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DOI: 10.1590/S0103-49792011000400009
Ricardo Antunes*
O tema proposto para esta conferência – a pital é responsável pelo advento da forma traba-
questão da alienação contemporânea – é reflexão lho assalariado, do trabalho-mercadoria ou, de
complexa e, ao mesmo tempo, crucial de nosso tem- modo mais preciso, da generalização da mercado-
po, o que me obriga a desenhar algumas notas que ria força de trabalho. Em suas palavras:
mantêm, em si, uma clara dimensão inter-relacional.
Sabemos que o trabalho assalariado, respon- O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto
mais riqueza produz, quanto mais a sua produ-
sável pela interiorização das fetichizações e ção aumenta em poder e extensão. O trabalha-
coisificações da classe-que-vive-do-trabalho, expan- dor se torna uma mercadoria tão mais barata
quanto mais mercadorias cria. Com a valoriza-
diu-se com o capitalismo da fase maquínica, par- ção do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta
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isto na medida em que produz, de fato, mercado- so o trabalho, mais impotente o trabalhador se
rias em geral (Marx, 2004, p.80). torna; quanto mais rico de espírito o trabalho,
mais pobre de espírito e servo da natureza se
torna o trabalhador (p.82) .
Isto porque, o objeto que o trabalho pro-
duz, o seu produto, acrescenta Marx,
Aqui está, então, a primeira manifestação do
estranhamento em relação à própria natureza hu-
... se lhe defronta como um ser estranho, como
um poder independente do produtor. O produto mana. E esse primeiro momento, mais visível em
do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, seu ser fenomenológico, encobre sua segunda ma-
fez-se coisal (sachlich), é a objetivação
(Vergegenständlichung) do trabalho. A efetivação nifestação: o trabalho também não se reconhece em
(Verwirklichung) do trabalho é a sua objetivação. sua própria atividade produtiva. Trata-se de um tra-
Esta efetivação do trabalho aparece ao estado
balho que, em sua atividade de criação, expressa
nacional-econômico como desefetivação
(Entwirklichung) do trabalhador, a objetivação um momento de desefetivação, interiorizando o
como perda do objeto e servidão ao objeto, a apro- fetichismo da sociedade da mercadoria presente
priação como estranhamento (Entfremdung),
como alienação (Entäusserung) (2004, p.80) . no próprio processo de trabalho.
Ou seja, a exteriorização do trabalhador sob
A efetivação do trabalho, portanto, é sua a modalidade do estranhamento apresenta-se ini-
própria situação de desefetivação (p.80), o que sig- cialmente em “sua relação com os produtos do seu
nifica dizer que se trata de uma efetividade que se trabalho”. Mas, acrescenta Marx, o estranhamento
configura como perda, que o trabalhador se do trabalho não se expressa somente no resultado
desrealiza, se desefetiva e se estranha no processo do processo produtivo, mas no próprio ato da pro-
de trabalho. Conforme as palavras de Marx: dução, na atividade produtiva em si mesma.
A pergunta de Marx é clara: como poderia o
A objetivação tanto aparece como perda do obje- trabalhador se encontrar
to que o trabalhador é despojado dos objetos mais
necessários não somente à vida, mas também
dos objetos do trabalho. Sim, o trabalho mesmo ... alheio (fremd) ao produto da sua atividade se
se torna um objeto, do qual o trabalhador só pode no ato mesmo da produção ele não se estranhas-
se apossar com os maiores esforços e com as mais se a si mesmo? O produto é, sim, somente o resu-
extraordinárias interrupções. A apropriação do mo (Resumé) da atividade, da produção. Se, por-
objeto tanto aparece como estranhamento tanto, o produto do trabalho é a exteriorização,
(Entfremdung) que, quanto mais objetos o traba- então a produção mesma tem de ser a
lhador produz, tanto menos pode possuir e tanto exteriorização ativa, a exteriorização da ativida-
mais fica sob o domínio do seu produto, do capi- de, a atividade da exteriorização. No
tal (p.80-81). estranhamento do objeto do trabalho resume-se
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Desse modo, o estranhamento é a realização portanto, de uma relação reificada e coisificada entre
uma relação social fundada na “abstração da natu- os seres sociais.
reza específica, pessoal” do ser social que “atua Não parece crível que esse cenário tenha
como homem que se perdeu a si mesmo, des- desaparecido da nossa história recente, uma vez
umanizado” (p.278). que, em seus traços essenciais, esse trabalho assa-
Essa reflexão acabou por receber, em sua obra lariado, abstrato e fetichizado adentrou os séculos
de maturidade maior, O Capital, um adensamento XIX e XX.
