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Boa tarde para quem está chegando.

Boa tarde, boa noite.

Eventualmente, vou fazer a sugestão


para a gente abrir a câmera.

Para a gente poder se olhar, se sentir...


Ainda mais que a gente

estava nesse curso totalmente


presencial, né? E agora é nossa primeira

incursão online. Eu desaprendi a fazer


isso no online... Estou feliz de ter

desaprendido, na verdade;
estava muito ansioso pelo contato.

A gente vai esperar...


uns cinco minutinhos, no máximo.

O nosso professor de hoje, o Steven,


já está aqui com a gente. Mas vamos aguardar

cinco minutinhos para começar. Então quem


quiser pode pegar uma água, “fazer o L”. [risos]

Vocês já estão gravando, né, gente?


Isto aqui já está ficando pra história.

Então isto aqui é um documento


também de memória, né?

Para a memória de ambas as instituições, é


importante dizer, para quem acessar

isto aqui no futuro, que está sendo


gravado no dia 31 de outubro de 2022.

Um dia após o resultado das eleições que


elegeram novamente Luiz Inácio Lula da Silva

para a Presidência do Brasil. É a primeira vez


que um presidente em mandato não é reeleito.

Mais um recorde negativo para o currículo,


para o CV, o “resumé” do Bolsonaro.
Então esse é o clima de hoje,
né? Não tem como ignorar.

Queria deixar esta declaração aqui para a


história, para que, quem estiver assistindo

no futuro e olhar para as peles


maravilhosas de todos nós,

entenda que é o bálsamo das


eleições... é o resultado das eleições.

Então é isso, a gente começa


formalmente daqui a três minutos, ok?

É importante acrescentar à fala do


Heitor que o Lula venceu

pela terceira vez uma eleição presidencial.


E o curioso, para quem planeja

as coisas, para quem é programador,


curador, para quem coloca coisas e

pessoas juntas, é que a gente aqui


correu o risco, né, Márcia Vaz?

De programar essa conversa um


dia depois das eleições.

Então que bom que a gente está aqui


num clima de felicidade, de celebração,

porque a gente poderia ter colocado


o Steven numa grande cilada,

não é mesmo? [risos] Imagine o clima.


Mas olha só, hoje a gente está aqui

em clima de comemoração,
se não fosse em clima de comemoração,

seria em clima de afeto e de cuidado,


então estaríamos juntos do mesmo jeito.

Estaríamos juntos do mesmo jeito.


Eu estou aqui...por mim, é isso, gente.
Eu só quero falar de 13.
Mas vamos lá. Quer saber?

Falei que a gente ia esperar uns


cinco minutos, mas dane-se.

- Vamos começar.
- Vamos.

Botar essa energia para fora, vamos


compartilhar este momento.

Então a gente está oficialmente


começando. Boa noite.

Como coloquei no começo,


para quem está chegando...

quem se sentir à vontade


pode abrir a câmera para a gente se ver.

Qualquer que seja o contexto, quem


estiver cozinhando, andando com o cachorro,

quem estiver lavando roupa,


ou quem estiver sentado aqui,

na frente do computador ou celular


e se sentir à vontade para abrir a câmera...

Bora lá? Até porque,


como eu falei no começo,

a gente está num curso que


é majoritariamente presencial

e quem dá aula sabe o quão


desafiador é dar aula sem poder

ver os nossos interlocutores.


Chegamos à terceira aula do curso

relembrando esse caminho


que a gente fez até agora...

Na primeira aula, houve uma certa


sensibilização sobre a maneira que
as pessoas negras encontraram para
se inscrever ao longo da história,

sendo a fotografia um desses recursos.

Aí tivemos aquele encontro emocionante,


mediado pelo álbum de fotografias

da minha família, comigo e com meu pai.


No segundo encontro a gente foi

para alguns fundamentos da preservação


e tentou trabalhar com marcadores realistas.

Então estudamos um pouco da


história da preservação e depois fomos

enegrecendo essa história,


abrasileirando essa história também.

Entendendo o que é possível e faz


sentido aqui para a gente.

Agora, nesta terceira aula, a gente


tem um convidado que me deixa

muito orgulhoso e muito feliz por ele


ter topado esta jornada com a gente.

Vamos fazer algo que não é feito


com tanta constância

ou com a constância que deveria, né?


Que é enviadar e sapatonizar os arquivos.

As memórias tendem a repetir certas


estruturas da sociedade.

Se a gente vive numa sociedade


cis-hétero-normativa,

os arquivos tendem a
repetir essa estrutura.

E, como se diz em inglês, a gente


vai "queer the archive".

Numa tradução possível,


enviadar o arquivo.

Então nada mais adequado para


falar sobre isso e sobre o que isso

significa e o que que isso implica,


na verdade.

A gente tem um arquivista, um curador


e um amigo. Uma das pessoas mais generosas

que eu conheço, o Steven G. Fullwood,


que já vai tomar a palavra e falar.

Imagino que agora, depois de dois anos


e alguma coisa de pandemia,

a gente já esteja familiarizado com o recurso da


interpretação, né? Então, para quem precisa

de tradução simultânea, para quem não se


sente confortável escutando o inglês,

é só ir aí embaixo, apertar o botão


de interpretação, tradução ou “interpretation”,

dependendo de como estiver o Zoom


de vocês, e aí vocês escolhem o canal

que gostariam de escutar.


Então quem precisa escutar em

português, clica ali no canal português


e quem precisa ou quer escutar em inglês,

clica no canal English ou inglês.


É isso, eu sou só alegria.

Quem está entrando


com a câmera ligada, top!

Não se esqueça de deixar o microfone


mudo. Eu estou tão atabalhoado

que não ia deixar você falar, né, Márcia?


Já estava passando por cima...

- Eu estava no gancho aqui. [risos]


- Fala Márcia!

- Bom, gente, eu vou fazer as vezes


institucionais, sobretudo porque,

como o Heitor disse, a gente precisa


contextualizar o que vai ficar registrado,

embora vocês ouçam isso todas


as aulas. Esse é um projeto muito especial

para a gente, estamos na quarta


edição do Memórias Pretas em Movimento,

uma oficina de preservação


audiovisual que vem se desenhando

ao longo dessas quatro edições. E a cada


ano, a gente melhora um pouco mais.

E este ano tem sido muito especial.


É um projeto do Instituto Moreira Salles

com o Instituto Nicho 54. É uma correalização,


uma parceria muito frutífera para todos nós,

sobretudo para o IMS, ter a parceria do Nicho 54.


Esse é o Heitor Augusto, diretor e fundador

do Nicho 54, eu sou a Márcia Vaz,


programadora de cinema do IMS.

O Lucas Gonçalvez, que está aqui comigo,


é o assistente de programação da casa.

Maria Moretto é supervisora de eventos


junto com Raquel Lehn

que também é supervisora de


eventos aqui em São Paulo.

Queria agradecer a todo mundo que,


enfim... faz com que essa oficina seja possível.

Também temos o Thiago Galego,


que não está aqui agora,

que também é da programação de


cinema, e a Karen Almeida,

coordenadora de produção curatorial


do Nicho 54.

Bom, desejo a vocês uma ótima aula.


Steven, bem-vindo. Agora é contigo!

Olá todo mundo. Meu nome é Steven G.


Fullwood. Eu sou ex-curador assistente

do arquivo de manuscritos do Instituto Schomburg,


na Biblioteca de Nova York.

Também sou cofundador do projeto


Arquivista Nômade,

coordenador da exposição “Marking


Time: Art in the Age of Mass Incarceration”

e arquivista líder de um projeto que


se chama “Archiving Marking Time”.

Eu gostaria de agradecer ao Lucas,


e também à Marcia, à Raquel

e todos que me convidaram,


tornando isso possível.

E gostaria de mandar um alô para


o Heitor, que conheci este ano,

e dizer que adoro seu coração, sua


mente, adoro o trabalho que ele faz

e espero que possamos trabalhar juntos


no futuro em vários projetos de arquivo

ou da forma que pudermos nos conectar.


Vou tentar falar devagar

porque estou sendo traduzido para


o português de forma simultânea.

Eu queria saber mais português,


sei muito pouco.

Sei falar “bom dia”, “café”


e algumas outras palavras.

Então me perdoem. É tudo amor. Eu gostaria


de compartilhar minha apresentação

para ter algumas imagens, alguns estímulos


visuais. Explicar por que estou aqui hoje.

E quero ouvir todos vocês também.


O título da minha apresentação é:

“Devemos enterrar nossos mortos duas vezes.”

Ou "enviadando os arquivos".
As vidas negras no “In the Life”.

Ser arquivista é algo natural para mim.


Em toda a minha apresentação

espero que fique claro para vocês por que


é tão importante para mim este trabalho

e por que também deve ser


importante para vocês.

As pessoas que aparecem nessa foto à direita


são do Fire & Ink Writers' Festival,

do qual fui copresidente nos últimos


dois anos de sua existência.

Reuníamos vários artistas, escritores


que se identificavam como gays

e descendentes de africanos. Vou falar


um pouco das pessoas nessa foto

depois na apresentação. O que eu entendo


do arquivo é que em qualquer lugar

em que as memórias
existam e sejam acessíveis,

e que sejam usáveis. Então para mim,


isso pode estar em uma instituição,

pode estar em um arquivo comunitário,


pode estar na casa de alguém,
pode estar na forma de genealogia, história.
Então é muito importante, na realidade,

que o arquivo seja um lugar de


imaginação, do que é possível.

Os arquivos também são muito


exclusivos, no sentido de que

um arquivo não consegue colecionar tudo.


Nenhum arquivo atual ou do passado

consegue colecionar tudo. Mas a ideia,


como arquivista, é ser fiel à nossa

comunidade, para preservar essas


histórias. Compartilhar essas histórias

com os demais. Então eu começo


a minha apresentação

com uma mulher que admiro muito,


Barbara Smith, que é uma das

cofundadoras do Kitchen Table Press,


uma editora com mulheres negras,

fundada em 1980, juntamente


a Audre Lorde.

Vários outros surgiram daí,


como Sean Clark, Cherríe Moraga

e outras mulheres negras que produziam


trabalhos para a imprensa.

Falei com a Barbara Smith quando


eu estava criando o projeto Black Gay Genius,

que era uma carta de amor


para o Joseph Beam,

que foi editor da primeira antologia gay negra,


que se chamou "In the Life: A Black Gay Anthology."

O Joseph morreu antes de


acabar o segundo livro,
"Brother to Brother: New Writings
by Black Gay Men",

concluído pelo poeta Essex Hemphill,

de quem vamos falar depois,


e pela mãe do Joseph, Dorothy Beam,

que eu adoro. Quisera ter mais vidas


para escrever a biografia dela

de tão incrível que ela era. Voltando à


Barbara Smith... Eu e ela falávamos

do Joseph Beam, que ela conheceu


quando ele a procurou, pedindo

conselho para começar, para criar


uma antologia. Ele escreveu uma carta

que começava com "AJUDA".


Escreveu para a Barbara Smith

e Audre Lorde essa carta. Então,


eu comecei o livro com uma entrevista

com a Barbara, porque não só ela


conheceu o Joseph, como foi muito

importante na vida dele como colega,


antepassada, uma pessoa que ele

admirava muito, na realidade.


No livro da Barbara Smith,

“The Truth that Never Hurts”,


uma coleção de textos que inclui um

ensaio intitulado “Temos sempre


que enterrar nossos mortos duas vezes”.

O que ela diz nesse ensaio é muito importante.


Vou ler para vocês, porque é muito importante

para mim como arquivista basear o meu


trabalho na comunidade.
Sem isso, sou um mero colecionador.

“Para vários de nós, escritoras e escritores


negros, assumidamente lésbicas e gays,

nosso trabalho é
obviamente bem difícil.

