôes formais, são apenas grupos livres de pessoas, mas as
além do filão do "acionismo vienense", do final dos :J.nos 1960, quan- festas que realizam são superorganizadas. Os ditos ravers ficam sa-
do o corpo era decomposto mediante atos autolesionantes e até autên- bendo de um número de telefone alguns dias antes de um evento, por
ticas mutilações. Stelarc, ao contrário, busca constantemente aquele intermédio de folhetos, boca a boca ou ouvindo as rádios piratas.
limite incerto e móvel da "suportabilidade" psicofísica por meio de Algumas horas antes da festa, o telefone lhes dará um indício para
ações do tipo: levantar o próprio corpo virado para baixo, com dezoi- encontrar o lugar em cuja área ocorrerá a reunião. Quando a área for
to ganchos inseridos na pele, durante quinze minutos. Ao mesmo tem- ocupada, o lugar exato será comunicado. A idéia é que, no tempo
po, faz experiências na "terceira mão": aplica-se um braço como pró- empregado pela polícia para entender o que está acontecendo, o lugar
tese tecnológica, para expandir artificialmente as dimensões corporais, estará tão cheio de gente que se tornará difícil esvaziar a área" (Mark
enxertos robóticos justamente definidos como "posthuman". O corpo - Spiral Tribe -,1994, p. 735). É o nexo idealização-gestão-informa-
120 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis t21

ção-atuação que tem forma de espiral. E na espiral não há realmente link


um começo. É um conjunto de fontes e de contatos que proliferam e Nosso vizinho, que no metrô assobia com se-
convergem num ponto. Todos e tudo é intercomunicante. Diz Mark: "A gurança triunfante o tema do Finale da 1 Sin-
techno é uma música folk. Nunca existiu música popular tão acessível fonia de Brahms, não faz outra coisa a não ser
Inanipular escombros.
e forte" (ib., p. 736). Pode parecer surpreendente definir a techno
Thl'\1dnr W. ·\dorno (] 074. p. 25)
como folk, mas o conceito de pop e de popular em inglês (que tem
uma complexidade de sentido muito diferente da simples tradução
em italiano de "popular") define a decodificação da techno como pop,
porque, sem palavras e sem líricas, sua percepção coincide com sua o IJI'IJ 1\ 4J~ lB
compreensão. E para Mark este é o pop. "Nós fazemos música das
pessoas" e essa música de-alta tecnologia, justamente techno, "trans- U Link é Ulll Jos centros sociais que se caracll'rizaJ"a1ll por uma
porta para os reinos do xamanismo. Podem nos chamar de technopa- clara especificidade: juntar as experimentações e as novas tecnologias
gãos". A tecnologia acelera, e o xamanismo afunda. O interminável é em cada setor da música, performance, cinema, workshop, videoarte.
tal enquanto conecta acelerações e afundamentos. Situado atrás da estação de Bolonha, seus espaços são bem-cuidados,
com algumas estátuas mutóides representando macacos antropomor-
Em Castelmorton fizemos seis dias de nonstop. Na Camel-Ford, em agosto
fos entre odisséia-no-espaço e planeta-de-Crichton, feitas da junção de
de 1991, catorze dias 24 horas por dia. Faz-se experiência de um mundo que
não se sabia que existisse. O sol se põe e a lua nasce, vê-se o mundo que gi-
ra. Meu recorde é de nove dias sem donnir. É uma coisa de xamã. E se chegam ,.. especially those involving siM and Dls to release the acid of the soul that dissolves
a pedir-te para baixar o volume, lamento, não baixaremos! Levantamos o boundaries and violates ali that represses lhe spirit. CYBERPUNK. We are interested in
the transforma tive ideas and attitudes of Cyberpunk as applied to se1f-evolution
volume de qualquer modo. Se tens voz, grita. Nossa palavra de ordem é: "Faça
and political activism. [ ... 1" (Web). ("A palavra 'ciberpsycho' deriva das raízes
um pouco de ruído danado".
gregas 'khyber', que significa 'timoneiro', e 'psyche', que significa 'alma'. Nós es-
colhemos 'Psycho'de HitchcockIBloch para indicar nossas loucas visões de mundo
Decoder é isso ... e muito mais. 46 e escolhemos o moderno 'Cjber' para indicar o modelo laborioso e auto-replicador
do existente num mundo a ser desafiado. Neste mundo, somente os loucos são
46 Zeena Fabreaux define assim o Cyber-Psycho: "The word, cyber-psycho, comes sadios. Nós somos os loucos que procuram ser seus próprios timoneiros, nós
from the Greek roots 'Khyber', meaninggovernor/steersman, and 'Psyche' mcaning regulamos e corrigimos a evolução de nossas almas. Somos anárquicos, evolu-
sou!. We choose the HitchcockIBloch 'Psycho' indicating our own crazed view of cionistas, mágikos terroristas culturais. De nosso atual interesse citamos alguns
the worId, and we choose lhe modem 'Cyber' indicating the plodding and self- focos: TEOLOGIA S6NlCA. Estamos interessados na arte e na ciência do som enfeitiçado
replicating pattems of existing in a chalIenging worId. In this world only the crazy e suas remanifestações atuais nos dark clubes enfumaçados do mundo pós-gótico.
are sane. We are the crazy who seek to be our own governors, we regulate and MAGIA Tt:CHNICA. Estamos interessados no emprego de instrumentos eletrônicos
correct the evolution of our own souls. We are anarchic, evolutionary, magickal, low- e high-tech para alterações mentais (máquinas para. sons/luz) e para recaídas
cultural, terrorisrs. Ourcurrent focus is eightfold: SONIC THEOLOGY. We are interested políticas. AVANT-POP. Estamos interessados na atual literatura 'fantástica' que vê nas
in the art and science of sound sorcery and irs currem remanifesration in lhe smoky possibilidades do mágiko um instrumento para vencer o poder da alienação.
dark clubs of the post-Goth world. MAGIA TECHNlCA. We are interested in the use of MAGIA ERÓTICA. Estamos interessados no emprego de tecnologias sexuais mágikas,
low- and high-tech electronic devices for mind altering (light-sound machine) and especialmente naquelas que envolvem relações siM e 015, para liberar aquele ácido
for political remittance. AVANT-POP. We are interested in current fantastic literature da alma que dissolve os limites e viola tudo aquilo que reprime o espírito. cmERPUNK.
that focuses on the possibility of the magickaI as a way of defeating the power of Estamos interessados nas idéias e atitudes trans[ormadoras do ciberpunk, enquanto
alienation. MAGIA mOTlCA. We are interested in the use of sexual magick technologies,'" aplicadas à auto-evolução e ao ativismo político [ ... 1")
Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 123
122 Culturas eXtremas

Electronic Café (EC): tapeçaria sonora binária. - Cathodic Wounds:


materiais ferrosos em desuso. Num quarto, está situada a maior co-
reciclagem criativa, artes midialógicas. - Drum-Bassline: elogio da
leção de videoarte da Itália, que sequer as universidades ou os museus
lentidão, baixas freqüências catárticas, groove sintético. - Mundos
possuem.
Magnéticos: videográfica, loop low definition, regurgitação televisiva,
A forma de expressar o âmbito lingüístico e, portanto, comunica-
retina em movimento. - Technological Actors Happenings: Marcel.li
tivo (o link é um nexo, uma relação, "uma conexão-entre") do Link,
Antunez Roca, epizoo a cabo, instrumentos ortopédicos, enxertos
para mim, só pode ser o desenvolvimento de um som - mais do que
pneumáticos, corpo glorioso, jogo de massacre. - Mutoid Waste Co.:
de um discurso-onomatopaico, semelhante aos ritmos recitativos de
eurokarsas, arte total, zombie beat. - X-trem: se1ecionadores de esco-
certos poetas da beat generation. O que vem a seguir é uma experiên-
teiros, noitadas Xtremas, trabalhos duros, transgressivos, provoca-
cia de análise em forma de partitura sonora.
dores. - A audição do tempo: músicas inaudíveis. Link Sound Lab:
RedmuslinK: músicas heterodoxas, outras músicas, inovações mu- volume máximo, ecos-poéticos-noise, músicas tortas, agitações core,
sicais - "caneeta-se o tempo, a sincronização, o ataque, a intimidade, autochoques sonoros. - Reciclar a imagem: mastigar, digerir, regur-
a excentricidade, o ego, o ritmo, o físico, a expressão gestual, os sons, gitar obras-primas passadas, esqualores televisivos, filmezinhos anô-
a memória, os sentidos, a improvisação". nimos, reportagens cruas. - Insurgentas: companhia Xe: duos guerri-
- David Moss: território vocal, som muito agudo, som muito grave, lheiros, EZLN. - Atari Teenager Riot: punk-techno hardcore, mega-rave,
imitar a bateria com a voz, sons esquisitos, sons sem nome, o som do break-beat, trash-metal, Mil Plateaux-Riot Beat. - Valley of Light: Rue
animal, o corpo que toca. - Schlauch: ruídos de fundição, feedbacks si- Morgue Blues, mistura sonora e distorções de loop e blues, extremo
bilantes, altas/infraJultra-seqüências, esfoliações de timbre, fábricas contraste. - Distorções 96: os limites da música, música eletrônica
abandonadas, bunkers, galpões industriais, subterrãneos, pontes. - sem compromissos, turbilhões vorticosos, mutações eletroacústicas. -
Otolichten + Circus Maximum: noise estruturado, banco de sons, Mistress: doces dissonâncias, consonâncias sofridas. - Sonic Outlaws: co-
momentos gestuais, sax eletrificado, distorções. - Rom Khorakhané: pyright infringement. - Volapuk: linguagem universal sem futuro. - Ci-
influxos médio-orientais e balcânicos, teclados eletrônicos, migrações. nema Desviado: derivas, bifurcações, contaminações. - Plunderphonics
- Faltsch Wagoni: equilibristas de palavras, percussurfer, polistrófono, ou Bofetadafonia: som saqueado, amostragem e scratch, fatias verticais
língua quadrilingual. - Guy Debord: a sociedade do espetáculo e a de som, arranhem o disco. - Gomorra: o espaço que foge, lado obscuro
refutação de todos os julgamentos hostis/elogiosos. - Dance for the do território. - Metamkine: mistura eletroacústica, traços sonoros. - Jim
Camera: videodança. - Extrema: Cinema Novo Inferno, splatter-punk o'Rourke: dadaísmos eletrônicos, tecnodesvios. - Vídeo Sound Poetry
teutõnico, necrofilia, territórios cinematográficos boicotados, Zé do Festival: videopoética. - Mouse on Mars: soundtrack, arquiteturas ele-
Caixão. - Beruf Neonazi: retoques estéticos, hábeis camuflagens, reu- trônicas. - Distorted Dark Room: sonoro hostil, radical ambient, noise
niões revisionistas. - Mens Conclusa: ação-instalação, indivíduo sub- extreme, música terminal. Mixtofônico Lab Videodança. - Art Clip -
traído. - Geografias do apocalipse: rave party com máquinas atorais, Psycho TerminaL - Rebecca Horn; erotic concert, máquinas automá-
teatro situacionáutico "Luther Blissett", subtração, fratura, linha de ticas, vocabulário polimorfo. - Sitar Funk: ethnocyberpunk night, afro-
fuga. - Eletronautas: dance eletrônica. - Link BBS: comunicação hori- indianas, earthtribe, dubexotic ethnofunkdelica. - Anti-ambient: chill,
zontal, descentralizada, interativa, experimental. - Infoz sobre descomprimir o espaço, música tapeçaria. - 13 th Tribe: desorientaçâo
Cybernet: ciberpunk, nenhuma policy, criptografia, no-copyright. -
124 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 125

acústica, geografias falseadas. - Starfuckers: música amétrica e irre- da-me que os (escassos) clientes se assimilassem à sua estrutura: pes-
solvida, arritmias indeterminadas. - Lost Highways: distópica LA. _ soas de idade que vagavam em busca do nada. Como se - entrando -
Sons visuais e imagens sonoras. - Panasonic: distúrbios multifreqüência, tudo já tivesse sido consumido. E eu estava excessivamente irritado por
rnurtoneste = quebrar um líquido. - Adverse rec.: AAA Noise System: todo esse vazio.
ruído branco, deturpar o vinil, terroristas sonoros, ruído puro. - Stewart
Também pensei em ir falar com o gerente. Mas a própria idéia me
Home: skinhead, bobalhão, terrorista cultural, fundador neoist-alliance,
pareceu insuportável.
ataque psíquico, psicogeógrafo, Luther Blissett, art strike.
E dizer que só alguns anos antes era um espaço entre os mais ino-
O cut-up é poesia contígua, descentralização de timbre, subtração:
vadores. Chamava-se Pirateria di Porta, referindo-se não só à Porta
a linguagem como label ou como programa ou project trimestral do
Portese próxima, mas também ao fato de que os ocupantes do centro
Link define seu sentido numa junção pura como o ruído branco. É ló-
social anteriormente ocupavam Pirateria di Porto, um outro espaço
gica indecifrada, uma neológica não redutível a número, inumerável.
interessantíssimo, depois da ponte de ferro na velha zona industrial da
É polifonia nominalista da música que pode ser prolongada ao infi-
Roma pós-unidade e deixada ao abandono. Ali havia (e ali perto ainda
nito. É música líquida.
há) uma estação da Marinha Militar que controlava a entrada dos bar-
cos que chegavam a Roma. O nome do centro social, portanto, brin-
Piratarias de Porta
cava, em múltiplos níveis de leituras possíveis: a pirataria como TAZ,
MOLOCH!
como piratas fluviais, um porto do qual se "navega" na rede e não nas
Teu sangue é dinheiro que escorre! Teus dedos águas. Afastados por motivos de "segurança", os jovens eXterminados
são dez exércitos!/ Cujo peito é um dínamo
ocuparam aquele espaço próximo abandonado ao qual deram o nome
canibal!/ Cujos olhos são mil janelas cegas!/
Pirateria di Porta. Um trânsito do porto à porta. Mas, uma vez mais,
i\lkll Cinsbcrg (transcrito num grafite em

·
Pil'~\1nia di P(ll'la) infeliz, pois o lugar havia sido comprado por um particular e, depois
de inúteis tratativas, tambêm a segunda pirataria foi afastada e nasceu
assim uma terceira, chamada somente Pirataria no lado de Óstia, sem

I
;> portos nem portas.

' ..-,:.\~
"'. ". L
J.
Então: naquilo que agora é a parte central do shopping mais anô-
nimo de Roma havia um enorme grafite de muitas cores, grafado em
mais paredes, e numa coluna de cimento armado que trazia a poesia
Em Roma, perto de Piazzale della Radio, e justamente na alameda sobre a bomba de hidrogênio de Ginsberg acima citada. Um link entre
onde o domingo termina em Porta Portese (ou seja, o mercado das beat generation e pós-punk. No grafite eu tinha escrito uma parte (que
pulgas), há um novo shopping center de uma nova cadeia comercial. aqui transcrevo parcialmente) da qual nasceu uma história:
Fui "visitá-lo" no começo do ano, não tanto para fazer compras, mas
Dentro do Centro Social Pirateria di Porta há um grande grafite que muitos
para constatar como tinha sido realizado. Confesso que estava descon- estudantes consideram uma obra.prima da contracultura romana. Ê funda-
fiado, no entanto creio que seja impossível ver um shopping tão feio, mental vê-lo - me disseram - antes que desapareça. De fato, o lugar não é
vulgar, sem o mínimo traço comunicativo. Plano, cinzento, triste: pare- completamente abandonado, mas um proprietário havia investido dinheiro
126 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intenninâveis 127

e, portanto, com toda probabilidade, lhe será devolvido para ser rees- É um olhar fixo que aguarda resposta: aqueles que deveriam ter sido seus
truturado. E o grafite se dissolverá no ar. .. companheiros de viagem mais chegados não o compreenderam e o confun-
No grande hangar da entrada, quatro amplas paredes são afrescos hip-hop diram com um monstro do poder. Então, é preciso libertá-lo dessa denomi-
feitos com tinta spray. Até as pilastras que as dividem como folhas de um nação errada, restabelecer os códigos da crítica contracultural, vê-lo e gozá-
caderno foram usadas. Está representada uma espécie de enorme gigante, lo como expressão da real condição juvenil antagonista de hoje. Renomeá-Io
uma máquina humana em pedaços, desmontada em sua unidade física, que por aquilo que ele é: um jovem etnociberpunk desmembrado do poder
incorporou Carne e metais, chip e plásticos. O rosto é dOTido e estupefato, ordenado e asseado dos liliputianos berlusquinos. Mas que pode começar a
como surpreso por um final atroz e imerecido. O olhar está perdido. Ao redor obra de sua reunificação feita de muitas carnes, de muitas redes, de
pulam pequenos personagens todos brancos, neocorsários liliputianos, identidades plurais e nômades. Um ciberbororó (ih., p. 76).
asseados, sorridentes, bem-vestidos. Uma poesia - eScrita numa pilastra _
explica que o MOLOCH do poder foi derrubado e, finalmente, a juventude se A discussão com Felipe foi apaixonada para ambos e - lamenta-
libertou. O afresco-spray é notável pela habilidade pictórica e confere ao velmente - não sei o que esteja fazendo agora. Tenho certeza de que os
hangar algo grandioso. símbolos se misturaram e que são cada vez mais os signos que deter-
Porém, o que impressiona dolorosamente é que os códigos estão errados, minam a comunicação contemporânea. E tudo isso torna muito mais
aliás, invertidos.
fluida e descentralizada qualquer interpretação. Por outro lado, é im-
Com efeito, na tradição contracultural- desenhos alternativos (Xerox), possível termos uma "teoria geral" da metrópole: que dirá do hip-hop.
filmes experimentais (Tetsuo) , rOmances ciberpunks (Neuromancer) _ os
personagens nos quais foram inseridas peças high-tech são (em vez do Uma coisa, porém, permanece bastante certa: os shopping centers
MOLOCH do poder) os anti-heróis dos panoramas splatter metropolitanos. são espaços de grande interesse cognitivo sobre as mudanças do con-
Esses anti-heróis oleosos, quebrados, híbridos estão prontos para reenxertar- sumo, sua inserção nos canais performativos, a dupla valorização
se e trazer de volta seu desafio COntra um poder duro que gostaria de vê-los, (econômica + estilo-de-vida) do consumo atual, diferentemente do
justamente, em pedaços, objetos desmontados sem subjetividade. Enquan- "moderno", a exposição de mercadorias de fetichismos visuais, de es-
to o coro dançante e auto-satisfeito - de estilo coletivo, deleitado e bem-
paços de espelhamentos contínuos e reespelhamentos, panoramas so-
passado - só pode representar (em vez dos piratas) o povo que venceu os
berlusquinos, H ao redor do monstro-ciborgue finalmente capturado. noros suavizados e sedutores (speakers, anúncios, músicas, ruídos),