imprescindível para se compreender o fenômeno E foi nesse último século que vivenciamos
social da alienação e do estranhamento, ao discor- a consagração da sociedade do trabalho abstrato e
rer sobre o fetichismo da mercadoria vigente no ca- assalariado. Com o taylorismo-fordismo, a conti-
pitalismo, em que as relações sociais estabelecidas nuidade avançada da maquinaria e da grande in-
entre os produtores acabam por assumir a forma de dústria analisadas por Marx, consolidou-se a cha-
relação entre os produtos do trabalho. A relação mada sociedade do automóvel, que se espalhou
social estabelecida entre os seres sociais adquire, pelo mundo.
por força do sistema de metabolismo social existen-
te, a forma de uma relação entre coisas. ***
E aqui aflora o problema crucial do fetichismo:
Como sabemos, Taylor, o mestre da enge-
A igualdade dos trabalhos humanos assume a nharia científica do capital, propugnava que os tra-
forma material da igual objetividade de valor dos
produtos de trabalho; a medida do dispêndio de balhadores deveriam ser controlados rigidamente
forças de trabalho do homem, por meio de sua pelos tempos e movimentos, sob comando de uma
duração, assume a forma da grandeza de valor
camada de gestores, administradores e engenhei-
dos produtos de trabalho; finalmente, as relações
entre os produtores, em que aquelas caracterís- ros que elaboravam e concebiam a produção que,
ticas sociais de seus trabalhos são ativadas, assu- por sua vez, seria executada pela classe dos traba-
mem a forma de uma relação social entre os pro-
dutos de trabalho (Marx, 1971, p.71). lhadores manuais. E esse é o cerne da teoria
tayloriana do trabalho: os engenheiros concebem
Dada a prevalência do trabalho abstrato em e os trabalhadores manuais – que certa vez Taylor
relação ao trabalho concreto, tem-se, então, o denominou como “gorilas amestrados” – execu-
afloramento do caráter misterioso ou fetichizado tam. Concepção e manualidade, elaboração e exe-
da mercadoria, que encobre as dimensões sociais cução, aprofundando, desde o espaço
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do próprio trabalho, mostrando-as como inerentes microcósmico da produção, a divisão social do tra-
aos produtos do trabalho. balho.
Ao mascarar as relações sociais existentes E Ford aplicou a engenharia de Taylor em
entre os trabalhos individuais e o trabalho total, o sua produção seriada e homogeneizadora, de modo
sistema de metabolismo social do capital apresen- a aumentar as economias de escala e,
ta-as “naturalmente” como sendo expressão de re- consequentemente, os lucros oriundos da produ-
lações entre objetos coisificados, o que leva Marx a ção automotiva, consolidando a sociedade de massa
afirmar que “não é mais nada que determinada re- do século XX.
lação social entre os próprios homens que para Tratou-se, então, como já pude dizer anteri-
eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma ormente,3 de um casamento que deu certo: Taylor
relação entre coisas” (1971, p.71). e Ford, o engenheiro científico e o fabricante de
Na vigência da lei do valor de troca, o vin- automóveis. Eles foram responsáveis pela amplia-
culo social entre as pessoas se transforma em uma ção e generalização das formas de estranhamento e
relação social entre coisas: a capacidade pessoal 3
Antunes, 2009, p.223, no qual retomo várias ideias nes-
transfigura-se em capacidade das coisas. Trata-se, te texto.
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dos anos 1970 levou, dentre tantas metamorfoses e diretamente incorporadas ao trabalhador produti-
mutações, a uma monumental reestruturação capi- vo. Desse modo, reengenharia, lean production,
talista de amplitude global, com profundas mudan- team work, eliminação de postos de trabalho, au-
ças no processo de produção e do trabalho. Germi- mento da produtividade, qualidade total, “metas”,
nou a denominada “empresa enxuta, flexível”, com “competências”, “parceiros”e “colaboradores”, são
seu receituário que, se não altera a forma de ser do partes constitutivas do ideário e da pragmática co-
capital, modifica, em muitos aspectos, as engrena- tidiana da “empresa moderna”.
