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LACAN na ITÁLIA
1953 - 1978
Mas é um fato que a psicanálise, a prática psicanalítica nos mostrou o caráter radical da
incidência significante nesta constituição do mundo. Eu não digo para o ser que fala, pois que
tenho designado a toda hora a derrapagem, esse deslizamento que se faz com o aparelho do
significante... É isso que determina o ser daquele que fala. A palavra ser não tem nenhum
sentido fora da linguagem.

Conferência na Universidade de Milão, 12 de maio de 19721

Edição La Salamandra

Do Discurso Psicanalítico

Agradeço muito ao Sr. Cesar Bianchi por nos haver dado algumas
referências, algumas palavras de informação que foram muito exatas sobre o que pode
constituir um certo número de etapas.

Portanto, o que tenho feito no curso desses anos me levou a dizer...

Meu embaraço refere-se ao que não sei... não posso aquilatar de nenhuma maneira o
grau de entendimento do francês que representa sua assembléia. Estou muito
contente de ver aqui um grande número de rostos jovens já que é sobre... enfim, é
neles quero dizer, nesses rostos, que coloco minha esperança.

Devo dizer que não gosto de jeito nenhum de falar francês diante de pessoas das quais
sei que não têm familiaridade com esta língua. Assim, espero perceber até onde posso
ir nesta minha fala (ordre d’émissions).

Eu lembrei, durante o almoço, a alguns amigos, uma experiência que me aconteceu na


Universidade John Hopkins. Era de tal modo visível que minha assembléia não
entenderia nada se eu falasse francês que, começando em primeiro lugar, assim... à
solicitação geral, a resolução de falar francês, comecei por me desculpar em inglês de
não poder continuar, isto é, de falar em francês, e de resto essa desculpa durou hora e
meia, em inglês bem entendido... É extremamente desagradável quando me ouvem
falar em inglês. Todavia os americanos são bem compreensivos, a gente pode se
1
N.T. Conferir lição V Sem.20,pp78,83, O Aturdito em Outros Escritos,p.449.
2

permitir tais derrogações, não é? Vejo que vocês compreendem o francês – bom –
nesse caso isso me encoraja.

Portanto não continuarei a falar dos Americanos: aqui eu sou completamente incapaz
de falar em italiano a vocês, é por isso que falo em francês.

Então, eu anunciei que falaria Do Discurso Psicanalítico – não é um termo que eu tenha
avançado há muito tempo, quando muito há três anos.

Não é cômodo, diante de um auditório que não é de meus alunos, que não é formado,
habituado a alguma coisa... (vejam eu começo a abrir parênteses)... que não é
freqüentador assíduo de alguma coisa que é meu ensino, meu Seminário como ele se
chama: não é propriamente um Seminário, visto que apenas eu que falo.

Enfim, tornou-se assim. Durante anos, fiz falar outras pessoas em meu Seminário, isso
me descansava, mas enfim, pouco a pouco, talvez porque o tempo pressiona, eu
renunciei a isso.

Então, esse ensino que dura já vinte anos, do qual os Escritos... enfim fui forçado a
falar dos Escritos desde que foram editados, ao menos uma pequena parte e haveria
talvez outras, isso graças à Giacomo Contri que quis consagrar uma grande atenção e
um muito grande tempo.

Eu estou bem decidido a falar um pouco dos Escritos que, ao que parece, não é fácil
para vocês.

Isso é verdade: eles não o são, de modo algum.

É que eles nunca foram feitos, esses famosos Escritos... eles não foram estímulos
(incentivos) feitos para substituir meu ensinamento.

Há neles, a princípio, uma boa metade que foi escrita antes que eu começasse, quer
dizer que isto não é de ontem, visto que já disse que há vinte anos eu faço isso que
chamam meu Seminário.

Há uma boa metade que são de antes, e em particular os muitos que constituíram
ainda a base do que pude apresentar ao discurso psicanalítico com o Estádio do
Espelho. O estádio do espelho foi uma comunicação que fiz em um congresso no
tempo onde eu ainda fazia parte do que se chama IPA – Internacional Psicanalítica
Reconhecida – ou autorizável, como vocês preferirem. Enfim, é uma maneira de
traduzir essas palavras.

Em seguida, a segunda parte dos Escritos consiste numa série de artigos onde eu me
encontrei, digamos que a cada ano a partir, de um certo momento, entre um certo
momento e um outro...onde eu me encontrei a cada ano a dar uma espécie de
referência, que permitia aqueles que me tivessem assistido no Seminário de encontrar
3

aí enfim, condensado, em suma concentrado, o que eu havia podido ensinar ou o que


eu acreditava poder referir como sendo essencial no que eu havia enunciado.

Isso não impede que seja uma péssima maneira, em suma, de reunir um público.

É muito difícil antes de tudo, a noção de público. Vou me arriscar a lembrar que à
época dessa publicação, eu me permiti o jogo de palavras ao chamar poubellication 2 –
vejo que há pessoas que sabem o que é a palavra lixeira (= poubelle). Há uma imensa
confusão de fato, em nossos dias, entre o que produz público e o que produz lixeira!

É mesmo por isso que recuso as entrevistas, pois que apesar de tudo, a publicação de
confidências, é isso que faz a entrevista. Isso consiste então, inteiramente, a agredir o
público no nível da lixeira (poubelle).

Não se deve confundir a lixeira com o púbis – não é absolutamente similar. O púbis
tem bastante ligações com o nascimento da palavra público. É verdade, hein? Isso não
se discute, enfim... eu penso.

Houve um tempo onde o público, não era a mesma coisa que o desembrulhar do
privado, e onde quando se passava ao público se sabia que era um desvelamento, mas
agora isso não revela mais nada porque tudo está exposto (desvelado).

Enfim, evidentemente não sou levado a fazer confidências a vocês, e, entretanto, sou
forçado de alguma maneira a dizer alguma coisa que, sendo dado que eu só os veria
apenas uma vez – enfim me surpreenderia de revê-los daqui a pouco – sou forçado a
dizer alguma coisa mesmo que seja da ordem desta confidência.

A saber, como posso me sentir atualmente nesta posição que ocupo no meio de
pessoas que não fazem parte de meu auditório.

