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Sobre as chegadas e as saídas numa casa de axé

É recorrente e bastante cotidiano nos chegar vários leitores diariamente dizendo que querem sair da
casa na qual foram iniciados pelos mais variados e discrepantes motivos. Fora deste mundo virtual eu – e
presumo que todos os religiosos – vejo com alguma recorrência isso também acontecer com uma
facilidade surpreendente: iyawôs que trocam de casa, que saem pulando de uma em uma e passam os
anos que deveriam aprender a serem bons egbomis passando temporárias estadias em diferentes
lugares.

Por outro lado, há alguns problemas de ordem interna ou de administração de casa que acabam por
fazendo o iyawô tomar essa decisão drástica e ficarem perdidos por apenas quererem uma casa pra
permanecer, pra sentir bem o seu orixá longe dessa bagunça de troca-troca anual de casa tão vista por
aí.

Nunca parei pra pensar sobre isso antes, pois até então sempre fui firme e convicta de que sempre seria
da casa onde nasci e nunca tinha vivido nem presenciado este fato por parte de um iniciado. E também
por ser mais nova esse tipo de acontecimento sempre ficou distante de mim e ao encargo dos mais
velhos.

Não é à toa que a palavra iyawô signifique “noiva”. Durante a minha iniciação ouvi: “É pra sempre: a
ligação com o orixá é pra vida toda”. Iniciação é um casamento, um casamento com o seu orixá que não
aceita divórcio, contrato, acordo ou qualquer coisa do tipo. Está acima das pessoas, do humano e de
qualquer convenção que existe. Este laço só se desfaz com a morte, a partida para o orun. Neste
processo o axé é imprescindível; a navalha, de extrema importância; o zelador, fundamental.

Muito falamos aqui sobre o tempo de abiyan, sobre o tempo de aprendizado, de adaptação e nada disso
aqui é falado sem nenhuma pretensão. Iniciação é um ato sério, requer responsabilidade e
compromisso. Ser iniciado significa tentar ter toda a retidão possível para com o seu orixá a fim de
conseguir ouvir e entender o que ele falar, o que ele apontar, pois Ori pode ser soberano, mas o nosso
orixá sempre deve ser escutado e ele não se comunica melhor com ninguém do que com o seu próprio
filho, afinal de contas temos sua energia em nós. Eu tenho cá com os meus botões que a gente passa
todos os nossos anos de iniciado buscando essa sintonia perfeita, buscando não errar seguindo os
conselhos do nosso orixá e essa busca é feita em cima de responsabilidade, respeito, compromisso,
preceito, retidão e tempo.

Contudo, alguns iniciados acabam não captando isso e/ou alguns zeladores acabam também não
captando a mesma mensagem. Algo entra em desalinho e nesse desalinho pode ter de um tudo: desde o
respeito que possa ter deixado de existir, diferenças entre irmãos, até caminhos apontados pelo orixá. Se
o quadro se mantém e o tempo não ameniza, sair é a solução?

Meus textos são delicados, pois levo a minha fé de forma delicada – embora minha personalidade não
seja -, mas eu sei e partilho da ideia de que gente de Candomblé tem que ser casca grossa. Cultuar orixá
é a coisa mais linda do mundo, mas, às vezes, a gente escuta o que não gosta, ver o que não quer e isso é
normal, pois uma casa de Candomblé é quase a mesma coisa que o mundo lá fora adicionado (muito
adicionado) com personalidades mais abertas, mais a mostra, já que a nossa religião preza isso. Numa
casa de Candomblé somos ainda mais nós mesmos e ainda com uma grande presença do nosso orixá.
Abri esse parágrafo somente pra escancarar que casa de Candomblé é amor ao orixá, é servir ao orixá,
mas quando o assunto são as pessoas, não é um mar de rosas, é um mundo real. No mundo real
ninguém diz “cansei” e sai dele. Pois é. Em casa de axé também é assim. Ou ao menos deveria.

Todo iniciado, como já disse antes, carrega muitas responsabilidades e pensar sobre uma saída é algo
que requer muito cuidado, muita reflexão sobre as conseqüências, tempo e saber o que o orixá pensa, o
que ele quer. Não é uma decisão a ser tomada como um espasmo, um susto, uma virada de noite, um
abuso qualquer. É praticamente esperar brotar a flor e amadurecer o fruto. Ou seja, exige uma coisa que
eu sei que existe, mas não sei como funciona muito bem: paciência. Só que partilho aqui como conselho,
pois acho que os constantes pedidos da minha zeladora a Oxalá para que me dê paciência talvez estejam
dando resultado.

Falo isso de forma aberta, pois já tomei essa atitude de sair da casa onde nasci e depois acabei voltando
porque Xangô me chamou e me acolheu de volta. Todos estes acontecimentos me confundiram um
pouco e me fizeram repensar se tudo que eu sempre falei aqui eu estava vivendo de fato. Volto a
escrever respondendo ao meu próprio silêncio que se todo aquele vendaval passou pela minha vida
religiosa e hoje eu continuo firme e vibrante na minha fé, é porque eu nunca me escondi das minhas
responsabilidades e do amor pela minha religião. Tudo o que eu sempre falei sobre viver a religião
continua de pé sim. E digo que hoje bem mais que antes.

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