gens e os mecanismos da acumulação, com fortes Se, no apogeu do taylorismo-fordismo, a
consequências na subjetividade do ser social que pujança de uma empresa estava representada pelo
trabalha, adicionando novos elementos ao fenôme- número de trabalhadores que nela atuavam, de
no social da alienação e do estranhamento, através modo contrário, pode-se afirmar que a empresa que
da identificação das personificações do trabalho tipifica a fase da flexibilidade liofilizada é aquela
como personificações do capital. É por isso que, que aglutina o menor contingente de trabalho vivo
hoje, nenhuma fábrica ou empresa usa, em sua ter- e concentra o maior volume de trabalho morto,
minologia gerencial, as denominações operários, tra- corporificado no maquinário informacional-digital,
balhadores, mas recorre à apologética presente na o que lhe gera – potencialmente – maiores índices
ideologia dos “colaboradores”, “parceiros”, “con- de produtividade e de lucratividade na concorrên-
sultores” ou denominações assemelhadas. cia inter-empresas.
Em seus traços mais gerais, é possível dizer Essas metamorfoses no processo de produ-
que a empresa da era da flexibilidade liofilizada ção tiveram – e ainda têm – consequências signifi-
articula um conjunto de elementos de continuida- cativas no universo do trabalho: desregulamentação
de e de descontinuidade em relação ao empreendi- dos direitos sociais; precarização e terceirização da
mento tayloriano e ou fordista. Ele se estrutura força humana que trabalha, aumento da fragmen-
com base em uma organização do trabalho que re- tação e heterogeneização no interior da classe tra-
sulta da introdução de técnicas de gestão da força balhadora; enfraquecimento do sindicalismo de
de trabalho próprias da fase informacional; desen- classe e incentivo à sua conversão em um
volve uma estrutura produtiva mais flexível, re- sindicalismo mais negocial e de parceria, mais de
correndo frequentemente à deslocalização produ- cúpula e menos de base, mais parceiro e colabora-
tiva, à terceirização (dentro e fora das empresas); dor e menos confrontacionista.
utiliza-se do trabalho em equipe, das “células de A racionalização do processo produtivo, o
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produção”, dos “times de trabalho”, além de in- forte disciplinamento da força de trabalho, a implan-
centivar, de todos os modos, o “envolvimento tação de novos mecanismos de capital e de traba-
participativo”, uma participação que preserva, em lho intensivo, e o envolvimento mais ativo do inte-
seus traços essenciais, os condicionantes anterior- lecto no trabalho tornaram-se práticas recorrentes
mente apresentados (Antunes, 2010). no processo de liofilização organizacional, um pro-
Conforma-se, então, uma nova forma de or- cesso no qual as substâncias vivas são eliminadas,
ganização e controle do trabalho cuja finalidade onde o trabalho vivo é substituído pelo trabalho
central é, de fato, a intensificação do processo morto, pelo maquinaria tecno-informacional-digital
laborativo, com ênfase também no envolvimento que hoje tipifica o processo de “enxugamento” das
qualitativo dos trabalhadores e trabalhadoras, em empresas (Antunes, 2010a).
sua dimensão cognitiva, procurando reduzir ou O trabalho em equipe, a transferência das
mesmo eliminar os espaços de trabalho improdu- responsabilidades de elaboração, anteriormente re-
tivo, que não criam valor, especialmente nas ativi- alizadas pela gerência científica e agora interiorizadas
dades de manutenção, acompanhamento, inspe- na própria ação dos trabalhadores – um dos traços
ção de qualidade, etc., funções que passaram a ser do management by streess – são outras marcas for-
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ge na fábrica ou nas esferas produtivas contem- expropriou e transferiu para a esfera da gerência
porâneas é expressão de uma existência
inautêntica e estranhada. Contando com maior científica, para os níveis de elaboração, conforme
“participação” nos projetos que nascem das dis- nos referimos anteriormente, a nova fase do capi-
cussões dos círculos de controle de qualidade,
tal, da qual o toyotismo é a melhor expressão, re-
com maior “envolvimento” dos trabalhares, a
subjetividade que então se manifesta encontra- transfere o savoir faire para o trabalho, mas o faz
se estranhada em relação ao que se produz e apropriando-se crescentemente da sua dimensão
para quem se produz” (Antunes, 2010a, p.130) .
intelectual, das suas capacidades cognitivas, pro-
E acrescentei: curando envolver mais forte e intensamente a sub-
jetividade operária.
