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Este trabalho estuda as

circunstâncias d o início da
construção da Estrada de Paulo Roberto
Ferro Noroeste d o Brasil,
e m 1904/1905, e da Cimo Queiroz
definição final de seu
traçado, entre 1906 e 1908.
Para tanto, examina as
transformações da
economia mato-grossense
após a abertura d o r i o
Paraguai à livre n a v e g a ç ã o
(1870) e, e m seguida, as
políticas territoriais
desenvolvidas p e l o Estado
brasileiro desde a
Independência, e m AS CURVAS D O TREM
particular n o que respeita a
Mato Grosso (inserindo
nesse exame a consideração
E OS MEANDROS D O PODER
das relações entre o Brasil e
seus vizinhos platinos). O NASCIMENTO DA ESTRADA
Analisa depois o contexto
d o início da construção, DE FERRO NOROESTE DO BRASIL
examinando os interesses
materiais envolvidos e m
(1904-1908)
construções ferroviárias e as
conveniências da política
interna e externa d o país na
é p o c a . Finalmente, estuda o
processo da mudança d o
p o n t o final da ferrovia, de
Cuiabá para Corumbá. C a m p o G r a n d e - MS
Conclui-se que a construção
1997
dessa ferrovia deveu-se,
antes de t u d o , a fatores que
pertencem ao domínio d o Paulo Roberto Cimo Queiroz
político e d o simbólico:
através d o mais m o d e r n o AS CURVAS DO TREM
m e i o de comunicação da
época, buscava-se E OS MEANDROS
principalmente garantir a DO PODER
estabilidade d o regime
vigente n o país, atenuando 0 NASCIMENTO DA

JBias
os riscos de confronto c o m ESTRADA DE FERRO EDITORA
n a ç õ e s vizinhas e NOROESTE DO BRASIL
preservando a integridade
d o território brasileiro. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
| EDITORA
1UFMS
s
Copyright 1997 - Paulo Roberto Cimó Queiroz

Projeto Gráfico e
Editoração Eletrônica
Editora UFMS

Ilustração de C a p a
Trem da Madrugada (Acrílico sobro teia • 1995)
Lello (Élios Longo de Oliveira)
Revisão
Paulo Roberto Cimó Queiroz

Direitos e x c l u s i v o s

á
para e s t a edição

EDITORA

UNIVERSIDADE FEDERAL
DE MA TO GROSSO DO SUL
Rua 9 de Julho, 1922
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ISBN: 85-85917-05-9
Depósito Legal na Biblioteca Nacional
I m p r e s s o no Brasil

A minha mãe,
Francisca Cimó Queiroz

À memória de meu pai,


Sebastião Luiz Queiroz Filho
Apresentação

onheci o Professor Paulo Cimó quando integrei Comissão do


MEC para avaliação e credenciamento do curso de Graduação de
História de Aquidauana.

Nessa ocasião impressionou-me, sobremaneira, o respeito que ele tinha por


parte de todos os seus colegas. Ele exercia verdadeira liderança, mercê de um
trabalho volumoso e competente.

Alguns anos depois, fui procurado pelo Cimó para fazer Pós-Graduação em
História naUNESP, Assis.

Conhecedor de sua capacidade de trabalho e do seu projeto sobre a Noroeste


do Brasil (NOB) aceitei-o como orientando no Mestrado. Posso afirmar, desde
logo, que foi um dos retornos académicos que tive, em minha vida
profissional, dos mais gratos.

O seu mestrado, ora publicado em livro, revela um pesquisador em História do


mais alto nível. E mais, ao contrário de muitos historiadores que fogem da
História, enfocando pequenas questões localizadas, sem desconhecer as
chamadas novas abordagens, enfrentou questões estruturais, envolvendo a
grande trama política nacional e internacional da época e os interesses do
capital em jogo. Dessa forma, analisa com propriedade, estilo fluente na
escrita e explorando bem as fontes primárias, que são também de qualidade,
toda a problemática atuante na construção da Estrada de Ferro Noroeste do
Brasil, entre 1904 e 1908.

Uma ferrovia importante deveria rasgar parte do Brasil criando condições de


riqueza e integridade do território nacional. De onde partir? Onde chegar?

7
Essa a problemática básica do presente trabalho. Existem várias
interpretações, algumas até clássicas. Estou certo de que o autor chega a
novos caminhos e novas definições.

O mestrado de Paulo Cimó vale por um doutorado, o que foi reconhecido, por
unanimidade, pela Banca examinadora. Creio que o leitor será recompensado
percorrendo "As curvas do trem e os meandros do poder".

José Ribeiro Júnior


Prof. Titular de História do Brasil
UNESP - Assis
Nota do Autor

E ste trabalho foi escrito originalmente como uma dissertação de


mestrado, apresentada em 1992 ao programa de
pós-graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras
de Assis (da UNESP). Para esta edição, abstive-me de efetuar
modificações de maior vulto no texto original, para não correr o risco de
acabar escrevendo outro trabalho. Desse modo, realizei apenas mudanças
superficiais, mais de forma que de conteúdo, buscando acima de tudo a
clareza e a objetividade do texto, com vistas a tornar sua leitura mais
agradável (se fui ou não bem sucedido nesse intento, é uma questão que
espero possa ser respondida pelos atentos leitores).

Entregar um texto a um público mais amplo constitui para mim uma


experiência nova e não deixa de causar certa apreensão.

Todavia, a satisfação é maior que os receios, e alegro-me com a


perspectiva de poder contribuir para o conhecimento e a discussão da
nossa história e ao mesmo tempo enriquecer-me com as críticas, reparos e
sugestões que — espero — o trabalho venha a merecer.

Gostaria de registrar que a elaboração desta pesquisa não teria sido


possível sem o apoio material e financeiro da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul e da CAPES/MEC. No que se refere ao apoio
intelectual e pessoal, a lista é bem mais extensa — e é sempre inevitável
que se deixem de fora alguns nomes. Aceitando o risco, registro aqui meus
profundos agradecimentos ao Prof. Dr. José Ribeiro Júnior, pela orientação
firme e amiga; aos examinadores da dissertação, tanto na defesa como no
exame de qualificação: Prof. Dr. Antonio Celso Ferreira e Prof. Leon Pomer

9
(UNESP) e Prof. Dr. Flávio Saes (USP), pelas inúmeras sugestões;
aos colegas docentes dos cursos de História de Aquidauana e de
Dourados, da UFMS, pelo estímulo e apoio; e a minha família, por tudo.

Dourados, fevereiro de 1997

Sumário

Introdução 16

Capítulo 1
UM "TENTÁCULO DO IMPERIALISMO"? 38
A economia mato-grossense, a Cia. de Estradas de
Ferro Noroeste do Brasil e os capitais estrangeiros 40
"A repetição da aventura congolesa":
o Estado brasileiro, o imperialismo
e os belgas em Mato Grosso 50
10
Os interesses materiais envolvidos
"Uma solução agradável ao Presidente
de Mato Grosso": a definição do ponto final

"Ultimar em breve prazo a construção":


a mudança do traçado (1906-1908)
"A Cia. está pronta a satisfazer esse desejo do
Capítulo 2 governo": o processo da mudança
"TUTELA DO POVO EM NOME DA INTEGRIDADE "Pensamos demais em guerras com os nossos
DO ESPAÇO": as políticas territoriais do Estado brasileiro 60 vizinhos": as razões da mudança
Em busca do "equilíbrio de poder": as relações
entre o Brasil e seus vizinhos platinos • 62
A "estratégia platina" do Império 62
O Brasil e o Prata no início da República 65
O Brasil e o Prata na época de Rio Branco 68
As elites dominantes do Brasil e a questão da
"unidade nacional": o caso de Mato Grosso 81
Conclusão
O "antemural da Colónia" 83 "NOSSAS CAPITAIS
"Pela transação ou pela guerra": ENTREGUES À MULTIDÃO
FAMINTA E REVOLTADA". ,144
a abertura do rio Paraguai 86
Mato Grosso na República:
"um Estado fraco e dependente" 88
"Construção urgente" de vias de comunicação:
a ação do Estado republicano em Mato Grosso 94

Fontes impressas
e manuscritas . . 155

Ilustrações
Esquema 1
Mato Grosso do Sul e a NOB hoje . . . 3 4
Esquema 2
Capitulo 3 Localidades citadas nos debates
A CONSTRUÇÃO DA NOROESTE DO BRASIL sobre a ferrovia para Mato Grosso. .35
EM SEU CONTEXTO 100
"Negociações longas, laboriosas e dispendiosas":
o início da construção 102
INTRODUÇÃO

N oroeste do Brasil
(NOB) é um nome
que, embora
oficialmente
suprimido há muitos anos,
permanece vivo na
memória e na linguagem
cotidiana daqueles que
conhecem a ferrovia de
que trata este livro. Essa
estrada parte de Bauru, no
Estado de São Paulo, e
atinge Corumbá, em Mato
Grosso do Sul, na fronteira
com a Bolívia; tem ainda
um ramal que, partindo da

A
estação de Indubrasil
(alguns quilómetros a
oeste de Campo Grande), velha Noroeste do
chega até Ponta Porã, na Brasil, que se
fronteira com a República constitui até hoje na
do Paraguai. Desse modo, única ferrovia de
suas linhas têm atualmente Mato Grosso do Sul, esteve
uma extensão total de integrada à Rede Ferroviária
aproximadamente 1.600 Federal (RFFSA) por quase 40
quilómetros, em bitola de anos, desde 1957 até 1996,
1 metro. Em Corumbá ela quando sua operação foi
se conecta com a ferrovia transferida à iniciativa privada.
conhecida como Brasil- De fato, em março desse ano
Bolíina, cujos trilhos foram postos em leilão o
estendem-se até a cidade direito de arrendamento dos
de Santa Cruz de la Sierra. equipamentos da ferrovia e a
[ Ver Esquema na página 34. concessão para operá-la
durante 30 anos; o leilão foi
vencido por um grupo
empresarial norte-americano,
o qual assumiu em l de julho
2

de 1996 a direção da
Estrada de Ferro empresa, rebatizando-a com o
Noroeste d o Brasil
nome de Novoeste.
Álbum Grapbico do
Estado de Matto Grosso
formar, com o rio Paraná, uma via de trânsito franco entre o Atlântico e o
coração da América do Sul.
Não obstante, precisamente nesse pós-guerra verificou-se u m
notável surto de novos projetos de ligação ferroviária entre Mato Gros-
Panorama da so e o litoral brasileiro. Esses projetos visavam explicitamente a reme-
diar a precariedade das vias então existentes e reportavam-se tanto às
História da Construção vias interiores (cuja imprestabilidade ficara eloquentemente expressa
da Noroeste pelo fracasso da expedição enviada para expulsar os paraguaios que
ocuparam o sul da província durante a guerra) quanto à própria via
A construção da Noroeste do Brasil rematou cerca de meio século de platina, vista como suscetível de ser interrompida ao arbítrio dos países
discussões sobre a ligação ferroviária entre Mato Grosso e o litoral - discus- vizinhos. Tantas foram as propostas surgidas que, já em 1876, o gover-
sões iniciadas em 1851 com u m projeto de lei que autorizava o governo no imperial considerou necessário nomear uma comissão a fim de avaliá-
imperial a conceder a uma companhia o "privilégio exclusivo" para a cons- las e indicar, a partir delas, o traçado mais conveniente para a estrada.
trução de uma ferrovia entre a Capital do Império e a cidade de Vila Bela da Presidida pelo próprio Visconde do Rio Branco, essa comissão, no en-
Santíssima Trindade (MT), passando pelas cidades de S. João d'El Rei, Goiás tanto, debateu-se inutilmente "às voltas com dezesseis projetos, tão
e Cuiabá (SÁ, 1907, p. 6). discordes que [...] o controvertido tema não teve decisivo desfecho"
(CUNHA, 1941, p. 151).
Como se sabe, as comunicações de Mato Grosso com os centros
povoados do litoral brasileiro apresentavam-se na época citada, e desde A questão continuou de pé após a instauração da República. Já
largo tempo, como uma aventura extremamente penosa. Havia o lendá- em janeiro de 1890 o Governo Provisório ordenava a imediata elabora-
rio caminho fluvial das monções, estabelecido com a descoberta do ouro ção de u m "plano de viação federal" (Decreto n 159, de 15.1.1890). U m
e

em Cuiabá, na segunda década do século XVIII. Havia também um cami- grupo de trabalho (a "Comissão de Viação Geral") foi logo constituído e
nho terrestre, através de Goiás, aberto logo depois e que pouco a pouco em novembro do mesmo ano concluiu o relatório contendo o plano soli-
foi suplantando o primeiro. Durante muito tempo foram ainda utilizados citado (cf. o Relatório da Comissão de Viação Geral, 1890). O Governo
os rios da bacia amazônica, que permitiam o acesso das povoações mato- Provisório, entretanto, nem sequer esperou pelo relatório para começar
grossenses ao litoral norte do Brasil, em Belém. Enfim, por volta de 1835 a efetuar concessões de vias férreas e fluviais previstas no plano em
abrira-se também uma ligação terrestre entre Cuiabá e Uberaba (CORRÊA elaboração. Assim, já em outubro de 1890 vinha à luz u m decreto dis-
FILHO, 1969, p. 496). Todas essas vias tinham em comum o longo tem- pondo sobre o estabelecimento de " u m sistema de viação geral ligando
po consumido em seu percurso (cerca de cinco meses pelo caminho de diversos Estados da União à Capital Federal". Dentre as ferrovias conce-
Goiás e entre quatro e seis meses pelo das monções, por exemplo); didas por esse decreto encontram-se duas das que se destinavam a Mato
ademais, havia as dificuldades próprias de uma navegação por cursos Grosso, segundo o plano ulteriormente concluído pela Comissão de Via-
d'água encachoeirados e de escassa profundidade e, no caso dos cami- ção Geral, a saber: 1) a estrada de Catalão (Goiás) à fronteira com a
nhos terrestres, a impossibilidade do transporte de cargas de maior volu- Bolívia, passando por Goiás, Cuiabá e Cáceres; e 2) a estrada que,
me e peso. partindo de u m ponto entre Uberaba e S. Pedro de Uberabinha (MG), se
dirigisse à vila de Coxim, no Estado de Mato Grosso (Decreto n 862, de
Q

Após a Independência, o Estado brasileiro havia insistentemente bus- 16.10.1890). [ Ver Esquema na página 351 Cabe observar que esse de-
cado a abertura de uma mais rápida e prática via de acesso à distante provín- creto outorgava, aos concessionários das linhas nele estabelecidas, favo-
cia central, através dos rios Paraná e Paraguai, transitando por territórios da res e vantagens de não-pequena monta: "privilégio por 60 anos para a
Argentina e da República do P a r a g u a i N o que se refere ao rio Paraguai, construção, uso e gozo das linhas férreas"; "garantia de juros de 6% ao
essas gestões não lograram, antes da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), ano, durante 30 anos, sobre o capital que for empregado"; "cessão gra-
mais do que uma abertura parcial do trecho que corre em território paraguaio. tuita de terrenos devolutos em uma zona máxima de 20 quilómetros
Ao fim dessa guerra, todavia, com a derrota da República guarani, o rio para cada lado das vias"; isenção de direitos de importação sobre os ma-
Paraguai foi declarado aberto à livre navegação internacional, passando a teriais necessários, entre outros.
1
De acordo com CORRÊA FILHO, as primeiras gestões imperiais no sentido de se franquear a navega-
ção do rio Paraguai até Mato Grosso datam de 1839 (obra citada, p. 523). Das duas concessões acima referidas, a primeira veio a ser declarada

18 19
caduca em 1893, por não terem os concessionários apresentado os respec-
técnico do Rio e representante de capitais estrangeiros", que teria promovi-
tivos estudos e orçamentos (Decreto n 1390, de 6.5.1893). Mas a que
a

do o levantamento dos capitais necessários para a construção da estrada e


interessa aqui é a segunda concessão, obtida pelo Banco União de São Paulo
providenciado a formação de uma empresa denominada "Companhia Estra-
e que se encontra diretamente na origem da NOB. Sobre ela, no entanto, as
da de Ferro Noroeste do Brasil".
informações são poucas e contraditórias.
Começa, assim, a entrar em cena a NOB. De fato, segundo docu-
Um relatório oficial informa que o concessionário apresentou, em
mentos oficiais, no dia 21 de junho de 1904 realizou-se no Rio de Janeiro
fins de 1892, os estudos definitivos da primeira seção da obra e que, em
a assembleia geral constitutiva da sociedade anónima que tomou a de-
julho de 1896, chegaram a ter início os trabalhos de construção — os
nominação de Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil. A fina-
quais, no entanto, teriam sido paralisados por razão de "força maior" (não-
lidade da empresa, definida no art. 2 de seus estatutos, consistia expressa-
a

esclarecida); o mesmo relatório informa também que, no início de 1898,


mente na
apresentaram-se estudos da segunda seção, que não foram aceitos por
não preencherem as "formalidades contratuais" (cf. o Relatório do Minis- "aquisição do privilégio, garantia de juros e outros favores concedidos ao Banco
União de S. Paulo por decreto d o Governo Federal Brasileiro, n 862, de 16 de
tério da Indústria, Viação e Obras Públicas, 1904, p. 472-473). Um enge-
a

outubro de 1890 e, portanto: 1. A construção e exploração de uma estrada de


nheiro, ligado posteriormente à construção da NOB, afirma que o Banco ferro que, partindo de um ponto situado no prolongamento da Estrada de Ferro
União de S. Paulo teve de abandonar a obra "pela dificuldade de levantar Mogiana, entre Uberaba e S. Pedro de Uberabinha, ou de outro ponto que seja
capitais" (MELLO, 1917, p. 20). Por sua vez, u m dos mais conhecidos julgado mais conveniente, vá terminar em Coxim, no Estado de Mato Grosso."
(destaque meu, PRCQ).
cronistas da NOB informa que o Banco não procurou iniciar a construção
porque "continuavam, sobre o assunto, discussões intermináveis e diver- De acordo com as informações da ata da assembleia, todo o capital
gências insuperáveis" — sobre as quais, no entanto, ele não se alonga da Companhia havia sido subscrito por apenas nove acionistas, entre os
(NEVES, 1958, p. 29). Um historiador mato-grossense, enfim, assegura quais se incluía o próprio Banco União de S. Paulo. Os demais oito eram os
que, em 13 de julho de 1896, chegou a ocorrer em Uberaba a solenidade seguintes: Victor Folletête, João Teixeira Soares, Arthur Alvim, Álvaro Men-
de fincamento da primeira estaca da ferrovia (MENDONÇA, 1919, p. 32). des de Oliveira Castro, Alberto de Sampaio, Francisco Glycério, Joaquim
O que se sabe é que a ferrovia não foi construída e o Banco, mediante Machado de Mello e João Feliciano Pedroso da Costa Ferreira (cf. ata e
uma série incrivelmente longa de sucessivas prorrogações dos prazos da estatutos publicados no Diário Oficial da União de 25.6.1904, p. 2992-
concessão, conseguiu mantê-la em seu poder por vários anos, aguardan- 2994).
do o momento em que, melhorando as "perspectivas financiarias", fosse
possível "achar u m adquirente dos direitos e prerrogativas da conces- Pouco mais de 30 dias depois, o governo federal editava u m de-
são", de forma a reaver o capital despendido com os estudos (SAINT creto que, atendendo a requerimento do Banco União de S. Paulo, trans-
MARTIN, 1914, p. 151). feria à Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil a concessão
da ferrovia de Uberaba a Coxim (Decreto n 5266, de 30.7.1904). Nem
a

Deve-se notar que, enquanto tudo isso ocorria, novos projetos de por isso, no entanto, veio a concretizar-se a obra tão longamente prote-
ligação ferroviária entre Mato Grosso e o litoral continuavam surgindo. Eles lada. Segundo relatam vários cronistas, a aparente iminência do início da
apareciam em requerimentos dirigidos aos poderes constituídos, solicitando construção da ferrovia suscitou discussões quanto à conveniência de seu
privilégios e favores para a construção; em livros, folhetos e artigos, geral- traçado, sendo chamado a intervir no debate o Clube de Engenharia do
mente escritos por engenheiros; e também nos círculos oficiais, em que Rio de Janeiro — instituição que gozava, à época, de elevado prestígio
algumas vezes se tentou mesmo passar dos projetos à prática, recorrendo- técnico e político. Essa intervenção foi de fato provocada pela Compa-
se aos batalhões de engenharia do Exército. Nenhuma dessas propostas nhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais , que, ainda em abril de 1904,
2

logrou ir muito longe do papel. A esse respeito, caberia por ora observar submeteu ao Clube de Engenharia vários quesitos referentes à questão
apenas que essa massa de projetos incluía u m que teria importância no da ferrovia para Mato Grosso (cf. o Relatório n 55 da Companhia Paulista,
Q

futuro: trata-se daquele apresentado em abril de 1903 pelo engenheiro Emílio 1904, p. 22-27). Após debater o assunto, o Clube emitiu seu parecer
Schnoor (SCHNOOR, 1903). final em I de outubro de 1904, aconselhando u m traçado completamen-
a

te diverso daquele que constava na concessão: propunha, de fato, uma


De volta, então, à concessão tenazmente mantida pelo Banco União ferrovia
de São Paulo, cabe registrar que, em 1904, o aguardado adquirente veio a
ser enfim encontrado, segundo Saint Martin, na pessoa de "um importante 2
Proprietária da famosa ferrovia conhecida simplesmente como "Paulista".

20 21
tório final do reconhecimento, demonstrando a plena viabilidade do novo
"que, partindo das imediações de São Paulo dos Agudos, passando por salto de
traçado apesar de algumas dificuldades na região do Pantanal (NEVES, 1958,
Urubupungá, se dirija ao ponto da margem do rio Paraguai, nas proximidades
da Baia Negra que, por estudos a serem c o m urgência efetuados, for julgado o p. 54) .
7

mais adequado para término da seção brasileira de via férrea internacional


destinada a encaminhar para o Brasil o movimento comercial d o sudeste da
Logo em seguida, novo decreto federal ( n 6899, de 24.3.1908) v i -
Q

Bolívia e de parte do Paraguai; estrada de ferro que tornará, outrossim, as nha alterar a concessão de que era proprietária a Companhia Noroeste, nos
comunicações rápidas c o m o Estado de Mato Grosso, independente de percur- seguintes termos:
so em países estrangeiros" (cf. Revista do Club de Engenharia, n 15; destaque
B

meu) .3 "A concessão feita à Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil pelo
decreto n° 5349, de 18 de outubro de 1904, da estrada de ferro de Bauru a
Alguns dias depois um novo decreto federal (n 5349, de 18.10.1904),
Q
Cuiabá, fica restringida ao trecho de Bauru a Itapura" [...].
aparentemente acatando, em parte, a indicação do Clube, vinha alterar intei- "O trecho de Itapura a Cuiabá, cuja concessão fica sem efeito, é substituído pela
ramente o traçado da ferrovia objeto da velha concessão, determinando que estrada de ferro de Itapura a Corumbá e daí à fronteira do Brasil com a Bolívia, a
a estrada deveria agora qual será de propriedade da União, construída pela Companhia de Estradas de
Ferro Noroeste do Brasil e arrendada pelo prazo de 60 anos à mesma compa-
"partir de Bauru, ou de onde fôr mais conveniente no prolongamento da Estra- nhia, que não terá direito a indenização alguma em virtude da anulação da
da de Ferro Sorocabana, e terminar na cidade de Cuiabá; devendo seguir pelo concessão referente ao trecho de Itapura a Cuiabá" (destaques meus).
vale d o Tietê em direção a Itapura [el atravessar o rio Paraná entre o salto de
Urubu-Pungá e o porto d o Taboado" (destaques meus) *. O mesmo decreto determinava ainda que a construção da estrada
de Itapura a Corumbá fosse desde logo iniciada também pelo outro ex-
Na verdade, como se vê, o que surgia agora era outra ferrovia,
tremo, a partir de Porto Esperança, às margens do rio Paraguai (ponto esta-
apenas aproveitando a concessão antiga. De qualquer forma, definido
belecido pela Comissão Schnoor), e marcava a data de 30 de setembro de
aparentemente o traçado Bauru-Cuiabá, já em novembro de 1904 t i -
1910 para a conclusão do trecho entre Itapura e Porto Esperança. Dessa
nham início, em Bauru, os trabalhos de reconhecimento do trecho até
forma, em maio de 1908 foi a construção iniciada no citado Porto, caminhan-
Itapura. Efetuado o reconhecimento, a construção propriamente dita veio
do para leste ao encontro das linhas que procediam de Bauru.
a ser iniciada em julho de 1905 . A partir daí, as obras prosseguiram em
5

ritmo regular. As relações entre o governo federal e a Companhia de Estradas de


Ferro Noroeste do Brasil, no entanto, pouco a pouco parecem ingressar num
O traçado, no entanto, seria alterado ainda uma vez. Em abril de
movimento de crescente deterioração. A Companhia, por seu lado, queixa-
1907, com efeito, é editado o Decreto n 6463, estabelecendo que a
Q

va-se do "sacrifício" que lhe teria sido imposto com a obrigação de "subdivi-
ferrovia Bauru-Cuiabá teria seu traçado modificado
dir o seu serviço, iniciando-o também do lado de Esperança", sacrifício que
"de modo a terminar em Corumbá, procurando a travessia preferível d o r i o se agravava "extraordinariamente" com a extrema dificuldade para o recru-
Paraná nas imediações da corredeira do Jupiá, e passando por Aquidauana o u tamento de pessoal numeroso para o serviço (SOARES, 1917, p. 38). Quei-
por outro p o n t o mais conveniente no curso francamente navegável d o r i o
Aquidauana, o u de afluente seu" (destaque meu) . 6
xava-se igualmente das dificuldades no trecho paulista, causadas pelos ata-
ques indígenas ao pessoal da construção e pelas "febres horríveis das mar-
Com essa alteração adotava-se, na prática, o traçado proposto em gens do Tietê"; das intervenções da Inspetoria Federal de Fiscalização das
1903 pelo engenheiro Emílio Schnoor, que foi então encarregado dos estu- Estradas de Ferro, que tornavam o traçado "mais oneroso do que o estudado
dos de campo necessários à implantação da nova orientação. Assim, já no pela Companhia para o orçamento" e, enfim, da "severidade anormal"
início de julho de 1907 partiram do Rio de Janeiro as turmas da Comissão exercida pelo Governo contra a Companhia, pela "aplicação contínua dè
Schnoor, incumbidas do reconhecimento na seção mato-grossense (ESQUER- multas e o indeferimento sistemático de seus pedidos" (id., p. 38 e 40). O
DO, 1908, p. 8). Em fevereiro do ano seguinte Schnoor apresentou o rela- governo, de sua parte, alegava que a Companhia "se tinha tomado insolvável
e que o prazo para a conclusão das obras estava esgotado, não convindo

3
Note-se que a expressão imediações de São Paulo dos Agudos inclui a localidade de Bauru. Note-se
também que a Baía Negra localiza-se perto do Forte Coimbra, a jusante de Corumbá. ' Deve-se observar que, antes desses estudos, duvidava-se em geral da possibilidade de construção de
ferrovia para Corumbá devido à "barreira" representada pelo Pantanal. O próprio Schnoor, por exem-
4
Itapura era uma pequena povoação surgida em tomo de antiga colónia militar criada pelo governo
plo, em 1903 observara que o ponto de chegada de uma ferrovia em Mato Grosso teria de ser ou ao
imperial na margem direita do rio Tietê, pouco antes de sua foz no Paraná.
norte ou ao sul da "grande laguna dos Xaraiés" (o Pantanal) e que Corumbá não era um ponto direta-
5
Nessa época, Bauru ligava-se a São Paulo através da ferrovia Sorocabana e daí ao porto de Santos mente atingível devido aos "grandes pântanos e extensão inundavel na margem esquerda do Paraguai"
pela São Paulo Railway. (obra citada, p. 5 e 26).
6
O rio Aquidauana é afluente do Miranda, que por sua vez desemboca no rio Paraguai.
23
22
mais prorrogá-lo" (MELLO, 1917, p. 26). De fato, o prazo para a conclusão
do trecho Itapura-Porto Esperança foi prorrogado por duas vezes, em 1910
e 1912 (Decreto n° 8355, de 8.11.1910, e Decreto n 9970, de 30.12.1912).
2

Além disso, a estrada funcionava com grande irregularidade, deixando de


cumprir exigências do contrato (NEVES, 1958, p. 84). A Noroeste
O que se sabe, de toda forma, é que o governo federal terminou por nos Documentos e
declarar a caducidade do contrato que tinha com a Companhia Noroeste,
referente à construção e arrendamento da Estrada de Ferro de Itapura a nos Livros
Corumbá, de propriedade da União (Decreto n 10.523, de 23.10.1913). A
2

As fontes mais antigas, que tratam não apenas da NOB como das
operação dos trechos já em tráfego, bem como o prosseguimento da cons-
tentativas e projetos que a antecedem (compreendendo memórias, de-
trução, passaram à responsabilidade direta da União, através de uma comis-
poimentos, trabalhos técnicos, obras historiográficas etc), essas fontes
são nomeada pelo Ministério da Viação e Obras Públicas (Portaria de
apresentam-se em geral vazadas num tom grandiloqúente, por vezes
28.10.1913)- Dessa forma prosseguiram os serviços, efetuando-se a junção
mesmo épico, e essencialmente apologético, enfatizando sempre as "imen-
entre os dois extremos da linha em 31 de agosto de 1914, no local denomi-
sas possibilidades de progresso" que adviriam com a abertura de vias de
nado Ligação, situado pouco a leste de Campo Grande (cf. o Relatório da
comunicação para Mato Grosso.
Estrada de Ferro Itapura a Corumbá referente aos anos de 1914 e 1915, p.
13). Em fins de 1917 a União encampou também a ferrovia Bauru-Itapura, Essas características condensam-se de maneira notável, por exem-
incorporando-a à Itapura-Corumbá (Decreto n 12.746, de 12.12.1917). Em
Q
plo, na obra que se pode considerar, sob certos aspectos, uma "história
novembro de 1918 os dois trechos foram fundidos em uma única entidade, oficial" da ferrovia: a História da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, do
denominada "Estrada de Ferro Bauru a Porto Esperança" — denominação jornalista Correia das Neves, publicada em Bauru em 1958 e aqui já referida . 8

substituída logo depois por aquela sob a qual a ferrovia se tornaria conheci- O tom geral dessa narrativa pode ser aferido pelo seguinte trecho, extraído
da: Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. de sua introdução:
"As linhas da Noroeste, pode-se afirmar, foram construídas com sangue, suor e
Observe-se por fim que o ponto terminal da ferrovia em Mato Grosso
lágrimas: sangue vertido pelos que tombaram durante as investidas traiçoeiras
permaneceu por longo tempo em Porto Esperança; apenas em dezembro dos ferozes índios caingangs; suor vertido pelos que enfrentaram um trabalho
de 1952 foi concluído o trecho entre essa localidade e a cidade de Corumbá. árduo e penoso, sofrendo os efeitos das endemias, rompendo os obstáculos que
O ramal de Ponta Porã, por sua vez, embora previsto já nos primeiros proje- oferecia o terreno inóspito e desconhecido (...], e lágrimas vertidas pelas famí-
lias dos bravos trabalhadores, que iam tombando mortos ou feridos, enquanto os
tos, só começou a ser construído em 1938, tendo sido concluído em abril de trilhos avançavam em direção ao oeste".
1953- Outro ramal, igualmente previsto em antigos projetos e que, partindo
de u m ponto entre Campo Grande e Três Lagoas, deveria atingir Cuiabá, Como resultado desses esforços, diz em seguida o mesmo autor,
jamais foi executado. Na seção paulista, o trecho que ia até Itapura foi "aí está a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil cumprindo a sua alta missão histórica
substituído por uma variante que, evitando o vale do Tietê, seguiu pelos e contribuindo para aumentar a força económica de uma região privilegiada e a
espigões desde Araçatuba até às margens do rio Paraná, em frente a Três força civilizadora do Brasil" (p. 9)-
Lagoas; construída a partir de 1926, essa variante acabou transformando-se Aí se vêem alguns dos principais motes dessa historiografia: a
em linha-tronco. "ferocidade" e o "caráter traiçoeiro" dos índios, o "heróico" e "patriótico"
esforço dos trabalhadores, a "função civilizadora" da ferrovia.
Se o trabalho de Correia das Neves pode ser apontado como
um caso extremo dessa vertente historiográfica, outros estudos, em-
bora mais profissionais, não logram escapar ao mesmo universo
referencial. Esse é o caso, parece, do clássico de Fernando de Azeve-
do: Um trem corre para o Oeste: estudo sobre a Noroeste e seu papel

* Neves era funcionário da Noroeste e, de acordo com informações verbais prestadas em 1988 por
empregados da RFFSA em Bauru, foi convidado pela própria diretoria da empresa a escrever a sua
história, sendo para isso dispensado de suas funções habituais.

24 25
no sistema de viação nacional. Escrevendo em 1948 (portanto numa A mesma preocupação com o aspecto estratégico aparece também
época em que as ferrovias brasileiras encontravam-se, em geral, n u m em vista de que, uma vez franqueada a via fluvial do Paraguai, a economia
estado de estagnação, prenunciando já a "opção rodoviária" que se mato-grossense tendia a orientar-se para os centros do comércio (e do po-
consagraria nas décadas seguintes), Azevedo colocou-se a tarefa de der) platino: Montevideu e, especialmente, Buenos Aires, mais próximos e
contribuir para o reerguimento da já então histórica NOB. Nesse sen- acessíveis do que os centros do litoral brasileiro. Essa visão é claramente
tido, efetuou uma detalhada análise dos problemas enfrentados pela exposta, por exemplo, por Nelson Werneck Sodré:
estrada (seus déficits operacionais, suas mazelas administrativas etc.)
"A Noroeste d o Brasil vinha resolver u m problema geográfico de primeira ordem,
e propôs mesmo, para superá-los, uma estratégia centrada na "racio- em relação ao Oeste: constituiria o vínculo [...] que uniria os territórios matogrossenses
nalização" dos métodos de gerência da ferrovia. Sob esses aspectos, ao coipo do Brasil, d o qual estavam divorciados, obrigados a depender da via
seu estudo difere radicalmente da simples crónica (em que, a despei- fluvial d o rio Paraguai, viável [...] mas que nos colocava na situação de aceitar a
preponderância estranha das forças orientadas para a bacia platina, em lugar de
to de seu inegável valor documental, consiste basicamente o trabalho corresponder ao apelo das forças nacionalizadoras que atraem para a zona ama-
de Correia das Neves). Sua análise é ampla, consistente, procurando zônica o u para os portos do Atlântico, no litoral paulista" (SODRÉ, 1941, p. 111).
inserir a compreensão da Noroeste no quadro mais abrangente da evo-
lução económica brasileira. Entretanto, e até mesmo para justificar o Dessa forma, no interior desses parâmetros abundam generosamente
esforço empregado em sua obra, Azevedo incorpora também uma as referências ao caráter estratégico que teria ou deveria ter a ferrovia para
visão marcadamente triunfalista tanto do passado quanto do futuro da Mato Grosso . Essas referências dizem também respeito, com certa fre-
9

via férrea e m questão. quência, ao temor da ocorrência de movimentos separatistas ou de "pertur-


bação da ordem" em Mato Grosso; assim, a via férrea seria o meio que
O aspecto, talvez, que mais ressalta nessa vertente "apologética" é a promoveria uma eficaz soldagem dessa região ao todo nacional, integrando-
natureza abstrata de suas concepções de "progresso" e "civilização", objeto de a e "civilizando-a". Reclus, por exemplo, observa que a guerra com o Paraguai
uma espécie de fé entre ingénua e demagógica. Nessas concepções não há havia demonstrado que Mato Grosso "se achava ainda materialmente fora
lugar para o conceito de classes sociais; opera-se, no máximo, com a categoria do Império" e que essa província só se mantivera como "dependência polí-
"nação": empreiteiros e operários são igualados, na qualidade de batalhadores tica do Brasil" devido à "insignificância numérica da população branca, per-
por uma obra cujo únicofimseria o "engrandecimento nacional". A resistência dida no meio das tribos de índios". E completa: "Se uma colónia poderosa
indígena à violação de seu espaço, por sua vez, comparece aí apenas como tivesse querido conquistar sua autonomia, tê-lo-ia conseguido, pois que a
um fator de atraso e um elemento a mais a ressaltar o "heroísmo" do empreen- ausência total de estradas impediria a ida de tropas até aquelas paragens
dimento (equivalendo-se, dessa forma, às moléstias que acometiam os envol- remotas" (RECLUS, 1900, p. 379) . 10

vidos na construção, à impenetrabilidade das florestas etc).


Pode-se identificar ainda outra ordem de considerações, presente com
significativa frequência na documentação sobre a viação férrea para Mato
Por outro lado, nessa documentação, tanto sobre a NOB como sobre
Grosso: trata-se do interesse que teria o Brasil em, por meio dessa ferrovia,
as tentativas anteriores de ligação ferroviária entre Mato Grosso e o litoral
não só efetivar a integração dessa região ao todo nacional como também
brasileiro, uma palavra tem presença sempre garantida: é o adjetivo "estra-
atrair para a sua órbita os países mediterrâneos da América do Sul (Paraguai
tégica", significando que o objetivo a ser alcançado com essa ligação seria,
e Bolívia) — neutralizando, sob esse aspecto, a ação das vias de comunica-
na síntese de u m clássico, permitir ao governo central "levar mais facilmente
ção argentinas (as quais, segundo esse ponto de vista, teriam aquele mesmo
a sua ação política e militar até às fronteiras meridionais e ocidentais do país"
objetivo). Cabe notar que essa ideia — acerca da "vocação internacional"
(AZEVEDO, s.d., p. 89). Considerações como essa aparecem com bastante
que teria a ferrovia para Mato Grosso — essa ideia desdobra-se, também
frequência a respeito dos projetos de ligação ferroviária surgidos após a
frequentemente, em projetos de ferrovias transcontinentais, ligando os lito-
Guerra com o Paraguai — visto que, como já foi mencionado, despertara
rais atlântico e pacífico da América do Sul e, ainda uma vez, opondo-se à
inquietação no Brasil o fato de o exército nacional não haver conseguido rede ferroviária argentina. Emílio Schnoor, por exemplo, refere-se especifi-
expulsar do sul de Mato Grosso as forças paraguaias que o haviam ocupado
desde o início de 1865. Como notou u m estudioso, aqueles projetos coloca-
vam em primeiro plano os "intuitos estratégicos" e dirigiam-se principal- ' Veja-se, por exemplo: Relatório da Comissão de Viação Geral, 1890; Requerimento de Francisco de
mente para a parte sul da província, "onde mais fundos haviam sido os Paula Bicalho, 1890 [AN (Arquivo Nacional) - I T 3, maço 14, n» 256F); RECLUS, 1894, v. 2, p. 477;
SCHNOOR, 1903, p. 39; SÁ, 1907, p. 11 epassim., PINTO, 1977, p. 73; AZEVEDO, s.d.,passim.
golpes" (CAMPOS, 1900, p. 3-4). 10
V e r também, no mesmo sentido: ESTIENNE, 1897, p. 253; BARRETO, 1907, p. 52 e 85; JARDIM, 1911,
p. 34; UMA JÚNIOR, 1914, p. 7.
26 27
no sistema de viação nacional. Escrevendo em 1948 (portanto numa A mesma preocupação com o aspecto estratégico aparece também
época em que as ferrovias brasileiras encontravam-se, em geral, n u m em vista de que, uma vez franqueada a via fluvial do Paraguai, a economia
estado de estagnação, prenunciando já a "opção rodoviária" que se mato-grossense tendia a orientar-se para os centros do comércio (e do po-
consagraria nas décadas seguintes), Azevedo colocou-se a tarefa de der) platino: Montevideu e, especialmente, Buenos Aires, mais próximos e
contribuir para o reerguimento da já então histórica NOB. Nesse sen- acessíveis do que os centros do litoral brasileiro. Essa visão é claramente
tido, efetuou uma detalhada análise dos problemas enfrentados pela exposta, por exemplo, por Nelson Werneck Sodré:
estrada (seus déficits operacionais, suas mazelas administrativas etc.)
"A Noroeste d o Brasil vinha resolver u m problema geográfico de primeira ordem,
e propôs mesmo, para superá-los, uma estratégia centrada na "racio- em relação ao Oeste: constituiria o vínculo [...] que uniria os territórios matogrossenses
nalização" dos métodos de gerência da ferrovia. Sob esses aspectos, ao corpo d o Brasil, d o qual estavam divorciados, obrigados a depender da via
seu estudo difere radicalmente da simples crónica (em que, a despei- fluvial d o rio Paraguai, viável [...] mas que nos colocava na situação de aceitar a
preponderância estranha das forças orientadas para a bacia platina, em lugar de
to de seu inegável valor documental, consiste basicamente o trabalho
corresponder ao apelo das forças nacionalizadoras que atraem para a zona ama-
de Correia das Neves). Sua análise é ampla, consistente, procurando z ó n i a o u para os portos d o Atlântico, no litoral paulista" (SODRÉ, 1941, p. 111).
inserir a compreensão da Noroeste no quadro mais abrangente da evo-
lução económica brasileira. Entretanto, e até mesmo para justificar o Dessa forma, no interior desses parâmetros abundam generosamente
esforço empregado em sua obra, Azevedo incorpora também uma as referências ao caráter estratégico que teria ou deveria ter a ferrovia para
visão marcadamente triunfalista tanto do passado quanto do futuro da Mato Grosso . Essas referências dizem também respeito, com certa fre-
9

via férrea em questão. quência, ao temor da ocorrência de movimentos separatistas ou de "pertur-


bação da ordem" em Mato Grosso; assim, a via férrea seria o meio que
O aspecto, talvez, que mais ressalta nessa vertente "apologética" é a promoveria uma eficaz soldagem dessa região ao todo nacional, integrando-
natureza abstrata de suas concepções de "progresso" e "civilização", objeto de a e "dvilizando-a". Reclus, por exemplo, observa que a guerra com o Paraguai
uma espécie de fé entre ingénua e demagógica. Nessas concepções não há havia demonstrado que Mato Grosso "se achava ainda materialmente fora
lugar para o conceito de classes sociais; opera-se, no máximo, com a categoria do Império" e que essa província só se mantivera como "dependência polí-
"nação": empreiteiros e operários são igualados, na qualidade de batalhadores tica do Brasil" devido à "insignificância numérica da população branca, per-
por uma obra cujo único fim seria o "engrandecimento nacional". A resistência dida no meio das tribos de índios". E completa: "Se uma colónia poderosa
indígena à violação de seu espaço, por sua vez, comparece aí apenas como tivesse querido conquistar sua autonomia, tê-lo-ia conseguido, pois que a
um fator de atraso e um elemento a mais a ressaltar o "heroísmo" do empreen- ausência total de estradas impediria a ida de tropas até aquelas paragens
dimento (equivalendo-se, dessa forma, às moléstias que acometiam os envol- remotas" (RECLUS, 1900, p. 379) . 10

vidos na construção, à impenetrabilidade das florestas etc).