O que posso bem afirmar, não é, é o que disse a princípio, é que os Escritos, isso me
parece difícil que, exportados, assim, fora do contexto de um certo esforço que faço e
do qual vou lhes dizer sobre o que ele está fixado, que os Escritos, enfim, é bem
suficiente ao que se possa aí elucubrar o que seja, que corresponda verdadeiramente a
meu discurso.

O auditório e o editório, se posso me exprimir assim, não é absolutamente do mesmo


nível, vocês o vêem. Nós consideramos enfim, o editório 3, como isso... poubellication...
Isso se torna obsceno e no mesmo instante o auditório se constrange.

Tudo isso, é uma maneira em suma de ver o que posso dizer e de os introduzir, assim,
bem devagar, ao que é muito importante.

2
N.T. Jogo de palavras a que Lacan se refere, poubellication, neologismo formado com
publication+poubelle
3
O mesmo com as palavras auditoire, auditório e éditer, editar, para éditoire, no sentido de lixo.
4

O que chamarei o jogo dos significantes. O jogo dos significantes, isso desliza o sentido.
Porém o importante no que eu enuncio, é que isso não desliza nunca senão à maneira
de uma derrapagem.

Para aqueles que estão completamente desacostumados com esses termos, eu digo
simplesmente isto: os significantes ou o jogo dos significantes, está ligado ao fato da
língua, da linguagem – não é equivalente.

A língua, é alguma coisa muito específica; para cada um, é a língua materna, o italiano
para a maioria de vocês. É isto que faz a língua.

Acontece que há alguma coisa que a gente pode sinalizar como sendo determinada
para um mesmo fim, em todas as línguas, e é generalizando, como a gente se exprime,
quando fala da linguagem: como caracterizando o homem. (Rumores na sala). O que é
que há?...Eu não pediria outra coisa senão ceder a palavra a um de vocês, que me
demonstraria assim que não falo em vão...

Então, a linguagem, a gente tem o sentimento que isso define um ser, que se
denomina geralmente o homem, e no fim das contas, daí se limitando estritamente em
defini-lo deste modo, por quê?

É certo que há um animal sobre o qual a linguagem se abateu (desceu), se posso dizer,
é que esse animal é verdadeiramente marcado por isto. Ele é marcado ao ponto que
não sei até onde posso ir para o dizer bem. Não é somente que a língua faça parte de
seu mundo, é que é isso que sustenta seu mundo de uma ponta a outra.

É para isso que... Não tentem procurar qual é minha Weltanschauung – eu não tenho
nenhuma Weltanschauung, pela razão que eu poderia à rigor tê-la, isso consiste em
dizer que o Welt..., o mundo, é construído com a linguagem.

Não é uma visão sobre o mundo, isso não dá lugar a nenhuma visão – o que se imagina
ser visto, ser intuitivo, está evidentemente ligado a alguma coisa que é o fato que nós
temos os olhos, e que o olhar, é verdadeiramente uma paixão do homem. A palavra
também, bem entendido. Isso se percebe menos.

De resto há outros elementos que são completamente causa de seu desejo.

Mas é um fato que a psicanálise, a prática psicanalítica nos mostrou o caráter radical
da incidência significante nesta constituição do mundo. Eu não digo para o ser que
fala, porque o que chamei há pouco a derrapagem, esse deslizamento que se faz com
o aparelho do significante... É isso que determina o ser no que ele fala. A palavra ser
não tem nenhum sentido fora da linguagem.

Terminou-se apesar de tudo, por se aperceber que não é meditar sobre o ser que se
produzirá a mínima coisa. Terminou-se por se divisar pela conseqüência...
5

conseqüência um pouco empurrada...as seqüências desta prática que chamei o


deslizamento com o significante.

A maneira que se tem, mais ou menos sábia, de derrapar na superfície do que se


chamam as coisas...do que se chamam as coisas até o momento onde se começa a
considerar que as coisas, isso não é muito sério. Consegue-se verdadeiramente
concentrar a potência do significante de uma maneira tal que uma parte do mundo
termina por, simplesmente, se escrever numa fórmula matemática. Fórmulas
matemáticas as quais, evidentemente para os escolares 4, se tenta conjugar um
sentido.

Com efeito se chega aí: a fórmula de Einstein e mesmo de Heisenberg, enfim, são os
pequenos termos que designam a massa.

E a massa isso faz sempre efeito, não é, o que se imagina que se sabe o que é. E, com
efeito, não se imagina sempre – algumas vezes quando se tem noções físicas precisas,
se sabe como isso se calcula, mas seria erro crer que a massa seja isso ou aquilo... pelo
sentimento. Não é apenas porque pesamos um pouco que se pode imaginar que se
saiba o que é a noção de massa. É somente a partir do momento onde se começa a
girar alguma coisa, que se vê que os corpos têm uma massa. Contudo isso permanece
de tal forma, contaminado por alguma coisa que está ligada ao fato que há uma
correlação entre a massa e o peso que em realidade é melhor não procurar
compreender, e simplesmente se ater às fórmulas.

É nisto que a matemática demonstra verdadeiramente qual é o ponto de uso do


significante. Bem entendido, nós chegamos à ...[...] que, de fato, já estamos imersos na
linguagem. Vejam, eu não digo: nós somos seres falantes. Nós estamos na linguagem,
e eu não me autorizo de maneira nenhuma a lhes dizer porque nós estamos aí nem
dizer como isto começou.

É dessa maneira que se pode começar a dizer sobre a linguagem alguma pequena
coisa, desembaraçados do preconceito que é essencial que isso tenha um sentido: não
é essencial que isso tenha um sentido, e é mesmo sobre isso (o sentido), que está
fundada esta nova prática que se chama a lingüística.

É necessário – é aí que a lingüística é bem centrada – se centrar sobre o significante


enquanto tal.

Não é preciso acreditar que o significado – que bem entendido se produz no rastro do
significante – que isto seja aí alguma coisa de alguma forma primeira; e se diga que a
linguagem está aí para que se permita que ela tenha a significação, é uma démarche
da qual o mínimo que se pode dizer, é que é precipitada.