Infelizmente, temos sempre que


enterrar nossos mortos duas vezes.

As homenagens nestas páginas


costumam ser um esforço

para fazer isso com uma integridade


ausente na cerimônia oficial.

Sem dúvida, organizaremos inúmeras


reuniões memoriais nos próximos meses

e anos e não teremos medo de falar de


James Baldwin como um irmão gay negro.”

Ela escreveu “Temos que enterrar


nossos mortos duas vezes”,

porque quando ela foi


no funeral do James Baldwin,

em dezembro de 1988, ela viu que,


embora houvesse vários grandes

nomes lá falando do James e da


relação que tinham com ele,

como familiares, colegas, ativistas,


ninguém falava da orientação sexual dele.

Então a Barbara e uma amiga ficaram


irritadas com a situação

e o que a Barbara entendeu na realidade é


que nós temos sempre que enterrar

duas, três ou até quatro vezes,


porque temos que relembrá-los.

E parte de relembrar está nos arquivos.


Então o que vocês podem esperar

da aula de hoje é saber mais sobre


as minhas origens, relacionado ao

arquivo "In the life", que na verdade


é um arquivo que eu fundei para

preservar e disponibilizar ao público


materiais produzidos por pessoas de

ascendência africana que se identificam


como parte da comunidade LGBTQIA+.

Então vamos falar um pouco sobre


como foi desenvolvido o arquivo.

Vou falar também das pessoas que


fazem parte desse arquivo além de mim.

Tem várias pessoas que fazem um


excelente trabalho de arquivo.

Eu vou dividir alguns dos nomes deles


com vocês.

Eu quero falar também um pouco


do que eu acho que é importante.

Que seria o meu próximo passo


em relação ao arquivo.

Que é abrir o arquivo.


Diferentes maneiras de pensar

sobre como nós podemos


preservar as nossas memórias.

E nos salvar também, né? De certa forma.


Essa é uma pergunta que vou propor depois.

Vou dar um tempo para


vocês pensarem na resposta.

Por que que é importante nos


arquivarmos?

Ninguém consegue responder


essa pergunta para vocês,

vocês mesmos têm que responder.

Não importa se você já é profissional ou


não. Se já tem os meios econômicos,

se é mais rico ou mais pobre. Mas por que


é importante nós nos arquivarmos?

Escrevi três motivos e vou adorar dividir com


vocês a minha visão no final da conversa.

Vamos lá... O arquivo "In the Life"


Começou comigo.

Falo no sentido de que comecei a colecionar


esse material quando era criança.

E aqui, à esquerda, como eu vim a este mundo.

Através dos meus pais que estão


sentados aqui. O meu pai Steven J. Fullwood,

que nasceu em Louisiana, cresceu numa


fazenda no Arkansas, depois se mudou

para Ohio, onde conheceu


a minha mãe, Elaine Fullwood,

que está sentada com um buquê de flores.

Ela nasceu em Toledo, em Ohio,


que fica no nordeste dos EUA,

perto de Michigan e de Indiana.

Atrás dela estão os seus pais:


Mary e Jeremy.

À esquerda, de pé, a irmã Margie e a sua


avó, Beulah O’neil Richardson.

Essas pessoas moldaram a minha vida.

À direita, uma foto minha de


quando eu tinha seis anos.
Ganhei esse troféu porque
eu sabia ler e escrever.

E eu fiquei muito feliz com o troféu,


Como vocês podem ver.

Se vocês perceberem, aqui atrás de mim


tem várias coisas na casa,

tem fotos, tem um abajur, várias coisas


que continuaram a se apagar da minha memória.

Então quando eu penso nas fotos


que existem na nossa família atualmente,

com diferentes pessoas da família,


quando eu escrevo sobre a minha família,

sobre nossa história, essas fotos


se tornam muito importantes

para eu reconstruir como foi


a minha criação em Toledo, Ohio,

na década de setenta e oitenta, quando


fecharam muitas fábricas na região,

impactando parte da população negra


que ascendia à classe média.

Na mesma época teve a epidemia do HIV


na nossa comunidade, além do crack e das gangues.

Eu me formei em 1984. Tudo isso começava


a devastar a nossa comunidade.

Aqui estou com seis anos, em 1972.

Uma outra coisa antes de trocar


o slide...

Na infância eu comecei a me
interessar por genealogia.

E acho que foi quando o bichinho


de arquivar me mordeu,

porque naquela época eu queria


colecionar fotos, ouvir histórias

sobre o meu pai crescendo numa fazenda,


porque eu era um menino urbano.

Eu queria saber mais sobre a nossa história.


De onde a gente tinha vindo, o que a gente fazia.

E isso acabou se tornando uma coisa


que perpassa a minha vida toda.

Me tornar um arquivista na verdade


foi uma extensão disso.

Eu comecei como bibliotecário em uma


biblioteca de crianças em Ohio.

Depois eu me formei
na universidade de Toledo.

Fui trabalhar nessa biblioteca infantil por 3 anos.


Depois fui para Atlanta fazer um mestrado.

E na sequência fui para Nova York


trabalhar no centro Schomburg.

E foi lá que esse projeto "In the Life",


esse arquivo, cresceu.

E aí tem o material da minha


coleção, do meu acervo,

que eu estou colecionando já há vários anos


em Ohio, na Georgia e depois em Nova York,

esse material, esses livros, esses diários.


Materiais de conferência.

São materiais que salvaram a minha vida.


Me deram uma reflexão, algo para pensar.

Crescendo em Ohio... Eu não conhecia


pessoas gays, só quando eu ia para boates.

Você vai para uma boate para ter vida


social, não para construir organizações.

Então eu fiquei feliz de sair de Ohio e


encontrar pessoas que compartilhavam

de uma experiência cultural, mas também


de uma experiência mental-física-espiritual.

Esse arquivo "In the Life" começou com um


acervo de materiais que eu comprei pelo correio,

coisas que eu tinha encomendado de livrarias.

Era muito importante para mim ler histórias,


participar dessas histórias

e começar a escrever a minha própria história.

Porque era importante refletir sobre o que eu vivia,


o que eu queria vivenciar e assim por diante.

O que vocês veem aqui nesse arquivo


são evidências de materiais que eu colecionei,

que eu comecei a colecionar quando


cheguei ao centro Schomburg,

que foi o melhor lugar para esse arquivo.


O centro Schomburg é uma instituição,

mas eu descrevo esse arquivo "In the Life"


como um arquivo comunitário.

Um ano depois que eu cheguei


a esse centro, eu perguntei à curadora,

Diana Lachatanere, uma mulher negra cubana


que tinha nascido nos Estados Unidos

no final da década de 1940,

eu perguntei: "Posso começar esse arquivo?"


E ela falou que tudo bem.

Ela queria construir o acervo,


a coleção daquele jeito.

O centro Schomburg começou com


uma pequena coleção de Arthur Schomburg,

um homem afro-porto-riquenho que nasceu


no final do século dezenove

e se mudou para Nova York


com uma coleção impressionante.

Quando era criança disseram


para ele que não havia cultura negra

ou que os africanos não haviam


contribuído com nada para a história mundial.

Essas histórias apócrifas fizeram com


que ele embarcasse em uma jornada

para começar a colecionar: livros, estatuetas


e todo tipo de coisa relacionada à diáspora africana

e a essa experiência.

Ele colecionou tanta coisa que


encheu a casa com esses objetos.

Em 1926, a biblioteca pública de


Nova York comprou o acervo dele

e isso se tornou a coleção Schomburg.

Essa coleção foi crescendo


desde 1926 até 1972,

quando se tornou uma coleção para pesquisa


da Biblioteca Pública de Nova York.

Ou seja, deixou de fazer parte da biblioteca local


e se tornou parte de um centro de pesquisa.

E com o tempo continuou crescendo; agora são


mais de quinze milhões de peças nessa coleção.

Esses materiais têm todos os formatos:

audiovisual, manuscritos, fotografias, materiais de referência,


diários, livros, microfilme e arquivos digitais.

É uma ampla gama de materiais,


você pode encontrar coisas sobre pessoas negras

de qualquer lugar do mundo.

Se vocês forem para Nova York, vão lá, me procurem,


para eu ajudar vocês a circular por esse recurso

e apresentar vocês às pessoas.

Um ano depois de ter entrado em Schomburg,


em 1998, eu pedi para começar esse arquivo

e recebi apoio porque já havia essa


presença de pessoas negras lá.

Joseph Beam, editor da primeira antologia negra.

Os estudos dele estavam lá e chegaram lá


porque a mãe dele doou esses estudos.

Depois de sua morte repentina, sendo ele filho único,


os amigos dela queriam que ela jogasse tudo fora,

porque diziam que isso só ia entristecê-la.


Mas ela não fez isso, ela doou os estudos dele.

Depois ela trouxe o Essex Hemphill


e o gato dele para sua casa,

onde concluíram o livro que ele


tinha deixado inacabado,

"Brother to Brother:
New Writings by Black Gay Men".

Também tinha várias outras coleções,


inclusive de Melvin Dixon,

poeta, intérprete e professor na


Universidade da Columbia,

um cara muito inteligente, autor de ficção e


também poeta, ativista e editor, nascido no Haiti.

Então Schomburg estava colecionando


material muito antes da minha chegada.

Às vezes, é preciso uma pessoa de


Uma comunidade específica

para que ela comece essa


iniciativa de um arquivo,

para reunir e trazer mais


coisas para esse arquivo.

Então queria falar um pouquinho


Dessas fotos aqui.

A foto em preto e branco aqui embaixo,


à direita, é do Essex Hemphill.

Um amigo meu, Ajamu X, fotógrafo,


artista plástico e ativista que vive em Londres,

tirou essa foto quando foi para Londres,


promover o seu livro, fazer leituras.

Então são fotos que ninguém conhece,


mas o Jamal as tem.

Eu vou falar um pouco mais sobre ele


mais pra frente na minha fala.

A foto de cima, mostra materiais do arquivo


que ficavam na minha mesa:

revistas, livros, diários, jornais de conferências,


newsletters. Isso foi do início dos anos 2000.

As duas mulheres, da esquerda para a


direita, são Alexis De Veaux, que é poeta,

escritora, ativista, professora universitária


e biógrafa de Audre Lorde.

Uma pensadora maravilhosa, uma leitora.

E ela está abraçada com sua amiga,


Gwendolen Hardwick.

Na década de 70 elas abriram um teatro


que seja chama "The Flamboyant Ladies Teather"

e elas produziam todos os trabalhos delas.

São materiais de arquivo que


estão lá no Schomburg Center.

E elas estão escrevendo agora


um livro sobre a experiência delas.

Claro que deu uma desacelerada


por causa da pandemia,

mas elas estão trabalhando nisso e eu espero


poder ajudá-las nesse projeto de pesquisa.

Eu também gosto muito desse tipo


de trabalho,

o arquivo está sempre dando


gênese a esse tipo de coisa.

Aqui embaixo temos o material do arquivo,


que inclui uma série de arquivos individuais.

Vou falar um pouco disso daqui a pouco


para dar uma ideia do que está nesse arquivo.

O que há nesse arquivo?

Antigamente ele se chamava


Black Gay & Lesbian Archive.

Mas a gente queria dar o nome de uma pessoa,


só que não queria que o nome distraísse do arquivo

ou fosse mal interpretado, como se fosse


só os trabalhos daquela pessoa.

Por isso que a gente escolheu "In the Life",

porque tem um livro do Joseph Beam


que se chama "In the Life".

Então essa foi a inspiração do nome.


Vários materiais são dos Estados Unidos,
mas temos materiais vindos de Londres,

do Caribe, de diferentes partes da África.

Infelizmente muito material relacionado a ataques


homofóbicos em diferentes partes da África.

Sobretudo da África ocidental.

