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CANINDÉ DE SÃO FRANCISCO

SEU POVO, SUA HISTÓRIA

ALCINO ALVES COSTA

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS


REPRODUÇÃO AUTORIZADA PARA FINS DE ESTUDO
CANINDÉ DE SÃO FRANCISCO
SEU POVO, SUA HISTÓRIA

ALCINO ALVES COSTA

1
Rua do Canindé Velho de Baixo
(Gentileza de dona Socorro)

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Casa do Dr. Hercílio Britto, em Canindé de São Francisco.
(Gentileza de Herílio Penalva)

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DEDICATÓRIAS

Como sempre faço com todos os meus trabalhos, dedico esta minha obra
literária...
Ao meu Senhor Jesus Cristo, meu Senhor e amado Mestre e, também, com todo
amor, a Nossa Senhora e Rainha do Mundo, nossa Santíssima Mãe e Mãe de Jesus!...
Ao povo de Canindé de São Francisco pela ventura de ter sido raiz, tronco e
galho desta tão frondosa e bela árvore, da qual floresceu e frutificou uma altaneira e
forte raça, referencial nordestino e motivo de tanto orgulho para os povos do Sertão do
São Francisco!...
Aos filhos, parentes e amigos de todos os personagens arrolados nas páginas
deste livro, nas quais registro a vida e morte de muitos deles, num desfile fiel e
verdadeiro dos que abrilhantaram e engrandeceram a história desse pedaço de sertão...
Aos meus familiares: filhos, netos, genros, noras, sobrinhos e sobrinhas, toda
uma parentela que faz parte afetiva e amada de minha vida...
A minha saudosa e jamais esquecida esposa Maria do Perpétuo – Peta -, que lá
da eternidade vive a cuidar desse seu velho esposo e de seus filhos e netos...
Aos amigos que, desde o florir dos primeiros anos de minha existência, fizeram
e fazem uma fraternal corrente de amizade!...
Aos homens e mulheres da terceira idade, vocês que são os ancestrais diretos dos
pioneiros deste sertão, em particular do Canindé Velho ou, Canindé de Baixo!...
A vocês, jovens canindeenses, moças e rapazes... Vocês que precisam conhecer
e estudar as suas próprias raízes e a história de seus antepassados. A vocês, com um
carinho muito especial, por considerar que toda juventude deve conhecer, com
profundidade, a tradição e a cultura de seu próprio mundo, não podendo, por
conseguinte, desconhecer sua origem e seu passado, sob pena de faltar-lhes a motivação
de sentir o amor cívico, imprescindível fonte geradora do salutar sentimento de
cidadania no coração!...
A vocês, menino e menina de Canindé, vocês que ainda vivem correndo no
cavalinho de pau dos verdes anos da imaginação e da inocência ou, ainda, acariciando a
bonequinha de suas coloridas ilusões de menina-moça, para que, conhecendo a saga de
sua árvore genealógica, possam também, aprender a gostar e, mais que isso, amar a sua
terra, o seu mundo, e dele se orgulhar no presente e, mais ainda... No futuro!

Alcino Alves Costa

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AGRADECIMENTOS

Á Deus... Pela ventura e graça de me dotar de coragem, força e inspiração, para


arregimentar e registrar importantíssimos fragmentos da história que envolve o povo
sertanejo e, em especial neste trabalho, o povo de Canindé de São Francisco!...
Á família canindeense... Pelo estímulo e aceitação deste nosso trabalho que,
acima de tudo, é uma homenagem aos que viveram os primeiros e sofridos tempos
deste, hoje, pujante e conceituado município!...
Enfim, a todos os meus mais sinceros agradecimentos: aos Secretários
municipais de Canindé de São Francisco, Senhores Antônio Carlos Porto de Andrade
(“Cacá”), da área Especial de Desenvolvimento Municipal, Finanças e Meio Ambiente;
Silvinha Oliveira, Secretária de Turismo do Município de Canindé de São Francisco; e
Nelson Oliveira Araújo, da área de Controle Interno... Pela vontade e empenho para ver
editado este livro da história, das tradições e da cultura dos seus amados munícipes e,
com ele, mostrar o valor e a importância de sua gente!...
Ao senhor prefeito de Canindé do São Francisco, Orlando Porto de Andrade
(“Orlandinho”)... Pela feliz ideia de oferecer aos canindeenses, por via deste livro, a
oportunidade de conhecer um pouco da gloriosa história do município que ele hoje, tão
digna e honradamente administra.
Por fim, aos que de uma forma ou de outra, com seus testemunhos e palestras,
com suas palavras de apoio e fé, com sua compreensão e o desejo de ver editado este
documentário, numa colaboração impar aos jovens canindeenses, sobre episódios
fascinantes da vida dos seus ancestrais!...
Que Deus os abençoe!

ALCINO ALVES COSTA

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ÍNDICE

DEDICATÓRIAS

AGRADECIMENTOS

INTRODUÇÃO

01 Assim descobriram o sertão


02 Formação das primeiras aldeias
03 O nascer dos Canindé’s de Cima e de Baixo
04 A fazenda Cuiabá
05 Vaqueiro cavalo e boi
06 O Bela Moça
07 O Boi Carneiro
08 O Boi Mancha Fina
09 Ilustres filhos de Canindé – Dom Juvêncio de Britto
10 Antônio Porfírio de Britto
11 A estrada do tempo
12 Tragédia de Canindé – Zé Baiano o carrasco ferrador
13 Fogo da Lajinha – na lagoa do Domingo João
14 A morte de Vulcão
15 Juriti – perverso na vida, valente na morte
16 A morte de uma inocente
17 A morte de Lírio Roxo
18 A fé em Deus
19 A morte do sargento Deluz
20 O cangaço e Lampião têm fim – Canindé tem paz
2’ Vida e morte de Epifânio Feitosa
22 Dona Hilda, exemplo de fé e lição de vida
23 A emancipação
24 A Divisão Administrativa e Judiciária de Sergipe
25 Os limites fronteiriços de Canindé do São Francisco
26 Os administradores
27 Vida e morte de Ananias Fernandes
28 O progresso chega ao sertão
29 O Canindé Velho de Baixo é assassinado
30 A primeira eleição municipal na Nova Cidade
31 A triste história de Delmiro de Miranda Brito
32 Hortência Carvalho assume o poder
33 “Canindé em boas mãos”
34 O povo sofrido do Canindé Velho de Baixo

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INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como finalidade precípua resgatar a memória das narrativas
históricas ou lendárias do povo sertanejo de Canindé de São Francisco.
Por falta e escassez de registros oficiais, procurei, até a exaustão, encontrar nos
cantos mais escondidos e remotos da jurisdição de suas terras, os fatos mais
importantes, a fim de registrar o heroísmo dessa gente cabocla que soube com dignidade
e perseverança, enfrentar as dificuldades e os desígnios de sua sorte.
Procurei, contudo, ser imparcial. Busquei sobremodo, privar-me de paixões que
pudessem interferir na fidelidade da narrativa dos acontecimentos; principalmente por
fazer parte, com muita honra, de muitas das famílias dessa raça eminentemente
sertaneja; para que esse detalhe, de uma maneira ou de outra, não interferisse, tornando
menos distintas as imagens de qualquer dos personagens que fizeram parte da história
de Canindé, quer seja dos cidadãos ou personalidades públicas, pois, caso contrário,
estaria prejudicando o nosso propósito de imparcialidade e a finalidade histórica deste
trabalho.
Todavia, em que pese o sentido histórico, cuja meta e finalidade são o resgate e
o conhecimento das tradições culturais, esquecidas e quase mortas, das famílias e das
raízes desse pedaço de chão, tive de me abster de relatos acusatórios fugindo, assim, da
possibilidade de criar polêmicas entre seus personagens ainda remanescentes, o que
eliminaria o caráter de nobreza.
É evidente, contudo, que, num trabalho deste gênero, não se pode deixar de fora
algumas pequenas particularidades, tanto do lado político quanto do lado administrativo
local. E foi o que se fez.
Por isso, esses fatores serão abordados mui sutilmente e com o maior cuidado,
procurando registrar só, e apenas, aquilo que não possa trazer embaraços e nem
conflitos entre famílias que, nos ardentes caminhos das disputas partidárias as fizeram
litigantes.
Fatos houveram que foram registrados com muita amargura e um nó na
garganta. Por exemplo, os tristes e sucessivos acontecimentos que redundaram nos
sucessos fatais e funestos e que enlutaram Canindé. Aqui revivo as trágicas mortes, de
triste memória, de Epifânio Feitosa, Ananias Fernandes dos Santos e Delmiro de
Miranda Brito.
Por outro lado, não poderia deixar de dedicar ainda aqui, um capítulo a todas as
mães e esposas desse chão caboclo. Nada mais justo, porque foram elas as mulheres que
ofereceram seus corpos, suas vidas e suas almas na sublime missão de espalhar, pelo
mundo, uma considerável parte da etnia que se tornou conhecida como a raça parda
brasileira. Para tão justa homenagem, escolhi a linda e emocionante história de Dona
Hilda, esta veneranda Senhora – ainda com vida durante a feitura destes registros –
esposa e viúva de Epifânio Feitosa, em nome da qual ressalto a fibra de todas as outras
gloriosas mulheres sertanejas!...
Todos sabem que Dona Hilda, essa majestosa mulher, do alto de sua avançada
idade, é um paradigma que enobrece não só Canindé, mas toda região do Baixo São
Francisco, razão e motivo, mais do que suficiente, para lhe dedicar, com todo carinho e
emoção, um capítulo dessa obra.
Não posso avaliar este meu próprio trabalho. Todavia, tenho esperança de que
ele venha servir como ponto referencial para os filhos e habitantes desse querido

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território sergipano e sertanejo e, em especial, a sua inteligente juventude que, não tenho
dúvidas, ama a sua terra e anseia por conhecer toda sua história desde os seus
primórdios.
Nas suas páginas, eu tive o cuidado de colocar, também, um pouco sobre o
heroísmo dos Vaqueiros daqueles tempos bravios do Canindé Velho de Baixo. É um
capítulo especial dentro da história sertaneja porque, além de serem merecedores, é um
ato de justiça para com aqueles que tanto abrilhantam este marco da vida sertaneja, na
qual se insere a gigantesca porfia da medição de força entre cavalo e boi. Sem a
obstinação desses valentes guerreiros não existiria vaqueiro. E, sem eles, o sertão
perderia muito de sua exuberante beleza e fascinação.
Nada mais justo, por conseguinte, do que fazer constar, neste documentário, os
nomes de alguns daqueles campeões do gibão e da perneira; Destacando-se entre eles,
os três nomes que despontaram como maiores estrelas do serviço campeiro. São eles
Pedrinho de Eustáquio, Zé Leobino e Daniel Ricardo. Outros existiram e também foram
famosos, razão porque estão aqui representados por estes três luminares das corridas de
bois brabos.
Outra figura também importante dos sertões era a do coronel. Noutros tempos,
talvez por desconhecimento ou por más informações a respeito deles, achava-se que o
dono da terra e do boi era a peste e o flagelo do sertão. Nos dias atuais, como um dos
legítimos atores nessa história sertaneja, em face do convívio quase que cotidiano com
seus personagens, o autor deste trabalho, à luz das incansáveis pesquisas, não pensa
assim.
Por outro lado, os registros do nosso mundo caboclo e sua caipirada indicam
uma grande dívida de gratidão para com esses senhores de grandes fazendas e
numerosos rebanhos bovinos. Genuínos parceiros no desbravamento e promoção do
desenvolvimento econômico da região.
Suas vastas propriedades, abarrotadas de criações, geravam um número
considerável de vaqueiros para cuidar da “gadama” pé duro, da miunça e de outros
criatórios, Por conseguinte, muitas famílias ali viviam protegidas e amparadas pelo
criador de gado nas seculares matas, plenas das mais variadas espécies de vegetais. Aí
os mateiros do gibão e da perneira, com o seu labor, garantiam o sustento de seus filhos,
o que significava viverem livres do espectro da fome e da miséria.
Ressalte-se, ainda mais, que fazendeiros e vaqueiros eram unidos por uma
sociedade justa e lucrativa que beneficiava os dois lados, através do famoso sistema de
“quarteado”, que consistia naquela famosa e saudosa parceria que fez muitos desses
vaqueiros se tornarem fazendeiros e senhores da terra e do gado.
Na história de Canindé Velho de Baixo, sobressaíram-se quase que
exclusivamente, os coronéis Chico Porfírio e seu filho Hercílio Britto, responsáveis pelo
grandioso impulso que aquelas terras, antes abandonadas e desconhecidas, tiveram. Pai
e filho acreditaram no seu potencial, aqui escondido do mundo e, ali, criaram seus
numerosos rebanhos, aumentando suas já enormes fortunas e influências.
Mesmo assim, ninguém pode acusá-los, nem os acusa até hoje, de qualquer ato
desabonador das suas condutas, no lapso de todos os anos em que atuaram nesta região
sertaneja. Estes senhores feudais jamais usaram de seus ilimitados poderes para a
violência, o desmando ou a espoliação dos seus vaqueiros, de seus agregados ou, ainda,
do próprio povo de Canindé.
O que se via, na verdade, era a luta desses Coronéis, em favor do desbravamento
das caatingas maninhas desse pedacinho de sertão.
Desse modo, eles conseguiam apinhar suas propriedades de gado, num
aproveitamento total e absoluto do clima generoso daquelas terras sertanejas,

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apropriadas para a criação de suas vacas e de seus bois brabos. Felizes, os abastados
fazendeiros se deleitavam com a grandeza, cada vez maior, da Cuiabá e outras
fazendolas satélite que lhes pertenciam.
Portanto, Chico Porfírio e Hercílio Britto foram dois afamados coronéis que
souberam viver dentro dos parâmetros da dignidade, da honradez e do respeito aos
caatingueiros do Canindé Velho de Baixo.
Quando se afirma, que nenhuma família de Canindé foi aviltada e nem sequer
ameaçada ou prejudicada por membros dessa famosa linhagem que dominou por muitas
gerações as coisas e vida de todo o Baixo São Francisco, a partir de Propriá até os
ermos do último porto navegável do Velho Chico, isto é certo e verdadeiro.
Finalmente, em se tratando de uma obra minha não posso e não devo avaliar o
seu valor literário. Todavia, tenho esperança de que, um dia, ela possa servir, pelo
menos, como ponto referencial, fonte geradora do nobre sentimento de amor e cidadania
por este querido torrão, para que, com as inteligências de seus jovens, eles se interessem
e queiram pesquisar para conhecer e explorar a história de seus antepassados.
Leitor amigo! Ao ler as páginas deste livro, você estará realizando uma deliciosa
viagem pelos campos, veredas e bibocas deste mundo encantado! O mundo do ontem, o
Canindé Velho de Baixo e de hoje, o Canindé de São Francisco.
Um abraço... E boa viagem!...

Alcino Alves Costa

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ASSIM DESCOBRIRAM O SERTÃO

Velhos registros dão conta de que foi a partir do distante 1606 que os
colonizadores chegaram ao Sertão do Baixo São Francisco. O ponto referencial do novo
objetivo daqueles aventureiros eram as beiradas do Velho Chico. Vivia-se o século
XVII e, com ele, um esforço muito grande de se povoar o sertão do oeste de Sergipe.
Assim surgiram as imensas sesmarias.
A primeira delas aconteceu na Ilha do Ouro, hoje povoado do município de
Porto da Folha, ponto inicial das conquistas daquelas terras sertanejas que tinha na Serra
da Tabanga, o seu marco divisor da sesmaria de 10 léguas de Tomé da Rocha
Malheiros.
Segundo o notável sergipano Felisbelo Freire (1858/1916), de Itaporanga
D’Ajuda, essa sesmaria pertenceu ao mestre de campo João de Araújo e,
posteriormente, em 12 de setembro de 1624, foi entregue a Gaspar da Cruz Porto
Carreiro, “indo da parte sul do rio São Francisco, começando da ponta da Tabanga meia
légua pelo rio acima e seis léguas em quadra”.
Verifica-se, a bem da verdade, que as terras onde nos dias atuais, se localizam os
municípios de Poço Redondo e Canindé do São Francisco, não foram atingidas pela
referida sesmaria, conforme se acha registrada nos escritos contidos na extraordinária
obra “História territorial de Sergipe” desse excepcional homem de Sergipe.
Vejamos:
Diz Felisbelo Freire, no rodapé da página 38: “Gaspar da Cruz Porto Carreiro,
Pedro de Figueiredo e Domingos da Cruz Porto Carreiro, carta de 30 de agosto de 1625.
Seis léguas em quadra. Em Sergipe d’El Rei, da parte do sul do rio São Francisco,
começando da ponta da Tabanga, meia légua pelo rio acima, correndo as ditas terras
rumo direito, com todas as águas, pontas e enseadas, condições as de foral”.
Ainda no rodapé da página 39 está registrado: “Pedro de Abreo Lima, Alvará de
20 de março de 1665, 6 léguas. No rio São Francisco de Sergipe d’El Rei umas matas e
serras chamadas Tabangas, donde acabam umas terras que foram de Antônio Cardoso
de Barros, todas as terras até entestar com as de Domingos da Cruz Porto Carreiro,
correndo para o sertão”.
Ora, é evidente que quando Freire atesta que os Porto Carreiro e Pedro de
Figueiredo eram senhores de seis léguas em quadra, começando da Tabanga, meia légua
rio acima, essa sesmaria jamais poderia atingir os dois municípios mencionados, uma
vez que a distância que separa Poço Redondo e Canindé de São Francisco da tão falada
montanha do Velho Chico, é muito maior do que a “meia légua rio acima” mencionada
no documento. E quando o Alvará de Pedro de Abreo Lima diz: “até entestar com as de
Domingos da Cruz Porto Carreiro”, está afirmando quando encostar, ou, quando se
avizinhar, numa clara afirmação de que a posse se referia ao espaço territorial que
circundava a famosa serra ribeirinha.
Como se vê as evidências mostram que, na realidade, as caatingas do Sertão do
São Francisco eram totalmente desconhecidas e seus possíveis senhores ou sesmeiros
nem as conhecia.
No entanto, também existem registros dando conta de que Canindé de São
Francisco, no passado, estava dentro da sesmaria de 30 léguas de terras do rio São
Francisco, concedida aos Burgos – família da Bahia, chefiada pelo desembargador
Cristóvão Burgos e Contreiras – vasta posse que lhe foi outorgada no dia 13 de
dezembro de 1682, pelo governador de Pernambuco, D. João de Souza.

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Ainda outros documentos atestam que as caatingas daquela região fronteiriça aos
estados da Bahia e Alagoas teriam sido penetradas pelas “Bandeiras” que desbravavam
os mais longínquos sertões a procura de ouro e caçando os índios com o intuito de
aprisioná-los ou, simplesmente, matá-los.
Em virtude da ocupação e domínio holandês, o movimento colonizador foi
suspenso para só recomeçar em 1655, após a derrota e retirada dos flamengos.

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FORMAÇÃO DAS PRIMEIRAS ALDEIAS

Apesar de seu reduzido tamanho: 21.990 km. Sergipe abriga em seu território
dois sertões, o do Rio Real e o do São Francisco.
O domínio holandês – 1630/1654 – fez com que os sertões nordestinos fossem
efetivamente descobertos. Seus rios foram os caminhos e as pousadas dos escorraçados
de Olinda, a então portentosa cidade de Pernambuco.
Muitos dos que viveram aquelas verdadeiras diásporas nordestinas, tiveram no
lendário rio São Francisco o paradeiro de sua dispersão. E assim, nasceram em suas
margens, os aldeamentos, lugarejos e povoações, muitas das quais, no correr dos anos,
se tornaram grandes cidades ribeirinhas.
E foi lá longe, no ponto mais distante do Baixo São Francisco, ainda no território
sergipano e, numa curva quase que inacessível das margens desse caudaloso rio da
integração nacional, que caboclos quase primitivos, criaram duas pequeninas aldeias de
pescadores. Duas irmãs gêmeas, ambas escondidas do mundo civilizado, uma próxima
da outra, denominadas Canindé Velho de Cima e Canindé Velho de Baixo.

* * *

Se verdade ou não, o que se sabe é que aquele pedaço de sertão não mereceu o
menor interesse por parte dos primeiros desbravadores.
Mas, comprovando esta afirmativa, basta lembrar que no final do século XIX,
existiam apenas quatro fazendas: Cuiabá, Brejo, Caiçara e Oroco, naquelas matas e
desconhecidas brenhas, absolutamente virgens e maninhas, situadas no hoje município
de Canindé de São Francisco, as quais, anos depois, tiveram a companhia de mais
algumas propriedades, dentre elas podemos citar a Pedra D’água, a Planta do Milho, a
Belo Horizonte, a Cana Brava, além de outras que também se tornaram famosas.
A vida então, neste mundão bravio e inculto, se resumia praticamente ao
recolhimento da farta subsistência que era retirada, pelos sertanejos, do potencial deste
sagrado e benevolente rio, que lhes era ofertado através remanso, às vezes preguiçoso,
às vezes agitados, de suas caudalosas águas!...
À época, reinava a beleza das velas e traquetes enfeitando e colorindo o deslizar
das canoas; além da beleza das chatas, botes e navios, a percorrer, rio acima, rio abaixo,
o caminho fluvial tão utilizado pelos beiradeiros, senhores das águas, dos peixes e das
matas; no interior das quais fixavam suas moradias, com a salutar companhia dos bichos
e da passarada, além de muita paz e tranqüilidade.
Naquele recanto escondido do sertão sergipano, as pedras negras e pontiagudas
de suas corredeiras tornavam o amado rio São Francisco, um trecho praticamente
inavegável. Mesmo assim, alcançando uma mestria ímpar, os célebres canoeiros
conseguiam aportar suas embarcações com bravura e competência, no esquecido
aldeamento que veio a se tornar no último porto navegável do Baixo São Francisco.

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PÁGINA BRANCA

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O NASCER DOS CANINDÉ’s DE CIMA E DE BAIXO

O lento e enfadonho passar dos anos, fez com que humildes taperinhas de
pescadores ficassem com a aparência de um lugarejo. Ali viviam João e José Alves,
Ota, José de Terto, Libório, Antônio Fininho, Neco de Carlota e mais algumas famílias,
pioneiras do Canindé Velho de Cima.
Descendo o rio, a partir daí, se situava outra pequenina povoação. Esta chamada
de Canindé Velho de Baixo, que se tornou posteriormente num feudo do capitão Luiz da
Silva Tavares, um dos herdeiros do famoso “Morgado de Porto da Folha”.
No século XIX o tão falado “Morgado de Porto da Folha” foi extinto e, suas
terras, da qual faziam parte os dois Canindé’s, foram consideradas devolutas pela
Coroa, que nomeou um administrador para inventariar os seus bens.
No final daquele século, o capitão Luiz da Silva Tavares fez negócios com o
coronel Francisco Cardoso de Britto Chaves – coronel Chico Porfírio – ao qual vendeu
vastas glebas de terras naqueles confins de Sergipe.
O coronel Chico Porfírio fez do pequenino arraial o ponto de partida para seus
projetos de desbravamento daquela terra cabocla. Com pressa de realizar seus objetivos,
este potentado cuidou de construir algumas casas e, em sociedade com o irmão, o
também coronel João Fernandes de Britto, deu início a uma ousada e nunca esperada
empreitada. A construção de um curtume.
Os barranqueiros se abismavam com a imponente obra. Ninguém poderia
imaginar que, um dia, aquela humilde povoação tivesse condições de tratar, curtir e
comercializar todo tipo de peles.
Mas era verdade! O simplório povo de Canindé estava conquistando um
extraordinário poder aquisitivo. Esse empreendimento proporcionou um vigoroso
impulso em favor daquele esquecido e desamparado povoado. Tanto que, com o poder
de influência e a força deste célebre latifundiário, o pequeno lugarejo se tornou
referência nos sertões dos Estados de Sergipe, Bahia e Pernambuco.
À frente do curtume o notável fazendeiro colocou o seu parente Tonhinho Britto
– Antônio Porfírio de Britto, (*23/03/1884 + 19/07/1965), famoso pelos seus dotes
poético, jornalístico, seresteiro além de ser um apaixonado contista das coisas do sertão.
Os trabalhos do curtume tinham a chefia e responsabilidade do Mestre Cícero –
Cícero Lima, afamado químico industrial e comerciante de cereais, um solteirão vindo
de Pernambuco, acompanhado do irmão Sebastião.
O armazém do Mestre Cícero fez história no Canindé Velho de Baixo. E assim,
aquele antigo e pequenino aglomerado de pescadores cresceu e se diferenciou de seu
vizinho/irmão e, também, de muitas outras localidades assentadas à beira do imenso rio
de água doce, verdadeiro presente de Deus para os nordestinos.
O progresso foi grande, ensejando que, no dia 07 de novembro de 1899, através
da Lei estadual no. 368, o pequeno núcleo ribeirinho fosse elevado à condição de
Distrito de Paz.
Todavia, algum tempo depois esta Lei foi revogada.

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Este é o lendário Dr. Hercílio Porfírio de Britto
(Acervo de dona Hilda Fernandes)

A FAZENDA CUIABÁ

Senhores de vastas posses, os Porfírio de Britto eram eméritos desbravadores de


terras. O velho patriarca da família, Chico Porfírio, era homem de larga visão e espírito
inovador. Logo cedo percebeu que as caatingas brutas daquele inóspito sertão eram
férteis e propícias à criação de gado e toda espécie de “miunças” – criação de bodes e
ovelhas.
As terras daquele recanto de mundo eram consideradas devolutas, vindas dos
tempos do “Heréu”, encravado nos célebres limites do “Morgado de Porto da Folha”.
Mundão desolado e desconhecido. Caatinga fechada. Morada de animais
bravios. Mataria ideal para se criar gado. Ali a gadama pé-duro não precisava de pastos
artificiais para sua subsistência.
O atilado coronel compreendeu que aqueles campos eram de primeiríssima
qualidade para as atividades pastoris e se voltou imediatamente para o criatório de
bovino, caprinos e ovinos.

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E foi assim que, naqueles chapadões e descampados de serras, numa mataria
densa e alta, da caatinga chamada de Lava Prato, onde o poderoso homem do Baixo São
Francisco resolveu edificar uma fazendola. Inicialmente de pequeno porte, desprovida
de luxo e grandeza, apenas uma casinha de taipa simples e modesta, no mesmo estilo e
feitio de tantas outras, daquelas que se convencionou em chamá-las de “meia água” e
que, aos poucos, iam se espalhando pela imensidão do mundo dos caboclos.
As suas formas eram características: uma porta partida ao meio, duas janelas, o
inconfundível telheiro, ainda o terreiro e a malhada, o curral de pau-a-pique e o
chiqueiro dos bodes.
Estava pronta e criada uma nova fazenda naqueles ermos. E seguindo os
costumes da época a mesma precisava receber o nome de batismo. Assim foi feito.
Estava nascendo a futura rainha das fazendas do sertão sergipano, a Cuiabá.

* * *

Com o correr dos anos a fazendinha se transformou e, atendendo às demandas


do desenvolvimento inaugurado com a implantação do curtume, foi instalado um forno
de cal, que seria o responsável pela cinza que iriam abastecer o estabelecimento onde se
curtiam as peles e os couros. Formou-se assim, um mine complexo que, como se previa,
levou o seu proprietário aos píncaros da fama. Suas terras se multiplicaram e dentro
delas foram construídas “soltas” – enormes glebas cercadas de arame farpado – e nelas
o numeroso rebanho bovino que atestava a grandeza daquela que, em poucos tempos, se
tornou na grande senhora das fazendas sertanejas.
As “soltas” eram imensas. A dos bodes, considerada a menor, media mais de mil
tarefas. Porém, as do Umbuzeiro Grande, da Beleza e a do Poço eram tão extensas que
não se sabia a quantia de suas tarefas.
Assim, integrando o maior complexo desenvolvimentista daquela época, foi
construído nos primeiros anos de século XX, iniciado em 1905 e terminado em 1906,
um represamento de água, feito de pedra e cal, que é o maior açude particular de toda e
qualquer fazenda assentada nos sertões de Sergipe, uma obra de arte... Uma verdadeira
obra-prima.
Foi assim que nasceu a maior fazenda do Sertão do Baixo São Francisco. O
grande e maior feudo de todo aquele universo do caboclo. A rainha/mãe dos mundos
caipiras. A inigualável Cuiabá.

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VAQUEIRO CAVALO E BOI

Com o espantoso e incrível crescimento da falada propriedade dos Britto,


surgiram boas novidades no ofício de lidar com gado, emprestando a essa atividade
profissional um ingênuo tom de beleza, graça, coragem e bravura. E, além dos
vaqueiros e agregados, surgiram as figuras do gerente e do vaqueiro-mor – líder e chefe
de seus companheiros no serviço campeiro.
No segmento de vaqueiro-mor, o mais famoso foi Miguel Quita. No de gerente,
o primeiro foi Virgílio Ângelo Ventura. Depois, vieram os senhores Antônio Fernandes
de Sousa (Tonho de Lino), Francisco Machado Costa (Chiquinho Lameu), Antônio
Apolônio Costa, Ananias Fernandes dos Santos e outros.
Eram célebres vaqueiros e, com eles, também surgiram famosos cavalos e
lendários bois que fizeram a bela história do alto sertão e do incomparável feudo de
Chico Porfírio e, posteriormente, de seu filho Hercílio Britto.
Ainda ecoam pelos campos da Cuiabá dos nossos dias, os gritos destemidos da
vaqueirama montada em seus afamados cavalos, arriscando suas próprias vidas nas
carreiras brutas e perigosas, no encalço de bois ligeiros, brabos e quase selvagens.
Em que lugar da história sertaneja está os registros que dão conta da epopéia
dessa brava e encourada gente? Será que a posteridade deve ignorar os saudosistas
feitos heróicos dos vaqueiros da Cuiabá, posteriormente disseminados por outras
plagas? Quem conhece ou já ouviu falar na incomum competência de Pedrinho de
Eustáquio, tido justamente como o maior e mais famoso vaqueiro daquelas paragens
sertanejas? Quem conhece as aventuras de Mané de Eutáquio – irmão de Pedrinho –
também de Zequinha de Lé, Timbé e seus filhos Daniel Ricardo e Mané; Leobino e seus
filhos Pedro e Zé Leobino; os Quita – Miguel, o pai e Mané, o filho – e tantos outros
jovens sertanejos que viveram suas mocidades vaquejando gado e correndo atrás de bois
brabos nas profundezas daquelas misteriosas caatingas.
Em que lugar da historiografia pastoril do Estado de Sergipe e do sertão os
nomes destes heróis do gibão e da perneira estão anotados e guardados com o carinho e
o zelo que eles merecem?
E os seus cavalos?
Eram inacreditáveis, a harmonia, graça e a cumplicidade mútua que existia entre
o vaqueiro e seu companheiro de glórias... O cavalo!
Existiram cavalos que, ainda hoje, são reverenciados por velhos campeadores
que enchem os olhos d’água ao recordar as façanhas vividas por eles e seus animais de
campo que, em duplas, foram os responsáveis por memoráveis carreiras e
extraordinárias aventuras.
Mas, qual poeira do sertão, levada pelos ventos para bem longe, e com ela os
restos mortais dos lendários cavalos que ficaram no anonimato, mesmo tendo feito
incríveis parcerias com inesquecíveis vaqueiros e mesmo os tendo tornado campeões
das muitas e perigosas corridas atrás de reses bravias, fazendo com que os seus
incomparáveis feitos glorificassem e aumentassem, ainda mais, a fama daquela que foi a
mais notável fazenda sertaneja... A Cuiabá, mesmo assim, se perderam pelos labirintos
insondáveis do esquecimento.
Infelizmente, não se conhece nenhum estudo histórico sobre o pastoreio daquela
parte até então esquecida de Sergipe. Não existindo registros que atestem a forma bravia
de se levar a vida naquele sertão e, muito menos se conhecem os nomes dos heróis do
gibão e das perneiras. Reparando essa injustiça seria uma maneira de afagar, com

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carinho e zelo, o ego desses desbravadores sertanejos. Eles geraram a nossa cultura!...
Será que eles não merecem?
Por isso, na memorável história de Canindé de São Francisco e, em particular,
da Cuiabá, está registrada nessas páginas, a odisséia desses campeões das caatingas,
mestres da lida campesina, os quais, com seus cavalos, deveriam ter seus nomes escritos
no pedestal mais alto, fazendo justiça àquela que foi em seus tempos de apogeu, a
fazenda/mãe do Sertão do São Francisco.
Pois, a insensibilidade do “homem dos novos tempos” não pode jogar no
esquecimento os feitos que fizeram a grandeza e a fama dos atores da nossa história...
Os vaqueiros e seus cavalos.
De saudosa lembrança, cito os cavalos Propriá, Oriente, Estrela D’alva,
Ventania, Baixa Verde, Guarani, Pombo Roxo, Brinquinho, Sequioso, Bonsucesso,
Brinquedo, Peça Fina, Meladinho, Capivaró, Indolente, Borboleta, Natureza, Ideal, Bala
Seca, Rufa, Azulão, Cambuí, além de um sem número de outros animais de montaria
que será impossível enumerá-los, se bem que eles tanto mereciam.
E os bois?
É oportuno mencionar também, os famosos marruás que deixaram seus nomes
gravados pelas quebradas daqueles cerrados e daquela densa mataria. Os que viveram
aquela saga, jamais irão esquecer os feitos de bois de imensurável valor e do quilate do
Chumbinho, Mar Azul, Dia Santo, Bela Moça, Mestiço, Mancha Fina, Carneiro,
Faceirinho, Pernambuco, Azulino, Pinta no Olho, Bem Amado, Bem-te-vi, Quixaba,
Beija-Flor, Dançarino, Jacu e muitos outros de célebres medições de forças com
intrépidos vaqueiros e cavalos; novilhos da raça pé-duro que criaram fama e fizeram a
fama de seus denodados perseguidores.

* * *

Por todos esses componentes, as vaquejadas e pegas de bois da Cuiabá ficaram


gravadas na memória dos povos sertanejos. Nem o épico das pegas de bois do gado de
Mané do Brejimho, nas caatingas de Poço Redondo, se compara às peripécias e
aventuras vividas pelos vaqueiros da grandiosa propriedade dos Britto.
Impossível seria enumerar a totalidade dos condutores do rebanho pé-duro, de
tantos que eram os famosos titãs das caatingas que viveram os tempos memoráveis dos
ajuntamentos e pegas de bois, daquela que era a vanguarda e o orgulho das fazendas
sertanejas.
Todavia, sabe-se, com certeza, que Pedrinho de Eustáquio, que foi um dos
vaqueiros da velha guarda, ali chegou desde a época grandiosa do coronel Chico
Porfírio, foi o mais laureado, o campeão daquela mataria bruta, espinhosa e maninha.
Pedrinho teve em seu comando cavalos excepcionais. Podendo-se destacar o
Propriá, o Pombo Roxo, o Sequioso e o Brinquinho. O Propriá foi o cavalo mais veloz
da Cuiabá! Nenhum outro a ele se comparava. O Pombo Roxo e o Sequioso eram
também dois campeões. No entanto, o cavalo da preferência de Pedrinho era o
Brinquinho. Pedrinho e Brinquinho quando no trabalho pareciam feitos de um só corpo,
uma só alma e uma só idéia. Dava gosto vê-los pelejando com gado. Parecia que ambos
se falavam nas corridas de boi brabo. Um adivinhava o pensamento do outro.
Brinquinho não precisava nem de chicote e nem de esporas, sabia perfeitamente das
suas obrigações e o que fazer para alcançar com extrema habilidade uma rês bravia.
Brinquinho era um sábio.
E assim, aqueles dois companheiros, aqueles dois parceiros de glórias, foram
celebrados como os reis das pegas de boi. O novilho, por mais feroz ou mandingueiro

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que fosse, ao se vê perseguido por aquela infernal dupla podia se considerar perdido,
fragorosamente derrotado e estava fadado a ir para o cambão. Nenhum boi conseguia se
livrar das garras daqueles dois campeões do mato.
Outros vaqueiros seguiram as pegadas famosas de Pedrinho, entretanto, nenhum
deles, se igualou em destreza e conhecimento da lida campeira.
Pedrinho e o cavalo Brinquinho eram verdadeiramente inseparáveis. Como
exemplo, merecem registro alguns flashes dessa história memorável da pega do boi
“Bela Moça” e, também de outras feras, a seguir:

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O maior de todos os vaqueiros
Pedrinho de Eustáquio (Pedro França Belém)
(1907 – 03/09/1993)

O BELA MOÇA

Apesar de seu nome efeminado, o Bela Moça, que fazia parte do seleto grupo
dos bois brabos da fazenda Cuiabá, era um marruá da raça pé-duro.
Essa boiada bravia espalhada pelas “soltas” do fazendão dos Britto era o terror
dos vaqueiros. Muitos desses bois eram nascidos e criados nos cafundós daquela
mataria e viviam escondidos nas moitas e baixios quase que inacessíveis. O mato e o
capoeirão era o inóspito mundo daquele e de outros bois pés duros. Durante o dia
procuravam se esconder nos cantos mais fechados. Acoitados, esperavam a noite chegar
para, ao amanhecer, pastar e beber nos riachos, barreiros e caldeirões.
Quando não estavam sozinhos eles procuravam se acamaradar entre si, sem, no
entanto, se aproximarem da vacaria ou qualquer outra rês. Conheciam todos os segredos
e mistérios das caatingas, do entrançado cipó de leite e também dos intransitáveis
bancos de macambiras, croatás, quipás e facheiros.
Só vaqueiro de “sangue no olho” – como diziam velhos caipiras – tinha coragem
em adentrar aquele mundão perigoso e selvagem para correr atrás daquelas indomáveis
feras.
O Bela Moça era um animal erado. Tinha o pêlo pardacento e era um dos que
haviam nascido e se criado ali mesmo naquelas “soltas” famosas da Cuiabá. Além de
muito brabo, o boi era extremamente dotado de uma velocidade espantosa; muitos
vaqueiros haviam perdido as mais variadas carreiras e, em todas elas, o boião deixava,
na poeira dos carrascais, os cavalos que o perseguia e sumia vitorioso na mataria.