Como pôde acontecer, então, que um dos lugares mais representativos da acentuada artificialização de cada panorama interno, palcos como
contracultura romana tenha invertido os códigos, e toda a operação tenha miniparques temáticos, com evocações, citações, solicitações. Bem: de
sido julgada uma obra-prima absoluta do hip-hop juvenil? (Canevacci, tudo isso não há traços naquele horrível centro comercial. Apenas ex-
1994, p. 66). posições deprimentes de cansadas mercadorias-objeto. Pensei que fi-
caria satisfeito se tivesse sido o único shopping a ir à falência em todo
Essa pergunta eu quis dirigi-la ao autor do grafite: Felipe dei Forte,
o mundo. Com que coragem o novo dono ou gerente terá dado a or-
um jovem e delicado artista que procurei e depois conheci, e ao qual
dei aquela minha peça que terminava assim:
dem de apagar toda aquela obra-prima' E como terá limpado o todo
um bando de inimigos do grafite? Poderiam ter deixado ao menos uma
Chegados ao final, voltemos ao falso-moloch. Agora é possível inserir no parte, sorrindo cromaticamente aos consumers perdidos. Teria sido o
decoder aquele olhar sofrido e oleoso, tão surpreso por um final imerecido. único na Itália: e teria atraído massas crescentes não só de consu-
midores, mas também de admiradores e estudiosos. Fazer shopping
47 Referência a Berlusconi, primeiro-ministro da Itália. (N.T.) no grafite. Ou no Moloch ... Que idéia!
128 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 129

o comércio, por vezes, coagula o limite da miséria. Para mim, esse enfrentar a morte e a dor sem dar morte nem dor aos "culpados". Os
shopping é natimorto. jornalistas têm bem outras responsabilidades a respeito da ignorância
superficial a serem ridicularizadas: as definições de squatter que
Squatters circulavam naquele período, nas fichas informativas dos diários
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos principais, eram hilariantes. Uma ocasião extraordinária, para enver-
Graccos. gonhar uma "categoria" que se fecha como um caramujo contra todo
,. 1,,, "lei de .\ Iltl r"cie (1999. p. 31) ataque individualízado. Ou simples crítica. Observar. Precisar. No
entanto: o meio é a surra. O meio não é nem a mensagem nem a mas-

(~)kj
sagem. Surra. Contra a própria dor.
O movimento dos squatters nunca existiu na Itália. Os centros so-
ciais são uma coisa diferente, pertencem a uma especificidade muito
italiana e um tanto alemã, e, geralmente, os oKKupantes dormem em
Quando o movimento dos squatters - jovens que ocupam abusiva- casa. Também os movimentos a favor da moradia, nascidos no início
mente casas vazias ou abandonadas - havia se exaurido fazia tempo dos anos 1970, eram bem outra coisa: as famílias que ocupavam eram
nas principais capitais européias, em primeiro lugar em Londres e diferentes dos squatters, pertenciam a outras experiências. O squatter
Berlim, pela insipiência jornalística e por auto-satisfação movimen- é um indivíduo que se movimenta fora e contra a família. Aqueles que
tista, improvisadamente, em toda a Ilália, fala-se nos squatters de Tu- a imprensa nacional- continuando a fazer proliferar uma expressão
rim. Únicos squatters no mundo inventados pela mídia e sobreviventes sem sentido - define como squatters (isto é, "os de Turim") poderiam
"niponicamente" nos interstícios de uma cidade industrial em deca- inventar formas lingüísticas alteradas e móveis para desconstruir essa
dência como Turim. Squatters que se caracterizam, talvez, por ódio se- insipiência jornalística. Entrar com seus códigos na comunicação
dentário e amor microcomunitário, contra as altas velocidades de como conflito. Esses jovens-terminados poderiam ocupar, de acordo
qualquer meio de comunicação (exceto o rádio ... ). Resgate de uma com sua sensibilidade descentralizada, os fluxos entre comunicação e
anarquia ligada ao imobilismo terrestre - anti tecnológico, sem auto- tecnologia, entre movimentos e experimentações. Entretanto, têm ten-
ironias, totalizante ao longo de dicotomias ontológicas que separam e dência a fechar-se em si mesmos, como a mais endogâmica e comu-
purificam o micro-nós do todo-eles. Mesmo sendo contra qualquer nitária das tradicionais contraculturas, e ganharam o rekord - entre
cárcere, eles aplicam, com pedagógica tranqüilidade, os castigos corpo- lOdos esses movimentos alternativos - de ter enfrentado da forma mais
rais com a ação direta, de acordo com a genealogia da moral que ante- imobilista a tecnocomunicação contemporânea.
cede as instituições totais: atinge-se um jornalista para educar cem
Squatters-T048 e jornalistas-n parecem construir-se reciproca-
deles.
mente, segundo patologias comunicacionais antiecológicas. Tendo
Que a comunicação - da hipertecnológica à performativa - possa pouca confiança nos segundos, espero que os squatters-TO rompam
ser um momento decisivo do conflito e da transformação não está esse duplo vínculo e denunciem ao Tribunal de Haia, ou a quem garan-
presente de maneira alguma. The Wall. Roubar o Menino do presépio
foi o maior ato publicitário apresentado como anti-Benetton. Saber
~!l TO é a sigla rodoviária da cidade de Torino (Turim). (N.T.)
130 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 131

te a privacy, aqueles jornalistas que continuam evocando-os a seu Um procedimento subversivo análogo àquele do "Genius" ou das
modo: com ironias e paródias. Pelo modo como emerge, desse excur- Fucking Barbies e até de Toretta. Entrar no código do domínio, fazer
sus, uma anarquia antitecnológica e anticomunicacional, inverte a pers- crer que se assimila a ele e assim corroer o poder conceitualmente
pectiva libertária em imobilismo fechado e acabado. "científico, desvelando todas as incrustações que o poder da lingua-
gem colocou aí.
Cherokec Desmontar os estereótipos fazendo-se estereótipo.
Jimmie Durham vive também em Berlim e realizou uma série de

11 'I
f'J" _
tiS:::::.
operações artísticas multilingüísticas que desestabilizam toda ingênua
categoria etnográfica e estética. Dissolução do exótico e do erótico:
Self-portrait (1987) é uma obra sua na qual representa a si mesmo co-
mo uma espécie de manequim, com o sexo enorme (mostrando exata-
mente o estereótipo do "índio selvagem"): um ser que avança como
"
uma espécie de Frankenstein tribal, o coração aberto e uma série de
inscrições sobre o corpo que dão indicações irônicas sobre seu si-mes-
A falsa terminologia usada contra nós é tão espalhada que todos os
vocábulos evocam a (falsa) idéia da indianidade. A palavra "tribo" vem das
mo problematicamente "nativo". Assim desmonta as classificações
três pessoas que fundaram Roma ("tribunal", baseado no número três, vem recorrentes dos chamados "índios da América" por parte das institui-
da mesma raiz). Não é uma palavra descritiva nem científica. Seu uso em ções, meios de comunicação e senso comum. E de não poucos sobre-
antropologia esteve completamente desacreditado, vem do conceito europeu viventes contraculturais unidos a conhecidos sociólogos tribalistas
de progresso humano, em cujo cume estão as capitais européias. "Tribo", (Maffesoli!).
"chefe" e semelhantes não descrevem uma parte da realidade de ninguém;
são descritivas dentro de um discurso de fechamento e de conciliação com Nos Estados Unidos, as pessoas fazem suas perguntas sobre os "índios" no
o propósito de mostrar o ser primitivo (Durham, Avatar, 2002, n. 3, p. 74). passado, não só comigo ou com outros "índios" individualmente, mas
também quando se dirigem aos grupos. Não é incomum para nós responder
o autor dessas reflexões éJimmie Durham, artista contemporâneo no passado. Uma vez, em Dakota do Sul, um homem branco perguntou "o
de vanguarda que é também militante irregular das populações nati- que os índios comiam?" Um de nossos idosos deu a resposta sem ironia:
vas dos Estados Unidos a partir da revolta de Wounded Knee. Durham "Comíamos milho, feijão e abóbora" (resposta tipica que está nos livros
é, de fato, um cherohee. Como não poucos "nativos", em vez de inserir- escolares dos Estados Unidos) (Durham, ib., p. 70).
se na moldura do estereótipo do indiano tribal - fechado em sua
Sua representação dos "animais totêmicos" - caveiras de cavalos, alces,
reserva para ser fotografado por turistas amantes do "exótico" -,
bisontes, vacas - transforma o que devem ser símbolos lingüísticos de
trabalha para destruir esse sistema ainda colonial de classificação por
pertença ancestral em arte vibrante que prejudica toda tradição, inserindo
meio de suas obras de arte. Nele, interpreta a si mesmo como um
e colorindo com seus códigos mais variados e desestabilizadores aquilo
ocidental espera que deva ser um cherokee.
que era uma caveira-totem e que agora é arte cherokee fluida que atravessa
A representação admirada do estereótipo tem como finalidade a des- as caveiras e as livra de uma colocação "tribal". Algo semelhante à
truição do próprio estereótipo. skullpture de Orozco (cf. capítulo 1Il): skullpainting ...
132 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis t33

Chamar um cherokee (ou um lakotai ou uma xavante) de índio e novo de maneira mítica - os 'Índios da América' - ou antropológica -
defini-lo como tribal significa classificá-lo como primitivo. Isto é, co- os 'nativos americanos'. Estamos deslocados da arena política. Em vez
mo uma sobrevivência de uma humanidade arcaica imaginária. A ca- de direitos humanos temos os mais esotéricos 'direitos dos indígenas'."
deia semi ótica e lógica torna-se uma cadeia de ferro que continua a Daí a representação como estereótipo do nativo americano inscri-
refrear qualquer subjetividade "outra": to dentro de uma visão da natureza toda boa e toda cíclica:
Cherokee - índio - tríbal- primitivo - arcaico.
Em 1980 os brancos já ensinavam xamanismo "índio" nas universidades.
Por isso, no senso comum - continuando a fazer funcionar essa Os estudantes brancos participavam das danças do sol e das cerimônias do
lógica - um jovem cherokee atual é uma mostra da humanidade arcai- peiote. Cada centro comercial da nação tinha um empório que vendia cris-
tais mágicos dos cherokees e todo aeroporto tinha uma loja que vendia
ca. E ao passo que esse arcaísmo - ou "tribalismo" - funcionava para
roupa "índia" e artefatos junto com equipamentos para cowboy. Como um
guetizar os "outros" (ou "nativos"), agora, junto com essa sistematiza-
spot televisivo de Ralph Lauren, "o espírito do West que hoje está por toda
ção de tipo evolucionista colonial, o termo "tribal" voltou a assumir parte".
um valor positivo: tribal como sinônimo de povo da natureza, que tem
contato imediato com o mundo real, ecológico, autêntico, puro, com Publicidade do gênero "étnico" que circula na Itália: primeiro pla-
o corpo cheio de raízes e de respeito máximo pelas plantas e pelos ani- no ele, o homem civilizado com uma cara e marcas que deveriam
mais. Pois bem, exatamente esse presumido valor positivo é ainda pior designá-lo como "pele-vermelha". De lado, o cherokee fora da estrada.
e mais discriminativo do que o outro ingenuamente racista. Muda-se Em cima: The wild side of life. O nome "Cherokee" tem uma atração
só de sinal aquilo que estaria em contato estreito com símbolos na- semiótica poderosa: arrasta um rosto que tende para o exotismo den-
turais. Finalmente, um jovem cherokee ou um jovem xavante des- tro do logo e o transforma num índio/fora da estrada. Rosto-cherohee-
mascaram esse truque altamente grosseiro. cavalo-fora da estrada. A cadeia semiótica está pronta, basta identificá-
la e adquiri-la. A publicidade é ingênua e irônica, mas reproduz alguns
Então sobre os "índios" (termo que Durham usa sempre entre aspas
códigos que - inexoráveis - continuam a esmagar no estereótipo o ou-
porque é um dos exemplos clássicos do erro do Ocidente - a Índia! -
tro segundo uma lógica narrativa ainda dominante em grande parte do
constitutivo da modernidade que continua a fixar em termos coloniais
Ocidente. Por trás de uma aparente mitificação da "indianidade" -
as populações pré-colombianas) assumem-se essas diversas posições
compre o jipe e torne-se um cherokee -, absorve também as caixas
todas "imperiais": os "índios" estão todos mortos, infelizmente, por
dentro das quais continuar a prender esse cherokee: um "índio" feroz,
culpa dos ianques - os "índios" hoje estão felizes com a situação e vi-
nômade, ecológico e, ao mesmo tempo, exotizado, erotizado, sem his-
vem no respeito de seu mundo natural- não há mais "índios" verda-
tória.
deiros.
Em qualquer tempo, é politicamente correto chamar os "índios"
O termo "índio" sobrevive ao erro que Colombo transmitiu da era
de nativos. De fato, na palavra "nativo" afirma-se uma vizinhança com
moderna aos nossos dias. Talvez seja hora de aposentá-lo.
o ser-nascido, nascido-aí, isto é, precedente ao cidadão "civil" e, por-
Algumas reflexões de Durham são de uma criticidade tão mordente
tanto, mais autêntico porque mais-nascido. No entanto, todos nós nas-
quanto eXtrema. "Os africanos podem ser chamados africanos. Os 'ín-
cemos em algum "aí" e isso não dá direito a uma precedência ou pu-
dios da América' não podem ser chamados 'americanos'; nós é que não
reza. Só o "índio" é nativo, amostra do amor-natureza-animais,
podemos sê-lo considerados politicamente. Devemos ser contados de
134 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 135

hipersex e pré-tech, xamã alterado pela fumaça bem ritualizada. Não parar em cada ciclo do tempo editorial o assim dito universo juvenil;
é qualquer "nativo" presumido que cabe nessa imagem do nativo. na versão inglesa dos anos 1990, a tribe - sempre assimilada a um
Porque o "outro" se desnativizou. grupo "puro" e "nativo" que rejeita o estilo de vida dominante -
Jimmie Durham - cherokee - desnativizou-se. transita como traveller pela Europa alternativa. No entantd, esses três
estilos diversos estão todos - ainda que seja em suas diferenças e
O termo "tribo" ainda não está desacreditado como merece entre
graças a elas - dentro de um sistema lingüístico que reproduz o
todos os antropólogos, em pouquíssimos sociólogos, em nenhum jor-
domínio.
nalista ou comunicador nos meios de comunicação de massa. Antes, é
sempre mais freqüente seu uso para classificar segundo metáforas De nada vale estar afirmando faz tempo uma produção artística
nativistas claras e rígidas por parte das culturas juvenis "alternativas" cujos jovens sujeitos cherokees ou xavantes (não mais "nativos" nem
que aplicam sua etiqueta "nativista" que até os "nativos" rejeitam. É "tribais") pôem em discussão esse método de categorizar. Artistas,
singular essa passagem/migração lingüística. Foi L.H. Morgan - antro- sociólogos, jornalistas juntam-se imobilizados na reproduçãO dos
pólogo estaclo-unidense que estudou os iroqueses na segunda metade estereótipos e incapazes de ver o que emerge porque destrói o precon-
do século XIX - a usar pela primeira vez o termo "tribo", para indivi- ceito cômodo pelo qual eles - os "outros" - estão fora da história. Por-
dualizar uma organização social fundada em ligações de parentela que "a" história - singular-universal- pertence só ao "nós" ocidental:
dentro de um esquema evolucionista (barbárie --)- civilização). Nesse e não chegam a afirmar a multiperspectiva para "as" histórias, histó-
sentido, sociedades tribais e sociedades primitivas são usadas como si- rias plurais, irredutíveis a uma história unificada. Um novo nexo arte-
nônimos. A tribo se segue ao bando e precede ao Estado: unidade polí- etnia problematiza ambos os termos e afirma o conceito emergente de
tica acéfala, igual acesso aos recursos comuns por grupos de descen- auto-representação que está fazendo a diferença. Uma nova antropo-
dência homogênea, integração social interna, poder coercitivo quase logia não conflita com as velhas taxonomias para desconstruí-Ias, tan-
nulo, redistribuição das riquezas etc. to quanto para afirmar visões construcionistas livres.