E tem uma série de materiais aqui na mesa


que vocês podem ver, temos mais manuscritos,

materiais pessoais de organização, materiais raros


e filmes. Eu vou falar logo mais sobre isso.

Temos camisetas, outros tipos de materiais,


bandeiras, bottons.

É uma coleção com uma ampla


gama de materiais

que representam a década de 1950


em diante nos Estados Unidos.

É uma conquista considerável, mas foi a


própria comunidade que nos trouxe o material,

quando ficou sabendo da iniciativa do arquivo.


E ficaram à vontade ao fazer isso

porque era o Schomburg, que já tinha


uma boa reputação na comunidade.

É importante trabalhar com uma instituição


que está na comunidade, já vou falar sobre isso.

Uma coisa que o Heitor me perguntou


quando me convidou para dar essa aula

foi se eu começava com o material,


com a história ou com a pessoa.

E para mim começa com as pessoas.


Porque sem elas não tem a narrativa,
nem as histórias e nem os materiais.

Procurei, então, pessoas como Alexis de


Veaux, Cheryl Clarke, escritora, poetisa,

ex-professora universitária em Nova Jersey


e uma série de outras pessoas

para ver o que elas tinham.

O arquivo comunitário numa instituição pública


é a forma de dar estrutura a esse arquivo "In the Life”."

Não apenas porque a comunidade construiu o


arquivo, mas porque tem essa sensação.

Ele é muito amplo em termos de formato


e das pessoas que fazem parte dele.

Uma das questões de colecionar


na época que eu colecionava

é que tinha pouco material produzido por ou sobre


pessoas bissexuais e pessoas transgêneros.

Essas duas comunidades ainda estavam começando


A produzir material sobre suas próprias vidas.

Pessoas como Janet Mock; essas pessoas ainda


não estavam ativas na época em que eu comecei o trabalho.

Fico feliz que estejam agora, que haja mais gente


que se identifica com outras orientações,

além de gays ou lésbicas, cujo trabalho vai formar


arquivos como este, ou parecidos.

O desenvolvimento do arquivo do
Schomburg foi fundamental,

porque eu tive acesso a profissionais experientes


que puderam me ajudar a falar com a comunidade.

Como conversar com a comunidade?


Como abordar?

Como aproximar a comunidade para que a gente


pudesse mostrar como preserva e cuida do material,

como a gente dá acesso,


como a gente cataloga o material.

São questões fundamentais nesse processo,

mostrar para a comunidade o que


fazemos nos bastidores.

É uma forma de desmistificar,

e isso precisa acontecer quando se trabalha


com a comunidade numa instituição pública.

Há alguns anos uma amiga me disse que


achava que pessoas negras e

pardas quase nunca tinham um bom


atendimento em instituições públicas,

fosse um tribunal, um hospital ou uma biblioteca.

Por isso, um dos objetivos dela era garantir


que todo mundo que entrasse pela porta

soubesse que está no lugar certo.


Ajudar todas essas pessoas, ser gentil.

Eu sempre levo essa lição comigo.


Fico feliz que ela tenha me dito isso.

Em relação a doações, nesse arquivo "In the Life",


o Schomburg já tinha uma boa reputação,

muitas pessoas doaram registros pessoais,


registros de organizações, coleções de revistas,

material realmente importante.


Algumas pessoas doaram dinheiro.

Então eu consegui comprar mais


coisas com esses recursos.

Foi muito bom.

Criou-se um aparato para que o


dinheiro fosse para uma conta

e eu utilizava esse dinheiro comprando materiais.

O processo de raciocínio...

Eu estava trabalhando com arquivistas, curadores


e curadoras especializados que me ajudavam.

Tinha um folheto no início, e eu distribuía


esse folheto em diferentes eventos.

Eventos Pride, eventos da comunidade LGBTQIA+


com pessoas negras.

Só para mostrar, esse arquivo é isto aqui,


fale comigo se quiser mais informações.

E fiquei pensando também em como representar


a comunidade em fóruns como esse aqui,

falando diretamente com as pessoas sobre o arquivo.


Por que que ele é importante.

Como é possível contribuir, colaborar com esse arquivo


e também inspirar outras iniciativas de arquivo.

Que não precisam ser de pessoas negras ou queer,


mas que sejam voltados para a comunidade.

E que criem essa ponte entre


a comunidade e as instituições.

Às vezes, na superfície, as instituições


parecem muito frias.

Às vezes até por dentro elas são frias.

As pessoas acreditavam no projeto.


Quando eu cheguei no Schomburg,
tinha gente que acreditava nesse projeto.

A curadora, meus colegas, que


achavam que era uma boa ideia

e me ajudaram a pensar nessas coisas


relacionadas a iniciativa do arquivo.

Não havia nada igual, então eu nunca


me senti sozinho nesse processo,

é importante dizer isso. O impacto de


estar numa instituição renomada

e que seja dona do material físico, mas não


dona dos direitos autorais.

Se você doa algo para uma instituição


com frequência dão essa escolha:

Você quer abrir mão dos direitos autorais


ou quer mantê-los?

E eu sempre incentivo as pessoas a


manterem os direitos autorais

porque foram elas que criaram os materiais,


escreveram os livros.

A instituição pode preservar, cuidar


e dar acesso ao material,

mas a pessoa é dona daquela


propriedade intelectual.

Então é o que sempre recomendo


para qualquer iniciativa de arquivo:

que as pessoas mantenham o poder


sobre essa propriedade intelectual.

As pessoas morrem, esses direitos autorais


se perdem, e aí ficam para a biblioteca,

para a instituição que se beneficia do


material. E deveriam ir para a família,

para o companheiro ou companheira.

Então eu acho que é muito importante que


as pessoas mantenham os direitos autorais.

Aqui nessa página nós temos exemplos


de coisas que estão no acervo.

Alguns nomes vocês vão reconhecer,


mas eu acho que a maioria não,

porque a comunidade queer negra, os ativistas,


os políticos são, em grande parte, dos Estados Unidos,

muitas dessas pessoas não dirigiram filmes


ou escreveram canções,

são simplesmente pessoas


que trabalham em organizações.

São escritores, dramaturgos que talvez


sejam conhecidos em um campo específico.

Não foram apenas os defensores desse arquivo,


mas doaram seu material e conseguiram

que outras pessoas doassem também.

Organizações como a ADODI Records,

uma organização espiritual que explora


a sexualidade, que não é de base cristã,

de base judaica, muçulmana, da África


ocidental... Se inspirando na África Ocidental.

Aí a gente tem a Gay Men of African Descent Records.

Quando eu fui para Nova York, fui para essa


Organização, porque tinham programação.

Eu era amigo do diretor, que naquele momento


queria que o material estivesse numa instituição.

A organização foi fundada em 1986 para tratar


de necessidades sociais, políticas e sanitárias

de homens gays negros. Isso foi em 1986.

Eu comecei em 1998. E mais ou menos em


2006 o material foi doado para o Schomburg.

O material foi escaneado no final dos anos 1980.

Então a gente fez a história oral


com pessoas que estavam lá.

Contaram como era organizar e colaborar


com outras pessoas naquela época,

no final dos anos 1980 e início dos anos 90.

A gente tem aqui organizações e pessoas,


material pornográfico, erótico, eventos.

Essa é uma coleção diversificada.

Chamamos assim porque foi vindo e sendo


organizada com base nesses diferentes temas.

Por exemplo, a gente tem a House/Ballroom Scene,


é uma caixa de materiais que reúne 13 casas,

algumas foram fundadas na década de 1970,


outras até nos anos 2000.

São folhetos, brochuras


e em alguns casos até obituários.

A maior parte das pessoas conhece


a cultura negra queer por meio dessa cena,

dessas casas de baile negras, a cena drag.


Isso ainda está muito dentro da comunidade.

Isso existe e está lá, mas não estou falando do


“RuPaul's Drag Race” ou a série “Pose” ou “Legendary”.
São coisas produzidas em massa,
temos alguns filmes e outras coisas,

mas a maioria das pessoas associa o movimento

negro queer com essa cena


Ballroom e House nos Estados Unidos.

Então tem uma certa representação disso no arquivo.

Nos primeiros anos...


quero falar do centro Schomburg de novo.

Como combatia o racismo, a supremacia branca


e outras coisas mais.

O Schomburg colecionava material produzido


por e sobre pessoas com uma política de respeitabilidade.

Eram profissionais, cujas vidas iam contra a ideia racista


de que os negros não faziam nada em nenhum lugar.

Começamos então com essas coleções no Schomburg,


sempre com trabalhos da diáspora.

O próprio Schomburg era afro-porto-riquenho,


havia várias coleções que ele trouxera do Caribe,

da África ou de onde houvesse presença negra.

Ele começou a colecionar numa época em que


não era popular colecionar cultura negra.

Mas o capitalismo agora virou um grande colecionador,


Como vocês podem imaginar.

Eu sei que vocês estão fazendo


um projeto de preservação com filme e vídeo.

Então gostaria de compartilhar com vocês


uma pequena parte do arquivo “In the Life”

que tem filmes e vídeos como,


por exemplo, “Brother to Brother”,
"Preto é... preto não é", “That’s my face”,

um filme da Cheryl Dunye, aliás, alguns dela,


incluindo um que se chama “A Mulher Melancia”,

que quero mostrar para vocês agora.

Uma das dificuldades de colecionar


e preservar esses filmes e vídeos

é que muitos filmes gays negros, sejam curtas,


documentários ou longas,

também têm pouca disponibilidade,


porque não conseguiram distribuição

ou foram exibidos só uma


ou duas vezes em festivais.

Em alguns casos, mesmo na internet,


há uma escassez de informação sobre esses filmes.

Então acaba sendo muito problemático,


por muitos motivos.

Pois faz parte do nosso legado...

O Schomburg tem um departamento que é dedicado


a preservar esse material e disponibilizá-lo ao público.

E eu continuo, faço as minhas doações,


apesar de já não trabalhar mais lá desde 2017.

Queria mostrar pra vocês um vídeo...

- Steven! Como esse trecho


que você vai passar não tem legenda

e talvez nem todo mundo tenha visto “Watermelon Woman”,


“A Mulher Melancia”,

eu gostaria de gastar alguns minutinhos


para poder falar sobre o que é o filme.
Para poder localizar algumas pessoas.

- Você vai falar ou quer que eu fale?

- Eu posso falar, rapidinho... Só para a gente poder


alternar e não ficar só você falando.

É um filme de 1996, a diretora do filme


é essa mulher à esquerda, a Cheryl Dunye.

Ela é uma trabalhadora de vídeo locadora.

A história é que ela descobre uma atriz lésbica


dos anos 1930 e a gente vai assistindo esse filme

como se fosse a investigação dessa


atriz lésbica dos anos 30.

Conforme a gente vai assistindo a esse filme,


o que a gente vai percebendo, contudo,

é que talvez essa atriz nunca tenha existido.

Essa atriz que a gente está assistindo no filme,


talvez ela nunca tenha existido.

O que na verdade essa trabalhadora de locadora


e cineasta vai fazendo é que ela vai fabulando.

Então, na impossibilidade de acessar


as vidas das pessoas, você fabula,

para conseguir tapar esses buracos,


tapar esses grandes vazios.

Esse é o argumento do filme.


E é um dos primeiros filmes

que a gente tem aqui no chamado mundo ocidental,


de representações de mulheres negras lésbicas.

Não só individuais, mas em coletividade.

Lembrando que, no Brasil, quando a gente teve


O “Amor Maldito”, da Adélia Sampaio,

que é uma diretora negra, que é um filme protagonizado


por duas mulheres brancas,

ainda nesse momento em que o filme foi realizado,


em 1996, a gente está falando de uma certa escassez

de imagens negras protagonizadas por mulheres lésbicas.

Então era só uma introdução muito rapidinha, já que


esse trecho aqui dessa cena de flerte não está legendado.