Pode-se identificar ainda outra ordem de considerações, presente com
Por outro lado, nessa documentação, tanto sobre a NOB como sobre significativa frequência na documentação sobre a viação férrea para Mato
as tentativas anteriores de ligação ferroviária entre Mato Grosso e o litoral Grosso: trata-se do interesse que teria o Brasil em, por meio dessa ferrovia,
não só efetivar a integração dessa região ao todo nacional como também
brasileiro, uma palavra tem presença sempre garantida: é o adjetivo "estra-
atrair para a sua órbita os países mediterrâneos da América do Sul (Paraguai
tégica", significando que o objetivo a ser alcançado com essa ligação seria,
e Bolívia) — neutralizando, sob esse aspecto, a ação das vias de comunica-
na síntese de u m clássico, permitir ao governo central "levar mais facilmente
ção argentinas (as quais, segundo esse ponto de vista, teriam aquele mesmo
a sua ação política e militar até às fronteiras meridionais e ocidentais do país"
objetivo). Cabe notar que essa ideia — acerca da "vocação internacional"
(AZEVEDO, s.d., p. 89). Considerações como essa aparecem com bastante
que teria a ferrovia para Mato Grosso — essa ideia desdobra-se, também
frequência a respeito dos projetos de ligação ferroviária surgidos após a
frequentemente, em projetos de ferrovias transcontinentais, ligando os lito-
Guerra com o Paraguai — visto que, como já foi mencionado, despertara
rais atlântico e pacífico da América do Sul e, ainda uma vez, opondo-se à
inquietação no Brasil o fato de o exército nacional não haver conseguido
rede ferroviária argentina. Emílio Schnoor, por exemplo, refere-se especifi-
expulsar do sul de Mato Grosso as forças paraguaias que o haviam ocupado
desde o início de 1865. Como notou um estudioso, aqueles projetos coloca-
vam em primeiro plano os "intuitos estratégicos" e dirigiam-se principal- 9
Veja-se, por exemplo: Relatório da Comissão de Viação Geral, 1890; Requerimento de Francisco de
mente para a parte sul da província, "onde mais fundos haviam sido os Paula Bicalho, 1890 [AN (Arquivo Nacional) - IT 3, maço 14, n° 256F1; RECLUS, 1894, v. 2, p. 477;
SCHNOOR, 1903, p. 39; SÁ, 1907, p. 11 epassim.. PINTO, 1977, p. 73; AZEVEDO, s.d.,passim.
golpes" (CAMPOS, 1900, p. 3-4).
10
V e r também, no mesmo sentido: ESTIENNE, 1897, p. 253; BARRETO, 1907, p. 52 e 85; JARDIM, 1911,
p. 34; LIMA JÚNIOR, 1914, p. 7.
26 27
camente a essas questões (obra citada, p. 4 e 39) . Mas, a esse respeito, as
11 "Incontestavelmente é do maior alcance económico e comercial para o Estado
de São Paulo o prolongamento de seu sistema ferroviário por u m o u outro
referências mais eloquentes encontram-se provavelmente em Euclides da
traçado, quando não seja de pronto até Santana do Paranaíba, ao menos até u m
Cunha, que, no interessante trabalho intitulado Viação sul-americana — ponto tal que, por sua aproximação daquele entreposto, seja capaz de atrair para
escrito em 1908, logo após a mudança do traçado da NOB — saúda essa este Estado [São Paulo] a corrente comercial que já existe, embora em pequena
ferrovia como a "seção mais dilatada das transcontinentais sul-americanas". escala, entre uma parte de Mato Grosso e Goiás e a praça de Uberaba, em
Minas".!...] "tão considerável encurtamento de distância nas comunicações de S.
Nesse trabalho, Cunha efetua u m paralelo entre os sistemas ferro- Paulo com os dois grandes Estados de oeste, facilitando e desenvolvendo as suas
relações comerciais, há de exercer a mais benéfica influência para a civilização
viários brasileiro e argentino. Observa que a rápida expansão ferroviária
e o progresso daquelas remotas regiões" (PINTO, 1904, p. 121) . 12

argentina tendera a buscar as repúblicas vizinhas, "senhoreando-as co-


mercialmente"; dedicando-se particularmente à análise da vinculação fer- Idênticas referências podem ser encontradas em várias outras fon-
roviária argentino-boliviana, conclui que a vida económica da Bolívia tes . 13

cairia na "órbita avassaladora" de sua vizinha. Constata também que


A visão apologética, por seu turno, foi contestada já no início do
Buenos Aires parecia "restaurar a sua antiga fisionomia histórica de qua-
século por u m autor, pelo menos: o engenheiro Clodomiro Pereira da
se capital hispano-americana", de maneira que u m ministro boliviano
Silva, um estudioso dos problemas da viação férrea no Brasil que chegou
podia mesmo "agitar" a hipótese da formação de uns "Estados Unidos da
a chefiar um dos órgãos federais de fiscalização das estradas de ferro (e que
América d o Sul", ou seja, a "confederação política do Peru, Bolívia, Chi-
nessa condição, aliás, teve de dar seu parecer acerca da mudança do traçado
le, Argentina, Uruguai e Paraguai" (CUNHA, 1941, p. 143, 145 e 148).
da ferrovia para Mato Grosso, em 1907).
Nesse contexto, Euclides atribui à NOB o papel de delinear o que seria
u m "antagonismo brasileiro, predisposto a contrapesar o imperialismo Numa obra de 1910 , Silva traça uma aguda crítica da política ferro-
14

ferroviário argentino". Assegurando ser "inevitável e extraordinário" o viária do Brasil e, para ilustrá-la, toma frequentemente o exemplo da NOB.
"destino intercontinental" da Noroeste, afirma enfim que o porto de Santos, Critica em particular a "fascinação" exercida pelas ferrovias sobre os pensa-
mais próximo da Europa que o de Buenos Aires, era "o porto natural da dores e dirigentes do país, na época; procura demonstrar, numa perspectiva
Bolívia, no Atlântico" (p. 150, 160 e 163). histórica, que as ferrovias constituem um instrumento económico "demasia-
do poderoso para regiões despovoadas e improdutoras" e que elas apenas
Finalmente, resta ressaltar que as preocupações estratégicas, envol- podem cumprir eficazmente sua função se precedidas de outros meios de
vendo os projetos de viação para Mato Grosso, praticamente nunca apare- transporte e comunicação: as estradas de rodagem e a navegação interior
cem na documentação dissociadas de preocupações de ordem mais pura- por rios e canais, que preparariam "o campo económico apropriado à ferro-
mente económica. De fato, as propostas e projetos para essa viação pro- via" (SILVA, 1910, p. 154). Critica igualmente os excessos na apreciação dos
curam em geral justificar-se demonstrando seu suposto valor "comercial", êxitos da economia brasileira na época, advertindo para o "quanto de exa-
além do indefectível valor "estratégico". A esse respeito, o Decreto n 862, e
gero existe no nosso apregoado progresso" (p. 155). Vincula enfim a retó-
de 1890 — que, como se viu, efetuou entre outras a concessão da ferrovia rica do "progresso" e a "fascinação" das ferrovias a interesses menores, de
Uberaba-Coxim — é bastante explícito, afirmando: políticos sem escrúpulos e empreiteiros ambiciosos: "essa faina de construir
"além de justo, é conveniente abrir as riquíssimas zonas de Goiás e Mato Grosso ferrovias a torto e a direito", diz, "degenerou em altas negociatas, habilmen-
ao comércio e à indústria, trazendo-as ao convívio do progresso e alargando o te mascaradas com o rótulo do progresso incomparável" (p. 156).
campo da fecunda imigração que traz rápido e eficaz concurso à grandeza
nacional". Todo o livro é assim um inflamado e erudito libelo contra "a loucura
Da mesma forma, Adolfo Augusto Pinto (engenheiro e estudioso e a inépcia" dos governos em matéria de política de viação. Externa, ao
da história ferroviária), refletindo por sua vez interesses situados no Estado mesmo tempo, conceitos de um nacionalismo marcadamente económico,
de São Paulo, escreve em 1904: realçando a "necessidade imperiosa e urgente de cortar o país de vias aper-

12
A cidade de Santana do Paranaíba (hoje simplesmente Paranaíba) situa-se no atual Estado de Mato
Grosso do Sul, próxima à divisa com o Estado de Minas Gerais.
No mesmo sentido, ver: Requerimento de Francisco de Paula Bicalho, citado; Requerimento de
Manoel F. Garcia Redondo e Augusto Fomm, 1890 (AN - IT 3, maço 11, n= 352); Requerimento de John "Veja-se, por exemplo: Relatório da Comissão de Viação Geral, 1890; Decreto n° 159, de 15.1.1890;
C. Grant, 1890 («/., maço 12, n° 341); Requerimento do Conde de Figueiredo e outros, 1890 Od., ibid.); Relatório do Ministério da Guerra, 1901, p. 171-173; AYROSA, 1903, p. 45-49; SÁ, 1907, p. 5; Relatório n°
CAMPOS, 1900, p. 4 e 5; ESTIENNE, 1897, p. 251; AZEVEDO, s.d, p. 71, p. 86 epassim.; Anais da Câmara 55 da Cia. Paulista, 1904, p. 22-23; CUNHA, 1941, p. 155-156; SODRÉ, 1941, p. 112.
• Federal, sessão de 30.11.1906 (discurso do deputado Eduardo Sócrates). 14
Trata-se de um livro que coesiste na reunião de uma série de artigos jornalísticos.

28 29
este matadouro industrial pertenciam ao espólio Farquhar nesse momento. Logo,
feiçoadas de comunicação", fortalecendo-o, "a fim de que o estrangeiro ve- a Noroeste do Brasil era o tentáculo que articulava, para u m mesmo grupo
nha para cá como imigrante e não como conquistador" (p. 25; ver também monopólico, nesse caso, as fontes de matéria-prima e os estabelecimentos i n -
p. 116). À NOB, enfim, o autor refere-se em inúmeras passagens, comen- dustriais que a transformavam" (ALVES, 1984, p. 69-70; destaque meu) . 16

tando longamente, por exemplo, as circunstâncias da mudança do traçado Para o autor, a NOB constituiria portanto um dos instrumentos através
ocorrida em 1907/1908, interesses e manobras dos empreiteiros etc. A ex- dos quais o imperialismo teria imposto a Mato Grosso uma "divisão do traba-
posição e a análise desses comentários, todavia, não cabem aqui e por isso lho" nos termos que lhe eram convenientes, a saber, a divisão pela qual "a
serão deixadas para outras partes deste trabalho. Registre-se apenas que Mato Grosso caberia basicamente exportar gado bovino em pé para São
Pereira da Silva não contesta que a ferrovia para Mato Grosso devesse ter Paulo" (p. 69). A esse respeito, Alves destaca o papel que teria sido desem-
um sentido "estratégico" (ver, por exemplo, p. 24 e 41-48). penhado pela NOB na decadência da indústria do charque em Mato Grosso,
Alguns trabalhos mais recentes têm igualmente colocado de forma indústria essa vinculada aos "grupos monopólicos platinos" (p. 65). Obser-
mais concreta a questão das origens da NOB . Nessa produção, com efeito,
15
ve-se, para concluir, que o ensaísta recusa enfaticamente o ponto de vista
desaparece o traço apologético. Não é contestado o sentido "estratégico" que afirma o caráter "estratégico" da Noroeste.
emprestado à NOB, mas se aponta ao mesmo tempo a vinculação entre a "As elaborações geopolíticas, que se fixam sobre evidências ilusórias, têm pro-
ferrovia e a expansão do capital que então se processava a partir do Estado curado minimizar e desfigurar esse conflito económico [entre empresas situadas
de São Paulo. No entanto, nos trabalhos citados a preocupação com a Noro- nos dois pólos antes citados], reduzindo-o às suas dimensões nacionais. Tal é,
por exemplo, o sentido de u m tipo de interpretação que confere à construção
este tem um caráter meramente acessório — e assim suas constatações, na da Noroeste objetivos estratégicos, de integração nacional. Resulta velado, por-
verdade, não vão além do que já havia sido colocado antes por Fernando de tanto, o fenómeno do imperialismo".
Azevedo, centrando-se na explicitação do papel da ferrovia enquanto meio
de vinculação mais estreita da economia mato-grossense com a economia E, mais adiante:
paulista, ou seja, meio através do qual Mato Grosso evade-se da órbita do "Ao capital, no seu movimento, importa somente reduzir os custos de produção
e de transporte das mercadorias, visando a consecução de maiores taxas de
Prata para ingressar na "órbita económica do Estado de São Paulo", segundo
lucro. No caso mato-grossense o barateamento dos transportes, propiciado pela
a fórmula utilizada por Azevedo. via férrea, determinou o deslocamento da hegemonia económica platina para o
eixo São Paulo-Santos. Frise-se que ao agente desse deslocamento, o capital
Finalmente, ainda dentre os trabalhos recentes, uma tentativa de monopolista, configurou-se indiferente ter como razão social centros 'nacionais'
contribuir para o entendimento da Noroeste encontra-se em ALVES (1984) ou 'estrangeiros'. Somente uma maior taxa de lucro o levou a privilegiar a
— o qual, embora tampouco se volte exclusivamente a essa ferrovia, 'solução nacional'" (p. 65).

demora-se mais extensamente em seu exame. Também esse autor apon-


ta, a exemplo de outros estudiosos aqui já citados, o papel da NOB (na
medida em que ela veio a substituir a navegação fluvial como meio mais
rápido para se atingir Mato Grosso a partir do litoral atlântico), seu papel,
dizia-se, na mudança do pólo hegemónico sobre a economia mato-grossense,
com o "deslocamento da hegemonia económica platina para o eixo São
Paulo-Santos". Entretanto, para Alves o "agente" desse deslocamento tem
nome e sobrenome: trata-se do capital monopolista; dessa forma, a NOB
seria a demonstração de como "o capital monopolista pensou e utilizou o
transporte em função de seus interesses materiais":
"Essa ferrovia foi financiada por capitais franco-belgas, exatamente num momento
em que especialmente grupos belgas tinham grandes interesses localizados em
Mato Grosso. (...] A Brazil Land and Cattle Packing Co. presta-se a uma ilustra-
ção mais expressiva: essa empresa invernava gado em suas fazendas de Campo
Grande e Três Lagoas, ambos os municípios servidos pela Noroeste do Brasil, e
exportava para São Paulo, através da via férrea, gado gordo destinado ao abate
no frigorífico de Osasco. É essencial relembrar que tanto aquela empresa como

Trata-se, no caso, de estudos académicos elaborados por docentes da UFMS: NEVES, 1980; CORRÊA, " O autor refere-se aqui a empresas do capitalista norte-americano Percival Farquhar, do qual se tratará
L., 1980; CORRÊA, V., 1981. mais adiante.

30 31
Assim, o primeiro capítulo busca examinar as possíveis vinculações
entre a construção da ferrovia e os interesses dos capitais estrangeiros.
No segundo capítulo investigam-se as "preocupações estratégicas"
O Objeto do Estado brasileiro com relação ao espaço mato-grossense. Para tanto, exa-
minam-se as relações entre o Brasil e seus vizinhos platinos bem como as
de Estudo e o políticas territoriais do Estado, visando especialmente a situar, no interior

Plano do Trabalho dessas políticas, o caso particular de Mato Grosso.


Finalmente, no terceiro e último capítulo procura-se reconstituir o
O objeto deste livro é o estudo de um aspecto da história da Noroes- processo que vai desde a tomada da decisão acerca do início da construção
te do Brasil cuja elucidação pode ser considerada, de certa forma, u m (1904) até a última e definitiva alteração do traçado (1907/1908) — visan-
passo prévio, necessário para conferir bases mais seguras a estudos poste- do-se, com isso, lançar luz sobre as determinações presentes em cada u m
riores: trata-se do próprio processo de implantação dessa ferrovia, com- desses momentos.
preendendo as circunstâncias do início da construção, em 1904, e da defi-
nição final do traçado, em 1907/1908. Trata-se, em síntese, de uma inter- Dessa forma, ao estudar seu objeto específico, esta pesquisa es-
rogação sobre o sentido da construção da Noroeste e sobre o modo como forçou-se por contribuir para uma compreensão mais concreta não só do
ela se insere no contexto da época — uma interrogação, portanto, acerca nascimento da NOB como também de algumas facetas pouco conhecidas
das circunstâncias em que, depois de decénios de projetos, finalmente desse período da história brasileira.
tem início a obra; e, também, acerca do significado da "dança dos traça-
dos", com as mudanças sucessivas de Uberaba-Coxim para Bauru-Cuiabá e
deste para Bauru-Corumbá.

Segundo se depreende da bibliografia e da documentação, a cujo


sumário exame se procedeu nas páginas anteriores, as interpretações
sobre esses processos estão cindidas em duas vertentes básicas. A pri-
meira, amplamente majoritária, vê na construção da ferrovia motivações
preponderantemente políticas — referindo-se também, por certo, ao con-
texto económico em que se implanta a estrada, mas de uma maneira
inteiramente abstrata: a expansão do capital é vista simplesmente como
"avanço da civilização". A outra vertente centra-se na consideração da
funcionalidade dessa ferrovia sob o ponto de vista dos interesses impe-
rialistas — descartando, para todos os efeitos, a influência de motivações de
natureza não-econômica.

Uma vertente intermediária, por fim, se não recusa (antes afirma) o


peso das considerações políticas ("estratégicas"), aponta por outro lado a
presença determinante de interesses económicos, embora imediatos e "mes-
quinhos" (empreiteiros ambiciosos).

Com relação ao presente estudo, por seu turno, o que se pode


dizer por ora é que ele procurou nortear-se pela ideia de que a constru-
ção da Noroeste do Brasil não pode ser compreendida nos quadros de quais-
quer esquemas simplistas ou simplificadores. Decorrente de múltiplas de-
terminações, por meio de um processo muito distante da linearidade, a im-
plantação dessa ferrovia refletiu os impasses e dilemas vividos pela elite
dirigente do país na época.

32 33
CAPÍTULO 1

Um
Tentáculo do
Imperialismo?

A
construção da estrada
de ferro Noroeste do
Brasil ocorreu num
período em que a
expansão capitalista se
processava no Brasil com
notável intensidade e
acentuada participação do
capital estrangeiro. No que
respeita ao Estado de São
Paulo, onde teve início a
construção, o processo é
bastante conhecido: o avanço
cafeeiro rumo ao centro-oeste
do Estado trazia consigo as
ferrovias; o processo de
urbanização caminhava a
passo com a industrialização,
surgindo a cada dia novos
campos para a aplicação de
capitais na produção de
alimentos, serviços urbanos
etc. Em Mato Grosso, por
outro lado, vivia-se também
um surto capitalista que, se
Corumbá, não era espetacular, não
Vista Parcial do Porto deixava de ser notável, como
Álbum Graphico do se verá a seguir.
Estado de Matto Grosso
Janeiro e do Nordeste brasileiro — coincidindo esse momento, ademais,
com a crise da tradicional indústria platina do charque, na Argentina e no
Uruguai, em decorrência do rápido incremento, nesses países, da criação de
ovinos com vistas à exportação da lã (id, p. 48). Assim, já em 1873 instala-
A Economia Mato-Grossense, se na localidade de Descalvados, no município de Cáceres, às margens do
rio Paraguai, a primeira charqueada da província, por iniciativa de um cida-
a Companhia de Estradas dão argentino atraído pela barateza do gado e das terras em Mato Grosso; a
de Ferro Noroeste do Brasil e os ela iriam seguir-se, mais tarde, muitas outras.

Capitais Estrangeiros A facilidade de importação de meios de produção estimula também,


na mesma época, a modernização de outro dos antigos ramos económicos
O fim da guerra com o Paraguai, em 1870 — quando solenemente se da província: a produção açucareira do vale do rio Cuiabá, que pouco a
declaram abertos à livre navegação internacional os rios da bacia platina — pouco transita dos antiquados engenhos tocados a boi para aperfeiçoados
constitui o marco a partir do qual o processo de integração de Mato Grosso maquinismos a vapor (ALVES, 1984, p. 53-54).
ao mercado nacional e, mais ainda, internacional adquire uma dinâmica par- No sul da província, um novo ramo inaugura-se: a exploração dos
ticularmente intensa. A abertura das vias platinas vinha, de fato, libertar a
ervais nativos, com vistas ao abastecimento do mercado platino. No norte, já
circulação de mercadorias da dependência dos penosos e demorados cami-
nos primeiros anos da década de 1870 tem início, por sua vez, a extração do
nhos interiores de ligação com o litoral atlântico, até então praticamente os
látex da seringueira (ÁLBUM Graphico do Estado de Matto-Grosso, 1914, p.
únicos disponíveis: os caminhos terrestres que se dirigiam a Goiás e Minas
248).
Gerais e a antiga via fluvial das monções, com suas diversas variantes.
Praticamente todo esse surto depende do transporte pelos rios, e
Nas novas condições, a província do oeste passa a receber mercado- logo a navegação fluvial converte-se num ramo decisivo da economia. Em-
rias e capitais, provenientes do exterior, em escala antes insuspeitada. O barcações a vapor, na maior parte pertencentes às casas comerciais
povoado de Corumbá (antes um minúsculo núcleo fronteiriço), em sua nova estabelecidas nas principais cidades, percorrem tanto os rios interiores da
e importante qualidade de porto terminal da navegação internacional do rio província (nesse caso, lanchas e barcos de pequeno calado) quanto as gran-
Paraguai, recebe, em sucessivas levas, considerável número de comercian-
des artérias fluviais que a ligam aos centros do comércio platino (Buenos
tes estrangeiros, importadores e exportadores, que ali se estabelecem como
Aires e Montevideu) e aos portos do Atlântico.
mediadores entre o mercado mundial e o regional. Para lá afluem também
significativos contingentes de trabalhadores, provenientes inclusive da re- O advento da República, com o Encilhamento, avivou o interesse
cém-derrotada República do Paraguai. Nesse processo a cidade de Corumbá, empresarial pela economia da região. Assim, em 1890 surge o Banco Rio e
no espaço de poucos decénios, ultrapassa a velha Cuiabá em importância Mato Grosso, ligado ao mato-grossense Joaquim Murtinho e interessado na
económica e com ela passa a rivalizar em termos de importância política. fundação de núcleos de colonização no Estado (Decreto n 1149, de a

6.12.1890; Decisão n 16, de 22.3.1893, do Ministério da Indústria, Viação e


2

Por outro lado, a maior facilidade de escoamento estimula a produção Obras Públicas). A esse empreendimento vincula-se também a organização,
regional. Trata-se, em primeiro lugar, do aproveitamento do rebanho bovi- em 1891, da Companhia Matte-Larangeira, destinada a continuar a explora-
no, que ali constituía importante riqueza desde que a mineração decaíra ção das concessões de ervais nativos obtidas anteriormente por Thomaz
irremediavelmente ainda no século anterior. Como notou um autor, a pecu- Larangeira (Decreto n 436C, de 4.7.1891; CORRÊA FILHO, 1951, p. 50-
2

ária havia podido expandir-se em Mato Grosso independentemente, até 51). Ainda em 1891 formou-se, no Rio de Janeiro, uma certa Companhia
certo ponto, das limitações do mercado consumidor, desenvolvida como era Fomento Industrial e Agrícola de Mato Grosso, formalmente destinada a
por "grandes fazendeiros que não eram forçados financeiramente a vender adquirir a charqueada de Descalvados (Decreto n 70, de 21.3.1891). Esse
Q

toda a 'produção' anual" e, ademais, exigindo custos mínimos, em termos de empreendimento, todavia, embora ostentasse em sua diretoria importantes
força de trabalho e terras; assim, "desde o século XVIII, à medida que o nomes do novo regime, como Ruy Barbosa e Quintino Bocaiúva, não pare-
mercado não absorvia a 'produção' anual, o estoque bovino aumentava ge- ce ter tido prosseguimento.
ometricamente" (MAMIGONIAN, 1986, p. 45-46). A disposição desse esto-
que estimula o estabelecimento de charqueadas, localmente chamadas A partir dessa época, começa também a fazer-se diretamente pre-
"saladeiros", visando ao abastecimento do mercado consumidor do Rio de sente o capital financeiro europeu. Em 1895 forma-se em Antuérpia a
41
40
Compagnie des Produits Cibils, que adquire e passa a explorar a charqueada
suceder a Cibils na exploração de Descalvados: a Société Industrielle et
de Descalvados (Decreto n 2007, de 18.4.1895). Os negócios da borracha,
2

Agricole au Brésil, fundada em Bruxelas em 1905 (Decreto n 5983, de 2

que então tomavam maior impulso, atraem também capitais belgas, surgin-
18.4.1906).
do a Compagnie des Caoutchoucs du Matto-Grosso e a Albuna S. A. (De-
creto n 3731, de 6.7.1900; STOLS, 1971, p. 265).
2
No entanto, de acordo com Alves, ainda nesse período inicial do sé-
culo XX a economia regional era dominada pelas casas comerciais
No início do novo século ocorreriam ainda tentativas de reavivar a
estabelecidas nas principais cidades do Estado, particularmente Corumbá:
extração aurífera. Assim, já em 1902 a empresa australiana The Transpacific
(Brasil) Mining and Exploration Company, Limited inicia operações com "As casas comerciais eram, nesse momento (1914), os mais notórios exemplos
uma draga no rio Coxipó, nos arredores de Cuiabá, com "resultados muito de concentração do capital em Mato Grosso, correspondendo a estruturas extre-
mamente complexas, jamais conhecidas em qualquer época anterior. Exerciam
vantajosos" (LISBOA, 1909, p. 86; Decreto n 5022, de 3.11.1903). Ainda
a
o monopólio do comércio de importação; controlavam boa parte do comércio
de acordo com Lisboa, o "grande sucesso dos primeiros anos de dragagem de exportação e da navegação; dispunham de secções bancárias' que, além de
no Coxipó", por essa companhia, deu início a "um movimento industrial de empreenderem operações próprias, funcionavam como intermediárias de ban-
cos nacionais e estrangeiros; representavam companhias seguradoras; incorpo-
relativa importância para o Estado, tendo como sede financeira a praça de
ravam indústrias; e apropriavam-se de terras para explorar a pecuária, a agricul-
Buenos Aires" (p. 92). De fato, em 1905 e 1906 são autorizadas a funcionar tura e a extração de produtos vegetais e minerais" (ALVES, 1984, p. 37).
em Mato Grosso nada menos que cinco empresas de mineração, todas fun-
dadas em Buenos Aires e operando com capitais ingleses. Trata-se das em- Tratava-se, de toda forma, de uma economia que demonstrava um
presas Mato Grosso GoldDredging Company (Decreto n 5590, de 11.7.1905);
2 certo dinamismo. A exportação crescia sistematicamente, passando em 10
Diamantino (Matto Grosso) Dredging Company (Decreto n 5674, de2 anos, de 1901 a 1911, de 6 mil a 18,5 mil contos de réis, embora essas cifras
5.9.1905); The Cabaçal Gold Dredging and Exploration Company (Decre- fossem crescentemente sustentadas pela exportação da borracha; a partir
to n 5839, de 9.1.1906); The Brumado Gold Dredging and Exploration
2 de 1907, e em menor escala pela erva-mate. A exportação de gado em pé
Company (Decreto n 5855, de 16.1.1906); e a Companhia
2
Privilegiada era o terceiro item de maior importância, seguido de longe pelo charque.
Éste Mato Grosso, citada por Lisboa como Coxim Gold Dredging Co. (De- Assim, em 1911, a borracha constituía 54% das exportações; a erva-mate,
creto n 5864, de 23.1.1906; LISBOA, p. 85). Tais empresas, no entanto,
e 26%; o gado em pé, 9,5% e o charque, 3,5% (ÁLBUM Graphico..., p. 121). É
não prosperaram (LISBOA, p. 92). certo que o mercado consumidor apresentava-se relativamente restrito, sen-
do em 1908 a população total do Estado estimada em apenas 170 mil habi-
Ainda no campo da mineração, outro empreendimento voltou-se à tantes (CATALOGO dos productos enviados pelo Estado de Matto Grosso
exploração do manganês das jazidas de Urucum, próximas a Corumbá (ob- para a Exposição Nacional de 1908, p. 28-29). O movimento comercial, de
jeto de diversas concessões e tentativas de extração desde a época imperi- qualquer forma, mostra-se francamente ascendente a partir de 1906, com o
al): trata-se da Compagnie de 1'Urucum, formada em 1906 em Ougrée, na número de entradas de embarcações nos portos do Estado passando de 117,
Bélgica (Decreto n 6426, de 21.3.1907).
2 nesse ano, a 382, em 1912 (ÁLBUM Graphico..., p. 124-125).

Nesse meio tempo amplia-se a exploração dos ervais nativos do sul Por outro lado, cabe notar que, se a borracha e a erva-mate eram já
do Estado. A Companhia Matte-Larangeira associa-se em 1902 a capitais exploradas tão intensamente quanto era possível na época, o gado, por sua
argentinos, através da formação da empresa Larangeira, Mendes & Cia., vez, permanecia subutilizado. Como se sabe, o gado proveniente de Mato
com sede em Buenos Aires (ÁLBUM Graphico..., p. 254). Grosso, através de Minas Gerais, era nessa época responsável por boa parte
do abastecimento dos mercados urbanos do Rio e de São Paulo. Mesmo
Também em Buenos Aires, em outubro de 1906, era fundada uma soci-
assim avaliava-se, em 1907, que Mato Grosso exportava "relativamente pouco
edade anónima denominada Trust dei Alto Paraguay, destinada a adquirir uma
para Minas, pelas enormes distâncias e dificuldades" (O BRASIL — suas ri-
vasta propriedade situada entre os rios Paraguai e Miranda, em Mato Grosso: a
quezas naturaes, suas indústrias, 1986, v. 2, t. 2, p. 425). Ainda em 1914,
Fazenda Rodrigo, com cerca de 385 mil ha (Decreto n 7780, de 30.12.1909).
2

alguns cálculos garantiam que o consumo e a exportação de gado em pé


Ainda na primeira década do século XX, novas charqueadas são insta- poderiam ser perfeitamente dobrados, "sem prejuízo e perigo para um au-
ladas no Estado, com capitais uruguaios: assim o Saladeiro Pedra Branca, mento razoável do estoque" (ÁLBUM Graphico..., p. 292).
em Miranda, o Saladeiro Tereré e o Saladeiro de Barranco Branco, em
Porto Murtinho (ÁLBUM Graphico..., p. 293; LISBOA, p. 157-158; Essas circunstâncias eram bastante conhecidas na época e, como já se
MAMIGONIAN, p. 49). Na mesma época, uma nova companhia belga vinha mencionou, frequentemente as propostas de ligação ferroviária entre Mato
Grosso e o litoral faziam referência ao aproveitamento comercial do gado
42
43
disponível nesse Estado. Veja-se, por exemplo, o que dizia em 1904 a No mesmo ato de fundação, foram eleitos para a diretoria da compa-
Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais, ao submeter ao Clube de nhia representantes de instituições europeias, a começar pelo próprio presi-
Engenharia a questão da ferrovia para Mato Grosso: "é sabido quanto a in- dente, Henri Lartigue, "administrador da Sociedade de Estradas de Ferro
dústria pastoril, a mais importante riqueza daquela vasta região [Mato Gros- Algerianas"; integraram também a alta administração da Noroeste dois acio-
so], ressente-se da falta de meios de transporte para os seus produtos"; e nistas da citada Compagnie Générale— Louis Malchain, como membro da
mais adiante, depois de mostrar todo o longo caminho percorrido, a pé, pelo diretoria, e Ernest Poizat, como membro do conselho fiscal {Diário Oficial
gado mato-grossense até os mercados consumidores: da União de 25.6.1904, p. 2992-2994).
"Não é fácil imaginar quantos meses demanda tão penosa travessia, quantos Mais tarde a Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil cele-
prejuízos de toda a sorte representa essa jornada com o desenvolvimento de brou com a mesma Compagnie Générale de Chemins de Fer et de Travaux
centenas de léguas. Quando se considera que todo esse gado pode ser condu-
zido dos próprios campos em que é criado aos mercados de S. Paulo e Rio em
Publics, como previsto, um contrato para "empreitada geral da construção
dois e três dias, chegando ao seu destino nas melhores condições para ser da linha", pagando-lhe em obrigações da própria Noroeste {Diário Oficial
abatido, isto é, são, gordo e descansado, fácil é reconhecer quanto temos sido da União, edições de 9.10.1904 e de 13.6.1906).
imprevidentes e desleixados na solução de uma das mais vitais questões de
interesse nacional" (Relatório n° 55 da Companhia Paulista, 1904, p. 23). Por outro lado, a Noroeste realizou sempre os lançamentos de suas
obrigações (debêntures) em praças europeias, citando-se especificamente
Esse entusiasmo da Paulista, aliás, não ficou apenas na retórica: mais
Paris, Amsterdam e Bruxelas. O primeiro lançamento ocorreu já em novem-
tarde, passando à ação, essa companhia estabeleceria um frigorífico na re-
bro de 1904 e a ele seguiram-se vários outros (ver, por exemplo, as edições
gião de Barretos (SP), adquirindo ainda, na mesma região, áreas para engor-
da do gado proveniente de Mato Grosso e Goiás. Na verdade, a ampliação do Diário Oficial da União de 13.11.1904, 10.11.1906 e 27.3.1908).
do mercado consumidor paulista processava-se com tamanho ímpeto que O engenheiro João Teixeira Soares (um dos fundadores da Noroeste,
atraía irresistivelmente a economia pastoril mato-grossense. Nos anos iniciais eleito seu vice-presidente, tendo funcionado sempre na prática como presi-
do século, algum tempo antes do início da construção da NOB, essa atração dente efetivo) tinha, por sua vez, antigas ligações com os capitais europeus.
manifestou-se, por exemplo, na abertura da "estrada boiadeira", ligando a Já no início da década de 1880 fora indicado engenheiro-chefe da constru-
região dos Campos da Vacaria às barrancas do rio Paraná, no Porto 15 de ção da estrada de ferro Curitiba-Paranaguá pelo gerente brasileiro da
Novembro (ABREU, 1976). empreiteira belga Dyle et Bacalan (TELLES, 1984, p. 3Ó5) . Posteriormente, 2

Soares figuraria em diversas empresas europeias com interesses no Brasil,


Nas circunstâncias mencionadas, não seria evidentemente de espan-
tar que a ideia de ligação ferroviária entre Mato Grosso e o litoral pudesse de frequentemente ao lado do banqueiro parisiense Hector Legru e mesmo do
alguma forma interessar capitais brasileiros ou estrangeiros ou ambos. A capitalista norte-americano Percival Farquhar . 3

esse respeito, caberia aqui discutir um tanto mais pormenorizadamente as De fato, na formação da Companhia Estrada de Ferro Espírito Santo
sugestões, já referidas, que vinculam a construção da NOB a interesses im- e Minas, em Bruxelas, em 1895, Teixeira Soares aparece como u m dos
perialistas — mencionando, explicitamente, capitais franco-belgas e o em- fundadores, ao lado, entre outros, de Legru (Decreto n 2272, de 2.5.1896) . e 4

presário norte-americano Percival Farquhar. Soares e Legru figuram ainda como fundadores e acionistas (embora peque-
nos) da Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil, formada em
Na verdade, não é preciso procurar muito para se encontrarem
Bruxelas em 1898; no ato da fundação, Soares foi aliás eleito um dos admi-
vinculações entre a Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil e
nistradores da companhia (Decreto n 2884, de 25.4.1898). Mais tarde,
a

capitais estrangeiros. Já no momento da constituição da companhia se de-


Teixeira Soares encontra-se ao lado de Legru e Farquhar na formação da
clara que, entre as providências que a precederam, incluíam-se:
Société Générale de Construction, fundada em Paris, em 1908, com o fim
"obter, por meio de u m acordo com a Compagnie Générale de Chemins de Fer et de empreender as obras da barra e do porto do Rio Grande (RS); essa em-
de Travaux Publics a segurança de que a construção da linha seria contratada
presa constituía-se por dez mil ações, e assim se apresentavam os quatro
por empreitada na Europa" [el "obter de um sindicato organizado na Europa os
capitais precisos a essa construção o u pelo menos à da primeira seção, b e m
como para que a sociedade possa funcionar"'. 2
A ferrovia Curitiba-Paranaguá, como se sabe, constitui uma das glórias da engenharia brasileira e sua
construção trouxe elevado prestígio a Teixeira Soares.
3
Hector Legru é em geral apontado como um íntimo colaborador de Farquhar, em seus empreendimen-
A Compagnie Générale de Chemins de Fer et de Travaux Publics, fundada em Bruxelas em 1902 e tos no Brasil (ver, a esse respeito, SAES, 1986; GAULD, 1964, p. 94).
autorizada a funcionar no Brasil em outubro de 1903, visava a "empreitada da construção e superes- 4
Na lista dos fundadores dessa companhia, aliás, aparece também o engenheiro Arthur Alvim, outro dos
trutura da linha" da estrada de ferro de Vitória (ES) a Diamantina (MG) [Decreto n° 5004, de 20.10.1903). futuros fundadores da Noroeste.

44 45
rigor qualquer relação mais estreita entre os interesses belgas em Mato Gros-
maiores acionistas: Percival Farquhar, 4.000; Hector Legru, 2.484; Banque cie so e a participação de belgas na construção da ferrovia.
Paris et des Pays Bas, 1.616; João Teixeira Soares, 1.100 (Decreto n 7210, Q

Ademais, numa obra bem posterior (publicada em 1987), em que


de 3-12.1908). Em 1912, Teixeira Soares apareceria ainda como fundador e
Stols se dedica especificamente à presença belga em Mato Grosso, nota-se
pequeno acionista da Empresa de Armazéns Frigoríficos, formada no Rio
que mesmo essa breve referência desaparece: embora efetuando um minu-
de Janeiro e controlada indiretamente por Farquhar e Legru através da
cioso levantamento das atividades belgas em Mato Grosso, num período
Compagnie du Port de Rio de janeiro (Decreto n 9505, de 30.3-1912). a

bastante restrito (1895-1910), o autor sequer menciona a participação de


Deve-se notar, por outro lado, que João Teixeira Soares mostra-se capitais belgas na construção da NOB (STOLS, 1987). Ora, se não a menci-
nessa mesma época ligado a inúmeras outras empresas, brasileiras ou es- ona, não pode ser evidentemente porque ela não tenha existido; o que
trangeiras, que aparentemente nada têm a ver com as personalidades até parece significativo nessa omissão é que ela indica a relativa desimportância
aqui eiradas . dessa participação e, o que é ainda mais significativo, sugere a inexistência
de uma coordenação entre os capitais belgas investidos na ferrovia, qual-
Enfim, cabe observar que na biografia de Farquhar, escrita por Charles
quer que fosse o seu montante, e aqueles outros capitais também belgas
Gauld, Teixeira Soares é mencionado várias vezes, por suas ligações de
investidos em empreendimentos diversos no Estado de Mato Grosso. O
negócios e amizade com o norte-americano. Segundo Gauld, Farquhar en-
certo enfim é que, nessa última obra, a NOB é mencionada apenas duas ou
controu-se pela primeira vez com Soares em 1906 (por ocasião da compra,
três vezes e, em todas, claramente enpassant. Numa delas, relatando as
por Farquhar, da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande) e teve nele, durante
dificuldades da Compagnie de 1'Urucum em obter mão-de-obra para seus
as duas décadas seguintes, um " ideal associatè'. O mesmo autor informa
trabalhos, observa Stols: "Nesse momento a construção dos caminhos de
que Soares adquiriu, na época, uma parte menor da citada ferrovia e foi
ferro Madeira-Mamoré e São Paulo-Corumbá, a Noroeste, acentuava a carên-
incluído por Farquhar no board de sua BrazilRailway Company, o biógrafo
cia e o alto preço da mão-de-obra" (STOLS, 1987, p. 97). Em outra, referin-
acrescenta que o norte-americano, daí por diante, "afeiçoou-se" (became
do-se às dificuldades enfrentadas pela companhia belga em Descalvados
fond) a Teixeira Soares (GAULD, 1964, p. 167 e 186) . 6

(Société Industrielle et Agricole au Brésil), escreve o mesmo autor:


Tudo isso posto, pode-se voltar às sugestões de vinculação entre a "Apesar das novas perspectivas com a construção das ferrovias Madeira-Mamoré
NOB e interesses imperialistas — para dizer, todavia, que há inúmeras cir- e Noroeste, que teriam podido tirá-la de seu encravamento, sua [da companhia
cunstâncias que escapam à linearidade proposta por esse raciocínio e, mes- belga) liquidação foi pronunciada em 1911 após a venda de suas propriedades
mo, a desmentem (indicando, ao contrário, que a presença de capitais e concessões ao homem de negócios norte-americano Percival Farquhar" (id.,
p. 107).
monopolistas está longe de constituir a chave explicativa do surgimento
dessa ferrovia). A respeito desse assunto, parecem ainda mais significativas as pala-
vras do próprio diretor da Compagnie de 1'Urucum. Expondo as realizações
Em primeiro lugar poderia comentar-se a afirmação de que a Noroes-
e perspectivas da companhia, num relato escrito em data não-anterior a
te do Brasil "foi financiada por capitais franco-belgas, exatamente num mo-
março de 1908 (quando, portanto, não só já se havia decidido a mudança do
mento em que especialmente grupos belgas tinham grandes interesses eco-
traçado da Noroeste como estavam prestes a iniciarem-se os trabalhos de
nómicos localizados em Mato Grosso" (ALVES, 1984, p. 69).
construção em Porto Esperança), o engenheiro Pierre M. de Thier não faz
O historiador belga Eddy Stols, num trabalho publicado em 1975 (ci- uma única referência a essa ferrovia. Muito ao contrário, declara que sua
tado por Alves), escreveu de fato o seguinte, referindo-se aos esforços dos empresa pretendia efetuar a exportação do minério de manganês pela via
belgas para a recuperação da rentabilidade de seu estabelecimento em fluvial do Prata. Leia-se o trecho:
Descalvados: "As perspectivas pareciam boas com a construção da estrada "A Empresa propõe-se ainda a estabelecer uma estrada de ferro entre as minas
de ferro Noroeste de Bauru a Corumbá, na qual participaram capitais e en- e o rio Paraguai, dois trapiches com armazéns nas margens dos rios Paraguai e
genheiros belgas" (STOLS, 1975, p. 71). Todavia, essa é a única menção de Paraná ou Prata, providos de todos os aparelhos mecânicos necessários para
carga, descarga e baldeação nos navios fluviais e de ultramar, e estabelecerá
Stols à NOB, no trabalho citado — e nela, como se vê, não se estabelece a
também uma linha de navegação própria entre Corumbá e o Rio da Prata"
(CATALOGO dos productos..., 1908, p. 132).
5
Assim, por exemplo, a The Brazilian Metallurgical Syndicate, Limited, fundada em Londres em 1907; a
Companhia Brasileira de Laticínios, formada no Rio de Janeiro e autorizada a funcionar em 1907; a S. Igualmente interessantes, a respeito da Compagnie de 1'Urucum, são
A. Caixa Geral das Famílias, também do Rio de Janeiro, etc. as observações de Miguel Arrojado Lisboa — que, tendo integrado, como
6
A tradução de todos os trechos citados de GAULD é de minha responsabilidade. Essa mesma obser-
vação aplica-se também a STOLS, 1987 (obra que será citada mais adiante).
47
46
geólogo, a Comissão Schnoor(incumbida do levantamento prévio do traça- ela era excessivamente mal construída para servir a u m sistema
do modificado da NOB, em direção a Corumbá), deu conta de suas observa- transcontinental para Antofagasta, no Chile" (p. 174). Dado o caráter forte-
ções numa obra publicada em 1909- Referindo-se à questão do transporte mente apologético da obra de Gauld é permitido supor que, se Farquhar
do minério de manganês de Urucum, escreve Lisboa: tivesse tido qualquer coisa a ver com a construção da NOB, o biógrafo não
deixaria de registrá-lo. Ao invés disso, ele fornece ainda outra segura indica-
"O traçado da Noroeste passa pela base dos Morros d o Urucum [...]. Da futura
estação do Urucum [da NOB] haverá duas vias à escolha, até o carregamento ção de que o norte-americano não tinha o controle da empresa: relata que,
pelos transatlânticos. O transporte direto ao porto de Santos, via Noroeste, com no início de 1915 (quando o império de Farquhar no Brasil já havia ruído e
cerca de 1900 quilómetros, e u m caminho misto, com 30 quilómetros de via se encontrava sob liquidação), o próprio Farquhar, juntamente com o
férrea até Corumbá e navegação fluvial até Rosário [no rio Paraná, abaixo da
confluência com o rio Paraguai, já em território argentino] ou ponto mais conve-
liquidante da Brazil Railway, W. C. Forbes, transitou pela NOB a fim de
niente". visitar os estabelecimentos da BrazilLand em Três Lagoas (MT). Escreve
então Gauld:
Em seguida, e o mais importante, o autor apresenta alguns cálculos:
"Por sugestão de Farquhar, dois engenheiros estudaram a construção e o tráfego
"O minério de manganês é mercadoria de pequeno valor, que não necessita
da Noroeste. Ele [Farquhar] achava que Forbes poderia querer arrendar a deca-
cuidado especial de acondicionamento e que suporta sem inconveniente trans-
dente [failing] linha, quando o governo federal a encampou, para assegurar as
porte demorado. Práticos da navegação do Paraguai calculam que 20:000$000
remessas de gado para Osasco" (p. 268).
[20 contos de réis] pagam o custeio e benefício de u m vapor c o m chatas,
podendo transportar 2.000 toneladas por mês entre Corumbá e o Prata. Assim,
com u m serviço independente e material apropriado, é perfeitamente possível
efetuar esse transporte a u m custo de 10$000 [dez m i l réis] por tonelada. A
Companhia do Urucum pensa poder fazê-lo com menos de 8$000. Semelhante
tarifa afasta completamente a possibilidade de qualquer concorrência por parte
da via férrea para o transporte direto, via Santos, do manganês a ser exportado
para os portos europeus ou da América do Norte (LISBOA, 1909, p. 82; destaque
meu).

Por outro lado, caberia notar que as empresas de Farquhar — citadas


por Alves como ilustração do modo como o capital monopolista "pensou e
utilizou o transporte em função de seus interesses materiais" — essas em-
presas só se constituíram, na verdade, bem depois de sacramentada a altera-
ção do traçado da ferrovia (de Cuiabá para Corumbá) e quando a construção
já se processava em estágio relativamente adiantado. De fato, a empresa
de Farquhar BrazilLand, Cattle and Packing Company— que adquiriria,
como já se mencionou, o estabelecimento belga de Descalvados e também
vastas terras nas margens da ferrovia em Mato Grosso (além de fazendas em
outras partes do Brasil) — essa companhia foi fundada em Portland, Maine
(EUA), apenas em julho de 1911 (Decreto n 8917, de 23.8.1911; GAULD,
a

p. 226, nota 18). Ainda um pouco posterior é a instalação do "frigorífico de


Osasco" — a Continental Products Company, de Farquhar; segundo Gauld,
sua construção iniciou-se em princípios de 1912, concluindo-se no início de
1914, mas a efetiva operação só começou em junho de 1915 (GAULD, p.
219 e p. 277, nota 13).

Finalmente, deve-se ressaltar que a citada biografia de Farquhar des-


mente explicitamente que ele fosse o proprietário da NOB. De fato, essa
via é mais de uma vez mencionada por Gauld como "a ferrovia de Teixeira
Soares" (p. 173, p. 192, nota 34, e p. 268). O biógrafo refere-se à Noroeste
como "uma medíocre linha de bitola estreita, de baixa capacidade de carga",
e acrescenta: "Farquhar estudou a aquisição de seu controle mas decidiu que

48 49
exterior" (CERVO, 1981, p. 14 e 53). Tais elites foram mesmo levadas por
"A Repetição da Aventura Congolesa": essa consciência a tentarem, em meados do século passado, uma política
protecionista (id., p. 18-19) — a qual, no entanto, não vingaria, vencida
o Estado Brasileiro, o Imperialismo pela necessidade de manter os interesses económicos dominantes interna-
mente, interesses que repousavam numa estrutura adaptada, desde a Coló-
e os Belgas em Mato Grosso nia, à dependência externa.