Freqüentemente as divisôes tribais (especialmente na África) fo- É necessário declarar caduco o uso antropológico dos termos
ram criadas a fim de haver domínio por parte da administração colo- "nativo", "tribal", "índio" para indicar as populações antes definidas
nial. Concluindo, o conceito de tribo - caracterizado em sentido co- como "selvagens" ou "primitivas". A alternativa é simples: insistir no
lonial para individuar uma unidade homogênea do ponto de vista uso dos termos por eles mesmos adotados: cherokee, xavante, textal.
étnico, lingüístico e cultural - é uma simplificação reducionista de Empenhar-se na luta contra o uso dessas taxonomias que reproduzem
uma rede de relações socioculturais que congela identidades múl- lingüisticamente (e não só) o domínio colonial.
tiplas num sistema único e fixo. O conceito de tribo é uma ficção an- Entretanto, a mais pobre zona do Bronx tem um posto policial
tropológica que - embora refutada - é mantida por sociólogos, jor- chamado "Forte-Apache", e os garotos americanos se comportam
nalistas e por muito senso comum; a necessidade de classificação como "índios selvagens".
étnica é sinal de um domínio colonial que se mantém na era pós-co- jimmie Durham: "Don't worry - l'm a good Indian. l'm from the
lonial. West, love nature, and have a special, intimate connection with the
Um sociólogo como Maffesoli usa o termo "tribo" para classificar environment. .. I can speak with my animal cousin, and believe it or
as culturas juvenis contemporâneas; os jornais e revistas usam-no para
136 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 137

not I'm appropriately spiritual. .. (Even smoke the Pipe.) I hope I am Na semana seguinte, decidimos liberar a experiência em minha
authentic enough" ,49 sala particular. Abrimos as listas dos inscritos e, em breve, chegamos a
mais de cem pessoas. Com turnos de vinte minutos cada e dois óculos
Brain machine à disposiçãO, preparei as listas semanais. Assim, enquanto eu discutia
o mar se acaricia em continuação. teses ou programas, dois estudantes de cada vez, sempre observados
Georges Bataille (1993b, p. 15) por Andy, ficavam sentados com os óculos, a fim de depois contar sua
~ experiência, para, digamos, uma pequena pesquisa. Foi um grande
V sucesso.
lNNERQUEST Os óculos deviam ser colocados com os olhos rigorosamente fe-
chados, pois eram óculos cegos, de fundo preto, atravessados por linhas
No início dos anos 1990, Andy era um estudante muito alto e vermelho-elétricas, cujo grau variava de acordo com o tipo de freqüên-
magro, porém, fundamentalmente, trajava-se de modo diferente dos cia sintonizada de um programa, ao qual se acrescentavam paisagens
outros: brincava com os códigos dos Beatles. Havia transcorrido aque- sonoras semelhantes ao tipo de freqüência dos fones de ouvido. Havia
la quantidade de tempo, de modo que aquele estilo tinha se tornado então um estímulo ocular e sonoro que entrava diretamente na cabeça.
style e, portanto citável, desmontável, trajável. Andy tinha viajado Aliás, no cérebro (brain). Esses óculos eram vendidos normalmente
muito (Londres e Índia) e tinha voltado para a Itália trazendo a brain nos Estados Unidos, numa linha entre o alternativo hippy, o new age e
machine: uns óculos esquisitos nunca vistos antes. Decidi fazer uma o nascente tecnológico, todos conectados com as smart drugs. Com es-
experiência em sala de aula. Solicitei um voluntário para experimentar tas, define-se, de fato, um tipo de estímulo natural, não químico, para
esse novo meio, depois de Andy tê-lo apresentado de modo genérico. modificar a percepção normal, de forma muito 50ft, sem dar uma real
Levantou-se um estudante muito "normal" e bastante inquieto. Co- alteração como ocorre com as substãncias sintéticas, mas somente car-
locou os óculos, Andy selecionou para ele uma música psicodélica e gas energéticas (como o guaraná brasileiro).
ficou sentado ao lado de minha mesa cerca de vinte minutos, enquanto A partir disso, em todos os centros sociais, Andy organizava salas
eu dava aula. Acabado o tempo, Andy, que tinha ficado perto dele, "smart" nas quais, deitados em colchões ou cobertas, jovens x-ter-
tirou-lhe os ôculos e - diante da enorme turma de estudantes curiosís- minados olhavam e ouviam freqüências visuais e sonoras. Smart. O
sim os, todos de pé - fugiu correndo em direção à saída, deixando efeito era mais inquietante para quem os observava - assim x-ter-
todos estupefatos e a mim bastante preocupado. 50 minados nas percepções e deitados nas posições - do que para quem
usava os óculos. Como foi dito, as brain machines eram mais relaxan-
49 "Não se preocupe - sou um bom índio. Sou do Oeste, amo a natureza e tenho uma
ligação especial, íntima com o meio ambiente ... Posso falar com meus primos .. programs of light and sound have becn pre-set to develop skills for calmness,
animais e, acredite se quiser, sou apropriadamente espiritual. (Até fumo o energizing, learning, and over-all relaxation". ("O que faz um sistema lQ? Quando
Cachimbo.) Espero que eu seja autêntico o suficiente." você usa IQ, você aproveita uma experiência audiovisual espetacular, olhando
50 O nome da máquina era InnerQuest. Num folheto explicativo interno, apresentava- para luzes delicadas, através dos olhos fechados e ouvindo sons agradáveis. Especiais
se assim: "What does an InnerQuest system do? When you use InnerQuest, you programas de informática com copyright de sons e luzes foram preestabelecidos a
enjoya spectacular audio and visual experience by watching gentle lights through fim de desenvolver habilidades para acalmar-se, energizar-se, aprendere, sobretudo,
closed eyes, and listening to pleasing sounds. Special, copyrighted compute r .. relaxar. ")
138 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 139

tes do que alterantes, utilizáveis nas salas chill, que serviam para um para cada década: Eng. G. Manfredi: 1960 - depois de dez anos: 1961-
resfriar as percepções entre um banho techno fervente e as batidas de 1970 - depois de outros dez anos: 1971-1980. Seu descobridor é um
fundição do industrial. raver alterado: a quarta década é dele.
Contudo, como todo o resto, as brain machines não duraram Das áreas em desuso - onde jazia a prosa monumental-industrialista
muito tempo, e Andy não foi mais visto e nem terminou o curso. que juntava a expansão imobiliária - agora viajam os sites da dis-
Brain machine pode ser lida também como uma máquina que solUÇãO de ciborgues-feministas e ravers informáticos, para uma vin-
produz cérebro, desenvolve inteligência, acaricia as percepções: é gança sutil de novas histórias escritas com outras linguagens. Assim,
nesse sentido que a citação inicial de Georges Bataille pode ser lida. algumas áreas em desuso tornam-se espaços-sem-Iugares: OOnowhere.
O movimento ondulatório do mar é percebido (por um grande anteci- Conseqüentemente, também essa narrativa "pula" entre áreas em
padar do eXtremo) como uma automassagem erótica, incansável e desuso e e-space, com uma montagem alternada entre duas lingua-
sem pausas, obsessiva. Donde marinhas semelhantes a ondas mecâ- gens, para evidenciar suas diferenças de época: os conflitos semióticos
nicas: o cérebro acariciado como o mar-máquina .. que separam duas Fintechs.
- A primeira Fintech é o monumento à imobiliária industrial sem
Fin*Techklan
qualidade, o fordismo aplicado à arquitetura e à habitação. Um fordis-
Fads swept theyouth af lhe SprawI at the spced mo-da-vida-cotidiana que informa os mundos vitais. É a modernidade
oflight; entire subcultures could rise overnight,
como ponto alto na construção civil do mundo-da-vida. É esplendor
thrive for a dozen weeks, and then vanish ut-
terly. da sociedade aberta e afirmada em suas articulações institucionais:
William Gibson (1984, p. 74) partidos, sindicatos, associações industriais etc. Nela está incluída
toda a sedução dialética da forma-cidade, de seus dualismos, de sua
política. É o esplendor e a sedução do horror. É o domínio do político
que pretende afirmar-se de acordo com valores generalistas e univer-
Dissolvências industriais
salistas. Fordismo arquitetônico: tempos e métodos nos corpos e no
"FINTECH - INDÚSTRIA DE MANUFATURADOS DE CIMENTO E CONSTRUÇÓES
cimento pré-fabricado.
IMOBILIÁRIAS s/A, COm sede em Castel Romano - Roma. Constituída em
- A segunda Fintech é autoprodução e autoconsumo. Em seus es-
1962, para a industrialização da imobiliária, com o sistema do pré-
combros orgânicos ou em seu cadáver inorgânico, estâo inseridas "en-
fabricado. Dispõe de duas grandes fábricas para a produção de pré-
tidades" - novas tipologias para subjetividades não-classificáveis -
fabricados situadas em Settala di Milano e em Castel Romano" (1980).
que festejam a morte da Grande Indústria e, com ela, a dissolução de
De uma paisagem disseminada, feita de escombros de máquinas e "sua" civilização, de "sua" ordem, composta de sociedade, política,
de escombros arquitetônicos, de depósitos abandonados e de políticas instituições, valores. Aqui se experimenta a construção do alem e do
operárias em desuso, composição de todas as escórias de uma so- outro: alem dos dualismos de gênero e de classe; alem da dialética sin-
ciedade em desuso, entre a ferrugem de produtividades corroídas e tética; outro dos harmônicos multikulto, outro das instituições do po-
também enferrujadas, "políticas da complexidade": de todo esse pó do lítico. Aqui correm os desejos como destruição dos tabus e as anomias
passado industrialista, emergiu o texto que segue. Aliás, são três textos, como dissolução do nomos. Aqui o apolítico se define como parciali-
140 Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 141
Culturas eXtremas

dade radical. Nesta Fintech dança a metrópole alienígena, até que, na eterno da imponência monumental, prefiro dizer sob o símbolo morto
dor de suas mortes inesperadas, tudo parece ter-se bloqueado. que liga a civilização clássica à sociedade industrial.
Emerge o nexo decisivo - político no sentido mais histórico-ins-
Cada uma das duas fábricas tem uma capacidade de produção, para um
turno de oito horas de trabalho, de 120 painéis de cimento annado, de sus- titucional do termo - entre a redescoberta da Fintech em desuso, por
tentação ou não, para sótãos, paredes externas de suporte, divisórias com- obra de entidades metropolitanas do atravessamento contemporâneo,
pletas com aberturas internas e externas, instalações elétricas e sanitárias. e a degradação de Corviale. Este, em vez de concretizar a retórica in-
Os 120 painéis diários permitem a construção de quatro apartamentos de dustrial, inserida na repetição fascistóide de arqueologias romanas,
tipo médio, com três quartos, COm uma superfície de 96m 2 (1970). bloqueou-se como um pesadelo, uma imagem fixa de Frankenstein:
Quatro apartamentos por dia, de 96m2 : esse é o ritmo de prodUÇão pause: 11
da cadeia de montagem para painéis pré-fabricados, para uma imobi- É suficiente abrir esses preciosos catálogos em desuso para com-
liária industrializada, para mundos vitais [orclistas. Com esse poten- preender que os modelos nos quais Corviale se baseia são as casernas
cial ininterrupto de cimento taylorista, quantas casas-casernas-fábricas construídas em Roma nos anos 1950-60, sempre pelo engenheiro
poderiam ter sido construídas - sem pausa e sem culpa - numa outra Manfredi: a caserna de Forte Pietralata, a caserna Bianchi, a caserna
década? Fintech como extrema T caro Ettore Rosso em Cecchignola, a caserna D'Avanzo no Tiburtino e in-
clusive o edifício escolar em Casalbertone. São todos edifícios que
Na periferia oeste de Roma, naquela faixa de passagem entre o agregado
incorporam a mesma filosofia pan-óptica. Contra essas casas-casernas,
urbano e a campanha, numa crista que emerge alta no vale do Tevere, inse-
a ciborgue-fintech, a sound-fintech dissemina a crítica à identidade
re-se de forma peremptória o perfil de COrviale, iniciativa imobiliária do IACP
[Instituto Autônomo para as Casas Populares] que, daqui a pouco, receberá unitária e compacta, identidade monológica, identidade laborista. As
6 mil pessoas. Sua dimensão excepcional e sua arquitetura lembram os novas figuras da identidade plural e móvel ridicularizam todo revival
aquedutos e os antigos e imponentes monumentos que surgem na paisa- comunitário. Elas se movimentam nos espaços: e esses espaços metro-
gem romana, isolados e grandiosos (1980). politanos disseminados são do tipo tecnocomunicacional, e não labo-
Pino Stampini (nome" homen) é o jornalista que organizou esses li- rista-produtivo. O General Intellect com todos os grundrisse aposen-
vros e a quem se deve essa retórica em desuso, reposta em circulação tou-se für ewig, entre os detritos e as crostas abandonadas da nova
graças a novas entidades flutuantes. Corviale como aqueduto, como mo- Fintech. Finteh.
numento arqueológico ao classicismo; Corviale como último projeto A Fintek de Manfredi e de Stampini é a Gomorra bíblica selada por
do moderno que deseja ressaltar único e só; Corviale como pedagogia uma fúria pedagógica e holística; a Fintech dos estados-modificados,
do social e assassinato do território. Corviale-Fintech. Arquitetura dos mutóides, das raves, é a metrópole fragmentada e dissonante, co-
grandiosa, isolada e narcisista - fálica - que se deixa olhar ao longo de municativa e imaterial. Sua emissão de pós-política deveria obrigar to-
uma crista emergente da paisagem romana em todo o esplendor de do mundo a fazer as contas com sua própria bagagem teórico-lin-
seu isolamento. Corviale como edifício-bairro além da periferia. Tal- güístíca para modificá-la. Apertar além do pause.
vez, no excesso dessas formas retÓricas, os Stampini da imobiliária in- O deslizamento semiótico da dupla StampinilManfredi para as cor-
dustrializada dizem uma profunda verdade: ou seja, que existem ana- ridas technoanômicas corrói com seus sons ácidos as memórias indus-
logias entre diferentes eras arqueológicas, mais do que sob o símbolo trialistas, feministas, operárias: agora todas elas parecem pertencer a
142 Culturas eXtremas Excursus sobre as çulturas juvenis intermináveis 143

uma mesma época ultrapassada, a uma arqueologia política. Elas jogo: ele atesta a transição para o imaterial que desorganiza os gal-
também são todas áreas conceituais em desuso. pões já imobilizados e os recoloca em movimento acelerado em dire-
ção ao OOnowhere. FF ~~
A análise ciborgue-pós-feminista focaliza problemas relacionados
ao gênero de modo totalmente inovador e distante anos-luz das herdei- Descobrimo-nos sujeitos agentes numa ansiedade histórica caracterizada
ras continuístas do feminismo histórico. Aqui se afirma a experimen- pela superação total da revolução industrial; época paleomoderna determi-
tação "entre entidades livres". E a subjetividade incluída no conceito nada por estruturações sociais totalmente centralizadas na "fábrica", con-
de "entidade" é ampliada além das dicotomias homem-mulher, orgâ- siderada como meio de produção de qualquer tipo: desde a mercadoria até a
cultura. No espaço-tempo pós-moderno, em quatro dimensões da revolução
nico-inorgânico, natureza-cultura. O próprio desejo desliza entre
eletrônica, assiste-se e vive-se uma total inversão de tendência que sepulta
orgânico e inorgânico: "Ainda acariciamos o cimento, nos esfregamos
na terra da aridez e da homologação os velhos modelos de centralização e de
sensualmente no asfalto com o clitóris que se ergue como antena ao definição social.
contato" . PARA NÓS, RESISTIR t DESUNIR-SE, NOSSO DESUNIR-SE OS CONFUNDE, ENCONTRAR-SE t
Chegar à Fintek não é fácil. Quando se chega a uma estrada de chão APENAS ERÓTICO, ISTO t, CRfTICO.

batido que circunda o aeroporto da urbe, seu cimento se ergue em toda


Essa afirmativa é surpreendente, pois dissolve um princípio con-
a sua majestosa derrota. Dentro, as salas são interligadas por telões de
solidado segundo o qual - especialmente no âmbito das contracul-
plástico que dão uma sensação labiríntica e opaca. As esculturas-insta-
turas antagônicas, ainda ligadas a esquemas da esquerda social - é a
lações dos Mutoid são como entrelaçados de metal: numa sala grande
união que faz o político. O conceito de "desunir-se", ao contrário, é
há um tipo de helicóptero levantado pós-apocalypse now. Parece que a
exemplificativo de uma mutação eXtrema. As instituições, a política,
Grande Máquina - que imprimia sem parar painéis de cimento arma-
as normalidades são sacudidas por essa perspectiva flutuante. E se o
do - recomeçou a trabalhar, perdendo pedaços, recolhidos por al-
desunir sacode os planos do controle, o reencontrar-se caracteriza o
guém ou por alguma coisa, para serem reciclados e reunidos por uma
erótico e o temporário. Daqui é que nasce a crítica.
cadeia de montagem enlouquecida. Sua linha de sombra é o skyline
mais eXtremo que já vi. Tudo pode acontecer na Fintek. Fintek como Já faz tempo que a "coisa" movimenta energia, que transforma o pensa-
máquina-de-guerra infinita dos mil andares que liquidifica os resíduos mento em ação, que vive a um metro de distância por interesses e objetivos
comuns. A "coisa" entendida como MULTICONNECT10N de pessoas que - mis-
do passado. Fintek como descoberta, de forma imprevista e trágica, de
turando suas próprias experiências realizadas nos últimos anos com obje-
que entre esses mil-andares pode chegar também a mais imprevisível
tivos como música, livre expressão criativa, autoproduções, perfonnances-
das mortes. deram vida a uma única força determinada cúmplice e consciente de sua
No entanto, no começo, a experiência Fintech é majestosa como complexidade.
suas formas arrancadas da produçãO: FIN*TECHKLAN INFINITEK*DESIRE
"Nosso passo pousou aqui", nesta coisa que mede sete hectares,
- essa é sua apresentação no site ordanomade. O desejo interminável
onde o encontrar-se produz exigência de comunicar e de movimentar
nasce quando termina-a-fintech do cimento pré-fabricado - que
energia num estranho jogo de cruzamentos.
Corviale levantou como utopia social coletiva - e algumas entidades
Essa infinitek-multiconnection entre culturas intermináveis e prá-
procuram transformar a fin-anciária Lech-nológica (que já acabou)
ticas em desuso também recoloca em discussão objetivos tidos como
em infinito desejoso. Infinitek*. O jogo de palavras não é somente
consolidados (e consoladores) na sociedade multiétnica.
144 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 145