- Agradeço muito. Muito obrigado, Heitor.

É um clipe desse filme “Watermelon Woman”,


da Cheryl Dunye.

- Quem era a gata?


- Uma cliente.

- Tem uma bela estrutura óssea para quem


curte brancas. Você acha que é de família ou não?

- Tamara, por que você está de olho em


mulheres o tempo todo?

- Cheryl, a gente é lésbica, lembra?


Mulher que gosta de mulher, né?!

- Enfim, você é que a está sempre de olho


na mulherada. Quando foi a última?

- Faz uma semana. Lembra da


instável da Yvette?

- Como assim, Cheryl?


Não era tão ruim assim!

- Era, sim.
- Aliás, ela ligou para a Stacey ontem e perguntou de você.

- Ela era tão...


- Olha o conversê!

Se trabalhassem tanto quando conversam,


eu já teria uma rede de locadoras.
Tamara e Cheryl, deixe-me apresentar
a sua nova colega, Annie Hinkley.

- É Heath. Annie Heath.


- Isso, Annie Heath. Ela estuda na Bryn Mawr, certo?

- Isso. Prazer, Cheryl. Prazer, Tamara.


- Olha só, Cheryl, atenda essa cliente

e mostre para a Annie como funciona o sistema.


- Tá bom.

- E você, vem comigo para a minha sala!


- Então, vou aceitar a sua sugestão. É dois por um, né?

- Isso
- Já vou buscando as fitas então, né?

- Não, não, fique aqui comigo e fazemos isso juntas.


- Tá bom.

- A conta está no nome de quem?


- Rolland, mas é nova a conta.

- Sem problemas. Aparece aqui também,


só tem que botar nome, endereço, telefone.

O cartão eu passo.
- Entendi.

- Poderia me dar o seu cartão? Obrigada.


- Então o sobrenome é Rolland. O primeiro nome, qual é?

- Diana.
- Endereço?

- Rua Ludlow, 4043


- Obrigada.

- 4043, certo? Telefone?


- 555-2112

- Pronto.
- Não tem que assinar?

- É verdade.
- Cheryl, já trabalhei numa locadora.
Lá era só pegar a fita e registrar.
- Isso.

- Vou levar “Repulsa ao sexo” e


“Cleópatra Jones”

- “Cleópatra Jones”
- Isso.

- Vou buscar. Está em ordem alfabética, né?


- Isso.

- Posso guardar o meu cartão?


- Ai, desculpa, tá aqui.

- Grata.
- Eis as fitas.

- Obrigada.
- Quer uma sacola?

- Não, não precisa... Cheryl.


- Beleza. E é assim que você atende os clientes.

- Você quer dizer “é assim que a cliente


dá em cima da gente”. Se for tão moleza,

preciso de um crachá com meu nome também.

- Acho que o Powerpoint fechou. Então vou


ter que abrir de novo para compartilhar, parece.

- Peço paciência.

Esse é o primeiro ou um dos primeiros filmes


comerciais com mulheres lésbicas negras.

Como eu falei, a gente tem uma escassez


de filmes produzidos por e sobre LGBTQI+.

Tem curtas que são apresentados em


festivais e depois não aparecem mais.

O Heitor sabe mais do que ninguém que


quando você monta uma mostra de cinema,

tem que falar diretamente com o diretor do


filme para conseguir uma cópia,
que talvez seja a única cópia existente.

Se eu tivesse mais tempo na época do Schomburg,


talvez pudesse ter trabalhado mais nessa parte do acervo.

Porém, além de construir o arquivo “In the Life”


eu também estava gerenciando toda a divisão.

Então não tinha mais tanto tempo depois


da minha promoção a curador assistente em 2013.

Tem vídeos de congressos, como o


“Black Queer Studies” em Chapel Hill,

depois um outro curta da Cheryl Dunye.

Aqui à direita, o “Black Folks' Guide to Black Folks”


da Hanifah Walidah.

É mais um one-woman show que ela montou


Nos anos 2000. Esse filme foi produzido inclusive...

Teve um pouco de distribuição, como também o “The Polymath or


The Life and Opinions of Samuel R. Delany, Gentleman”,

que é um filme do Fred Barney Taylor.

O Samuel R. Delany é um escritor de ficção científica,


de pornografia. Um homem das letras com uma profícua produção.

Um padrinho espiritual para mim. A gente se encontrava,


conversava, tomava café da manhã,

fofocava, lia um o trabalho do outro. Era


muito bom estar com ele. Os trabalhos dele,

na verdade, estavam na universidade de


Boston. Mas produziu tanto na década de 1960,

que encostaram um caminhão na rua dele em


Nova York e levaram caixas e mais caixas de material.

Então a Universidade de Boston até tinha o material,


mas não o processava.

Agora está na Universidade de Yale que,


sim, processa o material e disponibiliza na internet.
Ele me disse uma vez que, para cada livro publicado,
tinha uns nove sem publicar.

Porque ele não conseguia terminar


ou porque se transformavam em outro livro.

É um documentário bem legal.

Eu estava até falando com o Heitor


sobre os tipos de escolhas

que eu fiz relacionadas a criar o


acervo. Se eu focava na pessoa,

no formato, na história ou na narrativa.

Então foi importante para mim


ponderar a vida das pessoas negra pobres.

A parte erótica faz parte da vida de todo mundo,


molda como pensamos, o que somos,

o que queremos ser, com quem


queremos estar.

Então, como pessoas queer, as pessoas nos reduzem


ao que fazemos na cama, no parque ou outros lugares.

Assim, parte da nossa educação passa


pela pornografia e pelo erotismo.

As pessoas negras continuam a ser


Vistas como mercadorias,

como um corpo-mercadoria. Como uma


coisa patológica, sexualizada.

Corpos com menos importância do


que corpos brancos, etc.

É importante pra mim, documentar essa


Mercantilização também.

Primeiro porque faz parte do que


aprendemos sobre sexo.

Sexo entre homens, sexo entre mulheres,


sexo entre pessoas trans, etc.

A pornografia, na realidade, traz uma educação


que você não tem na escola, na familia etc.

Na realidade é uma informação silenciosa,


é quieta até hoje. A gente não fala disso,

embora tenha muito mais pessoas gays negras


ou simplesmente gays na mídia,

ainda falta muita informação sobre elas.

Mas muitas pessoas começam


a aprender sobre sexo na internet.

Naquela época existiam revistas que


eram produzidas em geral por homens brancos

para um público-alvo de
homens gays brancos.

E aqui temos uma representação


dessas revistas, das poucas dezenas

que eu colecionei ao longo dos anos e estão na


parte de pornografia e erotismo da coleção “In the Life”.

O que vocês veem é tudo produzido


por homens brancos, então,

embora fosse material consumido e


compartilhado por homens negros,

tinha sido concebido para o


consumo de homens brancos.

Ao longo dos anos mais filmes e revistas


foram produzidos por pessoas negras latinas

– pornografia ou erotismo.

Então, o consenso é de que os corpos negros são usados


como mercadoria para o consumo de pessoas brancas.

Então é importante para mim,


como eu mencionei antes,
depois de conversar com vários amigos,
com pessoas que pensavam sobre a questão,

que a pornografia e o erotismo faziam parte de


como nós entendemos e aprendemos sobre

o sexo, principalmente sobre o pênis, com


certeza. Então eu queria que isso também

estivesse presente... não existia nada no vácuo.


Tem o contexto do Instituto Schomberg

com materiais de todo o mundo, depois


tem o Black Core Archive, e ainda a parte

de pornografia que conta essas histórias


particulares, que são muito importantes para mim.

Aqui, eu gostaria de perguntar se vocês sabem


o que são os documentos da Audre Lorde.

Não sei se vocês fizeram alguma pesquisa sobre


essa poeta, ensaísta e escritora na Internet.

É muito importante que ela esteja na


apresentação depois de “pornografia e erotismo”,

porque ela escreveu um artigo intitulado


“Erotismo é poder”,

acho que fez parte do livro “Irmã Outsider”.


Ela diz coisas muito importantes

sobre como o erotismo é um lugar de empoderamento


e muito útil quando não está sendo imposto.

Eu recomendo que leiam


esse trabalho da Audre Lorde.

Joan Jett Blakk é uma das minhas pessoas favoritas,

porque ela foi a única drag queen negra que


foi candidata a presidente dos Estados Unidos, em 1992.

Ela fazia parte de um grupo que disse


para ela se candidatar a prefeita de Chicago,

depois a presidente nos Estados Unidos.


O arquivo tem vários artigos, flyers, folhetos e outras coisas que
falam a respeito de sua campanha.

Também temos dois filmes: “Lick Bush”, de 1992, e


“Drag In For Votes”.

Esses filmes foram produzidos


e dirigidos por Elspeth Kydd,

um amigo que morreu em 2012. Então


quero passar esse vídeo para vocês

com o Terrence Alan Smith, que é a


Joan Jett Blakk desmontada.

Em 2019, o Terrence Alan


fez uma peça em Chicago que se chamou

“Uma senhora negra para Presidente”.

Isso foi quase 35 anos depois de se


candidatar a presidente em 1992.

Aqui temos uma entrevista com ele.

Na realidade não há muita diferença


porque eu não mudo a minha voz

A Joan Jett não é muito diferente de mim,


sou eu só mais amplificado, por assim dizer.

A primeira vez que eu me vesti de Joan


foi numa manifestação do ACT UP,

tinha uma pegada mais moda, eu me vesti de


enfermeira, acho, porque tínhamos feito

uma grande manifestação em um hospital


com eles. Eu já tinha me montado antes

na década de 70 e já tinha me apresentado


em alguns lugares onde conheci o pessoal

do Queer Nations e outros ativistas. Aliás,


eu estava entre as cinco pessoas

que organizaram o primeiro encontro do Queer


Nations aqui em Chicago.

Quando chegou a eleição municipal,


perguntaram se eu me candidataria

e eu disse “com certeza”.

E virou uma coisa bem legal, porque a


imprensa, a mídia me adorava,

porque ninguém jamais tinha se candidatado


contra o Richie Daley, menos ainda uma drag queen.

Quando chegou 1992, era eleição


para presidente dos Estados Unidos,

e quando dei por mim, lá estava eu candidato.


E eu gostei muito, foi bem legal pra mim,

porque sempre diziam que qualquer um


poderia ser presidente dos EUA

e lá estava eu para mostrar isso.

Eu percebi que os gays que vieram antes de mim


Criaram as possibilidades para eu me assumir,

E a minha geração cria essa possibilidade


para a próxima geração e assim sucessivamente.

Me disseram isso algumas vezes hoje e é


maravilhoso saber que o que eu fiz

criou a possibilidade para outras pessoas.

Eu não estava preparado para tudo isso.


Para a recepção do pessoal. E eu adorei o script.

O pessoal que atua é maravilhoso.


Acho que vai ser bem potente.

É muito emocionante, eu não consigo nem explicar,


porque eu acho que eu nunca imaginei

que estaria numa sala com várias pessoas


assistindo uma obra sobre mim.

É uma coisa que me deixa sem palavras até.


Gostaria agora de falar do pessoal com quem trabalho.

Eu trabalho com outros arquivistas, professores,


ativistas, autores, pessoas comuns

que fazem o trabalho de arquivistas,


coletam materiais, colecionam e preservam esses materiais,

e os professores que usam esse material,


para criar essas histórias.

Tem duas pessoas aqui nessa foto:


Gloria Joseph, que é viúva da Audre Lorde,

que faleceu recentemente.

Ela era educadora, escritora, ativista e veio


para essa conferência de autores em 2015,

para falar de um livro que tinha acabado de escrever.

Também temos aqui Randall Kenan, autor de ficção,


de contos, e professor na Chapel Hill por alguns anos,

cujo primeiro livro se chamou “A Visitation of Spirits”.