Em face da concepção "economicista", que afirma a funcionalidade Nota-se enfim que essas elites, assim impedidas de romper definiti-
da NOB para interesses imperialistas situados em Mato Grosso, parece que vamente com o imperialismo (como fez por exemplo o Japão, na mesma
não seria despropositado fazerem-se aqui algumas observações sobre as época), concentram-se desde então, em suas relações com as potências
relações entre o Estado brasileiro e os capitais e potências imperialistas, imperialistas, na manutenção do que poderia talvez chamar-se "projeto na-
numa perspectiva histórica. cional mínimo", ou seja, a defesa da soberania sobre o território e o resguar-
do do que consideravam a "honra" e a "dignidade" nacionais, contra a arbi-
A mencionada concepção, buscando explicar a formação brasileira trariedade e o despotismo próprios daquelas potências. Mostrando-se-lhes
pela ação do colonialismo e do imperialismo, não raro negligencia a ação das inacessíveis as vias "da força e da concorrência, que comandavam a política
forças políticas internas do país, supondo-as como simples extensões dos externa das potências dominantes", as elites brasileiras do século passado
interesses externos. Os estudos históricos, todavia, caso pretendam de fato adotam, em suas relações com essas potências, a via do "direito":
lançar alguma luz sobre os processos sociais, não podem deixar de observar
que seria completamente equivocado estabelecer uma relação unívoca e "O direito contra a força, eis a concepção das relações fraco-forte, desenvolvida
pelo pensamento brasileiro no século XIX. (...) agarrar-se à razão e ao direito,
linear entre, por exemplo, dependência económica e dependência política.
apelar à 'civilização', às negociações, à diplomacia, significava descartar a guer-
ra, aceitar humilhações, reclamar, protestar, mas não ir além, por imprudente,
É fato sabido e ressabido que, no Brasil, a estrutura económica coloni-
desastroso" (CERVO, 1981, p. 15).
al se prolongou praticamente intacta após a Independência, mantendo-se o
país na condição de exportador de produtos primários e importador de Sobre essa política e seus resultados parece bastante ilustrativa uma
manufaturados, além de dependente dos centros financeiros do exterior. observação de Celso Furtado:
Sabe-se também que a manutenção dessas relações deveu-se, de forma "Estrito senso, seria difícil explicar como o Brasil, com seu imenso e rico terri-
decisiva, às próprias características da estrutura social do país. O liberalismo tório desprotegido, atravessou incólume a era do imperialismo vitoriano. Mais
radical, que triunfou sobre as correntes protecionistas durante todo o perío- ainda, que haja conseguido forçar a França a renunciar a suas pretensões, não
sem algum fundamento histórico, à margem norte do rio Amazonas; haja enfren-
do imperial, tinha "os pés no chão: beneficiava as classes dominantes da tado o bloqueio inglês e levado a Inglaterra a aceitar arbitragem em disputa de
estrutura social, a fundiária, interessada em manter o predomínio agrícola na territórios na Amazónia; haja resistido a pressões americanas e de outras origens
economia interna, e a comercial, interessada em não ver diminuir pela tarifa para a internacionalização da Amazónia. O segredo desse voar sem asas estava
o volume de seus negócios" (CERVO, 1981, p. 18). Acrescente-se que a em não aceitar o protetorado de nenhuma grande potência" (FURTADO, 1979,
p. 14-15).
essa identidade de interesses, entre as classes dominantes brasileiras e as
potências do capitalismo central, somava-se uma identidade de pensamen- Enquanto isso, o país não deixava de assimilar os novos produtos da
to, de forma que a economia, e por extensão toda a vida social, tendia a ser modernidade ocidental, nomeadamente em matéria de serviços urbanos e
interpretada segundo um aparato conceituai gestado nos centros capitalis- transportes. Para tanto os capitais estrangeiros eram não só aceitos como
tas, transformado em "corpo de doutrina" e aceito, com uma "fé inabalável", buscados, num processo viabilizado pela prosperidade da agroexportação
"independentemente de qualquer tentativa de confronto com a realidade" — em cujo âmbito desenvolvem-se relações capitalistas. Nesse contexto a
(FURTADO, 1987, p. 160). Abolição e, mais ainda, a República aparecem como u m importante
aggiornamento, que pouco a pouco recoloca o Brasil "numa posição de
Não obstante, a historiografia registra que a dependência económica, maior destaque na divisão internacional do trabalho e no caminho dos fluxos
tanto quanto a política, foi desde o início claramente percebida pelas elites de capital e de força de trabalho que se encaminhavam do Velho para o
dirigentes do país, produzindo mesmo nelas, em certos momentos, senti- Novo Mundo" (SINGER, 1977, p. 352), abrindo assim novas perspectivas
mentos de "desânimo" e "frustração", causados pela constatação da "fraque- para a expansão do capitalismo no país. A instauração da República, com
za da nação", "mera espectadora do que se passa entre ela e o mundo efeito, detona u m movimento particularmente febril de "atualização" da
economia e dos padrões culturais e políticos brasileiros; com ela legitima-se
50
51
um elemento indispensável e útil do desenvolvimento" (KARAVAEV, 1987,
no país o "espírito capitalista", consagra-se uma certa "ânsia de enriqueci-
p. 71).
mento, de prosperidade material" e eleva-se o "homem de negócios" a uma
posição "central e culminante" na sociedade (PRADO JÚNIOR, 1987, p. 208). É verdade que um certo "nacionalismo económico" mostra-se pre-
Acelera-se, enfim, o processo de inserção do Brasil na modernidade. sente com força crescente. A política duramente liberal de Campos Salles
(1898-1902), por exemplo, provoca séria oposição de interesses económi-
Esse processo, sem dúvida, afirmou-se em meio a notáveis embates
cos internos prejudicados. Em 1903 Serzedelo Corrêa, em seu famoso estu-
entre diferentes projetos, emanados de grupos sociais com interesses distin-
do, atribui à estrutura económica "colonial" a responsabilidade pelo atraso
tos, cada qual com seu próprio modo de encarar a forma pela qual devia o
do país. Na mesma época, são os próprios interesses imediatos dos cafeicul-
país processar sua modernização (NOGUEIRA, 1984, p. 196). Tais embates
tores (que constituíam a base do poder na República) que reclamam uma
transparecem claramente nos primeiros anos do regime republicano — quan-
ação do Estado em sua defesa, contra as manobras baixistas das companhias
do, a uma política francamente industrialista, segue-se a grave crise financei-
norte-americanas que controlavam a comercialização do café (BANDEIRA,
ra do Encilhamento. Ao cabo desses anos emerge triunfante a via da "mo-
1978, p. 151-152). Ataques à presença estrangeira tornam-se, assim, cada
dernização conservadora", expressa politicamente no que se denominou
vez mais frequentes, embora não raro encobrissem simplesmente a defesa
"República dos Conselheiros", ou seja, a "ascensão e predomínio de uma
de interesses de grupos particulares .
corrente conservadora na gestão política e económica da nova República",
com "uma elite vinda dos mais altos escalões da política e administração do Todavia, o que importa ressaltar para os objetivos deste estudo é
Império" (SEVCENKO, 1985, p. 45-46) . 7
que, nesse período inicial da República, permanece, como a grande preocu-
pação dos estadistas brasileiros com relação ao imperialismo, o risco de sua
Com tudo isso, as relações entre os interesses internos brasileiros,
"territorialização" — se assim pode chamar-se a ocupação de territórios por
por u m lado, e os capitais e potências estrangeiros, por outro, tornam-se
potências imperialistas, limitando ou anulando a soberania de países inde-
mais complexas. A documentação do período é rica em indicações de que
pendentes ou de qualquer forma ferindo a autoridade de Estados soberanos
a elite dirigente do país continuava a encarar com razoável naturalidade a
em seu próprio território. De fato, as elites dirigentes percebiam claramen-
integração do Brasil à rede mundial então articulada pelo capital
te que estavam em face de um processo particularmente agudo de partilha
monopolista, aceitando, implícita e explicitamente, a lógica geral e as nor-
do mundo entre as potências industriais. E o Estado brasileiro, nessa linha de
mas básicas desse sistema (ver, por exemplo, BUENO, 1977, p. 220 e
raciocínio, tinha evidentemente motivos de sobra para tais preocupações: a
passim.). Acreditava-se que a economia nacional, no interior desse mode-
maior parte do território nacional encontrava-se, mais que desabitada, quase
lo, dispunha ainda de amplas possibilidades de desenvolvimento (ver, a
inteiramente desconhecida e, pior ainda, mal demarcada, com inúmeras
esse respeito, HOBSBAWM, 1988, p. 98-99). O "conservadorismo areja-
pendências fronteiriças.
do" instalado no poder consagrava a "imagem do progresso" como sua
"obsessão coletiva" (SEVCENKO, p. 29). À "República dos Conselheiros" corresponde, no plano da política exterior,
a gestão de Rio Branco — a qual, como se sabe, estendeu-se por quase dez anos:
Na busca desse progresso, um papel fundamental continuava a ser
tendo assumido o Ministério das Relações Exteriores em fins de 1902, a convite
reservado ao capital estrangeiro: sua presença era saudada e insistente-
do recém-eleito presidente Rodrigues Alves, o barão foi mantido no cargo por
mente reclamada, sendo o avanço do capital identificado muito simples-
Afonso Pena (empossado em 1906) e por Hermes da Fonseca (empossado em
mente com a marcha da "civilização". Note-se que essa atitude não se
1910) e nele permaneceu até sua morte, no princípio de 1912.
restringe às oligarquias agrárias, as quais, interessadas fundamentalmente
nas exportações, aparentemente não veriam maior inconveniente em que Um bem-documentado estudo assegura que Rio Branco foi um "per-
se mantivesse o país aberto à entrada de capitais estrangeiros, sob a forma feito intérprete dos segmentos dominantes da sociedade" (BUENO, 1977,
de mercadorias ou de investimentos. Atitude semelhante se verifica, de p. 178-179), de maneira que se pode considerar a política externa por ele
fato, entre os próprios industriais: ainda em 1881 o manifesto da recém- implementada como expressão dos desejos e interesses desses segmentos.
criada Associação Industrial, ao mesmo tempo em que reclamava o prote- Os principais elementos dessa política eram o "aumento do prestígio nacio-
cionismo tarifário, "interpretava a dependência económica exclusivamen-
te como dependência comercial e considerava o capital estrangeiro como 8
SINGER (1977, p. 380) descreve o episódio em que os industriais brasileiros Cândido Gafré e Eduardo
Guinle disputavam com Percival Farquhar concessões de serviços urbanos no Rio de Janeiro, no
começo deste século: "Sendo brasileiros, [Gafré e Guinle) vestiram suas pretensões com roupagens
7
O conceito de modernização conservadora é aqui utilizado com o sentido em que tem sido trabalhado nacionalistas e desencadearam uma campanha de imprensa contra o grupo de Farquhar".
por, entre outros, Carlos Nelson Coutinho (ver, por exemplo, COUTINHO, 1990).
53
52
nal e a defesa da soberania" (id., p. 313), significando uma continuação da A julgar pela abordagem economicista, no episódio da construção da
política externa do período imperial — adaptada agora a novas circunstânci- Noroeste o papel do Estado brasileiro teria sido o de um atento criado do
as, dentre as quais destacava-se a amizade com os Estados Unidos da Amé- imperialismo, belga primeiro e norte-americano depois: de fato, como já foi
rica (que o Império sempre repelira e a República iria cuidadosamente cul- relatado, a construção da NOB em Mato Grosso transcorreu sob direta res-
tivar, tendo em conta, além dos interesses da exportação cafeeira, também ponsabilidade da União, que assumiu expressamente a propriedade do tre-
as novas dimensões do poderio norte-americano no contexto internacional). cho Itapura-Corumbá.

Com essa política, persistia o esforço de evitar o "enfeudamento" do No entanto já se mencionou, por um lado, que não há evidências do
Brasil a qualquer potência industrial: tratava-se, assim, de preservar boas interesse direto dos capitais belgas em Mato Grosso na construção dessa
relações com os EUA a fim de contrabalançar as pressões imperialistas de ferrovia. Por outro lado — e o mais notável — as informações que se
países europeus; ao mesmo tempo, não se afastar da Europa a fim de não encontram nos trabalhos de Stols, já citados, indicam que as relações entre o
converter-se em simples satélite dos EUA; e, enfim, como saldo desse com- imperialismo belga e o Estado brasileiro podem ter-se desenrolado de forma
plexo jogo, manter a liberdade de ação do país em matéria de política exte- praticamente oposta àquela que é implicitamente postulada pela citada abor-
rior sul-americana (BUENO, 1977, p. 254; BANDEIRA, 1978, p. 169 e 170). dagem. Veja-se, por exemplo, o que escreve o historiador belga referindo-
Com Rio Branco permanece também a sustentação do primado do direito se às queixas da Compagnie des Produits Cibils contra ladrões de gado e
sobre a força, com a veemente defesa do princípio da igualdade jurídica de contra "usos abusivos" de suas embarcações por parte das autoridades esta-
todas as nações, como se verificou por exemplo na Conferência de Haia, duais:
em 1907.
"Os representantes diplomáticos europeus no Rio de Janeiro não deviam contar
Por outro lado, o aumento do "prestígio" internacional do país era muito com a benevolência ou a complacência das autoridades federais, já muito
diminuídas em seu poder de intervenção pela Constituição e pelas distâncias.
fundamentalmente percebido como uma função da manutenção da "ordem" Os presidentes Campos Salles e Rodrigues Alves diziam-se muito abertos ao
interna. Assim, Rio Branco preocupava-se em "ver o Brasil diferenciado do capital estrangeiro mas não iam muito longe em seu apoio aos negócios particu-
bloco de nações latinas da América", cuja ordem pública, em "estado crónico lares" (STOLS, 1987, p. 105).
de convulsão", produzia "descrédito" e "desconsideração" por parte dos países
europeus e dos EUA (BUENO, 1977, p. 183, 185 e 186-187). O mais importante, todavia, é o que se refere às aparentes pre-
tensões territoriais dos belgas em Mato Grosso. Stols, com efeito, enume-
Enfim, com Rio Branco e a "República dos Conselheiros", talvez ra várias tentativas belgas de estabelecimento em território brasileiro,
mais do que em qualquer outro período até então, as relações entre o desde a primeira metade do século XIX, para afinal deter-se no que con-
Brasil e os capitais e potências imperialistas aparecem claramente media- sidera o episódio "mais longo e perigoso da penetração belga no Brasil",
das pelo projeto nacional das elites dominantes, centrado na moderniza- a saber, "a atuâção da companhia belga Cibils no Mato Grosso de 1895 a
ção conservadora. Esse projeto — autoritário, conservador, tributário da 1912" (STOLS, 1971, p. 67-69). O estudioso informa que a Cibils enviou
teia das relações internacionais a que se prendiam essas elites por seus a Mato Grosso administradores "com larga experiência africana", com c
próprios interesses imediatos — esse projeto, todavia, tinha em vista a fim de adquirir novas propriedades e obter concessões para a exploração
viabilização do país como um ator não-subalterno no cenário internacional. da borracha, e enviou também "militares ou oficiais da força pública do
Tratava-se, para isso, de integrar o país à modernidade, incorporando to- estado do Congo"; acrescenta que "os meios expansionistas [belgas] con-
dos os símbolos usuais do progresso técnico e desenvolvendo as sideravam esta parte do Brasil realmente como um novo Congo" (id., p.
potencialidades económicas internas (vistas, prioritária embora não exclu- 70-72). Stols observa também que essa presença vinha tomar "propor-
sivamente, sob a ótica da agroexportação); manter inalterados, tanto quan- ções inquietantes para a soberania brasileira" nessas regiões e que, dian-
to possível, os antigos padrões de dominação das classes subalternas; e, te disso, a embaixada brasileira em Bruxelas "seguia com cuidado, passo
finalmente, preservar e ampliar o controle sobre o território, salvaguardan- a passo", os projetos das companhias belgas e "avisava o Rio sobre todas
do a soberania, a "honra" e a "dignidade" nacionais. as viagens, telegramas e conferências dos oficiais belgas". O autor con-
clui notando que a atuação diplomática brasileira na Bélgica "estava à
Com base nessas considerações podem apreciar-se com maior clare- altura para desbaratar diversos tipos de penetração imperialista e foi im-
za as relações entre o Estado brasileiro e o imperialismo belga em Mato portante e consciente instrumento na salvaguarda, pelo menos, da inte-
Grosso, na virada do século XIX para o XX. gridade territorial" {id., p. 73).

54 55
No trabalho mais recente (aliás intitulado precisamente "a r e p e t i - um telegrama enviado por Rio Branco ao presidente do Estado de Mato
ção d a a v e n t u r a congolesa") Stols estende-se u m pouco mais sobre Grosso em maio de 1908:
as vicissitudes dos belgas em Mato Grosso, para ao fim reafirmar as mes- "Atendendo aos desejos do governo belga manifestados pela sua Legação, peço
mas conclusões acima expostas. Particularmente interessante é sua des- a V. Exa. toda a benevolência para a Companhia Belga de exploração das minas
crição das relações entre os belgas e "as autoridades brasileiras, os famo- de Urucum a instalar-se brevemente nesse Estado. Como V. Exa. sabe, a Com-
sos coronéis". Stols escreve que os coronéis "disputavam o poder em panhia vai dar grande impulso à indústria mineira em Mato Grosso e merece
por isso todas as possíveis animações" [AHI (Arquivo Histórico d o Itamaraty)
benefício próprio e de toda uma clientela e tinham, apesar de sua apa- 308/2/161 . 9

rência feudal, u m senso muito agudo dos negócios e u m pronunciado


gosto pelo modernismo". Refere que, nas "numerosas escaramuças ar- Parece, enfim, que se pode encerrar esta parte observando que a
madas" ocorridas em Mato Grosso entre 1899 e 1906, houve belgas que concepção economicista se revela insuficiente para dar conta do "sentido"
perderam seus bens; além disso, "a cada vez, os vencedores punham em da construção da Noroeste do Brasil. Ao interrogar-se o económico, o que
questão as concessões obtidas e as davam a outros titulares"; e mais: se encontra, como foi visto, é um complexo amálgama de interesses econó-
"Uma vez as concessões recuperadas junto ao partido vencedor, já era micos e políticos, irredutíveis imediatamente uns aos outros; por seu turno,
preciso preparar-se para o retorno ao poder do grupo vencido" (STOLS, a suposta onipotência do imperialismo mostra-se uma crença ingénua —
1987, p. 99-101). tudo reafirmando, ainda uma vez, os direitos da História contra quaisquer
esquemas interpretativos que imaginem poder enquadrá-la em fórmulas
O autor nota também que, na luta política que culminaria na Revolu- preconcebidas.
ção de 1906 em Mato Grosso, levantara-se "um tema que se havia tornado
familiar às lutas políticas brasileiras, a venda da pátria aos estrangeiros". Es-
creve: "Com efeito os belgas penetravam em Mato Grosso e na Amazónia
justamente no momento em que, lá como alhures, no Brasil, a opinião públi-
ca, servida por um jornalismo onipresente e particularmente loquaz, tomava
uma coloração mais e mais nacionalista." Continua: "é certo que a existência
mesma de uma companhia como a Cibils devia ferir os sentimentos nacio-
nalistas dos políticos e intelectuais mato-grossenses", e conclui: "Em geral,
parece que os belgas tinham subestimado o poder político de nível provin-
cial no Brasil, suas explosões de violência, sua tutela burocrática, seus arrou-
bos retóricos e sua capacidade de chantagem e de exação" (STOLS, 1987, p.
102-103). Depois de referir-se aos já citados apelos dos belgas às autorida-
des federais do Brasil, nota que não só a Constituição e as distâncias restrin-
giam o campo de ação dos presidentes e seus ministros, mas que esses
precisavam também "cada vez mais levar em conta a opinião pública e o
Congresso Nacional, que na Capital mais que alhures no Brasil se mostravam
muito melindrados com a questão da invasão dos estrangeiros" (id, p. 105-
106). Observa, por fim:

"Os belgas, que na África tinham desdenhado o poder indígena, não souberam
apreciar em seu justo valor e potência o sistema político brasileiro, sua
especificidade e seu grau de suscetibilidade nacionalista. [...] O Brasil, junta-
mente com o México, era então, entre os países semicoloniais, o que estava em
melhores condições de perceber o perigo imperialista e a ele replicar" (id., p.
110).

Para concluir, cabe notar que, na verdade, as autoridades federais


brasileiras (trata-se, no caso, especificamente do Barão do Rio Branco) em- 9
É preciso dizer que na correspondência entre o Ministério das Relações Exteriores e a Presidência do
penharam-se em favorecer pelo menos um dos empreendimentos belgas Estado de Mato Grosso, no período pesquisado (entre 1901 e 1914), não se encontra qualquer indica-
ção precisa de um efetivo temor do Estado brasileiro com relação a eventuais riscos da presença
em Mato Grosso: a Compagnie de 1'Urucum, como se vê pelos termos de
belga em Mato Grosso.

56 57
CAPÍTULO 2

concepção que,
como foi visto no
capítulo anterior,

"Tutela do \ abstrai a
complexidade da inserção do

Povo em Brasil no contexto da


expansão imperialista —

Nome da supondo uma postura


meramente passiva do

Integridade primeiro — essa concepção,


no mesmo movimento,

do Espaço": abstrai também toda a trama


do relacionamento entre o

As Políticas Brasil e seus vizinhos da


América do Sul, em especial

Territoriais os da região platina: supondo


as economias sul-americanas

do Estado como simples reflexos das


economias capitalistas

Brasileiro desenvolvidas, essa


perspectiva só vê sentido nas
relações de cada uma delas
com os centros do capitalismo
(as relações, por assim dizer,
"verticais"), retirando qualquer
importância das relações
entre os diversos países
dependentes (num plano
"horizontal").

Dado que a maioria das


referências à Noroeste, já
citadas, enfatiza o caráter
"internacional" que teria ou
deveria ter essa ferrovia (até
mesmo desdobrando-se em
uma via transcontinental), é
necessário verificar, com
Rio Paraguai amparo na historiografia, se o
Álbum Graphico do procedimento acima descrito
Estado de Matto Grosso pode ser justificado.
ameaçado pelo "poder absoluto e arbitrário de Rosas" (CERVO, 1981, p. 60-
61). Em suma, "civilização" contra "barbárie", o Império constitucional con-
tra o caudilhismo arbitrário, metas "humanitárias", em ligação com objetivos
bastante práticos: "evitar a anexação do Uruguai" e "defender a liberdade de
Em Busca do "Equilíbrio de Poder": navegação dos rios platinos necessários ao Brasil para o acesso a Mato Gros-

As Relações entre o Brasil e so" (RIBEIRO JÚNIOR, 1977, p. 157).


Essa fase de intervenção aberta, inaugurada em 1851-52 na guerra
seus Vizinhos Platinos contra Rosas, prosseguiria com as frequentes intervenções no Uruguai e
culminaria, por fim, na guerra contra o Paraguai (1864-1870). Dessa época
Pelo exame da historiografia salta logo à vista que, desde a Indepen-
em diante, até o final do Império, a política platina do Brasil iria encerrar-se
dência, o Estado brasileiro executou uma ativa "política platina", caracteriza-
num "novo retraimento" (similar ao que teria vigido antes de meados do
da, em síntese, como uma política de "obstáculo ao surgimento de
século), marcado apenas pelo agravamento das relações com a Argentina
hegemonias": o Império, em face das demais nações tornadas independen-
(CERVO, 1981, p. 114).
tes na América do Sul, em particular na região do Prata, buscaria evitar que
qualquer uma delas se fortalecesse a ponto de constituir uma ameaça (CER- Dados os objetivos do presente livro, parece pertinente que se dete-
VO & BUENO, 1986, p. 39). nha aqui um pouco na análise das relações do Brasil tanto com o Paraguai
quanto com a Argentina, na segunda metade do século XLX.
Com relação ao Paraguai, sabe-se que o governo imperial, bem antes
do conflito com Rosas, procurou dele aproximar-se — promovendo, em
A "Estratégia Platina" do Império 1844, o solene reconhecimento da independência daquela República. A
aproximação era buscada, na verdade, também ou principalmente pelo
É interessante notar que, com relação ao Prata, desenvolve-se na Paraguai, que vislumbrava numa aliança com o Brasil "a garantia de sua
elite dirigente u m pensamento intervencionista, que contrasta vivamente independência, que ele próprio julgava ameaçada pela intenção de Rosas
com o pensamento desenvolvido, na mesma época, com relação aos países em anexá-lo à Confederação" (CERVO, 1981, p. 55). No entanto, um trata-
imperialistas. No Prata, a situação invertia-se: o Brasil considerava-se uma do de "aliança defensiva" entre o Brasil e o Paraguai seria assinado apenas
potência superior, até mesmo, à Argentina; assim, muitos intervencionistas em dezembro de 1850, quando o Império já dava como certa a necessidade
mostravam-se dispostos a aplicar ali "ideias, métodos e meios próprios das
da intervenção contra Rosas (SOUSA, 1969, p. 129).
grandes potências":
Ao Império interessava obter da República do Paraguai uma solução
"A intervenção fundamenta-se agora no critério dos interesses nacionais, avali-
para a questão de limites entre os dois países, além do direito de navegação
ados, como em outras partes, unilateralmente. O apelo ao sentimento nacional,
exacerbado pelas humilhações impostas da parte das grandes potências, tem no pelo rio Paraguai, via de acesso a Mato Grosso . O tratado de 1850 (secun-
Prata uma válvula de escape, na medida em que pode lavar-se aqui a honra e dado por outro, em 1856) garantia a livre navegação, ao mesmo tempo em
a dignidade nacional" (CERVO, 1981, p. 16).
que fixava prazos para a definição dos limites. A República paraguaia .no
entanto, desejando solucionar a seu favor o litígio fronteiriço, procurava jo-
Em meados do século, o estímulo imediato à aberta intervenção no
gar com o interesse brasileiro na navegação para Mato Grosso, impondo-lhe
Prata foi, como se sabe, o temor do expansionismo da Argentina de Rosas,
sucessivos empecilhos.
que parecia sonhar com a recomposição do antigo Vice-Reinado do Prata
(reunindo a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e a Bolívia). Nos debates que Nessas circunstâncias, a partir de 1853 torna-se mais tenso o relacio-
precedem e acompanham a intervenção aparecem as várias facetas e nuances namento com o Paraguai. No Parlamento brasileiro, vozes clamam contra "a
do pensamento intervencionista. Afirma-se o "princípio da segurança", signi- dificuldade das relações com aquele país, depois que Rosas deixou de ameaçá-
ficando "um equilíbrio de poder no Prata, pela divisão dos Estados, á favor lo" (CERVO, 1981, p. 63 e 67). A irritação do governo imperial com os
do Brasil"; aparece também a "doutrina da guerra humanitária", isto é, de empecilhos à navegação chegou ao ponto de patrocinar, em 1855, o envio
"redenção política para os povos vizinhos e para os residentes brasileiros no de uma forte esquadra a Assunção, visando intimidar o governo paraguaio
Uruguai": o Brasil deveria impedir a "absorção" do Paraguai e do Uruguai, "se
A questão de limites envolvia, como se sabe, territórios situados no sul do atual Estado de Mato Grosso
necessário pela guerra", em busca de u m "bem comum, supra-nacional",
1

do Sul.

62 63
— operação que aliás terminou em redondo fracasso (POMER, 1979, p. 68-
69). A historiografia, de fato, registra quanta importância se ligava então, no
O Brasil e o Prata
Brasil, ao problema da navegação pelo rio Paraguai — visto como mais no Início da República
urgente e grave do que a própria disputa territorial: segundo relata Cervo,
A instauração da República não alterou, senão por um breve período, a
Paranhos declarou em 1862 que, nas negociações com o Paraguai, o Brasil
atitude do Estado brasileiro em face da América do Sul e, em particular, da região
aceitava o adiamento da questão de limites mas "não o da livre navegação,
platina. O Prata permanecia "alvo de atenção prioritária da diplomacia brasileira",
que se obteria pela transação ou pela guerra" (CERVO, 1981, p. 97;
mantendo-se a "constante preocupação com a manutenção do statu quo em
destaque meu).
termos de mapa territorial e com a eventual emergência de nações hegemónicas"
Com relação à Argentina, o que se nota é que o "novo retraimento", (BUENO, 1984, p. 445). O breve período acima referido corresponde aos primei-
registrado na política platina do Império após 1870, não significou o fim dos ros meses do novo regime, quando predomina entre os dirigentes brasileiros um
velhos temores com relação ao "surgimento de hegemonias" na área em "panamericanismo apaixonado", dirigido tanto aos EUA quanto aos países sul-
questão. americanos. Busca-se, então, romper as "reservas" da velha diplomacia imperial
com relação às repúblicas do continente, ensaiando-se uma política de "fraternidade
O Tratado da Tríplice Aliança (1865) estipulava que, com a derrota americana" (irf., p. 40). A esse período pertence a tentativa de Quintino Bocaiúva,
final do Paraguai, seriam atendidas as reivindicações territoriais feitas por como ministro do Exterior, de resolver rapidamente a arrastada disputa com a
Brasil e Argentina junto àquela República. Assim, seria reconhecido o direito Argentina em tomo da região das Missões — assinando, menos de três meses
brasileiro à região litigiosa em Mato Grosso bem como o direito argentino a após o 15 de Novembro, o Tratado de Montevideu, em que o território disputado
todo o território então ocupado pelo Paraguai a oeste do rio de mesmo era simplesmente dividido entre os dois litigantes.
nome (até, portanto, a Baía Negra, onde começava o território brasileiro). O
reconhecimento da pretensão da Argentina implicaria, como se vê, que esse Para o conjunto do período aqui enfocado (que se estende até o início da
país absorvesse praticamente a metade do território que a República do gestão de Rio Branco na chancelaria brasileira), a historiografia aponta a similarida-
Paraguai considerava seu; em vista disso, ao fim da guerra, o Império repu- de formal entre os quadros internacionais sul-americano e europeu, de maneira
diou abertamente esse item do tratado, negando-se terminantemente a aceitar que os países sul-americanos, imitando a corrida armamentista e a "paz armada"
sua concretização. A política imperial concentrava-se na manutenção do da Europa, preocupavam-se com questões de armamentos, sendo ainda frequen-
"equilíbrio regional", que corresponderia ao "status quogeopolítico tradicio- te o uso, a esse respeito, de conceitos como "hegemonia" e "supremacia". A luta
nal"; de acordo com essa política, cabia ao Brasil, "a qualquer custo", manter pela "hegemonia" traduzia-se, em regra, na busca do aumento do "quadro de
a independência do Paraguai e do Uruguai para "evitar o confronto maior atração" de um país mais poderoso em relação a "nações menores". Esse aumen-
com a Argentina" (CERVO, 1981, p. 122 e 124) . 2
to, por sua vez, era buscado através do desenvolvimento das vias de comunicação
e das relações comerciais (BUENO, 1984, p. 379, 404,462 e 466-467).
Dessa forma, a discussão das questões do pós-guerra foi responsá-
vel por u m momento de extrema tensão nas relações Brasil-Argentina, No contexto sul-americano de então, sobressaíam Argentina, Chile e
no ano de 1874. Daí para diante, o foco das tensões passou a deslocar-se Brasil. Os dois primeiros viviam relações constantemente tensas, em decor-
para as discussões de limites entre os dois países, envolvendo o território rência de disputas sobre limites. Entre o Brasil e a Argentina, após aquele
de Missões. O impasse nas negociações reacendeu ainda uma vez os rápido período de efusões amigáveis, voltou a instalar-se de parte a parte
receios de guerra, de maneira que, em 1887, a tensão nas relações bila- uma persistente "prevenção" — a qual não se justificava por nenhuma questão
terais atingiu u m novo ápice, comparável ao de 1874. Durante todo "concreta", dado que, resolvida definitivamente (1895) a questão das Mis-
esse período, o Estado imperial continuou vislumbrando na Argentina a sões, os dois países registravam apenas pequenas desavenças comerciais e
aspiração de reconstruir, ao menos em parte, o antigo vice-reinado de incidentes fronteiriços, não-suficientes para um estremecimento de relações;
Buenos Aires — aspiração que era considerada "um pensamento fixo de assim, essa prevenção explicava-se apenas pela "histórica rivalidade" entre
todos os argentinos"; condenava-se também o "armamentismo" da vizi- os dois países. Quanto às relações entre Brasil e Chile, eram elas amigáveis,
nha, bem como a "hostilidade da opinião" argentina contra o Brasil (CER- facilitadas por uma série de circunstâncias: os dois países não se confinavam,
VO, 1981, p. 122 e 124-130). o que eliminava a possibilidade de pendências territoriais; tinham "esferas
de atração" diversas — um no Atlântico e o outro no Pacífico; além disso, no
que se refere a questões de limites e pretensões de hegemonia, tinham um
As tropas brasileiras, aliás, permaneceram no território paraguaio até 1876, enquanto Brasil e Argentina
procuravam resolver suas diferenças. "rival comum", ou seja, a Argentina (BUENO, 1984, p. 397, 383 e 416).

64 65
Enfim, havia os países "menores" — Uruguai, Paraguai, Bolívia e mesmo
principalmente ao desejo que têm de ver-nos enfraquecidos" (apud BUENO,
o Peru, que apareciam frequentemente como peças no jogo de poder e 1984, p. 329 e 455).
influência entre os mais fortes.
Por outro lado, na mesma época os dois países disputavam imigran-
As obras que se referem a esse período ilustram abundantemente o tes europeus, e a imprensa argentina era acusada de promover "campanhas
emaranhamento das relações entre todos esses atores. Logo no início do difamatórias" nas quais o Brasil era representado como um país impróprio à
período, o Tratado de Montevideu, negociado por Bocaiúva e recebido com imigração europeia (BUENO, p. 339 e 347-349). Eis, a propósito, como
entusiasmo na Argentina, colheu no Brasil, ao contrário, indignada repulsa Eduardo Prado se refere a essa questão:
tanto da opinião pública como do Congresso Nacional. As críticas ao tratado,
"Disse uma grande verdade o presidente [argentino] Rocca quando afirmou que
assinalando o retorno da prevenção no relacionamento entre os dois países, a entrada de 200.000 imigrantes na República Argentina equivalia ao ganho de
constituem notável índice do pensamento da época. Sustentavam elas que uma batalha. Não disse ele contra quem [...], mas todos [...] sabem que essa
a fronteira definida no acordo vitória é ganha contra o Brasil, cujo futuro político está problemático" (PRADO,
p. 85).
"seria desastrosa para o Brasil, pois o território argentino ficaria encravado no
seu a ponto de quase cortar as comunicações entre o Paraná e o Rio Grande do No âmbito das relações comerciais, as discussões entre os dois países
Sul. Essa cunha argentina iria constituir-se em uma ameaça à 'melhor parte do centravam-se em questões aduaneiras. Destacava-se aí o problema relativo
Brasil'. Próximos do mar, os argentinos acabariam por pretender 'apoderar-se'
do porto de Santa Catarina, abrindo assim outra saída para o Atlântico" (BUENO,
à farinha de trigo: a Argentina, país produtor, reclamava favores especiais
1984, p. 152). para a colocação de seu produto no mercado brasileiro. Cabe observar que,
nessa época, o intercâmbio com a Argentina era bastante significativo no
O antiargentinismo dos monarquistas revelava-se, por sua vez, nos
conjunto do comércio exterior do Brasil, sendo a balança comercial entre os
cáusticos artigos de Eduardo Prado, publicados nos jornais europeus:
dois amplamente favorável à primeira (BUENO, 1984, p. 219 e ss., p. 338 e
"A rivalidade entre o Brasil e a Argentina tem uma razão de ser histórica, que há 340).
de perdurar, mau grado todas as palavrosas manifestações de apreço e de ami-
zade". Outro foco de atritos era a questão dos armamentos. Admitia-se em
"[Entre o Brasil] e a República Argentina há conflitos de interesses e de influên- geral no Brasil que as aquisições bélicas da Argentina se deviam na verdade
cia. Nem belas palavras, nem cortesias internacionais podem destruir esse fato" às possibilidades de uma guerra contra o Chile; no entanto, pensava-se tam-
(PRADO, 1902, p. 79 e 83).
bém que um excessivo aumento da força argentina, "não acompanhado de
Prado dizia ainda que na Europa era prevista a divisão do Brasil em correspondente aumento da brasileira", não convinha ao país, por alterar o
três Estados independentes: a Amazónia, um Estado Central e o Extremo Sul "equilíbrio de forças no contexto sul-americano". Considerava-se, ademais,
— esse último "destinado a ser absorvido pela República Argentina", logo que a Marinha brasileira (que até o final do Império era a maior da América
que essa conseguisse realizar seu "velho ideal de reconstituir republicanamente do Sul) se havia reduzido, ao final da Revolta da Armada (1894), a propor-
o antigo vice-reinado de Buenos Aires" (id., p. 14-15). Nesse contexto, ções "não condizentes com a posição ocupada pelo Brasil na América do
enfim, o Tratado de Montevideu terminou por ser rejeitado pelo Congresso Sul" (BUENO, p. 383 e 370).
brasileiro, a conselho aliás do próprio Bocaiúva (BELLO, 1983, p. 61 e 186).
A rivalidade e a desconfiança entre Brasil e Argentina transpareciam
As prevenções entre Brasil e Argentina passam em seguida a alimen- ainda nos frequentes rumores sobre anexações e alianças envolvendo paí-
tar-se das dificuldades enfrentadas pelo jovem governo republicano, como ses sul-americanos. Em maio de 1892, por exemplo, os estadistas brasileiros
as revoluções no Rio Grande do Sul e a Revolta da Armada. Já em 1891, por movimentam-se em torno de boatos de anexação, à Argentina, do Paraguai
exemplo, o representante brasileiro em Buenos Aires cuidava de informar e do Uruguai. Em 1895, por outro lado, o representante brasileiro em Buenos
que a imprensa dessa cidade demonstrava "regozijo" pela convulsão política Aires identifica sinais de aproximação entre a Argentina e a Bolívia, infor-
do Rio Grande do Sul, insinuando que a eventual secessão desse Estado mando que a primeira iria subvencionar a construção de uma ferrovia ligan-
seria "aplaudida" na Argentina. Mais tarde registra-se também a seguinte do os dois países e que, além disso, tramitava no Congresso argentino uma
informação do representante brasileiro em Montevideu, em carta pessoal ao proposta de tratado de comércio com a Bolívia. Em 1896, é o próprio minis-
presidente Floriano Peixoto: tro das Relações Exteriores do Brasil quem, num documento público (seu
relatório anual), refere-se a esses temas, chamando a atenção para as ferro-
"É fora de dúvida que parece haver u m certo interesse para estas repúblicas
[platinas] na alimentação da guerra civil no nosso país, sendo isso talvez devido
vias argentinas que demandavam a Bolívia e o Paraguai. Em 1901, novas
preocupações são suscitadas no Brasil por um projeto em tramitação no
66
67
co já havia manifestado, no início do regime republicano, o temor de que a
Congresso argentino, ciando "inteira franquia aduaneira para todos os produtos
bolivianos". Na opinião do representante brasileiro em Buenos Aires, o projeto, federação trouxesse "guerras civis e estéreis agitações", as quais, igualando
caso aprovado, consumaria um "plano de suserania indireta da Argentina sobre o Brasil às demais nações latino-americanas, acarretariam a perda do prestí-
a Bolívia, ao canalizar a saída de todos os seus produtos" (BUENO, p. 445-466). gio de que o país desfrutara no exterior sob o Império. Pensava o barão que,
após as reformas "precipitadas e inconsideradas" do início da República, era
Finalmente, cabe dizer que, nesse contexto, eram frequentes no Bra- preciso "fortalecer e desenvolver os elementos conservadores, pôr termo às
sil as cogitações de medidas capazes de fazer face às "iniciativas" argentinas. agitações e à anarquia e assegurar acima de tudo a unidade nacional" (BUENO,
Em 1894, por exemplo, o representante brasileiro em Assunção, em carta 1977, p. 183-187).
ao governo brasileiro, avaliava:
Além de preocupar-se com a "consolidação nacional" do Brasil, o barão
"O Paraguai por sua posição geográfica e pelos antecedentes históricos de sua trabalhou para que o país assumisse, na América do Sul, uma posição de
política internacional, continua a ser u m elemento preciosíssimo para o Brasil,
em quaisquer lutas em que, por ventura, tenhamos de haver-nos com as outras
liderança, ou hegemonia — a ser exercida, conforme nota Bueno, em conjun-
repúblicas d o Prata, notadamente com a Argentina". to com a Argentina e o Chile, por meio de um "estreitamento da amizade"
com esses dois países (p. 216). Os esforços de Rio Branco com vistas à
Em seguida, o diplomata apresentava propostas concretas com a fi-
formação de uma "tríplice aliança" entre a Argentina, o Brasil e o Chile (apeli-
nalidade de "atrair o Paraguai para a órbita de influência brasileira" e, conse-
dada ABC) são registrados também por Moniz Bandeira, que atribui a essa
quentemente, retirá-lo "da influência que sobre ele exercia a Argentina": aliança a finalidade de "contrabalançar o poderio norte-americano" — o mes-
" D revisão d o tratado de amizade e comércio Brasil-Paraguai; 2) convénio mo poderio que, por sua vez, era utilizado por Rio Branco para "aliviar as
postal e telegráfico; 3) ligação telegráfica; 4) e construção de uma via férrea pressões" exercidas sobre o país pela Inglaterra. Conclui o autor: "Ele [Rio
ligando o Paraguai ao Atlântico, para dar saída à sua produção pelos portos
brasileiros" (apud BUENO, p. 455-456).
Branco] se movia em meio a essas contradições, para dar ao Brasil a hegemonia
na América do Sul e conservar a sua independência de ação, diante dos blocos
Outro exemplo é fornecido pelo próprio ministro brasileiro das Rela- imperialistas que se digladiavam" (BANDEIRA, 1978, p. 170).
ções Exteriores, num texto de 1896:
A propósito dessa pretendida aliança, Bueno enfatiza por outro lado a
"ao Brasil não é dado deixar de pensar em oferecer ao Chile, à Bolívia e ao
Paraguai qualquer dos portos de S. Francisco, de Paranaguá, de Santos, do Rio busca da manutenção da "ordem" na América do Sul:
de Janeiro no Adântico [...] para com o caminho de ferro de Antofagasta consti-
"Já em 1904, Rio Branco fazia ver ao Ministro argentino acreditado no Rio de
tuir-se a comunicação interoceânica que dê também à República [brasileira] u m
Janeiro a conveniência do estabelecimento de um tratado geral de arbitramento
porto no Pacífico" (id., p. 463).
entre Brasil e Argentina e de u m eventual acordo entre as três maiores Repúbli-
cas da América do Sul — Argentina, Brasil e Chile — com o fim de, no caso de
insurreição o u guerra civil em algum dos países limítrofes, procurarem concor-
rer, quanto possível, para o restabelecimento da ordem ou pacificação, sem
desprestígio do governo legal, e impedir que do território das três Repúblicas
O Brasil e o Prata sejam prestados auxílios aos revolucionários" (BUENO, 1977, p. 188).

na Época de Rio Branco Essas questões entrelaçavam-se também com o problema das agres-
sões imperialistas. Assim, seria do interesse das três repúblicas acabar com a
Segundo u m especialista, o aspecto mais marcante da ação de Rio "era das revoluções" na América do Sul, já que a "agitação" e a "desordem",
Branco, no que diz respeito ao contexto latino-americano, consistiu na "pre- além de desacreditarem as nações latino-americanas aos olhos da Europa e
ocupação em ver o Brasil diferenciado do bloco de nações latinas da Améri- Estados Unidos, retardavam seu progresso e abriam espaço para a ambição
ca e em conferir-lhe u m status de primeira potência sul-americana". De imperialista. Nas palavras de Rio Branco,
fato, na opinião de Rio Branco, segundo Bueno,
"Quando as grandes potências da Europa não tiverem mais terras a ocupar e
"o estado crónico de convulsão da o r d e m pública trazia a vergonha e a colonizar na África e na Australásia hão de voltar os olhos para os países da
desconsideração da América espanhola. [...] Os pronunciamientos e as guerras América Latina, devastados pelas guerras civis, se ainda assim o estiverem"
civis acarretavam o descrédito para a América Latina, permitindo que na Europa {apud BUENO, p. 189).
e nos Estados Unidos se falasse nas turbulentas repúblicas da América do Sul".
Relacionavam-se estreitamente, dessa forma, as duas facetas da polí-
Sendo, por "índole e formação", u m monarquista, adversário da tica de Rio Branco, uma voltada aos EUA e a outra dirigida ao contexto sul-
descentralização do poder e adepto do "princípio da autoridade", Rio Bran- americano:

69
68
"De certo modo, Rio Branco tomava atitudes preventivas. O 'Corolário Roosevelt'
não seria aplicado ao sul do Continente, pois as duas maiores nações (Argentina mosos como os da bacia platina (o que deveria tranquilizar a Argenti-
e Brasil) e eventualmente as três (Chile) iriam, consoante os planos do Chanceler, na); mas o chanceler brasileiro afirmava igualmente que a paz com os
impedir o advento do estado crónico de agitação. [...] A ordem política signifi- vizinhos dependia "também e principalmente" da vontade deles: o Brasil,
cava a garantia e o direito à sobrevivência das nações mais fracas [as quaisl
deveriam preocupar-se com a estabilidade e o progresso material e com o
assim, cuidaria de aparelhar-se para evitar que algum vizinho se sentis-
aumento do intercâmbio comercial. [...] Rio Branco identificava-se, assim, com se tentado "a dirigir-nos afrontas, a ferir os nossos brios e os nossos
os termos do 'Corolário Roosevelt' (...) ao mesmo tempo em que punha a área a direitos" (apud BUENO, 1977, p. 207-208). A "defesa nacional", por-
salvo de agressões europeias em nome do mesmo Corolário" (BUENO, 1977, p. tanto, constituía uma das preocupações de Rio Branco, como se vê
189).
pelas suas próprias palavras:
Não correriam assim, entretanto, os entendimentos entre os três prin-
"Os povos que [...] desdenham as virtudes militares e se não preparam para a
cipais países da América do Sul, uma vez que as disputas entre o Brasil e a eficaz defesa do seu território, dos seus direitos e da sua honra, expõem-se às
Argentina dificultavam os entendimentos com vistas à formação da citada investidas dos mais fortes e aos danos e humilhações consequentes da derrota"
tríplice aliança (BANDEIRA, 1978, p. 170 e 177). (apud BUENO, p. 166, nota 542) \

O fato é que, na época, a posse de uma grande esquadra era símbolo


de elevado status entre as nações, e por isso a questão tinha enorme reper-
cussão: as encomendas de vasos de guerra eram intensamente debatidas na
imprensa dos dois países, e as pretensões de um eram brandidas como
As tensões com a Argentina pretexto para incrementar as do outro.
Com efeito, as relações entre o Brasil e a Argentina, durante o perío-
Para os objetivos deste livro o que importa destacar é que — segun-
do de Rio Branco, continuaram marcadas por um clima de intensa rivalidade,
do indica a documentação do Ministério das Relações Exteriores — efetiva-
que chegou por vezes à beira da abertura de hostilidades. Tratava-se, por mente ocorreu nessa época, para além de uma simples guerra de argumen-
um lado, de uma competição pelo "prestígio": tos, uma séria escalada na tensão entre Brasil e Argentina, a qual parece ter-
"A partir de 1905 especialmente, os argentinos mal podiam conter-se em face se agudizado a partir dos últimos meses de 1906.
da política de Rio Branco [...), que buscava restaurar o prestígio brasileiro com
o objetivo de dar ao seu país o status de primeira potência sul-americana". De fato, já no início de novembro de 1906 o encarregado de negó-
"Sempre que se colocava o problema de prestígio, estava presente na mente cios do Brasil em Buenos Aires, Assis Brasil — ao relatar a Rio Branco, num
dos condutores d o Itamarati o desejo de não aparecer em segundo plano em longo ofício reservado, suas conversas com prestigiosos políticos argenti-
relação à Argentina. Ao contrário, havia sempre o desejo de suplantá-la nos
nos — informa que um de eus interlocutores "reconhecia que os arma-
c

certames internacionais" (BUENO, p. 206-207, 219).


mentos do Brasil levariam a Argentina a fazer outro tanto e temia que um
Assim foi, por exemplo, com a primeira troca de embaixadas entre os incidente qualquer produzisse a um momento dado o rompimento" (ofício
EUA e u m país sul-americano (com a criação simultânea, em janeiro de reservado de 8.11.1906 — A H I 206/2/1). Alguns dias depois, Assis Brasil
1905, da embaixada brasileira em Washington e da embaixada norte-ameri- volta à questão: "tenho tido motivos para suspeitar que a situação foi —
cana no Rio de Janeiro). No mesmo contexto encaixa-se a disputa junto ao talvez seja ainda — mais séria do que se mostrava e se mostra". Diz que
Vaticano, em torno da criação do primeiro cardinalato sul-americano (fins de parecia haver na Argentina uma corrente propondo que se desse ao Brasil
1905), bem como a concorrência pela honra de sediar a 3 Conferência a
um ultimato (exigindo que o país suspendesse suas encomendas de arma-
Internacional Americana (1906), entre outros episódios. mentos) e, no caso de uma negativa brasileira, se partisse logo para as
hostilidades, tomando a iniciativa. O representante brasileiro observa que
A rivalidade era também alimentada, por outro lado, pela polé-
"a cordialidade entre estes dois países [Brasil e Argentina] obedece a uma
mica entre os dois países em torno do reequipamento das respectivas
espécie de ritmo de períodos mais ou menos curtos de máxima e mínima
esquadras. O rearmamento naval brasileiro era defendido mediante a
que não permite repousar descuidosamente sobre a prolongação das boas
invocação das necessidades de defesa de u m extenso litoral e visando
épocas", e prossegue:
recolocar a Marinha do Brasil na posição de preeminência de que des-
frutara no Império. Rio Branco insistia no caráter defensivo dos proje-
Essa preocupação é mencionada também por CARVALHO, 1977 (ver especialmente p. 198). É ainda
tos brasileiros, enfatizando que o país pretendia adquirir belonaves de
3

evidenciada pela existência, na documentação do Ministério das Relações Exteriores, de um volume


grande calado — incapazes portanto de operar em rios, mesmo volu- manuscrito datado de março de 1904 e intitulado: Bases para o Plano Geral da Defesa Nacional: ofere-
cidas ao eminente estadista, o sr. Barão do Rio Branco í. I pelo general de brigada Francisco de Abreu e
Lima (AHI 322/1/22).
70
71
de janeiro, deixando a Legação brasileira a cargo do secretário, Oscar de
"Não é só a presente questão, u m tanto disparatada, dos armamentos; amanhã
Teffé. O jornal portenho El Diário de 28 de janeiro (recorte enviado por
pode surgir outra muito mais substancial. Já o imaginoso Dr. Zeballos admitiu,
há dias [...], a ideia da Argentina se interpor aos supostos projetos de conquista Teffé com seu ofício de I de fevereiro) diz que, enquanto as relações
a

do Brasil, análogos ao do Acre. A continuar as coisas como estão, não seria comerciais e políticas Brasil-Argentina iam muito bem, as "relações oficiais"
possível que, e m u m momento dado, ela nos intimasse a fazer a vontade do iam muito mal,"alpuntodehallaremseefectivamenteinterrumpidas", "con
Pena na questão de limites que se debate?" la agresiva designación dei Dr. Zeballos reputada aquiy en el Brasil como
Assis Brasil sugere algumas medidas, como uma aproximação com o una pedrada degenero alevoso". O jornal afirma também que nem o gover-
Chile e u m "arranjo comercial" com a Argentina. Lembra que "a irritação no nem a "opinião" do Brasil desejavam cultivar relações com a Argentina
atual" havia começado com a questão das tarifas alfandegárias, incluindo-se enquanto Zeballos fosse ministro, e cita, a propósito, a partida de Assis Brasil
aí as facilidades concedidas pelo Brasil à importação da farinha de trigo nor- e a iminente retirada do representante argentino no Brasil (AHI 206/2/2).
te-americana (competidora da argentina), e, em vista disso, pede entendi-
Convém destacar que, ainda em janeiro de 1907, repercutem na im-
mentos com os EUA:
prensa argentina declarações do chanceler da Bolívia, Cláudio Pinilla — o
"Se o governo dos Estados Unidos da América está sinceramente empenhado na qual, de passagem por Buenos Aires, manifestara-se acerca de construções
permanência da paz neste continente, deve concordar conosco na alteração do ferroviárias. De fato, em 24 de janeiro Oscar de Teffé envia recortes de
presente regime, que não pode deixar de produzir má vontade e os conse-
quentes perigos aqui".
jornais, chamando a atenção de Rio Branco para um deles: um extrato do La
Nación no qual, em entrevista, Pinilla destaca a integração entre as ferrovias
O diplomata avalia, entretanto, que mesmo essas negociações co- bolivianas e argentinas e fala de uma estrada de ferro Santa Cruz-Puerto
merciais não seriam o bastante para garantir a segurança brasileira, e conclui: Suarez , "cuya construcción se ha entregado a un sindicato argentino" e
5

"Julgo ainda indispensável o apoio do outro lado dos Andes [refere-se ao Chile] que "atraerá todo el comércio dei oriente boliviano hacia el Plata" (AHI
e uma preparação militar tão discreta como eficaz, a fim de ficarmos a coberto 206/2/2).
das veleidades arrogantes desta nação [a Argentina], por tantos outros títulos tão
amável e simpática" (ofício reservado de 15.11.1906 — A H I 206/2/1; destaque As relações entre Brasil e Argentina continuam difíceis. Assis Brasil
meu). reassume seu posto em fins de maio de 1907 mas solicita demissão em
Em meados de novembro de 1906, a nomeação de Estanislao Zeballos agosto, partindo finalmente de Buenos Aires em janeiro de 1908. Em 7 de
para o Ministério do Exterior da Argentina eleva ainda mais as tensões . Com maio desse ano, Teffé envia a Rio Branco recortes de jornais, comentando:
seu ofício de 22 de novembro, Assis Brasil envia um recorte do periódico La "causa especial reparo a insistência com que se apregoa a possibilidade de
Nación, que lamenta aquela nomeação por ela assumir naquele momento uma guerra entre os dois países". É interessante observar que um dos recor-
" un significado ingrato para naciones cuya amistad debemos cultivar" e tes (do jornal La Argentina de 4 de maio), ao dizer que o Brasil se preparava
porque seu primeiro efeito seria "desvanecer todo posible ambiente de para uma guerra, refere-se a "estradas de ferro estratégicas" e diz:
cordialidad en el trâmite de complejos asuntosplanteados ó aplantearse". "El último Iferrocarrill, el que llegará hasta Corumbá, ha sido resuelto
O outro lado da visão argentina é mostrado em um recorte do La Prensa apresuradamente a fines de marzo; se hizo el proyecto y se firmo el decreto a toda
enviado por Assis Brasil em 5 de dezembro. Ali um articulista diz que, caso o prisa" ( A H I 206/2/3) . 6

governo do Brasil não modificasse sua política, "anos más o menos, Em junho de 1908, enfim, Zeballos deixa o Ministério. As tensões,
tendremos graves dificultades quepueden conducirnos a la guerrd'. Assis todavia, não desaparecem, e o próprio ex-chanceler argentino iria ainda
Brasil, por seu lado, continua insistindo na necessidade de um acordo comer- protagonizar o episódio do "telegrama cifrado n 9", que veio a público em
Q

cial que favorecesse a farinha argentina (ofícios reservados de 22.11, 6.12 e novembro de 1908 . Além disso, em dezembro de 1908 o governo argen-
1

27.12.1906; ofício de 5.12.1906 — AHI 206/2/1).

