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Ricardo Antunes

OS EXERCÍCIOS DA SUBJETIVIDADE: as reificações


inocentes e as reificações estranhadas

Ricardo Antunes*

Este texto explora, analítica e empiricamente, a problemática da alienação e (ou) estranhamento,


procurando auxiliar na intelecção das bases sócio-históricas que propiciam o seu florescimento
dentro da empresa capitalista moderna. Para tanto realiza os seguintes movimentos: primeiro,
partindo das concepções teóricas seminais de Marx, procura indicar as formas diferenciadas
assumidas pela alienação e (ou)estranhamento, ao longo do século XX e inícios do século XXI,
explorando alguns dos seus traços principais. Em seu segundo movimento, esboça uma
fenomenologia da subjetividade, explorando, como hipótese, as ricas possibilidades analíticas
existentes na obra de maturidade de Lukács, em particular suas noções de reificações inocen-
tes e reificações estranhadas, como pistas férteis a compreensão desse fenômeno social no
capitalismo de nossos dias.
PALAVRAS-CHAVE: alienação e estranhamento, capitalismo e reificação, taylorismo, toyotismo e
subjetividade.

O tema proposto para esta conferência – a pital é responsável pelo advento da forma traba-
questão da alienação contemporânea – é reflexão lho assalariado, do trabalho-mercadoria ou, de
complexa e, ao mesmo tempo, crucial de nosso tem- modo mais preciso, da generalização da mercado-
po, o que me obriga a desenhar algumas notas que ria força de trabalho. Em suas palavras:
mantêm, em si, uma clara dimensão inter-relacional.
Sabemos que o trabalho assalariado, respon- O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto
mais riqueza produz, quanto mais a sua produ-
sável pela interiorização das fetichizações e ção aumenta em poder e extensão. O trabalha-
coisificações da classe-que-vive-do-trabalho, expan- dor se torna uma mercadoria tão mais barata
quanto mais mercadorias cria. Com a valoriza-
diu-se com o capitalismo da fase maquínica, par- ção do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta

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celar, industrial, desde meados do século XVIII, em proporção direta a desvalorização do mundo
acarretando profundas repercussões na subjetivi- dos homens (Menschenwelt). O trabalho não pro-
duz somente mercadorias; ele produz a si mes-
dade do trabalho. mo e ao trabalhador como uma mercadoria, e
Devemos a Marx a mais decisiva reflexão
te, que aqui caminha em confluência com nossa opção.
acerca do complexo social da alienação (e, em par- Em suas palavras: quando a “ênfase recai sobre a
ticular, do estranhamento):1 a sociabilidade do ca- ‘externalização’ ou ‘objetivação’, Marx usa o termo
Entäusserung (ou termos como Vergegenständlichung
[objetivação]), ao passo que Entfremdung é usado quan-
do a intenção do autor é ressaltar o fato de que o homem
* Doutor em Sociologia pela USP. Professor Titular de está encontrando oposição por parte de um poder hos-
Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas til, criado por ele mesmo, de modo que ele frustra seu
da UNICAMP. Pesquisador do CNPq. próprio propósito” (Meszáros, 2006, p.20). Neste texto,
Caixa Postal 6110 - IFCH-UNICAMP. Barão Geraldo. Cep: optamos traduzir por estranhamento o termo
13083-970 - Campinas, SP - Brasil - Caixa-Postal: 6110. Entfremdung, dada a utilização, por Marx, acentuando
rantunes@unicamp.br a dimensão de negatividade. E alienação para o termo
1
Sobre as similitudes e diferenças entre Entäusserung e Entäusserung, que pode significar também exteriorização
Entfremdung em Marx, ver os excelentes estudos (ain- – e, como tal, parte constitutiva da atividade humana,
da que com abordagens relativamente diferenciadas) de diverso do estranhamento que é sempre claramente
Mészáros (2006) e de Ranieri (2001). Mészáros utiliza o marcado pela negatividade, dada pela vigência do traba-
conceito de alienação, e não o estranhamento, como lho abstrato e assalariado sob o capitalismo. Em nosso
eixo analítico central. Mas faz, em seu livro, uma nota trabalhos anteriores, pudemos discorrer mais detidamen-
de rodapé onde apresenta uma diferenciação importan- te nesta dilemática (Antunes, 2010, 2010a).

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OS EXERCÍCIOS DA SUBJETIVIDADE ...