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A fama deste novilho ia longe e, sua invencibilidade causava admiração
incomum no meio dos campeadores. Indiferente ao que dele se dizia o boião vivia
enfiado e escondido nas baixadas e grotões, passando anos sem ninguém “por o olho”
nele.
Mas, como diz um velho provérbio sertanejo, “tudo tem seu dia” e esse dia
chegou para aquela rês famosa, quando, numa tardinha, Timbé andejava pelos fechados
de uma compacta mataria e, de repente, sem jamais esperar, se deparou com ela, deitada
e remoendo debaixo de um araticunzeiro.
Sem ser notado, silencioso e com muito cuidado, o velho campeiro se afastou do
local e, apressado, retornou para a Cuiabá, precisava avisar ao gerente – Virgílio Ângelo
– de seu importante achado.
Pedrinho foi chamado e recebeu ordem de ir pegar o temível campeão das
caatingas.
Na manhã do outro dia, antes do sol despontar, um pequeno grupo composto
pelo próprio Timbé, e ainda, Virgílio Ângelo, o gerente; Miguel Quita e Pedrinho, os
dois se destinaram para as “bandas” da Lagoa do Mato. Foi ali naquelas proximidades
que o veterano pelejador de gado tinha visto o boi.
Os vaqueiros estavam prevenidos e preparados. Timbé montava o Azucrim; o
gerente estava no Meladinho; Miguel Quita, no Brinquedo e Pedrinho de Eustáquio, no
afamado Propriá, o cavalo mais veloz da fazenda.
Uma porfia iria acontecer naqueles ermos. Vaqueiro cavalo e boi iriam mais
uma vez medir forças.
O grupo chegou à Lagoa do Mato. Dali apenas Timbé seguiu em frente. Iria
rastejar um boi praticamente selvagem e todo cuidado era pouco. O boião não podia ser
espantado senão a caçada poderia ir “por águas abaixo”.
O sol já pendia quando o veterano servidor retornou. Trazia notícias do Bela
Moça que estava escondido numas moitas de cipó de leite do outro lado do baixio.
Os cavalos foram imediatamente arreados. A hora da verdade havia chegado. A
vaqueirama seguiu por uma veredinha. Timbé era o guia. Atrás dele Pedrinho e Miguel,
os responsáveis pela carreira.
O grupo chega à beira de um varjado. O Propriá se inquieta. Sente a presença de
algo. Suas orelhas apontam para um dos lados daquela vegetação espessa. O afamado
vaqueiro não tem dúvidas: ali está o boi caçado.
Os cuidados são redobrados. Com infinita cautela apenas Pedrinho e Miguel se
deslocam na direção indicada pelas orelhas do cavalo. Não podem espantar o pé duro
antes da hora certa. Os cavalos caminham silenciosamente e contra o vento, importante
manobra que impede o animal caçado sentir o cheiro de quem está lhe caçando.
Num repente, surpreendido e sem alternativa, o brabo correu no meio da
mataria. O seu arranque foi deveras assombroso. Numa rapidez impressionante e
inacreditável o novilho fazia o chão tremer sob o impacto de seus cascos,
desenvolvendo uma velocidade que mais parecia uma flecha ou um raio.
Pedrinho era o ponteio. O seu cavalo carregava a fama de ser o mais corredor e a
hora de mostrar que tudo que se dizia dele era verdade havia chegado. E como que
picado por milhões de ferroadas o Propriá arrancou no encalço da rês bravia.
Era verdade. Nunca tinha aparecido na Cuiabá um cavalo tão ligeiro e veloz
como aquele. A sua velocidade era inigualável e deveras impressionante. Num instante
estava “pisando nos cascos” do famoso e invencível mestiço.
A carreira estrondava por toda a caatinga, enquanto uma grossa poeira subia, em
canudos, além das copas das árvores; galhos de facheiros e quipás e folhas de
macambiras e de croatás eram jogadas para o ar; o marmeleiro, a quixabeira, a

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caatingueira e o cipó de leite eram derrubados como se fossem folhas secas e se
espalhavam ao longe.
A terra estremecia nos arranques e prosseguia no galopar impetuoso do boi e do
cavalo que, por sua vez, ia ganhando terreno e cada vez mais encostava seu queixo na
anca do, até aquele instante, imbatível pé-duro.
Experiente e conhecedor profundo daqueles carrascos, o boi corria pelo meio de
uma caatinga infestada de cipó de leite, dificultando ao máximo a perseguição de seus
inimigos que, no presente caso, eram o homem e o seu cavalo.
A perseguição se alongava além do imaginado, mas, sua intensidade não
diminuía. O boi, brabo como uma fera selvagem, continuava veloz como se fosse um
foguete. Só mesmo um campeão da estirpe de Pedrinho tinha condições de enfrentá-lo.
Finalmente havia chegado à hora. Ali estavam, de um lado, lutando para não ser
alcançado o boi Bela Moça. Célebre marruá que junto com Chumbinho eram os reis
daquelas caatingas e do outro lado, em tenaz perseguição ao boião pardacento, um rei!
O rei dos vaqueiros, Pedrinho de Eustáquio.
Aquela medição de forças, portanto, parecia não ter fim. Os ecos dos cascos dos
animais estrondavam no chão duro do sertão. Boi e cavalo se enfiavam nas moitas
escuras de cipó de leite. Atravessaram-nas numa rapidez impressionante.
Certo de que o boi estaria em suas mãos e iria ser amarrado, Pedrinho gritou:
“morreu Bela Moça! Eu quebrei o seu encanto”.
Enquanto isso, a corrida ainda continuava numa rapidez incrível. Boi e cavalo
pareciam raios cortando o espaço. O Propriá corria leve e solto, tranqüilo, sem nenhum
contratempo. Era um fiel vassalo do rei.
Mesmo sem “afinar” a carreira o pé-duro dá sinais de está à mercê de seu
terrível perseguidor. No entanto, não se entrega e não se dá por vencido, pois confia em
sua sagacidade e esperteza e, tenta uma última cartada. Ainda com notável ligeireza,
corre na direção de umas escarpadas baixadas, a uma distância de uns cinqüenta metros.
Era tarde demais, o Propriá já o dominava por completo. Com experiência e
habilidade, Pedrinho corre emparelhado com a afamada rês. Com firmeza no braço
arrasta o brabo pelo rabo – cauda - e com elegância e destreza, sem muito esforço,
esparrama o boião no chão encrespado do sertão.
Quando os companheiros chegaram o outro boião invencível fungava,
desesperado, amarrado num tronco de um angiqueiro.
“Bela Moça num deu prum cardo”!... Diziam zombeteiros os pelejadores de
gado, ao falarem da grande façanha do vaqueiro dos vaqueiros e seu incomparável
cavalo corredor.
E assim, o imbatível boi perdeu a fama e o encanto. Com um cambão no
pescoço foi tangido para os currais da fazenda e, dali, para a “solta” dos bodes, até que
chegou o dia em que foi levado numa boiada com destino ao Jundiaí donde,
posteriormente, foi para o matadouro da cidade de Propriá, onde teve morte inglória
para um campeão das caatingas do sertão.
Triste fim de um herói da Cuiabá.

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Zé Leobino (José Ventura Lins), antigo vaqueiro da Cuiabá.

O BOI CARNEIRO

Eis que, após muitos anos de profícuo trabalho dedicado a lida campeira, o
aparecimento implacável da velhice se fez presente. Timbé e Pedrinho de Eustáquio,
integrantes do pioneirismo da Cuiabá, faziam jus a um justo e merecido repouso. Foi o
que aconteceu. Timbé se aposentou, e Pedrinho, sem a força e vigor de outrora, se
mudou para a fazenda Belo Horizonte, de Sinhô Britto, onde trabalhou por mais alguns
anos, para depois ir prestar os seus inestimáveis e derradeiros serviços na fazenda Oroco
para, logo após, abandonar o brilhante ofício que abraçara e ir curtir a sua velhice no
povoado Curituba.
Chegava ao fim o reinado de Pedrinho de Eustáquio.
E, como é natural com o passar dos anos, a inevitável reformulação também
chegou ao grande feudo dos Britto. Novos vaqueiros surgiram para substituir aqueles
que já estavam vencidos pela aproximação da terceira idade e deixavam a lida do mato,
enquanto outros, tendo completado seu ciclo de vida terrena, foram correr bois nos
infinitos campos da eternidade.
Todavia, resistindo ao peso dos anos, o famoso e envelhecido Leobino, mesmo
aposentado, não perdera o gosto e nem o costume de lidar com gado. A Cuiabá era seu
mundo e sua vida e, seus filhos José e Pedro, seguiam seus passos nos trabalhos
campesinos e também se tornaram dois conceituados vaqueiros. O José (Ventura Lins)
popularmente chamado de Zé Leobino, desde quando era um garoto de apenas 12 anos
de idade, já usava perneira e gibão e, desde muito jovem, angariou boa fama e prestígio,
e foi considerado um dos melhores vaqueiros da nova geração da Cuiabá, ainda nos
verdes dos seus anos.

24
* * *

Era quase como que uma agenda natural. Nos meses de novembro a dezembro,
quando o inverno tinha ido embora e o verão se aproximava, aconteciam além das
vaquejadas e festas, as tão ansiosamente esperadas pegas de bois.
Na Cuiabá, tudo estava pronto para mais uma temporada de caça aos afamados
brabos das “soltas”. A vaqueirama, inquieta e ansiosa, esperava o início da grande
porfia. Os cavalos estavam prontos e “milhados” para, fortalecidos, enfrentar a árdua
campanha. A lida na caatinga bruta, por mais dura e penosa que fosse, era aguardada
com expectativa, ansiedade e muita satisfação pelo campônio que amava ser vaqueiro.
A boiada arisca se espalhava pela imensidão das mais de 50 mil tarefas de
“soltas”. A função tinha início todos os dias, ao raiar do sol. Os vaqueiros adentravam
as caatingas e só retornavam quando o mesmo ia se escondendo por detrás da serrania.
Um expressivo número de bois ia para a corda e o cambão, depois eram levados
para os pastos da sede da fazenda e dali, após formar uma grande boiada, todos seriam
transportados para as pastagens do Jundiaí.
Freqüentemente, chegavam notícias de que eram vistos bois em determinadas
áreas das matas da vasta propriedade. Essas informações causavam imensa alegria entre
os campeadores que logo se preparavam para a perigosa, porém divertida lida, para eles.
Certa feita, uma informação dava conta de que foram vistos cinco desses
animais bravios: eram os irmãos Carneiro e Azulino – filhos da vaca Azulina; – o Bem-
te-vi – um boi laranjo-fogo com uma mancha branca no lado direito; – o Bem Amado e
o Pernambuco – este último, o único boi de compra.
Como de costume, a notícia animou os vaqueiros e Zé Leobino, Tonho e Mané
Quita, Mané Timbé, Hermínio, Zequinha e Tonho Soares receberam as tão almejadas
ordens para irem caçar os bois e pegá-los de qualquer maneira.
Por este tempo, Zé Leobino prestava seus serviços em outra fazenda do coronel
Hercílio, a Capela e, conforme o combinado, o mesmo iria esperar seus companheiros
na Lagoa do Brabo.
Muito cedo, os campeadores seguiram para o cumprimento da ordem do gerente.
A caatinga bravia e os bois quase selvagens estavam esperando-os para mais uma
gigantesca medição de forças.
No curso do primeiro dia, nem sinal dos novilhos. A noite desceu, e os
campeiros, muito cedo, se recolheram e foram dormir. O frio era grande, mas não
acenderam fogo. Se assim fizessem corriam o risco de espantar a diminuta boiada.
A madrugada foi chegando. O silêncio da mataria foi substituído pelo alarido de
umas “têm-têm”. Zé Leobino, conhecedor profundo dos segredos do mato, despertou
Mané Timbé e lhe disse: “tá vendo aquelas “têm-têm”? Tão gritando com os bois”.
Era verdade. Os brabos vinham beber na lagoa, mas, em virtude da algazarra das
aves recuaram e se amoitaram nos fechados de uma baixada e antes do dia clarear,
desconfiados e ariscos, se retiraram da proximidade da lagoa.
Por fim, o dia amanheceu. Os animais foram selados. Zé Leobino estava
montado em seu afamado Viadinho, o melhor dos cavalos que passaram por suas mãos.
Sem demora, muito cedo do dia, acharam as pegadas dos touros. Os bois se
espantaram e correram na direção da Lagoa do Ouricuri. Sabendo do perigo que
estavam expostos, procuravam os cantos e bibocas de mais difícil acesso. A “puxada”
era medonha. Os marruás não paravam e, naquele instante, corriam em plena caatinga
dos Espinheiros.

* * *

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A pequena manada se dispersou. Mané Timbé vê um boi passando em sua
frente: é o famoso Pernambuco! Não espera seus companheiros. Aproveita o momento
propício e inesperado e, dando rédea a seu cavalo, o Natureza, arranca nos pisos do
mesmo.
A carreira é curta. O Natureza era um excelente cavalo. Quando os contendores
iam passando pela Lagoa das Pedras o touro é arrastado e amarrado no tronco de um
angico.
Mais um brabo, da Cuiabá, ia pra corda e seria mandado para a Jundiaí.
Os vaqueiros voltam a se agrupar e combinam rastejarem os outros bois em
duplas! Assim o fazem... A “puxada” de rasto é forte. O sol pendeu, fazendo a tarde
chegar... Os homens do gibão estão rastejando nas caatingas do Serrotinho e do Serrote
da Beleza.
Mataria densa e quase que intransponível! Trecho onde a macambira e o croatá
cobriam totalmente o chão. Morada de preá e do inhambu. E era num emaranhado
desse, que o homem, o cavalo e o boi se enfrentavam, numa luta de grandes e
verdadeiros heróis.
Num relance avistam um boi. É o Carneiro... Assim chamado em virtude de ter
os chifres quase que enfiados no pescoço.
Zé Leobino é o ponteio do grupo. O seu cavalo, o Viadinho, é um especialista no
assunto e mostra todo seu valor e capacidade correndo velozmente atrás do boião, não
lhe dando folga.
O Carneiro faz jus a sua fama. É um boi tarimbado e de incrível agilidade. Corre
pelas bibocas mais difíceis. A medição de força se demora muito além do esperado. O
sol já está querendo se esconder. A disputa continua. O boi não arrefeceu sua carreira e
nem o Viadinho demonstrou cansaço ou fraqueza. Pelo contrário, se aproximava pouco
a pouco de um dos mais famosos brabos da Cuiabá.
A corrida se alonga mais do que o esperado. A esta altura, apenas Zé Leobino e
Mané Timbé estão no encalço do novilho. Os outros haviam sumido na poeira e
estavam perdendo aquela extraordinária porfia.
O Carneiro atravessa o Riacho dos Espinheiros, passa na Pia do Croatá e alcança
a Baixa da Palha. Os seus perseguidores não desistem, querem vencê-lo a todo custo.
O escuro da noite começa a se anunciar. O dia está indo embora. Parece que a
carreira será perdida! Zé Leobino continua na frente e Mané Timbé o acompanha de
perto. Qualquer contratempo que viesse acontecer ele assumiria a responsabilidade de
pegar o boi.
Com a chegada do escurecer o Viadinho ganhou novas forças e começou a se
aproximar do Carneiro. Corre tão perto do boi que seu focinho está encostado em sua
anca. Com o adiantado da hora, o mesmo já está praticamente vencido e nas mãos do
vaqueiro poeta da Cuiabá. Conseqüentemente, o cair da noite será a sua única
possibilidade de salvação.
Mas, ao passar pelas Queimadas de Miguel Quita, o famoso marruá é arrastado.
Com destreza Zé Leobino o derruba e Mané cuida em laçá-lo e amarrá-lo no tronco de
uma aroeira. E fim de festa para um dos campeões das caatingas.
A fama do Carneiro, naquele instante, estava chegando ao fim, pelas mãos de
dois famosos campeiros.

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Daniel Ricardo, um dos maiores vaqueiros da Cuiabá.

O BOI MANCHA FINA

A nova geração da Cuiabá, como não poderia deixar de ser, era tão espetacular
como aquela dos tempos do coronel Chico Porfírio.
Alguns dos veteranos ainda trabalhavam na grandiosa propriedade. Timbé fazia
companhia a Leobino e outros amigos dos primeiros anos da fazenda. Mesmo
envelhecidos, os antigos mestres das caatingas viviam da lida dos currais, cuidando da
vacada parida, chiquerando os bezerros e de vez em quando, para matar a doída
saudade, adentravam as caatingas rastejando boi brabo.
Timbé tinha especial orgulho em ver seus filhos Tonho, Mané e Daniel serem
reconhecidos como vaqueiros de muito futuro.
Um deles, Daniel, já era considerado um dos melhores da fazenda e de todo
sertão, um verdadeiro campeão das corridas de boi brabo. Montado num dos seus
cavalos Estrela D’alva ou Guarani, dificilmente perdia uma “botada”, como se chamava

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o correr atrás do boi. Brabo que corresse em sua frente estava praticamente condenado a
ir para o cambão.

* * *

Pegar boi era a especialidade dos vaqueiros da Cuiabá, porque criados, muito à
vontade, naquela imensidão de terras, eles se tornavam arredios e indomáveis. Era, pois,
uma necessidade também e, por isso, ali trabalhava com gosto e orgulho, a nata dos
homens da perneira e do gibão. Na grande “solta”, vivia um número incalculável de
rebanho bovino, enfiadas naquelas caatingas, algumas reses que, de tão bravias, jamais
entravam num curral e, nem sequer chegavam perto da malhada de uma fazenda. Essa
boiada veio a se tornar um seleto grupo denominado de “os brabos da Cuiabá”.
Um boi chamado Mancha Fina era um deles.
Em suas andanças pela mataria Mané Timbé, mestre do ofício descobriu os
rastos de quatro bois. O atilado homem do mato, por incrível que possa parecer, sabia
diferenciar este daquele rasto, assim como a qual rês os mesmos pertenciam e, aquelas
pegadas, eram as de Chumbinho, Dançarino, Jacu e Mancha Fina. Quatro feras
bravias!... Quatro bois que eram tidos como invencíveis.
Com aquela importante descoberta, Mané cuidou em retornar. Precisava avisar
ao gerente. Ao saber da novidade, o chefe convocou um grupo de vaqueiros para o
imediato cumprimento da missão de pegar as feras caatingueiras.
No dia seguinte o próprio Mané Timbé, acompanhado de seu irmão Daniel e,
ainda, Tonho e Mané Quita, mais o já famoso Zé Leobino, seguiram para o local aonde
haviam sido descobertos os rastos dos novilhos.
Um inconveniente, porém, se apresentou. A notícia da caçada chegou até os
vaqueiros da vizinhança, os quais, na ânsia de participarem da grande aventura, se
apresentaram de imediato. Caçar boi brabo, antes de fazer parte das obrigações de seus
ofícios, era uma honra muito grande para aquela gente que amava a vaqueirice.
O sol já descambava quando o grupo chegou à fazenda Capela. Zé Leobino
estava nervoso e impaciente. Aquela demora poderia, perfeitamente, fazer com que
aquele dia fosse perdido.
Mesmo assim a turma seguiu para o mato.

* * *

Mané Timbé, o extraordinário rastejador, não demorou em, mais uma vez,
descobrir as pegadas dos bois que estavam acamaradados.
Os touros sentiram a presença do homem e, imediatamente correram para outros
recantos da mataria. A direção tomada foi a do Varjado do Cascalho e, dali, se
destinaram até o Reginaldo, indo depois para o Riacho do Croatá, e, ainda enturmados,
subiram caatinga afora e foram se esconder num alto onde ficaram observando os
movimentos dos vaqueiros que perambulavam pela Baixa da Palha.
Após um breve descanso, as bravias reses novamente trotaram na direção do
Riacho do Croatá, para depois seguirem no rumo do Serrote do Ouricuri. Ali chegando,
os brabos perceberam, pela movimentação dos seus perseguidores, que estavam sendo
caçados. Cuidaram em se dispersar. Porém, sem se distanciarem em demasia uns dos
outros. Cada um procurando a sua defesa, contudo, sabendo onde os companheiros
estavam. Tudo feito dentro de um plano pré-estabelecido e, de tão bem bolado, mais
parecia realizado por mente humana e muito arejada.

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A perseguição recrudesceu. Três mateiros, Daniel, Zé Leobino e Mané Timbé
estavam na linha de frente. Os outros se atrasaram, ficando muito distante e sem
possibilidades de alcançar os animais perseguidos.
A tarde chegou... Mas, cavalos e bois continuavam no mesmo ritmo alucinante!
Os vaqueiros precisavam aproveitar o resto daquele dia, o escurecer da noite não
tardava e aquela caçada poderia ser desperdiçada. O que estava acontecendo, no
entanto, estava muito além do imaginado.
Por detrás das serras e montes, o sol já começava se esconder. De repente, Mané
Timbé, que estava montado no Ideal, avista um boi! É o Dançarino... Com firmeza,
esporeia e solta à rédea de seu cavalo, afundando na mataria numa disparada louca.
A rês bravia corre à sua frente... Zé Leobino o acompanha e, mais atrás, está
Daniel. A carreira pertence a Mané, pois, no código sertanejo ninguém pode ultrapassá-
lo, a não ser com sua autorização.
Entrementes, o cavalo Estrela D’alva aponta suas orelhas para outra direção.
Alguma coisa chamou a sua arguciosa atenção. Daniel percebeu a mudança de sua
montaria e a deixou agir por sua própria vontade. A causa da inesperada atitude de seu
cavalo foi sem nenhuma demora descoberta. Lá estava, num desvio da caatinga, outro
boi. Num relance o vaqueiro o conheceu. Era o Mancha Fina. O mesmo ali passava
desenvolvendo impressionante rapidez que mais parecia um raio.
Daniel Ricardo grita de entusiasmo e alegria. O boião afamado caíra em suas
mãos. Zé Leobino deixa de seguir Mané Timbé para acompanhar o seu parceiro de
tantas jornadas.

* * *

Sozinho, sem o estímulo de seus companheiros, Mané Timbé não foi feliz em
sua empreitada. Após titânica luta, o Dançarino jogou terra em sua cara e foi embora,
deixando-o abobalhado e sem ter o que dizer a seu irmão Daniel e a Zé Leobino.
O Mancha Fina, no entanto, não teve a mesma sorte, havia caído num verdadeiro
abismo. Agüentou pouco... Sua carreira foi curta e breve. Num instante, o vaqueiro, o
cavalo e o boi estavam misturados e, na subida de uma baixada, o boião foi arrastado!...
Mais um dos célebres bois brabos da Cuiabá estava derrotado, preso e com um cambão
no pescoço.
A fama do Mancha Fina havia terminado, agora iria seguir como os outros para
as engordas de Propriá.
Seu fim seria o de tantos outros, o matadouro daquela cidade.

29
ILUSTRES FILHOS DE CANINDÉ

30
Dom Juvêncio de Britto e o povo do Canindé Velho de Baixo
(Gentileza de dona Socorro)

DOM JUVÊNCIO DE BRITTO

O Canindé Velho de Baixo ofereceu ao Sertão e a Sergipe homens que deixaram


os seus nomes gravados nos anais históricos do Nordeste e do Brasil.
Dentre tantos personagens de importância extraordinária, um nome ultrapassou
todos os outros. Era ele um Ministro de Deus, possuidor de um profundo sentimento de
amor pelo seu semelhante e pelos preceitos divinos, era um fiel representante do
catolicismo. Este venerando Senhor de batina era Dom Juvêncio de Britto, filho de
Antônio Porfírio de Britto e de dona Maria José de Britto, nascido em 02 de agosto de
1886, no então pequenino arraial de Canindé Velho de Baixo.
O futuro Ministro de Deus iniciou a sua caminhada escolar em seu próprio
lugarzinho de nascimento, tendo como professora dona Lygya Baptista Nogueira.
Com o passar dos anos, já crescido e portador de uma inteligência muito além da
normalidade, o rapazinho de Antônio Britto seguiu para os centros evoluídos do
nordeste, indo estudar nos Seminários de Alagoas e posteriormente no de Olinda, em
Pernambuco.
Juvêncio se tornou num excepcional aluno. A vida de seminarista o levou a se
apaixonar e seguir os caminhos do sacerdócio. Os estudos continuaram. E eis que, no
dia 20 de novembro de 1910, recebeu com extremo orgulho e felicidade o presbiterato,
das mãos de Dom Luiz Raimundo da Silveira e Britto.
Os caminhos religiosos se tornaram para ele, um mundo sublime em proveito do
sertanejo de Canindé. Em 1911, o ilustre filho da beira do São Francisco estava
desenvolvendo a sua missão religiosa na cidade sergipana de Estância e, um ano depois,

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em 1912, vamos encontrá-lo já em Vila Nova da Rainha, atual Neópolis, em obediência
a uma merecida e tão esperada nomeação como vigário daquela paróquia.
A estrada do futuro Monsenhor foi florida e repleta de bênçãos divinas. Ainda
naquele ano de 1912, dia 09 de julho, recebeu a missão de ser o responsável pelo
Seminário de Aracaju, onde permaneceu até janeiro de 1917.
Desponta o ano de 1918 e com ele a nomeação por provisão como vigário de
Propriá.
Outras grandes conquistas estariam por chegar. Em 1927 alcança a invejável
condição de Bispo da Igreja Católica e vai exercer a sua nobre e santificada função em
Caetité, na Bahia, ali permanecendo até o ano de 1945 para, finalmente, em 1946, ser
transferido para a cidade pernambucana de Garanhuns, assumindo a diocese local.
Dom Juvêncio era um virtuose da escrita. Escreveu discurso de saudação ao
Governador Dr. Maurício Cracho Cardoso, então presidente da província, por ocasião
da visita a Propriá, discurso esse, publicado no Diário Oficial de 08 de 11 de 1923. Foi
autor ainda de outro discurso de saudação também ao presidente da província, por
ocasião de um banquete, ainda em Propriá, oferecido pelo Cel. Chico Porfírio e,
igualmente publicado, naquele mesmo dia 08 de 11 de 1923, no Diário Oficial.
Chega o ano de 1954. Ano triste na vida do Canindé Velho de Baixo e do mundo
católico. Ano em que marca o encerramento do ciclo terreno da vida de um dos mais
notáveis homens de toda história sertaneja. Aquele que, saindo de uma simples aldeia de
pescadores, conseguiu ser Bispo e mais que todas essas glórias, foi um autêntico
semeador de amor e ternura em todos os cantos da terra, por onde passou.
Dom Juvêncio de Britto é, portanto, honra, orgulho e glória de Canindé de São
Francisco.

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ANTÔNIO PORFÍRIO DE BRITTO

Tonhinho Britto era irmão de Dom Juvêncio. O ilustre e querido moço


ribeirinho, ao nascer, no dia 23 de março de 1884, recebeu o nome do próprio pai, ou
seja, Antônio Porfírio de Britto ali mesmo, na povoação à beira do último porto
navegável do Baixo São Francisco.
Este irmão de Dom Juvêncio se tornou num atilado comerciante e, com, além
desse pendor comercial, era um apaixonado pela natureza, cujo sentimento aliava ao
profundo amor pelo seu mundo sertanejo. Tonhinho tinha especial orgulho em dizer-se
filho das barrancas caboclas do “Velho Chico”.
Homem de rara inteligência e sabedoria! Este descendente dos Britto era um
amante do saber, dos contos, da escrita, da poesia. Vivia com tinta, caneta e papel nas
mãos. Colaborou com vários jornais da época, dentre eles “O Lutador”, “O Nacional”,
“O Monitor”, “A Semana”, “O Penedo” e “O Norte”.
Na impressa, costumava usar os mais variados pseudônimos, os quais saíam de
sua finíssima capacidade de criar personagens, dentre eles, destacam-se Romero,
Jaguarema, Mero, Paulo Cangerama e Paulo Beroba.
A sua dedicação para com as letras era verdadeiramente impressionante.
Escrever era um instante prazeroso em sua vida.
Amava as mulheres. Era um boêmio e seresteiro na abrangência maior e mais
digna da palavra. Não bebia e era sumamente respeitoso para com as normas da vida e
dos preceitos divinos.
As cantigas enchiam sua alma de imensa felicidade. Naqueles instantes tão
felizes tinha como companhia, além de seu parceiro de cânticos, apenas o violão e o
cavaquinho. Não permitia a presença nefasta de qualquer tipo de bebida alcoólica e
dizia que, sua cachaça, era o amor e a paixão que sentia pela mulher amada.

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Fiel companheiro do violão e do cavaquinho, Tonhinho se tornou num virtuose
das cordas de um pinho. Dava gosto vê-lo dedilhando, com invulgar mestria, qualquer
um daqueles instrumentos. Amava as “quadrinhas” e as modinhas da época. Uma
serenata, os dengos de uma cabocla sertaneja e as fascinantes noites de lua clara, a
iluminar as ruazinhas do pequeno lugarejo da beira do São Francisco, era o seu mundo,
o seu paraíso e a sua vida.
Estão nos anais históricos do Canindé Velho de Baixo, os sublimes momentos
em que, aquele descendente dos Britto, tocando o seu violão ou o seu cavaquinho,
acompanhava Domingos Livino, detentor de belíssima voz que, ao se espalhar pelo
arruado, acalentava os sonhos e os desejos daquela gente sequiosa de carinho. Assim, os
dois alegravam as noites silenciosas do amado lugarzinho.
O povo ouvia embevecido, o som dolente e cheio de ternura de um pinho
magistralmente executado, acompanhando a bela e incomparável voz de um cantador
nativo do sertão. O aconchego e a tranqüilidade daquelas noites enluaradas do sertão,
naqueles tempos, serviam de inspiração para o grande poeta e escritor que fazia nascer
de sua arejada cabeça e do seu altíssimo grau de sentimento, artigos, versos, dramas,
romances e contos de primeiríssima qualidade.
É de sua lavra o conto “Rebentos: phantasias”. Em 1908 escreveu “Penedo” e os
artigos “Cartas do Sertão”, para “O Lutador”; “Cobras do Sertão”, que foi escrito em
1910, para “O Penedo”. E ainda, o drama “O amor de Leonor, ou casamento por
ambição”. É também de sua autoria o romance “O mártir” e o livro de prosas “Flores da
primavera”. Como se pode atestar Tonhinho Britto era um intelectual do mais alto
gabarito.
Este célebre descendente e representante de uma dinastia familiar de afamados
senhores feudais, com poderes absolutos, em toda região do Baixo São Francisco,
nascido no Canindé Velho de Baixo, foi um homem que dignificou os seus patrícios
sertanejos. Sua história é a história de profundo amor pela arte, pela cultura e por sua
terra ribeirinha.

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A ESTRADA DO TEMPO

Os anos correram na estrada do tempo. O mundo andejava no início do segundo


terço do século XX. O ano já era de 1936 e encontra o Canindé Velho de Baixo com
120 casas, um armazém, o do Mestre Cícero, além do curtume do Coronel Chico
Porfírio.
Pode parecer muito pouco em termos atuais, mas, na época, era um deslumbre
na região. Ainda tinha uma capelinha. Era ali, naquela simpática igrejinha, que os
seguidores do catolicismo e dos preceitos divinos, pregados pelo catolicismo, iam fazer
suas preces e pedir remissão de seus pecados.
Assim, aos poucos, os sonhos daquele povo iam se tornando realidade. De tal
modo que, em 31 de dezembro de 1936, em obediência à divisão territorial estabelecida,
o povoado foi elevado à categoria de 2o. Distrito de Paz, do município de Porto Folha,
para se tornar vila, dois anos depois, em 28 de março de 1938, através do Decreto Lei
no. 69.
Chega à década de 40 e com ela, logo em seu primeiro ano, um acontecimento
lamentável. O curtume, único fator de desenvolvimento regional é desativado, impondo
um grande baque econômico e financeiro à comunidade do Distrito de Canindé,
tornando bastante crítica a situação de sua gente que perdeu a sua fonte de emprego e
renda.

* * *

Os tempos haviam sofrido radicais mudanças. O mundo agonizava com a brutal


guerra provocada pelo famigerado Adolf Hitler. Os clamores daquela hecatombe
mundial estavam chegando até o sertão do distante Sergipe.
Entretanto, as caatingas sertanejas viviam o ápice de suas fazendas,
empanturradas de um número incalculável de gado pé-duro. Mesmo assim, o
desenvolvimento e o progresso dos campesinos ainda não se equiparavam ao dos
beiradeiros. O caminho pelas águas detinha grande força e poder e, como dantes,
continuava com imensa influência. Conseqüentemente era pelas águas do grande rio que
passavam as grandes decisões do Baixo São Francisco.
Mas, a “Era Lampião” tivera fim. O cangaço deixara de existir. A morte de
Virgulino Ferreira, o seu incomparável chefe, fez com que a paz e a tranqüilidade
retornassem a todos os recantos e lares sertanejos.
E assim o forte homem das barrancas do velho rio nordestino, contava com o
excelente desempenho do trabalho campeiro que, impulsionado pela produção cada vez
maior do roceiro, do vaqueiro, enfim, o homem do campo, o que proporcionava, cada
vez mais fortemente, o sustentáculo econômico e financeiro regional, numa edificante
convivência entre os concorrentes no mercado das ofertas, do que tinham, e das
procuras, do que não tinham.
Registre-se, por conseguinte, que, nessa concorrência de peso, os caipiras do
gibão, com aquele jeito desengonçado e aparentemente molenga, caminhavam céleres,
chegando desse modo, ao domínio total e absoluto da vida e das coisas do sertão,
suplantando os barraqueiros das margens do rio e do mundo do canoeiro e do pescador.

* * *
No Canindé Velho de Baixo os tempos eram outros. O curtume tivera o seu
triste final. O Coronel Chico Porfírio havia cumprido a sua missão terrena e o seu filho

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e herdeiro Dr. Hercílio Porfírio de Britto era o todo-poderoso da família.
O caminho pelas águas continuava dominando o sertão. As rodovias ainda não
haviam alcançado o mundo do caipira.
Mesmo enfrentando enormes dificuldades, os canoeiros, garantidos pela sua
própria perícia, faziam com que o porto do Canindé Velho de Baixo fosse
movimentado. Às canoas e outros barcos ali aportavam. O destaque especial ficava por
conta da famosa canoa Canindé – antiga Carité – a maior embarcação sem quilha de
toda a linha fluvial do São Francisco.
Do arruado era também a Pirapora e a Ângela Maria – antiga Jardineira – esta de
propriedade do senhor Ananias Fernandes dos Santos, além das chatas Zeladinha, Iara I
e Iara II, ambas, como a Canindé, de propriedade do Coronel Hercílio Britto.

* * *

A saga bandoleira deixou no povo de Canindé seqüelas irreparáveis. Portanto,


não se pode registrar a História daquele município ignorando os terríveis sofrimentos
que sua gente viveu durante aqueles anos de agonia e dor.
Nos livros de minha autoria, “Lampião além da versão” e “O Sertão de
Lampião”, estão documentados episódios e combates acontecidos nas terras
canindeenses durante aquela tremenda e fatídica guerra cangaceira. É evidente que os
dolorosos eventos que apavoraram, e alguns deles enlutaram o povo de Canindé, não
poderiam deixar de fazer parte desta obra.

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A ERA LAMPIÃO NA VIDA DO CANINDÉ VELHO DE BAIXO

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TRAGÉDIA DE CANINDÉ DO SÃO FRANCISCO
ZÉ BAIANO O CARRASCO FERRADOR
(transcrito do livro “Lampião além da versão”)

O sertanejo está aflito, tristonho e desanimado. As experiências e crendices de


fim e início de ano demonstram um possível quadro, negro e assustador. Os prenúncios
levam a crer que as chuvas serão poucas, ou será o estio total e absoluto.
Os dias do novo ano despontam. Amanhecem com longas, lindas e
avermelhadas barras. O matuto, em seu primitivo costume, coloca pedras de sal no
sereno da madrugada. Crendices realizadas, sempre e sempre, nas noites dos primeiros
dias do ano. Se as pedras ficarem molhadas é bom sinal, indício de boas chuvas, bom
inverno. Mas, se as mesmas ficarem secas, enxutas, é mau agouro, vestígio que
representa a ameaça terrível das secas, tão medonhas quanto temidas.
O pereiro não florou. As baixadas amanhecem com forte neblina fechando
campos e cerrados. Evidências que denunciam um próximo verão. Possibilidade trágica
de mais uma seca, de mais um ano de fome e miséria - fatal espectro que apavora a
gente daquelas paragens e daquele mundo de sofredores.
O temor, a angústia, as crendices e as superstições foram todas totalmente
confirmadas. O passar lento e enfadonho dos dias e dos meses mostrou uma tenebrosa
seca. Seca que delegou, naquele ano de 1932, ao homem do campo, um dos mais tristes
e maiores flagelos da história sertaneja. História escrita com páginas de escassez e
amargura. A seca, condutora das desgraças sertanejas, sempre foi à maior aliada do
banditismo.

* * *

Nas caatingas de Canindé de São Francisco um grande coito está armado. Ali
descansam Lampião e sua malta. O poderoso chefe maquina uma terrível investida
contra o povoado ribeirinho que ousa aquartelar uma volante; como se não bastassem os
aborrecimentos que a “força” de Zé Rufino sediada na vizinha Serra Negra, lhe traz.
Fato que evidencia o cerco que aos poucos as autoridades nordestinas vão
fechando em torno do maior cangaceiro e do próprio cangaço.
Estamos no início do ano. É a noite de cinco de janeiro de 1932. Durante o dia o
calor foi sufocante, o sol abrasador. A caatinga está esturricada, seca, com o seu solo
rachado e sem vida.
Contrastando com a tristeza da terra, o dia derrama seu azul pelos campos do
infinito, enfeitando serras, vales e caatingas; formando, assim, uma linda e esplendorosa
paisagem. Esse cenário, apesar de sua incomparável beleza, entristece o sertanejo que
em sua secular sabedoria cabocla, sabe que não existe a menor possibilidade de chuvas.
A noite chega. Lá pras bandas do sertão distante, nas lonjuras do Salgado do
Melão, um relampear fraco e ameno indica a tardança das chuvas.
Em seu reduto, Lampião reúne seu estado maior: Corisco, Zé Baiano, Mariano e
Luis Pedro. Diz os seus planos. Acordam em invadir o pequeno arraial dos Britto no dia
seguinte.
De imediato apresenta-se um problema de difícil solução: como invadir o
povoado sem correr o risco de um grande confronto com a soldadesca que infesta às
ruas e pracinhas do arruado?
O genial cangaceiro faz valer a sua poderosa habilidade. Coloca em
funcionamento a sua espantosa inteligência e um raio de luz flui fácil, exuberante, de

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sua privilegiada cabeça. Surge a solução para o entrave, e ela se apresenta com nitidez e
muita facilidade. A perigosa aventura não passaria de algumas horas de divertimento.
Vejamos:
Lampião manda chamar – naquela mesma noite – o fiel amigo Chico Vaqueiro,
um dos muitos coiteiros de sua mais absoluta confiança. Conhece-o desde que pisou em
terras sergipanas, sabe que o mesmo, além de ser grande conhecedor da região, é muito
destemido e de não se acovardar facilmente. Além disso, deve-lhe muito. Sendo assim,
propõe-lhe a arriscada missão, dizendo:
- Chico, eu tô percisando de um grande favor seu.
Chico indaga:
- Quá, Capitão?
Lampião continua:
- Eu quiria qui você amanhã fosse cedinho no Canindé e dissesse ao tenente qui
eu tô aqui. Só num me diga qui foi eu qui mandei você espaiar a nutiça.
Chico, apavorado com o pedido de Lampião, responde:
- Mais capitão, qui doideira é esta? Us homi vão discunfiar. Vai ser pior pru
sinhô e pra mim.
Lampião responde:
- Não, Chico, num é cuma você tá pensano não. Elis num vão discunfiar não.
Você nem percisa percurar o tenente. Abasta você espaiar a nutiça. Quando os paisanos
ou os macacos lhe priguntar, e você sabi qui quando eles botar os zóio im você a
primeira coisa qui vão fazer é priguntar se você sabi aonde tão os cangaceiros, aí você
aproveita e conta.
Assim foi combinado. Assim foi feito.
O dia amanheceu friento. Uma neblina cortante esfumava as serras e picos,
branqueando o leito manso e dolente do Velho Chico. As suas negras e pontiagudas
pedras estavam encobertas pelo nevoeiro, mais um sinal de terrível canícula.
Na bodega do Mestre Cícero, que junto ao irmão Sebastião, comandava o
comércio do pequeno vilarejo, alguns madrugadores saboreiam a gostosa e sempre
repetida cachaça, misturada com angico.
Chico Vaqueiro vem chegando. Perguntam:
- Qui diabo você anda fazeno uma hora desta?
Chico responde:
- Vim comprar uns cachetes. Tô cum um fio cum andaço.
Bebe uma pinga. Conversa com os amigos. Procura ganhar tempo. Deixa as
horas passar. Com o sol já passeando pelos caminhos do céu sai da vendinha e finge que
vai visitar alguns parentes. Leva os “cachetes”, são eles que justificam a viagem – no
linguajar caipira “cachete” significa comprimidos de melhoral.
Olha, espreita, têm esperanças de que apareça a oportunidade de cumprir a
missão que lhe foi confiada. Ver pessoas conversando na tamarineira que sombreia a
larga rua. Descobre um soldado no meio daquela gente. Preguiçosamente para lá se
dirige. Cumprimenta os presentes:
- Bons dias minha gente, vocês cuma vão?
Prazerosamente todos respondem ao cumprimento do visitante e tem inicio uma
conversa que, como se esperava, descambou para o grande tema da época: cangaceiro.
O soldado é quem dá a partida, perguntando.
- Tem noticias de cangaceiro?
A tão esperada oportunidade se apresenta fácil, logo pelas indagações de um
soldado. O coiteiro responde:

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- Num sei não, sinhô sim, meu sordado, mais dernantonte qui tá haveno ribuliço,
movimento estranho, prus lado das Pias do Filipe. Mais eu num sei qui diabo será, mais
se for bandido, podi ter certeza, meu sordado, eles tão cachetando da puliça.
O “macaco” fica espantado com o que o matuto diz. Aquela conversa iria
interessar o tenente. Sem demora faz com que o caatingueiro o acompanhe até a
presença do comandante.
O plano de Lampião está saindo perfeito.
Com calma, jeito manso, sabedoria e desembaraço, Chico Vaqueiro desempenha
com mestria o papel que lhe fora confiado.
Na presença do tenente o matuto vai em frente com sua trama. Faz um relato
completo, minucioso, de tudo que sabe, de tudo que ouvira. Floreia com gestos de quem
está morrendo de medo.
Depois de mil rodeios diz que na verdade vem do próprio acampamento comprar
os “cachetes”, já que vários bandidos estão atacados de uma forte constipação – gripe –
e que Lampião está no coito e totalmente descuidado, sem nenhuma preocupação. Diz
ainda que o grupo passa o tempo jogando, bebendo e brincando, com a certeza de que
não será atacado pelas “forças”.
O tenente Matos era um garboso oficial do exército brasileiro, prestando seus
serviços no 28o B.C., de Aracaju. Porém, naquele momento de sua vida militar, por
força do espantalho chamado Lampião, havia deixado a rigidez dos quartéis, para
enfrentar, talvez, o maior desafio de sua carreira, ao sair da grande cidade para as
caatingas e carrascos do sertão sergipano.
O jovem policial das forças armadas, ao se deslocar para esse desconhecido
mundo, vinha apenas imbuído do cumprimento do dever e, homem destemido que era,
queria enfrentar o valente e os rigores daqueles chãos desconhecidos.
Por capricho e ironia do destino quem comandava o destacamento daquele
pequenino povoado, encravado nas margens do último porto do Baixo São Francisco,
naquele instante objeto da vingança do rei do sertão, era justamente aquele fogoso
militar da farda verde, o tenente Matos.
Ali, nos ermos do Velho Chico, um aglomerado de casebres à beira do lendário
rio sertanejo, vivia a agonia daquela tenebrosa era, a “era Lampião”. Região onde
alpargatas ferradas pisavam com incrível constância.
Ao receber os informes concretos do caipira, sem tardança, o guapo militar,
prepara seus homens e segue ansioso, à caça do grande bandoleiro.
É a primeira vez que o tenente vai medir forças com o famigerado cangaceiro.
Não está nervoso e nem apreensivo. Muito pelo contrario, se sente orgulhoso com a
missão que se lhe apresentou. Arruma e comanda seus homens. Está feliz e esperançoso.
Há bastante tempo ambiciona e espera por este momento; quer colocar à prova os seus
dotes e conhecimentos militares; quer sentir a sua verdadeira coragem pessoal que,
aliás, tanto alardeia; quer comprovar a capacidade de suas reações nos momentos de
maior perigo.
Militar afeito à rigidez dos quartéis, com seus severos códigos, seus teóricos
ensinamentos táticos, de onde nasceram os grandes feitos e heroísmo de muitos
soldados. Com esse pensamento ver passar por sua cabeça o épico de Canudos. Naquele
tórrido chão baiano pelejaram heroicamente militares da estirpe de Febrônio de Brito,
Antônio Moreira César, Antônio Tupi Ferreira Caldas, C1áudio do Amaral Savaget e
tantos outros que escreveram uma grandiosa história de luta, suor, sangue e morte, na
epopéia de Canudos e na grandeza do não menos herói Antônio Vicente Mendes
Maciel, o grande comandante dos fanáticos - Antônio Conselheiro.