A partir do início de 1907, as relações entre os dois países parecem


Puerto Suarez locaWm-se na fronteira da Bolívia com o Brasil, bem perto de Corumbá.
quase interromper-se. Assis Brasil entra oficialmente em licença em meados
Coincidentemente, no mesmo 7 de maio, no Brasil, o senador Ruy Barbosa escrevia longa carta
reservada ao presidente Afonso Pena, manifestando preocupação com a ameaça de desencadeamento
de uma guerra e propondo algumas medidas [Arquivo da Fundação Casa de Ruy Barbosa (FCRB) -
* Consta que o homem público argentino Estanislao Zeballos, ligado ao diário portenho La Prensa (principal CR 1127 1/1(60)1.
critico da política brasileira na época), mantinha uma "desavença pessoal" com Rio Branco desde o litígio das Trata-se do escândalo provocado pela comprovação de que Zeballos, quando ainda ministro, havia
Missões, em que aluara como defensor do ponto de vista argentino (como se sabe, naquela ocasião o interceptado e falsificado um telegrama de Rio Branco dirigido à Legação brasileira no Chile (ver, a esse
árbitro deu a vitória ao Brasil, representado por Rio Branco). Ver, a esse respeito, BANDEIRA, 1978, p. 178; respeito, UNS, 1965, p. 406 e ss.; BANDEIRA, 1978, p. 177-178; VIANA FILHO, 1959, p. 394 e ss.)
UNS, 1965, p. 388 e ss.
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tino anuncia que sua Marinha de Guerra faria "demonstrações nas costas do amparados por el princípio dei uti possidetis, caían presas de la codícia y víclimas
Brasil", o que logo foi entendido pelo governo brasileiro como uma "provo- de su própia riqueza" (telegrama de 10.8.1906, r e p r o d u z i d o n o ofício de
cação": de acordo com Moniz Bandeira, o conflito armado entre os dois 15.10.1906 — A H I 211/3/2).
países era "iminente", pois a Argentina queria precipitá-lo antes que pudes- Aqui interessa, todavia, destacar a questão do plano ferroviário bolivi-
sem chegar os navios de guerra brasileiros, encomendados à Europa. Segun- ano. Como se sabe, o Tratado de Petrópolis estipulara que a indenização de
do o mesmo autor, o conflito apenas não explodiu devido ao apoio declara- 2 milhões de libras, paga pelo Brasil à Bolívia como parte dos entendimen-
do dos EUA ao Brasil, que levou a Argentina a cancelar as manobras progra- tos sobre a questão do Acre, seria aplicada "principalmente na construção de
madas (BANDEIRA, 1978, p. 179). caminhos de ferro ou em outras obras tendentes a melhorar as comunica-
ções e desenvolver o comércio entre os dois países" . Em novembro de 9

1904 o Congresso boliviano editou uma lei estipulando que a indenização,


bem como seus respectivos juros, seriam de fato destinados exclusivamente
ao estudo e construção de ferrovias — sem, no entanto, privilegiar as comu-
O Brasil e a Bolívia
nicações com o Brasil. Mais tarde, em 27 de dezembro de 1905, nova lei
Para encerrar este item, convém agora que se examinem as relações aprovou para a Bolívia um grande plano de construções ferroviárias, indican-
entre o Brasil e a Bolívia, dado que a Noroeste, com seu traçado modificado, do as fontes de financiamento para cada linha prevista (ARAMAYO AVILA,
dirigia-se diretamente para as fronteiras desse país. É interessante observar, 1959, p. 260-261); nota-se que, de acordo com esse plano, a linha projeta-
inicialmente, que o exame dessas relações (no período crucial para a NOB, da para efetuar a ligação com as vias de comunicação brasileiras na Amazó-
de 1905 a 1908) confirma integralmente as asserções, já referidas, no senti- nia (ou seja, a ferrovia La Paz-Puerto Pando) ficava de fora da cobertura
do de as repúblicas "menores" da América do Sul restarem relegadas ao pelos recursos provenientes da indenização.
papel de simples peões no jogo de poder e prestígio entre os três "grandes"
O governo boliviano, visando o estudo da rede projetada, entendeu-
(Argentina, Brasil e Chile).
se em seguida com os banqueiros Speyer e National City Bank, de Nova
No período mencionado, o relacionamento Brasil-Bolívia, segundo se Iorque. Esse estudo foi efetuado por um grupo de técnicos chefiado pelo
depreende da correspondência entre o chanceler brasileiro e seu encarrega- engenheiro norte-americano W. L. Sisson, que, após percorrer todo o país,
do de negócios em La Paz, girou em torno de duas questões fundamentais: apresentou o chamado Plano Sisson. Com base nesse plano foi elaborado
os desdobramentos do Tratado de Petrópolis (demarcação de fronteiras e
8 um contrato entre os citados banqueiros e o governo boliviano, tendo por
construção da ferrovia Madeira-Mamoré) e o plano boliviano de construções finalidade a construção da rede planejada; esse contrato Speyer, como ficou
ferroviárias. conhecido, foi aprovado em 22 de maio de 1906 por um decreto ("Resolución
Suprema") do Poder Executivo boliviano. Todavia, de acordo com Aramayo
A citada correspondência dá notícia de relações um tanto tensas, ten- Avila, esse ato do Executivo era manifestamente ilegal, uma vez que violava
do como pano de fundo uma real ou suposta aproximação entre a Bolívia e a lei de 27 de dezembro de 1905 (a qual exigia "chamamento de propostas"
a Argentina. De fato, no início de 1907 o encarregado de negócios do Brasil, para a assinatura de contratos de construção); Avila informa ainda que o
Antonio de Feitosa, escreve a Rio Branco que a Bolívia só havia aceitado o "negócio ferroviário" com Speyer havia sido acertado nos Estados Unidos
Tratado de Petrópolis "pelo receio à força", persistindo em classificá-lo de pelo representante diplomático da Bolívia naquele país, D. Ignacio Calderon
"verdadeiro espólio"; refere o "manifesto descontentamento" existente na — que se tornou aliás, em seguida, um dos fundadores da empresa constitu-
Bolívia pelo fato de o Brasil retardar a organização da comissão mista de ída, também em Nova Iorque, para a execução do contrato: a Bolívia Railway
demarcação e diz enfim que, sob esse pretexto, "o rumo da política [interna- Company (ARAMAYO AVILA, p. 67-70, 75 e 262) . 10

cional] está sendo inteiramente mudado neste país" — em direção à Argen-


tina (ofício reservado de 3.1.1907 — A H I 211/3/3). No ano anterior (1906), A diplomacia brasileira, por seu turno, desde pelo menos o início de
Feitosa já havia reproduzido trechos da mensagem enviada ao Congresso 1905 demonstra inquietude com as perspectivas de construções ferroviárias
pelo Presidente boliviano, "revivendo" a questão do Acre: na Bolívia — chegando a esboçar, a esse respeito, propostas de verdadeira
"Asi hemos llegado a perdidas dolorosas que nos han hecho pensar tristemente en
la ineficácia dei derecho en este continente"; "nuestros territórios, desiertos, pêro ' O texto do tratado foi publicado pelo Decreto n" 5161, de 103.1904.
0
O historiador boliviano informa também que a Resolución Suprema de 22 de maio de 1906 jamais foi
Pelo qual, como se sabe, foi resolvida em 1903 a Questão do Acre, entre o Brasil e a Bolívia. publicada, já que revelaria a fraude cometida contra a lei de 1905. O contrato Speyer, de todo modo, foi
aprovado pelo Congresso da Bolívia em fins de 1906.

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bro do ano anterior o plano ferroviário não era mais projeto e sim lei, e que
intervenção nos negócios internos daquele país. Com efeito, já em feverei-
portanto a nota brasileira chegara atrasada. Contesta a acusação de violação
ro de 1905 Antonio de Feitosa analisa as perspectivas de vinculação ferrovi-
ao Tratado, insistindo em que nele se predicava maior estreitamento das
ária entre a Bolívia e o Chile e demonstra preocupação com a possibilidade
ligações comerciais Brasil-Bolívia e que isso seu governo estava fazendo,
de a indenização do Tratado de Petrópolis deixar de ser utilizada em uma
não importando com que recursos, se da indenização ou não — lembra, a
ferrovia de ligação com o Brasil; em seguida, propõe a Rio Branco um es-
propósito, a soberania da Bolívia e cita, como exemplo, a carreteraque se
quema de intervenção na política ferroviária boliviana:
abriria de Santa Cruz de la Sierra ao projetado porto boliviano norioParaguai
"O meio de obviar a que aos nossos mercados escape a renda da exportação (na lagoa de Cáceres), em frente a Corumbá. Finalmente, o chanceler reafir-
desses produtos [do oriente e norte da Bolívia] seria separar do projeto ferrovi-
ma que a Bolívia estava fazendo a sua parte e esperava que o Brasil também
ário boliviano as estradas que se dirigissem ao Nordeste [da Bolívia] e a Mato
Grosso. Não me parece resultado este difícil de obter-se, fazendo-se de maneira fizesse a sua, construindo a estrada de ferro Madeira-Mamoré . 11

que a concessão dessas estradas de ferro fosse dada a capitais brasileiros ou pelo
menos organizados no Brasil e que facilmente se levantariam com a garantia de A expectativa de intervenção brasileira, no entanto, continua. Em
uma parte da nossa indenização, que para isso está sendo paga. Com a aprova- janeiro de 1906, depois de fazer comentários sobre a ferrovia La Paz-Puerto
ção de V. Exa. me comprometeria a levar a cabo essa gestão aqui". Pando , Feitosa comunica a Rio Branco que nos departamentos de La Paz e
1

Mais adiante, no mesmo documento, o diplomata se diria ainda con- Beni "causou a pior impressão a lei sobre estradas de ferro e [...] é esperada
vencido de que "em nada aproveitará ao nosso comércio recíproco a indeni- com impaciência a intervenção de V. Exa. para que de uma ou outra ma-
zação paga à Bolívia, se a ela deixarmos a sua livre aplicação" (ofício reser- neira lhes aproveite parte de nossa indenização". Feitosa envia também
vado de 8.2.1905 — AHI 211/3/2; destaque meu). Feitosa não se refere a recortes de jornais bolivianos. Um deles (do El Diário, de 21 de janeiro)
uma eventual resposta de Rio Branco a essa proposta; o encarregado brasi- afirma que existia um "empeno en hacer que el Brasil intervenga en las
leiro, de qualquer forma, a ela voltaria ainda outras vezes. cuestiones de Bolívia, tratando-se deiplan ferroviário", mas observa que
"no necesitamos ni aceptamos la tutela de ninguno de nuestros vecinos,
Em dezembro de 1905, Feitosa reitera pedido de instruções sobre por poderosos que ellos sean" (ofício de 22.1.1906 — AHI 211/3/2; desta-
como agir, no caso de a indenização brasileira ser utilizada na construção de ques meus).
linhas que não aproveitassem ao Brasil, e comunica que suas impressões se
confirmavam: a Câmara de Deputados da Bolívia aprovara por ampla maio- No decorrer de 1906, como já foi visto, as autoridades bolivianas
ria um plano ferroviário (trata-se da já citada lei de 27 de dezembro) em que seguem adiante nas providências relativas ao plano ferroviário, com a elabo-
aquela indenização seria inteiramente aplicada à construção de ferrovias que ração do Plano Sisson e do contrato Speyer. Ao aproximar-se o fim desse
serviriam somente ao Chile "e à República Argentina muito particular- ano, os acontecimentos parecem precipitar-se. Em 20 de novembro, o en-
mente'. O brasileiro acrescenta que o projeto seria aprovado também no carregado brasileiro comunica que publicara desmentido a notícias de que
Senado, contando ali com o apoio de seu presidente, "que é representante teria ele, Feitosa,
do sul [da Bolívia] e, como tal, propenso à política de união com a República "realizado um acordo com um representante do Sindicato de Obras Públicas do
Argentina, que tanta expansão tem tomado ultimamente aqui". Por fim, nota Chile, não só para a construção de u m ferrocarril intercontinental, como para
que assim teriam ficado completamente esquecidos os "compromissos" do opor-nos [Chile e Brasil] a que se votasse no Congresso o contrato Speyer, para
o que, se afirmava, havia eu recebido de V. Exa. instruções para apresentar a
Tratado de Petrópolis e insiste com o chanceler brasileiro, advertindo-o de
este Governo u m formal ultimatum" (ofício de 20.11.1906 — A H I 211/3/2).
que o presidente da República da Bolívia sancionaria o projeto, "caso a isso
terminantemente não se oponha V. Exa" (ofício de 23.12.1905 — A H I Deve-se registrar que, por essa época, a Bolívia mantinha questões
211/3/2; destaques meus). fronteiriças tanto com o Peru quanto com o Paraguai, sendo que o litígio
com o Peru havia sido submetido ao arbitramento do presidente da Repúbli-
Em 28 de dezembro, ainda de 1905, atendendo a instruções de Rio ca Argentina. Além disso, restavam pendentes tanto os trabalhos da comis-
Branco, Feitosa envia finalmente uma nota à chancelaria boliviana, protes- são demarcadora do Tratado de Petrópolis como o funcionamento do tribu-
tando contra a lei ferroviária e dizendo que o governo brasileiro esperava nal arbitral brasileiro-boliviano (que deveria acomodar os interesses particu-
que o presidente da República da Bolívia não se pronunciasse sobre o pro- lares feridos pelo citado Tratado).
jeto "antes de examinar as amigáveis representações que vai [o governo
brasileiro] fazer contra essa projetada violação do Tratado de Petrópolis". A " As duas notas são reproduzidas com o ofício de 12.1.1906 — AHI 211/3/2.
resposta do chanceler boliviano, Cláudio Pinilla, vem em nota de 10 de A qual, como se viu, havia sido projetada para ligar-se ao Brasil mas era deixada de fora da cobertura pelos
janeiro seguinte (1906), em tom altivo: responde que desde 27 de dezem- recursos da indenização.

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De todo modo Pinilla, depois de demorar-se alguns dias em Buenos
A documentação indica que, nessas circunstâncias, parece verificar-se
Aires (onde proferiu as declarações sobre ferrovias mencionadas no item
uma maior aproximação entre a Bolívia e a Argentina. Feitosa registra que
anterior), encontrou-se de fato com Rio Branco no Rio de Janeiro, como se
Estanislao Zeballos havia sido nomeado Ministro do Exterior da Argentina
aventava desde sua partida. O chanceler brasileiro havia solicitado, já no
logo após haver externado "ideias favoráveis à Bolívia na sua questão de
início de dezembro de 1906, que Feitosa providenciasse para que o bolivi-
arbitramento com o Peru", havendo tal fato despertado na Bolívia "entusias-
ano "pudesse deter-se aqui [no Rio] uns quinze dias" (telegrama de 5.12.1906,
mo" e "esperança": "A Bolívia viu nisso um princípio de prova positiva e
reproduzido no ofício de 2.1.1907 — A H I 211/3/3). No entanto, ainda em
manifesta da amizade argentina. Imediatamente despachou a Buenos Aires
23 de janeiro de 1907 Rio Branco não tinha certeza sobre se Pinilla de fato
o seu Ministro de Relações Exteriores" (ofício de 3 1 1907 — A H I 211/3/3).
aceitaria seu convite. O ministro boliviano, porém, chegou nesse mesmo dia
De fato, o chanceler Cláudio Pinilla, tendo-se licenciado do cargo, deixara a
(23 de janeiro) ao Rio, demorando-se ali até 8 de fevereiro (telegramas
Bolívia em 23 de novembro de 1906, formalmente em viagem de visita a
reproduzidos no ofício de 5.2.1907 — A H I 211/3/3).
seus filhos na Europa. Feitosa no entanto observa, em ofício a Rio Branco:
"Muito se comenta aqui esta viagem do sr. dr. Pinilla e dizem que a visita a seus
Essa visita originou uma interessante troca de notas entre os dois
filhos é u m simples pretexto para esconder, segundo uns, u m arranjo com chanceleres, sendo que esses papéis indicam que o ministro boliviano en-
capitalistas europeus, u m acordo secreto com a Argentina, segundo outros e trevistou-se pessoalmente com o Presidente brasileiro, Afonso Pena. De fato,
finalmente, c o m mais insistência, se assegura estar ele encarregado de uma em nota datada do Rio, em 6 de fevereiro, Pinilla refere que teve ocasião de
missão confidencial junto a V. Exa." (ofício de 27.11.1906 — A H I 211/3/2).
"escuchar de los lábios dei primer Magistrado de la Nación brasilena su firme
Em longo ofício reservado, no início de 1907, Feitosa esboça um propósito de que se cumplan y realicen todos los compromisos contraídos en el
quadro bastante pessimista das relações Brasil-Bolívia. Afirma que a Bolívia Tratado de Petrópolis; senaladamente, elquese refiereala más rápida construcción
julgava "poder contar com o apoio da Argentina em caso de reclamação de dei Ferrocarril Madeira-Mamoré' ( A H I 278/2/16).
nossa parte pela aplicação da nossa indenização", e que a Argentina, por sua O tom de Pinilla na nota é seco, como que aborrecido. A resposta de
vez, buscava "firmar uma política de aproximação com a Bolívia, aprovei- Rio Branco, em outro tom, encontra-se num rascunho de seu próprio punho,
tando-se dos dissentimentos desta com o Chile, com o Peru e com o Brasil". datado de 7 de fevereiro:
É nesse ofício que Feitosa, como já foi mencionado, afirma que a Bolívia
"muito agradeço o grande prazer que nos deu, ao Governo Brasileiro e a m i m
persistia em classificar o Tratado de Petrópolis como "verdadeiro espólio". particularmente, aceitando o nosso convite para se deter alguns dias nesta cida-
Após informar que, em sessões secretas nas Câmaras bolivianas, "alguns de. Pôde assim V. Exa. ouvir do Presidente da República a manifestação do vivo
energúmenos" haviam mesmo falado em retirada da legação da Bolívia no desejo que temos de estreitar cada vez mais as nossas relações de amizade e
Brasil, o encarregado brasileiro comenta a aprovação do contrato Speyer desenvolver as de comércio com a Bolívia, assim como do firme propósito em
que estamos de dar fiel e inteira execução ao Tratado de Petrópolis" (AHI 278/
pelo Congresso boliviano, dizendo: 3/7).
"fomos sacrificados em favor da Argentina pelo abandono, por parte dos repre- A partir daí, as relações entre Brasil e Bolívia parecem acalmar-se.
sentantes opositores de leste e do nordeste, das suas pretensões de imediatas
comunicações com o Brasil, compensados por uma efetiva, real e positiva ami-
Durante todo o ano de 1907, a correspondência entre Feitosa e Rio Branco
zade com a vizinha do Prata". ocupa-se principalmente dos detalhes dos trabalhos da comissão demarcadora.
Em fins desse ano, por outro lado, os dois países concordam em efetuar a
O diplomata brasileiro relembra palavras do próprio Rio Branco em
ligação de suas redes telegráficas nas cidades fronteiriças de Corumbá e
1905, no sentido de que era "antiga aspiração" da Bolívia a saída pelo Ama-
Puerto Suarez (telegrama reproduzido no ofício de 15.1.1908 — A H I 211/3/
zonas (vista como a mais favorável para o comércio das regiões do Oriente
3). Na mesma época, o encarregado brasileiro comunica que, por ocasião
boliviano), e arremata: "Hoje, não só é manifesto o abandono dessa antiga
do 15 de Novembro, haviam-se verificado "como nunca antes durante a
aspiração, como é manifesta a existência de uma outra" (a saída pelo Prata).
minha estada neste País, as simpatias da sociedade boliviana pelo Brasil",
Feitosa relata que os bolivianos procuravam convencê-lo de que a aproxi-
tendo sido a Legação visitada por representantes de todas as autoridades e
mação com a Argentina era circunstancial e transitória e que a Bolívia visava
"pessoas as mais gradas da sociedade", em número "superior a 200" (ofício
com ela apenas obter ganho em suas causas (questões de limites com o
de 25.11.1907 — A H I 211/3/3) - 13

Peru e com o Paraguai); mas o brasileiro diz duvidar, porque acha que nessa
aproximação "todos se empenham". Pergunta e, ele mesmo, responde: "Será
Um índice dessa normalização de relações parece ser o seguinte: conforme se vê no Arr JÍVO Histórico do
ela [aproximação] lealmente fictícia e transitória? A lei deferrocarris nos diz
Itamaraty, o volume da correspondência entre o Rio e a Legação brasileira na Bolívia, apenas nos anos de
o contrário" (ofício reservado de 3-1 1907 — A H I 211/3/3; destaque meu). 1905 e 1906, é maior que aquele correspondente aos anos de 1907 a 1912.

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Finalmente, em 1908 a própria Noroeste do Brasil aparece nessa
história. Em fevereiro, Rio Branco telegrafa a Feitosa comunicando que ha-
via sido inaugurado mais um trecho da estrada de ferro em direção a Mato
Grosso (telegrama de 192.1908, reproduzido no ofício de 2.3.1908 — A H I
211/3/3). Feitosa, por seu turno, envia ao ministro, em maio, um recorte do As Elites Dominantes do Brasil
jornal El Comércio de Bolívia de 9 do mesmo mês, com um artigo sobre a
Noroeste. Vale a pena transcrever alguns trechos dessa matéria, intitulada
e a Questão da "Unidade Nacional":
"Ferrocarril de Bauru a Corumbá', que estabelece interessantes ligações O Caso de Mato Grosso
entre as ferrovias e a política sul-americana da época:
Pelo que já foi visto neste livro, acerca das relações do Brasil com
"pudo el Gobierno Nacional ecbar con firmeza las bases de nuestra política seus vizinhos e com os países imperialistas, pode-se perceber o extremo
internacional, estableciendo la igualdad para todos nuestros vecinos, sin
preferencias niprivilégios comerciales y aduaneros. Esa política Í...I ha determi-
cuidado demonstrado pelas elites dominantes brasileiras com relação ao
nado a las naciones limitrofes a buscar, en noble competência, vinculaciones domínio territorial. Como se viu, essas elites preocuparam-se não apenas
económicas e industriales con nuestro país, mediante nuevas vias de com a soberania sobre seu próprio território, aquele que herdaram da época
comunicación. A los ferrocarriles que construye la República Argentina colonial; preocuparam-se também com o destino dos territórios dos vizi-
Chile Peru tenemos que anadir el de San Antonio a Guayaramerín y el
que actualmente se trabaja a Corumbá". nhos, como demonstra a constante guarda contra alterações no "mapa
territorial", no "equilíbrio de poder", no "quadro geopolítico" da região plati-
O artigo cita dados da construção da NOB e conclui: na.
"Este ferrocarril, que contribuirá poderosamente a la realización dei gran ideal
americano dei ferrocarril intercontinental, ha de atraer bacia la via dei Brasil
Certamente, preocupações "estratégicas" podem muitas vezes re-
gran parte dei comércio boliviano, pues con la línea de Puerto Suarez a Santa presentar simplesmente a enunciação de "ideias fora de lugar", formulações
Cruz quedará ligado a esa via el Oriente y Centro de la República, pudiendo puramente "ideológicas": "receitas" para a "grandeza nacional", desprovidas
llegar-se al Atlântico en seis dias a lo más" (AHI 211/3/3). dos meios materiais capazes de viabilizar sua efetivação. Mas parece possí-
vel afirmar que preocupações desse tipo podem aparecer perfeitamente
integradas a toda uma análise das condições e possibilidades históricas reais,
consubstanciadas em políticas mais ou menos definidas e articuladas a um
projeto histórico-social concreto dos grupos representados no Estado. Evi-
dentemente, nesse caso as formulações "estratégicas", "territoriais", não es-
tão divorciadas de preocupações mais diretamente económicas. As duas
dimensões do fenómeno, no entanto, não guardam entre si uma relação de
mecânica subordinação. A esse respeito, são perfeitamente cabíveis as pala-
vras de um estudioso brasileiro:
"o nosso ponto de vista sobre as políticas territoriais é justamente o de que o
'explicitamente político' ou o nível ou instância políticos não podem significar a
sua autonomização frente aos demais processos (económico, social etc.) mas
apenas o reconhecimento de que o Estado, a política e o território são reais e
assim devem ser estudados. Sabemos que as políticas territoriais, isoladamente,
não explicam a realidade [...]. No entanto, sabemos igualmente que também os
processos económicos (ou outro qualquer), exclusivamente, não bastam para
compreendê-la em sua totalidade" (COSTA, 1988, p. 16).

Desde a Independência a "unidade nacional" passa a constituir


uma peça fundamental do discurso e da prática das elites dirigentes bra-
sileiras, sendo que, para essas elites, o "nacional" tinha u m significado
bastante restrito de "domínio do antigo território colonial" — concepção
essa bastante distante da ideia de nação gestada desde a Revolução Fran-
cesa, como sinónimo de "povo organizado" (LAHUERTA, r d., p. 11 e 9).

80 81

i
Por ocasião da Independência, essa questão tinha ainda uma d i -
mensão claramente económica: as províncias do Norte e Nordeste eram Como se pode ver, nessa ideia, tal como exposta por Azevedo e
responsáveis por "mais de 60% das rendas nacionais na época, de onde Cunha, reponta também uma espécie de oposição entre civilização e
se compreende por que a unidade brasileira era importante" (RIBEIRO barbárie. Cunha, aliás, inicia o trecho acima citado com as seguintes pala-
JÚNIOR, 1977, p. 152). vras: "O raio civilizador refrangia na costa. Deixava na penumbra os planal-
tos". Assim, o "centro" (na verdade o litoral) era o pólo da civilização, que
A questão da unidade nacional (como sinónimo de "integridade devia submeter o interior — onde permaneciam, "ameaçadores", os núcleos
territorial") manifesta-se assim, desde o início, intimamente vinculada aos "perdidos no isolamento". Aqui se juntam, portanto, as duas dimensões do
projetos de dominação dos grupos organizados em torno do Estado: "as problema dos transportes, a política e a económica. As ferrovias seriam o
classes dominantes brasileiras forjam sua identidade tendo a concepção de veículo do avanço da "civilização", ou seja, do desenvolvimento económico,
conquista territorial como um de seus componentes fortes de solidariedade" indispensável para a consolidação da unidade nacional, isto é, a submissão
(MORAES, 1988, p. 99). O mesmo autor ressalta "o papel jogado pela for- da "barbárie" . 14

mação territorial na armação da política nacional", papel esse corporificado


no "lema" que ele assim sintetiza: "tutela do povo e m nome da integri-
dade do espaço" (id., p. 95; destaque meu).

Dessa forma, a unidade territorial é mantida "a ferro e fogo", com a O "Antemural da Colónia"
repressão do poder central a quaisquer manifestações regionais de perspec-
tiva "democrática, republicana, separatista ou o quer que fosse"; reprimindo O território que hoje constitui Mato Grosso do Sul, bem como as
as massas populares e cooptando as lideranças revoltosas e as oligarquias porções mais ocidentais do atual Mato Grosso, ilustra admiravelmente todas
dissidentes, o Estado coloca-se sempre como o intransigente defensor da as assertivas aqui referidas. Trata-se aí de espaços que foram objeto de uma
"unidade nacional" (LAHUERTA, p. 10-11). Por essa ótica, em que "o país é disputa multissecular, primeiro entre metrópoles europeias rivais (Espanha
identificado com o seu espaço", a população, longe de ser encarada como e Portugal) e depois entre Estados independentes (Brasil, Paraguai, Bolívia).
um conjunto de cidadãos, é vista como "um atributo dos lugares", um "ins-
O território do atual Mato Grosso do Sul — formalmente submetido à
trumento" para a efetivação da conquista e consolidação do espaço (MORAES,
soberania espanhola no século XVI; área de contatos e fricções entre súditos
p. 98).
das duas metrópoles no século XVII e espaço incorporado (mais de fato que
Não é certamente estranha a todo esse contexto a iniciativa da Re- de direito) aos domínios portugueses no século seguinte — esse território
gência Una, com Feijó — que em 1835, em pleno florescimento das rebeli- constituiria para os europeus, durante os três primeiros séculos decorridos
ões nas províncias, promulga a primeira lei brasileira referente a estradas de após a descoberta da América, "área de passagem" e "território de caça ao
ferro, autorizando a construção de ferrovias que ligassem a capital imperial indígena", alternadamente ou ao mesmo tempo.
às províncias de São Paulo e Minas Gerais. Fernando de Azevedo relaciona
De fato, na primeira metade do século XVI essa região aparece como
essa iniciativa à ideia de que as características geográficas do país constituí-
via de passagem para sucessivas expedições oficiais espanholas que, subin-
am o principal obstáculo à construção da unidade nacional, na medida em
do o rio Paraguai até o seu alto curso, buscavam atingir a lendária "serra de
que produziam um "crescente desequilíbrio entre os homens do sertão e os
prata" que então se acreditava existir no centro do continente (SOUTHEY,
do litoral". Azevedo cita, a esse respeito, Euclides da Cunha:
1977, passirri). Essas expedições não obtiveram o êxito desejado, sendo a
"O maciço de u m continente compacto e vasto talhava uma fisionomia dupla à "serra" (na verdade as minas do Alto Peru) conquistada por espanhóis pro-
nacionalidade nascente. Ainda quando se fundissem os grupos abeirados do mar, venientes do norte (através do istmo do Panamá) e não da bacia platina.
restariam ameaçadores, afeitos às mais diversas tradições, distanciando-se d o
nosso meio e d o nosso tempo aqueles rudes patrícios, perdidos no isolamento
Dessa forma os conquistadores castelhanos dessa bacia, forçados a confor-
das chapadas". marem-se nos limites do território por eles ocupado (correspondente, gros-
so modo, à parte leste da atual República do Paraguai), passaram a dedicar-
O próprio Azevedo arremata: se à estabilização do povoamento em torno de Assunção (fundada em 1537),
"A solução devia estar, como ainda hoje, na mecanização dos meios de transpor- utilizando os espaços adjacentes, em especial o que corresponde ao atual
te e n u m largo plano para romper, pelos caminhos de ferro, a muralha das serras Mato Grosso do Sul, como "território de caça" onde se _ upria de mão-de-
que separam a costa d o interior do país, fragmentando em dois mundos a vida
nacional" (AZEVEDO, s.d., p. 33 e 34; destaque meu). 1 4
Nesse sentido devem ser lembrados os numerosos planos nacionais de viação que, com esse obje-
tivo, foram elaborados durante o Segundo Reinado (ver, por exemplo, A Z E V E D O , p. 40).
82
83
obra indígena a economia assuncenha. Com efeito, é principalmente com o O próprio estabelecimento da capital da Capitania — não em Cuiabá,
sentido de "postos avançados" dos encomenderos de Assunção que ocor- núcleo urbano já estruturado, mas no vale do Guaporé, junto à fronteira, em
rem as sucessivas fundações, naquele território, da povoação de Santiago de vila especialmente fundada para esse fim (Vila Bela da Santíssima Trindade,
Xerez, na segunda metade do século XVI e primeira metade do seguinte 1752) — esse próprio estabelecimento obedeceu já a "razões geopolíticas e
(GADELHA, 1980, p. 81). defensivas" (VOLPATO, p. 148). Pode-se aliás dizer que nessa fundação já
aparece claramente o procedimento de utilização do povo como instrumen-
Todavia, ao lado dessas duas "funções" emprestadas a esse território,
to de política territorial. Com efeito, a fim de incentivar o adensamento
desde muito cedo se fez também presente com relação a ele uma dimensão
populacional no citado vale, em tomo da capital recém-fundada, o primeiro
"estratégica", a qual suscitou preocupações estatais quanto a sua posse e
governador determinou um afrouxamento dos encargos fiscais sobre todos
domínio. De fato, a coroa espanhola, temerosa dos descaminhos da prata,
os que ali se fixassem; como notou Corrêa Filho, "o problema da segurança
desde logo veda o contato entre os povoadores assuncenhos e os núcleos
das extremas ocidentais sobrepujava [...] as solicitações do erário real, que
mineiros do Alto Peru; por outro lado, trata de garantir que o território citado
até desistiu de boa porção das suas rendas" (1969, p. 672). No mesmo
não se constitua em "área de passagem" para seus rivais portugueses, que
sentido encaixa-se a salvaguarda extra concedida a esses adventícios — os
poderiam conceber o projeto de apoderar-se das minas de Espanha. É
quais, pelo prazo de 10 anos, não poderiam ser executados por dívidas
nesse sentido que historiadores atribuem aos jesuítas espanhóis, estabeleci-
contraídas em outras localidades (VOLPATO, p. 39 e 40), bem como a rela-
dos em 1630 nos Itatins (sudoeste do atual Mato Grosso do Sul), a função
tiva tolerância das autoridades com relação ao contrabando praticado entre
"estratégica" de barrar a passagem dos bandeirantes paulistas no rumo do
as povoações espanholas e portuguesas da fronteira: esse contrabando cons-
Ocidente (GADELHA, citando Jaime Cortesão, p. 237 e 247). Registre-se
tituía meio indispensável de obtenção de géneros necessários à sobrevivên-
que essa suposta barreira não teve efeito prático algum e essa região cons-
cia da população da capitania, de modo que, se o rigor do fisco fosse ao
tituiu também para os bandeirantes, durante todo o séculoXVII, "território
ponto de extinguir totalmente o comércio ilegal, incorria-se no risco dé des-
de caça" ao indígena; esses bandeirantes chegaram mesmo a estabelece-
povoar toda a fronteira (LENHARO, 1982, p. 40-41) . 15

rem-se por algum tempo nos campos sul-mato-grossenses (já então chama-
dos "da vacaria") e a passarem daí para as vizinhanças das minas do Alto
No que toca à parte sul da capitania, a preocupação era a de garantir
Peru (TAUNAY, 1975; HOLANDA, 1986,passim.).
o livre trânsito entre as minas e o litoral — dado que, como se sabe, nessa
No século XVIII, o início da mineração em Cuiabá (1718/19) e no região se localizava a maior parte do caminho das monções, que seria regu-
vale do rio Guaporé (1734) veio alterar radicalmente os termos da situação, larmente trafegado durante um século inteiro (HOLANDA, 1990, p. 65). A
colocando em cena nessas partes, de forma decisiva, a metrópole portugue- jurisdição portuguesa sobre esse território — retirada da Espanha mediante
sa. Em 1748 é criada a Capitania de Mato Grosso, ao mesmo tempo em que, dois tratados sucessivos (Madri e Santo Ildefonso) e garantida unilateralmen-
por meio de cuidadosas negociações diplomáticas, Portugal busca garantir te, entre um e outro, pela ocupação de vários pontos da margem direita do
para si a posse de todo esse ocidente (Tratado de Madri, 1750). Destinada rio Paraguai — essa jurisdição seria daí por diante sustentada pelo Estado
a servir de "antemural a todo o interior do Brasil" (segundo a expres- metropolitano português por todos os meios, até mesmo por um singular
são, tomada clássica, de um documento metropolitano), a capitania estruturou- tratado com os então poderosos Guaicuru . Com o objetivo de garantir a
se como u m empreendimento de forte sentido militar: "As condições segurança da passagem (contra as ameaças dos vizinhos espanhóis e os
territoriais da Capitania, possuidora de mais de quinhentas léguas de frontei- ataques dos indígenas do Pantanal), são fundadas, entre 1775 e 1778, várias
ra, imprimiram à sua administração um caráter nitidamente militar" (VOLPATO, povoações ao longo dorioParaguai: Forte Coimbra, Albuquerque (Corumbá)
1987, p. 34). Como nota a mesma autora, essa fronteira (ainda que não e Vila Maria (Cáceres) .
fosse a principal área de confronto, na América, entre os interesses portu-
Dessa forma, a capitania estrutura-se e mantém-se em meio a vivos
gueses e espanhóis) constituía importante "zona de tensão", visto que, "além
conflitos territoriais. Esses conflitos são ora abrandados pelas imperiosas
das jazidas que encerrava, Mato Grosso garantia a defesa do interior da Coló-
nia, principalmente a região de Minas Gerais" (p. 38). No mesmo sentido, 15
Sabe-se, por outro lado, que as autoridades coloniais portuguesas estimulavam o contrabando no
observa ainda Volpato: sentido inverso, pelo qual se obtinha prata em troca de bens importados da Europa por mercadores
lusitanos (VOLPATO, p. 53-77).
"O aparelhamento militar da Capitania de Mato Grosso fazia parte de u m proces- ' Tratado assinado em solene cerimónia, em Vila Bela (agosto de 1791).
6

so mais amplo, o u seja, a preocupação da Coroa portuguesa em concretizar as 1 7


E m 1797 seria ainda fundado o fortim de Miranda, às margens desse afluente do Paraguai. Em 1767, por
vitórias obtidas pelos seus ministros nas discussões do Tratado de Madri, que lhe outro lado, já havia sido estabelecido, no extremo sul do atual Mato Grosso do Sul, o Forte de N. S. dos
garantiam suas pretensões na bacia amazônica" (p. 37). Prazeres do Iguatemi, que foi todavia destruído pelos assuncenhos em ! / / .
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85
necessidades de contatos pacíficos entre os súditos das coroas rivais (neces- esse respeito, o relato apresentado no início deste capítulo permite avaliar a
sidades ditadas pelas duras condições de sobrevivência a que estavam todos intensidade da ânsia imperial em obter a liberdade de navegação pelo rio
submetidos), ora agravados pelas desavenças entre as metrópoles na políti- Paraguai — que chegou ao ponto, como se viu, de patrocinar um vexame
ca europeia, responsáveis pela derrogação de sucessivos tratados de limites; como o da versão tropical de uma política das canhoneiras, em 1855) . Por
mas são conflitos, enfim, inarredáveis: "A ameaça do avanço espanhol sobre outro lado, o litígio fronteiriço entre o Brasil e a República do Paraguai, já
a Capitania sempre esteve presente em sua população, sendo um significa- mencionado, dá ensejo a outra ordem de providências do Estado imperial,
tivo fator da insegurança social" (VOLPATO, p. 38). agora no sentido de firmar sua presença na região disputada. Com essa
finalidade ocorrem tentativas, a partir de 1854, de reanimar a navegação dos
rios Ivinhema e Miranda, no sul da província de Mato Grosso, ligando suas
respectivas bacias por meio de um varadouro (dessas tentativas resultou a
formação do povoado de Nioaque, numa das extremidades desse varadouro);
"Pela Transação ou Pela Guerra": nas décadas de 1850 e 1860 são também estabelecidas diversas colónias
A Abertura do Rio Paraguai militares no sul de Mato Grosso e no oeste paulista (HOLANDA, 1990, p.
85) . 19

O século XIX, com os processos de independência, viria acrescentar


outros ingredientes à situação até aqui descrita. Por um lado, a nova situação Logo, porém, eclodiria a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai,
tem uma dimensão especificamente territorial, na medida em que os novos condensando as contradições produzidas pelo entrechoque dos interesses
Estados sul-americanos herdam as antigas pendências fronteiriças de suas há pouco mencionados. A violência da guerra "resolve" alguns dos nós
ex-metrópoles (as quais, como se sabe, despediram-se da América meridio- anteriormente descritos: assim, frente a um Paraguai arrasado, o Império
nal sem terem chegado a um definitivo acordo sobre seus limites). Por obtém finalmente não apenas o desejado acesso fluvial a Mato Grosso como
outro lado, apresenta-se uma dimensão claramente económica. O impetuo- também o reconhecimento formal de sua soberania sobre o extremo sul
so avanço da Revolução Industrial na Inglaterra (e logo em outras partes da dessa província. Ao mesmo tempo, sendo declarados abertos à navegação
Europa e nos Estados Unidos), traduzindo-se na tendência à globalização do internacional os rios da bacia platina, o livre comércio triunfa definitivamen-
mercado (auxiliada pelos progressos da navegação a vapor), coloca na or- te (embora não completamente, pois no trecho brasileiro do rio Paraguai a
dem do dia a questão da abertura dos rios da bacia platina à livre navegação franquia não vai além de Corumbá).
internacional. Não obstante, a situação que se apresentava ao Brasil após a guerra,
Nessa nova situação consegue manter-se por algum tempo um instá- conquanto substancialmente diversa da anterior, continuava povoada de
vel equilíbrio entre os interesses, distintos e frequentemente conflitantes, velhos fantasmas. O problema do "equilíbrio de poder", no âmbito do "qua-
dos diversos atores presentes na área considerada: 1) a República do Paraguai, dro geopolítico", persistia com toda a força (relembrem-se, a esse respeito,
encravada no centro do continente, que visava a livre navegação para poder os choques entre o Brasil e a Argentina em torno das pretensões territoriais
vincular-se ao mercado mundial (pelo menos depois de 1840) e ao mesmo dessa última com relação ao derrotado Paraguai). Por outro lado, a mesma
tempo desejava manter-se à margem da união proposta por Buenos Aires; guerra que deu ao Império o incontestado domínio legal sobre todo o sul de
2) o grupo dominante portenho (situado na estratégica embocadura do Pra- Mato Grosso encarregou-se também de mostrar o quão precárias eram as
condições de que dispunha o mesmo Império para manter sua efetiva sobe-
ta), interessado em utilizar a seu favor a navegação dos rios e em consolidar
rania sobre essa região. Conforme já foi dito aqui, a guerra demonstrou a
a união das diversas províncias da confederação argentina, agregando ainda
imprestabilidade das vias internas de comunicação; a via platina, por sua
a elas o território paraguaio; 3) o Império do Brasil, que desejava estabelecer
vez, permanecia inteiramente dependente do arbítrio de soberanias estra-
pelos rios platinos comunicação mais eficaz com Mato Grosso e, ao mesmo
nhas — se não mais o Paraguai, agora a Argentina. Por fim, a liberdade de
tempo, evitar que algum outro Estado da região pudesse, sozinho, deter o
controle desses rios; 4) enfim, as potências capitalistas, em particular a Ingla-
terra e a França (a primeira, cada vez mais associada aos comerciantes 1 8
Como já foi mencionado, as primeiras gestões imperiais no sentido de se franquear a navegação do
rio Paraguai até Mato Grosso datam de 1839 (CORRÊA FILHO, 1969, p. 523) Deve-se observar que
portenhos), interessadas em ampliar seus mercados. essas gestões podem estar ligadas a rumores sobre intenções separatistas que se teriam manifesta-
do por ocasião do notável movimento rebelde conhecido como Rusga, ocorrido em Mato Grosso
O Estado brasileiro, substituindo o antigo Estado metropolitano nas em 1834; sobre essas intenções, ver CORRÊA, 1976, p. 110.
preocupações com o domínio sobre a agora província de Mato Grosso, con- " Trata-se das colónias Brilhante e Dourados, em Mato Grosso, e Itapura e Avanhandava, em São
centra-se na busca de acesso mais rápido e cómodo a essa província (e, a Paulo.