4
Écoliers, estudantes da L’École des Hautes Études.
6

Há alguma coisa de mais primária que os efeitos de significação, e é aí que a procura –


se tanto é que jamais se procura alguma coisa, se não a tivesse primeiro encontrado,
hein? – é aí que o achado é suscetível de ter efeito.

Enfim vejam, para o significante, em todo momento eu aqui cheguei com o que tenho
chamado a derrapagem, o efeito de deslizamento... Enfim, eu serei levado a fazer a
metáfora que o significante é como o estilo: é já semelhante, é do estilo que, desde
então, teríamos falado. É talvez possível que o animal humano a tenha fabricado um
dia... Nós não temos o menor sinal do que poderia se chamar a invenção da
linguagem... A uma distância tão grande no passado que nós a vemos operar, ela é o
que há de melhor5.

Bom, então, vocês me dirão, o que isso tem a ver com a psicanálise?

Isso tem a ver do modo mais estrito, porque se não se parte do nível que é o nível da
partida, não se tem absolutamente nada mais a fazer na experiência psicanalítica...
Não se pode fazer nada a mais que a boa psicoterapia.

Isto significa, como tão bem os psicanalistas o explicam... eles confirmam tudo, eles
revelam tudo... existiu um dia... Claudel... pois, que imaginou que o castigo de Pôncio
Pilatos, enfim, devia ser este: porque ele teria perguntado muito mal a propósito: Que
é a verdade? – que cada vez que ele falava diante de um ídolo, o ídolo abria seu
ventre, e o que é que saía dele? Era um assustador (formidable) despejar do
característico da época, coisas (trucs) que se metia no mealheiro... Os psicanalistas são
assim, eles lhes explicam tudo... eles aprovam tudo... e tudo o que eles descrevem
prova que evidentemente eles são pessoas muito boas (très bonnes personnes).

É loucura que eles amem o ser humano, que eles queiram seu bem, sua normalidade –
é inaudito, enfim, não é, é inacreditável a loucura de curar, de curar o que? É
justamente isto que é preciso nunca colocar em questão...

Em nome de que se considera como doente? Em que um neurótico é mais doente que
um ser normal, dito normal? Se Freud trouxe alguma coisa, é justamente para
demonstrar que a neurose, enfim, está estritamente inserida em alguma parte numa
fenda que ele nomeia, que ele designa perfeitamente, que ele chama sexualidade, e
ele fala disto de tal forma que o que o que está claro, é justamente... é no que o
homem não está completamente à vontade. O homem, bem entendido, tomado no
sentido amplo, a mulher não tanto; enfim, não há nada que cheire tão mal quanto as
relações do homem e da mulher.

É isto, o que há de mais admirável, é que há pessoas aqui que parecem estar ouvindo
isto pela primeira vez. É completamente sublime, como se não tivessem nascido aí

5
N.T. Le dessus du panier, é uma expressão que significa o que há de melhor, a nata, a fina flor, o mais
distinto, Lacan por homofonia, se refere à linguagem como le dessus du pavê.
7

dentro... A saber que para transar com uma moça, isso não vai nunca. Para a moça, é a
mesma coisa... e desde que o mundo é mundo, há toda uma literatura, há a literatura
que não serve senão para dizer isto.

Então, Freud um dia fala de sexualidade [em falsete] e é suficiente que essa palavra
açucarada tenha saído de sua boca para que todo mundo acredite que é para resolver
a questão. Isto significa que a partir do momento, como eu disse há pouco, que se
alguém coloca uma questão, é que ele já tem a resposta, logo se ele põe a questão é
que tem a resposta – isto é, que com isto, isso deve andar. O que se presumiria que
Freud tinha a idéia de acordo sexual. Mas, enfim, basta ler, abrir sua obra para ver que
até o fim, ele, porque era homem, enfim, parou aí.

E ele o diz, ele o escreve, ele o expõe, a se perguntar: uma mulher, o que é que isto
pode querer? [risos]. Não há necessidade para isso de fazer alusão à biografia de
Freud, porque é sempre desse jeito que se reduz a questão, tanto mais que ele era
neurótico como todo mundo, pois ele tinha uma mulher que era uma chata... Enfim,
isto é conhecido... A velha Madame Freud...

Isto verdadeiramente é rebaixar a questão. É justamente por isto que eu nunca me


atreveria a fazer a psicanálise de Freud, além do mais que é uma pessoa que eu não
conheci. O que é dito por Freud, é isto que eu acabei de dizer. É a derrapagem do
significante do qual eu falara há pouco, que faz que em nome do fato que ele
descreveu isso “sexualidade”, se supõe que ele sabia o que isso queria dizer:
sexualidade.

Porém justamente o que ele nos explica, é que ele não o sabe.

Ele não o sabe. A razão pela qual ele não o sabe, justamente, é o que o fez descobrir o
inconsciente. Isto é se aperceber que os efeitos de linguagem funcionam neste lugar
onde a palavra “sexualidade” poderia ter um sentido. Se a sexualidade no ser falante,
funcionasse de outro jeito que o de se embaraçar nos efeitos de linguagem... Eu não
estou dizendo que a linguagem veio aí para preencher o furo – eu não sei se o furo é
primitivo ou se ele é segundo: a saber, se a linguagem é que perturbou tudo.

Eu me surpreenderia que a linguagem esteja aí para transtornar tudo. Há campos onde


isso tem êxito... entretanto, onde isso não tem êxito nunca, senão para fazer distinção
do que parece ir bem nos animais – a saber que eles têm o ar de transar de uma
maneira muito polida. Porque é verdade, nos animais isso tem o ar – é o que nos
impressiona por contraste – isso tem a aparência de se passar graciosamente. Há a
ostentação (o cortejar). Há toda sorte de aproximações (de fazer a corte) sedutoras, e
de resto isso tem o ar de ir bem até o fim.
8

Discurso do Mestre Discurso da Universidade

S1 S2 S2 a

S a S1 S

Discurso da Histérica Discurso do Analista

S S1 a S

a S2 S2 S1

Discurso do Capitalista

S S2

S1 a

Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve.6

Este enunciado que é assertivo por sua forma, pertence ao modal pelo que ele emite
de existência.