Os "melting points" - expressão híbrida nascida da junção de "meeting Para frente veloz ••
points" e "rnelting pOl", cujo objetivo é hiperevidenciar a potencialidade de
Ele era um meio entre os elementos e o som
mistura - são sobretudo o ciberespaço e as raves ilegais. Os não-lugares me-
tropolitanos e telemáticos são ótimos matadouros imateriais, desinte- Através dele tudo tomava forma com um equilíbrio
gradores das definições, chaves de abertura (Alter8, 1996). Perfeito ele era o portador do kaos
Sempre espontâneo
Matadouros imateriais. Sempre direto
o idílio que existe entre etnias diversas cede lugar a contextos coo- Sempre imediato
flitantemente híbridos, nos quais as novas misturas contêm, em seu Estava envolvido em cada coisa que dizias
interior, as imaterialidades telemáticas para encontros móveis. A Como uma criança
techno não tem mais etnia ou gênero: são todas as etnias e todos os gê- Cada coisa o excitava
neros possíveis. As culturas transitivas do interminável não se entrin- Te conto uma imagem
cheiram nas áreas em desuso, mas vão além: a caminho de desejos ina- julho passado
preensíveis e anõmicos. Nos territórios imateriais do INFINlTEK*DESIRE 7 da manhã
somos indiferentes a qualquer direito de qualquer cidadania; aliás, rua da pisana
esta se desconstrói material e biograficamente. armazém abandonado do alcate1
a party era selvagem
Detestamos as pertenças identitárias. O ciberfeminismo tem como caracte-
rística fundadora a fragmentariedade: o ciberfeminismo rompe com a tra- insustáve1
dição feminista de busca nostálgica da reaproximação com a natureza e tudo conduzia a um organismo
representa o surgimento de uma linguagem que é instrumento de cons- com mil corações pulsando
trução de nosso mundo (Wonder Woman, 1998a). era ali que a última forma de vida anômica se expandia
em nós/além de nós
E depois aconteceu a outra "coisa".
e não havia nenhuma maneira de sustá-lo
Em 22 de março de 1998 - durante uma rave justamente na Fintech
nem a morte
- uma moça morreu de forma horrível: afastando-se para urinar no
estávamos além da morte
gramado circundante, o líquido tinha entrado em contato com fios de
às 7
alta tensão descobertos, tornando-se condutor letal de eletricidade, e
era mais ou menos uma hora que estava tocando
ela morreu na hora pela descarga de 8.200 volts. Responsabilidade da eu tinha adormecido porque estava cansado
ACEA (os ocupantes afirmam que a ACEA - Azienda [Empresa] Comuna- acordei de repente
le Energia e Ambiente - declarara que a eletricidade tinha sido desati- e senti a necessidade de ir ao console
vada fazia três meses), gestão problemática, imprevisibilidade do caso: ali o encontrei emanando luz
tudo converge para uma dramática e trágica reflexão sobre a morte uma luz de negritude
súbita durante um momento de festa. Aquela morte foi vivenciada no que fazia cair flutuar voar todos
mesmo período também por outra trágica experiência que envolveu num respiro único
uma das pessoas mais amadas das raves: Curley, ao qual, na rede, foi através dele tudo se expressava
dedicado este poema: e tomava forma
146 Culturas eXtremas ExcurSU5 sobre as culturas juvenis intermináveis 147

nos envolvia http://www.kyuzz.orglordanomade


nos atravessava Featuring: Cyber-Psycho, goth, n&D, & fringe
Seu sorriso entrava nas entranhas culture; Cnidarians; SubGenii; literary; avant-pop,
cyber-punk, noir, &. horror writing; ffinge in-
as pessoas não podiam evitar abraçá-lo e
dustry networking; surrealism &. experimental-
beijá.lo ism; psychological exploration; gonzo examina-
eu não saí dali tiDns; alterations af the mincl; chaos, entropy,
extraí tanta energia a ponto de levitar synchronicity, serendipity; exotic arachnids; mad
eu estava no todo science; torture equipment; hallucinogenics;
Tampant perversion; endorphins; dreams, hapes,
tudo estava em mim
&. reaIS; morbid curiosities; Idiot Savants; fire
tudo era otimizado breathing; siM; body rnodification; societal night-
valia a pena de viver/valia a pena de viver mares; conspiracy & mass mind control; tales af
valia a pena de viver/valia a pena de viver the busted; UFOS & abducters; diverse religion;
gender deviants; elevator floggings & singed body
viver era justo
hair; Tribal Rhylhmic Entrainmenl; tive music;
Tocou independent film; trance tools; visual art; spider
por 3 horas seguidas sex; a chance to be tortured; a chance to torture
sem nunca parar lhe Chair Tyrant; & our usual wholesome fam-
com uma aura que se expandia cada vez mais ilyatmosphere.
Avant-Pop (Wch)
parou somente 3 horas depois
e a primeira coisa que fez depois de ter abraçado
mil pessoas foi até seu filho de seis
meses para acariciá-lo e amamentá-lo.
FFWD (998)51

SI Macchina me escreve assim, por e-mail, entristecida comigo e com o mundo: "A
fintech não é mais uma experiência edificante, embora possa parecer majestosa, é
uma experiência complexa, ardente, que não pode funcionar como exemplo para Nesle silc - nascido ucpois do fim de Cybcrnct e AvAnA (ago!";.l
outras realidades, e não pela qualidade daquilo que ali se move, mas pelo falO de Fortnel) - ainda se experimentam algumas das temáticas que estão nas
que a fintech não tem afirmação, muitas vezes me dá também a horrenda sensação
perspectivas intermináveis dos nomadismos tecnocomunicacionais.
de não ter sequer escolha". E continua assim: "A da fintech é uma experiência
trágica e complexa, acredite, não é possível afirmar alguma coisa para a fintech, É um site no qual as dimensões multi facetadas da metrópole imaterial
quando seus próprios ocupantes não afirmam nada. É uma coisa forçada, e também tornam-se claras e, ao mesmo tempo, desordenadas. A rede se apre-
uma cena violência, porque se tem a impressão de que todo o trágico de uma
senta como uma modificação radical das percepções e das alterações
experiência vivida COm tua carne, na qual se colocaram em jogo pedaços vivos de
ti, em certo momento seja utilizado e inserido numa afirmação que não lhe comunicacionais que não acabaram e nem poderiam acabar - cultu-
pertence. Uma afirmação que, embora exalte e valorize a experiência da fintech, ras intermináveis no sentido mais móvel e mais desordenado possível
afunda as mãos numa matéria sensível e ainda em movimento, na qual se cruza
uma enorme complexidade de discursos, na qual passam muitas críticas válidas e
-, mas que configuram um e-space em relação ao qual todas as defi-
pesadas, porque a fintech ainda não foi capaz de afirmar nada claramente, como nições anteriores e também as recentes tornam-se precocemente enve-
uma entidade menos homogênea do que consciente". lhecidas. Decrépitas.
148 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis imermináveis 149

Neste e-space existe uma nova forma de perceber o nexo entre cine- - A passagem das raves aos leknivals:
ma - identidade - música - teknival - rede - smart drugs - pornê -
branding. *NO END TEKNO PARTY* - NATEK SOUND SYSTEM - All artists and tribes are invited
- fESTE*MAKKINAZION1*TEKNIVALS

O corpo se desmaterializa e o jogo começa. Podemos ser o que queremos, eu


- Na seção cinema OFF - em Sua terceira edição - apresenta-se o se- poderia ser mulher, homem, homossexual, lésbica, transexual ou todos ao
guinte programa: mesmo tempo, e a relação que instauro poderia ser com uma mulher, um
homem, um homossexual, uma lésbica, um transexual ou todos ao
Visões alteradas como expressões de estados alterados de consciência, mas mesmo tempo. A liberdade de escolhermos nossa identidade, e portanto a
também como visões do múltiplo, dos infinitos modos possíveis de ser e de liberdade do anonimato, é totalmente desconstrulivista, seja de um ponto
tornar-se, comunicando, or-r- 999 é o visar que reflete cruzamentos de dife- de vista conflitante em relação à organização institucional repressiva (que
renças ao criar/perceber imagens-sons-ambientes. A expansão além dos não poderia mais controlar o indivíduo, por ele ser nômade em seu transitar
territórios do real como network entre as diversidades como descrição do identitário), seja em relação a uma cultura da definição que estereotipiza a
múltiplo, como ótica defonnante que amplia, distorce, anula, esvazia, muda sexualidade (A8, 1998).
as medidas, inverte a perspectiva, zera as distâncias ou as amplifica, trans- FUCK THE CENSORSHIT .••..••. nonstop erotic cabaret.
forma, camufla, exibe. O cinema da dissolvência como dissolução do ci-
nema único.
Nessa perspectiva, o cinema independente se propõe como substância - A rede: "A rede desencorpora a relação entre centro e periferia. A
alterável ou testemunho das multiplicidades; uma série de visões que Rede, com R maiúsculo, tornou-se totalmente metáfora concreta e
rompem a imposição monolítica da linguagem cinematográfica por parte verossímil de vida social, ou melhor, cultural. Isso se torna indelével
dos maiores sistemas produtivos e distribucionais. dos novos processos de comunicação global que intervêm na citada
A idéia é criar espaços de visões outras, nos quais as imagens e os estados desestruturação, 'criando o que Pierre Lévy define como inteligência
de consciência alterados se hibridizem. Estímulos visionários instigarão coletiva. Na realidade, a inteligência coletiva é criada por uma veicu-
assim a policromia da criação na produção e na assunção ativa de imagens.
lação máxima e por uma troca de conhecimento e informação que
provêm da construção de sentido individual'."
- A identidade como alteração:

"Como um espelho quebrado, refletes mil perspectivas, o privi-


- Smart drugs: As smart drugs ecológicas são apresentadas como
légio de uma perspectiva parcial, um ponto de vista limitado que tende
substâncias da mutação, em relação às quais se pretende dissolver o nó
ao +/- infinito, eu sou o próprio suporte, o corpo é fragmentado, po-
informativo: "As novas fronteiras químicas farmacêuticas, juntamente
demos recompô-lo, reinventá-Io, louvor às peças do Lego".
com um profundo estudo de botânica e química, abriram para as fron-
teiras da ciência novos e envolventes cenários que conduzem as ca-
- A música como sound system: pacidades humanas além dos atrofiamentos físico-mentais. Ê esse o
"SysteM-Crash-SysteM-Crash-SysteM-Crash-SysteM kernel panic caso de estudos e aplicações em smart nutrients ou alimentos mentais
blast sound system que, por meio de combinações experimentais de vitaminas e substân-
DHARDTEKNOSTORM" . cias contidas em determinados alimentos, otimizam as funções ce-
rebrais humanas". Afirma-se que "hoje a rede neuronal funciona em
150 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis interminâvcis 151

escala 1:10 em relação a suas capacidades, os resultados da produção valuable work. Whores help people explore their sexual desires.
cognitiva tornam-se muito escassos, aliás, tremendamente decepcio- Whores explore their own sexual desires" (1998).
nantes. Emerge, depois da antibiótica, a era noortrópica. Por trás dessa Seus textos são muito citados tanto nesses sites quanto nas áreas
palavra, escondem-se estudos de dezenas de anos realizados por algu- intermináveis das fihefulure, pela forma original pela qual coloca a
mas das mais famosas multinacionais farmacêuticas, como a Ciba- relação sexo-eros-amor-pornô. Em aberta antítese com as feministas
Geigy, por exemplo, que experimentam as possibilidades de redução tradicionais e na esteira de autoras pós-feministas como Camille
na idade do envelhecimento senil, mediante estímulos fluidos de neu- Paglia e outras, Sprinkle enfrentou o pomô de maneira inocente e per-
rotransmissores. O mito do envelhecimento cai como cai o mito da versa que constitui fonte de corridas desejosas e desinibidas por parte
artrose do pensamento a ele relacionado. Temos as chaves da vida em de numerosas bad grrrIs. Seu site na internet (citado por ordanomade)
nossas mãos, é chegado o tempo de socializá-las, a fim de permitir ao é de fundamental importância, e no qual escolhi este anúncio:
ser humano debelar, de modo absolutamente espontâneo, aliás, dieté-
A Public Cervix Announcement
tico, graves problemas como a doença de Alzheimer ou a insônia,
By Annie M. Sprinkle
mas, sobretudo, um crescimento produtivista de caráter qualitativo,
Dear Online Explorer, Welcome to my intetvaginal superhighway, where the
voltado ao melhoramento da condição individual-social-cultural".
wonderful world of cervix awaits you ... anytime. A cervix is such a
Sob O título THE SMART WAY Brain Food - no qual o cérebro é visto beautiful creation, yet most peopIe go through life having missed lhe
como um aparato digestivo que assimila alimento, como se tivesse chance to see one. Over the years, l've given thousands of peopIe lhal rare
uma boca e, em parte, como um hipertexto, como se tivesse a rede opportunity, by showing my cervix with the aid of a speculum and a
neuronal já interconectada com a rede-web - apresenta-se o objetivo flashlight to individual members of theater audiences who stood in line by
the hundreds in over a dozen countries. My "Public Cetvix Announcement"
de divulgar "um amplo catálogo informativo sobre todas as subs-
has given me greal satisfaction and brought enlightenment to many alI
tâncias institucionalmente experimentadas e em uso, posologias, around the globe ... Fortunately with the aid of modem technology lhat
aplicações, fábricas com as novas fronteiras experimentais. problem is licked. You don't have to stand in line, you can simply visit my
cervix online.
One reason why I show my cervix is to assure lhe misinformed, who
- Pomô: "O sexo não é mais uma relação biunívoca homem-mu-
seem to be primarily of lhe male population, that neither the vagina nor
lher, penetração de órgãos genitais, mas percepção ~guda e continua-
the cervix contains any leeth ... Now, please, be my guest. I invite you to
da. O Sexo contra o Império não nega o Império, (iuer conhecê-lo, take a long look at my cervix.
usurpá-lo e destruí-lo a partir de seu interior, assim o corpo ciborgue Cervix with a smile. 52
torna-se campo de experimentação; comprado e vendido, o sexo é
pornografia, mercadologização, porque nós somos a mercadoria, nós 52 "Prostitutas estão se rebelando contra as absurdas, patriarcais leis desfavoráveis ao
somos a norma, nós somos o crepúsculo". sexo, contra sua profissão, e estão IUlando pelo direito legal de receber compen-
sação financeira por seu valioso trabalho. Prostitutas ajudam as pessoas a explorar
Annie Sprinkle tornou-se uma mulher-culto que - prostituta e atriz seus desejos sexuais. Prostitutas exploram seus próprios desejos sexuais. I ... ]
pornê - declara amar as prostitutas: "Whores are ~"ebel1ing against the Anúncio da Cetvice Pública. I... ] Prezado Explorador Online, Bem-vindo à minha
auto-estrada intetvaginal, onde o maravilhoso mundo da cervice espera por você ..
absurd, patriarchal, sex-negative laws against ~.heir profession and are a qualquer hora. A cetvice é uma criação lão bela, porém a maioria das pessoas
fighting for the legal right to receive financiaI compensation for their passa a vida tendo perdido a chance de ver uma. Através dos anos, dei essa rara"

l
Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 153
152 Culturas eXtremas

mesmo em dois outros pontos, formando um triângulo. A pele fica apenas


Contra o mito (ou o complexo) da vagina dentada: cervix online-
avermelhada. Nessa fase, procedo lentamente. Tenho a sensação de atra-
cerva with a smile.
vessar umas portas. Gosto dos sinais que ficam. Pequenos círculos nos
Um outro autor sexualmente interminável é Mark Amerika, cuja quais a pele, aquecendo-se, forma prismas cujos vértices convergem para o
figura já se tornou uma das novas vanguardas da degenerative prose centro. Sinto a dor. Então continuo tocando-me rapidamente. Continuo por
um tempo, sem causar verdadeiras queimaduras, limito-me a esquentar a
que caracteriza o já citado movimento avant-pop.
pele, fazendo-a avennelhar-se ao máximo. Faço uma pausa, aqueço nova-
"Não sou homem, não sou mulher, sou o resíduo de máquinas que mente o ferro no fogãO a gá.s, recomeço. Encosto o ferro em mim por um
fazem amor. "53 instante mais demorado, e um calafrio me sobe do pescoço ao topo da nuca.
É forte. É a primeira entrada. Parece-me sentir algo também nas plantas dos
pés. A sessão dura uma meia hora.
- Branding: O beijo-de-fogo é narrado assim, num enquadramento
subjetivo, por uma entidade nômade:
K - near death experience
Segunda-feira, terça ou quarta, da segunda semana de janeiro, 1998. Co-
meço as experiências de autoqueimação. Primeira sessão.
CHILL OUT IONE
Estou desconfiado. Minha capacidade de suportar a dor sempre foi muito
baixa. Não gosto de sofrer, em geral. Esquento um ferro comprido, com o
diâmetro de poucos milímetros. Escolho um ferro e não um cigarro, a fim
de que o calor se espalhe numa superfície definida e alcance uma tempera-
~
~ .. ~
tura mais alta. Começo a tocar um ponto preciso no lado externo da mão.
help line3a5J5451399
Os contatos são levíssimos e duram poucas frações de segundos. Faço o