isto na medida em que produz, de fato, mercado- so o trabalho, mais impotente o trabalhador se
rias em geral (Marx, 2004, p.80). torna; quanto mais rico de espírito o trabalho,
mais pobre de espírito e servo da natureza se
torna o trabalhador (p.82) .
Isto porque, o objeto que o trabalho pro-
duz, o seu produto, acrescenta Marx,
Aqui está, então, a primeira manifestação do
estranhamento em relação à própria natureza hu-
... se lhe defronta como um ser estranho, como
um poder independente do produtor. O produto mana. E esse primeiro momento, mais visível em
do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, seu ser fenomenológico, encobre sua segunda ma-
fez-se coisal (sachlich), é a objetivação
(Vergegenständlichung) do trabalho. A efetivação nifestação: o trabalho também não se reconhece em
(Verwirklichung) do trabalho é a sua objetivação. sua própria atividade produtiva. Trata-se de um tra-
Esta efetivação do trabalho aparece ao estado
balho que, em sua atividade de criação, expressa
nacional-econômico como desefetivação
(Entwirklichung) do trabalhador, a objetivação um momento de desefetivação, interiorizando o
como perda do objeto e servidão ao objeto, a apro- fetichismo da sociedade da mercadoria presente
priação como estranhamento (Entfremdung),
como alienação (Entäusserung) (2004, p.80) . no próprio processo de trabalho.
Ou seja, a exteriorização do trabalhador sob
A efetivação do trabalho, portanto, é sua a modalidade do estranhamento apresenta-se ini-
própria situação de desefetivação (p.80), o que sig- cialmente em “sua relação com os produtos do seu
nifica dizer que se trata de uma efetividade que se trabalho”. Mas, acrescenta Marx, o estranhamento
configura como perda, que o trabalhador se do trabalho não se expressa somente no resultado
desrealiza, se desefetiva e se estranha no processo do processo produtivo, mas no próprio ato da pro-
de trabalho. Conforme as palavras de Marx: dução, na atividade produtiva em si mesma.
A pergunta de Marx é clara: como poderia o
A objetivação tanto aparece como perda do obje- trabalhador se encontrar
to que o trabalhador é despojado dos objetos mais
necessários não somente à vida, mas também
dos objetos do trabalho. Sim, o trabalho mesmo ... alheio (fremd) ao produto da sua atividade se
se torna um objeto, do qual o trabalhador só pode no ato mesmo da produção ele não se estranhas-
se apossar com os maiores esforços e com as mais se a si mesmo? O produto é, sim, somente o resu-
extraordinárias interrupções. A apropriação do mo (Resumé) da atividade, da produção. Se, por-
objeto tanto aparece como estranhamento tanto, o produto do trabalho é a exteriorização,
(Entfremdung) que, quanto mais objetos o traba- então a produção mesma tem de ser a
lhador produz, tanto menos pode possuir e tanto exteriorização ativa, a exteriorização da ativida-
mais fica sob o domínio do seu produto, do capi- de, a atividade da exteriorização. No
tal (p.80-81). estranhamento do objeto do trabalho resume-se
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somente o estranhamento, a exteriorização na


atividade do trabalho mesmo (p.82).
Seu estranhamento, portanto, se efetiva sem-
pre pela dimensão de negatividade, sentimento de Essa processualidade faz aflorar seu tercei-
perda e desefetivação, presente no processo de ro momento, no qual o ser social que trabalha – e
produção capitalista, uma vez que o produto gera- que deveria estar realizando uma atividade vital –
do pelo trabalho não pertence ao seu criador. se desrealiza e não se reconhece em sua relação
O estranhamento do trabalhador em seu entre “vida do gênero” e “vida individual”, o que
objeto se expressa, segundo a economia política, leva à quarta dimensão do complexo social do
na medida em que estranhamento: o ser se estranha em relação ao
próprio ser, ele se separa de seu ser genérico (p.85).2
... quanto mais o trabalhador produz, menos tem
para consumir; que quanto mais valores cria, mais 2
“O trabalho estranhado faz, por conseguinte: 1) do ser
sem-valor e indigno ele se torna; quanto melhor genérico do homem, tanto da natureza quanto da facul-
formado o seu produto, tanto mais deformado dade genérica espiritual dele, um ser estranho a ele, um
meio da sua existência individual. Estranha do homem
ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais o seu próprio corpo, assim como a natureza fora dele, tal
bárbaro o trabalhador; que quanto mais podero- como a sua essência espiritual, a sua essência humana;

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Esses quatro momentos, intrinsecamente trabalho de auto-sacrifício, de mortificação” (p.83).


articulados e constitutivos do processo de Assim, a externalidade do trabalho aparece
estranhamento em Marx, foram aqui muito sinteti- para o trabalhador não como resultado de seu tra-
camente apresentados a partir dos Manuscritos balho, mas de um outro, visto que tanto o produto
Econômico-Filosóficos e do excepcional capítulo I como seu próprio trabalho não lhe pertencem, mas
de O Capital (particularmente no item que trata do sim a um outro. E, então, Marx procura um símile
fetichismo da mercadoria), uma vez que, nesse na religião:
estudo de mais de duas décadas depois, Marx re-
toma e explora analiticamente o problema da ... a auto-atividade da fantasia humana, do cére-
bro e do coração humanos atua independente-
reificação e da coisificação com ainda maior mente do indivíduo e sobre ele, isto é, como uma
adensamento ontológico, dada a concretude do atividade estranha, divina ou diabólica, assim
também a atividade do trabalhador não é a sua
mundo fabril e da economia política que analisou
auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de
detalhadamente. si mesmo (p.83).
Está nos Manuscritos de 1844 a primeira
reflexão marxiana articulando reflexão filosófica Sua conclusão é, uma vez mais, arguta e
com elementos (ainda que embrionários) da eco- caustica: o trabalhador só se sente como ser livre e
nomia política. Ele apresenta essa síntese forte, que ativo em suas funções animais, tais como comer,
uma vez mais preferimos citar: beber e procriar, e, quando exerce suas funções
humanas, se sente como os animais. O animal se
Em que consiste, então, a exteriorização torna humano e o humano, animal.
(Entäusserung) do trabalho?
Primeiro, que o trabalho é externo (äusserlich) Mas, como Marx sabe que esse terreno é
ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, gelatinoso, acrescenta imediatamente:
que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho,
mas nega-se nele, que não se sente bem, mas
infeliz, que não desenvolve nenhuma energia fí- ... comer, beber e procriar etc. são também fun-
sica e espiritual livre, mas mortifica sua physis e ções genuinamente humanas e sociais. Porém, na
arruína o seu espírito. abstração que as separa das demais esferas da ati-
Do que se depreende que “o trabalhador só se vidade humana, ao convertê-las em finalidades
sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto últimas e exclusivas, age como os animais (p.83).
a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quan-
do] no trabalho. Está em casa quando não traba- Anteriormente, em seus “Extratos de Leitu-
lha e, quando trabalha, não está em casa. O seu
trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, ra sobre J. Mill”, nos estudos que antecederam a
trabalho obrigatório.” realização dos Manuscritos de 1844, Marx formu-