E para mim, morando em Ohio,


esse livro foi uma coisa do outro mundo.

Era a história de um homem negro pobre,

e era uma ficção meio onírica,


que eu recomendo que todos vocês leiam.

A gente perdeu essas duas pessoas em


um intervalo de dois anos.

Ainda bem que o material de Gloria Joseph vai ser


Preservado por uma universidade da Georgia

e o material de Randall Kenan vai para Chapel Hill.


Espero que isso aconteça de fato,

e se não forem para essas instituições espero


que esses arquivos vão para algum lugar.

Essas pessoas trabalharam na comunidade


durante anos,

e às vezes o material simplesmente desaparece.


E é muito doloroso para mim.

Eu acho que é uma grande perda para nossa


comunidade e para a comunidade mundial,

como um todo, quando isso acontece.

Eu falei que eu estava em contato com um


cara chamado Ajamu X, que é um fotógrafo

e arquivista que mora em Londres. Ele


coordena um arquivo que se chama Rukus.

Esse arquivo cobre entre quarenta e


cinquenta anos de ativismo negro queer.

Em Londres, esse arquivo fica no


Arquivo Metropolitano de Londres.

Ele me procurou, se não me engano no


ano 2000, quando me enviou um email

para dizer que tinha ficado sabendo do


nosso arquivo e gostaria de conversar.

Eu fiquei super feliz. E por mais de vinte


anos a gente sempre se encontra quando viaja.

Eu fui para a casa dele, ele me recebeu lá.


Eu irei para Paris em uma semana

e depois vou passar em Londres, porque


estamos trabalhando num livro juntos.

O Ajamu morava em Huddersfield, depois


se mudou para Londres no final dos anos 1980.

Ele foi para uma conferência e acabou


se mudando para lá.

Ele fazia parte de um movimento que


estava florescendo, de ativistas, escritores,

pessoas que criavam organizações


para tratar da cultura negra queer
e desde essa época ele vem
documentando a comunidade londrina.

Foi ele que tirou a foto do Essex Hemphil


que eu mostrei no no começo dessa apresentação.

Ele é uma pessoa muito dinâmica.

Estou super empolgado em trabalhar


com ele pelo resto da vida,

porque eu valorizo tanto o artista quanto o arquivista.

Esse é o Ajamu, o site dele é ajamu-studio.com,


onde tem mais informação.

Ele faz trabalho tanto local como internacional.


Ele documenta a experiência negra queer.

Quero falar também da Shawnta Smith-Cruz,

que é uma arquivista maravilhosa, trabalha


na Universidade de Nova York, ela é reitora,

trabalha também com o arquivo de história


lésbica que fica no Brooklyn, em Nova York.

Ela ajudou a organizar coleções.

Temos o arquivo de história lésbica que foi fundado


em 1973 e é um dos maiores arquivos comunitários no mundo.

Elas não têm financiamento do governo,


são autofinanciadas.

Elas arrecadam os próprios recursos,


trabalham com voluntários,
é uma casa linda no Brooklyn onde preservam
o acervo e disponibilizam para o público.

A Shawnta, ao longo dos anos, processa as


coleções, reproduz e cria também zines,

para que o público entenda melhor a


instituição e as coleções.

Ela se concentra em negras lésbicas da década


de 1970 e de antes. E é espetacular,

porque tem muitas coleções que vieram antes disso.

Jafari S. Allen é um professor universitário


ativista muito estudioso

que usou o arquivo “In The Life” para criar esse livro,
“There's Disco Ball Between Us”,

um livro maravilhoso em que ele fala


dos “longos anos 1980” - como ele chama.

De 1979, quando surgiu uma das primeiras organizações negras,


a National Coalition of Black Gays and Lesbians,

até 1995, quando aconteceu a conferência queer negra,


foi um momento muito importante,

em que muitas pessoas se reuniram em


Nova York: estudiosos, ativistas

e outras pessoas da comunidade, pessoas do Caribe,


da África, falando sobre suas próprias experiências.

Tem um filme sobre esse momento.


Eu recomendo assistir.

E o Jafari quer trabalhar com brasileiros e trazer esse


trabalho para alguma cidade brasileira.

Como eu disse, conheço algumas pessoas


e posso botar vocês em contato em breve.

O Christopher Stahling é um arquivista


que trabalhou comigo no “In The Life” lá no Schomburg.

Ele mora no Harlem, nasceu no Harlem,


é um cara maravilhoso.

Faz um trabalho de história oral


e de podcast que se chama “In The Life 2.0”,

mais informações no site


everybodyneedsawitness.com,

e você podem falar com ele também pelas


redes sociais. Facebook e Instagram @inthelife2.0.
É um projeto maravilhoso.

Ele vem montando o arquivo há alguns


anos, inclusive durante a pandemia.

Eu recomendo que vocês


escutem esses arquivos.

A Miranda Mims é cofundadora do


Nomadic Archivists Project, do qual eu

já falei um pouco. É um projeto em que a


gente trabalha com organizações e pessoas,

especificamente afrodescendentes para


arquivar seus materiais.

Pode ser, por exemplo:


como eu preservo as fotos da minha avó?

Ou até trabalhar com uma instituição nacional


para ajudar a administrar seus arquivos.

Ela tem sua própria empresa que se


chama Symmetry of Space.

A Miranda tem o dom de chegar na casa da pessoa


e organizar todo e qualquer material.

Ela chega, faz uma reviravolta


e no final está tudo perfeito.

Ela tem esse dom. Somos amigos.


Começamos juntos o Nomadic Archivists Project,

porque, apesar de gostar muito do trabalho no Schomburg,

a gente queria que fosse um trabalho nômade,

que fosse a diferentes lugares, fazendo coisas úteis


para as comunidades negras, nacionais ou internacionais.

Vou falar rapidamente do projeto


Nomadic Archivist. Ele nasceu em 2018,

criamos depois um podcast que se


chama In The Telling, que já conta com três temporadas.
Falamos basicamente das famílias negras globais.

Então a pessoa participa do podcast e


conta uma experiência que teve com a família.

Na primeira temporada tinha muitos amigos


nossos.

Na segunda temporada teve gente de Gana,


do Brasil e de outros lugares.

E na terceira temporada foram genealogistas


negros contando sobre seu trabalho

e como se envolveram com genealogia negra.

Nós temos também um programa de bolsa.


Todo ano a gente dá uma bolsa,

a gente arrecada recursos para essa bolsa.

Para se inscrever, a pessoa precisa estar


estudando biblioteconomia ou ter um arquivo independente.

Tem uma pessoa de Gana que ganhou a bolsa


no ano passado e ele vai de comunidade em comunidade

e, com a autorização delas, tira fotos digitais


de materiais e entrevista os seus integrantes.

Agora ele está montando esse arquivo.


É espetacular.

Como eu disse antes, eu sou o coordenador


da exposição “Marking Time”,

além de ser o arquivista líder do arquivo


“Marking Time”.

O livro Marking Time se concentra em artistas


que estiveram ou estão em situação carcerária.

A Nicole Fleetwood ganhou o National


Book Award por esse livro.

Ela levou mais de 10 anos para escrever


sobre a família dela e aí descobriu essa
maravilhosa comunidade de artistas.

E como resultado do livro, nasceu a


exposição.

Estou trabalhando com ela desde 2021.


Uma plataforma com artistas que estão

ou estiveram em situação carcerária.


E falamos sobre o impacto do encarceramento

em massa sobre as comunidades negras.

Aqui vocês podem ver algumas obras


que fazem parte da exposição.

Vai ficar em exposição na Universidade


de Brown até dia 18 de dezembro.

E como parte desse projeto, a Miranda


e eu estamos fazendo o trabalho de arquivista

de artistas e organizações associadas ao “Marking Time”.

Estamos trabalhando para arquivar esses materiais.

É comum o artista dedicar seu tempo a suas criações


e materiais visuais, tentando conseguir participar de exposições etc.

Por isso, estamos tentando conscientizar


em relação ao arquivo, conversando individualmente

ou em grupo com as pessoas, para que arquivem seus materiais.

Agora falando da pergunta que eu fiz no começo


para vocês sobre arquivar-se,

isso nunca fui uma questão para mim,


pois eu sabia que era eu que tinha que arquivar.

Eu fui o geneálogo extraoficial,


digamos assim, da minha família,

e, num dado momento, também fui editor,


trabalhei na comunidade artística,

eu tinha um arquivo na nossa casa,


então comecei a organizar esse material.

Isso foi uma coisa muito importante pra


mim. Se vocês tirarem algo bom dessa conversa,

é que todos nós temos histórias para contar.


Todos temos a responsabilidade de contar essa história

de alguma forma.

Essa é a minha forma de contar minha história.


Com estudos pessoais, registros oficiais.

Eu publiquei alguns livros, editei,


escrevi algumas coisas.

E faço pesquisas também a respeito de


coisas que eu quero fazer no futuro.

Vocês podem ver um pouco quais são


os meus interesses.

O que vocês veem na foto é apenas


um quarto do que eu tenho na minha casa.

Tenho mais um armário cheio de caixas


com materiais organizados.

Eu tenho 56 anos, tenho


coisa pra chuchu.

Deixa eu voltar para


cá rapidamente.

Aqui a gente tem a coleção


Essex Hemphill/Wayson Jones.

Tem material no Schomburg doado pelo Wayson Jones,


que atuou com o poeta Essex Hemphill

em um dos primeiros filmes do Marlon Riggs,


“Línguas Desatadas”.

É um roteiro todo anotado pelo Essex nas partes


Que fazem juntos no documentário.

É muito importante, à medida em que vão montando


um acervo de filmes, coletar os roteiros ou outros materiais
que se relacionam aos filmes.

Eu colecionava isso para o centro Schomburg.

Aqui a gente tem um trecho do “Línguas Desatadas”.


Eu queria mostrar para vocês.

Sentamos em silêncio.
Às vezes nos juntamos ao riso,

como se, no fundo, nós também


acreditássemos que somos os

mais baixos entre os baixos.


Ninguém resgatará seu nome,

seu amor, sua vida, sua masculinidade,


exceto você. Ninguém o salvará,

além de você mesmo. Seu silêncio está


custando caro. Seu silêncio é suicídio.

Eu conheço a raiva que está dentro


de mim como conheço a batida do

meu coração e o gosto da minha saliva.


É mais fácil ficar com raiva do que

ser ferido. Raiva é o que eu faço de


melhor. É mais fácil ficar furioso do

que almejar. Mais fácil me crucificar


em você do que enfrentar o universo

ameaçador da brancura, admitindo


que valemos a pena nos querermos.

Meu corpo contém tanta raiva quanto água.


É o material com o qual construí minha casa.

Tijolos vermelhos de sangue.


Que sangram e choram na chuva.

É a face, a postura que mostro ao mundo.

Às vezes é a única forma que


eu tenho de mostrar afeto.
Sinto raiva por causa do tratamento
que me dão como homem negro.

Essa raiva se junta ao desprezo e


ao abuso que me é demonstrado

pela minha comunidade, porque eu sou gay.


Eu não posso ir para casa do jeito que eu sou.

Quando eu falo de casa não estou falando


apenas da constelação familiar onde cresci.

E sim de toda a comunidade negra.


A imprensa negra, a igreja negra,

a academia negra, a literatura


negra e a esquerda negra.

Onde está o meu reflexo? Eu sou invisível,


percebido como uma ameaça à família.

Ou sou tolerado se fico em silêncio


e de forma insuspeita.

Esse clipe está disponível no YouTube.


Recomendo que assistam o resto.

Quero que a gente tenha tempo


suficiente para conversar.

Uma última pergunta: onde estão


os documentos de James Baldwin?

Qual instituição é dona desses papéis?

Aqui tem uma frase da Toni Morrison


que, para mim, é também um farol.