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navegação, convertendo Corumbá em ponto extremo das correntes do comércio
"Os argentinos bem conhecem as vantagens que podem ganhar com u m tama-
internacional, permitiu que a província de Mato Grosso se colocasse em vinculação nho sucesso no Brasil e quem sabe se não pensam em fazer com Mato Grosso o
direta com o mercado mundial, sem qualquer mediação pelos centros mais popu- que os Estados Unidos fizeram com o Texas — primeiramente separando-o do
losos e desenvolvidos do país; Corumbá torna-se um pólo comercial virtualmente México, em segundo lugar anexando-o. [...] agora que os argentinos favorecem
independente do Rio de Janeiro, Santos ou São Paulo, e mais: estreitamente vin- certamente a independência de Mato Grosso é provável que a secessão daquela
província seja o começo de u m novo conflito internacional na América do Sul"
culado aos centros do comércio platino, Buenos Aires e Montevideu.
(LEAL, p. 63).
Dessa forma, a nova situação repõe para o Estado brasileiro, em no- Transcreve ainda, entre outros documentos, uma matéria do The Daily
vas bases, a questão da soberania sobre Mato Grosso — e nesse contexto Telegraph, também de Londres (15.4.1892):
não é de estranhar-se o notável surto de projetos de ligação ferroviária entre
"Acredita-se que a proclamação da independência de Mato Grosso foi favorecida
Mato Grosso e o litoral brasileiro, ocorrido depois de 1870. e preparada pelos argentinos, que são beneficiados pela separação de Mato
Grosso porque, essa província não mais pertencendo ao Brasil, este último país
não mais tem alguma razão para interferir nas repúblicas do Prata, as quais,
agora, dominarão inteiramente os rios Paraguai e Uruguai. É sabido que o
governo da República Argentina tem ultimamente estado a comprar armas na
Mato Grosso na República: Alemanha a fim de preparar-se para u m possível conflito com o Brasil, o que
pode ser ocasionado pelo problema de Mato Grosso" (id., p. 70-71) .
" U m Estado Fraco e Dependente"
As interpretações de Leal (aqui mencionadas muito superficialmen-
Com o advento da República, como é sabido, a "unidade nacional" do te) parecem ir longe demais, presas a uma teoria "conspirativa" da história.
Brasil foi mais uma vez colocada em questão. Nas crises que se seguiram à Todavia, as "vinculações platinas" do movimento mato-grossense não soam
instauração do novo regime, as perspectivas de "desmembramento territorial" de forma alguma despropositadas, especialmente quando se tem em conta
do país inquietavam os dirigentes e eram insistentemente mencionadas no
as informações (já fornecidas neste capítulo) sobre esse período das rela-
exterior (ver, por exemplo, BELLO, 1983, p. 116 e ss.; BUENO, 1984, p. 61
ções internacionais na América do Sul. Por outro lado, essas vinculações são
e ss). Tratava-se, no caso, das revoltas contra os governantes estaduais que
mencionadas também por Valmir Corrêa, que realça a participação, na Revo-
apoiavam Deodoro (as quais pipocaram em todo o país na sequência da
lução, da "burguesia mercantil" de Corumbá — composta em grande parte
renúncia do primeiro marechal-presidente), incluindo, no que se refere a
de elementos estrangeiros. De acordo com esse autor, a "conotação separa-
Mato Grosso, a chamada "Revolução de 1892".
tista" do movimento "reafirmava o caráter internacional da cidade de Corumbá",
Para alguns autores, essa série de revoltas teria um propósito único, visto que
coordenado: "a burguesia mercantil da cidade, por sua própria natureza, estava mais identificada
com seus próprios interesses de classe, desfrutando dos contatos com cidades
"não há uma revolução de 1892 circunscrita ao Extremo Oeste, mas uma conjura a
estrangeiras através d o intercâmbio comercial, do que com a política e o jogo
abranger vários pontos, muito distanciados uns dos outros, e a pretender a derruba-
do poder estadual e federal".
da de governos, inclusive a do governo central e, se possível, como consequência
da anarquia generalizada, a separação de várias unidades" (LEAL, 1988, p. 44-45) .
O historiador completa:
20

De fato, à Revolução de 1892 em Mato Grosso (que teve o apoio das "Nessa perspectiva, para a burguesia mercantil argentina, a vanguarda da classe
tropas federais do sul do Estado e da burguesia mercantil de Corumbá) foram burguesa de Corumbá atendia aos seus interesses, abrindo espaços ao avanço de
atribuídas intenções separatistas, que se explicitariam na tentativa de proclamar sua influência numa área potencialmente muito rica, como era a região mato-
grossense" (CORRÊA, 1985, p. 18-20) . 22

um "Estado Livre de Mato Grosso" ou "República Transatlântica" (CORRÊA,


1985). Ponce Leal, por sua vez, recolhe indícios que, em seu entender, vincu- A Revolução de 1892, de qualquer forma, foi logo sufocada por uma
lam a insuneição em Mato Grosso, com seu caráter separatista, a "maquinações" "contra-revolução" legalista chefiada pelo político e comerciante mato-
da República Argentina. Reporta-se para tanto à imprensa internacional da épo-
ca, que dedicava amplos espaços à notícia da "proclamação da independência"
de Mato Grosso. Assim, cita um longo editorial publicado pelo Times londrino 2 1
O assunto, de resto, repercutiu também nos jornais nacionais. O próprio Machado de Assis dele se
ocupou em duas crónicas bem humoradas (ASSIS, 1938, p. 27-31).
(20.4.1892) sob o título de The new republic of Matto Grosso, onde se lia:
2 2
Anos depois, a população de Corumbá ainda seria assim descrita pelo general Dantas Barreto: "po-
pulação acentuadamente cosmopolita: de turcos, dominadores do pequeno comércio; bolivianos,
que vão tentar fortuna em qualquer mister; paraguaios, já estabelecidos e empreendedores; alemães,
Ver também, na mesma obra, a posição do almirante Custódio de Melo (p. 42, nota 11). franceses e outros estrangeiros interessados na vida do lugar. Os nacionais se achavam decerto em
minoria (BARRETO, 1907, p. 115-116; destaque meu).
88
89
a isolar Rodrigues Alves, alijando-o do processo de escolha do novo presi-
grossense Generoso Ponce. Nesse mesmo processo consolidou-se uma ali-
dente da República. Assim, a exemplo da "Coligação" ou "Bloco", formada
ança entre os grupos oligárquicos de Ponce e dos irmãos Murtinho (Manuel
em torno de Pinheiro Machado com o objetivo de conduzir o processo da
e Joaquim, principalmente), aliança que assegurou a esses grupos, nos anos
sucessão presidencial, surgiu a "Coligação Mato-grossense", reunindo nova-
seguintes, um seguro domínio sobre a política estadual.
mente Ponce e os Murtinho. Nas eleições para a Câmara e o Senado, em
Antes do fim do século, entretanto, iria abrir-se um novo período de novembro de 1905, os candidatos da Coligação, mesmo derrotados no Esta-
acirradas lutas armadas, a partir da cisão entre os dois grupos mencionados. do, foram reconhecidos no Rio de Janeiro. Assim fortalecida, a oposição a
Joaquim Murtinho era ministro da Fazenda de Campos Salles. Ponce, por sua Totó Paes passou abertamente a preparar uma insurreição, que seria o des-
vez, detinha amplo prestígio e o controle da máquina eleitoral, julgando-se fecho da prolongada crise política.
assim capaz de desconsiderar a influência de Manuel Murtinho na escolha do
Deflagrada em maio de 1906, a "revolução", chefiada por Ponce,
candidato à sucessão estadual, nas eleições que ocorreriam em março de
logo cercou Cuiabá. Um forte contingente de tropas federais, enviado por
1899- O candidato de Ponce, escolhido à revelia dos Murtinho, foi efetiva-
Rodrigues Alves em defesa do governo legal, não chegou a tempo de evitar
mente eleito. Entretanto, não se confirmaria a confiança de Ponce na "polí-
tica dos governadores", anunciada por Campos Salles: a fim de não enfra- a vitória dos insurretos — sendo o próprio Totó Paes morto quando, em
quecer seu ministro da Fazenda, o presidente da República preferiu fugir, no fuga, foi descoberto em improvisado esconderijo nos arredores da capital
caso, à política por ele mesmo arquitetada, negando apoio a Ponce embora estadual (CORRÊA, 1981, p. 107 e ss.; ver também CORRÊA FILHO, 1969;
fosse esse quem "realmente agremiava o eleitorado mato-grossense" LEAL, 1988).
(CORRÊA FILHO, 1951, p. 98). Em vista do exposto até aqui, parecem apropriadas as observações
de Corrêa, que, ao fazer o inventário das convulsões políticas em Mato Gros-
Desencadeia-se então uma onda de violências dos partidários de
so nas décadas iniciais da República, constatou como a principal característi-
Murtinho contra aqueles de Ponce, tudo sob as vistas complacentes das forças
ca desse período o "uso extremo da violência", que a seu ver teria acabado
federais estacionadas no Estado. Sob pressão armada, com atos de vandalismo
por confundir-se com "o próprio modo de vida do mato-grossense". Para o
e tiroteios nas ruas, a Assembleia estadual anula as eleições de março, deter-
historiador, essa característica estaria aliás ligada a todo o processo de ocupa-
minando a realização de outras. Nessas violências destaca-se já a participação
ção da região, desde a época colonial, envolvendo ásperas lutas com o meio
de Antonio Paes de Barros, o Totó Paes, florescente usineiro de açúcar que,
natural, com os habitantes primitivos e com os vizinhos espanhóis (CORRÊA,
aliado aos Murtinho, organiza a "Divisão Patriótica Campos Salles", como ins-
1981, p. 19-20). Dessa maneira, o advento da República teria apenas inten-
trumento de pressão sobre o Legislativo estadual (CORRÊA, 1981, p. 99).
sificado o clima de violência ao abrir-lhe um novo espaço: o das lutas pelo
Nas novas eleições, em julho, é escolhido o candidato murtinhista. O poder em nível local e estadual, no contexto do "coronelismo".
grupo rival sofreria ainda outra derrota, logo em seguida, quando os poncistas
As oligarquias mato-grossenses, realmente, não titubeavam em trans-
eleitos para cargos federais (Senado e Câmara) são "degolados" pela Comis-
portar para os campos de batalha a arena das disputas políticas. A extensa
são de Verificação de Poderes. A violência política acentua-se ainda mais.
fronteira facilitava a aquisição ilegal de armas, e o engajamento nos comba-
Em todo o Estado, norte e sul, os partidários de Ponce respondem com atos
tes chegou a constituir um meio de vida para numerosos indivíduos, fossem
de força à perseguição do governo estadual. Nesse processo, Totó Paes
eles chefes oligárquicos ou elementos das classes subalternas. Nesse con-
entroniza-se como comandante das violências patrocinadas pelo Estado —
texto, aliás, entrelaçavam-se intimamente o coronelismo e o simples
nomeado oficialmente, como foi, chefe de uma força repressora irregular.
banditismo:
Sucedem-se os massacres, "revoluções" e "contra-revoluções", e as lideran-
ças da oposição refugiam-se em Assunção, no Paraguai (id., p. 100-105). "Uma vez armados [os partidários) pelos coronéis (que não raro possuíam verda-
deiros arsenais bélicos), era quase impossível recuperar após as refregas arma-
Nas eleições seguintes (1903), o próprio Totó Paes foi escolhido presi- das esse armamento distribuído" (CORRÊA, 1981, p. 27-33) - 23

dente do Estado. Paes dispunha do apoio do governo federal, chefiado agora A crónica dessas convulsões foi ainda enriquecida com as divergênci-
por Rodrigues Alves. No plano estadual, entretanto, ia aos poucos distancian- as, que desde então se delineiam, entre os interesses estabelecidos em cada
do-se do grupo dos Murtinho, num processo de crescente isolamento.
O panorama começava então a mudar. De fato, não tardou a iniciar- A respeito especificamente do banditismo, Corrêa informa que ele floresceu mais na região do Pan-
se contra Paes uma ampla articulação oposicionista, que se fortalecia na tanal e na faixa de fronteira com o Paraguai; o mesmo autor acrescenta que as autoridades eram
incapazes de "manter o controle sobre a extensa região sul do Estado" (p. 171).
mesma medida em que, em nível federal, progrediam as manobras visando
90 91
uma das porções, norte e sul, do extenso Estado. A hegemonia política dos e um verdadeiro nomansland que jaziam apenas à espera de qualquer
exercida pelas oligarquias nortistas, em detrimento das facções coronelistas aventureiro empreendedor e imaginativo". "O que certamente faltou mais
situadas no sul (encaradas como "um simples suporte, ou elemento de bar- aos belgas" — escreveu ainda esse autor, referindo-se especificamente à
ganha numa composição política"), ensejou um regionalismo sulista que, presença belga em Descalvados — "foi uma causa humanitária, do tipo da
desde fins do século passado, colocou a questão da divisão do Estado. campanha antiescravista no Congo, ou um movimento autonomista, que
teria permitido uma intervenção aberta" (STOLS, 1975, p. 69 e 71-72). Em
As tendências divisionistas receberam um reforço com a presença, no
outro local, Stols observaria também que o bom sucesso das tentativas colo-
sul do Estado, de um significativo contingente de migrantes gaúchos. Esse
niais belgas em Mato Grosso dependeria de que "a República brasileira não
movimento migratório, acentuado desde a última década do século XLX, con-
soubesse manter a integridade do território nacional e se desagregasse em
duziu a agudas lutas pela posse da terra, opondo de um lado os povoadores
outro tanto de pequenas repúblicas bananeiras" (STOLS, 1987, p. 109-110).
rio-grandenses e, de outro, a poderosa Companhia Matte-Larangeira, detento-
ra de vastas concessões para a exploração de ervais e que não se dispunha a Da mesma forma colocavam-se, por outro lado, as preocupações com os
ver seus domínios perturbados pela presença de "estranhos" . Além disso, vizinhos. No período 1906-1908, pelo menos, a conespondência entre o Ministé-
aqueles povoadores — fugitivos, em grande parte, das lutas políticas do Rio rio do Exterior e o da Guerra refere-se copiosamente a incidentes fronteiriços em
Grande do Sul — eram portadores de experiências revolucionárias e federalistas, Mato Grosso, mencionando, por exemplo: o estado precário dos marcos divisórios
que aflorariam também na reivindicação da autonomia para o sul de Mato Brasil-Paraguai, com "cercas arbitrárias" construídas pelos paraguaios; a existência
Grosso (CORRÊA, 1981, p. 57-58). Cabe notar que os movimentos divisionistas, no Paraguai de grupos de "desordeiros emigrados", ameaçando os habitantes da
que eclodiram no sul do Estado em diversas ocasiões, eram encarados pelas fronteira; a imprecisão das fronteiras, facilitando o contrabando, etc. (AHI 299/3/
autoridades estaduais como uma grave ameaça à "ordem": 10). Em maio de 1907 o próprio Rio Branco, num ofício reservado dirigido ao
"por muito tempo o governo estadual entendeu o separatismo como o grande presidente do Estado de Mato Grosso, pede detalhes sobre algumas informações
perigo a ser evitado e combatido. Toda ideia separatista e rebeldia política oriunda que lhe haviam chegado; segundo essas informações,
do sul do Estado era virtualmente esmagada e reprimida, para o que o governo
estadual acionava os coronéis sulistas que se mantinham fiéis à situação" (id., p. "diversos oficiais argentinos dirigem e instruem o exército paraguaio, e [...) pouco
58) .
2 5 a pouco os comandam, e governam, assim como a Argentina está como um polvo
dominando e absorvendo o Paraguai, e em particular comprando grandes zonas
Em suma, pode-se dizer que essa militarização das relações sociais e do Estado de Mato Grosso" (ofício reservado de 18.5.1907 — AHI 308/2/16)
políticas representava a contrapartida da relativa fraqueza do poder estabe-
Por outro lado, em 1909 o presidente do Estado de Mato Grosso (Pedro
lecido no Estado, decorrente de sua dependência frente a um instável e
Celestino Corrêa da Costa) escreve a Rio Branco tratando de vários problemas
difícil equilíbrio entre as belicosas facções oligárquicas, como notou Corrêa:
do Estado e, referindo-se às "condições peculiares do sul do Estado" e à "anar-
"a existência de um povo armado implicava necessariamente a constatação
quia sempre reinante na República vizinha" (Paraguai), opina que a guarnição
de u m Estado fraco e dependente" (1981, p. 33; destaque meu).
federal na região precisaria ter "instruções especiais para prestar auxílio não só
Finalmente, a esse quadro de convulsões internas, de "perturbação às autoridades aduaneiras da União como às do Estado nos casos de perturba-
da ordem" e de um Estado "fraco" agregavam-se ainda, do ponto de vista ção da ordem e contrabando" (carta de 14.12.1909 — A H I 308/2/14).
das elites dirigentes brasileiras, as implicações decorrentes da presença es-
Todo o cenário aqui descrito, enfim, parece ter-se descortinado aos
trangeira em Mato Grosso. olhos das elites dirigentes brasileiras, com particular clareza, por ocasião da
Tratava-se aí, por um lado, da presença belga. Como notou Stols, a Revolução de 1906, quando o governo federai revelou-se ele mesmo inca-
atuação belga em Mato Grosso ocorreu "num período no qual o território da paz de intervir em defesa da ordem estabelecida em Mato Grosso: a expe-
nova República parece esfarelar-se aos olhos cobiçosos das potências colo- dição enviada por Rodrigues Alves, sob o comando do general Dantas Barreto,
niais", quando vastos tratos do território brasileiro "pareciam tão desocupa- enfrentou tantas dificuldades para chegar a Corumbá — e depois Cuiabá —
que apenas pôde testemunhar, impotente, o triunfo dos revoltosos. A esse
respeito, e para concluir este item, vale a pena notar algumas observações
A esse respeito, ver ARRUDA, 1989
do próprio general, na obra em que descreve sua odisseia.
2 4

2 5
Observe-se que o termo "separatismo", tal como usado por Corrêa, limita-se ao sentido de "divisão
territorial do Estado", sem referir-se a uma separação da União federal. Pode-se observar também
que, de acordo com outro estudo, as oligarquias do sul de Mato Grosso (com exceção do caso de
Corumbá) não teriam adquirido "expressão política" senão depois da terceira década deste século O presidente de Mato Grosso, Generoso Ponce, respondeu cm setembro de 1907, tranquilizando o
(NEVES, 1988, p. 91 e 104). chanceler brasileiro (AHI 308/2/14).

92 93
A certa altura, por exemplo, agastado com a demora que sua esqua- de 30.9- 1893) • Nova verba seria ainda concedida no orçamento para 1895:
dra sofria em decorrência do mau tempo no estuário platino, Barreto desa- cem contos de réis para os "estudos da estrada a construir pela força federal" (Lei
bafa: n 266, de 24.12.1894). Embora essa estrada não tenha sido construída, encon-
a

"essa demora [...] fez-me pensar durante alguns minutos sobre a necessidade tram-se indícios de que alguns trabalhos chegaram a ser realizados: alguns anos
imediata de uma estrada de ferro que ligue o centro da República àquele depois uma lei veio autorizar o Poder Executivo a abrir um "crédito extraordinário"
abandonado território nacional". de cerca de 35 contos de réis para o "pagamento das despesas da comissão de
E acrescenta: estudos da Estrada de Ferro de Catalão a Cuiabá" (Lei n 692, de 24.9.1900) . 2 28

"É evidente a necessidade, agora mais acentuada, de nos comunicarmos com Por outro lado, em 1894 abre-se ao Ministério da Guerra o significativo
Mato Grosso por via que não dependa de qualquer capricho da República crédito de 3 mil contos, para "despesas urgentes com os reparos e armamento
Argentina, com quem não é difícil termos sérias divergências por interesses
contrariados, ou por veleidades dessa nação irrequieta e, neste caso, o nosso
das fortificações da República e principalmente do porto do Rio de Janeiro e
desastre seria irremediável no primeiro momento!" (BARRETO, 1907, p. 78-80). das fronteiras de Amazonas e Mato Grosso" (Decreto n 1696, de 20.4.1894). 2

A propósito dos violentos acontecimentos em Mato Grosso, o gene- Em 1894, também, outra comissão militar seria formada, com a atri-
ral expressa por fim, ainda uma vez, a oposição entre civilização e barbárie-. buição de construir uma "estrada estratégica" (aparentemente apenas
carroçável, e não de ferro) de Cuiabá à divisa com Goiás [cf. instruções
"O que nós queremos e havemos conseguir [..,] é a garantia da ordem civil,
para tranquilidade dos que trabalham pelo bem da grande União, é a obediên- expedidas pelo Ministério da Guerra em 2.9.1894 — Instituto Histórico e
cia dos Estados pretensiosos à lei fundamental da República". Geográfico Brasileiro (IHGB), Coleção General Sólon, lata 559, pasta 37]. A
"Oxalá que o telégrafo e as vias rápidas de comunicação levem a esse despovo- comissão era chefiada pelo então capitão Cândido Mariano da Silva Rondon,
ado território brasileiro todos os favores da civilização e da paz, para o desen- que, em suas memórias, relata a esse respeito:
volvimento da sua fortuna oculta" (id., p. 52 e 85).
"Haviam-se tomado tensas as relações entre o Brasil e a Argentina, que discutiam
a questão do território das Missões. O Governo Brasileiro pensou em mandar
tropas por tena — urgia, pois, preparar uma estrada estratégica de Goiás a Cuiabá".

Rondon informa ainda que, em 1895, sendo "normalizadas" as rela-


"Construção Urgente" de Vias de Comunicação:
ções com a Argentina, os planos foram abandonados e os trabalhos suspensos
A Ação do Estado Republicano (VIVEIROS, p. 108 e 113).
em Mato Grosso O Exército seria ainda mobilizado na construção de outra ferrovia em
Desde o início do regime republicano registram-se diversas provi- demanda de Mato Grosso. Em novembro de 1899, a lei do orçamento para
dências do governo federal que, tendo em conta o contexto acima descrito, o ano seguinte, no artigo referente ao Ministério da Guerra, autorizava o
visavam claramente a um maior controle sobre o território de Mato Grosso. Poder Executivo a desenvolver estudos para a "construção urgente de
uma ferrovia que ligue o Estado do Paraná ao de Mato Grosso, a qual será
É o caso, por exemplo, das linhas telegráficas, que começaram a ser feita por praças dos batalhões de engenheiros, sob a direção de engenheiros
construídas no Estado ainda em 1889, prosseguindo a construção por todo o militares" (Lei n 652, de 23-11-1899; destaque meu). A respeito dessa
2

último decénio do século e o primeiro do século seguinte (VIVEIROS, 1958, estrada o ministro da Guerra, no relatório anual apresentado em maio de
passim.; ÁLBUM Graphico do Estado de Matto-Grosso, 1914, p. 196). 1902, informa que os trabalhos de reconhecimento, efetuados por um bata-
Já em 1893, o próprio Exército foi mobilizado para a construção de lhão de engenharia militar, já se estendiam por 200 quilómetros além da
uma ferrovia para Mato Grosso. Tendo sido decretada em maio de 1893 a cidade paranaense de Guarapuava, em direção a Mato Grosso (p. 62-64). O
caducidade da concessão para a estrada de ferro de Catalão (GO) a Cuiabá, relatório do ano seguinte informa que a picada de reconhecimento atingira a
editou-se logo em seguida uma lei que dispunha: "O governo empregará os margem esquerda do rio Paraná e que já se haviam iniciado os estudos
oficiais e praças do Exército nos estudos e construção da Estrada de Ferro de
Catalão a Cuiabá" (Lei n 183, de 20.9-1893). Parte da verba necessária foi
2

2 7
Observa-se aliás que, nessa mesma lei, outro dispositivo vincula essa estrada à projetada mudança
efetivamente consignada na lei que fixava a despesa para o ano seguinte: da capital federal, autorizando o governo a "levar à zona demarcada para a futura Capital a via férrea,
"Estrada de ferro de Catalão a Cuiabá — Para os estudos da estrada estratégica, podendo a Comissão que fôr incumbida da exploração da linha estratégica de catalão a Cuiabá pro-
ceder aos estudos de um ramal que vá à referida zona".
que será construída pela força pública federal [...] 200:000$000" (Lei n 191B, 2

2 8
O referido crédito foi aliás aberto logo em seguida, pelo Decreto n° 3793, de 8.10.1900.

94 95
definitivos para a construção do primeiro trecho, de 20 quilómetros (p. 42). No início de 1908 vem a Mato Grosso uma "Comissão de Estudos da
Os relatórios dos anos seguintes, todavia, não mais se referem a essa estrada. Defesa do Rio Paraguai", chefiada por um coronel do Exército (ÁLBUM Graphico...,
p. 186). Nesse mesmo ano, estando em curso um processo de reorganização do
Já em 1902, o Ministério da Guerra determina que se transfira de Exército, o Ministério da Guerra deteirnina a cidade de Aquidauana (sul de Mato
Cuiabá para Corumbá a sede do distrito militar correspondente a Mato Gros- Grosso) como sede de uma das cinco recém-criadas "brigadas estratégicas" (as
so (sétimo distrito). Esclarece-se que as razões da mudança eram, por um quatro restantes ficariam situadas no Rio de Janeiro, Curitiba, Santa Maria e São
lado, a "baixa constante das águas" do rio Cuiabá (fato que privava essa Gabriel, as duas últimas no Rio Grande do Sul) [Decisão n 132, de 25.11.1908] . 2 30

cidade de comunicação regular) e por outro o fato de ser o porto de Corumbá Em 1910, além disso, cria-se no âmbito do Ministério da Guerra uma "Comissão
"o primeiro que recebe, transmite ordens e presta recursos de pessoal e Especial de Obras Militares em Mato Grosso" (Decisão n 86, de 4.6.1910). 2

material às demais guarnições, podendo-se considerar no centro da grande


zona, onde se acham essas guarnições" (Aviso n 138, de 21.1.1902). Q Por outro lado, o relatório do Ministério da Guerra apresentado em
junho de 1908, depois de ressaltar a importância estratégica e militar da
A partir de 1903 as providências parecem amiudar-se. A lei de des- Noroeste do Brasil (já. em construção), observa que a construção dessa es-
pesa para 1904 volta a referir-se ao antigo projeto de construção da ferrovia trada "não resolve completamente o problema militar" no Estado de Mato
Catalão-Cuiabá por forças militares, autorizando o Governo a despender nesse Grosso e sugere a construção de mais uma "estrada estratégica", ligando S.
projeto até 150 contos de réis (Lei n 1145, de 31-12.1903, art. 17, inciso
Q
Luiz de Cáceres (no alto curso do rio Paraguai) à cidade de Mato Grosso
22). Em 1905, a lei de despesa autoriza o presidente da República a desen- (antiga Vila Bela da Santíssima Trindade, próxima à fronteira com a Bolívia,
volver as oficinas dos arsenais de guerra do Rio Grande do Sul e Mato Gros- no vale do rio Guaporé) [p. 9-12]. Cabe notar que já a lei de despesa para
so, "de maneira que prestem elas todos os serviços de que carecerem as 1909 veio autorizar o governo federal a providenciar "a construção de uma
forças estacionadas naqueles Estados", inclusive o preparo de cartuchos; essa linha férrea que, partindo de S. Luiz de Cáceres, vá terminar no ponto mais
mesma autorização seria repetida na lei de orçamento para 1906 (Lei n 2
francamente navegável do rio Guaporé, ligando as bacias do Paraguai e do
1314, de 30.12.1904, art. 10; Lei n 1453, de 30.12.1905, art. 10).
e
Amazonas"; essa autorização seria ainda repetida nas leis de despesa se-
guintes, para os anos de 1910,1911 e 1912 (Lei n 2050, de 31-12.1908, art.
2

Desde 1906, por outro lado, as leis de orçamento passam sistematicamen-


16; Lei n 2221, de 30.12.1909, art. 18; Lei n 2356, de 31.12.1910, art. 49;
2 2

te a autorizar o governo federal a providenciar os estudos necessários à "constru-


e Lei n 2544, de 4.1.1912, art. 38). Note-se ainda que, invocando essas
2

ção de linhas telegráficas e estradas de feno de caráter estratégico, pelo Ministério


autorizações, veio a ser aberto, em fins de 1911, um crédito de 50 contos
da Viação, podendo este entrar em acordo com o da Guerra para utilização, neste
para os estudos da referida linha férrea (Decreto n 9178, de 6.12.1911). 2

serviço, do pessoal técnico e praças de pré do Exército" (Lei n 1617, de 30.12.1906,


2

art. 35; ver também as leis dos anos seguintes, citadas adiante). Também em 1911, enfim (sob a invocação da já citada autorização
Para 1907, a lei de despesa determina por sua vez que o governo provi- para construção de linhas telegráficas e estradas de ferro estratégicas), é aber-
dencie, "com a urgência possível", a elaboração dos "orçamentos necessários à to um crédito de 110 contos para a instalação de uma estação radiotelegráfica
reconstrução dos fortes de Coimbra [Mato Grosso] e Tabatinga [Amazonas] e seu em Porto Murtinho, no sul de Mato Grosso (Decreto n 8728, de 17.5.1911). 2

respectivo artilhamento"; essa disposição seria ainda reiterada na lei referente a Dessa forma, em vista de tudo o que foi exposto até aqui, parece que se
1908 (Lei n 1617, citada, art. 27; Lei n 1841, de 31.12.1907, art. 19).
2 e
pode concluir este capítulo afirmando que as preocupações "estratégicas" consti-
Ainda em 1907 o ministro da Guerra, referindo-se à organização do serviço tuíam um elemento bastante real nos projetos das classes dominantes brasileiras.
geográfico do Exército, com vistas ao levantamento da carta do Brasil, determina Nesse quadro, inimigos externos (na figura de soberanias rivais ou ameaçadoras)
que o Estado-Maior providencie para "atacar-se desde já esse serviço em Mato podem ser reais oufictícios,efetivos ou imaginados — mas cumprem sempre um
Grosso", pelo "levantamento do promontório que se ergue à margem direita do papel importante na política interna dessas classes, como um dos elementos da
rio Paraguai, desde a Bahia Negra até Corumbá" (Decisão n 92, de 255.1907). 2
mistura destinada a argamassar a "unidade nacional". As contestações internas ao
Igualmente em 1907, militares são encarregados de "estudar as vias de comunica- domínio estabelecido, especialmente aquelas que se revestem de traços separa-
ção estabelecidas entre Nioaque (Mato Grosso) e o Estado de São Paulo" . 29
tistas, cumprem também o mesmo papel, sejam elas manifestações dos domina-
dos ou mesmo de frações regionais ou locais das próprias classes dominantes.
Esse fato parece duplamente significativo pelas seguintes circunstâncias: o relatório do oficial encarregado
da missão é apresentado diretamente ao ministro da Guerra; por outro lado, uma cópia desse relatório encon-
Na conceituação da época, a brigada estratégica constituía "a base de formação do exercito e, como
tra-se entre a documentação do Ministério das Relações Exteriores (cf. Relatório da Comissão de que foi
tal, a maior unidade que pode permanecer constituída" (Decreto n 6971, de 4.6.1908).
Q

incumbido provavelmente o 2° tenente Plínio de Carvalho... — A H I , lata 681, maço 2, pasta 2).

96 97
^^^^^^^^
CAPÍTULO 3

A Construção
da Noroeste
em seu
Contexto

N a história da
construção da
Noroeste do Brasil
dois momentos
podem ser considerados
cruciais. O primeiro é o
próprio início da construção,
em 1904 (visto que ele
ocorre depois de decénios de
projetos, tentativas e
protelações), e o segundo
corresponde à mudança de
traçado efetivada entre 1907
e 1908 (na medida em que
essa mudança alterou
completamente os termos em
Porto Esperança que estava colocada
Álbum Graphico do inicialmente a obra).
Estado de Matto Grosso
organização da companhia destinada a explorar a concessão da fenovia para
Mato Grosso:
"O Governo, verificando que havia facilidade em levantar capitais, encarregou
o eminente engenheiro, glória da classe, Teixeira Soares, de dar os passos

"Negociações Longas, necessários para conseguir o objetivo que se colimava. Com a confiança que
inspirava aos banqueiros europeus [...], não foi difícil ao Dr. Teixeira Soares,

Laboriosas e Dispendiosas": organizar a Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, para a construção
da linha Bauru-Cuiabá" (p. 21).

O Início da Construção Referindo-se ao papel da Companhia Paulista, essas fontes obser-


vam que uma estrada de ferro ligando Mato Grosso a Goiás, tal como se
Como se recorda, a Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do
"agitava na imprensa" em 1904, desviaria para o Rio de Janeiro o "eixo
Brasil foi constituída em junho de 1904. Em julho foi-lhe transferida a velha
das comunicações entre o litoral e Mato Grosso", prejudicando o Estado
concessão da ferrovia Uberaba-Coxim e, em outubro, o governo federal
de São Paulo e mesmo Mato Grosso, que "seria servido por uma linha
substituía esse traçado por um outro, de Bauru a Cuiabá. Ainda em 1904 com traçado de grande desenvolvimento quando poderia tê-lo mais di-
1

(novembro) iniciaram-se os trabalhos de reconhecimento desse traçado, de reto através do território paulista". Seria portanto nessas circunstâncias
maneira que as obras propriamente de construção puderam ter começo em que a Paulista, "a fim de evitar tão grande mal, teve a feliz e patriótica
julho do ano seguinte. ideia de solicitar o parecer do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro"
Sobre esse momento inicial a bibliografia e a documentação oferecem (GUIMARÃES, 1933) . 2

numerosas referências — coincidentes, divergentes ou mesmo contraditórias.


Sobre esse assunto é sobremaneira ilustrativo o relato de um partici-
Uma primeira vertente da documentação destaca por um lado a im- pante direto do processo: o engenheiro Adolfo Augusto Pinto, que era na
portância que teriam tido, na decisão sobre a construção, as iniciativas do época um alto funcionário da Paulista. Em suas memórias, conta ele:
governo federal (em especial do Barão do Rio Branco, ministro do Exterior "Em princípios do corrente século, agitando-se na imprensa do Rio de Janeiro,
de Rodrigues Alves); e destaca também, por outro lado, o que teria sido a por influência do Estado Maior do Exército, a ideia de resolver a velha questão
ação da Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais na definição do de comunicação direta de Mato Grosso com o litoral marítimo por uma estrada
traçado inicial (ou seja, alteração de Uberaba-Coxim para Bauru-Cuiabá). de ferro lançada de Catalão a Cuiabá, desviando-se assim para o sistema viatório
de Minas e daí para o Rio de Janeiro as correntes de tráfego entre o longínquo
Menciona-se por exemplo que, tão logo assumiu a pasta das Rela- Estado e o de São Paulo, compreendi a necessidade de combater semelhante
plano, absolutamente injustificável, sobretudo em face do avançamento que
ções Exteriores (em fins de 1902), Rio Branco teria enfrentado, "com deci- tinham feito as estradas de ferro paulistas para os lados de Mato Grosso, de que
são e energia, o problema das vias de comunicação no Brasil, principalmen- davam prova as estações terminais de Bebedouro, Taquaritinga e São Paulo dos
te na direção de Mato Grosso", "agitando" a questão da construção de uma Agudos" (PINTO, 1970, p. 48).
ferrovia que servisse a esse Estado — tendo sido "animado, nesse empreen- Pinto informa ter sido ele próprio o autor da ideia de uma consulta ao
dimento, por oficiais do estado-maior do Exército, destacando-se o major Clube de Engenharia, relatando:
Eduardo Sócrates, que se manifestou favorável ao trajeto Catalão-Cuiabá"
"Como, entretanto, no pé em que se achava a questão, a primeira coisa a fazer
(NEVES, 1958, p. 31). era assentar o plano definitivo da obra e esse plano convinha ser estabelecido e
Outro autor diz que a ideia da ferrovia para Mato Grosso "havia sido justificado por uma corporação que se recomendasse ao mesmo tempo por sua
competência técnica e isenção de ânimo, tomei a iniciativa de sugerir à Direto-
posta de lado", quando "providencialmente foi eleito presidente da Repú- ria da Paulista que dirigisse u m apelo ao Clube de Engenharia do Rio de Janeiro
blica" o Conselheiro Rodrigues Alves, que convidou para seu ministério Rio [...] no sentido de cometer-lhe o exame da questão, pois seu esclarecido juízo
Branco e Lauro Muller; e completa: não poderia deixar de ser bem acolhido pelo Governo Federal como a mais
segura orientação a seguir no caso" Ud., ibid).
"Governo assim constituído, não podia deixar de reconhecer a urgência de ser
construída estrada de ferro para Mato Grosso. Agitou-se então novamente o Uma segunda vertente da documentação enfatiza, no processo de
assunto, sendo estudados diversos traçados que, além d o político, tivessem fins tomada da decisão sobre o início da construção da NOB, a ação de particula-
estratégicos" (PENIDO, 1933, p. 19).

O mesmo autor (que aliás participou, como engenheiro, da constru- 1


Em engenharia ferroviária, o termo desenvolvimento tem o sentido de extensão, comprimento.
ção da NOB) atribui ainda ao governo federal um papel decisivo na própria 2
Observe-se que Guimarães também participou, como engenheiro, da construção da NOB.

102 103
em um "esquecido parecer" descoberto no Arquivo do Estado, pelo qual se
res. Nesse sentido tem-se o depoimento do engenheiro Joaquim Machado
poderia admitir que, "para evitar desentendimentos entre vizinhos", a linha
de Mello, u m dos fundadores da Companhia Noroeste e empreiteiro da
fronteiriça "poderia atender a parte das solicitações bolivianas" (CORRÊA
obra. De fato, numa conferência proferida em 1914, após mencionar o fato
FILHO, 1946, p. 10). Desse modo o governo de Mato Grosso, "desautorando
de os concessionários da estrada Uberaba-Coxim terem sido em sua época
a oposição do seu representante" (Joaquim Murtinho), "entrou nas boas gra-
obrigados a abandonar os trabalhos "pela dificuldade de levantar capitais",
ças de Rio Branco e Rodrigues Alves, que lhe prometeram, em compensa-
Mello passa a relatar:
ção ao apoio valioso, uma ferrovia que ligasse a Capital [Cuiabá], no centro
"em 1903, de volta de uma viagem à Europa, onde vi a tendência de capitais a da América do Sul, ao litoral distante" (CORRÊA FILHO, 1930, p. 50; desta-
emigrar, pude reviver a ideia da construção dessa Estrada e procurei o Dr. João
que meu). O mesmo autor cita em seguida as discussões sobre o tema no
Teixeira Soares, nome muito acatado nos círculos financeiros da Europa, e pedi-
lhe para tentar o levantamento dos capitais precisos para tão grande empreen- Clube de Engenharia, para concluir: "Divergindo dos referidos pareceres,
dimento, o que foi felizmente por ele conseguido". inclusive o de Schnoor, [...] o governo federal preferiu a solução que agra-
dasse ao Presidente de Mato Grosso", ou seja, a ligação entre o litoral e
E completa:
a cidade de Cuiabá, capital do Estado (id., p. 55-56; destaque meu).
"O Governo, tendo nessa ocasião adquirido a Sorocabana, achou que convinha
valorizá-la, fazendo partir de u m de seus extremos a estrada, e aproveitando- Seria oportuno acrescentar que, do ponto de vista de Corrêa Filho, a
a para servir a Cuiabá, ainda a conselho d o Dr. Teixeira Soares" (MELLO, promessa restou inatendida, devido à posterior mudança do ponto terminal
1917, p. 20).
da ferrovia, de Cuiabá para Corumbá (id., p. 48 e 57). Em obra anterior às
Esse relato de Machado de Mello é curiosamente confirmado, quase duas aqui citadas, o autor — cuiabano de velha cepa — refere-se mesmo a
com as mesmas palavras, por outro escrito da mesma época (CARVALHO, esse descumprimento em tom acentuadamente amargo:
1914, p. 5). "O governo brasileiro apressou-se em cumprir o que prometeu no Tratado de
Petrópolis, pela entrega à Bolívia das terras do Abunã, da Bahia Negra e das
Enfim, uma terceira vertente vincula o início da construção da NOB
lagoas de Cáceres, Mandioré, Gaíba e Uberaba, e dos dois milhões de esterli-
às vicissitudes da negociação do Tratado de Petrópolis — e, por essa via, à nos, e providenciar a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Mas, da
política interna do Estado de Mato Grosso à época. Tais referências podem via férrea, que deveria partir de Cuiabá nunca mais se falou: o compromisso não
ser encontradas, reiteradamente, em diversas obras do historiador mato- constara do documento diplomático, dignificado pelas assinaturas de eminentes
negociadores. Era promessa verbal do governo da União, que o tempo levou,
grossense Virgílio Corrêa Filho. deixando por solver dívida contraída pelo seu grande ministro Rio Branco"
(CORRÊA FILHO, 1926, p. 165, nota 330).
Como se sabe, as negociações do citado Tratado, conduzidas por Rio
Branco, iam no sentido de se firmar com a Bolívia um tratado de cessão e Finalmente, cabe observar que os documentos oficiais da época não esclare-
permuta de territórios. Dessa forma, os entendimentos indicavam que, para cem muito a respeito. Com efeito, o relatório do Ministério da Viação, apresentado
receber o Acre, o Brasil deveria ceder à sua vizinha territórios situados às em 1904, afirma apenas que, com o objetivo de "dar viação aos Estados de Goiás e
margens do rio Paraguai (dado que o acesso a esse rio era antiga reivindica- Mato Grosso", a administração federal procurava "modificar linhas cuja construção
ção dos negociadores bolivianos de limites com o Brasil). Ocorre que se pesaria sobre o Tesouro pela garantia de juros, sem vantagens assinaladas" (p. 7).
tratava, aí, de territórios pertencentes ao Estado de Mato Grosso, o que
motivou a oposição de importantes lideranças políticas desse Estado, em
particular o então senador Joaquim Murtinho (CORRÊA FILHO, 1946, p. 10).
Por outro lado — nota ainda o mesmo autor, em outra obra — o então
presidente do Estado de Mato Grosso, coronel Totó Paes, tendo chegado ao
governo com apoio do clã dos Murtinho, desejava emancipar-se de sua tute-
Os Interesses Materiais Envolvidos
la (CORRÊA FILHO, 1930, p. 54). Para o entendimento das circunstâncias em que tem início a constru-
ção da Noroeste é preciso salientar, ainda que brevemente, um aspecto que
Teria assim ocorrido uma convergência de interesses, pela qual, em
quase não aparece na bibliografia nem na documentação: trata-se da consi-
compensação pelo apoio oficial de Mato Grosso ao Tratado, o governo fe-
deral providenciaria o imediato início da construção de uma ferrovia dirigida
Trata-se de um documento elaborado, em outros tempos, por Augusto Leverger (1802-1880), autor de
a esse Estado, obra há tanto tempo protelada. Como relata Corrêa Filho, o diversos trabalhos de caráter historiográfico, geográfico e corográfico e que ocupou por diversas
apoio do governo do Estado à fórmula pretendida por Rio Branco baseou-se vezes a presidência da Província de Mato Grosso, possuindo ali grande prestígio; militar, Leverger
destacou-se, durante a guerra com o Paraguai, na organização da defesa de Cuiabá.

104 105
deração da construção da ferrovia como um empreendimento em si mes- empreiteiros, portanto, essa época caracterizou-se por uma "angustiante
mo, independentemente das articulações entre a estrada e o meio em que depressão profissional" (CORRÊA FILHO, 1946, p. 3).
ela vai implantar-se.
Nesse contexto, o Clube de Engenharia do Rio de Janeiro — a princi-
Como se sabe, as ferrovias, como um dos mais autênticos produtos pal corporação da construção civil na época — movimentou-se ativamente
da Revolução Industrial, foram responsáveis por uma substancial parcela do visando reverter a situação. Veja-se, por exemplo, o texto de uma moção
desenvolvimento do capitalismo nos países pioneiros nesse modo de pro- unanimemente aprovada em sessão do Conselho Diretor do Clube, em se-
dução. Assim é que Hobsbawm, referindo-se à conjuntura da Inglaterra na tembro de 1901:
primeira metade do século XLX, registra "o imenso apetite das ferrovias por
"Propomos que o Clube de Engenharia se dirija ao Governo manifestando-se
ferro e aço, carvão, maquinaria pesada, mão-de-obra e investimentos de favorável à ideia de pronto desenvolvimento da nossa viação férrea, paralisado há
capital", o que propiciava precisamente "a demanda maciça que se fazia cerca de quatro anos, com grande detrimento para o progresso do país e prejuízo
necessária para as indústrias de bens de capital se transformarem tão profun- para a classe dos Engenheiros nacionais, e apele para o Sr. Presidente da Repúbli-
ca para [que] seja dada imediata execução àquele empreendimento, que tanto
damente quanto a indústria algodoeira". O autor salienta assim a funcionali-
afeta o futuro da Pátria" (Arquivo do Clube de Engenharia — Doe. 187).
dade da construção ferroviária no interior do nascente sistema capitalista,
por sua excepcional faculdade de empregar mão-de-obra e incrementar por A instituição voltaria ainda ao assunto pouco depois, com um Parecer
toda a parte os negócios, concluindo: "De fato, o capital encontrou as ferro- sobre a legislação relativa ao sistema de viação férrea e navegação interior,
vias" e essas, "de imediato", "resolveram virtualmente todos os problemas aprovado pelo Conselho Diretor em fevereiro de 1902 (id. — Doe. 188).
do crescimento económico" (HOBSBAWM, 1981, p. 62 e 64). Nesse documento a entidade, dirigindo-se ao Presidente da República, pon-
dera: "Se há 5 anos a paralisação [das construções] teve lugar é porque as
No Brasil, na virada do século passado para o atual, a construção nossas circunstâncias exigiam esse sacrifício. Mas graças à administração se-
ferroviária era também um dos principais campos em que se aplicava o vera de V. Exa. a situação melhorou. É tempo de voltar à vida normal". O
trabalho dos engenheiros, constituindo para parcela desses um indispensá- texto apresenta também ao governo um mecanismo alternativo ("menos
vel meio de vida. As obras de estabelecimento dos leitos ferroviários, por oneroso aos cofres públicos" e "eminentemente moralizador") para o finan-
seu turno (terraplenagem, assentamento de trilhos, construção de estações ciamento das construções ferroviárias, em substituição à garantia de juros.
etc), movimentavam as empreiteiras de construções civis, empregando Por esse novo sistema, o governo contrataria a construção da ferrovia com
numerosa mão-de-obra e por essa via ativando o comércio em geral. Além "grupos fortes", os quais receberiam em pagamento títulos federais que
disso, o equipamento material envolvido nas obras (trilhos, material rodante renderiam 4% de juros e 0,5% de amortização . 4

e de construção, instrumentos de precisão etc.) constituía amplo mercado


para a indústria dos países centrais do capitalismo. Por outro lado, já no final de 1900 o Clube de Engenharia havia pro-
movido u m Congresso de Engenharia e Indústria, destinado, segundo as
Por outro lado, no Brasil a construção ferroviária (como de resto ou- palavras do engenheiro Paulo de Frontin, presidente do Clube, a debater "as
tros grandes empreendimentos de interesse público, como urbanização, questões que técnica ou economicamente mais interessam à engenharia e
aparelhamento de portos etc.) era tradicionalmente apoiada pelo Estado, indústria nacionais". Nessa ocasião, ao apresentar, em nome do Clube, u m
sendo certo que o grande surto ferroviário das últimas décadas da monarquia vasto e ambicioso elenco de obras cuja execução era sugerida ao Estado
foi viabilizado pela adoção do instituto da garantia de juros — mecanismo federal, Frontin insistia: "Cumpre-nos agir para fazer cessar a paralisação
pelo qual o Estado, em nível nacional ou provincial, comprometia-se a pagar
atual da construção das nossas vias férreas" (apudCORRÊA FILHO, 1946, p.
durante u m certo período, aos acionistas de companhias de estradas de
3-4).
ferro, uma remuneração mínima (entre 5 e 7%) do capital empregado, até
que a empresa pudesse proporcionar lucros pelo seu próprio movimento. Pode-se mencionar, porfim,um caso que bem ilustra os expedientes
Todavia, durante o período presidencial de Campos Salles (1898-1902), a de que esses profissionais lançaram mão na luta contra aquela "angustiante
rígida política de estabilização financeira, com o drástico corte nos gastos depressão": em 1904, o engenheiro Chrockatt de Sá, depois de expor sua
públicos, deixou à míngua todo o setor de construção civil do país; durante opinião sobre o traçado da ferrovia para Mato Grosso, observa que alguns
esse período o Estado federal, além de não conceder novas garantias de anos antes, quando ocupava a presidência do Clube de Engenharia, havia
juros, buscou livrar-se dos onerosos compromissos a que já estava obrigado
por esse instituto (procedendo, para tanto, ao resgate e posterior arrenda- 4
Esse regime, com algumas modificações, viria a ser realmente adotado pela União a partir de 1903
mento das ferrovias que gozavam dessas garantias). Para engenheiros e (governo de Rodrigues Alves), tendo ficado conhecido como "regime da Lei n° 1126".