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Ao contrário de efetivar-se como exercício de
lou (provavelmente) pela primeira vez de modo
uma atividade vital, a satisfação de uma carên-
cia, ele se converte em apenas um meio para sa- mais articulado sua concepção de alienação e
tisfazer carências fora dele. Sua condição de estranhamento:
estranhamento é tão evidente que, “tão logo
inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se
do trabalho como de uma peste”, na célebre for- Meu trabalho seria livre projeção exterior de
mulação marxiana (p.82-83). minha vida, portanto desfrute de vida. Sob o pres-
suposto da propriedade privada (em troca) é
estranhamento de minha vida, posto que traba-
Seu trabalho externo, sua forma de lho para viver, para conseguir os meios de vida.
exteriorização assume, então, a conformação de “um Meu trabalho não é vida. [...] Uma vez pressupos-
ta a propriedade privada, minha individualida-
de se torna estranhada a tal ponto, que esta ativi-
2) uma consequência imediata disto, do homem estar dade se torna odiosa, um suplício e, mais que
estranhado do produto do seu trabalho, de sua atividade
vital e de seu ser genérico é o estranhamento do homem atividade, aparência dela; por consequência, é
pelo [próprio] homem. Quando o homem está frente a também uma atividade puramente imposta e o
si mesmo, defronta-se com ele o outro homem. O que é único que me obriga a realizá-la é uma necessi-
produto da relação do homem com o seu trabalho, pro- dade extrínseca e acidental, não a necessidade
duto de seu trabalho e consigo mesmo, vale como rela-
ção do homem com outro homem, como o trabalho e o interna e necessária (Marx, 1978, p.293, 299).

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OS EXERCÍCIOS DA SUBJETIVIDADE ...

Desse modo, o estranhamento é a realização portanto, de uma relação reificada e coisificada entre
uma relação social fundada na “abstração da natu- os seres sociais.
reza específica, pessoal” do ser social que “atua Não parece crível que esse cenário tenha
como homem que se perdeu a si mesmo, des- desaparecido da nossa história recente, uma vez
umanizado” (p.278). que, em seus traços essenciais, esse trabalho assa-
Essa reflexão acabou por receber, em sua obra lariado, abstrato e fetichizado adentrou os séculos
de maturidade maior, O Capital, um adensamento XIX e XX.
imprescindível para se compreender o fenômeno E foi nesse último século que vivenciamos
social da alienação e do estranhamento, ao discor- a consagração da sociedade do trabalho abstrato e
rer sobre o fetichismo da mercadoria vigente no ca- assalariado. Com o taylorismo-fordismo, a conti-
pitalismo, em que as relações sociais estabelecidas nuidade avançada da maquinaria e da grande in-
entre os produtores acabam por assumir a forma de dústria analisadas por Marx, consolidou-se a cha-
relação entre os produtos do trabalho. A relação mada sociedade do automóvel, que se espalhou
social estabelecida entre os seres sociais adquire, pelo mundo.
por força do sistema de metabolismo social existen-
te, a forma de uma relação entre coisas. ***
E aqui aflora o problema crucial do fetichismo:
Como sabemos, Taylor, o mestre da enge-
A igualdade dos trabalhos humanos assume a nharia científica do capital, propugnava que os tra-
forma material da igual objetividade de valor dos
produtos de trabalho; a medida do dispêndio de balhadores deveriam ser controlados rigidamente
forças de trabalho do homem, por meio de sua pelos tempos e movimentos, sob comando de uma
duração, assume a forma da grandeza de valor
camada de gestores, administradores e engenhei-
dos produtos de trabalho; finalmente, as relações
entre os produtores, em que aquelas caracterís- ros que elaboravam e concebiam a produção que,
ticas sociais de seus trabalhos são ativadas, assu- por sua vez, seria executada pela classe dos traba-
mem a forma de uma relação social entre os pro-
dutos de trabalho (Marx, 1971, p.71). lhadores manuais. E esse é o cerne da teoria
tayloriana do trabalho: os engenheiros concebem
Dada a prevalência do trabalho abstrato em e os trabalhadores manuais – que certa vez Taylor
relação ao trabalho concreto, tem-se, então, o denominou como “gorilas amestrados” – execu-
afloramento do caráter misterioso ou fetichizado tam. Concepção e manualidade, elaboração e exe-
da mercadoria, que encobre as dimensões sociais cução, aprofundando, desde o espaço
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do próprio trabalho, mostrando-as como inerentes microcósmico da produção, a divisão social do tra-
aos produtos do trabalho. balho.
Ao mascarar as relações sociais existentes E Ford aplicou a engenharia de Taylor em
entre os trabalhos individuais e o trabalho total, o sua produção seriada e homogeneizadora, de modo
sistema de metabolismo social do capital apresen- a aumentar as economias de escala e,
ta-as “naturalmente” como sendo expressão de re- consequentemente, os lucros oriundos da produ-
lações entre objetos coisificados, o que leva Marx a ção automotiva, consolidando a sociedade de massa
afirmar que “não é mais nada que determinada re- do século XX.
lação social entre os próprios homens que para Tratou-se, então, como já pude dizer anteri-
eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma ormente,3 de um casamento que deu certo: Taylor
relação entre coisas” (1971, p.71). e Ford, o engenheiro científico e o fabricante de
Na vigência da lei do valor de troca, o vin- automóveis. Eles foram responsáveis pela amplia-
culo social entre as pessoas se transforma em uma ção e generalização das formas de estranhamento e
relação social entre coisas: a capacidade pessoal 3
Antunes, 2009, p.223, no qual retomo várias ideias nes-
transfigura-se em capacidade das coisas. Trata-se, te texto.