Uma pessoa que orientou a minha


escrita e também a sensibilidade

em relação a arquivos.

Eu vou ler para vocês:

A narrativa é radical, nos criando no


momento em que está sendo criada.
Não iremos culpá-lo se você entender

para além da sua compreensão; se


o amor inflama tanto suas palavras,

elas cairão em chamas e nada


restará da queimadura. Ou se,

com a hesitação das mãos de


um cirurgião, suas palavras suturam

apenas os lugares onde o sangue


pode jorrar. Sabemos que você

nunca pode fazê-lo corretamente


- de uma vez por todas.

A paixão nunca é suficiente;


nem a habilidade. Mas tente.

É do discurso que ela fez no


Prêmio Nobel de 1993.

Eu gosto de pegar a primeira parte


do que ela falou para pensar no que é um arquivo:

o arquivo é radical, ele nos cria no exato


momento em que é criado.

Nossa tarefa é criar significado onde estamos,


não sempre responder à supremacia branca,

conversar entre nós, uns com os outros,


imaginar que os arquivos que não foram criados

ainda estão esperando por nós no éter,

e entender que esse projeto todo de


arquivo é apenas o princípio.

Que há muitas maneiras de


começar a internalizar,

como podemos começar a salvar as novas histórias


para que sejamos responsáveis pelas próximas gerações,

pelas gerações que vieram antes de nós e


pelas que virão pela frente.

Quero agradecer imensamente a todos


pela oportunidade de estar aqui conversando com vocês

sobre o trabalho que eu faço.


Espero ter falado de forma lenta

e agora será um prazer conversar


com vocês sobre esse projeto.

Sobre o que vocês também estão


fazendo, muito obrigado.

- Menino, a gente que te agradece.


Deixa eu me ajeitar aqui…

Agradeço a você. Gente, eu estou aqui


meio emocionado, um zilhão de notas,

segurando o meu caderninho, e vi


que tem uma pergunta no chat.

Reforço que o espaço está aberto


eu vou fazer essa pergunta daqui a pouquinho.

Queria dizer algumas coisas


a partir do que o Steven trouxe.

Primeiro, Steven, eu queria


te pedir esse favor de, por gentileza,

você compartilhar depois, quando acabar


esse curso, a penúltima página do slide

que traz uma definição radical de arquivo.

Eu acho que naquela página...

Você começa a sua apresentação


falando que o arquivo pode ser

um lugar para a imaginação. Acho isso


uma definição muito boa, muito potente,

nada técnica, muito sensível, muito


política e muito acessível, palpável.
Como a gente está construindo um
Google Drive para todos,

acho que essa última página


é uma página de muita inspiração.

Você colocou... desculpa.

Essa, exatamente. Acho que aqui tem


alguns, tem umas coisas bonitinhas, né?

Primeiro pensar que o arquivo é inconstante,


em criação porque é radical, nos cria no mesmo momento

em que está sendo criado, tem uma relação aí.

Volta para lá, isso! Essa mesmo! Obrigado.

Muito importante pensar, como


a gente tem sempre pensado,

a questão da preservação,
racializando a prática da preservação,

então esse terceiro ponto é não estar


sempre respondendo à supremacia branca.

O que significa que a gente está


sempre reagindo. E a gente não está conseguindo,

necessariamente, propor e a gente não está


conseguindo descentralizar o branco,

a brancura e a branquitude.

Então, acho muito bonito isso, mas especialmente


esse penúltimo ponto, que é imaginar os arquivos

que ainda não foram criados,

aqueles arquivos que ainda estão


esperando por nós no plano etéreo.

Para mim, a preservação é uma prática


que vai muito além de quem, de fato,

trabalha especificamente com isso.


A gente viu isso na última aula, né?
Então, esse último ponto aqui é
imaginar os arquivos,

começar imaginando os arquivos de


nós mesmos. Os arquivos de quem está perto da gente.

Só reforçar essa coisa de novo


aqui, próximo de nós.

A gente tem uma pergunta no chat,


mas antes de fazer essa pergunta,

eu quero fazer algumas perguntas


para o Steven, mas também

perguntar o seguinte...

No começo, o Steven deixou uma


pergunta para a gente,

não sei se vocês anotaram,


e a pergunta era a seguinte:

Por que é importante


se arquivar ou se registrar?

Eu acho que talvez a gente poderia começar


nessa minha proposta. A gente começar, talvez,

tentar, alguns de nós, algumas de nós,


algumes de nós, tentar responder a essa pergunta.

Por que é importante nos registrar


ou nos arquivar? Então, eu estou aqui de host

e eu não quero monopolizar a fala,


eu tenho as minhas respostas

que eu escrevi na hora, depois da


aula do Steven, eu tenho outras respostas,

mas eu quero guardar aquelas mais espontâneas,


não quero monopolizar a palavra.

Queria começar com vocês,


então vou chamar aqui aleatoriamente.
Vou pegar quem está com a câmera aberta,
então vou conversar contigo.

Juliana, você topa dividir com a gente


o que você responderia,

por que é importante nos


arquivar e nos registrar, três razões?

- Ah é difícil assim do nada.


Eu não estava preparada para isso.

Eu consigo pensar em uma razão,


agora, que eu acho que é me conhecer também,

o autoconhecimento, quando eu
penso no que eu quero arquivar,

no que eu quero guardar, eu penso


também no que é importante para mim,

de ser registrado, e acho que isso


tem a ver com como eu me vejo

e como eu quero me conhecer.

- Obrigado! Para quem foi pega


de surpresa, está ótimo!

Autoconhecimento e definir
o que é importante, né?

Malu quer falar com a gente?


Quais seriam as suas três razões?

- Dá para me ouvir?
- Dá sim

- Eu achei essa pergunta um


pouco intimidadora.

Eu acho que eu vou dar uma


resposta assim…

Ainda estou elaborando e


pensando a respeito disso,

mas acho que é importante se


arquivar porque sempre terá

outros semelhantes a mim e a


parte de identificação é fundamental

em nossa existência, e na nossa


luta por existir e,

enfim, eu acho que essas coisas


estão relacionadas.

- Gente! Mas estão afiados para quem está: "Ah, não


elaborei, estou aqui elaborando"

Está todo mundo elaboradíssimo!

Pedro Henrique, que está aí com as melhores luzes,


com o melhor background da história de uma aula no Zoom,

com essa luzinha azul que fica trocando


várias vezes, você tá escutando a gente?

Quer dividir com a gente? Abre o microfone.

- Alô.
- Opa.

- Está ouvindo?
- Estamos ouvindo, diga aí.

- Ah que bom, maravilhoso…


Eu também não elaborei,

mas também acho interessante


a gente pensar em arquivar

por que constantemente os


brancos e o racismo,

eles tentam roubar a nossa história,


eles tentam desfazer tudo o que nós fizemos,

e tudo o que... Só voltando... o Steven


no começo falou que era muito difícil acessar

e ir atrás desses arquivos de negros


e negras e eu sinto que é assim até hoje.
Eu estudei pouquíssimo
no Ensino Médio e Fundamental

sobre a história dos negros.


Eu só fui aprender com a minha mãe

e depois falando com pessoas que


entendiam e eram especializadas nesse assunto.

Então acho que por isso


é extremamente importante

a gente arquivar a nossa história,


a nossa família.

Deixar a nossa marca no Brasil.


Porque, sim, os negros fazem conteúdo,

fazem cultura e fazem várias coisas.

A gente não é esse povo que


os brancos têm pensado.

- É nós não somos um povo sem


história, somos um povo com história

e quem escutou o projeto Quirino vê,


por exemplo, a riqueza dessa história.

O podcast projeto Quirino; depois eu te


explico o que é o projeto Quirino, Steven,

é uma das grandes criações acerca de história


e memória dos tempos contemporâneos.

A Ingrid abriu a câmera!

Então quem abriu a câmera é por que


está animadinho para falar, chega aí.

Ingrid, três razões por que


é importante se registrar ou se arquivar.

- Oi, tudo bem?

É engraçado, porque eu escrevi


aqui uma coisa muito parecida
com o que o Pedro Henrique falou,
eu tinha colocado que é para a gente

ir contra a estrutura vigente que apaga.

Então esse processo de guardar memória


e criar memórias é importante para isso

e também porque a gente não sabe o dia


de amanhã.

Eu imagino que as pessoas de antes


não imaginavam que ia ter esse monte de gente

reunida em uma sala do Zoom


falando sobre outras coisas.

Então vai que ajuda alguém no futuro; eu acho


que sempre existe essa possibilidade

de ajudar alguém no futuro, e melhor ainda


se forem nossos semelhantes.

- Já vi que a Flávia abriu a câmera.


Vou registrar aqui a fala da Vanessa

e vou terminar essa primeira rodada com a Flávia


para a gente poder também avançar em outros pontos.

Nunca imaginei que a frase tão brasileira que é:


"a gente não sabe o dia de amanhã" fosse entrar aqui,

em uma oficina de preservação,


por que geralmente essa frase,

Steven, é dita em outro contexto,


então é muito particular

essa frase estar entrando aqui.


Ela é dita no contexto mais reativo:

“preciso me proteger por que eu


não sei o que virá.”

A Vanessa colocou aqui no chat,


depois vou abrir para você Flávia,

vi que você abriu a câmera.


Uma razão seria preservar a nossa memória
e história para nossos descendentes.

Se identificar e se empoderar do imaginário


pessoal e familiar.

Temos outras razões aqui também.

Então, Flávia, pega esse último gancho,


aí depois eu falo as minhas

e a gente vai escutar o Steven.

- Eu acho que eu preciso


escrever a minha história

do jeito que eu me reconheço.

Isso é muito importante porque


as pessoas olham para mim

e escrevem histórias sobre


mim que não necessariamente

vão refletir no que eu sou.


Eu produzo coisas, estudo artes visuais,

produzo e escrevo. Então eu acho que


eu tenho que contar a minha história

como uma história importante


para as pessoas que a veem.

Outras pessoas pretas, outras mulheres lésbicas,


precisam saber que eu existi

e que eu sou atuante na sociedade.

- É curioso, né? Eu sinto que a gente compartilha bastante


um caldeirão dos porquês.

As respostas são muito adjacentes


às minhas três razões

e depois eu devolvo a palavra para você,


querido Steven.
Achei aqui, eu tinha anotado
em um papel lá no começo…

Então, a razão um: porque eu


existi, a razão dois: porque eu fiz,

e a razão três: porque eu


estive em comunidade.

Essas seriam as minhas três


razões do porquê eu me arquivo.

Steven, você gostaria de comentar


essas respostas que a gente recebeu?

- Excelentes respostas! Eu quero


que vocês considerem uma coisa:

Olha aqui, este aqui é o meu telefone celular.


Quantos de vocês têm celular?

Quem tem celular aqui na sala?


Quem tira foto o tempo todo com o celular?

Vocês são arquivistas, então.

Vocês estão arquivando suas


experiências com a mídia visual.

Então, se vocês têm mensagens de texto,


vocês estão arquivando textos quando os mandam.

É uma coisa que fazemos instintivamente,


salvar coisas que achamos que talvez

possam ser importantes para nós depois.

É uma coisa pessoal e depois é histórica.

Você sabe que quer guardar a carta da sua avó


ou quer guardar um texto que escreveu para ler depois,

mas o impulso de arquivar chega ao nosso coração


e à nossa mente, de maneiras muito semelhantes

de quando nós vivemos em uma cultura em que nós


somos definidos em vez de nos definirmos.
E nesse nível, então, nós nos definimos
o tempo todo fora desse olhar branco.

Eu fico muito feliz que vocês


tenham dito isso, porque,

para mim, trabalhar com arquivo é


uma coisa de autorrespeito,

você se arquivar é uma maneira de autorrespeito.

Na realidade você está interessado


na sua própria história.