possibilidade a milhares de pessoas, mostrando minha cervice com o auxílio de


li>
Ainda K ... Desde o início, a letra K foi vista como uma letra am-
um espéculo e uma lanterna para membros de audiências que aguardavam em fila bígua, densa de poder e contrapoder, de domínio e autogestões. K, ao
às centenas em vários países. Meu 'Anuncio da Cervice Publica' proporcionou-me contrá.rio, está indissoluvelmente ligada à última fase das raves. Acom-
imensa satisfação e trouxe esclarecimento a muitos em todo o planeta ... Felizmente,
com a ajuda da tecnologia moderna, esse problema é superado. Você não precisa panhou-as em sua dissolução. Aliás, se o pressuposto de uma cultura
ficar na fila, você pode simplesmente visitar minha cervice online. Uma razão pela eXtrema é a temporaneidade, também a rave, exatamente a rave não
qual exibo minha cervice é assegurar aos mal-informados, que parecem ser fun-
podia deixar de envolver-se em tal caducidade. No entanto, uma coisa
damentalmente a população masculina, que nem a vagina nem a cervice contêm
dentes ... Agora, por favor, esteja à vontade. Convido você a dar uma longa olhada é sussurrada, não como conclusão, mas como interrogação.
em minha cCFviee. Cervice com um sorriso."
Em seguida à primeira edição deste livro [19991, nasceram alguns
B "Através de relações com as áreas temporariamente ocupadas. Uma práxis feita de
esperma, suor, sangue, secreções vaginais, silício, experimentação, siM, luzes grupos que retomaram o termo eXtremo. Um deles - entre Arezzo,
corporais, mutações. Um gozo que se irradia nas dobras do espaço, nas espirais de Florença e Roma - está dedicando-se à droga da alteração e chamou-
um fractal construído de movimentos cotidianos que desenham um percurso fora
do tempo, imerso num líqUido amniótico de luz, percebido num tenso orgasmo
me para colaborar num projeto. Sem nenhuma premissa de censura ou
irresolvido, continuado, sem êxito, o gozo que se manifesta e se expressa na moralista, o grupo Extreme está presente nas raves ou nas zonas
tensão vital do ser, continuamente em busca de novos espaços a serem explorados" limítrofes a algum festival (só três) onde os jovens podem consumir
(Amerika, Web).
Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 155
154 Culturas eXtremas

outros. A rave como multiplicidade de sujeitos que dissolve o poder da


droga. Em torno dessas zonas estão disponíveis uma ambulância -
velha fábrica taylorista e a transforma numa festa prolongada nos
uma unidade de emergência - um mapa para saber onde encontrar um
ritmos acelerados da técnica. Desde que entrou a K, tudo isso mudou.
centro para uma emergência - uma série de volantes explicativos
Tomar a droga comporta - entre outras coisas por causa da falta de
acerca do que significa assumir certas coisas.
equilíbrio e do efeito anestésico - deitar-se isolado. Não se conseguin-
Um desses folhetos diz respeito à ketamina. Alguns trechos são
do caminhar nem sequer dançar, a rave se transforma de uma dança
relatados:
dos códigos em uma estagnaçãO dos corpos: corpos que atravessam a
A keramina é uma substância química usada como anestésico tanto no sensação liminar da morte. Mais do que erotismo e multividualidade,
campo clínico como no veterinário. Ketelar e Ketaject são as marcas comu- de tal modo se prova uma viagem medonha dentro da morte. Desafio
mente distribuídas no mercado farmacêutico em solução aquosa injeLável,
ou desejo, pouco importa.
adquirível apenas com apresentação de receita médica. No mercado ilegal se
encontra tanto em pó para cheirar como em líquido que pode ser injetado As conseqüências são claras: a rave acaba por muitos motivos, ao
ou engolido. menos em suas funções inovadoras. Mas um desses motivos é a K, que
inverte a libertação em mortificação. A experiência de uma zona ex-
Seguem as modalidades de uso e os efeitos:
industrial coberta de ex-corpos espalhados na terra em seu NDE

Dilatação do tempo e do espaço, vertigem, alucinação, coordenação alterada configura a exalação da rave ou seu deslocamento para outra frente.
dos movimentos, aumento da freqüência cardíaca e da pressão. Uma dose Talvez seja até por isso que algumas pessoas a quem eu era mais ligado
muito alta tem os efeitos próprios do anestésico. Em alguns casos podem por afeto e amizade, depois do uso prolongado desta K, tornaram-se
desenvolver-se verdadeiras psicoses; é alta a probabilidade de fazer uma
inacessíveis para mim.
experiência que cria dificuldade de voltar à realidade. Doses fortes de ke-
tamina podem produzir experiências com todas as características da NDE, ... e vi o eXtremo muito mais nesses outros jovens que durante a
experiências próximas da morte, a convicção de que se está morto, saído do noite inteira, sem deter-se e sem julgar, permaneciam próximos da-
corpo e flutuando no ambiente circundante, de ter comunicações "telepá- queles que não conseguiam suportar sua viagem desesperada, procu-
ticas" com entidades desencantadas etc., podem ser revividos acontecimen- rando de todos os modos ajudá-los a sair dela ...
tos da própria infãncia. As experiências dissociativas parecem amiúde tão
"Hoje estou em condições de dizer algumas palavras. Trabalhando
genuínas que quem as experimenta tem certeza de ter abandonado o pró-
prio corpo. nesta fronteira da vida social, pensei sempre que nosso verdadeiro trabalho
fosse recolher e restituir significado e encontrar palavras para exprimir
Em seguida são descritos os riscos e todas as coisas que devem ser coisas indizíveis. Tive prazer em ter encontrado um companheiro de estra-
feitas em caso de bad trip. E se adverte que ainda não se sabe nada com da na compreensão do extremo. Pensei muitas vezes no delírio de Sílvio e
precisão sobre as conseqüências cerebrais, mas que diversas pesquisas no seu terror, nas lágrimas de sua amiga Inês, em Marcos, que com ele se
advertem sobre os perigos do uso, especialmente quando prolongado. desculpou porque não pôde ajudá-lo. Ficou em minhas mãos um pedaço de
Mas, além de tudo isso, há outra reflexão. As raves produziram um sua vida e não pude restituir-lhe o significado dela, só algumas palavras a
tipo de uso do corpo (também com drogas do tipo exstasy) que dila- seus amigos. Ou talvez esteja tudo contido no carinho com que enxuguei
tava a mobilidade, mas também afirmava uma circularidade com os suas lágrimas para minorar com doçura sua dor. 'Dá-me uma possibilidade,
156 Culturas eXtremas Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis 157

aos vinte anos a vida é bela, por que não devo gozá-la?' - urrava desespe- parciais e, depois, aquela que fez tudo do modo mais bonito foste tu, em
rado Sílvio contra sua morte. Dar-Iha-emos? Essa possibilidade será dada? torno daquela dor: tu não largaste mais. com as mãos e com as palavras.
O delírio de Sílvio começou às 4 da madrugada e atravessou a passagem ao dançaste a dor de sílvio com sílvio."
raiar do dia. Também no ano passado, a situação delirante de um rapaz em maxx
agonia aconteceu entre a noite e o dia do domingo de manhã. Como se o sol
descobrisse das sombras a loucura. Gostaria que nessas situações a ajuda
não implicasse a violência do constrangimento. Tanto de mim como de
Inês desciam as lágrimas. Sílvio estava ferido pela mão que lhe tinha
estendido ... "
su'
"Hoje, em vez de escrever alguma coisa a que me propusera, desenhei.
fra' e lino Ifratellino = irmãozinho; fra le linee = entre as linhas}. e
pensava: como disseste, também eu pensei que meu gesto ferira sílvio. eu o
fiz porque me parecia que as palavras o ferissem pouco, não chegassem até
ele, e dar-lhe a mão significava só um gesto de abertura. também a mim
suas palavras e a vontade de tirar algo das costas perseguiam. mais do que
urrar, era um lamento continuo e repetido, 'também eu quero gozar a
vida' ... pensar que em algum tempo era (é) o meu problema ... quem não
sabe, su', é que, quando disse que devia escutar-me porque poderia ajudd-Io
e os outros o repetiram, entao, naquele momento fiquei aterrorizado . . e
agora? o que fazer? não estou muito habituado a esse gênero de inter-
venções. ter os olhos de silvio esbugalhados, quase sem pálpebras, que te
escrutam e te olham ... sempre evitei encarregar-me dos problemas psico-
lógicos dos outros (menos para os amigos). agora as coisas são diferentes.
estd em jogo a minha vida tanto quanto a de sílvio. também se me arrisco
a manter meus controles, pois nem sempre ... nossa tarefa não poderia ser
(ao menos para mim) só restituir significados e dizer palavras indiZiveis.
talvez esteja (além disso) em libertar o extremo de seus componentes
embutidos de dor. esta é a questão também de sílvio: encontrar o acesso
através do qual também o extremo se torne desejo libertado. aquilo que
procurei chamar de eXtremo. e agora não só restituir: talvez também
construir significados juntos, nas respecti vas diversidades e felicidades
capítulo IH
~ , '~~ . '"V .-r'_
~.
~.
-. -...:...
~,
~,. :JIL
'!'.
>-46,
Conceitos líquidos

,, ~~ ~". ~~ ;-í
~,.
Os humores corroem o mármore.

. i;... '. "1 it.; ~.- . Capela de Sansevero, Nápoles

"~~~.'~ '. ft . ·~ ~a ~
A seguir, gostaria de delinear um possível fluxo de conceitos que
- podem surgir tensionados com o excursus nas culturas intermináveis .
~ ~~
.At, ~ ,""~,
. .".. rr- Do gênero desse fluxo - irrequieto e mutóide - fluem conceitos liqui-

• ,,~ _ 4L\ ~ '1 ,. das. Normalmente, estamos acostumados a conferir solidez aos con-
, ceitos, como se a relação entre palavra e coisa fosse fixada uma vez por
todas pelo princípio de identidade. Os conceitos sólidos são aqueles
que produzem estabilidade cognitiva, certeza afetiva, política institu-
cional, normalidade sexuada, realismos narrativos, reepílogos tipo-
lógicos,
Os conceitos líquidos não emergem somente dos fluxos intermi-
náveis: eles deslizam também em virtude de pessoas (entities) que per-
tencem a contextos muito variáveis, que estão explorando e produ-
zindo novos territórios comunicacionais. Um dos objetivos deste livro
é poder interligar, de acordo com modalidades absolutamente des-
centralizadas e plurais, o sprawl delineado pelos conceitos líquidos
emitidos por diferentes indivíduos que procuram remover a imobili-
dade das palavras.
Afinal, o skyline interminável deveria ser dado pelos tecidos que
cada um pode desenhar entre as zonas móveis do sprawl e as correntes
dos conceitos líquidos.
Os conceitos líquidos recusam os dualismos opositivos, as dialéti-
cas sintéticas, os realismos estatísticos, os monologismos de perspec-
tiva, as utopias dos signos, os eternos retornos. Eles atravessam os
canais invisíveis e flui di ficados da comunicação metropolitana. O
imaterial, os códigos, as infobahns são incompreensíveis: no sentido de
que se recusam a fazer-se compreender (ou seja, fazer-se circundar

DP&A editora
160 Culturas eXtremas Conceitos líquidos 161

pela força imobilizante do conceito) nas oposições sólidas materiaV that inhabits every decision; but the second sense of aparia is where one
ideal ou abstrato/concreto. Essas são as paredes conceituais da ordem, can say that there are lwa determina te decisions, both "right", yet ane
da pólis, do social que pretendem enquadrar e esquadrar os líquidos canceling lhe olher. This aporia must be crossed. 50 the aparia discloses
üselfin ils own crossing (5pivak, 1988).54
mutóides. A partir destes - juslamente ao longo dos códigos imateriais
- entram e saem as escolhas determinantes de toda parcialidade do A aparia deve ser atravessada. Essa abertura da aparia, esse brotar
sujeito. de seu fechamento rígido na oposição lógica - de modo que "das duas
O código que flutua através de meus reparos torna-se corpo, modi- uma" - movimenta os conceitos fossilizados. Para Spivak, portanto,
fica-me, fluidifica-me. A percepção visual é corpo, entra no bodyscape. trata-se de "silenciar" a aporia clássica e de atravessar aquela que
A perspectiva mais atrasada é uma leitura meramente semiótica da desafia o princípio da não-contradição.
comunicação imaterial contemporânea, quase como se relacionada Uma distinção bastante tradicional estabeleceu-se, em geral, entre
apenas às construções lingüísticas separadas da incisão comporta- contradição e aporia: a primeira é vista em termos dialéticos e, portan-
mental (como as estruturas à Lévi-Strauss). As infobahns são como to, como um momento fundamental da superação do contlito, como
escarificações, o imaterial é como um piercing, os códigos são um motor da dialética histórica; a segunda, ao contrário, sempre perma-
branding: um beijo-de-fogo. Deitam-se nos corpos e deixam impres- neceu enroscada, numa condenação sem apelo, na imobilidade. Se um
sões antes de desaparecer. As impressões são desejos, são signos se- discurso levanta uma contradição, é dialético e, portanto, revolucio-
xuados para prazeres perturbadores. nário; se contém uma aporia, retorce-se sobre si mesmo numa parali-
O piercing é tão imaterial quanto um chip ou um site. Por isso ele sia irresolvível da lógica.
movimenta. É inapreensível. É líquido. Os conflitos e as inovações sempre estiveram ao lado da contradi-
Com base nessas premissas - num material/imaterial além da se- ção e da superação (a história como evolução, como desenho, como
miótica visual- abre-se a emersão líquida numa constelação de con- objetividade), e sempre se procurou desfazer as aporias por um ou por
ceitos que são repensados e reescritos. Conceitos corrosivos como o outro dos termos. Talvez agora, ao fluir da liquidez comunicacional,
humor para o mármore. conflitos e inovações estejam muito mais entre as aporias irresolvidas,
que mantêm e, aliás, reforçam elementos lógicos entre si impossíveis
e insuportáveis.
- Aporia. A respeito do fluir feliz do discurso pós-colonial emer-
Impossíveis e insuportáveis para a lógica da identidade.
giram muitos autores-críticos de grande valor, entre os quais Gayatri
Chakravorty Spivak que, num de seus livros, perguntou: "Can the Então, o atravessamento dos riscos da aporética pode significar sua
subaltern speak?" - E naturalmente a resposta não é somente mais do abertura no curso de seu próprio movimento.
que afirmativa, mas contém um primeiro exemplo da utilização de
um conceito líquido que desafia a solidez adquirida pela lógica iden- St "Quando conversamos em Nova York, você disse que eu utilizava a palavra 'aporia'
titária ocidental. Cito aqui uma reflexão dela: demasiado cmpiricamente. Pode-se compreender a aporia como o fantasma do
indizível que coabita com cada decisão; um segundo significado de aporia reside
onde se pode dizer que existem duas decisões determinadas, ambas corretas, lá
When we were talking in NY, you said that I used the word "aporia" too
onde uma exclui a outra. A aporia deve ser atravessada. Dessa forma, a aporia
empirically. One can understand lhe aporia as the ghost of the undecidable abre-se em seu próprio atravessa menta. "
162 Culturas eXtremas Conceitos líquidos 163