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Ricardo Antunes

reificação que marcaram fundo o exercício da sub- de continuidade do que de descontinuidade em


jetividade do trabalho no espaço produtivo, inici- relação às engrenagens propulsoras da grande in-
almente fabril e depois para a totalidade dos espa- dústria do século XIX. E acrescentava que a fábri-
ços geradores de valor. ca moderna de massa só poderia funcionar com
Entretanto, uma análise mais cuidadosa acerca um exército de feitores controlando o trabalho,
do trabalho tayloriano-fordista pode apresentar cer- exercitando uma modalidade de despotismo fabril.
tas nuances: se ele era predominantemente maqui- Em História e Consciência de Classe, no
nal, parcelar, especializado, fragmentado e prescri- ensaio A Coisificação e a Consciência do Proletari-
to, contraditoriamente, ele assumia uma versão mais ado, Lukács demonstrou como a fragmentação
contratualista, relativamente regularizada e provi- tayloriana do trabalho penetrava até a “alma do
da de direitos, resultado de lutas históricas da clas- trabalhador”, alicerçando os fundamentos da
se trabalhadora ao longo de vários séculos. Era, coisificação, numa complexa articulação entre
portanto, uma variante de trabalho fetichizado, mas materialidade e subjetividade operária. E Gramsci,
regulamentado. Ou seja: no que concerne à sua em seu ensaio Americanismo e Fordismo, explo-
materialidade, à forma de (des)efetivação do traba- rou a ideia do homem integral para o capital, onde
lho, sua conformação fragmentada, sua separação em até o controle da sexualidade era concebido, de
relação ao produto do seu próprio trabalho, bem como modo a canalizar a virilidade masculina na produ-
as diversas manifestações de estranhamento, que ção maquínica.
indicamos na primeira parte deste texto, acabavam Tempos Modernos de Chaplin é, no universo
por acarretar uma forte repercussão em sua subjetivi- fílmico, a mais genial fotografia dessa engrenagem
dade, que se configurava como crescentemente que floresce no chão de fábrica desumanizada. A
coisificada e reificada. Classe Operária vai ao Paraíso, de Elio Petri, ainda
Mas, numa processualidade aparentemente que sem o mesmo estatuto de classicidade do filme
contraditória, esse mesmo trabalho de base anterior, retrata, de modo forte, o universo fabril
tayloriano-fordista era dotado de maior regulação, tayloriano-fordista e suas repercussões na subjeti-
contratualidade e seguridade, resultantes, nunca é vidade dos trabalhadores no contexto do “outono
demais reiterar, de suas lutas históricas pela regula- quente” das lutas operárias da Itália em 1969.
mentação do trabalho frente aos ditames do capital. O crescente processo de eliminação de tra-
As lutas pela regulamentação da jornada de traba- balho vivo pelo trabalho morto, de substituição de
lho, pelo direito de greve e organização sindical e trabalhadores por tecnologia maquínica, foi outro
política independentes e autônomas, pelo salário traço central na sujeição que a máquina-ferramen-
igual para trabalho igual entre homens e mulheres, ta – em verdade, a lógica movida pelo sistema do CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 121-131, 2011
são alguns dos inúmeros exemplos de luta do tra- capital – impôs ao trabalho, reduzindo e mesmo
balho pelos seus direitos frente ao capital. eliminando sua destreza oriunda da fase artesanal
Suas formas de reificação, entretanto, que e mesmo manufatureira, consolidando o processo
Lukács e Gramsci compreenderam tão vivamente, de desumanização do trabalho, ou, mais rigorosa-
reafirmavam, em seus traços essenciais, a aliena- mente, a “desantropomorfização do trabalho”, para
ção estranhada, tal qual fora apresentada por Marx, usar uma formulação do Lukács presente em sua
já em meados do século XIX, agora ampliada, uma obra de maturidade, Ontologia do Ser Social.
vez que a própria sociedade assumia a expressão E foi desse modo que, ao longo do século
prolongada do microcosmo fabril. XX, a lógica maquínica da fábrica prolongou-se
Uma leitura atenta dos capítulos de O Capi- amplamente para o conjunto da sociedade, levan-
tal, no qual Marx discorre analiticamente sobre a do sua engenharia produtiva para quase todas as
maquinaria e a grande indústria, poderá constatar partes do mundo urbano, industrial e de serviços.
que o taylorismo e o fordismo têm mais elementos Mas, a crise estrutural que se abateu nas
economias capitalistas centrais a partir dos inícios

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OS EXERCÍCIOS DA SUBJETIVIDADE ...