Então, eu sempre digo


para as pessoas que na realidade

eu viajo no tempo.

Eu já estive no futuro e eu sei que uma pessoa


está te procurando no futuro.

Então como você vai fazer, como vai deixar pistas


para a pessoa te encontrar?

Vão ser fotos, vão ser escritos?


Como você vai contar a sua história,

primeiro para você e depois para essa


pessoa que vai te procurar no futuro?

- Que bonito! Você falou


sobre respeito próprio.

Aqui, inclusive, a gente poderia


falar sobre amor-próprio.

A gente falou tanto sobre dignidade


na primeira aula, então acho

bonito a gente reencontrar a palavra


respeito próprio e amor próprio.

Steven, eu tenho uma pergunta que


é: nesse trecho do “Línguas Desatadas”

que você mostrou, a gente está


escutando sobre o sentido de voltar
para casa, casa no sentido mais
figurado. Essa casa poderia ser,

por exemplo, a comunidade negra.


E aí, o narrador fala:

"Onde está o meu reflexo?


Eu sou visto como invisível"

Como uma pessoa que, na condição


também de um homem negro gay,

e que trabalha com matéria negra


e que, por exemplo, programa um festival

negro, na ânsia de reagir à supremacia


branca, a gente repete hierarquizações.

Então, quais histórias negras nós


vamos contar? Quais grupos vamos priorizar?

A forma em que as pessoas


são diminuídas na sociedade

são refletidas nesses espaços.


Por exemplo: um protagonismo masculino,

um protagonismo cisgênero
ou um protagonismo heterossexual.

E aí, você falou rapidamente


sobre os porquês de colecionar

material erótico ou pornográfico.


E você falou os porquês,

você contou como a pornografia


ensina e etc.

Eu gostaria de saber:

Primeiro, como era literalmente, ou como é,


para as pessoas doarem esses materiais,

Tipo, eu chego aqui com a minha coleção


de “Black Inches” e falo:
“Oi, eu vim doar aqui um arquivinho,
entendeu, um arquivo de putaria.”

Enfim, eu tô levando para a piada


mas a pergunta é séria, sim.

Um: como as pessoas chegam para doar.


Dois: foi sempre ponto pacífico coletar esses materiais

que fogem à política da respeitabilidade?

- Excelente pergunta. Vou começar com as revistas.


Elas, na realidade, faziam parte de uma coleção perdida,

digamos assim, apareceram em caixas.

Estávamos revisando essas caixas,


separando várias coisas respeitáveis,

flyers, folhetos e blá, blá, blá.

E, de repente, tinha toda essa pornografia


ali também e eu lembro

que quando eu estava separando eu falei: “deixe-me


dar uma olhada nisso com mais atenção.”

Por quê? Porque eu sei que o centro


Schomburg e a biblioteca de Nova York

também colecionam erotismo e pornografia.

Além disso, eu estava pensando na conversa


que eu já tinha tido com outras pessoas,

sobre como aprenderam sobre a sexualidade

e costumava ser pela pornografia,


com revistas de sacanagem.

Então na realidade acaba sendo a base


para eu colecionar esse material,

separar para a coleção.

Eu tinha o meu próprio material


que eu doei, da minha própria coleção.
As pessoas que estão interessadas em
doar material pornográfico ou erótico,

primeiro precisam saber,


será que a instituição coleciona isso?

Acho que essa é a primeira pergunta.

A segunda pergunta… desculpem,


eu estou com o meu gato aqui, que está meio inquieto.

Tem que saber primeiro qual é a política


de coleção do acervo da instituição

e se eles fazem acervo de pornografia.

Então você tem que falar com o curador ou curadora,


conversar e ver o que eles já têm,

porque talvez eles já tenham o que você está


doando. Você precisa saber, primeiro,

se eles colecionam e tem que ver se eles


já têm o que você está tentando doar.

Lógico que é sempre importante


pesquisar a instituição primeiro

e conversar, também, com o


bibliotecário, com o arquivista,

para ver o que eles colecionam. Eu


acho que esse é o básico, na realidade.

Agora, quando nós pensamos a respeito


da respeitabilidade da instituição,

se a instituição está pensada para


responder à supremacia branca,

a misantropia branca, do tipo:


Vejam tudo o que nós fizemos para

a comunidade, fizemos isso, criamos


aquilo, temos esses livros, essas

instituições e blá, blá, blá…


Provavelmente não façam coleção
de pornografia porque estão respondendo

a uma versão deles mesmos que não existe.

Entende? Então, responder reagindo


à patologia negra e não ao que eu

e meus amigos estamos desenvolvendo.

Nós estamos tentando expandir e


representar melhor a nossa comunidade.

E que nosso acervo reflita isso.

Se você trabalha com uma instituição negra


Cuja sensibilidade da coleção vai provar

que tem o direito de existir, provavelmente


não vão colecionar pornografia e material erótico,

porque, na realidade, tem uma coisa mais


estreita em relação ao que querem alcançar.

Essa é a minha opinião.

- Obrigado, ponto importante. Vou fazer só


uma colocação e já vou ler a pergunta da Vanessa.

Ano passado eu fui curador de uma retrospectiva que eu intitulei


"Insurreição", uma retrospectiva que nós do Nicho 54 fizemos.

E a "Insurreição" estava organizada ao redor dessa ideia


de pessoas negras existindo ao longo da história.

E aí, sim, eu usei uma isca.


Como curador ou programador muitas vezes a gente
usa isca, que é trabalhar nesse certo chavão

do que é uma expectativa de resistência.


Como um filme de resistência se parece?

Então, abri com o filme “Nation Time” do


William Greaves, que é um filme sobre

um congresso político negro, que aconteceu.


A sessão seguinte era de um filme chamado
“Shake Down”, um documentário sobre uma
boate lésbica nada politicamente respeitada,

um daqueles lugares cheios de nuances, onde


o debate não é fácil de fazer.

E o desejo de passar para esse filme logo em seguida


era por duas coisas:

uma, deslocar a forma que a gente entende a resistência,


descentralizando a cis-heteronormatividade;

duas: enviadar e sapatonizar essa coisa que


a gente chama de história negra,

porque geralmente as nossas experiências


estão como um capítulo à parte,

como se não fossem constitutivas da experiência.

Eu estou trazendo esses exemplos para colar


com o que o Steven está falando e para pensar

cada um nos nossos trabalhos.


Eu estou falando a partir do meu lugar de curador,

como a gente não repete essas visões,


narrativas e percepções engessadas

de comunidade negra, de ser preto, de


representação preta?

Esse é um lugar onde eu tenho muito engajamento,


então eu estou aqui batendo nessa tecla.

É o meu momento pastor tá, gente?


Eu sou uma mistura de pesquisador, curador e pastor.

A gente tem uma pergunta aqui no chat,


eu queria trazer para o Steven.

Essa pergunta, inclusive, reflete algumas das coisas


que a gente trabalhou na primeira aula.

A Vanessa diz:

Eu tenho uma pergunta. No Brasil


não me parece tão comum,
para as famílias pobres dos anos 60,
70 e 80 ter acesso a câmeras.

Eu tenho pouquíssimas fotos da minha infância.

E a Vanessa diz que nasceu em 1985.


E ela não conhece o rosto dos seus avós.

As câmeras nos EUA eram mais baratas?

Essa é a pergunta da Vanessa, para pensar


em uma certa quantidade bastante maior

de imagens de arquivo negras que parece ter


nos Estados Unidos, comparado com o Brasil.

Está aí a pergunta, Steven.

- Obrigado pela pergunta. Agradeço à Vanessa


por fazer essa pergunta.

Quando a gente pensa em fotografia


na comunidade negra,

tem um filme que se chama “Through the Lens Darkly”


(“Os Fotógrafos Negros e a Emergência de uma Raça”),

do Thomas Harris, produzido por Deborah Willis, e é uma autoridade


em fotografia negra no mundo.

Ela trabalhou no Schomburg, no Smithsonian


e agora está na Universidade de Nova York.

Nesse filme, o homem mais fotografado,


que era o Frederick Douglass,

ele entendia o poder das imagens.

E tem uma série de conversas com diferentes


fotógrafes negres sobre o trabalho

e o que estão tentando fazer.

E uma das coisas que eu descobri foi que,


depois da Segunda Guerra Mundial,

as câmeras se tornaram muito


mais populares, eram mais baratas,

mais pessoas tinham acesso


a câmeras fotográficas,

e eu tenho tantas fotografias da minha família


porque eles tiveram acesso,

conseguiram pagar uma câmera.

Eu sei de homens e mulheres que não


têm fotos de si mesmos quando crianças.

Não conhecem o rosto dos avós. Vanessa, isso


talvez se encaixe no que você falou.

Meu nome é Steven, o nome do meu pai era Steven


e o nome do meu avô era Steven.

Eu sou o 4ºSteven porque o meu bisavô era


Steven, também.

Durante anos, eu só sabia qual era o rosto dele.


Tinha uma ou outra foto do meu avô,

mas nunca do meu bisavô.

Alguns parentes tinham fotos e


miraculosamente uma casa pegou fogo,

muita coisa foi destruída, mas eles


conseguiram reconstruir parte do arquivo fotográfico,

porque outras pessoas tinham fotografias.

Então, eu descobri que o meu bisavô...


olha ele aqui com a segunda esposa dele.

O nome dela era Annie.


Eu sei que está difícil de ver.

- Traz para perto!

- Na verdade é meu avô, com a segunda


esposa dele, e quando eu vi isso

eu queria chorar porque senti como


se eu estivesse me conectando
com ele por meio desse suporte visual.
Tem uma coisa que o Heitor me disse

e que eu queria incluir na fala


que é ancestralidade.

Acho que genealogia tem muito a ver


com ancestralidade, o que a gente

consegue reunir - fotografias,


certidões de nascimento ou de óbito,

cartas ou materiais produzidos


por nossos ancestrais. Essas coisas

significam mais para mim do que


qualquer outra coisa.

Vanessa, se for aplicável à sua experiência,


eu recomendo que você comece

a procurar parentes mais distantes,


não do núcleo mais próximo,

que talvez tenham isso na coleção.


Talvez. Acho que vale tentar.

Eu não sei muito como o Brasil registra


ou guarda esses registros.

Ou se há registros públicos, arquivos públicos,


que talvez tenham fotografias associadas

a documentos públicos.
Essa é outra forma de fazer uma
pesquisa sobre genealogia.

Talvez esses documentos existam.

Sei lá, registros escolares onde pode


haver fotos, talvez não dê certo,

mas pode ser que dê. Pode ser


que sejam registros

e talvez você se surpreenda com eles.


- Obrigada.
- De nada.

- Depois que o Steven fala, eu estou dando um


tempinho a mais por causa dos tradutores

que fazem esse trabalho hercúleo,


maravilhoso, que é deixar a gente conectado…

Vou aproveitar e dar o crédito. Quem


está aqui com a gente hoje, fazendo a tradução,

é o Henrique Cotrim, que já esteve


em algumas iniciativas do Nicho 54

como tradutor simultâneo


e também a Beatriz Velloso.

São esses profissionais que estão aqui com a gente,


nos colocando em contato com o Steven.

Sobre esse ponto, Steven, este how to,


esse guia que ele deu,

de como a gente pode chegar por


linhas tortas às imagens dos nossos antepassados…

A gente falou um pouco sobre isso


na primeira aula.

Muitos de nós falamos: "A única foto que eu tenho do meu avô,
da minha avó..."

Carteira de trabalho, a gente conversou um pouco


como essa demanda externa, geralmente de documento,

uma demanda de respeito, inclusive,


é um dos poucos registros

que existem dos nossos antepassados.

O chat continua aberto para perguntas


ou quem quiser fazer pela câmera.

Enquanto isso, vou fazer uma bem capciosa.


Vamos ver se faz sentido, Steven.