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Como aqueles, o comandante de Canindé não conta com a proteção da amiga
terra, do querido chão. Tão intimo e tão amigo, tão protetor dos bandidos. Terra e
bandidos eram feitos de uma só massa, de uma só vida.
O oficial que era talhado nas teorias saídas dos melhores livros e nas eficientes
escolas de preparação militar subestima a grande prática, a extraordinária inteligência de
Lampião que, ao se aproveitar da cumplicidade de Chico Vaqueiro, arma uma perfeita
arapuca e calmamente espera que o tenente e seus homens nela caíam.
Com efeito, lá se vão, em fila indiana, o oficial, o seu imediato – sargento Juca –
, os seus soldados, e ainda, o reforço de duas volantes de Sergipe, comandadas uma pelo
tenente Manuel Ramos e a outra pelo sargento Miranda.
O contingente é numeroso e forte. A soldadesca está animada. Segue resoluta,
sem temor, para o coito dos bandidos. Ansiosa, acha que o cerco será fácil e,
conseqüentemente, a possibilidade de uma grandiosa vitória era muito grande. Se o rei
lá estivesse seria fatalmente derrotado e morto. Como se fossem a um baile, os soldados
adentram as brenhas e penhascos de Canindé.
Iniciam a viagem cometendo um erro absolutamente imperdoável: deixam o
povoado e todas as famílias totalmente desprotegidas, ficando apenas o soldado
Clarismundo que se achava adoentado e impossibilitado de viajar. É de se espantar que
Manuel Ramos e Miranda, dois veteranos chefes de volantes, acostumados com as
tramas e negaças da vida e gente sertaneja, não soubessem o quanto o bandido era um
ser surpreendente. Eram aqueles militares, dois homens que viviam o dia-a-dia das
surpresas da campanha contra o banditismo, acostumados que eram ao jogo e a força
poderosa da guerrilha comandada e idealizada por Lampião e sua trupe; ainda assim,
sabendo dos perigos e das surpresas que estavam expostos, deixarem o tenente Matos
cometer o primário pecado de jogar as famílias e o povoado a mercê da súcia
sanguinária. Erro terrível que custou caro a todos do pequeno arraial.
A folhinha, carinhosamente colocada em todas as paredes das saletas sertanejas,
marcava o dia seis de janeiro de 1932, dia dos Santos Reis, dia em que todo sertão
comemora com festas, jogos e bebidas a religiosa data.
Pela escassez das chuvas. Por não ter caído do céu a tão sonhada e esperada
trovoada, o Santo Dia não estava sendo comemorado. Até parece que uma força maior
havia impedido os festejos em um dia que tanta dor haveria de ser semeada no meio
daquela gente.
Ainda é madrugada. O frescor do amanhecer se espalha pelos campos, trazendo
uma maravilhosa sensação de paz. Lampião, como de costume, está desperto.
Aves fazem uma sublime e terna festa; galos de campina, canários, cabeços e
arapongas entoam cantos de amor e felicidade, enchendo as matas com suas maviosas
canções.
No coito, bem ali, junto à ternura dos pássaros, a paz dos campos e a harmonia
do amanhecer, uma febril correria denuncia os preparativos para mais um dia de dor e
agonia, formando, lamentavelmente, um triste contraste: enquanto inocentes avezinhas
cantam a felicidade e a beleza da vida, ferozes homens, levados ao desespero por uma
série de fatores, obcecados pelo ódio e pela sede de vingança, entoam o canto da
desgraça, do horror, da dor e da morte.
Sem delongas, a caterva parte em direção ao infeliz vilarejo. Com seu destemido
comandante à frente, vão a espreitar, cautelosamente, palmo a palmo, todas as grotas e
encrespados do terreno.
Lampião, sagaz como a juriti sertaneja, não espera o portador do seu recado; vai
esperá-lo em um lugar onde o mesmo ignorava. Tem convicção de que poderia
acontecer alguma novidade e com ela a modificação dos planos por ele formados; não

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podendo, portanto, facilitar. Quem poderia duvidar de um possível fracasso de seu
espião e o mesmo ser obrigado a descobrir toda trama? Sabe que Chico é um homem
forte, mas não tão forte para se livrar das mãos e das terríveis torturas a que seria
submetido se houvesse alguma desconfiança dos macacos.
Como se fosse um bando de jaguatiricas, o grupo desliza suavemente pelas
encostas das serras. Lampião, em vez de esperar a resposta do coiteiro vai ao seu
encontro. Não deixa a menor possibilidade de surpresas desagradáveis. Nem Chico e
nem os da volante poderiam imaginar que o rei dos cangaceiros havia realizado tão
simples manobra, mas tão eficiente que o colocava totalmente senhor da situação.
O bando se esconde na garganta de uma serra. Local de uma visão deslumbrante.
Ponto altamente estratégico e seguro.
Toda a vasta região está sendo observada. Amparados pelos labirintos e
socavões da serra os bandidos não poderão ser descobertos.
Ainda é muito cedo. Lá embaixo, do outro lado da cordilheira, desponta a
soldadesca. Caminha pelo espigão da serra. A cabroeira atenta observa. Rindo, Lampião
diz:
- Cairu cuma passarim na minha arapuca.
Canindé está lá embaixo, no grotão da serra, na beira do São Francisco,
completamente indefeso. Os asseclas estão em seus arredores com o bote armado. Vão
chegando, vão chegando. Só são notados quando já estão dentro do arruado.
A surpresa toma conta dos moradores do lugarzinho. Ninguém acredita no que
está vendo. Mas, a realidade é deveras triste e apavorante. O povoado acaba de ser
invadido por um grupo de cangaceiros. Ali, bem no meio da rua, um bando de homens,
vestidos de mescla azul e mal encarados, se apoderam da povoação e de seus habitantes.
Viu-se logo que não eram soldados; portanto, aquela turma só poderia ser de
bandidos, fato inimaginável para aquele povo, uma vez que aquelas ruas poeirentas
estavam acostumadas com o passo duro e forte das alpargatas e botas militares e nunca
dos cabras de Lampião.
Um cangaceiro desperta a curiosidade e o temor da população. É ele um homem
alto, forte, espadaúdo, negro de feições feias e odientas, gestos espectrais e horrendos,
pernas compridas e secas. Outro não era senão o feroz Zé Baiano, o outrora Aleixo, do
Chorrochó, antigo protegido de Inácio Grande, falado cangaceiro e chefe de cabroeira
daquelas bandas; parente de Zé Sereno e Meia Noite – o de Chorrochó – e dos Ingracia:
Antônio, Cirilo e Luis que, juntos a Antônio de Sinhô Naro, formavam o grupo dos
Ingracia que aterrorizou aqueles mundos baianos até o aparecimento do homem do São
Domingos e da Ingazeira.
A exceção de Antônio de Sinhô Naro, assassinado por Bião de Lau, da fazenda
Incó, no combate do riacho do Timtim, onde ambos caíram mortos, varados por
diversas e medonhas facadas. Os outros se destinaram a companhia da maior estrela do
banditismo, o soberano Lampião.
Consta, segundo dados do famoso historiador da saga cangaceira Antônio
Amaury Corrêa de Araújo, em seu livro "Lampião, as Mulheres e o Cangaço", que
Cirilo de Ingracia, um dos irmãos que vieram de Chorrochó e do grupo antigo de Inácio
Grande, havia assassinado o seu irmão e chefe Antônio. O crime aconteceu em uma
festa na região da Várzea da Ema, quando Cirilo, bêbado e enciumado, disparou sua
arma no próprio irmão, triste fato ocorrido por volta dos anos trinta.
Zé Baiano é um medonho cangaceiro. Seus atos e sua feiúra não têm similares.
Traz sempre uma grande e horrenda palmatória pendurada em seu corpo. Tosco e
torturante objeto que serve unicamente para espalhar o terror no meio da gente

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sertaneja. Ele mesmo a batizara com o bizarro nome de "professora" e se deleitava
quando seus supliciados gemiam debaixo de tremendos bolos.
Triste adorno que servia apenas para torturar as infelizes e indefesas vítimas que
caíam em suas desalmadas mãos.
Porém, ali em Canindé, aquele abjeto instrumento não iria torturar as pessoas,
iria permanecer como que adormecido no corpo horripilante do facínora de Chorrochó.
Seguindo orientação de sua mesquinha mente, o bandido planejara algo ainda
mais monstruoso e medonho para brindar aquela infeliz gente.
A maioria das pessoas está indo para o trabalho na fábrica de curtume, entre eles
um atlético rapaz chamado Zé Rosa. São mais de oito horas da manhã.
A cangaceirada se dirige para a fábrica, prende todos, e os leva para a casa de
Chico Capitão.
Os que não estavam na fábrica correm espavoridos e assombrados. Mulheres e
meninos procuram se esconder nas casas. Guiomar e Dom se escondem no sanitário da
casa de dona Amélia.
Anízia do Forno, uma mulher de vida livre, não tem sorte, Zé Baiano a agarra e
com ironia e perversidade arranca do seu bornal um pequeno e bem feito ferro, todo
branquinho, parecendo ser de prata ou alumínio, com as letras JB em alto relevo, e
olhando para Zé Rosa, manda-o esquentar o seu dantesco objeto de suplício. O
famigerado bandoleiro quer deixar sua sanguinolenta marca no meio daquela gente para
todo o sempre.
Zé Rosa se assombra com a ordem do cangaceiro. Sabe que é obrigado a cumpri-
la. Sem forças, impotente, completamente indefeso e dominado pelo medo, vai para a
casa de Martim Teixeira tentar esquentar o ferro. Não encontra fogo. Vai, agoniado,
para a casa de Antônio de Mané. Encontra apenas um tição aceso. Enlouquecido, tenta
reavivar o fogo que está quase apagando. Por fim consegue cumprir a ordem do brutal
assecla.
Quando o ferrete está no ponto certo, com aquela cor vermelho-fogo, entrega-o a
Zé Baiano. O carrasco, incontinente, marca Anízia de um lado do rosto. A infeliz faz
uma horrenda cara e grita de dor. O verdugo, então, sem dó e sem piedade, marca a
outra face, e ainda, com um canivete, corta o cabelo da desventurada, alegando que só
fazia aquilo porque ela era mulher de todos os “macacos”.
Na outra rua pegam Maria Marques, levam-na para o velho e desativado quartel.
Chegara a sua vez. Um outro fogo é aceso. O mesmo ritual. A mesma selvageria. Zé
Baiano repete a mesma perversidade, ferrando-a também no rosto. Alguns cangaceiros
gritam:
- Catuca por baixo! Catuca por baixo!
Zé Baiano atende os companheiros. Suspende o vestido da infeliz e ferra
brutalmente suas nádegas e vagina.
Após marcar as duas infelizes, os facínoras seguem para o novo quartel. No
trajeto prendem Isaura de Birrinho e levam-na para a delegacia. As mesmas
barbaridades são repetidas e a pobre mulher é também ferrada. Depois dessas
atrocidades queimam a cadeia e deixam Isaura jogada no meio da rua.
Quase fazem o mesmo com Natália de Maninho, mas, enquanto alguns
cangaceiros estavam a sua procura, um anjo salvador avisou-a do perigo e ela conseguiu
se esconder na casa de Tindinha de Pedro Rezende, escapando assim da terrível
monstruosidade do desalmado de Chorrochó.
Assim que os asseclas terminam sua macabra missão, seguem justamente para a
casa de Tindinha, onde estava escondida Natalia. Ao chegarem pedem café. Natália está

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em um dos quartos da casa. Escuta as vozes dos monstros. O medo é atroz. Parece que
vai enlouquecer de tanto pavor. Até que, um alívio sem igual, os cangaceiros se retiram.
A tragédia está consumada. A vingança feita. Canindé havia recebido o peso da
ira de Lampião e fora exemplado.
O capitão cangaceiro não tomou parte em momento algum do tenebroso ato de
Zé Baiano. No entanto, deixou que tudo acontecesse conforme a vontade de seu
subordinado. Em nada interveio. Ficou o tempo todo conversando no armazém do
Mestre Cícero, com o semblante carregado e a tudo observando. Com certeza não se
compadecia com o clamor daquela gente, ficando completamente indiferente ao flagelo
imposto pela sua caterva, junto ao indefeso povo de Canindé. Insensível, não se
comovia com as mulheres se estrebuchando, loucas de dor e agoniadas com aquelas
horripilantes marcas que para sempre iriam estigmatizá-las. No rosto de Virgulino
Ferreira da Silva, um só músculo não se movia.
Tudo terminado deixam o infeliz povoado e seguem para a fazenda Amaralina,
onde dormem. No outro dia, ainda cedinho, pisam as terras de Poço Redondo.
Chegam no povoado Cajueiro. O bando demonstra desejos de ali demorar. Quer
brincar e namorar as mocinhas do pequeno arraial. Ali moram bons amigos: Júlio,
Erasmo, Mané e Adauto Félix, os irmãos que tanto ajudam os cangaceiros. Lampião, no
entanto, não permite que seus homens se demorem e ordena que todos se preparem para
viajar.
Voltando ao livro de Amaury, quando ele afirma que Isaura, Natália e Anízia
eram irmãs, filhas de dona Virgem, e ainda a sua afirmação de que foram quatro as
mulheres ferradas em Canindé, é de bom alvitre esclarecer que tal afirmação é
totalmente inverídica, de vez que, como já foi dito, as ferradas foram três: Anízia, Maria
Marques e Isaura de Birrinho; quanto a Natália, realmente, era esposa de Maninho e
estava grávida, aliás, em alto estado de gravidez, mas não foi ferrada.
As mulheres marcadas não eram irmãs. Mana Marques era de Santa Brígida e
aparentada de Mané Véio, o mesmo Antônio Jacó da volante de João Bezerra.
O nosso querido Amaury, um dos maiores pesquisadores da história cangaceira,
talvez tenha recebido as informações de outro dantesco episódio de pessoas marcadas
por Zé Baiano, levando-o a essa confusão. Provavelmente tenha sido o caso das filhas
de dona Virgem, ferradas em uma fazenda de Poço Redondo, no mesmo dia em que
entraram os dois primeiros filhos desse então povoado para o bando de Lampião. Esse
também medonho acontecimento está narrado fielmente em outro capítulo deste
documentário.
Lampião sabia que os fatos de Canindé iriam incorrer em feroz perseguição. Está
inquieto. O pressentimento o atormenta. Tem certeza de que alguma coisa irá acontecer.
Sem perda de tempo, imerge nos grotões e carrascais das serras do São Francisco. Seu
destino é as caatingas e matas de Poço Redondo.
Várias volantes estão em seu encalço.
Mané Neto, o lendário nazareno, arranca de Jatobá, tem urgência em chegar à
cidade de Piranhas; Liberato de Carvalho, outro famoso comandante de volante, abala-
se de Jeremoabo; Douradinho vem de Paripiranga; todos, apressados, querem dar caça a
Lampião e sua gente.
O destino é Sergipe.
A tragédia de Canindé teria resposta.

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Zé Rosa. O homem que esquentou o ferro JB para Zé Baiano ferrar as mulheres.

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FOGO DA LAJINHA
NA LAGOA DO DOMINGO JOÃO
(transcrito do livro “Lampião além da versão”)

Zé Rufino e seus homens descansam na Serra Negra. O local preferido para as


prosas é a Rua Velha. Ali namoricam as meninas de Poço Redondo e jogam bilhar no
salão de Ermerindo (meu pai), um sergipano vindo das bandas do Carira, ali fazendo a
vida com uma mesa de bilhar e outros jogos.
Capão e João Fuisso disputam uma partida de bilhar. O jogo é muito fácil para
Fuisso que dar trinta pontos de vantagem a seu opositor. Assim mesmo, Capão não tem
como ganhar a partida. João faz graça. Joga com extrema facilidade. As tacadas
aparecem. Capricha nos giros, nas tabelas e nas retas, nos finos e nos cortes, deixando
seu adversário sem a menor possibilidade de acompanhá-lo. Inconformado com o jogo
forte do companheiro, Fuisso diz que com aquela sorte nem Ermerindo conseguiria
vencê-lo. Alegre João Fuisso diz que nem Olimpio Rabelo, o famoso campeão de
Carira, o venceria.
É um dia de sábado. Os caatingueiros estão chegando pra feira. Um senhor,
ainda rijo e forte, desponta na rua do bilhar. Está montado em um belo burro castanho.
Passa em frente ao salão do jogo. Paulo de Tavinha, ao vê-lo, exclama:
- Olha lá genti! Aquele ali é Temisto. Aposto cuma eli vai acabar cum a nossa
forga. Vocês vão ver.
- Tumara - diz Miguel - eu já tô injuado de ver Capão apanhar de Fuisso. O mió
é a genti andar pur aí.
Temístocles possui uma fazendinha nas caatingas de Poço Redondo, é as
Queimadas, que dividia com as Furninhas, as Capoeiras e a Risada o grande foco dos
coitos bandoleiros naquela região.
Antes de fazer as compras, o sergipano vai até a casa de João Maria. Precisa ter
uma importante conversa com o tenente. O escolado chefe da Serra Negra suspende o
pagamento que fazia aos trabalhadores e leva o visitante para a grande sala de sua
imponente residência. O assunto é relevante. Tão importante que Zé Rufino é
convocado para participar da reunião. Algo surpreendente aconteceu. João Maria se
retira da sala e deixa Temístocles e o famoso comandante da volante a sós, numa
conversa sigilosa.
Os dois se dão as mãos. Habilidoso, o caipira tenta agradar o famoso militar.
- Cuma vai, seu coroné. O sinhô vai bem?
- Vou indo, Temisto, vou indo – responde Rufino.
A prosa é agradável. Chega ao tema preferido. O cangaço. Zé Rufino sente que o
matuto quer levar a conversa para um lado altamente melindroso. Matreiro, finge dar
toda atenção possível ao assunto, dando a impressão de que tem especial interesse por
aquela conversa.
Depois de muito falar, o homem de Sergipe insinua vagamente a possibilidade
de um acordo entre os dois lendários pernambucanos. Zé Rufino deixa transparecer
satisfação em realizar um acerto com o famoso bandoleiro.
O matuto é só alegria e felicidade.
O comandante da famosa volante baiana deixa, cada vez mais, o simplório
sertanejo animado. Nessa altura a conversa é aberta e sem pormenores.
Como seria o acerto? Quando, como e aonde seria o encontro?
De chofre Rufino pergunta:

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- Se eu quisesse, ainda hoje ou amanhã, ter um entendimento com Lampião,
adonde eu poderia encontrá-lo?
- Ôxente, si o sinhô quiser amanhã eu trago a resposta – diz o coiteiro.
- Já sei, o cego tá nas Queimadas ou nas Capoeiras – arrisca Zé Rufino.
A resposta de Temisto foi surpreendente:
- Deixei eli nas Capoeiras.
O militar jamais poderia esperar aquela resposta. Uma revelação daquela era
bombástica. O coiteiro lhe dizer onde Lampião estava deixou-o completamente atônito.
Tenta, a todo custo, se dominar. Conversa por mais alguns instantes. Recupera-se do
choque. Já senhor da situação diz que no outro dia estará esperando a resposta. Assevera
que tem grande interesse num entendimento com Lampião, e termina a conversa
recomendando ao mensageiro que faça a sua feira e retorne de imediato para Sergipe.
Assim que o camponês deixa a casa de João Maria, Zé Rufino segue, apressado,
até o quartel. Tem urgência em relatar a seus comandados a inesperada conversa que
teve com o enviado do capitão do cangaço. Quer a opinião de cada um de seus homens.
As palavras de Paulo de Tavinha estavam sendo proféticas.
Zé Serra Negra é o plantão. Zé Rufino lhe diz que quer todos reunidos no quartel
imediatamente. Os militares são convocados. As palavras do chefe são surpreendentes.
Sem rodeios diz:
- O qui eu vou dizer vocês num vão aquerditar de jeito ninhum. É uma coisa
séria, mais é verdade. Ói, Temisto tava nestante mi dizeno adondi Lampião tá acoitado.
Vocês aquerditam nisso? Eli tava tentano mi comprar e dissi qui o cego tá lá nas
Capoeiras de Julião. O qui vocês acham disso?
- Eu tô achano – disse Bentevi – qui essi coiteiro é um doido da peste. Essa
cunversa pode inté lhi custar a vida. Nóis sabemo qui eli é iguá a Terto, Zé Vicente e
outros, mais vim dizer isso ao sinhô, seu tenente, é um negoço séro.
- Tudo pode ser uma arapuca – diz Ercílio Novais. Vamu ter muito coidado.
- O qui eu sei é qui essi homi tá é cum a gota serena – exclamou o cabo Artur.
Num é possivi qui eli queira botar nóis a pique dessa maneira. Achu qui eli sabi qui si
acuntecer arguma coisa má cum a genti eli vai morrer e num tem quem dê jeito.
- É, eu tenho certeza qui o cego mandou mermo Temisto mi sondar. Eu sei qui
eli tá viciado im comprar muito cabra safado e pensa qui também podi mi comprar. Só
num consigo intender é o fato de Temisto mi dizer adonde Lampião tá. Isto é qui mi
deixou imbaraçado.
- Tem uma coisa – opina Capão. Eu achu qui nóis somo obrigado a percurar
saber a certeza dessa cunversa bem direito. Si tudo for mintira Temisto tem qui pagar no
contado e caro. Nóis vamu na casa deli e esfolamo eli vivo.
Zé Rufino encerra a reunião dizendo:
- Tá bom, tá bom. Vamu ver essa história até ondi vai. Vamu si preparar. Daqui
a pouco vamu até as Capoeiras. Enquanto isto, você Bentevi, vá vigiar Temisto. Num
faça nada cum eli. Deixi eli à vontade. Assim qui o safado viajar você venha pra qui e
nóis vamu atrás deli.
Os passos do matuto começam a ser vigiados. Ainda cedo, bem antes do pender
do sol, o mateiro viaja. Seu burrão despachado, esquipa estrada afora.
O amigo de Lampião viaja feliz. Sua missão foi cumprida à risca. Acha que se
saiu maravilhosamente bem. Com certeza o seu conceito com o grande cangaceiro iria
aumentar.
Ao cair da noite chega.
Com alegria é recebido pelo grande chefe que lhe pergunta:
- Qui tá, viu o Cachorro Azedo?

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A resposta é imediata:
- Vi, seu capitão, vi o homi. Cunversei cum eli e acertei tudo. Foi uma maravia.
Pareci que o homi tava doido pur um acerto. Eli quer qui o sinhô mande dizer adonde é
qui eli e o sinhô podi si incontrar.
Lampião fica pensativo e pergunta:
- Eli percurou saber adonde eu tava?
- Foi, seu capitão, eli priguntou – responde o caboclo.
- E você disse adonde eu tava?
O caipira percebe que sua situação está se complicando. Cuida em negar,
dizendo:
- Não. Num disse não.
O grande cangaceiro não se dá por satisfeito. A alegria inicial havia
desaparecido de seu rosto que agora está sério e carrancudo. Quando volta a falar sua
fala sai fria e áspera. Olhando duramente para o caipira diz:
- Temisto, cunfio muito im você, mais tô veno qui você é uma besta quadrada.
Num sabi di nada dessi mundo. Si eu fossi iguá a você derna muito tempo qui tava de
osso branco. Ói, fiqui certo qui o Cachorro Azedo vem nos seus pisos. Daqui a pouco,
sem demora, eli tá cercano nóis.
Quina-Quina vai passando. Lampião chama-o e ordena:
- Avise o pessoá pra todo mundo si equipá qui nóis vamu sair daqui agora.
- E os minino qui foro pro Poço do Mulungu? – pergunta Vila Nova.
- Deixe qui elis sabi se arresorveri. Elis sabi adonde incontrar a genti.
Inacreditáveis eram essas decisões do capitão. Parecia mesmo um terrível bruxo.
Zé Rufino vinha chegando. Mesmo assim havia se atrasado em virtude da
embriaguez de Gervásio, o rastejador da volante. Tempo suficiente para Lampião e sua
malta deixarem a fazenda e seguirem com destino a solta do major Cesário. Ali estavam
acoitados Canário e Juriti.
A volante vem célere.
Nas proximidades das Capoeiras encontram João Paulo – o mais velho dos
irmãos Paulo. Quando se vê cercado pela temida volante o rapaz perde a esperança de
viver. É irmão de três cangaceiros e uma cangaceira, com certeza não será perdoado.
Surpreendentemente Zé Rufino não permite que ninguém maltrate o camponês.
Ainda mais, trata-o muito bem. Deixando-o tranqüilo. E após mandar um recado para
China do Poço o libera.
O coito é ali bem perto.
Num perfeito leque os vinte e um homens cercam a velha casa. Tudo em vão.
Nada de cangaceiro. Haviam se retirado. Vasculham casa e arredores. Encontram latas
de doces, frascos de cheiro, brilhantina e num mourão do curral acham algumas balas de
rifle.
Lampião e seu bando estão na solta. No coito encontram o pai de Enedina
(Manoel Saturnino) e seus filhos Zé Grande e Libéu.
O capitão está preocupado com os que foram até o Poço do Mulungu, resolve
mandar Libéu procurá-los. Iria esperá-los e assim que os mesmos chegassem seguiria
para a caatinga da Lajinha, no município de Canindé de São Francisco. Ali iria passar
alguns dias no coito seguro da Lagoa do Domingo João.
O irmão de Enedina vai cumprir a ordem do grande chefe. A curiosidade
comicha suas entranhas. Em vez de seguir direto para o Poço do Mulungu resolve
passar nas Capoeiras. Todavia, experiente e cuidadoso deixa a estrada principal e
caminha por uma vereda de gado quase desconhecida. Não tem nada a fazer na fazenda,
mas uma força estranha o empurra para lá.

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Quando vai chegando à malhada toma um enorme susto. Escuta vozes, muitas
vozes. Esconde-se por trás de uma braúna e, espantado, ver a volante passando pela
estrada, na direção de Poço Redondo.
Lembra-se de que seu pai e seu irmão estão no coito da solta. Retorna. Precisa
avisá-los do perigo que estão correndo. Deixa de lado os do Poço do Mulungu e
retrocede na maior carreira. Chega cansado, mas com tempo suficiente para que todos
deixem sem atropelos o coito. Ele, o irmão e o pai seguem para a Jurema. Só iriam para
o povoado quando a volante fosse embora.
Gervásio quer descontar o atraso. Não perde o rasto. Horas depois a volante se
acerca do coito. Encontra-o abandonado. Os bandidos haviam deixado o local a coisa de
menos de uma hora. As trempes do fogo ainda estavam quentes. Os ossos das criações
abatidas estavam espalhados por todo canto. Pontas de cigarros e o capim deitado e
amassado denunciavam a presença do bando naquela solta tão próxima de Poço
Redondo.
Zé Rufino está desconfiado. Olha para seus homens e diz:
- Tão veno, eu achu qui tem um cabra na frente de nóis avisano os cangaceiros.
Elis num são adivinho pra saber adonde nóis tamo.
A “força” está desanimada. Segue para o povoado. Os soldados estão
aborrecidos e de péssimo humor. O velho Trancolino é injustamente espancado e Júlio
Graça e seu Alves são obrigados a uma disputa para ver quem corria mais – o que
perdesse a parelha seria espancado pelos “macacos” da volante.
Júlio Graça arranca e na disparada só vai parar na Serra Negra. Seu Alves não
tem sorte. É alcançado pelos soldados e surrado sem dó e sem piedade.
Os de Zé Rufino estão endiabrados. Não se dão por satisfeitos. Organizam um
corredor humano e colocam dentro dele os irmãos Toinho e Cândido Saturnino. Os
manos são obrigados a lutarem entre si. Aos gritos a soldadesca manda que os dois
lutem, se esmurrem e como recompensa os lutadores recebem todos os bofetões que se
possa imaginar.
Os habitantes do povoado a tudo assistem sem nada poder fazer. Ninguém
compreende tão medonha e absurda atitude dos homens de Zé Rufino que tinham fama
de não torturar a gente sertaneja.
Capão se separa da volante e com alguns homens viaja para Monte Alegre de
Sergipe. Zé Rufino segue na direção da Mandasaia. Dali viaja até Piranhas, onde fica
descansando durante dois dias. Após o repouso retorna para Sergipe e vai dormir em
Canindé. No outro dia se destina até a fazenda Cana Brava.
Não imagina que Lampião está bem perto. No coito da Lajinha.
A “força” não tem nenhum roteiro dos bandidos. Resolve visitar Mané de Áurea,
pai da mulher de Juriti. Nada de cangaceiro. O desânimo toma conta da volante. Sem
alento para caçar os bandoleiros, além de adoentado, sofrendo com uma intermitente
gripe, Zé Rufino se decide pelo retorno de sua tropa a Serra Negra.
O regresso é imediato. Retornam pelas matas do Oroco e vão descansar na Pedra
D’água.
Zé Rufino pergunta a dona Delfina por Rosalvo. A viúva responde que o genro
se encontrava no mato caçando umas vacas.
A volante, ansiosa pelo retorno, vai embora.
Ao chegar do mato o moço se surpreende com a visita da volante. Mais que
depressa corre para o coito. Precisa avisar a Lampião da novidade. A presença de Zé
Rufino na área era algo muito grave.

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Rosalvo encontra Lampião em mangas de camisa, desequipado e completamente
à vontade. Está vestido com uma camisa de mescla azul e na mão direita segura uma
xícara de café.
O capitão lhe pergunta:
- Tá haveno arguma novidade? Você de vorta? Só podi ser novidade.
- Zé Rufino tava nestante lá im casa e já viajaru, dizeno qui iam pro Poço – diz o
coiteiro.
Lampião pensa por alguns minutos. Todos ficam silenciosos. Ninguém
pronuncia uma única palavra. De repente o grande cangaceiro diz:
- Aquele miseravi num foi simbora não. Eli tá quereno me inganar. Vamu ficar
apreparado. Num pudemo cunfiar nas manhas do Cachorro Azedo. Si eli aparicer vai
levar chumbo inté num querer mais. Achu qui eli vai aparicer e topar cum a genti. Vamu
esperá-lo. Qui diabo é isso! Eu tô viveno de correr dessi homi. Será qui adispois de véio
eu tô ficano covarde? Quando eu era novo nunca tivi medo di morrer e nem di ninguém
e pruque agora vivo mi agalinhano cuma uma véia safada? Ôxenti! Qui diabo é isso?
Logo eu o rei dos cangaceiros?
Ói, ninguém vai sair daqui não. Vamu esperá-lo. Eu perciso dar uma lição nessi
cabra qui anda muito mitido.
Elétrico vai passando e diz:
- Cunversou bonito capitão. Vamu ver se essi homi é homi.
Quinta-Feira toma providências:
- Vamu si privinir pessoá. Si os macacos apareceri vão ver cuma é qui o sol
nasci.
Até aquele instante praticamente não existia vigilância. Agora os cuidados foram
redobrados. Quatro cangaceiros – Moeda, Alecrim, Quina-Quina e Pó Corante – foram
escolhidos como sentinelas. Não poderiam ser surpreendidos pela “força baiana”.
Passa-se o primeiro e o segundo dia. Este já vai acabando. A noite começa
descer. Os que haviam ficado no Poço do Mulungu haviam chegado. A alegria foi
grande. O temor do ataque já não existia. Ninguém pensava mais em Zé Rufino. Com
certeza o mesmo teria retornado a sua sede.
Mais uma vez a vigilância foi relaxada.
O retorno da volante para sua sede tinha como principal motivo à enfermidade
de seu comandante. Além do mais, aquela jornada estava sendo um grande fracasso. Os
bandidos haviam sumido. Nenhuma notícia. Nenhum roteiro. E o mais lastimável. Zé
Rufino e seus homens haviam sido vitimados por uma fortíssima gripe, sendo que ele
era o que mais padecia com a doença que havia minado o seu organismo.
As dores não passavam. Muita febre e um frio intenso dominavam o seu corpo.
A cabeça, nem se fala, parecia até que iria estourar de tanta dor. Portanto, o comandante
da volante não estava enganando dona Delfina quando lhe disse que estava indo
embora.
Um novo acontecimento desmanchou os planos de Zé Rufino. Ao deixar a Pedra
D’água a volante seguiu para o Tabuleiro. O dia era de forte calor. No pino do meio dia
a “força” chegou à fazenda dos Britto. Como o calor era em demasia a tropa resolveu
descansar. Iria cuidar no almoço e a tarde seguiria para Poço Redondo.
Os soldados se desequipam e procuram descansar. Modorrentos se espalham pra
aqui e pra acolá, pelas sombras das árvores. De repente algo inesperado e estranho
aconteceu. Desponta, lá no fim da malhada, no canto da cerca, um rapaz. O moço vem
tranqüilo, sossegado. Ver a “força” espalhada na frente da casa. Mesmo assim não perde
a tranqüilidade. Continua no mesmo passo e assobiando. Os soldados olham-no com

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intenso interesse. É que ele traz nas mãos pratos e xícaras, objetos que só poderiam vir
de algum coito.
Alvoroçada, a soldadesca corre, cerca e prende o rapaz. Este, como se nada de
anormal estivesse acontecendo, diz:
- Ôxente! Eu tô vindo dali, daqueli imbuzeiro. Eu fui levar comida pros
cangaceiros qui tão lá.
Aí é que foi alvoroço. Com essa bombástica notícia os soldados cuidaram em
rapidamente se equiparem e, apressados, arrancam na direção do umbuzeiro, ali bem
pertinho, no outro lado da cerca.
Os cangaceiros que ali estavam – Pitombeira, Criança, Lavandeira, Pancada e
sua companheira Maria – vinham de Alagoas, atravessaram no Sacão, foram para o
Logrador, e Júlio Félix informou que Lampião estava na região da Pedra D’água.
Perto do meio dia os viajores chegaram nos arredores do Tabuleiro. Sem
nenhuma pressa foram cuidar em preparar comida, depois passariam na Cuiabá. Ali
tinham certeza que Timbé os informaria do paradeiro certo de seus companheiros.
Após o almoço cuidam em viajar. Escutam vozes, muitas vozes. É a soldadesca.
Pitombeira se achega ainda mais perto da fazendinha para observar e se espanta com
tanto soldado na malhada.
O bando se afasta imediatamente. O mato sempre foi o seu grande aliado. Em
vez de seguir para a Cuiabá o grupo inverte a caminhada. Retorna para os penhascos e
socavões das serras do São Francisco. Precisa enganar a volante. A súcia quer que a
“força” imagine que ela atravessou o rio e se embrenhou no Estado de Alagoas. Os
bandidos estão seguindo as lições do velho mestre. O chão vermelho e duro da beira do
“Velho Chico” iria dificultar o trabalho do rastejador.
Os “cabras” caminham quase que exclusivamente por cima das pedras. Fazem
de tudo para não deixar pistas e nem pegadas. Passam a noite nas grotas e só no outro
dia, aí sim, se destinam para a fazendona do Dr. Hercílio Porfírio de Britto.
Os “macacos” iriam ter muito trabalho para encontrá-los.
Gervásio é um dos melhores rastejadores. Mesmo assim encontra sérias
dificuldades para seguir as pegadas dos bandoleiros. Não consegue rastejar o bando. A
cada instante os rastros somem. Com isso perde precioso tempo. Nessa agonia lá se vão
dois dias. Dois dias praticamente parados, zanzando, num raio de mais ou menos doze
quilômetros. Aborrecido com o inesperado contratempo o afamado rastejador se dá por
vencido. Zé Rufino, antes tão desanimado, diz:
- Agora nóis só vamu simbora adispois qui incontrar essis bandidos. Eu sei onde
incontrá-los. Vamu vortar pro Canindé. Vamu pro Cuiabá e de lá vamu novamente na
Pedra D'água, tenho certeza que o coito é lá. Essis “cabra” tão quereno é inganar a genti.
Sem a preocupação de rastejar o bando, a volante retorna para o Canindé. Passa
na Badia, na Santa Cruz e no Logrador, ainda cedo do dia se acerca da famosa fazenda.
Os bandidos já haviam chegado. Estavam na casa de Timbé e proseavam com
suas filhas. Nem se lembram dos “macacos”. Sabem que ali estão em segurança.
Garantidos pela proteção do Dr. Hercílio. A Cuiabá é a fazenda mais respeitada de todo
sertão sergipano.
Timbé encosta-se no esteio do telheiro. Fuma um “pagoga” (cigarro). Está
distraído e absorto em seus pensamentos. Sua imaginação voa no tempo. Olha seu burro
pastando na malhada. O animal abana insistentemente as orelhas. Experiente, o vaqueiro
percebe que alguém está chegando. Avisa aos cangaceiros.
- Coidado, vem chegano genti.
Portas e janelas são fechadas. Os asseclas espreitam pelas frestas. A volante
desponta no caminho do Poço.