dos anos 1970 levou, dentre tantas metamorfoses e diretamente incorporadas ao trabalhador produti-
mutações, a uma monumental reestruturação capi- vo. Desse modo, reengenharia, lean production,
talista de amplitude global, com profundas mudan- team work, eliminação de postos de trabalho, au-
ças no processo de produção e do trabalho. Germi- mento da produtividade, qualidade total, “metas”,
nou a denominada “empresa enxuta, flexível”, com “competências”, “parceiros”e “colaboradores”, são
seu receituário que, se não altera a forma de ser do partes constitutivas do ideário e da pragmática co-
capital, modifica, em muitos aspectos, as engrena- tidiana da “empresa moderna”.
gens e os mecanismos da acumulação, com fortes Se, no apogeu do taylorismo-fordismo, a
consequências na subjetividade do ser social que pujança de uma empresa estava representada pelo
trabalha, adicionando novos elementos ao fenôme- número de trabalhadores que nela atuavam, de
no social da alienação e do estranhamento, através modo contrário, pode-se afirmar que a empresa que
da identificação das personificações do trabalho tipifica a fase da flexibilidade liofilizada é aquela
como personificações do capital. É por isso que, que aglutina o menor contingente de trabalho vivo
hoje, nenhuma fábrica ou empresa usa, em sua ter- e concentra o maior volume de trabalho morto,
minologia gerencial, as denominações operários, tra- corporificado no maquinário informacional-digital,
balhadores, mas recorre à apologética presente na o que lhe gera – potencialmente – maiores índices
ideologia dos “colaboradores”, “parceiros”, “con- de produtividade e de lucratividade na concorrên-
sultores” ou denominações assemelhadas. cia inter-empresas.
Em seus traços mais gerais, é possível dizer Essas metamorfoses no processo de produ-
que a empresa da era da flexibilidade liofilizada ção tiveram – e ainda têm – consequências signifi-
articula um conjunto de elementos de continuida- cativas no universo do trabalho: desregulamentação
de e de descontinuidade em relação ao empreendi- dos direitos sociais; precarização e terceirização da
mento tayloriano e ou fordista. Ele se estrutura força humana que trabalha, aumento da fragmen-
com base em uma organização do trabalho que re- tação e heterogeneização no interior da classe tra-
sulta da introdução de técnicas de gestão da força balhadora; enfraquecimento do sindicalismo de
de trabalho próprias da fase informacional; desen- classe e incentivo à sua conversão em um
volve uma estrutura produtiva mais flexível, re- sindicalismo mais negocial e de parceria, mais de
correndo frequentemente à deslocalização produ- cúpula e menos de base, mais parceiro e colabora-
tiva, à terceirização (dentro e fora das empresas); dor e menos confrontacionista.
utiliza-se do trabalho em equipe, das “células de A racionalização do processo produtivo, o
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produção”, dos “times de trabalho”, além de in- forte disciplinamento da força de trabalho, a implan-
centivar, de todos os modos, o “envolvimento tação de novos mecanismos de capital e de traba-
participativo”, uma participação que preserva, em lho intensivo, e o envolvimento mais ativo do inte-
seus traços essenciais, os condicionantes anterior- lecto no trabalho tornaram-se práticas recorrentes
mente apresentados (Antunes, 2010). no processo de liofilização organizacional, um pro-
Conforma-se, então, uma nova forma de or- cesso no qual as substâncias vivas são eliminadas,
ganização e controle do trabalho cuja finalidade onde o trabalho vivo é substituído pelo trabalho
central é, de fato, a intensificação do processo morto, pelo maquinaria tecno-informacional-digital
laborativo, com ênfase também no envolvimento que hoje tipifica o processo de “enxugamento” das
qualitativo dos trabalhadores e trabalhadoras, em empresas (Antunes, 2010a).
sua dimensão cognitiva, procurando reduzir ou O trabalho em equipe, a transferência das
mesmo eliminar os espaços de trabalho improdu- responsabilidades de elaboração, anteriormente re-
tivo, que não criam valor, especialmente nas ativi- alizadas pela gerência científica e agora interiorizadas
dades de manutenção, acompanhamento, inspe- na própria ação dos trabalhadores – um dos traços
ção de qualidade, etc., funções que passaram a ser do management by streess – são outras marcas for-

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Ricardo Antunes

tes presentes nessa processualidade. trário do taylorismo-fordismo, que exarava um certo


Preserva-se um número mais reduzido de tra- desprezo ao saber operário, a pragmática toyotista
balhadores dentro das empresas matrizes, mais qua- utiliza-se do saber operário, do intelecto do traba-
lificados, multifuncionais e envolvidos com o seu lho, para agregar e ou potencializar mais valor à
ideário dos “colaboradores”, amplia-se o universo produção, seja ela prevalentemente material ou
dos terceirizados e temporários no interior (e fora) imaterial. Os chamados círculos de controle de
das empresas, ampliando-se o fosso entre a classe qualidade ou o incentivo que as empresas fazem
trabalhadora. De um lado, em escala minoritária, o para ouvir as sugestões dos trabalhadores e das
trabalhador “polivalente e multifuncional” da era trabalhadoras são exemplares.
informacional-digital, capaz de exercitar com mais Contemplando traços de continuidade em
intensidade sua dimensão mais intelectual. De relação ao fordismo vigente ao longo do século XX,
outro lado, uma massa de trabalhadores mas seguindo um receituário com claros elemen-
precarizados, terceirizados, flexibilizados, tos de diferenciação, a empresa da flexibilidade
informalizados, cada vez mais próximos do de- liofilizada acabou por engendrar novos e mais
semprego estrutural. A expansão do trabalho part complexificados mecanismos de interiorização, de
time, as formas como o capital se utiliza da divisão personificação do trabalho, sob o “envolvimento
sexual do trabalho, a ampliação do trabalho dos incitado” do capital, incentivando o exercício de
imigrantes, frequentemente ilegais, são outras mar- uma subjetividade marcada pela inautenticidade,
cas dessa processualidade potencialmente estra- isto é, aquela que ocorre quando o incentivo para
nhada e reificada. o exercício da subjetividade do trabalho é sempre
Em síntese: a fábrica tayloriano-fordista foi conformada pelos interesses das empresas, não
bastante alterada em seu desenho espacial, tempo- comportando nenhum traço que confronte com o
ral, em sua organização sócio-técnica, em seus ideário do lucro e do aumento da produtividade.
mecanismos de controle do trabalho. Basta menci- O exercício da subjetividade empresarial não com-
onar suas manifestações mais fenomênicas: as di- porta, por exemplo, a propositura de uma greve
visórias desapareceram, o trabalho é organizado para melhorar as condições de trabalho. Ao con-
em células, combinando multifuncionalidade, trário, trata-se de um exercício de um subjetivismo
polivalência, competição, metas, competências, anticoletivo, antissindical e intensamente empre-
assumindo uma aparência mais “participativa”, sarial. Ao contrário, o exercício da subjetividade
mais envolvente e menos despótica, quando com- autêntica dá-se quando não há constrangimentos
parada à da fábrica taylorista. que “obrigam” o “envolvimento incitado”, a reali-
Em contrapartida, entretanto, o trabalho tor- zação de práticas empresariais que objetivam me- CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 121-131, 2011
nou-se mais desregulamentado, mais informalizado, lhorar a “integração” entre trabalhadores e empre-
mais intensificado, gerando uma dessociabilidade sas. Por isso, o exercício da subjetividade autênti-
destrutiva no espaço de trabalho que procura ca expressa formas de autonomia, enquanto as
dilapidar todos os laços de solidariedade e de ação formas de subjetividade inautêntica são próprias
coletiva, individualizando as relações de trabalho em da heteronomia.
todos os espaços onde essa pragmática for possível. O estranhamento torna-se, então, aparente-
Desse modo, para responder à crise de ge- mente menos despótico, mas intensamente mais
ração de valor, os capitais, através das práticas interiorizado. Como procurei sintetizar em Os Sen-
toyotistas e da empresa da flexibilidade liofilizada, tidos do Trabalho:
foram muito além do taylorismo, em busca do que
Taiichi Ohno (engenheiro fundador da Toyota) Ainda que fenomenicamente minimizado pela
redução da separação entre a elaboração e a exe-
considerava vital, ou seja, da expropriação do in- cução, pela redução dos níveis hierárquicos no
telecto do trabalho. Isso significa dizer que, ao con- interior das empresas, a subjetividade que emer-