No Brasil, quando a gente vai pensar


num recorte LGBTQIA+ para arquivos…

Não, vamos falar só de memórias, não arquivos.


De memórias.

Quando a gente pensa num recorte


dessa comunidade para memórias,

a gente tem uma questão que é o


protagonismo dos homens gays.

Tanto que aqui a gente criou a


expressão GGGGG,

em vez de ser LGBTQIA+,


é GGGGG e não tem nem o “+”.

É um minus, o menos. Então, duas


perguntas. Sobre o “In The Life”,

a gente consegue ter uma noção


de quanto desses materiais,

proporcionalmente, representam
vidas masculinas ou histórias masculinas,

e quanto representam vida e história


de mulheres? Essa é uma pergunta.

E a segunda pergunta é se existe


alguma diferença dos tipos de materiais

relativos às histórias das mulheres


e à história dos homens,

dentro do arquivo In “The Life”?

Essas são as duas perguntas.

Excelentes perguntas.

Para a sua primeira pergunta, o arquivo


“In The Life”, em termos de porcentagem…

Acho que é 40% gay, lésbicas seriam


cerca de 35%... quase 40%,

e o restante seria de bissexuais,


pessoas trans, queer e outras orientações.

É assim, mais ou menos, que se divide.

O tipo de material é mais ou menos o mesmo.


Temos muitos escritores representados

nesses arquivos do “In The Life”,


temos o material que foi usado

para criar os livros, ou seja, rascunhos,


manuscritos, provas, cartas, correspondências,

contratos, direitos autorais, recibos


de direito autoral, material promocional.

Esses tipos de material estão


no nosso arquivo “In The Life”.

A gente também tem organizações.


Aí entram em cena mais homens,

porque temos mais organizações de


homens representadas,

embora seja mais escasso em material,


talvez haja um folder, por exemplo.

Enquanto as organizações lésbicas,


em geral, têm pastas menores, em vez de caixas,

como no caso dos homens.

Temos materiais relacionados à fundação


da organização, folhetos, talvez uma agenda

ou atas de reuniões, mas não temos


tanto material assim.

Eu acho que sou uma pessoa


jovem fazendo esse trabalho.

A cultura ativista começou realmente


para valer na década de 70.

Claro que havia pessoas queer antes


disso, mas não eram tão documentadas,
não produziam tanto material.
A gente tinha James Baldwin,

Audre Lorde, Lorraine Hansberry, mas


não tinha tanto material assim.

E o material das pessoas trans,


conforme eu falei, é muito escasso.

Havia artigos e outros tipos de representações


sobre a vida trans. Em alguns casos isso nem

se chamava vida trans, porque esse termo


é mais contemporâneo.

A bissexualidade também é um termo que


as pessoas às vezes colocam em retrospecto

para uma pessoa, por causa da


sua relação com outras.

Lorraine Hansberry era casada, mas


se identificava como lésbica.

James Baldwin tinha relacionamentos


com homens e mulheres.

É mais ou menos assim,


acho que a porcentagem é essa.

- Obrigado. Vou fazer mais uma


perguntinha.

Quem quiser fazer pergunta,


a gente está super aberto,

eu não consigo ver todo mundo.

Se alguém estiver sem câmera e quiser


fazer pergunta falando, me interrompa,

porque eu consigo escutar e parar.


Tenho duas perguntas.

Nesse último trecho você falou, por exemplo,


sobre a autoidentificação de sexualidade

como pessoa bi e também de identidade de gênero,


no que tange às pessoas trans e

como os vocabulários de autonominação vão


mudando ao longo da história. Eu fico aqui

pensando num desafio, como arquivar a vida


de pessoas que existiram antes da retórica,

organizar aquela vida ou dar sentido a ela..

A vida de Pauline Murray; alguns de


vocês podem conhecer Pauline Murray,

Pauline Murray é um nome em disputa, porque é


uma pessoa que hoje a gente claramente colocaria

no espectro de gender non conforming,


alguém que não entra nas categorias

tradicionais de gênero, mas no seu


tempo foi percebida como

uma mulher lésbica, que teve


momentos em que se apresentou,

seja por carta, ou pela própria


expressão de gênero,

em um lugar mais masculino.

Então a comunidade trans reivindica


Pauline Murray também como uma pessoa trans.

Eu fico pensando, não só sobre “In The Life”,


mas como arquivistas de gênero em geral,

como a gente lida com o ato de


arquivar coisas, histórias,

sobre pessoas, antes da retórica sobre


essas vidas existir.

Não sei se a minha pergunta foi clara,


Mas é algo nesse caminho.

- Está claro, sim. Você atingiu o cerne


da existência do arquivo “In The Life”.
No arquivo “In The Life” não existe ninguém
que não tenha se autoidentificado como queer,

de certa forma. Algumas pessoas


quiseram doar coisas, dizendo:

“Meu irmão era gay, mas ele nunca falou disso. Aqui
está a poesia que ele produziu.”

Eu digo: Tudo bem, mas a gente não vai colecionar


Isso, porque esse é um arquivo de pessoas

que se identificam dessa maneira.


E os parâmetros e a descrição estão claros.

A gente não quer se basear em boato


que talvez alguém fosse queer.

Mas, de vez em quando, a gente recebe


solicitações para arquivar material de pessoas

que não fizeram isso.

No caso de Hansberry,
os documentos não vieram pro

Schomburg Center na condição


de mulher lésbica, mas nos estudos

dela e nas cartas, ela se identifica


como lésbica, ela escreveu isso.

Então, eu fico à vontade de dizer,


porque ela falou.

A mesma coisa com o Baldwin.

Ele se considerava um homem homossexual


e não um homem gay.

Ele achava que o termo gay veio tarde demais


para ele. Que não explicava de fato à vida dele.

Ele achava que se organizar em


torno de uma preferência sexual,

não era exatamente o que ele


queria fazer, ou que ele achava
que fosse a escolha mais sábia.
Então, ele é um ancestral muito

complicado. E eu gosto muito de


complicações, de muitas complicações.

Em relação às pessoas que vieram


antes da retórica, as pessoas sempre

existem antes da terminologia ou da retórica.

E quem decide o que é o quê,


se a pessoa não se autoidentifica?

Depois de ouvir falar de uma


pessoa, se fosse homem ou mulher...

usando Pauline Murray como exemplo.


Eu não colocaria esses rótulos nela.

Ela teria que fazer isso. É uma questão


de respeito com a pessoa.

O arquivo primeiro é a pessoa e depois a política.


Faz sentido o que estou falando?

- Sim, faz completo sentido e


acho que isso dá pano para manga.

É um assunto que dá para ir longe.


Trazendo para outras questões aqui no Brasil,

se nós formos fazer uma pesquisa que tenha


um recorte exclusivo de pessoas negras,

a gente vai usar o marcador


da autoidentificação.

Tal pessoa diz que é negra, logo ela é elegível


para estar nesse recorte.

Mas a construção de raça no Brasil


é um negócio muito complexo,

parece que é algo dado, tem uma


dimensão disso que é dada,
e outra que é muito mais treta.

Acho que a resposta que o


Steven deu para pensar a questão

de uma pessoa como Pauline Murray


pode ajudar a gente a pensar outros recortes.

Eu sinto que a gente está


se encaminhando para o final,

porque eu tenho total certeza


de que a gente ou vai voltar

para a Av. Paulista ou vai encher a cara,


eu acho muito correto fazer isso.

Eu tenho mais uma pergunta, que não é sobre


o “In the Life”, mas sobre o segundo

projeto dele, o “Nomadic Archivists”,


que você falou rapidamente como sendo

um projeto de arquivistas, com a


Miranda, que é móvel, que não

está localizado numa instituição.

A gente aqui no Brasil lida com uma realidade


específica de preservação, de recursos.

Qual tipo de abertura existe para


o projeto de vocês, para fazer o trabalho

que vocês fazem com organizações


no Brasil, por exemplo?

- A primeira coisa em que eu consigo pensar


seria bolsas para ajudar a financiar…

Ou seja, que as pessoas se candidatem


a uma bolsa para a gente ajudar a financiar,

oferecendo capital inicial para uma


iniciativa de arquivos – é uma opção.

Seria interessante também para nós,


talvez, abordar a comunidade,
aliás a comunidade costuma nos abordar
e dizer: “Queremos fazer X” e nós a ouvimos.

E é assim que a gente opera. Por exemplo,


se uma pessoa quiser começar algum tipo

de arquivo fotográfico no Brasil, nós faríamos


uma consulta, Perguntaríamos qual é o objetivo,

como vai se preservar o material, se vai


disponibilizar para o público, se vai ser um

arquivo comunitário ou de uma instituição,


que tipo de apoio têm da comunidade,

que apoio estão procurando, se é só uma


coisa técnica, apoio técnico, em termos

de preservar, cuidar, ter metadados para


arquivos digitais.

Ou seja, o que a comunidade quer?

Em geral, o que nós percebemos é


que as instituições fazem o contrário,

as instituições ditam o que você tem que fazer.

O que nos dizem é que com essa coisa de ser


nômade, conseguimos ter esse fluxo livre de ideias.

A Miranda e eu já trabalhamos em instituições,


Então sabemos como é.

A parte boa é a parte ruim, também.


Como é a interface com a comunidade.

Então, podemos ajudar as pessoas


que querem trabalhar

com instituições a navegar nessas


instituições. Se é um projeto pessoal,

nós conversamos com as pessoas,


vemos o que elas têm interesse em fazer

e desenvolvemos a partir daí.


- Interessante, temos um caminho.

Primeiro das bolsas e depois o caminho


da comunidade acessando o projeto deles.

Acho que tem um caminho interessante


para se pensar.

Eu estou falando isso porque eu


sinto que na nossa oficina,

e quando nós selecionamos as


pessoas que estão aqui,

quando eu e a Karen
selecionamos as pessoas,

a gente tinha a sensação de que


muita gente estava ali no

limite de poder ter algum


projeto de preservação,

mas sequer sabia que tem um caminho


e uma possibilidade para isso.

Como você falou na sua palestra,

sobre o objetivo de se construir


uma consciência arquivística,

eu sinto que essa é uma


das contribuições aqui da oficina,

por isso também essa pergunta.

A gente pode ir encerrando.

Eu queria perguntar para o Steven


se ele gostaria de fazer

aquelas boas e velhas considerações finais,

pois é assim que a gente encerra


as coisas aqui no Brasil,

a gente tem hábitos, e as


considerações finais são um dos hábitos.

Faça as suas considerações


finais, por favor.

- Minhas considerações finais são simples,


na realidade.

Você merece o benefício da sua própria experiência.

O que eu quero dizer com isso é que,


com o ato de arquivar,

preservar, se arquivar com fotografias,


visualmente, criar essa história com

os parentes, com você mesmo, o que


você está pensando, fazendo, você

merece poder olhar para trás, para a


sua experiência e ter uma coisa

substancial para ouvir, para ler, para ver.

O que eu desejo para todos que


estão aqui participando

e para toda a sua família também, os seus


parentes e todos no mundo,

é que as pessoas se arquivem.


Porque você é importante. É isso.

- E se a gente se arquivar, vai que


daqui a uns sessenta anos

alguém estará fazendo uma aula igual a


que eu dei com o meu pai

e a gente vai ser protagonista dessa história.

- Vocês são protagonistas.

- Exatamente, nós somos protagonistas.

- Obrigado, Steven. Você é um lindo,


maravilhoso, muito generoso,
a gente recebeu muitos caminhos.

Eu estou falando com vocês e olhando


para as minhas notas.

A gente recebeu muitos


caminhos, muitas possibilidades,

muitas abordagens. O Steven já se


colocou à disposição para continuar

a interlocução, então esse é um


caminho que a gente pode fazer.

Queria agradecer a presença do


Steven aqui hoje, queria agradecer vocês.

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