Não há aparência, entre os animais, nem de estupros, nem nenhuma dessas


complicações, todo esse falatório que se faz a respeito. Isso se passa entre eles de uma
maneira para se dizer bem, civilizada (risos).

No homem, isso faz o que se chama dramas [...] porque assim sendo todo mal
entendido [...]. Praza aos céus que os homens fizessem amor como os animais, isso
seria agradável.

Eu me deixo um pouco, assim, a me conduzir à alguma coisa... enfim, de tal forma


patente. É preciso apesar de tudo lembrá-lo [...] alguma coisa que é quando se
trabalha duro o que é da experiência do psicanalista. Que ele faça como se não
soubesse nada, isto remete a uma necessidade de discurso que está aí escrito no
quadro. É preciso, portanto, que eu dele me sirva, já que eu vim um quarto de hora
antes para escrevê-lo no quadro. Isso comanda os caracteres chaves em todo discurso
deste ponto que eu chamo o semblante.
6
N.T.Trad. do “O Aturdito”, em Outros Escritos, Lacan,2003. No presente texto se apresenta com
alguma diferença: “Que se diga como fato fica esquecido por trás do que é dito no que se ouve”. Esta
versão coincide com a apresentada no Sem.19 ....ou pior, lição XVI, que estava em curso, por ocasião
dessa conferência.
9

Meu último Seminário – ou chamem-no como vocês quiserem, mas não é o último
porque o último é o que estou terminando agora – meu último Seminário portanto,
esse de antes se chamava: De um discurso que não seria do semblante. Eu passei meu
ano a demonstrar que esse é um discurso completamente excluído. Não há nenhum
discurso possível que não seja do semblante. Isso aqui é do semblante, hein?

Bom, então é completamente admissível em um certo nível, que o psicanalista faça


semblante como se ele estivesse aí para que as coisas funcionem sobre o plano do
sexual. O aborrecido, é que ele termina por acreditar nisso, e então isso o imobiliza
completamente. Quer dizer para chamar as coisas pelo seu nome, ele se torna imbecil.
Eu creio que seria necessário, por um certo período – para lhe permitir fazer um pouco
de ginástica, para, numa experiência tal que é instituída, que ele possa dar aí algum
passo a mais – que ele precisasse ao menos lembrar o que faz: a saber, apesar de tudo,
fazer falar alguém lhe explicando como é preciso fazer, isto é, não importa o quê.
Explicar-lhe a regra: dizer a uma pessoa como é preciso que ela fale... E que isso
chegue a dar em alguma coisa, que se trate de compreender porque qualquer coisa
que se faz com este aparelho que eu chamo o significante, isso pode ter efeitos. Que
aí tenha um descolamento necessário, que consista justamente... não compreender
muito rápido, é isto que tentei produzir.

Há uma certa época... evidentemente não era uma época muito bem escolhida, mas
eu não tinha escolha... Eu entrei na psicanálise, assim, um pouco tarde. Com efeito até
esse momento aí... em neurologia um belo dia... o que é que pôde me segurar? Eu
cometi o erro de ver o que isto talvez se chama o psicótico.

Eu fiz minha tese sobre isso: Da psicose paranóica – oh escândalo – em suas relações
com a personalidade. Personalidade, vocês pensam, não sou eu que vá fazer disso
chacota jamais. Mas, enfim, por essa época isso representava para mim, desse modo,
uma nebulosa, enfim, alguma coisa... alguma coisa que era já suficientemente
escandalosa para a época, quero dizer que isso causou um verdadeiro efeito de horror.
Enfim, isso me levou a fazer a experiência da psicanálise. Depois disso teve a guerra,
durante a qual eu prossegui nesta experiência. Ao sair da guerra, eu comecei a dizer
que eu poderia talvez falar algo sobre isso. “Sobretudo não – me disseram- ninguém
compreenderia nada... lhe conhecem, você já é referência há algum tempo. Enfim, em
poucas linhas, necessitou para isso uma espécie de crise, de crise política, política
interna... a intriga mesquinha entre psicanalistas para que eu me tenha encontrado
numa posição de estar fora. E como havia quem tinha o ar de querer que eu fizesse
alguma coisa por eles...

Eu teria começado, como se diz, já tarde: mas eu nunca me aborreci de ter começado
tarde... Eu não experimentei nenhuma necessidade, depois de tudo, de forçar as
pessoas. Para não as constranger, comecei a relatar as coisas no nível onde as havia
visto.
10

Retorno a Freud: me colocaram naturalmente essa etiqueta, que eu bem mereço,


porque foi, desse modo, que eu, a princípio, o produzi. Pouco me importo com você,
Freud7. Simplesmente, era o procedimento para que os psicanalistas se apercebessem
que o que estava lhes dizendo já estava em Freud. A saber, que basta que se analise
um sonho para ver que se trata de significante. E de significante em toda essa
ambigüidade que eu chamei há pouco tempo a função da derrapagem. A saber, que
não há um significante cuja significação seja assegurada. Ela pode sempre ser outra
coisa, e mesmo ela passa seu tempo a deslizar tão longe quanto se queira na
significação. De tal modo sensível na Traümdeutung, não o era menos na
Psicopatologia da vida cotidiana, e o é ainda mais no Chiste. Isso me parece essencial,
é essencial. A coisa que me impressiona vivamente, é... (o discurso se interrompe pela
troca da fita) ... esta prioridade do significante. Agora todo mundo entende disso. O
que vocês encontrarão numa revista de vanguarda, ou mesmo sem ser atual, não
importa o que, quanto ao significante... nos enchem os ouvidos. Quando eu penso
que no momento no qual eu comecei, nós estávamos sob o reino do existencialismo, e
agora... eu não sei... não quero dar a impressão, enfim, de atentar ao estilo, à altura de
um escritor por quem tenho a maior admiração: trata-se de Sartre. E mesmo Sartre...
enfim, agora o significante entrou em seu vocabulário. Todo o mundo, enfim, sabe que
significante significa lacanização. O que isto quer dizer? Oh.