127
OS EXERCÍCIOS DA SUBJETIVIDADE ...

ge na fábrica ou nas esferas produtivas contem- expropriou e transferiu para a esfera da gerência
porâneas é expressão de uma existência
inautêntica e estranhada. Contando com maior científica, para os níveis de elaboração, conforme
“participação” nos projetos que nascem das dis- nos referimos anteriormente, a nova fase do capi-
cussões dos círculos de controle de qualidade,
tal, da qual o toyotismo é a melhor expressão, re-
com maior “envolvimento” dos trabalhares, a
subjetividade que então se manifesta encontra- transfere o savoir faire para o trabalho, mas o faz
se estranhada em relação ao que se produz e apropriando-se crescentemente da sua dimensão
para quem se produz” (Antunes, 2010a, p.130) .
intelectual, das suas capacidades cognitivas, pro-
E acrescentei: curando envolver mais forte e intensamente a sub-
jetividade operária.
Os benefícios aparentemente obtidos pelos tra- Mas o processo não se restringe a essa di-
balhadores no processo de trabalho são largamen-
mensão, uma vez que parte do saber intelectual é
te compensados pelo capital, uma vez que a ne-
cessidade de pensar, agir e propor dos trabalha- transferido para as máquinas informatizadas, que
dores deve levar sempre em conta se tornam mais inteligentes, reproduzindo parte das
prioritariamente os objetivos intrínsecos da em-
presa, que aparecem muitas vezes mascarados atividades a elas transferidas pelo saber intelectual
pela necessidade de atender aos desejos do mer- do trabalho.
cado consumidor. [...] Mais complexificada, a
Como a máquina não pode suprimir o tra-
aparência de maior liberdade no espaço produ-
tivo tem como contrapartida o fato de que as per- balho humano, ela necessita de uma maior
sonificações do trabalho devem se converter ain- interação entre a subjetividade que trabalha e a
da mais em personificações do capital. Se assim
não o fizerem, se não demostrarem estas “apti- nova máquina inteligente. E, nesse processo, o
dões”, (“vontade”, “disposição” e “desejo”), são envolvimento interativo maquínico pode aumen-
substituídos por outros trabalhadores ou traba-
tar ainda mais o estranhamento do trabalho, am-
lhadoras que demonstrem “perfil” e “atributos”
para aceitar estes “novos desafios” (p.130). pliando as formas modernas da reificação, distan-
ciando ainda mais a subjetividade do exercício de
E, nesse processo de envolvimento uma cotidianidade autêntica e autodeterminada.
interativo, ampliam-se e complexificam-se as for- E mais: se o estranhamento permanece e
mas da reificação, distanciando a subjetividade mesmo se complexifica nas atividades de ponta
que trabalha do exercício de uma atividade autên- do ciclo produtivo, naquela parcela aparentemen-
tica e autodeterminada. A aparência de um des- te mais “estável” e inserida da força de trabalho
potismo mais ameno, plasmado pela sociedade que exerce o trabalho intelectual abstrato, o cená-
produtora de mercadorias desde o seu nível mais rio é ainda mais intenso nos estratos precarizados
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 121-131, 2011

microcósmico, tende a aprofundar e interiorizar da força humana de trabalho, que vivenciam as


ainda mais a condição do estranhamento. condições mais desprovidas de direitos e em con-
Desse modo, a alienação ou, mais precisa- dições de instabilidade cotidiana, dada pelo traba-
mente, o estranhamento (Entfremdung) do trabalho lho part-time temporário, precarizado, para não falar
encontra-se, em sua essência, preservado, ainda que nos crescentes contingentes que vivenciam o de-
dotado de novas engrenagens e mecanismos de semprego estrutural. Sob a incerteza e a superflui-
funcionamento. Fenomenicamente minimizado pela dade dadas pela condição da precarização ou de
redução da separação entre a elaboração e a execu- risco do desemprego, o estranhamento pode assu-
ção, pela redução dos níveis hierárquicos no interi- mir formas ainda mais intensificadas e mesmo
or das empresas, a subjetividade que emerge na fá- brutalizadas, pautadas pela perda (quase) comple-
brica ou nas esferas produtivas mais avançadas e ta da dimensão de humanidade (Antunes, 2010).
de ponta parece assumir o exercício de uma subjeti- Nos segmentos mais intelectualizados da
vidade inautêntica e estranhada, para recorrer à for- classe trabalhadora, que realizam atividades pró-
mulação de N. Tertulian (1993). prias do que hoje se denomina como trabalhos
Além do saber operário, que o fordismo vinculados às tecnologias de informação e comu-