- Shullptu.re. Um artista venezuelano - Gabriel Orozco - cunhou essa - PolEitics. Esse é o título escolhido para o catálogo da exposição
expressão para uma instalação dele. A própria palavra é híbrida. "Skull" de arte contemporânea Documenta X, que aconteceu em Kassel, em
em inglês significa "crânio"; o sufixo "pture" deriva de "sculpture", 1997. Um título híbrido e aporético, em busca de cruzamentos possí-
"escultura", A parte inicial "seul" tornou-se "skull", Esse movimento veis entre o poético e o político. Com essa nova palavra, uma espécie
por meio de enxertos é apresentado assim: de ideograma líquido, apresenta-se um possível enxerto posterior (um
crash) entre as duas palavras, não mais bloqueadas em sua desesperada
Topografía del cTáneo. Entrada en los ajas. Perdiéndose. Retrato de un separabilidade. Gostaria de lembrar que mesmo o texto de antropolo-
espada. Espada que sucede. Sucesión de líneas, espacia y tiempo. Matar el
gia mais inovador dos últimos anos tinha este subtítulo: "The poetics
tiempo. Dibujo de la nada. EI volumen deI no. Recipiente vacio. Como caja
and the politics" (Geertz, 1997). Esses dois termos sempre foram con-
de zapatos. Mirada como espada. Mirada como espacia que recibe. Como
recipiente COrozco, 1997).55 siderados aporéticos. É o momento de atravessá-los conforme Spivak,
e de cruzá-los nos híbridos conceituais. E ainda: o E central é maior e
A relação entre crânio e esculturas pertence a contextos etnográ- graficamente torto, ele atesta não só a importância do poético, mas
ficos muitíssimo diferentes entre si. Como se o crânio tivesse sido também sua irredutível dissonância em relação a tudo aquilo que é
com freqüência o primeiro material utilizável e nâo-perecível, para estabelecido como unicamente político.
ser polido e engastado com metais preciosos, plumas multicoloridas, Aqui residem estímulos para outras reflexões. Após terem enfatizado
cores rituais. E assim - transformado em obra de arte - o antepassado a importância de contextualizar o político nas produções artísticas, os
não volta. Os parentes exercem um controle sobre o retorno do morto- organizadores do catálogo recusaram-se a apresentar críticos de arte
vivo, em virtude da caveira domesticada em totem, em genealogia do para interpretar as obras selecionadas, preferindo "a confrontation of
clã e ainda mais em genealogia do medo. A caveira no espaço do- images and discourses, drawing from distinct yet interrelated territorial
méstico, transformada em obra de arte, confirma cuidado e devoção and linguistic domains". Donde se apresenta o seguinte método:
com os antepassados, dos quais se espera, em troca, proteção.
To evoke this vast narrative of Postwar History and to suggest lhe complex
Em Orozco não há somente isso. A dele não é uma retomada neo- relations between singular artworks and sociopolitical situations, which are
étnica no crânio-obra de arte. Estabelecer correlações topográficas inextricably "local" and "global", a montage technique has been adopted,
entre essa caveira-obra e o espaço: retrato de um espaço através de mixing texts and images from the archives of recent world history.
uma caveira que - resistindo - mata o tempo. Desenho do nada. Por- THE H1STOR1CAL lABYRINTH DF THE MONTAGE

que, na dureza de seus ossos, existem as cavidades moles dos olhos nos The effects of juxlaposition created by the montage technique upset the
strict division between work, document and commentary, creating
quais entramos e nos perdemos. Um não-volume, um volume do não,
multifaceted, polyphonic structure (Documenta X, 1997).56
porque - apesar de sua dureza - o crânio é agora um recipiente pronto
a acolher-se em seu próprio gotejar. 56 "um confronto de imagens e discursos, desenhados por âmbitos territoriais e
lingüísticos tâo distintos quanto inter-relacionados [ ... 1 Para evocar essa vasta
narrativa da história pós-bélica e para sugerir as relações complexas entre obras de
arte individuais e situações sociopolíticas, que sâo inextricavelmente locais e
55 "Topografia do crânio. Entrada nos olhos. Perdendo-se. Retrato de um espaço.
globais, foi adotada a técnica da montagem, um mix de textos e imagens de
Espaço que sucede. Sucessão de linhas, espaço e tempo. Matar o tempo. Desenho
arquivo da recente história mundial. o lABIRINTO HISTÓRICO DA MONTAGEM. OS efeitos
do nada. O volume do não. Recipiente vazio. Como caixa de sapatos. Mirada
da justaposição criados pela teoria da montagem subvertem a estreita separação
como espaço que recebe. Como recipiente."
entre obra, documento, comentário, criando tramas multivisuais e polifônicas."
164 Culturas eXtremas Conceitos líquidos 165

A montagem como método labiríntico, como enxertos de sincre- do da palavra de origem grega: uma inseminação aqui e acolá, uma
tismos glocais: aparia para a lógica identitária - a ser atravessada por fecundação dispersiva, uma disseminação desordenada. Essa nova
Spivak e, por mim, a ser liquidificada com tramas multifacetadas e diáspora - a partir da migração forçada que obrigou milhões de seres
polifônicas. Creio que na montagem labiríntica ocorram os pontos de humanos a se tornarem alienígenas em terras desconhecidas (Bhabha,
vista mais inovadores dos últimos anos. Pensemos em Walter Benja- 1997b) - oferece uma rica desordem seminal, em que cada conceito
min: "Método deste trabalho: montagem literária" (1986, p. 595) - e pode ser deglutido de acordo com os gostos de cada um e pode ser no-
em Grego!)' Bateson: 'Juntar os dados é o que eu entendo por explica- vamente fecundado. E disseminado.
ção" (1988, p. 264). Nessa perspectiva, não só se supera a nítida É a diáspora que favoreceu os sincretismos comunicacionais, as
distinção entre gêneros diferentes, mas é sobretudo inútil ou inconce- hibridizações visionárias, as mestiçagens alteradas. A diáspora é a ma-
bível uma leitura estável, uniforme, sólida: no aspecto irredutivelmen- triz de todo sincretismo. A diáspora sincrética desbloqueia a oposiçãO
te labiríntico da montagem, os fios a serem seguidos e interconectaclos estéril entre uma dialética sintética de cunho positivo e uma dialética
são infinitos. Multivocais e multifacetados. A montagem é labiríntica negativa, congelada em sua recusa a confrontar-se e a misturar-se com
porque é líquida, por isso é polEitics, crash sexuado de poético e po- as sujeiras metropolitanas, com os refugos seriais, com os detritos mi-
lítico. diáticos, com as periferias étnicas.
A diáspora líquida é aliada da mudança. A mudança não envolve so-
- Diáspora. A "diáspora" é uma palavra marcada pelo desenraiza- mente móveis e miudezas: ela descompõe a ordem perceptiva das coi-
mento violento, pelo domínio etnocêntrico e eurocêntrico, portanto, sas e, dessa forma desordenante, também dela mesma. Na mudança se
pela perda. Porém, fora de sua origem histórica, a diáspora pode tornar- afirma o desejo de não repetir a ordem doméstica, a ordem de móveis
se um conceito líquido, se for utilizado contra a esterilidade de uma domesticados e, portanto, fixos, afixados, móveis-fixações: mudança
condição imóvel, contra a miséria de um papel e de um status final- contra a ordem doméstica, contra sua normalidade mofada, contra
mente alcançado que nos acompanha por toda a vida, como uma im- sua solidez prevista.
pressão digital. Invisível e opressiva. A diáspora pode ser uma escolha, Ao mudar coisas (visões-de-mundo ou conceitos cotidianos) e ao
talvez, inclusive, uma necessidade desejosa em direção ao trânsito, à deslocar-se do sujeito (salas de estar metafísicas ou dormitórios), a diás-
infinitude. Diáspora contra os limites. Diáspora como desejo de modi- pora se torna líquida e quente. Ela se comove.
ficar-se nos espaços outros, nos espaços dos outros, no meio de psico-
geografias móveis. Diáspora contra a ordem mono lógica todo-racio-
_ E-space. Entre os conceitos mais discutidos existem os de espaços
nalizada, todo-iluminada; contra as retomadas irracionais falsamente
e lugares. O espaço foi considerado - filosoficamente - alguma coisa
místicas, e para multiplicar os pontos de vista espaciais, para mudar-
incontrolável, infinita, indefinida, enquanto o lugar é configurável em
se da tradição repetitiva.
termos identitários, é determinado, circunscrito. Por isso, o lugar per-
A diáspora navega nas mudanças descentralizadas das culturas na- tence ao político em seu aspecto mais institucionalizado, enquanto o
tivas e nas tecno-hibridizações das culturas metropolitanas. espaço é o contexto fluido da desordem, do irregular, da anomia. O
A diáspora líquida, conectando-se com as diásporas históricas das emprego recente do não-lugar por parte de Augé complicou as coisas,
deportações étnicas, pode movimentar de forma imprevisível o senti-
166 Culturas eXtremas Conceitos líquidos 167

pois inscreveu em seu conceito a aparente uniformidade globalista dos como pólis), muito menos que pratica delitos perfeitos (o detetive
novos lugares do consumo, da viagem e da diversão, pela qual se Baudrillard) ou excessos de velocidade (as multas de Virilio). O e-
perderia a indestrutível perspectiva iluminista. space não é nem um a priori nem um a posteriori. É um presente
Já nos anos 1940, Lévi-Strauss criticava as metrópoles americanas dilatado e móvel. Um presente líquido. No e-space tudo é simultâneo,
(do Norte e do Sul), pois tinha em mente a forma-cidade européia, em como nos desejos dos primeiros futuristas. O poder da história como
particular a francesa. No entender dele, as distinções kantianas de lei do passado não tem influência, assim como as sugestões da utopia
tempo e espaço, ao invés de serem um a priori do conhecimento, tor- como evolução no futuro. Parte-se de um site (termo aparentemente po-
naVam-se um a posteriori em que todas as misturas e as montagens bre, em relação à majestade do lugar e do espaço, porém muito mais
eram possíveis. Porém se perdiam as categorias. Nas avenidas paulis- rico na utilização cognitiva atual) preparado pelo Forte Prenestino e se
tanas ou nas avenues nova-iorquinas, para Lévi-Strauss, não há mais atravessa (não se chega, não há nunca um ponto de chegada) tudo o
limites definidos entre culturas e histórias diferentes: transita-se por que se quer ou que se encontra nas rodovias eletrônicas. Holanda, Ale-
lojas libanesas e armênias, italianas e chinesas, índios peles-vermelhas manha, Estados Unidos, Japão, México, Brasil, Senegal, Índia. Carto-
vivos, com caneta Parker, e mortos nos museus etnográficos. Sem ne- grafias que no e-space possuem sempre menos sentido em favor de
nhuma ordem. Por isso, entra-se numa dimensão tempo-espaço na ajustes progressivos de fragmentos extraídos de alguma coisa e de al-
qual tempos e espaços encontram-se unidos e misturados, uma autên- guém (entity) que atravessa os limites.
tica aporia para o espaço-tempo kantiano: em suma, para ele, racional- Certamente há riscos de perdas reais, de excessivos envolvimen-
mente incompreensíveis, esteticamente desagradáveis, impossíveis de toS: 57 porém o que interessa agora é se nesse fluir interminável não se
viver neles. insira no e-space uma liquidação da identidade fixa - a identidade
Nesse mesmo viés (que não por acaso encontra para ambos em gelada e terrificante -, de nacionalismos étnico-religiosos, de enclaves
MareeI Mauss o ponto de partida explícito), nos anos 1980 Augé políticos auto-satisfeitos. E, ao mesmo tempo, se estaríamos constru-
observa os novos não-lugares do consumo (malls), do entretenimento indo um cenário líquido inexplorado: onde os fragmentos se juntam
(theme parks), do trânsito (aeroportos) como sendo sem sentido: do ao longo de montagens temporárias.
sentido sólido racionalista e iluminista que o antropólogo procura No e-space posso entrar em contato com qualquer um sem co-
dobrar em todas as suas nítidas certezas. O fato de que esses não-lu- nhecê-lo e ir a qualquer lugar sem ir. O qualquer-lugar, a ubiqüidade se
gares estejam surgindo em lugar de outros espaços ultra-identitários insere no e-space. As fronteiras furam. Posso combinar infinitos textos
da modernidade racionalista (as fábricas) é levado em consideração escolhidos ou encontrados casualmente que acho em minhas navega-
apenas como lástima. ções, que nunca teria chegado a conhecer com as técnicas anteriores. 58
Tanto para Lévi-Strauss em relação às metrópoles em geral como O copyright como monopólio rígido de instituições editoriais entra
para Augé em relação a lugares determinados: é incompreensível um em crise com as novas tecnologias: posso citar tudo e todos sem ter de
espaço-tempo informe, diluído e misturado.
57 Para uma reflexão mesmo crítica sobre o conceito de e-space, cf. Saskia Sassen
O e-space é o espaço eletrônico. Alguma coisa que não é mais de- (1997).
58 Encontrei o avant-pop primeiramente na internet e depois no livro organizado
terminável em termos negativos (não-lugar) ou materiais (a cidade
por McCaffery, achado por acaso numa banca de sebo.
168
Conceitos líquidos 169
Culturas eXtremas

me submeter às compras tradicionais. Citando a fonte, o que ê uma o método não consiste apenas na montagem labiríntica: reside
atitude correta inestimável, posso juntar textos antes in imagináveis. também na improvisação, como muita arte contemporânea experi-
Agora os encontro no e-space. mental. Cada interpretação, para Rosaldo, não é direcionada a objeti-
var o outro, a elaborar regras espaciais, leis universais, modelos cul-
turais etc.: ela não assume um único ponto de vista (a autoridade
- Nonorder. Renato Rosaldo é um chicana. Isso quer dizer que sua
mono lógica do etnógrafo), mas "involve the irreducibIe perceptions of
biografia e sua etnografia se influenciaram reciprocamente no atra-
both analysts and their subjects".
vessamento das fronteiras. Em primeiro lugar a fronteira entre o Mé-
Cada aspecto do conhecimento é relacional, isto é, dialógico e sincré-
xico e os Estados Unidos. Mas também entre os cortadores de cabeças
tico. E, por fim, Rosaldo assume um pensamento infinito: "Borderlands
Ilongot, Filipinas. A ele se devem algumas das visões mais líquidas da
should be regarded not as analytically empty transitional zones bUl as sites
nova antropologia. Sua crítica se insere no corpo teórico de Durkheim,
of creative cultural production that require investigation". Através de
em particular em sua obsessão contra o conceito de anomia e em fa-
confins, limites, linhas que separam e unem, acaba-se (espera-se para
vor de uma aliança de ferro entre sociologia e ordem normativa.
sempre) extraindo "cristais puros de significado" com os quais enquadrar
"In my view, social analysis shouId look beyond the dichotomy of
toda a cultura dentro de uma regra,59 mas, ao contrário, aqui se buscam
arder versus chaos toward the less explored real Df 'nonorder' I· .. l. A
"the blurred zones in between".
focus on nonorder directs attention to how people's actions altcr the
A perspectiva de um chicano que flui in between entre fronteiras e
conditions cf their existence, often in ways they neither intend Dor
foresee" (Rosaldo, 1989, p. 102). contra as fronteiras, seduzido pela improvisação e em busca de
nonorder, só pode concluir-se com esta imagem líquida por excelên-
É um deslocamento radical dos pontos de observação: em primei-
cia: "Creative processes of transculturation center themselves alone
ro lugar sair das armadilhas dicotômicas e fluidificá-Ias; depois elabo-
literal and figurative borders where the 'person' is criss-crossed by
rar o conceito líquido de não-ordem que, em vez de deixar-nos socio-
multiple identities".60
logicamente ansiosos para normalizá-lo, leva a considerar a existência
individual não como um destino inscrito, mas a ser escrito e reescrito.
W Pensemos nas "estruturas elementares" de Lévi-Strauss, tão puras, universalistas,
Para alterar a existência, não para reproduzi-la. As conseqüências são legislativas.
inovadoras também para fluidificar o método: "Social analysis rnust 60 "Em minha opinião, a análise social deveria olhar além da dicotomia ordem

attend to improvisation, muddling through, and constringent events. versus caos e na direção do contexto menos explorado da 'não-ordem'. [... ] Fo-
calizar a não-ordem faz prestar atenção a como as ações das pessoas alteram as
Furthermore, from a processual perspective, change rather than condições de sua existência, com freqüência de uma forma que elas mesmas não
structure becomes society's enduring state" (ib.). queriam nem tampouco previam! ... 1. A análise social deve dedicar-se à impro-
visação, atingindo o objetivo, e a eventos constritores. Ademais,de uma perspectiva
A mudança é condição estável mais do que a estrutura: uma verda- processual, mudança mais do que estrutura torna-se o estado duradouro da so-
deira revolução, porque dessa forma a improvisação e a espontanei- ciedade. [ ... ] envolve as percepções irredutíveis tanto dos sujeitos quanto de seus
dade - características consideradas danosas e superficiais pelas objetos. [... 1 Os limites deveriam ser vistos não como zonas de transição empiri-
camente vazias, mas como lugares de produção cultural criativa que exigem pes-
ciências sociais sólidas - tornam-se aspectos móveis e decisivos que se quisa [ ... 1 as zonas indefinidas entre [... ]. Processos criativos de transculturação
enxertam e se decompõem no próprio percurso da pesquisa ou de sua se localizam ao longo dos limites literais e figurados, em que a 'pessoa' é atravessada
reelaboração. por identidades múltiplas."
170 Culturas eXtremas Conceitos líquidos 171

As identidades múltiplas não habitam apenas as mentes de jovens tensiona e exaspera os muitos fios que inter-relacionam mídia e me-
"marginais" (ou eXtremos, intermináveis) metropolitanos: elas estão trópole. As percepções visuais, sonoras, corporais da mídia e, ainda
também no centro da nova antropologia. E as idéias de Renato Ro- mais, da chamada "pós-mídia" fluem no meio dessas tensões intermi-
saldo terminam no interminável. náveis da anomia metropolitana. Dissociam-se e se agrupam.

Transitional zones. Sentir, ver, construir as anomias possíveis entre mídia e metrópole.
A comunicação metropolitana vai longe quando vê, sente e constrói
cruzamentos anómicos e fluidos.
_ Anomia. Como dito antes, este conceito sempre foi visto pelas
As ano mias líquidas não pertencem à dupla face de legalidade!
ciências sociais como algo a ser domado e domesticado. O nomos co-
mo lei só pode ser aceito por todos. O nomos é a sociologia. Mas já é ilegalidade. Elas desemolduram o panorama estabelecido e compacto
da ordem (nos métodos, nos conceitos, nas performances, na arte, nas
tempo de sair das armadilhas leis x barbárie, regras x caos, cidadania
escrituras)~ e quando a nonorder é subsumida por uma tentativa even-
x hominis lupus. A anomia não pode ser lida apenas como elogio do
tual de normalização por parte da ordem, elas vão mais longe, mais
fora-da-Iei. Existem outros territórios imateriais que fluem em seu
conceito líquido. Cada vez que alguém se encontra diante da exigência longe ainda. A configuração das anomias escorrega nos interstícios.
de deslocar-se para territórios inexplorados, a radicalidade da experi- Não busca o poder e, mesmo que o encontrasse, o descentralizaria.
Suas modalidades temporárias são intersticiais. Se "os humores cor-
mentação cruza-se com a inovação lingüística: seja nas imagens, seja
roem o mármore" - como diz a epígrafe encontrada na capela de
em novas estruturas conceituais. As tensões anõmicas se enxertam nos
Sansevero, em Nápoles -, seu trabalho é semelhante às anomias.
fluxos midiáticos e nos fluxos metropolitanos.
Ambos se amoldam e fluem entre fraturas de figuras, entre interzonas
As tensões anõmicas, então, fluem em seqüências-seqüelas de pas-
macias, entre dobras barrocas. E corroem. Humores anõmicos ...
sagens híbridas, de nonorders sincréticas, de lógicas iterativas.
Gostaria de inserir uma nova percepção da anomia, não já entre os
traços congelados da sociedade, mas naqueles líquidos da metrópole
- Mediascape. Arjun Appadurai utilizou esses fluxos panoramáticos
contemporânea. Aliás, como já foi dito na primeira parte do livro, nos da mídia como um traço disjuntivo, em relação ao passado, que a an-

fluxos de metrópoles, comunicação e consumo.