106 107
solicitado ao governo federal que mandasse efetuar estudos para essa ferro-
gastos públicos iria mostrar-se possível graças ao incremento das receitas
via segundo um traçado distinto do sugerido por ele mesmo no momento
federais (em decorrência da própria reativação da economia e do bom
presente; julgando por isso necessário, agora, explicar as razões da mudança
desempenho das exportações, tendo à frente o café e a borracha) e à reto-
de sua opinião, principia, candidamente, com essas palavras:
mada do financiamento externo (MELLO, 1986, p. 139-140). De fato, sabe-
"Em primeiro lugar, o f i m principal daquela solicitação ao Governo era dar se que 1903, o primeiro ano do governo de Rodrigues Alves, foi também o
trabalho aos nossos colegas, que se achavam na mais desoladora das situações
ano em que as economias europeias começaram a recuperar-se da crise que
graças à paralisação absoluta dos trabalhos" (SÁ, 1907, p. 30).
vinha desde o final do século anterior (CASTRO, 1979, p. 90), habilitando-se
Todas essas considerações vêm aqui com o propósito principal de assim a retomar e ampliar os fluxos de exportação de capitais. A entrada de
evidenciar, como foi dito no início deste item, o fato de que a construção de capitais externos, sob a forma de empréstimos ou investimentos, beneficia-
uma ferrovia, por sua própria natureza, parece ensejar um certo descolamento va- se, por seu turno, dos efeitos da política de Campos Salles, que havia
entre a obra, tomada em si mesma, e as demais circunstâncias que a caracte- possibilitado "a restauração financeira interna e a recuperação da credibilidade
rizam, como seus pontos de partida e de chegada e o traçado entre ambos. junto aos centros internacionais" (SEVCENKO, 1985, p. 30).
De fato, quer uma ferrovia ligue o ponto A ao B ou o C ao D, o que perma-
nece sempre de pé é que sua construção consome equipamentos e mobili- Ademais, o novo presidente nomeia para o Ministério da Viação e
za empreiteiras, gerando lucros, empregando pessoal etc. Obras Públicas o catarinense Lauro Muller, engenheiro e membro do Clube
de sua corporação (além de militar e republicano histórico). Segundo um
As manifestações citadas, por sua vez, indicam que os profissionais historiador da engenharia brasileira, Muller, "logo após tomar posse, declarou
do ramo tinham perfeita consciência de que, ao pugnarem pela retomada em visita oficial ao Clube de Engenharia que o seu programa de governo
das construções ferroviárias, sob a invocação dos "interesses nacionais", aten- resumia-se em uma frase: fazer engenharia". O mesmo autor completa: "Re-
diam a seus interesses imediatos. Ressalve-se, todavia, que seria equivoca- almente, talvez nunca se tenha feito no Brasil tanta engenharia em tão pou-
do pretender, a partir disso, estabelecer um completo divórcio entre o obje- co tempo" (TELLES, 1984, p. 479). Corrêa Filho, aliás, confirma essas
tivo de reanimar a construção civil tout court e o desejo expresso de pro- asserções e acrescenta que Muller adotou como seu o plano de obras deline-
mover o desenvolvimento da economia nacional. Na época considerada, a ado no Congresso de Engenharia e Indústria de 1900 — servindo-se ainda,
ideologia do progresso elegia precisamente as ferrovias como seu símbolo para a execução desse plano, do concurso de outros membros do Clube,
máximo, como mostrou por exemplo HARDMAN (1988); e nos discursos escolhidos dentre os "que mais se distinguiram nos debates" do mesmo
dos engenheiros pode-se efetivamente perceber uma sincera fé na impor- Congresso (1946, p. 5). O depoimento de Machado de Mello parece resu-
tância das ferrovias, "instrumento aperfeiçoado e indispensável do progres- mir bem a situação: "Ainda hoje temos boas recordações daquele Governo
so do Brasil e do desenvolvimento da indústria, da lavoura e do comércio [Rodrigues Alves], que sempre viveu em boa harmonia com esta nobre ins-
nacionais", nas palavras de Frontin (apudCORRÊA FILHO, 1946, p. 4). tituição [o Clube de Engenharia]" — suspira, em 1914, o empreiteiro da
construção da NOB (MELLO, 1917, p. 18).
De todo modo, a Campos Salles sucedeu Rodrigues Alves (1902-
1906) e, com essa gestão, inaugurou-se um período muito mais propício ao Nessas circunstâncias, nada há de espantoso em que, em 1903, vies-
atendimento das reivindicações dos engenheiros e empreiteiros. De fato, se a "agitar-se na imprensa" a "ideia" da construção de uma ferrovia para
embora o novo governo não tenha alterado substancialmente os pressupos- Mato Grosso. Na verdade, essa "ideia" — como já se evidenciou neste
tos do programa de estabilização iniciado por seu antecessor, parece indis- trabalho — jamais desaparecera do debate das questões nacionais: adquirira
cutível que desde seu advento os investimentos estatais passam a assumir mesmo, em seu interior, foros de completa cidadania. Sua "necessidade"
grande vulto, significando uma "importante mudança na política económi- (política, económica ou estratégica) não era contestada por ninguém; discu-
ca" e desempenhando um papel fundamental no movimento de retomada tiam-se, isso sim, as possibilidades de sua efetivação, a vantagem desse ou
do crescimento da economia (CASTRO, 1979, p. 92; MELLO, 1986, p. 140). daquele traçado etc. Essa obra, aliás, figurava também no plano apresenta-
Rodrigues Alves assume com o propósito deliberado de modernizar do pelo Clube de Engenharia ao Congresso de 1900, sob a forma de u m
o país, iniciando um extenso programa de investimentos voltados funda- "prolongamento da E. F. Araraquara para Cuiabá e Vila Bela" (CORRÊA FI-
mentalmente aos serviços urbanos e à infraestrutura de transportes e LHO, 1946, p. 4). Assim, como imaginar que, em momento que se afigura-
comercialização, visando "sanear as carências resultantes de quase uma dé- va tão auspicioso para os empreendimentos civis de grande envergadura,
cada de paralisação dos investimentos públicos federais". Tal vigor nos não fosse ela lembrada por toda parte?
A esse respeito, ademais, há a acrescer uma circunstância de signifi-
108
109
É verdade que essa depreciação, ainda que ocorresse, seria certa-
cativa importância: o fato de que já havia uma concessão de ferrovia para mente menor que em outros tipos de investimento que, ao malograrem,
Mato Grosso com a cláusula de garantia de juros, a saber, a Uberaba-Coxim. levavam à simples volatilização do capital: como registrou um autor citado
Como se recorda, os detentores dessa concessão, valendo-se de suas articu- por Hobsbawm, uma ferrovia, diversamente das minas e dos títulos de dívi-
lações políticas, tinham-na zelosamente preservado da caducidade, que ha- da, "não podia ser exaurida ou ficar totalmente sem valor" (HOBSBAWM,
via muito já fora decretada com relação a outras concessões também feitas 1981, p. 64). Por outro lado, caso ocorresse, a depreciação não seria sempre
pelo Decreto n 862, do Governo Provisório da República.
a
irremediável: restaria por certo a possibilidade de a empresa, por meios
Essa circunstância é importante porque, nessas condições, a explora- legais ou extralegais, ressarcir-se do mau investimento vendendo, ao pró-
ção da concessão independia, até certo ponto, de qualquer providência go- prio poder garantidor dos juros, os trambolhos de que se houvesse inadver-
vernamental: estando em vigor a concessão, e desde que houvesse capitais tidamente tornado proprietária. Tal solução, todavia, representaria sempre
interessados na construção, ao governo caberia unicamente pagar a garantia um último recurso — dependente, como naturalmente seria, de moroso,
de juros a que estava legalmente obrigado. Ora, esses capitais começam a complicado e arriscado jogo de influências políticas. Por essa razão o traça-
aparecer precisamente por volta de 1903, o que fica evidente no já citado do, com seus pontos de partida e de chegada — como índices de que a
depoimento de Machado de Mello, em que ele historia sua participação nos ferrovia a ser construída poderia viabilizar-se como empresa industrial pelo
passos iniciais da retomada da concessão da ferrovia Uberaba-Coxim. Mello seu próprio movimento de cargas e passageiros — o traçado, enfim, teria de
— empreiteiro — coloca a questão, de fato, em termos da disponibilidade ser elemento de algum peso na atração de capitais a serem investidos na
ou não de capitais dispostos a financiar a obra. Recorde-se: depois de obser- construção.
var que o primitivo concessionário (o Banco União de S. Paulo) tivera de Dessa forma, no caso sob exame, os interessados na construção, ten-
abandonar estudos já feitos precisamente "pela dificuldade de levantar capi- do a seu favor um importante trunfo (ou seja, o prévio interesse dos capitais
tais", arremata: "em 1903, de volta de uma viagem à Europa, onde v i a por uma concessão com garantia de juros), tenderiam certamente a abrir-se
tendência de capitais a emigrar, pude reviver a ideia da construção dessa para uma composição com os demais interesses suscitados pela ferrovia,
Estrada" (MELLO, 1917, p. 20). Assim, o que conta inicialmente para o encarada já agora sob o ponto de vista dos traços concretos de sua efetivação.
empreiteiro é que existem, de um lado, capitais disponíveis e, de outro,
uma concessão com a atraente cláusula da garantia de juros, ou seja, precisa- Sob esse aspecto cabe realçar o papel da ferrovia na valorização de
mente aquela capaz de interessar os detentores de capital. terrenos e no favorecimento, direto ou indireto, de outros empreendimen-
tos, ligados ou não à empresa ferroviária. Partindo de Uberaba, a ferrovia de
Por esse raciocínio, nada autoriza que se suponha, a priori, uma Mato Grosso iria ligar-se não apenas à rede ferroviária paulista (através da
vinculação e muito menos uma identidade necessária entre os interesses Companhia Mogiana) como também à rede mineira e, através dessa, à
despertados pela construção da obra e aqueles despertados pelo traçado, fluminense — e dessa forma uma parte (possivelmente a maior) do movi-
com determinados pontos de partida e de chegada. É evidente no entanto mento da via iria girar em torno do porto do Rio de Janeiro, beneficiando
que, numa obra de tal magnitude, o traçado não poderia deixar de suscitar comerciantes e produtores mineiros e cariocas. Nessas circunstâncias, a de-
fundadas preocupações e ferozes disputas. finição de um ponto de partida localizado no Estado de São Paulo revelaria a
A esse respeito, é preciso lembrar preliminarmente que, ao menos por vitória de interesses ligados a empreendimentos situados nesse Estado e
uma circunstância, a própria questão do financiamento liga-se à do traçado. É que vinculados ao porto de Santos.
a garantia de juros não implicava em que o poder garantidor, no caso a União, Por essa época, de fato, os dirigentes paulistas defendiam aberta-
desembolsasse quaisquer recursos para investimento direto na construção. Esses mente a tese de que as comunicações entre Mato Grosso e o litoral deveri-
recursos tinham de ser providos pela companhia concessionária, através de seus am passar por São Paulo. A esse respeito, pode-se mesmo remontar ao final
acionistas e obrigacionistas (debenturistas). A garantia de juros proporcionava do período imperial, quando (em 1886), sob a inspiração do então presiden-
unicamente — o que não era pouco — a certeza de que os capitais emprega- te da Província, foi criada a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo,
dos teriam uma remuneração mínima por longo tempo, até que — e se — a cuja primeira atividade foi reconhecer possíveis caminhos de ligação com
operação da empresa ferroviária começasse a apresentar lucros. Ela nada asse- Mato Grosso (LEFEVRE, 1966, p. 3-4). Já em 1900, por outro lado, ao assu-
gurava, por outro lado, no que diz respeito à "sobrevivência" desses capitais: mir o governo do Estado de São Paulo, Rodrigues Alves declarava:
o numerário desembolsado pela companhia ficava efetivamente imobilizado
"Há, quanto aos transportes, u m vasto plano que não interessa mer os ao Estado
em obras e equipamentos, que poderiam vir a depreciar-se caso a ferrovia do que à União e deve ser objeto das mais sérias preocupações dos poderes
não se mostrasse capaz de converter-se em uma empresa lucrativa.
111
110
públicos: é a grande ligação por via férrea do nosso Estado com os do sul por participaram das discussões, apenas um defendeu o ponto de vista do relator
u m lado, com os de Mato Grosso e Goiás, por outro, constituindo-nos o centro sobre a ligação Rio-Goiás-Cuiabá: o já citado Eduardo Sócrates, que, além de
da convergência da produção desses grandes territórios" (apud MATOS, 1974, p.
91; destaque meu).
militar, era político (e era também, aliás, goiano). Todos os demais opina-
ram pela ligação de Mato Grosso ao porto de Santos, cruzando portanto o
Presidente da República em 1904, quando se define o ponto de par- território paulista. Note-se, ademais, que mesmo Sócrates não deixou de
tida da ferrovia para Mato Grosso, não é de crer-se que Rodrigues Alves — propor que a segunda ferrovia a ser construída em Mato Grosso se ligasse
tanto quanto os interesses que representava — tivesse esquecido tão enfá- diretamente à rede paulista.
tica declaração. Sobre esse assunto, todavia, nada é mais esclarecedor que
os depoimentos de Adolfo Augusto Pinto (citados neste e no primeiro capí- Desses debates, enfim, resultou o parecer final do Clube, que suge-
tulo), revelando interesses gerais da expansão paulista e específicos da Com- riu, para a ferrovia destinada a Mato Grosso, um traçado que partia precisa-
panhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais. mente "das imediações de S. Paulo dos Agudos" (o que incluía a localidade
de Bauru). Essa conclusão foi sacramentada em l de outubro de 1904. O 2

Na base de toda essa movimentação estava, evidentemente, a Decreto n 5349, que definiu o traçado inicial da Noroeste, foi publicado por
2

avassaladora expansão cafeeira, que convertia São Paulo no centro dinâmico sua vez com a data de 18 do mesmo mês e ano. Em vista disso tudo, parece
de toda a economia nacional da época e ativava interesses os mais diversos fora de dúvida que a definição de Bauru como ponto de partida da NOB
(como por exemplo aqueles ligados à valorização dos terrenos passíveis de decorreu de considerações que levaram em conta, antes de qualquer coisa,
serem ocupados pela agricultura), além do interesse específico das compa- o dinamismo do capitalismo paulista . 6

nhias de vias férreas, como a Paulista, em ampliar o volume de seu tráfe-


go - 5

Os debates havidos em 1904 no Clube de Engenharia, em decorrên-


cia da consulta encaminhada pela Companhia Paulista, não deixam dúvidas
acerca do poder desses interesses e da força de seus argumentos. O pare- "Uma Solução Agradável
cer do relator designado para o caso, engenheiro Chrockatt de Sá, ignorava
completamente o Estado de São Paulo e propunha a comunicação de Mato
Ao Presidente de Mato Grosso":
Grosso com o litoral por meio das duas vias seguintes: uma ligando Cuiabá A Definição do Ponto Final
ao Rio de Janeiro, passando por Goiás, e outra ligando o sul de Mato Grosso
Se as coisas parecem assim bastante claras no que diz respeito à
a Guarapuava, no Estado do Paraná. Em vista disso, o parecer foi violenta-
definição do ponto de partida da ferrovia, elas se obscurecem um pouco no
mente atacado pelos participantes do debate, em termos frequentemente
que toca ao ponto de chegada. Com efeito, os debates havidos no Clube de
duros e que por vezes se poderiam considerar mesmo ofensivos. O enge-
Engenharia mostram que o quase consenso acerca do ponto inicial não se
nheiro Horácio Antunes, por exemplo, depois de afirmar que a diretriz Rio-
repetia com relação ao ponto final: as opiniões se repartiam sobre se a
Goiás-Cuiabá, proposta pelo relator, constituía-se de "pedaços de estradas
ferrovia deveria dirigir-se ao sul ou ao centro do Estado de Mato Grosso .
construídas e por construir, em condições as mais diversas e disparatadas",
concluía: "O ilustre relator abusou de sua alta autoridade apresentando ao É certo que o parecer final do Clube indicou, para ponto terminal da
Clube essa linha disforme" (cf. Revista do Clube de Engenharia, n 15, p. 2
via a construir, as "proximidades da Baía Negra", no sul de Mato Grosso
132; destaque do original). O parecer foi enfim combatido sob a invocação (imediações do Forte Coimbra). No entanto, não há qualquer indicação de
dos mais variados argumentos: por propor linhas na verdade antiestratégicas, algum interesse especial situado nessa parte do Estado, que justificasse esse
que aumentariam demasiadamente a distância entre Mato Grosso e o litoral, traçado: para justificá-lo invoca-se tão-somente, como se recorda, uma vaga
percorreriam terrenos sem futuro económico etc. Dos seis engenheiros que perspectiva de "encaminhar para o Brasil o movimento comercial do sudes-
te da Bolívia e de parte do Paraguai" (cf. Revista do Club de Engenharia, n 2

5
A própria atividade da Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo constitui um índice
6
Cabe observar que, nessa ocasião, a Estrada de Ferro Sorocabana (que já se aproximava de Bauru)
eloquente do interesse despertado pelas perspectivas da ocupação capitalista dos "sertões" de São
pertencia à União, e essa circunstância foi também lembrada pelo governo para justificar a definição
Paulo. Tendo passado, no início de 1905, por uma "substancial transformação" (LEFEVRE), essa
do ponto inicial da NOB (tratar-se-ia, no caso, de valorizar a Sorocabana conectando-a com a ferrovia
Comissão, entre 1905 e 1907, efetuou a exploração de todo o oeste de São Paulo, percorrendo os rios
de penetração em Mato Grosso).
Tietê, Feio, Aguapeí, Paraná e Peixe; o Paranapanema já havia sido explorado, por sua vez, em 1889 (cf.
lista das publicações da Comissão desde o seu início, na Revista do Instituto Geográfico e Geológico, 7
Centro é como se costumava designar, na época, a região mato-grossense polarizada por Cuiabá
v. 18, n° 1,1965). (diferenciando-a do extremo norte, ainda virgem da presença branca).

112 113
pecuniária" em troca do Acre mas "devendo o Brasil abrir mão também de
15). Por outro lado, os interesses paulistas no aproveitamento do gado do
algum pequeno território, afimde que a negociação diplomática não se trans-
sul de Mato Grosso poderiam ser indiferentemente atendidos, quer a ferro-
formasse numa simples operação de compra e venda" (LINS, p. 290). Com
via se dirigisse ao sul, quer ao centro do Estado de Mato Grosso: como já foi
base nesse entendimento, o tratado foi enfim assinado em novembro de 1903- •
mencionado, a principal rota de exportação daquele gado dirigia-se à divisa
A questão das cessões territoriais por parte do Brasil (envolvendo terrenos
com Minas Gerais, onde poderia ser facilmente interceptada por uma ferro-
pertencentes aos Estados do Amazonas e de Mato Grosso) iria no entanto
via que se dirigisse a Cuiabá.
motivar violenta oposição ao tratado, no Legislativo e na imprensa. Ainda
Em vista disso, parece acertado supor que a definição do ponto final durante as negociações o próprio plenipotenciário brasileiro, Ruy Barbosa, já
da ferrovia teria obedecido não a interesses materiais imediatos mas a inte- se havia demitido por discordar dessas cessões. Ruy defendia a solução da
resses políticos, em sentido amplo — vinculando-se o desfecho dessa ques- questão mediante arbitramento, enquanto Rio Branco permanecia insistindo
tão às vicissitudes da elaboração e ratificação do Tratado de Petrópolis, em no acordo direto com a Bolívia, convencido de que "o arbitramento seria a
1903-1904 (e, portanto, às relações entre o governo federal e os dirigentes derrota" das pretensões brasileiras (VIANA FILHO, 1959, p. 342).
mato-grossenses).
Segundo Lins, para a maior parte dos opositores "não era o Tratado
Nessa perspectiva, convém primeiramente caracterizar, ainda que propriamente o alvo do combate, mas o governo Rodrigues Alves. Procura-
brevemente, o governo de Mato Grosso, na época chefiado por Totó Paes. va-se nele, de qualquer forma, um instrumento de luta partidária contra a
De acordo com Corrêa o governo de Totó, "apesar de sua identificação com situação dominante"; assim, a cessão de territórios seria tão-somente o "ar-
a violência política", teve "características eminentemente progressistas para gumento sentimental, lançado ao impressionismo da opinião pública" (p.
a época" (1981, p. 105). E, de fato, o caso de Paes demonstra quão proble- 294-295). Um observador contemporâneo, por sua vez, evocava a propósi-
mática se apresentava a oposição, habitual na época, entre "barbárie" e to a venalidade da imprensa: "a imprensa faminta [...] entendeu dever fazer
"civilização". Como notou Stols, os coronéis mato-grossenses tinham "um chantagecom o tratado, a pretexto de cessão territorial, para ver restabele-
pronunciado gosto pelo modernismo", "apesar de sua aparência feudal" (1987, cer-se o regime das subvenções deC. Sales" (apud VIANA FILHO, p. 347).
p. 99). Corrêa por sua vez lembra, como um indício da "visão progressista" Enfim, nessa categoria de opositores de má fé inclui Lins os deputados e
de Totó Paes, as características empresariais de sua usina de açúcar, ajuntan- senadores de Mato Grosso, liderados por Joaquim Murtinho; Afonso Arinos
do: "apesar das acusações de se utilizar ali de trabalho escravo" (p. 106) . 8
confirma essa interpretação (LINS, p. 295; FRANCO, 1973, p. 255-256).
Consta, de todo modo, que Paes procurou no governo cercar-se de "escrito-
res, jornalistas, advogados e elementos ligados ao meio cultural cuiabano", O que parece certo é que a aprovação ou não do tratado, pelo Con-
"financiou expedições científicas" e "participou da Exposição Internacional gresso brasileiro, punha em jogo acima de tudo o prestígio do governo
de St. Louis com a finalidade de atrair capitais estrangeiros para Mato Gros- federal e, muito particularmente, de seu ministro do Exterior — circunstân-
so" (CORRÊA, 1981, p. 106). cia essa que deve ser ressaltada: Rio Branco certamente não tinha assumido
o Ministério para arriscar-se, logo no primeiro ano de trabalho, a um revés
No que se refere ao Tratado de Petrópolis, por outro lado, não se (que julgava inevitável) num eventual arbitramento da questão do Acre. E
pode ignorar a complexidade de que se cercaram as respectivas negocia- de todo modo, de má fé ou não, não seria de desprezar-se a oposição dos
ções. Como notou um escritor, as discussões ganhavam as ruas, empolgan- representantes de Mato Grosso, que ao fim se confundia com a de Ruy
do a opinião pública; nos primeiros meses de 1903, viveu-se "a expectativa Barbosa, esta reconhecidamente alicerçada "na fidelidade a uma convicção"
de uma guerra, com a opinião pública exaltada e apaixonada nos dois paí- (LINS, ibid.; FRANCO, ibid.).
ses" (Brasil e Bolívia); "manifestações populares exigiam do governo uma
ação violenta e imediata. Nos círculos militares e políticos tinha-se como Nessas circunstâncias, parece que Conêa Filho não exagera ao realçar a
inevitável a solução pelas armas"; enfim, o "assunto principal de todos os importância conjuntural do apoio prestado ao governo federal pelo governo
jornais e de todas as reuniões era o Acre" (LINS, 1965, p. 280). do Estado de Mato Grosso, mediante a afirmação de que os tenitórios mato-
grossenses poderiam ser cedidos à Bolívia "sem inconveniente para este Esta-
É a partir de agosto de 1903 que as negociações tomam o rumo que do e para o Brasil" (LINS, p. 300) — "desautorando", assim, "a oposição do seu
afinal prevaleceria, concordando a Bolívia com a ideia de uma "compensação representante, Joaquim Murtinho" (CORRÊA FILHO, 1930, p. 50; ver tam-
bém p. 54 e ss.). Numa época em que o federalismo mostrava-se ainda
8
Segundo um interessante estudo, a Usina Itaici, de Totó Paes, era "a maior e mais moderna" do Estado. bastante vivo, a palavra oficial do governante de um Estado devia necessa-
Sobre o regime de trabalho nas usinas, o mesmo estudo informa que era "realmente duro", sendo riamente ter u m peso político considerável. Um autor da época,
comum o uso do "tronco" como instrumento de castigo e tortura (PÓVOAS, [198-1, p. 25 e 53).

114 115
aliás, referindo-se a um período pouco posterior à ratificação do tratado pelo deviam ser postos em contato com a civilização do Rio e de São Paulo pela
comunicação rápida e aperfeiçoada de uma ou mais ferrovias interiores. Assim é
Congresso, confirma indiretamente essas assertivas ao referir-se à aproxima-
que o Tratado, regularizando u m estado anómalo de relações e divisas interna-
ção entre Paes e Rodrigues Alves, "que o tivera a seu lado na questão dos cionais, por outro lado adiciona um fator económico de primeira ordem para a
Protocolos de Petrópolis"; esse autor registra, com efeito, as "considerações solução do problema nacional de aproximação de Mato Grosso à capital da
de que o cercavam [a Totó Paes] o presidente da República e o ministro do República" (RICARDO, 1954, p. 237; destaques meus).

Exterior, para não dizer o governo federal coletivo" (BARRETO, 1907, p. 12 Enfim, como se vê, na pessoa de Glycério estão representados, a um
e 7-8). Afonso Arinos, de resto, registra também que Paes deu a Rodrigues só tempo, o primitivo concessionário (o Banco União de S. Paulo), a nova
Alves "firme apoio no Estado, em 1903, quando da discussão do Tratado de Companhia Noroeste e o Estado federal, além dos interesses das elites
Petrópolis" (FRANCO, 1973, p. 504). paulistas . 9

Finalmente, existem fortes indícios de que a organização da Compa- Por outro lado, a fundação da Noroeste, ocorrida em 21 de junho de
nhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil efetivamente ocorreu em es- 1904, foi precedida, como vem afirmado na própria ata de fundação, de
treita coordenação com os movimentos do governo federal. Há pouco ob- "negociações longas, laboriosas e dispendiosas". Admitindo-se, como
servou-se que, estando em vigor uma concessão com garantia de juros, a é razoável, que essas negociações se tenham estendido por alguns meses,
sua exploração poderia dar-se, em princípio, independentemente da vonta- tem-se o início delas em princípios do ano de 1904, ou seja, a época em que
de do poder garantidor. É evidente no entanto que não seria jamais interes- o Tratado de Petrópolis ainda estava em discussão no Congresso .
sante para qualquer empresa agir em desacordo com o governo federal —
que, como representante do poder outorgante da concessão, era parte ne- Um significativo e esclarecedor pormenor, a esse respeito, é a pró-
cessária no contrato que a companhia deveria firmar com o fim de tornar pria denominação assumida pela Companhia. De fato, por mais distorcidos
operante a mesma concessão. O governo dispunha assim de poder suficien- que pudessem ser os sentidos de orientação geográfica, naquela época (de-
te para intervir na questão, como representante de interesses do próprio vido à excessiva concentração da população no litoral e suas bordas), não
Estado ou como mediador de outros interesses. parece crível que se pudesse designar como "noroeste do Brasil" a região a
ser percorrida pela estrada de ferro Uberaba-Coxim (nem, muito menos,
Como já se mencionou no item anterior, alguns cronistas chegam diga-se de passagem, aquela que afinal veio a ser percorrida, em direção a
mesmo a afirmar que Rio Branco teria simplesmente "encarregado" o enge- Corumbá). No entanto, esse (ferrovia Uberaba-Coxim) era o objetivo for-
nheiro João Teixeira Soares de organizar a Companhia, levantando os capi- malmente inscrito nos estatutos da Companhia de Estradas de Ferro Noroes-
tais necessários para a obra. Todavia, o que parece realmente significativo é te do Brasil, no momento de sua organização (cf. o Diário Oficial da União
o fato de, entre os fundadores da Companhia Noroeste, encontrar-se o sena- de 25.6.1904) . À diretriz São Paulo-Cuiabá, ao contrário, seria lícito atribuir,
11

dor Francisco Glycério, que exercia nessa época a função de líder do gover- sem grande distorção, o sentido de "noroeste do Brasil". Recorde-se, no
no Rodrigues Alves no Senado da República (ABRANCHES, 1918, p. 31-35). entanto, que o traçado Bauru-Cuiabá só veio a ser oficialmente concretizado
O célebre republicano paulista, na verdade, encontrava-se vinculado a essa com o Decreto n 5349, em 18 de outubro de 1904 — quatro meses após a
2

concessão de via férrea desde o seu início — sendo, como era, o ministro da fundação da Companhia. Ora, que indica isso, senão que já no ato da organi-
Viação e Obras Públicas do Governo Provisório da República à época da
edição do Decreto n 862. Machado de Mello, aliás, registra expressamente
a

esse fato, escrevendo que "ao ilustre General Glycério se deve o primeiro
decreto" referente à ferrovia Uberaba-Coxim (MELLO, 1917, p. 20). No ato 9
Um pequeno indício, ademais, vincula Glycério a Emílio Schnoor (cujo folheto, datado de abril de 1903,
de fundação da Companhia Noroeste, por outro lado, Glycério aparece pre- ativou a discussão sobre a ferrovia para Mato Grosso). De fato, em 27 de abril de 1903 Glycério escre-
veu a José Carlos Rodrigues, proprietário e editor do oficioso Jornal do Commercio, do Rio de Janei-
cisamente como procurador do Banco União de S. Paulo, ou seja, o beneficiário ro: "Peço permissão para lhe apresentar o notável engenheiro Dr. Emílio Schnoor, que vai ocupar a
daquela primeira concessão (cf. o Diário Oficial da União de 25.6.1904). sua atenção com um assunto relevantíssimo para a grandeza futura do Brasil" (cf. Doe. 1 - 3, 2, 7o —
Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, Coleçâo José Carlos Rodrigues). O trabalho de Schnoor,
Francisco Glycério foi também ninguém menos que o relator do Tratado de recorde-se, foi impresso na tipografia do Jornal do Commercio.
Petrópolis no Senado, e, já nessa ocasião (fevereiro de 1904), aludia à ques- 1 0
Pode-se observar ainda que a ferrovia para Mato Grosso já aparece nos debates do Clube de Enge-
tão da ligação ferroviária entre Mato Grosso e o litoral. Cassiano Ricardo nharia sobre a estrada de ferro Madeira-Mamoré, cuja construção era prevista pelo Tratado: o parecer
final do Clube acerca da Madeira-Mamoré, datado de I de fevereiro de 1904, pede "vénia" para solicitar
assim reporta a posição de Glycério como relator:
o

ao governo também a construção de uma ferrovia, ligada à rede de São Paulo ou do Paraná, dirigida
à Baía Negra, no rio Paraguai (cf. Revista do Clube de Engenharia, n. 11, p. 150).
"[o tratado abriria) uma nova etapa em nossas relações comerciais com a Bolívia,
11
Note-se a propósito que esses mesmos estatutos incluíam, entre as atribuiçles da diretoria, "reque-
sendo de prever que essa República e o Estado de Mato Grosso p o d i a m e
rer modificações ao traçado" (art. 16, n° 2).

116 117
zação se sabia que a Companhia não iria construir Uberaba-Coxim alguma?
Nessas circunstâncias, afigura-se perfeitamente verossímil a informação de
Virgílio Corrêa Filho acerca dos "entendimentos verbais" entre o governo
federal (Rodrigues Alves e Rio Branco) e o presidente do Estado de Mato
Grosso, daí resultando o empenho dos primeiros com vistas à imediata cons-
trução de uma ferrovia "que ligasse a Capital (Cuiabá), no centro da América "Ultimar em Breve Prazo
do Sul, ao litoral" (CORRÊA FILHO, 1930, p. 50).
a Construção":
Parece que se pode então desenhar o cenário seguinte. A constru-
ção de uma ferrovia para Mato Grosso torna-se materialmente possível des- A Mudança do Traçado (1906-1908)
de que, em 1903, existem capitais disponíveis e uma concessão com garan-
O traçado Bauru-Cuiabá, em substituição a Uberaba-Coxim, foi formal-
tia de juros (no caso, da estrada Uberaba-Coxim). Ao governo federal inte-
mente aceito por uma assembleia extraordinária dos acionistas da Companhia
ressa a construção da ferrovia, no âmbito dos projetos de "consolidação da
de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil em 27 de outubro de 1904 (.Diário
unidade nacional" afirmados por Rio Branco e coerentes com os propósitos
Oficialdz União de l .11.1904, p. 5152) e, a partir daí, os trabalhos começa-
a

da "República dos Conselheiros". Ao mesmo governo convém também apro-


ram a processar-se normalmente. De acordo com o primeiro relatório da
veitar a concessão já existente, desde que adequado o seu traçado para
diretoria (apresentado à assembleia ordinária de 11 de junho de 1906), a
atender a compromissos conjunturais com o oficialismo mato-grossense
Companhia contratou os trabalhos de reconhecimento do primeiro trecho (de
Aos próprios interessados na construção (os detentores da concessão e os
Bauru à margem do Paraná) com o engenheiro Luiz Gonzaga de Campos.
representantes dos capitais), por seu turno, convém abrir-se para modifica-
Entregou, além disso, a construção e aparelhamento da linha à Compagnie
ções no traçado previsto pela velha concessão, com vistas tanto a valorizar o
Générale de Chemins de Fer et de Travaux Publics, de Bruxelas, a qual por
mais possível a via a ser construída quanto a preservar boas relações com o
sua vez contratou os trabalhos no Brasil com Joaquim Machado de Mello (Di-
Estado.
ário Oficial da União de 136.1906, p. 3175). Segundo relata Machado de
Nesse contexto, a consulta ao Clube de Engenharia, efetuada pela Mello, a primeira estaca da exploração da linha foi fincada em 15 de novem-
Companhia Paulista, representa a movimentação de interesses situados no bro de 1904. Também em novembro a Companhia contratou, nas praças de
Estado de São Paulo. A decisão do Clube, recomendando que a ferrovia para Paris, Amsterdam e Bruxelas, o seu primeiro empréstimo em obrigações (de-
Mato Grosso partisse de São Paulo, representa o ponto de apoio técnico- bêntures), no valor de 20 milhões de francos (Diário Oficial da União de
político para a mudança mais delicada, a saber, a do ponto inicial da via, e o 13.11.1904, p. 5422). Efetuados os estudos exploratórios por Gonzaga de
governo federal espera pacientemente essa decisão. Acata-a, no entanto, a Campos, os trabalhos propriamente de construção tiveram início em julho de
meias, desprezando a parte que indicava um traçado passando pelo sul de 1905, em Baum, em solenidade com a presença do próprio ministro da Via-
Mato Grosso. É que, na verdade, o destino da ferrovia já estava definido de ção, Lauro Muller. Em setembro de 1906 foram entregues ao tráfego os pri-
antemão, indicado pela própria denominação da Companhia: tratava-se de meiros cem quilómetros da via, em ato a que igualmente esteve presente o
adotar "a solução que agradasse ao Presidente de Mato Grosso", vale dizer, ministro (MELLO, 1917, p. 18-21; NEVES, 1958, p. 51, nota 84).
que assegurasse a ratificação do melindroso Tratado e preservasse o prestí-
Convém observar que a ferrovia, sendo de concessão federal, estava
gio do governo e de seus principais integrantes.
sujeita à fiscalização pelo governo da União, a qual era exercida pela repar-
tição denominada "Fiscalização da Rede de Viação de S. Paulo, Mato Grosso
e Goiás". O engenheiro-chefe dessa repartição, como já foi mencionado, era
Clodomiro Pereira da Silva, que, desde o início, parece ter exercido com
bastante rigor sua função. De fato, os decretos que aprovam os estudos
definitivos da 2 e 3 seções da obra, em 1906, impõem à Companhia Noro-
a a

este inúmeras condições para que se fizesse efetiva a aprovação. Essas con-
dições incluem exigências de apresentação de novos estudos em alguns
trechos, "cuidadosa revisão" de outros, fixação de prazos precisos etc. (De-
a
Recordem-se as palavras do ministro da Viação, afirmando que, com o objetivo de "dar viação" a creto n 6006, de 2.5.1906; Decreto n 6137, de 11.9.1906). A título de
Q a

Mato Grosso, "a administração procura modificar linhas cuja construção pesaria sobre o Tesouro ilustração, vale a pena transcrever aqui um parecer de Pereira da Silva, data-
pela garantia de juros, sem vantagens assinaladas" (cf. o Relatório de 1904, já citado).

118 119
do de fevereiro de 1907 e que se encontra no processo pelo qual a Compa- férrea; pois, de futuro, será servida por um ramal desta, e pelo prolonga-
nhia Noroeste pede a aprovação de "tipos complementares de boeiros, drenos mento da Estrada de Ferro de Goiás" (cf. a Mensagem apresentada ao Con-
e de estação" a serem construídos: gresso Nacional, 1907, p. 31; destaque meu).

"contra todos os protestos desta Comissão Fiscal, já tem sido largamente empre- Algumas fontes, todavia, fornecem indicações um pouco mais exten-
gado por simples interesse d o empreiteiro [trata-se de Machado de Mello) o tipo sas, associando a mudança do traçado a considerações sobre o caráter "estra-
de boeiro de 0m.4, em arco, que evidentemente não tem razão de ser. (...) É tégico" e "internacional" que deveria ter a ferrovia. O engenheiro Antonio
perigosíssimo u m vão de boeiro tão pequeno, em região ainda desconhecida, e,
o que é mais, fazendo-se obra tão mal feita como faz a Companhia de E. de F.
Penido (que chefiou os trabalhos de construção da Estrada de Ferro Itapura-
Noroeste do Brasil" (AN (Arquivo Nacional) — IT 3, maço 137, n° 6427). Corumbá), por exemplo, diz que Afonso Pena e seus auxiliares (Miguel
Calmon, Paulo de Frontin e o Barão do Rio Branco) teriam concluído, com
Passando-se, agora, à questão da mudança do traçado, cabe reiterar sua "alta visão de estadistas", que a estrada para Cuiabá "não podia preen-
que a modificação ocorrida entre 1907 e 1908 pode ser considerada, como cher as funções de estratégica", pelo que resolveram dirigir o traçado para a
já foi dito, o segundo momento crucial na história da construção da NOB, na margem do rio Paraguai, "de modo a poder mais tarde se transformar em
medida em que ela correspondeu a uma completa reorientação da obra. internacional, de acordo com o projeto indicado pelo Club de Engenharia e
Sobre essa alteração, no entanto, é notável o laconismo da maioria das refe- o delineado pelo engenheiro Schnoor" (PENIDO, 1933, p. 22 e 24) . A 14

rências bibliográficas, realçado ainda mais pela magnitude da transformação versão de Penido é confirmada entre outros por PINTO (1970, p. 49),
ocorrida. AZEVEDO (s.d., p. 70 e 89) e também por Corrêa Filho. Esse último, aliás,
De fato, a generalidade dos autores limita-se a informações como destoa do coro geral, pois refere-se à mudança em tom crítico: "a Noroeste,
esta: "No governo Afonso Pena, o ministro da Viação, Miguel Calmon Du Pin que devia trazer os trilhos a Cuiabá, para ligar o centro desta circunscrição
e Almeida, determinou que fosse executado o traçado com o rumo preferi- fronteiriça ao resto do país [...], foi, por erronia de estrategos impacientes,
do Corumbá—Bolívia e que os trabalhos de construção fossem acelerados". desviada do seu rumo inicial e afocinhada nos pantanais" (1926, p. 164).
Quase todos registram também que a alteração significava, na prática, a Corrêa Filho menciona também a promessa de 1903 e sua quebra, lembran-
adoção do traçado proposto em 1903 pelo engenheiro Emílio Schnoor . O 13 do que duas das autoridades nela envolvidas já haviam saído de cena: em
empreiteiro e acionista da Noroeste, Joaquim Machado de Mello, não é me- julho de 1906 havia sido derrubado Totó Paes e em novembro do mesmo
nos económico com as palavras: diz apenas que continuavam as obras e os ano terminara o mandato de Rodrigues Alves (1930, p. 57).
estudos quando, "em fins de 1906 o Governo do benemérito Conselheiro
Um terceiro e restrito grupo de autores é mais explícito ao mencio-
Affonso Penna deu então ordem de não se prosseguir mais em direção a
nar as considerações estratégicas que teriam estado presentes na decisão de
Cuiabá e ser feito um reconhecimento com presteza em direção a Corumbá
mudança do traçado. É o caso do engenheiro Sylvio Saint-Martin, que, escre-
até as fronteiras da Bolívia" (1917, p. 21).
vendo em 1913 (quando era o chefe da construção da Estrada de Ferro
A versão oficial, que à primeira vista tampouco esclarece muita coisa, Itapura-Corumbá), diz que a alteração ocorreu "devido a motivos que as
pode ser encontrada na mensagem anual do presidente da República, apre- Relações Exteriores naquela ocasião justificavam plenamente, independen-
sentada por Afonso Pena ao Congresso em maio de 1907. Nesse documen- temente do futuro económico da Estrada"; esse autor refere-se ainda a um
to, diz o presidente: "repentino estremecimento de relações com uma República do Prata" que
teria determinado "urgência para a conclusão dos trabalhos" da fenovia (SAINT
"depois de maduramente considerado o assunto, resolvi modificar os traçados
das estradas de Araguari a Goiás e de Bauru a Cuiabá, tendo sobretudo em vista
MARTIN, 1914, p. 150 e 151). Nessa mesma linha, um estudioso da história
ligar efetivamente ao litoral as grandes bacias d o Araguaia e do Paraguai. (...) No mato-grossense atribui a alteração do traçado da NOB diretamente a um
tocante à de Mato Grosso, afora as razões de ordem política e económica, havia "incidente diplomático" com a Argentina, o qual teria sido provocado pelo
a necessidade de ultimar e m breve prazo a construção, e isto só era lícito, "antibrasileirismo" de Estanislau Zeballos, Ministro do Exterior da Argentina,
procurando a linha, o mais diretamente possível, u m ponto à margem do Paraguai
ou de afluente seu, até onde a navegação fosse franca em qualquer época do "possuído do sonho da restauração política do Vice-Reinado do Prata"; esse
ano". autor menciona o conhecido episódio do "telegrama cifrado n 9" e cita a