De tempos em tempos eu me imagino que estou nisto para alguma coisa, e neste caso,
é bem isto que me fez... Encontrei em minhas notas, que eu tinha escrito alguma coisa
no onze de abril de 1956, num seminário fechado... é verdade que bem antes que isso
tivesse acontecido absolutamente... enfim, minha obra conhecida agora, bem
entendido, era inteiramente outra... Isso não é menos verdadeiro que o que eu estou
dizendo agora – que isso certamente será explorado em vinte anos – o que estou
dizendo agora, quando é às estruturas da lógica matemática que eu recorro para
definir do que se trata no que eu chamo discurso psicanalítico, eu posso muito bem
me aperceber que há coisas admiráveis: vocês compreendem, por exemplo, que se eu
lhes disse certamente, que de meus Escritos, não seria necessário se fatigarem... mas
mesmo no penúltimo parágrafo de minha Intervenção sobre a transferência, está
escrito: “o caso de Dora parece privilegiado para nossa demonstração em que se
tratando de uma histérica, a tela do eu está aí bastante transparente para que em
nenhuma parte, como disse Freud, não seja mais baixo o limiar entre o inconsciente e o
consciente, ou para dizer melhor, entre o discurso analítico e a palavra do sintoma”.

Evidentemente, é em 1951, o discurso analítico: eu evidentemente levei tempo a lhe


dar o seu lugar. Mas enfim, eu não escrevo jamais as palavras ao acaso, e o discurso
analítico, contudo neste dia aí, não é, eu o produzí. Enfim, cinco anos mais tarde,
quando eu tinha começado meu ensino, a estrutura... a estrutura, eu escrevi então...
porque agora prestarei atenção, eu não quero mais me aderir ou parecer aderir a essa
7
N.T. “Je m’en fou de toi, Freud.”
11

salada que se chama o estruturalismo. Mas enfim, a estrutura, eu falava dela então
porque ninguém conhecia essa palavra. Enfim, a estrutura é uma coisa que se
apresenta a princípio como um grupo de elementos, formando um conjunto co-
variante.

Eu estou agora a me referenciar sobre alguma coisa que se chama precisamente a


Teoria dos Conjuntos. Eu falo logo em seguida, depois de estruturas fechadas e de
estruturas abertas, o que está igualmente, completamente a par do que eu enuncio
agora. E especialmente... nós vemos aí as relações de grupo fundadas sobre a noção de
conjunto, eu sublinho: relações abertas ou fechadas.

Na época... eu não posso me exprimir de outra maneira senão dizendo que soltar-se
de uma lei natural é a mesma coisa que uma fórmula significante pura. Quanto menos
ela significa alguma coisa, mais nós podemos admiti-la do ponto de vista científico... Eu
quero frisar [...] que o passo científico, consiste justamente nisto: em cortar as coisas
estritamente no nível dito De signatura rerum....[...] do significante estaria aí ordenado
– ordenado, certamente, por quem? Por Deus, porque a signatura rerum, é de Jakob
Böhme8.... para significar alguma coisa. A démarche científica, é isto.

É certamente, pontuar o mundo de significantes matemáticos... mas se deter


justamente nisto... que seja para significar... porque era bem o que até aí tinham se
enredado todas as démarches, e o que se chama impropriamente o finalismo. Nós
somos tão finalistas quanto tudo que existiu antes do discurso da ciência. É
inteiramente claro que nada, em nenhuma lei não está aí para outra coisa senão para
chegar a um certo ponto, seguramente. O discurso científico é finalista,
completamente, no sentido do funcionamento [...], nós não concluímos que o
finalismo, seria o finalismo ... que seja feito para nos ensinar alguma coisa, por
exemplo, para nos incitar à virtude, para nos distrair simplesmente [...] em um mundo
que pode ser completamente estruturado sobre as causas finais... seria fácil
demonstrar que a física moderna é perfeitamente finalista. A idéia mesmo da
conservação de energia é uma idéia finalista... também esta de entropia, visto que
justamente, o que ela mostra, é para qual trava isso vai, e isso vai necessariamente.9 O
que mudou, é que não há finalismo, justamente por isso: que isto não tem nenhuma
espécie de sentido. [...] fazer descolar o sentido que é dado correntemente ao
subjetivo e ao objetivo... o subjetivo é alguma coisa que nós reencontramos no real.
Não que o subjetivo tenha o sentido que entendemos habitualmente por “real”, quer
dizer que implique objetividade: a confusão é feita sem cessar nos escritos analíticos.
Ele aparece no real enquanto o subjetivo supõe que temos face a nós um sujeito que é
capaz de se servir do significante como tal... e de se servir do significante como nós nos
8
N.T. J. Böhme (1575-1624) move-se na esfera da mística e da filosofia, ambas calcadas em sua
experiência especulativa. Seu livro,” De signatura rerum, oder Von der Geburt und Bezeichnung aller
Wesen,”1622, ou “Acerca da assinatura das coisas, ou da origem e classificação de todos os seres”.
Lacan, leitor de A. Koyré, deve ter conhecido o livro dele, “La philosophie de J. B.,1929.
9
N.T. Essa observação sobre entropia remete, a quem interessar, às três primeiras lições do Sem.17.
12

servimos dele, se servir do jogo do significante não para significar alguma coisa, mas
precisamente para nos enganar sobre o que ele tem a significar... se servir do fato que
o significante é outra coisa que a significação, para nos apresentar um significante
enganador. Numa palavra, como vocês vêem, enfim, não é de ontem. Eu insisto sobre
esse viés-chave. É muito curioso que a posição de analista não permita de aí se
sustentar indefinidamente.

Não é porque o que se chama...o que se chamava há pouco tempo a Internacional...


por razões completamente contingentes aí criou obstáculo. E mesmo homens, que eu
formei num momento, eles [...]

O que, em suma, eu tenho tentado, colocar a esse respeito chegou_ ao que chamei em
algum lugar, preto no branco, _ um fracasso. Isto não é o essencial, porque um
fracasso, nós sabemos muito bem pela experiência analítica o que é: é uma das formas
de ter êxito. Não se pode dizer que, no final das contas, eu não tenha tido êxito em
alguma coisa... Eu consegui que alguns analistas se preocupem com esse viés que
tenho tentado lhes explicar: qual é a clivagem entre o discurso analítico e os outros. E
mais eu direi que todo mundo desde alguns anos está interessado nisto. Todo mundo
aí está interessado nisto: que há alguma coisa que não vai bem.