... determina, que é essencialmente anõmica" (ib.). E conclui com a separação
A tensão entre a mídia e a metrópole é anõmica. É dissolução de qual- social do trabalho equiparada a um organismo (a eterna metáfora agripina que já
Marx havia ridicularizado) atingido pelo vírus anômico. As relações entre os órgãos,
quer nomos. Contra os continuístas inoxidáveis de versões atualizadas
para Durkheim, são determinadas pela sociedade, pela separação do trabalho e da
à Durkheim,61 a anomia é reivindicada, sofrida e gozada. A anomia moral que legitima o todo de modo indivisível. Dever, sociedade, moral vêem na
anomia seu perigo, justamente porque ela libera as criações do indivíduo! Nunca,
61 Para Durkheim, o estado de guerra nasceria da anomia, não das polüicas dos com tanta clareza, havia-se afirmado que a santa aliança dever-sociedade-moral
Estados embasadas em "suas" morais: "Precisamos atribuir a este estado de anomia encontra, nas criações individuais livres, o inimigo mortal, o antagonista a ser
os conflitos que incessantemente renascem e as desordens de qualquer espécie"- eliminado e normalizado. No entanto, Durkheim continua sendo o autor de
"Que essa anarquia (a anomia) seja um fenômeno mórbido é de todo evidente, pois referência para as escolas socioantropológicas, justamente pela cimentação
ela é contrária ao próprio objetivo de toda sociedade" (1977, p. 10) - "Não apologética de uma sociedade na qual a divisão social do trabalho, assimilada
acreditamos que a anomia seja a própria negação da moral" (ib., p. 62) - Com a banalmente por um organismo natural (o corpo humano), é disfarçada de moral.
anomia "arrisca-se enfraquecer a existência do dever, admitindo que haja urna Uma moral de ferro enferrujado.
moralidade que consiste em criações livres do indivíduo, que nenhuma norma lO-

I
172 Culturas eXtremas Conceitos líquidos 173

tTopologia econômica deve considerar. Em coligação com outros qua- locados entre oS espaços móveis e imateriais das novas metrópoles
tro panoramas fluidos, a velha (industrialista) dialética estrutura! (e-space, interzonas): espaços-de-metrópoles móveis, em conflito entre
superestrutura torna-se outra área abandonada pela crítica. Tudo aqui- si, e que substituem o conceito de sociedade do século XIX. Esses espa-
lo que parecia emoldurável numa visão cultural homogênea e unitária ços metropolitanos são contra as lamentações nos funerais de qual-
se desemoldura. Nada é compreensível nem experimentável sem a co- quer comunidade, as certezas de cada lugar, as firmezas de cada identi-
municação midiática, particularmente da pós-mídia personalizada e dade, a preservação de todas as memórias. A perspectiva é outra: procurar
não-homologatória. Um mediascape não tem mais contextos físicos, nos desenvolvimentos narrativos, nas percepções visuais, nos panora-
materiais, realistas, mas se dissemina - diaspórico - nos fluidos esté- mas sonoros, nos códigos textuais da nova mídia (ou pós-mídia) ten-
ticos, metropolitanos, visuais. sões dialógicas, estridores híbridos e desordens polifônicas com a
Appadurai utiliza "as acepções com o sufixo 'scape' para indicar comunicação das metrópoles: que despedaça e fluidifica, combate e
que essas não são relações objetivamente dadas, mas construtos pro- decompõe, compulsiona e desemoldura. A mídia e a metrópole: esse ne-
fundamente perspectivas, definitivamente alterados pelas condições xo que queremos identificar, verificar e também afirmar. Fluxos da
históricas, lingüísticas e políticas dos diversos atores [ ... J. Esses pa- mídia e fluxos da metrópole. Os metro-media mix messages.
noramas são os fundamentos daqueles que gostaria de denominar Fluxos midiáticos e fluxos metropolitanos.
'mundos imaginados', isto é, os mun~os múltiplos constituídos pelas Os fluxos expressivos nascem e se decompõem nesta tensão dila-
imaginações historicamente situadas de pessoas e grupos espalhados cerada e apaixonada. Uma tensão que não procura novas visões de
pelo globo" (1996, p. 26-27). síntese, todas consideradas incongruentes, restauradoras e autoritá-
Mediascapes, mundos imaginados, mundos múltiplos, disjunturas rias, nem o "reflexo" e muito menos o "espelhamento": mas recíproca
crescentes. autoconstrução narrativa entre fluxos midiáticos e fluxos metropolitanos.
Tudo isso difunde "um repertório complicado e intercomunicante Autoprodução. As tensões plurívocas e dissonantes entre mídia e me-
de imprensa, cinema, visores eletrônicos e espaços publicitários". Por trópole. Aqui não se pretende sustentar que a primeira (a mídia) seja
isso "os limites entre panoramas 'realistas' e de 'ficção' são confusos" "compreensível" pela segunda (a metrópole), ou vice-versa. Aqui não
(ib., p. 29), adquirem e multiplicam concatenamentos entre fragmen- se perseguem interações funcionais. Aqui existe conflito, irredutibi-
tos de imagens. Mas, sobretudo, conforme Appadurai, o que emerge lidade, espasmo. Atravessamentos híbridos. Tensão como esticar ao
desses fluxos globais são as disjunturas crescentes. Uma vez mais, um máximo os limites da suportabilidade, torná-los fios finos e pegajosos,
inovador da pesquisa ataca qualquer possibilidade de síntese, e fios apaixonados e patógenos.
crescem as desterritorializações - disjuntivas e fantásticas - construí- A tensão entre mídia e metrópole é diaspórica.
das pelos mediascapes, sempre mais dirigidas para os fluxos étnicos
Cethnoscapes). - Amnésia. A defesa da memória tornou-se uma forma retórica,
Para delinear um novo método de leitura da mídia contemporânea sempre mais redundante, de auto celebração. Ela precisa ser desmon-
- cinema, performances, desenhos, outdoors, videoclipes, sites da in- tada. Cada vez que ouço uma pessoa séria e compenetrada fazendo a
ternet, videoarte -, estes parecem indecifráveis, quando não são co- costumeira apologia da memória, inverto o discurso e penso que esteja
174 Culturas eXtremas Conceitos líquidos 175

defendendo a si mesma e a seu papel. A própria memória. Essa defesa queremos sair do poder imobilizador da memória. A máquina - que
dúbia, em minha opinião, esconde alguma outra coisa: um sublinhar deve ficar em movimento por doze horas consecutivas, para escrever
as dificuldades em relação à mudança, à experimentação de coisas ini- no corpo do detento sua condenação - é uma grade agrícola. "Grade?
maginadas e impossíveis, à escolha de derivas que permitem a mo- - perguntou o viajante" (1957, p. 168).
dificação das percepções e das visões. Uma advertência para olhar mais A memória é uma penalidade: um instrumento de ferro para traba-
ao passado do que a construir um presente impensado. lhos superficiais do terreno, constituido por um tear munido de dentes,
Mas, talvez, seguindo Nietzsche - o maior desconstrutor da memó- lâminas ou discos.
ria -, esconde-se algo mais inquietante. "Esquecer não é uma simples Lembrar-se da memória é uma obsessão repetida ao infinito pelos
vis inertiae, como pensam os superficiais, mas uma faculdade ativa, mantenedores do status quo. A perda da memória é causa de todo mal,
positiva no sentido mais rigoroso" - "Fechar, de vez em quando, por- e sua preservação cabe a eles, aos moralistas. Todos sabem que não é
tas e janelas da consciência; um pouco de silêncio, um pouco de tábu- possível viver carregando nossas memórias e que, ao contrário, essa
la rasa da consciência, a fim de que ainda haja lugar para o novo, para pode ser uma doença perigosíssima. Cada um deve selecionar as me-
prever, predeterminar - essa é a vantagem do esquecimento ativo" mórias com as quais conviver ou que afloram de improviso. O poder
(1968, p. 41). Para ele, "não poderia existir nenhuma felicidade, ne- da memória contém outra ambigüidade: tem a tendência de afundar
nhuma esperança, nenhum presente sem a capacidade de esquecer" no passado e de ligar-se em nó duplo com aquilo que foi. Aprender
(ib.). com o passado para repeti-lo.
o elogio do esquecimento se interseciona com a defesa da amnésia. Também a famosa frase de Walter Benjamin - o elogio do perder-se
"Como se forma uma memória no animal-homem? Como se impri- como algo a ser aprendido, aprender a perder-se - significa que preci-
me alguma coisa neste intelecto do instante, neste esquecimento viven- samos aprender a afrouxar a presa mnemônica sobre as coisas. Per-
te, de modo a permanecer presente?" Para Nietzsche esse problema "não der-se é a premissa para encontrar novos caminhos. Do contrário, so-
foi exatamente resolvido com respostas e meios delicados", e responde mos condenados a refazer por toda a vida sempre e Somente o mesmo
assim à pergunta: "Talvez em toda a pré-história do homem, nada seja caminho. "Sim, a grade", disse o oficial, "o nome é bem escolhido. As
mais espantoso e sinistro do que sua mnemotécnica. Grava-se a fogo agulhas estão dispostas como as de uma grade."
alguma coisa para que fique na memória". É a dor, a punição, a festa co- A amnésia, então, não se configura como perda, mas como liberta-
mo crueldade que a memória imprime na carne do indivíduo. "O passa- ção dos laços do passado. O ato de retirar toda legitimidade dos guar-
do, o mais longo, profundo, impiedoso passado respira sobre nós e brota diães da memória, que sempre fizeram uso pessoal dela. O ático da
dentro de nós, quando nos tomamos graves" (ib., p. 44). E ainda: a dor é memória a partir do qual olhar a massa perdida lá embaixo, para
"o coadjuvante mais poderoso da mnemônica". adverti-la de que deve memorizar tudo. Por outro lado, a memória está
Esse mecanismo que interliga punição e memória no corpo está perto de nós, seleciona com carinho tudo aquilo que precisa ser do-
presente também num conto extraordinário de Kafka: "É uma máqui- brado. Mas, sobretudo, a memória é um meio formidável de transfor-
na realmente curiosa", com essas palavras inicia-se O veredicto na colô- mação. A memória duplica, ordena e paralisa. A memória é gelada. A
nia penal (1919). Um oficial se dirige ao viajante, a todos nós, quando amnésia é líquida: movimenta, inova e flui. Então a amnésia se alia

!
176 Culturas eXtremas Conceitos líquidos 177

com a anomia, para deslizar em direção aos novos panoramas in- casting: a escolha dos cantores e músicos que dão uma imensa contri-
tersticiais. buição como perfomer.
O passado respira sobre a dor e a repetição, como memória. Mne- A escolha final misturou o progressivo Kronos String Quartet com
rnotécnica. Grade. cantores que abarcam um amplo espectro da música contemporânea,
"O condenado sabe qual é a sentença?", perguntou o viajante. "from experimental to rock opera".
"Não", disse o oficial, "é inútil deixá-lo saber, saberá por seu próprio A música se torna líquida quando passa entre gêneros e autores,
corpo. "62 quando derrete as memórias fixas, para fazer fluir novas sensações so-
noras. Uma das letras de que mais gosto foi escrita por Paul Simon e

- Liquid days. Entre os discos de vinil, dos quais são um orgulhoso cantada por Bernard Fowler. Uma lírica enigmática, estranhante,
guardião, há um que me permite entrar na música líquida. O título é polEitics, que flui entre acordes minimalistas do piano e da flauta:
Songs from liquid days, e o autor das músicas é Philip Glass, as letras Gradually/ we became aware/ of a hum in the room! an electrical hum in
são de Laurie Anderson, David Byrne, Paul Simon e Suzanne Vega, o the room! ir went mmmmmm
ano é 1986. A capa é uma fotografia de Robert Mapplethorpe: vê-se We followed it frem! comer to comer/ we pressed our ears! against the
Philip Glass sentado, concentrado, talvez até de cenho franzido, camisa walV we crossed the diagonaIs/ and put our hands on the fioor/ ir went
de lã xadrez, que olha para a câmera com uma mão no rosto e a outra mmmmmm
na perna. Uma listra festonada corta em duas partes sua figura, mas Some times it was/ a murmur/ some times ir wasl a pulsei sometimes it

somente de modo simétrico, a partir da têmpora até a mão embaixo, seemed/ to disappear/ but then with a quartet-turnl of the head/ ir would rolI
around the sofa! a nimbus humming cloud/ mmmmmm
dividindo sua imagem em dois: como se fosse rasgada, com uma parte
Maybe it's the hum! of a calm refrigerator/ cooling on a big night! maybe it's
luminosa e uma escura.
a hum of our parents' voices Iong ago in a 50ft light! mmmmmm
Os dias líquidos introduzem na música líquida. Maybe it's the hum! of changing opinionl or a foreign Ianguage/ in prayer/
O próprio Glass, no verso da capa, diz: "Songs are perhaps our maybe it's a mantra! of the walls and wiringl deep breathingl in 50ft air/
63
most musical magical expression.Though I have worked widely in the mmmmmm ..

fields of opera and music theater, I had not until this last year worked
63 "As canções são talvez nossas expressões musicais mais fundamentais. Embora eu
with songs fortn as such. Writing Songs from liquid days became for me
tenha trabalhado amplamente no campo da ópera e da música para o teatro, até o
truly a voyage of discovery". Mais adiante ele narra como chegou a ano passado não tinha trabalhado com a forma-canção enquanto tal. Escrever
pedir a David Byrne e a todos os demais para escrever antes as pala- Songs from liquid days tornou-se para mim uma autêntica viagem de descoberta.
[ ... 1 Gradualmente/nos demos conta! de um hum no quartol um elétrico hum no
vras, para depois inseri-las na música. Palavras como líricas. Todos os
quarto/ tornou-se mmmmmmll Nós o seguimos! em cada canto/ apoiamos os
autores de letras, de fato, não são apenas "songwriters on their own, ouvidos! na parede/ atravessamos as diagonais! e apoiamos as mãos no chão/
but also lyricists whose poetry reflects individual styles and approach tornou-se mmmmmml/ Por vezes era! um murmúrio/por vezes! uma batida! por
vezes parecia! desaparecer! mas depois com uma mudança de direção/ dava voltas
to songwriting". Depois das letras e das músicas, inicia o processo do ao redor do sofá! uma nuvem murmurante! mmmmmml/ Talvez seja o huml de
uma calma geladeira! que esfria ao longo da longa noite/ talvez seja o hum das
62 "Honra teu superior", esta é a sentença gravada no corpo do condenado na vozes de nossos pais de muito tempo atrás numa luz macia! mmmmmml/ Talvez
colônia penal. Algo estranhamente semelhante ao sistema de recrutamento- seja o hum! da mudança de opinião/ ou de uma língua estrangeira! que reza! talvez
doutrinamento universitário. seja um mantra! do muro que conecta! um profundo respiro/ no ar macio/
mmmmmm
178 Culturas eXtremas Conceitos líquidos 179