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A caterva se embrenha na caatinga.
Timbé sabe que nada tem a temer. Vaqueiro da Cuiabá não sofre nem com
cangaceiro e nem com soldado. Manda apenas que suas filhas fiquem no quarto. Abre a
porta e espera a volante.
Zé Rufino o cumprimenta afável:
- Bom dia, Timbé.
- Bom dia, seu coroné – responde o vaqueiro.
- Tem visto cangaceiro? – pergunta o comandante.
- Tenho sim sinhô. Pra lhi dizer a verdadi elis sairu daqui agora mermo.
Zé Rufino se espanta com a notícia e indaga:
- Pra ondi elis foro?
- Pra onde foro eu num sei. Só sei qui quando vocês apontaru ali na estrada elis
correru pela porta de trás.
Imediatamente a força adentrou a caatinga. Agora não teriam tantos
contratempos.
Estavam enganados.
O rastejar naquelas areias brancas seria de uma facilidade incrível. Portanto,
agora era uma questão de tempo.
Não foi assim.
A volante não conseguia andar. Aqui e ali perdia o rasto. Encontrá-lo mais na
frente era um suplício. Perdia-se muito tempo. E nessa agonia a noite chegou. Zé Rufino
está nervoso e arreliado. Não se conforma com aquela situação. Não consegue entender
como os cangaceiros camuflavam suas pegadas, ainda mais num terreno tão propicio
para se rastejar.
Os bandidos foram repousar no serrote da Pedra D’água. Madrugadinha, no
primeiro cantar do galo, o bando seguiu para a fazenda de dona Delfina. Ali iriam tomar
café e depois seguiriam para o coito. Não sabem o local exato do rancho de Lampião,
mas tinham certeza de que a famosa coiteira sabia.
Antes do meio dia Zé Rufino chega na Pedra D’água.
A viúva usa um avental branco. Fica surpresa ao avistar os soldados. Pensava
que os mesmos estavam longe de sua fazenda. Consegue dominar seu pavor. Com muito
esforço procura não demonstrar medo e nem descontentamento pela incômoda visita.
Como quem quer brincar, pergunta:
- O sinhô de novo? O qui aconteceu?
- Eu quero saber ondi tão os cangaceiros? – indaga, áspero, o comandante.
- Mais eu num sei. Cuma eu posso saber ondi anda cangaceiro? – responde, com
aparente serenidade, a viúva.
- Muié, muié, você é genti ou é o diabo em pessoa? Será qui você pensa qui eu
sou besta? Eu sei qui você sabi adonde tão os cangaceiros. Vamu eu quero a verdade.
- Apois eu num sei não. O sinhô sabi qui eu sou uma muié qui nunca tivi
pricisão de andar cum mintira.
João Fuisso chega afobado e chama o chefe, levando-o até o oitão da casa. Os
soldados estão olhando pegadas que atestam a passagem por ali de um grupo de
cangaceiros. Zé Rufino chama a dona da casa e pergunta raivoso.
- O qui diabo é isso dona Derfina? O qui a sinhora vai me dizer agora?
A destemida sertaneja não se faz de rogada. Sem pestanejar responde:
- E pur acaso eu posso impatar de cangaceiro, ou quem quer que seja, andar na
minha casa ou no meu terreiro? Qui curpa eu tenho?
A soldadesca está admirada com a coragem daquela mulher. Os soldados ficam
sem ação. Nada lhe fazem. Seguem as pegadas. O terreno da Pedra D’água é duro e

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rochoso. Gervásio enfrenta enorme dificuldade. Rastejar cangaceiro naquele chão
encrespado é uma missão quase que impossível.
Tudo naquela jornada esta saindo adversa. Com muito esforço chegam na Planta
do Milho. Nada de cangaceiro. Dessa fazenda seguem na direção de um serrote
próximo. Nada. O destino agora é a Lagoa dos Algodões. Tudo em vão. Os bandidos
sumiram de vez.
O sol descamba. A tarde chega. A noite não demora. Mais um dia perdido.
De repente, na passagem de um riacho, Miguel e Zé Serra Negra acham a trilha
dos cangaceiros. O sol está se escondendo no horizonte, engolido pelas serras. O
momento se apresentara. Não podiam deixar passar aquela inesperada oportunidade.
Após tantos dias de desalento, sofrimento e insana perseguição, a recompensa chegava
naquele entardecer.
A trilha segue na direção da Lagoa do Domingo João. Tão nítida que não era
necessário rastejar. Ansiosos e com medo do anoitecer, a volante corre sem nenhuma
precaução, teria que alcançar os bandidos antes do escurecer.
O sol já se escondeu. As sombras da noite começam a dominar o sertão. Os
soldados chegam à beira de uma solitária lagoa. Cansados se agrupam num umbuzeiro.
O chão em volta está amassado. Sinal de que os cangaceiros estavam por ali. Com
efeito, os bandoleiros haviam passado toda à tarde jogando baralho justamente na
sombra daquela querida árvore sertaneja.
O coito está armado sob a proteção dos lajedos ali existentes.
Há alguns dias Lampião ali se encontra. Gosta muito de se acampar naquela
região de Canindé.
Seus homens estão espalhados pelos numerosos blocos de pedras. O descanso é
geral. Todos vivem de brincar e jogar. A tranqüilidade é total e absoluta. Ainda naquela
tarde mandara Mergulhão, Beija-Flor e Alecrim pegar alguns bodes que pastavam no
morro do Pedrão. A vigilância havia sido relaxada. Não havia sentinelas. Aliás,
geralmente, durante a noite não existia sentinela nos coitos.
A volante vem chegando.
Zé Rufino e Besouro estão armados de metralhadoras. A mortal “costureira” que
tanto preocupava Lampião.
No coito todos estão sossegados. Os homens se espalham pelas pedras. Em uma
delas fizeram um fogo com a finalidade de assar a carne dos bodes. Um pouco mais ao
lado, em sua barraca, Lampião conversa com Maria Bonita e alguns companheiros e
Barra Nova pisa sal com uma pedra.
Aquele momento de transição da natureza, quando o dia vai entregando o seu
comando a sua milenar vizinha, é um instante especial e poético. O mundo parece que
respira paz e harmonia. As lembranças afloram do sentimento das pessoas. E ali,
naqueles ermos, a caterva sofre também a influência daquele momento de mudança e
conversa amenidades da vida.
Um vento gostoso se espalha pelos campos. A friagem vinda da lagoa começa
incomodar. O rei dos cangaceiros está ladeado por Zé Sereno, Luís Pedro, Maria Bonita
e o coiteiro Rosalvo. O grande bandoleiro está sentado numa pequena pedra. Outra
maior o protege. Os bandoleiros conversam sobre aventuras e "causos" do sertão.
Lampião está saudoso. Recorda os tempos de Sinhô Pereira e Luís Padre. Maria Bonita
reclama da vida que leva e diz:
- Eu num tô pronta pra viver dessi jeito. Ora qui bolas!
O capitão não lhe dar atenção. Sabe que os reclamos de sua “santinha” não
passam de tolices e continua em seus devaneios, dizendo:

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- Eu tenho visto homi valenti, mais iguá a Meia Noite e cumpadri Sabino Gomi é
muito difici de si incontrar. Essis eram de premeira, num podia ter mió.
A volante está tão próxima que escuta os cangaceiros conversando. A voz de
Lampião chega até os soldados com nitidez. É agora ou nunca. O lendário cangaceiro
vai ser pego de surpresa. Chegara, finalmente, o dia tão caçado e esperado. Os
bandoleiros estão à mercê de homens adestrados e de duas perigosas “costureiras”. Até
que enfim, o dia do grande cangaceiro havia chegado.
Zé Rufino e Besouro haviam combinado de disparar suas armas conjuntamente.
Não poderia haver nenhum erro, nenhum contratempo. O objetivo maior era os dois
atirar no próprio Lampião.
Tudo certo, tudo combinado, a hora se apresentara. As armas foram
cuidadosamente engatilhadas. Dedos firmes seguravam os gatilhos. Os cuidados são
redobrados. Apontam as armas. A vitória é certa.
A noite havia descido. Zé Rufino e Besouro miram suas matadeiras no
cangaceiro que está sentado na pedra. É Lampião.
Todo coito está cercado. A volante não sabe que os lajedos protegem os
bandidos. Nas pedras muitos conversam, outros se arrumam para dormir e alguns
preparam suas refeições. Lampião ainda conversava, dizia.
- Um tempo dessi nas matas...
Não termina a frase. Recebe uma saraivada de balas. A fuzilaria é intensa e pega
os asseclas de surpresa. As balas procuram loucas e medonhas os corpos dos
bandoleiros.
Zé Rufino e Besouro haviam disparado num alvo perfeito e fácil. O cangaceiro
não tinha como escapar. Todavia algo espantoso aconteceu. Um grito alucinante se faz
ouvir nas quebradas daquelas brenhas. Não foi um grito de medo ou pavor, nem de
agonia ou derrota. Foi um grito de guerra. Um grito de luta. O grito do maior guerreiro
dos sertões. Era o titã da Ingazeira desafiando os “macacos” para a luta. Sua voz brandia
na escuridão.
- Macacada, coidado, qui aqui é Lampião!
O capitão canta vitória. O bando é contagiado pela poderosa força do indomável
e invencível guerreiro. A luta que se apresentava tão fácil se torna numa tremenda
batalha.
Parecia que o inferno havia desabado. À noite já é de uma escuridão de breu. O
combate é feroz. A luta é titânica. Cangaceiro e soldado estão numa medição de forças
infernal. A morte ronda por todos os lados. Os bandidos já haviam se recuperado da
surpresa e agora brigavam à vontade. Com suprema competência aproveitavam o escuro
da noite.
O tempo passa. A batalha continua. O tiroteio diminui. Lampião resolve se
retirar. Dar o sinal convencionado e o bando sai calmamente do coito, sem nenhum
atropelo. O capitão está ileso, não sofrera nem sequer um pequeno arranhão.
A caterva segue na direção do povoado Curituba.
Barra Nova foi gravemente ferido nas costas, ainda nos primeiros tiros, pelas
balas das “costureiras”. O seu estado é grave. É carregado numa rede pelos
companheiros. Amoroso e Elétrico também foram baleados, porém sem nenhuma
gravidade e acompanham o grupo.
Quando chegam na Curituba, Zé Sereno percebe que um de seus cunhados –
Novo Tempo – não está com eles. A ausência do irmão de Sila deixou o grupo
preocupado. O que lhe aconteceu? Será que morreu no tiroteio?
Não. Novo Tempo não havia sido morto, no entanto recebera dois balaços que o
impediu de seguir com os companheiros e passar por uma dantesca provação.

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Quatro cangaceiros foram baleados. Barra Nova estava entre a vida e a morte.
Nos arredores da Curituba morre. Lampião não perde tempo. Viaja naquela mesma
noite com destino as matas de Frei Paulo, deixando Luís Pedro com a finalidade de
cuidar dos funerais do cangaceiro. O enterro fica por conta de Lili, um morador das
redondezas que enterra o corpo do bandido no Alto dos Morrinhos.
Apesar de um morto e três feridos a batalha se transformou num grande feito de
Lampião. Zé Rufino e sua “força” deixaram a Lajinha com o sentimento amargo de uma
fragorosa derrota. A volante havia deixado escapar uma maravilhosa oportunidade de
massacrar o rei dos cangaceiros e seu grupo. A desilusão era ainda maior por não
saberem que alguns bandoleiros foram baleados no combate e um deles tinha perdido a
vida.
Sem saber o que de verdade tinha acontecido, os da volante achavam que como
lucro apenas a prisão do cachorro de Lampião – o Guarani – e como baixa o soldado de
Besouro – Antônio Isidoro – baleado num braço. O ferimento do militar obrigou o
deslocamento da volante até a cidade de Piranhas para o tratamento necessário.
Dentre muitos milagres acontecidos nessa batalha existe aquele em que Rosalvo
Marinho teve o seu paletó perfurado pelas balas das metralhadoras e nenhuma delas
atingiu o seu corpo.
Em Piranhas, Zé Rufino encontra o tenente João Bezerra. Tem um importante
presente a lhe oferecer. É Guarani, o famoso cachorro de Lampião. Presenteia o colega
e no outro dia retorna à Serra Negra.
Dois meses depois Guarani estava na caatinga, novamente com seu antigo dono,
Virgulino Ferreira da Silva.
Eram esses os mistérios e as ironias da guerra cangaceira!

Casa da fazenda Pedra D´Água, de dona Delfina

Seu Lili, da Curituba.

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A MORTE DE VULCÃO
(transcrito do livro “Lampião além da versão”)

Não há dúvidas, mesmo os que sem conhecerem Angico, dizem e asseveram


teimosamente que a maldita grota do riacho do Tamanduá era o coito preferido e o mais
seguro de quantos em que o lendário bandoleiro costumava se homiziar nas caatingas
sertanejas.
A grande verdade é que Angico não era um bom coito. Era um local que não
oferecia nenhuma segurança, em virtude de sua proximidade com a cidade alagoana de
Piranhas e o povoado Entre Montes, lugares que eram praticamente moradia do tenente
João Bezerra e do sargento Aniceto Rodrigues.
Aquelas paragens do lado sergipano possuíam apenas a virtude de ser o mundo
dos Félix, dos Rosas, dos Cadudas e de tantas outras famílias que prazerosamente
acoitavam os bandos cangaceiros.
Outros coitos existiam que ofereciam ao rei e seus comandados totais e absoluta
segurança, onde apenas por uma fatalidade ou uma traição, poderiam ser descobertos.
Dentre tantos havia um encravado nas serras de Canindé que realmente oferecia
total e absoluta segurança e que, por isto mesmo, era um dos preferidos do grande chefe.
Era esse coito conhecido como o Porão da Passagem.
Reduto onde a caterva despreocupada, descansava e se sentia segura. Local onde
seria verdadeiramente impossível um cerco dos "macacos". O Porão da Passagem talvez
fosse superado apenas pelos coitos armados no Raso da Catarina, mas, mesmo assim,
levando uma preciosa vantagem: a sua localização era praticamente à beira do São
Francisco e encravado na região que não era navegável, enquanto os coitos do Raso da
Catarina tinham o inconveniente da terrível falta d’água que tornava aquele pedaço de
chão baiano um verdadeiro inferno.
Em um de seus prolongados repousos Lampião passa dias no Porão da
Passagem. O descanso é total. O tempo passa preguiçosamente. Já se passaram dez dias.
O bando brinca, joga e bebe a vontade.
Apenas Vulcão, um cangaceiro amorenado, corpo atlético, alto e entroncado,
desbarrigado e com poucas gorduras no corpo, cabelos lisos e bons, um exemplar fiel da
raça parda brasileira, não participa daquele ambiente alegre e festivo. Está sempre
afastado da turma. Vive triste e taciturno. Passa os dias, isolado, sozinho, pensativo e
escondido dentro de si mesmo. Não faz outra coisa senão procurar refúgio nas sombras
das árvores.
Lampião percebe a mudança do seu comandado e, discretamente, passa a
observá-lo. Chama Luís Pedro e diz:
- Luís, tô cum um parpito qui Vurcão tá quereno fazer arguma besteira. Arrepari
cuma ele anda tom diferente.
Seu fiel e inseparável companheiro, responde:
- É, vamu ter coidado. Si eli tiver arguma coisa desiguá na cabeça o jeito é nóis
matá-lo.
- Vamu esperar. Vamu esperar. Vamu ficar de vigia nele, podi inté ser qui num
seja nada, só pensamento da genti. Mais mande um homi ficar arreparando eli. -
pondera o capitão, tentando imaginar as coisas de maneira mais amena.
Luís Pedro concorda:
- Achu qui o mió é isso mermo. Eu mermo vou sondar eli. Podi inté ser qui só
seja arguma coisa, arguma lembrança do povo e da famia deli, e eu posso inté dar um
jeito. Tem hora qui quarquer um de nóis, inté mermo sem querer, fica se alembrando
das coisas de nosso passado e num tem quem num fique triste.

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Saindo da barraca de Lampião, o Caititu – apelido de Luís Pedro – foi procurar
Vulcão. Pensa em encontrá-lo no grupo em que uns jogavam e outros assistiam o
carteado. Nada. O cangaceiro ali não se encontra. Procura-o na barraca de Pancada.
Nada. A mesma coisa. Já desconfiado, o imediato de Lampião percorre todo o coito e
nenhum sinal do companheiro. Apressado, retorna até a barraca do chefe avisando-o do
que estava acontecendo.
Ao receber a informação Lampião reage aborrecido e diz:
- Foi simbora, o homi foi simbora. Fugiu. Só podi ter fugido. Agora cumpadri,
vá e chami Zé Sereno e vão atrás deli.
Sentado nas sombras de uma quixabeira Vulcão tem seus pensamentos voltados
para bem longe daquele lugar. Está sentindo uma saudade sem igual de seus pais, de
seus irmãos e todos os parentes que estão tão distantes. Vive um terrível tormento
naquela infeliz vida. Não mais será possível viver tão longe, separado dos entes que
tanto ama.
Ser cangaceiro é uma infelicidade que ninguém pode imaginar. Jamais pensara
que ser bandido fosse uma provação e um sofrimento de tamanho tão descomunal.
O banditismo era a causa de toda tristeza e desengano de sua vida. Pensava na
maldita e desastrada hora em que deixara a casa de seus pais, abandonando uma vida
boa e decente, para se tornar um cangaceiro e ter que suportar tão medonho sofrimento.
Maldita, mil vezes maldita, a decisão que num momento de fraqueza e
infelicidade havia tomado e com ela arruinara sua vida.
O vento, ameno e confortante, balança as folhas e os galhos das árvores. A
caatinga verde traz um perfume inebriante; as flores enfeitam as serras sertanejas,
enfeitando os campos e embelezando a natureza; deixando no caminheiro uma sensação
de paz e amor. O quadro sublime, pintado pela Mão do Mestre, ainda mais entristecia o
solitário bandoleiro que toma uma decisão: iria embora naquele mesmo instante.
Aquela vida era insuportável. A saudade era demais. Doía em seu peito. Se
continuasse naquela vida iria enlouquecer. Tinha que ir embora e à hora havia chegado.
Estava sozinho. Iria aproveitar. Fugiria pra bem longe, onde a mão vingativa de
Lampião não o alcançasse.
Porém, Vulcão não contava com o poder mágico e misterioso do fenomenal
chefe dos bandidos.
Rápido Luis Pedro vai a procura de Zé Sereno e deixa-o ciente da novidade. O
cangaceiro do Chorrochó diz.
- Agaranto qui eli fugiu mermo. Mais pode inté ser qui eli tenha ido pro samba
qui vai ter hoje na Lagoinha. Eli num tá doido de ter feito uma besteira dessa. Vamu
chamar Balão e mais argum e vamu ver adonde ele tá. Vamu lá. De quarquer maneira
ele tá muito errado. Num podi di maneira arguma um dos nossos sair sem otorização de
Lampião e sem a gente saber.
Luís Pedro, que estava raivoso com a atitude de Vulcão, dá a sua opinião:
- Eli fez foi fugir. Você vai ver. Num tá veno qui ninhum di nóis ia sozinho pra
uma festa?
A cabroeira parte em busca do fugitivo. O destino é a fazenda Lagoinha. Lá é
informada de que o procurado por ali não passara. Ainda na fazenda recebe notícias.
Um caatingueiro chegou e disse que um homem estranho tinha chegado no Canindé
Velho de Cima. Era Vulcão.
Após uma caminhada penosa e cheia de percalços o desertor chega às margens
do São Francisco. Foi uma fuga planejada cuidadosamente e decidida quando estava
debaixo das sombras das quixabeiras, distante do grupo e dos companheiros.

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Dali fugiu com tranqüilidade e sem perigo algum, se equipou, verificou se o
caminho estava livre e, sorrateiramente, como uma cobra a deslizar pelo terreno, deixou
os arredores do acampamento e se embrenhou nos carrascais.
Distante do coito resolveu esconder as armas. Não poderia se evadir com todos
aqueles apetrechos do cangaço. Deixou-as num lugar conhecido como Saco da Onça e
dali seguiu para um lugarzinho chamado Cabeça do Negro, de onde desceu para a beira
do “Velho Chico”. Foi dali que o homem, avistando-o, estranhou aquele desconhecido,
naquela hora, caminhado pra lá e pra cá, na beira do grande rio.
Não era pensamento do matuto, fazer qualquer coisa que prejudicasse o
desconhecido. Não era essa a sua intenção. Mesmo porque não tinha nada que se meter
na vida dos outros. Resolveu seus problemas e retornou para as caatingas. O seu
caminho forçosamente tinha que passar na Lagoinha. Encontrou os cangaceiros que
procuravam um fugitivo, se lembrou do rapaz que deixara no porto a espera da canoa e
deu a pista aos bandoleiros. A súcia arranca para o rio, precisava pegar o desertor.
À tarde começa a querer se enfeitar com a sombra escura do manto da noite. Por
cima das serras o sol deixa os seus últimos e agonizantes raios de luz. Os cangaceiros
precisam chegar com alguma claridade, era muito importante, a noite seria de uma
escuridão total, o que tornaria impossível cercar e prender o fujão.
Na beira do porto Vulcão está impaciente. A embarcação demora. Começa a
sentir medo. Era um homem destemido e valente, mas aquela angustiante espera estava
destroçando os seus nervos. Sabe, perfeitamente, que no coito já haviam descoberto a
sua fuga. Não ignorava o perigo que estava passando. Sabia o que Lampião fazia com
todos que tentassem fugir e deixar a vida do cangaço. Está aflito. Olha agoniado o
serpentear das águas do grande rio sertanejo. Implora pelo aparecimento milagroso de
uma embarcação. Olha para os lados e não vê nem sinal de canoa. Pressente que os
bandidos estão prestes a chegar e eles agora são rancorosos inimigos.
O receio do fugitivo tinha fundamento. Os facinorosos estavam chegando. Com
cuidado seguem cautelosamente para o porto. O silêncio é total. As plantas ribeirinhas
parecem que estão adivinhando um triste acontecimento. Não se movem. Não balouçam
suas folhas. As águas do rio estão paradas. O sertão está emudecido. A morte ronda às
margens do “Velho Chico”.
Aquele silêncio apavora ainda mais o fugitivo. Aquela desconcertante quietude
lhe dá um tremendo medo. Diante das circunstancias se vê completamente impotente.
Percebe que não conta com o seu mosquetão. Não tem como enfrentar os possíveis
inimigos.
Não vê nada. Não sente nada. Acha apenas que está exposto a um iminente
perigo. Olha para o rio e alonga o seu olhar, seguindo, ansioso, o caminho das águas, na
esperança de que apareça a tão sonhada canoinha que seria a sua salvação. Nada. A
canoa não aparece.
É justamente neste momento de dúvida, medo e espera que seus caçadores
cercam-no e dão voz de prisão.
Como se fosse impulsionado por uma catapulta Vulcão dá um salto espetacular e
tenta se livrar das garras dos algozes. Está enlouquecido de medo e pavor. Como se
fosse uma fera cutucada por milhões de ferroadas, desesperadamente, procura correr.
Tudo em vão. Não consegue ir para lugar algum. Mãos rápidas e fortes o seguram. O
fugitivo se debate alucinado. Quer se livrar daqueles monstruosos tentáculos. Não
consegue. É subjugado e amarrado. Não pronuncia uma só palavra e, ofegante, é
arrastado serra acima amarrado ao famoso cavalo Estrela D’alva, um campeão nas
corridas de bois brabos daquele sertão de Canindé.

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Começa a fraquejar. Não suporta as dores causadas pela dolorosa subida.
Arrastado por uma corda, preso ao cavalo, cai. Os antigos companheiros não se
compadecem e continuam a caminhada.
A súcia maldita chega à fazenda da festa. O baile continua animado. Todos
dançam e bebem com animação. Os carrascos resolvem ali se demorar. Querem brincar
e farrear. Prendem o desertor num esteio do telheiro e entram no forró.
A cachaça estimula os cangaceiros. Aproveitam, e após cada rodada da dança,
vão onde está o antigo e desafortunado companheiro e, sem dó e sem piedade, se
divertem em picar o corpo do infeliz com a ponta de seus punhais.
Pela madrugada, fartos de tanta animação, seguem para o coito. Muito cedinho
chegam. Lampião não quer nem ver o ex-comandado. A sentença já havia sido
proferida. A morte.
A ordem foi dada. Vulcão teria que ser executado. Antes, porém, os perversos
precisavam de um macabro divertimento. Chicoteiam o fogoso cavalo que, ainda com o
prisioneiro amarrado em seu corpo, parte em desabalada carreira, arrastando o infeliz
até se cansar e parar debaixo de umas caibreiras na beira do riacho.
Luís Pedro manda o menino Hercílio – Hercílio Feitosa, ainda com vida e
residindo no povoado Curituba, em Canindé de São Francisco – ir buscar o cavalo.
O garoto encontra o animal inquieto e agitado. Mesmo assim consegue pegá-lo.
É nesse instante que o menino se apavora ao ver aquela massa disforme, uma verdadeira
posta de carne ensangüentada, se levantar e acenar para ele e, deixando o garoto
aparvalhado, lhe implora que desamarre a corda de suas mãos.
O estado em que Vulcão se encontra é deveras lamentável. Seu corpo é algo
horripilante, deformado. Sua boca, seu nariz e seus ouvidos sangram como se fossem
bicas.
O mocinho sertanejo não sabe o que fazer. O bandido a lhe rogar para que o
deixe livre da corda e, lá no coito, os cangaceiros observando a cena.
Hercílio está sem ação. O pavor domina-o por completo. Lá do coito sabe que os
bandidos estão vendo tudo. Nada tem que fazer. Sem dizer uma palavra puxa o cavalo
na direção do coito.
Quando chegam, o moribundo olha para seus ex-companheiros e diz:
- Vocês num sabi o qui tão fazeno cumigo. Vocês num sabi o qui é uma sodadi
bem doída da famia. Num mi mati não. Deixi eu ir mimbora.
Juriti, com aquela costumeira arrogância, responde:
- Seu cabra de peia, você é um cabra de peia. Pru quê veio pru meio da gente?
Isto aqui é lugar pra homi. E quem num é, cuma você, a genti mata.
Levam-no para a beira do riacho. Não se compadecem dos seus pedidos de
clemência e, brutalmente, executam-no com um tiro de parabellum.
A sentença havia sido cumprida. Era o dia 09 ou 10 de janeiro de 1938.

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Juriti (Manoel Pereira de Azevedo)

JURITI – PERVERSO NA VIDA, VALENTE NA MORTE


(transcrito do livro “Lampião além da versão”)

Como tantos outros bandoleiros, Juriti foi mais um que herdou dos veteranos do
cangaço o nome de guerra que aqueles carregavam.
Na década de vinte já se conhecia, talvez, o primeiro Juriti. Este pertencia ao
bando dos Marinheiros e seu nome verdadeiro era João Soares. Anos depois, já estando
Lampião em terras sergipanas, entra para o seu grupo um rapaz vindo das bandas do
Salgado do Melão. É ele um moço de aparência física impressionante: corpo atlético,
esguio, branco-aloirado, cabelos finos e escorridos; olhos alaranjados, gestos elegantes,
boas maneiras, apesar de genioso e perverso ao extremo. Além desses atributos o rapaz
é muito ativo e com uma forte personalidade.
Lampião, de imediato, dá-lhe o nome de Maçarico. O moço não aceita. Impõe
sua vontade e demonstrando muita firmeza diz que não quer ser chamado por um nome
tão esquisito que mais parece “marico”, nome dado aos efeminados e faz ver que
prefere ser chamado de Juriti.
O capitão, que sempre admirou homens de personalidade e temperamento forte,
não colocou obstáculo ao preito de seu novo comandado e a partir daquele momento
passaria para o esquecimento o nome Manoel Pereira de Azevedo para surgir, com todo
fulgor, o perverso Juriti.
Tempos depois, já famoso e comentado, Juriti leva para a sua companhia uma
filha de Manoel Jerônimo, alcunhado de Mané de Áurea, vaqueiro da fazenda Picos.

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Uma das maiores perversidades atribuídas a esse bandoleiro foi à morte
horrorosa e trágica de José Machado Feitosa que, depois de sofrer bárbara tortura:
esporado e picado de punhal e finalmente sangrado pelo brutal companheiro de Maria
foi jogado nas barrancas do riacho do Brás. Juriti costumava fanfarronar sobre este
brutal crime quando de suas conversas com as pessoas de sua intimidade.
A conta criminosa e maldita do facinoroso de Salgado do Melão foi vasta e
adubada com muito sangue e muitas dores.
Vamos encontrar Juriti e sua companheira Maria no coito de Angico, junto com
Virgulino Ferreira, no fatídico dia 28 de julho de 1938.
Naquele dantesco acontecimento muitos bandidos, atônitos e sem saber o que
estava acontecendo, só pensavam em fugir daquele inferno. Milagrosamente muitos
conseguiram sair daquele inesperado abismo que se abateu sobre o grupo bandoleiro.
Milagre que não foi possível para onze companheiros, incluindo o maioral, o grande
chefe, Lampião.
Do contingente que conseguiu se salvar alguns foram baleados. A luta para
transportar os enfermos foi titânica. Os que tinham condições de carregar os feridos não
pouparam esforço, mostraram que faziam parte de uma família verdadeiramente unida.
Foi com admirável boa vontade e coragem que transportaram seus doentes para locais
seguros, onde os mesmos pudessem ser tratados.
Juriti e mais alguns companheiros procuram as matas do município de Canindé.
Levam alguns feridos e um deles – Laranjeira – a cada instante piora; sua situação é
crítica.
Chegam ao Cuiabá. Ali nas proximidades à casa de um amigo. Em seus
arredores o bando se acoita. Laranjeira não suporta os ferimentos e morre. Juriti passa
alguns dias tratando dos outros enfermos, só deixando o coito quando seus
companheiros se recuperaram dos ferimentos.
Já se passaram três meses do desastre de Angico. O cangaço havia se
transformado num verdadeiro caos. Ninguém respeita ninguém. Cada um seguindo o
seu próprio destino. A debandada é geral e está atingindo um índice assustador.
Jeremoabo se torna no ponto de convergência daqueles desesperados. O capitão
Aníbal Vicente Ferreira, comandante-geral das forças de repressão ao banditismo, tem
sido o anjo protetor dos agora desvalidos do cangaço. Homem sério, probo e de um
sentimento humano maravilhoso, esse bravo militar das “forças baianas” não aproveita
o momento de desmoronamento do cangaço para qualquer tipo de revanchismo; pelo
contrário, ao inverso de tantos outros que procuravam a desforra e a vingança, o augusto
capitão tentava de todas as maneiras angariar simpatia e confiança junto aos asseclas e
com isso trazê-los para uma nova vida e depois de documentá-los e dar-lhes garantias de
liberdade, encaminhá-los para um lugar no meio da sociedade brasileira.
Foi o capitão Aníbal, durante a fase de agonia do banditismo, o verdadeiro
"Cavalheiro da Esperança" dos cangaceiros.
Todos os dias surgem boatos de levas de bandidos que iam se entregar em
Jeremoabo.
Juriti está agoniado. Não sabe que rumo tomar. Já havia combinado com seus
homens que cada um seguisse o seu próprio destino. A vida do cangaço havia
terminado. Ser cangaceiro sem Lampião era impossível.
Com ele, além de Maria, apenas Borboleta. Toma uma decisão: mandar Maria
para a casa do pai e que ela veja a possibilidade de ir se entregar ao capitão Aníbal.
Rosalvo Marinho seria o intermediador junto às autoridades da famosa cidade sertaneja.
Começo de verão. Rosalvo está cuidando de sua rocinha. Ainda é cedo da tarde.
Alguém está chamando-o na beira da cerca. É um grupinho de cangaceiros: Juriti, Maria

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e Borboleta. Após os cumprimentos de praxe Juriti chama o amigo e os dois vão
conversar afastados de Maria e do “cabra”.
- Rosarvo, o cangaço morreu. Tô aqui pra lhi pidir pra você levá Maria pra casa
do pai dela e adispois levá-la pra Jeremoabo. Eu quero qui ela vá si intregrar. Coidado,
ela num tá sabeno de nada. – diz Juriti.
- Tá certo. Você tá certo. O mió é isso mermo. E você pru quê num se intrega
tombém? – indaga o parente de Maria.
- Se eu mi intregar os macacos vão mi matá – responde, sem muita convicção, o
bandoleiro.
- Nem pense nisso. O capitão Aniba é um homi honesto.
Juriti baixa a cabeça. Fica pensativo e diz:
- Apois leve Maria. Num diga adonde eu tô, mais prigunte ao homi si pur acaso
eu quiser mi intregar eli agaranti a minha vida. Si agarantir o jeito qui tem é eu ir
tombém.
Com um misto de tristeza e alegria Maria retornou a casa do pai. Juriti ficou
escondido no mato, aguardando o resultado dos entendimentos do parente de sua mulher
com o capitão e chefe das forças acantonadas na velha cidade dos sertões baianos.
Maria é levada para Jeremoabo e entregue ao chefe militar. Este com fidalguia e
gentileza acolhe o pedido que Rosalvo e Manoel Jerônimo (Mané de Áurea) fazem em
favor da cangaceira – até a feitura desse livro Maria estava viva e morando no povoado
Curituba, de Canindé de São Francisco.
Foi Rosalvo quem fez a apresentação:
- Capitão, essa muié é a muié dum cangaceiro. É a muié de Juriti. Ela veio si
intregar. Juriti mi disse qui si o sinhô agarantir a vida deli, eli tombém vem si intregar, e
vem cum outro cangaceiro, o cabra Barbuleta.
- Muito bem – responde alegre o capitão – eu quero que você volte e diga a este
rapaz que pode vim com o companheiro dele que eu garanto os dois. Eles não tenham
medo. Diga que eu vou providenciar os documentos pra eles. Pode dizer que quem está
garantindo é o capitão Aníbal.
Voltando-se para seu imediato – o tenente Alípio – recomenda.
-Tenente, prepare uns boletins pra esse homem levar e espalhar no sertão.
E se dirigindo a Rosalvo, diz:
- Espalhe a notícia. Faça com que todos os cangaceiros saibam e venham se
entregar que a gente garante a vida deles daremos os documentos de cada um e
encaminharemos todos eles para uma nova vida.
O comandante baiano dava demonstrações de sua grandeza, de sua dignidade e
de seu extraordinário sentimento de humanidade. Ainda lhe restava um gesto sublime.
Sem que ninguém esperasse resolveu liberar a cangaceira, permitindo que ela retornasse
com o pai e com Rosalvo para o aconchego de sua família, ficando, assim, livre da
pesada cruz que o cangaço lhe outorgara.
O chefe militar combina com Rosalvo a possibilidade de trazer Juriti,
convencendo-o a seguir o mesmo caminho de sua companheira. Bastava que o
cangaceiro marcasse o dia e ele iria esperá-lo no local determinado, ou então, o assecla
fosse ao seu encontro na fazenda Pilões, localizada entre a cidade de Santa Brígida e a
povoação chamada Minuim que ele estaria num caminhão para levá-lo para Jeremoabo
e para a liberdade.
Rosalvo vai prestar contas de sua missão. Encontra o cangaceiro angustiado e
nervoso. Mesmo assim lhe dá a boa nova. O bandoleiro nem presta atenção nas palavras
do portador e se demora em dizer que pensara muito se devia ou não se entregar e
chegara a conclusão de que seria uma loucura colocar o laço da justiça em seu próprio

62
pescoço. Portanto, estava decidido, não ia se entregar. Não queria se arriscar e muito
menos passar pela humilhação de servir de joguete nas mãos de policiais. Não iria
caminhar por sua livre e espontânea vontade para o matadouro, como se fosse um velho
e imprestável boi de carro.
O homem da Pedra D’água é escolado. Pondera. Sabe que possui alto crédito
junto a todos os sertanejos e em especial com os cangaceiros. Era um profundo
conhecedor das artimanhas do meio caipira, percebe que Juriti está com outros planos.
O cangaceiro está atordoado. Confia em Rosalvo. Ama a sua Maria. O que
fazer? Não quer ser ingrato com o amigo que durante longos anos foi um dos braços
direito do serviço de espionagem dos grupos bandoleiros que infestavam os campos
ressequidos do sertão sergipano.
O hábil caboclo tenta, insiste, faz o cangaceiro sentir que assumiu um sério
compromisso com o renomado militar, além do mais tinha certeza de que tudo iria sair
conforme o combinado, que nada de anormal iria acontecer.
Juriti pensa. Chama o companheiro e pergunta:
- Cuma é Barbuleta, vamu ou não si intregar?
- O qui você quiser eu quero. Si quiser ir vumbora. Pra mim tanto fais. Si já
tamu no inferno vamu cunhecer o satanás.
As palavras de Borboleta foram decisivas. Os dois resolveram se entregar e no
prazo combinado seguiram para os Pilões, acompanhados de Rosalvo e de Mané de
Áurea.
A notícia se espalhou. O povo acorreu ansioso, para ver os bandidos. Uma
multidão encheu a malhada da fazenda. Foi uma festa. Todos queriam presenciar a
chegada dos remanescentes do cangaço. Era a oportunidade de se vê os antigos terrores
do sertão, os homens que ditavam as regras da vida e da morte. Agora tudo era
diferente. Lampião havia desaparecido e ele era a estrela que a todos alumiava e agora a
sua luz deixara de existir, pondo fim ao banditismo, deixando os que ainda resistiam,
atarantados, sem saber que rumo seguir. Todos expostos aos dissabores do cangaço,
completamente desmoralizados e jogados à sua própria sorte.
Até o grande respeito e temor que a gente sertaneja tinha por eles deixara de
existir, restando-lhes, portanto, apenas o caminho da rendição ou da fuga. Opções
vergonhosas para quem se julgava dono de tudo e de todos.
A chegada dos bandoleiros aos Pilões foi um acontecimento histórico. A demora
foi mínima. O caminhão estava esperando-os. Embarcam e seguem para Jeremoabo. São
bem acolhidos. As promessas do capitão foram religiosamente cumpridas. Os
documentos providenciados e a grande e inesperada surpresa. O capitão Aníbal, contra
todas as expectativas, libera os dois asseclas, mandando-os de volta para o sertão.
Borboleta segue ao encontro de seus familiares. Juriti, além de Maria, havia
plantado raízes na região. Tinha negócios. Resolve ficar uns dias na povoação de
Canindé Velho de Baixo, onde se demora até o início do ano de 1939, quando resolve
viajar para a capital baiana, Salvador.
Na grande cidade o antigo cangaceiro consegue trabalho. Vai ser vigia em uma
fábrica, onde permanece até o verão de 1941. É despedido e retorna para o sertão
sergipano. Precisa reaver bens e valores que havia deixado sob a responsabilidade de
pessoas amigas.
Em uma quarta-feira, já no descambar do sol, os moradores da fazenda Pedra
D'água são surpreendidos com a chegada do ex-cangaceiro que julgavam nunca mais
vê-lo.
Para muitos ficou a versão de que Juriti teria voltado justamente para receber
uma grande quantidade de dinheiro, além de jóias e trancelins que deixara depositados

63
em poder do amigo Rosalvo e de pessoas de sua família. Todavia, o filho de dona
Delfina asseverava que o ex-bandido estava indo visitar os parentes lá nos confins do
sertão do Salgado do Melão.
Naquela época o delegado de Canindé era o famigerado e sanguinolento
sargento Deluz. O feroz pernambucano que carregava a fama de ser o·terror daquele
sertão.
Deluz é, na verdade, um medonho, perverso e criminoso policial que, mesmo
com o extermínio do banditismo, se compraz em varar léguas e léguas para ter a glória
de assassinar todos os que haviam pertencido à vida bandoleira.
Amâncio Ferreira da Silva era o nome real do carrasco de Canindé que fez nome
e fama naquele povoado do sertão de Sergipe.
Sabia-se que Deluz era filho de um lugarzinho de Pernambuco, chamado São
Bento do Una. Vale a pena observar a estranha coincidência de seu sobrenome, Ferreira
da Silva. O seu apelido – Deluz – era de origem desconhecida, nem o próprio delegado
sabia – ou não queria – explicar. E o estranho é que este famoso e brutal policial, apesar
da fama e dos anos que caçou cangaceiro, nunca brigou com Lampião, surgindo até uma
sigilosa versão de que os dois eram aparentados e se protegiam mutuamente. Além do
mais o então delegado de Canindé tinha uma vida absolutamente misteriosa.
Em 1941, Deluz era proprietário da fazenda Araticum. O sargento aos poucos
vai adquirindo uma razoável fortuna. O então delegado não representa a lei, dela se
arvora como se fosse a própria. Suas decisões jamais são contestadas por quem quer que
seja. Casa-se com Dalva Marinho, filha de João Marinho do Brejo, afamado feudo onde
brotava – ainda brota – ao pé da serra, as águas mais cristalinas de todo o sertão
sergipano.
Juriti era íntimo do pessoal da Pedra D'água. Além de seu antigo relacionamento
com Maria, filha de Áurea, neta de dona Delfina e sobrinha de Rosinha – mãe e esposa
de Rosalvo – tinha este amigo na conta de irmão. Portanto, se considerava gente da
casa, um da família.
O antigo bandoleiro estava completamente enganado.
Não se sabe se a versão do dinheiro, das jóias e dos trancelins foi verdadeira e
em razão desses bens foi tramada a traição que resultou na morte do antigo cangaceiro,
ou se tudo não foi uma vingança por parte de pessoas que guardavam rancores dos
tempos do cangaço e foi avisar o temido sargento da presença de Juriti na Pedra D’água,
o fato é que o antigo assecla caiu nas garras do delegado e foi barbaramente
assassinado.
A quarta-feira serviu para Juriti contar as suas aventuras em Salvador. Discorreu
sobre suas dificuldades em se adaptar ao ambiente da grande cidade. Relatou sobre sua
tristeza e saudade dos tempos de cangaceiro, quando, na verdade, era um homem livre,
dono de suas vontades e de seus desejos, apesar da perseguição em que vivia. No cair da
noite, após o café ser servido, se recolhe. Deita-se numa rede e vai dormir.
O forte calor impede que tenha um bom sono. No alvorecer desperta e faz
companhia a Rosalvo, um bom madrugador. Não vê, não sente e não nota nada que
desperte a sua desconfiança. Nos tempos de cangaceiro era tido como esperto e sagaz.
Não perdera a sua perspicácia, porém não tem do que temer; pensa que tudo está
correndo normalmente. Nem de longe poderia imaginar que estivesse sendo traído.
Um portador havia, desde muito cedo, seguido, célere, para o Araticum com a
missão de avisar a Deluz da presença do companheiro de Maria na fazenda de Rosalvo.
Teria sido Pedro Januário o delator? Uns asseveram que sim, outros dizem que
não.