Há em alguma parte, do lado que se chama tão gentilmente, tão ternamente, a


juventude... como se fosse uma característica... no nível da juventude, há alguma
coisa que não funciona mais do lado de um certo discurso... do discurso universitário,
por exemplo...eu não teria provavelmente o tempo de comentá-lo para vocês, o
discurso universitário...

Esse aí é o discurso eterno, o discurso fundamental. O homem é sobretudo, um animal


esquisito, não é? Onde, no reino animal, há o discurso do Mestre? Onde, no reino
animal, há um mestre? Se não lhes salta aos olhos imediatamente, na primeira
apreensão, que se não houvesse a linguagem, não haveria mestre, que o mestre nunca
se dá por força ou simplesmente porque ele comanda, e que como a linguagem existe,
vocês obedecem. E mesmo que isso os torne doentes, que isso não continue assim.
Tudo o que se passa no nível do que se chama a juventude é muito sensível porque o
que eu penso, é que se o discurso analítico tivesse tomado corpo, eles saberiam o que
há a fazer para fazer a revolução. Naturalmente, não é necessário se enganar, hein?
Fazer a revolução
eu penso que enfim, vocês outros, vocês que estão aí e a quem eu me dirijo o
mais...vocês devem ter compreendido o que isso significa...que isso significa, voltar ao
ponto de partida. É mesmo porque vocês se apercebem o que está demonstrado
historicamente: a saber que não há discurso do mestre mais perverso, que no lugar
onde se fez a revolução... Vocês desejariam que isso acontecesse de outra maneira.
Evidentemente, isso poderia ser melhor. O que seria necessário é conseguir que o
discurso do Mestre seja um pouco menos primário, e para dizer tudo um pouco menos
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cretino (con). [riso do público]...como vocês sabem bem francês, hein?... É


maravilhoso. Com efeito, se vocês olham aí minhas pequenas fórmulas que giram,
vocês devem ver que a maneira onde, o discurso analítico, eu o estruturo... é
exatamente em oposição ao que está o discurso de Mestre... a saber que no nível do
discurso do Mestre, o que nomeei há pouco o significante-mestre, é isto, é o que me
ocupo no momento: há o Um. O significante é o que introduziu no mundo o Um, e
basta que haja o Um para que isso... isso comece, isso...(indica a fórmula no quadro)...
isso comanda S2, isto é, o significante que vem depois, depois que o Um fuciona: ele
obedece. O que há de maravilhoso é que para obedecer é preciso que ele saiba
qualquer coisa. O próprio do escravo, como se exprimia Hegel, é saber alguma coisa.
Se ele não sabia nada, não se teria nem mesmo o trabalho de lhe mandar fazer fosse o
que fosse. Contudo por esse único privilégio, essa única primariedade, essa única
existência inaugural que faz o significante, do fato que há linguagem, o discurso do
Mestre funciona. É tudo o que é necessário aliás, ao Mestre, é que isso funcione.

Então para saber um pouco mais sobre os efeitos justamente da linguagem, para saber
como isto determina o que chamei de um nome que não é exatamente o de uso
reconhecido: o sujeito...

Se tivesse havido um trabalho, um certo trabalho feito à tempo na linha de Freud, teria
talvez tido... neste lugar... neste lugar que ele designa, nesse suporte fundamental que
é sustentado nesses termos: o semblante, a verdade, o gozo, o mais-de-gozar... teria
talvez tido no nível da produção, porque o mais-de-gozar é o que produz este efeito de
linguagem... teria talvez tido o que se implica do discurso analítico, a saber, um
pouquinho melhor o uso do significante como Um. Teria talvez tido... mas aliás não
terá.... porque agora é tarde demais, a crise não do discurso do Mestre, mas do
discurso capitalista, que é o substituto deste, está aberta. Não é de forma alguma que
eu lhes diga que o discurso capitalista seja medíocre (estúpido), é ao contrário, alguma
coisa de loucamente astucioso, hein? Loucamente astucioso, mas votado à
arrebentação. Enfim, é no fim de contas o que se fez de mais astucioso como discurso.
Isto não é menos determinado à estourar. É que isto é insustentável. É insustentável
numa coisa que eu poderia lhes explicar... porque o discurso capitalista 10 está aí, vocês
o vêem... [indica a fórmula no quadro]... uma pequena inversão simplesmente entre o
S1 e o S barrado, que é o sujeito... isso basta para que isso ande às mil maravilhas, isto
não pode funcionar melhor, mas justamente funciona muito rápido, isso se consome,
isso se consome tão bem que isso se consuma.

Agora vocês embarcaram nessa... vocês se lançaram nessa, mas há poucas chances de
ocorrer o que quer que seja de sério à continuação do discurso analítico, a não ser
como assim, bom, ao acaso. Na verdade eu creio que não se falará do psicanalista, na
posteridade, se posso dizer, de meu discurso... meu discurso analítico. Alguma coisa
10
N.T. Sobre o discurso capitalista ver Radiofonia IV p.423,V p.434, Televisão III,pp.516,519, em Outros
Escritos.
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outra surgirá que, certamente, deve manter a posição de semblante, mas mesmo no
caso de, isso será... mas isso se chamará talvez o discurso PS. Um PS e depois um T,
isto será aliás, completamente conforme à maneira com a qual se enuncia o que Freud
pressentia da importação do discurso psicanalítico na América... isso será o discurso
PST. Acrescenta um E, isso faz PESTE. Um discurso que seria verdadeiramente
pestilento, inteiramente devotado, enfim, ao discurso capitalista. Isso poderá talvez
um dia servir a alguma coisa se, evidentemente, todo o negócio não fugir inteiramente
ao controle, primeiro.

Em suma, são 19:45hs faz uma hora e meia que falo a vocês. Eu não disse, bem
entendido, um quarto do que teria a lhes dizer esta noite. Todavia, não é talvez
impensável que a partir do que lhes indiquei, da estrutura do discurso capitalista e do
discurso psicanalítico, que alguém me coloque algumas questões.