128
Ricardo Antunes

nicação, à pesquisa e ao design, as formas de Lukács retoma, então, a formulação marxiana


reificação têm uma concretude particularizada, mais presente em o fetichismo da mercadoria, para avan-
complexificada (mais “humanizada” em sua essên- çar na caracterização dos suportes materiais da
cia desumanizadora), dada pelas novas formas de reificação em sua “espectral objetividade”. E, ao
“envolvimento” e interação entre trabalho vivo e discorrer sobre o caráter misterioso de mercadoria
maquinaria informatizada (2010). e seu símile na esfera da religião, acrescenta que é
Já nos estratos mais penalizados pela nesse momento que afloram as diferenciações exis-
precarização e pelo desemprego, a reificação é di- tentes entre as reificações inocentes e aquelas que
retamente mais desumanizada e brutalizada em estão sedimentados a partir da “espectral objetivi-
suas formas de vigência. O que apresenta um qua- dade” do mundo da mercadoria (1981, p.644).
dro contemporâneo pautado pelos estranhamentos, Nicolas Tertulian explorou sugestivamente
reificações e alienações que parecem mais se am- as pistas de Lukács, presentes no último volume
pliar do que se reduzir; diferenciados quanto à de sua Ontologia, que acabamos de indicar. E ofe-
sua incidência, mas vigentes como manifestação rece também uma sugestiva interpretação: segun-
que atinge a totalidade do trabalho social (2010). do ele, as reificações inocentes ocorrem quando
Foi perseguindo essas diferenciações exis- há a condensação das atividades em um objeto, em
tentes no complexo social do estranhamento que a uma coisa, propiciando a “coisificação” das ener-
obra de maturidade de Lukács ofereceu uma dife- gias humanas, que funcionam como reflexos con-
renciação rica, pouco explorada, entre as reificações dicionados e que acabam por levar às reificações
inocentes e as reificações estranhadas (ou inocentes. Nesse caso, a subjetividade é reabsorvida
alienantes). no funcionamento do objeto, sem efetivar-se uma
Em suas palavras: é na ontologia da vida “alienação” propriamente dita (Tertulian, 1993,
cotidiana que florescem as reificações que propici- p.441). As reificações estranhas, que configuram o
am os estranhamentos: que Tertulian traduz como reificações alienantes,
manifestam-se nas atividades onde a subjetividade
... de um lado, os comportamentos sociais em si
‘inocentes’ do ponto de vista do estranhamento, ... é transformada em um objeto, em um “sujeito-
quando atingem em profundidade a vida cotidi- objeto”, que funciona para a auto-afirmação e a
ana, reforçam a eficácia daqueles outros com- reprodução de uma força estranhada. O indiví-
portamentos que já operam nessa direção; de duo que chega a auto-alienar suas possibilidades
outro lado, os indivíduos são tanto mais facil- mais próprias, vendendo, por exemplo, sua força
mente envolvidos, pelos impulsos ao de trabalho sob condições que lhe são impostas,
estranhamento [...], quanto mais as suas relações ou aquele que, em outro plano, sacrifica-se ao
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 121-131, 2011
vitais são por eles percebidas em termos abstra- ‘consumo de prestígio’, imposto pela lei de mer-
tos, reificados e não de modo espontaneamente cado (p.441).
processual (Lukács, 1981, p.643).

Ou seja, enquanto as reificações inocentes


E acrescenta Lukács:
ainda não se encontram moldadas pela forma-mer-
De fato, quanto mais a vida cotidiana dos homens cadoria em sua plena vigência, as reificações
[...] cria formas e situações de vida reificantes, com alienantes são típicas expressões do fetichismo da
maior facilidade o homem cotidiano se adapta a mercadoria. Claro, portanto, que aqui a recorrência
elas entendendo-as, sem nenhuma resistência in-
telectual e moral, como ‘dados de natureza’, pelos a Lukács e à sua distinção acima indicada não têm
quais em média – por não serem inelutáveis em a pretensão (o que seria um grave equívoco) de
princípio – pode haver uma menor resistência
frente às autênticas reificações estranhadas. Aqui
transplantá-la para o capitalismo de nossos dias,
se habitua a determinada dependência reificada mas tão somente indicar que há um fértil terreno
e isso propicia – repitamos: como possibilidade e analítico que pode e deve ser explorado para que
não de modo socialmente necessário – uma adap-
tação geral também nos confrontos de dependên- haja uma melhor compreensão dos fenômenos atu-
cias estranhadas (p.643) . ais da alienação e dos estranhamentos.