64
Ainda é cedo. O café está fumegando. A mesa está posta. É hora da alimentação
matinal.
Ao receber a notícia o sargento/delegado dar gostosas gargalhadas. Não mais
esperava encontrar com tanta facilidade o arisco e falado bandido. Convoca dois
"cabras" e imediatamente se dirige para a Pedra D’água.
Deluz vem chegando. Assim que se aproxima ordena que seus “rapazes”
avancem pela porta da frente, enquanto ele irá tomar posição na porta do fundo.
Cautelosamente tomam posição. O ex-bandido está cercado.
Juriti distraidamente conversa com o dono da casa. Não percebe os estranhos
movimentos que estão ocorrendo em seu redor. Olha na direção do corredor que dá
acesso a cozinha e, surpreso, ver o feroz militar com uma arma apontada para seu corpo.
Fica paralisado. Recebe voz de prisão. Mais duas armas são encostadas em sua cabeça.
Está preso e a mercê daqueles algozes. O sargento, com frieza, diz:
- Mais qui surpresa! Nunca pensei qui Juriti fosse um pásso tom manso, tom faci
de ser agarrado. Teje preso cabra. Eu num quero cangaceiro perto de mim não.
Juriti se recompõe da surpresa e do choque. Tenta ponderar. Diz que é um
homem livre, que tem documentos e que não pensa em fazer mal a ninguém.
Os seus argumentos de nada valeram. Tinha caído nas mãos de um carniceiro.
Iria morrer.
Juriti sabe que vai morrer. Não se acovarda. Desafia o delegado, dizendo:
- Deluz, você é um covardi. Eu sei quem você é. Um covardi. Mostri qui é homi
e mi sorti. Só assim você vai ficar sabeno quem eu sou. Vamu. Mi sorti, covardi. Você é
um covardi.
O delegado ver uma corda pendurada num torno da sala. Manda Rosalvo
apanhá-la. Amarra o prisioneiro. O dono da casa está calado. Não diz uma única
palavra.
Sem demora o sargento viaja com destino a Canindé. Carrega sua presa. Mente
ao dizer que irá levá-la para o outro lado do rio e deixá-la no Estado de Alagoas.
O grupo chega à fazenda Cuiabá. Deluz muda o roteiro. Deixa a estrada oficial e
adentra a caatinga. Agora caminha por uma veredinha. Chega numa capoeira chamada
Roça da Velhinha. Pára. Da cerca da rocinha faz uma fogueira. Rapidamente as
labaredas e a fumaceira sobem. Chegou a hora. Sem nenhuma comiseração jogam o ex-
bandido dentro do fogaréu. Em poucos minutos aquele corpo humano se transforma em
cinzas e uma negra fumaça sobe a procura do nada, na direção do Além.
No local do pavoroso crime por muitos anos se via, além do negrume deixado
pelo fogo, os botões da braguilha da calça do antigo bandoleiro que ali ficara como
testemunha da medonha barbaridade do sargento/delegado de Canindé.
A morte de Juriti foi o último ato de selvageria praticado pelo tenebroso Deluz
contra os que pertenceram ao grupo de Lampião.

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Fazenda Pedra D’água. Aqui foi preso Juriti

66
A MORTE DE UMA INOCENTE
(transcrito do livro “O Sertão de Lampião”)

Era a Cuiabá, notável fazenda do coronel Chico Porfírio, um mundo à parte


naquele escondido sertão de Sergipe. Suas demarcações eram intocáveis. Suas terras
invioláveis. A sede do majestoso feudo pode-se dizer sagrada. Ali cangaceiro e soldado
chegavam guardando o mais absoluto respeito.
Avizinhados da fabulosa fazenda/mãe; modestas propriedades se espalhavam
pelas terras onde hoje está assentada a nova cidade de Canindé de São Francisco. Ali era
também a morada dos “caboclos do tabuleiro”: Jerônimo, João Bola, Mané e Zé
Marques, Chico e Antônio Domingos.
Naqueles idos, em vez das ruas e praças dos dias atuais, aquelas terras do mais
puro massapê, eram pontilhadas de pequenas fazendolas: Feliz Deserto, de dona Sinhá;
Miramonte, de Tonhinho Britto, irmão de dona Sinhá; Casa Nova, de Alice, amante de
Totonhinho Britto, irmão do todo-poderoso Hercílio Britto; Guarani, do patriarca dos
Britto, o coronel Chico Porfírio; Tabuleiro, velha fazenda de Chico Capitão, que era
localizada onde hoje se encontra o forródromo da nova cidade e a casa de Totó, aquela
mesma que passou para as mãos de Tonheiro

* * *

Região de protetores de bandidos. Matutos que eram de enorme valia para o


projeto de sobrevivência do magistral bandoleiro de Pernambuco. Terra de famosos
espiões. Caboclos leais que não mediam esforços e nem sacrifícios em favor do grande
chefe cangaceiro. Todos viviam sob a sombra e garantia do herdeiro e filho da Cuiabá, o
Dr. Hercílio Britto.
A lista dos coiteiros é grande. Alguns deles: Romão Marques, o mesmo Romão
de Adelina, vaqueiro dos bodes da Cuiabá; Rosalvo Marinho, da Pedra D’água; Mané
Marques, vaqueiro na fazenda Feliz Deserto; João Félix, vaqueiro na Planta do Milho e
Chico Vaqueiro, o coiteiro que foi avisar ao tenente Matos que Lampião estava na Pia
do Felipe por ocasião do assalto a Canindé, em janeiro de 1932, foram especiais e de
grandiosa serventia para o duradouro êxito do rei dos cangaceiros.

* * *

Amaury, seguindo informações de pessoas de Canindé, ou de algum


remanescente do cangaço, atesta em seus livros que quem avisou ao tenente Matos foi
um cunhado de dona Delfina Fernandes, chamado Zuza Marques. A informação passada
para o nosso maior pesquisador não estava correta. Dona Delfina não tinha nenhum
cunhado com o nome de Zuza Marques. No arruado ribeirinho realmente existia um
senhor com este nome, porém não era cunhado de dona Delfina, era um dos Marques de
Canindé, sem nenhum parentesco com a proprietária da Pedra d’Água.

A viúva do finado Chiquinho tinha um irmão chamado Zuza, no entanto não se


assinava com Marques e sim Fernandes. Este Zuza Fernandes, para não fugir a regra,
era também um grande espião dos sequazes.

* * *

67
Nos arredores do Tabuleiro uma casinha. Moradia de Elvira, uma sofrida
sertaneja que não tivera sorte em seus romances amorosos. Um malvado enganou-a,
traindo os seus sentimentos e matando os seus sonhos e ilusões. Não se casou. A sua
desilusão levou-a a uma quase prostituição. Aquela vida desregrada tinha um preço:
parir filhos de vários homens.
Beatriz era filha de Chico do Capela; Gobeu e Pedro, filhos de Dandô de
Fausto; Glorinha, Luís e Hercília eram de Eustáquiu, um antigo jagunço das Alagoas
que fora enviado para a Cuiabá, ali vivendo sob a proteção de Hercílio Britto.
Este Eustáquio era o pai do lendário Pedrinho de Eustáquio, o mais famoso
vaqueiro de Canindé e um dos maiores de todos os sertões.

* * *

Corre o ano de 1936. Ano de muita chuva. Frio intenso e rigoroso. Inverno de
primeira. A vacaria no curral enche latas e mais latas de leite. A coalhada e o queijo são
a granel. Os campos estão belos e floridos. O verde se espalha pela mataria formando
uma paisagem de deslumbrante beleza.
A Cuiabá é a rainha/mãe das fazendas daquele sertão.
A “solta” da fazendona, em virtude da segurança que representava, era rancho
e pousada dos cangaceiros. O absolutismo do coronel/fazendeiro é uma garantia de
tranqüilidade e sossego dos grupos que ali se acoitam.
Aquele sertão era o sertão de Lampião.

* * *

O grande bandoleiro retoma e ultrapassa a grandeza dos primeiros tempos. Os


inexperientes e simplórios caipirinhas vivem inebriados com a grandeza e o poder
daqueles homens. Ser cangaceiro é algo que enobrece o rapazinho sertanejo. Os bandos
estão humanizados com a presença feminina. Ser cabra de Virgulino é uma honra.
Num mesmo dia Mariano, Criança e Mané Moreno carregam as namoradas. As
três moças são parentas, nascidas da mesma família. Rosinha e Adelaide, às de Mariano
e Criança, são irmãs, filhas de Lé Soares; enquanto Área, a de Mané Moreno, é filha do
Tonho Nicácio e prima das outras.
A “lua de mel” dos casais está acontecendo à beira de um riacho, nos fechados
da Cuiabá, num local conhecido como “Cacimba de Baixo”, ao lado da roça do famoso
vaqueiro Miguel Quita.
Nas proximidades o Alto dos Bodes, assim chamado o local onde Romão de
Adelina cuidava da criação abundante de cabras e ovelhas.
Ali mesmo morava. Vivia isolado. Tinha facilidade de ajudar os cangaceiros. A
súcia disso se aproveitava. Como naquela ocasião estava acoitada no riacho, se servia
do coiteiro para comprar o necessário em Canindé ou na feira de Piranhas.

* * *

O temido Zé Rufino está na região. Caça cangaceiro. Sai de Poço Redondo e


adentra as caatingas do feudo dos Britto. Nas proximidades da sede percebe algo
estranho. Uma vereda por cima do capim nativo que embeleza aquela terra branca. O
experiente militar ordena que alguns de seus homens – Miguel, Zé Monteiro e Doutor –
sigam para o tanque de dar banho no gado, que ficava ao lado da residência de Leobino,
e o restante da tropa seguiria a picada. Assim foi feito. A veredinha tinha um final. A

68
casinha de Romão.
O vaqueiro dos bodes não negou. Disse aonde era o coito.
A noite havia descido. Zé Rufino tomou uma decisão inesperada. Não iria
cercar os cangaceiros no coito ali perto. Havia optado por ir dormir na Cuiabá.

* * *

Romão aproveitou a oportunidade que se lhe ofereceu. Assim que a volante se


retirou, correu e foi avisar aos bandoleiros. Tomou outras providências. Mesmo antes do
amanhecer deixou a fazendinha e acompanhado da esposa e a filharada seguiu para
Canindé. Leva consigo um plano. Finge que está assustado. Procura o sargento Antônio
José. Mente. Diz que Zé Rufino está na Cuiabá acabando com tudo.

* * *

Mais que depressa o militar reúne seus homens (18) e se destina até a fazenda.
Percebe que fora ludibriado pelo matuto. Tudo era mentira. O célebre comandante ainda
repousava sossegado quando foi despertado pelo colega de farda. Sem jeito, o sargento
conta à história que lhe foi passada pelo guardador dos bodes do Dr. Hercílio. Não se
demora. Retorna cabisbaixo.
O desejo da carne está em sua cabeça. Resolve fazer uma visita a Elvira.

* * *

Com a notícia da presença do terrível inimigo, o bando e os casais amorosos


saíram do coito e foram se esconder na Serrinha. Dois cangaceiros – Santa Cruz e
Zumbi – vão buscar algumas mercadorias escondidas na residência de Elvira. Chegam.
A mulher é acordada; com ela ficam proseando.
É nesse instante que a “força” vem chegando.
A luz opaca de um candeeiro sai pelos buracos das paredes da velha choupana.
Já é madrugada. Algo de errado está acontecendo. Desconfiados com a claridade,
os soldados ficam temerosos.

No meio deles um que é considerado valentão. É Argomato, filho do então cabo


da polícia sergipana, Mané Rozeno.
Sentindo que seus colegas estavam com medo, Argomato convida um
companheiro e se acerca da taperinha. Cuidadosos, e com imensa cautela, os dois praças
vão se achegando. Olham pelos buracos. Avistam os bandidos. Retornam rápidos e
silenciosos. Avisam ao comandante. Confabulam aos cochichos. Aí sim, Argomato
enche-se de coragem. Chega perto da casinha e dispara sua arma.
Os dois asseclas correm. Saem pela porta dos fundos e sem nenhuma dificuldade
adentram a mataria.
Tiros ecoam. Elvira grita alucinada. Sua filha Beatriz está baleada em um dos
braços, e a outra, a sua mocinha Hercília, está estirada no chão, morta, numa poça de
sangue.
Pela manhã Zé Rufino chega. Fica raivoso com o funesto acontecimento. Reclama
dos colegas de Sergipe. Segue viagem. Nada mais poderia ser feito.
Mais uma jovem e inocente vida era ceifada desse mundo...

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A MORTE DE LÍRIO ROXO
(transcrito do livro “O Sertão de Lampião”)

No livro do mestre Antônio Amaury Corrêa de Araújo, “Gente de Lampião:


Sila e Zé Sereno”, página 121, o nosso renomado pesquisador, seguindo informações,
talvez do próprio Zé Sereno, registra que Lírio Roxo era filho de Poço Redondo, tendo
sido um dos que se entregaram junto com Sereno em setembro de 1938.
A informação não é correta. Não existia nenhum filho de Poço Redondo com
esse nome.
Infelizmente, não se pode negar e nem desconhecer essa tenebrosa realidade
que tanto prejudica o trabalho dos historiadores. Foi documentado um número
incalculável de fatos que chegaram até os pesquisadores através de fontes que não se
podia colocar nenhuma suspeição, pois chegavam justamente da parte dos que viveram
os episódios por eles narrados. Pura ilusão. Com o passar dos anos e após outras
pesquisas, se chagava a conclusão de que aquelas informações tão cuidadosamente
recebidas não espelhavam a verdade.
É uma lástima que tais desencontros de registros tenham acontecidos, de vez
que eles colocam o historiador numa situação desconfortável. Dando lugar a que os
críticos, ou aqueles que sentem prazer em deslustrar a aplicação e o esmero do
pesquisador e, em sendo assim, encontrem uma razão para criticar o insano e magistral
trabalho desses verdadeiros heróis que perderam maravilhosos anos de suas vidas a
procura do resgate dos épicos da história sertaneja.
É deveras doloroso e injusto se dizer que os pesquisadores e historiadores do
cangaço são fantasiosos e que os seus escritos são mentirosos e sem nenhuma
credibilidade.
É uma pena que se pense assim. Se há mentiras. E elas existem em profusão. É
por conta dos testemunhos contados conforme a vontade daqueles que de uma maneira
ou de outra, viveram ou participaram dos fatos.
Antônio Amaury por ter sido o historiador que mais pesquisou a grande saga
vivida no Sertão do São Francisco, em especial nos municípios de Canindé e Poço
Redondo, é o que mais se contradiz com as minhas afirmativas.
Até parece que tenho especial prazer em contradizer os seus registros e com
isso criar uma espécie de dúvida sobre a sua inigualável capacidade e competência. Não
penso e não tenho essa formação. Tenho isto sim, por este notável pesquisador e
imensurável homem, um carinho e um afeto especial.
Recebi de Deus o privilégio e a honra de ser um de seus inúmeros discípulos.
Honraria que me enche de alegria e felicidade. O dever de justiça me faz reconhecer a
lonjura que nos separa em matéria de conhecimento e qualidade literária. No entanto,
sou filho dessa região, vivo o dia-a-dia daquilo que nos resta dos tempos de Lampião,
por isso mesmo recebo as mais diversas versões. Com muito cuidado coloco-as no
tabuleiro da história e aquelas mais convincentes são documentadas. Quando elas se
atritam com outras que estão nos livros eu procuro considerar o empenho dos que as
registraram e respeitá-las com esmerado carinho. Todavia, não posso negar, coloco-me,
prazerosamente, como agente do novo registro e com ele enriquecer o tema apaixonante
da historiografia do cangaço. Deixando, assim, que o leitor faça a sua escolha.

* * *

Ainda existe um manancial de importantes episódios que sobrevivem na cabeça

70
de velhos moradores desse sertão.
Vamos há mais um deles:
Em Canindé do São Francisco, através dos testemunhos dos senhores Zé
Leobino e Daniel Ricardo, antigos e famosos vaqueiros da Cuiabá e ainda o senhor
Maninho da Volta, tenho recebido valiosas informações sobre os idos do cangaço.
Dentre alguns está o episódio da morte de Lírio Roxo.
Segundo Maninho e Leobino, Lírio Roxo era um ex-soldado da policia
sergipana. Por um motivo que eles não souberam explicar, esse moço deixou a vida
militar e ingressou no bando de Lampião.

* * *

Lírio Roxo era um moço atlético. Rapaz de estatura acima do normal.


Conversador. Alegre. Um homem agradável. Tinha uma particularidade. Um sinal no
rosto que o caracterizava. Uma pinta preta bem acentuada marcava a sua face.
Assim que entrou para o bando, o rapaz introduziu uma novidade. Mudando,
com isso, a rotina e o costume da súcia. Inventou em ministrar conhecimentos militares
a seus novos companheiros. Colocava os asseclas em fila e por alguns minutos dava
aulas de instrução militar.
Alguns cangaceiros se aborreciam com aquela nova moda. Delicado (João
Mulatinho), irmão de Adília de Canário, era um dos que não suportava aquele novo
costume e dizia abertamente que aquilo não era instrução era uma destruição.

* * *

O bando está na Lajinha. O coito foi armado no Olho d’Água da Cachoeirinha,


no riacho Poço Doce, também chamado de riacho da Lajinha, nas proximidades da
fazenda de Libório, um dos filhos de João Alves, antigo vaqueiro do coronel Chico
Porfírio. Os cangaceiros esperam Lampião na mais completa tranqüilidade. Passam o
tempo jogando e brincando na areia do riacho.
Lírio Roxo comete uma loucura. Convida um cangaceiro (Bom de Vera) pra
fugir. O “cabra” de Poço Redondo finge que poderá aceitar o convite e quer saber
detalhes da fuga. Acordam que tudo terá que acontecer com a maior brevidade e que
ninguém poderá desconfiar de seus desejos.
Naquele mesmo dia Bom de Vera conta tudo a Sabiá, companheiro e amigo de
infância. Lampião chega. O coito se alegra. A noite é de festa. Pela manhã, ainda muito
cedo, o irmão de Timbé do Poço conta a Luís Pedro a novidade. Este, imediatamente,
procura o chefe e participa-lhe do que está acontecendo. O capitão se enfurece.
Deserções era uma das coisas que mais odiava. Não costumava perdoar desertores. Lírio
Roxo não teria perdão. Manda que o seu leal imediato prenda-o e traga-o a sua
presença. Assim que o cangaceiro se apresenta é imediatamente desarmado. Ficando
sem o mosquetão e sem o parabellum.
* * *

Lírio Roxo é valente. Sabe que não terá perdão. Passa perto do delator e xinga-
o. Chamando-o de covarde e traidor. Sabiá era um caboclo desaforado. Não suportava
desaforo de ninguém. Respondeu com dureza: “covarde o que seu cabra safado.
Covarde e traidor é você”.
O cangaceiro chega a presença de Lampião. Enfrenta-o cara a cara. Não se
acovarda com sua medonha carranca. A voz de Virgulino sai como se fosse um trovão

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ao perguntar:
- Cabra, pruque ia fugir?
- Eu ia mimbora pra num lhi matar - responde sério o condenado.
- Matar pruque? - pergunta Lampião.
- Pruquê vim pro bando pra lhi matar.
Lampião baixa a cabeça e diz: - mati essi miseravi qui num tem nem coragi de
cumprir o qui quer fazer.
O condenado é levado até à beira do riacho. É amarrado a uma árvore e Sabiá
pede para executá-lo. Recebe permissão. Encosta sua homicida arma no ouvido do
condenado disparando-a sem dó e sem piedade.
Lampião entregou ao senhor Antônio Fininho, um beiradeiro, morador no
Canindé Velho de Baixo, a responsabilidade de cavar um buraco, ali mesmo na barranca
do riacho, e enterrar mais uma vítima de sua sanha assassina.

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A FÉ EM DEUS
(transcrito do livro “O Sertão de Lampião”)

Dezembro chegou. O sertão louva o nascimento do Menino Jesus. É o tão


esperado e sagrado mês do Natal. É tempo de festas. Os sertanejos, dos mais longínquos
recantos, assim que a noite desce deixa a sua velha e pobre choupana e corre para o
arruado mais próximo, a procura de um carteado, de uma rifa, de um bozó, de bebidas e
do forró; varando a noite, ao som de uma fanhosa concertina.
Os mascates aproveitam a época para uma venda mais generosa. Liberalino,
velho e estimado vendedor de bugigangas, é um deles. Matuto girento. Vive a
perambular pelos ermos dos sertões com suas quinquilharias, oferecendo-as de fazenda
em fazenda e nos lugarejos mais distantes.
Os festejos natalinos e o novo ano se aproximam. O momento de ganhar um
dinheirinho se apresenta. O mascate está pronto para viajar. Arreia o burrinho e vai
receber as mercadorias no porto do Canindé Velho de Cima, o destino é o povoado
Curituba. Algo o preocupa. Sabe que havia caído em desgraça junto aos cangaceiros.
Encontrá-los, seria um grave risco. Porém, a necessidade e a teimosia davam-lhe forças
para viajar. E, ainda mais, em sua crença religiosa tinha certeza de que nada neste
mundo lhe aconteceria sem que não fosse pela vontade de Deus.

* * *

Os campos da Pedra D’água, Planta do Milho, Oroco, Picos e Fazenda Velha


são moradias dos cangaceiros, em especial de Juriti que vivia na companhia de Maria, a
mocinha de Mané de Áurea, o vaqueiro dos Picos.
Liberalino tange o seu burrinho. Juriti e seus companheiros o observam. O
animal e seu dono andejam lentamente. O vendedor toma um susto. A sua frente os
cangaceiros. Um deles – Sabonete – indaga:
- O qui é qui tá trazeno nessa carga?
Antes da resposta do tangerino, Juriti ameaça.
- É você, Liberalino? Agora nois vamu acertar nossas contas. Só assim você vai
mi pagá o qui devi e o qui num devi.
Sem nenhum assombro e sem perder a tranqüilidade, o velho mascate responde:
- Só si Deus quiser. Só si Deus quiser.
Ameaçadores, os bandidos cercam-no. Juriti volta a falar:
- Sabi qui vai morrer! Eu vou lhi matar, véio safado. Traidor.
A resposta do sentenciado é inesperada e diverte a cabroeira:
- Sei não! Sinhô sim. Sei não. Quem sabi é Deus Nosso Senhor. Si eli num quiser
eu num morro não. Você vai ver si num é assim.
As gargalhadas estrondam. Por aquela ninguém esperava. Zumbi ralha:
- Num morri o quê véio, cabra de peia. Você vai morrer na ponta dessi punhá.
Vai morrer, sim sinhô! Num tem doutor qui impati.
Sem abalo, o homem responde:
- Nessi ponto você tem toda razão e nois tamu de acordo. Você tá certo.
Doutor num podi impatar, mais Deus podi. Num duvide. Deus podi. Si num for
promitido pur Eli eu num vou morrer de jeito ninhum. Num adianta. Vocês tão perdeno
tempo. Essas coisas só quem arresorvi é Deus.
- Vamu ver. Vamu ver - galhofa o cangaceiro.
- Vamu ver. Vamu ver - repete quase que ironicamente o mercador ambulante.

73
* * *

O bando se decide por levá-lo preso. Viajam. Sem nenhuma comiseração o


infeliz é amarrado em sua própria montaria. As mãos são atadas a uma corda e presas no
arção da cangalha. O destino da caterva é a Curituba. Ao se avizinharem do lugarzinho
resolvem fazer parada na residência de Ranulfo. O almocreve é pendurado num torno do
telheiro da casa. Alguns asseclas vão até o arruado onde passam o tempo brincando com
as moças. Zumbi, um dos que ficaram na moradia de Ranulfo, guarnecendo o
prisioneiro, a todo instante o ameaça:
- Pesti véio! Você vai ser sangrado daqui a pouco. Quer saber quem vai lhi
sangrar? Vai ser Juriti. Você vai ver o qui é bom pra goela.
A resposta do preso é sempre a mesma:
- Só si Deus quiser. Só si Deus quiser.

* * *

As horas passam. A noite envelhece. A cachaça domina os bandoleiros. Os que


estavam na vila retornam. Todos estão na salinha de janta. O cheiro apetitoso da carne
de bode, assada na brasa, se espalha pela casinha. A escuridão é total.
Algo estranho está acontecendo no telheiro. Um vulto misterioso ali está. Será
um cangaceiro? Será um destemido paisano? Nunca ninguém soube. Alguém se apiedou
do mascate, livrando-o daquele terrível suplício. Quem? Naquela escuridão nem o
andarilho conseguiu saber quem foi o seu anjo benfeitor.

* * *

De repente um vulto silencioso surge do nada no telheiro. Agoniado pelo


sofrimento, Liberalino ainda mais se atormenta. Imaginou que o seu fim havia chegado.
Algo surpreendente aconteceu. O vulto lhe diz num sussurro:
- Corra. Aproveite. Vá simbora. Vá simbora.
Sem desatar o nó que prendia suas mãos, o condenado some na escuridão.
Conhece os segredos da mataria. Nela se esconde. No raiar do dia encontra Gobeu e
Barroco. Conta-lhes seu padecimento. Os amigos, mais que depressa, retiram-lhe a
corda e levam-no para um lugar seguro. Aonde os facínoras não iriam encontrá-lo.
Quem o salvou? Nunca se soube.
Um milagre aconteceu. A fé em Deus o livrou de uma horrível morte.

74
A MORTE DO SARGENTO DELUZ
(transcrito do livro “O Sertão de Lampião”)

Amâncio Ferreira da Silva era o nome de um dos mais famosos caçadores de


bandidos de que se têm notícias na história da milícia sergipana.
Este militar era pernambucano, uns diziam ser ele de São Bento do Una e outros
asseveravam que o berço do antigo e temido comandante de volante era a cidade de
Gravatá. Sabe-se, no entanto, com certeza, que Amâncio nasceu no dia 11 de agosto de
1905. O nome de batismo ficara no esquecimento. Desde criancinha recebera a alcunha
que iria celebrizá-lo. Todos o chamavam de Deluz.
Muito moço, o rapazinho de Pernambuco ingressou na força pública do Estado
de Sergipe.
Os tempos tenebrosos do banditismo flagelavam o sertão desconhecido. Deluz
recebe ordens para ir destacar no último porto navegável do Baixo São Francisco, o
pequenino lugarejo dos Britto, Canindé Velho de Baixo – Canindé de São Francisco.
Lampião reinava absoluto naqueles mundos ermos e abandonados, e o jovem
militar, seguindo as pegadas de tantos outros, recebia a ingrata missão de caçar
cangaceiro, enfrentando, assim, o poder do famoso capitão do cangaço.
Deluz, desde muito cedo, demonstra um destemor acima da média. Seu nome
ganha notoriedade. Cria fama. Suas ordens e atitudes são desassombradas. Não conhece
o significado da palavra medo. Carrega, no entanto, uma pesada cruz, é genioso e
violento, perverso e bruto, na maior abrangência dessas palavras.
Acontece o nunca esperado. O invencível Lampião, sua Maria Bonita e mais
nove de seus comandados são trucidados em Angico. Sem o afamado comandante o
cangaço também morre. Livre do banditismo o perseguidor de cangaceiro se volta
contra os remanescentes da grande saga.
Da guerra cangaceira resta-lhe dois sádicos passa-tempo: caçar ex-cangaceiro
para matar, como fez com Juriti, preso na Pedra D’água, de Rosalvo Marinho, e
assassinado barbaramente nas terras dessa mesma fazenda; e o escabroso gosto de trazer
ladrões da cadeia de Propriá, amarrá-los a uma pedra e jogá-los nas águas do São
Francisco.
O tempo foi passando. O seu nome era cada vez mais temido pela população.
Sua fama cresceu assustadoramente. As mocinhas se derramavam em dengos e desejos,
suspirando apaixonadas, quando viam a figura máscula e altaneira do valente militar
desfilando pelas ruazinhas do arruado ribeirinho.

* * *

Um descendente dos Garra, pioneira família de Poço Redondo, deixa o arruado


de Luís da Cupira e de China e vai fazer companhia a um tio paterno – João Grande –
morador na diminuta povoação de Curituba; a Curituba de João dos Santos, nas terras
de Canindé de São Francisco. O rapazinho chama-se João e vem de uma grande prole. É
filho de Hipólito José dos Santos e dona Marinha Cardoso dos Santos, chamada
carinhosamente de Vevéia. A irmandade é numerosa: Geminiano, Joaquim, Chiquinho,
José (Zé Hipólito), Antônio (Touca), Miguel, Manuel (Naniga), além de João (João
Marinho); tem ainda as irmãs Isabel (Iaiá), Maria, Antônia Rosa, Júlia, Filomena e
Francelina, num total de quatorze irmãos, descendentes daquela que foi uma das mais
tradicionais famílias das areias brancas de Poço Redondo.
João Marinho faz sua vida nas terras de Canindé. Namora Maria, uma mocinha
dos Gomes, conceituada família daquele pedaço de sertão. O namoro é ardente e

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apaixonado. Noivam e se casam. João vai trabalhar em uma das inúmeras propriedades
do lendário coronel Chico Porfírio, a fabulosa fazenda Brejo.
João e Maria seguem à risca as tradições e os costumes da época. São
responsáveis por uma vasta e numerosa filharada. Os anos passam e os filhos vão
nascendo: Hortêncio, Jonas, Zé Marinho, Santana, Totonho Marinho, Agenor, João,
Fausto, Mãezinha, Angelina, Maria (Mariinha), Dalva e Santa.

* * *

Os anos caminham pela encosta do tempo. João Marinho é um gigante. Faz


filhos e planos. Trabalha com afinco e suprema dignidade. Vê o seu grande sonho
realizado. Compra a fabulosa fazenda. Com seu labor e coragem faz do Brejo uma das
mais consideradas propriedades daquele mundão de Canindé de São Francisco. O seu
nome ganha projeção. Dois de seus irmãos (Chiquinho e Zé Hipólito) o acompanha e se
mudam para o Canindé. Os manos também ali se casam. As escolhidas são duas irmãs:
Delfina e Anália.
Chiquinho é vaqueiro no Belo Horizonte e Zé Hipólito fez sua moradia num
lugar a que deu o nome de Pindoba, aquela mesma que nos dias atuais é a grandiosa
fazenda Rancho do Vale, do conceituado Jair Monteiro Santos. Após vender a Pindoba
ao tenente João Maria da Serra Negra, Zé Hipólito faz nova moradia, dando-lhe o nome
de Vertente.

* * *

O moço dos Marinhos de Poço Redondo se torna no patriarca daquela região. A


prole está crescida. Os rapazes e as moças do Brejo são desejados. Namorar os filhos e
as filhas de João Marinho é o sonho de toda juventude sertaneja.
Deluz se rende aos encantos de uma das mocinhas do famoso fazendeiro. Está
apaixonado por Dalva.
O velho pai, sabendo da fama do moço policial, não faz gosto naquele enleio. É
um amante da paz e do sossego. Quer o melhor para sua filha. Tem medo que aquele
namoro se torne em casamento.
O fazendeiro tinha razão. O seu temor tinha fundamentos. O seu coração de pai
não se enganara. A sua filha se casa com o temido sargento.
O inesperado acontece. Três dias após o casamento Deluz comete a primeira
injúria com a esposa e seus familiares, levando-a de volta a casa do pai.
Uma desgraça. O que aconteceu? Qual o motivo para aquela atitude? A família
teria que saber a razão daquela desfeita.

* * *
O senhor do Brejo tem outro genro (João Maria Valadão), casado com Mariinha,
nascido e criado no Olho d’Água, uma fazendinha das redondezas do grande feudo.
Valadão se dá muito bem com o marido da cunhada. Por isso foi o escolhido
para saber do protegido de Hercílio Britto a verdade sobre o que acontecera entre ele e a
esposa. Recebida a incumbência, João Maria procura o temido concunhado. Precisa
cumprir a missão que lhe foi confiada, deslindando aquele mistério.
João Maria é um rapaz destemido. Confia em sua coragem e mais ainda na
amizade que tem com o delegado. Tem certeza de que se sairá muito bem de sua
empreitada. Com esse pensamento se destina até a propriedade do agora também genro
do senhor do Brejo.

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O dono do Araticum recebe o mensageiro com alegria. Os dois conversam
amenidades. Até que o visitante pergunta:
- Deluz, num se amofine cum o qui vou lhi perguntar? Eu quiria qui você num se
importasse de me dizer o motivo que fez você devorver Darva pra casa dos pais?
O sargento olha-o com espanto. Fala. Sua fala sai mais fina do que a de
costume. Diz carrancudo:
- Darva num é muié. Darva é uma cobra. Eu sou uma serpente. Me diga, João
Maria? Me diga se uma serpente e uma cobra podi viveri juntos?
O enviado de João Marinho fica de cabeça baixa e diz:
- Você tem razão. Você tem razão. E é assim qui eu vou dizer ao pai dela.
Alguns dias depois Deluz e Dalva estavam novamente juntos.

* * *

A vida continua. A preferida ocupação do valente de Pernambuco passa ser o


trabalho em sua vasta fazenda. Seus projetos estão voltados para suas terras. Quanto a
lei que é um defensor, com ela não se preocupa. Acha que ele é a própria.
Os métodos de vida e trabalho do militar eram deveras horripilantes. Garantido
pela proteção do Dr. Hercílio Porfírio de Britto, filho e herdeiro do lendário coronel
Chico Porfírio, o militar era o terror daquelas bandas do Sertão do São Francisco. Era
um bruto. Um selvagem. Um verdadeiro animal dos tempos mais primitivos. Seu corpo
era forte, atarracado, membros largos, fala mansa e fina. Fumador inveterado, seu
“pagoga” (cigarro) era de fumo de corda, enrolado com palha de milho. Era viciado em
mascar fumo. Com um naco de tabaco na boca parecia que chupava “bala doce”, tão
grande era o seu mórbido prazer em fumar e mascar.

* * *

Pode-se afirmar que Dalva nunca soube o que era um instante de paz e de amor
em sua vida de casada. Desde o dia em que saiu da casa do pai e foi para o altar e dali
para o seu novo lar, a infelicidade entrou em sua vida.
Logo, logo, apareceram as brigas. O marido não era marido, era um carrasco, um
senhor brutal que queria trazê-la debaixo do cacete. A jovem esposa não se dobrava.
Geniosa, enfrentava o violento cônjuge sem medo e, com isto, as desavenças eram
constantes.
Mesmo assim, cumprindo o sagrado e sublime dever que o destino reservou as
mulheres, Dalva engravida. A gravidez poderia melhorar a aflitiva convivência do casal.
A família envidava esforços para apaziguar a situação. O delegado dá sinais de
concórdia. Faz uma roça nas terras do Brejo. O sogro aceita de bom grado. A permissão
é concedida. Ainda mais, demonstra satisfação com o interesse do genro pela agricultura
e criação de animais. A intenção da família era de que tudo se ajeitasse e a moça
pudesse ser feliz em seu casamento.
Os meses passam. Dalva sente as dores do parto. A parteira já está preparada. As
dores aumentam. O instante chegou. Um chorinho se espalha no quarto. A criança
nasceu. É uma menina.
A mamãe está radiante e feliz. Dera luz e vida a uma bela menininha. O nome já
havia sido escolhido. A sua filhinha iria chamar-se Adélia.
O pai não demonstra nenhuma felicidade com o nascimento da filha. Queria um
filho. Continua o mesmo de sempre: arrogante, bruto e insensível.

77
* * *

Ainda nos primeiros dias do “resguardo”, Deluz amanheceu endemoninhado.


Sem nenhuma razão ameaça a esposa. Esta, mesmo chocada e desesperada com a
atitude intempestiva e grosseira do marido, responde as ameaças sem medo e com
grosseria redobrada.
Famoso pelos seus atos de brutalidade e perversidade, o sargento fecha a porta
do quarto. A esposa e a filha estão presas. Num gesto aloucado derrama uma lata de
querosene na casa e ameaça incendiá-la.
Por pouco a tragédia não se consuma. Ao verem a terrível cena, as vizinhas, aos
gritos e agoniadas, pedem socorro. Os soldados correm e seguram o chefe que já estava
de fósforo nas mãos para riscá-lo.
A situação é irreversível. A vida em comum daquele casal era impossível.
O gênio e a brutalidade do marido trazem para a filha de João Marinho grande
infelicidade. Já não é uma esposa. Desde muito deixara de ser uma companheira para se
tornar num saco de pancadas. As pessoas que viam o sofrimento da moça do Brejo
diziam penalizadas:
- Coitada de Dalva. Tão bem criada. Uma pessoa tão boa. Viver essa vida!

* * *

A família está angustiada. Os pais, aflitos, perderam o sossego com a situação da


filha. As irmãs lamentam a vida da mana tão boa e tão querida e os irmãos começam a
odiar o cunhado maldito.
Mesmo assim, o velho pai tenta remediar o grave problema. Não quer o
desassossego da família. O que mais deseja é a paz entre seus filhos. Não quer ser
inimigo de seu próprio genro e sabendo de seu desejo de possuir um pedaço de terra, lhe
cede algumas tarefas numa região de caatinga fechada chamada Araticum. Ali o famoso
delegado fez sua fazendinha.
Surge mais uma novidade no seio daquela infeliz família. Dalva engravida mais
uma vez. Mais uma menina nasce. A criancinha é batizada com o nome de Luzia, mas é
carinhosamente chamada de Zizi.

Parece que as coisas irão mudar. O militar tem projetos. Deseja aumentar suas
terras. Procura João Maria Valadão. Propõe ao cunhado a cessão de um pedaço de terra.
O seu preito é atendido. O marido de Mariinha faz negócio com algumas tarefas.
Combinam que a demarcação começaria por um trilho que se iniciava no riacho da
Barra.
Deluz avança em seus projetos. O Araticum se torna numa fazenda de porte
elevado e o seu crescimento não agradou ao sogro que resolveu não mais entregar os
documentos de posse a seu genro. A cobiça iria aumentar ainda mais as desavenças de
genro e sogro. O problemático militar se enfurece com a atitude do pai de sua esposa e a
desarmonia alcançou a sua fase mais aguda.
No entanto, uma outra versão dá conta de que Deluz não se contentou apenas
com as terras cedidas pelo marido de Mariinha e passou a desejar mais uma parte da
grande propriedade do sogro.
Arrogante e prepotente procura o velho e diz de sua intenção. João Marinho não
concorda e a esposa, dona Maria Gomes, se aborrece profundamente com a solicitação
do belicoso genro.
Esta outra versão dá conta de que o temido militar cria mais uma grande

78
preocupação. Além dos maus-tratos com a esposa, agora planeja investir sobre as terras
do Brejo. Não teme nada. Acha-se o senhor da lei e da justiça. Sua condição de
delegado faz com que imagine ser o dono de tudo.
O fazendeiro toma posição. O genro desgraçou sua filha, nada poderia ser feito.
Porém, suas terras que haviam custado o seu suor, o seu sangue e a sua vida, ele não iria
tomá-las de maneira alguma.
Em favor de Deluz pode-se dizer que apesar de seu gênio violento e de sua
brutalidade extrema, ele era uma pessoa que odiava trapaças. Costumava agir conforme
o seu sentimento de justiça que era não se pode negar verdadeiramente trágico. Os
exemplos são numerosos. Um deles é aquele em que Zuleica, uma das filhas de dona
Delfina da Pedra d’Água, que se encontrava nos primeiros dias do “resguardo” e
discutiu com um criado do Mestre Cícero, chamado Raimundo. Cientificado do
acontecimento Deluz intimou o rapaz e ordenou que a irmã de dona Hilda desse uma
pisa, com um chicote de couro cru, no rapazinho da discussão. Zuleica se recusou. O
sargento disse-lhe que ou ela dava as chicotadas no moço ou ela era quem iria apanhar.
Sem outro jeito a consternada senhora chicoteou o mocinho. Aquela pisa foi trágica.
Como estava debilitada pelo parto e não suportando aquela inesperada e horrível
situação, a mulher adoeceu e em poucos dias faleceu.
Nos tempos do banditismo também não se registra um fato que desabone a
conduta deste militar junto a Lampião ou qualquer outro cangaceiro. Outra verdade
cristalina é que Deluz era detentor de enorme prestígio. Mantinha estreita amizade com
influentes figurões da época. Era protegido de Hercílio Britto, de Antônio Britto, do
Belém, de Pedro Chaves e de todos os poderosos senhores do Baixo São Francisco,
além da estreita intimidade que tinha com as maiores autoridades de Sergipe.
A briga familiar foi sua desgraça.
O conflito estava aberto. A intriga formada. Mas, um resto de esperança ainda
existia. Deus não iria permitir que um desgraçado desgraçasse a sua família. Assim
julgava o amargurado João Marinho.
* * *

Os do Brejo não desejavam o confronto. Todos queriam paz. Foi assim que
todos foram criados. Os filhos de João Marinho gostavam mesmo era de trabalhar nos
roçados, campear a vacaria da fazenda e correr atrás de boi brabo naquelas fechadas
caatingas.
Estão guardadas na história campeira de Canindé as façanhas de Hortêncio,
Agenor, Santana e Zé Marinho, famosos vaqueiros que montados em seus respectivos
cavalos: Escurinho, Teiú, Cana Preta e Bizarria, faziam tremer o chão daquele sertão do
cipó-de-leite, do xiquexique, do croatá, da macambira e do bom-nome.
Toda aquela felicidade estava toldada pelo desastrado vínculo matrimonial da
irmã com o arreliento sargento/delegado. Além do mais, outras provações haviam
chegado. Agenor, o filho e irmão querido que chegara de uma estada no Rio de Janeiro,
havia morrido, de repente, num desmaio, durante uma carreira atrás de umas bestas.
Tanto sofrimento, tanta provação, estava deixando o velho patriarca alquebrado
e desiludido da vida.