[...] De muito brava gente, mas completamente inconscientes do que dizia Marx, se
divertem (ou se afligem).... sem Marx. 11 E eis o que Marx lhes ensina o de que se trata,
é unicamente da mais-valia. A mais-valia é isto..., é o mais-de-gozar, hein!
[rumores na sala] Mas o que essa gente compreendeu, é maravilhoso... Eles se
disseram:”Bem, eis aí, é verdade!” Somente isto faz funcionar o sistema. É a mais-valia.
O capitalismo recebeu dele enfim esse salto... este golpe de asas que faz atualmente
[...]. É alguma coisa como assim, um pouco análogo, mas não do mesmo sentido, que
eu diria que eles teriam podido fazer, se verdadeiramente as pessoas trabalhassem um
pouco, se verdadeiramente eles interrogassem o significante, o funcionamento da
linguagem. Se eles interrogassem da mesma maneira que o interroga um analisante,
como eu o chamo, isto é, não um analisado, já que é ele que faz o trabalho: o tipo que
está em análise... se ele o interrogasse da mesma maneira, talvez conseguiria alguma
coisa.

É isto a regra analítica. Isso nunca lhe aconteceria que se [...] não simplesmente o tipo
que tem uma veleidade. Se o força a dizer alguma coisa, e aí, é aí que ele é capturado,
porque ainda que a interpretação analítica, mesmo quando ela é feita por um imbecil,
isso se desloca sobre alguma coisa, no nível da interpretação. Se mostra a ele alguns
efeitos lógicos do que ele diz, que se contradiz ao mesmo tempo. Se contradizer, não é
todo o mundo. Mas não se pode se contradizer de qualquer maneira. Há contradições
sobre as quais se pode construir alguma coisa, e outras sobre as quais não se pode
construir nada. Tal é o discurso analítico. Se diz alguma coisa, muito precisamente no
nível onde o significante é o Um, a raiz mesmo do significante. O que faz que o
significante, isso funcione, porque é aí que se captura o UM, é aí que há do UM. [A
transcrição, por defeito da gravação, sofreu em algum ponto um andamento
fragmentado. O trecho perdido será indicado...]
11
N.T. Jogo de palavras por homofonia: s’en marrent...sans Marx. O verbo marrer (se) tem o sentido de
fartar-se de rir, o advérbio marre que vem do verbo se marrir, se afligir, no sentido de bastante. Ambos
trazem o sentido de excesso.
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Nós estamos por outro lado, acercados a algumas pequenas cogitações que não nos
parecem completamente supérfluas do lado da interrogação dos números inteiros –
visto mesmo no caso da teoria dos conjuntos. Cantor e todo o resto, isso consiste
justamente a se perguntar porque há do UM. Não é outra coisa. E talvez, com um
pequeno esforço, se chegará a se aperceber que os números inteiros, que se chamam
naturais, eles não são tão naturais assim... como o resto dos números.
Em suma, há alguma coisa que deveria sobrevir a um certo nível, que é o da estrutura.
Os três quartos de século, que agora passaram desde que Freud pôs em evidência esta
fabulosa subversão de tudo o que existe... há uma outra coisa que se propagou, e
brutalmente bem, que se chama nada menos que o discurso da ciência, que no
momento dirige o jogo... dirige o jogo até que se divise o limite: e se há alguma coisa
que é correlativa desse surgimento do discurso da ciência, alguma coisa da qual não
haveria nenhuma chance que aparecesse antes do triunfo do discurso da ciência, é o
discurso analítico. Freud é absolutamente impensável antes da emergência, não
apenas do discurso da ciência, mas também de seus efeitos, de seus efeitos que são,
bem entendido, sempre mais evidentes, sempre mais patentes, sempre mais críticos, e
dos quais após tudo se pode considerar [...], ainda não se fez isso, talvez um dia haverá
um discurso chamado assim: “o mal da juventude”. Mas há alguma coisa que grita... e
uma nova função que não deixará de surgir, não é, de abordar talvez, salvo acidente,
uma nova partida na instauração do que é... do que se chama discurso. Eu apenas
disse o que é um discurso.

O discurso, o que é? É o que na ordem... na ordenação do que se pode produzir pela


existência da linguagem, faz função de laço social. Há talvez um laço social, assim,
natural, é aí que se dividem, eternamente, os sociólogos... mas pessoalmente, disso
não creio em nada. E não há trinta e seis possibilidades, não há senão quatro... Dos
significantes, é necessário que tenha dois ao menos. Isso quer dizer, o significante
funcionando como elemento, o que se chama justamente elemento na teoria dos
conjuntos: o significante enquanto é o modo do qual se estrutura o mundo, o mundo
do ser falante, quer dizer todo saber. Há, portanto, S1 e S2 é de onde é preciso partir
para esta definição que [...] o significante é o que representa um sujeito para um
outro significante. O sujeito, não é o que nós acreditamos, não é o sonho, a ilusão, [...]
é tudo o que há de determinado por esse efeito de significante. E isso vai muito mais
longe do que qualquer um está consciente.... seja conivente. É essa a descoberta de
Freud: é que os efeitos do significante, há neles toda uma parte que escapa totalmente
ao que chamamos comumente o sujeito. É notemos bem, o sujeito determinado
inclusive em todos os seus detalhes, pelos efeitos do significante [...]. Nós sabemos o
que produz a linguagem: ela produz o que? O que chamei aí de mais-de-gozar, porque
é o termo que é aplicado nesse nível, que conhecemos bem, que se chama o desejo.
Mais exatamente, ele produz a causa do desejo. E é isso que se chama o objeto
pequeno a.
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O objeto pequeno a é o verdadeiro suporte de tudo o que vimos funcionar e que


funciona de maneira, mais e mais pura para especificar cada um em seu desejo. É o
que a experiência analítica dá o catálogo sob o termo de pulsão [...], pulsão que se
chama oral [...] um objeto muito bonito, um objeto ligado a este [...] desde que ele
tomou o hábito de sugar [...]. Há os que mamam assim toda sua vida. Contudo porque
mamariam eles toda sua vida se isto não estava no interstício, no intervalo dos efeitos
de linguagem? O efeito de linguagem enquanto que ele é informado no mesmo tempo,
exceto a quem está completamente idiota, não é?