Os benefícios aparentemente obtidos pelos tra- Mas o processo não se restringe a essa di-
balhadores no processo de trabalho são largamen-
mensão, uma vez que parte do saber intelectual é
te compensados pelo capital, uma vez que a ne-
cessidade de pensar, agir e propor dos trabalha- transferido para as máquinas informatizadas, que
dores deve levar sempre em conta se tornam mais inteligentes, reproduzindo parte das
prioritariamente os objetivos intrínsecos da em-
presa, que aparecem muitas vezes mascarados atividades a elas transferidas pelo saber intelectual
pela necessidade de atender aos desejos do mer- do trabalho.
cado consumidor. [...] Mais complexificada, a
Como a máquina não pode suprimir o tra-
aparência de maior liberdade no espaço produ-
tivo tem como contrapartida o fato de que as per- balho humano, ela necessita de uma maior
sonificações do trabalho devem se converter ain- interação entre a subjetividade que trabalha e a
da mais em personificações do capital. Se assim
não o fizerem, se não demostrarem estas “apti- nova máquina inteligente. E, nesse processo, o
dões”, (“vontade”, “disposição” e “desejo”), são envolvimento interativo maquínico pode aumen-
substituídos por outros trabalhadores ou traba-
tar ainda mais o estranhamento do trabalho, am-
lhadoras que demonstrem “perfil” e “atributos”
para aceitar estes “novos desafios” (p.130). pliando as formas modernas da reificação, distan-
ciando ainda mais a subjetividade do exercício de
E, nesse processo de envolvimento uma cotidianidade autêntica e autodeterminada.
interativo, ampliam-se e complexificam-se as for- E mais: se o estranhamento permanece e
mas da reificação, distanciando a subjetividade mesmo se complexifica nas atividades de ponta
que trabalha do exercício de uma atividade autên- do ciclo produtivo, naquela parcela aparentemen-
tica e autodeterminada. A aparência de um des- te mais “estável” e inserida da força de trabalho
potismo mais ameno, plasmado pela sociedade que exerce o trabalho intelectual abstrato, o cená-
produtora de mercadorias desde o seu nível mais rio é ainda mais intenso nos estratos precarizados
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tismo é mais explícito em sua conformação, e o _______. Ontologia dell’essere sociale. II Roma: Ed. Riuniti,
1981 v.2.
estranhamento ou o modo de ser da coisificação
MARX, Karl. O capital I. Rio de Janeiro: Ed. Civilização
acaba sendo mais “direto”, na fábrica da flexibili- Brasileira, 1971. v.1.
dade liofilizada, diferentemente, as novas técnicas _______. Extractos de lectura - James Mill. In: _______.
Obras de Marx y Engels, OME 5: manuscritos de Paris y
de “gestão de pessoas”, as “colaborações” e as par- anuários franco-alemanes 1844, Barcelona: Grijalbo, 1978
cerias” procuram “envolver” as personificações do _______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:
Boitempo, 2004.
trabalho de modo mais interiorizado, procurando
MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São
convertê-los “voluntariamente” em uma espécie de Paulo: Boitempo, 2006.
autocontroladores de sua produção, em déspotas RANIERI, Jesus. A câmara escura: alienação e
estranhamento em Marx. São Paulo: Boitempo, 2001.
de si mesmos.
TERTULIAN, Nicolas. Le concept d’aliénation chez
A compreensão, portanto, desses novos Heidegger et Lukács. Archives de Philosophie- Reserches et
mecanismos e dessas novas engenharias da sujei- Documentation. Paris, n.56, jul./set., 1993.
REFERÊNCIAS
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Ricardo Antunes - Doutor em Sociologia pela USP. Professor Titular de Sociologia no Instituto de Filoso-
fia e Ciências Humanas da UNICAMP. Pesquisador do CNPq. Coordena as Coleções Mundo do Trabalho
(Boitempo Editorial) e Trabalho e Emancipação, pela Editora Expressão Popular. Autor, entre outros, dos
livros: Adeus ao Trabalho? 14ª ed., (Ed. Cortez), publicado também em outros países; Os sentidos do
trabalho (Ed. Boitempo), 9ª edição, publicado em outros países; A desertificação neoliberal ( Ed. Autores
Associados. 2.ed.) e de artigos em revistas diversas, dentre as quais: Herramienta, Buenos Aires; Revista
Latinoamericana de Estudios Del Trabajo; Margem Esquerda; Cadernos IHU Ideas, Unisinos; Contre
Temps; Shiftwork International Newsletter; Política e Sociedade; Revista Crítica de Ciências Sociais;
Caderno CRH.
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