* * *

O ódio entre Deluz e os familiares da esposa aumenta. A qualquer instante


poderá explodir uma gigantesca medição de força. O delegado é o todo-poderoso da
região e os parentes de sua esposa não são uns covardes.

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A questão das terras está se tornando altamente explosiva. O sargento, como se
fosse um rolo compressor, quer passar por cima de tudo e de todos. Em sua ganância
resolve demarcar a terra que julga lhe pertencer por ser casado com uma filha do
proprietário. Os do Brejo não concordam com a absurda pretensão do genro e cunhado.
O buliçoso delegado não pára em seu intento, continua com o trilho.
Geniosa, e sem medir as palavras, dona Maria Gomes, esposa do fazendeiro e
sogra do sargento, aborrecida com a petulância do marido de sua filha, diz publicamente
que seu genro quer roubar-lhes as terras.
O quadro estava formado. A mentira, o fuxico e a ganância foram em toda
história dos povos sertanejos o maior alimento para as tremendas disputas; as grandes
batalhas; as terríveis lutas acontecidas no seio da sociedade cabocla. Todas essas
desgraças se apossam daquela ordeira e pacífica gente. Todos ali são pacatos ao
extremo. Os homens daquela família haviam nascido para os trabalhos da roça e do
campo. Infelizmente, por culpa da sandice e do destempero do militar que por
desventura entrou na família, estavam prestes a cair no abismo de uma luta mortal.

* * *

Em sua doentia obsessão, ao saber das palavras injuriosas proferidas pela mãe de
sua mulher, o delegado, com a desmedida arrogância que fazia parte de sua pervertida e
grotesca característica, intima a sogra e diz publicamente que assim que ela se
apresentasse iria dar-lhe uma surra.
Aquela atitude superou todos os limites. Dona Maria, além de ser a matriarca de
uma família altamente conceituada, pertencia aos velhos troncos dos Gomes, uma
linhagem famosa pela reputação e pelo destemor. Portanto, uma afronta daquela teria
que ter resposta.
A velha não iria atender a intimação. Em seu lugar iriam o velho e os filhos.
E foi o que aconteceu. O chefe e dois de seus filhos – Totonho e Jonas – foram
atender a injuriosa intimação.
Deluz estava no quartel lavando os pés quando os familiares de sua esposa
chegaram. Ao vê-los demonstrou surpresa. O sogro foi imediatamente dizendo:
- Maria num pôdi vim. Eu vim apanhar no lugar dela.
O delegado não teve tempo de responder. Totonho e Jonas já estavam atracados
com ele, derrubando-o no chão e dominando-o por completo.
João Marinho está enlouquecido pelo ódio. Com furor puxa um canivete e quer
sangrar o genro. Mas, numa demonstração clara de que os Marinhos abominavam a
violência e só mesmo uma mente anormal como a daquele louco poderia jogá-los no
caminho do crime, os dois filhos impedem que o pai consume o medonho ato homicida.
Os soldados chegam. Apaziguam a grave situação sem se intrometerem na confusão dos
parentes. Carregam o chefe para outro local. João Marinho e seus filhos montam em
seus animais e retornam para o Brejo.

* * *

Também geniosa, a esposa de João Maria Valadão (Mariinha), aproveitando que


o soldado Quixabeira havia ido até a fazenda do marido (Olho d’Água) receber um
carneiro, não deixa por menos, agride com todo tipo de palavras e injúrias o cunhado.
Sabedor das ofensas, o militar intima o concunhado e lhe diz textualmente que dê uma
surra na esposa.
Valadão é um caboclo, raça pura do sertão. Jovial, alegre e bom amigo. Todavia,

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em seu dicionário caatingueiro não sabe o significado das palavras medo e covardia. A
proposta do delegado foi recebida como um insulto. A resposta veio rápida e grosseira:
- Você tá doido, Deluz. Eu nunca bati na minha muié. E pruque agora você vem
mi dizer uma coisa desta? Sei não. Achu qui você tá ficando doido. É isto mermo. Você
tá ficando doido. Você maginar qui eu vou bater im minha muié só pruque você tá
mandando é demais. É cuma eu tô dizendo.Você só podi tá ficando doido. Vou
mimbora. Você precisa arrespeitar os homi.
Dada a resposta, João Maria saiu do quartel. Deluz ficou remoendo o seu ódio. A
família da mulher iria pagar pela ousadia. Como de costume não fez reserva de seus
homicidas pensamentos. Dizia aos quatro cantos de Canindé que iria matar todos do
Brejo.
Entre os marcados está João Maria Valadão. A sua insolência deixara o sargento
indignado. “Aquele valentão atrevido iria saber quem era Deluz”, dizia o delegado na
bodega do Mestre Cícero. Os outros sentenciados eram o sogro, a sogra e o cunhado
Jonas Marinho.
Por esse tempo, Deluz e Dalva estavam separados. “Não faziam vida”, como diz
o sertanejo quando se refere a um casal que não dorme junto e deixam de praticar o
sexo.

* * *

O inesperado aconteceu. Chegou de Pernambuco uma trágica notícia. A mãe e


um irmão do sargento morrem num acidente automobilístico. Ensandecido pelo
acontecimento o militar jura vingança. Irá procurar o causador do acidente e o matará
sem nenhuma compaixão. Marca a data da viagem e faz um juramento: assim que
retornar irá até o Brejo e, aí sim, a vingança será realizada.
Em sua arrogância não imaginava que as suas palavras chegavam distorcidas e
aumentadas na fazenda do sogro. E foi assim que aconteceu. Farto das ameaças e
consciente de que aquela porfia só teria fim cortando o mal pela raiz, o velho reúne os
filhos com a finalidade de se tomar uma decisão que acabasse de uma vez com aquele
suplício. Providências teriam que ser tomadas com urgência. Só existia uma solução. A
morte. O sargento teria que morrer. Ou ele, ou os do Brejo seriam dizimados.
E Dalva e suas filhinhas? Filha e netas eram amadas pela família. Elas também
sofriam horrores nas mãos daquele perverso. Mesmo sem que viesse entender a razão
para tão drástica atitude o certo é que elas também iriam se livrar de um medonho
pesadelo.
Tudo acertado, agora era esperar a oportunidade. Jonas iria vigiar os passos do
maldito cunhado. João Maria seria o executor.
Acontece o desastre com os familiares do sargento/delegado. Os boatos dão
conta de que o temido militar iria matar o causador da tragédia de sua gente. Quando
retornasse para Sergipe traria um irmão tido e havido como um dos mais sanguinários
pistoleiros de Pernambuco. O mano famoso chamava-se Otávio e com outros
bandoleiros iriam atacar o Brejo, não deixando ali nem pinto vivo. Esses eram os
comentários que circulavam abertamente pelas ruas e bodegas de Canindé.
A data da viagem chegou. Jonas vigia os passos do desafeto. O sargento sairá
pela manhã de sua fazenda com destino ao Canindé e de lá então para a sua missão
vingativa.
João Maria é avisado. O momento se apresenta. Por volta da meia noite,
acompanhado de Vicente da Mata Grande, Mané Vigia e Cícero Cupira deixa sua
fazenda e segue para o Araticum, vai tocaiar o valentão de Canindé.

81
O dia amanhece. Os primeiros raios do sol se espalham pelas caatingas e
cerrados. É uma terça-feira – 30 de setembro de 1952. Deluz se prepara para viajar. Sua
montaria terminou de comer a ração de milho e já está selada. Ao seu lado o cunhado
Rosalvo Marinho, o único que ainda se relaciona com ele e que iria cuidar da fazenda
até a sua volta.
Monta no animal. Um cavalo “pampa”; ronceiro, lerdo, chamado “Colonho”. O
cachorro quer segui-lo. Não deixa. Encruza o rifle no cabeçote da sela e viaja. A menos
de um quilômetro, tocaiados na beira do caminho, estão os seus sequazes, comandados
por João Maria Valadão.
Os mensageiros da morte estão fortemente armados. João Maria, com seu rifle
44 (papo amarelo), Vicente da Mata Grande, Mané Vigia e Cícero Cupira, com seus
bacamartes homicidas, estão preparados para matar. Os carrascos estão protegidos por
densas moitas. O condenado iria despontar na curva da estradinha e teria que passar por
um “limpo”, ao lado de uma espessa moita de cipó-de-leite.
Os verdugos estão atentos e preparados. Assim que a vítima saísse da curva e
entrasse no descampado da vereda seria alvejado.
Vicente e seus companheiros estão amparados em umas touceiras de quipás e
João Maria havia se amoitado no cipó de leite.
Assim distribuídos o perigo de um fracasso era muito remoto. Contudo, mesmo
assim, um temor sobressaltava os verdugos. Era voz corrente, e muitos acreditavam que
o sargento tinha o “corpo fechado”, o que não deixava de ser motivo de grande
preocupação. Sabiam os experientes matadores que não poderiam errar. O insucesso da
perigosa empreitada seria fatal.
Deluz iria receber o castigo que desde muito tempo fazia por merecer.

* * *

O sargento desponta. O cavalo trota vagarosamente. A fumaça do “pagoga”


sobe em espirais azuladas além das copas das árvores à procura do nada. Os algozes
permanecem de olhos fixos. As mortíferas armas estão engatilhadas e apontadas para o
corpo do medonho inimigo. O animal e seu cavaleiro se aproximam. A grande moita de
cipó-de-leite está ali, à sua frente, na beirada da estreita estradinha.
O malvado desponta. Alcança o “limpo”. Dois fortes estampidos estrondam na
imensidão do sertão. O temido militar despenca do animal. Seu corpo desaba como se
fosse um pesado fardo. Cai emborcado, praticamente sem vida. Os matadores se
achegam. O “acalenta menino” daquela terra está estendido no chão, envolto num rio de
sangue, a se debater nos estertores da morte. Quando seu corpo é virado já pertence ao
outro mundo.
Chegava ao fim a dantesca e medonha história de Amâncio Ferreira da Silva, o
temido e perverso sargento Deluz.

82
Esta velha taperinha e esta esquecida cruz assinalam o local onde tombou sem
vida, o corpo de Amâncio Ferreira da Silva, o célebre Deluz, no dia 30 de setembro de
1952.

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O CANGAÇO E LAMPIÃO TÊM FIM E O SERTÃO RETOMA A
NORMALIDADE

Com a morte de Lampião o cangaço também morreu. Os povos caboclos, até


que enfim, se viram livres do grande flagelo. Todavia, as grandes seqüelas, nascidas
naquele medonho tempo, continuavam sangrando com terrível abundância no
sentimento e na alma dos habitantes daqueles mundos sertanejos.
No Canindé Velho de Baixo as marcas que dilaceraram os rostos de Isaura de
Birrinho, Maria Marques e Anízia do Forno ainda queimavam dolorosamente na mente
e no espírito dos filhos daquela povoação ribeirinha.
No sentido literal da palavra, o passado daquela gente havia sido marcado com
ferro em brasa. Contudo, forte e altaneiro, aquele povo soube ultrapassar as dificuldades
que o destino – na forma de bandido e volante – lhe impusera. Mesmo com aquelas
amargas lembranças que teimavam em nunca sair de seu sentimento e que estavam
gravadas na memória de cada um que viveu aquela triste agonia denominada “Era
Lampião”, ia, aos poucos, vencendo os obstáculos e refazendo suas vidas.
A dor e os pavorosos gritos das mulheres ferradas pelo “carrasco de Chorrochó”
– Zé Baiano – serviram como adubo para a luta do amanhã e com ela a fé no retorno
dos tempos de sossego, o regresso de uma vida repleta de serenidade e paz, perdidas
durante os longos anos do cangaço.
Povo forte, o povo do Canindé Velho de Baixo.

* * *

E Canindé não parou. A sua vontade era titânica. O povoado do Mestre Cícero
foi em frente. Tinha o amparo infalível de Jesus. Tinha a proteção do Dr. Hercílio
Britto. Tinha a seu favor as caatingas maninhas e apinhadas de gado pé-duro, espalhado
pelas fazendas Cuiabá, Brejo, Oroco, Pedra D’água, Planta do Milho, Cana Brava,
Caiçara, Fazenda Velha e outras que faziam a grandeza do cantinho mais distante e
derradeiro do Sertão do São Francisco.
O auge das canoas e dos canoeiros começava arrefecer. O caminho pelas águas
já não era o mesmo de outrora. As fazendas e os fazendeiros dominavam e povoavam os
sertões. O impulso vindo das caatingas animava e enchia de esperança a povoação berço
de Dom Juvêncio. Aquele instante de euforia contagiou os Britto que usaram seus
poderes para emancipar o povoado de Porto da Folha.
Eis que, a grande vitória se apresentou naquele ano de 1953 quando através da
o
Lei n . 525-A, de 25 de novembro, o Canindé Velho de Baixo foi emancipado e assim
ganhava a sua alforria, passava a ser dono de seu destino.
Mas, para a alegria não ser total, aconteceu um inesperado imprevisto. As
autoridades da capital, numa esdrúxula e inconcebível decisão, retiram o tradicional e
amado nome de Canindé Velho de Baixo dando-lhe o de Curituba. Talvez nem
soubessem que dentro daquela nova jurisdição já havia um lugarejo de grande tradição
com aquele mesmo nome e o ato dos senhores do poder estadual foi recebido pelos
moradores da povoação do caçador João dos Santos como um desrespeito e uma afronta
a seu lugarzinho de estimação.
Até que naquele 11 de janeiro de 1958, através da Lei no. 890, o antigo Canindé
Velho de Baixo deixou de ser Curituba para se tornar Canindé de São Francisco.

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Epifânio Feitosa da Silva
(21/01/1926 – 12/01/1972)
(Acervo de dona Hilda Fernandes)

VIDA E MORTE DE EPIFÂNIO FEITOSA

Como se sabe, Epifânio Feitosa dos Santos era baiano de Santa Brígida. Aquela
mesma cidadezinha celebrizada por ser o berço da “rainha do cangaço”, Maria Bonita, a
Maria de Lampião. Também conhecida por ter sido naquele então arruado que
aconteceu a saga do célebre messiânico Pedro Batista.
Santa Brígida era terra de homens valentes. Estão nos anais de sua História o
destemor dos parentes de Epifânio, os notáveis valentões Porcidônio, Elias, Antônio
Jacó – o mesmo Mané Véio – e outros homens que não conheciam o significado da
palavra medo.
Epifânio era filho de Virgília – irmã de Antônio Jacó – com Manezinho Feitosa,

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um moço da Curituba, famoso por suas aventuras amorosas e que se dizia ser pai de 21
filhos, nascidos de várias mulheres.
Além de Epifânio, nascido no dia 21 de janeiro de 1926, Virgília e Manezinho
eram os pais de Hildebrando, Eronildes e Maria (Bilia).
Virgília, além de sua beleza, era forte e lutadora. A sua prioridade era os
cuidados com sua redada de filhos. Nada a fazia esmorecer. Criou seus meninos com
muito carinho e amor.
Epifânio viveu sua infância e mocidade brincando e proseando pelas ruas
poeirentas de Santa Brígida. Ali cresceu, ali teve a sua primeira namorada e ali deu os
seus primeiros passos pela longa estrada de seu destino.
Muito cedo, o meninote de Virgília cuidou em trabalhar. O seu labor diário não
o impedia de freqüentar a escola. Os estudos lhe davam enorme prazer.
A preocupação com o sustento da família fazia com que a parenta dos valentões
do lugarzinho baiano andasse de canto em canto vendendo farinha e outros cereais. A
famosa feira de Piranhas, nas Alagoas, era ponto certo de suas andanças. Na terça-feira
saía de sua casa e ia dormir no Canindé Velho de Baixo e na quarta-feira pela manhã
estava comerciando às suas coisinhas.
Quase sempre se fazia acompanhar de Epifânio que era o seu maior xodó. O
rapaz vivia fascinado com aquela iniciante vida de tropeiro, função que o deixava
repleto de prazer e felicidade. Tanger uma burrama pelas estradas sertanejas, e assim,
conhecer pessoas e lugares, era um deleite na vida do baianinho destemido.
O caboclinho se tornou conhecido. O seu porte e sua beleza física
impressionavam e alucinavam as mocinhas sertanejas. Além daqueles especiais
requisitos, o rapazinho de Virgília possuía uma incrível facilidade de lidar e catequizar
as pessoas, deixando-as enfeitiçadas com suas prosas e brincadeiras.

* * *

Uma mocinha de Canindé mantinha um ardente namoro com Zé Graça, irmão do


moço da Santa Brígida. Era Hilda, a filha de dona Delfina da Pedra D’água. O
namorado da descendente dos Marinhos e dos Fernandes é irmão de Epifânio, filhos do
mesmo pai, porém com mães diferentes.
Hilda e Zé Graça estão noivos. O casamento não iria demorar. A moça de dona
Delfina e o rapaz dos Feitosa da Curituba formavam um belo par. Todavia o matrimônio
não saiu. Aconteceu algo jamais esperado.
O filho de Manezinho e Maria da Conceição fez uma viagem. Foi passar uns
tempos em Aracaju. Durante a sua ausência Hilda inicia um secreto romance com o
irmão de seu noivo, o baianinho de Santa Brígida. Descobrindo, assim, o verdadeiro
significado da paixão e do amor.
O mocinho comboieiro tem o rosto ainda imberbe, mais parece um menino.
Contudo, apesar de sua pouca idade é desenvolto, atirado e afeito aos mais diversos
enleios. Namoro era para ele um apreciado passa-tempo. Mas, como se fosse num
gostoso sonho, se viu totalmente enfeitiçado e dominado pelos encantos daquela linda
mocinha que mais parecia uma deusa.
Hilda poderia perfeitamente ser considerada a forma humana da formosura, da
ternura e da sensualidade. Como se estivesse envolvido por uma sobrenatural magia o
jovem tropeiro de Santa Brígida ficou enlouquecido de amor pela bela sertaneja.
O fascínio foi arrebatador. Estava loucamente apaixonado. Aquele desejo
irrefreável de ter aquela especial morena fazendo parte de sua vida o envolveu
completamente.

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O falatório e a desconfiança sobre aquela novidade amorosa entre o baiano e a
noiva de seu irmão começaram aparecer. Quase ninguém acreditava nessa hipótese.
Todavia, com o passar dos dias se percebeu algo estranho naquelas constantes palestras
entre os dois.
Não se tinha certeza de mais nada em relação à Hilda e o rapazinho da Santa
Brígida.
Apesar de sua verde idade – 19 anos – Epifânio não temia as conseqüências que
pudessem se apresentar em virtude do noivado de sua amada com um de seus irmãos.
Porém, o que o preocupava era o fato dele e seus manos, mesmo vivendo em outros
lugares e filhos de mães diferentes, fossem muito unidos e se amassem profundamente.
Mesmo assim, teria que enfrentar aquela melindrosa situação. Estava
enlouquecido de amor e desejo. Não iria permitir que aquela tenra e linda flor fosse um
sonho passageiro.
Foi em frente. Correu atrás de seu intento. Não podia fugir de sua imperiosa e
suprema vontade de ter aquela bela cabocla fazendo parte de sua existência.
Foi correspondido. Ele era o dono de todos os sentimentos da meiga mocinha.
Rapidamente nasceu um ardente e extraordinário querer entre ambos.
Ali estava uma linda história de amor.
E o irmão de Epifânio e noivo de Hilda? O que se fazer com aquela situação
constrangedora? Só existia uma saída. Mostrar que o amor dos dois era tão grande, tão
intenso, que obstáculo nenhum poderia se interpor sobre os seus projetos de imortal
união.
A solução do problema apareceu: a fuga.
Foi o que fizeram.
Decidido em levar à frente o seu audacioso plano, o apaixonado rapaz tomou
emprestada uma burra, famosa pelo seu passo macio, que pertencia ao amigo
Sinhozinho e se abalou até Canindé, onde residia a mulher amada que iria partilhar o
dia-a-dia de seu destino.
E assim foi. Naquele entardecer do ano de 1945, a bela mocinha da Pedra
D’água, montada na garupa do animal de Epifânio, foi cumprir a sina que lhe era
destinada e que seu coração tanto pedia. E naquele instante daquela memorável tarde
deixava a sua casa, a sua família e o carinho sagrado da mamãe querida, para
acompanhar o homem que seria a maior razão e referência de sua vida.
O ápice daquela romanesca aventura se deu naquela manhã do dia 18 de
setembro de 1945 quando, na igrejinha do então povoado da Bahia, os dois apaixonados
namorados receberam as bênçãos do Santíssimo Sacramento. Estavam casados.
Estavam abençoados pela Lei de Deus.
Em Santa Brígida moraram três meses. Após os quais o casal se mudou para
Sergipe, indo residir, como não poderia deixar de ser, no amado lugarzinho à beira do
“Velho Chico”. Um ano depois, em 1946, nasce o primeiro fruto daquela sublime união.
É uma linda menina. A mamãe Hilda deseja homenagear a velha senhora responsável
pela sua existência e, numa atitude de reconhecimento e amor, batiza a sua bonequinha
com o nome de Delfina, o nome de sua mãe, o nome da guerreira da Pedra D’água.
Os filhos foram nascendo em grandiosa profusão: Avelar, Francisco Alberto
(Chiquinho), Dália, Luzia, Leônidas, Epifânio (Faninho), Sílvio, Heráclito e a caçulinha
Rosa Maria.

* * *

Com o passar dos anos o Canindé Velho de Baixo foi se transformando. Os

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tempos gloriosos da Cuiabá e da dinastia e poder desmedido dos Britto começavam a
dar sinais de cansaço. Novas lideranças, mesmo sem a luminosidade dos velhos
coronéis, iam surgindo no Sertão do São Francisco. Em Canindé as pessoas de mais
prestígio eram Ananias Fernandes e seu cunhado Epifânio Feitosa.
Adaptado à vida sergipana, o baiano conseguiu a proeza de ser nomeado Agente
Estatístico do IBGE, um importante órgão federal. E para sua felicidade havia recebido
o privilégio de ser lotado ali mesmo no lugarzinho de sua esposa.

* * *

O moço da Santa Brígida era um homem diferenciado. Ao inverso da quase


totalidade dos sertanejos a sua maior preocupação era os estudos de seus filhos. Não
importava o tamanho do sacrifício e nem a dor e saudade pela inevitável separação, uma
vez que as boas escolas estavam nas grandes cidades, portanto, longe de Canindé.
Mesmo assim, o que mais interessava era encaminhá-los pela estrada do saber, dado-
lhes condições de seguir o caminho de suas vidas com a caneta e o papel na mão, em
vez da espingarda e do rifle.
A filharada estava crescida e estudava na grande cidade. Delfina – com 16 anos
– aprimorava seus estudos na capital sergipana, no Grupo Escolar General Valadão. Até
que, ao retornar à sua Canindé, e chegando em Propriá, se encantou com a beleza da
farda de um grupo de alunas do Colégio Nossa Senhora das Graças, que passeava pelas
ruas da então “Princesinha do São Francisco”, despertando na mocinha canindeense o
desejo de estudar naquele Colégio. O que aconteceu em 1957, quando Didi e os irmãos,
acompanhados de mamãe Hilda, se mudaram para Propriá e foram morar no “Alto de
Aracaju”.
Após longos anos longe de Canindé, Hilda retorna à sua terrinha que tanto
amava. Três de seus filhos – Leônidas, Faninho e Dália – vão estudar em Paulo Afonso
e passam a residir na casa da vovó Virgília.

* * *

O sertão está passando por uma tremenda provação. É a seca de 70. Quase toda
população vivia em função das “frentes de trabalho” e o povo era chamado de “magnu”,
o que significava dizer que os sertanejos além de magros estavam nus.
Epifânio não media esforços para socorrer à sua gente. Aquele flagelo parecia
que não tinha fim.

* * *

Uma de suas filhas – Delfina – havia contraído núpcias com Elisio Caetano, um
moço dali mesmo de Canindé, filho de Antônio Caetano de Sá, carinhosamente
apelidado de Antônio Fininho, e naquele ano de 1971 estava residindo na cidade
paulista de Jundiaí.
Elísio era detentor de um invejável emprego. Trabalhava na Companhia Aérea
Cruzeiro do Sul, nos serviços de Aerofoto e era esta a razão do casal está morando em
São Paulo.
No final daquele ano de 1971, Elisio e Delfina, viajam para Sergipe. Vão passar
os festejos do Natal e Ano Novo na companhia de seus familiares. Orgulhosos e cheios
de felicidade carregam nos braços uma linda menininha, é a filhinha Tereza Cristina;
primeira netinha que a vovó e o vovô iriam conhecer.

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O vovô se desmancha de tanto prazer e alegria. A netinha é o xodó de sua vida.
Extremamente ativa a menininha faz graças e trejeitos, deixando aquela família radiante
e plena de ternura.
Os primeiros dias do ano de 1972 despontam. Chega o dia 10 de janeiro e com
ele a viagem de Elisio para a cidade de Petrolina, em Pernambuco, ali iria substituir um
colega de nome Valdomiro por alguns dias.
Epifânio tem viagem marcada para a manhã do outro dia, 11 de janeiro de 1972.
No alvorecer, como de costume, o moço já estava desperto e conversava com a
esposa. Vai até o quarto de Delfina e beija com ternura e carinho a netinha.
A tenra menininha dormia como se fosse um querubim desgarrado dos campos
do Além. Na sua doce quietude parecia está protegida por uma aura angelical e como
que envolvido por uma luz divina, aquele meigo e inocente corpinho repousava, quem
sabe, nos braços de um anjo.
Olhando para a sua segunda geração o vovô se emocionou. Sentiu uma dor no
peito e um nó apertando a sua garganta. Ficou surpreso com o que estava lhe
acontecendo. Apesar do amor que devotava aos filhos e a esposa nunca havia sentido
aquela emoção e nem aquela estranha e repentina vontade de abraçar e beijar com
tamanha sofreguidão os seus entes queridos.
Retira-se devagar e com aquela sensação que nunca sentira antes vai até os
aposentos da filhinha Rosa Maria. A caçulinha, como se também fosse um anjo, dormia
profundamente. Ali estava a última e linda flor nascida de sua sublime união com Hilda,
a mulher de sua vida. A filhinha e a netinha, suas duas mimosas criancinhas, eram os
maiores tesouros de sua existência.
Olhando a lindeza daquele pedacinho de gente o aperto em seu coração ainda
mais machucou a sua alma. E com os olhos fitos naquele lindo rostinho, após afagar
com extremado carinho aquela face rósea, deu-lhe um beijo de despedida e foi se
retirando.
Era uma despedida eterna.

* * *

Que coisa estranha! Viaja toda semana. Vive pra lá e pra cá, por todos os cantos.
E porque aquela angústia está tomando conta e dominando o seu espírito? Não consegue
enxergar motivos para esta sensação que começa a lhe afligir. Termina por imaginar que
a causa de tudo aquilo foram os beijos dados na netinha e na filhinha.
Segue para o porto. Embarca na canoa de Antônio Fininho, o pai de seu genro, e
viaja até Piranhas, dali seguirá na caminhonete de José Eviládio Sousa, para Paulo
Afonso, no Estado da Bahia.
Continua com algo a lhe perturbar. O quê não sabe. Porém, mesmo sem querer,
sente alguma coisa deixando-o agoniado e aflito. O seu espírito continua agitado e triste.
O que será? Não tem explicação.
Segue em frente.

* * *

Acostumada com as constantes viagens do marido, dona Hilda não se preocupou


com mais uma. O que a perturbava eram os afazeres imensos que lhe esperavam na
cozinha. Paciente e generosa conversa com um, afaga outro, sem jamais esperar a brutal
tragédia que se acercava de sua vida.
O esposo viajou. Andeja pela estrada sinuosa de seu destino. Ao chegar em

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Delmiro Gouveia um contratempo se apresenta. O dono do veículo que o transportava
havia esquecido os documentos da caminhonete e retorna para Piranhas.
Epifânio seguiu viagem. Dormiu na casa de mamãe Virgília e na manhã seguinte
retornou. Era uma quarta-feira, 12 de janeiro de 1972, o dia da famosa feira de Piranhas.
Ainda cedo daquele dia chega à cidade ribeirinha. Passa as horas proseando com
os amigos. Havia combinado com Zé Leobino, aquele antigo vaqueiro da Cuiabá, agora
trabalhando na fazenda de sua propriedade Oroco, para o mesmo ir esperá-lo na feira do
sertão alagoano.
Foi o que Leobino fez. Na manhã da quarta-feira, montado no burro Bolero,
seguiu para o porto do Furado, defronte a Piranhas. Atravessou para Alagoas e foi ao
encontro do patrão, encontrando-o bebendo com alguns amigos num bar.
Ainda era cedo do dia e Epifânio ordenou que seu vaqueiro retornasse que ele
seguiria para Canindé na canoa de Osman.
Essa decisão lhe custou a vida.
A imperiosa vontade do destino teria que ser cumprida.

* * *

Com o sol esfriando o canoeiro e o funcionário do IBGE singram o “Velho


Chico”. A tragédia estava de tocaia, ali na turbulência do rio.
A canoinha bordeja num vai e vem de agitação. Passa pelo Sacão. O São
Francisco está encrespado. O vento forte que cai naquela hora da tarde deixa as águas
revoltas. Bom nadador e acostumado com aquelas intempéries, Epifânio não se abalou e
nem tampouco sentiu nenhum perigo.
De repente a desgraça se apresentou. Uma marulhada mais forte emborcou o
barco. O acidente não causou nenhum desespero nem no canoeiro e muito menos em
seu passageiro. Enquanto o proprietário da canoa nadava na direção da margem do rio e
logo foi resgatado por outros canoeiros, Epifânio, sem nenhuma dificuldade, subiu no
casco da embarcação naufragada e se considerou livre de qualquer grave ameaça.
Estava enganado. O seu dia havia chegado. Dominada pelas correntezas a canoa
foi arrastada pra lá e pra cá até se chocar violentamente numa grande e negra pedra. O
choque foi medonho e o esposo de dona Hilda se desgovernou do casco da “chata”,
caindo em cima de uma pedra, fraturando com gravidade uma de suas pernas. A batida
foi fatal. Foi naquele doloroso momento que o moço viajante percebeu que sua situação
era de suma gravidade.
A canoinha havia sumido nas águas do rio. A perna destroçada impedia o
náufrago de nadar com aquela costumeira desenvoltura. O pior aconteceu. Escorregou
da pedra e foi tragado pela correnteza.
Num desespero total olhava para todos os lados e não via ninguém. A perna o
deixava sem nenhuma possibilidade de nadar. Estava perdido. Conheceu que seu fim
havia chegado. Mesmo assim não esmoreceu. Era um valente. Iria morrer lutando contra
aquela dolorosa adversidade que estava ceifando a sua vida.
A tarde ia se retirando e junto com o vento e a friagem da noite que vinha
chegando podia-se ver o espectro da morte que se avizinhava de Epifânio com sua
maldita foice.
A hora do moço de Santa Brígida havia chegado. O seu destino estava se
cumprindo. O ciclo de sua vida estava no fim. Antes do sol se pôr foi engolido de vez
pelas águas do tempestuoso rio.
Os deuses da ingratidão haviam lhe reservado uma injusta morte.

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* * *

A tragédia havia se consumado. A inacreditável notícia chegou em Canindé e se


espalhou rapidamente pelo sertão. A pequenina cidade e seu povo sucumbiram.
A dor de dona Hilda e seus filhos não tinham limites. Cortava o coração dos que
viam aquele incomparável sofrimento que se abatia por sobre aquela família.
Desmaiada, a pobre esposa havia perdido o sentido das coisas, não sabia se
estava viva ou morta. Ficara para sempre sem o pranteado esposo. O seu mundo iria
agora se resumir apenas aos nascidos de seu sangue e do sangue de seu insubstituível
homem.
O sofrimento se prolongava. Cadê o corpo? Onde está Epifânio? Buscas e mais
buscas foram realizadas. Vieram escafandristas de Paulo Afonso e nada de encontrar o
cadáver.
Os dias foram se passando. O primeiro, o segundo, o terceiro. Nada. Ninguém
encontrava os restos mortais do inditoso baiano.
Até que chegou o sexto dia e com ele o achado: Mané Bengo – famoso canoeiro
– encontrou aquele resto humano que boiava nas águas do “Velho Chico”, logo após a
cidade de Piranhas.
Sob comoção popular o que restou de Epifânio foi levado para o pequenino
campo-santo de Canindé, onde ali ficou até que a vaidade humana cometeu o sacrilégio
de violar a sua tumba e a de todos os outros que repousavam para a eternidade naquele
acanhado, porém fraterno e sossegado cantinho, para levá-los para outro cemitério.
A insensibilidade humana não respeitou o descanso eterno dos corpos que ali,
naquela terra ribeirinha e na aba daquelas serras, tinham se tornado pó.
A violação daquele repouso imutável foi uma atitude absolutamente descabida e
desastrada dos responsáveis por tão perversa e infeliz decisão.
E foi assim que mãos sem nenhum sentimento de humanidade arrancaram o que
restava da História dos pioneiros do Canindé Velho de Baixo e levaram o que sobrou da
memória e tradição de um povo, para a nova necrópole encravada na chapada da serra
que circunda a Nova Canindé de São Francisco.
Triste fim para um gigante, um herói sertanejo!

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Manezinho Feitosa. Pai de Epifânio Feitosa.

Dona Virgília e os filhos: Epifânio, Hildebrando, Eronildes e Maria (Bilia).

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Dona Hilda Fernandes, nos idos tempos de sua juventude.
(Acervo de dona Hilda Fernandes)

DONA HILDA – EXEMPLO DE FÉ E LIÇÃO DE VIDA

Foi o Sertão do São Francisco, em seus primeiros tempos, uma região


absolutamente desértica e desconhecida. Remotas famílias desbravaram aquele mundão
de matas, caatingas, vales e cerrados; levando, dessa maneira, o trabalho do homem, até
aquelas terras misteriosas.
Inicialmente os núcleos habitacionais daquele velho sertão se resumiam apenas
aos lugarejos à beira do “Velho Chico”, o rio da unidade sertaneja. Era o São Francisco
o único elo de ligação daquela cabocla gente com o mundo do homem civilizado.
Canoas, chatas, lanchas, botes e pequeninos navios transportavam o povo e o progresso,
formando assim, o caminho pelas águas.
Um pouco acima da povoação ribeirinha do Curralinho, no meio de matas
virgens, se estendia caatinga afora, o pobre e esquelético riacho Jacaré. Mesmo com sua

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penúria, aquele riozinho guardava no centro de suas fofas areias, lá na fecundidade de
suas entranhas, um lençol de água cristalina que saciava a sede do mestiço sertanejo e
de todos os viventes daquelas desoladas paragens.
Ficaram famosas as cacimbas do riacho Jacaré. Bastava retirar alguns palmos de
areia e a água brotava límpida e abundante, formando uma fonte de vida e bonança de
inigualável serventia para aqueles quase que primitivos habitantes, numa milagrosa
dádiva do Senhor.
Um casal – Hipólito e Vevéia – criou a sua numerosa prole sob a proteção do
amado riozinho sertanejo. A água do riacho e a caça abundante eram oferendas divinas
que garantiam o sustento da filharada.
O caatingueiro chamava-se Hipólito José dos Santos e sua esposa era a senhora
Marinha Cardoso dos Santos, mas carinhosamente apelidada de Vevéia. Os dois,
seguindo os ditames daquelas distantes épocas, fizeram muitos filhos: Joaquim,
Geminiano, João, Francisco (Chiquinho), José (Zé Hipólito), Antônio (Touca), Manuel
(Naniga), Miguel, Isabel (Iaiá), Maria, Antônia Rosa, Júlia, Filomena e Francelina, num
total de quatorze filhos nascidos daquelas fecundas árvores sertanejas que espalharam
seus frutos pelos campos sergipanos e brasileiros.
Os galhos nascidos desses velhos troncos se tornaram poderosas raízes que
também ajudaram a perpetuar a raça parda brasileira.

* * *

Os anos não pararam. Os filhos de seu Hipólito e dona Vevéia cresceram, se


tornaram adultos e ganharam o mundo. Três deles – João, José e Chiquinho – se
largaram para as terras do então Canindé Velho de Baixo. João namorou uma moça dos
Gomes, de nome Maria, que residia na Curituba. O namoro foi forte e ardoroso e o
enlace matrimonial aconteceu naquele entardecer sertanejo, na igrejinha do arruado de
João dos Santos.
A bênção do reverendo logo após a consumação do tão esperado instante das
trocas de alianças significava a autorização divina para uma vida em comum e a
constituição de mais uma família naquele mundo quase que inabitado.
Os nubentes foram residir na afamada fazenda Brejo.
José e Chiquinho não deixaram por menos. Rapazes afoitos, cheios de vigor e
vida, se apaixonaram por duas irmãs – Delfina e Anália – filhas de dona Rosa Lisboa
dos Santos.
Delfina e Anália eram duas belíssimas sertanejas. Pareciam duas flores silvestres
a embelezar e enfeitar aquele sertão. Os manos enlouqueceram de tanta paixão e desejo.
Aquele ardor se transformou em casamento. E numa daquelas tardes quente do sertão, o
moço de Hipólito e Vevéia recebeu a sua amada num pequenino altar e com ela seguiu o
caminho de uma nova e feliz vida.
Chiquinho e Delfina estavam casados.
Os irmãos, vindos de Poço Redondo, desde muito haviam angariado respeito e
consideração junto ao povo daquele pedaço de chão. Trabalho para o sustento de sua
amada não seria problema, e Chiquinho foi prestar seus serviços na famosa fazenda de
Sinhô Britto, o Belo Horizonte.
Vivia-se o primeiro quartel do século XX. Chiquinho e Delfina eram felizes.
Daquela união e daquele amor foram aparecendo os frutos que chegaram inicialmente
na forma de quatro lindas bonequinhas: Maria Rosa (Rosinha), Maria, Zuleica e Hilda.
Quatro belíssimas meninas; quatro flores que enfeitavam o jardim da vida daquele

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abençoado lar. Faltavam os filhos varões que papai Chiquinho tanto desejava. E eles
chegaram. Vieram dois: Leônidas e Ananias.