129
OS EXERCÍCIOS DA SUBJETIVIDADE ...

in a real world). Nova Iorque/Londres: Monthly Review


À GUISA DE CONCLUSÃO Press/The Merlin Press, 2003.
LUKÁCS, Gyorg Ontologia dell’essere sociale, II Roma:
Se, na empresa tayloriano-fordista, o despo- Ed. Riuniti, 1981. v.1.

tismo é mais explícito em sua conformação, e o _______. Ontologia dell’essere sociale. II Roma: Ed. Riuniti,
1981 v.2.
estranhamento ou o modo de ser da coisificação
MARX, Karl. O capital I. Rio de Janeiro: Ed. Civilização
acaba sendo mais “direto”, na fábrica da flexibili- Brasileira, 1971. v.1.
dade liofilizada, diferentemente, as novas técnicas _______. Extractos de lectura - James Mill. In: _______.
Obras de Marx y Engels, OME 5: manuscritos de Paris y
de “gestão de pessoas”, as “colaborações” e as par- anuários franco-alemanes 1844, Barcelona: Grijalbo, 1978
cerias” procuram “envolver” as personificações do _______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:
Boitempo, 2004.
trabalho de modo mais interiorizado, procurando
MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São
convertê-los “voluntariamente” em uma espécie de Paulo: Boitempo, 2006.
autocontroladores de sua produção, em déspotas RANIERI, Jesus. A câmara escura: alienação e
estranhamento em Marx. São Paulo: Boitempo, 2001.
de si mesmos.
TERTULIAN, Nicolas. Le concept d’aliénation chez
A compreensão, portanto, desses novos Heidegger et Lukács. Archives de Philosophie- Reserches et
mecanismos e dessas novas engenharias da sujei- Documentation. Paris, n.56, jul./set., 1993.

ção nos leva a perceber formas e modalidades mais


interiorizadas e complexificadas de alienação e de
estranhamento, das quais as flexibilizações, os gan-
hos por produtividade e lucratividade (a partici-
pação nos lucros e resultados) e os envolvimentos
são elementos cada vez mais presentes. E, nas di-
ferenciações e complexificações existentes dentro
dos processos de alienação e estranhamento pre-
sentes no capitalismo contemporâneo, um bom
começo pode ser partir das indicações finas e ins-
piradas que encontramos na analítica de Lukács
para mergulhar mais profundamente no mundo
do capital de nossos dias, de seus estranhamentos
e de suas alienações.
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 121-131, 2011

(Recebido para publicação em 23 de janeiro de 2011)


(Aceito em 19 de abril de 2011)

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho?15.ed. São Paulo:


Cortez, 2010.
_______. Os sentidos do trabalho. 12.ed. São Paulo:
Boitempo, 2010a.
_______. O mundo do trabalho em mutação: da pragmáti-
ca da especialização fragmentada à pragmática da
liofilização flexibilizada. In: SILVA, Maria Vieira;
CORBALÓN, Maria Alejandra (Org.) Dimensões políticas
da educação contemporânea. São Paulo: Alínea, 2009.
GRAMSCI, Antônio. Escritos políticos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004. v.1.
HUWS, Ursula The making of a cybertariat (virtual work

130
Ricardo Antunes

THE EXERCISE OF SUBJECTIVITY: the LES EXERCICES DE LA SUBJECTIVITÉ: les


innocent reifications and the estranged réifications innocentes et les réifications
reifications grotesques

Ricardo Antunes Ricardo Antunes

This text explores, analytically and Ce travail examine de manière analytique


empirically, the problem of alienation and (or) et empirique le problème de l’aliénation et (ou)
estrangement, seeking to help in the intellection of de l’étrangeté afin de contribuer à l’intellection
the socio-historical foundations that provide it to des bases socio-historiques qui permettent son
flourish within the modern capitalist enterprise. éclosion au sein de l’entreprise capitaliste
To do so it performs the following movements: moderne. Pour ce faire, on procède selon les
first, starting with Marx’s seminal theoretical mouvements suivants : partant des concepts
concepts, it attempts to indicate the different forms théoriques séminaux de Marx, on essaie tout
assumed by the alienaton and (or) estrangement d’abord de montrer les différentes formes
throughout the twentieth century and early twenty- assumées par l’aliénation et (ou) l’étrangeté, au
first century, exploring some of its main features. cours du XXe siècle et au début du XXIe siècle,
In its second motion, it outlines a phenomenology en approfondissant quelques-unes de ses
of subjectivity, exploring, as a hypothesis, the rich caractéristiques principales. Ensuite, on ébauche
analytical possibilities existing in Lukács’s mature une phénoménologie de la subjectivité, en
work, in particular his notions of innocent prenant comme hypothèse les riches possibilités
reification and stranged reification, fertile as clues d’analyses qui existent dans le travail mature de
to understand this social phenomenon in Lukács, en particulier dans ses notions de
capitalism today. réifications innocentes et de réifications
grotesques, considérées comme des pistes fertiles
pour la compréhension de ce phénomène social
dans le capitalisme d’aujourd’hui.

K EYWORDS : alienation and estrangement, MOTS-CLÉS: aliénation et étrangeté, capitalisme


capitalism and reification, Taylorism, Toyotism et réification, taylorisme, toyotisme et
and subjectivity. subjectivité.

CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 121-131, 2011

Ricardo Antunes - Doutor em Sociologia pela USP. Professor Titular de Sociologia no Instituto de Filoso-
fia e Ciências Humanas da UNICAMP. Pesquisador do CNPq. Coordena as Coleções Mundo do Trabalho
(Boitempo Editorial) e Trabalho e Emancipação, pela Editora Expressão Popular. Autor, entre outros, dos
livros: Adeus ao Trabalho? 14ª ed., (Ed. Cortez), publicado também em outros países; Os sentidos do
trabalho (Ed. Boitempo), 9ª edição, publicado em outros países; A desertificação neoliberal ( Ed. Autores
Associados. 2.ed.) e de artigos em revistas diversas, dentre as quais: Herramienta, Buenos Aires; Revista
Latinoamericana de Estudios Del Trabajo; Margem Esquerda; Cadernos IHU Ideas, Unisinos; Contre
Temps; Shiftwork International Newsletter; Política e Sociedade; Revista Crítica de Ciências Sociais;
Caderno CRH.

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