Observa-se que o texto inclui ainda uma ressalva: "A modificação do


traçado não importa que fique a cidade de Cuiabá desprovida de viação 14
Penido relata a propósito que, antes de partir para seu trabalho em Mato Gros-o, apresentou-se
pessoalmente ao presidente da República, "velho amigo" de sua família, que na ocasião lhe teria dito:
"Embora ocupadíssimo, apressei-me em recebê-lo porque o Sr. vai para Mato Grosso construir a
" O trecho citado é de NEVES (1958, p. 53). Ver também, no mesmo sentido: GUIMARÃES (1933); CAR- Noroeste, que considero neste momento a obra mais urgente e mais necessária do país".
VALHO (1914); ESQUERDO (1908); CARVALHO (1942); FERREIRA (1956).
121
120
ainda um jornal paraguaio, de maio de 1908, que assegura ser "próxima" a
seguida, efetua um minucioso exame das razões apontadas, terminando por
guerra entre o Brasil e a Argentina (MARTINS, s.d., p. 167-169).
rejeitá-las uma a uma. Assim, nota que o sul de Mato Grosso, região a ser
Finalmente, resta mencionar aqui as mais extensas indicações que se servida pelo novo traçado, não possuía senão "núcleos de população
pôde encontrar a respeito da mudança do traçado da NOB: aquelas contidas insignificantíssimos", "pobres localidades", às quais ele contrapõe a região
na obra do engenheiro Clodomiro Pereira da Silva (1910), que adquirem de Cuiabá, "a mais rica, a mais populosa e mais salubre do Estado" (p. 29 e
particular importância devido à posição ocupada pelo autor à época . Silva 15 3D- Contrapõe em seguida a navegação fluvial à ferrovia, concluindo que
estende-se sobre o assunto mais ou menos longamente, em mais de uma essa última "jamais" iria "desmontar a concorrência da navegação" e por isso
oportunidade; suas observações, no entanto, mostram-se às vezes contradi- não iria, "de modo algum", alterar a "orientação das correntes comerciais
tórias. Assim, por um lado afirma que a mudança decorreu de um "palpite" existentes" (p. 32 e 33); nas páginas seguintes, essa conclusão é reforçada
— ou seja, decisão sem bases fundamentadas, por estudos "feitos em cima pelo exame dos fretes prováveis na ferrovia, em comparação com aqueles
da perna", à semelhança do que ocorria, segundo ele, em numerosos outros verificados na navegação fluvial. Silva avalia também que a ferrovia para
casos pelo país afora (p. 41 e 78); em outro local, no entanto, nega que Corumbá seria inútil, do ponto de vista do incremento das comunicações do
quisesse dizer que "o traçado de qualquer das estradas de que nos ocupa- Paraguai e da Bolívia com o Brasil, em face da "concorrência das ferrovias
mos tenha sido estabelecido a esmo", esclarecendo que desejava significar argentinas" (p. 34 e ss., p. 40-41). Sobre esse último assunto observa que,
sim que "os capitais, em cifra aliás elevadíssima, que elas vão consumir, para a Bolívia, a ligação com as ferrovias argentinas "sobrepuja em vanta-
teriam muito melhor emprego em outras" (p. 72). O autor insinua ainda gens quaisquer das ligações que se venham a fazer com as nossas linhas,
que motivos ocultos teriam influído na mudança do traçado da Noroeste, é o visto que estas, mal planejadas e mal construídas, não têm atrativo de espé-
que se vê, por oposição, quando ele enumera as razões "claras, manifesta- cie alguma". Acrescenta que, pelas estradas argentinas, "não só as distâncias
das, não ocultas" da alteração (p. 23). Refere-se também em várias passa- são menores como as linhas melhores, e os fretes andam por um terço dos
gens a abusivos lucros de empreitada, na construção da NOB, e chega a nossos" (p. 46-48); e conclui, taxativamente: "de toda a região sul e central
sugerir que a mudança do traçado teria sido induzida pelo interesse dos boliviana, nada sairá pelo Brasil, no comércio internacional" (p. 67-68).
empreiteiros. Veja-se o trecho:
Por fim, passando a examinar o argumento da "importância estratégi-
"Quando se tratou da modificação do traçado (...) apresentou-se, além das razões ca" do novo traçado da ferrovia, Silva insiste em que essa importância teria
já apreciadas, como razão de ocasião, poderosíssima, preferencial, decisiva, i m - sido avaliada meramente "de palpite". Traça e examina vários possíveis ou
prescindível — a rapidez da construção da linha. E àquele bondoso e íntegro
ancião, àquele velho ingénuo que era então presidente da República (1907) imagináveis cenários de guerra com vizinhos, concluindo que a estrada de
como ao seu digno ministro da viação, assegurava-se que em 15 de novembro ferro para Cuiabá seria "muito mais estratégica do que para Corumbá, a
de 1910 estaria a ferrovia em Corumbá, tais eram as vantagens supervenientes menos que se firme a preliminar de que este posto avançado de nossa
da modificação do traçado e os esforços dedicados e inteligentes que emprega-
fronteira vai ser, custe o que custar, atacado pelo inimigo"; e completa: "Cuiabá
riam os seus propugnadores" (p. 124; destaque do original).
pode ser um centro de operações que nunca será Corumbá" (p. 41-45).
Para concluir este item, cabe agora expor a análise, efetuada por
Silva, das razões "claras, manifestadas, não ocultas" da mudança do traçado,
as quais ele assim resume: 1) "menor comprimento da Estrada para Corumbá";
2) "melhores condições comerciais, por atravessar a estrada zona mais pro-
dutiva e povoada e buscar centros de comércio mais importantes"; 3) "liga- "A Companhia Está Pronta a
ção da estrada com a viação da Bolívia", tornando-a "um coletor de produtos Satisfazer Esse Desejo do Governo":
das repúblicas vizinhas, principalmente dessa mencionada, e uma artéria de
comunicações para o Pacífico"; 4) "vantagens estratégicas de primeira or-
O Processo da Mudança
dem" (p. 24). Conforme já foi relatado no início deste livro, a alteração do ponto
final da Noroeste foi objeto de dois sucessivos decretos do governo federal,
O autor começa por observar: "Não sabemos se todas essas razões de
a saber, o Decreto n 6463, de 25.4.1907, e o n 6899, de 24.3 1908. O
a a

preferência foram estudadas; o que sabemos é que não são exatas". Em


primeiro simplesmente determinava a mudança do traçado, mantendo, com
algumas modificações, o mesmo regime anterior (ou seja, a garantia de ju-
1 5
Esclareça-se que, no momento, está-se tratando de referências bibliográficas, de modo que as informa- ros); esse decreto, entretanto, caiu no vazio, como adiante se verá em deta-
ções contidas em acervos documentais de outra natureza serão expostas e analisadas mais adiante. lhe.
122 123
Foi, assim, o segundo decreto quem de fato concretizou a alteração Na verdade, o exame detalhado, não apenas do Decreto n 6463 a

— já aí, todavia, determinando uma significativa alteração nos termos da como dos procedimentos formais que o precederam, pode contribuir decisi-
concessão anterior. Como já foi referido, o Decreto n 6899 separou em a vamente para o esclarecimento de muitas das circunstâncias que envolve-
duas partes a estrada a ser construída; o regime da garantia de juros continu- ram a mudança do traçado da Noroeste. É a esse exame, portanto, que se irá
ava válido apenas para o trecho de Bauru a Itapura, enquanto o trecho de proceder nas páginas seguintes.
Itapura a Corumbá passava a constituir uma ferrovia independente, de pro-
priedade do governo federal (cuja construção era no entanto confiada, por O processo burocrático que resultou no Decreto n 6463 iniciou-se, a

empreita, à Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil, à qual se formalmente, com um requerimento da Companhia de Estradas de Feno No-
prometia ainda arrendar a exploração da via à medida que fosse sendo roeste do Brasil dirigido ao ministro da Viação e Obras Públicas, Miguel Calmon,
construída). A esse segundo trecho, enfim, aplicava-se o "regime da lei n s datado de 28 de janeiro de 1907 e assinado por João Teixeira Soares. Esse
1126", ao qual já se fez referência neste trabalho. requerimento dizia textualmente o seguinte: 18

Por outro lado, essa modificação do traçado parece claramente rela- "A Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil, submetendo-se às
cionar-se à sucessão presidencial, com o fim do mandato de Rodrigues Alves indicações recebidas de V. Exa. em diversas conferências com o fim de alterar
o traçado de sua linha para melhor atender às conveniências de ordem estra-
e a ascensão de Afonso Pena (empossado em 15 de novembro de 1906) . 16

tégica e internacional, vem muito respeitosamente propor o seguinte:


De fato, o Decreto n 6463, que primeiro buscou efetivar a mudança do
e

traçado da NOB, fundamentava-se numa disposição inserida na lei orçamen- Primeiro. Mudar a direção atual da linha fazendo-a convergir para a fronteira da
tária para 1907, a qual autorizava o presidente a "rever" os contratos tanto Bolívia nas proximidades de Corumbá, passando por Aquidauana e adotando o
traçado que melhor se preste para uma linha tronco da viação férrea dessa região.
da Noroeste do Brasil como de certa Companhia Alto Tocantins,
"introduzindo as modificações que julgar convenientes nos respectivos traçados, Segundo. O capital garantido não será inferior àquele que teria de ser empregado
de modo a satisfazerem melhor aos interesses nacionais, alterando, caso seja na linha atual até Cuiabá, devendo a Companhia aplicar na construção do ramal
necessário, os ónus recíprocos e os respectivos prazos" (Lei n° 1617, de que o Governo indicar, à vista dos estudos, o complemento que porventura
30.12.1906 - art. 35, inciso xxv, alínea c). venha resultar de qualquer encurtamento com o novo traçado. A Companhia
poderá, de acordo com a cláusula 33, parágrafo quarto, de seu contrato, constante
Todavia, pelos anais do Congresso verifica-se que essa disposição não do Decreto n 5349, de 18 de outubro de 1904, depositar a totalidade do capital
Q

constava no projeto de orçamento enviado ao Legislativo em junho de 1906, garantido de uma só vez ou em prestações segundo a realização de sua emissão.
quando ainda governava Rodrigues Alves (cf. Anais da Câmara Federal, 1906,
Terceiro. A Companhia começará do lado de Corumbá os estudos definitivos no
v. 2, p. 4 e ss.). Ela foi efetivamente proposta no início de dezembro, junta-
prazo de três meses a contar da novação do contrato e os realizará com a rapidez
mente com outras 30 emendas, pelo próprio relator do orçamento do Ministé- necessária para que as obras da construção possam ter começo ainda este ano".
rio da Viação e Obras Públicas (c deputado baiano Ignacio Tosta, pertencente,
segundo tudo indica, ao esquema político do novo presidente). O relator, ao Recebido no Ministério a 2 de fevereiro, esse requerimento foi
apresentar essas propostas, justificou-as em conjunto, afirmando serem "emen- enviado a 16 ao chefe da fiscalização da rede de viação de São Paulo,
das que contêm, por assim dizer, um programa de Governo" (cf. Anais da Goiás e Mato Grosso, "para informação, com urgência". A resposta do
Câmara Federal, 1906, v. 8, p. 62) . Enfim, a emenda que aqui interessa foi
17
chefe da fiscalização, Clodomiro Pereira da Silva, é datada de São Paulo,
aceita pela Comissão de Finanças sem qualquer comentário e, a 12 de dezem- em 25 de fevereiro, e constitui uma peça muito interessante. De fato, o
bro, aprovada pelo plenário da Câmara sem suscitar qualquer discussão — ao engenheiro procura manifestar com bastante clareza sua discordância com
contrário aliás de outras, que geraram vivos debates (id, p. 198 e 333). a alteração proposta — acatando-a por fim, no entanto, com uma espé-
cie de resignação que desperta curiosidade. Inicialmente, escreve Silva:
1 6
O mineiro Afonso Pena, vice-presidente no quatriênio anterior, chegou à Presidência depois de um
intrincado jogo de articulações políticas, no qual tiveram um peso considerável as questões ligadas à
"A questão do traçado de uma ferrovia para Mato Grosso [...] tem-se tomado nos
valorização do café e à estabilidade do câmbio (associadas ambas à ideia de intervenção estatal na
economia, numa política protecionista). No curso dessas articulações consolidou-se um forte grupo de últimos 30 anos a questão mais debatida de interesse verdadeiramente nacional.
oposição a Rodrigues Alves (que, opondo-se ao protecionismo, restou ao fim praticamente isolado), Nesse momento, parece, nada me cabe dizer sobre os pontos capitais do traçado,
grupo esse que passou a dominar o Congresso desde pelo menos o ano de 1906: trata-se do agrupamen- uma vez que se acham já fixados o ponto inicial e pouco mais ou menos o
to denominado "Bloco" ou "Coligação", vinculado â liderança do senador gaúcho Pinheiro Machado.
Tendo sido por fim aceito como candidato do "Bloco", Afonso Pena iniciou seu governo dispondo de
esmagador apoio político (sobre essas questões, ver FRANCO, 1973; LACOMBE, 1986).
1 8
Todas as citações das páginas seguintes, afora indicação em contrário, são extraídas de: AN IT 3,
Maço 137, n ° 6463. Da mesma forma, salvo indicação em sentido diverso tf dos os destaques são de
1 7
Observe-se que nos cadernos de notas pessoais de Rodrigues Alves, referentes ao ano de 1906, não se
minha responsabilidade.
encontra qualquer referência a essa alteração (cf. IHGB - Coleção Rodrigues Alves, lata 806, caderno 57).
125
124
intermediário principal (a travessia no Paraná), ao mesmo tempo que parece ramal. Com relação à questão do depósito do capital, posiciona-se favora-
também dispensar quaisquer discussões a escolha do ponto extremo". velmente ao depósito da importância total necessária para a construção de
Assim, após registrar, ao que parece, fatos consumados, Silva passa toda a linha Bauru-Corumbá, fazendo no entanto duras ressalvas:
mais adiante a firmar sua própria posição a respeito: "O procedimento altamente condenável dos prepostos da Companhia, até aqui,
fazem recear que, depositado o capital e, portanto, garantido o pagamento dos
"A primeira ferrovia [...] no Estado de Mato Grosso deverá ser em primeiro
juros, ela trabalhe lentamente, como tem feito, além da obra mal executada que
lugar nacional e em seguida internacional. [...] deverá ela reunir os requisitos
vem fazendo, alterando todos os planos aprovados, à discreção, sem ciência
para satisfazer às três categorias fundamentais de necessidade, que atualmente
nem aprovação do governo, e, o que é mais, com manifesto capricho, ficando a
são palpitantes no caso em questão: necessidades civis e políticas, necessidades
fiscalização sem nenhuma base para fiscalizar, pois não lhe são fornecidos os
económicas e comerciais, e necessidades estratégicas o u militares. [...] não se
documentos previstos [...]. Isto é u m ponto muito sério a resolver. O encargo
deve e não se pode pôr de lado nenhuma destas categorias de necessidades, do
que o governo assume é bem grande; é preciso que se trabalhe com seriedade:
contrário não se faria b o m aproveitamento de tempo e de dinheiro".
o governo precisa obrigar a Companhia a produzir, mas produzir com proveito".
E continua, em tom cada vez mais doutrinário:
O engenheiro dedica-se em seguida ao terceiro item do requerimento
"A nossa atrofia social, política e comercial vem de não cuidarmos d o problema da Companhia, referente à construção a partir do lado de Corumbá. "Ninguém
económico, onde está o fundamento de toda a prosperidade. As próprias neces- deseja que seja morosa a construção da ferrovia, pois os altos interesses
sidades estratégicas estão subordinadas a isto: a guerra faz-se com canhão e seus
pertences, com soldado e com dinheiro. Parece que entre nós procura-se resol-
ligados a ela são cada vez mais prementes", escreve ele, desde logo ressal-
ver de modo inverso o problema, procurando por ordem o canhão, o soldado e o vando: "Isto justifica certas facilidades, mas não justifica tudo". De todo modo,
dinheiro, quando deve: I o dinheiro, 2° o soldado e depois o canhão. Deve-
a
concorda que a construção pelos dois extremos é justa, por reduzir o tempo
mos em primeiro lugar criar e manter fontes de produção, em seguida desen-
da obra, mas diz que é preciso colocar uma "condição fundamental: a de não
volver a educação cívica d o cidadão [...]. Acontece talvez que pensamos de-
mais e m guerras c o m os nossos vizinhos; falamos só em canhões, deixando ser intenompida em tempo algum a construção". Observa de fato que, devido
sempre de lado o principal: pormo-nos em condições económicas e financeiras à "falta de vida local", o trecho de Mato Grosso estaria "completamente mor-
próprias para tê-los. Nas nossas condições atuais de abandono e frouxidão cívi- to" até que se fizesse a ligação com a seção paulista; além disso, caso se
cos nada faremos com estratégias [...]. Por essas razões julgo que o plano de
interrompessem os trabalhos, impedindo a ligação dos dois trechos, a linha
nossas grandes linhas de penetração, cuja construção é urgente de sul a norte, e
constitui o verdadeiro problema nacional, sem desprezar nada do que convém ficaria improdutiva, com "grandes ónus para o governo". Aconselha, enfim:
à estratégia, deve sobretudo destinar-se a satisfazer às necessidades, em duas
palavras — económicas e comerciais". "pondo de lado pressa demasiada para começar, proceda-se a um levantamento pre-
liminar da região, abrangendo muito maior faixa do que a necessária ordinariamente
Nesse ponto do documento, Silva sugere diversas vias de comunica- para o anteprojeto da linha, procedendo-se a estudos especiais, sobre as condições de
acessos a Corumbá e suas adjacências, sobre a passagem no rio Paraná [stò etc."
ção, ligando Mato Grosso a diferentes pontos do litoral brasileiro, de Belém
(PA) a São Francisco (SC). Em seguida, no entanto, pondera: Concluindo, Silva adverte mais uma vez: "Sem estudos seguros de
"Enquanto só se tratar de construir uma linha para Mato Grosso esta deve ter
toda a região intermediária, não conviria, a meu ver, começar no ponto
saída por Santos, com ponto obrigado Cuiabá e traçado direto, por ser o que extremo a construção". 19

melhor consulta as diversas categorias de necessidades acima enumeradas".


O processo continua. Em 2 de março, um despacho informa que o
Ainda referindo-se à linha Santos-Cuiabá, aduz: requerimento da Companhia Noroeste havia sido remetido ao Ministério da
"Parece que é no ponto de vista estratégico que a sua superioridade sobreleva, Guerra. A resposta desse Ministério é dada como recebida em 11 de abril,
pois Cuiabá é o verdadeiro centro de operações de Mato Grosso. [...] Corumbá mas o seu texto não é encontrado no processo. Dele há apenas um resumo
parece um ponto infeliz, se se quiser emprestar-lhe qualidades de centro de feito por um funcionário do Ministério da Viação, pelo qual se vê que o
operações de primeira ordem. Se Cuiabá está para as fronteiras como o centro
do círculo para a circunferência, Corumbá está para elas como u m ponto da
documento intitulava-se Preferência do Estado-Maior do Exército ao traça-
circunferência está para os outros pontos. As inundações que tiram periodica- do Itapura-Aquidauana-Corumbá. Diz esse resumo: 20

mente o acesso a Corumbá e às regiões circunvizinhas, a sua vulnerabilidade


relativamente fácil para o inimigo, fazem receiar do êxito de uma linha de "da larga informação prestada pela 3 Seçào do Estado-Maior do Exército (...) se
a

penetração que se destina a ser de ordem comercial e estratégica". depreende que, além de todas as vantagens militares, brilhantemente demonstradas
na mesma infotmação, há a assinalar, como um motivo de alto peso, a importância da
Enfim, depois de falar o doutrinário volta a falar o funcionário, pas-
" Como já foi mencionado, ainda nessa época se duvidava da possibilidade de construção de ferrovia
sando a referir-se aos pedidos contidos no requerimento da Companhia. A
para Corumbá devido à "barreira" representada pelo Pantanal.
esse respeito, Silva declara que acha justo o pedido de se manter o capital 2 0
Infelizmente, o texto integral desse documento não pôde ser localizado sequer no Arquivo Histórico
garantido no mesmo montante de antes, aplicando-se o restante em u m do Exército.

126 127
estrada Itapura-Aquidauana-Corumbá, e não do traçado que demandasse Cuiabá, nhado estudos definitivos da Companhia, que os seus orçamentos são
no sentido de favorecer a aproximação dos povos americanos, que 'tradu-
exageradíssimos". E continua:
zindo profundos interesses ligados ao ponto de vista internacional e político,
embora estranho às cogitações diretas da Seção, deve ser mencionado pelas "Toda a linha que se tem construído não pode custar mais de 30 contos papel por
suas reações sobre o aspecto estratégico da questão. Semelhante importância quilómetro, e tudo indica que esse limite poderá ser adotado para o restante da linha,
ressalta da natureza do próprio traçado, que poderá servir de ligação ao extra- salvo na região serrana a atravessar ainda. Todos os preços que têm sido aplicados,
ordinário sistema da rede ferroviária pan-americana, visto se achar aquele no calculados folgadamente como preços-papel, têm sido adotados na mesma base como
rumo mais direto para Cochabamba e Oruro, na Bolívia'. Na impossibilidade de preços-ouro, de modo que a Companhia está perfeitamente coberta" . 21

resumir as 10 belíssimas disposições em que se baseia a 3 Seção do Estado-


a

Maior do Exército, salientando as vantagens reais do traçado por ela apontado


O engenheiro acrescenta que o preço de 30 contos ouro por quiló-
como o melhor, transcrevo, na íntegra, o último capítulo de seu ofício: 'Tais são metro cobriria inclusive a adoção de um trilho mais pesado; abre exceção
as razões capitais que levam a 3 Seção a preferir a construção atual da linha
a
para o caso das pontes, admitindo a extensão da garantia de juros ao capital
Itapura-Aquidauana-Corumbá, como meio mais pronto de assegurar a defesa das despendido naquelas mais longas. Em seguida, desfere uma catilinária:
fronteiras mato-grossenses, por ser a via férrea mais rápida, mais segura e mais
apta, não só para acudir aos múltiplos pontos de valor estratégico da região, "Devo lembrar que muitos já são os intermediários que se propõem a tirar lucros
como sobretudo a Corumbá, sentinela avançada posta à espreita desse lado do da construção da estrada, o que naturalmente há de encarecê-la sem necessidade
país'". (pelo que o Governo não tem o dever de proporcionar lucros para tantos),
segundo penso: a Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil empreitou
a construção de sua ferrovia à Compagnie Générale de Travaux Publics da Bélgi-
Nesse meio tempo, no entanto, a Companhia apresentara um segun- ca; esta subempreitou-a em seguida, à empresa Machado de Mello, e este por sua
do requerimento, datado de 27 de fevereiro e anexado ao mesmo processo. vez subempreita tudo, ou quase tudo. Isto encarece indubitavelmente".
Nele, diz a empresa, dirigindo-se ao ministro:
O ofício termina com Pereira da Silva desculpando-se perante o mi-
"A Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil, tendo muito em vista nistro por não entrar em mais considerações, "sobretudo relativamente ao
corresponder às intenções do Governo com o fim de tornar a sua linha a princi- custo da linha férrea", devido à "urgência" determinada para a resposta. Em
pal ligação d o mais importante sistema de Viação Nacional com o da Bolívia e
28 de março, o parecer de um funcionário do Ministério da Viação, acerca
reconhecendo que para satisfazer convenientemente a esse desideratum é i m -
prescindível melhorar muito as suas condições técnicas, vem respeitosamente
daquele segundo requerimento, demonstra total concordância com o ponto
propor, ao requerimento que dirigiu a V. Exa. em 28 de janeiro último, o de vista do chefe da fiscalização. Esse parecer acrescenta ainda observações
seguinte aditamento: que esclarecem definitivamente o modo como se colocava a questão:

Primeiro: Alterar a partir d o quilómetro 300 ou pouco além, as condições "Podendo ser, como é de supor, o novo traçado mais curto que o de Bauru-
atuais de raio mínimo das curvas, rampa máxima e peso dos trilhos, elevando o Cuiabá, sobre o qual foram feitas as entabulações com os capitalistas, efetuados
os respectivos contratos, considerados os lucros das empreitadas, etc, compreen-
raio mínimo a 150 m, a declividade máxima a 2% e o peso dos trilhos a 30
de-se pretenda a Companhia, no caso de mudança do traçado, obter uma justa
quilos.
compensação. A nosso ver, isto se poderia fazer com o acréscimo de ramais, de
modo a compensar o total que seria preciso despender com a linha Bauru-
Segundo: O máximo de capital que deverá gozar de garantia de juros será
Cuiabá, nos termos do contrato em vigor".
elevado de 30 a 38 contos [por quilómetro], não devendo o total do capital ser
superior àquele que resultaria para a linha de Cuiabá, à razão de trinta contos Em abril, enfim, o processo parece estar em fase de conclusão. A 12
por quilómetro.
ele é enviado ao gabinete ministerial; a 16, despacho do próprio punho do
Terceiro: A construção começará com a máxima energia do ponto navegável ministro, com a nota urgente, manda-o à Diretoria Geral de Contabilidade,
do [rio] Aquidauana e que os estudos determinarem, logo que esses estudos onde, a 17, é recebido pelo funcionário Machado de Assis. Com data de 19
forem aprovados; devendo o trecho desse ponto à fronteira ser construído de abri! vem a informação dessa Diretoria, inteiramente favorável às solicita-
depois da junção entre as duas seções de Aquidauana e Bauru."
ções da Companhia:
Note-se que, no alto da primeira página desse requerimento, está "A linha da Noroeste teria de continuar de Bauru, pelo Tietê, Itapura, em demanda a
anotado: Muito urgente. E, de fato, o documento foi encaminhado no mes- Cuiabá. Pretende-se, porém, que ela procure o rebojo de Jupiá para ir a Corumbá,
passando por Aquidauana, como linha mais convenientemente estratégica. A própria
mo dia 27 de fevereiro ao engenheiro-chefe da fiscalização, sendo por ele Companhia está pronta a satisfazer esse desejo do Governo, com as seguintes
recebido em São Paulo já no dia seguinte. A resposta de Clodomiro Pereira condições: [indicam-se as condições expostas nos dois requerimentos da Companhia].
da Silva tem a data de 2 de março e não é nada favorável aos pedidos da Ante as ponderações oferecidas nos pareceres do Dr. Paulo de Frontin e a 3 1

Companhia. Sobre o segundo item do requerimento, por exemplo, começa


observando: "tenho sempre informado nos meus ofícios que têm acompa- 2 1
Recorde-se que o mil-réis ouro tinha um valor substancialmente maior que o mil-réis papel.

128 129
Seção do Estado-Maior do Exército, não se pode pôr em dúvida a conveniência entanto, já no dia seguinte é recebido no Ministério um terceiro requerimen-
da preferência deste traçado ao anterior, encarado como linha estratégica. E to da Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil, datado de 5 de
como a Companhia sofrerá diminuição do capital, porque a extensão é menor,
poder-se-á atender ao que ela pede como compensação". julho e com o seguinte teor:
"em vista da necessidade que tem, para as suas relações financeiras, de evitar
No mesmo dia (19 de abril) essa informação recebe o "de acordo" do
futuras interpretações às cláusulas de seu contrato, [requer) seja dada ao parágra-
chefe, Machado de Assis; a 24, enfim, seguem para a assinatura do ministro fo 3" da cláusula 33 uma redação que deixe bem claro ficar desde já elevado de
os projetos do decreto e das respectivas cláusulas . 22
30 a 35 contos o máximo de custo quilométrico dentro do qual se terá de verificar
a garantia de juros, para fazer face ao acréscimo do ónus que lhe advém com o
Foi desse processo que resultou, portanto, o Decreto n 6463, datado a
melhoramento das condições técnicas e aumento do peso dos trilhos; ficando
precisamente de 25 de abril de 1907. Num resumo geral, o que ficava por bem entendido que, o máximo total do capital, em caso algum poderá ser
superior ao que resultaria para a linha de Cuiabá com o limite de 30 contos."
ele estipulado, no tocante aos aspectos financeiros, era o seguinte. Garanti-
am-se juros de 6% ao ano, durante 30 anos, para o capital que fosse empre- No mesmo documento a Companhia pede ainda que seja suprimida
gado "em uma extensão de linha correspondente ao trecho compreendido "a obrigação do mínimo de construção por ano, permanecendo no entanto
entre Bauru e a cidade de Cuiabá" (trecho que, sabidamente, era mais inalterado o prazo total, até junho de 1910", para a entrega do trecho previs-
longo que aquele de Bauru a Corumbá; cf. cláusula 2). Para os fins da to.
garantia de juros, ficava de antemão fixada em 1.400 quilómetros a distância
Em informação do mesmo dia 9, um funcionário do Ministério opi-
de Bauru a Cuiabá; e, caso se verificasse (como era sabido que se verificaria)
uma extensão menor do que essa, para a linha Bauru-Corumbá, o governo na pelo atendimento ao pedido de imediata definição sobre a elevação
poderia "elevar, dentro do capital máximo garantido, o máximo de 30:000$ do custo quilométrico; na seção de contabilidade, no entanto, o funcioná-
por quilómetro até 35:000$, ou mandar aplicar o saldo do capital garantido rio observa, sobre o outro pedido, que seu atendimento implicaria tam-
na construção do ramal que julgar conveniente" (cláusula 33). bém na eliminação de certa garantia que, "de conformidade com o regu-
lamento em vigor", havia sido assegurada "no interesse do Tesouro Fe-
Estabeleciam-se, por outro lado, condições bastante severas no to- deral" . 23

cante aos prazos de construção. Marcava-se o prazo de apenas seis meses,


Nenhuma nota aparece em seguida. O processo parece ficar estacio-
contados da data do decreto, para a apresentação de estudos preliminares
nado. Em 28 de agosto um despacho manda passar a limpo as cláusulas e
(de reconhecimento) desde a ponta dos trilhos, ainda em território paulista,
submetê-las à assinatura do ministro, e mesmo assim o processo não se
até Corumbá (cláusula 4). Concediam-se também seis meses, após a apro-
move. Um penúltimo despacho, em 13 de dezembro, simplesmente vista o
vação dos estudos preliminares, para a apresentação de estudos definitivos
que havia sido passado a limpo; o último, do dia 14, assinala o retorno do
e orçamento das duas primeiras seções a construir, a partir de cada um dos
processo à seção de origem.
extremos da linha. Estipulava-se igualmente que a Companhia ficaria obriga-
da a construir no mínimo 300 quilómetros por ano, sendo 150 para cada um A situação fica um tanto mais curiosa quando se observa que, em 5
dos extremos. Determinava-se ainda que no mês de junho de 1910 (num de dezembro, foi editado um decreto que, sem explicações (a não ser a de
prazo de pouco mais de 36 meses, portanto) fosse entregue ao tráfego o que atendia "ao que requereu a Companhia de Estradas de Ferro Noroeste
trecho de Bauru até o extremo da linha em Mato Grosso — a cidade de do Brasil"), apenas e tão-somente revogava a cláusula do Decreto n 6463 2

Aquidauana ou outro ponto mais conveniente no curso navegável do rio de que estipulava o prazo de um mês para a assinatura do contrato (Decreto n B

mesmo nome ou de afluente seu (cláusula 5). Enfim, cabe notar que, como 6766, de 5.12.1907).
era usual em casos tais, a última cláusula estabelecia que o respectivo con-
trato deveria ser assinado dentro de 30 dias, contados da publicação do A demonstração, enfim, de que esse contrato não foi assinado encon-
decreto, sob pena de tudo ficar sem efeito (cláusula 47). tra-se no próprio Decreto n 6899, de março de 1908, que separou os dois
2

trechos da ferrovia. Com efeito, esse decreto destina-se expressamente a


Pois bem, o que se torna relevante é que, a despeito disso, o contrato modificar o contrato que havia sido "celebrado nos termos do Decreto n 2

não foi assinado. Segundo se vê através das notas no processo, é apenas em 5349, de 18 de outubro de 1904": trata-se, como se vê, do contrato original,
8 de julho que segue para aprovação do ministro a minuta do contrato. No assinado antes do início da construção. O Decreto n 6463, portanto, passou
2

como se nunca tivesse existido.


O procedimento formal nesses casos era o seguinte: com o decreto eram editadas as cláusulas que
deveriam constar, depois, no contrato; esse último, apenas, é que iria gerar efetivamente obrigações
entre as partes, no caso o governo, de um lado, e a companhia de outro. 23
Observe-se que Pereira da Silva não mais é chamado a opinar.

130 131
Antes de seguir adiante, convém acrescentar aqui um dado a mais, ricos da Bolívia". Fixado, assim, em Cochabamba o "acesso andino" do
ligado à tramitação desse decreto. Como se viu há pouco, o parecer da transcontinental brasileiro, o texto passa a dedicar-se aos detalhes do traça-
Diretoria Geral de Contabilidade do Ministério da Viação faz referência a um do, opinando que, para oeste, em direção à Bolívia, a linha brasileira deveria
certo "parecer do Dr. Paulo de Frontin". Esse parecer não foi encontrado no aproximar-se de Santa Cruz de la Sierra; e para leste, em direção ao rio
processo pesquisado; pôde, no entanto, ser localizado entre os papéis pes- Paraná, deveria passar por Aquidauana. Esse seria enfim, na opinião do autor,
soais do presidente Afonso Pena, preservados no Arquivo Nacional. Trata-se "o melhor traçado para o transcontinental brasileiro".
de seis folhas datilografadas, intituladas simplesmente Informação, com a
assinatura de Frontin; não há data, mas o conteúdo indica claramente que se Frontin refere-se também aos demais itens do requerimento da Com-
refere ao primeiro requerimento, apresentado pela Companhia Noroeste panhia Noroeste, concordando por exemplo que "o capital garantido não
em 28 de janeiro de 1907 (AN — Arquivo Pessoal de Afonso Pena, caixa 22, seja inferior àquele que teria de ser empregado na linha atual até Cuiabá".
doe. n 43.51).
2 Aprova igualmente a ideia de se iniciar a construção pelo lado mato-grossense,
em direção ao rio Paraná, a fim de que "as obras de construção possam ter
Inicialmente, esse parecer afirma que o traçado Bauru-Cuiabá "satis- começo ainda este ano, como propõe a Companhia". Enfim, registra tam-
faz a condições de ordem administrativa, tais como as da ligação da capital bém que a Companhia havia requerido a alteração do traçado "de acordo
do Estado de Mato Grosso à Capital Federal", mas acrescenta: "não é, po- com as indicações recebidas do Exmo. Sr. Ministro da Indústria, Viação e
rém, o mais conveniente sob o ponto de vista da criação de uma linha Obras Públicas".
internacional transcontinental, nem o preferível sob o ponto de vista estraté-
gico para defesa das nossas fronteiras com o norte do Paraguai e o sul da Para concluir este item, talvez não seja ocioso observar que entre os
Bolívia". A partir daí Frontin efetua um rápido estudo que parte, implicita- papéis de Afonso Pena encontram-se também outras referências à NOB.
mente, da ideia de se construir um "transcontinental brasileiro", de maneira Em uma nota de seu borrador, por exemplo, datada de 21 de março de 1908
que o texto consiste, em suma, num arrazoado destinado a indicar qual o (alguns dias antes, portanto, da edição do Decreto n 6899) e endereçada a
2

melhor traçado para essa via transcontinental. Miguel Calmon, o presidente diz que leu o projeto de contrato para a "estra-
da de ferro de Mato Grosso" e insiste, várias vezes, em que a dedução "para
O estudo parte da constatação de que "já existe quase toda em operações financeiras e despesas de administração geral" seja de 8%, "como
tráfego a linha Buenos Aires-Valparaíso", ou seja, o transcontinental ar- exigi", e não de 10% [AN — Arquivo Pessoal de Afonso Pena, Correspon-
gentino, com seus ramais em construção adiantada em direção às frontei- dência, Livro Borrador 6, rascunho 69 (doe. 12.34), p. 21-22). Além disso, no
ras da Argentina com a Bolívia e o Paraguai. Observa, então: "O Brasil rascunho de uma longa carta endereçada a Rodrigues Alves (esse, então em
para construir outra linha férrea transcontinental (...) deve estudar devida- viagem pela Europa), datado de 22 de abril de 1908, Pena comenta que
mente a esfera de ação daquela primeira linha" (o transcontinental ar- acabara de assinar a "concessão" para a ferrovia Itapura-Corumbá, "obra de
gentino). Num rápido exame, Frontin conclui que o Peru, o norte do grande alcance para a segurança nacional e progresso de Mato Grosso" e
Chile e o norte do Paraguai poderiam ficar "na esfera de ação do que traria "alguns milhões de libras (2,5 a 3) para o país"; registra ainda que
transcontinental brasileiro e fora da do argentino". Examina em seguida a estrada deveria ficar pronta em 30 meses [id., rascunho 78 (doe. 12.45), p.
a situação da Bolívia, mostrando que, pelas ferrovias já construídas, em 27-29).
construção ou a construir, a "zona interandina" (ou seja, a região dos
lagos, na fronteira Peru-Bolívia) em breve estaria ligada ao Pacífico, nos
portos de Mollendo, Arica e Antofagasta. Procura saber, então, "desta
zona, qual o ponto preferível para término da linha transcontinental bra-
sileira", e logo começa a responder: "Quanto mais ao norte fôr, na bacia
"Pensamos Demais em Guerras
interandina, a junção, menos a recear será a concorrência por parte da Com os Nossos Vizinhos":
transcontinental argentina e dos seus ramais". As Razões da Mudança
Passando a examinar as várias encostas disponíveis para se galgarem De todo o exposto até aqui, a respeito da mudança do traçado da
os Andes na direção leste-oeste, o parecer descarta desde logo o vale do rio Noroeste, parece que podem extrair-se duas inferências.
Bermejo, que "apresenta condições favoráveis à linha argentina e a seus
A primeira é a de que não teria partido da Companhia de Estradas de
ramais". Decide-se, por fim, pelo vale do rio Grande, em cujas cabeceiras
Ferro Noroeste do Brasil a iniciativa da mudança do traçado. De fato, só se
situa-se a cidade boliviana de Cochabamba, num departamento "dos mais
132 133
Assim, admitindo-se, ao inverso, que a Companhia nada esperava
poderia compreender uma ação da Companhia nesse sentido imaginando-
de grandioso com o novo traçado (caso em que teria ela mesma buscado
se que ela tivesse vislumbrado, no novo traçado, perspectivas incomumente
a alteração, mantido o regime anterior), conclui-se que ela apenas acei-
entusiasmantes. Nesse caso, todavia — dado que a alteração contava com o
tou abrir mão do que já tinha (uma concessão que renderia sem sobres-
apoio do governo, pois o que se discute no processo não é a mudança e sim
saltos, durante 30 anos, juros de 6% sobre o capital empregado) em troca
questões financeiras — nesse caso, dizia-se, por quê haveria a empresa de
de uma empreitada que prometia ser rendosa — fixado, como era, o
omitir sua iniciativa? Ela estaria patrocinando, com apoio oficial, uma altera-
custo quilométrico da Itapura-Corumbá até o máximo de 40 contos ouro
ção que lhe seria benéfica; que poderia recear, que a levasse a esconder-se
(mais, portanto, que os 38 que ela reivindicara inicialmente, para cons-
sob "determinações do senhor ministro"? Não poderiam as duas partes, ao
truir por sua conta a estrada). Cabe assinalar, por fim, que o presidente
menos, dividir a paternidade da mudança? Por fim, se as perspectivas com a
da Companhia Noroeste na época da alteração, o engenheiro João Teixeira
alteração eram, nessa hipótese, tão alvissareiras, por quê tanta celeuma em
tomo da manutenção do que estava previsto lucrar de acordo com o contra- Soares, afirmaria mais tarde, expressamente, que a mudança "do traçado
to original? e do regime não foi de iniciativa da Companhia e nem negócio por ela
promovido; foi ato muito estudado e refletido do Governo, que enten-
Os textos dos requerimentos, bem como todo o desenrolar do pro- deu assim consultar interesses nacionais da maior relevância". Veja-se o
cesso, ficam no entanto perfeitamente inteligíveis caso se admita, ao contrá- trecho todo:
rio, que não era a Companhia a patrocinadora da alteração do traçado. Nesse "O governo, levado por motivos de ordem internacional, entendera dever
caso, seu cuidado e insistência em frisar que atendia a "determinações do providenciar com urgência sobre a extensão de nossa rede ferroviária até as
ministro" aparecem como meio de fortalecer sua posição nas negociações margens do rio Paraguai, e parece ter julgado preferível o alvitre, que tivera a
em torno das bases financeiras do prosseguimento da obra. aprovação do nosso Clube de Engenharia, de levar essa viação até a fronteira da
Bolívia, para assim poder estabelecer a ligação com o sistema ferroviário deste
país. Como fossem as linhas da Companhia Noroeste as que se achavam então
Ademais, cabe observar que a empresa teimou em não aceitar as
mais adiantadas naquela direção, entendeu o Governo ser preferível entrar em
bases que lhe foram oferecidas durante a tramitação do Decreto n 6463, Q
acordo com ela para a realização do plano que decidira executar. Não sendo
terminando por não assinar o contrato nele previsto — mas aceitou, no possível à Companhia levantar de pronto, por meio de garantia de juros, a
entanto, a situação estabelecida pelo Decreto n 6899, a saber: a Compa-
e grande soma de capitais necessários sem serem feitas novas concessões, que
tornassem os títulos da Companhia mais procurados, o Governo, depois de
nhia Noroeste permanecia com a concessão apenas do trecho Bauru-
muitos exames da questão, resolveu adotar o regime da lei n 1126" (SOARES,
s

Itapura; o trecho Itapura-Corumbá, embora devesse ser por ela construído, 1917, p. 35).
passava a ser de propriedade da União, que a arrendaria à mesma Com-
panhia pelo prazo de 60 anos. A construção da linha Itapura-Corumbá A segunda inferência que parece impor-se pelo exame dos docu-
seria paga pela União em títulos de 5% de juros, ouro, ao ano, ficando mentos aqui referidos é a de que essa alteração do traçado deveu-se, fun-
estabelecido que a estrada não poderia ter mais de 967 quilómetros de damentalmente, a razões de Estado, vale dizer, estratégicas e militares.
extensão e que o preço por quilómetro não poderia exceder a 40 contos Em abono dessa asserção parece que se podem invocar, acima de tudo, as
ouro. indicações nesse sentido, diretas e indiretas, partidas precisamente do prin-
cipal (e quase único) critico da mudança, o engenheiro Clodomiro Pereira
Em resumo, a Companhia Noroeste trocava a propriedade de uma da Silva. Relembre-se que, em seu ofício de 25 de fevereiro, Pereira da
ferrovia, sob o regime de concessão com garantia de juros, por uma emprei- Silva esforça-se em não recusar o proposto no requerimento que lhe é
tada seguida de arrendamento. Ora, tal troca não seria plausível se a Com- submetido, buscando todavia deixar bastante claro que não concorda com
panhia esperasse resultados altamente compensadores com a operação do a alteração, do ponto de vista doutrinário. Assim, ao discordar da modifica-
novo traçado. De fato, nesse caso seria de esperar, por um lado, que a linha ção, indica a natureza dos seus (dela) motivos. Escreve, de fato: "pensa-
se valorizasse rapidamente, convertendo-se num patrimônio cuja proprie- mos demais em guerras com os nossos vizinhos; falamos só em canhões";
dade lhe conviria; por outro lado, sendo lucrativa a operação da ferrovia, a "parece que entre nós procura-se resolver de modo inverso o problema
Companhia poderia abrir mão do dispositivo da garantia de juros, ficando [das necessidades estratégicas], procurando por ordem o canhão, o soldado
logo desobrigada de repartir seus lucros com o governo. Com esse mesmo e o dinheiro, quando deve [ser]: 1° o dinheiro, 2 o soldado e depois o
a

cenário, e sob o regime adotado no Decreto n 6899, o resultado seria bem


a
canhão".
outro: a valorização da linha favoreceria apenas a União, sua proprietária;
por outro lado, as rendas da fenovia teriam de ser sempre repartidas com a Da mesma forma se tem o sentido de urgência e de "fatc > consuma-
arrendante, isto é, a mesma União. dos" que reveste todo o processo, indicado por Silva e por diversas outras
135
134
anotações. Sobre fatos consumados, note-se a fina ironia com que, no início (a respeito da qual, aliás, parecem confundir-se as iniciativas do governo e
do citado ofício, o engenheiro escreve: "Neste momento, parece, nada me da Companhia — não ficando claro, por exemplo, a quem se deve atribuir a
cabe dizer sobre os pontos capitais do traçado [...] ao mesmo tempo que organização dessa Comissão ). 25

parece também dispensar quaisquer discussões a escolha do ponto extre-


mo". A ironia se patenteia pelo fato de que, apenas alguns parágrafos adian- Finalmente, para concluir o raciocínio aqui exposto, resta considerar a
te, ele desancaria sem piedade o pretendido valor estratégico de Corumbá, já citada sugestão de Pereira da Silva, no sentido de que a mudança do traçado
escrevendo que, sob esse aspecto, "Corumbá parece u m ponto infeliz". da Noroeste teria sido induzida por interesses dos empreiteiros. Trata-se de
Assim também a urgência, não só da tramitação dos papéis como da execu- um testemunho ponderável; todavia, em vista de várias circunstâncias, ele
ção dos trabalhos. Escreve Silva: "Ninguém deseja que seja morosa a cons- parece ao fim inconsistente. Como se viu, desde o início da construção da
trução da ferrovia, pois os altos interesses ligados a ela são cada vez mais NOB Silva exerceu seu ofício de inspetor com implacáveis rigor e integridade
prementes"; em outro local, confirmando indiretamente a urgência preten- (virtudes que transparecem ainda em suas intervenções no processo da mu-
dida, aconselharia: "pondo de lado pressa demasiada para começar, proce- dança do traçado e, de maneira mais ampla, em sua obra posterior). O proble-
da-se a um levantamento preliminar da região". ma é que, ao que tudo indica, seu rigor e independência de pensamento
terminaram sendo, ao invés de louvados, punidos pela alta administração fe-
A pressa fica ainda patente na deliberação de iniciar a construção deral. Com efeito, já em junho de 1907 o Ministério da Viação retirava a
também pelo outro extremo, bem como em diversas providências, refe- ferrovia Itapura-Corumbá do âmbito da repartição de fiscalização da rede fer-
ridas no processo, visando o início dessa construção ainda em 1907. Ex- roviária de São Paulo e Mato Grosso (Decisão n 46, de 27.6.1907); de acordo
2

pressa-se enfim, em particular, na definição dos prazos. O decreto origi- com essa decisão, afiscalizaçãodaquela estrada passaria a ser exercida por um
nal, que presidiu ao início da construção em Bauru (o Decreto n 5349),
Q
engenheiro "diretamente subordinado ao Ministério". Por outro lado, em de-
fixava prazos bastante elásticos, como se vê: concedia dois anos para a zembro do mesmo ano era criada a "Repartição Federal de Fiscalização das
apresentação dos estudos da primeira seção da obra, e registrava expres- Estradas de Ferro", que deveria encarregar-se das ferrovias "dependentes do
samente que a concessionária jamais poderia ser obrigada a construir Governo da União" (Decreto n 6787, de 19.12.1907). Enfim, em abril de
Q

mais de 100 quilómetros por ano; dessa forma, a construção poderia 1908, pelo menos, já aparece como chefe dessa Repartição o engenheiro
estender-se, tranquilamente, por mais de 15 anos (cláusula 4). O malo- Paulo de Frontin (AN — IT 3, maço 140, n 6935). Esse é um primeiro
a

grado Decreto n 6463, por seu turno, vinha inverter a situação: preten-
Q
aspecto da questão, indicando que o funcionário poderia com razão guardar
dia que se construíssem nunca menos de 300 quilómetros por ano, com- alguma mágoa por ter sido aparentemente posto de lado quando procurava
putados os dois extremos; marcava também, como se viu, u m prazo de acautelar o interesse público contra as investidas dos particulares.
três anos para a conclusão da seção principal, entre Bauru e o extremo
provisório em Mato Grosso. O Decreto n 6899, que veio enfim a preva-
s
Outro aspecto a considerar é que a sugestão mencionada encontra-se
lecer, embora silenciando a respeito do mínimo a construir por ano, redu- na obra publicada em 1910 e guarda notáveis contradições com as interven-
zia ainda o prazo para conclusão da seção Bauru-Porto Esperança a dois ções do próprio Silva no processo do Decreto n 6463. Como se viu, nessas
Q

anos e meio, estipulando que tal seção deveria estar concluída, "de modo intervenções Silva manifesta-se contra a mudança em termos exclusivamen-
a permitir a abertura ao tráfego provisório", até 30 de setembro de 1910 te doutrinários, procurando firmar sua opinião sobre a superioridade do tra-
(cláusula 17). Ao mesmo tempo, aliás, esse decreto exigia uma notável çado antigo (inclusive sob o aspecto estratégico, que é o mais discutido no
melhoria nas condições técnicas da obra: "Rampa máxima, 1%; raio míni- processo). Critica sem dúvida os empreiteiros, em termos aliás duros — pela
mo de curva, 300 metros" (cláusula 7); além disso, numa inovação em lentidão e má execução dos trabalhos, pelos orçamentos "exageradíssimos"
relação aos decretos anteriores, estabelecia que o material rodante a ser — mas concorda com os pedidos apresentados pela Companhia Noroeste,
empregado deveria satisfazer "às exigências precisas para o transporte nomeadamente com relação à manutenção do capital garantido no mesmo
de tropas" (cláusula 5). montante de antes (aplicando-se o restante em um ramal).