* * *

Chega o ano de 1924 e com ele a abundância de chuvas. As trovoadas foram


fortíssimas. Todas às tardes desciam das bandas do norte negras e pesadas nuvens e as
torneiras do céu se abriam despejando tanta água que mais parecia um dilúvio.
E o inverno chegou com rigor desmedido. Os rios e riachos, charcos e lagoas, se
empanzinaram com o excesso de água. O atoleiro tomou conta das terras baixas. A
gadama pé-duro abandonou as baixadas e foi pastar nos morros e serrotes. O São
Francisco transbordou. O mar de água do grande rio invadiu as povoações ribeirinhas,
fazendo com que às canoas e chatas deslizassem pelas estreitas ruas dos arruados,
formando um cenário de raríssima beleza. Parecia até que o mundo iria ser engolido
pelas águas.
A cheia de 1924 ficou na história.
Em virtude das pesadas chuvas os trabalhos no Belo Horizonte eram dobrados.
A “miunça” – ovinos e caprinos – estava atacada pela “doença da unha” e pela
“boqueira”. Chiquinho e o agregado Pedro faziam de tudo para estancar as “bicheiras”
que atacava o criatório.
Contrapondo as doenças dos anos de muita chuva os campos enverdeceram e o
mimoso e a beldroega formavam um maravilhoso tapete que enfeitava a mataria.
Os currais estavam cheios de bezerros. O leite sobrava. Nos telheiros as tábuas
estavam abarrotadas de queijo. A mosca era de correição. Na rocinha, o milho e o feijão
balouçavam suas verdes folhagens. Uma maravilha. Verdadeira dádiva da natureza.
Uma boa colheita significava fartura durante todo ano. Todavia, algo jamais esperado
aconteceu. Pedro, o agregado da fazenda, cometeu um assassinato, matou o velho Pedro
Bertoldo.
O crime foi descoberto. Como a assassino trabalhava no Belo Horizonte
respingos de suspeitas caíram sobre Chiquinho.
A novidade abalou o moço de Poço Redondo que, desgostoso, tomou uma séria
decisão: ir embora. Assim fez. Deixa a fazenda e se muda para um lugarejo próximo a
cidade de Propriá, chamado Várzea da Telha, hoje cidade de Telha.
Como era de se esperar essa mudança não fez bem ao descendente de dona
Vevéia. Morar na Várzea da Telha era um suplício, teria que sair daquele lugar triste e
repleto de dificuldades. E lá se vai Chiquinho e sua família para o Estado de Alagoas, o
destino agora seria um lugarzinho escondido do mundo, conhecido pelos nomes de
Mata Sete e Paquetá. Ali os retirantes ficaram até o ano de 1928.
Positivamente a saída do sertão sergipano havia se tornando num desastre total,
tudo na vida daquela família havia desmoronado e as provações não tinham limites.
Piorando, ainda mais, a grave situação, Chiquinho é acometido por uma terrível doença
que aos poucos vai minando seu corpo e sua resistência. Só lhe resta uma alternativa: o
retorno. Foi o que fez. No meio daquele ano de 1928 retorna ao Canindé amado de onde
nunca deveria ter saído. Como era um moço de muito conceito arruma trabalho na
fazenda Pedra D’água, do coronel José Rodrigues, o todo-poderoso de Piranhas, nas
Alagoas.
O sertanejo já está alquebrado pelo rigor da doença que a cada dia domina e vai
vencendo o seu organismo. Passa mais três anos lutando contra a terrível doença. Até
que, naquele 11 de setembro de 1931, a janela de sua vida se fecha para sempre. A bela
Delfina enviúva e seus filhos ficam na orfandade. O bom marido e pai amoroso deixa

95
sua família, os parentes e amigos e se muda para as paragens do descampado azul da
eternidade.
A dor da lutuosa separação, a viuvez, as provações que “os tempos de Lampião”
iriam trazer para dona Delfina não a fizeram desanimar e nem cair no desespero. Mulher
forte e destemida cuidou com afinco e obstinação de sua prole. Agora era a mãe e o pai
de suas quatro filhas e seus dois filhos e como diz o sertanejo em sua perene sabedoria:
“tocou a vida pra frente”. Procurou dar aos seus filhos uma boa educação, bons modos e
cuidado e responsabilidade com o dia-a-dia.
O temor aos preceitos de Deus e muita fé e esperança nos caminhos do destino
de cada um era o lema desta extraordinária senhora que num esforço titânico, numa
demonstração de sua poderosa fé, comprou a fazenda do coronel alagoano e fez da
Pedra D’água o paraíso de sua vida.
Contudo, a viúva de Chiquinho teria que passar por terríveis sofrimentos. O
maior deles foi a sua prisão. Como num horrível pesadelo sofreu a monstruosa injustiça
de ser presa juntamente com Rosinha de Vicentão, Zé de Terto e o irmão Zuza
Fernandes, e junto ao mano e os amigos de agonia, recambiada até a Penitenciaria do
Estado de Sergipe.
Os causadores da medonha e injusta ação foram os tenentes Matos, do exército
brasileiro e Manoel Ramos, da polícia militar sergipana, que não souberam respeitar a
luta de uma mulher viúva que enfrentava os dissabores do destino em sua fazendinha, e
era, como todos os sertanejos, exposta a truculenta vontade, decisão e desejo de uma
malta sanguinária que se arvorava de senhora da vida e da morte.
O motivo da descabida prisão era a vingança dos comandantes das forças que
combatiam o cangaço, inconformados com a invasão de Lampião e seu grupo a Canindé
de São Francisco, naqueles primeiros de dias de 1932. Dona Delfina, o irmão e mais
duas pessoas, todas classificadas de culpadas pelo triste acontecimento, e ainda mais
agravante, consideradas espiãs e coiteiras da mais alta confiança dos grupos
bandoleiros.
A viúva e os que com ela foram presos ficaram seis meses confinados no
presídio em Aracaju e os filhos da proprietária da Pedra D’água ficaram sob a guarda da
avó, dona Rosa Lisboa.
Triste vida a vida dos que viveram aqueles tempos tenebrosos.

* * *

Por essa época Hilda já era uma mocinha. A sua formosura causava admiração.
Por ser afilhada de dona Ida Berenguer de Britto, esposa do lendário coronel Hercílio
Porfírio de Britto, costumava passar dias na então portentosa Propriá, a famosa cidade-
pólo do lado sergipano do Baixo São Francisco, que juntamente com a não menos
famosa Penedo, nas Alagoas, liderava absoluta toda aquela região ribeirinha do Velho
Chico.
Aquelas constantes viagens até aquele centro evoluído faziam com que a
caboclinha sertaneja, ainda mais, alargasse as suas “boas maneiras” e a fina educação
que recebera da mamãe, e com isso, se transformasse numa menina-moça de fino trato e
modos e costumes elegantes. O seu esmerado proceder enchia de orgulho a simplória
gente de Canindé que via na moçoila dos Fernandes e dos Marinhos o que se tinha de
mais civilizado naquele sertão.
Ainda mais, a filha de dona Delfina era detentora de uma beleza exuberante.
Tudo naquela jovem sertaneja era belo: seu corpo, sua pele, seus cabelos, seus olhos,
sua alegria, seu espírito, sua ternura e sua meiguice. Além de todos estes atributos Hilda

96
nascera com um sentimento que aflorava de sua vida e enfeitava e iluminava as ruas da
pequenina povoação.
E a mocinha alucinava de paixão e querer os rapazinhos do feudo dos Britto e da
região.
Apesar da saudade extremada do pai e das situações aflitivas vividas pela
mamãe na prisão, à vida das mocinhas da Pedra D’água era repleta de felicidade. A
fazenda da mãe era como se fosse um reino encantado. Seis casas davam o formato de
um alegre arruado. Ali vivia às famílias de Antônio Feitosa, dona Afonsina, dona
Jovina, seu Horácio, Zuza Fernandes, além da proprietária dona Delfina.
As dificuldades eram enormes. No entanto, mesmo assim, aquela pequenina
comunidade era alegre e cheia de paz e harmonia. Moças e rapazes viviam como se
estivessem num paraíso. Todos os dias, no entardecer ou no cair da noite, os jovens da
fazenda se reuniam em um daqueles aconchegantes telheiros e as ternas brincadeiras
espalhavam felicidade no meio daquela boa gente.
Tempos saudosos e nunca esquecidos aqueles em que Hilda, Rosinha, Zuleica e
Maria se juntavam a Corália, Isabel, Mimi, Ritinha, Madalena, Rita, Celeste, Nete,
Nina, Antônia e Mariquinha e aproveitavam o esparramar das encantadoras tardes
sertanejas para se despediram do dia com adoráveis brincadeiras.
Os divertimentos se sucediam. “O casamento oculto” era um dos preferidos.
Era assim:
As moças ficavam sentadas e ao seu lado uma cadeira vazia. Uma das
participantes da brincadeira confidenciava a outra o nome do rapaz que ela desejava vê-
lo sentado a seu lado. O segredo ficava entre as duas. Quando um dos presentes se
aventurava a ir sentar na cadeira e ele fosse o escolhido, recebia um forte aperto de mão,
caso contrário o mesmo era imediatamente rejeitado, com a moça dando-lhe as costas
demonstrando repulsa e desprezo. E o rejeitado ao deixar a cadeira recebia uma
estrondosa vaia.
O coitado constrangido e apalermado, debaixo de pilherias e chacotas, se
levantava da cadeira e ia curtir a sua decepção em outro canto.
A liderança de Hilda sobre suas amiguinhas era inconteste. Os bailes por ela
organizados ficaram na lembrança daquela gente. Os sanfoneiros Zé Pereira e João
Cacundo são gratas e longínquas recordações daqueles idos tempos. Suas sanfoninhas
gemiam a noite inteira no balanço inesquecível de uma mazurca, de um xote e de uma
marchinha.
O “entrudo” – festa carnavalesca – na Pedra D’água e no Canindé era um dos
maiores prazeres daquela juventude. Os jovens corriam atrás uns dos outros numa
algazarra estonteante.
Tinha também as “cantigas de roda”. Aquelas adoradas cantigas cantadas nas
noites de lua cheia. Os versos de improviso se espalhavam nas noites claras do sertão de
antigamente.
Com sua voz melodiosa que mais parecia o cantar de uma sereia, Hilda puxava a
cantoria e com graça e ternura entoava as “quadrinhas” tão em voga naqueles saudosos
passados de sua existência.
Assim cantava a mocinha de dona Delfina.

A casa do pombo é alta


Mas ele come no chão
Igualzinho ao meu amor
Que come na minha mão.

97
Fazendo um círculo no telheiro as amigas respondiam.

Que lua clara! Vamos passear


É de noite gente, vou embora já;
É de noite gente, vou embora já;
É de noite gente, vou embora já.

A irmã, Maria, cantava o seu verso.

Carteiro leve essa carta


Para as terras do Além
Leve ela pra bem longe
Leve ela pra meu bem.

O estribilho das moças cortava o espaço.

Que lua clara! Vamos passear...

Agora era a vez de Corália.

Antes nunca ti vi
Nem a ti tinha amizade
Para agora viver louca
Num rigor duma saudade.

A cantoria empolgava. Rosinha caprichava em sua “quadrinha”.

Ô menino estes teus olhos


São navios marchadores
De dia são duas jóias
De noite são meus amores.

Com ar melancólico, Hilda cantava lindas “quadrinhas”.

As ondas do mar são verdes


De longe parecem tristes
Dizei-me como passastes
Os dias que não me vistes.

E continuava.

Com pena peguei na pena


Para com pena escrever
Com pena escrevi a carta
Com pena não pude ler

Garça branca, bem branquinha,


Do pescoço de marfim
Vá dizer a quem eu amo
Que não se esqueça de mim.

98
E assim a noite percorria lentamente a sua eterna estrada e as mocinhas da Pedra
D’água esparramavam suas vozes pelos céus daquele sertão. Tudo era felicidade e
prazer. A adolescência daquelas verdes vidas ainda não havia sofrido o amargor das
desilusões e desatinos que o próprio caminhar da vida reservava aos que nesse mundo
velho de Deus e do diabo habitam.
Aquele grupinho de moças não sabia que o trenzinho de suas vidas corria feliz,
solto e livre pelos trilhos do tempo sem encontrar nenhuma ladeira, nenhuma subida,
nenhuma dificuldade, nenhum percalço, nenhum desatino; em seus vagões; o trenzinho
carregava apenas sonhos, desejos e felicidades.

* * *

Os anos se passaram. Algumas daquelas jovens se casaram e se tornaram mães.


Hilda namora Zé Graça – José Graça Feitosa –, um dos muitos filhos do famoso
Manezinho Feitosa – Manoel Alves Feitosa – da Curituba, filho único de sua amante
Maria da Conceição.
O namoro é sério e tudo leva a crer que a bela menina de dona Delfina irá para o
altar com aquele moço que lhe devota grande afeição e ternura.
Assim não aconteceu. Aquele enlevo não teve um final feliz. Hilda secretamente
morria de amores por um irmão de seu noivo, outro filho de Manezinho Feitosa,
chamado Epifânio, nascido do relacionamento do mulherengo da Curituba com Virgília
Marques da Silva, que vinha do mesmo sangue de Procidônio, Elias e Mané Véio, os
titãs de Santa Brígida que tinham no velho Jacó o célebre patriarca da família.
A paixão foi ardente. O sentimento amoroso do rapaz da Bahia e da ex-
namorada de seu irmão Zé Graça alcançou um grau de alta intensidade, e num instante,
sem que ninguém esperasse, o casal de pombinhos se joga no mundo, fugindo para o
arruado do sertão baiano.
Corria o ano de 1945 quando a moça da Pedra D’água, montada na garupa de
uma burra de passo macio, foge ao lado do amado com destino a povoação de Pedro
Batista.
E naquele distante dia 18 de setembro de 1945 os dois recebiam os sacramentos
matrimoniais da Santa Madre Igreja.
Naquele povoado o casal viveu apenas três meses. A saudade da mamãe, da
fazenda e de Canindé era extremada, verdadeiramente insuportável. O desejo de
retornar, o mais rápido possível, para o convívio de seus familiares, obrigou a esposa
quase que implorar ao marido para ambos se mudarem para as terras sergipanas.
Epifânio era um rapaz sensível e de elevada compreensão. Amava por demais a
sua Hilda e não queria vê-la sofrendo. Por ela fazia qualquer sacrifício. Atendê-la em
seu preito foi um prazer e o casal se mudou para Sergipe.
Em 1946 nasceu o primeiro fruto daquela abençoada união. Era uma bela
menininha que na pia batismal recebeu o nome de Delfina, numa homenagem a vovó,
matriarca da Pedra D’água.
O antigo comboieiro e sua esposa eram detentores de uma poderosa força de
fecundidade. Os filhos foram nascendo. Além de Delfina chegaram José Avelar,
Francisco Alberto (Chiquinho), Dália, Luzia, Leônidas, Epifânio (Faninho), Sílvio,
Heraclio e Rosa Maria.
A comunhão e vida deste casal serviam de exemplo para a sociedade sertaneja.
Os anos palmilhavam os caminhos do tempo e o que se via era Epifânio e Hilda numa
permanente lua de mel e envolvidos num amor que nunca murchou e nunca caiu na

99
rotina. Conforme os filhos iam nascendo, o casal, ainda mais, cimentava e sublimava
aquele casamento num perene aconchego que causava admiração e respeito no meio
daquela gente.
Contudo, uma terrível desgraça estava por acontecer naquela família. Tanta
felicidade e tão exemplar união foram brutalmente destruídas pela vontade dura do
destino que havia marcado aquele fatídico 12 de janeiro de 1972, como o dia em que
uma tragédia sem precedentes iria de encontro a Epifânio Feitosa, roubando a sua vida.
Morte brutal e cruel foi aquela.
Naquele lutuoso dia e nos subseqüentes, Canindé conheceu a verdadeira
extensão das palavras dor, agonia e sofrimento. Hilda, coitada, nem é bom lembrar, se
debatia, desfalecida pelo sofrimento, nos braços de pessoas amigas. Parecia até que
todas as desventuras do mundo haviam desabado sobre seu corpo e sua alma. Havia
perdido o grande amor de sua vida, o esposo amado, o pai de seus filhos, o homem e
companheiro devotado que vivia para ela, para o lar e para os filhos que tanto amava.
Em seu transe de dor a outrora alegre e feliz esposa havia perdido a noção do
tempo. Em sua aflição nem sabia o que se passava em sua volta. A agonia era tão
intensa que não sentia a presença daquela multidão que se aglomerava por todos os
cômodos de sua casa.
No sexto dia do triste acontecimento o corpo de Epifânio foi encontrado. Os
restos daquele que foi um exemplo de homem foram cuidadosamente levados para o
cemitério e depositados numa cova que seria a sua última e eterna morada.

* * *

O que seria daquela inconsolável senhora e seus filhos sem a presença e a guarda
daquele especial chefe da família? Era a pergunta que muitos faziam. Dona Hilda agora
seria a única responsável pela numerosa prole. Sabia que não mais poderia contar com o
amparo e a proteção daquele firme esteio de aroeira que de tudo fazia para a felicidade
dos seus.
E as escolas dos meninos? Alguns deles estavam crescidos e viviam os anos
dourados da adolescência e com os estudos bem avançados. A grande dúvida era como
eles iriam reagir a tão grande adversidade que foi a morte do pai querido.
Os dias foram se indo. Eram dias tristes e pesarosos. Dava pena se ver, todas às
tardes; aquela tristonha e desolada senhora, com um xale preto na cabeça e encostada
numa janela, olhando com infinita tristeza, o serpentear solitário e preguiçoso das águas,
aquelas mesmas águas que roubaram a vida de seu marido.
Era a viúva que ali estava. Banhada em lágrimas espiava o vai e vem das
canoinhas de pescadores. Foi numa delas que seu marido viajava no dia daquele
inditoso acontecimento. Derrotada e vencida por uma atroz saudade se considerava a
mulher mais infeliz do mundo.
Naquela janela estava o retrato de corpo inteiro de um inigualável sofrimento.
Todos podiam atestar que ali estava a forma humana de uma aflição extrema que nunca
mais iria sair daquele despedaçado coração e da alma daquela exemplar senhora.
Dominada pelo desespero dona Hilda pensava no impossível. Em sua miragem
de amor alimentava o sonho de um milagre. Ver o seu Epifânio imergir das águas e com
aquele sorriso de vitória e felicidade que lhe era tão característico, abrir os braços e
caminhar à sua procura para abraçá-la e beijá-la carinhosamente.
Tudo era um sonho. Um devaneio de tristeza e dor. Seu esposo nunca mais iria
está em seus braços. Seu fiel e amado companheiro, após cumprir os seus desígnios
terrenos, havia se mudado por todo o sempre para o mundo do Além.

100
* * *

A desamparada viúva tinha plena consciência de seus agora múltiplos deveres e,


mais ainda, de sua obrigação em não decepcionar o seu saudoso e jamais esquecido
esposo. Iria substituí-lo com toda força de seu espírito. Era o mínimo que poderia fazer
pelos filhos e pela memória de seu amado que de lá da eternidade iria ajudá-la a colocar
os seus descendentes no bom caminho.
Foi o que dona Hilda fez. Mesmo debaixo de tanto sofrimento cuidou em
mostrar aos seus que todos precisavam ter fé e acreditar na vida. Ainda mais, resolveu
que sua família seria a sua derradeira vaidade, o seu único sonho. Obstinada, se decidiu
em viver para os filhos e ajudá-los a trilhar os caminhos da dignidade e da decência, e
que todos procurassem espalhar, sempre e sempre, o grandioso dever de pautar suas
atitudes dentro da mais absoluta honestidade, num seguimento fiel ao caráter do papai.
A lutuosa senhora tinha convicção de que seus filhos carregavam nas veias o
poderoso sangue do pai e iriam enfrentar a vida conforme ela se apresentasse. Sabia que
as dificuldades iriam se avolumar. Mas, mesmo assim, nenhum de seus meninos iria
parar de estudar. Não podia dar este desgosto ao marido.
Hilda e seus filhos nunca deixaram de ser velados e protegidos pelo amor do
marido e do papai que continuará sagrado e puro, envolvendo a veneranda matrona e
sua família numa aura de harmonia e de incomparável beleza.
A esposa de Epifânio não enviuvou. Continua casada e em lua de mel com seu
inesquecível e amado marido, o homem que lhe deu uma prole maravilhosa, o
companheiro inigualável que de lá do descampado azul do infinito reza e ora em favor
de sua amada esposa e dos frutos que dele e dela nasceram.
Dona Hilda foi um exemplo de fé e uma lição de vida.

101
A EMANCIPAÇÃO

As forças políticas que dominavam o Estado de Sergipe nos primeiros anos da


segunda metade do século XX, com o senhor Arnaldo Rollemberg Garcez à frente do
Governo Estadual, resolveram ampliar os municípios sergipanos – eram somente 42 – e
dentre os novos, num total de dezenove, lá estava o célebre povoado dos Britto, o
Canindé Velho de Baixo.
O sonho foi realizado. O arruado das barrancas do “Velho Chico” havia
alcançado o seu maior desejo.
E naquele, 10 de dezembro de 1953, o DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DE
SERGIPE, registrava a notável vitória de várias povoações sergipanas que alcançavam a
sua emancipação.
O jornal do governo estampava em sua primeira página.

GOVERNO DO ESTADO

Ato do Poder Executivo

LEI No. 525 – A – DE 25 DE NOVEMBRO DE 1953

Dá nova redação ao Capítulo I, da Lei no. 118 de 29-12-1948 (Lei Orgânica dos
Municípios) e da outras providências.

O GOVERNADOR DO ESTADO DE SERGIPE

Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado decretou e eu sanciono a


seguinte Lei:

Art. 1o. – O Capítulo I, da Lei no. 118, de 29-12-1948 (Lei Orgânica dos
Municípios), compreendido pelos artigos 1 a 19 passam a ter a seguinte redação.

E discorre sobre o CAPÍTULO I, do artigo 1 ao 19...

No Art. 20 está escrito: Terão a categoria de cidade as povoações que forem


sede de Município, e de vila, as que forem sede de distrito.

Art. 21 – Ficam criados os Municípios de Carira, Barra dos Coqueiros,


Pacatuba, Umbauba, Poço Verde, Pomar do Geru, Itabi, Malhador, Pedrinhas, Poço
Redondo, CURITUBA, Macambira, Pinhão, Monte Alegre, Tamanduá, Camboatá,
Cumbe, Amparo, desmembrado do Município de Propriá e Malhada dos Bois,
desmembrado do Município de Muribeca.

$ 1o – Os limites desses Municípios serão estabelecidos na lei que fixa o quadro


territorial do Estado.
$ 2o – As eleições para os cargos de Prefeito e Vereadores dos Municípios criados pela
presente lei processar-se-ão na mesma data em que se realizarem as eleições gerais nos
demais Municípios.

Art. 3o – Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições

102
em contrário.

Palácio do Governo do Estado de Sergipe, Aracaju, 25 de novembro de 1953,


65o da República.

ARNALDO ROLLEMBERG GARCEZ


Acrísio Cruz
Antônio Carlos do Nascimento Júnior
Pedro Barreto de Andrade.

103
A DIVISÃO ADMINISTRATIVA E JUDICIÁRIA DE SERGIPE

Com o desmembramento e criação dos novos municípios foi criado uma nova
Divisão Administrativa e Judiciária no Estado.
No dia 14 de fevereiro de 1954, O DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DE
SERGIPE, mostrava em sua primeira página.

GOVERNO DO ESTADO

Ato do Poder Executivo

Lei no. 554 – de 6 de fevereiro de 1954

Fixa a Divisão Administrativa e Judiciária do Estado que vigorará de 1 de


janeiro de 1954 a 31 de dezembro de 1958.

O GOVERNADOR DO ESTADO DE SERGIPE

Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado decretou e eu sanciono a


seguinte Lei:

Art. 1o – A Divisão Administrativa e Judiciária do Estado, que vigorará de 1o de


janeiro de 1954 a 31 se dezembro de 1958, de acordo com o disposto nos artigos 76 e 92
da Constituição Estadual, é a estabelecida nesta Lei.

Em suas DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS está registrado.

Art. 5o – A instalação dos novos Municípios recentemente criados por força da


Lei no. 525 – A, de 25 de novembro de 1953 se fará por ocasião da posse do Prefeito e
Vereadores.

Art. 6o – O número de Vereadores às Câmaras Municipais será: - Aracaju,


dezoito; Lagarto, nove; Itabaiana, oito; Simão Dias, seis; e cinco para cada um dos
demais Municípios do Estado.

Art. 7o. Fica o Governo do Estado autorizado a contratar com a Secretaria Geral
do Conselho Nacional de Geografia, o levantamento, pela Divisão de Cartografia da
mesma, além da carta geográfica de Sergipe, com delimitação municipal, na escala
1.250.000 lifografada, as cartas, em papel vegetal, na escala 1.400.000 dos Municípios
criados pela Lei no. 525 – A, de 25 de novembro de 1953 dos que tiverem suas áreas
reduzidas, face as novas criações, bem como o cálculo das respectivas áreas territoriais
em quilômetros quadrados, inclusive dos Distritos de Palmares, Samambaia, São
Francisco, N. S. de Lourdes, Miranda, Pedras e Barracas.

Art. 8o – A presente Lei terá vigência a partir de 1o de janeiro de 1954,


revogadas as disposições em contrário.

Palácio do Governo do Estado de Sergipe. Aracaju, 6 de fevereiro de 1954, 66o


da República.

104
ARNALDO ROLLEMBERG GARCEZ
Acrísio Cruz
Antônio Carlos do Nascimento Júnior
Pedro Barreto de Andrade.

105
OS LIMITES FRONTEIRIÇOS DE CANINDÉ DE SÃO FRANCISCO

Ao ser emancipado o Canindé Velho de Baixo, mesmo com tanta euforia pela
grandiosa conquista de sua libertação territorial, sofreu um baque fortíssimo ao tomar
ciência que as autoridades sergipanas, numa absurda decisão, haviam retirado o nome
tão tradicional e amado de seu lugarzinho, passando a chamá-lo oficialmente de
Curituba.
Quando de sua divisão em distrito administrativo o novo município do Sertão do
São Francisco, então chamado de Curituba, recebeu seus limites territoriais que lhe
foram dados e traçados por lei.
Ainda no DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DE SERGIPE, de 14 de fevereiro de
1954, saíram os novos limites de todos os municípios de Sergipe e os da Curituba –
Canindé de São Francisco – foram estes:

MUNICÍPIO DE CURITUBA

Limites Municipais

Com o município de Poço Redondo:

Começa na foz do riacho Angico; daí em linha reta a um marco na estrada


carroçável Serra Negra/Curituba, nos fundos da fazenda Cuiabá; daí seguindo pela
referida estrada até os limites com o Estado da Bahia, na ponta oeste da Serra Negra.

Ressalte-se que no DIÁRIO OFICIAL de dezembro de 1953 o limite com Poço


Redondo diz que: Começa na foz do riacho do Angico, no rio São Francisco, subindo
por aquele riacho até a sua nascente, daí seguindo linha reta até a estrada carroçável em
frente ao açude Cuiabá, daí seguindo por esta estrada até a ponta da Serra Negra.

Com o Estado de Alagoas:

Segue a divisa interestadual desde a foz do riacho Angico, seguindo o rio São
Francisco até a foz do riacho Hingu – Xingozinho –, no mesmo rio.

Com o Estado da Bahia:

Segue a Divisa interestadual desde a foz do riacho Hingu – Xingozinho –, no rio


São Francisco, até a ponta norte da Serra Negra.

O município do último porto navegável do Baixo São Francisco continuou sendo


chamado de Curituba até que no ano de 1958 aconteceu a mudança de nome. Foi assim:

Lei no. 890, de 11 de janeiro de 1958.

Dá nova denominação a cidade e outras providências.

106
O GOVERNADOR DO ESTADO DE SERGIPE:

Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado decretou e eu sanciono a


seguinte Lei.
Art.1o. Passa a denominar-se Canindé do São Francisco, a atual Cidade de
Curituba.

Art. 2o. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.

Art. 3o. Revogadas as disposições em contrário.

Palácio do Governo do Estado de Sergipe.

Aracaju, 11 de janeiro de 1958, 70o da República.

Leandro Maynard Maciel


Heribaldo Dantas Vieira
Pedro Diniz Gonçalves Filho.

107
OS ADMINISTRADORES

Com sua emancipação Canindé cuidou em seguir o seu caminho. No dia 03 de


outubro de 1954 aconteceu a sua primeira eleição e através dela foram eleitos o prefeito
e os vereadores. O município foi instalado oficialmente no dia 06 de fevereiro de 1955,
quando o prefeito eleito e seus vereadores tomaram posse.
O primeiro prefeito foi o senhor Ananias Fernandes dos Santos que dirigiu os
destinos do município no período compreendido de 1955/1958.
Em 1958 aconteceu a segunda eleição municipal e o agraciado com o cargo
majoritário foi o senhor Manoel Feitosa Sobrinho – Maneca Feitosa – e seu mandato
teve a duração de quatro anos: 1959/1962.
Chega à eleição de 1962. O candidato eleito foi o senhor Francisco Machado
Costa – Chiquinho Lameu – homem da mais alta confiança do Dr. Hercílio Porfírio de
Britto. Porém, o seu mandato foi de curta duração, uma vez que em julho de 1964 foi
afastado abruptamente do poder pelos brutamontes da Revolução/64, com a alegação de
que o mesmo era um fiel representante do PSD – Partido Democrata Social – de
Francisco Leite Neto.
Em seu lugar assumiu o cargo o vereador Domingos Jerônimo dos Santos que
completou o mandato.
Na eleição de 1966, Ananias Fernandes dos Santos, tenta pela segunda vez
alcançar o direito de representar o povo de Canindé. É feliz em seu intento. É eleito para
mais uma gestão e administra o município durante os anos de 1967/1970.
A década de 70 desponta. No meio político uma novidade desastrosa. Numa
incompreensível decisão os senhores da lei mudam os mandatos municipais de quatro
para dois anos. Mesmo assim não faltam candidatos aos cargos de prefeito e vereador.
Em Canindé, o senhor Salomão Porfírio de Britto – filho do celebrado Tonhinho
Britto – é candidatado a prefeito e eleito para aquela curtíssima administração municipal
de apenas dois anos: 1971/1972.
A diminuição dos mandatos havia sido uma experiência desastrosa que redundou
num fracasso retumbante. Fazia-se necessário uma nova lei que desse fim àquele
disparate e oferecesse condições de governabilidade aos novos representantes
municipais e foi assim que aconteceu o retorno dos quatro anos de duração de uma
gestão para outra.
Chegou a eleição de 1972. Quem iria dirigir Canindé do São Francisco no
quadriênio 1973/1976? Lá estava, do alto de seu imenso prestígio, o senhor Ananias
Fernandes dos Santos, desejando pela terceira vez receber do povo canindeense o direito
de representá-lo. Assim aconteceu ao ser eleito prefeito de seu município.
Uma nova alteração eleitoral aconteceu. Talvez para compensar o absurdo do
mandato de dois anos as autoridades brasileiras resolveram aumentar de quatro para seis
anos, o período administrativo dos municípios brasileiros.
Em Canindé de São Francisco o agraciado com aquela nova lei foi o senhor
Manoel Gomes Feitosa – Mané da Pia da Onça – que ao derrotar o grupo político de
Ananias, se tornou o prefeito daquela comunidade ribeirinha, num mandato que
compreende os anos de 1977/1982.
As eleições de 1982 se aproximavam. Em Canindé, o senhor Ananias Fernandes
tentava pela quarta vez receber do povo canindeense o direito de administrar o
município. As chances eram enormes. Tudo se encaminhava para o famoso político
alcançar o êxito desejado em sua empreitada. Não foi assim. O destino não iria lhe
permitir ser vitorioso naquele tão sonhado preito. Não sabia o prestimoso filho de dona

108
Delfina da Pedra D’água que sua missão terrena estava se aproximando do fim. No
início da campanha perdeu a vida num acidente automobilístico – ver capítulo sobre a
tragédia de Ananias neste documentário.
Com a morte do grande chefe, o seu filho Jorge Luiz Carvalho Santos se
candidatou ao cargo majoritário. Teve sorte. Foi eleito e recebeu o direito constitucional
de administrar seu município durante a gestão 1983/1988.

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Ananias Fernandes dos Santos
(31/05/1925 + 16/05/1982)
(Acervo de dona Hilda Fernandes)

VIDA E MORTE DE ANANIAS FERNANDES

Não se têm dúvidas de que foi Ananias Fernandes dos Santos a expressão maior
da política de Canindé de São Francisco. O seu prestígio era tão imenso que o fez
alcançar por três vezes, em gestões alternadas – 55/58, 67/70 e 73/76 –, à condição de
prefeito municipal.
Ananias foi um titã, só superado pelos desígnios do destino e a imperiosa
vontade dos deuses do Além que se decidiram em vencê-lo e derrotá-lo naquela brutal
tragédia que o esperava numa das ladeiras íngremes das proximidades da cidadezinha
que tanto amava. Foi assim que o grande herói canindeense baqueou e caiu fulminado
pela morte, naquele domingo triste e desventuroso de 16 de maio de 1982, ao trafegar
pelas estradas de seu adorado chão caboclo, quando retornava para o aconchego de sua
família, viajando num Fiat de cor azul, vindo das feiras da Curituba e do Capim Grosso.
O famoso político de Canindé estava entrando em campanha eleitoral. Naquele
ano iria acontecer mais uma eleição. E ele postulava, com todas as possibilidades de
vitória, se eleger prefeito pela quarta vez, e assim, dirigir os destinos de seu município e
de seu povo.

* * *

Tem que se ressaltar que a vida de Ananias se confunde em grande parte com a
de dona Hilda Fernandes em virtude dos dois serem filhos do mesmo pai e da mesma

110
mãe. Portanto, a história familiar de uma é a mesma do outro e se tornaria enfadonho
discorrer sobre o andejar de seus pais pela estrada da vida, mesmo porque tudo já foi
registrado no capítulo destinado a filha de dona Delfina.
Contudo não se pode discorrer sobre a História de Canindé sem um destaque
especial para este diferenciado homem.
Ananias Fernandes nasceu no dia 31 de maio de 1925. A infância e adolescência
de Ananias foi igual a de todos os garotos e rapazinhos sertanejos. A lida vaqueira, as
festas e bailes, as farras e leilões, as prosas e os namoricos com as mocinhas de seu
mundo distante do Baixo São Francisco, faziam o prazer e a felicidade de sua dourada
mocidade.
Um dia, numa festa na povoação baiana de Serra Negra, conheceu uma
belíssima moça. Era Haydêe, filha do conceituado Galdino Pereira Leite e dona Maria
da Conceição Carvalho Leite, carinhosamente apelidada de dona Nanam. Os dois
sentiram uma atração mais do que especial. Dos primeiros olhares, chegaram as doces e
maravilhosas carícias.
Ananias e Haydêe se amaram com muito ardor e paixão. O noivado não
demorou. O casamento era um fato consumado e ele aconteceu naquele ano de 1950.
Haydêe deixa então o querido povoado, sua família, seus pais e se destina, ao
lado do amado esposo, até as terras sergipanas, indo residir inicialmente na Pedra
D’água, para depois se mudar para o Canindé Velho de Baixo.
Os filhos foram nascendo. Francisco Galdino, Jorge Luís, Mário César, Maria da
Conceição, Ângela Maria e Mary César; ainda Ana Lúcia que faleceu aos nove anos de
idade.

* * *

E o tempo seguiu o seu caminho.


O Canindé Velho de Baixo foi emancipado. Uma eleição estava por acontecer.
Era dela que iria aparecer o primeiro prefeito do novo município sergipano. Ananias
desponta como um dos candidatos. O preito do esposo de Haydêe é coroado de êxito.
Consegue se eleger. E assim recebe o direito constitucional de dirigir os destino de sua
terra durante a sua primeira gestão 1955/1958.
Ananias torna-se a grande força política de sua jurisdição. Termina o mandato e
sem nenhum contratempo elege o seu sucessor na pessoa de Manoel Feitosa Sobrinho –
Maneca Feitosa – e na eleição de 1966 projeta ser pela segunda vez o representante
oficial de seu povo.
O seu prestígio está em alta. O seu nome é aceito por quase a totalidade dos
canindeenses. Ganha a eleição. Assumindo então a missão administrativa daquele
período com compreende os anos 1967/1970.
Termina o seu segundo mandato. Dois anos depois – 1972 – é marcada outra
eleição. Vamos encontrar o famoso político candidato ao cargo majoritário de Canindé.
Como sempre a sua vitória foi tranqüila. E naquele primeiro de janeiro se 1973,
aplaudido freneticamente pelo povo, Ananias toma posse pela terceira vez do
importante cargo municipal que vai de 1973 a 1976.
A sua terceira gestão chega ao fim. A década de 80 desponta e com ela uma
grande novidade nos meios políticos: a escolha através do voto direto do povo dos
governadores, até então, desde 1964, um direito, mesmo que arbitrário, dos homens da
ditadura militar.
A Revolução havia entrado em seus estertores e estava no fim. Em seu início –
1982 – uma nova eleição havia sido marcada. O ano da disputa eleitoral estava em

111
curso.
Em Canindé de São Francisco, Ananias se preparava para enfrentar mais uma
campanha eleitoral. Sonhava, com toda justeza, alcançar o privilégio de muitos poucos,
que era o de representar por quatro vezes o seu povo; ser prefeito em vários mandatos
era uma honra muito grande que iria enchê-lo de felicidade se tamanha dádiva viesse
acontecer.
Vivi-se o primeiro semestre de 1982. O experiente político dá início aos
conchavos e acertos políticos. Precisava evitar possíveis e desagradáveis surpresas.
Não havia esquecido o fracasso da campanha de 1976 quando o seu grupo
político havia sido fragorosamente derrotado pelo então candidato da oposição, o
pernambucano Manoel Gomes Feitosa (Pia da Onça), que venceu o senhor Antônio
Fernandes de Sousa (Tonho de Lino) na corrida para a prefeitura.
Amparado em seu enorme prestígio, o filho de dona Delfina confiava em mais
uma vitória eleitoral que o faria entrar para a galeria do reduzido e seleto grupo que
conquistou tão memorável proeza.
Ainda era um homem relativamente jovem – 57 anos – e vislumbrar a
possibilidade real de por tantos instantes de sua vida está prefeito de sua terra amada
seria uma façanha grandiosa e um notável feito que jamais deixaria de agradecer a Deus
e a seu povo por ter merecido tão incomparável exceção.

* * *

O mês de maio desponta. Chega o dia dezesseis, é um domingo, o dia da feirinha


da Curituba e do Capim Grosso. Dia de ajuntamento das famílias daquela região. Como
sempre fazia, ainda muito cedo, Ananias segue para o tão querido arruado criado por
João dos Santos, com o compromisso de pela tarde seguir para o Capim Grosso.
A campanha eleitoral ainda engatinha. Aqui e acolá estão aparecendo pequenos
focos de descontentamento desta ou daquela liderança do interior, principalmente na
Curituba, justamente a localidade em que tinha a seu favor o maior número de eleitores.
Precisava contornar aquela situação antes que ela se agravasse.
Acostumado com as coisas da política, Ananias tinha a intenção de apagar
imediatamente os pequenos incêndios que começavam a surgir. Não poderia correr o
risco de ver o fogo da intriga se alastrar no meio de seus colaboradores.
Assim pensando, aproveitou a feira do tão considerado povoado e para lá se
dirigiu na intenção de conversar com seus amigos, o que fez durante toda manhã. Ficou
aborrecido por não ter conseguido o objetivo tão desejado que era o de contornar os
problemas existentes no meio de seus próprios correligionários. Tristonho e cabisbaixo
deixa o arruado e segue para a povoação da antiga Lagoa do Capim Grosso. Viaja
inconformado com algumas posições de pessoas que julgava jamais lhe criar qualquer
tipo de embaraço.
O que mais o preocupava era o fato de ter que enfrentar a nova força do
município, o povoado dos pernambucanos, o Capim Grosso, que já o havia derrotado na
eleição anterior e naquele instante da vida de Canindé ameaçava ultrapassar o número
de votos existentes no restante da jurisdição, e assim, os desacordos da Curituba
poderiam lhe causar severos danos.
Todo cuidado com o agora poderoso Capim Grosso ainda era pouco. Em seu
pesadelo eleitoral Ananias antevia o prefeito Pia da Onça se aliando com os
descontentes da Curituba e com isto o seu projeto de retorno à prefeitura estaria
totalmente ameaçado e quase que irremediavelmente perdido. Era só uma questão de
tempo. Isto não poderia acontecer – resmungava, consigo mesmo, o grande líder

112
canindeense.
Com estas preocupações remoendo a sua cabeça Ananias chega ao Capim
Grosso. Conversa, proseia e bebe com os amigos. Com o descambar da tarde retorna
para sua Canindé. No Fiatt, além dele que dirigia o carro, estava a esposa Haidêe e as
amigas Cássia de Zé Bodôlo e Betânia.
Era o entardecer do dia 16 de maio de 1982.
O carro deixa canudos de poeira na sinuosa estrada de chão. Começa a descer a
última ladeira. A cidadezinha está lá embaixo, na quietude de sua rotina. De repente a
desgraça. A responsável pela cessação da vida estava de tocaia no socavão da serra e se
apresentou com sua face mais horrenda. O Fiatt se desgovernou e aos trambolhões saiu
da estrada e caiu no abismo da morte.
Como se fosse num terrível pesadelo ali estava com a cabeça esbagaçada por
uma pedra. Seu corpo estirado no chão duro da ladeira, o corpo inerte e sem vida de um
bravo sertanejo, um herói do Sertão do São Francisco, o filho amado do Canindé Velho
de Baixo e da Pedra D’água, Ananias Fernandes dos Santos.

* * *

Ananias estava morto. O sertão se cobriu de luto. A notícia da tragédia se


espalhou por todos os cantos sertanejos. O povo chorou a grande perda.
Não existem palavras que possam descrever o desespero do povo de Canindé.
Muitos imaginavam ser aquele boato uma grotesca e perversa mentira. Mas era uma
terrível verdade. O ciclo da vida terrena do célebre líder canindeense havia chegado ao
fim. Seu corpo foi levado, sob indescritível comoção, para sua residência e ali velado
até seguir para o cemitério, onde baixou à sepultura.

* * *

Ananias morreu. Canindé chorou desconsolada a sua trágica morte. Quem iria
substituí-lo nos caminhos espinhosos da política? Quem iria assumir o seu lugar de
candidato e postular o cargo de prefeito?
A escolha recaiu em um de seus filhos. O escolhido foi Jorge Luís Carvalho
Santos que, escorado e protegido pelo imenso prestígio do pai, foi facilmente eleito
prefeito para a gestão 83/88.
E assim, em plena flor da idade, Jorge Luís se tornou o dirigente máximo de sua
terra.