Esse "mmmmmm" líquido pode ser, ao mesmo tempo, fetichista, [... J. We want houses with flying roofs, frozen stairs, buming walls." Foi
uma geladeira, uma mensagem dos pais, um mantra. Já relacionar o isso que disseram a um cliente em Tóquio, em 1989. E ele aceitou tudo,
suspiro de um mantra com o assobio de um eletrodoméstico é uma aliás O projeto foi ampliado e deslocado para Sapporo. Também outro
mudança anômica, uma amnésia nonorcler. Em qualquer caso, para grande arquiteto experimental, o holandês Koolhaas, definiu suas
mim - como para o autor que o escolheu para título -, é um canto obras como semelhantes a esculturas; e, com efeito, os sete bares de
murmurado para mudar de opinião. Sapporo foram pensados e acabados como esculturas-performance,
A mudança de opinião é canto líquido para dias líquidos. como o Heart Room (ib., p. 69), onde era visível e audivel o pulsar do
coração.
- Flame-wing. "When we speak ofleaping whales/ others think of "I1's very easy to explain Deconstructivism: architecture must blaze.
saurians./ We, however, think af 30 tons Df! flying weight.! We won't Flame stands not only for burning, flame is for us the paradigm of open
find architecture in anl encyclopedia./ Qur architecture can be found architecture" (ih, p. 50), como farão concretamente na ação "Flame-
where! thought move faster than hands to/ grasp it" (Prix, 1990, p. 20). Wing", uma asa em chamas de quinze metros de altura e cinco toneladas,
A Coop Himmelb(l)au - fundada em Viena em 1968 - é a expoente do instalada na Technical University de Graz. "We were inventing houses to
desconstrucionismo arquitetônico e, desde então, construiu alguns dos be built of raw concrete, pierccd by an arrow at the end of which a
edifícios mais irregulares e inovadores. Como diz Wolf Prix (um dos fiame-wing ignites."
dois fundadores), a história deles nasce com instalações, para tentar
ARCHITECTURE MUST BLAZE
novos vocabulários plásticos; mais tarde, passaram a estudar a body
Architecture should be cavernous, firely, smooth, hard, angular, brutal,
language deslocada para folhas de papel, de acordo com o principio
round, delicate, colorful, obscene, voluptuous, dreamy, o.lluring, repdling,
do first drawing (a primeira impressão), modificado pouco tempo wet, dry and lhrobbling. Alive or dead. Cold - then cold as a block of ice.
depois em built drawing: corpos e arquiteturas = arquiteturas de Hot - then hal as a blazing wing. Archilcclure musl blaze.(>4
corpos. Tudo isso não pertence exatamente à tradição arquitetônica:
trata-se de trabalhar e desenvolver o primeiro desenho assim como 6t "Quando falamos em baleias inclinadas, outros pensam em saurofídios. Nós, no
apareceu no projeto, sem saber muito bem onde possa ir parar. Assim entanto, pensamos em 30 toneladas de peso voador. Nós não queremos buscar a
arquitetura numa enciclopédia. Nossa arquitetura pode ser encontrada onde o
nasceu "The skin of this city" em Berlim, experimentand() uma "urban pensamento se move mais rápido do que as mãos, para apanhá-lo. [ ... ] Nós
sensuality": materiais duros e macios em espaços transversais. Nasce construimos casas que são o cruzamento entre uma ponte e um avião. [ ... ] Aquilo
aquela que foi definida "open architecture". A arquitetura aberta não em que estávamos interessados era o movimento. [ ... ] A mobilidade continua
tendo um grande papel em nossos projetos. [ ... ] Espaços inteiros se movem. [ ... ]
define a si mesma em sentido sólido, definitivo, imutável, por isso foi Queremos casas com te lOS voadores, escadas geladas, paredes que queimam. [... ]
exatamente seu especialista em estática que disse: "We build things É muito fácil explicar o desconstrucionismo: a arquitetura precisa incendiar.
that are a cross between a bridge and an aircraft" (ib., p. 23). Chama que se levanta não só para queimar. Chama, para nós, é o paradigma de
uma arquitetura aberta. [... ]lnventaInos coisas para serem construídas com cimento
Arquitetura como cruzamento entre pontes e aviões: espaços que bruto, envolvido por uma flecha ao fim da qual queima uma asa-em-chamas.
A ARQUITETURA DEVE fLAMEJAR. A arquitetura deveria ser cavernosa, fogosa, lisa,
interligam e que deslocam transformados em edifícios que não são
dura, angular, brutal, redonda, delicada, colorida, obscena, voluptuosa, sonhadora,
estáticos, mas móveis. sedutora, repelente, molhada, seca e pulsá til. Morta ou viva. Fria - e então fria
"What we were interested in was movement [ ... l. Mobility con- como um bloco de gelo. Quente - e então quente como uma asa-em-chamas. A
arquitetura deve flamejar."
tinues to play a large role in our projects [ ... J. The whole spaces move
180 Culturas eXtremas Conceitos líquidos 181

Numa arquitetura líquida, um edifício pode ser atravessado como vazios, as bordas dos rios e dos lagos, as bordas dos canais formaram a
piercing, inflamado como um branding - o beijo-de-fogo. A arquitetu- plataforma sobre a qual se inseriram as novas arquiteturas". Aqui se
ra aberta é uma arquitetura líquida, que escapa por todos os lados, que movem as que Memo chama de "novas ondas", feitas de apêndices ele-
se inflama, se faz chama, é uma arquitetura de fogo, na qual a mobili- trônicos, fachadas-visores, edifícios inteligentes, errâncias audiomidiá-
dade para o alto é constante, e as formas mudam com sua dança, até ticas, salas Imax, centros culturais e do consumo, Ski-Dome, imensos
fazer desaparecer tudo. Arquitetura úmida, obscena, angular. Asa-em- aquários. O arquiteto Toyo \to projetou em Yokohama uma Wind
chamas. Fogo líquido. Tower que parece uma medusa eletroabismal que emerge e se ergue
do oceano.
Arquiteturas invisíveis, arquiteturas d'água, arquiteturas de vento:
- Inconcrete. Em inglês e em português, "concrete"l"concreto", res-
arquiteturas líquidas.
pectivamente, significa cimento. Para mim, esse concreto se refere
tanto ao material-cimento (pesado e imóvel em sua concretude) quan-
to ao oposto de abstrato (a coisa visível e sólida). Como diz o arquite- - X-scape. Este conceito pode ser lido de diversas maneiras: a pri-
to Philip Johnson: "Hoje, utilizando o computador, podem-se con- meira é olhar o "x" como panorama; assumir o código do eXtremo,
trolar formas impensáveis e livres da escravidão dos cantos e dos como forma de caracterizar um visual líquido que abraça uma corren-
ãngulos retos: a arquitetura pode ter uma qualidade tátil, agredir o te comunicativa que escorre, fluida, entre (in between) culturas inter-
espaço ou deixar-se tocar como escultura" (1996). mináveis e tecnologias mutantes; é um tornar-se porosas, disponíveis e
Assim, o concreto se liberta de sua concretude, de sua solidez sensíveis à absorção, a deixar-se percorrer pelo eXtremo, é um tornar-
imóvel e monológica, de seu peso das leis da estática, de sua, digamos, se panorama interminável dos muitos sentidos oceãnicos.
materialidade geometrizada e simplificada. Graças às novas tecno- A outra maneira é sonora; modular o entrelaçamento entre "x" e
logias, O concreto se desconcretiza. O cimento se torna móvel, uma "scape" como um novo ideograma que toca um pIot de panorama ex-
desordem concreta pode ser pensada como um fractal criador de caos tremo em fuga: x-scape como escape. Nesse plot, a fuga não é abandono
descentralizados e plurais. O edifício é pensado como uma zona tem- ou renúncia diante de temores passadistas a caminho de homolo-
porária. Como uma cortina, sem raízes nem fundações que sustentam gações e repetições. Ao contrário, para mim, fuga é cimarron, é assu-
o lugar e o logos. mir parcialmente o ponto de vista do outro mais diferente, do escravo-
Mara Memo, socióloga urbana, escolhe um belíssimo título para que-foge, que chega ao cimo e conquista os espaços infinitos de uma
um ensaio que ela escreveu: líquidas entradas. Essas entradas líquidas outra condição. Cimarron é x-scape. Fuga das idéias estáticas, do do-
são atravessadas graças a novas arquiteturas que inventam "gigantes mínio social, das opressões estatais, das oposições binárias. Cimarron
tecnológicos heteromorfos que se refletem na água, visar líqUido que produz e difunde comunicações móveis maroon, maroon-izações: exa-
duplica sua presença" (1998, p. 29). "Os waterfronts da metrópole são tamente o contrário da homologação. Híbridos anômicos, amnésias
vastos campos da comunicação, ambientes da centralidade difundida, sincréticas, aporias nonorder, inconcrele mediascape: e-space x-scape.
apêndices da tecnologia" (ib., p. 30) que se sucedem às frontes-do-
porto da paisagem moderna: "As áreas portuárias, os embarcadouros
182 Culturas eXtremas Conceitos líquidos 183

Loop quadrado da moldura. A moldura é contexto regular da ordem, das


:e-space ... x-scape: normas metodológicas, dos edifícios euclidianos, dos conceitos só-
~~ ~~
lidos, das músicas já ouvidas, das leis formais (políticas e estéticas). É
Aporia, anomia, amnésia - shullpture, liquid days, mediascape, a raiz obscura na qual afundar e acomodar-se. Mas o quadro, que é
polEitics - inconcrete,flame-wing - diáspora, nonorder, e-space, x-scape. emoldurado nas salas de estar, é historicamente determinado e, por-
Trata-se de treze conceitos líquidos que fluem em diversos terri- tanto, deteriorável. Aliás, já está deteriorado: parece quase sobreviver
tórios: territórios de redefinição, cruzamentos textuais artístico-comu- a si mesmo, abandonado tristemente na superfície lisa de uma parede.
nicacionais. Conceitos que mergulham no líquido multi narrativo e Dificilmente atrai olhares. Raramente induz a sair dos limites. É fácil
emergem dele como intermináveis. Os três primeiros repensam as de- imaginar um futuro sem quadros, com músicas, esculturas, edifícios
finições dadas, relacionadas ao trio lógica-lei-memória; os quatro desemoldurados. O mesmo vale para os conceitos: um conceito, para
segundos replasmam os sentidos de esculturas-músicas-artes-mídia; e ser líquido, deve evadir de seu círculo mágico que o circunscreve e o
depois há dois atravessamentos ao longo das novas arquiteturas incon- imobiliza (frame identitário). Memoriza-o como "a colônia penal".
cretas-inflamadas; por fim, os quatro últimos exploram dimensões Diz Deleuze: "Longe de ser a delimitação da superfície pictórica, a
imateriais suspensas entre mudanças-limites-espaços-fugas. Todos moldura é quase o contrário, é o relacionamento imediato com o lado
saltam entre as montagens labirínticas de metrópole-comunicação- externo. Agora, enxertar o pensamento no lado de fora é o que os filó-
idenÚdade. Todos podem tornar-se cut-up do outro ou dos outros. sofos não fizeram" (1996, p. 8).
Percebo somente no final que quase todos esses conceitos são o re- Isso vale também para os antropólogos que deveriam ter praticado
sultado de cruzamentos de mais palavras, desvios de prefixos e sufixos, o pensamento do lado de fora, certamente mais ainda do que os filó-
consonâncias ácidas para doces dissonâncias, a caminho de signifi- sofos. O chicano Renato Rosaldo é um desses que foram para o lado
cados inéditos. O a-privativo, em dois casos, revela-se múltiplo, um a- de fora: nonorder, borderlands, criss-cross, multiple identities, blurred
que liberta, liberta-se do poder sólido de nomos e memória. Enxertos zones, beyond dichotomy, processual perspective, muddling through,
de caveiras esculpidas, músicas líquidas, paisagens midiáticas, poéti- relational knowledge. Colares de conceitos líquidos para novas conste-
cas-políticas. Arquiteturas inconcretas e inflamadas. Limites desloca- laçôes de significados possíveis.
dos para espaços eletrônicos, espaços-de-fuga e em-fuga. Introduzir o pensamento no lado de fora é desemoldurar.
Assim as palavras não conseguem ficar imóveis, mas se hibridizam, Sempre para Deleuze, pensar o lado de fora é também praticar a
se enxertam, se amarram para produzir novos sentidos: sentidos não fuga: "Uma sociedade, para definir-se menos por suas contradições e
apenas como alguma coisa que"se refere ao significado, mas também mais por suas linhas de fuga, foge para qualquer lugar" (ih., p. 140). Ago-
como multiplicação dos cinco sentidos do corpo. O vocabulário não ra poderíamos acrescentar que essa fuga - esse x-scape, esse cimarron,
pode ser o guardião do significado, de palavras petrificadas no puris- essa diáspora - convive sempre menos com o social (ao qual pertence a
mo. O vocabulário deve ser constantemente desafiado e modificado: categoria da contradição) e cada vez mais com as metrópoles imateriais
deve ser aberto como faz Marguerite Duras. (das quais saem linhas de fuga aporéticas). As classes como momento
O elemento líquido do ato de desemoldurar é evidente no próprio identificador e transformador do social não funcionam mais, também
movimento conceitual que leva a sair do perímetro circunscrito e es- por isso os Mil platôs de Deleuze e Guattari abrem-se ao considerar-
Culturas eXtremas Conceitos líquidos 185
184

no lugar das classes - as minorias. Mas, talvez, também o conceito de biologista e antinaturalista, para livrar a etnicidade (o etnoviduo) nos
minoria tornou-se, por assim dizer, minoritário: ele funciona pouco. muitos enxertos e autoclassificações possíveis. 66 A diferença como
É obsoleto. Todos podemos ser, a cada vez, minoria e - logo após, e até prazer do multiplicar e não como dever a ser uniformizado.
contemporaneamente - maioria. Às culturas eXtremas não interessa ser Para muitos autores, a releitura da filosofia do século XIX faz surgir
ou sentir-se maioria, nem procuram isso pela adesão, pela inscrição, a filosofia de Nietzsche como pluralismo conceitual e devir múltiplo,
pelo proselitismo. A era da propaganda acabou: não há mais nada a ser para uma silenciosa pluralidade dos sentidos: um pluralismo antidia-
divulgado. Ao eXtremo não interessa a conquista do poder, verdadeiro lético e líquido.
objetivo de toda minoria política que procura tornar-se maioria. "Ao elemento especulativo da negação, da oposiçãO ou da contra-
As culturas eXtremas são intersticiais. Se chegam a tocar o poder, dição, Nietzsche substitui o elemento prático da diferença, objeto de
procuram difundi-lo e nunca centralizá-lo. Elas navegam in between. afirmação e de gozo" (Deleuze, 1992, p. 39).
No limite, trata-se de minorias não-minoritárias. Mil planos para mil É o "gozo da diferença"67 que se coloca como novo elemento con-
minorias: a perspectiva nômade navega ao longo das minorias que se ceitual. A diferença se opõe à contradição dialética. Através do gozo
tornam livremente e eXtremamente individuais. das diferenças, chega-se a conceitos líquidos.
Com freqüência, as minorias podem constituir-se em bases étnicas.
As culturas eXtremas procuram enfrentar a etnia com novos instru-
66 Veja-se a crise taxonômica do censo no Brasil, que prevê, em suas infinitas cores!
mentos, diferentes dos instrumentos modernos e institucionais da nuanças, novos futuros para muitas áreas da Europa. A perspectiva de uma
política: as minorias se constituem na igualdade da diferença contra os brasileirização da Europa está cada vez mais presente em não poucos autores
(cf. Featherstone, 1994; Beck, 1999).
reducionismos identitários (assimilacionismos). As etnicidades não
67 Uma genealogia da diferença já está madura. Muitos pensadores dissidentes
são inventadas e, por conseqüência, são inessenciais como muitos etno- consrituíram sobre a diferença seus paradigmas descentralizados: para Todorov, é
universalistas costumam afirmar. Proclamando a universalidade de a igualdade da diferença que dilui todos os universalismos do Iluminismo tardio.
É igual quem é diferente e não quem é idêntico, truque universalista da racionalidade
cada indivíduo, eles negam os problemas que estão presentes em cada social iluminista. A Declaração dos Direitos Humanos insiste nesse erro, isto é,
um: em vez de invenções, as etnicidades são construções. Elas são o continua proclamando todos iguais, porque todos idênticos (um biologismo
identitário pan-humano). Desafiar o pensamento e a lógica identitária é, ao contrário,
resultado conflitante de processos histórico-comunicacionais festona-
praticar a igualdade somente como diferença reconhecida, aceita e gozada. Também
dos, cujo tecido móvel converge nas tramas transformadoras inters- a antropologia interpretativa de Geertz movimenta-se nos homens e seus signi-
ticiais. tlS Então, o eXtremo étnico se constrói nas escolhas de etno- ficados que são essencialmente diferentes: e é extraordinário que, ao menos na
Itália e na França, esse continue sendo considerado um escândalo político, muito
grafias fluidas e - além da líquida entrada - individuais: etnovíduos.
antes do que antropológico. Com efeito, a política é identitária e se choca com as
Contra sua suposta "invenção", diante de uma humanidade genérica diferenças. Para Gregory Bateson, a informação é uma diferença que comunica
e universal, sua construção/desconstrução move-se em sentido anti- uma diferença, em cuja perspectiva toda a ecologia da mente se baseia. Todas as
correntes emográficas experimentais - denominadas com orgulho "pós-modernas"
pelas academias solidificadas - elaboram conceitos mutantes com base na diferença.
65 "O fato de que não existe a etnia em sentido objetivo - porque cada etnia é uma Diferença é o grande tema da reflexão feminista. Vimos filósofos- como Perniola
JiClio, no sentido de construçào - não impede que ela exista em sentido subjetivo. e Deleuze - que caracterizam justamente o século xx como experimentação ex-
Este, por outro lado, é um problema que se relaciona à crise mais geral da trafilosófica da diferença. Enfim, a literatura crítica pós-colonial enriqueceu com
objetividade na antropologia e em quem a representa, isto é, o antropólogo" olhares oblíquos e construtivistas o tema da diferença cultural (cf. Bhabha, 1997a;
(Montezemolo, 1999, p. 23). Said, 1991; Spivak, 1988).
186 Culturas eXtremas

A contradição é historicista, evolucionista, em sua versão tanto uni


quanto mullilinear, é intrinsecamente dualista e, enquanto tal, pertence
a uma ordem lógica abandonada, semelhante, coeva das arqueologias
industriais e lingüísticas. A diferença é nômade, cimarron, anêmica,
diaspórica.
***
Marguerite Duras escreve em busca da "falta de uma palavra", da
"palavra-ausência", "palavra-vazio", uma palavra "imensa, infinita, co-
mo um gongo vazio". Diz ela: "Faltando, aquela palavra torna inúteis
todas as outras, contamina-as, é como o cão morto na praia, ao meio-
dia, aquele vazio de carne" . E Duras escreve esta passagem diaspórica:
"Aquela palavra que não existe, mas que está ali: ela fica esperando-te
numa virada da linguagem" (1989, p. 37-38).
A virada da linguagem: os conceitos fluidos estão constantemente
em busca dessa virada.
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