É isso que dá sua essência... e sua essência de tal modo essencial que é isso, a
personalidade: é a maneira na qual alguém subsiste face a esse objeto a... Há outros e
eu tentei dizer quais. Mas a este respeito, a psicanálise, assim como Freud, nunca mais
que Freud, nunca mais nem melhor que Freud... Acrescentou-se, certamente,
detalhes, uma estrutura, um estatuto sobre essa função do objeto pequeno a...
Mélanie Klein trouxe largamente sua contribuição, e alguns outros também,
Winnicott... o objeto transicional.

É isso, é isso a verdadeira alma... a nova subjetividade, no sentido antigo...

É isto o que nos ensina a experiência analítica.

É portanto aí que muitos psicanalistas... É o papel que eles desempenham no nível do


semblante. É isso que os sobrecarrega, é a causa do desejo, naquele ao qual eles
iniciam a carreira do analisante. É daí que poderia... talvez sair outra coisa, alguma
coisa que deveria fazer um passo para uma outra construção... É, a saber que o de
que se trata, no fim de contas, é que a experiência acaba tão rápido, que possível –
isto é, que o sujeito com algumas interpretações se libera e encontra uma forma de
mal entendido na qual ele possa subsistir.

Qual é a outra pessoa que me fez uma outra pergunta?

X: Qual é a diferença entre o discurso do Mestre e o discurso do capitalista?

L: Eu o indiquei há pouco tempo, eu falei latim, a canção de sempre, não é, entre o


sujeito e o S1. Caso você queira, nós falaremos isso no fim, com menos pessoas, mas
eu já o indiquei.

Y: Qual é o papel do aparelho algoritmico no – desculpe-me a palavra – sistema? Se


nós estamos na linguagem, qual metalinguagem poderia falar a cadeia significante?... e
o seu estilo mesmo é a prova que não há metalinguagem possível.

L: É preciso dizer às pessoas que falam de metalinguagem: então onde está a


linguagem?
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Y: De acordo, sobre isso você responde muito fácil... mas qual é o aparelho algoritmico
na medida onde ele escapa da linguagem natural, que não tem metalinguagem, que
não é submissa à metalinguagem? Do momento onde você emprega um aparelho
algoritmico, não tenta você bloquear essa fuga, essa derrapagem contínua da cadeia
significante em alguma coisa que a definiu de fora? Exceto se a cadeia significante não
é a linguagem natural, mas um aparelho lógico, algoritmico por cima. Se você emprega
o aparelho algoritmico para defini-la e bloqueá-la, não é ele o aparelho algoritmico, o
único desejo finalmente realizado?

L: É muito pertinente, aproximado disto, que o que se trata no que você chama a
muito justo título algoritmo... este algoritmo não sai propriamente da experiência
analítica. O que faz sentido, eu tenho sempre expressamente articulado, o que faz
sentido validamente está sempre ligado ao que chamarei, se você permite, o ponto de
contato. E, freqüentemente, é um ponto de contato o ideal, como a teoria matemática
[...]. É do mesmo modo que o S1, este UM do significante, funciona em pontos, em
lugares diferentes, nesta tentativa de redução radical que ele pode tomar sentido de
ser, se posso dizer, traduzido [...] que ele pode ser traduzido de um dos discursos em
outro. É, portanto que, nos quatro discursos, nunca os termos [...] não estão no
mesmo lugar funcional, que depois de tudo... para o que nos interessa, para o que é
incidência atual dos efeitos subjetivantes, no que nos interessa, isso se pode no
momento..., eu não digo que isso seja a única forma possível, mas isso pode no
momento se articular desta maneira ao algoritmo – que ele aí tenha convergência
entre o limite onde se considera no momento, a lógica matemática, e os problemas de
nossos analistas que tentamos um pouco dar conta do que fazemos.
Que há convergência... que há o mesmo limite algorítmico [...], a função do limite.

Nós não podemos dizer qualquer coisa.

Mesmo os analistas mais tradicionais não se permitiriam dizer qualquer coisa.

É o que já escrevi aí: “que se diga – eu não sei mesmo quando escrevi isso - que se diga
como fato fica esquecido - eu digo habitualmente – atrás do que é dito no que se
ouve”.

No que se ouve: a que isso se refere? É perfeitamente ambíguo. Isso pode se referir a
fica esquecido – é o que se diga que pode ficar esquecido no que se ouve, - ou é o que é
dito no que se ouve? É um uso perfeitamente exemplar da ambigüidade no nível da
estrutura geral – transformacional, hein? É besta, todo mundo o faz, de tal forma que
nem se apercebe. O que é que há em seguida abaixo? “Este enunciado que é assertivo
por sua forma, que eu qualifiquei de universal, pertence ao modal pelo que ele emite de
existência”. Eu tive apenas o tempo de constatar hoje o que é da existência: comecei
bastante claro e depois enfim, como de hábito, sob meu fardo mais ou menos
18

transigente12. Mas enfim, o que está inteiramente claro, é que nós estamos nisso: a
interrogar o “ele existe” no nível do matema, no nível do algoritmo.

Não é senão no nível do algoritmo que a existência é admissível como tal. A partir do
momento em que o discurso científico se instaura, isso quer dizer todo saber, ele não
se inscreve senão no matema. Todo saber é um saber demonstrável... Nós estamos aí,
a colocar a existência como sendo o que está ligado à estrutura algoritmica.
É um efeito da história que nós estamos a nos interrogar, não mais sobre o nosso ser,
mas sobre nossa existência: que eu penso logo eu sou – entre aspas: “logo eu sou”.
Seja isso a partir de que é nascida a existência, é aí que nós estamos. É o fato do que se
diga – é o dizer que está atrás de tudo o que está dito – que é o alguma coisa que disso
venha a surgir na atualidade histórica. E aí vocês não poderão de maneira nenhuma
dizer que isto é um fato de desejo teórico, de minha parte por exemplo.

É assim que as coisas se situam, emergem... a emergência como tal do ordenamento


do discurso: é a partir daí que há emissão de existência, de existência como de alguma
coisa que é, também, do nível desse pequeno a, do qual o sujeito se divide.

Essa é uma questão que me parece, enfim, que eu venho de lhe responder, enfim
atingida.

Recife, 14/ dezembro/2014

Tradução: Joana de Barros da Costa

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Fléchissant

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