113
O PROGRESSO CHEGA AO SERTÃO

Eis que por força da necessidade de suprir a carência de energia no nordeste


brasileiro, a nação precisava de mais hidrelétricas, ao longo do rio São Francisco. Foi
então projetada à execução da Usina Hidrelétrica de Xingó, localizada após as
cachoeiras de Paulo Afonso, no começo do Baixo São Francisco.
Os trabalhos foram iniciados. O povo se admirou. Jamais poderia imaginar um
serviço de tão grandiosa magnitude.
O sertão só falava e respirava a onda que a matutada convencionou em chamá-la
de “Barragem de Xingó”.
Trabalhadores de todos os recantos do país se abalaram até aquele antes
desconhecido ermo mundo do barranqueiro do Velho Chico.
Uma legião de construtores de represas se fez presente. Construir barragens era
seu predileto ofício. E assim os sertões sergipanos e alagoanos se tornaram em novos e
promissores centros de desenvolvimento do nordeste. Quem diria que aquela
abandonada região viesse a se tornar um eldorado nordestino?
O progresso estava a caminho. Viajava pela estrada do sertão. O seu destino era
o município de Canindé de São Francisco.

* * *

Tudo tem seu preço e quase sempre ele vem amargo e doloroso. Bem assim é o
progresso. Ele chegou a Canindé montado num motivo especial e de fortíssimo enredo:
resolver o problema crônico do setor energético brasileiro e, ainda mais importante,
oferecer condições aos nativos daquela beira de rio, acenando-lhes com uma vida digna
e repleta de cidadania, representada por uma rede de melhoramentos que só existia nos
grandes e evoluídos centros do Nordeste e do Brasil.
Mentira. Tudo mentira. Tudo não passava de uma artimanha, de um engodo.
Camuflados em seus convincentes, porém falsos argumentos de melhoria de vida e na
circulação abundante de dinheiro na região, enfim, tudo que existe de mais importante
nas grandes cidades, os executares da fabulosa empreitada decretaram a morte da
cidadezinha sertaneja, e com isto, a destruição completa dos valores culturais e da
tradição daquele povo ribeirinho, sem se falar na completa extinção da primitiva
paisagem, que mesmo com o passar dos anos, continuava bela e quase que intocável.
Tudo ali seria transformado pela mão maldita do homem e sua cada vez mais
aperfeiçoada e insensível engenharia.
Um novo mundo iria surgir. Novos conceitos e diferentes rumos seriam a tônica
do novo Canindé. A sua transformação seria extremada. Canindé de São Francisco,
aquele Canindé Velho de Baixo, perderia as suas origens e iria assumir o seu novo posto
de cidade civilizada, com tudo que numa metrópole pudesse existir.
A mudança foi radical e o progresso chegou a Canindé.

114
PÁGINA BRANCA

115
O CANINDÉ VELHO DE BAIXO É ASSASSINADO

Os novos tempos e as evoluções das eras, escoradas em uma avançada


tecnologia foram responsáveis pela transformação, e em muitos casos, a destruição das
paisagens nativas e tipicamente sertanejas existentes ao longo das beiradas e encostas do
rio São Francisco, fazendo com que aquele pedaço abençoado de chão fosse
brutalmente modificado e em lugar de sua natureza primitiva surgisse às barragens que
prendiam as águas do velho rio.
E daquele represamento nasceram o esplendor dos lagos e a beleza artificial feita
pela mão do homem. Todavia, toda esta magnífica mudança exigia um pesado tributo.
Além do descontrole natural do meio ambiente, o fim de tradicionais aldeamentos,
povoados e cidades, num desrespeito e numa afronta aos costumes, tradições e crenças
dos povos brasileiros.
O Brasil precisa de sua poderosa força fluvial para gerar energia. As barragens e
usinas vão surgindo, motivando o desaparecimento de comunidades inteiras, o
progresso que chega significa a destruição da natureza devastada sem piedade pela mão
danosa e maligna do homem que amparado em sua própria perversidade, julga que
nenhum valor histórico ou cultural pode atrapalhar, e nem sequer modificar, os seus
insensíveis planos e projetos.
O sonho da Barragem de Xingó se tornou realidade. Era o progresso chegando
ao Sertão do São Francisco e o custo maior dessa obra seria o assassinato de uma altiva
cidadezinha sertaneja.
E assim aconteceu...
Os trabalhos da tão esperada hidrelétrica foram iniciados. A ecologia iria sofrer
danos irreparáveis. À velha Canindé seria varrida do mapa sertanejo, pagando um preço
imensurável e doloroso que a sua impotência não tinha como contestar ou reagir.
Por ser um defensor ardoroso dos valores naturais de nossos sertões e escorado
pelos meus pendores poéticos, me dispus a dar um grito em defesa de nossa mãe-
natureza, aviltada pelo represamento desenfreado das águas de nosso amado rio, criando
um poema em sua homenagem e dando-lhe o nome de “Lamentos do Velho Chico”.
Foi assim:

Lá na serra da Canastra
A obra prima de Deus,
Água pura e cristalina,
Naquela serra nasceu.
Por ordem do Criador,
Aquela água desceu.
Cortando prados e vales,
Sertão afora correu.
Molhando mata e caatinga
A vida que ali cresceu.

Com o nome de um santo


O rio foi batizado.
Foi chamado São Francisco,
Aquele rio adorado.
Moradia dos indígenas
E caboclos do cerrado.

116
Canoa, chata e navio,
Navegam de lado a lado.
Os peixes sustentam o povo,
Daquele sertão amado.

Aquelas águas serenas,


Com o tempo caminhando,
Formando vila e cidade,
O povo que foi chegando.
Só pensando em destruir,
A floresta derrubando,
Construíram suas casas,
Os índios foram matando,
Queimando a mataria
E o rio envenenando.

O progresso foi chegando,


Os povos evoluindo.
Aquelas águas de Deus,
Pra seus projetos servindo.
A maldita mão do homem,
O grande rio destruindo,
Prendendo as suas águas,
Barragens que vão surgindo.
Tudo em nome do progresso,
Destruindo um mundo lindo.

A grandiosidade do mega empreendimento causava espanto e admiração. A


sertanejada estava atônita e abismada. Dizia-se até que o amado rio iria ser apartado e
que a nudez de suas sagradas entranhas ficaria exposta e seu leito seco e queimado pelo
sol seria pisado pelo homem, numa afronta sem tamanho às leis da natureza e de Deus.
Não podia ser. A caipirada não acreditava naquela absurda hipótese. As
profundezas das águas do Velho Chico, com seus mistérios e suas lendas, eram
propriedades do Divino Criador e não podia de nenhuma maneira ser maculada pelos
pés do bicho homem, um terrível pecador.
Mas, tudo isto aconteceu. O leito foi despido e um número incalculável de
caboclos foi ver o chão duro e encrespado do fundo do famoso rio.
Tudo ali se transformou. Como se fosse num passe de mágica aquele pedacinho
de sertão havia se tornado num imenso canteiro de obras e o São Francisco devassado e
desnudo pelo poder da engenharia.
O antigo Canindé Velho de Baixo também havia recebido a sua sentença. Os
chefes, diretores, projetistas e engenheiros responsáveis pela tão decantada usina,
estavam prontos e preparados para sacrificar a humilde cidadezinha sertaneja.
As casas seriam demolidas. E com essa destruição o assassinato de uma sublime
história e de um passado de alegria e felicidade de um povo que primava pelo
sentimento do amor e da paz.
E assim foi. A morte de Canindé estava selada. O sentimento destruidor do
homem insensível dos “novos tempos” não respeitou a tradição, a cultura, o afeto e o
apego de uma população que viu impotente e agoniada, o seu pequenino e amado

117
mundo ser dizimado pela indiferença impiedosa dos comandantes da Barragem de
Xingó.
A extinção foi total. As casas foram realmente demolidas. O passado e a história
de seus moradores não foram levadas em consideração. Tudo foi levado de roldão pelos
que se julgavam os senhores do sentimento alheio. O fato estava consumado. A tradição
de um povo acabava de ser jogada na lata do lixo do esquecimento, do abandono e do
desprezo.
Ali estava segundo o pensamento dos que comandavam a construção da
hidrelétrica, uns pobres coitados que não possuíam nem identidade e nem alma, todos
eram objetos descartáveis e sem nenhuma serventia que poderiam perfeitamente ser
jogados pra lá e pra cá, conforme o desejo deles.
Dessa maneira, famílias e mais famílias, a família de Canindé, como se fossem
mercadorias ambulantes, transportadas em comboio, foram conduzidas para a nova
cidade. Projetada e construída para ser a Nova Canindé de São Francisco, a Canindé do
progresso, a senhorinha de uma nova era, a deslumbrante era do Sertão do São
Francisco.
Persuadidos por profissionais preparados a matutada ribeirinha aceitou
passivamente ser transferida para aquela que estava sendo chamada de “a bela
menininha do sertão”.
Ainda mais espantosa foi à constatação de que até aqueles que completaram seu
ciclo existencial na vida terrena e foram descansar nas tumbas do acanhado campo-
santo do velho Canindé, tiveram seus restos mortais transladados para a necrópole da
nova cidade, numa decisão absurda e incompreensível dos descendentes e parentes que,
embelezados pela sensação sertaneja, macularam o repouso eterno de seus entes
queridos, levando-os para um cemitério que não era deles.
Até os mortos tiveram que deixar o pobre Canindé.

* * *

O tempo foi passando. Muitos dos que viveram aquela aventura vivem debaixo
de dolorosa e doída saudade daquele seu antigo e amado lugarzinho. As suas
lembranças ainda estão povoadas do aconchego generoso de suas moradias; o vento
gostoso das tardes naquela beira de rio e nos telheiros das casas; o sossego e a
tranqüilidade que reinava no meio dos moradores; a vida solta e livre, como o voar dos
pássaros; os banhos matinais nas águas frias e cristalinas do amado rio, companheiro
inseparável do povo sertanejo. Todos estes atributos faziam daquele núcleo de caboclos,
um recanto de muita felicidade.
Admirador do sublime sentimento daqueles beiradeiros e não desconhecendo o
tamanho da nostalgia que muitos deles, especialmente os mais velhos sentem, eu fiz
para eles, os arribados do Canindé Velho de Baixo, uns versinhos que atestam a imensa
saudade que os faz lembrar noite e dia da comunidade que representou a história de suas
próprias vidas e que todo este sentimento de amor e paixão foi roubado pelos homens da
CHESF.
Os versos foram chamados de “Adeus, velha Canindé”.

Adeus, velha Canindé,


Adeus terra tão querida,
Estou chorando, na despedida,
Canindé, Canindé, a minha vida.

118
Tu foste terna e amada,
Quem conheceu acredita.
Minha velha Canindé
Pedaço de minha vida.

O seu rio murmurante


De água pura e cristalina.
Era o véu que enfeitava
A serra vale e colina.

Entre máquinas e Xingó


Muita lágrima correu.
Foram as lágrimas de seu povo
Por você que já morreu.

Eu também estou chorando,


Já perdi a minha fé.
Eu choro por me lembrar
De você, meu Canindé.

E assim uma nova cidade surgiu. Na chapada do espigão da serra a Nova


Canindé de São Francisco foi construída. O povo se mudou. Despontava a futura
cidade-pólo daquele antes abandonado sertão.
Tudo era festa e euforia. O ápice do majestoso acontecimento teve o seu especial
dia, aquele 06 de março de 1987, quando o então presidente da república, José Ribamar
Sarney inaugurou aquele que era considerado um extraordinário sonho de prosperidade
dos sertanejos.

* * *

Vivia-se no sertão uma feliz novidade. Empresários dos mais variados setores se
propuseram a investir na Meca cabocla de Sergipe.
Surgiram as agências bancárias, os postos de gasolina, o hospital, farmácias,
lojas, hipermercado, hotéis, dentre os quais um de primeira qualidade, o Xingó Parque
Hotel; além de uma emissora de rádio, a Xingó FM, algo inimaginável naquele
desértico pedaço antes esquecido de Sergipe. Enfim, tudo que uma cidade grande
pudesse oferecer a seu povo e seus visitantes, a Nova Canindé também tinha condições.
Ainda mais, toda estrutura de responsabilidade dos governantes havia sido
criteriosamente realizada.
E assim, a menininha sertaneja dava os seus primeiros passos. Cercada de
carinho e proteção à nova cidade seguiu o caminho de seu destino.

119
A PRIMEIRA ELEIÇÃO MUNICIPAL NA NOVA CANINDÉ

Naqueles idos da transferência da cidade de Canindé de São Francisco para o


novo local, o prefeito municipal daquela comuna era o senhor Jorge Luiz Carvalho
Santos, que havia sido eleito na eleição de 1982 e recebera um mandato de seis anos:
1983/1988.
Chega à campanha eleitoral com eleição marcada para 15 de novembro de 1988.
O prefeito Jorge Luiz oferece o seu apoio a um dos sobrinhos de seu falecido pai,
portanto seu parente próximo, o filho de dona Hilda Fernandes, o vereador Francisco
Alberto Feitosa, popularmente chamado de Chiquinho Feitosa.
O neto de dona Delfina da Pedra D’água consegue se eleger com extrema
facilidade, se tornando o primeiro prefeito eleito naquele novo tempo e com sede na
Nova Canindé. O mandato de Chiquinho se estendeu de 1989 até 1992.
A caçulinha do sertão ainda engatinhava. Era uma tenra criancinha. O novo
mandatário e o povo tinham pela frente uma nova expectativa de vida e ação, com
possibilidades de totais mudanças nos modos, costumes e tradições dos descendentes
daquele município.
Canindé saía da indigência para se tornar um moço de largas posses, afortunado
pelo privilégio que lhe dera a grandiosa construção da Usina Xingó, que carreava para
seus cofres uma quantidade jamais sonhada de recursos financeiros. E Francisco Alberto
Feitosa havia recebido por delegação constitucional do povo de sua terra, a honrosa
missão de ser o responsável pela administração daquela, agora especial e desejada
municipalidade.
E Chiquinho foi em frente. Homem experiente. Nascido, criado e vivido no meio
dos rigores da vida não se abalou e nem tampouco temeu a imensa responsabilidade que
sua gente colocou em suas mãos. Alargou suas amizades políticas e pessoais. Procurou
com afinco o melhor para seu município e mostrava que Canindé de São Francisco tinha
um dirigente a altura daquela nova era.
A brusca mudança de mentalidade e de hábitos de tudo que se relacionava, não
só no que se refere ao setor administrativo, tão diferenciado com a nova situação de
Canindé, mas, principalmente, com o jeito e a maneira de ser do homem do campo;
aquele caipira que se acostumou a viver debaixo de uma pobreza extrema e que agora
havia votado num seu patrício para ser prefeito de seu município, com a diferença de
que agora sua terra havia se tornada a mais rica de todo sertão, motivo que o fazia
imaginar possuir plenos direitos no que diz respeito a benefícios pessoais que pudessem
minorar a sua crônica necessidade de melhorar as condições de vida.
Chiquinho tinha consciência do problema e se dispôs a enfrentar a situação.
Sabia que iria carregar o pesado fardo de tentar controlar a ânsia de seu povo e procurar
conciliar, de toda maneira possível, os caminhos sociais, políticos e administrativos que
costumavam tirar o sono dos que recebiam cargos que dependiam do voto popular.
Contudo, o moço de dona Hilda lá estava. Calmo, tranqüilo, às vezes irônico,
com paciência para enfrentar todos os obstáculos que se lhe apresentava e mostrando a
Sergipe a inteligência e a capacidade do homem sertanejo, do qual ele era um legítimo
representante.
E o tempo de seu quadriênio administrativo correu...
Chegam os dias finais de sua gestão. No dia 12 de dezembro de 1992, Francisco
Alberto Feitosa abdica do cargo entregando-o a seu substituto legal, o presidente da
câmara de vereadores, o senhor José Francisco do Nascimento – Zé de Rita – que havia
alcançado este direito em virtude da morte do vice-prefeito, o senhor José Rodrigues.

120
Zé de Rita permaneceu à frente da municipalidade de 12 a 31 de dezembro
daquele ano. Era o final de mais um mandato de prefeito e vereador e um novo
responsável pelos destinos do município havia sido eleito.
Era ele Delmiro de Miranda Britto.

121
Delmiro de Miranda Brito

A TRISTE HISTÓRIA DE DELMIRO DE MIRANDA BRITO

Delmiro de Miranda Brito era um representante legítimo da raça parda brasileira.


Era um caboclo inteligente e perspicaz. Vaqueiro adestrado e competente. Amava a
caatinga e o gado. Vivia feliz na sua fazenda Poço Verde, encravada nos arredores da
Curituba.
Além dos trabalhos campeiros que tanto adorava, Delmiro guardava, lá dentro de
seu sentimento, o sonho de um dia se tornar prefeito de Canindé. Ingressou na política.
Foi candidato ao cargo majoritário do município na eleição de 1988. Não foi feliz em
seu intento. Viu-se derrotado pelo seu opositor o conceituado Francisco Alberto Feitosa
– Chiquinho Feitosa.
Delmiro não se abalou com aquela previsível derrota. Seguiu em frente com seu
desejo. Sabia de sua obstinação e da consideração e amizade que possuía no meio de sua
gente. Esperaria o próximo pleito e tentaria uma melhor sorte.
Chega a eleição de 1992. Convidado por Jorge Luís aceitou compor a chapa
majoritária encabeçada pelo filho de Ananias, na condição de candidato a vice.
Um imprevisto aconteceu. O Tribunal Eleitoral do Estado de Sergipe barrou a
pretensão de Jorge Luís que optou pela ascensão de seu companheiro de chapa,
elevando-o à condição de candidato a prefeito e Hortência Silva Carvalho – então
esposa de Jorge – como a vice-prefeita da nova lista de candidatos.

* * *

O dia da eleição chegou. Lá estava o vaqueiro-proprietário na iminência de


alcançar o seu tão esperado objetivo. Foi o que aconteceu. A sua vitória foi retumbante.
Chega o dia tão esperado da posse. Dia de festa, alegria e felicidade. A
comunidade canindeense está eufórica, entusiasmada por ver aquele homem simples,

122
amigo, um ser humano de excepcionais predicados, à frente dos destinos de sua
comuna.
Aquele dia 01 de janeiro de 1993 era uma data marcante e especial que iria ficar
registrada para sempre no livro da história daquele modesto camponês que havia
recebido do povo daquela terra tão amada o direito de representá-lo como prefeito.
Assim não queria o destino...
O futuro daquela gestão era sinistro. Aquela euforia e aquela esperança de poder
ajudar o seu povo e lutar em prol de uma comunidade tão carente, se desmancharam em
dor, agonia e luto. Tudo não passava de uma doce ilusão que foi destruída em um
trágico instante, talvez não mais do que um minuto, transformando aquele sonho lindo
em um medonho e horrível pesadelo.
Ao assumir tão honrada e melindrosa incumbência, o conceituado e querido
campônio, cheio de esperança e fé, tinha em mente realizar um trabalho voltado
prioritariamente para aquela sua gente, aqueles que faziam o dia-a-dia de sua vida e de
seu sertão amado.
Não foi assim...
Seus sonhos e projetos foram brutalmente desfeitos. Até sua vida foi arrancada e
jogada no abismo de uma maldita rodovia.
Tudo aconteceu naquela sinistra manhã de 05 de maio de 1993. Naquele triste e
desventuroso dia Delmiro deixou a capital sergipana e em sua simplória imaginação
achava que estava viajando para a sua Canindé amada. Não. Não estava. Sem se
aperceber estava, isto sim, realizando uma viagem sem volta, uma viagem para o mundo
misterioso do Além, uma viagem em que o ponto final seria a eternidade.
A morte, senhora insensível e perversa das trevas, o esperava de tocaia em uma
das curvas do trecho rodoviário localizado entre os municípios de Siriri e Nossa
Senhora das Dores.
Conta os registro oficiais que o carro em que o prefeito viajava despencou
naqueles socavões e foi parar no fundo de um penhasco, tendo Delmiro perdido a vida.
A dolorosa notícia caiu como uma bomba em Canindé. O município se enlutou.
Amigos e parentes ficaram atônitos, aparvalhados, sem acreditar naquele dantesco
acontecimento. Ninguém tinha forças para suportar tão grande dor e agonia em virtude
daquela nunca esperada perda.
A morte de Delmiro enlutou o sertão. Jamais se poderia imaginar que a sina
daquele tão bondoso homem e correto amigo fosse aquela de perder a vida ainda tão
moço, no momento em que desfrutava da alegria e prazer de ter alcançado o direito de
ser o representante maior de seu povo.
A felicidade de ser prefeito havia se transformado num insondável precipício ao
ser ceifado desse mundo, com seu corpo estraçalhado naquela desditosa manhã em que
todo Sergipe, em especial os seus patrícios sertanejos, ficaram chocados e estarrecidos
com a inesperada e terrível notícia de sua morte.
Triste sorte, a sorte do povo de Canindé de São Francisco. Num lamento de
imensa aflição viu três de seus maiores lideres – Epifânio, Ananias e Delmiro – serem
arrancados desse mundo com tanta brutalidade pelas mãos perversas do destino e da
morte.

123
HORTÊNCIA CARVALHO ASSUME O PODER

Em suas andanças para Aracaju, Jorge Luís conheceu uma mulher linda,
detentora de uma beleza rara. Era Hortência. Aqueles atributos físicos, acrescentados a
uma meiguice fora do comum, deixaram o moço de Canindé fascinado. Ainda mais,
Hortência era uma jovem moderna, afeita ao ambiente e costumes das grandes cidades,
enfim, uma jovem verdadeiramente especial.
Ao vê-la, o filho de Ananias Fernandes sentiu-se dominado por uma desenfreada
paixão. O desejo de tê-la em seus braços foi voraz e avassalador. Em pouco tempo
àquela linda citadina estava em sua companhia e conhecendo um novo mundo, o mundo
de Canindé de São Francisco.
Uma incrível mudança iria acontecer na vida desta mulher.

* * *

A eleição de 1992 se aproximava. Jorge Luis trabalhava o seu retorno à


prefeitura. Fez aliança com Delmiro colocando-o como o candidato a vice-prefeito em
sua chapa. Suas chances já eram enormes e após este acordo ficaram ainda mais
acentuadas. Vencê-lo naquele preito seria tarefa quase que impossível para seus
adversários.
Tudo estava pronto para o grande êxito de seu objetivo.
Eis que uma intransponível barreira se interpôs na caminhada de Jorge em busca
de seu sonho de ser mais uma vez prefeito de sua terra. O TRE – Tribunal Regional
Eleitoral – não registrou a sua candidatura.
A notícia estourou como uma bomba em Canindé e em todo sertão. O candidato
ficou desesperado. A oportunidade real e concreta de retornar ao comando supremo de
seu município estava escapando de suas mãos.
Recursos foram feitos. Porém, as instâncias judiciais acompanharam a decisão
do TRE e o objetivo do grande favorito daquela eleição em Canindé de São Francisco se
esboroou e foi destruído pelo rigor da justiça.
O que se fazer? Só restava uma alternativa. Mudar a chapa majoritária. Assim
foi feito. Delmiro passou a ser o candidato a prefeito e a esposa de Jorge Luís a sua vice.
Como se sabe a vitória desta dobradinha política foi retumbante.

* * *

Consagrado nas urnas, o vaqueiro tomou posse e se preparava para realizar uma
brilhante administração quando foi tragicamente morto naquele brutal acidente
rodoviário.
Com o desaparecimento prematuro do titular, obviamente o cargo de prefeito
ficou vago e cumprindo os ditames da Lei, a vice-prefeita assumiu a incumbência que o
direito judicial lhe conferia, tornando-se, dessa maneira, prefeita de Canindé de São
Francisco.
Tudo que estava projetado para o município foi radicalmente mudado.
Hortência, uma senhora prendada, afinada com os costumes das grandes cidades
e com uma vida voltada para as lides sociais dos centros modernos e totalmente
antagônicos de tudo que faz a cultura sertaneja, em especial o povo e os conceitos do
lugar de seu marido, se viu, como num passe de mágica, e sem jamais imaginar tal

124
possibilidade, guindada à condição de prefeita, responsável direta pelos destinos
administrativos de toda uma comunidade totalmente estranha aos seus princípios.
Apesar de seu conhecimento dos bancos escolares está muito além do normal
dos agora seus munícipes, Hortência não conseguiu vencer o desafio que surgiu em seu
caminho.
Lidar com a carência daquele povo era algo muito mais profundo do que tudo
que conhecia da vida.
Ser prefeita da Nova Canindé de São Francisco significava ser responsável pelo
destino de um município que estava saindo do estado de miséria para alcançar uma
posição econômica e social jamais esperada. Contudo, entrelaçada com essa
independência financeira, estava a extrema pobreza da pioneira população canindeense,
principalmente aquela que deixou a cidadezinha da beira de rio e tinha vindo morar na
nova cidade. Ainda mais. Como conviver com uma cultura completamente diferente
daquela em que a recém-empossada prefeita vivera toda sua vida? O que fazer e como
agir para sair daquele penoso desafio?
Qual o caminho a seguir? Abdicar de sua origem social e se integrar aos modos e
costumes quase que extremosos daquela gente arraigada a um estilo de profundas raízes
só conhecida e vivida pelo povo sertanejo? Não. Não tinha condições e nem meios
espirituais para tanto.
Portanto, pode-se atestar com certeza e convicção que aquele 06 de maio de
1993, data em que Hortência ascendeu ao poder municipal de Canindé de São
Francisco, não representou para ela uma vitória pessoal, e sim, um fardo pesado, uma
provação que afligiu e agoniou os seus ternos sentimentos. Além, é evidente, que tudo
aquilo tinha como pano de fundo a trágica, dolorosa e funesta morte de seu
companheiro de chapa, Delmiro de Miranda Brito.
O que Hortência não sabia era que também estava surgindo no horizonte de sua
existência o início de um período de aflições, tristezas e mágoas que iriam acompanhá-
la pelos caminhos de sua vida.

* * *

A nova representante do poder municipal não teve forças para conciliar o


inevitável choque cultural entre a sua pessoa e o jeito de viver da gente de sua
municipalidade que agora se encontrava sob a sua direção administrativa.
Este foi o fator primordial para a não obtenção do êxito tão desejado pela bela
citadina.
Na esteira de seus dissabores Canindé passou a viver um tempo de violência,
medo e morte. Hortência passou pela suprema aflição de ver seu esposo Jorge Luís
gravemente baleado em frente ao seu apartamento, em Aracaju.
Em 1995 a brutal chacina acontecida naquela manhã de 20 de janeiro, quando o
vereador e presidente do legislativo municipal, o senhor Ademar Rodrigues da Silva, o
Demar Teles, e com ele o seu guarda costa Alfredo Ferreira Nascimento, apelidado de
Mel, além do mecânico José Valter e o trabalhador desempregado que ali estava a
procura de serviço, Severino Ferreira da Silva, foram impiedosamente assassinados
friamente por medonhos pistoleiros.
Muitos outros tormentos fizeram com que a executora do município baqueasse e
fosse vencida pela poderosa avalanche de problemas que dela se acercaram. Portanto, a
condição de mandatária de Canindé de São Francisco não traz boas lembranças a essa
sensível senhora.

125
Ainda mais frustrante foi ter tido a infelicidade de sofrer uma intervenção.
Naquele 11 de julho de 1995, Hortência se viu afastada do cargo, cedendo o lugar ao
senhor Narciso Machado, nomeado interventor do município. Todavia, no final daquele
mesmo ano a esposa de Jorge recebe o cargo de volta e completa o seu mandato de
prefeita.
A passagem dessa meiga senhora pelo poder municipal daquele pedaço
florescente de sertão deixou-a com um travo amargo de tristeza e decepção. Mesmo
reconhecendo que não estava preparada para executar tão melindrosa missão, o seu
desejo era fazer tudo que pudesse alegrar e, acima de todos os obstáculos, que eram
imensos, beneficiar aquela gente que a acolheu com tanto carinho e dignidade.
Mas, infelizmente, aquele instante de sua vida lhe trouxe sérios embaraços e
provações. A tormenta foi uma constante naquela gestão. Os demasiados problemas não
lhe deram paz e nem sossego, até envolvendo-a nos cordéis quase que inquebrantáveis
da mentira e da maldade, sendo, inclusive, vítima de absurdas acusações de participação
em atos de violência.

126
CANINDÉ EM BOAS MÃOS

Com o slogan “Canindé em boas mãos”, o povo de Canindé de São Francisco


conheceu e viveu a “Era Galindo”.
Genivaldo Galindo, um pernambucano de Negras, um andarilho do trabalho, era
filho de Elídio Juvenal, apelidado de Doso, e dona Luzina Galindo.
O moço do sertão de Pernambuco, muito cedo, no entrar de sua juventude,
largou-se no mundo. Deixou a casa dos pais e arribou para Sertânia, também na terra de
Lampião, onde residia uma tia – Eulina – e dali, então, após laborar numa padaria, o
rapazinho foi trabalhar na rede elétrica que estava sendo construída daquela cidade até
Monteiro, na Paraíba.
O mundo começava a ganhar Genivaldo Galindo? Ou o filho de seu Doso e dona
Luzina estava ganhando o mundo?
Os serviços elétricos passaram a fazer parte da vida do rapaz de Negras. Depois
de deixar a CIVELETRO foi para a ELETRONOR, importante empresa cearense.
E o irrequieto pernambucano correu terras. Foi prestar seus serviços na cidade de
Crateús. Ali namorou uma bela moça, nascida ali mesmo naqueles campos do Estado de
Antônio Conselheiro. A faceirinha do Ceará se chamava Francisca Cilene. O moço
ficou enfeitiçado com seus encantos e sua exuberante formosura. O namoro foi rápido e
ardente. Em poucos dias os pombinhos estavam em frente ao altar recebendo às bênçãos
do vigário.
Por força do trabalho exercido pelo noivo, o casal foi passar a “Lua de Mel”, em
terras sergipanas, num lugarzinho chamado Pirambu.
Após a estadia em Pirambu se mudaram para o Estado da Bahia. Os serviços
elétricos se tornaram a grande fonte de renda do agora esposo de Cilene.
Galindo e esposa viviam num “mar de rosas” e para compensar tanta felicidade
os filhos começaram a nascer.

* * *

Em uma de suas viagens com destino ao seu Pernambuco, nos idos da década de
80, sabendo que nos ermos de Sergipe, num município chamado Canindé de São
Francisco, existia uma comunidade de pernambucanos saídos de Negras e seus
arredores, resolveu fazer-lhe uma visita. Estava curioso. Imaginava que iria encontrar
um lugarzinho de fome e miséria, atraso e sofrimento. Não foi assim. O empreiteiro se
surpreendeu com a povoação e seus moradores. Aquele lugar cheirava a progresso.
Ficou feliz ao constatar que seus patrícios transbordavam de satisfação e felicidade.
Foi assim que Genivaldo Galindo conheceu e se apaixonou pelo Capim Grosso.
Galindo se entusiasmou com o que viu naquelas brenhas sertanejas. Naqueles
ermos um mundão de terras de primeira qualidade. Legítimo massapê. Uma raridade
que os sergipanos não davam o menor valor.
Era inacreditável. Estava conhecendo uma região onde se podia trabalhar com a
certeza de um retorno compensador. Uma idéia aflorou de sua mente. Iria comprar uma
fazenda naquele lugar. Teve pressa em seu projeto. Dentro de poucos meses havia
adquirido uma propriedade bem próxima do povoado, dando-lhe o nome de Novo
Mundo.
Assim foi feito. Assim teve início à “Era Galindo” em Canindé de São
Francisco.

127
* * *

Conforme solidificava a sua amizade junto aos moradores da região, Galindo ia,
cada vez mais, se envolvendo com os problemas e as necessidades do povo e em
especial de seus conterrâneos. Carregava em mente um ambicioso projeto. Iria ingressar
na política e futuramente tentar chegar à prefeitura do município.
E assim aconteceu.
Filiou-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB – e se
dispôs a fazer oposição ao grande líder e prefeito Jorge Luís.
Chega a campanha eleitoral de 1988. O prefeito escolhe o seu parente e então
vereador Francisco Alberto Feitosa para ser o candidato de seu grupo e substituí-lo no
tão almejado posto.
Conforme projetara, Genivaldo Galindo também se candidatou a prefeito. Iria
enfrentar a força prodigiosa da equipe comandada pelo alcaide. Não fugiu de seu
intento. Foi em frente. Não podia esmorecer e nem temer o poder dominante do
município, carregava a tênue esperança de que o povo se decidisse em ajudá-lo a ganhar
aquela eleição.
Não foi possível. Sofreu uma fragorosa e retumbante derrota.
Os anos passaram e mais uma eleição se apresentou. Era a de 1992. Inicialmente
a disputa seria com Jorge Luís. Não foi o que aconteceu. Por força do impedimento
interposto pela Justiça Eleitoral, o famoso político de Canindé não teve a sua
candidatura registrada e o seu vice, Delmiro de Miranda Brito, assumiu o seu lugar
como candidato a prefeito.

* * *

Estava escrito. Mais uma vez o homem do sertão de Itaíba e Negras iria ser
derrotado. Foi mais uma derrota acachapante. Triste e desiludido, Galindo imaginou se
afastar da política e nunca mais ser candidato a coisa alguma. Porém, teimoso e
renitente, foi vencido pela imperiosa vontade de um dia ser prefeito do agora tão falado
e desejado município.
Delmiro havia morrido tragicamente num acidente rodoviário. A vice-prefeita
Hortência Carvalho que o havia substituído não estava sendo muito feliz em sua gestão.
Os problemas se avolumavam em sua volta e enquanto isto a eleição de 1996 se
aproximava.
Quem sabe se naquele instante de turbulência administrativa não chegaria a vez
do pernambucano? E Galindo se candidatou pela terceira vez. Mas, jurou para sua
família e amigos que se não conseguisse se eleger aquela seria a sua última tentativa. Se
não alcançasse o sucesso desejado abandonaria definitivamente o seu sonho de ser
prefeito.
Tem ciência das dificuldades que lhe espera. Enfrentar, justamente Jorge Luís e
o poder econômico da prefeitura é um desafio imenso e quase que intransponível.
Mesmo não esquecendo que já havia sido derrotado em dois seguidos pleitos, o
construtor de rede elétrica não esmoreceu e com força redobrada enfrentou o seu
poderoso adversário.
A sorte estava mais uma vez lançada.
Eis que o improvável aconteceu. Genivaldo Galindo obteve uma espetacular
vitória e se elegeu prefeito de Canindé de São Francisco. O quase que impossível sonho
havia se tornado numa feliz realidade.

128
Surgia, assim, a fulgurante “Era Galindo”. E sua gestão recebeu o slogan de
“Canindé em boas mãos”.

* * *

Aconteceu mais uma mudança no calendário eleitoral e com ela a possibilidade


de reeleição do presidente, dos governadores e dos prefeitos. Os governantes de todas as
esferas administrativas, escorados na ridícula argumentação de que precisavam dar
continuidade a seus projetos e suas administrações, aproveitaram a nova lei e foram em
busca do segundo e consecutivo mandato.
Como não poderia deixar de ser o prefeito de Canindé também foi um deles.
A eleição chegou e Galindo voltou a se eleger com relativa facilidade. No dia 01
de janeiro de 2001, tomou posse. Era o prosseguimento de uma administração desde
muito minada por uma avalanche de denúncias.
Os problemas eram graves e incontornáveis. O prefeito caiu. E naquele 12 de
março o pior aconteceu: foi expedida uma ordem de prisão contra ele.
Para não ser preso Genivaldo fugiu. Três dias após o mandado de prisão – 15 de
março – solicitou licença e entregou o cargo a sua nora e vice-prefeita, Rosa Maria
Fernandes Feitosa, que assumiu interinamente o comando administrativo e político do
município.
A pressão era fortíssima. Acuado e sem poder se livrar do pedido de prisão
preventiva, o desesperado representante municipal põe fim a sua agonia e a sua
turbulenta passagem pela história política de Canindé de São Francisco, renunciando o
cargo.
Naquele dia 27 de março de 2001 assina a sua renúncia, abdicando do honroso
cargo que o povo daquela jurisdição o havia confiado pela segunda vez consecutiva.
Naquele mesmo dia 27 de março, Rosa Maria assume oficialmente os destinos
do município. As provações da “Era Galindo” não haviam terminado. A elegante e
ilustre senhora prefeita iria sofrer as conseqüências do poder que os direitos
constitucionais lhe haviam conferido.
Antes de completar dois meses à frente da municipalidade se viu afastada em
obediência a uma ordem judicial emanada de instância superior do Estado de Sergipe, e
em respeito aos ditames da Lei, o governador Albano do Prado Franco, nomeou um
interventou na pessoa do Dr. Fernando Ferreira de Matos, que se apossou no dia 02 de
maio de 2001.
A intervenção se estendeu por seis meses. Em novembro de 2001, Rosa Maria
retorna ao posto que lhe pertencia de direito. Pensava em impor o seu próprio jeito de
administrar. Tinha ciência das dificuldades que lhe esperava. Contudo, era portadora de
muita fé e acreditava no êxito daquela sua tão melindrosa missão.
Uma nova era despontou. Um novo tempo surgiu e a história desse novo período
da humanidade só poderá ser contada no andejar do novo milênio.
Era o fim da “Era Galindo”.

129
ANEXO

130
O POVO SOFRIDO DO CANINDÉ VELHO DE BAIXO

Os meios de comunicação têm sido pródigos em relação à vida de Canindé do


São Francisco, município que ganhou projeção após o direito constitucional de ver sua
receita elevada para picos verdadeiramente astronômicos. A nova cidade foi projetada e
construída sob a égide da grandeza, e pessoas de toda Brasil acorreram à procura de
lucros e vantagens.
A Nova Canindé era o grande eldorado de Sergipe. E os pioneiros da Velha
Canindé? O que foi feito deles? Quais as providências e cuidados que as autoridades do
Estado e do País tomaram em relação às famílias do pequeno núcleo ribeirinho?
Com ares de “bom moço” os responsáveis pela hidrelétrica, guiados pela
insensibilidade característica daqueles que não possuem o mais elementar sentimento de
humanidade, cuidaram de convencer aquela gente a se mudar para a nova e grandiosa
cidade com argumentos tentadores.
Chegou o dia da mudança. Muitos sofreram aquela triste despedida. Foi com dor
no coração que aquela gente abandonou sua casa e se retirou de sua cidadezinha amada,
com destino à nova cidade.
Cada um daqueles beiradeiros sonhava com melhores dias, uma condição
melhor, uma mesa farta, e junto a esses sonhos, a certeza da continuidade da paz e
harmonia que gozavam no pequenino lugar de seus troncos e raízes.
O tempo passou, lá se vão 14 anos da inauguração da nova cidade. O município
enriqueceu, o povo empobreceu ainda mais. A maioria dos que vieram da Velha
Canindé perdeu a sua identidade e hoje é considerado resto de um povo que perdeu suas
casas, sua tranqüilidade e o aconchego das ruazinhas poeirentas do lugar em que nasceu
e viveram os melhores anos de sua vida.
O que se vê nos dias de hoje é um injusto e inexplicável contraste; o município,
que nos tempos de penúria e indigência era um pai amoroso que se preocupava com
seus filhos, nos dias atuais tornou-se um pai perverso e injusto para com seus
descendentes que vivem mergulhados numa pobreza absoluta, enquanto ele – o
município – é detentor de grandes posses.
Pobre povo, o povo da Velha Canindé. Perderam tudo. Atônitos e abismados, os
moradores da cidade condenada assistiram ao final triste da história do Canindé Velho
de Baixo. Naquele inesquecível e doloroso instante começava também a perda da
identidade dos filhos do último porto do Baixo São Francisco.
Tudo foi dizimado. A cidade foi varrida do mapa de Sergipe. Há troco de quê?
Absolutamente nada. De vez que com o passar dos anos foram construídas casas e até
uma estrutura de um hotel – nos dias atuais em pleno funcionamento –, numa prova
mais do que evidente de que não havia necessidade de se assassinar a história do povo
da Velha Canindé. E, ainda mais, não se respeitou nem os mortos da cidade destruída.
Numa atitude absurda e verdadeiramente incompreensível, os restos mortais de um
povo que deu vida a Canindé e a Sergipe foram arrancados de suas tumbas, onde
repousavam para a eternidade, e foram levados para o novo cemitério da nova e vaidosa
menina sertaneja.
A Nova Canindé roubou a identidade cabocla. Destroçou o sentimento de cada
um dos descendentes da beira do “Velho Chico”. Em lugar da caça e da pescaria a
sobrevivência chega através do bendito dinheirinho das aposentadorias, além da
vergonha de se ver obrigado a ir para uma fila mendigar uma cesta vergonhosa do
Governo Federal.

131
Não se pode negar. É uma verdade. O sertanejo foi castigado. Um castigo tão
medonho que até o gigante e invencível Rio São Francisco caiu e foi dominado pela
sanha maldita do homem que em nome do progresso levou-o para uma quase
irreversível morte. Dá pena de ver a situação chocante e aflitiva do famoso rio.
A Nova Canindé é notícia, é manchete de jornal, é noticiário de televisão, é uma
jovem mocinha que precisa ser exemplada para perder sua vaidade, seu orgulho e sua
insensibilidade.
E o povo da Velha Canindé?
Este continua sofrido.
Até quando?
Só Deus sabe!

132

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