É importante notar também que enquanto se discutiam, no Rio de


" A maioria dos autores não se refere a essa circunstancia. PENIDO, por um lado, escreve: "Conhecen-
Janeiro, as bases do acerto entre a Companhia Noroeste e o Governo, iam- do o alto valor do engenheiro Schnoor, pela Companhia foi-lhe dada a incumbência de fazer os neces-
se processando os trabalhos de reconhecimento dos terrenos por onde de- sários estudos" (1933, p. 22-23). Por outro lado, na ata da sessão do Conselho Diretor do Clube de
Engenharia, em 17 de junho de 1907, lê-se que o presidente saudou "os senhores Schnoor" (referia-se
veria passar a linha, no sul de Mato Grosso , através da Comissão Schnoor
24

certamente a Emílio e seus filhos, também engenheiros), presentes à sessão, que "segue [sid para
Mato Grosso em desempenho de importantes estudos que lhe conferiu o Governo" (cf. Revista do
24
Acatando-se, talvez, a sugestão de Pereira da Silva. Club de Engenharia, n° 24, p. 56).

136 137
Cabe apontar, por fim, um terceiro aspecto. Pereira da Silva insiste Observações sobre
em que o ponto da questão estava nos lucros da empreitada; não há u m a hipótese p o u c o provável
qualquer indicação, em seu livro, de que a Companhia estivesse interes-
sada pelo novo traçado em si: o suposto interesse viria apenas da pers- Uma outra possibilidade de explicação da mudança do traçado da
pectiva de auferir maiores lucros com a construção. Tal asserção, todavia, Noroeste, ainda que não referida na documentação, poderia ser aqui lembra-
parece bastante inconsistente. De fato, se os empreiteiros dispunham, da. Trata-se, no caso, das vicissitudes das lutas políticas internas do Estado de
junto às autoridades, de poder suficiente para forçar uma iniciativa tão Mato Grosso: sendo o Estado claramente dividido em duas zonas (a do sul e
drástica como a mudança do traçado de uma ferrovia (e note-se que era a do centro, essa polarizada por Cuiabá), a mudança poderia corresponder a
uma mudança radical), não poderiam usar esse poder simplesmente para pressões de segmentos das classes dominantes locais com interesses locali-
obter maiores vantagens e facilidades na construção do traçado anterior? zados no sul do Estado.
De resto, toda a discussão de que se tem notícia no processo sugere Essa hipótese apresenta alguma verossimilhança. Como se recorda,
exatamente o inverso, ao mostrar a Companhia fundamentalmente inte- no ano de 1906 ocorrem importantes alterações políticas internas no Estado
ressada em preservar o que estava previsto lucrar segundo o contrato de Mato Grosso, em sintonia aliás com o processo político nacional. O
anterior. enfraquecimento do presidente Rodrigues Alves debilitava igualmente o
presidente de Mato Grosso, Antonio Paes de Barros — que se vinculara
Frise-se que esses raciocínios não eludem a realidade de favorecimentos
decisivamente à definição inicial do traçado da ferrovia; em 1906 estava
ilícitos a empreiteiros, de que dão notícia outros testemunhos da época . 26

novamente em ascensão em Mato Grosso a estrela de Generoso Ponce, em


Deve-se no entanto situar a influência desses personagens em níveis mais
associação com o grupo dos Murtinho, enquanto Totó Paes era literalmente
realistas. De fato, desde 1906 até às vésperas da Grande Guerra a econo-
eliminado da política mato-grossense.
mia brasileira, em sintonia com a mundial, experimentou u m período de
rápido crescimento, em que uma política fiscal expansionista, os êxitos do Como se sabe, os interesses dos Murtinho localizavam-se no sul do
programa de valorização do café e um inédito afluxo de capitais externos Estado, com a Companhia Matte-Larangeira; algumas fontes acusam-nos
estimulavam ao máximo os investimentos tanto em obras de infraestrutura mesmo de já então planejarem a divisão do Estado, com a separação do
como na produção industrial (CASTRO, 1979, p. 15, p. 91 e ss.). Essas sul, a fim de poderem velar por seus interesses com maior desenvoltura
circunstâncias foram aliás apanhadas por um diretor da Estrada de Ferro (LEAL, 1988, p. 286) . Por outro lado, no curso dos entendimentos entre
28

Itapura-Corumbá, o qual em 1916 notou, não sem uma ponta de melanco- o governo federal e a Companhia Noroeste, por ocasião da mudança do
lia, que essa estrada havia sido construída "num período de verdadeira lou- traçado — quando a Companhia julgava "impossível a construção da linha
cura financeira, quando tudo fazia crer que a nossa prosperidade não encon- pelo preço e no prazo exigidos" pelo governo — nessa ocasião o presi-
traria entraves" (cf. o Relatório referente aos anos de 1914 e 1915, p. 5). dente da Noroeste, Teixeira Soares, afirma ter obtido de Joaquim Murtinho
Nesse contexto, não se pode dizer que os empreiteiros ditassem soberana- e do senador Antonio Azeredo (também mato-grossense) a promessa de
mente os rumos dos empreendimentos públicos; sendo parte importante da
seu "concurso para a obtenção de uma equidade em ocasião oportuna",
engrenagem que alimentava a ilusão da "prosperidade sem entraves", sua
"em caso de ficar provado que o prazo e o preço eram insuficientes"
ação era não obstante tributária desse mesmo clima (procurando no interior
(SOARES, 1917, p. 36).
dele, como parece ser tradição neste país, extrair dos cofres públicos o
máximo que eles pudessem dar) . 27 A despeito disso tudo, nada parece mais improvável que a hipótese
de os Murtinho pressionarem o governo federal no sentido de que a ferrovia
cortasse o sul do Estado, ao invés de dirigir-se para Cuiabá. Em primeiro
Ver, por exemplo, duas cartas dirigidas a Afonso Pena por seu primo, o senador mineiro Feliciano
Pena, em novembro de 1907, visando a alertar o presidente sobre os procedimentos ilícitos que se lugar, porque a Companhia Matte nada teria a ganhar, em termos comerciais,
verificavam em diversas obras públicas (entre as quais, aliás, não é citada a NOB); na segunda carta o com essa fenovia: a quase totalidade de sua produção era colocada no mer-
senador menciona inclusive o nome de Frontin, fazendo-lhe pesadas acusações (AN — Arquivo Pes-
soal de Afonso Pena, caixa 12, doe. 24.34 e 24.35). SEVCENKO, de resto, refere-se também ao
cado platino (Argentina e Uruguai) e esse mercado era perfeitamente aces-
"parasitismo espúrio" denominado "cavação", comum na época (1985, p. 40-41). sível pelas vias de comunicação já estabelecidas, pelos rios Paraguai e Paraná.
Seja permitido que se avente aqui a ideia de que a severa vigilância exercida sobre os gastos públicos, Além disso, e mais importante, todas as fontes coincidem em atribuir zMatte
incriminando políticos e empreiteiros, pudesse então ser estimulada por um certo despeito conserva-
dor ante os sinais de desenvolvimento industrial. Note-se a propósito que Feliciano Pena, numa das
o propósito de manter sob firme c o n t r o l e a região de suas
cartas citadas, expressa-se assim: "a lavoura não deixa de aproveitar a oportunidade para estabelecer
o cotejo entre o que ela chama desperdício e a negação de auxílios de que se queixa" (doe. 24.34;
destaque meu). 2 8
Ressalve-se que um estudo mais recente (CORRÊA, 1981) nega tais pretensões.

138 139
concessões ervateiras. Manuel Murtinho pretendeu mesmo expressamente tese mais mirabolante poderia supor que, trazendo a ferrovia para o sul do
barrar o crescente fluxo, para essa região, de migrantes gaúchos: referindo- Estado, ele visaria precisamente abalar o poderio da Matte-Larangeira e, por
se à "desorganizada conente imigratória rio-grandense, que dentro em pou- extensão, dos Murtinho, seus rivais. Isso no entanto parece improvável: cons-
co ficará avassalando aquela região constituindo um Estado no Estado", pro- tituindo na Coligação, em nível nacional, figura muito mais importante que
põe, como meio de "disciplinar" essa presença gaúcha, a vinculação da Matte Ponce, Joaquim Murtinho estaria apto a vetar maquinações dessa natureza.
a "uma companhia estrangeira poderosa que no caso de conflito poderia
provocar, por via diplomática, a intervenção federal" (apudlEAL, p. 285; a Finalmente, de volta às elites corumbaenses, nenhuma indicação há
esse respeito, ver especialmente ARRUDA, 1989). Nessas circunstâncias, de que elas se tivessem articulado com vistas à mudança do traçado da
não parece crível que a Matte-Larangeira pleiteasse para essa região uma fenovia. Todos os estudos a respeito acentuam, ao contrário, o prejuízo que
ferrovia, a qual, previsivelmente, ao romper o isolamento geográfico do a construção da NOB acarretou à posição de Corumbá como centro comer-
espaço que considerava seu, iria constituir-se em privilegiada via de entrada cial (ver, por exemplo, CORRÊA, 1980,passim.). Essa construção parece ter
de muitos mais imigrantes, procedentes de numerosas origens. mesmo suscitado, a posteriori, racionalizações tendentes a manter a confi-
ança no futuro da cidade como núcleo comercial, afirmando a perene supe-
Ademais, os centros de poder da Mj«e?situavam-se fora dali, no Rio, rioridade das vias fluviais em confronto com a viação férrea e buscando
em Buenos Aires e em Cuiabá. Não havia no sul do Estado nessa época — "convencer" a classe mercantil de Corumbá de que ela nada teria a perder,
afirma um estudo recente — expressões oligárquicas de maior peso políti- antes a ganhar, com a ferrovia . 29

co: ao sul de Cuiabá, apenas em Corumbá se formara um núcleo oligárquico


politicamente expressivo (NEVES, 1988, p. 91, 104 e 107). Às elites
corumbaenses, então, interessaria trazer a ferrovia para essa cidade? Tal não
parece possível a não ser por um grosseiro erro de cálculo.

É certo que Generoso Ponce, organizador e líder da Revolução de


1906 em Mato Grosso — revolução levada a efeito, recorde-se ainda uma
vez, à sombra do apoio da Coligação, que viabilizara a eleição de Afonso
Pena e mantinha-se unida em torno do presidente eleito — Ponce, enfim,
ligava-se nessa ocasião diretamente ao grupo mercantil de Corumbá. Como
notou u m historiador, o próprio renascimento político de Ponce, após o
período de ostracismo a que fora submetido nos anos de domínio de Totó
Paes, ocorreu "a partir de Corumbá, onde instalou uma casa de comércio de
exportação e importação, retomando suas atividades comerciais anterior-
mente desenvolvidas em Cuiabá e recuperando em pouco tempo a fortuna
perdida com a perseguição sofrida no Estado"; o mesmo autor conclui: "Des-
sa forma, suas ligações com o comércio de Corumbá sustentaram a recupe-
ração de seu prestígio, reassumindo a liderança da oposição ao governo do
Estado" (CORRÊA, 1985, p. 22). Por outro lado, um escritor afirma que
Ponce, já presidente de Mato Grosso (empossado em agosto de 1907),
"interessou-se vivamente junto ao Presidente Afonso Pena e ao seu Ministro
da Viação pela continuação da obra da construção da Estrada de Feno Itapura-
Corumbá" (PÓVOAS, 1977, v. 1, p. 76). No entanto, dessas e de outras
indicações não se pode inferir que Ponce tenha influído no sentido da mu-
dança do traçado da Noroeste. De fato, as referências que assinalam seu
interesse pelas ferrovias em Mato Grosso demonstram o sentido claramente
genérico desse interesse: "Ponce queria ligar Mato Grosso ao mar", "sonhava
estradas de feno transcontinentais ou transbrasilianas que cruzassem o Gran-
de Oeste" etc. (LEAL, p. 269-271). Ainda a propósito de Ponce, uma hipó- »Destaca-se a esse respeito um opúsculo escrito, aliás, pelo engenheiro-fiscal do governo federal junto
à N O B (GRAVATA, 1909).

140 141
CONCLUSÃO

"Nossas
Capitais
A credita-se ter
evidenciado, neste
livro, que a
construção da
Noroeste do Brasil deveu-se a
fatores que pertencem, antes
de tudo, ao
Entregues domínio do político e do
simbólico.
à Multidão É possível que algumas
dificuldades à apreensão
Faminta e desse tipo de determinações
advenham da própria natureza
Revoltada" apologética da documentação
e da historiografia sobre a
NOB. De fato, essas fontes
apresentam o que lhes
parecem ser as motivações
político-estratégicas da
construção da ferrovia, mas
elas as servem em uma
embalagem frequentemente
repulsiva para o historiador de
formação materialista:
apologia barata; ufanismo
enervante, raiando o
chovinismo; total silêncio
acerca dos conteúdos
concretos daquilo a que
chama "progresso" — tudo
isso, enfim, juncado de
conceitos característicos da
chamada "geopolítica", essa
disciplina de tão merecida má
fama. Nessas circunstâncias, é
compreensível uma certa
Desfiladeiro tendência a rejeitar em bloco
da Serra Maracaju as indicações dessa corrente.
Álbum Graphico do
Estado de Matto Grosso
determinações de outra natureza. Aí se tem a fascinação exercida pela ferro-
Crê-se, todavia, que este trabalho tenha demonstrado que tal rejeição via, levando o presidente do Estado de Mato Grosso a barganhar apoios em
seria injustificável. As elites conservadoras do Brasil desde muito tempo troca da inclusão de seu tonão no rol das unidades federadas a disporem do
haviam realmente erigido em ponto de doutrina a manutenção da unidade e sofisticado meio de comunicação. E também o cálculo político dos dirigen-
da integridade territorial do país. Na época considerada, tal ordem de preo- tes da República, que de uma só tacada safavam-se de uma incómoda con-
cupações integrava-se ainda a um projeto mais amplo, voltado à configura- juntura e ainda ligavam seu nome a uma obra tão canegada de significações
ção de um Estado-nação de tipo moderno, inspirado no modelo dos países como era a ferrovia para Mato Grosso — além de realizarem uma parte
centrais. Nesses últimos, conforme notou Sevcenko, o Estado-nação se con- importante de seu programa, a saber, o reforço da unidade política e territorial
solidara por meio de três movimentos principais: "a ação integradora e do país (cálculos esses, é preciso frisar, viabilizados todos pelas perspectivas
constrictora sobre o próprio território; a ação social traduzida em sistemas de alvissareiras apresentadas pelo desenvolvimento económico do país e pelas
benefício e seguro social que lhe garantissem apoio e flexibilidade; e o disponibilidades do Tesouro).
desenvolvimento da força militar marítima e terrestre" (1985, p. 73, nota
100). No Brasil, a "ação social" do Estado ainda ficaria incubada por algum No episódio da mudança do ponto de chegada, por sua vez, as con-
tempo (ficando por então restrita à velha, simples e boa repressão...); mas o siderações político-militares ("estratégicas") parecem claramente sobrelevar
primeiro e o terceiro dos movimentos citados seriam objeto de atenção por a quaisquer outras. Nessa época, o agravamento dos desentendimentos
parte dos dirigentes da República. com a Argentina vinha somar-se aos temores já citados, produzindo u m
coquetel muito molesto para as elites dirigentes. De fato, essas elites ti-
As elites dirigentes tinham uma aguda consciência de que a questão nham clara a noção de que, na hipótese de u m confronto com a vizinha
da integridade territorial guardava estreitas relações com os problemas de platina, estava à espreita o fantasma das convulsões internas e da desagre-
relacionamento tanto com os vizinhos platinos quanto com as potências gação territorial, com desdobramentos capazes de ameaçar o próprio regi-
imperialistas. Seus estadistas percebiam, além disso, que as ameaças à uni- me de dominação estabelecido. Assim se compreende, por exemplo, o
dade e integridade nacionais provinham tanto do exterior quanto do interior. empenho de Rio Branco — como de toda a diplomacia brasileira desde a
guerra com o Paraguai — em evitar que a permanente tensão com a Argen-
Sob o aspecto dos temores internos, Mato Grosso constituía, em es- tina degenerasse em conflito aberto.
pecial no período republicano, um caso particularmente agudo. É certo que
esse Estado estava longe de ser o único em que os costumes políticos mar- Vale a pena, a esse respeito, verificar o que Ruy Barbosa escreveu
cavam-se pela violência e em que as lutas políticas com frequência se pro- reservadamente ao presidente Afonso Pena, em maio de 1908, no auge das
longavam pelo terreno da luta armada. No entanto, ali essas circunstâncias desavenças com a vizinha:
somavam-se ainda à relativa inacessibilidade por vias interiores e à proximi- "Os nossos inimigos sabem estarmos indefesos. Se resolverem desfechar o gol-
dade com fronteiras muito movimentadas (muito mais movimentadas, por pe, é agora, o u brevemente. E, se o desfecharem, será para nós uma indizível
exemplo, do que na Amazónia — que, ademais, era relativamente mais catástrofe. Bloqueada a nossa produção, interceptada a nossa importação, estare-
acessível por sua rede hidrográfica, particularmente volumosa e inteiramen- mos sem comércio, sem renda, estrangulados, com o pé do inimigo no gasnete,
vendo as nossas capitais s e m pão, n e m luz, entregues à multidão faminta
te controlada pelo Brasil). Como foi visto, essas questões eram percebidas e revoltada. (...) a acometida inimiga seria o cataclismo imediato: a ruína
pela elite dirigente nos termos das polarizações ordem/anarquia, civiliza- financeira, a mutilação do território, talvez a guerra civil e a subversão das
ção/barbárie, centralização/descentralização. instituições" (FCRB — CR 1127 - 1/1(60), p. 4 e 5; destaques meus).

No que respeita aos temores externos, o caso não era menos agudo. Antonio Gramsci escreveu, já há bastante tempo, que, na avaliação
Tinham-se aí, por um lado as ambições imperialistas e, por outro, as implica- da "potência" dos Estados, deve-se considerar "o elemento tranquilidade
ções da eterna questão platina — umas e outras viabilizadas ou potenciadas interna, isto é, o grau e a intensidade da função hegemónica do grupo social
desde a abertura do rio Paraguai à livre navegação. dirigente"; e escreveu também: "Dispor de todos os elementos que, nos
limites do previsível, dão segurança de vitória, significa dispor de um poten-
Dessa forma, na primeira parte da história da construção da NOB cial de pressão diplomática de grande potência, isto é, significa obter uma
(quando ainda se pensava em termos de um traçado Bauru-Cuiabá), o cálcu- parte dos resultados de uma guena vitoriosa sem necessidade de combater"
lo económico prevalece apenas no que diz respeito à definição do ponto de (GRAMSCI, 1988, p. 191-192).
partida. Para a fixação do ponto de chegada, converge um notável feixe de
Políticos lúcidos, os dirigentes brasileiros na época, como se pode

146
147
determinações de outra natureza. Aí se tem a fascinação exercida pela ferro-
Crê-se, todavia, que este trabalho tenha demonstrado que tal rejeição via, levando o presidente do Estado de Mato Grosso a barganhar apoios em
seria injustificável. As elites conservadoras do Brasil desde muito tempo troca da inclusão de seu tonão no rol das unidades federadas a disporem do
haviam realmente erigido em ponto de doutrina a manutenção da unidade e sofisticado meio de comunicação. E também o cálculo político dos dirigen-
da integridade territorial do país. Na época considerada, tal ordem de preo- tes da República, que de uma só tacada safavam-se de uma incómoda con-
cupações integrava-se ainda a um projeto mais amplo, voltado à configura- juntura e ainda ligavam seu nome a uma obra tão canegada de significações
ção de um Estado-nação de tipo moderno, inspirado no modelo dos países como era a ferrovia para Mato Grosso — além de realizarem uma parte
centrais. Nesses últimos, conforme notou Sevcenko, o Estado-nação se con- importante de seu programa, a saber, o reforço da unidade política e territorial
solidara por meio de três movimentos principais: "a ação integradora e do país (cálculos esses, é preciso frisar, viabilizados todos pelas perspectivas
constrictora sobre o próprio território; a ação social traduzida em sistemas de alvissareiras apresentadas pelo desenvolvimento económico do país e pelas
benefício e seguro social que lhe garantissem apoio e flexibilidade; e o disponibilidades do Tesouro).
desenvolvimento da força militar marítima e terrestre" (1985, p. 73, nota
100). No Brasil, a "ação social" do Estado ainda ficaria incubada por algum No episódio da mudança do ponto de chegada, por sua vez, as con-
tempo (ficando por então restrita à velha, simples e boa repressão...); mas o siderações político-militares ("estratégicas") parecem claramente sobrelevar
primeiro e o terceiro dos movimentos citados seriam objeto de atenção por a quaisquer outras. Nessa época, o agravamento dos desentendimentos
parte dos dirigentes da República. com a Argentina vinha somar-se aos temores já citados, produzindo um
coquetel muito molesto para as elites dirigentes. De fato, essas elites ti-
As elites dirigentes tinham uma aguda consciência de que a questão nham clara a noção de que, na hipótese de um confronto com a vizinha
da integridade territorial guardava estreitas relações com os problemas de platina, estava à espreita o fantasma das convulsões internas e da desagre-
relacionamento tanto com os vizinhos platinos quanto com as potências gação territorial, com desdobramentos capazes de ameaçar o próprio regi-
imperialistas. Seus estadistas percebiam, além disso, que as ameaças à uni- me de dominação estabelecido. Assim se compreende, por exemplo, o
dade e integridade nacionais provinham tanto do exterior quanto do interior. empenho de Rio Branco — como de toda a diplomacia brasileira desde a
guerra com o Paraguai — em evitar que a permanente tensão com a Argen-
Sob o aspecto dos temores internos, Mato Grosso constituía, em es-
tina degenerasse em conflito aberto.
pecial no período republicano, um caso particularmente agudo. É certo que
esse Estado estava longe de ser o único em que os costumes políticos mar- Vale a pena, a esse respeito, verificar o que Ruy Barbosa escreveu
cavam-se pela violência e em que as lutas políticas com frequência se pro- reservadamente ao presidente Afonso Pena, em maio de 1908, no auge das
longavam pelo terreno da luta armada. No entanto, ali essas circunstâncias desavenças com a vizinha:
somavam-se ainda à relativa inacessibilidade por vias interiores e à proximi-
"Os nossos inimigos sabem estarmos indefesos. Se resolverem desfechar o gol-
dade com fronteiras muito movimentadas (muito mais movimentadas, por pe, é agora, ou brevemente. E, se o desfecharem, será para nós uma indizível
exemplo, do que na Amazónia — que, ademais, era relativamente mais catástrofe. Bloqueada a nossa produção, interceptada a nossa importação, estare-
acessível por sua rede hidrográfica, particularmente volumosa e inteiramen- mos sem comércio, sem renda, estrangulados, com o pé do inimigo no gasnete,
vendo as nossas capitais s e m pão, n e m luz, entregues à multidão faminta
te controlada pelo Brasil). Como foi visto, essas questões eram percebidas
e revoltada. I...1 a acometida inimiga seria o cataclismo imediato: a ruína
pela elite dirigente nos termos das polarizações ordem/anarquia, civiliza- financeira, a mutilação do território, talvez a guerra civil e a subversão das
ção/barbárie, centralização/descentralização. instituições" (FCRB — CR 1127 - 1/1(60), p. 4 e 5; destaques meus).

No que respeita aos temores externos, o caso não era menos agudo. Antonio Gramsci escreveu, já há bastante tempo, que, na avaliação
Tinham-se aí, por um lado as ambições imperialistas e, por outro, as implica- da "potência" dos Estados, deve-se considerar "o elemento tranquilidade
ções da eterna questão platina — umas e outras viabilizadas ou potenciadas interna, isto é, o grau e a intensidade da função hegemónica do grupo social
desde a abertura do rio Paraguai à livre navegação. dirigente"; e escreveu também: "Dispor de todos os elementos que, nos
limites do previsível, dão segurança de vitória, significa dispor de um poten-
Dessa forma, na primeira parte da história da construção da NOB cial de pressão diplomática de grande potência, isto é, significa obter uma
(quando ainda se pensava em termos de um traçado Bauru-Cuiabá), o cálcu- parte dos resultados de uma guerra vitoriosa sem necessidade de combater"
lo económico prevalece apenas no que diz respeito à definição do ponto de (GRAMSCI, 1988, p. 191-192).
partida. Para a fixação do ponto de chegada, converge um notável feixe de
Políticos lúcidos, os dirigentes brasileiros na época, como se pode

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147
deslocar-se para o sul estariam obrigadas a enfrentar todos os obstácu-
ver, discerniam com uma clareza "clássica" os limites de seu próprio poder. los dessa demorada e custosa navegação. Pereira da Silva, aliás, infor-
Não confiavam muito no "grau" nem na "intensidade" de sua hegemonia ma que uma das razões da preferência por Corumbá havia sido dada
política interna. Voltavam-se, por isso, à tarefa de reunir "elementos que, nos pelas "peregrinações" do general Dantas Barreto em 1906 (SILVA, 1910,
limites do previsível", pudessem dar-lhes alguma "segurança de vitória", p.75) . 1

visando assim dissuadir o inimigo externo da tentação de iniciar o com-


bate. Ruy Barbosa, na carta citada, sugeria "adquirir imediatamente" ao Essas mesmas considerações aplicam-se ao expresso desejo de rapi-
menos "dois bons encouraçados", sem esperar pela conclusão daqueles dez na construção, pois as condições da mencionada navegação jamais per-
já encomendados. Rio Branco por seu turno dedicava-se, havia tempos, mitiriam que a ferrovia fosse construída a partir de Cuiabá; conforme reza a
por u m lado à caça de aliados entre os vizinhos e, por outro, a tentativas mensagem presidencial de 1907, a pressa exigia que se procurasse, "o mais
de composição com a própria Argentina. Recorde-se a tentativa do diretamente possível, um ponto à margem do Paraguai ou de afluente seu,
chanceler brasileiro, em 1904, de converter o embaixador argentino à até onde a navegação fosse franca em qualquer época do ano" . Os intuitos 2

tese de u m acordo entre Argentina, Brasil e Chile, argumentando que ele militares, enfim, explicariam também a busca de discrição na efetivação da
teria por fim, mudança, procurando fazê-la passar como uma requisição da própria Com-
panhia Noroeste, com direito a um processo formal cheio de requerimentos,
"no caso de insurreição o u guerra civil em algum dos países limítrofes, procura- pareceres e despachos burocráticos — como recomendara, aliás, o repre-
rem concorrer, quanto possível, para o restabelecimento da ordem o u pacifica-
sentante brasileiro em Buenos Aires, Assis Brasil: "uma preparação militar tão
ção, sem desprestígio do governo legal, e impedir que do território das três
Repúblicas sejam prestados auxílios aos revolucionários" (apud BUENO, 1977,
discreta como eficaz".
p. 188).
Por outro lado, os dirigentes brasileiros deviam saber que, por mais
Tratava-se, como se vê, de buscar comprometer a suspeita vizinha que se apressassem com a construção, não poderiam contar seguramente
com a ideia de jogar água na fervura do caudilhismo e do separatismo (que com a conclusão da ferrovia antes de que eventualmente se iniciassem hos-
pareciam endémicos na região platina, sem poupar aliás a própria Argenti- tilidades — embora já as providências iniciais pudessem funcionar como
na) — e dessa forma impedir que ela usasse esses fatores contra o Brasil. mais um elemento de dissuasão. Delineia-se assim, de forma mais ampla, a
vinculação entre a história da construção da NOB e a política de busca de
Dessa forma, pode-se dizer que a alteração do traçado da Noroes-
aliados entre as "nações menores" da região platina.
te foi ditada, por u m lado, por propósitos defensivos, em vista de u m
possível conflito com a Argentina — o qual, dadas as circunstâncias do No início da construção essa vinculação é menos direta. No caso da
sul de Mato Grosso, poderia exigir o rápido deslocamento de tropas até mudança do traçado para Corumbá, no entanto, a documentação indica com
essa região. É certo que, como mostram as críticas de Pereira da Silva, a razoável clareza que se tratou, aí, também de um movimento com vistas a
questão do melhor traçado de uma ferrovia para Mato Grosso, em termos "atrair" a Bolívia, retirando-a da "esfera de influência" da Argentina. Sob esse
estratégicos, prestava-se a múltiplas interpretações. Silva defendia com aspecto, interligam-se aliás intimamente interesses políticos e económicos:
ardor a superioridade do traçado para Cuiabá; no entanto, argumentos de conforme já foi dito aqui, as relações comerciais eram vistas então como
igual peso poderiam ser lembrados em favor do traçado para Corumbá. meio privilegiado de consolidação de relações políticas entre países vizi-
Essa cidade, conforme já foi dito, era considerada virtualmente "estran- nhos.
geira". Além disso, o sul de Mato Grosso, como mostra Valmir Corrêa, era
o locus preferencial do "coronelismo gueneiro", do divisionismo, do conluio Recorde-se que Rio Branco empenhou-se, no início de 1907, em
entre coronéis e bandidos, em suma, da "anarquia" e da "barbárie" — encontrar-se durante alguns dias com seu colega boliviano, a fim de apa-
favorecidas pela indefinição real das fronteiras, que ensejava o contra- rar as arestas pendentes nas relações entre os dois países. O chanceler
bando, o tráfico de armas etc. Era também ao sul que se referiam as brasileiro chegou mesmo a levar o boliviano a uma entrevista com o
notícias de compra de terras por argentinos, que chamaram a atenção
dos dirigentes brasileiros. 1
Dantas Barreto, de fato, gastou nada menos que onze exasperantes dias na subida dos rios de Corumbá
até Cuiabá; o general refere-se a essa empreitada como "o serviço mais pesado de que há notícia em
Ademais, eram péssimas as condições de navegação entre Cuiabá navegação de rio brasileiro" (BARRETO, 1907, p. 135).

e Corumbá, pelos rios Paraguai e Cuiabá; dessa forma, estando no sul 2


Esse ponto, na verdade, permitiria apressar o início da efetiva operação da ferrovia devido a duas
circunstâncias: ele não apenas estaria apto a constituir uma segunda frente de trabalhos como tam-
os maiores riscos de presença estrangeira e convulsão interna, e dirigin- bém ensejaria, logo em seguida, uma eficiente articulação entre a ferrovia e a navegação fluvial, em
do-se a ferrovia para Cuiabá, as tropas que eventualmente precisassem demanda de Corumbá.

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presidente da República e, depois, despediu-o com uma nota muito cor-
a importância devida aos demais fatores que intervêm n o jogo das ações e
dial, quase melíflua (ver capítulo 2). Levando-se em conta o cuidadoso das reações" (id., p. 286).
(para dizer o mínimo) acompanhamento, pelo Brasil, dos projetos ferro-
viários bolivianos (bem como as referências documentais mostradas no Assim, no ocaso de sua existência o antigo colaborador de Marx esfor-
terceiro capítulo ), parece bastante razoável supor que a promessa de
3
çava-se por redimir, dos equívocos em que se via envolvida, a concepção de
história que ambos haviam delineado — insistindo em que, no "jogo recípro-
construção de uma ferrovia no rumo direto das fronteiras orientais da
co" de inúmeros fatores, o "movimento económico" tenninava por impor-se,
Bolívia tenha sido u m dos elementos a influírem na normalização das
mas "através de toda uma infinita multidão de acasos"; e concluindo: "Se não
relações do Brasil com aquele país, normalização que se deixa identificar
fosse assim, a aplicação da teoria a uma época histórica qualquer seria mais
com clareza desde a passagem do chanceler boliviano pelo Rio de Janei-
fácil que resolver uma simples equação do primeiro grau" (p. 284-285).
ro.
Dessa forma, as motivações político-estratégicas, ligadas ao confli- No caso da Noroeste, ademais, mesmo o papel por ela desempenha-
to com a Argentina, são ainda mediadas pelo interesse brasileiro em an- do em termos estritamente económicos precisa ser submetido a detalhada
investigação. A esse respeito, podem ser muito ilustrativas algumas consi-
gariar aliados ou, ao menos, neutralizar terceiros países — isolando-se o
derações acerca das razões pelas quais a fenovia para Mato Grosso demorou
"inimigo principal". Essa circunstância é bem ilustrada pelo documento
tanto tempo para descolar-se do papel dos projetos.
do Estado-Maior do Exército, já citado segundo o resumo que dele se
conhece: Parece possível dizer, como disse Fernando de Azevedo a respeito
"além de todas as vantagens militares [...] há a assinalar, como u m motivo de alto dos planos nacionais de viação igualmente surgidos após a guerra com o
peso, a importância da estrada Itapura-Aquidauana-Corumbá, e não d o traçado Paraguai, que tais projetos eram inadequados "à situação económica e finan-
para Cuiabá, no sentido de favorecer a aproximação dos povos americanos, ceira do país" e ao "estádio de nossa evolução económica" (AZEVEDO, s.d.,
[importância que,) traduzindo profundos interesses ligados ao ponto de vista
internacional e político, [...] deve ser mencionada pelas suas reações sobre o
p. 40 e 182). Com efeito, dada a incipiência do desenvolvimento económi-
aspecto estratégico da questão". co da região na época, uma ferrovia lançada para Mato Grosso teria então
toda a probabilidade de converter-se numa autêntica "ferrovia fantasma".
Vale notar a propósito que, ainda em 1904 — quando a construção final-
A respeito dos significados mais diretamente económicos da constru- mente se define — ainda então um analista tão qualificado quanto Adolfo
ção da Noroeste, deve-se observar que a "divisão regional do trabalho" a que Augusto Pinto opinava ser "prematuro" qualquer plano de estrada de ferro
alude a concepção economicista certamente ocorreu, e a ferrovia teve um para Cuiabá, justificando-se assim:
importante papel em seu delineamento. Entretanto, esse fato significa ape- "A estrada de ferro para Cuiabá não custaria menos de cinquenta mil contos de
nas que o "movimento económico" se impôs a partir de determinado mo- réis, e o deficit anual [...] havia de ser de perto de dois mil contos de réis [...].
mento — quando o que realmente importa, para a História, é desvendar N e m outra cousa seria de esperar de uma linha extensíssima, através de
território na maior parte ainda despovoado, a qual por muitos anos só teria
como, por meio de que complexas mediações, ele se impõe.
valor estratégico e político. Nestas condições já se vê que o sacrifício d o
Tesouro Nacional seria incomportável e sem resultado compensativo" (PIN-
De fato, não consta em nenhuma teoria que o resultado de um pro-
TO, 1977, p. 123).
cesso histórico esteja necessariamente predeterminado por sua génese. Em
1890 o velho Friedrich Engels já lastimava que a concepção materialista da Igualmente em 1904, aliás, outro engenheiro, levando em conta as
história fosse às vezes considerada uma simples "frase", servindo apenas mesmas circunstâncias, alvitrava que a fenovia para Mato Grosso deveria ser
"para construir, às pressas, [...] todo um sistema" (ENGELS, s.d., p. 283-284). construída aos poucos, num prazo de 20 anos (ALVES, 1904, p. 37 e ss.).
Ao constatar essa situação, o próprio Engels não se furtava aliás a indicar
Na verdade, como já se viu, a Noroeste demorou não 20 mas 50 anos
uma de suas causas:
para concluir-se integralmente — e mesmo assim não escapou de, em de-
"Se os mais jovens insistem, às vezes, mais do que devem, sobre o aspecto terminados trechos da seção mato-grossense, apresentar-se com um aspec-
económico, a culpa em parte temos Marx e eu mesmo. Face aos adversários, to fantasmático. Assim se expressou, realmente, o próprio diretor da NOB,
éramos forçados a sublinhar este princípio primordial que eles negavam e
nem sempre dispúnhamos de tempo, de espaço e de oportunidade para dar
em 1949:
"Viajando-se de Três Lagoas para Campo Grande tem-se a impressão de que
aquela região é virgem e que a Noroeste foi ontem construída, pois parcíssimas
3
As reveladoras criticas de Pereira da Silva e o parecer de Frontin, por exemplo. são as habitações lobrigadas e mínimos, quase nulos, os trabalhos empreendidos

150
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p e l o h o m e m . São 420 quilómetros de chatice. O cerrado lúgubre é duma circunscrevem-se à consideração da obra enquanto simples empreitada de
monotonia enfadonha" (FIGUEIREDO, 1950, p. 20). engenharia e, em geral, negócio que garantia segura remuneração dos capi-
Tem sido efetivamente gritante o contraste entre os trechos paulista tais investidos ). 5

e sul-mato-grossense da NOB. Enquanto no primeiro a ferrovia atuou como


"desbravadora", desalojando os habitantes primitivos, abrindo espaços à ocu-
pação pelo capital e dando origem a importantes cidades, no segundo o Finalmente, não se pode deixar de registrar que a história da constru-
território permaneceu quase incólume à passagem da ferrovia. Apenas uma ção da Noroeste do Brasil oferece ainda à pesquisa historiográfica um vasto
cidade, verdadeiramente, formou-se devido à estrada: Três Lagoas, origina- campo, praticamente inexplorado.
da aliás de um acampamento da construção. No trecho entre Três Lagoas e Nessa história, aparece com destaque, por exemplo, a questão do
Campo Grande formaram-se apenas duas ou três pequenas vilas (que até relacionamento entre os brancos e os indígenas que, na época, habitavam os
hoje, oitenta anos depois, têm ínfima expressão económica e populacional). "sertões" do noroeste do Estado de São Paulo: os Caingang, chamados "coro-
Em termos da rede urbana do sul de Mato Grosso, a Noroeste impulsionou ados". As crónicas sobre a NOB relatam fartamente os inúmeros confrontos
apenas Aquidauana, num primeiro momento, e Campo Grande, com mais entre silvícolas e trabalhadores, em que muitos, de ambos os lados, perde-
força. Corumbá, por seu turno, declinou consideravelmente. ram a vida (NEVES, 1958). Na verdade, a resistência indígena esteve a
ponto de impedir a continuidade da construção da ferrovia; o conflito tor-
E se, ainda assim, a importância da Noroeste como veículo de dinamização
nou-se tema de debate nacional, que suscitou apaixonadas intervenções a
do comércio de importação e do afluxo populacional para o sul de Mato
favor ou contra o direito dos brancos de levarem de roldão, em sua marcha
Grosso — se essa importância parece, apesar de tudo, apreciável, o mesmo
"desbravadora" e "civilizadora", as populações primitivas. Desse debate,
não se pode definitivamente dizer no tocante ao comércio de exportação do
aliás, é que surge, já em 1910, o Serviço de Proteção aos índios (SPI), sob a
gado, principal produto da região. De fato, sobram indicações de que a maior
direção de Rondon — responsável, enfim, pelos acordos com os Caingang,
parte do gado do sul do Estado continuou, mesmo depois de 1914, a sair da
que permitiram a continuação da obra (sobre esses assuntos, ver LIMA,
região em morosas boiadas, seja pela antiga rota de Paranaíba, seja pela mais
1978; STAUFFER, 1959/1961).
recente, através da estrada boiadeira até o Porto 15 de Novembro e daí pela
Sorocabana até São Paulo (a esse respeito, ver por exemplo VALVTiRDE, Outro tema de relevo é o que diz respeito aos trabalhadores na cons-
1972, p. 117; AZEVEDO, s.d., p. 99-100; BARBOSA, 1963; ABREU, 1976). trução. As crónicas abundam em relatos, por exemplo, sobre a violência das
febres malignas do vale dorioTietê, que provocaram a morte de legiões de
É preciso sem dúvida matizar essa análise com a consideração do
operários. No lado de Mato Grosso, se não havia febres (nem restavam mais
clima de otimismo reinante no país na época da construção. As grandes
índios que ameaçassem a "marcha da civilização"), as péssimas condições
realizações materiais do período anterior à Guerra Mundial, bem como o
de trabalho, os atrasos nos salários e o autoritarismo da Companhia Noroeste
notável afluxo de capitais externos então verificado, induziam a uma
ensejaram algumas das primeiras greves operárias nessas partes, na segunda
superestimação do futuro económico do país e das possibilidades de pro-
década do século (CORRÊA, 1987).
gresso de seus "ricos sertões". Dessa forma, a análise do destino da NOB e
do sul de Mato Grosso, no plano económico, não pode deixar de levar em A simples observação empírica indica enfim que, no presente século,
conta o impacto causado pela irrupção da Grande Guerra e pelas crises todo o processo histórico em Mato Grosso (e em especial em sua parte
balcânicas que a antecederam. Todos esses fatos determinaram uma severa meridional, que veio a constituir o Estado de Mato Grosso do Sul) foi afetado
retração no fluxo de investimentos estrangeiros, com resultados ainda não em maior ou menor grau com a construção da Noroeste do Brasil, pelo
avaliados em profundidade . É possível, assim, que essas crises tenham
4
afluxo populacional que ela ensejou e pelas alterações que provocou na
frustrado muitas expectativas com relação ao desenvolvimento capitalista orientação das correntes comerciais. Todavia, a pesquisa historiográfica está
no sul de Mato Grosso (possibilidade essa que, obviamente, não afeta os ainda a dever estudos aprofundados acerca dessas articulações entre a feno-
raciocínios expostos neste livro, segundo os quais, no caso específico da via, por um lado, e a economia e a sociedade locais, por outro.
construção da Noroeste, as vinculações diretas com interesses capitalistas
Se este livro puder contribuir para a superação dessas lacunas, só por
isso terá valido a pena.
* O que parece hoje é que essa retração, bem como a subsequente desorganização do mercado
mundial, pode ter sido antes prejudicial do que benéfica para o crescimento económico e em par- 5
Como seria de esperar, a construção ensejou também, aliás, um movimento de especulação com
ticular para o processo da industrialização brasileira (DEAN, 1977). terras (ver, a esse respeito, CORRÊA FILHO, 1946, p. 16; CARVALHO, 1914, p. 12).

152 153
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Impressas e
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Ofícios recebidos da Presidência da República (1904, 1906/08)

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Presidência de Mato Grosso: avisos recebidos (1901-1912); avisos expedidos (1900-1914). LEGISLAÇÃO
Avisos recebidos do Ministério da Guerra (1906/1908) Decretos do Governo Provisório da República. Rio de Janeiro : Imprensa Nacional (1890-
Avisos recebidos do Estado-Maior do Exército (até 1930). 1891).
Missões diplomáticas brasileiras: correspondência expedida pela Legação em La Paz
Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brazil. Rio de Janeiro : Imprensa
(1905-1908), pela Legação em Buenos Aires (1906-1908) e pela Legação em Bruxelas
Nacional (1891 a 1912).
(1906-1907).
Decisões do Governo da República dos Estados Unidos do Brazil. Rio de Janeiro : Imprensa
Parte II (Documentação interna do Ministério): Nacional (1890 a 1912).
Informações e pareceres (latas 634 e 635)
Pareceres do consultor jurídico (321/4/21, 321/4/22) Legislação ferro-viaria federal do Brazil : leis, decretos ... desde as primeiras iniciativas até
Relatórios (322/1/22) 31 de dezembro de 1921. Por Alberto Randolpho Paiva. Rio de Janeiro : Ministério da
Provas de relatórios (latas 304 e 310) Viação e Obras Públicas, 1922. v. 13.
Documentos históricos (lata 681).

Paru III:
Documentos históricos — 2' série (lata 250) OUTROS DOCUMENTOS
Arquivo particular de Rio Branco: correspondência recebida. Diário Official da União, seções "Sociedades Anónimas" e "Annuncios" (1904 a 1908).
Anais da Câmara Federal. Rio de Janeiro : Imprensa Nacional (1904 a 1907).

DOCUMENTAÇÃO
IMPRESSA
RELATÓRIOS OUTROS ACERVOS
Relatórios da diretoria da Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil:
à Assembleia de junho/1906: Diário Official da União, 13.6.1906, p. 3175-3176.
PESQUISADOS
à Assembleia de agosto/1907: id., 13.8.1907, p. 6118-6119.
à Assembleia de setembro/1908: id., 20.9.1908, p. 6368-6369.
Rio de Janeiro:
à Assembleia de outubro/1911: Rio de Janeiro : Typ. Leuzinger, 1911.
Arquivo do Clube de Engenharia.
à Assembleia de outubro/1912: Rio de Janeiro : Typ. Leuzinger, 1912.
Fundação Casa de Rui Barbosa.
à Assembleia de 1916: São Paulo : Estab. Graph. Universal, 1917.
Biblioteca Nacional.
Biblioteca do Itamaraty.
Relatório apresentado [...] pelo Dr. Firmo Ribeiro Dutra, diretor interino [da Estrada de Arquivo Histórico do Exército.
Ferro Itapura a Corumbá], referente aos annos de 1914 e 1915. Rio de Janeiro : Imprensa Biblioteca da RFFSA.
Nacional, 1918.
Bauru:
Relatório n° 55 da Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais [apresentado à Assembleia Museu Ferroviário Regional.
Geral em 30 de junho de 1904]. São Paulo : Vanorden, 1904. Depósito de documentos da RFFSA.

Assis: Biblioteca da FCL/UNESP.


Relatório sobre o Plano da Viação Geral [elaborado pela Comissão de Viação Geral]. Rio
de Janeiro : Imprensa Nacional, 1890.
Marília: Biblioteca da UNESP.

Relatórios do Ministério da Guerra. Rio de Janeiro : Imprensa Nacional (1901 a 1911). Campo Grande:
Biblioteca Estadual de Mato Grosso do Sul.
Relatórios do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. Rio de Janeiro : Imprensa Biblioteca da FUCMT (Faculdades Unidas Católicas).
Nacional (1892, 1895, 1904, 1907, 1908).
Cuiabá: Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (UFMT).

Mensagens do Presidente da República ao Congresso Nacional. Rio de Janeiro : Imprensa


Dourados: Centro de Documentação Regional (CEUD/UFMS).
Nacional (1905 a 1908).

162
163
PAULO ROBERTO
CIMÓ QUEIROZ,
licenciado e mestre e m
História, nasceu e m
Bauru (SP) e m 1957 e
radicou-se c o m sua família
e m Dourados e m 1962.
É professor da
Universidade Federal
de Mato Grosso d o Sul
desde 1985, tendo
trabalhado até 1989 n o
Centro Universitário de
Aquidauana. Desde 1990
trabalha n o curso de
História d o Centro
Universitário de Dourados.
E s t a o b r a foi i m p r e s s a p e l a
Divisão de Produção Gráfica ACS/UFMS,
Pertence a diversas
para a Editora d a Universidade Federal sociedades científicas,
de Mato G r o s s o do Sul dentre as quais a
Associação Nacional de
História ( A N P U H ) e a

A
EDITORA
UFMS Associação Brasileira de
Pesquisadores e m História
Económica (ABPHE).
Paulo

Sem desconhecer as ChamadasTÍovas abordag


em História, neste livro o autor enfrentou quest
estruturais, envolvendo a grande trama política
nacional e internacional da época e os interesses
do capital em jogo. Dessa forma, analisa com
propriedade, estilo fluente na escrita e explorando
bem as fontes primárias, que são também de
qualidade, toda a problemática amante na
construção da Estrada de Ferro Noroeste do Br
entre 1904 e 1908.

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